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Universidade Federal do Rio de Janeiro
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Instituto de Psicologia
Mestrado em Teoria Psicanalítica
AndFélix de Sousa
DOR, PRAZER E DESPRAZER NA OBRA FREUDIANA
Rio de Janeiro
Fevereiro/2010
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DOR, PRAZER E DESPRAZER NA OBRA FREUDIANA
André Félix de Sousa
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro,
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria
Psicanalítica.
Orientador: Profª. Drª. Regina Herzog
Co-orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Isabel de Andrade Fortes
Rio de Janeiro
Fevereiro/2010
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DOR, PRAZER E DESPRAZER NA OBRA FREUDIANA
André Félix de Sousa
Orientador: Profª. Drª. Regina Herzog
Co-orientador: Prof.ª Dr.ª Maria Isabel de Andrade Fortes
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
Psicanalítica do Instituto de Psicologia - Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obteão do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.
Aprovada por
_____________________________________________________
Profa. Dra. Regina Herzog Orientadora
____________________________________________________
Profa. Dra. Isabel Fortes Co-orientadora
_____________________________________________________
Prof. Dr. Joel Birman
_____________________________________________________
Prof. Dr. Ricardo Salztrager
Rio de Janeiro
Fevereiro/2009
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ANDRÉ FÉLIX, de Sousa
Dor, prazer e desprazer na obra freudiana/ André Félix de Sousa. Rio
de Janeiro: UFRJ/IP, 2010. 104f
Dissertação (Mestrado em Teoria Psicanalítica)
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, 2009.
Orientadora: Regina Herzog
Co-orientadora: Isabel Fortes
1. Dor 2. Prazer 3. Desprazer 4. Psicanálise - Teses
l. Herzog; Regina (Orientadora). II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.
5
Para Anninha, meu amor.
6
AGRADECIMENTOS
À Isabel Fortes pela co-orientação acolhedora e precisa, com a qual possibilitou que eu
fizesse meu caminho.
À Regina Herzog, que sempre esteve presente nesse meu percurso, ensinando a
aprender e a ensinar.
Ao CNPQ, pela ajuda financeira que me possibilitou realizar a dissertação
Aos meus amigos do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, de ontem,
hoje e sempre, Regina Cibele, Miguel Machado, Alessandra Tavares, Aline Vieira,
Fernanda Passarelli, Julia dos Santos Moura, Brenda Ibeht, Rita Flores, Eduardo
Rotstein.
Aos amigos de todos os dias que estão verdadeiramente presentes, Sérgio Lustosa,
Telma Reis, Julia Martins, Decko Félix, Maria Félix, Taísa Castilho, Michelle Lopes,
Alexandre Paulino, Cris e Flávio Meniuk, Rosana e Duque.
Aos meus pais, Raimunda e Pedro Félix, cuja ausência se torna a cada dia mais
presença.
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RESUMO
Dor, prazer e desprazer na obra freudiana
André Félix de Sousa
Orientadora: Regina Herzog
Co-orientadora: Isabel Fortes
A dissertação investiga como o sujeito lida com o prazer, o desprazer e a dor partindo
das primeiras investigações de Freud sobre o sintoma aa constituição do conceito de
pulo, através do qual a satisfação é definida como parcial. Condição que destaca a
relação bastante particular do sujeito experimentar as sensações de prazer e desprazer
como resultado de um único acontecimento. A pesquisa compreende as sensações de
prazer e desprazer como pertencente ao registro da representação. E mais, procura
demonstrar como o próprio aparelho psíquico, regido pelo princípio de desprazer/prazer,
constitui-se como um aparelho de representação, derivado da força pulsional. Num
último momento, evidenciando a compreensão de Freud sobre a dor como invasão,
transbordamento de energia no aparelho psíquico, vê-se que a dor situa-se no registro
quantitativo, em oposição às sensações de prazer e desprazer. Assim, argumentamos que
prazer e desprazer são formas pelas quais o aparelho psíquico, inscrito na ordem
representacional, lida com a dor.
Palavras-chave: psicanálise, prazer, desprazer, dor, aparelho psíquico.
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Résumé
Douleur, plaisir et déplaisir chez Freud
André Félix de Sousa
Orientadora: Regina Herzog
Co-orientadora: Isabel Fortes
Ce mémoire propose une recherche sur comment le sujet a affaire au plaisir, au déplaisir
et à la douleur, au moyen des premières recherches de Freud dès le symptôme jusqu´à la
formation du concept de pulsion. D´après ce concept-là, la satisfaction sera définie
comme toujours partielle. Cette partialité nous indique qu´un seul et même événement
peut clencher des sensations de plaisir et de plaisir chez le sujet. Notre recherche
comporte les sensations de plaisir et de déplaisir entant qu´appartennant au domaine des
représentations. Et voire, nous cherchons à démontrer comment appareil psychique
lui-même gouverné par le principe de plaisir/déplaisir- est constitué entant qu´un
appareil de représentation, issu de la force des pulsions. Dans un dernier moment, nous
envisageons souligner que Freud comprenait la douleur comme une sorte d´énergie qui
envahissait l´appareil psychique, et est que nous voyons la douleur située dans le
domaine des quantités, par opposition aux sensations de plaisir et de déplaisir. Ainsi,
nous soutenons que le plaisir et le déplaisir sont des façons par lesquelles appareil
psychique- inscrit dans l´ordre des représentations- a affaire à la douleur.
Mots-clés: psychanalyse, plaisir, déplaisir, douleur, appareil psychique.
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SUMÁRIO
Introdução .......................................................................................................................11
O recorte da questão........................................................................................................11
A imporncia do tema....................................................................................................12
A argumentação teórica................................................................................................14
Capítulo 1
Representação e Sintoma
1.1 Sugestão, lembrança, história, idéia .........................................................................17
1.2 Defesa, sintoma, representação e soma de excitação ...............................................23
Capítulo 2
Os descaminhos da satisfação
2.1 Conflito – defesa – sintoma ......................................................................................33
2.2 O sintoma sonhado....................................................................................................36
2.3 Sofrimento ou satisfação? ........................................................................................43
2.4 Pulsão e satisfação parcial ........................................................................................47
2.5 Excitação sexual e masoquismo ...............................................................................51
Capítulo 3
O psiquismo como aparelho de represetação
3.1 Quantidade e representação como modelos explicativos das psiconeuroses............53
3.2 A repetição frente à rememorão e à representação ...............................................56
3.3 A inscrição da pulsionalidade na ordem psíquica...................................................59
Capítulo 4
Transbordamento pulsional: limite à inscrição pulsional e ao princípio de prazer
4.1 Compulsão à repetição.............................................................................................72
4.2 O impacto das quantidades de excitação no aparelho psíquico..............................77
4.3 O processo de ligação (Bindung).............................................................................82
4.4 Dor e evento traumático..........................................................................................87
4.5. Descarregar ou não descarregar, eis a questão.......................................................91
Conclusão .....................................................................................................................96
Referências Bibliográficas ............................................................................................101
10
(...) compreendendo a essencial inexplicabilidade da alma
humana, cercar estes estudos e estas buscas de uma leve aura
poética de desentendimento.
Desculpe o em que as expressões tenham falhado às idéias e o
que as idéias tenham roubado à mentira ou à indecisão.
FERNANDO PESSOA
Crítica à crítica psicanalítica de João Gaspar Simões”
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INTRODUÇÃO
O recorte da questão
O percurso teórico que trilharemos para elaborar nossa interpretação do discurso
freudiano compartilha da concepção de que a experiência psicanalítica não se desenrola
no sentido de possibilitar uma cura para o paciente e que o discurso psicanalítico não é
fundado na causalidade e na cientificidade, mas se aproxima dos campos da ética e da
estética (Birman, 1995).
Foi em torno dessa proposição que nos motivamos a escrever o anteprojeto para
seleção do mestrado. Naquele momento nossa intenção era demonstrar como a
experiência psicanalítica se aproximava da experiência do trágico e se distanciava do
discurso cienfico. Dito de outro modo, nossa intenção era saber se a crença na
felicidade completa, que identificavamos com o avanço científico-tecnológico dos dias
atuais, seria o signo do declínio e da doença e não o duro, o horrendo, o mal, o
problemático da existência. No desenrolar de nosso percurso de leitura, tendo em vista
que a intervenção do analista àqueles que o procuram em busca da cura de seu
sofrimento não se dirige no sentido de extirpar o mal que os acossa, identificamos nessa
condição a questão de saber qual era afinal a tarefa da experiência psicanalítica. Isto é, o
que fazemos, nós, analista e analisando, quando fazemos análise?
Diante dessas questões, que exigiam um delineamento teórico de proporções
imensas, considerando o tempo restrito a que teamos direito nessa pesquisa, decidimos
centrar nossos esforços em uma questão que a consideramos fundamental para
investigações futuras em torno dessa concepção teórica segundo a qual a experiência
12
psicanalítica não se dirige no sentido de um ideal de cura. A questão, afinal, é a de saber
a partir da interpretação do discurso freudiano como o sujeito lida com o prazer, o
desprazer e a dor? Diante dessa questão se esboça uma problemática em forma de
hipótese, a saber, que prazer e desprazer o para o sujeito formas de lidar com a dor.
A importância do tema
Em O mal-estar na civilização (1930), sem a preteno de responder se a vida tem
um propósito, questão a qual a religião é capaz dar resposta, Freud volta-se para algo
menos grandioso, mas que os próprios homens mostram ser o propósito de suas vidas:
“esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer” (Freud,
1930/96, p. 84). Felicidade, diz Freud, enquanto ausência de desprazer de um lado e, de
outro, enquanto presença de intenso prazer. Nota-se, assim, que o propósito dos homens
alinha-se ao programa do princípio de prazer. É assim que em um de seus últimos
trabalhos e talvez o mais importante, Freud reafirma a dominância do princípio de
prazer sobre o funcionamento do aparelho pquico (Freud, 1930). No entanto, Freud é
taxativo, para essa felicidade, diz ele, não nada preparado, nem no microcosmo nem
no macrocosmo; “a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano
da Criação” (Freud, 1930/96, p. 84).
As sensações de prazer e desprazer, Freud nos recorda em 1920, relacionam-se
com as quantidades de excitação no aparelho pquico. Essa relação entre excitação e
sensações de prazer e desprazer corresponderia no caso do desprazer a um aumento de
excitação e no caso do prazer a uma diminuição da excitação. Essa correspondência
entre as quantidades de excitação e as sensações de prazer e desprazer seria a
conseqüência psíquica do que Freud chama de “vivência de satisfação”. Em A
interpretação dos sonhos (1900), Freud escreve que essa vivência de satisfação
13
acompanha uma diminuição da excitação, sentida como prazerosa, e que por isso o
aparelho psíquico funciona com vistas à obtenção de prazer ou, dito de outra maneira,
com vistas a repetir a vivência de satisfação.
Essas sensações de prazer e desprazer, e o princípio que decorre da imperiosidade
dessas sensações sobre o aparelho pquico, foram teorizados por Freud pela primeira
vez em “Projeto para uma psicologia científica” (1895) como a percepção das
quantidades internas. Mais especificamente, o desprazer como a percepção no sistema ω
(consciência) do aumento das quantidades em Ψ e, o prazer como a percepção, também
no sistema ω, da diminuição dessas quantidades em Ψ.
A experiência de dor, teorizada também no “Projeto para uma psicologia
cienfica” (1895), seria a incidência direta de grandes quantidades de excitação que
romperiam as terminações nervosas de proteção, e atravessariam todos os sistemas
neurônicos, como um raio, incidindo diretamente no interior do sistema Ψ de neurônios.
A dor, portanto, coloca-se contra a tendência a diminuir o nível de excitação no
aparelho pquico (Freud, 1895).
Nota-se que a investigação que empreenderemos aqui se inclinará diretamente
para a problemática da quantidade na obra freudiana, posto que tanto quanto o prazer e
o desprazer, a dor também está relacionada com as quantidades de excitação no
aparelho pquico.
Ressaltamos, pois, que a formulação de um princípio de prazer que governa a vida
mental na produção de prazer ou na evitação de desprazer é elemento central que baliza
vários momentos da obra freudiana, do “Projeto para uma psicologia” (1895) ao Mal-
estar na civilização” (1930). Tanto que num texto como o Além do princípio de prazer
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(1920), um marco na teoria e clínica psicanalítica, Freud afirma que prontamente
expressaria gratidão a qualquer teoria que pudesse oferecer explicações sobre as
sensações de prazer e desprazer que atuam tão imperativamente sobre nós, o que
maximiza a importância da investigação do estatuto do princípio de prazer e das
sensações de prazer e desprazer e da experiência de dor.
A argumentação teórica
Veremos, então, ao longo desta dissertação, na leitura da metapsicologia e dos
textos clínicos de Freud, como as sensações de prazer e desprazer e a experiência de
dor, se colocam para o sujeito de forma imperiosa e complexa, bem como justificam a
formulação de nossa hipótese de que prazer e desprazer são formas de lidar com a dor.
Nossa pesquisa girará em torno das experiências do sujeito constituídas no campo
da representação e fora dele, as experiências constituídas pelo impacto direto das
pulsões no aparelho psíquico. No primeiro caso, as sensações de prazer e desprazer, no
segundo, a experiência de dor. A dissertação, portanto, realizará uma articulação
conceitual circunscrita em torno das concepções qualitativa e quantitativa. Nesse
sentido ela se divide em duas partes, uma que investigará as noções e conceitos que
compõem o registro qualitativo ou representacional e outra que investigaas noções e
conceitos referentes ao registro quantitativo ou pulsional. Os dois primeiros capítulos
que compõem a primeira parte da dissertação referente ao registro representacional
demonstrarão como as sensações de prazer e desprazer estão relacionadas à noção de
representação e aponta para a relação das quantidades com o aparelho psíquico. Os dois
últimos capítulos que compõem a segunda parte da dissertação referente ao registro
pulsional se deterão especificamente para a relação entre pulsão e representação ou
entre pulsão e psiquismo, indicada nos primeiros capítulos, a fim de sustentar mais
15
diretamente nossa hipótese de que as sensações de prazer e desprazer são formas pelas
quais o aparelho psíquico lida com a dor.
Sintomas dos mais variados trazem toda sorte de sofrimento aos pacientes: uma
perna paralisada; um bro dormente; uma cegueira inexplicável; tosses sem fim;
vômitos incontroveis; dores por todo o corpo; dúvidas e incertezas dilacerantes;
pensamentos invasivos; comportamentos inapropriados. O início de nossa pesquisa,
portanto, se dará a partir dos sintomas. Não poderemos falar de desprazer, e como
veremos nem mesmo de prazer, sem falar de sintoma. Assim, no primeiro capítulo
abordaremos as primeiras investigações de Freud sobre a formação dos sintomas a partir
do trabalho de Charcot com as histéricas e a sugestão hipnótica e a conseqüente teoria
do trauma, para destacarmos como essas investigações levaram Freud à compreensão
dos sintomas como sendo tributário da noção de representação. E, ainda no primeiro
capítulo, a partir da complexidade da noção de afeto e da hipótese da constância da
soma de excitação, apontaremos para a necessidade de se pensar o lugar das
intensidades em relação ao aparelho psíquico.
No segundo capítulo, partindo do desprazer presente no conflito psíquico, da
representação incompatível geradora de desprazer, demonstraremos como o sintoma,
entendido como solução do conflito psíquico, pode suscitar sensações de prazer e
desprazer. Ou seja, que um mesmo acontecimento pode ser ao mesmo tempo fonte de
prazer e de desprazer. Para isso investigaremos as noções de conflito, defesa e sintoma;
a hipótese dos sonhos como realizão de desejo e a aproximação elaborada por Freud
entre sonhos e sintomas, destacando como no aparente sofrimento do sintoma encontra-
se uma realização de desejo.
16
O terceiro capítulo mostrará como o psiquismo, regido pelo princípio de prazer,
aparece em Freud como um aparelho de representação. Mais especificamente, como
derivado direto das quantidades de excitação inscritas no psiquismo como
representação. “Como o registro da qualidade se constitui a partir do registro da
quantidade” (Birman, 1995, p. 42). Para demonstrar isso trabalharemos o conceito de
repetição e os conceitos que com ele se relacionam mais intimamente: rememoração,
representação, elaboração e pulsão, investigando a relação entre os registros qualitativo
e quantitativo. Destacaremos como a compulsão à repetição faz obstáculo à
rememoração, à interpretação, à representação e ao aparelho pquico em sua
capacidade de captura das excitações na ordem psíquica, em resumo, como a repetição
faz obstáculo à ordem da representação, à qual estão relacionadas as sensações de prazer
e desprazer.
No quarto capítulo, partiremos da hitese da compulsão à repetição e da idéia de
um excesso de quantidade de energia que invade o psiquismo para destacar e investigar
mais diretamente a problemática que se formula entre dor, prazer e desprazer: que
prazer e desprazer são formas pelas quais o aparelho psíquico lida com a dor. Frente à
presença pura da dor decorrente da inundação de grandes quantidades de energia no
aparelho pquico, o princípio de prazer/desprazer é posto de lado e nesse momento
torna-se fundamental a ligação da força pulsional no registro psíquico a fim de propiciar
novamente a hegemonia do princípio de prazer. Nesse sentido, poderemos mesmo
inferir que o próprio aparelho psíquico constitui-se como forma de lidar com a dor. E
mais radicalmente, que ante a dor do desamparo, o aparelho pquico possibilita a
própria constituição da vida no sentido biológico mesmo; “nascemos com um aparelho a
menos, necessário para sustentar a vida biológica, um aparelho que possibilita todos os
aparelhos biológicos” (Birman, 2009).
17
CAPÍTULO I
Representação e sintoma
1.1 – Sugestão, lembrança, história, idéia
A experiência psicanalítica, ou a experiência de Freud que deu origem a
psicanálise, teve início com os sintomas. A clínica com as pacientes histéricas e seus
sintomas levou Freud à proposição emblemática de que “os histéricos sofrem
principalmente de reminiscências” (Freud, 1895/96, p. 240); em outras palavras, eles
sofrem de representações. Assim, para a análise da nossa questão de como o sujeito lida
com as sensações de prazer e desprazer e, a experiência de dor, consideramos necessário
investigar como a concepção de sintoma foi desde o início das teorizações freudianas
atrelada à noção de representação; em última instância, como as sensações de prazer e
desprazer estão relacionadas à noção de representação.
A idéia a que Freud chegou de que os histéricos sofrem principalmente de
reminiscências não se estabelece sem algumas inflncias; dentre elas a de Charcot
talvez seja a mais significativa. A influência de Charcot sobre Freud em sua
compreensão dos sintomas histéricos é marcante. O trecho da carta de Freud a sua
futura esposa que o editor inglês da Sandard Edition cita em nota ao obituário que
Freud (1893) escreveu a Charcot é claro quanto a isso:
Acho que estou mudando muito. Vou dizer-lhe detalhadamente o que
me está afetando. Charcot, que é um dos maiores médicos e um
homem cujo senso comum tem um toque de gênio, está simplesmente
desarraigando minhas metas e opiniões. Por vezes, saio de suas aulas
como se estivesse saindo da Notre Dame, com uma nova idéia de
perfeição. Mas ele me exaure; quando me afasto, não sinto mais
nenhuma vontade de trabalhar em minhas próprias bobagens; três
dias inteiros não faço qualquer trabalho, e não tenho nenhum
18
sentimento de culpa. Meu cérebro está saciado, como se eu tivesse
passado uma noite no teatro. Se a semente frutificaalgum dia, o
sei; o que sei é que ninguém jamais me afetou dessa maneira... (Freud
apud Strachey, 1893/96, p. 19-20).
É graças a essa influência marcante que Freud irá se enveredar na floresta
misteriosa dos sintomas histéricos. Fora a genialidade de Charcot que lhe possibilitou, e
também a Freud, maiores esclarecimentos sobre aquilo que não apresentava, para a
investigação médica tradicional, nenhum sinal visível e palpável de processo patológico,
merecedor de investigação e cuidados. Mais precisamente, foi graças à consideração de
Charcot sobre a hipnose como algo que se prestava ao trabalho científico que Freud
sob a influência deste homem a genial elaboração da melhor abordagem para a
compreensão da histeria. A compreensão inicial de Freud sobre a histeria, e as neuroses
como um todo, fora alcançada, então, essencialmente com o auxílio da hipnose. Charcot
mostrara extraordinariamente como é possível induzir os sintomas histéricos em pessoas
sadias com o auxílio da sugestão hipnótica, o que levava à compreensão de que a
histeria não era provocada por um trauma físico. Ou seja, embora os sintomas histéricos
fossem muito semelhantes aos sintomas físicos bastante compreendidos, a histeria
tratar-se-ia de uma doença cujas causas devem ser buscadas na vida anímica dos
pacientes.
-se nesse quadro uma forte influência do pquico sobre o corpo. Em
“Tratamento Psíquico (ou Anímico)” (1890), Freud destaca que a marca mais
significativa da hipnose é a atitude do hipnotizado para com seu hipnotizador. O
primeiro torna-se completamente crédulo e obediente ao segundo de modo que a
influência psíquica sobre o corpo fica evidente; basta que o hipnotizador diga seu
braço está paralisadoe o braço cai imediatamente.
19
A representação que o hipnotizador forneceu ao hipnotizado através
da palavra provocou nele precisamente a relação anímico-física
correspondente ao conteúdo da representação. Existe nisso, de um
lado, a obediência, mas de outro um aumento da influência física
de uma idéia (Freud, 1890/96, p. 282).
É precisamente esse aspecto da representação, da idéia, que procuramos destacar
aqui, isto é, da representação entre as causas dos sintomas neuróticos.
