Download PDF
ads:
0
UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO
INSTITUTO DE FILOSOFIA, ARTES E CULTURA
MESTRADO EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE
MIRIAM COSTA CORDEIRO
A TESSITURA DA CRÍTICA BENJAMINIANA:
ENTRE OS ROMÂNTICOS E GOETHE
OURO PRETO
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
MIRIAM COSTA CORDEIRO
A TESSITURA DA CRÍTICA BENJAMINIANA:
ENTRE OS ROMÂNTICOS E GOETHE
Dissertação apresentada ao Mestrado em Estética e
Filosofia da Arte da Universidade Federal de Ouro
Preto, como parte dos requisitos para obtenção do
título de Mestre em Filosofia.
Linha de pesquisa: Estética e Filosofia da Arte
Orientador: Prof. Dr. Pedro Süssekind Viveiros de
Castro
OURO PRETO
2010
ads:
2
Catalogação: [email protected]
C794t Cordeiro, Miriam Costa.
A tessitura da crítica benjaminiana [manuscrito] : entre os românticos e
Goethe. / Miriam Costa Cordeiro. - 2010.
88f.
Orientador: Prof. Dr. Pedro Süssekind Viveiros de Castro.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Ouro Preto.
Instituto de Filosofia Artes e Cultura.
Área de concentração: Estética e Filosofia da Arte.
1. Benjamin, Walter, 1892-1940 - Teses. 2. Goethe, Johann Wolfgang von,
1749-1832 - Teses. 3. Crítica de arte - Teses. I. Universidade Federal de Ouro
Preto. II. Título.
CDU: 7.01
3
FOLHA DE APRESENTAÇÃO
Universidade Federal de Ouro Preto
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura
Mestrado em Estética e Filosofia da Arte
Dissertação intitulada A tessitura da crítica benjaminiana: entre os românticos e
Goethe”, de autoria da mestranda Miriam Costa Cordeiro, apresentada à banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
________________________________________________________
Prof. Dr. Pedro Süssekind Viveiros de Castro UFOP - Orientador
________________________________________________________
Prof. Dr. Douglas Garcia Alves Júnior UFOP
_______________________________________________________
Prof. Dr. Bernardo Barros Coelho de Oliveira UFES
________________________________________________________
Prof. Dr. Gilson de Paulo Moreira Iannini
Coordenador do Mestrado em Estética e Filosofia da Arte
IFAC UFOP
Ouro Preto, ______ de ______________________ de 2010.
4
Aos meus pais.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Pedro Süssekind pela amigável acolhida deste projeto desde o início,
pelas dicas para uma professora de primeira viagem e pela proximidade, interesse e abertura
com que conduziu a orientação dessa dissertação.
Ao professor Bernardo Oliveira, pela generosidade e seriedade com que dirigiu o grupo de
estudos em filosofia da arte e por ter indicado a todos nós a possibilidade de um pensamento
ao mesmo tempo livre e responsável.
Ao professor Douglas Garcia, por aceitar nosso convite para participar da banca examinadora,
e ao professor Romero Freitas pela primeira crítica ao meu projeto (que mudou seus rumos) e
pelas sugestões feitas no parecer ao projeto definitivo.
À Cláudia Castro e Patricia Lavelle, porque suas teses de doutorado foram essenciais para a
realização dessa dissertação. Pela escrita leve, apaixonada e inspiradora.
Ao meu pai, pela segurança que ele sabe dar; à minha mãe, pelo apoio irrestrito; à minha
querida irmã, minha avó e toda minha família, pelo estímulo e compreensão nesses anos de
mestrado.
Ao Vitor, pelo cuidado e paciência, pelas reflexões sempre pertinentes e o incentivo para
enfrentar desafios. Desde o início sob o signo: “Venha a ser o que tu és”.
A todos os amigos da turma do mestrado, aos professores do IFAC, às sempre prestativas
Graça e Néia.
À Dona Celestina, que abriu as portas da sua casa em minha estadia em Ouro Preto e à sua
família.
À CAPES, pelo apoio financeiro.
6
“Se a poesia quer se estender, ela o pode na medida em que
se limite; na medida em que se contraia, permita a sua matéria
ígnea como que partir, e se coagule. Ela adquire uma aparência
prosaica ... Mas ... permanece poesia ...”
Novalis
7
RESUMO
Este trabalho investiga possíveis ressonâncias da Idéia romântica de arte e do Ideal da arte de
Goethe, tal como apresentados na tese O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão,
na atividade de crítico que Walter Benjamin desenvolve em seu ensaio sobre o romance As
Afinidades Eletivas, de Goethe. Mediante a articulação entre forma e conteúdo da obra de
arte, percebe-se que Benjamin indica que o papel da crítica de arte na construção moral da
história é o de desvelar o núcleo teológico da beleza.
Palavras-chave: Walter Benjamin, romantismo, Goethe, arte, crítica.
8
ABSTRACT
This work explore the possible influences of Romantic Idea of art and Goethe‟s ideal of art,
as discussed in the thesis The Concept of Art Criticism in Germany Romanticism, in Walter
Benjamin‟s art critic work about Goethe‟s romance Elective Affinities. Through relating form
with content of art works, Walter Benjamin indicates that the role of art criticism in the moral
construction of history is to reveal the theological core of Arts.
Key-words: Walter Benjamin, Romanticism, Goethe, Art, Criticism.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................................ 10
1. A IDÉIA ROMÂNTICA DE ARTE ........................................................................................................... 15
1. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O ROMANTISMO ................................................... 15
1. 2. O ROMANTISMO ALEMÃO .................................................................................................. 17
1. 3. O MEDIUM-DE-REFLEXÃO ................................................................................................. 24
1.4. DA FORMA-DE-EXPOSIÇÃO À FORMA ETERNA ............................................................. 30
1.5. DEMASIADO ROMÂNTICOS? ............................................................................................... 38
2. O IDEAL GOETHIANO DE ARTE .......................................................................................................... 41
2.1. UMA TEORIA OPOSTA À DOS ROMÂNTICOS .................................................................. 41
2.2. APROXIMAÇÃO ÀS NOÇÕES DE FORMA E CONTEÚDO DA ARTE ............................. 42
2.3. A CRÍTICA BENJAMINIANA AOS ROMÂNTICOS ............................................................ 45
2.4. A FILOSOFIA DA ARTE DE GOETHE .................................................................................. 47
2.5. ESTILO E FENÔMENO ORIGINÁRIO ................................................................................... 51
3. A CRÍTICA BENJAMINIANA AO ROMANCE AS AFINIDADES ELETIVAS ............................................... 57
3.1. O ROMANCE ........................................................................................................................... 57
3.2. TEOR COISAL E TEOR DE VERDADE ................................................................................. 59
3.3. O DESTINO MÍTICO ................................................................................................................ 62
3.4. NÚCLEO LUMINOSO DO TEOR DE REDENÇÃO .............................................................. 66
3.5. POR UMA ESTÉTICA DO SUBLIME ..................................................................................... 70
3.6. O OBJETO EM SEU ENVOLTÓRIO ................................................................................................ 79
CONCLUSÃO .......................................................................................................................................... 83
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 86
10
INTRODUÇÃO
A filosofia de Walter Benjamin, na contramão dos discursos que pretendem a universalidade e
cientificidade modernas, não se restringe a um modo único de apresentação, mas antes se
mostra sob diferentes aspectos como lembranças da infância e de viagens, fragmentos, textos
esotéricos, teses e ensaios sobre arte. A escrita de Benjamin é um experimento de linguagem
que enreda a um só tempo pensamento e visualidade, política e teologia, filosofia e arte. Entre
os modos de apresentação da sua reflexão uma nos chama atenção em especial: a crítica de
arte.
Na tese de doutorado O conceito de crítica de arte no romantismo alemão
1
, defendida em
Berna, na Suíça, em 1919, Benjamin expõe uma leitura do conceito de crítica de arte dos
primeiros românticos alemães Friedrich Schlegel e Novalis. O conceito apresentado aponta
para a recepção produtiva das obras de arte. O leitor da obra deve ser um “autor ampliado”.
Os românticos apoiavam sua filosofia da arte na noção de Idéia da Arte, fundada na noção de
forma. Com isso, eles indicaram a infinidade da arte na unidade do medium-de-reflexão, que
abrigaria em si a conexão das formas individuais, e defenderam a criticabilidade como um
momento essencial das obras.
Apesar de muitas observações sobre a concepção romântica de arte soarem férteis à atividade
de crítico de arte que o próprio Benjamin desenvolveu em ensaios posteriores, ele faz algumas
críticas aos românticos no posfácio à sua tese, intitulado “A teoria da arte primeiro romântica
e Goethe”. Benjamin critica a falta de uma reflexão sobre o conteúdo das obras por parte dos
românticos e, para tanto, usa Goethe como um contraponto. Isso porque, embora não tivesse
uma reflexão filosófica sobre a forma e defendesse a não-criticabiliade das obras, Goethe
desenvolveu reflexões importantes sobre o conteúdo da arte através de sua noção de Ideal.
Benjamin afirma que:
A questão da relação entre a teoria da arte goethiana e a romântica coincide com a
questão da relação do conteúdo puro com a forma pura (e, como tal, rigorosa) [...] a
Idéia da arte é a Idéia de sua forma, assim como seu Ideal é o Ideal de seu conteúdo.
1 BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Tradução de Marcio Seligmann-
Silva. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Iluminuras, 2002.
11
A questão sistemática fundamental da filosofia da arte deixa-se portanto formular
também como a questão acerca da relação entre a Idéia e o Ideal da arte
2
.
A tarefa do crítico de arte, ainda na época do próprio Benjamin, seria a da relação entre forma
e conteúdo. No entanto, como ele diz, sua tese de doutorado chega apenas à “soleira” dessa
questão, mas não a desenvolve. Apostamos que no ensaio As Afinidades Eletivas de Goethe
3
,
de 1922, em que atua como crítico de arte, Benjamin procure dar uma resposta à questão da
relação entre forma e conteúdo da arte, dando contornos à sua própria idéia de crítica.
Nesse sentido estabelecemos o objetivo geral da pesquisa: investigar possíveis ressonâncias
da Idéia romântica de arte e do Ideal da arte de Goethe, tal como apresentados na tese O
Conceito de Crítica de Arte no Romantismo Alemão, na atividade de crítico de arte que
Benjamin desenvolve em sua crítica exemplar ao romance As Afinidades Eletivas, de Goethe.
Para tanto será necessário esclarecer os conceitos-chave de Idéia romântica da arte e Ideal da
arte de Goethe, refletir sobre como a tensão entre esses conceitos indicada no posfácio à tese
marca aproximações e distanciamentos de Benjamin em relação tanto aos românticos quanto a
Goethe e, por fim, investigar se é possível pensar em influências da filosofia da arte dos
românticos e de Goethe na tessitura da própria crítica benjaminiana ao romance As Afinidades
Eletivas.
Antes de iniciarmos, no entanto, um texto de Benjamin anterior a todos os acima citados
indicações de um movimento que perpassa toda a problemática dessa dissertação. Trata-se de
um ensaio de 1916, resposta a uma carta de Gershom Sholem, não destinado à publicação,
chamado “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”
4
. Neste texto, Benjamin
2
Ibidem, p.119.
3
BENJAMIN, Walter. As afinidades eletivas de Goethe. Tradução de Mônica Krausz Bornebusch. In: ______.
Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Tradução de Mônica Krausz Bornebusch, Irene Aron e Sidney
Camargo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.
4
BENJAMIN, Walter. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. Tradução de Maria Luz Moita,
In: ______. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Traduções de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e
Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D‟Água, 1992.
12
faz uma interpretação do mito bíblico da criação sob o viés de uma reflexão sobre a
linguagem.
O texto tem início com uma ampliação do conceito de linguagem. Linguagem não designa
apenas a comunicação de conteúdos intelectuais humanos, os domínios da linguagem se
estendem a “tudo”. Nas palavras de Benjamin: “Não acontecimento ou coisa, seja na
natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem”
5
. No
entanto, ao homem caberia um papel especial, o de traduzir a linguagem muda das coisas para
a sua linguagem. A tradução do insonoro, do sem nome, no som, no nome, tem o aval de
Deus. Com isso está cumprida a tarefa que Deus incumbe aos homens, “designadamente a de
denominar as coisas”
6
.
Na situação paradisíaca o homem conhecia uma linguagem. Nas palavras de Pedro
Süssekind em Caminho principal e caminhos secundários: sobre o pensamento estético de
Walter Benjamin
7
: “enquanto Adão ainda se encontra na situação paradisíaca, trata-se de uma
relação de total transparência, pois a linguagem do paraíso em que o homem cumpre a sua
tarefa de nomeador é a da puro reconhecimento”. No entanto, com o pecado original do
desejo de conhecimento, com a Queda do paraíso, as línguas se multiplicaram. A serpente
seduziu para um conhecimento que abandonou a imediatez do nome com que o homem
designava as coisas. Trata-se de algo “de fora”, de “uma imitação não criadora da palavra
criadora”
8
. O homem passa a se perceber nu, ter vergonha, “já percebendo as coisas em torno,
mas também a si mesmo, seu reflexo no espelho da consciência”, o que, segundo Süssekind,
marca o momento de separação daquele existir inocente com a natureza e o início da palavra
auto-consciente do homem, que passa a julgar se cada uma de suas ações é boa ou má, certa
ou errada, se deve ou não ser feita.
O pecado original, para Benjamin, é a hora do nascimento da palavra humana, o nome sai de
si próprio, a palavra passa a comunicar algo além de si mesma. A palavra passa a ser
compreendida como algo de comunicante, de exterior. O conhecimento que a serpente
oferece, o do bem e o do mal, é dado ao homem loquaz, pecador, o homem que julga. É a
5
Ibidem, p.177.
6
Ibidem, p.190.
7 SÜSSEKIND, Pedro Viveiros de Castro. Caminho principal e caminhos secundários: sobre o pensamento
estético de Walter Benjamin. São Paulo: Cone Sul, 2001, p.33.
8
BENJAMIN, 1992, p.191.
13
decadência do nome no signo, da imediatez da linguagem na sentença dada de fora, nas
abstrações e abismos do conhecimento.
O imediatismo [...] da comunicabilidade da abstração está assente no juízo. Esse
imediatismo na comunicação da abstração manifestou-se sentenciador, quando no
pecado original, o homem abandonou o imediatismo na comunicação do concreto, o
nome, e caiu no precipício do mediatismo de toda a comunicação, da palavra
enquanto meio da palavra vã, no precipício do palavreado.
9
.
As coisas teriam nome próprio, diferenciação, na linguagem de Deus. Mas na linguagem
dos homens elas são supradenominadas, caímos na confusão das línguas, na trágica relação
entre as linguagens que o homem fala. O pecado original é concebido como pecado
lingüístico e o resultado é uma cisão entre a linguagem e a realidade, entre as coisas e as
palavras. Segundo Süssekind: “desaparece toda a transparência do conhecimento imediato no
nome, assim, cria-se um abismo de significações abstratas para tentar expressar um mundo
exterior, uma natureza da qual o homem já está irremediavelmente separado”
10
, ou seja, surge
“a linguagem judicativa e abstrata, em que as palavras são um meio para conhecer as coisas,
de fora, para a atribuir a elas seu valor por meio de sentenças”.
11
Como veremos, o tema da Queda do paraíso (que não é analisado aqui como dogma religioso
e sim como metáfora filosófica) percorre toda a problemática dessa dissertação. Sem o
reconhecimento imediato da linguagem de Deus na linguagem muda da natureza, o homem se
perde no abismo de tentar conhecer por abstrações, em um jogo em que opera não nomes, mas
juízos. Os românticos, tanto quanto Goethe, encontram-se nessa situação de Queda, que
caracteriza a modernidade, e, afastados da natureza, buscam uma reconciliação através da
arte. Como poderemos perceber, como pano de fundo, nos capítulos um e dois desta
dissertação, sobre a Idéia da arte romântica e o Ideal goethiano, respectivamente, para os
românticos, o caminho (que nunca alcança, mas sempre tende) é a crítica de arte; para Goethe,
a investigação do fenômeno originário.
Também com a Queda, surgem os termos que definem nosso problema de pesquisa: forma e
conteúdo. Antes o homem reconhecia as coisas imediatamente. No entanto, com a percepção
de sua consciência ele vê as formações da natureza de modo separado do seu modo de
conhecê-las, do conteúdo intelectual que corresponde a essas formações em seu
9
Ibidem, p.193.
10
SÜSSEKIND, 2001, p.35.
11
Ibidem, p.35.
14
conhecimento. Podemos pensar, segundo a teoria do conhecimento tradicional, em conteúdo
(matéria, natureza) em oposição à forma (pensamento). Mas, no âmbito dessa dissertação,
seguindo uma diferenciação que semelhor explicitada no capítulo dois, e que concerne a
uma linguagem mais próxima da teoria estética, compreenderemos por forma o modo como a
natureza se faz visível ou a arte organiza os elementos nas obras e, por outro lado, o conteúdo
será o “espiritual”, intelectual, ou seja, o significado que o homem atribui a essas formações.
Benjamin fala no posfácio à sua tese de uma crítica que possa dar conta dessa cisão entre
forma e conteúdo da arte, de uma crítica entre a teoria estética dos românticos e a da Goethe.
Poderíamos nos perguntar: a crítica benjaminiana busca ser uma crítica que, situada
inevitavelmente no tempo da Queda, busca uma reconciliação? Essa pergunta, no entanto, nos
acompanhará por um longo percurso de forma latente, apenas indicada.
O que nos propomos mais de imediato é pensar: o que Benjamin compreende como a Idéia
romântica de arte (tema do primeiro capítulo de nossa dissertação), e por Ideal goethiano
(segundo capítulo)? Poderia a crítica benjaminiana ao romance goethiano As Afinidades
Eletivas ser uma crítica que vise articular forma e conteúdo? Uma crítica, portanto, que faz
soar a Idéia e o Ideal? A crítica benjaminina de As Afinidades Eletivas pode ser compreendida
como uma crítica cuja tessitura se dá entre os românticos e Goethe (terceiro capítulo)?
15
1. A IDÉIA ROMÂNTICA DE ARTE
1. 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O ROMANTISMO
Segundo Paolo D‟Angelo em A estética do romantismo
12
, a história do termo “romântico
tem início no século XVII, na Inglaterra, onde o adjetivo romantick designava “à maneira dos
velhos romances. “Romances”, para os ingleses, eram as narrativas fantásticas, geralmente
sobre assuntos cavalheirescos, e não o novel que tratava de acontecimentos contemporâneos
ao autor. O sentido pejorativo de algo imaginado foi perdendo a força no século XVIII
quando “românticopassou a designar certos castelos, ruínas, lugares selvagens e solitários e
jardins em que se evitava denunciar a artificialidade para que tudo parecesse um fruto
espontâneo da natureza.
Na Alemanha da metade do século XVIII, o termo romântico designava o que dizia respeito
às nguas neolatinas, como o português, o italiano, o provençal e o espanhol. Também as
formas específicas da literatura nessas línguas eram consideradas românticas: o poema
cavaleiresco de Pulci, Boiardo, Ariosto, e o romance propriamente dito, de Cervantes.
Geralmente os historiadores se referem ao termo romântico para obras literárias entre o
início do século XIX e 1850 ou, especialmente no caso alemão, para caracterizar
determinadas obras do final do século XVIII. No entanto, a expressão estética do
romantismo é mais uma designação de tendência do que uma mera subdivisão cronológica.
Para os românticos estudados por Benjamin, o romantismo designava tanto a poesia cristã
medieval-renascentista, quanto a poesia ainda por produzir.
No Brasil - local, tempo e língua dessa dissertação - falar em romantismo remete também aos
sentidos que essa palavra teve na literatura nacional, por isso, cabe-nos uma breve passagem
por essa história que participa da formação do nosso uso cotidiano do termo “romantismo”.
Segundo Karin Volobuef em Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na
12
D‟ANGELO, Paolo. A estética do romantismo. Tradução de Isabel Teresa Santos. Lisboa: Editorial Estampa,
1998.
16
Alemanha e no Brasil
13
, o romantismo teve início aproximadamente em 1836, com a
publicação, em Paris, da coletânea Suspiros poéticos e saudades de Gonçalves de Magalhães.
Esse evento, porém, é mencionado mais por força de tradição. Também o final do romantismo
espaço para a discórdia. As classificações dos autores românticos brasileiros são muitas e
controversas, mas alguns expoentes do movimento podem ser citados: Gonçalves de
Magalhães, Gonçalves Dias, José de Alencar, Bernardo Guimarães, Álvares de Azevedo,
Casimiro de Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves.
Segundo Volobuef, podemos delinear três fases do romantismo brasileiro: um primeiro
momento, de coloração nacionalista; um segundo, de introspecção e melancolia; e um
terceiro, de tendência abolicionista e republicana. As características da literatura do primeiro
momento, de influência francesa, são: o tom nostálgico e sentimental, o patriotismo, a
religiosidade, o moralismo e o apego à natureza. O segundo momento teve a influência anglo-
saxã do mal do século, o byronismo, ou seja, do chamado ultra-romantismo. Estão presentes
nas obras deste período: a subjetividade extrema, a melancolia, o tédio em relação à vida, o
pessimismo, o tema dos vícios e excessos de todos os tipos, o fascínio pela morte. O terceiro
momento se dedicou às questões públicas, como a abolição da escravatura, a proclamação da
república, e outros temas sociais. O tipo de prosa da terceira geração já seria uma antecipação
dos movimentos literários seguintes: o realismo e o naturalismo.
Volobuef destaca que quando lêem a palavra romantismo as pessoas geralmente se lembram:
[...] de histórias excessivamente sentimentais, repletas de eventos inverossímeis e
marcadas pelo distanciamento da vida „tal como ela de fato é‟”. O romantismo é,
enfim segundo esse nosso hipotético leitor comum , sonhador, quimérico,
escapista. E para quem quiser defendê-lo, não faltarão exemplos de mancebos cheios
de garbo e donzelas delicadas como cristal; virgens ruborizadas ou a ponto de
desfalecer pela simples menção dos nomes dos eleitos de seus corações; jovens
contemplando a lua e entregues a sofrimentos infindos; apaixonados doentes de
amor; mortes trágicas, muito trágicas. Afinal, quem terá esquecido o suicídio de
Werther, os infortúnios passionais de Amor e perdição; as desventuras de Eurico; a
doce abnegação de Iracema; a gualhardia de heróis do porte de Ivanhoé; a platônica
devoção de Peri?
14
Segundo a autora, essa visão é limitada porque não contempla toda a amplitude e
complexidade do romantismo que, se teve uma face retrógrada, teve também gestos
13
VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1999.
14
Ibidem, p. 11 e 12.
17
revolucionários. Não seria possível apontar apenas um romantismo porque existiram vários.
Apesar das aproximações, o romantismo se manifestou de formas diferentes em diferentes
países e também no decorrer do tempo.
Alguns aspectos das manifestações românticas na Europa e no Brasil participaram da
sedimentação dos traços que compõem o significado coloquial da palavra “romântico”. Mas
teriam os primeiros românticos alemães estudados por Benjamin em sua tese de doutorado,
Friedrich Schlegel e Novalis, correspondido a essa concepção corrente? Se quisermos ir além
dessa imagem comum e delinear melhor os autores em questão teremos que nos perguntar
pelo primeiro romantismo alemão e, mais especificamente, pela sua manifestação na cidade
de Iena por volta de 1800.
1. 2. O ROMANTISMO ALEMÃO
Friedrich Schlegel (1772-1829) e Novalis (1772-1801) viveram em um período de transição
entre os séculos XVIII e XIX. Nos séculos anteriores, a partir do XIV, o Renascimento
cultural europeu buscou a superação dos valores medievais pela retomada de ideais greco-
romanos, a exaltação da vida mundana e a libertação em relação às autoridades instituídas. Na
Alemanha de 1517, Lutero publicava as suas 95 teses teológicas, dando início à Reforma
Protestante. Copérnico e Galileu eram representantes, no campo da ciência, de uma nova
cosmovisão que interpretava o sol como centro do universo e o real como calculável.
