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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
MESTRADO EM DIREITO, ESTADO E CONSTITUIÇÃO
REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DO CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE: UMA CRÍTICA
DEMOCRATIZANTE À PRÁTICA JUDICIAL BRASILEIRA
MARCELO CASSEB CONTINENTINO
Brasília
2006
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MARCELO CASSEB CONTINENTINO
REVISITANDO OS FUNDAMENTOS DO CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE: UMA CRÍTICA
DEMOCRATIZANTE À PRÁTICA JUDICIAL BRASILEIRA
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de
Direito da Universidade de Brasília, para obtenção
do título de Mestre em Direito.
Orientador: Professor Doutor Marcus Faro de Castro
Brasília
2006
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O candidato foi considerado ................................. pela banca examinadora.
_______________________________________________________________
Professor Doutor Marcus Faro de Castro
Orientador
_______________________________________________________________
Professor Doutor Cristiano Paixão Araujo Pinto
Membro
_______________________________________________________________
Professor Doutor José Ribas Vieira
Membro
_______________________________________________________________
Professor Doutor Menelick de Carvalho Netto
Membro Suplente
Brasília, 17 de fevereiro de 2006.
Para MAMÃE, sempre.
AGRADECIMENTOS
Esse, talvez, seja o momento de maior “ingratidão” para com todos aqueles que
participaram direta e indiretamente deste longo processo: as palavras jamais refletirão o meu
mais sincero reconhecimento e apreço. Mesmo assim, insistirei...
Do professor Marcus Faro de Castro, obtive a confiança e o incentivo nas
reflexões ao desenvolver o tema desta dissertação. Como orientador, fez-se essencial nas
posturas teóricas assumidas, conduzindo-me sempre ao maior aprofundamento nos estudos e,
ao mesmo tempo, exigindo precisão e clareza na exposição das idéias. Sem dúvida, tentei ao
máximo corresponder às suas expectativas; e espero haver conseguido ou chegado próximo.
À Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, agradeço a calorosa
recepção e o voto de confiança a mim dado. Estendo meu agradecimento ao professores José
Geraldo de Souza Jr., Míroslav Mílovic e Gilmar Ferreiras Mendes, pelas profundas
discussões durante as disciplinas ministradas ao longo do curso.
Ao Grupo de Pesquisa “Sociedade, Tempo e Direito” (STD), de cujas reuniões
semanais tive o privilégio de participar, o que se revelou fundamental ao amadurecimento do
tema. A todos os integrantes do STD, agradeço na pessoa de dois dos seus líderes, Alexandre
Bernardino Costa e, especialmente, Cristiano Paixão, exemplo maior de compromisso e de
seriedade com o ensino e a pesquisa do direito.
Do professor Raymundo Juliano Feitosa, de quem mais do que as primeiras
lições de direito constitucional, na Faculdade de Direito do Recife, mais do que a leitura
crítica desta dissertação, conquistei amizade e respeito. Com ele, tenho uma grande dívida.
Não poderia jamais esquecer dos dois amigos e colegas de turma no mestrado,
André Rufino e Daniel Vargas. Sem dúvida, eles o a maior prova de que o meu curso não
se exauriu nas salas de aula. Ambos se detiveram na leitura da dissertação e são responsáveis
pelo seu aprimoramento. Em especial, meu amigo Daniel que, “mesmo à distância”, fez-me
as mais contundentes críticas e me encorajou a seguir no rumo escolhido.
George Galindo foi fundamental ao longo de todo o processo, desde a época de
elaboração do projeto para o ingresso no Mestrado até os seus momentos finais, com a
indicação de vários livros e artigos além da crítica a muitos trabalhos que antecederam esta
dissertação; também ele foi outra grande amizade realizada nesse período. Marcos André,
amigo e colega de profissão, fervoroso incentivador e crítico deste trabalho, ajudou-me com
observações essenciais à sua apresentação, à sua sistematização e à sua coerência. A Danielle
Souza de Andrade e Silva, devo a criteriosa revisão gramatical do texto que certamente o
aliviou de muitas das incorreções presentes. A Belize Câmara Correia sou igualmente grato
por, atendendo ao chamado de última hora, realizar a revisão final da dissertação.
Aos grandes amigos Marcelo Medina e Marcelo do Val, com quem tive a
oportunidade de discutir detidamente muitas das idéias aqui desenvolvidas; verdadeiros
irmãos com quem sempre pude contar, sobretudo nas horas mais difíceis. Registro, ainda, as
grandes ilações e inferências que o Medina me opôs a partir da leitura do texto, apontando
muitas das minhas limitações bem como auxiliando a pensar em muitas das dúvidas que a
pesquisa me trouxe.
Devo expressar ainda minha gratidão à Advocacia-Geral da União (AGU) e à
Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco (PGE-PE), instituições que me propiciaram as
condições necessárias ao desenvolvimento e à conclusão do mestrado.
À minha Família, onde tudo começou. Avós, Tios, Irmão e Pais, todos foram
fundamentais, seja pelo mais singelo olhar de incentivo, seja pelo esforço supremo de me
propiciar a paz e a tranqüilidade indispensáveis à reflexão e ao estudo. Nessa luta, em todos
os momentos, foram imprescindíveis meu irmão, Rodolfo, minha Tia, Lúcia, e minha Mãe,
Bete. Em especial Mamãe, a quem dedico esta dissertação, que, mesmo se ausentando tão
cedo, fez-se inteiramente presente ao longo de todas as fases que culminaram com este texto.
Sem dúvida alguma, Mamãe, você foi, é e será a minha maior motivação!
Por fim, o meu sempre insuficiente obrigado a Deus, que tudo regeu e
orquestrou.
SUMÁRIO
RESUMO .................................................................................................................................. 7
ABSTRACT ............................................................................................................................... 8
INTRODUÇÃO...........................................................................................................................9
I. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO............................................................................. 19
1. O pluralismo social e cultural............................................................................................ 21
2. O princípio democrático na teoria discursiva do direito de JÜRGEN HABERMAS ................. 26
3. O paradigma procedimental do Estado de Direito.............................................................. 30
4. Esfera pública como categoria elementar do Estado Democrático de Direito ..................... 36
5. A difícil questão do consenso na teoria de HABERMAS....................................................... 43
II. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: A SOBREPOSIÇÃO DISCURSIVA NO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................................................................................................. 55
1. Judicialização da política: em que sentido?........................................................................ 57
2. O discurso de justificação e sua racionalidade ................................................................... 63
3. O discurso de aplicação..................................................................................................... 67
4. A transição entre os discursos de justificação e de aplicação ............................................. 70
III. A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO NO PARADIGMA PROCEDIMENTAL DO
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................................................................................... 76
1. Sobre a forma assumida nos Estados Unidos para conter a judicialização da política
através da interpretação constitucional ................................................................................... 79
2. A abertura da Constituição como elemento configurador do paradigma procedimental
do Estado de Direito............................................................................................................... 87
3. A Constituição procedimental: na contramão da história constitucional? ......................... 102
IV. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .... 110
1. A dificuldade contramajoritária e a primeira “virada procedimentalista” no controle de
constitucionalidade .............................................................................................................. 115
2. A segunda “virada procedimentalista” no controle de constitucionalidade....................... 128
3. Os casos controvertidos, a presunção de legitimidade e o controle de
constitucionalidade no giro procedimentalista ...................................................................... 138
4. A supremacia da Constituição e os controles de constitucionalidade difuso e
concentrado ......................................................................................................................... 153
5. O controle judicial fraco” (weak-form judicial review), a “cláusula o obstante”
(notwithstanding clause) e uma sugestão ao modelo brasileiro de controle de
constitucionalidade .............................................................................................................. 174
CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 200
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 206
7
RESUMO
Uma das principais discussões do direito constitucional contemporâneo recai
sobre a tensão entre Democracia e jurisdição constitucional. A grande questão a envolver
constitucionalistas e filósofos reside em como justificar a legitimidade da jurisdição
constitucional numa Democracia, regida pelo princípio do autogoverno, se a “última
palavra” sobre o que a Constituição significa é atribuída ao Poder Judiciário. Partindo-se do
pressuposto de que Estado de Direito, Democracia e Constituição são conceitos
intrinsecamente ligados, a presente dissertação objetiva analisar criticamente tais noções em
face da relação existente entre Democracia e jurisdição constitucional, com especial atenção
à prática brasileira. Nessa perspectiva, adota-se o conceito de Democracia com base na
teoria discursiva de JÜRGEN HABERMAS, explorando-se a importância da cidadania ativa e
participativa para legitimar o processo de criação e interpretação das leis e da Constituição.
Essa peculiar característica do processo legislativo democrático reclama do Poder Judiciário
o asseguramento das condições para o exercício da autonomia dos cidadãos, através da
jurisdição constitucional. No entanto, em face da atual configuração do modelo de controle
brasileiro, a investigação demonstra que a jurisdição constitucional não tem sido
legitimamente exercida, porque, de um lado, os juízes do Supremo Tribunal Federal
autocompreendem-se como intérpretes últimos da Constituição e, de outro, com a crescente
concentração do controle judicial, os cidadãos vêem-se cada vez mais afastados do
exercício de sua autonomia, no que tange à interpretação da Constituição. Dessa forma,
destacando a feição democrática do controle difuso e a necessidade de revitalizá-lo, a
dissertação sugere como alternativa a essa prática ilegítima a institucionalização de um
“controle judicial fraco” (weak-form judicial review) com a adoção da “cláusula não
obstante” (notwithstanding clause), cujo principal mérito é atribuir ao Poder Legislativo a
autoridade de dizer a “última palavra” sobre a Constituição e ao Poder Judiciário, a
“penúltima palavra”. Por fim, defende-se que esse mecanismo institucional possibilita a
preservação da autonomia dos cidadãos, na definição do conteúdo das normas
constitucionais, além de gerar uma legítima relação de complementaridade entre
Democracia e jurisdição constitucional.
Palavras-chave: democracia, legitimidade, jurisdição constitucional.
8
ABSTRACT
One of the principal contemporary discussions of constitutional law falls on
the tension between Democracy and judicial review. The big question involving
constitutionalists and philosophers resides in how to justify the legitimacy of the judicial
review in a Democracy, ruled by the principle of self-government, if the “last word” on
what Constitution means is attributed to Judiciary Power. Starting from the presupposition
that Rule of Law, Democracy and Constitution are intrinsically linked concepts, the
objective of the present dissertation is to analyze critically such notions in view of the
existing relationship between Democracy and judicial review, with special attention to
Brazilian praxis. From this point of view, the concept of Democracy is adopted based on
JÜRGEN HABERMAS’s discursive theory, emphasizing the importance of active and
participative citizenship to legitimize the process of creation and interpretation of laws and
of the Constitution. This peculiar characteristic of democratic legislative process demands
from Judiciary Power the assurance of conditions for the exercise of the autonomy of the
citizens by means of judicial review. Albeit, given the current configuration of the
Brazilian model of judicial review, the investigation shows that it has not been exercised
legitimately as, on the one hand, the judges of Brazilian Supreme Court see themselves as
the final interpreters of the Constitution and, on the other hand, the citizens are more and
more distant from exercising their autonomy with regard to constitutional interpretation,
due to the growing concentration of judicial review. This way, underlining the democratic
nature of diffuse judicial review and the necessity of revitalizing it, the dissertation suggests
as an alternative to this illegitimate practice the institutionalization of a weak-form judicial
review with adoption of the notwithstanding clause, whose principal merit is to attribute to
the Legislative Power the authority of giving the last word on the Constitution and to the
Judiciary Power the second-last word. Finally, the text defends that this institutional
mechanism makes possible the preservation of the citizens’s autonomy in defining the
content of constitutional rules, besides creating a legitimate relationship of complementarity
between Democracy and judicial review.
Keywords: democracy, legitimacy, judicial review.
9
INTRODUÇÃO
Recentemente, MARK TUSHNET
1
voltou a provocar os acadêmicos norte-
americanos, ao publicar, na revista Dissent, o artigo Democracy versus Judicial Review:
is it time to Amend the Constitution? À luz do princípio do autogoverno, MARK
TUSHNET cogitara da promulgação de uma emenda à Constituição que encerraria com a
prática do controle de constitucionalidade pela Suprema Corte dos Estados Unidos (End
Judicial Review Amendment EJRA)
2
. Na essência da proposta, subjaz o
inconformismo com o fato de os julgamentos da Suprema Corte e, acrescente-se, dos
tribunais constitucionais serem usualmente direcionados para definir a melhor
interpretação da Constituição, dentre aquelas objeto de “desacordos razoáveis”
(reasonable disagreements). Mais ainda, os tribunais decidem tais questões em caráter
1
Cf. TUSHNET, 2005a, p. 59-63.
2
A EJRA teria o seguinte teor: “Salvo autorização do Congresso, nenhuma Corte dos Estados Unidos ou
de qualquer um dos Estados terá o poder de revisar a constitucionalidade das leis editadas pelo Congresso
ou por qualquer das legislaturas estaduais”.
10
definitivo e obrigatório, com algum prejuízo à discussão pública pela sociedade
3
, o que
lhes confere a autoridade de dizer a última palavra, em matéria constitucional. Esse é
um delicado problema, sob o ponto de vista de uma teoria democrática.
Diante da proposta lançada por TUSHNET, a pergunta que inevitavelmente
toma de assalto constitucionalistas e filósofos é: por que a decisão judicial há de
prevalecer sobre a decisão política, se os atores políticos são os legítimos representantes
do povo e se no processo legislativo se mantêm níveis satisfatórios de deliberação
política? Esta pergunta se desdobra em outras: de onde vem a autoridade da decisão
judicial? Em que se fundamenta? Como justificá-la?
Tais questionamentos não são de cil resposta. Em uma Constituição
que não dispõe precisamente sobre assuntos como a prática do aborto, da eugenia, da
eutanásia ou da clonagem, dentre outros temas essencialmente controvertidos, cobra-se
a legitimidade por parte do Poder (seja Executivo, Legislativo ou Judiciário) que venha
a decidir casos sobre tais matérias. Assim se torna imprescindível encontrar o caminho
em que o estabelecimento da legalidade venha acompanhado da legitimidade.
Sinteticamente, é dizer: obter a legitimidade da legalidade.
Essas breves considerações, que serão retomadas no Capítulo IV desta
dissertação, somadas às questões acima suscitadas, deixam clara a existência de uma
relação entre a Democracia e a jurisdição constitucional. Talvez, digam mais: que
ambas o convivam tão amistosamente, e sim com certa tensão. Por isso, são grandes
as divergências quanto à ligação que entre si guardam. A relação entre Democracia e
jurisdição constitucional seria antagônica
4
? Complementar
5
? De toda forma, trata-se de
ligação de difícil apreensão, dada a fragilidade de seus contornos e o vasto leque de
3
Cf. WALDRON, 1999, p. 289 e ss.
4
Cf. BICKEL, 1986.
5
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 766-781.
11
possibilidades que se abrem na abordagem de tão instigante tema
6
.
Há de definir-se o caminho.
Assim, é necessário enveredar-se pela sugestão de ERNST WOLFGANG
BÖCKENFÖRDE
7
. Esse constitucionalista chama a atenção para a íntima conexão entre
(a) o método de interpretação, (b) a teoria e (c) o conceito de Constituição. Para esse
autor, cada uma das diversas teorias de interpretação constitucional não se desvincula da
pré-compreensão do conceito de Estado de Direito e do próprio conceito de
Constituição. Nessa perspectiva, parece estar claro que os estudos sobre a legitimidade
da jurisdição constitucional devem fincar suas raízes nos conceitos, intrinsecamente
conectados, de Estado de Direito, de Constituição e de interpretação. A presente
dissertação toma por verdadeira a recomendação formulada por BÖCKENFÖRDE e
estabelece a direção a ser trilhada.
Inicialmente, cabe esclarecer que o significado de jurisdição
constitucional o comporta maiores problemas. Embora a expressão agremie
diferentes domínios da atividade judicial, consoante destaca J. J. GOMES CANOTILHO
8
, o
sentido a ser aqui adotado envolverá tanto a fiscalização abstrata da constitucionalidade
das leis e atos normativos, quanto a concreta. Ambas são vigentes no modelo brasileiro
de controle de constitucionalidade.
6
Para ficar com um dos mais destacados constitucionalistas da atualidade, basta lembrar ROBERT ALEXY,
(2005, p. 572-581) que intenciona contornar a tensão inerente ao controle de constitucionalidade com o
conceito de “representação argumentativa”, a qual não estaria diretamente conectada com as eleições nem
com a relação representante-representado. Com efeito, para ALEXY, uma concepção de Democracia não
pode apenas fundamentar-se sobre a decisão; é imperioso que compreenda, por igual, o argumento. Ao
contrário do parlamento, cuja representação seria volitiva e decisional, como também discursiva e
argumentativa, a corte constitucional exerceria uma representação puramente argumentativa, o que,
ademais, pressuporia a existência de argumentos bons e corretos e de pessoas racionais e maleáveis,
inclinadas a aceitarem argumentos racionais por sua correção ou perfeição.
7
Cf. BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 37.
8
Cf. CANOTILHO, 1999, p. 831. CANOTILHO, ressalvando as especificidades concretas de cada
ordenamento, distingue seis principais funções da justiça constitucional: (a) litígios constitucionais, isto é,
entre os órgãos supremos do Estado; (b) litígios emergentes da separação vertical (territorial) de órgãos
constitucionais; (c) controle de constitucionalidade das leis e atos normativos; (d) proteção autônoma dos
direitos fundamentais; (e) controle da regularidade de formação dos órgãos constitucionais e de outras
formas importantes de expressão política; (f) intervenção nos processos de averiguação e apuramento da
responsabilidade constitucional.
12
definir Democracia é tarefa mais delicada. Mesmo se partindo do
pressuposto segundo o qual ela constituiria um regime em que o povo é a um tempo
governante e governado, a justificação teórica e a estruturação prática desse conceito
admitirão as mais variadas formulações. Necessário, portanto, fixar um ponto de
referência. A opção desta dissertação apóia-se na teoria do Estado Democrático de
Direito, na formulação que incorpora a teoria do discurso de JÜRGEN HABERMAS.
A escolha não é arbitrária, tampouco afetiva. Revela, ao contrário, a
tentativa de enfrentar, criticamente, a relação existente entre Democracia e jurisdição
constitucional. O intento a ser buscado, dentro de uma proposta democrática, é permitir
ao povo ler reflexivamente suas tradições e escolher aquelas às quais pretende dar
continuidade na construção de um projeto comum
9
; e a Constituição e sua interpretação
constituem um projeto, dirigido ao futuro. A construção da Democracia, segundo
HABERMAS, importa sobretudo na caracterização de uma teoria reflexiva da sociedade
10
.
Nessa linha, MICHEL ROSENFELD
11
destaca que a teoria reconstrutiva de HABERMAS
parte de intuições, instituições e práticas existentes, pretendendo suplementar e
reorganizar a Democracia em direção a um todo coerente com a ajuda de condições
contrafáticas.
9
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 320. HABERMAS destaca: “(...) as sociedades modernas, as quais, ao ter de
operar com o direito positivo, com uma política secularizada e com uma moral racional, hão passado a
situar-se em um nível pós-convencional de justificação ou fundamentação e exigem de seus membros
uma atitude reflexiva a respeito das próprias tradições culturais”. Também valiosa se faz a ponderação de
LUIZ MOREIRA (2002, p. 101-103) no sentido de que a razão comunicativa permitirá a formulação da
teoria reconstrutiva da sociedade, na medida em que, em sua visão, a razão comunicativa, cuja natureza é
contrafática, faz surgir idealizações sobre algo no mundo, abrindo, em conseqüência, a tensão entre
realidade e idéias.
10
Cf.: ROSENFELD, 1994-1995, p. 1166. No sentido aqui proposto, a reflexividade quer significar a
utilização de uma teoria que permita a crítica permanente da sociedade, oportunize repensar e discutir as
condições e os fundamentos da sociedade, além de possibilitar novas alternativas na esfera social e
política. Sobre a reconstrução do trajeto seguido por HABERMAS, vide: MÍLOVIC, 2004, p. 52-66. Por
isso, MICHEL ROSENFELD (1994-1995, p. 1176-1177), malgrado oponha considerações de fundo contra o
paradigma procedimental de HABERMAS, valoriza a construção normativa (contrafática) habermasiana,
em face do potencial de sugerir genuínos e úteis caminhos para resolver os conflitos e as inconsistências
existentes.
11
De fato, ROSENFELD (1994-1995, p. 1176) pontua, com proficiência, as possibilidades da teoria
discursiva de HABERMAS, ao destacar: “a teoria do discurso é ricamente sugestiva ao postular um modelo
deliberativo intersubjetivo para justificação das questões normativas, em contraste com a isolação das
determinações monológicas e com o dogmatismo das soluções coletivas unitárias”.
13
Ora, o presente trabalho pretende enfrentar o problema da legitimidade
da jurisdição constitucional, tendo como pano de fundo as práticas institucionais e
judiciais brasileiras, as quais, a exemplo de todas as ações sociais, são impregnadas por
uma inerente falibilidade e, por esse modo, devem permanecer abertas ao
questionamento e à crítica constantes. Assim, com base na teoria democrática de
HABERMAS, acredita-se que a dissertação adotará o instrumental teórico apropriado para
reconstruir criticamente os fundamentos da teoria do controle de constitucionalidade, a
fim de tentar justificar a judicial review em termos do Estado Democrático de Direito
12
.
Com a adoção do modelo de Estado Democrático de Direito, permite-se
tomar por dadas as condições da realidade brasileira, ao mesmo tempo em que se
confrontam, criticamente, tais elementos empiricamente observáveis com o modelo
normativo a ser concebido. Desde já, julga-se oportuno advertir ao leitor que a análise
do modelo brasileiro de jurisdição constitucional não será descritiva e minuciosamente
apresentada, mas, tendo em vista a estrutura da dissertação e as pretensões nela
contidas, far-se-á a exposição daquelas características que detenham estrita pertinência
com a argumentação logicamente ordenada.
Hoje, no Brasil, a prática do controle de constitucionalidade impõe, sim,
a necessidade de reflexão. É preciso indagar a respeito dos fundamentos sobre os quais
se assenta o poder de o Supremo Tribunal Federal anular leis e atos normativos, bem
como a repercussão do controle, no contexto do Estado Democrático de Direito,
especialmente quando se examinam normas em cujo cerne agitam-se questões altamente
controvertidas. A necessidade de tal investigação evidencia-se, ainda mais, ao se
perceber que o Supremo Tribunal Federal vem consolidando a concepção de si próprio
como instituição a quem caberia, em última instância, dizer o que a Constituição
12
É importante destacar, na observação de ANDRÁS SAJÓ (1996, p. 1194), que a jurisdição constitucional
integra o projeto habermasiano de reabilitação da modernidade, por meio do qual se busca a legitimidade
através da legalidade, conforme será analisado nos Itens 2 e 3 do Capítulo IV.
14
significa
13
; arvora-se da função de único guarda ou defensor da Constituição
14
. Para
além dessa autocompreensão, assiste-se a uma crescente concentração da fiscalização da
constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, de maneira que o cidadão,
individualmente considerado, tem seu acesso ao centro decisório do sistema judicial a
cada dia mais e mais reduzido. Essa conjuntura aponta para o fato de que a participação
cidadã na interpretação das normas constitucionais vem-se fragilizando sensivelmente.
Ora, se a jurisdição constitucional é parte integrante do projeto de
legitimação do processo de formação da opinião e da vontade política, deve ser
entendida e, principalmente, estruturada de forma a propiciar a participação democrática
dos cidadãos na construção da vida em comunidade e, em especial, do significado da
Constituição. Ou, em termos normativos, deve ser lida como garantidora do devido
processo legislativo, possibilitando ao cidadão identificar-se, a um só tempo, como
destinatário e autor das mesmas normas jurídicas
15
. A jurisdição constitucional,
portanto, deve servir à garantia das condições processuais para o exercício da autonomia
pública e da autonomia privada dos cidadãos
16
.
Eis a idéia que permeia toda a dissertação.
A fim de desenvolver essa noção, dividiu-se a presente dissertação em
quatro capítulos.
O Capítulo I objetiva apresentar os principais conceitos que rondam a
13
Há pouco, no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 357.950-9/RS (Rel. Marco Aurélio, j.
09/11/2005), o voto do Min. EROS GRAU ilustrou a autocompreensão do Supremo Tribunal Federal. A
passagem, a seguir transcrita, fala por si mesma: “O momento é propício para a afirmação de que, em
verdade, a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último intérprete, diz que ela diz”.
14
A discussão sobre o defensor” da Constituição remete, inequivocamente, à célebre polêmica entre
KELSEN (1999) e SCHMITT (1983) sobre a titularidade do exercício da jurisdição constitucional.
15
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 135-137 e p. 154-155.
16
A autonomia pública está relacionada aos direitos de participação política, e a autonomia privada diz
respeito à proteção dos direitos individuais. Tais conceitos, contudo, serão examinados a seguir no
Capítulo I, Item 3.
15
teoria discursiva do Estado de Direito, proposta por HABERMAS
17
. Iniciando pelo tema
do pluralismo, que reside na base da teoria democrática (Item 1), far-se-ão
considerações sobre o princípio democrático (Item 2) e mostrar-se-á como ele se integra
à concepção do Estado de Direito e origina o paradigma procedimental (Item 3).
Depois, será examinada outra categoria central da teoria habermansiana o espaço
público e sua função na legitimação do processo discursivo de formação racional da
opinião e da vontade política (Item 4). O Item 5 do Capítulo I concentra-se na temática
sobre a possibilidade de obter-se o consenso. Muito embora nessa parte o
consensualismo sofra duras críticas, defender-se-á que o entendimento mútuo pode ser
atingido, desde que conte com a participação de todos os interessados e a consideração
de seus interesses; em conseqüência, o processo discursivo seguirá válido no propósito
de conferir legitimidade às leis.
O Capítulo II se ocupada judicialização da política. Após esclarecer-
se que esse fenômeno não é algo em si mesmo deletério à Democracia, definir-se-á
judicialização da política no sentido de sobreposição discursiva entre os discursos do
Poder Legislativo e do Judiciário (Item 1). Em seguida, serão analisados o discurso
legislativo de justificação (Item 2) e o discurso judicial de aplicação (Item 3), cujas
estruturas mostram-se idôneas a produzir racionalidade e legitimidade das normas. Ao
fim, será abordado o modo de relacionamento entre os discursos dos Poderes
Legislativo e Judiciário, bem assim o conflito e a sobreposição que dele podem advir
(Item 4). Nesse item, se fará perceptível a cisão no tratamento entre os dois tipos de
controle de constitucionalidade do modelo brasileiro (concentrado e difuso), que será
progressivamente aprofundada nos Capítulos III e IV.
17
Desde já, esclareça-se que a obra marco, estudada e analisada para os estudos refletidos nesta
dissertação, foi Facticidad y Validez (2001a), bem como os artigos, as conferências e as entrevistas
posteriores de HABERMAS, em que deu continuidade ao desenvolvimento de sua teoria democrática do
Estado, aperfeiçoando-a e retificando-a.
16
O Capítulo III preocupa-se, inicialmente, em apontar limites das
discussões sobre a judicialização da política, a partir de uma teoria da interpretação à
Constituição (dimensão semântica do discurso). Centrando-se no debate norte-
americano entre o originalismo e o não-originalismo (Item 1), defender-se-á que as
teorias da interpretação são insuficientes no que se refere ao intento de conter a tensão
existente entre Democracia e jurisdição constitucional. Será necessário lançar mão da
dimensão pragmática do discurso jurídico. Em sede constitucional, essa perspectiva
reclamará a abertura da Constituição a todos os cidadãos, seus legítimos intérpretes;
sinalizar-se-á para o sentido performativo da Constituição (Item 2). Na finalização do
capítulo, cogitar-se-á da crítica a essa postura (Item 3). Reafirmando-se a dimensão
pragmática da interpretação, elucidar-se-á que ela, satisfazendo as exigências de
legitimação do paradigma procedimental do Estado de Direito, revela-se como meio
mais apto a legitimar as normas e a interpretação constitucional, definindo-se alguns
parâmetros entre a relação Democracia e jurisdição constitucional.
Por fim, chega-se ao Capítulo IV. Preliminarmente relacionado à
“dificuldade contramajoritária” (counter-majoritarian difficulty), na seqüência, essa
seção abordará a denominada “primeira virada procedimentalista” da teoria
constitucional, ensaiada por JOHN HART ELY
18
, cuja finalidade era criticar a
judicialização da política (Item 1). Dado o insucesso da tentativa, entrará em pauta a
“segunda virada procedimentalista”, conduzida por JÜRGEN HABERMAS (Item 2). A
seguir, serão estabelecidos os parâmetros e as diretrizes do controle de
constitucionalidade, no segundo giro procedimentalista, em relação aos casos
essencialmente controvertidos, enfatizando-se a separação entre o controle difuso e o
controle concentrado (Item 3). Em continuidade, a noção de supremacia judicial será
18
Cf. ELY, 2002. Conforme será visto no Item 1 do Capítulo IV, o argumento de ELY é essencialmente
voltado contra a imposição de valores substantivos pelos próprios juízes ao decidirem, o que acarretaria o
desvirtuamento do sistema democrático e a interferência nas deliberações da maioria.
17
criticamente explorada e contraposta à de supremacia constitucional, distinção que
reforçará ainda mais o tratamento diferenciado entre os controles difuso e concentrado,
em termos de legitimidade (Item 4). Ao final, sobre o pano de fundo da prática
institucional e judicial brasileira do controle de constitucionalidade, será indicada uma
alternativa que, no controle de constitucionalidade abstrato, mostra-se viável à
preservação do exercício pelos cidadãos de suas autonomias pública e privada, na
definição do conteúdo das normas jurídicas que a si mesmos querem estabelecer e às
quais querem submeter suas condutas (Item 5). Para tanto, será abordada a concepção
do “controle judicial fraco” (weak-form judicial review), que, com a institucionalização
da “cláusula não obstante” (notwithstanding clause), atribui o poder de dizer a última
palavra sobre o que a Constituição significa ao Poder Legislativo e a penúltima
palavra, ao Poder Judiciário. Será argumentado que o controle judicial fraco
consubstancia importante mecanismo institucional na preservação das autonomias
pública e privada dos cidadãos. Deferir a autoridade para dizer a última palavra ao
Poder Legislativo implica delegar ao povo, aos cidadãos, o direito de exercer sua
autonomia, inclusive para precisar o significado das normas constitucionais.
Retirar o manto de silêncio que paira sobre as práticas institucionais e
judiciais no contexto brasileiro em consolidação do controle de constitucionalidade
parece ser de suma importância e, talvez, o eventual mérito da dissertação: um caminho
à reflexão e à crítica mais aprofundada sobre o tema. De fato, não se pode permitir seja
o discurso da jurisdição constitucional colonizado pela obviedade dos argumentos
pragmáticos, que tradicionalmente conferem ao Poder Judiciário a autoridade sobre o
que a Constituição diz. Se uma das principais ameaças ao exercício da cidadania
constitucional parece residir no controle concentrado, está precisamente nele o ponto de
partida para o questionamento. Desse modo, pode-se levar a sério o controle de
18
constitucionalidade e sugerir uma alternativa que enseje democratizá-lo, resgatando a
autoridade e a legitimidade do processo legislativo de formação da vontade política, em
que se manifesta com mais propriedade o exercício das autonomias pública e privada do
cidadão.
19
I. O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. O pluralismo social e cultural
2. O princípio democrático na teoria
discursiva do direito de JÜRGEN
HABERMAS
3. O paradigma procedimental do
Estado de Direito
4. Esfera pública como categoria
elementar do Estado Democrático de
Direito
5. A difícil questão do consenso na
teoria de HABERMAS
Deixou-se sugerido, na Introdução, que entre Democracia e jurisdição
constitucional dá-se uma relação difícil. Ao mesmo tempo, acenou-se para o caminho
que será trilhado nesta dissertação. O primeiro passo a ser dado é este: fixar o
pressuposto teórico com base no qual se fará uma crítica aos fundamentos do controle
de constitucionalidade.
Trata-se de estabelecer a concepção de Estado de Direito. E a escolha
recaiu na concepção de Estado Democrático de Direito formulada por JÜRGEN
HABERMAS. Primeiro, porque constitui uma proposta teórica na qual, ao considerar a
tensão permanente entre a realidade concreta (faticidade) e o modelo normativo
existente (validade), oportuniza a realização de eficaz crítica das instituições,
20
consideradas no aqui e agora. E o sistema brasileiro de controle de constitucionalidade,
tal qual institucionalizado e praticado, é o pano de fundo sobre o qual se desenvolverá a
investigação.
Por outro lado, a teoria discursiva do direito e do Estado condiciona a
própria existência deste último à Democracia: “Do ponto de vista normativo, não
Estado de direito sem democracia”, sentencia HABERMAS
19
. Sob tal perspectiva,
radicalmente democrática, torna-se possível reconduzir todo o processo de justificação e
de aplicação das normas às condições formais de comunicação. Assim, todos os
interessados, todos os membros da comunidade participam ativamente do processo
legislativo e do processo judicial, da criação e da interpretação das normas, inclusive
das normas constitucionais, o que se mostra idôneo a obter a legitimidade da legalidade,
não só na criação das normas, mas também na sua interpretação.
Analisada nos termos de uma teoria discursiva, a Democracia não
renuncia a essa dimensão dialógica da política deliberativa, que se erige sobre
pressupostos comunicativos. A jurisdição constitucional, por sua vez, como parte
integrante do projeto de criação legítima das leis, deve estar voltada a assegurar as
condições comunicativas, propiciando ao indivíduo participar ativa e democraticamente
da vida política do país, consolidando-se assim uma cultura política acostumada à
liberdade.
Mas é necessário demonstrar como tais condições se concretizam na
prática, a partir dos conceitos centrais ligados à noção de Estado de Direito, tal qual
concebido no paradigma procedimental. O presente capítulo concentrará seus esforços
em sua apresentação, iniciando pela exposição de noções relacionadas ao pluralismo (1)
e ao conceito do princípio democrático (2). Após, discutirá o paradigma procedimental
19
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 242-243.
21
do Estado de Direito, a partir da aplicação do princípio democrático (3). A principal
noção a ser extraída e que se estenderá por toda a dissertação é a do cidadão encarado a
um tempo como autor e destinatário das normas jurídicas. Na seqüência, com a
análise da esfera pública, categoria elementar ao conceito de Estado Democrático de
Direito na visão habermasiana, será destacada sua função na legitimação do processo
discursivo de formação racional da opinião e da vontade política (4). Ao final deste
capítulo, enfrentar-se-á a questão do “consenso” na teoria de HABERMAS (5), fixando-se
as balizas principais que serão tomadas por marco teórico para o desenvolvimento do
tema da dissertação.
1. O PLURALISMO SOCIAL E CULTURAL
Talvez, o grande intento de HABERMAS na obra Facticidad y Validez, em
que desenvolve com profundidade sua teoria sobre o direito e o Estado, é procurar
justificar a autoridade do direito. O que confere legitimidade ao direito? Como obter
razões para extrair a legitimidade da legalidade? Eis uma linha de questionamento que,
recorrentemente, o autor se faz. A resposta, contudo, advém da teoria normativa
aplicável à práxis de uma sociedade, em que a tensão entre a faticidade e a validade é
inerente.
Sua análise se inicia sobre as sociedades histórica e concretamente
existentes. HABERMAS investiga o grau de evolução que tais comunidades atingiram e
as condições que apresentam, necessárias à institucionalização do Estado de Direito. O
pressuposto essencial à sua concepção, e que se refletiao longo da dissertação, é o
pluralismo: um fato comum a todas as sociedades secularizadas e pós-convencionais
20
.
20
Cf. HABERMAS, 1999c, p. 449. A classificação do grau de evolução da sociedade (pré-convencional,
convencional e pós-convencional) HABERMAS estabelece, a partir dos estudos de LAWRENCE KOHLBERG
22
No diagnóstico do pluralismo, HABERMAS
21
é categórico: quanto mais
aumenta a complexidade das sociedades e mais se amplia sua perspectiva (inicialmente
restringida a termos étnicos, religiosos ou de tradição), com maior força se produz a
pluralização de formas de vida e a individualização das biografias pessoais
22
. A
evolução da sociedade faz com que as zonas de convergência sobre as questões de
fundo, que integram o mundo da vida
23
, estreitem-se ou se reduzam. Na sociedade
dessacralizada
24
, todos os temas de fundo em torno dos quais girava um consenso
tácito vão se livrando dos fundamentos “metafísicos” (ética, tradição, costume,
religião) imunizáveis a qualquer espécie de crítica e, assim, passam a ser tematizáveis
por uma vontade em constante comunicação e circulação. Todas aquelas certezas,
implicitamente compartilhadas pela comunidade, emergem do pano de fundo do mundo
da vida para serem discutidas publicamente, porquanto a sociedade plural e diferenciada
é movida por distintas constelações de interesses e necessidades, além de ser integrada
por diferentes valores, visões de mundo e projetos de vida através do processo de
sobre os estádios evolutivos da consciência moral, aplicados à teoria social. Sobre o tema, veja-se:
HABERMAS, 2003d, p. 143-233; WHITE, 1995, p. 64-72. As sociedades pós-convencionais
singularizam-se pelo fato de suas regras e práticas exigirem motivação racional para serem obedecidas. A
legitimidade das normas não mais se deposita na tradição ou na suposta identidade ética da comunidade
nos moldes ocorridos nos estágios anteriores. Nessa nova etapa social (pós-convencional), para a
legítima positivação das leis é necessário sua conformidade com princípios que impõem uma prática
argumentativa de justificação como condição da própria validade normativa.
21
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 87 e ss.
22
Ressalte-se que o pluralismo social e cultural, que marca profundamente as sociedades atuais, deixa-se
sentir na inevitabilidade de controvérsias radicais e duradouras em matéria constitucional e da
interpretação das normas (HABERMAS, 2003b, p. 187).
23
O mundo da vida é o horizonte ou o pano de fundo do agente da comunicação (HABERMAS, 2003d, p.
164-172; NEVES, 2001a, p. 126), que se apresenta em três dimensões distintas: o mundo objetivo
(concebido como totalidade das entidades sobre as quais são possíveis enunciados verdadeiros), o mundo
social (totalidade das relações interpessoais legitimamente reguladas) e o mundo subjetivo (totalidade das
próprias vivências a que cada um tem acesso privilegiado e pode manifestar-se sobre ela perante o
público, com veracidade) (HABERMAS, 1988, p. 169-171). Cada um dos aspectos do mundo da vida se
evidencia a partir dos argumentos defendidos por cada pessoa que ingressa no processo discursivo de
fundamentação normativa, de forma a possibilitar a toda pessoa manifestar seu ponto de vista, fundado
em sua história de vida pessoal, tradição e cultura. Ver ainda: WHITE, 1995, p. 47-54 e p. 92-122.
24
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 423. Na passagem, HABERMAS afirma que “os riscos, perigos e ameaças a
que se sujeita a capacidade de integração representam, muito em especial, um desafio para a política e
para o direito. Pois de certo modo se renovam o shock que ambos experimentaram anteriormente por
causa da perda da legitimidade religiosa”. No mesmo sentido do texto, confira: ADEODATO, 2002, p.
213-220.
23
comunicação. Não se subsume a uma forma de vida única.
As pessoas de uma comunidade vivem numa intersubjetividade
compartilhada, constituída tanto pela identidade individual (subjetiva) de cada um,
quanto pelas identidades sociais (intrasubjetividade). E o Estado Democrático de
Direito para se legitimar perante todas as formas de vidas e ao mesmo tempo
estabelecer padrões de conduta neutros e imparciais vê-se nessa encruzilhada. É
preciso estruturá-lo de modo a permitir que a linguagem cotidiana do mundo da vida
ganhe significado político e jurídico generalizado
25
. Isto é, deve permitir que cada
cidadão tenha efetivamente acesso aos canais de produção legislativa e judicial, a fim de
poder sentir-se a um só tempo autor e destinatário das normas.
Assim, os discursos políticos e jurídicos se desenvolverão em dupla
dimensão a fim de preservar o pluralismo das diversas formas de vida: de um lado,
consideram-se as concepções individuais sobre o bem e a vida digna; de outro, as
formas de vida plural, ancoradas em costumes, valores e tradições diversas
26
. Observe-
se que, na sociedade pós-convencional onde qualquer fundamento metafísico de
justificação do poder e da autoridade é rejeitado, o direito não pode cobrar sua
legitimidade a partir de uma forma específica de vida. Antes, exige uma moralidade
desvinculada de qualquer conteúdo e com condições de considerar, por igual, o interesse
e as pretensões de cada participante, de cada cidadão
27
.
A própria noção de cidadania é atingida pelo pluralismo cultural e social
que marca as sociedades modernas. Com efeito, ela o mais se reconduz à noção de
pertinência a uma comunidade nacional, a um Estado nacional; uma vez
25
Cf. NEVES, 2001a, p. 132-133.
26
Cf. CITTADINO, 2000, p. 90. Como explica ÁNGEL OQUENDO (2004, p. 165-168), uma perspectiva
pluralista requer que o Estado preserve e promova as diversas manifestações culturais nacionais, sem
fixar qualquer delas como parâmetro (oficial) a ser estabelecido e seguido por toda a comunidade. Existe
uma necessária integração entre o bem-estar individual, construído sobre a base de uma autonomia
cultural, e a pertinência de uma comunidade, alicerçada sobre uma cultura nacional. Nessa relação de
complementação, não pode ocorrer a opressão de um lado pelo outro.
27
Cf. HABERMAS, 1998-1999, p. 938.
24
procedimentalizada e desconectada de qualquer forma de vida, a soberania atribui a
cada pessoa o status de cidadão, que se configura pela existência de direitos e liberdades
individuais
28
. Por isso, HABERMAS concebe a Constituição das sociedades plurais como
resultado de um “consenso formal”
29
, pois todas as relações dela derivadas regulam-se
por princípios que asseguram o reconhecimento recíproco e o assentimento fundado por
todos, igualmente; cada pessoa deve ser respeitada por todos como livre e igual. A
Constituição é o lugar, por excelência, do pluralismo
30
. Em conseqüência, a partir dela,
cada pessoa deve encontrar um triplo reconhecimento: à proteção e ao igual respeito em
sua integridade como indivíduos; à qualidade de membros de um grupo étnico ou
cultural; à sua condição de cidadãos, isto é, de membros da comunidade política
31
.
É através do processo democrático que se permite a integração social da
sociedade cada vez mais diferenciada. Com efeito, segundo HABERMAS
32
, o processo
discursivo de formação da vontade política e a comunicação pública é que têm
condições de conferir legitimidade às comunidades detentoras de diferentes culturas e
concepções de mundo, desde que haja a fusão com uma cultura política compartilhada
por todos os cidadãos. O processo político democrático volta-se à institucionalização da
vontade de todos, ao mesmo tempo em que respeita as diferenças e as autonomias das
esferas plurais
33
. Esse processo, então, desenvolve-se através da inter-relação entre
sujeito e sociedade, em que nenhum desses dois elementos atue como forma de
28
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 624-625.
29
O conceito habermasiano de Constituição será examinado no Capítulo III, oportunidade em que a
definição será retomada.
30
MICHEL ROSENFELD (2003, p. 21), é pertinente destacar, atribui ao pluralismo a razão de ser do próprio
constitucionalismo.
31
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 624. Assim, não mais é possível falar-se em nação composta por membros
de uma mesma comunidade étnica, e sim em uma “nação de cidadãos”, na qual as distintas formas de
identidades culturais se reportam à Constituição, que constitui a única base comum a todos
(HABERMAS, 2000, p. 117-118).
32
Cf. HABERMAS, 2000, p. 189-190. Esse é o caminho sugerido pelo autor para justificar a
legitimidade da autoridade e do direito nas sociedades secularizadas. Não por outro motivo, afirmou:
“Uma participação democrática que só se foi impondo, muito lentamente, criou para os cidadãos um novo
nível de coesão social e abriu, à sua vez, ao Estado uma fonte secular de legitimação”.
33
Cf. NEVES, 2001a, p. 126-129.
25
opressão do outro. O respeito à diferença é fundamental; é chegada a hora em que o
“outro” é percebido e notado, não podendo mais ser ignorado. A palavra de ordem é a
“inclusão”
34
, e o verbo da vez é lutar” politicamente pelo reconhecimento. A questão,
portanto, é manter a igualdade na diferença; é ser tolerante.
Conforme se evidenciará nos Capítulos II, III e, especialmente, IV, o
controle de constitucionalidade assume um papel essencial na defesa das formas
específicas de vida sem que, com isso, venha a implicar a imposição de uma forma de
vida específica predeterminada. Em face do pluralismo social e cultural, o direito deve
comportar as mais diversas concepções que informam a sociedade plural. E a
Constituição, foi enfatizado, é a sede a partir de onde todas as formas de vida plurais
buscarão respaldo e legitimidade. Desse modo, a fim de garantir que todos os interesses
dos participantes sejam igualmente considerados e discutidos no processo deliberativo
político, é necessária a institucionalização de garantias processuais a fim de se
oportunizar a impugnação de decisões políticas tidas por ilegítimas, isto é, conflitantes
com alguma identidade social e cultural
35
. Será visto que também a jurisdição
constitucional assume o encargo de proteger as minorias culturais e sociais, bem como o
direito à diferença.
Será visto, a seguir, que o paradigma procedimental do Estado de Direito
possui o instrumental necessário para permitir a uma sociedade pós-convencional,
marcada pelo pluralismo cultural e social, distribuir equanimemente as liberdades para
cada cidadão. Porque, nele, é dada a oportunidade a cada membro da comunidade
política para articular e justificar os aspectos mais relevantes ao tratamento igualitário
34
HABERMAS (2002b, p. 7-9) ressalta que o desafio das sociedades pluralistas é conciliar os princípios
universalistas constitucionais com as diversas culturas mundiais (multiculturalismo), abrindo-se espaço
para que o Estado moderno preserve a alteridade e a diferença. Nesse sentido, a diferença reclama uma
inclusão: a “inclusão do outro” significa que as fronteiras da comunidade estão abertas a todos,
principalmente àqueles estranhos aos outros e, não obstante, desejam haver-se como estranhos; isto é,
manterem suas respectivas identidades culturais.
35
Cf. OQUENDO, 2004, p. 197-198.
26
de todos
36
, através da interpretação e da valoração das próprias necessidades
37
. Com
isso, mediante o processo legislativo discursivo e democrático, é possível editar leis que
resultem da percepção de cada uma das pluralidades a partir de suas tradições, história,
linguagem, tudo no interesse geral da comunidade. A proposta teórica do Estado
Democrático de Direito apresenta-se como alternativa para integrar legitimamente a
sociedade, não obstante o pluralismo nela enraizado.
2. O PRINCÍPIO DEMOCRÁTICO NA TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO DE JÜRGEN
HABERMAS
Na linha do que foi discutido anteriormente, o contexto em que se
estrutura o Estado moderno é o do pluralismo. A integração social o mais se realiza
mediante a autoridade de um fundamento metafísico, e sim através da ação voltada ao
entendimento mútuo. As normas sociais, até então observáveis pacificamente, saem do
silêncio clarividente da prática social, que lhes outorgava autoridade pelo simples fato
de existirem, e são expostas à discussão para revalidação das pretensões de validade a
elas inerentes. A positivação das normas se legitima por via de uma fundamentação
discursiva. Não mais a religião; não mais a tradição ou o carisma do líder. Agora é a
fundamentação das normas que viabiliza a integração social, porquanto a sociedade pós-
convencional tem seu agir regulado por normas reflexivamente examinadas
38
. A
integração social faz-se com base no processo comunicativo voltado para o
36
Relevante é a observação de GISELE CITTADINO (2000, p. 95-96), ao realçar a atenção que HABERMAS
dedica à participação ativa dos cidadãos. No processo discursivo de criação e de interpretação das
normas jurídicas, é fundamental existir uma cultura política de participação para que o direito possa
legitimar-se e preservar as formas plurais de vida digna de cada um dos membros da comunidade. Isso
porque os indivíduos ingressam no processo discursivo com base em suas convicções pessoais e
defendem suas pretensões, a partir do contexto sócio-cultural de cada um.
37
Cf. HABERMAS, 1998-1999, p. 942.
38
Cf. HABERMAS, 2003d, p. 196.
27
entendimento mútuo de seus membros
39
.
No entanto, esse processo revela seus limites e mostra-se incapaz de
regular a vida nas condições modernas da sociedade complexa, que a fixação
duradoura de discursos para domesticar o dissenso pode, ao revés, perenizá-lo ou
aumentá-lo ainda mais. A saída, então, é recorrer ao direito, que, substituindo-se às
formas tradicionais de legitimação da autoridade, funciona como estabilizador de
expectativas, através da imposição coercitiva da sanção
40
. A positividade do direito tem
sua contrapartida na pretensão de sua aceitabilidade racional; por isso, apesar de limitar
a ação comunicativa, ele não a exclui. Porque o direito legitimamente imposto traz
consigo a idéia de sua autolegislação e de sua auto-aplicação.
Na modernidade, contudo, o direito o é a única instituição a promover
a integração social. O mercado e o poder administrativo são mecanismos de integração
que formam sistemas coordenadores da ação de modo não necessariamente intencional
ou comunicativo, conforme avaliação de HABERMAS. O direito, assim, pode ser
colonizado por essas duas forças de integração social. Todavia, ele se legitimará se
inserido no contexto de prática de autodeterminação, a partir da prática das liberdades
comunicativas dos cidadãos, situação em que o direito se mostrará capaz de produzir a
integração social pela solidariedade social e, também, de conter as forças sistêmicas que
o podem colonizar. Não por outro motivo, constitui-se meio de integração da sociedade
profundamente ambíguo, por nele se intermesclarem as três forças de integração social
(mercado, poder administrativo e solidariedade social).
Não obstante os riscos de vir a ser colonizado pelos imperativos
sistêmicos, ao direito compete a responsabilidade principal pela integração social. A
39
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 87-88.
40
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 100-103. Por isso, HABERMAS (1998-1999, p. 938-939) afirma que o
direito o deve ser totalmente afastado da moralidade e pode ser melhor compreendido como
complemento funcional de uma moralidade pós-tradicional enfraquecida.
28
práxis da autodeterminação é inerente ao processo de integração, o que traz para dentro
do direito, na sua acepção moderna, um ideal democrático. Direito legítimo é direito
democrático.
O Estado de Direito, a sua vez, é a resposta à necessidade de transformar
em direito legítimo o poder político, que o próprio direito pressupõe. Para realizar a
difícil tarefa de justificar a legitimidade do Estado de Direito
41
, HABERMAS recorre ao
princípio democrático
42
. O princípio democrático deriva do princípio do discurso
43
, que
reside em um grau ainda maior de neutralidade e de abstração, relativamente ao
princípio democrático e ao princípio da moral
44
. O princípio discursivo, inicialmente
concebido nas argumentações morais, supõe o princípio da universalização, que
condiciona a validade de toda e qualquer norma à regra de que todos tenham aceitado
suas conseqüências e efeitos colaterais, satisfazendo-se, assim, o interesse de cada um
em cada situação particular
45
.
Ancorado na situação ideal desenhada pelo princípio da universalização,
HABERMAS inicia a fundamentação do princípio discursivo, que exige o assentimento de
41
Logo no início de sua obra Facticidad y Validez, HABERMAS (2001a, p. 65) substitui a razão prática
pela razão comunicativa. Sobre as diferenças entre os dois tipos de racionalidade na fundamentação do
Direito, veja: HABERMAS, 2001a, p. 65-71; MOREIRA, 2002, p. 137 e ss. Para LUIZ MOREIRA, a nova
perspectiva da abordagem habermasiana, com base na razão comunicativa, admite a articulação do
princípio do discurso com o direito. A juridificação do princípio do discurso consagra o próprio princípio
democrático. Assim, as normas serão democraticamente concebidas se houver a produção de leis por
pessoas livres, que poderão manifestar suas opiniões e vontades. O processo legislativo, ponto de tensão
entre as autonomias pública e privada dos cidadãos, consubstancia a síntese entre os direitos que os
cidadãos se atribuem e os que se lhes reconhecem.
42
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 172.
43
Nesse sentido, HABERMAS (2001a, p. 169) afirma que “a legitimidade do Direito se baseia em
mecanismos comunicativos, e são os discursos o lugar de formação da vontade racional”.
44
Embora o direito e a moral guardem entre si relação íntima, na teoria habermasiana não se confundem.
O princípio do discurso se situa em um nível maior de abstração e desdobra-se no princípio da moral e no
princípio democrático, donde resulta a relação co-originária entre ambos os domínios. Sobre o tema,
vide: AUDARD, 2005, p. 96-98; HABERMAS, 2001a, p. 172, p. 187-188 e p. 305-306.
45
Cf. HABERMAS, 2003d, p. 78-98; 2001a, p. 174-175. Vale destacar que o princípio da
universalização substitui-se, numa perspectiva dialógica, ao imperativo categórico kantiano. HABERMAS
(2003d, p. 86) assim enuncia o princípio da universalização: “que as conseqüências e efeitos colaterais,
que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser
ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos (e preferidos a todas as
conseqüências das possibilidades alternativas e conhecidas de regragem)”. Ver ainda: WHITE, 1995, p.
55-57; HABERMAS, 1999a, p. 136-140; MÍLOVIC, 2002, p. 266-268.
29
todos os abrangidos pela norma, por ocasião do processo racional discursivo de
fundamentação
46
. O princípio discursivo aplicado ao direito, ou seja o princípio
democrático, permite a instituição de normas jurídicas de ação (leis), a partir da prática
comunicativa através da qual se consideram não argumentos de natureza moral, mas
razões ético-políticas, pragmáticas e jurídicas
47
. Essa nota característica do discurso de
justificação, como se verá adiante, é essencial no confronto entre a Democracia e a
jurisdição constitucional, na relação existente entre o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário.
O princípio democrático destina-se à fixação de procedimentos de
produção legítima de normas jurídicas, que poderão pretender validade legítima caso
se submetam a um processo discursivo de formação da opinião e da vontade política,
em que todos os membros da comunidade jurídica possam expressar sua vontade
46
Para HABERMAS (2001a, p. 172), o princípio do discurso significa que válidas são aquelas normas (e
somente aquelas normas) a que todos os que se possam ver por elas afetados, tenham podido prestar seu
assentimento como participantes nos discursos racionais”. É importante ressaltar que, na presente
dissertação, não se pretende examinar, analiticamente, os requisitos da teoria do discurso, nem os tipos
dos atos de fala. Para aprofundar o tema, vide: HABERMAS, 1999a, p. 119-218; 2003d, p. 61-141 e
143-233; 2004b, p. 8-16; MÍLOVIC, 2002, p. 196-202 e p. 272- 276; OLIVEIRA, 2001, 293-320.
Contudo, convém esclarecer resumidamente, para fins didáticos, os seus elementos na teoria pragmática
formal habermasiana. Ao desenvolvimento do agir comunicativo orientado ao entendimento mútuo, é
necessária a existência de certas condições para a comunicação (situação ideal de fala), quais sejam
(MÍLOVIC, 2002, p. 273): “1. cada sujeito capaz de agir pode participar no discurso; 2. todos podem
problematizar qualquer afirmação; todos podem apresentar qualquer afirmação no discurso; todos podem
expressar seus pontos de vista, desejos e necessidades; 3. ninguém deve ser tolhido, seja via coerção
interna ou externa, na clara compreensão de seus direitos determinados nos pontos 1 e 2 acima”. Em
desdobramento das regras constitutivas da situação ideal de fala, MÍROSLAV MÍLOVIC (2002, p. 274-275)
conclui que (a) é proibido imprimir a qualquer participante da comunicação algum tipo de restrição, (b)
não pode haver nenhum tipo de repressão, respeitando-se o princípio da liberdade do discurso e (c)
seriedade relacionada aos efeitos ilocutivos dos atos do discurso. STEPHEN WHITE (1995, p. 62), a sua
vez, esclarece que as regras pressupostas na argumentação habermasiana decorrem da “noção de
reconhecimento recíproco, por parte de cada participante, do outro como uma fonte autônoma das duas
reivindicações que possuem plausibilidade e exigências iniciais iguais para justificação que devem ser
tratadas”.
47
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 535-587. Quanto à suposta hierarquização dos tipos de discurso, ver:
NEVES 2001a, p. 121-124. Não obstante, HABERMAS (2001a, p. 386; 2002b, p. 358-365 e p. 368-369)
nega a superioridade do discurso moral sobre as demais espécies de discurso ou a existência de um
“superdiscurso”, o qual fora sugerido por GÜNTHER TEUBNER (1996, p. 904-907) para promover a
compatibilidade discursiva (discursive compatibility) e solver a colisão de discursos (collision of
discourses) que inexiste hierarquia entre discursos, tampouco superioridade do discurso moral sobre o
jurídico. No entanto, o filósofo admite a existência de certa “transgressão racional” do discurso moral,
relativamente ao ético; do ético, ao pragmático. Tudo em função da lógica dos questionamentos que se
apresentam.
30
individual. Em outras palavras, a teoria discursiva do direito permite a prática da
autodeterminação dos membros da comunidade jurídica, na medida em que cada
cidadão se reconhece como membro igual e livre de uma associação
48
. Por essa via,
torna-se possível garantir legitimidade às leis.
A institucionalização racional da vontade e da opinião políticas, à luz do
princípio democrático, reclama a existência de um sistema de direitos que assegure a
cada um a igualitária participação nesse processo de produção das leis, garantindo-se o
respeito aos pressupostos comunicativos. Tais requisitos se apresentarão no paradigma
procedimental do Estado de Direito, engendrado a partir da teoria discursiva
habermasiana.
3. O PARADIGMA PROCEDIMENTAL DO ESTADO DE DIREITO
HABERMAS discute o problema da legitimação do direito com base no
exame do conceito de paradigmas”
49
do Estado de Direito
50
, relacionando-o ao
tratamento a ser conferido à tensão entre autonomia pública e autonomia privada
51
. Os
paradigmas jurídicos oferecem uma forma de compreender o direito, ao se referirem a
“imagens implícitas” que se têm da própria sociedade; imagens que conferem às
48
Nesse sentido, HABERMAS (2001a, p. 175) afirma: “O princípio democrático explica o sentido
realizativo da prática da autodeterminação dos membros de uma comunidade jurídica que se reconhecem
uns aos outros como membros livres e iguais de uma associação na qual entraram voluntariamente”.
49
HABERMAS trabalha a idéia de paradigma, a partir da definição de THOMAS KUHN (2005, p. 13), que
considera por paradigmas realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum
tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”.
A relação entre o paradigma e a compreensão do Estado de Direito é, também, explorada por MENELICK
CARVALHO NETTO (2001a, p. 220-222).