Dentre as descobertas de Charcot sobre a histeria, em “Relatório sobre meus
estudos em Paris e Berlim” (1886), primeiros comentários de Freud sobre o trabalho de
Charcot, destaca-se a enorme importância do trauma entre as causas da histeria.
Podemos mesmo dizer que toda a elaboração de Freud sobre a histeria e seus processos
psíquicos durante os anos 80 e 90 do século XIX se deram em torno da idéia de trauma.
Em “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência” (1893a),
proferida em 11 de janeiro daquele ano, dias antes da publicação da segunda parte da
“Comunicação Preliminar” (1893b), podemos observar a importância do fator
traumático para Freud entre as causas dos sintomas histéricos: entre os numerosos
trabalhos de Charcot, nenhum a meu ver é mais valioso do que aquele onde nos ensinou
a compreender as paralisias traumáticas que aparecem na histeria (...)” (Freud,
1893a/96, p. 37).
O trauma, diz Freud (1893a), deve ser grave e envolver a idéia de um perigo de
vida, mas não deve envolver nenhum ferimento sério. Um tempo depois de ocorrido o
trauma um sujeito percebe sua perna paralisada, mesmo tendo andado normalmente até
então. destacamos acima que Charcot explica essa situação pela indução do sintoma
histérico no paciente através da sugestão hipnótica. Assim, comparando sugestão
20
traumática e trauma, “(...) é plausível supor que uma idéia dessa natureza seja
responsável pelo desenvolvimento da paralisia também no caso de paralisia traumática
espontânea” (Freud, 1893a/96, p. 38). Evidentemente no trauma espontâneo o sujeito
não está hipnotizado, mas Charcot supõe que esteja em um estado de espírito
semelhante à hipnose
1
.
Após explicar a histeria como determinada pelas circunstâncias traumáticas, Freud
destaca que Charcot não nos oferece nenhuma explicação para a histeria o-traumática.
Nesses casos não haveria um único grande trauma em ação, mas toda uma “história de
sofrimento” (Freud, 1893a/96, p. 40). Freud (1893a) afirma que na mesma época em
que Charcot investigava as paralisias histéricas, ele, juntamente com Breuer, começara a
tratar e a investigar um grande número de casos de histeria não-traumática. O
procedimento que utilizavam era considerar um sintoma de cada vez e interrogar o
paciente sobre as circunstâncias em que tinha aparecido e tentar chegar à causa de cada
sintoma. Mas isso não era tarefa fácil. Pois, ou os pacientes não queriam tratar dessas
questões, ou, na maioria das vezes, não tinham nenhuma lembrança de algo que pudesse
explicar seus sintomas. através da hipnose conseguia-se acessar as lembranças do
paciente. Foi assim que se observou que por trás de cada sintoma uma “experiência
afetivamente marcante”, isto é, toda uma história de sofrimento. Ora, o que Freud faz é
aproximar essa “experiência marcante com a grande “experiência traumática de
Charcot. Ou seja, dar lugar ao trauma na suposta histeria comum não-traumática.
Vemos Freud afirmar isso enfaticamente em nota de roda à sua tradução das
“Conferências das terças-feiras” de Charcot:
1
Breuer irá intitular esse estado de espírito precisamente de estados hipnóides(Freud e Breuer, 1893-
1895).
21
Nos casos conhecidos como histeria traumática”, esse mecanismo é
evidente até à observação mais superficial, mas também pode ser
demonstrado na histeria em que não existe um único trauma de maior
significação. Em tais casos, constatamos traumas menores, repetidos,
ou, quando predomina o fator da disposição, lembranças em si
mesmas indiferentes, mas que assumem a intensidade de traumas
(Freud, 1892-94/96, p. 179).
Fica claro, portanto, que essa “história de sofrimentos” na histeria comum se
equivale ao acidente traumático na histeria traumática. Aliás, se a única diferença entre
ambas é a história de sofrimentos em uma e o acidente traumático em outra, levando em
consideração que Freud estabelece uma equivalência entre ambos os fatores, não há
mais a distinção entre histeria traumática e histeria comum. Dessa forma, a hitese de
Charcot sobre o trauma se aplica a toda histeria. O evento desencadeador de todos os
sintomas histéricos é o trauma pquico. Reforçando essa idéia Freud lembra que
mesmo no trauma mecânico da histeria traumática, o que opera na causa dos sintomas é
o afeto de terror, o trauma psíquico.
Ainda em sua “Conferência sobre os mecanismos psíquicos dos sintomas
histéricos” (1893a) Freud oferece alguns exemplos para confirmar que o trauma é o
fator causal de todo tipo de histeria, o que significa, portanto, que toda histeria é
traumática. Uma mulher, diz Freud (1893a), que comia excepcionalmente pouco e
quando forçada a isso, sob hipnose chegou à lembrança de quando era criança e sua mãe
severa a forçara a comer a carne que deixara no prato duas horas antes, portanto, quando
a carne estava fria e a gordura congelada. A mulher adulta, que quando criança comia a
carne com enorme asco, produzia seu sintoma de repulsa à comida devido a lembrança
disso. Outros exemplos não são tão claros assim. Como o caso de uma paciente que
sofria de horríveis dores entre as sobrancelhas. Descobriu-se sob hipnose que quando
criança, em certa situação, sua avó lhe dirigira uma olhar inquisitório, “penetrante”.
22
Essa mesma paciente também sofria de dores violentas no calcanhar direito. Sob
hipnose descobriu-se uma idéia que ocorrera à paciente quando ela estava se
apresentando pela primeira vez à sociedade: “ficara dominada pelo medo de não
“acertar o passo naquele meio” (Freud, 1893a/96, p. 43).
Esses exemplos, que escolhi entre inúmeras observações, parecem
provar que os fenômenos da histeria comum podem ser seguramente
considerados como seguindo o mesmo modelo da histeria traumática,
e que, portanto, toda histeria pode ser encarada como histeria
traumática, no sentido de que implica um trauma psíquico e de que
todo fenômeno histérico é determinado pela natureza do trauma
(Freud, 1893a/96, p. 43).
2
Ora, se o procedimento que Freud disse realizar junto com Breuer era o de
mediante a sugestão hipnótica pedir aos pacientes que relatassem a situação traumática
causadora do sintoma, ou seja, que relatassem a lembrança do evento traumático e, que
após o paciente relatar tão detalhadamente quanto possível ele se via livre dos sintomas,
isso quer dizer que a lembrança do evento traumático, muitas vezes ocorrida
décadas, continuava ativa na mente do paciente. A permanência ativa na mente do
paciente de uma lembrança de dez ou vinte anos atrás se deve ao fato, diz Freud
(1893a), de no momento da impressão o sujeito não ter conseguido reagir de maneira
adequada o suficiente para que essa impressão se desgastasse junto com o afeto que ela
despertara. Diremos, então, que quando não reação a um trauma a lembrança dele
permanece ativa na mente carregando consigo o afeto que coube ao sujeito naquele
momento. Isso fica claro no caso da paciente que quando criança era forçada pela mãe a
2
Charcot considerava que a verdadeira causa dos sintomas histéricos estava na hereditariedade e que o
trauma não passava de agent provocateur. Freud, ao contrário, via no trauma a causa direta dos sintomas
histéricos. Ver: “Estudos sobre a histeria” (1893-95), Vol. II e “Prefácio e notas de roda à tradução das
conferências das terças-feiras, de Charcot” (1892-94), Vol. I.
23
comer carne e gordura, fria e congelada, cujo asco dessa situação permanecera com a
lembrança dessa experiência. Compreendemos, assim, porque que a lembrança,
resgatada no tratamento sob hipnose, possibilita a remissão dos sintomas. A lembrança
é como uma questão não resolvida e o sintoma como o sinal de fumaça que as
representações da lembrança emitem na tentativa de alertar o sujeito sobre tal caso mal-
resolvido. É precisamente toda essa condição que faz de um evento um trauma psíquico
(Freud, 1893a).
1.2 - Defesa, sintoma, representação e soma de excitação
Estamos agora em posição de destacar que todos esses esclarecimentos a que
Freud chegou a respeito dos sintomas histéricos, o papel do trauma e do poder da
sugestão hipnótica, revela uma característica marcante dos sintomas histéricos e
neuróticos como um todo: o papel da lembrança ou representação. Não apenas o trauma
é a causa dos sintomas neuticos, mas o trauma é a própria representação, vimos isso
nos próprios termos usados na descrição das situações traumáticas, lembrança, história,
idéia. É Freud mesmo quem diz em nota de rodapé a sua tradução das “Conferências das
terças-feiras” de Charcot que...
(...) o ponto central de um ataque histérico, qualquer que seja a forma
em que este apareça, é uma lembrança (...). O conteúdo da lembrança
geralmente é ou um trauma psíquico (...), ou é um evento que, devido
à sua ocorrência em um momento particular, tornou-se um trauma
(Freud, 1892-94/96, p. 179).
24
Em “Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias motoras
orgânicas e histéricas” (1893 [1888-1893]), dentre as características gerais da neurose
que Freud procura destacar, está o papel da representação. Explicando o conhecimento
da medicina sobre a anatomia, Freud destaca que o trajeto das vibras condutoras da
motricidade se divide em dois segmentos: um primeiro, da periferia do corpo até as
células da medula espinhal, onde coma o segundo segmento: que vai da medula
espinhal até o córtex cerebral. Freud, então, ressalta que a relação periferia-medula se dá
ponto por ponto, toda a periferia do corpo é projetada na massa cinzenta da medula. Já a
relação medula-córtex não se ponto por ponto, as fibras medulares não são uma
segunda projeção da periferia sobre o córtex. Não fibras suficientes para representar
cada ponto da periferia no córtex. Assim, cada fibra medular representa ao córtex um
grupo de elementos periféricos. As paralisias periférico-medulares se dão por
comprometimento das fibras que projetam cada ponto da periferia do corpo na medula,
ou seja, uma paralisia em projeção”; As paralisias cerebrais se dão por
comprometimento das fibras que representação um grupo de elementos da periferia do
corpo, da medula ao córtex, ou seja, uma “paralisa em representação. As paralisias
histéricas, semelhante às paralisias cerebrais, são paralisias en masse ou em
representação, mas “com um tipo especial de representação (Freud, 1893[1888-93]/96,
p. 206).
Se as paralisias orgânicas e suas características são explicadas pela a anatomia e a
natureza da lesão, o mesmo não explica as características da paralisia histérica. Nas
suas paralisias e em outras manifestações, a histeria se comporta como se a anatomia
não existisse, ou como se não tivesse conhecimento desta (Freud, 1893 [1888-
1893]/96, p. 212). Ora, o que Freud quer dizer é que as paralisias orgânicas são a
expressão clínica de um fato da anatomia. Assim, se não encontramos um sintoma na
25
histeria como na paralisia orgânica é porque a histérica não conhece a anatomia da qual
o sintoma é uma expressão clínica. “Ela toma os órgãos pelo sentido comum, popular,
dos nomes que eles m: a perna é a perna até sua inseão no quadril, o braço é o
membro superior tal como aparece visível sob a roupa” (Freud, 1893 [1888-93]/96, p.
212). A paralisia histérica não é a expressão clínica de um fato da anatomia, mas a
expressão por assim dizer, do conhecimento que o sujeito tem da anatomia, da idéia
corrente, popular, dos órgãos e do corpo em geral, isto é, da representação que o
histérico faz dos órgãos e membros do corpo. Assim, a paralisia histérica é efeito do
comprometimento da representação de braço associada ao evento traumático (Freud,
1893[1888-93]). Ou seja, o sintoma é tributário da representação.
É também o que Freud diz em sua Conferência” (1893a) sobre a “Comunicação
Preliminar”, as lembranças que se tornaram patogênicas, determinando os sintomas
histéricos
(...) tinham como conteúdo representações que envolveram um trauma
tão grande que o sistema nervoso não teve forças para manipulá-lo de
nenhuma forma, ou representações às quais foi vedada a reação por
motivos sociais (Freud, 1893a/96, p. 46)
Ou, sem entrar em ão o teor do trauma psíquico, pois muitos sintomas histéricos são
determinados por conteúdos e fatores banais, as lembranças “adquiriram alta
significação pelo fato de terem ocorrido em momentos especialmente importantes,
quando a predisposição do paciente havia aumentado patologicamente” (Freud,
1893a/96, p. 47). Tal predisposição aumentada refere-se a um “estado de auto-hipnose”,
dissociado do resto da vida mental do sujeito e, por isso mesmo, impossibilitando a
26
elaboração associativa de uma representação (Breuer e Freud, 1895). Ou seja, o sintoma
neurótico se deve (a) a uma representação que exigia uma reação que o sujeito não
pôde realizar ou (b) a uma representação dissociada da cadeia associativa consciente.
Ora, o que queremos dizer, acima de qualquer coisa, é que o sintoma histérico é
determinado por uma representação. É essencialmente o que demonstrava Charcot
com a sugestão hipnótica: que os sintomas não o provocados por concussões físicas,
mas por representações relacionadas ao trauma.
É precisamente essa hipótese da presença de uma idéia ativa na mente causando o
sintoma neurótico que possibilita a hitese do Inconsciente. Em última instância,
pedindo a indulgência dos leitores pela simplicidade da formulação, o inconsciente é a
presença de idéias das quais não nos damos conta
3
. É exatamente assim que em um de
seus últimos artigos, “Algumas lições elementares de psicanálise” (1938), Freud fala
sobre o inconsciente; ele diz que a expressão que comumente utilizamos, “ocorreu-me
uma idéia”, revela bem tratar-se de uma idéia da qual o sabemos nada dos passos que
a ela levaram. Tais passos são exatamente toda uma série de idéias sobre as quais nada
se sabe, mas que foram necessárias para que ocorresse tal idéia na consciência. Nesse
prisma nada deve ser mais exemplar do que os lapsos da vida cotidiana. Nesse mesmo
artigo Freud (1938) nos fornece um exemplo deles: o presidente de um órgão público
abre uma reunião dizendo: “constato que um quorum completo de membros está
presente e por isso declaro encerrada a sessão(Freud, 1938/96, p. 304). Ora, é claro
que o que o presidente da sessão queria dizer era que está aberta a sessão, mas disse o
contrário. Podemos presumir, diz Freud, que a razão de tal ato falho se deva ao fato de
que em sessões anteriores os seus membros não se comportaram muito bem e nada
3
Queremos ressaltar que nossa afirmação não faz oposição à elaboração de Lacan (1959-60) sobre o
estatuto ético do inconsciente. Apenas nos limitamos à hipótese mais elementar do inconsciente, como o
que confere a propriedade de algumas representações, por ser mais propício aos nossos interesses do
momento.
27
produziram, de modo que o presidente da sessão bem que preferiria mesmo era encerrar
a sessão. Ou seja, “quando começou a falar, provavelmente não estava nscio desse
desejo não lhe era consciente -, mas ele achava-se certamente presente (...)” (Freud,
1938/96, p. 304)
4
.
Recapitulando nossa argumentação inicial, podemos dizer que Freud percorre um
caminho que parte de seus estudos com Charcot, deslocando o trauma da concepção de
agente provocateur para o centro da determinação dos sintomas histéricos. Ele faz isto
pela aproximação entre lembrança e trauma, desfazendo a distinção que se supunha
existir entre histeria traumática e histeria não-traumática, tornando toda histeria uma
histeria traumática. Em seguida - passando pela colaboração de Breuer e as observações
de Janet (que não precisamos trazer em seus por menores para nossa discussão), o
primeiro pensando a determinação dos sintomas histéricos como resultado de estados
psíquicos particulares semelhantes à hipnose, que constituíam um “novo grupo
psíquico” separado do grupo psíquico consciente, e o segundo, com suas concepções
degenerativas da divisão da mente - Freud elabora sua concepção de defesa, cujo efeito
é a dissociação de uma representação da cadeia de representações conscientes, devido
ao caráter de incompatibilidade da primeira para com às últimas. Freud, portanto,
reorienta e revisa as primeiras formulações sobre a histeria, de Charcot, Breuer e Janet,
elaborando sua noção de defesa. Daí em diante Freud refina cada vez mais suas
formulações sobre os mecanismos pquicos da histeria e das neuroses como um todo.
4
A partir desses exemplos compreendemos que as representações inconscientes, das quais tomamos
conhecimento através da investigação dos sintomas histéricos, de modo algum, são exclusivas às pessoas
que sofrem de algum sintoma neurótico. Os pequenos lapsos de fala, de memória, etc., da vida cotidiana
demonstram que elas estão presentes nas pessoas mais sauveis. Mais esclarecedor ainda é o fato de as
representações inconscientes revelarem sua presença por um dos fenômenos mais normais e comuns da
vida humana: os sonhos.
28
Cabe dizer, no entanto, que mesmo divergindo, Breuer e Freud compreendem a
causa dos fenômenos patológicos como a presença ativa na mente de representações
dissociadas da cadeia de representações conscientes. Assim, a noção de defesa reforça
mais ainda a idéia da participação das representações na causação dos sintomas
histéricos.
Na medida em que a hitese da dissociação psíquica vai deixando para trás a
explicação pelos estados hipnóides e pela idéia de degeneração de Janet, que, aliás, nem
Freud ou Breuer compartilhavam, e vai em direção à idéia de defesa contra uma
representação incompatível e da divisão da mente, mais a representação ganha
importância na determinação dos sintomas. A ppria eficácia terapêutica do método
catártico sustenta isso. O método supõe que se a lembrança do evento traumático puder
ser alcançada, introduzida na consciência, o seu afeto é então descarregado ou ab-
reagido e o sintoma desaparece.
Assim, depois de demonstrarmos até onde nos foi possível que a representação
inconsciente é determinante do sintoma neurótico, não podemos mais adiar comentar o
fato de que, em aparente contraste com essa compreensão, o afeto desempenha um
papel na determinação dos sintomas tão importante quanto a representação. No
procedimento terapêutico mesmo, que em nosso intuito ressaltamos o papel da
representação, observa-se Freud ressaltar a necessidade da ab-reação dos afetos para a
remissão dos sintomas. Tal aparente contraste, porém, parece desfazer-se diante a
evidência alcançada por todos de que o afeto, que deveras tem participação na causação
dos sintomas, só exerce esse papel devido a sua relação com a representação que
permanece ativa na mente do paciente. É essa atuação da representação na mente do
paciente que o método terapêutico procura elaborar.
29
Alguém experimentou um trauma psíquico sem reação suficiente a
ele. Nós o levamos a experimentá-lo de novo, dessa vez sob hipnose, e
o forçamos a completar sua reação. Assim ele pode livrar-se do afeto
ligado à representação que estava, por assim dizer, “estrangulado”, e
uma vez feito isso, e-se termo à atuação da representação (Freud,
1893a/96, p. 47).
Ora, se por um lado Freud diz que o sintoma desaparece quando o afeto é ab-
reagido, por outro lado ele diz que é assim que se põe termo à atuação da representação.
Tudo funciona, portanto, como que para pôr fim à atuação da representação. Como
destaca Mezan (1892), “embora se mencionem também “experiências” e “sentimentos”,
a ênfase é colocada nas “idéias”” (Mezan, 1982, p. 10), nas representações,
compreendidas como incompatíveis ao eu. Aliás, não faltam afirmações contundentes
de Freud sobre o papel fundamental da representação na determinação dos sintomas
neuróticos:
Ora, eu sabia, pela análise de casos semelhantes, que antes de a
histeria poder ser adquirida pela primeira vez, uma condição essencial
precisa ser preenchida: uma representação precisa ser
intencionalmente recalcada da consciência e excluída das
modificações associativas. Em minha opinião, esse recalcamento
intencional constitui tamm a base para a conversão total ou parcial
da soma de excitação. A soma de excitação, estando isolada da
associação psíquica, encontra ainda com mais facilidade seu caminho
pela trilha errada para a inervação somática. A base do próprio
recalcamento só pode ser uma sensação de desprazer, uma
incompatibilidade entre a representação isolada a ser recalcada e a
massa dominante de representações que constituem o ego (Freud,
1893-95/96, p. 143).
30
Definitivamente a representação tem lugar de destaque na formação do sintoma.
Mas, ainda com relação aos afetos, há uma observão importante a se fazer: a hipótese
do afeto “estrangulado” e a teoria da “ab-reação”, diz Freud (1894), se sustentam por
outra hipótese, mais abrangente e de conseqüências importantes: a hitese da
constância, que anos depois constituirá o princípio de constância (1920). Tal hipótese
não está presente na “Comunicação preliminar” (1893b), embora Freud a tenha
apresentado em sua “conferência” (1893a) sobre a própria comunicação preliminar.
Freud (1893a) apresenta a hitese da constância para explicar como as representações
relacionadas ao evento traumático de dez ou vinte anos atrás permanece exercendo
poder sobre o sujeito; “quando uma pessoa experimenta uma impressão psíquica,
alguma coisa em seu sistema nervoso, que chamaremos provisoriamente de soma de
excitação, aumenta”, diz Freud. Existe, entretanto, “uma tendência a tornar a diminuir
essa soma de excitação, a fim de preservar a saúde” (Freud, 1893a/96, p. 44)
5
. Freud
afirma, então, que a permanência ativa de lembranças de muitos anos atrás depende do
aumento dessa soma de excitação. Ora, se o procedimento terapêutico é o de
descarregar o afeto estrangulado e se o que impediria a permanecem ativa de uma
representação na mente do sujeito é a diminuição da soma de excitação, podemos dizer
que “afetoe “soma de excitação” se equivalem?