Na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, a burguesia expandia seu poder
econômico através da Revolução Industrial, que logo se espalhou por outros Estados
Nacionais. A outra face da consolidação do capitalismo como sistema dominante nesta nova
sociedade urbana e fabril foi a exploração e as precárias condições de trabalho do
proletariado. Apesar disso, o século XVIII entrou para a história como o “século das luzes”,
em que a cedia lugar à razão e à ciência, enquanto a idéia do progresso dava a tônica ao
desenvolvimento e ao liberalismo econômico. A corrente de pensamento do Esclarecimento
ou Iluminismo, que se alinhava à visão de mundo da burguesia ascendente, reunia pensadores
18
como Locke, Montesquieu, Voltaire e Rousseau. Na França, os iluministas contribuíram para
o ideário da Revolução Francesa (1789-1799).
Na Alemanha da passagem do século XVIII para o XIX a situação era outra. Em seu estado
dividido em principados, a nobreza nutria grande admiração pela sociedade de corte francesa,
decadente em seu próprio país. A Modernidade na Alemanha, portanto, teve um atraso em
relação às grandes nações da época, como Inglaterra e França. Destruídos pela Guerra dos 30
anos, os principados alemães eram predominantemente agrários e apenas em meados do
século XVIII e no século XIX o desenvolvimento econômico da burguesia e a
industrialização, especialmente da Prússia, conduziram ao rápido enriquecimento e ao espírito
de nacionalismo que desembocariam, em 1870, na unificação alemã.
Em Shakespeare: o gênio original
15
, livro que trata da recepção do escritor inglês na
Alemanha da segunda metade do século XVIII, Pedro Süssekind mostra que, até este período,
o classicismo era a tendência dominante na literatura e no teatro moderno alemão. Oriunda da
França e da Itália, esta corrente estética defendia que o talento artístico decorria de uma fiel
obediência às regras da arte. Dramaturgos franceses do século XVII, como Racine e
Corneille, acreditavam que o teatro deveria imitar as prescrições da poética de Aristóteles,
que a arte antiga era tida como insuperável. A poética classicista teve como representantes na
Alemanha os dramaturgos Johann Christoph Gottsched e Christoph Martin Wieland.
No entanto, a recepção de Shakespeare na Alemanha daquele período nos permite observar
uma modificação nas teorizações sobre arte. Na segunda metade do século XVIII, Gotthold
Ephraim Lessing acenou para a genialidade do dramaturgo inglês, pouco valorizado pela
estética classicista, enfatizando o efeito produzido por suas tragédias. Os poetas rigorosos não
estariam tão de acordo com Aristóteles quanto o poeta original, que não seguiria regras, mas
alcançaria o efeito catártico em suas obras.
Por volta de 1770, aprofundando a crítica ao modelo classicista, surgiu na Alemanha o
movimento Sturm und Drang (“Tempestade e Ímpeto”, título de uma peça de Klinger),
também conhecido como pré-romantismo. Johann Gottfried Herder, Friedrich M. Klinger, o
jovem Friedrich Schiller, o jovem Johann Wolfgang von Goethe, Jakob Michael Reinhold
15
SÜSSEKIND, Pedro. Shakespeare: o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
19
Lenz e Friedrich Müller defendiam a liberdade e a espontaneidade da criação artística. Nesse
contexto, Shakespeare é ainda mais valorizado e é visto como um talento criador natural e
livre dos cânones artísticos, um modelo para os artistas modernos.
Os pensadores desse movimento pré-romântico estariam ligados à tentativa de emancipação
burguesa, por isso faziam a defesa da liberdade do indivíduo e a crítica às convenções sociais.
Com este movimento, a ênfase na compreensão do fenômeno artístico passava a recair não na
relação de representação entre obra e mundo, mas sim na relação entre obra e produtor. A
obra seria a expressão da subjetividade do gênio heróico e mediador do infinito. São obras
características desse período Vozes dos povos (1778-79), de Herder; Os Salteadores (1781),
de Schiller; Götz von Berlinchingen (1773) e Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de
Goethe.
Também contrário ao classicismo, mas evitando o exagero subjetivista do Sturm und Drang, o
“primeiro romantismo alemão”
16
ou “romantismo inicial é um movimento começado por
alguns escritores reunidos na cidade de Iena, por isso também é chamado de “romantismo de
Iena(Jenaer Romantik). Como meio de divulgação das ideias que norteavam o movimento,
Friedrich Schlegel
17
fundou com seu irmão August a revista Athenäum, que durou pouco
tempo, de 1798 até 1800. A eles vieram se juntar Karoline Schlegel (esposa de August) e
Dorothea Schlegel (esposa de Friedrich), Ludwig Tieck, Novalis (pseudônimo de Georg
Philipp Friedrich von Hardenberg), Friedrich Wilhelm Joseph Schelling e Daniel Friedrich
Schleiermacher. Entre outros escritos, Schlegel escreveu Lucinde (1799) e Conversa sobre a
poesia (1800), e Novalis Hinos à Noite (1800) e Heinrich Von Ofterdingen (1802).
No início do século XIX o romantismo se espalhou por outras cidades alemãs. Na cidade de
Heidelberg se juntaram ao movimento escritores do “alto romantismo(Hochromantik), como
Clemens Bretano, Joseph Görres, Joseph von Einchendorff, Archim von Arnin, Bettine von
Arnin, os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm e Ludwig Uhland. Outro grupo se formou em
Dresden com Adam Müller e Heinrich von Kleist. Em razão da invasão da Prússia por
Napoleão estes grupos acabaram desenvolvendo uma tendência nacionalista. Em Berlim se
reuniram representantes das cidades de Heidelberg e de Dresden, juntamente com outros
16
Sobre as divisões a seguir conferir VOLOBUEF, 1999.
17
Como Benjamin se refere na tese de doutorado à filosofia de Friedrich Schlegel e não ao irmão, a partir de
agora indicaremos Friedrich apenas por seu sobrenome.
20
autores: Arnin, Bretano, Adelbert von Chamiso, Friedrich de la Motte Fouqué, E.T.A.
Hoffmann e Kleist. Grupos de menor repercussão como os de Halle, Munique, Bamberg e da
Suábia são conhecidos como “romantismo tardio(Spätromantik).
Tendo em vista essa breve contextualização, perguntamos: quais foram as características mais
marcantes do romantismo alemão no âmbito das reflexões sobre a filosofia da arte?
Apontaremos alguns fatores relevantes, sem a pretensão de uniformizar o movimento, e
enfatizando o primeiro romantismo.
Os românticos alemães, relegados pela historiografia por muito tempo ao papel de
fragmentários, assistemáticos e não filosóficos foram, na verdade, importantes teóricos e
renovadores da teoria estética. Embora críticos do modelo classicista, eles não podem ser
considerados inimigos dos clássicos. Segundo Friedrich Schlegel:
Jamais se deveria evocar o espírito da antiguidade como uma autoridade. Há algo de
particular com os espíritos: não podem ser agarrados com as mãos e apresentados a
outrem. Espíritos se mostram a espíritos. Também aqui o mais rápido e
concludente seria demonstrar a posse da verdadeira fé através de boas obras
18
.
Como defensores da diversidade, os românticos questionaram não os clássicos, mas sim a
defesa classicista da superioridade dos clássicos. Não cânones e regras universais, mas a arte
compreendida em sua manifestação histórica, na situação particular em que foi produzida,
este era o espírito do romantismo. A partir dele a estética compreendeu que nossa relação com
as obras de arte é sempre mediada pela história e que era preciso compreender a nova arte a
partir de seu contexto. Os autores românticos passaram a valorizar, além da Antiguidade,
também a Idade Média e o Oriente.
Ao procurar compreender a diversidade da poesia moderna em relação à clássica, os
românticos compreenderam que se os princípios da arte antiga eram a beleza, a tranqüila
contemplação, o equilíbrio e a harmonia; mas que, na arte moderna, o que importava é o
interessante, o excesso, o dissídio, a mistura de gêneros poéticos e a aproximação de coisas
díspares. Se os antigos não tinham a necessidade de uma teoria estética, os românticos estão
sempre à procura de uma ciência que lhes indique o caminho. Na arte moderna observamos
que o papel cada vez mais dominante da teoria em relação à arte não é mais do que a
18
SCHLEGEL, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997,
p.27. Lyceum, fragmento 44.
21
manifestação evidente da perda de naturalidade antiga. Nas palavras de Schlegel: “Nos
antigos se a letra perfeita e acabada de toda a poesia; nos modernos se pressente o espírito
em devir”
19
.
Se os gregos viviam em unidade com a natureza, em uma espécie de estado paradisíaco, os
modernos, filhos da queda do paraíso, da cisão entre homem e natureza, viveram sob o signo
de uma tarefa infinita: o retorno ao Éden. Para os antigos era possível uma obra de arte
acabada, perfeita; para os modernos, românticos, a arte deve seguir a tarefa infinita de
alcançar essa unidade. A arte romântica é uma arte que tende para o infinito, para a obra de
arte absoluta que, no entanto, não pode ser equiparada com nenhuma obra empírica.
Se a filosofia moderna, diz Pedro Duarte de Andrade na tese Estio do tempo: o amor entre
arte e filosofia na origem do romantismo alemão
20
, foi compreendida como o caminho que vai
de Kant até Hegel, os românticos se situam “entreesses pensadores e, de certo modo, foram
esquecidos pela tradição filosófica. Kant limitou o acesso direto às coisas à nossa
sensibilidade. poderíamos conhecer as coisas como objetos de uma intuição sensível, ou
seja, como fenômenos e não como coisa em si. Esta limitação crítica de Kant acabou por
consolidar o contexto de cisão dos modernos, divididos entre fenômeno e coisa em si, entre
sensibilidade e entendimento, sujeito e objeto.
O próprio Kant sente estes dualismos como um problema na sua Crítica da Faculdade do
Juízo, de 1791. Os pensadores que o sucedem, também se ocupam especialmente deste
problema. Os autores do chamado “idealismo alemão”, como Fichte (com o qual nos
ocuparemos no item a seguir) e Schelling, tentaram superar essa separação. Segundo Andrade,
nenhum dos dois foi tão resoluto neste propósito quanto Hegel. Kant havia introduzido um
“nãoàs pretensões do conhecimento humano de ir além da experiência sensível e conhecer
as coisas em si. Hegel aponta que a negação deve participar do movimento dialético e, assim,
se tornar positividade, caminho para o Absoluto.
Os românticos sentiam a mesma necessidade de ir além da interdição kantiana. No entanto,
não acreditavam como Hegel que o espírito fosse capaz de alcançar por completo o saber
19
Ibidem, p. 34. Lyceum, fragmento 93.
20
ANDRADE, Pedro Duarte de. Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do romantismo alemão.
2009. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Filosofia, 2009.
22
absoluto: “O espírito que conhece as orgias da verdadeira musa nunca irá percorrer esse
caminho [o de formar e educar a si mesmo] até o fim, ou supor que o fez: pois ele nunca pode
saciar uma ânsia que renasce da própria plenitude da satisfação, eternamente renovada
21
, diz
Schlegel. Para os românticos a vida e a arte se davam sob o sol da incompletude, da falta, do
anseio. O movimento da procura não cessaria jamais. Lemos na revista romântica Athenäum:
Uma vez que se tenha predileção pelo absoluto e não se possa deixar isso, então não
resta outra saída senão se contradizer sempre e vincular extremos opostos. O
princípio de contradição está irremediavelmente perdido, e se tem a escolha entre
querer se comportar passivamente diante disso ou querer enobrecer a necessidade,
elevando-a, pelo reconhecimento, a ação livre
22
.
Entre a interdição e o desejo do Absoluto, desde a situação trágica a que o homem moderno
estava destinado, os românticos encontraram na arte a ação livre para as questões
filosóficas. De certa forma, a arte acenava para isso que não se deixa conceituar, mas que os
românticos queriam apontar: o Absoluto.
Segundo Schlegel, os romances seriam os diálogos socráticos de nossa época. A arte dava o
sopro necessário para reanimar o ritmo da filosofia, engessado pelos excessos da teoria. Não
se trata de migração da filosofia para a arte, mas sim de uma relação amorosa entre ambas,
como aponta Andrade: Não se trata de resolver a contradição, como queria Hegel, mas de
aceitá-la na sua tensão [...] os primeiros românticos não precisaram optar pela filosofia ou
pela arte, podendo colocá-las, amorosamente, em relação
23
.
Colocar filosofia e arte amorosamente em relação significava um passo importante para a
teoria estética da época. Os românticos foram voz dissonante em uma tradição que separava
arte e verdade, seja expulsando a primeira da pólis, seja relegando-a a uma gnosiologia
inferior. Para os românticos, a arte é uma experiência de verdade. A arte como revelação do
Absoluto é, para eles, abertura infinita de sentido. Isso porque o próprio Absoluto é devir:
Poetar é gerar
24
.
21
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução de Victor-Pierre Stirnimann.
São Paulo: Imuninuras, 1994.
22
Athenäum... In: SCHLEGEL, 1997, p. 45. Fragmento 26.
23
ANDRADE, 2009, p. 67.
24
NOVALIS, 2001, p. 122.
23
Essas idéias nos dão uma imagem do contexto em que se desenvolveu o romantismo.
Também a relação que os autores do movimento tiveram com Shakespeare nos ajuda a situá-
los nas discussões sobre a estética da época. Para eles, Shakespeare é tido como um exemplo
de artista original que, fruto de seu tempo, não deveria ser criticado com base na poética de
Aristóteles e suas interpretações modernas baseadas no classicismo francês. Segundo
Schlegel, em Shakespeare é possível localizar o verdadeiro centro, o âmago da fantasia
romântica. Os dramas da maturidade de Shakespeare são insuflados pelo espírito romântico e,
por sua profundidade, durarão por toda a eternidade como o fundamento romântico dos
dramas modernos
25
.
Para esta breve introdução ao romantismo alemão destacamos ainda a idéia de “sinfilosofia”,
que se mostra na revista Athenäum, especialmente em um dos textos nela publicados: o
Conversa sobre a poesia de Schlegel, de 1800. Os autores da Athenäum são um exemplo de
sinfilosofia, o modo como os românticos designavam o filosofar em conjunto. Muitas vezes
não é possível precisar de quem é autoria de determinado fragmento da revista. Isso acontece,
justamente, porque seus autores não estão preocupados em marcar sua individualidade, mas
sim em deixar que o corpo do próprio texto ganhe vida e estimule interpretações reflexivas
por parte de seus leitores.
Conversa sobre a poesia é também um exemplo de sinfilosofia. Ele tem início com as
seguintes palavras: “Todos os seres que amam a poesia são por ela unidos ou aparentados em
laços indissolúveis
26
. O autor relata, ora de lembrança, ora recorrendo à fantasia, diálogos
que teve com pessoas de mesma inclinação poética. O tom é de abertura. Todos têm direito a
voz e não buscam consenso, mas sim um jogo em que se faça presente o que orienta a
questão. Sob diferentes pontos de vista, cada qual aponta para “o espírito infinito da poesia”.
Assim, o personagem Andrea (que se refere, segundo Victor-Pierre Stirnimann
27
em
“Schlegel, carícias de um martelo”, a August Schlegel) faz um discurso sobre as “Épocas da
arte poética”, Ludoviko (Schelling) sobre a mitologia, Antonio (o próprio autor, Friedrich
Schlegel) anuncia uma “Carta sobre o romance” e Marcus (Tieck) seu “Ensaio sobre as
diferenças de estilo entre as obras juvenis e tardias de Goethe”. Também participam do
25
SCHLEGEL, 1994, 44.
26
SCHLEGEL, 1994, p.29.
27
STIRNIMANN, Victor-Pierre. Schlegel, carícias de um martelo. In: SCHLEGEL, 1994.
24
diálogo Lothario (Novalis), Amalia (Caroline, mulher de August, posteriormente casada com
Schelling) e Camilla (Dorothea, mulher de Friedrich).
Passemos agora ao estudo da interpretação benjaminiana dos românticos alemães de Iena.
Interpretação essa explicitada em sua tese de doutorado O conceito de crítica de arte no
romantismo alemão
28
, defendida na cidade de Berna, na Suíça, em 1919.
1. 3. O MEDIUM-DE-REFLEXÃO
Era intenção de Benjamin, a princípio, escrever sua tese de doutorado sobre a tarefa infinita
em Immanuel Kant (1724-1804). Em uma carta a Gerhard Scholem de março de 1918, ele
pensa em focar, por outro lado, a importância da estética kantiana para a crítica romântica de
arte
29
. Também esta intenção, no entanto, não se concretizou, porque Benjamin abordou em
sua tese apenas os primeiros românticos.
Não nos cabe aprofundar as aproximações entre Kant e os românticos, até porque na tese de
doutorado Benjamin procura distinguir o juízo de gosto kantiano da crítica romântica de arte.
No entanto, não podemos deixar de apontar para um movimento importante no campo das
artes que tem Kant como precursor e os primeiros românticos alemães como grandes
defensores. Trata-se do reconhecimento da recepção da obra de arte como produtiva para o
fenômeno artístico, reconhecimento este que ecoará não só na tese de doutorado de Benjamin,
mas também em outros de seus ensaios teóricos e na sua própria atividade de crítico de arte.
Na Crítica da faculdade do juízo
30
Kant diz que o juízo de gosto é subjetivo, ou seja, está
ligado não às características da obra, mas sim à maneira como seu observador “sente-se a si
28
BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Tradução de Márcio Seligmann-
Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002.
29
BENJAMIN, Walter. The correspondece of Walter Benjamin, 1910-1940 1940 / edited and annotated by
Gershom Scholem and Theodor W. Adorno; translated by Manfred R. Jacobson and Evelyn M. Jacobson.
Chicago, EUA: The University of Chicago Press, 1994, p. 119.
30
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rodhen e António Marques. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
25
próprio do modo como ele é afetado pela sensação
31
. Trata-se de uma experiência de livre
jogo entre nossas faculdades de apreensão do múltiplo intuído, a imaginação, e a de formação
de conceitos, o entendimento. A imaginação do observador, que no livre jogo é “produtiva e
espontânea”, reconhece na forma do objeto uma composição do múltiplo como se ela mesma
pudesse ter projetado e tem prazer nesta harmonia. Os românticos estudados por Benjamin,
como veremos, parecem potenciar elementos em germe na “Analítica do Belokantiana ao
defenderem que o leitor deve ser um “autor ampliado”, o que os localiza no cerne de uma
estética voltada para a recepção produtiva das obras.
Outro aspecto da filosofia de Kant que nos interessa destacar, pela sua influência em Fichte
um autor fundamental para compreender a leitura benjaminiana do conceito romântico de
crítica de arte é a divisão entre razão pura e prática. Kant se empenhou em uma filosofia
transcendental, ou seja, na crítica da razão humana. Em sua primeira crítica, a Crítica da
razão pura, de 1781, Kant diz que o conhecimento humano possui dois troncos oriundos de
uma raiz comum: a sensibilidade e o entendimento. Por isso, a razão não pode pretender ter
um conhecimento científico para além da experiência possível pela sensibilidade. Para que
haja conhecimento verdadeiro é preciso que intuição e conceitos se unam no sujeito para a
determinação adequada do objeto.
No entanto, permanece na razão um impulso natural para questões metafísicas, como Deus, a
liberdade e a imortalidade da alma. Esse impulso deveria ser compreendido no campo da
razão prática, a que Kant dedicou a Crítica da razão prática de 1788. Como ente inserido em
uma natureza regida pela causalidade, mas ao mesmo tempo capaz de se auto-determinar, o
homem se reconheceria livre.
O pensamento de Kant marcou profundamente o filósofo Johann Gottlieb Fichte (1762-1814)
que, tendo sido professor em Iena, influenciou diretamente os autores do primeiro
romantismo. Segundo este autor, era preciso que uma filosofia sistemática descobrisse o
princípio unificador da razão, que não deveria ser entendida nos termos da dissociação
kantiana entre razão prática e pura. Para solucionar essa dualidade, a Doutrina da Ciência
32
,
de 1794, procurava encontrar o princípio pré-lógico que antecederia toda relação entre sujeito
31
Ibidem, p.48.
32
FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos. Tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1992.
26
e objeto. Fichte se inseria, dessa forma, na tradição do idealismo alemão, que procurava
fundar a filosofia como ciência a partir de um primeiro princípio incondicionado.
Segundo Fichte, nós sempre estamos em contato com o primeiro princípio, já que para pensar
qualquer objeto nós imediatamente intuímos um estado de ação que o põe. Este estado de
ação que apresenta os entes como sendo nos é acessível por uma intuição intelectual (a
despeito da pretensão kantiana de eliminar esse tipo de intuição do campo da investigação
científica). Trata-se não de um sujeito abstrato ou de uma consciência individual, mas de uma
estrutura universal, que não aparece na consciência porque é condição de possibilidade de
todos os fatos da consciência. Fichte designou este princípio de “Eu”, o que gerou muitos
equívocos, já que o Eu fichtiano não é um sujeito, mas sim um sujeito-objeto. Ele é a
atividade de “pôr”, uma atividade produtora, a mera ação de vir a ser. O fundamento do
absoluto, de onde toda a ciência se funda, não seria uma coisa, portanto, mas sim uma ação.
Na ação de pôr a si mesmo do Eu (ser), este se choca com os entes que ele mesmo produz. Ao
se chocar dentro de sua própria estrutura producente com ob-jectos (não-eu), o Eu volta-se
sobre si e nessa reflexão se limita e se divide. Assim, para que o Eu absoluto, ao qual
podemos ter acesso via uma intuição intelectual, entre no campo conceitual da reflexão, ele
assume um limite através de sua oposição com o não-eu. São três os momentos principais de
constituição da egoidade segundo Fichte: o eu põe originariamente, pura e simplesmente seu
próprio ser; ao eu é oposto pura e simplesmente um não-eu; e eu oponho, no eu, ao eu
divisível, um não-eu divisível.
Em texto de 1797, chamado O princípio da doutrina-da-ciência, Fichte pede ao leitor com
quem dialoga: “Pensa-te e observa como o fazes
33
. Ele explica que, quando pensamos “Eu”,
temos imediata intuição de nossa autoconsciência. No entanto, passando para um grau
superior de especulação, o leitor é levado a refletir sobre o primeiro movimento:
Mas agora te digo: observa teu observar de tua autoposição; observa aquilo que, na
investigação levada a efeito acima, tu mesmo fizeste, e como fizeste para observar a
ti mesmo. Faze daquilo mesmo, que até agora era o subjetivo, o objeto de uma nova
investigação, que agora iniciamos.
34
33
FICHTE, 1992, p.181.
34
Ibidem, p.181.
27
O movimento que coloca o próprio sujeito que pensa como objeto de pensar é chamado de
reflexão. Em Sobre o conceito da doutrina-da-ciência ou da assim chamada filosofia, de
1794, uma definição deste processo: “Por essa ação livre [...] algo que é em si forma, a
ação necessária da inteligência, é acolhido como conteúdo em uma nova forma, a forma do
saber ou da consciência, e por isso, aquela ação é uma ação de reflexão
35
.
Voltemos ao escrito de 1797. Nele, Fichte admite que o movimento da reflexão pode se elevar
ao infinito, pois podemos repeti-lo, colocando o movimento da primeira reflexão como objeto
de uma nova reflexão, ou seja, primeiro pensamos o “eu”, depois pensamos o “eu que pensa o
eu”, e assim por diante. Mas, pela via da infinitude da reflexão, segundo Fichte, a consciência
absolutamente não se deixa explicar. Isso significa que, neste escrito de 1797, Fichte
abandona, no campo teórico da doutrina da ciência, a possibilidade da infinitude da reflexão.
Em sua tese de doutorado, Benjamin explica que o conceito romântico de crítica de arte se
assenta em pressupostos gnosiológicos relacionados à noção fichtiana de reflexão. Devemos
atentar para a particular interpretação benjaminiana não do texto fichtiano, mas também
dos fragmentos dos românticos. O Fichte e os românticos aqui apresentados se referem à
leitura que Benjamin faz deles. Destarte, abandonamos qualquer pretensão de totalidade
hermenêutica e assumimos a leitura interessada de Benjamin.
Segundo ele, os românticos Schlegel e Novalis se aproximavam principalmente do Fichte da
Doutrina-da-ciência de 1794. Isto porque ela garantia a possibilidade de um conhecimento
imediato do princípio de toda a realidade e de todo o saber: o Eu. No entanto, enquanto o
Fichte de 1797 rejeitava a infinitude linear da reflexão no plano teórico, rejeição de que os
românticos também compartilharam, estes defenderam a possibilidade de uma forma
específica de infinitude não abordada por Fichte em todos os planos da atividade humana,
inclusive o teórico e o prático: a infinitude de conexão
36
.