50
Três o os paradigmas do Estado de Direito: o liberal, o social e o procedimental. A análise dos
paradigmas liberal e social do Estado de Direito não guarda pertinência direta com o tema central da
dissertação, motivo pelo qual não será desenvolvida. Sobre o tema, confira: HABERMAS, 2001, p. 469-
532; CARVALHO NETTO, 2001b, p. 14-18; OLIVEIRA, 2002, p. 52-74.
51
Os conceitos de autonomia pública (exercício dos direitos políticos que viabilizam moldar o direito) e
de autonomia privada (ser portador de direitos fundamentais, que integram as liberdades subjetivas e
individuais) serão logo mais analisados. No entanto, é preciso dizer, desde já, que essas duas autonomias
integram a autonomia jurídica do cidadão, cuja noção implica que os destinatários das leis possam ser ao
mesmo tempo seus autores.
31
atividades de produção de leis e de aplicação do direito uma perspectiva dessa prática,
orientando, em termos gerais, o projeto de realização de uma associação de pessoas
livres e iguais sob o direito. Além disso, informam o modo de entender e realizar os
direitos fundamentais e os princípios do Estado de Direito, a fim de cumprirem as
funções para as quais foram normativamente cunhados. Os paradigmas, por seu turno,
são inferidos dos critérios vertidos nas decisões judiciais paradigmáticas e da própria
imagem que da sociedade possuem os juízes
52
.
O paradigma procedimental procura entender o Estado de Direito, em
função da tensão entre as dimensões pública e privada, que se complementam
reciprocamente. Só depois de se haver assegurado uma gama mínima de direitos
fundamentais (autonomia privada) é que se pode esperar que o cidadão venha
efetivamente exercer sua cidadania, participando ativamente da vida política. Atribui-se
ao direito a função de integrar a sociedade: à proporção que se verifica a existência de
direitos fundamentais (a iguais liberdades subjetivas, a iguais direitos de pertinência, à
tutela jurisdicional, à elaboração legislativa), cada cidadão participa do processo
comunicativo de formação do consenso racionalmente motivado, que institucionaliza as
normas jurídicas.
Conforme aponta MICHEL ROSENFELD
53
, o paradigma alternativo de
HABERMAS explora a possibilidade de “restaurar a autonomia pessoal e a dignidade sem
abandonar a busca pela igualdade fática sob as condições materiais características do
Estado moderno de bem-estar”. No paradigma procedimental, construído à luz do
princípio do discurso, não predeterminação do conteúdo da lei, mas simplesmente o
estabelecimento de requisitos procedimentais para que as leis satisfaçam as exigências
52
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 263-264 e p. 473.
53
ROSENFELD, 1994-1995, p. 1175.
32
do princípio do discurso, estabelecendo-se a validade normativa legitimamente
54
.
O princípio do discurso, institucionalizado na forma do direito, converte-
se no princípio democrático, proporcionando legitimidade ao processo criador das leis.
Retomando-se as condições da comunicação em razão da qual se desenvolve esse
procedimento, podem-se fixar as bases para a institucionalização jurídica da teoria do
discurso e da Democracia.
O Estado de Direito parte de uma sociedade já concebida e em certo grau
de evolução
55
. Dessa forma, os direitos humanos se fazem presentes na própria
sociedade, isto é, o sistema de direitos tem caráter pré-político. Em que pese o
assentado no paradigma procedimental, o Estado de Direito não está despido de
qualquer substrato material para sua configuração. A fixação de procedimentos – para a
formação e a institucionalização da opinião e da vontade política, bem como a criação
de condições mínimas para a efetiva participação de todos os envolvidos no processo de
justificação de normas – só pode realizar-se com o asseguramento de uma gama mínima
de direitos fundamentais
56
. Por isso, MARCELO NEVES
57
enfatiza que, na construção do
consenso (“intermediação do dissenso”), regras materiais que constituem
precondições à legitimação do Estado Democrático de Direito.
Dessa forma, com acerto, MARCELO CATTONI DE OLIVEIRA
58
resume as
estruturas fundantes do Estado de Direito no paradigma procedimentalista de
HABERMAS nos seguintes termos: “os direitos fundamentais são garantias de
institucionalização de um processo legislativo democrático, fundado na autonomia
54
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 238.
55
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 187-191.
56
A teoria procedimental habermasiana recebe várias críticas quanto ao conteúdo substantivo em que se
assentaria. Nesse sentido, ver: MICHELMAN, 2001, p. 254; ROSENFELD, 1996, p. 793-800. Na
verdade, esses direitos estão na base de um sistema político, revestido de um ethos democrático, que
compreende uma cultura política libertária e uma população acostumada à liberdade (HABERMAS,
2002b, p. 301).
57
Cf. NEVES, 2001a, p. 152.
58
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 137.
33
jurídica (pública e privada) e realizador da pretensão jurídico-moderna segundo a qual
os destinatários da norma são seus próprios autores”. HABERMAS
59
expõe quais são os
direitos fundamentais necessários (pressupostos de validade universal) à
institucionalização da prática discursiva do processo de formação da opinião e da
vontade política, classificando-os em cinco categorias diferentes.
Em primeiro lugar, os direitos fundamentais que resultam do
desenvolvimento e da configuração politicamente autônoma do direito ao maior grau
possível a iguais liberdades subjetivas de ação. As normas de ação, ao adquirirem
roupagem jurídica, autorizam os atores a tornarem efetivas suas liberdades subjetivas de
ação. o legítimas as regulamentações que satisfaçam à condição de
compatibilidade dos direitos de cada um com a igualdade dos direitos de todos.
Contudo, essa categoria de direitos o é suficiente para institucionalizar
completamente o código jurídico, porque a plena realização desses direitos numa
comunidade jurídica depende de sua acionabilidade. Tal exigência, em conseqüência,
remete a duas outras categorias de direitos fundamentais.
A segunda categoria de direitos fundamentais resulta do desenvolvimento
e da configuração politicamente autônoma do status de membro da comunidade
jurídica. As normas jurídicas não regulam as interações possíveis entre sujeitos
racionalmente competentes, mas sim os contextos de interação de uma sociedade
concreta. As normas jurídicas provêm das resoluções do legislador histórico, possuem
um âmbito próprio geograficamente delimitado e se referem a uma coletividade de
membros da comunidade jurídica socialmente delimitada. Nela, o monopólio do poder
tem dimensões finitas, o que impõe a adoção de critérios de pertinência com a distinção
entre membros e não-membros. Esses direitos, na comunidade estatalmente organizada,
59
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 188-197.
34
correspondem aos direitos de nacionalidade. O status de membro constitui o
fundamento de posições jurídicas materiais que concomitantemente conformam o status
de cidadão em âmbito nacional.
A terceira categoria de direitos fundamentais resulta diretamente da
acionabilidade dos direitos e da configuração politicamente autônoma da proteção dos
direitos individuais. À institucionalização do código jurídico é imprescindível a
garantia de remédios jurídicos através dos quais cada pessoa que se sinta violada em
seus direitos possa reafirmar suas pretensões.
Para HABERMAS, essas três categorias acima, que resultam da aplicação
do princípio do discurso ao meio do direito, estabelecem o código jurídico. Tais
direitos moldam a autonomia privada dos sujeitos jurídicos, na medida em que eles
começam por se reconhecerem mutuamente em seu papel de destinatários das leis e,
assim, no status com base no qual se faz possível pretender reclamar direitos e portá-los
uns contra os outros. No passo seguinte, mediante uma quarta categoria de direitos
fundamentais, os sujeitos de direitos adquirem, também, o papel de autores do
ordenamento jurídico.
Essa nova (quarta) categoria assegura os direitos fundamentais à
participação com igualdade de oportunidades em processos de formação da opinião e da
vontade comum, em que os cidadãos exercem sua autonomia política e produzem leis
legítimas. A partir deles, extrai-se a idéia da autolegislação que se aplica
reflexivamente à interpretação constitucional
60
. Com base nas três primeiras categorias
de direitos fundamentais analisadas, os cidadãos se reconhecem mutuamente autores
legítimos da regulação de sua própria convivência, através do direito, além de
60
Importa destacar, conforme se verá mais detidamente nos Capítulos III e IV, que o paradigma
procedimental do Estado de Direito cobra sua legitimidade não no momento de criação das normas
(justificação discursiva), mas também no de sua aplicação, que, em certo sentido, corresponde a uma
criação.
35
estabelecerem para si mesmos as condições para aplicação do princípio do discurso.
Porque a validade das normas decorre da participação, nos discursos racionais, de todos
os potencialmente envolvidos cujo consenso possa se manifestar.
Por fim, HABERMAS se reporta a uma quinta categoria de direitos
fundamentais, por meio dos quais se garante o provimento ao bem-estar e à segurança
social, a proteção contra riscos tecnológicos e sociais e a promoção de condições
ecologicamente equilibradas de vida. O desfrute desses direitos, a sua vez, está
condicionado à igualdade de oportunidades dos direitos civis acima referidos.
Fica clara, na proposta de HABERMAS, a relação interna entre a
autonomia privada e a autonomia pública. O código jurídico se institucionaliza e se
desenvolve a partir da prática discursiva dos membros da comunidade jurídica que
sabem reivindicar suas pretensões de validade. E reivindicar pretensões significa
exercer a autonomia pública, que, a sua vez, pressupõe a existência de liberdades
subjetivas ao mesmo tempo em que as configura e remodela, assegurando-se a
autonomia privada de cada cidadão. Por isso, na leitura discursiva do sistema de
direitos, a autonomia pública e a autonomia privada estão em relação de co-
originalidade, pressupondo-se mutuamente. Nesse sentido, observa HABERMAS
61
:
O princípio do discurso só pode adotar a forma de um princípio de
democracia ou princípio democrático através do meio que representa o
direito se ambos, é dizer, princípio do discurso e o meio que é o direito,
se encaixam, entrecruzam e entrelaçam nele um com o outro,
convertendo-se em, e desenvolvendo um, sistema de direitos, que ponha a
autonomia privada e a autonomia pública em uma relação de
pressuposição recíproca.
Em suma, o modelo democrático de HABERMAS surge da composição
entre os direitos fundamentais e a soberania política, de onde se retira a legitimação do
direito, de onde se atinge a legitimidade da legalidade. Conduz, então, a um sistema
61
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 194.
36
jurídico representado por um processo circular, que recorrentemente se alimenta e se
fundamenta a si mesmo, isto é, autolegitima-se. A estrutura comunicativa voltada à
criação do direito, por essa forma, abre as normas jurídicas
62
à constante reflexividade e
autocrítica, suscetibilizando-as de serem reformuladas.
4. ESFERA PÚBLICA COMO CATEGORIA ELEMENTAR DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
Também a esfera pública reveste-se de suma importância na teoria da
Constituição. Primeiro, porque o estudo do tema da jurisdição constitucional clama
pelo exame do aparato estatal no qual ela se realiza, conforme já dito. Segundo, porque
os efeitos da opinião pública não passam despercebidos pela teoria da Constituição,
deles se exigindo profunda investigação
63
.
A concepção de Estado de Direito de HABERMAS se funda sobre a
premissa da co-originalidade entre os direitos políticos e civis, ou seja, entre as
autonomias pública e privada. Em tal modelo de Estado, é exigida dos cidadãos a
participação política na definição dos rumos que a sociedade tomará. Por outro lado, no
estágio atual de evolução das sociedades modernas (pós-convencional), a política
deliberativa e o direito aparecem como os instrumentos de integração da sociedade.
Dentro dessa estrutura conceitual, a esfera pública se reveste de grande potencial para a
62
Cf. CITTADINO, 2000, p. 115. Nesse sentido, no mundo pós-convencional, clarifica GISELE
CITTADINO (2000, p. 177), as Constituições não corresponderão a sólidas comunidades éticas e culturais,
mas, a partir da incorporação de um sistema de direitos, a uma “nação de cidadãos”, em que o elo entre as
pessoas se dará através da prática ativa do exercício dos direitos de participação e comunicação. Segundo
a autora (2000, 177-180), essa concepção de cidadania democráticaé capaz de gerar a solidariedade
entre estranhos, que originará a existência do “patriotismo constitucional”, isto é, forma de integração
social, através da solidariedade, capaz de assegurar o primado do mundo da vida sobre os sistemas de
mercado e do poder administrativo.
63
Cf. VERDÚ, 1993, p. 50.
37
integração social, pois inaugura a racionalização pública da discussão política dos
assuntos que envolvem os integrantes da sociedade
64
.
Na teoria de HABERMAS, essa categoria não é tratada uniformemente ao
longo dos anos
65
. Uma primeira dificuldade que se interpõe decorre da multiplicidade
dos significados do termo “público” e esfera pública”
66
. Pode ser público aquilo que,
de uma maneira geral, é acessível a todos, esteja afetado ao Estado (v.g., bens públicos)
ou esteja ligado ao reconhecimento público. O sentido mais freqüente da expressão
para HABERMAS, contudo, é o de opinião pública, de uma esfera pública revoltada,
indignada ou informada, na qual o sujeito dela participante é portador de opinião com
função crítica.
Não obstante permaneça como princípio organizacional do ordenamento
político, a esfera pública não possui desenvolvimento regular
67
. Caracteriza-se o espaço
público como instância detentora de potencial emancipatório dos conceitos burgueses
liberais
68
.
64
Cf. CALHOUN, 1992, p. 6-9. HABERMAS (2003c, p. 42), inicialmente, concebe a esfera pública
(burguesa) como “esfera das pessoas privadas reunidas em um público; elas reivindicam esta esfera
regulamentada pela autoridade, mas diretamente contra a própria autoridade, a fim de discutir com ela as
leis gerais da troca na esfera fundamentalmente privada, mas publicamente relevante, as leis do
intercâmbio de mercadorias e do trabalho social. O meio dessa discussão política o tem, de modo
peculiar e histórico, um modelo anterior: a racionalização pública”.
65
Com efeito, no prefácio à 17ª edição de Mudança Estrutural da Esfera Pública, trinta anos após a
primeira edição, HABERMAS (1999b) admitiu a alteração do significado do conceito. Veja ainda:
OTTMANN, 2004, p. 61-65; CALHOUN, 1992, p. 1 e ss; TORRES, 1995, p. 118-120; SOUZA, 1998, p.
33-35.
66
Cf. HABERMAS, 2003c, p. 13-17.
67
Terminado o período helênico, no qual foi inicialmente percebida, somente após a formação dos
Estados Nacionais, obter-se-á, novamente, a aplicação processual jurídica da esfera pública. Na Idade
Média, por causa do feudalismo, não se poderia indagar de uma esfera pública, tendo em vista a
indiferenciação entre as esferas pública e privada. Nesses tempos, vigorava a noção de “representação
política”, isto é, determinados atributos da soberania que conferiam a seus titulares um status,
apresentando-se como “corporificação de um poder superior”, através de atos, gestos, falas, cortesias,
comportamentos etc. É emblemática a figura do nobre cavaleiro. Com o início do Capitalismo, a partir
dos séculos XIII e XIV, especialmente nas cidades da Europa ocidental e setentrional, ao lado da aparição
de um novo sistema de trocas (trocas de mercadorias), surge a troca de informações, necessidade
intrinsecamente relacionada ao comércio. Segundo HABERMAS (2003c, p. 28-41), verdadeiro
intercâmbio, que se desenvolve mediante regras, dentro da rede horizontal de dependências econômicas.
Ver ainda: CALHOUN, 1992, p. 7 e ss.
68
Cf.: OTTMANN, 2004, p. 62; CALHOUN, 1992, p. 6. Nesse período inicial da formação do
capitalismo, manifesta-se apenas o germe embrionário da esfera pública, pois esses sistemas de
comunicação sociais voltados ao comércio sequer se revestem de publicidade. Com o desenvolvimento
38
No novo contexto formado pelos Estados Nacionais e pelo
desenvolvimento inicial do Capitalismo, a esfera pública encontra-se
indissociavelmente vinculada ao Estado: público, em sentido moderno, é aquilo
relacionado ao poder estatal. A autoridade pública tem o interesse despertado pela
imprensa, enquanto forma de divulgação ao público em geral das intenções da
administração, a exemplo da publicação de decretos e portarias.
Passa-se, então, à idéia de esfera pública burguesa, isto é, a “esfera das
pessoas privadas reunidas em um público”
69
. Os burgueses são pessoas que não
governam, mas se reúnem com a finalidade de se insurgir contra o princípio de
dominação vigente. Inicialmente, contudo, a esfera pública era uma esfera literária, não
originariamente burguesa, que se formara nos “cafés” (coffee-houses) da Inglaterra, nos
salões (salons) da França e nas sociedades comensais da Alemanha
70
.
Após haver constituído linearmente a evolução da esfera pública que
culminou com o desenvolvimento de importantes funções políticas, na parte final de seu
do comércio, ocorreu, paulatinamente, o processo de nacionalização, que desembocou na formação dos
Estados Nacionais. A representatividade pública, doravante, perde qualquer significação no quadro
social, e a esfera blica volta a figurar como importante categoria sociológica. O Estado, em sua versão
moderna, traz consigo uma nova camada de burgueses, que não goza de maior prestígio social. Em
compensação, estabelece-se o “estamento dos homens cultos”, que representa um “público que lê”.
Público esse que não estava dissociado do Estado, como também constituía um fórum para onde as
pessoas privadas se dirigiam a fim de obrigar o poder público a se legitimar perante a opinião pública.
Assim, resume HABERMAS (2003c, p. 40): “O publicum se transforma em público, o subjectum em
sujeito, o destinatário da autoridade em seu contraente”.
69
Cf. HABERMAS, 2003c, p. 42.
70
Embora bastante diferentes entre si, tais esferas possuíam comportamento, raciocínio e tematizações
similares: (a) constituíam lugares de sociabilidade, em que todos eram considerados igualmente; (b)
problematizavam setores que, até então, o eram questionados; (c) não se fechavam ao público, ou seja,
eram amplamente acessíveis a quem delas quisesse participar. Após paulatina evolução, transformam-se
em esfera pública política, consciente do seu papel político e legitimador das decisões estatais, cujo objeto
era exercer a crítica contra o poder do Estado. Na passagem que segue, HABERMAS (2003c, p. 101) deixa
bem clara a relação entre Estado, esfera pública e burguesia: “(...) nos conflitos dos interesses de classe, o
Estado de Direito não garantiria já per se uma legislação de acordo com as necessidades de intercâmbio
dos burgueses. com a própria competência legislativa é que o público das pessoas privadas conquista
essa certeza. O Estado de Direito enquanto Estado burguês estabelece a esfera pública atuando
politicamente como órgão do Estado para assegurar institucionalmente o vínculo entre lei e opinião
pública”.
39
livro, HABERMAS distinguiu uma nova onda de transformações que afetou
contundentemente a sua estrutura e acarretou sua decadência e domínio
71
.
Com sua manipulação, a esfera pública perde sua função crítica na
formação de uma vontade generalizável no espaço aberto e igualitário de discussões.
Dessa forma, HABERMAS
72
caracteriza a esfera pública do Estado social democrático de
modo divergente: um choque entre uma tendência crítica do processo de
comunicação e outra manipulativa no uso da publicidade.
Entretanto, depois de severas críticas sofridas pelos historiadores, pelos
sociólogos e pelos filósofos, HABERMAS reconheceu os reducionismos em que incorreu
no diagnóstico sombrio da esfera pública por ele tematizada. E, revendo sua postura
anterior, resgata a fundamental função da esfera pública dentro do Estado Democrático
de Direito
73
.
71
Cf.: HABERMAS, 1999b, p. 17; 2003c, p. 234-284; BOYTE, 1992, p. 342; CALHOUN, 1992, p. 21-
29. De um lado, o fenômeno se revelou com o surgimento da esfera social repolitizada, em face da
crescente integração entre a esfera privada e a pública, na qual as instituições estatais e sociais
sintetizaram um único complexo de funções não mais diferenciável. O público politicamente ativo
passou a ser visto como um público “privatista”; a racionalização da cultura cedeu lugar ao consumo da
cultura. Outros fatores identificáveis precipitaram a perda da função crítica da esfera pública, já que ela
se transformou em um grande “show de publicidade”. -se um verdadeiro esfacelamento da esfera
pública. Uma nova forma de representatividade se verifica dentro dela, o que evidencia sua
“refeudalização”. A evolução da imprensa, o desenvolvimento da socialização dos bens (que acarretou o
aumento do consumo) e da indústria da publicidade também exerceram importante papel na paulatina
mudança da esfera pública. No processo de deterioração da esfera pública, a “cultura de massa”
contribuiu decisivamente. A denominada cultura de massa seria aquela compatível com as necessidades
de diversão de grupos de consumidores com um vel de formação relativamente baixo. A cultura, em
conseqüência, tornou-se mercadoria. A televisão assumiu parcela de responsabilidade na “derrocada”, ao
proporcionar o aumento do público que consome cultura. A imprensa, com a busca do lucro e da ampla
liberdade dos redatores, exerceu um ativismo jornalístico que influenciou determinantemente na opinião
pública (HABERMAS, 2003c, p. 195-235).
72
Cf. HABERMAS, 2003c, p. 270.
73
Ele próprio afirmou (HABERMAS, 1999b, p. 17): “Numa palavra, meu diagnóstico de uma evolução
linear de um público politicamente ativo a um público ‘privatista’, de uma ‘racionalização da cultura a um
consumo da cultura’, é muito reducionista. Eu avaliei de maneira muito pessimista a capacidade de
resistência e, sobretudo, o potencial crítico de um público de massa pluralista e largamente diferenciado,
que transborda as fronteiras de classe em seus hábitos culturais”. Sobre o tema, ver ainda: OTTMANN,
2004, p. 62. GOETZ OTTMANN afirma: “para o Habermas de ‘A transformação estrutural’ a esfera pública
ilustrava tanto o potencial emancipatório de conceitos burgueses liberais como ‘associação e debate
livres’ quanto as distorções manipuladoras e destrutivas de uma ‘imprensa livre’ de propriedade privada,
o Habermas mais recente, tendo distinguido os atos discursivos ideais das redes de comunicação nas quais
eles se manifestam, vê a esfera pública como uma estrutura social elementar”.
40
Principalmente, descreve o Estado, a partir da concepção de uma
Democracia, como resultado da confrontação entre o mercado e o poder administrativo
(domínios de ação integrados sistematicamente) e a contenção desses domínios pela
força de integração social da solidariedade, isto é, pela força produtiva da
comunicação
74
. É sobre esse equilíbrio, surgido da força da integração social, que se
firma a Democracia radical.
A busca por legitimação da autoridade das normas do Estado de Direito
em termos democráticos não mais se compatibiliza com os padrões tradicionais de
legitimação democrática, próprios da Democracia representativa cujo principal
instrumento de exercício da cidadania resumia-se ao processo político eleitoral
75
. É
imprescindível que a legitimação advenha pelo poder comunicativo, cujos fluxos
comunicativos e canais de circulação da opinião e da vontade perpassem pela esfera
pública.
Diante dessas observações iniciais que desembocam na atual concepção
da esfera pública habermasiana, não é difícil entendê-la como “quintessência” das
condições para formação discursiva da vontade no Estado de Direito democrático.
Como afirma ANDREW ARATO
76
, na teoria habermasiana, a legitimidade do direito não
está centrada no Estado, mas baseada na sociedade civil descentrada
77
. Daí,
HABERMAS
78
visualizá-la como centro de formação de interesses generalizáveis, atuando
de maneira que o poder do Estado se transforme em auto-organização da própria
sociedade, pois, para ele, o valor normativo do Estado de Direito não se esgota nos
processos discursivos formais de formação da vontade.
74
Cf. HABERMAS, 1999b, p. 20.
75
Cf. HOECKE, 2001, p. 415-423.
76
Cf. ARATO, 1996, p. 787-789. Veja-se também: HABERMAS, 2001a, p. 384-385.
77
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 447-448.
78
Cf. HABERMAS, 1999b, p. 13-23.
41
A esfera pública é uma estrutura de comunicação enraizada no mundo da
vida, através da base que para ela representa a sociedade civil
79
. HABERMAS descreve-a
como uma “caixa de ressonância” para os problemas que devem ser processados pelo
sistema político. Um sistema de avisos com sensores” por toda a extensão da
sociedade e capaz de o identificar e perceber os problemas latentes na sociedade,
tematizá-los de modo convincente e influente, mas também de provê-los de
contribuições, comentários, interpretações e, por fim, dramatizá-los ao ponto de fazê-los
ser assumidos e elaborados pelo complexo parlamentário. Por isso, MARCELO NEVES
80
caracteriza a esfera pública como arena do dissenso”. Em HABERMAS
81
, a esfera
pública é concebida como uma estrutura social elementar:
A esfera ou espaço da opinião pública é, certamente, um fenômeno social
tão elementar como a ação, o ator, o grupo ou o coletivo; mas escapa aos
conceitos tradicionais de ordem social. A esfera ou espaço da opinião
pública não pode entender-se como instituição e, certamente, tampouco
como organização; não é um entralhamento de normas com diferenciação
de competências e de papéis, com regulação das condições de pertincia,
etc.; tampouco representa um sistema; permite, certamente, traçados
internos de limites, mas se caracteriza por horizontes abertos, porosos e
mutáveis para o exterior. O espaço da opinião pública, como melhor se
pode descrever, é como uma rede de comunicação de conteúdos e
tomadas de postura, é dizer, de opiniões, e nele os fluxos de comunicação
permanecem filtrados e sintetizados de tal sorte que se condensam em
opiniões públicas enfeixadas em torno de temas específicos.
Através da rede de comunicações que se na esfera pública, tem-se um
instrumento de pressão formidável a ser utilizado na elaboração dos problemas, dos
quais poderão advir vantagens para os cidadãos. Por ela, as questões sociais
79
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 439-440. HABERMAS (2001a, p. 447) assim define a sociedade civil:
“Antes seu núcleo institucional constituía essa trama associativa não-estatal e não-econômica, de base
voluntária, que finca as estruturas comunicativas do espaço da opinião pública no componente do mundo
da vida, que (junto com a cultura e com a personalidade) é a sociedade. A sociedade civil se compõe
dessas associações, organizações e movimentos surgidos de forma mais ou menos espontânea que
recorrem a ressonância que as constelações de problemas da sociedade encontram nos âmbitos da vida
privada, condensam-na e elevando-a, por assim dizer, o volume ou voz, transmitem-na ao espaço da
opinião pública-política”.
80
Cf. NEVES, 2001a, p. 135.
81
HABERMAS, 2001a, p. 440.
42
controversas podem ser reguladas através de parâmetros da racionalidade, no interesse
comum de todas as pessoas envolvidas. Da mesma forma, ocorre com as matérias
relativas à interpretação constitucional, visto que o processo democrático de gênese do
direito tem por pressuposto que os cidadãos também vivam a Constituição,
interpretando-a e aplicando-a. Logo, a estrutura de controle de constitucionalidade a ser
consolidada no Estado Democrático de Direito deve objetivar fundamentalmente
preservar os aspectos comunicativos e a discussão pública em torno da Constituição na
esfera pública; caminho que, uma vez trilhado, segundo ANDRÁS SAJÓ
82
, permite ao
direito cumprir o papel de dar continuidade ao projeto de modernidade habermasiano.
Assim, a Democracia, em termos normativos, arma-se não através dos
processos institucionalizados de formação da vontade política gerados no seio dos
parlamentos e das assembléias legislativas, mas pelos processos de comunicação que se
formam livre e assimetricamente na sociedade. Dentro dessa interação, a esfera pública
política (“restrita e forte”) permanece permeável à esfera pública civil (“irrestrita e
fraca”)
83
.
Viabiliza-se, por esse modo, a circulação do poder mediante o “sistema
de esclusas”
84
, fazendo com que os problemas surgidos no seio da sociedade, no mundo
da vida, venham a ser tematizados de forma especializada para a formação
institucionalizada da vontade, pois as opiniões públicas detêm grande potencial político
de influenciar sobre a formação da vontade nos órgãos parlamentários
85
. A esfera
pública
86
, por conseguinte, reveste-se da importante missão de conferir legitimidade às
normas jurídicas; é dizer, de produzir a legitimidade por meio da legalidade. Tendo em
82
Cf. SAJÓS, 1996, p. 1223.
83
A respeito das denominações esfera pública forte, fraca, restrita e irrestrita, cf.: ARATO, 1996, p. 787-
788.
84
Sobre o “sistema de esclusas”, ver: HABERMAS (2001a, p. 436-439; 2000, p. 151-154).
85
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 443. A repercussão da sensibilidade política da esfera pública e, num
segundo momento, do Poder Legislativo para responder aos clamores surgidos na sociedade, no que tange
à jurisdição constitucional, será detalhadamente examinada, no Capítulo IV.
86
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 385.
43
vista que a formação da vontade formal e democraticamente estruturada depende do
afluxo de opiniões públicas que se formam no espaço público, a vontade política
institucionalizada, que decorre daqueles fluidos comunicativos surgidos no mundo da
vida, possui grande aptidão para representar verdadeiramente os desígnios populares
87
.
Consoante observa MCCARTHY
88
, a racionalidade da formação da vontade coletiva está
intimamente condicionada à esfera pública. Por isso, torna-se fácil concordar com
HABERMAS
89
sobre ser o complexo parlamentário o mais aberto à percepção e à
tematização dos problemas da sociedade.
5. A DIFÍCIL QUESTÃO DO CONSENSO NA TEORIA DE HABERMAS
O presente tópico anuncia algumas das dificuldades a serem enfrentadas
nesta dissertação, ao tempo em que prepara a transição ao próximo capítulo. O acordo
racionalmente motivado integra o momento constitutivo das normas, o processo de
justificação discursiva. Se na fase preambular se põem os desafios sobre a (melhor)
interpretação constitucional dos princípios formadores do Estado Democrático de
Direito, naturalmente, na fase posterior do momento de aplicação das normas, o conflito
volta novamente a se instaurar, dessa vez ligado à aplicabilidade das mesmas normas
constitucionais ao caso específico
90
. A fenomenologia discursiva no trato do consenso,
87
Observe-se, ainda, que a qualidade racional do processo de produção legislativa está diretamente
vinculada à atuação da esfera pública. Com efeito, afirma HABERMAS (2001a, p. 561): A qualidade
racional do processo de produção legislativa não só depende de como trabalham no Parlamento as
maiorias elegidas e as minorias elegidas. Depende também do nível de participação e do nível de
formação dos participantes, do grau de informação e da claridade e nitidez com que no seio da opinião
pública permanecem articuladas as questões de que se trata, em uma palavra: do caráter discursivo da
formação não institucionalizada da opinião no espaço público político. A qualidade da vida pública vem
em geral determinada pelas oportunidades efetivas que abram o espaço da opinião pública política com
seus meios de comunicação e suas estruturas”.
88
Cf. MCCARTHY, 1992, p. 62-63.
89
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 435.
90
Nesse sentido, KENNETH WARD (2003, p. 425) lega seu testemunho crítico, em companhia de
TOCQUEVILLE: “Nós estamos totalmente familiarizados com o dito de Tocqueville segundo o qual as
questões políticas na política americana são enfim concebidas como casos judiciais”.
44
sem dúvida, incita a discussão em torno da legitimidade da jurisdição constitucional e,
em forma mais abrangente, do pacto constitucional
91
.
O processo político deliberativo confere legitimidade ao Estado
Democrático de Direito, desde que alcance os pressupostos comunicativos da livre e
irrestrita discussão na formação da vontade
92
. que uma das principais dificuldades,
enfrentada por HABERMAS com a teoria do discurso orientada ao entendimento mútuo,
reside na obtenção do consenso. Esse talvez seja um dos pontos em função do qual
receba as mais fortes cticas
93
seja porque os participantes do discurso nem sempre
ingressam na discussão com o propósito de chegar ao consenso, seja porque a natureza
extremamente controversa das questões sobre a qual o discurso recai não comporta a
formulação de um acordo racional ou, ainda, seja porque as condições ideais para a
configuração do discurso nem sempre (ou quase nunca) estão presentes.
Por esse motivo, MARCELO NEVES
94
acredita que HABERMAS
sobrecarrega o mundo da vida com sua pretensão consensualista. Para MARCELO
NEVES, antes de se prestarem à construção do consenso, os procedimentos de formação
da vontade política servem, ética e funcionalmente, à intermediação do “dissenso
contenudístico”. Sendo o mundo da vida o espaço onde se reproduz o dissenso, as
certezas nele compartilhadas são localizadas e as identidades, fragmentadas. Dessa
forma, julga o autor que, dentro da pluralidade que habita o mundo da vida, se é
possível falar em “consenso procedimental”
95
.
No entanto, dada a presunção de racionalidade e a improbabilidade de se
chegar ao consenso de todos os participantes do discurso, MARCELO NEVES destaca a
91
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 187.
92
Cf. MUNNICHS, 2002, p. 185-186.
93
Cf. MCCARTHY, 1996, p. 1083.
94
Cf. NEVES, 2001a, p. 124-131.
95
Essa crítica, de certa forma, é compartilhada por MCCARTHY (1996, p. 1085-1087, p. 1095-1098 e p.
1109-1110).
45
importância de se manter aberto o processo de formação da vontade e sensível
cognitivamente à pluralidade da esfera pública. Permite-se, assim, uma estrutura
orgânica do poder permeada de circularidade compatível com o Estado Democrático de
Direito
96
.
Também MICHEL ROSENFELD
97
mostra-se descrente quanto à
possibilidade de todas as pessoas chegarem ao acordo mútuo, mediante participação em
uma situação de fala orientada ao entendimento. Mesmo que todos os atores
efetivamente pudessem influenciar na elaboração das leis, seria improvável que as
normas resultantes do procedimento de justificação viessem a atender igualmente ao
interesse dos participantes por igual. Então, o paradigma procedimentalista não
afastaria o risco da “tirania da maioria” (tyranny of the majority), motivo pelo qual as
leis democráticas, ainda assim, devem ser temperadas por direitos contramajoritários, na
perspectiva da tensão entre vontade legislativa majoritária e direitos constitucionais
contramajoritários. Em tal linha de raciocínio, não obstante admita que só por meio de
acordos ou compromissos justos se poderia estabelecer uma resolução legalmente
discursiva, ROSENFELD argumenta que o paradigma procedimental dificilmente
encontrará resposta jurídica satisfatória à questão do aborto, nas sociedades
contemporâneas. Não seria factível angariar o consenso em discussões sob cujo
supedâneo reinam em desordem e conflito questões de valores e interesses para as quais
nenhum compromisso dialógico parece possível.
A vontade da maioria seria ainda insatisfatória por ser extremamente
improvável que o discurso racional entre os atores da comunicação pudesse modificar a
96
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 407 e ss. Importa destacar que a dinâmica circular do poder permite uma
constante modificação das normas, realizando verdadeiro exercício de autocrítica no interior da
sociedade. Mais do que isso, a circularidade é verdadeira condição para legitimar as normas, conforme
observa HABERMAS (2001a, p. 197): “mas o surgimento da legitimidade a partir da legalidade pode
aparecer como paradoxo sob a premissa de que o sistema jurídico de ser representado como um
processo circular que retorna recursivamente sobre si mesmo e se legitima a si mesmo”.
97
Cf. ROSENFELD, 1994-1995, p. 1169 e ss.
46
mente daqueles que, sinceramente, acreditam ser a prática do aborto proibida ou
permitida em nível constitucional
98
. É preciso lembrar, contudo, que HABERMAS não
pretende mudar, através do discurso, as pretensões de validade de cada um dos seus
participantes, principalmente porque elas estão enraizadas no contexto muito peculiar da
história de vida de cada pessoa. A ética discursiva o impõe tamanho fardo sobre a
personalidade dos indivíduos, apesar de exigir uma espécie de “flexibilidade crítica
constante”, no dizer de STEPHEN WHITE
99
. No entanto, uma vez vencidos os seus
argumentos, cada participante, em respeito ao processo discursivo, deve aceitar a
validade das pretensões generalizadas e formalizadas, as quais futuramente poderão ser
objeto de nova pauta discursiva.
FRANK MICHELMAN, por sua vez, não tem poupado críticas a HABERMAS.
O grande entrave ao consenso, em seu ponto de vista, residiria na existência de uma
“controvérsia constitucional endêmica” (endemic controversiality of basic-rights
entrenchments)
100
, em razão da qual não meios para se chegar ao acordo, através do
procedimento de justificação moralmente reflexivo. O autor vai mais a fundo em suas
objeções para, no primeiro momento, sustentar que o processo de justificação moral das
normas fundamentais é, na prática, impossível pela inviabilidade de cada uma e de todas
98
Com tal afirmação, MICHEL ROSENFELD (1994-1995, p. 1177-1179) quer referir-se ao fato de, na
hipótese de o aborto ser permitido, haver violação ao direito à vida do feto; na hipótese de não o ser, dar-
se a restrição à autonomia, à liberdade e à igualdade, direitos fundamentais da mulher. Em ambos, como
se vê, seria negado o reconhecimento e respeito mútuo a direitos fundamentais dos participantes do
discurso, o que atingiria, certeiramente, os pressupostos de institucionalização que conferem legitimidade
ao processo de formação da opinião e da vontade política.
99
Cf. WHITE, 1995, p. 77-85. Para STEPHEN WHITE (1995, p. 78), a flexibilidade crítica implica “uma
vontade de reconsiderar e possivelmente modificar suas interpretações de necessidades, quando pareçam
manifestar reivindicações mais fracas para a universalidade do que as alternativas”. Em defesa de
HABERMAS, esclarece que a ética discursiva não impõe uma atitude hipotética radical à própria forma de
vida e história de vida, com base nas quais o indivíduo construiu sua identidade. Considera, ainda, que,
no estágio de consciência moral pós-convencional, a identidade do indivíduo (“identidade-ego”) é
vinculada à capacidade integrativa de cada um, a qual se orienta por princípios e modalidades gerais de
procedimentos, consubstanciando uma história de vida única. Trata-se, portanto, de personalidade cuja
estrutura impõe uma atitude reflexiva para melhor interpretar as necessidades pessoais e coletivas.
Lembra WHITE que, por conta da má-compreensão de HABERMAS, algumas críticas contra ele são
indevidamente formuladas no sentido de que, embora fale do consenso, nutriria por ele um profundo
desprezo.
100
Cf. MICHELMAN, 2000, p. 70.
47
as pessoas sempre manifestarem seu consentimento com todos os atos normativos
elaborados individualmente
101
. Também em decorrência dos pressupostos teóricos
assumidos para justificação da Democracia, nos moldes das teorias do contratualismo
constitucional (constitutional contractarianism), entre as quais se incluiria a de
HABERMAS. Na linha do que propugnam tais teorias, explica MICHELMAN, a
justificação das normas constitucionais, mediante o processo moralmente reflexivo,
seria possível caso o conteúdo das normas positivadas permanecesse estabilizado, ao
longo do tempo, porque o consenso versaria sobre um espectro mais ou menos
previsível de aplicação das normas
102
.
Contudo, as críticas de FRANK MICHELMAN podem ser confrontadas, ao
se identificarem os pressupostos que assume. É curioso, nesse contexto, observar a
concepção de diretos humanos da qual parte ao proceder às suas anotações contra
HABERMAS: os direitos humanos compreendem um importante e complexo sistema
constitucional, que se constitui (a) de uma concepção ideal e abstrata dos direitos
humanos, (b) da expressa positivação desses direitos em sistemas jurídicos, (c) seguida
de interpretações judiciais e, por fim, (d) de instituições para abrigarem e conduzirem as
atividades legislativas e judiciais
103
. A proposta de MICHELMAN, entretanto, não
enfrenta a questão do consenso a ser construído na esfera da política deliberativa,
101
Em sentido contrário, ver: MCCARTHY, 1996, p. 1085.
102
Cf. MICHELMAN, (1997, p. 150; 2001, p. 253-259 e 269-270). Para tanto, FRANK MICHELMAN
(2001, p. 258 e ss) enumera três elementos básicos que, segundo a proposta de HABERMAS, integram o
processo de justificação da Democracia, que se enquadraria no modelo de contratualismo constitucional:
(a) universalismo racional (rational universalism), em que o exercício do poder político coercitivo
desenvolve-se sob condição de que todos os indivíduos afetados disponham de razão para aceitá-lo, à luz
de seus interesses; (b) essencialismo constitucional (constitutional essentialism), isto é, conjunto especial
de normas básicas que fundamentalmente configurem, organizem, limitem e direcionem os atos de
criação normativa; (c) moral reflexiva (moral responsivism), por meio da qual se persegue o acordo em
termos justos de cooperação, num determinado espaço socialmente compartilhado. A impossibilidade da
justificação democrática para MICHELMAN se evidenciaria na medida em que a justificação de todas as
normas (constitucionais) básicas só se faria possível caso se mantivesse seu significado (essência da
Constituição) estável ou dentro de um contexto mais ou menos previsível de aplicação, porquanto, do
contrário, não haveria como conceber uma controvérsia profunda e não resolvida, mediante um hipotético
acordo que se firmaria em relação às palavras que traduzem as normas fundamentais.
103
Cf. MICHELMAN, 2000, p. 65.
48
porque ele delega aos tribunais o ato de definir o conteúdo das normas constitucionais,
retirando, assim, o poder de discutir, precisar ou redefinir o significado de tais normas
através da discussão pública, da própria atividade política dos cidadãos. Então, ao
trabalhar com o conteúdo predefinido de direitos humanos, isto é, como uma noção
abstrata e ideal, cuja configuração no ordenamento jurídico é assumida através de
discursos judiciais, MICHELMAN deixa transparecer certo desprezo pelo processo de
justificação racional de normas. Isso se evidencia com maior nitidez quando ele
próprio, admitindo o dualismo “lei constitucional x lei ordinária”, reserva à política
deliberativa cotidiana o desenvolvimento de leis derivadas do esquema
constitucional
104
. Daí, a prática constitucional aparentar estar situada em algum lugar
fora do alcance de membros da comunidade, pois a relação de pertinência, conforme já
pontuado, estaria delegada à Suprema Corte
105
.
Talvez nesse ponto residam suas contendas com HABERMAS.
MICHELMAN reconhece a pretensão dos habermasianos em adotar um padrão universal
de aceitabilidade racional, vinculando a prática constitucional à constante revisão de seu
próprio conteúdo, permanentemente aberto a revisões, mediante novos processos
discursivos
106
. Mas insiste na idéia da impossibilidade prática e, até mesmo,
conceitual
107
da justificação moral da Democracia, porque supõe os direitos humanos
(núcleo das normas constitucionais) como categoria “platônica” cujo sentido é
104
Cf. MICHELMAN, 1996, p. 309-310.
105
Para uma exposição acerca da teoria constitucional de MICHELMAN, em sua primeira fase, vide:
VARGAS (2005, p. 126-143). Em excelente dissertação, DANIEL VARGAS reconstrói o caminho trilhado
pelo citado constitucionalista, na tarefa de legitimar o direito. Em sua conclusão, defende que
MICHELMAN não teria atingido o objetivo, porque, em suma, considerara como legítimo o direito
produzido pela Suprema Corte, instituição em que entende simbolizada a vontade popular e apta para
definir o destino da sociedade. Tal concepção pecaria pelo elitismo judicial e, conseqüentemente, por
afastar o povo do processo decisório e interpretativo em matéria constitucional.
106
Cf. MICHELMAN, 2001, p. 265.
107
Cf. MICHELMAN, 1997, p. 149 e ss. Com efeito, MICHELMAN, numa segunda fase de sua teoria
constitucional (BALKIN, 2005, p. 1-39), vislumbra a legitimidade (constitucional) do direito no fato de
ele ser “digno de respeito” (respect-worthy).
49
independente de um processo político democrático de definição
108
. Inclina-se, assim,
pela adoção de solução de natureza comunitarista, isto é, recorre à identidade comum
das pessoas como elemento legitimador da ordem constitucional, porquanto entre os
integrantes da comunidade um certo sentimento de pertinência que levaria a um suposto
consenso quanto ao conteúdo das normas, que seria dado a priori
109
.
No entanto parece assistir razão a THOMAS MCCARTHY
110
, que, em tom
de desabafo, relata como muitos estudiosos têm-se voltado contra HABERMAS pelos
caminhos que ele próprio não assumiu. HABERMAS
111
o é ingênuo. Tem plena
consciência dos desafios à obtenção de acordos e da perenização das controvérsias, em
conseqüência do pluralismo cultural e social. É inevitável a existência de desacordos
permanentes
112
.
A questão, contudo, consiste em saber se, de alguma forma, a
durabilidade dos conflitos afetará ou o a legitimidade do sistema democrático como
um todo, pois, conforme indaga THOMAS MCCARTHY
113
, seria possível legitimar a
Democracia, estando ela repleta de controvérsias como a do aborto?
Justamente se revela a importância da concepção procedimental da
legitimidade do direito, que confere autoridade às decisões na medida em que os
108
Cf. MICHELMAN, 2000, p. 67-68.
109
Com efeito, para HABERMAS (2003b, p. 192), MICHELMAN conta com uma determinada identidade
comum da comunidade política ou com um ethos de certo patriotismo, compartilhado por cidadãos como
membros da comunidade política, que, no contexto de aplicação, ajudaria a decidir a norma de aplicação.
Entretanto, o estágio atual de evolução social o mais se compadece com o recurso a uma suposta
identidade ética ou cívica como reduto para legitimação de decisões. A criação do direito, nas sociedades
pós-convencionais, legitima-se a partir da autolegislação cidadã, que une as pessoas, acostumadas à
liberdade, na prática de uma cultura política comum.
110
Cf. MCCARTHY, 1996, p. 1083.
111
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 187-190.
112
Sobre o aborto, em Comentários à Ética do Discurso, HABERMAS (1999a, p. 161) ponderou : “Será
que, a título de exemplo, só existe uma única resposta correcta para a questão do aborto? No estado actual
da discussão em torno deste tema, ambos os lados parecem deter bons, se o igualmente bons,
argumentos. Trata-se, portanto, for the time being, de uma questão indecidível. Contanto que se trate
efectivamente de uma questão moral em sentido rigoroso, teremos de partir do princípio de que a mesma
poderá ser decidida por meio de boas razões, in the long run, de uma ou de outra forma”. É bem verdade,
como se verá logo adiante, ser perceptível uma mudança de posição em relação a questões de tal natureza.
113
Cf. MCCARTHY, 1996, p. 1095-1096.
50
participantes aceitam os resultados, ainda que dele discordem
114
, porquanto o paradigma
habermasiano o predetermina o conteúdo das leis
115
. Dentro dos parâmetros que
regem o princípio do discurso, à minoria vencida não se impõe necessariamente a
modificação de suas convicções ou visões de mundo, mas simplesmente a aceitabilidade
do resultado obtido, em face da presunção de racionalidade do procedimento discursivo.
No entanto, o resultado é passível de posterior modificação, já que as questões decididas
permanecem continuadamente diante das reivindicações manifestadas na esfera pública
plural
116
. Essa é a grande virtude da teoria discursiva, que exige a prática de uma
conversação aberta na qual todos falam e são obrigados a ouvir. O resultado obtido,
entretanto, não induz ao fechamento da questão, como seria natural supor. Ao
contrário, concluído o processo de discussão no qual foi alcançado, o tema poderá voltar
ao debate público, uma vez tratar-se de um “processo de aprendizado contínuo”
117
.
Assim, o equívoco consiste em pressupor, inicialmente, que o consenso
seria inevitável, o que, desde logo, desmereceria a proposta procedimental
habermasiana. Antes, a aceitabilidade racional dos resultados obtém-se através da
fundamentação discursiva das pretensões universalizáveis, o que confere legitimidade
ao processo decisório. No ponto, vale transcrever a passagem de HABERMAS
118
em que
114
Nesse sentido, HABERMAS (2003b, p. 161) explica as razões por que se a aceitabilidade racional do
resultado: “Dentro do domínio juridicamente definido da interpretação constitucional e da legislação
democrática em geral, os participantes não podem razoavelmente superar o pluralismo das visões
conflitantes, que ninguém pode estar certo sobre o acerto da interpretação e da legislação ou de quem é
que as realiza. Esse hiato entre a ‘veracidade da questão(truth of the matter), à qual os participantes do
discurso aspiram, e à sua assumida inviabilidade pública, explica a atratividade da concepção de
legitimação procedimental. Mas essa concepção, agora, requer uma ordem superior à do positivismo
(higher-order positivism) que explique por que procedimentos como o processo de deliberação desfruta e
manifesta autoridade’, à parte dos méritos cognitivos inerentes ao discurso racional”. E, logo adiante,
HABERMAS finaliza seu raciocínio, apontando que os conflitos interpretativos se compõem, sobretudo, a
partir da perspectiva performativa da interpretação (e não da semântica): “Não obstante, nessa leitura, o
processo contraditório de uma infindável troca de argumentos em competição o traz a nota promissória
de um acordo final, a performance em si aparenta criar o tipo de autoridade que explica por que os
participantes aceitam os resultados do qual eles discordam”.
115
Cf. ROSENFELD, 1994-1995, p. 1175.
116
Cf.: NEVES, 2001a, p. 135 e 147-149; HABERMAS, 2002b, p. 312-317.
117
Cf. WHITE, 1995, p. 84.
118
HABERMAS, 2002b, p. 317.
51
atribui legitimidade ao processo discursivo de fundamentação das normas:
Entre os procedimentos decisórios, a regra da maioria (qualificada, de
acordo com certas exigências) é particularmente importante, porque a
‘racionalidade procedimental’ que se atribui a ela (associada ao
caráter discursivo dos aconselhamentos precedentes) confere força
legitimadora às decisões de maioria. (...) Pois a aceitação factual não
significa que a minoria tivesse de aceitar o conteúdo dos resultados
como sendo racional, ou seja, que ela tivesse de mudar suas
convicções. O que ela pode fazer, no entanto, é aceitar por certo
tempo a opinião da maioria como orientação obrigatória para sua
ação, desde que o processo democrático lhe reserve a possibilidade de
dar continuidade à discussão interrompida, ou então retomá-la, bem
como a possibilidade de mudar a situação da maioria em virtude de
argumentos (supostamente) melhores.
Deve ser ressaltado, então, que o acordo racionalmente motivado é, em
última análise, o pressuposto fundamental a justificar a legitimidade do Estado
Democrático de Direito
119
. Se os participantes ingressos numa discussão o se
orientarem para sua busca, eles próprios desconhecerão a finalidade perseguida e o
motivo pelo qual iniciaram a situação de fala.
Por outro lado, conforme adverte HABERMAS, o dissenso contínuo sob a
perspectiva dos observadores tem de ser devidamente integrado com a perspectiva dos
participantes que, necessariamente, partem da premissa da existência de uma resposta
legítima. Caso contrário, não haveria justificativa funcional para a discussão
argumentativa entre pessoas. Entende-se, dessa forma, por que HABERMAS não aceita a
crítica de THOMAS MCCARTHY
120
, de acordo com a qual o consenso ético-político nas
sociedades complexas tanto pode ser atingido, quanto pode falhar.
119
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 313-316. Nessa oportunidade, HABERMAS pondera: “Se tomamos o
Estado constitucional por uma ordem legítima, que por sua vez torna possível haver uma legislação
legítima (bem como processos de criação do direito legítimos em geral), entendemos ‘legitimidade’ em
um sentido não-empirista, então supomos a possibilidade de um acordo mútuo não-violento quanto a
questões políticas”. E, em seguida: “Se nós, como participantes de discursos políticos, não pudéssemos
convencer outras pessoas, nem aprender com elas, a política deliberativa perderia seu sentido – e o Estado
democrático de direito, o fundamento de sua legitimação”.
120
Cf. MCCARTHY, 1996, p. 1120.
52
Ora, o próprio THOMAS MCCARTHY
121
, na hipótese acima retratada,
considerando o fato de não se chegar ao consenso, atenta para a exigência de um grau
maior de abstração para que tal consenso seja atingido. No entanto, por defender o
“entrelaçamento dialético” entre os discursos moral e ético
122
, MCCARTHY não encontra
outra saída senão negar, em princípio, sob a perspectiva do observador, a obtenção do
consenso ético-político. A resposta de HABERMAS, contudo, não se faz esperar.
Precisamente em decorrência do pluralismo social e cultural das sociedades pós-
convencionais e para que se formule uma política inclusiva e tolerante, é que se torna
imprescindível lançar mão das questões morais
123
. Porque em assuntos, a exemplo do
relativo ao aborto, cuja compreensão está fortemente arraigada às visões de mundo de
cada pessoa, às convicções pessoais, à religião, às subculturas diversas, dificilmente se
chegaria a uma regulamentação neutra desses latentes conflitos de valores de uma
situação eticamente caracterizada, que atendesse o interesse de todos os envolvidos por
igual
124
. Por conseguinte, HABERMAS propõe a mudança de perspectiva a fim de
substituir a pergunta do que é “melhor para nós” para inserir outra de acordo com a qual
é preciso justificar uma norma que seja “igualmente boa para todos”. Essa mudança,
que viabiliza o consenso, será buscada “no plano mais abstrato da coexistência de
diversas comunidades eticamente integradas”, elucida HABERMAS. A abstração trabalha
em favor de uma regulamentação relativamente liberal”
125
, a qual pode contemplar de
121
Cf. MCCARTHY, 1996, p. 1096-1097.
122
Para THOMAS MCCARTHY (1996, p. 1090-1094 e p. 1104-1105), as questões éticas e morais, a rigor,
não se diferenciariam entre si (daí o entrelaçamento dialético), porque a identidade pós-nacional reclama
uma cultura política comum enraizada em tradições constitucionais, de modo que aquilo que é melhor
para todos igualmente (questão moral), na verdade, representa o auto-entendimento de uma determinada
sociedade quanto àquilo que é melhor para ela (questão ética), como ela mesma se vê.
123
O acordo do ponto de vista moral poderia ser obtido, pois, em HABERMAS (1999a, p. 112), as questões
morais exigiriam uma fratura com todas as evidências dos costumes concretos e estabelecidos, assim
como um distanciamento em relação àqueles contextos práticos com os quais a identidade individual está
entretecida de forma inextricável”.
124
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 311.
125
Embora tenha afirmado a impossibilidade do consenso moral no atual estágio de amadurecimento
sobre o aborto e admitido, apenas, o consenso ético para a questão do aborto (1999a, p. 161), infere-se, do
excerto a seguir, que, indiretamente, HABERMAS (2002b, p. 311-312) uma guinada quanto à questão,
53
forma justa e igualitária todos os cidadãos, sem privilegiar esta ou aquela visão de
mundo.
Percebe-se, então, a dificuldade latente que a prática da política
deliberativa enfrenta para produzir normas jurídicas legítimas (legalidade com
legitimidade), no Estado Democrático de Direito. Muitos dos temas essencialmente
controvertidos que são discutidos e definidos na comunidade, dada sua própria natureza
pluralística, terminam convertendo-se em leis válidas e obrigatórias, sem que obtenham,
à unanimidade, o consentimento de todos os participantes do processo discursivo de
fundamentação das normas.
Esgotadas as possibilidades de se modificar o resultado final no processo
político legislativo, parece subsistir uma derradeira alternativa de revertê-lo. Cuida-se
do manejo de instrumentos judiciais, especificamente do controle abstrato da
constitucionalidade (no caso brasileiro), apelando-se ao Poder Judiciário, em última
instância, para que reconheça a ilegitimidade da norma, dada sua suposta
incompatibilidade com a Constituição. A conseqüência de tal práxis institucional
conduz a um ponto em que as atividades legislativa e judicial se tocam. As atribuições
do Poder Legislativo e do Poder Judiciário convergem, assim, para uma situação de
colisão em que se faz preciso determinar qual o papel de cada um deles a fim de não
ao falar da eutanásia, especificamente: “Quando se fala da dificuldade que McCarthy vincula a essa
abstração, trata-se aí, na verdade, de uma restrição. A mudança de perspectiva deve possibilitar uma
regulamentação moralmente aceitável, ou seja, aceitável pelas mesmas razões e que não apresenta solução
para o conflito de valor. Ora, tal regulamentação ainda não corresponde à distribuição simétrica dos
encargos decorrentes que terão de ser assumidos a partir de uma opção estratégica. Em vista do objetivo
de uma coexistência sob igualdade de direitos, ela é ‘igualmente boa para todos’, mas nem sempre em
vista de toda e qualquer conseqüência. Não se pode excluir uma distribuição desigual dos ‘rigores’ que
uma solução justa acarrete para a autocompreensão ética de uma ou outra das partes envolvidas; mais que
isso, é antes mesmo provável que tal coisa aconteça. Pois em geral a abstração trabalha em favor de uma
regulamentação relativamente ‘liberal’ (que a mim pessoalmente, por exemplo, pareceria bastante
insuportável no caso da eutanásia). Por outro lado, a expectativa normativa associada a isso, de que em
todo caso se tolere um comportamento eticamente condenável de integrantes de um outro grupo (a partir
de ‘nossa’ visão), implica ao menos em parte uma ofensa a nossa integridade; a ‘nós’ continua se
permitindo recriminar eticamente a práxis de outras pessoas, mesmo que a ela se tenha garantido o aval
jurídico. O que se exige juridicamente de nós é a tolerância em face das práticas que consideramos
eticamente extraviadas a partir de ‘nossa’ perspectiva.”.
54
haver sobreposição ou, até mesmo, usurpação de funções entre os dois Poderes, ou seja,
evitar a indevida interferência de um deles sobre o outro. Esse tema será objeto de
análise do próximo capítulo.
Antes, porém, de encerrar o presente capítulo, é preciso reiterar sua idéia
central, cujos desdobramentos se farão sentir ao longo de toda a dissertação. É que, no
Estado Democrático de Direito, a legitimidade das leis é um procedimento que está
além das instituições estatais, isto é, do regular funcionamento dos Poderes Legislativo,
Executivo e Judiciário, não obstante o processo de legitimação perpasse por eles. Com
efeito, a legitimidade das leis advém do cidadão, no exercício de suas autonomias
pública e privada. É o cidadão, no fundo, que constitui e consubstancia o centro de
legitimidade do Estado, das normas jurídicas e da interpretação crítica e reflexiva da
Constituição. Essa perspectiva, como se verá adiante, faz sentir-se na relação
Democracia e jurisdição constitucional, bem assim na própria estrutura do controle de
constitucionalidade, no que tange à distinção entre os controles concentrado e difuso.
55
II. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: A SOBREPOSIÇÃO
DISCURSIVA NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. Judicialização da política: em que
sentido?