6
Não parece ser o caso quando Freud
diz que “esse recalcamento intencional constitui também a base para a conversão total
ou parcial da soma de excitação” (Freud, 1893-95/96, p. 143). Fica-se com a impressão
5
Em carta a Breuer, na qual Freud esboça a estrutura do artigo que os dois estão preparando, Freud já
apresenta a hipótese da constância; ele sugere mesmo que a publicação se inicie pelas teorias, e dentre as
quais, o teorema referente à constância da soma de excitação”. Ali Freud escreve: o sistema nervoso
procura manter constante, nas suas relações funcionais, algo que podemos descrever como a “soma da
excitação” (1892, p. 196).
6
É importante destacar que a problemática do afeto o se esgota o facilmente. Não é simples afirmar
que afeto e soma de excitação se equivalem, nem tampouco, distingui-los, dizer que afeto está sendo
utilizado, nesse período da elaboração freudiana, no sentido de sentimento ou emoção, enquanto o termo
soma de excitação diria respeito à hipótese da constância. Trata-se de uma noção de difícil compreensão.
A noção de afeto se relaciona com tantas outras noções, conceitos, hipóteses e princípios que torna sua
compreensão extremamente difícil.
31
de que aquilo é aumentado e diminuído, a soma de excitação, e o que é convertido para
inervação somática, o afeto, se distinguem.
O que queremos com essas observações sobre o estatuto do afeto e a hipótese da
constância é ressaltar que essas questões nos alertam sobre outra dimensão atuante na
vida psíquica, uma dimensão intensiva ou quantitativa, que confere a característica de
algo que pode ser aumentado, diminuído, ou deslocado. Assim, somos levados a afirmar
é que uma relação entre quantidades de excitação, representação e afeto. Como essa
relação se dá, porque motivo, e quais suas conseqüências é algo sobre o qual
estudaremos no quarto capítulo desta pesquisa.
Nesse momento, entretanto, o que nos interessa é a vinculação teórica que vimos
entre as idéias de defesa, sintoma e representação. Vinculação que revela o
pertencimento dessas noções e conceitos ao campo da representação. É evidente
também que as noções de defesa, sintoma e a hipótese da constância, constituem
processos cuja motivação está relacionada a uma sensação de desprazer. Como destaca
Freud (1893-95), a base do recalcamento é uma sensação de desprazer, efeito de uma
incompatibilidade representativa. É essa elaboração teórica que constitui a condição
tanto para o processo de defesa quanto para o método terapêutico. Não é por acaso que
passado esse período de trabalhos sobre a histeria Freud funda a psicanálise
propriamente dita na definição de um método terapêutico.
Em um artigo no qual Freud (1904[1903]) procura traçar o percurso das mudanças
pelas quais passou a técnica psicanalítica desde o método catártico, uma dentre as
observações que faz nos chamou a atenção de imediato, confirmando os esforços que
até aqui dispensamos para destacar na elaboração freudiana a idéia de que a noção de
sintoma é tributária da idéia de representação. Freud (1904[1903]) observa a
32
importância das lembranças ou representações para a liberação dos afetos e a remissão
dos sintomas e que sem esse alcance seria impossível falar em terapêutica. Observa que
o encontro por parte do paciente com essas lembranças ou representações era a base do
método catártico e continua sendo a base do método psicanalítico. A diferença para com
o método catártico, diz ele, se faz pelo total abandono da hipnose em troca da
associação livre do paciente; atras da qual “os pensamentos involuntários quase
sempre sentidos como perturbadores e por isso comumente postos de lado costumam
cruzar a trama da exposição intencional” (Freud, 1904 [1903]/96, p. 237). A tarefa que o
método psicanalítico se empenha realizar é possível com a evocação das lembranças
dos pacientes, seja pelos sintomas, sonhos ou erros e lapsos da vida cotidiana.
Notamos assim como a noção de representação está implicada não apenas com a
noção de sintoma, mas também com o pprio método psicanalítico.
33
CAPÍTULO II
Os descaminhos da satisfação
2.1 – Conflito defesa - sintoma
Consideramos relevante abordar a formação do sintoma na psicanálise, apesar de
nossa pesquisa o ser sobre esse tema, para penetrarmos no problema das sensações de
prazer e desprazer. No capítulo anterior a necessidade de investigar a relação do sintoma
com a representação partiu da formulação freudiana de que os histéricos sofrem de
reminiscências e destacamos que a base para formação do sintoma era uma sensação de
desprazer devido à incompatibilidade das representações. Porém, queremos destacar
agora que essa condição revela uma relação bastante particular do sujeito com as
sensações de desprazer e prazer. A saber, que experimenta as sensações de prazer e
desprazer como resultado de um único acontecimento.
Dissemos no capítulo anterior que quanto mais Freud deixa para trás a explicação
dos sintomas pela hipótese de Breuer dos estados hipnóides em troca da hipótese da
defesa e da divisão da mente, mais a representação ganha importância na determinação
dos sintomas neuróticos. Destacamos também que a noção de defesa, assim como a
hipótese da constância, constitui um processo cuja motivão está relacionada com uma
sensação de desprazer; “representações que envolveram um trauma tão grande que o
sistema nervoso não teve forças para manipulá-lo de nenhuma forma, ou representações
às quais foi vedada a reação por motivos sociais” (Freud, 1893a, p. 46). Tudo parece
apontar para a natureza aflitiva das representações. No entanto, Freud (1894) argumenta
de forma a supormos que o caráter patogênico da representação se deve não ao seu
conteúdo em si, mas ao seu recalcamento.
34
Não posso, naturalmente, afirmar que um esforço voluntário de
eliminar da mente coisas desse tipo seja um ato patológico (...). Sei
apenas que esse tipo de “esquecimento” não funcionou nos paciente
que analisei, mas levou a várias reações patológicas (...) (Freud,
1894/96, p. 55).
Ora, se essas representações são capazes de despertar desprazer, não pode ser
patogênico querer defender-se delas
7
. No entanto, é por defender-se dessas
representações que elas se transformam na causa dos sintomas. Freud (1894) procura
esclarecer o trajeto entre o aparecimento de uma representação incompatível e o esforço
do sujeito em defender-se dela até o surgimento do sintoma, afirmando que a tentativa
do eu em tratar a representação como se o existisse não é possível, tanto a
representação e o afeto ligado a ela estão de uma vez por todas, o máximo que o eu
consegue fazer é separar essa representação de seu afeto, tornando-a fraca. Porém, o
afeto assim desvinculado da representação tem que ser utilizado de alguma forma. O
curso que se segue dem diante caracteriza, no caso da conversão somática do afeto e
do deslocamento do afeto, respectivamente, uma histeria e uma neurose obsessiva.
Assim, sem querer entrar nos pormenores do problema da escolha da neurose, o fato é
que tanto a representação quanto o afeto ligado a ela continuam atuantes (Freud, 1894).
O que queremos destacar é que mais do que um processo de defesa contra
representações geradoras de desprazer, o recalcamento está relacionado com a ppria
irrupção de desprazer que acompanha o sintoma neurótico
8
. Se, por um lado, o processo
de defesa é contra o desprazer que a representação instaura, por outro, ele abre caminho
para o sintoma, que é fonte de desprazer.
7
Freud sempre destacou com veemência que essas representações incompaveis o de caráter sexual.
8
No Além do princípio de prazer” (1920) Freud escreve que graças ao processo de recalque toda
possibilidade de prazer é sentida como desprazer.
35
Esses pacientes que analisei, portanto, gozaram de boa saúde mental
até o momento em que houve uma ocorrência de incompatibilidade
em sua vida representativa isto é, até que seu eu se confrontou com
uma experiência, uma representação ou um sentimento que suscitaram
um afeto o aflitivo que o sujeito decidiu esquecê-lo (...) (Freud,
1894/96, p. 55).
Ora, se o sujeito gozava de boa saúde mental até o momento em que o seu eu
confronta-se com uma representação incompatível, da qual procura defender-se,
tentando esquecê-la, somos forçados a crer que é o próprio processo de defesa contra
uma representação incompatível que determina os sintomas neuróticos e a conseqüente
irrupção de desprazer. Toda tentativa de rejeitar as representações incompatíveis, de
defender-se delas, termina contraditoriamente, a princípio, na instauração do sintoma,
que se não é um fenômeno propriamente patológico, sem dúvida traz consigo
sofrimento.
Podemos dizer ainda que o sintoma como resultado da defesa contra um conflito
psíquico é uma espécie de solução desse conflito, afinal, embora traga consigo
sofrimento, põe fim ao conflito entre as representações incompatíveis. No entanto, nossa
pergunta é: como algo que traz a marca do padecimento pode ser pensado como uma
solução, um desfecho, um desenlace, a resolução de um problema? É sem dúvida de
impressionar que uma defesa contra algo que provoca sensações aflitivas tenha como
efeito uma reação patológica. Que defender-se de um conflito entre representações
incompatíveis, livrando-se dele, possa trazer, em seu lugar, um sintoma. Solução
definitivamente trágica. Isso me faz pensar nos contos sobre o mito dos vampiros, que
hoje tanto proliferam nas prateleiras das livrarias e nas telas de cinema e televisão,
penso no vampiro herói e que não suporta sua condição que para proteger a vida de
36
alguém que ama ou respeita contra a sede de sangue de um vampiro qualquer ou contra
a inevitável finitude da vida, a única solução que parece encontrar é tornar esse alguém
também um vampiro, ou seja, tirando-lhe a vida, livrando-o da morte. Aliás, o interesse
atual pela imortalidade vampiresca na literatura e em outras formas artísticas, talvez seja
o reflexo de um desejo de suspensão da morte que tanto se faz presente na cultura atual,
parece-nos, e que podemos confirmá-lo pelas tentativas de criação de órgãos artificiais e
na regeneração dos órgãos que naturalmente sucumbiram. Nesse caso, a civilização
talvez possa aprender com os “vampiros” que a aparente evitação da morte é na verdade
a perda da vida.
Voltando ao nosso interesse atual, diremos, resumindo, que todo o processo
define-se na fórmula: conflito defesa sintoma. Como diz Freud (1894), os pacientes
gozavam de boa saúde até o momento em que “houve uma ocorrência de
incompatibilidade em sua vida representativa (idem, p. 55), isto é, até que lhes surgiu
uma idéia tão desagradável que eles tentaram esquecê-la, tratá-la como se não tivesse
existido. No entanto, “tanto o traço mnêmico como o afeto ligado à representação
estão de uma vez por todas” (idem, p. 56). Assim, a única ação possível ao eu realizar
em sua atitude defensiva é “transformar essa representação poderosa numa
representação fraca” (idem, p. 56), a saber, separando a representação do afeto ligado a
ela. Dpor diante se originará um sintoma histérico pela conversão somática do afeto
ou um sintoma obsessivo pelo deslocamento do afeto para outras representações. Vê-se,
portanto, como uma defesa, aparentemente acertada, gera um sintoma neurótico.
2.2 - O sintoma sonhado
No primeiro de seus dois artigos sobre as neuropsicoses de defesa” (1894) se
Freud não deixa claro essa questão de que o processo de defesa acaba por originar o
37
sintoma neurótico, no segundo artigo, “Observações adicionais sobre as neuropsicoses
de defesa” (1896), ele parece deixar isso bastante evidente, embora não se questione
profundamente, ou melhor, não estranhe profundamente, o fato de os esforços do sujeito
para defender-se de uma experiência desprazerosa possa abrir as portas para a neurose:
Agrupei a histeria, as obsessões e certos casos de confuo
alucinatória aguda sob o nome de “neuropsicoses de defesa” [Freud,
1894], porque tais afecções revelaram um aspecto comum. Este
consistia em que seus sintomas emergiam por meio do mecanismo
psíquico de defesa (inconsciente) isto é, emergiam como uma
tentativa de recalcar uma representação incompatível que se opunha
aflitivamente ao eu do paciente (Freud, 1896/96, p. 163).
Freud introduz em “Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa”
(1896) maiores esclarecimentos sobre o processo de defesa ou recalcamento. Ele
destaca que o sintoma neutico é precisamente o “retorno das lembranças recalcadas”,
devido a um fracasso da defesa. E, diz mais, que o retorno dessas lembranças recalcadas
nunca ocorre na forma original, essas lembranças ressurgem na consciência de forma
desfigurada, deformada, disfarçada. “O que se torna consciente”, diz Freud,
“substituindo as lembranças patogênicas no que concerne à vida consciente, são
estruturas da ordem de uma formação de compromisso entre as representações
recalcadas e as recalcadoras (Freud, 1896/96, p. 170). Essa formulação confere ao
sintoma, sem sombra de vida, o caráter de uma solução
9
.
Todo esse mecanismo é retomado por Freud, de forma ainda mais abrangente, por
um fenômeno comum a todo sujeito - o sonho -, cujo valor de paradigma é muito maior
do que qualquer fenômeno psíquico para compreensão dos mecanismos psíquicos da
9
Esse caráter destaca, como diz Herzog (2007), uma dimensão do sintoma que faz resistência à
concepção de mal a ser extirpado.
38
neurose, que é a intenção de Freud (1900), e para compreensão de como o sujeito lida
com as sensações de prazer e desprazer, que é a nossa intenção. Sob esse prisma, há,
portanto, uma identidade entre os mecanismos psíquicos formadores dos sonhos e os
mecanismos encontrados pela psicanálise na estrutura neurótica.
Tenho-me empenhado muitos anos (com um objetivo terapêutico
em vista) em deslindar certas estruturas psicopatológicas – fobias
histéricas, idéias obsessivas, e assim por diante. (...) Meus pacientes
que assumiam o compromisso de me comunicar todas as idéias ou
pensamentos que lhe ocorressem em relação a um assunto específico,
entre outras coisas, narravam-me seus sonhos, e assim me ensinaram
que o sonho pode ser inserido na cadeia psíquica a ser
retrospectivamente rastreada na memória a partir de uma idéia
patológica. Faltava então apenas um pequeno passo para se tratar o
próprio sonho como um sintoma e aplicar aos sonhos o método de
interpretação que fora elaborado para os sintomas (Freud, 1900/96, p.
135).
Freud (1900) nos mostra aqui como os sonhos são gerados, assim como os
sintomas, pela ação de forças pquicas concomitantes e mutuamente opostas, entre
representações recalcadas e recalcadoras. Sua intenção era afinal a de que os sonhos
tornassem possível a análise das neuroses; “é minha intenção”, ele diz, utilizar minha
atual elucidação dos sonhos como um passo preliminar no sentido de resolver os
problemas mais difíceis da psicologia das neuroses(Freud, 1900/96, p. 139). E nesse
intento, graças à investigação e aproximação dos sonhos com o sintoma neurótico,
segundo o olhar que essa pesquisa procura conferir à elaboração freudiana, Freud
(1900) introduz mais uma problemática em torno do processo de recalcamento, a saber,
que o sintoma é também uma realização de desejo, ou seja, que ele inclui uma
satisfação. Na verdade, mais precisamente, Freud (1900) nos diz que os sonhos são uma
realização de desejos.
39
Não se devem assemelhar os sonhos aos sons desregulados que saem
de um instrumento musical atingido pelo golpe de alguma força
externa, e não tocada pela mão de um instrumentista; eles não são
destituídos de sentido, não são absurdos; (...). Pelo contrário, são
fenômenos psíquicos de inteira validade realizações de desejos
(Freud, 1900/96, p. 157).
Ora, mas se Freud (1900) nos diz que os sonhos o o resultado da ação das
mesmas forças psíquicas que originam os sintomas, podemos estender suas conclusões
sobre os sonhos para os sintomas e dizer que estes também realizam desejos; que
satisfação nos sintomas. É isso mesmo que contém a idéia de formação de
compromisso. Freud (1900) mesmo é quem diz:
(...) todo sonho pode ser uma realização de desejo, mas, além dos
sonhos, tem de haver outras formas anormais de realização de desejo.
E é fato que a teoria que rege todos os sintomas psiconeuróticos
culmina numa única proposição, que assevera que também eles devem
ser encarados como realizações de desejos inconscientes (Freud,
1900/96, p. 597).
Assim, tendo em vista a identidade entre os sonhos e os sintomas, retomando o
que destacamos acima, diremos que o processo de defesa contra um conflito psíquico
instaura um sintoma neurótico e a conseqüente irrupção de desprazer para o sujeito, mas
esse mesmo sintoma compreende uma realização de desejo, ocasionando, portanto, uma
satisfação para o sujeito. Assim sendo, embora pareça contraditório que a defesa contra
representações incompatíveis leve ao sintoma, é através deste que o sujeito alcança
satisfação, uma satisfação distorcida como nos sonhos, uma satisfação que não é
completa, mas uma satisfação. Nesse sentido, se pensamos o sintoma como efeito do
40
conflito entre representações sexuais e as normas da civilização, “o sintoma fulgura
como o que possibilita a inserção do sujeito na civilização sem lhe roubar totalmente a
satisfação” (Herzog, 2007, p. 121). Ainda segundo a autora, vale a pena destacar, o
sintoma nessa dimensão acaba por implicar que o trabalho do analista deva ser
orientado no sentido de positivação do sintoma (Herzog, 2007). O que se pode entrever
aqui é a complexa presença simultânea das sensações aparentemente excludentes de
desprazer e prazer. Não se trata apenas, portanto, como pode dar impressão, da condição
simples de evitar o desprazer e produzir prazer.
Freud (1900) nos dá uma série de exemplos claros de sonhos representando um
desejo como realizado: como o sonho, segundo ele, que lhe ocorria quase todas as
noites; depois de comer algum alimento muito salgado e ficar com sede durante a
madrugada, sonhava beber água, goles enormes de água; o sonho de um colega médico
que tinha dificuldades para acordar de manhã cedo e que, certa manhã, quando a
hospedeira de sua pensão gritava-lhe à porta para que ele acordasse, pois era hora de
ele ir para o hospital, ele sonhava que estava deitado numa cama no hospital e dizia a si
mesmo que, que estava no hospital não precisava ir até lá, e então continuava a
dormir. Esses sonhos são claramente sonhos de realização de desejo, dão ao o sujeito a
sensação de prazer e não parecem originar nenhuma sensação de desprazer.
Mas há sonhos onde a realizão de desejo não é tão clara e que deixam
transparecer a presença simultânea das sensações de desprazer e prazer. Sonhos
notadamente aflitivos e de angústia onde Freud (1900) tanto procurou destacar a
realização de um desejo e sua conseqüente satisfação por trás desses sonhos
desprazerosos.
41
Quando empreendo o tratamento analítico de um paciente
psiconeurótico seus sonhos são invariavelmente discutidos entre nós.
No decurso dessas discussões, sou obrigado a dar-lhe todas as
explicações de seus sintomas. A partir daí, fico sujeito a uma crítica
implacável (...). E meus pacientes invariavelmente contradizem minha
asserção de que todos os sonhos são realizações de desejos (Freud,
1900/96, p. 180).
“Como o senhor enquadra isso em sua teoria?”, indagam os pacientes de Freud,
relatando seus sonhos aflitivos e de angústia (Freud, 1900/96, p. 180). Freud (1900)
responde à questão dos pacientes sobre como um sonho aflitivo pode ser uma realização
de desejo com a hipótese da “distorção do sonho”, exercida por uma instância censora
que impede o conteúdo latente de uma primeira instância alcançar a consciência. Trata-
se, como destacamos acima, exatamente do mesmo processo no qual as representações
incompatíveis sofrem influência e que afinal acabam por originar o sintoma. Ou seja, do
pressuposto da existência de duas instâncias principais no psiquismo - uma que
compreende o conteúdo latente e inconsciente do sonho e outra consciente que encerra o
conteúdo manifesto do sonho -, pode-se dizer que “os sonhos aflitivos de fato encerram
alguma coisa que é penosa para a segunda instância, mas que, ao mesmo tempo, realiza
um desejo por parte da primeira. São sonhos de desejos, na medida em que todo sonho
decorre da primeira instância” (Freud, 1900/96, p. 180). Freud, então, reafirma sua tese
de que os sonhos são realização de desejos, embora esses sonhos aflitivos e de angústia
causem também e ao mesmo tempo desprazer para o sonhador. O que ocorre é que
enquanto um acontecimento pquico é causador de desprazer para um sistema, o
mesmo acontecimento pode ser causador de prazer para outro sistema; trata-se de um
desejo inconsciente e recalcado, cuja realização, disfarçada, o eu do sonhador não
poderia deixar de vivenciar como aflitivo (Freud, 1900/96).
42
Freud não para de fornecer exemplos dessa situação aparentemente paradoxal em
torno dos sonhos e da tese de realização de desejos. Ele procura esclarecer mais ainda a
situação dizendo que a realização de um desejo deve sim trazer prazer, mas pergunta,
“para quem”? - Ao sonhador, obviamente, ele diz. Mas esse, relata Freud (1900), é
como o amálgama de duas pessoas, ligadas por um elemento comum. É como o conto
dos três desejos, diz ele:
Uma fada boa prometeu a um pobre casal garantir-lhes a realização de
seus três primeiros desejos. Eles ficaram encantados e se propuseram
a escolher cuidadosamente os três desejos. Mas um cheiro de salsichas
sendo fritas na choupana ao lado tentou a mulher a desejar algumas.
Num instante, lá estavam elas, e essa foi a primeira realização de
desejo. O homem, pom, ficou furioso, e em sua ira desejou que as
salsichas ficassem penduras no nariz da mulher. Também isso
aconteceu, e não havia como deslocar as salsichas de sua nova
posição. Foi a segunda realização de desejo; mais o desejo tinha sido
do homem, e sua realização foi muito desagradável para a mulher
(Freud, 1900/96, p. 396).