Os pressupostos gnosiológicos dos românticos, diz Benjamin na tese, partem do fato
fundamental da relação do pensamento consigo mesmo: “O pensamento na autoconsciência
refletindo a si mesmo
37
. Se a reflexão em Fichte se relaciona com o Eu, nos românticos ela
35
Ibidem, p.28.
36
BENJAMIN, 2002, p.34.
37
Ibidem, p.27.
28
diz respeito essencialmente ao pensar e ganha como marca própria suas características de
infinitude e inacabamento, como podemos observar nesta frase de Schlegel: “O pensar tem a
particularidade de, próximo a si mesmo, pensar de preferência naquilo sobre o que ele pode
pensar sem fim
38
. Para Fichte podemos intuir a nós mesmos, porém, para Schlegel, não. Para
ele nós podemos apenas pensar a nós mesmos. A infinitude da compreensão, ou seja, desse
pensar, não é uma progressão vazia para estes pensadores, mas sim uma infinitude de
conexão. Os românticos rejeitaram a infinitude da continuidade, admitindo como possível
apenas uma reflexão que conecta de uma infinita multiplicidade de maneiras.
Isso nos lembra a crítica que Benjamin faz à noção de progresso e à leitura finalista da história
em seu último texto, escrito em 1940, ano de sua trágica morte em conseqüência da ascensão
do fascismo na época, as teses Sobre o conceito de história
39
. Nelas Benjamin identifica o
perigo que ronda sua época: “entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento”
40
. A
idéia de uma história linear que caminha para o progresso é uma falácia tanto do comunismo
quanto do capitalismo. A história caminha não para o progresso, mas sim para a barbárie. Para
Benjamin não interessa o continuum homogêneo e vazio da história. Ele indica, em contraste,
o tempo saturado de “agoras”, de instantes em que passado e presente se encontram em um
vínculo revolucionário, o vínculo de uma nova origem para o curso dos acontecimentos.
Esta infinitude dos graus da reflexão dos românticos, além de ser uma espécie de conexão, e
não de continuidade, também não seria contrária à imediatez do conhecimento. Na mediação
por reflexões não existe [...] em princípio, nenhuma oposição com relação à imediatez do
compreender via pensamento, pois toda reflexão é em si imediata
41
, diz Benjamin. A
realidade se compõe imediatamente pela mediação das reflexões, não nenhuma realidade
anterior e transcendente à reflexão. Sobre a mediação por imediatez, Benjamin cita Schlegel:
a “passagem que deve ser sempre um salto
42
. A filosofia sempre começa “do meio”, estamos
inseridos em um contexto formado por mediações de reflexões e, do mesmo modo,
participamos de uma história aberta a novas configurações, infinitamente.
38
SCHLEGEL, apud BENJAMIN, 2002, p.27.
39
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
40
Ibidem, p.224.
41
BENJAMIN, 2002, p.34 e 35.
42
Ibidem, p.35.
29
Segundo Benjamin, Schlegel [...] desdobrar-se na reflexão o todo real na completude de
seu conteúdo com crescente evidência até atingir a mais elevada clareza do absoluto
43
. O
sentido do mundo não está dado, nem é possível recorrer a explicações metafísicas, que ele
é caótico. O todo real, que conjuga as relações do homem com a natureza, com outros
homens, consigo mesmo e com o sagrado, é configurado pela abertura e vitalidade do
conectar. Novalis diz que a reflexão é “o início de uma autopenetração do espírito que nunca
acaba e denomina o mundo futuro como caos que se autopenetra”
44
. É na conexão-da-
reflexão que os sentidos deverão ser construídos com entusiasmo e sobriedade, ou seja,
liberdade e receptividade. Autocriação e, também, auto-aniquilamento, pois, em toda parte
em que alguém não limita a si mesmo, é o mundo que o limita
45
.
Sob a perspectiva benjaminiana, a teoria do conhecimento dos românticos se deixa melhor
entender por um termo que não foi usado por eles. Segundo Benjamin, para os românticos,
especialmente Schlegel, a natureza do pensar constitui o absoluto como um medium-de-
reflexão(Reflexionsmedium):
A reflexão constitui o absoluto e ela o constitui como um medium. Schlegel em suas
exposições, por mais que não tenha usado a própria expressão medium”, depositou
uma grande importância na conexão uniforme e constante no absoluto ou no
sistema, ambos interpretados conforme a conexão do real não na sua substância (que
é em toda a parte a mesma), mas nos graus de seu desdobrar manifesto
46
A palavra medĭum no latim significa “meio, centro, lugar para onde tudo converge”
47
.
Benjamin, em nota sobre o significado do termo “medium-de-reflexão”
48
, dá um duplo sentido
a esta designação: a reflexão mesma é um medium, devido ao seu constante conectar e, ao
mesmo tempo, ela se move em um medium, pois, tal como o absoluto, movimenta-se a si
mesma. Bernardo Barros Coelho de Oliveira, no artigo A construção do crítico: Benjamin e
os românticos”, destaca: na palavra medium, devemos escutar a noção de um elemento
transmissor, ou mesmo a própria transmissão
49
.
43
Ibidem, p.39.
44
NOVALIS, apud BENJAMIN, 2002, p.44
45
Ibidem, p.25. Lyceum, fragmento 37.
46
BENJAMIN, 2002, p.43.
47
FERREIRA, António Gomes. Dicionário de latim-português. Lisboa: Porto editora, 1983.
48
BENJAMIN, 2002, p.43.
49
OLIVEIRA, Bernardo Barros Coelho de. A construção do crítico: Benjamin e os românticos. In: Revista
Artefilosofia. Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Universidade Federal de Ouro Preto. IFAC, n.6,
(abril.2009). Ouro Preto: IFAC, 2009, p.28.
30
Com esta leitura particular que Benjamin faz da teoria do conhecimento dos românticos fica
clara uma crítica ao modelo tradicional de racionalidade e de verdade que definia o
conhecimento como uma apreensão no sujeito de um objeto dado, cujo sentido estaria
definido de antemão. No medium-de-reflexão objeto e sujeito não são pólos opostos, que a
romantização, ou seja, A intensificação da reflexão [...] supera na coisa os limites entre ser
conhecida através de si mesma e através de um outro, e, no medium-de-reflexão, a coisa e a
essência cognoscente se interpenetram
50
. A verdade configurada sempre a cada vez pelas
infinitas conexões-da-reflexão é espírito em devir, movimento. Os românticos tratam o
absoluto como um absoluto dinâmico.
1.4. DA FORMA-DE-EXPOSIÇÃO À FORMA ETERNA
Se, para Fichte, o ponto central do absoluto é o Eu, Schlegel, por outro lado, vai se
aproximar dessa concepção nas Lições Windischmann. Antes disso, na Revista Athenäum, o
ponto central da reflexão não é o Eu e sim a Arte. Isso é decisivo para Benjamin, para quem:
A intuição romântica da arte repousa no fato de que não se compreende no pensar do pensar
nenhuma consciência-do-Eu. A reflexão livre-do-Eu é uma reflexão no absoluto da arte
51
. A
obra de arte é mediadora finita da Idéia infinita da arte e da realidade enquanto medium-de-
reflexão. Na experiência de sua observação somos lançados na compreensão da própria
estrutura de configuração do absoluto e, com isso, reconhecemo-nos artífices deste processo.
Se a arte é uma determinação do medium-de-reflexão, a crítica de arte é o conhecimento do
objeto neste medium-de-reflexão
52
, diz Benjamin. A crítica revela um modo especial com
que o sujeito sente-se afetado pelo objeto. No cotidiano estamos em relações de
conhecimento, utilidade, desejo ou indiferença com as coisas, porém, quando estamos diante
de uma obra de arte uma perda de referência com modos habituais de compreensão. O
50
BENJAMIN, 2002, p.63.
51
Ibidem, p.46.
52
Ibidem, p.69.
31
objeto nos tanto quanto nós o vemos, assim como para Novalis: “Em todos os predicados
nos quais nós vemos o fóssil, ele nos vê
53
.
Schlegel fala a respeito da natureza dos fragmentos em analogia à natureza da obra de arte:
Um fragmento tem de ser como uma pequena obra de arte, totalmente separado do mundo
circundante e perfeito e acabado em si mesmo como um porco espinho
54
. O objeto se
“descolado cenário e inaugura um instante de suspensão que visa perdurar. Nos românticos
o instante tenta se fixar nas leituras poéticas das obras, um tecido leve que emerge da obra e
de suas leituras críticas.
A crítica, portanto, ultrapassa a observação e se perfaz como vida da obra na medida em que é
o medium no qual a limitação da obra singular liga-se metodicamente à infinitude da arte e,
finalmente, é transportada para ela
55
. O leitor-crítico é capaz de reconhecer-se partícipe do
jogo iniciado pela obra: “O verdadeiro leitor deve ser o autor ampliado
56
, diz Novalis. O
sentido somente entende algo quando o acolhe em si como germe, o alimenta e deixa crescer
até a flor e o fruto
57
, nos diz ainda Schlegel.
Seguindo indicações de Bernardo Barros Coelho de Oliveira em Olhar e Narrativa: leituras
benjaminianas
58
, percebemos algumas ressonâncias de idéias românticas no trabalho de
crítico que Benjamin desenvolveu em ensaios posteriores. No caso do leitor ampliado
destacamos, estendendo o gesto de Oliveira, ressonâncias no artigo Que é o teatro épico? Um
estudo sobre Brecht
59
, de 1931, em que Benjamin elogia o teatro de Brecht porque nele o
público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas”, não espaço para observadores
retardatários”.
Também vemos ressonâncias no ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica (1935/1936)
60
. O mérito da arte reprodutível, como o cinema, está em liberar o
espectador para uma atividade criadora. Esta atividade o exercita para a participação em
outros domínios de sua vida, em uma sociedade em que o risco do culto e estetização do
53
NOVALIS, apud OLIVEIRA, 2006, p.43.
54
SCHLEGEL, 1997, p.82. Athenäum, fragmento 206.
55
BENJAMIN, 2002, p.74.
56
NOVALIS, apud BENJAMIN, 2002, p.74.
57
SCHLEGEL, 1997, p.145.
58
OLIVEIRA, Bernardo Barros Coelho de. Olhar e Narrativa: leituras benjaminianas. Vitória: Edufes, 2006.
59
BENJAMIN, 1994.
60
Ibidem.
32
fascismo. Enquanto há aura, a evocação de uma distância, a obra exerce poder sobre o
observador, mas com o cinema declina a pretensão de uma verdade transcendente a ser
imposta a homens passivos na recepção da obra de arte (lembremos que cinema comercial
americano contemporâneo não entra nesta equação). O observador é aquele que desdobra o
germe crítico imanente à obra em uma leitura que deixa as marcas da reflexão nele incitada.
Mas continuemos com os românticos. Para eles, diz Benjamin na tese, a crítica é antes o
acabamento da obra, posto que seu desdobramento, do que um mero julgamento. Nas palavras
de Schlegel: “Essa crítica poética [...] exporá novamente a exposição, desejará formar ainda
uma vez o formado [...] irá completar a obra, rejuvenescê-la, configurá-la novamente
61
.
Neste movimento, a crítica de arte impele também o observador para o seu próprio
autoconhecimento. Ele deve se aproximar do objeto e, incluí-lo em si. Do mesmo modo, o
objeto também se conhece através de sua participação neste medium.
Oliveira destaca que: Reflexão vem do latim flectere, e contém, portanto, a idéia de um se
dobrar sobre si mesmo. Se a obra tem „espírito‟, ela sabe de si, tem consciência de sua
especificidade e o mostra em sua própria forma
62
. vimos que a noção de reflexão está
ligada à de modernidade. Os antigos não tinham uma teoria estética, como os modernos, mas
sim poéticas, e se o princípio da arte clássica era a beleza, o equilíbrio e a harmonia, para os
modernos a obra convida à sua continuação através da crítica. As obras modernas são
consideradas “freqüentemente „feias‟, inadequadas, teóricas”
63
.
Em carta a Gerhard Scholem de 1918, Benjamin explica que com o romantismo tornou-se
predominante o ponto de vista de que uma obra de arte pode ser compreendida em e para si,
sem nenhuma referência à teoria ou à moralidade. A relativa autonomia da obra em relação à
arte, sua dependência meramente transcendental é um pré-requisito da crítica romântica de
arte
64
. A obra não recorre a instâncias externas de julgamento, a parâmetros morais ou de
beleza: o germe de sua crítica está nela mesma.
A obra moderna, reflexiva, mostraria sua especificidade, segundo Benjamin, na sua forma. A
teoria romântica da arte é uma teoria de sua forma, ou seja, uma teoria sobre o poder de
61
SCHLEGEL, apud BENJAMIN, 2002, p.75.
62
OLIVEIRA, 2006, p.26-27.
63
Ibidem, p.20.
64
BENJAMIN, 1994, p. 119.
33
reflexão que emana do modo como a obra está configurada e não de sua matéria. Segundo
Benjamin:
A forma é, então, a expressão objetiva da reflexão própria à obra, que forma sua
essência. Ela é a possibilidade da reflexão na obra, ela serve, então, a priori, de
fundamento dela mesma como um princípio de existência; através de sua forma a
obra de arte é um centro vivo de reflexão. No medium-de-reflexão, na arte, formam-
se sempre novos centros de reflexão. Segundo seu germe espiritual, eles abarcam na
reflexão conexões maiores ou menores. A infinitude da arte atinge a reflexão
primeiramente apenas em um tal centro como um valor-limite, isto é, atinge a
autocompreensão e, deste modo, a compreensão em geral. Este valor limite é a
forma-de-exposição da obra singular. Nela assenta-se a possibilidade de uma relativa
unidade e integridade da obra no medium da arte
65
.
A obra individual não abarca a totalidade da arte. Pelo contrário, ela aponta, em sua forma-de-
exposição, para a impossibilidade de um desencobrimento de seu sentido porque não há,
justamente, um sentido oculto a ser descoberto. A obra aponta para a sua incompletude,
limitação, para a necessidade de se configurar sempre a cada vez em um medium-de-reflexão
com seu leitor.
Estas leituras são possíveis, então, pela forma da obra. O que há de característico nas obras de
arte para que elas incitem leituras críticas, reflexivas, poiéticas? Segundo Benjamin, a leitura
do crítico se deve a uma construção presente na própria obra de arte e que leva à sua
autodestruição voluntária: a ironia formal. A ironia pode ser compreendida de duas maneiras,
como ironia subjetivista ou como ironia formal.
A ironia subjetivista trata da relação entre autor e obra. Diz Benjamin: Seu espírito [o desse
tipo de ironia] é o do autor que se eleva sobre a materialidade da obra na medida em que a
despreza
66
. Por exemplo, o autor mármore, mas é capaz de elevar-se acima da matéria e
poetizá-la, fazendo uma escultura. o outro tipo de ironia, a ironia formal se difere desta e
eleva a obra, para os românticos, ao estatuto de arte. Aquela ironia se refere a uma conduta do
sujeito, esta expõe um momento objetivo na obra. A ironização da forma consiste em sua
destruição voluntária, na destruição de sua ilusão. A obra revela que é processual, histórica,
fragmento. Sobre a destruição da ilusão na comédia de Aristófanes, Benjamin cita Schlegel:
Esta violação não é falta de jeito, mas petulância consciente, plenitude de vida
transbordante e, freqüentemente, não gera em absoluto efeito maligno algum; antes,
65
BENJAMIN, 2002, p.78-79.
66
Ibidem, p.88.
34
ela eleva, pois não pode decerto aniquilar a ilusão. A mais elevada movimentação da
vida [...] viola [...] para estimular sem destruir
67
.
A ironia é uma característica da obra de arte que impede de nos perdermos em sua
contemplação, pois somos remetidos a observá-la com certa distância, a distância que nos
remete a nossa própria reflexão. Benjamin diz sobre a ironia formal a destruição voluntária
da forma da obra que a leitura das obras de arte e dos objetos em geral pode ser chamada
de irônica, porque no não-saber no olhar ela sabe melhor
68
. O não-saber constitutivo da
obra de arte significa que ela permanece aberta e convidativa.
Este processo de recepção da obra se relaciona com a filosofia que, desde Sócrates, vê no não-
saber ocasião de crítica aos dogmas e de abertura de sentido. Segundo Novalis: “O ato de
saltar por cima de si mesmo é por toda a parte o mais elevado, o ponto originário, a gênese da
vida [...] Assim, toda filosofia inicia-se onde o filosofante filosofa a si mesmo, isto é,
consome-se [...] e se renova ao mesmo tempo
69
. A ironia é uma característica importante da
obra de arte, uma característica filosófica. Segundo Schlegel: “A filosofia é a verdadeira pátria
da ironia, que se poderia definir como beleza lógica: pois onde quer que se filosofe em
conversas faladas ou escritas, e apenas não de todo sistematicamente, se deve obter e exigir
ironia
70
.
A obra é considerada artística na medida em que é irônica e, por isso, criticável, passível de
uma leitura produtiva e poética. A obra mesma destrói sua ilusão e a crítica é o medium que a
conecta à Idéia da arte. Segundo Schlegel:
Sim, também a obra, comprada cara, permaneça valiosa para ti;
Mas tu a amas tanto, dá-lhe tu mesmo a morte,
Fixando no olho a obra que mortal algum finalizará:
Pois é da morte do individual que brota a imagem do todo.
71
O todo, o medium-de-reflexão, o continuum das formas, a obra invisível, é a Idéia da arte, que
sempre está em devir. A crítica, enquanto destruição e exposição do núcleo prosaico da obra a
aproxima da indestrutibilidade já que, nas palavras de Benjamin, representa a tentativa
67
SCHLEGEL, apud BENJAMIN, 2002, p.89.
68
BENJAMIN, 2002, p.65.
69
NOVALIS, apud BENJAMIN, 2002, p. 73.
70
Ibidem, p. 26. Lyceum, fragmento 42.
71
SCHLEGEL, apud BENJAMIN, 2002, p.89.
35
paradoxal de construir as conformações através da demolição: na obra mesma demonstrar sua
ligação com a Idéia
72
.
A ironia mostra que não há obra empírica perfeita. As obras modernas apontam para o fato de
serem processuais, históricas, requerentes de uma leitura poiética e, assim, indicam, de forma
negativa, a Idéia da arte. que através da destruição da forma determinada de exposição da
obra, esta é remetida de modo mais profundo à unidade da arte como obra universal. Falamos
acima que a teoria romântica da obra é uma teoria sobre sua forma, agora podemos tornar isso
mais claro, citando Benjamin:
[...] devemos introduzir um duplo conceito de “forma”. A forma determinada da
obra singular, que se poderia designar como a forma-de-exposição torna-se vítima
da destruição irônica. Sobre ela, no entanto, a ironia rasga um céu da forma eterna, a
Idéia das formas, a que se poderia denominar de forma absoluta, e esta atesta a
sobrevida da obra que extrai desta esfera sua existência indestrutível, depois que a
forma empírica, a expressão de sua reflexão isolada, tenha sido consumida por ela.
A ironização da forma-de-exposição é semelhante à tempestade que levanta a cortina
diante da ordem transcendental da arte, descobrindo-a, juntamente com a existência
imediata da obra nela, como um mistério [...] Schlegel conhece „limites da obra
visível‟ além dos quais abre-se o âmbito da obra invisível, da Idéia da Arte
73
.
Nesses passos, as obras deixam de ser vistas como manifestações de comoção entusiástica
para serem centros vivos de sóbria reflexão. A crítica aponta para a ironização da forma-de-
exposição da obra. A crítica “romantizaa obra na medida em que ataca sua ilusão para torná-
la eterna enquanto ligada à Idéia da Arte. Ela não visa depreciar o ruim, frente a ele ela se
cala. Apenas o que transcende deve ser criticado, positivamente. O valor que é atribuído às
obras de arte reside em sua “criticabilidade”.
No medium-da-reflexão, na arte, formam-se sempre novos centros de reflexão. Benjamin
explica que os românticos fazem uma “poesia transcendental porque “poesia da poesia,
reflexão sobre a poesia. A Idéia da arte, diz ele, é prosa, e cita Novalis:
Se a poesia quer se estender, ela o pode na medida em que se limite; na medida
em que se contraia, permita a sua matéria ígnea como que partir, e se coagule. Ela
adquire uma aparência prosaica, suas partes constitutivas não se encontram numa
comunidade tão íntima portanto não sob leis rítmicas tão rígidas , torna-se mais
capacitada para a exposição do limitado. Mas ela permanece poesia [...]
74
72
BENJAMIN, 2002, p.91.
73
Ibidem, p. 90 e 91.
74
NOVALIS, apud BENJAMIN, 2002, p.104.
36
Se a Idéia da arte é a prosa, então, a crítica de arte é a exposição do núcleo prosaico da obra.
Benjamin explica: “O que desmorona sob o raio da ironia é apenas a ilusão, indestrutível
permanece, no entanto, o núcleo prosaico da obra, porque ele não repousa no êxtase, que pode
ser destruído, mas, antes, na intangível, sóbria, figura prosaica
75
. Essa concepção romântica,
segundo Benjamin, tem sido historicamente fértil em conseqüências e, além de ser
fundamento da crítica moderna, também se introduziu nos princípios filosóficos de escolas
artísticas posteriores.
A obra de arte faz seu observador falar, por isso, a crítica é a exposição de seu núcleo
prosaico. Segundo Bernardo B. C. de Oliveira, o que distingue a obra de arte para os
românticos é sua capacidade de, através da precisão formal daquilo que a individualiza, incitar
o desdobramento de sua reflexão, sua destruição e renascimento, através da crítica. A obra
quer transcender a si mesma, ela juntamente com suas críticas, se constela como um
medium-de-reflexão cada vez mais forte. A obra passa a ser também suas leituras, as quais
suscitam e intensificam o jogo iniciado por ela mesma
76
.
A obra tem significado ontológico porque é transindividual. A poesia romântica é universal
progressiva”, ou seja, infinitamente aberta mediante uma construção social sempre em vigor.
Sobre a vitalidade do conectar operado pela arte romântica o fragmento 116 da Athenäum é
paradigmático:
A poesia romântica é uma poesia universal progressiva. Sua determinação não é
apenas a de reunificar todos os gêneros separados da poesia e estabelecer um contato
da poesia com a filosofia e a retórica. Ela também quer, e deve, fundir às vezes, às
vezes misturar, poesia e prosa, genialidade e crítica, poesia artística e poesia natural,
tornar a poesia sociável e viva, fazer poéticas a vida e a sociedade, poetizar a
espirituosidade, preencher e saturar as formas de arte com toda espécie de cultura
maciça, animando-as com as vibrações do humor. Ela abrange tudo em que está o
poético, desde os maiores sistemas da arte que em si contém vários outros até o
suspiro, o beijo que a criança poetante exala em canção singela. [...] Outros gêneros
poéticos já estão prontos, podem ser completamente dissecados. O gênero da poesia
romântica ainda está em evolução esta, aliás, é sua verdadeira essência, estar
sempre em eterno desenvolvimento, nunca acabado. [...] A poesia romântica é o
único gênero que é, mais do que um gênero, como que a própria arte poética: pois
num certo sentido toda poesia é, ou deveria ser, romântica.
77
A arte romântica revela o absoluto como medium-de-reflexão e a si mesma como centro deste
medium. As obras de arte, no sentido primeiro romântico, se definem pela sua criticabilidade e
75
BENJAMIN, 2002, p.108.
76
OLIVEIRA, 2006, p.46.
77
SCHLEGEL, 1994, p.99-101. Athenäum, fragmento 116.
37
sua relação com a Idéia infinita da arte como um tecido que agrega produtor, obra, e as várias
críticas que crescem em um tecido leve de arestas desamarradas. Mas um ponto em que os
românticos dissonam a ouvidos contemporâneos é o da “poesia universal progressiva”. Para
Benjamin, os românticos não apontam aqui para a noção de uma continuidade vazia, de um
continuum linear porque a poesia universal é o constante intensificar de um medium-de-
reflexão, de conexões.
Como podemos observar, a tese de Benjamin sobre os românticos indica que o conceito de
crítica de arte desses autores exige uma recepção produtiva das obras de arte e inaugura uma
experiência de pensamento que aproxima a possibilidade de uma atividade filosófica na
recepção da literatura. A crítica filosófica de arte é fundamental para Benjamin tendo em vista
que muitas de suas reflexões desenvolveram-se sob a forma de crítica de arte, como podemos
observar através da análise de alguns de seus ensaios: sobre os surrealistas, Proust, Leskov,
Brecht, Kafka, entre outros.
