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TULA MARIA RIBEIRO DIORIO PERUZZO
O Desenvolvimento do Pensamento Ético de Dietrich Bonhoeffer:
A ética da responsabilidade num mundo tornado adulto
Dissertação apresentada à Faculdade de Teologia, da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
como requisito parcial para obtenção de grau de Mestre
em Teologia, Área de Concentração em Teologia
Sistemática.
Orientador: Prof. Dr. Érico J. Hammes
Porto Alegre
2010
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“Fomos testemunhas mudas de atos maus, tornamo-nos rudes, aprendemos a arte de
simular e a fala de duplo sentido, a experiência tornou-nos desconfiados em relação às
pessoas e, muitas vezes, lhes ficamos devendo a verdade e a palavra livre; por causa dos
conflitos insuportáveis tornamo-nos frágeis e talvez até cínicos – ainda temos serventia?
Não gênios, nem cínicos, nem pessoas que desprezam os seres humanos, tampouco
estrategistas refinados, mas pessoas singelas, simples e retas são o que precisaremos. Será
que a nossa capacidade interior de resistência permaneceu forte o suficiente diante do que
nos foi imposto e nossa retidão contra nós mesmos terá deixado de nos poupar o suficiente a
ponto de reencontrarmos o caminho da simplicidade e da retidão?”
Dietrich Bonhoeffer no artigo Dez anos depois, 1942.
AGRADECIMENTO
Ao meu marido agradeço pelo companheirismo. A sua presença permanente, lado a
lado, sempre de mãos dadas comigo, foi a minha energia. quem ama consegue apoiar,
acariciar, dar força e aparar as lágrimas de quem é dominado pelo medo, mesmo quando
está a sofrer igualmente. Se não fosse toda essa força com contornos de amor, eu não teria
tido coragem para continuar, nem teria sentido paz nos momentos mais árduos e difíceis.
A FATEO e a CAPES agradeço pela oportunidade de estudo.
Agradeço igualmente, aos professores que fizeram parte desta jornada, sobretudo o
meu orientado, Prof. Dr. Érico J. Hammes.
Agradeço ainda meus familiares e amigos por todo apoio recebido.
E, por fim, agradeço a Deus, por sua permanente presença ao meu lado em todos os
momentos.
SIGLAS E ABREVIATURAS
DISC – Discipulado (obra de Dietrich Bonhoeffer)
ET – Ética (obra póstuma de Dietrich Bonhoeffer)
RS Resistência e Submissão (obra póstuma de Dietrich Bonhoeffer- cartas e anotações da
prisão)
SC – Sanctorum Communio (tese de doutorado de Dietrich Bonhoeffer)
TENT – Tentação (obra póstuma de Dietrich Bonhoeffer)
VC – Vida em Comunhão (obra de Dietrich Bonhoeffer)
GS – Gaudium et spes (Constituição Pastoral do Concílio Vaticano II)
PERUZZO, Tula M. R. D. O Desenvolvimento do Pensamento Ético de Dietrich Bonhoeffer: A
ética da responsabilidade num mundo tornado adulto. Porta Alegre, 2010. Dissertação de
Mestrado. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
RESUMO
A pesquisa em questão trabalha aspectos da ética da responsabilidade desenvolvida por
Dietrich Bonhoeffer ante a autonomia do mundo moderno e pós-moderno. Sua relevância
consiste, justamente, em apontar os riscos que a falta de uma responsabilidade ética pode
causar numa sociedade plural, afetando-a em seus valores humanos fundamentais.
Bonhoeffer faz uma observação da realidade de sua época, num contexto de niilismo, crise
de sentido, decadência de valores morais e privação da verdade. Sua ética, de fundamento
cristológico, se concretiza na decisão pessoal pelo bem. Bem que é sinônimo do fazer a
vontade de Deus, assumindo viver no mundo da forma como este se apresenta, com suas
mazelas e infortúnios. O distintivo de sua proposta se encontra no assumir a
responsabilidade pelos outros na urgência do presente. Toda problemática abordada por
Bonhoeffer, se identifica com as dificuldades atuais que permeiam o campo ético. Por isso,
trabalhando a questão ética em Dietrich Bonhoeffer, será possível elaborar um paralelo
entre a autonomia do mundo contemporâneo, que aprendeu a viver sem precisar de Deus, e
a necessidade de uma ética universal e transcendente, baseada no “ser-para-os-outros” de
Jesus Cristo. A análise começa levantando dados biográficos e bibliográficos de Bonhoeffer,
é seguida por uma explanação da sua compreensão ética nas obras Ética e Resistência e
Submissão, perpassa ainda por sua percepção sobre a secularização e suas consequências,
chegando à conclusão de uma teologia pública como síntese da ética da responsabilidade
num mundo adulto.
Palavras chave: ética, responsabilidade, ser-para-os-outros, mundo adulto, cristianismo
arreligioso, autonomia
ABSTRACT
The present research deals with the concept of ethics of the responsibility developed by
Dietrich Bonhoeffer before the autonomy present throughout the modern and post-modern
world. Its relevance consists exactly in the fact that it points out the risks that the lack of
ethical responsibility may cause within a plural society, affecting it on its fundamental
human values. Bonhoeffer develops an observation of the reality of his age, in a context of
nihilism, meaning crisis, decaying of moral values and privation of the truth. Its ethics, from
Christological fundaments, is concretized upon the personal decision for the good. Good is
synonym for doing God’s will, accepting to live in the world as it is, filled with bad and
misfortunes. What distinguishes Bonhoeffer’s proposal is the fact that he takes the
responsibility for the others in the urgency of the present. The whole problematic
approached by Bonhoeffer identifies itself with current difficulties that permeate ethical
field. Therefore, working the topic of ethics in Dietrich Bonhoeffer’s work, it will be possible
to elaborate a parallel between the autonomy of the contemporary world, that sort of
learned how to live without the need for God, and the necessity of a universal and
transcendental ethics, based on “be-to-the-others” from Jesus Christ. The analysis begins
raising biographical and bibliographical data of Bonhoeffer, and it is followed by some
explanation about his ethical comprehension in the works Ethics and Letters and Papers
from Prison; it still pervades his perception about secularization and its consequences,
reaching the conclusion of a public theology as synthesis for ethics of responsibility in an
adult world.
Key-words: ethics, responsibility, be-to-the-others, adult world, unreligious Christianity,
autonomy.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................07
1 VIDA E OBRAS ............................................................................................................13
1.1 Primeira fase: contexto familiar ..................................................................15
1.2 Segunda fase: contexto sócio-político..........................................................21
1.3 Terceira fase: prisão ....................................................................................30
2 ÉTICA DA RESPONSABILIDADE ..................................................................................40
2.1 A Obra Ética..................................................................................................45
2.2 Ética como configuração .............................................................................51
2.3 Dialética do último e penúltimo...................................................................54
2.4 Teoria dos mandatos ...................................................................................61
2.5 Vida ética como responsabilidade ..............................................................65
2.6 Resistência e Submissão...............................................................................69
3 O MUNDO TORNADO ADULTO ................................................................................77
3.1 O mundo adulto e o lugar de Deus na visão de Bonhoeffer e da Gaudium et
spes ............................................................................................................79
3.2 O Cristianismo no mundo adulto ...............................................................95
3.3 A teologia pública como síntese da ética da responsabilidade num mundo
adulto .......................................................................................................104
CONCLUSÃO ................................................................................................................111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................115
INTRODUÇÃO
Para apreciar a obra de um teólogo é necessário levar em conta os diferentes fatores
históricos, teológicos e pessoais que contribuíram na formação de seu pensamento.
Sobretudo em se tratando das obras de Dietrich Bonhoeffer essas considerações se tornam
relevantes, principalmente, porque algumas de suas obras são incompletas, fragmentárias e
póstumas. O interesse pela pesquisa surgiu justamente da observação de que, mesmo de
forma fragmentária, os escritos de Bonhoeffer têm uma significativa contribuição a dar à
sociedade atual, no que se refere às questões éticas. E apesar da fragmentariedade de seus
escritos, é plausível encontrar uma unidade, uma coerência profunda que permite intuir a
totalidade de seu pensamento.
Bonhoeffer foi um dos primeiros que, em meio à situação altamente desumanizadora
do Terceiro Reich, se deu conta da reviravolta que estava dando a cultura ocidental em seu
conjunto e, mais particularmente, o cristianismo tradicional.
Ele tem na resistência ao nazismo o exemplo mais claro de uma ética que deixa de
ser um enunciado puramente teórico ao assumir uma ação responsável, colocando em risco
sua própria segurança. Sua atitude é um chamado à Igreja e aos cristãos para adotar uma
postura não a partir de referenciais fantasiosos, e sim a partir da realidade concreta da vida.
Sua ética cristocêntrica tenta equilibrar discurso e prática, decisão e responsabilidade.
Deixou numerosos escritos como: Sanctorum communio, Ato e ser, Vida em
comunhão, Discipulado, Ética, entre outros, tendo o ápice de seu pensamento em
Resistência e Submissão, cartas e anotações que escreveu da prisão de Tegel, durante a
10
Segunda Guerra Mundial. Nesses escritos toda sua interioridade e riqueza são expostas com
tal autenticidade, que testemunham a coragem de viver em tais circunstâncias e a urgência
de agir, sob o exemplo de Cristo, como ser-para-os-outros.
Aluno de Harnack, mas discípulo teológico de Barth, foi um teólogo pós-dialético, no
sentido de que, a partir da palavra de Deus como tema da teologia, não abandonou o
terreno da história. Bonhoeffer consegue trazer de volta para a teologia o tema da
“recuperação do horizonte”
1
, já intuído por Barth e Bultmann. Neste sentido, sua proposta é
de um cristianismo a ser reinterpretado pelo homem moderno, vivido na responsabilidade,
na participação e na solidariedade; um cristianismo universal, capaz de novas respostas e
novas ações.
Pastor luterano da Igreja Confessante, professor de teologia impedido pelo nazismo
de ensinar e escrever, Dietrich Bonhoeffer exerceu uma influência determinante, e ainda
atual, no pensamento cristão contemporâneo.
Em vista disso, esta pesquisa tem por objetivo apresentar a ética cristã por ele
elaborada, em meio à Segunda Guerra Mundial, conhecida como ética da responsabilidade,
que leva o nome justamente por imputar, a cada ser humano, sua responsabilidade para
com o todo; e por demonstrar as condições de aplicação dessa ética para responder à nova
situação da humanidade, diante da autonomia e da liberdade que adquiriram espaço
crescente com a secularização, ao que Bonhoeffer chamou de “mundo adulto”.
A pesquisa tenta dar conta de uma necessidade que se impõe através da observação
do percurso histórico, a fim de questionar acontecimentos passados que se projetam no
presente e continuar a interpretá-los enquanto valores referenciais, buscando uma nova
resposta à questão ética, tão defasada em detrimento de uma falsa visão de autonomia e
1
Expressão utilizada por Gibellini ao fazer referência ao resgate da amplitude da realidade de Cristo na
realidade secular feito por Bonhoeffer, ou seja, a recuperação de Cristo como centro, já que sem centro não há
referência de horizonte. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 105.
11
liberdade por parte do ser humano. Resposta intuída por Bonhoeffer e que permanece
ainda atual.
Por isso, que o foco da dissertação é o pensamento ético de Dietrich Bonhoeffer,
examinaram-se suas obras visando à interpretação de seus conceitos éticos, para
demonstrar a atualidade e o grande valor de seu pensamento. Tendo-se, porém, a
consciência de que para que a pesquisa fosse mais bem desenvolvida, seria primordial o
contato com fontes originais do alemão, o que não foi possível, não apenas pelas limitações
de material, mas, sobretudo, pelo deficiente conhecimento do idioma.
Para a explanação da pesquisa partiu-se do desdobramento da formação vivencial e
intelectual de Bonhoeffer, com suas experiências familiares, acadêmicas, pastorais, para
corroborar o quanto vida e pensamento, nesse teólogo, se mesclam e o quanto que a ética,
por ele proposta, é autenticamente concreta.
Como fazem parte de um desenvolvimento progressivo, suas obras não podem ser
vistas isoladamente, independente uma das outras, pois elas existem como um todo, numa
espécie de condicionamento recíproco. Somente a partir dessa premissa é possível entender
o processo de formação da reflexão bonhoefferiana. Para tanto, é necessário discutir a
posição de Bonhoeffer frente à situação sócio-política de seu tempo, através da qual nota-se
que método teológico e testemunho pessoal se tornam inseparáveis.
Mais precisamente, tentou-se entender a que questões Bonhoeffer quis responder
enquanto elaborava sua ética e posteriormente, que respostas conseguiu dar após constatar
a independência do ser humano em relação a Deus. E mais, quais pontos são relevantes e
atuais em sua teologia? Quais são possivelmente alcançáveis e quais se tornam apenas
ideais? E, porque, mesmo passando a pós-modernidade, suas reflexões permanecem tão
atuais? Será que a redescoberta do pensamento bonhoefferiano não abri brechas para
uma nova visão de responsabilidade ética, sobretudo para os cristãos?
12
Parte-se de algumas especulações para responder a essas questões que, como
poderá ser notado, por vezes podem ser comprovadas e por outras, ficam em aberto à
interpretação. Isso porque as próprias reflexões de Bonhoeffer o, muitas vezes,
incompletas.
Considerou-se entre as hipóteses de trabalho a íntima relação entre sua ética e sua
cristologia, pois como é evidente, todo seu pensamento é cristocêntrico. Outra hipótese
considerada foi a percepção do contexto sócio-político da época e a crise de sentido que se
instalou na modernidade e que acompanhou a pós-modernidade afora. Ainda, o estudo da
biografia de Bonhoeffer como chamado à ação concreta diante da crise instalada. A
suposição de uma teologia da cruz serve, em alguns momentos, como chave de leitura para
a teologia bonhoefferiana. E a construção de um paralelo entre a reflexão de Bonhoeffer e a
Constituição pastoral Gaudium et spes. Para tanto a pesquisa foi dividida em três partes.
A primeira parte consiste na apresentação de um pequeno itinerário biográfico e
bibliográfico da reflexão teológica de Bonhoeffer, tendo como destaque o conteúdo de seus
escritos, desde seu início, que abrange a fase de teólogo, envolvendo toda sua experiência
familiar e formação acadêmica; de cristão, assinalada, sobretudo pelas experiências
pastorais; e de contemporâneo, através da elaboração das cartas escritas da prisão, período
este, fortemente marcado pela vivência da guerra.
Nessa primeira parte procurou-se analisar suas principais obras, levando em conta,
não apenas o conteúdo teológico que elas apresentam, como também o contexto histórico,
social, cultural e político no qual estão inseridas e ao qual pretendem dar uma resposta
alternativa para a vivência de uma ética e de um cristianismo concretos e autênticos.
Para isso, foram utilizadas, além das obras do próprio Bonhoeffer, obras de autores
como Alberto Gallas, Rosino Gibellini, Ernesto Bernhoeft, Bruno Forte, entre outros que
possibilitaram uma análise da relação entre a reflexão teológica de Bonhoeffer e os
acontecimentos históricos que marcaram sua época e influenciaram seu pensamento.
13
A análise desenvolvida nessa primeira seção quer demonstrar, dentre outras coisas,
como a cristologia tem lugar relevante em toda a elaboração do seu pensamento teológico,
adquirindo uma gradativa ampliação na compreensão do significado da pessoa de Jesus
Cristo, que segue desde a fórmula de “Cristo existente como comunidade”, em Sanctorum
Communio, passando pela noção de “Cristo como Senhor do mundo”, na Ética até a
formulação da pergunta “quem é Cristo para nós hoje?” e sua relação com o “mundo
tornado adulto”, em Resistência e Submissão.
A segunda parte trata do desenvolvimento do pensamento ético de Bonhoeffer,
propriamente dito, o que vai caracterizar a ética por ele elaborada como ética da
responsabilidade. Os esforços de Bonhoeffer centraram-se fortemente na redação da Ética,
pois a via como a missão de sua vida. Nesta seção procurou-se identificar, seguindo a
sugestão de Gibellini, as principais chaves de leitura para a compreensão, tanto em Ética
como em Resistência e Submissão, da responsabilidade como fundamento de uma ética
cristã autêntica. Nessas obras são apresentadas soluções para apaziguar os conflitos nas
relações dualistas entre Igreja e mundo, Igreja e estado, sagrado e profano, cristão e não-
cristão.
Diante dos acontecimentos, Bonhoeffer propôs uma nova maneira de responder aos
apelos éticos e, consequentemente, uma nova maneira de pensar a teologia. A
contextualização se torna, portanto, peça chave no universo teológico do pastor
protestante, que tenta responder com uma ética capaz de atingir crentes e não-crentes com
uma nova linguagem apta a encarar os novos questionamentos da humanidade.
A ética proposta por Bonhoeffer tem como característica essencial o fato de ser uma
ética concreta e prática e, seu ponto de partida está na questão de como a realidade de
Deus, em Jesus Cristo, pode entrar no cotidiano da vida humana de hoje. A resposta a essa
questão, apresentada pelo próprio Bonhoeffer, através da configuração a Cristo, da dialética
entre último e penúltimo, da teoria dos mandatos e da estrutura de vida responsável,
harmoniza as tensões entre Deus e o mundo e toma a realidade não como fato neutro, mas
14
como o lugar onde Cristo se revela por meio da responsabilidade ética assumida pelos
cristãos.
Seguindo o itinerário proposto, a pesquisa dedica-se à discussão sobre o “mundo
tornado adulto”, expressão do próprio Bonhoeffer, especialmente a partir de suas cartas e
escritos da prisão, como tema da terceira seção. Este material (as cartas), não passou por
qualquer elaboração sistemática, mas, como poderá ser notado, demonstra uma rica fonte
de informações, sobretudo na constatação das mudanças relevantes que a relação entre
Criador e criatura sofrem no processo de secularização. Essa última fase do pensamento de
Bonhoeffer expressa uma profunda reorganização de seus conceitos teológicos, o que não
deve ser entendido como ruptura com a reflexão precedente à prisão, e sim, como
continuidade, porém, de modo informal.
Procurou-se, ainda, demonstrar os esforços para responder as questões levantadas
por Bonhoeffer: a maioridade do mundo, o cristianismo arreligioso, quem é Cristo para nós
hoje, fazendo um paralelo de suas conclusões com as da Gaudium et spes, sublinhando
semelhanças e contrastes.
Por fim, apresenta-se uma conclusão apontando caminhos, quem sabe não
supostos por Bonhoeffer, para a vida numa sociedade pluralista, baseada na tolerância
construída através de uma ética responsavelmente assumida diante da autonomia humana:
a ética da responsabilidade num mundo tornado adulto.
1 VIDA E OBRAS
Disciplina
Se partes em busca da liberdade, aprende primeiro
A disciplinar os sentidos e a alma, para que os desejos
E teus membros não te joguem de um lado para o outro.
Castos sejam tua mente e teu corpo, plenamente submissos a ti,
E obedientes, a fim de buscarem a meta que lhes foi apontada.
Ninguém experimentará o mistério da liberdade a não ser pela disciplina.
2
Esta pesquisa tem por objetivo apresentar alguns pontos referentes à ética
desenvolvida pelo teólogo luterano Dietrich Bonhoeffer. Porém, para que sua ética seja
compreendida, faz-se necessário conhecer as origens formativas de seu pensamento, visto
que Bonhoeffer é um dos ilustres personagens em que biografia e teologia se confundem.
Toda sua teologia é sustentada pelas experiências vividas, assim como as experiências por
ele vividas são determinadas pela sua teológica. Seu caminho é traçado por uma espécie
de simbiose, onde cada fase é marcada por obras específicas e experiências ímpares.
“Teólogo, cristão, contemporâneo, assim Eberhard Bethge o sintetizou numa grande
biografia dedicada ao amigo... onde biografia e teologia se mesclam e se dão as mãos como
talvez em nenhum outro teólogo de nosso século”
3
.
Nota-se que Bonhoeffer expõe em seus escritos sua própria vivência, como se fosse
um constante diálogo. Eis uma breve cronologia de suas principais obras:
1927 – Sanctorum Communio
1931 – Ato e Ser
2
Fragmento do poema “Estações no caminho para a liberdade” de Dietrich Bonhoeffer.
3
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 106.
16
1933 – Cristologia (curso)
1934 – Criação e Queda
1937 – Discipulado
1938 – Vida em Comunhão
1949 - Ética (póstuma)
1953 – Tentação (póstuma)
1958 – Resistência e Submissão – coletânea de cartas e anotações (póstuma)
Bonhoeffer partia da realidade de Deus na história, da encarnação de Jesus Cristo. A
partir dessa premissa teológica obtinha uma conseqüência hermenêutica de incalculável
valor para a vida cristã: a fundamentação da Palavra de Deus na concretude da história
(este, inclusive, é o ponto de partida metodológico e teológico, bem como a conclusão mais
importante, de sua inacabada Ética), como afirma o artigo de Capozza e Kurt: Para poucos
teólogos a unidade entre vida e pensamento serve de tal forma como chave hermenêutica
quanto para Dietrich Bonhoeffer... sua teologia é caracterizada pela incansável busca por
concreções da revelação no presente, o ‘aqui’, o ‘hoje’, o ‘para nós’
4
.
A teologia de Bonhoeffer é mais uma teologia ética que dogmática, uma teologia
carregada de vivência. Bonhoeffer refletiu o que viveu e viveu o que refletiu.
A vida desse teólogo pode ser dividida em três grandes períodos: o primeiro, até fins
de 1932, quando concluiu seus estudos acadêmicos e tornou-se teólogo; o segundo, de 1933
a 1939, em que o teólogo acadêmico se torna um verdadeiro cristão, ao se empenhar mais
diretamente na vida da Igreja; o terceiro, de 1939 a 1945, no qual o cristão se faz
companheiro de seu tempo e assume as responsabilidades de sua época.
Esmiuçando, agora cada uma das três fases, pode-se perceber a evolução gradativa
por que passou seu pensamento.
4
CAPOZZA, N. e KURT, A. “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a eclesiologia
de Dietrich Bonhoeffer, p.584.
17
1.1 Primeira fase: contexto familiar
Ação
Não fazer e ousar qualquer coisa, mas o que é direito,
Não se deter no possível, mas agarrar corajosamente o que é real,
Não na fuga das idéias, mas somente na ação é que se encontra a liberdade.
Abandona o vacilar medroso e enfrenta a tempestade dos acontecimentos,
Sustentado somente pelo mandamento de Deus e por tua fé,
E a liberdade envolverá jubilosa o teu espírito
5
.
A influência do ambiente, o exemplo e a assistência dos familiares sobre Bonhoeffer
tornam-se necessários para a compreensão de certas reações e atitudes suas. O convívio
fraternal na família, sem que faltasse o devido respeito à personalidade de cada um; os laços
que mantinham pela comunicação, que não se rompiam nem mesmo com a distância ou
separação; o toque de espiritualidade, pois se tratava de uma família tradicionalmente cristã
com indispensável demonstração de solidariedade humana, foram relevantes à formação de
seu caráter. Tal formação foi de suprema importância, pois sem ela talvez não resistisse às
dificuldades pelas quais haveria de passar.
Percebe-se por suas declarações, que a presença e as tradições familiares lhe
serviram sempre como sustentação e lhe preencheram de afeto e segurança, uma típica
demonstração da força dos laços de amizade na visão alemã: “Dificilmente haverá uma
sensação mais gratificante do que sentir que se pode ser alguma coisa para outras pessoas.
Neste caso, o importante não é o número, mas a intensidade. Afinal, as relações humanas
são simplesmente o mais importante na vida...”
6
A formação familiar também o dotou de relevantes valores éticos que lhe cobraram
uma postura firme e coerente: “Muitas vezes observei que o decisivo são as exigências que
5
Fragmento do poema “Estações no caminho para a liberdade” de Dietrich Bonhoeffer.
6
RS, p.519.
18
nós mesmos nos colocamos... Mas nunca mais poderemos recuar para aquém daquilo que
conquistamos por nós mesmos.”. E na mesma carta continua: “Acho que um dos mais fortes
fatores de formação intelectual em nossa família foi nos terem posto tantas inibições
7
para
superar antes de podermos chegar às nossas próprias expressões...”
8
De uma carta escrita ao afilhado (filho de Renate, sua sobrinha e Eberhard Bethge,
seu grande companheiro) se podem extrair claramente as características do ambiente
familiar dos Bonhoeffer:
Nos próximos anos, que trarão grandes transformações, o maior presente será
sentir-se protegido numa boa casa paterna. Ela será o baluarte contra qualquer
perigo externo e interno. Tu tens sorte em ter um pai e uma mãe que sabem, a
partir da própria experiência, o que significa ter um lar em tempos tormentosos.
Em meio ao empobrecimento geral de vida intelectual, encontrarás na casa de teu
pai e da tua mãe um tesouro de valores intelectuais e uma fonte de estímulos
intelectuais... eles te ensinarão a orar e temer e amar a Deus sobre todas as coisas
e a fazer de boa vontade a vontade de Jesus Cristo
9
.
Verifica-se, portanto, a influência salutar que a família exerceu sobre Bonhoeffer,
imprimindo na sua personalidade certas caractesticas e estimulando determinadas reações
diante dos acontecimentos que exigiam decisões. Nota-se a valorização da formação
intelectual, humana e espiritual como alicerces familiares, sem que com isso, venha a ser
considerado mero produto do meio-ambiente ou das circunstâncias. Do equilíbrio entre a
vida familiar e o exemplo dos grandes mestres e os bons amigos, ele soube colher os
ensinamentos e benefícios, sem por isso deixar de ser ele mesmo. Não mudou sob a
influência de terceiros, nem sob a pressão dos turbulentos acontecimentos, mas progrediu e
firmou-se em sua decisão de assumir a responsabilidade dos tempos presentes. Todas as
fases de sua vida são marcadas por uma autêntica coragem, que lhe exigiu o tributo da
própria vida.
7
Na tradução feita por Ernesto Bernhoeft é usada a palavra escrúpulos no lugar de inibições. Bernhoeft,
Ernesto J. No caminho para a liberdade, p.42.
8
RS, p.519.
9
RS, p.393.
19
Essa primeira fase é caracterizada pelo despertar teológico. Nascido em 4 de
fevereiro de 1906, em Breslau, na Silésia, antigo território da Alemanha, de família
aristocrática alemã, é o sétimo de oito irmãos. Seu pai, neurologista e psiquiatra renomado,
incutiu aos filhos o gosto pelas artes, de modo especial a música, assim como os ensinou a
ter responsabilidade com a vida, como relata o próprio Bonhoeffer numa carta escrita a
Bethge em maio de 1944
10
.
Equilibrado, firme e possuidor de uma sabedoria peculiar, “Karl Bonhoeffer era um
homem de autoridade marcante, falava baixo e pouco, mas o que dizia era insofismável e
decisivo. Odiava conversas rebuscadas e sempre mantinha o autocontrole. O mesmo ele
exigia dos filhos”
11
.
A mãe, filha de pastor luterano, levava o pequeno Dietrich aos cultos para
acompanhá-la. “Seu alvo era educar seus filhos para serem pessoas responsáveis. Ela o
entendia como seu compromisso cristão. Em todas as suas ações, seus filhos deveriam levar
em conta também as necessidades dos outros”
12
. Os oito filhos de Karl e Paula eram
inteligentes e talentosos e possuíam consciência do seu papel de responsabilidade na
construção da sociedade.
Assim, mais uma vez podem-se notar os valores humanos que caracterizavam a
família Bonhoeffer.
Em 1912, o pai de Dietrich recebe o convite para assumir a cátedra na universidade
de Berlim, para onde se muda com a família. Em seguida estoura a Primeira Guerra Mundial,
Bonhoeffer tinha oito anos. A partir de então começa a observar a fragilidade e, por isso
mesmo, o valor da vida humana.