O que Freud destaca dessa cena, dessa pequena história, é que quando duas
pessoas não concordam entre si, o desejo de uma acarreta sempre em desprazer para a
outra. É também assim que se apresenta o psiquismo. O desejo inconsciente e recalcado
que consegue alcançar satisfação nos sonhos a revelia das exigências conscientes do eu
que não pode deixar de vivenciar esse desejo como aflitivo (Freud, 1900).
Quando dissemos no início deste capítulo que se erigia uma defesa contra as
representações incompatíveis, o que acabava por resultar na instauração dos sintomas
neuróticos, ficava claro que essa defesa ocorria porque essas representações eram
geradoras de desprazer. Agora, contudo, depois que pudemos observar que tanto os
sonhos quanto os sintomas são acompanhados de prazer e desprazer, vemos que as
43
representações incompatíveis geradoras de desprazer que instauram o conflito psíquico
também incluem uma possibilidade de prazer, posto que compreendem um desejo
inconsciente. Assim, embora o recalque opere contra a instauração do desprazer, ele
acaba sobrevindo contra uma possibilidade de satisfação. Por isso os sonhos se
apresentam aparentemente sem sentido, pois tendo sido operado o mecanismo de
recalcamento contra representações capazes de gerar desprazer, mas que também
incluem a possibilidade de satisfação, a distorção, a desfiguração, a deformação dos
sonhos se torna necessária, pois torna o recalcado acessível à consciência. Ou seja, a
realização de desejo contida nos sonhos é disfarçada, camuflada, mascarada, tornada
irreconhecível para a instância que levanta a defesa contra tais representações; tudo isso
para que o desejo possa alcançar satisfação. Tudo isso, no entanto, nos coloca a questão
de saber como uma possibilidade de satisfação é transformada numa possibilidade
desprazer?
Ora, o que concluímos até aqui é que nosso pressuposto de que as sensações de
prazer e desprazer estão simultaneamente presentes nos sonhos e nos sintomas, bem
como em toda formação inconsciente, se sustenta, nos termos da psicopatologia da
neurose, na idéia de formação de compromisso e, nos termos da psicologia dos sonhos,
na idéia de distorção dos sonhos. Em última instância, na existência de duas instâncias
psíquicas principais, inconsciente e pré-consciente/consciente, ou mais apropriadamente
o inconsciente e o eu.
2.3 - Sofrimento ou satisfação?
Se com os sonhos e a tese de realização de desejos Freud (1900) nos fornece
maiores condições de compreender que por trás dos sintomas satisfação, isso não
quer dizer que antes da tese sobre os sonhos, desde o início da investigação freudiana
44
com as pacientes histéricas, não estivesse presente todo esse problema em torno das
sensações de prazer e desprazer, da exisncia de um prazer por trás do aparente
sofrimento, do sintoma entendido como uma forma de satisfação.
Em “Um caso de cura pelo hipnotismo” (Freud, 1892-93/96), o primeiro dos casos
clínicos publicados da teoria freudiana, Freud ressalta, com espanto, que embora tenha
conseguido realizar uma cura impressionante dos sintomas que atormentavam a
paciente, esta o o agradeceu, tendo mesmo desprestigiado seu trabalho. Ora, o que
podemos inferir é que se a paciente não demonstrou sentir menor prazer ao ver-se livre
dos sintomas que tanto lhe prejudicavam a vida, o que podemos dizer disso é que ela
extraía alguma satisfação do sintoma que acabara de se livrar.
Ora, desde o princípio da obra freudiana, portanto, com a investigação da
patogenia da histeria, saltava aos olhos e ouvidos de Freud algo que o se mostrava
coerente com as condições de seus pacientes e com os resultados positivos que
alcançava o tratamento. Freud, na verdade, vai pouco a pouco, ao longo de toda sua
elaboração, problematizando essas questões em torno das sensações de prazer e
desprazer vividas pelo sujeito, indo mais a fundo e direto, tirando as mais sérias
conseqüências.
Em “Fragmento da Análise de um Caso de Histeria” (1901[1905]), Freud afirma
efetivamente que o sujeito tira proveito de seus sintomas. Freud remete a paciente à sua
participação nas circunstâncias das quais se queixa - de ser usada como moeda de troca
por seu pai -, mostrando como ela fizera o possível para favorecer as relações de seu pai
com a Sra. K, nunca a visitando quando suspeitava que seu pai estivesse com ela, e por
isso mesmo, permanecendo como objeto de negociação entre seu pai e o Sr K
(1901[1905]). Porém, mais que seu estado neurótico, repleto de circunstâncias que ela
45
mesma criava e que reforçavam a situação em que se encontrava, a paciente tinha
também participação em seus sintomas mais característicos, como sua completa perda
de voz.
Perguntei-lhe qual tinha sido a duração média desses ataques. “Três a
seis semanas, talvez”. Quanto tempo duravam as auncias do Sr. K?
Ts a seis semanas, tamm”, teve ela de admitir. (...) Quando o Sr
K viajava (...) ela renunciava à fala; esta perdia seu valor, que o
podia falar com ele (Freud, 1901[1905]/96, p. 46-7).
Assim, para além da solução de um conflito entre representações aflitivas, o que
Freud (1901[1905]) nos mostra nesse momento é que há um propósito no sintoma. Não
é por acaso que o sintoma se repete tantas vezes e é o difícil se livrar dele, a doença
visa alcançar um objetivo, tem um motivo. Mas esses motivos, Freud alerta, não tem
participação na formação do sintoma, eles só aparecem secundariamente. É na
presença desses motivos que podemos falar efetivamente na constituição de uma
enfermidade. Isto é, não é a formação do sintoma enquanto solução do conflito que
Freud considera um sintoma patológico, mas o fato de o sujeito fazer desse sofrimento
um expediente para tirar alguma satisfação (Freud, 1901[1905]).
Pode-se contar com sua existência em todos os casos em que haja um
sofrimento real e de longa data. A princípio, o sintoma é para a vida
psíquica um hóspede indesejável. (...) No início, não tem nenhum
emprego útil na economia doméstica psíquica, porém com muita
freqüência encontra serventia secundariamente. (...) Aquele que
pretende curar o doente tropeça então, para seu assombro, numa
grande resistência, que lhe ensina que a intenção do paciente de se
livrar de seus males não é nem o cabal nem tão séria quanto parecia
(Freud, 1901[1905]/96, p. 50).
46
Ainda em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria” (1905a [1901]), Freud
nos leva a pensar que, se, a princípio, o sintoma é um “hóspede indesejável”, com
tempo ele encontra “serventia secundária”.
Imaginemos um trabalhador, um pedreiro, digamos, que tenha caído
de uma construção e ficado aleijado, e que agora ganhe a vida
mendigando nas esquinas. Chega um milagreiro e promete endireitar-
lhe a perna torta e devolver-lhe a marcha. o se deve esperar, acho
eu, ver uma expressão de particular contentamento em seu rosto. Sem
dúvida, na época em que sofreu a lesão, ele de ter-se sentido
extremamente infeliz, ao compreender que nunca mais poderia voltar
a trabalhar e teria de passar fome ou viver de esmolas. Desde então,
porém, o que antes o deixava sem seu ganha-pão tornou-se sua fonte
de renda: ele vive de sua invalidez. Se esta lhe for tirada, talvez ele
fique totalmente desamparado (Freud, 1901[1905]/96, p. 50-1).
Nesses casos, Freud diz que o motivo da doença reside em uma condição externa,
que se for alterada por algum motivo, faz desaparecer o distúrbio de umgolpe. “Mas
há casos com motivos puramente internos, como, por exemplo, a autopunição(Freud,
1901[1905], p. 52). Em “O Eu e o Isso” (1923) essa problemática - de alguns pacientes
como que preferirem a doença em vez da cura é retomada por Freud, articulada a um
sentimento inconsciente de culpa, o que marca a diferença para com o lucro secundário
da doença. Esse sentimento de culpa, diz Freud, é silencioso, o paciente não se sente
culpado, só inferimos sua presença por uma resistência à cura extremamente difícil de
superar (Freud, 1923).
47
Toda solução parcial, que deveria resultar, e noutras pessoas realmente
resulta, numa melhoria ou suspensão temporária de sintomas, produz
nelas, por algum tempo, uma exacerbação de suas moléstias; ficam
piores durante o tratamento, ao invés de ficarem melhores. Exibem o
que é conhecido como reação terapêutica negativa(Freud, 1923/96,
p. 62).
Freud compreende esse sentimento inconsciente de culpa, que se expressa como
uma reação terapêutica negativa, como o resultado no Eu da crítica dilacerante do
Supereu. Em O mal-estar na civilização (1930), Freud diz que se o sujeito assume a
reprovação do Supereu, sentindo-se culpado, a explicação deve ser buscada “no
desamparo e na dependência dele em relação a outras pessoas, o que pode ser mais bem
designado como medo da perda de amor” (Freud, 1930/96, p. 128). É também em torno
do desamparo que Birman (1999/2006) reflete sobre o masoquismo, entendendo-o como
forma de evitação da dor desse desamparo:
o sujeito oferece ao outro o seu corpo e o seu psiquismo para que
aquele possa gozar como queira, desde que, em contrapartida, ele lhe
ofereça proteção para o desamparo. Não obstante a humilhação que tal
posição possa implicar para o sujeito, este prefere isso a permanecer
entregue ao seu desamparo (Birman, 1999/2006, p. 52).
É preferível essa satisfação miserável no sofrimento que a dor do desamparo.
2.4 – Pulsão e satisfação parcial
Vimos até aqui, no terreno da psicopatologia com os sintomas e no terreno dos
processos psíquicos normais com os sonhos, a presença confusa, ambígua, conflitante
para o sujeito das sensações de prazer e desprazer. O desprazer como efeito mesmo da
defesa contra representações geradoras de desprazer; essas mesmas representações
compreendendo tamm a possibilidade de uma satisfão; o lucro secundário do
48
sintoma; o sentimento inconsciente de culpa; a reação terapêutica negativa e o
masoquismo frente à dor do desamparo. Tudo nos leva a crer que as sensações de prazer
e desprazer se fazem presentes simultaneamente nas experiências do sujeito. A partir de
Três ensaios sobre teoria da sexualidade (1905), a partir do conceito de pulsão, é que
essa condição de as sensações de prazer e desprazer se apresentarem simultaneamente
parece se tonar mais evidente.
Freud (1905) inicia o primeiro de seus três ensaios sobre a teoria da sexualidade
dizendo que “a existência de necessidades sexuais no homem e no animal expressa-se
na biologia pelo pressuposto de uma pulsão sexual” (Freud, 1905/96, p. 128) e que a
opinião popular, bem como o saber cientifico, definem de forma muito precisa essa
pulo sexual; ela não estaria presente na criança, se expressa pela atração ao sexo
oposto e seu objeto é a uno sexual. O itinerário que Freud (1905) segue daí em diante
é para revelar os erros e imprecisões que a opinião popular, a ciência e a religião m
sobre a pulsão sexual. Nesse percurso a inversão sexual é encarada como o paradigma
para a revelação das imprecisões com respeito à pulsão sexual e à sexualidade e revelar
suas reais condições.
Essencialmente Freud (1905) destaca que a relação da pulsão sexual com o objeto
sexual não é tão intima como se estava costumado a imaginar e somos levados, assim, a
afrouxar suas relações. A partir das idéias organizadoras de “objeto sexual e alvo
sexual”, ou seja, da pessoa que exerce a atração sexual e a ação para a qual impele a
pulo, Freud (1905) nos leva a concluir que o objetivo da pulsão sexual é tão somente a
satisfação. Satisfação entendida como a descarga de estímulos, diminuição da
49
excitação
10
. O objeto da pulsão nunca é tão somente a pessoa do sexo oposto, como nos
mostra a homossexualidade; nem esse objeto carrega sempre condições ideais, como
vemos no sexo praticado com pessoas sexualmente imaturas. No artigo de 1915,
“Pulsão e destinos da pulsão”, onde todo esse tema é profundamente examinado, Freud
reforça que o objeto da pulsão é o mais variado; que qualquer objeto serve ao objetivo
da pulsão, desde que propício a gerar satisfação; não há um objeto específico para que o
sujeito alcance satisfação. Por isso mesmo, porque não um único objeto que lhe
garanta satisfação, essa satisfação é sempre parcial, incompleta. Toda essa condição
entre a pulsão e o objeto no esfoo de alcançar satisfação leva Freud à seguinte
definição de pulsão:
A pulsão nos aparecerá como um conceito-limite entre o psíquico e o
somático, como o representa psíquico dos estímulos que provêm do
interior do corpo e alcançam a psique, como uma medida de exigência
de trabalho importa ao psíquico em conseqüência de sua relação com
o corpo (Freud, 1915/2004, p. 148).
Em acréscimo feito à terceira edição (1915) de Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade (1905) Freud talvez seja ainda mais incisivo:
Por pulsão podemos entender, a princípio, apenas o representante
psíquico de uma fonte endossomática de estimulação que flui
continuamente, para diferenciá-lo do estímulo”, que é produzido por
excitações isoladas vindas de fora. Pulsão, portanto, é um dos
conceitos na delimitação entre o anímico e o físico. A hipótese mais
simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão seria que, em si
mesma, ela o possui qualidade alguma, devendo apenas ser
10
Desde o “Projeto para uma psicologia científica” (1895) Freud define a satisfação como a descarga das
quantidades de energia que se encontravam aumentadas no psiquismo causando desprazer. Ou seja,
descarga coincide com alívio de tesão.
50
considerada como uma medida da exigência de trabalho feita à vida
anímica (Freud, 1905/96, p. 159).
Em “Pulsão e destinos da pulsão” (1915), portanto, Freud coloca toda ênfase na
exigência de trabalho ao pquico, como conseqüência da relação da pulsão com o
corpo. Enfatiza, assim, a condição sob a qual está submetido o pquico; uma fonte
endossomática de estimulação fluindo constantemente como uma medida de exigência
de trabalho, condição impossível de evitar. Ao contrário de um estímulo externo do qual
se pode fugir de seu raio de ação, do estímulo interno, que incide sobre o psíquico, não é
possível escapar. Ou seja, da relação da pulsão com o corpo, o que torna impossível ao
psíquico fugir de sua exigência de trabalho, podemos dizer, com Freud, que a “essência
da pulsão, o que lhe de mais característico, é seu caráter de pressão [Drang] (Freud,
1915).
Esse caráter de pressão, sua exigência de trabalho ao psiquismo, implica que a
pulo tenha por objetivo sempre a satisfação, alcançada quando o estado de
estimulação é temporariamente eliminado, posto que a satisfação é sempre parcial e que
a pressão da pulsão sempre se refaz, fluindo continuamente. A pulo, portanto, não
alcança satisfação plena. Em outras palavras, o que Freud nos mostra com o conceito de
pulo é que há uma insatisfação estrutural no sujeito, há uma impossibilidade de
adequação a um objeto que lhe garanta satisfação total; uma satisfação que não é
livre de contradição, uma satisfação sempre incompleta. Assim, o próprio conceito de
pulo, portanto, reforça a idéia da simultaneidade das sensações de prazer e desprazer
nas experiências vividas pelo sujeito, pois a pulsão impele, exige, tortura, pressiona e,
ao mesmo tempo, alcança satisfação nos mais variados objetos, das mais variadas
maneiras.
51
2.5 – Excitação sexual e masoquismo
Toda essa perspectiva sobre a simultaneidade do prazer e do prazer ganha peso
realmente com o problema da excitação sexual e do masoquismo. Freud destaca nos
“Três ensaios sobre a teoria da sexualidade(1905) que certas relações com o objeto
sexual, como nas relações preliminares ao ato sexual, de um lado trazem prazer em si
mesmas e de outro lado intensificam a tensão da excitação sexual. Ou seja, evidencia-se
um prazer ante um aumento de excitação. Ora, mas se o objetivo da pulsão é a
satisfação, é um problema que uma relação com o objeto que serve para alcançar essa
satisfação, ao mesmo tempo, intensifique a tensão, que só pode ser sentida como
desprazer. A questão é que, se, por um lado, a excitação sexual, enquanto intensificação
da tensão, não pode deixar de ser sentida como desprazer, por outro, enquanto erótica,
sexual, ela também não pode deixar de ser sentida como prazer (Freud, 1905). Trata-se
do mesmo problema que Freud levanta em “O problema econômico do masoquismo”
(1924). O tratamento que Freud dá a questão em 1924, no entanto, leva em consideração
o novo dualismo pulsional e a experiência de dor.
A forma como vimos tratando a problemática do prazer e do desprazer como
efeito de um mesmo acontecimento situa-se no campo das representações. Mas se a
excitação sexual e o masoquismo implicam em aumento de tensão, uma vez que não
compreendem a meta do princípio de desprazer/prazer de extinção da excitação, o
prazer sentido nesses casos não corresponde ao campo do princípio de prazer. Como
Fortes (2007) destaca, o masoquismo aponta para um prazer que não é regido pelo
princípio de prazer, mas um prazer que é uma experiência de intensidade. Diante dessas
questões somos mais uma vez convocados a investigar mais a fundo as relações entre os
52
registros pulsional e representacional, a fim de melhor compreender, considerando
ambos os registros, as sensações de prazer e desprazer e a experiência de dor.
53
CAPÍTULO III
O psiquismo como aparelho de representação
Os dois primeiros capítulos nos mostraram como as sensações de prazer e
desprazer estão intimamente relacionadas com o campo da representação. Porém, ao
longo de toda a investigação que fizemos até aqui, principalmente com respeito à
excitação sexual e ao masoquismo, despontava-se no horizonte a necessidade de
refletirmos sobre a relação entre o campo das representações, ao qual situamos as
sensações de prazer e desprazer, e o campo das pulsões. É uma investigação sobre essa
relação e suas conseqüências que procuraremos investigar a partir de agora, a fim de
melhor situarmos nossa pesquisa sobre a dor, o prazer e desprazer na obra freudiana.
3. 1 - Quantidade e representação como modelos explicativos das psiconeuroses
A criação freudiana tem como tese principal, o fundamento que guiou o
pensamento freudiano por toda sua elaboração, o fato de que os sintomas dos pacientes
são efeito de um passado esquecido
11
. Por conseqüência disso, a tarefa analítica seria a
de possibilitar a rememoração desse passado. Em Estudos sobre a histeria (1893-95),
Breuer e Freud, que durante anos procuraram descobrir a causa precipitante dos
sintomas histéricos, disseram: “cada sintoma histérico individual desaparecia, de forma
imediata e permanente, quando conseguíamos trazer à luz com clareza a lembrança do
fato que o havia provocado e despertar o afeto que o acompanhara” (Breuer e Freud,
1893/96, p. 42). No entanto, a simples interrogação aos pacientes não levava a
recordação sobre o que causava os sintomas histéricos. Em parte porque a causa
precipitante era algo sobre o que o paciente não queria se a ver e em parte porque ele
11
Vimos no primeiro capítulo como os termos lembrança e história eram centrais nas primeiras
investigações freudianas.
54
não era capaz de recordar. Essas lembranças não se acham à disposição do paciente,
estão inteiramente ausentes da cadeia de recordações que o paciente consegue trazer à
luz sob a simples interrogação; chegam a essas lembranças, diziam Breuer e Freud,
quando interrogados sob hipnose (Breuer e Freud, 1893).
O que Freud e Breuer queriam demonstrar é que a causa dos fenômenos
patológicos era a presença ativa de representações inconscientes, e recalcadas, que o
paciente não era capaz ou não queria recordar. Em seus Estudos sobre a histeria (1893-
95), apresentaram uma série de casos clínicos demonstrando que os sintomas histéricos
envolviam a inflncia de representações inconscientes. Para explicar isso sem recorrer
a exemplos da patologia, Freud (1893-95) nos convida a imaginar a seguinte situação:
que tenha se esquecido de fazer uma de suas visitas médicas e que sentimentos de
inquietação o tenham atormentando o dia inteiro, sem soubesse porque. Ele procura algo
na memória que explique sua inquietação, mas não consegue êxito até que, de repente, a
lembrança entra em sua consciência. A lembrança/representação da visita médica que
Freud hipoteticamente havia se esquecido de fazer tempos depois entrou em sua
consciência, mas ela sempre esteve envolvida na inquietação que sentia. Ou seja, a
representação da visita médica esteve sempre ativa, presente o tempo todo, embora fora
de sua consciência (Freud, 1893-95).
Queremos com isto destacar que a teoria freudiana procura pensar as
psiconeuroses a partir da ordem da representação. Aliás, essa entrada de Freud na ordem
da representação ocorrera antes mesmo dos Estudos sobre a histeria (1893-95).
Notamos isso principalmente em seu artigo “Algumas considerações para um estudo
comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas” (1893 [1888-1893]) e a
noção que traz de corpo representado, onde um membro como o braço, por exemplo, é o
55
braço tal como aparece sob a manga da camisa. Esse esquema teórico para explicar as
psiconeuroses com base na presença ativa de representações inconscientes é ainda mais
elaborado em A interpretação dos sonhos (1900). No entanto, não é tão simples dizer
que Freud preferência à ordem da representação para explicar as psiconeuroses, pois,
como vimos nos capítulos anteriores as concepções quantitativa e representacional
sempre estiveram presentes no pensamento freudiano. Pois se por um lado no artigo
sobre as paralisias histéricas e nos Estudos sobre a histeria (1893-95) a representação
ganha lugar de destaque, por outro lado, nesse mesmo período, em seu Projeto para
uma psicologia cientifica (1895), Freud quer representar os processos psíquicos como
estados quantitativamente determinados, pensando o funcionamento do aparelho
psíquico em termos de quantidades de energia. Isso sem falar na controversa noção de
afeto e a hipótese da constância da soma de excitação. Observamos que esse ponto de
vista ganha mais e mais terreno com o passar dos anos, mas antes ainda do “Projeto de
psicologia” (1895), em seu artigo “Histeria” (1888), Freud escreve que os distúrbios
psíquicos “podem ser resumidos como alterações na distribuição normal, no sistema
nervoso, das quantidades estáveis de excitação (...) devido a um excesso de esmulos no
sistema nervoso” (Freud, 1888/96, p. 85).