No entanto, importância dos românticos para Benjamin também se estende a outras questões.
Em carta a Gerhard Scholem de junho de 1917, Benjamin diz que o centro do romantismo é
religião e história. Em uma carta a Ernest Shoen, de novembro de 1918, Benjamin acredita ter
aprendido com sua tese de doutorado a relação de uma verdade com a história, o que poderia
ser entrevisto por leitores perspicazes. Em outra carta ao mesmo interlocutor, de abril de
1919, ele ressalta que o coração do romantismo é o messianismo.
Com messianismo entendemos redenção. Porém, não no sentido dogmático da vinda de um
messias capaz de nos salvar. Também não no sentido da quieta espera pelo progressoda
humanidade. O messias é a interrupção profana e prosaica da história. Profana porque
violadora do mito para manter o sagrado e prosaica porque destituída de nobreza, destituída
da dicotomia inferior-superior que sustenta tantas religiões, humana.
No artigo “Teologia e Messianismo no pensamento de Walter Benjamin”, Jeanne Marie
Gagnebin explica: “Se a redenção livra, é porque ela destrói e dissolve, não porque mantém e
conserva. E o Messias nos livra justamente da oposição entre o histórico e o messiânico, da
oposição entre o sagrado e o profano”
78
. Em uma observação de Benjamin redigida na época
78
BENJAMIN, apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Teologia e Messianismo no pensamento de Walter Benjamin.
In: Estudos Avançados, vol. 13, nº 37, São Paulo, set/dez 1999. Disponível em: <
38
de Sobre o conceito de história, lemos: “O Messias interrompe a história; o Messias não surge
no final de um desenvolvimento”
79
.
1.5. DEMASIADO ROMÂNTICOS?
Apesar das aproximações entre o pensamento de Benjamin, com sua atividade de crítico, e os
românticos, é importante destacar também os distanciamentos que Benjamin tomou em
relação a Schlegel e Novalis. Na orelha da tradução para o português da tese sobre os
românticos, Gagnebin considera que são muitas as afinidades entre Benjamin e os românticos,
mas não sem apontar para diferenças entre esses pensadores. Benjamin, diz ela, guardará
distância da idéia da dissolução romântica da obra no absoluto, especialmente na época em
que ele redige o ensaio sobre As Afinidades Eletivas de Goethe, publicado em 1922. A autora
também diz, no livro História e narração em Walter Benjamin
80
, que Benjamin se afastou dos
românticos em sua tese de livre-docência Sobre a origem do drama barroco alemão, de 1925.
Em Nas fontes paradoxais da crítica literária: Walter Benjamin relê os românticos de Iena
81
,
a autora mostra que na tese de doutorado Walter Benjamin manifesta preocupação:
[...] justamente em relação a textos que permitem uma identificação e um
entusiasmo fáceis, senão complacentes, de manter uma distância que fizesse justiça à
sua complexidade teórica presente sob a primeira aparência de exuberância aleatória,
isto é, em particular, até que ponto sua reflexão poderá com proveito se apropriar de
vários conceitos dos românticos, e onde deverá operar cortes, estabelecer
diferenciações que possam ajudar a especificar sua própria concepção de crítica.
82
As críticas de Benjamin aos românticos começaram ainda na tese de 1919. Ele diz, sobre a
relação entre arte e absoluto no romantismo: A arte era aquele âmbito no qual o romantismo
esforçou-se para efetivar de modo mais puro a reconciliação imediata do condicionado com o
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000300010&script=sci_arttext>. Acesso em: 21 de março
de 2010.
79
BENJAMIN, apud GAGNEBIN, 2010.
80
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2007a.
81
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Nas fontes paradoxais da crítica literária: Walter Benjamin relê os românticos de
Iena. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP: Annablume,
2007b
82
Ibidem, p.66.
39
incondicionado
83
. Essa reconciliação imediata não é cara a Benjamin e, em uma carta
84
anterior à tese, de junho de 1917, escrita a Gerhard Scholem, ele diz que o romantismo é uma
tentativa prematura de liberação insensata e orgiástica de todas as fontes da tradição.
Para Gagnebin, Benjamin se afastaria da idéia de que a crítica deveria dissolver a reflexão da
obra em um absoluto artístico. Apesar da importância história do romantismo, ao olharmos o
mesmo desde o presente marcado pela estetização da política promovida por regimes
totalitaristas percebemos que a tentativa de reconciliação, como Benjamin falou, soaria para
nós perigosa. Para os românticos a realidade se efetivaria como potenciação de reflexões
entrecruzadas e intensificadas umas pelas outras. Porém, ela ressalta que:
Para um leitor contemporâneo, é justamente este “sentido, como realizadoque não
é mais originário, confrontados que estamos com a presença primeira, espessa,
brutal do “sem-sentidona nossa existêcia individual e social. O próprio Benjamin
tampouco retomará essa premissa [...]
85
Premissa esta que, segundo a autora, poderia explicar, em parte, a transformação do jovem
Friedrich Schlegel, apaixonado pelo absoluto e pela liberdade, num, cita Maurice Blanchot,
“diplomata e jornalista a serviço de Metternicht, [...] um filistino gordo, cheio de unção,
guloso e preguiçoso”
86
. A referência é à conversão de Schlegel ao catolicismo na época da
Restauração e ao suposto conservadorismo que a idade lhe trouxe. Continuemos com
Gagnebin:
O que sobra para nós, bisnetos do romantismo alemão, desconstrucionistas,
construcionistas, estruturalistas e outros? A crítica e a ironia, sem dúvida; sua
fundamentação especulativa última, porém, no arcabouço da auto-reflexão infinita e
absoluta, na transcendência da idéia, na positividade de uma produção sempre
renovada de sentido, parece, ela também, ter se desfeito sem possibilidade de volta,
no mais tardar desde Nietzsche. Talvez nossa questão hoje não seja mais a relação
entre crítica e absoluto, mas sim, muito mais, entre crítica e historicidade (aliás,
historicidade da crítica entre outras). Uma das chaves de leitura da obra posterior de
Benjamin me parece constituir na verificação dessa hipótese.
87
Segundo Rainer Rochlitz, em O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin
88
, a
dissolução das obras em um absoluto artístico seria a marca determinante do esteticismo
83
BENJAMIN, 2002, p. 116.
84
BENJAMIN, 1994, p.87-89
85
GAGNEBIN, 2007b, p.73.
86
BLANCHOT, apud GAGNEBIN, 2007b, p.73.
87
Ibidem, p.81-82.
88
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Tradução de Maria Elena
Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
40
romântico, de uma despreocupação com a verdade em favor do enaltecimento do acabamento
puramente estético das obras. Apesar de dar lições de messianismo e de resgate da tradição, a
preocupação dos românticos não é a verdade das obras, mas seu acabamento puramente
estético
89
. Nesse sentido, no posfácio à tese, Benjamin compartilha da reserva de Goethe
quanto à supressão romântica, na arte como medium-de-reflexão, da distinção entre o real
contingente e o absoluto.
89
Ibidem, p.89.
41
2. O IDEAL GOETHIANO DE ARTE
2.1. UMA TEORIA OPOSTA À DOS ROMÂNTICOS
Benjamin, ciente da fertilidade, mas também das limitações da teoria de Schlegel e Novalis
sobre a arte, escreveu um posfácio à sua tese de doutorado intitulado “A teoria da arte
primeiro romântica e Goethe. O posfácio tem início com a constatação de que essas teorias
são opostas em seus princípios e de que o estudo dessa oposição alargaria o conhecimento da
história do conceito de crítica de arte. Segundo Benjamin: “na relação dentro da história dos
problemas, na qual o conceito de crítica dos românticos encontra-se diante do de Goethe, vem
à luz imediatamente em sua pureza, o problema da crítica de arte”
90
.
A teoria da arte dos românticos busca fundamentar a legitimidade da crítica de arte e, para
isso, mostra que a obra tem como conceito correlato o de crítica. A Idéia da arte é a categoria
usada pelos românticos para indicar que a unidade da arte se dá através de uma infinidade. No
posfácio, Benjamin procura ressaltar que a dialética entre unidade e infinidade da teoria
romântica da arte se funda na noção de forma. A teoria romântica da Idéia da arte é uma teoria
de sua forma, do a priori de um método.
Goethe (1749-1832) teria, em oposição aos românticos, uma filosofia da arte centrada na
não-criticabilidade das obras. Ele mesmo fez críticas de arte, porém observa-se sempre uma
reserva irônica frente à possibilidade dessa atividade. Para Goethe, a crítica teria no máximo a
importância de pôr em relevo a plenitude da obra. A noção a partir da qual a intuição de
Goethe da não-criticabilidade das obras de arte pode ser explicada é a de conteúdo da arte. A
filosofia da arte dessa renomada figura da literatura alemã se fundaria nessa noção, e não na
de forma, como a dos românticos. Por isso, Goethe apontaria o Ideal como o a priori de um
conteúdo agregado.
90
BENJAMIN, 2002, p.112
42
Os românticos não tinham uma filosofia sobre o conteúdo da arte. Goethe, por outro lado, não
se aprofundaria também em uma filosofia sobre a forma da arte. Por isso:
A questão da relação entre a teoria da arte goethiana e a romântica coincide com a
questão da relação do conteúdo puro com a forma pura (e, como tal, rigorosa) [...] a
Idéia da arte é a Idéia de sua forma, assim como seu Ideal é o Ideal de seu conteúdo.
A questão sistemática fundamental da filosofia da arte deixa-se portanto formular
também como a questão acerca da relação entre a Idéia e o Ideal da arte
91
Segundo Benjamin, nem os românticos nem Goethe sequer colocaram essa questão da relação
entre forma e conteúdo. No entanto, ela era importante desde os anos 1800 até sua própria
época, colocando-se como uma tarefa para os críticos de então. A tese de doutorado, no
entanto, chega apenas na “soleira” dessa questão, como ele mesmo diz. Para compreender
melhor por que Benjamin aponta deficiências na filosofia da arte dos românticos, e também
na “oposta” teoria de Goethe, temos que entender o que significam forma e conteúdo da arte e
explicitar a teoria goethiana, ainda não abordada.
2.2. APROXIMAÇÃO ÀS NOÇÕES DE FORMA E CONTEÚDO DA ARTE
O que significam forma e conteúdo da arte, conceitos que marcam a diferença entre a Idéia
romântica e o Ideal goethiano? Benjamin não explicita claramente em que sentido usa esses
termos no posfácio. Por isso, escolhemos como caminho de aproximação a essas noções o
pensamento sobre a arte de um dos autores mais importantes sobre estética na modernidade,
Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), especificamente no que tange a essa
problemática. Acreditamos que, sob esta ótica e guardadas as diferenças, o pensamento
hegeliano está próximo ao âmbito de sentido em que Benjamin se move quando usa esses
termos.
Hegel discorre sobre a distinção entre forma e conteúdo da obra de arte em seus Cursos de
Estética
92
. Segundo ele, a arte deve exprimir os interesses mais profundos da humanidade, as
verdades mais abrangentes do espírito, o verdadeiro conteúdo dos fenômenos. Superior à
91
Ibidem, p.119
92
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução. In: ______. Cursos de Estética I. Tradução de Marco Aurélio
Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
43
efetividade cotidiana, ela, no entanto, não é superior à religião e à filosofia, porque expõe o
mundo supra-sensível, sensivelmente. Religião e filosofia, por outro lado, são do domínio do
pensamento e, portanto, teriam uma realidade mais verdadeira.
Podemos distinguir em Hegel a forma como o elemento fenomênico, sensível, a aparência da
obra de arte, e o conteúdo como o elemento da ordem do espírito, do pensamento, do
intelectual. A forma se refere às cores, ao desenho, à harmonia, rimas, ou seja, é tudo aquilo
que na arte toca nossos sentidos. É o contorno que se à matéria, o lado “visível do
espírito. o conteúdo seria o significado da obra, os sentidos “invisíveisque são evocados
pelo lado sensível da obra. Ambos, forma e conteúdo estariam configurados reciprocamente:
foi dito que o conteúdo da arte é a Idéia e que sua Forma é a configuração sensível
imagética. A arte necessita mediar os dois lados numa totalidade livre e reconciliada
93
.
Hegel procura compreender os diferentes modos como a Idéia do belo artístico se manifestou
na história através dos diferentes modos de relação entre forma e conteúdo das obras de arte.
Ele distingue três modos dessa relação
94
: a forma de arte simbólica, a clássica e a romântica.
Na arte simbólica, a idéia é muito abstrata, indeterminada e, por isso, a forma é deficiente e
casual. A idéia apenas aspira à forma, à figuração, sem que a alcance satisfatoriamente.
Ocorre nesta forma de arte, referente, por exemplo, ao primeiro panteísmo artístico do oriente,
uma inadequação entre forma e conteúdo.
A segunda forma de arte, a arte clássica, é exemplificada pelas esculturas de deuses gregos.
Os deuses gregos assumiam a forma humana, neles a contemplação se destinava a uma
intuição espontânea na representação sensível. Nesta forma de arte, a Idéia é adequada à sua
conformação. Com os deuses gregos, a verdade se adequava ao sensível. A arte clássica, para
Hegel, alcançou o ponto mais alto que a sensibilização da arte foi capaz de alcançar. As fases
superiores de desenvolvimento do espírito, como a religião e a filosofia, não seriam mais da
ordem da manifestação imagética do espírito, ou seja, da arte, mas sim de sua manifestação no
campo do pensamento.
ainda uma terceira forma de arte, a arte romântica, que supera aquela unidade indivisa da
forma de arte clássica, porque adquiriu um conteúdo que transcende esta forma e seu modo de
93
Ibidem, p.86.
94
Ibidem, p.88 à 96.
44
expressão. Este conteúdo da arte romântica coincide com o que o cristianismo afirma acerca
de Deus como espírito que, diferente dos deuses gregos, não pode ser imediatamente intuído
em uma manifestação artística. O deus como espírito, diz Hegel, e não como espírito
individual e particular (como era o caso dos deuses gregos), recua da sensibilidade para a
interioridade espiritual, sendo esta última o conteúdo da arte cristã
95
. O novo conteúdo assim
conquistado não está, portanto, atado à exposição sensível. O conteúdo da arte em seu
terceiro estágio, o romântico, é espiritualidade livre e concreta, mundo interior, na visão de
Hegel. A interioridade triunfaria sobre o mundo exterior, por ser mais espiritual, a verdade
apresentada pela arte romântica faz com que o fenômeno sensível desapareça na falta de
valor. Mas, como toda arte necessita de forma, de exterioridade para sua expressão, surge
novamente indiferença, inadequação e separação entre a Idéia e a forma.
Com os românticos não haveria uma harmonia entre forma e conteúdo e sim uma
preponderância do conteúdo na obra. Por isso, diz Hegel: a arte romântica é a arte se
ultrapassando a si própria, mas no interior de seu próprio âmbito e na própria forma
artística
96
. Os três estágios da arte consistem na aspiração, na conquista e na ultrapassagem
do ideal, como a verdadeira Idéia da beleza. A concepção cristã de verdade afastou-se do
sensível, mas, sobretudo o espírito do mundo atual, diz Hegel, de nossa formação racional,
ultrapassou o estágio no qual a arte seria o modo mais eficiente de o absoluto se tornar
conhecido.
Este é o célebre tema da morte da arte: a arte é e permanecerá para nós, do ponto de vista de
sua destinação suprema, algo do passado
97
. Isso significa que, para Hegel, ultrapassamos o
estágio no qual se podiam venerar obras de arte como divinas. Agora, O pensamento e a
reflexão sobrepujaram a bela arte
98
. A impressão que as obras de arte provocam é de
natureza reflexiva e, por isso, precisamos de uma ciência da arte:
Hoje, além da fruição imediata, as obras de arte também suscitam em nós o juízo, na
medida em que submetemos à nossa consideração pensante o conteúdo e o meio de
exposição da obra de arte, bem como a adequação e inadequação de ambos
99
.
95
Ibidem, p.88.
96
Ibidem, p.95.
97
Ibidem, p.35.
98
Ibidem, p.34.
99
Ibidem, p.35.
45
Hegel, apesar de apontar que a arte tentava se superar através do movimento romântico, faz
várias críticas, especialmente à concepção de ironia de Schlegel. Hegel diz que a ironia se
refere à forma da obra de arte, porém, de modo não-sério, como um excesso da subjetividade
do artista. Trata-se, como podemos observar, de uma interpretação diferente da benjaminiana,
para quem a ironia é uma reflexão filosófica inerente à obra.
As diferenças entre Hegel e Benjamin não podem ser suprimidas. Se Hegel critica os
românticos por apresentarem obras cujo conteúdo excede a forma da arte, o mesmo não
acontece com Benjamin. A crítica deste último aos românticos remete à deficiência na
teorização desses autores sobre a questão do conteúdo da arte. Trata-se de focos distintos,
como podemos ver. No entanto, não necessariamente divergentes. Hegel aponta para o fato de
que nas obras românticas a reflexão sobrepuja a bela forma. Já Benjamin aponta que, na
filosofia da arte romântica, embora a reflexão seja um conceito determinante, o conteúdo da
arte é pouco tematizado.
Com o intuito de esclarecer melhor o universo de sentido com que Benjamin se refere às
noções de forma e conteúdo, retomamos a concepção desse pensador canônico na estética
moderna que é Hegel. Agora, para nos aproximarmos do que forma e conteúdo significam
para Benjamin, sigamos a argumentação do posfácio sobre a manifestação desses conceitos na
teoria da arte romântica e na goethiana.
2.3. A CRÍTICA BENJAMINIANA AOS ROMÂNTICOS
No capítulo anterior vimos que os românticos refletem sobre a arte a partir da noção de forma.
A obra é considerada arte na medida em que sua forma-de-exposição é irônica, ou seja, aponta
para o fato de ser processual, histórica, fragmentária, de demandar para o seu acabamento a
potenciação da crítica de arte. Inicialmente Benjamin mostra que a forma é a expressão
objetiva da reflexão própria à obra. Ela se manifesta enquanto expressão objetiva, ou seja,
como algo relacionado com a materialidade da obra. No entanto, o que caracteriza a forma do
objeto ou de determinada exposição como forma artística é algo imanente ao exposto, mas
46
que se desdobra de modo reflexo no leitor. A conformação é artística na medida em que gera
crítica, ou seja, que sustenta um medium-de-reflexão.
O filósofo berlinense chega também a especificar um duplo conceito de forma. O acima
apresentado corresponderia à forma determinada da obra singular, que se poderia designar
como a forma-de-exposição. Esta forma, no entanto, torna-se vítima da destruição irônica:
Sobre ela [...] a ironia rasga um céu da forma eterna, a Idéia das formas, a que se poderia
denominar de forma absoluta
100
. A forma absoluta, a Idéia da arte seria “invisível”, ou seja,
não corresponderia a nenhuma obra empírica. Seria, antes, um infinito para o qual os artistas
se moveriam no fazer artístico, uma aspiração de absoluto nunca realizada, mas que poderia
ser entrevista em seu devir através do conjunto das obras e suas críticas. Para Benjamin:
Os românticos não conhecem um Ideal da arte. Eles atingem meramente uma
aparência dele via aquelas denominações do absoluto poético, como a moralidade e
a religião. Todas as determinações que Friedrich Schlegel forneceu sobre o conteúdo
da arte, particularmente no Gespräch über die Poesie [Conversa sobre a poesia],
carecem, em oposição a sua concepção de forma, de toda ligação mais precisa com o
que próprio da arte; sem contar que ele tivesse encontrado um a priori desse
conteúdo.
101
Com sua filosofia centrada apenas na noção de forma, conclui Benjamin, os românticos se
esforçam para fazer uma reconciliação imediata do condicionado com o incondicionado.
Através do medium das formas é possível entrever a Idéia da arte. Eles não se preocuparam
com nenhum elemento mediador, nenhum a priori do conteúdo, apenas deram nomes
abrangentes, como moralidade e religião, ao Ideal. Segundo Benjamin: “Juntamente com o
conceito de beleza, ele [o romantismo] rejeita não apenas as regras, como também a medida, e
sua poesia é não só sem regras como ainda sem medida”
102
.
Essa foi a crítica que Benjamin endereçou aos românticos. Para a entendermos mais
profundamente, torna-se necessário introduzir alguns aspectos da filosofia da arte de Goethe
e, logo após, seguir a leitura benjaminiana sobre este pensador. Assim, poderemos avaliar a
importância que Benjamin dá não apenas à forma, mas também ao conteúdo da arte.
100
Ibidem, p. 91.
101
Ibidem, p. 113.
102
Ibidem, p. 120.
47
2.4. A FILOSOFIA DA ARTE DE GOETHE
As obras da época de juventude de Goethe se tornaram marcos do Sturm und Drang, o pré-
romantismo alemão. No entanto, o escritor se afastou cada vez mais dos princípios desse
movimento, principalmente após sua viagem de dois anos à Itália (1786-1788). Neste destino
tão desejado, ele esteve em contato com os originais de obras de arte da Antiguidade Clássica,
passando a valorizá-la cada vez mais, o que lhe rendeu o título de “classicista”. Ao retornar da
viagem, Goethe assumiu um cargo importante na corte de Weimar e, juntamente com
Friedrich Schiller, inaugurou na cidade um novo classicismo, cujo veículo de divulgação era a
revista Propileus (1798-1800).
Goethe era tido pelos românticos, assim como Shakespeare, como modelo para a afirmação de
uma literatura nacional fora dos ditames do classicismo francês. Schlegel questionava os que
desaprovavam a negligência métrica de seus poemas: “Mas as leis do hexâmetro alemão
deveriam ser tão conseqüentes e universalmente válidas quanto o caráter da poesia
goethiana?”
103
. No entanto, Goethe, seguindo uma crítica próxima à hegeliana, procurava
escapar às armadilhas do subjetivismo exagerado e do excesso de especulações abstratas que,
a seu ver, caracterizariam o romantismo. Clássico é o que é são, romântico o que é
doente”
104
, dizia ele.
O classicismo de Weimar, de Goethe e Schiller, era diferente do classicismo de inspiração
francesa que apresentamos no primeiro capítulo. Na tese Helenismo e classicismo na estética
alemã
105
, de Pedro Süssekind, vemos que o classicismo de Goethe e Schiller pode ser
compreendido justamente a partir de sua contestação ao classicismo francês. Os amigos de
Weimar deram continuidade ao projeto winckelmaniano de imitar os gregos, mas essa
imitação não era tal como a produção de uma cópia. Isso significa que, para eles, os modernos
103
SCHLEGEL, 1997, p.21. Lyceum, fragmento 6.
104
GOETHE, Johann Wolfgang von. Do espólio de Goethe (Máximas e reflexões). In: ______. Escritos sobre
arte. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editorial Humanitas, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de SP, 2005, p.270.
105
SÜSSEKIND, Pedro Viveiros de Castro. Helenismo e classicismo na estética alemã. 2005. Tese (Doutorado
em Filosofia). Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ,
Departamento de Filosofia, 2005,
48
deveriam imitar o ideal de beleza clássico, marcado pela harmonia, equilíbrio, simplicidade e
comedimento.
Um texto que mostra a importância exemplar dos gregos para Goethe é o ensaio “Sobre
Laocoonte” (1798), publicado no primeiro número da Propileus. Segundo Süssekind:
[...] Laocoonte é o sacerdote troiano que foi incumbido de realizar um sacrifício a
Posseidon, quando os gregos simularam sua partida da costa e se esconderam no
célebre cavado de madeira deixado como presente para o rei Príamo. Como Virgílio
conta na Eneida [...], quando estava na iminência de revelar a presença dos
guerreiros gregos no interior do cavalo de Tróia, o sacerdote foi castigado pelos
deuses por meio de uma serpente gigantesca, que o matou junto com seus dois
filhos.
No ensaio, Goethe analisa o grupo escultório do Laocoonte que retrata a cena em que os filhos
são enrolados pela serpente e o pai é mordido. No século XVIII se conhecia a cópia em
mármore do grupo (que até hoje pode ser vista no Vaticano), mas atualmente sabe-se da
existência de um original grego de bronze. Goethe explica, com base na sua observação da
obra de mármore, que a obra pode ser sentida, mas não conhecida:
Uma obra de arte autêntica, assim como uma obra da natureza, permanece sempre
infinita para o nosso entendimento; ela é contemplada, sentida, faz efeito, mas não
pode ser propriamente conhecida, muito menos podem ser expressos em palavras
sua essência, seu mérito
106
.