10
a música... te ajudará a obter a clareza e pureza do ser e das emoções em momentos de confusão, e a
manter acesa em ti a tônica da alegria em momentos de preocupação e tristeza; a competência para conduzir a
vida... te levará bem cedo a te virares com tuas próprias mãos e a não menosprezares nenhum pequeno
esforço; o dom de involuntariamente angariar para si a boa vontade das pessoas fará com que muitas pessoas
tornem-se tuas amigas e te ajudem; a espiritualidade... não será ruidosa nem prolixa”. RS, p.393.
11
MILSTEIN, W. Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.11.
12
Ibidem, p.12.
20
Em 1917, seu irmão Walter se alista para a guerra e sendo gravemente ferido, falece.
Sua mãe, Paula, entra num estado de prostração. Talvez esses acontecimentos tenham feito
com que Bonhoeffer amadurecesse mais rápido e despertasse seu interesse pelo
transcendental.
Aos 17 anos Dietrich decide estudar teologia. “Bonhoeffer, que se matriculara na
faculdade de teologia por motivos filosóficos e culturais, acabará fazendo teologia por
vocação eclesial”
13
. Começou os estudos de Teologia na Universidade de Tübingen e depois
se transferiu para Berlim, onde conhece grandes nomes, entre eles Deissmann, Lietzmann,
Harnack e Reinhold Seeberg. Nesta época faz uma viagem a Roma, pela qual fica
deslumbrado e afirma, que a partir de então, compreende o conceito de Igreja. Conceito
este que será parte central do seu pensamento nesse primeiro período
14
.
Em 1927, aos 21 anos, publica sua tese de doutorado Sanctorum Communio, uma
pesquisa dogmática sobre a sociologia da Igreja, que revela sua estrutura comunitária e
aborda o problema da compreensão sistemática da Igreja concreta. Bonhoeffer define a
Igreja como “Cristo existente como comunidade
15
”. Tenta precisar a relação da Igreja, grupo
de humanos pecadores, com a Igreja em seu aspecto divino, com ajuda da sociologia e da
dogmática, das categorias de Hegel e o pensamento dialogal, com referência a Troeltsch,
mas, sobretudo Barth”.
16
Igreja como Communio Sactorum é para Bonhoeffer simplesmente
a presença de Cristo no mundo
17
.
Em 1930, apresenta sua tese de habilitação com a obra Ato e Ser, na qual defende
que se pode pensar a Revelação em relação com o conceito de Igreja
18
. Ato e Ser é a
realidade da Revelação como pressuposto da Igreja. A experiência da Revelação como fato
13
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.108.
14
Cf. CAPOZZA, N. e KURT, A. Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a
eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer, p.585.
15
Cf. GIBELLINI, R. Op. Cit, p.107.
16
CAPOZZA, N. e KURT, A. Op. Cit, p.585.
17
Outras informações sobre esse mesmo pensamento em BONHOEFFER, D. L’essenza della Chiesa.
18
Cf. GIBELLINI, R. Op. Cit, p.107.
21
pessoal, deve efetuar-se através da Igreja, que é o Cristo enquanto comunidade, é pela
Igreja que a palavra da Revelação é transmitida no sacramento, na pregação e na Escritura.
Somente na Igreja se pode encontrar a verdade revelada, concreta e viva, pois quem ouve a
palavra não é apenas o indivíduo, mas a Igreja. Bonhoeffer busca superar as visões da
revelação somente como ato (Barth) e como fato passado. Como ato, acontece sempre de
novo, assegurando a sua existencialidade; como ser, aconteceu, garantindo a sua
continuidade.
Em 1931, recebe uma bolsa de estudos para o Union Theological Seminary em New
York, para onde segue e que será de grande importância no desenvolvimento de uma nova
perspectiva de seu pensamento, pois experimentará um cristianismo prático muito
comunitário, porém fraco dogmaticamente. Nas Américas, depara-se com essa nova
realidade, que o insere numa nova visão de mundo, despertando-lhe o interesse pelo
diferente e consecutivamente o interesse pelas questões ecumênicas. O contato com a
Igreja de New York causou em Bonhoeffer, maravilha e desilusão, naquela nova realidade a
diversidade tornava-se um fator relevante para a construção de relação com os outros. No
seminário teológico em New York, chegou a dizer que não havia teologia, reconhecendo,
posteriormente, que o que existia era uma teologia prática, engajada na atuação social,
diferente do que conhecia até então. A partir dessa nova experiência, um novo mundo se
abre para ele
19
.
Um grande contribuidor a essa nova fase de seu pensamento foi seu professor de
teologia, Reinhold Niebuhr
20
, que se ocupava nos seminários da pergunta de como
relacionar a cristã com a atuação social. Mas sua primeira grande experiência impactante
se deu a convite do amigo de estudo, o teólogo afrodescendente, Albert Franklin Fisher. Este
lhe mostrou o culto das pequenas igrejas da periferia, no Harlem. E na participação desses
19
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.17.
20
Alguns apontamentos sobre a reflexão da responsabilidade ética dos cristãos em Reinhold Niebuhr e que
influenciaram Bonhoeffer podem ser encontradas em LOVIN, R. W. Becoming Responsible in Christian Ethics.
Studies in Christian Ethics.
22
cultos, Bonhoeffer, percebe que a música contagiava corpo e alma. Lá, constata que fé, vida
e ação formam uma unidade indissolúvel, de forma que, uma não tem validade sem a outra.
Outro amigo, Jean Lasserre, vindo da França e representante decidido do pacifismo,
impressionou Bonhoeffer com sua explicação sobre o mandamento da paz do Sermão de
Montanha. Texto que, a partir de então, acompanhará toda sua teologia. Dos amigos
americanos, Paul Lehmann foi o que melhor compreendeu o pensamento europeu de
Bonhoeffer e, foi quem, mais tarde, interveio em seu favor
21
.
Nessa mesma época, os laços de amizade entre Bonhoeffer e Barth são fortalecidos,
tanto no aspecto intelectual quanto pessoal. Barth exercerá uma importante influência na
construção do pensamento bonhoefferiano
22
.
Na volta para Berlim, foi ordenado
23
pastor, passando a dividir seu tempo entre o
trabalho pastoral, o trabalho universitário e a atividade ecumênica. Na universidade
ministrava um curso de Cristologia (postumamente editado) cujo pensamento central é:
Cristo para nós e Cristo como centro: Cristo está no centro da existência humana como
mediador da justificação para o humano, da reconciliação para a história, da libertação para
a criação e, portanto, como mediador, está no centro. Esse curso não é apenas o último
curso acadêmico, como também, a conclusão de sua reflexão acadêmica e o início de sua
reflexão prática, fechando o parêntese de sua docência na universidade para colocar-se
exclusivamente ao serviço da Igreja Confessante (parte da Igreja evangélica que se opôs ao
nacional-socialismo e se organizou autonomamente).
21
Cf. MILSTEIN, W Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.24-27.
22
Discípulo e amigo de Barth, Bonhoeffer pode ser considerado um teólogo pós-dialético. Sua posição ética
encontra proximidades com a teologia e a ética barthiana, cf. DUCH, L. Introdução in BONHOEFFER, D. Ética.
Dessa relação surgem contribuições e críticas, como muitas vezes referidas nas cartas da prisão, cf. RS, p.371;
380; 438-439. Bonhoeffer chama atenção para a crítica à religião feita por Barth e ao resgate da transcendência
da Palavra de Deus e da Revelação como iniciativa divina. Porém, critica o exagero barthiano na majestade de
Deus causando distanciamento do mundo e o positivismo da revelação.
23
É importante ressaltar que existe diferença de caráter doutrinal entre a Igreja Católoca e a Igreja Luterana na
questão sobre ordenação. Mais informações ver no Catecismo da Igreja Católica, n.1536-1600.
23
1.2 Segunda fase: contexto sócio-político
24
Sofrimento
Maravilhosa transformação. As mãos tão fortes e ativas
Te foram amarradas. Impotente, solitário, vês o fim
Da tua ação. Mas então respiras aliviado e colocas o que é direito,
Tranquilo e consolado, em mãos mais fortes e te dás por satisfeito.
Apenas por um instante tocaste, feliz, a liberdade,
E logo a entregaste a Deus, para que ele a aperfeiçoe esplendidamente.
25
A segunda fase da vida de Dietrich Bonhoeffer, de 1933 a 1939, é caracterizada pelo
tema Cristo e é sublinhada pela ascensão do nacional-socialismo ao poder até o início da
Segunda Guerra Mundial. Os escritos mais característicos desse período são Discipulado e
Vida em Comunhão. A exigência de não fugir da responsabilidade da vida histórica, a
centralidade do tema da ação e a reflexão sobre a relação Igreja-Estado nos anos do
Kirchenkampf (igreja em luta), fazem do pensamento de Bonhoeffer um momento de
necessário confronto na oposição essencialmente ética ao totalitarismo
26
.
Nesse tempo, na Alemanha, se um rápido desenvolvimento político e com isso, a
tentativa do nazismo de penetrar ao interno do governo e da doutrina da Igreja evangélica.
A Igreja evangélica oficial dos cristãos alemães logo inclui em seus estatutos o parágrafo
ariano
27
e, assim, proíbe a ordenação de pastores de origem judaica. É nessa turbulência na
comunidade cristã e em contraposição a essa tendência de identificação com a ideologia
nacional-socialista, que, em maio de 1934, uma liga de pastores protestantes, dentre eles
Dietrich Bonhoeffer, Karl Barth, Otho Dibelius, Martin Niemoeller, se une para formar a
Igreja Confessante
28
.
24
Sobre esse assunto ver também COGGIOLA, O. (Org.). Segunda Guerra Mundial – Um balanço histórico.
25
Fragmento do poema “Estações no caminho para a liberdade”.
26
Sobre totalitarismo ver também ARENDT, H. As Origens do Totalitarismo; Sobre a violência.
27
O termo ariano, que ganhou outro significado com a ideologia nazista, foi usado, erroneamente, para
classificar uma suposta raça comum aos indo-europeus e aos seus descendentes não miscigenados com outros
povos, uma raça pura e superior. As Leis Arianas ou Leis de Nuremberg proibiam a cidadania e direitos de
trabalho aos "não-arianos", bem como o casamento entre indivíduos dos dois grupos opostos e aniquilavam
qualquer direito que benefiasse um não-ariano.
28
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.1.
24
A religião política do nacional-socialismo inspirou também o nascimento de um
Kirchenkampf” (igreja em luta) que, em 1933, coincidia com a origem do
movimento “Deustsche Christen” (cristãos alemães) ao interno da Igreja
evangélica, a qual intentava produzir uma síntese entre ideologia nacionalista e
cristianismo para introduzir o princípio racial na doutrina protestante... a “Igreja
Confessante” (Bekennende Kirche) constituía-se de um grupo de pastores
protestantes alemães que o aderiram ao pedido de fidelidade e de submissão a
Hitler
29
.
Esses pastores tinham o intuito de preservar a luterana, pois “ao mesmo tempo
em que estavam dispostos a defender os tradicionais valores luteranos de lealdade e
obediência ao estado, eles negavam a esse mesmo estado o direito de determinar o
conteúdo da fé religiosa”
30
.
O que se percebe é que, muitos alemães esperavam que a revolução nacional-
socialista levasse a um renascimento da religião, inclusive elevando a participação e a
frequência nas igrejas, que chegou a aumentar nos primeiros anos do regime nazista. Os
nazistas prometiam o apoio ao cristianismo, invocavam Deus e faziam orações em seus
discursos. O próprio Hitler afirmou em Mein Kampf que estava realizando a obra do
Senhor
31
.
Porém, os esforços nazistas para fundir a religião com a raça tornaram-se a maior
fonte de conflito entre a Igreja cristã e o Estado. Os nazistas subestimavam o empenho
cristão com os fracos e desfavorecidos, tanto que, os mesmos, possuíam um forte esquema
de aniquilamento justamente dos mais fracos e necessitados como doentes, deficientes
mentais e físicos
32
. Não admitiam a afirmação cristã de que todas as pessoas eram iguais aos
olhos de Deus e a preocupação católica com a salvação de todos, independentemente da
raça.
29
SOBRINHA, M. C. Cristianesimo e Testimonianza in Dietrich Bonhoeffer, p.9.
30
STACKELBERG, R. A Alemanha de Hitler – Origens, Interpretações, Legados, p.196.
31
Cf. ibidem, p.192.
32
Entre as vítimas da implacável perseguição nazista também figuravam os ciganos, deficientes físicos e
mentais, homossexuais, pacifistas, adversários políticos, além dos judeus. Cf. ibidem, p.299.
25
A suscetibilidade de muitos protestantes alemães à ideologia nacionalista ajudou os
nazistas em sua tentativa de controlar a Igreja Evangélica, pois acreditavam que o
desenvolvimento de uma religião nacional, especificamente alemã, os ajudaria no alcance de
seus objetivos mais rapidamente.
Adolf Hitler criou, no ano de 1921, o Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães (Partido Nazista). O Partido era antiparlamentar, antidemocrático e antiliberal.
Também defendia o totalitarismo, pois o indivíduo pertencia ao Estado. O Estado
identificava-se com o Partido Nazista, e o Partido, identificava-se com seu líder supremo, o
Führer. Portanto, o Estado deveria estar submetido unicamente à autoridade do Führer. O
Partido Nazista ganhou apoio dos militares e capitalistas
33
.
Hitler atribuía aos marxistas e aos judeus a derrota da Alemanha na Primeira Guerra
Mundial e a crise que se instalara no país após o Tratado de Versalhes
34
. A derrota da
Primeira Guerra Mundial não resultou para a Alemanha apenas uma intensificação do anti-
semitismo político, também levou a um crescente desejo pela eugenia, como um meio de
regenerar o povo alemão e restaurar a força nacional.
Por causa do fracasso do golpe que havia tentado em 1923, Hitler ficou preso oito
meses. Durante esse período, escreveu a primeira parte de seu livro Mein Kampf (Minha
luta), em que defendia o anti-semitismo, o Estado forte, o nacionalismo. Mas o ponto central
de seu discurso político era o racismo, defendendo a idéia de superioridade racial do povo
alemão, que por pertencer à raça ariana deveria dominar outras comunidades étnicas. O
povo alemão deveria, conforme Hitler, evitar a contaminação por raças e elementos
inferiores.
33
Cf. ARRUDA, J. J. Época Moderna e Contemporânea, p.168.
34
O Tratado de Versalhes foi um tratado de paz assinado pelas potências européias que encerrou oficialmente
a Primeira Guerra Mundial. O principal ponto do tratado determinava que a Alemanha aceitasse todas as
responsabilidades por causar a guerra e que fizesse reparações a um certo número de nações. Os termos
impostos à Alemanha incluiam a perda de uma parte de seu território para um número de nações fronteiriças,
de todas as colônias sobre o oceano e sobre o continente africano, uma restrição ao tamanho do exército,e
uma indenização pelos prejuízos causados durante a guerra. Na Alemanha o tratado causou choque e
humilhação na população, o que contribuiu para a queda da República de Weimar em 1933 e a ascensão do
Nazismo. Cf. ibidem, p. 172.
26
A partir daí, a sociedade nazista aboliu os conceitos de certo e errado, de bem e mal,
no seu sentido mais primário, mais elementar, aboliu a idéia de que matar inocentes era
crime. Ela instituiu um extermínio burocrático, de forma que milhares de pessoas podiam se
tornar criminosos simplesmente assinando ordens ou repassando-as, muito longe dos
campos de extermínio. A divisão técnica das tarefas contribuiu para que cada um executasse
uma pequena tarefa e sua responsabilidade ficasse diluída, de modo que cada um fizesse
“apenas” uma pequena parte e “o genocídio foi executado, em suas tarefas cotidianas, por
milhares de pessoas normais, segundo quaisquer critérios”
35
.
O nazismo se aproveitou do apelo aos sentimentos, que na época eram de revolta,
insatisfação e desesperança, para manipular a opinião pública e dar ênfase ao
antiintelectualismo, gerando uma visão irracional do mundo que desemboca no fanatismo e
na violência
36
.
Dessa maneira a ideologia nazista foi se introduzindo astuciosamente no meio do
coletivo, sem que fossem descobertas, de início, as suas causas mais determinantes. E mais
do que isso, agindo em diversos setores da vida humana, ameaçou o Estado enquanto
instituição encarregada da segurança e da autonomia dos cidadãos. Usando o poder efetivo
contra o princípio da autonomia, conseguiu manipular as massas e identificá-las cegamente
com o coletivo. Justamente essa identificação com o coletivo foi o diluente da
responsabilidade, que é sustentada pela consciência e pela liberdade individual.
O comprometimento com uma ideologia que é acatada cegamente na medida em
que mergulha no coletivo, faz com que o indivíduo permaneça sem consciência moral, sem
julgamento próprio, insensível ao sofrimento do outro, no exercício de uma obediência
burocrática. É nesse sentido que a filósofa Hannah Arendt se refere à banalidade do mal,
não para negar o horror do holocausto, mas para dizer que o mal cometido pode aparecer e
se sustentar como se fosse banal. Nesse caso, trata-se, apenas, do cumprimento de ordens
35
ARRUDA, J. J. Época Moderna e Contemporânea, p.218.
36
Ver ARENDT, H. Sobre a violência.
27
por um funcionário dedicado, na total submissão a valores externos e, portanto não
questionados. Por isso, quanto menos críticos os indivíduos se tornem, mais completamente
se deixam sujeitar às regras cujos fundamentos não conhecem nem buscam conhecer.
Hannah afirma que “os movimentos totalitários são organizações maciças de indivíduos
atomizados e isolados. Distinguem-se dos outros partidos e movimentos pela exigência de
lealdade total, irrestrita, incondicional e inalterável da cada membro individual”
37
.
Essa organização extremamente eficaz e altamente racional e realista da massificação
do povo encontrou a sua legitimação na certeza “mágica” de que este povo estaria
predestinado por um destino a ser Povo de Senhores da Europa, se não do mundo. Essa
ambição de alcançar a supremacia sem escrúpulos de consciência e sem outra legitimação
que não fosse o destino histórico e o valor transcendente do próprio grupo encontra-se no
próprio fato de que ser alemão representava o valor supremo. Segundo a ideologia nazista,
os indivíduos de raça germânica eram chamados pela natureza e pela história a constituir
uma espécie de aristocracia da humanidade. As outras raças, sobretudo, judeus e negros,
eram inferiores, por isso inimigos naturais.
Eis aqui o problema ético: apelando para o favorecimento divino à raça alemã e
formando uma mentalidade coletiva cega à realidade e submissa às leis do Estado, o
nazismo conseguiu manipular os indivíduos de forma que os valores individuais fossem
aniquilados e com eles, a consciência moral, a liberdade e consequentemente a
responsabilidade. Esterilizações em massa, eutanásia, genocídio, tornaram-se então, apenas
meios para uma espécie de “seleção natural”. O valor humano dissolveu-se na ideologia e, o
que restou?
Bruno Forte, relatando a experiência de uma menina durante a Segunda Guerra
comenta que “existe uma humanidade em todos nós, uma consciência moral, e essa
consciência - posta em condições de poder se exprimir livremente - não resiste à
37
ARENDT, H. As Origens do Totalitarismo, p. 373.
28
transcendência do olhar do outro, sobretudo do olhar de um inocente”
38
. Nessa
perspectiva, talvez, o foco da ideologia nazista fosse atingir diretamente essa humanidade,
acabando com a possibilidade da alteridade através da massificação.
O país, que então passava por uma significativa depressão econômica e moral
procurava uma “força”, alguém que liderasse com mãos firmes, e aos olhos de muitos, Hitler
era o salvador almejado.
Hitler aos poucos foi ganhando espaço. Em 30 de janeiro de 1933 foi designado
chanceler. No dia 1º de fevereiro, dirige-se pela primeira vez à nação em um discurso
radiofônico. Nesse mesmo dia, Bonhoeffer falou sobre como ser líder (Führer) do povo.
Frente à veneração a Hitler, ele advertia: “Se o Führer se deixar levar pelos
governados a ser o seu ídolo –e o governado sempre esperará isso dele -, a
imagem do líder [Führer] descambará para a do tentador [Verführer] (...)
governante e governo que se divinizam afrontam a Deus”... A transmissão foi
interrompida.
39
Muito cedo Bonhoeffer se deu conta e denunciou as tendências desumanas e anti-
semitas do nacional-socialismo que, ao final de 1932, havia vencido legalmente as eleições
legislativas da câmara alemã
40
.
Além da violência e do medo, o Partido Nazista usava outra poderosa arma para
convencer o povo alemão: a propaganda. A propaganda identificava o judeu com o grande
38
FORTE, B. A Guerra e o silêncio de Deus, p. 72.
39
MILSTEIN, W. Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.35.
40
A Igreja Católica, sob o Papa Pio XII, também é criticada por não fazer uma denúncia expressa ao Holocausto
durante a guerra. Pio XII justificou a falta de condenação mais explícita à política nazista com a alegação de que
serviria para agravar a situação das vítimas e nos bastidores, tomou iniciativas que resultaram na salvação
de milhares de judeus. STACKELBERG, R. A Alemanha de Hitler – Origens, Interpretações, Legados, p.320.
Outras informações sobre o assunto também em MARCHIONE, Margherita. La verità ti falibero. Papa Pio XII
a cinquent'anni dalla morte.
29
banqueiro internacional, explorador do povo alemão, e também com o socialista
revolucionário, deturpador da ordem.
O nazismo foi uma ideologia que tinha efetivo apelo e que chegou a mobilizar parte
importante de uma sociedade de um Estado moderno para cometer um extermínio em
massa, de forma rotineira e sistemática. A questão é: em que ponto toda uma sociedade
passa a ser conivente, em vários graus, com um genocídio ativado por uma minoria que
acredita estar cumprindo desígnios divinos?
Dessa forma, a ideologia nazista foi sendo assimilada pela população. Os cidadãos
que insistiram em se opor ao nazismo, pregando a liberdade de expressão, foram
perseguidos e tiveram suas obras destruídas. Muitos fugiram da Alemanha.
Nesse clima turbulento, Bonhoeffer foi um dos primeiros a lutar pela causa da
relação entre a Igreja e a questão dos judeus, destacando que:
Primeiro, a igreja deve perguntar ao Estado se o seu agir é legítimo. Em segundo
lugar, a igreja está comprometida de “forma inalienável” com as vítimas, quer elas
pertençam à igreja quer não, pelo que ela poderia ser defrontada com a realidade
de “não só cuidar das vítimas da roda, mas de atirar nos raios da roda”
41
.
De 1933 a 1935, Bonhoeffer permaneceu em Londres animando a vida religiosa das
pequenas comunidades. Em 1935, no momento de seu retorno à Alemanha, o Kirchenkampf
entra em uma fase crítica e decide formar seus próprios pastores para se distanciar da
ideologia nazista.
Nesse período, desenvolve intensa atividade pastoral
42
e ecumênica e é como diretor
de um dos seminários em Finkenwalde que nasce Discipulado (Nachfolge), onde pôde
desenvolver seu conceito de Igreja, não de forma apenas teórica, mas principalmente de
forma prática, na qual a Igreja se caracteriza como Igreja in status confessionis: No
41
MILSTEIN, W. Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.37.
42
Alguns de seus sermões podem ser conferidos em BONHOEFFER, D. Prédicas e Alocuções.
30
seguimento [ou discipulado] está a essência do ser cristão, e o seguimento pode ser
realizado na “vida comum” [também título de uma obra]. O que significa que, “por um lado,
consiste na fé e obediência a Jesus”, pois apenas essas possibilitam o seguimento. “De outro
lado, realiza-se somente no concreto ser-um-com-outro, sem o qual o seguimento sempre
corre o risco de auto-satisfação e individualismo”
43
.
Seu estilo de ensinar era singular. Para ele o importante era aquilo que a Palavra de
Deus diz hoje ao ser humano, falava sobre o compromisso cristão com a paz e sobre o
pacifismo, lembrando aos seus seminaristas que Jesus era um judeu e que tanto o Antigo
quanto o Novo Testamento gozavam dos mesmos direitos, visto que se tratava de uma única
e mesma Igreja, do mesmo e único Deus
44
.
Com Discipulado, sua cristologia acadêmica torna-se cristologia prática, numa
tentativa de compreender o que deseja Cristo hoje de nós e reconduz a uma renovação a
qual a Igreja é chamada no encontro por uma hermenêutica, trabalhando a interpretação da
Escritura ao interno da comunidade eclesial. Este problema é aqui visto como problema do
Cristo presente, não como problema teórico da relação entre evento histórico do passado e
do presente, mas como problema histórico concreto. Critica a ilusão que pode proceder de
uma renovação da Igreja através da procura de uma pureza abstrata do anúncio. A pergunta
que guia Discipulado é: o que quer dizer-nos Cristo hoje? Que coisa quer de nós? Não
podendo ser traduzida em como anunciar concretamente sua vontade, mas na pergunta
como responder a vontade de Cristo nas condições atuais?
Nesta obra, Bonhoeffer distingue dois tipos de graça: graça barata, aquela sem
seguimento/discipulado, que não conhece a cruz e graça cara, aquela que comporta o
seguimento/discipulado, que põe o discípulo sob a cruz. “Ela é cara porque convida ao
seguimento, e é graça por convidar ao seguimento de Jesus Cristo
45
”. Outra tese do livro é:
43
CAPOZZA, N. e KURT, A. “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a eclesiologia
de Dietrich Bonhoeffer, p.586.
44
Cf. MILSTEIN, W. Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.57.
45
DISC, p.10.
31
“Somente quem crê obedece”, pois a exige como conseqüência a obediência; “Somente
quem obedece crê”
46
, a fé existe e nutre-se da obediência.
Vida em comunhão é o segundo dos dois escritos mais característicos da segunda
fase de Bonhoeffer, menos vinculada à vida acadêmica e mais à vida prática. Move-se
substancialmente segundo os mesmos conceitos de Discipulado. Descreve os elementos que
caracterizam a vida e a jornada do cristão que não vive em diáspora, mas numa comunidade
espiritual de trabalho. A partir deste ponto, a “teologia do seguimento” não mais apontará
para a vida dentro de uma comunidade fechada, mas de responsabilidades na aberta
realidade do mundo.
Nasce na clandestinidade, após o fechamento dos seminários, como momento forte
da vida comunitária. Nessa reflexão, Bonhoeffer quer resguardar a distância salutar que o
crente deve conservar entre os seus desejos e a objetividade espiritual, entre o cultivo de
um idealismo fora da realidade e a provação vivida numa comunidade, que constrói, na
diversidade de seus membros, uma comunidade espiritual de fé.
O fechamento de Finkenwalde pela Gestapo e a proximidade da guerra são os
motores que põe em marcha a entrada de Bonhoeffer nos círculos opositores ao Terceiro
Reich.
Bonhoeffer se mostrava “um socialista convicto e um coerente pacifista, próximo e
distante ao mesmo tempo, aristocraticamente destacado e disposto a abrir-se... os seus
conflitos os vivia e os suportava de maneira quase ‘santa’”
47
.
46
DISC, p.25.
47
FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.18.
32
1.3 Terceira fase: prisão
Morte
Vem, pois, sublime festival no caminho para a liberdade eterna,
morte, derruba os incômodos grilhões e muros
de nosso corpo mortal e nossa alma obcecada,
para que vejamos, afinal, o que aqui não nos foi permitido vislumbrar.
Liberdade, procuramos-te muito na disciplina, na ação e no sofrimento;
Morrendo reconhecemos, no semblante de Deus, a ti mesma
48
.
A terceira fase, de 1939 a 1945, tem como tema o mundo e coincide com o início da
Segunda Guerra Mundial. É marcada por diversas proibições: proibição de ensinar na
Universidade, proibição de falar em público, e proibição de acesso à cidade de Berlim.
Nesta época, prevendo o perigo, seus amigos americanos o convidam a passar algum
tempo nos Estados Unidos. A decisão de ficar na Alemanha ou transferir-se para os Estados
Unidos se apresenta como a escolha mais difícil de sua vida.