2. O discurso de justificação e sua
racionalidade
3. O discurso de aplicação
4. A transição entre os discursos de
justificação e de aplicação
Sem dúvida, não é fácil a tarefa de estabelecer critério válido a distinguir,
com precisão, as atividades que, propriamente, pertencem ao Poder Legislativo daquelas
atribuíveis ao Poder Judiciário. O título do presente capítulo sugestiona que, em
algum momento, as atividades legislativa e judicial irão interagir. O ponto nodal da
questão, destarte, direciona-se à compreensão do entrelaçamento dessas atividades, à luz
do paradigma procedimental do Estado de Direito. É dizer: de qual modo conceber tal
relação.
O capítulo anterior foi encerrado com a discussão sobre o consenso. Viu-
se que, mesmo naquelas questões altamente controversas, há a possibilidade de se
atingir o consenso, quando se encara o processo político deliberativo a partir da
perspectiva do participante. E o ser participante, isto é, o haver o sujeito ingressado na
situação (ideal) de fala, em que as pretensões de cada um são confrontadas
56
discursivamente com a de todos, em igualdade de condições, tem o condão de conferir a
tão almejada legitimidade ao processo decisório, ainda que o resultado não seja o
esperado por alguns dos atores da comunicação.
No entanto, a decisão tomada no âmbito político não se fecha em si
mesma. A circularidade do poder e a estrutura democrática do Estado de Direito não se
compatibilizam com a estagnação em torno de qualquer definição política, que, uma vez
adotada, retorna à esfera pública na qual sofrerá novas críticas. Como visto, essa
característica permite àquela parcela de participantes cujas pretensões não foram
consideradas dignas de universalização reverter o resultado anterior na próxima rodada.
Ocorre que, em face da atual organização institucional do Estado de
Direito, as decisões politicamente deliberadas nem sempre são revertidas pelo canal
político. Em vários casos, elas têm sua resolução final no Poder Judiciário, como se o
órgão judicante fosse erigido à categoria de terceira câmara legislativa
126
; ou seja, a
última palavra é dada pelos juízes. Daí, a pertinência da observação de KENNETH
WARD
127
de que as questões políticas são, ao fim e ao cabo, concebidas como casos
judiciais.
A denominação de “judicialização da política”, em certo sentido, vem
sendo utilizada para denunciar a ilegitimidade dessa prática institucional. Porque, de
alguma forma, o processo discursivo de formação racional da opinião e da vontade
política, que confere legitimidade às normas, tem seu papel minorado em face da
atividade judicial. É bem verdade que, na maior parte das vezes, o consenso sobre as
questões controversas se forma precariamente, mas isso o explica, tampouco justifica
a eleição do foro judicial como o competente para resolver definitivamente a questão.
Torna-se preciso, ao menos, discutir a justificação da práxis institucional
126
Cf. GREY, 2003, p. 481.
127
Cf. WARD, 2003, p. 425.
57
em função da sua legitimidade, em termos de Estado Democrático de Direito. A
questão adquire maior relevância em decorrência da evolução do controle de
constitucionalidade. Desde suas origens, historicamente fixadas em MARBURY vs.
MADISON
128
, em 1803, o controle judicial esteve muito mais atrelado à preservação da
forma federativa, assim nos Estados Unidos como nos países europeus que o
adotaram
129
. Após a segunda guerra mundial, com a expansão do poder judicial, é que a
judicial review se fortaleceu no papel da defesa dos direitos fundamentais (righted-
oriented courts)
130
, com grande repercussão na vida política do país.
Com essas considerações, o presente capítulo seguirá com a análise
conceitual do fenômeno da judicialização da política, deixando claro que ele nem
sempre acarretará efeitos nefastos à prática democrática (1). Na seqüência, à luz da
teoria discursiva do Estado Democrático de Direito, serão apresentados alguns
balizamentos que seguem válidos para diferenciar entre o que é apropriadamente
atribuição do Poder Legislativo (2) e o que é do Poder Judiciário, além da racionalidade
necessariamente considerada como pressuposto dos discursos de justificação e de
aplicação (3). Enfim, enfrentar-se-á o entrelaçamento discursivo e, considerando-se a
racionalidade intrínseca a cada um e as exigências discursivas de legitimação
democrática, posicionar-sepela prevalência do discurso político de justificação caso
exista uma situação de conflito entre ambos (4).
1. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA: EM QUE SENTIDO?
A expressão “judicialização da política” é vulnerável a críticas, uma vez
que pode ser relacionada com a deturpação dos parâmetros democráticos sobre os quais
128
A temática será explorada, com maior profundidade, no Capítulo IV.
129
Cf.: FABER, 2003, p. 417; AJA, 1998, p. XI-XXXII.
130
Cf. GREY, 2003, p. 481-487.
58
deve fundar-se o Estado de Direito no paradigma procedimental. Contudo, não
representa um mal em si. Conforme observa o professor MARCUS FARO DE CASTRO
131
,
a judicialização da política, fenômeno que atinge diversas sociedades contemporâneas,
tem contribuído para fixar um padrão de interação entre os poderes, não
necessariamente deletério à Democracia. É o resultado mesmo do aperfeiçoamento do
sistema democrático do Estado de Direito.
Em clássico estudo sobre o tema, C. NEAL TATE e TORBJÖRN
VALLINDER
132
destacam que, na verdade, a judicialização da política constitui fórmula
abreviada para designar o fenômeno da expansão global do poder judicial (the global
expansion of judicial power). TORBJÖRN VALLINDER
133
identifica, nesse processo
expansivo, dois sentidos diversos (“Judicialização I” e “Judicialização II”). Sob a
perspectiva do Poder Judiciário, o primeiro deles corresponde à atuação mais expansiva
do Judiciário, no sentido de que ele passa a decidir matérias até então reservadas à
esfera dos Poderes Executivo e Legislativo. MARCUS FARO
134
constata essa evolução
como uma nova forma de ativismo judicial. O segundo sentido, tocante aos outros dois
Poderes, consiste na adoção, pelos políticos e autoridades administrativas, de métodos e
procedimentos de decisão semelhantes aos judiciais, em suas deliberações
135
. A
acepção a ser aqui examinada é a da Judicialização I.
Em meio a esse fenômeno que vai tomando corpo em escala mundial, o
que se precisa definir é sob quais formas ele repercutirá nas dimensões pública e privada
da autonomia dos cidadãos. É dizer: será a judicialização da política um processo que
logra promover e assegurar a liberdade de ação das pessoas ou, antes, vem enterrar a
tentativa de emancipação da cidadania?
131
Cf. CASTRO, 1997, p. 148-151.
132
Cf. TATE and VALLINDER, 1995, p. 05.
133
Cf. VALLINDER, 1995, p. 13 e p. 516.
134
Cf. CASTRO, 1997, p. 148.
135
Para JOSÉ EISENBERG (2003, p. 47), a Judicialização II seria melhor denominada por “tribunalização”.
59
C. NEAL TATE adverte que a visão tradicionalista da judicialização da
política, na qual é entendida como o exercício da discricionariedade política por juízes,
deve ser evitada. Aporque a judicialização da política foi percebida, sobretudo, após
o aparecimento das democracias liberais
136
, embora não se resuma apenas a esse fator.
De fato, o fim da segunda guerra mundial, com a queda do nazismo e do fascismo, as
políticas econômicas de reconstrução e desenvolvimento do pós-guerra, o declínio do
positivismo jurídico, além do fortalecimento do direito internacional configuram um
amplo leque de causas de desenvolvimento da expansão do poder judicial
137
. De outro
lado, TATE
138
elenca algumas condicionantes facilitadoras à judicialização da política,
dentre elas, o estabelecimento da Democracia, o princípio da separação dos poderes, a
inefetividade das instituições majoritárias, a estratégia política, a política dos direitos,
ou seja, uma carta de direitos individuais que deve ser concretizada, ainda que contra a
vontade de determinada maioria.
No Brasil, a judicialização da política se evidencia, principalmente, com
o advento da Constituição da República de 1988
139
. Nesse sentido, MARCUS FARO
140
,
em estudo pioneiro sobre o tema, conclui que, desde a Carta de 1988, sedimenta-se a
visão do sistema judicial como canal de articulação de conflitos sociais e políticos,
culminando com a “descoberta do judiciário”. Tais circunstâncias, a seu ver, têm
conferido ao Poder Judiciário as características de uma “arena política”.
136
Cf. TATE and VALLINDER, 1995, p. 526. No mesmo sentido: GREY, 2003, p. 474-475 e p. 481-
487; CAPPELLETTI, 1999, p. 45-63.
137
Cf. VALLINDER, 1995, p. 19-23. Numa análise econômica, JOSÉ EDUARDO FARIA (2005, p. 23-51)
aponta que um dos fatores mais determinantes da judicialização da política é a incapacidade de o Estado
regular a economia complexa e globalizada.
138
Cf. TATE, 1995, p. 28-33.
139
Cf.: VIANA et al., 1999, p. 42; FARIA, 2005, p. 33 e ss. Ao lado da judicialização da política, LUIZ
WERNECK VIANA (1999, p. 9-13 e p. 149 e ss) vislumbra o processo de “judicialização das relações
sociais”, cuja causa está, indissociavelmente, relacionada à democratização do acesso à justiça, que foi
fortemente impulsionada a partir da Constituição de 1988. V
140
Cf. CASTRO, 1993, p. 16-25.
60
Seria, assim, difícil discordar das significativas conclusões de TATE e
VALLINDER
141
sobre a expansão do poder judicial como fenômeno de âmbito mundial
que vem moldando o desenvolvimento da política. Não se pode deixar de vislumbrar,
nesse processo, o importante papel de que se vem investindo o Poder Judiciário na
garantia dos direitos fundamentais. Sob tal ponto de vista, a judicialização da política
pode ser avaliada positivamente, como resultado da institucionalização e
consolidação das Democracias. Um caminho necessário que todo Estado de Direito
deveria atravessar para atingir a legitimidade a partir da legalidade.
Tais condições, entretanto, não ensejam um diagnóstico preciso sobre os
reflexos da judicialização no exercício das autonomias pública e privada das pessoas.
Embora a judicialização da política tenda a reforçar o sistema de partidos políticos e a
propiciar a conexão entre Democracia representativa e participativa em face dos
diversos procedimentos instituídos na Constituição
142
, é incerto que seu
desenvolvimento venha a favorecer o enriquecimento da Democracia. Pois se ela
significar a delegação da vontade do soberano a um corpo especializado de intérpretes
da Constituição, essa “substituição” do cidadão pelo juiz enquanto fonte do conteúdo
das normas jurídicas não poderá ser favorável a uma política deliberativa fundada no
autogoverno, nem ao desenvolvimento da Democracia regida por cidadãos ativos.
Eis, precisamente, o ponto a ser tematizado. Não obstante existam
aspectos positivos ligados ao estabelecimento das Democracias, a judicialização da
política poderá, sim, trazer efeitos destrutivos à construção da Democracia
143
.
Principalmente, se se considerar que os tribunais exercem melhor a proteção de
141
Cf. TATE and VALLINDER, 1995, p. 05.
142
Cf. VIANA et al., 1999, p. 10-12 e p. 43-54.
143
MICHEAL PERRY (2003, p. 636-637), no ponto, anota com precisão: “Afirmar que tem havido uma
judicialização da política não é o mesmo de afirmar a existência de ‘usurpação judicial da política’
[judicial usurpation of politics]”.
61
importantes valores constitucionais contra o potencial abuso do poder político
144
. É que
essa concepção vai ratificando a autocompreensão do Poder Judiciário (e do tribunal
constitucional, em especial) como instância última de deliberação sobre todas as
questões surgidas no seio da sociedade, em relação à Constituição. O problema, então,
é definir qual o papel que devem exercer os tribunais constitucionais na sociedade
quanto à concretização e à interpretação da Constituição.
Outra não é a preocupação de CHRISTINE LANDFRIED
145
quanto à
judicialização da política na Alemanha. Lá, em matérias como o aborto, retira-se das
instituições majoritárias o poder de realizar políticas construtivas e racionais, em
hipóteses nas quais a Constituição se abre a mais de uma opção ao intérprete. Em relato
do longo processo de discussão na República Federal da Alemanha, desde 1970 até
1974, que culminou com a edição da lei do aborto, permitindo à gestante realizá-lo
livremente até o terceiro mês da gravidez, a publicista alemã não hesita em criticar a
decisão do Tribunal Constitucional Federal, de 1975, que teria excedido suas
competências, pois a definição sobre o direito de abortar encontraria melhor solução no
parlamento, em face de todas as questões nela abrangidas.
Sob outro prisma, vê-se que a judicialização da política traz consigo uma
carga bastante negativa aos postulados democráticos do Estado de Direito, pois,
precisamente, o que deveria garantir a autonomia jurídica dos cidadãos, manifestada
ao longo de quatro anos de discussão pública sobre o tema do aborto no caso alemão
termina por eliminar.
Aos poucos, vai-se revelando que, na concepção aqui adotada, a
jurisdição constitucional deverá assumir o papel não de guardiã de suposta ordem
hierárquica de valores substantivos, mas, ao contrário, de instituição cuja função
144
Cf. FEREJOHN, 2002, p. 55 e ss.
145
Cf. LANDFRIED, 1995, p. 307-324.
62
consiste em salvaguardar o procedimento legislativo democrático, na medida em que
deve preservar as autonomias pública e privada dos cidadãos
146
. A necessidade de
defender esse posicionamento tende a enrobustecer-se mais e mais, ao se perceber que a
judicialização da política não decorre da natureza controversa das questões, objeto
das deliberações políticas. Também se lhe atribui por causa a oposição política, ou seja,
o uso político da fiscalização abstrata de constitucionalidade, de que lançam mão os
legitimados ativos para provocar o controle judicial
147
.
A postura do tribunal constitucional, então, envolverá grande dose de
prudência. Justamente para reconhecer, nesses casos, argüições de
inconstitucionalidade que se voltam menos contra os aspectos jurídicos subjacentes à
questão do que contra o êxito (político) da norma editada
148
. Em o tribunal
constitucional não se autoconscientizando dessa distinção entre o político e o
jurídico
149
, vulnera-se a autonomia dos cidadãos, especialmente nas leis mais polêmicas,
cujo processo legislativo, em regra, suscita maiores debates públicos. Ou seja, dá-se a
judicialização da política.
146
Cf. HABERMAS, 2000, p. 103.
147
MARCUS FARO DE CASTRO (1993, p. 51-53), diagnosticando o caráter inovador da atuação relevante
dos partidos políticos perante o Supremo Tribunal Federal, constata que, no período pesquisado (outubro
de 1988 a fevereiro de 1993), os partidos de centro-direita (situação), em regra, objetivavam, através das
ações diretas de inconstitucionalidade, modificações na engenharia partidário-eleitoral, ao passo que os
partidos de esquerda (oposição) se opunham aos critérios de redistribuição, vinculados às políticas fiscal e
monetária. Veja-se ainda: TATE, 1995, p. 30-31; WERNECK, 1999, p. 59; MAUÉS e LEITÃO, 2003, p.
6-8. Na Alemanha, noticia-o CHRISTINE LANDFRIED (1995, p. 317), a utilização do controle abstrato para
realizar oposição política é também uma prática comum.
148
Não se desconhece, porém, que o controle de constitucionalidade e a própria judicialização da política
contribuem para preservar o direito das minorias contra as maiorias parlamentares (WERNECK, 1999, p.
51), isto é, contra a “tirania da maioria”. Em sentido contrário, não se podem ignorar as práticas de
negociações políticas e acordos, em que a facção política minoritária impõe diversas condições para a
tomada de decisões desejadas pela maioria (TUSHNET, 1999, p. 158-163). No limite, não é de se
descartar o risco de uma “tirania da minoria”. No Capítulo IV, o tema sobre a relação entre judicial
review e proteção da minoria será criticamente retomado.
149
Conforme será apresentado a seguir, a separação entre o jurídico” e o político” deriva da distinção
entre o discurso de justificação e o de aplicação, efetuada por KLAUS GÜNTHER e seguida por HABERMAS.
63
2. O DISCURSO DE JUSTIFICAÇÃO E SUA RACIONALIDADE
No item anterior, destacou-se que a judicialização da política não
representa, necessariamente, fenômeno deletério aos parâmetros do Estado Democrático
de Direito. Contudo, pode assumir forma que venha a obstar o vínculo de identidade
existente entre normas, autores e destinatários. Enquanto autores e destinatários das
leis, os cidadãos são chamados à participação no processo deliberativo de produção das
normas, cujo resultado direciona-se à obtenção do consenso pelos participantes do
procedimento legislativo discursivo. A despeito de todo o esforço comunicativo
voltado ao entendimento mútuo, o dissenso por parte dos atores pode remanescer ao
término do processo, principalmente nas questões altamente controversas. A
“necessidade tica de decidir”
150
impõe a fixação de regras formais (prazos, restrições,
condicionamentos etc.) ao procedimento discursivo, para que ele chegue ao fim e se
tenha a decisão tomada. Oriunda do processo racional de formação da vontade política,
a decisão reveste-se de legitimidade; presume-se haver sido justificada pelos cidadãos,
no exercício de sua autonomia.
A dúvida que aflora é sobre se tais normas, veiculando questões
controversas e recém-editadas pelo Poder Legislativo, após o processo legislativo de sua
criação, poderiam ser legitimamente invalidadas em sede de controle de
constitucionalidade. A resposta exige exame dos elementos integrantes do discurso de
justificação, ou melhor, do processo discursivo de justificação das normas jurídicas, que
se fundamenta em pressupostos comunicativos.
150
Cf. GÜNTHER, 1995, p. 296-297. Tal necessidade, como reconhece HABERMAS (2002b, p. 316-317),
impõe restrições às formas de uma situação ideal de fala que, no entanto, não comprometem a presunção
de racionalidade das normas, embora contribuam para reforçar as críticas de MARCELO NEVES e THOMAS
MCCARTHY contra o consensualismo habermasiano.
64
Na esteira da teoria da argumentação de KLAUS GÜNTHER, HABERMAS
151
distingue os discursos proferidos para a criação do direito daqueles manejados para a
sua aplicação. Essa diferenciação, ressalta HABERMAS, segue como critério proveitoso
para separar as atividades que, legitimamente, cabem ao Poder Legislativo e ao Poder
Judiciário
152
.
De uma maneira geral, MARCELO CATTONI DE OLIVEIRA
153
apresenta a
justificação como espécie de discurso de validação de normas, que se desenvolve com o
aporte de razões de um amplo espectro. O discurso de justificação procura responder a
pergunta do “coletivo” que seconfrontado com a seguinte indagação: “Que devemos
fazer?”. Ele se abre aos mais diversos aspectos, em que, segundo a linha de distinção
traçada por HABERMAS
154
, identificam-se questões pragmáticas, éticas e morais.
As questões pragmáticas consideram os fins adequados à realização das
metas buscadas. É importante salientar que nem sempre se trata de simples eleição de
meios racionais com relação a fins, pois muitas dessas metas, não raro, apresentam-se
problemáticas, razão por que o discurso pragmático contempla o cálculo das metas, em
face dos valores aceitos, tudo com base no saber empírico consolidado.
as questões éticas envolvem um conjunto de interesses profundamente
enraizados nas formas de vida intersubjetivamente partilhadas, desde uma perspectiva
coletiva (questões ético-políticas). Os membros da comunidade perquirem sobre a
forma de vida a ser compartilhada e os ideais a serem projetados tanto na vida em
comum, quanto numa perspectiva individual (questões ético-existenciais), em que se
questiona “Quem sou eu? Quem quero ser? E o que é melhor para mim?”. A pergunta
151
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 334.
152
Para exame crítico sobre as críticas dirigidas a GÜNTHER e a HABERMAS no que tange aos discursos de
justificação e de aplicação, é digna de nota a dissertação de LEONARDO AUGUSTO DE ANDRADE BARBOSA
(2005, p. 125-186), em que examina detidamente tais pontos.
153
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 84-85.
154
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 225-236. HABERMAS (2001a, p. 358), destacando a complexidade
peculiar do discurso jurídico, alude: “nos discursos jurídicos, aparte das razões imanentes ao direito,
fazem-se ouvir também razões morais e éticas, razões empíricas e pragmáticas”.
65
sobre o “Que devemos fazer?” investiga quais formas de ação o “boas para nós”. As
questões éticas dificilmente logram chegar ao consenso por meio do discurso, porque
estão intrinsecamente vinculadas às visões de mundo de cada membro da comunidade e
entrelaçadas às culturas de cada subgrupo, às religiões, às tradições e aos credos de cada
um deles
155
. São discursos que explicitam a autocompreensão da forma de vida
historicamente transmitida de certo grupo, enquanto integrantes de uma autêntica
comunidade.
Por fim, a fundamentação da norma se perfaz suficientemente a partir do
momento em que, no discurso de justificação, contemplam-se as questões morais.
Nesse nível de abordagem, são trazidos à tona os aspectos de justiça em que se
determina se certa prática ou norma de ação é “igualmente boa para todos”
156
. Como já
adiantado no capítulo anterior, o discurso moral, que reside num plano superior de
abstração em relação a um dado contexto de vida, impõe que as normas sejam
submetidas a um teste de universalização, a fim de averiguar se todos os participantes
do discurso encontrariam o resultado com base no qual todos os afetados concordariam.
Somente por essa forma é que se poderia regular a convivência em comum no interesse
de todos por igual, de modo justo.
É dessas constelações de interesses e questões, comumente presentes nas
deliberações políticas, que parte a formação discursiva da vontade política coletiva. A
racionalidade do processo legislativo presume-se atingida, à proporção que as questões
éticas, morais e pragmáticas submetem-se ao teste de universalização, devendo-se
155
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 311.
156
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 229. HABERMAS (2001a, p. 233), em seguida, exemplifica algumas das
questões moralmente relevantes: “questões de direito penal como são o aborto ou os prazos de prescrição
para os distintos tipos de delito, em questões de direito processual penal como é a proibição de
determinados métodos de obter provas, ou em questões de política social, de direito fiscal, de organização
da educação e da sanidade, que afetam a distribuição da riqueza social, as oportunidades de
sobrevivência”. A justiça, para HABERMAS (2001a, 220), não está ligada à idéia de valor, e sim à
submissão da questão a um teste de universalização, em que se pretende estabelecer o que é bom para
todos.
66
conferir validade jurídica àquelas pretensões cuja força argumentativa seja
prevalecente
157
.
Remanesce, contudo, outra característica fundamental do discurso de
justificação, que vem a reforçar a denominada “dignidade democrática da lei”
158
. Nas
relações íntimas que guardam entre si direito e política, segundo entende HABERMAS
159
,
a política se serve do sistema normativo estruturado pelo direito, de forma a determinar
que o processo político somente prossiga dentro do nível articulado pelo próprio direito.
Essa particularidade do discurso de justificação, além de demonstrar o
amplo espectro a que se referiu MARCELO CATTONI, realiza a idéia de que a atividade
política de produção de leis se move dentro do marco jurídico vigente e, portanto, em
termos normativos, deve guardar coerência com o sistema de direitos existente
160
e,
principalmente, com a Constituição
161
. Não se trata, pois, de uma fonte irracional de
emanação de normas
162
. Com isso, não seria impertinente afirmar que as razões e os
argumentos que no discurso de justificação transitam fazem-no mais apto a atender
às demandas nascidas na sociedade do que outras espécies de discursos, a exemplo dos
discursos produzidos pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo. Do ponto de vista
da teoria do discurso, o que separa a competência dos Poderes são as respectivas formas
de comunicação e os correspondentes potenciais de razão; a competência de cada um
revela-se no poder de recorrer a diferentes classes de razões. Ao Poder Legislativo, em
157
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 219.
158
A expressão é utilizada pelo constitucionalista espanhol VÍCTOR FERRERES COMELLA (1997, p. 36-37).
No Capítulo IV, retornar-se-á ao tema.
159
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 396.
160
Observe-se que KLAUS GÜNTHER (2004, p. 408-409), a partir da noção de integridade de DWORKIN,
avaliza a regência do princípio da coerência sobre as atividades legislativas. Chega, inclusive, a erigi-lo à
qualidade de fonte de legitimidade da comunidade política.
161
Com efeito, HABERMAS (2001a, p. 221) atribui especial significado à atividade legislativa de
interpretação da Constituição: “Também a simples legislação de entender-se como concretização de
um sistema de direitos convertidos na Constituição”.
162
É interessante notar que em época de crise, principalmente, a população não divisa qualquer
legitimidade ou credibilidade em seus atores políticos. No entanto, tais fatos devem servir de força
motriz para ativar a cidadania, a participação política, a fim de revitalizar-se a política (CARDOSO, 1996,
p. 15-30).
67
conseqüência, cabe valer-se das diversas e amplas razões existentes, ao passo que aos
Poderes Executivo e Judiciário limitações discursivas e funcionais a restringir-lhes a
abrangência.
Nessa perspectiva, a tensão entre Democracia e jurisdição constitucional
reflete o choque entre a disposição de razões e argumentos que estão na esfera de
competência do legislador e aqueles outros que estão na dos juízes. No caso das normas
sobre temas altamente controvertidos, o legislador o interpreta a Constituição e o
sistema jurídico em geral, como também, à luz desse mesmo ordenamento jurídico,
busca o consenso a partir do entrelaçamento das questões pragmáticas, éticas e morais a
respeito do tema em discussão. Então, na hipótese, parece difícil justificar que o
discurso judicial tenha predominância sobre o legislativo, sobretudo ao se observar seu
caráter de definitividade
163
. No paradigma procedimental, a legitimidade do direito está
na comunicação
164
.
3. O DISCURSO DE APLICAÇÃO
HABERMAS, se mencionou, parte da distinção entre os discursos de
justificação e de aplicação para separar aquelas atividades que legitimamente pertencem
ao âmbito do Poder Legislativo daquelas pertencentes ao Judiciário. A separação de
discursos é uma exigência mesma da limitação temporal, espacial e epistêmica a que se
submete o conhecimento humano
165
. Nos discursos de fundamentação de normas, não é
possível ao legislador contemplar previamente todas as particularidades dos casos
163
O caráter de definitividade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em ações de
controle concentrado será analisado no Capítulo IV. De logo, adiante-se que elas podem mostrar-se como
elemento inibidor dos processos discursivos de formação democrática, na medida em que, a depender da
situação, acarretam a solução de continuidade da discussão de temas relevantes na sociedade, em um
curto ou médio espaço de tempo.
164
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 169.
165
Nesse sentido, GÜNTHER (1995, p. 295) consigna que a escassez de tempo e o estado incompleto do
saber são fatores que conduzem à institucionalização do sistema jurídico.
68
futuros. A natural limitação faz emergirem situações que o se amoldarão
perfeitamente à norma dantes fundamentada
166
. O princípio da imparcialidade, em
conseqüência, apresenta-se para reclamar a consideração de todos os sinais
característicos da nova situação surgida, inclusive das razões aduzidas no processo de
validação das normas. As experiências novas passam a ser assimiladas e, se for o caso,
modificam as concepções morais
167
, promovendo, assim, o processo de aprendizagem
moral que caracteriza a comunidade política
168
.
A relação complementar dos discursos de aplicação e de justificação
justifica-se na diferença existente entre os princípios aceitos por todos e os juízos
particulares de cada um. Princípios e juízos estão numa relação de revisão recíproca,
num verdadeiro “movimento de equilíbrio reflexivo”
169
. Mas, por existir uma
constelação de características em cada novo caso, o princípio (norma válida) funciona
como razão de decidir para formulação do juízo particular, donde se extrai a norma de
adequação. se revela, em toda sua plenitude, o princípio da coerência
170
, que conduz
à tomada de um juízo correto desde que o participante se apóie em princípios válidos e
que tais princípios se apliquem adequadamente à situação concreta.
Por esse motivo, a justificação das normas somente é possível com o
estabelecimento de razões prima facie. As normas são válidas prima facie porque a
nova constelação de interesses presentes no caso concreto pode desautorizar a aplicação
166
Cf.: HABERMAS, 2001a, p. 230; GÜNTHER (2004, p. 79; 1995, p. 279).
167
É importante ressaltar que KLAUS GÜNTHER (1995, p. 295-302) defende a tese de que a argumentação
jurídica é um caso especial do discurso moral de aplicação, no qual se cuidará da adequação da aplicação
da norma. HABERMAS (2001a, p. 304-309) critica essa orientação, ao argumento de que sugeriria errônea
subordinação do direito à moral.
168
Cf. GÜNTHER, 2004, p. 97-99. Com efeito, para GÜNTHER (2004, p. 301), “a idéia de imparcialidade
se subdivide em um discurso de fundamentação situacionalmente dependente e um discurso de aplicação
que examina todos os sinais característicos de uma situação”.
169
Cf. GÜNTHER, 1995, p. 277.
170
Cf. GÜNTHER, 1995, p. 276-277.
69
coerente e imparcial da norma justificada. Como afirma GÜNTHER
171
, somente um novo
caso força a revisão recíproca entre juízos e princípios.
É importante ressaltar, ainda, que, de acordo com HABERMAS
172
, o
discurso de aplicação deve levar em consideração as perspectivas particulares dos
participantes em conexão com a estrutura geral das perspectivas, que integram o
fundamento das normas validadas pelo discurso de justificação. Porque as questões
relativas à aplicação das normas afetam a compreensão que os participantes têm de si
mesmos e do mundo. Por isso, o discurso de aplicação reveste-se de caráter pluralista,
que a idéia de imparcialidade a ele inerente possibilita diversas interpretações
normativas concorrentes de uma mesma situação
173
.
se vai anunciando, assim, que o discurso judicial de aplicação tem
peculiar aptidão para conferir ou preservar a legitimidade das normas validadas, através
do discurso de justificação. No âmbito do controle de constitucionalidade, o controle
difuso encontraria sua função de preservar a coerência e a imparcialidade das normas
constitucionais sem prejuízo da legitimidade das normas e do processo legislativo,
porquanto se abre a pontos de vistas distintos. Cada cidadão teria a possibilidade de
preservar seu ponto de vista nas situações concretas dentro de um contexto particular,
sem, contudo, acarretar a vulneração ao processo de fundamentação das normas
jurídicas e ameaçar a divisão funcional, discursivamente proposta, das competências
entre os Poderes. A sua vez, no controle concentrado, o discurso de justificação e o
discurso judicial de aplicação se aproximam de tal forma, que se torna difícil definir que
tipo de discurso estaria o Poder Judiciário a produzir
174
.
171
Cf. GÜNTHER, 1995, p. 276-277.
172
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 300.
173
Cf. GÜNTHER, 2004, p. 114-115.
174
MARCELO CATTONI (2002, p. 154) defende que o controle de constitucionalidade, seja em via principal
(concentrado) ou em via incidental (difuso), caracteriza-se como discurso de aplicação.
70
Então, faz-se preciso concordar com HABERMAS
175
e reconhecer que os
discursos de justificação e de aplicação seguem como critério válido para separação das
atividades judicial e legislativa. Não seria demais destacar que, conforme visto, os
critérios que mobilizam a formação e ingressam no discurso de fundamentação
proferido pelo Poder Legislativo tornam-no o mais idôneo para produzir a legitimidade
desejada, porque se desenvolvem com base num amplo espectro de questões analisadas
e com a participação de todos os interessados. Ao passo que o discurso de aplicação
pelo Poder Judiciário está mais engajado a proferir decisões justas e corretas, realizando
o entendimento secularmente consagrado de caber ao juiz aplicar a justiça ao caso
concreto.
4. A TRANSIÇÃO ENTRE OS DISCURSOS DE JUSTIFICAÇÃO E DE APLICAÇÃO
Os procedimentos juridicamente institucionalizados de formação
discursiva da vontade popular conferem presunção de legitimidade ao consenso
veiculado nas leis escritas. A legitimidade, entretanto, não se contenta com a simples
aprovação de leis por agentes políticos investidos na condição de representantes do
povo. Quer mais. Requer a participação dos cidadãos no processo de criação e
definição das normas, cidadãos cujas opiniões e argumentos assumirão a forma de
influxos comunicativos capazes de fazê-los sentirem-se autores e destinatários das
normas a um só tempo. Essa rede de comunicação se origina da discussão pública, a ser
travada no seio da esfera pública em busca do entendimento mútuo.
Embora muitas críticas se lancem contra o consensualismo professado
por HABERMAS, especialmente quanto à inatingibilidade do consenso em questões
controvertidas, tais questionamentos foram respondidos pelo autor. Segundo
175
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 334.
71
HABERMAS, seriam fruto de um mal-entendido, surgido da errônea tomada de
perspectiva
176
. o obstante, negar a possibilidade do consenso equivaleria a incorrer
em grave contradição performativa, pois nada justificaria o ingresso numa situação de
fala se os participantes não assumissem o pressuposto de que podem chegar ao acordo
mútuo.
No entanto, não se vem negar que o processo discursivo de formação
racional da opinião e da vontade política possa chegar a seu termo, sem que,
necessariamente, logre obter o consenso de todos os envolvidos
177
. Os princípios
formais do discurso, institucionalizados em procedimentos legislativos de normogênese,
de certa forma, representam limitações necessárias ao livre e indefinido transcurso da
discussão, em decorrência da necessidade fática de decidir. De toda forma, dentro de tal
sistema procedimental, a criação das leis não perde a presunção de legitimidade. O
princípio da maioria constitui importante mecanismo de preservação da racionalidade
procedimental do discurso de justificação de normas. Nessa hipótese, não haveria
opressão ou coação à vontade da minoria derrotada, pois ela teria apenas de aceitar
como legítimo o resultado racionalmente obtido como temporariamente obrigatório. O
essencial, em termos democráticos, é permitir que a questão não se feche, isto é,
assegurar-se à minoria a possibilidade de dar continuidade à discussão interrompida
ou modificar a opinião da maioria com base em argumentos melhores
178
.
Essa situação ganha novas proporções, ao se tratar de questões
controversas. Muitas das leis editadas envolvem as mais diversas questões
(pragmáticas, éticas, morais, jurídicas) e nem sempre conseguem atestar clara e
176
Trata-se das perspectivas do observador e do participante do discurso, que foram examinadas no
Capítulo I, Item 5.
177
Não se pode olvidar do papel exercido, no processo de formação discursiva da vontade política, pelos
compromissos e pelas negociações reguladas por procedimentos. A propósito, ver: HABERMAS, 2001a,
p. 230-236.
178
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 317.
72
inequivocamente sua constitucionalidade. No caso do Brasil, mal ingressam no
ordenamento jurídico, são questionadas em sede de ação direta de
inconstitucionalidade por quem foi derrotado no processo discursivo de justificação das
normas
179
.
Essas espécies de controvérsias jurídicas amoldam-se à definição dos
“casos difíceis” (hard cases). Para RONALD DWORKIN
180
, difíceis são os casos em que
não uma decisão ou uma prática explícita a exigir decisão em algum sentido, não
havendo como precisar claramente qual norma jurídica seria aplicável ou, até mesmo, se
existiria norma aplicável ao caso. Se se tomar o exemplo do aborto, fica fácil de se
visualizar a hipótese. A discussão em torno de sua possibilidade tanto suscita a
incidência da norma do direito à vida do feto, quanto da norma protetora da liberdade e
da autonomia individual. Correntes jurídicas igualmente respeitáveis e fundamentadas
formam-se no seio da esfera pública em sentidos frontalmente divergentes.
Inevitavelmente, o Poder Legislativo consagrará discursivamente uma das teses em
questão através de sua maioria, considerando o as questões juridicamente
pertinentes, mas também outras de ordem moral, ética e pragmática, em princípio, a
ele dedutíveis. Logo, o posicionamento legislativo, a teor do que propugna VÍCTOR
FERRERES COMELLA
181
, é revestido de especial dignidade, tendo em vista haver sido
179
É oportuno lembrar, a título ilustrativo, o fato ocorrido com a Emenda Constitucional n.º 41,
promulgada pelo Congresso Nacional em 19 de dezembro de 2003, que autorizou a instituição da
contribuição da seguridade social sobre os proventos dos servidores públicos inativos e pensionistas.
Nesse mesmo dia, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) ajuizou uma ação direta de
inconstitucionalidade (ADI n.º 3.099-0/DF), trazendo ao foro judicial os mesmos argumentos discutidos
no parlamento, particularmente o da violação ao direito adquirido. Para o confronto, é interessante
cotejar a petição inicial da ADI n.º 3.099-0 proposta pelo PDT com o parecer favorável à Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) n.º 40, de 2003, que deu origem à Emenda n.º 41, elaborado por seu relator
na Comissão de Constituição e Justiça e de Redação da Câmara, o deputado federal MAURÍCIO RANDS
(2003). O inteiro teor da petição inicial encontra-se no site do Supremo Tribunal Federal
(http://www.stf.gov.br).
180
Cf. DWORKIN, 1993, p. 146 e ss. Veja-se também: CALSAMIGLIA, 1993, p. 13-14.
181
Cf. COMELLA, 1997, p. 36.
73
editado pelo órgão do Estado que está em melhor posição institucional para expressar a
vontade popular.
O problema com que se depara o teórico é o de fundamentar, no
paradigma procedimental do Estado Democrático de Direito, o controle de
constitucionalidade abstrato das normas legitimamente instituídas mediante o discurso
de justificação política.
Como visto acima, o discurso de aplicação é um reclamo do princípio da
imparcialidade, à proporção que novos elementos e características não previstos no
momento da validação da norma apresentam-se. A considerar todas as circunstâncias
do novo contexto, exige-se outra formulação para a regra anteriormente justificada. No
discurso de justificação, sobretudo em relação aos casos difíceis, os argumentos
jurídicos são debatidos não nos espaços públicos formais, mas também nos espaços
públicos informais
182
. De forma que, chegando ao tribunal ações de controle abstrato
cujo objeto seja os casos difíceis, não haverá novas circunstâncias que possam justificar
a relativização da norma válida
183
ou a discussão de novos argumentos. Até porque não
houve tempo necessário para o surgimento de aspectos outros no entorno do comando
normativo
184
. Pelo contrário, dar-se-á a própria invalidação da norma questionada, com
base nos mesmos critérios e argumentos que, presumivelmente, foram considerados
pelo legislador e devidamente debatidos.
182
É inevitável, aqui, assumir a presunção de que as questões controversas são aquelas que, por natureza,
angariam maior grau de discursividade, dada a repercussão e a relevância dos temas tratados.
Normalmente, o editadas com o apoio da opinião pública e gozam de alta presunção de
constitucionalidade. A propósito, confira-se: HÄBERLE, 1997, p. 44-45; COMELLA, 1997, p. 160 e ss.
183
Advirta-se, entretanto, que a afirmação não respalda os casos de vício formal de inconstitucionalidade,
hipótese em que o próprio mérito da lei não é posto em pauta.
184
O professor CRISTIANO PAIXÃO (2002, p. 290-296), em outro contexto, deixa clara a importância da
relação entre o tempo e a mutação constitucional, que desafia conceitos elementares da teoria
constitucional contemporânea. Com isso, pretende-se realçar que se entre a validação da norma e o
exercício do controle abstrato não houve o transcurso do tempo, se os argumentos a serem aduzidos no
controle são os mesmos dos discutidos na justificação da norma, então, fatalmente, o discurso judicial se
sobreporá ao legislativo.
74
Conforme previne HABERMAS
185
, o controle de constitucionalidade sem a
existência de qualquer outro novo argumento é bem mais difícil de ser justificado.
Assim, as funções do Poder Legislativo e do Poder Judiciário diferenciam-se conforme
seus respectivos modos de comunicação; a separação entre o político, o judicial e o
executivo reside na possibilidade de se recorrer a diferentes classes de razões
186
.
É importante frisar que, nos discursos de aplicação, não se pretende
apresentar argumentos pragmáticos, éticos ou morais que justifiquem a extensão da
validade da norma
187
. Caso contrário, confundir-se-ia a perspectiva argumentativa do
processo judicial com a do processo legislativo, com evidente sobreposição discursiva
entre ambos. Além do mais, isso implicaria reduzir o direito a um sistema de valores,
aumentando-se o risco da irracionalidade do processo judicial, e pior ainda
transformaria o Poder Judiciário em instância político-legislativa que se sobressairia ao
legislador. Não por outro motivo, ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ
188
sustenta que o
controle abstrato não se caracteriza como discurso de justificação se a decisão puder ser
reconduzida a anteriores decisões em sede de controle incidental.
Em suma, há, sim, o risco de sobreposição do discurso de justificação do
Poder Legislativo pelo Judiciário, o que, no sentido fixado, assinala a judicialização da
política. Nessa hipótese, o exercício das autonomias pública e privada dos cidadãos,
consubstanciado no sentimento de autoria da lei, queda-se fortemente comprometido. E
o discurso judicial, em tudo, equipara-se ao discurso político de justificação das normas.
Essas ponderações, que se concentram no nível mais abstrato das
atividades propriamente distribuídas entre o Poder Legislativo e o Judiciário,
direcionam a presente investigação ao aprofundamento do ato de interpretar a
185
Cf. HABERMAS, 2000, p. 172.
186
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 260.
187
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 111 e p. 172-173.
188
Cf. CRUZ, 2004, p. 246 e ss.
75
Constituição. Torna-se, portanto, imperioso averiguar o modo de interpretá-la e,
principalmente, quem a interpreta a fim de manter-se a legitimidade do processo de
justificação e de aplicação das normas, porque a indeterminabilidade do direito reclama
por uma nova dimensão (pragmática) para se legitimar.
E, nessa nova perspectiva, é essencial a participação ativa dos cidadãos
no exercício de sua autonomia jurídica, pois, daí, retira-se a legitimidade da
interpretação da Constituição e se redefinirá a relação entre Democracia e jurisdição
constitucional. Fica, pois, o convite ao próximo capítulo.
76
III. A INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO NO PARADIGMA
PROCEDIMENTAL DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. Sobre a forma assumida nos
Estados Unidos para conter a
judicialização da política através da
interpretação constitucional
2. A abertura da Constituição como
elemento configurador do paradigma
procedimental do Estado de Direito
3. A Constituição procedimental: na
contramão da história constitucional?
Neste capítulo, o enfoque a ser adotado seo da tensão entre jurisdição
constitucional e Democracia, na perspectiva da interpretação constitucional. Não se
pretende pontuar os diversos modos de interpretação jurídica e suas características
fundamentais, tampouco a evolução histórica das diversas correntes interpretativistas
que se sucederam ao longo do desenvolvimento da teoria constitucional
189
. Antes,
intenciona-se trilhar o caminho de transição do consenso desde o discurso de
justificação das normas (político) ao discurso de aplicação (jurídico), indagando-se
sobre uma interpretação constitucional compatível com o paradigma procedimental do
Estado de Direito. Nesse percurso, que retrata a transição do consenso formado no
processo discursivo de validação de normas para o de sua aplicação, é possível haver a
189
Para exposição sobre os diversos métodos de interpretação constitucional, recomenda-se:
BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 13-43.
77
sobreposição entre os discursos, ocorrendo a judicialização da política, hipótese em que
nasce um dos pontos de tensão entre a Democracia e a jurisdição constitucional,
especialmente na forma do controle abstrato de constitucionalidade.
A discussão em torno da interpretação da Constituição assume grande
relevância, pois uma das tentativas de contenção da judicialização da política será a
hermenêutica constitucional
190
. O debate norte-americano entre o originalismo”
(originalism) e “não-originalismo” (nonoriginalism)
191
, no âmbito da teoria da
interpretação, traduz o esforço dos constitucionalistas em restringir as formas de
intervenção judicial deletéria à condução democrática da participação ativa da cidadania
na vida pública em geral.
Não por outro motivo, elege-se esse tema como ponto de partida para
abrir o presente capítulo. Primeiro, porque as duas correntes formam-se no seio da
doutrina constitucional norte-americana justamente com o objetivo de discutir o papel
da Suprema Corte na condução dos assuntos políticos do país. Segundo, porque, de
certa forma, o dualismo entre originalismo e não-originalismo reflete rixa bem mais
antiga do direito entre o jusnaturalismo e o juspositivismo
192
. A suspeita que se planta é
sobre a existência de método constitucionalmente adequado para a interpretação da
Constituição.
190
VICTOR FERRERES COMELLA (1997, p. 42-46) fixa na interpretação constitucional um dos eixos sobre
o qual se discute o problema da legitimidade da jurisdição constitucional, dada a quantidade abundante de
“conceitos essencialmente controvertidos” e de colisões das diversas disposições constitucionais.
191
Note-se que o existe uniformidade na utilização dos termos “originalismo”, “interpretativismo” ou
“textualismo”. Além do mais, muitas o as tendências existentes dentro da vertente do originalismo,
desde uma versão mais moderada (moderate originalism) chegando-se às mais extremadas (strict
textualism ou literalism e strict intentionalism). ROBERT BORK (1990, p. 178-179), por exemplo, adverte
o leitor ser a denominação interpretativism a forma acadêmica para expressar a filosofia do originalismo.
Aqui se adota a terminologia “originalismo” no lugar de interpretativismo (interpretativism), porque,
segundo PAUL BREST (1980, p. 204), todo processo decisório constitucional requer uma interpretação,
independentemente do método a ser utilizado. Assim o termo originalismo parece se mostrar mais
apropriado. Tais especificidades, contudo, não guardam relação direta com a presente dissertação, motivo
pelo qual se deixará de aprofundar a questão, ao tempo em que se recomenda: BREST, 1980, p. 204-238;
BARNETT, 1999, p. 611-654; SCALIA, 1989, p. 849-865; KRAMER, 2003, p. 95-107; HARRISON,
2003, p. 83-94; BELTRÁN, 1989, p. 45-46; GARCÍA, 1984, p. 137-153.
192
Cf.: ELY, 2002, p. 1; CANOTILHO, 1999, p. 1124.
78
No entanto, aqueles que pretendem arrefecer a tensão entre Democracia e
jurisdição constitucional, através de teorias da interpretação, inevitavelmente
fracassarão. Os discursos de justificação e de aplicação das normas possuem duas
dimensões intrinsecamente ligadas: a dimensão lógico-hermenêutica (semântica) e a
pragmática
193
. Logo, a teorização constitucional, cujo intuito é auto-afirmar-se
democraticamente, não pode descurar-se do plano pragmático das normas e da
interpretação. A percepção da interpretação das normas constitucionais, em toda a
amplitude, será fundamental para compreender com maior clareza o embate
democrático que se trava com a jurisdição constitucional.
Dessa forma, no capítulo em curso pretende-se, com a apresentação da
polêmica norte-americana entre originalismo e não-originalismo, apontar o insucesso
das teorias de interpretação da Constituição que intencionem superar o problema da
legitimidade da jurisdição constitucional, exclusivamente pela dimensão semântica (1).
Em seguida, defender-se-á a idéia de que a legitimidade da Constituição e de sua
interpretação depende da perspectiva pragmática do discurso jurídico, o que exigirá a
abertura da Constituição e a efetiva participação dos cidadãos na construção do
significado das normas (2). Por fim, examinando-se o risco que circunda a noção da
Constituição procedimental, reafirmar-se-á sua compatibilidade com a tradição histórica
do constitucionalismo e, sobretudo, sua aptidão para conferir legitimidade à
interpretação constitucional (3) e, em conseqüência, a teor do que será trabalhado no
Capítulo IV, para justificar a jurisdição constitucional no Estado Democrático de
Direito.
193
Cf.: HABERMAS, 2001a, p. 297-301; CANOTILHO, 1999, p. 1140-1146.
79
1. SOBRE A FORMA ASSUMIDA NOS ESTADOS UNIDOS PARA CONTER A
JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA ATRAVÉS DA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL
O eixo do problema da legitimidade da jurisdição constitucional pode ser
conduzido com o resgate histórico da acirrada disputa, surgida nos Estados Unidos em
relação ao método “correto” de interpretar a Constituição. O início da controvérsia
doutrinária entre os que, de um lado, defendem uma interpretação atrelada ao teor direta
e inequivocamente extraído da Constituição e os que, de outro, sustentam a
possibilidade de juízes aplicarem e ponderarem valores e princípios substantivos, ainda
que não derivados diretamente da Constituição, é uma decorrência mesma da própria
invenção da Constituição e, especialmente, da preservação da vontade constitucional tal
qual estampada no texto. Trata-se do embate entre o originalismo e o não-originalismo,
que, de certa forma, retoma o conflito que perpassa toda a história do direito entre o
jusnaturalismo e o juspositivismo
194
.
Em sentido amplo, é possível definir o originalismo como método de
interpretação constitucional, a ser orientado pelos parâmetros fixados pelo texto da
Constituição ou pela intenção dos fundadores (original intent) da Constituição dos
Estados Unidos (founding fathers, founders)
195
. Em uma ou outra modalidade, observa-
194
Cf. ELY, 2002, p. 1.
195
Cf. BREST 1980, p. 204. Observe-se que, nessa definição, reúnem-se duas vertentes distintas do
originalismo: uma subjetiva, cujo método de interpretação pauta-se pela original intent ou
intencionalismo (intentionalism); a outra objetiva, que se atém ao sentido das normas positivadas na
Constituição. Sobre o tema, veja-se: BREST 1980, p. 204 e ss; BORK, 1990, p. 143-160; BARNETT,
1999, p. 611-654, SCALIA, 1989, p. 852-863; SCALIA, 1997, p. 3-47. Assim, ROBERT BORK (1990, p.
144), antes defensor do intencionalismo, entendia que o originalismo deveria investigar qual a intenção
subjetiva (subjective intention) dos founders. Posteriormente, reformulou sua concepção para
compreender que a meta do originalismo seria desvelar o sentido comum das palavras, utilizadas na
Constituição pelos fathers, porquanto a simples intenção dos founders o constituía um caminho seguro
para estabelecer critérios de interpretação. ANTONIN SCALIA (1997, p. 16 e ss), um dos mais
destacados teóricos do originalismo, é grande crítico de uma interpretação constitucional orientada pela
intenção dos constituintes (original intent). De fato, para SCALIA, o originalismo (por ele concebido
como “textualismo”) procura a “intenção objetivada” (objectified intent) da Constituição, isto é, o sentido
original que qualquer pessoa razoável poderia deduzir do texto, aplicado às circunstâncias presentes.
Essas duas vertentes do originalismo (textualismo e intencionalismo) assumem formas moderadas e
80
se que o originalismo dedica especial relevância ao momento constituinte
196
.
O originalismo, um dos primeiros métodos de interpretação propostos
para justificar a neutralidade da função judicial, teria seu embrião semeado por
MADISON
197
. Para esse importante teórico político, se não se respeitassem as diretrizes
afirmadas na Constituição e nas convenções que a ratificaram, não haveria como
assegurar-se a estabilidade e a consistência do governo. Por isso, defendia como
postulado máximo da interpretação descobrir o significado conferido ao texto legal
pelos seus redatores.
Revelou-se, assim, o originalismo importante instrumento para a
contenção do ativismo judicial (judicial activism) da Suprema Corte norte-americana,
para a sua despolitização
198
, especialmente quanto às Cortes BURGER e WARREN
199
. Por
outro lado, despontou como proposta de reafirmação da vontade popular manifestada na
Constituição e, ao longo do tempo, nos atos de legislação. De acordo com ANTONIN
SCALIA
200
, o originalismo propicia uma teoria da interpretação constitucional
compatível com o princípio que legitima a judicial review, porque assegura as
condições necessárias à edição de leis (pelos representantes eleitos da comunidade) que
reflitam os valores da sociedade democrática, diminuindo-se e muito o risco de os juízes
extremadas (BREST, 1980, p. 204-224). Modernamente, contudo, segundo destaca RANDY BARNETT
(1999, p. 620 e ss), o textualismo tem configurado um novo originalismo (new originalism), cuja
principal característica é a mudança de sua diretriz fundamental: da intenção dos founders (original
intent) para o sentido original do texto (original meaning). Entretanto, o desenvolvimento dessas
especificidades transborda os objetivos aqui fixados. Para o fim aqui proposto, é suficiente ter-se em
mente a noção ampla do originalismo.
196
Cf. GARCÍA, 1984, p. 138. Deve-se ressaltar que, nos Estados Unidos, o originalismo ganha muita
força por conta da “santificação” da Constituição (e dos fathers), tendo em vista que seu duradouro tempo
de vigência impõe-se de forma incontestavelmente respeitável.
197
Cf.: GARGARELLA, 1996, p. 61-63; BARNETT, 1999, p. 625 e ss; BORK, 1990, p. 144.
198
Cf. BELTRÁN, 1989, p. 25-26. Nesse sentido, o Presidente RONALD REAGAN, pertencente ao
conservadorismo norte-americano, procedeu à nomeação de juízes afiliados ao interpretativismo. Assim,
nomeou ANTONIN E. SCALIA, WILLIAM H. REHNQUIST e SANDRA DAY O’CONNOR. Teria nomeado
ROBERT BORK, porém se delineara conjuntura tão contrária à sua nomeação, que o resultado foi a rejeição
do seu nome pelo Congresso. Sobre algumas características do processo de nomeação dos justices nos
Estados Unidos, especialmente seu caráter político, veja-se, dentre outros: YOO, 2000, p. 1436-1467;
BELTRÁN, 1989; MALTZ, 2000, p. 145-151.
199
Cf. HARRISON, 2003, p. 84-85. Sobre a história da Corte WARREN e da Corte BURGER, veja-se:
SCHWARTZ, 1993, p. 263-285 e p. 311-336; MALTZ, 2000, p. 136-153.
200
Cf. SCALIA, 1989, p. 854-863.
81
imporem seus próprios valores como se fossem os da sociedade.
Dentre os aspectos principais do originalismo a serem sobressaltados,
cumpre referir a assunção do poder político democrático como valor fundamental da
Constituição
201
. Propõe fixar limites rígidos à atuação judicial no controle de
constitucionalidade das leis, com limitação aos cânones textuais (textualism)
202
ou com
o retorno à vontade dos constituintes (intentionalism)
203
, pretendendo-se, assim,
estabelecer a neutralidade
204
(ou imparcialidade) no processo de interpretação
constitucional. Trata-se, em verdade, de uma concepção filosófica cuja preocupação
fundamental – segundo postula um de seus maiores expoentes, ROBERT BORK
205
reside em evitar que os juízes venham a modificar o sentido das leis e da Constituição, a
fim de impedir que exerçam livremente a atividade legislativa (law of judges), cuja
autoridade advém do processo eletivo, núcleo da Democracia representativa.
O originalismo não se confunde com o modo de interpretação literal
(literalismo) da Constituição, embora seus limites sejam também delineados pela
textura semântica
206
. Consiste no método com base no qual, para além do teor literal do
201
Cf. CANOTILHO, 1999, p. 1121-1122.
202
Cf. SCALIA, 1997, p. 25-29. ANTONIN SCALIA, defensor do originalismo, enquadra sua teoria na
filosofia do textualismo. No entanto, alerta que o textualismo não se identifica com a teoria da
interpretação orientada por normas de integração” (canons of construction), as quais normalmente são
formuladas em latim (v.g., in dubio pro reu) e trazem consigo o risco de aumentar a imprevisibilidade e a
arbitrariedade das decisões judiciais.
203
Cf. BELTRÁN, 1989, p. 53-56. As definições e características de cada uma das correntes do
originalismo e não-originalismo são expostas em um dos mais clássicos textos sobre o tema, de autoria de
PAUL BREST, já referido acima.
204
O termo é tomado de empréstimo por BORK de WECHSLER, contudo em sentido diverso (cf.
BELTRÁN, p. 72-73). Para WECHSLER (1961, p. 3-48), o princípio neutral se refere à obrigação de os
juizes, ao decidirem um caso, aplicarem um princípio cuja aplicabilidade se estenda a todos os outros
caso futuros, em situação similar. Todavia, esse princípio é fortemente criticado pelo próprio BORK
(1990, p. 143-146), porque poderia descambar para uma atividade auto-referencial da Suprema Corte,
com desprezo às normas constitucionais e aos pressupostos interpretativistas. Destarte, o sentido de
neutralidade da aplicação judicial em BORK aponta para a preservação da original intent, mediante a
proibição de os juízes imporem suas convicções pessoais nas questões a serem decididas.
205
Cf. BORK, 1990, p. 143 e ss.
206
Segundo ENRIQUE ALONSO GARCÍA (1984, p. 91), o literalismo é uma corrente de interpretação que
estima que a linguagem da Constituição em si mesma é o único critério para interpretá-la. Então, ela
pode referir-se àqueles fatos que se amoldam perfeitamente ao texto, sem levar-se em conta, para tanto, o
contexto social em que se encontra imersa. Lembram PAUL BREST (1980, p. 205-209) e RANDY BARNETT
(1999, p. 611-654) que essa forma extremada do originalismo textualismo estrito (strict textualism) ou
82
texto, o intérprete deverá aplicar a norma constitucional nos termos em que fora
concebida pela vontade do legislador constituinte (founder’s intentions). Dessa forma, a
interpretação judicial estaria confinada às premissas explícitas ou claramente implícitas
no corpo normativo da Constituição. Ao buscar o sentido histórico da Constituição, o
originalismo apresenta-se como única forma de preservá-la
207
e, principalmente, de
concretizar a intenção original dos constituintes de delegar ao povo o direito de
autogovernar-se sobre todas as matérias não expressamente estabelecidas, conforme as
regras democráticas e sem interferência judicial que, no caso, assumiria caráter político.
ROBERT BORK defende que o critério para interpretar a Constituição es
em perquirir qual o significado das palavras utilizado no texto à época de sua edição,
qual a intenção. A investigação pode realizar-se por meio de abundantes fontes de
pesquisa: debates e registros das convenções da Filadélfia, registros da confirmação das
convenções, Artigos Federalistas e anti-Federalistas, discussões públicas, artigos de
jornais, dicionários da época e outros instrumentos similares
208
.
Sob o prisma do controle judicial, o originalismo sugere que a anulação
dos atos normativos, pela Suprema Corte, somente poderá efetivar-se caso se vislumbre
a incompatibilidade do ato normativo questionado com uma norma diretamente extraída
ou inequivocamente decorrente da Constituição
209
. A Suprema Corte de atuar
passivamente
210
. Principalmente nas hipóteses de silêncio constitucional, pois as
literalismo (literalism) é rejeitada pela maior parte da doutrina americana em favor de um originalismo
mais moderado. LARRY KRAMER (2003, p. 97 e ss) admite que a linguagem é o melhor caminho para
interpretação do comando, mas ela pode mostrar-se imprecisa, seja por sua inerente vagueza, seja pelo
decorrer do tempo, o que exige a busca de seu sentido noutras fontes. Para aprofundar o tema, confira:
GARCÍA, 1984, p. 89-116; BREST, 1980, p. 204-238; SCALIA, 1989, 849-865.
207
Cf.: SCALIA, 1989, p. 849-865; 1997, p. 3-47.
208
A se admitir a impossibilidade de realizar-se fielmente o resgate histórico e as dificuldades emanadas
da linguagem, o originalismo pode até mesmo descaracterizar-se como tal (KRAMER, 2003, p. 95-107).
209
Cf.: BORK, 1990, p. 179; SOLA, 2003, p. 86.