Podemos observar nesta citação a valorização goethiana do sensível sobre o racional. Mesmo
com essa advertência e certa reserva em relação à crítica, Goethe encontra um ganho ao fazê-
lo, uma espécie de exercício. Ele discorre sobre Laocoonte destacando que o grupo escultório
preenche todas as exigências de obra de arte elevada, inclusive a apresentação do Ideal.
A escultura de Laocoonte, como toda arte plástica, tem como objeto supremo o ser humano,
mas ela é única porque levaria a representação ao ápice, que mostraria apenas o que é
essencial. Para isso, o artista necessitou “abranger o objeto em toda sua amplitude, a fim de
encontrar o momento supremo a ser representado e, portanto, de destacá-lo de sua realidade
restrita e dar-lhe medida, limite, realidade e dignidade de um mundo ideal”
107
. O ímpeto e a
dor do sacerdote estão reunidos em um instante que permite mostrar ao mesmo tempo o
sofrimento sensível e o espiritual. Laocoonte é um modelo de simetria e multiplicidade,
106
GOETHE, 2005, p. 115.
107
Ibidem, p.116.
49
repouso e movimento, oposições e gradações que em conjunto provocam um efeito agradável
porque fazem dela uma obra autônoma, “fechada” na terminologia goethiana. Ele descreve o
grupo:
O [filho] mais jovem se defende impotente, ele está apavorado, mas não machucado;
o pai reage com muita força, mas em vão, antes sua reação provoca o efeito oposto.
Ele provoca o seu oponente e é ferido. O filho mais velho é o que está menos
asfixiado; ele não se sente pressionado nem com dor, ele se assusta por causa do
ferimento instantâneo e pelo movimento de seu pai, ele grita e se levanta no
momento em que procura afastar a extremidade da serpente de um de seus pés; aqui,
portanto, temos mais um observador, um testemunho e um participante do ato, e a
obra está concluída.
108
Estão ali os três tipos de sofrimento próprios do homem. A obra provoca a compaixão pelo
filho mais novo, o terror pelo pai e o medo pelo filho mais velho, que ainda pode escapar. Por
isso, Goethe acredita que a obra esgote o seu objeto e preenche com sucesso todas as
condições da arte.
Poderíamos dizer que, apesar de ter início com a observação atenta do corpo humano, a
produção da escultura Laocoonte ultrapassa o que Goethe chama de “imitação simples da
natureza”. Os primeiros românticos de Iena, como vimos, enfatizam o momento de recepção
da obra de arte como essencial para a produção de seu sentido. Já Goethe, embora valorize o
efeito, não tanta importância ao leitor e à crítica quanto os românticos. No ensaio
“Imitação simples da natureza, maneira, estilo” (1789), publicado pouco tempo após o retorno
da Itália, Goethe prefere se ater à esfera da produção das obras de arte.
Para produzir obras belas, o artista deveria primeiramente se exercitar na “imitação simples da
natureza”, que consiste em se dirigir a objetos da natureza e modelos humanos a fim de copiar
exatamente suas formas e cores. No entanto, se o artista não ultrapassa esse estágio da
produção, acaba por se tornar limitado e manejar objetos agradáveis, mas também limitados.
a maneira se refere ao modo como o artista cria uma linguagem própria para expressar o
que a alma apreendeu. Ela se aplica, por exemplo, a imitações em que se deve abrir mão do
singular para apreender o todo, como na pintura de paisagens. Na maneira se destaca o modo
particular como o artista age, ou seja, sua linguagem, que se difere da de outros artistas. Esse
modo de produção revelaria a face mais subjetiva da arte, diferente da objetividade do modo
anterior.
108
Ibidem, p. 124.
50
Existe um terceiro grau da produção artística, síntese dos dois anteriores, que é o mais elevado
que se pode alcançar. Trata-se do estilo. A imitação simples da natureza requer uma
existência tranqüila e uma presença adorável, a maneira, um ânimo leve para apreender o
fenômeno, o estilo “repousa sobre a fundação a mais profunda do conhecimento, sobre a
essência das coisas, na medida em que nos é permitido conhecer a essência em formas
visíveis e apreensíveis”
109
.
Estas três etapas mostram, de forma crescente, os graus em que pode se dar a criação artística
como imitação da natureza. A representação mais elevada não tem como exigência a
fidelidade, mas sim a expressão da perfeição do Ideal, do momento que revele o mais
essencial do que está sendo apresentado. Nesse sentido, o Ideal é arquétipo, um modelo
relativo da arte. Lemos em “O ensaio sobre a pintura de Diderot” (1798):
A arte não empreende uma disputa com a natureza, em sua amplitude e
profundidade, ela se atém à superfície dos fenômenos naturais; mas ela tem sua
própria profundidade, seu próprio poder; ela fixa os supremos momentos desses
fenômenos superficiais, na medida em que reconhece neles o caráter da lei [das
Gesetzliche], a perfeição da proporção conforme a fins [zweckmässigen], o ápice da
beleza, a dignidade do significado, a altura da paixão.
110
Ao chegar a criar ressaltando o valor mais essencial da natureza, é possível que também os
modernos tenham estilo, embora isso seja uma exigência, mais do que uma realidade, como
Goethe ressalta na Introdução à revista Propileus. Ele mostra que é raro na época moderna
que o artista crie “algo de espiritualmente orgânico, de modo que possa dar à sua obra de arte
um tal conteúdo, uma tal forma que faça com que a obra pareça ao mesmo tempo natural e
além do natural”
111
.
A boa obra de arte, na terminologia goethiana, é símbolo. Diferente do alegórico, o simbólico
designa diretamente, e não indiretamente. No símbolo vemos o universal no particular, a
alegoria é um exemplo do universal. Em “Máximas e reflexões” Goethe diz: “O verdadeiro
simbolismo ocorre quando o particular representa o que é mais universal, mas não como
sonho e sombras, como revelação viva e instantânea do que é imperscrutável”
112
.
109
Ibidem, p.65.
110
Ibidem, p.152.
111
Ibidem, p.99.
112
Ibidem, p.261. Máxima 314.
51
Segundo Tzvetan Todorov
113
em sua introdução aos Écrits sur l’art, Goethe buscava a lei
eterna que fundamentava as formas perceptíveis, e por vezes caóticas, da natureza. No
entanto, não se trata de realidades distintas, o geral e o particular só são conjuntamente. A arte
mais elevada é a que corresponde ao ideal de interpenetração do particular e do universal.
Trata-se da possibilidade de uma reconciliação entre a aspiração ao Ideal e a experiência do
Real. A obra feita com estilo, simbólica, tenderia ao equilíbrio entre a subjetividade e a
objetividade. O que Goethe critica é a preponderância de apenas um desses elementos. A
interação entre os dois é o admirável. Tendo em vista que o Goethe maduro criticou os
excessos da estética romântica, ele puxou seu arco para o sentido de uma “nova objetividade”,
visando, segundo Todorov, abandonar a supremacia da interioridade individual.
Por fim destacamos que, no campo de discussão entre forma e conteúdo da arte, Goethe diz:
“O que da obra de arte interessa mais aos homens do que o como
114
. Aqui ele se encontra
com Benjamin, senão totalmente, ao menos na consideração de que o conteúdo da obra deve
ter seu valor destacado.
2.5. ESTILO E FENÔMENO ORIGINÁRIO
Feita essa introdução à filosofia da arte de Goethe, podemos compreender por que Benjamin a
toma como uma teoria oposta à dos românticos. Enquanto os românticos se interessavam pela
Idéia da arte, porque ela seria expressão de sua infinidade e unidade, Goethe se importava
com o Ideal, expressão dos puros conteúdos da arte. Este Ideal se manifestaria em um
discontinuum limitado e harmônico de puros conteúdos, nunca atingidos, mas sempre visados
pela arte. Enquanto a Idéia romântica seria entrevista através da infinita potenciação das
formas, o medium-de-reflexão, o Ideal goethiano seria inconstante e a relação das obras com
ele poderia ser definida como uma refração, já que nenhuma obra o revelaria abertamente. As
obras não poderiam atingir os arquétipos invisíveis porém intuíveis da arte, mas apenas,
em menor ou maior grau, se assemelharem a eles.
113
TODOROV, Tzvetan. Introduction. In: GOETHE. Écrits sur l‟art. Introduction de Tvetan Todorov et notes de
Jean-Marie Schaeffer. Paris: GF Flammarion, 1996.
114
Ibidem, p.268. Máxima 505.
52
Na concepção de Goethe, as esculturas gregas, por exemplo, seriam símbolo do universal, no
entanto, na forma singular da obra. O Ideal se deixaria intuir em cada obra, não haveria um
Ideal abstrato da arte. “O universal e o particular coincidem: o particular é o universal
aparecendo sob diversos condicionamentos”
115
, diz Goethe. As obras não se
complementariam no eterno vir-a-ser da forma romântica de arte, seriam, antes, modelos
relativos que participariam do Ideal como um torso: “Trata-se de um esforço isolado para
expor o arquétipo, e apenas enquanto modelo pode perdurar junto a outros semelhantes a si,
mas estes nunca podem crescer juntos de um modo vivo em direção à unidade do Ideal
mesmo”
116
. Sobre a relação da obra com o incondicionado, ressalta Benjamin, Goethe pensou
de modo resignado.
A forma, que para os românticos era um momento da forma-eterna vivente da arte, para
Goethe se limitava a “estilo”. Segundo Benjamin, pensando a forma como estilo Goethe conta
um mito porque pensa apenas em sentido da normatividade de certos modelos e não fornece
nenhum esclarecimento filosófico. Como conseqüência de seu conceito de forma, ele acaba
por negar a criticabilidade como essencial para a arte. O que interessa, então, a Benjamin, em
sua apresentação da filosofia da arte de Goethe, é a atenção que este dá à questão do
conteúdo, relegada pelos primeiros românticos. Mas qual seria o conteúdo da arte segundo
Goethe? Benjamin esclarece:
A fonte originária da arte não se encontra, segundo a concepção de Goethe, no
eterno vir-a-ser, no movimento criador do medium-das-formas. A arte mesma não
faz seus arquétipos estes se encontram anteriores a toda obra criada, naquela esfera
da arte onde esta não é criação, mas, antes, natureza
117
.
O conteúdo da arte seria, na leitura que Benjamin faz de Goethe, a natureza. Não como a
ciência a designava, não como ela é imediatamente acessível aos olhos, mas sim a verdadeira
natureza, natureza-origem. A imitação da natureza não corresponderia à simples imitação,
mas sim à imitação-estilo, síntese de observação e criação, de receptividade e espontaneidade.
115
GOETHE, 2005, p.269. Máxima 569.
116
BENJAMIN, 2002, p.116.
117
Ibidem, p.114.
53
Segundo Marco Giannotti
118
, para Goethe, a natureza é o único anteparo que permitiria conter
a avalanche romântica.
Essa natureza que é conteúdo da arte seria melhor explicada, segundo Benjamin, por um
conceito que Goethe usou no campo de suas investigações sobre a natureza e não tanto sobre
a arte. Com base nesse conceito Benjamin faz uma relação importante para a sua leitura sobre
a teoria da arte de Goethe: Abarcar a Idéia da natureza e, deste modo, torná-la apta para ser
arquétipo da arte (para ser puro conteúdo), este era, em última análise, o esforço de Goethe
em sua averiguação dos fenômenos originários
119
.
Para compreender melhor o que Goethe entende por fenômenos originários iremos até sua
polêmica Doutrina das cores
120
. O texto, misto de poética e ciência, apresenta uma teoria que
critica Newton e não foi bem aceita pelos cientistas da época. As experiências goethianas se
basearam na observação dos fenômenos luminosos, especialmente ao ar livre e sem uso de
prismas, com o uso apenas do próprio olho.
O interessante na análise de Goethe é mostrar que o fenômeno da cor escapa à física. Esta,
entendida como ciência apoiada em instrumentos, não poderia ter privilégios em detrimento
da observação atenta, por vezes apenas visual, dos próprios fenômenos. um privilégio da
ação sobre a teoria, marca já mencionada anteriormente do pensamento de Goethe que
procura ver o essencial, mais do que apreender em conceitos: ao olharmos atentamente para
o mundo estamos teorizando”
121
. “A suprema tarefa consiste em compreender que tudo o
que é fático é teoria. O azul do céu revela-nos a lei fundamental da cromática. Que não se
procure nada através dos fenômenos: eles mesmos são a doutrina”
122
, diz ele. O procedimento
é semelhante ao de Benjamin no livro das Passagens. No “Caderno N” Benjamin define o
método de seu trabalho, que busca retratar a Paris do século XIX através de uma coletânea de
citações, ensaios e anotações: “Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”
123
.
118
GIANNOTTI, Marco. Apresentação. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Doutrina das cores. Tradução de
Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
119
BENJAMIN, 2002, p. 114.
120
GOETHE, Johann Wolfgang von. Doutrina das cores. Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova
Alexandria, 1993.
121
Ibidem, p.37.
122
Ibidem, p.269. Máxima 575.
123
BENJAMIN, Walter. Passagens. Tradução do alemão de Irene Aron e tradução do francês de Cleonice Paes
Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007,
p.502.
54
As conclusões da Doutrina das cores são excêntricas para a ciência newtoniana. O olho
deveria sua existência à luz, seria semelhante a ela, e possuiria uma espécie de luz interna que
se encontraria com a luz externa. A retina, seguindo o eterno movimento de alternância da
natureza, de sístole e diástole, ação e paixão, produziria cores e também as receberia. Ainda
segundo Goethe, a luz teria uma afinidade essencial com as cores. As cores são ações e
paixões da luz. Citamos o autor: “a cor é um fenômeno elementar da natureza para o sentido
da visão”
124
.
Os “fenômenos elementares”, ou melhor “fenômenos originários” (Urphänomen), são a
essência da manifestação. Não algo transcendente “por trás” do aparente, mas a força mesma
que dirige a aparência, ou seja, as leis da natureza. Os fenômenos originários podem ser
intuídos, mas não podem ser esgotados através de teorias. Sobre o fenômeno originário da
configuração das cores, que é o das relações entre a luz (o claro), a escuridão (a sombra) e a
turvação que se intercala entre elas, Goethe diz:
Os casos que constamos na experiência são, em sua maioria, aqueles que, com
alguma atenção, podem ser compreendidos sob rubricas científicas, que remetem a
algo mais amplo, na medida em que se conhecem mais de perto certas condições
imprescindíveis àquilo que se manifesta. A partir daí, tudo se submete a leis e regras
superiores, que, no entanto, não se revelam por meio de palavras e hipóteses, mas
por meio de fenômenos, nem se revelam ao entendimento, mas à intuição. Nós os
denominamos fenômenos primordiais, pois nada no mundo fenomênico lhes é
superior, ao contrário, partindo deles é possível descer gradualmente até o caso mais
comum da experiência cotidiana, invertendo, assim, a via ascendente feita até
agora.
125
Como nos explica Anatol Rosenfeld em “Goethe: unidade e multiplicidade”
126
, o fenômeno
originário é a esperança de salvação da multiplicidade na unidade, sem que o fenômeno
individual se perca, é a genial intuição de uma categoria intermediária entre a idéia abstrata e
o fenômeno concreto. Segundo o autor:
Essa idéia concreta e plástica [o Urphänomen] transforma-se nos múltiplos
fenômenos individuais por um processo de metamorfose, processo de
desdobramento evolutivo em que o protótipo se diversifica e se multiplica para
tomar as formas infinitamente variadas da natureza, todas elas diferentes, mas cada
uma semelhante à outra, simbolizando assim uma unidade interna e divina
127
.
124
Ibidem, p.45.
125
Ibidem, p.85.
126
ROSENFELD, Anatol. Goethe: unidade e multiplicidade. In: ______. Texto/contexto II. São Paulo:
Perspectiva: 1993.
127
Ibidem, p.263.
55
O físico ou o filósofo que encontra o fenômeno originário alcança o ponto máximo da
empiria, de onde pode ter uma visão retrospectiva e geral de todos os graus da experiência e
talvez até possa, se não adentrar, ao menos entrever o âmbito teórico. No apêndice à sua
tradução da Doutrina das cores, Giannotti destaca que, diferente da idéia para Kant, que é
supra-sensível, o fenômeno originário está no âmbito do sensível. Ele é a lei de todo acontecer
fenomênico.
Embora pertencendo à empiria, o fenômeno originário não pode ser apreendido inteiramente
pela experiência ou por uma linguagem representativa porque: “o Urphänomen evoca uma
Ursprache para poder ser expresso, uma protolinguagem baseada fundamentalmente em
imagens ou hieróglifos”
128
. Como esclarece Patricia Lavelle em Religion et histoire: sur le
concept d’expérience chez Walter Benjamin
129
, o Ideal goethiano de arte é a natureza como
fenômeno originário, ou seja, não enquanto objeto de percepção, mas sim como “pura
perceptibilidade”. Segundo a autora “o ideal goethiano da arte pode ser identificado com a
linguagem adâmica dos puros nomes de seu texto de 1916”
130
.
Benjamin não resolve o problema da oposição entre a Idéia romântica da arte, que funda a
possibilidade da crítica, e a intuição goethiana do Ideal, que a rejeita. Segundo Cláudia Maria
de Castro, na tese A alquimia da crítica: Benjamin, leitor de Goethe, o posfácio à tese sobre
os românticos é uma pequena antítese que coloca questões que encontrarão sua resposta não
apenas em seu ensaio sobre As Afinidades Eletivas de Goethe, mas em toda a obra posterior
de Benjamin. “E assim se define a tarefa da teoria estética benjaminiana, construída como um
híbrido entre aquela dos românticos e aquela de Goethe: realizar uma „crítica metódica‟ [...]
que leve em conta o Ideal da arte
131
.
No próximo capítulo analisaremos o ensaio Sobre as afinidades eletivas de Goethe a fim de
buscar elementos que nos permitam compreender como o próprio Benjamin resolveria a
questão entre forma e conteúdo da arte em sua atividade de crítico. Este finalizamos com a
epígrafe da tese de Benjamin sobre os românticos, uma citação de Goethe:
128
GIANNOTTI, Marco. Apêndice. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Doutrina das cores. Tradução de
Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
129
LAVELLE, Patrícia. Religion et histoire: sur le concept d‟expérience chez Walter Benjamin. Paris: Les
Éditions du Cerf, 2008.
130
Ibidem, p.125. Tradução do francês.
131
CASTRO, Cláudia Maria de. A alquimia da crítica: Benjamin, leitor de Goethe. 2000. Tese (Doutorado em
Filosofia). Departamento de Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC,
Departamento de Filosofia, 2000.CASTRO, 2000, p.136.
56
Antes de tudo... quem compõe uma análise deveria indagar, ou melhor, dirigir a sua
atenção sobre a questão de saber se ele tem realmente a ver com uma síntese
misteriosa, ou se aquilo com o que se ocupa é apenas um agregado, uma
justaposição... ou como tudo isso poderia ser modificado
132
.
132
GOETHE, apud BENJAMIN, 2002, p.15. Goethe, WA, parte II, v. II.
57
3. A CRÍTICA BENJAMINIANA AO ROMANCE AS AFINIDADES ELETIVAS
3.1. O ROMANCE
Na crítica às Afinidades Eletivas, Benjamin ensaia pela primeira vez sua própria concepção de
crítica de arte, ao mesmo tempo em que procura manifestar suas reflexões filosóficas através
desse modo de apresentação. Para compreenderemos sua crítica, façamos uma passagem por
alguns momentos importantes do romance de Goethe. As Afinidades Eletivas se ambienta na
propriedade rural de Eduard e Charlotte, um casal de aristocratas que passam os dias em
harmoniosa convivência. Educados e cordiais, os dois se ocupam basicamente em tornar a
propriedade cada vez mais bela através de construções que realcem a beleza das paisagens.
No entanto, a chegada do Capitão, amigo mais maduro de Eduard, e da bela e tímida Ottilie,
filha adotiva de Charlotte, balançam o falso equilíbrio daquela tranqüilidade rupestre.
Tais como os compostos químicos se desagregam e se reúnem em novos compostos mediante
a introdução de certos elementos, Eduard procura estar cada vez mais tempo com Ottilie, com
quem desenvolve uma intensa paixão; e Charlotte, por sua vez, admira e sente-se cada vez
mais afeiçoada ao Capitão. Goethe usa a imagem das “afinidades eletivas”, oriunda das
transformações químicas, para indicar o que ocorria com as relações humanas sob o signo de
estranhas forças naturais. As “afinidades” designam a qualidade das naturezas que se ligam de
imediato; já “eletivas”, significa que, entre relações possíveis, deu-se preferência a uma
determinada: veem-se os quatro seres [elementos químicos], unidos até então dois a dois,
que, entrando em contato, abandonam a sua união anterior e formam novas”
133
.
O modo como os acontecimentos são narrados é cheio de pressentimentos, e a natureza ocupa
um lugar central no desenrolar da história. Tudo gira ao redor do enaltecimento das belezas
naturais, e as descrições das paisagens, bosques, lagos e caminhos, estão sempre presentes.
Tal como as forças magnéticas da química, tudo parece se desenrolar de modo inexorável sob
133
GOETHE, Johann Wolfgang von. As afinidades eletivas. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Nova
Alexandria, 2008. p.47.
58
o impulso de misteriosas forças naturais, oriundas das entranhas da terra, inclusive a trajetória
dos romances e do casamento entre Eduard e Charlotte.
Mittler, um conhecido cujo nome em alemão remete a “mediador”, mas também à
“medíocre”, o que nos ajuda a perceber o caráter que Goethe queria lhe imprimir, em uma das
conversas com o casal Eduard e Charlotte, dá a seguinte definição do casamento:
[...] o casamento é o princípio e o ápice de toda cultura. Ele torna afável a pessoa
rude, e a mais educada tem melhores oportunidades para demonstrar sua afabilidade.
Ele deve ser indissolúvel, pois traz tanta felicidade, que qualquer infortúnio isolado
não tem nenhum valor diante dele
134
.
No entanto, a história do casamento de Eduard e Charlotte é de declínio, de dissolução,
embora nenhuma ação efetiva de distanciamento seja tomada, ao mesmo passo em que as
paixões também não se concretizam em definitivo. Ottilie, misto de criança e mulher, uma
figura cuja beleza, ressalta Benjamin, é primordial para sua existência no romance, conquista
Eduard de forma irresistível. Este vê em uma taça que não se quebra e em datas que se cruzam
símbolos de um amor predestinado. No aniversário da amada, marcado por um acidente no
lago da propriedade, ele manda preparar fogos de artifício. Ambos se entregam um ao outro
quase ao mesmo tempo em que o Capitão rouba um beijo de Charlotte. Se Eduard, no entanto,
é “mimado” e Ottilie ainda jovem, seus amigos são muito mais controlados e procuram se
afastar.
que todos percebiam o afeto entre Eduard e Ottilie, a solução encontrada por Charlotte,
seguindo um conselho, foi tentar enviá-la novamente ao internato. No entanto, Eduard decide
se afastar para que a amada continue na propriedade. A concretização de seus sonhos, no
entanto, encontrava-se cada vez mais distante: Charlotte esperava um filho seu. Filho este
que, fruto de paixões proibidas, se parecerá mais com os amados do que com seus pais, tinha
as feições do Capitão e os olhos de Ottilie. Eduard vaga pelo mundo e arrisca a vida na
guerra.
Apaixonado, ele resolve voltar à propriedade. Enquanto aguardava que o Capitão (agora
Major) se entendesse com Charlotte na casa, encontra Ottilie cuidando de seu filho junto ao
lago. Sozinhos, se abraçam fortemente, trocam beijos ardentes e, diz o narrador: “a esperança
134
Ibidem, p.71.
59
passou sobre as suas cabeças como uma estrela caindo do céu”
135
. No entanto, tão logo Ottilie
está agitada no meio do calmo lago, o remo lhe escapa de uma mão e, no intuito de recuperá-
lo, o filho de Eduard e Charlotte se afoga e morre.