Cedendo às pressões dos amigos, Dietrich decide partir em junho de 1939 para a
América, porém, dois meses depois, retorna a Berlim, deixando uma carta escrita ao amigo
Reinhold Niebuhr apresentando suas desculpas:
Sentado no jardim do seminário (Union Theological Seminary), tive tempo de
pensar e orar no que se refere à minha situação e à situação da minha nação,
obtendo algumas luzes sobre a vontade de Deus. Cheguei à conclusão de que fiz
um erro em vir para os Estados Unidos. Neste período difícil da história da minha
pátria, devo viver junto com meu povo. Não terei o direito de participar da
reconstrução da vida cristã na Alemanha depois da guerra se não tiver
compartilhado com meu povo as provas deste período. Os cristãos alemães terão
que enfrentar a terrível alternativa de desejarem a derrota de sua pátria para a
salvação da civilização cristã ou de desejarem a vitória de sua pátria e,
consequentemente, a destruição de nossa civilização. Eu sei a escolha que devo
fazer; porém não posso fazê-la e manter-me ao mesmo tempo em segurança
49
.
48
Fragmento do poema “Estações no caminho para a liberdade”.
49
NIEBUHR, R. “The Death of Martyr” em Christianity and Crisis, Citado por MONDIN, B. Os Grandes Teólogos
do Século Vinte, p.169.
33
Sabia que o retorno significaria o risco, mas precisava “mergulhar no mundo como
testemunha do amor de Deus”, “ser luz naquela escuridão”, “resistir para salvar vidas” e
“submeter-se só quando se trata de preservar a vida dos outros, sempre olhando o mundo e
a criação pelos olhos de Deus”
50
.
Assim, para Bonhoeffer restava o peso da consciência de agir de modo coerente ou
não com os critérios que defendia (nessa época possui fragmentos para a Ética), não
em sua teologia como em sua própria existência. Ele voltou para a Alemanha porque
assumiu seu discipulado, sua responsabilidade de cristão com o próximo e sabia que,
naquele momento, fugir poderia significar não seguir a Cristo até as últimas consequências.
Se Cristo tem sentido no “existir-para-os-outros”, também os cristãos têm sentido
enquanto existindo ativamente no mundo, participando da vida e interagindo nos rumos da
história. Sua fé era viva e ativa:
A é a participação no ser de Jesus. (Encarnação, cruz e ressurreição). Nossa
relação com Deus o é uma relação “religiosa” com o ser mais elevado, mais
poderoso, melhor que se possa imaginar isto não é transcendência genuína
mas nossa relação com Deus é uma nova vida na “existência para os outros”, na
participação no ser de Jesus. O transcendente não são as tarefas infinitas,
inatingíveis, mas é o respectivo próximo ao alcance
51
.
As bases do seu agir estão na sua fé, no seguimento a Cristo, na relação com Deus,
uma relação que existe quando passa pelo outro, quando atinge a alteridade. Para tanto,
Bonhoeffer acreditava que era preciso assumir a existência e os atos diante de si mesmo,
diante dos outros e diante de Deus, por isso falava de assumir a maioridade na (assunto
que será tratado mais adiante). Acreditava que é do Cristo que sofre solidário que vem a
tarefa dos cristãos de também serem solidários, principalmente com os mais fracos, que
naquele momento, reconhecia ser o seu povo.
Esse sentido de responsabilidade que lhe é tão peculiar, com certeza, tem fruto no
seio da família Bonhoeffer, mas ganha motivação e fundamento em Cristo e no seu
50
MALSCHITZKY, H. Dietrich Bonhoeffer: discípulo – testemunha – mártir, p.59; 73; 31 respectivamente.
51
RS, p.510.
34
seguimento. E é levado tão a sério que Bonhoeffer o cansa de enfatizar o quanto deve ser
decisivo aceitar esse chamado: “o mesmo Jesus... diz aos seus discípulos: Vocês são a luz em
toda a sua vida enquanto permanecerem no chamado. E , por sê-lo, não poderão mais ficar
ocultos, mesmo que o quisessem. A luz brilha, e não se pode esconder a cidade edificada
sobre o monte”. E continua, ressaltando que não meio termo para quem resolve seguir a
Cristo: “os seguidores não estão diante de uma decisão: a única que existe para eles foi
tomada. Agora têm que ser o que são ou então deixam de ser seguidores de Jesus... seu
discipulado é ação visível através da qual eles se destacam no mundo, ou então não são
discípulos”
52
.
Por vezes suas frases podem parecer radicais, mas diante da urgência da situação
presente não havia outra condição que não fosse ser radical. O que é preciso entender é
que, para Bonhoeffer, ser cristão significa arriscar-se. Arriscar-se em prol do outro, assim
como Cristo, sem vacilar. É defender a criação a todo custo, por amor. É viver enraizado
numa ética autenticamente cristã, fundamentada no seguimento a Cristo, a ética da
responsabilidade.
Assim ao voltar para Berlim, intensificou os contatos com a resistência alemã. Como
homem que lutou sempre pela paz, grande admirador de Gandhi, pensava em como resolver
os conflitos políticos sem violência. Porém, tal desejo não foi possível concretizar devido à
urgência da realidade, o que o levou a participar dos planos de um atentado a Hitler. Foi um
dos poucos homens que, na Alemanha hitlerista, ousou se envolver diretamente na
atividade política, valendo-se dos conhecimentos de sua família e dos contatos
internacionais por sua atividade ecumênica, atividade que assumira dimensão internacional
podendo preservá-lo da catástrofe que logo atingiria a Alemanha e a Europa, mas a
permanência na América pesava-lhe a consciência por parecer-lhe uma fuga aos
acontecimentos. Decidiu voltar à Alemanha, aonde chegou ao final de julho de 1939.
Decisão da qual nunca se arrependeu, conforme deixou registrado numa de suas cartas:
“nunca me arrependi da minha decisão do verão de 39, e tenho até a impressão de que a
52
DISC, p.68.
35
minha vida transcorreu de maneira totalmente coerente e sem rupturas... foi um
enriquecimento ininterrupto da minha experiência, pelo qual realmente só posso ser
grato”
53
.
Esse novo e mais intenso período é caracterizado, sob o aspecto intelectual, pelo
início da redação da “sua” Ética; e, sob o aspecto militante, pelo trabalho pastoral e
ecumênico com a Igreja Confessante e pela participação ativa na resistência alemã e na
conspiração anti-hitleriana.
54
Seu pensamento está voltado para as relações entre Igreja e
Estado, Igreja e mundo, o cristão e seus deveres civis e religiosos.
Entre 1940 e 1943, escrevendo ensaios sobre a Ética, reflete sobre a relação entre a
realidade de Deus em Cristo e o mundo. O mundo é visto por Bonhoeffer como a área de
responsabilidade concreta que foi dada ao ser humano por Cristo. Através de seu agir no
mundo, o cristão descobre, no cotidiano, qual a vontade de Deus.
Foi detido em abril de 1943 e preso, no cárcere de Tegel, por crime de alta traição
contra ao país. Da prisão de Tegel continuava a desenvolver suas atividades pastorais, dando
assistência aos companheiros de prisão, lendo a Bíblia, fazendo orações, administrando
sacramentos
55
e oferecendo conforto. Nesse período, foi acusado pelo envolvimento num
atentado contra Hitler
56
, o que agravou sua situação.
Da prisão escreve periodicamente aos pais, à sua noiva e, em especial, ao amigo
Bethge, que futuramente seria o organizador e editor de seus textos, uma série de cartas,
regalia conseguida pela influência de seus amigos e familiares e pela simpatia que causava
aos guardas que o vigiavam. Essas cartas foram postumamente publicadas no livro
53
RS, p.359.
54
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.111.
55
Assim como na questão da ordenação, há diferença doutrinal também em relação a questão dos
sacramentos entre a Igreja Católica e a Igreja Luterana. Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.1076-
1690.
56
O atentado referido é o de 13 de março de 1943, organizado pelo círculo da resistência no Departamento de
Defesa do Ministério da Guerra em Berlim, envolvendo o almirante Canaris, o coronel Gersdorf, o conde
Stauffenberg, Hans Von Dohnanyi, Klaus Bonhoeffer, entre outros. Cf. SHIRER, William L. Ascensão e queda do
III Reich, p. 136-148.
36
Resistência e Submissão, e contém uma complementação substancial ao seu pensamento
ético.
Sobre o tema resistência e submissão escreve:
Creio que realmente devemos empreender coisas grandes e próprias, mas ao
mesmo tempo fazer o que é óbvio e universalmente necessário; precisamos
enfrentar o destino com a mesma determinação com que devemos nos submeter
a ele em tempo oportuno... Portanto, os limites entre resistência e submissão não
podem ser determinados por princípio; mas ambas as coisas têm de estar
presentes e ambas têm de ser assumidas com determinação. A exige essa ação
viva. assim poderemos suportar e tornar fecunda nossa respectiva situação
presente
57
.
Mais uma vez pode ser percebido que Bonhoeffer tinha clareza sobre sua realidade e
a realidade dos fatos, fez parte da resistência com o intuito de salvar vidas, mas submeteu-
se quando assim a situação pediu, entregando seu futuro nas mãos dos homens e de Deus.
Porém, mesmo na prisão, nunca deixou de carregar as dores alheias. “O discípulo es
chamado a levar fardos. Ser cristão consiste em levar fardos. Como Cristo manteve a
comunhão com o Pai levando fardos, assim também carregar fardos é, para o discípulo,
comunhão com Cristo”
58
, escreveu em Discipulado.
Como preso político sob investigação, Bonhoeffer não foi submetido às torturas
causadas aos judeus nos campos de concentração, mas ainda assim sentiu, num primeiro
momento, sua dignidade humana diluída. Passou os primeiros doze dias, incomunicável e
isolado. Sua cela era minúscula, suas cobertas tinham cheiro de excremento, o pão era
atirado no chão da cela e ouvia, do lado de fora, os xingamentos humilhantes dos
funcionários, conforme relata em uma de suas cartas
59
.
Entretanto, havia sentido em suportar tal sofrimento, assim como relata Viktor Frankl
“o que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que incluiu também a morte
57
RS, p.307.
58
DISC, p.49.
59
RS, p.348.
37
e assim não somente atribui sentido à ‘vida’ mas também ao sofrimento e à morte”
60
.
Bonhoeffer tinha um sentido para sua vida e por isso também para o seu sofrimento e até
para sua morte, como foi o caso: na fé posso suportar tudo, também uma condenação,
também as outras consequências temidas” (aqui se refere às torturas infligidas aos presos),
sua preocupação era manter-se firme na fé, pois somente através desta o risco ao qual se
submeteu faria sentido, “perigoso é o vacilar de um lado ao outro sem fé, o deliberar
interminável sem ação, o não querer arriscar nada. Tenho de poder ter a certeza de estar
nas mãos de Deus e não nas mãos de pessoas’’
61
.
Em outra carta acrescenta: “o mais importante nisso tudo decerto é que fiquemos
fiéis a nós mesmos, que não nos percamos e que, apesar de todas as insuficiências da vida,
não desacreditemos totalmente na humanidade
62
. Como se pode perceber, Bonhoeffer era
um otimista e acreditava firmemente que Deus estava a agir nos acontecimentos, por piores
que fossem, “por maior que tenha sido a falha humana e a culpa que antecedeu os fatos,
nos próprios fatos está Deus”. Enxergava também o quanto se pode crescer humanamente
com o sofrimento, pois “renunciar a autênticas alegrias e conteúdos de vida para evitar
dores certamente não é cristão e nem humano”
63
. Para ele o que valia era o risco de viver
autenticamente, agindo com responsabilidade perante as exigências dos fatos: “o
pensamento de que muitas dificuldades da vida poderiam ter sido evitadas se tivéssemos
vivido de maneira menos corajosa de fato é insípido demais para ser levado a sério por um
instante sequer”
64
.
Era um apaixonado pela vida e queria responder-lhe da forma mais plena possível,
não importando o preço a pagar, lançou-se nas mãos de Deus com toda sua fraqueza e amor
e confiou-se Àquele que realmente o conhece. Sua angústia e confiança podem ser
confirmadas pelo poema escrito na prisão no natal de 1943. Eis um trecho: “Dentro de mim
60
FRANKL, V. Em busca de sentido, p. 77.
61
RS, p.234.
62
RS, p.274.
63
RS, p.266.
64
RS, p.266.
38
está escuro, mas em ti há luz/ Eu estou só, mas em ti há auxílio/ Eu estou inquieto, mas em ti
há paz/ Não entendo os teus caminhos, mas tu conheces o caminho certo para mim”
65
.
Como fiel discípulo de Cristo, estava disposto a doar-se inteiramente por suas obras e
via, na humanidade, o potencial para se tornar mais autenticamente cristão e
consequentemente mais plenamente humano.
Pode-se ousar dizer que a visão que Bonhoeffer tinha em relação ao sofrimento era
quase otimista, uma visão peculiar aos mártires
66
. Estes, acusados nos tribunais por
confessar a em Cristo publicamente, eram executados. Assim, também Bonhoeffer foi
acusado, embora implicitamente, de seguir a Cristo, visto que a proposta da Igreja
Confessante era, justamente, em favor do mandamento cristão do amor e da igualdade
entre todos do gênero humano, lutar em benefício da construção do Reino de Deus na
realidade de uma sociedade ferida pelo preconceito. E essa luta nada mais significa que a
confissão da fé em Cristo através do seguimento e testemunho.
Moltmann afirma: é mártir quem é perseguido e morto por causa de sua confissão
de e também por causa de sua obediência de fé”
67
. Esse preceito de obediência se
encontra enraizado em todo pensamento teológico e ético de Bonhoeffer, sendo mais
amplamente abordado no livro Discipulado, onde obediência e são postos numa relação
circular quem crê obedece, quem obedece crê como pressupostos e conseqüência
uma da outra, “a existe na obediência e jamais sem ela, e a somente é no ato da
obediência”
68
. E acrescenta que “é preciso dar um primeiro passo obediente... O primeiro
65
RS, p.190.
66
O conceito vétero-cristão do martírio surgiu das experiências da perseguição aos cristãos por parte dos
governantes pagãos. Eram reconhecidos e venerados como mártires os que, como Cristo, aceitavam
espontaneamente sua morte violenta na fé por causa do nome de Cristo. Eram acusados perante os tribunais e
intimados a renegar a Cristo publicamente. Publicamente eram executados quando confessavam sua em
público. Assim, os mártires se tornaram “testemunhas públicas” de Cristo. MOLTMANN, J. O Caminho de Jesus
Cristo, p. 268.
67
Ibidem, p.269.
68
DISC, p.25.
39
passo de obediência impõe a Pedro abandonar as redes e saltar do barco, e ao jovem rico,
abandonar sua fortuna”
69
.
Esse primeiro passo significou para Bonhoeffer a adesão ao movimento da resistência
alemã, no qual podia atuar, entre tantas atividades e por seus diversos contatos
internacionais, no abrigo aos refugiados da guerra. Dessa resistência “teológica” de
Bonhoeffer, Moltmann
70
apresenta os seguintes aspectos: Bonhoeffer ultrapassou os limites
de uma resistência apenas eclesiástica para a resistência política contra a ditadura alemã,
pois, segundo ele, a Igreja tem obrigação de protestar quando o poder público se torna
anárquico, injusto e desumano. A Igreja tem obrigação de protestar quando o povo é
perseguido e condenado.
Constata-se, portanto, a relevância da esfera pública na teologia de Bonhoeffer, uma
teologia que se faz profética ao anunciar e denunciar os abusos de poder e que se faz
presente ao compartilhar todos os espaços da sociedade. Sendo, de fato, uma articulação
que junta preocupações pastorais, teológicas e acadêmicas
71
. Refletindo os eixos temáticos
entre teologia e sociedade, teologia e universidade e teologia e cultura.
A teologia cristã é, como menciona Moltmann, teologia pública, “um refletir
teológico que intervém no fazer público da sociedade, reflete sobre o bem comum a luz
cristã da esperança do Reino de Deus, e desenvolve teologia política porque se coloca ao
lado dos pobres e dos excluídos da sociedade...” E por ser uma teologia “capaz de propor
criticamente e apologeticamente os valores religiosos e morais da sociedade na qual se
vive...”
72
, exige coragem para arriscar-se, para assumir as consequências do compromisso
assumido com Deus e com o próximo.
69
DISC, p.26.
70
Cf. MOLTMANN, J. Caminho de Jesus Cristo, p.273.
71
Cf. TRACY, D. A Imaginação Analógica: a teologia cristã e a cultura do pluralismo, p.25.
72
MOLTMANN, J. Dio nel progetto Del mondo moderno, p.5.
40
Bonhoeffer não sofreu apenas pelo direito da na Igreja, mas também pelo direito
da obediência de na vida política. Ele participou conscientemente do sofrimento de Cristo
no mundo. Seu martírio foi um martírio político-cristão.
Foi executado por alta traição por ordem de Himmler, nos últimos dias da guerra, no
campo de extermínio de Flossenbürg, na alta Baviera, na madrugada de nove de abril de
1945.
Para quem observa a trajetória do autor, consegue perceber a evolução do seu
pensamento que parte da Cristologia acadêmica, respondendo sobre o Cristo para nós;
passa pela cristologia prática com Discipulado, na pergunta sobre o que Cristo quer de nós
hoje; continua com Vida em Comunhão, que desdobra a forma de viver do cristão na
responsabilidade de uma comunidade de fé; desemboca na Ética, que da comunidade se
abre à responsabilidade na realidade do mundo e termina com Resistência e Submissão,
numa reformulação da visão de Cristo como ser-para-os-outros. Visão esta que contém um
impulso ético impregnado de vida, na qual a Igreja é Igreja enquanto existe para os
outros, assumindo o confronto da fé cristã com os problemas impostos pela modernidade.
Sua utopia era de um cristianismo a ser reinterpretado pelo homem da modernidade,
de um cristianismo não da fuga, mas da fidelidade ao mundo, de um cristianismo que deve
ser vivido na responsabilidade, na participação e na solidariedade. Um cristianismo universal
capaz de novas palavras e novas ações.
Sobre sua execução, Payne Best, do serviço secreto aliado e companheiro de cela de
Bonhoeffer, conta:
Num domingo, 8 de abril, o pastor Bonhoeffer pronunciou-nos um breve sermão,
falando de modo que tocou o coração de todos e encontrando as palavras
adequadas para exprimir o espírito de nossa condição e os pensamentos e
propósitos que ela determinara em s. Nem bem ele concluiu a última oração
quando a porta foi escancarada; entraram dois homens à paisana e de aspecto
malvado, dizendo: Prisioneiro Bonhoeffer, prepare-se para vir conosco’. Aquelas
palavras ‘venha conosco’ tinham assumido para nós um único significado: a
forca. Despedimo-nos. Ele se retirou dizendo: ‘Isto é o fim’. Depois, acrescentou
41
prontamente: Para mim, é o início da vida’. No dia seguinte, 9 de abril, foi
enforcado. Estava com 39 anos.
73
73
MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p. 170.
2 ÉTICA DA RESPONSABILIDADE
Vi um louco conduzindo seu automóvel por uma rua cheia de gente e percebi que
precisava impedi-lo de seguir em sua loucura. Não podia me contentar em
apenas curar as vítimas; tinha que me colocar diante do carro e pará-lo
74
.
Antes de iniciar a análise da proposta ética de Bonhoeffer é importante ressaltar
algumas considerações sobre a trajetória de seu pensamento até agora.
Pode-se perceber que sua teologia tem como início uma profunda motivação
eclesiológica, que ganha força durante sua formação acadêmica e toma corpo com a
elaboração da tese Sanctorum Communio: a Igreja vista como comunidade concreta de
cristãos que existe para o outro se torna pulsante apenas enquanto concebida como “Cristo
existente como comunidade”
75
. A partir dessa perspectiva, sua reflexão revela uma intensa
concentração no tema cristológico, que irá acompanhar o desenvolvimento de seu
pensamento de forma cada vez mais aprofundada e ativa.
Sua reflexão cristológica se torna mais evidente e central à medida que evoluem os
acontecimentos políticos na Alemanha e, é desenvolvida como uma forte resposta em
contraposição a ideologia nazista.
Esses acontecimentos políticos são a mola propulsora para a elaboração de sua teoria
sobre a ética, ganhando vivacidade nas cartas escritas da prisão, onde o tema mundo se
74
DUMAS, André. Dietrich Bonhoeffer: Una Iglesia para los no religiosos, In CÂMARA, U. F. S. A Ética da
Responsabilidade em Bonhoeffer: O desafio de encarar as demandas éticas do mundo moderno, p.4.
75
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.107.
43
torna essencial na reflexão bonhoefferiana sem, contudo, deixar de lado os aspectos
eclesiológicos e cristológicos, mas ao contrário, tornando-os comunicantes entre si e, de
certa forma, complementares.
Na primavera de 1939, às vésperas do estouro da Segunda Guerra Mundial,
Bonhoeffer está nos EUA por causa de seus compromissos ecumênicos e da insistência de
amigos, podendo se preservar dos eventos devastadores que estão por vir, mas, decide
voltar à Alemanha não querendo fugir aos acontecimentos. Começa uma nova fase de sua
vida em dois aspectos: no aspecto intelectual, pela redação de Ética; no aspecto militante,
pelo trabalho pastoral na Igreja Confessante.
Nessa nova fase, sua atividade no seio da resistência política e militar, não
permite a continuação do exercício de um ministério autenticamente espiritual na sua Igreja,
como também, o prosseguimento de suas meditações teológicas, que nesse período tem
enfoque nas relações entre a Igreja e o Estado, a Igreja e o mundo, o cristão e seus deveres
civis e religiosos. Assim, ele inicia a redação de sua obra Ética (que ficará incompleta) e sua
teologia ganha, então, um realce muito mais ético do que dogmático.
A questão ética sempre fez parte de sua reflexão, por isso, os seus escritos foram
frutos de uma elaboração ao longo do tempo, tanto que na sua primeira grande obra
Sanctorum Communio, o assunto ético aparece esboçado na especulação entre o conceito
cristão de pessoa e de comunidade.
Mencionando Kant, Bonhoeffer afirma que no momento em que se encontra
interpelada pela exigência ética, a pessoa está em uma condição de responsabilidade, de
decisão e, por isso, é interpelada na sua totalidade de indivíduo interior, porém, pertencente
a uma comunidade e, com isso, sua dimensão relacional-social também é questionada. Esse
questionamento não é atemporal, mas acontece num local concreto diante de uma história
concreta, consequentemente, a pessoa não existe diante de uma plenitude de valores e de
uma espiritualidade atemporal, mas vive com plena responsabilidade em meio à sua época,
44
pois apenas num tempo concreto atua plenamente o apelo ético real, assim como, apenas
na responsabilidade se adquiri plena consciência da ligação com a história
76
.
As relações entre tempo, responsabilidade, comunidade, indivíduo, vontade de Deus,
são amplamente desenvolvidas em Sanctorum Communio de uma forma reflexiva e
teoricamente aprofundada. Bonhoeffer escreve que “uma pessoa concreta nasce de uma
situação concreta” e que “quanto mais claramente reconhecer o seu limite, tanto mais
profundamente a pessoa assume uma postura de responsabilidade”
77
. Assim, reconhecendo
o limite ético concreto que se coloca à pessoa e vendo a necessidade de reconhecer tais
limites, pode-se chegar a uma concepção, também concreta, das relações sociais
fundamentais existentes entre as pessoas sob o plano da ontologia e da ética.
Afirma que no reconhecimento ético-social, o outro deve ser “experimentado
vitalmente” pelo “eu” simplesmente como “tu” e não como o mesmo “eu”, pois na esfera da
realidade ética, a forma “tu e a forma “eu” são substancialmente diversas. Portanto, a
forma “tu” pode definir-se como o outro que me impele a uma decisão ética
78
.
Conforme Bonhoeffer, a pessoa é totalidade e unicidade. Como consequência, as
relações sociais devem ser concebidas como interpessoais baseadas na unicidade de cada
ser. Por isso, a categoria social fundamental é a relação “eu-tu”, o “tu” do outro e o “tu”
divino. Nessa relação o indivíduo se torna continuamente pessoa por meio do outro e a
relação real com o outro é orientada pela relação com Deus. Com essa perspectiva, a
espiritualidade do indivíduo é indispensável como pressuposto para a formação da pessoa
sob o plano ético
79
.
Ainda em Sanctorum Communio, apresenta uma reflexão sobre a solidariedade no
pecado, baseado na totalidade humana do qual o indivíduo faz parte e aponta para o “Cristo
76
Cf. SC, p. 25.
77
SC, p.27.
78
Cf. SC, p.29.
79
Cf. SC, p.32.
45
existente como comunidade” como um caminho para substituir cada “Adão”, fruto da
desagregação de muitos indivíduos singulares, por uma humanidade reconhecida na
unidade de Cristo
80
.
Se em Sanctorum Communio, Bonhoeffer, usava termos mais conceituais e filosóficos
em suas reflexões, a partir de 1937, como diretor do seminário clandestino de Finkenwalde e
com a preocupação de orientar seus alunos com temas relacionados à ética cristã,
desenvolve, usando uma linguagem própria, um estudo sobre o Sermão da Montanha (Mt
5-7), cujo resultado desembocou na elaboração do livro Nachfolge que, literalmente,
significa “seguimento”
81
. O livro, dividido em duas partes, traz, na primeira, os conceitos de
“graça barata” e “graça preciosa” demonstrando a relação existente entre graça e
discipulado na releitura do Sermão da Montanha. Na segunda parte, o enfoque é dado à
relação entre o discipulado e a Igreja, ressaltando a decisão de seguir a Cristo como condição
para se tornar partícipe de seu corpo no mundo.
Discipulado se apresenta como uma inovação do pensamento de Bonhoeffer por
trazer um caráter mais pastoral e prático a uma reflexão já feita em sua cristologia, onde a
dimensão mundana adquire seu espaço. Isto porque, neste período, devido aos
acontecimentos políticos na Alemanha, com as vitórias conseguidas pelo partido do
nacional-socialista, com a eleição de Adolf Hitler ao cargo de chanceler e o início da
perseguição aos judeus, a sua preocupação com a realidade é intensificada. Pois a realidade
apresentava-se extremamente dura e conflitiva, de modo especial para os cristãos e era
preciso uma teologia que fosse capaz de comprometer-se concretamente com essa
realidade. Observa-se que a sua inquietação está sempre em buscar uma resposta que seja
concretamente aplicável à sociedade de seu tempo.
A partir
dessa relação é possível perceber uma linha de ligação entre a temática de
Discipulado e da Ética, onde crer significa decisão e ação e, naquela ocasião, significava ser
80
SC, p.81.
81
No Brasil o título do livro foi traduzido como Discipulado, visto que toda a ideia gira em torno do seguimento
a Cristo e logo, quem o segue é discípulo.
46
cristão ou “alemão”. Ser cristão, portanto, comportava o seguimento a Cristo, com a
consequente resistência ao nazismo, ainda que estes usassem um discurso religioso, em
favor de uma totalidade cristã que não escolhia nem excluía ninguém para formar o corpo
de Cristo.
Por isso, para Bonhoeffer, o seguimento não era apenas a assimilação de um
conteúdo doutrinário, mas, sobretudo, a obediência ao mandamento de Cristo, logo, a
pergunta que tenta responder é “como viver hoje uma vida cristã”?
Simplesmente por não querermos negar que não estamos no verdadeiro
discipulado de Cristo, que somos, é certo, membros de uma Igreja ortodoxamente
crente na doutrina da graça pura, mas não membros de uma Igreja do discipulado,
é preciso tentar compreender de novo a graça e o discipulado em sua verdadeira
relação mútua. não ousamos mais fugir ao problema. Cada vez se torna mais
evidente que o problema da Igreja se resume nisso: como viver hoje uma vida
cristã?
82
.
Procurando esta resposta, tanto a influência das experiências vividas na luta da Igreja
contra o nazismo quanto a efetiva participação na resistência alemã, se tornam o fio
condutor de sua reflexão ético-teológica, que redimensiona o lugar e o domínio de Cristo no
mundo.