Ora, vê-se que a concepção quantitativa e a concepção representacional dos
processos pquicos estiveram sempre, concomitantemente, presentes na elaboração
freudiana das psiconeuroses, embora a ordem representacional tenha se destacado
significativamente, principalmente a partir de A interpretação dos sonhos (1900). Mas a
presença simultânea das duas abordagens dos processos psíquicos se prova mesmo
pelos conceitos de “representaçãoe “afeto”. No entanto, é importante destacar que o
termo afeto ficou um pouco de lado no desenvolvimento teórico de Freud por conta de
seu interesse sobre o deciframento das representações, ao menos até as elaborões
56
teóricas de 1915 e 1920. Mas essa “exclusão do afeto” (Birman, 1999), juntamente com
a problemática do corpo, se deu mesmo no discurso pó-freudiano. Muito porque o afeto
não é uma noção tão clara em psicanálise e também por conta da sedução que exerce a
metodologia interpretativa “pela sua pretensão em estabelecer ligações no universo da
invisibilidade (Birman, 1995). Essa exclusão do afeto, como muito bem destaca
Birman (1999), conduzia a psicanálise a distanciar-se completamente dos efeitos
pulsionais no psiquismo, “induzindo com isso o manejo de uma técnica clínica que se
inscreve no limite da racionalização(Birman, 1999, p. 28). Freud, de sua parte, em
1914a, segundo nossa leitura, retoma e caminha para avançar na problemática da
relação entre pulsão e psiquismo. Avanço que seus sucessores em sua grande maioria
não ousaram realizar.
3. 2 - A repetição frente à rememoração e à representação
Em “Recordar, repetir e elaborar” (1914a), Freud relembra todo essa dimensão
que destacamos até aqui. Ele inicia o artigo chamando nossa atenção para as alterações
que a cnica psicanalítica sofreu desde os primórdios. Lembra-nos, então, do método
catártico onde se procurava, no princípio, com auxílio da hipnose, fazer o paciente
recordar o momento em que o sintoma se formara, procurando produzir os processos
mentais envolvidos naquela situação, a fim de que o afeto ligado à cena traumática se
descarregasse de maneira adequada. Freud destaca também que com o abandono da
hipnose fortes resistências passam a impedir o paciente de recordar, cabendo ao analista
revelar essas resistências ao paciente para que ele possa superá-las. Por fim, diz Freud, a
técnica da análise se altera: não mais se coloca em foco o momento da formão do
sintoma, interessando ao analista tudo que se acha à superfície (Freud, 1914a/96).
57
Retomando o que dissemos no início deste capítulo, que recordar as
representações inconscientes é o objetivo nuclear da atividade analítica, podemos
observar que essas alterações na técnica da psicanálise, que Freud procura nos relembrar
no início de “Recordar, repetir e elaborar” (1914a) não alterou o objetivo desde sempre
presente, de preencher as lacunas na memória do paciente, isto é, o objetivo de
rememorar. Mas, se o rememorar continua sendo o objetivo da análise, ainda em 1914,
ele o é da mesma forma que no início? Com certeza, pudemos notar, muita coisa se
modificou. Primeiro, não é mais sob hipnose que o paciente rememora. E por isso
mesmo - pelo abandono da hipnose e o advento da associação livre, elemento fundante
da psicanálise -, muita coisa se colocou na experiência analítica que não se colocava
antes, como as resistências e a força avassaladora da transferência. Segundo, no artigo
em questão, sem entrar direto na questão, Freud nos dá indícios de uma diferença um
tanto complexa entre o rememorar de agora e o do início da psicanálise. O rememorar
na hipnose, diz ele, era muito simples, pois nunca a situação anterior parecia confundir
com a atual. Ora, que modo de recordar é esse que não distingue o passado do presente?
O que permite Freud colocar as coisas dessa forma?
É nesse ponto do artigo em questão que Freud escreve: “sob a nova técnica” quase
nada resta do delicioso e calmo curso de acontecimentos que se seguia à época da
hipnose. Que nova técnica é essa de que fala Freud? (Freud, 1914a).
Antes de tudo, notemos que as observações introdutórias de Freud em “Recordar,
repetir e elaborar” (1914a), se aproximam, explicam e orientam os leitores para o que
destacamos no início deste capítulo sobre a tese, central na psicanálise, da rememoração
do passado esquecido, ou, em outros termos, da rememoração da representação
inconsciente. Isto é, quando Freud (1914a) diz que na hipnose o recordar era muito
58
simples, que nunca uma experiência do passado era confundida com uma atual, ele
deixa claro com isso que o tema sobre o qual irá problematizar é o tema da
rememoração. Nada mais, nada menos, que o fundamento do método analítico.
Vale destacar que as obras Estudos sobre a histeria (1893-95); A interpretação
dos sonhos (1900); Psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e sua relação
com o inconsciente (1905) consagram a metodologia interpretativa e decifratória da
psicanálise, a metodologia do sentido. Nestas obras tudo gira em torno do
representacional e do interpretativo, sintomas, sonhos, atos-falhos, lapsos de memória e
de fala, equívocos na ação, o decifrados, ganham sentido, são passíveis de
interpretação mediante as associações do paciente sobre o que ele rememora. A
rememoração, destacada nas principais obras do saber da prática psicanalítica, é,
portanto, a base do trabalho analítico. Sem rememoração não associação livre de
idéias, que percorrem as cadeias associativas e indica o eixo do sentido e levam ao
material recalcado. É por isso que Freud relembra as mudanças pelas quais passou a
técnica analítica e a persistência, embora as dificuldades, do objetivo de rememorar.
Toda essa introdução, refazendo os passos da elaboração teórica psicanalítica, é para
destacar sobre o que incidirá a nova elaboração que anuncia sob a rubrica de “nova
técnica” (Freud, 1914a/96). E que nova técnica é essa afinal? Deixemos que Freud nos
diga:
Sob a nova cnica (...) podemos dizer que o paciente o recorda
coisa alguma do que esqueceu e recalcou, mas expressa-o pela atuação
ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação,
repete-o, sem naturalmente, saber que o está repetindo (Freud,
1914a/96, p. 165).
59
Assim, se o objetivo na clínica psicanalítica desde sempre é o de recordar, sob a
“nova técnica”, a introdução da repetição na direção do tratamento, a expressão em ato
do esquecido, como experiência atual, sem recordação de coisa alguma, estamos com
Freud diante de um impasse: o objetivo desde sempre presente de recordar o passado
esquecido não ocorre mais tão simplesmente; a repetição se opõe à rememoração.
3.3 – A inscrição da pulsionalidade na ordem psíquica
O impasse que o fenômeno da repetição coloca à tarefa de recordar destaca,
portanto, o método interpretativo psicanalítico e o campo sobre qual opera, o campo da
representação; demarcado pelas relações e os destinos das representações das diferentes
instâncias psíquicas, inconsciente, pré-consciente/consciente. Ou seja, dividido em
instâncias psíquicas marcadas por representações recalcadas e recalcadoras, capazes de
gerar prazer e desprazer, que se dinamizam umas com as outras, regidas por princípios e
processos específicos, o psiquismo se inscreve, portanto, no campo da representação.
Com isso o que queremos destacar é que quando Freud (1914a) insere a repetição em
sua elaboração teórica ele começa a delinear a fronteira entre o representacional (e
rememorável) e o não representacional (e não rememorável)
12
. Ou seja, pergunta-se
sobre o estatuto do campo da representação. Como diz Birman:
em “Rememoração, repetição e perlaboração”, o discurso freudiano
indica os limites insuperáveis do processo de rememoração em alise
(...) indica de forma crucial os limites do processo de representação
em alise e no psíquico, se abrindo pois o discurso freudiano para a
12
Com isso não queremos dizer que Freud trace uma fronteira entre analisável e não analisável. É no
sentido exatamente oposto disso que a elaboração freudiana caminha a partir de 1914.
60
indagação fundamental sobre o que seria a atividade representativa em
psicanálise (Birman, 1995, p. 39).
Esses limites, no entanto, ainda não são postos nesse momento com toda sua
radicalidade. Isso ocorre em Além do princípio de prazer (1920) a partir do novo
estatuto que ganha a repetição, com a compulsão à repetição e a pulsão de morte.
Por enquanto, detenhamo-nos mais especificamente no que Freud tem a dizer
sobre a repetição na transferência em seu artigo “Recordar, repetir e elaborar” (1914a).
Notemos, por exemplo, que há uma grande semelhança entre o fenômeno da repetição e
a transferência. Em “A dinâmica da transferência” (1912), Freud havia dito que cada
sujeito conseguiu um método próprio de conduzir-se na vida erótica; um clichê
estereotípico, que se repete constantemente e, que esse clichê estereotípico também se
dirige para a figura do analista. Ora, vê-se que tudo que não é da ordem do recordar
propriamente dito e falado lembranças e discurso claro e estruturado mas da ordem
doo dito no plano da fala o silencio – e no plano da ação direcionado ao analista, se
insere no processo analítico a partir do lugar central da transferência. Não é por acaso
que Freud escreve na mesma época em “Observações sobre o amor transferencial”
(1915 [1914]), que esse amor ocupa o mesmo lugar da repetição, interrompendo o
trabalho de rememoração. A paciente não falará ou ouvirá a respeito de nada que não
seja o seu amor, que exige que seja retribuído” (Freud, 1915[1914]/96, p.126), perdendo
interesse pelo tratamento e até por seus sintomas. A repetição, portanto, estava no
horizonte quando Freud toma a transferência como fenômeno central no tratamento. Ou
seja, a transferência, como destaca Birman, “já contém uma dimensão de ato, força atual
contrária à rememoração de um passado” (Birman, 1991, p. 148). Assim, não por acaso,
61
em “Recordar, repetir e elaborar” (1914a), Freud dirá que a transferência é um
fragmento de repetição e a que a repetição é uma transferência do passado esquecido
que se dirige não apenas à figura do analista, mas para todos os aspectos da vida atual.
Por isso, quanto menos o paciente recorda mais ele repete e mais extensamente, sob
todos os aspectos da vida atual. Assim, como transfencia, a repetição pode configurar-
se como a resistência mais poderosa ao tratamento, fazendo obstáculo direto ao objetivo
de rememorar (Freud, 1914a). Dito de outro modo, como afirma Birman, “a repetição
ocupa o lugar anterior da transferência de resistência” (Birman, 1991, p. 200).
Mas se por um lado a repetição pode ser a mais forte resistência, assim como a
transferência, por outro lado, semelhante à transferência, a repetição também pode ser
uma importante ferramenta ao trabalho analítico. Por isso Freud a introduz como “nova
técnica”. Pois diante da repetição cabe ao analista remeter o que o paciente atua ao seu
passado esquecido. Ou seja, cabe ao analista tomar a repetição como uma forma de
rememoração. Assim, Freud tenta solucionar o impasse que a repetição impõe à
rememoração, fazendo da repetição, do ato, uma forma de rememoração. Não é a toa
que Freud diz, após introduzir o fenômeno da repetição, que não obteve nenhum fato
novo, apenas uma visão mais ampla. Só esclarecemos a nós mesmos, diz ele, que o
estado de enfermidade do paciente não pode cessar com o início da análise e que
devemos tratar a doença não como um acontecimento do passado, mas como uma força
atual (Freud, 1914a). Nesse sentido, vale dizer, a psicanálise é o único saber que dá
lugar à loucura do sujeito, a psicanálise permite o sujeito vir como vier, com sua
loucura, seus sintomas, suas atitudes inúteis, seu amor transferencial, sem querer fazer
dele um sujeito melhor, sem querer corrigi-lo, sem querer liv-lo do que ele é, pois a
psicanálise não ocupa o lugar de saber sobre a verdade do outro. Assim, sem impedir
que se presentifique, sem ir contra ele, mas antes acolhendo, o estado de enfermidade do
62
paciente não pode cessar com o início da análise porque deve ser colocado dentro do
campo e alcance do tratamento para ser combatido. Enquanto o paciente o experimenta
como algo real e atual, procuramos remontá-lo ao passado. Substitui-se a neurose, diz
Freud, por uma “neurose de transferência”, acessível à intervenção do analista, até que
se alcance o despertar das lembranças do paciente, as a superação da resistência
(Freud, 1914a).
Vemos que Freud procura a todo custo sustentar os antigos objetivos da análise:
superar as resistências e despertar as lembranças do paciente. Mesmo quando a sua
frente um fenômeno que de todas as formas e em xeque a possibilidade de na análise
tudo se recordar, Freud diz que a repetição é uma forma de recordação. Ora, o que
Freud procura fazer tomando a repetição como uma forma de rememoração é sustentar a
sua metodologia do deciframento psicanalítico, a metodologia da interpretação. No
entanto, se por um lado Freud procura solucionar o impasse da rememoração
ocasionado pela repetição, tomando-a como uma forma de rememoração, remontando-a
ao passado do paciente, por outro lado, o analista não pode fazer nada am. A
superação das resistências não vem de imediato com a revelação delas pelo analista, é
preciso que o paciente se familiarize com elas e possa elaborá-las. Esta elaboração, diz
Freud, é a parte do trabalho que efetua as maiores mudanças no paciente e que distingue
o tratamento analítico de qualquer tratamento por sugestão (Freud, 1914a).
É essa parte do trabalho analítico, a elaboração, que nos permite observar melhor
essa demarcação de que falamos acima entre o representacional e o não
representacional, entre o que está e o que não está inscrito no campo representacional.
Como destaca Elia (2006), elaboração é um conceito que implica a pulsão e é por ela
implicada, “onde a pulsão está envolvida o sujeito tem trabalho [Arbeit]. O conceito de
63
elaboração faz referência, em um tempo, ao campo pulsional e ao campo da
representação, esse último, onde o impasse pelo fenômeno da repetição se insere e
aponta suas conseqüências teóricas e clínicas reverberando até a elaboração teórica de
Freud em Além do princípio de prazer (1920).
Laplanche e Pontalis (2001) destacam que a expressão “elaboração” designa o
“trabalho realizado pelo aparelho psíquico com o fim de dominar as excitações que
chegam aele (...). Este trabalho consiste em integrar as excitações no psiquismo e em
estabelecer entre elas conexões associativas” (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 143)
13
.
Trata-se justamente da inscrição das quantidades de excitação no aparelho psíquico, na
ordem da representação. Nessa perspectiva de trabalho para dominar as excitações, o
conceito de pulsão se encontra intimamente relacionado; ele é mesmo definido como
exigência de trabalho ao psíquico (Freud, 1905)
1415
.
Ora, o que se revela aqui é que o trabalho psíquico, a elaboração que a pulsão
exige do psiquismo é o de transformar sua energia, sua força, sua Drang, em
representação. O psiquismo nesse prisma é, conforme procuramos apontar acima, um
aparelho de representação. Assim, se a repetição revela-se como impasse ao
13
Laplanche e Pontalis destacam que Freud utiliza ao longo de sua obra os termos Verarbeitung e
Durcharbeiten. Eles destacam também que os tradutores franceses optaram por traduzir Durcharbeiten
por élaboration (assim no Brasil, em português, elaboração). O “Vocabulário de psicanálise” (2001), no
entanto, opta pelo neologismo “perlaboração” para traduzir Durchabeiten e “elaboração psíquicapara
traduzir Verarbeitung. Os autores observam que o termo elaboração (Verarbeitung) designa um trabalho
do aparelho psíquico que consiste em dominar as excitações que chegam até ele (...), em integrar as
excitações no psiquismo e em estabelecer entre elas conexões associativas(Laplanche e Pontalis, 2001,
p. 143). O termo perlaboração (Durcharbeiten), os autores o compreende como o processo pelo qual a
análise integra uma interpretação e supera as resistências que ela suscita (...), a perlaboração é favorecida
por interpretões do analista” (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 339). O que queremos dizer é que,
Durcharbeiten se aproxima do termo Verarbeitung, e ambos designam em certo sentido um trabalho do
aparelho psíquico para integrar as excitações no psiquismo. Os próprios autores do “Vocabulário de
psicanálise” (2001) quando explicação termo perlaboração (Durcharbeiten) escrevem: Durcharbeiten
seria uma espécie trabalho psíquico (Verarbeitung)” (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 339, grifo nosso).
14
As origens do conceito de pulsão podem ser remontadas ao “Projeto para uma psicologia cientifica
(1895). Freud não utiliza o termo pulsão como conceito, é claro, mas há rios indícios que torna possível
entrevê-lo.
15
Ana Maria Rudge (1998) argumenta mesmo que encontramos nesse texto é o mito da constituição da
pulsão sexual.
64
procedimento interpretativo/decifratório da psicanálise, ela revela-se também como
impasse à noção do psiquismo como aparelho de representação, ou como impasse à
capacidade do psiquismo de captura das excitações no registro representacional
16
.
Com o conceito de repetição e elaboração, portanto, vemos demarcar-se a
fronteira entre o campo pulsional e o campo representacional. Campo representacional
que se constitui, no entanto, mediante um processo de inscrição pulsional. Nesse
sentido, o aparelho psíquico revela-se, portanto, como um aparelho de representação, de
transformação das quantidades em representação. No trabalho de lidar com as
quantidades, o aparelho psíquico inscreve-as como representação
17
. Ou seja, nesse
momento o discurso freudiano encontra-se com a questão de saber como se constitui a
produção de representações no psiquismo, como o registro da qualidade funda-se a
partir do registro da quantidade (Birman, 1995).
Em seu Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud escreve que o
aparelho neuronal o pode descarregar todas as quantidades de excitação que incidem
no aparelho psíquico vindas do interior do corpo. A descarga total das excitações, o
“princípio da inércia neuronal”, levaria o organismo à morte; é preciso que as
quantidades de excitação se mantenham em um nível constante, mas ao nível mais baixo
possível, em função do desprazer provocado pela pressão do acúmulo das excitações.
Vemos, assim, que o aparelho psíquico surge da impossibilidade de tudo descarregar.
Constitui-se para dominar as excitações do interior do corpo. O domínio das excitações
mediante um trabalho de inscrição dessas excitações no registro da representação. É
nessa perspectiva que Birman (1991) escreve que “este “trabalho (...) é a fonte
originária específica da psique, considerada como o espaço simbólico onde as
16
Tal problemática está especialmente presente em Além do princípio de prazer (1920).
17
É nesse sentido que representação e afeto são os representantes, os delegados da pulsão, a inscrição da
pulsão no campo representacional.
65
“excitações” corporais se inscrevem no universo da representação” (Birman, 1991, p.
94).
Essa transformação/inscrição das excitações corporais para o campo psíquico da
representação se revela definitivamente através do conceito de pulsão:
(...) o representante psíquico de uma fonte endossomática de
estimulação que flui continuamente, para diferenciá-lo do “estímulo”,
que é produzido por excitações isoladas vindas de fora. Pulsão,
portanto, é um dos conceitos na delimitação entre o anímico e o físico.
A hipótese mais simples e mais indicada sobre a natureza da pulsão
seria que, em si mesma, ela não possui qualidade alguma, devendo
apenas ser considerada como uma medida da exigência de trabalho
feita à vida anímica (Freud, 1905[1915]/96, p. 159)
18
.
Assim, para dominar a excitação ininterrupta da pulsão, fonte permanente de
desprazer, se dá a inscrição das excitações no registro representacional da “ordem
psíquica”, onde se poderia regular a insistência da força pulsional. “Momento mítico
fundamental”, diz Birman (1991), essa passagem do corporal para o psíquico de forma a
constituir o próprio psiquismo. Por isso, como muito bem destaca Birman (1991), Freud
diz que a teoria das pulsões é a mitologia da psicanálise
19
.
Nesse “momento mítico da constituição da psique, o bebê, desamparado e
incapaz, estaria submetido às imperiosas exigências pulsionais oriundas do interior do
corpo. O bebê grita e dá pontapés na tentativa de acabar com a traumática excitação das
exigências internas. Mas como essas exigências não se devem a uma força momentânea,
18
Forma apresentada na terceira edição de “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905).
19
Birman (1991) não deixa de destacar a originalidade do pensamento freudiano sobre a problemática do
corpo e do psíquico face à biologia, a psicologia, a psiquiatria, “definindo o campo da psicanálise pela
inscrição da pulsionalidade no universo da representação” (Birman, 1991, p. 96).
66
mas continuamente em ação, e diante do fato de que a descarga total das excitações
levaria a morte, uma ação específica podepor fim a essa excitação. No caso do
bebê, em sua condição de prematuridade, incapaz de dominar o fluxo constante de
excitação, essa ação específica poderá ser realizada através do auxílio do outro. Essa
terrível perturbação chega ao fim com uma “vivência de satisfação” (Freud, 1895).
Um componente essencial dessa vivência de satisfação é uma
percepção específica cuja imagem mnêmica fica associada, d por
diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade.
Em decorrência desse vínculo assim estabelecido, na próxima vez em
que essa necessidade for despertada, surgirá de imediato uma moção
psíquica que procurará recatexizar a imagem mnêmica da percepção e
evocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da satisfação
original (Freud, 1900/96, p. 595).
Dessa foram, com a associação entre a imagem mnêmica da percepção do que
gerou satisfação e o traço mnêmico da excitação, essa ação específica, realizada com o
auxílio do outro, que satisfaz as “exigências da vida” [na linguagem do “Projeto
(1895)], é inscrita na representação. Nessa perspectiva, o outro, enquanto suporte da
criança, é “interprete”, nos diz Birman, “da pressão pulsional da criança, e ao interpretar
a demanda pulsional do infante, domina as pulsões, que se fixam na representação
(Birman, 1991, p. 123).