A dor se abate sobre a casa, Charlotte consente o divórcio, mas Ottilie recusa a se unir com
Eduard, pois nos fatos um castigo à sua falta de fidelidade a sua bem-feitora. Ela une as
mãos do antigo casal com fervor e implora que fiquem juntos. A bela Ottilie se torna, então,
cada vez mais reclusa e calada até o dia em que morre de inanição. Mesmo assim, sua morte
atrai muitas pessoas à capela da propriedade, porque algumas a tinham como santa que
operava milagres. Quando também Eduard morre, de tristeza, Charlotte lhe
compreensivelmente um lugar junto à amada. Goethe termina o romance com as palavras “e
que momento agradável aquele em que um dia despertarão juntos”
136
.
3.2. TEOR COISAL E TEOR DE VERDADE
A crítica As afinidades eletivas de Goethe data de 1922. Benjamin a dedica não à sua mulher
na época, Dora, mas sim à Jula Cohn, escultora berlinense que passou uma época hospedada
em sua casa e com quem teria desenvolvido uma situação afetiva semelhante à do romance.
Como epígrafe à sua crítica, figura uma frase de Klopstock afim à questão ética que será
discutida por Benjamin: “A quem elege às cegas, fumaça do sacrifício golpeia-lhe nos
olhos”
137
.
A crítica de Benjamin tem início com uma reflexão não sobre o romance propriamente dito,
mas sim sobre a essência da própria crítica. Sua investigação sobre As Afinidades Eletivas
poderia parecer um comentário, no entanto, Benjamin esclarece, ela foi pensada como crítica:
“A crítica busca o teor de verdade [Wahrheitsgehalt] de uma obra de arte; o comentário, o seu
teor factual [Sachgehalt]”
138
. Enquanto o teor factual, que chamaremos nessa dissertação de
135
Ibidem, p.189.
136
Ibidem, p.216.
137
KLOPSTOCK, apud BENJAMIN, 2009, p.11.
138
BENJAMIN, 2009, p.12.
60
coisal, se dirige aos Realien, ou seja, aos fatos, coisas, dados do real; o teor de verdade se
dirige à razão pela qual a obra continua viva mesmo com o passar do tempo, a seu núcleo
redentor.
Segundo Cláudia Maria de Castro, que faz uma análise da crítica benjaminiana às Afinidades
Eletivas na tese A alquimia da crítica: Benjamin, leitor de Goethe, “o teor coisal é apenas o
extrato empírico da obra, sua aparência sensível determinada temporalmente e constituída por
todos os elementos que dão forma a uma obra, configurando-a como obra de uma época”
139
.
Por outro lado, também um teor de verdade que se diferencia da materialidade da obra,
trata-se do “eterno” da obra que se destaca por sobre o fundo do dado. Benjamin indica,
portanto, uma fratura na obra, aparência e verdade, embora relacionadas, não se misturam.
Ele usa uma metáfora para distinguir o teor coisal, objeto do comentador, do teor de verdade,
objeto do crítico:
Se, por força de um símile, quiser-se contemplar a obra em expansão como uma
fogueira em chamas vivas, pode-se dizer então que o comentador se encontra diante
dela como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista. Onde para aquele
apenas madeira e cinzas restam como objetos de sua análise, para este tão somente a
própria chama preserva um enigma: o enigma daquilo que está vivo. Assim, o crítico
levanta indagações quanto à verdade cuja chama viva continua a arder sobre as
pesadas achas do que foi e sobre a leve cinza do vivenciado
140
.
O comentador lida com cinzas, com a materialidade da obra, seu teor coisal. o crítico lida
com o teor de verdade, a razão pela qual a chama da obra continua a arder com o tempo.
Ambos, teor coisal e de verdade, estão intimamente relacionados na época de produção da
obra. No entanto, com o passar dos anos, eles se distinguem. Se para os contemporâneos e
para o autor da obra o teor coisal não é nítido porque eles lhes estão muito próximos, com o
tempo o que é próprio da época começa a se evidenciar. Assim, o teor coisal se torna cada vez
mais visível, enquanto o teor de verdade da obra continua oculto.
Como as obras duradouras são aquelas em que o teor de verdade está mais incrustado em seu
teor coisal, é sempre necessário que o crítico se dirija a este, iniciando sua tarefa pelo
comentário. Afinal, o teor de verdade aparece através do teor coisal, ou melhor, “o teor de
verdade revela-se como sendo aquele do teor factual [coisal]
141
. Assim, começando sempre
139
CASTRO, 2000, p.11.
140
BENJAMIN, 2009, p.13 e 14.
141
Ibidem, p.17.
61
pelo comentário, o crítico pode fazer a pergunta fundamental da crítica de arte, que é a de
saber se a aparência do teor de verdade se deve ao teor coisal ou se a vida do teor coisal se
deve ao teor de verdade. Estamos diante de uma verdadeira obra de arte quando seu teor de
verdade é a razão da sobrevivência de seu teor coisal.
O crítico incendeia o dado real, a aparência sensível da obra na qual a verdade se inscreve,
para que esta venha à tona. A tarefa da crítica de arte é fazer emergir o teor de verdade das
obras. Assim, o crítico é aquele que conduz a obra histórica, em processo de decomposição,
para a irrupção de seu teor redentor que decide pela imortalidade da obra. É importante notar,
mais uma vez, a implicação entre aparente e não aparente. O teor de verdade se revela no
contorno da materialidade da obra, apenas em seus interstícios. o uma verdade abstrata
que a obra apresenta de forma transparente. O teor de verdade que o crítico de arte procura é o
teor de verdade do teor coisal. O comentário prepara o terreno para a crítica que, por sua vez,
faz emergir o teor de verdade da obra, que não está imediatamente disponível à visão. Nas
palavras de Castro “é apenas através da mediação do transitório, historicamente variável,
conteúdo material que o acesso ao conteúdo de verdade de uma obra de arte pode ser
atingido”
142
. Por isso, para Benjamin, toda interpretação é profundamente histórica.
A obra precisa “morrer”, no sentido de ser alvo de uma destruição crítica, para que seu teor de
verdade possa emergir filosoficamente das ruínas do efeito. O processo de decomposição, de
análise da obra, faz brilhar, no entanto, sua “significação redentora”. Ao criticar o mito da
obra de arte clássica, e a ilusão de bela aparência por ela projetada que leva a uma falsa
totalidade, Benjamin aponta para a beleza como ilusão. Através da mortificação do transitório
teor coisal, “a obra pode ser transposta do transitório médium da beleza para o sagrado reino
da verdade”
143
. Esta é a tarefa da crítica de arte.
Desde o início da crítica de Benjamin, temos vários elementos que nos permitem relacionar a
terminologia que ele utiliza com as noções de forma romântica de arte e conteúdo goethiano.
Acreditamos poder relacionar o teor coisal da obra, sua materialidade, seus componentes
históricos, com o que os românticos chamaram de forma-de-exposição, ou seja, a forma
empírica, vítima da destruição irônica da obra que a conecta à forma absoluta, a Idéia da arte.
Outro índice dessa semelhança é que o teor coisal deve arder em uma chama e, de seus restos,
142
CASTRO, 2000, p.14.
143
Ibidem, p.15.
62
surge o teor de verdade da obra. Ora, como vimos no primeiro capítulo, a forma-de-exposição
deve “morrer” para fazer visível a imagem do todo.
No entanto, não poderíamos equiparar teor de verdade com a forma eterna da arte romântica,
ainda que existam relações entre elas. A relação é a seguinte: a chama que arde sob a
destruição do teor coisal da obra, ou seja, da sua forma-de-exposição, é um enigma para o
crítico. Como sabemos, a Idéia romântica de arte está diretamente relacionada com a noção de
crítica, ela é o medium-de-reflexão que reúne obras e críticas em um tecido único sempre em
devir. Portanto, o crítico sem dúvida deve estar animado por algo ao menos próximo à Idéia
romântica de arte e acreditar na determinação romântica da essencial criticabilidade das obras
para lançar um olhar curioso sobre a “fogueira” da obra. Não estamos com isso defendendo a
idéia de um absoluto artístico, mas apenas ressaltando o valor dos românticos ao pôr em
relevo a noção de crítica como essencial para a relação entre arte e verdade. Sobre o teor de
verdade, que como veremos mais adiante está relacionado com a noção do conteúdo
goethiano da arte, teremos que percorrer ainda alguns passos da crítica de Benjamin ao
romance de Goethe. Prossigamos.
3.3. O DESTINO MÍTICO
Em sua crítica, Benjamin apresenta duas definições do casamento: a de Kant e a de Mozart.
Opostas, elas representam a visão que a época tinha do casamento. Por um lado a Metafísica
dos costumes fala em uma espécie de contrato sexual; do outro, a Flauta Mágica fala em
fidelidade. Benjamin aponta que na época das Luzes, o teor coisal do casamento seria
realmente o de uma espécie de contrato jurídico. Qual seria a visão de Goethe sobre o
assunto?
Por um tempo, a definição do casamento dada pelo personagem Mittler, jurídico moral, foi
compreendida como a chave de leitura do romance. Em geral, os comentadores entendiam o
romance As afinidades eletivas como uma fábula da renúncia que mostraria que o casamento
é um contrato social que deve ser respeitado. No entanto, é difícil acreditar que o próprio
Goethe tenha concordado com tal definição ao colocá-la na boca do único solteiro da história
63
que também era o mais inconveniente. Ainda que de forma não intencional, pode-se dizer que
com essa definição Goethe tocou no conteúdo objetivo do casamento, ou seja, na forma como
o casamento era compreendido na época: não a expressão do amor, mas sim um contrato.
No entanto, Goethe parece não apontar para isso como mérito, mas sim mostrar as forças que
se originam da dissolução desse contrato. O que o romance mostra, ainda que o próprio autor
não estivesse completamente consciente disso, são as forças ocultas que emergem com a
destruição do casamento. Goethe, segundo Benjamin, achou imprescindível a manifestação da
norma jurídica nessa obra, “pois ele não queria, como Mittler, fundamentar o casamento, mas
sim mostrar aquelas forças que dele nascem no processo de seu declínio [...] os poderes
míticos da lei”
144
. Isso tudo, diz Benjamin, sem que o próprio Goethe tenha tido clara
definição disso que sua obra mostra.
A atmosfera das Afinidades é muito mais de decadência do que de triunfo moral do
casamento. Benjamin aponta que, apesar de esclarecidos, os personagens deixam que o curso
de suas ações seja definido por oráculos. É como se a natureza tivesse uma poderosa força
magnética no desenrolar de suas ações. Ottilie e Eduard são os mais suscetíveis às forças
subterrâneas e deixam-se conduzir pela atmosfera que parece empurrar a tudo de forma
inexorável. Charlotte e o Capitão, ainda que mais controlados, também não m forças para
interromper o curso trágico dos acontecimentos. O filho de Eduard e Charlotte nasce com a
face e os olhos do pecado, a calma água do lago chama para a morte o fruto do crime
cometido pelos personagens sob o impulso daquelas afinidades.
Todos esses acontecimentos, todo o desenrolar do romance, acontece sob as forças
subterrâneas da natureza que conduz tudo de forma magnética, como os elementos se unem
inevitavelmente na química. “Carregada de forças sobre-humanas, como só a natureza mítica
o é, ela entra em cena de forma ameaçadora
145
. Goethe havia advertido na Doutrina das
Cores que a natureza em nenhuma parte está morta ou muda. Segundo Benjamin, as figuras
do romance estão em comunhão com essa força, o que faz com que se manifeste “um poder
oculto na existência desses nobres rurais. Tanto o telúrico como as águas constituem a
144
BENJAMIN, 2009, p.21.
145
Ibidem, p.24.
64
expressão desse poder. Em momento algum o lago nega a sua natureza funesta sob a
superfície morta do seu espelho”
146
.
As figuras do romance estão presas à natureza. Desde o início estão sob o encantamento das
afinidades eletivas. Sobre isso, os críticos sempre notaram a profusão de aspectos paralelos e
presságios neste romance, uma espécie de simbolismo da morte. Também o mistério com que
o próprio Goethe cercava a morte são índices de uma experiência que marcou profundamente
sua fase madura, a experiência da ambigüidade avassaladora e caótica da natureza. Ele a
chamava de “demoníaco”, o domínio da aparência cambiante, enganadora, uma força além
dos sentidos e impossível de ser dominada. Benjamin cita um trecho da autobiografia de
Goethe Poesia e Verdade, em que este diz que:
[...] acreditou descobrir na natureza, na viva e na morta, na animada e na inanimada,
algo que se manifestava em contradições e que, por isso, não poderia ser
apreendido sob nenhum aspecto, muito menos sob uma palavra. Não era divino, pois
não parecia racional; não era humano, pois não possuía entendimento; nem
diabólico, pois era benévolo; nem angelical, pois com frequência deixava
transparecer malícia. Assemelhava-se ao acaso, pois não mostrava conseqüências;
parecia-se com a Providência, pois não denotava congruência. Tudo o que nos limita
parecia ser-lhe penetrável; parecia dispor arbitrariamente dos elementos necessários
de nossa existência; contraía o tempo e expandia o espaço. Parecia se comprazer
somente no impossível e com desprezo parecia afastar de si o possível A este ser
que parecia se interpor entre todos os demais, que parecia segregá-los e vinculá-los,
dei o nome de demoníaco, segundo o exemplo dos antigos e daqueles que haviam
percebido algo semelhante. Procurei salvar-me desse ser terrível
147
.
Segundo Benjamin, o demoníaco acompanha toda a existência de Goethe como uma espécie
de angústia mítica. O medo da morte, que conhecemos pela recusa de Goethe em ver
cadáveres e também pela sua obstinada luta para manter sua própria memória para a
posteridade, é apenas a outra face dessa angústia que tem como resultado também o medo da
vida, “o medo perante o poder da vida e de sua amplitude, motivado pela reflexão; o medo de
que a vida possa fugir do controle”
148
. Essa característica que o culto ao autor teria deixado
escapar a vários críticos é essencial para a leitura que Benjamin faz do romance.
No romance, as forças ocultas da natureza parecem guiar o curso dos acontecimentos o que
mostra o quanto a escrita de Goethe era marcada pela experiência do demoníaco. Esta
violência sobreviveu aos anos de “esclarecimento” e agora emergia em traços da própria
146
Ibidem, p.24.
147
GOETHE, apud BENJAMIN, 2009, p.48 e 49.
148
BENJAMIN, 2009, p.52.
65
civilização, ou seja, a violência mítica da natureza se desenvolvia nas relações sociais, o que
leva Benjamin a aproximar as esferas do direito e do mito. Os personagens do romance são
pessoas cultas, esclarecidas, de boa educação, fazem parte da aristocracia ilustrada. No
entanto, todos os bons costumes de seus hábitos, tão diferentes do mundo de superstições do
medievo, representariam uma forma inesperada de violência. Segundo Benjamin:
Elas [as figuras do romance] [...] submetem-se no auge de sua formação cultural a
forças que essa formação considera dominadas, por mais que a cada vez se mostre
incapaz de subjugá-las. Essas forças deram aos seres humanos o senso para o que é
conveniente; já para o que é moral, eles o perderam. [...] eles seguem seu caminho
sentindo, porém surdos; enxergando, porém mudos. Surdos perante Deus e mudos
diante do mundo.
149
Para Benjamin o teor coisal do romance não é o casamento, mas sim o mito. O casamento,
tido como contrato, mostra em sua dissolução a violência arcaica do mito, que vem sob nova
roupagem, uma segunda natureza mítica, representada pelas idéias de destino e culpa. “Essa
espécie fatídica do existir, que engloba em si naturezas vivas num único contexto de culpa e
expiação, o autor desdobrou-a ao longo de toda obra”
150
, ressalta Benjamin.
Os personagens do romance sucumbiram em sua inércia e indulgência à força magnética de
um destino a qual não poderiam se rebelar, destino este que, para Benjamin, é mera aparência
de vida, não a vida mesma. Quando os personagens entregam o curso de suas vidas à idéia do
destino, eles se eximem da responsabilidade de tomar o próprio rumo, de tomar decisões. O
destino representa a redução da vida humana à natureza. O destino, diz Benjamin, é o
contexto de culpa do vivente, é o modo como a idéia do demoníaco se manifesta no romance.
Não se trata de culpa moral, mas sim de culpa natural, na qual “os homens incorrem não por
decisão e ação, mas sim por suas omissões e celebrações”
151
. Não respeitando o humano, os
homens sucumbem ao poder da natureza e sua vida é arrastada para baixo pela vida natural.
Se o homem desceu a esse ponto, então até mesmo a vida de coisas aparentemente mortas
ganha poder, o homem deixa-se guiar por oráculos e sinais exteriores.
Quando a vida está sob o signo das misteriosas forças da natureza não vida propriamente,
mas sim mera vida. Por outro lado, quando o homem toma decisões e assume a
responsabilidade, fala-se de vida justa, a vida liberta do círculo do mito. Para Benjamin, é a
149
Ibidem, p.26.
150
Ibidem, p.31.
151
Ibidem, p.32.
66
idéia do demoníaco que emerge da idéia de destino nas Afinidades. O homem, amarrado pelos
poderes do mito, tem medo de morrer e se aferra ao sucessivo sobreviver aos dias, como
quem se agarra a uma aparência para manter a ilusão. Este é o tempo do retorno do mesmo, o
tempo da angústia. Ainda segundo Benjamin, “menos hesitação teria trazido liberdade, menos
silêncio teria trazido clareza, menos complacência, a decisão”
152
.
Sob o signo da vida culpada, o destino de Ottile é inevitável. Para Benjamin, “toda escolha,
considerada a partir do destino, é „cega‟ e conduz, cegamente à desgraça”
153
. A lei
transgredida exige, no contexto mítico de culpa, o sacrifício com vistas à expiação do
casamento abalado: “Sob o arquétipo mítico do sacrifício, consuma-se nesse destino o
simbolismo da morte. Ottile está predestinada a isso. Como uma conciliadora”
154
. Por isso,
apesar de seu suicídio, ela morre como mártir deixando restos mortais milagrosos. Para o
delito jurídico da violação do casamento, no plano tico, a expiação estava concedida com a
derrocada dos heróis.
Goethe acreditava que seu romance era uma fábula da renúncia. No entanto, diz Benjamin, no
romance o ético jamais vive de modo triunfante, mas vive apenas e tão somente na derrota.
Assim, o conteúdo moral dessa obra encontra-se em níveis muito mais profundos do que as
palavras de Goethe permitem supor”
155
. Com isso ele considera que a oposição entre o sensual
e o moral, que Goethe considerava o centro da obra, são insuficientes e insustentáveis frente à
exclusão da luta ética interior como um objeto da representação poética. Querer compreender
o romance a partir das palavras do autor é esforço inútil, diz Benjamin, que “elas estão
destinadas a impedir à crítica o acesso”
156
.
3.4. NÚCLEO LUMINOSO DO TEOR DE REDENÇÃO
Apesar de o conteúdo factual do romance As afinidades eletivas ser o mito, segundo
Benjamin, este livro representa um ponto de virada na obra goethiana. Isso porque o autor
152
Ibidem, p. 22.
153
Ibidem, p. 34.
154
Ibidem, p. 34.
155
Ibidem, p. 41.
156
Ibidem, p. 43.
67
tentaria de alguma forma se salvar do demoníaco. Em suas obras tardias é possível perceber
esse protesto contra o mundo mítico com o qual sua idade madura havia selado um pacto.
Nesse sentido, ainda que sem ter consciência disso, Goethe deixou índices no romance que
permitem aos críticos posteriores saírem das amarradas do mito. “Se na série das obras da
velhice [de Goethe] a primeira é As afinidades eletivas, então, por mais obscuro que o mito aí
vigore, uma promessa mais pura deve ser visível nesse romance”
157
. Essa promessa mais
pura” corresponde, segundo Benjamin, ao “núcleo luminoso do teor de redenção”
158
da obra,
onde a esperança de salvação aparece. Trata-se de uma pequena novela inserida no romance
intitulada “Os jovens vizinhos singulares”.
Um amigo conta a Charlotte e Ottilie a seguinte história. Duas crianças da vizinhança
cresciam juntas e os pais tinham a perspectiva de que se casariam no futuro. No entanto, essas
duas excelentes naturezas desenvolveram entre si uma estranha antipatia. Bondosos e amáveis
ao extremo, eram perversos e até odiosos entre si. Os pais acabaram por renunciar a suas
doces esperanças e, separados, o jovem se tornou meritoso na carreira militar e a jovem foi
pedida em noivado por um respeitável homem mais velho. Quando o jovem veio passar férias
na cidade, a jovem descobriu que seu ódio infantil era, na verdade, reconhecimento do valor
íntimo, e as recordações, agora doces, revelavam o amor que ela sentia por ele. Ele, no
entanto, continuava a tratá-la como irmã.
Então, um dia, para que ele jamais a esquecesse, ela, que estava junto a todos em um navio
nas festividades de seu noivado, lhe arremessou uma guirlanda e se jogou ao mar revolto. O
jovem que estava no comando acabou encalhando o navio, mas se jogou em seguida para
salvar a jovem. Ambos foram levados pela correnteza, mas o jovem conseguiu carregar sua
rica carga até terra firme. Em uma moradia solitária um jovem casal o ajudou a reanimar a
jovem cujo corpo havia sido despido pelo jovem para salvar-lhe a vida que parecia esvair-se.
Após os socorros a jovem se recuperou e, não tendo vergonha de seu corpo nu, abraçou o seu
amigo pedindo que ele nunca mais a abandonasse. O jovem retribui a essa declaração de amor
e ambos se vestiram com os trajes nupciais do casal que os acolheu. De volta à margem
acenaram para o navio.
157
Ibidem, p.72.
158
Ibidem, p. 61.
68
“Que estou vendo!”, exclamaram os pais. Os dois jovens salvos atiraram-se aos pés
deles. “Seus filhos!”, exclamaram. “Um casal! Perdão”, implorou a moça.
“Abençoem-nos!” pediu o rapaz. “Abençoem-nos!”, exclamaram ambos, já que todo
mundo tinha emudecido de espanto. “Abençoem-nos!”, ressoou pela terceira vez, e
quem poderia recusar essa benção?
159
Benjamin assinala pontos de contraste entre essa novela e o restante do romance, pontos que
passaram despercebidos à bibliografia secundária sobre o romance. Em especial, destaca o
final feliz da novela, que se diferencia bastante do desfecho do romance
160
. Segundo
Benjamin, esta novela inserida no romance uma imagem do verdadeiro amor, amor que os
personagens do romance não foram capazes de alcançar por estarem presos ao destino mítico.
Talvez por isso, Charlotte e Ottilie se retirem comovidas e com certo desagrado após o relato
dessa história.
Segundo Benjamin, a novela faz surgir o teor de verdade do romance. A novela que se passa à
luz do dia faz romper a atmosfera pesada do romance, cujos personagens deixam-se levar por
símbolos externos em direção à morte. O casal da novela, por outro lado, age corajosamente
no momento decisivo, casam-se e encontram a vida feliz. O importante, diz Benjamin, é a
ação no instante da decisão. Este é o índice de irrupção da verdade no mito: “Uma vez que
esses seres não arriscam tudo partindo de uma liberdade concedida de modo falso, não ocorre
um sacrifício entre eles, mas sim uma decisão dentro deles”
161
, destaca Benjamin.
Os amantes da novela não alcançam a paz por meio do sacrifício, não é este, ressalta
Benjamin, o significado do salto fatal da jovem. Quando ela atira a guirlanda para o jovem
sua intenção secreta, revela Benjamin, é uma : “expressar que ela não quer „morrer na
beleza‟, nem ser coroada na morte como uma sacrificada”
162
. A bela não é jovem como
Ottilie, mas para os que se amam de verdade, a beleza do amado não é o decisivo. E o sentido
de que o jovem desnude a amada não é para contemplar sua beleza, mas sim para salvar-lhe a
vida. A imagem do corpo nu é uma marca da verdade sublime. Segundo Benjamin: “na nudez
sem véu a beleza essencial é removida e no corpo nu do ser humano é alcançado um estado de
ser acima de toda beleza o sublime, e uma obra acima de todas as imagens a do
criador”
163
.
159
GOETHE, 2008, p. 177.
160
Cf. nota 40 de Marcus Vinicius Mazzari em BENJAMIN, 2009.
161
BENJAMIN, 2009, p.77.
162
Ibidem, p.77.
163
Ibidem, p.113.