Bonhoeffer havia percebido que a realidade do mundo estava mudando
drasticamente, de maneira que, aos cristãos, era necessário assumir uma postura ética
diferente da que mantinham até então. O que se pode chamar de ética da responsabilidade,
na qual o amor a Cristo torna-se critério para a ação responsável em favor do próximo, seja
ele quem for, ainda que exija o risco. Essa percepção da realidade faz com que insista numa
postura ética que não seja efeito de princípios atemporais, abstratos e universais, mas que
estejam engajados na concretude da época, revelando a importância que os fatos assumem
no desenvolvimento do seu pensamento ético. Sobre isso, Bruno Forte comenta que
82
DISC, p.19.
47
somente quando um ser humano assume a responsabilidade por outros seres humanos é
que nasce a genuína situação ética, que se distingue substancialmente da abstração ética
83
.
Segundo Bonhoeffer, a realidade exige uma ação concreta, como havia escrito na
carta a Reinhold Niebuhr; os cristãos na Alemanha estavam entre a crucial escolha de se
posicionarem de acordo com a derrota da nação para a sobrevivência da civilização cristã ou,
apoiar a vitória da nação e, consequentemente, a destruição da civilização cristã.
Essa turbulência expande sua visão de ética cristã e, como teólogo e pastor,
Bonhoeffer se com a missão de comunicar uma nova noção ética. Nota-se, no início de
suas reflexões, que o “próximo” é aquele que participa da comunidade da Palavra e do
Espírito, mas com as suas experiências em meio à Segunda Guerra, com a perseguição aos
judeus e o terror causado pelo nazismo, esta noção do “próximo” é redimensionada para
todo aquele que sofre injustamente no mundo, conforme descreve nas cartas da prisão.
Com isso, percebe-se uma evolução interior no seu pensamento sobre a temática
ética, desde Discipulado até o limiar das cartas da prisão, passando pela elaboração da Ética,
assunto que será tratado a partir de agora.
2.1 A Obra Ética
Raramente uma geração esteve tão desinteressada em matéria de ética... A
realidade se põe a nu. Os personagens de Shakespeare vagueiam entre nós
84
.
A Ética, portanto, caracteriza o terceiro período da biografia de Bonhoeffer, que
utilizou na elaboração de seus escritos, não apenas sua vivência, como também, a leitura de
autores como: Jacques Maritain com sua teoria da democracia, Romano Guardini com sua
interpretação de Dostoievski, Josef Pieper na reinterpretação da teologia de Tomás de
83
Cf. FORTE, B. Um pelo Outro, p. 119.
84
ET, p.41.
48
Aquino, Friedrich Nietzsche, Max Scheler, Karl Jaspers, Alfred Von Martin, Herman Nohl e
Wilhelm Lütgert
85
.
O livro publicado postumamente por E. Bethge é o resultado da organização de
manuscritos e fragmentos deixados por Bonhoeffer, que até o momento da prisão, deixou
uma parcela de material elaborado, mas sem ainda estabelecer a sequência dos temas
tratados. Obviamente, o livro não está exatamente como Bonhoeffer o sonhou, pois é
apenas uma compilação dos trechos salvos, de algumas partes concluídas e outras
inacabadas e ainda, algum material acrescentado, posteriormente, por seus alunos das
anotações feitas em aula.
Numa breve exposição é possível perceber o pano de fundo que perpassa toda obra,
vida e pensamento desse teólogo no que se refere à sua obra ética, pois parte de uma
observação profunda da realidade em que vive a sociedade de sua época. Num contexto de
niilismo, crise de sentido, decadência moral, privação da verdade e proeminência do mal,
Bonhoeffer quer mostrar que a ética não deve ser uma ética dos princípios ou das normas,
mas sim o discernimento da vontade de Deus numa ação concreta espelhada em Cristo,
concretizando-se no verdadeiro bem
86
.
Segundo o autor:
...uma ética não pode ser um livro em que esteja escrito como é que tudo deveria
ser no mundo... nem pode o estudioso da ética ser um ser humano que sempre
saiba melhor do que os outros o que e como algo deve ser feito... não pode ser
uma obra de consulta para uma conduta moral garantida e irrepreensível, nem
pode o estudioso da ética ser o competente avaliador e juiz de toda a ação
humana.
87
Afirma, portanto, que a ética não pode ser de princípios ou normas, que seu objetivo
não é o conhecimento do bem e do mal, mas da vontade de Deus em vista da ação concreta.
85
Cf. DUCH, L.. Introdução in BONHOEFFER, D. Ética, p.23.
86
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.111.
87
ET, p.149.
49
Ele contrapõe a ética dos princípios (abstrata) com a ética que guia os cristãos (concreta). A
primeira está desvinculada da realidade, a segunda pergunta sobre o mandamento concreto
de Deus “hoje”, “aqui”, “para nós”. Uma das preocupações do autor é de que a ética por ele
elaborada tenha caráter aplicativo à sua época, respondendo às questões que infligem o seu
povo naquele determinado contexto. Os fragmentos de Ética registram a ampliação da
“teologia do seguimento”, abordada em Discipulado, para a temática do mundo secular.
Bruno Forte menciona que a pesquisa de Bonhoeffer é desenvolvida em “termos
epocais” e que, este, “estava consciente de viver numa época de fortes tensões, que se
alinhavam em vários planos, do histórico-cultural ao eclesial, até o de existência pessoal”
88
.
Desse modo, a cada esfera da existência caberia o envolvimento ético, acentuando sua
percepção de que o problema de escolhas concretas está vinculado a dicotomia entre ética
cristã e ética humana”, como consequência da dissolução de uma visão unitária
89
, visto
que, na concepção de Bonhoeffer, Cristo é o Senhor de cada âmbito da existência humana.
Essa visão sobre a dicotomia marca uma inovação do seu pensamento, na contraposição do
mandamento de Deus com as leis do mundo.
Analisando o itinerário de Bonhoeffer, Gallas escreve que em Ética é proposta uma
nova formulação ao problema, determinando um “direito relativo” a autonomia das leis
mundanas, sob a possibilidade de a Igreja dirigir a palavra ao mundo, que este mundo é
pertença de Deus
90
. Visto que, Bonhoeffer acreditava que através de uma unidade
sustentada pela autonomia, que englobasse valores humanos e cristãos, crentes e não
crentes podiam manter-se juntos para resistir às determinações impostas pelo nazismo a
cada esfera da existência
91
.
88
FORTE. B. Um pelo Outro, p.108.
89
Cf. GALLAS, A. Ánthropos leios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.24.
90
Ibidem, p.304.
91
Ibidem.
50
No manuscrito de Igreja e mundo ele define que uma das experiências mais
surpreendentes feita nos anos do Kirchenkampf e da opressão nazista foi a redescoberta de
uma solidariedade na resistência, entre valores humano-naturais e igreja-cristianismo
92
.
Razão, cultura, humanidade, tolerância, autonomia, termos que até há pouco
serviram como senhas de luta contra a Igreja, contra o cristianismo, contra Jesus
Cristo mesmo, súbita e surpreendentemente se achavam muito próximos da área
cristã... Na proporção inversa à violenta perseguição e encurralamento de tudo o
que era cristão, o cristianismo conseguia a aliança de todos estes termos,
adquirindo através deles uma amplitude inimaginável. Razão, direito, cultura,
humanidade e tantos outros procuraram e acharam em sua origem novo sentido e
renovada força
93
.
Bruno Forte aposta que “é exatamente essa convergência que lança o grande desafio
para a visão do mundo e do agir nele, fundamentada na fé e, portanto, na ética cristã”
94
. Em
Ética, Bonhoeffer se pergunta, justamente, sobre a possibilidade de se falar em uma ética,
que atinja a todos, crentes ou não, todavia, tendo como enunciado central: “em Jesus Cristo,
a realidade de Deus entrou na realidade do mundo”
95
. Tenta, assim, superar a dicotomia
entre realidade e Evangelho, mundo e Igreja, reinterpretando o problema ético sobre o que
é bom e como sê-lo para: qual é a vontade de Deus
96
.
Bonhoeffer fundamenta sua ética na verdade, na decisão livre e pessoal de praticar o
bem, que nada mais é que a realidade da vontade de Deus revelada em Cristo, numa decisão
suportada pessoalmente de viver no mundo pertencendo a Cristo. E aqui está o
característico de sua obra: assumir a responsabilidade por outros na urgência do presente,
de modo que se efetive o princípio da solidariedade e que se possa, através da realidade do
mundo, chegar à realidade de Cristo. Sua preocupação central é a concorrência de todas as
coisas a Deus através de uma ética desenvolvida na responsabilidade diária pelo real
cotidiano. Tanto que sua biografia e sua investigação teológica são elementos inseparáveis,
92
GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità,
p.304.
93
ET, p.36.
94
FORTE. B. Um pelo Outro, p.109.
95
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 114.
96
Cf. FORTE. B. Op. Cit, p.116.
51
e de tal maneira se entrelaçam que, a concretização de sua ética é refletida no testemunho
de sua própria vida.
Como afirma Duch:
Porque o ético não pode desengajar-se do biográfico, torna-se evidente que o
testemunho do cristão Bonhoeffer é uma testificação, em meio aos avatares e
incertezas de sua vida cotidiana, da verdade e da justiça que são inerentes a
encarnação de Deus em cada momento histórico, por complexo, difícil e carregado
de maldade que pode ser.
97
Para Bonhoeffer “a ética significava o intento de concretizar, em uma concepção
teológica fortemente assentada na realidade, os conhecimentos e experiências que havia
adquirido nos difíceis e cruéis anos de guerra”
98
, escreve Duch. Nota-se que o intuito de
Bonhoeffer é enxergar para além dos fatos e encontrar através deles o discernimento para
realizar a vontade de Deus.
Esse é o ponto de partida da obra Ética: em Cristo, a realidade de Deus entrou na
realidade do mundo, sendo, portanto, necessário superar a idéia de dois espaços – profano e
sagrado, que, separar o espaço do mundo do espaço de Cristo significa reduzir
parcialmente a realidade de Cristo. A concepção de ética cristã não separa e nem
contrapõe, mas mantém juntas as realidades de Deus e do mundo, assim, não identidade
nem tampouco separação, e sim, unidade na distinção. A isso chamou de “unidade
polêmica”
99
. Trata-se de um existir para o mundo na “con-formação” da realidade do outro,
na solidariedade, portanto, o que inclui a solidariedade com o pecado humano.
A encarnação como evento histórico adquire no pensamento ético bonhoefferiano
uma incontestável importância ontológica, porque, graças a ela, o ser humano, os
acontecimentos, o mundo, são acolhidos e reconciliados por Deus no Cristo encarnado na
97
DUCH, L. Introdução in BONHOEFFER, D. Ética, p.23.
98
Ibidem, p.15.
99
Cf. ET, p.112.
52
história.
100
Pois, Jesus é o “homem para os outros” e isso contém um impulso ético que
impede a fuga religiosa do mundo. Portanto, segundo Bonhoeffer, também a Igreja “é Igreja
e enquanto existe para os outros, bem como a vida do cristão, que consiste em existir
para os outros”
101
.
Em seu artigo Capozza e Kurt esclarecem essa ideia:
Aqui se mostra o estreito entrelaçamento da ética e da cristologia. Exatamente
porque Jesus viveu vicariamente para a humanidade... o novo Adão... Deus
contempla o ser humano na luz de Cristo. Nessa representação vicária, porém,
Eucaristia e ética, política e mística não podem mais ser separadas. A verdade de
Cristo realiza-se aí onde se vive vicariamente; a transformação do mundo em
Cristo é evento eucarístico e político... toda ética tem sua dimensão de
profundidade na realidade de Cristo... no entanto, não significa que o mundo
perca sua autonomia, antes atinge, assim, sua verdadeira autonomia
102
.
Observa-se que o aspecto determinante do pensamento ético bonhoefferiano é
inseparável do cristológico, de tal maneira que a questão ética se decide na questão
cristológica. E na mesma contundência, a questão cristológica conduz inevitavelmente à
ética, ambas perpassando pela questão eclesiológica. Como entende Bonhoeffer, o
verdadeiro cristianismo consiste em Cristo existindo como comunidade, na qual, como
presença viva, estabelece uma relação responsável e sem possibilidade de distinção entre a
confissão cristológica e a responsabilidade ética. Esta maneira cristológica de entender o
ético é uma das grandes inovações da sua teologia.
Dos assuntos tratados em Ética, optou-se por seguir o modelo proposto por
Gibellini
103
, no qual são elencados temas chave para se compreender o caminho que perfaz a
reflexão de Bonhoeffer no que diz respeito à ética da responsabilidade, essa ética que
dialoga com o mundo sem tirar-lhe a autonomia, porém, recuperando o espaço de Deus no
mesmo mundo.
100
Cf. DUCH, L.. Introdução in BONHOEFFER, D. Ética, p.25.
101
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 120.
102
CAPOZZA, N. e KURT, A.“Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a eclesiologia
de Dietrich Bonhoeffer, p.594.
103
Pela concordância com o modelo apresentado por Gibellini e por este se encontrar bem elaborado,
optou-se por sua utilização.
53
2.2 Ética como configuração
104
A formação precisa ser capaz de enfrentar o perigo e a morte
105
.
O último capítulo de Discipulado tem o título “A Imagem de Cristo” onde, baseado
em textos bíblicos
106
, a conformação a Cristo é apresentada como a grande promessa feita a
quem acolhe o chamado ao seguimento. “O sentido de formação de que a Bíblia fala é ser
transformado em sua forma”
107
.
A categoria de configuração/conformação é mais amplamente elaborada em Ética,
mas suas raízes estavam plantadas no pensamento do teólogo Dietrich Bonhoeffer que
procura, através dessa categoria, dar uma resposta à pergunta que considera essencial à
ética cristã: “Como Cristo ganha forma entre nós hoje e aqui? No ‘entre nós’, ‘hoje’ e ‘aqui’
trata-se, portanto, do espaço de nossas decisões e confrontos”
108
.
A configuração abrange a forma de Cristo como única e mesma, não como uma ideia
genérica, mas a do Deus encarnado, crucificado e ressuscitado que, justamente por causa
dessa forma, preserva a forma do ser humano real, para que assim, o “ser humano real
assimile a forma de Cristo”
109
, afastando a ideia de uma ética abstrata imposta a qualquer
preço e remetendo a uma ética concreta.
Entre Cristo e o ser humano acontece, então, uma comunicação de forma, na qual o
homem recebe a parte que o introduz na realidade de Cristo, assim, quando é configurado a
104
O termo usado por Bonhoeffer é conformação (Gestaltung), no sentido de tomar forma.
105
RS, p.270.
106
Rm 8,29; 2 Cor3,18; Rm 12,2; Gl 4,19.
107
ET, p.50.
108
ET, p.53.
109
ET, p.52.
54
Cristo o homem assume a forma que lhe é própria, aquela humana à imagem de Cristo
110
. E
o que significa isso?
Victor Frankl, em sua antropologia escreve que “o ser do homem é autenticamente
humano na proporção em que se coloca a serviço de uma coisa ou do amor por outrem. O
homem é verdadeiramente ele mesmo na medida em que na dedicação a uma tarefa ou na
afeição a um parceiro, esquece-se de si”
111
. Parece ser esse o caminho seguido por
Bonhoeffer ao enfatizar a humanidade do ser humano configurado à Cristo, que pode ser
considerado como tal, não apenas por pertencer à espécie humana, mas sim, quando é
capaz de atingir sua essência e transcender-se através da doação de si, da alteridade,
carregando a cruz do outro, e então, tomando a forma de Cristo.
Se Cristo tem sentido no ser-para-os-outros”, o ser humano é configurado a Ele na
medida em que sua vida se torna um “existir-para-os-outros”. Esse “ser–para-os-outros” de
Jesus é a experiência da transcendência, “crer nessa transcendência significa tomar parte no
‘ser-para-os-outros’ de Jesus, inclusive no sofrimento
112
, já que a configuração a Cristo
coloca a vida a serviço das necessidades de outras vidas e do mundo
113
.
O ser humano, especialmente o cristão, conforme Bonhoeffer, deve reproduzir em si
a imagem de Cristo, deve configurar-se a ele, o que significa imitá-lo na encarnação, na
crucificação e na ressurreição, vivendo intensamente no mundo, acolhendo toda a realidade
mundana, carregando a cruz do sofrimento alheio, exercendo uma função vicária em relação
ao outro
114
. “Essa ética da responsabilidade, exatamente enquanto ética da substituição
vicária, ou seja, do amor pelos outros, não é meramente individualista: não pode deixar de
englobar a comunidade... na qual tudo se mantém na unidade com Cristo, mesmo na
110
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.340.
111
Frankl, V. Fundamentos antropológicos da psicoterapia, p.10.
112
HAMMES, E. J. Cristologia e seguimento em Dietrich Bonhoeffer, p.504.
113
Cf. GALLAS, A. Op. Cit, p.342.
114
Cf. MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte,p.186.
55
distinção”
115
, afirma Forte. Cristo configura a si, a Igreja, nela os cristãos, para que por estes
aconteça a configuração do mundo a Cristo.
Na ética enquanto configuração, decisões e ações concretas são arriscadas e, para
tanto, a Igreja torna-se o lugar onde acontece esse processo de configuração. Decisão e ação
não podem mais ser remetidas à consciência pessoal
116
, pois a Igreja traz agora a forma que,
na verdade, vale para toda a humanidade. “A Igreja pode chamar-se Corpo de Cristo porque
no corpo de Jesus Cristo foi assumido realmente o ser humano e, portanto, todos os seres
humanos”
117
.
A mudança de perspectiva de Bonhoeffer de uma ética abstrata para uma ética
concreta se encontra no fato de ter Cristo como ponto de referência a toda conduta ética
responsável, pois Ele é o ser humano real que realizou integralmente a vontade de Deus Pai
e, a vontade de Deus é de que se ajude o próximo a ser um ser humano inteiro, realizado em
sua humanidade. Em Ética, escreve: “Não o importava se a gente pudesse transformar ‘a
máxima de uma ação em princípio de uma legislação geral’ (Kant), mas se minha ação agora
ajuda ao próximo a ser um ser humano perante Deus. Não se que Deus se fez ideia,
princípio, mas que Deus se fez ser humano”.
118
O que quer dizer com isso é que, sob o plano
ético, não significa que a categoria de princípio deva ser abandonada, mas que esta não
pode ocupar o lugar da responsabilidade, “o princípio da ação não é um princípio
universalmente válido, mas é o próximo concreto”
119
, enfatiza Gallas, parafraseando
Bonhoeffer.
Com isso, Bonhoeffer ressalta sua visão ética que justifica a responsabilidade que
esta comporta, pois, ao tomar a forma de Cristo, exige a entrega total à causa do outro como
compromisso assumido diante de Deus, na liberdade e, portanto, na responsabilidade.
115
FORTE. B. Um pelo Outro, p.120.
116
Cf. ET, p.54.
117
ET, p.51.
118
ET, p.52.
119
GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità,
p.342.
56
Afirma que na liberdade se inclui tudo o que é entendido como natureza, até mesmo as
fraquezas e as “esquisitices” que tanto exigem paciência, afirma que levar o fardo do outro
significa suportar a realidade do outro em sua condição de criatura ao ponto de se alegrar
por ela
120
.
Toda mania de ser super-homem, todo esforço de superar o humano em si
mesmo... não são verdadeiros. Aqui não se violenta a variedade da riqueza
criadora de Deus através da falsa uniformidade, submetendo as pessoas à força a
um ideal, a um tipo, a uma determinada imagem de ser humano. O ser humano
real pode, em liberdade, ser a criatura de seu criador. Ser conformado com o
encarnado significa poder ser o ser humano que na realidade se é. Renegam-se as
aparências, a hipocrisia, a convulsão, a compulsão de ser algo diferente, melhor,
mais ideal do que de fato se é. Deus ama o ser humano real. Deus fez-se ser
humano real
121
.
No texto Bonhoeffer se permite enxergar a fraqueza humana na aceitação de seus
limites, bem como acolher a insignificância do ser humano entendendo-o como criatura
amada e querida por Deus em sua diversidade. Nota-se uma crítica ao nazismo quando se
refere a liberdade e a imposição de ideais. O nazismo, que usava o discurso religioso de que
os alemães eram um povo superior, é aqui desarmado por Bonhoeffer que coloca o ser
humano no seu lugar de criatura e na igualdade aos olhos do seu Criador.
A ideia de configuração proposta pode se tornar plausível se houver uma
identificação entre a realidade divina e a humana, portanto, apenas através da dialética
entre último e penúltimo.
2.3 Dialética do último e penúltimo
O cristianismo, em contrapartida, coloca-nos em diversas dimensões da vida
simultaneamente; abrigamos, por assim dizer, Deus e o mundo inteiro dentro de
nós
122
.
120
Cf. VC, p.79.
121
ET, p.50.
122
RS, p.413.
57
Bonhoeffer chama “última” a realidade da justificação, não para colocá-la em posição
final ao interno do processo escatológico-temporal, mas para dizer que essa deve ser
precedida necessariamente por algo que é penúltimo. A escolha dos termos em alemão
permite uma boa compreensão da ideia que Bonhoeffer queria expressar: Vor-letztes
significa pré-último. O pré-último é tal apenas em relação ao último, não podendo subsistir
em si; por outro lado, o último vem somente depois do pré-último
123
. Mas o que estes
termos significam?
O último é aquilo que não está ao alcance da humanidade. É a graça obtida como
resultado do seguimento a Jesus Cristo, que nada que se faz pode ser garantia de
salvação; é a graça preciosa a que Bonhoeffer se refere em Discipulado, na qual a última
palavra de Deus à sua criação continua a ser sua misericórdia.
Por penúltimo, Bonhoeffer explica que é o “caminho que tem que ser andado até ali
onde Deus lhe põe termo”
124
. O penúltimo é tudo aquilo que conduz à realidade última, é,
na verdade, um novo modo de indicar a situação mencionada em Discipulado, da
realidade do mundo, dos valores da humanidade, da vida terrena; se refere às coisas do
mundo, ao cotidiano humano que, apesar de não garantir o alcance do último, deve ser
assumido responsavelmente como preparação para o recebimento do que é último, ou seja,
é a relação do ser humano, especialmente o cristão, com o mundo do qual faz parte.
Bonhoeffer não utiliza o par tradicional sagrado-profano, cristão-secular, natural-
sobrenatural, mas usa o novo par: “último-penúltimo”, faz uso desse par para acabar com a
imagem de duas esferas, a qual critica por criar a possibilidade de se existir apenas numa das
esferas. E como se essa relação? Bonhoeffer apresenta duas soluções existentes que, a
seu ver, devem consideradas errôneas: a solução que chama de “radical” que se identifica
123
Cf. GALLAS, A. Ánthropos leios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.346.
124
ET, p.73.
58
com a concepção luterana e a solução que chama de “compromisso”, que se identifica com a
concepção católica
125
.
Na solução radical somente é levado em conta o último, com prejuízo ao penúltimo.
Nela, último e penúltimo se excluem mutuamente: “Cristo é o destruidor e inimigo de tudo
que é penúltimo” e vice-versa, “Cristo é o sinal de que o mundo está maduro para ser
entregue ao fogo... tudo irá a juízo”
126
. Aqui existem apenas duas categorias: por Cristo ou
contra ele, conforme Mt 12,30 - “quem não está a meu favor está contra mim”.
Nesse primeiro caso, a pretensão é de um “cristianismo puro”, voltado apenas às
coisas últimas, “tudo que é de caráter penúltimo no comportamento humano, é pecado e
renegação”. Assim sendo, o cristão não toma parte na responsabilidade do mundo, que deve
perecer de qualquer maneira. “A palavra final de Deus, que é palavra de graça, se converte
aqui na gélida e dura lei que despreza e quebra qualquer resistência”
127
.
A solução de compromisso, ao contrário, confere ao penúltimo “um direito em si
mesmo”, ou seja, certa autonomia. O último “permanece inteiramente além do cotidiano e
com isso, finalmente, como eterna justificação de tudo quanto existe”
128
. Aqui, o mundo é
entendido como autônomo e valioso por si mesmo.
Bonhoeffer afirma que, num caso, o penúltimo é destruído pelo último; no outro, o
último é excluído do domínio do penúltimo. Num caso, o último não admite o penúltimo; no
outro, o penúltimo não admite o último
129
. A solução radical enfatiza a “cruz como
condenação do mundano, esquecendo da encarnação como sinal de amor de Deus; a
solução de compromisso, supervaloriza a encarnação em detrimento à cruz.
Nem a ideia de um cristianismo puro em si, nem a ideia do ser humano tal como é
em si, são sérias; sérias são, tão somente, a realidade de Deus e a realidade do ser
125
Cf. MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.180.
126
ET, p.74.
127
ET, p.75.
128
ET, p.75.
129
Cf. ET, p.75.
59
humano que se tornaram uma em Jesus Cristo. Em Jesus Cristo, no entanto, no
lugar do radicalismo e do compromisso surge a realidade de Deus e dos seres
humanos. Não cristianismo em si; teria que destruir o mundo. Não existe o ser
humano em si; teria que excluir Deus. Ambos são ideias; só existe o Deus-ser
humano Jesus Cristo que é real e através do qual o mundo será conservado até
que esteja maduro para seu fim
130
.
Por isso as duas soluções tornam-se implausíveis para ele, que propõe uma terceira
solução que reconhece ao penúltimo uma consistência que tem seu fundamento e sua
justificação apenas no último. Então a realidade penúltima não é condição da última, porém
a realidade última condiciona a penúltima. Nesta solução, concebe uma realidade mundana
que valorize igualmente a encarnação, como sinal do amor de Deus pelo mundo; a cruz
como julgamento e condenação da humanidade caída pelo pecado; e a ressurreição como
promessa de uma vida nova ao mundo pela reconciliação com sua origem
131
. A partir dessa
nova visão, a realidade de Deus se encontra com a realidade do mundo, “fazendo-nos
partícipes deste real encontro. Vida cristã significa participar do encontro de Cristo com o
mundo”. Assim, “a partir do derradeiro é mantido aberto um certo espaço para o
penúltimo”
132
. Tentando integrar estas duas dimensões de forma tal que garanta as
distinções de cada parte.
Não há duas realidades, mas uma realidade, e esta é a realidade de Deus,
revelada em Cristo, na realidade do mundo. Não existem, portanto, duas esferas,
mas uma só, a esfera única da realização de Cristo, em que a realidade de Deus e a
do mundo se fundem. Assim, a questão das duas esferas, que sempre de novo
dominou a história da Igreja, é estranha ao Novo Testamento. Este trata tão
somente da concretização da realidade de Cristo no mundo
133
.
Bonhoeffer reinterpreta a teoria dos dois reinos da teologia de Lutero de modo
original. Segundo ele, o equívoco da ortodoxia está em conceber a existência dividida em
duas esferas distintas, “das quais uma é divina, santa, sobrenatural, cristã, e a outra, em
contrapartida, mundana, profana, natural e não-cristã”
134
.
130
ET, p.75.
131
Cf. ET, p.77.
132
ET, p.77.
133
ET, p.112.
134
ET, p.111.
60
A ética de Bonhoeffer apresenta um contraponto em relação à luterana, que divide o
mundo em dois âmbitos, dois “regimes”, conforme ensina Lutero, em que o reino de Deus e
o reino do mundo se contestam mutuamente
135
. Bonhoeffer parte “de um todo indivisível
da realidade de Deus”
136
, Cristo é a realidade de Deus que se apossou da realidade do
mundo. Por isso, os cristãos têm a tarefa de participar desta realidade.
Para Bonhoeffer é preciso superar a concepção de dois espaços, uma vez que
separar o espaço do mundo do espaço de Cristo significar reduzir a realidade de Cristo à
realidade parcial
137
. Entre os dois espaços não identidade, mas tampouco separação;
unidade na distinção, unidade na realidade de Cristo, que Bonhoeffer define como “unidade
polêmica”.
Gallas
138
garante que essa inovação na apresentação dos termos essenciais da
doutrina da justificação não tem um fim em si mesmo, pois o seu primeiro objetivo é
mostrar como a valorização teológica do penúltimo é não compatível, mas exatamente
resposta a sola gratia
139
.
135
Cf. MILSTEIN, W. Dietrich Bonhoeffer: Vida e Pensamento, p.70.
