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MARCELO LEBRE CRUZ
A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE SEGURANÇA FACE A
PERICULOSIDADE CRIMINAL
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do título
de mestre em Direito pelo Programa de
Mestrado das Faculdades Integradas
do Brasil (UniBrasil).
Orientadora: Prof.ª Drª. Clara Maria
Roman Borges.
CURITIBA
2009
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ii
TERMO DE APROVAÇÃO
MARCELO LEBRE CRUZ
A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA DE SEGURANÇA FACE A
PERICULOSIDADE CRIMINAL
Dissertão aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de mestre no
Curso de Pós-Graduação em Direitos Fundamentais e Democracia, Escola de Direito e
Relões Internacionais, Faculdades Integradas do Brasil UniBrasil, pela seguinte
banca examinadora:
Orientadora: Prof.ª Drª. CLARA MARIA ROMAN BORGES (UNIBRASIL).
Membros: Prof. Dr. ALEXANDRE MORAIS DA ROSA (UNIVALE).
Prof. Dr. ELIEZER GOMES DA SILVA (UNIBRASIL).
Curitiba, 14 de agosto de 2009.
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iii
Dedico este trabalho às meninas de minha
vida: Joyce, Maria Victória, Rafaela e
Silvia. Tudo o que faço é para vocês.
iv
AGRADECIMENTOS
Essa dissertação reflete o resultado de uma jornada iniciada no ano 2000,
nessa mesma Instituição de ensino, a qual não teria sido trilhada se não fosse o
auxilio, o incentivo e a compreensão de pessoas especiais. Algumas delas faziam
parte da minha vida, outras passaram a fazer ao longo destes anos.
Deixo meu muito obrigado, primeiramente, a minha falia: João, Joyce,
Maria Victória, Silvia e Rafaela, sem vocês nada disso teria sentido. Aos meus as e
ao meu padrinho Júlio que, mesmo a quilômetros de distância, sempre acompanharam
meus passos e se orgulharam de minhas atividades. À minha prima Michele (da
Unicamp) que muito me auxiliou nas pesquisas iniciais. Também agrado ao sr.
Elson, dn.ª Sônia e ao Pedro, que me acolherem em sua casa como a um filho/irmão.
Aos amigos que me acompanham a muito tempo - Alexandre, Chico e Paulo
André -, aos que vieram logo após Cudio (a quem devo especial agradecimento
pelo auxílio na revio), Carol(s), Charles, Diana, Eduardo, João Paulo, Ricardo (Kana),
Rômulo, Vianei e Paulo Coen e aos que conquistei durante o mestrado Betina,
Leonardo, Manuel, Regina e Pablo (a quem gostaria de ter conhecido antes). Sem
amigos, de fato, não somos ninguém.
Aos professores que tive ao longo desta jornada e que hoje o, também,
colegas de docência: prof.ª Clara Borges, que esteve ao meu lado na graduação,
especializão, mestrado e que me orientou neste trabalho; profs. Eliezer Gomes da
Silva e Paulo Ricardo Schier, que me auxiliaram na qualificação e revio do trabalho.
Aos profs. Alexandre Morais da Rosa, Francisco A. M. Rocha Jr., Ledo Guimarães,
Sylvio Loureo e Paulo Busato, com quem troquei várias idéias ao longo da
dissertão. Aos profs. Emerson Gabardo e Evandro Pizza, que me possibilitaram
concretizar o sonho de ser professor. À prof.ª Andréa Roloff, que fez a correção
metodológica de mais um de meus trabalhos. Ao prof. Roncaglio e à Dr.ª Sônia Mercer,
que foram os primeiros a me dar uma oportunidade no mundo judico, a quem
agradeço em nome dos que porventura tenha esquecido de citar.
A todos, o meu muito obrigado.
v
SUMÁRIO
RESUMO.............................................................................................................. vii
ABSTRACT .......................................................................................................... viii
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS .............................................................. ix
INTRODUÇÃO ..................................................................................................... 1
1 O ‘TRATAMENTO’ NA CASA DO DELÍRIO: A MEDIDA DE SEGURANÇA 07
1.1 EDIFICAÇÃO JURÍDICA DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA ...................... 07
1.1.1 As Primeiras Construções Legislativas do Instituto ................................... 07
1.1.2 A Medida de Segurança na Legislação Brasileira ..................................... 16
1.1.3 Novas Perspectivas da Medida após o Código de 1940 ........................... 27
1.2 CONFORMAÇÃO DOGMÁTICA DO INSTITUTO ....................................... 37
1.2.1 As Distinções entre Penas e Medidas de Segurança ................................ 37
1.2.2 Pressupostos Legais para a Medida: o Injusto-penal e a Inimputabilidade 46
1.2.3 A Periculosidade Criminal como Pressuposto ........................................... 53
2 FENOMENOLOGIA DA LOUCURA E A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA
PERICULOSIDADE ........................................................................................ 65
2.1 DO SILENCIAR NA ANTIGUIDADE À DEMONIZAÇÃO DA IDADE MÉDIA 65
2.1.1 Premissas Clássicas da Loucura e Periculosidade. .................................. 65
2.1.2 Inquisição e Demonologia da Loucura ...................................................... 74
2.2 PODER RÉGIO E A FIGURA DO MONSTRO ............................................. 80
2.2.1 Organicismo Clínico e a Estrutura Soberana ............................................ 80
2.2.2 A Caricatura do Monstro ............................................................................ 92
2.3 CONSTRUÇÕES PERVERSAS: A SCIENCIA DA DISCIPLINA NO SÉCULO
DOS MANICÔMIOS..................................................................................... 97
2.3.1 Terapêutica Moral e o Surgimento do Anormal ......................................... 97
2.3.2 Microfísica da Disciplina: a Produção de Corpos Dóceis .......................... 103
2.3.3 O Saber Psiquiátrico e a Consolidação da Periculosidade ........................ 111
3 PROTECIONISMO X GARANTISMO: A DESCONSTRUÇÃO DA MEDIDA . 125
3.1 A INCONSTITUCIONALIDADE (NÃO) DECLARADA ................................. 125
3.1.1 Abstração Conceitual da Periculosidade: Afronte a Legalidade
e Igualdade ................................................................................................ 125
vi
3.1.2 Desvirtuamento da Culpabilidade, Intervenção Mínima, Devido
Processo Legal, Coisa Julgada e Humanização ...................................... 144
3.2 GARANTISMO PENAL: POSSÍVEL ALTERNATIVA? ................................. 157
3.2.1 Sistemas Penais Garantistas e Autoritários .............................................. 157
3.2.2 Garantismo, Direito Penal Mínimo e Estado Constitucional ...................... 171
3.2.3 Utopias Garantistas ou Limitações Necessárias? ..................................... 181
CONCLUSÕES .................................................................................................... 190
REFERÊNCIAS BIBLOGRÁFICAS ..................................................................... 195
ANEXOS .............................................................................................................. 213
vii
RESUMO
A presente dissertação objetiva trabalhar com a temática central da periculosidade,
enquanto fundamento legitimador e pressuposto indispensável para a aplicação de
medidas de segurança aos sujeitos que cometeram um injusto-penal, e que não
podem ser alcançados pelo juízo de censura da culpabilidade (exatamente por
serem portadores de algum transtorno mental). Para tal, far-se-á um resgate inicial
acerca da evolução histórica da regulamentação do poder em cada modelo de
Estado, demonstrando que a consagração de entes perigosos sempre esteve
presente em cada um destes momentos. Nesse diapasão, facilmente se verificará
que o perigoso corporificado na figura do “diferente” (o outro) - sempre foi visto
como verdadeiro inimigo da sociedade, sendo, portanto, merecedor de um
tratamento punitivo, discriminatório e segregatório por parte da tutela penal do
Estado. Igualmente, será abordada a temática relativa às ticas de controle e
dominação encampadas pelo ordenamento jurídico dos diversos países inclusive
do Brasil - para a contenção dos entes perigosos; e dentre essas diversas táticas,
dar-se-á especial ênfase à medida de segurança penal: sua estruturação histórico-
legislativa, pressupostos, espécies e execução. Ao final demonstrar-se-á que tal
instituto exatamente por estar fundamentado na oracular idéia de periculosidade -
não se coaduna com o ideal garantista propugnado pelo hodierno Estado
Democrático de Direito, padecendo do insanável vício da inconstitucionalidade.
viii
ABSTRACT
The present dissertation aims to work mainly with harmfulness as a legitimate base
and indispensable presumption for measures of security application to incapable
subjects who committed a crime but are not achieved by culpability judgement
(because of their mental disorder). Firstly, we’ll make a rescue about the historical
evolution of political power in each State model, showing that the establishment of
dangerous entities was present in each of these moments continuously. On this way,
it will be easy to notice that the dangerous person meant to be the ‘different’ (the
other) was always faced like a truely enemy’s society, deserving, therefore, a
strictly and unfair treatment by the criminal justice system. Equally, it will be
considered the question about several assuring measures accepted by the law
system of many others countries also by Brazil for containment of dangerous
entities; and among these several tactics, it will be given more emphasis to
“measure of security”: its structure, presumptions; species and execution. At the end,
we’ll show that this institute exactly because it’s based on the oracular idea of
“harmfulness” doesn’t fit with the guaranteeing ideal spread by the current
Democratic State of Law, suffering of the irreparable mistake of unconstitutionality.
ix
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
Art. - artigo
Arts. - artigos
CP - Código Penal
CPC - Código de Processo Civil
CPP - Código de Processo Penal
CR - Constituição da República
CR - Constituição da República de 1988
Inc. - inciso
Incs. - incisos
LEP - Lei de Execuções Penais
MS - medida de segurança
RT - Revista dos Tribunais
SG - sistema garantista
STF - Supremo Tribunal Federal
STJ - Superior Tribunal de Justiça
TJ - Tribunal de Justiça
INTRODUÇÃO
Sem ter a pretensão de fazer pormenorizadas incursões no vasto campo
da subjetividade humana, amplamente estudada e debatida pelas ciências da mente
as nominadas psi” (psicanálise, psicologia e, especialmente, a psiquiatria) –, a
presente dissertação aborda, sob uma perspectiva estritamente criminológica e
dogmática, uma temática que desperta usual curiosidade na população em geral,
embora não seja alvo da mesma atenção por parte da comunidade jurídica, o que
se deve, em especial, por conta de preconceitos e incertezas carreadas pelos
operadores do Direito: a relação entre loucura e criminalidade, bem como as
consequências jurídicas daí advindas.
1
Partindo de fatos históricos e concepções clínicas, filosóficas e
sociológicas, as quais se vincularam ao longo dos séculos a variadas construções
jurídico-penais, demonstrar-se-á que toda a estrutura que legitima a existência e a
aplicação das medidas penais de segurança, essencialmente fulcrada na idéia
pseudocientífica de periculosidade do agente, arrosta diretamente o espírito
propugnado pela Carta Magna brasileira de 1988, o que a torna inconstitucional.
Para tal, o trabalho se debruçará sob três perspectivas: para o passado,
1
Inicialmente, é mister delimitar que o termo “loucura” (e seus análogos: v.g., o “louco”),
empregado ao longo desse trabalho acadêmico, quer se referir, genericamente, à toda e qualquer
espécie de patologia ou transtorno psíquico/mental, assim delineados no DSM-IV, publicação da
American Psychiatric Association In: ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. DSM-IV:
Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995. Também
aceito pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Disponível em: <http://www.psych.org/> e
<http://www.abpbrasil.com.br> Acesso em: 01 jul.2008.
Todavia, não se pode deixar de reconhecer que a mesma expressão é também
concebida sob uma perspectiva mais ampla: uma idéia sociológica de loucura, que se referente aos
atos daqueles que abruptamente se diferenciam da média geral da população em razão de seu
comportamento e suas características únicas, ou que ao mesmo tempo são exagerados, inusitados
ou pouco aceitos pelo corpo social no que também se incluem, por certo, aqueles indivíduos que
sofrem de alguma espécie de transtorno mental, como bem salienta FERRAZ, Flávio Carvalho.
Andarilhos da imaginação: um estudo sobre os loucos de rua. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2000.
p.30. Será adotada, pois, a idéia de loucura enquanto toda e qualquer experiência (psíquica) que
representa uma ruptura com o universo da razão, ainda que tal ruptura seja indireta ou parcial”,
conforme assevera BIRMAN, Joel. Entre cuidado de si e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise.
Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.p. 41. Ou seja, “a loucura como a perda das capacidades
racionais ou a falência do controle voluntário sobre as paixões, como um estado individual da perda
da razão ou do controle emocional”, e não como uma genérica aberração da conduta em relação aos
2
onde fará uma reconstrução histórica da medida de segurança traçando algumas
premissas doutrinárias e delineando sua incorporação legislativa e também da
própria concepção de periculosidade, sempre procurando atrelá-la ao fenômeno da
loucura e à idéia de inimigo; para o presente, onde demonstrará que o tratamento
conferido ao indivíduo portador de transtornos psíquicos é rigorosamente punitivo e
segregatório, especialmente firmado com a consagração das medidas penais de
segurança; por fim, lançará seus olhares para o futuro, onde se concluirá pela
possibilidade de uma saída ao problema delineado, conferida por meio de uma
estrutura garantista do direito, na qual as medidas de cunho pretensiosamente
protetivas (com as medidas de segurança) devem ser definitivamente banidas da
estrutura jurídico-penal.
Nesse diapasão, o primeiro capítulo se ocupará basicamente de uma
delimitação dogmático-legislativa da medida de segurança. De início, se verificará
como e quando o instituto surgiu no âmbito legislativo: ocasião em que se chamará
à voga o anteprojeto do Código Suíço elaborado por STOOS e o Código penal
italiano estruturado por ROCCO
2
- ambos inspirados nas idéias que Franz Von
LISZT trouxe no Programa de Marburgo.
3
Também será traçada uma linha evolutiva do instituto no âmbito da
legislação penal brasileira, bem como se firmará as concepções teóricas que lhe
deram sustentabilidade nesta evolução: dos primeiros esboços trazidos pelo Código
criminal do Império (1830) e pelo Código penal da República (1890), até a sua
definitiva consolidação no Código penal de 1940 e as transformações legislativas
que se seguiram (a reforma penal de 1984 e a Lei de execução penal).
4
Feita esta delimitação inicial, o capítulo se voltará à conformação teórica
do instituto no Direito brasileiro, ocasião em que será feita uma distinção entre
penas e medidas de segurança, bem como se fará uma acurada análise dos
pressupostos legais exigidos para a aplicação da medida: a prática do injusto penal
padrões ou valores dominantes numa certa sociedade como também indica PESSOTTI, Isaias. A
loucura e as épocas. Rio de Janeiro: 34, 1994, p.07.
2
Neste sentido: STOOS, Carl. Avant-projet de code pénal suisse [1893-1894]; ROCCO,
Arturo. Il codice penale italiano: codice Rocco [1930] Apud NOGUEIRA, Ataliba. Medidas de
segurança.o Paulo: Livraria Acadêmica, 1937. p. 110-117.
3
LISZT, Franz Von. Marburger Programm [1882] Apud LISZT, Franz Von. Tratado de
direito penal allemão. Brasília: Senado Federal, 2006. p.17.
4
Consubstanciadas, respectivamente, nas Leis n.º 7.209 e n.º 7.210, ambas de 1984.
3
por um agente que é inimputável em razão da patologia mental, o qual é
considerado, por conta disso, um indivíduo criminalmente perigoso.
É aqui que serão trazidas as primeiras idéias sobre a noção de
periculosidade, enquanto argumento que sustenta e legitima a aplicação das
hodiernas medidas de segurança. É também o momento em que se estabelecerão
as primeiras críticas ao instituto, as quais servirão de base para aventar a sua
inconstitucionalidade nos capítulos próximos.
O segundo capítulo está voltado para uma análise histórica da concepção
e do tratamento conferido ao indivíduo considerado perigoso ao longo da evolução
política e social dos diversos Estados ocidentais.
5
Iniciando por uma ligeira
abordagem da antiguidade clássica, tempos da filosofia de Eurípedes, Hipócrates,
Ésquilo e Galeno, onde os perigos inerentes à loucura eram objeto da mitologia e
dos textos trágicos ou poéticos. Passando pela idade média e a visão demoníaca do
fenômeno, quando se fez pela primeira vez buracos nos crânios dos indivíduos para
extirpar-lhes o mal e conceder-lhes a salvação da fé. Até o advento das monarquias
absolutas, erguidas em torno do princípio do poder régio, onde a loucura passa a
receber contornos médicos – pois mesmo se concebendo o indivíduo perigoso
como ser teratológico (o “monstro”), ainda assim se propugnava por um
“tratamento”, usualmente marcado pelo castigo, pelo medo e pela dor.
Por fim, sob o marco teórico do iluminismo - que possibilitou o
desencadear das grandes revoluções do século XIX e XX, e também inspirou o
nascimento da criminologia -, se demonstrará que a inversão operada na mecânica
de poder (antes soberana, agora disciplinar) ofertou um novo trato ao indivíduo
portador de transtornos mentais, especialmente ao infrator da norma penal:
baseado numa idéia de normalização, o mais se buscava o controle pela simples
exclusão, mas, ao contrário, pretendia-se impor-lhes uma inclusão forçada,
tornando-os indivíduos dóceis e úteis ao novo sistema.
É nesta perspectiva que se delineará o estreitamento de laços que ocorreu
entre as ciências médicas e jurídicas (especialmente entre psiquiatria e direito
5
Anota-se, por oportuno, que a divisão adotada no presente trabalho toma como base
preliminar a classificação nosográfica feita por Isaias Pessotti - que entende a ‘loucura’ em três
perspectivas históricas: concepção trágica, concepção demonista e concepção médica –, a qual,
reconhecidamente, é imprescindível para a correta compreensão do tema In: PESSOTTI, Isaias. A
loucura e..., p.09.
4
penal), ocasião em que se inaugura oficialmente o conceito de periculosidade como
marco diferencial e viabilizador da eterna segregação de certa gama de indivíduos:
os hostis
6
. Tal vinculação - quase promíscua (no sentido de que não um respeito
mútuo) - de saberes, que ocorreu pari passo com a Revolução burguesa e propiciou
a construção de uma abstrata gica hospitalocêntrica, fez com que o século XIX
ficasse conhecido como o “século dos manicômios”
7
, bem como propiciou a
elaboração e solidificação das medidas de segurança.
Perguntas como: no que consiste a periculosidade? pode ela ser definida
sob os parâmetros de um conceito fechado? existe algum critério (objetivo) para
delimitar quem é perigoso? se sim, a quem competirá identificá-los? - serão objeto
de acurada verificação ao longo do texto, sempre acompanhadas das necessárias
críticas criminológicas.
Das respostas obtidas, facilmente se perceberá que as medidas de
segurança somente geram um indesejável processo de segregação, exclusão e
punição (se é que tal processo é verdadeiramente indesejado) voltado unicamente
para o controle social, o que será objeto de críticas no capítulo terceiro do trabalho.
Constatar-se-á que o indivíduo submetido ao “tratamento” proposto por tal
medida penal, não apenas ficará privado de sua liberdade ambulatorial de maneira
arbitrária e por tempo indefinido contrariando o teor expresso de normas contidas
na Carta Magna brasileira (como, por exemplo, o artigo 1º, inciso III o artigo 5º,
caput e incisos I, III, XXXIX, XLI, XLVI, XLVII, XLIX, LV da Constituição) - como
também lhe serão negados vários dos benefícios que usualmente são assegurados
aos sujeitos criminalmente imputáveis: como a progressão de regime, o livramento
condicional, a possibilidade de uma efetiva detração penal, o sursis, a remição pelo
trabalho, permissão de saída e saídas temporárias, dentre outros os quais, para
além de meros benefícios da execução, consagram verdadeiros direitos que
incorporam o patrimônio subjetivo do cidadão.
Este quadro acaba gerando uma incômoda situação, de toda inconcebível
num Estado Democrático: a de direitos que são negados a determinados indivíduos
pela simples condição de serem portadores de uma patologia (psíquica) que
6
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo no Direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
7
PESSOTTI, Isaias. O século dos manicômios. São Paulo: 34, 1996. p.03.
5
interfere na capacidade de entender o caráter ilícito de seu ato ou portar-se de certa
maneira diante dele.
Sob tais perspectivas, uma vez solidificada as necessárias críticas ao
fenômeno da periculosidade, bem como à instituição manicomial e à sanção penal
conhecida por medida de segurança, propugna-se ainda no terceiro capítulo - por
uma possível solução ao problema, ocasião em que se chama à voga o discurso
garantista desenvolvido por Luigi FERRAJOLI
8
, o qual melhor pode se adequar à
lógica dos hodiernos Estados constitucionais. Obviamente, isto não significa que tal
ideologia passa ilesa a críticas e estas serão brevemente pontuadas e rebatidas,
para que não se corra o risco de cair na tentação de um cego e utópico garantismo
penal.
Como abordagem derradeira, far-se-á uma necessária distinção entre
garantismo e protecionismo, verificando que apenas o primeiro modelo se adequa
ao marco democrático, do que se conclui que qualquer tentativa de manutenção das
medidas de segurança, enquanto instrumento penal de sanção aplicável ao infrator
que possui um transtorno mental, se transforma em verdadeira medida kafkaniana
de segregação.
Afinal de contas, se o tratamento usualmente conferido nos diversos
manicômios judiciários não se presta efetivamente a curar o infrator patológico e a
propagada intenção de ulterior inclusão, em verdade, só o exclui mais, não há razão
de ser para o internamento penal.
Objetiva-se, com isso, demonstrar que os danos causados pelas medidas
de segurança ao portador de transtorno mental que está em conflito com a lei penal
são demasiado elevados e inúteis. E mais, ao conformar uma determinada
identidade (um estigma) para esse sujeito, verifica-se que a atual postura
encampada pelo ordenamento penal não supre suas necessidades especiais.
Visando romper com a estrutura jurídica que sustenta o instituto, o
presente trabalho investigará as razões deste poder de segregação eterna e sem
direitos mínimos que se firma com os hospitais psiquiátricos judiciário.
Para tal, deverá ser definitivamente desconstruído o pensamento que
ainda permite alardear que ‘normal’ é o que advém da norma (enquanto reflexo de
8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: RT, 2002.
6
um determinado jeito ou maneira de ser desejada/exigível do corpo social), bem
como a lógica perversa - excludente e inconstitucional - que transforma o portador
de sofrimento mental em um cidadão de segunda classe, um verdadeiro “não-
cidadão”.
É preciso, pois, verificar que medida é esta que hospitaliza para todo o
sempre e não deixa margem para qualquer reinserção social. Desvendar os vários
“porquês” que circundam o instituto, especialmente para desnudar que espécie de
diferença permite que se trate o portador de sofrimento apenas como objeto e não
sujeito de direitos.
Para cumprir a missão proposta, o trabalho se apoiará basicamente nos
pensamentos filosóficos de Michel FOUCAULT, na historiografia clínica de Isaias
PESSOTTI, na criminologia crítica e também nas construções jurídicas de Eugênio
Raúl ZAFFARONI e Luigi FERRAJOLI.
7
1 O ‘TRATAMENTO’ NA CASA DO DELÍRIO: A MEDIDA DE SEGURANÇA
1.1 EDIFICAÇÃO JURÍDICA DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA
1.1.1 As Primeiras Construções Legislativas do Instituto
Tratar da inconstitucionalidade da medida de segurança, impõe ao
pesquisador a missão de abordar, necessariamente, a temática da periculosidade
criminal: seu nascimento e transformação ao longo dos séculos, bem como sua
incorporação e consolidação ao direito penal. Afinal, é sob tal noção que se assenta
toda a legitimidade do instituto.
Contudo, para que se possa ter uma exata compreensão das idéias que
circundam a temática da periculosidade, é necessário firmar, antes, algumas das
premissas que delinearam a formatação da própria medida no âmbito da doutrina e
da legislação penal.
Para tanto, a primeira parte deste trabalho se dedicaexclusivamente a
traçar as linhas gerais que conformam aquilo que, hoje, o direito penal concebe
como medida de segurança.
Etimologicamente, tais medidas traduzem a idéia de providência, de
precaução, de cautela, característica especial de se dispensar cuidados à algo ou
alguém para evitar um determinado mal. É exatamente nesta perspectiva que elas
também acabaram por consagrar o seu escopo primordial: atuar no controle social,
afastando o risco inerente ao delinquente que é inimputável (ou semi-imputável) e
que praticou (ou tende a praticar) uma infração à norma penal.
9
Neste diapasão, é possível concebê-las como uma providência do poder
político estatal que impede que determinada pessoa, ao cometer uma infração penal
e se revelar perigosa, venha a reiterar a conduta desviante, necessitando de
tratamento adequado para sua reintegração (ou exclusão) social.
10
Mas antes de alcançar a estrutura jurídica que tem hoje, o instituto foi alvo
9
FERRARI, Eduardo Reale. Medidas de segurança e direito penal no estado democrático
de direito. São Paulo: RT, 2001. p. 15.
8
de diversas elaborações teóricas e legislativas, no Brasil e no mundo. Basta verificar
que tais medidas surgiram - como espécie de sanção regulamentada em um
ordenamento jurídico - apenas no final do século XIX, por inspiração da doutrina de
Franz Von LISZT
11
, que as concebeu ao lado das penas, como mecanismo eficaz
de defesa social.
Von LISZT, inspirado por uma concepção intitulada preventiva da sanção
penal - de matriz nitidamente positivista (fruto das transformações no pensamento
criminológico ocorrido na época) -, desenvolveu toda uma idéia sobre a “pena-
fim/pena-defesa”.
12
Certamente influenciado pela doutrina de Rudolf Von IHERING
13
num
primeiro momento, acreditava que toda sanção penal deveria estar voltada à
consecução dos fins do próprio Direito, que tem por escopo a proteção dos
interesses da vida humana. Nesta perspectiva, caberia ao direito penal proteger os
mais relevantes bens jurídicos do cidadão, de modo que a repressão penal
instrumento principal da atuação punitiva estatal - não poderia ser utilizada quando
desnecessária.
Partindo destas premissas, elegeu na defesa social o fim justificador à
imposição de sua “pena-defesa, integrando num tipo de sanção fins retributivos
e preventivos. LISZT acreditava na junção entre utilitarismo e justiça das normas
jurídicas, de modo que “a punição se justifica, ora por fins retributivos ao mal
praticado, ora por prevenção diante do perigo da reiteração da conduta”.
14
Tal criação foi reflexo do estado de espírito que dominava a doutrina penal
do século XIX e XX: de um lado, via-se a escola clássica pregando fins mais
humanitários à sanção penal (idéia estritamente liberal); de outro lado, a nascente
escola etiológica acrescentava à anatomia silogística do crime, como fenômeno
10
Idem.
11
Numa variante alemã do positivismo, LISZT propunha a imposição de penas
ressocializadoras para os iguais e penas intimidatórias para os ocasionais. E para os incorrigíveis (os
verdadeiros inimigos), como não era possível se propugnar, em sua época, por uma matança
coletiva dos mesmos, LISZT propugnava pela neutralização dos mesmos (especialmente pela pena
perpétua). In: LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal..., p.100.
12
LISZT, Franz Von. Teoria finalista no Direito penal. Campinas: LZN, 2007. p.18. E
ainda: LISZT, Fran Von. A idéia do fim no Direito penal. São Paulo: Rideel, 2005. p.62.
13
Para IHERING, o Direito é uma consecução de fins (visão finalista); é algo que se forja
no perene trabalho do Direito, sendo por essa razão o "conjunto das condições de vida da sociedade
asseguradas pelo Poder Estatal por meio de coação externa" estando por essa razão intimamente
ligado ao Estado” – In: IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. São Paulo: Rideel, 2005. p. 08.
9
jurídico e abstrato, o estudo das condições pessoais e reais do delito, como
fenômeno natural e social (num ideal puramente interventor). Ou seja, era um
momento de transição que vivia a doutrina penal,
15
no qual se percebeu que a
tradicional concepção da pena não era suficiente para impedir os avanços da
criminalidade, o que os fez perquirir a enunciação de uma nova espécie de resposta
jurídico-penal.
16
Elegeu-se na inocuização e no tratamento do delinquente, fins
irrenunciáveis à resposta jurídico-penal, como forma substitutiva a então vigente
idéia clássica de retribuição. E foi assim que se começou a falar em uma finalidade
preventiva para a sanção.
Mas note-se que num primeiro momento a perspectiva de prevenção
estava ligada unicamente à pena (stricto sensu), aplicável ao agente consciente e
com liberalidade de ação, de modo que muitos delitos acabavam ficando sem
punição como, por exemplo, nos casos constatados de incapacidade psíquica do
agente. E isso era inconcebível dentro de uma nova perspectiva que se inaugurava
à época, a qual pretendia fechar todas as lacunas onde o poder punitivo não
alcançava.
Foi então que cresceu a influência e a importância dos positivistas
italianos. Partindo da premissa de que o crime é uma doença social, eles
propugnavam que a cura poderia ser alcançada com o tratamento, forçosamente
imposto durante a execução da pena.
Influenciados pela concepção biológica do tipo de criminoso,
assemelhavam a sociedade ao organismo de um indivíduo, entendendo que ambos
estavam carentes de meios de defesa como tutela contra o inimigo. Diante desta
realidade de que os indivíduos e a sociedade (como um todo) tinham direito à
14
LISZT, Franz Von. A idéia do fim..., p.62.
15
Na mesma lógica, Salgado MARTINS destaca que havia um conflito entre o Direito
penal clássico, baseado na idéia de responsabilidade moral, e o direito penal que a escola positiva
desejava esvaziar de todo o seu conteúdo ético, orientando-se somente pelo princípio da utilidade
prática e da defesa social. Era necessário superar esta antinomia e demonstrar que, dentro do direito
penal seria possível estender, sob critério jurídicos, as suas normas, não para punir apenas, mas
também para prevenir a reação anti-social dos anormais psíquicos e dos indivíduos perigosos In:
MARTINS, Salgado. Sistema de Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: José Konfino Editor, 1957.
p. 434-435.
16
Se a intimidação e a emenda eram fins pouco eficazes, questionou-se a necessidade
da tradicional pena In: MATTOS, Virgílio de. Crime e psiquiatria: uma saída. Preliminares para a
desconstrução das medidas de segurança. Rio de Janeiro, 2006. p.16.
10
própria conservação -, a inocuização dos indesejados consagrar-se-ia como algo
bom para a própria harmonia social.
17
Adotaram a ideologia do tratamento, que buscava fins preventivos à pena,
selecionando na defesa social, no determinismo e no utilitarismo,
18
os princípios
imanentes a essa nova categoria de resposta sancionatória.
Como assevera Salo de CARVALHO, a tensão entre liberalismo e
determinismo criminológico induziu à criação do híbrido sistema integrado das
ciências penais. E tal resultou numa “doutrina eclética de pena-defesa, visto ser
simultaneamente informada por princípios de defesa social e de incapacitação (para
os irrecuperáveis), de emenda (para os recuperáveis), de intimidação e
retribuição”.
19
Assim, ao desenvolver o Programa de Marburgo
20
, Von LISZT acabou
criando um modelo integrado e relativamente harmônico entre dogmática e política
criminal, postulando ser tarefa da ciência jurídica estabelecer instrumentos flexíveis
e multifuncionais com escopo de ressocializar e intimidar as mais diversas classes
de infratores. Com isso, LISZT também expressou sua opção determinista-
naturalista, enfatizando a necessidade de que a pena atuasse com intuito de
correção do homem, embora não tenha com isso abdicado de alguns postulados do
contratualismo clássico.
21
Mas é certo que LISZT negava o paradigma da exclusiva retribuição para
a sanção penal, impondo a necessidade da prevenção especial positiva. Tal
17
Assim, a justiça penal possuía uma “função clínica que preservaria a sociedade” In:
FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal: o criminoso e o crime. São Paulo : Livaria
Academica/Saraiva, 1931. p. 06.
18
Dentre os argumentos utilizados para negar ao máximo (porém, não na totalidade) o
retribucionismo da sanção, o mais importante foi o argumento do utilitarismo, conferindo predomínio
à função defensiva e de proteção às punições. Acreditavam os positivistas que o justo equivalente
nada mais era do que o útil, pregando que a justificação das medidas preventivas e sancionatórias
se fundava na idéia de utilidade. A idéia de justiça para os utilitaristas estava em buscar e aplicar
uma relação de conveniência entre o ato perigoso e o delinqüente, visando impedir que o crime fosse
aperfeiçoado – In: FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p.23.
19
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 73.
20
Neste programa, LISZT desenvolve uma concepção político-criminal baseada na
ideologia terapêutica e, em última instância, na substituição da pena e do Direito penal da
culpabilidade pela medida de segurança e do Direito penal da perigosidade In: LISZT, Franz Von.
Marburger Programm (1882) Apud LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal..., p. 19.
21
Como, por exemplo, a idéia de um tratamento humano na aplicação da sanção, ou o
respeito ao princípio da taxatividade – Ibidem, p. 21-22.
11
perspectiva, como bem anota Luigi FERRAJOLI,
22
implica no fato de que o modelo
almejado pelo Programa de Marburgo tinha nítido ideal correcionista, pois a lógica
era a de que o infrator deveria efetivamente ser tratado, e o direito penal serviria
para conferir tal tratamento.
O programa também destacou a importância de uma ão conjunta entre
direito penal e antropologia, psicologia e estatística criminal (por isso foi batizado de
“ciências penais integradas”
23
).
E foi exatamente desta conjugação fracasso da pena como retribuição e
o advento da idéia de prevenção que surgiu uma corrente de pensamento que
propugnava pela criação de uma nova espécie de sanção penal, a qual coexistiria
ao lado da pena: a pena deveria manter seu cunho retributivo, e, ao lado dela, seria
criada uma nova espécie de sanção, de cunho eminentemente preventivo.
24
Formavam-se assim as linhas preliminares das medidas penais de
segurança, as quais se colocariam em prática logo depois, com o trabalho de Carl
STOOS.
25
Coube a STOOS, ao desenvolver um anteprojeto para o Código penal
suíço (1893), a implementação definitiva do instituto no âmbito da legislação penal
européia.
26
Na elaboração de seu projeto, STOOS conferiu à medida de segurança
especial atenção, dando-lhe minuciosa sistematização e rigor técnico - o qual,
inclusive, serviu de base para todas as demais propostas de codificação do instituto
que vieram concomitantemente nos ordenamentos ocidentais.
22
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 255.
23
A este conjunto de saberes que tem no crime o seu objeto de estudo, Fran Von Liszt
deu o nome de “enciclopédia das ciências criminais” , as quais, uma vez reunidas, formariam a
intitulada Ciência global do Direito Penal” gesamte Strafrechtswissenchft . E ela seria Integrada
exatamente para se firmar uma certa distância de algumas postulações dadas por Von Liszt, que
propugnava por um esforço conjunto destas ciências, mas as tinhas como ramos totalmente
autônomos, cada qual com um papel específico e definido, sem poder de ingerências sobre as
demais - In: LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal..., p. 293.
24
“... a crise da pena e a necessidade da defesa social foram os motivos legitimadores do
aparecimento da nova sanção - a medida de segurança -, e, neste contexto, revela-se importante a
influência da escola positiva italiana” - In: FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 19.
25
“... enquanto Von LISZT foi o idealizador das modernas medidas de segurança, STOOS
foi quem as positivou” – Ibidem, p. 30.
26
BRUNO, Aníbal. Direito Penal: pena e medida de segurança. Rio de Janeiro: Forense,
1962. p. 255: “...a parte geral do Projeto Stoos foi publicada em 1893, mas em de agosto de
1894 veio a publicação do texto integral, em 211 artigos, com as Observações preliminares, do seu
autor”. O anteprojeto encomendado objetivava a estruturação de uma legislação una e geral para
toda a Confederação helvética, o que somente iria se concretizar tempos depois, entrando em vigor
12
Envolvido pelas idéias de LISZT e FERRI (sobre a “pena-fim” e a “sanção
preventiva” como instrumento de segurança), entendeu a necessidade de se criar,
por lei, uma medida que constituísse providência curativa imposta aos infratores
perigosos que ameaçavam a sociedade, a qual seria aplicada de maneira
complementar ou em substituição à pena criminal.
27
Assim, o Título terceiro da obra foi totalmente dedicado às penas e às
medidas de segurança, as quais ainda não estavam solidificadas de maneira
rigorosa e articulada. De qualquer sorte, seu trabalho foi de extrema importância,
pois estabelecia quais seriam os locais para o cumprimento da medida
(estabelecimentos destinado exclusivamente à internação dos delinqüentes
habituais, casas de ensino profissional, asilo para ébrios habituais, estabelecimento
para tratamento de toxicômanos, hospitais de alienados...); previa a expulsão do
território suíço, quando se tratava de estrangeiro (o que era tido como uma forma de
medida de segurança); etc.
28
Nada obstante, é válido observar que as medidas de segurança, nessa
primeira aparição, surgiram essencialmente ao lado das penas (num sistema
homogêneo), contando com as seguintes características: eram atribuídas
prioritariamente pelo Juiz; seriam pronunciadas sob a forma de sentença
relativamente indeterminada, com duração condicionada à cessão da
periculosidade; estariam baseadas na periculosidade do agente; deveriam ser
executadas em estabelecimentos especializados e adequados ao tratamento do
periculoso; poderiam ser constituídas em medida complementar, algumas vezes
substitutiva à pena, aplicando-se àqueles “delinquentes incorrigíveiscuja execução
da pena seria ineficaz.
29
Por isso, é possível conceber que o Código Suíço de 1937 que
encampou em quase sua totalidade o Projeto de STOOS - foi o primeiro diploma
apenas em de janeiro de 1942 (inclusive, foi a mesma data em que entrou em vigência o digo
Penal Brasileiro de 1940).
27
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal. Rio de Janeiro: Forense, 1951. v. 3.
p. 21.
28
MARTINS, Salgado. Op. cit., p. 437.
29
A maior preocupação era com os alcoólatras habituais, os corrompidos perigosos e os
delinqüentes juvenis – In: FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 30.
13
legal que efetivamente concebeu e tratou do tema.
30
Contudo, antes mesmo de virar Lei, importa notar que o projeto havia
influenciado a elaboração de outras legislações por toda Europa, dentre as quais se
destaca o Código penal italiano de 1930 conhecido como Código Rocco -, no qual
as medidas de segurança (sob o nome de misure amministrative di sicurezza)
constituíam o objeto do Título oitavo (artigos 199 a 240), dividindo-se em medidas
pessoais e medidas patrimoniais, subdividindo-se as primeiras em detentivas e não
detentivas.
31
O diploma italiano inovou ao acolher o princípio da jurisdicionalidade das
medidas de segurança, firmando que sempre deveriam ser aplicadas por um Juiz.
Também estabelecia, em seu art. 202, que a medida seria aplicável (em regra) a
pessoas perigosas que tinham cometido um fato previsto em lei como crime – com o
que se consolidou e desenvolveu pela primeira vez uma idéia de periculosidade
30
Nada obstante, importa firmar que muitos países europeus possuíam sanções que,
mesmo não denominadas medidas de segurança (algumas eram chamas mesmo de pena), tinham
esta função de prevenção contra agentes perigosos: o Código Penal português de 1852,
consagrando o degredo e o desterro; o Código português de 1886, impondo a entrega dos loucos às
suas famílias para os guardarem, etc. - Idem. também o código penal francês de 1810, que
dispunha, em relação aos menores de mais de 13 e menos de 18 anos, que tivessem agido sem
discernimento, que, embora não sujeitos à pena, seriam, segundo as circunstâncias, entregues a
seus pais, a uma pessoa ou instituição caritativa, ou enviadas a uma colônia penitenciária, para
serem educados e detidos durante o número de anos que o julgamento determinar, não excedendo,
porém, à época em que completarem a idade de 21 anos. Também a Lei inglesa de 1860,
denominada Criminal Lunatic Asylum Act, determinando o recolhimento dos criminosos
irresponsáveis a um asilo de alienados, também expressava a necessidade inelutávelmente sentida
de se impedir, pela custódia, continuassem o criminoso isento de pena a oferecer perigo – In:
MARTINS, Salgado. Op. cit, p. 433. O Código italiano de 1889, conhecido como “Código Zanardelli”,
dispunha no art. 46 que, no caso de absolvição do imputado, por motivo de enfermidade da mente
(infermitá di mente) o juiz, se estimar perigosa a libertação do absolvido, ordena a sua custódia pela
autoridade competente, para os provimentos da lei. O art. 48 da mesmo código dispunha que no
caso de um criminoso que é ébrio habitual, a pena restritiva de liberdade a que estaria condenado
poderia ser cumprida em um estabelecimento especial, indicado pelo juiz. Em relação aos menores e
aos surdos-mudos, o Código Zanardelli previa o internamento em instituto de educação e de
correção: quanto aos menores, por um tempo que não ultrapasse a maioridade, quanto aos surdos-
mudos, até 24 anos, e depois podendo o juiz ordenar que o surdo-mudo passe à custódia da
autoridade competente (art.s 53 e 58). Ou seja, “haviam meios de prevenção mediata, mas não se
utilizava a expressão técnica ‘Medida de segurança’” In: BATTAGLINI, Giulio. Direito penal. São
Paulo: Saraiva, 1972. p. 725.
31
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 624: “Os arts. 215 e 236 previam 10 tipos: a)8
medidas de segurança pessoal (art. 215) das quais 4 detentivas, que o por seu turno o
encaminhamento a uma colônia agrícola ou casa de trabalho (art. 216-218), a manutenção em uma
casa de custódia e tratamento (art. 219-221), a manutenção em um hospital psiquiátrico (art. 222), o
encaminhamento a uma reformatório judiciário (art. 223-227), e quatro de não detenção, que são a
liberdade vigiada (art. 228-232), a proibição de pernoite em mais de uma comuna ou província (art.
233), a proibição de freqüentar cantinas e espaços públicos de consumo de bebida alcoólica (art.
234) a expulsão do estrangeiro do estado (art. 235). b) duas medidas de segurança patrimoniais
(art.236), que são a caução de uma boa conduta e o confisco)”.
14
criminal no corpo legislativo; embora também possibilitasse a medida pré-delitiva
(como exceção), em casos específicos delineados no art. 202, segunda parte do
Código: casos em que fosse possível inferir, presumidamente, a periculosidade
social do indivíduo.
32
Este articulado sistema punitivo que se consolidou na legislação italiana,
também foi o responsável por traçar uma nítida linha de separação entre as duas
modalidades de sanção penal: a pena e a medida de segurança, condicionando a
primeira à culpa (responsabilidade moral) do agente e a segunda à sua
periculosidade. Assim, enquanto a pena conservaria uma função ético-jurídica de
repressão (traduzindo uma pretensa idéia de “justiça”), a medida traria a função de
prevenção especial (numa idéia de “utilidade”), com duração subordinada sempre à
persistência da periculosidade individual - aos perigosos irresponsáveis, a medida
de segurança seria um substitutivo da pena; para os perigosos responsáveis,
seria um complemento dela.
33
Nota-se que nesta perspectiva, era enunciada pela primeira vez uma
concepção dualista do duplo-binário, a qual possibilitava a aplicação conjunta da
pena e da medida de segurança.
34
Não obstante o Código Rocco tenha salvaguardado várias garantias
penais e processuais em tema de pena (stricto sensu) - conquistadas com o
iluminismo e com o trabalho da Escola clássica de criminologia -, certo é que
acabou renegando-as por inteiro ao conceber as medidas penais de segurança.
35
32
Segundo FERRAJOLI, a função preventiva e de defesa social destas medidas foi
explicitamente declarada por Rocco, que no seu prefácio do Código penal a define como “a
necessidade de predispor novos, e em cada caso mais adequados, meios de luta contra as
agressões à ordem jurídica, a serem adotados quando a pena seja por si ímpar ao escopo ou ainda
faltem os pressupostos e as condições para sua aplicação” – Ibidem, p. 625.
33
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p. 23.
34
BATTAGLINI, Giulio. Op. cit., p. 728-729. Segundo o autor, ao verificar a história do
sistema dualístico na Itália, deve ser lembrado que no programa do partido fascista, de 1919,
encontrava-se um ponto a respeito da reforma penal, inspirado justamente neste conceito: “Hão de
ser intensamente promovidos os meios preventivos e terapêuticos da delinquência (reformatórios,
escolas para transviados, manicômios criminais, etc.). A pena, meio de defesa da sociedade
nacional, prejudicada no Direito, deve cumprir normalmente as funções de intimidação e emenda; em
consideração à segunda dessas funções, as penitenciárias hão de ser higienicamente melhoradas e
socialmente aperfeiçoadas”.
35
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 625. Basta ver que a própria Constituição
Italiana adepta de uma concessão pedagógica da sanção penal (art. 27, §3º) - outorgava
legitimidade e validade à tais medidas assecuratórias, inclusive delimitava expressamente que
“ninguém poderia ser submetido a uma medida de segurança senão nos casos previstos pela lei”
(ex vi art. 25, §3º, também repetido no art. 199 do Código penal).
15
Daí por diante, o instituto passaria a incorporar quase todas as legislações
ocidentais: havia previsões no Código penal norueguês (1902); no Código penal
alemão (1909); no Projeto austríaco de Código penal (1910); no Código argentino
(1921); no Projeto chileno (1929); na Lei belga (1930); no Código dinamarquês
(1930); no Projeto francês (1930) e também no Código penal espanhol (1928).
36
Cabe verificar que, logo em seguida, tais concepções foram também importadas
para o Brasil, vindo a consolidar-se no Código penal de 1940 e generalizar-se como
alternativa para aqueles que eram “criminosos natos e incidiam em conduta humana
típica e antijurídica, mas que eram inimputáveis”.
37
Portanto, é possível concluir que a medida de segurança foi uma criação
moderna, fruto de toda uma sorte de acontecimentos sociais, políticos, econômicos
jurídicos e criminológicos que inaugurariam uma nova mecânica de poder punitivo.
Importa também verificar, por oportuno, que as medidas de segurança
estiveram na base da estruturação legal de todos os regimes políticos autoritários
que se instauraram ao longo do século XX: dos governo nazi-fascista aos marxista-
lenista
38
, passando até mesmo pelos governos populistas e ditatoriais da América
latina
39
- isto porque, “era preciso que o Estado interviesse em função da defesa dos
bens jurídicos fundamentais, antes mesmo do cometimento do delito”; era preciso
prever e conter todas as possibilidades de infração; e a saída para isso era simples:
bastava segregar o sujeito indesejado em um local específico, de onde não sairia
36
Sobre o Código Espanhol, Paulo Busato e Sandro Hupaya lembram que “o artigo 97
não precisava claramente o fundamento das medidas que se relacionavam com a periculosidade
social do sujeito e com o sistema de defesa social que se adotou com os vagabundos, ébrios
habituais, toxicômanos, etc. Assim, aparecem um sem-número de legislações dispersas que
contemplam a prevenção do delito sem a necessidade da presença de um injusto; entre elas a
chamada ‘Ley de vagos e maleantes’ de 1993 e a ‘Ley de peligrosidad y rehabilitación social’ de
1970” In: BUSATO, Paulo César; HUPAYA, Sandro Montes. Introdução ao direito penal:
fundamentos para um sistema penal democrático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
37
NOGUEIRA, Ataliba. Op. cit., p. 257-284.
38
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São
Paulo: RT, 1999. p. 139.
39
A era do populismo (1930-1960), que contou com Getúlio Vargas no Brasil, Lázaro
Cárdenas no México, Juan Domingo Perón na Argentina e Velasco Ibarra no Equador. Também se
viu o autoritarismo nos grandes governos ditatoriais (décadas de 60 80): desde o golpe militar da
Guatemala em 1954, quando o Coronel Carlos Castillo Armas assumiu o poder; passando pela
tomada do poder em Cuba por Fidel Castro (1961), Jorge Rafael Videla na Argentina, Augusto
Pinochet no Chile, e a ditadura militar brasileira (1964-1985), iniciada com a presidência do Marechal
Humberto de Alencar Castelo Branco In: REIS FILHO, Daniel Aarão. Ditadura Militar, esquerdas e
sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. p. 45-73.
16
antes do tempo suficiente para acalmá-lo, para normalizá-lo.
40
Não causava nenhuma estranheza que se falasse na época em
segregação sem a prática de um delito, e acreditava-se veementemente na solução
dos problemas criminais por meio de uma ação preventiva do Estado, que se valeria
dos mesmos meios comumente empregados para punir e castigar o desvio criminal:
a pena ou, algo mais terrível, a medida de segurança.
41
1.1.2 A Medida de Segurança na Legislação Brasileira
No âmbito da legislação brasileira, a edificação das medidas também pode
ser considerada um acontecimento recente. Basta lembrar que foi no Código penal
de 1940, inspirado pelo anteprojeto Stoos e pelo código Rocco, que o instituto
ganhou roupagem verdadeiramente jurídica.
Mas é certo que antes mesmo do Código de quarenta entrar em vigor,
havia a previsão de certas medidas preventivas na legislação pátria, embora todas
fossem disciplinadas como espécie de pena ou simplesmente como medida cautelar
– como se verifica, especialmente, no Código criminal do Império (1830) e no
Código penal da República (1890).
Vale lembrar que o Código criminal do Império tornava irresponsáveis “os
loucos de todo gênero, salvo se tiverem intervalos lúcidos e neles cometerem
crimes”.
42
Era o momento de nascimento da psiquiatria no Brasil, então inspirada
pelos ideais libertários da revolução francesa, fundando-se no livre-arbítrio e na
responsabilidade pessoal do indivíduo. A constatação da loucura nestes termos,
40
CARRARA, Sérgio. Crime e loucura: o aparecimento do manicômio judiciário na
passagem do século. Rio de Janeiro: EDUSP, 1998. p. 63.
41
MATTOS, Virgílio de. Op. cit, p. 84.
42
O diploma punitivo de 1830, baseado no Projeto desenvolvido por Bernardo Pereira de
Vasconcellos, foi sancionado em 16 de dezembro de 1830 pelo Imperador Pedro I. Depois, a carta
de lei que mandou executá-lo, foi publicada em 8 de janeiro de 1831 na Secretaria de Estado dos
Negócios da Justiça. Apesar de privilegiar uns e desprivilegiar outros, acreditava-se que com o
temor, pela certeza de inflição de sanção grave ou intervenção preventiva, poder-se-ia reprimir e
prevenir o crime. Ademais, o Código Criminal de 1830 permitia, mesmo como exceção, o arbítrio
judicial na fixação da pena (art. 33, parte final) In: SIQUEIRA, Galdino. Direito Penal Brazileiro.
Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003. p. 69-70. E ainda: PIERANGELLI, José
Henrique. Códigos penais do Brasil: evolução histórica. Bauru: Jalovi, 1980. p. 167.
17
enquanto incapacidade para discernir segundo a razão, tornava o crime inexistente.
Afinal de contas, se o louco não estava habilitado para o contrato social, também
não poderia receber uma sanção penal.
43
O artigo 12º do diploma imperial trazia a seguinte disposição: “Os loucos
que tiveram cometido crimes, serão recolhidos às casas para eles destinadas, ou
entregues às suas famílias, como ao juiz parecer mais conveniente”. Em relação ao
menor de quatorze anos que, ao cometer o crime, tivesse agido com discernimento,
o código mandava recolhê-lo a uma casa de correção, pelo tempo que ao Juiz
parecer conveniente, contanto que o recolhimento não exceda à idade de dezessete
anos (artigo 13º).
44
Tal diploma, que por muitos foi concebido como o primeiro Código penal
autônomo da América Latina,
45
refletia nitidamente os postulados filosóficos do
panoptismo firmado por Jeremy BENTHAM
46
, o pensamento da Escola clássica
italiana (especialmente firmada nas construções de Cesare BECCARIA
47
), bem
como a estrutura jurídica do Código francês de 1810 e do digo napolitano de
1819.
48
Com a República Velha, veio o Código penal de 1890, e o tratamento
conferido aos “loucos-infratores” estava disciplinado no artigo 27º, que assim
dispunha: “Nãoo criminosos: (...) §3º - os que, por imbecilidade nativa, ou
enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação”.
49
43
RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 42.
Segundo a autora, o nascimento da psiquiatria no Brasil teve como marco a fundação do primeiro
hospício no Rio de Janeiro, em 1841. Embora seja prudente ressaltar que se falava da internação
de loucos (junto à toda uma sorte de indesejados: vagabundos, prostitutas, desempregados,
capoeiras, etc.) em instituições asilares análogos, como no hospital da Santa Casa de Misericórdia,
em São João Del Rei/MG, que ostenta o registro mais antigo de internação psiquiátrica no Brasil – In:
MATTOS, Virgílio de. Ob. cit., p. 61.
44
MARTINS, Salgado. Op. cit., p. 433.
45
HUNGRIA, Nelson. Comentário ao Código Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1951. v.1. p.
34.
46
BENTHAM, Jeremy. O Panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
47
BECCARIA., Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena, 1955.
48
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito penal Brasileiro. São Paulo: RT, 2008. p. 115. O
que demonstra sua matriz clássica, e explica o porquê o instituto da Medida de segurança ainda não
estava bem desenvolvido.
49
Com o advento da República, Baptista Pereira teve o encargo de elaborar um projeto
de Código Penal, o que foi feito, e em 11 de outubro de 1890 era convertido em Lei. No Código da
República, o art. 29 determinava o recolhimento de inimputáveis em hospitais para alienados, ou em
casas de familiares; o art 43 disciplinava, ainda, o caso de interdição e perda do emprego público; ou
o art. 400 que ordenava a reclusão do vadio reincidente em colônias penais, e o seu parágrafo único,
18
Tal diploma ainda não havia incorporado as inovações de cunho
psiquiátrico que eram usuais nos diplomas legislativos europeus, e o destino
institucional do criminoso cuja responsabilidade era atingida pela patologia mental
(então chamada de afecção mental”) ainda era indefinido: poderia ser confiado à
família ou mesmo trancafiado no hospital de alienados.
50
Os artigos 29º e 30º contemplavam medidas cautelares em relação aos
“indivíduos isentos de culpabilidade em razão de afecção mental” e aos maiores de
nove anos e menores de quatorze anos que tivessem obrado com discernimento.
Determinava o diploma que os primeiros fossem “entregues às suas famílias, ou
recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim exigisse para
segurança pública”; enquanto os últimos seriam “internados em estabelecimentos
disciplinares industriais, pelo tempo que ao juiz parecer, contanto que o
recolhimento não exceda à idade de dezessete anos”.
51
Mesmo havendo expressa limitação à execução das penas,
52
ainda assim
a legislação autorizava que a segregação do alienado-infrator se desse de maneira
indefinida: “O louco, diferente do criminoso, não poderia ser responsabilizado
penalmente, mas era ‘tratado pela sciencia’, e, se não houvesse cura, deveria ser
segregado manicomialmente ad eternnum”.
53
Importa destacar que a legislação criminal da Primeira República,
inspirada no pensamento de iluministas-contratualistas como ROUSSEAU,
HOBBES e MONTESQUIEU
54
, também entendia que os indivíduos que possuem
capacidade de imputação e cometem um crime, estavam ferindo o contrato social e,
como tal, deveriam ser encarados como inimigos da sociedade.
55
que dispunha sobre a deportação, se fosse estrangeiro – BRASIL. Código Penal de 1890. In:
PIERANGELLI, José Henrique. Op. cit., p. 269.
50
RAUTER, Cristina. Op. cit., p. 46-47.
51
SIQUEIRA, Galdino. Op. cit., p. 75.
52
O Código criminal de 1890 expressava em seu art. 44: “Não penas infames. As
penas restritivas da liberdade individual são temporárias e não excederão de 30 anos” In:
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 95.
53
Aos poucos, o enfoque do direito não mais estaria voltado para o crime cometido,
mas sim para o criminoso. havia a concepção de periculosidade para sustentar as medidas
preventivas, as quais tinham a imposição justificada pela idéia de segurança pública” - Ibidem, p. 96.
54
MONTESQUIEU. O Espírito das leis. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
55
Tanto é assim que as perícias da época cingiam-se a determinar se o louco podia ou
não agir livremente. E mais, “aquele que trai o contrato social, ao praticar um crime, é o mais vil e
repugnante inimigo da sociedade. Era preciso fazer com que sentisse, urgentemente, todo o peso da
lei, a exclusão da lei, o nome da lei” – In: MATTOS, Virgílio de. Op. cit., 96.
19
Era também o que se via com o Decreto n.º 1.132 de 22 de dezembro de
1903 então intitulada de “Lei dos alienados” -, que trazia uma medida de
tratamento consistente no recolhimento, em institutos para alienados, de indivíduos
portadores de moléstia mental, congênita ou adquirida, que comprometessem a
ordem pública ou a segurança das pessoas.
56
Esta legislação foi resultado dos esforços de alienistas brasileiros que
buscavam o reconhecimento científico e político da ciência psiquiátrica, e
conseguiram seu objetivo ao demonstrar que a ausência de razão no louco o
tornava um indivíduo perigoso para sociedade. Assim, com a Lei dos alienados,
estava enfim autorizada a possibilidade de exclusão de cidadãos que não tinham
contrariado qualquer artigo do vigente Código penal.
57
Note-se, contudo, que ainda
não se fala propriamente em medidas de segurança.
Somente em 1913, com o Projeto de Código penal desenvolvido por
Galdino SIQUEIRA, a concepção de uma nova sanção penal - autônoma em
relação a pena - começaria a aparecer no cenário jurídico nacional.
Muito influenciado por STOOS e pelas teorias de Von LISZT, o então
Ministro SIQUEIRA incorporou em seu projeto uma pena complementar, a qual seria
imposta ao reincidente perigoso, com duração de um período três vezes superior ao
da pena, não ultrapassando, em qualquer caso, quinze anos. Todavia, o projeto
acabou não saindo do papel.
58
Outro projeto de código foi formulado em 1927, por Virgílio de
56
BRASIL. Decreto n1132 de 22 de dezembro de 1903. Reorganiza a Assistência a
Alienados. In: Collecção de Leis da República dos Estados Unidos do Brasil - Atos do Poder
Legislativo. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1903. Tal decreto foi a primeira legislação
psiquiátrica brasileira, e trazia a orientação no sentido de se construírem nos estados manicômios
criminais ou seções especiais para os loucos criminosos nos hospitais psiquiátricos "comuns". Sendo
neste mesmo ano construída a ‘seção Lombroso’ do Hospício Nacional, e em 1921 construído o
primeiro Manicômio Criminal do Brasil, situado também no Rio de Janeiro - In: CARRARA, Sérgio.
Op. cit., p. 69.
57
RAUTER, Cristina. Op. cit., p. 43-49. Dispunha o artigo 11 do decreto 1132 de 1903:
“Enquanto não possuírem os estados manicômios criminais, os alienados delinquentes e
condenados alienados somente poderão permanecer em asilos públicos, nos pavilhões que
especialmente se lhes reservem”.
58
Em 1911, o Congresso delegou ao Poder Executivo a atribuição de formular um novo
projeto de digo Penal para substituir o Código Penal Republicano, vigente à época. O Ministro da
Justiça e Negócios Interiores incumbiu Galdino Siqueira (Desembargador aposentado do Tribunal de
Justiça do antigo Distrito Federal) da elaboração do projeto, que foi concluído em 1913, não
chegando, porém, a ser objeto de consideração legislativa – In: SIQUEIRA, Galdino. Ob. cit., p.05.
20
PEREIRA (o qual ficou conhecido como Projeto Pereira”
59
), influenciado pelo já
aprovado Código Suíço e pelo Código Rocco, recepcionou a idéia de periculosidade
criminal de maneira limitada, incluindo em sua proposta temas como a habitualidade
criminosa e as medidas pós-delitivas (artigos 228 e 246), ao que batizou de
“medidas de defesa social”.
60
Exigia apenas uma abstrata perigosidade social para a aplicação destas
medidas, e, com isso, originou uma nova categoria de delinquentes: a dos que não
tinham a capacidade plena o que conformaria a imputabilidade restrita (artigo 29,
§3º).
61
Também a Consolidação das Leis Penais de 1932 (Decreto-Lei n.º 22.213
de 1932), de autoria do Desembargador Vicente PIRAGIBE, previa a criação de
manicômios criminais em seu artigo 29: “Os indivíduos isentos de culpabilidade em
resultado de afeção mental serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a
hospitais de alienados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do
público”. E complementava, dizendo que “enquanto não possuírem os Estados
manicômios criminais, os alienados delinquentes e os condenados alienados
somente poderão permanecer em asilos públicos, nos pavilhões que especialmente
se lhes reservem”.
62
Firme-se que tanto o Projeto Pereira como a Consolidação de Piragibe
tal qual ocorria com a vigente Constituição dos Estados Unidos do Brasil,
promulgada em 10 de novembro de 1937 (que expressamente proibia em seu artigo
122º as penas corporais perpétuas) -, tinham uma orientação extremamente fascista
e positivista, que procurava coibir a vagabundagem, a mendicância, os capoeiras e
desordeiros, muitos dos quais recebiam segregações infindáveis, sob o fundamento
de serem perigosos.
63
59
O instituto surgiu no Projeto Sá Pereira com o nome de ‘medidas de defesa social’. O
projeto Pereira foi encomendado pelo governo de Artur Bernardes, e foi aprovado pela Câmara
dos Deputados logo na primeira discussão, chegando ao Senado em 1937. Ocorre que com o Golpe
de Estado e a instituição do ‘Estado Novoem 11 de novembro de 1937, foi outorgada uma nova
Constituição, sendo o Parlamento dissolvido e o Congresso Nacional fechado perdia-se, assim, o
projeto formulado – In: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito penal. Rio de Janeiro: Forense,
2006. p. 76.
60
NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1981. p. 328.
61
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 97-98.
62
PIRAGIBE, Vicente. Consolidação das leis penais. Rio de Janeiro: Forense: 1935.
63
TONINI, Renato Neves. A arte perniciosa, a repressão penal aos capoeiras na
república velha. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 93 e s. No mesmo sentido, Ribeiro Pontes
21
Enunciava-se, enfim, a incorporação e sistematização das medidas de
segurança no âmbito da legislação brasileira.
Foi então que José Alcântara MACHADO DE OLIVEIRA foi convocado
pelo governo Vargas para formular um novo Projeto de Código penal, o qual ficaria
conhecido como “Projeto Alcântara Machado” (de 1939).
64
Tal projeto seguiria os
mesmos moldes do italiano Rocco, bem como obedeceria de maneira rigorosa à
divisão de criminosos trazida por Enrico FERRI: nato, ocasional, por tendência,
reincidentes e habituais.
65
Assim, o projeto firmava que “o capaz e responsável seria todo homem
mentalmente desenvolvido e mentalmente são( ...); e o inimputável, embora o
culpável, deveria ser contido em nome da defesa da sociedade, pois era perigoso,
portador de temível e incurável doença: a periculosidade”.
66
A meta era
impossibilitar que este indivíduo fizesse algum mal à sociedade, e, apenas
indiretamente, que não fizesse mal a si mesmo.
Embora Alcântara MACHADO o estivesse mais vivo para vê-lo entrar
em vigor, foi o seu projeto que inspirou a criação do Código penal de 1940, onde as
medidas de segurança passariam a ocupar um lugar definitivo na legislação
brasileira.
67
O novo Código foi assinado pelo presidente Getúlio Vargas no dia 07 de
dezembro (Decreto-lei n.º 2848) e consagrou o instituto entre os artigos 75 a 101.
Neste diploma, o legislador demonstrou nítida preocupação com dados
sociais e criminológicos que apontavam um aparente aumento nos índices de
criminalidade e reincidência - ou seja, cercava-se de um discurso alarmista que
indicava que outros diplomas também se referiram à medidas preventivas análogas à medida de
segurança no Brasil: o Decreto 24.559 de 3 de junho de 1934; a Lei 1431 de 12 de setembro de
1951; a Lei 6416 de 24 de maio de 1977; a Lei 6815 de 19 de agosto de 1980; e o Decreto-lei
24.599, que dispôs sobre a assistência e proteção à pessoa e aos bens dos psicopatas – In:
PONTES, Ribeiro. Código penal brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1956. p. 76. E ainda:
CAMPANHOLE. Constituições do Brasil. São Paulo: Atlas, 1994. p. 668.
64
Na vigência do Estado Novo’, o então Ministro da Justiça Francisco Campos incube o
prof. Alcântara MACHADO da missão de preparar um novo Projeto de Código Penal, o qual é
findado em agosto de 1938 – In: FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 76.
65
FERRI, Enrico. Op. cit., p. 254.
66
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Op. cit., p. 99.
67
Após uma minuciosa revisão feita por Nelson Hungria, Roberto Lyra, Narcélio de
Queiroz, Vieira Braga e Costa s Silva, tal projeto viraria o Código de 1940 – Ibidem, p. 76.
22
propagava a falência do ideal de intimidação da pena privativa de liberdade.
68
E
estas preocupações acabaram se refletindo na formulação do diploma, que
absorveu o discurso daqueles que propunham também um fim preventivo para a
sanção penal.
Na exposição de motivos que iria preceder a parte geral do Código, o
então Ministro Francisco CAMPOS asseverou:
À parte a resistência dos clássicos, já ninguém mais se declara infenso a essa
bilateralidade da reação legal contra o crime. Seria vicioso qualquer arrazoado em sua
defesa. Apenas cumpre insistir na afirmação de que as medidas de segurança não têm
caráter repressivo, não são pena. Diferente destas, quer do ponto de vista teórico e
prático, quer pelas condições em que devem ser aplicadas e pelo modo de sua execução
(...). São medidas de prevenção e assistência social relativamente ao estado perigoso
daqueles que, sejam ou não penalmente responsáveis, praticam ações previstas na lei
como crime.
69
Foi neste contexto que surgiam as medidas de segurança no Brasil, como
um meio de reação jurídica contra o delito, pressupondo sempre um suposto estado
perigoso de alguns, diferindo da pena, mas não com ela incompatível.
O legislador de quarenta previu uma série de disposições gerais, a divisão
e enumeração das diferentes espécies de medidas de segurança, bem como os
modos de sua execução. Como destaca Salgado MARTINS, não por outra razão o
título consagrado ao instituto poderia muito bem ser denominado “o Código de
segurança dentro do código penal”.
70
Em relação à imputabilidade (então nominada “responsabilidade”), o
Código adotara o critério biopsicológico-normativo
.
, que exigia, de um lado, certos
estados de anomalia mental (v.g., a doença mental ou o desenvolvimento mental
incompleto), e, de outro, que deles resultasse completa incapacidade de
entendimento da ilicitude ou de autodeterminação ao indivíduo.
71
68
Lembre-se que este “discurso alarmista” também não era novidade na década de 40,
posto que havia sido formulado em Londres em 1815 (com a formação da sociedade de cidadãos
para melhor combater o crime) – In: MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p.100.
69
CAMPOS, Francisco. Exposição de motivos ao código penal de 1940. Diário Oficial de
31 dez. 1940.
70
MARTINS, Salgado. Op. cit., p.438.