69
O que importa é que a selvageria a que a jovem foi capaz é uma decisão eterna, fruto de uma
violência divina que se opõe ao quimérico desejo de liberdade dos personagens do romance,
ao seu sacrifício pelo mito do direito. O direito é apenas aparência de justiça, diz Benjamin,
não a justiça mesma.
Os amantes da novela estão além da liberdade e do destino,e a sua decisão corajosa é
suficiente para romper o destino que se avoluma sobre eles e para desmascarar uma
liberdade que pretendia degradá-los à nulidade de escolha. É esse o sentido de sua
ação nos segundos da decisão. Ambos mergulham na correnteza viva cujo poder
benéfico não se manifesta com menos força nesse acontecimento do que, no
romance, o poder letal das águas dormentes.
164
Assim como a qualidade de aparentar define a beleza de Ottilie, também a reconciliação que
ela promete é apenas aparente. Para Benjamin a verdadeira reconciliação acontece perante
Deus: “um salto perante a morte caracteriza aquele momento em que os jovens amantes, cada
um por si perante Deus, empenham-se em nome da reconciliação”
165
. É preciso um
elemento aniquilador para a verdadeira reconciliação. Segundo Benjamin, “uma prudência
ímpia impõe a ausência ameaçadora de paz a todos aqueles que são por demais pacíficos”
166
.
Os personagens do romance deixam morrer a paixão pela obediência cega às leis morais, pelo
pacto com a vida burguesa, a “estreita passarela da pura civilidade humana”
167
.
Os vizinhos são “singulares” especialmente para os personagens do romance que tanto se
diferenciam deles: “Pois aqui reina a calma anterior à tormenta; na novela, reinam a
tempestade e a paz. Enquanto o amor guia os amantes reconciliados, aos outros resta a
beleza enquanto aparência de reconciliação”
168
. Segundo Benjamin, nas figuras da novela,
Goethe apresentou o emblema do verdadeiro amor, amor que não correspondia à aproximação
dos personagens do romance. Para Benjamin, aos motivos míticos do romance, correspondem
os da novela como motivos da redenção: “Se, desse modo, o mítico é abordado no romance
como tese, a antítese pode ser encontrada na novela”
169
. O dia da decisão, de realização da
justiça, é o da redenção. Sobre ele Benjamin diz “tão somente a decisão, não a eleição, está
inscrita no livro da vida. Pois a eleição é natural e pode até pertencer aos elementos; a decisão
164
Ibidem, p.77.
165
Ibidem, p.96.
166
Ibidem, p.97.
167
Ibidem, p.98.
168
Ibidem, p.98.
169
Ibidem, p.78.
70
é transcendente”
170
. E acrescenta: “É o dia da decisão que lança o seu brilho no Hades
crepuscular do romance”
171
.
A impressão que o casal nos é de que eles não têm mais destino, o que lhes confere a
sensação de completo amparo na existência. Sobre isso, Benjamin ressalta a grande imagem
do navio aportando no lugar onde os jovens se unem. Este é o ponto no qual os outros ainda
têm que chegar um dia. Segundo Castro, trata-se de “uma beatitude fulgurante que está, toda
ela, contida na miniatura do instante. Para Benjamin, esse é o verdadeiro sentido da „salvação
na vida eterna‟. A única eternidade que nos é dada nessa vida”
172
.
3.5. POR UMA ESTÉTICA DO SUBLIME
Benjamin faz uma crítica da aparência de beleza em prol de uma verdade sublime. O que
veremos a seguir é como, pela quebra da unidade simbólica da obra de arte, ocorre a
passagem do belo ao sublime. Segundo Benjamin, os princípios demoníacos da invocação
invadem também a própria criação poética nas Afinidades Eletivas. A teoria estética de
Goethe, que é marcada pelos ideais de moderação e equilíbrio, seria contaminada pelas
potências do mito. A beleza da obra de arte remeteria a uma totalidade harmônica com a
natureza. Cláudia Castro aponta que a crítica estética de Benjamin ao romance está centrada
na noção de beleza, ou melhor, no caráter persuasivo da beleza que nas Afinidades aparece
como símbolo de uma reconciliação enganosa. Segundo a autora: “isso não passa de ilusão, de
prestidigitação. A arte definida como ideal de beleza e reconciliação reenvia à presença
enganadora de um significado pleno, fora do tempo e fora da história”
173
.
No romance, a beleza se mostra vinculada a uma forma feminina: a bela aparência de Ottilie.
Em vários momentos é ressaltada a sua beleza, seu próprio nome remete ao de uma santa e
significa “consolo para os olhos”. É fácil se encantar pela beleza de Ottilie, porém, trata-se de
170
Ibidem, p.103.
171
Ibidem, p.76.
172
CASTRO, 2000, p.107.
173
Ibidem, p.140.
71
uma aparência exterior, na medida em que o interior da personagem é trancado. Ela quase não
fala, se comporta passivamente, o pouco que conhecemos de seus pensamentos se deve aos
apontamentos de seu diário. Trata-se, para Benjamin, de uma beleza sem essência, o que
aponta para os poderes satânicos da bela aparência:
Nas Afinidades eletivas [...] os princípios demoníacos da invocação irrompem bem
no âmago da criação poética. Pois o que é invocado é sempre apenas uma aparência
em Ottilie, a beleza viva que se impôs com força, de forma misteriosa e não
purificada, como “matéria” no sentido mais poderoso.
174
A beleza de Ottilie é um símbolo da unidade simbólica da obra de arte. O perigo para a obra
que se entrega a esse encantamento é o de perder a sua tarefa principal, que é quebrar as
forças míticas que dominam a bela aparência para fazer emergir a verdade da obra. Para
Benjamin, mito e verdade são mutuamente excludentes. A aparência de reconciliação que o
romance promete se mostra, por exemplo, no sacrifício de Ottilie, em sua morte como
conciliadora. Um sacrifício inútil. Sua decisão de morrer parece um mistério até o final e seu
mutismo vegetal lança sombras sobre suas reais intenções. Por que ela não sentiu culpa antes,
mas apenas após seu erro fatal? Como entender esse emudecer da consciência?
[...] isso toca as raízes da moralidade de sua decisão. Pois se o mundo moral mostra-
se em alguma parte iluminado pelo espírito da língua, isso acontece na decisão.
Nenhuma decisão moral pode ganhar vida sem uma forma lingüística e, a rigor, sem
ter se tornado um objeto de comunicação. Por isso, no silêncio absoluto de Ottilie, a
moralidade da vontade de morrer que a anima torna-se questionável.
175
Para Benjamin, o que a motiva não foi uma decisão e sim um impulso. Seu morrer é uma
forma de preservá-la de sua ruína interior, uma ânsia de repouso. Por isso, ao contrário de
outros críticos, Benjamin recusa ver a existência de Ottilie como sagrada. Pelo contrário, é
uma existência dessacralizada, “e isso nem tanto por ter pecado contra um casamento em
ruínas, mas antes pelo fato de, subjugada até a morte no aparecer e no devir de uma violência
fatídica, ir levando a vida na indecisão”
176
. Aos que a designavam heroína trágica, Benjamin
contesta que somente um verdadeiro herói, não uma “moça hesitante” pode alcançar uma
purificação trágica. Não se pode conceber nada menos trágico do que esse deplorável
fim”
177
, diz ele. Apenas na novela “Os jovens vizinhos singulares” a obra mostra uma imagem
174
Benjamin, 2009, p.89 e 90.
175
Ibidem, p. 84.
176
Ibidem, p.85.
177
Ibidem, p.86.
72
da verdadeira reconciliação. O aspecto violento com que esses amantes arriscam a vida não se
equipara à morte lenta e à decadência do quarteto do romance.
Para Benjamin, diferente da beleza de Ottilie, a verdadeira beleza deve remeter a algo mais
espiritual. Ele critica a visão mítica da obra de arte cuja bela aparência não remeta à verdade
ou, para usar a terminologia que nos interessa mais, que não remeta a um conteúdo de
verdade. Cabe à crítica de arte, em sua “violência divina”, romper o círculo mítico da obra,
destruir a beleza aparente para que possa apontar a verdade sublime e salvadora da obra.
Sublime porque, enquanto palavra moral, esta verdade se relaciona com a aparência, mas não
é aparência; e salvadora porque, assim como a crítica, para Benjamin, também a criação
poética tem como tarefa a interrupção do curso fatal da história.
Segundo Castro, “aqui a autoridade do crítico é imperativa, pois cabe a ele apontar esse
conteúdo de verdade das obras, essa essência espiritual exigida tanto para a arte quanto para a
filosofia, e que constitui justamente o critério de conteúdo que Benjamin estava buscando
como complemento do critério de forma”
178
. A crítica de Benjamin é ao mesmo tempo
histórica e teológica. Sobre isso a autora tem as seguintes palavras:
A verdadeira tarefa da arte e da filosofia é a eliminação do mito. E a crítica estética
se define como uma intervenção prática, que visa interromper o curso do tempo
histórico, sua seqüência interminável de dominações, para abrir novas possibilidades
de sentido. Quando Benjamin afirma que não documento de cultura que não seja
documento de barbárie é ao privilégio das forças míticas que ele está se referindo,
pois elas também se insinuam nas obras de arte e da cultura
179
.
A este poder da crítica que suspende o fluxo de representações na obra e faz emergir a palavra
moral ali escondida, Benjamin o nome de inexpresso, o que na obra é sem-expressão. A
obra apresenta a vida em harmonia, porém, diz Benjamin: “o que põe termo a essa aparência,
o que prescreve o movimento e obsta a harmonia é o sem-expressão [das Ausdruckslose].
Aquela vida funda o mistério, este enrijecimento funda o conteúdo na obra”
180
. Ou seja,
uma íntima relação entre o critério de conteúdo que Benjamin procura e o conceito do sem-
expressão. Este “consegue arrancar a verdade do subterfúgio feminino”
181
, neste momento,
diz Benjamin “o belo é obrigado a justificar-se”, porém, interrompido na sua justificação,
178
CASTRO, 2000, p.141.
179
Ibidem, p.142.
180
BENJAMIN, 2009, p.92.
181
Ibidem, p.92.
73
obtém a eternidade de seu conteúdo. Benjamin fala, de forma concentrada, sobre o sem-
expressão:
O sem-expressão é o poder crítico que, mesmo não podendo separar aparência e
essência na arte, impede-as de se misturarem. Ele tem esse poder enquanto palavra
moral. No sem-expressão aparece o poder sublime do verdadeiro, na mesma medida
em que ele determina a linguagem do mundo do real de acordo com as leis do
mundo moral. É o sem-expressão que destrói aquilo que ainda sobrevive em toda
aparência bela como herança do caos: a totalidade falsa, enganosa a totalidade
absoluta. o sem-expressão consuma a obra que ele despedaça, fazendo dela um
fragmento do mundo verdadeiro, torso de um símbolo.
182
Ainda segundo o filósofo berlinense, o sem-expressão é rigorosamente definido em uma
passagem do Édipo de Hölderlin, mas lá recebe o nome de cesura:
O transporte trágico é, na verdade, vazio e o mais desvinculado possível. Desse
modo, na sequência rítmica das representações em que o transporte se apresenta,
torna-se necessário isso que se denomina a métrica de cesura, a palavra pura, a
interrupção contrarrítmica, para fazer frente à mudança rápida das representações em
seu ponto mais alto, de tal maneira que apareça o mais a mudança da
representação, mas sim a própria representação.
183
O inexpresso na obra, portanto, é o que dá poder ao crítico. Beleza e verdade são levadas pelo
inexpresso a pararem de se misturar. O inexpresso impede essa mistura para que o verdadeiro,
cujo poder é sublime, possa emergir enquanto palavra moral. A esfera da verdade implica o
declínio do mundo do mito, por isso, o inexpresso destrói a bela aparência, da totalidade
enganosa e a despedaça, em uma “interrupção contrarrítmica”, para que a obra participe como
fragmento do mundo verdadeiro. Nas palavras de Castro:
O inexpresso suspende, arranca a vida da expressão, e a conduz à responsabilidade
moral. [...] Para toda a teoria da arte benjaminiana estamos diante de uma obra
autêntica quando esta imprime na aparência o inexpresso. Porque ele é o ponto de
suspensão de toda obra, onde o seu conteúdo coisal, a pura materialidade, é
questionada; presente imóvel por trás do tempo contínuo da narração, entre o mito
que se coloca como passado e a redenção que aponta para o futuro. Enquanto
experiência da própria origem da obra, ele historiciza o seu tempo que justamente
porque se mostra como contínuo, se revela, na realidade, imóvel. Freiar o tempo
também é tarefa da crítica
184
.
182
Ibidem, p.92.
183
Ibidem, p.93.
184
CASTRO, 2000. p.153.
74
Segundo Winfried Menninghaus, no artigo Lo inexpressivo: las variaciones de la ausência
de imagen em Walter Benjamin
185
, no texto sobre As afinidades Benjamin faz uma crítica do
belo através da noção do sublime. E é na agressão furiosa da jovem da novela, em sua nudez
que alcança uma essência superior a toda beleza e no trânsito de decadência da beleza de
Ottilie que o sublime aparece na obra. Segundo Menninghaus, o sem-expressão se relaciona
com a proibição judia das imagens de Deus porque também para a essência moral do homem
não é possível fazer imagens. A verdade sublime não se manifesta no “mundo da percepção”,
mas sim na espiritualidade sem forma do corpo desnudo ou do cadáver.
O poder sublime do verdadeiro, que Benjamin denomina “o inexpresso está na obra, porém,
como o próprio nome diz, escondido. Cabe ao crítico interromper o encantamento em um
movimento de ruptura, de fratura que faz da obra ruína, mas que, em assim fazendo, participa
de um “messianismo revolucionário”. Esse messianismo faz com que conheçamos a
verdadeira irmã da obra de arte: a filosofia. Não nenhuma pergunta que possa abranger o
problema da filosofia, mas na multiplicidade das obras de arte, a crítica pode extrair o Ideal
do problema. Ideal este que aparece na própria obra, e não como uma verdade abstrata, “Pois
o que a crítica demonstra por fim na obra de arte é a possibilidade virtual de formular o seu
teor de verdade como sendo o mais elevado problema filosófico”
186
. Segundo Benjamin:
Se for permitido dizer que todo belo se relaciona de algum modo com o verdadeiro e
que o seu lugar virtual na filosofia pode ser determinado, isso significa então que em
cada obra de arte verdadeira pode ser encontrada uma manifestação do ideal do
problema. Resulta daí que, desde o momento em que a consideração dos
fundamentos do romance se eleva à contemplação de sua perfeição, a filosofia, e não
o mito, está convocada a guiá-la
187
.
No parentesco entre arte e filosofia, Benjamin aponta uma questão que lhe é cara, a da relação
entre arte e verdade, termos que não devem ser entendidos como âmbitos separados, pois
possuem uma amizade fraternal. O poder filosófico do inexpresso aparece, diz Benjamin, no
emudecer do herói trágico, e no protesto do ritmo nos hinos de Hölderlin. Um hino, diz ele,
dificilmente será chamado de belo. No entanto, a obra de Goethe leva o oposto, a beleza
aparente, ao auge de sua manifestação, o que a torna mais clara inclusive para o crítico: “Se
naquela lírica é o sem-expressão, na lírica de Goethe é a beleza que surge até o limite daquilo
185
MENNINGHAUS, Winfried. Lo inexpressivo: las variaciones de la ausência de imagen em Walter Benjamin.
In: MASSUH, Gabriela; FEHRMANN, Silvia (orgs). Sobre Walter Benjamin: vanguardias, historia, estética y
literatura. Uma visión latinoamericana. Buenos Aires: Alianza Editorial, 1993.
186
BENJAMIN, 2009, p.81.
187
Ibidem, p.81
75
que pode ser apreendido numa obra”. No entanto, com a crítica de Benjamin, Ottilie não pode
mais ser tomada como santa, como heroína, sua beleza é apenas aparente. O romance que
tenta seduzir pelo poder das estranhas afinidades não alcança mais complacência com o
destino dos personagens.
Através da crítica podemos ver, na combustão do teor coisal do livro (o destino mítico), a
chama do teor de verdade que estava oculto (a bem-aventurança do dia da decisão). A novela
“Os jovens vizinhos singulares” aponta para o inexpresso que pode ser alcançado pela crítica,
ou seja, a eliminação do destino mítico. Segundo Lavelle “a relação entre a idéia romântica da
forma e o ideal goethiano do conteúdo aparece de algum modo no ensaio sobre As Afinidades
Eletivas, sob o aspecto da relação entre o inexpresso e a aparência na obra de arte singular"
188
.
Poderíamos acrescentar: entre o teor de verdade e o teor coisal do romance
Importa para Goethe pensar o conteúdo das obras de arte que, como vimos no segundo
capítulo, se refere à apresentação da natureza verdadeira, ou seja, a natureza como fenômeno
originário, que se distingue da natureza visível e também da natureza abstrata da ciência. Essa
natureza verdadeira seria o conteúdo das obras. Assim como o teor de verdade benjaminiano,
não se trata de um conceito abstrato, mas sim de algo que se manifesta no olhar atento ou,
como no caso da verdade moral de Benjamin, no ouvir atento, na empiria. O fenômeno
originário tem semelhanças com o conceito do inexpresso porque também ele não está visível
na manifestação, é uma essência que as obras alcançam por refração (diferente da
potenciação romântica). Além disso, quando a obra de arte é capaz de apresentar um
fenômeno originário ela atinge o máximo de plenitude da arte, assim como o inexpresso
corresponde ao brilho maior da obra. E, se em Goethe podemos falar da unidade na
pluralidade das obras, o teor de verdade enquanto teor de verdade do teor coisal também se
manifesta enquanto descontinuidade.
No entanto, apesar dessas aproximações do teor de verdade, ou seja, do inexpresso, com o
conteúdo goethiano da arte, Benjamin não deixa de fazer também críticas à Goethe. Para ele,
a estética de Goethe é fundada no mito da beleza aparente, da obra clássica com seus ideais de
harmonia e equilíbrio. Além disso, pelo motivo de Goethe jamais ter aclarado por inteiro o
reino dos fenômenos originários, ele “privou-se da possibilidade de estabelecer limites. De
188
LAVELLE, p.126. Tradução do francês.
76
forma indiferenciada, a existência sucumbe ao conceito de natureza que cresce
monstruosamente”
189
. O que Goethe não descobriu, segundo Benjamin, é que apenas no
âmbito da arte os fenômenos originários enquanto ideais apresentam-se de forma
adequada à contemplação. Os fenômenos originários “não existem diante da arte; eles estão
nela”
190
, e não podem servir de parâmetro, diz Benjamin.
Por isso, a idéia da crítica em Benjamin tem como objetivo liberar o teor de verdade da obra.
Mas este teor, embora seja equivalente à idéia de fenômeno originário, não se refere à
natureza. Segundo Castro “Podemos dizer que as idéias [teor de verdade das obras] de
Benjamin estão para a história assim como os fenômenos originários de Goethe estão para a
natureza. Essa transposição se torna mais clara ao apresentarmos o conceito de origem de
um livro publicado apenas três anos após o ensaio de Benjamin sobre Goethe: A origem do
Drama Barroco Alemão.
A origem [Ur-sprung] é a constelação formada por idéias (teor de verdade) e fenômenos
(obras de arte). Ela difere de uma gênese paradisíaca dos acontecimentos, pois se localiza “no
fluxo do vir-a-ser como um torvelinho, e arrasta em sua corrente o material produzido pela
gênese”
191
. A origem explode o continuum histórico. Se as obras “podem sobreviver” isso se
na medida em que elas formam uma constelação de origem com o “receptor” da obra, ou
seja, em que elas lampejam em uma leitura atual. Para Benjamin, as obras de arte constituem
a manifestação fenomenal do teor de verdade enquanto origem, por isso sua importância
histórica. Castro cita uma nota de Benjamin redigida no momento de preparação do livro
sobre o Drama Barroco:
Estudando a apresentação simmeliana do conceito goethiano de verdade em
particular sua explicação excelente do fenômeno originário [...] -, eu compreendi
irrefutavelmente que meu conceito de origem na Origem do Drama Barroco Alemão
é uma transposição rigorosa e peremptória deste conceito fundamental de Goethe, do
domínio da natureza naquele da história. “A origem”, é o fenômeno originário
tomado no sentido teológico
192
.
Sobre “sentido teológico” é interessante observar, seguindo os apontamentos de Gagnebin em
“Teologia e Messianismo no pensamento de Walter Benjamin”, que para ele a teologia - dita
189
Ibidem, p.47.
190
Ibidem, p. 46.
191
BENJAMIN, 1984, p.67 e 68.
192
BENJAMIN, apud CASTRO, 2000, p.56.
77
“pequena e feia” nas teses Sobre o conceito de história - “não ousa se manifestar, mas, no
entanto, permanece indispensável”
193
. Por teologia Gagnebin entende não o discurso
religioso dogmático, mas sim o discurso sobre Deus que já é consciente desde o início que seu
“objeto” lhe escapa. Assim, a teologia é a imagem da ausência que possibilita à linguagem
criar novos sentidos
194
. Essa acepção também é considerada apropriada ao uso do termo em
Benjamin por Susana Kampff Lages, como podemos observar no artigo “Entre diferentes
culturas, entre diferentes tradições o pensamento constelar de Walter Benjamin”
195
: a
teologia “é o saber que tem consciência da intangibilidade fundamental do seu objeto”
196
.
Voltando a nossa argumentação sobre a relação entre o teor de verdade e o conteúdo das
obras, vemos que o inexpresso se refere justamente ao mistério revelado pela crítica de arte e
que este mistério é teológico. É o mistério da ausência que possibilita a linguagem humana
nomear, ainda que de modo diverso do que na situação paradisíaca a linguagem muda das
coisas. O inexpresso tem ligação com a moralidade porque abriga em si o ethos filosófico que
possibilita ao homem sua escrita.
Em sua tese de doutorado
197
, Cláudia Castro retoma uma imagem da teologia heterodoxa da
cabala, citada por Benjamin nas Categorias da estética, muito pertinente para a relação que
estamos tentando apreender entre o inexpresso e a moralidade através da experiência de
abertura de linguagem propiciada pelas obras de arte e suas críticas. Trata-se da imagem do
ato criador como um afastamento de Deus, uma separação entre criador e criatura. Na
linguagem cabalística de Isaac Luria explicada por Scholem, a existência do universo seria
possível por uma contração”, “retração” ou “retirada” de Deus. Sem o esforço repetido pelo
qual Deus se contém não seria possível a existência do mundo. Afinal, como poderia existir
um mundo se Deus está em toda parte?
198
. Esta separação originária entre criador e criatura,
193
GAGNEBIN, 2010.
194
Nas palavras de Benjamin (que não pudemos aprofundar nessa dissertação): “nunca pude buscar e pensar de
outra forma, se assim ouso dizer, que não em sentido teológico, isto é, de acordo com a doutrina talmúdica dos
49 graus de sentido de cada passagem da Torá”. BENJAMIN, apud GAGNEBIN, 2010.
195
LAGES, Susana Kampff . Entre diferentes culturas, entre diferentes tradições o pensamento constelar de
Walter Benjamin. In: Caderno de Letras da UFRJ, nº 23. Rio de Janeiro, mai 2007. Disponível em: <
http://www.letras.ufrj.br/anglo_germanicas/cadernos/numeros/0X2007/textos/cl23052007susana.pdf>. Acesso
em: 23 de março de 2010,p.51.
196
Ibidem, p.51.
197
CASTRO, 2000, p.34-38.
198
SCHOLEM, apud CASTRO, 2000, p.35.
78
“este afastamento de Deus que traz à luz a criatura, que a faz emergir à visibilidade, à
aparência, é também o estabelecimento da ordem moral"
199
, explica Castro.
Eis porque em suas Categorias da Estética Benjamin afirma que mesmo não
ingressando na filosofia da arte como uma causa, “a criação tem com freqüência
uma conexão com a grande obra de arte: enquanto conteúdo”. Pois a criação é um
dos temas mais poderosos da arte. “Todas as obras de arte possuem como conteúdo
de alguma maneira a criação”, na medida que a obra é a sua colocada em forma
(Form). Apresentar a criação, expô-la: essa é a “autêntica essência” de toda a forma,
seu conteúdo mais “elevado e sublime”.