136
ET, p.114.
137
Cf. ET, p. 111.
138
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.351.
139
Sola Gratia, Sola Fide, Sola Scriptura e Solo Cristo. Este foi o grande “slogan” da reforma protestante. Em
1994, um grupo de líderes evangélicos se reuniu para discutir a situação dos evangélicos contemporâneos,
formando a Aliança dos Evangélicos Confessionais. Era um grupo dentre os mais renomados ministros
evangélicos contemporâneos. A Aliança adotou o seguinte estatuto da missão: ajuntar cento e vinte pastores
evangélicos, professores e líderes de organizações para-eclesiásticas em Cambridge, Massachusetts, em abril
de 1996, para produzir a “Declaração de Cambridge”. Esta declaração, que foi o produto de quatro dias de
encontros, argumentou que as maiores verdades que os evangélicos precisam recuperar são as doutrinas da
Reforma resumidas pelas tão conhecidas “solas” (vocábulo em latim para “apenas” ou “só”): sola Scriptura
(somente a Escritura); solus Christus (somente Cristo); sola gratia (somente a graça); sola fide (somente a fé); e
soli Deo gloria (glória somente a Deus). ALIANÇA DE EVANGÉLICOS CONFESSIONAIS. Declaração de Cambridge.
Ver outras informações em BOICE, J. M.; VEITH, G. E. e outros, Reforma hoje: uma convocação feita pelos
evangélicos confessionais, p.205. Informações também na Declaração Conjunta Católico-luterana sobre a
Doutrina da Justificação.
61
Talvez seja esta a razão pela qual, uma vez descartada a ideia de uma esfera sagrada
que conduza às coisas últimas, Bonhoeffer introduz o conceito de “preparação da vida”
como meio (penúltimo) para o cristão.
Só no sentido de uma unidade polêmica é que a doutrina dos dois reinos de Lutero
poder ser assumida; aliás, em sua origem ela deve ter sido entendida assim... o
lugar para o qual o cristão possa bater em retirada do mundo, nem
exteriormente nem no âmbito da interioridade... O cultivo duma interioridade
cristã o afetada pelo mundo geralmente terá algo de tragicômico para os olhos
do observador mundano
140
.
Em Ética é apresentada a chave para descrever uma nova solução no problema da
dicotomia, essa solução se traduz, não na proposta de uma nova divisão das esferas, mas em
manter viva a relação de confronto-encontro entre as diferentes esferas, com base no
dogma de Calcedônia, do qual Bonhoeffer era admirador por manter de forma plena o
Mistério de Cristo: verdadeiro Deus, verdadeiro Homem. Bonhoeffer coloca em diálogo as
dicotomias e as reconduz ao evento central da Revelação. Não se contenta com o conceito
de tensão conforme era entendido na teologia alemã da época, através da “filosofia de
Guardini, com a ‘unidade na tensão’; Buber, com a ‘tensão polar’; Althaus, tratando a
temática dos ‘dois reinos’”
141
. A fundamentação última da reflexão bonhoefferiana é
cristológica, de fato a realidade se faz com aquele que é real: Jesus Cristo
142
.
Bonhoeffer defende a concepção de que da mesma forma que em Cristo a realidade
de Deus entrou na realidade do mundo, “o cristão existe apenas no mundano, o
sobrenatural só no natural, o sagrado só no profano, o revelacional só no racional”
143
; assim
como a secularidade do cristão não o separa de Cristo, sua condição de cristão não o
separado mundo, pois “pertencendo totalmente a Cristo, ele está, ao mesmo tempo, com os
dois pés no mundo”
144
.
140
ET, p.113.
141
GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità,
p.294.
142
Cf. ibidem, p.295.
143
ET, p.112.
144
ET, p.113.
62
Deste modo, tentava encontrar um caminho para que o cristão pudesse realizar-se
totalmente como cristão respondendo aos apelos de seu tempo, de forma que a
possibilidade de encontro com Cristo não estivesse mais restrita à participação na Igreja,
mas exigisse também a participação nos sofrimentos de Cristo pelo mundo. Portanto Cristo
continuava sendo o centro.
Capozza e Kurt afirmam que a ética bonhoefferiana coloca o problema da relação
entre o último e penúltimo de maneira articulada e concreta na vida do cristão, de modo
que “nunca existe acesso imediato ao último, à realidade escatológica. O caminho para
acontece pelo penúltimo, pelo engajamento radical na realidade. Que, porém, não pode ser
entendido como realidade última, pois, nesse caso, seria uma auto-salvação do ser
humano
145
. O intuito é conseguir entender qual a vontade de Deus e a partir daí lutar para
que a realidade de Deus se manifeste em toda a parte como realidade última
146
. Em vista
disso é crucial que o penúltimo seja preservado por amor ao último.
É a partir da dialética último e penúltimo que Bonhoeffer encontra uma forma de
resgatar o conceito de “natural”, cuja perda, afirma ele, causou prejuízo à teologia
protestante, que “já não conhecia mais a correta relação entre último e penúltimo”
147
.
Debruça-se sobre o tema com a intenção de salvar o conceito, não deixando de sublinhar
como o protestantismo tradicional havia abandonado o assunto na reflexão ética, que ficou
exclusiva à católica, o que lhe permite uma crítica mais eficaz aquelas questões que se
referem a natureza, como a esterilização forçada ou a eutanásia que estavam entre as
questões políticas e éticas da época. A referência ao discurso sobre a natureza tem, então,
em Bonhoeffer uma finalidade crítico-política, que se torna mais evidente quando este
145
Cf. CAPOZZA, N.e KURT, A. “Estar-aí-para-outros” como participação da realidade de Cristo: sobre a
eclesiologia de Dietrich Bonhoeffer , p.596.
146
Cf. CAMARA, U. F. S. A Ética da Responsabilidade em Bonhoeffer: O desafio de encarar as demandas éticas
do mundo moderno, p.11.
147
ET, p.83.
63
insiste no fato de que o natural precede a decisão individual, comunitária ou institucional
(está claramente fazendo referência ao regime nazista), como aponta Gallas
148
.
O conceito “natural” contém um aspecto de autonomia, de desenvolvimento próprio,
também possui uma liberdade relativa. O natural é a forma de vida que Deus preservou para
o mundo caído e que está orientada para Cristo
149
. Por estar voltada à Cristo “os direitos da
vida natural são reflexo da glória do Deus criador frente ao mundo caído, não sendo,
portanto, aquilo que o ser humano possa exigir em seu próprio interesse, mas aquilo que
Deus mesmo garante. Os deveres se originam dos próprios direitos”
150
. A recuperação do
conceito “natural” se dá a partir de argumentos do evangelho, com fundamento cristológico.
Para estas argumentações faz uso da ética católica, em especial das obras de Otto Schilling,
professor da faculdade de Teologia de Tubinga
151
.
A questão agora é: como acontece essa relação entre Cristo e o mundo? Para fazer
essa ligação Bonhoeffer apresenta a teoria dos mandatos, que “não são princípios éticos,
mas a articulação concreta da vontade de Deus na diversificada realidade do mundo e da
história”
152
.
2.4 Teoria dos mandatos
Quem nada sabe desse espaço da liberdade pode até ser um bom pai, cidadão e
trabalhador, decerto também pode ser cristão, mas duvido que seja uma pessoa
completa
153
.
148
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.344.
149
Cf. ET, p 84.
150
ET, p. 87.
151
Cf. GALLAS, A. Op. Cit., p.344.
152
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 113.
153
RS, p.269.
64
A esse assunto Bonhoeffer dedicou uma particular atenção, pois essa questão tem
uma forte relevância política. Por mandatos, Bonhoeffer entende a missão, de autoridade
divina, conferida a uma instância terrena
154
. A doutrina dos mandatos não tem a tarefa de
definir os âmbitos de dever da existência cristã, mas, de superar a contraposição entre dever
e ser, isto é, de permitir uma existência cristã configurada com a realidade.
Gibellini, afirma que os mandatos são as “concretizações do mandamento de Deus
na realidade do mundo”
155
, confirmados por Bonhoeffer através dos textos bíblicos, que
tenta, a partir da Palavra de Deus, descobrir que coisas devem ser feitas. Assim, os mandatos
fazem parte de uma estrutura relacional enquanto realidade estruturada, ou seja, enquanto
forma histórica na qual a vontade de Deus organiza a realidade, desenvolvendo a função de
“sacramento ético”, isto é, como realidade da criação
156
.
A doutrina dos mandatos distingue quatro âmbitos nos quais os mandamentos de
Deus assumem forma concreta, histórica. Mas tais âmbitos não supõem uma divisão da
existência humana em esferas. E sim, abraçam a existência na sua totalidade. São eles,
descreve Gibellini: “o trabalho e a cultura, que criam valores; o casamento e a família, que
criam vidas; as autoridades, que conservam na ordem as realidades criadas; a Igreja, que
concretiza a realidade de Cristo na pregação, na disciplina e na vida nova”
157
.
Um ponto específico de Bonhoeffer é a ideia de que os quatro mandatos resguardam
concomitantemente cada ser humano. A esse respeito, Gallas comenta que para Bonhoeffer
essa é a autêntica interpretação da intenção de Lutero, que diz que Deus criou para cada
um, um estado, para uns o matrimônio, para outros o governo, mas isso como uma
possibilidade de abranger os diversos estados em uma e mesma pessoa
158
.
154
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.344.
155
GIBELLINI, R. Op. Cit, p. 113.
156
Cf. GALLAS, A. Op. Cit., p.348.
157
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX., p. 113.
158
Cf. GALLAS, A. Op. Cit, p.333.
65
A preocupação está em fazer dos mandatos instrumentos para uma compreensão de
unidade da existência, ao invés de fragmentá-la. O homem existe, de fato,
contemporaneamente em todos os âmbitos e nos quatro mandatos, assim, o cristão
(configurado), vivendo com consciência a vida em todas as suas dimensões (último-
penúltimo), assume a própria existência não como homem que renuncia a dimensão
mundana para salvar a espiritual, mas como ànthropos tèleios”
159
como homem integral.
Essa perspectiva contém uma linha já desenvolvida em Discipulado.
É na unidade do agir e do viver concretos que se decide a relação entre os mandatos,
e não são, ao contrário, os mandatos a determinar o modo dos âmbitos da existência,
fragmentando-a. Por isso Bonhoeffer diz que esses se sobrepõem um ao outro
160
.
A consequência é que a Igreja não pode reivindicar uma superioridade própria em
relação aos outros âmbitos, visto que nenhum mandato é divino em si, o é na relação
com Cristo; nessa relação, porém, todos os mandatos são, sem distinção, divinos. O
específico da Igreja está em anunciar o senhorio de Deus sobre o mundo, isto é, sobre todos
os mandatos. E nisso a Igreja se difere dos outros mandatos. Entre os diversos mandatos não
há hierarquia
161
.
Outra consequência é que nenhuma autoridade pode se colocar acima dos
mandatos. A ênfase a esse limite que os mandatos exercem está fortemente ligada à crítica a
prevaricação totalitária, que tentava politizar cada âmbito da existência.
Bruno Forte escreve que “o termo mandato indica uma tarefa confiada por Deus ao
ser humano”
162
. Visto que dizem respeito ao que apreende cada ser humano em sua
integralidade, e desse modo, confirmam a igualdade fundamental na dignidade do ser
pessoal, o que serve de censura a qualquer tipo de discriminação. Esta tarefa, por outro
159
Cf. RS, p.280, teleios significa “inteiro”.
160
Cf. ET, p.160.
161
Cf. ET, p.160.
162
FORTE. B. Um pelo Outro, p.121.
66
lado, não exclui, antes inclui na multiplicidade das funções, cada ser humano, na sociedade e
na Igreja, de forma que as tarefas possam ser praticadas em respeito recíproco e
participação comum para o bem de todos
163
.
É por meio dos mandatos que se torna possível o cumprimento do mandamento de
Deus, que não somente compromete o ser humano como também o liberta, e faz isso
comprometendo, para que este possa realizar sua missão no mundo de modo efetivo. Dessa
forma o mandamento de Deus se transforma na “palavra concreta ao ser humano
concreto”
164
, e já não pode ser encontrado fora do tempo e espaço.
Com isso, o mandamento “permite ao ser humano viver como tal diante de Deus e se
torna o elemento em que se vive, sem que a gente se dê conta disso”
165
. Como elemento da
vida, significa liberdade de movimento e ação, liberdade do medo de decidir, de agir,
significa certeza, confiança, ponderação, paz. Não porque nos limites da vida exista um
ameaçador “não deves”, mas porque se aceita como sagradas instituições de Deus as
realidades encontradas em meio à vida, e é porque se vive e se quer viver nelas, que estas
são cumpridas. Bonhoeffer tenta abolir a ideia do mandamento de Deus como lei a ser
rigorosamente cumprida, para transformá-lo em escolha livre ao seguimento, o que não
significa agir conforme escolha própria, mas agir na liberdade que só em Deus é encontrada.
Então não é por obrigação, mas por amor que se cumpre o mandamento, que se honra os
pais, se santifica o matrimônio, se respeita a vida e propriedade alheias
166
.
Como exemplo cita:
Se amo a minha mulher, se aceito o matrimônio como instituição divina,
estabelece-se uma liberdade e certeza interior de vida e de ação no âmbito do
matrimônio... Então a divina proibição do adultério não é mais o centro do qual
gira todo o meu pensar e o meu agir... como se sentido e objetivo do matrimônio
consistissem em evitar o adultério. Antes, o matrimônio mantido e livremente
assumido, a superação, portanto, da proibição do adultério, é a pressuposição do
163
Cf. FORTE. B. Um pelo Outro, p.121.
164
ET, p.153.
165
ET, p.155.
166
Cf. ET, p.155.
67
cumprimento da divina missão do matrimônio. Aqui, o mandamento de Deus se
tornou permissão de viver com liberdade e certeza o matrimônio
167
.
Portanto, o mandamento de Deus revelado em Jesus Cristo atinge o ser humano na
Igreja, na família, no trabalho e através da autoridade
168
, sendo “a única autorização para o
discurso ético”
169
, permitindo que tanto a Igreja, a família, o trabalho e o governo só
tenham autorização divina para o discurso na medida em que “se limitam reciprocamente,
lado a lado, e em conjunto, cada um faz valer à sua maneira o mandamento de Deus”
170
.
O mundo, quer saiba, quer não, está relacionado com Cristo e este relacionamento se
concretiza pelos mandatos de Deus no mundo
171
e ao ser humano sua parcela de
responsabilidade para a continuidade da vida da criação.
2.5 Vida ética como responsabilidade
Aliás, nada do que desprezamos no outro nos é totalmente estranho. Muitas
vezes esperamos do outro muito mais do que s mesmos estamos dispostos a
realizar
172
.
A ética proposta por Bonhoeffer é a da participação responsável, do tomar parte na
realidade do mundo, assim como ela se apresenta, para que se possa chegar cada vez mais
perto do ideal querido por Deus pela reconciliação em Cristo
173
, ou seja, para que através da
ação concreta em prol do próximo, o ser humano se torne cada vez mais humano, até atingir
a plenitude em Cristo. “Essa vida como resposta à vida de Jesus Cristo chamamos de
167
ET, p.155.
168
Cf. ET, p.154.
169
ET, p.153.
170
ET, p.153.
171
Cf. ET, p.116.
172
RS, p.35.
173
Cf. FORTE. B. Um pelo Outro, p.122.
68
‘responsabilidade’... significa que se empenhe a vida toda, que o lance seja de vida ou
morte”
174
.
Por isso, a ética bonhoefferiana é uma ética que exige transcendência, exige o
movimento de saída de si para ir em direção ao outro, afinal numa ética sem transcendência
não o compromisso de responsabilidade com o outro, não a exigência do risco da
própria vida em favor da criação, pois sua justificação não se encontra enraizada em Deus e
é o próprio Deus quem chama ao comprometimento. Nessa perspectiva, agir com
responsabilidade significa corresponder ao processo de unidade e reconciliação da realidade
a partir de Cristo, e concretizá-lo na turbulência das tensões do próprio tempo. É nesse
momento, em que um ser humano assume a responsabilidade por outros e com isso, se
conforma à realidade, que surge a ação ética concreta. A responsabilidade acontece diante
de Deus e por Deus, diante dos seres humanos e por eles; sendo sempre responsabilidade
por causa de Cristo e só assim pela própria vida.
Essa estrutura de vida responsável, esboçada por Bonhoeffer, é determinada por dois
fatores: “a vinculação da vida ao semelhante e a Deus e a liberdade da própria vida”
175
. É a
vinculação entre a vida, o próximo e Deus que coloca a própria vida na liberdade. Sem esse
vínculo ou essa liberdade, não responsabilidade, pois a vinculação entre vida, próximo e
Deus, assume a forma da representação e da conformidade com a realidade, enquanto a
liberdade apresenta-se no risco da decisão e na ação
176
.
Segundo Bonhoeffer, Jesus cristo é, por excelência, aquele que viveu de maneira
responsável, toda sua vida, o seu modo de agir e sofrer é representação, e é nessa
representação em favor de todos os seres humanos, que se encontra a raiz de toda a
responsabilidade humana. O agir responsável é um agir na forma de representação
177
e o
preço da representação é carregar voluntariamente os fardos do outro. “Toda a vida do
174
ET, p.124.
175
ET, p.125.
176
Cf. ET, p.125.
177
Cf. ET, 128.
69
cristão consiste em carregar a cruz. É a comunhão da cruz em que um tem que experimentar
o fardo do outro. Se não o experimentasse, não seria comunhão cristã”
178
, assim Bonhoeffer
define a ação responsável.
Se a figura de Cristo é caracterizada pela representação, a vida ética do cristão
também: responsabilidade é representação. “A responsabilidade, vivida na representação e
na conformidade com a realidade, pode significar até ‘a solidariedade com o pecado
humano’”
179
, completa Gibellini. Por isso, um desafio à responsabilidade partindo do
compromisso com Jesus e este compromisso gira em torno da busca por uma vida integral
para todo ser humano.
Conforme Bonhoeffer, a vida, criada e preservada por Deus, possui um direito
implícito, que é totalmente independente de sua utilidade social. O direito à vida subsiste no
indivíduo e não em um valor qualquer, não existindo, diante de Deus, uma vida indigna de
ser vivida
180
.
O ser humano responsável é levado, em suas reais condições, a relação com seu
próximo concreto. Por isso, seu comportamento não está previamente ou rigidamente
definido, como uma regra, mas surge da situação concreta apresentada que dá uma
resposta condizente à necessidade encontrada, ou seja, em conformação com a realidade. O
que não significa uma “mentalidade servil do fato consumado, da qual fala Nietzsche”
181
,
mas uma ação concreta adequada à exigência das circunstâncias. Dessa forma, o mundo se
torna a área da responsabilidade concreta. Defrontar-se com o mundo de modo coerente
com a realidade é, portanto, viver e agir tendo em vista que a responsabilidade de um é
limitada pela responsabilidade do outro, “dentro desses limites, no entanto, ela abrange a
realidade global”
182
. Assim, cada um é responsável por uma parte, na construção do todo,
“pois, toda existência humana, como tal, sempre está colocada no domínio da
178
VC, p.78.
179
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.115.
180
Cf. ET, p.93.
181
ET, p.127.
182
ET, p.130.
70
responsabilidade. (“sempre”, significa não desde de sempre, mas também para
sempre)”
183
, afirma Frankl. Por isso, a responsabilidade jamais cessa.
Essa ética da responsabilidade, do amor pelos outros, não é nem pode ser
simplesmente individualista, engloba sempre a comunidade. Dessa forma não ser
humano que possa eximir-se completamente da responsabilidade, pois faz parte de uma
humanidade, que lhe remete a uma parcela de responsabilidade. E “quem quer assumir a
responsabilidade de ter calado quando deveria ter falado?”
184
, questiona Bonhoeffer, em
parte, fazendo crítica aos cristãos que se calaram diante das barbáries cometidas pelo
nazismo, num momento em que o ser humano, a seu ver, não tinha preocupação com o
outro, pois vivia em estado de “descompromisso” crescente na busca do prazer e da
satisfação de seus desejos egoístas.
Na verdade, Bonhoeffer quer abrir as portas da ética cristã no que se refere à causa
de Cristo e, de certo modo, ressaltar os aspectos da configuração: “’Bem-aventurados os
perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus”(Mt 5,10). Bonhoeffer
observa que não se fala aqui da justiça de Deus, o bem-aventurados os perseguidos por
uma causa justa e, se pode acrescentar, por uma causa verdadeira, boa, humana. Em sua
análise diz que “Jesus se importa com aqueles que sofrem por uma causa justa, mesmo que
não seja exatamente a confissão de seu nome; integra-os sob sua proteção, em sua
responsabilidade”
185
. Partindo desse ponto, entregar-se por uma causa justa condiz com
apreender a realidade do mundo como criação preservada por Deus e reconciliada em Jesus
Cristo. É respeitar a legitimidade das coisas penúltimas e, configurado à Cristo, assumir a
responsabilidade pelo bem da criação, com uma resposta concreta vivida no cotidiano e por
meio dos mandatos, para a realização do mandamento divino: o amor.
Esse empenho requer a totalidade, pois o bem eticamente relevante é aquele
bem que é fruto concreto da presença de Deus na realidade do mundo. Isto significa que o
183
Frankl, V. E. Fundamentos antropológicos da psicoterapia, p.178.
184
VC, p.78.
185
ET, p.38.
71
homem pode indagar sobre a questão do bem apenas colocando-se, ele mesmo, como um
todo indivisível, isto é, como pessoa constituída não de vontade, intenção, projeto, mas
também de ações; não só como indivíduo, mas também como membro de uma comunidade;
não só como homem entre outros homens, mas como criatura entre outras criaturas
186
.
Para Bonhoeffer, a pergunta pelo bem tanto é formulada quanto respondida de
acordo com as situações temporais da vida, ou seja, em meio à existência humana, “a
pergunta pelo bem é inseparável da indagação pela vida, pela história. Perguntamos como
criaturas, não como criadores”
187
. A pergunta sobre o bem, na visão de Bonhoeffer, não gira
em torno do que é bom em si, como princípio universal, mas do que é bom dadas as
circunstâncias da vida atual, “assim, perguntamos pelo bem, não ignorando a vida, mas
entrando nela”
188
. Não como quem vive o “sim” ao mundo; nem tão pouco, somente o
“não”, e sim, como quem vive numa ética da responsabilidade que se encontra na tensão, na
unidade polêmica entre o sim e o não. “Nós ‘vivemos’ quando, em nosso encontro com os
semelhantes e com Deus, o sim e o não se fundem para formar uma contraditória unidade,
uma auto-afirmação altruísta, auto-afirmação na auto-entrega a Deus e aos seres
humanos”
189
.
O movimento da Ética bonhoefferiana tende a recuperar o senhorio de Cristo. É um
alargamento de horizontes, que acontece progressivamente por meio das categorias
indicadas, até a formulação da vida cristã como um existir para o mundo
190
.
2.6 Resistência e Submissão
186
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.318.
187
ET, p.120.
188
ET, p.120.
189
ET, p.124.
190
Cf. GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.115.
72
O mais importante nisso tudo decerto é que fiquemos fiéis a nós mesmos, que
não nos percamos e que, apesar de todas as insuficiências, não desacreditemos
totalmente da humanidade
191
.
Quando Bonhoeffer foi encerrado no cárcere de Tegel estava convicto de ter ainda
uma tarefa fundamental a concluir, não apenas como teólogo, mas também como cristão:
terminar sua Ética, conforme deixou registrado na primeira carta endereçada ao amigo
Bethge: “às vezes penso que concluí mais ou menos a minha vida e apenas deveria acabar
ainda minha Ética
192
. Não se tratava somente da conclusão de um livro, mas de levar a
termo o resultado de uma longa caminhada na qual havia procurado colocar em foco a
relevância da fé para a vida na sua integralidade e a superação da divisão entre as esferas da
existência.
Por isso, seu pesar está em não ter dado à sua reflexão o complemento necessário,
chegando a se recriminar por não conseguir fazê-lo, o que demonstra a relevância com que
tratava o assunto, como escreve em outra carta à Bethge, demonstrando a esperança de
que seu trabalho até ali não tenha sido em vão: “me recrimino por não ter concluído a Ética,
o que me consola um pouco é que o essencial eu havia te falado. E mesmo que não te
lembrasses mais, indiretamente isso apareceria de alguma forma outra vez. Além disso,
minhas ideias ainda estavam incompletas”
193
.
É importante ressaltar que no início da elaboração do livro Ética, a intenção de
Bonhoeffer era em fazer uma espécie de “manual prático para cristãos”, porém, nas cartas
da prisão pode-se perceber certa mudança na linguagem, de forma que esta se torna menos
sistematizada e mais próxima ao sofrimento humano. Nota-se que a relação entre as cartas
do cárcere e os textos precedentes tem duas características: uma continuidade, no que se
refere a preocupação com o tema ético ; uma descontinuidade, pela nova forma de enxergar
a situação, na perspectiva da vítima e não mais do “samaritano”. O tema do sofrimento
aparece de forma mais íntima e frequente nos textos. Os sentimentos aparecem mais
191
RS, p.274.
192
RS, p.176.
193
RS, p.220.
73
expostos. Nesse período, ele pode sentir na “carne” uma fração das dores de Cristo, e pode,
como ensinava em sua Ética, realmente viver a configuração, pois “experimentar
pessoalmente por meses a fio o que significa estar preso é outra coisa do que acompanhar
isso a partir de fora”
194
. Ainda assim, estava convicto de que sua missão era justamente
suportar os limites a que fora submetido com todas as suas consequências
195
.
O cárcere e o isolamento possibilitaram uma compreensão mais sóbria dos limites da
própria existência humana. Como afirma Victor Frankl, a respeito dos campos de
concentração: “lá, as ‘diferenças individuais’ não se apagaram, mas, ao contrário, as pessoas
ficaram mais diferenciadas; os indivíduos retiraram suas máscaras, tantos os porcos como os
santos”
196
.
Bonhoeffer, a partir da prisão, vivia o que realmente pregava e acreditava. Sua ética é
da participação, do “tomar parte” no ser de Jesus, na responsabilidade pelo todo e,
consequentemente, na resistência e na submissão. Resistência ao que era contrário ao bem,
ou seja, a conduta nazista e submissão à vontade de Deus. Gallas comenta que uma ética
cristã que exclua a ação política era inimaginável para Bonhoeffer, tanto que ele é preso não
enquanto pastor ou intelectual da oposição, mas enquanto suspeito de complô contra os
interesses do Estado, o que incluía o atentado do qual participara, bem como a ajuda aos
refugiados da guerra
197
.
Assim, Resistência e Submissão trata de um tema que possui grande relevância à
ética cristã: a relação entre Igreja e política. Bonhoeffer faz críticas à Igreja que colocava sua
segurança acima da responsabilidade para com a comunidade e faz críticas à política que
induzia ao cego comprometimento com a ideologia nazista e que se sustentava com a tese
194
RS, p.273.
195
Cf. RS, p.175.
196
Frankl, V. Em Busca de Sentido, p.129.
197
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.383.
74
do princípio do dever para com a nação
198
. Também chama a atenção para a falta de decisão
por parte do povo alemão diante da necessidade de uma ação livre e responsável, tanto em
relação à profissão quanto à missão. Toda a tese da responsabilidade concentra-se numa
chamada aos “responsáveis”, baseada em “um Deus que exige o livre risco da na ação
responsável e promete perdão e conforto a quem se torna pecador dessa maneira”
199
.
È interessante perceber que para Bonhoeffer, além de refletir se a ação é certa ou
errada, o importante é agir, agir para o bem, mesmo que o resultado obtido não seja o
esperado
200
. Por isso fala de uma co-responsabilidade do cristão na formação histórica. Essa
visão permite uma opção não baseada apenas na segurança, mas, num confronto entre esta
e a existência. Além de ter que deixar um legado à geração futura em termos da sua própria
existência. Nesta temática Bonhoeffer coloca em jogo o futuro da humanidade.