71
Neste tocante, afastou o Código de 1940 o sistema ‘puramente biológico’ (que leva em
consideração apenas a doença mental, enquanto quadro patológico clínico; como era o caso do
Código penal francês de 1810 – art. 64: ‘não há crime nem delito, quando o agente estiver em estado
de demência ao tempo da ação’) e também o sistema ‘psicológico puro’ (que tem em conta apenas
as condições psicológicas do agente à época do fato; como ocorria com o Código criminal do imperio
de 1830 – art. 10: ‘também não se julgarão criminosos: §2º. Os loucos de todos os gêneros, salvo se
23
O sistema era o dualista do duplo-binário (o doppio binário do modelo
Rocco), que possibilitava a cumulação de pena com medida de segurança ao
agente pela prática de um mesmo fato conforme se verificava do artigo 82 do CP:
“executam-se as medidas de segurança: I depois de cumprida a pena privativa de
liberdade...”.
72
Como condição de aplicabilidade, o artigo 76 requeria expressamente a
prática de fato previsto como crime e a periculosidade do agente. Note-se, contudo,
que muito embora o caput previsse a prática de um fato tido como crime, o
parágrafo único do mesmo artigo possibilitava a aplicação de uma medida de
segurança pré-delitiva, em casos como o de tentativa impossível (referida no artigo
14 do CP) ou de impunibilidade do agente (artigo 27 do CP).
73
Nesta mesma linha de raciocínio, é possível verificar que o artigo 75 do CP
enunciava apenas um princípio de legalidade formal ao instituto (enquanto mera
reserva de lei),
74
pois ao mesmo tempo em que se exigia a prática de um fato
previsto como crime para aplicação da medida, também possibilitava a aplicação de
medidas profiláticas, independente da prática de delito prévio (artigo 76, § único).
Ou seja, embora fosse aplicável apenas em casos excepcionais, o digo
de 1940 admitia a imposição de medida de segurança por exclusivas razões de
tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o crime’) In: CABALLERO, J. Frias. Imputabilidad
penal. Bogotá: Temis, 1992. p. 127.
72
Adotou-se o critério do duplo binário, vindo a medida de segurança ser normatizada ao
lado da pena, tendo o fim de complementá-la em alguns casos (para os responsáveis), ora como
forma de substituí-la (para os irresponsáveis). Impunha-se ao imputável (como uma espécie de
tratamento após o cumprimento da pena) e ao inimputável. Diante da insuficiência ou inadequação
da pena, surge a medida de segurança: seja para substituí-la (quando, pela ausência de
responsabilidade, a pena não poderia ser aplicada), seja para complementá-la (quando além de
responsabilidade pelo delito cometido, o agente, por suas condições subjetivas, modo de vida e
características sociais de conduta, autoriza a presunção de que venha novamente a delinqüir); ou
seja, “a medida serve para prevenir delitos quando a pena não se mostra eficaz”; por isso a medida
de segurança é executada após o cumprimento da pena – In: MARTINS, Salgado. Op. cit., p. 442.
73
O Código adota, a princípio, a idéia de “Periculosidade pós-delitiva”; ou seja, a prática
do crime é a manifestação típica da periculosidade. Então, seja o agente imputável ou inimputável,
somente haverá Medida de segurança se praticar um fato tido como crime. Mas exceção a esta
regra geral: o CP de 1940 admitia a aplicação, em dois casos, onde o se pressupõe a prática do
delito: art. 76, n. II. Nos casos dos arts. 14 e 27 crime impossível e ajuste, determinação ou
instigação e auxílio em relação a crime que não chegou a ser tentado a ação praticada, do ponto
de vista subjetivo, equivale a um deleito, e pode revelar periculosidade do agente, o que aconselha a
aplicação prévia de medida: “a medida de segurança pode então ser imposta tanto na sentença de
condenação como na de absolvição. Mas pode também ser imposta depois da sentença, em
qualquer momento, durante a execução da pena” - Ibidem, p. 443.
74
O artigo 75 assegurava que “as medidas de segurança regem-se pela lei vigente ao
tempo da sentença, prevalecendo, entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução”.
24
periculosidade social do agente, o que tornava a legislação bastante incoerente: ora
exigindo a prática de um crime, ora a dispensando.
Havia também uma periculosidade presumida juris et de jure, descrita no
artigo 78 para os seguintes casos: (I) aqueles que, nos termos do art. 22, eram
isentos de pena (os ‘irresponsáveis’); (II) os referidos no parágrafo único do art. 22
como “semi-responsáveis”; (III) os condenados por crime cometido em estado de
embriaguez pelo álcool, ou substância de efeitos análogos, se habitual a
embriaguez; (IV) os reincidentes em crimes dolosos; (V) os condenados por crimes
cometidos na condição de filiados a associações, bando ou quadrilha (os
‘bandoleiros’).
75
Nestes casos, a lei verdadeiramente substituía-se ao Juiz no
reconhecimento da periculosidade (dispensava a averiguação judicial), com
consequente presunção do estado perigoso do agente.
76
E o artigo 77 do CP ia
ainda mais longe, pois firmava que “quando a periculosidade não fosse presumida
por lei, deveria ser reconhecido perigoso o indivíduo, se a sua personalidade e
antecedentes, bem como os motivos e circunstâncias do crime, autorizassem a
suposição de que venha ou torne a delinquir”.
Importa firmar que a periculosidade surgia e se firmava, enfim, como o
elemento justificador para a imposição das medidas.
De outra banda, a redação originária do Código também firmava a
exclusiva aplicação jurisdicional da medida: o Magistrado poderia aplicá-la
(nunca a autoridade administrativa), visto que a mesma era concebida como uma
reação jurídica ao crime (artigo 79 do CP).
Admitia-se também a aplicação cautelar da medida (conforme artigo 80 do
CP), pouco importando com a presunção de inocência do indivíduo. Ademais, as
medidas só cessariam quando o indivíduo estivesse totalmente curado de sua
patologia e não mais representassem um risco para a sociedade. Havia também um
prazo mínimo de internação, independente da cessação da periculosidade do
75
BRASIL. Decreto-lei 2848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da
União, 31 de dezembro de 1940.
76
São casos em que “segundo lição da experiência, a periculosidade do criminoso se
apresenta como um dado relativamente constante (...). Trata-se de presunção absoluta ou juris et de
jure, isto é, irredutível à prova em contrário. Não indagar se a periculosidade realmente existe: o
juiz é obrigado a impor a medida de segurança correspondente, desde que verificada a condição de
fato da presunção legal (...)” – In
: HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p. 88.
25
agente (artigo 81 do CP): este prazo mínimo era considerado uma defesa contra a
precipitada antecipação do retorno do internado ao convívio social, justificado por
pura proteção social.
77
Em suma, o Código de 1940 firmava uma dupla e teratológica tendência
ao adotar as medidas de segurança: de um lado, concebia um estado abstrato e
impreciso de periculosidade (seja pela presunção legal ou pela ampla liberdade
judicial em sua definição) para a segregação de determinados indivíduos; de outro,
permitia a indeterminação temporal das medidas, as quais poderiam perdurar ad
eternum.
78
No tocante às espécies, o Código contemplava duas classes de medida:
as medidas de segurança pessoais (que se subdividiam em detentivas e não
detentivas) e as medidas de segurança patrimoniais – conforme disposição do
artigo 88 do CP.
As medidas pessoais-detentivas poderiam consubstanciar-se em:
internação em manicômio judiciário, internação em casa de custódia e tratamento; e
também na internação em colônia agrícola ou em instituto de trabalho, reeducação
ou de ensino profissional.
79
as pessoais não-detentivas consistiam em: liberdade vigiada (para os
condenados por crime cujo grau mínimo da pena fosse inferior a 01 ano, e
reconhecida as condições do artigo 22, parágrafo único; os egressos do manicômio
judiciário, casa de custódia ou instituto de trabalho; o liberado condicional; os
agentes previstos nos artigos 14º e 27º; os transgressores da proibição de
frequentar certos lugares e da proibição resultante do exílio local; subsidiariamente,
quando reconhecida a periculosidade, mas não fosse caso previsto em lei de
aplicação específica de medida de segurança); a proibição de frequentar certos
lugares (para o condenado por crime cometido sob a ação do álcool ou em outros
casos aconselhável); e o exílio local (afastamento do condenado de certa
localidade, município ou comarca em que foi cometido o crime).
80
No tocante às medidas patrimoniais, estas podiam se consubstanciar em:
interdição de estabelecimento comercial ou industrial, ou de sede de sociedade ou
77
Ibidem, p. 121.
78
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 103.
79
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p. 149-150.
26
associação (quando este serviu de pretexto para a prática do crime); ou o confisco
dos instrumentos e produtos do crime, cujo fabrico, alienação, uso, porte ou
detenção constituísse fato ilícito.
81
Importante frisar que a restrição da liberdade era encarada, ao menos
formalmente, como um caminho (não um fim) a ensejar a aplicação dos métodos
“eliminativos e modificativos dos coeficientes fisiológicos e psicológicos da
delinquência ou meios, em si mesmo, destinados a subtrair o agente às ocasiões,
aos impulsos próprios do ambiente e aos atrativos do delito”.
82
Nos dizeres de
Ataliba NOGUEIRA: “embora deixando livre o agente, submetem-no a uma certa
vigilância, proíbem-no de frequentar determinado lugar, como casas de bebidas,
proíbem-no de permanecer em certa região. Previne-se, por esta forma,
indiretamente, a reiteração do delito”.
83
No discurso ideológico que acompanhou o legislador de quarenta, a
medida de segurança não tinha caráter repressivo, mas sim assistencial (prevenção
especial positiva) - embora na prática, desde aquela época, não era bem o que se
via. Segundo Virgílio de MATTOS, “no massacre cotidiano, assistiu-se a um festival
de abusos repressivos contra o louco infrator e um total descaso, uma
desassistência consentida pela sociedade, ignorada pela academia e tolerada pelo
judiciário”.
84
O que se pretendia, em verdade, era proteger a sociedade contra a
possível perigosidade de um indivíduo. E a melhor forma de se alcançar isso era
pela exclusão (ou seja, pela prevenção especial negativa).
A medida figurou então como “uma resposta jurídico-penal justificada pela
periculosidade social, para punir o indivíduo não pelo que ele fez, mas pelo que ele
era”
85
: um sujeito anormal, indesejado pelo corpo social não por outra razão o
instituto foi concebido na legislação sob o manto de um juízo de utilidade, visto que
a valoração ética sobre a culpa do agente em nada era relevante para sua
80
Ibidem, p. 150-151.
81
Ibidem, p. 151.
82
“As medidas de segurança detentivas agem criando as condições necessárias à cura,
regeneração, correção e reeducação do paciente, ou, quando isso não for possível alcançar, a
despeito de todos os recursos científicos empregados, atuando como simples meios eliminatórios,
enquanto perdurar a periculosidade”. E segue: “As não-detentivas são providências mais de
prevenção social do que prevenção individual que atuam indiretamente” In: MARTINS, Salgado.
Ob. cit, p. 448.
83
NOGUEIRA, Ataliba. Op. cit., p. 171.
84
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 103
27
aplicação.
Em síntese, sob o aparente manto de um avanço legislativo, o que se
vislumbrou com o código de 1940 foi um tratamento rigoroso, segregatório e
punitivo ao portador de transtorno psíquico, pré-delimitado como ente perigoso,
isento de pena, mas, ao mesmo tempo, sancionado com uma cruel e indefinida
resposta de contenção: a medida de segurança.
1.1.3 Novas Perspectivas da Medida após o Código de 1940
Aos poucos, sob o influxo de alterações sociais e de novas ideologias
penais que se estruturavam no cenário jurídico mundial, o legislador brasileiro
percebeu a necessidade de se reformar o Código penal, ocasião em que o então
presidente Jânio Quadros incumbiu ao Ministro Nelson HUNGRIA a missão de
elaborar um anteprojeto.
86
A anteprojeto de HUNGRIA foi apresentado ao Governo em 1963, mas
manteve basicamente quase toda a estrutura da redação original, eliminando
apenas os defeitos mais graves. Entre as transformações mais significativas,
merece destaque a eliminação das medidas de segurança detentivas para os
imputáveis e a inclinação para um sistema vicariante em relação aos semi-
imputáveis (que pressupunha a aplicação alternativa de pena ou de medida).
Já ia longe o trabalho de revisão quando sobreveio o golpe militar de 1964,
que interrompeu por meio da força o governo do presidente João Belchior Marques
Goulart, alçando o Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco ao cargo, que
logo designou Milton Soares Campos para assumir o Ministério da Justiça, o qual
mandou dissolver (em 9 de fevereiro de 1965) a anterior comissão revisora e
designou outra.
87
85
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 35.
86
“Ao professor Roberto LYRA solicitou-se o preparo de um anteprojeto de Código das
Execuções Penais, e ao prof. Hélio TORNAGHI, de um anteprojeto de Código de Processo Penal,
trabalhos executados em tempo oportuno pelos insignes mestres e amplamente divulgados In:
FRAGOSO, Heleno. Subsídios para a história do novo Código Penal. Revista de Direito Penal e
Criminologia. Rio de Janeiro, v.3, p.7-12, jul./set., 1971.
87
JORGE, Wiliam Wanderley. Curso de Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p.
124.
28
Passados seis anos, foi então o novo Código promulgado pela Junta
Militar que governava o país, em 21 de outubro de 1969 (Decreto-lei n1.004).
88
E
novo diploma de fato trouxe relevante alteração no instituto da medida de
segurança.
Classificou-as apenas como pessoais, detentivas ou não, acrescentando-
lhe algumas modalidades (como, por exemplo, a cassação da licença para dirigir
veículos automotores, descrita no artigo 87 do Código). Deu ênfase ao semi-
imputável, criando outras variantes da execução, admitindo sua internação em
estabelecimentos psiquiátricos anexos ao manicômio judiciário, com o intuito de
separá-lo dos inimputáveis.
89
Mas a principal inovação, inspirada na doutrina pregada por HUNGRIA,
veio com a expressa vedação de se aplicar cumulativamente pena e medida de
segurança (conforme insculpia o artigo 93 do Código). Firmou-se, a partir de então,
a necessidade do Juiz escolher entre a imputabilidade e a inimputabilidade: se fosse
imputável, caber-lhe-ia aplicar apenas a pena; e, se inimputável, apenas a medida
de segurança.
Nas lições de René Ariel DOTTI: “o sujeito não mais poderia ser
destinatário de duas reações penais, aplicadas sucessivamente”.
90
Adotava-se,
portanto, o sistema vicariante, afastando o antigo modelo do duplo-binário.
Todavia, a vigência do Código de 1969 foi adiada sucessivamente.
Embora promulgado, inúmeras e calorosas críticas importaram em substancial
modificação à sua estrutura por meio da Lei n.º 6.010 de 1973, até que foi
definitivamente revogado pela Lei n.º 6.578 de 1978, sem nunca ter iniciado sua
88
Em janeiro de 1969, a comissão revisora recebeu comunicação dando conta de que o
novo ministro da justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva, tinha o sério propósito de editar o novo
Código Penal por decreto imediatamente. A Câmara Federal e o Senado achavam-se então em
recesso, por força do Ato Institucional 5. O trabalho de revisão estava quase se encerrando
quando os revisores foram avisados, por simples comunicação telefônica, que estavam
desincumbidos da tarefa, pois a Exposição de Motivos do novo código seria redigida pelo próprio
pessoal do ministério. O ministro da justiça havia designado o professor Alfredo BUZAID para a
coordenação geral da reforma dos códigos, e sob presidência deste realizaram-se então algumas
reuniões, com os remanescentes das comissões revisoras dos anteprojetos de Código Penal e de
Código Penal Militar. Pronto o trabalho datilografado às pressas para o seguinte despacho
ministerial, entrou novamente num ponto morto, com a doença e depois com o falecimento do
presidente Costa e Silva (1967-1969) e a situação política complicada que então se criou In:
FRAGOSO, Heleno. Subsídios para a história..., p. 09.
89
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 38.
90
DOTTI, René Ariel. Penas e Medidas de segurança no Anteprojeto de Código Penal.
Revista de Direito Penal e Criminologia, Rio de Janeiro, v. 32, p. 46-69, jul./ dez. 1981, p. 58.
29
vigência. Mantinha-se o Código de 1940 em quase toda a sua totalidade, pois
apenas algumas alterações foram feitas pela Lei 6.416 de 1977.
91
Ocorre que os clamores jurídicos ainda bradavam alto e a necessidade de
mudança se fez imperiosa. Os principais críticos da época reivindicavam as
seguintes alterações para o instituto da medida de segurança: o fim definitivo do
duplo-binário; o fim da injustificada presunção legal de periculosidade; e, ainda,
desejavam que as medidas não mais fossem aplicáveis à imputáveis.
Após variadas propostas – as quais deram azo a uma nova reflexão
científica sobre o assunto no âmbito da doutrina nacional -, foi instituída em 1981
uma nova comissão para a reforma do Código penal, a qual foi presidida pelo então
Ministro Francisco TOLEDO. Nesta, as medidas de segurança figuraram como um
dos temas mais relevantes da proposta, ensejando relevantes alterações
legislativas.
92
Surgia enfim a redação de uma nova parte geral para o Código de 1940,
por meio de uma reforma que culminaria na aprovação da Lei n.º 7.209 de 1984, a
qual delimita, ainda hoje, a roupagem das medidas de segurança no Brasil.
É certo que a nova parte geral do Código deu um grande passo no trato
dogmático das questões relativas à inimputabilidade, mas manteve o passo atrás
em vários aspectos, como por exemplo: na possibilidade de segregação perpétua,
na manutenção do critério da periculosidade, no caráter parcialmente sancionatório
conferido à medida, etc.
93
Uma das maiores conquistas advindas com a reforma de 1984 foi o
abandono definitivo da periculosidade presumida em lei, bem como a vedação de se
aplicar medidas de segurança para agentes imputáveis.
94
91
JORGE, Wiliam Wanderley. Ob. cit., p. 124.
92
Durante o governo do Presidente João Figueiredo, o Ministro da Justiça era Ibrahim
Abi-Ackel, que foi quem instituiu a comissão copmosta por Assis Toledo, Serrano Neves, Andreucci,
Reale Júnior, Hélio Fonseca, Rogério Tucci e René Dotti – Ibidem, p. 125.
93
“Diz que se não culpabilidade, não que se falar em crime, sob pena de se
quebrar a estrutura dorsal do seu conceito analítico. Assim, uma pergunta que não quer calar é: se
não praticou, a rigor, crime, por que cuidar do portador de transtorno mental o direito penal?” In:
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p.103.
94
Agora as medida de segurança passam a ser destinadas apenas aos inimputáveis e
semi-imputáveis (art. 26, caput do CP - aos inimputáveis, sendo aqueles portadores de uma doença
mental ou desenvolvimento mental incompleto que, ao tempo da ão/omissão, são inteiramente
incapazes de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse
entendimento); (art. 26, § único do CP - aos semi-imputáveis, “fronteiriços, que encontram-se numa
zona intermediária da higidez mental e a plena insanidade, ocupando faixa cinzenta os estados
30
Houve também uma alteração na nomenclatura empregada: enquanto a
redação originária trazia o termo responsabilidade (antigo art.22) para falar do
sujeito capaz, a reforma fez uso do termo imputabilidade (atual artigo 26 do CP).
95
Manteve-se o sistema dualista (que distingue pena de medida de
segurança), mas acabou com temível duplo-binário. Agora vigeria a lógica
vicariante, inscrita no parágrafo único do artigo 26, de modo que o Juiz somente
poderia aplicar uma ou outra modalidade de resposta penal, afastando-se o
indesejado bis in idem da sanção.
96
A reforma também manteve a exigência de uma legalidade meramente
aparente, pois delimitou que só seriam cabíveis as medidas previstas em lei -
traduzida na máxima do nullum crimen, nulla misura sine lege praevia -, e desde
que efetivamente constatada a prática de um injusto penal; tanto é assim, que os
artigos 751 a 779 do Código de Processo Penal tornaram-se automaticamente sem
efeito.
97
Simplificou as espécies de medida de segurança, dividindo-as em duas
modalidades: uma de cunho privativo (internação em hospital de custódia) e outra
de cunho restritivo (tratamento ambulatorial)
98
artigo 96 do Código. O critério para
escolha de uma ou outra espécie de medida é que é um tanto questionável: a
atenuados, incipientes e residuais de psicose, certos graus de oligofrenia e, em parte, as chamadas
personalidades psicopáticas e os transtornos mentais provisórios” In: FERRARI, Eduardo Reale.
Op. cit., p. 39. Neste tocante, inclusive, é da jurisprudência do Colendo STF In: BRASIL. Supremo
Tribunal Federal. Habeas Corpus n.º 70550/2-SP, 2ª Turma, Relator Ministro Paulo Brossard, DJU 09
dez. 1994, RT 714/458.
95
“A nova de 1984 construção penal brasileira passou a denominar à
responsabilidade penal de imputabilidade, sendo que, semanticamente, os dois termos se
equivalem” – MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 168.
96
Art. 26 do CP: É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento
mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” - Parágrafo
único: “A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de
saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de
entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
97
Coube à nascente Lei de Execução Penal regulamentar tal matéria referente à medida
de segurança. Firme-se ainda, por oportuno, que nem mesmo as Reformas processuais ocorridas ao
longo do ano de 2008 afastaram expressamente tais dispositivos.
98
“Hospital de custódia e tratamento psiquiátrico não passa de uma expressão
eufemística utilizada pelo legislador da Reforma Penal de 1984 para definir o velho e deficiente
manicômio judiciário, que no Rio Grande do Sul é chamado de Instituto Psiquiátrico Forense”
(enquanto no Estado do Paraná é chamado de Complexo Médico Penal). Quanto ao tratamento em
estabelecimento adequado (art. 99 do CP e art. 101 da LEP), tal refere-se a um local dotado de
características hospitalares, e, ironicamente, os manicômios judiciários têm sido considerados
estabelecimentos adequados (...); é tudo a mesma coisa!” – In: BITENCOURT, Cezar Roberto.
Tratado de Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2008. v. 1. p. 705.
31
reforma adotou a idéia de que se for crime punido com reclusão, cabe a internação;
se for crime punido com detenção, cabe o tratamento ambulatorial (ou seja, baseou-
se na gravidade do injusto) – conforme prevê a norma do artigo 97 do Código.
Possibilitou, inclusive, a regressão na medida, posto que um sujeito que
tenha recebido um tratamento ambulatorial, pode, posteriormente, ser conduzido
para o internamento se o juiz da Vara de execuções penais entender oportuno e
necessário ao caso (é que consta do artigo 97, §4º do Código).
Autorizou a substituição da pena pela medida de segurança em duas
hipótese (ao que a doutrina pátria batizou de “medida de segurança substitutiva”):
no caso do semi-imputável efetivamente reconhecido como perigoso; ou então no
caso de superveniência de doença mental após a sentença condenatória transitada
em julgado tudo, é claro, ao livre arbítrio do Juízo (conforme redação do artigo 98
do Código).
99
Por fim, criou norma expressa sobre os direitos do internado, aduzindo que
“o internado será recolhido a estabelecimento dotado de características hospitalares
e será submetido a tratamento” (artigo 99 do CP). Tal idéia, por certo, era reflexo de
uma nova exigência que envolvia os penalista brasileiros: a de respeito ao
postulado da dignidade da pessoa humana, que logo estaria insculpido no artigo
da Constituição de 1988 e que conformaria premissa irrenunciável, valor supremo e
ponto de convergência de todos os direitos fundamentais.
Tal perspectiva indicava (ou, ao menos, deveria indicar) que nenhum
cidadão poderia ser sancionado desnecessária ou ilimitadamente, devendo haver
restrições temporais máximas quanto à sua punição, respeitando-se o homem e
seus atributos no instante da enunciação, aplicação e execução de qualquer
espécie de sanção penal traduzida na máxima do nulla poena e nulla misure sine
humanitate.
100
99
“As medidas de segurança são verdadeiras sanções penais, pois participam da
natureza da pena, tendo porém existência em função da perigosidade do agente. Penas e medidas
de segurança são, portanto, duas espécies do mesmo gênero: a sanção penal. Por essa razão, o
nosso sistema legal prea possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por medida
de segurança...” In: RIBEIRO, Bruno de Morais. Medidas de Segurança. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris, 1998. p. 32.
100
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 122. Em sentido análogo, ver: Declaração dos
Direitos do Deficiente Mental (Resolução n.º 2.856 de 1971, da Assembléia Geral da ONU) e
Princípios para a Proteção e o Melhoramento da Atenção à Saúde Mental (Resolução n.º 46/119 de
1991, da Assembléia Geral da ONU).
32
Nada obstante, embora banhada por esta perspectiva humanitária, a nova
legislação não havia conseguido afastar a possibilidade de uma medida perpétua.
Por questões inexplicáveis, manteve-se a inexistência de prazos máximos,
perdurando enquanto se verificar a suposta periculosidade do sujeito (conforme
artigo 97, §1º do Código).
Com a reforma de 1984, nasceu também a necessidade de se adequar o
novo trato dogmático da medida de segurança à prática forense. Vale lembrar que a
disciplina do instituto estava anteriormente consagrada no Código de processo
penal (que vigia praticamente na íntegra desde o Decreto-lei n.º 3.689 de 1941), o
qual ficou totalmente defasado frente as alterações.
Coube então à novel Lei de execuções penais (Lei n.º 7.210 de 1984
LEP) tal missão. Os artigos 171 a 179 da LEP deram nova disciplina à execução
das medidas de segurança, afastando de vez os dispositivos análogos do códex
processual (especialmente os já referidos arts.751 a 779 do CPP).
Os principais pontos de abordagem foram: as medidas de segurança
somente seriam aplicáveis após a expedição da guia de internamento ou
tratamento, exigindo, portanto, o trânsito em julgado da sentença que absolveu o
acusado inimputável e aplicou-lhe a medida conforme artigo 171 e 173 da LEP
(que tornou sem efeito os artigos 378 e 380 do CPP).
101
Com isso, encerrava de vez a possibilidade de aplicação de medidas de
segurança cautelares no curso da persecução (disposta no artigo 152, §1º do CPP);
reafirmando, assim, sua natureza de sanção penal. Reforçou o princípio da
jurisdicionalidade, aduzindo queo juiz aplicaria a medida: conforme artigos 172 e
173 Lei de Execuções Penais.
102
101
MORAES, Alexandre; SMANIO, Gianpaolo Poggio. Legislação penal especial. São
Paulo: Atlas, 1999. p. 197. No mesmo sentido: MESQUITA JÚNIOR, Sidio Rosa. Execução criminal.
São Paulo: Atlas, 2005. p. 315.
102
Art. 173 da LEP: “A guia de internamento ou de tratamento ambulatorial, extraída pelo
escrivão, que a rubricará em todas as folhas e a subscreverá com o Juiz, será remetida à autoridade
administrativa incumbida da execução e conterá: I - a qualificação do agente e o número do registro
geral do órgão oficial de identificação; II - o inteiro teor da denúncia e da sentença que tiver aplicado
a medida de segurança, bem como a certidão do trânsito em julgado; III - a data em que terminará o
prazo mínimo de internação, ou do tratamento ambulatorial; IV - outras peças do processo reputadas
indispensáveis ao adequado tratamento ou internamento. ) Ao Ministério Público será dada
ciência da guia de recolhimento e de sujeição a tratamento. ) A guia será retificada sempre que
sobrevier modificações quanto ao prazo de execução”.
33
Sobre a cessação da periculosidade, o artigo 175 da LEP
103
delimitou que
sua averiguação ocorreria no fim dos prazos mínimos de duração das medidas,
variando de um a três anos (mínimo exigido para submeter o internado à perícia
conforme preceitua o art. 97, §1º do CP). Mas admite-se, excepcionalmente, a
antecipação de tal exame (artigo 176 da LEP), desde que haja elementos
indicativos de provável cessação do estado perigoso.
104
Ainda segundo o artigo 178 da LEP, delimitou-se que a desinternação ou
liberação será sempre condicional, competindo ao juiz da Vara de execuções penais
a missão de fixar as condições para a soltura (art. 97, §3º do CP); e mais,
determinou-se que esta decisão deve necessariamente transitar em julgado antes
de ocorrer a definitiva desinternação/liberação do infrator (artigo 197 da LEP).
Por fim, destaca-se que o artigo 183 da LEP reforça a possibilidade de
conversão no caso de advento de doença após a sentença, casos em que o juiz
pode converter a pena em medida de segurança.
105
O artigo 184 da LEP, ao seu
turno, fala da possibilidade de conversão do tratamento ambulatorial em internação,
caso o tratamento não seja aconselhável ou não esteja produzindo resultados no
delinquente (casos de incompatibilidade com a medida).
106
Esta é, enfim, a disciplina e a prática hodierna das medidas de segurança
no Brasil.
Nada obstante, importa destacar que as incongruências que cercam o
instituto ainda são muitas, razão pela qual as medidas de segurança continuam
103
Segundo disposição da Lei de Execuções penais, durante o período de um ano após a
liberação/desinternação condicional, o agente ficará sob prova, competindo-lhe, neste período,
atender à certas condições impostas pelo Juiz da Vara de Execuções (algumas obrigatórias: como
obter ocupação lícita, comunicar ao juiz sua ocupação periodicamente e não mudar do território da
comarca sem autorização judicial; e outras facultativas ao juízo, como: não mudar de residência sem
prévia comunicação, recolher-se à habitação no horário fixado e não frequentar certos lugares). Caso
pratique algum ato indicativo de periculosidade, ou descumpra tais condições, poderá volta à
situação anterior In: NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito penal: parte geral. São Paulo:
RT, 2008. p. 550.
104
MARCÃO, Renato. Curso de Execução Penal. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 258.
105
Tal situação, indica que a Súmula 525 do STF (verbis: “A medida de segurança não
será aplicada em Segunda instância, quando só o réu tenha recorrido”), editada antes da Reforma de
1984, subsiste apenas para vedar a reformatio in pejus no caso específico da medida de segurança
– In: MARCÃO, Renato. Ob. cit., p. 257. Quanto ao tema, é também o entendimento do Colendo STF
– In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus n.º 75.238/1-SP, 2ª Turma, Relator Ministro
Carlos Velloso, DJU 07.11.97, RT 749/590.
106
Firme-se, contudo, que não é possível o fenômeno da “reconversão”: ou seja, a
transmutação da Medida de segurança em pena (como quer NUCCI, Guilherme de Souza. Manual
de direito penal..., p.547-548), sob pena de se reavivar o sistema do duplo-binário.
34
sendo alvo de críticas doutrinárias e tentativas de reformulações legislativas.
Especialmente no que tange à sua execução e ao locus escolhido para tal: o
manicômio judiciário.
Foi neste diapasão, inclusive, que surgiu um verdadeiro movimento de luta
“antimanicomial”, o qual, inspirado na doutrina de Franco BASAGLIA (1924-1980)
107
- que resultou na aprovação da Lei italiana n.º 180 de 1978,
108
também incorporada
na Declaração de Caracas
109
-, acabou chegando ao território brasileiro.
110
No ano de 1989 foi apresentado na Câmara Federal brasileira o projeto de
Lei n.º 3.657, de autoria do então deputado Paulo Delgado,
111
pelo qual se propôs
explicitamente a extinção dos hospitais de psiquiatria (judiciários ou não).
O projeto chegou a ser aprovado em 14 de dezembro de 1990 e logo
seguiu para o Senado Federal, quando passou a ser efetivamente discutido. O
primeiro relator, senador Paulo Bisol, chegou a elaborar um projeto substitutivo, mas
107
Nesse sentido, BASAGLIA critica as comunidades terapêuticas da antipsiquiatria que
se erigiram na negação do hospício porém, mantém relações verticais de poder e controle sobre
seus usuários: “Evidenciamos que a gestão da comunidade terapêutica, que procurava humanizar o
manicômio, era igualmente um meio de controle social, era, como poderia dizer Marcuse, uma
‘tolerância repressiva’” - In: BASAGLIA, Franco. A Psiquiatria Alternativa: contra o pessimismo da
razão, o otimismo da prática. São Paulo: Brasil Debates, 1982. p. 87. E ainda: BASAGLIA, Franco. A
Instituição Negada. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
108
A Lei n 180, de maio de 1978 (‘Lei Basaglia’/ Accertamenti e trattamenti sanitari
volontari e obbligatori) estabeleceu a abolição dos hospitais psiquiátricos (manicômios) na Itália, e
está vigente até o presente momento In: SERRANO, Allan Indio. O Que é Psiquiatria Alternativa.
São Paulo: Brasiliense,1986.
109
Documento que marca as reformas na atenção à saúde mental nas Américas,
formulado por organizações, associações, autoridades de saúde, profissionais de saúde mental,
legisladores e juristas reunidos na Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência
Psiquiátrica dentro dos Sistemas Locais de Saúde. Foi adotada pela Organização Mundial de Saúde
em Caracas, Venezuela, em 14 de novembro de 1990, mas, posteriormente, a própria Organização
Mundial de Saúde (OMS) não reconheceu como documento oficial Disponível em:
http://www.opas.org.br. Acesso em: 17 nov. 2008.
110
Em Minas Gerais, a realização do ‘III Congresso Mineiro de Psiquiatria’, em 1979,
trouxe à tona denúncias de violência nas instituições manicomiais do Estado. Em 1987, foi realizada
a ‘I Conferência Nacional de Saúde Mental’, que discutiu novas políticas assistenciais e a
necessidade de uma nova legislação psiquiátrica no Brasil. Nesse mesmo ano, no ‘Encontro de
Bauru’, trabalhadores de saúde mental propuseram princípios teóricos e éticos de assistência e
lançaram o lema: “Por uma sociedade sem manicômios”. Nesse encontro também foi estabelecido o
18 de maio como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial DELGADO, Paulo Gabriel Godinho.
Barbárie. Disponível em: <http://www.paulodelgado.com.br/revista/barbarie.htm> Acesso em: 17 nov.
2008.
111
Corpos nus, estendidos no chão frio de cimento. Amontoados. Rostos descarnados,
envelhecidos, embotados. Olhares vazios. Memórias e consciências ausentes, perdidas em algum
recanto obscuro da mente. Restos humanos. Apenas vestígios. As imagens chocantes de pacientes
psiquiátricos flagrados em pleno abandono nos pavilhões, corredores e quartos de manicômios
brasileiros estarreceram o país nas décadas de 70 e 80, quando a imprensa começou a revelar a
barbaridade por trás dos muros daquelas solenes e venerandas instituições. Um escândalo” - Idem.
35
a pressão política para vetar a aprovação da lei era tão grande que o projeto foi
deixado de lado naquele momento.
112
Mas apesar desta primeira investida infrutífera, o movimento
antimanicomial não se calou. Após grande insistência política, conseguiu importante
conquista com a promulgação de uma Lei especial, a qual ficou conhecida como
“Lei da reforma psiquiátrica” a Lei n.º 10.216, de 06 de abril de 2001, firmada sob
a presidência de Fernando Henrique Cardoso -,
113
que propiciou certo avanço no
trato e na proteção dos direitos dos portadores de transtornos mentais (infratores ou
não), redirecionando o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o
oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária.
A legislação nasceu do ideal comum daqueles que pretendiam acabar de
vez com os manicômios - embora não tenha instituído mecanismos claros para
possibilitar esta progressiva extinção
114
- e trouxe consigo três espécies de
internação: a voluntária, a involuntária e a compulsória.
115
O grande problema, como destaca Virgílio de MATTOS
116
, é que a o
promulgação da Lei o foi suficiente para alterar a situação das internações
psiquiátricas ou mesmo do instituto da medida de segurança, especialmente porque
a postura dos operadores não havia efetivamente mudado: o que se viu (e ainda se
vê), na prática, é a mesma lógica segregacionista-normalizadora sendo operada,
voltada unicamente para o controle social do doente mental infrator.
Note-se, inclusive, que a própria Lei da reforma psiquiátrica ainda manteve
alguns dispositivos que possibilitam expressamente a sustentação desta postura
112
Apesar da forte maquinação política que se operou com o advento da presidência de
Fernando Henrique Cardozo, a reação dos que rejeitavam o projeto de lei foi ainda maior e, em
dezembro de 1995, na Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal, o projeto de lei de Paulo
Delgado foi definitivamente rejeitado – Idem.
113
Quando o projeto de Lei do deputado Paulo Delgado foi rejeitado, passou-se a discutir
o projeto substituto, apresentado pelos senador Lucidio Portela, o qual, após ajustes, acabou sendo
aprovado e se tornou a Lei 10.216.
114
Basta lembrar que em dezembro do mesmo ano de 2001, foi realizada em Brasília a
“III Conferência Nacional de Saúde Mental”, cujas etapas preparatórias congregaram mais de 23.000
pessoas, contando, ao final, com cerca de 1.480 delegados – In: CONSELHO NACIONAL DA
SAÚDE. III Conferencia Nacional de Saúde Mental. Brasília, Ministério da Saúde, 2001.
115
Art. da Lei n.º 10.216: “A internação psiquiátrica somente será realizada mediante
laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos. Parágrafo único - São considerados
os seguintes tipos de internação psiquiátrica: I - internação voluntária: aquela que se com o
consentimento do usuário; II - internação involuntária: aquela que se sem o consentimento do
usuário e a pedido de terceiro; e III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça”.
116
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p.105.
36
(como, v.g, o art. e o art. 6º, inciso III da Lei). Basta ver, por assim dizer, que os
manicômios agora com nova nomenclatura (‘hospitais de custódia e tratamento
psiquiátrico’) - continuam em pleno funcionamento.
117
E, ao que tudo indica, não se deve (ao menos por hora) esperar grandes
transformações por parte do legislador brasileiro. Basta ver que as reformas
processuais penais ocorridas ao longo do ano de 2008 sequer tocaram no tema
118
e
o novo projeto de Código de Processo Penal coordenado pelo então ministro
Hamilton CARVALHIDO e relatado por Eugênio Pacelli de OLIVEIRA (criado na
forma do Requerimento n.º 227 de 2008, aditado pelos Requerimentos n.º 751 e
794 de 2008, e pelos Atos do Presidente n.º 11, 17 e 18, de 2008)
119
nada trouxe
de inovador no trato da questão.
120
117
No caso do Estado do Paraná, por exemplo, o velho Manicômio Judiciário -
inaugurado em 1969 pelo Governo de Paulo Pimentel; depois batizado de Complexo Médico Penal
(em 1993) -, embora ostente hodiernamente excelente administração, teve seu número de vagas
ampliado no ano de 2008, por determinação do então governador Roberto Requião Disponível em:
<http://www.depen.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=13>. Acesso em 14 dez.
2008.
118
Cite-se, a título de exemplo, as Lei n.º 11.719, Lei n.º 11.690 e Lei n.º 11.689, todas
promulgadas em 2008.
119
Além do coordenador e relator, a Comissão do anteprojeto conta com mais sete
juristas: o juiz federal Antônio Corrêa; o advogado e professor da Universidade de São Paulo Antônio
Magalhães Gomes Filho; o consultor legislativo do Senado Fabiano Augusto Martins Silveira; o
advogado e ex-secretário de Justiça do estado do Amazonas Félix Valois Coelho Júnior; o advogado
e professor da Universidade Federal do Paraná Jacinto Nelson de Mirante Coutinho; o delegado
federal e presidente da Associação Nacional dos Delegados da Polícia Federal, Sandro Torres
Avelar, e o promotor de Justiça Tito de Souza Amaral In: BRASIL. Senado. Comissão de Juristas
responsável pela elaboração de anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal. Brasília:
Senado Federal, 2009. Disponível em: http://www.senado.gov.br/novocpp. Acesso em 03 maio 2009.
120
No anteprojeto, a parte relevante ao tema está consubstanciada no Capítulo IV: “Da
insanidade mental do acusado” (arts. 441 a 446 do CPP), que assim dispõe:
Art. 441. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará,
de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente,
descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.
§1º O exame poderá ser ordenado ainda na fase de investigação preliminar, mediante
representação da autoridade ao juiz competente.
§2º O juiz nomeará curador ao acusado, quando determinar o exame, ficando suspenso o
processo, se iniciada a ação penal, salvo quanto às diligências que possam ser prejudicadas pelo
adiamento.
Art. 442. Para o efeito do exame, o acusado, se estiver preso, será encaminhado à
instituição de saúde, ou, se estiver solto, e o requererem os peritos, em outro estabelecimento que o
juiz entender adequado.
§1º O exame não durará mais de 45 (quarenta e cinco) dias, salvo se os peritos
demonstrarem a necessidade de maior prazo.
§2º Se não houver prejuízo para a marcha do processo, o juiz poderá autorizar sejam os
autos entregues aos peritos, para facilitar o exame.
Art. 443. Se os peritos concluírem que o acusado era, ao tempo da infração,
irresponsável nos termos do art. 26 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código
Penal, o processo prosseguirá, com a presença do curador.
37
Ao que parece, o maior problema é que se faz, usualmente, apenas uma
verificação literal da norma penal, não havendo rigorosa preocupação com o seu
entendimento e interpretação conforme a Constituição de 1988. E o que causa mais
estranheza entre os estudiosos do tema é que a psiquiatria no mundo todo caminha
no sentido da “desospitalização”, enquanto o direito penal marcha em sentido
oposto: a do aprisionamento do louco-infrator.
121
Talvez se consiga mudar o estigma e o trato do portador de sofrimento
mental infrator quando forem definitivamente banidas, como tanto outras idéias sem
sentido, as medidas penais de segurança.
1.2 CONFORMAÇÃO DOGMÁTICA DO INSTITUTO
1.2.1 As Distinções entre Penas e Medidas de Segurança
Certo é que hoje, a medida de segurança ainda é um instituto jurídico-
penal que se encontra em plena vigência no ordenamento brasileiro (tal qual ocorre
como a grande maioria dos países que seguiram a tradição romano-germânica),
sendo aplicada “àquele que tem, calcado em perícia psiquiátrica, determinada a sua
inimputabilidade por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, e que
era, ao tempo da ação ou omissão criminosa, incapaz de entender o caráter ilícito
do fato, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
122
Delineada uma concepção geral das medidas de segurança, mister
estabelecer os pontos em que elas e as penas se aproximam e se distanciam o
Art. 444. Se se verificar que a doença mental sobreveio à infração o processo continuará
suspenso até que o acusado se restabeleça, observado o §2º do art. 442.
§1º O juiz poderá, nesse caso, adotar as medidas cabíveis e necessárias para evitar os
riscos de reiteração do comportamento lesivo, sem prejuízo das providências terapêuticas indicadas
no caso concreto.
§2º O processo retomará o seu curso, desde que se restabeleça o acusado, ficando-lhe
assegurada a faculdade de reinquirir as testemunhas que houverem prestado depoimento sem a sua
presença.
Art. 445. O incidente da insanidade mental processar-se-á em auto apartado, que
depois da apresentação do laudo, será apensado ao processo principal.
Art. 446. Se a insanidade mental sobrevier no curso da execução da pena, observar-se-á
o disposto no art. 183 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal.
121
MATTOS, Virgílio de. Op. cit, p. 105–112.
122
Ibidem, p. 90.
38
que remonta ao embate doutrinário entre os adeptos de uma concepção dita unitária
e outra dualista do instituto.
Para os defensores da corrente unitária, penas e medida de segurança
possuem inúmeras semelhanças, a possibilitar uma verdadeira fusão entre estas
duas reações penais. Unitaristas como GRISPIGNI, Alfredo De MARISCO, Eugênio
FLORIAN, Arturo SANTORO e ANTOLISEI
123
entendem que ambas as sanções
poderiam ser reduzidas a um único instrumento de resposta estatal.
Estes dividem-se em dois grupos: aqueles que pleiteiam a substituição das
penas pelas medidas de segurança e os que proclamam o caminho contrário - mas
sempre propugnando pela cessão de uma à outra, constituindo um verdadeiro
monismo jurídico-penal.
124
Tal concepção é fruto do pensamento formulado na origem do positivismo
italiano, onde se via na medida de segurança uma providência de caráter não
aflitivo e complementar à pena.
125
Para eles, não havia uma diferença substancial
entres estas modalidades de sanção, sendo plenamente viável sua unificação
através de uma espécie de pena de segurança” - termo análogo aos utilizados por
Von LISZT e por Edmund MEZGER no direito alemão: zweckstrafe.
126
Noutro giro temos a concepção dualista, defendida por ROCCO,
MASSARI, MANZINI, PAOLI e outros.
127
Os adeptos desta corrente argumentam
que penas e medidas de segurança possuem uma duplicidade distinta de objetivos
123
Neste sentido: (GRISIPGNI, F. Il nuovo diritto criminale negli avamprogetii della
Svizzera, Germania ed Austria. Milano: Societá Editrice Libraria, 1911, p. 29; GRISPIGNI, F. Corso di
diritto penale, secondo il nuovo codice. Padova: Cedam, 1932, v. 1. p. 104-105; MARISCO, Alfredo
De. Diritto penal: parte generale. Napolis: Jovene, 1935. p. 477; FLORIAN, Eugenio. Trattato di diritto
penale. Milano: Francesco Valardi, 1934. p.783; SANTORO, Arturo. Misure do sicurezza e
periculositá sociale a proposito di un piano di riforma e di una riconstruzione dogmatica. Rivista di
diritto penitenziario. Roma, 1936, p. 560; ANTOLISEI, F. Pene e misure di sicurezza. Revista di diritto
penale. Padova: Cedam, 1933, p. 129) Apud NOGUEIRA, Ataliba. Op. cit., p. 87-105.
124
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 67
125
“... a pena, que é sanção específica do direito penal, continua sendo meio aflitivo que
se aplica como reação contra um fato concreto, avaliado moralmente (...). A medida de segurança,
ao contrário, não se apoia nos princípios de imputabilidade e voluntariedade, mas no princípio da
perigosidade” – In: BATTAGLNI, Giulio. Op. cit., p. 728.
126
LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal...., p. 100. E também: MEZGER, Edmund.
Diritto penale. Padova: Cedam, 1935. p. 533.
127
Neste sentido: (ROCCO, Arturo. Il codice penale italiano... [1930]. E ainda: ROCCO,
Arturo. Le misure di sicurezza e gli altri mezzi de tutela giuridica. Revista di diritto penitenziario,
Roma, v. 9, 1930, p. 1253; MASSARI, Eduardo. Le dottrine generali del diritto penale. Napoli:
Jovene, 1930, p. 301; MANZINI, Vicenzo. Trattato di diritto penale italiano secondo il codice del 1930.
vol.III. Torino: UTET, 1934. p. 176; PAOLI, Giulio. Il diritto penale italiano. Padova: Cedam. 1936, p.
98) Apud NOGUEIRA, Ataliba. Op. cit., 110-117. E ainda: FERRARI, Eduardo Real. Op. cit, p. 68-70.
39
a alcançar, ficando a pena ligada ao fato criminoso, enquanto que a medida estaria
mais relacionada ao próprio agente.
É dualista, portanto, porque reconhece a existência de instrumentos
sancionatórios que têm como fundamento ou pressuposto a culpa do agente (as
penas), e de instrumentos sancionatórios que não pressupõem a culpa, mas a
periculosidade do agente (as medidas de segurança).
128
Várias foram as teorias desenvolvidas neste sentido, dentre as quais
destaca-se: a teoria da carência de aflitividade de Luigi LUCCHINI, a teoria da
prevenção de Silvio LONGHI, a teoria da reação e da independência da ação
desenvolvida por ROCCO, a teoria do estado perigoso enunciada por STOOS, e
também a teoria integral desenvolvida por Ottorino VANINI.
129
Noutro giro, cabe ainda verificar que ao longo de sua estruturação
doutrinária e legislativa, a concepção dualista se apresentou sob três perspectivas
distintas: primeiro como acumulação - no chamado sistema ‘dualístico-cumulativo’
ou do ‘duplo-binário’
130
-, onde penas e medidas constituem diferenciadas
modalidades de sanção penal, mas que devem ser aplicadas cumulativamente,
128
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português: as consequências jurídicas do
crime. Lisboa: Notícias, 1993. p. 417.
129
Neste sentido, tem-se que: (... a primeira teoria concebia a pena com um caráter
iminentemente aflitivo, enquanto que as medidas de segurança não, que seu fundamento está
fulcrado numa perspectiva de tratamento – In: LUCCHINI, Luigi. Elementi di procedura penale.
Florença, 1908. A Segunda teoria firma que as sanções devem dividir-se em repressivas e
preventivas: a pena estaria na primeira categoria e a medida de segurança na segunda, pois estas
últimas baseiam-se em fins exclusivamente utilitários In: LONGHI, Silvio, Per un codice della
prevenzione criminale. Milano: Societá Editrice Unitas, 1922; LONGHI, Silvio. Repressione e
prevenzione nel diritto penale attuale. Milano: Societá Editrice Libraria, 1991. Na terceira teoria firma-
se que a pena é sempre reação contra o fato de ordem lesiva social, não dependendo da ação; a
medida de segurança não é reação, e, como tal, depende sempre do ato praticado pelo agente – In:
ROCCO, Arturo. Le misure di sicurezza... [1930]. Pela Quarta teoria a pena diz respeito à
responsabilidade do criminoso, exigindo um controle de todos os elementos do crime; as medidas
dizem respeito à periculosidade do agente, sendo aplicáveis até nos ‘quase-crimes’ – exatamente em
função deste estado perigo inerente ao agente In: STOOS, Carl. Avant-projet de code pénal
suisse... [1894]. A última teoria é assim batizada porque pressupõe uma rigorosa enumeração de
todas as diferenças entre pena e medidas. VANINI entende que, muito embora ambas sejam
espécies da reação punitiva do Estado, existe uma infinidade de caracteres que as diferencia, tais
como: a finalidade, o pressuposto legitimante, os efeitos, etc In: VANNINI, Ottorino. Lineamenti di
diritto penale. Firenze, 1933) Apud FERRARI, Eduardo Real. Op. cit, p. 68-70.
130
ROXIN, Claus. A culpabilidade como critério limitativo da pena. Revista de Direito
Penal. Rio de Janeiro, n. 11/12, p. 5-18, jul./dez 1973, p. 15. Segundo o autor, “... um sistema de
sanções em que o grau de culpabilidade assinala o limite da pena deve ser de duplo binário, isto é,
deve contemplar, junto à pena, medidas de correção e de segurança, independentes da
culpabilidade. Pois a pena, tão-somente, não basta, em casos graves, para atender às necessidades
de uma ação terapêutica...”.
40
sendo a medida encarada como um complemento obrigatório da pena.
131
Numa segunda perspectiva, aparece como substituição ou alternativa – no
sistema ‘dualístico-alternativo’ -, em que a medida de segurança é vista como
verdadeiro substitutivo da pena, aplicável quando esta é ineficaz para evitar a
reincidência criminosa: constatado que o agente havia se tornado socialmente
perigoso, pregava-se a substituição das sanções.
132
O maior problema destes dois modelos (tanto do dualístico-binário como
do dualístico-alternativo), como indica Augustín JORGE BARREIRO,
133
é que eles
criam o “inconveniente risco de conduzir à intolerável dupla privação de liberdade a
respeito de uma mesma pessoa”, gerando aquilo que a doutrina batizou de “fraude
de etiquetas”.
134
Neste mesmo sentido, aponta Francisco MUÑOZ CONDE e Mercedes
GARCÍA ARÁN, que:
... as medidas de segurança podem ser representadas asceticamente como medidas
‘benfeitoras’ dirigidas a curar’ o perigoso, por que este é um discurso legitimador de
intervenções desmesuradas e carentes de limites, com o que se chega à denominar
‘fraude de etiquetas’, é dizer, a tolerar maiores ilimitações das medidas de segurança,
com o argumento formal de que não são penas, sanções ou castigos.
135
Por fim, a relação entre pena e medida de segurança pode apresentar-se
de maneira vicariata - no sistema ‘dualístico vicariante’, chamado por alguns de
“monismo na execução”
136
-, onde o Juiz deve optar entre pena ou medida de
segurança, sem a cumulação e nem arbitrária substituição de uma pela outra.
E como visto, foi este último o sistema adotado pela atual legislação
131
Tal feição surgiu pela primeira vez com o Antreprojeto de STOOS, fruto de uma
interpretação dos estudos formulados no Programa de Marburgo em que se pretendia resolver o
problema da ineficácia ou insuficiência da pena, que muitas vezes o corrigia alguns indivíduos
delinquentes - , e de se espalhou para vários códigos. Vale lembrar, inclusive, que tal concepção
foi adotada pelo Código penal brasileiro de 1940, e perdurou até a reforma de 1984 In: STOOS,
Carl. Avant-projet de code pénal suisse... [1894] Apud NOGUEIRA, Ataliba. Op. cit., p. 114.
132
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 71-72.
133
JORGE BARREIRO, Augustín. Directrices político-criminales e aspectos básicos do
sistema de sanciones en el Código penal español de 1995. Actualidad penal, Madrid, n. 23, p.507-
508, jun. 2000.
134
Assim batizado por KOHLRAUSH. Sicherungschaft, 1924, p. 33. Apud BUSATO,
Paulo; HUPAYA, Sandro. Op. cit., p. 276-279: “Afinal, se trata de um hábil mecanismo dirigido a
burlar a proibição das prisões perpétuas, posto que o reconhecimento da periculosidade do sujeito,
em determinados Estados intervencionistas, poderia levar a afastar indefinidamente da sociedade os
inimigos do sistema”.
135
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Derecho penal: parte general.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. p. 568.
41
brasileira: “Extingue o projeto a medida de segurança para o imputável e institui o
sistema vicariante para os fronteiriços. Não se retomam, com tal método, soluções
clássicas. Avança-se, pelo contrário, no sentido da autenticidade do sistema...”.
137
Consoante indica MUÑOZ CONDE, este sistema resolve satisfatoriamente
as contradições do mecanismo dualista: “... o sistema vicariante consiste
basicamente em evitar que a duração da pena e da medida se somem e
incrementem assim a aflitividade da privação da liberdade”.
138
Sem embargo, não
se apresenta como uma solução definitiva, senão como melhor sintoma da
necessidade de mudanças.
Voltando às vistas para a temática central desta parte do trabalho (ou seja,
às semelhanças e diferenças entre os institutos), importa firmar, a título de
similitude, que ambos são espécies de um gênero maior: a sanção penal, o que
possibilita concebê-los como possíveis consequências jurídicas impostas pelo
Estado àqueles que lesaram ou ameaçam de lesão um bem jurídico penalmente
tutelado.
139
Ademais, tanto a pena como a medida de segurança exigem a prática de
um injusto prévio por parte do agente e somente serão aplicadas jurisdicionalmente,
por meio de uma sentença penal (condenatória no caso da pena, e absolutória
imprópria no caso da medida).
Por outro lado, é incontestável que as diferenças entre os dois institutos
são bem maiores que as suas semelhanças. Como delimita a própria Exposição de
motivos do Código penal de 1940 (desde a redação originária), a medida de
segurança difere da pena quer do ponto de vista de suas causas e de seus fins,
quer pelas condições em que deve ser aplicada e pelo seu modo de execução.
Primeiramente, enquanto a pena é essencialmente repressiva - ou seja,
visa ao fim maior de expiação (traduzido na fórmula do malum passionis quod
136
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português..., p. 423.
137
A respeito, item 87 da Exposição Geral de Motivos da Lei 7.209 de 1984. Anote-se,
contudo, que a imposição alternativa da espécie de sanção penal não impossibilita a substituição da
pena por Medida de segurança em alguns casos, mas não por conta de uma incorrigibilidade do
sujeito (como ocorria no passado), mas sim para dar-lhe um específico fim de tratamento.
138
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. cit., p. 159 e 660.
139
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006. p. 638.
42
infligitur ob malum actionis
140
) - e tem como fundamento a culpabilidade do agente
(firmada pela máxima do nulla poena sine culpa; o que pressupõe a
responsabilidade psíquica ou capacidade de direito penal), a medida de segurança
é essencialmente preventiva - visa à segregação hospitalar, assistência, tratamento,
custódia, reeducação, vigilância - e se assenta exclusivamente na periculosidade do
agente (reconhecido pelo Código e pela doutrina dominante como um “estado
subjetivo, mais ou menos duradouro, de anti-sociabilidade” do sujeito)
141
, cuja
verificação se opera, em regra, apenas sobre o injusto cometido (sem perquirir
sobre a capacidade judico-penal do autor).
142
Para Nelson HUNGRIA, “a pena é, conceitualmente, uma reação, um
contra-golpe em face do crime praticado; a medida de segurança é um
preventivo do crime que pode vir a ser praticado”.
143
Neste tocante, vale lembrar que em sua gênese a medida de segurança
surgiu para segregar os incorrigíveis - traduzindo uma idéia pura de prevenção
especial negativa (de inocuização), sempre com o fito de se auferir proteção social.
Com a evolução de idéias humanitárias-iluministas, a segregação perdeu terreno
para concepção de tratamento e de recuperação do doente, nascendo assim a idéia
de prevenção especial positiva (de ressocialização), a qual passou por dois
momentos distintos: no século XIX traduzia a idéia de recuperação moral do
indivíduo (espécie de penitência); no século XX, passaria a ter uma feição
médica, clínica (enquanto tratamento terapêutico e psicológico).
144
Portanto, mister firmar que inexiste a idéia de retribuição ou mesmo de
prevenção geral em termos de medida de segurança, afinal, não haveria lógica
alguma em castigar ou ameaçar pela sanção um indivíduo que não possui
140
Embora também se possa falar em fins preventivos (especiais e gerais, positivos e
negativos) para a pena In: QUEIROZ, Paulo. Funções do Direito penal: legitimação versus
deslegitimação do sistema penal. São Paulo: RT, 2005. p. 61.
141
“A culpabilidade importa a irrogação de pena ainda quando não exista periculosidade,
e, reciprocamente, a ausência de culpabilidade exclui a imposição de pena, por maior que seja a
periculosidade; a menor culpabilidade deve acarretar a menor pena, ainda quando máxima a
periculosidade, e, ao contrário, a maior culpabilidade deve ser mais severamente punida, ainda
quando mínima a periculosidade” – In: HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p.07-09.
142
As penas têm em conta um delito realizado e considerado como entidade, de certo
modo, independente da pessoa de seu autor; já as medidas de segurança se destinam a prevenir um
futuro delito, cuja provável realização infere de um estado subjetivo da pessoa. In: MARTINS,
Salgado. Op. cit., p. 440.
143
HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p. 11.
144
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit, p. 61.
43
capacidade de compreender seus atos ou de portar-se conforme aquele
entendimento. Desta feita, conclama-se apenas fins preventivos para a medida.
145
Em segundo lugar, tem-se que a pena encontra seu fundamento no valor
justiça, atentando-se apenas para os fatos pretéritos
146
; a medida de segurança
está fulcrada na premissa da utilidade, vislumbrando sempre o futuro: “as penas
possuem sentido ético e se impõem se reconhecidas a responsabilidade do
agente. as medidas orientam-se pelo princípio da defesa social, e podem ser
impostas ainda que o agente não seja responsável (legitima-se pelo estado
perigoso)”.
147
É de se destacar, ainda, que a pena é sempre proporcional ao valor causal
do crime - quanto mais grave o delito (face as suas consequências e
reprovabilidade da conduta do agente) maior a pena - e possui um limite de
execução determinado: no caso brasileiro, a privação da liberdade não pode se
estender para além de 30 anos (ex vi art. 75 do CP).
148
a medida de segurança,
além de ser vista como consequência de uma patologia advinda com o delito, acaba
sendo apenas relativamente determinada quanto a seu prazo mínimo e totalmente
indeterminada no máximo (conforme previsão do art. 97, §1º do CP).
149
A idéia que baliza o instituto, como observado, é a de que o agente
somente é submetido à medida de segurança porque é perigoso, razão pela qual
145
Neste tocante, não seriam válidas as doutrinas que tentam vislumbrar uma finalidade
de prevenção geral para as medidas de segurança. Como faz Eduardo FERRARI, ao aduzir que a
prática de um injusto é pressuposto para aplicação da medida, de modo que é indubitável o seu
papel atuante na função de proteção de bens jurídicos (mesmo que apenas subsidiariamente). Deste
modo, também existe na medida de segurança a presença da expectativa da comunidade na
revalidação do ordenamento jurídico: “a medida de segurança criminal reafirma o Direito, gerando
tranqüilidade social, consistindo o lapso mínimo de duração um parâmetro legislativo ao
apaziguamento comunitário” - Ibidem, p. 62-63.
146
Embora reste imperioso firmar que hoje, face a banalização das prisões cautelares no
Brasil, é possível constatar uma verdadeira antecipação da sanção, o que acaba também firmando
um juízo de utilidade para a pena (fugindo da perspectiva clássica e exclusiva de justiça).
147
BATTAGLINI, Giulio. Op. cit., p. 726.
148
A pena, adstrita à noção realística ou causal do crime (lesão ou perigo de lesão de um
bem ou interesse penalmente protegido), é proporcional à gravidade deste, e, consequentemente,
determinada no seu quantum; já a medida de segurança, ainda que condicionada, de regra, à
precedente prática de um fato previsto como crime, somente tem este em conta como um dos
sintomas do estado perigoso individual, a cuja indeterminada duração está subordinada a sua
execução – In: HUNGRIA, Nelson. Op. cit., v. 3, p. 12.
149
A pena é retribuição jurídica ao crime. Por isso, sua qualidade, quantidade e grau de
correspondem à qualidade, quantidade e grau do delito. a medida de segurança é simples meio
de defender a sociedade contra as reações de indivíduos perigosos, visando obter sua cura,
recuperação ou simples inocuidade – In: MARTINS, Salgado. Op. cit., p. 440.
44
deverá permanecer em ‘tratamento’ enquanto durar este caractere pessoal.
150
Ocorre que esta situação, como bem destaca a moderna doutrina penal,
acaba legitimando a aplicação de uma sanção perpétua, indefinida e por este
motivo arbitrária.
151
Como bem anota ZAFFARONI e PIERANGELI, “esta consequência deve
chamar a atenção dos intérpretes de qualquer lei penal, por menos que reflexionem
sobre uma medida significar limitações da liberdade e restrições de direitos, talvez
mais graves do que os dotados de conteúdo autenticamente punitivo”. E seguem,
afirmando que “não é constitucionalmente aceitável que, a título de tratamento, se
estabeleça a possibilidade de uma privação da liberdade perpétua, como coerção
penal. Se a lei não estabelece o limite máximo, é o intérprete quem tem a obrigação
de fazê-lo”.
152
Tanto é assim que há, hoje, forte movimento doutrinário propugnado pela
limitação temporal das medidas, pois o sentenciado tem o direito constitucional de
saber qual a duração da sanção que lhe está sendo imposta (como corolário do
princípio da legalidade e da segurança jurídica).
153
Por fim, na esteira dos absurdos legislativos, é de se ver que toda uma
sorte de direitos, tradicionalmente conferidos ao agente culpável que recebeu uma
pena, é negada àquele que foi submetido à medida de segurança, como por
150
Basta verificar as palavras dos doutrinadores clássicos do direito penal brasileiro neste
sentido: “Quanto à medida de segurança, ela tem que ser indeterminada, pois, se o objetivo é a
periculosidade do indivíduo, logicamente não poderá cessar enquanto aquela existir (...). A regra
absoluta é que a medida de segurança perdurará enquanto durar a periculosidade do delinquente
(...). A indeterminação da medida de segurança é um corolário fatal: não se pode curar a prazo fixo”
– In: NORONHA, E. Magalhães. Op. cit., p. 341-342.
151
LEVORIN, Marco Polo. Princípio da legalidade na Medida de Segurança. São Paulo:
Juarez de Oliveira, 2003. p. 10-11. Da mesma forma: FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p.272.
GARCÍA ARÁN, Mercedez; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit., p. 43.
152
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro: parte geral. São Paulo: RT, 2004. p. 811. Note-se, inclusive, que tal inconstitucionalidade
foi até mesmo reconhecida pelo Colendo STF In: BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas
Corpus n.º 84.219-4/SP, 1ª Turma, Relator Ministro Marco Aurélio, DJU de 03.05.04, p. 11, n.º 88.
153
Neste tocante, Flávio GOMES aduz que as medidas de segurança não podem
ultrapassar o limite máximo de pena abstratamente cominada ao delito, pois esse seria “o limite da
intervenção estatal, seja a título de pena, seja a título de medida”. GOMES, Luiz Flávio. Medidas de
segurança e seus limites. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, n. 2, p. 64-72.
abr./jun. 1993, p. 67-69. No mesmo sentido: GARCIA MARTÍN, Luis. Principios rectores y
pressupuestos de aplicación de las medidas de seguridad y reinserción social en el derecho español.
In: PRADO, Luiz Regis (coord.) Direito penal contemporâneo: estudos em homenagem ao professor
José Cerezo Mir. São Paulo: RT, 2007.
45
exemplo: a progressão de regime
154
, o livramento condicional
155
, a possibilidade de
uma verdadeira detração penal
156
, o sursis
157
, a remição pelo trabalho
158
, permissão
de saída e saídas temporárias
159
, dentre outros os quais, para além de meros
‘benefícios’ da execução penal, consagram-se enquanto verdadeiros ‘direitos’ que
se incorporam (ou deveriam incorporar) ao patrimônio subjetivo do cidadão acusado
no âmbito de um processo penal.
Uma vez submetido à medida de segurança, nela deverá permanecer -
sem qualquer possibilidade de saída esporádica, progressão para situação mais
benéfica, liberdade antecipada -, até que cesse sua alegada periculosidade.
Neste diapasão, mister questionar: não seria preferível ao portador de
transtorno mental que fosse responsabilizado penalmente e recebesse uma pena?
Afinal, como assevera Cláudio COHEN, “após o processo, elasabe quanto tempo
ficará recluso; no caso de ser enquadrado na medida de segurança, (...) ele não
saberá quanto tempo ficará recluso, pois isto dependerá da cessação da
154
Conforme prescreve o artigo 112 da Lei 7.210 de 1984 (Lei de Execuções Penais): “a
pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime
menos rigoroso, a ser determinado pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da
pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, com provado pelo diretor do
estabelecimento, respeitada as normas que vedam a progressão”.
155
Previsto no artigo 131 da LEP e artigo 83 do CP brasileiro, traduz “um período de
transição entre a prisão e a vida livre, período intermediário absolutamente necessário para que o
condenado se habitue às condições da vida exterior, vigorize sua capacidade de resistência aos
atrativos e sugestões perigosas e fique reincorporado de modo estável e definitivo à comunidade...” –
In: CUELLO CALÓN, Eugênio. La moderna penología. Barcelona: Bosch, 1958. p. 537.
156
Artigo 42 do CP: Computam-se, na pena privativa de liberdade e na medida de
segurança, o tempo de prisão provisória, no Brasil ou no estrangeiro, o de prisão administrativa e o
de internação em qualquer dos estabelecimentos referidos no artigo anterior (hospital de custódia e
tratamento psiquiátrico, ou outro estabelecimento adequado)”. Ocorre que muitas das vezes o
indivíduo ficou preso cautelarmente durante tempo superior ao mínimo de três anos previsto para
que haja a possível liberação ou desinternação condicional da medida de segurança, e ainda assim é
mantido em ‘tratamento’.