Nesse mesmo contexto, da inscrição pulsional no campo da representação, mas
por outros caminhos, Rozenthal (1992) se interroga sobre como o domínio da pulsão,
associado ao princípio da inércia neuronal, pode derivar-se no domínio da
representação, no qual processos opostos articulam-se associados ao princípio de prazer
e o princípio de realidade. Ele responde com a formulação de Freud, presente em Além
67
do princípio de prazer (1920), de que a pulsão de morte designa-se pelo esforço de
repetir um estado anterior de coisas que o ser vivo abandonou diante de forças
perturbadoras externas, as pulsões de vida. Essas forças perturbadoras externas são
precisamente o domínio do outro, que inscreve a força pulsional no campo da
representação.
De tudo que destacamos até aqui, é correto dizer que a inscrição pulsional no
campo da representação “constitui em si mesmo um processo de interpretação (...) a
psique seria interpretação por excelência (...) e o saber sobre a realidade psíquica deve
ter a mesma estrutura, (...) deve ser um saber interpretativo” (Birman, 1991, p. 122-3).
Isso só nos autoriza ainda mais a dizer que a repetição se coloca como impasse à
interpretação, no sentido mais amplo, ou seja, não à metodologia
interpretativa/decifratória da psicanálise, mas também à inscrição pulsional no
psiquismo, compreendida também como forma de interpretação.
Com esta observação retornamos, assim, a problemática a que nos vimos
engendrados em nossa investigação do artigo Recordar, repetir e elaborar” (1914); qual
seja, que o fenômeno da “repetiçãose coloca como impasse ao trabalho interpretativo
da psicanálise - trabalho que marca os fundamentos do saber psicanalítico - e a
concepção que se mostra fundamental da inscrição da pulsão na ordem psíquica -
inscrição que constitui o próprio psiquismo.
Nessa perspectiva de inscrição pulsional na ordem psíquica, retomando
“Recordar, repetir e elaborar” (1914), podemos dizer que o artifício da “neurose de
transferência” é uma tentativa de situar, ou já situa, a repetição dentro do campo e
alcance do tratamento; coloca a repetição fora das condições da resistência e dentro do
campo da transferência, acessível á intervenção do analista. A neurose de transferência
68
é, pois, para o discurso freudiano, uma tentativa de possibilitar a inscrição da força
pulsional na ordem pquica. A repetição enquanto algo real da vida atual, desvinculada
do registro psíquico, do representacional (e rememorável), tem de ser introduzida pelo
analista, mediante a sua remontagem ao passado do paciente, no campo da “neurose de
transferência”, espaço no qual as intervenções do analista são possíveis, para que em
seguida o trabalho de elaboração psíquica possa ocorrer (Freud, 1914a).
O instrumento principal para sustar a compulsão do paciente à
repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo
da transferência. Tornamos a compulsão inócua, e na verdade útil,
concedendo-lhe o direito de afirmar-se num campo definido.
Admitimo-la à transferência como um playground no qual se espera
que nos apresente tudo no tocante a pulsões patogênicas, que se acha
oculta na mente do paciente. (Freud, 1914a/96, p. 169).
Assim, embora a posição que Freud toma com respeito à repetição, e não poderia
ser outra, seja a de lhe dar lugar no processo analítico mediante a transfencia, ou de
pela transfencia procurar articular a repetição na neurose de transferência,
possibilitando sua entrada no espaço de intervenção do analista, é totalmente correto
afirmar que a metodologia da interpretação, do deciframento, que a ordem
representacional mesmo, sofre um forte impacto a partir da repetição. Fica claro que o
pensamento freudiano, refletindo e delineando a relação entre o campo pulsional e
campo da representação, aponta, embora talvez de forma obscura e distante, para o
que anos mais tarde, em o Além do princípio de prazer (1920), objeto de estudo no
próximo capítulo, será a problemática do excesso pulsional resistente à inscrição no
psíquico, o limite do eixo do sentido e da interpretação.
69
CAPÍTULO IV
Transbordamento pulsional: limite à inscrição pulsional e ao princípio de prazer
Em nosso percurso de investigação até aqui, sobre dor, prazer e desprazer na obra
freudiana, principalmente a parte da observação no terceiro capítulo de que a dor
experimentada no masoquismo indicava uma problemática com respeito ao registro das
intensidades, reconhecemos ser imprescindível uma investigação sobre a relação entre
os registros quantitativo e representativo. Nessa investigação, no capítulo anterior, a
partir da introdução do conceito de repetição no discurso freudiano, vimos como o
aparelho psíquico é constituído pela inscrição da pulsão na ordem da representação. Em
outras palavras, como o registro da qualidade deriva-se do registro da quantidade.
Demonstramos isso a partir do impasse que a repetição impõe sobre a rememoração em
análise; impasse, em última instância, ao campo da representação. O que essa condão
implica para nossa pesquisa é o que, em última instância, procuraremos demonstrar
nesse último capítulo.
Freud inicia o Além do princípio de prazer (1920) afirmando que o curso dos
eventos mentais é automaticamente regulado pelo princípio de prazer:
Acreditamos que o curso desses eventos é colocado em movimento
por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu
resultado final coincide com uma redução dessa tensão, uma evitação
de desprazer ou uma produção de prazer (Freud, 1920/96, p. 17).
Em seguida Freud afirma ter decidido relacionar prazer e desprazer com as
quantidades de excitação:
70
Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação
presente na mente, mas que o se encontra de maneira alguma
‘vinculada’
20
, e relacioná-los de tal modo, que o desprazer
corresponda a um aumento na quantidade de excitação, e o prazer, a
uma diminuição (Freud, 1920/96, p. 17).
Se o aumento da quantidade de excitação é sentido como desprazer, o aparelho
psíquico, diz Freud, deve esforçar-se por manter a quantidade de excitação o baixa
quanto possível, cuidando para que esse vel não se eleve, ou seja, mantendo o nível
constante. Essa hipótese da função do aparelho pquico de manter o mínimo de
excitação é conhecida como princípio da constância
2122
, “outra maneira”, diz Freud, de
enunciar o princípio de prazer” (Freud, 1920/96, p. 18). No “Projeto para uma
psicologia cienfica” (1895) Freud reflete sobre a hipótese da constância como uma
manutenção necessária de certa quantidade de energia para realização de uma ação
especifica. Nesse sentido o “princípio da constância” seria uma transformação do
princípio de inércia neurônica, que buscar descarregar o neurônio da quantidade de
excitação (Freud, 1895).
Após destacar as hipóteses do princípio de prazer e do princípio da constância e
da relação entre o aumento e a diminuição da quantidade de excitação e os sentimentos
de desprazer e prazer, como se o que tivesse ressaltado até então fosse para dar peso e
contraponto ao que estaria por vir, Freud (1920) diz que, estritamente falando é
incorreto afirmar a dominância do princípio de prazer sobre os eventos mentais,
20
A expressão “vinculada” se equivale ao termo ligação (Bindung) que logo discutiremos abaixo.
21
No primeiro capítulo destacamos que o a hipótese da constância estava presente desde os primeiros
trabalhos de Freud.
22
Ver: Breuer e Freud (1893-95). Estudos sobre a histeria; Freud (1895). Projeto para uma psicologia
cientifica e O problema ecomico do masoquismo (1924).
71
devemos dizer apenas que há uma forte tendência no sentido do prazer. Apresenta-nos,
então, algumas circunsncias que inibem o princípio de prazer: (a) o princípio de
realidade que impõe um adiamento da satisfação e a tolerância temporária de desprazer;
(b) o conflito psíquico entre as exigências da pulsão e o Eu, que impõe caminhos
indiretos a obtenção de satisfação, sentida pelo Eu como desprazer e; (c) “a percepção
de uma pressão por parte dos instintos insatisfeitos, ou a percepção externa do que é
aflitivo em si mesmo ou que excita expectativas desprazerosas no aparelho psíquico,
isto é, que é por ele reconhecido como perigo(Freud, 1920/96, p. 20). Entretanto,
tendo em vista que uma tendência, como é o princípio de prazer, implica tão somente
que um objetivo seja atingido por aproximações, nenhuma dessas circunstancias
contradizem o princípio de prazer. Porém, esse terceiro exemplo de circunstancias que
inibem o princípio de prazer nos colocará em posição de retomar as nossas observações
a respeito do que vínhamos destacando no capítulo anterior, o impasse posto pelo
fenômeno da repetição à ordem representacional, e o que essa problemática nos auxilia
em nossa pesquisa.
No segundo catulo deste livro, Freud (1920) lembra-nos que a guerra que
pouco findou deu origem à grande número de casos do que se conhece como neurose
traumática. No entanto, nessa guerra, diz Freud, pôs-se fim à atribuição da neurose
traumática à lees orgânicas. Ao contrário, observou-se que aqueles que sofriam de
neurose traumática precisamente não haviam sido vítimas de acidentes de força
mecânica. O fato principal envolvido na causa da neurose traumática parecia ser, diz
Freud, a surpresa, o susto; na definição de Freud: “estado em que alguém fica quando
entrou em perigo sem estar preparado para ele” (Freud, 1920/96, p. 23). Aqui nos
aproximamos do terceiro exemplo dado por Freud de circunstâncias que inibem o
princípio de prazer: “a percepção da pressão interna dos instintos e a percepção externa
72
do que é reconhecido pelo aparelho pquico como perigo” (Freud, 1920/96, p. 20). A
neurose traumática e o fator susto envolvido nela correspondem, portanto, ao terceiro
exemplo que Freud destacou como algo que inibe o princípio de prazer: a percepção do
que é reconhecido como perigo (Freud, 1920).
Dentre as características da neurose traumática estão os sonhos traumáticos. Estes
possuem a característica de levar o paciente, repetidas vezes, de volta ao evento
traumático assustador. Ora, um sonho assim contradiz a hipótese dos sonhos como
realização de desejo e, ao mesmo tempo, a hipótese da regulação dos eventos mentais
pelo princípio de prazer. Mas Freud diz que não é esse o caso, não é isso que acontece,
pois não corresponde a natureza dos sonhos. O percurso de Freud (1920) daqui em
diante é em torno da questão de haver ou não algo que seja além do princípio de
prazer”. Não é a nossa questão e, assim sendo, o seguiremos Freud passo a passo
nesse percurso e não chegaremos com ele a todas as suas conclusões. No entanto,
percorreremos alguns caminhos que revelam paisagens que nos orientam e nos guiam
até chegarmos aonde nos interessa nesse momento: as conseqüências do fenômeno da
repetição com respeito ao campo representacional e o que isso implica para nossa
pesquisa. Pegando um atalho nesses caminhos diremos desde já que nesse percurso
Freud afirmará a existência de uma compulsão à repetição de eventos desprazerosos
(Freud, 1920).
4.1 – Compulsão à repetição
Após destacar a relação entre “reação ao perigo” e “neurose traumática” e, com os
sonhos das pessoas com neurose traumática, problematizar as hipóteses da realização de
desejo nos sonhos e da regulação dos eventos mentais pelo princípio de prazer, Freud
73
nos dá exemplos de uma série de circunstancias que liberam desprazer, como a
brincadeira das crianças que repetem suas experiências desprazerosas, os fenômenos
da transferência onde situações penosas e indesejadas são revividas, e, a história da
vida de homens e mulheres que parecem ser perseguidos por um destino maligno ou
um poder demoníaco. Entretanto, esses exemplos não representam uma contradição ao
princípio de prazer, “não fornecem provas do funcionamento de tendências além do
princípio de prazer, ou seja, tendências mais primitivas do que ele e dele independentes”
(Freud, 1920/96, p. 28). Note-se que os termos aqui empregados - “primitivas” e
“independentes” - apontam para o que Freud entende como “além do princípio de
prazer” e serão, portanto, a chave para a compressão da questão; a de Freud: a
existência de um “am do princípio de prazer”, e a nossa: como o sujeito lida com as
sensações de prazer, desprazer e a experiência de dor. Pois bem, a partir desses
exemplos de circunstancias que liberam desprazer, Freud diz:
Se levarmos em consideração observações como essas, baseadas no
comportamento, na transferência e nas histórias da vida dos homens e
mulheres, não encontraremos coragem para supor que existe
realmente na mente uma compulsão à repetição que sobrepuja o
princípio de prazer, como também ficaremos agora inclinados a
relacionar com essa compulsão os sonhos que ocorrem nas neuroses
traumáticas e o impulso que leva as crianças a brincar (Freud,
1920/96, p. 33).
É nesse momento mesmo, no terceiro capítulo do texto em questão, Além do
princípio de prazer (1920), antes de supor a existência de uma compulsão à repetição,
que Freud faz referência à descoberta da repetição, elaborada no artigo “Recordar,
repetir e elaborar” (1914a). Ele nos diz que ao longo de vinte e cinco anos muita coisa
74
mudou na psicanálise, qual foi primeiro e acima de tudo uma arte eminentemente
interpretativa, e depois a arte consistia em revelar as resistências do paciente. Contudo,
diz Freud, ficava cada vez mais claro que “tornar o inconsciente consciente”, não era
completamente atingível, “o paciente não pode recordar a totalidade do que nele se acha
recalcado (...), é obrigado a repetir o material recalcado como se fosse uma experiência
contemporânea” (Freud, 1920/96, p. 29).
Surge aqui uma grande questão: diferença entre repetição sintomática e
repetição compulsiva? Isto é, a repetição é de algo recalcado que, portanto, está inscrito
no registro psíquico ou de algo não recalcado e nunca inscrito na ordem psíquica? Ou é
esse algo não recalcado e nunca inscrito que opera a repetição de outra coisa, essa sim,
recalcada e inscrita no psiquismo? Ou será a repetição de algo que está inscrito em outro
registro, impossível de ser lido, interpretado?
23
Essa questão é uma das razões porque o conceito de repetição é tão difícil de
compreender. Como diz Laplanche e Pontalis, no Além do princípio de prazer (1920)
ele participa de tal modo da investigação especulativa de Freud (...), com suas
hesitações, impasses e mesmo contradições, que é difícil delimitar a sua acepção restrita
como também a sua problemática própria” (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 83).
Ao colocar em primeiro plano, em Além do princípio de prazer, a
noção de compulsão à repetição invocada desde “Recordar, repetir e
elaborar”, Freud reagrupa um certo número de fatos de repetição já
descoberto e isola outros em que a repetição se apresenta no primeiro
plano do quadro clínico (neurose de destino e neurose traumática, por
exemplo). Para ele, esses fatos parecem exigir uma nova análise
teórica (Laplanche e Pontalis, 2001, p. 84).
23
Esta última indagação encontra encaminhamento na elaborão da segunda teoria tópica, onde Freud
concebe um pólo pulsional no psiquismo, o Isso.
75
Fica marcada assim, uma diferença com a análise teórica que Freud realizou em
“Recordar, repetir e elaborar” (1914a).
Com efeito, são experiências manifestamente desagradáveis que são
repetidas, e, numa primeira análise, não se vê muito bem que instância
do sujeito poderia encontrar satisfação nisso; embora se trate de
comportamentos aparentemente incoercíveis, marcados por esta
compulsão própria de tudo o que emana do inconsciente, ainda assim
é difícil pôr em evidência aqui a realização de um desejo recalcado,
ainda que sob a forma de compromisso (Laplanche e Pontalis, 2001, p.
84).
Nota-se como a problemática da compulsão à repetição parece se distanciar da
elaboração teórica que articulamos no segundo capítulo desta dissertação de o prazer e o
desprazer serem experimentados simultaneamente pelo sujeito como resultado de um
único acontecimento, circunscrita à tese de que por trás do sintoma há sempre um
desejo realizado. A compulsão à repetição o parece inserir-se nessa condição. Isto é,
não parece que a compulsão à repetição traga alguma satisfação para qualquer que seja
o sistema psíquico, no entanto, não se manifesta de modo claro quanto a isso.
Talvez seja porque apenas em raros casos podemos observar os
motivos puros da compulsão à repetição, desapoiados por outros
motivos. No caso das brincadeiras das crianças, já demos ênfase às
outras maneiras pelas quais o surgimento da compulo à repetição
pode ser interpretado; aqui, a compulsão à repetição e a satisfação
pulsional que é imediatamente agradável, parecem convergir em
associação íntima. Os fenômenos da transferência são obviamente
explorados pela resistência que o eu mantém em sua pertinaz
insistência na repressão; a compulsão à repetição, que o tratamento
tenta colocar a seu servo, é, por assim dizer, arrastada pelo eu para o
lado dele (aferrando-se, como faz o eu, ao princípio de prazer).
Grande parte do que poderia ser descrito como compulsão do destino
76
parece inteligível numa base racional, de maneira que não temos
necessidade de convocar uma nova e misteriosa força motivadora para
explicá-la (Freud, 1920/96, p. 33-4).
Penso que o exemplo menos dúbio [de tal foa motivadora] é talvez o
dos sonhos traumáticos. Numa reflexão mais amadurecida, porém,
seremos forçados a admitir que, mesmo nos outros casos, nem todo o
campo é abrangido pelo funcionamento das familiares forças
motivadoras. Resta inexplicado o bastante para justificar a hipótese de
uma compulsão à repetição, algo que parece mais primitivo, mais
elementar e mais instintual do que o princípio de prazer que ela
domina (Freud, 1920/96, p. 34).
A compulsão à repetição não encontra justificativa para sua suposição nos casos
que Freud isola como exemplos que contradizem o princípio de prazer. Mas, se por um
lado, esses exemplos não justificam a hipótese da compulsão à repetição, por outro, não
são suficientemente bem explicados pelas hipóteses que nos são familiares e que
envolvem a realização de um desejo. Enfim, tanto o que explicar que a compulsão à
repetição se justifica.
Até aqui, portanto, percorrendo os caminhos de o Além do princípio de prazer
(1920), destacamos que Freud nos chama a atenção para as hipóteses do prinpio de
prazer e do princípio da constância e a relação entre o aumento e a diminuição da
quantidade de excitação e as sensações de desprazer e prazer; dentre os exemplos de
circunstâncias que inibem o princípio de prazer, relaciona a percepção de algo
reconhecido como perigo e neurose traumática, cuja causa se encontra no fator susto;
lembra que na experiência analítica o paciente não recorda tudo que foi recalcado, mas
repete-o sem saber, como uma experiência atual; e por fim destaca que os sonhos
traumáticos repetem o momento da situação traumática e se interroga se eles são a
prova da existência de tendências além do princípio de prazer, tendências mais
77
primitivas”, “pulsionais” e independentesdele, relacionando-os com uma compulsão
à repetição a que foi levado a supor. Ora, de tudo isso somos levados à relacionar umas
às outras as observações de Freud sobre a neurose traumática, o susto e a percepção do
perigo, e inferir a partir dessa relação que a compulo à repetição relaciona-se com a
percepção de algo reconhecido pelo aparelho psíquico como perigo, sem estar preparado
para ele. Vejamos agora a que inferência nós chegaremos relacionando entre si as
observações de Freud quanto às “quantidades de excitação”, o “princípio de prazer” e a
noção de algo que é “mais primitivo, elementar, mais pulsional do que o princípio de
prazer” (Freud, 1920)
24
.
4.2 – O impacto das quantidades de excitação no aparelho psíquico
Quando Freud (1920) diz que dentre as circunstâncias que inibem o princípio de
prazer está a percepção da pressão das pulsões e a percepção de algo externo
reconhecido como perigo pelo aparelho psíquico, perguntamo-nos como se dá, então,
essa percepção e como ela se relaciona com a compulsão à repetição. Não por acaso, é
nesse momento que Freud (1920) escreve que, a partir do exame dos processos
inconscientes, a especulação psicanalítica toma a consciência não como o atributo
universal dos processos psíquicos, mas apenas como uma função desses processos;
especificamente a função de percepção de excitações provindas do mundo externo e de
sensações de prazer e desprazer do interior do aparelho pquico (Freud, 1920).
24
O termo “quantidades de excitação” expressa a conceão quantitativa” que no capítulo anterior
ressaltamos estar presente nos primeiros textos de Freud, com destaque para “Projeto para psicologia
científica” (1895), onde Freud procura representar os processos psíquicos como estados quantitativamente
determinados. Qualquer dificuldade em compreender essas considerações nos leva a crer que o termo
intensidade, bastante utilizado em psicanálise, é mais adequado do que o termo quantidade. França
(1997) toma todos os termos utilizados por Freud para designar quantidades como nões intensivas, que
o são pasveis de mensurão, mas são pasveis de aumento, diminuão, deslocamento, substituição e
descarga. Assim, por trás de termos como os de quantidade e energia, está presente a noção de
intensidade.
78
Essa condão da consciência como função de percepção no mundo externior e do
interior do psíquico, nos permite atribuir ao sistema Pcpt-Cs, diz Freud, uma posição no
espaço: “na linha fronteiriça entre o externo e o interior; (...) voltado para o mundo
externo e envolvendo os outros sistemas psíquicos” (Freud, 1920/96, p. 35). A posição
no espaço dos sistemas psíquicos sempre foi uma preocupação de Freud desde os
Estudos sobre a histeria (1893-95) com a hipótese da divisão da mente, passando pelo
Projeto para uma psicologia cientifica (1895) e as hipóteses do aparelho neuronal e
seus diferentes sistemas de neurônios; em a Interpretação dos sonhos (1900) e os
sistemas psíquicos, até o Além do princípio de prazer (1920) e O eu e o isso (1923),
onde elabora a última organização do aparelho psíquico. Essa questão quanto à posição
no espaço dos sistemas psíquicos, que não deve ser comparada com a anatomia cerebral
e uma teoria localizacionista do funcionamento psíquico. Essa questão é importante,
dentre tantas coisas, porque possibilita pensar a incidência das quantidades de excitação
nos sistemas psíquicos.