Assim, o cristão o pode tomar atitudes apenas quando sente a injustiça na própria
carne, mas antes, quando está diante dos sofrimentos dos seus semelhantes. A ação
responsável tem, portanto, sua exigência e é em vista dela, que Bonhoeffer declara que “é
muito mais fácil sofrer na obediência a alguma ordem humana do que sofrer na liberdade de
uma ação responsável”
201
, pois nessa ação se está sozinho e a responsabilidade é, então,
pessoal.
Mas o que é responsabilidade para o teólogo alemão? Esse conceito possui
fundamento bíblico e encontra sua chave em textos como: 2Cor 5,10; Lc 10, 25-37; MT 25,
31-46; Gn 1,28-31 e Gn 4,9
202
. Todos esses textos chamam, de certa forma, o ser humano a
prestação de contas a Deus.
198
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.315.
199
RS, p.31.
200
É importante esclarecer aqui que não se trata de uma ética de situação ou mesmo de subjetivismo, mas sim,
como declara Forte, de uma “ética do concreto, motivada pelas urgências do presente, que não hesita em
envolver-se e tomar posições”, cf. FORTE, B. Um pelo Outro, p.124.
201
RS, p.40.
202
2Cor 5,10 “teremos que comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu,
conforme o bem ou o mal que tiver feito”; Lc 10, 25-37(parábola do bom samaritano); Mt25, 31-46 (sobre o
juízo final); Gn 1,28-31(sobre a administração da terra) e Gn 4,9 “Onde está teu irmão Abel?”.
75
Lüpke diz que, seguindo essa ideia e reinterpretando o conceito, Bonhoeffer entende
a responsabilidade como resposta. Resposta que abarca a totalidade e a unidade da
realidade que é dada em Cristo. Resposta ao mundo com Cristo, com exigência de
comprometimento da totalidade da vida
203
. Responsabilidade, conforme Bonhoeffer, “é uma
resposta global do ser humano todo, a toda a realidade”
204
. Assim sendo, o agir responsável
deve responder aos desafios da realidade sem passar através de um filtro de princípios, que
impedem o adequado agir na complexa realidade histórica. Portanto, o ser humano
responsável, quando coloca em jogo a vida, o faz na sua totalidade, pois está disposto a
assumir todo o fardo em favor dos outros, mesmo a culpa de uma ação que contra a lei,
se esta for necessária para o supremo interesse da vida (faz-se aqui alusão ao atentado a
Hitler do qual Bonhoeffer participara). Para o ser humano responsável a pergunta não é
“como eu poderia escapar da situação de modo heróico, mas como a próxima geração
continuará a viver”
205
.
Conforme Bonhoeffer, Cristo, entrando na historia, cria uma estrutura profunda de
realidade, onde somente assumindo a responsabilidade pelos outros e a culpa, devido essa
ligação, pode-se estar, de fato, na realidade, isto é, viver em plenitude. Nesse contexto, o
simples cumprimento de deveres não libera o ser humano da prestação de contas, do que
fez ou deixou de fazer, a si mesmo, aos outros e a Deus. Na limitação do que é dever jamais
se chega ao risco da ação resultante da responsabilidade pessoal, a única que pode atingir o
mal no centro e vencê-lo. Afirma ele que “o homem do dever, no final das contas, terá que
cumprir seu dever até para com o diabo”
206
.
O intuito de Bonhoeffer não é, por meio do empenho à vida, a equiparação do ser
humano a Cristo, visto que “nós certamente não somos chamados a salvar o mundo por
203
LÜPKE, J. V. Responsibility as response: biblical-theological remarks on the concept of responsibility. Studies
in Christian Ethics, p.467-468.
204
ET, p.143.
205
RS, p.32.
206
RS, p.29.
76
nossa própria ação e nosso próprio sofrimento”
207
mas, enquanto cristãos, pela participação
da grandeza de Cristo através da ação responsável, porque aos cristãos, não são as
experiências sofridas no próprio corpo que chamam à ação, e sim, as experiências no corpo
do outro. Baseado nessa afirmação, Bonhoeffer pergunta: “Quem aguentará firme?”, e
responde: “quem estiver disposto a sacrificar tudo... a pessoa responsável, cuja vida nada
pretende ser do que resposta à pergunta e ao chamado de Deus” e, novamente questiona:
“Onde estão as pessoas responsáveis?”
208
.
Vendo os horrores de guerra, escreve que nada do que é desprezado no outro é
totalmente estranho e que muitas vezes se espera que o outro faça o que não se está
disposto a fazer, e o reverso para isso está justamente na comunhão, com os outros, por
Deus
209
. As conclusões de Bonhoeffer foram o resultado direto de uma relação pessoal com
Cristo e seus textos trazem uma análise profunda do ser humano, como testemunho de
quem está olhando a guerra como um cristão. Algumas das cartas comentam a brutalidade
da vida nos campos de concentração, e se pode perceber a expectativa de execução em
muitas de suas cartas: “pensar na morte tornou-se cada vez mais familiar para nós”
210
.
Mas Bonhoeffer tinha a esperança de que os horrores vivenciados na guerra tão
intensamente, constituiriam o fundamento necessário para a percepção de que a
reconstrução da vida dos povos destruídos, tanto interna quanto externamente, seria
possível com base no cristianismo, e assim, tanto a nação quanto o cristianismo poderiam
reergue-se dignamente
211
.
Num momento de intensa fragmentação da existência, da realidade, dos valores, em
um tempo no qual a instabilidade das condições de vida cresce, Bonhoeffer centra sua
reflexão ética na totalidade. Para ele a plenitude, a harmonia, a unidade, são características
essenciais da vida, isto é, componentes de sua forma real; aquela que precede o pecado,
207
RS, p.39.
208
RS, p.130.
209
Cf. RS, p.35.
210
RS, p.42.
211
Cf. RS, p.197.
77
aquela que é antecipada em Cristo. Participar até o fundo do destino de seu tempo, existir
no fragmento, na separação, no isolamento, e nesta condição ainda protestar pela plenitude
perdida, antes, mais construtivamente, colocar em foco a dimensão “sinfônica” da vida em
sua plenitude, e manter a capacidade de saborear também nos fragmentos os reflexos de
integridade, é o modo de existir que Bonhoeffer propõe a si e aos outros até o fim.
A palavra de ordem, então, é perseverar, dizia Bonhoeffer: “Se agora nos tornarmos
indolentes e levianos, como poderemos subsistir perante nossos irmãos presos e como
haveríamos de subsistir perante o Filho de Deus?”
212
. Perseverar e esperar, não uma espera
passiva e indiferente
213
, que esta não é cristã, mas uma espera como “Advento”, na
esperança em Deus, vivendo em e responsabilidade, como se ainda se tivesse um futuro
pela frente e toda liberdade para dispor
214
, que é apenas isso, como declara Frankl, que
resta aos presos nos campos de concentração: “a última liberdade humana a capacidade
de escolher a atitude pessoal que se assume diante de determinado conjunto de
circunstâncias... dar seus últimos passos com dignidade”
215
.
Por fim, comprova-se que é a vida de Dietrich Bonhoeffer, seu inegável testemunho,
a resposta responsável que deu às exigências de seu tempo com o martírio de sua própria
vida, a fidelidade a seus compromissos; o que constitui a credibilidade incontestável de suas
reflexões em torno da ética cristã, por ser um testemunho carregado de consistência, que
desafia o cristão ao empenho total de sua vida.
Teólogo alemão que viveu nos anos turbulentos da Segunda Guerra Mundial na
Europa e que foi vitimado pelo regime nazista, dedicado professor e pastor, testemunhou
com firmeza e confiança em Deus que estar no mundo é enfrentar os conflitos e não fugir
deles por conveniência ou acomodação. Em Dietrich Bonhoeffer, vida e pensamento
constroem uma unidade, onde as experiências de vida moldam e influenciam sua teologia, e
212
TENT, p.7.
213
Cf. RS, p.40.
214
Cf. RS, p.41.
215
Frankl, V. Em Busca de Sentido, p.9.
78
sua fé determina seu modo de viver e agir. Como confirma Bruno Forte: “sua ética do
concreto, justamente porque sempre motivada pelas urgências do presente, não hesita em
envolver-se e tomar posições...”
216
.
Diz Bonhoeffer:
A ação responsável é, precisamente nisso, uma aventura livre, sem justificação por
lei alguma, acontecendo, pelo contrário, na renúncia a qualquer autojustificação
válida e, com isso, na renúncia a seu reconhecimento último e válido de bem e
mal. O bem, na qualidade daquilo que é responsável, acontece na entrega da ação
necessária, e mesmo assim (ou justamente assim) livre, a Deus, que o coração,
pesa o ato e guia a história
217
.
216
FORTE, B. Um pelo outro, p.124.
217
ET, p.139.
3
O MUNDO TORNADO ADULTO
Muitas vezes refleti sobre onde estariam os limites entre a necessária resistência
contra o “destino” e a igualmente necessária submissão. Os limites entre
resistência e submissão têm de estar presentes e têm de ser assumidos com
determinação. A fé exige essa ação viva
218
.
Bruno Forte afirma que a situação atual do cristianismo ocidental não é muito
diferente daquela vivida por Bonhoeffer
219
, sendo assim, pode-se verificar a atualidade e o
grande valor que seu pensamento representa para a compreensão do cristianismo hoje.
A reflexão sobre a emancipação do mundo moderno
220
, que tem seu vértice nas
cartas do cárcere, oferece a Bonhoeffer o ponto de partida para uma reinterpretação da
cristã e da sua eficácia. As expressões mais eloqüentes que podem ser encontradas sobre o
tema da modernidade, são aquelas do “mundo sem Deus”, “arreligiosidade”, “o mundo
tornado adulto”, “mundanidade”, “realidade última e penúltima”, expressões que
atravessam suas obras e acentuam-se nas últimas, como Ética e Resistência e Submissão.
É um pouco difícil definir o conceito de modernidade na visão bonhoefferiana, já que
não uma referência explícita a esses termos em seus escritos. Porém alguns aspectos
podem ser notados em Ética, onde Bonhoeffer faz uma análise da cisão entre o Corpus
Christi e o mundo no Ocidente a partir da Reforma; da Guerra dos Trinta Anos que
fragmentou a política pelo cisma da fé; o acordo de paz de Westfália que selou a divisão
218
RS, p.307.
219
Cf. FORTE, B. À escuta do Outro, p.147.
220
A respeito de tais ideias ver também AZEVEDO, M. Entroncamentos e Entrechoques. Vivendo a fé num
mundo plural.
80
confessional no Ocidente e a Revolução Francesa, que libertou a razão humana
221
. Assim deu
início, conforme descreve, o grande processo de secularização, no qual o “florescimento
das ciências racionais e empíricas, e, enquanto os cientistas dos séculos XVII e XVIII ainda
eram cristãos, com o desaparecimento da em Deus restou um mundo racionalizado e
mecanizado”
222
.
Bonhoeffer aponta a situação do Ocidente moderno como de autêntica
decadência
223
, fator que é estendido para a pós-modernidade, como endossa Bruno Forte
quando comenta que para a condição s-moderna nada parece ter mais sentido, que “é o
tempo do naufrágio e da queda”. Esta crise, ao qual chama de “crise do sentido” tornou-se,
segundo Forte, “a característica peculiar da inquietude pós-moderna”
224
.
Já intuindo esta situação Bonhoeffer escreve em Ética:
Como não nada de caráter duradouro, quebra-se a base da vida histórica, a
confiança, em toda a forma. Como não existe confiança na verdade, a propaganda
sofista toma seu lugar. Como não confiança na justiça, declara-se justo o que é
de proveito. A mais assombrosa constatação que hoje fazemos é que, diante do
nada, abandona-se o tudo: o juízo próprio, o ser humano, o próximo
225
.
Afirma ainda que esse nada para o qual o Ocidente se encaminha é um nada de
rebelião, de violência, de hostilidade a Deus e aos seres humanos, que nada poupa e a nada
compromete, onde tudo e todos se tornam suas vítimas; “acontecimentos marcantes para a
história universal, bem como crimes inéditos, não conseguem deixar um rastro na alma
esquecidiça”
226
. Dessa forma, no final do caminho iniciado com a Revolução Francesa, se
encontra o niilismo. “É o niilismo da renúncia de amar, em que os homens fogem da dor
infinita da evidência do nada”
227
, diz Forte. A esta situação Bonhoeffer propôs a
centralidade do sofrimento de Deus e do cristianismo não-religioso como possíveis respostas
221
Cf. ET, p.57-58.
222
ET, p.58.
223
Cf. ET, p.64.
224
FORTE, B. À escuta do Outro, p.148.
225
ET, p.64.
226
ET, p.63.
227
FORTE, B. Op. Cit, p.149.
81
ao um cristianismo também afetado pelo processo de secularização, que não pode se deixar
paralisar em sua responsabilidade histórica
228
.
Em Ética, Bonhoeffer apresenta uma profunda análise do Ocidente moderno e
chega à conclusão de que foi a Revolução Francesa a introduzir no Ocidente uma grande
reviravolta no pensamento, na vida e na sociedade. A Revolução Francesa assinalou o
nascimento do nacionalismo e a consequência do nacionalismo, segundo constata
Bonhoeffer, é a guerra
229
.
Assim, se para o teólogo a Revolução Francesa foi a origem da época moderna e o
nacionalismo, com sua racionalidade exacerbada, desembocou em uma guerra mundial
230
,
não é difícil chegar à conclusão de que a s-modernidade, com sua “crise de sentido”,
principia com a falha do cristianismo durante a Segunda Guerra Mundial. Como alternativa a
essa crise estabelecida, particularmente no cristianismo, lança a ideia de um cristianismo
não-religioso do seguimento e da participação no sofrimento divino, por meio das categorias
já vistas sobre a ética, oferecendo novo sentido ao existir do ser humano.
Para que essa proposta cristã seja bem entendida é preciso antes entender o
processo de amadurecimento do mundo, ou seja, a secularização, na visão
bonhoefferiana
231
.
3.1 - O mundo adulto e o lugar de Deus na visão de Bonhoeffer e da Gaudium et spes
232
228
Cf. ET, p.64.
229
ET, p.61.
230
Cf. ET, p.60.
231
Bonhoeffer usa o termo mundo adulto” ao se referir ao processo de secularização, por isso, esse termo
será também adotado nessa pesquisa.
232
A Gaudium et spes (1965) é uma constituição pastoral sobre a Igreja no mundo atual, redigida durante o
Concílio Vaticano II. Trata fundamentalmente das relações entre a Igreja Católica e o mundo onde ela está e
atua. Significou e marcou uma renovação da Igreja Católica "de dentro" (debruçada sobre si mesma), "para
fora" (voltando-se para as realidades econômicas, políticas e sociais da humanidade em seu contexto).
82
Agora a força da alma está ausente! O ser humano é novamente remetido a si
mesmo. Ele soube lidar bem com tudo, menos consigo mesmo!
233
É no período de espera do processo, isto é, entre agosto de 1943 e abril de 1944, que
Bonhoeffer se dedica mais intensamente ao tema do mundo tornado adulto
234
e a crítica a
religião. O que parece crescer lentamente, sobretudo na vida cotidiana do prisioneiro de
Tegel.
Numa carta de abril de 1944, escrita a seu amigo Bethge, Bonhoeffer coloca em
discussão muitas questões de ordem teológica, talvez seja a carta mais densa de conteúdos
do epistolário bonhoefferiano:
O movimento em direção à autonomia humana (refiro-me à descoberta das leis
segundo as quais o mundo vive e dá conta de si mesmo nas áreas da ciência, da
sociedade e do Estado, da arte, da ética e da religião), que iniciou por volta do
século 13, chegou a uma certa completeza na nossa época. O ser humano
aprendeu a dar conta de si mesmo em todas as questões importantes sem apelar
para a “hipótese de trabalho de Deus
235
.
Assim, intuía a situação na qual se encontra esse longo processo de emancipação do
mundo, indicando a distância que a autonomia do ser humano quer ter em relação ao
elemento religioso.
Pelo fato da secularização apresentar certo afastamento da religião, acabou sendo
vista também como um distanciamento do próprio Deus. Mas será que por isso a
secularização deve ser vista como um fenômeno negativo de dissolução da relação com
Deus? Não para Bonhoeffer, que apesar das problemáticas geradas pela secularização, a
percebia como fenômeno positivo ao amadurecimento da cristã. Sua reflexão se baseia
233
RS, p.509.
234
Para essa elaboração, Bonhoeffer se baseou diretamente nas categorias de Dilthey sobre o processo de
autonomia do mundo, mas a originalidade bonhoefferiana está na formulação do problema teológico daí
proveniente, cf. RS, p.481-488.
235
RS, p.434.
83
nas mudanças culturais e se desenvolve procurando expor a mensagem cristã por uma
perspectiva antropológica.
A secularização, afirma, representa o momento em que o ser humano tomou
consciência de poder atingir sua plenitude sozinho, seu completo desenvolvimento,
identificado com o progresso científico e técnico. E isso comporta não apenas um perfeito
domínio sobre a natureza, mas também um senso de liberdade ilimitada e de uma total
autonomia, inclusive em relação a Deus
236
.
O processo de secularização acredita Bonhoeffer, não significa uma transformação do
mundo em si, mas uma transformação da postura do ser humano em relação ao mundo,
uma transformação na compreensão que o ser humano faz da relação entre a realidade e a
sua vida. Em geral, esse processo é caracterizado como a passagem de uma interpretação
mítica, a uma compreensão racional, como uma progressiva tomada de consciência, por
parte da humanidade, da sua autonomia e da sua responsabilidade na construção
histórica
237
.
Diante da situação histórica em que se encontrava e da resposta dos cristãos alemães
àquela situação, Bonhoeffer se pergunta o que é o cristianismo e quem é Cristo hoje
238
? A
resposta cristã ao problema da guerra parece ser, para ele, uma negação do ser cristão,
como se a religião fosse, portanto, somente uma dimensão de interioridade, sem nenhuma
obrigação histórica. Ao mesmo tempo Bonhoeffer compreende que se está diante de uma
transição na concepção da religiosidade e que não se pode continuar a usar a mesma
linguagem teológica em um mundo já tornado “não religioso”. Em vista disso, questiona se o
anúncio e a teologia conseguem alcançar a sociedade de seu tempo e se a guerra provoca
alguma reação religiosa nela? Por outro lado, se pergunta que significado tem, para o
cristianismo, esta guerra mundial? Constatando, pois, que a guerra é uma tragédia que
envolve somente aqueles que participam diretamente dela, enquanto todos os outros
236
Cf. ET, p. 58-59.
237
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.29.
238
Cf. RS, p.369.
84
cristãos ficam na indiferença ou alienados ao acontecimento que se mostra decisivo para o
futuro da história humana. Assim escreve em uma de suas cartas:
O que me ocupa incessantemente é a questão: o que é o cristianismo ou ainda
quem é de fato Cristo para nós hoje... Passou igualmente o tempo da interioridade
e da consciência moral, ou seja, o tempo da religião de maneira geral. Rumamos
para uma época totalmente arreligiosa; as pessoas, sendo como são,
simplesmente não conseguem mais ser religiosas. Também aquelas que
sinceramente se dizem ‘religiosas’ de modo algum praticam o que dizem;
portanto, é provável que com o termo religioso’ estejam referindo-se a algo bem
diferente... se portanto, as pessoas tornarem-se radicalmente arreligiosas, então o
que isso significa para o ‘ cristianismo’?
239
.
Parece que, Bonhoeffer, ao se referir ao fenômeno do mundo adulto, quis
demonstrar que não se trata da negação de Deus, mas da negação de um pensamento que
possa comprometer a autonomia do ser humano pelo nculo religioso, entendendo a
secularização numa relação de causa e efeito com a cristã, como um evento previsto na
renovação do cristianismo.
Aproximadamente 20 anos depois, seguindo a mesma linha, a Igreja Católica, através
do Concílio Vaticano II, na Constituição Pastoral Gaudium et spes, vai mencionar essas
mudanças na história humana, “na qual profundas e pidas transformações se estendem
progressivamente a toda terra” e “de tal modo que podemos falar de uma verdadeira
transformação social e cultural, que se reflete também na vida religiosa”
240
. E continua:
“negar Deus ou a religião, ou prescindir deles já não é um fato individual e insólito, hoje, isso
é muitas vezes apresentado como exigência do progresso científico ou de novo tipo de
humanismo”
241
.
Percebe-se que o que está em jogo, para Bonhoeffer, não é o além, o outro mundo,
mas este mundo, como ele é, estruturado em leis, conservado e reconciliado. “O que está
além deste mundo quer estar para este mundo no evangelho”
242
, afirma, mas não no
239
RS, p.370.
240
GS, n.4.
241
GS, n.7.
242
RS, p.380.
85
sentido antropocêntrico da teologia liberal, e sim no sentido bíblico da criação e da
encarnação, da crucificação e da ressurreição de Cristo
243
. Assim, parece que o teólogo
alemão, articulou a definição de mundo adulto por meio do processo de racionalização, após
o cristianismo ter sofrido um desencantamento da natureza, uma demitização da antiga
visão do cosmo.
Em Resistência e Submissão, ainda seguindo as ideias desenvolvidas em Ato e Ser,
Bonhoeffer tem a preocupação de solucionar o problema de como interpretar e exprimir de
maneira adequada a Revelação, de forma que esta se torne compreensível para o ser
humano moderno. Porém, nas cartas da prisão, o tema aparece num tom mais profundo,
mais urgente e radical. Chegando à conclusão de que não basta substituir as categorias
filosóficas passadas pelas do século presente para tornar inteligível a mensagem cristã, como
também não basta apenas rever os conceitos mitológicos, como propõe Bultmann. É
necessário uma radicalidade, uma mudança de toda a linguagem religiosa em que esta foi
expressa originalmente. “Não se pode separar Deus e milagre, como quer Bultmann, mas
precisamos poder interpretar e proclamar a ambos de forma não-religiosa”
244
. Visto que
essa é uma exigência da modernidade.
O termo secularização inclui entre seus componentes a vida sem Deus e sem religião
numa tentativa de limitar o espaço de Deus e da religião, para que o ser humano possa
ocupar o lugar central. Isso devido ao “colapso da ordem medieval que afetou as realidades
humanas, de modo especial a cultura, a ciência e a religião. O mundo passou a girar em
torno de um novo eixo que passou a ser o próprio homem. Deus foi colocado de
escanteio”
245
. Esse processo permite ao ser humano da modernidade entrar numa fase de
independência, de auto-assunção, numa espécie de maioridade, onde se assume
responsável por si e por sua história. Então, “o homem passa a ocupar a primazia no
243
Cf. RS, p.380.
244
RS, p.379.
245
BARTH, L. W. Pós- modernidade, religião e ética, p.11.
86
conjunto da realidade global, tudo é orientado em sua direção e desbanca a Deus. No
entanto, ele se descobre pouco consistente e frágil”
246
, explica W. Barth.
Bonhoeffer explica que o ser humano moderno aprendeu a enfrentar seus problemas
sem recorrer à hipótese da existência e da intervenção de Deus. Mas o que isso significa?
Significa que no contexto da modernidade torna-se claro que, viver diante de Deus é hoje,
viver sem Deus, ou seja, até que não reconheça a própria relação com o Deus da cruz, o
mundo está destinado a procurar uma divinização para a realidade mundana, com o fardo
de que a própria vida mundana se reduz a parcialidade, pois somente o Deus em Jesus Cristo
pode conduzir o mundo a sua autêntica e integral mundanidade
247
.
Isso é expresso nas ciências, na arte, até mesmo na ética. E assim como no campo da
ciência, também no campo das coisas humanas, Deus está sempre mais à margem da vida
humana
248
. O que justifica porque Bonhoeffer considera que o ser humano dessa época de
secularização não se questiona sobre as coisas últimas, como a morte, a culpa, questões que
só em Deus podem ter resposta, e pelas quais necessita de Deus, da Igreja e do sacerdote
249
.
Deus está cada vez mais sendo empurrado para fora do âmbito de um mundo que
atingiu a maioridade, do âmbito do nosso conhecimento e da nossa vida e, desde
Kant, lhe restou o espaço além do mundo. A teologia, por um lado, voltou-se
apologeticamente contra esse desenvolvimento e atacou inutilmente - o
darwinismo, por outro lado, ela se conformou com esse desenvolvimento e
restringiu a ação de Deus, como um deus ex machina
250
, às chamadas questões
últimas, ou seja, Deus transforma-se em resposta para questões vitais, em solução
para aflições e conflitos da vida
251
.
Esse deus ex machina acaba sendo mobilizado como saída para problemas insolúveis
ou como suporte para falhas humanas, onde o conhecimento humano se limita ou onde as
246
BARTH, L. W. Pós- modernidade, religião e ética, p.11.
247
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.374.
248
RS, p.435.
249
RS, p.435.
250
Cf. RS, p.373 nota 24: “o Deus que sai da máquina”, alusão a figura do teatro da Antiguidade, que aparecia
de repente com ajuda de um dispositivo e solucionava problemas de maneira “sobrenatural”.
251
RS, p.458.
87
forças humanas suprimem
252
. E por isso, Bonhoeffer se propõe a “falar de Deus não nos
limites, mas no centro, não nas fraquezas, mas na força, portanto, não na morte e na culpa,
mas na vida e no bem.”
253
. Assim, refuta a ideia de um Deus “tapa-furos” ao afirmar que
“não devemos fazer com que Deus figure como “o tapa-furos” do nosso conhecimento
imperfeito... Deus tem de ser conhecido não apenas nos limites de nossas possibilidades,
mas no centro da vida”
254
.
Ao criticar o uso de Deus como “tapa-furos”, Bonhoeffer se apossa das reflexões
teológicas de outros autores, sobretudo Paul Tillich
255
, apontando o risco de uma concepção
estruturada na ideia de que quanto mais o conhecimento humano avança, mais Deus perde
seu espaço, sua relevância, permanecendo “num movimento de constante retirada”
256
.
Segundo Guardini, ao analisar o fim da modernidade, a consequência de tudo isso é o
aparecimento de uma existência afastada das influências cristãs e um cristianismo afastado
das influências terrenas. E assim como se desenvolve uma ciência puramente científica, ou
uma política puramente política, também aparece uma religiosidade puramente religiosa,
que vai no entanto perdendo suas relações com a vida concreta e fica cada vez mais pobre
de conteúdo humano
257
.
A fundamentação teológica contida nas cartas do rcere se diferencia daquela
contida em Ética, pois nesta última a função estruturante nos conflitos com a realidade se
encontra na encarnação de Cristo, a partir da qual a realidade recebe suas próprias leis
essenciais; em Resistência e Submissão a reflexão gira em torno da cruz, como lugar à
margem do mundo para onde Deus, em Cristo, se deixa levar. Se em Ética, Cristo é
apresentado como realidade presente e Senhor do mundo, em Resistência e Submissão, é
colocado às margens desse mesmo mundo. Pensando nesses termos, como Bonhoeffer pode
252
RS, p.373.
253
RS, p.374.
254
RS, p.415.
255
Cf. RS, p.415 nota5.
256
RS, p.415.
257
Cf. GUARDINI, R. O fim da idade moderna, p.72.
88
conciliar o “ser-sem-Deus” no mundo, que caracteriza as cartas do cárcere, com a ideia da
presença e do senhorio?
Seguindo os apontamentos feitos por Gallas, essa reflexão de Bonhoeffer que
floresce em plena crise, é animada pela exigência de colocar em foco a incompatibilidade da
fé com a ideia de separação da existência em duas esferas. Visto que ele interpreta a
secularização, não como aquisição por parte do ser humano de uma autonomia negada pelo
cristianismo, mas como uma fase conflitante e transitória, provocada pela rebeldia contra a
tutela eclesiástica, e que possivelmente terá fim quando forem redescobertos os valores de
uma real autonomia garantida pela autêntica relação com Cristo, o obstante, através da
Igreja
258
, que não é concebida por ele como um grupo seleto de pessoas que preservam um
conteúdo dogmático, mas como comunidade que, através de Cristo, se faz presente no
mundo como ser-para-os-outros.