157
Também conhecido como suspensão condicional da pena, previsto no 77 e seguintes
do CP brasileiro, que constitui-se enquanto “substitutivo penal impeditivo da execução e extintivo da
pena privativa de liberdade aplicada, decidido pelo juiz na sentença criminal, com o objetivo de evitar
os malefícios da prisão..” – In: SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal..., p. 604.
158
Artigo 126 da LEP: “O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semi-
aberto poderá remir, pelo trabalho, parte do tempo de execução da pena”.
159
Viabilizados pelo artigo 120 a 122 da Lei de Execuções Penais brasileira: “Art. 120 da
LEP: Os condenados que cumprem pena em regime fechado ou semi-aberto e os presos provisórios
poderão obter permissão para sair do estabelecimento, mediante escolta, quando ocorrer um dos
seguintes fatos: I - falecimento ou doença grave do njuge, companheira, ascendente, descendente
ou irmão; II - necessidade de tratamento médico (...)”; “Art. 122 da LEP: Os condenados que
cumprem pena em regime semi-aberto poderão obter autorização para saída temporária do
estabelecimento, sem vigilância direta, nos seguintes casos: I - visita à família; II - freqüência a curso
supletivo profissionalizante, bem como de instrução do grau ou superior, na Comarca do Juízo da
Execução; III - participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social”.
46
periculosidade, tornando-se, em muitos casos, uma condenação de prisão
perpétua”.
E não isso, poderá ele obter, ainda, uma rie de benefícios que o
legislador previu àquele que tem culpabilidade e foi sancionado por meio de uma
sentença penal condenatória.
1.2.2 Pressupostos Legais para a Medida: o Injusto-Penal e a Inimputabilidade
Firmada a distinção entre os dois institutos, importa agora analisar os
pressupostos exigidos pela legislação para a aplicação da medida de segurança. E
estes, segundo atual disposição do Código penal, consubstanciam-se em três: a
realização de um injusto penal, a comprovação da inimputabilidade (ou, em alguns
casos, a semi-imputabilidade) decorrente de transtorno mental e a presença da
periculosidade criminal do agente.
Assim, como primeiro pressuposto para a aplicação da medida, a
legislação exige a prática de um injusto penal, ou seja: de um fato típico e
antijurídico.
160
Nas palavras de Juarez Cirino dos SANTOS, é necessário a identificação
prévia de um fato previsto como crime”, porque o inimputável pode realizar ações
típicas justificadas (por legitima defesa, estado de necessidade, ou outra causa de
exclusão da ilicitude ou mesmo da tipicidade), cuja presença descaracteriza o
injusto e, assim, afasta a possibilidade de aplicação da medida.
161
160
“... que o fato punível (ou, como dizem outros, ‘o fato previsto na lei como delito’) em
que de modo necessário de basear-se legalmente a imposição das medidas, se chame ou não
delito, é tema de discussões intermináveis, por sorte sem consequência de importância, ao menos
enquanto as palavras não sejam uma armadilha para a burla das garantias demo-liberais. Trata-se,
de toda maneira, de um injusto típico, que é o núcleo de todo o delito...” – In: FERNÁNDEZ
CARRASQUILLA, Juan. Derecho penal fundamental: teoría general do delito e punibilidad. Bogotá:
Temis, 1984. p. 9-10. Ver também: TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. Belo Horizonte: Del
Rey, 2003.
161
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal..., p. 642-643. Como destaca o autor,
ainda quem diga que mesmo o erro de proibição inevitável ou de inexigibilidade de comportamento
diverso de autores inimputáveis, sob o mesmo argumento, afastaria a possibilidade de aplicação da
medida de segurança (neste sentido: BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal..., p.
682). Todavia, como bem aduz Cirino dos SANTOS, “se o defeito do aparelho psíquico do
inimputável significa incapacidade intelectual de entender o caráter ilícito do fato ou incapacidade
volutiva de determinar-se de acordo com esse entendimento, então o inimputável não pode ter
47
Desta maneira, o ordenamento brasileiro baniu definitivamente as medidas
de segurança pré-delitivas, baseadas somente num juízo de perigosidade social do
agente. Afinal de contas, se a medida de segurança é considerada uma modalidade
de sanção penal, não basta a hipotética possibilidade de causar um dano a bem
jurídico protegido para auferir a possibilidade de sua aplicação, é necessária a
efetiva prática de um fato tido como crime.
Como destaca Jorge de Figueiredo DIAS, “a prática do ilícito-típico possui
dupla função: por um lado a de elemento indicador da perigosidade; por outro a de
co-fundamento e limite de aplicação da medida de segurança”.
162
Paulo BUSATO e Sandro Montes HUPAYA corretamente advertem que
a aplicação das medidas de segurança sem a necessária presença objetiva do injusto
típico, e tendo como único fundamento indeterminado e instável critério da periculosidade,
converte a liberdade individual em um princípio fluído, concedendo licença ao Estado
(arbitrariamente ou não) a fazer uso das mais inusitadas restrições contra as
liberdades.
163
Neste quadrante, a exigência de um injusto procura também preservar (ao
menos formalmente) o princípio ofensividade ou lesividade, que baliza a construção
de toda estrutura jurídico-penal: a idéia de que o Direito penal somente deve intervir
se houver efetiva lesão ao bem jurídico protegido, de modo a afrontar a comunidade
social
de maneira irreparável.
164
Ocorre que, na prática, nem mesmo esta garantia é observada em sua
totalidade. Não são raros os casos em que o infrator patológico é submetido à
medida mesmo estando protegido por uma causa excludente da ilicitude (como a
legítima defesa ou o estado de necessidade do art. 23 do Código Penal), ou mesmo
diante de uma hipótese de insignificância como ocorre no caso trazido junto ao
Anexo I do presente trabalho, em que o agente foi submetido à medida de
conhecimento da proibição, ou não pode determinar-se pelo conhecimento d da proibição, nem pode
possuir dirigibilidade normativa (...). Logo, autores inimputáveis, não podem atuar em erro de
proibição nem agir em situações de exculpação...”.
162
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito penal português..., p. 439. Em igual sentido:
MORILLA CUEVAS, Lorenzo. Curso de derecho penal español: parte general. Madrid: Marcial Pons,
1996, p. 36.
163
BUSATO, Paulo César; HUPAYA, Sandro. Op. cit., p. 259.
164
Trata-se, contudo, de uma preservação relativa (quase formal); afinal de contas, é um
instituto que, por sua natureza, conclama a aplicação de sanção à agentes perigosos, e não
culpáveis. De qualquer forma, mesmo esta consagração formal já é suficiente para impedir a
aplicação de medidas de segurança pré-delitivas; e é este princípio, também, que finda com a idéia
48
segurança mesmo diante da subtração, para si, de res avaliada em pouco menos de
oitenta reais (ou seja, sem mesmo haver desvalor em sua ação ou no resultado
produzido).
165
Uma outra questão pode ser suscitada em relação ao pressuposto do
injusto-penal, diz respeito à aplicação do princípio da presunção de inocência,
assegurada no artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República de 1988.
Aqui, vale lembrar que tal presunção pode ser apreciada sob duas
perspectivas: uma processual, a qual indica que o acusado não é obrigado a
produzir provas contra si, bem como a de que incumbe à acusação a prova da
culpa; outra material, a qual estabeleceu que ninguém pode ser impedido de sua
liberdade antes do reconhecimento de sua responsabilidade criminal.
Note-se que isso é válido (ou pelo menos deveria ser) para as medidas de
segurança, uma vez que não comprovadas a materialidade ou a autoria delitiva,
resta inviável a aplicação de qualquer sanção penal mesmo se o indivíduo foi
considerado inimputável e perigoso.
Contudo, observa-se que na prática, o instituto - exatamente por não estar
fulcrado no juízo de culpabilidade e reprovação - acaba mitigando ou mesmo
arrostando (na totalidade) o ideal de presunção de inocência, o que acaba por
resgatar os postulados clássicos de uma internação pré-delitiva, fulcrada na
presunção de uma periculosidade exclusivamente social.
Finalmente, importa anotar que para além do injusto-penal, é mister que a
conduta praticada seja também punível - ou seja, passível de sanção pelo Estado -,
pois quando extinta a punibilidade do agente (v.g, por qualquer das hipótese
descritas no artigo 107 do CP) não será imposta medida de segurança nem
subsistirá a que tenha sido imposta - conforme expressa previsão do parágrafo
único do artigo 96 do CP.
O segundo pressuposto exigido para aplicação da medida de segurança é
a comprovação da inimputabilidade (ou semi-imputabilidade) por doença ou
de presunção legal de periculosidade de certo grupo de indivíduo – como havia na redação originária
do CP de 1940.
165
A pesquisa de campo realizada para conformação do presente trabalho, valeu-se de
vários laudos, exames e procedimentos submetidos ao Complexo Médico Penal do Paraná. Dentre
estes, destacou-se o caso de J.F.B (que aqui suprime-se a nominação completa para resguardar sua
imagem), que consta do Anexo 1 do presente trabalho.
49
perturbação da saúde mental.
Como observado, a atual legislação brasileira vedou a possibilidade de
aplicação de medidas de segurança para sujeitos com capacidade plena de
culpabilidade – aqueles que podem compreender a ilicitude do fato e atuar conforme
essa compreensão -, de modo que a ausência de imputabilidade passou a ser
pressuposto ou requisito para a aplicação da dita medida.
166
Veja-se que o critério empregado pelo Código para auferir tal
“incapacidade de culpabilidade”
167
, possibilitando a aplicação da medida de
segurança ao infrator, foi o biopsicológico-normativo
.
: que atende tanto às bases
psicológicas que produzem a inimputabilidade, como às suas consequências na
vida psicológica ou anímica do agente. Ou seja, resulta da combinação entre
anomalia mental (fator orgânico) e incapacidade de entendimento (fator psicológico)
– conforme indica a fórmula do artigo 26, caput do CP.
Então, se verificada por meio de perícia a existência de doença mental ou
de desenvolvimento mental incompleto, e que esta enfermidade afetou
verdadeiramente a possibilidade de compreensão do ilícito, estará autorizada a
figuração da inimputabilidade ao sujeito.
A primeira figura (doença mental) compreende as hipótese de patologias
constitucionais ou adquiridas do aparelho psíquico: psicoses exógenas e endógenas
- ou seja, qualquer tipo de “alteração mórbida da saúde mental, independente de
sua origem”.
168
A segunda figura (desenvolvimento mental incompleto), por usa vez,
diz respeito a uma limitada capacidade de compreensão do ilícito ou da falta de
166
Imputabilidade pode ser definida como “o conjunto das condições de maturidade e
sanidade mental que permitem ao agente conhecer o caráter ilícito do seu ato e determinar-se de
acordo com esse entendimento” In: CEREZO MIR, José. Curso de derecho penal espanhol.
Madrid: Tecnos, 1998. p.191. Portanto, na orientação finalística adotada hoje, o juízo de
imputabilidade pressupõe um duplo aspecto: o cognoscitivo e o volitivo In: WELZEL, Hans. El
nuevo sistema del derecho penal: una introducción de la doctrina de la acción finalista. Barcelona:
Ariel, 1964. p.100.
167
PRADO, Luiz Regis. Op. cit., p. 376: “... ou seja, conjunto das condições de
maturidade e sanidade mental que permitem ao agente conhecer o caráter ilícito do seu ato de de
determinar-se conforme aquele entendimento”.
168
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal..., p. 288: “... psicoses produzidas por
trauma/lesão e por tumores ou inflamações do órgão cerebral, epilepsia, desagregação da
personalidade por arteriosclerose ou atrofia cerebral, esquizofrenia e paranóia”. Em lição análoga,
entende-se que “doença mental é um quadro de alterações psíquicas qualitativas, como a
esquizofrenia, as doenças afetivas (psicose maníaco-depressiva ou acessos alterados de excitação
e depressão psíquica) e outras psicoses”. No mesmo sentido: GATTAZ, Wagner F. Violência e
50
condições plena de autodeterminar-se em razão de não ter o agente atingido sua
maturidade intelectual, compreendendo por excelência todas as situações de
oligofrenia: idiotia, imbecilidade e debilidade mental.
169
Importa frisar que esses estados patológicos devem necessariamente ser
auferidos por meio do exame médico-pericial. E neste tocante, coube à legislação
processual prever - conforme delimitado pelos artigos 149 a 154 do CPP - a
instauração do “incidente de (in)sanidade mental” ao acusado sobre o qual recai a
suspeita da doença mental, onde haverá uma acurada ingerência médica na
valoração da situação descrita.
Portanto, a própria legislação confere à psicopatologia forense a missão
de determinar, no caso concreto, se a anomalia produziu efetivamente a
incapacidade referida, e mais, se tal anomalia (e consequente inimputabilidade)
datava do tempo da ação/omissão criminosa - pois assim se viabilizará ao Juízo
a aplicação da medida de segurança, mesmo não sendo o aludo vinculativo.
Como parâmetro, o médico se valerá de um criterioso sistema
desenvolvido pela Associação Psiquiátrica Americana, batizado de DSM
(atualmente na série IV, de 1994), o qual disciplina e esquematiza uma variada
gama de desordens mentais, também descritas em seus contornos gerais por meio
do CID-10.
170
Ocorre que tal compêndio, de cunho estritamente médico, visa apenas a
ofertar diretrizes gerais ao perito, razão pela qual sua aplicação aos contextos
jurídicos deve estar cercada de minuciosa cautela, sob pena de se incorrer em
graves equívocos.
171
Nesta perspectiva, e levando-se em consideração que as definições legais
sobre o que deva ser tido como transtorno mental geralmente estão cercadas por
doença mental: fato ou ficção? Folha de São Paulo, 7 nov. 1999, 3º Caderno, p. 2. E ainda:
ALTAVILLA, Enrico. Psicologia judiciária. Coimbra: Almedina, 2003. p. 233 e s.
169
SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal..., p. 288.
170
ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. (Op. cit.); e também: ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DA SAÚDE. CID-10: Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas
relacionados à saúde. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1997.
171
Como bem anota Gomes da SILVA, o próprio DSM-IV adverte, em seu preâmbulo, que
ele serve apenas para ofertar diretrizes, não devendo ser usado como um livro de receitas culinárias.
“O próprio DSM-IV já ressalva um fenômeno universal que é a o correspondência entre as
definições legais de interesse psiquiátrico ou psicológico e a classificação correntemente aceita em
compêndios de referência psiquiátrica como o DSM-IV” In: SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos
51
aspectos alheios aos clínicos - como, v.g, fatores sociais, comportamentais, éticos,
morais, ou mesmo de impressão pessoal do médico avaliador -, pode-se verificar o
quão imprecisa (para não dizer falha) pode ser tal delimitação.
Esta base de elementos não conferem uma verdadeira segurança ao
perito, e esta insegurança acaba também refletindo na ponderação realizada pelo
próprio Juízo, visto que as capacidades de compreender e de comportar-se
conforme um entendimento são geralmente de difícil demonstração.
172
Em verdade, consoante observa Eliezer Gomes da SILVA, citando
FONTANA-ROSA,
173
têm-se propugnado e esperado que o perito transcenda aos
limites de sua especialidade, exigindo-lhe que ingresse em aspectos de índole
puramente volitiva, os quais, não raras vezes, se situam em um universo que é
exclusivo da moral ou mesmo do direito:
As discussões sobre o fundamento, necessidade ou extensão das causas de isenção da
pena dos portadores de transtornos mentais envolvidos em condutas criminosas (...) está
muito mais situada em zonas intermediárias em que o contexto situacional ocupa posição
mais proeminente na aferição do grau de voluntariedade (individual) na realização de uma
conduta e da valoração (ética, jurídica, social) de tais condutas. Daí falarmos em
psiquiatria social, psicologia social, criminologia de bases sociológicas (...), que, em última
análise, parecem procurar um equilíbrio entre a responsabilidade individual e a
sociológica.
174
E tal situação, como anota Jomar Medeiros CUNHA, acaba por
demonstrar que o diagnóstico psiquiátrico é de pouca confiabilidade e validade
prática.
175
Mesmo porque, como é possível medir até que ponto os conhecimentos
mentais e crime: algumas reflexões sobre o complexo diálogo entre a psiquiatria e o direito penal.
Direito e Sociedade, Curitiba, v. 2, n. 2, p. 81-125, jul./dez. 2001, p.103.
172
BUSATO, Paulo César; HUPAYA, Sandro. Op. cit., p. 268.
173
FONTANA-ROSA, lio César. A perícia psiquiátrica. In: COHEN, Cláudio; FERAZ,
Flávio Carvalho; SEGRE, Marco (Coord.). Saúde mental, crime e justiça. São Paulo: EDUSP, p. 171-
186, 1996: “O objetivo principal do perito, em síntese, volta-se para a avaliação da capacidade do
examinado de entendimento para reconhecer o valor dos seus atos. Essa tarefa traz em seu bojo
dificuldades, visto que se volta para o estudo do caráter racional do ser humano. Nesta avaliação
congregam-se vários fatores sociais, culturais, biológicos, etc. para a definição de doença mental em
oposição ou considerando-se o conceito de saúde mental”. No mesmo sentido: SILVA, Eliezer
Gomes da. Transtornos..., p. 103-104.
174
Ibidem, p. 109.
175
CUNHA, Jomar Medeiros. Visão geral sobre os critérios utilizados para diagnósticos
psiquiátricos. Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria, n. 8, 1986, p. 25: “Estudos mostram
que se dois psiquiatras, independentemente, entrevistam e diagnosticam um mesmo paciente sob
condições normais de trabalho, eles fazem o mesmo diagnóstico em apenas 30-40% dos casos, e se
os psiquiatras são muito experientes e têm formações semelhantes, o percentual vai para 60%” Apud
SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos..., p. 102.
52
psiquiátricos/psicológicos efetivamente conferem ao perito a certeza de que o
indivíduo, no momento da ação ou omissão criminosa, era inteiramente (ou mesmo
parcialmente) incapaz de compreender o caráter ilícito do fato e de portar-se de
acordo com esse entendimento? E não só isso: até que ponto é exigível que o perito
seja tão preciso em descortinar o exato momento da doença, ou mesmo (como quer
o direito penal) de vinculá-la ao crime?
176
Nota-se, assim, o quão árdua e ingrata é a missão confiada ao perito
nomeado para emitir um laudo sobre a sanidade/insanidade mental do acusado.
Este quadro se agrava ainda mais quando se trata da figura do semi-
imputável, em que se parte da idéia de uma simples perturbação da saúde e higidez
mental hipóteses em que o transtorno não se liga, obrigatoriamente, a uma causa
predominantemente orgânica ou psicológica.
A semi-imputabilidade, entendida como capacidade relativa, figura-se
como uma zona intermediária, um estado limítrofe entre a perfeita saúde mental e a
insanidade: “nessa zona cinzenta ou fronteiriça estão os estados atenuados,
incipientes e residuais de psicose, certos graus de oligofrenia e em grande parte as
chamadas personalidades psicopáticas, e os transtornos mentais transitórios
quando afetam, sem excluir, a capacidade de entender e querer”.
177
Insta ressaltar que a simples redução na capacidade de culpabilidade, a
princípio, não permite a aplicação da medida de segurança conforme indica o
parágrafo único do art. 26 do Código penal. Todavia, o mesmo diploma, em seu
artigo 98, possibilita em alguns casos a substituição da pena aplicada pela medida
176
Questionamentos estes, que foram bem elaborados por SILVA, Eliezer Gomes da.
Transtornos..., p. 107: “Será que a ciência médica atingiu tal nível de precisão para, a par de
identificar o transtorno mental de que era (ou é) o agente portador, localizar sua manifestação numa
data e horário específico e estabelecer uma relação causal entre esse transtorno mental e o
comportamento posterior qualificado como crime? Será que, uma vez mais, não se estaria a exigir
mais do psiquiatra forense ou do psicólogo forense do que ele tem condição de informar?”.
177
BRUNO, Aníbal. Op. cit., p. 138. Segundo o DSM-IV, tais situações dizem respeito,
basicamente, aos “transtornos da personalidade, um padrão persistente de vivência íntima ou
comportamento que se desvia acentuadamente das expectativas da cultura do indivíduo, sendo
invasivo e inflexível” In: ASSOCIAÇÃO PSIQUIÁTRICA AMERICANA. Op. Cit., p. 593. Seguindo
esta linha de vinculação, cabe trazer as lições de Alvino SÁ: “... são indivíduos portadores de caráter
tão desviantes das expectativas da comunidade que a própria sociedade tende a tratá-los como
anormais do ponto de vista de sua própria constituição biológica” – In: SÁ, Alvino Augusto de.
Personalidades psicopáticas: sofrem ou fazem sofrer. Justiça, v. 57, n.170, p. 31-39, abr./jun. 1995.
p. 34. Ver também: ALTAVILLA, Enrico. Op. cit., p. 104. E ainda: PIEDADE JÚNIOR, Heitor.
Personalidade psicopática, semi-imputabildiade e medida de segurança. Rio de Janeiro: Forense,
1982.
53
ao indivíduo semi-imputável, bastando para tal que se demonstre que o condenado
necessite de tratamento curativo ou que seja extremamente perigoso.
Assim, diante desta imensa abstração, resta praticamente impossível
traçar uma linha precisa de demarcação que oriente o trabalho do Juiz ao decidir se
aplicará uma pena reduzida ou uma medida de segurança ao semi-imputável.
Mais uma vez tal missão, mesmos com todas as incongruências
anotadas, é outorgada ao perito médico. Ora, se era difícil verificar com precisão
a existência da doença mental, vinculá-la diretamente ao fato criminoso e ainda por
cima determinar sua existência (ou não) no exato momento da ação/omissão do
agente, ainda mais difícil o será em relação ao sujeito que sofre apenas de uma
perturbação relativa de sua saúde mental.
O certo é que mesmo com todas estas incertezas, variações e
subjetivações, ainda assim o legislador penal requer, para fins de medida de
segurança, a constatação da inimputabilidade/semi-imputabilidade do acusado que
cometeu o injusto-penal.
1.2.3 A Periculosidade Criminal como Pressuposto
Por fim, como último requisito à aplicação das medidas de segurança,
exige o legislador a constatação da periculosidade criminal do agente. E é
exatamente aqui que se encontra o maior de todos os problemas do instituto, o qual
figura como objeto central das pesquisa no presente trabalho.
Contudo, antes de verificá-los, convêm lembrar que a legislação (e não
apenas a brasileira) historicamente distinguiu duas espécies de periculosidade: a
social e a criminal.
178
Num primeiro momento, com o advento da Escola criminológica positivista
e o paradigma preventivo (final do século XIX e início doculo XX), surgiu um sem
178
Além do Brasil, a idéia de uma periculosidade social se fez presente também em
várias legislações, v.g: na Lei espanhola de 1933, denominada ley dos vagos y malyantes’; também
a Lei italiana de 10 de outubro de 1968 (Lei n.º 633/68), que previa em seu artigo 31 a possibilidade
de aplicação de uma medida pessoal sempre que precedida da averiguação em concreto da
perigosidade social – In: FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit, p. 154-155.
54
número de excessos e desvios que deveriam ser reprimidos pelo Estado em nome
de uma suposta defesa social. Neste quadrante, se justificaram inúmeras medidas
de contenção pré-delitivas, bastando que se verificasse (ou simplesmente se
imaginasse) que o sujeito poderia ocasionar danos à sociedade.
179
Surgia assim a periculosidade social, enquanto mera possibilidade do
indivíduo vir a cometer fatos socialmente prejudiciais à coletividade, colocando em
risco a tranquilidade, a paz e a ordem pública. Traduzia-se, portanto, numa espécie
de espelho sintomático, no qual se refletia a personalidade deturpada do
desajustado, daquele que não se amoldava ao padrão de normalidade de uma dada
sociedade.
Tal idéia estava diretamente relacionada com a má repercussão da
conduta do agente (tido como perigoso) perante a comunidade, levando em conta
circunstâncias ambientais e familiares, punindo-se o indivíduo pela mera
potencialidade em cometer ações danosas, sejam elas criminosas ou não.
180
A doutrina penal brasileira do início da década de 1940, então encabeçada
por Aníbal BRUNO, chegou a enumerar alguns elementos que permitiriam
(supostamente) objetivar este juízo de periculosidade social, tais como: “a maneira
de ser que pode exprimir-se na estrutura constitucional do indivíduo, anátomo-físio-
psicológica, anormalmente estruturada, ou resultar de deformação imprimida pelos
traumatismos recebidos no mundo imediato, físico ou social-cultural, em que se
desenvolve a vida do homem”.
181
Imputava-se ao Juiz, em regra, a missão de determinar este estado social
perigoso no agente, o que seria feito a partir da análise do caso concreto - ao que
se chamou de “periculosidade real/verificada”, que pressupunha a análise de alguns
elementos, como: a personalidade do indivíduo, seus antecedentes, os motivos e
circunstâncias do crime praticado (conforme artigo 78 do Código, em sua redação
179
LANDECHO, Carlos Maria. Peligrosidad social e peligrosidad criminal. Peligrosidad
social e Medias de Seguridad: la ley de peligrosidad e rehabilitación social de 4 de agosto de 1970.
Valência, p. 247-257, 1974, p. 248.
180
Segundo Aníbal BRUNO, “é um estado de desajustamento social do homem, de
máxima gravidade, resultante de uma maneira de ser particular do indivíduo congênita ou gerada
pela pressão de condições desfavoráveis do meio” – In: BRUNO, Aníbal. Op. cit., p.287.
181
Ibidem, p.291.
55
original).
182
Por outro lado, haviam situações em que o Magistrado sequer era
chamado à voga para verificar tal situação, pois a própria legislação presumia juris
et de jure hipóteses de periculosidade social do agente: ao que se chamou de
“periculosidade presumida” - assim delineada no artigo 77 do CP de 1940.
O que não se percebeu na época, é que esta figura do indivíduo
socialmente perigoso acabaria por abarcar uma infinidade de situações de risco
(totalmente imprecisa e demasiado abstrata) praticadas por determinados tipos de
autor, conformando por vias transversas um Direito penal em que o fato praticado é
de pouca relevância jurídica afinal, é sobre o autor que deveria recair a atuação
preventiva do poder punitivo.
183
A própria história da humanidade demonstra que a prática real do poder
sempre imputou a certo grupo de indivíduos a carapuça da perigosidade,
conferindo-lhes sempre um tratamento rigoroso e punitivo, típico de um inimigo:
vadios, mendigos, leprosos, bruxas, prostituas, ébrios, toxicômanos, terroristas e, é
claro, enfermos mentais, sempre tiveram lugar cativo neste rol.
184
Neste diapasão, a incorporação da periculosidade social nas legislações
penais acabou funcionando como uma espécie de válvula de escape à restrição da
liberdade dos cidadãos inconvenientes (os ‘estranhos’) ao poder.
185
Fundando-se
em um temerário conceito de danosidade, que ignora a abstração que lhe é
intrínseca, autorizou-se a indefinida e arbitrária restrição da liberdade de certos
grupos de indivíduos.
Sob o pretexto de configurar como uma medida de defesa social, permitiu-
se e legitimou-se a investida preventiva contra este grupo de indesejados, antes
182
Nestes casos, como aduz Aníbal BRUNO, o Juiz deveria investigar a história do
sujeito, seu comportamento habitual, as condições de sua existência, a maneira pela qual teria
procurado vencer as posições embaraçosas de sua, suas inclinações e preferências para
determinados meios; em suma, “todas as formas de atividade que possam ser tomadas como
expressões do seus próprio eu” – Ibidem, p. 293.
183
POLAINO NAVARRETE, Miguel; POLAINO-ORTS, Miguel. Medidas de seguridad
inocuizadoras para delincuentes peligrosos? Reflexiones Sobre su Discutida Constitucionalidad y
Sobre el Fundamento y Clases de las Medidas de Seguridad. Revista peruana de doctrina y
jurisprudencia penale, Lima, n. 2, p. 481-521, 2001, p. 487.
184
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo... p. 11.
185
Neste sentido: JAKOBS, Günther; MELIÁ; Manuel Cancio. Direito penal do inimigo.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. E mais, como visto, o foi à toa que a idéia de
periculosidade social foi incorporada à legislação de quase todos os regimes políticos autoritários
mundo à fora.
56
mesmo da prática de um injusto, criando um verdadeiro mundo de Minority
Report”.
186
Eis que surge a Reforma penal de 1984, afastando do âmbito legislativo
brasileiro o temerário critério da periculosidade social. A partir de então somente se
exigiria a periculosidade criminal do agente para a aplicação das medidas.
Com ela, também estariam definitivamente banidas as medidas pré-
delitivas. Mesmo porque, em sendo a medida de segurança um instituto de natureza
jurídico-penal (verdadeira sanção), não poderia ela fugir à sorte geral da ciência e
preceder da prática de um injusto. A partir de então, “somente ao homem
criminalmente perigoso se imporia a medida de segurança”.
187
Tal concepção, como bem anota BUSATO e HUPAYA, propiciou grande
avanço no trato do tema, e se operou como “consequência de que a maioria dos
ordenamentos Constitucionais (hodiernos) contemplou uma vasta gama de
princípios que se derivam do Estado de Direito”.
188
Dito isso, resta então questionar: afinal, no que consiste este critério da
periculosidade criminal? Segundo definição do dicionário da língua portuguesa,
perigosidade/periculosidade diz respeito ao estado ou qualidade do que (ou de
quem) é perigoso,
189
consistindo em termos penais - no conjunto de
circunstâncias que indicam a probabilidade de alguém praticar ou tornar a praticar
um crime.
Para Álvaro Mayrink da COSTA, que faz expressa referência à noção
firmada pela jurisprudência do Tribunal Supremo alemão, “a noção de
periculosidade diz respeito exatamente à probabilidade de que se repita a
186
SPILBERG, Steven (Diretor). Minority report. USA: Twentieth Century Fox e
Dreamworks Pictures, 2002. A película se passa em Washington no ano de 2054, onde a divisão
‘pré-crime’ teria conseguido acabar com os assassinatos, graças ao auxílio de paranormais (os
precogs), que visualizam o futuro e possibilitam que o culpado seja punido antes que o crime seja
cometido. Quando os precogs têm uma visão, o nome da vítima aparece escrito em uma pequena
esfera e em outra esfera está o nome do culpado. Também surgem imagens do crime e a hora exata
em que acontecerá. Estas informações são fornecidas para uma elite de policiais, que tentam
descobrir onde será o assassinato, evitando o crime e recolhendo a um estabelecimento prisional
que afastará para sempre o agente (autor do futuro ‘quase-crime’) do convívio social. Note-se que,
qualquer semelhança com as Medidas de segurança não é mera coincidência...!
187
BRUNO, Aníbal. Op. cit., p. 287.
188
BUSATO, Paulo César; HUPAYA, Sandro. Op. cit., p. 257.
189
PERICULOSIDADE. In: FERREIRA, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da
Língua Portuguesa. 3 ed., Curitiba: Positivo, 2004. p. 461.
57
realização de atos delitivos que ofendam gravemente a ordem jurídica”.
190
Nota-se, assim, que a periculosidade criminal implica num juízo de
probabilidade, e não mera possibilidade, de o agente vir a cometer novos fatos
ilícitos-típicos: é a “probabilidade de reiteração criminal”.
191
Neste sentido, aduz
José Francisco de FARIA COSTA que:
... enquanto a possibilidade traduz o caráter incerto dos acontecimentos futuros, a
probabilidade indica um juízo de certeza sobre a constância da frequência desses
mesmos acontecimentos incertos (...). Trata-se de uma possibilidade qualificada, uma
verdade provável, ou de uma certeza de probabilidade.
192
Tal concepção traduz essencialmente uma idéia de risco: “... um risco
representado por circunstâncias que prenunciam um mal para alguém, ou para
alguma coisa, resultando ameaça, medo ou temor à sociedade”.
193
Ocorre que estes riscos não podem estar previamente delineados em lei,
haja vista que o fator ocasião (para não dizer ‘sorte’) faz parte de sua própria
concepção. Não por outra razão, ao exigir apenas a periculosidade criminal, o
legislador de 1984 também acabou banindo o critério da presunção de
periculosidade antes previsto no Código, deixando sua valoração à cargo exclusivo
do Juízo criminal, que deve sempre avaliar cada situação concreta.
194
A periculosidade criminal funda-se, portanto, na idéia de que os doentes
mentais infratores, movidos por certos apetites e impulsos que lhe são próprios
(face a seu quadro clínico), provavelmente praticarão novos ilícitos-típicos,
190
COSTA, Àlvaro Mayrink da. Medida de Segurança. RIBEIRO, Bruno de Morais; LIMA,
Marcellus Polastri (Coord.). Estudos Criminais em homenagem a Weber Martins Batista. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 14.
191
Sobre o tema, PETROCELLI acentua a predileção da doutrina para com a fórmula
periculosidade criminal, visto que periculosidade social é expressão a que falta univocidade, pois
diversos são os perigos que incidem sobre o objeto sociedade; periculosidade criminal indica
periculosidade de homens, relacionada ao delito, que é ação humana” – In: PETROCELLI, Biagio. La
periculositá criminale e la sua posizione giurídica. Padova: CEDAM, 1940. p. 36.
192
COSTA, José Francisco de Faria. O perigo em direito penal. Coimbra: Coimbra, 1992.
p. 480.
193
FERRARI, Eduardo Real. Op. cit, p. 153. Em sentido análogo: GLOECKNER, Ricardo
Jacobsen. Risco e Processo Penal: uma análise a partir dos direitos fundamentais do acusado.
Salvador: JusPodivm, 2009.
194
Ao contrário do que defendem alguns doutrinadores brasileiros (cite-se:
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito..., p. 704; ou mesmo SANTOS, Juarez Cirino dos.
Direito penal..., p.644. Ambos dizem que o caput do art. 26 manteve a periculosidade presumida,
enquanto que o parágrafo único do art. 26 traduziu a periculosidade real), a atual estruturação
jurídica do instituto na legislação penal, afastou a periculosidade presumida, afinal de contas, não
basta ser doente mental para ser submetido à medida de segurança, é imperioso, também, que seja
58
configurando-se a medida de segurança como a modalidade sancionatória mais
adequada para tratá-los ou simplesmente neutralizá-los.
195
Por isso, correta a observação de Gomes da SILVA, quando assevera que
boa parte desta racionalização, especialmente feita pelos profissionais do Direito,
está centrada em uma noção estritamente intuitiva acerca dos riscos de que
eventual liberação do sentenciado portador de transtorno mental possa trazer à
sociedade.
196
A idéia de periculosidade representa nada além do que “um juízo futuro e
incerto sobre condutas de impossível determinação probalística, aplicada à pessoa
rotulada como perigosa, com base em uma questionável avaliação sobre suas
condições morais e sua vida pregressa”.
197
o por outra razão Cristina RAUTER
aduz que a noção de periculosidade está indissociavelmente ligada a um certo
exercício de futurologia pseudocientífica”.
198
A periculosidade é como a figura de Proteu, “apresenta formas e
manifestações, as mais variadas e imprevistas; e a sua etiologia é extremamente
complexa”
199
, o que, por si só, é danoso aos postulados garantistas propugnados
pelo moderno Direito penal.
Ocorre que esta idéia de risco, para tentar fugir de uma abstração
racionalmente inaceitável, acaba sendo construída a partir da gravidade implícita do
fato criminoso cometido pelo agente, o que gera uma absurda incongruência no
instituto: pois se acaba imputando efeitos sancionatórios a uma medida que se
propunha exclusivamente terapêutica.
200
Como assevera Benedicto de SOUZA, é frente ao diagnóstico de suas
condições atuais (dos indivíduos que cometeram crime) que se obtém um
reconhecido como um indivíduo concretamente perigoso e potencialmente tende ao crime basta
ver, neste tocante, que nem todo doente mental está submetido à medida de segurança.
195
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit, p. 157
196
SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos..., p. 86.
197
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias..., p. 137.
198
RAUTER, Cristina. Manicômios, Prisões, Reformas e Neoliberalismo. Discursos
sediciosos. Rio de Janeiro, v. 1, n. 3, p. 71-76, 1997.
199
MARTINS, Salgado. Ob. cit, p. 449-450. O Proteu aparece na mitologia grega como
filho dos titãs Tétis e Oceanus. Tinha o dom da premonição e assim atraía o interesse de muitos que
queriam saber as artimanhas do poderoso destino. Porém, ele não gosta de contar os
acontecimentos vindouros; então, quando algum humano se aproxima, ele foge ou assume
aparências monstruosas e assustadoras - In: BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia
grega: histórias de Deuses e Heróis. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. p.19.
200
SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos..., p. 86.
59
prognóstico de sua situação futura, traduzida na prática provável de um crime”.
201
O que se vê, portanto, é a manipulação do conceito de risco, legitimando e
ampliando um poder de disciplina, que busca sempre o controle dos indivíduos
desviantes (os “anormais”
202
) por meio de um processo de normalização penal.
Mais uma vez citando Gomes da SILVA, é de se ver que a história
judiciária brasileira deflagra inúmeros casos de sujeitos condenados por crimes
bárbaros, sem que a sociedade ou os operadores do Direito tenham demonstrado
alguma preocupação especial com a possibilidade de que aquele sujeito, após o
cumprimento da pena, voltasse a delinquir. Qual o fundamento, portanto, para se
temer mais o portador de transtornos mentais?
203
“Poder-se-ia responder:
exatamente o fato de ser portador de transtorno mental. Entretanto, o simples fato
de ser portador de transtorno mental não constitui, em si, crime algum
204
afinal,
existe uma infinidade de pessoas portadoras de patologia penal que não estão
submetidas ao sistema penal.
Nos dizeres de ZAFFARONI e Nilo BATISTA,
a periculosidade de uma pessoa que tenha cometido um injusto ou causado um resultado
lesivo a bens jurídicos pode o ser maior nem menor do que a de outra que o tenha
causado, se a mesma depende de um padecimento penal”. Nestes termos, afirmam
também que “não existe razão aparente para estabelecer que um azar leve a submissão
de uma delas a um controle penal perpétuo.
205
O próprio Aníbal BRUNO, assíduo defensor não apenas das medidas de
segurança, como também do nefasto critério da periculosidade social, lecionou que
a periculosidade consagra um juízo de probabilidade necessariamente sujeito ao
201
SOUZA, Moacyr Benedicto. A influencia da Escola positiva no direito penal brasileiro.
São Paulo: EUD, 1982. p.78-79.
202
FOUCAULT, Michel. Os anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
203
“Existe algum dado objetivo para apostar na maior periculosidade do portador de
transtorno mental do que no indivíduo considerado mentalmente são?” Segundo o autor, os dados
desmistificam algumas presunções, e cita que “o doente mental criminoso é uma raridade: no Rio de
Janeiro, por exemplo, com mais de 5 milhões de habitantes (Dados de 1985), pelo menos 20% da
população apresenta alguma espécie de desvio de comportamento e seguramente 10% são doentes
mentais (...). Nesse contexto, apenas 1,5% com problemas genuínos (...); então, qual o perigo
que oferece todo este contingente humano do ponto de vista criminoso?” In: SOARES, Orlando.
Incapacidade, imputabilidade e preservação da saúde mental. Revista Forense, Rio de Janeiro, n.
325, p. 78, jan/mar. 1994. No mesmo sentido: SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos..., p. 85-86.
204
Os transtornos psíquicos interessam ao direito penal quando a prática de um
crime, e mais, que se demonstre que o agir do infrator-patológico desvia de um padrão socialmente
aceitável (quantitativa ou qualitativamente) – Ibidem, p. 86.
205
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro.
Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 811.
60
erro, não porque é difícil estabelecer a fórmula precisa da personalidade de um
homem, como porque o crime não depende dela, mas também das condições
que essa personalidade irá ter diante de si.
206
Ora, sabe-se que ninguém pode ter absoluta certeza de que não irá
cometer ilícitos-típicos. Como indica Nelson HUNGRIA, “existe em todo homem um
criminoso in potentia, cuja eclosão pode ser favorecida, e não necessariamente
determinada, por condições pessoais e sociais (...). Não há diferença estrutural
entre criminosos e não criminosos”.
207
Ou seja, o crime não é privilégio dos anormais’, e nem sempre o crime do
próprio anormal’ está ligado à sua patologia - razão pela qual não que se falar
em predisposição para o ilícito.
Ainda quando se torne um hábito ou mesmo um meio de vida, o crime não
é, de modo algum, resultante de uma orientação mais ou menos fatalista do
indivíduo.
208
A reiteração criminosa não quer dizer que o indivíduo seja
necessariamente perigoso, mas sim, que ele seja apenas um “multi-reincidente”.
E aqui, resta imperioso firmar uma das preocupações que motivou a
presente pesquisa e que, infelizmente, é possível se vislumbrar na prática
forense nacional diz respeito à aplicação do modelo criado para as medidas de
segurança em outros institutos do Direito, como ocorre, por exemplo, com as
prisões cautelares (flagrante, preventiva e temporária).
209
Ora, que são as prisões cautelares senão medidas de contenção
206
“... sendo o crime, geralmente, produto do encontro de determinada personalidade
com determinada circunstância, é difícil fazer esta previsão” In: BRUNO, Aníbal. Op. cit., p. 294-
295.
207
Mesmo porque, como indica Von ROHLAND “não homens absolutamente bons, do
mesmo modo que não há caracteres absolutamente maus, ou delinquentes natos (ou agentes
propícios à delinquência)” In: ROHLAND, Von. Willensfreiheit. p. 164 Apud HUNGRIA, Nelson. Ob.
cit., v. 3, p. 41-45. Do ponto de vista empírico, é inegável a liberalidade da vontade. Como adverte
MEZGER, é preciso “reconhecer que a vontade não é causalmente determinada e que a questão da
livre escolha em sentido indeterminado é, em última análise, não um problema gico, ou ontológico,
mas prático-axiológico, isto é, um modelo de se considerar o valor de nossas escolha” In:
MEZGER, Edmund. Op. cit. p. 37.
208
Há, em verdade, dadas situações em que o sujeito pode “cair” no crime. Mas esta
“queda” não é a regra, e sim a exceção. E em assim sendo, é igualmente certo que o indivíduo pode
vencer qualquer sorte de tentação ou impulso que o leve à infração da norma, o que exclui todas as
concepções causalistas ou deterministas do crime, e implica na exigência da culpa enquanto
pressuposto para qualquer espécie de sanção In: LOPEZ-REY, Manuel. Introdución al Estudio de
la Criminologia. Buenos Aires: El Ateneu, 1945.
209
Prisão em flagrante, delineada nos arts. 301 e seguintes do CPP. Prisão preventiva,
do art. 311 a 318 do CPP. E a prisão temporária, que está prevista na Lei 7.960 de 1989.
61
preventiva voltadas para indivíduos considerados perigosos para a sociedade? Ou
seja, indivíduos possivelmente danosos à ordem pública, ordem econômica,
instrução do processo ou à aplicação da lei penal material.
Note-se que em todos os casos de prisão processual, a legislação
brasileira transporta o modelo das medidas de segurança (com alguns ajustes, é
claro) aos sujeitos penalmente imputáveis, o que, por si só, consagra um afronte à
toda a lógica garantista propugnada por um processo de índole acusatório tal qual
almeja o constituinte para o processo penal pátrio.
No caso da legislação brasileira (como também ocorre em vários
ordenamentos estrangeiros) a situação é ainda mais alarmante, pois não apenas a
comprovação da periculosidade do agente, como também o atestado de sua
cessação, é submetida - por meio do “exame de verificação da cessação da
periculosidade” (previsto nos artigos 175 a 179 da LEP) - ao crivo do perito médico,
que emitirá um parecer ao Juiz competente sobre a possibilidade daquele sujeito
reiterar a conduta criminosa ou não.
210
Ora, se o clínico tinha dificuldades de atestar a existência (ou não) da
patologia mental quando do prática do fato delitivo, quiçá agora, quando será
chamado a decidir se aquele indivíduo, além de doente, é também perigoso.
Tal dificuldade, inclusive, é confessadamente vivida pelos psiquiatras e
psicólogos convocados para emitir seus pareceres sobre a cessação da
periculosidade do réu inimputável.
211
210
Apesar da decisão final sobre o destino do réu portador de transtorno mental ser, em
última análise, do órgão jurisdicional (bases do princípio do livro convencimento motivado), é sabida
e notória a importância da perícia médica na formação do entendimento do Juízo. Como afirma
Marina WEIGERT: “... desde o incidente de insanidade mental até o exame para verificação de
periculosidade nos internos, o psiquiatra é, indubitavelmente, aquele a quem se ouve para atribuição
da responsabilidade penal ao imputado considerado anormal. Assim sendo, é comum os juízes
sustentarem suas decisões de acordo com o parecer médico sobre a saúde mental do réu/acusado”
WEIGERT, Mariana de Assis Brasil e. O discurso psiquiátrico na imposição e execução das
medidas de segurança. In: CARVALHO, Salo de. (Org.). Crítica à Execução Penal. 2 ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 595-611.
211
Para real percepção do problema, o presente trabalho elaborou pesquisa de campo
junto ao Complexo Médico Penal do Paraná, com expressa autorização da Direção e da equipe de
médicos e psicólogos da instituição e obteve, como resultado de conversas reiteradas, a confirmação
de que os dados trazidos aos peritos são de fato insuficientes à valoração exata da situação do
indivíduo submetido ao exame. E tal situação acaba gerando possíveis imprecisões no laudo emitido
(Última conversa: 01 jul. 2009). Também restou a impressão de que os peritos ficam
verdadeiramente receosos ao elaborar um laudo de desinternação, sob o argumento de que as
cobranças advindas face a um possível delito praticado por interno liberado, possivelmente recairão
sobre seus ombros.
62
Mesmo porque, não são raras as vezes em que apenas um único
encontro entre o perito e o avaliado; e é com base nesta percepção isolada, aliada
aos dados conferidos pelos agentes de segurança que trabalham no
estabelecimento manicomial (que trazem ao perito dados sobre o comportamento
diário do internado, de higiene pessoal e convivência com outros internos), bem
como dos elementos contidos no próprio processo criminal que motivou a aplicação
da medida, que o perito formulará seu parecer.
212
Neste mesmo diapasão, indica COHEN e Cláudia FIGARO:
... devemos mencionar que os critérios de avaliação da periculosidade são sempre
questionáveis, pois eles são subjetivos e não uma metodologia adequada para a
avaliação. A história pregressa do indivíduo acaba por ser um valor estigmatizante em
seu comportamento, com pouca chance de um estudo de sua capacidade de reabilitação
em um ambiente que é, muitas vezes, agressivo pela sua própria característica de
instituição que recebe pessoas consideradas como perigosas.
213
Como destaca Gomes da SILVA, muito embora a lei penal atribua grande
relevância ao trabalho do psiquiatra neste quadrante, é de se ver que a grande
maioria dos estudos realizados sobre a validez e confiabilidade dos
pronunciamentos médicos sobre periculosidade, são verdadeiramente
desanimadores:
214
212
Os Anexos 1 e 2 (casos H.L.O e E.P.V), trazem dois exames de verificação da cessão
da periculosidade em que se atesta cessado o quadro mental patológico. Nestes exames, percebe-
se claramente que os dados trazidos aos peritos são bastante superficiais; percebe-se, também, que
o parecer médico é (de fato) impregnado pela percepção subjetiva dos avaliadores.
213
COHEN, Cláudio; FIGARO, Claudia Jorge. Crimes relativos ao abuso sexual. In:
_____; FERRAZ, Flávio Carvalho; SEGRE, Marco (Coord.) Saúde mental, crime e justiça. São Paulo:
EDUSP, p. 149-169, 1996.
214
“... consentido que ‘os prognósticos de comportamento perigoso nos portadores de
transtornos mentais têm se mostrado menos acurados do que gostaríamos’, faz toda uma revisão de
estudos que procuram demonstrar o alto grau de equivocidade dos psiquiatras no prognóstico da
periculosidade (...). Ainda no que tange à conseqüente tese da irrelevância dos dados clínicos no
exame de periculosidade, Buchanan faz referência a estudo (...) demonstrando que a acuidade das
previsões de violência, feitas por psiquiatras, permanece praticamente inalterada, quando variáveis
como a avaliação da personalidade e mudanças no estado mental são excluídos do prognóstico (...).
Os psiquiatras participantes do estudo recebiam estudos dos casos, contendo três documentos
básicos: um contendo informações sobre o crime cometido, o segundo detalhes sobre seus
antecedentes criminais e um terceiro contendo informações clínicas. A pesquisa concluiu que, no
exame da periculosidade, o principal instrumento utilizado pelos psiquiatras forenses foram os dois
primeiros, sendo as informações clínicas de reduzida importância” – In: BUCHANAN, Alec. The
investigation of acting on delusions as a tool for risk assessment in the mentally disordered. British
Journal of Psychiatry, v. 170, Supplement 32, p. 12, 1997 Apud SILVA, Eliezer Gomes da.
Transtornos..., p. 88-90. E ainda: DANTAS JÚNIOR, Alírio Torres. O manicômio judiciário e o conflito
de identidade da psiquiatria. Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria/Associação de
Psiquiatria da América Latina, São Paulo, v.9, n.3, p. 103-106, jul./set. 1987. Cite-se também:
63
... o mais paradoxal é que tais estudos não revelam apenas a precariedade dos métodos
de avaliação prognóstica, mas evidenciam que, em verdade, os aspectos relacionados à
própria ‘doença mental acabam sendo irrelevantes na avaliação, que incorpora muitas
outras variáveis de cunho não médico. Assim, questiona-se, contemporaneamente, nos
próprios círculos médicos, a mesmo a necessidade (ou relevância) de psiquiatras e
psicólogos se incumbirem de tal tarefa. Tais dados e informações são de extrema valia,
sobretudo para a comunidade de legisladores e operadores do Direito penal, os quais, via
de regra, não tendo acesso a tais reflexões extrajurídicas, acabam esperando das
perícias médicas um grau muito maior de acuidade científica e de isenção do que elas
podem efetivamente proporcionar.
215
Até porque, a pisque” conforma exatamente “aquilo que todo ser humano
possui de absolutamente imprevisível”
216
. E como indica Aury LOPES JÚNIOR, nem
os julgadores nem os peritos médicos possuem um periculosômetero” à sua
disposição, o que torna inadmissível este exercício de vidência, sob o vago
argumento de “perigo de reiteração” de condutas criminosas.
217
Nada obstante, mesmo que reconhecida a insuficiência e a imprecisão de
seu parecer, o perito médico ainda assim é chamado para dar uma resposta e
auxiliar o jurista na resolução do problema. Não é incomum encontrar, inclusive,
aqueles que propaguem (de maneira equivocada) a idéia de que o perito deve
mesmo ser visto como “a alma e os olhos do Juiz”.
218
E para tanto, a doutrina especializada em psicopatologia forense acaba
ofertando ao médico algumas propostas de “valoração dos índices de
periculosidade”. É o que se vê, a título de exemplo, no histórico compêndio
elaborado por José Alves GARCIA, que assim delimita:
O perito terá, pois, que investigar a periculosidade e, periodicamente, a regeneração da
anomalia. Para tal mister, de buscar: a consideração dos fatores constitucionais e
caracterológicos que definem a personalidade do delinquente; a avaliação do fator
ecológico (ambiente); investigação dos efeitos da psicagogia instituída, que se apreciarão
pela conduta do delinquente no meio em que esteve, pelo seu rendimento educacional ou
reformacional; assinalar os índices de adaptabilidade ou de perfectibilidade do examinado
e a convivência de ser o mesmo exposto a novo regime; presumir ou afirmar o
IBRAHIM, Elza. Previsibilidade do comportamento do apenado: uma missão impossível. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.7, n.28, p.252-4, out./dez., 1999.
215
SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos..., p. 88.
216
GEMELLI, Agostino. Psicologia da idade evolutiva. Rio de Janeiro: Ibero-Americano,
1968. p.127.
217
“Ora, com a máxima vênia, esse tipo de decisão é dotada de um elevado grau de
charlatanismo e um altíssimo grau de prepotência. Ambos completamente inadmissíveis num
processo minimamente democrático e constitucional” In: LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica
ao processo penal: fundamentos da instrumentalidade garantista. Rio de Janeiro: Lumens Juris,
2005. p. 208-209.
218
MACHADO, Alcântara. O Hipnotismo. São Paulo, 1897 Apud GARCIA, José Alves.
Psicopatologia forense. Rio de Janeiro: Forense, 1945. p. 485.
64
prognóstico da regeneração, por seus sinais positivos, ou pelos índices negativos de
ordem criminal ou social (...).
219
Também Antônio Ferreira de ALMEIDA JÚNIOR delimita que existe uma
constelação de elementos a serem apreciados, destacando que estes permitem que
o perito indique o “índice de periculosidade” por meio de tabelas que estudam a
personalidade do internado sob três enfoques: o da dinâmica da personalidade; o
da vida delinquencial; o do aproveitamento das medidas repressivo-penais.
220
Com isso, verifica-se que os sistemas judiciário e psiquiátrico perfazem
uma relação simbiótica e autopoiética de afirmação e negação recíproca: o Juiz
apoiando-se no laudo pericial para aplicar e manter a medida de segurança e o
perito apoiando-se em dados trazidos pelos autos de processo para verificar a
periculosidade do agente.
221
Relação esta que, ao final, acaba descortinando (ao mesmo tempo em que
revigora e legitima) o papel primordial desempenhado por ambos sistemas: o de
controle social do indesejado.
219
GARCIA, José Alves. Op. cit., p. 492-493.
220
ALMEIDA JÚNIOR., Antônio Ferreira de. Lições de medicina legal. o Paulo:
Nacional, 1978. p. 603-604. Dentro desta perspectiva, o autor indica três sistemas de valoração da
periculosidade usualmente empregados pelos peritos: um primeiro, batizado de “Sistema Glueck”,
leva em conta treze dados de valoração (v.g, os hábitos de trabalho do indivíduo antes da entrada
para o reformatório; a gravidade e a frequência de crimes cometidos; a responsabilidade econômica
anterior; anormalidades mentais, etc.). Um segundo, batizado de “Sistema Schiedt”, leva em conta
fatores como: “taras hereditárias; más condições de educação; trabalho irregular; antecedentes;
alcoolismo; conduta no estabelecimento penitenciário”, etc. Há, enfim, o “Sistema Ramos
Maranhão”, muito empregado por peritos brasileiros, o qual leva em conta três aspectos gerais,
subdivididos em itens: (I)sistema psicoevolutivo: doenças de grave repercussão no desenvolvimento
psíquico; família desagregada; ausência/interrupção do aprendizado escolar; início precoce de
automanutenção; instabilidade profissional; internação em orfanatos e similares; fugas de casa ou
escola; integração de grupos sem atividades construtivas; distúrbios da conduta; perturbações
psíquicas; (II) sistema jurídico-penal: início da criminalidade antes dos dezoito anos; número de
incidentes judiciários e policiais; reincidência rápida; criminalidade interlocal; delitos praticados em
bandos ou com agravantes; natureza do delito; (III) sistema reeducativo-penal: inadaptabilidade ao
convívio e à disciplina penitenciária; precário/nulo ajuste ao trabalho; deficiente aproveitamento
escolar/profissional no presídio; permanência nos estágios iniciais da execução da pena).
221
“De um lado, o sistema judiciário, que reservou para si a última palavra sobre a
cessação da periculosidade do interno (...), faz depender sua decisão de uma perícia médica, de
sorte que, em última análise, terá sempre sua decisão respaldada pelo laudo psiquiátrico. Por sua
vez, o ‘sistema psiquiátrico’, ciente da importância de seus ‘pareceres’ como informadores da
decisão judicial de término ou prorrogação da medida de segurança, assimila sem grandes
contestações o papel que lhe foi atribuído, evitando iniciativas ou posicionamentos que não possam
Ter sua defesa suportada, de uma forma ou de outra, com os próprios elementos constantes no
processo judicial (notadamente a gravidade do crime)” – In: SILVA, Eliezer Gomes da. Transtornos...,
p. 96-97.
65
2 FENOMENOLOGIA DA LOUCURA E A CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DA
PERICULOSIDADE
2.1 DO SILENCIAR NA ANTIGUIDADE À DEMONIZAÇÃO DA IDADE MÉDIA
2.1.1 Premissas Clássicas da Loucura e Periculosidade
A concepção de um ente perigoso, intrinsecamente associada à idéia de
estigmas
222
, sempre esteve presente no inconsciente coletivo
223
, e o portador de
transtornos mentais - despido da plenitude de sua razão (seja ela entendida num
âmbito clínico, sociológico ou puramente filosófico) - sempre ocupou lugar cativo
nesse funesto rol. escritos e gravuras das mais várias épocas da humanidade
totalmente dedicadas ao fenômeno, as quais, de uma forma ou de outra, definiram a
loucura, de modo a determinar-lhe as causas, os tipos ou formas, bem como
demonstrar suas manifestações no nível da vida cotidiana.
Ao lado de criaturas mitológicas, bruxas, demônios, leprosos, estrangeiros,
inimigos do estado e terroristas, os doentes mentais foram alvo de infindáveis
perseguições, figurando não raras vezes como elementos preferenciais dos
mecanismos de poder punitivo que se estabeleceram ao longo dos séculos.
Muito embora se verifique algumas variantes no tratamento que lhes foi
conferido, da antiguidade clássica até a era moderna, certo é que em todos os
222
“Estigma é um sinal ou marca que alguém possui, que recebe um significado
depreciativo. No início era uma marca oficial gravada a fogo nas costas ou no rosto das pessoas.
Entretanto, não se trata somente de atributos físicos, mas também de imagem social que se faz de
alguém para inclusive poder-se controlá-lo” In: BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo
sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.24-25. E neste mesmo sentido, tem-se
que “o estigma gera profundo descrédito e pode também ser entendido como defeito, fraqueza e
desvantagem”, o que torna possível distinguir os estigmatizados (quase não humanos) dos
indivíduos “normais” In: GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade
deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 1988. p.13.
223
O “inconsciente coletivo”, de acordo com a psicologia analítica desenvolvida pelo
psiquiatra suíço Carl Gustav JUNG, é construído pelos materiais que foram herdados da humanidade
ao longo dos séculos. É nele que residem os traços funcionais, (ao que JUNG chama de “arquétipos”
no sentido de que a pessoa não se lembra das imagens de forma consciente, mas herda uma
predisposição para reagir ao mundo da forma que seus ancestrais faziam), tais como imagens
latentes e virtuais, que seriam comuns a todos os homens e mulheres In: JUNG, Carl Gustav. Os
arquetipos e o inconsciente coletivo. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 230.
66
momentos históricos um traço comum os acompanhou, criando raízes profundas
que perduram aos dias atuais: a feição depreciativa que gerou, no passado, sua
exclusão, e agora é responsável por uma espécie de inclusão forçada (por meio
daquilo que se convencionou chamar de “processo de normalização
224
, o qual não
é pretendido ou efetivamente desejado pelo sujeito), atendendo sempre a uma
lógica de estrito controle e dominação.
Desde o primeiro momento em que a loucura se apresentou como “a
perda do caráter distintivo do humano” - noção resgatada por Isaias PESSOTTI ao
se referir às primeiras construção do fenômeno, ainda na antiguidade clássica
(século VIII a.C. até meados do século V d.C.) - a severidade no tratamento se
legitimou como forma de contenção dessa precariedade, especialmente aos
infratores da norma. Afinal de contas, se “a autonomia pessoal cede lugar à
entidade mitológica, à prepotência da natureza animal espalhada na força do
instinto ou, ainda, às inevitáveis imposições das contingências corporais da vida
humana”
225
, não há porque conferir-lhes um tratamento humano e respeitoso.
Neste contexto, cabe verificar que até o início da era cristã a loucura pôde
ser vista, abstratamente, pelo menos sob três enfoques: de Homero até a tragédia
grega, ela aparece como obra da intervenção dos deuses, numa perspectiva que se
pode intitular mitológico-religiosa; entre os trágicos, principalmente na obra de
Eurípedes, passa a ser produto dos conflitos passionais do homem, mesmo que
permitidos ou impostos pelos deuses - inaugurando as bases de uma concepção
passional ou psicológica da loucura; finalmente, de Hipócrates a Galeno, passa a
ser efeito de disfunções somáticas, o que firmaria os pilares do pensamento
organicista sobre o tema.
226
Mister firmar que estes três enfoques constituíram-se como “modos de
224
Cujos mecanismos foram inicialmente delineados por Michel FOUCAULT, em obras
publiadas nos anos de 1961, 1963, 1973/74, 1974/75, 1975/76, que sejam (respectivamente):
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2007; FOUCAULT, Michel.
Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008; FOUCAULT, Michel. O poder
psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006; FOUCAULT, Michel. Os anormais. Op.cit.;
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1987; FOUCAULT, Michel. Em defesa da
sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
225
PESSOTTI, Isaias. O século..., p.78.
226
De acordo com Valmir Adamor da SILVA: “... vários filósofos da Grécia antiga
expressaram interesse na loucura e seu tratamento. Porém, tudo foi produto de suas intuições, por
se dedicarem aos elevados problemas do destino e do comportamento humano. Eram, pois, mais
67
pensamento permanentes na história do conceito da loucura, atravessando
diferentes épocas, inclusive a contemporânea”
227
, e foram (cada qual em sua
época) os responsáveis por vincular a figura do doente mental a uma noção de
periculosidade.
Vale também observar que as construções médicas e jurídica acerca da
alienação, foram influenciadas em vários momentos por conotação que brotaram no
campo das idéias morais, religiosa, e ainda no âmbito da poesia e literatura.
228
Afinal, ainda que os textos clássicos retratem apenas figuras dramatizadas da
natureza humana e de seus desvios, certo é que eles representam concepções
concretas que fizeram parte do ideário popular do respectivo período histórico, e
enquanto obras escritas, o raras vezes, são as únicas fontes primárias
disponíveis sobre o fenômeno a que se tem acesso.
Assim, cabe verificar que no período pré-socrático (470-399 a.C.) a
temática da loucura pouco se mostrou em conceitos técnicos, mesmo porque,
sequer se falava de uma concepção estruturada da natureza humana. Basta
lembrar que com Sócrates se estruturou a necessidade de “conhecer-te a ti
mesmo”
229
. Portanto, qualquer traço da natureza humana em que surjam
aberrações, antes do século V a.C., está disposta de maneira fragmentada e não
articulada, razão pela qual a noção de loucura e os perigos a ele inerentes, estavam
lançadas basicamente no âmbito da mitologia.
Nesse período, toda e qualquer discrepância da natureza humana seria
atribuída a forças e entidades desconhecidas, ou mesmo aos caprichos divinos. As
idéias sobre culpa, responsabilidade, insanidade ou perda do bom senso eram
ainda muito vagas, sem características próprias. E isso se percebe com a simples
leitura de textos como os de HESÍODO (século VIII a.C) ou HOMERO (século VI
elucubrações filosóficas do que base científica” - In: SILVA, Valmir Adamor da. A história da loucura:
em busca da saúde mental. Rio de Janeiro: Ediouro, 1979. p.07-08.
227
Consoante indica SILVA, Marcus Vinícius de Oliveira. A Instituição sinistra mortes
violentas em hospitais psiquiátricos no Brasil. Brasília: Conselho Federal de Psicologia, 2001. p.13.
228
Como lembra PESSOTTI, “... na época de Homero ou nos textos da tragédia grega,
por exemplo, a loucura é apresentada, comentada e até explicada por diversos personagens,
embora provavelmente nem Homero nem os trágicos estivesses interessados em expor ou formular
um conceito (técnico) de loucura” – In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.08.
229
PLATÃO. Apologia de Sócrates. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
68
a.C.).
230
Estes textos demonstram que o homem helênico era um ser dotado de
concepção fragmentária e contraditória: um corpo dotado de vida mental e alma (ao
que Homero intitulara, respectivamente, de thymos e psyche
231
), mas que ao
mesmo tempo não seria autônomo, posto que submetido ao controle arbitrário,
confuso e ilógico dos deuses e seus agentes.
232
A etiologia da loucura, neste passo, remete a idéia da perda momentânea
da sensatez - provocada pela fúria dos deuses, algo puramente mítico -, cujo
conteúdo expressava-se, mormente, pela via da transgressão das normas sociais e
pela agressão, o que representava perigo concreto para a comunidade sã. E era
pela via do castigo que os mesmos deuses, os quais protegiam os vencedores
(heróis e reis) e legitimavam sua divindade, desencorajavam a rebeldia dos
(in)subordinados.
233
Ocorre que os diversos elementos fundamentais da concepção homérica
sobre o homem, a loucura e a periculosidade seriam posteriormente transformados
pelos poetas trágicos, dos quais se destaca ÉSQUILO (525-456 a.C.
234
),
230
HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. São Paulo: Iluminuras, 1990. Também HOMERO,
com sua a Ilíada, traz um canto em que o rei Agamêmnon tenta desculpar-se com o guerreiro
Aquiles por ter-lhe raptado a amada, dizendo que não foi ele quem causara esta ação, “mas sim
Zeus, o destino e as Erínias(personificações da vingança que puniam os mortais por seus crimes).
Nestas passagens, verifica-se que ao mesmo tempo em que era Atê (significando a loucura
momentânea) a agente quem perturbava o entendimento do homem, era a divindade (Zeus) quem
conduzia todas as coisas a seus resultados, de forma que, nesta concepção, o papel do homem
seria de objeto inerte, totalmente à mercê desses agentes sobre-humanos. E sob tal perspectiva, a
loucura seria nada mais do que um instrumento de controle que a divindade utilizava para preservar
sua vontade frente à dos homens - In: HOMERO. A Ilíada. Rio de Janeiro: W.M. Jackson,1950.
231
HOMERO. Op. cit., p.315.
232
VIDAL-NAQUET, Pierre. O Mundo de Homero. São Paulo: Cia. das Letras, 2002. p.
75.
233
Verifica-se, pois, que os poemas de Homero - especialmente a Ilíada - foram marcos
importantes para o tema da loucura, pois expressaram um primeiro modelo teórico (mitológico e
teológico), que terá profundos reflexos na concepção da loucura na Idade Média. Neste contextos,
Isaias Pessotti consagra que “na Ilíada, são inúmeras as passagens onde potências superiores
destroem, roubam, tiram a compreensão ou o entendimento do homem”. E segue, afirmando que “os
heróis homéricos não enlouquecem, são tornados loucos, por decisão da divindade, embora as
manifestações e conseqüências da loucura se passem no plano das realidades física e social” In:
PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.16-22.
234
Talvez o louco mais célebre da tragédia grega tenha sido Orestes, personagem central
da trilogia Orestíada, de Ésquilo. A trilogia é formada pelas tragédias Agamêmnon, Coéforas e
Eumênides (485 a.C.), e conta a história do príncipe de Micenas, filho de Agamêmnon, que
obedecendo às leis da vingança, enfurecido pela loucura, mata sua mãe Clitemnestra e o amante
desta Egisto. Na primeira das tragédias, Ésquilo retrata a idéia de uma loucura profética, enquanto
que nas outras duas, os conflitos, a obsessão e a explosão matricida da loucura do personagem
Orestes são os temas dominantes In: VIEIRA, Trajano. Três tragédias gregas. São Paulo:
69
SÓFOCLES (496-406 a.C.