210
Cf. SCALIA, 1989, p. 854. SCALIA (1989, p. 852-853) lembra que a célebre passagem de JOHN
MARSHALL, no caso MCCULLOCH vs. MARYLAND, em 1819, “não devemos esquecer jamais que é a
Constituição que estamos interpretando” (we must never forget it is a constitution we are expounding),
em verdade, significava o dever de interpretar-se amplamente a Constituição, quanto aos poderes
83
escolhas políticas poderiam ser modificadas pelos juízes, com uma ilegítima
substituição e alteração de papéis institucionais
211
. Vê-se, assim, o esforço do
originalismo em tentar equilibrar a tensão entre Democracia e jurisdição constitucional.
Com efeito, se o tribunal constitucional no exercício da jurisdição
constitucional lança mão de normas que não se identificam com a original intent, nesse
momento a judicial review deixa de ser legítima, já que não mais se fundamenta na
objetividade do texto ou na vontade constituinte, e sim nos valores subjetivos dos
julgadores
212
. Na compreensão originalista, as decisões judiciais não direta e
explicitamente reconduzíveis ao texto constitucional ou à inequívoca intenção dos
framers camuflariam preferências pessoais e políticas dos juízes. Nessa hipótese, a
Constituição ficaria à margem do processo decisório, e as atribuições do Poder
Legislativo e a própria autodeterminação política dos cidadãos seriam relegadas. Por
isso, ROBERT BORK insiste que a interpretação judicial não confinada à filosofia do
originalismo não resulta em aplicação imparcial do direito.
O originalismo tem perdido muito de sua força
213
, embora não tenha
definhado totalmente. Com efeito, tem-se mostrado insuficiente e, até mesmo,
incoerente para explicar muitas das decisões proferidas pela Suprema Corte. No
entanto, como um de seus objetivos fundamentais é conter o judicial activism que põe
em risco o autogoverno do povo, momentos de seguidas decisões polêmicas abrem
vácuo significativo para sua retomada.
atribuídos ao Congresso para servir a sociedade; conseqüentemente, sobra à Corte função mais passiva no
exame da constitucionalidade das leis.
211
É esclarecedora, dentro dessa perspectiva, a seguinte passagem de ROBERT BORK (1990, p. 151):
“Onde a lei pára, o legislador pode criar algo novo; mas onde a lei pára, o juiz deve parar”.
212
Cf. BELTRÁN, 1989, p. 53-56. Mire-se, por exemplo, na decisão da Suprema Corte americana sobre
o aborto (ROE vs. WADE), cujos fundamentos o podem ser reconduzidos ao texto constitucional,
tampouco à intenção original dos constituintes. Logo, ela não poderia ser senão o resultado da escolha
subjetiva de valores dos juízes, baseadas em concepções morais e políticas de cada um deles, sem
qualquer amparo constitucional.
213
Em sentido contrário, confira: BARNETT, 1999, p. 611-654. Para RANDY BARNETT, tem havido uma
retomada do originalismo, em sua nova postura new originalism. A ela, estariam filiados importantes
teóricos, a exemplo de RONALD DWORKIN e BRUCE ACKERMAN.
84
Uma das mais relevantes críticas contra o originalismo consiste na
dificuldade de pesquisar as fontes históricas, a fim de desvelar qual seria, efetivamente,
a vontade dos framers
214
ou o sentido original do texto
215
. WALTER MURPHY
216
lembra
que não se tem acesso a todos os debates travados durante as convenções; mesmos os
registros existentes não foram feitos por especialistas, a exemplo dos taquígrafos, e sim
por pessoas não devidamente habilitadas. Para ilustrar essa deficiência, o professor da
Universidade de Princeton cita curioso depoimento de JOHN MARSHALL sobre um dos
registros que lhe chegara às mãos: “Se meu nome não estivesse prefixado às falas, eu
jamais as teria reconhecido como minhas”
217
. Assim, a interpretação constitucional
pode ser facilmente manipulada, mostrando-se incapaz de restringir coerentemente a
discrição judicial
218
.
Outrossim, dificuldades de natureza lingüística se manifestam contra a
compreensão originalista da Constituição. LAURENCE TRIBE e MICHAEL DORF
219
observam ser um problema básico do originalismo o fato de o próprio texto abrir muito
espaço à imaginação, ao utilizar conceitos vagos como justiça”, “liberdade” e “devido
processo legal”. Dessa forma, é inevitável que os juízes detenham certa margem de
atuação, embora não infinita, porque o parâmetro jurídico comporta vários significados.
214
Cf. BELTRÁN, 1989, p. 70 e ss.
215
Cf. SCALIA, 1989, p. 856-865.
216
Cf. MURPHY, 2000, p. 159-165.
217
MURPHY, 2000, p. 161. Correlacionada com essa questão, existe outra a respeito da suposta
existência de unidade de vontades dentro da Assembléia constituinte. Perceba-se que JEFFERSON
manifestara-se a favor de uma Constituição flexível, ao passo que MADISON enfatizara a necessidade da
Constituição rígida a fim de, nela, simbolizar a unidade do povo norte-americano (BELTRÁN, 1989, p.
70-72). Também ROBERT BURT (2000, p. 61-118) testemunha a divergência entre MADISON e HAMILTON
em relação à concepção da judicial review, tal qual manifestada no Artigo 78 dos Federalistas.
218
Cf. YOO, 2000, p. 1444. Interessante pesquisa, realizada por ROBERT HOWARD e JEFFREY SEGAL
(2002, p. 113-137), mostra que, no fundo, seria a ideologia o fator determinante dos fundamentos da
decisão, haja vista que os juízes assumiriam uma postura originalista na hipótese de ser compatível
com a ideologia de cada um. Assim, parece assistir razão a MIGUEL BELTRÁN (1989, p. 85-87) na crítica
contra o originalismo, segundo a qual ele não teria fundamento constitucional coerente e se guiaria por
critérios de conveniência política ou puramente ideológicos, destinados a justificar resultados
predeterminados (result-driven jurisprudence). Em conseqüência, sentencia ser o originalismo
“perigosamente flutuante em seus aspectos mais concretos”.
219
Cf. TRIBE and DORF, 1991, p. 15.
85
Além do mais, não se poderia olvidar da modificação do significado das palavras com o
decurso do tempo e, especialmente, da Emenda IX da Constituição dos Estados Unidos,
que determinara não se resumirem os direitos fundamentais ao rol consagrado
expressamente na Constituição, convocando, em conseqüência, o intérprete a uma
interpretação para além do teor literal do texto
220
.
Esses fatores levam à forte consideração de que os debates constituintes e
demais fontes históricas devem apenas constituir um importante elemento da
interpretação constitucional. Em outras palavras, a legitimidade da jurisdição
constitucional não se vincula ao subjetivismo dos constituintes ou ao sentido do texto
constitucional tal qual concebido à época de sua fundação, pois essa alternativa revela-
se totalmente insatisfatória
221
, sobretudo na perspectiva procedimentalista aqui adotada.
Condicionada a legitimidade à legalidade em que o cidadão se sinta, a um
tempo, autor e destinatário da norma, no plano constitucional, o paradigma
democrático convoca os cidadãos a interpretarem reflexivamente a Constituição vigente,
ao invés de permanecerem fascinados por ela, venerando-a passivamente. A inércia e
apatia em face da Constituição acarretam sua petrificação
222
, suscitando o problema de
sua legitimação perante as gerações futuras, isto é, o “conflito intergeracional”
223
.
Ora, a Constituição, constatam LAURENCE TRIBE e MICHAEL DORF
224
, é
realidade parcialmente construída por cada geração. Para se autolegitimar
constantemente, é necessário que se conceda a cada cidadão, a cada geração a faculdade
de calçar os sapatos dos founding fathers e proceder à reflexão crítica da própria
220
Cf. QUEIROZ, 2000, p. 202-210.
221
Cf. TRIBE and DORF, 1991, p. 14.
222
Cf. GARCÍA, 1984, p. 142-144.
223
Cf.: BÖCKENFÖRDE, 2000, p. 41-45; GARGARELLA, 1997, p. 57-59; SANCHÍS, 2003, p. 140 e
ss. Sinteticamente, a dificuldade consiste na tentativa de justificar a autoridade de normas constitucionais
em relação às gerações futuras que não participaram do processo deliberativo de justificação das normas;
não compunham o poder constituinte. Para uma reconstrução histórica sobre a legitimidade do poder
constituinte e o “mito” que o circunda, ver: ZAGREBELSKY, 2005, p. 36 e ss.
224
Cf. TRIBE and DORF, 1991, p. 09.
86
tradição constitucional e democrática
225
. Por isso, é que a Constituição é um projeto
aberto para o futuro. Nesse sentido, PABLO LUCAS VERDÚ
226
considera a necessidade de
toda Constituição aparecer aberta no tempo, pois nunca será perfeita e suficientemente
completa, já que a vida, cujo propósito é ordenar, é vida histórica e submetida a
sucessivas mudanças.
A grande falha do originalismo evidencia-se, precisamente, ao buscar
resolver o problema da tensão entre Democracia e jurisdição constitucional, mediante a
fixação de métodos de interpretação constitucional, isto é, em nível meramente
semântico. Para tanto, pretende fossilizar a interpretação sobre os postulados
supostamente fixados pelos founding fathers. Por conseguinte, o risco de se “inventar”
o passado ou “adivinhar” uma história hipotética através da qual se revelaria a intenção
dos founders é uma constante
227
. À semelhança do não-originalismo, a que tenta opor-
se a pretexto de resguardar o princípio democrático, o originalismo incorre no mesmo
pecado de ignorar as dimensões pública e privada da autonomia dos cidadãos, que têm o
direito a participar do processo de concretização e aplicação da Constituição,
reconstruindo criticamente o futuro. É necessário, pois, abrir o discurso jurídico-
constitucional a uma nova perspectiva, que privilegie a autodeterminação dos cidadãos.
A não ser assim, seria difícil entrever-se uma prática constitucional
legitimadora. É importante perceber, então, que o discurso jurídico tem dupla
dimensão: lógico-semântica e pragmática
228
. À luz da teoria discursiva do direito, a
nova perspectiva que se abre na interpretação da Constituição é a pragmática.
225
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 193.
226
Cf. VERDÚ, 1993, p. 51.
227
Cf. TRIBE, 1990, p. 9-10.
228
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 297. Consoante aponta MÍROSLAV MÍLOVIC (2002, p. 196 e ss),
HABERMAS segue a teoria dos atos de fala de SEARLE e procura demonstrar a possibilidade da
comunicação racional discursiva. Se nos atos de fala existem dois elementos (performativo e
proposicional), no discurso, haverá dois veis de comunicação: o da intersubjetividade, em que locutor e
ouvinte comunicam-se mutuamente; e o nível dos objetos sobre os quais eles buscam chegar a algum
acordo. Em suma, HABERMAS concebe uma estrutura dupla da comunicação, na qual o elemento
proposicional se refere aos objetos e o performativo, aos participantes da comunicação.
87
Justamente a dimensão pragmática é a perspectiva faltante no debate entre originalismo
e não-originalismo, bem como, de uma maneira geral, nas teorias de interpretação
constitucional, que tentam conter o ativismo judicial através de técnicas de
interpretação
229
. Este tema será objeto das considerações do próximo ponto.
2. A ABERTURA DA CONSTITUIÇÃO COMO ELEMENTO CONFIGURADOR DO PARADIGMA
PROCEDIMENTAL DO ESTADO DE DIREITO
A proposta central do originalismo cinge-se em estabelecer limites à
interpretação constitucional, a fim de preservar a vontade popular manifestada nas leis
democraticamente promulgadas. Postula por consolidar a regra de interpretação
segundo a qual nenhuma lei será anulada pela Suprema Corte norte-americana, a não ser
que contrarie algum dispositivo expresso da Constituição ou a intenção dos fathers.
No tópico anterior, foi referido que o fracasso do originalismo decorreu
do modo pelo qual intentou preservar a vontade democrática do povo. A vontade do
povo aqui e agora se legitimaria se estivesse de acordo com as disposições literais da
Constituição ou com a original intent. Naturalmente, ele acabava por suprimir a
autodeterminação dos cidadãos, ao amarrar a legitimidade do processo de criação de leis
ao momento constituinte passado. E, por via indireta, transfigura-se num ativismo
judicial “às avessas”, ao deixar a definição e a determinação da orginal intent por conta
dos juízes da Suprema Corte.
Na verdade, o originalismo representa uma forma de conter os excessos
judiciais, mediante a adoção de técnicas de interpretação judicial
230
. Dessa forma, ele
229
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 11 e ss.
230
É pertinente observar, com VÍCTOR F. COMELLA (1997, p. 42-43), que a controvérsia em torno da
interpretação do texto constitucional fundamenta uma das principais objeções democráticas contra a
jurisdição constitucional.
88
permanece preso à dimensão lógico-hermenêutica do discurso jurídico. o fica difícil
entender, então, o porquê da perspicaz constatação de MARK TUSHNET
231
, no sentido de
que o debate entre judicial activism e judicial restraint atualmente está mal estruturado.
No fundo, a partir da dimensão semântica da interpretação jurídica, o
contexto parece ser aquele descrito por MARCELO NEVES
232
. A linguagem jurídica é,
necessariamente, ambígua e vaga, o que abre espaço para interpretações divergentes a
respeito dos textos jurídicos, especialmente em relação à Constituição
233
. que, como
esclarece HABERMAS
234
, a redução da indeterminação do direito advirá de sua gênese
democrática, e o de sua forma gramatical. Com efeito, a indeterminação das normas
jurídicas somente alçará um grau aceitável de segurança e previsibilidade, se for
intersubjetivamente compartilhada por todos os membros da comunidade jurídica. A
prática de argumentação jurídica exige de todos os participantes a consideração das
perspectivas dos outros, relativamente à interpretação das normas. Em outras palavras,
para a teoria discursiva do direito, a aceitabilidade racional das decisões judiciais
depende tanto da qualidade dos argumentos (dimensão semântica), como da estrutura do
processo de argumentação (dimensão pragmática).
A perspectiva pragmática da interpretação, cujo foco reside na pessoa do
participante da interpretação constitucional, é que constitui o caminho a ser perseguido
para reduzir a indeterminação do Direito e compor a relação entre Democracia e
jurisdição constitucional. Nesse sentido, HABERMAS
235
é bastante enfático quanto à
aliança estabilizadora entre as dimensões pragmática e semântica do discurso, no que
concerne à indeterminação do direito:
231
Cf. TUSHNET, 2003a, p. 814 e ss.
232
Cf. NEVES, 2001b, p. 364 e ss.
233
De acordo com MARCELO NEVES (2001b, p. 365), a Constituição possui uma abrangente dimensão
temporal, material e pessoal, bem como uma multiplicidade de valores e interesses agregados, com força
de transformar as questões jurídicas, que facilmente ganham significado constitucional, em “forte
potencial de conflito interpretativo”.
234
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 258 e p. 294-297.
235
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 299.
89
Essas condições procedimentais pragmáticas asseguram idealmente
que todas as razões e informações relevantes, das que em um
determinado momento possa dispor-se em relação a um tema, façam-
se ouvir sem exceção, é dizer, possam revelar a força da motivação
racional, que lhe é inerente. O conceito de argumento é, de por si, de
natureza pragmática: Que seja uma boa razão’, é algo que só se
mostra no papel que essa razão tem desempenhado dentro de um jogo
argumentativo, é dizer, no aporte que, conforme as regras do jogo
argumentativo, essa razão tem feito em ordem a decidir se uma
pretensão de validade controvertida deve aceitar-se ou não. O conceito
de uma racionalidade procedimental, estendida à dimensão pragmática
que representam uma competição regulada entre argumentos e um
intercâmbio regulado de argumentos, permite então complementar as
propriedades semânticas das razões mediante as propriedades (que
indiretamente contribuem a constituir a validade) de um dispositivo ou
meio (o discurso), que é de onde pode atualizar-se o potencial de
motivação racional que as boas razões comportam.
A perspectiva pragmática permaneceu por muito tempo ignorada pela
hermenêutica constitucional, cuja preocupação essencial recaía em dois aspectos: o
primeiro, referente aos objetivos e às tarefas da interpretação (o fim a que visa: justiça
social, eqüidade, razoabilidade, segurança jurídica etc.); o segundo, sobre os métodos
(regras) de interpretação
236
. Contudo, o terceiro aspecto alicerce da teoria
democrática da interpretação e condizente com os participantes do processo de
interpretação e com sua estrutura – até então permanecia inexplorado.
A dimensão pragmática da Constituição, portanto, responde a pergunta
sobre “Quem interpreta a Constituição?”; modifica a compreensão de que a
interpretação constitucional esgota-se com o exame do texto constitucional (sentido
semântico). As disposições constitucionais revestem-se de uma teleologia, no sentido
de que dizem algo a alguém para fazer alguma coisa. J. J. GOMES CANOTILHO
237
explica que o texto da norma constitucional não tem um significado autônomo, em si
mesmo. Possui uma dimensão comunicativa (pragmática) que, em última análise,
remete o intérprete para a realidade do mundo, exterior ao próprio texto. Dessa forma, a
236
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 11-13.
237
Cf. CANOTILHO, 1999, p. 1144.
90
interpretação é menos determinada por regras lógicas do juiz solitário que por processos
de comunicação dos participantes da comunidade política.
A discussão travada sobre o nível pragmático da Constituição não se
queda exaurida aqui. Deve ser aprofundada a forma pela qual tais dimensões se unem
no discurso de aplicação jurídica. Conforme referido acima, HABERMAS
238
deixa claro
que, no paradigma procedimental do Estado de Direito, a redução da incerteza do direito
se faz através da estrutura do processo jurídico de decisão, desde que esse procedimento
seja compartilhado pelos membros da comunidade. Há intrínseca relação entre as
condições de comunicação e a legitimidade da interpretação constitucional, que fica
ainda mais clara, ao se ter consciência do dever de participação nesse processo a que a
linguagem constitucional conclama os membros da comunidade.
O texto constitucional (o que não é peculiaridade sua e sim da linguagem
em geral) é repleto de termos e expressões demasiadamente ambíguos. É até natural
porque, em algumas oportunidades, a imprecisão decorre da deficiência da linguagem
jurídica. Por outro lado, ao se expressar por termos e conceitos com sentidos genéricos
e abstratos, o legislador constituinte, propositadamente, terá pretendido delegar às
futuras gerações o direito de determinar o significado da Constituição, em conformidade
com a própria interpretação de seus interesses e necessidades
239
. RONALD DWORKIN
240
é muito claro quanto ao tema: ao tratar das cláusulas constitucionais “vagas”, que
assumem forma de standards, a exemplo dos conceitos de legalidade”, “eqüidade”,
238
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 295.
239
Cf. GARCÍA, 1984, p. 145. LAURENCE TRIBE (1990, p. 10) não deixa dúvidas quanto ao convite
formulado, no caso norte-americano, pelos founders: “A própria generalidade de muitos dos termos que
os Fundadores usaram como liberdade, devido processo e igual proteção sugere fortemente uma
intenção não de confinar seu significado aos resultados e contextos específicos que ocorreram àqueles que
primeiros os usaram, mas de convidar ao desenvolvimento de significados à luz das necessidades e do
discernimento das gerações seguintes”.
240
Cf. DWORKIN, 1993, p. 211-216. Em igual sentido, é o comentário de OSCAR VILHENA VIEIRA
(2002, p. 39) para quem uma das características das Constituições recentes é a presença de grande número
de normas de conteúdo aberto. E tais normas “pedem ao legislador futuro ou ao aplicador do direito que,
através de sua atuação, preencham com os valores do momento o conteúdo do dispositivo constitucional”.
91
“igualdade”, “devido processo legal” dentre outros, DWORKIN afirma que elas resultam
da intenção de seus promulgadores, consistente em não estabelecer vinculatória e
autoritariamente suas concepções particulares de vida, e sim em delegar a cada uma das
futuras gerações a responsabilidade por desenvolver e aplicar o próprio entendimento
sobre as normas constitucionais e os conceitos. As cláusulas vagas denotam a
estratégia, utilizada pelo legislador constituinte, para conceder às gerações vindouras o
direito de se autogovernarem.
A função pragmática da Constituição, assim, mostra-se
indissociavelmente ligada à atitude prospectiva dos intérpretes, à participação dos
concernidos na difícil tarefa de desenvolvê-la, transformá-la e defini-la. As normas
constitucionais contêm algo mais do que a mera expressão lingüística. E esse algo a
mais está a viabilizar uma interpretação constitucional evolutiva, adequada à realidade
sociopolítica e à identidade mutante do mesmo texto constitucional
241
.
A dimensão pragmática assume o fundamental papel de estabilização das
relações, reduzindo a indeterminação do direito precisamente porque é ela que enfoca a
Constituição como um documento público intersubjetiva e comunicativamente
compartilhado, donde se extrairá a legitimidade e a autoridade das decisões que a
interpretam. No paradigma procedimental do Estado de Direito, a legitimidade do
direito está na nota de que todos os cidadãos se sintam a um só tempo autores e
destinatários da norma, de forma que a legitimação do processo de interpretação da
Constituição se verificará na proporção da crescente participação das pessoas por ela
abrangidas. Sob a dimensão pragmática, a interpretação da Constituição se legitima a
partir do momento no qual todos os destinatários têm direito de voz para manifestar
suas respectivas visões, opiniões e pretensões sobre o que a Constituição diz e não diz.
241
Cf. VERDÚ, 1993, p. 45.
92
Cada interpretação surgida no seio da comunidade, em verdade, corresponde a uma
pretensão de verdade sobre o texto constitucional. A legitimidade da interpretação se
afere com a submissão dessa pretensão ao teste de universalização. No discurso de
comunicação sobre a Constituição, garante-se e preserva-se o exercício das autonomias
pública e privada de cada um dos membros da comunidade; legitima-se a Constituição,
em última instância.
A abertura da Constituição, destarte, sinaliza para a democratização da
Constituição que, não pertencendo a ninguém, é uma aquisição de todos, uma
Constituição do povo
242
.
O ser a Constituição do povo, verdadeiro documento público, não deve
representar mero elemento retórico ou “icônico”
243
de legitimação. Antes, ostenta a
tomada da Constituição como ordem jurídica de um processo público livre (law in
public action), que aponta para o futuro
244
. Significa criar uma comunidade aberta de
intérpretes a fim de evitar, nas palavras do professor MENELICK DE CARVALHO
NETTO
245
, que a Constituição venha a ser arbitrariamente “doada” a algum órgão,
porquanto sua interpretação é atividade que, potencialmente, diz respeito a todos
246
.
Trabalhar o projeto de Constituição aberta de PETER HÄBERLE exige o
exame de pressupostos por ele assumidos. A teoria de HÄBERLE, segundo EMILIO
MIKUNDA-FRANCO
247
, nasce da premissa com base na qual o pluralismo é concebido
242
É bastante eloqüente e esclarecedora a argumentação do Prof. MENELICK DE CARVALHO NETTO (2001,
p. 20): “A comunidade aberta de intérpretes da Constituição, para usar a expressão consagrada por
Häberle, é que impede que a Constituição possa ser arbitrariamente considerada como doada a um
determinado órgão que, a título de se apresentar como o seu guardião, não guardaria nada mais do que os
próprios interesses egoísticos e as visões privadas de seus membros”.
243
Sobre a referência a “povo” como elemento icônico de legitimação da autoridade da Constituição, ver:
MÜLLER, 2003, p. 65-73.
244
Cf. VERDÚ, 1993, p. 32-33. A exegese constitucional como processo aberto constitui uma das
grandes propostas de PETER HÄBERLE (2002, p. 86).
245
Cf. CARVALHO NETTO, 2001, p. 20.
246
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 24.
247
Cf. MIKUNDA-FRANCO, 2002, p. 19-27.
93
por fundamento básico e essencial da Constituição
248
. Sua perspectiva democrática
caracteriza o esforço de construir a teoria constitucional da sociedade aberta, nos
moldes da “sociedade popperiana-habermasiana”
249
. A Constituição abre-se em toda
sua plenitude à potencialidade de parâmetros (sociais, econômicos, jurídicos) para
diferentes releituras contextualizadas de seu texto, que permitem tanto ao cidadão
comum, quanto aos juristas e juízes sentirem-se participantes de sua interpretação
250
.
Ao invés de ficar presa a uma “ciência esotérica de uns poucos iluminados”, a
Constituição vê-se nas mãos de uma “ciência esotérica de toda a cidadania”, dentro de
um grande fórum aberto à discussão pelos mais variados intérpretes que retirados do
seio da opinião pública, dos meios de comunicação e dos próprios órgãos estatais
sentir-se-ão ao mesmo tempo seus autores e destinatários, porquanto terão cada uma de
suas pretensões constitucionais discutida publicamente.
A teoria constitucional de HÄBERLE fixa suas bases no pensamento
possibilista
251
, cujo núcleo pressupõe que todo tipo de compromisso está sempre aberto
às mais diversas possibilidades
252
. Por conseguinte, amplia-se o leque de variedades de
interpretações sobre a realidade, democratizando-se a prática constitucional na medida
248
Observe-se que a sociedade pluralista integra o conceito de Constituição de HÄBERLE (2002, p. 87-88):
“Entendemos por Constituição o ordenamento jurídico sico do Estado e da sociedade’, conceito que
‘abarca também todo o que constituiria a sociedade positivamente estabelecida’, é dizer, não só o
respectivo a seus símbolos de identidade, ou não só enquanto ao Estado positivo como tal, já que
entendemos que por Constituição não só se deve aludir a [Constituição] do Estado. Portanto, o conceito
que aqui empregamos ‘compreende as estruturas básicas de qualquer sociedade pluralista’, como, por
exemplo, as relações dos grupos sociais tanto entre si como frente à cidadania estabelecidas sobre a
base da ‘tolerância’.”.
249
MIKUNDA-FRANCO, 2002, p. 21.
250
A partir do momento em que o direito constitui o autêntico lugar de integração da sociedade, pondera
HABERMAS (2001a, p. 294) em crítica a DWORKIN, somente através da sociedade aberta de intérpretes da
Constituição o direito pode atingir esse objetivo de forma legítima.
251
O exame analítico do pensamento possibilista, herdado por HÄBERLE do pensamento filosófico
possibilista de ERNST BLOCH e da doutrina constitucional de KONRAD HESSE, transborda os objetivos
fixados na presente dissertação. Sobre a estreita ligação teórica de PETER HÄBERLE com ERNST BLOCH e
KONRAD HESSE, veja-se: VARGAS, 2004, p. 123-135; MIKUNDA-FRANCO, 2002, p. 29-30;
HÄBERLE, 2002, p. 59-84.
252
Nesse sentido é a observação de GARCÍA DE ENTERRÍA (1985, p. 226), para quem a Constituição deve
permitir diversas interpretações em função de diferentes alternativas políticas e sociais. Aliás, saliente-se
que por esse mesmo motivo o constitucionalista espanhol afirma a necessidade de ela conter “termos
gerais”, evitando regular em detalhes todos e cada um dos aspectos da vida social e da vida política.
94
em que as mais diversas visões de mundo de cada um dos membros da comunidade
encontram oportunidade de se expressarem e de serem discutidas. Permeada pelo
pensamento possibilista, a vertente teórica de HÄBERLE considera válidas o as
interpretações firmadas nos órgãos oficiais” (“a interpretão não é um evento
exclusivamente estatal”
253
), isto é dos juízes e tribunais (“intérpretes oficiais”
254
), mas
também aquelas surgidas dentro do Poder Legislativo, do Poder Executivo e de
quaisquer outras fontes dentro da sociedade. Seu eixo central olha tanto para a doutrina,
quanto para a práxis constitucional. A interpretação, destarte, reflete o público e a
realidade subjacente à norma constitucional. Por isso, é essencial haver uma “exegese
constitucional em sentido amplo”, que contemple todos os cidadãos
255
.
Essa concepção compatibiliza-se com a idéia de liberdade e de tolerância
na sociedade plural. Ela permite a criação de meios, entre os cidadãos por igual, para
recriar e modificar a Constituição. Essas características, intrinsecamente ligadas à
necessidade emancipatória da cidadania, deixam em estado latente todo o potencial
inovador das normas
256
. Assim, por não enrijecer a interpretação ou concentrá-la em
um único órgão, fica permanentemente assegurada a autodeterminação, através do
exercício das dimensões pública e privada de cada pessoa.
Adverte HÄBERLE
257
, entretanto, ser imprescindível tratar-se de um
espaço no qual se apresentem as condições ideais de comunicação (no sentido
habermasiano), isto é, um lugar no qual a situação de fala esteja livre de possíveis
coibições. Dessa forma, configura-se o ambiente propício à legítima consolidação do
ordenamento jurídico, em que amplo espectro de múltiplas formas de tomada de decisão
253
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 23-24. Órgãos oficiais para HÄBERLE são aqueles que “desempenham o
complexo jogo jurídico-institucional das funções estatais”.
254
Cf. COELHO, 1998b, p. 187-189.
255
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 90.
256
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 74-75.
257
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 65.
95
se institucionaliza como alternativas jurídicas.
No enfoque häberliano, a Constituição passa por uma “relativização”, no
sentido de permitir, em seu bojo, a pluralidade de pontos de vistas até mesmo opostos.
A Constituição será criada, transformada e desenvolvida em processos abertos de
formação da vontade
258
. A reconstrução crítica e democrática da teoria constitucional,
que abre a Constituição a todos, volta-se contra o perigo de vê-la antidemocraticamente
“doada” aos tribunais ou a algum órgão específico, tal qual lembrado por MENELICK DE
CARVALHO. A perspectiva pragmática da Constituição aponta que ela não se compõe
apenas dos “processos jurídicos correntes”, isto é, dos processos ventilados nos
tribunais, mas de processos os mais amplos possíveis a fim de englobar todos os
participantes na sua prática: a Constituição significa law in public action
259
. É notório o
“reposicionamento” da Constituição, que não mais se limita a representar a norma de
maior hierarquia situada no topo do ordenamento jurídico ou, como queria HANS
KELSEN
260
, uma garantia de preservação da relação de correspondência entre as normas
subordinantes e subordinadas, modelo perfeitamente amoldado à leitura liberal do
constitucionalismo
261
. A dimensão semântica, portanto, reflete sua insuficiência para
teorizar e praticar a Constituição. É inevitável o apelo à dimensão pragmática da
Constituição, pois, em última análise, ela é construída e definida no exercício da
cidadania.
Com isso, é fácil perceber outro aspecto essencial da Constituição aberta:
258
Tal processo de interpretação ocorre a partir da relação indissociável (e dialética) entre “possibilidade-
necessidade-realidade”. Na concepção de HÄBERLE (2002, p. 61-62), o pensamento possibilista, no
âmbito da teoria constitucional, serve com mediador entre teoria e práxis. Revelando-se como alternativa
às mais variadas possibilidades, detém uma grande “força criadora” por abrir a exegese constitucional, ao
mesmo tempo em que a limita pelas necessidades da vida concreta e pelos aspectos inarredáveis da
realidade. Sua virtude, ressalte-se, reside justamente na potencialidade de pensar criticamente a
Constituição e a realidade, através de um procedimento de sucessivas conjeturas e refutações (trial and
error) por todos os membros da comunidade.
259
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 89.
260
Cf. KELSEN, 2003, p. 126.
261
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 258-259.
96
a “publicidade”. Para PABLO LUCAS VERDÚ
262
, o modelo de Constituição de HÄBERLE
descansa sua validade na publicidade. Essa característica assume importância
fundamental, que a idéia de uma Constituição de todos se viabiliza à proporção
que ela se faz conhecer, é a todos cidadãos transparente. A esse traço distintivo soma-se
a exigência de ela ser escrita em linguagem clara, transparente e inteligível, porque, de
outra forma, restaria comprometida a compreensão do texto constitucional pelos
cidadãos, o que dificultaria seu processo de publicização. O poder normativo da
publicidade da Constituição aparece em toda sua força pois, longe de ser mero texto a
reclamar interpretação, a Constituição convoca todos os concernidos ao
desenvolvimento de todas as questões, tornando-se verdadeira law in public action.
A Constituição aberta, em decorrência de seus atributos (transparência,
pluralismo, publicidade), não se resume aos preceitos normativos estampados em seu
corpo. Antes, consiste na autoconsciência que se tem de sua especial importância,
função e finalidade. E é, precisamente, essa autoconsciência que sedimentará o que
PABLO LUCAS VERDÚ
263
denomina de “sentimento constitucional da cidadania”.
Tal acepção de Constituição, denominada “Constituição libertária” por
PETER HÄBERLE
264
, é que se mostra idônea a congregar a sociedade plural com a
tolerância
265
, com o reconhecimento do outro. Mas o sucesso da prática está em incluir
nela a cultura política de participação ativa na construção das normas. Nesse sentido, a
262
Cf. VERDÚ, 1993, p. 32-37. Tenha-se em mente que “publicidade” (Öfftentlichkeit), para HÄBERLE, é
no sentido de inserir-se a Constituição na esfera blica de discussão. Tanto que VERDÚ (1993, p. 13)
constata os influxos habermasianos na composição desse conceito de HÄBERLE e a fenomenologia da
abertura constitucional está intrinsecamente ligada à categoria trabalhada por HABERMAS, em Mudança
Estrutural da Esfera Pública.
263
Cf. VERDÚ, 1993, p. 47.
264
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 78.
265
VERDÚ (1993, p. 26-28), aproximando-se de HÄBERLE, destaca que abertura constitucional e
publicidade implicam pluralismo político e tolerância. Com tais ingredientes, o constitucionalista
espanhol entrevê um ambiente favorável à manifestação do espírito democrático. É importante
transcrever a passagem de PABLO LUCAS VERDÚ (1993, p. 28), para se ter noção da amplitude que
representa a Constituição aberta: “A abertura constitucional, como a sociedade aberta, enquanto se
consideram manifestações do espírito democrático, implicam a relação de ambas com a publicidade, o
pluralismo, a alternância no poder e a tolerância, valores fundantes de uma democracia”.
97
teoria democrática de HÄBERLE viabiliza a permanente crítica da Constituição, porque
sua abertura olha também para o passado histórico a fim de pensar o futuro. Na
sociedade plural, quanto mais aberta a Constituição, maior é a possibilidade de
autocrítica, maior a reversibilidade de toda alternativa que surja no marco
constitucional, maior o grau de tolerância, maior caráter democrático ela adquire
266
.
HÄBERLE
267
não hesita ao proclamar a legitimidade da Democracia, a partir da exegese
constitucional aberta:
Exegese constitucional ‘em sentido amplo’ (para poder distingui-la de
seu outro sentido mais restringido ou estrito), acentuado em nível
pessoal, significa, a sua vez, entendê-la em seu conjunto, ou seja,
tomar muito a sério os direitos fundamentais de todos juntamente com
a própria democracia plural, e isso tanto na teoria como na prática,
que ‘intérpretes constitucionais no sentido mais amplo’ são aqueles
que legitimam básica, teórica e democraticamente a ‘democracia
cidadã’ inclusive em nível puramente doutrinal.
A idéia de publicidade, destarte, está estritamente ligada à de
legitimidade, pois pública é a Constituição vivida na consciência coletiva e, em
conseqüência, submetida ao constante juízo crítico da opinião pública. Não por outro
motivo, PABLO LUCAS VERDÚ
268
associa os fenômenos da abertura e da publicidade
com o estímulo da função ctica da opinião pública. E essa relação recíproca de
influência ele aponta como um dos elementos para se alcançar uma “sociedade
democrática avançada”, porque ao retirar qualquer índole metafísica ou forma de
aproximação com um suposto mundo ideal em que seria intangível – estabelece a
Constituição no presente, em que é criada e desenvolvida por homens, através de
múltiplos processos públicos
269
.
266
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 68-70.
267
HÄBERLE, 2002, p. 90.
268
Cf. VERDÚ, 1993, p. 42.
269
Cf. VERDÚ, 1993, p. 33.
98
A Constituição, para PETER HÄBERLE
270
, é um projeto.
Após a construção dos pressupostos da teoria constitucional democrática
de HÄBERLE, não é difícil perceber a proximidade de concepções entre HÄBERLE e
HABERMAS, no que tange à noção de Constituição. Também para HABERMAS
271
, a
Constituição é um projeto. Essa afirmação advém da percepção do terceiro aspecto da
Constituição “quem interpreta”–, que lhe permite chegar ao sentido performativo da
Constituição (performative meaning of the practice of constitution making)
272
, em que
todos os cidadãos participam da construção do sentido das normas constitucionais,
igualmente ao que acontece em qualquer outra prática comunicativa. A Constituição,
inserida no paradigma procedimental, não se limita à positivação de normas “estáticas”,
subtraídas de qualquer vinculação ao tempo e resistente às mudanças históricas. Ao
contrário, abre-se para não condescender com nenhum tipo de primazia técnico-
jurídica
273
; arvora-se como modelo projeto – a ser continuamente construído em todos
os planos de produção normativa, com a participação de todos os integrantes da
sociedade por ela concernidos, na qualidade de membros livres e iguais.
Está, pois, HABERMAS a acenar para o conceito de Constituição
procedimental
274
. Apartando-se da noção segundo a qual a Constituição
270
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 66.
271
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 195. A passagem de HABERMAS (2001a, p. 195), a seguir transcrita,
esclarece muito bem essa compreensão: O caráter das fundações constitucionais, que freqüentemente
confirmam e selam o êxito das revoluções políticas, sugere uma enganosa imagem que as Constituições
assim nascidas produzem de um limitar-se a consignar, a fazer constar normas estáticas, que, desde a
perspectiva da técnica jurídica, tem a Constituição sobre as leis simples, pertence à sistemática dos
princípios do Estado de direito; mas essa primazia significa uma fixação relativa do conteúdo das
normas constitucionais. Todavia, como veremos, toda Constituição é um projeto que só pode cobrar
consistência no modo de uma interpretação constitucional sustentada, impulsionada continuamente para
frente em todos os planos da produção normativa”.
272
Cf.: HABERMAS, 2003b, p. 193; HABERMAS, 2001b, p. 771-776.
273
É inequívoca a intenção de HABERMAS (2001a, p. 477) contra qualquer espécie de superioridade que se
pudesse atribuir às interpretações judiciais em relação às demais, em virtude da “autoridade científica” ou
“conhecimentos profissionais”.
274
O sentido procedimental da Constituição decorre da noção de co-originalidade entre direitos humanos
e soberania popular, ou seja, da mútua pressuposição entre as autonomias blica e privada; a
Constituição não estabelece uma ordem jurídica concreta de valores, e sim condições procedimentais de
produção legislativa para que os cidadãos possam autodeterminar-se (HABERMAS, 2001a, p. 336),
99
consubstanciaria tão-somente um conteúdo essencial imodificável assegurador de
direitos sicos ou apenas um complexo de normas garantidoras da autonomia política
dos cidadãos, HABERMAS
275
introduz nela o sentido procedimental. Vê-se, agora, a
Constituição como plexo de normas estabelecedoras de formas de comunicação, que
viabilizam o uso público da razão e o justo balanceamento dos interesses. Duas
importantes características podem extrair-se da procedimentalização da Constituição,
que, de certa forma, retomam as idéias de PETER HÄBERLE: sua compreensão dinâmica e
seu sentido performativo.
A Constituição procedimental retira o “peso” dos princípios
constitucionais, no sentido de que deteriam um conteúdo a priori intangível
276
. Ao abrir
o discurso jurídico às dimensões semântica e pragmática, a legitimidade da
interpretação passa a ser considerada também em razão da forma pela qual o conteúdo
das normas é construído e pela permanente possibilidade de autocrítica. A
Constituição, segundo HABERMAS
277
, exige uma prática compartilhada para que se
possa atingir uma compreensão racional do seu próprio texto, conferindo-lhe
legitimidade mesmo em meio a divergentes possibilidades interpretativas
278
.
A atividade legislativa assume o importante papel de continuar o
desenvolvimento do sistema de direitos, interpretando-o e adaptando-o às atuais
circunstâncias, o que vem a caracterizar a Constituição como um eterno vir-a-ser, um
fazendo valer a conexão interna entre as autonomias pública e privada. Com essa concepção, subjacente
a seu modelo democrático, HABERMAS (2001b, p. 766 e ss) procura superar a secular disputa entre a
“liberdade dos antigos” e aliberdade dos modernos”, que permeia a tradição histórico-constitucional do
Ocidente.
275
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 771-776.
276
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 258. Embora com embasamento teórico distinto e em sentido divergente
do aqui adotado, GIANCARLO CORSI (2001) observa, duramente, que os direitos fundamentais, amparados
nos textos constitucionais por princípios, encontram grave problema: destituídos de qualquer consistência
semântica, são vazios de conteúdo.
277
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 775.
278
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 193-194.
100
projeto em permanente construção, “inacabado”
279
. A experiência constitucional
pretérita integra o acervo histórico com base no qual a sociedade atual de intérpretes
poderá reconstruir reflexivamente o futuro. Todo conhecimento e prática produzidos
nos domínios social e constitucional podem voltar ao debate a qualquer momento,
que a falibilidade é marca inarredável desse processo de aprendizagem
280
. Chega
mesmo a impressionar, à primeira vista, quando HABERMAS
281
afirma que, na
compreensão dinâmica da Constituição, a distinção entre normas constitucionais e
ordinárias perde a razão de ser, pois, na condição de projeto, sua interpretação e
concretização serão modeladas pela legislação. Ela precisa ser aplicada, interpretada e
suplementada continuadamente. No paradigma procedimental, a noção de Constituição
se relaciona com as condições de gênese do processo de produção legislativa, que
preserva a íntima conexão entre as autonomias pública e privada dos cidadãos
282
, os
quais, por sua vez, podem seguir cooperativamente e com perspectivas de êxito o
projeto de estabelecer formas justas de vida. Não se pode entendê-la como ordem
jurídica concreta de valores que imponha a priori à sociedade determinada forma de
vida
283
.
279
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 465-466.
280
Aliás, esse parece ser o ponto não enfrentado por algumas críticas dirigidas contra a concepção
democrática de HABERMAS. Nesse sentido, FRANK MICHELMAN (1997, p. 149 e ss) insurge-se contra o
projeto da Democracia deliberativa ao opor o intransponível obstáculo do “regresso (ao) infinito” (infinite
regress), o que traria a dificuldade de fundamentá-la legitimamente, em seu momento originário, através
da teoria discursiva. No entanto, as normas constitucionais passam continuada e repetitivamente a
adquirir uma nova semântica, revalidando-se sob a perspectiva da reconstrução reflexiva das práticas
sociais em geral, em que os autores das normas são a um tempo governantes e governados. Nela, a
Constituição é percebida como um projeto inacabado e em constante realização, que sem esquecer o
passado histórico – olha para o futuro. MICHELMAN (2001, p. 265) opõe grave objeção a esse raciocínio,
afirmando que “a justificação moral abstrata habermasiana do constitucionalismo democrático chega à
sua completude sem qualquer atribuição empírica a quem quer que seja de solução moral ou de algum
tipo de disposição motivacional”. Além do mais, MICHELMAN (1997, p. 150 e ss; 2001, p. 253-259 e
269-270) também se descrente de se atingir uma prática social, nos termos descritos por HABERMAS,
dada sua impossibilidade fática.
281
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 774-775.
282
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 258.
283
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 336 e p. 354.
101
Nessa visão procedimentalista, o texto constitucional anuncia o sentido
performativo que deve orientar a prática da sociedade em relação à Constituição, porque
seu caráter democrático não advém do conteúdo, mas também da participação da
prática comunicativa cujo objetivo é realizar a liberdade e a igualdade. Assim, cada
cidadão da comunidade política poderá criticar e “reformar” tanto a Constituição,
quanto as interpretações que lhe seguirem. Em nível constitucional, a autolegislação vê-
se plenamente realizada, de forma a garantir o exercício das autonomias pública e
privada do cidadão.
Essa concepção de Constituição é capaz de atribuir legitimidade à prática
e à interpretação constitucionais, não obstante o fato do desacordo endêmico (endemic
disagreement)
284
. Como visto no Item 5 do Capítulo I, uma das grandes críticas
vertidas contra o consensualismo de HABERMAS cingia-se à improbabilidade ou
impossibilidade de chegar-se ao acordo mútuo, sobretudo em face do pluralismo social
e cultural que marca as sociedades contemporâneas. No entanto, defendeu-se
HABERMAS, as objeções não têm procedência, porquanto não estão desvinculadas da
perspectiva do observador; é preciso tomar-se a perspectiva do participante do discurso,
o qual, sob pena de contradizer-se performativamente, pressupõe necessariamente a
possibilidade de obter o acordo.
Outrossim, em matéria de interpretação constitucional. Segundo
HABERMAS
285
, a objeção hermenêutica relacionada à existência de um persistente
dissenso em matéria constitucional, que ameaça a própria legitimidade do sistema
democrático como um todo. É bem verdade que as normas da Constituição, mesmo no
que diz respeito aos princípios fundamentais, não se confinam a um único sentido;
caracteriza-se o pluralismo interpretativo razoável (reasonable interpretative pluralism).
284
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 187-194.
285
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 187 e ss.
102
É preciso, assim, recorrer-se ao sentido performativo da Constituição: só a prática
comunicativa constitucional é que pode conferir a legitimidade à interpretação da
Constituição, ainda que os participantes da interpretação tenham a consciência de
estarem impossibilitados de chegar à “veracidade da questão” (truth of the matter), ao
instante em que ingressam no processo discursivo. um hiato” (gap) entre a
veracidade da questão, aspirada pelos participantes do discurso, e sua assumida
inacessibilidade, o que explica a atratividade da concepção procedimental de
legitimação, segundo HABERMAS
286
. Por isso, a fonte legitimadora da interpretação
constitucional, para am do mérito cognitivo inerente ao discurso racional, reside na
performance em si, que tem o condão de criar o tipo de autoridade que explica o motivo
pelo qual os participantes aceitam legitimamente os resultados do qual discordam.
3. A CONSTITUIÇÃO PROCEDIMENTAL: NA CONTRAMÃO DA TRADIÇÃO
CONSTITUCIONAL?
Ao aliviar o fardo da interpretação do conteúdo das normas
constitucionais na medida em que o verdadeiro fator de legitimidade da Constituição
tem seu lugar nas práticas comunicativas (dimensão pragmática do discurso
287
), é
natural que se veja a idéia da Constituição procedimental com certa suspeita ou, até
mesmo, temeridade
288
. A suspeita do esvaziamento do seu próprio significado e função,
286
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 190.
287
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 297. Por isso, HABERMAS (2003b, p. 190-193) alude ao sentido
performativo da Constituição.
288
Essa é uma preocupação compartilhada por MIGUEL CARBONELL (2005, p. 14-15), ao se perguntar se
“a normatividade constitucional se debilita com as constituições abertas”. Respondendo negativamente, o
autor explica que, nos Estados democráticos e pluralistas, a Constituição deve deixar um espaço à
“política constitucional”, que pode assumir muitos significados em matéria de direitos fundamentais.
Também, GUSTAVO ZAGREBELSKY (2005, p. 81 e ss) destaca que o conceito de positividade da
Constituição sofreu modificação nas sociedades contemporâneas e plurais. Para o constitucionalista
italiano, a Constituição pluralista é positiva no sentido de que é recriada continuamente pelo concurso das
mais diversas vontades ao longo do tempo. Sua positividade é a posteriori e o advém de uma vontade
103
nos termos da tradição liberal do constitucionalismo que até hoje a acompanha: norma
que institui a limitação recíproca e a distribuição de competências entre os poderes
estatais, além de assegurar a proteção aos direitos individuais
289
. Talvez se tenha a
impressão de estar-se a fragilizar a noção de Constituição, atingindo-se fatalmente sua
identidade mediante constantes modificações e recepções. É um risco que, no limite,
cerca a própria noção de Constituição aberta
290
.
As críticas de ERNST BÖCKENFÖRDE
291
, dirigidas contra PETER HÄBERLE,
são contundentes e verossímeis quanto ao risco a que a Constituição está suscetível. A
abertura da Constituição (democrática) terminaria com a atividade de interpretação, pois
toda ação dos intérpretes, em verdade, corresponderia a uma permanente mutação
constitucional criadora de direitos. Conceitos como vigência e normatividade não mais
fariam sentido, que as normas resultam do processo comunicativo. Se a Constituição
é o que se extrai de sua abertura, não existiria ordem jurídica vinculante a exigir
expectativas de comportamentos, além de se produzir um estado de indeterminação
jurídica.
Parece também ameaçar a tradição histórica do constitucionalismo
moderno, principalmente depois de JOHN LOCKE. Atribui-se a LOCKE o pioneirismo na
defesa de uma relação de controle recíproco entre os poderes do Estado (checks and
balances) como forma de autolimitação de cada um deles, no âmbito das Constituições
modernas
292
. Desde as revoluções liberais que trouxeram os temores e os riscos da
inicial limitada no tempo e irrepetível (“mito fundacional”), o que confere à sociedade o poder de definir
sua própria Constituição.
289
Cf. FIORAVANTI, 2001, p. 85-100.
290
Cf. VERDÚ, 1993, p. 56-60.
291
Cf. BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 24-27.
292
Cf. FIORAVANTI, 2001, p. 93. Deixando latente que, na história dos pensadores, sempre houve a
necessidade de limitação e de controle das instituições do Estado, destaca MARCUS FARO DE CASTRO
(2005, p. 51) que o propósito da separação dos poderes é conformar o processo político e social à
realização da consciência universal, eticamente caracterizada. Assim, “a solução institucional da
separação dos poderes, em essência, traduz a idéia mais radical da necessidade de que os governos
expressem e preservem a vontade autônoma dos indivíduos”.
104
Democracia jacobina, os filósofos, notadamente IMMANUEL KANT e BENJAMIN
CONSTANT, preocuparam-se em reconstruir o sentido e o conceito de soberania popular,
para limitá-la e relativizá-la
293
.
A história do constitucionalismo e das conquistas obtidas (estabilidade,
segurança, justiça, liberdade, igualdade e direitos humanos em geral) a ferro, fogo e
sangue poderiam apresentar-se como forte evidência contra a concepção de Constituição
procedimental, que se alinha intrinsecamente aos parâmetros estabelecidos pelo
princípio democrático. A tradição constitucional moderna, que traz subjacente a idéia
de limitação do poder político
294
, aparentaria sofrer grande golpe.
Entretanto, tais críticas devem ser recebidas com a devida cautela. A
Constituição procedimental, enquanto prática comunicativa de um processo falível e
reflexivo de aprendizagem, objetiva a reconstrução da tradição jurídico-constitucional
da sociedade. Inserida no modelo normativo de Democracia deliberativa, a noção de
Constituição procedimental assume o pressuposto da eqüiprimordialidade dos direitos
individuais clássicos de liberdade e dos direitos políticos do cidadão. Os direitos
humanos não representam uma restrição externa, de fora para dentro, aos direitos de
soberania
295
, mas uma aquisição obtida ao longo do processo de evolução histórica.
Esse estágio de evolução a que chegou a sociedade moderna, por sua vez, pressupõe o
293
Cf. FIORAVANTI, 2001, p. 120 e ss. A passagem de FIORAVANTI (2001, p. 131-132), a seguir
transcrita, é expressiva: “Como se aprecia com claridade, o constitucionalismo posterior à revolução tem,
em essência, um único adversário, que sempre é o mesmo, ainda que adquira formas distintas: para
Burke, o poder constituinte da Revolução, para Kant e para Constant, a soberania popular mais além da
supremacia da lei como máximo instrumento de igualdade e de garantia de direitos, para Tocqueville, no
fim, o processo histórico de nivelação social e de concentração de poderes, inerente à expansão do
princípio democrático. Observando-se bem, todos esses personagens, ainda que de maneira distinta,
terminam de todas as formas por contraporem ao resultado revolucionário da soberania entendida como
tendência a expandir sem medida a razão política democrática sobre todo o espaço das relações civis e
sociais o valor da Constituição, entendida não tanto como norma jurídica positiva, e sim como ideal
político dentro do qual estava contida a fundamentação e a irrenunciável aspiração à pluralidade, à
individualidade e, também, à diferença”.
294
Cf.: FIORAVANTI, 2001, p. 163-164; SANCHÍS, 2003, p. 10 e ss.
295
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 292. HABERMAS explica objetiva e claramente: “Direitos humanos que
possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição”.
105
compartilhamento de uma cultura política comum
296
de pessoas habituadas à liberdade e
às reivindicações jurídicas, dando vazão às diversas formas de pretensões normativas e
interpretação de interesses e de necessidades, dentro do marco constitucional.
Ora, a teoria constitucional, numa perspectiva democrática, perquire
interpretações para além daquelas construídas exclusivamente por algum órgão estatal e
vai em busca de todas as interpretações surgidas no seio da esfera pública, ambiente por
excelência de captação de pretensões da comunidade cujas redes comunicativas
revestem-se de altíssimo teor de legitimidade. Conforme dito, a comunidade jurídica
partilha de uma cultura política libertária, na qual a população é acostumada à
liberdade
297
. Isso quer dizer que, em geral, o debate em torno da interpretação
constitucional não se travado sobre a possibilidade de supressão de direitos
historicamente conquistados, e sim em torno da melhor interpretação dos princípios
constitucionais, que estão em constante modificação
298
.
No paradigma procedimental do Estado de Direito, direitos humanos e
soberania popular pressupõem-se mutuamente. Não existe qualquer relação de
precedência entre as liberdades subjetivas clássicas e os direitos de autodeterminação
política. Ambos convivem numa relação de co-originalidade, revelando os destinatários
do sistema de direitos como seus próprios autores
299
. O que efetivamente importa saber,
para os fins desta dissertação, é que não se pode falar em proteção à autonomia
individual, que assegura a esfera privada dos direitos e liberdades subjetivas (autonomia
296
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 248 e ss.
297
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 301-302.
298
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 188.
299
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 169. A postura de HABERMAS, no fundo, corresponde à superação da
tensão existente na história política norte-americana entre o liberalismo (LOCKE) e o republicanismo
(ROUSSEAU), a partir da adoção do paradigma procedimental do direito. Sobre o tema, cf.: HABERMAS,
2002b, p. 269-297.
106
privada), sem que, ao mesmo tempo, seja permitido aos cidadãos exercer seu direito à
autodeterminação política. Nesse sentido, HABERMAS
300
aduz:
Conforme esta compreensão procedimental, a realização dos direitos
fundamentais é um processo que pode assegurar a autonomia
privada de cidadãos dotados dos mesmos direitos, de par com uma
ativação da autonomia cidadã, da autonomia pública deles.
Isso porque os direitos humanos não se concebem, nem são positivados
numa Constituição, a partir de uma noção abstrata e geral, independentemente de um
contexto. Com efeito, a Constituição é um projeto histórico a ser cumprido por cada
geração
301
, no aqui e agora determinada. Os direitos humanos, envolvidos que estão em
contextos particulares, encontram-se eticamente impregnados numa dada forma de vida
historicamente localizada, de forma que toda ordem jurídica é a expressão de uma forma
de vida em particular, e não apenas um simples refletir-se do teor universal dos direitos
fundamentais
302
.
A divergência entre as interpretações da Constituição está atrelada a
diferentes processos de explicitação em relação às regras e pressuposições do discurso
racional, das práticas sociais e culturais de uma sociedade
303
. Justamente aí, isto é, na
institucionalização jurídica dessas diferentes práticas sociais, é que se dão as diferenças
entre as Constituições históricas, com base nas quais se interpreta e se configura o
sistema de direitos de forma distinta. Assim, é plausível afirmar-se que o modelo
procedimental do Estado de Direito não é vazio de conteúdo, embora não parta de
300
HABERMAS, 2001a, p. 511. Noutro momento, HABERMAS (2002b, p. 243) registrou: “Do ponto de
vista normativo, o Estado sem democracia. Por outro lado, como o próprio processo democrático
precisa ser institucionalizado juridicamente, o princípio da soberania dos povos exige, ao inverso, o
respeito a direitos fundamentais sem os quais simplesmente não pode haver direito legítimo”.
301
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 229-267. Lembrando a relação interna entre Democracia e Estado de
Direito, HABERMAS (2002b, p. 235) reforça a historicidade dos direitos humanos, ao destacar que o
sistema dos direitos não fecha os olhos nem para as condições de vida sociais desiguais, nem muito
menos para as diferenças culturais. (...) Sob essa premissa, uma teoria dos direitos entendida de maneira
correta vem exigir exatamente a política de reconhecimento que preserva a integridade do indivíduo,
inclusive nos contextos vitais que conformam sua identidade”.
302
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 245.
303
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 389-390.
107
conteúdos predefinidos. Conforme sustenta HABERMAS
304
, faz-se neutro em relação aos
princípios jurídicos em face dos conteúdos referentes a específicas visões de mundo.
Em conseqüência, o sistema de direitos e os princípios do Estado de Direito estão
condicionados ao sentido performativo de uma práxis geradora de Constituições.
Do contrário, estar-se-ia a perceber a Constituição numa visão
estritamente estática de suas normas, o que iria sugerir a imagem de que toda a
produção de legitimidade das normas adviria dela em si mesma; essa orientação não
condiz com a concepção procedimental da Constituição como projeto. Produto das
revoluções políticas, as Constituições não se limitaram a positivar normas estáticas,
subtraídas de qualquer vinculação ao tempo e resistente às mudanças históricas. A
primazia, do ponto de vista técnico-jurídico, da Constituição sobre as leis simples
pertence aos princípios (de feição liberal) do Estado de Direito. que a Constituição
não significa fixação do seu conteúdo; na qualidade de projeto, apenas pode cobrar
consistência a partir de um modelo constitucional sustentado e impulsionado
continuamente para frente, em todos os planos de produção normativa (dimensão
pragmática)
305
.
Então, a proposta da Constituição procedimental enquadra-se, sim, no
movimento do constitucionalismo cuja finalidade é evitar a formação absoluta do poder
na o de uma única autoridade
306
. A crítica contra o procedimentalismo
constitucional deve ser devidamente ponderada para que, a pretexto de preservar o
constitucionalismo, a tradição histórica dos direitos fundamentais não venha a sacrificar
304
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 326-337.
305
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 195. Singular, portanto, o diagnóstico de FRANK MICHELMAN (2001, p.
263-264) de acordo com o qual a Constituição está numa posição delicada, porque se evidencia que não
conseguiu transpor o modelo de compreensão constitucional exclusivamente semântico. Dentro desse
contexto, parece mais apropriada a avaliação de PABLO VERDÚ (1993, p. 30-31) ao se referir à
Constituição norte-americana: descobrir a Constituição é o mesmo que descobrir uma parte importante da
própria sociedade, porque se conta a natureza e a história do passado constitucional e ao mesmo tempo
configura os significados que se preparam para o presente e o futuro do país. E a descoberta vem
através da comunicação pública discursiva de todos os membros da comunidade.