As cartas do cárcere não se limitam a integrar a ideia de rejeição e de deslocamento
de Deus com a ideia de modernidade, mas introduzem um novo elemento: a análise do
processo que leva à autonomia do mundo, o que vem representado, nas cartas, como um
processo que se realiza na história da humanidade. Assim, história e cristologia se
correspondem.
Cristo é rejeitado pelo mundo na cruz, Deus é deslocado para as margens no curso da
história em consequência da expansão da capacidade de conhecimento do ser humano. A
relação entre a crescente marginalização de Deus na existência humana e a rejeição desse
mesmo Deus sob a cruz, pelo mundo, são explicitamente afirmados na carta de 18 de julho
de 1944: “Deus deixa-se empurrar para fora do mundo até a cruz”
259
. Então, Cristo se deixa
crucificar sobre o Gólgota e Deus se deixa marginalizar pela história e o mundo não é mais
258
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.400.
259
RS, p.488.
89
somente o cenário que hospeda o drama entre Deus e o ser humano
260
, mas torna-se, a
partir de sua autonomia, companheiro no mistério de Cristo
261
, analisa Guardini.
Ser humano e mundo são autônomos e independentes, Deus se revela como aquele
que é absolutamente diverso e separado do mundo, mas que, justamente por isso, opera
incessantemente no espaço e no tempo
262
. É nesse sentido, diz Bonhoeffer, que o
desenvolvimento que conduziu o mundo à sua maioridade, pode libertar o olhar para o Deus
da Bíblia, que adquiriu poder e espaço na realidade humana por meio de sua impotência. “A
Bíblia remete o ser humano à impotência e ao sofrimento de Deus”, afirma
263
. Deus, então,
não é encontrado longe do mundo ou do ser humano, antes, o ser humano, enquanto criado
e chamado a “dominar”
264
o mundo, continuamente descobre a presença de Deus, que a
maior autonomia do mundo é gerada pelo maior amor de Deus:
E não podemos ser honestos sem reconhecer que temos de viver no mundo- etsi
deus non daretur
265
. Deus mesmo nos obriga a esse reconhecimento... Deus nos
faz saber que temos de viver como pessoas que dão conta da vida sem Deus. O
Deus que está conosco é o Deus que nos abandona! O Deus que faz com que
vivamos no mundo sem a hipótese de trabalho de Deus é o Deus perante o qual
nos encontramos continuamente. Perante e com Deus vivemos sem Deus
266
.
Entendendo Bonhoeffer a secularização como efeito positivo provocado pela própria
cristã, em que sentido se pode falar de uma relação entre cristianismo e secularização, ou
melhor, em que sentido o cristianismo é origem do caráter não religioso do ser humano
moderno?
A interpretação positiva da marginalização de Deus pelo mundo permite visualizar
condições para uma reconciliação do cristianismo com o mundo moderno, “o mundo que
260
Cf. GUARDINI, R. Sul limite della vita, p.57.
261
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità,
p.420.
262
RS, p.488.
263
RS, p.488.
264
Cf. Gn 1,28.
265
RS, p.485 “mesmo que Deus não existisse”.
266
RS, p.489.
90
chegou à maioridade é mais sem-Deus e, por isso mesmo, talvez esteja mais próximo de
Deus”
267
, garante o teólogo.
Com estrutura paradoxal, Bonhoeffer, fornece uma inovação à teologia da cruz ao
apresentar uma formulação que joga entre polaridades: “O Deus que está conosco é o Deus
que nos abandona”
268
. O objetivo polêmico de Bonhoeffer é a compreensão de uma
concepção religiosa da impotência de Deus no mundo
269
. Em analogia, exemplifica Gallas,
seria como pais que se afastam para dar a seus filhos liberdade, provocando-os a agir
responsavelmente. No momento em que os “abandonam”, os pais não estão ausentes, mas
permitem que daí nasça uma autonomia, como fruto dessa relação e do desenvolvimento
progressivo da maturidade alcançada pelos próprios filhos. E mais, os próprios pais deixam-
se escantear para que os filhos possam crescer em sua autonomia. Porém, esses mesmos
pais estão sempre presentes, sempre ao lado de seus filhos
270
. Esse, então, parece ser o
esquema do qual se serve Bonhoeffer, ao apresentar o deslocamento de Deus sem
resistência, é Deus quem se deixa deslocar, marginalizar
271
.
Em Ética é afirmado que não é possível falar autenticamente de Deus nem do mundo
sem falar de Cristo. As cartas afirmam que não é possível falar de Cristo sem falar do ser
humano, não porque Cristo dependa destes, mas ao contrário, somente porque Cristo foi
homem por excelência, é possível se pensar na integralidade do ser humano, à imagem de
Cristo
272
. Por isso, Bonhoeffer faz perceber que onipotência, onisciência e onipresença se
dão apenas a partir do ser-para-os-outros, o que não subtrai de Deus, sua perfeição
273
.
Gallas acredita que é nesse existir-para-os-outros que Bonhoeffer identifica a completa
reviravolta do ser humano como obra divina, do Deus onipotente, onisciente e onipresente,
que assim se constitui, justamente enquanto, existindo para os outros se deixa marginalizar
267
RS, p.491.
268
RS, p.489.
269
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.424.
270
Cf. ibidem, p.425.
271
Cf. RS, p.488.
272
Cf. RS, p.447.
273
Cf. GALLAS, A. Op. Cit, p.428; RS, p.510.
91
e se faz fraco e impotente. Essa compreensão do ser de Deus foi uma tentativa, por parte de
Bonhoeffer, de reinterpretação dos conceitos bíblicos
274
.
Baseado em textos bíblicos, sobretudo Mt 8,17
275
, entende que “Cristo não ajuda em
virtude de sua onipotência, mas da sua fraqueza, do seu sofrimento”
276
. Olhando por alto, a
imagem de marginalização de Deus parece incompatível com a de centralidade, assegurada
por Bonhoeffer. É isso mesmo que ele faz, polemiza na tentativa de defender o espaço de
Deus das margens da existência humana, pois em sua análise o ser humano é capaz de viver
sem Deus, porém ao fazê-lo, nega sua origem e se afasta de sua plenitude, dada tão
somente no encontro autêntico com Cristo
277
.
Então, o que é necessário compreender nessa aparente contradição é que a posição
marginal que Deus ocupa no mundo depende, na modernidade, do modo como é concebida
sua centralidade. Não havendo mais espaço para sua intervenção nas questões relacionadas
à vida terrena, da qual o ser humano assumiu o controle, a Deus resta atuar nas questões
limites
278
.
A esse respeito, Gallas faz uma constatação, seguindo a linha de pensamento de
Bonhoeffer, que se Deus perder a influência também nas questões últimas, que o ser
humano aprendeu a viver sem precisar de Deus, também diante da morte se encontrará sem
Deus e nada mais lhe fará sentido, pois diante da morte tudo acabará. E assim, Deus será
evacuado também do espaço marginal que outrora ocupava e se tornará um Deus ausente,
um Deus morto
279
. Em vista disso, a proposta de Bonhoeffer aponta para o reconhecimento
do espaço de Deus na existência humana de maneira livre, não forçada, superando a falsa
imagem de Deus, próprio de um cristianismo arcaico e se abrindo à perspectiva do Deus
274
Cf. RS, p.488.
275
“Assim se cumpriu a predição do profeta Isaías: Tomou as nossas enfermidades e sobrecarregou-se dos
nossos males”.
276
Cf. RS, p.488.
277
Cf. GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e
modernità, p.432.
278
Cf. RS, p.486.
279
Cf. GALLAS, A. Op. Cit, p.432.
92
bíblico, que adquire poder e espaço através da sua cruz, recuperando, então, sua
centralidade na vida do mundo na existência em favor dos outros
280
. Esse esquema confere
transcendência à realidade mundana
281
e ao mesmo tempo confronta o ser humano a dar
uma resposta, na livre responsabilidade, como já apresentado na seção anterior.
Portanto e, em vista da crise religiosa de sua época, Bonhoeffer quer fundamentar,
teologicamente, como pode ser ainda possível dar uma estrutura cristã à realidade quando,
a própria realidade, ensina a pensar Deus não mais como o criador, mas sim como um Deus
que se torna supérfluo no mundo?
Infelizmente, a esta questão Bonhoeffer não deixou mais que fragmentos, que serão
costurados aqui para que se tenha uma noção, ou mesmo intuição, do que pretendia o
teólogo.
Como mencionado, Deus deixa-se deslocar para as margens, logo, esse
deslocamento abre um espaço onde antes havia Deus, mas esse espaço não é amorfo. A
partir do Gólgota a história assume uma nova estrutura, que se ocupa da criação,
reconciliação e renovação do mundo
282
, na qual Deus se manifesta, não mais apenas como o
Criador, mas também como Deus rejeitado na cruz.
Da criação e da encarnação ao abandono, assim a experiência de autonomia do
mundo e a inversão de valores, abrem janelas para a reinterpretação de uma existência
cristã adequada à realidade, que consiste na “participação no sofrimento de Deus por causa
do mundo sem Deus”
283
. Este é o modo de ser através do qual “a gente se torna um ser
humano, um cristão”
284
, diz Bonhoeffer. Ser humano, pela configuração a Cristo no ser-
para-os-outros e ser cristão, porque a participação é no ser de Cristo e em nenhum outro
285
.
280
Cf. RS, p.488.
281
Cf. RS, p.510.
282
Cf. RS, p.380.
283
RS, p.489.
284
RS, p.496.
285
Cf. RS, p.489.
93
O ser-para-os-outros é a via pela qual o ser humano se torna “o ànthropos téleios, aquele
que vive a vida na sua totalidade, conformando-se a estrutura profunda do real”
286
, enfatiza
Gallas.
Entre mundanidade e cristianismo se abre então, uma possibilidade de convergência,
a autonomia não necessita mais ser reivindicada à tradição cristã, muito menos ser
interpretada religiosamente. Parece que Bonhoeffer tenta construir uma crítica que ofereça
ao mundo sua “plena mundanidade” pelos caminhos da modernidade, ou seja, que através
do processo de secularização o ser humano atinja tal maturidade que possa, tranquilamente,
viver sem a tutela de Deus, mas não o queira. Queira antes, na livre decisão, assumir sua
responsabilidade na participação da vida do mundo e, através do ser-para-os-outros em
Cristo, venha a ser um ànthropos téleios.
Porém, não foi apenas Bonhoeffer a refletir sobre essas questões. Como foi visto, a
pós-modernidade resulta de um desencanto com a modernidade, sobretudo devido às duas
grandes guerras mundiais, produtoras de tanta barbárie
287
. Foi com essa humanidade
moderna e pós-moderna que o Concílio Vaticano II, através da Gaudium et spes, também
quis dialogar. Para isso, foi necessário elaborar qual a compreensão que se tem dessa
humanidade e qual lugar, nela, Deus ocupa. Para isso, partiu-se de uma antropologia cristã,
que reconhece o desenvolvimento técnico-científico e tenta integrá-lo na visão cristã, por
“uma antropologia que encontra sua verdade última na cristologia, ou seja, no homem Jesus
Cristo”
288
, conforme aponta Hummes. Mas essa ideia não se parece com aquela sugerida
por Bonhoeffer? Pois bem, como poderá ser notado, muitas são as semelhanças entre
pensamento do teólogo alemão e a constituição pastoral.
A antropologia cristã ensinada pela constituição tem fundamento cristocêntrico, ou
seja, o ser humano encontra sua identidade apenas através de Cristo, “na verdade, no
286
GALLAS, A. Ánthropos téleios: l’itinerario di Dietrich Bonhoeffer nel conflito tra cristianesimo e modernità,
p.316.
287
Cf. HUMMES, C. C. Contribuições da Gaudium et spes para a compreensão pastoral do homem de hoje,
p.629.
288
Ibidem, p.630.
94
mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente o mistério do homem”
289
.
Ensina também que Cristo “tornou-se verdadeiramente um de nós”
290
assumindo sua
responsabilidade pelo próximo. Ambas as questões são tratadas por Bonhoeffer e foram
apresentadas anteriormente nessa pesquisa.
Um dos componentes fundamentais apresentados pela Gaudium et spes é a questão
liberdade/autonomia
291
, também muito presente em Bonhoeffer. A constituição tanto
aponta para a importância desses componentes, ao mencionar que a liberdade é um sinal
privilegiado da imagem divina no homem”
292
, quanto indica seus riscos, “como se
consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal”
293
.
O assunto, abordado tanto pela constituição quanto por Bonhoeffer, traz na relação
entre Igreja e mundo, o problema da inexistência de Deus. Sobre isso a Gaudium et spes
afirma que o desejo de autonomia do ser humano foi elevado a tal ponto que passou a
constituir um obstáculo a qualquer dependência de Deus
294
. Bonhoeffer abre a discussão
sobre o tema nas cartas do cárcere em que reflete sobre o ser humano que aprendeu a dar
conta de si mesmo sem apelar para a “hipótese de trabalho de Deus”
295
.
Isso porque, fala a Gaudium et spes , a modernidade priorizou a razão humana como
fonte suprema de conhecimento da verdade, o que levou-a ao racionalismo extremo no qual
“o homem moderno começou a acreditar no mito do progresso inexaurível, capaz de
resolver todos os problemas do homem e responder a todas as perguntas do espírito
humano”
296
.
Refletindo o tema, Dom Cláudio Hummes escreve:
289
GS, n.22.
290
GS, n.22.
291
Cf. GS, n.17.
292
GS, n.17.
293
GS, n.17.
294
Cf. GS, n.20.
295
Cf. RS, p.434.
296
HUMMES, C. C. Contribuições da Gaudium et spes para a compreensão pastoral do homem de hoje, p.629.
95
Numa verdadeira revolução copernicana, em relação às concepções medievais, a
filosofia moderna havia colocado o homem no centro de todas as coisas. Um
antropocentrismo radical que se transformou em subjetivismo, que priorizou a
subjetividade humana frente à objetividade, em racionalismo, que absolutizou a
razão humana frente à religiosa e em imanentismo, que renegou a metafísica e
se fechou à transcendência divina. Assim, o homem ficou diante de si mesmo e
reduzido a si mesmo
297
.
Dessa forma, segundo Hummes, foi produzida a cultura moderna, que expressa o
antropocentrismo principalmente pela afirmação da liberdade e da autonomia do ser
humano, rejeitando qualquer tutela
298
, inclusive a tutela da religião, da metafísica e da
moral.
A Gaudium et spes fala aqui, de um ateísmo que conclui pela não existência de Deus,
enquanto Bonhoeffer fala de uma espécie de ateísmo que coloca Deus às margens e o torna
supérfluo, em outras palavras, tanto faz para o ser humano da modernidade se Deus existe
ou não, já que o mundo continua a se desenvolver sem precisar de sua intervenção.
O Concílio afirma também “a autonomia das realidades terrestres”, ensinando que as
realidades profanas e as da têm origem no mesmo Deus e que a autonomia utilizada para
o aprimoramento da humanidade é perfeitamente conciliável com a vontade de Deus
299
,
reforçando a ideia, já desenvolvida por Bonhoeffer, da relação existente entre último e
penúltimo, de que o processo de secularização faz parte da evolução cristã
300
e de que a
maioridade do mundo não é acidental, mas faz parte dos planos de Deus
301
. Conclui-se então
que, a autonomia humana é a condição pela qual Deus conduz o ser humano para o
seguimento à Cristo, no existir-para-os-outros.
297
HUMMES, C. C. Contribuições da Gaudium et spes para a compreensão pastoral do homem de hoje, p.629.
298
Cf. ibidem, p.629.
299
Cf. GS, n.36.
300
CHEUICHE, A. C. Cultura e Evangelização, p.126, fala do processo do autonomia como auto-realização do
homem.
301
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.29.
96
Assim, se encontra, nas palavras da Gaudium et spes, o ponto chave de convergência
entre o pensamento de Bonhoeffer e a constituição pastoral:
Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as
próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente
descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal
autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se
de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador... Antes, se se esquece
Deus, a própria criatura obscurece
302
.
O que leva à constatação, segundo Fazio, de que, quando Deus desaparece do
horizonte da existência, se tem que absolutizar um aspecto relativo da realidade como
referencial. Entres esses aspectos se encontram os totalitarismos
303
. Nota-se, na sociedade,
que enquanto há, por um lado, o progresso tecnológico e científico, por outro, o ser humano
sofre cada vez mais por injustiças e misérias, proporcionadas por seus próprios semelhantes
e perde cada vez mais o sentido da vida. Então, onde está o verdadeiro problema?
Conforme pode ser deduzido pelas explanações apresentadas até agora, falta uma
redescoberta, por parte do ser humano, do seu lugar no mundo, do que realmente o motiva
e o faz crescer enquanto tal. Volta-se aqui à ideia do ànthropos téleios, o ser humano
integral que encontra sua plenitude no ser-para-os-outros, ou seja, na participação do ser de
Jesus.
Pode-se confirmar essa suposição pela Gaudium et spes, na referência ao ser humano
que “se fortalece, quando compreende as inevitáveis necessidades da vida social, assume as
exigências multiformes da solidariedade humana e se responsabiliza pelo serviço à
comunidade”
304
. Bonhoeffer, ao citar passagens bíblicas
305
sobre a entrega da vida a uma
causa justa escreve que “a única coisa que todos têm em comum é a participação no
sofrimento de Deus em Cristo. Isto é a sua fé”
306
.
302
GS, n.36.
303
Cf. FAZIO, M. La autonomía de las realidades terrestres en la Gaudium et spes, p.643
304
GS, n.31.
305
Is 53; Lc 7; Jo 1,29; Mt 9,11; Mt 8, 5-13.
306
RS, p.491.
97
Por isso, outro aspecto de suma importância presente tanto na constituição quanto
em Bonhoeffer é a abertura para a ação responsável a qualquer ser humano, mesmo que
não seja cristão, importando apenas a boa vontade de praticar o bem, pois como diz a
Gaudium et spes: “a graça opera ocultamente nos corações”
307
. Essa afirmação torna-se
imprescindível no contexto de pluralismo e globalização no qual o mundo e,
consequentemente o cristianismo, estão inseridos.
3.2 - O Cristianismo no mundo adulto
A Igreja não está onde a capacidade humana falha, nos limites, mas no centro da
realidade
308
.
“O que me ocupa incessantemente é a questão: o que é o cristianismo ou ainda
quem é de fato Cristo para nós hoje... se, portanto, as pessoas tornarem-se radicalmente
arreligiosas então o que isso significa para o ‘cristianismo’?”
309
. Com essa indagação,
Bonhoeffer, ao acentuar a maioridade do mundo como um fato histórico concreto, propõe
um confronto entre a situação da história atual com a da religião, analisando o fim da
religião como foi conhecida até então: condição para a salvação, resposta para problemas
insolúveis, força para cobrir a falha humana
310
.
Bonhoeffer é convicto de que o ser humano não é um ser religioso, pois “foi-se o
tempo da religião de maneira geral
311
. Nela (a religião), existe somente uma pequena
expressão do cristianismo original, que foi historicamente condicionado como tentativa de
307
GS, n.22.
308
RS, p.374.
309
RS, p.369.
310
Cf. RS, p.372.
311
RS, p.369.
98
impor ao mundo a necessidade de Deus, o que transformou Deus, segundo o teólogo, em
deus ex machina, que intervém do alto como solução para os problemas humanos
312
.
A religião entra em jogo quando o ser humano se encontra diante de situações
limites, como a morte, a culpa, o mal, o que a deixa às margens da vida. O Deus da religião é
então concebido como o Deus que serve de complemento para a realidade humana, já não é
o Deus que está entre seu povo, como o apresentado pelo Antigo Testamento, mas o Deus
da metafísica, que se encontra no além da vida mundana.
Aqui parece que se está diante da questão da “morte de Deus”, porém, como foi
exposto anteriormente, Bonhoeffer entende esse conceito como uma possibilidade de
renovação do conceito de religião, superando a ideia na qual a ação de Deus é considerada
mecanicamente, onde o Deus que se tornou hipótese supérflua se refugia na metafísica e na
interioridade
313
.
Em meio à crise religiosa da modernidade, a apologética tenta demonstrar a
impossibilidade de uma vida sem a tutela de Deus
314
. A esse discurso Bonhoeffer responde
dizendo:
Considero o ataque da apologia cristã à maioridade do mundo primeiro como sem
sentido, segundo como deselegante, terceiro como não cristão. Sem sentido,
porque ele me parece como a tentativa de fazer retroceder para a puberdade uma
pessoa que se tornou adulta, ou seja, torná-la dependente de coisas das quais ele,
de fato, não mais depende... Deselegante, porque aí se tenta explorar a fraqueza
de uma pessoa... Não cristão, porque Cristo é confundido com um certo estágio da
religiosidade do ser humano
315
.
É preciso entender que a intenção de Bonhoeffer não é negar a metafísica, muito
pelo contrário, ele tenta mostrar que o Deus transcendente não está “do lado de lá”, mas ao
312
Cf. RS, p.373.
313
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.44.
314
Cf. RS, p.435.
315
RS, p.436.
99
alcance do ser humano
316
, não como inatingível, mas no próximo
317
, “Deus é transcendente
no centro de nossa vida”
318
.
Muitas são as razões que levaram Bonhoeffer a se posicionar a favor da aceitação da
arreligiosidade: sua honestidade intelectual, seu profundo conhecimento da situação
histórica, o reconhecimento da maioridade do mundo, seu respeito pela liberdade do outro,
a convicção da eficácia que a Palavra de Deus tem na dinâmica do mundo e a força do
seguimento à Cristo através do testemunho da vida
319
.
Ele entende que o fim da religião, como ela foi conhecida até agora, não significa o
fim da religião cristã, ao contrário, significa sua renovação, o início de uma
autenticamente cristã, que não é imposta, mas confessada na liberdade e no amor a Deus e
se reflete na entrega ao outro.
Por isso pergunta: “Como poderá Cristo tornar-se também o Senhor dos
arreligiosos?”
320
.
E se coloca ainda outras questões:
Se a religião for apenas uma roupagem do cristianismo... Que seria então um
cristianismo arreligioso?... Como falar de “maneira mundana de Deus?”... Como
podemos ser ekklesia, convocados dentre outros, sem nos entendermos como
preferidos em sentido religioso, mas como, pelo contrário, totalmente
pertencentes ao mundo?
321
Parece que a intenção de Bonhoeffer é abrir a perspectiva cristã para além dos
limites da religião (aqui é importante ressaltar que se refere à religião que privilegia a esfera
da interioridade e luta contra a aceitação da autonomia e liberdade do mundo) tornando-a
316
Cf. RS, p.511.
317
Cf. RS, p.510.
318
RS, p.374.
319
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.48.
320
RS, p.370.
321
RS, p.371.
verdadeiramente universal. Por isso, Bonhoeffer é um tanto quanto austero quando se
refere ao ato religioso e, para se explicar, elabora uma distinção entre ato simplesmente
religioso e ato de fé. O primeiro, como ato parcial e o segundo como ato total, pode causar
um rompimento na relação entre religião e cristianismo. Filippi explica que segundo
Bonhoeffer, o ato religioso é parcial, porque procede de quem se julga resguardado por
Deus, como pecador ou santo; enquanto o ato de fé é a participação total do ser humano no
ser-para-os-outros de Deus. O ato religioso qualifica um tipo de relação entre o ser humano
e Deus, o ato de é a adesão total à realidade de Cristo
322
, “não é o ato religioso que
produz o cristão, mas a participação no sofrimento de Deus na vida mundana”
323
. Para
enfatizar essa ideia, escreve num de seus poemas: “pessoas buscam a Deus em sua
necessidade... cristãos ficam ao lado de Deus na Sua paixão”
324
.
Para Bonhoeffer, nas religiões, de fato, é o ser humano quem procura por Deus e se
esforça para conseguir um contato com Ele por meio da pregação, do sacrifício, das boas
obras; é o ser humano quem se dirige a Deus, por isso, nesse sentido, a religião é vista como
um fato “humano”, enquanto obra do homem.
No cristianismo ao contrário, a iniciativa não é do ser humano, mas de Deus, é Deus
que mediante a Revelação, se manifesta ao ser humano; a humanidade no cristianismo
dirige o seu ponto mais alto à Encarnação, ao fato de que Deus para vir ao encontro do ser
humano, se faz ser humano em Jesus de Nazaré. Assim, o que especifica o cristianismo é o
seu caráter divino-humano na pessoa de Jesus Cristo.
Sobre esta reflexão Bonhoeffer comenta que não existe um cristianismo em si, nem
um homem em si, somente o Deus-homem Jesus Cristo é real e mantém na vida o mundo
até que esteja maduro
325
. “O Deus de Jesus Cristo é a manifestação mais eloqüente para o
homem de hoje. Hoje o Deus, invocado pela revelação bíblica como o Deus vivente, se deixa
322
Cf. FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.49; RS, p.489-491.
323
RS, p.489.
324
RS, p.470.
325
Cf. ET, p.75.
conhecer por aqueles que buscam a justiça e a retidão e a solidariedade”
326
, escreve
Filippi citando Bonhoeffer.
É a partir dessa compreensão, que Bonhoeffer se concentra em dar uma nova
resposta à interpretação do Evangelho, ou melhor, em responder, ao ser humano moderno,
com uma nova leitura do Evangelho, reinterpretando o novo cristianismo à luz da Revelação.
Em sua reflexão, Cristo é o único lugar no qual se pode considerar unidos Deus e a
realidade, sem que Deus se dissolva na realidade e sem que a realidade se dissocie de Deus.
a partir do cristocentrismo bonhoefferiano se pode entender o que ele chama de
cristianismo: Cristo não como objeto da religião, mas Senhor do mundo
327
.
A fé cristã, acredita Bonhoeffer, é capaz de compreender profundamente o mundo. A
vida de Cristo, totalmente entregue a Deus, exprime a coerência de uma existência histórica,
animada por uma autêntica humanidade, repleta de valores de verdade, justiça,
solidariedade; vocacionada para a ação diante do sofrimento humano. É assim a existência
do verdadeiro Homem que, com verdade e amor, atrai a humanidade para sua plenitude
328
.
Essa, pois, é a concepção do pensamento de Bonhoeffer quando diz que o cristão é
simplesmente humano, autenticamente humano, como foi Jesus
329
. “Então a maioridade do
mundo não será mais motivo de polêmica e apologia, mas o mundo será de fato
compreendido melhor do que ele mesmo se compreende, a saber, a partir do evangelho, a
partir de Cristo”
330
.
Uma das cartas do cárcere em que reflete sobre o processo de secularização é datada
de 8 de junho de 1944, na qual escreve também as consequências desse processo para o
326
FILIPPI, N. Cristianesimo adulto in Dietrich Bonhoeffer, p.53.
327
Cf. RS, p.371.
328
Cf. FILIPPI, N. Op. Cit, p.53.
329
Cf. RS, p.489.
330
RS, p.440.
mundo e para o homem, afirmando que este último se tornou tão insensível que nem
mesmo o evento da guerra lhe provocou qualquer reação
331
.
Dietrich Bonhoeffer foi vítima desta guerra. E do campo de concentração escreve que
apenas o Deus que sofre pode vir em ajuda. Cristo não ajuda em virtude da sua potência,
mas em virtude de sua paixão, como se pode verificar pelos textos bíblicos que se referem à
impotência e ao sofrimento de Deus. O ser humano é chamado a sofrer junto a Deus pelo
mundo sem Deus. Essa é a diferença entre cristãos e pagãos
332
, esclarece o teólogo.
À questão acima citada, Moltmann apresenta uma solução encontrada na proposta
rabínica da shekhînah, que significa um Deus que habita em meio a seu povo porque decidiu
abaixar-se a este nível, tornando-se companheiro de viagem e de sofrimento do seu povo
nesta terra. Nessa perspectiva, também no inferno de Auschwitz Deus estava, não, porém
como senhor da história, mas como vítima entre milhares de vítimas. Também Elie Wiesel
333
encontrou consolação nesta ideia rabínica do “Deus co-sofredor”, segundo o qual é Deus
mesmo a condividir o sofrimento e “uma pena condividida é uma meia pena”
334
.