235
) e EURÍPEDES (485-406 a.C.
236
).
Vale lembrar que esta foi uma época de grandes transformações no
pensamento cultural da sociedade. O homem ocidental passou a internalizar as
primeiras normatizações de cunho geral e abstrato, dando azo a uma nova razão
política. Tanto é assim que após algumas décadas, os interesses particulares do
jogo político passaram inclusive a disciplinar o emprego da força, de modo que os
antigos heróis demolidores e sanguinários da epopéia começam a perder o seu
prestígio, ao mesmo tempo em que os mitos que os enalteciam começaram a
desmoronar.
237
Em face dessas condições, a loucura deixou de ser concebida somente
como a perda momentânea do entendimento (a Atê descrita por HOMERO
238
) e
passou a ser vista como resultado de uma cadeia causal de acontecimentos,
enquanto produto de conflitos interiores, entre paixão e norma social, razão e
instinto, entre amores conflitantes, entre ódios e afetos ou mesmo entre vergonha e
desejo (como se verifica no Hipólito de EURÍPEDES
239
).
Portanto, na origem da loucura trágica estava sempre exposto o conflito
interior do homem, a contradição entre os ditames da razão, das normas sociais e
Perspectiva, 1997. Em Agamêmnon (458 a.C.), por exemplo, a personagem Cassandra vê-se
atormentada pela Atê e pelas Erínias - que anunciam a sua morte próxima – as quais se apresentam
como demônios pessoais que a acompanham. E esta obsessão demoníaca que acompanha a
personagem não é vista como a causa da loucura, mas como sua própria natureza, sua essência
In: ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
235
Com Sófocles, especialmente na tragédia Ajax, verifica-se que o desviar-se dos
valores parentais conduzem à vergonha, que, por sua vez, produzem a loucura, o homicídio e o
suicídio – In: SÓFOCLES. Antígona. Ajax. Rei Édipo. Lisboa: Verbo, 1972.
236
Mas é na obra de Eurípedes que a loucura chega a ser o tema central: em As Troianas
(415 a.C.) o filósofo explicitamente designa a personagem Cassandra como louca; também no
Orestes (408 a.C.), no Heracles (416 a.C.) e em As Bacantes (405 a.C.), o tema volta a aparecer
com certa constância. Dois são os personagens cuja loucura é descrita vivamente e por completo:
Medéia, na tragédia de mesmo nome (431 a.C); e Freda, na tragédia Hipólito (428 a.C) - In:
EURÍPEDES. Medéia, Hipólito, As Troianas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991; e ainda:
EURÍPEDES. As Bacantes. Coimbra: Almedina, 1992. Percebe-se que para Eurípedes, não são os
deuses que causam a loucura, e sim as paixões, enquanto acontecimento humano natural.
237
Desta forma, “... os ideais épicos começam a ceder espaço à consciência da realidade
do homem como zoon polyticon” – In PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.22.
238
HOMERO. Op. cit., p. 310.
239
Com a personagem Freda, do Hipólito, Eurípedes demonstra que o dilema ou o
conflito que desencadeia a loucura ocorre dentro do homem, e não é vivido por uma ordem cósmica
ou teológica. Freda vive angustiada o conflito entre a convenço social e o desejo, como um drama
pessoal. A imposição que Freda sofre e lamenta é a paixão irresistível e proibida, a do conflito
psicológico entre o impulso e a norma social, entre desejo e repressão In: EURÍPEDES. Medéia,
Hipólito, as..., p.70.
70
do bom senso, frente à libido e ao desejo.
240
Já que nem tudo está mais marcado pelo fatalismo, começa-se igualmente
a reconhecer a responsabilidade pessoal dos indivíduos, de modo que as idéias de
dever e de compromisso com a racionalidade - que nasce do autoconhecimento
socrático - agora seriam cobradas diretamente dos homens.
241
E qualquer espécie
de ruptura (concreta ou virtual) com esta nova ordem, imediatamente seria atribuível
a loucura do indivíduo.
Toda loucura trágica é, de forma geral, sinônimo de
desequilibro, exacerbação ou destempero do indivíduo.
242
Desequilíbrio este a que qualquer indivíduo poderia estar sujeito, afinal, a
loucura representava apenas uma das variadas formas e possibilidades da
expressão humana. Nada obstante, embora a loucura não fosse vista como um
traço de anormalidade do ser, certamente ela não era desejada. Até porque, ela era
a responsável por demonstrar a imperfeição do ser humano e, como tal, do próprio
poder – assim, se até mesmo o exercício do poder poderia sagrar-se desequilibrado
e imperfeito, certamente tal poder deveria estar constantemente cercado de
desconfianças e de limites.
Por outro lado, impende firmar (uma vez mais) que nenhum dos trágicos
efetivamente almejou desenvolver uma teoria seja médica ou jurídica sobre a
alienação. Em verdade, pretendiam apenas retratar as verdades cotidianas da vida
humana, com seus dramas e aberrações.
Mas foi exatamente neste contexto que a figura do louco alçou ao centro
das atenções e imediatamente viu-se ligada a uma idéia geral de transgressões, por
meio da qual lhe foi outorgada uma roupagem de desviante e de indesejado.
Nesta perspectiva, pela primeira vez na história da humanidade o doente
mental passa a ser concebido como inimigo, equiparado, mutatis mutandis, à figura
do hostil - então desenhada pelo Direito romano para designar o “estrangeiro” (o
240
Frise-se, portanto, que há uma nítida diferença entre a concepção homérica e a
euripedeana da loucura, a qual pode ser assim resumida: “Há uma substituição do modelo mítico-
teológico por uma visão mais racionalista das contradições e limitações dos desígnios humanos e
das fraquezas do entendimento, ou da vontade, ante a força dos apetites, das paixões. É, portanto,
na obra de Eurípedes que a loucura se ‘psicologiza’ pela primeira vez” In: PESSOTTI, Isaias. A
loucura e..., p.46.
241
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
p.119-134.
242
Note-se, inclusive, que em todas as obras de Eurípedes e Sófocles, o oposto da
loucura é a prudência, a moderação, a temperança” - In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.23.
71
“estranho”
243
), núcleo central que abarcava toda uma categoria de pessoas
insubordinadas, indisciplinadas ou simplesmente estrangeiras (no sentido mais
literal da palavra).
244
Tal concepção, inclusive, autorizou uma rie de tratamentos
discriminatórios e punitivos a esta categoria de indivíduos, pois, sendo eles
diferentes, eram desconhecidos e inspiravam desconfiança, tornando-se elementos
potencialmente perigosos. A eles seriam negados os direitos em termos absolutos.
Afinal de contas, estavam “fora da sociedade”.
245
Assim, ao tempo dos clássicos era possível vislumbrar uma vinculação
entre a loucura (enquanto significação geral de desvio) e o indesejado, o inimigo,
aquele que deveria ser contido por meio de um rigoroso processo punitivo e
excludente, afinal, se mostrava potencialmente perigoso aos interesses coletivos.
E tal vinculação se mostrou ainda mais perceptível tempos depois, com o
pensamento de HIPÓCRATES (460 377 a.C.)
246
, onde a feição mítica da loucura
desaparece em definitivo do cenário social. Sob o manto de uma nova prática
médica que se firmava, a insensatez passou a ser encarada como desarranjo de
natureza corporal do homem (fruto da ignorância e/ou indisciplina intelectual do
sujeito) nascendo assim as raízes daquela que seria batizada como teoria
243
CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de Direito Romano. o Paulo,
Saraiva, 1953; CHAMOUN, Ebert. Instituições de Direito Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1951; E
ainda: CRETELLA JÚNIOR, José. Direito Romano Moderno. Rio de Janeiro: Forense, 1993. Cite-se,
também: FARIA, Bento de. Elementos de Direito Romano. Rio de Janeiro: J. Ribeiro dos Santos
Livreiro, 1907.
244
Como assinala ZAFFARONI, resgatando construção teórica de Carl SCHMITT, o
inimigo é sempre o ‘outro’ In: ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p.24. Vale lembrar que
SCHMITT, ao estudar o conceito de político e a noção de soberania, acabou resgatando a idéia de
que a civilização romana se estruturou por conta da afirmação de um inimigo: o hostil,
caracterizado na figura do estrangeiro (o qual seria contra os interesses do império e dos cidadãos
romanos: os civilis, aqueles que tinham o ‘Direito de Cidade’). Nestes moldes, SCHMITT afirma que a
elucidação da soberania só seria possível a partir da definição de um inimigo, em função do qual os
amigos agrupam-se para combatê-lo. Ou seja, o critério surge apenas por uma necessidade dialética
de negação (verbis): “... o antagonismo político é a mais intensa e extrema contraposição e qualquer
antagonismo concreto é tanto mais político quanto mais se aproximar do ponto extremo, do
agrupamento amigo-inimigo” - In: SCHMITT, Carl. O conceito de político. Petrópolis: Vozes, 1992.
p.55-56.
245
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p.24.
246
HIPÓCRATES estruturou uma nova prática médica, baseada na teoria dos quatro
humores (sangue, fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra) que, consoante as quantidades
relativas presentes no corpo, levariam a estados de equilíbrio (eucrasia) ou de doença e dor
(discrasia), negando, assim, as práticas mágicas da ‘saúde primitivaIn: HIPÓCRATES. Conhecer,
cuidar, amar: o Juramento e outros textos. São Paulo: Landy, 2002.
72
organicista da loucura.
247
A tradição organicista inaugurada por HIPÓCRATES foi também percebida
e propagada na obra de grandes pensadores que o acompanharam, como PLATÃO
(427 349 a.C.)
248
, ARISTÓTELES (384-322 a.C.)
249
e alguns de seus discípulos
diretos
250
-
251
.
247
Na doutrina médico-filosófica de HIPÓCRATES, se passa a reconhecer processos
orgânicos que presidem a fisiologia humana geral, os quais são regidos por leis que independem da
razão e da vontade do indivíduo: leis como a que pressupõe o equilíbrio entre as condições
ambientais e as funções orgânicas geram a saúde no indivíduo, o bem-estar, a normalidade; a
ruptura deste equilíbrio constitui a doença. HIPÓCRATES reduz a saúde da vida psíquica a um
órgão: o encéfalo por isso, sua visão é tipicamente organicista: “... a loucura é estado anormal do
cérebro (...). A causa dela é algum desequilibro humoral devido a alterações do estado físico dos
humores ou de sua localização e movimentação no interior do corpo” – Ibidem, p.132.
248
Embora PLATÃO não tenha se dedicada ao estudo da loucura, acabou concebendo
no livro nono da República a existência de três almas no homem: a ‘alma superior’ e duas ‘almas
inferiores’ (a primeira residiria na cabeça, e as outras no coração e abaixo do diafragma), as quais
conformariam a psyche humana (aquilo do que se constitui o homem). Neste quadrante, PLATÃO
considera a loucura como um desarranjo na boa ordem entre as partes do sistema da psyche,
dizendo que: “... quando, pois, a alma toda anda segundo a razão, sem que se levante em seu seio
sedição alguma, acontece que cada uma de suas partes, além de se conter nos limites de suas
funções e da justiça, goza ainda os prazeres mais puros e verdadeiros que se possam desfrutar. ao
passo que, se uma parte domina as outras, acontece em primeiro lugar que não pode obter os
prazeres que lhe convêm; ao depois, obriga as demais partes a que vão em busca de prazeres
falsos que lhe são estranhos”. E segue: “... o louco, o homem perturbado, tenta e espera ditar regras
não sobre os homens mas também sobre os deuses (...). então um homem se torna tirânico, no
pleno sentido do termo (...) quando, por natureza ou por hábito, ou por ambas as coisas, ele se tora
igual ao bêbado, ao erótico, ao louco (melancholiks)” In: PLATÃO. A República. São Paulo: Atena,
1956. p. 380-382.
249
ARISTÓTELES, por sua vez, dividiu a alma em duas partes: a racional e irracional,
sendo que ambas estão situadas no coração, deixando claro que o cérebro não tem qualquer
participação nas sensações. Afirma que esta alma vive do calor vital e, quanto mais ela se aquece,
melhor funciona. Desse modo, variações grandes na intensidade de frio ou calor explicariam todas
as formas de loucura: “... quanto àquela parte da alma, a qual lhe permite conhecer e pensar, seja
ela separável de si mesma ou, ainda, não separável de si mesma segundo a sua extensão
respectiva, podendo, aliás, sê-lo segundo a respectiva noção é uma situação que é necessário
examinar: ver qual será o caráter que a pode distinguir assim como precisar o próprio processo de
intelecção (...). Que a impassibilidade da faculdade sensitiva e a inalterabilidade da faculdade
intelectiva o possam ser da mesma natureza, tal constitui um fato evidente, em relação a isso
também assim se considerando os órgãos corporais e o sentido propriamente ditos (...). De fato o
intelecto é capaz de, por um lado, se tornar em todas as coisas e, por outro, capaz de produzir todas
as coisas, por este modo se assemelhando o seu estado ao da luz: a luz deixa, de certa maneira,
passar as cores do estado de potência ao estado de ato. Este mesmo intelecto encontra-se
separado, sem se misturar de modo algum, permanecendo, portanto, impassível enquanto
essência..." - In: ARISTÓTELES. Da alma. Lisboa: Edições 70, 2001. p.429-430.
250
Outro grande organicista foi Areteu da CAPADÓCIA (81-138 d.C.), que elaborou
teorias sobre mania, melancolia, sobre os principais caracteres do delírio epiléptico, do delírio
histérico e do delírio erótico (In: Das causas e sinais das doenças agudas e crônicas; e Da
terapêutica das doenças agudas e crônicas). Também desenvolveu um método revolucionário,
batizado “pneumático”, pelo qual toda enfermidade teria uma causas orgânicas, e tal seria decorrente
de alterações no pneuma (palavra grega para ‘respiração’, que metaforicamente descreve um ser de
espírito ou influência In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.63. Como tratamento, indicava banhos
em águas termais, e dizia que a terapia era invariavelmente catártica, ou seja: de limpeza (purgação)
73
De qualquer forma, certo é que os transtornos psíquicos ainda não tinham
contornos bem delimitados em termos clínicos seja em sua caracterização,
definição ou em seu trato -, mesmo porque os estudos ainda eram bastante
precários e restritos.
252
Inclusive, talvez a melhor classificação da loucura estivesse
disposta não nos diplomas médicos, mas sim nos jurídicos.
253
Não bastasse isso, impende lembrar que na Grécia e Roma clássica, além
dos filósofos e médicos, era hábito que os sacerdotes se dedicassem ao estudo dos
segredos que envolviam as enfermidades mentais o que contribuiu para que os
conceitos sobre a insanidade fossem sempre demasiado extravagantes (para não
dizer fantasiosos) e abstratos.
Ainda não se falava num conceito estruturado e próprio de periculosidade
criminal, em manicômios judiciários ou mesmo nas medidas de segurança, muito
embora a idéia de segregação cautelar de indivíduos indesejados demonstrava
suas primeiras feições, exatamente como forma precária de se evitar os entes
perigosos: vale lembrar (a título de exemplo) que o Direito romano previa, para os
furiosi, a imposição não de uma pena, mas sim de uma custódia ad cautelam ejus et
securitatem proximorum.
254
Mas uma coisa é certa, desde a antiguidade clássica, a loucura não era
concebida com bons olhos - mesmo entre os trágicos, onde o fenômeno era dotado
do organismo por meio de um trauma ou choque emocional In: SILVA, Valmir Adamor da. Oo. cit.,
p.36.
251
Também Cláudio GALENO, com base numa concepção organicista, distinguiu a
loucura dos delírios devidos a outros sintomas, repetindo idéias platônicas sobre a divisão da alma e
idéias hipócritas sobre a origem das doenças: para ele, as doenças do sistema nervoso residiam no
cérebro GALENO, Cláudi. Comentários a Hipócrates [131-200 d.C] Apud SILVA, Valmir Adamor
da. Op. cit., p.17.
252
Basta lembrar que as variadas crenças (para não dizer superstições) e a própria
mentalidade geral da época clássica, impedia que os pesquisadores lidassem com cadáveres
humanos, posto que tal conduta constituía séria profanação ao sagrado. Havia, especialmente na era
clássica, um respeito supersticioso em relação à vida e morte dos indivíduos, um verdadeiro e
inquebrável tabu In: BRANDO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Petrópolis: Vozes, 2004. v. 2. p.
139.
253
Como na legislação romana (o Corpus iuris civilis), onde a delimitação de algumas
matérias predicava uma determinação dos vários tipos de comportamentos aberrantes: o furiosus,
caracterizado pela loucura enraivecida, agitada, com intervalos lúcidos; a dementia, era sinônimo de
loucura plena, desequilíbrio total, sem intervalos lúcidos; (...) o imbecilitas, por sua vez, seria o louco
incapaz de gerir seus próprios bens - distinção esta que, em certa medida, era furto das descrições
nosográficas feitas por modelos organicistas In: GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal.
São Paulo: Max Limonad, 1980.
254
Neste tocante, Aníbal BRUNO afirma que se impunha naquele tempo a relegação ou
internação domiciliar, com a finalidade de afastar os indivíduos furiosos da sociedade In: BRUNO,
Aníbal. Perigosidade criminal e medidas de segurança. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1977. p. 11.
74
de certa normalidade. Nesta perspectiva, considerando também que os
conhecimentos sobre o tema eram diminutos, o destino final dos infratores
patológicos era (em regra) a exclusão definitiva pela morte ou banimento, uma
espécie de silenciar eterno do indivíduo portador de transtorno psíquico.
2.1.2 Inquisição e Demonologia da Loucura
A situação vislumbrada no período clássico não melhorou com o advento
da Idade média. Ao contrário, tornou-se ainda mais bárbaro o tratamento conferido
ao doente mental infrator, visto que o fenômeno voltou a ser identificado
exclusivamente como reflexo de possessões diabólicas – o que legitimou uma
verdadeira caçada aos indivíduos perigosos.
Impende lembrar que foi com a queda do Império Romano do Ocidente
(476 d.C.) que oficialmente se inaugurou o conturbado período histórico conhecido
como era medieval, o qual se estruturou sob três pilares: as invasões bárbaras, o
surgimento do feudalismo e, principalmente, o fortalecimento do cristianismo.
255
Neste condão, a filosofia que se estruturava na época era basicamente
escolástica - calcada nos atos de fé e de salvação -, e foi ela que deu sustentáculo
para a reconstrução demoníaca do fenômeno, sendo igualmente empregada para
reprimir heresias e como recurso para impor a ortodoxia teológica e moral vigente.
Nos séculos iniciais do cristianismo, essa demonologia refletiu
basicamente o repúdio às crenças gnósticas (não cristãs), e a idéia central de que
havia uma criatura pervertida, por sua inveja e ciúme, que interferia na vida humana
255
Aqui, vale destacar que os povos bárbaros (hunos, ostrogodos e visigodos) chegaram
do oriente atraídos por novas terras, e quase não encontraram resistência no falido império
romano. A medida em que iam ampliando seu espaço de conquista, os líderes bárbaros iam fixando
pequenos feudos, deixando o poder cada vez mais esfacelado e descentralizado. É diante deste
quadro, frente à ausência ou inelutável fraqueza do Estado, que o cristianismo acabaria se
consolidando como a única estrutura suficientemente forte para impor um freio aos bárbaros. A partir
de então, “o Trono de São Pedro, em Roma, além do poder espiritual, passou a ditar regras para o
exercício do poder temporal, a que os reis, convertidos ao cristianismo, teriam forçosamente que
acatar” In: ACCIOLI, Wilson. Teoria geral do Estado. Rio de Janeiro: Forense, 1985. p.195. Neste
mesmo sentido ver: GETTEL, Raymond. G. Historia de las ideas políticas. México: Nacional, 1951;
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. São Paulo: Saraiva, 2007;
BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2004.
75
como espírito maligno, tentador.
256
Posteriormente, consoante se consolidava o poder da Igreja, esta
demonologia evolui em duas frentes: de um lado, todas as divindades pagãs
passam a ser concebidas como demônios, de modo que cultuá-las seria adorar ao
próprio demônio; por outro lado, o dissidente, o pagão (o herege), passa a ser visto
como partidário ou mesmo instrumento do demônio e, com isso, legitima-se a
intolerância religiosa e a perseguição aos dissidentes.
257
O primeiro expoente desta reformulação foi Aurélio Agostinho de Hipona
(ou simplesmente Santo AGOSTINHO, 345-430 d.C.), que influenciou todo o
cristianismo dos séculos seguintes. A grande inovação de AGOSTINHO estava na
idéia de que o mal não teria existência positiva (seria apenas a negação do bem),
pois o universo é naturalmente bom, obra perfeita de Deus. Assim, nasce com ele a
idéia de que o mau real é o pecado, cometido por livre escolha dos homens, e, por
isso, não pode ser atribuído a alguma decisão divina, mas à fraqueza dos homens
ante ao mau uso do livre-arbítrio divino.
258
Esta teologia demonista, que serviria de base para julgamentos,
interrogatórios e perseguições eclesiásticas na crescente inquisição, seria ainda
aperfeiçoada por Tomas de AQUINO (1225-1274 d.C) e a sua Summa
Theologica.
259
256
RIBEIRO, Márcio Moisés. Exorcistas e Demônios: demonologia e exorcismo no mundo
luso-brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 2003. p. 43.
257
Neste tocante, PESSOTTI, destaca que as primeiras Epístolas dos primeiros padres
apostólicos, eram textos de resposta polêmica aos últimos pensadores pagãos do mundo antigo, e
visavam a defender as crenças dos fiéis contra os costumes dos “idólatras” In: PESSOTTI, Isaias.
A loucura e..., p. 83-86.
258
No diálogo travado com Evódio, Santo AGOSTINHO tenta explicar-lhe de que a
origem do mal esno ‘livre-arbítrioconcedido por Deus (verbis): “... Deus em sua perfeição quis
criar um ser que pudesse ser autônomo e assim escolher o bem de forma voluntária (...). O homem,
então, é este ser único que possuiria as faculdades da vontade, da liberdade e do conhecimento (...).
Ele é um ser capacitado a escolher entre algo bom e algo mal (prevalência das paixões humanas).
Entretanto, (...) por ter em si mesmo a carga do pecado original de Adão e Eva, estaria
constantemente tendenciado a escolher praticar uma ão que satisfizesse suas paixões. Deus,
portanto, não é o autor do mal, mas é autor do livre-arbítrio, que concede aos homens a liberdade de
exercer o mal, ou melhor, de não praticar o bem...” - In: AGOSTINHO, Santo. O Livre-arbítrio. o
Paulo: Paulus, 1995. p. 67-70.
259
AQUINO sintetizou o cristianismo com uma visão aristotélica do mundo ao que se
batizou de “tomismo” (tentativa de integrar o pensamento aristotélico e neoplatônico, aos textos das
Sagradas Escrituras, gerando uma filosofia do ‘Ser’, inspirada na fé, com a teologia científica). A
partir dele, a Igreja tem uma teologia (fundada na revelação) e uma filosofia (baseada no exercício
da razão humana) que se fundem numa síntese definitiva: e razão, unidas em sua orientação
comum rumo a Deus. - In: MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Manual esquemático de história
da filosofia. São Paulo: LTr, 1997. Ainda segundo PESSOTTI, três teses desta summa formaram as
76
Diante de todas estas concepções originadas com o cristianismo,
consolidou-se ainda mais a convicção de que o dissidente seria presa do demônio
ou instrumento dele. De modo que, qualquer desequilíbrio, desregramento da
conduta, principalmente sensual, seria facilmente atribuído à presença de forças
malignas no indivíduo - não por outra razão, os atos desatinados ou os desastres da
vida pessoal de alguém eram certamente identificados como intervenção
demoníaca.
260
É assim que o inimigo clássico - representado na imagem do hostil -
passa agora a ser identificado na figura do herege (o heterodoxo).
Tempos depois, centenas de pessoas (principalmente mulheres histéricas,
psicóticas, ou simplesmente ignorantes) seriam queimadas em praça pública sob a
acusação de estarem mancomunadas ou possuídas pelo demônio.
261
No campo jurídico, resgatava-se aos poucos a idéia da inquisitio - perdida
com o início do feudalismo, quando sobreveio a lógica da disputatio - enquanto
método de solução dos conflitos e forma de obtenção da verdade. Nesta
perspectiva,
... o juiz deixa de ser um arbitro e passa a ser um investigador, e o dominus (o senhor)
era quem expressava a vontade divina, representando, pois, o bem. o dominus
poderia libertar as pessoas dos males cósmicos (bruxas, demônios, lunáticos), por isso
ele era o detentor do saber; saber este que buscava sempre (e cada vez mais) o
poder.
262
O problema é que a busca pela verdade não ganhou limites, e isso, para
além de legitimar a intervenção violenta sobre os investigados, também legitimou a
hierarquização dos seres humanos. Afinal de contas, sendo o ‘senhor’ o detentor do
saber (e do poder), era ele quem identificava o mal, o hostil, o herege, o inimigo:
“todo obstáculo ao saber inquisitorial do dominus seria considerado inimigo do bem
e aliado do mal”.
263
pilastras do novo pensamento demonista: a idéia de que todos os demônios, com a permissão de
deus, por mau uso de sua livre vontade, se tornaram perversos; a de que possuem o conhecimento
do funcionamento das coisas da natureza; e a de que habitam o éter, de onde descem para incitar os
homens ao mal – In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p. 87.
260
Neste tocante, “como o discurso e o comportamento de maníacos, melancólicos,
histéricos e paranóicos são, via de regra, incomuns, torna-se quase inevitável a atribuição dessas
condutas a poderes demoníacos ou mesmo a possessões do louco pelo demônio (...). Quem faz ou
diz coisas raras, estranhas ou imorais age por obra do diabo, está possuído por ele” - Ibidem, p.89-
90.
261
RIBEIRO, Márcio Moisés. Op. cit., p. 64.
262
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 40.
263
Ibidem, p. 39-40.
77
Assim, qualquer perspectiva de avanço nos estudos científicos sobre o
fenômeno da loucura foi barrado com o advento da Idade Média. Afinal, “não a
loucura, mas todas as enfermidades passaram a habitar a categoria de possessão
diabólica”, e ao demonizar a doença, o médico perdeu poder para o exorcista,
que o próprio êxito terapêutico poderia ser mera ação do poder divino ou de alguma
força exorcística, mesmo não sabida pelo médico.
264
Sequer as pesquisas sobre possíveis outras causas da loucura que não
as fenomenológicas - eram permitidas. Até porque, quem pesquisasse a loucura
seria taxado de louco, e como tal, certamente seria mandado à fogueira: “... a
piromania dos inquisidores não tinha limites. Qualquer atitude suspeita serviria de
motivo para atirá-lo na fogueira".
265
Esta tendência foi também percebida no campo jurídico-penal, posto que
meras heresias foram alçadas à categoria criminosa, e, nesta medida, deveriam ser
perseguidas e punidas com severidade pelo inquisidor.
Foi o período em que atuou o Tribunal do Santo Ofício
266
, que levou à
morte milhares de hereges uns alucinados pelo contágio coletivo e outros
simplesmente pela incapacidade de defesa: “... histéricos, idiotas, alucinados, enfim,
era tudo obra do satanás".
267
Era necessário eliminar todo o mal, mesmo que para tal fosse necessário
invocar a coerção direta contra o investigado - inclusive com a prática de tortura.
Sob tais perspectivas, as sanções penais também viraram expiações diretas contra
os condenados, posto que a infração seria parte de uma agressão direta a Deus
(representado pelo monarca) e o poder punitivo estatal deveria atuar na defesa
264
SILVA, Marcus Vinícius de Oliveira. Op. cit., p.14. E no mesmo sentido, PESSOTTI
afirma que “a vista disso, é fácil perceber a extraordinária autoridade adquirida pelos exorcistas e
teólogos especializados em demonologia. Foi esta autoridade que conferiu a eclesiásticos, no campo
médico, um poder inquisitorial ou exorcístico para definir dogmaticamente, critérios diagnósticos e
terapêuticos aplicáveis a uma variedade quase ilimitada de distúrbios orgânicos e mentais” In:
PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p. 92.
265
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 19.
266
Numa época em que o poder religioso se confundia com o poder real, o Papa Gregório
IX editou (em 20 de Abril de 1233) duas bulas que marcam o início da Inquisição. Nos séculos
seguintes, ela julgou, absolveu ou condenou e entregou ao Estado (que aplicava a "pena capital",
como era comum na época) vários de seus inimigos propagadores de heresias. No entanto, tempos
depois, em pleno século XV, os reis de Castela e Aragão, Isabel e Fernando, solicitam e obtêm do
Papa a autorização para a introdução de um Tribunal do Santo Ofício. Mais tarde, em certas regiões
da Itália e Portugal, o Papa autorizou a introdução de instituições similares - In: GONZAGA, João
Bernardino. A Inquisição em seu Mundo. São Paulo: Saraiva, 1994.
267
PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p. 92.
78
desta divindade, o que habilitava o dano ao ofensor.
268
Cabe lembrar que em 1487, auge da Renascença, foi lançada a obra dos
teólogos Heinrich KRAEMER e James SPRENGER, o Malleus Maleficorum (o
‘Martelo das Feiticeiras’)
269
, que rezava uma cartilha de caça e punição às bruxas e
aos loucos de todos os gêneros.
Esta obra, ao lado de outras da mesma época como o De Maleficiis de
NIDER, de 1437 (em que um teólogo expõe a um homem ignorante as formas de
ação do demônio sobre a mente humana e suas ações); e o Demonolatriae libri tres,
de REMIGIUS; além de outras obras publicadas ao longo dos séculos XV e XVI -
consolidaram teoricamente a demonologia medieval.
270
Pretendiam, com tais construções, facilitar a identificação daqueles que
agiam sob o mando do demônio, contra a salvação cristã das almas, seja por meio
de pregação herética, seja por meio de encantamentos ou rituais de culto
demoníaco, ou mesmo de qualquer conduta estranha, ou simplesmente por
demonstrarem competências e poderes anormais para sua condição social.
As mulheres, sem sombra de vidas, foram o alvo principal de suas
perseguições. Os líderes católicos desenvolveram verdadeira obsessão pela
questão dos demônios que supostamente copulavam com mulheres - o que estava
vedado a eles próprios. A este respeito, rezava o Maleficorum: "... o veneno
pior do que o das serpentes; não cólera que vença a da mulher. É melhor viver
com um leão e um dragão que morar com uma mulher maldosa (...). Toda a malícia
é leve, comparada com a malícia de uma mulher”.
271
Em relação às consequências da atuação do demônio sobre uma pessoa,
dizia que:
... os diabos têm, seis maneiras de prejudicar a humanidade. Uma é provocar no homem
um amor mau por uma mulher ou na mulher um amor por um homem. O segundo é incutir
o ódio ou ciúmes em alguém. A terceira é fazer com que o homem não possa realizar o
ato genital com uma mulher ou inversamente uma mulher com um homem. A quarta é
268
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 43.
269
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro:
Record, 1995. A obra estava dividida em três partes: a primeira ensinava os juízes a reconhecerem
as bruxas em seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expunha todos os tipos de malefícios,
classificando-os e explicando-os; e a terceira regrava as formalidades para agir “legalmente” contra
as bruxas, demonstrando como inquiri-las e condená-las.
270
FERRAZ, Flávio Carvalho. Op. cit., p.43.
271
KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. Op. cit., p. 110.
79
causar alguma enfermidade nos órgãos humanos; a quinta é acabar com a vida; a sexta,
privar da razão.
272
Especificadamente sobre a loucura, o texto tenta difundir, a todo o
momento, a idéia e a crença na intervenção, onipresente, dos demônios na vida do
homem:
O diabo, ademais, é capaz de possuir os homens na sua essência corpórea, como fica
claro no caso dos loucos (...). E embora tal modo de possessão fuja um pouco a nossos
propósitos, trataremos dele aqui, para que foque a todos esclarecidos que, com a
permissão de Deus, os homens por vezes são substancialmente possuídos por demônios
a pedido das bruxas (...).
273
Portanto “o demônio seria capaz, pela alteração das percepções e dos
humores internos, de provocar mudanças nas ações e nas faculdades físicas,
mentais e emocionais, operando através de qualquer órgão físico”.
274
E não por
outra razão, o destino do louco infrator era sempre a morte:
... não importa o quanto sejam penitentes e que retornem ao caminho da fé, não se lhes
pode punir como aos outros hereges com a prisão perpétua: é preciso que sofram a
penalidade extrema. E por causa das injúrias temporais que causam aos homens e aos
animais, de várias maneiras, é que a lei lhes impõe tal pena (...). E enfaticamente é
afirmado que devem ter como penalidade o confisco de seus bens e a decapitação (...).
Que de todos os criminosos do mundo são as bruxas e bruxos os que merecem a mais
severa punição.
275
Com isso, percebe-se que a Idade Média trouxe incalculável retrocesso no
trato da criminalidade como também no trato da loucura. Os textos medievais
reeditam e corrompem o modelo mitológico da antiguidade clássica: “reeditam
porque após a visão organicista popularizada pelo galenismo, a loucura passa a ser,
de novo, efeito de maquinações de entidades extranaturais. Corrompe, porque
agora a loucura é apenas negativa, patológica, estigma de imperfeição e de
culpa”.
276
A doutrina demonista cristã exclui as paixões, os instintos e os desejos
humanos da etiologia da loucura, pois eles não são forças próprias da natureza
dos homens. São obras dos demônios. Ao homem cabe apenas fugir delas e culpar-
se por seus atos desvairados: “a perda da razão tem agora a marca da condenação
272
Ibidem, 154.
273
Ibidem, p. 266.
274
Ibidem, p. 274-275.
275
Ibidem, p.174-175.
80
e culpa”.
277
A idéia de perigo, intimamente ligada à figura mafica do satã, a todo o
momento ronda o doente mental durante a Idade Média. E é ela que autoriza, uma
vez mais, o controle do indesejado pela exclusão desta vez com a fogueira. Mas
note-se que ainda neste período, tal qual ocorria na antiguidade clássica, o conceito
de periculosidade ainda não tinha um rosto bem definido: tudo girava em torno de
uma imagem mais ou menos abstrata e sem contornos específicos.
2.2 PODER RÉGIO E A FIGURA DO MONSTRO
2.2.1 Organicismo Clínico e a Estrutura Soberana
Com o advento da era moderna (século XV), a etiologia diabólico-medieval
da loucura começa a ser abandonada de uma vez por todas. Vale lembrar que a
Europa passava novamente por um período de grandes mudanças, especialmente
marcadas pela Reforma Protestante liderada por Lutero (que combateu as práticas
inquisitivas da Igreja)
278
e a estruturação do mercantilismo, que se caracterizou por
uma forte ingerência do Estado na crescente economia - o que se dava por meio de
medidas protecionistas que objetivaram unificar o mercado interno e possibilitaram,
na sequência, a consolidação dos Estados-nacionais.
279
276
O louco é o campo de batalha entre forças do bem e do mal” In: PESSOTTI, Isaias.
A loucura e..., p. 100
277
Idem.
278
Vale lembrar que o protestantismo nasceu como movimento reformista cristão iniciado
no século XVI, pelo monge alemão Martinho LUTERO, que, através da publicação de suas 95 teses
(em 1517 d.C.), protestou contra diversos pontos da doutrina da Igreja Católica, propondo uma
reforma no catolicismo. Seu ideal resultou na divisão da ‘Igreja do Ocidente’, entre católicos romanos
e protestantes - In: PIERRARD, Pierre. História da Igreja. São Paulo: Paulus, 1982.
279
Nesta nova lógica, o Estado desempenha um papel intervencionista na economia,
implantando novas indústrias protegidas pelo aumento dos direitos alfandegários sobre as
importações, (protecionismo), controlando os consumos internos de determinados produtos,
melhorando as infra-estruturas e promovendo a colonização de novos territórios (monopólio),
entendidos como forma de garantir o acesso a matérias-primas e o escoamento de produtos
manufaturados. Além disso, os pensadores mercantilistas preconizavam o desenvolvimento
econômico por meio do enriquecimento das nações graças ao comércio exterior, o que permite
encontrar saída aos excedentes da produção. Também partilhavam a crença de que a riqueza de
uma nação residia na acumulação de metais preciosos (especialmente ouro e prata). Nesse mesmo
contexto, os europeus viram-se também impelidos a promover as expansões marítimas (ainda no
século XV) e estabelecer contato com outros povos que não os ocidentais o que se deu por duas
81
Neste condão, os exageros trazidos pela doutrina demonologista cristã
passaram a suscitar grande perplexidade nos estratos mais cultos da sociedade,
dentre os quais se destacou, certamente, a classe médica. Isto porque a formação
clínica do médico da época ainda era predominantemente galenista e se
complementava, no campo do conhecimento psicológico, com noções da filosofia
platônica - o que, inclusive, determinou que a concepção de loucura passasse a ser
elaborada sob esta híbrida influência do organicismo galenista e da doutrina sobre
as faculdades da mente de extração platônica.
280
Tal influência é facilmente perceptível em duas das mais célebres
classificações da alienação mental que surgiram ao longo do culo XVII: a de
ZACHIAS (1651 d.C.) e a de Felix PLATER (1625 d.C), que concebiam a
perturbação intelectual (o delirium) como condição principal para o diagnóstico da
loucura.
281
Outra notável construção teórica, surgida pouco tempo antes, deve-se a
Juan Luis VIVES (1492-1540 d.C.
282
), que também não concebia os loucos como
feras possuídas por forças malignas, aconselhando que lhes fosse conferido um
tratamento específico e medicamentoso, mesmo que necessário o emprego da
força e da segregação: “por medida de precaução, devido à periculosidade que
apresenta aos demais e a si mesmo”.
283
razões econômicas: a necessidade de expandir o comércio e de obter grandes quantidades de
metais preciosos In: ANDERSON, Perry. Linhagens do estado absolutista. São Paulo: Brasiliense,
1985.
280
PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p.123.
281
Na mesma linha, PESSOTTI assevera que a base conceitual utilizada em suas
Questiones medico-legales, tomam como sustentáculo argumentos que não o médicos, mas sim
jurídicos o que decorre de sua experiência nos tribunais eclesiásticos entre 1624 e 1650. E o que
ele buscava era estabelecer critérios de imputabilidade e responsabilidade decisória, para efeitos
legais. Noutro giro têm-se Felix PLATER, que repete a classificação de loucura de Galeno e a
loucura sob uma perspectiva exclusivamente médica. Para ele, a loucura deve ser avaliada e tratada
pelos médicos, visto ser uma doença: “... uma doença que, enquanto afeção do espírito, pode
resultar também das causas extranaturais, eventualmente até da possessão demoníaca” – Ibidem, p.
124-125. No mesmo sentido: SILVA, Marcus Vinícius de Oliveira. Op. cit., p. 14
282
Juan LUÍZ VIVES afirmava que “devem usar-se remédios adequados aos pacientes.
Alguns necessitam atenção médica a seu modo de vida, outros requerem tratamento amável e
amistoso, de maneira que, como os animais montarazes, podem suavizar-se gradualmente. Outros
precisam inclusive de instrução. Alguns requerem a força e as cadeias, porém estas deve usar-se
para evitar maior violência nos pacientes (...). O louco furioso não conhece o perigo e sendo assim
investe contra os que se lhe aproximam: agride mas também se machuca” - In: LUÍS VIVES, Juan.
De subventione pauperum [1526]; De Anima et Vita [1538] Apud SILVA, Valdir Adamor da. Op. cit.,
p. 46.
283
Segundo VIVES, “o verdadeiro estudo ao qual devemos seguir é o que consiste na
filosofia de dar remédios e curas às paixões e às enfermidades da alma. Se temos tanto cuidado em
82
Na tentativa de determinar o processo causal da alienação, médicos e
pesquisadores dos séculos XVI a XVIII formularam diferentes princípios ou modelos
teóricos, entre os quais se destacaram: o iatroquímico
284
, o pneumático
285
e o
iatromecânico.
286
Ocorre que as pesquisas feitas ao longo deste período se dispersaram em
uma pluralidade de linhas de pensamento inimaginável, muitas mutuamente
exclusivas ou inconciliáveis.
287
Assim, ao mesmo tempo em que se retomava uma
feição organicista da loucura, não havia um critério uniforme para delimitar o tema, e
tudo acaba virando uma grande bagunça de teorias e classificações
288
, a qual
somente seria ordenada mais tarde, com o Traité de Philippe PINEL – quando enfim
será cogitada a cogitar a importância das mudanças na vida afetiva do indivíduo
como causa da loucura.
Mas ainda assim, foi um período em que se consagrou uma abordagem
mais científica do desvario e do descontrole emocional, a qual fez com que a
curar o corpo, mais ainda devemos ter em curar a alma, visto suas doenças serem mais secretas,
graves e perigosas” – Ibidem, p.45-50.
284
O método “iatroquímico” teve como expoente o químico PARACELSO (séc. XVI), que
trouxe a primeira negação de uma origem sobrenatural das doenças, inclusive para a loucura (que
era por ele tratada como verdadeira doença). Outros adeptos foram Jacob SYLVIUS e SENNERT
(séc. XVII), que diziam que as doenças eram alterações dos sais do corpo dando contornos iniciais
ao que seria uma etiologia toxicológica da loucura – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 32.
285
O modelo de explicação “pneumático” nasce na fisiologia de DESCARTES e de sua
doutrina dos “espíritos animais” (uma espécie de processo intermediário entre a sensação e alguma
forma de tração mecânica das fibras cerebrais); na teoria cartesiana, a formação da idéia delirante
resulta do movimento dos espíritos (não no teor demoníaco de antigamente, mas como sinônimo de
mente) dentro do encéfalo – Ibidem, p. 34.
286
Já a doutrina iatromecânica” das atividades mentais é derivada diretamente de uma
microfisiologia vascular do encéfalo, e teria como adeptos os chamados “mecanicistas”. Tal
explicação foi inicialmente criada por Alfonso BORELLI (1608-1679), que acentuou ainda mais uma
concepção organicista da loucura ao entender que qualquer patologia era resultado de processos
hidráulicos e mecânicos no interior do organismo. Para a iatromecânica, o delírio, essência da
loucura, resulta de um excesso de tensão nas fibras cerebrais que, nesse estado, geram idéias e
julgamentos pouco conformes à natureza dos objetos; trata-se, pois, de um processo puramente
orgânico – Ibidem, p. 35-43.
287
Como lembra PESSOTTI, “a psicopatologia do século XVIII apresenta-se
evidentemente desnorteada, o que é resultado do apego tenaz a uma visão organicista da etiologia,
sem apoio numa sólida fundamentação experimental a fundar-se em critérios muito variados de
descrição e de caracterização - In: PESSOTTI, Isaias. A loucura e..., p. 134.
288
Temos a classificação de Boissier de SAUVAGES [1767], elaborada conforme o
“método naturalista” (pelo qual se observa três ordens de doenças mentais: os erros do
espírito/alucinações, as morosidades/bizarrias e os delírios. Outras classificações foram as de
ERHARD [1794] e de VALENZI [1796]. a proposta de CULLEN [1782] - que foi traduzida mais
tarde por Pinel; a classificação foi a feita por ARNOLD [1782], claramente influenciada pela filosofia
de LOCKE, dividindo a loucura em duas classes maiores: ideal insanity e notional insanity. A última
grande classificação do século XVIII é a do psicopatologista italiano e CHIARUGI [1794] - In:
PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 51-62.
83
loucura voltasse a ser encarada como uma doença natural acenando um resgate
aos pensamentos filosóficos de Hipócrates (que identificava a loucura como a
patologia de funções nervosas superiores). Renasce, neste momento, o enfoque
médico da loucura.
289
Foi também neste período histórico que a figura do louco voltou a ocupar
um lugar privilegiado nas experiências humanas. Quando as epidemias de lepra e
peste bubônica que durante boa parte da Idade Média assombraram a sociedade
européia
290
- começaram a desaparecer do mundo ocidental, inaugurou-se uma
fase em que as portas das cidades, antes fechadas pelo medo do contágio,
voltaram a se abrir.
291
Além disso, a peste deixou de assombrar as pessoas, o que fez com que
uma lacuna se formasse no imaginário popular e o local antes habitado pela doença
(enquanto representação concreta de um mal, de um perigo) estava vazio. Então
era preciso encontrar uma nova quimera para assombrar a humanidade e esta
deveria ser capaz de substituir à altura os demônios medievais e os horrores
provocados pelas epidemias.
É exatamente nesta perspectiva que o complexo fenômeno da loucura foi
alçado à categoria de doença (fruto do trabalho dos neo-organicistas), sucedendo o
lugar antes ocupado pela peste entre os medos seculares.
A loucura, segundo narra Michel FOUCAULT, “foi um dos topois do
humanismo renascentista”,
292
e esta presença se fez por figuras diversas
289
“O século XVII medicaliza a naturaliza a loucura ao mesmo tempo em que a institui
como processo mental, como patologia de funções nervosas superiores” - In: PESSOTTI, Isaias. A
loucura e..., p.133.
290
dados que indicam que a “peste negra”, que assolou a Europa durante o século
XIV, dizimou entre 25 e 75 milhões de pessoas, ou seja, praticamente um terço da população da
época. Durante todo o período medieval, todos os restritos estudos sobre a saúde humana eram
voltados para a lepra e as epidemias que devastam a Europa, ao que HERZLICH e PIERRET
chamou l'Ancien Régime du Mal: A doença, pelo contrário, era marcada por três características: o
número, a impotência e a morte, a exclusão” – In: HERZLICH, Claudine; PIERRET, Janine. Maladies
d'hier malades d'aujourd'hui: de la mort collective au devoir de guérison. Paris: Payot, 1984. p. 23.
291
FOUCAULT, Michel. A História..., p.04.
292
É que “com a regressão da lepra, serão os pobres, os vagabundos, os presidiários e
os ‘cabeças alienadas’ que assumirão o papel abandonado pelo lazarento. E, a partir do século XV, a
face da loucura passa a assombrar a imaginação do homem ocidental” Ibidem, p. 07-08. Ainda
segundo FOUCAULT, “até pouco depois do início da segunda metade do século XV, o tema da
morte impera sozinho; nela, o fim do homem, o fim dos tempos assume o rosto das pestes e das
guerras. Mas eis que nos últimos anos do século, essa grande inquietude gira sobre si mesma: o
desatino da loucura substitui a morte e a seriedade que a acompanha. A partir de então, o insano
desarma e o louco ri antes do riso da morte, pressagiando o macabro; trata-se de uma virada no
84
(especialmente na iconografia e em peças teatrais), como, por exemplo: na “Nau
dos loucos” espécie de barco que deslizava ao longo dos rios da Renânia e dos
canais flamengos, levando para longe dos grandes centros urbanos toda a sorte de
desvario -, as quais foram objeto da composição de BRANT (Das Narrenschiff)
293
e
da iconografia de BOSCH e BRUEGHEL.
294
Também na literatura erudita da Renascença se percebeu e retratou a
loucura na plenitude de sua ação, principalmente em textos humanistas, como
ocorre com o Elogia da Loucura (de 1511), em que Erasmo de ROTTERDAM
consagra o solitário discurso da loucura, zombeteiro da inutilidade de seu saber:
Quando a trôpega velhice coloca os homens à beira da sepultura, então, na medida do
que sei e do que posso, eu os faço de novo meninos (…). E essas caducas cabeças, (…)
faço-as beber a grandes goles a água do esquecimento. E é assim que dissipam
insensivelmente as suas mágoas e recuperam a juventude.
295
A denúncia da loucura torna-se a forma geral de todas as críticas, e o seu
personagem principal (o louco) passa a ocupar lugar central nos mais variados
acontecimentos.
296
Por outro lado, é imperioso firmar que não foi apenas pela força dos
pesquisadores, médicos e artistas, que a doutrina demonista foi afastada e a
interior da mesma inquietude, trata-se do vazio da existência, um vazio sentido do interior como
forma contínua e constante da existência. O liame entre a loucura e o nada se estreita no século XV
e subsiste por muito tempo no centro da experiência clássica da loucura” - Ibidem, p. 15-16.
293
O romance de Sebástian BRANT, por exemplo, retratava exatamente esses barcos
que levavam sua carga insana de uma cidade para outra: “... os loucos tinham uma existência
verdadeiramente errante neste período; as cidades os escorraçavam de seus muros, e não raras
vezes eram confiados por mercadores e peregrinos” In: BRANT, Sébastian. Das Narrenschiff.
Paris: Nuée Blanche, 1979. Ainda FOUCAULT ressalta que isso era muito comum, especialmente na
Alemanha; “em Nurembrug, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62
loucos, 31 dos quais foram escorraçados; eram freqüentemente confiados a barqueiros: em
Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passava
nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Maycence” -
In: FOUCAULT, Michel. A História..., p. 09.
294
FOUCAULT lembra que ao final da Renascença, os loucos eram escorraçados e
frequentemente confiados a barqueiros. “O louco torna-se o passageiro por excelência, o prisioneiro
da passagem, solidamente acorrentado à infinita encruzilhada” – Ibidem, p. 09.
295
ROTTERDAM, Erasmo de. Elogio da loucura. São Paulo, Rideel, 2003. p.23.
296
“A face da loucura passou a assombrar a imaginação do homem ocidental a partir do
século XV”. Foucault lembra que uma sucessão de datas fala por si mesma: a dança dos mortos do
cemitério dos inocentes data sem dúvida dos primeiros anos do século XV; a da Chaise-Dieu teria
sido composta por volta de 1460; e é em 1485 que Huyot Marchando publica sua Danse Macabre.
Esses sessenta anos foram dominados, seguramente, por todas esta imagens zombeteiras da morte
(o que até então era um grande tabu). E é em 1492 que Brant escreve a Narrenschiff, cinco anos
depois traduzida para o latim. Nos últimos anos do século, Bosch compõe sua Nau dos Loucos. O
Elogio da Loucura é de 1509. A ordem de sucessão é clara” - In: FOUCAULT, Michel. A História..., p.
15.
85
loucura alçou ao centro dos fatos. Razões políticas, econômicas e jurídicas tiveram
também grande influência para essa inversão de paradigma.
Basta lembrar que a Europa pré-moderna havia sido afetada por uma
grave crise, que culminou em fome, epidemias, revoltas e guerras, no campo e nas
cidades, abalando profundamente o então vigente sistema feudal.
297
Neste quadro, a nobreza procurou o apoio dos reis para submeter os
camponeses aos seus ditames e garantir suas propriedades. Os monarcas,
favorecidos também pela conjuntura das guerras continuadas, acabaram reforçando
sua liderança e retomando velhas atribuições: como a aplicação da justiça e a
manutenção da ordem nos territórios dominados - quase sempre, é claro, com o
emprego da força.
298
Esta progressiva centralização do poder nas mãos dos reis acabou
favorecendo a consolidação daqueles que seriam, mais tarde, batizados de
“Estados-nacionais”,
299
verdadeiros países unificados, fruto da reunião de uma
gama populacional que mantinha as mesmas tradições, língua e passado histórico
comuns.
300
Nota-se que essa nova forma de organização e estruturação política
atendia, neste primeiro momento, aos interesses da classe nobre e burguesa: aos
primeiros foram assegurados os privilégios feudais sobre os camponeses, as terras
e os títulos imobiliários; os segundos, que financiaram os reis com recursos para a
manutenção de exércitos permanentes, foram agraciados com o livre comércio e
297
Como bem indica BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.33. E ainda: BORNHEIM, Gerd.
Natureza do Estado Moderno. In: NOVAES, Adauto (Org.). A crise do Estado Nação. Rio de Janeiro:
Civilizações Brasileiras, 2003, p. 207-227.
298
ANDERSON, Perry. Op. cit., p. 36.
299
BORNHEIM, Gerd. Op. cit., p. 207-220.
300
A título de exemplo, a Espanha conheceu em 1469 a unificação política com o
casamento da rainha Isabel de Castela com o rei Fernando de Aragão. Unificado, o reino espanhol
reuniu forças para completar a expulsão dos mouros e, com a ajuda da burguesia, lançar-se às
grandes navegações marítimas. Na França, o longo processo de centralização do poder monárquico
atingiu seu ponto culminante com o rei Luís XIV, conhecido como "Rei Sol", que reinou entre 1643 e
1715. A ele atribui-se a célebre frase "o Estado sou eu". Ao contrário de seus antecessores, recusou
a figura de um "primeiro-ministro", reduziu a influência dos parlamentos regionais e jamais convocou
os Estados Gerais. Na Inglaterra, o absolutismo teve início em 1509 com Henrique VIII, que apoiado
pela burguesia, ampliou os poderes monárquicos, diminuindo os do parlamento. No reinado da
Rainha Elisabeth I, o absolutismo monárquico foi fortalecido, tendo iniciado a expansão marítima
inglesa, com a colonização da América do Norte - In: ANDERSON, Perry. Op. Cit., p. 42.
86
outras medidas econômicas que facilitaram o acumulo de riquezas.
301
Foi assim que o Estado moderno nasceu, monárquico e absolutista, fruto
do cansaço e da impotência das velhas e arcaicas estruturas religiosas e feudais da
Idade Média. O poder se aglutinava novamente nas os de um homem (o rei),
que detinha o controle de tudo e todos, cabendo-lhe com exclusividade a
incumbência de impor as leis e de submeter os infratores ao aparelho punitivo
estatal.
302
Mas tal estrutura, como bem destaca Michel FOUCAULT, foi possível
com a solidificação de uma idéia maior, que lhe deu embasamento e
sustentabilidade: a noção de soberania, claramente afirmada e teoricamente
definida a partir do século XVI.
303
Afinal, não se podia conceber um príncipe despido da qualidade de
soberano, e tal característica, à luz da filosofia pragmática que definia a política de
poder à época, se apoiou principalmente nas teorizações de Nicolo MAQUIAVEL (O
Príncipe, de 1513)
304
e Jean BODIN (Les six Livres de la République, de 1576)
305
que se encarregaram de interpretar e divulgar o espírito desta nova ordem.
No afã de consagrar uma postura que pudesse ser adotada por aquele
que pretendia instaurar ou restaurar um principado forte e duradouro, liberto das
invasões estrangeiras, MAQUIAVEL chamou a atenção para a necessidade de se
ter um príncipe “todo-poderoso”
306
, desembaraçado de escrúpulos, vinculado
unicamente aos fins que lhe justificavam os meios no exercício de uma autoridade
301
STRECK, Lênio; MORAES, José Luiz Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008.
302
ACCIOLI, Wilson. Op. cit., p. 199.
303
Segundo lição de FOUCAULT: “... o princípio geral, no que se refere as relações entre
direito e poder nas sociedades ocidentais, que estruturou o pensamento jurídico, se fez
essencialmente em torno do poder régio. Foi a pedido do poder régio, foi igualmente em seu
proveito, foi para servir-lhe de instrumento ou de justificação que se elaborou o edifício jurídico de
nossas sociedades. O Direito no ocidente é um direito de encomenda régia” In: FOUCAULT,
Michel. Em defesa ..., p. 30.
304
MAQUIAVEL defendia o Estado como um fim em si mesmo, afirmando que os
soberanos poderiam utilizar-se de todos os meios - considerados lícitos ou não - que garantissem a
conquista e a continuidade do seu poder. As ações do Estado o regidas, sobretudo, pela
racionalidade – In: MAQUIAVEL, Nicolo. O príncipe. São Paulo: RT, 2003.
305
BODIN, Jean. Los seis libros de la república. Madrid: Tecnos, 1997.
306
Daí o porque da expressão usada, ainda hoje, maquiavelismo”: que consiste em
considerar como legítimos quaisquer meios que conduzam ao fortalecimento e segurança do Estado.
Maquiavel é um dos precursores da idéia de isolar a ética da política, submetendo esta apenas a
normas de eficácia prática imediata, que o reunidas na idéia de “razão de Estado” - In:
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.34.
87
sem limites:
... ao ocupar um Estado, deve o conquistador exercer todas aquelas ofensas que se lhe
tornem necessárias, fazendo-as todas a um tempo só para não precisar renová-las a
cada dia e poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios.
Quem age diversamente (...) tem sempre necessidade de conservar a faca na mão, não
podendo nunca confiar em seus súditos, pois que estes nele também não podem ter
confiança diante das novas e contínuas injúrias (...). Acima de tudo, um príncipe deve
viver com seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar:
porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em tempo de fazer o
mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que, julgado forçado, não trará gratidão.
307
Era preciso querer a onipotência, a qual exigia não apenas um ato de
fundação absoluta, mas também uma resolução que não permite fraquezas com os
compromissos. Neste quadrante, a recusa da violência seria uma tolice cabendo
apenas distinguir entre o que é violência ‘que conserta’ e o que é violência que
destrói’ -, tal qual as considerações de índole moral e religiosa deveriam ser
afastadas das decisões do Estado.
308
Segundo MAQUIAVEL, as coisas devem ser assim porque o príncipe é o
senhor da legislação, porque ele define o que é bem e o mal públicos situação
esta que acabou gerando uma íntima ligação entre a pessoa do governante e a
coisa pública, a qual não raras vezes desembocava no arbítrio.
309
Mas a grande formulação jurídica da soberania se deu com o trabalho de
Jean BODIN, que desenvolveu toda uma teoria do poder absoluto do monarca,
deixando claro que é ele quem personifica o Estado. De maneira inovadora, BODIN
traçou um paralelo entre o Estado e a estrutura familiar, comparando o monarca ao
chefe de família, delimitando o poder real como algo ilimitado.
310
A parte inicial de seu trabalho é voltada exclusivamente para traçar
algumas considerações sobre a “República”
311
, aduzindo ser o direito de governo de
muitas famílias e do que lhes é comum, com um poder soberano:
307
MAQUIAVEL, Nicolo. Op. cit., p.40.
308
Ibidem, p. 45.
309
CHÂTELET, François; DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Évelyne. História das
Idéias Políticas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. p.39-40. Interpretando a ótica maquiavélica,
afirmam que “em política, reinam a violência, a astúcia, a vontade de poder; se as coisas são assim,
então é melhor pôr essas forças a serviço do Bem público e aprender a conhecê-las a fim de utilizá-
las eficientemente como os meios desse fim legítimo”.
310
BODIN, Jean. Op. cit., p. 50-65.
311
Vale observar, como bem faz François CHÂTELET e outros (v.g., Ari Sundfeld, Paulo
Napoleão Nogueira da Silva, Juan Ramon Capella, Dalmo Dallari, e outros), que quanto Jean BODIN
empregava o termo República”, queria ele se referir, em verdade, à idéia de “Estado” - In:
CHÂTELET, François. DUHAMEL, Olivier; PISIER-KOUCHNER, Évelyne. Op. cit., p. 41.
88
O rei sábio deve governar harmonicamente o seu reino, entremeando suavemente os
nobres e os plebeus, os ricos e os pobres, com tal discrição, no entanto, que os nobres
tenham alguma vantagem sobre os plebeus, pois é bem razoável que o gentil-homem, tão
excelente nas armas e nas leis quanto o plebeu, seja preferido nos estados (empregos)
da judicatura ou da guerra; e que o rico, em igualdade das demais condições, seja
preferido ao pobre nos estados que têm mais honra que lucro; e que ao pobre, caibam os
ofícios que dão mais lucro que honra; assim, todos ficarão contentes (...). Nada havendo
de maior sobre a terra, depois de Deus, que os príncipes soberanos, e sendo por Ele
estabelecidos como seus representantes para governarem os outros homens, é
necessário lembrar-se de sua qualidade, a fim de respeitar-lhes e reverenciar-lhes a
majestade com toda a obediência, a fim de sentir e falar deles com toda a honra, pois
quem despreza seu príncipe soberano despreza a Deus, de Quem ele é a imagem na
terra.
312
Mais adiante, BODIN se dedica a definir o que entende por soberania,
asseverando que “é o poder absoluto e perpétuo de uma República, palavra que se
usa tanto em relação aos particulares quanto em relação aos que manipulam todos
os negócios de estado de uma República”.
313
A partir de então, a soberania passa a identificar as diversas normas
ligadas ao exercício do poder político, e isso acaba por explicitar a unificação do
poder dentro de um território, com a submissão de todas as pessoas à mesma
ordem jurídica e o não reconhecimento de outras ordens como aplicáveis ou
superiores.
314
Na mesma linha de raciocínio, que se destacar os trabalhos de
Jacques-Bénigne BOSSUET, grande defensor do absolutismo e do "direito divino
dos reis"; na obra Política Segundo a Sagrada Escritura (de 1701), que afirmava a
origem divina da monarquia, cabendo aos homens aceitar todas as decisões reais,
pois questioná-las transformá-los-ia não somente em inimigos públicos, mas
também em inimigos de Deus.
315
Também interessa o trabalho de Hugo GRÓCIO
312
BODIN, Jean. Op. cit., p. 60-61.
313
Ibidem, p. 77.
314
Importante firmar, aqui, os traços estruturais da concepção de soberania anotados por
Jean BODIN: trata-se de um poder absoluto e perpétuo; absoluto no sentido de que a soberania o
é limitada nem em poder e nem pelo cargo ou seja, ela comanda e não recebe nenhum comando,
não depende de nada e de ninguém (afinal de contas, nenhuma lei humana, nem mesmo se
emanada do próprio príncipe, pode limitar o poder soberano); e é perpétuo porque o pode ser
exercida com um tempo certo de duração até porque, do contrário, o príncipe seria apenas um
depositário do poder – Idem.
315
"Três razões, fazem ver que este governo (o da monarquia hereditária) é o melhor. A
primeira é que é o mais natural e se perpetua por si próprio (...). A segunda razão é que esse
governo é o que interessa mais na conservação do Estado e dos poderes que o constituem: o
príncipe, que trabalha para o seu Estado, trabalha para os seus filhos, e o amor que tem pelo seu
reino, confundido com o que tem pela sua família, torna-se-lhe natural. A terceira razão tira-se da
dignidade das casas reais (...). A inveja, que se tem naturalmente daqueles que estão acima de nós,
torna-se aqui em amor e respeito; os próprios grandes obedecem sem repugnância a uma família
89
Das leis de guerra e paz (de 1625)
316
-, considerado um dos precursores do direito
universal, defendia que se todos os países adotassem o absolutismo, seria possível
se estabelecer um sistema único de legislação.
Foram estas, enfim, as bases teóricas que viabilizaram a retirada do poder
político e jurídico da aristocracia feudal e da Igreja, criando também um novo
mecanismo punitivo, cujo princípio unificador assentava exatamente na idéia do
“poder régio”.
317
Vivia-se a idade do absolutismo “numa sociedade em que, robustecido o
Estado-nacional, sobreviviam, contudo, as camadas sociais da antiga nobreza
feudal, a par de uma nova classe emergente: a burguesia”
318
em um primeiro
momento aliada à monarquia absoluta, mas depois, dela se separou para tornar-se
hegemônica no exercício do poder. Neste momento de separação, que podemos
denominar ‘segunda fase teórica da soberania’, importante destacar o trabalho de
Thomas HOBBES - O Leviatã (de 1651), um tratado de justificação dos poderes
extremos, onde a segurança autoriza o sacrifício da liberdade e a lei aliena a idéia
de justiça.
319
Em sua concepção, a pessoa do monarca e sua força infinita acabam
sendo legitimadas e mantidas com base na idéia de contrato social (mais tarde
explorada por Jean-Jacques ROUSSEAU).
320
E é aí que está a originalidade de seu
pensamento, em cuja base está o contraste entre o estado de natureza e o estado
que sempre viram como superior e à qual se não conhece outra que a possa igualar (...). O trono real
não é o trono de um homem, mas o trono do próprio Deus (...). Os reis são deuses e participam de
alguma maneira da independência divina. O rei de mais longe e de mais alto; deve acreditar-se
que ele melhor, e deve obedecer-se-lhe sem murmurar, pois o murmúrio é uma disposição para
a sedição” - In: BOSSUET, Jacques-Bénigne. Política Segundo a Sagrada Escritura. [1701] Apud
FREITAS, Gustavo de. 900 Textos e Documentos de História. Lisboa: Plátano, 1975. v. 11. p.198-
201.
316
GRÓCIO, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Ijuí: UNIJUI, 2004.
317
FOUCAULT, Michel. Em defesa..., p. 30: “... nas sociedades ocidentais, desde (o final)
da idade média, a elaboração do pensamento jurídico se fez essencialmente em torno do poder
régio”.
318
BONAVIDES, Paulo. Op. cit., p.35. Assevera que a classe burguesa passou a ser
favorecida em razão das políticas mercantilistas, o que a elevou ao centro da sociedade.
319
HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. O ponto de partida de
seu trabalho estava centrado na idéia de que “o homem, individualmente corporal, é
fundamentalmente potência”.
320
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social: e outros escritos. São Paulo: Cultrix,
1965. Vale lembrar que foi em 1762 que ROUSSEAU publicou O Contrato Social, dando grande
ênfase ao conceito de soberania e já transferindo sua titularidade para o povo. Impende destacar que
o fundamento do pacto social por ele proposto consiste no fato de que cada pessoa coloca seu poder
e vontade sob a direção suprema da vontade geral.
90
de sociedade: naquele, o ser humano desfruta da liberdade total, o que acaba
sendo-lhe fatal e indesejável, pois esse estado se assemelha à guerra, à violência e
ao terror;
321
no segundo, que se fez necessário findar a barbárie e possibilitar a
continuidade de nossa espécie, a idéia central era a de que a ordem política seria a
única que conseguiria por fim à luta de vida ou morte:
O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o
domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os
vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais
satisfeita. Quer dizer; o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a
conseqüência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos homens,
quando não um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo
do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas leis de natureza (...).
Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de
respeitá-las e quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder
suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente
confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os
outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e
espoliar-se uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, então longe de ser
considerada contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida
maior era a honra adquirida.
322
Ocorre que tal imposição, e as garantias a ela inerentes, estipularam o seu
preço – qual seja: a renúncia das liberdades, transladadas ao Estado, senhor
absoluto da vida humana.
323
Era a idéia de que o homem perdia a liberdade e
ganhava, em troca, sua conservação:
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros (...), é conferir toda sua força e poder a um
homem, ou a uma assembléia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades, por
pluralidade de votos, a uma vontade. O que equivale a dizer: designar um homem ou
uma assembléia de homens como representante de suas pessoas, considerando-se e
reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que aquele que representa sua
pessoa praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à paz e segurança
comuns; todos submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas
decisões a sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma
verdadeira unidade de todos eles, numa e mesma pessoa, realizada por um pacto de
cada homem com todos os homens (...). Feito isto, à multidão assim unida numa
pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou
antes daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e
defesa. Pois graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é lhe
321
Segundo HOBBES, o ‘estado de natureza’ seria o grande palco de uma guerra civil do
gênero humano, e culminaria no extermínio de todos os homens: “era um estado de sangue,
desconfiança e ferócia contumaz, em que o medo, institucionalizado no instinto de conservação e
sobrevivência, não deixava ainda antever o advento da consciência agregativa, suscetível de instituir
um sistema de relações fundado no estabelecimento da ordem e da segurança” In: HOBBES,
Thomas. Op. cit., p. 125.