Nessa perspectiva, quanto às quantidades de excitação que incidem no aparelho
psíquico, Freud (1920) nos convida a imaginar o processo, digamos evolutivo, de um
organismo vivo em sua forma mais simplificada possível, como uma “vesícula
indiferenciada de uma substância viva”. Essa vesícula, diz Freud, com o impacto das
excitações provindas do mundo externo, sofreu uma diferenciação na sua camada mais
superficial, de modo que os estímulos que incidem sobre ela seguem um curso diferente
dos que seguem nas camadas mais profundas. Com o impacto das excitações do mundo
externo, portanto, a superfície se tornara uma crosta que com o tempo se tornara incapaz
de sofrer modificações com os estímulos excitatórios. Assim, a camada mais superficial,
diz Freud, acaba por tornar-se um escudo protetor, sem o qual, aliás, a substância não
resistiria à incidência poderosa dos estímulos do mundo externo; esse escudo protetor se
79
originaria, por assim dizer, da morte da superfície mais externa, e como tal, morta,
resistente aos estímulos. Esse escudo protegeria, então, as camadas vivas mais
profundas, deixando chegar até elas apenas um fragmento da intensidade original dos
estímulos. “A menos, ressalta Freud, que os estímulos que a atinjam sejam o fortes
que atravessem o escudo protetor” (Freud, 1920/96, p. 38). Revela-se, assim, que a
proteção contra os estímulos é tão importante quanto a receão deles (Freud,1920).
Em resumo, da incidência dos estímulos externos sobre a vesícula indiferenciada,
se originaria uma camada superficial protetora - um escudo protetor contra os estímulos
- e uma camada receptora dos estímulos que passam, com quantidade reduzida, pela
camada protetora. Isso equivale à formação do sistema Pcpt-Cs, “na linha fronteiriça
entre o externo e o interior; (...) voltado para o mundo externo e envolvendo os outros
sistemas psíquicos” (Freud, 1920/96, p. 35), com sua função de percepção de excitações
do exterior e do interior.
Se a camada superficial da vesícula indiferenciada se equivale ao sistema Pcpt-Cs
quanto a sua posição no espaço, essa equivalência também se sobre outro aspecto, a
saber, pelo fato de que essa camada protetora e receptora de estímulos, com o tempo, se
tornara incapaz de sofrer novas modificações pelos processos excitatórios.
Em termos do sistema Cs isso significa que seus elementos o
poderiam mais experimentar novas modificações permanentes pela
passagem de excitação, porque já teriam sido modificados, a esse
respeito, até o ponto mais amplo possível; agora, contudo, se teriam
tornado capazes de dar origem à consciência (Freud, 1920/96, p. 37).
80
Essas modificações permanentes, - que o sistema Pctp-Cs (comparável às camadas
protetora e receptora de estímulos da metáfora da substância viva) não seria capaz sofrer
em seus elementos pela passagem da excitação -, podem ser pensadas, diz Freud (1920),
como a passagem da excitação de um elemento a outro sofrendo uma resistência que, ao
ser vencida, deixa um traço permanente da excitação, uma trilha, uma facilitação. “No
sistema Cs, então”, ou Pcpt-Cs, incapaz de sofrer novas modificações pela passagem da
excitação, uma resistência dessa espécie à passagem de determinado elemento não
mais existirá” (Freud, 1920/96, p. 37). Essa condição, diz Freud, corresponderia à
distinção entre energia ligada e energia móvel (desligada), nos elementos dos sistemas
psíquicos; “os elementos do sistema Cs não conduziriam energia ligada, mas apenas
energia capaz de descarga livre” (Freud, 1920/96, p. 37), pois a passagem de excitação
não deixaria atrás de si um traço, trilha ou facilitação permanente no sistema Pcpt-Cs.
Essa idéia sobre a passagem da excitação e a possibilidade dessa passagem deixar
ou não uma marca permanente atrás de si, remonta o “Projeto para uma psicologia
cienfica” (1895). Freud, em sua hitese das “barreiras de contato”, que torna possível
a retenção das quantidades de excitação, é levado a supor dois grupos diferentes de
neurônios: neurônios permeáveis, que não impõe resistência a passagem das
quantidades de excitação, e neurônios impermeáveis, onde a passagem das quantidades
de excitação sofre resistência, levando ao acumulo dessas quantidades. Os neurônios do
tipo impermeáveis são os neurônios que constituem o sistema responsável pela
memória, fruto da marcas ou facilitações permanentes que a passagem da quantidade
deixa atrás de si. Freud compreende a memória, em termos gerais, como a marca
permanente da ocorrência de excitação. Freud intitula esse sistema de memória de Ψ. Os
sistemas relacionados a percepção e a consciência Freud argumenta que eles seriam
permeáveis, a passagem da quantidade de energia não sofreria resistência, pois nos
81
sistemas relacionados à percepção e à consciência, diferente da memória, o podem
conter marcas/facilitações permanentes. A consciência e a percepção devem estar
sempre aptas à recepção de novas ocorrências, ou seja, sempre livres de excitação, de
marcas permanentes. Garcia-Roza (2008) explica essa condição comparando-a as lentes
de um óculos. Se tudo que é percebido fosse registrado nas lentes dos óculos, logo não
seria possível enxergar mais nada, pois as lentes perderiam sua característica de
permanecerem transparentes. Ou seja, as lentes dos óculos não podem ter memória. Fica
claro, assim, que percepção/consciência e memória são processos que ocorrem em
diferentes grupos de neurônios; a percepção e a consciência em sistemas de neurônios
onde a passagem da quantidade de excitação não sofre resistência, não deixando marcas
permanentes, e a memória, no sistema de neurônios onde a passagem da quantidade de
excitação sofre resistência, que ao ser ultrapassada, deixa marcas, trilhamentos ou
facilitações (Bahnung) permanentes (Freud, 1895).
Assim, se os processos excitatórios no sistema Cs escoam livremente, sem
resistência, sem deixar traços permanentes atrás de si, portanto, incapaz de sofrer
modificações, podemos supor a esse sistema a função de percepção. Isso implica, é
claro, um estatuto muito específico à percepção, como algo que se exaure no ato de
perceber, de conhecer, aproximado-a assim, do que é característico à consciência. Nota-
se, pois que consciência e percepção se aproximam uma da outra. Aliás, em
“Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos” (1917), Freud de fato coincide
definitivamente o sistema Pcpt com o sistema Cs. Assim, coincidindo com a percepção,
a consciência pode ser possível se o processo de conhecer não deixar atrás de si
nenhuma alteração permanente; não pode haver traços permanentes em um sistema
onde o essencial é a função de percepção de excitações, do contrário, a passagem de
82
excitação deixando marcas permanentes atrás de si, logo colocaria limites a capacidade
desse sistema de estar sempre pronto a receber novas excitações (Freud, 1920).
4.3 – O processo de ligação (Bindung)
Entretanto, resta algo inexplicado. Freud (1920), muito rapidamente, afirma que a
situação do sistema Cs remete à distinção entre energia ligada e energia livre. No
entanto, a distinção entre energia livre e ligada remete à muitas outras questões. Freud
afirma, aliás, logo depois do que escreveu sobre o sistema Cs, que a energia livre
corresponde ao processo primário e a energia ligada ao processo secundário; e que
processo primário e secundário correspondem respectivamente ao sistema Ics e ao
sistema Pcst-Cs.
Descrevi o tipo de processo encontrado no inconsciente como sendo o
processo psíquico ‘primário’, em contraposição com o processo
‘secundário’, que é o que impera em nossa vida de vigília normal. (...)
é fácil ainda identificar o processo psíquico primário com a catexia
livremente móvel de Breuer, e o processo secundário, com alterações
em sua catexia vinculada ou tônica (Freud, 1920/96, p. 45).
Fica claro que as noções energia livre e energia ligada implicam distinções e
precisões muito difíceis de alcançar, posto que envolvem noções e conceitos
fundamentais que percorrem toda a elaboração freudiana. Uma investigação sobre essas
noções em toda sua profundidade reivindica dedicação exclusiva e no momento, nossa
tarefa é outra. Freud mesmo, em Além do princípio de prazer (1920) não entra na
questão, apenas afirma que parece melhor sermos tão cautelosos quanto possível sobre
esses pontos.
83
Toda a dificuldade em torno das noções de energia livre e energia ligada não é por
acaso, trata-se de noções extremamente complexas e de difícil compreensão, a qual seria
necessária uma investigação criteriosa por muitos pontos da obra freudiana. No entanto,
embora a grande complexidade que essas questões levantam, abre-se a nós, a
oportunidade de investigar uma das noções mais fundamentais para a teoria analítica, a
de “ligação” (Bindung), e ainda relacionar essa noção com a problemática destacada no
capítulo anterior a partir do impasse posto à metodologia interpretativa psicanalítica e à
inscrição pulsional no universo da representação pela compulsão à repetição.
Pois bem, os termos energia livre e energia ligada denotam o estado em que se
encontra a energia no aparelho psíquico. Entretanto, antes de tudo, esses termos fazem
referência a algo mais específico, mais fundamental. Isto é, uma energia seja ela livre ou
fixada, ligada ou desligada, implica uma ligação ou não ligação (desligamento) dessa
energia. Assim, é sobre a noção específica e fundamental de “ligação” (Bindung) que
procuraremos nos aprofundar nesse momento. Trata-se de uma noção de importância
impar, não apenas para os interesses dessa pesquisa, mas para toda a obra freudiana. Tal
noção é de tal importância que Herzog (2003) se arrisca a dizer que, se existe um
ineditismo no pensamento freudiano, esse ineditismo diria respeito “ao modo como
estrutura seu arcabouço teórico-clínico a partir da idéia de ligação” (Herzog, 2003, p.
38). A autora chega mesmo a dizer que o seria possível conceber os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise inconsciente, repetição, pulsão e transferência sem a
intervenção da ligação [Bindung]; eles, diz a autora, provavelmente careceriam de
sentido” (Herzog, 2003, p. 38). Esse ineditismo do pensamento freudiano que destaca
Herzog (2003) parece dizer respeito ao que destacamos no capítulo anterior, com
Birman (1991), quando falávamos sobre a constituição do psiquismo, a saber, o
psiquismo como inscrição das excitações no registro da representação, “a inscrição da
84
pulsionalidade no universo da representação (Birman, 1991, p. 96). A inscrição
pulsional de que fala Birman diz respeito exatamente a essa operação de ligação.
O termo ligação [Bindung] relaciona-se, portanto, com a atividade mais
fundamental: a constituição do aparelho psíquico pela inscrição das quantidades de
excitação. Do modo como descrevemos até aqui a relação entre quantidade de excitação
e representação, diremos que entre ambos os registros, o quantitativo e o
representacional, vem justamente operar uma ligão. Como muito bem destaca Herzog
(2003), quando no Projeto para uma psicologia científica (1895) lemos que uma
quantidade de excitação passa pelos neurônios formando uma “rede neuronal”, em
última instância, isso equivale à transformação da excitação em representação, ou seja,
o que era pura e simplesmente circulação de energia passa a ser uma rede neuronal, um
aparelho pquico, e, como vimos no capítulo anterior um aparelho de representação.
No Projeto para uma psicologia cientifica (1895) Freud escreve que o princípio
básico da atividade neuronal é se livrar das quantidades de excitação: o princípio de
inércia neuronal. Isto torna o movimento do arco reflexo compreensível, trata-se de uma
forma de se livrar das quantidades de excitação. No entanto, diz Freud, esse expediente
é possível quando se trata de excitações vindas do mundo externo, com relação às
excitações endógenas (por exemplo: fome, respiração, sexualidade), uma ação
específica no mundo externo alcança o alívio da tensão das excitações (por exemplo, a
nutrição). Se a descarga da excitação endógena não se der mediante uma ação
específica, isso leva a liberação de desprazer, pois essa descarga não alivia a tensão das
exigências da vida. Assim, é necessário reter certa quantidade de excitação necessária
para realizar essa ação específica. É essa acumulação de energia que implica a passagem
da pura dispero de energia para a estruturação de um aparelho psíquico. Essa
85
passagem se dá mediante essa acumulação de energia, essa inibição na passagem da
quantidade. Essa interferência ou inibição na passagem da quantidade, Freud remete a
noção de uma organização de neurônios bem facilitados, a que ele chama de eu,
possibilitando uma distinção entre um objeto real, sobre o qual opera a ação especifica,
e outro imaginário, alucinado, que levaria à frustração e ao desprazer. Freud
argumenta que as quantidades de excitação seguem em direção aos neurônios mais
facilitados, ou seja, no sentido da menor resistência. No entanto, quando dois neurônios
são simultaneamente investidos de energia, isso cria uma facilitação entre os dois
neurônios de modo que uma nova quantidade de energia irá em direção a esses
neurônios em vez de ir em direção aos neunios com barreiras mais facilitadas. O Eu,
portanto, é um grupo de neurônios desse tipo, que foram repetidamente investidos
criando facilitações entre si, de modo que assim são constantemente investidos,
influenciando a passagem das quantidades de energia, inibindo parte das quantidades de
energia de se dirigirem para às barreiras mais facilitadas em direção à descarga, e assim,
constituindo-se no “veículo de reserva requerido pela função secundária de
acumulação de energia (Freud, 1895).
Essa inibão realizada por esse grupo de neurônios que constituem o eu remete às
duas vivências primárias do sujeito de que Freud fala em seu “Projeto para uma
psicologia científica” (1895): a vivência de satisfação e a vivência de dor.
A experiência mítica de satisfação corresponde à descarga, mediante uma ação
especifica, das quantidades de energia em Ψ, sentidas como desprazer nos sistema ω.
Essa ação especifica é realizada com a ajuda do outro que fornece à criança em seu
desamparo o objeto que lhe possibilita a descarga das quantidades de excitação. O
resultado dessa vivência de satisfação, diz Freud, é que produz-se um investimento de
86
um ou mais neurônios correspondendo à percepção do objeto da ão especifica e um
investimento de outros neurônios correspondendo à descarga dos estímulos engenos.
Entre esses neurônios estabelece-se uma facilitação, de modo que, quando a pressão dos
estímulos endógenos se repetir, esse o neurônio correspondente ao objeto que gerou
satisfação é novamente investido, a fim de reproduzir a satisfação original. Esse
reinvestimento dá origem uma alucinação do objeto que gerou satisfação e a liberação
das quantidades endógenas de energia pelo neurônio correspondente à descarga original.
Ou seja, ocorre uma liberação de energia frente a um objeto imaginário que não satisfaz
as exigências dos estímulos endógenos, levando assim à frustração e ao conseqüente
desprazer (Freud, 1895).
A experiência de dor corresponde à ruptura das telas de proteção por grandes
quantidade de energia vindas do mundo externo invadindo o aparelho ao sistema Ψ,
gerando dor. Assim como na experiência de satisfação, como resultado dessa
experiência, um neurônio correspondente ao objeto hostil é investido de modo que caso
esse neurônio seja reinvestido, uma descarga de energia é liberada dentro do sistema Ψ
a partir do interior do corpo por “neurônios secretores” de energia. Esse estado não é a
dor, mas é muito semelhante (1895).
É portanto, na tentativa de impedir a liberação de desprazer que acompanha a
descarga de excitação frente a um objeto imaginário e a liberação de desprazer devido
ao investimento da imagem mnêmica do objeto hostil que ocorre uma inibição da livre
dispersão das quantidades de excitação.
Vimos, então, que essa inibição é também uma ligação; a passagem das
excitações de um estado de dispersão para um estado integração, da pura dispersão da
energia livre para a energia ligada. O termo ligação [Bindung] refere-se, portanto, a essa
87
organização de neurônios, a essa “massa de neurônios (...) em estado ligado” que se
chama eu (Freud, 1895/96, p. 423). Ou seja, a inibição da descarga da excitação em uma
ação que não seja a ação específica e a inibição do investimento da imagem mnêmica do
objeto hostil, ambos levando ao desprazer, é o que garante a distinção entre objeto real e
objeto imaginário e a ação específica
25
.
Por isso dizemos que a ligação constitui o psiquismo, pois diante da tendência à
descarga total da excitação que compreende o princípio de inércia neuronal e que não
levaria a nada senão ao desprazer e à morte, faz-se necessário reter certa quantidade de
excitação, suficiente para a ação específica, inibindo a livre dispersão de energia. No ato
de reter essa quantidade de excitação, constitui-se o psiquismo; na inscrição das
excitações endógenas no registro psíquico. Por isso Freud fala em energia livre e
energia ligada. Trata-se da energia endógena inscrita no aparelho pquico na forma
livre e ligada, vinculadas ao processo primário, tendendo a descarga imediata, e ao
processo secundário, inibindo a descarga do processo primário pela transformação da
energia livre em energia ligada
26
.
4.4 – Dor e evento traumático
Nesse ponto, cabe perguntarmos como o termo ligação [Bindung] vem se
relacionar com o que trabalhamos até aqui?
25
Tendo em vista tratar-se de uma reflexão muito específica a outras problemáticas do campo
psicanalítico, não entraremos nos detalhes da distinção entre objeto real e alucinatório que o processo de
inibição possibilita.
26
A breve atenção que demos aqui ao termo ligação [Bindung] e o processo de inibição não pode dar
conta de tudo o que ele diz respeito, nem as contradições e/ou imprecisões que ele comporta na teoria
analítica. Nesse caso, remeto o leitor para o artigo de Regina Herzog, O estatuto da Bindung na
contemporaneidade” (2003).
88
Destacamos acima, comentando o Am do princípio de prazer (1920), que a
camada mais superficial da vesícula indiferenciada protegeria as camadas vivas mais
profundas deixando chegar até elas apenas um fragmento da intensidade original das
quantidades de excitação provindas do exterior, “a menos”, diz Freud, que os
estímulos que a atinjam sejam tão fortes que atravessem o escudo protetor” (Freud,
1920/96, p. 38). Pois bem, uma situação assim, diz Freud, causaria um distúrbio no
funcionamento da energia do organismo, inundando o aparelho psíquico com grandes
quantidades de excitação, o que moveria todas as formas defensivas possíveis para dar
contar dessa inundação. Uma situação assim, diz Freud, coloca o princípio de prazer
fora de ação. Freud descreve essa situação como sendo a do evento traumático (Freud,
1920).
Essa invasão de grandes quantidades de energia no aparelho psíquico coloca-nos
em posição de observar com mais clareza a compulsão à repetição como uma tendência
mais primitiva, elementar, pulsional e independente do princípio de prazer.
Observa-se também que a ruptura do escudo protetor contra estímulos externos e
o conseqüente inundamento do aparelho pquico com grandes quantidades de
excitação, corresponde a experiência de dor de que fala Freud no “Projeto para uma
psicologia científica” (1895).
Mas, então, como o aparelho psíquico reage a esse excesso de energia sobre ele?
Freud se interroga. O aparelho pquico nesse momento dirige toda sua energia ligada
para a ruptura do escudo protetor, diz ele, à custa do empobrecimento de todos os outros
sistemas psíquicos e de suas funções, a fim de ligar essa energia que o invade, de forma
a dominá-la, para que posteriormente possa ser descarregada. É preciso “dominar as
quantidades de estímulo que irromperam, e vinculá-las no sentido psíquico, a fim de
89
que delas se possa então desvencilhar” (Freud, 1920/96, p. 40). Vê-se que a noção de
ligação, que trabalhamos acima, revela-se fundamental; é por uma operação de ligação
que é possível dominar as grandes quantidades de excitação que inundam o parelho
psíquico.
Pois bem, a fim de ligar a energia que o invade, o parelho dirige toda sua energia
ligada ou “quiescente” para a ruptura por onde é invadido por um excesso de energia.
Entretanto, Freud infere que a capacidade de um sistema psíquico receber e dominar
grandes quantidades de energia depende do quanto esse sistema se encontra ele mesmo
em estado de energia ligada. Ou seja, quanto mais investido de energia ligada estiver
um sistema, maior a capacidade de ligar o excesso de energia que por ventura o invada
e, inversamente, quanto menos investido de energia ligada estiver um sistema, menor a
capacidade de ligar o excesso de energia e mais violentas são as conseqüências de uma
provável ruptura do escudo protetor (Freud, 1920).
Ora, por isso Freud diz que os outros sistemas são empobrecidos, porque no
momento da incidência dessas quantidades de excitação o aparelho psíquico se
encontrava pouco investido de energia ligada, incapaz de dominar o influxo de grandes
quantidades de energia. (Freud, 1920).
Podemos agora, com base nessa inundação de energia no aparelho pquico,
relacionar a neurose traumática e a ruptura do escudo protetor. O pouco investimento de
energia ligada no aparelho psíquico no momento da invasão das quantidades de energia
se relaciona à situação na qual alguém é tomado pelo susto: “estado em que alguém fica
quando entrou em perigo sem estar preparado” (Freud, 1920/96, p. 23). A neurose
traumática, como já destacamos, corresponderia a essa condição de despreparo, de
surpresa, e não como se estava costumado a pensar, devido a concussões mecânicas. É
90
antes a presença de uma concussão mecânica, como que preparando o aparelho psíquico
para o perigo, que pode impedir a instauração de uma neurose traumática
27
.
Contrariamente ao susto, a angústia, diz Freud, corresponde a um estado de esperar o
perigo ou preparar-se para ele. O estado pouco investido de energia ligada do aparelho
psíquico, para dar conta das quantidades de energia que o invadem, coincide, portanto,
com a falta de preparação para o perigo, ou em outras palavras, com a falta de angústia
que prepara para o perigo (Freud, 1920).