306
Cf. FIORAVANTI, 2001, p. 94.
108
a própria Democracia. Esse, aliás, é um dos grandes desafios atuais do direito
constitucional: equilibrar a Democracia com o constitucionalismo; a liberdade dos
antigos com a liberdade dos modernos
307
. Enfim, preservar a conexão interna entre
soberania popular e direitos humanos, entre autonomia pública e autonomia privada, a
fim de permitir reconduzir-se toda legalidade à idéia de legitimidade. E,
especificamente na seara das relações travadas entre Democracia e jurisdição
constitucional, essa busca pelo equilíbrio desemboca, hoje, na relação concebida entre o
Poder Legislativo e o Poder Judiciário.
Com efeito, no nível institucional das relações entre esses dois Poderes, a
pedra de toque reside em determinar qual deles se reveste da autoridade para dizer a
última palavra em matéria constitucional, sobretudo ao se tratar da definição entre
diferentes e melhores interpretações sobre os mesmos princípios constitucionais em
razão de questões altamente controvertidas que se formam na esfera pública
308
. Isso
porque, consoante explica FRANK MICHELMAN
309
, muitas das normas constitucionais
são, por elas mesmas, objeto de desacordos razoáveis; além do mais, em algum
momento, elas devem ter seus respectivos conteúdos fixados e decididos.
O último capítulo se esmerará na análise e na tentativa de composição
dessa difícil relação, especialmente no contexto da institucionalização brasileira. O
cerne da questão, agora, é a quem cabe definir o conteúdo das normas constitucionais
em última instância, à luz da concepção da Constituição procedimental que se liga à
regulação de processos em que a produção legislativa e a interpretação constitucional
307
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 290-291.
308
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 254.
309
Cf. MICHELMAN, 2001, p. 263-264. Acontece que, para MICHELMAN, alguém tem de decidir a
questão; esse alguém é a Suprema Corte. Em sua visão (2000, p. 65), o processo de definição do
conteúdo dos direitos humanos passa por quatro etapas subseqüentes. A terceira delas é integrada pela
interpretação judicial (adjudicative interpretation) daquele conjunto abstrato (ideal) de diretos humanos
que fora positivado numa Constituição.
109
sejam fundamentadas no exercício discursivo das autonomias pública e privada
310
,
tornando o cidadão a um só tempo autor e destinatário das normas.
310
Cf. OLIVEIRA, 2000, p. 128.
110
IV. O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE E O
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
1. A dificuldade contramajoritária e a
primeira “virada procedimentalista”
no controle de constitucionalidade
2. A segunda “virada
procedimentalista” no controle de
constitucionalidade
3. Os casos controvertidos, a
presunção de legitimidade das leis e o
controle de constitucionalidade no
giro procedimentalista
4. A supremacia da Constituição e os
controles de constitucionalidade
difuso e concentrado
5. O controle judicial fraco” (weak-
form judicial review), a “cláusula não
obstante” (notwithstanding clause) e
uma sugestão ao modelo brasileiro de
controle de constitucionalidade
Toda as vezes em que os juízes examinam a validade e a
constitucionalidade de uma lei, uma tensão entre o Poder Legislativo e o Poder
Judiciário
311
, em razão das características da prática judicial do controle de
constitucionalidade. Inicialmente, na esteira das lições de FRANK MICHELMAN
312
, pode-
se conceber o controle judicial de constitucionalidade como prática institucional em que
se resolvem questões de constitucionalidade trazidas à corte; o resultado do julgamento
311
Cf. GARGARELLA, 1996, p. 11 e ss.
312
Cf. MICHELMAN, 2003-2004, p. 1407-1408.
111
pelo tribunal competente é considerado definitivo e obrigatório sobre os demais Poderes
a não ser ou até que venha a ser revisto por nova decisão judicial ou por emenda à
Constituição
313
. Com tal competência, por meio da jurisdição constitucional, o Poder
Judiciário investe-se de capacidade para decidir em última instância sobre o que a
Constituição permite ou não, mesmo em relação àquelas matérias sobre as quais o texto
constitucional nada teria disposto (v.g., aborto). Ademais disso, hodiernamente, tem-se
evidenciado o efeito da “impregnação constitucional”, segundo o qual grande parte das
lides são decididas a partir das normas constitucionais
314
. Dessa forma, a adoção da
premissa de que cabe ao Poder Judiciário dizer a última palavra em matéria
constitucional é algo que, ao menos, merece uma reflexão mais aprofundada, à luz das
noções que orientam a concepção do Estado Democrático de Direito, porquanto, ao
final, as principais decisões políticas do país terão sua definição no foro judicial.
Nesse contexto inicial, não fica difícil concordar com FRANK
MICHELMAN
315
, ao afirmar com ênfase que a teoria constitucional norte-americana tem
sido eternamente permeada, se não totalmente consumida, por uma relação paradoxal.
Cuida-se de busca incessante por harmonizar dois ideais distintos e conflitantes: o ideal
do governo limitado por leis (constitucionalismo) e o ideal do autogoverno do povo
(Democracia). É bem verdade que, de uma maneira geral, os constitucionalistas vêm
313
É importante ressaltar que, no Brasil, as emendas à Constituição submetem-se ao controle de
constitucionalidade. Logo, a definitividade das decisões, em princípio, estende-se até que o próprio
tribunal venha a modificar seu próprio entendimento. Nos Estados Unidos, embora a Suprema Corte
tenha apreciado a constitucionalidade de emendas à Constituição quanto a aspectos formais
(procedimento de aprovação), não declarou a invalidade de qualquer emenda, motivo pelo qual se entende
que, ao lado da mudança de orientação jurisprudencial da Suprema Corte, as emendas constitucionais são
a única forma de reverter decisões judiciais. A propósito, veja-se: VIEIRA, 1999, p. 141-147;
SAMPAIO, 2002, 281-282. De toda forma, as conseqüências dessa particularidade serão discutidas mais
à frente.
314
Destaca LUIS PRIETO SANCHÍS (2003, p. 165-166) ser difícil, hoje, conceber um problema jurídico
medianamente sério que não encontre alguma orientação, às vezes distintas orientações, no texto
constitucional. A Constituição exerce o papel de “norma onipresente”, de maneira que não somente
preside ou fundamenta o sistema, mas o impregna em seu conjunto.
315
Cf. MICHELMAN, 1999, p. 4.
112
sempre estudando a relação entre Democracia e constitucionalismo sob esse prisma
316
.
Dessa equação, diferentes são as soluções extraíveis no modo de conceber o problema
da legitimidade da jurisdição constitucional. Contudo, também divergência na
tomada inicial de posição. Talvez a relação entre Democracia e constitucionalismo não
seja necessariamente paradoxal mas complementar, como afirma HABERMAS
317
, em
resposta às críticas formuladas por MICHELMAN, no livro Brennan and Democracy.
Insista-se, não obstante, na idéia da relação paradoxal. Ela determina e
justifica a limitação e a restrição da soberania popular e do autogoverno, em benefício
da proteção dos direitos. Um e outro pilar da Democracia constitucional restringem-se
na tentativa de encontrar a fórmula conciliadora para configuração e institucionalização
do Estado de Direito.
No entanto, a percepção de que Democracia e constitucionalismo se
relacionam paradoxalmente se apóia em premissa comumente aceita e dificilmente
desafiada e, por isso mesmo, tomada praticamente em termos absolutos. Considera-se
que o autogoverno do povo se realiza e se institucionaliza no Poder Legislativo e, de
certa forma, no Poder Executivo, enquanto o constitucionalismo, e conseqüentemente a
proteção dos direitos individuais, corporifica-se no Poder Judiciário, sobretudo no
tribunal constitucional. A análise de MAURIZIO FIORAVANTI
318
sobre a noção
contemporânea que permeia o sentido de Democracia constitucional e da relação entre
Democracia e constitucionalismo depõe favoravelmente a esse entendimento:
Na fórmula contemporânea da democracia constitucional parece estar
contida a aspiração a um justo equilíbrio entre o princípio
democrático, dotado de valor constitucional através das instituições da
democracia política e o mesmo papel do legislador e do governo, e a
idéia ínsita em toda a tradição constitucional dos limites da
316
Concordando com DWORKIN, JEREMY WALDRON (1999, p. 302) admite existir importante conexão
entre direitos e Democracia.
317
Cf. HABERMAS, 2001b, p. 766-781.
318
FIORAVANTI, 2001, p. 163-164.
113
política a fixar mediante a força normativa da constituição e, em
particular, através do controle de constitucionalidade sempre mais
determinante no âmbito das democracias modernas.
O justo equilíbrio, pressupõe FIORAVANTI
319
, é conduzido pelos sujeitos
da política democrática (parlamento, governos e partidos), de um lado, e pelos sujeitos
da garantia jurisdicional (juízes e, em especial, os tribunais constitucionais), de outro.
Dessa forma, torna-se comum pensar o Poder Legislativo como instituição de onde
emanam as principais ameaças à Constituição, enquanto o Judiciário encarnaria o papel
de guardião da vontade constitucional, ao conter os excessos legislativos
320
.
Justamente a premissa da transubstanciação da defesa dos direitos
humanos no Poder Judiciário é que se porá em discussão. É bastante pertinente a
indagação de JEREMY WALDRON
321
sobre a necessidade de investir algum poder estatal
específico da tarefa de detectar as violações à Constituição, conferindo-se-lhe
autoridade para anular qualquer ato contrário a ela, emanado de outro Poder. O ponto é
de suma relevância: afinal, a democracia constitucional se estrutura em um determinado
arranjo institucional
322
. É necessário também que o exame não se limite a uma
319
Cf. FIORAVANTI, 2001, p. 164.
320
É interessante notar, com DANIEL FARBER (2003, p. 419-420), que a judicial review se estrutura sobre
duas premissas, pertinentes com estabilidade e desconfiança. A “premissa da desconfiança” consiste em
rejeitar a qualquer órgão do Governo, particularmente a seu corpo político-legislativo, o controle total
sobre os direitos individuais. O sentimento latente, portanto, aponta para o descrédito das instituições
legislativas, que devem ficar constantemente submetidas ao Poder Judiciário. Em igual sentido, ver:
BICKEL, 1986, p. 21-22; WALDRON, 1999, p. 282 e ss. ROBERTO GARGARELLA (1996, p. 12), por sua
vez, não destoa de semelhante orientação. Explica que, dentre outros, existem ao menos dois
pressupostos “implausíveis” sobre os quais se assenta o controle judicial: um de “raiz conservadora”, de
acordo com o qual não seria necessário consultar a cidadania de modo efetivo, se a intenção for tomar
decisões corretas; outro de “raiz elitista”, em decorrência do qual nem todos cidadãos estariam dotados de
iguais capacidades e só uma parcela deles é que teria as virtudes necessárias para tomar decisões corretas,
imparciais e justas.
321
Cf. WALDRON, 1999, p. 211; 1993, p. 18.
322
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 353.
114
abordagem teórica ou simplesmente abstrata e genérica; ao contrário, deve tratar-se de
um modelo específico de controle de constitucionalidade
323
.
A investigação aqui proposta se restringirá à verificação da relação entre
Democracia e jurisdição constitucional no modelo brasileiro, que integra o pano de
fundo das observações realizadas. No Brasil, subjaz às práticas judiciais e sociais a
compreensão de que o Supremo Tribunal Federal desponta como órgão supremo e
intérprete máximo da Constituição. A ele, cabe a guarda da Constituição. O que
implica, na linha da autocompreensão consolidada dentro de si próprio, que o Supremo
Tribunal Federal detém a última palavra sobre o que a Constituição significa.
Então, no primeiro momento, as atenções estarão voltadas à grande
objeção suscitada contra a teoria do controle de constitucionalidade, denominada por
ALEXANDER BICKEL de dificuldade contramajoritária” (counter-majoritarian
difficulty), em sua clássica obra The Least Dangerous Branch. É preciso justificar a
autoridade da decisão tomada por um órgão judicial, não democraticamente legitimado,
que declara, em termos definitivos, a invalidade de uma lei gerada a partir da
deliberação dos representantes do povo. Mais uma vez, esse resgate será feito com
apoio no direito norte-americano, embora não se pretenda fazer, passo a passo, a
reconstrução da evolução histórica do controle judicial naquele país.
Uma via de superação da dificuldade contramajoritária será a de JOHN
HART ELY, com a apresentação da teoria procedimental da Constituição e da judicial
review, que correspondeu à primeira virada procedimentalista da teoria constitucional.
Examinando-se seus pressupostos, serão identificadas as falhas que cercam sua teoria
constitucional (1). Na seqüência, o foco da dissertação recairá sobre a segunda virada
procedimentalista da teoria constitucional e do controle judicial, dada por JÜRGEN
323
A propósito, ROBERTO GARGARELLA (1996, p. 177 e 182) observa que as teorias institucionais
contemporâneas preocupam-se por demais em definir princípios, deixando, porém, de lado a reflexão de
levá-los à pratica, de efetivá-los verdadeiramente.
115
HABERMAS, que veio para suprir as lacunas e falhas da primeira (2). Após, realizadas
certas considerações sobre o controle de constitucionalidade nos casos essencialmente
controvertidos, nas quais se reafirmará a presunção de legitimidade e racionalidade do
processo político-legislativo, apartar-se-á o tratamento entre as duas formas de controle
e se defenderá o controle difuso como mais apropriado aos parâmetros democráticos do
paradigma procedimental do Estado de Direito (3 e 4). Em seguida, discutir-se-á a
proposta do “controle judicial fraco” (weak-form judicial review), que será apresentada
como alternativa válida a fim de direcionar a práxis da judicial review brasileira ao
caminho da legitimidade (5), que propicia a criação de condições institucionais para
os cidadãos, a um tempo, figurarem na qualidade de autores e destinatários das
normas e da própria interpretação da Constituição à qual estão submetidos.
1. A DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA E A PRIMEIRA VIRADA
PROCEDIMENTALISTA NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
É inconteste que a decisão proferida em MARBURY v. MADISON, em 1803,
representa o marco histórico do surgimento do controle de constitucionalidade.
Contudo, desde antes a prática da judicial review se verificava nos Estados Unidos.
JAMES BRADLEY THAYER
324
recordava que o controle judicial foi resultado natural,
embora não necessário
325
, da experiência política dos Estados Unidos antes da guerra de
independência. Na qualidade de colônia governada sob as leis ditadas pela coroa
britânica, uma das formas de implementar-se o domínio da Inglaterra e o fiel
324
Cf. THAYER, 1893-1894, p. 130-133.
325
Não se pode ignorar a força da doutrina de Sir EDWARD COKE nos Estados Unidos, que investia o juiz
da qualidade de árbitro entre o Rei e a nação e como guardião da supremacia da common law. Os juízes
teriam a função de controlar as leis que atentassem contra a common law e a razão, declarando-as sem
efeito. Sobre o tema, ver: SCHWARTZ, 1993, p. 3-6 e p. 22; CAPPELLETTI, 1999, p. 57-63; CLÈVE,
2000, p. 63-64.
116
cumprimento de suas leis dava-se, dentre outras, através da anulação direta da legislação
local pela coroa, dos procedimentos judiciais e dos apelos ao Privy Council. As
limitações que o governo britânico exercia sobre as colônias norte-americanas
constituíam o normal exercício de seu poder, cuja autoridade não deixou de ser
reconhecida por elas. Tanto que os tribunais locais, além de aplicarem o direito
emanado pelo governo inglês, tinham a obrigação de declarar nulas as disposições
locais que contrariassem as da metrópole.
Uma vez rompida a relação entre a Inglaterra e as colônias, o mais
subsistiu a influência da soberania externa inglesa que impunha limites às leis
produzidas em cada um dos Estados emancipados. Entretanto, de acordo com a
reconstrução histórica de THAYER, o povo “substituíra” o lugar ocupado pela great
britain, de forma que se tornou o dono de sua própria soberania. Em alguns desses
Estados, a exemplo de Connecticut e de Rhode Island, estatutos básicos foram erigidos
ao status de lei constitucional e, em conseqüência, por desconformidade com eles atos
legislativos foram invalidados.
A nova forma de exercício do poder judicial, com parâmetro nas leis
constitucionais locais, não foi universalmente aceita pelos Estados-membros da
Federação, os quais consideravam tal prática anti-republicana e também contrária às
respectivas Constituições e à dos Estados Unidos. Para JAMES THAYER
326
, a judicial
review oferecia grande risco à autoridade primária confiada às leis, já que o freqüente
questionamento das normas em juízo abalaria a presunção de validade que corre em
favor delas. Além disso, retiraria do Poder Legislativo ampla margem de deliberação
sobre as questões afetas à comunidade, a qual, regida por leis democráticas, deve
326
Cf. THAYER, 1893-1894, p. 136 e 142.
117
exercer seu direito de escolha através dos legítimos representantes, e não dos seus
juízes.
E qual seria o problema com essa transposição decisória das questões da
comunidade? A resposta não é trabalhada diretamente por JAMES THAYER, embora
tenha, implicitamente, admitido existir a dificuldade, que reside no caráter
contramajoritário da judicial review. Na linha da premissa aqui assumida, as normas
que regulam a vida da comunidade são aquelas objeto do discurso de justificação, o qual
envolve os mais diversos tipos de questões. A legitimidade, portanto, dessas normas
encontra-se na racionalidade do processo discursivo da formação da opinião e da
vontade política, que contou presumivelmente com a participação de todos os cidadãos,
simultaneamente autores e destinatários das normas. Logo, se a judicial review o se
releva apta a manter a capacidade de autodeterminação dos cidadãos, conseqüentemente
surge a dificuldade contramajoritária que a ela se opõe, conforme denominada por
ALEXANDER BICKEL.
Para o professor da Universidade de Yale
327
, a raiz da dificuldade com a
judicial review é sua força contramajoritária. A counter-majoritarian difficulty decorre
do fato de que a declaração de inconstitucionalidade do ato legislativo, pela Suprema
Corte, priva a manifestação da vontade dos representantes do povo, aqui e agora
considerado. A judicial review exerce controle não em favor da vontade da maioria da
sociedade, mas contra ela. ALEXANDER BICKEL
328
acredita que, além do poder de
revisão sobre atos dos Poderes Legislativo e Executivo, outra dificuldade crucial que
permeia a judicial review. Trata-se da séria tendência ao enfraquecimento do processo
democrático ao longo do tempo, na medida em que a “correção” dos atos legislativos
sempre vem de fora (extrinsecamente), ocasionando a perda de experiência política pela
327
Cf. BICKEL, 1986, p. 16-17.
328
Cf. BICKEL, 1986, p. 21-23.
118
sociedade, de educação moral e de estímulo de luta por corrigir tais atos pelos caminhos
ordinários (político). Aproximando-se de JAMES THAYER, conclui que a judicial review
sempre traz consigo um sério mal (serious evil) à Democracia.
Essas críticas, contudo, são posteriores ao momento em que a prática da
judicial review se consolidara nos Estados Unidos. Torna-se preciso, por ora,
retrogredir à discussão teórica que fundamentou as premissas do controle de
constitucionalidade e que, ainda hoje, são admitidas praticamente como dogmas.
Mencionou-se a influência que a experiência política norte-americana, na
época pré-revolucionária, exerceu na prática judicial que culminou com a consagração
do modelo judicialista, ao longo dos anos. Antes mesmo da sanção da Constituição
norte-americana, à luz das Constituições estaduais, algumas supremas cortes estaduais
já anulavam atos legislativos, por ofensa à norma constitucional
329
.
Dessa forma, o debate em torno da expressa adoção da judicial review
pela Constituição norte-americana não poderia deixar de ter existido. Embora muitos
dos documentos referentes aos trabalhos na Convenção tenham sido perdidos, os
federalist papers legaram à posteridade rico relato sobre os argumentos na defesa do
controle judicial
330
. JAMES MADISON
331
concentrou suas cujas reflexões sobretudo nos
329
Cf. THAYER, 1893-1894, p. 136 e 142; FARBER, 2003, p. 421 e ss; SCHWARTZ, 1993, p. 7-11.
BERNARD SCHWARTZ narra que, durante o período revolucionário, os americanos fundamentavam seus
respectivos direitos nas leis inglesas, que tinham o condão de anular qualquer ato expropriatório.
Enquanto os direitos individuais não eram protegidos pelas leis locais, sempre esteve presente forte
ameaça de violação. A proteção reclamada, finalmente, adviria com as Constituições estaduais escritas,
após o rompimento do vínculo com a “pátria mãe”. No entanto, a simples positivação o se faria
suficiente para a efetivação dos direitos insculpidos nas Constituições; a judicial review emerge como
instrumento último para assegurá-los. Destaca que a primeira vez, no período pré-Constituição, em que
ocorreu o controle judicial foi em New Jersey, em 1780, no caso HOLMES v. WALTON, situação na qual a
lei impunha pena de perdimento das propriedades, mediante decisão do júri composto por seis
integrantes, na hipótese de tráfico.
330
Segundo ROBERT BURT (2000, p. 84-85), os artigos federalistas constituem fontes oficiais de revelação
da intenção dos fundadores, revestindo-se de suma importância na deflagração da concepção que cada um
dos fundadores tinha na convenção.
331
Cf. HAMILTON, MADISON and JAY, 1999, Federalist n.º 10, p. 45 e ss. MADISON definia facção
como grupo majoritário ou minoritário de todos os cidadãos que estavam unidos e mobilizados em busca
de algum impulso de paixão ou de interesse comum, contrário aos direitos dos demais cidadãos ou aos
interesses permanentes e conjuntos da comunidade.
119
modos de conter as tendências “facciosas” das maiorias que, no calor das paixões,
representavam uma ameaça para as minorias, a fim de assegurar igual poder de
influência no sistema político entre os setores majoritário e minoritário
332
.
Diferentemente se houve ALEXANDER HAMILTON, que procurou definir
as atribuições do Poder Judiciário, no que tange à Constituição. No Federalist n.º 78,
HAMILTON defendeu que seria uma necessidade inerente ao sistema democrático
conferir a juízes imparciais a proteção dos direitos da minoria contra o poder opressivo
da maioria, a qual se forma ao sabor de conjunturas particulares e paixões momentâneas
e rapidamente toma forma e inova perigosamente nos rumos do governo
333
. A Suprema
Corte norte-americana seria o centro de autoridade dentro do governo e, como tal,
estaria investida da atribuição de declarar nulas todas as leis contrárias à Constituição.
Sua tese, entretanto, teria de suplantar a discussão sobre se o poder de invalidar normas
implicaria superioridade hierárquica do Poder Judiciário em detrimento do Poder
Legislativo e, correlatamente, se não constituiria forma transversa de desvirtuamento da
vontade popular.
Sem resposta não ficaram seus críticos
334
. Para HAMILTON, o Poder
Judiciário é sempre o menos perigoso para os direitos políticos consagrados na
Constituição (the judiciary will always be the least dangerous of the political rights of
the Constitution), que o tem controle sobre a espada, sobre a força, nem sobre o
332
Ao contrário do que se possa imaginar, consoante historia ROBERT BURT (2000, p. 91 e ss), MADISON
esteve muito mais ocupado com as questões referentes ao desenho geral da estrutura constitucional do
que, propriamente, com a formulação do controle judicial, a respeito do qual se encontram apenas breves
referências, nos papers por ele escritos. Tanto que, no Federalist n.º 50, ele propõe um tipo de “consultas
periódicas” (periodical appeals) para prevenir e corrigir infrações à Constituição, realizadas por um
tribunal regularmente constituído que se reuniria periodicamente, com a finalidade exclusiva de fazer
cumprir a Constituição, sem, contudo, modificá-la (HAMILTON, MADISON and JAY, 1999, Federalist
n.º 50, p. 285-288; BURT, 2000, p. 95).
333
Cf. HAMILTON, MADISON and JAY, 1999, Federalist n.º 78, p. 435-437. Ver também: BURT,
2000, p. 86.
334
Para mais detida análise do tema, veja-se: BURT, 2000, p. 61 e ss.
120
dinheiro da sociedade
335
. Quando anula um estatuto com fundamento na Constituição,
não se sobrepõe ao Poder Legislativo, mas, antes, está a assegurar a prevalência da
vontade e do poder do povo, estampados na Constituição, que é superior a qualquer dos
Poderes.
Conquanto o tenha sido expressamente acolhida no texto
constitucional, a tese de HAMILTON foi consagrada nos fundamentos da célebre decisão
de MARBURY v. MADISON, em 1803, proferida pelo chief justice JOHN MARSHALL
336
. A
propósito, ROBERTO GARGARELLA
337
retratou com argúcia o contexto em que fora
proferida tão marcante decisão, dando especial relevo à força dos argumentos que a
justificaram:
A argumentação apresentada por Hamilton foi logo retomada pelo juiz
Marshall, na citada opinião ‘Marshall v. Madison’, para dizer que ‘há
somente duas alternativas demasiado claras para serem discutidas, ou
a Constituição controla qualquer lei contrária a ela, ou a Legislatura
pode alterar a Constituição mediante uma lei ordinária’, e terminar
defendendo a necessidade do controle judicial sobre as leis
inconstitucionais. Esse tipo de justificação, desde então, passou a
constituir uma das mais sólidas e difundidas defesas do controle
judicial, que em qualquer país onde se aceita a revisão judicial das
leis, recorre-se a princípios similares aos sustentados por Hamilton, e
logo por Marshall, porque quando se pretende o ‘autogoverno do
povo’, e se pretende manter inviolada a autoridade do povo vontade
enraizada na Constituição –, está-se requerendo um órgão capacitado
para revisar a validez das leis.
Mesmo com toda elaboração teórica favorável à judicial review, fortes
críticas não se fizeram cessar quanto à falta de legitimidade do Poder Judiciário, órgão
não democraticamente eleito cujas decies produzem grande repercussão na vida de
toda a comunidade política. Como visto
338
, o conflito entre Democracia e
335
HAMILTON, MADISON and JAY, 1999, Federalist n.º 78, p. 433.
336
USA. MARBURY v. MADISON, 5 US (1 Cranch) 137 (1803).
337
GARGARELLA, 1996, p. 53.
338
No Capítulo III, viu-se que a disputa hermenêutica entre o originalismo e não-originalismo surgiu com
a finalidade de conter a expansão do poder da Suprema Corte e evitar a judicialização da política,
obstando-se o auto-entendimento dos cidadãos como criadores das leis a que eles próprios estão
obrigados.
121
constitucionalismo acirrou-se, porque, na crescente assunção de importância e
atribuições das cortes constitucionais, o Poder Judiciário começou a chocar-se com as
funções que normalmente o atribuíveis ao Poder Legislativo. Mais ainda em países
como o Brasil, onde se adotou o sistema de controle abstrato de constitucionalidade,
pois, nele, é forte a probabilidade de ocorrer sobreposição entre os discursos de
justificação e de aplicação, o que aumenta a tensão entre os Poderes Legislativo e
Judiciário
339
.
De fato, mesmo com as teorias da interpretação constitucional que se
construíram ao longo da evolução do direito constitucional, mesmo com as teorias da
autocontenção judicial, todas com o objetivo comum de preservar o justo equilíbrio
entre os Poderes, a judicial review enfrenta a objeção de que desvirtuaria os parâmetros
em que se funda o Estado Democrático de Direito
340
. Era inevitável a crítica de que os
juízes, ao confrontarem os atos normativos com o texto da Constituição, acabariam por
impor seus próprios valores em detrimento dos valores discutidos e eleitos pelo povo,
através de seus legítimos representantes
341
. As decisões da Suprema Corte norte-
americana vinham caracterizando-se marcadamente pelo conteúdo substantivo,
sobretudo a partir da virada do século XX em que havia imperado a doutrina econômica
do laissez faire, com base na interpretação da cláusula do devido processo legal
342
.
339
É no âmbito do controle de constitucionalidade abstrato de normas que HABERMAS (2001a, p. 313-
316) percebe a intensificação do conflito entre as funções do tribunal constitucional e do legislador
democraticamente legitimado.
340
BICKEL (1986, p. 17-18) é categórico: Mas nada, dentro das maiores complexidades e perplexidades
do sistema, que a ciência política moderna tenha realizado com admirável e engenhoso trabalho, e alguns
dos quais têm tendido a multiplicar com uma fertilidade que ultrapassa o mero zelo do descobridor, nada
nessas complexidades pode alterar a realidade essencial segundo a qual a judicial review é uma instituição
desviante na democracia americana”.
341
Pueril, outrossim, a alternativa encontrada por alguns juristas de caracterizar a judicial review como
simplório exame de compatibilidade entre a norma constitucional e a infraconstitucional questionada
(THAYER, 1893-1894, p. 138); a decisão de (in)constitucionalidade seria singelo ato destituído de
maiores conseqüências políticas. Essa ponderação, segundo HABERMAS (2001a, p. 258), está associada
ao princípio da separação dos poderes, a partir da ideologia liberal.
342
Cf. MELLO, 2004, p. 38. É de se destacar o período denominado “Era LOCHNER” como um dos mais
negros da história da Suprema Core norte-americana. Sobre a Era LOCHNER, veja-se: SCHWARTZ,
1993, p. 190-202.
122
Por outro lado, a conquista do constitucionalismo, que servia de substrato
para o proferimento dessas decisões, e a concepção da Constituição como norma
fundamental e suprema no marco do Estado de Direito o poderiam ser olvidadas. É
imprescindível amarrar numa estrutura estatal sólida e eficiente as duas concepções da
Democracia e do constitucionalismo. A questão, contudo, é: como?
JOHN HART ELY, um dos mais consagrados constitucionalistas norte-
americanos, legou valiosa contribuição para o estudo do controle de constitucionalidade,
ao tentar equacionar Constituição e Democracia, dentro do arranjo institucional e da
prática judicial de seu país
343
. Inaugurou aquilo que FRANK MICHELMAN
344
denominou
ser o primeiro “giro procedimentalista” na teoria constitucional.
JOHN HART ELY
345
percebera que a orientação doutrinária predominante
na academia norte-americana era aquela que propugnava pelo poder de a Suprema Corte
definir o conteúdo das disposições constitucionais abertas, impondo aos demais Poderes
os valores que ela entendesse fundamentais e essenciais. Partindo de uma postura em
certo sentido originalista
346
, porque centrada em profunda análise das disposições
constitucionais positivadas no texto constitucional, de 17 de setembro de 1787, bem
como em posteriores emendas, ELY
347
sustenta que a Constituição o pretendeu
estabelecer qualquer ideologia governamental ou preservar qualquer conjunto específico
343
Em suas próprias palavras, JOHN HART ELY (2002, p. 101-102) professava: “(...) a orientação que
reforça a representação cujo contorno tenho buscado e pretendo desenvolver adiante não é inconsistente
com, mas ao contrário, confere completo suporte ao sistema americano de Democracia representativa. Ela
reconhece a inaceitabilidade da tese segundo a qual juizes indicados e vitalícios refletem melhor os
valores convencionais do que os representantes eleitos, dedicando-se, a sua vez, a controlar os
mecanismos através dos quais o sistema busca garantir que os nossos representantes, efetivamente, nos
representem.”
344
Cf. MICHELMAN, 2000, p. 63 e ss.
345
Cf. ELY, 2002, p. 43 e ss.
346
Cf. ELY, 2002, p. 12-13. Quanto à possível rotulação de sua teoria, ELY respondeu: “Se a posição que
se recomenda é propriamente considerada como uma forma de interpretativismo ou, ainda, é mais
confortavelmente descrita como situada em algum lugar entre uma abordagem interpretativista ou não
interpretativista, isso é uma questão que parece sem resposta e sem importância”. Sobre a feição
originalista de ELY, confira: BREST, 1980-1981, p. 1089 e p. 1092.
347
Cf. ELY, 2002, p. 88-104.
123
de valores substanciais
348
. Sua função, definitivamente, não seria a de imprimir
conteúdo substantivo às disposições constitucionais abertas ou de assegurar valores
fundamentais fixados pelos founders. Ao contrário, em sua visão, as normas
constitucionais estabelecem uma espécie de estrutura durável para a contínua resolução
das disputas políticas (durable structure for the ongoing resolution of policy disputes).
Elas detêm natureza procedimental; são destinadas quase que totalmente às estruturas de
governo. Mesmo aquelas que, à primeira vista, denotem conteúdo substantivo, em
verdade, estão concernidas ao processo. Destarte, ELY esboça uma concepção
procedimental de Constituição compatível com a Democracia, de forma a garantir o
processo democrático e a participação popular na tomada de decisões
349
.
A Suprema Corte, nessa nova perspectiva, deveria atuar como “árbitro”
(outsider) com o escopo de assegurar a representação popular (representation-
reinforcing) na Democracia, porquanto aos representantes do povo é que cabe decidir as
questões fundamentais da vida em comunidade
350
. JOHN HART ELY, então, fundamenta
o controle de constitucionalidade a partir da concepção de Democracia representativa.
Com isso, a função judicial fica restrita à garantia dos direitos de participação no
processo político, contribuindo para que os interesses de todas as pessoas sejam
representados e para que haja igual consideração de cada um deles. A judicial review
teria, ainda, a finalidade de assegurar a não discriminação da minoria pela força
348
Para melhor compreensão de sua proposta, ELY (2002, p. 75-77) recomenda a leitura da ontológica
footnote n.º 4 da decisão, proferida pelo justice HARLAN STONE, no caso UNITED STATES v. CAROLENE
PRODUCTS CO, em 1938. Nela, estava assentado que o tribunal deveria, sempre, intervir para proteger, de
um lado, o bom funcionamento do sistema democrático, especialmente para manter abertos os canais de
participação e de comunicação política e, de outro, as minorias insulares e discretas (discrete and insular
minorities), que podem ser prejudicas pelas maiorias opressoras, especialmente nas leis relacionadas à
religião, nacionalidade e raça.
349
Cf. MELLO, 2004, p. 39-42. CLÁUDIO MELLO resume bem a postura de ELY ao destacar: “Ely realiza
um minucioso exame do texto original da Constituição de 1787 e de suas emendas para tentar demonstrar
que os constituintes tiveram sempre em mente estabelecer princípios e direitos que facilitassem a
participação popular e aprimorassem o regime democrático”.
350
Cf. ELY, 2002, p. 88 e p. 103.
124
opressora da maioria, permitindo-se que o interesse de ambas seja igualmente
considerado
351
.
No entanto, a proposta de JOHN HART ELY chegou ao ponto que ele
próprio pretendera contornar: o juiz não se limita à função de árbitro do processo
político e decide sobre valores fundamentais. Mesmo assim, a análise ora empreendida
deve ter seqüência e procurar esclarecer as limitações da teoria de ELY, preparando o
caminho a ser trilhado por HABERMAS na segunda virara procedimentalista. Dois são os
pontos cuja dissecação interessa. Um reside na meta perseguida pela formulação de
ELY (direito de não ser discriminado). o outro, o principal, relaciona-se com a
assunção do pressuposto tomado Democracia representativa –, que remonta às noções
de teoria política trabalhadas pelos Federalistas, especialmente por JAMES MADISON.
No exame da proposta de JOHN HART ELY, VÍCTOR FERRERES
COMELLA
352
afirma que, em princípio, nenhum problema em proteger os direitos de
participação: o juiz como árbitro do processo político não protege valor fundamental,
mas promove o funcionamento do processo democrático. No entanto, ao arvorar-se da
atribuição de policiar a não discriminação das pessoas, fatalmente, os juízes
transcenderiam o papel de mero árbitro. Com efeito, ELY oferece a interpretação
procedimental do direito a não ser discriminado, isto é, sugere que esse direito propõe-
se única e exclusivamente a que não se menosprezem os interesses de certos grupos de
pessoas durante o processo legislativo. Se os interesses de certos grupos forem
menosprezados ou desconsiderados, as leis resultantes terão ofendido o princípio da
igualdade.
Para JOHN HART ELY, a situação em que há, com maior probabilidade, o
risco de prejudicar determinados grupos, dá-se quando estão em jogo os interesses das
351
Cf. COMELLA, 1997, p. 55 e ss.
352
Cf. COMELLA, 1997, p. 58-68.
125
chamadas “minorias discretas e insulares” (discrete and insular minorities)
353
. Tais
minorias, por serem menos influentes no processo de decisão, estão mais suscetíveis aos
desmandos da maioria, de cujos objetivos divergem completamente em muitos aspectos.
Para ELY, ao se criarem as leis é plenamente compreensível que o grupo minoritário que
recuse unir-se politicamente ao majoritário venha a sofrer com as “classificações
suspeitosas” (suspicious classifications) realizadas pelo legislador. Nessas hipóteses,
elas merecem “elevada atenção judicial” (heightened judicial solicitud), convidando os
juízes a imporem um teste muito estrito, “escrutínio rígido” (special scrutiny)
354
sobre
as leis instituidoras dessas classificações, a fim de aferir se a desigualdade estabelecida
pela maioria se justifica ou se acarreta algum prejuízo injusto à minoria
355
.
que, conforme observou criticamente VÍCTOR FERRERES COMELLA, a
fórmula “minorias insulares e discretas” de ELY contém uma incompletude
intransponível. Ao analisar as razões que ensejaram a classificação suspeitosa,
realizando o teste estrito de constitucionalidade
356
, o juiz necessariamente ingressa no
campo das valorações sobre questões substantivas, extrapolando seu papel de “árbitro”
do processo político. Em conseqüência, conforme observa PAUL BREST
357
, à vista
dessas mesmas considerações, o modelo neutral converte-se num modelo de valores ou
353
As “minorias discretas e insulares” não são definidas claramente por JOHN HART ELY. De toda forma,
discrete significa que a minoria é identificável com facilidade, é autônoma, a exemplo dos negros em uma
sociedade majoritariamente branca. Insular significa que ela tende a se unir ou se manter unida,
formando um conjunto isolado. Em continuação, explica ELY (2002, p. 151-153), retomando a decisão
do justice STONE, que a idéia subjacente a tal noção relaciona-se com a complexidade pluralista por meio
da qual as minorias interagem para proteger seus interesses, moldando a sociedade, e mesmo assim o
sistema de “pactos de defesa mútua” (system of mutual defense pacts”), recorrentemente, mostra-se
inefetivo. É preciso, através dessa perspectiva, identificar os grupos na sociedade cujos desejos e
necessidades os representantes eleitos não tenham aparente interesse em atender.
354
Cf. ELY, 2002, p. 145-148. Para além dos motivos declarados da classificação suspeitosa e dos
objetivos alcançados, o special scrutiny autoriza o juiz a perquirir sobre a efetiva relação de razoabilidade
e necessidade entre a classificação (suspeitosa) e o objetivo perseguido. Assim, através desse juízo estrito
deverá constatar-se se está presente um objetivo substancial e se a classificação se ajusta inequivocamente
ao objetivo proclamado.
355
Cf. COMELLA, 1997, p. 60-63.
356
O teste estrito (strict scrutiny) significa que a lei ou ato do governo que discrimine minorias, para ser
constitucional, deve basear-se em um interesse público muito forte (compelling governmental interest),
não podendo o mesmo objetivo ser alcançado por outros meios.
357
Cf. BREST, 1980-1981, p. 1064-1065 e p. 1093-1095.
126
numa teoria da decisão judicial sobre direitos fundamentais (fundamental rights
adjudication).
Foi mencionado, também, que o principal obstáculo, no que concerne à
sugestão de JOHN HART ELY, reside na concepção pluralista de Democracia
representativa, que para alguns se afigura implausível
358
. Ou seja, diz respeito aos
pressupostos assumidos na implementação do modelo processual de interpretação da
Constituição e de controle de constitucionalidade.
Segundo ROBERTO GARGARELLA
359
, ao desenvolver o modelo de
Constituição procedimental, ELY admite válida a regra da maioria, ao mesmo tempo em
que reconhece sua falibilidade, que deriva do caráter auto-interessado dos
representantes e do risco de eles oprimirem parcelas mais desfavorecidas da sociedade.
Essa noção, cuja base reside na concepção pluralista de Democracia representativa,
remonta às teses desenvolvidas por JAMES MADISON. A idéia central de MADISON
propunha uma espécie de prevenção contra a tirania de certo grupo na sociedade e o
desejo de lograr um equilíbrio entre os segmentos sociais majoritários e minoritários:
esse era o “dilema madisoniano”. ELY, por sua vez, objetivara assegurar uma
Democracia representativa estável, na qual todos os afetados pela decisão tivessem a
possibilidade de expressar seu próprio ponto de vista. Contudo, GARGARELLA,
endossando a crítica de CASS SUNSTEIN, nega que o sistema norte-americano deva ser
considerado como um sistema pluralista de grupos de interesses, no qual os tribunais
devam assumir o papel de árbitro político a fim de manter as condições políticas de
equilíbrio. Nessa linha, ROBERTO GARGARELLA seqüência a seu raciocínio,
identificando cada uma das vulnerabilidades do modelo democrático de ELY
360
.
358
Cf.: GARGARELLA, 1996, p. 148; COMELLA, 1997, p. 65-68.
359
Cf. GARGARELLA, 1996, p. 153 e ss.
360
Cf. GARGARELLA, 1996, p. 155-172.
127
O pluralismo, tal qual concebido no sistema da Democracia
representativa, pretende um tipo de estabilidade política: evitar que o grupo dominante
exerça opressão sobre os demais ou sobre determinada minoria
361
. Mas a suposta
preservação desse equilíbrio é que tem de ser questionada. Conforme já visto, na
concepção da Democracia deliberativa, não importa que haja o equilíbrio entre grupos
de interesses ou de pessoas; o que efetivamente se torna necessário é dar prevalência à
deliberação pública, ao processo de comunicação, ao melhor argumento. Então,
manter-se almejado equilíbrio político, independentemente da valoração dos interesses
em jogo, parece, em último grau, uma conduta não racional, até porque pode ofuscar os
impulsos reivindicativos, discursiva e legitimamente construídos no seio da sociedade.
Essa concepção o se preocupa tanto em assegurar as idéias mais justas
ou em fazer com que as decisões sejam consentidas por todos os futuros envolvidos. O
que leva a crer que a postura subjacente à linha teórica de JOHN HART ELY esmais
preocupada com a expressão de distintas preferências das classes sociais do que com o
361
ROBERTO GARGARELLA (1996, p. 156) critica ELY porque a opção dele não corresponderia à escolha
mais adequada para promover a igualdade. E explica: a visão pluralista de Democracia de ELY é
insatisfatória e contraditória, pois se preocupa mais em impedir o predomínio de uns grupos sobre outros
do que em assegurar o predomínio das idéias mais justas ou valiosas. A fim de manter um justo
equilíbrio entre os grupos majoritários e minoritários, ela fixa um tratamento discriminatório que os
interesses majoritários passarão a ter menos peso do que os demais. O fato de que os argumentos de cada
um dos grupos tenham sido do conhecimento público ou que não tenham sido arbitrariamente excluídos
da conversação não é tão importante quanto a busca do hipotético equilíbrio entre as classes. Cabe
destacar aqui, porém, que MADISON (HAMILTON, MADISON and JAY, 1999, Federalist n.º 10, p. 45-
52) entendia a sociedade norte-americana sob a mira de um tradicional dualismo: o grupo dos
proprietários e credores e o dos menos favorecidos, que integraria o grupo majoritário, cuja tendência
facciosa deveria ser contida. Nesse sentido, é bastante pertinente a advertência de GARGARELLA (1996, p.
33-34): “Ali [nas discussões constituintes norte-americanas do século XVIII], quando se falava de
‘minorias’ se estava fazendo referência a um, e somente a um, dos possíveis grupos minoritários da
sociedade: o grupo dos ‘credores’, ou grandes proprietários. Claramente, ademais, não se estava falando
de um grupo sem ‘poder’ efetivo, mas do núcleo dos mais favorecidos da sociedade”. Com efeito, a
teoria política de MADISON foi concebida no momento em que a população, praticando com mais
intensidade a cidadania, pôde exercer maior influência nas legislaturas locais e tentar modificar o status
quo. Nesse contexto, muitos dos interesses dos grandes proprietários de terras foram contrariados e sua
situação privilegiada estava fortemente ameaçada, o que mobilizou os teóricos de então a forjarem teorias
(elitistas e conservadoras), a fim de defender dita minoria. Vale ressaltar que o viés elitista da
Democracia madisoniana não passou despercebido por ROBERT DAHL (apud GARGARELLA, 1996, p.
34): “a forma de argumentar madisoniana subministrou uma satisfatória e persuasiva ideologia, destinada
a proteger as minorias com riqueza, status e poder, que desconfiavam de seus mais encarniçados inimigos
os artesãos e fazendeiros inferiores em riqueza, status e poder que segundo ele constituíam as
maiorias populares”.
128
conteúdo mesmo de cada uma das pretensões surgidas em meio aos debates,
necessidades e interesses latentes na esfera pública. Isso quer dizer que uma errônea
vinculação de pretensões e interesses distintos a diferentes grupos. Essas pretensões, a
sua vez, têm-se por dadas e naturalmente imbricadas a certo grupo, que permanecem
“congelados” em suas aspirações. Dá-se praticamente uma identificação sica entre
grupos e interesses. Não interessa tanto que os pontos de vista de cada um sejam de
conhecimento de todos, que venham ou não a ser arbitrariamente excluídos da discussão
pública ou que sejam exaustivamente discutidos. Enfim, essa postura não confere a
devida atenção à reflexão pública para construção racional do consenso na sociedade,
através do processo comunicativo de formação da opinião e da vontade política.
Eis que o caminho para a segunda “virada procedimentalista” da teoria
constitucional e do controle de constitucionalidade está preparado.
2. A SEGUNDA VIRADA PROCEDIMENTALISTA NO CONTROLE DE
CONSTITUCIONALIDADE
FRANK MICHELMAN
362
acredita que o segundo giro procedimentalista
veio para suprir a insuficiência do primeiro, lançado por JOHN HART ELY. Segundo
MICHELMAN, ELY não enfrentou a questão de por que não deixar ao processo
democrático decidir os princípios da democracia e suas aplicações? Por que as questões
consideradas democráticas são decididas extrademocraticamente, tendo em conta a
importância moral e prática que possuem para os membros da população? Além do
mais, a teoria de ELY não possui qualquer pretensão universalista, sendo integralmente
ancorada na Constituição e na prática judicial norte-americanas. Em conseqüência,
362
Cf. MICHELMAN, 2000, p. 63-64.
129
ficaria difícil pensá-la dentro da experiência democrática de outros países
363
. Essa
lacuna, entretanto, será preenchida pela teoria de HABERMAS, como se verá a seguir
364
.
HABERMAS trouxe decisiva contribuição para a teoria do direito, ao
publicar, em 1992, Facticidad y Validez. Conferindo sistematicidade a sua concepção
de direito, pôde desenvolver, em acordo com os pressupostos discursivos assumidos,
profunda e sólida teoria da Democracia, com repercussões na filosofia política,
sociologia, direito constitucional, dentre outros ramos do conhecimento. Como visto,
uma das tensões que sempre acompanhou o direito constitucional, como também a
filosofia política, é aquela protagonizada pela Democracia e pelo constitucionalismo. E
esse tema não poderia passar à margem da análise habermasiana. No Capítulo VI de
sua obra, HABERMAS tece profundas considerações sobre a relação entre a Democracia e
o controle de constitucionalidade. Mesmo assim, permanece difícil identificar, com
precisão, os desdobramentos práticos de sua teoria, que está muito mais envolvida
com a filosofia política do que propriamente com o direito constitucional. Em outras
palavras, HABERMAS não esclarece as dúvidas quanto aos limites do controle de
constitucionalidade
365
, embora sinalize com relevantes diretrizes.
Não se podem olvidar, ao exame das considerações habermasianas
quanto ao controle de constitucionalidade, todos os pressupostos tomados pelo filósofo
alemão. Ao longo desta dissertação, insistiu-se em que pensar o controle de
constitucionalidade e o papel que deve exercer o tribunal constitucional exige, antes de
tudo, pensar sobre a caracterização do Estado de Direito e da Constituição.
363
Cf. MELLO, 2004, p. 42 e ss.
364
É interessante observar que HABERMAS não opera uma radical ruptura com o procedimentalismo de
ELY. Ao contrário, ambas as teorias, que partem de modelos de Democracia distintos (representativa e
deliberativa) guardam, em comum, alguns pontos de contato. A propósito, ver: GARGARELLA, 1996, p.
161-172; HABERMAS, 2001a, p. 336 e ss.
365
Em igual sentido, é a observação de CLÁUDIO ARI MELLO (2004, p. 49) e LUIS PRIETO SANCHÍS (2003,
p. 160-162). Por sua vez, BERNHARD SCHLINK (1996, p. 1231-1238), em ácida crítica, ironiza a proposta
de HABERMAS: ser o papel do tribunal constitucional proteger o sistema de direitos, que asseguram
igualmente as autonomias pública e privada, é uma conclusão tão geral e vaga que o traz nenhuma
contribuição relevante aos problemas atuais da jurisdição constitucional.
130
HABERMAS
366
, concordando com JOHN HART ELY, descarta a leitura da
Constituição como um ordenamento jurídico consagrador de valores concretos,
impondo à sociedade certa forma de vida. A Constituição, antes, institui procedimentos
políticos com base nos quais os cidadãos vêem-se aptos a exercer seus direitos de
autodeterminação, permitindo-se-lhes levar adiante o projeto de estabelecer formas
justas de vida. Por instituir condições procedimentais da gênese democrática das leis, a
Constituição se autolegitima e legitima todo o direito estabelecido; e não, por ser um
conjunto de normas que positiva uma ordem de valores compartilhados por toda a
sociedade. De outra forma, não se poderia conceber a legitimidade das normas
constitucionais em relação às gerações futuras, que calçando os sapatos dos
constituintes participam da reconstrução crítica do conteúdo das normas
constitucionais, tornando-se a um só tempo destinatários e autores da Constituição.
É fundamental, destarte, perceber que HABERMAS
367
opõe-se à
compreensão paternalista da jurisdição constitucional
368
, a qual advém, em grande
medida, do receio dos juristas em relação à irracionalidade dos discursos legislativos de
justificação, que seriam vinculados às lutas pelo poder e às opiniões majoritárias
determinadas por emoções e paixões. certo entendimento de base segundo o qual
existiria maior racionalidade nas decisões judiciais (discursos de aplicação) do que das
decisões políticas (discursos de justificação). Entretanto, se demonstrou no Capítulo
II que, em termos normativos, a racionalidade é inerente ao processo legislativo de
justificação de normas. Insistir, portanto, no argumento implica uma tentativa que peca
por comparar a atividade legislativa e judicial, sob perspectivas de observação distintas:
366
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 336-337.
367
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 339-340.
368
Cf. MAUS, 2000, p. 125-156.
131
a legislativa, à luz da faticidade das relações travadas; a judicial, mediante uma visão
normativa e contrafática
369
.
No entanto, HABERMAS afasta-se de JOHN HART ELY em decorrência da
concepção de Democracia adotada. Ao trabalhar com a noção de Democracia
deliberativa, HABERMAS responde às questões suscitadas por MICHELMAN, ao mesmo
tempo em que, mantendo a guinada procedimentalista da Constituição e do controle de
constitucionalidade, pretende suprir as carências da teoria de ELY, bem como insistir na
racionalidade imanente ao processo legislativo
370
.
Diferentemente do que ocorre no pluralismo da Democracia
representativa, a Democracia deliberativa não se satisfaz com a mera expressão das
posições de cada um dos grupos. Para além disso, a necessidade de legitimação das leis
produzidas requer verdadeiros enfrentamentos das questões através do processo público
de reflexão coletiva, deixando-se abertas as avenidas do debate público para o exame e
para a decisão das questões essenciais à vida social sobre os interesses da comunidade.
Esses conflitos que entram em colisão sem perspectiva de chegar ao consenso, de uma
369
Esse, aliás, parece ser o caminho enveredado por RONALD DWORKIN (1993, p. 209-233) que, ao
formular teoria do direito como integridade (2003, p. 213-331), serve-se da figura do juiz ideal
(perspectiva normativa), HÉRCULES, para garantir que nenhum ato legislativo venha a desconsiderar o
direito à igual consideração e respeito dos indivíduos (perspectiva empírica). Sobre a forma idealmente
concebida de interpretação de HÉRCULES, veja-se: DWORKIN, 1993, p. 176-208. Quanto à teoria dos
direitos de DWORKIN, a crítica de HABERMAS (2001a, p. 283 e ss) recai, sobretudo, em dois aspectos: o
caráter ideal de HÉRCULES e o caráter monológico do processo de decisão judicial, sem a presença de
qualquer diálogo.
370
O próprio HABERMAS (2001a, p. 340) reconhece que seu exame sobre a justiça procedimental merece
análises e uma teoria democrática bem mais aprofundadas do que as utilizadas por ELY, como pano de
fundo do projeto procedimentalista. Além do mais, o procedimentalismo do controle de
constitucionalidade funda-se na necessidade de descarregar a atividade judicial da orientação por
princípios de procedência moral e ética, de acordo com a cética leitura que ELY tem da atividade dos
tribunais (2001a, p. 337). Grande dificuldade que enfrenta a teoria de ELY está em restringir seu objeto
aos processos políticos de tomada de decisão (regra da maioria, normas parlamentares regulamentares,
leis eleitorais etc.), sem, contudo, conferir a devida importância às condições normativas de formação
discursiva da vontade. HABERMAS (2001a, p. 561), em seguida, desenvolve as razões de sua assertiva:
“Quanto ao mais, a formação intraparlamentar da vontade somente constitui um pequeno segmento da
vida pública. A qualidade racional do processo de produção legislativa não depende de como
trabalham no Parlamento as maiorias elegidas e as minorias elegidas. Depende também do nível de
participação e do nível de formação dos participantes, do grau de informação e da claridade e nitidez com
que no seio da opinião pública se quedam articuladas as questões de que se trate, em uma palavra: do
caráter discursivo da formação não institucionalizada da opinião no espaço público político”.
132
maneira ou de outra, terminam institucionalizados em leis válidas, que gozam de
presunção de racionalidade e de legitimidade.
Por isso, a proteção das minorias, em si mesma, não integra o núcleo
central das preocupações de HABERMAS, no que tange ao controle de
constitucionalidade. Importa muito mais a qualidade discursiva que as leis venham a
alcançar dentro do processo comunicativo de criação de normas. Ao contrário do que
poderia parecer à primeira vista, não há aí desconsideração pela causa da minoria. Não.
Porque se a legitimação das leis flui ao sabor da qualidade da deliberação pública, isto
é, da racionalidade da argumentação e da discussão em torno das questões nascidas na
esfera pública (formal e informal), não é conditio sine qua non que os interesses
atribuíveis a certos grupos minoritários prevaleçam. O que, de fato, é imprescindível,
isso sim, é que todos os interesses sejam submetidos ao processo de formação da
vontade, prevalecendo aquele detentor do melhor argumento, discursiva e racionalmente
reconhecido
371
.
Por esse modo, é correto perceber que na teoria procedimental da
Constituição, o próprio controle de constitucionalidade também uma giro em termos
de teoria da Democracia, o que ocasiona a apreciação da relação Democracia e
constitucionalismo sob novas perspectivas. A exemplo de JOHN HART ELY, HABERMAS
encontra um caminho por meio do qual a jurisdição constitucional não põe em xeque o
postulado democrático do Estado de Direito, mas, antes, constitui mecanismo de
promoção e preservação desse pilar.
Como é que se institucionalizaria e funcionaria, sob a visão democrática
e procedimental, o controle de constitucionalidade?
371
Conforme visto no Capítulo I, na situação ideal do discurso, cada interesse constitui uma pretensão de
validade. Somente a partir do teste de universalização, uma pretensão de validade universalizável,
reconhecidamente considerada, discutida e consentida por todos (ou pela maioria) atingirá o status de
norma válida e obrigatória, com presunção de racionalidade e legitimidade.
133
Antes de adentrar na caracterização do controle de constitucionalidade
em HABERMAS, é preciso ter em mente a distinção comumente realizada entre o controle
difuso (ou concreto) e o controle concentrado (ou abstrato) de constitucionalidade
372
,
embora para alguns estudiosos essa diferenciação, cada vez mais, perca sua razão de
ser
373
. Grosso modo, o primeiro se caracteriza pelo fato de o controle de
constitucionalidade realizar-se incidentalmente no curso da relação processual, em que
está em jogo lesão ou ameaça de lesão a direito subjetivo de uma das partes envolvidas.
Isto é, afere-se a constitucionalidade da lei com base em sua incidência no caso concreto
em discussão. Consectário lógico, os efeitos da decisão judicial restringem-se às partes
litigantes; não acarretam a revogação da lei, a qual tão-somente deixa de ser aplicada ao
caso específico. Ao passo que no controle abstrato, a fiscalização da
constitucionalidade é independente de qualquer caso concreto, realiza-se em tese sem
referência a qualquer situação concreta da vida. Os efeitos da decisão se impõem contra
todos; as leis objeto da censura por inconstitucionalidade são expurgadas do
ordenamento jurídico, não mais a ele pertencendo
374
.
Conforme ressaltado anteriormente, HABERMAS dedica especial atenção
ao controle abstrato da constitucionalidade, pois, nele, é que as relações entre o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário se estremecem mais delicadamente, no que tange à
teoria da divisão dos poderes
375
. Tanto que HABERMAS
376
não admite as outras
372
A depender do critério escolhido, várias são as classificações dos tipos de controle existente. Entre
outros, confira: CAPPELLETTI, 1999, p. 101-124; CLÈVE, 2000, p. 91-270; BONAVIDES, 1998, p.
272-310, MENDES, 1990, p. 194-272. No Brasil, os termos difuso, concreto, incidental (ou prejudicial)
e subjetivo, de um lado, e concentrado, abstrato, principal (ou por ão) e objetivo, de outro, tendem a
designar apenas dois modos distintos de controle: o primeiro é o exercido por todos os juízes em qualquer
grau (controle difuso); o segundo é praticado exclusiva e originariamente pelo Supremo Tribunal Federal
(controle concentrado).
373
Cf.: MENDES, 2004b, p. 5-31; SEGADO, 2003, p. 55-82. Pela validade da distinção, entre outros,
ver: SANCHÍS, 2003, p. 158-170. Essa distinção será melhor examinada no Item 4 deste capítulo.
374
Sobre os conceitos de “pertinência” e “validade” das normas jurídicas, confira: NEVES, 1988, p. 42-
45.