322
Ibidem, p.127-128.
323
Neste contexto, a idéia era a de que o poder soberano é menos prejudicial do que a
ausência de um tal poder” – Ibidem, p. 190.
91
conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna capaz de
conformaras vontades de todos eles no sentido da paz em seu próprio país, e da ajuda
mútua contra os inimigos estrangeiros. É nele que consiste a essência do Estado, a qual
pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante
pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como autora, de modo a
ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente,
para assegurar a paz e a defesa comum.
324
Essa especial característica da soberania que se avultou nos tempos
avançados de absolutismo (calcada na idéia de um poder ilimitado ao soberano),
aliada à necessidade de um incisivo controle social, legitimou o Estado a exercer
verdadeira dominação e contenção dos indivíduos desviantes. Afinal de contas,
para que pudesse cumprir sua função e espraiar o seu poder era exigível que o
soberano tivesse pleno controle sobre seus súditos, mesmo que para tal fosse
obrigado a empregar da força e da violência.
Trazer a questão da soberania para o ponto central das discussões
implicou em dizer que o discurso e a técnica do Direito tiveram a missão precípua
de dissolver, no interior das relações, o fator da dominação: de um lado, sustentou a
legitimidade dos direitos inerentes a soberania e de outro firmou a obrigação de
obediência dos súditos.
325
Importa observar que a plena satisfação deste mecanismo de poder
somente restou viabilizada por conta de uma estrutura social verticalizada que se
consolidou na Europa moderna na qual se alçou a figura do soberano ao ápice
das relações (em detrimento dos súditos), e confiscou-se, em seu favor, o papel de
vítima frente às infrações da norma.
326
Neste quadrante, facilmente se verifica que a ideologia do inimigo -
nascida com a figura clássica do hostil e resgatada (ou melhor, ampliada) com a do
herege medieval - mantinha-se plenamente viva. A carapuça de inimigo estaria
agora destinada aos indivíduos que se insurgiam contra esta estrutura verticalizada,
os quais eram indesejados na exata medida em que consagravam um perigo
(concreto ou abstrato) ao poder soberano absoluto.
Mesmo o sujeito reincidente em comportamentos de menor gravidade, ou
aqueles que apenas se manifestavam de forma apenas indisciplinada como o
alienado mental -, seriam considerados verdadeiros inimigos do Estado, e, como tal,
324
Ibidem, p.130-131.
325
FOUCAULT, Michel. Em defesa..., p. 31.
92
restariam vitimados por infindáveis e cruéis intervenções do poder punitivo.
327
Esta a gana sanguinária de perseguição aos dissidentes, que havia
nascido com o mercantilismo, ganharia ainda mais força com a expansão
colonialista que lhe acompanhou, a qual legitimou a atuação genocida frente a
população nativa dos países recém colonizados (especialmente na África e na
América do Sul), submetendo os poucos sobreviventes à condição de escravo.
328
Cabe verificar, inclusive, que o discurso penal da época tratou os nativos e
os mestiços como “loucos morais em potencial”
329
, uma fórmula simples, mas que
serviu para racionalizar a exclusão e converter os rebeldes em inimigos.
2.2.2 A Caricatura do Monstro
Foi exatamente dentro deste contexto que a figura do louco - que, como
observado, estava no centro dos acontecimentos sociais (literatura, poesia, bem
como nas discussões acadêmicas ou não) - foi definitivamente inscrita no rol dos
inimigos do poder.
O doente mental infrator despertava a desconfiança e a temeridade nas
pessoas e em seus imaginários, e isso os tornava indesejados. Afinal, sendo o
alienado indiferente aos apelos formais do poder absoluto e da estrutura social
verticalizada que se havia consolidado, facilmente seria identificado como inimigo,
e, consequentemente, vitimado pela algoz fúria do soberano.
Tal situação culminou em um forte movimento para a expurgação do louco
do convício social lembre-se, uma vez mais, das Naus reavivadas por
FOUCAULT na História da Loucura (de 1961), que exerceram significativo papel
326
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 46.
327
Neste tocante, ver: GRACIA MARTIN, Luiz. El Horizonte del finalismo y el derecho
penal del enemigo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2005. Cite-se também: DÍEZ, Carlos Gómes-Jara.
Normatividad del ciudadano versus facticidad del enemigo: crítica al fundamento científico del
derecho penal del inimigo. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre, n . 24, p. 33-53,
jan./mar.2007. E ainda: CARVALHO, Thiago Fabres de. O direito penal do inimigo e o direito penal
do homo sacer da baixada: exclusão e vitimação no campo penal brasileiro. Revista de Estudos
Criminais. Porto Alegre, n . 25, p. 85-119, jan./mar.2007.
328
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 46
329
Ibidem, p. 54.
93
simbólico na consolidação deste ideal de exclusão do indesejado.
330
Vale lembrar que o crime, neste período, era muito mais do que o mero
dano voluntário feito a alguém: o crime era tido como verdadeira lesão aos direitos e
a vontade do próprio soberano, representadas na lei até por isso, se entendia que
a infração consagrava um ataque direto à força, ao corpo físico do soberano. De
modo que a sanção aplicável não deveria se consubstanciar unicamente na
reparação do dano individual ou social, mas sim, numa espécie de vingança, uma
espécie de revanche da força soberana: “na punição do criminoso, assistia-se à
reconstituição ritual e regulamentada da integridade do poder”.
331
Castigos físicos, ameaças e contenção eram medidas comuns, tomando
sempre como base a idéia de que o louco infrator seria um verdadeiro animal, de
modo que somente pelo medo e pelo respeito, trazido com o tratamento severo,
seria possível domesticar-lhes para a vida em coletividade.
332
Assim, “é como monstro, isto é, como natureza contranatural, que o louco
criminoso faz a sua aparição”, mesmo porque, “o primeiro monstro jurídico que se
surgir não é o assassino, não é o estuprador, não é o que infringe as leis da
natureza, mas sim aquele que infringe o pacto social fundamental”.
333
Ainda nas lições de FOUCAULT, “em fins do século XVII, ou em todo caso
no curso do culo XVIII, a figura mais importante, a figura que vai dominar e que,
precisamente, vemos emergir na prática judiciária do século XIX é, evidentemente,
a figura do monstro”. E segue, afirmando que “o monstro é que é o problema (...), a
figura essencial, em torno da qual as instâncias de poder e os campos de saber se
inquietam e se reorganizam”.
334
O monstro é perigoso, é indesejado, é inimigo, e deve ser contido por
meio de um rigoroso sistema punitivo. E mais, os mecanismos de poder devem ser
fortes o bastante para poder absorver, exibir e aniquilar, em rituais de soberania, a
monstruosidade figurada num crime.
330
“Ela simboliza toda uma inquietude, soerguida subitamente no horizonte da cultura
européia, por volta do fim da Idade Média. A loucura e o louco tornam-se personagens maiores em
sua ambigüidade: ameaça e irrisão, vertiginoso desatino do mundo e medíocre ridículo dos homens”
– In: FOUCAULT, Michel. A história..., p.14.
331
“A vingança era sempre vindita, e vindita pessoal do soberano” In: FOUCAULT,
Michel. Os anormais..., p. 102-104.
332
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p.42.
333
FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 118-137.
94
É por isso que a sanção aplicável ao infrator-patológico exigia algo a mais
do que a mera expiação de sua conduta. E este algo a mais seria o terror, isto é, o
“caráter aterrorizante do castigo”
335
consagrando assim a necessidade do suplício,
que deveria estar no âmago das punições e serviria, igualmente, para demonstrar
(propositadamente) o total desequilíbrio deste modelo punitivo.
Até porque, o controle da sociedade não passava simplesmente pela
consciência ou pela ideologia, mas antes, começava pelo corpo do indivíduo. É o
que FOUCAULT chama de “ostentação dos suplícios”,
336
a qual havia sido
inaugurada na Idade dia, mas que se consagrou no modelo absolutista advindo
da era moderna.
Nessa perspectiva, as penas e os castigos físicos desempenharam um
papel considerável: “a pena corporal, dolorosa, mais ou menos atroz; um fenômeno
inexplicável a extensão da imaginação dos homens para a barbárie e a
crueldade”.
337
Advirta-se, contudo, que apesar de inexplicável, o suplício não deveria ser
considerado como algo selvagem (no sentido de figurar como um ato descontrolado
de poder). Ao contrário, o suplício conformava toda uma técnica e para que a pena
fosse considerada efetiva, deveria obedecer a três critérios principais: deveria
produzir certa quantidade de sofrimento que se pudesse medir, comparar,
hierarquizar
338
- já que “o suplício repousa na arte quantitativa do sofrimento”.
339
Ademais, este sofrimento deveria ser regulado, na medida em que o tipo
de sofrimento físico, a qualidade, a intensidade e o seu tempo fossem pautados de
acordo com a gravidade da infração, com a pessoa do infrator e, especialmente,
com o nível social de suas vítimas. Por fim, o suplício deveria fazer parte de um
ritual, o qual deveria ser marcante para o infrator, e, ao mesmo tempo, ostentoso
em relação à justiça para que seja constatado por todos, como forma de triunfo do
334
Ibidem, p. 78-79.
335
Ibidem, p.103-106.
336
FOUCAULT lembra a ordenação francesa de 1670, a qual regeu, até a Revolução
burguesa, as formas gerais da prática penal, hierarquizando os castigos por ela descritos: a morte, a
questão com reserva de provas, as galeras, o açoite, a confissão pública, o banimento” – In:
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir:.., p. 30.
337
Ibidem, p. 31.
338
Por exemplo, a pena capital poderia ser por decapitação ou por esquartejamento: na
primeira hipótese, o grau de suplício é zero, enquanto na segunda, é quase infinito.
95
soberano.
340
Foi exatamente desta forma que o corpo suplicado se inseriu no cerimonial
judiciário, o qual deveria trazer à luz a verdade do crime. Afinal, esta era a maneira
pela qual o monarca conseguiria demonstrar que a força soberana, da qual se
originou o direito de punir, não poderia em caso algum pertencer à multidão: “...
diante da justiça do soberano, todas as vozes devem-se calar”.
341
Não por outra razão o suplício judiciário era encarado como um ritual de
cunho eminentemente político, exatamente porque fazia parte de um conjunto de
cerimônias de manifestação do poder soberano. Um ritual que serviria para
reconstituir a soberania lesada ou ameaçada de lesão.
342
É assim que o poder de punir passou a ser visto como uma espécie de
direito que tinha o soberano de guerrear com seus inimigos: “... o castigo provém
deste direito de espada, desse poder absoluto de vida e morte de que trata o direito
(...), direito de virtude do qual o príncipe faz executar sua lei ordenando a punição
do crime”.
343
Todo este ritual, todo este mecanismo punitivo de legitimação do poder,
acabou refletindo também no tratamento conferido ao alienado desviante, pois a
manipulação da loucura seria uma das várias formas de manutenção do poder
régio.
Com isso, consagra-se o ápice do processo histórico de exclusão da
loucura. Basta ver que antes (ou seja, até o final da Idade média), toda forma de
exclusão era apenas um reflexo abstrato, não uniforme, e não rigorosamente
formulado para afastar o ente perigoso do convívio social. Agora, sob o manto do
339
Ou seja, “não deveria explicitar uma raiva sem lei In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir..., p. 31.
340
Como argumenta FOUCAULT: “há um código jurídico da dor (...). A pena, quando é
suplicante, não se abate sobre o corpo ao acaso ou em bloco; ela é calculada de acordo com regras
detalhadas: número de açoites, localização do ferrete em brasa, tempo de agonia na fogueira ou na
roda, tipo de mutilação a impor...” - Idem.
341
Ibidem, p. 33-33.
342
Segundo FOUCAULT: “A infração, além do dano que eventualmente produzir, além
mesmo da regra que infringe, prejudica o direito do que faz valer a lei (...). O crime, além de sua
vítima imediata, ataca o soberano; ataca-o pessoalmente, pois a lei vale como a vontade do
soberano; ataca-o fisicamente, pois a força da lei é a força do príncipe (...). A intervenção do
soberano não é portanto uma arbitragem entre dois adversários; é mesmo muito mais que uma ação
para fazer respeitar os direitos de cada um; é uma réplica direta Àquele que a ofendeu (...). O castigo
então não pode ser identificado nem medido como reparação do dano; deve haver sempre na
punição pelo menos uma parte, que é a do príncipe...” – Ibidem, p. 41-42.
343
Idem.
96
poder régio, o processo de exclusão passava efetivamente a fazer parte de uma
estrutura punitiva concreta. O jogo de exclusão não apenas está bem estruturado,
como também passa a contar com uma fonte ordinária de poder (o soberano) e um
destinatário certo: o monstro.
Observa-se que, neste contexto, o tratamento conferido ao portador de
transtorno mental não era dotado de qualquer aspecto humanitário. Ao contrário, as
técnicas da dor eram largamente utilizadas - seja no aspecto jurídico, ou mesmo no
aspecto clínico: queimavam-se as genitálias e o crânio com soda caustica para que
sua mente se focasse unicamente na dor, impedindo pensamentos raivosos; cura
esta que, por certo, era bem mais prejudicial que a doença.
344
Outros todos foram usados neste período: por volta de 1715, a terapia
de indução ao vômito é implementada com a idéia de que enquanto durasse a
sensação de náusea, a alucinação seria suspensa. As sangrias foram também
utilizadas a partir de 1790. O afogamento foi aplicado em larga escala e, a partir de
1828, seria transformado em ‘hidroterapia’.
345
Para as mulheres, era bastante comum a amputação do clitóris, as
terapias endócrinas. Para os homens, a esterilização e a hibernação. Também se
empregou o coma insulínico, a convulsoterapia, o eletrochoque, e, mais adiante, a
lobotomia. Chegou-se até a falar na extração dos dentes como recomendação à
cura da loucura.
346
E como bem indica FOUCAULT, enquanto durou essa estrutura absoluta
do Estado Leviatã, todas as questões relativas à mecânica geral do poder (sua
concepção, legitimação e exercício), desde os níveis mais elevados até os mais
baixos, seja no campo jurídico ou no campo médico, foram resolvidos pela teoria da
soberania: “... a relação de soberania cobria, em suma, a totalidade do corpo social
(...); o modo como o poder se exercia podia bem ser transcrito em termos de
344
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 42-45.
345
“Por volta de 1715, a terapia de indução de vômito, com prescrição de vários tipos de
asquerosos purgantes, é implementada (...). Até o mais furioso torna-se tranquilo, constatava-se”.
Continua, asseverando que nas sangrias, “a idéia era que danos cerebrais, muitas vezes
ocasionados por muita imaginação ou mesmo pela masturbação, levariam à circulação irregular na
irrigação do cérebro, causa da loucura”. No afogamento, “colocava-se o paciente dentro de uma
caixa com furos que era imersa em água até que as bolhas de ar parem de subir. Retirando paciente
– obviamente muitos morriam com a terapia, pensava-se que, com a suspensão das funções vitais, o
paciente retornaria à vida com maneiras mais ajustadas de pensar” – Idem.
346
Idem.
97
relação soberano/súdito”.
347
Assim, das formas mais variadas, tentou a humanidade desvendar os
mistérios que envolviam a criminalidade na loucura, ao mesmo tempo em que
consagrava uma finalidade maior: o controle do indesejado pela contenção forçada
e pela exclusão violenta.
2.3 CONSTRUÇÕES PERVERSAS: A SCIENCIA DA DISCIPLINA NO SÉCULO
DOS MANICÔMIOS
2.3.1 Terapêutica Moral e o Surgimento do Anormal
Quando Philippe PINEL publica, em 1801, o seu Tratado Médico-Filosófico
sobre a Alienação Mental, inaugura-se enfim a psiquiatria enquanto especialidade
médica. A loucura passa agora a ser definida como o desarranjo das funções
mentais, notadamente as intelectuais, rejeitando inclusive as explicações
organicistas firmadas no século anterior.
348
É também a partir daí que se institui, pela primeira vez de forma empírica,
uma visão verdadeiramente clínica do fenômeno - que seu diagnóstico demanda
uma observação prolongada, rigorosa e sistemática das transformações na vida
biológica, nas atividades mentais e no comportamento social do indivíduo.
Contudo, é importante frisar que a consolidação deste novo pensamento
não floresceu do dia para a noite. Ao contrário, a revolução encabeçada por PINEL
foi fruto de uma vasta sorte de acontecimentos ocorridos ao longo da segunda
metade da era moderna, e que desaguaria na simbólica libertação dos alienados.
Primeiramente, cabe lembrar que foi na transição entre os séculos XVII e
XVIII que surgiram as primeiras monografias e artigos que tratavam
especificadamente sobre o tema da alienação, embora o fossem ainda bastante
precárias, não sistematizadas e desuniformes. Como visto, foi também neste
período que a autoridade do teólogo e do inquisidor sobre o conhecimento e o
347
FOUCAULT, Michel. Em defesa..., p. 42.
348
PINEL, Philippe. Tratado Médico-Filosófico sobre a alienação mental ou a mania.
Porto Alegre: UFRGS, 2007.
98
ensino foi definitivamente derrubada, o que viabilizou o crescimento de estudos
voltados especialmente às construções metafísicas a respeito da natureza
humana.
349
Outro fato significativo ocorrido durante o culo XVIII, e que impulsionou
novos estudos sobre o tema, foram as “alienações coletivas” - episódios em que
alguma forma de comportamento aberrante parecia transmitir-se por ‘contaminação’
de uma pessoa a outra, e isso gerou um conceito sui generis, que tentava explicar a
transmissão desses estados por meio de um princípio com conotação quase
médica: o “contágio mental”.
350
Muito embora esta idéia não tenha sido bem recebida por todos os
médicos da época, certo é que propiciou grande avanço nos estudos sobre a
loucura.
351
Também importante verificar que esta nascente psiquiatria caminhava
para uma definitiva rejeição das explicações nascidas com o racionalismo
cartesiano.
352
Em verdade, esta tendência foi percebida em todas as ciências que
se estruturavam em meio ao pensamento cultural do século XVIII – o qual, inclusive,
seria o grande responsável pela consolidação do iluminismo.
Duas obras filosóficas sobressaíram no panorama acadêmico europeu
349
Foi, por exemplo, o período em que Immanuel KANT desenvolveu todo um
pensamento sobre a filosofia moral, especialmente firmada em: Fundamentação da metafísica dos
costumes [1785], Crítica da razão prática [1788] e Metafísica dos costumes [1798].
350
Como indica PESSOTTI, vários pesquisadores do século XVIII escreveram sobre este
tema. A título de exemplo, STEWART (em 1827), formulou uma elegante teoria que falava sobre
“contágio emocional” – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 18.
351
“Alguns hesitaram e outros se posicionaram contrários, dizendo que estes quadros de
contágio mental não passavam de fantasia. A busca por um critério que diferenciasse o patológico do
milagroso tornou-se então a grande preocupação entre os pensadores deste período”. O próprio
Papa Bento XIV chegou a propor um critério discriminante (exposto na bula pontifícia De servorum
dei beatificatione et beatorum canonizatione, publicada em Pádua, em 1734 e 1738), o qual,
inclusive, acabou exercendo influencia na história da psicopatologia, e inspirando outros textos,
como o de MURATORI (Della forza della Fantasia de 1745), na qual o delírio e a loucura eram
entendidos como efeitos da imaginação, uma faculdade interior e sensitiva. Também Philippe
HECQUET (La medicine naturale de 1733), que tentando explicar os fenômenos do contágio mental,
contestou frontalmente as interpretações religiosas ou metafísicas; para ele, tais sintomas nada mais
eram do que manifestações de doenças – Ibidem, p.19-20.
352
Basta verificar o trabalho do suíço Samuel-August TISSOT, que tentou explicar
aquelas alterações (coletivas) na conduta humana como advinda não de causas sobrenaturais, mas
sim de excessivas vigílias e sobrecarga de trabalho, que levariam à frenesia, à mania, à epilepsia,
etc. apontava também as causas naturais para explicar os distúrbios mentais: dizia que o fumo, o
tabaco, o chá, o chocolate perturbavam o cérebro. dizia que o luxo, a vida mundana, as paixões
violentas, tudo contribuía para o distúrbio In: TISSOT, Samuel-August André David. l` onamisme
dissertation physique sur les maladies produites par la masturbation [1758] Apud PESSOTTI, Isaias.
O século..., p. 23-24.
99
nesta época: o Essay de John LOCKE (de 1690) e o Traité des Sensations de
Étienne Bonnot de CONDILLAC (de 1754). Em termos gerais, ambos defendiam a
importância das experiências pessoais para a construção do saber: “... a conduta ou
o pensamento normal ou desviante teria suas origens na história de experiências
pessoais de cada homem”.
353
No Essay, LOCKE demonstra verdadeira reação às explicações
cartesianas para a origem das idéias. Protagonista do empirismo - teoria
denominada de Tabula rasa (do latim, "folha em branco") -, concebia que a
produção do conhecimento era, necessariamente, a produção de idéias. Defendia
que aquilo que se apreende com a experiência é o que dá origem ao conhecimento,
pois o conteúdo da consciência (emoções, pensamentos, lembranças) vem daquilo
que se tem como bagagem, e esse conteúdo, segundo LOCKE, seriam exatamente
as idéias.
354
CONDILLAC vai um pouco mais além neste processo de enaltecimento
da experiência sensível. Afirma que também a reflexão é produto da percepção
sensorial, dizendo que todos os processos intelectuais, normais ou patológicos,
resultam das sensações.
355
Sob tal parâmetro, e visando elucidar como se daria o processo cognitivo,
CONDILLAC constrói o “mito da estátua”, onde percebe a evolução do
conhecimento tal qual ao despertar de uma estátua, que a partir de uma sensação
inicial e de outras que lhe seguem, começa a construir relações entre sensações
diversas e assim institui funções ou processos como raciocínio, imaginação,
353
Estas duas obras, segundo alguns, é que deram fluxo ao pensamento a que se
chamaria de “filosofia das luzes”. Elas influenciaram muitos outros pensadores: Voltaire, Rousseau,
Diderto e D`Alembert – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p.25.
354
Ou seja, não eram as idéias que presidem a aquisição do conhecimento pelas vias
sensoriais, ordenando e discriminando as sensações em categorias, mas sim as sensações e as
reflexões que instituem as funções da mente, e é delas que se originam as idéias: “... o
conhecimento humano é construído pela abstração dos elementos que ocorrem na experiência”. A
idéia é “tudo que o espírito percebe em si mesmo, e que é objeto imediato de percepção e
pensamento” - In: LOCKE, John. Ensaio acerca do entendimento humano. São Paulo: Nova Cultural,
1990.
355
Entende que o próprio conhecimento resulta da experiência com o mundo. A
superioridade moral observada na espécie humana devia-se apenas a uma condição de civilização
dada pela sensibilidade ao mundo. A sensibilidade por seu turno resulta da capacidade imitativa dos
homens. Quanto maior fosse a possibilidade de vivenciar experiências de imitação maior seria a
ampliação do campo das sensações bem como a procura de outras novas sensações e
necessidades - In: CONDILLAC, Étienne B. de. Tratado das sensações. Campinas: Unicamp, 1993.
100
memória, etc.
356
Neste contexto, o conteúdo significativo das sensações não poderia mais
ser visto como obra de uma razão preexistente a ela, pois eram as próprias
sensações que instituíam as categorias da razão. Passou-se então a conceber que
era o próprio homem quem construía suas idéias e pensamentos, e o fazia a partir
da própria experiência, baseada na relação travada com as coisas, pessoas e
eventos.
357
Estas construções teóricas propiciaram a libertação de um novo saber,
que animava os iluministas europeus. Um projeto que visava a desacorrentar o
homem de domínios alheios ao da razão, e que estaria fundada basicamente na
experiência.
358
Ora, se o comportamento, tal qual o pensamento, resulta da vivência
de cada indivíduo, o desafio que se impõe é o de projetar a educação (ou
reeducação) no sujeito desviado, construindo um novo homem se necessário.
Foi exatamente nesta perspectiva, como demonstra FOUCAULT, que se
percebeu uma curiosa transformação na feição do doente mental: é o momento em
que ele deixa de ser encarado como monstro (caricatura firmada pela medicina e
pela lógica soberana da era moderna) e passa a ser tido como anormal.
359
A partir de então, a loucura seria vista como o produto de uma ditadura da
imaginação sobre os pensamentos, a qual se manifesta exclusivamente por
distúrbios na associação das idéias. Ou seja, o fenômeno passaria a ser encarado
como mera anomalia psíquica.
360
Mesmo porque, não mais estava autorizado qualquer espécie de
356
Idem.
357
“Funções como julgamento, memória ou imaginação, são combinações de
informações sensoriais”. E segue, dizendo que “tais sensações é que eram o conteúdo primário,
substancial, das chamadas funções da mente” - Idem.
358
Note-se que o próprio movimento iluminista chegou a ser concebido enquanto "a linha
filosófica caracterizada pelo empenho de estender a crítica e o guia da razão em todos os campos da
experiência humana" In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Mestre Jou,
1962. p. 509. Em sentido análogo, Immanuel KANT define, no prefácio à primeira edição da Crítica
da razão pura, a sua época como de crítica: “A nossa época é por excelência uma época de crítica à
qual tudo deve submeter-se. De ordinário, a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua
majestade, querem subtrair-se a ela. Mas neste caso provocam contra si uma justa suspeição e não
podem fazer jus a uma reverência sincera, reverência esta que a razão atribui exclusivamente àquilo
que pode sustentar-lhe o exame crítico e blico” In: KANT, Immanuel. Prefácio à primeira edição
da Crítica da razão pura. Petrópolis: Vozes, 2005. p.15.
359
FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 137-138.
360
“A espécie de grande monstruosidade excepcional acaba se distribuindo, se dividindo,
numa nuvem de pequenas anomalias...” – Idem.
101
entendimento que consagrasse uma natureza teratológica (contranatural) no ser
humano.
Ademais, os desarranjos do pensamento alienado não mais poderiam ser
entendidos como distúrbios de faculdades mentais isoladas, específicas (como era
na visão escolástica, onde memória, imaginação e julgamento eram fenômenos
distintos), posto que a análise do homem como um todo se tornava
imprescindível.
361
Foram estas as idéias que motivaram, tempos depois, o Traité de PINEL,
que se apoiava em três premissas basilares: uma etiologia passional ou moral da
loucura; a necessidade de uma lesão mental para caraterizá-la; e, por fim, a
necessidade de um lugar específico para efetuar o acompanhamento e o tratamento
do alienado (o manicômio).
362
É por isso que o Traité figura como um marco no estudo da alienação: ao
mesmo tempo em que estruturou uma classificação nosográfica do fenômeno,
revalorizou as paixões como fator determinante da loucura.
PINEL propôs um método de diagnóstico que não consiste apenas em
encaixar um determinado sintoma superficial em alguma categoria de desarranjo,
mas sim, numa observação prolongada, rigorosa e sistemática das transformações
na vida biológica, nas atividades mentais e no comportamento social do paciente -
em suma, de toda a sua história de vida.
363
Concebe que os doentes mentais não deveriam receber um tratamento
degradante e desumano. Ao contrário, precisavam de suavidade e doçura nos
modos e nas palavras: era a "terapêutica moral”, base de sua medicina e ponto de
partida da nova psiquiatria.
364
E o tratamento recebeu conotação de “moral” exatamente porque designa
361
PESSOTTI, Isaias. O século... p. 26..
362
"A admissão de que, na loucura, alguma parte da razão permanece inalterada” é um
pressuposto quase filosófico de Pinel. Diz, por exemplo, que nas manias, a faculdade de julgamento
pode estar ilesa; numa concepção de delírio, menciona claramente aquele pressuposto ao afirmar
que não diferença entre alienados e normais quanto às possibilidades de ligar idéias segundo a
similaridade entre elas - In: PINEL, Philippe. Ob. cit., p. 88.
363
PESSOTTI lembra, inclusive, que a ênfase na observação prolongada do paciente
acabou refletindo também um espírito típico do iluminismo francês; basta verificar que se criou na
França uma Societé des Obsevateurs de l`Homme (em 1799), da qual Pinel era membro -
PESSOTTI, Isaias O século..., p. 76.
102
um misto de fatores psíquicos, sociais, ocasionais e éticos:
Desse modo, o tratamento proposto é moral porque não é físico, porque se exerce sobre
o conhecimento (no plano das idéias) e, por conseqüência, sobre o comportamento
resultante. E é moral porque visa a corrigir excessos passionais, desviados da norma
ética do grupo social. É assim que o médico se torna ordenador não só da vida (psíquica)
do paciente, mas também o agente da ordem social, da moral dominante.
365
Ora, se a causa da loucura é o excesso ou o desvio, um tipo de
imoralidade que atingia o sujeito, a ‘cura’ certamente deveria passar pelo tratamento
moral destas afeições ou paixões.
366
Sob esta perspectiva, Jean-Étienne Dominique ESQUIROL, discípulo de
PINEL, se pronunciou dizendo que:
.... o internamento de um louco deve tender a dar nova direção às suas idéias e aos seus
afetos e a impedir qualquer desordem, qualquer distúrbio do qual ele possa ser a causa,
e para impedir o mal quem ele pode fazer a si mesmo e aos outros, se for deixado em
liberdade. Assegurando-lhe novas impressões, livrando-o de seus hábitos e mudando seu
modo de vida, chega-se àquilo que se destina o isolamento.
367
ESQUIROL concebeu e desenvolveu a doutrina de PINEL, o que também
foi percebido na obra de seus discípulos mais célebres: François LEURET
368
, Pierre
FALRET
369
, Jean Etienne GEORGET
370
e Jacques Joseph MOUREAU DE
364
Dizia que "a persuasão moral é mais útil que as ameaças; a força e a personalidade
do médico devem ser o fator fundamental para triunfar com sua autoridade sobre o mal" - In: PINEL,
Philippe. Ob. cit., p. 100.
365
Ibidem, p. 101.
366
Nos dizeres de Valmir Adamor da SILVA, Pinel rompeu com os ferros que
acorrentavam os doentes mentais, com o risco da própria vida (...) apregoando que os loucos devem
ser tratados moralmente” - In: SILVA, Valmir Adamor da. Op. cit., p. 65.
367
ESQUIROL, Jean-Étienne Dominique. Das Maldies Mentales Consideré sous les
Rapports Médical, Hygiènique et Médico-Legal. Paris: Bailliére, 1838 Apud BIRMAN, Joel. A
Psiquiatria como discurso da moralidade. Rio de Janeiro: Graal, 1978. p. 51.
368
LEURET, François. El tratamiento moral de la locura. Madrid: Asociación Española de
Neuropsiquiatria, 2001. Segundo LEURET, a alienação mental é independente de alterações no
crânio, e que as autópsias de nada serviam para explicar a loucura. Aponta também a inutilidade dos
tratamentos farmacológicos; e salientou a indispensabilidade do tratamento moral, dizendo que além
de produzir idéias novas, contrárias às delirantes, dever-se-ia provocar sensações opostas às
dominantes no paciente. Ressaltava a importância de se cumprir as regras internas do manicômio,
que devem manter o doente continuamente ocupado. Propõe que o manicômio se paute por um
sistema de punições e intimidações – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 138.
369
FALRET, Jean-Pierre. Etudes Clinique sur les Maladies Mentales et Nerveuses. Paris:
Bailliére, 1890. FALRET condenou o alheamento do louco pela sociedade, e desenvolveu a
semiologia psiquiátrica (ele entende que ela não se deve limitar à observação dos aspectos mais
abertos da loucura, como os atos e palavras do doente; deve, também, observar sintomas indiretos,
como o estilo, o modo de escrever, os sinais em geral). Um único marco o distinguia um pouco de
Pinel: ele acreditava que, alguns casos de distúrbios intelectuais, poderiam ser causados por lesões
ao cérebro – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 138-139.
103
TOURS.
371
Em pouco tempo a terapêutica moral já havia se espalhado por toda
Europa - embora tenha firmado suas principais raízes na Itália e na França
propiciando aquilo que se convencionou chamar de “Revolução psiquiátrica”.
2.3.2 Microfísica da Disciplina: a Produção de Corpos Dóceis
Por outro lado, é válido destacar que a psicopatologia inaugurada por
PINEL e seus seguidores foi, antes de tudo, uma derivação natural das idéias que
se impunham na sociedade que nascia em meio a Revolução burguesa: de um lado,
havia a afirmação do valor superior da figura humana o que denota ser ele um
seguidor da linha do humanismo iluminista: ... o alienado não deve ser visto como
alguém diverso do homem sadio; a loucura é apenas mais uma das possibilidades
humanas”.
372
De outro, refletia uma nova mecânica de poder que se estruturava e
se fortalecia junto ao novel sistema de capitais.
Com a ascensão da classe burguesa ao centro dos acontecimentos
jurídicos e políticos, o poder deixou de ser concebido como mero reflexo simbólico
da força fulgurante do indivíduo que o detém, de maneira solitária e soberana.
373
A nova perspectiva de poder que se consolida passa a contar com uma
rede estruturada e integrada de múltiplos agentes (ou seja, o poder não mais era
370
GEORGET, Etienne-Jean. De la Folie: Consideration sur Cette Maladie., Paris: Chez
Crevot, 1820. GEORGET foi aluno de ESQUIROL e, apesar de adotar o tratamento moral de Pinel,
acreditava que o ponto de partida de qualquer aberração intelectual estaria no cérebro ou seja, ela
era, fundamentalmente, um organicista – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 139.
371
MOREAU DE TOURS, Jacques Joseph. Du Hachisch et de l'aliénation mentale. Paris:
Éditions Fortin/Masson et Cie, 1845. Foi outro discípulo de ESQUIROL, realizou estudos importantes
sobre os sonhos, e os considerou iguais à alucinação (que era o “sonho acordado”). Foi ele, também,
o primeiro a perceber os distúrbios de personalidade – In: PESSOTTI, Isaias. O século..., p. 138-139.
372
PINEL, Philippe. Op. cit., p. 79.
373
Assim, a figura do monarca absoluto estava totalmente desgastada e solitária. E para
explicar tal inversão, FOUCAULT resgata uma ilustração trazida por PINEL, acerca de um fato
concreto ocorrido na Inglaterra: conta que quando o rei Jorge-III entrou num quadro alienante de
mania, objetivando tornar sua cura mais pronta e mais sólida, acabou por não fazer nenhuma
objeção às medidas de prudência e aos cuidados dispensados por seus servos em seu trato. E tal
caso foi paradigmático na inversão do eixo de poder, pois, a partir do momento em que o monarca
perde o poder de decisão sobre seu próprio corpo, deixando tal missão a cargo de seus servos, se
está ensaiando a idéia de submissão e disciplina que nasce na nova ordem: “O servidor ainda está a
serviço das necessidades e da condição do rei, mas sem que nem a vontade nem o estatuto do
soberano intervenham...” – In: FOUCAULT, Michel. O Poder..., p. 26.
104
emanado de um eixo único)
374
, “cuja visibilidade encontra-se tão somente na
docilidade e na submissão daqueles sobre quem, em silêncio, ele se exerce”.
375
Trata-se de um poder anônimo (sem nome ou rosto), que é repartido e ao
mesmo tempo traspassa por indivíduos variados: “um poder, sobretudo, que se
manifesta pela implacabilidade de um regulamento que nem sequer se formula,
que, no fundo, nada é dito, e ao mesmo tempo está bem escrito no texto que todos
os agentes do poder ficam calados”. Nasce, assim, aquilo que FOUCAULT batizaria
de disciplina.
376
Ao invés de se exercer de maneira ritual, descontínua e dispendiosa
(como ocorria em tempos de soberania), seria agora exercido de maneira
ininterrupta e com um custo menor – pois se reduz a possibilidade de resistência, de
revoltas e de descontentamento -, apoiada sempre numa grande rede que buscava
o controle social.
377
Esta rede, segundo FOUCAULT, viu no Panóptico de Jeremy BENTHAM
(de 1789)
378
sua primeira grande manifestação concreta, pois, ao contrário do que
ocorria no âmbito da lógica soberana - que intervinha violentamente, de tempo
em tempo, e sob a forma de guerra, da punição exemplar, da cerimônia –, o poder
disciplinar “passaria a intervir incessantemente, desde o primeiro instante, desde o
374
“Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é
apropriado como uma riqueza ou um bem” In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de
Janeiro: Graal, 2006. p. 183.
375
FOUCAULT, Michel. O poder..., p. 28.
376
“O poder de tipo soberania é substituído por um poder que poderíamos dizer de
disciplina, e cujo efeito o é em absoluto consagrar o poder de alguém, concentrar o poder num
indivíduo visível e nomeado, mas produzir efeito apenas em seu alvo, no corpo e na pessoa, que
deve ser dócil e submisso por esse novo poder” Ibidem, p. 27-28. Note-se que Foucault volta a
debater esta derrocada da soberania em seu curo no Collège de France, o que está apostado em
outras duas obras: FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade..., p. 27 e s.; FOUCAULT, Michel.
Microfísica do Poder..., p. 179 e s.
377
Ao invés daqueles grandes rituais dispendiosos, no decorrer dos quais a atrocidade
da punição repetia a atrocidade do crime, teremos um sistema calculado, no qual a punição não terá
por objeto nem repetirá em si o próprio crime, mas terá por objeto simplesmente o interesse do
crime...” – In: FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 111.
378
Vale lembrar que BENTHAM idealizou um complexo prisional diferenciado: com celas
individuais, disposto de maneira circular e direcionadas em sua fronte para uma torre central, de
onde o Diretor do estabelecimento poderia acompanhar tudo e todos: o Diretor “veria sem ser visto”.
Tal estrutura permitiria um acompanhamento minucioso da conduta dos detentos, mantendo-os
observados num ambiente de incerteza sobre a presença concreta do Diretor. Essa incerteza
resultaria em eficiência e economia no controle dos subalternos, pois tendo invadida a sua
privacidade de modo alternado, furtivo, incerto, ele mesmo se vigiaria. Esse sistema permitiria
também um controle externo do funcionamento do Panóptico, pois uma simples observação a partir
da torre, permitiria a avaliação da qualidade da administração do Diretor, sendo ele também vigiado
– In: BENTHAM, Jeremy. Op. cit. 15-27.
105
primeiro gesto, desde o primeiro esboço”.
379
E é exatamente aí que se encontra, por excelência, o “caráter panóptico”
desta nova formulação disciplinar (assim entendida como uma rede de vigilância e
controle dos indivíduos), fulcrada na idéia de uma visibilidade absoluta que rodeia
os corpos de todos os indivíduos – “ver tudo, o tempo todo, todo o mundo”.
380
Tal transformação - de soberania para disciplina - foi assinalada por
FOUCAULT sob a perspectiva da passagem de uma macrofísica da soberania”
para uma “microfísica do poder disciplinar”
381
, cujo funcionamento estaria fundado
numa série de procedimentos que possibilitariam a majoração de seus efeitos,
diminuindo os custos e, principalmente, viabilizando sua integração com os
mecanismos de produção do sistema capitalista.
382
Neste tocante, importa resgatar a análise feita por RUSCHE e
KIRCHHEIMER
383
, que ao firmarem a estreita ligação que existe entre os regimes
punitivos e os sistemas de produção, conceberam que o modelo capitalista exigiu
um mercado de mão-de-obra livre e obediente para consolidar sua posição, razão
pela qual o trabalho obrigatório seria, aos poucos (ao longo do século XIX),
substituído por uma detenção com fins primordialmente corretivos.
384
379
FOUCAULT, Michel. O poder..., p. 52-63. E ainda: FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir..., p.162.
380
No sistema da soberania, tomava-se apenas algum aspecto, ou apenas parte do
tempo do indivíduo, alguns de seus recursos apenas. Com a disciplina, toma-se o sujeito como um
todo. É o que acontece dentro de um quartel, por exemplo, em que o tempo dos soldados é utilizado
como um todo para as finalidades a que estão propostos – In: FOUCAULT, Michel. O poder..., p. 58.
381
Ibidem, p. 34.
382
A nova perspectiva além de majorar os efeitos de poder, reduzir seus custos
econômicos e políticos, também o integrou ao processo de produção In: FOUCAULT, Michel. Os
anormais..., p.108.
383
RUSCHE, Geor; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro:
Revan, 2004. Esta análise criminologia (nascida em meados de 1930) foi seguida por outros, como
por exemplo: GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Rio de
Janeiro: Revan/ICC, 2006; MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do
sistema penitenciário. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006; PAVARINI, Massimo. Control y dominación:
teorias criminológicas burguesas y proyecto hegemônico. Buenos Aires: Siglo XXI, 2002;
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991; WACQUANT, Löic. As prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001; WACQUANT, Löic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio
de Janeiro: Freitas Bastos, 2001.
384
RUSCHE, Geor; KIRCHHEIMER, Otto. Op. cit., p.35-36. Segundo os autores, em
resumida fórmula, numa economia servil os mecanismos punitivos teriam como papel trazer mão-de-
obra suplementar e constituir escravidão civil ao lado da que é fornecida pelas guerras ou pelo
comércio; com o feudalismo, e numa época em que a moeda e a produção estão pouco
desenvolvidas, assiste-se a um brusco crescimento dos castigos corporais – sendo o corpo na maior
parte dos casos o único bem acessível. Vale lembrar que o centro da análise de RUSCHE e
106
No mesmo sentido, Evgeny PASUKANIS constata que o mercado de
capitais fez nascer toda uma nova percepção do tempo e uma universalização do
princípio da troca de equivalentes, as quais explicariam a afirmação histórica do
“contrato como fixação de tempo de trabalho e da sentença como fixação do tempo
de reclusão”.
385
Desta feita, o homem passou a ser concebido essencialmente como força
produtiva, inspirando a lógica de que quanto mais força de trabalho, mais plena e
corretamente o sistema capitalista poderia se desenvolver.
386
Mas para que tal postulação fosse efetivamente consagrada, fez-se
necessário todo um movimento de reforma penal, o qual propugnou por um
reducionismo do aparato repressivo estatal (então erguido sobre o prisma da
retribuição).
Foi aí que as construções teóricas da Escola criminológica clássica – cujos
principais expoentes foram Jeremy BENTHAM
387
na Inglaterra, Anselm Von
FEUERBACH
388
na Alemanha, Cesare BECCARIA, ROMAGNOSI e CARRARA na
Itália
389
-, desempenharam relevante papel, pois defenderam a bandeira de que a
sanção penal deveria servir como instrumento de defesa social, como elemento
dissuasivo (um contra-motivador) ao crime, dotada de uma lógica puramente
KIRCHHEIMER (ou seja, a idéia de que todo sistema de produção tende a descobrir e a utilizar
sistemas punitivos que correspondem às próprias relações de produção) estava nas formulações
descritas no primeiro livro do Capital, onde MARX enfrenta a questão da acumulação primitiva,
estágio pré-histórico do capital, no qual o sistema capitalista teve criadas as condições para o seu
próprio desenvolvimento, ou seja, a destruição do sistema de produção artesanal e a transformação
do trabalho empregado em força assalariada. Nesta nova lógica, ao mesmo tempo em que o
capital liberta o trabalho dos vínculos servis e da dependência pessoal, também o sujeita a uma nova
forma de subordinação, a disciplina In: MARX, Karl. O capital: o processo de produção do capital.
São Paulo: Abril Cultural, 1983.
385
PASUKANIS, Evgeny B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. Rio de Janeiro: Renovar,
1989. p. 158-159.
386
Tanto é assim que todas as formas de dispêndio irredutíveis a essas relações, à
constituição destas forças produtivas, foram banidas, excluídas foi o que motivou, por exemplo, a
repressão da sexualidade infantil – In: FOUCAULT, Michel. Em defesa..., p. 37.
387
BENTHAM, Jeremy. Op. cit.
388
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Ritter Von. Tratado de derecho penal común
vigente en Alemania. Buenos Aires: Hammurabi, 1989. p. 65.
389
BECCARIA. Cesare. Op. cit., p. 83-84: “... o fim das penas não é atormentar e afligir
um ser sensível, nem desfazer um crime que foi cometido (...); é mister, pois, escolher os meios
que devem causar no espírito público a impressão mais eficaz e mais durável, e, ao mesmo tempo,
menos cruel no corpo do culpado”. Em sentido análogo: ROMAGNOSI, Gian Domenico. Genesi del
diritto penale. Bogotá: Editorial Temis, 1956. p. 83. E ainda: CARRARA, Francesco. Programma del
corso di diritto criminale. Florença: Fratelli Cammelli, 1907. p. 55-57.
107
utilitarista.
390
Tal reducionismo, estritamente ligado à nova lógica disciplinar, propiciou
uma nova forma de controle dos desviantes: se antes o indivíduo que atentava
contra o poder do soberano era definitivamente eliminado ou excluído (morto,
esquartejado, enforcado, banido, queimado, etc.), a partir de então a punição
passaria a intervir “sob a forma do pajem, dominando, abatendo, desnudando,
limpando, tornando o corpo ao mesmo tempo limpo e verdadeiro”
391
, o que fez
nascer uma espécie de ‘inclusão forçada’ do desviante.
E foi exatamente neste momento que os que exerciam o poder nos tempos
de emergência do capitalismo debruçaram-se sobre o fenômeno da loucura, não
com o intuito de humanizar seu tratamento, mas sim com o objetivo de valer-se do
conjunto de táticas e técnicas de dominação empregadas no trato do enfermo para
exercer seu domínio num contexto global, objetivando tornar as pessoas
economicamente lucrativas e politicamente úteis.
392
Por isso, é possível afirmar que o capitalismo foi o grande responsável por
organizar e transformar a loucura numa mercadoria: o conjunto de elementos e
mecanismos pelos quais os loucos eram controlados, seguidos, punidos,
reformados, acabaram despertando o interesse da burguesia, que almejava aplicá-
los no interior de todo o sistema econômico-político.
393
A nova missão era a de domesticar os indesejados para a produção
industrial e neutralizar os resistentes com o cárcere como indica MELOSSI e
PAVARINI.
394
Com isso, verifica-se também que o corpo do acusado deixa de ser o
ponto central do mecanismo punitivo, e vira apenas mais uma estratégia para
dominação, cuja arma principal estava nas manobras e técnicas de contenção.
395
Nas palavras de Alessandro De GIORGI, uma verdadeira passagem
“de um regime penal que aponta para a destruição do corpo do condenado, sobre o
390
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à
sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2002. p. 31-32.
391
FOUCAULT, Michel. O poder..., p. 32.
392
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica..., p. 35.
393
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 51.
394
que não era mais possível continuar matando-os em praça pública, foi necessário
encontrar outro meio para tal eliminação: a solução encontrada veio com o encarceramento destes
indivíduos; com a privação da liberdade ambulatorial In: MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo.
Op. cit., p.172-177.
395
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir..., p. 26.
108
qual reflete o poder absoluto do monarca, para uma forma de punição que poupa o
corpo do condenado a fim de que, na sua produtividade, se evidencie o poder
econômico relativo do capitalista”.
396
Surge a necessidade de punição sem suplícios
397
e a aplicação da pena
deixa, aos poucos, de ser encarada como uma cena. uma total supressão do
espetáculo público: “a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime
e não mais o abominável teatro”.
Agora é a própria condenação que marcará o delinquente “com sinal
negativo e unívoco: publicidade, portanto, dos debates e da sentença; quanto à
execução, ela é como uma vergonha suplementar que a justiça tem vergonha de
impor ao condenado (...). O essencial da pena não consistira mais em punir, mas
em corrigir, reeducar, curar...”.
398
Há, enfim, um verdadeiro movimento de redução da estrutura punitiva do
Estado, a qual, como observado, não tinha como pano de fundo um respeito novo
pela humanidade dos condenados.
Pretendia-se, em verdade, estabelecer uma justiça mais desembaraçada e
mais inteligente, por meio de uma vigilância penal mais próxima e atenta ao corpo
social, de cunho estritamente disciplinar: “significa uma adaptação e harmonia dos
instrumentos que se encarregam de vigiar o comportamento cotidiano das pessoas,
sua identidade, atividade, gestos aparentemente sem importância; significa outra
política a respeito dessa multiplicidade de corpos e forças que uma população
representa”.
399
Assim, mesmo o simbólico ato de PINEL ao libertar os doentes mentais
encarcerados nas masmorras, não significava um gesto puro de bondade. Na
verdade, buscava estabelecer entre o libertador e os libertados uma dívida de
reconhecimento, a qual deveria ser paga de duas maneiras: primeiro pela contínua
e voluntária obediência (substitui-se a violência selvagem de um corpo pela
submissão constante de uma vontade a outra).
E a dívida seria ainda saldada de uma segunda maneira, desta vez
396
GIORGI, Alessandro De. Op. cit., p. 40.
397
“A despeito de algumas grandes fogueiras, a melancólica festa da punição vai-se
extinguindo” – In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir..., p. 12.
398
Ibidem, p. 13.
399
Ibidem, p. 66.
109
involuntariamente da parte do doente: é que, a partir do momento em que ele fosse
assim sujeitado, o próprio jogo dessa disciplina e nada mais que sua força iriam
fazer o doente curar-se. Em outras palavras, tiram-se as correntes, mas vinculam-se
os doentes a uma obediência reconhecida especialmente enquanto submissão:
“não é uma cena de humanismo, mas de relação de poder; ou ainda, como a
transformação de certa relação de poder, que era de violência a prisão, a
masmorra, os grilhões -, numa relação de sujeição e disciplina”.
400
Com isso, transmuda-se em definitivo o foco das atenções punitivas: do
corpo do indivíduo para o corpo social. E é graças a esta nova visão que se
consegue diminuir os custos econômicos e políticos inerentes ao exercício de
poder, aumentando sua eficácia e multiplicando seus circuitos.
401
Por isso, a disciplina se consagra como “uma forma capilar de poder que
vem em último nível tocar os corpos, agir sobre eles, levar em conta os gestos, os
comportamentos, os hábitos, as palavras (...) aquilo que se pode batizar de contato
sináptico corpo-poder”.
402
Ela olha para o futuro, para o momento em que o controle
funcionará sozinho, em que a ordem por ela estabelecida se tornará um hábito entre
as pessoas. E o que vai assegurar esta continuidade não é algum tipo de ritual, mas
sim o exercício, progressivo e gradual que vai detalhar ao longo de uma escala
temporal o crescimento e o aperfeiçoamento de seu aparato.
Pode-se dizer que a propriedade fundamental do poder disciplinar é a de
sujeitar os corpos dos indivíduos, preferencialmente em massa, para que se tornem
dóceis. Isso faz com que a disciplina seja concebida, no fundo, como uma técnica
específica de poder que toma o homem ao mesmo tempo como objeto e como
instrumento de seu exercício. Ou seja, a disciplina verdadeiramente “fabrica
400
FOUCAULT, Michel. O poder..., p.36-37.
401
Como bem destaca FOUCAULT, o movimento de reforma penal surge
estrategicamente junto a esta nova ideologia (capitalista e disciplinar). “A idéia era a de que a má
economia do poder, e não tanto a fraqueza ou crueldade é o que ressalta da crítica dos
reformadores”. E esta disfunção do poder provém de um excesso central: ao que Foucault chama de
“super-poder monárquico”, o qual identifica o direito de punir com o poder pessoal do soberano.
Portanto, o verdadeiro objetivo da reforma penal era estabelecer uma nova economia do poder de
punir, assegurando uma melhor distribuição, para que não ficasse concentrado demais em alguns
poucos privilegiados; a reforma penal iluminista consagrou, em suma, uma estratégia de
remanejamento do poder de punir, para que o mesmo se tornasse mais eficaz, regular, mais
constante e melhor detalhado em seus efeitos: “fazer com que o poder de julgar não dependesse
mais de privilégios múltiplos, descontínuos, contraditórios, mas de efeitos continuamente distribuídos
do poder público” – In: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir..., p. 68-69.
402
FOUCAULT, Michel. O poder..., p. 50.
110
indivíduos”, como indica Löic WACQUANT.
403
E é exatamente assim que essa nova mecânica de poder deveria ser
encarada: como “a arte do bom adestramento”, afinal, não se trata de um mero
poder de apropriar e retirar a força dos indivíduos desviantes - “ela não amarra as
forças para reduzi-las, mas procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las dentro de
num todo (...)”.
404
Neste tocante, e ainda valendo-se das elucidações de FOUCAULT, certo é
que esta arte depende do correto uso de três instrumentos primordiais: a vigilância
hierárquica; a sanção normalizadora; e um procedimento específico de exame.
405
-
406
-
407
Firme-se, uma vez mais, que o regime disciplinar não visa à expiação das
condutas desviantes, mas sim à normalização (faz nascer o poder da norma frente
ao desviante), colocando em funcionamento operações distintas: “relaciona os atos,
os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto, que é ao mesmo
tempo campo de comparação, espaço de diferenciação e princípio de uma regra a
seguir”.
408
403
WACQUANT, Loïc. Punir os pobres..., p. 143.
404
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir..., p.153.
405
O primeiro dispositivo da disciplina (a vigilância hierárquica) se dá pelo simples jogo do
olhar, numa engrenagem onde os meios de coerção tornam-se claramente visíveis aqueles sobre
quem se aplicam. Consistem em pequenas técnicas de vigilância múltipla e entrecruzada, “... dos
olhares que devem ver sem serem vistos”. É a eterna e invisível vigilância hoje agravada pelas
diversas câmaras ocultas. Na ótica de Foucault, um aparelho disciplinar perfeito capacitaria a um
único olhar tudo ver permanentemente; uma disposição em que nada escapa. É graças a esta idéia
de vigilância que o poder disciplinar se torna um sistema interligado, um poder múltiplo, automático e
anônimo muitas vezes – Ibidem, p. 143-158.
406
Em segundo lugar, FOUCAULT lembra que na essência de todos os sistemas
disciplinares funciona uma espécie de “pequeno mecanismo penal” (com controle de tempo, de
atividade, de maneira de ser, de discurso, de sexualidade), e aqui, refere-se à idéia de sanção
normalizadora. Neste sentido, diz que as disciplinas estabelecem uma infra-penalidade”,
quadriculando um eventual espaço vazio deixado pelas leis, qualificando e reprimindo um conjunto
de comportamentos que escapava aos grandes sistemas de castigo por sua relativa indiferença.
Cria-se toda uma série de processos sutis que o do castigo físico leve a privações ligeiras e
pequenas humilhações (aqui surge a idéia da reprovação social, por exemplo). E esta idéia de
punição (como disciplina) não passa de um elemento de um sistema duplo de “gratificação-sanção”:
gratifica-se o bem e pune-se o mal – Ibidem, p.148-154.
407
Por fim, é também necessário um procedimento específico chamado de exame, que
combina técnicas de hierarquia e normalização do indivíduo pela sanção (por isso o exame é visto
como “o saber que permite normalizar”). Neste diapasão, destaca-se três mecanismos que o
consagra: primeiramente, é de se ver que o exame inverte a economia da visibilidade no exercício do
poder; em segundo lugar, o exame faz também a individualidade entrar num campo documentário;
por fim, o exame faz de cada indivíduo um “caso” (que ao mesmo tempo conceito um objeto para o
conhecimento e uma tomada para o poder) – Ibidem, p. 154-160.
408
Ibidem, p. 163.
111
Tal concepção acaba também invertendo o eixo político das idéias
individualizantes: nas sociedades feudais, quanto mais um homem é detentor do
poder tanto mais é marcado como indivíduo. no regime disciplinar a
individualização é, ao contrário, descendente, pois à medida que o poder se torna
mais anônimo e mais funcional, aqueles sobre os quais o poder se exerce tendem a
ser mais fortemente individualizados: “... num sistema de disciplina, a criança é mais
individualizada que o adulto, o doente mais que o homem saudável, o louco e o
delinqüente mais que o normal e o não-delinquente”.
409
É na direção dos primeiros, em todos os casos, que o sistema de controle
aponta após a Revolução burguesa, transmudando-se de mecanismos “histórico-
rituais” para mecanismos “científico-disciplinares”.
410
2.3.3 O Saber Psiquiátrico e a Consolidação da Periculosidade
Nada obstante, importa verificar que nem mesmo o advento de uma nova
mecânica de poder maculou o controle penal diferenciado ao inimigo. Ao contrário,
reafirmou-se a dualidade do tratamento punitivo: mantiveram-se as garantias para
os iguais, e poucas mudanças foram trazidas para os ‘estranhos’, agora
representados pelos insurrectos da disciplina ou seja, aqueles que se
posicionavam contra uma suposta ‘vontade geral’ da comunidade e, por esta
medida, passaram a ser tratados como inimigos sociais.
É importante verificar que esse controle conseguiu manter (e
reestruturar) sua hegemonia, graças à ascensão de um novo saber, que se
consolidou pari passo com as correntes criminológicas que se desenvolviam em
meio a comunidade jurídica européia: trata-se do “saber psiquiátrico”.
Se num primeiro momento - sob a égide do iluminismo e dos ideais
humanitários e libertários da classe burguesa este saber acompanhou a Escola
clássica de criminologia, tempos depois, ante a exigência de uma intervenção maior
do Estado no âmbito das liberdades coletivas (como forma alcançar uma pretensa
409
Ibidem, p. 171.
410
Idem.
112
proteção social e coibir o avanço da criminalidade), passou a acompanhar a Escola
criminológica positivista e, em seguida, a Escola da defesa social.
É que a nova tecnologia de poder, ao propor a ampliação da estrutura de
vigilância e controle dos cidadãos - exatamente por querer evitar a existência de
lacunas no exercício punitivo -, exigiu uma reconstrução total da história natural do
desviante,
411
o que propiciou algo inovador: ligava-se, pela primeira vez, a questão
da criminalidade à idéia de patologia, de modo que o criminoso seria tido como um
indivíduo doente.
412
Daí em diante, o que tornava mensurável e fixava a possibilidade de
sancionar um determinado sujeito seria o “interesse subjacente que se podia
encontrar ao nível do criminoso e de sua conduta
413
. Ou seja, se punia os
indivíduos depois de avaliados, apreciados e medidos em termos de normal e
patológico (anormal).
De tal sorte, não mais bastaria a simples referência à lei para viabilizar a
punição, seria também necessária a expressa referência ao saber do clínico.
414
E foi por meio da codificação da loucura como perigo que esta nova
ciência conseguiu firmar o seu poder. Como indica FOUCAULT: “foi preciso fazer a
loucura aparecer como portadora de certo número de perigos que a psiquiatria, na
medida em que era o saber da doença mental, podia efetivamente funcionar como
411
Vale lembrar que para haver sanção na lógica soberana, deveria haver um ato de
razão por detrás da conduta humana do monstro. Se carente tal razão, o Direito não poderia puni-lo.
E isso acabou criando um grande embaraço para a estrutura punitiva, que não se conseguia fechar a
lacuna existente em relação àquilo que Foucault chamou de “crime sem razão”. Esta interrogação
(sobre o crime sem razão) não encontrava lugar no antigo sistema penal - numa época em que
somente interessaria à mecânica de poder o castigo àquele que desafiara a estrutura soberana. E foi
exatamente esta perspectiva que possibilitou a ascensão da psiquiatria criminal. Ou seja, a
insuficiência do Direito fez-se crescer a força psiquiátrica. Vale lembrar que a o final do século
XVIII, o monstro era concebido como categoria jurídica e, especialmente, como fantasma político. No
início do século XIX a situação muda, e a nascente ciência psiquiátrica aproveita seu momento de
glória para subtrair este objeto (o louco) para si, transformando-o no anormal In: FOUCAULT,
Michel. Os anormais..., p. 139-141.
412
Em sendo o crime algo que possui em si mesmo uma natureza (a qual deve ser
descoberta), surge pela primeira vez a idéia de que “há uma natureza patológica na criminalidade”
– Ibidem, p.113.
413
Mesmo porque, não interessa castigar o indivíduo com o objetivo de anular o crime ( “...
está fora de cogitação que uma punição faça que um crime não tenha existido, já que existe”). O que
interessa, em verdade, é anular todos os mecanismos de interesse que suscitaram, no criminoso, a
conduta delitiva e que poderão suscitar crimes semelhantes – Ibidem, p. 114.
414
O exercício do poder de punir não poderá mais se justificar por si só, pois não se
encontrará a intangibilidade intrínseca do ato; é preciso questionar a psiquiatria – Ibidem, p. 146-147.
113
proteção social”.
415
Sob tal perspectiva nasce, em definitivo, o conceito de periculosidade:
“pelo saber da psiquiatria e também do direito penal, criava-se o rótulo de
periculosidade, que vigerá até os dias de hoje”.
416
Perigosos seriam aqueles que colocavam (ou poderiam colocar) em risco
a segurança dos demais ou a sua própria segurança, que atentassem contra a
moral e os bons costumes, que fossem um problema ou que tentassem de alguma
maneira fugir à lógica disciplinar.
Cumpriria duplo papel a rotulação da periculosidade: imantaria a
necessidade de tratamento, via imposição de diagnóstico de doença mental, e
também contemplaria a necessidade de neutralização penal, o que se daria por
meio de uma inclusão forçada, operada preferencialmente no âmbito do sistema
asilar – com indica Erving GOFFMAN.
417
Neste paradigma, a periculosidade se torna o atributo principal do louco, e
vai produzir ícones poderosos no âmbito do Direito, como por exemplo: a diferença
entre imputabilidade e inimputabilidade, a necessidade de segregação para defesa
social, e, principalmente, firmaria os primórdios das medidas de segurança.
418
Estava definitivamente autorizada a constituição da loucura como
patologia, e mais, se poderia agora percebê-la como efetivamente perigosa.
Note-se que a psiquiatria conseguiu tal êxito impondo uma dupla operação
disciplinar: uma ocorria dentro das próprias instituições manicomiais, que cada vez
mais se espalhavam por toda Europa, consistente em elaborar uma nova feição
para a loucura (fugindo da visão tradicional onde ela é vista sob a forma de
delirium), traduzida na idéia de irredutibilidade, de resistência, desobediência,
insurreição.
Nesse sentido, houve grande homogeneização entre expiação e cura,
415
Inclusive, o fascínio psiquiátrico pelo crime sem razão’ nasceu exatamente desta
necessidade de se afirmar como saber e poder: “... quando o crime faz uma irrupção súbita, sem
preparação, sem motivo, sem razão, a psiquiatria intervém e diz: ninguém mais poderia detectar
antecipadamente esse crime que se manifestou, mas eu como saber, eu como ciência da doença
mental, eu por conhecer a loucura, vou precisamente poder detectar esse perigo, que é
imperceptível a todos ou outros” – Ibidem, p. 149-153.
416
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 57.
417
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2005.
p. 109.
418
MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p. 57-58.
114
entre prisão e hospital, a qual desembocaria exatamente na construção dos grandes
manicômios judiciários fortalecidos e proliferados no século XIX, que ficou
mundialmente conhecido como “o século dos manicômios”.
419
-
420
Numa segunda operação, o discurso psiquiátrico iria agir fora dos
manicômios, onde teria a missão de identificar previamente a existência dos perigos
atinentes à loucura. A idéia era de que a loucura sempre trazia consigo, mesmo se
suave ou aparentemente inofensiva, algum indício de mal iminente, o qual poderia
ser previsto por meio da intervenção do perito.
421
Exatamente nesta última missão é que a técnica psiquiátrica encontrou
seu grande triunfo, pois ela autorizou uma intervenção ‘científica’ direta e
autoritária - perante o corpo social, ao mesmo passo em que se justificou como
ciência e poder de proteção pública. Era preciso que a medicina mental fosse capaz
de perceber, mesmo onde nenhum outro poderia ver, certo perigo e ela
demonstrava que podia percebê-lo por meio de uma valoração acurada (muitas
vezes preconceituosa) do indivíduo.
422
Frente a esse quadro, o psiquiatra passa a ocupar papel central na
apuração do ilícito penal, o que acabaria colocando-o como verdadeiro médico-
juiz”.
423
uma confusão – uma relação quase promíscua - entre o ofício de punir e
o de curar, onde se passa a reivindicar o poder judiciário do médico, e o poder
médico do juiz.
424
419
PESSOTTI, Isaias. O século..., p.151
420
Mister observar que a internação de doentes mentais-infratores era algo comum na
Europa muito antes do surgimento da mecânica disciplinar. Ocorre que, antes do século XIX, os
alienados eram trancafiados nos mais variados asilos e casas de correção de forma ainda
indiscriminada e sem atendimento específico, junto a toda sorte de minorias marginalizadas: doentes
epidêmicos, mendigos, prostitutas, vadios, etc. (Ibidem, p. 18). Somente quando PINEL inaugura a
terapêutica moral - libertando os loucos e os pensadores das correntes e a mecânica soberana
deixa de ditar as regras gerais do exercício de poder, é que se inicia um verdadeiro movimento do
‘no-restraint’, que marca a renovação das internações. A partir de então, o manicômio seria
concebido como o ambiente ideal para propiciar a reordenação ou reeducação do indivíduo (In:
PINEL, Philippe. Ob. cit., p.82.), seria o locus adequado para se efetivar o processo de normalização
dos desviantes propugnado pela nova ordem disciplinar.
421
FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 151.
422
Ibidem, p. 167.
423
“... a partir do momento em que o médico ou o psiquiatra tem por função dizer se é
efetivamente possível encontrar no sujeito analisado certo número de condutas ou traços de
condutas que tornam verossímeis, em termos de criminalidade, a formação e o aparecimento da
conduta infratora” – In: FOUCAULT, Michel. Em defesa..., p.27.
424
Há uma confusão de papéis, a qual foi bem anotada por FOUCAULT: “E é assim que a
instituição médica, em casos de loucura e criminalidade, acaba ocupando seu lugar ao lado da
115
É neste momento, portanto, que as ciências médica e jurídica se
aproximam de vez, tendo como ponto comum a realização do exame psiquiátrico
para identificação da patologia e viabilizar o tratamento correicional.
425
Assim, insta destacar a relevância que o exame médico-legal ocupou
neste momento histórico. Segundo FOUCAULT, foi exatamente este exame que
permitiu dobrar o delito em uma série de outras coisas que não lhe são próprias (ou
seja, que vão além da tipificação antijurídica conferida pela lei), mas numa série de
comportamentos e maneiras de ser que, no discurso psiquiátrico, são apresentados
como a causa, a origem, a motivação, ou mesmo o ponto de partida do desvio. Para
FOUCAULT, elas passariam a constituir a substância, a própria matéria punível: “o
exame psiquiátrico passa do ato à conduta, do delito a maneira de ser, e de fazer a
maneira de ser se mostra como não sendo outra coisa que o próprio delito, mas, de
certo modo, no estado de generalidade na conduta de um indivíduo”.
426
Nota-se que esta percepção acaba deslocando também o nível de
percepção da própria infração, que o que se pretendia punir não era o fato em si,
mas sim um nível de não desenvolvimento do sujeito (um ser psicologicamente
imaturo, de personalidade pouco estruturada, com profundo desequilíbrio, etc.) -
condutas estas que, em verdade, não infringem a lei propriamente dita (mesmo
porque nenhuma lei obriga o sujeito a ser equilibrado emocionalmente, a não ter
distúrbios afetivos, etc.); tudo isso, perceba-se, são qualificações morais e éticas,
que nada dizem respeito à legalidades ou ilegalidades.
Em suma, “o exame psiquiátrico permitiu constituir um duplo psicológico-
ético do delito”,
427
deslegalizando a infração tal como é formulada pelo código, para
fazer aparecer por trás dela uma irregularidade em relação a certo número de
regras de cunho fisiológico, psicológico, moral, etc.
Com isso, o que se procurava punir não era mais o crime, mas a pessoa
é sobre o criminoso que o aparelho judiciário se voltaria a partir de então. No lugar
instituição judiciária - uma sem excluir a outra, pois uma espécie de cumplicidade geral entre os
dois discursos” – In: FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 40-51.
425
FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica..., p.68.
426
FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 19-20.
427
Ou seja, o exame psiquiátrico permite a mutação do ponto de aplicação do castigo: da
infração definida pela lei à criminalidade apreciada do ponto de vista psicológico-moral, e assim,
“legitima, na forma de conhecimento científico, a extensão do poder de punir a outra coisa que não a
infração” – Ibidem, p. 21-23.
116
do sujeito efetivamente culpado, ter-se-ia, graças ao perito médico, a perseguição e
a punição de um sujeito potencialmente perigoso:
... o que o juiz vai poder condenar nele, a partir do exame psiquiátrico, não é mais
precisamente o crime ou o delito. O que o juiz vai julgar e o que vai punir, o ponto sobre o
qual assentará o castigo, são precisamente essas condutas irregulares, que terão sido
propostas como causa, o ponto de origem, o lugar de formação do crime, e que dele não
foram mais que o duplo psicológico e moral.
428
Nesta perspectiva e sob inspiração das construções teóricas da Escola
sociológica francesa de Jean-Gabriel TARDE (1843-1904)
429
, da Escola social
alemã de Von LISZT (1851-1919)
430
e, especialmente, da Escola etiológica
positivista italiana, encabeçada por Cesare LOMBROSO (1835-1909)
431
, Raffaele
GAROFALO (1851-1934)
432
e Enrico FERRI (1856-1929)
433
, o infrator passou a ser
tratado como delinquente, posto que a criminalidade era um dado intrínseco de sua
natureza patológica, o que inclusive o desqualificava como cidadão.
434
Note-se, portanto, que o discurso criminológico positivista rompeu os laços
que se haviam firmado com o ideal libertário e humanístico nascido com o
iluminismo, e resgatou alguns postulados naturalistas típicos do inquisitorialismo -
que pregavam a inferioridade bio-psico-antropológica do homem delinquente. E,
como indica ZAFFARONI
435
, tal ruptura foi imprescindível para que a burguesia
mantivesse sua hegemonia, afinal, ela precisava dar uma explicação natural para o
seu poder em relação ao controle social, e nada melhor que filiar-se aos saberes
antropológicos e sociológicos positivistas para consecução deste objetivo.
Primeiro foi LOMBROSO (1870) que, ao realizar estudos de anomalia
craniana nos estabelecimentos prisionais italianos, encontrou no cadáver de Villela
428
FOUCAULT, Michel. Os anormais...,, p.22.
429
TARDE, Gabriel. A criminalidade comparada. São Paulo: Nacional de Direito, 1957.
430
LISZT, Franz Von. Tratado de direito penal..., p. 384.
431
LOMBROSO, Cesare. O Homem delinquente. São Paulo: Ícone, 2007.
432
GAROFALO, Raffaele. Criminología. Madrid: Peritas, 1997.
433
FERRI, Enrico. Sociologia Criminal. São Paulo: Minelli, 2006; FERRI, Enrico. Os
criminosos na arte e na literatura. Porto Alegre: Lenz, 2001.
434
Como anota Cristina RAUTER: “... ganha corpo a tendência médica no interior do
discurso criminológico. Encontrar um corpo doente para o criminoso (...), tal vai ser a tendência do
momento” – RAUTER, Cristina. Op. cit., p.39.
435
Esta mudança de perspectiva se deu exatamente porque as classes dos industriais e
comerciantes já haviam alcançado hegemonia social em relação à nobreza e ao clero, e, como tal,
não mais precisavam do discurso jurídico liberal moldado pelo Iluminismo (calcado em um Estado e
direito penal mínimo). Ela precisava, agora, manter o seu poder In: ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O
inimigo..., p.44
117
indicações de uma formação biológica primitiva - a fosseta occipital média.
436
A partir de então, todos os esforços científicos se voltariam a demonstrar
que os comportamentos antisociais advinham basicamente de causas orgânicas
437
,
e tudo, até mesmo o crime, deveria ser explicado por meio de fenômenos causais.
Para tal, aplicava-se uma técnica que buscava identificar as diversas faltas
do sujeito - ao que FOUCAULT chamou de “faltas sem infração”
438
-, mostrando que
ele já se parecia com o seu crime antes mesmo de tê-lo cometido.
Surgia assim a figura do criminoso nato (homo criminalis), um ser humano
primitivo cuja fisiologia, através de um processo de regressão atávica, assemelhar-
se-ia à do selvagem. Com isso, todas as formas de ilegalidade passariam a ser
vistas enquanto manifestação deste retrocesso evolutivo desta anomalia -,
transmissível hereditariamente a indivíduos que passariam a ser considerados como
ontologicamente perigosos.
439
Também Enrico FERRI (1884) concebeu e difundiu essa perspectiva,
440
constatando que, para além dos atávicos, havia uma latente anormalidade moral em
certo grupo de indivíduos, o que os tornaria incapazes de realizar um adequado
controle pessoal.
Embriagado pelo discurso evolucionista das ciências naturais, FERRI dizia
que a missão dos clássicos da criminologia (fulcrada na idéia de redução das penas
cruéis) estava cumprida, sendo então necessária a estruturação de uma nova
ciência criminológica, a qual deveria ser mais eficaz no combate à criminalidade.
441
436
LOMBROSO, Cesare. Op. cit., p. 179-211: “Em Villela, clabês, ladrão de muito grande
agilidade, que na idade de 70 anos apresentava ainda as suturas abertas, essa fosseta aparecia em
dimensões verdadeiramente extraordinárias: comprimento de 34 milímetros, largura de 23,
profundidade de 11, e associava-se à atrofia das fossas occipitais e à fusão do Atlas”.
437
SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia da repressão: uma crítica ao positivismo
em criminologia. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p.61: ... dos estudos anatômicos mais ou menos
rudimentares de Lombroso, através dos tipos somáticos da personalidade (não faltando hipótese
sobre disfunções endocronológicas) e as formulações mais restritas da presença adicional do
cromossomo extra Y na estrutura genética do sujeito, até as teorias sobre instintos agressivos inatos
do organismo biológico, em um esforço permanente para engendrar uma explicação científica,
incorporando, progressivamente, as aquisições das ciências naturais”.
438
, FOUCAULT, Michel. Os anormais... , p. p. 24.
439
Segundo BARATTA: “...a escola positiva autonomiza o estudo do delito pois, seja
privilegiando fatores bio-antropológicos, seja assumindo posturas sociológicas, parte de uma
concepção ontológica, de uma realidade pré-constituída ao direito”. BARATTA, Alessandro. Op. cit.,
p. 63.
440
FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal..., p. 251.
441
“... a atuação da Escola clássica no combate à criminalidade tinha sido irrisória devido
à excessiva preocupação com o delito (ente jurídico), reduzindo o saber à esfera do direito, e
118
Para ele, a anormalidade (bem como a tendência para o crime) não mais
se explicaria por meio da simples estruturação fisionômica do indivíduo, mas sim
por comportamentos que poderiam ser considerados contrários aos interesses
sociais:
442
eram os efeitos morais, transmitidos hereditariamente ou adquiridos e
passados pela convivência nos ambientes pobres, que levariam à criminalidade. O
criminoso seria, pois, alguém que se deixa levar pelos instintos ou pela influência
social negativa, sem opor-lhe freios.
443
Certo é que se nega, por ambas as vias, o livre-arbítrio ao homem
delinquente (pressuposto da culpabilidade), visto que ele estaria predeterminado à
prática delitiva, por condições antropológicas, biológicas, psicológicas e sociais.
Igualmente, substitui-se a categoria da responsabilidade pela da periculosidade,
concebendo o crime como um sintoma de patologia psicossomática, o qual deve ser
tratado e prevenido mais do que reprimido.
444
A ausência de livre-arbítrio denotava a falta de alternativas para o
indivíduo anormal, mas também demonstrava a incompatibilidade com o clássico
fim de retribuição. Nascia enfim a idéia de que a sanção se justificasse como forma
de proteção social, mesmo porque, não seria correto punir um indivíduo que não
tem escolhas.
A sanção ainda se fazia imperiosa, mas por motivos relacionados a
periculosidade e responsabilidade social.
445
O delinquente não deveria ser punido
pela necessidade do castigo, mas sim pela temibilidade que provocara no corpo
social.
446
olvidando o verdadeiro protagonista na relação delitiva: o homem criminoso” In: FERRI, Enrico. Os
criminosos na arte..., p. 30.
442
Segundo FERRI, “as camadas sociais podem ser divididas em três grupos: a classe
moralmente mais elevada, que não comete delitos porque é honesta por sua constituição orgânica,
pelo efeito do senso moral... do hábito adquirido e hereditariamente transmitido...mantido pelas
condições favoráveis de existência social. Outra classe mais baixa é composta por indivíduos
refratários a todo sentimento de honestidade, porque privados de toda educação e impregnados da
miséria e moral, os quais herdam de seus antepassados...uma organização anormal que une a
condição patológica e degenerativa a uma verdadeira volta atávica às raças selvagens...é nesta
classe que se recruta o maior número de delinquentes natos. A terceira classe é formada por
aqueles que o nasceram para o delito, mas não são completamente honestos...” In: FERRI,
Enrico. Princípios de direito criminal..., p. 256-257.
443
Ibidem, p. 275.
444
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 625.
445
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p.22.
446
Segundo Augustin BARREIRO, “a temibilidade foi o antecedente relevante ao critério
da periculosidade, que atualmente de referir-se à temibilidade do sujeito e à sua maior ou menor
119
É exatamente neste condão que a idéia de culpabilidade torna-se
inadmissível frente a este agir condicionado, sendo então substituída pela noção de
periculosidade, categoria cuja função seria exatamente a de demonstrar os níveis
individuais de propensão ao crime.
447
Tal idéia implica numa espécie de perversidade constante do delinquente,
bem como a quantidade de mal previsto que se deveria recear por parte do
indivíduo perigoso, configurando-se a medida de segurança seu instrumento de
contenção.
Surgia a relação periculosidade-medida de segurança. Com a análise dos
exames que constatavam a inadaptabilidade social do delinquente, bem como seu
perigo social, escolhia-se, na medida de tratamento, o fim profilático a proteger a
sociedade. Esta noção era a justificativa para impor o tratamento, e, assim, se
unificava os fins de proteção social e tratamento.
448
Na perspectiva causal-determinista própria da metodologia das ciências
naturais, a verificação da origem antisocial permitiria uma ação profilática e
preventiva do resultado delitivo.
Se o delinquente representa um organismo disfuncional no interior de uma
sociedade sã, unívoca e consensual, a resposta do Estado à transgressão da norma
deve ter uma fundamentação terapêutica. Assim, a pena seria considerada
verdadeira medida de higienização popular.
Neste tocante, como indica Cristina RAUTER, “estava aberto o caminho
para se afirmar que se alguém é preso, privado de suas garantais de cidadão, isto
ocorre não apenas em razão de ter sido cometido um delito, mas em razão de uma
doença que se quer curar”.
449
O sistema de penas estabelecido pela reprovação do sujeito culpável é
então substituído pelo modelo de medidas de segurança, fundado na idéia de
periculosidade do agente.
450
readaptação social” In: BARREIRO, Augustin Jorge. Las medidas de seguridad en el derecho
español. Madrid: Civitas, 1976. p. 60
447
FERRI, Enrico. Princípios de Direito Criminal..., p. 287-289.
448
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 22.
449
RAUTER, Cristina. Op. cit., p. 39.
450
Da noção que concebe o sujeito do delito como capaz de compreensão e de opção
entre duas condutas distintas (lícita ou ilícita), (...) o sistema penal volta-se à essência (‘ser’) do
autor, avaliando sua propensão ao crime, estabelecendo juízos substancialistas relativos ao
120
Ou seja, a passagem do modelo contratualista de controle social
(tipicamente liberal) para a estrutura positivista, operada fundamentalmente pela
transformação nas funções do Estado (agora intervencionista), impõe séria
modificação na justificativa e na operacionalidade da pena: “da liberdade à
periculosidade, da intimidação à reforma moral”.
451
É também o que percebe Vera
Regina ANDRADE, ao atestar que “a um passado de periculosidade confere-se um
futuro: a recuperação”.
452
Note-se, contudo, que este modelo reafirma a idéia de tipo normativo de
autor e a idéia de inimigo do povo, onde o pressuposto para a incidência penal não
é a prática de um fato específico (o crime), mas uma simples qualidade pessoal
determinada vez a vez com critérios puramente potestativos ou então subjetivos:
aquela de ‘suspeito’ ou de ‘perigoso’, associada muitas vezes a elementos
sintomáticos como a condição do condenado, ou do reincidente, ou do ocioso, ou do
vagabundo ou similar.
453
As construções teóricas deste período foram todas marcadas pelo
positivismo criminológico, e o modelo inquisitorial da Idade Média foi coroado em
definitivo, consagrando-se o direito penal como uma espécie de direito policial,
voltado unicamente aos agentes perigosos.
Uma vez firmado o caráter profilático da sanção, haveria de se perceber
grande transformação no universo do Direito penal, que acabaria invadida por uma
série de profissionais alheios ao mundo jurídico: médicos, psiquiatras, anatomistas,
biólogos, antropólogos, sociólogos, etc.
Segundo lição de Mariangela RIPOLI
454
, a regressão do ideal iluminista
firma-se na exata necessidade histórica de criação de um novo modelo de controle
penal de modificação do indivíduo adequado ao sistema social da época.
Tendências estas que seriam instrumentalizadas pelas relações e interações do
processo ontológico que determinou o seu agir” In: CARVALHO, Salo de. Penas e garantias..., p.
61.
451
Ibidem, p. 131.
452
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação
social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum - In:
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 14, p.
276-287, 1996.
453
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 615.
454
RIPOLI, Mariangela. Diritto e Morale: il neo iluminismo penal di Luigi Ferrajoli. Torino:
Giappichelli, 1993. p. 169
121
direito com novas disciplinas, como a pedagogia, a antropologia, a sociologia e,
especialmente, a psiquiatria.
Daí a importância do exame psiquiátrico, pois é ele que possibilita a
prolação de uma decisão judicial projetiva, determinando a sanção adequada em
vista não só de uma ação realizada, como também em vista de uma ação futura,
se houver elementos suficientes para deduzi-la.
455
Mas se é certo que no final do século XIX os positivistas italianos foram os
grandes revolucionários ideológicos na defesa de substitutivos à tradicional
concepção da pena, em meados do século XX, o movimento batizado de Defesa
social representou o grande propulsor das idéias preventivas, conferindo relevo
ainda maior ao critério da periculosidade e às medidas de segurança.
456
É que se percebeu época que os indivíduos então taxados de
delinquentes eram muito mais produtos da miséria do que de fatores biológicos ou
psicológicos.
457
A nova criminologia partia do pressuposto que o crime não é
simples conduta, mas conduta socialmente definida por formulações ideológicas da
estrutura normativa sob a qual se assenta - ou seja, que o crime, como afirma
Figueiredo DIAS, é recheado de fatores endógenos (predominantemente
psicológicos) e fatores exógenos (reflexo de uma estrutura social).
458
Assim, com o término das grandes guerras mundiais (ao final da cada
de quarenta), o modelo substancialista-racista que havia nascido com o
pensamento positivista é totalmente reformulado. O discurso humanitário é
retomado, mas agora propugnava por uma nova perspectiva em relação à
reprimenda penal: procurava-se identificar os indivíduos perigosos para reabilitá-los,
a partir de uma preocupação estritamente moral de emendas de cunho pedagógico,
455
COSTA, Alvaro Mayrink. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1990. p. 520.
456
Nesta perspectiva, verifica-se nitidamente uma modificação das funções estatais, a
qual modificará também a estrutura penal: “... no século XIX, esta proteção assumirá a forma
minimalista da garantia generalizada da sobrevivência, com o Estado liberal a deixar À esfera
privada a gestão das condições materiais da existência. No século XX, em compensação, as
missões do Estado alargam-se, na medida em que ele toma a seu cargo, para além da simples
sobrevivência, a garantia de certa qualidade de vida: fala-se então de Estado-providência ou de
Estado Social” – In: OST, François. O tempo do Direito. Lisboa: Piaget, 1999. p. 336.
457
Juarez Cirino dos SANTOS lembra que “como nas demais teorias biológicas, o
conceito de uma natureza criminosa geneticamente determinada enfatiza o que se convencionou
chamar de causas eficientes do crime (poder de dinamizão causal do comportamento), mas exclui
as causas formais do crime (definições legais e processos sociais de repressão seletiva)” – In:
SANTOS, Juarez Cirino dos. Criminologia da repressão..., p. 71.
458
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões Fundamentais..., p. 21.
122
médico e psiquiátrico.
459
Tais idéias floresceram e se propagaram com os trabalhos de Adolpho
PRINS
460
, Filippo GRAMÁTICA, Marc ANCEL e Pietro NUVOLLONE,
461
que tinham
como base de pensamento a idéia de que o Estado deveria proteger o corpo social,
salvaguardar o patrimônio e a moralidade social por meios de instrumentos que não
fossem essencialmente retributivos (ou seja, que não a pena).
Fortalecia-se com eles o primado do estado perigoso - que foi também o
epicentro justificador do mecanismo sancionatório da defesa social, legitimando que
o Estado interviesse quando em causa a ação de qualquer indivíduo perigoso,
dispensando-se até mesmo a prévia prática do delito. Afinal, a tarefa fundamental
do Estado consistia em conciliar o máximo possível de seguridade social com o
mínimo de sofrimento individual, propondo uma luta contra o delito (que seriam as
raízes do movimento da “Lei e Ordem”), mediante uma ação preventiva de caráter
social, fulcrada no juízo de perigosidade.
462
459
OST, François. Op. cit., p. 381.
460
PRINS, Adolpho. La defesa social y las transformaciones del derecho penal. Madrid:
Hijos de Reus Editores, 1912. p. 61-62: “O estado moderno tem por missão proteger-nos, em
primeiro lugar, contra os agravos, sejam civis ou criminais, provenham do dolo civil ou do dolo
criminal, da culpa também civil ou criminal e até de forças naturais, independentes da ação do
homem. Protege-nos contra as que causam agravos, sejam agentes, contra os quais não se tenha
nada a censurar, ou sejam indivíduos que não sabem disciplinar-se e deixam a paixão e o interesse
prevalecer sobre o dever (...). É certo que as medidas que se devem adotar em todos os casos não
são unicamente penas; são ora medidas educadoras, caritativas, protetoras, reparadoras, ora
medidas repressivas. Mas sempre, através da diversidade de formas jurídicas, o fim único está na
conservação da ordem...”.
461
GRAMÁTICA, Fillipo. Princípios de Defensa Social. Madrid: Montecorvo, 1974;
ANCEL, Marc. La defénse sociale nouvelle. Paris: Editions Cujas, 1954; NUVOLLONE, Pietro.
Introduction aos Cahiers de defénse sociale. Pádova, 1977.
462
Importa ressaltar que a Escola da Defesa Social teve três grandes vertentes:
Concepção Extrema (ou “de Gênova”); concepção Moderada (ou de Paris”); e a Concepção
Conservadora. A primeira delas foi encabeçada por GRAMÁTICA, que defendia que a sanção penal
seria aplicável a todos os indivíduos que demonstrassem anti-sociabilidade; o indivíduo não
precisaria mais ser punido pela prática do crime; substituía-se o critério da responsabilidade fatual
pela anti-sociabilidade subjetiva. A Segunda corrente observou que as idéias trazidas pela escola de
Gênova colocava em risco as próprias garantias individuais (que poderiam ser olvidadas em
qualquer caso de suspeita de perigo, sem grandes motivações).
Assim, Marc ANCEL propôs uma nova conformação para a defesa social, como nova
estrutura e muito mais garantista: foi batizada de Nova Defesa Social, e se distinguiu da corrente
anterior pois: i)enuncia preocupação em relação ao livre-arbítrio do delinqüente; ii)combate
concretamente o delito visando impedir a produção do dano; iii)possui uma variedade de medidas de
luta contra o delito em face dos delinqüentes anormais e multireincidentes. Opunha-se ao
determinismo positivista, à investigação científica e à simples técnica jurídica, negando valor ao
direito penal tradicional. Na visão da escola moderada, a política criminal deveria ressocializar o
cidadão e tratar o delinqüente. Defendeu a existência de pena e de medidas de segurança, sob um
viés preventivo.
123
A passagem da fórmula liberal do Estado mínimo para o Estado social, fez
com que este assumisse também funções positivas e prestacionais (ao Estado não
caberia mais apenas a função negativa e de regular; por isso, tal modelo é também
conhecido como ‘Estado-providência’), devendo agir como ator privilegiado do jogo
sócio-econômico.
463
Nesta perspectiva, se potencializa e se redimensiona a idéia liberal de
segurança, e é que nascem as noções contemporâneas de prevenção, enquanto
“atitude coletiva, racional e voluntarista que se destina a reduzir a probabilidade de
ocorrência e a gravidade de um risco”.
464
Renovadas as obrigações do Estado, o Direito penal foi chamado uma vez
mais para gerir políticas preventivas de controle dos riscos inerentes à crescente
sociedade industrial, bem como para assegurar a efetivação dos direitos dela
decorrentes (fugindo assim da lógica liberal de ultima ratio). Tal situação, por certo,
acabou fazendo com que o controle penal fosse instigado a ampliar seu campo de
incidência.
465
Portanto, estaria outorgada ao Direito penal a missão de produzir
Finalmente, a corrente conservadora, que teve como seu expoente Pietro NUVOLLONE,
e foi a que mais se aproximou do direito penal clássico. Defendia a unificação entre pena e medida
de segurança: “partindo do pressuposto que ambas serviam para proteção de bens jurídicos, e, de
outro lado, à ressocialização do autor na comunidade jurídica, a escola conservadora propagava a
fusão das duas espécies de sanção, para demonstrar a proximidade de seus fins” In: FERRARI,
Eduardo Reale. Op. cit., p. 26-28.
463
STRECK, Lenio. MORAIS, José Luiz Bolzan de. Op. cit, p. 58-63. O autor também
pontua aquilo que chama de “causas privilegiadas” deste processo de transformação do perfil
mínimo anteriormente adotado pelo Estado liberal: a)a Revolução Industrial e suas conseqüências de
proletarização, urbanização, mudanças nas condições de trabalho; b)a Primeira Guerra Mundial
rompe a tradição do liberalismo econômico, acelerando violentamente a ação de fatores
desagregadores; c)a crise econômica de 1929 e a Depressão trouxeram embutida a necessidade de
uma economia interventiva, o que deu azo à política do New Deal franqueada pelo Presidente
Roosevelt; d)a Segunda Guerra Mundial com demandou um controle sobre os recursos sociais.
464
OST, François. Op. cit., p. 344.
465
CARVALHO, Salo de. Antimanual de criminologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
p. 86: “... o direito penal não passou imune às novas demandas da sociedade política e civil
organizada que impunham renovadas obrigações do Estado. Ao ser chamado para gerir políticas
públicas preventivas (...), o controle penal foi instigado a ampliar seu espectro de incidência,
adaptando-se a novos bens jurídicos. Tal assertiva é perceptível se verificarmos o incremento da
tutela penal ao trabalho (crimes contra a organização do trabalho), à previdência social (crimes
previdenciários), ao transporte público (crime contra a segurança dos meios de transporte), à saúde
(crimes contra a saúde pública e leis de entorpecentes), à economia (crimes contra economia
populares) etc.”.
No mesmo sentido, indica FERRAJOLI que “no desenvolvimento do Estado social é
perceptível a produção caótica e aluvisional de leis, regulamentos, institutos e práticas políticas e
burocráticas que foram sendo sobrepostas às velhas e elementares estruturas do Estado liberal...”
124
instrumentos idôneos à identificação e à gestão da periculosidade do delinquente,
projetando respostas de natureza (re)educacional como afirma François OST: “...
na linha de um Estado social preventivo, multiplicam-se as políticas sociais
suscetíveis de conter o crime antes de acontecer: as questões da habitação, dos
bairros difíceis, da droga, do abandono escolar são objeto de uma enorme
atenção”.
466
Estava, assim, definitivamente consolidada a nova mecânica de poder
fundada na idéia de disciplina -, que se legitimou com base no conceito de
periculosidade e viu seu trunfo com a construção e incorporação ao direito penal
das medidas de segurança.
In: FERRAJOLI, Luigi. Crisis del sistema político y jurisdicción. Buenos Aires: Del Puerto, 1995. p.
124.
466
OST, François. Op. cit., p. 381.
125
3 PROTECIONISMO X GARANTISMO: A DESCONTRUÇÃO DA MEDIDA
3.1 A INCONSTITUCIONALIDADE (NÃO) DECLARADA
3.1.1 Abstração Conceitual da Periculosidade: Afronte a Legalidade e Igualdade
Por todo o exposto, é possível concluir que mesmo havendo um avanço
legislativo no trato do tema (criminalidade-loucura), certo é que, diante de todo o
ranço histórico que acompanhou a formatação do instituto, bem como das barbáries
cometidas em nome de uma suposta segurança social, o critério da periculosidade
será sempre danoso à proteção de direitos fundamentais.
Legalidade, devido processo legal, presunção de inocência, igualdade e
humanidade são preceitos usualmente arrostados pelo instituto, posto que a
abstração inerente à idéia de perigo dá margem a uma infinidade de arbitrariedades
e de abusos por parte daqueles que exercem o poder punitivo.
E se assim o é, importa finalmente questionar: esta lógica perversa e
excludente que transforma o portador de transtorno psíquico infrator em um cidadão
de segunda classe é constitucional?
467
Neste tocante, é de se ver que as dúvidas sobre a constitucionalidade
decorrem exatamente do fato de que a categoria da periculosidade, nuclear deste
modelo repressivo chamado medida de segurança, é completamente isenta de
significado: basta lembrar que o conceito de periculosidade se funda no juízo de que
o indivíduo, face sua doença mental e desajuste social, tem a probabilidade de vir a
praticar ou tornar a cometer um injusto penal.
Como indica Salo de CARVALHO:
... a popularização de tal categoria no senso comum teórico dos juristas e do homem de
rua, pela assunção ideológica da terminologia defensivista, não permite clara definição de
sua essência, ou seja, trata-se de categoria extremamente abstrata, sem qualquer sentido
objetivo. Não obstante, é parâmetro para justificação da incidência do sistema pena sobre
467
Em sentido análogo: “que lógica perversa é essa, excludente e inconstitucional, que
transforma o portador de sofrimento mental em um cidadão de segunda classe?” In: MATTOS,
Virgílio de. Op. cit., p. 33.
126
os indivíduos classificados como perigosos. Representa, em classificação ideal típica, o
mais espetacular resíduo etiológico nos sistemas penais contemporâneos.
468
Para Benigno DI TULLIO, “a perigosidade constitui um critério que não
exclui as graves incertezas existentes em todo prognóstico, configurando-se
impossível prever, com convicção, a posterioridade de qualquer indivíduo,
especialmente sob o enfoque de uma conduta futura”.
469
Por mais que se tente atenuar a subjetividade na definição do perigoso
atrelando-a, por exemplo, à probabilidade de reiterar condutas criminosas em face
do histórico do agente (como faz o legislador brasileiro), certo é que tal missão
ainda assim será praticamente irrealizável, haja vista que o próprio conceito sempre
estará fundado num duvidoso juízo de prognose.
É exatamente nesta perspectiva que se pode aventar a primeira das
inúmeras inconstitucionalidades do instituto. Afinal, não como se pode falar em
respeito ao princípio da legalidade estrita assegurado no artigo da CR/88
diante desta abstração.
470
Vale lembrar que desde a Reforma de 1984, a doutrina penal é
praticamente unânime em afirmar que a nova medida de segurança respeita o
princípio da legalidade. Resta a dúvida, então, sob qual perspectiva se afigura tal
proteção?
Diante do que foi esboçado até aqui, a resposta parece indicar que o
instituto atende apenas a uma legalidade meramente formal, identificada tão
como “reserva relativa de lei”. Ou seja, exigindo exclusivamente a previo da
medida em ato legislativo competente e anterior ao fato.
471
468
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias..., p. 137.
469
DI TULLIO, Benigno. Príncipes de criminologie clinique. Paris, 1967. p.377 Apud
FERRARI, Eduardo Real. Op. cit., p.153.
470
Aqui, antes de prosseguir, importa destacar as idéias trazidas por Alexy, no sentido de
que os princípios, tal como as regras, são razões para juízos concretos de dever ser, ainda quando
sejam razões de um tipo muito diferente. Portanto, a distinção entre regras e princípios é, pois, uma
distinção entre dois tipos de normas: “tanto as regras como os princípios são tipos de normas porque
ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados com a ajuda das expressões deônticas
básicas do mandamento, da permissão e da proibição” In: ALEXY, Robert. Teoria dos direitos
fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 85-86. E nesta perspectiva, sendo também os
princípios (sejam eles expressos ou não) constitucionais espécies de normas, certamente está
autorizado aventar a inconstitucionalidade de um instituto em face de algum princípio encampado
pela Constituição de 1988.
471
Basta lembrar que o antigo art. 75 da redação originária do CP/40 enunciava apenas
que as medidas de segurança regem-se pela lei vigente ao tempo da sentença, prevalecendo,
127
Ocorre que a simples legalidade da forma e da fonte é, no máximo,
condição da vigência ou da existência da norma que prevê a sanções (seja no caso
da pena ou na medida), pouco se importando com seu conteúdo - o que dá margem
a uma série de culas à validade desta norma, exatamente por possibilitar o
afronte a dispositivos constitucionais de garantia.
Neste passo, a simples exigência da lege - num âmbito estritamente formal
- não seria suficiente para dizer que a medida de segurança atende ao princípio da
legalidade.
Para demonstrar a exata perspectiva em que a medida arrosta a
legalidade constitucional, cabe lembrar que a conformação deste princípio conclama
a análise minuciosa de variadas facetas (formais e materiais) e sub-princípios dele
decorrentes: é aqui que se fala das idéias de lex praevia, lex scripta, lex scricta, lex
certa e lex necessária.
472
A primeira, e talvez a mais importante faceta da legalidade seja a da
anterioridade (lex praevia), pois figurou como marco primário do ideal de segurança
jurídica – imprescindível para a construção dos Estados de Direito. A idéia de
anterioridade, fruto do pensamento liberal e iluminista que nasceu ao final do século
XVII, surgiu exatamente da necessidade de se submeter todos (inclusive o Estado)
aos ditames de uma lei geral e abstrata previamente definida.
473
É que com o desenvolvimento da teoria do contrato social,
474
floresceu a
necessidade de se construir um Estado garantidor dos direitos do homem,
vinculando em sua atuação à proteção de todos. Neste passo, a lei deveria ser
entretanto, se diversa, a lei vigente ao tempo da execução” – ou seja, sequer a observância plena da
idéia de anterioridade havia.
472
Estas diversas facetas da legalidade foram primeiro formuladas na obra de
MAURACH, Reinhart. Derecho penal: parte general. Buenos Aires: Astreas, 1995.
473
Embora seja comum citar como documento originário do princípio da legalidade a
Magna Carta Libertatum do Rei João Sem Terra, editada na Inglaterra em 1215, que dispunha em
seu artigo 39: “Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou
colocado fora da lei, ou exilado, ou de qualquer modo molestado, e nós não procederemos nem
mandaremos proceder contra eles senão mediante um julgamento regular pelos seus pares ou de
harmonia com a lei do país” In: MANZINI, Vicenzo. Trattato di Diritto Penal. Torino: Fratelli Bocca,
1924. p. 55. E ainda: GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antônio. Derecho Penal: introducción. Madrid:
Facultad de Derecho de la Universidad Complutense de Madrid, 2000. p.312.
474
Foi primeiramente com John LOCKE (1690) que surgiu a idéia de sujeição não só da
sociedade, mas também do Estado aos ditames da lei. Noção esta que foi também concebida por
Étienne Bonnot de CONDILLAC (1754) e, em seguida, desenvolvida por Jean-Jacques ROUSSEAU
(1762) In: LOCKE, John. Op. cit., p. 35; CONDILLAC, Étienne B. de. Ob. cit., p.16. ROUSSEAU,
Jean-Jacques. Op. cit., p.47.
128
posta como forma de se evitar a arbitrariedade estatal irracional, figurando como um
dever de abstenção estatal no campo das liberdades individuais.
Também na época do iluminismo essa garantia passou a fazer parte dos
textos legislativos de forma expressa: com a Revolução burguesa, foi editada a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, a qual dispunha em seu
artigo que “nenhum homem pode ser acusado, impedido ou detido senão nos
casos determinados pela lei, e segundo as formas que ela prescreve”, e no artigo 8º
que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e
ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada
antes do delito e legalmente aplicada”
475
. Garantia essa que foi acolhida pela
Constituição francesa de 1791 e 1793 e por diversas outras Cartas e Diplomas que
seguiram o seu modelo.
476
No âmbito penal, a idéia de legalidade-anterioridade foi primeiramente
esboçada por Anselm Von FEUERBACH (1801), que firmou-a na xima latina do
nullum crimen, nulla poena sine lege praevia. Disso surgem, sem exceções, os
seguintes primados:
... toda imposição de pena pressupõe uma lei penal; por isso, somente a cominação legal
do mal pela lei é o que fundamenta o conceito e a possibilidade jurídica de uma pena.
Igualmente, a imposição de uma pena está condicionada à existência da ão cominada.
Consequentemente, é mediante a lei que se vincula a pena ao fato, como pressuposto
juridicamente necessário; o fato legalmente cominado está condicionado pela pena legal.
Assim, o mal, como consequência jurídica necessária, vincular-se-á, mediante a lei, a
uma lesão determinada.
477
Em termos de medida de segurança, tal formulação pode ser traduzida
sob a análoga fórmula do nullum crimen, nulla misura sine lege praevia: não
medida sem injusto-penal, nem injusto sem lei prévia - prevista no artigo do
475
Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/anthist/decdhomem.html> Acesso em:
12 jan. 2009.
476
É também o que prevê a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de
1948 (em seu art. 15) e o Pacto de São José da Costa Rica (art.7º, n.º II). No Brasil, por exemplo, a
idéia de legalidade sempre esteve presente: desde a Constituição de 1824 (art. 179, inciso XI) até a
atual (art. 5º, inciso XXXIX da CR/1988); embora seja importante destacar que o Código penal de
1940, em sua redação originária, não obedecia à esta idéia de anterioridade (art. 75 CP) In: LUISI,
Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. p. 15. Importa
destacar que tal princípio, hoje, está incorporado em quase todas as legislações, “ressalvados os
casos em que o sistema jurídico esteja baseado na common law (como ocorre com a Constituição
americana de 1789), ou em regime políticos totalitários (China, Albânia e Coréia do Norte por
exemplo)” In: SCHMIDT, Andrei Zenkner. O princípio da legalidade penal no Estado Democrático
de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 137-138.
477
FEUERBACH, Paul Johann Anselm Von. Op. cit., p. 63.
129
Código penal brasileiro e constitucionalmente assegurada no artigo XXXIX da
CR/88.
Falar em anterioridade é garantir que as leis penais não poderão retroagir
ao fato vencido. Até porque, se fosse autorizado ao poder legislativo baixar leis
retroativas, estaria se abandonando todas as bases consagradas com o Estado de
Direito, quebrando, assim, a confiança que os cidadãos depositaram no poder
público e deixando-os à mercê do direito posto e de futuras e imprevisíveis decisões
políticas.
É por isso que as leis penais gozam deste tom de irretroatividade,
consagrando a máxima do tempus regit actum (também assegurado no art. do
CP/1940). Nestes termos, é valiosa a doutrina de Franz Von LISZT, ao asseverar
que “o problema da irretroatividade não é um problema ético, nem sociológico, nem
de direito natural; é só um problema político, contratual. A lei é a fórmula pública de
uma obrigação tácita entre cidadão e o Estado. Uma obrigação não se pode
contratar se não é para o futuro”.
478
Em relação ao instituto, Figueiredo DIAS advoga que:
... deve-se positivar a aplicabilidade do princípio da irretroatividade nas medidas de
segurança, constituindo retroatividade em casos de exceção a regime concretamente
mais favorável, merecendo relevo nesse contexto deixar claro que o momento temporal
da prognose de ser o último processualmente possível, isto é, o momento da decisão
sobre a conseqüência jurídica, por parte do derradeiro tribunal que tenha ainda poderes
de cognição da questão do fato.
479
Contudo, vale destacar que no âmbito penal a idéia de irretroatividade da
lei não é absoluta, pois sempre que uma lei nova mitiga as consequências da
intervenção punitiva (lex mitior), esta será necessariamente aplicada aos fatos
ocorridos – ao que se chama de aplicação in bonnan partem.
E o fundamento para esta retroatividade encontra-se na conjugação do
utilitarismo penal com o princípio da igualdade – afinal de contas, não haveria
porque punir um fato que não é mais útil aos fins propugnados pelo Direito penal.
Como indica Manuel Cavaleiro de FERREIRA:
Justifica-se a retroatividade da lei mais favorável ao arguido como expressando uma
garantia dos cidadãos e uma limitação do pdoer do Estado; este não terá nunco um
direito de punir mais amplo do que o que for considerado pela lei vigente no momento de
478
LISZT, Franz Von. Tratado de Direito penal ..., p. 142.
479
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal português..., p. 435-345.
130
sua palicação se este é mais limitado do que aquele que lei anterior lhe concedia. Este
aspecto da limitação do Estado quanto ao direito de punir quer do Estado legislador quer
da jurisidção irmana o princípio da irretriatividade da lei penal como o da retroatividade da
lei penal mais favorável.
480
Note-se, porém, que tal caminho é viável porque a própria Constituição
expressamente previu a figura para os casos de nova lei penal mais benéfica -
consoante se verifica do art. 5º, inciso XL da Carta de 1988.
481
Em suma, esta primeira faceta formal da legalidade delimita que a lei deve
ser sempre anterior ao fato imponível e à sanção que lhe foi prevista, e não o fato
imponível e a sanção anterior à lei.
Seguindo a lógica dessa exigência, aflora-se uma segunda faceta do
princípio da legalidade: a necessidade de que a norma penal incriminadora ou
sancionatória seja escrita (lex scripta). É que para além de uma lei anterior, o
princípio exige que esta lei esteja devidamente formalizada em documento
legislativo próprio, escrito e emanado do ente político competente.
Disso, extrai-se a idéia geral de que o costume não pode inovar a ordem
legal penal, pois não há crime nem sanção sem a existência de uma lei formal: nulla
crimen, nulla misura sine lege scripta, submetida aos rígidos processos de
formulação legislativa constitucionalmente estabelecidos, com obediência a todos
os ritos e fórmulas necessárias para validade do ato.
482
Quanto ao tema, importante chamar à atenção para questão das fontes do
Direito penal. E aqui, vale lembrar que dentro de todo o universo legislativo
existente no ordenamento brasileiro (que vai de uma emenda constitucional até um
ofício circular), somente algumas delas estão habilitadas a funcionar como
instrumento adequado para criação das ordenações penais. Até porque, do
contrário, teríamos de sujeitar a sociedade a proibições emanadas dos mais
variados nichos de poder e oriundas de instrumentos incertos o que, de perto,
feriria ainda mais a segurança jurídica.
No Brasil, a única fonte da ordenação penal é a Lei Ordinária federal
(conforme institui o art. 22, I e art. 59, III da CR/88), que se sujeita à apreciação, em
480
FERREIRA, Manuel Cavaleiro de. Direito Penal Português: Parte Geral. Lisboa: Verbo,
1982. v. 2. p.115.
481
Art. 5º, XL da CR/88: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.
482
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo:
Saraiva, 1994. p. 25-26.
131
separado, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, desde que aprovado o
Projeto de Lei (art. 61 da CR/88) por maioria relativa dos membros de cada uma das
Casas legislativas.
483
Firme-se, contudo, que quem defenda a possibilidade do direito
consuetudinário figurar como fonte excepcional de Direito penal, desde que
beneficie, de alguma forma, o acusado: seja para diminuir ou extinguir a sanção,
seja para descriminalizar a conduta, seja para mitigar os efeitos penais da
intervenção.
484
O certo é que se elege na lei a fonte primária e indispensável para a
imposição também da medida de segurança, constituindo imprescindível a presença
formal do procedimento legislativo bicameral.
485
Afinal, em sendo a medida de segurança um modelo invasivo à esfera de
individualidade do sujeito, somente será cabível nas hipóteses legais prévias e
formalmente constituídas.
Ainda falando da necessidade da lei escrita, é de se verificar que a plena
satisfação do princípio impede que o magistrado crie normas penais, visto que tal
tarefa é atribuída, com exclusividade, aos membros do poder legislativo de modo
que a legalidade atua também como importante corolário do princípio da separação
dos poderes (previsto no artigo 2º da Constituição de 1988).
483
Disso resulta que, no Brasil, nem os Estados ou mesmo os Municípios podem
estabelecer crimes e sanções exceção do art. 22, § único da CR/88, caso em que a própria União
edita lei complementar delegando tal atribuição aos Estados o que, note-se, nunca ocorreu sob a
égide da atual constituição...!). Igualmente, firma que somente o poder legislativo cria normais penais
(excluindo tal possibilidade para o Executivo e para o Judiciário). Desta, também, podemos ainda
consagrar a inconstitucionalidade de todas as conhecidas “leis penais em branco” e dos “tipos penais
abertos” (aquelas que determinam o preceito in abstrato, deixando a cargo de outra lei ou mesmo à
atividade judicial a concretização de seu conteúdo) In: LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio
da legalidade penal. São Paulo: RT, 1994. p.110.
484
TOLEDO, Francisco de Assis. Ob. cit., p. 25-26. Note-se, contudo, que a esmagadora
maioria doutrinária brasileira o se filia a esta idéia. A título de exemplo, cite-se Andrei SCHMIDT,
que assevera que “no direito penal o nullum crimen nulla poena sine lege stricta assegura uma
realidade distinta, ao menos nos países não fundados na commom law”. Neste sentido, em razão de
seu sistema de ilicitude descontínua, ou seja, “da sujeição da ilicitude penal à adequação da conduta
a um tipo penal incriminador, todo costume que gera um desvalor social de uma conduta, apesar de
contemplado pela opinião comum e pelo ordenamento jurídico, sempre estará sujeito ao
procedimento legislativo formal como condição de sua existência (...); o máximo que o costume
poderá desencadear é um argumento de política criminal para a legislação penal futura” – In:
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 200.
485
Importa esclarecer que diplomas penais como a Lei de contravenções penais (decreto-
lei 3688/1954) e a Parte Geral do Código penal (decreto-lei 2848 de 1940), que continuam em vigor,
embora não tenham sido emanadas do Poder legislativo, não gozam de inconstitucionalidade, visto
que sua legalidade formal é validada segundo o ordenamento constitucional da respectiva época.
132
Portanto, em um sentido meramente formal, a exigência da lei formal e
anterior é uma garantia indispensável para conservação dos valores do Estado de
Direito que nasceu com a Revolução burguesa.
Nada obstante, é de se ver que o constituinte requer seja preservado não
apenas um aspecto formal (no sentido de que ninguém será submetido à medida de
segurança sem anterior previsão legal expressa), mas também uma feição material
do princípio, no sentido de que seu conteúdo seja também alvo de proteção e
delimitação estrita e racional, impossibilitando uma interpretação que amplie o seu
conteúdo punitivo. É aqui que se fala das demais facetas da legalidade: lex scricta,
certa e necessária, que juntas, consagram “comandos de determinação”.
486
Ao propugnar pela lex scritca, quer o constituinte delimitar que ao Juízo
somente é dado o poder de aplicar sanções (penas ou medidas) mediante uma
interpretação restritiva da lei penal. Assim, o nullum crimen, nulla misura sine lege
scricta é, para além de um limitador formal, uma limite substancial ao conteúdo das
medidas.
Compete aqui lembrar que o crime nada mais é do que uma convenção
estabelecida conforme ditames sociais e políticos de um determinado Estado (v.g.,
o que é crime aqui no Brasil pode não o ser na Ásia)
487
e esta convenção deve ser
respeitada quando da efetiva aplicação da legislação, sendo vedado ao intérprete a
ampliação de seus termos quando tendente a desvirtuá-la ou desnaturalizá-la.
488
Assim, tendo em vista a necessidade de se conciliar o ideal de segurança
jurídica com direitos que se secularizam de formas distintas nos diversos
ordenamentos pelo mundo, não se pode olvidar esta necessária faceta do princípio
da legalidade, que de perto esbarra na questão hermenêutica.
A idéia é que o julgador deve aplicar fielmente o texto da lei, pois, como
pretendia BECCARIA, “nem mesmo a autoridade de interpretar as leis penais pode
486
BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito penal:
fundamentos para um sistema penal democrático. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 138.
487
Aristóteles dizia que “o fogo queima aqui e na Pérsia” (In: ARISTÓTELES. Ética a
Nicômacos. Brasília: UnB, 1999. p. 103), mas nem todo delito é proibido aqui e na Pérsia, visto que
não detém uma realidade ôntica, seja ela consuetudinária, divina ou natural.
488
Afinal de contas, uma interpretação extensiva da vontade do legislador, pode gerar
reflexamente uma expansão do poder punitivo, de todo prejudicial à liberdade dos cidadãos In:
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p.146-147.
133
caber aos juízes criminais, pela própria razão de não serem eles os legisladores”.
489
Ocorre que este silogismo perfeito não passa, como indica Andrei
SCHMIDT, de um ideal utópico-iluminista. Afinal de contas, por mais simples que
seja um dispositivo legal-penal, ainda assim necessitará de uma atividade exegética
do intérprete: no caso, o juízo criminal.
490
Neste tocante, importa destacar - a título de nota - que a busca por uma
solução mais adequada para o problema do critério a ser seguido quando da
interpretação da lei, fez com que diversas correntes hermenêuticas se enfrentassem
ao longo da evolução do Direito, fazendo-se passar de um paradigma liberal-
individualista da consciência (onde nasceu a interpretação autêntica, jurisprudencial
e doutrinária; bem como a interpretação gramatical, lógica ou teleológica; e a
declarativa, restritiva e extensiva) para um novo paradigma da linguagem.
491
O certo é que, como indica MUÑOZ CONDE e GARCÍA ARÁN,
492
ao
estabelecer o sentido das normas para determinar que hipóteses estão
evidentemente reconhecidas por estas, o intérprete não pode desbordar os limites
dos termos legais e aplicá-las a hipóteses não previstas (ou não desejadas) pelas
mesmas, sob pena de violar o princípio da legalidade.
É também neste tocante que se insere a questão da analogia - que pode
ser concebida como uma forma de se integrar a Lei (e não uma forma de interpretá-
la)
493
, suprindo eventuais lacunas ou falhas. E tal integração, em termos de Direito
489
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p. 45-46: “Em cada delito o juiz deve formular um
silogismo perfeito: a premissa maior deve ser a lei geral; a menor, a ação em conformidade ou não
com a lei; a consequência, a liberdade ou a pena. Quando o juiz for coagido, ou quiser formular o
mesmo que dois silogismos, estará a aberta a porta à incerteza”. E, no mesmo sentido,
Montesquieu: “os juízes da nação são apenas, como dissemos, a boca que pronuncia as palavras
da lei; são seres inanimados que não podem moderar sem sua força, nem seu rigor” In:
MONTESQUIEU. Op. cit., p. 175.
490
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 161.
491
Firme-se que o presente trabalho não tem a pretensão de incorrer no vasto campo da
hermenêutica (sob pena, inclusive, de desviar aos fins propostos), ficando apenas a anotação, en
passeant, da sucessão de correntes no campo interpretativo da lei. Neste sentido: WARAT, Luiz
Alberto. Introdução Geral ao Direito: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sérgio
Fabris, 1995. p.51-56; LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 1989. p. 35-44 e 103-107; STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 199 e s.; FREITAS, Juarez. A interpretação Sistemática do
Direito. São Paulo: Malheiros, 1995; HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e
validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, v. 1, p. 140-142.
492
MUÑOZ CONDE, Francisco; GARCÍA ARÁN, Mercedes. Op. Cit., p. 109.
493
Neste tocante, válida a explicação de Santiago MIR PUIG: “A diferença entre
interpretação e analogia (proibida se prejudica o réu) é a seguinte: enquanto que a interpretação
busca um sentido do texto legal que se encontre dentro de seu sentido possível, a analogia supõe a
134
penal, sabidamente poderá ser empregada para beneficiar o réu (ao que se
chama de analogia in bonam partem).
Ora, se o Direito penal deve ser concebido como um instrumento dirigido à
salvaguarda das liberdades individuais frente aos abusos do poder, mesmo quando
tal perspectiva não estiver expressamente descrita na norma, ainda assim poderá o
operador propugnar pela ampliação de seu conteúdo. Ou seja, ao aplicador do
direito é dado o poder de aplicar uma norma benéfica a um caso que nela não se
enquadre, mas desde que o seja semelhante.
494
É que, sendo o princípio da legalidade uma expressão de defesa do
cidadão contra possíveis arbitrariedades do Estado, se a norma for dotada de um
caráter permissivo, justificante ou mesmo exculpante da conduta, tal situação faz
com que o uso da analogia não se choque com o espírito do princípio.
495
A idéia é, enfim, a de que as disposições penais são exaustivas e um
Código Penal não é produto, senão a soma de incriminações fechadas. Ora, “se a
lei quer castigar uma concreta conduta, ela a descreve em seu texto, catalogando
os fatos puníveis. Os casos ausentes não estão tão somente porque não se havia
previsto como delitos, senão porque se supõe que a lei não quer castigá-los”.
496
A aplicação analógica em desfavor do réu (in malam partem) compromete
a segurança dos indivíduos em face do poder punitivo do Estado, a qual o princípio
da legalidade visa tutelar e garantir como conquista democrática liberal.
Um segundo desdobramento material da legalidade proclama que as
normas penais sejam formuladas da maneira clara, inequívoca e com o maior grau
de objetividade possível, de maneira que se dêem a conhecer por inteiro a seus
destinatários: o cidadão e o Juiz.
497
É a idéia de lex certa, exigindo que a norma
seja verdadeiramente auto-explicativa: por isso, nulla crimen, nulla misura sine lege
certa.
aplicação da lei penal a um suposto não compreendido em nenhum dos sentidos possíveis da sua
letra, mas análogo a outros assim compreendidos em texto legal” – In: MIR PUIG, Santiago. Derecho
penal: parte geral. Barcelona: PPU, 1995. p. 96.
494
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Op. cit., p.123.
495
BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito penal..., 2.
ed., p. 143.
496
JIMÉNEZ DE ASÚA, Luis. Princípios de derecho penal: la ley y el delito. Buenos Aires:
Sudamericana, 1958. p. 126.
497
SILVA SÁNCHEZ, Jesús Maria. Aproximaxión al derecho penal contemporáneo.
Barcelona: Bisch, 1992. p. 254.
135
Nas palavras de BECCARIA, “é evidente que a obscuridade das leis é um
mal, e ele será ainda maior se as leis forem escritas em língua estranha ao povo e
que o submeta à dependência de uns poucos, sem que possa julgar por si mesmo
qual seria o êxito de sua liberdade, ou de seus semelhantes, a não ser que uma
língua fizesse de um livro solene e público um outro quase privado e doméstico”.
498
A idéia de uma lex certa acaba conclamando, para além da qualificação e
competência do legislador, o uso, por este, de uma técnica correta e de uma
linguagem rigorosa e uniformemente delimitada para circunscrever o âmbito de
incidência penal.
499
Nas palavras de Andrei SCHMIDT, “é o postulado da
precisão”
500
, o qual exige que a lei determine de forma suficientemente diferenciada
as distintas situações puníveis e as sanções que podem acarretar.
A idéia é a de que se deve evitar possíveis burlas quanto ao significado
pretendido pelo legislador – que é certamente o que ocorreria se fosse franqueada a
edição de normas penais absolutamente indeterminadas, provocando um afronte
direto a idéia de legalidade e trazendo uma indesejada insegurança nas reações
jurídicas (o que, inclusive, é alvo de grandes críticas da doutrina penal moderna
501
).
498
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p. 48. O autor continua, asseverando que “quanto maior
for o número dos que compreendem e tiveram entre as mãos o sagrado digo das leis, menos
freqüentes serão os delitos, pois não há vidas de que a ignorância e a incerteza das penas
propiciam a eloqüência das paixões”.
499
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais penais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
1991. p. 18.
500
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p, 249. Ou ainda, segundo Palazzo, é a
“taxatividade-determinação” In: PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989. p. 49.
501
Neste sentido, alerta HASSEMER: “A tendência do legislador moderno a expressar-se
melhor de forma pouco clara, e de carregar o peso da decisão nos ombros alheios, tem diferente
intensidade segundo as ramas do direito e, também, diferentes conseqüências (...). Os âmbitos
‘móveis’ do direito (direito econômico) toleram melhor que os ‘eternos’ (direito de família e penal) um
direito judiciário flexível. Nestes últimos, as modificações normativas supressivas, frequentes e não
espetaculares transmitem a sensação de instabilidade e irritação, enquanto que nos outros, pode ser
um indício de presença e modernidade” In: HASSEMER, Winfried. Crítica al derecho penal de hoy.
Norma, interpretación, procedimento. Limítes de la prisión preventiva. Buenos Aires: Ad-hoc, 1995. p.
18. No mesmo sentido, BUSATO e HUPAYA dizem que a idéia da lex certa entra em crise com o
chamado “moderno Direito penal”, em que se verifica a tendência do legislador em se expressar de
maneira pouco clara, ambígua e imprecisa In: BUSATO, Paulo César e HUAPAYA, Sandro
Montes. Introdução ao Direito penal..., 2. ed. p. 139. Embora alvo de várias críticas, importa verificar
que o legislador brasileiro não é muito sensível ao apelo da moderna corrente penal garantista.
Neste tocante, importa verificar o levantamento feito por Andrei SCHMIDT, que arrola inúmeras
normas penais brasileiras que são completamente abstratas – a título de exemplo: a Lei 7.170/83, ao
definir crimes contra a segurança nacional, empregou termos como “atos de hostilidade contra o
Brasil” (Art. 8), “Interesse do Estado brasileiro” (Art. 13), sabotagem (art. 15), “organizações
políticas clandestinas ou subversivas” (art. 20), “rebeldes, insurretos ou revolucionários(Art. 21); tal
136
Tal faceta desemboca na idéia de “taxatividade”, visto que a lei penal
deve ser bem determinada quanto ao seu conteúdo e abrangência, pois, do
contrário, não será dada a possibilidade do indivíduo tomar conhecimento do
verdadeiro limite da licitude/ilicitude de seus atos.
É uma decorrência direta do princípio da certeza no Direito penal,
502
a qual
somente estará assegurada se for construído um corpo estável e o mais preciso o
possível de leis, e desde que aqueles que devem resolver as controvérsias se
fundem nas normas nela contidas, e não em outros critérios (morais, religiosos, etc.)
- até porque, do contrário, a decisão se torna arbitrária e o cidadão não pode mais
prever com segurança as consequências das próprias ações.
Ou seja, mesmo ciente de que não é possível uma precisão absoluta na
delimitação de todas as condutas e seus efeitos práticos, certo é que o intérprete
não poderá empregar a norma de modo a violar direitos fundamentais.
A precisão é, pois, uma forma de resistência contra possíveis abusos de
poder na aplicação daquele ditame legal.
Dito isso, é necessário que a lei contenha todos os elementos e supostos
da norma jurídica. No campo penal, é exigido que o indivíduo conheça e
compreenda não apenas o caráter típico, antijurídico e culpável de sua conduta,
como também as possíveis consequências jurídicas da prática de seu ato.
Vale destacar, ainda, que a idéia de taxatividade das leis penais pode ser
dividida (classificada doutrinariamente) em dois paradigmas: uma taxatividade
formal e uma taxatividade material da lei. No primeiro caso, o princípio determina
que seja dado a todos o conhecimento da edição da lei (traduzida numa idéia de
publicidade), sob pena de a obrigação dela resultante não alcançar a população
diretamente interessada.
503
Quanto ao segundo aspecto, igualmente relevante, impõe-se a
necessidade de que todos tomem conhecimento não apenas da forma do
documento legislativo, como também do exato alcance de seu conteúdo (traduzida
se vê, também, na Lei 7492/90, Lei 8071/90, Lei 8078/90, Lei 8137/90, Lei 8974/95, etc. In:
SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 246-248.
502
Consoante enunciado por, Andrei SCHMIDT - Ibidem, p. 236.
503
Nas lições de Hobbes: “se não forem conhecidas, as leis não obrigam, e nem são
propriamente leis” – In: HOBBES, Thomas. Op. cit., p. 79.
137
na idéia de internalização da norma).
504
É neste quadrante que se discute, por fim, a relevante questão do princípio
da tipicidade, que consagra exatamente esta exigência de uma discriminação formal
e precisa das hipóteses de incidência do poder punitivo estatal. E aqui, tem-se que
a descrição material da exação de ser um conceito fechado, seguro, exato,
preciso e reforçador da segurança jurídica, tal qual deve ser o tipo penal.
Uma lei indeterminada ou imprecisa como ocorre com o pressuposto da
periculosidade criminal do agente não delimita o campo de atuação penal, e
assim, o indivíduo não tem condições de reconhecer o que se quer proibir. E assim,
por consequência, sua existência tampouco pode proporcionar a base para a
reprovação da conduta.
505
Tais leis (como ocorre com o conceito de periculosidade), não possuem o
condão de proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não conseguem limitar a
atuação do poder punitivo. Por isso WELZEL afirmava que “o verdadeiro perigo que
ameaça o princípio do nulla poena sine lege não procede da analogia, mas sim das
leis penais indeterminadas”.
506
Como lembra SILVA SÁNCHEZ, “as leis indeterminadas, por exemplo,
permitem uma ampla margem criativa ao juiz, que se formulam com conceitos
vagos ou porosos, com termos que requerem um alto grau de valoração”.
507
Neste sentido, é de se ter que “a clareza e taxatividade são
imprescindíveis condições da segurança jurídica. Mas, para que possa falar de
segurança jurídica, é preciso, ademais, que se determine de antemão quais
condutas constituem delitos e quais não, e que ‘sanções’ são aplicáveis a cada
caso. Também resulta indispensável que essa determinação seja levada a cabo
pelo legislador, pois, do contrário, os cidadãos quedam à mercê dos juízes ou do
governo”.
508
A lex certa figura, portanto, como um grande mecanismo de limitação dos
abusos não só legislativos, como também dos abusos judiciais e do administrador.
504
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p, 238.
505
ROXIN, Claus. Op. cit., p. 169.
506
WELZEL, Hans. Derecho penal Alemán. Santiago: Juridica de Cile, 1997. p. 27.
507
SILVA SÁNCHES, Jesús María. Op. cit., p. 254.
508
COBO DEL ROSAL, Manuel; VIVES ANTÓN, Tomás S. Derecho penal: parte general.
Valência: Tirant lo Banch, 1987. p.254.
138
Afinal de contas, uma política criminal garantista como propugnada por nossa
ordem constitucional - recomenda exatamente dispositivos legais claros e
concisos.
509
E nesse contexto, esta faceta da legalidade acaba também por garantir o
princípio da separação dos poderes, afastando ao máximo as possibilidades legais
de o Juiz, in concreto, estabelecer o “verdadeiro” alcance da norma.
Apenas lei clara e precisa pode impor medida de segurança, estabelecer
seus critérios de aplicação e seus pressupostos legitimantes, não podendo o
legislador se valer de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados ou ambíguos
para tal imposição.
510
O legislador deve, ainda, enunciar elementos precisos e
descritivos. Ademais, o estado de periculosidade deve ater-se à idéia do tatbestand,
não podendo se valer da analogia. Deve haver, pois, precisão, clareza e
determinação dos pressupostos da medida
511
- e isso, data vênia, não é possível.
Uma última faceta da legalidade, está fundada na idéia de lex necessariae.
Afinal de contas, não basta que a lei seja prévia, escrita, estrita e precisa em seus
termos, se ela seja efetivamente imprescindível para se alcançar os fins maiores
que são objetivados pela sociedade
512
, os quais estão devidamente especificados
em nossa Carta Magna: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (ex vi
artigo 3º da CR/88).
Como se sabe, no Estado democrático-constitucional de Direito, todos os
509
BENTHAM já afirmava que se a finalidade da lei é dirigir a conduta dos cidadãos, duas
coisas serão necessárias para o cumprimento desse fim: primeiro, que a lei seja clara, isto é, que
faça nascer na mente uma idéia que representa a exata vontade do legislador; e, segundo, que a lei
seja concisa, de modo a se fixar facilmente na memória. BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos
princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
510
TOLEDO, Francisco de Assis. Op. cit., p. 22.
511
FERRARI, Eduardo Real. Op. cit., p. 94-95.
512
Neste sentido, ao discorrer sobre a legalidade no âmbito tributário (ao que podemos
também dizer válido para o âmbito penal), Alberto XAVIER assevera que “o conteúdo material, ou
seja, o fim da realização da justiça material, está na base do princípio da legalidade tributária, que se
exprime pela proibição do arbítrio, na proibição de tratamentos desiguais e em discriminações que
não correspondem a critérios razoáveis e compatíveis com o sistema da Constituição”, bem como
está firmada na idéia de realização positiva dos Direitos constitucionalmente assegurados aos
cidadãos In: XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Forense,
2002. p. 09.
139
poderes e funções do Estado estão juridicamente vinculados às normas
hierarquicamente superiores da constituição e disso ninguém tem dúvida. O
grande problema está em precisar o conteúdo e a extensão dessa vinculação
jurídico-constitucional, pois, como assevera Gomes CANOTILHO, “a vinculação
constitucional é uma vinculação através da fundamentação e não através de
simples limites. A vinculação constitucional implica, pois, na determinação positiva
dos atos legislativos pelas normas constitucionais”.
513
Neste condão, não apenas a limitação do poder punitivo estatal deve ser
objeto de proteção pela via da legalidade, que deve, também, primar pela efetiva
consagração dos direitos fundamentais de todos os cidadãos inclusive dos
acusados em processo penal: “... a tarefa do legislador é, também, a de transformar
o conteúdo virtual da Constituição em conteúdo jurídico efetivo”.
514
Nas lições de Luigi FERRAJOLI
515
, tem-se que “nenhuma maioria, sequer
por unanimidade, pode legitimamente decidir a violação de um direito de liberdade
ou não decidir a satisfação de um direito social”. Os direitos fundamentais,
precisamente porque estão igualmente garantidos para todos e subtraídos da
disponibilidade do mercado e da política, formam a esfera do que pode ou não ser
objeto de decisão, e atuam como fatores não de legitimação, senão também, e,
sobretudo, como fatores de deslegitimação das decisões e das não-decisões. Ainda
nas palavras de FERRAJOLI, é de se ressaltar que:
... garantias não são outras coisas que as técnicas previstas pelo ordenamento para
reduzir a distância estrutural entre normatividade e efetividade, e, portanto, para
possibilitar a máxima eficácia dos direitos fundamentais em coerência com sua
estipulação constitucional. Por isso, refletem a diversa estrutura dos direitos fundamentais
em coerência para cuja tutela ou satisfação foram previstas: as garantias liberais, ao
estarem dirigidas a assegurar a tutela dos direitos de liberdade, consistem
essencialmente em técnicas de invalidação ou de anulação dos atos proibidos que as
violam; as garantias sociais, orientadas como estão a assegurar a tutela dos direitos
sociais, consistem, ao contrário, em técnicas de coerção e/ou de sanção contra a omissão
das medidas obrigatórias que as satisfazem. Em todos os casos, o garantismo de um
sistema jurídico é uma questão de grau, que depende da precisão dos vínculos positivos
ou negativos impostos aos poderes blicos pelas normas constitucionais e pelo sistema
513
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do
Legislador. Coimbra: Almedina, 2001. p. 248-249.
514
Idem.
515
FERRAJOLI, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias. In: OLIVEIRA JÚNIOR, José
Alcebíades de (Org.). O Novo em Direito e Política. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 89-
109.
140
de garantias que asseguram uma taxa mais ou menos elevada de eficácia a tais
vínculos.
516
Quer-se dizer, com isso, que a simples observância da norma não basta,
que ela não encontra validade em si mesma. Tal validade provém dos valores
(político-criminais e político-tributários) eleitos pelo Estado Democrático de Direto e
que estão encampados na Constituição.
Neste diapasão, além de ter uma função técnica de construção e
interpretação do Direito penal, o princípio da legalidade também desempenha uma
função política de realização de justiça penal. Disso decorre que o princípio da
legalidade, no Estado constitucional, passa a compor-se, para além dos quatro
desdobramentos clássicos, de um quinto e último elemento: nulla crimen, nulla
misura sine lege necessariae.
517
Nota-se que esta idéia acaba por consagrar, também, o princípio da
intervenção mínima, que é uma das pilastras que sustenta o Direito penal num
Estado democrático.
Como indica Luiz LUISI, o princípio da legalidade, para evitar a
deterioração do Direito penal através de sua hipertrofia, impõe o dever de se
acoplar a faceta da necessidade.
518
Dito isso, certo é que a legalidade, quando consagrada em sua inteireza,
cumpre a função decisiva na garantia de liberdades dos cidadãos frente ao poder
punitivo Estatal.
Desde a formulação clássica de MONTESQUIEU
519
, a legalidade,
encarada sob o ângulo do indivíduo, contém a afirmação da liberdade como regra
geral. E isso equivale a dizer que todo homem é livre para fazer tudo aquilo que a lei
não lhe proíba expressamente, razão pela qual o Estado não pode exigir aquilo que
não está delineado na lei.
É deste aspecto que resulta, em termos rigorosos, uma limitação para a
atuação do Estado.
Por outro lado, quando é desrespeitada a legalidade (seja na totalidade ou
516
FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Garantías: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999. p.
24.
517
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 273.
518
LUISI, Luiz. Direito penal e revisão constitucional. Revista dos Tribunais. v. 729, p.
369-376, jul.1996. p.373-374.
141
em alguma de suas facetas), abre-se perigosa brecha para o alargamento
discricionário e muitas vezes ilimitado do poder punitivo. Afinal, para que se possa
combater o arbítrio e para que sejam respeitadas as liberdades individuais, que
se reconhecer uma seara garantida pela lei, na qual o Estado não pode intervir.
O arbítrio representa insegurança para o indivíduo e um desrespeito ao
Estado Democrático de Direito.
Assim, analisando o princípio (em sua inteireza) em relação a medida de
segurança, é de se observar que o instituto, de fato, acaba consagrando apenas
uma faceta meramente formal, entendida como lei competente e anterior. Todavia,
não respeita em sua inteireza a idéia de lei estrita e, menos ainda, de lei certa e
necessária.
A falta de clareza, a incerteza, a abstração que lhe são inerentes, estão
firmadas desde o conceito de periculosidade que, como se observou, não goza
de parâmetros concretos de definição até os limites da execução da medida, visto
que não há tempo máximo de previsão.
Uma vez submetido à medida de segurança, o indivíduo continuará a
sofrer deste mal (o da imprevisibilidade e da incerteza) até que logre milagroso
laudo de cessação de periculosidade que o possibilite retornar ao convívio em
sociedade - o que é raríssimo (para não dizer impossível), pois para além da
ausência dos sintomas da patológia, é também necessário ostentar um bom
comportamento na instituição asilar e receber o respaldo familiar (leia-se, aceitação
social), “critérios estes eminentemente ligados à prática clínica do perito”, como bem
adverte Kátia MECLER.
520
É por isso que se questionou no corpo do trabalho a legitimidade do perito,
pois é na própria desmistificação de sua suposta objetividade ou certeza científica
que é a razão de ser do diagnóstico médico
521
- que se constatará os primeiros
equívocos que cercam o instituto da medida de segurança.
519
MONTESQUIEU. Op. cit., capítulo III e IV.
520
MECLER, Kátia. Periculosidade e inimputabilidade, p.103 Apud MATTOS, Virgílio de.
Ob. cit, p. 90-91.
521
“Afinal, se o juízo de periculosidade está sendo firmado, na realidade, com base em
variáveis não médicas, melhor seria que fosse exercido por profissionais ou integrantes da própria
sociedade, quiçá num órgão colegiado e interdisciplinar, cuja legitimidade de intervenção, desde o
início, estaria sujeita a toda a espécie de escrutínio, até porque, desde o início, não mais se
142
Cabe lembrar, uma vez mais, das palavras de BECCARIA: “se existisse
uma escala exata e universal de penas e delitos, teríamos uma medida provável e
comum dos graus de tirania e de liberdade, do fundo de humanidade ou de maldade
das diversas nações”.
522
Nas lições de Miguel REALE JÚNIOR, “a periculosidade, como critério
exclusivo para a aplicação de qualquer sanção, atende às necessidades de um
direito penal totalitário, pois permite ampla discricionariedade quanto ao ajuizamento
do estado perigoso, sendo viável ter-se, indiferentemente, rigor ou benevolência no
campo da responsabilidade penal”.
523
Assim, resta completamente inviável se falar em plena observância da
legalidade em termos de medida, o que a torna inconstitucional frente ao modelo
jurídico brasileiro.
Ademais, como indica BUSATO e HUPAYA, negar a aplicação de
qualquer das vertentes do princípio da legalidade traduz-se em convivência para a
criação de duas classes de cidadão: os que respondem e os que não respondem
criminalmente (ou seja, que podem estar fora do alcance da norma penal). Assim, é
possível dizer que uma ‘brecha’ desta natureza fere a própria idéia de Democracia e
de igualdade
524
- o que não pode ser aceito.
Como assinalara MONTESQUIEU, a idéia de igualdade está intimamente
vinculada à própria estrutura do Estado de Direito, a ponto de ser possível
asseverar que os contornos firmados pela lei possibilitam também definir o conceito,
o conteúdo e o alcance desta igualdade.
525
E dentre as variadas formatações da idéia de isonomia, importa destacar
aquela que impõe um tratamento indiscriminado aos cidadãos perante o Direito a
qual está assegurada no artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos
de 1948, bem como no artigo 5º da Constituição brasileira.
526
esperaria de tais opiniões ‘objetividade ou cientificidade’ alguma” In: SILVA, Eliezer Gomes da.
Transtornos..., p. 92.
522
BECCARIA, Cesare. Op. cit., p.100-101.
523
REALE JÚNIOR, Miguel. Prisão albergue, periculosidade e o novo Código Penal.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, v.2, n. 3, p. 158-168, 1975. p. 163.
524
BUSATO, Paulo César; HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito penal..., 2
ed. p. 138-139.
525
MONTESQUIEU. Op. cit., p. 211.
526
Art.7º DUDH: “Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a
igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a
143
Tal iia traduziu, num primeiro momento, o acolhimento da reivindicação
liberal da igualdade que visava findar com os privilégios de alguns sobre outros.
527
Por isso, é imprescindível que haja a igualdade de todos perante a lei,
razão pela qual deve haver uma uniformização do estatuto jurídico para todos os
homens: “é a igualdade perante o direito em geral, perante o direito como
sistema”.
528
Ser igual perante a lei implica em dizer que, antes de mais nada, o
direito é um para todos os homens, estando vedadas as discriminações e os
privilégios.
Mas para além desta isonomia (meramente) formal, é também
imprescindível que se leve em conta as variações e as peculiaridades que existem
entre os diversos grupos que conformar uma determinada comunidade afinal, as
pessoas o são todas homogêneas. Assim, a compreensão exata da igualdade
demanda que a leitura do artigo da CR/88 seja realizada de maneira integrada
com outras normas constitucionais, não apenas num aspecto negativo (de vedar
privilégios), mas também sob um aspecto positivo: de compensar eventuais
discrepâncias e hiposuficiência de determinadas pessoas ou grupos.
529
Nesta perspectiva, resta também impossível se falar em igualdade em
termos de medida de segurança, pois, como visto, vários são os direitos e
benefícios negados aos inimputáveis refratários a norma penal que foram
submetidos ao cruel tratamento conferido pela medida - o que os difere (formal e
substancialmente) daqueles agentes culpáveis que receberam uma pena criminal.
presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação” Disponível em:
<http://www.onu-brasil.org.br/documentos_direitoshumanos.php> Acesso em: 15 jan. 2009. Também
o Art. CR/88: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes...”.
527
Neste sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. o
Paulo: Malheiros, 2007. p. 211-227. E também: FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de
direito e constituição. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 27-28.
528
Ibidem, p. 28.
529
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O Princípio Constitucional da Igualdade. Belo
Horizonte: Jurídicos Lê, 1990. p. 110-118. Neste sentido, a autora afirma que “não se aspira uma
igualdade que frustre e desbaste as desigualdades que semeiam a riqueza humana da sociedade
plural, nem se deseja uma desigualdade tão grande e injusta que impeça o homem de ser digno em
sua existência e feliz em seu destino. O que se quer é a igualdade jurídica que embase a realização
de todas as desigualdades humanas e faça suprimento ético de valores poéticos que o homem
possa desenvolver. As desigualdades naturais (físicas, de cor, sexo, raça, etc.) são saudáveis, como
são doentes aquelas sociais e econômicas, que o deixam alternativas de caminhos singulares a
cada ser humano único”.
144
Ao mesmo passo, a compensação das deficiências que lhe são inerentes
(face ao quadro clínico em que se encontra o doente mental), a qual é propugnada
sob um aspecto positivo do princípio da isonomia, acaba também sendo olvidada no
caso concreto afinal, o almejado “tratamento”, que lhes poderia conferir a
possibilidade de retornar ao convívio social, muitas vezes é negado dentro da
instituição asilar, a qual acaba funcionando (numa lógica perversa) apenas como
meio de segregação e controle do indesejado.
3.1.2 Desvirtuamento da Culpabilidade, Intervenção Mínima, Devido Processo
Legal, Coisa Julgada e Humanização
Inicialmente, importa firmar que a bandeira erguida pelo movimento da
defesa social, no sentido de que se deve sancionar o indivíduo perigoso, é
equivocada. Certamente, periculosidade criminal não é sinônimo de necessidade
social.
A experiência demonstra que o caráter puramente utilitário é arbitrário e
vazio de sentido (o fato de ser útil não justifica tudo...!). Em um Estado democrático
de Direito, “inaceitável constitui a imposição da medida de segurança por mera e
obscura necessidade social, configurando o puro utilitarismo como ilimitado poder
estatal, desrespeitando aos seus próprios destinatários. Imprescindível que sua
aplicação seja justificada racional e moralmente”.
530
É certo que muitos defendem a legitimidade da medida de segurança para
proteção da macrosociedade, no sentido de que se deve sim segregar o “louco-
infrator” para proteger a comunidade de possíveis perigos que este possa lhe trazer.
Segundo esses autores
531
, há sempre nestes casos a prevalência do interesse
530
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 73-74.
531
Como se vê, por exemplo, com: CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte
geral. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 1, p. 428-429; MIRABETE, Julio Fabbrini; FABBRINI, Renato N.
Manual de Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2008, v. 1, p. 375-376; JESUS, Damásio E.
de. Direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 1, p. 545-546; MARQUES, José
Frederico. Tratado de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1956, v. 1, p. 80. E este último, inclusive,
aduz que o estado de desajustamento social do homem, de máxima gravidade, resultante de uma
maneira de ser particular do indivíduo, congênita ou gerada pela pressão de condições desfavoráveis
do meio, (...) manifesta uma criminosidade latente à espera do momento para exprimir-se no ato de
delinquir (...), de todo danoso para o meio sociedade”.
145
público sobre o privado: segrega-se um para proteção dos demais.
Contudo, esta postura acaba legitimando, uma vez mais, o tratamento de
inimigo a certa gama de indivíduos consoante fórmula pregada por Günther
JAKOBS.
532
Sobre isso, FERRAJOLI assinala que os ordenamentos que legitimam a
sanção em razão da personalidade do sujeito e na valoração de sua periculosidade,
constituem-se em modelos do “tipo normativo de autor”.
533
O que tais ordenamentos esquecem é, que com estas medidas, se está
afastando outros valores que são igualmente importantes não apenas para o
doente-infrator (singularmente considerado), mas para a sociedade como um todo:
ampla defesa, contraditório, devido processo legal, dignidade, humanização, etc.
Além disso, ao se retirar estas garantias fundamentais do doente mental criminoso,
se está, em verdade, negando estes mesmos direitos à toda a população afinal,
amanhã o doente, o infrator, o perigoso, pode ser qualquer um.
Nesta perspectiva, é importante verificar como a medida de segurança
acaba afrontando de maneira crucial outros dois princípios basilares do Direito
penal, também assegurados pela Carta Magna, o que reafirma a sua
inconstitucionalidade: fala-se, aqui, do princípio da culpabilidade e da intervenção
mínima.
O primeiro veda a possibilidade de um crime ser praticado sem que o
agente seja culpável. O termo culpabilidade pode ser elaborado, como aponta
Cezar Roberto BITENCOURT,
534
num triplo sentido: primeiramente, como
fundamento da sanção, no sentido de que ao autor de um injusto penal somente
seja cominada uma sanção caso sua conduta seja dotada de reprovabilidade,
segundo requisitos prévia e objetivamente delineados pela ordem penal.
Num segundo sentido, culpabilidade impõe-se como limite da sanção,
tolhendo a sua cominação além das finalidades do sistema penal. Por fim, como
indicativo de uma responsabilização subjetiva, impedindo a imputação de um
resultado a alguém sempre que este não tenha obrado, ao menos, culposamente.
A estas três perspectivas deve atentar o julgador, sempre que for prolatar
532
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p.11.
533
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 625.
534
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal..., v. 1, p. 44-45.
146
uma decisão no âmbito penal. Contudo, como bem indica Andrei SCHMIDT, que
se ressaltar que também ao legislador é imposto o dever de observar a
culpabilidade quando da formulação das normas; afinal ao legislador também é
imposta a vinculação de somente construir o sistema penal em estrita observância a
estas diretrizes: “portanto, o princípio da culpabilidade, além de estabelecer o nulla
poena (ou nulla misura) sine culpa, também resguarda o nullum crimen sine
culpa”.
535
A idéia é de que somente se pode atribuir a qualidade de uma ação (ou
omissão) a dado comportamento humano, se ele for objeto de uma decisão. Como
afirmava Von LISZT, a idéia de ato supõe, pois, uma manifestação de vontade”
536
,
e, assim, nada poderá ser objeto de proibição ou punição se não houver
intencionalidade, ou seja, se não realizado o comportamento por alguém que tenha
capacidade de entender e de querer.
Diante disso, o princípio da culpabilidade acaba fundando algumas
premissas relevantes: primeiro, a idéia de que a tutela penal está sempre adstrita à
reprovabilidade de determinadas condutas, e não de seus autores.
O princípio também garante aos indivíduos, nas palavras de HART,
“prever e planificar o rumo futuro de sua vida partindo da estrutura coativa do
direito”, assegurando-lhe, inclusive, que “quando as coisas vão mal, como ocorre
quando se cometem erros ou se produzam acidentes, uma pessoa que haja feito o
máximo possível para respeitar o direito, não será castigada”.
537
É também relevante firmar que tudo aquilo que não seja fruto da
capacidade intelectual e volitiva humana não pode ser objeto de verificação pelo
direito penal, pois tal função não pode se desenvolver sobre possíveis atos futuros e
incertos (como a probabilidade de reiterar condutas criminosas), mas tão somente
para fatos concretos e pretéritos (para injustos culpáveis já realizados).
Neste contexto, o princípio da culpabilidade acaba por desdobrar-se em
outros três sub-princípios: intranscendência, responsabilidade pelo fato e
responsabilidade subjetiva.
Com o primeiro, quer-se dizer que ninguém poderá ser punido por fato que
535
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 127.
536
LISZT, Anselm Von. Tratado de..., p. 297.
147
não praticou, e, assim, fica vedada a possibilidade de responsabilização coletiva – é
o que previu o artigo 5º, inciso XLV da CR/88, quando afirmou que “nenhuma pena
passará da pessoa do condenado”, e o inciso LVII do mesmo artigo, ao consagrar
que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença
condenatória”.
O segundo indica que somente as condutas descritas como ilícitas pelo
ordenamento poderão ser alvo de responsabilização penal e desde que estas sejam
exteriorizadas pelo agente, posto que a simples cogitatio não é punível. É esta
faceta da culpabilidade que obriga o legislador a conceber um Direito penal do fato,
em contraposição a um Direito penal do autor (do inimigo), pois a tutela penal não
pode desprezar os fatos para punir simplesmente o modo de ser dos indivíduos.
Nas lições de HOBBES, “as leis são postas para regular ações, produto da
nossa vontade, e não as opiniões nem a fé, que estão fora do nosso alcance,
sobretudo a fé, que não é produto da nossa vontade”.
538
Por este motivo, qualquer
esboço de se promover um direito penal do inimigo, que julgue e puna a pessoa
pelo que ela é por exemplo, um agente perigoso e não pelo que fez, torna-se
automaticamente inconstitucional.
Como atesta Andrei SCHMIDT, “meros vícios ou estados pessoais,
quando não lesivos de bens jurídicos alheios, além da ‘maldade interna dos
indivíduos, não podem ser objeto de tutela penal”.
539
Por fim, consagra a idéia de que o resultado penalmente relevante, para
ser atribuído à conduta de uma pessoa, não depende apenas de um nexo de
causalidade. Partindo do pressuposto de que somente fatos humanos podem ser
objeto de responsabilização penal, certo é que, dentre estes, somente aqueles em
que o agente perseguiu o resultado lesivo ou, excepcionalmente, não previu o
possível dano pela quebra do dever de cuidado. Assim, ficam de fora do Direito
penal as rmulas da responsabilidade objetiva e de responsabilidade pelo mero
resultado.
Este último sub-princípio vem sendo alvo de constante bombardeio frente
aos discursos alarmistas provocados pela ideologia do medo e pelas políticas
537
HART, Herbert. Responsabilitá e pena..., p. 208 Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão.., p. 491.
538
HOBBES, Tomas. Op. cit., p. 235.
148
oriundas do Direito americano da “Lei e Ordem”, que tentam subverter o papel do
Direito penal.
540
A concepção clássico-liberal que propunha a descriminalização das
condutas e a atenuação das sanções parece, agora, ter se transmudado para uma
nova lógica de criminalização e aumento das reprimendas penais, orientando-se
não mais à proteção dos clássicos bens jurídicos do indivíduo, mas sim dos
interesses gerais camuflados na teratológica expressão “bem-estar social”.
541
Diante disso, com a total predominância, nos dias atuais, da criminalidade
de perigo em detrimento da criminalidade de dano, e, na busca de um falacioso
“direito penal eficiente”, acaba o princípio da culpabilidade por restar quase que
esvaziado em seu real conteúdo, esquecendo-se que o Direito penal deve figurar
como limitador do poder de punir.
A questão é que, com isso, a sociedade vive uma verdadeira crise da
reprovabilidade, em que não se sabe mais, com antecedência e certeza, aquilo que
é ou não reprovável e, principalmente, aquilo que implicará (ou não) em sanção
penal.
É por isso que o discurso utilitarista não serve ao Direito penal, de modo
que a idéia de que “os fins justificam os meios” não deve valer em hipótese penal
alguma. Mesmo porque, não será com o atropelamento das garantias individuais
que os desvios sociais deverão ser controlados, o que faz do discurso do Direito
penal máximo um discurso falacioso e vazio de sentido.
Nota-se, assim, que o marco da culpabilidade, para fins de fixação da
sanção, irá depender dos fundamentos (“por que proibir, processar e punir?”
542
)
eleitos por uma ordem jurídica, os quais deverão acompanhar não apenas o
trabalho do legislador, como também o trabalho do magistrado.
Certo é que a culpabilidade inviabiliza respostas penais que excedam os
539
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 129.
540
GLASSMER, Barry. Cultura do Medo. São Paulo: Francis, 2003; PASTANA, Débora
Regina. Cultura do medo: reflexões sobre a violência criminal, controle social e cidadania no Brasil.
São Paulo: Método, 2003; ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas..., p.131;
Sobre a ideologia americana da Law and Order, ver: WACQUANT, Löic. Punir os pobres..., p. 28 e
s.; ZAFFARONI, Eugênio Raúl; BATISTA, Nilo. Direito penal brasileiro..., p. 632 e s. E ainda MORAIS
DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Para um processo penal democrático:
críticas à metástase do sistema de controle social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.29-40.
541
SCHMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p.130
542
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p.169 e s.
149
limites da reprovação, e sendo a medida de segurança uma espécie de sanção que
não goza de limitação definida exatamente por prescindir da culpa (lato sensu) do
agente e exigir apenas uma possível periculosidade -, tal instituto não se adequa ao
princípio constitucional da culpabilidade.
Outro princípio que também é afetado com pela estrutura ilógica da
medida de segurança é o da necessidade, também conhecido como “intervenção
mínima”, que, como visto, possui certa vinculação com a própria legalidade (idéia de
lex necessaria). Tal princípio possui, como premissa, a idéia de restringir, ao mínimo
possível, os direitos do cidadão, a fim de se conseguir o máximo de liberdade: “A
tarefa do direito penal é precisamente a de intervir o mínimo possível para conseguir
o máximo de liberdade”.
543
Este princípio foi primeiramente previsto no art. 8º da Declaração dos
Direitos dos Homens e do Cidadão de 1789, e traduz a seguinte lógica: somente se
admite a imposição de reprimendas penais quando extremamente necessária,
vedando-se tipificações e sanções supérfluas, vagas e indeterminadas.
544
A idéia é
a de que o Direito penal se legitima quando insuficiente o amparo dado por
outros ramos do ordenamento jurídico (ultima ratio; idéia de subsidiariedade,
fragmentariedade da interferência criminal). O Estado deve ser minimalista no
Direito penal, para garantir mais liberdade ao cidadão.
545
Este princípio também motivou o surgimento de um movimento para
descriminalização, despenalização e desjudicialização de condutas – com o objetivo
de evitar exatamente a intervenção excessiva do direito penal. Este movimento
543
CARBONEL MATEU, Juan Carlos. Derecho penal: concepts y principios
constitucionales. Valencia: Tirant lo Blanch, 1996. p. 194.
544
Art. DDHC: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente
necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes
do delito e legalmente aplicada”. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/Doc_Histo/texto/Direitos_homem_cidad.html> Acesso
em: 08 jan. 2009.
545
A legitimação da medida decorre “de sua finalidade global de defesa social, isto é, de
presunção de injustos penais futuros por ato de autor perigoso, inaceitáveis nos limites da paz
social”. O que o autor quer dizer é que o princípio da defesa social deve, por certo, ser congregado
com o p.p da ponderação de bens conflitantes, que, nos dizeres de Roxin, a liberdade do imputável
ou inimputável pode ser suprimida “quando o seu uso conduza, com alta probabilidade, a
prejuízos de outras pessoas que, na sua globalidade, pesa mais do que as limitações que o
causador do perigo deve sofrer com a medida de segurança”. Acrescenta, ainda, que Jescheck
lembra dos dois grandes objetivos a serem alcançados pela medida de segurança: proteger a
macrosociedade frente aos futuros delitos e alcançar efeitos ressocializantes sobre o autor do injusto
penal – In: COSTA, Àlvaro Mayrink da. Medida de Segurança..., p. 03-24.
150
abarca um conjunto de medidas usados pelas instâncias formais de controle com o
intuito de alcançar soluções informais aos conflitos jurídico de menor relevância.
Com sua incidência, implementam-se medidas anteriores ao momento processual
de determinação de punição, tentando evitar que o cidadão seja estigmatizado pelo
Direito penal.
546
Tal princípio prescreve que as proibições legais de natureza penal, por
possuírem a potencialidade de lesar um dos mais valiosos bens jurídicos dos
indivíduos a liberdade -, somente devem ser editadas quando estritamente
imprescindíveis.
Neste tocante, basta lembrar da idéia trazida por MONTESQUIEU, no
sentido de que “quando um povo é virtuoso, precisa de poucas penas”.
547
É nessa perspectiva que se consagra ao Direito penal a idéia de ultima
ratio. Deste modo, o Direito penal deixa de ser necessário para proteger a
sociedade quando tal proteção possa ser obtida por outros meios (jurídicos ou não)
menos lesivos aos direitos individuais, o que nada mais é do que a exegese gica
do Estado democrático.
Deste princípio decorrem duas características estruturantes do Direito
penal: a fragmentariedade e a subsidiariedade.
548
A noção de fragmentariedade foi primeiramente anotada por BINDING,
que afirmava que o Direito penal não deveria sancionar todas as condutas lesivas
dos bens jurídicos que protege, mas somente as modalidades de ataque mais
perigosas para eles. Neste sentido, a lógica disciplinar restaria amplamente
contrária aos postulados da fragmentariedade, pois com ela tenta-se fiscalizar,
prever e punir tudo o quanto for possível.
549
a subsidiariedade, enquanto reflexo do princípio da proporcionalidade,
indica que o fim e o fundamento de uma intervenção devem restar justificados com
os efeitos desta, a fim de que se torne possível o controle de eventuais excessos.
550
Neste diapasão, importa ressaltar que a noção de proporcionalidade
546
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p.114.
547
MONTESQUIEU. Op. cit., p. 94.
548
LUISI, Luiz. Os princípios constitucionais..., p. 26.
549
BINDING, K. Grundriss des deutsche Strafrechts, 1975 Apud MIR PUIGI, Santiago.
Op. cit., p. 90.
550
IHERING, Rudolf Von. Op. cit., p. 27.
151
traduz exatamente essa idéia de proibição de excessos; visa garantir a esfera de
liberdade individual, limitando a interferência do poder estatal, contestando
ingerências desnecessárias, inadequadas ou desproporcionais.
551
E este princípio se subdivide em três facetas as quais devem (ou ao
menos deveriam) ser respeitadas pela medida de segurança: a da efetiva
necessidade, da adequação e da limitação de seus objetivos.
552
Portanto, não basta a afirmação de que o Direito penal, nas palavras de
MIR PUIG, “não de sancionar todas as condutas lesivas dos bens que protege,
mas sim, somente, as modalidades de ataque mais perigosas para eles”.
553
Em havendo a possibilidade de se aplicar uma sanção que não tenha
parâmetros máximos previamente delimitados, não apenas gerar-se-á a
insegurança jurídica, como também se legitimará a aplicação de reações
desproporcionais aos delitos praticados, marcando um verdadeiro retrocesso ao
período da vingança privada.
Firme-se que esta idéia de se conceber o Direito penal como ultima ratio
não deve ser encarada como mera exigência político-judiciária dirigida ao legislador,
ou como mera recomendação.
554
Na verdade, em se tratando de um Estado
Democrático de Direito, onde a idéia de justiça social é também um dos objetivos
fundamentais do ordenamento (como ocorre com a República Federativa do Brasil
artigo 3º, I da CR/88), a idéia de intervenção mínima é alçada à categoria de norma
constitucional, a qual exige observância plena.
Ora, se a própria Carta Magna enuncia expressamente a limitação do
Estado ao desenvolvimento de uma “sociedade livre, justa e solidária”, não se
podem legitimar internamente as normas penais editadas à margem de um
551
FERRARI, Eduardo Reale. Op. cit., p. 100.
552
Assim, “necessidade e subsidiariedade estão traduzidos na idéia de proibição de
excessos, de modo que a medida de segurança somente será aplicada se imprescindível. Tal
princípio, reflexo da idéia de que o Direito penal é a ultima ratio, permite-nos concluir que a medida
de segurança é uma medida subsidiária, conferindo-se primazia a outras ões jurídicas menos
gravosas ao indivíduo: constituirão o exame do bem jurídico tutelado e a carência de sua tutela
criminal, incidindo a medida de segurança tão-somente quando efetiva a carência à salvaguarda de
outros interesse e direitos constitucionais protegidos (...) Adequação ou suficiência: a medida de
segurança deve ser adequada aos seus fins (ressocialização e tratamento do doente).
Proporcionalidade em sentido estrito: a carga de medida de segurança não pode ser desajustada,
excessiva” - Ibidem, p. 101-103
553
MIR PUIG, Santiago. Op. cit., p. 90.
554
Embora tal perspectiva seja defendida por alguns, como, por exemplo: MAURACH,
Reinhart. Op. cit., p. 34.
152
exaurimento dos demais mecanismos capazes de controlar o desvio social. Por
isso, é dever observar a idéia de intervenção mínima e os princípios dela
decorrentes, sob pena de se estar diante de uma norma inconstitucional. Assim, o
princípio passa a ser um critério de legitimação interna do ordenamento jurídico,
vinculado, por certo, à idéia de culpabilidade e de legalidade.
555
Mas é vem o grande problema: como se pode falar em intervenção
mínima frente a uma medida que visa a segregar indefinidamente um número cada
vez mais de indesejados assim identificados como sendo os ‘perigosos’? a
resposta é clara: a medida de segurança, ao encampar a lógica disciplinar de amplo
controle social e normalização, acaba arrostando a idéia de subsidiariedade e de
fragmentariedade inerentes ao Direito penal, o que também a torna inconstitucional.
E não para por aí. Como indica Luigi FERRAJOLI, no procedimento para
imposição da medida, não há fato algum a ser provado e sim uma determinada
qualidade do sujeito é que deve ser declarada: o estado perigoso.
556
É por isso que
se consagra que as averiguações psiquiátricas sobre o tema são alicerçadas
apenas em meras probabilidade de risco social, o que gera um grave problema: fica
difícil (se não impossível) refutar o laudo psiquiátrico.
Como recorda Salo de CARVALHO, uma das principais distinções entre o
sistema inquisitivo e o acusatório-garantista se manifesta no que diz respeito à
existência de possibilidade de concreta refutação das hipótese acusatórias e isso
não é possível na medida de segurança.
557
Portanto, o instituto também afronta o ditame constitucional que garante o
devido processo legal, o contraditório e ampla defesa: artigo 5º, incisos LIV e LV da
Constituição da República.
No mesmo sentido, indaga-se Aury LOPES JÚNIOR: como refutar esse
exercício de vidência por parte do magistrado? Como provar (como se o imputado
tivesse que provar algo...) que no futuro não irá cometer nenhum crime?”
558
É preocupante que decisões judiciais sobre uma eventual privação
indefinida da liberdade do sujeito sejam baseadas em pareceres médicos de índole
puramente inquisitorial. “O laudo pode até oferecer uma impressão sobre a
555
SCHIMIDT, Andrei Zenkner. Op. cit., p. 331.
556
FERRAJOL, Luigi. Direito e razão..., p. 783.
557
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias..., p. 199.
153
periculosidade do autor, mas tal conceito não é da competência exclusiva do perito
(...). É antes um conceito de senso comum, que pode ou não ser reforçado pelas
evidência técnicas ou clínicas apontadas na perícia”.
559
Mesmo porque, o risco de manipulação (do próprio conceito de risco e,
por consequência, do de periculosidade) pelos meios de comunicação de massas
como bem indica Alexandre Morais da ROSA, Sylvio Lourenço SILVEIRA FILHO e
outros -, fazendo com que a dita opinião blica não passe de “opinião publicada”,
com evidente prejuízos a todos.
560
Com isso, facilmente se percebe que quando se mantém uma pessoa
segregada em nome da segurança, da paz ou da ordem pública, baseado na
possibilidade de reiteração da conduta criminosa, está se atendendo não aos
ditames de um Direito penal ou processual democrático, mas sim a uma função
estritamente de polícia do Estado, completamente alheia ao objeto fundamental da
ciência penal.
561
Toda esta situação permite, uma vez mais, verificar a total
inconstitucionalidade do instituto, mesmo porque, a única presunção que a
Constituição permite, em termos penais, é a presunção de inocência (artigo 5º, LVII
da CR/88) nunca a de periculosidade: “é absolutamente inaceitável, diante da
flagrante inconstitucionalidade, a futurologia periculista que é invocada para
aplicação de uma medida de segurança, com base na ‘possível’ reiteração de
injustos penais”.
562
Neste tocante, é relevante trazer o escólio jurisprudencial do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, em acórdão relatado pelo Desembargador Amilton
558
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal..., p.209.
559
CORONEL, Luiz Carlos Illafont. Manicômio ou Presídio? A Imputabilidade Penal. In:
CORONEL, Luiz Carlos Illafont (Org.). Psiquiatria legal: informações científicas para o leigo. Porto
Alegre: Conceito, 2004, p. 103-104.
560
ROSA, Alexandre Morais da; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço. Op. cit., p. 07: “No
âmbito do sistema penal, os meios de comunicação exercem um importante papel ideológico, pois
sem eles não seira possível induzi os medos no sentido desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos
interessantes, ou seja, no momento em que são favoráveis ao poder das agências do sistema penal”.
No mesmo sentido: LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal..., 5, p. 211. E ainda:
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos Sediciosos, Rio de Janeiro,
n.12, p. 271-288, jul./dez. 2002, p. 274; CONTREA, Malena Segura. Mídia e pânico: saturação da
informação, violência e crise cultural na mídia. São Paulo: Annablume: FPESP, 2002. p. 53.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema
penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. p. 128.
561
LOPES JÚNIOR, Aury. Introdução crítica ao processo penal..., p.208.
562
Idem.
154
Bueno de CARVALHO:
HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. REQUISITOS LEGAIS. PRESUNÇÃO DE
PERICULOSIDADE PELA PROBABILIDADE DE REINCIDÊNCIA. INADMISSIBILIDADE.
- A futurologia perigosista, reflexo da absorção do aparato teórico da Escola Positiva -
que, desde muito, têm demonstrado seus efeitos nefastos: excessos punitivos de regimes
políticos totalitários, estigmatização e marginalização de determinadas classes sociais
(alvo do controle punitivo) - tem acarretado a proliferação de regras e técnicas vagas e
ilegítimas de controle social no sistema punitivo, onde o sujeito - considerado como
portador de uma perigosidade social da qual não pode subtrair-se - torna-se presa fácil ao
aniquilante sistema de exclusão social. - A ordem pública, requisito legal amplo, aberto e
carente de sólidos critérios de constatação (fruto desta ideologia perigosista) - portanto
antidemocrático -, facilmente enquadrável a qualquer situação, é aqui genérica e
abstratamente invocada - mera repetição da lei -, que nenhum dado fático, objetivo e
concreto, a sustentá-la. Fundamento prisional genérico, anti-garantista, insuficiente,
portanto! - A gravidade do delito, por si só, também não sustenta o cárcere
extemporâneo: ausente previsão constitucional e legal de prisão automática por qualquer
espécie delitiva. Necessária, e sempre, a presença dos requisitos legais (apelação-crime
70006140693, j. em 12/03/2003). – à unanimidade, concederam a ordem.
563
Ainda nesta perspectiva, é questionável o fato de que se advém uma
doença mental ao indivíduo que era penalmente imputável a época do fato, o
processo penal será imediatamente suspenso, até que ele se restabeleça (exegese
do contraditório e da ampla defesa firmadas no art. 152, caput do CPP
564
), enquanto
que àquele que era inimputável quando da prática da infração será nomeado um
curador para acompanhar-lhe até o final da instrução (ex vi art. 151 do CPP).
Ou seja, não lhe é oportunizado um verdadeiro e efetivo contraditório. Tal
perspectiva, além de afrontar a idéia de igualdade, também importa em uma séria
mácula ao devido processo legal.
Noutro giro, a idéia de periculosidade também implica num afronte ao
princípio do non bis in idem e ao da intangibilidade da coisa julgada (art. 5º, XXXVI
da CR/88), uma vez que se aplica ou se mantêm uma sanção com base na
possibilidade de reiteração da conduta desviante.
Lembre-se ainda que uma pena pode ser transmudada em medida de
segurança, bastando para tal que sobrevenha a insanidade mental e a verificação
pericial da periculosidade do agente no curso da execução – casos em que o
condenado sentenciado (com decisão definitiva) se encaminhado ao
563
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Habeas Corpus n70006140693,
Quinta Câmara Criminal, Relator Desembargaor Amilton Bueno de Carvalho, Julgado em 23 mar.
2003.
155
“manicômio judiciário” (conforme disposição do art. 154 e art. 682 do CPP).
Ou seja, a medida de segurança, por estar fundada na noção de
periculosidade, não faz verdadeira coisa julgada e nem a pressupõe. Neste
quadrante, partindo do pressuposto que a base da Jurisdição está fundada
exatamente na idéia de coisa julgada como bem destaca Clara Maria Roman
BORGES
565
-, e que a medida de segurança não a respeita, certamente nãoque
se falar em jurisdicionalidade, mas sim em “administrativização” das medidas.
Essa “material administrativização” da medida de segurança é ainda
agravada pelo fato abordado no bojo do trabalho de que compete ao perito
médico a missão primária de definir a existência (ou não) de periculosidade no
agente. Afinal, o perito médico é um agente administrativo do Estado, mesmo
quando atua a mando do poder Judiciário (como ocorre nos incidentes de sanidade
mental).
Em suma, quando o Magistrado processa e impõe a determinado sujeito
uma medida de segurança, na verdade está atuando administrativamente e não
jurisdicionalmente. O que implica em dizer que o controle jurisdicional é puramente
formal realizado ao final do processo, a título de simples chancela -, pois quem
detém materialmente o poder é, no fundo, o perito.
É exatamente o que se verifica nos casos de medida de segurança: um
processo administrativo, sem contraditório, sem ampla defesa, sem devido processo
legal, sem coisa julgada e que, ao final, traduz-se numa absolvição (imprópria) que
implica na aplicação de uma sanção incrivelmente mais severa que a própria pena.
É por isso que a periculosidade bem como o instituto da medida de
564
Note-se, ainda, que uma vez restabelecido o acusado, retomando-se o processo,
poderá ele ainda pleitear a reinquiriação de testemunhas que tenham sido ouvidas sem a sua
presença – conforme indica o parágrafo segundo do art. 157 do CPP.
565
O conceito carneluttiano, que estabelece a resolução de lides como fim imediato da
jurisdição, não serve para traduzir o atuar jurisdicional no processo penal na medida em que foi
concebido sob a égide da chamada Teoria Geral do Processo e, consequentemente, a partir de
elementos privatistas incompatíveis com os fundamentos publicistas deste. As críticas objetivistas a
esta definição deixaram claro que num processo de essência inquisitória, tal como aquele
desenvolvido na esfera penal, a jurisdição atua independentemente da existência de conflitos e tem
como finalidade a dicção do direito no caso concreto de forma definitiva. Nesta perspectiva, entende-
se que o critério capaz de distinguir a jurisdição das demais atuações estatais não é seu escopo de
solucionar conflitos, mas a tendência que seus atos têm de produzir coisa julgada” In: BORGES,
Clara Maria Roman. Jurisdição e normalização: uma análise foucaultiana da jurisdição penal.
Curitiba, 2005. 200 f. Tese (doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade
Federal do Paraná.
156
segurança - deve ser extirpada dos Estados Democráticos de Direito, pois é
inteiramente inviável o seu manejo diante de uma oxigenação constitucional.
566
Afinal, em um Estado democrático de Direito, veda-se a criação, a
aplicação ou a execução de pena, bem como de qualquer outra sanção que atente
contra a dignidade da pessoa humana. Ademais, qualquer sanção que seja
insuscetíveis de cumprir as finalidades de sua justificação não devem ser impostas
por consagrarem verdadeiro retorno ao estado de arbítrio em detrimento de
posturas mais esclarecidas do poder estatal diante do crime.
Constata-se, portanto, que a medida de segurança fere também aquele
que é, talvez, o mais importante de todos os dispositivos constitucionais: o art. 1º,
inciso III da CR/88, que pronuncia o respeito à dignidade da pessoa humana.
Como indica José de Faria COSTA, “se as antinomias podem surgir entre
valores supra-individuais impostos pelo Estado e os valores do homem concreto,
ainda que delinquente, elas (as medidas de segurança) sempre deverão
desaparecer quando esteja em perigo a dignidade humana”
567
, pois assim o
Estado Democrático cumpre seu escopo básico: o respeito pela dignidade da
pessoa.
A proteção e a defesa das garantias constitucionalmente previstas é o
maior de todos os interesses blicos. Por essa razão não se pode defender a
medida penal de segurança em hipótese alguma, mesmo se há fundada suspeita de
reiteração da conduta por parte do inimputável.
E o que mais impressiona é que embora seja flagrante a
inconstitucionalidade do instituto, poucos são os constitucionalistas brasileiros que
se debruçam sobre o tema.
568
Mas uma coisa é certa: por todo exposto, dentro da ordem constitucional
brasileira, a medida de segurança não tem espaço.
566
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal: a bricolagem de significantes. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 355.
567
COSTA, José de Faria. Aspectos fundamentais da problemática da responsabilidade
objetiva no direito penal português. Coimbra: Almedina, 1981. p. 14.
568
Segundo MATTOS, no Brasil, apenas Menelick de Carvalho NETTO e José Luiz
Quadros de MAGALHÃES, nos últimos anos, é que têm trabalhado sobre o tema com a ótica da não-
recepção da medida de segurança pela norma normarum – MATTOS, Virgílio de. Op. cit., p.96.
157
3.2 GARANTISMO PENAL: POSSÍVEL ALTERNATIVA?
3.2.1 Sistemas Penais Garantistas e Autoritários
Frente aos princípios que regem o Direito penal, é possível concluir que a
Constituição que os prevê explícita ou implicitamente figura como limitadora do
poder punitivo estatal. Toda ela é, no fundo, garantia de liberdade.
Com efeito, ao poder jamais é dado ir além das fronteiras que lhe foram
estabelecidas.
569
Nos dizeres imortalizados de Rui BARBOSA: “garantias
constitucionais vêm a ser (...), acima de tudo as providências que, na Constituição,
se destinam a manter os poderes no jogo harmônico das suas funções, no exercício
contrabalançado e simultâneo das suas prerrogativas”.
570
E toda vez que o exercício do poder passa dos limites impostos por estas
garantias, sua ação se torna ilegítima – e isto ocorre com a medida de segurança.
Ressalta-se que a efetiva sujeição do Estado ao Direito e, ao mesmo
tempo, a proteção dos direitos fundamentais fica totalmente descoberta quando o
ordenamento penal prevê a possibilidade da aplicação de uma sanção preventiva,
profilática e indeterminada, fulcrada meramente num juízo subjetivo e abstrato de
periculosidade do agente.
Assim, é possível assegurar que um instituto jurídico-penal como é caso
das medidas de segurança - que visa o controle do perigo in abstrato por parte do
Estado é totalmente antigarantista, pois abre margem para uma atuação punitiva
estatal desenfreada e violenta contra os cidadãos, em franco desrespeito aos
direitos que lhe são assegurados na Carta Magna.
Por isso, é possível asseverar que a formulação garantista do Direito,
hodiernamente defendida por Luigi FERRAJOLI, figura como uma leitura adequada
ao problema das medidas de segurança, visto que tal marco teórico deflagra a total
inutilidade do instituto, bem como impõe a necessidade de seu definitivo banimento
da seara penal.
569
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Op. cit., p.86-87.
570
BARBOSA, Rui. Comentários à constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1934, v. 6.
p. 279.
158
Neste tocante, mister firmar que o duas as premissas que conformam o
“sistema do garantismo penal” (SG): o convencionalismo e o cognitivismo, os quais
são refletidos, respectivamente, nos princípios da estrita legalidade e estrita
jurisdicionalidade.
571
Ou seja, a idéia de que a lei deve prescrever com taxatividade,
anterioridade e precisão as hipóteses empíricas puníveis, e que o juiz deve manter
obediência estrita à ela.
Trata-se de um sistema proposto como uma técnica legislativa específica,
dirigida a excluir, conquanto arbitrárias e discriminatórias, as convenções penais
referidas não a fatos, mas diretamente a pessoas como ocorre com o modelo de
“Direito penal do inimigo” firmado por JAKOBS
572
ou o de “Direito penal de duas
velocidades” cunhado por Jesús-María SILVA NCHEZ
573
(que nada mais é do
que o modelo das medidas de segurança).
Sob tal perspectiva, exige-se que o desvio punível não seja construído e
sim regulado (verificado) pelo sistema penal, razão pela qual é necessário que o
juízo penal seja dotado de caráter recognitivo das normas e cognitivo dos fatos por
571
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 29.
572
JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 21-49. Segundo JAKOBS, o
Direito penal deveria habilitar o poder punitivo em duas frentes: de uma maneira para os cidadãos e
de outra para os inimigos, reservando o caráter de pessoa para os primeiros e considerando ‘não-
pessoas’ os segundos. Para os primeiros, o Direito penal continuaria trabalhando dentro de uma
perspectiva liberal, com todas as garantias que são inerentes ao cidadão, e com uma sanção que
cumpre a função de reafirmar a vigência da norma; os segundos não, estes teriam um tratamento
diferenciado, sendo que o Direito Penal iria operar como um puro impedimento físico.
573
Para o autor, é possível verificar algumas “velocidades” no âmbito do Direito penal. A
primeira se refere às garantias conferidas pelo Direito clássico às penas privativas de liberdade. A
segunda (batizada de “Direito penal reparador”) diz respeito às penas restritivas de direito e à
possibilidade flexibilização das garantias clássicas, na exata proporção da gravidade de sua sanção.
Por fim, o autor admite uma "terceira velocidade" do Direito penal (que diz respeito exatamente à
idéia de inimigo), a qual combinaria o Direito penal da prisão com a flexibilização de garantias, em
caráter excepcional, para enfrentar fenômenos de criminalidade capazes de desnaturar o Estado de
Direito (como os casos de terrorismo, crime organizado, etc.). Assim afirma o autor que “... em casos
dessa natureza surgem dificuldades adicionais de persecução e prova. Daí porque, nesses âmbitos,
em que a conduta delitiva não somente desestabiliza uma norma em concreto, senão todo o Direito
como tal, se possa discutir a questão do incremento das penas de prisão concomitantemente a da
relativização das garantias substantivas e processuais. Porém, em todo o caso convém ressaltar que
o Direito Penal da terceira velocidade não pode manifestar-se senão como o instrumento de
abordagem de fatos ‘de emergência’, uma vez que expressão de uma espécie de ‘Direito de guerra’
com o qual a sociedade, diante da gravidade da situação excepcional de conflito, renuncia de modo
qualificado a suportar os custos da liberdade de ação (...). Certamente ela teria que se basear em
considerações de absoluta necessidade, subsidiariedade e eficácia, em um contexto de emergência.
(...) Tratando-se de reações ajustadas ao estritamente necessário para fazer frente a fenômenos
excepcionalmente graves, que possam justificar-se em termos de proporcionalidade e que não
ofereçam perigo de contaminação do Direito Penal ‘da normalidade’, seria certamente o caso de
admitir que, mesmo considerando o Direito Penal da terceira velocidade um ‘mal’, este se configura
159
elas regulados - ao que FERRAJOLI chama de “cognitivismo penal”.
574
Neste diapasão, a formalização de um modelo de direito penal fundado
sob um marco garantista intitula de “modelo-ideal do SG”
575
-, demanda a
constatação de certos axiomas, que podem ser traduzidos nas seguintes
formulações: não sanção sem crime, nem crime sem lei; lei se for
necessário e há necessidade se houver ofensa; ofensa se houver ação e
se verifica a ação se constatada a culpa; também não há culpa se não houver
juízo e não juízo sem acusação; não acusação sem prova e não prova
sem defesa.
576
Tais axiomas acabam conformando os seguintes princípios basilares:
princípio da retributividade; princípio da legalidade; princípio da necessidade;
princípio da lesividade; princípio da materialidade; princípio da culpabilidade
pessoal; princípio da jurisdicionalidade; princípio acusatório; princípio do ônus da
prova; princípio do contraditório ou da defesa. Princípios estes que, uma vez
incorporados aos códigos e Constituições (a partir do século XVIII e XIX),
como um ‘mal menor’...” In: SILVA SÁNCHEZ, Jésus-María. A Expansão do Direito Penal:
Aspectos da Política Criminal nas Sociedades Pós-Industriais. São Paulo: RT, 2002. p. 150-151.
574
Ou seja, o pressuposto da pena deve ser a comissão de um fato univocamente
descrito e indicado como delito não apenas pela lei, mas também pela hipótese de acusação, de
modo que resulte suscetível de prova ou de confrontação judicial - a idéia é expressa na máxima:
nulla poena/misura et nulla culpa sine judicio. Mas é também preciso que o juízo não seja apodítico,
mas se baseie no controle empírico, razão pela qual a hipótese acusatória seja concretamente
submetida a verificações e expostas à refutações segundo a máxima nullum judicium sine
probatione. É daí que deriva um modelo teórico e normativo de processo penal “como processo de
cognição ou de comprovação, onde a determinação do fato configurado na lei como delito tem o
caráter de um procedimento probatório do tipo indutivo, que, tanto quanto possível, exclui as
valorações e admite só, ou predominantemente, afirmações ou negação das quais seja predicáveis a
verdade ou a falsidade processual” – In: FERRAJOL, Luigi. Direito e razão..., p.32-33.
575
Neste tocante, importa firmar que “a categoria do tipo ideal é a ponte que liga o
componente subjetivo nas ciências da cultura com o conhecimento estritamente empírico. O tipo
ideal é o principal meio metodológico tanto para estabelecer o significado cultural dos fenômenos,
quanto para formular proposições empíricas sobre eles. O conceito de tipo ideal é obtido pelo realce
unilateral de um ou de vários pontos de vista e a reunião de uma multidão de fenômenos singulares,
difusos e discretos que se encaixam naqueles pontos de vista dentro do quadro conceptual em si
unitário. Essa unidade conceptual é o que confere ao tipo ideal a univocidade que permite a
objetividade na comparação de vários fenômenos do mesmo tipo. O tipo ideal é o modo de
construção de conceitos peculiar ao método histórico ou individualizante, cujo sabemos que é o
estudo da realidade e dos fenômenos em sua singularidade” In: MALISKA, Marcos Augusto. Max
Weber e o Estado Racional Moderno. Revista Eletrônica do Centro de Estudos Jurídicos. Curitiba, v.
1, p. 15-28. 2007. Ver também: SAINT-PIERRE, Héctor L. Max Weber: entre a paixão e a razão.
Campinas: Unicamp, 1994. p.67-83
576
Nos máximas de Ferrajoli: nulla poena/misura sine crimine; nullum crimen sine lege;
nulla lex sine necessitate; nulla necessitas sine injuria; nulla injuria sine actione; nulla actione sine
culpa; nulla culpa sine judicio; nullum judicium sine accusatione; nulla accusatio sine probatione;
nulla probatio sine defensiore – In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 73-74.
160
converteram-se em fundamentos jurídicos estruturantes do próprio Estado
democrático de Direito.
577
Importa destacar que todos estes axiomas/princípios garantistas não
expressam proposições assertivas, mas proposições prescritivas; não descrevem o
que ocorre, mas prescrevem o que deve ocorrer; não enunciam as condições que
um sistema penal efetivamente satisfaz, mas as que deve satisfazer em adesão aos
seus princípios normativos internos e/ou a parâmetros de justificação externa.
“Trata-se, pois, de implicações deônticas, normativas ou de dever ser, cuja
conotação nos diversos sistemas dará vida a modelos deônticos, normativos ou
axiológicos”.
578
Cada uma das implicações deônticas de que se compõe um modelo de
Direito penal enuncia, portanto, uma garantia jurídica para a afirmação da
responsabilização na esfera penal e para a aplicação da cabível reprimenda.
579
Note-se que tal implicação não torna a punição compulsória, ao contrário:
em verdade ela impõe uma barreira para que possa haver punição, bem como
delimita onde se está vedado punir. “A função específica das garantias no direito
penal, na realidade não é tanto permitir ou legitimar, senão muito mais condicionar
ou vincular e, portanto, deslegitimar o exercício absoluto da potestade punitiva”.
580
FERRAJOLI afirma que “ao estarem conectados entre si os dez princípios
do sistema garantista, cada um deles estará reforçado e especificamente conotado
pelos demais, no sentido de que o alcance garantista de cada um dos axiomas será
tanto maior quanto mais numerosas sejam suas conexões”. Desta constatação
também deriva a idéia de que o todo o sistema garantista pode estar debilitado
quando alguma destas premissas seja olvidada.
É com base nestas pilastras que se pode formular uma tipologia dos
modelos teóricos de Direito penal, segundo o número ou o tipo de garantias
asseguradas por ele (ou seja, segundo o grau em que se aproximam ou afastam de
seu “modelo-limite de SG”). E tal tipologia acaba servindo para identificação dos
perfis de irracionalidade, de injustiça e de invalidez de um sistema penal.
581
577
Ibidem, p. 75.
578
Ibidem, p. 74.
579
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 121.
580
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 74.
581
Ibidem, p. 75.
161
O certo é que dentre todos os princípios garantistas expressos pelos dez
axiomas e teses deles derivadas, aquele que marca de forma especial o modelo
cognitivo do sistema propugnado por FERRAJOLI é o princípio da legalidade estrita,
pois dele deriva todas as demais garantias.
Aqui, importa lembrar que a legalidade pode ser vista sob um duplo
sentido: no sentido lato (mera legalidade), o princípio se identifica como reserva
relativa de lei; no sentido estrito (legalidade estrita), o princípio se identifica como
reserva absoluta de lei.
A mera legalidade é um princípio convencionalista dirigida aos juízes,
enquanto que a legalidade estrita é uma norma dirigida primeiramente ao próprio
legislador, “a quem prescreve uma cnica específica de qualificação penal, idônea
a garantir, com a taxatividade dos pressupostos da pena, a decidibilidade da
verdade de seus enunciados”.
582
Como observado, a simples legalidade da forma é condição da vigência ou
existência das normas que prevêem mandamentos penais, qualquer que seja o
conteúdo; a legalidade estrita ou taxativa dos conteúdos, tal como resulta de sua
conformidade para as demais garantias, é uma condição de validade ou
legitimidade de tais mandamentos e tal será exigido em um modelo ideal de
garantismo.
Ademais, é de se ver que este princípio de legalidade estrita, por implicar
em todas as demais garantias, acaba também por construir o pressuposto da estrita
jurisdicionalidade do sistema:
... enquanto a legalidade estrita garante a verificabildiade e a falseabilidade dos tipos
penais abstratos, assegurando, mediante as garantias penais, a denotação taxativa da
ação, do dano e da culpabilidade, que formam seus elementos constitutivos, o princípio
da jurisdicionalidade estrita garante a verificação e a falseabilidade dos tipos penais
concretos, assegurando mediante as garantias processuais os pressupostos empíricos do
ônus da prova a cargo da acusação e do direito de contestação por parte da defesa.
583
Assim, o princípio da estrita legalidade acaba não dando margem para
normas constitutivas (que se baseiam em caracteres pessoais): aquelas que criam
ou constituem as situações de desvio sem nada prescrever, mas somente regras de
comportamento que estabelecem uma proibição. A legalidade estrita requer normas
582
Ibidem, p. 76.
583
Ibidem, p. 77.
162
regulamentadoras do desvio punível (que se baseiam em fatos), excluindo qualquer
configuração ontológica ou extralegal.
Melhor dizendo: “... o que confere relevância penal a um fenômeno não é a
verdade, a justiça, a moral, nem a natureza, mas somente o que, com autoridade,
diz a lei”. E mais, a “lei não pode qualificar como penalmente relevante qualquer
hipótese indeterminada de desvio, mas somente comportamentos empíricos
determinados, identificados exatamente como tais e, por sua vez, aditados à
culpabilidade de um sujeito”.
584
Tais idéias acabam por assegurar, reflexamente, duas garantias
constitucionais ao indivíduo: primeira, de uma esfera intangível de liberdade,
assegurada pelo fato de que, ao ser punível somente o que está proibido na lei, fica
vedada a ingerência sancionatória indiscriminada por parte do Estado.
585
A
segunda, a garantia de igualdade jurídica entre os cidadãos perante a lei, pois
ninguém poderá ser discriminado aprioristicamente em razão de condições
pessoais, políticas, sociais ou econômicas.
586
FERRAJOLI ainda destaca que esta imprescindível concepção cognitiva
da jurisdição, aliada à convencionalista e empírica da legislação, dirige-se a
assegurar outros dois resultados desta cultura que, no fundo, é aquela que se
estrutura no marco do Estado constitucional: o valor certeza na determinação do
desvio punível e de sua respectiva sanção (confiadas não a valorações post factum,
mas exclusivamente à taxativa formulação legal e judicial); e a separação entre
direito e moral (pois somente por convenção jurídica e não por imoralidade ou
anormalidade é que se constituí o que é comportamento delitivo).
587
Também a noção de verdade formal (assim considerada como a “versão
discursiva” do fato formulada em juízo), em oposição à verdade material
(substancial) e a análise das condições nas quais uma tese jurisdicional é ou não
verificável ou refutável, constituem um dos parâmetros de identificação de um
584
Ibidem, p.30.
585
Expressa nas palavras de MONTESQUIEU: “... a liberdade (política) reaparece
sempre quando ninguém está obrigado a fazer as coisas não preceituadas pela lei, e não fazer as
permitidas” – In: MONTESQUIEU. Op. cit., p.345.
586
As ações ou fatos devem ser descritos pelas normas como tipos objetivos de desvio,
e, enquanto tais, afastam todas as pré-configurações normativas de tipos subjetivos de desvio que
referem-se a diferenças pessoais – In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 31.
587
Idem.
163
sistema ideal de Direito penal garantista.
O conceito de verdade processual é fundamental não apenas para a elaboração de uma
teoria do processo, mas também pelos usos que dele são feitos na prática judicial. E dele
não se pode prescindir, salvo que se opte explicitamente por modelos penais puramente
decisionista, e à custa de uma profunda incompreensão da atividade jurisdicional e da
renúncia à sua forma principal de controle racional.
588
É certo que esta versão discursiva do fato será sempre aproximada -
contigente e relativa ao estado dos conhecimentos e das experiências levadas a
cabo na ordem das coisas de que se fala -, mas ainda sim ela se faz necessária,
mesmo que seja apenas como forma de se afastar os ideais de uma suposta
“verdade material” (pois, como se sabe, a “verdade absoluta” é um mito).
589
Para tal, se exige uma linguagem jurídica totalmente adstrita de termos
imprecisos, vagos ou mesmo valorativos, e é exatamente isto o que o sistema de
garantias da estrita legalidade e da estrita jurisdicionalidade pretende assegurar.
590
Uma vez que seus princípios não se limitam apenas a estabelecer as
condições de uso da noção semântica de verdade processual, mas valem também
para garantir a intangibilidade dos cidadãos frente às intervenções punitivas
arbitrárias, este modelo de responsabilidade penal passa a ser concebido não
apenas um modelo epistemológico de racionalidade do juízo, senão como um
modelo regulador de justiça formal, um modelo normativo de legitimidade jurídica ou
mesmo de validade do sistema.
591
Então, o que se deve refutar num marco garantista é exatamente uma
natureza ética, pedagógica ou ‘tratativa’ da reprimenda. Por conseguinte, não
efetivamente espaço para as medidas profiláticas de segurança em um sistema
garantista (como é o propugnado pelo ordenamento constitucional brasileiro).
Tais medidas se amoldam, em verdade, a um modelo autoritário de direito
(a que se pode chamar de antigarantista), calcado em duas premissas distintas,
quais sejam: o substancialismo e o decisionismo penal.
592
No primeiro sentido (de substancialismo), tem-se que o objeto de
conhecimento e tratamento penal deixa de ser apenas o delito enquanto fato
588
Ibidem, p. 40.
589
Ibidem, p. 53.
590
Ibidem, p. 42
591
Ibidem, p. 77-78.
592
Idem.
164
formalmente previsto em lei, e passa a ser concebido enquanto algo em si mesmo
imoral ou anti-social; de modo que, para além do fato, também a pessoa do
delinquente - por suas características ontológicas ou sociológicas - passa a ser alvo
do aparato punitivo estatal.
O segundo elemento desta epistemologia quer dizer com o caráter não
cognitivo, mas potestativo do juízo e da irrogação da sanção. Tal se manifesta
especialmente no caráter subjetivo do processo e do juízo, pois na ausência de
referências fáticas determinadas com exatidão, resulta a punição muito mais de
diagnósticos ou suspeitas subjetivas do agente responsável pela valoração: no
caso, o Juiz.
Importa verificar que estas representações acabam refletindo uma
desvalorização do papel da lei como critério exclusivo e exaustivo de definição dos
fatos desviantes; ou seja, conformam um abalo à idéia da estrita legalidade. É
que surgem previsões legais de figuras incriminadoras abstratas - como os tipos
abertos ou as normas penais em branco, ideais para abarcar vários modelos de
desvio indefinidos(eis) -, bem como as sanções indeterminadas, como é o caso das
medidas de segurança.
Isso propicia uma dissolução do próprio comportamento desviante,
possibilitando a identificação de um tipo especial de indivíduo como delinquente,
tudo a partir de um novo ponto de vista ético, naturalista ou social (puramente
ontológico)
593
. Neste condão, o que fundamenta a relevância penal para o modelo
substancialista é diretamente qualquer pretendida “verdade” sobre a natureza,
imoralidade ou lesividade do fato e do autor e não apenas a autoridade da lei.
Diferente do que ocorria com o modelo fulcrado no convencionalismo
penal, o modelo substancialista não faz separação entre direito e moral, o que
593
Basta lembrar que “entre as figuras mais nefastas do moderno obscurantismo penal,
pode-se recordar a concepção positivo-antropológica do ‘delinquente natural’, a doutrina nazista do
‘direito penal da vontade’ ou do ‘tipo de autor’, e a stalinista do ‘inimigo do povo’. Por outro lado,
devem ser recordadas as diversas medidas de defesa social presentes em nosso ordenamento – das
medidas de prevenção Aquelas de segurança, incluindo as medidas cautelares de polícia -, todas
irrogáveis não como conseqüência de fatos legalmente indicados e judicialmente comprovados como
delitos, mas derivados de pressupostos subjetivos dos mais variados: como a mera suspeita de
haver cometido delitos ou, pior, a periculosidade social do sujeito, legalmente presumida conforme as
condições pessoais ou de status...” Ibidem, p. 36. Todos estes passam a ser critérios substanciais
de definição do desviante, e estes propiciam um esvaziamento da garantia fundamental da estrita
legalidade. A idéia passa a ser não a de punir o proibido, mas sim a de punir o pecado; de perseguir
o sujeito não pelo que fez, mas por quem ele é...!
165
permite discriminações subjetivas e incursões incontroláveis na esfera da liberdade
dos cidadãos.
também uma atenuação na própria idéia de estrita jurisdicionalidade
neste sistema de cunho autoritário, pois se flexibilizam os limites que impediam a
discricionariedade no poder de rotulação e de inquisição do juiz, o qual passa então
a atuar desvinculado de critérios rígidos de qualificação penal. Ou seja, o aplicador
final do Direito não mais se pautará em juízos de fato - que são verificáveis e
refutáveis empiricamente - mas sim em juízos de valor, que nada mais são do que
decisões estritamente potestativas.
Assim, é possível verificar que os sistemas penais autoritários se definem
exatamente pela ausência de uma ou várias das garantias que são implícitas ao
modelo-limite garantista. E é certo que quanto menos garantias forem asseguradas,
mais autoritário será o sistema.
Neste diapasão, FERRAJOLI elucida alguns dos modelos penais e
processuais que se afastam do seu modelo limite (SG), e que, assim, podem ser
considerados autoritários: os sistemas “sem prova e defesa”, “sem acusação
separada”, “sem culpabilidade”, “sem ação”, “sem ofensa”, “sem necessidade”, “sem
delito”, “sem juízo” e o sistema “sem lei”.
594
Cada um destes se caracteriza,
relativamente ao modelo-limite do SG, pela falta ou pelo enfraquecimento, além da
garantia subtraída, de muitas das que ele pressupõe e a precedem na ordem em
que os diversos sistemas foram elencados.
O primeiro exemplo de sistema autoritário - sem prova e defesa - também
pode ser conhecido como “sistema de mera legalidade”, que deriva da subtração
dos princípios do ônus da prova e do direito de defesa.
Neste tocante, importa verificar que prova e defesa estarão num sentido
estrito somente se, graças a legalidade estrita da previsão legal das hipóteses de
delito e sanção, o sistema permitir a decidibilidade da versão discursiva das
conclusões jurídicas apoiadas por elas (como ocorre no modelo-limite do SG).
Do contrário, caso acusação e defesa sejam apenas argumentativas, sem
ser verificáveis ou contestáveis, estas mesmas garantias só se haverão num sentido
594
Ibidem, p. 78.
166
lato (típico de um modelo autoritário)
595
que é, como visto, o que ocorre no caso
das medidas de segurança, onde o processo (que deveria ser suspenso até
restabelecimento do acusado) segue com a simples presença de uma curador
nomeado ao réu. Afinal, se o acusado está despido da plenitude de discernimento,
não pode ele exercer seu plano defensório de maneira satisfatória e elucidativa.
O segundo exemplo de modelo autoritário - sem acusação separada -
consagra o método inquisitivo, e deriva da subtração do axioma garantista que
impõe a imparcialidade do juiz e sua separação da acusação.
É tipo de ordenamentos em que o juiz acumula funções de acusação, ou a
acusação ostenta funções jurisdicionais. Por certo, tal mistura compromete a
imparcialidade do juiz, e, de quebra, a oralidade e a publicidade do processo. E isso
acaba também por afetar outras garantias, como a presunção de inocência, o ônus
acusatório da prova e o contraditório com a defesa.
596
A quebra desta garantia pode levar, inclusive, à admissão plena de
intervenções penais sem qualquer satisfação ao ônus da prova por parte da
acusação ou sem qualquer controle por parte da defesa que é o que ocorre em
sistemas penais que prevêem prisões preventivas obrigatórias ao acusado em
determinadas situações (v.g., por conta de um delito específico, como usualmente
ocorre com os crimes hediondos da Lei 8.072/1990); ou com aqueles que excluem a
defesa do contraditório nas fases preliminares de investigação; ou ainda aqueles
que prevêem a inversão do ônus da prova em delitos de suspeita e, por outro lado,
a favor de quantos colaboram ou pactuam com a acusação.
597
No modelo das medidas de segurança, como se viu, não são raras as
situações em que a imposição da medida é dada sem uma efetiva comprovação de
materialidade e autoria delitiva, aplicando-a somente com base na percepção
judicial da periculosidade do agente.
Também é autoritário o sistema sem culpabilidade, que pode ser
nominado de ‘objetivo’, pois carece do axioma que pressupõe o elemento da
intencionalidade no delito.
595
Ibidem, p. 79.
596
Idem.
597
É certo que nestes casos, “ao faltar a obrigatoriedade de provar e a possibilidade de
contraditar as imputações, os juízos penais acabam por informar-se mediante critérios meramente
substancialistas e de autoridade” – Ibidem, p. 79.
167
É um sistema típico de modelos penais primitivos (como ocorria ao tempo
de Hammurabi em meados de 1700 a.C.
598
), informados pela responsabilidade
coletiva ou pelo fato impessoal, ligado simplesmente ao fato do agente ter
conhecimento ou vontade ação delituosa.
Nos ordenamentos modernos, vislumbra-se tal situação em sistemas que
privilegiam a função de defesa social, e que, por isso, desatendem ao elemento
subjetivo da culpabilidade - reputando-o irrelevante no plano prático e inconsistente
no plano teórico.
599
É o que ocorre em sistemas que vangloriam-se das variadas
formas de prisões cautelares e, especialmente, das medidas de segurança.
Também é visto em algumas legislações que adotam a idéia de responsabilidade
objetiva, sem a necessidade de verificação da culpa do agente.
Neste tocante, restam debilitada não apenas o axioma da culpabilidade,
como também o ônus da verificação empírica dos nexos de causalidade e da
imputação, que vinculam réu e delito, juntamente com as demais garantais
processuais em matéria de prova e defesa.
600
os sistemas sem ão e sem ofensa são, ao contrário, tidos como
‘subjetivistas’, eis que privam, respectivamente, a garantia da materialidade da ação
e da lesividade do fato.
Ambos se caracterizam pelo fato de que as figuras legais de delito, contra
os princípios liberais do utilitarismo penal e da separação entre direito e moral, são
privadas de referências empíricas e são construídas predominantemente com
referência à subjetividade desviada do réu.
601
Os sistemas sem ação (entendia como comissão ou omissão) reprimem
determinados comportamentos e situações subjetivas de imoralidade, de
perigosidade ou de hostilidade abstrata, para além de sua exteriorização em
manifestações delitivas concretas - como ocorre com os casos de leis raciais, em
que a condição natural da pessoa constitui por si o pressuposto da punição; ou
com os tipos penais integrados por condições ou qualidades desviantes das pessoa;
é também o que se em normas que dispõem sobre medidas punitivas contra os
‘ociosos’, ‘vagabundos’, contra os ‘propensos a delinquir’ ou mesmo contra “doentes
598
BOUZON, Emanuel. O Código de Hammurabi. Petrópolis: Vozes, 1981.
599
Ibidem, p. 80.
600
Idem.
168
mentais infratores”.
602
Ao seu turno, os sistemas sem ofensa prescindem da lesão ao bem
jurídico concreto: ou reprimindo antecipadamente a simples colocação abstrata em
perigo do bem, ou então punindo o desvalor social ou político da ação, para além de
qualquer função penal de tutela (como ocorre com os delitos de perigo abstrato ou
presumido, nos delitos de associação, nos delitos de opinião ou suspeita, etc.).
603
Certo é que esse esquema punitivo (sem ação e sem ofensa), o qual é
exatamente um reflexo do modelo das medidas de segurança, por não estar
ancorado na comprovação empírica de ações criminosas e/ou de fatos lesivos
taxativamente previstos ema lei, resultam amplamente substancialistas e
decisionistas: “a subjetivação das hipóteses normativas do delito, com efeito, não
compromete apenas a legalidade estrita, mas comporta também a subjetivação do
juízo, confiando a critérios discricionários de valoração da anormalidade ou
perigosidade do réu, que inevitavelmente dissolvem o conjunto das garantias
processuais”.
604
Mais uma vez, tal se identifica com os sistemas de Direito penal do autor,
onde sempre a figura de um inimigo. Tais modelos subjetivista e
substancialista - estão sempre fundados em hipóteses normativa de desvio sem
ação e sem ofensa: “não tem função reguladora, mas constitutiva dos pressupostos
da pena; não é observável ou violável pela omissão ou comissão de fatos contrários
a ela, senão constitutivas observada e violada por condições pessoais, conformes
ou contrárias”.
605
Ou seja, a tipologia do autor/inimigo consagra uma gica punitiva que
criminaliza e sanciona tão somente um status pessoal do réu, e é exatamente por
isso que existe, nestes modelos, um caráter totalmente discriminatório e anti-liberal.
Afigura-se também como sistema autoritário aquele que prevê a
incriminação sem necessidade, pois carece do princípio da economia (implícito ao
601
Idem.
602
Idem.
603
Idem.
604
Idem.
605
Tal idéia é antiga, mas ainda é comum em alguns ordenamentos: “... o mesmo
esquema vem reproduzido pela persecução penal dos hereges e das bruxas, e nos tempos
modernos, pelo modelo nazista do tipo normativo de autor, pelo stalinista do inimigo do povo e pelo
positivista do delinquente nato ou natural” – Ibidem, p.80-81
169
direito penal), e que por isso é chamado por FERRAJOLI de “vexatório”.
606
Este se caracteriza pela presença de proibições e sanções supérfluas,
contrastando, pois, com a idéia de que o devem haver proibições penais
injustificadas - por serem, elas mesmas, lesivas a direitos fundamentais, por serem
de execução impossível, por não estarem estabelecidas para a tutela de qualquer
bem jurídico ou por serem convenientemente substituíveis por proibições civis ou
administrativas - ou então reprimendas penais injustificadas, por serem excessivas
ou desproporcionais em face da relevância do bem jurídico tutelado.
607
Por fim, que se destacar os modelos punitivos “irracionais”, conforme
nomenclatura dada por Max WEBER
608
: que seriam os sistemas sem delito, sem
juízo e sem lei – todos, é claro, exemplos acabados de sistemas autoritários.
O sistema sem delito pode ser concebido como um sistema de ‘mera
prevenção’, visto que carece do princípio da retributividade. Entre os pressupostos
da sanção penal, resulta nele suprimido todo o fato delituoso, de modo que a
punição assume apenas a natureza de medida preventiva de desvio ignora-se,
606
Idem.
607
FERRAJOLI, Luigi. O Direito como Sistema de Garantias..., p. 90-91.
608
Vale destacar que “Weber prognosticou, em 1893, que o capitalismo dentro de
poucas gerações destruiria todas as formas tradicionais de estruturas sociais e a estrutura social
tradicional não seria reintroduzida. Para ele, o moderno capitalismo seria um poder revolucionário
mau (...). Seguindo este mesmo raciocínio, Reinhard Bendix apresenta quatro características para
uma comunidade política ter a existência do Estado Moderno, segundo a teoria de Weber: i) uma
administração e uma ordem jurídica, na qual as alterações se dão por normas; ii) uma administração
militar, na qual os seus serviços realizam-se em concordância com rigorosos deveres e direitos; iii)
monopólio de Poder sobre todas as pessoas, tanto sobre as que nasceram na comunidade quanto
aquelas que estão nos domínios do território; iv) legitimação da aplicação do Poder nos limites do
território por concordância com a ordem jurídica In: BENDIX, Reinhard. Max Weber: Das Werk.
Darstellung, Analyse, Ergebnisse. München: Piper, 1960. p.317 Apud MALISKA, Marcos Augusto.
Op. cit. p. 20-21. Assim, identificado como o Estado racional, o Estado Moderno Ocidental, Weber o
diferenciou de outras formas estatais, como as de base patriarcal e patrimonial. É sob a égide de um
Estado racional pautado em um direito racional e em uma burocracia profissional é que irá se
assentar o desenvolvimento do capitalismo moderno. Para Weber, o Estado, sociologicamente, só se
deixa definir pelo meio especifico que lhe é peculiar, tal como é peculiar a todo outro agrupamento
político, ou seja, o uso da coação física. Em outras palavras, o Estado define-se como a estrutura ou
o agrupamento político que reivindica, com êxito, o monopólio do constrangimento físico legítimo. A
esse caráter específico do Estado, acrescentam-se outros traços: de um lado, comporta uma
racionalização do Direito com as conseqüências que são a especialização dos poderes legislativo e
judiciário, bem como a instituição de uma polícia encarregada de proteger a segurança dos
indivíduos e de assegurar a ordem pública; de outro lado, apoia-se em uma administração racional
baseada em regulamentos explícitos que lhe permitem intervir nos domínios os mais diversos, desde
a educação até a saúde, a economia e mesmo a cultura. Enfim, dispõe de uma força militar, por
assim dizer, permanente In: WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia
compreensiva [1991] Apud MALISKA, Marcos Augusto. Op. cit. p. 20-21.
170
enfim, os fins retributivistas.
609
Nesta perspectiva, é evidente o caráter puramente decisionista e
discriminatório deste sistema de intervenção, pois de acordo com ele o direito e o
processo penal se voltam a coibir a mera suspeita de delitos ou então o mero perigo
de delitos futuros.
610
É exatamente o que ocorre com os ordenamentos que prevêem todo um
arcabouço de instituições que conformam um verdadeiro subsistema penal com
prisões cautelares e medidas assecuratórias de segurança (a qual está fundada em
fins puramente utilitários
611
) - é o já citado mundo do Minority Report.
612
Naturalmente, como o poderia ser diferente, esta ausência de nexo
entre sanção e injusto acaba também por dissolver as garantias da legalidade e da
jurisdicionalidade:
... a lei que estabelece os pressupostos da medida preventiva corresponde a uma norma
em branco, uma espécie de caixa vazia que é preenchida em cada ocasião dos
conteúdos mais arbitrários; o juízo, ao estar desvinculado de qualquer condição objetiva
preexistente e informado por meros critérios de discricionariedade administrativa,
degenera em procedimento policial de estigmatização moral, política ou social.
613
No mesmo viés, os sistemas baseados na ausência de lei e na ausência
de juízo correspondem a fórmulas absolutas do Estado selvagem ou disciplinar. O
primeiro representa o já citado ‘Estado policial’, caracterizado especialmente por leis
penais em branco, que permitem intervenções punitivas livres de qualquer vínculo,
inclusive com juízo prévio.
O segundo, a seu turno, corresponde ao que WEBER chamou de “justiça
patriarcal” ou “do cádi”, pois não se vincula a nenhum critério preestabelecido, nem
de fato nem de direito, mas sim exclusivamente à boa vontade dos príncipes, dos
sábios, dos notáveis, do povo num estádio ou mesmo de um médico-perito, como
justiça completamente substancial, material, sumária ou equitativa.
614
Eis, enfim, de forma bastante resumida os diversos modelos que se pode
identificar como sendo autoritários, os quais se contrapõe ao modelo-ideal
609
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 81.
610
Ibidem, p. 82.
611
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima:
códigos da violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 21.
612
SPILBERG, Steven. Op. cit.
613
FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 82.
614
WEBER, Max. Op. cit., p. 130-145 Apud MALISKA, Marcos Augusto. Op. cit. p. 23.
171
garantista defendido por FERRAJOLI e outros.
615
Por todo o exposto, é possível concluir que a oposição entre garantismo e
autoritarismo no Direito penal corresponde, em suma, a uma alternativa entre duas
epistemologias judiciais distintas: entre cognitivismo e decisionismo, entre
comprovação e valoração, entre prova e inquisição, entre razão e vontade, entre
verdade e potestade.
616
E é inolvidável que o modelo das medidas de segurança se amolda
perfeitamente aos segundos: é autoritário, decisionista, valorativo, inquisitivo e
potestativo.
3.2.2 Garantismo, Direito Penal Mínimo e Estado Constitucional
Firmada a distinção entre os dois modelos punitivos, impende observar
que os princípios garantistas - da legalidade e jurisdicionalidade estrita,
materialidade e lesividade dos delitos, da responsabilidade pessoal, do contraditório
entre as partes e da presunção de inocência -, fruto da tradição jurídica do
iluminismo e do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, acabaram sendo incorporados
nas codificações e constituições modernas, formando em seu conjunto um sistema
coerente e unitário que busca articular mecanismos capazes de limitar o poder
estatal e, ao mesmo tempo, proteger direitos individuais.
617
Nesta perspectiva, tais princípios acabam figurando como “esquema
epistemológico de identificação do desvio penal, orientados a assegurar o máximo
grau de racionalidade e confiabilidade do juízo e, portanto, de limitação do poder
615
No Brasil, cite-se, em especial, a escola de Direito da PUC do Rio Grande do Sul,
dentre os quais se destaca CARVALHO, Salo de. Penas e garantias...; CARVALHO, Salo de. Teoria
agnóstica da pena: o modelo garantista de limitação do poder punitivo. In: CARVALHO, Salo de.
(Coord.) Crítica à Execução penal Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 03-43; LOPES JÚNIOR,
Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal...; CARVALHO, Amilton Bueno. Aplicação da pena e
garantismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004.
616
Foi mérito do pensamento penal do iluminismo o reconhecimento dos nexos entre o
garantismo, o convencionalismo legal e o cognitivismo jurisdicional de um lado, e entre despotismo,
substancialismo extralegal e decisionismo valorativo de outro” In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e
razão..., p.38-39.
617
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 86.
172
punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade”.
618
Por isso, o sistema garantista pode facilmente ser identificado, no marco
constitucional, como o modelo ideal para um Estado democrático de Direito,
entendendo-se por esta expressão “um tipo de ordenamento no qual o poder
público e especialmente o poder penal estejam rigidamente limitados e vinculados à
lei no plano substancial (conteúdos penalmente relevantes) e submetidos a um
plano processual (formas processualmente vinculantes)”.
619
Afinal, frente ao modelo ideal garantista (SG) não se admite a imposição
de qualquer sanção sem que se verifique a realização do delito por um agente
culpável, cuja previsão legal seja verdadeiramente necessária, exatamente por
afetar bens concretos de terceiros; e mais, cuja prova empírica da ação ou omissão
seja produzida exclusivamente pela acusação, perante um juízo imparcial, em um
processo público e contraditório em face da defesa e mediante procedimentos
legalmente preestabelecidos.
Noutro giro, os modelos autoritários (antigarantistas), exatamente por se
caracterizarem pela debilidade ou ausência destes limites à intervenção punitiva,
“servem para configurar sistemas de controle penal próprios do Estado absoluto ou
totalitário, entendendo-se por tais expressões qualquer ordenamento onde os
poderes públicos sejam ‘totais’, não disciplinados pela lei, e, portanto, carentes de
limites e condições”.
620
Na base da distinção entre estes modelos - garantistas e autoritários -,
estão dois extremos de sistema punitivo, comumente conhecidos como Direito penal
mínimo e Direito penal máximo.
621
Estes extremos referem-se a maiores ou menores vínculos garantistas
estruturalmente internos aos sistemas quanto à quantidade e qualidade das
618
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 30.
619
Ibidem, p. 83.
620
Idem.
621
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Segurança pública e o Direito das timas.
Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, n. 08, p.136-144, 2003. p. 138: “Nos caminhos da
segurança pública, o mundo vive hoje, em linha de máxima, uma disputa sem precedentes: de um
lado, os defensores do chamado Movimento da Lei e Ordem, encabeçados pelos mais célebres
reacionários norte-americanos, mormente através da chamada Política de Tolerância Zero; de outro
lado, os defensores do Direito Penal Mínimo, onde ponteiam os grandes nomes do Direito europeu e
mundial, mormente aqueles que viveram os horrores da II Guerra e, como poucos, sabem
perfeitamente a importância fundamental, à democracia, das chamadas Liberdades Públicas”.
173
proibições e das sanções nele estabelecidas.
622
O modelo de direito penal mínimo é condicionado e limitado ao máximo e
corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades do cidadão frente
ao arbítrio punitivo, mas também a um ideal de racionalidade e de certeza.
623
Tal critério acaba por consagrar inúmeros institutos penais e processuais
de proteção ao acusado, como: a presunção constitucional de inocência até a
sentença definitiva, a possibilidade de analogia in bonam partem, o ônus da prova a
cargo da acusação, a xima do in dubio por reo, a imposição de uma
interpretação restritiva das normas incriminadoras, etc.
624
o modelo de direito penal máximo é ilimitado, incerto e incondicionado
por sua própria natureza, caracterizando-se pela excessiva severidade e pela
imprevisibilidade das condenações e punições, o que o configura,
consequentemente, como um sistema de poder não controlável racionalmente em
face da ausência de parâmetros concretos de convalidação e anulação.
625
A idéia central entre eles é a da certeza ou não das liberdades do cidadão
frente as punições estatais arbitrárias: no direito penal mínimo o cidadão tem esta
certeza, ao contrário do que ocorre no direito penal máximo.
Por outro lado, é preciso considerar que ambos são modelos de certeza
meramente relativa amesmo porque, como visto, os graus de garantismo são
variados, dada a impossibilidade de uma perfeita simetria entre legislação e
jurisdição.
626
Assim, a certeza do direito penal máximo é aquela fundada na idéia de
622
Portanto, é imperioso verificar que esta dicotomia (entre modelo garantista e modelo
autoritário) não se apresenta de maneira estanque. Afinal de contas, em sistemas penais concretos é
facilmente perceptível elementos de um em outro, o que autoriza falar em “graus de garantismo”, os
quais são pontuados de acordo com o grau de decidibilidade da verdade processual que
normativamente permitem e efetivamente satisfazem In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p.
57.
623
E é que FERRAJOLI diz que um nexo profundo entre garantismo e
racionalismo: um direito penal é racional e correto à medida que suas intervenções são previsíveis; e
são previsíveis apenas aquelas motivadas por argumentos cognitivos de que resultem como
determinável a verdade formal”. “Uma norma de limitação do modelo de direito penal mínimo
informada pela certeza e pela razão é o exige intervenções potestativas e valorativas de exclusão ou
de atenuação da responsabilidade cada vez que subsista incerteza quanto aos pressupostos
cognitivos da pena” – Ibidem, p. 83-84.
624
Ibidem, p. 84.
625
Idem.
174
que nenhum culpado fique impune, mesmo que isto custe a incerteza de que algum
inocente possa ser punido. Ou seja, nestes modelos procura-se a máxima tutela da
certeza pública acerca das ofensas ocasionadas pelo delito; e isso acaba
consagrando o critério do in dubio contra reo (ou pró societá), que indica uma
aspiração autoritária.
627
É o que ocorre, por certo, nos Estados que adotam a lógica disciplinar
descrita por Michel FOUCAULT, onde tenta-se evitar as lacunas e preencher todos
os espaços onde antes havia a ausência do poder punitivo estatal.
Por outro lado, a certeza do direito penal mínimo baseia-se na idéia de que
nenhum inocente seja punido, mesmo que isso custe a eventual impunidade de
algum culpado. Aqui, se procura a máxima tutela das liberdades individuais acerca
das ofensas ocasionadas pelas penas arbitrárias.
Neste diapasão, a certeza aspirada por um sistema penal do tipo
garantista não é no sentido de que resultem exatamente comprovados e punidos
todos os fatos previstos pela lei como delitos, mas que sejam punidos somente
aqueles casos nos quais se tenha comprovado a culpabilidade por sua comissão.
628
É certo que isso implica em alguns custos que devem ser suportados por
todos, vistos que nem todos os delitos serão apurados, e nem todos os criminosos
serão punidos.
629
626
Basta ver o modelo brasileiro, em que facilmente se percebe a convivência mútua de
ditames limitadores e ampliativos do sistema punitivo, o que faz com que ele oscile entre um direito
penal mínimo e um direito penal máximo.
627
Sobre isso, escreve Francesco Maria PAGANO: “... um empenho extremado em punir
os réus, um excessivo rigor, um apressado castigo arrastam consigo forçosamente efeitos funestos.
Ali onde uma lei escrita com caracteres de sangue determina que o mais significativo evento não
fique impune; que todo o delito das trevas, nas quais a fatalidade às vezes o envolve, seja
necessariamente conduzido ao dia claro dos juízos; que a pena não se afaste do delito em nenhum
momento, ali se faz necessário que nas mãos do juiz se configure um poder arbitrário e imoderado. A
presteza da execução exclui as formalidades e substitui o processo pela vontade absoluta do
executor. A rigorosa investigação do delito oculto não se realiza mais senão por meio de um poder
ilimitado e de violência necessária e atentados sobre a liberdade de um inocente...” - In: PAGANO,
Francesco Maria. Considerazioni sul processo criminale. Napoli, 1787, p.27 Apud FERRAJOLI, Luigi.
Direito e razão..., p. 85.
628
Idem.
629
Luigi FERRAJOLI lembra que o direito penal deve ser visto como uma “técnica de
definição, de individualização e de repressão da desviação”. E independente do modelo normativo
em que esteja engajado (seja de inspiração autoritário ou liberal), o direito penal manifesta-se
sempre através de coerções e restrições, seja ao desviantes ou aos potenciais desviantes. A grande
questão é que este conjunto de restrições representam um custo, o qual deve ser necessariamente
justificado afinal de contas, ele recai não apenas sobre o ombro dos culpados, mas também de
inocentes (basta ver que a norma penal é direcionada abstratamente à todos...!). Isso é o que
FERRAJOLI chama de custo da justiça”, os quais variam de acordo com cada modelo de sistema
175
Agora, a simples reflexão sobre o peso destes custos possibilita vislumbrar
a importância que o Direito penal ocupa na caracterização de um ordenamento
jurídico e do sistema político que através deste se expressa. Nos dizeres de
FERRAJOLI, “é no tratamento penal que se manifesta em estado puro e na
maneira mais direta e conflitual a relação entre Estado e cidadão, entre poder
público e liberdade privada, entre defesa social e direitos individuais”.
630
E se assim o é, cabe então verificar que o problema da legitimação e
justificação (ou deslegitimação e falta de justificação) do Direito penal ataca, na raiz,
a própria questão da legitimidade do Estado, onde a soberania exercida por meio do
poder de punir é, inolvidavelmente, a manifestação mais agressiva aos interesses
fundamentais do cidadão, e, em maior escala, suscetível de degenerar-se em
arbítrio.
631
Por tudo isso, é de se verificar (uma vez mais) que a adesão a um destes
modelos autoritário ou garantista - pressupõe, no fundo, uma opção ético-política
a favor dos valores normativamente por eles tutelados. Assim, adotar uma
concepção garantista pressupõe a defesa dos valores apostados frente a este
marco.
632
penal (ou seja, das escolhas do legislador no que tange às proibições dos comportamentos tidos
como delituosos, dos procedimentos contra os transgressores, e da sanção cabível). Ocorre que
além deste, temos também um altíssimo “custo de injustiças”, o qual depende do real funcionamento
do sistema penal. É aquela que alguns chamam de “cifra negra da criminalidade”, e é formada por
dois grupos: pelo número de culpados que, submetidos ou não a julgamento, permanecem ignorados
e/ou impunes (“cifra da ineficiência”); mas é também formada pelo número de inocentes processados
e, às vezes, punidos (“cifra da injustiça stricto”) – Ibidem, p. 167-168.
630
Ibidem, p. 168.
631
QUEIROZ, Paulo. A justificação do direito de punir na obra de Luigi Ferrajoli: algumas
considerações críticas. In: SANTOS, Rogério Dultra dos (Org.). Introdução crítica ao estudo do
sistema penal. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 117-127. Neste mesmo diapasão, tem-se que o
problema da justificação se confunde diretamente com a questão do garantismo, pois as suas
soluções dependem dos modelos normativos de direito e de processo penal escolhidos e do seu
efetivo funcionamento In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., 168-169. E segue, dizendo que é
possível reconduzir as diversas doutrinas filosóficas em tema de justificação do Direito penal a dois
filões do pensamento penalista: um primeiro, convencional e empirista, próprio da tradição garantista
e da tendência denominada Direito penal mínimo – que vê suas ascendências em Pufendorf,
Thomasius, e, sob alguns aspectos, até em Hobbes, e suas máximas expressões nos iluministas do
século XVIII e na Escola Italiana. De outro lado, teríamos um outro filão, substancialista ou
ontológico, que inspira a tradição autoritária e a tendência ao Direito penal máximo a qual deita
raízes no obscurantismo penal pré-moderno, reflorescendo com a reação antiiluminista desenvolvida
na Segunda metade do século XIX, e está em plena sintonia com projetos sociais disciplinares,
correicionais, policialescos ou, de qualquer forma, antiliberais – Ibidem, p.170.
632
É por isso que as críticas dirigidas ao garantismo, no sentido de que ele não cabo
de realizar algumas críticas aos valores postos no ordenamento é descabida. O próprio FERRAJOLI
rebate estas críticas dizendo que adotar o garantismo é adotar as premissas por eles protegidas”.
176
Desta feita, sempre que se cria um instituto jurídico para fazer valer os
ideais de uma lógica disciplinar como é o caso das medidas de segurança -,
acaba-se afastando dos ideais garantistas do Estado democrático de Direito, o que,
por sua vez, consagra um afronte aos direitos e liberdade dos cidadãos.
Não se perca de vista que os direitos fundamentais – como “direitos
subjetivos que correspondem universalmente a todos os seres humanos enquanto
dotados de status de pessoa”
633
- fundam vínculos substanciais normativamente
impostos, e que, por serem tomados como necessidade de todos, constituem a
razão de ser do Estado, podendo legitimá-lo ou deslegitimá-lo.
Autorizar a lesão de tais direitos (ou simplesmente afastar seu campo de
proteção), mesmo que apenas para alguns ou em certas hipótese específicas, é
abandonar os axiomas garantistas, é voltar a um Estado de polícia, a um modelo de
justiça patriarcal e infeliz.
634
Como aduz ZAFFARONI, é ilusória a afirmação de que o direito penal do
inimigo afetará unicamente as garantias deste, como também é ilusória a sua
suposta eficácia contra os inimigos. É um verdadeiro dogma aquele que o poder
punitivo provê segurança frente às agressões a bens jurídicos. E assim, quando se
propugna pela segurança (traduzida na idéia de um pura “protecionismo”) estar-se-á
abandonando as verdadeiras garantias.
635
-
636
Portanto, é imperioso firmar que o garantismo não visa criticar aquilo que está previsto na
Constituição, pois ele quer somente proteger a opção feita em momento de racionalidade social
democrática: ... este modelo não se presta a justificar aprioristicamente, mas sim, a indicar as
condições em presença das quais o direito penal (ou um determinado instituto) é justificado e em
ausência das quais não se justifica” – Ibidem, p. 264.
633
Segundo FERRAJOLI, ainda que o estejam declarados por normas jurídicas, são
válidos como formulação teórica, não se constituindo, assim, em definição dogmática. E é nesta
perspectiva que o autor reconhece o sentido e o papel dos Direitos fundamentais na dimensão
substancial da democracia (em vez de meramente formal), pois eles se constituem como vínculos
materiais impostos normativamente, e que fundam a esfera do indecidível In: FERRAJOLI, Luigi.
Los fundamentos de los derechos fundamentales..., p. 19-20.
634
É por isso que “cada vez que um magistrado é movido por sentimentos de vingança,
ou de parte, ou de defesa social, ou o Estado deixa espaço à justiça sumária dos particulares, pode-
se dizer que o direito penal regrediu a um estado selvagem, anterior à formação da civilização” In:
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 269.
635
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 120.
636
O problema é que JAKOBS, ao formular sua tese de contenção (a qual incorpora a
idéia de hostis dentro do Estado de Direito para salvá-lo do naufrágio autoritário) chamada por
ZAFFARONI de “tática de contenção estática” (exatamente porque seus ideais seriam coerentes
somente a partir de uma visão estática da realidade, e, sobretudo do poder; o que não é possível, eis
que a realidade é dinâmica e no poder tudo flui) -, parece deixar as coisas como estão, pois pretende
dar um espaço ao inimigo num Estado de Direito. Ou seja, ele considera compatível o conceito de
inimigo com o Estado constitucional de direito, sem se dar conta que esse pretenso conceito
177
Até porque, nem mesmo por vontade da maioria se pode violar ou negar
os Direitos fundamentais individuais, visto que os mesmos estão articulados dentro
de uma esfera intocável - ex vi artigo 60, §4º da Constituição.
637
Também por isso, deve-se desconfiar daqueles que propugnam por um
sistema em que se deve confiar no critério do ‘bom juiz/bom governante’ como
defendia, por exemplo, PLATÃO - “... onde os tribunais se têm estabelecido com
toda a correção possível e os futuros juízes estejam bem formados e aprovados
com todo o rigor, será correto, bom e decoroso encomendar a tais juízes o juízo
acerca dos culpados e acerca do que devam sofrer e pagar”.
638
Tal visão cria o equívoco de se acreditar também na existência de um
‘poder bom’, e azo ao aparecimento de ‘juízes justiceiros’, conformando aquilo
que Alexandre Morais da ROSA acertadamente batizou de “Complexo de Nicolas
Marshall”.
639
É preciso, pois, desconfiar deste mito, tal qual se deve desconfiar do
próprio poder.
640
Como destaca Francesco Maria PAGANO, “deve-se ter presente
corresponde, em verdade, ao Estado absoluto, o qual não tolera limites nem parcialização de
espécie alguma ao poder soberano (e aqui, faz-se necessário resgatar as premissas de SCHMITT,
no sentido de que o conceito de inimigo é admissível em um Estado absoluto). No final das
contas, JAKOBS acaba defendendo algo que gerará o abandono ao princípio do Estado de Direito:
“... a tática de contenção proposta por nther JAKOBS traduz-se, numa perspectiva dinâmica, no
desaparecimento do Estado de Direito (...); é o remédio que mata o paciente” - Ibidem, p. 167.
637
Como visto, o garantismo impõe um limite ao poder estatal como um todo. Nesta
perspectiva, os vínculos no Estado democrático de Direito, de viés garantista, são de tal forma
substanciais que impedem a preponderância da concepção de democracia vinculada à vontade da
maioria, em franca oposição à minoria, articulando a esfera do indecidível” In: ROSA, Alexandre
Morais da. Decisão penal..., p. 87.
638
PLATÃO sustenta a tese da superioridade do bom governante sobre a boa lei In:
PLATÃO. A República..., p. 296-297.
639
ROSA, Alexandre Morais da. O juiz e o complexo de Nicolas Marshall. Ibccrim, São
Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br> Acesso em: 23 out. 2008. O autor faz alusão
a um seriado de TV no qual o Juiz Nicolas Marshall era um respeitável magistrado durante o dia,
cumprindo as leis em vigor e os direitos dos acusados, mas no período da noite, longe do Tribunal,
com roupas populares e cabelos soltos, decidia ‘fazer Justiça’ com as próprias mãos. Neste contexto,
o Complexo de Nicolas Marshall “acaba se instalando na prática jurídica nos espaços de
discricionariedade (ilegítimos) abertos na legislação, tão bem criticados por Ferrajoli, os quais deixam
para ‘bondade’ do órgão julgador a aplicação da Lei. O problema é saber (...) qual é o critério, ou
seja, o que é a ‘bondade’ para ele. Um nazista tinha por decisão boa ordenar a morte de inocentes; e
neste diapasão os exemplos multiplicam-se. Em um lugar tão vago, por outro lado, aparecem
facilmente os conhecidos ‘justiceiros’, sempre lotados de ‘bondade’, em geral querendo o ‘bemdos
condenados e, antes, o da sociedade. Em realidade, puro narcisismo; gente lutando contra
seus próprios fantasmas”.
640
Neste tocante, Marina GASCÓN ABELLÁN acertadamente aduz que a teoria geral do
garantismo pressupõe a idéia presente em MONTESQUIEU. Op. cit., 150: a liberdade política
aparece somente quando não se abusa do poder...”) de que do poder, deve-se sempre, esperar o
abuso, razão pela qual é imperioso neutralizá-lo dentro de um sistema de limites e vínculos
In:
178
que todo poder, salvo o da lei, é da liberdade seu inimigo e destruidor”.
641
É importante verificar, portanto, que os pressupostos epistemológicos do
garantismo penal identificam as condições que devem ser dispostas no plano legal
e satisfeitas no plano judicial para permitir a decidibilidade em abstrato e a decisão
em concreto da hipótese discursiva. E onde quer que falte estas condições como
ocorre nos sistemas penais autoritários -, se abrem em juízo espaços de incerteza
que correspondem a outros tantos espaços de poder.
642
Ademais, quanto mais cresce o poder judiciário, tanto maior se torna a
ilegitimidade jurídica e a injustificabildiade política do Direito penal.
643
Não se deve perder de vista que o Direito penal nasceu como um limitador
da idéia de vingança;
644
ideal este que se consagra em sua máxima excelência com
os princípios constitucionais limitadores, razão pela qual não que se
protecionismo com garantismo. O Direito penal serve para limitar a punição (e,
assim, a vingança: seja privada ou pública) e evitar a distinção entre ‘amigos’ e
‘inimigos’, não para proteger grupos ou valores de alguns.
Ora, tanto o delito como a vingança constituem exercício arbitrário das
razões individuais do sujeito, e, em ambos os casos, ocorre um violento conflito
solucionado mediante o uso da força: da força do u no primeiro caso, e da força
do poder punitivo no segundo – mas sempre pela força. E a força é sempre
arbitrária e descontrolada (não apenas na ofensa, mas também na vingança, que é,
por excelência, incerta, desproporcional, desregulada e, às vezes, dirigida contra
um inocente).
Neste passo, a lei penal deve estar voltada para controlar e minimizar esta
GASCÓN ABELLÁN, Marina. La teoría general del garantismo: rasgos principales. In: CARBONELL,
Miguel de; SALAZAR, Pedro (Org.). Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi
Ferrajoli. Madrid: Trotta, 2005, p. 34. Sobre o tema, ver também: CARVALHO, Amilton Bueno de;
ROSA, Henrique Marder. A Radicalização Garantista na Fundamentação das Decisões: Uma
Abordagem a partir do Tribunal. In: SCHMIDT, Andrei Zenkner. (Org.). Novos rumos do Direito Penal
Contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 165-174.
641
PAGANO, Francesco M. Considerazioni sul processo criminale, p. 22-23 Apud
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 91.
642
Ibidem, p. 95.
643
OLIVEIRA NETO, Francisco José Rodrigues de. Atividade jurisdicional sob o enfoque
garantista. Curitiba: Juruá, 2002. No mesmo sentido: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 169.
644
“... o Direito penal nasce não com o ideal de desenvolvimento, mas sim com o ideal de
negação da vingança, em descontinuidade e em conflito com a mesma e não em continuidade,
justificando-se o com o propósito de protegê-la, mas com o de impedi-la (...). A história do direito
penal e da pena corresponde a uma longa luta contra a vingança” – Ibidem, p. 269.
179
dupla violência, “prevenindo, através da sua parte proibitiva, o exercício das
próprias razões que o delito expressa, e, mediante a sua parte punitiva, o exercício
das próprias razões que a vingança e outras possíveis reações informais
expressam”. O objetivo geral do Direito penal é, pois, a “minimização da violência na
sociedade”.
645
Assim, a delimitação do horizonte de incidência da seara penal não pode
ser reduzido à idéia de mera defesa social dos interesses constituídos contra a
ameaça que os delitos representam. Quer o direito penal, em verdade, “a proteção
do fraco contra o mais forte: do fraco ofendido ou ameaçado pelo delito, como do
fraco ofendido ou ameaçado pela vingança (...); contra o mais forte, que no delito é
o réu e na vingança é o ofendido ou os sujeitos públicos ou privados que lhe são
solidários”.
646
É sobre essas bases que FERRAJOLI exprime a conexão de finalidades
do sistema penal garantista, “vez que legitimam a necessidade política do direito
penal enquanto instrumento de tutela dos direitos fundamentais, os quais lhe
definem, normativamente, os âmbitos e os limites, enquanto bens que não se
justificam ofender nem com os delitos nem com as punições”.
647
Neste passo, “garantismo deve significar precisamente a tutela daqueles
valores ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da
maioria, constitui o objetivo justificante do direito penal (e de todo o correspondente
sistema punitivo estatal)”, vale dizer, “a imunidade dos cidadãos contra a
arbitrariedade das proibições e das punições, a defesa dos fracos mediante regras
do jogo iguais para todos, a dignidade da pessoa do imputado, e,
consequentemente, a garantia da sua liberdade, inclusive por meio do respeito à
645
Ibidem, p. 270.
646
FERRAJOLI, Luigi. A pena em uma sociedade democrática. Discursos Sediciosos, Rio
de Janeiro, n.12, p.31-39, 2002, p. 32: O paradigma do direito penal mínimo assume como única
justificação do direito penal o seu papel de lei do mais fraco em contrapartida à lei do mais forte, que
vigora em sua ausência; portanto, não genericamente a defesa social, mas sim a defesa do mais
fraco, que no momento do delito é a parte ofendida, no momento do processo é o acusado e, por fim,
no momento da execução, é o réu”. Ainda: “Precisamente monopolizando a força, delimitando-lhe
os pressupostos e as modalidades e precluindo-lhe o exercício arbitrário por parte dos sujeitos não
autorizados a proibição e a ameaça penal protegem os possíveis ofendidos contra os delitos, ao
passo que o julgamento e a imposição de pena protegem os réus (e os inocentes suspeitos de sê-lo)
contra as vinganças e outras reações mais severas” In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p.
270.
647
Idem.
180
verdade”.
648
Diferente, pois, de uma idéia de mero protecionismo, que pode ser
encarado como o campo da conformação de interesses, e não de direitos gerais e
abstratos: “somente concebendo desta forma o objetivo do direito penal seja
possível obter uma adequada doutrina de justificação e, conjuntamente, uma teoria
garantista dos vínculos e dos limites e, consequentemente, dos critérios de
deslegitimação – do pode punitivo do Estado”.
649
O modelo protecionista postula por uma tutela penal ampla, que abandona
a idéia de fragmentariedade e subsidiariedade jurídico-penal e acaba gerando uma
inflação legislativo-penal, que é especialmente caracterizada por medidas
assecuratórias, preventivas ou de contenção.
Sobre elas, FERRAJOLI estaca especialmente as “medidas de prevenção,
medidas de segurança, medidas cautelares de polícia judiciária e medidas de ordem
pública”.
650
Também emprega o termo “medidas de polícia” para designar todas as
sanções os medidas de defesa e controle social diversas da pena, mas que de
uma forma ou de outra refletem nas liberdades e garantias individuais dos
cidadãos.
651
Por tal razão, como assevera Morais da ROSA, “no Estado democrático de
Direito, somente se justifica a intervenção estatal via Direito penal mínimo”.
652
Segundo Luis PRIETO SANCHÍS, somente no Estado constitucional de
Direito se expressa a fórmula política do garantismo, é ele o único marco
institucional em que se pode prosperar o ambicioso programa garantista: “... un
programa cuyo elemento medular consiste en una concepción instrumental de las
instituiciones al servicio de los derechos que sólo puede alcanzarse desde el Estado
constitucional...”.
653
648
Ibidem, p. 271.
649
Idem.
650
Ibidem, p. 618. Em suma: prisões cautelares, medidas sócio-educativas de internação
aos menores infratores, os poderes investigativos e inquisitoriais concedidos ao delegado no âmbito
do inquérito policial (o fato de ter a obrigatoriedade de prender em flagrante; o fato de proceder com
oum interrogatório extrajudicial; etc.) e, por certo, as medidas de segurança aplicadas aos doentes
mentais.
651
Ibidem, p. 618
652
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 236.
653
PRIETO SANCHÍS, Luis. Constitucionalismo y Garantismo. In: CARBONELL, Miguel
de; SALAZAR, Pedro. (Org.). Garantismo: estudios sobre el pensamiento jurídico de Luigi Ferrajoli.
Madrid: Trotta, 2005, p.41-58.
181
E esta vinculação íntima entre constitucionalismo e garantismo, acaba
implicando que “o garantismo necessita do constitucionalismo para realizar o seu
programa; e o constitucionalismo se alimenta do projeto garantista para condicionar
a legitimidade do poder ao cumprimento de certas exigências que se condensam
nos direitos fundamentais”.
654
E se assim o é, frente a todas as peculiaridades que envolvem a medida
penal de segurança, é incontestável que ela reflete um modelo de Direito penal
máximo e autoritário, o que a torna contrária aos ditames do texto constitucional.
3.2.3 Utopias Garantistas ou Limitações Necessárias?
Garantir significa afiançar, assegurar, defender, tutelar algo. E quando se
fala de garantismo na cultura jurídica, este ‘algo’ (que se tutela) são os direitos e
bens individuais, especialmente frente a eventual agressão provocada pelo poder
estatal, o que se dá frente a fixação de limites e vínculos ao poder, a fim de
maximizar a realização daqueles direitos de liberdade e de minimizar suas
ameaças.
655
Por outro lado, é inegável que este sistema, que nasceu com o iluminismo
e se consolidou nos ordenamentos jurídicos modernos, possui um certo caráter
idealista em dados momentos. Todavia, este idealismo não deve ser confundido
com utopia, visto que não se trata de uma perspectiva totalmente irrealizável.
O próprio FERRAJOLI adverte que “este sistema apresenta numerosas
aporias lógicas e teóricas, que fazem dele um modelo ideal e em grande parte
ideológico, e que em várias ocasiões tem provocado sua desqualificação científica e
política por parte da cultura jurídica”.
656
Afinal, a interpretação da lei nunca é uma atividade exclusivamente
recognitiva, mas é sempre fruto de uma escolha prática a respeito de hipóteses
interpretativas alternativas (que é uma escolha mais ou menos opinativa, que se
654
Ibidem, p.44.
655
GASCÓN ABELLÁN, Marina. Op. cit., p. 21-40.
182
esgota no exercício de um poder na identificação dos fatos julgados).
Igualmente, a prova empírica dos fatos não é na realidade uma atividade
apenas cognitiva, mas constitui sempre a conclusão mais ou menos provável de um
processo indutivo, cuja aceitação é um ato prático que expressa um poder de
escolha a respeito de hipóteses alternativas.
Não bastasse isso, deve o juiz discernir as conotações que convertem
cada fato em diverso dos demais, e tais conotações nunca são legal e totalmente
predeterminadas.
Por fim, dado o nexo que une a estrita jurisdicionalidade à estrita
legalidade, abrem-se no plano judicial espaços inevitáveis de discricionariedade
dispositiva, que comprometem tanto o caráter cognitivo do juízo quanto sua sujeição
exclusivamente à lei.
A visão de um juiz-máquina “em que se introduzem os fatos por cima e
por baixo se retiram as sentenças”
657
-, não se coaduna com a realidade, e estes
espaços onde o poder facilmente pode escapar demonstram isso. Nos dizeres de
Morais da ROSA, “a pretensão de que a decisão penal seja uma mera aplicação
lógica (formal) é ilusória, eis que a singularidade do caso analisado não se adaptada
pari passu aos tipos penais, havendo sempre a atividade cognitiva e
hermenêutica”.
658
656
Mesmo porque a idéia de um silogismo judicial perfeito, que permita a verificação
absoluta dos fatos legalmente puníveis, corresponde a uma ilusão metafísica In: FERRAJOLI,
Luigi. Direito e razão..., p. 30-33.
657
“Este quatro espaços de poder desmentem irremediavelmente a versão clássica do
modelo penal garantista, conferindo-lhe um caráter utópico ou, como se diz, ideal. Isto não impede
que o modelo, convenientemente redefinido, possa ser satisfeito em maior ou menor medida
segundo as técnicas legislativas e judiciais adotadas” - Ibidem, p. 33.
658
ROSA, Alexandre Morais da. Direito e razão..., p. 296-301: “Salvo se adotada a matriz
ultrapassada da ‘Filosofia da Consciência’ imbricada com a ‘Verdade-Metafícisa’ é que se pode
admitir a atividade meramente subsuntiva da sentença judicial, adequada, de certo modo, à herança
Escolástica” (...). Mas é impossível “a crença metafísica na objetividade perfeita, devendo-se
estabelecer critérios mínimos e racionais para o controle de abusos judiciais, ciente, ainda, dos
próprios limites do processo” (...). “Ferrajoli acode a esta preocupação sem que, todavia, tenha
iniciado um caminho convincente, pois seu apego à semântica o impediu de efetuar o ‘giro
linguístico’ (que diz respeito à adoção ao novo paradigma da linguagem inaugurada por Martin
HEIDEGGER)” (...). “O otimismo semântico de Ferrajoli, na linha Iluminista, acredita ingenuamente
que mediante técnica legislativa apurada se possa colmatar o problema da polissemia da linguagem,
desprezando, por assim dizer, toda a construção hermenêutica contemporânea, aprisionado que es
na concepção da Filosofia da Consciência, na melhor tradição vienenese”. É por isso que o princípio
da legalidade estrita acaba figurando, muito mais, no campo retórico como barreira garantista ao
arbítrio. No mesmo sentido: WARAT, Luis Alberto. Op. cit., p. 219: “... tanto como a regra da
legalidade, o princípio de que não pena sem culpa, tem estatuto de ficção jurídica, destinado a
criar a imagem de segurança e não arbitrariedade da ordem normativa. Embora apontados como leis
183
Ademais, são diversos os fatores – como o contexto social, as intenções, o
inconsciente (não raramente imprevisíveis) - que podem emergir quando da
prolação de uma decisão, de modo que o mito clássico da estrita legalidade, deve
sim ser encarado com ressalvas.
Dito isso, por mais aperfeiçoado que esteja o sistema de garantias penais,
tem-se também que a verificação jurídica dos pressupostos legais da sanção nunca
pode ser absolutamente precisa e objetiva.
659
Todavia, mesmo com todas estas deficiências, é certo que o ideal de uma
legalidade estrita não pode ser negado, embora seja imperiosa sua revisão dentro
de certos parâmetros, respeitando sempre suas implícitas limitações e as
possibilidades de um manejo democrático.
Ou seja, ainda assim o garantismo deve ser concebido no âmbito dos
Estados democráticos de Direito como é o caso brasileiro -, ao menos como
modelo limite, mesmo que nunca plenamente alcançável, senão aproximável:
“pode-se demonstrar que ainda quando o controle empírico dos procedimentos
probatórios e interpretativos encontre limites insuperáveis, pelo menos o modelo se
torna assegurado nestes limites precisamente pelo sistema normativo das garantias
de estrita legalidade e de estrita jurisdicionalidade e de seu grau de efetividade”.
660
De acordo com isso, se pode afirmar que as garantias legais e processuais
penais, além garantir ao ximo o exercício das liberdades, constituem também
fórmulas de submissão do exercício do poder aos ditames do Direito, evitando com
isso um sistema de arbitrariedades. O garantismo figura, pois, como resistência.
E mais, pode-se também afirmar que ‘saber’ e ‘poder’ concorrem em
medidas diversas no juízo (o juízo penal é um ‘saber-poder’, e quanto mais poder,
menos saber, e vice-versa), segundo aquelas garantias sejam mais ou menos
realizáveis e satisfeitas.
De tal sorte, ainda que sua perfeita realização corresponda a um sonho
científicas na construção da chamada ciência do direito penal esses princípios são regras retóricas e
argumentativas”.
659
Em conseqüência, na atividade judicial existem espaços de poder específicos e em
parte insuprimíveis. Segundo FERRAJOLI, são quatro estes espaços: o poder de indicação, de
interpretação ou de verificação jurídica; o poder de comprovação probatória ou de verificação fática;
o poder de conotação ou de compreensão equitativa; o poder de disposição ou de valoração ético-
política – In: FERRJAOLI, Luigi. Direito e razão..., p.33-34.
660
Ibidem, p. 39.
184
liberal, o modelo garantista, uma vez traçados seus limites e requisitos, pode ser
acolhido como parâmetro e como fundamento de racionalidade de qualquer sistema
penal num Estado democrático de Direito.
Note-se que toda estrutura do ordenamento jurídico brasileiro é típica de
um Estado democrático de Direito (ex vi artigo CR/88)
661
, onde o exercício de
qualquer poder está subordinado aos vínculos da legalidade e da jurisdicionalidade
formal e material.
Mas como afirma Geraldo PRADO, “o garantismo não é uma religião e
seus defensores não são profetas ou pregadores utópicos (...); sua principal virtude
consiste em reivindicar uma renovada racionalidade, baseada em procedimentos
que têm em vista o objetivo de conter os abusos do poder”.
662
No mesmo sentido,
Morais da ROSA aduz que “o sistema garantista (SG) é apresentado como ‘um’ e
não ‘o’ caminho possível (...), mas a proposta de FERRAJOLI significa (sim) uma
evolução democrática em relação à epistemologia lógico-dedutiva”.
663
Ao mesmo tempo, ao haver sido sancionado em grande parte das
Constituições como é o caso do Brasil, a partir da Carta de 1988 -, o modelo pode
ser utilizado ainda como critério de valoração do grau de validez e legitimidade das
instituições penais e processuais, e de seu funcionamento correto.
664
Mas é certo que tal modelo-ideal não deve ser ‘importado’ à estrutura
jurídica brasileira in natura, ou mesmo “em bloco”. É necessário, antes, proceder
com uma revisão de seus postulados a partir das peculiaridades que envolvem o
contexto nacional – ao que se poderia batizar de “garantismo tupiniquim”.
665
E as consequências da adoção deste modelo de justificação, podem ser
firmadas em três perspectivas: a primeira vantagem do modelo de justificação
garantista está no fato de que ele não fornece uma justificação abstrata do direito
penal, mas sim consente a justificação dos sistemas penais concretos em diferentes
661
E isso está previsto na própria Constituição art. CR/88: “A República Federativa
do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e Distrito Federal, constitui-se em
Estado Democrático de Direito...”.
662
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis
processuais penais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 21.
663
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 293.
664
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 35.
665
CARVALHO, Salo de. Pena e garantias..., p.153 e s. Também Alexandre Morais da
ROSA adverte que “não é suficiente restringir a proposta ao simples cotejo do modelo ideal com o
brasileiro concreto” – In: ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 294.
185
graus, dependendo da maior ou menor aderência ao modelo de direito penal
mínimo e garantista projetado. Assim, inclusive, ele serve como parâmetro não
apenas de legitimação, mas também de deslegitimação. Assim, para FERRAJOLI,
“nenhum sistema é aprioristicamente justificado”.
666
A segunda consequência é que cada justificação é histórica e
sociologicamente relativa, sendo condicionada pelo nível de civilidade dos
ordenamentos de que se ocupa. Assim, em uma sociedade tida como bárbara, onde
o índice de violência é alto, tanto no que tange às ofensas como no tocante às
propensões vindicativas, será relativamente alta também a violência institucional
necessária a prevenção, ao passo que em sociedades mais evoluídas e tolerantes,
onde a taxa de violência seja baixa, não se justifica um direito penal particularmente
severo.
667
Por fim, a terceira consequência é que este modelo permite não apenas
justificações globais, mas sim justificações de deslegitimações parciais e
diferenciadas, tanto para normas individualmente consideradas como para institutos
ou praxes de cada um dos ordenamentos. Tais critérios consistem nas diversas
garantias penais contra o arbítrio, os excessos e os erros, para cuja elaboração
teórica resta a principal tarefa de uma teoria garantista do direito penal enquanto
doutrina axiológica de justificação e, ao mesmo tempo, de deslegitimação dos
concretos sistemas penais.
668
Verifica-se, portanto, que o esquema de justificação para o Direito penal
trazido por FERRAJOLI serve para embasar somente modelos de direito penal
mínimo, “no tríplice sentido da máxima redução quantitativa da intervenção penal,
da mais ampla extensão dos seus vínculos e limites garantistas e da rígida exclusão
de outros métodos de intervenção coercitiva e punitiva, a começar pelo inteiro
sistema das medidas extra delictum e/ou extra iudicium”.
669
666
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 277. Em igual sentido, vale destacar a clássica
lição de BECCARIA: “... mais fortes e sensíveis devem ser as impressões sobre os ânimos
endurecidos de um povo que tenha apenas saído do estado selvagem. A gravidade e a quantidade
das penas deve, substancialmente, ser comissurada à gravidade e à quantidade de violência que se
expressa na sociedade, bem como ao grau de sua intolerabildiade social. E, sob este aspecto, é
induvidoso que a sociedade contemporânea é incompativelmente menos violenta que a sociedade
clássicas” – In: BECCARIA, Cesare. Op. cit., p.104.
667
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 277-278.
668
Idem.
669
Ibidem, p. 277.
186
Tal se deve à uma preocupação em relação às custas sociais propiciada
pela sanção e dos meios de prevenção dos delitos, que pode ser superior ao custo
da violência que estas têm como finalidade de prevenir.
Afinal de contas, a liberdade e a segurança de cada um são, com efeito,
ameaçadas não apenas pelos delitos, como também - e às vezes em medida maior
pelas penas despóticas e excessivas, pelas prisões e processos sumários, pelos
controles arbitrários e invasivos de polícia, etc.
670
Neste particular, Salo de CARVALHO aduz que, a partir do garantismo
penal, a ideologia do tratamento (discurso vinculado ao paradigma reeducador) se
apresenta descabida, pois tal, ao invés de capacitar práticas direcionadas à tutela
de direitos fundamentais, acaba sempre legitimando a intervenção violenta sobre o
cidadão, violando o núcleo básico e intangível de liberdades constantes da Carta
Magna.
671
E se assim o é, as medidas de segurança deveriam ser definitivamente
banidas da esfera penal, pois ‘tratamento’ e ‘punição’ não podem (nem
conseguiriam) andar juntos, na medida em que trabalham com valores diferentes e
partem de premissas que são contra-excludentes.
Ora, se o objetivo primordial é tratar, certo é que cura nada tem haver com
punição.
É por isso que o garantismo penal, desde que ciente de suas
limitações/adequações, mostra a real alternativa para o problema das medidas
profiláticas de segurança.
Neste tocante, seria habilitado afirmar que as medidas de segurança
pertencem, em verdade, ao amplo e vasto espectro das medidas administrativas de
polícia
672
, e isso ocorre, especialmente, porque representam os dois principais
caracteres próprios dos provimentos administrativos: a discricionariedade da sua
670
Idem.
671
CARVALHO, Salo de. Teoria agnóstica da pena..., p.03-29. No mesmo sentido: ROSA,
Alexandre Morais da. O papel do Juiz Garantista e a Execução Penal em tempos Neoliberais:
Eichmann e Big Brother. In: CARVALHO, Salo. (Org.). Crítica à Execução Penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2007, p. 319-348; LOPES JÚNIOR, Aury. Revisitando o Processo de Execução Penal a
partir da Instrumentalidade Garantista. In: CARVALHO, Salo. (Org.). Crítica à Execução Penal.. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 371-406.
672
FERRAJOLI lembra, por exemplo, que no código penal italiano as medidas de
segurança estão inscritas no título VIII, denominado “Das medidas administrativas de segurança”
In: FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 626.
187
aplicação (afinal, o que é periculosidade?) e a sua sucessiva revogabilidade ou
modificabilidade (basta o juiz entender, mesmo em contrária manifestação da junta
psiquiátrica, que o sujeito não é mais perigoso para liberá-lo da medida), bem como
a possibilidade de restauração (não esqueçamos que a liberação ou desinternação
da medida de segurança é sempre condicional ao longo de um período de um ano).
Certo é que as medidas de segurança negam todos os requisitos
garantista. Negam a idéia de retribuição: pois na medida de segurança, como não
responsabilidade do acusado, não se fala em retribuição ou justa consequência
da prática de um crime. Aqui, vale acrescentar que as medidas de segurança são
mensuradas em relação não ao tipo de crime, mas ao tipo e grau de periculosidade
do sujeito, a qual é dada com base num status subjetivo do indivíduo; como diz
FERRAJOLI, “isso é decorrência do fato de que o crime a condenação não são a
causa, mas apenas o sintoma e a ocasião de verificação da periculosidade...”
673
).
Negam a estrita legalidade penal: há uma falsa legalidade penal, pois “não
um apego à estrita legalidade reclamada pelo direito penal, mas àquela
legalidade lata que preside o exercício de qualquer poder público”.
674
FERRAJOLI afirma que as medidas de segurança também afrontam a
faceta da irretroatividade da lei penal, pois não basta a simples previsão legal
dizendo que ninguém será submetido à medida de segurança senão nos casos
previstos em lei’.
675
Para que se cumprisse a estrita legalidade, seria preciso que todos os
casos de medida de segurança fossem taxativos o que é não possível, posto que
esta se legitima pela periculosidade, que é um conceito abstrato
676
e que o prazo
de duração das medidas também o fossem pré-delimitado; e, segundo FERRAJOLI,
isto é que é o mais grave: “... não predeterminação legal, nem determinação em
via definitiva pelo provimento de aplicação, tampouco a duração das medidas de
segurança. Esta indeterminação da duração e a ausência de quaisquer garantias de
certeza acerca do momento da cessação, representam seguramente, o aspecto
673
Ibidem, p. 627.
674
Ibidem, p. 626.
675
Como ocorre com o art. 199 do Código penal italiano - Ibidem, p. 627.
676
Segundo FERRAJOLI: “... a própria decisão sobre a oportunidade de aplicá-las é
remetida ao juízo de periculosidade feito pelo juiz, que pela sua natureza não está ancorado em fatos
(ou casos) predeterminados, mas a uma valoração puramente discricionária” – Idem.
188
mais vexatório das medidas de segurança pessoais”.
677
Negam, ainda, a estrita submissão à jurisdição: como visto, por este
princípio é necessário haver um modelo de processo penal com verificação
empírica, em contraditório com o acusado, de um fato enunciado por uma hipótese
acusatória presumivelmente falsa até que se constitua prova em contrário o que
não é possível em casos de indivíduos que o goza de suas faculdades mentais
plenas.
Veja-se que no procedimento de aplicação das medidas de segurança, o
fato à se provar é, inclusive, muitas vezes esquecido, querendo o julgador apenas
declarar uma especial qualidade do acusado: a qualidade de perigoso.
678
A subsunção que o juiz faz para verificar se aplica ou não a medida de
segurança ao doente mental examinando seu grau de periculosidade tem um
caráter que nem mesmo é discricionário, é, em verdade, potestativo, em coerência
com a natureza administrativa do provimento e em contraste com a natureza da
jurisdição.
679
Mais uma vez resgatando Eugênio Raúl ZAFFARONI, é de se verificar que
esta estrutura forjada sob a qual se ergueu o Direito, na qual se constrói uma
dialética entre o Estado de direito e o Estado de polícia, traduz, no campo penal, na
admissão (seja ampla ou restrita) de um tratamento punitivo que contrasta com a
condição de seres humanos firmada pelos legisladores constituintes.
680
Assim, o garantismo jurídico acaba se consolidando enquanto uma sólida
teoria de orientação, baseada no respeito à dignidade da pessoa humana e seus
direitos fundamentais, com sujeição formal e material das práticas jurídicas ao
núcleo constitucional.
Afinal, “a legitimação do Estado democrático de Direito deve suplantar a
mera democracia formal, para alcançar a democracia material, na qual os direitos
fundamentais devem ser respeitados, efetivados e garantidos, sob pena de
677
Idem.
678
A qualificação é privativa do juiz, e ela é declarada com base num tipo de valoração
prognostica da personalidade do condenado: a previsão de que, com base em circunstancias
abstratas e indicativas de que é provável que ele cometa novos fatos previsto como crime pela lei
Ibidem, p.629.
679
Idem.
680
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 118.
189
deslegitimação das instituições estatais”.
681
Portanto, como bem aduz Alexandre Morais da ROSA, “a teoria garantista
representa ao mesmo tempo o resgate e a valorização da Constituição como
documento constituinte da sociedade”
682
, a qual deve sempre buscar uma limitação
da ingerência punitiva estatal frente as liberdades individuais dos cidadãos.
681
ROSA, Alexandre Morais da. Decisão penal..., p. 86-87.
682
Ibidem, p. 92. E no mesmo sentido, Ruy Samuel ESPÍNDOLA sustenta que a
Constituição é uma disposição fundante da convivência e fonte da legitimidade estatal, não sendo
vazio, mas uma coalização de vontades com conteúdo, materializados pelos Direitos fundamentais”
– In: ESPÍNDOLA, Ruy Samuel. Conceitos de princípios constitucionais. São Paulo: RT, 1998. p. 95.
190
CONCLUSÕES
De todo o exposto é possível concluir que o instituto jurídico-penal
conhecido como medida de segurança, criado sob a influência da escola
criminológica positivista e fortalecido com o paradigma da nova defesa social
(erguido sob postulados preventistas), espraiou-se nos ordenamentos jurídicos
ocidentais ao final do culo XIX e início do século XX, almejando conferir um
tratamento diferenciado aos portadores de transtornos mentais que infringiam a
norma penal.
Tratamento esse que encontrou na instituição manicomial o locus ideal
para o cumprimento de sua missão primordial: a segregação de indivíduos não
desejados para submetê-los a um forçado “processo de normalização” – numa
perspectiva de adequá-los às normas padrões de conduta social.
Essa medida elegeu no critério da periculosidade o seu ponto diferencial e
legitimador, no sentido de que estaria sujeito (e autorizado) ao aludido tratamento à
todos aqueles que fossem considerados indivíduos perigosos.
O conceito de perigoso, por sua vez, vestiu uma variada gama de pessoas
ao longo dos séculos bruxas, demônios, hereges, leprosos, estrangeiros,
terroristas, doentes mentais e sempre os estigmatizou com a face de inimigo. E
como bem delineou Eugênio Raúl ZAFFARONI
683
, ao inimigo estaria legitimado um
tratamento diferenciado, rigoroso e punitivo - afinal, eles diferenciavam-se das
demais pessoas (os “normais”) da comunidade.
Observando o sucesso alcançado pela idéia de ente perigoso no combate
e na exclusão de elementos insurrectos, o Direito penal valeu-se deste conceito
para a consecução de seu fim primordial (embora tal não seja pacificamente aceito
pela criminologia tradicional): o de controle social.
Apoiado em conceitos médicos-psiquiátricos que afloraram com o
iluminismo, o Direito apropriou-se da noção de perigoso e criou o instituto da
medida de segurança, dando azo a uma nova mecânica de poder que nascia e iria
reger as relações a partir do século XIX a qual restou denunciada por Michel
683
ZAFFARONI, Eugênio Raúl. O inimigo..., p. 18.
191
FOUCAULT
684
: a microfísica da disciplina, cujo funcionamento estaria ligado a uma
série de procedimentos que possibilitariam a ampliação das redes de poder,
diminuindo custos e viabilizando sua integração com os mecanismos de produção
do nascente sistema capitalista, fundada especialmente na idéia de constante
vigilância e normalização dos indesejados.
Foi assim que a periculosidade se tornou o atributo principal do doente
mental infrator. E essa rotulação (de perigoso) acabaria cumprindo um duplo papel
dentro do sistema penal: imantaria a necessidade de “tratamento” ao indivíduo via
imposição do diagnóstico da doença mental e também contemplaria a
necessidade de neutralização penal, o que somente se efetivaria por meio daquele
processo de “inclusão forçada” no âmbito do sistema manicomial.
Desta feita, nota-se que a medida de segurança propiciou uma aparente
homogeneização entre idéias (a princípio) contraditórios: expiação e cura, prisão e
hospital, doente e criminoso.
O problema é que, estando a medida fundada na idéia oracular de
periculosidade, toda a estrutura que se construiu a seu entorno goza do insanável
vício da inconstitucionalidade exatamente por afrontar diversos dos princípios e
regras firmadas nas Cartas Maganas (como ocorre no caso da Constituição
brasileira de 1988).
Diz-se oracular porque a definição do ente perigoso, em verdade, não se
baseia em elementos concretos ou objetiváveis juridicamente. Ao contrário, é visto
como perigoso aquele indivíduo que tem a probabilidade de incorrer em atos delitivo
que possam ofender gravemente a ordem pública – o problema, pois, é definir quem
pode incorrer em tais “atos graves”! E mais, definir o que deve ser concebido como
ordem pública.
A periculosidade criminal funda-se na idéia de que os doentes mentais
infratores, motivados por certos apetites e impulsos que lhe são próprios (face a seu
quadro clínico), provavelmente praticarão novos ilícitos-típicos, configurando-se a
medida de segurança como a modalidade sancionatória mais adequada para tratá-
los ou simplesmente neutralizá-los.
684
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade..., p. 27; FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder..., p. 179; FOUCAULT, Michel. Os anormais..., p. 111; FOUCAULT, Michel.
Vigiar e punir..., p. 162.
192
Portanto, a periculosidade traduz necessariamente uma idéia de risco -
que é um conceito, por si só, demasiado abstrato. Ela representa nada mais do que
um juízo futuro e incerto sobre condutas de impossível determinação, aplicada à
pessoas rotuladas, via de regra baseada em uma questionável avaliação sobre suas
condições morais e na sua vida pregressa.
E sempre que se tem, no âmbito do Direito, um elemento/conceito
demasiado abstrato, corre-se (aí sim) o risco de incorrer em arbitrariedades –
especialmente por parte daqueles que detém e exercem poder (no caso, o poder
jurisdicional). Periculosidade reflete um juízo sujeito a erros grosseiros, não
porque é difícil estabelecer a fórmula precisa da personalidade de um indivíduo,
como porque o crime não depende exclusivamente deste fator afinal, o delito é
resultado de uma série de fatores (endógenos e exógenos) vinculados ao sujeito.
Neste passo, é possível verificar que o sistema das medidas fere
diretamente a idéia de estrita legalidade exigida no artigo 5º, inciso XXXIX da
CR/88 -, exatamente porque não possibilita a previsão de uma lex certa, anterior,
stricta e scricta do que venha a ser a periculosidade. Não se perca de vista que a
legalidade é expressão de defesa do cidadão frente a possíveis arbitrariedades do
Estado, mas as abstrações inerentes ao instituto afastam tal garantia.
Também a idéia de igualdade encampada pelo artigo 5º, caput da
Constituição é inobservada pela medida, visto que a mesma propicia toda uma
série de tratamento diferenciados ao portador de transtornos psíquicos que se
encontra em conflito com a norma penal. E este tratamento diferenciado não visa
equivaler-lhes em patamares materiais de isonomia - ao contrário, os diferenciações
são-lhes sempre prejudiciais. São inúmeros benefícios e garantias penais que lhe
são olvidadas: progressões de regime, livramentos condicionais, saídas
temporárias, detrações, suspensão condicional da sanção, etc. – tudo isso por conta
de uma suposta periculosidade que lhes é oposta.
Em consequência, outros princípios daí decorrentes (de extração
constitucional indireta) acabam sendo também maculados pelo instituto: não que
se falar em culpabilidade base que sustenta (ou ao menos deveria sustentar) toda
a estrutura jurídico-penal -, visto que a aplicação das medidas de segurança se
fundam num juízo de periculosidade e não de reprovação da conduta; inexiste a
idéia de intervenção penal mínima, pois o Direito penal deixa de ser a ultima ratio e
193
passa a ser chamado para resolver questões que não estão estritamente ligadas à
reprovação de condutas ilícitas (ou seja, que estão fora de seu campo legítimo de
incidência).
Resta também ferida a cláusula do contraditório, da ampla defesa e do
devido processo legal artigo , incisos LIV e LV da CR/88 -, pois se o sujeito
encontra-se num quadro patológico, é certo que a tão nomeação de um curador
para acompanhar-lhe no processo resta insuficiente para efetiva proteção de seus
interesses jurídicos. Ademais, sendo a periculosidade uma noção totalmente
abstrata e subjetiva, fica também inviabilizado ao réu produzir prova em sentido
contrário – afinal, não há como refutar um exercício de vidência.
Por outro lado, muitas vezes a presunção constitucional de inocência – art.
5º, inciso LVII é abandonada por Magistrados que aplicam ao acusado a medida
de segurança pelo tão fato do indivíduo ser portador de uma patologia (atestada
pelo perito), sem antes verificar adequadamente a prática do injusto, as provas de
materialidade e autoria delitiva, bem como de se verificar se o agente agiu protegido
por alguma excludente do crime.
Outra grave ferida é deixada pela quebra da coisa julgada art. 5º, inciso
XXXVI da Constituição e a mitigação da estrita jurisdicionalidade, visto que o Juiz
vale-se basicamente do parecer técnico pericial para definir se o indivíduo será (ou
não) submetido à medida de segurança, outorgando assim a um agente
administrativo (um médico) o poder de decisão acerca da definitiva situação criminal
do acusado. Também o fato da legislação brasileira permitir a conversão da pena
em medida de segurança, bastando para tal que o perito ateste a doença e
periculosidade do sujeito no curso da execução, demonstra a material
administrativização desta modalidade de sanção, a qual retira-lhe a feição
jurisdicional (afinal o controle jurídico é meramente formal).
Por fim, também o respeito à dignidade da pessoa humana - art. 1º, inciso
III da CR/88 - é deixado de lado com a execução destas medidas que, ao proporem
um aparente solução para o problema (do “louco-infrator”), acabam impingindo um
tratamento cruel e discriminatório ao portador de transtorno mental.
Com tudo isso, facilmente se percebe que quando se mantém uma pessoa
segregada em nome da segurança, da paz ou da ordem pública, baseado na
possibilidade de reiteração da conduta criminosa, está se atendendo não aos
194
ditames de um Direito penal democrático, mas sim a uma função estritamente
policial do Estado, completamente alheio aos objetivos fundamentais firmados pela
Carta Magna.
É preciso, pois, opor resistência ao instituto e, neste passo, os postulados
garantistas firmados especialmente por Luigi FERRAJOLI
685
- afiguram-se como
soluções adequadas para um Estado que propugna ser Democrático e de Direito.
Um Estado cujo ordenamento jurídico esteja fundado nas premissas da
estrita legalidade e da estrita jurisdicionalidade, que respeite o devido processo
legal e as garantias constitucionais a ele inerentes, que se amolde aos princípios da
culpabilidade, da lesividade, da retributividade, da necessidade e, especialmente,
que observe a insuperável necessidade de se respeitar a dignidade humana,
minimizando-se a violência e ampliando as liberdades.
685
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão..., p. 29.
195
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ANEXOS
ANEXO 1: LAUDO PSIQUIÁTRICO E PSICOLÓGICO J.F.B ............................. 214
ANEXO 2: LAUDO PSIQUIÁTRICO E PSICOLÓGICO H.L.O ............................ 220
ANEXO 3: LAUDO PSIQUIÁTRICO E PSICOLÓGICO E.P.V ............................ 223
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