Essa invasão de grandes quantidades de energia no aparelho psíquico coloca-nos
em posição de observar com mais clareza a compulsão à repetição como uma tendência
mais primitiva, elementar, pulsional e independente do princípio de prazer. Trata-se de
uma situação anterior a dominância do princípio de prazer, independente da tarefa de
obter prazer ou evitar o desprazer. Eis um “além do princípio de prazer”. Por isso Freud
(1920) disse no início do artigo em questão que os sonhos dos que sofrem de neurose
traumática não poderiam contrariar a tese dos sonho como realização de desejo e depois,
quando sue uma compulsão à repetição, diz que esses sonhos não parecem estar a
serviço do princípio de prazer. Justamente por que ainda não estariam inscritos na
ordem psíquica e regulados por esse princípio (Freud, 1920).
Diferente dos sonhos de realização de desejo, ocasionado de maneira
alucinatória, sob a dominância do princípio de prazer (...) os sonhos
traumáticos estão ajudando a executar outra tarefa, a qual deve ser
realizada antes que a dominância do princípio de prazer possa mesmo
começar. Esses sonhos esforçam-se por dominar retrospectivamente o
estímulo, desenvolvendo a angústia cuja omissão constituiu a causa da
neurose traumática (Freud, 1920/96, p. 42).
27
Freud já havia feito observação semelhante em “Para introduzir o narcisismo” (1914).
91
Nesse sentido os sonhos traumáticos desenvolveriam a angústia ou a
“hipercatexia” do aparelho psíquico para que esse possa ligar as enormes quantidades de
excitação que o inundam no momento do trauma. Trata-se de uma função independente
do intuito de obter prazer e evitar o desprazer, portanto, mais primitiva que o princípio
de prazer, o que não implica a contradição deste, antes parece trabalhar no sentido de
possibilitar o funcionamento do aparelho psíquico sob seu domínio. Parece antes,
portanto, trabalhar para o funcionamento do princípio de prazer.
Diante disso somos levados a perguntar como seriam as coisas sem a entrada do
princípio de prazer; como seria a vida se ela permanecesse neste antes, mais primitivo e
elementar que o intuito de obter prazer e evitar o desprazer?
4.5 - Descarregar ou não descarregar, eis a questão
Eis o ponto a queríamos chegar, o ponto ao qual fomos trazidos pelas formulações
de 1914 em Recordar, repetir e elaborar”. O ponto que marca a questão entre o campo
da representação - identificado ao aparelho psíquico, entendido mesmo como aparelho
de representação, regulado pelo princípio de prazer e o campo pulsional, anterior a
ordem psíquica e ao domínio do princípio de prazer.
Cabe ressaltar nesse momento que o exemplo da ruptura do aparelho psíquico, a
condição que descreve o trauma, diz respeito à incidência de grandes quantidades de
energia vindas do exterior. Ou seja, nesse caso o se poderia falar precisamente de um
anterior a ordem psíquica, mas de um fora. Entretanto, pelo fato de a camada mais
profunda da substancia viva, voltada para o interior do corpo, não possuir escudo
protetor, podemos concluir que os estímulos do interior tenham importância econômica
92
comparável à neurose traumática, ou seja, que possam acarretar distúrbios comparáveis
aos da neurose traumática (Freud, 1920).
As mais abundantes fontes dessa excitação interna o aquilo que é
descrito como as pulsões do organismo, os representantes de todas as
forças que se originam no interior do corpo e são transmitidas ao
aparelho mental, desde logo o elemento mais importante e obscuro da
pesquisa psicológica (Freud, 1920/96, p. 45).
Assim, as pulsões ocupariam o lugar das energias do mundo externo. Aliás, a
energia do mundo externo, na situação do trauma, rompe todas as camadas da vesícula
indiferenciada atingindo de forma direta o núcleo do aparelho pquico, como se viesse
desde dentro, ou seja, sem enfrentar escudo protetor. A questão essencial talvez seja o
fato de que as quantidades de energia penetram até a última camada do aparelho
psíquico, incidindo no núcleo do aparelho psíquico. Na linguagem do “Projeto de
1895, “a dor consiste na irrupção grandes Qs em Ψ(Freud, 1895, p. 359). O que
aproxima ainda maisevento traumático (1920) e “dor” (1895).
Sob esse prisma, em todo caso, dor, evento traumático e/ou força pulsional, o
aparelho pquico precisa reagir da mesma forma, também precisa ligar as quantidades
de excitação. Como no caso do trauma - em que quantidades de energia livre invadem o
aparelho pquico forçando todas as forças defensivas do aparelho psíquico a dar conta
dessa energia transformando-a em energia ligada, as excitações que surgem do interior
também são livremente veis, pressionando no sentido da descarga, exigindo também
a transformação da energia livre em energia ligada.
93
Nesse ponto, podemos retornar à pergunta sobre como seriam as coisas sem a
entrada do princípio de prazer. Ou seja, como seria a vida se ela permanecesse neste
antes, mais primitivo e elementar que o intuito de obter prazer e evitar o desprazer? A
resposta não deixa dúvida: dor e destruição do organismo. Diante da incidência de
grandes quantidades de energia vindas do mundo externo ou do interior do corpo, a
tarefa do aparelho psíquico é ligar essa energia afim inscrevê-la na ordem psíquica, sob
o domínio do princípio de prazer. Isso implica, portanto, de um lado, o aparelho
psíquico, regido pelo princípio de prazer, o campo da representação, e de outro lado, o
campo pulsional, mais elementar, primitivo e fundamental que o princípio de prazer,
onde impera o princípio de inércia, para livrar-se das quantidades de excitação.
Destacamos que Freud, no Projeto para uma psicologia científica (1895), escreve
que o “sistema nervosotende a se livrar das quantidades de excitação que incidem
sobre ele, tendência a qual deu o nome de “princípio da inércia neuronal”. No entanto, o
sistema nervoso não poderia descarregar a totalidade das quantidades de excitação.
Primeiro porque isso levaria a morte do organismo, segundo porque o sistema nervoso
também é atingindo por excitações do interior do organismo, excitações das quais não
há como fugir, uma ação específica pode abolir a pressão das excitações internas do
organismo e para isso é preciso reter certa quantidade de excitação, necessária para a
realização dessa ação específica. Ou seja, o princípio de inércia se modifica para um
onde é preciso que a quantidade de excitação permaneça constante, mas ao nível mais
baixo possível. Esse é o “princípio da constância”, outra forma de representar o
princípio de prazer, diz Freud (1920). Ora, o que está em jogo aqui é que a descarga da
excitação não pode ocorrer, por assim dizer, de qualquer jeito, o que só levaria a
liberação de desprazer, uma ação específica pode abolir a tensão da pulsão e levar a
liberação de prazer.
94
Assim, se a energia pulsional precisa se descarregar sem, no entanto, levar o
organismo à morte ou ao desprazer, podemos dizer que o aparelho psíquico se constitui
como possibilidade de mediação da descarga da energia pulsional através da inscrão
dessa energia no psiquismo, na ordem da representação. Campo da representação,
vinculado a oposição prazer/desprazer, regido pelo “princípio de desprazer/prazer” e o
“princípio de realidade” (Rozenthal, 1992).
Vale observarmos nesse momento, que no “Projeto para uma psicologia
cienfica” (1895), como observa Pontalis (2005), Freud coloca frente a frente, em
oposição, vivência de dor e vivência de satisfação. Nesse sentido, o par de opostos não
seria, portanto, prazer-desprazer, mas, por um lado prazer-desprazer (ou melhor
desprazer-prazer, processo que rege o curso da vivência de satisfação), e por outro, dor
(Pontalis, 2005, p. 267).
Pontalis (2005) sustenta a hitese de que, embora Freud tenha elaborado essa
dualidade fundamental entre vivência de satisfação e vivência de dor, ele “recalcou” o
segundo pólo dessa oposição. Por isso, reflete Pontalis (2005), Freud se dedicou durante
anos a fio a seguir os avatares da vivência de satisfação: os sonhos como realização de
desejo, o sintoma como formação de compromisso, o princípio de prazer, o prazer por
trás do sofrimento, todas as questões que trabalhamos em nosso segundo capítulo. No
entanto, Pontalis (2005) não deixa de observar que sempre surgia na obra de Freud essa
dimeno “recalcada” da dor, com especial destaque para “Além do princípio de
prazer”.
O dualismo mais fundamental, como diz Pontalis (2005), entre vivência de dor e
vivência de satisfação, demarca a oposição não entre prazer e desprazer, mas entre dor e
desprazer/prazer. Tal oposição equivalente à oposição entre o campo das quantidades e
95
o campo da representação. Tendo em vista que o registro da representação deriva do
próprio registro das quantidades, isto é, que o aparelho pquico se constitui da ligação
das quantidade de energia, podemos afirmar que as sensações de prazer e desprazer são
formas pelas quais o aparelho psíquico lida com a dor. E mais, que o aparelho psíquico
se constitui para lidar com a dor. E mais radicalmente, que frente a dor o aparelho
psíquico possibilita a própria constituição da vida no sentido biológico mesmo;
“nascemos com um aparelho a menos, necessário para sustentar a vida biológica, um
aparelho que possibilita todos os aparelhos biológicos” (Birman, 2009).
96
CONCLUSÃO
Pode-se perguntar se, e até onde, eu próprio
me acho convencido da verdade das hipóteses
que foram formuladas nestas páginas. Minha
resposta seria que eu próprio não me acho
convencido e que não procuro persuadir outras
pessoas a nelas acreditar ou, mais precisamente,
que não sei até onde nelas acredito. Não há
razão, segundo me parece, para que o fator
emocional da convicção tenha de algum modo de
entrar nessa questão. É certamente possível que
nos lancemos por uma linha de pensamento e
que a sigamos aonde quer que ela leve, por
simples curiosidade científica, ou se o leitor
preferir, como um advocatus diaboli, que não se
acha, por esta razão, vendido ao demônio.
Sigmund Freud
Essa dissertação procura saber como o sujeito lida com o prazer, o desprazer e a
dor. Dentre tantas coisas, o que pudemos observar em nossa pesquisa é que toda a obra
freudiana é perpassada pela observação de que o sujeito encontra satisfação das mais
variadas formas; especialmente, ele encontra prazer por trás do aparente desprazer. Ele
alcança satisfação naquilo mesmo que lhe parece ser mais problemático, no sentido de
que lhe causa problema, não no sentido de ser difícil de entender. O segundo capítulo de
nossa dissertação procura justamente demonstrar como o sujeito encontra satisfação
pelos caminhos mais improváveis.
Partimos no primeiro capítulo da formulação de Freud de que os histéricos sofrem
de reminiscências, em outras palavras, de que os histéricos sofrem de representação,
para em seguida articularmos a condição de sofrimento e desprazer para o sujeito na
noção de representação. Demonstramos, então, num primeiro momento que o sintoma é
97
tributário da noção de representação. É o que a sugestão hipnótica nos confirma desde
sempre. Quando Freud (1893a) observa Charcot induzir num sujeito normal um dos
sintomas histéricos, o que está implícito é que o sintoma se constitui a partir de uma
representação, o que em última instância corresponde uma sugestão. Demonstramos,
então, nesse primeiro capítulo de nossa dissertação, como o sintoma neurótico é
tributário da noção de representação, em outras palavras, mais centrado na nossa
questão, como o desprazer é tributário da noção de representação, a saber, de uma
representação incompavel.
No segundo capítulo investigamos o processo de formação do sintoma a partir
dessa representação incompatível geradora de desprazer. Se no primeiro capítulo vimos
como o sintoma, e o sofrimento que trás consigo, se deve a uma representação, no
segundo capítulo observamos como o prazer pode ser fruto dessa mesma representação.
Ou seja, observamos como a fórmula mais fundamental do programa investigativo de
Freud sobre a sintomatologia neurótica, a fórmula conflito-defesa-sintoma, contém
desdobramentos complexos. Notamos precisamente como a representação incompatível
geradora de desprazer que aciona o mecanismo do recalque já contém uma possibilidade
de prazer. É correto afirmar que o motivo para o recalque é uma sensação de desprazer,
porém, devemos acrescentar que essa mesma representação geradora de desprazer
contém uma possibilidade de prazer. Essa possibilidade de uma representação ao
mesmo tempo gerar prazer e desprazer se deve ao fato de seu conteúdo sexual, ao fato
de que os sonhos são realizações de desejos, e principalmente, se deve ao conceito de
pulo e a parcialidade da satisfação. Se por um lado a pulsão se satisfaz em qualquer
objeto, por outro nenhum objeto é capaz de satisfazer por completo as exigências da
pulo. Não há um objeto que gere satisfação completa. A satisfação será sempre
98
parcial. Ora, dizer que a satisfação é parcial é o mesmo que dizer que uma cota de
desprazer sempre acompanha a satisfação.
De fato, são muitos os desdobramentos possíveis com respeito o sujeito
experimentar simultaneamente sensações de prazer e desprazer. Entretanto, nada é mais
misterioso do que o masoquismo. Como pode o sujeito sentir prazer na dor? Mas se o
masoquismo por si é problemático, difícil de entender, se damos a imporncia
exata a que tem direito o princípio de prazer no discurso freudiano, o masoquismo é
ainda mais misterioso. Afinal, como é possível alcançar prazer simultaneamente a uma
experiência de dor? Em termos econômicos, como é possível alcançar prazer
simultaneamente ao aumento de tensão. Trata-se de um prazer que é efeito do aumento
da tensão ou um prazer de outro tipo, que é indiferente ao aumento de tensão? Ou será
que a possibilidade de o prazer se apresentar simultaneamente à dor resulta de uma
condição presente apenas no masoquismo. Essas questões não encontraram resposta
aqui. O que conferiria à pesquisa outra questão.
Seguimos, então, em direção ao que em ambos os capítulos, a partir da noção de
afeto, a hipótese da constância e o conceito de pulsão, aparecia como inapreensível e de
difícil explicação, a saber, a relação entre os campos pulsional e representativo.
Começa, então, a se delinear no terceiro capítulo de maneira mais rigorosa essa relação
entre o campo pulsional e o campo representacional, ou seja, entre o pulsional e o
psiquico.
Nessa relação, portanto, entre pulsional e pquico, entre quantidade e
representação, o conceito de repetição aparece de forma central. Pois o conceito de
repetição aparece no discurso freudiano como impasse à tarefa de rememorar em
análise. Ou seja, aparece como obstáculo à ordem representacional. Em outras palavras,
99
o conceito de repetição vem colocar em questão o estatuto da representação em
psicanálise. A elaboração a que chegamos é que o registro representacional, a
representação em si mesma, deriva do registro pulsional, resulta da transformação da
quantidade em qualidade.
Essa hitese da inscrição da pulsão no psiquismo é levada até o quarto capítulo,
onde, demonstramos por outros tópicos, relacionados com o texto “Além do princípio
de prazer” (1920), como de fato o aparelho psíquico é constituído a partir do registro da
quantidade.
O ponto radical dessa hipótese da transcrição da pulsão no psiquismo é a
abordagem que Freud nos possibilita fazer da experiência da dor. Aproximamos a
experiência de dor do evento traumático, pois Freud (1920) pensa o evento traumático
como a irrupção de grandes quantidades de energia invadindo o aparelho psíquico,
pondo o princípio de prazer fora de ação. Ora, a experiência de dor que Freud elabora
em “Projeto para uma psicologia cientifica” (1895) é exatamente a irrupção de grandes
quantidades energia invadindo todos os sistemas de neurônios.
A partir daí, ante a inundação de um excesso de energia no aparelho psíquico, que
e o princípio de prazer fora de ação, Freud (1920) afirma que uma tarefa mais
primordial e elementar do que a do princípio de prazer, ou seja, a tarefa de ligar o
excesso de energia no psiquismo a fim de posteriormente poder descarregar essa
energia. Mais uma vez, se trata da problemática da relação entre pulsional e
representativo. A tarefa de lidar com esse excesso de energia que invade o psiquismo,
na medida em que e fora de ação o princípio de prazer, define-se como uma tarefa
mais elementar e fundamental que esse princípio. Anterior a ele e até mesmo condição
de possibilidade para a hegemonia posterior desse princípio. Como base nessas
100
conclusões, afirmamos que o aparelho psíquico surge para lidar com as quantidades de
energia. Assim, afirmando que o aparelho psíquico surge para dar conta da dor, das
quantidades de energia, ou mesmo que as sensações de prazer e desprazer, circunscritas
ao campo da representação, são formas pelas quais o aparelho psíquico lida com a dor, a
irrupção de grandes quantidades no interior do aparelho psíquico. Nesse sentido,
podemos dizer que sem esse aparelho psíquico não poderíamos sobreviver. Como
afirma Birman (2009) nascemos com um aparelho a menos, o aparelho que possibilita a
constituição de todos os aparelhos biológicos. Ou seja, o aparelho pquico surge para
possibilitar a vida biológica. (Birman, 2009).
É chegada a hora de nos despedir. Refletir sobre idéias, noções, conceitos,
processos e princípios tão centrais na obra freudiana foi um desafio apaixonante. E
como não poderia deixar de ser uma mistura de prazer e desprazer. Por um lado, porque
evidentemente ficaram questões em aberto ao longo da dissertação, questões que
gostaamos de ter podido abordar mais detalhadamente, mas que também nos deixam
contentes, pois convertem-se em trabalho para outro momento e porque acreditamos que
essa pesquisa pode contribuir para certas questões que norteiam a problemática atual do
campo psicanalítico: o dispositivo psicanalítico clínico conceitual e as novas formas de
sofrimento psíquico caracterizadas pelo excesso pulsional, portanto, que seja fonte de
reflexão para a tarefa dos analistas junto com seus pacientes de possibilitar condições
para lidar com a força pulsional.
101
Referência bibliográfica
BIRMAN, Joel. Freud e a interpretação psicanalítica: a constituição da psicanálise, Vol.
2. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991.
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BREUER E FREUD; (1895) Estudos sobre a histeria. Vol. II. Edição standard brasileira
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ELIA, Luciano. O começo da análise não pode fazer com que a neurose come a
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Figueiredo. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.
FRANÇA; Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva,
1997.
FREUD, Sigmund. Escritos sobre a psicologia do Inconsciente. Coord. Geral de
tradução Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago Ed, 2004. Os volumes abaixo
relacionados se referem a esta edição.
102
(1915) Pulsões e destinos da pulsão. Vol. I
(1920) Além do princípio de prazer. Vol.II
FREUD, Sigmund. Edão Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completasde
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Os volumes abaixo relacionados se
referem a esta edição.
(1886) Relatório sobre meus estudos em Paris e Berlim. Vol. I.
(1890) Tratamento pquico (ou anímico). Vol VII.
(1840-41 [1892]) Esboços para a “Comunicação preliminar” de 1893. Vol I.
(1892-93) Um caso de cura pelo hipnotismo. Vol. I.
(1893) Charcot. Vol III.
(1893a) Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: uma conferência. Vol.
III.
(1893b) Sobre o mecanismo pquico dos fenômenos histéricos: comunicação
preliminar. Vol. II.
(1893 [1888- 1893]) Algumas considerações para um estudo comparativo das paralisias
motoras orgânicas e histéricas. Vol I.
(1892-94) Prefácio e notas de rodaà tradução das conferências das terças-feiras, de
Charcot. Vol. I.
(1894) As neuropsicoses de defesa. Vol. III.
103
(1893-95) Psicoterapia da histeria. In: Estudos sobre a histeria. Freud e Breuer. Vol. II.
(1895) Projeto para uma psicologia cientifica. Vol. I
(1896) Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. Vol. III.
(1900) A interpretação dos sonhos. Vol. IV e V.
(1904[1903]) O método psicanalítico de Freud. Vol. VII.
(1901 [1905]) Fragmento da análise de um caso de histeria. Vol. VII.
(1905) Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade. Vol. VII.
(1912) A dinâmica da transferência. Vol. XII
(1914) Hisria do movimento psicanalítico. Vol. XIV.
(1914a) Recordar, repetir e elaborar. Vol. XII.
(1915) Observações sobre o amor de transferência. Vol. XII
(1915) Pulsão e destinos da pulsão. Vol. I.
(1915) O Recalque. Vol. I
(1916) Suplemento metapsicológico à teoria dos sonhos. Vol. XIV
(1920) Além do princípio de prazer. Vol. XVIII.
(1923) O Eu e o Isso. Vol. XIX.
(1924) O problema econômico do masoquismo. Vol. XIX.
104
(1930) O mal-estar na civilização. Vol. XXI.
(1938) Algumas lições elementares de psicanálise. Vol XXIII.
FORTES, Isabel. Erotismo versus masoquismo na teoria freudiana. In: Psicologia
clinica. Vol. 19, nº 2, Rio de Janeiro, 2007.
HERZOG, Regina. O estatuto da Bindung na contemporaneidade. Interações, vol.8,
no.16, Rio de Janeiro, 2003.
LAPLANCHE e PONTALIS. Vocabulário de Psicanálise. 4ª Ed São Paulo: Martins
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MEZAN; Renato. Freud: a trama dos conceitos. o Paulo: Editora perspectiva, 1982.
PONTALIS, J. B. Sobre a dor (psíquica). In: Entre o sonho e a dor. Aparecida, SP:
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ROZENTHAL, Eduardo. A construção do conceito de pulsão na obra de Freud.
Dissertação de mestrado. IP/UFRJ/Programa de s-graduação em Teoria psicanalítica,
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RUDGE; Ana Maria. Pulsão: entre o corpo falante e o corpo mudo. In: Pulsão e
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