375
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 313. ANDRÁS SAJÓS (1996, p. 1198-1199) adverte que a ênfase dada, no
pós-guerra, à proteção dos direitos e ao desejo de constitucionalizar a política resultou no controle
abstrato de normas. O resultado atual da performance dos tribunais constitucionais, entretanto, foi além
134
formas de controle de constitucionalidade praticadas na Alemanha
377
, como também as
reputa essenciais à preservação da coerência da ordem jurídica. Revela-se, a partir
dessa perspectiva, que a ausência do caso concreto retira da prestação jurisdicional
todos os elementos fáticos inovadores que, à luz do contexto de apreciação judicial,
fariam com que as razões e os fundamentos (válidos prima facie) legitimados no
processo de justificação política das normas viessem a ser livremente dispostos pelo
Poder Judiciário, que desenvolveria uma atividade legislativa implícita. A passagem, a
seguir, clareia o receio de usurpação de atribuições institucionais
378
:
A circunstância de que o Tribunal Constitucional, do mesmo modo
que o legislador político, fiquem vinculados ‘às disposições
procedimentais da Constituição’ não significa uma equiparação entre
poder judicial e poder legislativo, entendida em termos de
competitividade. Ao Tribunal Constitucional as razões legitimadoras
que têm que tomar sobre a Constituição lhe vêm dadas desde a
perspectiva da aplicação do direito, e o desde a perspectiva de um
legislador que de interpretar, desenvolver e dar forma ao sistema
dos direitos ao perseguir suas próprias políticas. O Tribunal desata e
volta a atar o feixe de razões com as quais o legislador legitima suas
resoluções, com o fim de mobilizá-las em favor de uma decisão
coerente do caso particular, que concorda com os princípios jurídicos
vigentes; mas não pode dispor dessas razões de sorte que sirvam a
uma interpretação, desenvolvimento e configuração do sistema dos
direitos dependentes diretamente do Tribunal e, portanto, a uma
atividade legislativa implícita.
da divisão harmônica e interdependente dos poderes e tem perpetuado um estado latente de confrontação
com o Poder Legislativo, motivo por que o controle abstrato de constitucionalidade tem a característica
intrínseca de afrontar a soberania legislativa.
376
HABERMAS (2001a, p. 313) sabe que muitas das funções cumpridas pelo tribunal constitucional
convergem para sua (auto)compreensão como intérprete último da Constituição. No entanto, deixa
revelar certo incômodo com a concentração de todas essas atribuições em uma única instituição.
377
Sobre o modelo alemão de controle de constitucionalidade, veja-se: MENDES, 2004a; FAVOREU,
1994, p. 63-84; LANDFRIED, 1995, p. 307-324; HÄBERLE, 2001, p. 33-48; WEBER, 1998, p. 53-88.
De acordo com a Lei de 1952, que instituiu o Tribunal Federal Constitucional alemão, existem três
procedimentos de fiscalização da constitucionalidade das leis: o primeiro é aquele em que os tribunais,
uma vez suscitada a controvérsia sobre a constitucionalidade da lei, suspendem o processo e provocam a
manifestação do Tribunal Constitucional Federal sobre a inconstitucionalidade da questão de fundo que,
decidida, vincula todos os demais órgãos (controle concreto); o segundo dá-se através do recurso
constitucional, em que cada cidadão tem o direito público-subjetivo de recorrer diretamente ao tribunal
constitucional sob a alegação de haver sofrido uma violação a direito fundamental ou equiparável, por
parte do poder público (controle concreto); por fim, o último modo de controle de constitucionalidade é o
exercido através de ação direta (controle abstrato).
378
HABERMAS, 2001a, p. 335.
135
HABERMAS
379
, de fato, parece manifestar-se contrariamente ao controle
abstrato de constitucionalidade realizado pelo tribunal constitucional. Na orientação
sedimentada pela lógica da teoria do discurso, seria atribuição própria do Poder
Legislativo dizer se determinada lei é constitucional (ou não) ou se contradiria (ou não)
o desenvolvimento consistente do sistema de direitos; isto é, o controle abstrato de
constitucionalidade seria realizado pelo próprio Poder Legislativo. Seria necessário
configurar auto-reflexivamente o parlamento, dotando-o de capacidade de autocontrole
de sua própria atividade, mediante, por exemplo, a institucionalização de uma comissão
parlamentar, que também seria composta por juristas. O controle abstrato, sem
referência a uma controvérsia concreta, constitui típica função pertencente ao Poder
Legislativo e, por isso mesmo, ainda que em um segundo nível de exame, essa função
por ele deveria ser exercida.
Contudo, HABERMAS
380
se obrigado, por “razões pragmáticas e
político-jurídicas”, a admitir que o controle abstrato, em princípio função afeta ao Poder
Legislativo, pode ser atribuído ao tribunal constitucional, se limitado ao marco da
revisão das leis e à revogação de normas e que não imponha encargos ao legislador.
Nessa conjectura, o controle abstrato de constitucionalidade deve direcionar-se
conforme se extrai dos pressupostos assumidos – à garantia das condições de gênese do
processo democrático legítimo. O controle abstrato da constitucionalidade, segundo
HABERMAS, tem por objetivo a guarda do sistema de direitos que possibilita o exercício
das autonomias pública e privada. A clássica tripartição e interdependência dos
poderes, tributável à tradição do pensamento liberal (LOCKE e MONTESQUIEU)
381
, não
379
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 313-316.
380
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 335-337. Em verdade, HABERMAS (2001, p. 335) afirma que, nessas
condições, poder-se-ia falar em “favor da distribuição institucional de competências que se na
República Federal da Alemanha e nos Estados Unidos”.
381
A evolução da teoria liberal da separação dos poderes de LOCKE e MONTESQUIEU encontra-se bem
retratada por MARCUS FARO DE CASTRO (2005, p. 43-65).
136
mais se amoldaria para justificar e até mesmo criticar a concepção discursiva
382
, que
redistribui as funções institucionais dos poderes dentro do Estado de Direito
383
. O
controle de constitucionalidade, bem assim a Constituição, envolve mais do que a
simples proteção dos direitos subjetivos; impõe muito mais do que um não-fazer ao
Estado em relação ao indivíduo. No atual arranjo de fluxos comunicativos e de
circulação do poder, a autonomia privada é posta em risco pelo poder econômico e
social, e sua primazia depende do modo pelo qual os cidadãos podem exercer seus
direitos de comunicação e de participação. Destarte, o controle abstrato deve promover
o exame do conteúdo das normas em conexão com os pressupostos comunicativos e as
condições procedimentais do processo democrático de sua produção.
Nessa linha, ANDRÁS SAJÓS
384
desenvolve seu argumento sobre o papel
da jurisdição constitucional, à luz do princípio do discurso. A fim de que o direito
continue o projeto de modernidade regulando legitimamente as condutas humanas, o
autor defende que o controle de constitucionalidade deve oportunizar a abertura da rede
de discursos para e pela esfera pública. Assim, o tribunal constitucional deve preservar
as condições necessárias para permitir que as decisões e as opções formadas na esfera
pública prevaleçam politicamente. Essa postura confere forte potencial à jurisdição
constitucional na qualidade de protetora da continuidade do discurso social e de
promotora da participação pública, além de contribuir para gerar sua própria
aceitabilidade social e legitimidade e para reforçar o exercício das autonomias pública e
privada dos cidadãos.
382
Cf. SAJÓS, 1996, p. 1211-1212.
383
Essa advertência, certamente, deve ser entendida em toda sua extensão, principalmente porque, ainda
hoje, o controle de constitucionalidade é justificado pela necessidade de proteção dos direitos da minoria,
numa concepção teórica que moldou pensadores como MADISON e HAMILTON, na Convenção da
Filadélfia.
384
Cf. SAJÓS, 1996, p. 1223-1229.
137
Na salvaguarda das condições de gênese do processo democrático de
formação e de criação das leis, o tribunal constitucional tem um papel restrito
385
, o que
lhe acarreta certa ambigüidade
386
. Mas a restrição a um controle procedimental não
implica uma jurisdição constitucional passiva
387
. Pelo contrário, no marco da
Constituição procedimental, em que se consubstancia o sistema de direitos no qual se
faz valer a conexão interna das autonomias pública e privada, uma jurisprudência
ofensiva seria, mais do que admissível, normativamente requerida no que tange ao
procedimento democrático e à forma deliberativa da formação da opinião e da vontade
política.
Com essa pauta, o tribunal constitucional não pode arvorar-se da
condição de um regente que ocupa o lugar do sucessor no trono em face da menor
idade deste”
388
. É preciso ter bem claro que a jurisdição constitucional procedimental
não coloca o tribunal constitucional na função de estar, permanentemente, definindo e
dizendo o significado das normas constitucionais. O tribunal deve adotar o papel de
“tutor” da cidadania emancipada de intérpretes da Constituição, à luz do olhar crítico do
espaço público-jurídico politizado. Deve, enfim, preservar a participação pública no
processo de especificação das normas constitucionais, de forma que as questões
surgidas e discutidas no espaço público, atingindo os foros formais de discussão e
produção legislativa, não venham a ser vulneradas em sua autoridade e legitimidade.
Especialmente ao tratar dos casos essencialmente controvertidos, em que o papel do
385
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 525 e p. 354.
386
Cf. SAJÓS, 1996, p. 1227. A ambigüidade se caracteriza em razão de que, a depender das
circunstâncias presentes e do contexto apresentado, a jurisdição constitucional tanto pode propiciar a
participação da esfera blica na tomada das decisões, quanto pode funcionar como instrumento inibidor
do poder comunicativo, ao excluir a esfera pública da participação do processo de deliberação mediante a
sobreposição discursiva (judicialização da política).
387
É oportuno lembrar que JOHN HART ELY formulou sua teoria procedimental do controle de
constitucionalidade durante o período da Corte WARREN, apontada como a Corte mais ativista de todos os
tempos nos Estados Unidos. A teoria de ELY, antes de opor-se ao ativismo judicial da Corte, vem
justificá-lo e legitimá-lo.
388
HABERMAS, 2001a, p. 354.
138
tribunal constitucional, na jurisdição constitucional abstrata, deve ser exercido com mais
cautela ainda. Esse tema será objeto de enfrentamento no próximo item.
3. OS CASOS CONTROVERTIDOS, A PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE DAS LEIS E O
CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NO GIRO PROCEDIMENTALISTA
É nas questões altamente controversas que as normas jurídicas, num
paradoxo apenas aparente, parecem deter maior legitimidade democrática. Porque,
consoante visto no Capítulo I, justamente nessas questões é que o consenso se torna
mais difícil de ser alcançado, haja vista as diferentes concepções de cada um dos
envolvidos na situação de fala, de cultura, de religião, enfim, os choques de mundos de
vida de cada cidadão, de interesses e de necessidades. No entanto, a qualidade da
discussão que se trava, em razão da natureza mesma da deliberação, desperta o interesse
popular que se faz ecoar pelos canais de comunicação no interior da sociedade.
Dessa forma, normas que disciplinem a prática do aborto, a eutanásia, a
clonagem, a eugenia ou a instituição de tributos, sem dúvida, estimulam a discussão
pública com muito maior intensidade do que outras leis que tratem de atividades
meramente rotineiras da vida pública e privada. Não se poderia comparar, por exemplo,
a repercussão social de suposta lei a proibir a prática do aborto em toda e qualquer
hipótese em relação a outra que viesse a aumentar o número de cargos em determinada
carreira do Estado. Essa última, em princípio, não despertaria maior mobilização
nacional
389
.
No paradigma procedimental do Estado do Direito, as leis se legitimam a
partir do processo legislativo de deliberação pública. A legitimidade das normas advém
389
Cf.: HOECKE, 2001, p. 415-423; HÄBERLE, 1997, p. 45.
139
do processo argumentativo em que, discutidas as mais diversas razões e pretensões,
prevaleça aquela detentora do melhor argumento. Mas, convém não esquecer, a
legitimidade também se manifesta ancorada na qualidade argumentativa do discurso. O
processo legislativo de justificação de normas desenvolve-se dentro do marco
constitucional vigente, realizando e concretizando a Constituição, do mesmo modo que
o processo judicial de interpretação das normas. Não se limita apenas às questões
jurídicas; contempla, outrossim, as questões morais, éticas e pragmáticas. A par desses
outros aspectos, considerando os anseios surgidos em meio à esfera pública, que é
marcada por um contexto de descobrimento
390
, é de cogitar-se sobre pretensões que,
forjadas no espaço público, podem ser formalizadas em conformidade com a
Constituição.
no âmbito da jurisdição constitucional, o discurso judicial trilha
caminhos mais estreitos. Limita-se, em princípio, às questões jurídicas. Em princípio
porque, eventualmente, ao juiz será necessário reconstruir os fundamentos de
justificação da norma para aplicá-la ao caso concreto
391
. Presume-se, por esse modo,
390
Aqui se entende o sentido de “contexto de descobrimento” de que se reveste a esfera pública informal,
não regulada por procedimentos, onde se formam os cidadãos portadores das opiniões, as quais transitam
livre e abertamente pelas redes de espaços públicos subculturais. Tudo isso se perfaz numa forma de
comunicação não restringida, em que discursos de auto-entendimento, de identidade coletiva,
interpretações de interesses e necessidades fluem espontaneamente a formarem opiniões públicas
informais de cujo afluxo depende a formação da opinião e da vontade política, formalmente estruturada
(HABERMAS, 2001a, p. 384-385).
391
HABERMAS (2001a, p. 335) aceita a possibilidade de reconstrução das razões das normas justificadas
pelo Poder Judiciário, desde que com o objetivo de decidir o caso concreto e que não importe uma
atividade legislativa implícita, pois o exercício da jurisdição não pode programar-se a si mesmo, em
atenção ao “princípio da vinculação da justiça ao direito vigente” (HABERMAS, 2001a, p. 241).
Evidentemente, a reconstrução, às vezes, pode incorrer em deturpação da vontade do legislador. O caso
sobre a lei contra queima de bandeiras como forma de protesto ocorrido nos Estados Unidos, retratado por
MARK TUSHNET (1999, p. 59-65), ilustra bem a hipótese. A Suprema Corte anulou lei do Texas que
proibia a queima de bandeiras. A Suprema Corte, com base na “doutrina da liberdade de expressão” (free
speech doctrine), considerou que o governo não poderia bani-la, ainda que veiculada de modo impactante
(communicative impact) ou para promover algum objetivo social. Assim, a tentativa da lei do Texas de
atingir dado objetivo social – o de preservar a bandeira como símbolo da unidade nacional seria
inconstitucional. No entanto, a Corte sinalizou para a possibilidade de editar-se constitucionalmente uma
lei anti-queima, desde que destinada a preservar a integridade física da bandeira”, porquanto não teria
qualquer relação com a restrição à liberdade de fala. Consultados diversos constitucionalistas, inclusive
os de orientação liberal, e limitando-se aos parâmetros definidos pela decisão da Suprema Corte, foi
editada nova lei a fim de proteger a integridade física, tipificando-se as condutas de mutilar, desfigurar,
140
ser o parlamento o lugar mais apropriado para o tratamento normativo dos problemas e
das divergências surgidos no interior da sociedade, dada a riqueza dos argumentos em
trânsito, em busca da formação racional do consenso sobre os mais diversos aspectos do
mundo da vida
392
.
Nas hipóteses das questões essencialmente controvertidas, começam a
surgir os embates entre as forças antagônicas de cada participante do discurso que, na
defesa legítima de seus interesses, objetivam ver suas pretensões de verdade
universalmente validadas. que o discurso de justificação, que chega a termo com a
finalização do processo legislativo, nem sempre angaria o consenso por parte de todos
os envolvidos. Observe-se que para solver o impasse o processo legislativo é
institucionalizado com a adoção do princípio majoritário (regra da maioria)
393
, em face
das necessidades cotidianas em resolver os conflitos sociais com urgência. A sociedade
não pode discutir temas indefinidamente; uma necessidade institucional de decidir.
Não obstante, a presunção de racionalidade do processo legislativo não é afetada,
porque tais limitações associam-se com o caráter discursivo do processo
394
. Os
pressupostos que configuram a situação ideal de fala permanecem indenes: todos os
manchar ou queimar a bandeira dos Estados Unidos. Chegando novamente o caso à Suprema Corte,
escrevendo pela maioria, o justice WILLIAM BRENNAN considerou-a inconstitucional. Admitiu que o ato
protegeria sim a integridade física da bandeira, mas a verdadeira razão dele não era tornar em algo
especial uma bandeira como “pedaço de pano”, e sim a de que o governo ainda pretendia preservar a
bandeira como símbolo da nação. A real intenção do governo, portanto, segundo a Corte, estaria
relacionada com a liberdade de fala. Esse é apenas um dos casos em que TUSHNET ilustra como o
Judiciário se projeta (judicial overhang) sobre o Congresso e a sociedade, distorcendo os objetivos
perseguidos por estes, fazendo incutir-lhes outros diferentes daqueles efetivamente almejados. Situação
similar ocorreu no Brasil. Até a edição da Emenda Constitucional n.º 20, de 1998, a jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal admitia a cobrança da contribuição de seguridade social sobre os proventos
dos servidores blicos inativos e pensionistas. Com as substanciais modificações da ordem vigente,
entendeu a aquela corte que não mais subsistia a matriz constitucional para legitimar tal exação (ADI n.º
2.010-2 MC/DF, em especial o voto do relator, Min. CELSO DE MELLO). Editada a Emenda
Constitucional n.º 41, de 2003, para introduzir a matriz constitucional judicialmente reclamada, o Min.
CELSO DE MELLO, afastando-se da posição assumida, sustentou sua inconstitucionalidade ao argumento
de que ela teria vulnerado a intangibilidade do direito adquirido e o princípio da proibição do retrocesso
em matéria de direitos fundamentais sociais.
392
Por esse motivo, VICTOR FERRERES COMELLA (1997, p. 165 e ss) aponta a maior racionalidade
(“epistêmica”) do discurso legislativo fundado na regra da maioria, sob o ponto de vista epistêmico,
porque no processo democrático os participantes têm direito à voz e ao voto.
393
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 247 e ss.
394
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 316-317.
141
sujeitos participam do discurso; todos podem problematizar ou manifestar qualquer
afirmação, ou ainda expressar seus pontos de vistas, desejos e necessidades; ninguém
deve sofrer qualquer espécie de coerção
395
. Além do mais, aqueles derrotados no
processo legislativo possuem o direito de a qualquer momento trazer à tona as questões
suscitadas e provocar nova deliberação pública sobre os temas problematizados; não são
compelidos a modificar suas próprias convicções, mas apenas a aceitar factualmente o
resultado, dada a concordância com o procedimento adotado
396
.
O contexto em que, consoante HABERMAS
397
, a racionalidade
procedimental confere legitimidade às decisões políticas, mediante o procedimento
adotado (“legitimidade pelo procedimento”), faz a atenção do estudioso, mais uma vez,
retornar ao problema da judicialização da política: nos casos polêmicos, interpretações
possíveis e contraditórias entre si das normas constitucionais porão em concorrência os
discursos legislativo de justificação e judicial de aplicação. Com isso, dada a própria
configuração do Estado Democrático de Direito e os parâmetros em que se funda, quer-
se afirmar que deve ser dada preferência à vontade popular, a qual se presume melhor
conduzida e expressada pelo Poder Legislativo. Como visto, o parlamento é muito mais
sensível aos apelos populares, além de constituir o ambiente natural de represamento
onde desembocam os fluxos comunicativos surgidos na esfera pública informal.
No controle de constitucionalidade, a deferência ao legislador parece ser
o corolário inarredável no contexto do Estado Democrático de Direito. Se a
legitimidade advém da racionalidade procedimental, a lei por si goza de forte
395
Cf. MÍLOVIC, 2002, p. 273.
396
Assim, permite-se gerar a circularidade que confere legitimidade ao direito, à proporção que a
discussão dos temas relevantes não tem um ponto final. A qualquer momento tais assuntos podem voltar
ao debate público. Nessa linha, expressa-se HABERMAS (2001a, p. 197): “mas o surgimento da
legitimidade a partir da legalidade pode aparecer como paradoxo sob a premissa de que o sistema
jurídico de ser representado como um processo circular que retorna recursivamente sobre si mesmo e
se legitima a si mesmo”. Por isso, justifica-se a preocupação com o caráter das decisões do Supremo
Tribunal Federal que, auto-revestidas de definitividade, interferem fortemente na circulação legitimadora
e na crítica do sistema jurídico.
397
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 316-317.
142
presunção de validade, impondo-se, desde já, obrigatoriamente a todos. Importante
objeção, entretanto, pode ser oposta a essa afirmação: ela partiria da falsa premissa de
que a vontade parlamentar refletiria, fielmente, a vontade popular. Em outras palavras,
haveria verdadeira identificação entre o Congresso e o povo; entre a vontade
parlamentar e a vontade popular. Essa crítica, porém, não tomaria os delineamentos
aqui trabalhados dentro do paradigma procedimental do Estado de Direito.
No Item 4 do Capítulo I, viu-se que a rede comunicativa corporificada na
esfera pública tem o condão de conferir legitimidade às normas jurídicas, em função do
alto grau de influência que exerce na formação da vontade política institucionalizada. É
ainda certo que os fluxos de comunicação gerados na esfera pública também moldam os
discursos produzidos na esfera do Poder Judiciário
398
, porém esses fluxos não atuam da
mesma forma e com o mesmo poder quanto ao Poder Judiciário e aos tribunais
constitucionais, em especial.
Embora não haja identificação entre a vontade parlamentar e a vontade
popular, o Poder Legislativo, por sua própria configuração, está muito mais sensível aos
clamores que perpassam a esfera pública. O parlamento, ainda, é o Poder com melhor
capacidade para refletir e consagrar as pretensões surgidas na sociedade. Confrontando
a performance da jurisdição constitucional com a do parlamento, quanto à abertura à
esfera pública, ANDRÁS SAJÓ
399
afirma que os tribunais constitucionais não se importam
tanto com a esfera pública nem a consideram com o devido grau de relevância, a
porque não têm o dever de fazê-lo. o processo legislativo permite-se mais
intensamente ao poder e à influência da esfera pública, onde se descobrem os problemas
da sociedade
400
. As respostas legislativas, assim, determinam-se primariamente pelos
interesses e pelas crenças dos mais diversos participantes do processo legislativo. Ou
398
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 443.
399
Cf. SAJÓS, 1996, p. 1224.
400
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 365-366.
143
seja, o Poder Legislativo reveste-se de maior aptidão democrática e capacidade na
condução da vontade dos cidadãos, motivo por que seus atos normativos gozam de
elevada dignidade democrática.
Segundo PETER HÄBERLE
401
, o legislador, na qualidade de intérprete da
Constituição, distingue-se qualitativamente do juiz constitucional em função dos
“espaços” de atuação diversamente limitados. Em sua visão, o legislador sofre duas
espécies de controle. O “controle técnico”, exercido pelo tribunal constitucional, e o
“controle o-técnico”, realizado por meio das eleições, pela capacidade de sustentação
das coalizações e pelo processo interno de formação da vontade político-partidária. Já o
juiz constitucional não sofre qualquer espécie de controle técnico. Sua atuação é, de
certa forma, “regulada” pelo espaço público. Mas não no sentido que se lhe vem
emprestando. No caso dos juízes constitucionais, o espaço público exerce um controle
fraco, porque limitado à própria concepção profissional, à sua socialização na ciência do
direito constitucional e à expectativa de conduta profissional a que se encontram
submetidos. Assim, o caráter legitimador que exerce a esfera pública na formação da
vontade política pouca ou quase nenhuma importância possui na elaboração das
decisões judiciais.
Retoma-se a idéia inicial dos intérpretes da Constituição e da pretensa
hegemonia do Poder Judiciário na interpretação da Constituição. Os parlamentares são,
por igual, dela intérpretes
402
. Muitas vezes, a vontade formada no Parlamento, com
base numa determinada interpretação constitucional, é tachada inconstitucional pelo
Poder Judiciário. O que, em princípio, não passaria de uma simples função de controle
e de guarda da Constituição pode muito bem representar algum distúrbio aos postulados
democráticos do Estado de Direito. Porque em temas extremamente controversos se
401
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 26.
402
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 25.
144
pouco provável chegar-se ao consenso em torno de uma única interpretação correta, do
ponto de vista jurídico
403
. O direito, particularmente as normas constitucionais,
enquanto fenômeno lingüisticamente estruturado, não comporta uma transmissão de
sentidos unívocos e precisos. Em se tratando de temas polêmicos, a legitimidade da
norma não se limita a uma questão (exclusivamente) jurídica
404
, pois, em virtude da
natureza mesma do tema discutido, o argumento jurídico se prestará tanto à expulsão do
comando normativo, ao declará-lo inconstitucional, quanto ao reconhecimento de sua
constitucionalidade. E, como visto (Capítulo II), afora outros tipos de questões (éticas,
pragmáticas e morais) que ingressam nos discursos de fundamentação das normas, sua
constitucionalidade e legitimidade está mais além da dimensão semântica; a qualidade
dos argumentos associa-se à dimensão pragmática do processo de fundamentação para
conferir às leis e à interpretação constitucional a coerência exigida em termos de Estado
Democrático de Direito.
No fundo, a decisão do tribunal constitucional não será técnico-jurídica,
porque lançará mão de outros argumentos para formar-se, passando a deduzir os
mesmos argumentos que, em função da distribuição discursiva dos poderes, deveriam
estar adstritos ao Poder Legislativo. Por isso, em tais hipóteses, adverte PETER
HÄBERLE
405
, os tribunais deverão ser extremamente cautelosos na aferição da
legitimidade das decisões do legislador democrático, sobretudo naquelas matérias que
403
A sua vez, HABERMAS incorpora à sua concepção a teoria do direito de DWORKIN, segundo a qual para
qualquer caso difícil existe apenas uma única decisão correta. No entanto, lança o da tese da “única
decisão correta” apenas como “ideal regulativo” (2001a, p. 297); sob a perspectiva dos participantes, não
admitir tal possibilidade significaria incorrer em contradição performativa, pois não faria sentido o
ingresso das pessoas numa situação de fala para chegar ao consenso (HABERMAS, 2002b, p. 314-326).
Entretanto, HABERMAS (2001a, p. 293-301) concebe a única resposta correta num sentido muito menos
exigente do que o de DWORKIN: “a idéia regulativa de uma ‘única decisão correta’ para cada caso não
pode ser elucidada com a ajuda de uma teoria em sentido forte” (p. 298). É dizer, ela não é desejável
como performativamente necessária, mas deve ser associada à falibilidade do processo de aprendizagem,
que se insere no procedimento argumentativo de busca cooperativa da verdade.
404
O sentido emprestado ao termo questão jurídica refere-se à metódica da hermenêutica constitucional
circunscrita à dimensão semântica do discurso, conforme discutido no Capítulo III, Item 2.
405
Cf. HÄBERLE, 1997, p. 44-45.
145
despertam grande interesse da opinião pública. É que, nelas, certamente, a esfera
pública deverá ter tido tamanha influência na processo de criação da norma jurídica que,
além de ser válida (legalidade), a lei nova revestir-se-á de legitimidade. É necessário,
pois, render deferência à “dignidade democrática da lei”
406
e à própria racionalidade e
legitimidade do processo legislativo
407
. A inconstitucionalidade deve ser declarada
pelo tribunal constitucional se a norma resultante do processo legislativo de justificação
é fruto de interpretação jurídica não discursivamente fundamentada. Isto é, se todas as
questões subjacentes à lei, que se controvertem juridicamente, não foram devidamente
contempladas no discurso de justificação, de forma que a inconstitucionalidade
deflagrada pelo tribunal constitucional não houvera sido considerada no âmbito
legislativo. A falta de discussão em torno da compatibilidade da pretensão normativa
com a Constituição é que pode acarretar a situação de violação constitucional
408
.
406
Cf. COMELLA, 1997, p. 36-37. O constitucionalista espanhol VÍCTOR F. COMELLA (1997, p. 141)
reitera a necessidade de se respeitarem os postulados democráticos de um Estado. Defende que a
“presunção da constitucionalidade da lei” só poderá ser afastada com base em argumentação convincente,
em que, efetivamente, reste demonstrada a incompatibilidade da norma infraconstitucional. A declaração
de inconstitucionalidade, portanto, não pode dar-se em uma “zona de penumbra”. Não havendo certeza
sobre a validade ou o da lei, isto é, a persistir a dúvida sobre a “correta” interpretação, deve-se prestar
deferência à vontade do legislador in dubio pro legislatore.
407
No direito constitucional norte-americano, notabilizou-se a teoria da interpretação constitucional
proposta por JAMES THAYER. Contra a tendência expansionista do Judiciário, sobretudo aquela que se ia
anunciando nos Estados Unidos através das supremas cortes estaduais, a proposta de THAYER (1893-
1894, p. 144-149) esteava como standard para declaração de inconstitucionalidade que a lei passasse por
um teste de inconstitucionalidade. o bastaria que a norma contivesse um simples erro (merely
mistake), e sim um erro tão claro (very clear one) que o suscitasse qualquer dúvida razoável
(reasonable doubt) quanto à sua inconstitucionalidade a quem quer que se detivesse no exame da questão,
a qualquer homem razoável. A invalidação da lei democraticamente promulgada se justificaria na
hipótese de se tratar de ato manifestamente inconstitucional (manifestly unconstitutional). Essa era a
forma de preservar a autoridade e respeitabilidade das leis editadas pelo Parlamento, que o freqüente
questionamento, inevitavelmente, tende a retirar a presunção de legitimidade das leis, além de atingir a
competência do Legislativo em determinar preliminarmente as questões constitucionais (1893-1894, p.
135-136 e 142). Embora MARK TUSHNET (2003b, p. 2798-2801) revele que, atualmente, nos Estados
Unidos, poucas são as evidências da repercussão da tese de JAMES THAYER, acredita-se que sua proposta
representa um tímido passo em direção à necessidade de abertura da Constituição, ou seja, de evitar a
monopolização da Constituição pelo Poder Judiciário, bem como de consolidar a autoridade do
parlamento e, em última instância, do povo. Observe-se que, de certa forma, a intenção de THAYER era
conter a já ameaçadora intervenção judicial nos assuntos afetos ao Poder Legislativo.
408
Nesse contexto, é válido lembrar a inclusão, em projetos de leis, de dispositivos legais totalmente
estranhos ao seu conteúdo, conforme anunciado em sua ementa. Tal prática se destina à aprovação de
certas disposições legais sem chamar muita atenção do público e dos próprios parlamentares, em geral
porque se destinam a institucionalizar situações jurídicas incompatíveis com a Constituição. Um bom
exemplo é trazido por LEONARDO AUGUSTO DE A. BARBOSA (2005, p. 198-199) sobre a Medida
146
Por isso, HABERMAS defende o controle abstrato de constitucionalidade
pelo tribunal constitucional em conexão com as condições democráticas de formação da
vontade política. Protege-se o sistema de direitos que possibilita o exercício das
autonomias pública e privada do cidadão. Na passagem a seguir, HABERMAS
409
,
sinteticamente, resume o papel da jurisdição constitucional:
Daí que o Tribunal Constitucional haja de submeter o exame do
conteúdo das normas controvertidas em conexão, sobretudo, com os
pressupostos comunicativos e as condições procedimentais do
processo democrático de produção de normas.
Não deverá a corte constitucional arvorar-se da missão de regente de uma
sociedade que não atingiu sua maioridade ou, ainda, de guardiã republicana de supostos
valores éticos coletivamente compartilhados
410
. Nesse sentido, ratificando posição
anterior quanto ao controle abstrato de constitucionalidade vinculado às condições de
gênese do processo democrático de formação da vontade política, afirma HABERMAS
411
que, somente por esse modo, o tribunal o assumiria o papel de legislador e,
principalmente, seria assegurada a todos a participação no processo político,
consagrando-se o respeito e o exercício das autonomias pública e privada dos cidadãos:
O tribunal não devia aceitar a demanda, e haver deixado a decisão
política ao legislador, se é que o Tribunal Constitucional, conforme a
uma compreensão procedimental de nossa ordem jurídica, há de
entender-se a si mesmo como protetor de um processo de legislação
democrática, é dizer, como protetor de um processo de posição ou
criação democrática do direito, e não como guardião de uma suposta
ordem suprapositiva de valores substanciais. A função do Tribunal é
vigiar por que se respeitem os procedimentos democráticos para a
Provisória n.º 125, em cuja ementa se lê: Institui no Brasil o Sistema de Certificação do Processo de
Kimberley - SCPK, relativo à exportação e à importação de diamantes brutos, e outras providências”.
Nas “outras providências”, adverte, encontrava-se um dispositivo que modificava a Lei federal n.º 10.684,
de 30 de maio de 2003, para prorrogar o prazo de parcelamento de dívidas tributárias em até cento e
oitenta prestações. É inequívoco que tais práticas legislativas não se reconduzem ao exercício da
autonomia jurídica dos cidadãos e devem ser combatidas pela jurisdição constitucional, através de ação
direta.
409
HABERMAS, 2001a, p. 337.
410
Cf. MAUS, 2000, p. 125-156.
411
HABERMAS, 2000, p. 103.
147
formação da opinião e da vontade política do tipo inclusivo, é dizer,
na qual todos podem intervir, sem assumir ele mesmo o papel do
legislador político.
No entanto, quanto ao controle abstrato de constitucionalidade em
relação aos casos difíceis, sua posição evidencia-se um pouco mais esclarecida em
entrevista na qual analisa a repercussão de Facticidad y Validez e elucida alguns pontos
mal-entendidos da obra. Nessa oportunidade, HABERMAS
412
comentou a decisão do
Tribunal Constitucional Federal alemão, que declarara inconstitucional a lei
regulamentadora da prática do aborto, e, sem tomar partido quanto ao conteúdo mesmo
da decisão, discordou desse posicionamento sob o argumento de que o Tribunal não
respeitara a intensa discussão pública travada no seio da sociedade alemã, por quase
quatro anos, deflagrando-se o fenômeno da judicialização da política:
No que concerne à judicialização da política, o Tribunal
Constitucional desempenha, certamente, um desafortunado papel na
medida em que exerce funções de uma espécie de legislador lateral. O
tribunal não deveria confundir a Constituição com uma ‘ordem
concreta de valores’ e, nos procedimentos de controle de normas,
deveria limitar-se a, no essencial, vigiar que a produção do direito haja
tido, em efeito, caráter democrático, é dizer, a vigiar que na produção
legislativa se cumpram efetivamente os exigentes pressupostos
normativos do processo democrático. Se nosso Tribunal
Constitucional pusesse na base de suas decisões tal autocompreensão
procedimentalista, não haveria podido rechaçar, por exemplo, a lei do
aborto que o Parlamento havia aprovado com uma convincente
maioria que abarcara a todos os grupos parlamentares, sob uma
exaustiva preparação discursiva no espaço público político e sob
repetidas e conscientes discussões de todos os argumentos e contra-
argumentos nas próprias filas, ou pelo menos não deveria rechaçá-la
sem aduzir nenhuma outra classe de razões.
Na medida em que o tribunal constitucional não adstringe a fiscalização
da constitucionalidade ao objetivo de assegurar as condições de gênese do processo
legislativo democrático, fatalmente se confunde com uma instância preordenada a
preservar suposta ordem constitucional concretizadora de valores, compartilhada por
412
HABERMAS, 2000, p. 171-172. Sobre o mesmo caso, ver: LANDFRIED, 1995, p. 307-324.
148
toda a sociedade. Arroga-se o tribunal no papel de legislador implícito, pondo em
perigo a racionalidade da administração da justiça
413
. Ao decidir sobre o conteúdo da
decisão política, tomada mediante exaustivo debate público, no qual a questão dos
direitos em discussão foi profundamente abordada em cotejo com o marco
constitucional vigente (A Constituição contempla o direito à vida do feto? O direito à
liberdade individual da gestante autoriza-a a interromper a gravidez indesejada?), o
Tribunal Constitucional Federal alemão substitui-se ao legislador e, principalmente,
termina por suprimir o que mais deveria proteger: as autonomias pública e privada dos
cidadãos que chegaram ao consenso quanto à permissibilidade da prática do aborto.
Ademais, a lei declarada inconstitucional comporta outra leitura, à luz da Constituição,
segundo a qual à gestante estaria garantido o amparo constitucional.
No controle abstrato de constitucionalidade, a declaração de
inconstitucionalidade das leis, conduzidas de modo suficientemente discursivo,
caracteriza a hipótese de judicialização da política, consoante examinado no Capítulo II
desta dissertação. Tendo em vista que o tribunal, em tal modalidade de fiscalização,
declara a inconstitucionalidade com eficácia vinculante e caráter definitivo
414
, sua
decisão que exclui do ordenamento jurídico a lei oriunda de processo discursivo de
formação da vontade política corrói a estrutura democrática do Estado, em razão de
desconsiderar o efetivo exercício das autonomias pública e privada dos cidadãos durante
as práticas deliberativas e de fixar uma única interpretação possível do texto
constitucional, ameaçando a circularidade legitimadora do direito. A não ser assim, não
se teria como preservar a idoneidade do liame que identifica os cidadãos, a um
tempo, como autores e destinatários das normas jurídicas, participantes ativos da própria
interpretação constitucional.
413
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 517.
414
Tal característica dos efeitos da decisão de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato será
mais detidamente analisada no próximo item.
149
Em assuntos como o do aborto, que envolvem as mais profundas e mais
variadas divergências dentro da sociedade, não obstante o processo racional de
justificação de normas busque a formação do consenso por todos os participantes, as
leis resultantes podem não contar com o consentimento de todos. Mas se presumem
racionais e legítimas, porque a qualidade discursiva do debate associada à regra da
maioria conferem às leis tais atributos; não deixam de ser legítimas por contrariarem
certos interesses existentes. Dessa forma, aqueles cujos interesses forem postergados,
isto é, que se considerarem derrotados no processo político da formação racional da
vontade, terão para si a oportunidade de reverter o conteúdo decisório da lei na próxima
rodada, através dos canais políticos pertinentes. O mundo da vida não se fecha para a
discussão de novas e a rediscussão de antigas questões, latentes no seio da sociedade
415
.
Ao passo que a decisão judicial engessa a disciplina do tema sob o estrito argumento da
inconstitucionalidade (questão jurídica), quando, em verdade, o cerne da contenda
transborda e muito o aspecto jurídico (questões morais, éticas, pragmáticas).
Com isso, no giro procedimentalista que a Constituição lhe impõe, a
postura do tribunal constitucional é de contenção, especialmente ao lidar com as
questões altamente controversas. É preciso prestar grande deferência à vontade popular
traduzida, presumivelmente, através da edição das leis. Então, nos casos de grande
divergência jurídica em torno da constitucionalidade da lei, o tribunal constitucional
deve reconhecer e respeitar a racionalidade inerente ao processo discursivo de formação
da vontade política, a fim de oportunizar a efetivação das autonomias pública e privada.
Ao tribunal, cabe não só render homenagem à dignidade democrática da lei, mas
preservá-la para que a presunção de legitimidade permaneça inabalada. É objeto de
antigo diagnóstico por JAMES THAYER
416
o de que a constante impugnação judicial das
415
Cf.: HABERMAS, 2002b, p. 308 e ss; NEVES, 2001a, p. 111-163.
416
Cf. THAYER, 1893-1894, p. 142.
150
leis atinge fortemente sua autoridade, além de inibir o desenvolvimento da capacidade
moral de autodeterminação do povo.
Certo ponto necessita, ainda, de alguma consideração. Foi destacado que
a legitimidade das normas jurídicas direciona-se para além da legalidade. E a
legitimidade está intrinsecamente relacionada com a discursividade do processo de
formação da vontade. As leis o legítimas porque os cidadãos participaram e
influenciaram no processo legislativo de discussão. Em conseqüência, eles se sentem
ao mesmo tempo – autores e destinatários das normas.
No entanto, qual seria a alternativa para o cidadão que não vislumbrasse
legitimidade ou, pior, entendesse lesado em seus direitos a partir do consenso firmado
em torno de um caso controverso
417
? Essa pergunta, mutatis mutandis, seria
equivalente àquela formulada no contexto da democracia representativa segundo a qual
como é que se protegeriam as minorias das maiorias tidas por tirânicas.
No Capítulo I, ao se trazerem os pressupostos necessários à convivência
entre os cidadãos pelo meio do direito, dentro da compreensão procedimental do Estado
de Direito, frisou-se que, entre eles, figurava a acionabilidade dos direitos. Existe a
necessidade de se institucionalizarem procedimentos jurídicos a fim de possibilitar a
cada pessoa que se sinta afetada em seus direitos fazer valer suas pretensões
418
. Eis, ,
precisamente, o caminho pelo qual cada cidadão que se sentir ferido em seus direitos
deverá procurar para resgatar a legitimidade das leis, sem desvirtuar a racionalidade do
processo legislativo democrático de formação das leis ou acarretar a indevida
judicialização da política.
Em outras palavras, o controle difuso de constitucionalidade apresenta-se
como o mais apropriado, na estrutura procedimental do Estado, à satisfação das
417
No limite, HABERMAS (2001a, p. 464 e ss) admite os atos de desobediência civil, alternativa essa que
não guarda pertinência com o objeto da presente investigação.
418
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 188-197.
151
condições das autonomias pública e privada
419
. Uma vez editada a lei conforme o
processo racional de formação discursiva, presume-se a legitimidade da norma. A
respeitabilidade ao processo legislativo que a originou e, em sentido mais amplo, ao
processo político de formação da opinião e da vontade política, impõe aos derrotados o
dever de observarem as leis criadas. HABERMAS
420
é categórico ao declarar que “a
racionalidade procedimental que se atribui a ela [regra da maioria] (associada ao
caráter discursivo dos aconselhamentos precedentes) confere força legitimadora às
decisões da maioria”. Conforme discutido no Item 5 do Capítulo I, não se exige dos
que não tiveram suas pretensões atendidas nessa oportunidade modificarem suas
convicções pessoais para aceitarem o resultado obtido através do processo racional. O
que se há de estabelecer é o respeito às leis e ao seu processo de formação, em nome da
racionalidade procedimental. Em compensação, os canais políticos permanecem
abertos para reverter a decisão na próxima deliberação.
Resta, então, a cada pessoa o direito de resguardar o âmbito privado e o
público de sua autonomia, através da via judicial. Ora, caso entenda que o liame entre
autoria e destinação das normas haja sido rompido com o resultado advindo do processo
político legislativo, ao cidadão cabe socorrer-se ao Poder Judiciário com o objetivo de
impedir a incidência daquele comando normativo que reputa ilegítimo ou
inconstitucional. Nesse estágio, inicia-se o processo discursivo de aplicação que,
amoldadas as circunstâncias particulares do caso concreto, poderá chegar à conclusão de
419
A defender essa perspectiva, no direito brasileiro: OLIVEIRA, 2002, p. 121-176; CARVALHO
NETTO, 2001a, p. 215-232; CRUZ, 2004, p. 246 e ss; BONAVIDES, 1998, p. 294. MARCELO CATTONI
DE OLIVEIRA (2002, p. 124-125) deixa entrever tal possibilidade, na passagem a seguir transcrita: “No
Brasil, como nos Estados Unidos, o quadro é outro. Todo cidadão é intérprete da Constituição, qualquer
cidadão tem o direito de desobedecer a comandos estatais inconstitucionais e qualquer juiz deve
pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade desses comandos. (...) a decisão é o resultado do
reconhecimento institucional de um direito concreto a desobedecer. Quem desobedece uma lei por
considerá-la inconstitucional não é criminoso; tem razões públicas para isso”.
420
HABERMAS, 2002b, p. 317.
152
que, naquela hipótese específica, a lei é de fato inconstitucional
421
. Independentemente
o que de fato importa, no que tange à interpretação constitucional, é que cada cidadão
terá a oportunidade de fazer prevalecer sua própria interpretação da Constituição. Por
esse modo, a interpretação constitucional abre-se à cidadania, não ficando restrita a uns
poucos legitimados que, na maior parte das vezes, lançam mão do controle abstrato de
constitucionalidade como forma de oposição política aos partidos majoritários
422
.
O controle difuso de constitucionalidade, por sua vez, tem a peculiar
feição de impulsionar o status activus processualis
423
, induzindo a propagação das redes
de comunicação no interior da esfera pública, bem como o processo de deliberação das
questões jurídico-constitucionais fundamentais por parte dos cidadãos. Tal perspectiva
atende não aos reclamos da Constituição, em sua dimensão pragmática, como
também levando os cidadãos à participação na construção do significado das normas
constitucionais oportuniza a eles o efetivo exercício de suas autonomias pública e
privada, além de conferir legitimidade às leis e à interpretação constitucional.
Assim, o controle difuso assume transcendental importância no
paradigma procedimental do Estado de Direito, função essa que deve complementar-se
com o controle abstrato. No próximo item, em que se desenvolvem algumas das idéias
aqui suscitadas, aprofundar-se-á a relação entre os controles difuso e abstrato de
constitucionalidade, sinalizando-se para uma tentativa de conciliação da tensão entre
Democracia e jurisdição constitucional.
421
Aqui é interessante lembrar as lições do professor JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES (1996, p. 100).
Destacando que as leis são feitas para aquilo que normalmente acontece (quod plerumque fit), o jurista
recifense assevera que é preciso distinguir a lei perfeitamente constitucional da aplicação inconstitucional
da norma.
422
Veja-se o Capítulo II. Por esse motivo, LUIS PRIETO SANCHÍS (2003, p. 168-169) rejeita ser o controle
abstrato de constitucionalidade um instrumento de defesa do cidadão, porque ele não funciona como
garantia de resguardo do indivíduo contra alguma ameaça a seu direito, no caso concreto.
423
Cf. HÄBERLE, 2002, p. 100-102.
153
4. A SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO E OS CONTROLES DE CONSTITUCIONALIDADE
DIFUSO E CONCENTRADO
se referiu que MARBURY vs. MADISON representa um grande marco
histórico para o direito constitucional, especialmente para o controle de
constitucionalidade das leis. Teria sido essencial, insiste MAURO CAPPELLETTI
424
, à
consagração do princípio da supremacia da Constituição. Fora a primeira vez em que a
Suprema Corte dos Estados Unidos afirmou seu poder com fundamento na
Constituição – de invalidar leis editadas pelo Congresso
425
.
Não obstante os mais de dois séculos decorridos desde a data em que se
apresentou ao mundo, ainda hoje, MARBURY vs. MADISON traz à tona leituras divergentes
quanto ao seu significado e à sua repercussão. Na essência, a controvérsia reside em
determinar se se cuida de uma decisão que inaugurou a tradição de uma prática judicial
assentada na supremacia do Poder Judiciário, a qual pode ser resumida na célebre
passagem do chief justice CHARLES EVANS HUGHES
426
, intencionalmente transcrita no
idioma original: We live under a Constitution, but the Constitution is what the judges
say it is...”. Ou, ao revés, se se trata de caso em que se estabeleceu ser a interpretação
424
Cf. CAPPELLETTI, 1992, p. 47-48.
425
Embora não tenha sido a primeira vez em que se deixou de aplicar uma lei por inconstitucionalidade,
foi o primeiro julgado em que a Suprema Corte dos Estados Unidos asseverou seu poder de recusar
eficácia às leis do Congresso uma vez inconsistentes com a Constituição (TRIBE, 1988, p. 23). BERNARD
SCHWARTZ (1993, p. 22-24), no entanto, destaca três importantes antecedentes da Suprema Corte norte-
americana que, a rigor, não desautorizam a observação do constitucionalista LAURENCE TRIBE. Aduz
que, em 1796, no caso WARE vs HYLTON, e, em 1798, no caso CALDER vs. BULL, a Suprema Corte
americana exercera o poder de revisão da constitucionalidade sobre leis estaduais. E, em HYLTON vs.
UNITED STATES, no ano de 1796, pela primeira vez, teria declarado inconstitucional lei federal instituidora
de tributo, editada pelo Congresso. Entretanto, nesse caso, a Suprema Corte não enfrentou a delicada
questão sobre se teria ou não o poder de revisar atos parlamentares do Congresso norte-americano. O
voto do justice CHASE (apud SCHWARTZ, 1993, p. 24) reflete como a Corte se esquivara do confronto
com o Poder Legislativo: “é desnecessário, nesse momento, para mim, determinar se esta Corte possui
constitucionalmente o poder de declarar um ato do Congresso nulo, o qual se faz contrário e em violação
à Constituição”. Assim, conforme arremata BERNARD SCHWARTZ (1993, p. 41), MARBURY vs. MADISON
foi o primeiro caso em que a Suprema Corte estabeleceu seu poder de controlar a constitucionalidade das
leis.
426
Apud MICHELMAN, 2003, p. 579.
154
constitucional atribuição do Poder Judiciário; porém, a interpretação judicial não se
sobrepõe às demais leituras constitucionais realizadas noutros Poderes (Executivo e, em
especial, Legislativo), nem as exclui. Em resumo, o cerne da questão consiste em
definir a quem pertenceria a atribuição de dar a última palavra, em matéria
constitucional
427
.
Segundo FRANK MICHELMAN
428
, a tradição constitucional norte-
americana cultivou uma forte atração – não fatal, mas tampouco saudável – em torno do
controle judicial: a Suprema Corte jamais cometeria um erro de interpretação.
verdadeira convicção quanto à sua infalibilidade, justificando a excessiva autoridade a
ela deferida. Essa estranha e poderosa concepção da judicial review decorreria do
“mito” sobre o qual se assentaria quase todo o direito constitucional norte-americano, de
acordo com MICHEAL PAULSEN
429
. Mito porque, desde MARBURY, os acadêmicos
passaram a inferir que o controle de constitucionalidade corresponderia ao poder de a
Suprema Corte decidir o significado da Constituição e de derrubar leis que considere
inconstitucional.
E o mito continua. A judicial review atua na qualidade de fiscal máximo
dos outros poderes governamentais, além de constituir a única instituição, sem paralelo,
capaz de aprimorar as características da Democracia constitucional. Sucede que a
Suprema Corte reúne em si tamanha autoridade, que sua interpretação da Constituição é
considerada um dos pilares da ordem constitucional norte-americana. Mas, ao contrário
dessa mitologia que envolve MARBURY, para MICHEAL PAULSEN, o poder do controle de
427
É nesse ponto crucial, numa sociedade marcada pelo pluralismo e pelo dissenso, que JEREMY
WALDRON (1993, p. 31 e ss) a necessidade de complementar-se a teoria democrática com a teoria da
autoridade. É dizer: em face de interpretações conflitantes sobre os direitos é preciso determinar quem
tem o poder de decidir ou através de que processos as decisões devem ser tomadas, pois a teoria da
autoridade impõe o dever de aceitar decisões das quais discordamos.
428
Cf. MICHELMAN, 2003, p. 579 e p. 593.
429
Cf. PAULSEN, 2003, p. 2706 e ss. Em tom jocoso, o professor da Universidade de Minnesota
anuncia o mito: “Há muito, muito tempo atrás – 1803, para tentar ser preciso no famoso caso MARBURY
vs. MADISON, a Suprema Corte dos Estados Unidos criou a doutrina da judicial review”.
155
constitucionalidade jamais fora concebido por seus proponentes ou pelos defensores da
Constituição como um poder de supremacia judicial sobre os demais Poderes ou como
poder com plena exclusividade na seara da interpretação constitucional
430
.
FRANK MICHELMAN
431
demonstra que a defesa do controle de
constitucionalidade não implica, de si, a assunção da supremacia judicial, ou seja, de
postura excessivamente concessiva à Corte. Não se infere da judicial review o
pressuposto de que o Presidente da República ou o Congresso estariam obrigados a,
pacificamente, aceitar as teses da Suprema Corte em relação aos limites da competência
de cada um dos Poderes para decidir sobre o conteúdo ou o sentido das normas
constitucionais. Tampouco se extrai o dever de esses Poderes submeterem-se às
decisões judiciais, cuja natureza controvertida não induz à conclusão de que a
Constituição tenha reservado ao Poder Judiciário a última palavra em relação a elas.
Importa observar que a interpretação da Constituição não é tarefa
exclusivamente reservada ao Poder Judiciário, muito menos ao tribunal constitucional.
O precedente de MARBURY vs. MADISON contribui negativamente para disseminar a idéia
em contrário, pois, a partir dele, vem-se entendendo erroneamente que a interpretação
constitucional da Suprema Corte prevaleceria sobre as demais interpretações dos
Poderes Executivo e Legislativo e dos demais atores sociais. Essa é uma proposta que
agride diretamente a concepção de Constituição aberta e a própria função da
Constituição, no paradigma procedimental do Estado de Direito, que conclama todos os
cidadãos a participarem da construção do sentido das normas constitucionais (Capítulo
430
Mesmo se se considerar a judicial review uma instituição inevitável dada a necessidade de
interpretação e de aplicação das normas, recomenda-o JEREMY WALDRON (1993, p. 42-43), não se deve
concluir que outras instituições não detenham o mesmo poder. Outrossim, a vigência da Constituição e a
supremacia constitucional não pressupõem a supremacia judicial: ambas são concepções distintas. A
força normativa da Constituição de ser concebida para além da alçada dos tribunais, isto é, a partir de
uma relação sistemática entre os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo e a própria sociedade. Nesse
sentido, ver também: DUARTE et al., 2005, p. 43-50.
431
Cf. MICHELMAN, 2003, p. 594-598.
156
III). Ademais, sequer pode a suposta supremacia judicial ser atribuída como consectário
lógico da decisão do chief justice JOHN MARSHALL
432
.
Com efeito, em exame analítico do voto de JOHN MARSHALL, MICHEAL
PAULSEN
433
constata que nada seja na linguagem, seja na lógica da argumentação –,
nada na Constituição norte-americana implica a supremacia do Poder Judiciário sobre
os demais
434
. Nada em MARBURYsuporte ao moderno mito da supremacia judicial na
interpretação da Constituição. Ao invés, o caso paradigmático se apóia no postulado da
separação dos poderes, com o qual a supremacia judicial não se compadece e através do
qual se ratifica a supremacia constitucional. Falar em supremacia constitucional
significa, nesse contexto, atestar verdadeira independência da interpretação
constitucional, ou seja, assegurar que a interpretação não será controlada pelas decisões
judiciais da Suprema Corte. Destarte, o mito de MARBURY teria, injustificadamente,
corrompido aqueles defensores da supremacia judicial. Injustificadamente porque a
decisão de MARSHALL assenta-se em três argumentos centrais, os quais não cogitam de
qualquer preeminência judicial
435
.
432
SANFORD LEVINSON (2003, p. 569-570) concede interessante depoimento sobre a repercussão negativa
de MARBURY na formação jurídica norte-americana. No artigo denominado Why I do not teach Marbury,
dentre outros motivos que justificaria sua postura anti-MARBURY”, denuncia que a ênfase dada a esse
caso contribui para instilar a vulgar noção do Realismo Jurídico, que pode ser sumarizada na passagem de
CHARLES EVANS HUGHES: a Constituição é o que os juízes dizem que ela é”. Admite, assim, que
aderência à supremacia judicial pode não ser fruto das características intrínsecas de MARBURY, porquanto
os propósitos de JOHN MARSHALL teriam sido bem mais modestos, o que se evidenciaria pelo completo
exame do contexto histórico-político que circundava o leading case.
433
Cf. PAULSEN, 2003, p. 2708-2724.
434
Aliás, para MICHEAL PAULSEN (2003, p. 2708), esse entendimento decorre do pensamento de JAMES
MADISON, manifestado no Federalist n.º 49. É interessante perceber que o direito ao autogoverno pelo
povo assenta-se na fundamentação do voto de MARSHALL. Logo, assumir o pressuposto da supremacia
judicial violaria o autogoverno do povo, que não mais teria como estabelecer seus próprios princípios que
julgam mais conducentes ao bem-estar de cada um (2003, p. 2712-2713). Em sentido contrário, vide:
ALEXANDER and SCHAUER, 2000, p. 455-482. Apoiando-se na filosofia hermenêutica, LARRY
ALEXANDER e FREDERICK SCHAUER contestam o argumento da inexistência de expressa previsão
constitucional a instituir o controle judicial das leis. Para esses dois autores, o que efetivamente importa é
a prática atual consolidada pela tradição judicial norte-americana na qual se sobressai a supremacia
judicial, porquanto não há sentido em falar-se de Constituição e de sua supremacia caso não se pudesse
efetivá-la pelo Poder Judiciário, a quem cabe interpretá-la e dizer o que ela é em última instância.
435
O ponto de partida de MARSHALL foi a supremacia constitucional, que é inerente à natureza da
Constituição escrita, mas não deriva de nenhum comando normativo específico. Em segundo lugar,
intuíra que havia a independência de interpretação entre os Poderes, que flui da própria supremacia
157
Inquestionável, então, como observa MARK TUSHNET
436
, haver ao menos
duas leituras possíveis de MARBURY vs. MADISON, com base nas quais se chega a
conclusões opostas. A primeira delas a que se refere tão-somente à efetiva tarefa da
Suprema Corte (interpretar a lei, concluindo por sua constitucionalidade ou
inconstitucionalidade, reconhecendo a supremacia da Constituição), independentemente
de sua correlação com os outros dois Poderes deve ser mantida a fim de preservar a
supremacia constitucional. A segunda leitura, entretanto, além de reafirmar a
supremacia da Constituição, estabelece a da Suprema Corte. Ou seja, a interpretação
constitucional da Suprema Corte faz-se excludente e prevalecente sobre qualquer outra
manejada pelos demais Poderes, porque interpretar normas constitui atribuição própria
do Judiciário. Esse entendimento, todavia, conduz à idéia “antidemocrática” de
interpretação constitucional, em razão de que tem o efeito prático de concentrá-la
sobremodo no Poder Judiciário, especialmente no tribunal constitucional, e de
subestimar as interpretações dos demais atores sociais.
No Brasil, o arranjo institucional do controle de constitucionalidade, a
cada dia, parece propiciar a consagração de uma prática judiciária fundamentada na
supremacia judicial
437
. Numa perspectiva empírica, vê-se que a cultura jurídica tem
consolidado a noção de que ao Poder Judiciário cabe dizer a última palavra em matéria
constitucional
438
.
constitucional e implicitamente da separação dos poderes. Por fim, a obrigação de tolerar ou suportar a
Constituição requer que o intérprete tenha um recurso direto e imediato a ela. Essas três razões ofertadas
por MARSHALL permitem concluir que o poder do controle judicial dos atos legislativos não firma
qualquer situação de precedência em favor do Poder Judiciário.
436
Cf. TUSHNET, 1999, p. 7.
437
Cf. ADEODATO, 2003, p. 86 e ss.
438
Vale conferir alguns dos votos proferidos na ADI n.º 2.797-2/DF. Em sua fundamentação, o Min.
CELSO DE MELLO afirmou que o Supremo Tribunal Federal reveste-se da “condição de intérprete final da
Constituição”, motivo pelo qual somente a ele cabe proceder à construção exegética do alcance e do
significado das cláusulas constitucionais que definem sua competência. Na mesma ação, o Min.
SEPÚLVEDA PERTENCE considerou: “lei ordinária que se limite a pretender impor determinada inteligência
da Constituição é, por isso, formalmente inconstitucional. Tanto pior se, de sobra, contraria a
jurisprudência do Supremo Tribunal: aí, é claro, haverá indício veemente de inconstitucionalidade
material, salvo recuo da Corte”. Segundo o Ministro, vício em qualquer lei cujo propósito seja
158
O sistema de controle de constitucionalidade adotado no Brasil é o
misto
439
. Aqui se acolheu tanto o modelo difuso (americano) de controle de
constitucionalidade, quanto o modelo concentrado (austríaco)
440
. Nessa configuração,
três principais características apartam cada um desses sistemas, na linha das
considerações aduzidas no Item 2 deste capítulo. A primeira é que o controle difuso
realiza-se a partir de um caso concreto, em que os interesses das partes envolvidas
conflitam. o concentrado é exercido em abstrato, sem qualquer interesse subjetivo
em jogo, independentemente de um suporte fático. Resulta que o efeito da decisão no
primeiro limita-se às partes litigantes
441
, enquanto no último abrange todos os
interpretar a Constituição (como se todas as leis não resultassem de interpretação constitucional). E, mais
adiante, o Min. SEPÚLVEDA PERTENCE defendeu: “Quando (...) a lei interpretativa da Constituição acresça
o [vício] de opor-se ao entendimento da jurisdição constitucional, às razões dogmáticas acentuadas se
impõem ao Tribunal razões de alta política institucional para repelir a usurpação pelo legislador de sua
missão de intérprete final da Lei Fundamental. (...) Quando, ao contrário, a lei ordinária (ou o ato de
governo) é que pretendem inverter a leitura da Constituição pelo órgão da jurisdição constitucional, o
pode demitir-se este do seu poder-dever de opor o seu veto à usurpação do seu papel. (...) Admitir
pudesse a lei ordinária inverter a leitura pelo Supremo Tribunal da Constituição seria dizer que a
interpretação constitucional da Corte estaria sujeita ao referendo do legislador, ou seja, que a Constituição
como entendida pelo órgão que ela própria erigiu em guarda da sua supremacia –, constituiria Lei
Suprema na medida da inteligência que lhe desse outro órgão constituído, o legislador ordinário, ao
contrário, submetido aos seus ditames”. É de se ressaltar ainda o voto do Min. EROS GRAU que não
deixou de registrar ser o Supremo Tribunal Federal o detentor da última palavra em matéria de
interpretação constitucional, conquanto o negue aos juízes (controle difuso) e ao legislador ordinário a
condição de intérpretes autênticos da Constituição. E, na seqüência, apresentou a única hipótese em que o
legislador ordinário pode divergir da orientação seguida pelo Supremo: “exclusivamente quando não se
tratar de hipóteses nas quais esta Corte tenha decidido pela inconstitucionalidade de uma lei, seja porque
o Congresso não tinha absolutamente competência para promulgá-la, seja porque contradição entre a
lei e um preceito constitucional”. Dentro dessa mesma compreensão, na ADI n.º 2.223-7 MC/DF, o Min.
NELSON JOBIM recordou: “Quero lembrar o seguinte: somos os únicos da República, conforme dito várias
vezes aqui, que podemos errar por último”.
439
Cf.: CLÈVE, 2000, p. 71 e ss; BARROSO, 2004, p. 60 e ss; BONAVIDES, 1998, p. 293 e ss.
Aprofundar o exame das formas de controle de constitucionalidade, definitivamente, não constitui um dos
objetivos desta dissertação, fato ressaltado na Introdução. O escopo aqui perseguido é perceber as
ligações entre as formas de controle de constitucionalidade em conexão com o exercício da autonomia
pública e privada dos cidadãos.
440
Conforme destacado em nota de rodapé anterior, embora afetos a diferentes critérios de
classificação, o controle difuso e o incidental (por via de exceção ou de defesa) representam o mesmo
modo de exercício da jurisdição constitucional; igualmente, o controle abstrato e o concentrado. É que
essa correlação se aplica ao Brasil, onde “a fiscalização difusa é desencadeada incidentalmente (por via
de exceção ou de defesa), sendo certo que a concentrada é provocada por via de ação (principal)”
(CLÈVE, 2000, p. 75 e ss).
441
Sobre a “vocação expansiva” das decisões constitucionais em controle incidental, vide: ZAVASCKI,
2001, p. 25-39. TEORI ALBINO ZAVASCKI argumenta que a decisão do Supremo Tribunal Federal, em
sede de controle difuso, possuiria uma “eficácia reflexa” porque seus efeitos se transmitem (refletem)
para além do caso julgado. Também GILMAR FERREIRA MENDES (2004b, p. 5-31) reconhece que a
decisão em controle difuso tem “efeito transcendente” ao caso concreto. Em sua visão, a necessidade de
notificação do Senado Federal para suspender com eficácia geral os efeitos da norma (art. 52, X, da
159
concernidos pela norma (eficácia geral e contra todos, erga omnes), equiparando-se o
tribunal a um “legislador negativo”, conforme se tem tradicionalmente denominado
442
.
Essa segunda característica é que causa maior aproximação e tensão entre as funções
normalmente atribuíveis ao Judiciário e ao Legislativo.
Na modalidade concentrada do controle, além da eficácia erga omnes, a
decisão tem caráter vinculante e definitivo. O efeito vinculante para os demais órgãos
do Judiciário e para o Poder Executivo é previsto no art. 101, § 2º, da Constituição da
República de 1988 e implica que o entendimento consagrado pelo Supremo Tribunal
Federal não será contrastado por nenhum juiz ou tribunal nem por qualquer membro
integrante do Executivo. A definitividade, por sua vez, significa que os efeitos da
decisão judicial são atingidos pela autoridade da coisa julgada material
443
e não mais
podem ser modificados, salvo nas hipóteses de significativas mudanças dos
fundamentos de fato ou das concepções jurídicas dominantes. A decisão submete-se à
cláusula rebus sic stantibus
444
, ou seja, permanece inalterável enquanto persistirem os
fundamentos fáticos e jurídicos com base nos quais foi proferida.
A questão se singulariza ao se tratar da aplicabilidade de tais atributos da
decisão judicial ao Poder Legislativo e da possibilidade de alterar a decisão judicial
Constituição Federal de 1988) seria dispensável, o que constituiria um caso clássico de autêntica reforma
da Constituição sem modificação expressa do texto. A decisão do Senado, assim, limitar-se-ia, apenas, ao
efeito de publicidade.
442
Cf. KELSEN, 1999, p. 27-42. De fato, GILMAR FERREIRA MENDES (2004a, p. 329), apoiado na
doutrina alemã, refere-se à “força de lei” da decisão de inconstitucionalidade, que se reveste de eficácia
cassatória. É importante lembrar que, na linha da crítica oferecida por MARCELO BORGES DE MATTOS
MEDINA (2004, 133 e ss), a decisão de inconstitucionalidade atinge a norma jurídica extraída do texto,
embora o Supremo Tribunal Federal declare o próprio texto legal inconstitucional, por razões de
segurança jurídica. Para além desses relevantes aspectos, percebe-se que as modernas técnicas de decisão
constitucional em controle abstrato não mais convalidam a concepção kelseniana do legislador negativo.
Para uma abordagem ampla do tema, vide: MEDEIROS, 1999, p. 289 e ss. Tendo em vista que as
técnicas de decisão no controle de constitucionalidade, especialmente as sentenças aditivas e
manipulativas que operam sobre as interpretações de uma disposição e sobre a própria disposição, LUIS
PRIETO SANCHÍS (2003, p. 167-169) o hesita em concluir que o sistema de controle abstrato poderia
desaparecer sem que o modelo de garantias sofresse alguma deterioração irreparável, ao tempo em que se
obteria um ganho para a dignidade democrática da lei e do parlamento.
443
Cf. MEDEIROS, 1999, p. 791-797.
444
Cf.: MENDES, 2004a, p. 331-333; MEDINA, 2004, p. 133-139.
160
através de decisões políticas (leis e emendas constitucionais), isto é, de sua
reversibilidade
445
. A Constituição da República de 1988 não prevê expressamente a
vinculação do legislador às decisões de inconstitucionalidade em sede abstrata, motivo
por que não se impede a reedição de outra lei com o mesmo teor, a qual podeser
novamente desafiada no Supremo
446
. Mesmo assim, a palavra final permanece no Poder
Judiciário, que solucionará definitivamente a controvérsia. Entretanto, é facultado ao
Congresso Nacional promulgar emendas à Constituição a fim de reverter a interpretação
judicial nas matérias não contempladas por cláusulas pétreas
447
. Nessa hipótese, a
última palavra ficaria com o Poder Legislativo
448
, que através da emenda altera
substancialmente o fundamento jurídico da decisão (parâmetro constitucional)
desbancando a autoridade da coisa julgada. Em se tratando de matérias que integram o
núcleo imodificável da Constituição, isto é, protegidas por cláusulas pétreas, em
445
Cf. MEDEIROS, 1999, p. 819 e ss. Em discrepância da doutrina majoritária portuguesa, RUI
MEDEIROS considera que a decisão de inconstitucionalidade não acarreta uma proibição contra a
renovação da norma declarada inconstitucional, o obstante a nova lei possa ser objeto de nova
declaração de inconstitucionalidade.
446
É de se destacar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Agravo Regimental na
Reclamação n.º 2.617-5/MG, na qual afirmou que a eficácia geral de sua decisão o se estende contra o
Poder Legislativo, o qual pode reeditar o ato com idêntico conteúdo ao declarado inconstitucional, sem
ofender a autoridade da decisão judicial. Embora afirme o Supremo Tribunal que o Poder Legislativo não
está vinculado à decisão judicial, ele se auto-proclama o detentor da última palavra em matéria
constitucional, sobretudo em matérias ligadas aos direitos fundamentais, o que, na prática, termina por
vincular o Poder Legislativo, restringindo-lhe a liberdade de conformação nas matérias controvertidas.
Nesse sentido, são bastante esclarecedoras dessa autocompreensão as palavras do Min. EROS GRAU,
manifestadas no julgamento do Recurso Extraordinário n.º 357.950-9/RS: “O momento é propício para a
afirmação de que, em verdade, a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último intérprete, diz
que ela diz”.
447
Cf. BARROSO, 2004, p. 69.
448
Essa alternativa foi utilizada em algumas oportunidades pelo Poder Legislativo. Com efeito, a
Emenda Constitucional n.º 29, de 13 de setembro de 2000, modificou a interpretação do Supremo
Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade do imposto predial e territorial urbano (IPTU) progressivo,
conforme se infere da Súmula n.º 668: “É inconstitucional a lei municipal que tenha estabelecido, antes da
Emenda Constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o
cumprimento da função social da propriedade urbana”. Também a Emenda Constitucional n.º 39, de 19
de dezembro de 2002, ao autorizar os Municípios a instituírem contribuição para o custeio dos serviços de
iluminação blica, alterou o tratamento jurisprudencial consolidado pelo Supremo Tribunal na Súmula
n.º 670 (“O serviço de iluminação pública o pode ser remunerado por taxa”), porquanto se cuidava de
serviço indivisível e inespecífico que deveria ser custeado por impostos gerais. Recentemente, a Emenda
Constitucional n.º 46, de 5 de maio de 2005, foi utilizada para alterar anterior interpretação conferida pelo
Supremo Tribunal Federal sobre o regime jurídico das ilhas fluviais, lacustres e oceânicas. Em artigo
sobre a Emenda n.º 46, MARCELO RIBEIRO DO VAL (2005, p. 153-181) elaborou o histórico legislativo
sobre o tema, pontuando a tentativa parlamentar de reverter anteriores decisões judiciais.
161
decorrência da prática judicial e da autocompreensão do Supremo Tribunal Federal
449
,
tem-se que o Poder Legislativo deve curvar-se forçosamente ao império da decisão
judicial. Nem mesmo a emenda constitucional superaria a decisão judicial. Nesse caso,
o Supremo Tribunal Federal é o intérprete último da Constituição, e sua decisão tem
caráter definitivo.
Em conseqüência, dá-se o fechamento da discussão e da definição
pública em relação às questões fundamentais afetas à sociedade, porque o Supremo fixa
a única” interpretação extraível a partir do texto constitucional em caráter definitivo, e
somente ele poderá alterá-la. Numa questão em que se controvertessem direitos
fundamentais, a exemplo do aborto, cuja permissão ou proibição da prática encontra
respaldo em cláusulas constitucionais pétreas, a declaração de inconstitucionalidade da
lei retiraria a liberdade de conformação do legislador seja para proibir, seja para liberar
a prática do aborto. É justamente nesses assuntos que as disposições constitucionais
comportam as mais diversas leituras, sem poder falar-se em violação à Constituição.
Logo, a prevalência da decisão do Supremo Tribunal Federal tolhe a flexibilidade
legislativa de dispor sobre os aspectos da vida conforme a mudança do tempo e a
mudança do sentimento da comunidade demandarem.
Em terceiro lugar, por fim, o controle abstrato, exercido por via de ação,
é concentrado em um único órgão, qual seja o Supremo Tribunal Federal. o difuso é
continuamente exercitado por todos os juízes e tribunais, não obstante, em regra,
449
No Recurso Extraordinário n.º 357.950-9/RS, o Min. EROS GRAU deixou bem clara que a liberdade de
conformação legislativa é limitada pelo Supremo Tribunal Federal: “O momento é propício para a
afirmação de que, em verdade, a Constituição nada diz; ela diz o que esta Corte, seu último intérprete, diz
que ela diz. E assim é porque as normas resultam da interpretação e o ordenamento, no seu valor
histórico-concreto, é um conjunto de interpretações, isto é, conjunto de normas; o conjunto das
disposições (textos, enunciados) é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de
interpretação, um conjunto de normas potenciais. (...) Por isso as normas resultam da interpretação e
podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada --- elas, como observam ALÍCIA RUIZ e
CARLOS CÁRCOVA, elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem. Insisto em que o sentido de
suas normas é construído por esta Corte. Poderíamos ter incorporado outro entendimento, qual, por
exemplo, o desdobrado do ato de ‘emitir faturas’. A Corte, no entanto, decidiu de outro modo, de sorte
que desde essa decisão aquele, e não outro, ficou sendo o sentido atribuído a faturamento”.
162
alcance seu termo final no Supremo Tribunal Federal, através da competência
extraordinária para conhecer de questões que contrariem dispositivos constitucionais.
A história constitucional brasileira do controle judicial de
constitucionalidade foi inaugurada com a Constituição de 1891
450
, que adotou o sistema
difuso
451
. O controle abstrato de constitucionalidade, preleciona GILMAR FERREIRA
MENDES
452
, teve na representação interventiva seu embrião. No entanto, somente com a
Emenda Constitucional n.º 16, de 26 de novembro de 1965, o sistema de controle
abstrato foi expressamente introduzido no direito constitucional brasileiro, sob a
justificativa de atingir maior economia processual e de reduzir a sobrecarga de trabalho
dos tribunais inferiores
453
.
A tradição constitucional brasileira foi construída na base do controle
difuso
454
. Apesar dessa formação, cada vez mais, o controle concentrado tem-se
firmado como principal instrumento de fiscalização da constitucionalidade. É bastante
comum referir-se à evolução do controle de constitucionalidade de forma hesitante,
450
A Constituição imperial de 1824 ignorou qualquer mecanismo de controle judicial das leis, haja vista
que, àquela época, o direito brasileiro era fortemente influenciado pelo inglês e francês. Ambas tradições
se desenvolveram com base nos ideais da supremacia do parlamento (Inglaterra) e da lei enquanto
manifestação da vontade geral (França). Além disso, o imperador, titular do Poder Moderador, tinha o
papel de exercer a coordenação entre os Poderes, o que não deixaria qualquer espaço para o controle
judicial de constitucionalidade (CLÈVE, 2000, p. 80-82).
451
Dos seus arts. 59 e 60, consoante lecionara RUI BARBOSA (2004, p. 52-53), extraía-se claramente a
competência de todos os tribunais de discutir a constitucionalidade das leis da União e de aplicá-las ou
desaplicá-las, segundo esse critério. As Constituições brasileiras que a sucederam, inclusive a vigente,
mantiveram o controle difuso de constitucionalidade, sem maiores alterações (MENDES, 1990, p. 197)
452
Cf.: MENDES, 2004a, p. 60-85; CLÈVE, 2000, p. 139 e ss. A representação interventiva, típico
instrumento de composição de conflitos federativos, na prática, assumiu a função de um processo de
controle de constitucionalidade.
453
Esse aspecto demonstra, de certa forma, que o controle abstrato ingressou no sistema brasileiro com
alguma dose de acriticabilidade, sobretudo em relação à tensão entre Democracia e jurisdição
constitucional.
454
Não obstante a tradição centenária do controle difuso, a teor do que foi visto no item anterior, ele tem
singular aptidão para legitimar as normas jurídicas e a interpretação constitucional, no caso concreto. As
particularidades de cada cidadão que pressinta a ilegitimidade da norma justificada poderão ser
respeitadas, sem que com isso se ameace a legitimidade e a racionalidade do processo discursivo
legislativo ou acarrete o fenômeno da judicialização da política.
163
tendo em vista a crescente abstração ou concentração que vem sofrendo
455
. De fato, a
atual feição que vem tomando o sistema brasileiro tem acarretado o fechamento da
sociedade aberta de intérpretes e a monopolização da Constituição. Em suma, acaba por
abnegar-se o direito de o cidadão participar construtivamente da interpretação
constitucional e, sobretudo, por restringirem-se suas autonomias pública e privada, já
que se vê mais afastado da condição de autor-intérprete das leis. No breve relato
legislativo a seguir exposto, talvez, a idéia se aclare.
Em primeiro lugar, a Constituição da República de 1988 deu importante
passo ao consagrar amplo rol de legitimados para propor ação direta, retirando-se a
legitimidade exclusiva do Procurador-Geral da República antes estabelecida
456
.
Posteriormente, com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 03, de 18 de março
de 1993, instituiu-se a ação declaratória de constitucionalidade cuja decisão tem eficácia
contra todos e efeito vinculante para os demais órgãos do Judiciário e do Executivo.
Após, com a edição da Lei n.º 9.868, de 10 de novembro de 1999, que regulamenta os
procedimentos das ações diretas de controle de constitucionalidade, e da Lei n.º 9.882,
de 03 de dezembro de 1999, que disciplina o processo e o julgamento da argüição de
descumprimento de preceito fundamental, novo passo fora alçado. Também, as normas
do Código de Processo Civil, que conferem ao relator o poder de monocraticamente dar
ou negar provimento a recurso com base na jurisprudência dos tribunais superiores (v.g.
art. 557, § 1º-A), são potenciais contribuintes à monopolização da interpretação
455
CLÈMERSON MERLIN CLÈVE (2000, p. 91), concordando com JOSÉ AFONSO DA SILVA, aponta o
desenvolvimento de uma “nítida e inquietante” tendência em favor do método de controle concentrado.
LUÍS ROBERTO BARROSO (2004, p. 62) parece compartilhar de semelhante preocupação.
456
A repercussão da ampliação do rol de legitimados para propor ação direta, no que tange à priorização
do controle concentrado em detrimento do difuso, é categoricamente afirmada por GILMAR FERREIRA
MENDES (2004a, p. 78): Esse fato fortalece a impressão de que, com a introdução desse sistema de
controle abstrato de normas, com ampla legitimação e, particularmente, a outorga do direito de
propositura a diferentes órgãos da sociedade, pretendeu o constituinte reforçar o controle abstrato de
normas no ordenamento jurídico brasileiro como peculiar instrumento de correção do sistema geral
incidente”. Uma sumarização das demais modificações após o advento da Constituição Federal de 1988,
encontra-se em: BARROSO, 2004, p. 60-62; CLÈVE, 2000, p. 91.
164
constitucional pelo Supremo Tribunal Federal. E, mais recentemente, com a Emenda
Constitucional n.º 45, de 08 de dezembro de 2004, que instituiu a súmula vinculante e
procedeu à “objetivação”, ao incluir o pré-requisito da “repercussão geral das questões
constitucionais” como condição de admissibilidade do recurso extraordinário
457
. O
arranjo institucional, portanto, vem se moldando de forma a atribuir preponderância ao
controle concentrado da constitucionalidade. À proporção que a competência do
Supremo Tribunal Federal se torna mais privativa para definir controvérsias
constitucionais, diminuem-se o acesso dos cidadãos a essa Corte e, em conseqüência, a
participação ativa no processo de criação e interpretação da Constituição. Os cidadãos
tornam-se meros destinatários das normas constitucionais, e não mais seus autores.
A nova conjuntura, por si só, não põe em risco o exercício das
autonomias pública e privada do cidadão, quanto à sua participação no processo de
interpretação constitucional. Até porque algumas das inovações legislativas objetivam
conferir maior racionalidade e celeridade aos processos em julgamento, em muito dos
quais se desenvolve o controle por via de exceção
458
. Porém, não podem implicar o
completo ofuscamento do controle difuso, pois o controle difuso e o concentrado podem
complementar-se reciprocamente na estrutura da jurisdição constitucional
brasileira
459
.
457
A Emenda Constitucional n.º 45, de 2004, incluiu novo parágrafo ao art. 102 da Constituição Federal:
“§ 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a repercussão geral das questões
constitucionais discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do
recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus membros”.
458
Registra MAURO CAPPELLETTI (1999, p. 76 e ss) que o sistema difuso de controle de
constitucionalidade, inicialmente introduzido na Europa continental, onde prevalece o sistema de civil law
o qual se ressente de princípio similar ao do stare decisis, foi logo repelido, tendo em vista a formação de
verdadeiros “contrastes de tendências” jurisprudenciais sobre as mesmas questões. Em termos de
administração e prestação da justiça, um sistema como esse traz em si forte potencial de irracionalidade,
porquanto pode gerar grave situação de incerteza do direito e de conflito entre órgãos. No entanto, esse é
apenas um aspecto pragmático da questão.
459
OLIVEIRA, 2002, p. 154-165. No entanto, o autor reconhece (2002, p. 168-169) que tais mudanças
em favor do controle concentrado de constitucionalidade ocorrem a pretexto da retórica das “decisões
contraditórias” e de argumentos metodológicos e pragmáticos, que não se adéquam à compreensão
constitucionalmente adequada da jurisdição constitucional no paradigma procedimentalista. Malgrado as
165
É exigido, para tanto, que o controle difuso seja compreendido como
forma ordinária da jurisdição constitucional, enquanto o concentrado, modo especial.
Isso porque o controle difuso, ao garantir os direitos fundamentais em casos concretos,
reafirma as condições de exercício das autonomias pública e privada. o controle
concentrado deve ser compreendido como modo especial de jurisdição constitucional,
considerada sua configuração própria e o fato de referir-se diretamente às condições
procedimentais para a realização do processo democrático e das formas deliberativas da
formação política da opinião e da vontade. De qualquer modo, não se pode olvidar estar
a história constitucional brasileira fortemente haurida com mais de cem anos de prática
de controle difuso de constitucionalidade integrando mundo de vida e os paradigmas e
práticas aqui vividos, como diria MENELICK DE CARVALHO NETTO
460
em crítica a
algumas das soluções adotadas no controle abstrato, no Brasil. Mudar a história, o
passado e a tradição é plenamente possível, mas a evolução deve ser reflexivamente
conduzida, a fim de evitar-se a colonização do discurso da jurisdição constitucional
461
.
Ao que parece, a transição da feição do controle no sistema brasileiro o tem sido
criticamente orientada, tanto que é taxada de inquietante.
O controle difuso de constitucionalidade revela-se mais apropriado aos
padrões democráticos do paradigma procedimental do Estado de Direito, fortemente
marcado pelo pluralismo. O professor MENELICK DE CARVALHO NETTO
462
reconhece
esse fato ao afirmar que os complexos enfoques dos problemas da interpretação
terminam por justificar o modelo americano (difuso) de controle de constitucionalidade,
e não o austríaco (concentrado).
sucessivas alterações legislativas, MARCELO CATTONI ainda se mostra convicto de que o sistema
brasileiro é predominantemente difuso.
460
Cf. CARVALHO NETTO, 2001a, p. 230.
461
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 132.
462
Cf. CARVALHO NETTO, 2001a, p. 232.
166
O controle difuso mostra-se mais apto à realização da cidadania no
Estado Democrático de Direito, principalmente nos casos controversos. Primeiramente,
deve-se considerar a distinção entre os discursos de justificação e de aplicação na linha
adotada por HABERMAS e GÜNTHER. Assim, o discurso judicial de aplicação propõe-se
a buscar a aplicação imparcial das razões anteriormente justificadas no processo
legislativo em face das novas circunstâncias surgidas com o caso concreto, as quais têm
o condão de descaracterizar a legitimidade das normas positivadas. Além do mais, o
escopo da aplicação da norma é moldado pelo caso concreto, o que limita o poder
judicial às razões selecionadas pelo legislador evitando a chance de sobreposição de
discursos
463
, isto é, a judicialização da política.
Em segundo lugar, certos temas da vida em comunidade, por sua própria
natureza, parecem estar longe do consenso, tendo vista os diferentes mundos de vida
dos participantes, os diferentes valores culturais, sociais, éticos e religiosos envolvidos.
Assim, considerar a lei ilegítima ou inconstitucional é um direito que assiste ao
participante, dentro de sua perspectiva individual, porquanto não tivera suas razões e
pretensões acolhidas. No entanto, a legitimidade do processo comunicativo de criação
das normas pressupõe que suas razões foram discursivamente consideradas, portanto
deve, ao menos, respeitar a legitimidade do procedimento de criação das leis. Mesmo
assim, reserva-se-lhe a faculdade de individualmente insurgir-se contra a lei por meio
do controle difuso, que se mostra idôneo para revelar as maiores possibilidades
hermenêuticas toleradas pela Constituição
464
, selecionando-se imparcial e
coerentemente – a norma aplicável ao caso.
463
Cf. HOECKE, 2001, p. 416.
464
Cf. SANCHÍS, 2003, p. 166-170. “As maiores ou menores possibilidades hermenêuticas toleradas ou
queridas pela lei” são um dos fatores que LUIS PRIETO SANCHÍS opõe ao controle abstrato, que em muitas
situações faz dos juízes verdadeiros legisladores.
167
Logo, pretender anular leis que suscitem divergentes interpretações da
Constituição ou sejam objeto de desacordo razoáveis (reasonable disagreements)
através do controle concentrado, com caráter vinculante e definitivo, em certa
medida
465
, como visto, acarreta sim a judicialização da política. A sobreposição ao
discurso legislativo de justificação pelo discurso do Poder Judiciário é inevitável, já que
em face da inexistência do fato concreto e de novas razões a serem discutidas o
discurso judicial termina por desenvolver os mesmos argumentos controversos do
processo político-legislativo, com o exame e a discussão das mesmas questões
466
. O
discurso judicial, pois, passa a ser desenvolvido pelo Judiciário com as feições do
discurso de fundamentação que redundaria em atividade de legislação implícita, o que
lhe é vedado no arranjo da divisão discursiva dos poderes
467
.
465
“Em certa medida” porque, a depender do grau de discursividade que a questão tenha atingido, o
controle abstrato de constitucionalidade poderá ser justificado, a fim de preservar o exercício das
autonomias pública e privada. Em face da judicialização da política, o raras vezes, dá-se a utilização
do processo de controle abstrato como instrumento de oposição política ou com o intento de estender até a
“última fase” (judicial) certa decisão politicamente definida com base nos mesmos argumentos (vide o
caso referido no Item 4 do Capítulo II). Dentro do paradigma procedimental, essa prática não pode ser
aceita sem notórios prejuízos aos parâmetros democráticos. No estudo sobre a jurisdição constitucional à
luz da teoria discursiva, ÁLVARO RICARDO DE SOUZA CRUZ (2004, p. 251) pretende legitimar o controle
abstrato da constitucionalidade condicionando-o ao controle difuso, a partir da configuração do princípio
democrático e da discursividade jurídica. O problema surgiria, precisamente, ao se cogitar de normas
recém-editadas, cujo teor o terá sido ainda apreciado pelos demais órgãos do Poder Judiciário. Nessa
hipótese, a justificação do controle concentrado, bastante complexa em si (2004, p. 248), revela seu
insucesso. A inexistência de “depuração” das normas (que se faria pelo discurso judicial de aplicação)
retira da decisão do tribunal constitucional o caráter discursivo de aplicação e, por conseqüência, a
legitimidade do controle. A solução, portanto, residiria em o tribunal ou considerar o processo inepto, ou
suspender seu trâmite.
466
Convém insistir no caso das ações diretas de inconstitucionalidade dirigidas contra a Emenda
Constitucional n.º 41, de 2003, em que aos argumentos deduzidos no processo político nada foi
acrescentado em sede judicial (Item 4 do Capítulo II).
467
Cf. CRUZ, 2004, p. 230 e p. 244. Essa é a grande crítica de HABERMAS (2001a, p. 326 e ss) à
“jurisprudência dos valores” alemã, em que os juízes tomam normas como valores ponderáveis e acabam
por desconsiderar seu caráter deontológico. Iniciando um discurso em tudo equiparável ao do legislador,
o que põe o tribunal constitucional numa posição de concorrência com o legislador, gerando, ainda, um
sério problema de autocompreensão metodológica nos juízes. Assim, a Constituição é captada como uma
ordem concreta de valores, perdendo seu caráter deontológico, e o tribunal executa uma jurisdição
implicitamente criadora de direitos. Para uma análise sucinta do tópico, ver: SANCHÍS, 2000, p. 163-
166.
168
Assim, a “trivialização” (ou banalização)
468
do controle concentrado traz
consigo o desprestígio do processo político de formação da vontade política. Faz,
ainda, aflorar a leve impressão de suposta hierarquia qualitativa do discurso jurídico em
detrimento do discurso político
469
. Coopera para a consolidação da supremacia judicial
em detrimento do respeito à dignidade democrática do legislador e de seus atos
normativos, pois a constante impugnação judicial das leis traz consigo o descrédito das
leis e do próprio processo legislativo, conformemuito o previra JAMES THAYER. Por
fim, elimina o que mais deveria preservar: a autonomia pública e a autonomia privada
dos cidadãos, seja por desconsiderar a autonomia cidadã que se exerceu através do
processo discursivo da formação da opinião e da vontade política, seja por restringir a
função do controle difuso dado o caráter vinculante e a autoridade da decisão em sede
concentrada, em que se permite a cada membro da comunidade participar da
interpretação das normas constitucionais, subsumindo-se na condição de autores e
destinatários, mutuamente
470
.
À vista da estrutura circular de comunicação criada pelo controle difuso,
468
o seria demais recordar que, no Brasil, várias leis e emendas à Constituição, que versam sobre
questões controvertidas mal completam seu primeiro dia de vigência no ordenamento jurídico e são
impugnadas por ação direta (tenha-se em mente a ADI n.º 3.099-0/DF, referida no Item 4 do Capítulo 2).
Lamentavelmente, essa prática é fortemente utilizada pelos partidos políticos como forma de oposição
política, o que, diga-se, não é privilégio do Brasil, segundo se demonstra na Alemanha (LANDFRIED,
1995, p. 317). No exercício de sua jurisdição, o Supremo Tribunal Federal decide a causa na forma
estrategicamente articulada por quem o provocou, com sério risco de desvirtuamento do processo político.
Esse contexto ajuda a fomentar o entendimento da supremacia judicial subjacente às práticas e a crise de
legitimação do processo da formação da vontade política, além de contribuir para a descrença e a
desconfiança do processo legislativo.
469
Esse resultado parece pressupor, tacitamente, certo preconceito baseado numa “tradição elitista”,
examinada por ROBERTO GARGARELLA (1996, p. 48 e ss), porque se supõe que os juízes são muito mais
preparados para discutir e decidir as questões fundamentais do Estado, do que quaisquer outras pessoas.
A tradição elitista, a sua vez, propugna pela desnecessidade de se consultar a todos os potencialmente
afetados pela decisão, bem como pela certeza de que decisões boas só serão atingidas se tomadas pela
reflexão de alguns indivíduos especialmente virtuosos. Sobe a eventual superioridade hierárquica dos
discursos judiciais sobre os legislativos, veja-se: TUSHNET, 1999, p. 54-71. HABERMAS (2001a, p. 339-
340) admite que o discurso jurídico pode reclamar alta presunção de racionalidade em seu favor, mas
somente porque são discursos de aplicação especializados em questões de aplicação de normas. Mas, por
essa razão, não podem jamais substituir-se aos discursos políticos, que se marcam pela fundamentação de
normas e objetivos, além de exigir a inclusão de todos os afetados.
470
Essa idéia acha-se, objetiva e concisamente exposta, na seguinte passagem de ÁLVARO RICARDO DE
SOUZA CRUZ (2004, p. 251): “A esfera pública jurídica, por meio de cidadãos que aduzem a pretensão a
direitos na Justiça, transforma os mesmos em co-autores do Direito”.
169
chega-se à conclusão da maior proximidade do controle difuso com o paradigma
procedimental, pois permite a cada pessoa no exercício de sua autonomia definir o
sentido e o significado das normas constitucionais, legitimando-se todo o processo de
aplicação e de criação das normas. Sem ferir o princípio de igual consideração de
todos, o controle difuso permite proteger cada situação peculiar da aplicação irrestrita e
injusta da norma. Ao mesmo tempo, possui especial aptidão para preservar,
constantemente, a crítica das normas sem pretender de forma vinculante encerrar a
discussão no seio da esfera pública, já que a qualquer momento cada cidadão pode
lançar mão desse procedimento.
Nesse diapasão, MARK VON HOECKE
471
, em excelente artigo em que
destaca o potencial comunicativo da jurisdição constitucional, pretende legitimar o
controle de constitucionalidade, a partir da Democracia deliberativa. Em sua visão, a
função do controle é adaptar e mudar o conteúdo das leis, em face das naturais
limitações do legislador que não pode antever todos os possíveis contextos de sua
aplicação. No decurso do procedimento judicial, é desenvolvida a comunicação
471
Cf. HOECKE, 2001, p. 420-423. O processo judicial, em que as partes desenvolvem argumentos,
produzem provas e colhem informações, é processo de comunicação, o qual culminará com a sentença
(primeiro círculo comunicativo). que as partes, vendo-se insatisfeitas, recorrem ao tribunal superior,
que apreciará, fundamentadamente, os argumentos delas e do juiz a quo, além dos próprios precedentes
do tribunal e de outros órgãos, executando verdadeira justificação pública que é parte inerente da
legitimação comunicativa (segundo círculo comunicativo). Considerada a relevância do caso, será
publicizado, ou seja, divulgado pelos meios de informação. A divulgação pública suscitará o
pronunciamento dos acadêmicos e autoridades envolvidas que emitirão pareceres e opiniões cujas razões
serão tomadas em conta nas novas decisões das cortes (terceiro círculo comunicativo). Em crescente grau
de interesse, a mídia poderá conferir-lhe, ainda, maior grau de notoriedade e publicidade, o que gera
“mesas redondas”, painéis, audiências (formais ou informais) para discussão da questão (quarto círculo
comunicativo). Nesse passo, se o interesse em discussão abranger questões fundamentalmente éticas ou
políticas (v.g.: aborto, eutanásia, racismo etc.), angariará a larga participação dos cidadãos na
determinação do conteúdo da lei, atingindo o quinto e último círculo comunicativo. Essas esferas do
processo comunicativo criam diferentes, e sempre mais amplos, círculos de política deliberativa, o que
confere legitimidade democrática ao controle de constitucionalidade. Como se percebe, a se considerar
seu procedimento e sua estrutura, o controle concentrado tem forte potencial supressor de alguns desses
círculos, comprometendo, assim, sua legitimidade. É válido destacar os acontecimentos que antecederam
o Hábeas Corpus n.º 84.025-6/RJ, cujo objeto era autorizar a prática do “aborto de anencéfalo”. O
processo da interessada na autorização se desenvolveu em Teresópolis/RJ. Dada a notoriedade do caso,
principalmente após a divulgação pela Rede Globo da decisão favorável proferida pelo Tribunal de
Justiça do Rio de Janeiro, um padre residente em Anápolis/GO impetrou outro habeas corpus contra a
decisão do Tribunal de Justiça que autorizara a prática abortiva, perante o Superior Tribunal de justiça em
Brasília/DF.
170
deliberativa que, a depender do conteúdo das questões em discussão, atinge diversos
círculos comunicativos de crescente abrangência. Chega-se, assim, a um modelo
circular idôneo a legitimar a jurisdição constitucional, em sua modalidade difusa, na
perspectiva do Estado Democrático de Direito. Demonstra-se, ademais, que a diferença
entre controle difuso e concentrado permanece válida e com toda sua força
472
, em
termos discursivos.
Toda a formulação acima deduzida, concebida em termos normativos,
encontra sua limitação no campo prático. Convive-se com a inerente tensão entre a
faticidade das práticas e modelos institucionalizados e a validade de um sistema
normativamente concebido. Na dimensão empírica, o Brasil encontra-se bem afastado
dessas condições ideais. A permanente concentração” do controle de
constitucionalidade intrinsecamente ligada à restrição da autonomia dos cidadãos, que
se encontram, cada vez mais, mais afastados do centro decisório (judicial)
473
tem
contribuído para firmar a autocompreensão do Supremo Tribunal Federal como Poder
investido da capacidade de dar a última palavra sobre a Constituição Federal. E mais:
na ausência do caso concreto, isto é, no controle concentrado de constitucionalidade, o
Supremo Tribunal Federal procede, em regra, à argumentação das mesmas razões e
questões examinadas pelo Poder Legislativo, desconsiderando as razões e os motivos
472
Pela defesa da distinção, sugerindo, ademais, a extinção do controle concentrado de
constitucionalidade, por favorecer a usurpação do Poder Legislativo, vide: SANCHÍS, 2003, p. 158-170.
Em sentido contrário, isto é, defendendo a aproximação e a identificação dos dois modelos, vide:
SEGADO, 2003, p. 55-82; MENDES, 2004b, p. 26-31. Outra importante característica a apartar ambos
os tipos de controle reside no “argumento da corregibilidade dos erros” (COMELLA, 1997, p. 199-209).
Em virtude disso, o erro de declarar inconstitucional lei que, na realidade, é constitucional, seria
facilmente remediado ao se decidir novo caso, propiciando-se, assim, que a lei recupere sua
aplicabilidade.
473
Observa CHRISTINE LANDFRIED (1995, p. 308 e ss) que, na Alemanha, país que tem exercido forte
influência em algumas das modificações brasileiras em matéria de processo constitucional e interpretação
da Constituição, o recurso constitucional (modalidade de controle de constitucionalidade que permite a
qualquer cidadão provocar diretamente o Tribunal Constitucional Federal) é o instrumento mais
importante na modulação da jurisprudência constitucional daquele país. O recurso constitucional,
portanto, é a “rainha das vias de acesso ao Tribunal Constitucional Federal” (HÄBERLE, 2001, p. 48),
razão por que é denominado “Tribunal de Cidadãos” (LANDFRIED, 1995, p. 308; HÄBERLE, 2001, p.
33).
171
pelo parlamento discursivamente justificados, de forma que sua atividade de
interpretação assemelha-se a uma legislação implícita, totalmente desaconselhada pela
lógica da separação dos poderes.
No Brasil, a prática constitucional e a sua própria autocompreensão da
atividade judicial direcionam-se à configuração da supremacia judicial, em vez da
supremacia constitucional. Ao arvorar-se da condição de intérprete único e soberano da
Constituição, praticamente, o Supremo Tribunal Federal há-se como órgão não
suscetível a críticas, a leituras outras que os demais atores sociais tenham da
Constituição. Em tal assunção, percebe-se a si mesmo como infalível no processo de
interpretação constitucional, como detentor de uma verdadeira “infalibilidade judicial”
(judicial infallibility)
474
.
O Supremo Tribunal Federal, embora não haja previsão normativa,
autocompreende-se de forma tal que sua interpretação deveria vincular não só os demais
órgãos e tribunais dos Poderes Judiciário e Executivo, conforme disposto na
Constituição Federal de 1988
475
, mas também o próprio Poder Legislativo. No
julgamento da ADI n.º 2.797-2/DF, o Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a
norma editada pelo Poder Legislativo não poderia contrariar sua interpretação direta e
474
Cf. MICHELMAN, 2003, p. 601. Segundo FRANK MICHELMAN (2003, p. 601-611), a infalibilidade
judicial é uma tese epistemológica” que vindica a relação entre as decisões constitucionais da Suprema
Corte (lei constitucional) e a verdade, no que tange ao significado constitucional (Constituição). Para o
constitucionalista de Harvard, considerando-se a relação paradoxal existente entre constitucionalismo e
Democracia, a judicial review não poderia ser caracterizada como infalível. o obstante, ao investigar a
temática da supremacia judicial e da supremacia constitucional, não abandona ser também a primeira
atributo do controle de constitucionalidade. A interpretação judicial da Constituição vincularia, sim, os
demais Poderes. Entretanto, resgatando historicamente a posição de ABRAHAM LINCOLN que se opusera
contra decisão da Suprema Corte norte-americana (DRED SCOTT) sem, contudo, renegar autoridade ao
controle de constitucionalidade, afirma MICHELMAN que a interpretação judicial não deve silenciá-los,
tampouco calar os demais atores sociais da atividade de interpretar a Constituição. Caso contrário, não
seria possível professar seu “protestantismo constitucional” (constitutional protestantism) segundo o qual
cada membro da comunidade política é autorizado a decidir sobre o sentido da Constituição. Sobre o
protestantismo e o “catolicismo constitucional” de MICHELMAN, veja-se: BALKIN, 2005, p. 9 e ss.
475
A Constituição Federal de 1988, no art. 102, § 2º, estabelece: “As decisões definitivas de mérito,
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ões
declaratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente
aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal”.
172
exclusivamente fundamentada na Constituição Federal. Entendeu-se que o Tribunal
realizara uma interpretação constitucional autêntica, de forma que tentar modificá-la
corresponderia à usurpação da competência judicial como guardião da Constituição
Federal, além de sujeitar a interpretação judicial ao referendo do legislador.
Ao que parece o processo de “doação” da Constituição ao Supremo
Tribunal Federal, a que se referira MENELICK DE CARVALHO NETTO
476
, caminha a
passos largos. A jurisdição constitucional afasta-se da função de garantir as condições
processuais para o exercício da autonomia pública e da autonomia privada dos co-
associados jurídicos
477
. Antes, o Supremo Tribunal Federal vem pautando-se como
guardião republicano de suposta ordem concreta de valores preordenada às normas
constitucionais; o exercício de sua jurisdição pauta-se pela pré-compreensão do
conteúdo jurídico dos princípios e das normas, independentemente das condições
pragmáticas do processo comunicativo
478
. A supremacia judicial é, implicitamente,
pressuposta. Não deve atuar o tribunal na qualidade de regente a ocupar o lugar do
sucessor ao trono ante à menoridade deste, como se cada indivíduo fosse destituído da
capacidade de exercer seus próprios direitos de cidadãos. Dessa forma, nota MARCELO
CATTONI DE OLIVEIRA
479
, o Supremo Tribunal Federal reduz o direito a uma questão de
valores, com grande risco de transformar a jurisdição constitucional em uma instância
476
Cf. CARVALHO NETTO, 2001, p. 20.
477
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 154-155.
478
Observe-se: a ADI n.º 3.105-8/DF, em que se apreciou a constitucionalidade da contribuição de
seguridade social incidente sobre os servidores públicos inativos, teve por objeto a Emenda
Constitucional n.º 41. Além do seu rígido procedimento, de contar com larga aprovação popular e dos
vários debates públicos que lhe conferiram ampla repercussão social, essa emenda resultou do consenso
firmado entre os representantes dos Estados (governadores, secretários e deputados), da União
(Presidente, ministros, deputados e senadores), Municípios, bem como dos Poderes do Estado
(Legislativo e Executivo). Assim, é possível afirmar que tal emenda decorreu, sim, de um procedimento
legislativo democrático e discursivo. Não obstante todos esses aspectos relacionados às condições
comunicativas da gênese da emenda que lhe atribuem alta legitimidade, o Supremo Tribunal Federal
ateve-se ao exame dos mesmos argumentos discutidos no processo legislativo pelo Congresso Nacional
(violação ao direito adquirido, ausência de causa suficiente para instituir a contribuição, equilíbrio
atuarial, irredutibilidade dos vencimentos e proventos) e, por muito pouco, quase declarou-a
inconstitucional.
479
Cf. OLIVEIRA, 2002, p. 173-174.
173
político-legislativa que se sobressairia ao legislador democrático. Revelar-se-ia uma
“ditadura de boas intenções éticas e políticas”, que desprestigiaria a cidadania e o
processo discursivo de formação da vontade política
480
. Ao considerar que a
preponderância da atividade judicial na concretização constitucional tem configurado
uma realidade bem prejudicial ao Estado Democrático de Direito, o professor JOÃO
MAURÍCIO ADEODATO
481
preocupa-se com o risco da imposição de uma “moral do
judiciário” pelo Supremo Tribunal Federal.
Evidencia-se, assim, que a atual prática do controle de
constitucionalidade, no Brasil, es a carecer de legitimidade. No contexto de
concentração do controle de constitucionalidade, até mesmo justificável sob alguns
aspectos pragmáticos (desafogar os tribunais dos processos repetitivos que neles se
avolumam e rápida solução dos litígios constitucionais), a incumbência da missão de
não só tentar resgatar, criticamente, as tradições judiciais. É claro, elas são importantes:
tanto o mais o são, no caso do controle difuso, à proporção que se integram à prática e
cultura judiciais numa estrutura estatal democrática, legitimamente concebida. Mas
além de procurar realizar-se esse resgate, prospectivamente de cogitar-se de outros
caminhos de investigação a partir do arranjo institucional vigente. Principalmente
porque o controle concentrado que deveria assumir o relevante papel de assegurar as
condições de gênese do processo democrático de criação das leis – tem extrapolado seu
escopo, interferindo destrutivamente no processo de formação discursiva da vontade
política. E essa possibilidade, repita-se, é oportunizada pela teoria discursiva, consoante
destacado na Introdução. Ou seja, dentro do contexto que vai se apresentado, é
imprescindível a todo custo indagar de alternativas legitimadoras das gramáticas
480
Uma análise sistemática das decisões do Supremo Tribunal Federal demonstraria que a tradição
germânica da “jurisprudência dos valores” é largamente acolhida pela práxis judicial brasileira. Esse
exame, contudo, o será levado a termo nesta dissertação. Sobre o tema, entre outros, confira:
CITTADINO, 2000, p. 43-73; OLIVEIRA, 2002, p. 88 e ss; CRUZ, 2004, p. 185-191.
481
Cf. ADEODATO, 2003, p. 87.
174
judiciais, a fim de preservar a condição essencial do cidadão no Estado Democrático de
Direito, sua autonomia jurídica.
O próximo item, que encerra este capítulo, concentra-se numa linha de
reflexão que, sem renegar o controle concentrado de constitucionalidade (considerando-
se sua atual projeção), busca forjar uma alternativa conciliatória entre Democracia e
jurisdição constitucional, entre Poder Legislativo e Poder Judiciário. Enquadra-se, pois,
na tendência dos novos estudos sobre o controle de constitucionalidade que, segundo
STEPHEN GRIFFIN
482
, tem-se preocupado menos em determinar se a judicial review é ou
não contramajoritária. A discussão, agora, passa a ser qual espécie de controle judicial
se justifica em face da Democracia deliberativa.
5. O CONTROLE JUDICIAL FRACO (WEAK-FORM JUDICIAL REVIEW), A CLÁUSULA
NÃO OBSTANTE (NOTWITHSTANDING CLAUSE) E UMA SUGESTÃO AO MODELO
BRASILEIRO DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
As formulações teóricas são concebidas em termos normativos e
encontram-se em inevitável tensão com a efetiva gramática das instituições, num
verdadeiro entrecruzamento dialético entre o que é e o que deveria ser. Por isso, a
escolha da teoria do discurso, pois, como aduz MARCELO CATTONI DE OLIVEIRA
483
, ela
permite uma análise mais sofisticada do Estado Democrático de Direito, a partir da
tensão existente entre o enfoque normativo e o empírico, entre a validade e a faticidade.
Nesse sentido, ao se estabelecer como normativamente válido que o
controle abstrato de constitucionalidade deve restringir-se às condições procedimentais
do processo de formação racional da vontade política, conseqüentemente se deve
482
Cf. GRIFFIN, 2000, p. 683-684.
483
Cf. OLIVEIRA, 2000, p. 91-102.
175
indagar se de fato é essa a forma pela qual ele vem se pautando. No caso brasileiro, a
concentração do controle e a autocompreensão do Supremo Tribunal Federal
484
como
protetor republicano de certa ordem preordenada de valores, arvorando-se da
prerrogativa de determinar em última instância o significado da Constituição, parecem
justificar as preocupações de MARK TUSHNET.
Segundo o professor de direito constitucional da Universidade de
Georgetown
485
em Taking the Constitutions away from the Courts, obra de grande
repercussão no direito constitucional norte-americano, profundamente crítica da
atividade institucional da Suprema Corte dos Estados Unidos –, caso o controle de
constitucionalidade realmente se autolimitasse a assegurar os pré-requisitos da
“Constituição democrática” (Populist Constitutional Law)
486
, isto é, as condições de
484
É válido ressaltar o diagnóstico formulado pelo professor JOÃO MAURÍCIO ADEODATO (2003, p. 89):
“Na controvérsia sobre a hierarquia das fontes uma ‘dogmática judicialista’, segundo a qual a cúpula
do judiciário não pode contradizer a Constituição, em última instância, pois a Constituição afirma que
quem diz o conteúdo do texto constitucional é o judiciário”. Certamente, para o Supremo Tribunal
Federal, supremacia judicial e supremacia constitucional são conceitos sinônimos. Assim se torna mais
fácil entender por que a crítica habermasiana contra o controle de constitucionalidade é decorrente da
autocompreensão que o tribunal constitucional tem de sua própria atividade. Conforme visto no Item 4
deste capítulo, essa característica tanto pressupõe a noção da supremacia judicial, quanto uma pretensa
infalibilidade judicial.
485
Cf. TUSHNET, 1999, p. 157 e ss.
486
Para MARK TUSHNET, o modelo ideal de controle judicial seria restrito à salvaguarda dos pré-
requisitos da Constituição democrática, comprometida com a realização dos princípios dos direitos
humanos universais, através da razão e do autogoverno (1999, p. 181-186). Republicanista que é (1999,
p. 9-14), admite que a Constituição norte-americana não se resume àquela presente nas normas escritas do
texto constitucional, que definem organização e competência do governo, e o invocadas pelos juízes e
advogados. Essa corresponde a Thick Constitution. A Constituição democrática reivindica a Thin
Constitution, consubstanciada nas garantias fundamentais de eqüidade, de liberdade de expressão e de
liberdade. Os direitos fundamentais, procedentes da grande narrativa histórica e política dos Estados
Unidos, deixam-se revelar a partir dos princípios da declaração da independência e do preâmbulo
constitucional, que constituem o povo norte-americano em autêntica comunidade nacional (1999, p. 181-
194) e convocam-no a agir conscientemente (1999, p. 42-53). Tais princípios, por sua vez, não são auto-
interpretáveis; necessitam da participação política de todos os atores sociais na criação e definição do
direito constitucional. Daí, o projeto da Constituição democrática propor evitar qualquer entendimento
que venha a subscrever a tese de que a Constituição significa o que a Suprema Corte diz. A interpretação
judicial não tem significado especial. É equiparável às demais interpretações da Constituição realizadas
pelo Congresso ou pelo Presidente. A instituição da Constituição democrática, dentro da perspectiva
assumida por MARK TUSHNET (1999, p. 157-158), em que se viabiliza a participação coletiva de todos os
cidadãos na sua criação e interpretação, reclama: (a) votação, as pessoas que não podem votar estão
inaptas a ajudar na criação da populist constitutional law; (b) crítica ao governo, se não é permitido
criticar ou se as pessoas não criticam o governo, não há meios para mudá-lo, para construir políticas mais
apropriadas nem para fixar o melhor caminho na construção da Constituição democrática; (c) espaço para
a formação de opiniões independentes, onde as pessoas possam formar livremente suas próprias
convicções sobre a política e o direito constitucional; (d) capacidade para lidar com “crises reais”,
176
gênese do processo de formação da vontade política, estaria configurado um contexto de
adequação e equilíbrio entre Democracia e jurisdição constitucional, que seria propício
à prática democrática da judicial review. Porém, alguns obstáculos que rondam a
concepção do controle de constitucionalidade limitado à garantia das condições de
formação democrática das leis, contesta TUSHNET.
Em primeiro lugar, o domínio do controle de constitucionalidade está
bem além daquele ao que deveria ser reduzido, nos termos propostos pela Constituição
democrática. Além disso, o número de problemas reais com a privação de direitos, com
a limitação às críticas ao governo e com a dominação estatal da esfera privada é bem
menor nos dias de hoje, provavelmente por causa da tradição constitucional que
suporte à cultura política de maior participação. Por fim, deve-se atentar para o fato de
que, mesmo se preconizando a teoria de uma judicial review limitada às pré-condições
da Constituição democrática, os juízes fatalmente iriam muito além delas. Logo, é
improvável que o âmbito de atuação da judicial review fosse reduzido ao papel
preconcebido.
Nessa hipótese, haveria pela Suprema Corte a assunção de tamanhos
poderes como jamais se vira em tempo algum na história constitucional, alarma MARK
TUSHNET
487
. Em outras palavras, instituir-se-ia em favor do tribunal constitucional uma
mecanismos para proteção contra as leis contrárias aos princípios constitucionais fundamentais. Para
crítica à concepção de Constituição democrática, ver: DEVINS, 2000-2001, p. 359-371; MICHELMAN,
2000-2001, p. 461-487. Embora a teoria do discurso, que fundamenta a concepção procedimentalista do
Estado de Direito, oponha-se à visão do republicanismo, guardadas certas particularidades, as elaborações
teóricas de MARK TUSHNET, marcadamente críticas à judicial review, seguem válidas para o intento aqui
buscado. Sobre a relação entre as visões do liberalismo, do republicanismo e do procedimentalismo, ver:
HABERMAS, 2001a, p. 340-361 e p. 469-531; HABERMAS, 2002b, p. 269-297; OLIVEIRA, 2000, p.
49-85.
487
Cf. TUSHNET, 1999, p. 160. Essa mesma dificuldade é compartilhada por LUIS PRIETO SANCHÍS
(2000, p. 165-167).
177
“competência de competência”
488
, que apontaria para o crescente grau de influência
política do tribunal na vida política do Estado.
Dá-se, portanto, o impasse. Numa democracia deliberativa, seria
possível justificar a jurisdição constitucional mantendo-se preservadas as autonomias
pública e privada, de forma que os cidadãos se percebam a um tempo autores e
destinatários das normas? Como operacionalizar o modelo de controle limitado a
assegurar as condições do processo legislativo democrático, no Brasil? A indagação é
relevante porque aqui o controle de constitucionalidade tem acarretado, de um lado, o
afastamento do cidadão da interpretação de sua própria Constituição, seja pela eficácia
da decisão do Supremo Tribunal Federal que assume autoridade tal que não pode ser
contrastada politicamente pelo processo legislativo (supremacia judicial)
489
, seja pela
paulatina concentração desse mesmo controle, que retira toda a ênfase tradicional e
historicamente depositada no controle difuso.
Qual seria a solução?
MARK TUSHNET
490
lança uma hipótese. Sugere seja imaginado que a
Suprema Corte numa manhã de outubro, reconhecendo que os ganhos obtidos com o
grande experimento iniciado em 1803 não mais justificavam as perdas declarasse que
não mais invalidaria qualquer lei por violação à Constituição. O que aconteceria após
impactante anúncio? Após passar em revista algumas pequenas perdas e ganhos que se
seguiriam sucessivamente entre liberais e conservadores, julga que os efeitos de pôr-se
de lado a judicial review, considerados ambos os lados, bem como todas as questões
488
A denominação “competência de competência” é utilizada por CARL SCHMITT (1983, p. 95), em sua
célebre discussão com HANS KELSEN sobre quem deveria ser o guardião da Constituição. Sendo o litígio
constitucional definido pelo tribunal constitucional, além de ser um conceito impróprio e ilimitado,
caberia à própria corte traçar e definir sua competência. Daí, a competência de competência.
489
Ressalte-se que muitas das disposições constitucionais são insuscetíveis de modificação legislativa,
mesmo em se tratando de emendas à Constituição, porquanto estão contempladas por cláusulas pétreas.
Então, o conteúdo de tais normas, inclusive dos direitos fundamentais que são fortemente marcados pelo
alto teor de abstração, passa a ser definido quase que exclusivamente pelo Supremo Tribunal Federal.
490
Cf. TUSHNET, 1999, p. 154.
178
envolvidas, seriam muito provavelmente bem pequenos. Mais do que isso, eliminando-
se o controle judicial haveria um efeito bem específico: far-se-ia retornar ao povo
politicamente atuante a tomada de todas as decisões constitucionais.
Conforme salientado na Introdução, novamente, na primavera de 2005,
TUSHNET
491
voltou a suscitar o debate entre constitucionalistas e filósofos, com a
publicação do artigo Democracy versus Judicial Review: is it time do Amend the
Constitution? Não se fez demorar muito, e as respostas sucederam-lhe a indagação.
LAURENCE TRIBE
492
e JEREMY WALDRON
493
, prontamente, apresentaram-se a contestar-
lhe a proposta. Em seguida, a réplica de TUSHNET
494
; tudo numa elegante discussão de
direito constitucional.
MARK TUSHNET
495
, lastreado por influxos radicalmente democráticos,
supusera a promulgação de emenda à Constituição, que acabaria com a prática da
judicial review (End Judicial Review Amendment EJRA)
496
. Energicamente rejeitada
por TRIBE, causou em WALDRON reações contraditórias de entusiasmo e apreensão.
Entusiasmado quedou-se tendo em vista que não era sem tempo começar-se a pensar
a judicial review em termos democráticos e parar de aceitá-la simplesmente por
funcionar bem em alguns casos. Apreensivo se viu, de outra parte, por causa da reação
que se levantaria contra TUSHNET, que a maioria dos professores norte-americanos
está envolvida com a judicial review. Em geral, esses acadêmicos acreditam que, com a
Suprema Corte, não se corre o risco de deparar-se com decisões mal fundamentadas
491
Cf. TUSHNET, 2005a, p. 59-63.
492
Cf. TRIBE, 2005, p. 81-83
493
Cf. WALDRON, 2005, p. 83-85
494
Cf. TUSHNET, 2005b, p. 85-86.
495
Cf. TUSHNET, 2005a, p. 59.
496
A seguir, repete-se o teor da EJRA: “Salvo autorização do Congresso, nenhuma Corte dos Estados
Unidos ou de qualquer um dos Estados terá o poder de revisar a constitucionalidade das leis editadas pelo
Congresso ou por qualquer das legislaturas estaduais”.
179
sobre os direitos ou coercitivamente impostas. A racionalidade judicial asseguraria os
direitos constitucionais, tese da qual WALDRON definitivamente não se convenceu
497
.
Além dessas duas reações, uma terceira, preocupada mais com um
pormenor, haveria despertado a argúcia de JEREMY WALDRON. Trata-se da palavra
“revisão” (ou “controle”, de judicial review), cujo significado pode variar
498
. Destaca o
autor que a corte britânica pode “rever” as leis parlamentares, na medida em que detém
a atribuição de emitir uma “declaração de incompatibilidade” da norma com os direitos
da Convenção Européia e do Human Rights Act (HRA)
499
. O poder de revisão, contudo,
não corresponde a uma declaração de inconstitucionalidade, que o retira a norma
do ordenamento jurídico, nem importa sua não aplicação ao caso concreto; mas autoriza
a utilização de um procedimento legislativo sumário para sua retificação. WALDRON
vislumbra no modelo britânico o que tem se denominado de “controle judicial fraco”
(weak-form judicial review). Então, finaliza sua resposta a TUSHNET com a sugestão de
que, talvez, o controle fraco fosse a melhor alternativa para a Democracia
constitucional: o melhor dos dois mundos, em relação à forma de controle judicial dos
Estados Unidos e àquela preconizada pela EJRA.
Assim, retorna-se a anterior questionamento de MARK TUSHNET
500
, que
integra o eixo central desta dissertação: quais arranjos institucionais que imponham
497
Com efeito, WALDRON (2005, p. 84) acredita que o raciocínio desenvolvido nas decisões da Suprema
Corte deixa de lado as questões verdadeiramente importantes, atendo-se mais a precedentes, história legal
e teorias de interpretação. Lembra que, no voto de cinqüenta páginas de ROE v. WADE (1973), em que se
discutira sobre a constitucionalidade ou não da prática do aborto, apenas dois parágrafos detiveram-se de
fato na questão importante: o status jurídico do feto; no mais, as demais páginas dedicaram-se à
exposição de teorias e interpretações divergentes sem maiores repercussões para o caso. Ao passo que o
legislativo tende a ir diretamente ao cerne do tema. O parlamento britânico, por exemplo, no debate sobre
o aborto, focou os aspectos relevantes: o status jurídico do feto, as dificuldades da gravidez, a importância
da liberdade, da escolha e da privacidade, os conflitos morais relacionados, as questões pragmáticas sobre
a execução da lei, o risco de vida das práticas clandestinas do aborto, etc.
498
Cf. WALDRON, 2005, p. 85.
499
Sobre o controle judicial inglês, à luz do HRA, de 1998, que internalizou as principais disposições da
Convenção Européia relativas aos direitos humanos, vide: PERRY, 2003, p. 665-673; GARDBAUM,
2001, p. 709-711 e p. 732-739; ELLIOT, 2001, p. 301-336.
500
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 353.
180
limites ao autogoverno do povo poderiam ser legitimamente justificados
501
? Seria a
weak-form judicial review uma resposta acertada para a indagação?
A denominação controle judicial fraco foi introduzida no cenário
constitucional por MARK TUSHNET
502
, não obstante o sistema em si não seja tão novo.
O controle fraco (weak-form judicial review) opõe-se ao “controle judicial forte”
(strong-form judicial review)
503
. Modelo por excelência em prática nos Estados Unidos,
a strong-form of judicial review caracteriza-se pela autoridade geral da decisão do
tribunal constitucional na determinação do significado da Constituição e pelo caráter
impositivo e obrigatório (authoritative and binding) da interpretação constitucional em
relação aos outros Poderes a curto e médio prazo
504
, por causa dos difíceis
procedimentos de reforma à Constituição e da tradição cultural de deferência às
determinações judiciais
505
. O grande problema a macular o controle judicial forte,
segundo MARK TUSHNET
506
, consiste na incapacidade de esse modelo satisfazer as
condições de extenso e aberto diálogo sobre o significado da Constituição, tendo em
vista que as decisões judiciais dependem dos juízes individuais.
O controle judicial fraco contrapõe-se ao caráter vinculante e irreversível
da interpretação constitucional por uma corte suprema, única e exclusivamente
considerada. Sua origem está ligada à Carta de Direitos e Liberdades do Canadá
(Canadian Charter of Rights and Freedoms), de 1982, que influenciou outras ordens
501
É a mesma pergunta que se faz STEPHEN GRIFFIN (2000, p. 683-684), ao anotar que os debates mais
sofisticados em torno da judicial review têm deixado de lado a velha questão da dificuldade
contramajoritária.
502
Cf. TUSHNET, 2003b, p. 2781-2802; 2003d, p. 353-379.
503
Para crítica à distinção de TUSHNET, ver: SINNOTT-ARMSTRONG, 2003, p. 381-392. Para STEPHEN
GARDBAUM (2001) essas duas concepções correspondem a duas tradições distintas: a strong-form, ao
modelo norte-americano do constitucionalismo; a weak-form, ao modelo britânico do constitucionalismo,
no qual se enquadra a Constituição do Canadá.
504
Cf. TUSHNET, 2003b, p. 2784.
505
Cf. TUSHNET, 2003c, p. 89.
506
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 355-356.
181
constitucionais como a da Inglaterra, a partir do HRA, e a da Nova Zelândia
507
. O
controle fraco se propõe a assegurar a proteção dos direitos individuais e reduzir os
riscos de uma inapropriada interferência no autogoverno democrático. Além do mais, a
weak-form admite abertamente a possibilidade de o legislador estabelecer interpretações
que difiram daquelas interpretações constitucionais, judicialmente elaboradas
508
.
Reveste-se, assim, de especial potencial para quebrar o monopólio da Constituição ou
sua doação a uma única instituição estatal, ao resgatar e valorizar o papel do Poder
Legislativo na interpretação constitucional cuja propensão para refletir os desígnios
populares é muito maior do que a do Poder Judiciário. Por isso, o controle judicial
fraco consubstancia um importante mecanismo institucional que se deixa reconduzir à
noção da Constituição procedimental.
Para MARK TUSHNET
509
, três características principais separam a weak da
strong-form: a primeira consiste no poder de a legislatura repudiar as especificações do
tribunal constitucional; a segunda, no processo interativo de especificação e de revisão
que pode ocorrer sobre um período relativamente curto. A outra diferença importante
entre os dois sistemas de controle, identificada por TUSHNET
510
, dá-se em relação à
exposição do tribunal constitucional à força das mais diversas opiniões. O não estar
submetida à opinião pública faz com que a corte creia ser ela a única quem decide e em
caráter definitivo. É essencial existirem caminhos de fácil acesso ao povo para
responder às decisões judiciais, como também procedimentos simples para que os
tribunais revisem suas próprias decisões. A possibilidade de reedição do ato legislativo
tem o mérito de provocar a imediata reconsideração da decisão judicial e de sua crítica.
507
Cf. TUSHNET, 2003b, p. 2784-2785.
508
Cf. TUSHNET, 2003a, p. 814.
509
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 369.
510
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 366-367.
182
O caso mais ilustrativo da adoção da weak-form of judicial review é o da
Carta de Direitos e Liberdades do Canadá que, na seção 33, adota a “cláusula não
obstante” (notwithstanding, non-obstante ou override clause)
511
. A cláusula não
obstante permite ao legislador reeditar a lei declarada inconstitucional pela Suprema
Corte do Canadá, em face da seção 2 (que compreende os direitos fundamentais à
liberdade de consciência, de expressão, de associação e de reunião) e das seções 7 a 15
(referentes ao direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa, liberdade de o vir a
ser irrazoavelmente investigado, confiscado, preso ou detido, além do direito à
igualdade dentre outros) da Carta de Direitos
512
. Vale ressaltar que muitos dos direitos
fundamentais nela contemplados não são abrangidos pela seção 33. A cláusula não
obstante, malgrado suscitasse grande controvérsia quanto à sua natureza, finalidade e
eficácia, vem para resgatar a importância do parlamento, sem, no entanto, ignorar ou
desconsiderar os direitos fundamentais.
Nesse sentido, historiam DAVID JOHANSEN e PHILIP ROSEN
513
que ela
adveio de alguns esparsos precedentes legislativos canadenses, os quais determinavam
que a Bill of Rights tinha primazia nos conflitos legislativos, a não ser que a cláusula
511
A seção 33 da Carta de Direitos e Liberdades do Canadá, de 1982, estabelece:
“Exceção à expressa declaração
33 (1) O Parlamento ou a legislatura de uma província pode expressamente declarar em Ato do
Parlamento ou da legislatura, conforme o caso, que seu Ato ou disposição produzirá efeito não obstante a
cláusula inclusa na seção 2 ou seções 7 a 15 desta Carta.
Produção excepcional de efeitos
(2) Um Ato ou disposição de um Ato a respeito do qual se fez a declaração sob esta seção produzirá
efeitos válidos como se ele o fosse, apesar da cláusula desta Carta a ela referida na declaração.
Limitação de cinco anos
(3) A declaração feita sob a subseção (1) cessará seus efeitos cinco anos após sua aplicação ou em data
anterior, a ser especificada na declaração.
Reedição
(4) O Parlamento ou a legislatura de uma província pode reeditar a declaração feita sob a subseção (1).
Limitação de cinco anos
(5) Subseção (3) aplica-se no que se refere à reedição feita sob a subseção (4).”
512
Segundo expõe TUSHNET (2003b, p. 2784-2785), a institucionalização da weak-form, na Carta de
Direitos do Canadá, permite ao legislador determinar que uma norma apesar de possivelmente
encontrar-se em conflito com a Constituição (segundo a corte) venha produzir efeitos. Ou seja, com a
notwithstanding clause afasta-se o caráter vinculante e definitivo da interpretação constitucional da
Suprema Corte a curto prazo, na medida em que, em discordando da interpretação judicial, o Poder
Legislativo poderá reeditar o ato normativo anteriormente considerado inválido. Vale notar
513
Cf. JOHANSEN and ROSEN, 2005, p. 2-3.
183
não obstante fosse invocada. Eles noticiam que tal instituto teria sido primeiramente
proposto, em 1980, durante as deliberações do comitê de ministros responsáveis por
questões constitucionais. Após discussões referentes a quais direitos seriam englobados
pela eficácia da cláusula, ao tempo de sua vigência e à possibilidade de reedição das leis
tidas por inconstitucional, em novembro de 1981, todos os governos canadenses, à
exceção do de Quebec, consentiram com o Ato Constitucional, que instituía a cláusula
não obstante. Os participantes das conferências ministeriais (parlamentares e grandes
autoridades) divergiam profundamente sobre o uso dela.
Para uns, a exemplo do premier de New Brunswick, os direitos deveriam
ser compartilhados por todos igualmente, o que poderia ser comprometido pela cláusula.
Para outros, como o procurador geral de Manitoba, os direitos seriam protegidos não
pela Constituição, mas principalmente pelo direto político do povo que daria
continuidade ao projeto constitucional. Também se viu, nela, um mecanismo de
balanceamento entre a corte e o parlamento. No entanto, o argumento predominante,
defendido pelo primeiro ministro do Canadá, sustentava que embora a cláusula não
obstante pudesse ser objeto de abuso ela asseguraria ao Poder Legislativo a última
palavra. Em sua complementação, pronunciou-se o ministro de justiça do Canadá, para
afirmar representar ela uma válvula de segurança que dificilmente seria utilizada, salvo
para assegurar a última palavra ao legislador nas questões de políticas públicas de
extrema relevância. Permitiria, portanto, a notwithstanding clause que a decisão
judicial não prevalecesse sobre a política, que teria amplo respaldo popular
514
. Eis,
portanto, seu objetivo fundamental.
Conforme pouco referido, a cláusula não obstante é muito
controversa. Ainda hoje, passados mais de vinte anos de vigência da Carta de Direitos
514
Cf. JOHANSEN and ROSEN, 2005, p. 3-7.
184
do Canadá, desperta opiniões opostas e não oportunizou aos críticos formularem um
retrospecto inequívoco sobre a história de sua aplicabilidade. Para MARK TUSHNET
515
, a
weak-form não é uma instituição estável, tendo em vista que pode transmutar-se para a
strong-form, dada a raridade da utilização da override pela Suprema Corte do Canadá.
No entanto, é necessário perceber, com KENT ROACH
516
, que a notwithstanding clause
deve ser entendida a partir de uma compreensão mais ampla da judicial review. A nova
abordagem, destacada pelo professor da Universidade de Toronto, propõe-se a conceber
o “controle de constitucionalidade como forma de diálogo entre a corte e o parlamento”
(judicial review as a form of dialogue between courts and legislatures)
517
. Dessa feita,
há quatro modos por que o diálogo interinstitucional poderia se realizar: (a) o legislador
não manifestaria qualquer reação contra a decisão judicial; (b) o legislador editaria nova
lei em conformidade com o parâmetro fixado pela corte; (c) poderia, ainda, o legislador
refazer o diploma legal com leves alterações, mas sem alterar as disposições mais
questionadas pela corte; (d) por fim, sendo-lhe permitido valer-se da override clause, o
legislador editaria ato idêntico ao declarado inconstitucional o obstante a decisão
judicial.
A infreqüente utilização da cláusula o obstante, ao contrário do que
supõe TUSHNET, o pode ser atribuída a uma falha estrutural da Carta de Direitos,
porquanto deve ser lida a partir do contexto integrado pelo processo de diálogo entre os
Poderes
518
. Nesse ponto, KENT ROACH
519
é categórico: embora o seja comumente
utilizada no Canadá, a override clause é o melhor caminho de diálogo entre cortes e
515
Cf.: TUSHNET, 2003c, 89 e ss; 2003b, p. 2786-2801; 2005b, p. 85.
516
Apud TUSHNET, 2003c, p. 90 e ss.
517
Cf. ROACH, 2005, p. 537-538. Sobre a judicial review como processo de diálogo entre o Poder
Legislativo e o Poder Judiciário, vide: HOGG and BUSHELL, 1997, p. 79 e ss.
518
É claro que a falta de resposta legislativa pode advir das circunstâncias políticas, das falhas no
processo de formação da vontade política, da própria complexidade do sistema do processo legislativo, do
“custo político” de reeditar a lei considerada inconstitucional, da inércia legislativa, dentre outros
motivos. Para análise mais detida sobre os aspectos negativos, ver: TUSHNET, 2003c, p. 89 e ss;
ROACH, 2005, p. 542-546; GOLDSWORTHY, 2003, p. 451-472.
519
Cf. ROACH, 2005, p. 543.
185
legislativos, os quais podem usá-la para resolver difereas intratáveis entre as duas
instituições, sinalizando à sociedade o que está sendo feito.
No entanto, tais motivos, antes de desestimularem a adoção do controle
judicial fraco, devem conferir maior plausibilidade ao argumento. Primeiro, porque a
regra que se introduz com a notwithstanding clause não induz qualquer modificação
interna, no que tange à atividade judicial de fiscalização da constitucionalidade
520
. A
diferença, em termos do procedimento, só se verifica se a decisão judicial for rechaçável
aos olhos do legislador, hipótese em que podeproceder à overrule. Para tanto, de
transpor-se o fardo da inércia legislativa
521
. Contudo, o importante mesmo é que a
cláusula não obstante consiste em interessante caminho de acomodação do argumento
da Democracia e do argumento de investir o tribunal constitucional de poderes para a
proteção dos direitos humanos. Cuida-se de “elegante compromisso” que, no Canadá,
atribuiu à Suprema Corte a capacidade de dizer a “penúltima palavra” (penultimate say),
tal qual reconhece MICHEAL PERRY
522
. Ou seja, ela vai de encontro à autoridade do
Poder Judiciário que lhe atribui a condição de intérprete último da Constituição.
Em segundo lugar, a override da decisão judicial, em regra, não deve ser
rotineira, até porque, no paradigma procedimental do Estado de Direito, espera-se que o
Poder Judiciário cumpra efetivamente com seu papel de tutor do processo discursivo da
520
Por isso, MARK TUSHNET (2003c, p. 89; 2003a, p. 813-820) diagnostica que o debate entre a
supremacia legislativa e a supremacia judicial está acabado e aquele entre o ativismo e a autocontenção
judiciais pode estar sendo mal conduzido.
521
Cf. PERRY, 2003, p. 670. Apesar de se ostentar contra a cláusula não obstante o risco de ameaça à
integridade dos direitos fundamentais, a principal crítica sofrida reside na inércia do legislador em
reverter a decisão judicial. Por esse motivo, TUSHNET (2003a, p. 824-837; 2003b, p. 2786-2801) mostra-
se hesitante quanto à sua estabilidade em manter a prática institucional (a da weak-form) que ela própria
outorga, dado que pode converter-se em strong-form, a despeito de o momento de instituição da forma de
controle ser o do ato fundacional da Constituição. Na weak-form, a não reação legislativa pode decorrer
da aceitabilidade da decisão judicial pelo legislador (TUSHNET, 2003d, p. 368); na strong-form a
reação formal será por dois motivos: ou pela aceitação, ou pela sensação de inutilidade (e dificuldade) de
reverter, através dos canais políticos a decisão judicial. De toda forma, a insatisfação de TUSHNET com o
controle judicial fraco mostra-se plenamente compreensível, que seu projeto, muito mais radical ainda,
lança-se para além de qualquer forma de controle judicial da constitucionalidade, vez que pretende retirar
a Constituição dos tribunais (1999; 2005a, p. 56-63; 2005b, p. 85-86).
522
Cf. PERRY, 2003, p. 667-670.
186
formação da vontade política. Trata-se de aplicá-la àquelas questões em que em face
de sua natureza altamente controversa e a fim de assegurar a respeitabilidade ao
processo racional de discussão política a decisão judicial, no controle concentrado,
venha acarretar a sobreposição dos discursos de justificação pelo discurso judicial
(judicialização da política), com a inevitável supressão da autonomia jurídica do
cidadão. Ora, a característica maior da Democracia deliberativa é fazer com que os
cidadãos sintam-se a um tempo autores e destinatários da norma. E a
notwithstanding clause tem aptidão para fazer prevalecer a autoridade da vontade
política construída discursivamente, bem como as autonomias pública e privada dos
cidadãos manifestada através do processo de formação da opinião e da vontade política.
A essas dificuldades, sobretudo, concernidas à inércia do legislador,
opõe-se outra que decorreria, ao revés, do extremo ativismo do legislador que poderia
ocasionar um retrocesso do constitucionalismo e a desconsideração dos direitos
humanos. A weak-form, agora, depara-se com a seguinte pergunta: como garantir e
proteger os direitos fundamentais?
A crítica é fulcral. Deve ser enfrentada, porém, por dois caminhos
distintos. O primeiro diz respeito ao pressuposto de onde parte. Relacionado com
primeiro, o outro caminho averigua os efeitos a serem gerados.
Pode-se afirmar, ainda hoje, que as justificativas que fundamentam o
controle de constitucionalidade se baseiam na falsa premissa de que os legisladores,
sempre ou quase, representam uma ameaça ao sistema de direitos positivos
523
, ao passo
que os juízes corporificariam o ente que zelaria por esses direitos. Na mesma linha,
523
Não se desconhecem, entretanto, os descompassos existentes entre a vontade popular e a vontade das
pessoas responsáveis pela representação política. Sobre as falhas do processo de representação política,
confira: BÖCKENFÖRDE, 2001, p. 154-158; HABERMAS, 2001a, p. 520 e ss. Recomenda-se, ainda, a
leitura da dissertação de LEONARDO AUGUSTO DE A. BARBOSA (2005, p. 101-104 e p. 116-117) que
aponta, no Brasil, a existência de certo imaginário social acerca do legislador, fundado no descrédito do
Congresso, em parte advindo de alguns preconceitos relacionados à atividade legislativa e em parte
decorrente de atos cometidos pelos representantes do povo, que estremecem a relação de confiança entre
representantes e representados.
187
acredita-se que o discurso judicial detém certa ascendência sobre o legislativo e que,
numa situação de conflito, deveria ser dada prevalência ao discurso judicial. Aliás, esse
entendimento, que se vai sedimentado na prática judicial, acaba por caracterizar a
supremacia do Poder Judiciário em face do Legislativo
524
.
De logo, contrapõe-se uma indagação. Quem dela cogita é ROBERTO
GARGARELLA
525
: que conexão entre um órgão judicial contramajoritário e o
asseguramento da melhor proteção aos direitos da minoria? Do fato de os juízes não
representarem a maioria, numericamente falando, não deriva necessariamente serem
representantes ou terem qualquer ligação especial com alguma da infinita diversidade de
minorias. Para GARGARELLA, essa relação decorre da falácia do argumento que,
indevidamente, associa o caráter contramajoritário dos juízes com a suposta tarefa de
defender as minorias.
Essa primeira indagação, umbilicalmente ligada à tradicional concepção
política subjacente à teoria de HAMILTON e MARSHALL, não é compatível com o
paradigma aqui adotado. É interessante, assim, deter-se nas considerações de STEPHEN
GRIFFIN
526
, que abre o debate para uma nova política do controle judicial (new politics
of judicial review).
STEPHEN GRIFFIN inicialmente admite que a judicial review fora
concebida como instrumento idôneo para conter os excessos do Congresso, segundo o
entendimento bem familiar da política norte-americana. Ocorre, todavia, que a política
contemporânea é bem mais complexa do que o quadro descrito anteriormente, em que
os teóricos ocupavam-se da tensão entre maioria e minoria legislativas. Ao mesmo
524
JOÃO MAURÍCIO ADEODATO (2003, p. 94), sinteticamente, retrata bem essa conjuntura: “A perspectiva
judicialista parte de dois pressupostos teóricos que não são, de modo algum, óbvios, ainda que façam
parte de uma respeitável tradição na teoria jurídica ocidental mais recente: a um, o direito é visto
sobretudo a partir do conflito e da necessidade de seu controle; a dois, de modo correlato, o direito é
definido, em última instância, principalmente por meio da atividade do juiz”.
525
Cf. GARGARELLA, 1997, p. 63-65.
526
Cf. GRIFFIN, 2000, p. 685-688 e p. 695-701.
188
tempo, em análise da história norte-americana, GRIFFIN constatou, a partir de alguns dos
precedentes judiciais mais recentes, que a Suprema Corte tem se afastado da tarefa de
proteger os direitos civis, enquanto o Congresso vem intensificando a proteção desses
mesmos direitos através de várias medidas políticas. O professor norte-americano
argumenta que qualquer descrição do contexto institucional da judicial review deve
levar em consideração a grande solicitude do Congresso nas políticas dos direitos civis.
Ou seja, a conduta do parlamento tem contribuído para quebrar a velha imagem segundo
a qual o Judiciário simbolizaria o último reduto de defesa da sociedade, em se tratando
da proteção dos direitos das minorias. Como reconhece STEPHEN GRIFFIN, a nova
postura assumida pelo Congresso não impede que se venham editar leis em desacordo
com o parâmetro constitucional, o que de fato tem ocorrido. Justamente residiria a
justificação do controle de constitucionalidade, dentro da postura a ser assumida. O
controle judicial não mais se prestaria à guarita dos direitos da minoria contra a maioria
parlamentar, e sim à proteção dos direitos que se encontram em conflito, cooperação,
competição e consenso entre os poderes do governo
527
.
Como se percebe, o Poder Legislativo começa a chamar para si a
responsabilidade de assumir seu papel na construção e na interpretação da Constituição
que, em seu sentido performativo, exige a participação política ativa, a qual também se
realiza através dos representantes do povo. De forma que a crítica séria da judicial
527
A concepção de judicial review de STEPHEN GRIFFIN (2000, p. 698-701), mesmo buscando suas bases
na noção de Democracia deliberativa, assenta-se no que ele denomina de “Democracia de direitos”
(Democracy of rights), cujas três principais características são: (a) os direitos individuais constitucionais e
legais o importantes e aproveitáveis por todos; (b) todos os três Poderes do governo têm tido algum
sucesso na criação, promoção e efetivação desses direitos; por fim, (c) o Poder Judiciário é claramente
reconhecido como o fórum chave para o teste dos direitos reclamados pelos interesses políticos, que
suportam ou se opõem às nomeações a fim de cumprir determinada agenda de direitos. Então, afigura-se
difícil à corte afugentar-se da politização (ou democratização) do processo de nomeação de seus
membros, o que, por conseguinte, retira dela qualquer predestinação quanto ao cumprimento de algum
papel especial além daqueles desenvolvidos pelos demais Poderes. A democratização da corte, portanto,
significa que ela está seduzida pelas mesmas contendas políticas que ocupam os demais poderes. Enfim,
na nova perspectiva, não importa o caráter contramajoritário ou o de algum dos três Poderes; enfatiza-
se quem melhor cria e efetiva os direitos. Na girada procedimentalista aqui tomada, é relevante
determinar, destarte, quem tem a maior aptidão para refletir os anseios populares e mostra-se mais apto à
formação discursiva da vontade política.
189
review precisa afastar-se do caráter contramajoritário, bem como da discussão em torno
da preponderância entre a supremacia da soberania popular ou dos direitos, para fixar-se
na plausibilidade prática da idéia de acordo com a qual, na Democracia contemporânea,
direito e política andam lado a lado
528
.
Além do mais, numa aproximação empírica, não se pode esquecer que o
Poder Judiciário falha em sua tarefa de proteger e de prover os direitos
529
. Observe-se
que mesmo MICHELMAN
530
, ao assumir o pressuposto da supremacia judicial, rejeita à
judicial review o atributo da infalibilidade, que, extremada, conduziria à visão
“profética” da Suprema Corte. MARK TUSHNET
531
, a sua vez, dedica um capítulo inteiro
de seu livro, Taking the Constitution Away from the Courts, para analisar crítica e
comparativamente a realidade judicial e legislativa, à luz da questão da capacidade”
(the question of capability). Trata-se de exame minucioso das duas instituições, que,
sem dúvida, auxilia na construção igualitária da imagem dos dois Poderes e na
desconstrução de uma imagem profética do tribunal constitucional. Com efeito, é
bastante comum observar que a contraposição entre Poder Legislativo e Judiciário é
levada a cabo em perspectivas distintas: o discurso jurídico é considerado em condições
ideais; já o político, na inerente faticidade das práticas sociais
532
.
Os juízes sabem que os legisladores interpretam a Constituição, mas
argumentam que eles se preocupam mais com a corrida pelas eleições e com as
necessidades políticas momentâneas do que com as considerações constitucionais
533
.
528
Cf. GRIFFIN, 2000, p. 700-701.
529
Cf. GRIFFIN, 2000, p. 700.
530
Cf. MICHELMAN, 2003, p. 604-606.
531
Cf. TUSHNET, 1999, p. 54-71.
532
A propósito, MARK TUSHNET (1999, p. 56) traduz essa idéia nas seguintes palavras: “A Suprema
Corte, em seu melhor momento, é nitidamente melhor do que o Congresso, em seu pior. Mas o
Congresso, em seu melhor momento, é melhor do que a Suprema Corte, em seu pior”.
533
Cf. TUSHNET, 1999, p. 55. HABERMAS (2001a, p. 339), concordando com ELY, admite que a
compreensão paternalista do controle de constitucionalidade, em parte, advém da desconfiança dos
juristas contra a racionalidade do legislador ligado às luta pelo poder e às opiniões majoritárias
determinadas pela emoção e estados de ânimos cambiantes.
190
Mas essa pré-compreensão, em muitos casos, não corresponde à realidade. É preciso
não se esquecer que muitos dos atos legislativos são objeto de alta elaboração jurídica,
de audiências com juristas, advogados e acadêmicos, de pareceres e consultas que os
legisladores solicitam aos juristas, tudo isso a comprovar que os políticos levam a
Constituição a sério
534
. Confirma TUSHNET que muitos dos legisladores são verdadeiros
tolos em matéria constitucional, mas rebate a crítica, sob a alegação de que não seria
difícil elaborar lista de justices a respeito dos quais se pudesse dizer a mesma coisa e
que vários membros do Congresso estão interessados na produção de boas políticas
públicas, nas questões constitucionais, no respeito aos colegas etc. O cerne da questão,
portanto, é que ambos os Poderes cometem erro
535
. Nada mais natural, pois, consoante
afirma HABERMAS
536
, todos estão inseridos num processo contínuo e reflexivo de
aprendizagem. Falta, portanto, simetria de perspectivas no tratamento das abordagens
das atividades do Poder Judiciário e do Legislativo.
E o que dizer do processo decisório judicial, em termos empíricos? Sem
adentrar a indagação, limitar-se-á à crítica de ROBERTO GARGARELLA
537
, igualmente
recorrente àqueles que examinam criticamente os fundamentos justificantes da judicial
review. Pontua GARGARELLA que o poder judicial não se encontra tão alheio aos tipos
534
Cf. TUSHNET, 1999, p. 60 e ss.
535
Cf. TUSHNET, 1999, p. 57.
536
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 398 e ss.
537
Cf. GARGARELLA, 1997, p. 63. Exemplifica a hipótese com diversas decisões judiciais que
resultam do auto-interesse dos juízes. No Brasil, JOÃO MAURÍCIO ADEODATO (2002, p. 261-283), na
linha da teoria da argumentação, desenvolve o tema da retórica entimemática, que demonstra o modus
operandi do discurso jurídico na prática. Alega o professor do Recife que as decisões judiciais o se
estruturam com base no silogismo apodítico (premissa maior – norma, premissa menor – fato e conclusão
decisão), e sim a partir do silogismo retórico (entimema), que funciona como estratégia legitimadora
das decisões pessoais já tomadas pelo juiz com base nos mais variados motivos (pessoais, sociais,
culturais, econômicos etc.). Assim, dá-se uma inversão da ordem estrutural do silogismo, porque o juiz
primeiro decide (conclusão) e, após, vai buscar no ordenamento jurídico a norma regente (premissa
maior), pretendendo legitimar sua decisão. Assim, JO MAURÍCIO (2003, p. 96) afirma que o Judiciário
tem sido casuístico em suas decisões, tornando-se difícil encontrar algum vetor na fundamentação das
decisões que indique racionalidade e coerência na jurisdição constitucional brasileira. PAUL BREST
(1980-1981, p. 1105), a sua vez, mostra-se bastante impressionado pelo fato de que os defensores da
Suprema Corte norte-americana são extremamente confiantes na estrutura de seu processo decisório, ao
tempo em que, curiosamente, nenhum deles examina a atividade judicial da Suprema Corte com os olhos
de sociólogo ou cientista político para verificar como essa instituição na prática opera e funciona.
191
de defeitos que acometem os outros Poderes políticos, ainda que, em relação a ele, tais
interferências assumam forma peculiar. O que se quer deixar claro é que, à luz das
práticas sociais, judiciais e políticas, tanto o Poder Judiciário, quanto o Poder
Legislativo sofrem dos mesmos males que, ao final, implicam atos e interpretações não
reconduzíveis à Constituição. Logo, o argumento de que os juízes são melhores do que
os legisladores, no ofício de interpretar a Constituição, não se sustenta mesmo numa
perspectiva empírica
538
.
de considerar-se, agora, o segundo caminho da crítica contra a
notwithstanding clause, que torna seus opositores apreensivos quanto à manutenção dos
direitos fundamentais. Tamanho temor, vale dizer, não passou incólume ao debate
canadense. Revelam DAVID JOHANSEN e PHILIP ROSEN
539
que seus críticos viam-na
inconsistente com o “entrincheiramento” (entrenchment) dos direitos humanos;
“direitos são direitos”, diziam. Em que consistiriam as liberdades do indivíduo se elas
podem ser desconsideradas por lei, não obstante estarem garantidas pelo texto da
Constituição? Os direitos constitucionais, a fim de serem efetivados, devem submeter-
se à interpretação judicial e serem protegidos dos excessos legislativos.
Mais uma vez estão implícitas a tal percepção duas prenoções. A
primeira é a da identificação entre o que a Constituição é e o que o tribunal
constitucional diz a Constituição ser (the Constitution is what the judges say it is). A
segunda, que lança mão do exemplo ad terrorem, é a de que somente o legislador
transgride a Constituição, e o tribunal constitucional impediria sua violação. Tanger-se-
538
Reconhece-se, contudo, em acordo com HABERMAS (2001a, p. 339-340 e p. 477), que os discursos
judiciais têm em seu favor uma presunção de racionalidade comparativamente alta, dada a própria
natureza (de aplicação) com que devem desenvolver-se. No entanto, a alta autoridade científica do
discurso judicial, em hipótese alguma, deve ser invocada em favor da defesa de sua superioridade em
detrimento do discurso político, o qual é resultado da fundamentação de normas e objetivos, além de
exigirem a participação de todos os afetados. Não é factível que as características inerentes ao discurso
jurídico venham impor aos demais uma compreensão da Constituição, da qual os cidadãos devem, de
logo, convencer-se.
539
Cf. JOHANSEN and ROSEN, 2005, p. 10.
192
á o segundo aspecto, tendo em vista que o primeiro fora objeto de anteriores
ponderações ao se tratar da temática da supremacia judicial.
Antes, porém, cabe rememorar que a política deliberativa no Estado
Democrático de Direito reclama por um povo acostumado à liberdade e imbuído da
cultura de participação política
540
. Ou seja, uma população que, no exercício de sua
autonomia pública de cidadão, busca a preservação daqueles direitos integrantes da
esfera privada dos sujeitos. Isso porque a autonomia pública, assegurada pelos direitos
de comunicação e de participação (soberania popular), e a autonomia privada, em que se
demarca o âmbito das liberdades subjetivas (direitos humanos), pressupõem-se
reciprocamente; estão em relação de eqüiprimordialidade.
A legitimidade do direito está na preservação da relação equânime entre
as autonomias pública e privada. Quer-se dizer: os direitos humanos são aqueles os
cidadãos reconhecem a si próprios enquanto tal. A vontade autodeterminante do povo é
que molda os direitos atribuídos a si mesmos e define sua extensão e seu alcance
541
.
Também assim ocorre com a configuração dos direitos fundamentais, previstos na
Constituição. Segundo HABERMAS
542
, a interpretação dos princípios constitucionais
enraíza-se na cultura política dos cidadãos, que depende de cada contexto histórico e
cultural. Há um horizonte interpretativo comum no interior do qual se discute
publicamente a autocompreensão dos cidadãos sobre esses princípios. Assim, o que
está em jogo, na verdade, é a discussão sobre “a melhor interpretação dos mesmos
direitos e princípios fundamentais
543
; aquela que melhor reflita o contexto social da
comunidade determinada, no aqui e no agora. E, somente através do processo de
540
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 290-295.
541
Cf. GALUPPO, 2003, p. 213-238. Na reconstrução do significado dos direitos fundamentais à luz da
teoria discursiva habermasiana, MARCELO GALUPPO, identificando o caráter histórico deles, admite ser
impossível chegar-se a um “conceito simplesmente conotativo e absoluto de direitos fundamentais”.
542
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 254-255.
543
HABERMAS, 2002b, p. 254.
193
comunicação e discussão pública que se abre a todas as vozes potencialmente
envolvidas e considera por igual todos os interesses, é que se poderá atingir a melhor
interpretação constitucional.
A partir desse enfoque, não parece justificar-se o receio dos
oposicionistas contra a cláusula não obstante. Explica-se. Em termos normativos,
através da política deliberativa, considerada em toda sua amplitude, o legislador procura
editar leis que, de algum modo, dêem vazão aos anseios latentes na esfera pública,
dentro do marco normativo traçado pela Constituição
544
. Naturalmente, a diversidade
de pretensões, ancorada no pluralismo social e cultural da comunidade, desperta várias
interpretações divergentes entre si sobre o mesmo assunto. Então, a melhor
interpretação constitucional é aquela construída, a partir do processo discursivo de
formação racional da vontade, porque se presume a participação de todos os membros
da sociedade no processo de comunicação. Como se vê, a interpretação da Constituição
não se confina apenas à dimensão hermenêutica; a dimensão pragmática é
imprescindível. Dessa forma, a utilização da override clause serviria à restauração da
vontade coletiva publicamente justificada, que teria sido judicialmente afastada em
favor de outra pretensão discutida no processo político, mas não considerada portadora
do melhor argumento. Não se prestaria, pois, à violação dos direitos fundamentais ou à
exclusão da ordem jurídica
545
.
Tenha-se em mente a discussão jurídico-constitucional sobre a prática do
aborto. Com base nas ponderações de MICHEL ROSENFELD
546
, essa é uma questão de
difícil solução, pois as pessoas favoráveis à prática fundamentam, juridicamente, sua
posição no direito à liberdade individual, à autonomia e à igualdade da mulher; as
544
o custa lembrar que a política deliberativa desenvolve-se dentro do quadro articulado pelo direito
(HABERMAS, 2001a, p. 396), especialmente pela Constituição.
545
Não se pode desconsiderar, noutro giro, conforme aduz MARK TUSHNET (2003a, p. 816), que a
liberdade do legislador sofre espécie de limitação prática, fixada pela cultura política da comunidade.
546
Cf. ROSENFELD, 1994-1995, p. 1177-1179.
194
contrárias argumentam com o direito à vida do feto. Nessa hipótese, dada a diversidade
de questões (moral, ética, pragmática, religiosa etc.) a ser apreciada e considerando a
comunicação dialógica produzida no processo democrático de criação das leis, deve-se
conferir respeitabilidade à norma jurídica editada em face da presunção de legitimidade
de que goza, quer seja para permitir o aborto, quer seja para proibir sua prática. Os que
tiverem seu direito a tal prática preterido, no caso da proibição legal, poderão valer-se
do seu direito de acesso à justiça, a fim de demonstrarem que a restrição é ilegítima,
uma vez consideradas todas as circunstâncias concretas.
Não dúvida de que os direitos envolvidos no hard case do aborto são
direitos fundamentais. que uma decisão judicial que viesse a ser suplantada por
decisão política, com base no mecanismo da notwithstanding clause, não representaria a
desconsideração ou a violação a direito fundamental algum. Apenas, revelaria a forma
que uma sociedade, temporal e espacialmente determinada, integra-se socialmente pelo
direito, a partir do auto-entendimento moral, ético, cultural e religioso de si mesma.
Ora, o que se quer suscitar, por essa via, é o fato de que, na discussão das
questões polêmicas, não se está em jogo o respeito ou não aos direitos fundamentais,
mas, ao contrário, as diversas especificações e desdobramentos que desses direitos
fundamentais possam inferir-se. Essa distinção é, precisamente, o ponto que FRANK
MICHELMAN
547
destaca como mais polêmico da judicial review dentro do “positivismo
democrático”, em que o povo tem o direito de ser seu próprio legislador.
Inegavelmente, conclui o professor de Harvard, decorre do positivismo democrático o
direito de decidir não o conteúdo abstrato e geral dos cânones constitucionais
(canonical-textual formulations), com o qual todos concordam, mas também o sentido
aplicável dessas formulações dentre os vários existentes.
547
Cf. MICHELMAN, 2000-2001, p. 466.
195
É praticamente unânime a concordância de todos em torno dos princípios
assentados no texto constitucional (direito à vida, à igualdade, à liberdade individual, de
expressão, de associação etc.). No entanto, quando se chega ao momento de
especificação do conteúdo dessas normas constitucionais, abstratamente previstas, dar-
se-á um desacordo razoável relativamente à aplicação das normas a cada caso concreto.
E o processo de especificação das normas constitucionais consubstancia, sim, um
processo de criação de normas
548
, em que os cidadãos para entenderem-no legítimo
precisam sentir-se autores e partícipes da interpretação a ser consagrada.
A notwithstanding clause, assim, em princípio
549
, não acarretaria a
violação ou a eliminação de direitos fundamentais. Antes, faz prevalecer uma das
especificações ou aplicações que das normas constitucionais (abertas e abstratas) se
infere. Porque, no final de contas, está-se sempre a discutir a melhor interpretação dos
princípios constitucionais e, nesse sentido, a judicial review, tal qual conceituada por
MARK TUSHNET
550
, corresponde ao processo por meio do qual as cortes se limitam a
escolher uma entre as diversas especificações razoáveis concorrentes. Logo, entendida
dentro da proposta de MICHEAL PERRY, na qualidade de judicial penultimacy, a cláusula
não obstante mostra toda sua feição democratizante, que possibilita a manutenção da
vontade popular anteriormente manifestada no processo discursivo de formação da
opinião e da vontade política.
Ela teria ainda a importante função de institucionalizar um mecanismo de
interação dialética na relação entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, no tocante
à interpretação que se vem realizando da Constituição. Sem pretender eliminar a
judicial review retiraria qualquer possibilidade de doar a Constituição a um único órgão
548
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 357.
549
Seria muita ingenuidade defender-se que ela jamais daria margem a qualquer prática incompatível com
a Constituição, que todas as normas, os mecanismos e as instituições podem vir a ser desvirtuadas por
fins escusos e defesos perante o direito.
550
Cf. TUSHNET, 2003d, p. 359; 2005a, p. 59.
196
ou de monopolizá-la. A cláusula não obstante não propõe suprimir o controle
judicial
551
, e sim, a partir de uma perspectiva democrática, visa a restabelecer a
autoridade do Poder Legislativo na tarefa de interpretar a Constituição, na qualidade de
legítimo representante do povo. Ela institucionaliza a denominada judicial penultimacy,
isto é, a atribuição ao Poder Legislativo de dizer a última palavra sobre o que a
Constituição efetivamente significa. Logo, a override clause volta-se contra a
supremacia judicial, e não contra a judicial review ou a supremacia constitucional.
Eliminando-se a supremacia judicial, criam-se condições para promover
maior racionalidade discursiva ao processo de formação da opinião e da vontade
política, na medida em que, por um lado, permite-se o retorno da questão controversa à
esfera pública e, por outro, pressiona-se o próprio tribunal à melhor fundamentação de
suas decisões e ao auto-reconhecimento de seus próprios limites. Opera, destarte, a
notwithstanding clause como mecanismo que HABERMAS
552
, certamente, denominaria
de auto-reflexão institucionalizada do direito, afora o fato de propiciar o diálogo entre
os Poderes Legislativo e Judiciário. Para além disso, a cláusula não obstante viabiliza
que o controle abstrato da constitucionalidade, típica função pertencente ao Poder
Legislativo segundo a proposta original de HABERMAS
553
, ao menos em um segundo
nível de exame, retorne ao Poder Legislativo, onde efetivamente deveria ser exercido.
Nos casos de divergência entre a interpretação legislativa e judicial sobre os mesmos
princípios, assegura que a última palavra permaneça com o Poder Legislativo, a quem
cabe por fim
554
. E delegar ao parlamento a atribuição de dizer a última palavra, em
verdade, implica atribuí-la aos cidadãos que – na condição de autores e destinatários das
551
Cf. PERRY, 2003, p. 673-678.
552
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 309. Embora com o conceito “auto-reflexão institucionalizada do direito”
HABERMAS esteja se referindo à justificação discursivo-normativa da previsão do sistema recursal no
direito processual, a idéia é totalmente aplicável ao raciocínio aqui desenvolvido, principalmente porque,
nas palavras de HABERMAS, “a simples possibilidade de revisão obriga, ademais, aos tribunais a uma
fundamentação cuidadosa”.
553
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 314-315.
554
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 438.
197
normas constitucionais podem reverter a decisão (política ou judicial) porque os
canais do processo discursivo continuam abertos, mantendo-se íntegra a estrutura
circular e legitimadora do processo legislativo e judicial.
Com isso, na esteira do giro procedimentalista de HABERMAS, dá-se,
também aqui, o giro procedimentalista no controle de constitucionalidade. Agora,
restrito às condições procedimentais do processo de formação das leis, o controle de
constitucionalidade deve privilegiar o caráter discursivo da opinião e vontade política
que se forma na esfera pública, sem exercer qualquer forma de interferência indevida
555
.
Isso porque, conforme anotado no Item 4 do Capítulo I, a esfera pública assume a
função de verdadeiro sensor da sociedade que, em condições ideais, vem transformado a
própria sociedade e o Estado. Assim se protegeria o próprio discurso político de
justificação da usurpação (ou sobreposição) pelo discurso judicial, porquanto a decisão
judicial, não sendo definitiva, é reversível pelo Poder Legislativo. Apresenta-se,
portanto, a cláusula não obstante como importante instrumento contra a judicialização
da política
556
.
Dadas essas considerações em torno da notwithstanding clause, que
caracterizam o controle judicial fraco, é possível esboçar um arranjo institucional que
compatibilize o controle abstrato de constitucionalidade no Brasil com os reclamos do
Estado Democrático de Direito. que o poder de autodeterminação política pelo povo
permaneceria com ele mesmo, na medida em que sendo a esfera pública o ambiente
por natureza mais sensível aos clamores da população e estando o poder de dizer a
555
Lembra TUSHNET (2003d, p. 366-367), uma das notas distintivas da weak-form é a exposição das
decisões judiciais à constante crítica da opinião pública.
556
Nesse sentido, entende-se a afirmação de KENT ROACH (apud TUSHNET, 2003c, p. 90), segundo a
qual “o sistema parlamentar de governo tem o potencial de produzir o ativismo legislativo para conter o
ativismo judicial”.
198
última palavra em suas os não se alteraria a condição de cidadãos que, a um
tempo, constituem-se autores e destinatários da norma
557
.
De acordo com ROBERTO GARGARELLA
558
, a organização institucional do
Estado de Direito o deve permitir como também alentar a discussão pública dos
temas de interesse da comunidade. O Brasil contraditoriamente parece mover-se para
um fechamento sem precedentes das questões constitucionais. De um lado, o tribunal
constitucional, ao tomar decisões com caráter definitivo, autocompreende-se o supremo
intérprete da Constituição. De outro, o cidadão vê-se progressivamente mais distante e
afastado da definição do conteúdo das normas de direito constitucional. O controle de
constitucionalidade abstrato, a sua vez, vai se consolidando como o principal sistema de
revisão das leis, ao passo que o sistema difuso que melhor cumpre a função de
proporcionar o exercício pleno das dimensões pública e privada da cidadania vai
perdendo sua força e, com ele, o cidadão tem enfraquecida sua capacidade de
determinar o significado das normas constitucionais, deixando de identificar-se como
autor das normas de que é destinatário.
Enfim, a notwithstanding clause, ao restabelecer a última palavra ao
Poder Legislativo, em verdade, confere ao cidadão a última palavra, pois a ele estão
sempre abertos os canais para o processo discursivo de formação racional da opinião e
da vontade. Assim, ela introduz novo panorama institucional na discussão do controle
557
Ressalte-se que mecanismo similar já foi adotado no Brasil. Na Constituição Federal de 1937,
atribuiu-se ao Congresso Nacional, mediante dois terços dos votos em cada uma das Câmaras e
provocação do Presidente da República, a competência para invalidar a interpretação do Supremo
Tribunal Federal, revalidando o ato normativo declarado nulo, em caso necessário ao bem-estar do povo,
à promoção ou à defesa de interesse nacional de alta monta (art. 96, parágrafo único). Entretanto, não se
deve, de logo, desacreditar desse mecanismo, que está em estrita ligação com o princípio democrático,
pois ele fora desvirtuado pelo Poder Executivo, em função da ditadura do Estado Novo. Em discurso
proferido, em 2 de abril de 1941, por ocasião da solenidade de abertura das atividades do Supremo
Tribunal Federal, o constitucionalista FRANCISCO CAMPOS (1942, p. 365-371) justificara o novel instituto,
sob o argumento de que o poder de interpretar a Constituição envolve, em muitos casos, o poder de
formulá-la. Assim, “em matéria essencialmente política, não apenas por ser política, mas por nela
envolver-se grave interêsse nacional, a Constituição de 37 a última palavra aos órgãos representativos
da Nação”.
558
Cf. GARGARELLA, 1996, p. 164.
199
de constitucionalidade brasileiro, o que abre as portas para uma crítica profunda sobre a
práxis judicial aqui desenvolvida. Questionam-se os pressupostos e a própria
formatação do atual modelo. Seu potencial para modificar a autocompreensão que se
tem do controle de constitucionalidade, especialmente do Supremo Tribunal Federal, é
bastante promissor, principalmente porque ela representa em si mesma a negação de
qualquer supremacia judicial.
O processo de doação da Constituição, contra o qual tão alarmantemente
se insurgira o professor MENELICK DE CARVALHO NETTO, acredita-se, pode ser contido.
Foi argumentado no Item 2 do Capítulo III que a Constituição, não pertencendo a
ninguém, pertence a todos; não deve estar constrita a um órgão específico, e sim deve
ser entregue nas mãos de uma cidadania ativa e participativa
559
. A Constituição integra
um projeto em constante construção pela comunidade de cidadãos que intenciona, a um
tempo, ser autora e destinatária de suas próprias normas. Então, desde que associada
ao resgate do controle difuso, instrumento judicial por excelência do exercício da
cidadania em nível constitucional, e a uma cultura política de participação, a
notwithstanding clause pode cumprir bem a função de justificar e legitimar a prática do
controle de constitucionalidade no sistema brasileiro. Dessa forma, permite-se a
circulação do poder, a interação entre os Poderes Legislativo e Judiciário e
principalmente a própria reflexividade do direito e das práticas institucionais e judiciais,
o que vem conferir a tão pretendida legitimidade da legalidade, sobretudo a legitimidade
da Constituição.
559
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 203.
200
CONCLUSÃO
Chega-se, finalmente, ao desfecho da presente dissertação. E, com ele, a
uma certeza: todas as idéias e propostas, desenvolvidas ao longo deste estudo, guardam
um caráter ainda exploratório. O trabalho procurou trazer à luz as discussões sobre os
fundamentos da prática do controle de constitucionalidade, no modelo do Estado
Democrático de Direito.
Dessa forma, toda a estrutura do texto pautou-se, com maior intensidade,
por um enfoque reconstrutivo; veja-se, por exemplo, a forma de tratamento da prática
institucional e judicial brasileira, no que tange ao controle de constitucionalidade.
Combinaram-se elementos normativos, concebidos a partir do paradigma procedimental
do Estado de Direito, com aspectos da realidade. A linha de investigação enveredou por
essas trilhas, o que, aliás, em parte, explica a própria escolha da teoria discursiva de
HABERMAS no desenvolvimento dos temas aqui tratados.
201
No entanto, um outro aspecto. Diz respeito ao problema da
legitimidade: o que justifica a autoridade da decisão do tribunal constitucional? Mais
precisamente, em matéria de interpretação constitucional, como fundamentar sua
prevalência sobre a decisão formada através do processo discursivo de formação
racional da opinião e da vontade política? Por que a última palavra deveria ficar com o
tribunal constitucional? A questão, foi visto, é de difícil solução, como difícil é a
relação entre Democracia e jurisdição constitucional. Nesse ponto, parece que PAUL
BREST
560
soube descrever bem o quadro. Após reconstruir a dificuldade de vários
teóricos norte-americanos com suas respectivas teorias para justificar a tensão entre
Democracia e jurisdição constitucional, o professor norte-americano mostrou o
insucesso de cada uma delas, sempre presas à “tensão madisoniana” (Madisonian
tension). E, pior, o autor anunciou a falta de perspectivas por uma resolução
equilibrada, caso se continue a seguir a metodologia de trabalho relacionada com os
problemas da maioria/minoria ou da corte/legislatura. Mas, ao término de seu artigo,
PAUL BREST
561
abriu uma perspectiva: a participação dos cidadãos no discurso público
da comunidade, configurando seus valores e estruturas. Desse caminho a presente
dissertação não divergiu, pois somente com a participação ativa dos cidadãos – a
participação política os erige à condição de autores e destinatários das normas – é que se
pode trazer a legitimidade para dentro da legalidade e, por conseguinte, justificar
práticas institucionais e judiciais, a exemplo do controle de constitucionalidade.
Com efeito, o Capítulo I da dissertação, ao estabelecer alguns dos pilares
sobre os quais se estrutura o Estado Democrático de Direito, enfatizou que a
legitimidade do procedimento discursivo de justificação das normas reside no
cumprimento de suas condições comunicativas. E a esfera pública exerce um papel
560
Cf. BREST, 1980-1981, p. 1063-1109.
561
Cf. BREST, 1980-1981, p. 1108-1109.
202
essencial nesse processo, tendo em vista que constitui o espaço, por excelência, de
discussão e de formação da opinião e da vontade política.
que se constatou, no Capítulo II, principalmente em decorrência dos
problemas ligados à obtenção do consenso (Item 4 do Capítulo I), que as atividades
discursivamente atribuídas ao Poder Legislativo e ao Poder Judiciário se sobrepõem,
acarretando a judicialização da política. Ou seja, o tribunal constitucional assume a
posição de verdadeiro legislador implícito, à proporção que passa a dispor das razões
normativas (questões morais, éticas e pragmáticas), antes discutidas e justificadas pelo
Poder Legislativo, independentemente do caso concreto. Nessa hipótese, como afirma
HABERMAS
562
, a “reciclagem” do direito traz para o tribunal constitucional um peso
ainda maior, quanto às exigências de justificação da legitimidade de sua atividade
perante a opinião pública. Portanto, subjaz o problema da judicialização da política; o
conflito entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário sobre a melhor interpretação dos
mesmos princípios constitucionais se evidencia.
O desdobramento desse tema não poderia ser outro senão o
desenvolvimento da interpretação constitucional, tema explorado no Capítulo III.
Porque, conforme assinalou HABERMAS
563
em suas respostas às críticas de JEREMY
WALDRON e FRANK MICHELMAN, mesmo em face do “desacordo razoável” (reasonable
disagreements), é possível, sim, obter a legitimidade da ordem constitucional. A
legitimidade da Constituição advém do cumprimento das condições comunicativas
(dimensão pragmática do discurso jurídico), a reclamar a efetiva participação dos
cidadãos no processo de criação e de interpretação das normas constitucionais. Dessa
forma, a dimensão semântica mostra-se insuficiente para pretender impor legitimidade
às normas e à interpretação constitucional. No fundo, a necessidade de o debate
562
Cf. HABERMAS, 2002b, p. 354.
563
Cf. HABERMAS, 2003b, p. 187-194.
203
desprender-se da noção semântica de Constituição e ligar-se cada vez mais à sua função
pragmática, essencial para conferir legitimidade às normas constitucionais. Assume-se,
então, a noção do sentido performativo da Constituição. É fundamental abrir a
Constituição a todos os seus intérpretes, que são todos os membros da sociedade.
Assim, criam-se as condições para se definir o significado das normas constitucionais e
descarregar do tribunal constitucional o peso da falta de legitimidade democrática que
recai sobre ele.
Suscitadas essas considerações, já ressai latente a idéia de que se faria
uma cisão no tratamento do modelo brasileiro do controle de constitucionalidade. No
Capítulo IV, deixou-se claro que o controle difuso é o mais apropriado para defender o
cidadão contra as violações que possam afetar sua autonomia, tanto pública como
privada, assim também para preservar a racionalidade e a legitimidade do processo
legislativo. o controle concentrado, em termos normativos, deveria ficar adstrito a
assegurar as condições de gênese do processo político de formação da vontade pública.
No entanto, conforme demonstrado nesta dissertação, as práticas constitucionais, de um
lado, e o modelo professado por juristas, de outro, divergem.
Isto é confirmado por características da prática constitucional
contemporânea: a autocompreensão do Supremo Tribunal Federal como intérprete
máximo da Constituição em que procede à livre disposição das razões justificadas pelo
legislador, aliada à progressiva concentração do controle de constitucionalidade
(Capítulo IV, Item 4). Tais práticas vêm configurando um processo de deslegitimação
do controle de constitucionalidade. De um lado, porque opera o fechamento da
Constituição, em notório prejuízo do controle difuso, instrumento por excelência de
proteção das autonomias pública e privada do cidadão, sobretudo na sociedade plural;
de outro, porque induz a supremacia judicial, ao concentrar a fiscalização da
204
constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, em desfavor do Poder Legislativo e
da participação dos cidadãos, que se sentem, assim, descrentes do resultado efetivo de
seu empenho na vida pública. A faticidade das práticas volta-se contra a normatividade
do modelo legítimo.
A solução cogitada, a partir do controle concentrado, foi mirar-se no
exemplo do “controle judicial fraco” (weak-form judicial review), no qual a “cláusula
não obstante” (notwithstanding clause) pode ser considerada de singular pertinência
para atiçar a discussão em torno dos fundamentos do controle de constitucionalidade e
de sua forma assumida. Principalmente, ela tem o mérito de questionar a
autocompreensão do Supremo Tribunal Federal, como órgão investido do poder de
dizer a última palavra sobre o que significa a Constituição, e de discutir a suposta
supremacia judicial, que subjaz implicitamente a esse entendimento.
Em nível institucional, a notwithstanding clause pretende, sem descartar
ou eliminar o controle de constitucionalidade, instituir um mecanismo de interação
dialética entre os Poderes Legislativo e Judiciário, na tarefa de interpretar a
Constituição. Seria uma cláusula bem salutar que, além de prever uma forma de auto-
reflexão institucionalizada, segundo se supôs com base nas lições de HABERMAS,
atribuiria a última palavra ao Poder Legislativo, a quem efetivamente esta caberia, em
razão de sua maior proximidade e identificação com o povo. A cláusula não obstante,
destarte, contribuiria para tornar mais plural o processo constitucional, reforçando o
papel do Poder Legislativo (e da sociedade) na construção do sentido das normas
constitucionais. Ademais, tenderia a revalorizar o controle difuso, que as questões
constitucionais antes de chegarem ao Supremo Tribunal Federal teriam integrado
alguns (senão todos) daqueles círculos de comunicação a que se referiu MARK VON
HOECKE, conferindo legitimidade ao controle de constitucionalidade. Além disso, o uso
205
da notwithstanding clause inviabiliza a existência de decisão judicial definitiva e
vinculante sobre os demais Poderes, especialmente sobre o Legislativo. Nesse ponto,
no caso de conflito entre os Poderes Legislativo e Judiciário, é sempre válido lembrar
que HABERMAS
564
defende que a última palavra deve permanecer com o legislador.
Em suma, através da teoria discursiva do Estado de Direito, antes de
pretender impor uma verdade inabalável sobre o único futuro legitimante ou
democratizante do controle de constitucionalidade, esta dissertação contenta-se em, ao
menos, suscitar o debate sobre as práticas em desenvolvimento, no Brasil. Se, por um
lado, é fato consumado a vasta adoção do controle de constitucionalidade nas
Democracias modernas, por outro, é inegável que não desapareceu a necessidade de se
oferecer uma justificação democrática do controle de constitucionalidade, perante a
sociedade e a opinião pública. E a essa sim – à sociedade – é que se deveria conferir um
papel mais relevante e efetivo na determinação do conteúdo das normas constitucionais.
564
Cf. HABERMAS, 2001a, p. 438.
206
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