Em Bonhoeffer, o cristianismo é seguimento a Cristo, é discipulado, é fé. Seguindo a
crítica da religião feita por Barth e vivendo a situação da guerra, sua crítica ganha relevância
ao constatar que os cristãos não têm a coragem de lutar contra a ideologia nazista e de viver
a autenticidade do Evangelho. Dessa forma, a religião não participa da totalidade da vida,
mas se reduz a necessidade e ao desejo do ser humano, apresentando Deus como resposta a
todas as perguntas que a humanidade não foi capaz de responder. A religião é apresentada
como solução a todos os problemas, seja de ordem social, afetiva, econômica; se alimenta
da fraqueza e da miséria humana. Deus acaba sempre a serviço do ser humano, como o
Deus “tapa buraco”. E neste sentido, o ser humano permanece sempre “criança”, incapaz de
confrontar-se com os problemas da vida.
331
Cf. RS, p.442.
332
Cf. RS, p.489.
333
Sobrevivente de Auschwitz que escreveu um diário com a memória das barbáries e onde encontrava Deus
nos campos de concentração. Cf. MOLTMANN, J. Dio nel progetto del mondo moderno, p.174-175.
334
Ibidem.
A fé, ao contrário, é concebida por Bonhoeffer à luz da Revelação de Deus em Jesus
Cristo. É Deus que toma a iniciativa livre e gratuita de fazer-se ser humano e de ficar ao lado
nos momentos de sofrimento e de santificação da humanidade. O “homem de fé” coloca sua
confiança no Deus de amor, mesmo quando sua vontade não coincide com a de Deus. Deus
na continua oculto como Deus, pois a respeita Deus em seu mistério. De outra parte,
também o ser humano é respeitado na sua humanidade e é estimulado a entregar-se em
profundidade na vida. A fé abraça a vida na sua totalidade
335
.
É baseado na entrega da vida que Bonhoeffer tem a forte preocupação de responder
à questão de como tornar o cristianismo inteligível, sendo convicto de que o único modo de
consegui-lo hoje é por meio do testemunho, ou seja, do bom exemplo. Para ele, é através do
modo com que se vive que os outros podem intuir o conteúdo da de quem o bom
exemplo. Essa noção de testemunho se apresenta esboçada em Discipulado, ganhando
nova perspectiva e maior intensidade em Resistência e Submissão. Para Bonhoeffer, afirma
Mondin, “a secularização nunca é entendida como uma rendição complacente às
concepções ‘secularistas’ e ateias do homem moderno, mas sim uma nova metodologia para
tornar inteligível e eficaz a comunicação do Evangelho em nosso século”
336
.
O significado que Bonhoeffer quer dar à secularização da teologia, portanto, não é de
fazê-la adotar uma linguagem secularizada, mas fazê-la ceder seu lugar ao testemunho. Sua
intenção não é conduzir à dissolução o objeto da fé, e sim, ao contrário, valorizar ao máximo
a realidade transcendente encontrada justamente na relação com as coisas penúltimas.
Para ele, a secularização é uma “consequência lógica do princípio que regula as
relações entre último e penúltimo e que é uma função da ‘vicariedade’”
337
.
335
Cf. RS, p.489-491.
336
MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.190.
337
Ibidem, p.186.
Como já abordado, nas questões relativas à ciência, à arte, à ética e até mesmo à vida
do espírito, o ser humano aprendeu a enfrentar qualquer problema, mesmo os importantes,
sem recorrer à hipótese da existência e da intervenção de Deus. Tornou-se adulto e não
necessita mais de tutela, sabe cuidar de sua própria vida e necessidades. Diante dessa nova
situação, a Igreja se obrigada a dar uma resposta condizente a essa questão,
principalmente no que se refere às relações entre Igreja e mundo e o anúncio do Evangelho.
Ao refletir esse propósito, Bonhoeffer se coloca firmemente contra a teoria das duas esferas
(cristã e mundana), por esta atribuir à Igreja e ao mundo dois âmbitos separados da
realidade. Então, para ele, Igreja e mundo constituem uma unidade indissolúvel, pois mesmo
permanecendo distinta em sua essência, a Igreja encontra-se tão enraizada no mundo que
não existe possibilidade de que algum de seus elementos fique de fora.
Mondin acredita que é esse enraizamento no mundo que permite à Igreja a
realização de sua função vicária, pela qual não busca a si mesma, mas dedica-se totalmente
ao outro, a exemplo de Cristo
338
(ou pelo menos era isso que deveria fazer, conforme
Bonhoeffer).
Afirma ainda o quanto é absurdo colocar a pregação sob a base religiosa do passado,
pois na experiência humana do século XX não há mais espaço para submissão às ordens
religiosas, que o ser humano moderno, diante de seus problemas, tenta resolvê-los
sozinhos, à sua maneira
339
. Assim, para que a pregação tenha eficácia, a Igreja deve
apresentá-la em sua forma pura, isto é, fazendo o mundo ver o que significa ser
seguidor/discípulo de Cristo, testemunhado na própria vida. O que não quer dizer reduzir o
anúncio do Evangelho ao bom exemplo, mas sim entendê-lo como meio para o seguimento a
Cristo. Cabendo à Igreja dizer a todos os homens, qualquer que seja a sua ocupação, o que
significa viver em Cristo, existir pelos outros.
Para Bonhoeffer, continua Mondin, a constatação do abandono da “religião” significa
duas coisas: a recusa em identificar o cristianismo com a religião, como tinham feito os
338
MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.188.
339
Ibidem.
teólogos liberais e a renúncia em apelar para a fraqueza, para a contingência e para os
limites do homem, a fim de fazê-lo aceitar o Evangelho. Portanto, a censura que faz à
religião não visa a sua supressão, e sim sua restauração. Pois, não querendo mais viver em
meio a uma “religião tapa-buracos”, luta por uma religião integral, que atinja o ser humano
em todos os âmbitos. Conclui-se então que, o Deus da ‘religião’ que Bonhoeffer repudia não
é o Deus da Bíblia, mas o Deus dos filósofos, o Deus que é chamando para consertar as
insuficiências humanas, o Deus que é moldado conforme as necessidades e exigências
humanas
340
.
Por isso, aposta no uso da linguagem secular para anunciar o Evangelho, ressaltando
o positivo da religiosidade, visto que hoje, não convém a negatividade da religiosidade,
que se baseia na contingência e na fraqueza humana. Para o humano que se “tornou
adulto”, talvez o meio mais eficaz seja estruturado nas “solicitações religiosas positivas”,
como menciona Bonhoeffer
341
. Ideia essa que é também expressa na encíclica apostólica GS,
quando evidencia a aceitação das realidades terrestres e a participação ativa no
desenvolvimento do mundo.
Bonhoeffer não conseguiu terminar sua reflexão sobre o tema do cristianismo
arreligioso, porém, em uma de suas últimas cartas, deixa o registro do que pretendia ainda
aprimorar:
Nossa relação com Deus não é uma relação “religiosa” com o ser mais elevado,
mais poderoso, melhor que se possa imaginar – isto não é transcendência genuína
mas nossa relação com Deus é uma nova vida na “existência para os outros”, na
participação no ser de Jesus. O transcendente não são as tarefas infinitas,
inatingíveis, mas é o respectivo próximo que está ao alcance. Deus em figura
humana! Não como nas religiões orientais, em figuras de animais, como o
monstruoso, caótico, distante, terrível; mas tampouco nas figuras conceptuais do
absoluto, metafísico, infinito, etc.; tampouco na figura grega do homem-Deus, do
“ser humano em si”, mas do “ser humano para outros”! Por isso o crucificado.
342
340
MONDIN, B. Os Grandes Teólogos do Século Vinte, p.191.
341
Ibidem.
342
RS, p.510-511.
3.3 A teologia pública como síntese da ética da responsabilidade num mundo adulto
Quando, então, o espírito toca com grandes, alegres, ousadas ideias
O coração e a testa do ser humano, e este,
Com olhos claros e gesto livre, olha o mundo nos olhos,
Quando, então, do espírito nasce a ação
343
Com o que foi mencionado até aqui, se pode constatar que, para Bonhoeffer, a
maturidade do mundo possui princípios cristãos, que chamam o ser humano à
responsabilidade, num processo contínuo de aperfeiçoamento segundo a vontade de Deus.
Por isso radicalidade em sua crítica à religião, visto que no contexto histórico de sua
época (da qual parte para elaborar suas reflexões), observa que muitos cristãos se sentiam
desobrigados de qualquer participação na vida política (por se preocuparem apenas com as
coisas últimas) e de qualquer responsabilidade por aqueles que não fossem do mesmo
“grupo eleito”. E assim agiam, ou melhor, deixavam de agir, tendo como respaldo a
dependência proveniente de um discurso religioso, muitas vezes racista (só para lembrar,
Hitler e muitos outros que foram a favor do nazismo se diziam cristãos). O que se tornou
uma grande preocupação para Bonhoeffer, ao temer a desfiguração do que é ser cristão.
A partir dessa preocupação se pergunta como a Igreja, e através dela cada ser
humano, pode assumir sua responsabilidade num mundo autônomo, sem que sua
identidade de Corpo de Cristo seja dissolvida na esfera da secularidade? Ou ainda, como
pergunta Moltmann: “Temos (os cristãos) uma visão de esperança para este mundo?”
344
E
continua sua indagação contrapondo: “ou, pelo contrário, o cristianismo estabelecido se
fundiu de tal modo com nossa sociedade que compartilhamos as ambiguidades e
contradições desta e não temos nenhuma mensagem de esperança a oferecer a nossos
contemporâneos?”
345
343
Poema “O amigo” RS, p.537.
344
MOLTMANN, J. La Justicia crea futuro – política de paz y ética de la creación em un mundo amenazado, p.15.
345
Ibidem.
Como solução Bonhoeffer traz a ideia de uma “disciplina arcana”
346
em contraponto
ao conceito de arreligiosidade, para que os mistérios da cristã possam ser protegidos de
qualquer profanação
347
. Usada pela Igreja Antiga, a disciplina arcana excluía os não iniciados
na cristã em alguns momentos da celebração, estes momentos ficavam restritos apenas
aos iniciados e, assim, se tornavam “mistério” para os demais. Dessa forma, os cristãos das
comunidades primitivas conseguiam viver inseridos na sociedade da época, preservando sua
identidade cristã, alimentada nas celebrações comunitárias.
A referência a uma disciplina arcana vem esboçada desde Discipulado, na menção
à graça preciosa: “graça como santuário de Deus, que tem que ser preservado do mundo,
não lançado aos cães”
348
.
Gibellini consegue expor claramente esse paradoxo:
Para Bonhoeffer, a retomada da “disciplina do arcano” não está destinada a
restabelecer um espaço “religioso”, separado do espaço secular e a ele
contraposto, mas destina-se a proteger a comunidade na celebração dos
mistérios, celebração da qual ela tira suas forças para viver na secularidade. A
“disciplina do arcano” o é uma nova forma de parcialização ou de separação do
mundo, mas está em função do serviço ao mundo, está em função da
secularidade, que não seja apenas exterioridade. Portanto, um cristianismo
arreligioso continua sendo um cristianismo com a palavra, com o culto, com os
sacramentos, com a oração
349
.
Como se vê, Bonhoeffer propõe a retomada da prática de uma disciplina arcana para
garantir a sobrevivência do cristianismo num mundo que se tornou arreligioso
350
. Dessa
forma, enquanto uma interpretação não-religiosa dos conceitos bíblicos possibilita a
identificação dos cristãos com o mundo, a disciplina arcana preserva a identidade desses
mesmos cristãos frente ao mundo
351
.
346
Cf. RS, p.371 nota 18, do latim arcanum – misterioso, oculto.
347
Cf. RS, p.380.
348
DISC, p.11.
349
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p.119.
350
Cf. RS, p.373.
351
Ver também HARVEY, Barry. The body politic of Christ: theology, social analysis, and Bonhoeffer's arcane
discipline. Modern Theology.
E é diante dessa concepção, de identificação com o mundo sem perda da identidade
cristã, que se percebe que já “não é possível viver a que se articula com a vida, na
pretensão simplória de uma presença apolítica no mundo”, como observa Azevedo ao
analisar a fé frente à realidade atual e plural da sociedade
352
.
Bonhoeffer tinha a preocupação de que sem uma teologia consciente do seu papel
público, a Igreja correria o risco de se deixar conduzir pelas tendências políticas. Para ele,
estava em jogo um conjunto de questões fundamentais para a integridade da vida da Igreja.
Bonhoeffer afirma que o Evangelho de Jesus não é um evangelho para a Igreja ou seus
membros isoladamente, mas boa notícia para o mundo: “o território da única Igreja de
Cristo é o mundo inteiro", lembra Plant a respeito de uma conferência sobre a paz feita por
Bonhoeffer em 1932
353
.
Nessa linha pode-se ousar dizer que Bonhoeffer, em suas reflexões, tinha o esboço
para uma teologia pública. A qual, conforme Gibellini expõe, coloca em foco a relação entre
a teologia e a prática (diga-se de passagem, que essa era uma preocupação de Bonhoeffer
em sua época), assumindo a opção de interlocução com a história
354
. O que leva à
constatação do forte engajamento político que o cristão é chamado a assumir para a
construção do Reino de Deus. Pois, como afirma Gibellini:“a fé cristã deve fazer-se prática na
história e na sociedade”
355
.
Não se tem aqui a pretensão de nomear Bonhoeffer como “pai” da teologia blica.
O que se quer somente é, através de alguns apontamentos, destacar elementos que
demonstrem o quanto o pensamento desse teólogo estava próximo da reflexão,
posteriormente elaborada, sobre a relevância da publicidade da teologia.
352
AZEVEDO, M. Entroncamentos e Entrechoques, p.41.
353
PLANT, S. The Sacrament of Ethical Reality: Dietrich Bonhoeffer on ethics for Christian citizens. Studies in
Christian Ethics
, p.77.
354
Cf. GIBELINNI, R. Paixão pelo Reino, p.14.
355
Ibidem, p.14.
O interesse da teologia blica é focado na história real, na realização da vida
concreta do ser humano. Arens diz que “essa teologia, enquanto hermenêutica prática do
cristianismo, coloca no centro o seguimento e reconhece a prática cristã como prática de
natureza social e histórica, insistindo ao mesmo tempo em sua estrutura impregnada de
sofrimento”
356
. Afirma ainda que essa teologia, na sua estrutura política, se desenvolve
decididamente a partir de Auschwitz
357
e tem como dever atestar a universalidade do
sofrimento diante do relativismo, “empenhando-se em uma cultura do reconhecimento dos
outros e de sua diversidade”
358
.
Aqui podem ser elencados alguns parâmetros da reflexão bonhoefferiana em
relação à publicidade da teologia: 1) O seguimento como centro e a historicidade
Bonhoeffer enfatiza constantemente o seguimento à Cristo, colocando-o como centro e
como referência para a recuperação do horizonte da secularidade. Da mesma forma acentua
a importância da inserção do cristianismo na vida histórica. Podem-se citar também, nesse
contexto, as dialéticas entre último-penúltimo, Igreja e mundo, religiosidade e secularidade.
2) Quanto à estrutura impregnada de sofrimento faz-se referência ao sofrimento de Deus
junto aos seus em Resistência e Submissão. 3) Sobre Auschwitz fica claro, com o
envolvimento na atividades ecumênicas, com os refugiados, na resistência e, então, com a
prisão, que Bonhoeffer tinha consciência que dali para frente uma nova realidade estaria se
abrindo para a teologia. O que sugere que, da alguma forma, essa teologia se encontrava em
processo de gestação.
Por seu caráter público, seguindo Arens, a teologia é guiada por “tríplice intenção
crítica”: a desprivatização do discurso cristão sobre Deus (onde podem ser encontradas
semelhanças na crítica à religião feita por Bonhoeffer), a formulação da mensagem
escatológica cristã para as condições da sociedade atual (lembrando aspectos da
interpretação não religiosa desenvolvida por Bonhoeffer) e a nova autocompreensão da
356
ARENS, E. Novos Desenvolvimentos da Teologia Política, p.72.
357
A Teologia Pública, reconhecida como tal tem origem na década de 70 nos Estados Unidos e suas raízes
remontam à Teologia da Libertação. O que é ressaltado em Arens é o nascimento de uma reflexão que
comporta elementos da relevância pública e política da teologia na sociedade.
358
ARENS, E. Op. Cit, p.69.
Igreja como instituição da liberdade sócio-crítica da (que contém elementos do
cristianismo arreligioso sobre o qual Bonhoeffer refletira)
359
.
Conforme Arens, essa teologia de caráter público, nascida pela urgência de novas
respostas à sociedade, critica também “as estruturas e práticas eclesiais que são injustas,
excomunicatórias e imisericordiosas, e que contrastam assim fortemente contra a própria
mensagem do evangelho libertador”
360
. Em Bonhoeffer encontra-se a denuncia à “Igreja,
que nesses anos lutou por sua autoconservação, como se fosse um fim em si mesma,
incapaz de ser portadora da Palavra da reconciliação e redenção para a humanidade e para o
mundo”
361
.
Entre os objetivos da teologia pública, Arens menciona que o essencial é “pôr às
claras, no sentido de desprivatização, a orientação pública e política da fé judaica e cristã... e
superar assim contemporaneamente um discurso sobre Deus existencial e subjetivamente
reduzido em favor de um discurso sobre Deus socialmente atento e politicamente
vigilante”
362
. Arens, semelhante à Bonhoeffer, na teologia pública uma “prática
comunicativa da feita de testemunho, de confissão, de celebração e da participação”
363
.
Essa “implementação cristo-prática”, diz Arens, ocorre na prática pessoal, comunitária e
política do seguimento.
Em Moltmann, encontra-se a articulação da teologia com a relevância pública e a
identidade cristã na afirmação de que “não existe identidade cristã que não tenha relevância
pública, nem relevância pública sem identidade cristã”
364
.
Seguindo os passos da teologia da Libertação, a teologia pública parte de um
contexto específico e com ele interage, mas não ficando restrita a ele
365
. A proposta seria
359
Cf. ARENS, E. Novos Desenvolvimentos da Teologia Política, p.69.
360
Ibidem, p.81.
361
RS, p.149.
362
ARENS, E. Op. Cit., p.67.
363
Ibidem.
364
MOLTMANN, J. Dio nel progetto del mondo moderno, p.5.
então, como aborda Sinner, da inserção de valores cristãos na política, na sociedade, na
academia, nos meios de comunicação e não obstante, na própria Igreja, para que, a partir do
diálogo sobre questões concretas, esta última possa dar sua contribuição
366
.
Conclui-se, portanto, que em uma sociedade pluralista a Igreja de Cristo não tem
direito a valer-se como porta-voz de todos os seres humanos, cristãos e não cristãos, mas
todos os seres humanos na sociedade têm o direito a ouvir o que os cristãos, enquanto tais,
têm a dizer
367
.
Para isso, Tracy fala de três públicos da teologia: a sociedade, a academia e a
Igreja
368
. Chamada à reformulação de um discurso cristão que consiga abrangência universal,
a teologia o faz à medida que, enquanto teologia pública, apresenta relevância à academia, à
sociedade e à própria Igreja. Tracy afirma que a teologia concebe-se como discurso público
sobre Deus e que as três realidades a que fala, articulam-se. Tem, a partir dessa perspectiva,
a possibilidade de propor um discurso responsável sobre Deus e sobre a capacidade desse
discurso de transformar a realidade. Bonhoeffer participou diretamente desses três
públicos: da academia enquanto professor universitário de teologia, da Igreja enquanto
pastor da Igreja Confessante e da sociedade enquanto cristão envolvido nas questões do
ecumenismo e da resistência nazista.
Após esse apanhado geral sobre o caráter público da teologia e as semelhanças com
a reflexão bonhoefferiana, pergunta-se: em que ponto a ética da responsabilidade,
anteriormente mencionada, e o processo de secularização podem desembocar numa
teologia pública?
Antes de qualquer coisa, é importante ressaltar que o que será elucidado aqui é
meramente especulativo, pois como referido, a teologia pública foi uma elaboração
365
SINNER, R. V. Confiança e Convivência, p.44.
366
Cf. ibidem, p.52.
367
MOLTMANN, J. La Justicia crea futuro, p.15.
368
TRACY, David. A Imaginação Analógica, p.23.
posterior a Bonhoeffer. Será, portanto, apenas traçada uma linha que possa ser capaz de
fazer a ligação entre esses temas com coerência e talvez até ousadia.
Como visto na primeira parte da pesquisa, a ética elaborada por Bonhoeffer é
cristocêntrica, tendo como foco o seguimento e sendo potencialmente realizável por cada
ser humano. É uma ética que vive do ser-para-os-outros e, por isso, sustentada pela
transcendência, ao mesmo tempo em que está fortemente inserida na realidade histórica e
caminha ao lado da vida concreta do ser humano, o que inclui o sofrimento. E é justamente
pela sua inserção histórica que ela, a ética bonhoefferiana, se desenvolve no âmbito do
processo de secularização, ou como chama o próprio Bonhoeffer, do “mundo tornado
adulto”. Diante desse processo, a reflexão bonhoefferiana traz propostas para uma
renovação da visão cristã da realidade do mundo, abordando questões que reinterpretem a
concepção religiosa de forma a atender os novos apelos da sociedade, sem prejuízo à
identidade cristã.
A partir dessa explanação é possível visualizar a ligação com a teologia pública, pois,
sendo a ética da responsabilidade (assim denominada por chamar à resposta a Cristo e ao
comprometimento ao próximo) de caráter universal e concreto e se desenvolvendo no seio
do mundo secular, por isso, chamada a responder a esse mundo em todos os seus âmbitos
(por causa da dialética Igreja e mundo), consequentemente possui caráter público. Por ser
uma ética cristã está fundamentada no discurso sobre Deus, ou seja, na teologia. Então, a
ética da responsabilidade no mundo tornado adulto pode encontrar sua plena realização por
meio da teologia pública.
CONCLUSÃO
No início dessa pesquisa foram elencadas questões que por meio do estudo da
trajetória da vida e obras de Dietrich Bonhoeffer foram ganhando corpo.
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que toda a reflexão bonhoefferiana é
essencialmente cristológica, sofrendo adaptações até a elaboração final de “Cristo
como ser-para-os-outros” pelo forte apelo ético gerado, sobretudo, a partir da
Segunda Guerra. Bonhoeffer acreditava não haver melhor maneira de ser cristão que
pelo testemunho da própria vida. Para tanto, inicia a elaboração de sua obra ética, que
apesar de fragmentária e incompleta, permite a visualização de uma renovação da vida
cristã, numa época em que as bases do cristianismo correm o risco de se perderem.
Essa, pois, foi a base da primeira parte da pesquisa e através dela foi possível
comprovar que a vinculação ético-cristológica feita por Bonhoeffer coloca Cristo no
centro da teologia, da vida cristã e também da vida humana como um todo. Essa
disposição ética que se encontra cristologicamente fundamentada constitui o fio
condutor da reflexão bonhofferiana, para a qual a realidade não é mero dado
histórico, mas sim o lugar onde Cristo se revela por meio da responsabilidade ética do
ser humano.
A fundamentação cristológica da ética proposta por Bonhoeffer não pode ser
compreendida separada da dialética entre último e penúltimo, por garantir o encontro
íntimo de Cristo com o mundo. a estrutura de responsabilidade aparece articulada
com a teoria dos mandatos, por onde o comprometimento ético é inserido na
realidade cotidiana. Assim, sua “ética-cristológica” mostra a relevância de viver no
mundo como ser-para-os-outros na busca do ánthropos téleios.
Teólogo alemão, pastor luterano, mártir da Segunda Guerra Mundial, pode-se
dizer que Bonhoeffer foi um “conector de polaridades”, afinal, um de seus grandes
méritos foi, justamente, a dialética entre paradoxos: último-penúltimo, Igreja-mundo,
sagrado-profano, secularização-cristianismo. Seu projeto era conseguir conjugar o
processo do mundo autônomo com a fé em Cristo e assim, resgatar o lugar de Deus no
centro da vida humana.
Num contexto profundamente marcado pela crise de sentido, fruto da
modernidade, numa nação ferida e absolutamente convencida de que se achava
predestinada para a guerra, colocando em jogo seu destino histórico, Bonhoeffer
conseguiu reunir uma aprofundada espiritualidade de comunhão com Cristo e com o
próximo ao engajamento político-social levado aos seus limites. Bonhoeffer apresenta-
se como um “otimista” da modernidade, mesmo após constatar com os próprios olhos
a barbárie nazista.
A marca da sua ética cristã está na identificação com Cristo, sobretudo em seu
sofrimento. Essa identificação torna-se totalmente plausível numa época que conhece
de perto a realidade do sofrimento. Por isso, a preocupação pastoral com as
implicações éticas, principalmente na complexa relação entre Igreja e mundo, Igreja
que deveria viver sua responsabilidade diante da guerra.
Entendendo a responsabilidade como resposta ao chamado para o seguimento
a Cristo, insiste na urgência de uma resposta que se torne ação para o bem do
próximo, em vista do exemplo de Cristo. Isso após perceber a importância do
testemunho de indivíduos que, mesmo sem se confessarem cristãos, assumiram o
risco de suas próprias vidas em favor de outras, caracterizando o seguimento proposto
por Cristo e viu, com isso, que não era mais possível separar Igreja e mundo. Esta se
torna, então, a base para a formulação do “cristianismo arreligioso”. Essa uma nova
forma de cristianismo a ser vivido num mundo adulto, comporta um novo critério
hermenêutico, ao que chamou de “interpretação mundana ou não-religiosa” dos
conceitos bíblicos.
Bonhoeffer, teólogo pós-dialético, discípulo e amigo de Barth, utiliza a crítica da
religião desenvolvida por Barth, onde no aspecto formal o cristianismo arreligioso é
pós-metafísico, pós-individualista e pós-ocidental, mas critica a posição barthiana de
um “positivismo da revelação”, que cria o afastamento do confronto com o mundo e
com a história.
A nova figura do cristianismo arreligioso, também comporta uma nova
concepção de Deus, de Cristo, da Igreja e do ser cristão. Atenta para o fim da religião e
do deus ex machina” como solução aparente a problemas insolúveis, o “tapa-buraco
de nossos conhecimentos vazios”, o “tutor”, já que o mundo adulto caminha sozinho.
Permitindo nascer a partir daí um novo relacionamento positivo com o mundo.
Bonhoeffer coloca Deus no centro da realidade secular, que chama à vida e à
participação na dor de Cristo na história, chamando ao seguimento, ao ser-para-os-
outros, como encontro do ser humano total necessário lembrar que essas questões
são apresentadas pelas cartas escritas da prisão e, portanto, estão à flor da pele).
Mas com tanta abertura ao mundo é preciso manter a identidade cristã para
que esta não se perca na secularidade. Portanto, retoma o conceito de “disciplina
arcana”, não para estabelecer um espaço “religioso”, mas para proteger a comunidade
na celebração dos mistérios, o que lhe dá força para viver inserida na realidade do
mundo.
Com esses elementos foi possível supor a probabilidade de que, se continuasse
suas reflexões por esse caminho, Bonhoeffer chegaria à elaboração de uma teologia
pública, visto que tanto sua teologia quanto sua ética já possuíam forte caráter
político-social-cristão e que, apesar de ter atuação global, as respostas são dadas a
questões contextuais, que daí se ampliam ao universal. O que seria alimentado por
suas experiências internacionais, sobretudo nos Estados Unidos, origem da teologia
pública.
Quando hoje se assistem às cenas de milhares de refugiados à beira da morte, a
onda de ataques racistas em vários países, a capacidade de absorver matanças na
sociedade, fatos que levam a proximidades com a época de 1939; o nazismo e a
Segunda Guerra deixam de ser eventos tão remotos e inatingíveis para se tornarem
uma possibilidade permanente e de responsabilidade universal. Talvez, pelo caráter
público das questões por Bonhoeffer levantadas, suas reflexões se mostrem tão
pertinentes à atualidade e sua proposta ética pareça tão urgente quanto no momento
em que foi elaborada.
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