200
Mediante a retração de Deus, a ausência que torna possível a vida da criatura, esta participa
do movimento de criação de sua vida moral e, no caso das obras de arte, na percepção de um
além da aparência que abre espaço para a reflexão. Cito novamente Castro:
Além do ver, a responsabilidade moral, para onde aponta o conteúdo de verdade
das obras [...] Assim, o autor é origem da obra pois nela se inscreve como criatura
que participa da exigência moral. E essa experiência de origem é a experiência de
toda a escrita, que apenas neste sentido pode ser chamada de autobiográfica. Pois ela
é, justamente, a experiência da fratura, rachadura que atravessa o sujeito e toda a sua
experiência vivida, a ausência que constitui a possibilidade da obra [...] Se por um
lado somente o “devir outro” de Deus faz aparecer a criatura, por outro somente a
retração de Deus a faz penetrar na esfera da moralidade.
201
Repetimos Benjamin: “„A origem‟, é o fenômeno originário tomado em sentido teológico”
202
.
Mediante o afastamento da criatura em relação a Deus e mediante a Queda, o homem cai na
confusão das línguas e nas abstrações do juízo. No entanto, mesmo no domínio do aparente,
uma chama inexpressa: o fenômeno originário da história, que as obras de arte apresentam
de forma teológica, ou seja, nos interstícios da presença. O teor de verdade das obras, seu
conteúdo, é moral na medida em que teológico, na medida em que (como veremos no tópico a
seguir) apresenta o mistério da beleza, salvando-a da bela aparência.
Antes disso, no entanto, ressaltamos que, justamente onde parece faltar (no campo do
conteúdo da obra), a Idéia romântica de arte se faz presente. Isso porque, apesar de acusada de
esteticismo, esta idéia aponta para uma atividade filosófica, trata-se de um medium-de-
reflexão. A Idéia da crítica romântica de arte é a idéia da exposição do núcleo prosaico da
obra que só pode emergir através da destruição da forma-de-exposição. A forma eterna
romântica está em íntima relação com o teor de verdade da obra, que é pela abertura do
199
Ibidem, p.34.
200
Ibidem, p.37.
201
Ibidem, p. 37 e 38.
202
BENJAMIN, apud CASTRO, 2000, p.56.
79
juízo que o homem ingressa no campo da moralidade, é pela possibilidade da crítica que a
obra pode salvar.
3.6. O OBJETO EM SEU ENVOLTÓRIO
A figura de Ottilie leva à questão de saber se beleza é aparência. Benjamin responde: tudo o
que é essencialmente belo está ligado sempre e de modo essencial, mas em graus
infinitamente diferenciados, à aparência”
203
. Toda beleza artística habita a aparência, “aquele
tanger e delimitar a vida”, define Benjamin. Sem essa aparência a beleza artística não é
possível. No entanto, essa aparência não é a essência da arte, “esta, pelo contrário, indica mais
profundamente aquilo que na obra de arte, contrapondo-se à aparência, pode ser designado
como o sem-expressão”
204
. Segundo Lavelle “se manifestando imediatamente na vida da
aparência, a beleza da obra não é uma pura aparência pois ela não é natureza, mas sua
essência reenviada ao inexpresso que está na sua origem, ou seja, ao domínio da liberdade”
205
.
Apesar da recusa de Benjamin em deixar que beleza e verdade se misturassem, o sem-
expressão mantém uma relação necessária com a aparência. O belo, “ainda que ele mesmo
não seja aparência, deixa de ser essencialmente belo quando a aparência desaparece dele”
206
.
A beleza não é aparência, não é a verdade que se tornou visível, destaca Benjamin, porém a
aparência pertence ao essencialmente belo enquanto envoltório. Não é possível desvelar a
verdade do belo, porque, diz Benjamin:
A beleza não é aparência, não é um envoltório para encobrir outra coisa. Ela mesma
não é aparição, mas sim inteiramente essência uma essência, porém, que se
mantém, em impregnação essencial, idêntica a si mesma apenas sob velamento. Por
isso, pode ser que a aparência iluda por toda parte: a bela aparência é o envoltório
lançado sobre aquilo que é necessariamente o mais velado. Pois o belo não é nem o
envoltório nem o objeto velado, mas sim o objeto em seu envoltório
207
.
203
BENJAMIN, 2009, p.110.
204
Ibidem, p.111.
205
LAVELLE, 2008, p.161. Tradução do francês.
206
Ibidem, p.111.
207
Ibidem, p.112.
80
Segundo Castro “é preciso mergulhar no conteúdo coisal, na materialidade das obras para
encontrar seu conteúdo de verdade, sua essência espiritual”
208
. A beleza não pode ser
desvelada, não se trata de uma verdade teórica que pode ser revelada e sim de encontrar o real
por refração. Isso significa que pertence sempre ao belo um segredo, o envoltório é essencial
porque “o fundamento divino do ser da beleza reside no mistério”
209
.
Por isso, não é possível desvelar o belo, e a impossibilidade deste desvelamento é, segundo
Benjamin, a idéia da crítica de arte, cuja tarefa “não é tirar o envoltório, mas antes elevar-se à
contemplação do belo mediante a percepção mais exata do envoltório enquanto envoltório”
210
.
A crítica expõe a fissura escondida na unidade simbólica da obra de arte, a fissura entre forma
e conteúdo, entre o véu e o velado. Através da crítica a obra se transforma em símbolo
quebrado e assim a obra pode ser destruída e salva porque apresenta alegoricamente seu teor
de verdade. A crítica visa justamente o hiato entre forma e conteúdo, leva essa fissura ao
máximo, mas tudo isso para salvar a unidade misteriosa dessa união. Lemos no prefácio a tese
de livre-docência Origem do Drama Barroco Alemão:
211
[O Belo] não se manifesta no desvendamento e sim num processo que pode ser
caracterizado metaforicamente como um incêndio, no qual o invólucro do objeto, ao
penetrar na esfera das idéias, consome-se em chamas, uma destruição, pelo fogo, da
obra, durante a qual sua forma atinge o ponto mais alto de sua intensidade
luminosa
212
.
Na destruição pelo fogo do conteúdo sensível da obra ocorre sua entrada no mundo das idéias,
ponto mais intenso e luminoso da beleza. A beleza, uma “intensa claridade”, atinge seu ápice
em sua própria destruição através da filosofia, destruição esta que não deixa de ser uma
elevação. Por isso, a destruição crítica através do tratado revela mais intensamente a beleza de
um fenômeno. Através da crítica filosófica, a verdade pode fazer justiça e revelar o segredo da
Beleza. O segredo? Segundo Katia Muricy, em Alegorias da dialética: imagem e pensamento
em Walter Benjamin,
213
O segredo é este: que a verdade se revele no sensível cambiante”.
208
CASTRO, 2000, p.159.
209
BENJAMIN, 2009, p.113.
210
Ibidem, p.112.
211
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
212
Ibidem, p. 53 e 54.
213
MURICY, Katia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro:
Relume Dumará, 1998, p.142.
81
Não se trata aqui, portanto, do segredo da beleza aparente, satânica, da magia do mito de uma
reconciliação imediata; mas sim do segredo da obra cujo teor de verdade continua oculto no
tempo e pode arder ainda mais tarde. O sentido da obra, seu teor de verdade, precisa que
imobilizem a aparência para que, no cessar da harmonia empática da obra, a beleza possa
emergir como mistério. Mistério do velado, teor de verdade do teor coisal sempre. Benjamin
explica: “Toda beleza, assim como a revelação, conserva em si regras histórico-filosóficas.
Pois a beleza não torna a idéia visível, mas sim o seu segredo”
214
.
Além da aparência a obra possui um mistério inexpresso. Não uma mensagem, uma moral da
história, mas sim a possibilidade de uma interpretação que a salve no presente e que salve o
presente das amarras do mito. O mistério inexpresso funda a possibilidade de que o expresso
se em um medium entre a obra e seu leitor. Ele é a perceptibilidade da função nomeadora
da linguagem humana. O inexpresso, o núcleo teológico (de abertura de possibilidades de
sentido) da obra é o fundamento do conteúdo moral da mesma.
Castro lembra que, se “o mistério é o núcleo teológico da beleza, o seu teor redentor”
215
, na
crítica que Benjamin faz ao romance de Goethe, isso não significa que em textos posteriores
ele tenha abandonado essa idéia. Em A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica,
de 1935, Benjamin critica o conceito de aura, o mistério da obra de arte, mediante o perigo do
domínio fascista também no campo estético. Não vamos nos aprofundar nessa discussão, mas
deixamos aqui a intuição de Castro de que ele não tenha negado em sua reflexão posterior o
que foi dito neste ensaio. Segundo a autora, “ao contrário, em suas investigações sobre a
modernidade, ele sempre tratou da mesma questão salvadora, a interrupção misteriosa do
curso mítico da história, cultivando a esperança, embora à sua maneira”
216
.
Sobre o sem-expressão do romance, Benjamin diz: “[a novela] ao mesmo tempo traz para
dentro o reflexo do dia claro, ou mesmo do dia sóbrio. E essa sobriedade parece sagrada, o
mais espantoso é que somente para Goethe ela não o seja”
217
. Além da novela, há outro índice
que poderia passar despercebido ao crítico, mas que contém, diz Benjamin, a cesura da obra.
Trata-se de uma frase que o narrador diz quando, abraçados, Eduard e Ottilie selam o seu fim:
214
Ibidem, p.113.
215
CASTRO, 2000, p.160.
216
Ibidem, p.160.
217
BENJAMIN, 2009, p.114.
82
“A esperança passou como uma estrela que cai do céu por sobre suas cabeças”
218
. Os
personagens não se dão conta dela, mas o narrador deixa entrever uma fagulha de esperança.
Uma esperança fugidia, que se levanta sob a aparência de reconciliação, “na mesma medida
em que, extinguindo-se o sol, desponta a estrela da tarde no crepúsculo, a qual sobrevive à
noite [...] sobre esse brilho ínfimo repousa toda esperança; e até mesmo a mais rica advém
somente dele”
219
.
A aparência de reconciliação é a morada da esperança não em um mundo belo, mas sim em
um mundo bem-aventurado. Por isso a essência nazarena do final do romance está tão fora de
lugar, para Benjamin o é essa essência nazarena, “mas sim o símbolo da estrela caindo por
sobre os amantes que constitui a forma de expressão adequada daquilo que, de mistério, em
sentido exato, habita a obra”
220
. A estrela cadente é a coroação dramática do mistério da
esperança” que, mais do que a conciliação, promete a redenção. Segundo Benjamin, “à
certeza da benção que os amantes da novela levam para casa responde a esperança de
redenção que acalentamos para todos os mortos”
221
. A conclusão da crítica de Benjamin é um
comentário à lápide que Stefan George colocou sobre a casa natal de Beethoven em Bonn:
Antes que vos fortaleceis para a luta em vossa estrela
Canto-vos combate e vitória de altas estrelas.
Antes que alcanceis o corpo nesta estrela
Invento-vos o sonho em eternas estrelas
222
Ao que Benjamin conclui: “Esse „antes que alcanceis o corpo parece destinado a sublime
ironia. Aqueles amantes jamais o alcançaram o que importa se eles jamais se fortaleceram
para a luta? Apenas em virtude dos desesperançados nos é concedida a esperança”
223
.
218
GOETHE, apud BENJAMIN, 2009, p.119.
219
BENJAMIN, 2009, p.120.
220
Ibidem, p.120.
221
Ibidem, p.120.
222
Ibidem, p.121.
223
Ibidem, p.121.
83
CONCLUSÃO
Acreditamos que, no ensaio sobre As Afinidades Eletivas de Goethe, Benjamin além de
teorizar sobre forma e conteúdo da arte através de sua argumentação sobre o teor de verdade,
o inexpresso e o teor coisal, faça ele mesmo uma crítica exemplar que conta da relação
entre a Idéia romântica e o Ideal goethiano. Obviamente, o que disso resulta não é uma síntese
simples, mas sim o modo com que se a crítica do próprio Benjamin, que é a que mais nos
interessa.
Benjamin apresenta em sua crítica uma distinção entre teor de verdade o teor filosófico da
obra de arte, inexpresso, que precisa ser extraído pela atividade salvadora da crítica e o teor
coisal. O teor de verdade é teor moral, tem como tarefa a eliminação do mito em prol de uma
vida redimida, uma vida em que haja espaço para a liberdade das decisões. Nesse sentido,
Benjamin critica a bela aparência de Ottilie, tão enganosa quanto a falsa totalidade e a
reconciliação que a obra clássica apresenta. o teor coisal do livro consiste na segunda
natureza mítica que surge entre os traços da própria “civilização”, nas convenções sociais, no
direito, na figura do destino.
Mesmo que a obra de Goethe leve a beleza aparente até o máximo possível em uma
representação artística, ele não deixa de indicar nessa obra uma “promessa mais pura”, algo
de que ele mesmo não teve clareza. Benjamin, atento à fissura entre beleza e verdade na obra,
mostra o núcleo redentor da obra, a imagem da novela “Os jovens vizinhos singulares” que,
nas palavras da crítica de arte, manifesta a possibilidade de rompimento do destino mítico
através do dia da decisão.
Como Benjamin aponta no posfácio à sua tese sobre os românticos, a tarefa do crítico em sua
época era a de estabelecer uma relação entre a Idéia romântica da arte e o Ideal goethiano, ou
seja, entre forma e conteúdo. A teoria benjaminiana exposta no seu ensaio sobre As
Afinidades Eletivas é justamente um “híbrido” (uso o termo de Castro) entre aquela dos
românticos e a de Goethe.
Não temos como intuito concluir um problema cujo encaminhamento talvez nem termine no
ensaio sobre Goethe e que, de qualquer forma, está imbuído da linguagem filosófica cheia de
imagens poéticas de Benjamin. Mas, como meio de compreendermos melhor a problemática
84
que Benjamin traça no posfácio e ensaiar alguns passos na densa floresta da relação entre arte
e verdade, ou entre arte e ética, arriscamos deslindar alguns nós da tessitura da crítica
benjaminiana.
Primeiramente apontamos, com Benjamin, que, embora opostas em seus princípios, a teoria
estética goethiana e a teoria romântica devem ser relacionadas. Benjamin deseja salvar, com
os românticos, a importância da criticabilidade das obras de arte, rejeitada por Goethe.
Importa quebrar a totalidade harmônica da obra, a beleza aparente, através da visão de que
uma fratura na obra de arte. A beleza não é tudo, também o selo de algo inexpresso que
pode ser revelado. O teor coisal se assemelha à noção da forma-de-exposição romântica das
obras de arte. Os românticos afirmavam que era necessário destruir a forma, através da sua
noção de ironia. Para os românticos a obra tinha como conceito correlato o de crítica. A Idéia
da arte, a forma eterna, que é também algo de não-expresso na obra, determina a
possibilidade da crítica, caríssima à forma de apresentação da verdade para Benjamin. No
entanto, o que disso emerge pouco tem a ver com um conteúdo específico da obra, em relação
ao qual os românticos, acusados de esteticismo, se referiam vagamente à moral ou à religião.
O teor de verdade que surge das cinzas do teor coisal deve ser um conteúdo mais específico,
estudado pormenorizadamente pela crítica. Aqui, portanto, Benjamin se aproxima mais de
Goethe, para quem era essencial refletir sobre o conteúdo da obra de arte, identificado por ele
como o fenômeno originário da natureza. Ora, também para Benjamin o teor de verdade se
aproxima do fenômeno originário, que a verdade não é algo teórico, abstrato, que se insere
na obra como um objeto em uma caixa. A verdade da obra, embora diversa, está em íntima
relação com a materialidade, com os aspectos históricos, com o visível, com a empiria, assim
como os fenômenos originários de Goethe. Outra semelhança é que estes fenômenos se
manifestariam em uma pluralidade de puros conteúdos e, para Benjamin, o Ideal do problema
filosófico também se encontra na descontinuidade do teor de verdade das obras. A relação
com a verdade é de refração, apesar da potenciação da crítica. E não podemos deixar de
destacar que a criticada Idéia romântica da arte é a de um medium-de-reflexão que vise
potenciar o germe crítico, ou seja, de pensamento, presente na própria obra.
No entanto, diversamente de Goethe, o Ideal da arte para Benjamin não se relaciona com a
natureza, mas sim com a história, ou seja, com o compromisso com o rompimento do mito, a
explosão de qualquer continuum significativo de margem à dominação. Por isso a beleza
85
dá lugar à sublime palavra moral. Na crítica ocorre a quebra e também a restauração. Com ela
é possível articular a forma (Idéia) e o conteúdo (Ideal) da arte. A frase mais marcante de
Benjamin nesse sentido é: “O teor de verdade revela-se como sendo aquele do teor factual
[coisal]
224
. A crítica não pretende meramente destruir o envoltório, mas sim compreendê-lo
enquanto envoltório, enquanto combustível para uma verdade que pode durar, e não uma
beleza aparente que turve a visão do mais essencial.
Em resumo: procuramos articular a noção de forma-de-exposição romântica com a de teor
coisal do ensaio de 1922: ambas se referem à materialidade da obra. Por outro lado,
procuramos relacionar a noção do conteúdo goethiano da arte (que Benjamin tomava como o
fenonômeno originário da natureza) com a noção de teor de verdade das obras, que, em
Benjamin, deveria estar mais relacionado com a história. Este teor de verdade só pode emergir
na palavra moral da crítica de arte, por isso, uma vez mais, recorremos aos românticos e sua
idéia da Forma Eterna da Arte como um conceito profundamente enraizado na possibilidade
da crítica.
Não é possível falar de crítica sem falar de um teor moral. E este teor moral não é moralista,
mas sim teológico, ou seja, que aponta para a ausência na linguagem que torna possível um
novo “nomear” do homem. Este é o principal legado que pudemos depreender desse estudo.
Retornando à imagem apresentada na introdução do mito bíblico da criação e da Queda
compreendida como um pecado lingüístico, poderíamos dizer que não mais como retornar
à linguagem de Adão. Não é possível mais uma reconciliação imediata. A nomeação deu
lugar ao juízo. No entanto, há também aqui uma barbárie positiva
225
.
Através da Queda é possível a redenção justamente pela palavra, pela instância crítica que
extrai do inexpresso a verdade moral. A esfera religiosa (que une) do nome pode ser
reencontrada no tempo irremediável da Queda através da pluralidade de significações
construídas na história, dizemos com Lavelle. E ainda com ela:
É na dimensão simbólica da linguagem decaída que, pelo retorno do julgamento
sobre ele mesmo na reflexão, a imaginação se torna criativa, e pode assim atingir a
esfera da liberdade que, para o autor das Afinidades Eletivas de Goethe é esta da
verdade, onde a arte e a filosofia são possíveis.
226
224
BENJAMIN, 2009, p.17.
225
Para usar uma idéia do ensaio de Benjamin Experiência e Pobreza In: BENJAMIN, 1994, p.114.
226
LAVELLE, 2008, p. 117. Tradução do francês.
86
REFERÊNCIAS
ANDRADE, Pedro Duarte de. Estio do tempo: o amor entre arte e filosofia na origem do
romantismo alemão. 2009. Tese (Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de
Filosofia, 2009.
BENJAMIN, Walter. As afinidades eletivas de Goethe. Tradução de Mônica Krausz
Bornebusch. In: ______. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. Tradução de Mônica
Krausz Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2009.
______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana. Tradução de Maria Luz
Moita, In: ______. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Traduções de Maria Luz Moita,
Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto. Lisboa: Relógio D‟Água, 1992.
______. Obras escolhidas I: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história
da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Tradução de Márcio
Seligmann-Silva. 3ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2002.
______. Origem do drama barroco alemão. Tradução de rgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
______. Passagens. Tradução do alemão de Irene Aron e tradução do francês de Cleonice
Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2007.
______. The correspondece of Walter Benjamin, 1910-1940 / edited and annotated by
Gershom Scholem and Theodor W. Adorno; translated by Manfred R. Jacobson and Evelyn
M. Jacobson. Chicago, EUA: The University of Chicago Press, 1994.
CASTRO, Cláudia Maria de. A alquimia da crítica: Benjamin, leitor de Goethe. 2000. Tese
(Doutorado em Filosofia). Departamento de Filosofia. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PUC, Departamento de Filosofia, 2000.
D‟ANGELO, Paolo. A estética do romantismo. Tradução de Isabel Teresa Santos. Lisboa:
Estampa, 1998.
87
FERREIRA, António Gomes. Dicionário de latim-português. Lisboa: Porto editora, 1983.
FICHTE, Johann Gottlieb. A doutrina-da-ciência de 1794 e outros escritos. Seleção de textos,
tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho. 5ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1992.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 2007a.
______. Nas fontes paradoxais da crítica literária: Walter Benjamin relê os românticos de
Iena. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org). Leituras de Walter Benjamin. 2ª ed. São Paulo:
FAPESP: Annablume, 2007b.
______. Teologia e Messianismo no pensamento de Walter Benjamin. In: Estudos Avançados,
vol. 13, 37, São Paulo, set/dez 1999. Disponível em: <
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40141999000300010&script=sci_arttext>.
Acesso em: 21 de março de 2010.
GIANNOTTI, Marco. Apêndice. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Doutrina das cores.
Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
______. Apresentação. In: GOETHE, Johann Wolfgang von. Doutrina das cores. Tradução
de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria, 1993.
GOETHE, Johann Wolfgang von. As afinidades eletivas. Tradução de Erlon José Paschoal.
São Paulo: Nova Alexandria, 2008.
______. Doutrina das cores. Tradução de Marco Giannotti. São Paulo: Nova Alexandria,
1993.
______. Escritos sobre arte. Tradução de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editorial
Humanitas, São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de SP, 2005.
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Introdução. In: ______. Cursos de Estética I. Tradução
de Marco Aurélio Werle. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valério Rodhen e António
Marques. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
88
LAGES, Susana Kampff . Entre diferentes culturas, entre diferentes tradições o pensamento
constelar de Walter Benjamin. In: Caderno de Letras da UFRJ, 23. Rio de Janeiro, mai
2007. Disponível em: <
http://www.letras.ufrj.br/anglo_germanicas/cadernos/numeros/0X2007/textos/cl23052007susa
na.pdf>. Acesso em: 23 de março de 2010.
LAVELLE, Patrícia. Religion et histoire: sur le concept d‟expérience chez Walter Benjamin.
Paris: Les Éditions du Cerf, 2008.
MENNINGHAUS, Winfried. Lo inexpressivo: las variaciones de la ausência de imagen em
Walter Benjamin. In: MASSUH, Gabriela; FEHRMANN, Silvia (orgs). Sobre Walter
Benjamin: vanguardias, historia, estética y literatura. Uma visión latinoamericana. Buenos
Aires: Alianza Editorial, 1993.
MURICY, Katia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 1998.
NOVALIS. Pólen. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Iluminuras, 2001.
OLIVEIRA, Bernardo Barros Coelho de. A construção do crítico: Benjamin e os românticos.
In: Revista Artefilosofia. Instituto de Filosofia, Artes e Cultura. Universidade Federal de Ouro
Preto. IFAC, n.6, (abril.2009). Ouro Preto: IFAC, 2009.
______. Olhar e Narrativa: leituras benjaminianas. Vitória: Edufes, 2006.
ROCHLITZ, Rainer. O desencantamento da arte: a filosofia de Walter Benjamin. Tradução
de Maria Elena Ortiz Assumpção. Bauru, SP: EDUSC, 2003.
ROSENFELD, Anatol. Goethe: unidade e multiplicidade. In: ______. Texto/contexto II. São
Paulo: Perspectiva: 1993.
SCHLEGEL, Friedrich. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução de Victor-
Pierre Stirnimann. São Paulo: Imuninuras, 1994.
______. O dialeto dos fragmentos. Tradução de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.
STIRNIMANN, Victor-Pierre. Schlegel, carícias de um martelo. In: SCHLEGEL, Friedrich.
Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Tradução de Victor-Pierre Stirnimann. São
Paulo: Imuninuras, 1994.
89
SSEKIND, Pedro Viveiros de Castro. Caminho principal e caminhos secundários: sobre o
pensamento estético de Walter Benjamin. São Paulo: Cone Sul, 2001.
______. Helenismo e classicismo na estética alemã. 2005. Tese (Doutorado em Filosofia).
Departamento de Filosofia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ,
Departamento de Filosofia, 2005.
______. Shakespeare: o gênio original. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
TODOROV, Tzvetan. Introduction. In: GOETHE. Écrits sur l’art. Introduction de Tvetan
Todorov et notes de Jean-Marie Schaeffer. Paris: GF Flammarion, 1996.
VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no
Brasil. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo