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CAROLINA MACHADO MARTINS
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MEMÓRIA
EMÓRIAEMÓRIA
EMÓRIA
O Sistema de Abastecimento de Água como Patrimônio Arquitetônico e
Urbanístico da Cidade de Niterói (1819-1954)
Dissertação de Mestrado submetida ao corpo docente do Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense, como parte dos requisitos para a obtenção do
Grau de Mestre em Arquitetura e Urbanismo, na área de
concentração em Espaço e Cultura.
ORIENTADOR: Prof. Dr. Nireu Cavalcanti
Niterói
NiteróiNiterói
Niterói
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2009
20092009
2009
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Ficha elaborada pela Biblioteca de Arquitetura e Urbanismo – BAU/UFF
M386 Martins, Carolina Machado
Água e Memória: o sistema de abastecimento de água como patrimônio
arquitetônico e urbanístico da cidade de Niterói (1819-1954). / Carolina
Machado Martins. - Niterói: [s.n.], 2009.
191f.
Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo -
Espaço e Cultura) - Universidade Federal Fluminense, 2009.
Orientador: Professor: Nireu Cavalcanti.
1. História social. 2. Urbanização. 3. História de Niterói (RJ). 4.
Abastecimento de água; aspecto histórico. 5. Memória e história. I. Título.
CDD 981.531
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A meus pais (minhas eternas referências),
pelo imensurável apoio e compreensão.
A Rubens Carvalho pelo apoio
e por sonhar a vida comigo.
Agradecimentos
A elaboração desse trabalho significou uma verdadeira jornada em busca da história urbana de
Niterói e da história de antigos sistemas de abastecimento de água. Muitas vezes só pudemos ir a
diante, graças à colaboração e ao incentivo de algumas instituições e de pessoas a quem somos
bastante gratos.
Ao Eduardo Travassos, pela inspiração fundamental para a formação desta pesquisa e pela
generosidade de me legar seu arquivo pessoal.
Ao meu orientador, Prof. Nireu Cavalcanti, pela atenção e disponibilidade, indicando caminhos e
transmitindo calma e confiança nas horas difíceis.
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal Fluminense, pelas descobertas, inspirações, lições e orientações.
Ao Prof. Paulo Knauss, por fornecer informações essenciais para o desenvolvimento deste
estudo.
Aos colegas de mestrado em especial Cláudia, Estela, Carlos e João, por dividir as angustias e
descobertas do mundo acadêmico.
Ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense.
Aos funcionários da Secretaria de Urbanismo e Controle Urbano de Niterói.
Aos funcionários do Arquivo da Câmara Municipal de Niterói.
Aos moradores do bairro de Fátima entrevistados nessa pesquisa, muito obrigada pela paciência e
generosidade com que me atenderam. Mais que entrevistas concederam-me valiosa oportunidade
de vivência do espaço.
À minha família querida, por todo amor e compreensão com esse mestrado que nunca terminava.
Especialmente aos meus pais, Sandra e Jefferson, pela constante ajuda e incentivo. Ao meu irmão
Fernando pela inspiração de calma e otimismo. Ao meu irmão Felipe e à Miriam pelo auxílio e
bibliografia.
A Manoel Vieira, por clarear sentidos e apresentar alguns caminhos.
A Mateus e Elisete, pela inestimável amizade e companheirismo.
A Rubens Carvalho, pela cumplicidade, amizade e apoio, que, com abrigo, palavras, gestos de
carinho ou ajudando na confecção, tornou possível a conclusão da pesquisa.
Não posso sentar perto de um riacho sem cair num devaneio
profundo, sem rever minha ventura. A água anônima sabe todos
os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes.
Gaston Bachelard
Resumo
A área conhecida como morro São Lourenço foi o núcleo pioneiro de vários acontecimentos
históricos diretamente relacionados ao processo de formação de Niterói. Rica em recursos
hídricos foi a área original para o primeiro sistema de abastecimento da cidade, mais tarde
denominado Complexo do Vintém. Entretanto, a deterioração em que se encontra esse antigo
sistema e o desconhecimento de seu valor patrimonial para a cidade refletem o abandono pelo
poder publico e por grande parte da população.
Na medida em que o patrimônio arquitetônico e urbanístico é visto também como um grande
acervo do registro de acontecimentos e fases da historia de uma cidade, relacionados intimamente
com a cultura e a memória do povo, os testemunhos dos antigos sistemas de abastecimento de
água são objetos que marcaram o cotidiano e, portanto, enriquecem a historia desta comunidade.
Assim, a cultura e a memória configuram-se como principais fatores de coesão e identidade,
responsáveis pelos elos que unem as pessoas em torno da noção comum de compartilhamento e
identidade condições básicas para o senso de cidadania. A partir disso, observamos a
importância do conhecimento destes elementos para conformação da memória local. Esta
pesquisa, orientada para um estudo histórico da urbanização original de Niterói nos seus aspectos
sociais, culturais, funcionais e morfológicos, busca, ao lado da preocupação patrimonial, analisar e
refletir sobre a importância dos sistemas de abastecimento de água no processo de formação
dessa cidade.
Palavras-chave:
História urbana; sistemas de abastecimento de água; patrimônio; paisagem histórica e memória.
Abstract
The area known as São Lourenço hill was the pioneer of various historic facts directly linked to
the process of Niteroi's formation. Rich in hydro resources was the original area for the first
supply system for the city, later denominated Vintém Complex. However, this old system finds
itself in degradation and the lack of knowledge about its patrimony value to the city reflects the
neglection of the public power and the great part of its population.
In as much as the architect and urbanest patrimony is also seen as a great part of the registry
facts and historical phases of a city, closely in relation to the culture and memory of its people,
the old water supply systems are objects that mark the day to day and, therefore, enrich this
community's history.
Thus, the culture and memory configure as main facts of cohesion and identity, responsible for
links that bind people around the common notion of sharing and identity – basic conditions for a
sense of citizenship. We observe the importance of knowledge of these elements for the local
memory accordance, this analysis, oriented towards a historic study of Niterois' original
urbanization, considering its social, cultural, functional and morphology aspects, seek, next to the
patrimonial preocupation, to analyze and reflect on the importance of the water supply systems
for the formation process of this city.
Lista de Figuras
FIGURA 1 – Arcos da Lapa, ao fundo Niterói, Agostinho José de Mota (1878). ............................ 2
FIGURA 2 – "Os refrescos do Largo do Palácio", Jean-Baptiste Debret. ......................................... 3
FIGURA 3 – Platz in Rio (Praça do Rio de Janeiro). Largo, Chafariz e Igreja de Sta. Rita (1844). 9
FIGURA 4 – Negros carregadores de água, de João Mauricio Rugendas......................................... 11
FIGURA 5 – Nascimento de Vênus, Alexandre Cabanel (1863). ...................................................... 36
FIGURA 6 – A Fonte do Paraíso, Dieric Bouts. .................................................................................. 38
FIGURA 7 Duguay-Trouin assalta a cidade do Rio de Janeiro em 1711, Ferdinand Perrot
(1844). .......................................................................................................................................................... 40
FIGURA 8 Sunqua - Panorama da Baia do Rio de Janeiro, da Ilha de Villegaignon à praia da
Lapa e morro de Sta. Tereza (1830). ....................................................................................................... 42
FIGURA 9 – A água na Paisagem Brasileira, retratada pelo viajante Carl Philipp Von Martius ... 43
FIGURA 10 – São Domingos em período anterior a formação da Vila Real. ................................. 49
FIGURA 11 – Vista geral de Antuérpia na segunda metade do século XVI. Na extrema direita, o
traçado em tabuleiro do novo bairro de expansão, projetado em 1548, as referências
renascentistas. ............................................................................................................................................. 51
FIGURA 12 – O padrão urbanístico hispânico: Cidade do México em 1628. ................................. 53
FIGURA 13 – Capela de Nossa Senhora da Conceição. .................................................................... 57
FIGURA 14 – Embarque das Tropas na Praia Grande, para a expedição contra Montevidéo. .... 58
FIGURA 15 – Planta do Largo da Memória (1820). ............................................................................ 66
FIGURA 16 A ilustração “As lavadeiras” de Jean-Baptiste Debret, esclarece a visão do espaço
naquela época. ............................................................................................................................................ 70
FIGURA 17 Praça do Rink (antigo Largo da Memória) em 1920, após reforma, em 1958 e
atualmente (coluna à D. João). ................................................................................................................. 70
FIGURA 18 – Largo do São João também conhecido por Largo Municipal, em 1870. ................ 77
FIGURA 19 – Foto da antiga Caixa D’água do Vicência, descaracterizada em 1951. .................... 78
FIGURA 20 – Vista do centro de Niterói, ao final do século XIX. .................................................. 81
FIGURA 21 O Jornal do Brasil, em charge de Artur Lucas, mostra a preocupação de Oswaldo
Cruz, no Rio de Janeiro, com a peste bubônica que grassa em Niterói. ............................................ 82
FIGURA 22 – Fotografia de 1893, mostrando a Ponta da Armação. ............................................... 84
FIGURA 23 – Estação das Barcas e bondes elétricos, em 1910. ....................................................... 88
FIGURA 24 – Niterói moderna, cais, prédio dos Correios e prédio da Prefeitura, em 1908. ....... 89
FIGURA 25 – A Praça da República em três momentos: recém inaugurada (1940), depois
“esqueleto” do prédio da Justiça Federal (1980), reconstruída em foto recente (2007). ................. 90
FIGURA 26 Aterrado São Lourenço e o Porto de Niterói (1935), em detalhe a Avenida
Feliciano Sodré (1940). .............................................................................................................................. 92
FIGURA 27 – Panorama dos edifícios da Avenida Amaral Peixoto, Centro de Niterói (1950). .. 97
FIGURA 28 As obras de adução (tubos de aço com 1 metro de diâmetro que percorrem 14
quilômetros partindo do canal de Imunana), reservatórios de passagem (com capacidade para
600.000 litros) e edificação da Estação de Tratamento de Água Imunana-Laranjal (1954). ......... 102
FIGURA 29 O desaparecido chafariz de granito, obra de Reis Alpoim (chafariz do
Valonguinho). ........................................................................................................................................... 115
FIGURA 30 Galerias de água, realizadas em pedra, com proporções que permitem o acesso e
manutenção . ............................................................................................................................................. 123
FIGURA 31 – Esquema que retrata o sistema de abastecimento do Complexo do Vintém ....... 124
FIGURA 32 Abrigos para aeração e visita das galerias de água do antigo sistema da Caixa
D’água do Vicência, em estado precário e incorporados, na Comunidade Morro da Castro Alves,
no bairro do Fonseca. .............................................................................................................................. 125
FIGURA 33 – Tampa de filtro em peça de cantaria e trechos do aqueduto que recebeu, ........... 126
FIGURA 34 – Peça do filtro em cantaria, ao lado, o local sem a peça. ........................................... 130
FIGURA 35 Torre de abastecimento das carroças d’água incorporada por muro de residência.
.................................................................................................................................................................... 131
FIGURA 36 – Reservatório da Correção fachadas frontal e posterior e corte transversal. ......... 132
FIGURA 37 – Tipologias: comercial e residencial do bairro de Fátima. ........................................ 135
FIGURA 38 Diversidade de tipologias, panorama do bairro de Fátima a partir do Parque das
Águas. ........................................................................................................................................................ 135
FIGURA 39 – Ruína do reservatório presente na paisagem do bairro. .......................................... 136
FIGURA 40 Bica d’água ainda utilizada por moradores e portão de acesso ao Clube dos
Funcionários da CEDAE (Chácara). .................................................................................................... 141
FIGURA 41 – Lava-carros que utiliza a água do antigo sistema. ..................................................... 144
FIGURA 42 – Semáforo implantado no bairro após mudança viária. ............................................ 146
FIGURA 43 – Ruína do reservatório maior, ao lado, a partir do mesmo, vista do bairro de Fátima
e do Parque das Águas. ........................................................................................................................... 164
Lista de Mapas
MAPA 1 – Mapa do Estado do Rio de Janeiro com localização do município de Niterói. ............. 5
MAPA 2 – Mapa de Niterói da Região das Praias da Baia e a área de estudo. ................................... 6
MAPA 3 – Mapa de reconhecimento da Baia de Guanabara, seus acessos e pontos de defesa, em
carta realizada por Renée Dugay-Trouin em 1711. ............................................................................... 45
MAPA 4 Ocupação da Baia de Guanabara em 1579, representada em carta por Jacques de
Vaulx Du Clay. ........................................................................................................................................... 47
MAPA 5 – Planta cartográfica com a conformação topográfica e hidrológica de trecho da Baia de
Guanabara, entre Niterói e Rio de Janeiro (respectivamente desenhados). ...................................... 55
MAPA 6 Planta do Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande (1820), manipulado pela
autora. .......................................................................................................................................................... 60
MAPA 7 Planta Topográfica da Província do Rio de Janeiro, litografia original do Arquivo
Militar. .......................................................................................................................................................... 72
MAPA 8 Mapa de Localização dos chafarizes, bicas e pilastras de abastecimento de água na
metade do séc. XIX. .................................................................................................................................. 74
MAPA 9 Planta da Cidade de Niterói, capital da Província do Rio de Janeiro (1844),
manipulada pela autora. ............................................................................................................................. 80
MAPA 10 – Planta da cidade de Niterói no início do século XX. ..................................................... 87
MAPA 11 – Plano Geral de Arruamento de Niterói (1930). .............................................................. 92
MAPA 12 – Planta de Niterói em 1940. ................................................................................................. 96
MAPA 13 – Mapa de levantamento de usos da água no município de Niterói (1982). ................ 103
MAPA 14 – Em comparação plantas da área central de Niterói em 1829 e 1922. ........................ 105
MAPA 15 – Croquis representativos da evolução da malha urbana do Centro de Niterói. ......... 106
MAPA 16 .................................................................................................................................................. 106
MAPA 17 – Mapa de localização das três áreas históricas da cidade. .............................................. 113
MAPA 18 – Mapa de Localização do Complexo do Vintém. ........................................................... 118
MAPA 19 – Mapa de Localização dos Componentes do Complexo do Vintém. ......................... 127
MAPA 20 – Mapa da Situação Territorial – Loteamento Vila Paraná, Terrenos de Abílio Soares e
Prefeitura Municipal. ............................................................................................................................... 128
MAPA 21 – Mapa da Situação Urbana do Complexo do Vintém ................................................... 129
MAPA 22 Mapa de Caracterização dos Componentes do Complexo do Vintém
Levantamento Atual. ............................................................................................................................... 130
Lista de Tabelas
QUADRO 1 - Classificação contemporânea do patrimônio cultural. ............................................... 17
QUADRO 2 – Quadro de Desenvolvimento da População Indígena de São Lourenço ............... 55
QUADRO 3 – Quadro de origem da CEDAE................................................................................... 101
Lista de Siglas
CAE Companhia de Água e Esgoto
CAEN Companhia de Águas e Esgotos de Niterói
CEDAE Companhia Estadual de Água e Esgoto
CEDAG Companhia Estadual de Águas da Guanabara
ESAG Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro
ETA Estação de Tratamento de Água
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INEPAC Instituto Estadual de Patrimônio
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
PMN Prefeitura Municipal de Niterói
SANERJ Companhia de Saneamento do Estado do Rio de Janeiro
SERLA Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagoas
SMUC Secretaria Municipal de Urbanismo e Controle
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
UDU
MEC
Departamento de Urbanismo
Ministério da Educação e Cultura
Sumário
Introdução ..................................................................................................................................................... 1
Metodologia ............................................................................................................................................................................ 7
Apresentação ........................................................................................................................................................................... 9
1º Capítulo - Os conceitos emergentes: patrimônio cultural, memória social e a água. .................. 12
1.1. Da Conceituação do Patrimônio ................................................................................................. 12
A origem simbólica .............................................................................................................................................................. 13
Patrimônio cultural edificado ............................................................................................................................................. 13
As novas acepções do patrimônio .................................................................................................................................... 15
1.2. Os Valores do Patrimônio ............................................................................................................ 19
Valores contemporâneos do patrimônio ......................................................................................................................... 20
Novos valores para o patrimônio brasileiro .................................................................................................................... 21
1.3. O Patrimônio na Formação da Memória social ........................................................................ 24
O espaço e os símbolos ...................................................................................................................................................... 25
Patrimônio edificado como lugar de memória ............................................................................................................... 26
Políticas patrimoniais, patrimônio edificado e memória social .................................................................................... 28
1.4. A Água e a Memória Social .......................................................................................................... 32
A água elemento vital [recorrente e importante] na história da humanidade ............................................................ 32
A água: patrimônio da humanidade [debate emergente] e patrimônio histórico e cultural [memória em objetos
edificados] .............................................................................................................................................................................. 33
A água na memória coletiva [a imaginação na matéria] ................................................................................................. 35
1.5. A Água nos antecedentes históricos de Niterói ......................................................................... 38
A água na paisagem original [niteroiense] ........................................................................................................................ 41
No mar o palco para a disputa ........................................................................................................................................... 46
As águas escondidas de Araribóia ..................................................................................................................................... 46
Pontos espaçados ................................................................................................................................................................. 48
2
o
Capítulo - A Água na História da Cidade ........................................................................................... 51
2.1. A Formação da Vila Real e o Chafariz de D. João .................................................................... 51
O Plano de Edificação e as teorias renascentistas .......................................................................................................... 51
A Provisão Real .................................................................................................................................................................... 55
As águas existentes ............................................................................................................................................................... 56
Visita de Sua Majestade ....................................................................................................................................................... 58
O Plano da Vila .................................................................................................................................................................... 59
O passeio público e o chafariz na salubridade barroca ................................................................................................. 62
À procura das águas ............................................................................................................................................................. 63
O Largo e o Chafariz: a imagem da cidade grata ............................................................................................................ 66
2.1. As Novas Águas e a Capital na República .................................................................................. 71
A Capital ................................................................................................................................................................................ 71
A multiplicação das pilastras .............................................................................................................................................. 72
O Plano de Melhoramentos ............................................................................................................................................... 79
A República: a nova conformação política ...................................................................................................................... 81
A Revolta da Armada .......................................................................................................................................................... 83
O primeiro projeto para novas Águas .............................................................................................................................. 85
2.3. O Complemento das Águas e os Estadistas ............................................................................... 86
A retomada da Capital e os avanços urbanos ................................................................................................................. 86
A representatividade da Praça ............................................................................................................................................ 89
O Populismo na completude das Águas .......................................................................................................................... 93
O Estado Novo e a continua influência da Reforma Pereira Passos .......................................................................... 96
Águas à população crescente............................................................................................................................................ 100
2.4. Os Símbolos da Cidade ............................................................................................................... 103
A modernização da Cidade............................................................................................................................................... 103
O processo de provimento de águas à Cidade .............................................................................................................. 107
Os símbolos da Cidade e o Estado ................................................................................................................................. 109
As três marcas da Cidade .................................................................................................................................................. 110
A vida e a morte de símbolos da Cidade........................................................................................................................ 114
3º Capítulo - Complexo do Vintém: história e significado ................................................................ 116
3.1. A História do Sistema de Águas: Complexo do Vintém ........................................................ 116
Da abrangência ao foco: a perspectiva da pequena história ....................................................................................... 116
A Chácara e o bairro: Complexo do Vintém e Fátima ................................................................................................ 117
Componentes do sistema de águas ................................................................................................................................. 121
Outro componente e um novo sistema de águas ......................................................................................................... 131
3.2. Moradores do Bairro de Fátima: Percepção e Significado ..................................................... 133
Território e identidade: a caracterização do bairro de Fátima .................................................................................... 133
Representação e significado ............................................................................................................................................. 137
Análise das entrevistas: representações e significados ................................................................................................. 140
3.3. Legislação Patrimonial ................................................................................................................. 149
A legislação e as novas acepções patrimoniais .............................................................................................................. 149
Estatuto da Cidade: fortalecimento e democratização das práticas patrimoniais municipais............................... 152
Legislação patrimonial em Niterói .................................................................................................................................. 154
Os novos instrumentos legais .......................................................................................................................................... 156
Propostas de preservação ................................................................................................................................................. 162
Considerações Finais ............................................................................................................................... 166
Referências Bibliográficas ....................................................................................................................... 174
Anexos ....................................................................................................................................................... 183
I – Plantas do Loteamento Vila Paraná.......................................................................................................................... 184
II – Reportagem da Inauguração do Parque das Águas .............................................................................................. 186
III – Inventário de Tombamento do Reservatório da Correção ............................................................................... 188
IV – Mapa de Zoneamento das Frações Urbanas do Centro (Lei Municipal N. 1.967) ....................................... 190
V – Roteiro de Entrevista para os Moradores do Bairro de Fátima ......................................................................... 191
1
Introdução
A vida como conhecemos no Universo até o momento tem sempre presente a Água. Ao
ouvir que “Água é Vida” compreende-se que com três palavras se resume cerca de 2,8 bilhões de
anos do Diário da Terra
1
. Características físico-químicas deste líquido definem na natureza, o
Ciclo Hidrológico que é complexo e fascinante. O laboratório Terra com suas interações
geoquímicas e bioquímicas é um desafio à nossa observação, imaginação e criação. A intervenção
em busca de usos na sociedade, no longo caminhar do homo sapiens desde 170 mil anos A.P. (antes
do presente), em bandos saídos do sul da África até os atuais aglomerados urbanos, metrópoles e
megalópoles, têm na água a sobrevivência, o prazer, a inspiração e a criação.
Na Mesopotâmia terra entre os rios Tigre e Eufrates –, o homem desenvolveu uma forma de
escrita, o sistema sexagesimal, bases de geometria e técnicas de irrigar e secar terras para o cultivo.
Neste processo, o código de Hamurabi
2
, preocupava-se com as águas, entre outras ações e
relações sociais. No Egito, o ritmo dado às águas pelas cheias ajudou a florescer uma civilização
contemporânea à dos mesopotâmios e tão expressiva e criativa quanto estes. Enfim, rios do
oriente como o Ganges, o Indo, o Iang-Tsé (rio Amarelo), os gigantes das Américas,
Missisipe/Misouri, Amazonas e Bacia do Prata, rios menores, e tantos outros, lagos, lagunas,
fontes e córregos são parte do ciclo hidrológico e estão sempre ligados no evoluir das
civilizações.
Perto de nós, também é possível reconhecer a importância da relação do homem com a água na
história de formação das cidades. Entre estes exemplos, introdutoriamente, cita-se na cidade do
Rio de Janeiro, a história do abastecimento de água iniciada junto com o processo de ocupação
da cidade, e construída na luta entre portugueses e franceses, estes alojados na Ilha de
Villegagnion”, que à época contavam com as águas vindas do rio Carioca, cedidas por índios
Tupinambás. Do outro lado da baía de Guanabara, atual Niterói área de estudo desta pesquisa
–, a mesma associação ocorria. São também as águas de fontes sobre domínio indígena vindas da
área reconhecida como a Aldeia dos Índios da Praia Grande, denominada “Tribo de Araribóia”
que abasteceram o núcleo urbano original da cidade.
1
Cf. François Michel e Yves Larvor, “O livro da água”, cap. 1.
2
As primeiras leis da humanidade, fixadas por escrito, foram códigos que regulavam o uso da água, 4000 A. P..
Sobre a regência de Hamurabi em 1700 A. P., a Mesopotâmia produziu o primeiro código de leis abrangentes da
história que compreende sem ordenamento rígido, 282 parágrafos para regulamentar a vida social. No parágrafo 53
diz: “se alguém se exime de manter seu dique em boas condições, se este dique se romper e todas as lavouras forem
alagados, então o responsável pelo dique rompido será vendido como escravo, e a renda em dinheiro devem repor os
cereais cuja destruição causou” (BORGES, 2001, p. 70-5).
2
FIGURA 1 – Arcos da Lapa, ao fundo Niterói, Agostinho José de Mota (1878).
Fonte: ARTE DO SÉCULO XIX, 2000.
Estudos mostram que foi a partir destas mesmas fontes que surgiram os primeiros chafarizes para
abastecimento público de ambas cidades. No Rio de Janeiro, o chafariz no Largo de Santo
Antônio conhecido atualmente como Largo da Carioca no Centro da cidade e o chafariz no
Largo de Chafariz no bairro de Fátima em Niterói (SILVA, 1988). De arquitetura e engenharia
simples ou rebuscada, estas construções, elementos conformadores do imaginário de diversas
províncias, tanto no Brasil colônia quanto no Brasil imperial, embelezaram os espaços públicos e
enriqueceram o cotidiano e a história das cidades entre os séculos XVIII e XIX. Escravos
recolhiam a água e levavam para a casa de seus senhores, homens simples e nobres refaziam-se
do calor dos trópicos, aconteciam aí, também os encontros, as conversas e a troca de notícias, um
jornal falado. Construindo a memória social, não a carioca, mas também a fluminense, no
contexto maior da história da cidade.
Retomando à origem da humanidade não parece difícil focalizar a importância da Água, onde
desde a pré-história são destacadas suas formas de uso pelos grupos, bandos e diversas
sociedades humanas. No entanto, ao se observar a importância que é dada a água em nosso meio
e no cotidiano, principalmente quando aumenta-se o foco sobre o presente imediato,
infelizmente constata-se o esquecimento ou a indiferença com o passado. Este descaso se repete
com antigas estruturas representativas da história da água na cidade de Niterói, como é o objeto
de estudo desta pesquisa, o primeiro sistema público de abastecimento de água da cidade
compreendido como “Complexo do Vintém”
3
.
3
O sitio em questão configura um antigo sistema de captação, filtragem, armazenamento e distribuição de água
potável (original a chácara do final do séc. XVIII e, incorporado ao sistema público em 1853), com a utilização de
equipamentos coerentes à época, como: captação e adução por aquedutos arcados aparentes e subterrâneos em
3
FIGURA 2 – "Os refrescos do Largo do Palácio", Jean-Baptiste Debret.
Fonte: SILVA & PEIXOTO, 2008.
Assim, do interesse por estudar as questões referentes à temática da Água – aguçado em
conversas familiares –, mais especificamente sobre o quadro de elementos que conjuntamente
constituem a história do homem, por uma série de fatores me debrucei sobre o contexto do
patrimônio da água no meio urbano tradicional niteroiense.
Entre tais fatores, e talvez o principal deles, é que durante alguns anos trabalhei, primeiro como
estagiária e depois como arquiteta, na Secretaria Municipal de Urbanismo e Controle Urbano da
Prefeitura de Niterói. Nesta época tive a oportunidade de conhecer Luis Eduardo do Carmo
Travassos
4
, engenheiro sanitarista, e então subsecretário da Secretaria de Ciência e Tecnologia,
que me apresentou o reservatório da Correção e as ruínas do Complexo do Vintém. Neste
contato, com a realização do meu Trabalho Final de Graduação, em Arquitetura e Urbanismo na
UFF, iniciei a trajetória de conhecimentos sobre estes elementos da história da cidade.
Esse processo repercutiu em outro fator importante para o amadurecimento deste projeto; a
constatação do crescente descaso por que tem passado os bens que contam a história da cidade.
Em Niterói, algumas características parecem contribuir para o esquecimento e a deterioração de
seus bens. Seja como grande cidade, onde o interesse econômico e a modernização influenciam
na sua desconstrução e transformação, ou, seja como cidade de menor porte, onde não há receita
suficiente ou falta de incentivo por parte de seus gestores para a preservação e manutenção deste
blocos rochosos, filtragem por tanques de brita e areia, armazenamento em reservatórios semi-enterrados e
distribuição por dutos (que abasteciam chafarizes no centro da cidade) e por uma torre de abastecimento de carroças
de burro. Todos estes elementos permanecem até hoje no local (área junto a rua Andrade Pinto e chácara do Clube
de Funcionário da CEDAE no final da rua), contudo, encontra-se a maioria em desuso, abandonados e muito
deteriorados.
4
Ainda como vice-prefeito, em 1988, Eduardo Travassos vislumbrará a oportunidade de aproveitamento da área
compreendida atualmente como morro das Águas, onde se localiza o reservatório da Correção. Desta vontade,
realizar-se-ia mais tarde, em 2006 (após sua morte), o Parque Municipal Eduardo Travassos - Parque das Águas.
4
patrimônio. Sobre este assunto, mais tarde, fazendo parte da equipe de elaboração do estudo para
revisão da legislação do Centro de Niterói, compreendi que poderia contribuir para a explicitação
e reflexão de patrimônios desta cidade, devendo assim a intenção da realização deste estudo.
A temática do patrimônio, quando associada a noção sócio-territorial
5
, sugere que o patrimônio
arquitetônico e urbanístico participa, na relação memória e futuro social, auxiliando a reflexão e a
construção das soluções para os problemas com os quais se confronta uma sociedade aspecto
oportuno quando se trata da temática urgente da água. Deste modo, recorrer a análise do espaço
e da história dos antigos sistemas de abastecimento de água configura a possibilidade de refletir
sobre a relevância destes mesmos no contínuo processo de formação da cidade e da sua
sociedade.
Dentro do enfoque proposto desde o estudo e a análise do patrimônio, entendendo que o
processo de urbanização é, sobretudo, resultante de complexos sistemas de interações que, vistos
em seu conjunto, constituem noções constantes e, necessárias do pensamento individual e
coletivo. A leitura da história da cidade de Niterói torna-se ainda mais criteriosa e necessária, ao
se expor a importância do local onde se encontram os remanescentes de antigo sistema de
abastecimento de água, na área central da cidade também conhecida por Sub-Região Centro
6
.
Como na fala de Ecléia Bosi (1992, p. 356) em “Direito a Memória”, “[...] se o espaço é capaz de
exprimir a condição de ser no mundo, a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira a
sua seiva. As lembranças se apóiam nas pedras da cidade”. Logo, a área estudada representa um
pouco da memória identidade múltipla e latente – do próprio município, e analisá-la é também
compreender a cidade através dela, pois suas peculiaridades, suas dinâmicas sócio-espaciais e
inclusive seu processo de transformação urbana são, no mais das vezes, reflexos do todo que
compõe o uno niteroiense.
5
A noção de formação sócio-territorial busca expressar a combinação das diversas esferas da vida social
econômica, social, política, cultural. Neste sentido, as variações históricas dessas combinações nas sociedades
apontam o território como um dos elementos decisivos na conformação da identidade social, daí a importância do
estudo do meio físico para a construção da história da cidade (SANTOS, 1997).
6
Designação estabelecida a partir da Lei Municipal n. 1.967 de 2002, o Plano Urbanístico das Praias da Baia (PUR),
está região é composta pelos bairros de Centro, Fátima, São Domingos, Gragoáta, Boa Viagem e Ponto d’Areia.
5
MAPA 1 – Mapa do Estado do Rio de Janeiro com localização do município de Niterói.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2008 (a partir de GUIANET, 2008).
Diante dessa questão, dediquei-me ao estudo da constituição histórica como sítio urbano do que
hoje é a área central da cidade de Niterói. Deparei com o fato de que desde a sua fundação como
Vila Real da Praia Grande, o centro é alvo de intervenções urbanas que envolvem também o
provimento de águas à população. Assim, a importância deste paradigma urbano, o sítio em
questão inserido atualmente nos limites do bairro de Fátima, e anteriormente incorporado por
São Lourenço e parte pelo Centro, é melhor compreendida, a partir da fala do cronista e
investigador da história niteroiense Seixas Mattos (20.12.1974):
Do Morro de São Lourenço, centro pioneiro de vários acontecimentos históricos de
nossa invicta cidade, onde devem ter-se irradiado os principais elementos da nossa
evolução. Possuindo nas suas encostas várias fontes de considerável rendimento foi, no
caso da evolução do abastecimento d'água, o centro primordial desse advento. Assim
também, sob o ponto de vista de urbanismo, essa predestinação histórica, aliada aos
fatores de coesão social, ter-se-ia repetido, surgindo aí o primeiro centro urbano da
cidade nascente, a célula embrionária do nosso urbanismo.
6
MAPA 2 – Mapa de Niterói da Região das Praias da Baia e a área de estudo.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2008 (a partir de Imagem do satélite Ikonos - PMN, 2006).
Portanto, ao aporte espacial aqui delimitado soma-se ainda o aporte temporal, que converge para
significativos períodos da história da formação de Niterói e sua contínua busca pela solução do
suprimento de água potável, resgatado desde o momento embrionário urbano, a partir de 1819 –
em consideração ao primeiro Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande
7
–, a
conformação do sistema de abastecimento
8
da urbe em 1954.
7
Plano de Edificação, criado em 1818, apresentado no ano seguinte, previa a instalação de chafarizes públicos no
centro da Praia Grande, bem como a canalização das águas vindas do Morro da Calimbá uma das vertentes do
Morro São Lourenço (Documento da Câmara Municipal, n. 14.4.13, 1819).
8
Em 1954 ocorre a mudança mantida até hoje, entra em carga o sistema de captação do Canal de Imunana com
tratamento na ETA (Estação de Tratamento de Água) do Laranjal.
7
Metodologia
A pesquisa será desenvolvida abordando e descrevendo o processo de urbanização, tendo como
objetivo o esclarecimento da importância histórica do sistema de abastecimento de água na
formação da cidade de Niterói. Sendo assim, as bases teóricas e metodológicas que fornecem o
aporte conceitual e teórico necessário, recaíram sobre a pesquisa reflexiva, que possibilita a
investigação da dimensão simbólica e do imaginário que vem à tona nos processo de construção
e apropriação do espaço. A reflexão sobre a água no espaço niteroiense tem por objetivo a
contextualização do objeto de estudo, o Complexo do Vintém.
Por este meio, buscaremos, inicialmente, a fundamentação de alguns conceitos que norteiam esta
pesquisa, desenvolvendo estudo a partir de pesquisa bibliográfica e leituras sobre os temas:
patrimônio, memória social e água, formados, por um conjunto multidisciplinar de autores de
áreas como arquitetura, filosofia, história e sociologia. Com isto, intenciona-se a abordagem
desde a dimensão material, com os aspectos físicos da cidade, como as questões teóricas relativas
ao conceito de patrimônio, valores e representações.
Para compilar as informações, referentes a história do abastecimento de água em Niterói,
procuramos sistematizar, as esparsas e variadas informações existentes, priorizando as fontes
documentais oficiais (leis, decretos, atas e mensagens governamentais) e, freqüentemente,
recorrendo à divulgação sobre o assunto na imprensa. Pois as informações sobre o abastecimento
de água em Niterói são escassas, contamos apenas com passagens destacadas dos planos de
governos para o Município, em importantes historiografias sobre a cidade
9
, principalmente nas
crônicas de dois escritores importantes para o estudo em questão, são eles Romeu de Seixas
Mattos e Divaldo de Aguiar Lopes. Em alguns de seus trabalhos publicados, se dedicaram ao
levantamento da historia dos muitos elementos formadores e conformadores dos antigos
sistemas de abastecimento de água da cidade.
Durante os trabalhos, nos preocupamos com o levantamento iconográfico, para que o estudo
seja ilustrado por imagens, tais como: referências cartográficas, desenhos, projetos, processos
construtivos e fotografias de época. Contudo, o reduzido número de antigas ilustrações que
pudessem retratar o projeto ou a execução dos nossos objetos de estudo, nos levou a produzir
ilustrações a partir de desenhos com base no material existente no estado de conservação em que
se encontra e no seu meio físico atual.
Assim adotaremos, por prudência, a estratégica de analisar os documentos, buscando um
levantamento seguro e o mais preciso possível dos fatos, procurando a contextualização política e
social das medidas tomadas referentes ao espaço urbano e aos sistemas de abastecimento de água.
9
Sobre as obras de pesquisadores e autores da história de Niterói, como Carlos Wers, José Mattoso Maia Forte e
José Antônio Soares de Souza, foram fontes valorosas para a construção cronológicas dos fatos referentes ao sistema
de abastecimento de água da cidade.
8
Para a abordagem do conteúdo simbólico do objeto e da cidade, o auxílio de autores como Giulio
Carlo Argan e Aldo Rossi
10
, apresentam, o ponto de vista que conceitua a cidade como o espaço
de criação coletiva, carregado de símbolos que remetem à memória e identidade dos seus
habitantes e, portanto, possuem valor cultural, afetivo e histórico.
11
Esta perspectiva, para a
cidade de Niterói, inspirou os estudos de Maristela Campos e Paulo Knauss, contribuição
fundamental a ser destacada no presente trabalho. A comunidade, a cidade, suas praças, ruas,
caminhos e chafarizes, são produtos simbólicos, resultado de inúmeras mediações, dentre elas,
aquelas pertencentes ao universo do fazer cultural. Em, nosso caso, dos meios de abastecimento
de água da cidade, esta relação torna-se clara na colocação de Argan (1993, p.48):
Acontece que a cidade deixou de ser um lugar de asilo, proteção, refúgio e se
transformou em um sistema de comunicação, comunicação no sentido de
deslocamento e de reação, mas também no sentido de transmissão de determinados
conteúdos urbanos.
É óbvio que, nesse sentido, constituem modelos dos quais não é fácil se separar, já que
é próprio do monumento comunicar um conteúdo ou um significado de valor, como,
por exemplo, a autoridade do Estado, ou da lei, a importância de recordar um fato ou
uma personalidade da História, o sentido místico ou ascético duma igreja, a força da
religião etc. É por isso que também a arquitetura privada [e equipamentos públicos,
como elementos do sistema de abastecimento de água] se transforma em comunicadora
de valores reais ou atributos [...], repetindo ao ouvido, símbolos de prestígio que se
tomam emprestados dos monumentos-modelo e se localizam de forma precisa no
contexto urbano.
Sendo assim, o Complexo do Vintém, visto como patrimônio edificado é um dos objetos
possíveis de representação social, esta entendida como o produto de um conhecimento e
relacionamento construído no senso comum e coletivamente estruturado e compartilhado,
estando intimamente ligado ao cotidiano dos indivíduos e dos seus grupos sociais.
10
Em sua obra “A arquitetura da cidade”, Rossi afirma que a arquitetura da cidade, composta de traçados e volumes,
com suas ruas, praças e edifícios, possibilita a leitura e interpretação de fatos urbanos. Estes são únicos para cada
lugar, introduzem debates de temas como a individualidade, a memória e, porque não dizer, a identidade do lugar e
dos habitantes.
11
A constituição da identidade da cidade é realizada pela soma dos acervos de imagens, objetos e espaços urbanos
que se caracterizam, de um modo geral, por operações de significados, que organizam simbolicamente o tempo e o
espaço da cidade ao instaurar referencias universais no cotidiano urbano. Esse movimento se relaciona com
motivações da origem social, atualizando e redefinindo constantemente o significado das imagens urbanas.
9
FIGURA 3 – Platz in Rio (Praça do Rio de Janeiro). Largo, Chafariz e Igreja de Sta. Rita (1844).
Fonte: ARTE DO SÉCULO XIX, 2000.
Desta forma, um importante aspecto que envolve também o estudo, diz respeito à investigação
do objeto a partir da perspectiva dos seus habitantes. Uma forma de aquisição destes dados
foram as entrevistas realizadas com os moradores do bairro de Fátima. Com estas se pretende
obter informações referentes ao significado do antigo sistema de água. O método de análise
reflexivo, não apenas no nível teórico (contextualização e conceituação teórica), mas também no
prático (representações e significados), supõe a aferição de resultados de forma ainda mais
consistente e coerente, onde, é possível confrontar as informações obtidas e valores atribuídos
com as teorias ora existentes sobre os temas.
Apresentação
Assim, estruturamos o trabalho em três capítulos. O primeiro capítulo tem como objetivo
fundamentar teoricamente a pesquisa, onde serão apresentados e discutidos conceitos, sempre
apoiados na reflexão de um conjunto de importantes autores, entre eles Alois Riegl, Françoise
Choay, Gaston Bachelard, e outros, que abordam em seus estudos temas relacionados a três
universos: o patrimônio cultural, a memória social e a água.
Procurando apresentar o conceito do patrimônio cultural edificado, seguimos a apresentação
cronológica do seu surgimento e dos significados atribuídos em diversos momentos. Em um
segundo passo, ao tratar do patrimônio em sua dimensão material e espacial com os valores
associados a este relacionados aos sentidos atribuídos historicamente –, abordamos a questão
da apropriação, fundamental na estruturação da identidade e manutenção da memória. Os bens
patrimoniais serão enfocados como “lugares de memória” (BOSI, 1992), que neste caso, se
10
articulam com as memórias referentes a água que, descritas em breve histórico, tem seu valor
atribuído desde o passado e até o presente.
Ao final da discussão destes três temas, procuramos estabelecer relações de contato entre tais
universos, visando primeiramente a conceituação e abordagem do patrimônio cultural edificado
para a classificação e conhecimento dos antigos sistemas de abastecimento de água, em Niterói.
Além de, esclarecer a presença da água, inserida de diferentes maneiras ao longo da história, na
memória social, para assim, atingir no segundo capítulo, a cidade sobre a ótica da memória e da
história.
O segundo capítulo foi organizado de forma a descrever paralelamente e cronologicamente o
processo de formação do território niteroiense e o provimento de água para o local. O estudo
enfoca a fundação do núcleo urbano original até a expansão da cidade, em decorrência das
transformações políticas (elevação a categoria de vila, província, capital e município,
sucessivamente). Com base em escritos de memorialistas, obras de historiadores niteroienses,
legislação da época, crônicas e notícias dos jornais locais, onde se destacam os momentos de
transformação urbana, políticas, econômicas e, principalmente de transformações relativas à
infra-estrutura de abastecimento de água. Esta contextualização histórica intenciona a
compreensão da trajetória política que ditou as regras na construção do espaço urbano, e de que
maneira também a água enquanto elemento necessário a vida e meio de atividade, na sua
disponibilidade e na sua ausência, foi importante para a formação da cidade
12
.
Na compreensão do tempo e do espaço, recorremos ao aporte teórico da leitura dos símbolos da
cidade, investigando momentos da historia niteroiense em seu meio físico. Ainda neste aspecto,
observaremos as reflexões impetradas pelo historiador Paulo Knauss, e de outros, que fazem
parte da coletânea organizada por ele no livro “Sorriso da cidade: imagens urbanas e história
política de Niterói”.
Por fim, no terceiro capítulo, propomos, o aprofundamento do conhecimento sobre o antigo
sistema de abastecimento de água na cidade de Niterói, o Complexo do Vintém. Precisamos sua
localização espacial e temporal, e o levantamento de seu estado atual de conservação para
delimitação do sítio de valor patrimonial histórico, cultural e arquitetônico.
Na medida em que o estudo deve se ampliar na diversidade de olhares que compõe a história e a
identidade de Niterói, recorremos às referências conceituais de Bernard Lepetit. Para que
possamos entender a importância histórica e cultural e a influência no cotidiano dos moradores,
inferida pelos remanescentes do sistema de água, caracterizaremos o bairro de Fátima, a partir de
sua formação e do perfil dos seus moradores. No intuito de investigar o significado destes
12
Além disso, esta contextualização histórica permite a compreensão dos valores subjetivos da época da construção
destes sistemas de abastecimento de água.
11
remanescentes para a comunidade, serão realizadas entrevistas com moradores do bairro.
Procurando, portanto, o reconhecimento das diferentes escalas para os detalhes que a cidade
comporta, tanto na análise histórica, urbana e social que realizaremos no segundo capítulo –,
como na análise específica ao local onde se encontram tais elementos sobre o bairro de Fátima
e a população diretamente ligada a este episódio da sua história.
No capítulo faremos também a análise crítica sobre a legislação patrimonial, a partir das
diferentes instâncias institucionais (municipal, estadual e federal) e, refletiremos sobre os novos
instrumentos legais para a possibilidade de preservação do que será destacado como patrimônio
do Complexo do Vintém.
Buscamos através de pesquisa promover o levantamento histórico, o mapeamento e o
levantamento iconográfico, a respectiva temporalidade histórica e conceitual dos mesmos, com o
intuito de contribuir para o destaque da relevância do objeto de estudo no processo de formação
da cidade de Niterói.
FIGURA 4 – Negros carregadores de água, de João Mauricio Rugendas.
Fonte: SILVIA, 1993.
Estabelecendo hipóteses para o desenvolvimento urbano da cidade de Niterói, a partir da
influência da rede hidrográfica e das diferentes gestões públicas no sistema de abastecimento de
água. Fomentando a reflexão para a perpetuação da memória da preservação e uso da água, com
o estreitamento do vínculo existente entre história e identidade social. Esperamos construir e
colocar à disposição da comunidade um registro histórico uma memória de um penoso e
esquecido processo de superação da carência de um componente de infra-estrutura que é bem
precioso sem o qual a vida urbana seria hoje impraticável, e cuja importância vital só se evidencia
quando ele nos falta momentânea e prolongadamente.
12
Capítulo - Os conceitos emergentes: patrimônio cultural,
memória social e a água.
1.1. Da Conceituação do Patrimônio
Patrimônio. Esta bela e antiga palavra estava, na origem, ligada às estruturas familiares,
econômicas e jurídicas de uma sociedade estável, enraizada no espaço e no tempo.
Requalificada por diversos adjetivos (genético, natural, histórico, etc.) que fizeram dela
um conceito nômade, ela segue hoje uma trajetória diferente e retumbante (CHOAY,
2001, p.11).
As palavras da historiadora Françoise Choay resumem bem a evolução pela qual tem passado o
termo patrimônio ao longo dos tempos. Expandindo-se semanticamente, essa palavra que,
segundo a clássica definição de Littré (1872), significa um “[...] bem de herança que é transmitido,
segundo leis, dos pais e das mães aos filhos”
13
, foi tomando novos contornos à medida que foi
sendo empregada em diferentes contextos, em diferentes momentos. Contudo, apesar de nosso
primeiro pensamento sobre o tema água aludir ao patrimônio natural, nosso foco, aqui, é atrelado
ao aspecto histórico. No entender de Choay (2001), este aspecto se ampliou a dimensões
planetárias e, resultou em uma expressão que designa um bem destinado ao usufruto de uma
comunidade, constituído pela acumulação contínua da diversidade de objetos que se congregam
por seu passado comum, tais como obras e obras-primas das belas artes aplicadas, trabalhos e
produtos de todos os saberes e “savoir-faire dos seres humanos”.
Tal dimensão planetária alcançada em nossos dias pelo patrimônio histórico é produto de sua
evolução para o conceito de “patrimônio cultural” nas últimas décadas do século passado
(ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS PARA EDUCAÇÃO, CIÊNCIA E CULTURA
UNESCO, 2007). Hoje o conceito de patrimônio expandiu-se em direção a novas formas de
entendimento, classificação e meios de preservação. Para o entendimento dessas novas
possibilidades, principalmente com relevância aos objetos de estudo desta pesquisa, elementos
que compõe sistemas de abastecimento de água, acreditamos ser de fundamental importância sua
compreensão contemporânea. Embora essa seja resultado de uma evolução
14
, o recorte temporal
que fixamos é o seu desenvolvimento durante o século XIX aos dias atuais, quando pela primeira
vez foram estabelecidas regras internacionalmente e nacionalmente tendo em vista solucionar os
problemas complexos de sua salvaguarda.
13
Dictionnarie de la langue française de É. Littré. Definição da palavra patrimônio.
14
Choay (2001) estabelece como início da formação da noção de patrimônio cultural a afeição de civilizações antigas
por obras do passado que, todavia, ainda não se prendiam a sua relação com uma história à qual conferissem
autenticidade ou permitissem datar, nem à sua antiguidade. Tal afeição ocorreria porque estas obras davam a
conhecer as realizações de uma civilização superior. Como marco inicial desse interesse, o estudioso J. Alsop sugere a
procura fervorosa dos atálidas, uma civilização localizada próxima ao mar Egeu, por esculturas e objetos de arte
decorativa da Grécia Antiga. Pouco tempo depois, os objetos que encantaram esse povo, começariam também a
provocar interesse aos romanos, que os espoliaram durante as conquistas de antigos territórios gregos.
13
A origem simbólica
Nestes termos, é por volta de 1820 que a idéia de patrimônio cultural, como conjunto de bens a
serem preservados, começou a se delinear mais claramente. Quando ocorre o advento de diversas
teorias e práticas de conservação do monumento histórico, e são feitas descobertas nas ciências
físicas e químicas, determinando o progresso da história, da arte e da arqueologia fatores que
acabaram por conferir nova importância aos monumentos, que também adquiriram novo status.
Para Choay (2001, p.127), “a década de 1820 marca a afirmação de uma mentalidade que rompe
com as dos antiquários e com a Revolução Francesa”
15
.
É portanto, desde esta época que na Europa foi se consolidando a noção de patrimônio nacional,
organizado através da reunião de documentos e artefatos históricos que passaram a compor os
símbolos de uma nação, elementos de identidade de um povo. A constituição de patrimônios
nacionais teve por objetivo a criação de uma referencial comum a todos que habitavam num
mesmo território e, assim, unificá-los em torno de pretensos interesses a tradições comuns,
sobrepondo aos interesses das memórias particulares e locais. O patrimônio passou, então, a
constituir-se de uma coleção simbólica unificadora, que procurava dar bases à identidade da
nação em formação, sobreposta à diversidade de grupos sociais e étnicos presentes em um
mesmo território. Neste trabalho, esta conotação simbólica será percebida em segundo capítulo,
onde, principalmente no período republicano, a partir de uma estratégia política são produzidos
símbolos no espaço da cidade, na conformação de uma identidade que alimentaria o “progresso
da nação” e por conseqüência o progresso para Niterói.
Ainda naquele momento, outros valores se estabeleceram e o patrimônio teve estatuto jurídico e
tratamento técnico diferenciado. O monumento histórico passou a ser encarado como algo
insubstituível, os danos sofridos e a perda do bem foram considerados irremediáveis. Regina
Abreu (2003), em seus estudos sobre a nova configuração no campo do patrimônio, considera
que esse momento foi o ponto de partida para a acepção contemporânea do conceito de
patrimônio nacional.
Patrimônio cultural edificado
Neste sentido a noção de patrimônio cultural, tal como se conhece hoje, decorre da concepção de
monumento, e para isso os estudos de Alois Reigl (1999) são fundamentais, pois ele procurou
analisar criticamente o monumento histórico, estabelecer definições, e compreender o fenômeno,
ainda incipiente em sua época, de um culto às antiguidades que se assemelhava, em seu ponto de
15
Nesse momento, com a iniciativa dos revolucionários em destruir os bens da nobreza, houve um movimento dos
intelectuais motivados pelo sentimento de perda, que baseados na idéia de expressão nacional, difundiram a idéia de
bens como propriedades coletivas que não poderiam ser destruídas (CHOAY, 2001).
14
vista, a um fervor religioso
16
. Assim, pressupõe-se que todo monumento tem uma dimensão
histórica e uma dimensão estética pois “[...] todo monumento de arte é, simultaneamente, um
monumento histórico, na medida em que representa um estágio determinado na evolução das
artes plásticas” (FONSECA, 2005, p.65). Por outro lado, todo monumento histórico também
possui valor artístico, devido ao fato da sua configuração formal conter informações estéticas
sobre estilos, materiais, formas, e outros elementos que podem datar o documento. Desta forma,
Reigl chega a uma de suas considerações mais importantes, primordial para a compreensão da
abrangência atual do termo patrimônio: a diferença entre monumento e monumento histórico.
“Monumento” é um termo que, conforme referido anteriormente, provém dos romanos e
implica uma ação sobre a memória (etimologicamete, a palavra provém de “advertir, lembrar”).
Portanto, Reigl associa ambos os monumentos supra-citados ao “valor de rememoração”, ou
seja, são ligados ao passado. No entanto, o monumento é uma construção intencional, que, desde
sua concepção, tem função memorial, a referir-se a dado momento ou acontecimento. o
monumento histórico não é construído intencionalmente como objeto de rememoração, mas foi
selecionado posteriormente pela sua importância para a história e para história da arte
17
.
É ainda no século XIX que são elaborados os primeiros estudos para a conservação e proteção
dos marcos arquitetônicos da identidade nacional, os monumentos históricos, inventariando os
bens de interesse de preservação por seus valores artísticos, econômicos, históricos, afetivos e
cognitivos. A Revolução Industrial, ao provocar grandes transformações na paisagem européia,
particularmente com o crescimento das cidades, fortaleceu as ações de preservação dos
monumentos, enquanto marcos referenciais do passado. Artista e intelectuais passaram a
reclamar pela preservação de monumentos históricos e nacionais em contraposição à demolição
de edifícios e à radical transformação da paisagem urbana.
Para eles [os defensores dos monumentos históricos], os monumentos do passado são
necessários à vida do presente; não são nem ornamento aleatório, nem arcaísmo, nem
meros portadores de saber e de prazer, mas parte do cotidiano (Ruskin [1861] citado
por CHOAY, 2001, p. 139).
Diante das transformações decorrentes da Revolução Industrial, estados nacionais, como França
e Inglaterra, passaram a elaborar normas legais de proteção e procedimentos para a conservação
de monumentos históricos, ou seja, edificações que por suas características, refletem os valores
nacionais, históricos e artísticos.
16
No seu livro El culto moderno a los momumentos”, o autor elaborou uma nomenclatura pertinente que enumerou e
definiu pela primeira vez, as diversas funções simbólicas de uma construção antiga através de suas análises é
possível pensar o monumento considerando suas mais diversas funções e sentidos.
17
Porém o autor ressalta que, estes valores atribuídos posteriormente aos monumentos não-intencionais são
“subjetivos”, na medida em que são valores atribuídos por nós, sujeitos contemporâneos. Este relativismo provém
da concepção moderna de história, onde a idéia de “desenvolvimento” e “evolução” admite que o valor atribuído a
dado objeto seja alterado a cada período histórico (FONSECA, 2005, p. 66).
15
No século XIX, os preceitos muitas vezes genéricos sobre a restauração de monumentos,
elaborados no século anterior a título de exercícios teóricos, foram efetivamente aplicados nas
práticas de Viollet-le-Duc para as construções medievais da França. Por sua vez, na Inglaterra,
Jonh Ruskin desenvolveu severas críticas aos procedimentos adotados na França nas
intervenções de edifícios antigos, propondo a realização de trabalhos de conservação para evitar a
degradação e a alteração das obras construídas. Ambas as posições conflitantes foram de grande
importância para a formação do pensamento preservacionista e das práticas de conservação de
bens por todo o século XX, desde os anos 1930, nos primeiros congressos internacionais,
fortalecidos, especialmente após o término da segunda guerra, em resposta à destruição de
inúmeros espaços urbanos em importantes cidades da Europa
18
.
As novas acepções do patrimônio
Até o início do século XX, o conceito de patrimônio era estruturado predominantemente em
função do valor histórico e artístico. A partir de 1940, capitaneada principalmente pela atuação da
UNESCO, ascende a concepção que privilegia o respeito à diversidade cultural, seja em relação à
multiplicidade de expressões culturais ao à dimensão imaterial (ABREU, 2003). Com o passar do
tempo, ao termo patrimônio foram associados valores artístico, histórico e de identidade nacional
e a acepção de patrimônio cultural foi se aproximando daquela que se tem hoje
19
.
O artigo primeiro do Decreto-Lei que criou no Brasil, em 1937, o Serviço do Patrimônio
Nacional (SPHAN), atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
também configuraria essa visão, declarando que são essencialmente os bens materiais, sejam eles
móveis ou imóveis
20
, o patrimônio histórico do país. Segundo o Decreto-Lei:
Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o conjunto dos bens móveis
e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de interesse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico (Decreto-Lei n. 25, de
30/11/1937).
Como resultado do amadurecimento dos vários conceitos e observações presentes nas Cartas
Patrimoniais editadas ao longo de todo século XX, a UNESCO produziu em Paris no ano de
1972, com a participação de várias nações, a “Convenção para a proteção do patrimônio mundial,
cultural e natural”. Esse documento foi um tratado internacional que reuniu um conjunto de
dispositivos que cuidam da identificação, da proteção e da preservação do patrimônio material,
18
Neste período a noção de centro histórico começou a se difundir, inicialmente limitado ao centro real da cidade,
passou a fazer referência a qualquer parte da cidade que tivesse um significado para a história da mesma.
19
Lemos (1981) classifica o patrimônio cultural em três tipos: o patrimônio natural, referente ao meio ambiente; o
saber, o saber fazer e as técnicas; e os bens culturais criados pelo conhecimento humano a partir do manejo dos
recursos naturais – são os artefatos culturais, como a pintura, a música e a arquitetura.
20
São bens imóveis: núcleos urbanos, sítios arqueológicos e paisagísticos e bens individuais; são bens móveis:
coleções arqueológicas, acervos museológicos, documentais, bibliográficos, arquivísticos, videográficos, fotográficos
e cinematográficos (IPHAN, 2008).
16
ou tangível de todo o mundo, considerado especialmente valioso para toda humanidade. Por
meio de Convenção, considerou-se patrimônio cultural:
Os monumentos Obras arquitetônicas, de escultura ou de pintura monumentais,
elementos de estruturas de caráter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de
elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ao da
ciência;
Os conjuntos Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua
arquitetura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do
ponto de vista da história, da arte ao da ciência;
Os locais de interesse Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da
natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor
universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ao da ciência (UNESCO,
1972).
Dentre as várias reuniões e conferências internacionais destinadas à valorização e à conservação
dos monumentos históricos e culturais, sejam objetos isolados ou conjuntos urbanos, merece
destaque a Carta Internacional para a salvaguarda das cidades históricas. Aprovada pelo Conselho
Internacional de Monumentos e Sítios em Washington, no ano de 1986, atualiza, especialmente
no que se refere aos valores a preservar, a Carta Internacional sobre a Conservação e a
Restauração de Monumentos e Sítios, conhecida como a Carta de Veneza, aprovada em 1964:
Os valores a preservar são o caráter histórico da cidade e o conjunto de elementos
materiais e espirituais que expressam sua imagem, em particular:
a) A forma urbana definida pelo traçado e pelo parcelamento;
b) As relações entre os diversos espaços urbanos, espaços construídos, espaços
abertos e espaços verdes;
c) A forma e o aspecto das edificações (interior e exterior) tais como são definidos
por sua estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor e decoração;
d) As relações da cidade com seu entorno natural ou criado pelo homem;
e) As diversas vocações da cidade adquiridas ao longo de sua história
(Carta de Washington, ICOMOS, 1986, p. 324).
Em 1995, o patrimônio cultural, ganhou reforço, durante a Conferência Mundial sobre as
Políticas Culturais, com a afirmação de que, a cultura constitui dimensão fundamental no
processo de desenvolvimento e contribui para fortalecer a independência, a soberania e a
identidade das nações. A Declaração do México sugere que o desenvolvimento equilibrado
pode ser atingido mediante a integração dos fatores culturais, nas dimensões histórica, social e
cultural de cada sociedade, reafirmando a importância do patrimônio cultural de um povo, que,
compreende as obras de seus artistas, arquitetos, músicos, escritores, e sábios, bem como as
criações anônimas surgidas da alma popular e o conjunto de valores que dão sentido à vida, obras
materiais e imateriais que expressam a criatividade desse povo.
Mais recentemente, a influência da concepção antropológica contemporânea da cultura, ao
enfatizar as relações sociais e simbólicas, contribuiu para que a definição de patrimônio cultural se
tornasse cada vez mais ampla. Com isso, a dimensão imaterial passou a ser contemplada mais
profundamente pela noção de patrimônio cultural. A UNESCO define como patrimônio
imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas [...] que os grupos, as
17
comunidades e, em alguns casos, os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu
patrimônio cultural” (UNESCO, 2003). A Constituição Brasileira de 1988 estabelece que:
Art. 216 Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
nos quais se incluem:
I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às
manifestações artísticos-culturais;
V os conjuntos urbanos e sítios de valor históricos, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico (Constituição Brasileira,
promulgada em 05.10.1988).
QUADRO 1
-
--
-
Classificação contemporânea do patrimônio cultural.
Fonte: Quadro desenhado por Carolina MACHADO, 2008.
Para Fonseca (2005), como conseqüência da ampliação do acervo do patrimônio cultural, tem-se,
primeiramente, que a extensão do conceito evidencia a necessidade de pensar em novos
instrumentos de preservação. Em segundo lugar, percebe-se que a dimensão imaterial extrapola
os conceitos de folclore e cultura popular. Por fim, identificam-se duas mudanças relativas à
18
política patrimonial cultural: a influência da globalização e a flexibilização dos critérios de
atribuição de valor. Esse alargamento do conceito significa, por um lado, a dessacralização do
termo, que passou a ser mais democrático, ou, por outro viéis, sua banalização.
Terminadas as primeiras considerações sobre a conceituação de patrimônio, é importante deixar
claro que, neste trabalho, tratamos do patrimônio cultural edificado. Entendido por um conjunto
de elementos de antigos sistemas de abastecimento de água, espaços urbanos representativos de
uma dada sociedade, que é imprescindível proteger a fim de promover a salvaguarda da memória
e da identidade de um grupo social, que em função da generalidade de seu tema principal, a água,
pode vir a se agregar a um contexto maior.
Assim, é preciso lembrar que aquilo que será considerado como representativo do grupo social e,
portanto, que comporá o acervo patrimonial cultural, é estabelecido de acordo com os valores
associados aos bens em uma certa época. Esses valores não são inerentes ao bem, e sim as
construções sociais que permitem a qualificação de um elemento como bem patrimonial. Esse
processo de valoração não é atribuído somente aos técnicos, mas de todo o grupo social.
Dessa maneira, os valores associados ao patrimônio podem ser variáveis ou imutáveis e estão
inseridos num sistema de outros valores e conceitos, fomentados e elaborados a partir da cultura.
Como colocado no texto “Os valores das estruturas ambientais urbanas” de Norma Lacerda
(2002, p.59), “[...] valor e cultura estão fortemente imbricados. Os valores que devem ser
considerados são aqueles que permanecem mais invariantes para a comunidade”. Tais valores são
produtos de processos culturais e o reconhecimento do pluralismo e da diversidade cultural torna
o sistema de valores existentes cada vês mais abrangentes. Entende-se como esfera cultural aquela
que:
Trata das concepções e das representações que os indivíduos e os grupos fazem de sua
inserção na sociedade e da sociedade como um todo. Ela está profundamente ligada às
questões do espaço (lugar, país, nação) e do tempo (história, memória, passado,
presente, e futuro), dos símbolos (língua, leis, imagens, religiões, artes, monumentos) e
representações simbólicas (festa, códigos de ética, ritos). (LACERDA, 2002, p. 81-82).
Assim, para a compreensão do conceito de patrimônio cultural, se torna necessário considerar o
processo de construção, apropriação e transmissão dos valores a partir da perspectiva simbólica e
como uma prática cultural. Por isso a necessidade de leitura histórica da cidade de Niterói, seu
processo de construção urbana, política e simbólica. É preciso, portanto, analisar o conceito de
patrimônio edificado a partir dos valores a ele associados, desde a formulação do conceito até os
contornos que o delineiam.
19
1.2. Os Valores do Patrimônio
A primeira tentativa de estruturação sistêmica dos valores ligados ao patrimônio foi feita por
Reigl (1999), que estabeleceu uma teoria a partir de dois pontos básicos: os valores de
rememoração, ligados ao passado, subdividindo-os em para a memória, para a história e de
ancianidade; e os de contemporaneidade, que dizem respeito ao presente, separando-os entre o
artístico (relativo e de novidade) e do uso.
21
No entanto, a atribuição de valores, contempla uma
gama de aspectos que invariavelmente relaciona-se ao tempo e ao meio. Assim, na segunda
metade do século XX, Argan (1993, p.228) afirmou que se conserva o que tem valor. Contudo,
perguntou-se: “Mas o que tem valor? E que tipo de valor?”. Buscando responder esta questão,
colocou que a atribuição de valores é feita por todos os homens, e não apenas pelos técnicos, e
que o valor de uma cidade depende do que lhe é atribuído pelo grupo social.
22
Mais além, ao abordar o valor conferido ao patrimônio urbano, Choay (2001) trata do que chama
de figuras: a memorial, a histórica (com os papéis propedêutico e museal) e a historial. Como
figura memorial, a autora cita Ruskin
23
, ao dizer que a cidade desempenhou, ao longo da história,
mesmo que isso não tivesse sido percebido o papel de rememoração. O papel propedêutico da
figura histórica decorre da possibilidade de estudo da forma e do espaço da cidade que ficou para
trás, o que se assemelha ao valor cognitivo. o papel museal representa o caráter singular, o
valor histórico e artístico da cidade antiga, que estão ameaçados de desaparecer e, por isso,
deveriam ser protegidos. A autora considera a última figura, a historial, como a síntese e
superação das anteriores, que vigora contemporaneamente. Contudo ressalta, que os conjuntos
urbanos antigos possuem valor de uso e museal e, por isso, devem ter uma nova destinação que
promova a integração à cidade, porém a nova utilização deve ser compatível com sua
preservação.
Em complemento Lacerda (2002) trata dos valores intangíveis ou subjetivos, que oscilam do
artístico e histórico ao da memória e identidade
24
, e principalmente, acrescentou o valor
21
O que mais interessou a Riegl foi o valor de ancianidade, considerado por ele como característica mais importante
para a proteção do patrimônio, e do valor de uso, que, para o autor, entrava em conflito com o valor do antigo, por
promover uma série de adaptações para uma nova utilidade funcional.
22
O autor tratou dos valores estéticos e históricos, considerando-os como duas faces de um objeto, pois a atribuição
do valor estético a um monumento, muitas vezes, se em função dele ter subsistido pelo valor histórico: ele passa
então a integrar a estética da cidade. O inverso também ocorre, pois aquilo que subsiste em razão do valor estético
passa, com o decorrer do tempo, a ter também valor histórico.
23
Ruskin que, no final do século XIX, tratou do valor de reverência, onde, para ele, a arquitetura é a única forma de
conservar uma ligação com o passado que é integrante de nossa identidade, o que faz com que o patrimônio
desempenhe, no presente, um papel memorial.
24
Ao valor artístico Lacerda (2002) adota os conceitos de Riegl, de valor de arte absoluto e relativo, que varia
segundo o avaliador; o valor de antiguidade, se manifesta pelo aspecto não-moderno do patrimônio; e o valor
histórico como representante de época, de modos de vida e características que não podem ser mais reproduzidas; no
cognitivo, o patrimônio é o meio de transmissão de conhecimento; no cultural, se refere a identidade coletiva,
estruturada em função da consciência do passado; de opção, um valor que remete ao uso possível no futuro; e por
fim, o de existência, diz respeito ao simples fato de um bem existir, dada a sua singularidade e a impossibilidade de
reverte-lo ao seu estado original caso seja modificado.
20
econômico, que consiste no potencial de utilização do bem segundo uma demanda, estando
associado a valorização imobiliária.
Cabe lembrar que o acervo de uma sociedade freqüentemente resulta da atribuição de valores
feita a bens por uma política estatal. A valoração é, assim, construída por técnicos e intelectuais,
que estabelecem a representação do patrimônio histórico e artístico nacional. Tratando da
posição do poder público brasileiro, Lia Motta (2002) aborda os valores atribuídos ao patrimônio
nos diferentes estágios da política de preservação oficial. Coloca que os trabalhos iniciais de
proteção instituídos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (na época
SPHAN) pautavam-se em uma idéia de unidade nacional e na construção de uma nação, que se
aproxima da valorização de nacionalidade da Revolução Francesa, com o estabelecimento de uma
identificação com o Estado.
Com a ampliação dos conceitos patrimoniais começou a ocorrer no cenário brasileiro na década
de 1970, o princípio da ambiência
25
promovida pelos conjuntos urbanos, em que o valor estético
se impõe. Além disso, a concepção de cidade documento, preconizada por Le Goff (2003)
conduziu a uma nova percepção do patrimônio, independentemente das características
arquitetônicas, estáticas ou estilísticas. Tratavam-se os conjuntos urbanos como documentos,
marcas do processo de ocupação do território depositário de vestígios culturais que
documentavam a trajetória das sociedades locais e possibilitavam a leitura da estrutura urbana,
isto é, havia a associação do valor cognitivo.
Valores contemporâneos do patrimônio
Atualmente, os debates sobre patrimônio tratam da questão da sua autenticidade e sobre como o
passado vem sendo apresentado, frente às mudanças no sistema econômico e cultural
decorrentes da globalização, incorrendo na hipervalorização do patrimônio cultural. Neste
aspecto, Jokilehto (2002) afirma que a sociedade contemporânea apreende o ambiente tomando
como referência o conceito atual de historicidade, que, reconhecido como valor, impôs a
tendência de a tudo “historicizar” com destaque para as histórias das minorias sociais e as
políticas públicas que privilegiam a multiplicidade cultural. A explicação estaria, como colocado
por Huyssen (2004, p.11), “[...] na aceleração cultural dos dias recorrentes, que trás a sobrecarga
informacional e perceptiva provocando um sentimento de perda da identidade”.
26
25
A Recomendação de Nairóbi define: “Entende-se por ambiência dos conjuntos históricos ou tradicionais, o
quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de
maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (CURY, 2004, p.220).
26
Um dos fatores a ser levado em conta na constituição de valores patrimoniais contemporaneamente é que o acervo
cultural fornece ao individuo a idéia de segurança e estabilidade, compensando a perda de referenciais e de
identidade, segundo a “teoria da compensação” (HUYSSEN, 2004). O individuo voltou-se para a memória em busca
de conforto, de lugares conhecidos, onde se desenrolavam relações mais duradouras.
21
Esta situação pode ser entendida a partir da ausência de referenciais de identidade, estabilidade e
continuidade, que ocorreu nos anos de 1970-80, junto a um crescente sentimento de valorização
do passado, o que acabou por produzir o “culto do monumento histórico” (CHOAY, 2001).
Neste momento, no campo da arquitetura e do urbanismo, os edifícios autênticos e as recreações
passaram a funcionar mais como uma satisfação da necessidade intelectual de arte do que como
experiência artística, ou seja, o uso do patrimônio passou a ser marcado pelos valores afetivos e
nostálgicos. As conseqüências foram, por um lado, a associação de uma aura simbólica a objetos
e edifícios que, em outros contextos seriam menosprezados. Por outro viés, houve o surgimento
de uma consciência patrimonial, marcada pela constituição de um acervo de quantidade
significativa de referenciais a preservar para o futuro, baseado na valorização das identidades
coletivas locais.
Nesta perspectiva, o patrimônio é visto como representante de um passado que se manifesta no
presente, que suscita os sentimentos de continuidade, coesão e pertencimento (ANICO, 2005)
27
.
Contudo é necessário observar que neste momento, a nostalgia do passado acabou por funcionar
como escapismo da realidade, em que o patrimônio assume mais uma função de defender do que
estruturar valores.
O valor de memória apresenta-se aqui em grande intensidade, estando embutido nele o
desejo de trazer ao presente os valores culturais expressos no patrimônio que estão no
passado. Os bens patrimoniais funcionam como portadores desse valor, uma vez que
em um tempo e espaço em que tudo é efêmero e fluido, o patrimônio cultural é um
valor constante e universal (Ibidem, p. 08).
E, nesse processo, o conceito de valorização, termo bastante ambíguo, é associado aos bens
patrimoniais, ou seja, ao mesmo tempo em que se relaciona aos valores patrimoniais que devem
ser resguardados, diz respeito também à mais-valia, que incluem à beleza e o potencial atrativo,
adquirindo “conotação econômicae configurando-se em “valor de consumo” (CHOAY, 2001).
Deste modo, o patrimônio adquire duas funções: proporcionar saber e prazer disponíveis a
todos –, mas transformam-se também em produtos culturais, elaborados e divulgados para
consumo – disponível aos compradores que não são todos.
Novos valores para o patrimônio brasileiro
No Brasil, os estudos de Motta (2002) situa a transformação do patrimônio cultural em objeto de
consumo visual, feita pelo poder público, a partir da cada de 1990, quando houve o
enfraquecimento, pela adesão do governo a política neoliberal, do conceito de cidade-documento
27
Anico (2005) atribui a ascensão desses valores às mudanças promovidas pela pós-modernidade, principalmente
referentes aos parâmetros de espaço e tempo que repercutem na cultura e, por conseguinte, no patrimônio: uma
ausência de temporalidade nos produtos, nos valores e nas relações sociais. Dessa maneira, a globalização econômica
tem seu rebatimento na mundialização da cultura, que é transformada em mercadoria a transposta para a escala
global. Os indivíduos, ao mesmo tempo que experimentam uma sensação de distanciamento em relação às origens e
referências culturais locais, procuram elementos que permitam a sua identificação e fixação no panorama global.
Nesse caso, os bens patrimoniais podem funcionar como “âncoras” necessárias para os sujeitos e grupos.
22
(característica da segunda fase da preservação)
28
. Essa prática em que o passado é utilizado no seu
valor simbólico e principalmente, na sua valorização como produto do mercado global,
modificou a própria definição de cultura, que passou a ser encarada como ferramenta para a
construção de uma imagem favorável da cidade para torná-la competitiva na disputa do capital
nacional e internacional.
Nas cidades, o centro histórico começou a ser visto no circuito do mercado global como produto
e elemento de identificação ou diferenciação local para atrair o público consumidor, sendo um
dos meios de concorrência entre as cidades
29
. Sobre esta situação Choay (2001) faz severas
críticas à forma como vem sendo conduzido o lazer cultural, pois os grandes grupos de visitantes
são levados a “conhecer” o patrimônio, sem eles ser permitida, contudo, uma apreensão dos seus
valores históricos e artísticos
30
.
Se para os estudiosos do patrimônio os valores artísticos e históricos o se perderam,
para o público em geral não se está contribuindo para a construção do conhecimento e
à apreciação da arte (Ibidem, p. 98).
Do que foi exposto, percebe-se que dois valores consolidaram-se nos últimos quinze anos e
tornaram-se mais evidentes em relação à noção contemporânea de patrimônio: o valor de
compensação e o de consumo, derivados respectivamente, dos valores de memória, afetivo e
reverência; e do valor de uso e econômico. Visualizar estes valores auxilia não só na compreensão
a acepção contemporânea de patrimônio, como também apontam direções para as políticas
preservacionistas atuais reflexão pretendida no terceiro capítulo para a área objeto de estudo.
Estes dois fatores estão intimamente ligados, uma vez que o valor de compensação do bem
patrimonial refere-se a sua capacidade de atrair o público e por conseqüência gerar rentabilidade,
o que por sua vez está ligado diretamente ao valor de consumo. Deste último então dependeriam
o demais valores do patrimônio: cognitivo, artístico, histórico e memorial, assim sujeitos ao
interesse de um capital privado e de um poder público que, infelizmente, nem sempre vêem a
preservação do patrimônio como o fim das ações.
Neste cenário, o papel assumido pelo patrimônio cultural atualmente, decorrente dos valores a ele
atribuídos, enseja outras discussões, que vão além do contexto imediato e relaciona-se com a
atual conjuntural social em uma escala global. Pois a forma como é percebido
28
Segundo Motta (2002, p. 21) isso representou um retrocesso na conservação do patrimônio, onde “[...as ações
públicas] passaram a se assemelhar com às do início da política de preservação brasileira, com a exploração das
referências visuais imediatas, enfocando novamente o caráter simbólico do patrimônio urbano o valor de unidade
nacional.”
29
Sobre esta questão, Otília Arantes (1998) ressalta que, a solução encontrada para promover a intervenção
financeira nos centros históricos, na maioria das vezes não envolve a retomada do sentido simbólico. Pois em muitas
cidades, na tentativa de retomar valores identitários e de memória, foram reutilizadas estruturas sem significado e
sem vida e sem conteúdo cultural, nesse contexto, os bens foram selecionados mais pelo valor econômico do que
pelo seu significado.
30
Não se aborda como os edifícios foram incorporados à história, nem qual sua referência na perspectiva temporal e,
devido ao curto tempo proporcionado nas visitações, não é permitida sua apreensão estética.
23
contemporaneamente, é conseqüência da necessidade do indivíduo em se situar na complexidade
da vida contemporânea. Assim Choay (2001, p. 112) considera que no momento em que ser
humano não possa se reconhecer nele, o bem patrimonial perderia seus valores memorial e
afetivo, restando apenas o valor intelectual, de estudo da origem e de entretenimento, “[...]
portanto, o valor de compensação e econômico atribuído ao patrimônio é transitório”. O que
sugere para o pensamento atual, ser preciso conservar a capacidade humana de dar continuidade
a um bem e de reutilizá-lo, o que leva a repensar e reformular as práticas atuais relativas ao
patrimônio.
Em outra vertente, Marta Anico (2005) em seus estudos sobre a pós-modernização da cultura,
possui uma visão mais otimista, vislumbrando conseqüências positivas dessa síndrome
patrimonial. Considerando que o passado, tal como é interpretado no presente, passou a ser parte
da cultura contemporânea. Assim seus sentidos e significados atuais são construídos e negociados
por diversos autores sociais, que associam diversos valores aos bens patrimoniais, contribuindo
para a estruturação de identidades locais, regionais ou nacionais, ou também funcionando como
instrumento pedagógico.
O patrimônio possibilita, portanto, transformações sociais e culturais, discussões
relacionadas ao conceito de cultura e às manifestações culturais, bem como abriria o
debate sobre seu papel frente aos grupos sociais e poderes públicos, auxiliando a
construção de uma história, memória e cultura mais inclusiva, plurais e democráticas
(Ibidem, p.13).
Logo, a partir das posições expostas, conclui-se que, em função dos valores contemporâneos, o
patrimônio pode desempenhar dois papéis sendo: excludente e alienante quando utilizado para
o turismo de massa que não enfoca valores históricos –, artísticos e de memória dos bens ele
possibilita também a inclusão social, ao permitir o registro da memória e história de grupos
distintos.
A questão colocada por Walter Benjamim (1985, p.23) no início do século XX ressoa mais atual
do que nunca: “qual o valor de todo nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o
vincula a nós?” Após esse debate, quais valores que permanecerão e que definirão, em outro
contexto, o conceito de patrimônio?
Sendo assim, além de identificar o conceito associado ao patrimônio cultural edificado e quais são
os valores a este atribuídos nos dias atuais, a presente pesquisa procura, enfocar como o
patrimônio edificado liga-se a experiência dos habitantes. Primeiramente, através da leitura do
processo de ocupação da cidade, na compreensão dos espaços e personagens que compõem a
história niteroiense, bem como a identificação do objeto de estudo neste passado; para mais a
frente em terceiro capítulo –, investigar na história do local, por meio da apropriação atual pela
população, de que maneira este bem patrimonial permeia o “imaginário” niteroiense. Em
aprofundamento deste último aspecto, a seguir, daremos continuidade à reflexão sobre o
patrimônio cultural em mais um de seus desdobramentos, a memória social.
24
1.3. O Patrimônio na Formação da Memória social
Algo freqüentemente percebido quando se reflete sobre o patrimônio cultural, como visto no
item anterior, é a aproximação que se faz de questões relativas à memória. A UNESCO (2008),
em seus documentos produzidos sobre o tema, observa, por exemplo, que os bens culturais são
de “[...] fundamental importância para a memória dos povos e riqueza das culturas”. Desse modo,
entendemos que além de sua própria definição e de seus valores contemporâneos, seja de suma
importância a compreensão da relação desse com a memória, que nos ajuda em dois pontos: na
compreensão da própria importância da preservação do patrimônio para a população e como
essa pode relacionar-se à o bem edificado.
Começaremos essa investigação pela reflexão que Le Goff (2003, p. 419) faz da memória
humana. O autor comenta que ela,
[...] como propriedade de conservar certas informações, remete-se em primeiro lugar a
um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões
ou informações passadas, ou que ele representa como passadas [...] No entanto, além de
um fenômeno individual e psicológico, a memória liga-se também à vida social.
Nesse trecho Le Goff, sublinha que a memória é também uma faculdade que extrapola um corpo
ou um rebro individual. A sociedade como um todo também seria possuidora de uma
memória. Chamada nesse contexto de memória social ou coletiva, foco antigo de preocupações
de pensadores como Nietzsche, Bergson e Freud, como observa Gondar e Dodebei (2005, p. 08),
essa modalidade de memória foi pela primeira vez estudada de maneira mais rigorosa pelo
sociólogo Maurice Halbwachs, no início do século XX. Em sua obra “A memória coletiva”,
postumamente publicada em 1950, o sociólogo expôs que:
As lembranças podem organizar-se de duas maneiras: tanto agrupando em torno de
uma determinada pessoa, que as de seu ponto de vista, como se distribuindo dentro
de uma sociedade grande ou pequena [...] Haveria motivos para distinguir duas
memórias, que chamaríamos, por exemplo, uma interior ou interna, a outra exterior
ou então uma memória pessoal e a outra, memória social (HALBWACHS, 2006, p. 73).
Caracterizando essa memória social ou coletiva, Gondar e Dodebei (2005) a apontam como um
objeto de estudo transdisciplinar
31
, isto é, sua conceituação não seria possível de ser realizada a
partir de um campo disciplinar específico. Seu conceito se encontraria em construção a partir de
novos problemas resultantes do “encruzamento ou nos atravessamentos entre diferentes campos
do saber” (Ibidem, p.13). Tais campos, para Le Goff (2003), seriam, por exemplo, a história, a
antropologia, a psicologia, a sociologia, entre outros, mas a memória não se fixaria inteiramente
em um deles. “A memória não é a história, mas um de seus objetos e, simultaneamente, um nível
31
A transdisciplinaridade visa articular uma nova compreensão da realidade entre e para além das disciplinas
especializadas. O termo foi divulgado pela primeira vez em 1970 e, segundo artigo 3 da “Carta da
Transdisciplinaridade” produzida pela UNESCO, em 1994, “[...] a transdisciplinaridade não procura o domínio sobre
várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa [...]”.
25
elementar de elaboração histórica” (Ibidem, p.49). O historiador Pierre Nora, no entanto,
defende que a história teria uma natureza oposta à memória social.
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo se
opõe. A memória é vida e, por isso, está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e da amnésia, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a
todas as utilizações e manipulações, suscetível a longas latências e súbitas revitalizações.
A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não mais. A
memória é um fenômeno sempre atual, um fio vivido no presente eterno; a história,
uma representação do passado [...] (NORA, 1993, p. 09).
Contrapondo-a com a história, Nora a memória social como uma construção processual em
constante evolução. A memória social seria uma construção, baseada em contribuições de
diversas gerações ao longo do tempo que seriam reinterpretadas e sofreria adições no presente.
Sobre esse fato, Gondar e Dodebei (2005, p. 18) observam que, a memória social não conduz a
reconstruir o passado, mas sim a reconstruí-lo com base nas questões que nos fazemos, que
fazemos a ele, questões que dizem mais do que nós mesmos, de nossa perspectiva presente, que
do frescor dos acontecimentos do passado.
Tais questões poderiam ser formuladas baseando-se em testemunhos, como comentou
Halbwachs. Seu exemplo sobre o retorno de uma pessoa, após muitos anos, a uma cidade
esclarece essa visão:
[...] quando voltamos a uma cidade em que havíamos estado, o que percebemos nos
ajuda a reconstruir um quadro de que muitas partes foram esquecidas. Se o que vemos
hoje toma lugar no quadro de referências de nossas lembranças antigas, inversamente
essas lembranças se adaptam ao conjunto de nossas percepções no presente. É como se
estivéssemos diante de muitos testemunhos (HALBWACHS, 2006, p. 29).
O espaço e os símbolos
Na situação acima, descrita por Halbwachs, a cidade como produção humana, é reflexo de uma
variada gama de valores, construções históricas e sociais que se relacionam ao imaginário. O
espaço urbano que contém os bens patrimoniais edificados é o local onde a dimensão subjetiva
revela-se de forma mais intensa. Por meio das práticas sociais, são atribuídos valores ao
patrimônio cultural que ultrapassam a esfera objetiva, englobando os símbolos, as relações
afetivas com o espaço, a identidade e a memória. Sendo assim, faz-se necessário abordar essas
noções, que se ligam intimamente ao conceito de patrimônio cultural.
O espaço urbano é tanto um objeto como sujeito do imaginário, isto é, ao mesmo tempo em que
o imaginário elabora imagens e símbolos sobre ela, os seus atributos físicos constituem-se
elementos para a constituição do imaginário. Esses símbolos servem como códigos que permitem
a identificação dos grupos, como descreve Cristina Freire (1997, p. 30):
O imaginário estrutura-se a partir das instituições sociais, da religião, da organização
econômica, da estrutura jurídica, do poder político e também do espaço físico, que
26
adquire significação por meio das práticas sociais. Nesse processo, quando o espaço é
representado no imaginário, a ele são atribuídos valores. Assim, a percepção da parte da
cidade em que se localizam as edificações de importância histórico-arquitetônica
ultrapassa a dimensão física.
O espaço adquire significado por meio da experiência, onde interação entre o indivíduo e o
ambiente, permeado pelas relações sociais, que possibilitam a estruturação de uma rede de
significados e sentidos culturais. Freire (1997, p. 57) considera que a apropriação do espaço
acontece quando “[...] os objetos são ao repertório visual de seus habitantes, ligando-se as suas
experiências afetivas, momentos significativos de sua vida”.
32
Com isso, o indivíduo ou grupo
social tanto assume determinado lugar como propriedade sua, como também entende que ele
pertence ao lugar.
Patrimônio edificado como lugar de memória
Esse sentimento de pertencimento não se relaciona apenas à dimensão espacial: pertencer ao
lugar significa também pertencer ao grupo. À medida que o sujeito interage com o lugar, em que
contribui para sua construção, o meio deixa marcas no indivíduo, contribuindo para construção
da sua identidade. Como coloca Halbwachs (2006, p. 69), “há em cada época uma estreita relação
entre os hábitos, o espírito de um grupo e os aspectos dos lugares onde ele vive”. Assim, a
apropriação e a sensação de pertencimento estão intimamente relacionados à formação da
identidade, seja individual ou coletiva
33
. Por basearem-se em valores que são construídos social e
historicamente, o processo de apropriação e, portanto, da estruturação de identidades, são
dinâmicos.
A memória é um dos elementos ligados à experiência que contribui para o processo de
apropriação, pois permite a compreensão de como ocorreu a vivência naquele lugar. Não existe
memória sem imaginário e não há imaginário sem memória dos indivíduos. Com relação à
identidade, a memória é um fator fundamental para sua constituição, em função do sentimento
de continuidade e de pertencimento que confere ao indivíduo ou ao grupo. A memória cria
identidade para o grupo, com que é comum a ele. Um dos pontos que permite a identificação do
sujeito com o grupo é o passado de acontecimentos e experiências em comum, que possa
funcionar como elo, que fomente o sentimento de pertença.
32
Para que a apropriação ocorra, é preciso que transcorra certo período de tempo, no qual ocorre a experiência com
o ambiente. Sendo assim, o patrimônio construído é uma porção do espaço que, quando experienciado e apropriado,
pode se tornar lugar.
33
A identidade do sujeito comporta, além da parcela individual, uma porção social ou coletiva, isto é, a imagem do
sujeito para si e para os outros está ligada ao seu pertencimento a um grupo. Breakwell (1992, apud LOUREIRO,
2007) elenca quatro princípios de formação da identidade: auto-estima em relação ao grupo, que se liga ao
sentimento de valor e orgulho social; continuidade, como ponto de fixação que permite a ligação entre passado e
presente nas dimensões espacial e temporal; distinção, a necessidade de individualidade, de se sentir único; e o
controle, a confiança do indivíduo em relação a resolver problemas no espaço em que vive.
27
Essa memória coletiva tem um caráter dinâmico: quando o grupo muda ao longo do tempo, as
lembranças também se transformam. Portanto, a memória nunca é estática e apreensível sem sua
totalidade; ela é, como afirma Ecléa Bosi (1992, p. 07), um “trabalho”, um processo permanente
de construção, alteração e adições. Ela subsiste enquanto grupo social existe; quando seus
integrantes morrem, tem fim também a memória coletiva. As lembranças particulares
subsistem quando têm respaldo das coletivas.
Em relação ao espaço, a memória é coletiva, pois a percepção do espaço resulta do que o olhar
apreende, que é trabalhado no imaginário a partir de valores e conceitos estabelecidos pelo grupo.
O lugar funciona como suporte da memória coletiva e da identidade social. Assim, quando os
lugares são transformados ou destruídos, o sentimento de estranheza e perda das referências
identitárias.
Dessa maneira, segundo Argier (2001) a construção da identidade na atualidade procura
relacionar, de um lado, os imaginários locais, trazendo embutidos os significados dos lugares, as
relações sociais e as memórias associadas; e por outro, as técnicas, imagens e discursos do mundo
globalizado, que circulam livremente, sem obstáculos. Pois, se a própria dimensão cultural está
em construção, com a tensão entre o repertório global e as particularidades locais, as identidades
e memórias individuais e coletivas também estão passando pelo mesmo processo.
Neste contexto, os bens culturais teriam o poder de evocar o passado, configurando-se como
uma espécie de externalizadores da memória. Contudo, sobre esta relação entre memória social e
patrimônio cultural, Le Goff (2003, p. 525) alerta que tais bens tombados como materiais
remanescentes de outras épocas, não são o conjunto daquilo que existiu como passado, “[...] mas
o resultado de escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do
mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam a ciência do passado e do tempo que passa,
os historiadores”.
34
Os materiais remanescentes do passado, produto de um juízo de valores, que formariam o
patrimônio cultural, são objetos potenciais de memória, onde essa pode se ancorar. “A memória
se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (NORA, 1993, p. 09), mas é
importante ressaltar que “somente a atualização desses traços ou vestígios é que poderá conferir
o caráter de documento” (GONDAR ; DODEBEI, 2005, P. 43), que é o modo com que os
materiais de memória se apresentam.
Na perspectiva atual global, o patrimônio cultural desempenha um papel fundamental na procura
ou criação das novas estruturas identitárias. Ele ultrapassa o conceito de lugar, espaço físico que é
34
Le Goff (2002) ainda alerta para o perigo da amnésia, que, segundo sua visão, não é uma perturbação no
indivíduo, que envolve alterações mais ou menos graves de presença da personalidade, mas também a falta ao a
perda, muitas vezes voluntária, da memória coletiva de povos e nações, que pode determinar perturbações graves da
identidade coletiva.
28
apropriado por meio da experiência, para ser um “lugar de memória”, que apresenta dimensão
material funcional, mas principalmente simbólica. Esses lugares contêm elementos necessários ao
sentimento de continuidade dos indivíduos e grupos sociais. Ressaltamos, portanto, que os
lugares da memória existem porque são necessários para a manutenção dos valores identitárias: se
as memórias ainda fossem vivenciadas e experienciadas, não seria preciso construir esses lugares.
Sendo assim, da mesma forma que fornece suporte ao pertencimento, memória e identidade dos
sujeitos e grupos, o lugar “[...] também é fragmento, resto, ilusão cambaleante em um tempo de
brevidades, responsável por unir passado e presente” (NORA, 1993, p. 30). Este mesmo tempo,
ou momento, também molda e configura as novas posturas públicas de tratamento do
patrimônio cultural. Pautada pelas novas acepções e valores atribuídos contemporaneamente
descritos anteriormente –, as políticas patrimoniais, portanto, são o foco seguinte.
Políticas patrimoniais, patrimônio edificado e memória social
Se o patrimônio cultural, como vimos, pode ser pensado enquanto suporte da memória social, ou
seja, os edifícios e áreas urbanas de valor patrimonial podem ser tomados como ponto de apoio
da construção da memória social; como estimulo externo que ajuda a reativar e reavivar certos
traços da memória coletiva em uma formação sócio-territorial. E, se a memória coletiva é
socialmente construída; a preservação do patrimônio cultural edificado está vinculada a um
conjunto de ações do poder público que contribuem para a construção da memória e do
esquecimento social.
Para compreender melhor esta relação entre as políticas patrimoniais e seus bens, para Néstor
Garcia Canclini (1994) vale recuperar, em primeiro lugar, que a memória (e o esquecimento)
social são construídos e que, pelo menos a partir do renascimento, a construção da memória se
dá a partir da ação dos atores políticos
35
. O processo de construção da memória das coletividades
resulta, portanto, do processo de conflito social e de disputa por hegemonia política.
A preservação do patrimônio se faz pela escolha dos suportes que serão preservados. É uma
seleção, uma escolha de coisas pré existentes. Não se trata, portanto, de uma construção feita a
partir do nada, sendo necessário considerar ainda que esta escolha se no âmbito do poder
público, mediada pela dinâmica que envolve a esfera pública da vida social, em um contexto
político e cultural objetivo. Neste sentido, não se pode deixar de considerar que o avanço de uma
formação sócio-territorial no sentido da democratização altera o processo de preservação
patrimonial.
35
Os suportes materiais da memória, por si só, nada significam. Os suportes da memória não são a memória. A
memória é imaterial, posto que se trata de um atributo da consciência social e os suportes da memória constituem
mediadores e instrumentos para a ação dos atores políticos. Pois, atribuir ao suporte material a possibilidade de
construção da memória, corresponderia a retificar a memória social.
29
Como relatado por Otília Arantes (2000) a construção da memória e do esquecimento é objeto
de permanente disputa pelos atores políticos. Uma disputa que se pela seleção dos suportes
que serão preservados, bem como pela análise e interpretação destes suportes. Deve-se
acrescentar ainda que, no caso do patrimônio, a seleção dos suportes, como elo fundamental de
construção da memória, o acontece no tombamento, ocorre também no restauro e na
gestão e, portanto, pela formatação das políticas urbanas que condicionem a gestão destes
suportes.
As perguntas que se colocam então são as seguintes: enquanto suportes materiais da memória,
qual o papel que as áreas urbanas de valor patrimonial jogam na dinâmica que determina o
processo de construção da memória social? Como, especificamente, a preservação das áreas
urbanas de valor patrimonial contribuem para o aprendizado que alimenta e orienta o processo
de desenvolvimento de uma formação sócio-territorial?
Sem pretender responder, mesmo que parcialmente, a estas questões, parece oportuno indicar
que para Benjamin (1985, p. 193). “[...] a arquitetura [e o urbanismo foram] o protótipo de uma
obra de arte cuja recepção se dá coletivamente”. Assim, por ser um fenômeno que como
totalidade existe na esfera pública, o patrimônio edificado possibilita um contato coletivo da
multidão anônima das cidades com referências da memória social.
Os sítios e conjuntos urbanos o patrimônio cultural brasileiro apresenta-se em toda a sua
complexidade. A preservação destas áreas envolve “[...] o monumento arquitetônico, a
manifestação imaterial, o bem móvel, os produtos da cultura popular, os espaços públicos e
privados, o mobiliário urbano, o próprio traçado do sítio e as características arquitetônicas dos
imóveis” (MENEZES, 1991, p. 192). As áreas urbanas evocam, portanto, as estruturas sociais
como um todo e não parcialmente, e o contato com este tipo de suporte da memória poderá
servir de apoio aos atores políticos na construção da cidadania, por constituir um estímulo
36
ao
processo de aprendizagem social que reporta às estruturas sociais na sua complexidade.
Contudo, através do exposto anteriormente (no item 1.2) sobre os valores patrimoniais, no
contexto das transformações, em curso, nas relações entre economia e território, o patrimônio
cultural passa a representar, para a política urbana, um repertório de estruturas simbólicas que
alimenta a dinâmica cultural produtiva na contemporaneidade e um fator de atração locacional
para todas as atividades produtivas que agregam ao valor dos bens e serviços a qualidade
ambiental da área onde os comercializam. Decorre daí a super valorização do caráter artístico-
cultural do patrimônio que possibilita que as intervenções urbanísticas venham a negligenciar o
caráter de suporte da memória social das áreas urbanas de valor patrimonial, correndo-se o risco
de comprometimento do seu potencial para a construção da cidadania.
36
No entendimento que o saber está diretamente vinculado ao seu cotidiano.
30
Dessa maneira, pode-se considerar o lugar das áreas patrimoniais na agenda das políticas públicas
para as cidades, a partir dos diferentes recortes por meio dos quais as preocupações de natureza
social formatam a abordagem dos problemas urbanos. Na análise realizada por Norma Lacerda
(2002), são considerados os recortes econômico, ambiental e político. A autora parte,
inicialmente, do recorte produzido pela preocupação com os problemas econômicos das cidades,
faz-se necessário lembrar que a expansão dos serviços, das atividades econômicas ligadas à
cultural e ao turismo tornou-se um dos objetivos da atual política urbana, na maioria das grandes
cidades. Para estas atividades, as áreas urbanas de valor patrimonial, enquanto bens de valor
cultural, apresentam-se como um insumo relevante na elaboração de uma gama diferenciada de
produtos e serviços. A própria produção de uma “imagem da cidade” nas mídias, nacionais e
internacionais, beneficia-se desta relação numa série de aspectos, e o mercado imobiliário
também.
37
Nesta situação, o recorte produzido pela preocupação ambiental com os problemas urbanos
ganha uma relevância cada vez maior na agenda das políticas públicas. Para as cidades a presença
de bens de valor patrimonial, especialmente conjuntos arquitetônicos e urbanísticos é um fator
que contribui para a qualidade cultural do ambiente urbano. Pois O tratamento do patrimônio
enquanto suporte da memória não prejudica o ambiente urbano, ao contrário é positivo. Porém,
na prática operacional muitas vezes o tratamento do patrimônio enquanto suporte da memória
não aparece como imprescindível a política ambiental, na medida em que, até certo ponto e em
certas circunstâncias, é possível manter e até aumentar a aparente expressividade artístico-cultural
de uma área urbana, comprometendo sua qualidade de suporte da memória social
38
.
Quando se pensa, no entanto, no recorte de caráter político dos problemas urbanos, este aponta
centralmente para a democratização e construção da cidadania. No que diz respeito as áreas
urbanas de valor patrimonial, enquanto bens de valor cultural, esse aspecto da política urbana
implica em reafirmar a necessidade de democratização do acesso a estas áreas, que existe hoje
uma forte tendência a privatização dos espaços públicos de alto valor cultural.
Por outro lado, a maior ou menor possibilidade de acesso, de amplas parcelas da sociedade, em
condições mais ou menos socializadas, aos suportes da memória determina, para os atores
políticos empenhados na luta em torno da construção da cidadania, diferentes possibilidades de
participação no processo de construção social da memória coletiva.
37
O mercado imobiliário encontra, portanto, na relação do patrimônio com a memória social, um constrangimento à
sua liberdade de movimentos. que, o tratamento do patrimônio enquanto suporte da memória impõe limites mais
definidos às mudanças na forma arquitetônica e urbanística, inibindo mudanças de uso do solo e a instalação, em
áreas de valor patrimonial, de grandes equipamentos urbanos ligados ao lazer ao turismo (ARANTES, 2000).
38
Isto acontece, por exemplo, quando da criação de espaços públicos grandiosos ou com a inserção de obras novas,
de grande expressividade artístico-cultural, numa área patrimonial de valor para a memória social, mas de arquitetura
e urbanismo relativamente simples.
31
As políticas de preservação do patrimônio cultural edificado são, portanto, decisivas para este
processo. Como foi discutido anteriormente, enquanto suporte da memória social, estas áreas
urbanas se revestem da maior relevância para a construção da cidadania, porque representam
melhor a história do cotidiano das multidões anônimas; favorecem a construção de um sentido
de história onde o povo esta presente como ator relevante; contribuem para uma visão mais
democrática da identidade nacional; promovem uma visão da cultural que favorece processos de
inclusão social; representam a possibilidade de um resgate cotidiano da memória; são suportes da
memória mais acessíveis que os demais.
Contudo, estamos diante de um momento, como alerta Arantes (2000, p. 16), em que, “[...]
governantes e investidores passaram a desbravar uma nova fronteira de acumulação de poder e
dinheiro o negócio das imagens”. O tudo é cultura”, inaugurado nos idos de 1960, e que a
autora tem chamado de culturalismo de mercado”. E, nesse processo, se movimentam forças
que não são plenamente coincidentes. Enquanto movimentos sociais organizados e o interesse
social difuso pelo patrimônio atuam pela preservação de áreas urbanas, movidos pelo seu
interesse em utilizar e usufruir destas áreas como objetos de referência cultural e de construção da
memória social; surge, em paralelo, a perspectiva de integrar as áreas patrimoniais de modo mais
dinâmico a vida econômica e ao mercado imobiliário das cidades. Colocam-se, portanto, dilemas
para a política de preservação que carecem ainda de um consistente, conseqüente e completo
equacionamento.
Neste sentido, refletir sobre o patrimônio cultural edificado considerando-o como lugares de
memória significa debruçar-se sobre a lógica subjacente aos conceitos, valores e usos conferidos a
esse espaço ao longo do tempo e nos dias de hoje. Das resoluções aferidas nesta reflexão, sobre o
percurso histórico da concepção de patrimônio e seus desdobramentos, a intenção deste estudo é
que as perspectivas se estabelecem na fala de Leonardo Mesentier (2005, p. 177)
39
:
[...] no início do novo milênio torna-se necessário fortalecer a luta para que estas áreas
patrimoniais recebam um tratamento adequado e sobrevivam enquanto suportes da
memória social. Pois, se é possível dizer que as áreas urbanas de valor patrimonial o
um legado do passado que a sociedade tenta garantir que exista no futuro, também
podemos dizer que as áreas urbanas patrimoniais trazem do passado um legado que
projeta a sociedade em direção ao futuro.
Claro, quando se preservam com integridade.
39
Doutor em Planejamento Urbano e Regional/IPPUR-UFRJ, Arquiteto do IPHAN e Prof. da Pós-graduação em
Arquitetura e Urbanismo do Instituto Metodista Bennett.
32
1.4. A Água e a Memória Social
A água elemento vital [recorrente e importante] na história da humanidade
“Para que seja propiciada a existência, o meio deve estar de acordo, não faltando nenhum
elemento condicionante do viver, principalmente a água” (PETRELLA, 2002, p. 51). Nas
palavras de Ricardo Petrella, este líquido incolor e insípido é um componente importante e
especialmente, indispensável a toda e qualquer forma de vida, uma vez que sem água é impossível
viver
40
.
Desde os tempos mais primórdios da terra
41
e mesmo da história da humanidade, a
essenciabilidade da água para o Homo Sapiens é notável. Como assevera Tundisi (2003, p. 01),
“[...] a história da água sobre o planeta terra é complexa e está diretamente relacionada ao
crescimento da população humana, ao grau de urbanização e aos usos múltiplos que afetam a
quantidade e a qualidade”. A história da água para os seres humanos e seus usos está relacionada
à saúde, muitas doenças que afetam a espécie humana têm veiculação hídrica – organismos que se
desenvolvem na água ou que têm parte de seu ciclo de vida em vetores que crescem em sistemas
aquáticos. Nesse sentido, em muitos destes aspectos vinculam-se os bens patrimoniais objetos
deste estudo, inseridos na necessidade fundamental humana pela água, componente saneador da
cidade, os elementos dos sistemas de abastecimento de água integram a história da água como um
todo, principalmente na cidade de Niterói.
Contudo, a intenção deste item, é ilustrar de forma breve a importância deste componente
terrestre, a água, na formação social, no intuito de aclarar a influência deste mesmo no processo
de formação do que hoje compreendemos como a cidade de Niterói. Da mesma maneira,
entendemos ser necessário, esclarecer os diferentes conceitos de patrimônio ao qual o tema água
nos remete, e sobre qual deles trataremos neste trabalho.
Tanto nas eras remotas como na atualidade se percebe a grande importância da água para o
desenvolvimento do homem. Basta verificar, por exemplo, o Período Neolítico, que foi um
estágio cultural avançado na Pré–História. Nesse período o ser humano passou a ser produtor e
aumentou consideravelmente seu domínio sobre a natureza. O início da agricultura, que se baseia
na utilização da água, implicou a reorganização econômica da sociedade, podendo-se fazer
previsões de produção permitindo também o aumento da população (GIORDANI, 1972).
40
A água é a parte líquida do globo terrestre, mas se apresenta na atmosfera na forma de vapor e nas regiões polares
e geleiras apresentam-se no estado sólido, ou até mesmo no interior do subsolo, onde constitui lençóis e aqüíferos.
Encontra-se água em toda à parte, isso é, nas nuvens, no mar, nos rios, nos lagos, em lençóis subterrâneos, no ar, nas
plantas, nos animais, em nosso corpo. Observa-se então que a água é um dos componentes mais respeitáveis do
meio ambiente. Através de seu ciclo hidrológico, “[...] a mesma em sua forma líquida, tem a maior significação para o
desenvolvimento de todos os seres vivos” (PETRELLA, 2002, p. 95).
41
Os primeiros registros de água na terra contam mais de quatro bilhões de anos.
33
Além disso, os rios, também foram de real importância para o desenvolvimento das sociedades.
Nas margens dos grandes rios que civilizações se desenvolveram. A presença da água, além de
proporcionar a sobrevivência das populações, proporcionava a pesca, plantações. Na imperiosa
civilização egípcia as atividades agrícolas eram racionalizadas em face da água, para melhor serem
aproveitadas pelo homem egípcio, como descreve Giordani (1972, p. 85), “ao ritmo das cheias do
Nilo, progredia a vida social”. A fertilidade do vale do Nilo, que causava admiração aos viajantes
gregos, era contrabalançada, entretanto, por diversos fatores como a invasão das dunas de areia, a
devastação das enchentes anormais, as secas prolongadas, etc. Para evitar esses malefícios e
aproveitar ao máximo os fatores favoráveis, os egípcios desenvolveram bem cedo uma admirável
técnica de controle de águas do Nilo construindo represas, diques, canais e reservatórios, o que
podemos considerar ser um dos primeiros grandes sistemas de abastecimento de água. As
atividades agrícolas constituíram sempre o fundamento das civilizações, como veremos mais a
frente, também poderemos incluir esta atividade nos povoados que deram origem ao território
niteroiense.
Outro importante exemplo da influência da água sobre as grandes civilizações se na Fenícia,
que ocupava o litoral do Mediterrâneo, parte do atual Líbano, os fenícios do grupo semita, eram
conhecidos como os “Homens do Mar Vermelho” por gregos e romanos, os quais acreditavam
ser este o seu local de origem. Sua condição geográfica facilitava o comércio marítimo. A
agricultura, ao mesmo tempo, se via dificultada, a Fenícia era cortada por pequenos rios, que
transbordavam na estação das chuvas e permaneciam semi-secos durante o verão. Porém, nada
impediu que fossem grandes navegantes e conseqüentemente grandes comerciantes. De
diferentes formas, mas através do mesmo meio, a água; países litorâneos da Europa promoveram
a expansão da civilização ocidental, o que na seqüência da história nos trás ao Brasil Colônia, a
capitania do Rio de Janeiro e, conseqüentemente, a Vila Real da Praia Grande. A memória social
relativa à água participa dos caminhos que deram origem e formarão a cidade de Niterói.
Ainda na memória urbana, sobre os primeiros aspectos que entendemos por cidade, os romanos
diante da necessidade da água para seu desenvolvimento como povo, também criaram suas
maneiras para reservar a mesma. Segundo Borges (2001), foram os romanos os primeiros a sentir
a necessidade de armazenar água, e por isso construíram uma extensa rede de aquedutos para
trazer as águas límpidas dos montes Apeninos até a cidade alternando tanques e filtros ao longo
do trajeto para assegurar sua qualidade. A construção deste sistema de distribuição de água decaiu
com a queda do Império romano, mas durante vários séculos, serviu como fonte e distribuição de
água para fins domésticos e industriais.
A água: patrimônio da humanidade [debate emergente] e patrimônio histórico e cultural
[memória em objetos edificados]
Através de uma rápida leitura sobre a água na história das civilizações, é possível articular um
breve quadro do desenvolvimento da relação do homem com a água e, principalmente,
34
exemplificar alguns frutos desta relação: tecnologias da arquitetura e da engenharia. Sistemas de
água que envolvem, entre outras questões, a captação, o tratamento, o armazenamento e a
distribuição deste recurso necessário as atividades gerais do homem, sejam elas: fisiológicas,
culturais, sociais, econômicas, etc.
Desta maneira, contido no universo explicitado acima, porém inserido no repertório de Niterói,
um sistema de água será o conjunto edificado a ser abordado por esta pesquisa. E, nesta
perspectiva, a acepção de patrimônio, é estabelecida como o produto da relação do homem com
a água que, deste modo, caracterizam estas edificações como elementos que integram o
patrimônio humano enquanto obra da atividade humana. Este conjunto de objetos edificados,
enquanto função foram meios que propiciaram a história do homem com a água e com o
ambiente. Possibilitando o desenvolvimento e, desenvolvendo-se conjuntamente ao espaço.
Através do aspecto essencial a vida, este sistema de água integrara-se ao cotidiano humano e as
memórias sociais, assim, sua existência enquanto patrimônio edificado, o conforma como
elemento de rememoração.
Assim, imbuídos do aspecto memorial à água, penetramos no sentido como o patrimônio da água
será abordado, neste trabalho, pela vertente histórica e cultural. Não a água como patrimônio
natural da humanidade, necessário a vida, apesar de ser este um dos fins que justificam nossos
meios. Pois claramente a escolha do tema desta pesquisa também se deveu a urgência do
reconhecimento da importância deste elemento natural em nossa sociedade, e sua situação como
recurso esgotável para o ser humano. Diante de suas características de essenciabilidade
42
, este
recurso gerou cobiça econômica perante a iniciativa privada, que propiciou o acontecimento da
privatização da água como um fenômeno mundial. Esta por sua vez, e segundo Tundisi (2003,
p.08) adquiriu forte valor econômico e se tornou “o bem mais valioso do século”, sendo muitas
vezes, gerida pela iniciativa privada não mais pelo poder público em vários lugares do mundo. Ou
seja, com o valor econômico, a água se tornou um bem, mas de maneira equivocada aos seus
preceitos naturais fundamentais.
42
Não se pode imaginar o ser humano vivendo sem água e, sendo assim, o direito à água é inerente à dignidade
humana, uma vez que esse é um dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito (artigo primeiro,
inciso III – Constituição Federal do Brasil). Não se pode falar em dignidade da pessoa humana se não está
assegurada a utilização da água, quer para beber, quer para sua higiene pessoal. Na Constituição Brasileira, esta
acepção materializou-se na adesão à Declaração sobre o Ambiente Humano, que aconteceu na Conferência das
Nações Unidas em Estocolmo, Suécia, em Junho de 1972; a qual define que o homem tem o direito de ter uma vida
digna em um ambiente que permita condições de viver sadiamente (ANTUNES, 1998, p. 168):
O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de
condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permita
levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e
melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras [...] Os recursos
naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente,
parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício
das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administração
adequados [...]
35
As grandes civilizações do passado e do presente sempre nutriram uma relação de dependência
com a água, seus usos geram conflitos em razão de sua multiplicidade e finalidades diversas, as
quais demandam quantidades e qualidades diferentes. Águas para abastecimento público,
hidroeletricidade, agricultura, transporte, recreação e turismo, disposição de resíduos, entre
outros. Esta multiplicidade também repercute nas diferentes vertentes que podemos atribuir o
patrimônio da água, através de valores contemporâneos, é possível atribuí-la como bem: natural
(essencial)
43
, econômico (para consumo), histórico (cognitivo) e cultural (presente na memória
social). Todavia, o foco deste estudo realiza-se através do suporte da memória, e esta pode ser
trabalhada através da ão humana. Pois a memória, como vimos, é a propriedade humana de
conservar certas informações, que remete primeiro a um conjunto de funções psíquicas, graças às
quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como
passadas e, que estão diretamente relacionadas ao seu ambiente de vivência (LE GOFF, 2003).
Assim, se voltamos, portanto, ao ponto inicial desta discussão, em que o local onde se vive (o
meio) “deve estar de acordo, não faltando nenhum elemento condicionante do viver”, da mesma
forma a compreensão deste meio deve ocorrer de maneira ampla. Ou seja, através de todos os
elementos que interagem com o homem, como o solo, água, o ar, a flora, as belezas naturais, o
patrimônio histórico, artístico, entre outras coisas que conformam nossa civilização. Enfim, no
ambiente urbano é a união dos bens da natureza e os bens da cultura que se relacionam entre si e
atingem o homem e, nesta relação com o lugar, o sujeito interage, e contribui para sua construção
(manutenção ou transformação) do espaço. Finalizando este ciclo, o espaço ou meio deixa
marcas no indivíduo, contribuindo para construção da sua identidade (HALBWACHS, 2006).
A água na memória coletiva [a imaginação na matéria]
Como vimos, além de um fenômeno individual e psicológico, a memória liga-se também à vida
social. E neste caso, em relação ao espaço, a memória é coletiva, pois a percepção do espaço
resulta do que o olhar apreende, que também é trabalhado no imaginário a partir de valores e
conceitos estabelecidos pelo grupo. Logo, não existe memória sem imaginário e não
imaginário sem memória dos indivíduos.
Neste processo da memória e da imaginação, Gaston Bachelard foi importante filósofo que
relatou que toda imaginação necessita de uma matéria. Em seus estudos distinguiu dois tipos de
imaginação, a que vida a causa formal a imaginação formal, cuja índole é visual
44
-, e a
imaginação que dá vida a causa material – a imaginação da matéria, cuja índole é substancial. Para
43
Cabe lembra, que a água entendida como um bem natural esgotável adquire também um valor intangível, pelo fato
da singularidade da sua existência. Apesar de falarmos da água como um todo, sua diversidade na natureza
proporciona, uma gama muito grande de diferentes elementos, como rios diverso, cachoeiras, lagunas, entre outros.
44
A imaginação formal, muito utilizada contemporaneamente, reduz a matéria às figurações, faz do mundo objeto de
contemplação, escamoteando a matéria viva das coisas e das próprias imagens.
36
demonstrar a existência da imaginação material, Bachelard (1989, p. 02) buscou “ir a raiz da força
imaginante”, ou seja, à imaginação das forças vegetantes e materiais, que vincula-se às “quatro
raízes de todas as coisas”: a água, o fogo, a terra e o ar
45
. Considerando a água um símbolo
universal de vida, de fecundidade e de fertilidade e, por ser esta a mesma matéria que consagrou
sua poética, Bachelard (Idem, p.08), iniciou a trajetória de dedicação a imaginação da matéria pelo
seu livro “A água e os Sonhos”: “É preciso que um devaneio encontre sua matéria, é preciso que
um elemento material lhe dê sua própria substância, sua própria regra, sua poética específica”.
FIGURA 5 – Nascimento de Vênus, Alexandre Cabanel (1863).
Fonte: LE GRAND LIVRE DE L`EAU, 1990.
Nesses sistemas filosóficos, sobre as matérias elementais, o pensamento erudito está ligado a um
material primitivo, a sabedoria tranqüila e permanente se enraíza numa constância substancial. E,
se essas filosofias simples e poderosas conservam ainda fontes de convicção, é porque ao estudá-
las encontramos forças imaginantes totalmente naturais.
Imagina-se antes de contemplar, imagina-se antes de realizar, desse modo podemos refletir como
um elemento material como a água pode ser associado a um tipo de devaneio que comanda as
crenças, as paixões e, porque não, o ideal de toda uma vida. Para Gaston Bachelard uma poética
e uma filosofia da água condensam todos esses ensinamentos. Ambas constituem esse prodigioso
ensinamento ambivalente que respalda as convicções do coração pelas instruções da realidade e
que, vice-versa, faz compreender a vida do universo pela vida do nosso coração.
45
A fidelidade aos elementos nasceu, na antigüidade, com os primeiros sistemas metafísicos dos pré-socráticos. A
doutrina dos quatro elementos é uma das idéias mais persistentes da cultura ocidental. Perpassa a antiga medicina
hipocrática, cujos fluidos corporais são humores associados aos elementos, e ainda informa doutrinas esotéricas que
persistem em nossos dia. Os quatro elementos da física pré-socrática são fontes inesgotáveis para os devaneios
criadores, permanecendo como essências materiais recorrentes, como substâncias elementares que alimentam a
criatividade interminável da arte (SIMÕES, 1999).
37
A água, como também todos os elementos prodigalizam certezas ambivalentes, confidências
secretas e mostram imagens resplandecentes. Todas as quatro matérias elementais têm seus fiéis
seguidores, que acreditando serem leais a uma imagem favorita. Estes estão, na verdade, sendo
fiéis a um sentimento humano arcaico, a uma realidade orgânica primordial, a um temperamento
onírico fundamental
46
. um sentido em falar da estética da água, da psicologia da água e
mesmo da moral da água, para quem esta matéria já esteve atribuída às suas vivências.
A imaginação material demonstra a objetividade material de nossa habitação poética no mundo.
Essenciais, permanecem recorrentes, são substâncias arquetípicas que alimentam a novidade
interminável da construção do nosso meio, do espaço. Neste aspecto, a imaginação material
integra-se fortemente às nossas memórias, e são elementos influenciados e influenciadores de
nosso ser no meio em que vivemos. Pois são elementos ligados à experiência que contribuiram e
contribuem para o processo de apropriação do espaço, pois permite a compreensão de como
ocorreu a vivência naquele lugar, como lembrou anteriormente Halbawchs (2006), existe em cada
época uma estreita relação entre os hábitos, o espírito de um grupo e os aspectos dos lugares
onde ele vive. Portanto, tecer a leitura destas memórias, deste imaginário relativo à água ao longo
do processo de formação de espaço niteroiense, é estabelecer vínculos que aproximam a matéria,
no caso a água, à constituição da identidade de Niterói.
A história das relações entre os seres humanos e a água sempre foi difícil, tumultuada e
fascinante, principalmente quando se trata das relações dos seres humanos devido à água. Tanto
que na civilização judaico–cristã a água é associada com a imagem do fim da humanidade, o
dilúvio de Noé. Inegavelmente é uma história de inclusão e de exclusão, de cooperação e de
guerra, de racionalidade e de mistificação, de arte e de destruição (PETRELLA, 2002). Neste
sentido pautamos a leitura a seguir, a partir de alguns aspectos onde a água impregna a memória e
o imaginário coletivo, no momento original ao território niteroiense.
46
Cada elemento é profundamente um sistema de fidelidades poéticas. Na essência do pensamento das águas, por
exemplo, temos o psiquismo hidrante, dois complexos culturais, isto é, atitudes irrefletidas que comandam o próprio
trabalho da reflexão: o Complexo de Caronte as águas como símbolo da nossa última viagem e o Complexo de
Ofélia – a água como elemento da morte jovem e bela (BACHELARD, 1989).
38
FIGURA 6 – A Fonte do Paraíso, Dieric Bouts.
Fonte: LE GRAND LIVRE DE L`EAU, 1990.
1.5. A Água nos antecedentes históricos de Niterói
Pela fundamentação de pensadores da história, a água ganha expressão, como na compreensão da
dinâmica da história humana do filósofo Carl Schmitt (2007), que atribui seu sentido às quatro
matérias fundamentais retomando novamente a raiz hipocrática –, indo da terra em direção ao
mar: a terra é o elemento a que o homem está destinado, mas o mar é o elemento de sua
liberdade, de sua possibilidade de um renascimento.
Schmitt recorda a trilogia proposta por Kapp, que nos fala do périplo que vai das culturas
fluviais, passando pelas culturas talassocráticas (limitadas pelos mares, como o Mediterrâneo) em
direção as culturas oceânicas. Para ele, nestas culturas, o elemento hídrico ganha independência e
pode se contrapor verdadeiramente ao elemento terrestre. Observa Schmitt (2007, p. 105), “de
acordo com uma antiga doutrina o conjunto da história universal não é mais do que uma viagem
através dos quatro elementos”. Em outras palavras, depois de uma estada de inúmeros milênios
sobre a terra, a humanidade teria lançado as velas para uma nova aventura oceânica secular
47
.
Nesta medida, a água está presente no segundo processo de dispersão ocidental, as expansões
marítimas que, esta diretamente se relaciona ao processo de formação do território brasileiro e,
por conseguinte, da cidade de Niterói.
47
Este mesmo pensamento de Schmitt encontra continuidade, na história da humanidade, pois a partir do culo
XIX, esta se lança a conquista do terceiro elemento, o ar. Ainda em sua teoria, após a conquista destes elementos na
ordem restaria o elemento fogo, o que para o autor significaria de forma profética, o fim.
39
Ainda neste contexto, a importância da água na paisagem para a história e para a construção dos
sujeitos que a animam, também encontra-se nas lições dedicadas por Hegel ao tema da filosofia
da historia. Apesar de prolongada faz-se necessário à exposição do seu pensamento, que é
também condizente com momento de “descobrimento” do território brasileiro
48
, assim em
trecho referenciado por Viriato Soremenho Marques, Hegel relata Portugal e sua motivação para
o mar:
[...] É em Portugal que rios de Espanha encontram a saída para o mar. Dever-se-ia crer,
tendo a Espanha rios, deveria também ter uma relação com o mar; essa relação foi
especialmente desenvolvida por Portugal.
O mar fundamenta de um modo geral um tipo especifico de vida. O elemento
indeterminado dá-nos a representação do ilimitado e do infinito, e o homem sentindo-
se no interior desse infinito encoraja-se para ultrapassar o limitado. O mar é o que em si
próprio não tem fronteiras, e não suporta qualquer delimitação em cidades, como
sucede em terra firme. A terra, a planície fluvial, fixa os homens ao solo; devido a isso
ele tomba numa grande quantidade de dependências. Mas o mar conduz-lo para além
desse círculo limitado. Aqueles que navegam no mar; querem e podem também ganhar
e adquirir; mas o meio utilizado torna-se imediatamente no contrario daquilo por que
havia sido escolhido, nomeadamente em perigo; invertendo-se de tal forma, que eles
correm o risco de perder os seus bens e sua vida. Através disto [...] ganha o individuo a
consciência de uma maior liberdade e independência. É isto que faz o ganho e atividade
elevarem-se acima de si próprias, tornando-se em algo de corajoso e nobre. O mar
desperta a coragem; aqueles que o experimentam para ganhar a vida e a riqueza, devem
procurar o seu sustento através da mediação do perigo [...]. O mar acorda também a
astúcia, porque o homem tem de combater com um elemento, que parece submeter-se
calmamente a tudo, adaptar-se a todas as formas e que, no entanto, é funesto. A
coragem encontra-se aqui essencialmente ligada à inteligência, que é suprema astúcia.
Assim, a coragem perante o mar deve igualmente ser astúcia, porque ela tem de ser
enfrentar o mais ardiloso, o mais inseguro e o menos fiável dos elementos. (HEGEL,
1968 apud SOROMENHO-MARQUES, 2001, p. 15).
Portanto, para Hegel, seja na vertente da demanda interior pela identidade pessoal, seja ao sentido
do porvir da historia universal, a matéria (água) que por sua vez está contida na paisagem –,
forneceu sempre à filosofia dos modernos, meios expressivos para a articulação de uma reflexão
sobre a questão dos fundamentos e dos limites, que sempre constituíram o objeto e a vocação da
filosofia. O que em exemplo da análise acima, remonta a constituição do homem ocidental que
viria apropriar-se destas terras ao sul da Linha do Equador que, como referido por Bachelard trás
na matéria suas fundamentações.
48
Com ressalvas, é preciso ater que, o termo “descobrimento” utilizado historicamente promove a sobreposição das
civilizações indígenas que já ocupavam o território brasileiro antes da chegada dos europeus.
40
FIGURA 7 – Duguay-Trouin assalta a cidade do Rio de Janeiro em 1711, Ferdinand Perrot (1844).
Fonte: Coleção Gilberto Ferrez, 1998.
Então, a formação de Niterói resulta de um processo que dependerá não só de seus agentes, bem
como do cenário, relatados aqui através de sua pretérita paisagem. Esta paisagem confere à
relação da terra com a água, e da necessidade de ambas para o estabelecimento do homem neste
espaço. Neste contexto, tanto o mar como as nascentes de água doce, remontam à história do
povoado. Se a “[...] história da vida da água doce, não pode ser compreendida sem a constante
referência tanto do mar como da terra” (BATES, 1965, p.75), o mesmo se poderá dizer com
razão, da essencial presença e necessidade das águas para o processo de fundação e formação
urbana da cidade.
Todavia, a análise deste processo solicita cuidado, uma vez que “[...] antes de ser um espetáculo
consciente, toda paisagem é uma experiência onírica” (BACHELARD, 1989, p. 22), pois
olhamos com paixão estética as paisagens que vimos antes em sonho. O que revela ainda mais a
influência da imagem material que, dentro de si, trouxeram os viajantes europeus. Para o
entendimento da influência desta imagem ou paisagem devemos nos pautar, na compreensão da
estrutura sócio-cultural que ocorria na Europa a partir do século XVIII, período em que o Brasil
passa a receber mais efetivamente a atenção de seus colonizadores. É nesta época, conhecida pelo
“século das luzes”
49
, que se gesta uma nova concepção de ciência, acompanhada de racionalismo
cada vez mais latente; são lançadas as bases sistemáticas da exploração científica da natureza
anunciadas por Descartes e Bacon (LAHUERTA, 2006). Fundamenta-se a idéia do homem em
movimento, e da ânsia pela apropriação de novos lugares se inserem as expedições para o Novo
Mundo.
49
Segundo Jean Starobinsky, a partir do momento em que a ausência de Deus destituiu os lugares de seu sacramento,
o espaço passou a ser visto como neutro, abrindo o campo para a instauração do “espaço da técnica”.
41
Desde meados do século XVIII, a Europa se lança a um “redescobrimento” do mundo, mas
agora com intuitos muito distintos, que se remetem principalmente a uma apropriação
“científica” da natureza “selvagem” dos trópicos. Através da figura dos viajantes, organizados ou
não a partir de expedições cientificas, um mundo novo e pitoresco é revelado aos europeus.
Imbuído dessas influências, o pensamento de Alexandre Von Humboldt teve desdobramentos
fundamentais que subverteram a imagem negativa que se fazia da natureza americana
50
.
Contudo, novamente a água serve de elemento elucidativo à leitura daquele momento histórico, e
a partir do estudo de Francis Bacon, Janice Theodoro (1996, p. 05) observa: “É estranho que nas
viagens por mar, onde não nada para ver além do céu e do oceano, os homens façam diários,
mas nas viagens por terra, onde tanto que observar em sua maior parte os omitem”. O que a
faz concluir que, naquele momento, o viajante europeu, parecia ser aquele que prefere o sonho
europeu de uma natureza ordenada e controlada à realidade úmida americana, ou seja, “[...] a
estufa natural não supera a beleza das estufas metálicas” (Ibidem, p. 05). Desta forma, esta
conduta esclarece em muito, a perspectiva idealizadora em que também muito nesta terra há de se
realizar: sobre o ideal de homem, sobre o ideal de sociedade e sobre o ideal de cidade,
intencionado por muitos anos também em Niterói e, que serão descritos no segundo capítulo
deste trabalho.
A água na paisagem original [niteroiense]
Quando viram e a cobiçaram, a terra era toda de contrastes. Montanhas e mar, florestas
e praias, escarpas verticais e nuas a subirem abruptamente de planícies alagadas.
(LAMÊGO, 1965, p.35)
Era rude o quadro paisagístico, mas de natureza envolvente e deslumbrante aos olhos do viajante.
Terra à vista, e a posse dessa terra era necessária ao domínio Imperial dos oceanos. Nela
aninhava-se a acolhedora Guanabara, que de calmas águas seria o refúgio e a base naval de naus e
caravelas. Então Portugal fixaria ali, mais um padrão. Aportariam os homens de senso europeu,
mas com mentes profusas e latentes enriquecidas pelas águas profundas de mares até então
desconhecidos.
50
Em 1799, Humboldt e seu parceiro Aimé Bonpland realizaram frutífera e famosa viagem à América, passando
pelas Canárias, por Havana e pela Costa da Venezuela e chegando a Amazônia, seus relatos sobre uma natureza
idílica consagraram a visão paradisíaca que os europeus realizavam sobre estas terras tropicais (MEDEIROS
LAHUERTA, 2006).
42
FIGURA 8 – Sunqua - Panorama da Baia do Rio de Janeiro, da Ilha de Villegaignon à praia da Lapa e morro de Sta.
Tereza (1830).
Fonte: HORTA, 2000.
Entre tantos contrastes, a paisagem do Novo Mundo e o observador do Velho Mundo,
estabeleceu-se a vontade de superar a natureza e a virginal paisagem natural. Mesmo que
existindo ali, cultura e povo amigo que por esta docilidade foi subjugado, o europeu português
lançou bases, fez cidades, sesmarias e depois colônia. Veio entre as águas, primeiro o oceano e
mais adiante subindo os rios, para constatar que:
Traz, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, algumas vermelhas, outras
brancas; e a terra por cima toda plana como uma palma mui plana e mui formosa. Pelo
sertão, nos pareceu, do mar, muito grande, porque, a estender os olhos, não podíamos
ver senão terra com arvoredos, que nos parecia mui longa terra... Porém a terra em si é
de muito bons ares, assim frios e temperados, como os de Entre-Douro e Minho,
porque, neste tempo de agora, os achávamos como os de lá. Águas são muitas, infindas.
(Carta de Pero Vaz Caminha, em Abril de 1500 apud VERÍSSIMO & BITTAR, 1999,
p.16)
E assim concluir: “Em tal maneira é grandiosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por
bem das águas que tem”. Esclarecendo, assim que, um dos os principais fatores de prosperidade
naquele momento para o europeu era, entre eles, a abundância das águas. Na imagem da
paisagem original constava a água, e esta segundo olhares europeus permitiria a fixação e o
cultivo da terra, caracterizava portanto as riquezas que desta poderiam ser extraídas.
Retomando a leitura da paisagem histórica, a partir das fundamentações descritas anteriormente,
é possível estabelecer algumas resoluções quanto à representatividade da água na história do
homem. Em exemplo de Bacon e Hegel, como relatamos, a água é percebida de forma similar, e
dela se elucida o impulso ao desconhecido, a vontade da conquista, e ao rompimento dos limites
que tão bem caracterizam determinado, e também, outros momentos da humanidade. Portanto,
deve-se ater que a imagem a qual se referia nossos “colonizadores” em sua chegada a baía de
Guanabara, a memória daquelas águas, toma escalas diferentes de acordo com sua percepção e
conhecimento. Este exercício é possível na igualdade de todas as águas, enquanto elemento de
sustentação a imaginação, regressamos à fala de Bachelard (1989, p. 88), onde os mais extensos e
43
os sonhadores encontram na matéria –, suas próprias memórias, que por conseqüência
comungam as memórias coletivas:
A terra natal é menos uma extensão que uma matéria. É nela que materializamos os
nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; é a ela que
pedimos nossa cor fundamental. Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à
água, à água verde e clara, à água que enverdece os prados. Não posso sentar perto de
um riacho sem cair num devaneio profundo, sem rever minha ventura [...] Não é
preciso que seja o riacho de nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A
mesma lembrança sai de todas as fontes.
A água na produção dos europeus e na retórica profusa de Bachelard, além de elo de conexão
como impulsionador do conhecimento –, funcionou também para o devaneio, a convenção da
veracidade. O que podemos perceber que não a verdade, pautou a descrição destas pretéritas
paisagens, ou seja, pelo paradigma contextual, o europeu aproximou-se da imagem para tornar
belas as diferenças, mas pelo devaneio, idealizou-as e, opostamente, as afastou da realidade, pois,
em função do enorme desconhecimento que esta paisagem representava era mais fácil adjetivá-
la
51
.
FIGURA 9 – A água na Paisagem Brasileira, retratada pelo viajante Carl Philipp Von Martius
Fonte: MARTIUS, 1996.
A perspectiva simbólica da água, utilizada pelo homem branco também assemelha-se a
perspectiva utilizada pelo ocupante original das terras. No vocabulário indígena, segundo Janice
Theodoro (1996), ainda em destaque a pluralidade implicita a contextualização do elemento água
de Bachelard, existiam varias palavras para sua denominação, que sempre definem conjuntamente
a água e o movimento em um determinado contexto. Na mesma reflexão abordada pelos
51
Deste modo, incorrendo na crítica realizada anteriormente por Theodoro (1996), ao processo histórico
estabelecido em território brasileiro num contexto muito atual e que diz respeito ao processo de formação de
Niterói, e entre muitos outros lugares –, percebe-se que a natureza tornou-se objeto do homem exatamente no
momento em que ele, classificando-a, pôde submetê-la às suas necessidades. No processo de leitura da paisagem:
“[...] o europeu combateu a exuberância quando tornou-a admirável, passível de mirar-se nela, quando a colocou na
parede” (Ibidem, p.15).
44
europeus, por exemplo, para dizer mar (teóatl), os indígenas não falavam nem em deus d’água,
nem em deus água, mas em água maravilhosa em profundidade e grandeza. Chamavam ilhuicaatl
também o mar por ser a água que se juntou ao céu, e por isso também passaram a chamar o mar,
de água grande e perigosa, fera cheia de espumas, de montes d’água, de água salgada, ruim para
beber, onde se criam muitos animais que estão em movimento. Nesta identificação comum, é
possível visualizar o que mais tarde viria a se tornar o inicio da formação de Niterói, pelas terras
do também “conquistador e viajante”, mas também índio, o temiminó Araribóia.
Na descrição, destas fatídicas terras, o que se via, eram terrenos de constituição cristalina
representados por maciços e colinas costeiras, intercalados com planícies e baixadas, vizinhas ao
mar. Os maciços elevados predominantes na porção Sudeste, todos alinhados no sentido geral
nordeste-sudoeste, o ponto culminante localizava-se na atual Pedra do Elefante que hoje limita o
município de Niterói com o município de Maricá. Para a vertente da baía de Guanabara o atual
Morro da Viração e do Morcego, remetiam muralhas estrategicamente dispostas para a entrada da
baía. Para esta, por sua vez, o litoral se recortava em uma série de enseadas.
A hidrografia representava perfeitamente o nome dado pelos índios ao local: Niterói (do tupi,
Água Escondida) era o nome comum das duas margens da baía de Guanabara (do também tupi,
Seio do Mar), por terem as mesmas características de relevo, seus rios permeavam sutilmente o
mar, as águas vinham das vertentes de morros, encontrando pequenos córregos, engrossando-se,
alimentando charcos e brejos
52
. Um mapa setessentista das “Bandas d’Além” forma utilizada
para denominar as terras situadas do outro lado da baía de Guanabara, em contraposição ao Rio
de Janeiro, a partir do século XVI –, elucida o reconhecimento das águas que permeiam e
penetram a nova terra para os europeus.
52
Dados morfológicos extraídos da publicação “NITERÓI: PERFIL DE UMA CIDADE”, realizada pela Prefeitura
de Niterói, Consultoria Especial de Ciência e Tecnologia.
45
MAPA 3
– Mapa de reconhecimento da Baia de Guanabara, seus acessos e pontos de defesa, em carta realizada por
Renée Dugay-Trouin em 1711.
Fonte: WIEFELS, 2001.
A reflexão sobre o cenário natural, caracteriza também a paisagem original niteroiense. Na
oratória romantizada, falavam, os viajantes, de montanhas enegrecidas, de florestas ingalgáveis e
lisos paredões que se aprumavam junto a água. Desta supremacia das águas no litoral, sobravam
apenas nesgas de restingas para os primeiros passos dos conquistadores, os milênios de terra
arquitetaram um palco rude em sua selvageria, mas belo para o drama humano que viria.
Era esta a imagem que assoberbava europeus, que viram Anchieta, Estácio de e Mem de Sá.
Sendo este o mar de Hegel, Bacon, e de significados indígenas, o palco no qual Villegagnon e os
46
Tupinambas enfrentaram a audácia lusitana. E era esta, portanto a paisagem em que Niterói se
integrava, a feição inicial da sesmaria de Araribóia.
No mar o palco para a disputa
A paisagem romantizada dos viajantes portugueses, o ficou exclusiva aos olhares lusitanos, em
1555, a esquadra francesa liderada por Villegagnon
53
dominou toda baía de Guanabara e institui a
França Antártica, [...] normandos e bretões tomaram a resolução de estabelecer na costa
brasileira uma possessão sua em caráter estável, devidamente fortificada, assegurando, dessa
forma, seu comércio tão compensador e rendoso” (BARDY, 1965, p.49). Em caráter estratégico
fixaram-se bem próximos ao mar, na ilha já habitada por índios de tribo tupi, a Ilha de
Paranapuã
54
, antiga aldeia do cacique Araribóia que expulso pelos franceses de sua terra natal foi
se refugiar na capitania do Espírito Santo.
A paz e a concórdia não reinaram muito tempo na pequena ilha envolta de águas calmas.
Diferente deste cenário, desacordos internos em função de conflitos religiosos fizeram com que o
vice-almirante francês retorna-se a França. Na ausência de Villegagnon, em 1567, os portugueses
com a ajuda dos Temiminó, vindos do Espírito Santo, e liderados por Araribóia, derrotam os
franceses que apesar de estrategicamente localizados estavam isolados em uma ilha, o que
decorria em falta de alimento e principalmente água
55
.
Da expulsão dos franceses, por Estácio de Sá, resultou a necessidade de fixar no novo núcleo
colonial, tanto os contingentes portugueses integrantes de sua esquadra, como os indígenas que
trouxe do Espírito Santo e os colonos que arregimentara em São Vicente. Teve início assim, a
doação de sesmarias, entre elas as terras das Bandas D’Além dadas inicialmente a Dom Antônio
de Mariz Coutinho, provedor da Fazenda Real do Rio de Janeiro, datada de 1 de março de 1568.
E, posteriormente renunciadas a pedido do Governador Mem de Sá, para a doação da terra a
Araribóia, então batizado com o nome de Martin Afonso.
As águas escondidas de Araribóia
Todo terreno, desde as primeiras barreiras vermelhas, correndo ao longo da baía acima,
caminho norte, até completar uma légua de terras e duas léguas para o sertão (Carta de
Concessão da Sesmaria apud FORTE, 1941, p.39).
53
Nicolas Durand de Villegagnon (1510-1571) foi um cavaleiro da Ordem de Malta e diplomata, que, como oficial
naval francês alcançou a distinção de Vice-almirante da Bretanha. Notabilizou-se, entre outros feitos, pela fundação
de um estabelecimento colonial francês na costa do Brasil, conhecido como França Antártica, entre 1555 e 1567
(Enciclopédia Eletrônica – Wikipédia).
54
Ilha que mais tarde seria ocupada, pelo sobrinho do Governador, Estácio de Sá, para assegurar o domínio
português da baía de Guanabara, dando o nome em homenagem a seu tio a ilha se chamaria como atualmente é
conhecida, Ilha do Governador.
55
A derradeira estratégia francesa não considerou as necessidades primordiais ao homem, calculando que em uma
ilha estaria estrategicamente reforçada de vigilância, ignorando sua natureza e principalmente as novidades que
compunham o Novo Mundo. Faltaram-lhes a alimentos, lhes faltaram a água, a soberba do homem civilizador
subjugou o conhecimento do homem local, os índios, e por estes foram vencidos (BARDY, 1965).
47
Assim, em 22 de novembro de 1573, Araribóia tomou posse oficial das terras, dando início à
aldeia de São Lourenço dos Índios (WERHS, 1984). A importância da sesmaria de Araribóia
deveu-se ao fato de corresponder ao miolo do atual núcleo urbano de Niterói. Nas terras
próximas ao Morro de São Lourenço, onde se estabeleceram os indígenas, brotava água e
fertilidade. As águas desciam pela vertente do morro gerando ricas nascentes que seriam não
utilizadas pelos índios como por outros habitantes que se estabeleceriam no entorno. E que
formariam um significativo e inicial aglomerado, onde eram cultivados a mandioca, o milho, o
feijão, e hortaliças, entre outros. Estas propriedades agrícolas eram:
Os núcleos, que mais tarde foram São Domingos e Praia Grande, já podiam ser
pressentidos por uma densidade demográfica ligeiramente maior, em comparação com
outros sítios naquela margem da Guanabara, ainda quase desabitados (Ibidem, p.37).
Dito por Carlos Werhs, documentos antigos mencionam duas “praias grandes” a da Banda
D’Alem e a praia grande em frente a “Laje”
56
, porém diferente ao descrito por José Mattoso Maia
Forte como Saco da Praia Grande em afirmativa da planta realizada por Bellegarde onde as
terra situavam-se entre a atual praia do Valonguinho e a Armação –, menciona-se a coerente
fundamentação de Romeu de Seixas Mattos
57
em que as verdadeiras terras de Araribóia em
compreensão geográfica, não remontariam a praia da Armação. Pois o morro da Armação na
época era uma ilha onde seu entorno, a atual Ponta d’Areia não existia, pelo fato de que esta área
decorreria de acréscimos marinhos oriundos de mangues e braços de mar de pequena
profundidade (MATTOS, 21/06/1975).
MAPA 4 – Ocupação da Baia de Guanabara em 1579, representada em carta por Jacques de Vaulx Du Clay.
Fonte: WIEFELS, 2001.
56
Remetendo área reconhecida nas proximidades do Morro do Gragoatá.
57
Engenheiro e cronista Mattos, têm papel fundamental na elucidação do processo histórico de formação da cidade
de Niterói, trabalhou durante muitos anos como engenheiro pelo Município e também nos serviços de águas pela
Companhia Estadual de Água e Esgoto, através de suas crônicas relatou, questionou e rememorou muitos aspectos
da história local.
48
Ainda sobre este aspecto, interessa observar que a expressão “para o sertão” corresponde aos
imaginários paralelos tomados como fronteira entre as capitanias hereditárias. Quase nada se
conhecia para o interior. Tinha-se, pouca noção da orla, cujos acidentes geográficos pareceram
excelentes pontos de referência para delimitação territorial. Porém, somente a efetiva colonização
do território é que lhe fixaria limites.
Esta configuração territorial dita anteriormente permite descrever a importância da área
reconhecida como Praia Grande, no processo de formação da cidade. Principalmente – no que se
refere o objeto deste estudo em trecho de litoral junto ao morro conhecido antigamente como
Morro do Calimbá (continuação montanhosa do Morro de São Lourenço)
58
, referido como
primeiro núcleo de onde provinham águas tão produtivas, e onde próximo conformava-se o rio
dos Passarinhos. O local era naturalmente o talvegue de sua origem, por ele desenvolvia
sinuosamente o rio, atravessando áreas de charco e mangue até encontrar o mar, na baía de
Guanabara:
O desaparecido rio dos Passarinhos, nos seus primórdios, nascia e se desenvolvia no
vale em que, depois de aterrado, foi construído o Hospital Antônio Pedro e desaguava
num canal que suponho ter existido no local onde se encontra a rua Marquês do Paraná
e daí atingia o litoral que existiu em 1568.
[...] Hoje totalmente aterrado, está correndo em parte superficialmente pelos leitos das
ruas traçadas nesse vale e encaminhadas por galerias de águas subterrâneas,
posteriormente construídas (MATTOS, 31/03/1974).
No decorrer da ocupação, as também referidas nascentes na encosta do Morro de São Lourenço,
mais tarde seriam utilizadas pelos índios e jesuítas recebendo instalações rudimentares, na
conformação do local referido como “Distrito Paroquial” – a respeito da paróquia de São
Lourenço dos Índios.
Pontos espaçados
Contudo, apesar do propício cenário que envolvia e abastecia o povoado, as perspectivas de
crescimento caminhavam lentamente. A atividade econômica dá-se, primeiramente em reforço a
necessidade de subsistência com alimentos, água e habitat, e posteriormente na promoção
econômica a partir da atividade agrícola, e mais além da atividade açucareira que utilizava a água
para realização do movimento mecânico de seus engenhos de açúcar.
58
Nas fontes e referencias bibliográficas, em Niterói, Calimbá era um nome utilizado em dois elementos da paisagem
da cidade, para o conjunto morfológico ao sul do morro de São Lourenço (área do atual morro do Abílio e morro da
Boa Vista) e para o rio que nasce na sub-região, Viçoso Jardim, passando pela sub-região, Cubango (atualmente
canalizado).
49
Entende-se, portanto, sobre o ponto de vista urbanístico
59
, iniciada por Araribóia, a ocupação do
leste da baía de Guanabara, é ancestral da atual cidade de Niterói. Nessa medida, a cidade pode
considerar-se a única fundada por um índio no Brasil, mas com toda certeza, o que hoje
conhecemos por Niterói, ao menos sob o ponto de vista urbanístico, em proporções se difere
muito do núcleo original da aldeia de São Lourenço que era um aldeamento indígena com uma
igreja, já em declínio nos meados do século XVII.
Ainda assim, é interessante observar a índole da ocupação da Banda d’Além, a partir de texto de
Gustavo Peixoto em “Atlas da Evolução Urbana em Niterói”, em comparação a origem de
determinadas cidades brasileira no processo de formação da Colônia, por exemplo: Salvador tem
origem administrativa, o Paulo tem origem missionária, Olinda era uma base comercial, o Rio
de Janeiro e Niterói têm origem guerreira. E a ocupação do território confirma essa assertiva, no
final do primeiro século, ao cabo de 25 anos da fundação do núcleo de Araribóia, existem sete
assentamentos em pontos distantes do território: a aldeia de São Lourenço (com sua igreja), a
fazenda jesuítica de São Francisco Xavier (com sua capela), a capela de Nossa Senhora do Bom
Sucesso em Jurujuba, também jesuíta e, conforme Lamêgo (1965), fundada em 1600. Também
existia um pequeno forte na entrada da barra
60
, e a primeira armação de baleeiras, junto ao morro
da Armação, perto da atual Ponta d’Areia
61
.
FIGURA 10 – São Domingos em período anterior a formação da Vila Real.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
59
De fato aquelas terras tinham donos, Dr. Coutinho, Provedor da fazenda Real do Rio de Janeiro, que, todavia,
cedeu para a doação ao cacique temiminó, nesta situação no local anteriormente existia uma ou outra localidade,
em áreas vizinhas a Praia Grande (WERHS, 1884).
60
Considerado a mais antiga peça de defesa da Guanabara, fundada por Villegaignon, tomada pelos portugueses e
que viria a ser denominada, mais tarde, após a reforma de 1632, de Fortaleza de Santa Cruz (FORTE, 1973).
61
No decorrer, cem anos mais tarde, encontram-se 22 assentamentos, que vão de São Gonçalo de Guaxindiba, ao
Norte, até Itaipu, ao Sul. E, em 1800, assinalam-se pontos marcantes, inclusive com a ocupação do sertão em
Sant’Anna, Nossa Senhora da Conceição em Pendotiba, Santa Rosa do Viterbo e assim por diante (PEIXOTO In
Atlas da Evolução Urbana em Niterói, Prefeitura de Niterói – Secretaria de Cultura e Secretaria de Educação, 1994).
50
Ao passo que o processo de ocupação entre os séculos XVI e XVII ocorreu de forma lenta,
porém extremamente dissipada, como que estrategicamente confirmasse a tomada do território
por tal povoado. “Todos esses pontos foram desenvolvendo e se localizando com grande
distância entre um e outro, como um gás solto no vácuo, com clara intenção de tomada de posse
territorial” (PEIXOTO In Atlas da Evolução Urbana em Niterói, Prefeitura de Niterói
Secretaria de Cultura e Secretaria de Educação, 1994). Configurando-se, mais tarde o que seria
uma só unidade, a cidade de Niterói
62
.
Portanto, do exposto sobre este primeiro período original niteroiense, o estudo de formação do
território tem em muitos momentos na história e na paisagem a presença da água. Por ela,
chegam nossos “colonizadores”, e na necessidade dela também se realiza a história oficial e
cotidiana dos homens e mulheres que nesta terra vieram habitar. Por ser comum a muitas
paisagens, o entendimento da imaginação à água ao longo dos tempos, reforça, por Harvey (1989,
p. 44), a reflexão sobre os conceitos e os fundamentos deste período da história que irão
perpetua-se também, em parte, das primeiras porções do território brasileiro submetidos à
ocupação européia, e na porção entendida futuramente por Niterói, descrita a seguir no segundo
capítulo,
Sendo o espaço um ‘fatoda natureza, a conquista e organização racional do espaço se
tornou parte integrante do projeto modernizador. A diferença, desta vez, era que o
espaço e o tempo tinham de ser organizados não para refletir a glória de Deus, mas
para celebrar e facilitar a libertação do ‘Homem’ como indivíduo livre e ativo, dotado
de consciência e vontade. Foi a essa imagem que surgiria uma nova paisagem.
62
Na leitura deste primeiro processo de ocupação, fica clara a importância de cada núcleo disperso na transformação
secular de cada bairro que concretizou a cidade atual.
51
2
o
Capítulo - A Água na História da Cidade
2.1. A Formação da Vila Real e o Chafariz de D. João
O Plano de Edificação e as teorias renascentistas
Os séculos XV e XVI introduziram novas formas urbanas, às quais não se enquadravam à Idade
Média em decadência, e que sobrepuseram as ruas retilíneas das cidades antigas, pelas
sinuosidades de becos e travessas trazendo traçados eminentemente radiocêntricos. Contudo, as
cidades renascentistas, por sua vez, não concretizavam, efetivamente, a economia mercantil e o
governo absolutista que estavam surgindo. Nesta afirmativa, Lewis Munford (1991, p.357)
estudioso que refletiu sobre a transformação das cidades –, em suas considerações acerca da
Europa no Renascimento, afirma que não existiu cidade renascentista, mas sim "[...] trechos de
ordem renascentista, espaços abertos e clarificações que modificam belamente a estrutura da
cidade medieval", ainda sobre a renascea européia, este mesmo ressalta:
Antes que a organização barroca tivesse ganho controle de quase todos os aspectos da
cena, houve uma fase intermediária [Renascença] na qual o novo e o antigo se
misturaram e ganharam reciprocamente, pelo seu próprio contraste e oposição (Ibidem,
p.378).
FIGURA 11 – Vista geral de Antuérpia na segunda metade do século XVI. Na extrema direita, o traçado em tabuleiro do
novo bairro de expansão, projetado em 1548, as referências renascentistas.
Fonte: BENEVOLO, 1983.
52
Essa reciprocidade entre o novo e o antigo, de acordo com Marshall Berman
63
, é característica do
momento de inauguração e implantação da modernidade que, iniciado no culo XVI, duraria a
o século XIX. Ainda segundo Berman (1986, p. 15), pode-se dizer que os indivíduos desse
período rememorando os viajantes europeus que fundaram a colônia brasileira, descritos no
primeiro capítulo deste trabalho – eram modernos uma vez que:
[...] ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor - mas ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.
Contudo, os ideais renascentistas pouco podiam fazer para transformar as cidades européias,
diante da concreta acumulação do passado, a obstinação material restringia os vôos da
imaginação. Como nos lembra Peter Hall (2005, p.12): “Enquanto o pensamento utópico elabora
cidades geométricas ideais, a vida decorre nos velhos ambientes medievais, nas praças irregulares
e pitorescas e nas estreitas e tortuosas ruelas de outros tempos”. Deste modo, as alterações
urbanísticas renascentistas na Europa são timidamente observadas.
Todavia, era a América, um campo fértil para o desenvolvimento desses princípios,
representando uma oportunidade ímpar para a aplicabilidade das teorias da renascença, um
espaço que não oferecia obstáculos a sua execução. A prática que na Europa era colocada de
forma acanhada, em território americano era eximiamente realizada nas cidades coloniais
espanholas
64
, onde o traçado geométrico caracterizou muito bem a tentativa de dominar a
natureza, segundo pensamento europeu. Seguindo à risca tais princípios, o homem forçou a
retidão e, deixou de levar em consideração a conformidade da natureza, imprimindo a direção da
sua vontade.
Pois conforme Sérgio Buarque de Holanda (1982, P. 62), o plano regular na América foi “[...] o
triunfo da aspiração de ordenar e dominar o mundo conquistado”. No traço retilíneo se exprime
a direção e, não é por acaso que ele impera nas cidades espanholas, as primeiras cidades
"abstratas" que europeus edificaram no continente.
63
O norte-americano Marshall Berman em seu “Tudo que é sólido desmancha no ar” situa sua visão de
“modernidade no resultado da dialética intensa entre “modernização” e “modernidade”, ou melhor, entre
“modernização” e visões da modernidade que se resumem aos mais variados modernismos. Berman aponta que o
mundo (moderno) é aquele em que o moderno é eternamente posto à prova (BERMAN, 1986).
64
As cidades coloniais hispânicas seguiram um modelo uniforme e preestabelecido de construção: um tabuleiro de
xadrez, produzindo a igualdade dos quarteirões, os quais geralmente se configuraram num quadrado. Tal traçado
tinha como característica a possibilidade de ser estendido em todos os sentidos, conseqüentemente, o limite externo
da cidade era sempre provisório. No centro do tabuleiro, retirando alguns quarteirões ou reduzindo-os, obtinha-se
uma praça, onde se localizavam as construções mais importantes: a igreja, o paço Municipal, as casas dos mercadores
e dos colonos mais ricos - a Plaza Mayor (HOLANDA, 1982).
53
FIGURA 12 – O padrão urbanístico hispânico: Cidade do México em 1628.
Fonte: BENEVOLO, 1983.
Sobre esta abstração, a planta para a construção das cidades coloniais, em vez de representar a
coisa existente mediante signos principalmente o signo da natureza –, se encarregava de
representar o sonho da coisa, o que Giulio Carlo Argan define como “cidade ideal”. Na América,
o sonho de uma ordem que servia para perpetuar e conservar a estrutura sócio-econômica e
cultural que a metrópole européia desejava garantir. A coisa já existente define, por sua vez, o que
Argan chama de cidade real. Dessa maneira, ela é a concretude desses projetos idealizados no
espaço físico e, por isso, sofre com as suas imperfeições: "[...] a cidade real reflete as dificuldades
do fazer a arte e as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz.”
65
(ARGAN, 1993,
p.73)
Entretanto, no caso da colonização portuguesa, a discussão sobre a regularidade do traçado
urbano, divide os pesquisadores em dois grupos distintos. O primeiro, em que muitos foram
influenciados pelo clássico estudo de Sérgio Buarque de Holanda (1982, p. 85) O semeador e
o ladrilhador —, caracteriza as cidades coloniais portuguesas como espaços construídos sem
regulamentos próprios, desencadeando um traçado irregular, tendo em vista a prioridade da vida
rural na colonização lusitana. Sua citação no Capítulo IV de “Raízes do Brasil” resume bem esta
linha de pensamento:
“A rotina e não a razão abstrata foi o princípio que norteou os portugueses, nesta e em
tantas outras expressões de sua atividade colonizadora. Preferiam agir sempre por
65
Ainda sobre este entendimento, retomando a fala de Berman (1986), no processo de execução dos traços da cidade
ideal no espaço concreto, esta, nada mais é que uma obra de arte a ser vagarosamente destruída, “a desmanchar-se no
ar”.
54
experiências sucessivas, nem sempre coordenadas umas às outras, a traçar de antemão
um plano para segui-lo até o fim.”
O segundo grupo ou linha de pensamento, parte do princípio de que os portugueses também
adotaram a regularidade como forma de construção das cidades coloniais. Seguindo esse ponto
de vista, Carlos Nelson dos Santos (1988, p. 39), autor de “A cidade como um jogo de cartas”
esclarece que:
Os portugueses trouxeram regras claras para definir o blico e o privado, para
localizar equipamentos, para separar as terras particulares doadas hierarquicamente aos
pioneiros das indispensáveis ao atendimento de necessidades coletivas.
Ainda a respeito da administração lusitana na fundação da colônia, Santos ressalta que se manteve
um forte controle sobre a sua execução. “As capitanias hereditárias, por exemplo, delimitadas a
partir de linhas paralelas feitas a esquadro sobre uma terra que nem se sabia como era, nem o que
continha" (Ibidem, p. 45), segundo o autor, podem exemplificar a disciplina e o controle
português sobre o seu território
66
. Através deste ponto de vista, podemos utilizar na formação de
Niterói, o exemplo do Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande, que além de traçado e
zoneamento, estabelecia normas de conduta. Nesta perspectiva, Gustavo Peixoto (1994)
confirma que a cidade de Niterói se formou seguindo, na configuração do traçado de suas ruas,
um sistema pragmático e paulatino de ocupação.
Para esta afirmativa, sobre a conduta da ocupação portuguesa, também se tem como exemplo, a
fundação da cidade do Rio de Janeiro sobre o morro do Castelo, em 1567, adotando
características medievais, tais como a função defensiva do morro e a construção de muralhas ao
redor da cidade. Esta pode ser considerada uma situação peculiar, tendo em vista a expulsão dos
franceses no mesmo ano e a iminência de uma nova invasão. Quando não mais pairava o medo
de novas incursões dos franceses ao Rio de Janeiro, iniciou-se a descida da cidade para a várzea,
tendo por conseqüências o aumento populacional e a necessidade de se aproximar do litoral.
Alberto Lamêgo (1965) explica a descida do morro do Castelo, ainda que sobre o signo da água,
ou seja, sobre a característica preponderante portuguesa navegante e mercante que, incluía o
cotidiano marítimo comercial à colônia:
O comércio exigia a planície para o negócio. A fácil intercomunicação da fazenda com
o armazém, as rápidas idas e vindas à venda e à loja, desembaraçadas correntes de
intercâmbio entre o mar e a terra, o entreposto e as naus, a vila que crescia e os
pequenos rios do recôncavo movimentados de canoas e barcaças (Ibidem, p. 301).
66
Ainda neste segundo pensamento, autores esclarecem que algumas cidades, a princípio, fugiram dessa regra por
questões isoladas de topografia, problemas econômicos, estratégicos ou devido a qualquer dificuldade encontrada na
escolha de seu sítio. No entanto, a desorganização, para esses autores, não deve ser vista como uma regra seguida
para todas as cidades coloniais portuguesas (SANTOS, 1988).
55
Assim, mais a frente, na Vila Real da Praia Grande, o núcleo inicial fundado no alto de São
Lourenço ou melhor, encastelado no morro –, ganha a várzea e a ocupa conforme o xadrez,
conforme o Plano de Edificação de molde francês.
MAPA 5 – Planta cartográfica com a conformação topográfica e hidrológica de trecho da Baia de Guanabara, entre
Niterói e Rio de Janeiro (respectivamente desenhados).
Fonte: WIEFELS, 2001.
A Provisão Real
Passada a conformação inicial, até o início do século XIX, foram poucas as informações a
respeito da região da Praia Grande. No decorrer deste longo período, cerca de 250 anos, após a
doação da sesmaria a Araribóia, um dos assuntos que mais se destaca refere-se à gradativa
ocupação das terras indígenas pelos brancos. A julgar pelas informações do Monsenhor Pizarro
67
e do historiador Carlos Wehrs (1989), a população indígena de o Lourenço foi decrescente
desde o século XVIII até a sua extinção oficial em 1866.
POPULAÇÃO INDÍGENA DE SÃO LOURENÇO:
- 200 habitantes em 1820;
- menos de 150 hab. em 1835;
- menos de 100 hab. em 1844;
- 92 almas em 1849.
QUADRO 2 – Quadro de Desenvolvimento da População Indígena de São Lourenço
Fonte: Atlas da Evolução Urbana de Niterói (PMN).
67
PIZARRO E ARAÚJO, Monsenhor José de Souza Azevedo -
Memórias Históricas do Rio de Janeiro
apud
Atlas da Evolução Urbana de Niterói.
56
No final do século XIII, predominava nas Bandas D’Além, assim, como na baixada da
Guanabara, a cultura açucareira.
68
O comércio, por sua vez, desenvolveu-se concomitantemente
as atividades agrícolas, com as embarcações que se movimentavam na baía transportando
passageiros e produtos, em um intercâmbio entre as freguesias litorâneas e a cidade do Rio de
Janeiro. Assim, apesar da crise na lavoura açucareira, no início do século XIX, que abalou toda a
baixada da Guanabara, devido à exaustão do solo e à expansão da atividade para novas áreas; o
comércio de produtos da policultura, aliado ao aumento de demanda ocasionado pela chegada da
Corte portuguesa no Rio de Janeiro, permitiu o crescimento da região da Praia Grande, São
Domingos e adjacências.
A partir de então, o recôncavo do Rio de Janeiro passou a fazer parte da chamada fonte interna
de abastecimento da Corte, através do sistema de cabotagem. Neste tipo de comércio
enquadravam-se, por exemplo, o Rio Grande do Sul, responsável pelo fornecimento de carnes
salgadas, couro, trigo e peixe, e Santa Catarina, produtora de milho, feijão, mandioca, entre outros
alimentos. Neste sistema, especificamente, a Praia Grande situava-se no grupo produtor de
hortaliças, animais de pequeno porte e pesca, este abastecimento era feito através de transporte
marítimo.
69
As águas existentes
No período que antecede a chegada da Corte, os pequenos núcleos presentes no povoado
contavam com sistemas de abastecimento de água rudimentares, onde fontes eram utilizadas de
forma natural, e quando diferente desta, usavam-se apenas instalações de técnicas simples com
aquedutos de madeira, de telhas, canalização de taquaruçu, bambus e umbaúbas (MATTOS,
31/03/1974). Partindo deste princípio, conformavam-se assim, ao final do século XVIII, junto
ao núcleo principal em São Lourenço
70
, os primeiros pontos de serviço de água, como: fonte
próxima a Igreja
71
(a noroeste), bica ao sopé do morro (área, a sudeste, posteriormente conhecida
como Largo do Chafariz), e fonte em local próximo a estrada para o núcleo de São João de Icaraí
(onde se localizaria a Capela de Nossa Senhora da Conceição). Cabe lembrar, que a conjugação
destas áreas descritas monta o quadro inicial do objeto deste estudo – no caso o referido
Complexo do Vintém entretanto, a forma total se realizará na continuidade da história de
formação da cidade, que será vista no desenvolver deste trabalho.
68
Outras atividades agrícolas, como o cultivo do café, legumes e hortaliças, também eram realizadas nas freguesias
consideradas eminentemente rurais e que futuramente iriam compor a Vila Real da Praia Grande.
69
Confirmação histórica da apreciada e original relação do niteroiense com o mar, teve desde o início, a água como
meio para a promoção de suas relações sociais. Visto até os dias atuais através da continuidade das atividades
portuárias que permanecem no município e pelo o imperativo da Ponte-Rio Niterói, que realiza diariamente este
intercâmbio.
70
Naquela época o morro ficava próximo ao mar e sua base, na parte sudoeste, era envolvida por um mangue que se
cobria de água na maré cheia.
71
A Igreja de São Lourenço dos Índios está relacionada ao assentamento indígena que ali se deu, no fim do século
XVI. Marco da fundação da aldeia de São Lourenço, a capela foi reconstruída, em 1769, mantendo uma composição
de traço jesuítico.
57
Estes primeiros pontos de água faziam parte das águas originadas na vertente do morro de São
Lourenço, e foram também parte do mesmo complexo utilizado por índios e jesuítas. Mais tarde,
uma destas fontes, reconhecida e melhorada, passou a se chamar ‘bica dos caboclos’, sendo suas
águas utilizadas posteriormente no Largo do Chafariz. Esta rememorada bica é referenciada por
Mattoso Maia Forte e estudada por Seixas Mattos (20/12/1974, p. 02) que destacou sua
importância: “Essa fonte abasteceu o pequeno núcleo de aborígines cristianizados, sob a chefia
do cacique temiminó Araribóia [...]”.
Algumas das fontes descritas acima, do mesmo modo que ocorria nas demais localidades
dispostas na baía de Guanabara, eram utilizadas também para as aguadas de navegações, pontos
localizados à beira-mar de então. Abasteciam com facilidade as embarcações, tanto as mais
importantes como as simples. Nesta ocasião, fazia-se o uso da fonte situada em frente à Capela
de N. Da Conceição, sendo “[...] que o local foi, desde priscas eras, desembarcadouro de
navegantes que faziam a aguada.” (WEHRS, 1989, p. 159).
FIGURA 13 – Capela de Nossa Senhora da Conceição.
Fonte: SOUSA, 1993.
Este mesmo olho-d'água tem sua importância exaltada, quando incluída como uma das razões do
desembargador Joaquim José de Queiros para a não colocação do Pelourinho naquele local,
conforme determinava o Alvará Régio para fundação da Vila da Praia Grande, uma vez que, esta
fornecia cerca de 800 barris de água por dia. O escoamento das suas águas era feito em direção ao
Campo de D. Helena, revelando um dos motivos além da conformação natural da área no
recebimento de água – para a conotação histórica dada ao local de “Campo Sujo”.
Aos demais núcleos que compunham o povoado, segundo Mattos, repetia-se a mesma forma
rudimentar de captação de água, porém em menores proporções uma vez que o núcleo central
era a Praia Grande. Assim, localidades como São João de Icaraí e São Domingos recorriam a
nascentes que desciam das vertentes de morros adjacentes, ao improviso da necessidade imediata.
58
Visita de Sua Majestade
A vinda da Corte para o Brasil mudou significativamente a vida do povoado, principalmente após
a visita de D. João à região.
72
O que pode ser constatado nos relatos do viajante Jonh Luccock
(1975, p. 28), à época da chegada da Família Real: “São Domingos e Praia Grande, eram lindas
aldeias pequeninas, constituídas de um punhado de casitas dispersas e mergulhadas no seio da
floresta”. Mais adiante, em relato de 1813, tendo em vista o crescimento obtido pelas regiões
próximas à Corte, o mesmo descreve a Praia Grande:
[...] larga e orlada de pequeninas casas; o interior rico, embora arenoso; a região
populosa; e, talvez, nenhum dos pontos vizinhos da capital passou por tão vantajosas
transformações. [...] É ali que se embarcam todos os vários gêneros que a região produz
com abundância; motivos pelo qual se vêem barcas que de contínuo singram rumo à
cidade (Ibidem, p. 201).
FIGURA 14 – Embarque das Tropas na Praia Grande, para a expedição contra Montevidéo.
Fonte: SOUSA, 1993.
Segundo Maristela Chicharo de Campos (1998)
73
, a ascensão de uma freguesia ou povoado à
condição de vila, no entanto, representava muito mais que um desenvolvimento hierárquico
oriundo do seu crescimento populacional. Significaria, o reconhecimento institucional de sua
relevância, e favorecendo a elevação de sua categoria a etapas posteriores: de capela à paróquia,
de paróquia à freguesia, de freguesia à vila e, finalmente, de vila à cidade.
72
Sua Majestade ao chegar à Praia Grande, acomodou-se em casarão junto à praia de São Domingos. Este palacete
fora doado por seus proprietários – Thomás Soares de Andrade e sua mulher Rufina Joaquina ao regente que, em
outras visitas ali se instalou. De acordo com Emanuel de Macedo (1992), posteriormente nesse prédio funcionou o
primeiro palácio do governo da província (1834-1842) e a primeira Assembléia Legislativa Provincial (1835).
73
Mestre em História e pesquisadora associada do Laboratório de História Oral e Imagem - LABHOI, da
Universidade Federal Fluminense, autora do livro “Riscando o solo: o primeiro plano de edificação da Vila Real da
Praia Grande”, de grande referência para o desenvolvimento deste trabalho.
59
Sendo assim, conforme o alvará régio de 10 de maio de 1819, foi criada a Vila Real da Praia
Grande, tendo como justificativa o aumento populacional, a melhoria da justiça para os
moradores que, a partir de então, não precisariam se deslocar até a Corte para resolver seus
problemas. A autonomia da vila estava condicionada ao desmembramento de sua área do termo
da cidade do Rio de Janeiro, possuindo, assim, todas as prerrogativas e privilégios, de que
gozavam as demais vilas. Contudo, esta liberdade ainda era em parte limitada pela Coroa, o que
também incluía a liberdade econômica, uma vez que, no caso das grandes obras, podia-se cobrar
um imposto específico, a finta, mas era necessária a autorização do rei o que foi feito para a
realização das obras do Plano de Edificação
74
.
A nova vila da Praia Grande foi composta de duas povoações, São Domingos e Praia Grande, e
quatro freguesias, São João Batista de Icaraí, São Sebastião de Itaipu, São Lourenço dos Índios e
São Gonçalo. Logo após a sua criação, algumas providências tiveram de ser tomadas pelas
autoridades locais, como: a delimitação de sua área, a escolha da sede da vila, a localização da casa
da câmara e cadeia, do pelourinho, entre outras. A princípio, tais elementos característicos de
uma vila deveriam ser instalados no Campo de D. Helena e em terrenos de propriedade do
brigadeiro Manoel Álvares da Fonseca
75
. Assim, no alvará de criação da Vila Real da Praia
Grande, encontrava-se escolhido, o local da sede da vila e o nome do juiz de fora: José Clemente
Pereira
76
.
O Plano da Vila
A ascensão da Praia Grande à vila exigia mudanças administrativas e especiais condizentes com
seu novo status. As aspirações do poder local, portanto, materializaram-se em um Plano para a
Vila. Em decorrência, no ano seguinte a elevação da região a categoria de vila foi enviado a D.
João pelo presidente da Câmara, José Clemente Pereira, o Plano de Edificação da Vila Real da
Praia Grande. Este documento que foi fonte fundamental para os pesquisadores no
74
Além destas taxas fixas, faziam parte dos rendimentos da Câmara, as multas por infração de posturas - fixadas em
seis mil réis. Portanto, para esta ficará pertencendo todos os rendimentos estabelecidos no mencionado povoado,
“[...] além de uma sesmaria de uma légua de terra em quadro conjunta, ou separadamente, a qual lhe será concedida
[...] para se aforar em pequenas porções, com foros razoáveis, e o laudêmio da ordenação do reino, na conformidade
da lei de 23 de Julho de 1766” (Alvará erigindo em Vila o sítio e povoado de São Domingos da Praia Grande apud
CAMPOS, 1998, p.37). O que ainda se soma nas limitações desta independência era maneira como se compunha a
câmara da vila, com um juiz-presidente ordinário ou de fora -, indicado pela Coroa, e de no nimo dois
vereadores e um procurador. Além dos oficiais camaristas (que em princípio era um cargo o remunerado), tais
indivíduos eram eleitos localmente e confirmados pelo poder central, muita vezes em razão de seu prestígio
financeiro.
75
Denominado posteriormente como Largo Municipal, onde abrigará a Casa de Câmara e Cadeia, a Igreja Matriz de
São João e um chafariz público. Esta área é atualmente reconhecida pelo Jardim São João.
76
Nascido em Portugal, José Clemente, durante a invasão francesa, alistou-se num batalhão de voluntários
acadêmicos, organizado pelo mestre José Bonifácio e terminada a guerra contra a França, em 1815, veio ao Rio de
Janeiro para receber recompensas por serviços prestados. No ano de 1818 foi nomeado, por d. João, juiz de fora da
vila de Santa Maria de Maricá, no entanto, no mesmo ano, foi nomeado também juiz de fora em Angola, ficando a
primeira nomeação sem efeito. Em 1819, foi nomeado para o cargo de juiz de fora da Praia Grande, bem como, para
a vila de Santa Maria de Maricá, e nestes permaneceu por três anos (SOARES, 1980).
60
entendimento deste período
77
, principalmente, para a compreensão das mudanças espaciais e
sociais empreendidas pelo Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande. Como relata Marlice
de Azevedo no artigo “Niterói urbano: a construção do espaço da cidade”:
[...] o Plano da Vila Real da Praia Grande (o primeiro plano de urbanização de Niterói
com a abertura de ruas cortando as propriedades rurais que constituíam o espaço hoje
ocupado pelos prédios do centro da cidade), pela sua abrangência e pela sua
implementação, merece ser visto como um dos documentos mais significativos do
urbanismo brasileiro no final do Período Colonial (Azevedo In MARTINS &
KNAUSS, 1997, p. 33).
MAPA 6 – Planta do Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande (1820), manipulado pela autora.
Fonte: REIS, 2000.
Até então, pela historiografia de Niterói, este Plano foi atribuído ao francês Arnaud Julien
Pallière
78
, o qual confere uma assinatura apenas ao desenho do projeto do passeio público em
homenagem a D. João, denominado Largo da Memória. Entretanto, de acordo com as atas da
77
Sobre o estudo histórico de Niterói realizado por diversos pesquisadores como Carlos Wehrs, Antonio Mattoso
Maia Forte, Marlice Azevedo e Maristela Chicharo Campos.
78
Pallière nasceu em Bordéus (1784-1862), estudou em Paris e expôs nos famosos Salões da Academia Francesa de
Belas Artes. Em 1817, veio para o Brasil, casando-se com a filha do arquiteto Grandjean de Montigny. Incorporou-se
ao Exército como capitão no Corpo de Engenheiros e, anos depois, D. Pedro I o nomeou professor de desenho da
Academia de Belas Artes (1822) e pintor da Imperial Câmara, em 1829 (BACKHEUSER, 1942).
61
Câmara da Praia Grande, segundo Campos (1998), o idealizador do Plano de Edificação para a
região foi o major engenheiro António Rodrigues Gabriel de Castro
79
. Provável morador da Vila
em 1819, Gabriel de Castro aparece, nos Autos de Averiguação da implantação do pelourinho,
como um dos integrantes da nobreza possuidor de muitas terras que assistiu ao evento,
estando presente e sendo assinante nas eleições para vereadores da Praia Grande.
Além das apontadas inovações que seriam feitas no centro da Praia Grande
80
e que, entre
outras coisas, substituiriam os antigos caminhos tortuosos por praças e ruas retilíneas –, constava
o embelezamento de São Domingos, parte já edificada, e que sofreria apenas reformas.
Não obstante, o local escolhido para a instauração do Largo da Memória, como anteriormente
dito era de posse de D. Helena Francisca Casmira, que não tendo sido consultada a respeito da
ocupação de suas terras e nem indenizada, entrou na justiça contra a Câmara
81
. Todavia, o então
Gabriel Alves acabou por desistir de todos os seus direitos sobre o que já havia sido expropriado,
receoso que houvesse mais desapropriações. Além disso, doou à Câmara dois contos de réis para
que fossem construídos a praça e o chafariz. Além dos terrenos de D. Helena foram
incorporados, em 1820, principalmente os terrenos do brigadeiro Manoel Álvares da Fonseca e
sua mulher Maria da Piedade Mendes da Fonseca, este por sua vez destinava-se à construção da
Casa da Câmara e Cadeia e uma Praça (SOUZA, 1974)
82
.
Assim, no mesmo ano em que foi criada a vila, elaborou-se o Plano de Edificação, transferindo-
se os edifícios públicos para uma outra área. Entretanto, justamente em função das barreiras
legais sobre a área pretendida para o Largo da Memória e Pelourinho, a área destinada à
localização da Casa de Câmara e Cadeia, é efetivada junto ao local onde posteriormente se
localizaria a Igreja Matriz
83
no Largo Municipal atual Jardim São João. No decorrer da
79
O engenheiro apareceu em vários momentos nas atas da Câmara, como vereador da Vila e encarregado da seção
de obras e alinhamentos, até 1842.
80
A vila foi projetada numa área retangular, compreendida da rua da Conceição ao morro da Armação, de um lado, e
da rua da Praia ao mangue de o Lourenço e à rua da Princesa, por outro. Para a execução do plano, tornou-se
necessário que proprietários de terrenos neste limite, tais como os da área em que fora construída a Casa da Câmara
e Cadeia, doassem suas propriedades à Câmara. Além disso, o projeto previa a indenização aos proprietários dos
terrenos necessários para as novas ruas e edificações.
81
Aureliano Coutinho, então presidente da província, desapropriou tais terras sem direito à indenização, alegando
que pertenciam à sesmaria dos índios: “[...] reconhecendo este que a praça em questão esta em terras de referida
sesmaria, na qual forma estabelecidas condições de prestar públicos [...] que necessário fosse e não lugar para
indenização alguma na forma do art. 9 da citada lei, por não existirem ali benfeitorias.” (Coleção de Leis e Decretos e
Regulamentos da Província do Rio de Janeiro apud MATTOS, 21/06/1975) Contudo, segundo Seixas Mattos,
sucedia que o Campo de D. Helena era proveniente de acrescidos marinhos, isto é, de aterros de mangues e mar de
pequena profundidade que por assoreamentos conformaram novo litoral, diferente do existente em 1568 – época de
doação da Sesmaria –, fora, portanto do domínio das terra de Araribóia, e assim não se enquadrando nos dispositivos
legais citados nesta lei de desapropriação.
82
Segundo Soares, a atitude do Brigadeiro justifica-se, uma vez que os terrenos que lhe restaram, tornar-se-iam áreas
arruadas, mais valorizadas.
83
Em 23 de julho de 1854, na época da inauguração da igreja matriz de São João Batista, existia no local o
mercado, a casa de câmara e cadeia, largo e o chafariz público. A solenidade contou com a presença de Dom Pedro
II e da Imperatriz. Estes desembarcaram em um cais construído para esse fim, onde hoje começa a rua São João e
62
efetivação do Plano de Edificação, neste local, configura-se o primeiro centro cívico da Vila de
D. João. Contudo, vale ressaltar que a autonomia política deste período era restrita o que torna
este espaço mais um elemento da localidade, diferente aos futuros centros cívicos que retomaram
contexto político e representativo de seus momentos.
O passeio público e o chafariz na salubridade barroca
Ainda sobre as diretrizes que se perpetuaram no território brasileiro, as influências da tendência
regularizadora das cidades, originadas no Renascimento, são acentuadas, a partir do século XVII,
pelo Barroco, principalmente pelo exacerbamento da convicção racional da cidade como base
para a modernidade, como dito por Berman (1986).
A salubridade foi um aspecto de suma importância durante o período Barroco, principalmente ao
longo do século XVIII. A circulação de ar, por exemplo, tornou-se um dos aspectos responsáveis
pelo alargamento das ruas. A construção de jardins e passeios públicos foi uma alternativa para
melhorar a qualidade do ar, que envolvia as cidades. Era preciso proporcionar aos moradores das
cidades condições de habitabilidade, e isto incluía a drenagem e o abastecimento, estes uma vez
realizados por chafarizes públicos. Também, em nome da salubridade, as atividades poluidoras,
tais como os matadouros, os curtumes, as prisões, os hospitais e os cemitérios, dentre outras,
foram obrigadas a se afastarem dos centros urbanos. Estas premissas, portanto, configuram-se no
primeiro pensamento na colônia sobre o aspecto urbano e a salubridade, tendência esta
posteriormente utilizada no período republicano em território nacional.
Neste contexto, no século XIX, enquanto o planejamento das cidades européias procurava
enquadrar-se às necessidades oriundas do desenvolvimento da Revolução Industrial, os princípios
característicos da Renascença e do Barroco continuaram a ser aplicados na construção de espaços
urbanos americanos. No Brasil, a preocupação com a salubridade das cidades tomou impulso
com a instalação da família real portuguesa no Rio de Janeiro, e com a conseqüente tentativa de
reeuropeização, tendo a França por modelo cultural, como relata Campos (1998, p. 87):
O Plano de Edificação da Vila Real da Praia Grande pode ser apontado como um
exemplo deste processo de "afrancesamento" das concepções urbanísticas. Utiliza-se o
tabuleiro de xadrez, adotando ruas retas e paralelas o quanto fosse possível, com largura
pré-estabelecida e controlada pela Câmara, em todos os momentos da execução do
Plano. Uma das praças principais, tal como no Barroco, desempenhou um papel de
relevo na elaboração e execução do Plano, adotando, até mesmo, o padrão estético das
principais praças francesas [sobre o largo da Memória].
Por fim, e no que refere a este estudo, nota-se a preocupação com a saúde pública, quando da
projeção de dois importantes passeios públicos no Plano de Edificação da Vila. Um deles nos
moldes franceses, o Largo da Memória [atual Praça do Rink], o outro configurado para torna-se o
seguiram por um caminho ornamentado de flores até o largo onde se encontra a igreja, onde foi transladada a
imagem de São João Batista para o novo templo (WEHRS, 1989).
63
primeiro centro cívico da localidade, o Largo Municipal [Praça D. Pedro II, atual Jardim São
João]. Neste aspecto, ambos, além de suas determinadas simbologias políticas, tinham o
propósito de garantir local de arejo com ar puro para a população. Inseridos nesta disciplina
encontravam-se seus respectivos chafarizes, afim de bem servirem à população no que se refere à
qualidade de vida e salubridade.
À procura das águas
Dada a importância da salubridade à época em questão e ao novo patamar adquirido pela
localidade, relatados anteriormente, logo após ser nomeado o primeiro juiz de Fora da Praia
Grande, José Clemente Pereira, no dia seguinte à sua posse, em 1819, se dedicou a pensar o
abastecimento de água, uma vez que era um dos graves problemas da região. Desde então, o
projeto dos chafarizes
84
integrava-se à ação de instalar as funções urbanas típicas da época e, com
isso, sendo encarado como a mais absoluta prioridade para instituir a urbanidade projetada.
Contudo, o fornecimento de água potável para a Vila Real da Praia Grande, não era diferente da
mais importante cidade da colônia portuguesa que em sua composição inicial habitava os morros,
“as muralhas” descritas por Nireu Cavalcanti (2004, p. 34), em seu livro “O Rio de Janeiro
Setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte”:
As dificuldades resultantes da escolha do sítio não se restringiam às questões analisadas.
A dificuldade se desdobrava e até se agravava quando o assunto era abastecimento de
água potável. Ora, uma época em que os veios d’água deveriam correr próximos às
casas para facilitar a coleta individual, a escolha de uma região que oferecesse a
vantagem se colocava de forma primordial para comodidade e saúde da população. No
entanto, a cidade que se instalara no morro do Castelo carecia de qualquer fonte
natural, obrigando os moradores a abrirem poços com muita profundidade, tarefa
bastante dispendiosa. [...] A partir do momento em que a cidade passou a ocupar a
planície, tornou-se mais cil encontrá-la, pois nessa circunstancia a água aflorava em
poços de pouco profundidade. Tal comodidade, porém, era descompensada pela
qualidade do líquido captado, pois na baixada perdia em potabilidade e gosto. Convinha
continuar buscando-a no distante rio Carioca, essa sim, plenamente potável.
Em semelhante processo de ocupação primeiramente no núcleo embrionário do morro de São
Lourenço, posteriormente na planície da Praia Grande e São Domingos –, na Vila Real, o
abastecimento de água foi sempre uma preocupação constante, tornando-se questão prioritária,
no Plano de Edificação. No documento apresentado a D. João era prevista a instalação de um
chafariz no centro da Praia Grande, localizado "entre a rua número 11, e a rua número 16, com
base sobre o número 10", bem como a canalização das águas do morro do Calimbá
85
, tal como
em outros núcleos urbanos deste período. O Plano apresentava esta construção da seguinte
forma:
84
Entre eles o rememorado a D. João, o chafariz do Largo da Memória e do Largo Municipal.
85
Morro próximo à rua Diamantina, onde se localizava a fonte do Vintém, do qual foi feito o encanamento d’água
para o centro da Vila Real da Praia Grande, construindo-se um chafariz na confluência da rua São João.
64
Pede a comodidade pública [...] se coloque o Chafariz, que deve apresentar ao povo a
água do Morro do Calimbá, que se está conduzindo: e é por isso inevitável abrir neste
lugar um recinto cômodo, e vistoso (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro-SM, cód.
14,4,13).
Neste mesmo momento, achou-se por bem, abrir uma fonte no sítio do Ingá, para fornecer água
aos moradores de São Domingos, dada a importância do fornecimento da água à localidade,
principalmente nas visitas ilustres do Rei.
Entretanto, as tentativas de construção dos chafarizes previstos no Plano o citado do Largo
Municipal e o posteriormente planejado do Largo da Memória, foram frustradas. Em 1822, por
exemplo, referindo-se ao chafariz do deste Largo, António José de Siqueira e Silva, juiz de fora da
Praia Grande, remeteu diretamente ao Imperador um documento ressaltando as necessidades
mais prementes da vila. Dentre elas, destacou o fato de que:
A Vila necessitava de ter um chafariz em seu centro, para utilidade comum de seus
habitantes, e sendo elevada a despesa para a condução dessas águas, através de um
aqueduto com perto de duas milhas de extensão, lhe fosse concedida uma finta de dez
réis por pessoa e quarenta réis por animal que embarcassem dos portos locais para
qualquer destino (Catálogo Descrito de Atas da Câmara Municipal de Niterói entre
1819-1990).
O poder local não dispunha de muitos recursos e, apesar das solicitações de ajuda ao
custeamento de obras necessárias, estas raramente eram reconhecidas. Então, quaisquer
melhoramentos para o lugar (ruas, estradas, pontes, chafarizes, etc.) executados naquela época,
eram custeados em maioria pelo erário local e, mesmo a Vila possuindo meios, todas as obras a
serem feitas, obrigatoriamente dependiam da chancela da Assembléia Provincial
86
. Assim, em
razão dos poucos recursos da província, apesar do chafariz constar no Plano, ainda em 1835, uma
nova representação foi enviada ao imperador D. Pedro I, solicitando os principais
melhoramentos de que a Praia Grande necessitava:
Tendo sido, Exmo. Sr., e continuando a ser mui progressivo o aumento da população
desta vila, não pela existência dos indivíduos que nela têm vindo se domiciliar e
estabelecer, como pelo crescido número de famílias da Corte e outros lugares que nela
vem residir temporariamente por motivo de saúde e mesmo de gozarem da amenidade
do local e pureza de sua atmosfera, todavia está a mesma Vila falta das duas mais
essenciais providências para a segurança, abastecimento e bem-estar de seus
habitantes e hóspedes. A primeira destas providências é a que deve superar a
suma mesquinhez de água potável [sem grifo no original], sobre o que a Câmara não
tem podido prover como pede a necessidade pública, pela bem conhecida causa da falta
de meios [...]. E como é tanta a referida mesquinhez que a pobreza, quem a não pode
mandar ou ir buscar a lugares remotos e a alguns dos quais a custo duns tantos réis por
barril, se obrigada a beber e servir-se d'água encharcada e de poços pela maior parte
envenenados, o que só pode cooperar para o detrimento de sua saúde (Catálogo
Descrito de Atas da Câmara Municipal de Niterói entre 1819-1990, grifo nosso).
86
Esta situação explica o respaldo documental realizado por este trabalho que tem como base para a construção da
história de abastecimento da cidade, atas, registros e cartas da Câmara Municipal, uma vez que a maior parte das
decisões referentes a meio urbano, mudanças físicas ou legislativas passavam por esta.
65
Entretanto, este problema relatado pela ata da Câmara perdurará por longos anos até a
concretização desta obra, ora por conta de embargos feitos pelos proprietários do local da fonte,
ora por falta de recursos da Câmara para a sua execução situação não muito diferente dos
futuros problemas, relatados no decorrer da história sobre o sistema de abastecimento de água
desta cidade.
Sobre a construção do chafariz no Largo Municipal
87
, dado o alto custo dos condutos de adução,
este é edificado próximo ao morro de o Lourenço, onde se encontrava a nascente das suas
águas, originando o largo que seria referenciado como Largo do Chafariz. Este mesmo chafariz
fazia uso das águas da fonte que, em seu início abasteceu o núcleo indígena, depois os jesuítas
que residiram com os índios e mais tarde na descida da cidade, o núcleo inicial do povoado da
Praia Grande. Em caráter emergencial, este foi o primeiro chafariz público do município, datado
de 1837, ficando pronto após a reforma provisória realizada na olho-d'água existente (WERHS,
1984).
Até então, como relatado por Divaldo Aguiar Lopes
88
(28/09/1946) em mais uma de suas
diversas crônicas escritas a periódicos da época sobre a história do abastecimento de água na
cidade, naquela época, próximo ao centro, “[...] existia somente uma bica, ao do morro [São
Lourenço] antes da iniciativa [referindo-se a inauguração do chafariz do Largo do Chafariz]”.
Este último aspecto caracteriza a importância deste marco urbano para a cidade e para este
trabalho, por integrar-se ou Complexo do Vintém. Este primeiro chafariz público, dada a sua
representatividade, deflagrou o inicio de uma época de significado histórico para o cotidiano da
cidade. Os chafarizes, necessários, preencheram de vida os espaços públicos de então, todavia, a
multiplicação deste equipamento urbano pela cidade se dará verdadeiramente após elevação da
Vila à capital, ainda no Império de D. Pedro II.
Por aqueles anos, as obras prosseguiram, mas como era insuficiente o abastecimento de água da
cidade, cada vez mais, confirmava-se a necessidade do aproveitamento das águas do morro do
Calimbá, conforme o Plano de Edificação. Com este projeto, tinha-se a intenção de alimentar os
chafarizes a serem instalados nas localidades da Armação, da Boa Viagem, do Ingá e na Rua
Fresca [rua Passos da Pátria] em São Domingos. Pensou-se assim, em reunir as águas do morro
de São Lourenço com as do Calimbá; para esse fim, em 1838, foram desapropriadas as terra do
87
Quanto ao projeto inicial de colocação de um chafariz, no local que mais a frente seria o primeiro centro cívico da
cidade, o Largo Municipal, só se realizaria 1853. Esta informação, inicialmente presente em estudos de Carlos Wehrs,
é confirmada por Divaldo. A descoberta de mais uma mina d’água no morro de São Lourenço é conduzida a título
de ensaio para um chafariz no Largo Municipal que, posteriormente, é incrementado em 1858, com as águas vindas
do morro do Calimbá (LOPES, 18/08/1946).
88
Divaldo de Aguiar Lopes nasceu em Niterói de 1916, era advogado, historiador, jornalista, museólogo e professor.
Como jornalista, escreveu uma série longa de artigos sobre a história de Niterói. Em 1989, a
Imprensa Oficial do
Estado do Rio de Janeiro publicou a obra “Catedral de Niterói” em homenagem aos seus mais de cinqüenta anos de
pesquisa sobre a cidade, desta forma, foi também homenageado em 2002, dado seu nome ao arquivo da Câmara,
Arquivo Historiador Divaldo de Aguiar Lopes.
66
Conselheiro José Caetano de Andrade Pinto, e as terras da chácara do Vintém, porém o projeto
só é finalizado em 1858.
O Largo e o Chafariz: a imagem da cidade grata
O Largo da Memória teve seu projeto inspirado na tradição européia da arquitetura de jardins que
tinha como marco obra de Nôtre, arquiteto paisagista francês do período de Luís XIV, autor
dos jardins de Versalhes e que trabalhou também os jardins dos palácios de Fontainebleau e de
Chantilly, entre outros
89
. O plano desse passeio público era realizado pelo conjunto de quatro
quadrados, nos quais formavam-se círculos em seus respectivos centros, além de um chafariz
público no lado esquerdo (considerando a frente, o mar). Seu traçado foi planejado tendo como
referência algumas datas significativas para a Vila Real da Praia Grande, bem como outras
alusivas à vida de D. João. No centro do quadrado menor, na parte superior esquerda, de acordo
com o Plano, seria fixado o emblema do dia sete de março de 1808, em homenagem à chegada da
Família Real Portuguesa ao Rio de Janeiro, faustoso acontecimento para a colônia de um modo
geral — e, depois da visita de D. João, para a Praia Grande de um modo especial.
FIGURA 15 – Planta do Largo da Memória (1820).
Fonte: CAMPOS, 1998.
89
Como dito anteriormente, possuindo uma planta em separado do Plano de Edificação para a Vila Real da Praia
Grande, o Largo da Memória pode ser atribuído (até onde se pode averiguar), tanto o desenho quanto o projeto, ao
pintor francês Arnaud Julien Pallière (FORTE, 1973).
67
O chafariz, comemorativo do beija-mão concedido pelo Príncipe Regente, foi realizado em bela
peça de granito. Executado apenas no governo do Conselheiro Aurelino de Sousa e Oliveira
Coutinho, em 1847, ficando a construção a cargo do engenheiro André Alves Pereira Ribeiro
Cirne. Consistia numa coluna central, com capitel compósito, encimado por uma urna com
pinha, e assentada sobre pedestal com quatro torneiras de bronze, o qual emergia de uma bacia
apoiada em base octogonal com degraus, e tinha duas placas de mármore, com os dizeres:
“1816 / El-Rei Dom João VI de Saudosa Memória / Deu neste logar beija-mão /
Quando honrou esta Cidade / Então simples arraial / No Dia 13 de Maio”, em outra
placa, “Em Utilidade Publica / E para Eternizar o Facto / Que deu nome a esta praça
/ Mandou o Imperador o Senhor / Dom. Pedro II / Construir este Chafariz / Sendo
Presidente da Província / O Senador / Aurelino de S. e O. Coutinho / 1847” (apud
WERHS, 1989, p. 252).
A proposta de se colocar no passeio elementos de representação à vinda de D. João VI (chafariz
e desenho do jardim), como um bem publico à população e memória a este mesmo, faz forte
referência, guardadas as devidas proporções, à simbologia do espaço público, tão bem retratada
por Paulo Knauss (2003) no livro, “O Sorriso da Cidade: imagens e história política de Niterói”
90
.
A comparação pode ser feita tendo por base comum a recordação de um personagem histórico
que, no caso da Vila possui uma ação extraordinária e criadora, que se dá em âmbito local, ou
seja, o desenvolvimento da Praia Grande e a sua elevação categoria de vila, inaugurando assim
um novo tempo, iniciando a confecção de uma nova trama da História.
O espaço e o elemento público, neste período representado pelo Largo da Memória e pelo
chafariz de D. João, são objetos que contam a história local. Como atribui Maristela Chicharo de
Campos em capitulo “Marca do Rei” do livro o “Sorriso da cidade: imagens urbanas e história
política de Niterói”, a gratidão materializada na construção destes dois objetos apresenta-se como
um enunciado fundamental.
Através dela [a gratidão], elaborou-se a identificação da sociedade urbana com o
Estado. Assim, como no ato de seu estabelecimento jurídico pelo monarca, o largo
inscrevia na urbanidade o sentido da formação da cidade e da sociedade local,
afirmando sua integração com o Estado e o regime monárquico. O largo era o resumo
do sentido histórico da cidade (CAMPOS In KNAUSS (coord.), 2003, p.30).
Apesar de o Largo ter sido considerado pelos pesquisadores como a obra mais notável do Plano,
não foi inteiramente construído, o que nos remete à prerrogativa descrita por Giulio Argan
(1993), de que a cidade real pode ser entendida como uma acomodação da cidade-arte à realidade,
e que não é perfeita como no papel em branco no qual se desenhou o ideal.
Desta maneira, o chafariz Largo da Memória inaugurado em 1847, contou, com a presença do
imperador D. Pedro II que, além deste chafariz, inaugurou também o chafariz da praça Martin
90
Livro organizado por Paulo Knauss que remonta capítulos importantes da história de Niterói a partir de textos de
diferentes autores, sobre diferentes períodos em composição imaginária urbana local.
68
Afonso e, por conseqüência, outro na área do Valonguinho – conhecida antigamente como praça
Joaquim Murtinho que dava origem às águas deste último. De acordo com Emmanuel de
Macedo Soares em “Monumentos de Niterói”, a imprensa na época fez menção aos chafarizes:
Depois do TeDeum, S. M. pretende assistir à inauguração dos dois chafarizes dos
largos da Memória e de Martim Afonso. Essas duas obras que não terão a duração
efêmera, aos arcos, têas [sic|, iluminações, etc., hão de recordar a todo tempo a
digressão que S. M. o Imperador se dignou fazer este ano por S. M. província natal;
algum tanto atrasadas se achavam elas quando foram encarregadas ao engenheiro
André Alves Pereira Ribeiro Cirne; mas, graças ao seu zelo e perícia, e às mais
recomendações do mesmo presidente da Província, concluídas para o dia de hoje [...]
(Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 30/04/1847 apud SOARES, 1992, p. 64).
Tal fato foi abordado por diferentes historiadores
91
que ressaltaram a importância e a
representatividade daquele momento, pois nesta mesma data a imprensa apostou o adjetivo
risonho à cidade, que mais tarde reforçado de conteúdo político caracterizaria Niterói. Foi então
noticiado pela imprensa da corte, de acordo com Soares, no dia da inauguração imperial do
chafariz do Largo da Memória, em 1847:
A bela Niterói está hoje risonha com a vegetação de seus campos, engraçada como
as naiades que lhe ornam a alva e majestosa fronte, à espera de augusta visita que pela
terceira vez lhe é feita. Conta-nos que numeroso e brilhante será o concurso dos
cidadãos mais grados do lugar, das diferentes autoridades e empregados públicos que
vão ao encontro do mesmo augusto senhor [...] (Ibidem apud SOARES, 1992, p. 64,
grifo nosso).
O que salta aos olhos, é que nesta situação o espaço torna-se sujeito histórico. Com base nas
linhas conclusivas de Maristela Campos (2003), o sorriso de felicidade pela espera do rei é dado
pela cidade, que é definida pela expectativa da presença monárquica, positivamente caracterizada.
A cidade confunde-se com a natureza da vegetação. Por outro lado, a sociedade se define por
sujeitos históricos específicos autoridades e empregados públicos que são caracterizados
como "sujeitos grados", sendo todos agentes do Estado. Neste contexto, o restante da população
urbana apenas é mencionado como espaço “risonho”. Desse modo, elabora-se um elo de
cumplicidade entre Sociedade e Estado, a partir da alegoria em torno da presença do monarca.
Tempos depois o enunciado do sorriso da cidade e reeditado em outro contexto político
92
, onde
um monumento em homenagem ao monarca D. João é utilizado paradoxalmente em reafirmação
91
Sobre obra de Carlos Wehrs, Antonio Mattoso Maia Forte, Paulo Knauss e Maristela Campos.
92
Segundo Campos, em 1904, o local passou por uma restauração, durante o período do prefeito Paulo Alves e, em
7 de setembro do mesmo ano, foi reinaugurado pelo governador Nilo Peçanha. A imprensa noticiou o evento,
transcrevendo uma cantiga utilizada naquela ocasião:
Hoje é dia de imponência
Nesta risonha cidade,
Pois com toda a majestade
Festeja a Independência!
Há no largo da Memória,
Solene inauguração
69
da República, no dia da Independência nacional. A incorporação deste fato contribuiu para a
reafirmação do local e seus elementos, o que conserva, assim, o sentido social dos mesmos,
instruídos em torno da memória do Estado e não mais apenas de uma forma de regime político,
integrando em definitivo à memória da cidade.
Na referência de Kevin Lynch, a área em uma dicotomia de seu significado para o uso – desde
a origem, o chafariz abrigava democraticamente outros usuais significados para a população,
incorrendo sobre as necessidades do cotidiano, no dia-a-dia o espaço era utilizado como
“lavanderia pública”. Focalizando a representatividade da imagem da cidade diretamente a seus
habitantes, em sua obra “A Imagem da Cidade”, Lynch (1988, p.13) lança olhar crítico sobre real
legibilidade destes espaços: “Todo cidadão possui numerosas relações com algumas partes da sua
cidade e a sua imagem está impregnada de memórias e significados”. Posteriormente alerta, “para
compreender isto temos de considerar a cidade não como algo em si mesmo, mas a cidade objeto
de percepção dos seus habitantes” (Ibidem, p.13).
Assim, desde que o chafariz do largo da Memória e o gramado ali existentes passaram a ser
freqüentados e preferidos pelas lavadeiras, estas, somavam-se os animais que ali placidamente
descansavam e matavam sua sede, graças a essa utilização desviante das finalidades originais do
monumento monárquico, este mesmo se completou de significado. Talvez não o significado
proposto por seus governantes, mas o significado necessário à população. Que mesmo depois de
tentativas de restauração da “ordem” na época, por parte da Câmara, tentando várias vezes
proibir o uso do chafariz para fins domésticos
93
, não teve, na grande maioria das vezes, muito
êxito em findar a manifestação e vontade populares. Apenas cessados após as mudaas mais
efetivas no sistema de abastecimento de água da cidade.
Esta situação é retratada por Everardo Backheuser, em seu livro “Minha terra minha vida: Niterói
um século”, ao descrever o largo da Memória em 1896, expressou muito bem a visão que
tinham os transeuntes que por ali passavam:
A "histórica praça" [naquele momento, para mim, também histórico] andava
atravessando atormentado transe de sua vida, pois que estava completamente
abandonada pêlos poderes municipais. Era, na exata expressão do termo, uma
lavanderia pública e um matagal, a serviço, como coradouro, dessa lavanderia. Tinas,
água de barreia, espuma de sabão, trouxas de roupa suja, calças e ceroulas oscilando ao
vento em cordas distendidas ou espalhadas sobre o capim do vastíssimo campo.
Verdadeiro largo do capim. O famoso monumento a dom João VI, afogado por
montanhas de lençóis e colchas (BACKHEUSER, 1994, p. 126).
De um monumento de glória
Ao vulto de d. João!
(O Fluminense, Niterói, 07/09/1904 apud CAMPOS In KNAUSS (coord), 2003, p.
35).
93
Em 1872, a Câmara fechou a fonte, ficando o chafariz sem utilidade prática. Anos mais tarde, voltou a funcionar e
o problema retornou. Em 1883, a Câmara resolveu coibir novamente essa antiga prática. Contudo, a população
protestou e a proibição foi anulada (CAMPOS, 1998).
70
FIGURA 16 – A ilustração “As lavadeiras” de Jean-Baptiste Debret, esclarece a visão do espaço naquela época.
Fonte: SILVA & PEIXOTO, 2008.
Após evidentes reformas, a área conhecida como Largo da Memória de seu projeto inicial nada
permaneceu sem alterações. Da mesma forma, o chafariz de D. João, que fora modificado e
acrescido por dois chafarizes, e de sua intenção e história nada ficara, perpetuando-se apenas o
novo sentido estético que cabia à nova época
94
. As fontes do largo funcionaram até 1930 quando
o prefeito Capitão Júlio Limeira da Silva transformou-as em fontes luminosas
95
.
FIGURA 17 – Praça do Rink (antigo Largo da Memória) em 1920, após reforma, em 1958 e atualmente (coluna à D.
João).
Fonte: SOARES, 1993 e KNAUSS, 2003.
O tempo tratou de redefinir e atualizar os novos sentidos dos espaços públicos, bem como os
novos sentidos da cidade de Niterói, como em nota de Maristela Campos:
94
Apenas após a reforma de 1913, no governo do prefeito Feliciano Pires de Abreu Sodré, foi que as lavadeiras
abandonaram definitivamente o local, uma vez que a Prefeitura acabou com a canalização que abastecia o chafariz.
Nessa praça, o prefeito construiu espaço para patinação do qual advém, popularmente, até os dias de hoje, a
denominação de Rinque. Posteriormente, outras formas foram feitas na praça, existindo na coluna que homenageia
Almirante Teffé, uma placa comemorativa da remodelação feita pelo prefeito Alberto Fortes, em 1959 (WERHS,
1989).
95
Atualmente, existem chafarizes na frente e por detrás da Coluna da Memória, porém não faz o significado ao
original.
71
Assim, o equipamento da cidade teve sua função reduzida e o largo da recordação foi
transformado no largo da recreação. O sorriso da cidade foi redefinido e atualizado.
Deixou de ser a felicidade pela presença do representante de Estado e assumiu uma
identificação com o lazer. Os sentidos atribuídos àquela área urbana fizeram dela
instrumento de identificação da Sociedade com o Estado e passaram a associar a vida
urbana com o entretenimento lúdico. Ocorre uma operação de esvaziamento do
conteúdo político da cidade e do sorriso original. (CAMPOS In KNAUSS (coord),
2003, p. 37)
Cabendo apenas dizer que o fato criador do largo da Memória, tão imbuído de contexto e
conteúdo, na atual praça do Rink (na cidade real), cedeu espaço ao “pragmatismo dessacralizador
do dia-a-dia” (Ibidem, p.37).
2.1. As Novas Águas e a Capital na República
A Capital
Fato que marcou o crescimento da cidade de Niterói foi a transferência da sede da capital da
província do Rio de Janeiro, para a Praia Grande. Em 1834, com a promulgação do Ato
Adicional à Constituição de 1824, foi criada a Regência Una que, buscando principalmente evitar
a fragmentação do Império, em seu artigo primeiro destacava a Província do Rio de Janeiro,
tornando a capital do Império e Município Neutro.
Em decorrência disso, e também de todo o processo de transformação que a região vinha
sofrendo desde a visita de D. João, a Vila tornou-se a nova capital da Província do Rio de Janeiro.
Assim, votada pela Assembléia Provincial, composta de 36 deputados e sancionada por Joaquim
José Rodrigues Torres (futuro Visconde de Itaboraí), a Lei Provincial 2, elegeu para capital a
Vila Real da Praia Grande, e como conseqüência, a Lei n°6 de 28 de março de 1835, determinou
a elevação da nova capital a categoria de cidade, com nome de Nictheroy.
Este nome já era dado ao lado da baía fronteiro ao Rio de Janeiro ou, por vezes, a toda
a baía, pelos silvícolas. Batista Caetano, citado por Gustavo Barroso, assim explica: “Y-
i-teroy, água que se esconde, dando-se naturalmente o metaplasmo de y-i em ny, donde
Ny-teroy”, ou, segundo F. Edelweiss, citado por J. A. Soares de Souza: “baía sinuosa,
porto sinuoso”, na língua tupi (WEHRS, 1984, p. 68).
A condição de capital foi possível graças à situação geográfica da cidade na baia de Guanabara e a
crescente expansão cafeeira. Niterói intermediava as relações comerciais realizadas por via
marítima, entre as fazendas de café afastadas do perímetro urbano, e o porto do Rio de Janeiro.
Nessas condições, o seu desenvolvimento sempre esteve ligado ao do Rio, um dos maiores
centros comerciais desde o Brasil Colônia e, por conseguinte, perpetuava-se também a identidade
local à água, tendo mar como ambiente para a realização das atividades comerciais.
A partir desse momento, o núcleo original estruturado pelo Plano de Edificação, assumiu papel
de importância, segundo Esmênia Martins (1997), político-administrativa que impulsionou o
crescimento da cidade. Em decorrência, o espaço urbano da antiga Vila Real da Praia Grande não
72
parou de sofrer transformações que remontaram, em parte, às diretrizes do primeiro plano
urbanístico.
MAPA 7 – Planta Topográfica da Província do Rio de Janeiro, litografia original do Arquivo Militar.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
A cidade se beneficiava do fato de servir de sede da província mais rica do Brasil, graças á
expansão cafeeira. Em 1837, o governo provincial assume a cidade em regime de patronato e, a
partir daí os presidentes da Província os governadores de então passam a cobrar diretamente
às autoridades municipais melhoramentos para a nova capital. Diante da cobrança, a Câmara
Municipal pondera quanto a não existência de recursos, para tanto, neste período as loterias se
tornam um grande instrumento de financiamento das obras públicas.
A multiplicação das pilastras
A autonomia e o vigor político permitiram assim, ao governo local, maiores condições
econômicas que, dadas as possibilidades tecnológicas da época serviu para ampliar o sistema de
abastecimento público, até então extremamente reduzido.
Para isso, segundo Lopes (07/08/1946), em 1837, foram comprados terrenos para proteção e
construção das fontes e manutenção de mananciais nos morros da Armação e Boa Viagem,
“aproveitou-se para abastecer os moradores nas proximidades do morro da Armação, comprando
por 6.000,00 réis, a nascente de uma chácara de propriedade de José Manuel, já falecido”.
Realizando, portanto, pilastra com bica na rua da Praia avenida Visconde do Rio Branco
73
(FORTE, 1973). Posteriormente, em 1840, a Província recebeu a quantia de 1.745,00 réis, fruto
de uma subscrição pública realizada entre moradores de São Domingos, para auxiliar nas obras da
fonte do Ingá, que se arrastava lentamente devido as minguadas dotações das verbas
governamentais (LOPES, 1946).
Pela grande necessidade, em 1843, “[...] entre aplausos entusiásticos, é inaugurado o chafariz de
São Lourenço, no fim da rua o João.”
96
(LOPES, 1946), o fato narrado por Lopes diz respeito
a reinauguração do chafariz, em substituição ao chafariz colocado provisoriamente no Largo do
Chafariz, que durante muito tempo foi o único chafariz público da Vila, refeito em pedra após a
devida reforma da fonte de suas águas. Contudo, a província contava apenas com um chafariz no
Largo da Fonte em São Lourenço, próximo a Igreja e outro no Largo do Chafariz próximo à
Casa de Detenção, além de duas minas no morro de São Sebastião [Barreto] que produziam 350
barris por dia. Havia também fontes nas ruas do Ingá, Fresca [Passos da tria], Nova [Andrade
Neves], Boa Viagem [Antônio Parreiras] e Conceição [atual rua da Conceição que ia da Prefeitura
até a Marquês de Paraná] (FORTE, 1973).
Todavia a urgência e a população crescente, em 1844, requerem uma pesquisa na região em busca
de algum “olho d’água”. Havia a crença geral de que o chafariz acabaria secando, o calor era
terrível e a seca considerada uma verdadeira calamidade pública. Sobre esses dias Divaldo Lopes
(1946) relata: “Os dias de intenso calor pareciam não ter fim. O céu mantinha-se límpido, a ponto
de serem ordenadas, pelo diocesano, preces públicas, pedindo chuvas abundantes e benéficas à
população e à lavoura”.
Para estabelecer a normalidade tem início finalmente a construção do chafariz do largo da
Memória e, em 1847, este e outros dois chafarizes na praça Martins Afonso
97
e na área do
Valonguinho são, como dito, solenemente inaugurados por D. Pedro II. Este fato assinala a
propagação dos chafarizes nas áreas públicas de Niterói, como é possível visualizar em mapa de
localização das diversas pilastras (situadas na conformação urbana da época, a partir das
descrições de antigos documentos). Todavia, o surgimento destes aguadouros não ocorre em
processo continuo, e sim num processo cíclico alternado por períodos de secas, demonstrando a
partir das dificuldades eram realizadas novas buscas ou soluções.
96
O primeiro chafariz provido que dispunha das águas vindas da vertente do morro de São Lourenço com o morro
do Calimbá, o que mais a frente se conformaria no Complexo do Vintém.
97
O chafariz da Praça Martin Afonso (Praça Araribóia) abastecia diversas embarcações, pois fora construído quase
junto ao cais.”Seu uso era tão intenso que foi necessária a ampliação desta mesma praça. Para seu alargamento foram
doadas as terras de Gabriel Alves Carneiro e sua cunhada Matilde Clemente do Amaral, que incluíam casas em mau
estado.” (LOPES, 18/08/1946).
74
MAPA 8 – Mapa de Localização dos chafarizes, bicas e pilastras de abastecimento de água na metade do séc. XIX.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2008 (a partir de sobreposição da carta topográfica de 1844 com base
cadastral de 2006).
A situação se repete em 1853, quando ocorre a primeira grande escassez de água, relatada
segundo os atos da Câmara. Neste período o então presidente da província, “Conselheiro Luiz
Pedreira Couto de Ferras, tomou todas as providências para remediar o mal. Ora incentiva os
descobridores de ‘olho d’água’, batizando, nesse tempo, de ‘mineiros’, como José Alves que, ao
abrir uma ‘mina’ no morro de São Lourenço conseguiu descobrir água suficiente para 4 bicas, que
75
foi imediatamente feito. Em seguida construiu um pequeno chafariz, com 2 torneiras no Largo da
Igreja do santo de mesmo nome”
98
(LOPES, 07/08/1946). Neste mesmo ano, o engenheiro
Mendes Antas colocou a título de ensaio, uma bica no Largo de Santo Alexandre [Praça Floriano,
e depois antiga Prefeitura], e um chafariz no Largo Municipal
99
.
No Ingá o chafariz existente estava quase sempre seco, por causa das carroças de pipas que nele
vinham se abastecer para depois comercializar o líquido de casa em casa. Por sua vez, a maior
parte destas carroças se destinavam a Rua Áurea [rua Dr. Paulo Alves]. Neste mesmo local,
jorrava água em abundância, obrigando assim, a construção, ali, de um chafariz em abril de 1853,
bem como de um grande tanque para bebedouro dos animais de montaria e carga
100
(LOPES,
07/08/1946).
Este fato, relata a atividade costumeira que, estava presente no cotidiano da vida urbana daquele
período. Naqueles tempos, quem tinha posses não mandava buscar água nas bicas públicas;
espera que as carroças-pipa as trouxessem. Os “aguadeiros”
101
tinham freguesia certa e não
ligavam para os de menos posse, pois estes eram freqüentadores de bicas públicas e fontes por
não poderem fazer como os abastados, que esperavam comodamente em suas residências as
“carroças-pipas”
102
com água da Chácara do Vintém (Chácara de Andrade Pinto)
103
e da Chácara
do Pena (no Cubango). Como descreve Divaldo (28/09/1946), “[...] quando passavam
arrogantes, pelas proximidades das pilastras e fontes, os aguadeiros eram vaiados pelos garotos de
rua, empulerados nas filas em lugar dos mais ocupados, recebendo, para isso, alguma gorjeta”.
Lembrando que, “[...] durante anos e anos, as carroças-pipas, bem como as destinadas ao
transporte dos dejetos da população, andavam, chiando, estalando, incomodamente os eixos,
batendo os aros de ferro das rodas sobre o calçamento de pedras irregulares, pelas ruas da cidade.
Tal época, foi sem dúvida, o período áureo da indústria dos barris” (Ibidem). Porém, muitas
residências – e isso segundo Carlo Werhs, depreende-se dos anúncios das casas à venda –
possuíam poços em seus quintais
104
.
98
Com a mesma fonte, na época procurou-se aumentar a quantidade de água dos chafarizes do Largo da Memória
[Praça do Rink] e Praça Martin Afonso [Praça Araribóia] (LOPES, 07/08/1946).
99
Finalmente se construiria o chafariz original ao Plano de Edificação, este, por sua vez, fornecia à população cerca
de 200 barris d’água/dia.
100
Esta fonte do Ingá Pequeno foi mencionada pela primeira vez, em um relatório oficial preparado pelo engenheiro
Carlos Riviérre. Tratava-se antes de um poço, que fora adaptada uma bomba, a fim de levar as águas a um
reservatório de zinco, provido de duas bicas. Era uma fonte muito procurada por pessoas com vasilhames, barris e
até carroças, e acredita-se que sua água abastecia talvez a metade dos habitantes locais (WERHS, 1984).
101
Assim chamados os comerciantes que vendiam a água a partir de carroças que eram abastecidas em chácaras que
dispunham de nascentes.
102
Carroça de transporte de água que distribuía pela Província, a água em barris de madeira, cada barril tinha em
média 70 litros.
103
Destacando a importância da chácara de Andrade Pinto, antes mesmos de sua ligação com o sistema público de
abastecimento de água da cidade.
104
Situação que se repetiu durante anos nas áreas da cidade que eram desprovidas de abastecimento de água potável
– e estas não eram poucas.
76
Além das providencias descritas anteriormente para superação da seca, nos anos seguintes a 1855,
em Santa Rosa no morro chamado “Bumba”
105
, foi descoberta uma nascente capaz de abastecer a
localidade e ainda Icaraí
106
. Foi melhorada ainda a fonte da rua da Fresca de São Domingos, com
uma ‘mina’ de 15 palmos de extensão, “[...] precioso ‘olho d’água’ que chegou a fornecer mais de
180 barris diários.” (LOPES, 07/08/1946) E no Asilo de Inválidos, no morro da Armação, em
meados de 1856, existia desaproveitada uma nascente d’água que, sem demora, foi aproveitada
para abastecer duas bicas instaladas uma entre as ruas São Carlos [Silva Jardim] e das Chagas
[Marquês de Caxias], e outra entre as ruas da Glória [Fróes da Cruz] e o Francisco [Saldanha
Marinho].
É interessante observar que, nesta mesma época, afim “[...] de impedir o desperdício, resolveu-se
adaptar torneiras, não mais jorrando águas em que alguns [chafarizes] espadanava à boas léguas.”
(LOPES, 18/08/1946) A atitude descrita acima e inserida pelo Engenheiro Mendes Antas e, no
consta em documentos da Câmara de acordo com Divaldo Lopes, revela novas posturas
preventivas, diferenciando do paliativo habitualmente utilizado pelo poder local. Como exemplo,
relatado por Nireu Cavalcanti sobre as posturas do Rio de Janeiro, onde se destaca o rigor com a
proteção das águas do rio Carioca, por parte da Câmara em 1611: “Ao longo do dito Rio ficarão
cobertas de mato virgem, o qual o derrubará, nem se cortará de maneira que seja sempre em
pé, e quando servir-se do dito Rio com sua água assim para beber e lavar a roupa fará na parte e
lugar para isso” (Manuscritos do livro de Aforamentos de 1609-21 do Arquivo Geral da Cidade,
Rio de Janeiro apud CAVALCANTI, 2006, p. 35). Tempos mais tarde em Niterói, em 1857, esta
preocupação também se revela a partir da compra de terrenos que circundam a nascente do rio
Vicência – manancial que abastecia as áreas ao norte da província –, assim: “Amparando-se na lei
n. 17, de abril de 1835, a Assembléia Provincial autorizou a compra, mediante desapropriação e
por 12.000,00 réis dos terrenos e nascentes do Rio Vicência” (LOPES, 1946). E desta maneira, as
autoridades começam o empenho efetivo para adquirir e gerir as terras que dispunham de tão
precioso líquido na Capital.
Este empenho é de grande significado para este estudo, por se tratar da época (1844) em que é
adquirida grande área da Chácara do Conselheiro José Antônio Andrade Pinto que possibilita e
possibilita finalização do Complexo do Vintém em 1858. Seu grande volume de água permitiu a
instalação de varias pilastras e, estas tiveram a seguinte distribuição: Largo Municipal, Largo de
Santo Alexandre, Largo da Memória, Praça Martim Afonso, Largo do Chafariz, todos estes,
105
O Morro do Bumba configura-se no local onde, anos mais tarde, se localizaria o primeiro aterro sanitário da
cidade, desprezando seu uso inicial, uma vez que tal manancial se tornaria imediatamente, obsoleto, uma vez
contaminado.
106
De acordo com Lopes: “A Província adquire ótima nascente no sítio denominado Bumba, para abastecer os
necessitados de Icaraí e Santa Rosa pela bagatela de 5.000,00 réis, possuindo o referido manancial capacidade de
fornecer, após os devidos trabalhos, cerca de 4.000 barris de água por dia, e que não era pouco e serviria para
minorar a situação penosa dos moradores daqueles locais.” (LOPES, 1946).
77
possuíam chafarizes ou bicas sendo acrescidos, ganharam reforço.
107
Além destas áreas, neste
período, também foi colocado bica rua das Chagas.
Mais tarde, em 1861, foi aberto crédito, por parte da Câmara, para fazer face às despesas do
encanamento do rio Vicência, despendendo-se a quantia de 753.131,70 réis com a construção de
duas pilastras nos Largos do Quartel [Praça Fonseca Ramos, próximo a Rodoviária] e de Santo
Alexandre. Então, em março do desse ano, houve uma grande solenidade, publicada na imprensa:
[...] por ocasião da inauguração do dito encanamento, cuja diminuta rede abastecia
uma parte da cidade. Compareceu a solenidade festa de benção das águas do riacho, o
Barão da Vila Franca, Inácio Francisco Silveira da Mota, Presidente da Província. À
noite, no Largo de São João [ou Largo Municipal] foram queimados fogos de artifício,
havendo música e “Te-Deum”, na igreja de São João ( apud LOPES, 1946).
FIGURA 18 – Largo do São João também conhecido por Largo Municipal, em 1870.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
A água vinha dos reservatórios da Vicência e Bento Peixoto, em duas canalizações de seis
polegadas de diâmetro. São daquele tempo as placas de mármores, em português e latim, afixadas
nas nascentes do Vicência.
AQVAS VICENTIAS / NITHEROHIM / PROVINCIAE METROPOLIM /
PERDVCENDAS / IGNAT: FRANCISCO SULVEURA DA MOTTA /
EJVSDEM PROVINCIAE PRAEFECTVS / PVBLCAE VTILITATIS
STVDIOSVS / CONSVLVIT JVSSIT CVRAVIT / PETRI AVGID /
BRASILIARVM IMPERATORIS / FELICITER REGNANTIS XXX / CHRIST
AVTEM NATI MDCCCLX / ANNO / ET / JOS: MIRANDA DA SILVA REIS /
OPERVM PVBLICORVM DIRECTORE [Trazer as águas Vivencias à Niterói, capital
da Província, Ignácio Francisco da Motta, Presidente da mesma Província, amante do
bem público, estudou, resolveu e executou, no ano de XXX do augusto Pedro,
Imperador do Brasil, reinando felizmente em 1860 do nascimento de Cristo, sendo José
Miranda da Silva Reis Diretor das Obras Públicas.] (apud WERHS, 1984, p. 126)
107
Mais detalhes sobre o Complexo serão esclarecidos no terceiro capítulo desta pesquisa.
78
FIGURA 19 – Foto da antiga Caixa D’água do Vicência, descaracterizada em 1951.
Fonte: LOPES, 28 de Setembro 1946.
Ainda, por conta deste manancial, três anos depois, são confeccionadas pilastras em granito
pardo com bicas de cobre como de costume da época –, e colocadas nos Largos do Barradas
[Praça Sant’Ana] e do Barreto [Praça Enéas de Castro], no lugar denominado Porto do Meyer
[local aterrado para dar origem a Av. do Contorno], e uma outra nas proximidades da Ponte do
Maruí.
Todavia este período próspero é interrompido por mais uma época de seca, que somado ao
aspecto crescente da população por muitas vezes negligenciado começa a agravar a situação.
“A dilatada seca muito castigou o povo nos anos de 1868 a 1870, quando nem a residência do
presidente da Província havia uma gota d’água, e esta vinha em barris da Corte” (LOPES, 1946).
Para sanar a situação, ainda em um ultimo improviso, autoridades e população se mobilizam e
compram mananciais de particulares, como os terrenos fronteiros à Caixa d’água do Vicência
pertencentes a Bento Peixoto, e ainda (o restante) a propriedade da viúva de Andrade Pinto, pois
em ambos, comercializavam águas para a população. Desta maneira, as providências se somaram
na melhora da captação de água dos seguintes:
Mananciais do Morro da Vicência – 347.948 litros
Mananciais dos terrenos comprados a Bento Peixoto – 210.017 litros
Mananciais dos terrenos comprados à viúva de Andrade Pinto
108
– 42.820 litros
Mananciais da mina (bica dos caboclos, antigas terras de Andrade Pinto) do Morro de
São Lourenço – 2.880 litros
(Histórico realizado pelo engenheiro Luiz Antônio de M. Freitas, em 1881, apud
LOPES, 1946)
Acima de tudo o movimento em torno da melhora de abastecimento de água, resultou na
mobilização da sociedade urbana de Niterói, reportando em critica à carência financeira da
administração provincial, e realizando em conjunto levante em espécie na tentativa de sanar o
problema. A atitude histórica é relatada por Divaldo Lopes (1946) em seus estudos sobre o
abastecimento de água na cidade, e sobre os melhoramentos referidos acima ressalta: “Eis ai os
108
Além das terras reconhecidas pelo Complexo do Vintém, também foram incorporados pela Fazenda Provincial, o
Morro da Correção, que futuramente daria lugar ao Reservatório da Detenção também conhecido como
Reservatório da Correção (Inventário de Bens Ficha Sumária do Reservatório da Correção - n. RCO, INEPAC,
1998).
79
melhoramentos da época, conseguidos por uma calamidade pública que logrou mover bastardos
e nobres habitualmente surdos aos apelos mais convincentes e patrióticos”
109
. Nesta descrição, o
episódio referido por Lopes mobiliza a província, e mais importante ainda incita a participação
popular nos poucos casos até então relatados. O que em se tratando de ‘bem comum’ fruto da
necessidade diária da população, tal manifestação e solicitação não eram absurdas, mesmo
considerando que a província, fora das secas cíclicas, se encontrava em regime de águas
permanentes.
Contudo, a necessidade era maior que os meios possíveis ao local, uma vez que Niterói não
dispunha em seu território de mananciais suficientes e a malha urbana era cresceste. Assim, falta
de solução perdura por longos anos, que trará tempos difíceis para a cidade de Niterói, quando
esta perde o título de capital do Estado, e passa por um período de poucas realizações, no meio
físico urbano. Declara Carlos Werhs (1984, p. 253), por volta de 1880, “[...] não havia ainda, nem
mesmo no centro da cidade, tubulações que fizessem chegar às casas o liquido vital. Quem dele
precisasse, mandava buscá-lo na bica próxima ou num dos chafarizes, mas estes em geral davam
pouca água”.
A mudança efetiva desta situação se torna possível com a retomada da capital, e por
conseqüência com o início de um novo momento político efetivamente integrante à República e
principalmente com a valoração do Estado, a partir de forte papel desempenhado por seus
governantes.
O Plano de Melhoramentos
Além dos avanços no sistema de abastecimento de água da cidade, as transformações decorrentes
do impulso administrativo como capital não cessavam, segundo Carlos Wehrs, em 1835, as
faluas, principal meio de transporte na baía da Guanabara, foram substituídas por barcos a vapor.
Em 1836, Niterói ganhou iluminação pública; em 1840, como conseqüência do desenvolvimento
urbanístico da cidade, foi traçado um Plano Geral de Urbanização. Após, em 1844, a carta
assinada por Conrado Jacob Niemeyer consigna o projeto do urbanista francês Pierre Taulois
que, foi elaborado entre 1840 e 41, para uma “Cidade Nova”
110
em Icaraí. O plano não se
restringiu apenas ao traçado de ruas, e ocupou também da criação de acesso compatível pelo
antigo caminho do Calimbá para as localidades de Ingá e de São Domingos, que também
sofreram melhoramentos com a incorporação do Plano de Melhoramentos do Ingá e São
Domingos.
A concepção do Plano era um desenho em xadrez rigoroso, mas que não corresponde ao sistema
prático e paulatino, do anterior Plano de Edificação. Segundo Gustavo Peixoto (1994), ao
109
Sobre esta situação Divaldo de Aguiar Lopes em sua crônica ressalta, com pertinência ainda atual: “O curioso é
que, ainda hoje, só depois que um problema se agrava é que as providencias são tomadas.” (LOPES, 1946).
110
Que abrangeria toda Praia de Icaraí até o morro do Cavalão.
80
contrário do que ocorreu no Centro, e à semelhança do que se daria mais tarde em Copacabana,
Ipanema, na Bangu da Fábrica Progresso, na Belo Horizonte de Arão Reis ou na Goiânia de
Corrêa Lima, entre outros exemplos possíveis, o traçado de ruas em xadrez, agora cordeadas
111
e
niveladas, foi respeitado e integralmente aplicado, podendo ainda hoje ser visto.
MAPA 9 – Planta da Cidade de Niterói, capital da Província do Rio de Janeiro (1844), manipulada pela autora.
Fonte: BRAGANÇA, 1999.
Tratava-se, na verdade, de um outro modo de abordar a cidade, correspondente a outras
tecnologias e outra afinidade com o território. Esse sistema de urbanização se apropria
diretamente das formas geométricas puras e as seguia regularmente
112
. Portanto, trata-se neste
momento, além de uma afirmação da ordem, ou de um anseio de domínio territorial e controle
social na situação anterior da vila colonial –, principalmente de um símbolo de modernidade,
que viria a gerir um sentimento geral regionalista, perpetrado futuramente pelos republicanos.
111
Cordeadas: com meios-fios alinhados com precisão, traçados com ajuda de uma
corda
esticada (Novo Aurélio
Século XXI: dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999).
112
Este segundo estudos de Peixoto (1994), seria o mesmo sistema, mesma “lógica” que foi utilizada na urbanização
do aterro de São Lourenço, projeto do mesmo Corrêa Lima, e que aparece por primeira vez, ainda em projeção, na
planta de 1941, bem um século depois do projeto de Taulois, só que com o padrão de ruas semi-circulares
concêntricas e radiais substituindo o xadrez.
81
A República: a nova conformação política
Na metade do século do XIX a cidade cresceu consideravelmente de tamanho. A República
recém proclamada assinala esse estágio do desenvolvimento da Cidade
113
. Com ela, e a nova
Constituição de 1891, a antiga província vira Estado do Rio de Janeiro.
FIGURA 20 – Vista do centro de Niterói em 1920.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
O regime republicano estabeleceu o impulso necessário ao desenvolvimento do modo de
produção capitalista, estendendo-o, progressivamente, a todas as áreas da economia, unificando o
mercado nacional, que até então era fragmentado. Isto foi possível graças à subordinação
gradativa ao assalariamento, fazendo desaparecer formas de trabalho não assalariado, como
meeiros nas fazendas, locais de produção familiar, áreas de produção independente, a prática do
escambo e grandes áreas de plantações de subsistência. Estas modalidades de trabalho foram
paulatinamente substituídas pelo trabalho assalariado, que se estendeu a todo o território
nacional, dando um grande salto após a ascensão de Getúlio Vargas, ao poder, em 1930.
114
A este
fim, o processo de industrialização brasileira, no final do século XIX, foi marcado pela
113
Em 15 de novembro de 1889 – A Proclamação da República no Brasil. Fenecimento da monarquia e do poder de
Dom Pedro II e início do governo republicano do Marechal Deodoro da Fonseca. Por ocasião o Decreto nº. 1
instituiu provisoriamente a República Federativa como forma de governo e, o país passava a se chamar Estados
Unidos do Brasil, numa cópia do modelo americano (Diagnostico da Sub-Região Centro , Prefeitura Municipal de
Niterói – Secretaria de Urbanismo e Controle Urbano, 2007).
114
Tanto no final do século XIX, como após 1930, quando ganhou impulso a industrialização, o nível de reprodução
da força de trabalho manteve-se atrofiado, de forma a possibilitar os níveis de acumulação de capital necessários à
reprodução de uma sociedade de elite, profundamente injusta e desigual, que se mantém até os dias de hoje.
Portanto, o processo brasileiro de urbanização, iniciado na segunda metade do século XIX, foi impulsionado sobre
relações sociais perversas, acarretando um quadro de crescente segregação espacial em nossas principais cidades
(LEMOS, 1998).
82
implantação de diversos estaleiros na cidade, processadoras de pescado e outras indústrias
responsáveis pela consolidação de diversos bairros.
Cabe lembrar, que em Niterói o desenvolvimento foi também guiado pelo sistema de transportes
coletivos, o que influenciou diretamente os vetores de crescimento e expansão da cidade. Na
segunda metade do século dezenove, Niterói era servida por uma série de empresas particulares
de bondes de tração animal, das quais a primeira parece ter recebido o nome poético de “Trilhos
Urbanos de Niterói”
115
(FORTE, 1919).
Segundo Lemos (1998) em seu texto sobre a “Cidade Republicana”, o súbito adensamento
populacional das cidades, devido ao novo modo de produção, acelerou a propagação de várias
moléstias transmissíveis. Niterói, desde sua fundação era alvo de epidemias por clima quente e
úmido, e por seu sítio naturalmente alagadiço, o que a tornava susceptível a vetores de várias
doenças. Com o adensamento demográfico, sem condições adequadas de urbanização, a cidade
passou a ser alvo de graves enfermidades. Carlos Wehrs (1984, p.88) em seus estudos descreve
bem este período, na cidade de Niterói:
Desde os meados do século dezenove, vários surtos de doenças atingiram mais ou
menos permanentemente a cidade. Escarlatina e cólera nos decênios de 50 e 60;
impaludismo e febre amarela durante toda a segunda metade do século, e início do s.
XX; além da grave incidência de peste bubônica no final do século XIX.
FIGURA 21 – O Jornal do Brasil, em charge de Artur Lucas, mostra a preocupação de Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro,
com a peste bubônica que grassa em Niterói.
Fonte: WERHS, 1984.
115
Ao final do século XIX havia a Companhia Ferrocarril Nichteroyense que ligava, segundo Wehrs, São Domingos
ao morro do Cavalão pelo Ingá e Icaraí; São Domingos ao Centro pelo interior; e o Centro ao Barreto; entre outras
linhas. Essa empresa é ancestral da Companhia Cantareira e Viação Fluminense que, em 1892 sucedeu a antiga que
ainda operava com tração animal. A Cantareira, em 1906, sob a presidência do Visconde de Moraes, e durante a
administração Nilo Peçanha no Estado, iniciou a rápido processo de eletrificação dos bondes da cidade com a
inauguração do abrigo de bondes da rua Marquês de Paraná, que persiste até hoje com sua belíssima estrutura
metálica (parcialmente mutilada para alargamento da rua) a proclamar a época em que Niterói era literalmente uma
cidade do tamanho do bonde (WEHRS, 1989).
83
Essas endemias ocorreram de modo muito freqüente em várias cidades de sítio semelhante Brasil
afora, perto de mar e mangue. Havia em Niterói, como no restante da orla da baía, muitas áreas
palustres onde foram realizando, pouco a pouco, aterros que modificaram o perfil do litoral
116
.
Neste sentido, na cidade, desde sua origem foram realizados diversos aterros tanto por razões
sanitárias como por outros motivos mais ou menos nobres
117
. Estas endemias, no entanto,
cessariam de verdade com a atuação de Oswaldo Cruz e com a presença na cidade de Vital Brasil,
que fundou em 1919 o instituto que traz seu nome em homônimo bairro de Niterói.
A Revolta da Armada
Não bastando às modificações que a política, as epidemias e as moléstias imprimiram ao espaço
físico, Niterói viu-se envolvida nessa mesma época, com a Revolta da Armada, que eclodiu às
vésperas do sete de setembro de 1893, sob comando de Custódio de Mello. Mais uma vez foram
as águas da baía de Guanabara o principal teatro das operações que duraram até o final do ano
seguinte, quando já presidia a República Prudente de Moraes. A Carta-Manifesto ao Presidente da
República, escrita ao marechal Floriano Peixoto, delinea a incitação ao dever patriotico. Este
documento exigia a convocação de novas eleições presidenciais para que, cumprindo-se o
dispositivo constitucional, se estabelecesse a tranquilidade interna na nação.
Concidadãos,
Contra a Constituição e contra a integridade da própria Nação, o chefe do Executivo
[Floriano Peixoto] mobilizou o Exército discricionariamente, pô-lo em de guerra e
despejou-o nos infelizes estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Contra quem?
Contra o inimigo do exterior, contra estrangeiros? Não. O vice-presidente armou
brasileiros contra brasileiros; levantou legiões de supostos patriotas, levando o luto, a
desolação e a miséria a todos os ângulos da República[...]
Sentinela do Tesouro Nacional como prometera, o chefe do Executivo perjurou, iludiu
a Nação, abrindo com mão sacrílega as arcas do erário público a uma política de
suborno e corrupção. [...]
Viva a Nação Brasileira! Viva a República! Viva a Constituição!
Capital da República, 6 de setembro de 1893
Contra-Almirante Custódio José de Melo
(Jornal do Brasil, 07/09/1889 apud CAMPOS, 1990, p. 41)
116
As moléstias chegavam dos municípios vizinhos com os quais Niterói mantinha relações, mercê de sua condição
de capital; do Rio de Janeiro, logo do outro lado da baía, através do aumento de intimidade entre as cidades,
principalmente após o estabelecimento de serviços de transportes por vapores através da Guanabara; de mais longe,
pelo porto (agora ampliado) do Meyer (WEHRS, 1989).
117
Este processo de aterramento em Niterói tem como primeira modificação a construção, em 1891, da passagem
ligando as atuais ruas de São Lourenço e Marechal Deodoro, sobre a enseada de São Lourenço, muitas vezes
também chamada de mangue de São Lourenço, ou saco do Maruí. Em 1922, para ampliação desta ligação é
projetado um aterro de uma porção muito maior do saco, segundo um arruamento que não se efetivaria de fato.
Finalmente o perfil se completa na planta de 1941, já com a ampliação do velho porto do Meyer e com o desenho de
ruas projetado de maneira muito semelhante ao que se viria a executar em seguida.
84
Durante a Revolta da Armada, tropas fiéis ao Presidente resistiram em vários pontos da capital
fluminense, que teve sua frente marítima bombardeada e severamente danificada pelos navios
“anti-florianistas”.
As bocas das ruas perpendiculares às praias foram obstruídas por sacos de areia,
servindo de proteção à artilharia de pequeno calibre. Os transportes coletivos cessaram
suas atividades; paralisaram, igualmente, os serviços de limpeza pública e domiciliar e a
remoção das matérias fecais. Ainda não havia serviço de esgoto. (WEHRS, 1984, p. 85).
O presidente da República, apoiado pelo Exército brasileiro e pelo Partido Republicano Paulista
conteve o movimento em março de 1894. A partir de então, em virtude dos reais méritos de
Nictheroy e seus filhos, terminada a refrega, passa a ser denominada de Cidade Invicta” por
alguns historiadores. Neste processo, vários episódios envolveram diretamente Niterói: em 7 de
janeiro de 1894, configurando a ação militar mais traumática para a cidade, o Almirante Saldanha
da Gama, comandante militar da ilha de Villegaignon, e que assumira o controle sobre os
revoltosos, desembarcou na Ponta d’Areia e na Armação para tentar apoderar-se da cidade que
resistiu. No episódio, perdeu-se por completo a capela dedicada a Santo Inácio, no morro da
Armação.
118
FIGURA 22 – Fotografia de 1893, mostrando a Ponta da Armação.
Fonte: FERNANDES, 2002.
Ainda por ocasião da Revolta armada que se agravara, obrigando a Assembléia a suspender
temporariamente suas sessões, se deliberou fixar provisoriamente em Petrópolis a nova Capital
do Estado. O decreto nº. 82, de 5 de fevereiro de 1894, determinava a transferência do Executivo
para essa cidade, no dia 20 daquele mesmo mês (CAMPOS, 1990). Após estes acontecimentos, a
cidade passa por um período de decadência, sendo deixada num lamentável estado de abandono,
por uma década.
118
Algumas marcas da revolta ficaram por muito tempo à mostra pela cidade. Até hoje se podem ver alguma na ilha
da Boa Viagem, que perdeu o chamado “castelo”, incendiado durante bombardeio, e apenas em parte reconstruído.
85
O primeiro projeto para novas Águas
Apesar do novo regime, no final do século XIX, o espaço urbano niteroiense ainda carecia de
infra-estrutura básica. O abastecimento de água perene, longas secas e a abertura política –
instaurada pelo status de capital –, moveram a busca por mananciais em limites municipais, o que
originou os estudos de captação de águas na serra de Teresópolis. Assim, em 1884, como relatado
pelo prefeito Gustavo Lyra
119
, recordando o projeto de captação, no governo de Antônio da
Costa Pinto da Silva:
Decorrido os anos, o desenvolvimento da cidade determinou a urgência de novos
serviços e foi então que pelo Decreto do Governo Central de 16 de outubro de 1884, o
Governo da Província foi autorizado a contratar o novo abastecimento, assinando o
respectivo contrato com o engenheiro Victor Francisco de Braga Mello e Antônio José
Pedro de Monteiro, em 1885, e transferido à Companhia de Melhoramentos Urbanos
de Niteroy (Gustavo Lyra In Jornal O Estado, Niterói, 1933).
Porém, logo após os estudos iniciados pelo engenheiro Joaquim Leite Ribeiro de Almeida
Junior
120
, a Companhia de Melhoramentos Urbanos de Niteroy transfere o contrato à Empresa
de Obras Publicas do Brasil (Buarque & Maia) que início as obras do reservatório do Valério
[no sopé da Serra de Friburgo] e do Pires [conhecido como reservatório da Correção, no morro
de mesmo nome]. Mas com a falta capital à firma transfere novamente o contrato à Companhia
Melhoramentos do Brasil que, em 1 de outubro de 1889 cria a Companhia Cantareira e Viação
Fluminense que faz chegar à Niterói águas do Município de Nova Friburgo, com o término da
adução em 28 de novembro de 1891, e inauguração do reservatório da Correção, em 6 de janeiro
do ano seguinte (FORTE, 1973)
121
.
Neste processo a linha de adução
122
foi estudada e executada até a caixa de chegada, passando
pelas chácaras Viúva do Negreiros e do Inglês, estrada das Setes Pontes, São Gonçalo, até o
morro do Pires. Desta forma, entra em carga o reservatório da Correção que, foi o primeiro
grande reservatório que armazenou e distribuiu água potável para a população do centro da
cidade e de bairros vizinhos – chegando a Icaraí.
No entanto o projeto para captação das águas pretendia maior carga e, as obras de adução
tiveram continuidade. No entanto, a Revolta da Armada, em 1893, abala a administração pública
119
Discurso do prefeito Gustavo Lyra da Silva, na solenidade de inauguração do sistema de captação de águas do
Paraíso, em reportagem do jornal O Estado, de 1933.
120
Coube ao Dr. Joaquim Leite estudar a linha desde a origem no Rio Macacú, na Serra de Friburgo, na Boca do
Mato, lugar conhecido como Valério, até Niterói. Marcou a caixa, fez medições desse reservatório de origem. As
águas no rio deste lugar eram de perfeita potabilidade, oxigenadas pelos ares florestais e batidas por pequenas quedas.
Até a estação de Cachoeira, elas são precipitadas da serra, daí diante, em patamar até a Guanabara, inficionando-
se nos pantanais da baixada.
121
Com a Cantareira, também contrataram, no primeiro Governo do Sr. Nilo Peçanha em 1887, as obras da rede de
esgotos.
122
A linha adutora, desde sua origem, acompanhava – pouco afastada – a linha da Leopoldina, só a deixando a partir
de São Gonçalo.
86
e, com a ausência de pagamento a Companhia abandona os trabalhos, passando a
responsabilidade ao Governo do Estado que, na administração de Quintino Bocaiuva, restitui o
contrato
123
. Por não terem sido iniciadas as obras, este contrato foi considerado caduco na
administração de Oliveira Botelho. Passando a empresa por nova direção, foi transferido o
serviço de águas ao Estado e este o passou à Prefeitura na administração Feliciano Sodré
124
(FORTE, 1973).
Ainda neste período, as mencionadas modificações estabeleceriam que as derivações ligando a
rede pública às edificações deveriam ser executadas em ferro galvanizado e terminar num
hidrômetro, de propriedade do consumidor e localizado no alinhamento do terreno. A este
dispositivo de medição do consumo de água seria acoplada uma torneira de passagem onde se
iniciaria a canalização interne do prédio
125
(TELLES, 1993).
2.3. O Complemento das Águas e os Estadistas
A retomada da Capital e os avanços urbanos
No governo de Quintino Bocaiúva (1900-1903), a partir do empenho dos políticos Baltazar
Bernadino, Octávio Kelly, Álvaro de Azevedo Sobrinho e Mário Vianna, se reinstala na cidade de
Niterói a Capital do Estado. Entretanto, a situação da cidade o podia ser pior, como ressalta
Emanuel de Macedo Soares
126
(1992), “a administração pública estava desorganizada,
pagamentos atrasados em quase dois anos e a saúde era um problema de calamidade pública pelas
pestes e pela falta de condições higiênicas, esgotos e saneamentos”. Fato este que, assiná-la a
urgência de obras de infra-estrutura urbana – as futuras providências sanitaristas –, levadas a cabo
pelos governantes republicanos, onde procuram sanar as debilidades que restringiam e
degradavam a urbes niteroiense. É também neste momento que, a partir de favorável base
política e econômica, será melhorado o sistema de abastecimento de água para a cidade.
Entretanto, somente a partir do governo seguinte do Dr. Nilo Peçanha
127
(1903-1906) que, a
cidade começa a se recuperar, para reassumir condignamente sua condição de capital. Durante
seu governo Niterói se beneficiou, quer direta quer indiretamente. Com as finanças restauradas
123
No governo de Quintino Bocaiúva (1900-1903) transferiu-se á Cantareira, sem mais formalidades, todo o
patrimônio público vinculado ao serviço: bombas, encanamento, reservatórios, mananciais, algo em torno dos 4 mil
contos de réis (FORTE, 1973).
124
Idealista, Feliciano Sodré foi um dos propugnadores da Renascença Fluminense, incentivando, entre outros itens, a
inauguração de praças, monumento, porte, grandes vias, bem como a ampliação de sistema de rede de abastecimento
de água e efetivação da rede de coleta de esgoto, sempre a recordarem aos pósteros grandes vultos da Pátria.
125
Cabe lembra que, o custo de ligação das edificações ao sistema era relativamente elevado impedia que um
substancial número de famílias tivesse acesso ao serviço. Aqueles que não tinham recursos continuariam a se
abastecer como o faziam antes – nas bicas e chafarizes existentes.
126
Emanuel de Macedo Soares escreveu várias obras sobre a história da cidade de Niterói, nesta pesquisa, seus
trabalhos são referência principalmente no período governado por importantes prefeitos do município.
127
Com forte expressão política, Nilo Peçanha foi primeiro presidente da Província eleito em Niterói depois do
regresso da capital, em seu governo se empenhou em recuperar para a cidade as finanças e o orgulho seus habitantes.
87
no Estado e na Cidade, destacaram-se ainda as administrações de Paulo Alves (1904) – o primeiro
prefeito eleito de Niterói
128
–, e do governador Alfredo Backer (1906). É dessa época a abertura
da alameda São Boaventura, alargamento da avenida Visconde do Rio Branco, da rua Marechal
Deodoro, e prolongamento da rua Tiradentes, no Ingá em direção a Icaraí
129
. Do outro lado, o
Estaleiro Mauá, ainda o principal estabelecimento industrial da cidade, se desenvolve sob a
administração do Conde Pereira Carneiro que mandou construir a simpática vila operária que
ainda existe com seu nome na Ponta d’Areia (FORTE, 1973).
MAPA 10 – Planta da cidade de Niterói no início do século XX.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
Neste período, a estruturação urbana de Niterói se dava em função da sua área central. A estação
das barcas, a estação ferroviária e o porto eram os principais pontos de interligação da cidade. A
ocupação se estendia em direção de Santa Rosa, ao longo da atual rua Dr. Mário Viana até o
128
A prefeitura municipal de Niterói foi criada pelo Decreto nº. 833, de 4 de janeiro de 1904, graças a modificações
introduzidas no texto constitucional, no ano anterior (CAMPOS, 1990).
129
No trecho que foi conhecido como Caminho do Mato, e hoje se chama rua Fagundes Varella, nesta época Icaraí
já encontrava-se consolidada.
88
Viradouro, e na direção norte até o Barreto e Fonseca, se intensificando em São Lourenço e
Santana, estes com características tipicamente industriais.
FIGURA 23 – Estação das Barcas e bondes elétricos, em 1910.
Fonte digital: CDQ – Secretaria de Cultura – PMN.
A retomada da importância política define as transformações urbanísticas ocorridas no inicio do
século XX em Niterói, momento de mudança na administração que trouxe o espírito
modernizante para a Cidade. Ainda de acordo com Gustavo Peixoto (1994), “praticamente, em
avanços representantes no meio físico, pode-se dizer que a era republicana chegou a Niterói junto
com a volta da capital, no início dos anos de 1900”.
Na construção deste momento histórico, esta nova vontade política é descrita em texto “Entre
Civismo e Democracia” de Marcelo de Abreu que consta do livro Sorriso da Cidade: imagens
urbanas e história política de Niterói”. O autor relata ainda que os anos 1920 apresentaram um
quadro de instabilidade no regime político do Brasil a partir do mandato de Campos Sales (1898-
1902), citando a situação política e econômica da época escreve:
“A chamada política dos governadores, que sustentava o federalismo estabelecido pela
constituição de 1891 e garantia a hegemonia no âmbito do governo federal aos estados
economicamente mais importantes, Minas Gerais e São Paulo, davam sinais de sua
debilidade” (ABREU In KNAUSS (coord), 2003, p.80).
Esse quadro de instabilidade, ainda segundo o autor constituiu-se em grande medida em função
da nova atuação dos estados de segunda grandeza no cenário político nacional
130
e, conclui:
Ao mesmo tempo, entretanto, em que o regime federalista apresentava sinais de
instabilidade, surgem indicações da existência de um processo de busca e afirmação da
identidade estadual. É como se a debilidade do regime federalista acarretasse a
130
Para ele, o levante no Rio Grande do Sul contra a reeleição de Borges de Medeiros em 1923 e a criação do Partido
Democrático em São Paulo (1926), podem ser tomados como fatos expressivos dessa debilidade que culminaria com
a Revolução de 30 (ABREU In KNAUSS (coord), 2003).
89
rearticulação dos grupos políticos regionais e a afirmação da unidade regional (Ibidem,
p.81).
Nos documentos consultados sobre a história de Niterói, observa-se o constante paralelismo
entre as ambições políticas e o planejamento e intervenções urbanas. Marlice Soares de Azevedo
vê nesses melhoramentos a vinculação das intervenções urbanas com o momento político,
segundo ela, “[...] para um novo tempo novas formas de ocupação e de uso do espaço são
exigidos.” (AZEVEDO In MARTINS & KNAUSS (coord), 1997, p. 45) A autora se refere à
época em que as idéias federalistas sobrepujaram o centralismo monárquico. A partir de então,
cada ente federalista deveria ter maior independência em relação ao poder central.
FIGURA 24 – Niterói moderna, cais, prédio dos Correios e prédio da Prefeitura, em 1908.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
Diante dessa necessidade, no Estado do Rio de Janeiro, surgem as propostas de “progresso
urbano”. Entre elas melhoramentos referentes à infra-estrutura, como sistemas efetivos de
abastecimento de água e esgotamento sanitário e, também projetos “estratégicos” , como a
construção da Praça da República (símbolo da instituição recém fundada) e o porto em Niterói.
Assim, estas obras visam afirmar a autonomia do então estado frente ao governo central situado
tão próximo na cidade do Rio de Janeiro.
A representatividade da Praça
Na primeira década do século XX, a cidade recebeu um conjunto de grandes obras: Palácio dos
Correios, o Paço Municipal, a Estação Hidroviária (não mais existente) e o conjunto
arquitetônico da Praça da República, um centro cívico para a cidade. Estas obras visavam
alcançar a modernização que cabia a uma capital estadual. Pois não obstante, apesar do recém
90
inaugurado prédio da prefeitura
131
, Niterói continuava sem locais apropriados para os Poderes
Legislativo e Judiciário, que permaneciam jogados em antigas casas, carentes de reformas e
conservação. Daí a necessidade de construir uma praça que reunisse os três poderes em prédios
modernos para a administração estadual.
Para elaboração desse projeto, o governador Oliveira Botelho contratou o arquiteto Emilio
Dupuy Tessain, laureado pelo Salão de Paris e residente em Niterói. Este convidou, como
auxiliar, o arquiteto Pedro Campofiorito
132
, italiano formado em Milão e radicado no Brasil desde
1901.
Em 1913, Tessain e sua equipe elaborou os projetos solicitados para os prédios da
Assembléia Legislativa, Palácio da Justiça, Secretaria de Policia e Escola Normal. Neste
mesmo ano a localização do conjunto foi mudada para o Campo Sujo, uma área
pantanosa e suja, alagada pelo Rio dos Passarinhos que corria ao lado do Morro da
Conceição, situado na Rua Dr. Celestino. Tinha esse nome por ser depósito de lixo e
dejetos desde o século anterior, Entretanto, urbanizada, torna-se-ia uma área do centro
da cidade, altamente valorizada. (BRITO, 1990, p. 61).
Assim, em Niterói, após um período de intensa turbulência política, foi criado o novo Centro
Cívico da cidade, denominado pelo Presidente da República Washigton Luiz na inauguração de
“Praça da República”. Contou também o ato com a presença do Governador Feliciano Sodré
(1927) e do Prefeito Manoel Ribeiro de Almeida
133
.
FIGURA 25 – A Praça da República em três momentos: recém inaugurada (1940), depois “esqueleto” do prédio da
Justiça Federal (1980), reconstruída em foto recente (2007).
Fontes: WERHS, 1984; UDU - PMN, 2007; MACHADO, 2007.
Para a descrição destas décadas, a associação da Praça da República e do porto de Niterói,
caracteriza bem a imagem urbana e social da época. Se a primeira a Praça da República
representava o passado fluminense, atestando a participação da unidade federativa na história
nacional, o porto era o elemento anunciador do futuro econômico e também era investido de
131
O prédio para prefeitura municipal foi projetado no terreno do antigo Largo do Pelourinho pelo engenheiro
Carlos Rossi, de inspiração eclética, foi construído pela firma Di Piero, Primavera & Cia, no mandato de João Pereira
Ferraz (FORTE, 1973).
132
Arquiteto e pintor, o italiano Campofiorito adotou para o jardim da Praça o estilo italiano com influência
francesa, tendo no Centro o monumento de bronze do escultor fluminense José Octávio Correia Lima, “O Triunfo
da República”. O conjunto eclético é completado com a inauguração da Biblioteca Estadual, em 1935.
133
Em 1970, a Praça da República foi destruída para dar lugar ao prédio do Tribunal de Justiça, obra paralisada na
estrutura durante quase duas décadas. Em 1989, a praça foi restaurada após a implosão do edifício inacabado.
91
conteúdo cívico. Este valor simbólico é evidenciado através do conteúdo veiculado na imprensa,
segundo jornal O Estado:
Niterói vai assistir hoje a dois empolgantes espetáculos cívicos: o da inauguração do
primeiro trecho do cais do porto da cidade pelo chefe da Nação e o desvendamento da
formosa obra de arte que o governo encomendou para imortalizar em granito e bronze
a colaboração dos fluminenses na propaganda republicana. O primeiro dos
empreendimentos ressalta a mentalidade moderna do governo cujo quadriênio está a
findar-se, consciente das necessidades econômicas e políticas dos tempos de hoje. É
obra utilitária e de percuciente antevisão do futuro. A segunda das realizações atesta a
idealidade vibrante do presidente Feliciano Sodré, a sua crença inabalável no regime
implantado em 89 (“Inauguração do porto de Niterói e do monumento à República”, O
Estado, 21/12/1927 apud ABREU In KNAUSS (coord), 2003, p.95).
Ainda segundo Abreu, sobre estas ações urbanas estrategicamente impetradas, o planejamento
urbano no governo de Feliciano Sodré
134
era investido da capacidade de atualizar a participação
do Rio de Janeiro na cena política nacional. Sobre essa perspectiva, na gestão de Sodré o
abastecimento dágua foi transferido do Estado, que o havia encampado, para a Prefeitura
Municipal (1912); foi também realizado o projeto da rede de esgotos da cidade, de autoria do
engenheiro Jorge de Lóssio, e datado da administração Paulo Alves, o qual, em conseqüência do
crescimento da população, teve de ser atualizado e ampliado. As obras foram iniciadas em 1912, e
os esgotos de Niterói encaminhados para três pontos da Baia da Guanabara, e os trabalhos
estenderam-se até 1920 (WERHS, 1984).
Portanto, nesse momento, a discussão mais relevante no tocante ao planejamento urbano dizia
respeito à idéia de “higienizar” a urbis. E novamente, não diferente em função do estreito vinculo
da cidade de Niterói com o Rio de Janeiro por muitas vezes citado –, algumas áreas também
seriam alvo das obras higienistas, como no caso do Morro do Castelo no Rio de Janeiro, em
Niterói o desmonte do Monte d’Ouro
135
e trecho do Morro da Detenção (na pedreira, lado
noroeste do atual Morro das Águas) seriam a fonte dos aterros “para o progresso”. No aspecto
morfológico, este processo de aterramento continuaria, desde a Ponta da Armação a o
Gragoatá. Para essas novas áreas, o traçado urbano executado sofreu a influência das propostas
de Atílio Correia Lima
136
, precursor do urbanismo no Brasil e autor do plano de expansão para
cidade de Niterói.
134
Por tais características Feliciano Sodré surgiu no discurso da imprensa como o elemento construtor da identidade
regional, sendo consagrado pelo executivo federal como legítimo representante da oligarquia fluminense.
135
Morro arrasado que se localizava nas proximidades do cruzamento das ruas Marechal Deodoro e Visconde de
Sepetiba.
136
Em 1930, Atílio Corrêa Lima, arquiteto, defendeu sua tese, Avant Projet d' Aménagement et Extension de la ville
de Niterói au Brasil, no Instituto de Urbanismo de Paris. O trabalho de Atílio estava baseado nos conceitos teóricos
em vigência na Europa, e sua proposta foi aplicá-los a Niterói. Além desta proposta, também realizou os planos
urbanísticos de Volta Redonda e de Goiânia, este em parceria com Armando de Godoy.
92
MAPA 11 – Plano Geral de Arruamento de Niterói (1930).
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
Em Niterói, Atílio (1932) enuncia suas propostas defendendo a implantação de um sistema de
transporte contínuo entre as cidades de Niterói e Rio de Janeiro. A partir daí, o autor define um
"traçado geral" para Niterói, com a incorporação do projeto do porto, indicação de novos aterros
e a criação de um centro de irradiação, em terrenos recuperados com o arrasamento de quatro
morros. Este centro seria constituído de uma praça, novo centro de Niterói, cercada por edifícios
de 100 metros de altura, com sistema de circulação giratória que distribuiria de forma contínua o
fluxo de carros. Este seria um tronco de ligação entre os bairros da zona sul, São Gonçalo, zona
norte e o interior do Estado do Rio de Janeiro.
FIGURA 26 – Aterrado São Lourenço e o Porto de Niterói, em detalhe a Avenida Feliciano Sodré (1940).
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
93
Porém, esta nova ordem higienista que, em Niterói, teve início no governo de Nilo Peçanha
137
, só
começou a ser realizada com Alfredo Backer (1906), onde novos planos são traçados e desta vez
chegam a bom termo: são abertas largas avenidas, amplas e belas praças inclusive o Campo de
São Bento. Esta mesma vontade também promoveu a substituição de boa parte da arquitetura
colonial tanto no contexto municipal como nacional. À exemplo das ordens saneadoras e do
embelezamento da cidade, como no Rio de Janeiro com o plano de Pereira Passos, a disciplina
era estabelecida a partir da “[...] higiene, solidez, simetria e elegância, não sendo admitidas as
construções, que por seu mau aspecto ou forma de arquitetura prejudiquem o embelezamento da
cidade”. Desvalorizavam-se as construções rústicas “dentro do perímetro da cidade, assim como
a construção de sacadas de ferro ou madeira nos prédios assobradados” (VILLAÇA, 1999, p.60),
o que foi decisivo para suprimir a arquitetura colonial, definindo uma arquitetura eclética.
Esta mesma “lógica”, também modernizadora republicana contribui futuramente para os grandes
avanços no sistema de abastecimento de água da cidade. Como premissa de capital regional, a
partir de um pensamento uno estadual, foi possível a realização de medidas regionais que,
definitivamente poderiam contribuir de forma eficaz para o recorrente problema de
abastecimento de água da cidade. Desde sua fundação os governantes da cidade, por seu
território o dispor de mananciais suficientes, população, ciclicamente, recorriam a medidas
paliativas, ignorando a necessidade crescente da população.
O Populismo na completude das Águas
O esforço em construir uma cidade deu continuidade ao projeto de captação de águas vindas de
fora do município. Até então, o sistema de captação inaugurado em 1892, não acompanhava o
crescimento da capital do Estado. Como relatado em reportagem do jornal O Estado:
“Vinte anos após [a inauguração], em face do desenvolvimento da cidade e crescimento
de sua população, estimada então em cerca de 70.000 habitantes, na gestão Oliveira
Botelho, o prefeito Sodré incluiu no plano geral do saneamento de Niterói o serviço do
novo abastecimento d’água.” (O Estado, Niterói, 1933)
Assim, ainda no governo Feliciano Sodré, em 1912, é realizado um estudo feito pelos
engenheiros Flavio Silva, Meira de Vasconcelos e Ismael Coelho de Souza, com medições no rio
Soberbo e Inconha do lado de Teresópolis e nos córregos Valério e rio das Cóvas na Serra de
Friburgo. Neste processo, teve então lugar a controvérsia entre os que eram favoráveis ao projeto
de aproveitamento do rio Soberbo e os que julgavam preferível a captação dos mananciais
próximos de Valério. Ao final, entre outras razões e pelo encurtamento da respectiva adução, o
primeiro é preterido, e posteriormente assumido pelo Governo da União.
137
Paulino Alves em seu mandato procura reproduzir na cidade o projeto urbanístico que o prefeito do Rio de
Janeiro, Pereira Passos, começava a por em pratica na capital da República, no entanto seus projetos são rechaçados
pelos vereadores e comerciantes.
94
Nesta época, a água era racionada para a população, como descrito por Seixas Mattos
(11/09/1975) em sua volta à cidade, [...] em 1903, quando voltei a residir em Niterói, a
Companhia Cantareira de Viação Fluminense interrompia a distribuição de água à cidade durante
à noite, por algumas horas, para encher o Reservatório da Correção”. Cabe lembrar, que neste
tempo, a rede de abastecimento era canalizada em rede de ferro fundido para as residências em
maioria ao centro da cidade. Nos bairros mais distantes, as casa como anteriormente dito,
dispunham de poço artesiano, e ou se abasteciam em mananciais próximos à localidade.
Contudo, apenas iniciadas, as obras o tiveram prosseguimento, tendo sido abandonadas pelo
prefeito Otávio Carneiro, por serem excessivamente dispendiosas. Mas o problema de
abastecimento de água retorna e o prefeito usa o material adquirido para a construção de uma
segunda linha de adução da Serra de Friburgo que, dada a carência de meios por parte da
Prefeitura, se estende por longos anos, vindo a ser concluída em gestões muito posteriores
(WERHS, 1984).
Com o material existente, iniciou-se a construção da adutora de Magé que vinha paralela a estrada
de ferro até Niterói, possibilitando a permanente manutenção e conservação da rede de
abastecimento. Porém, deflagrada a Primeira Guerra Mundial, foi suspenso o fornecimento de
tubos metálicos e pouco depois paralisadas as obras
138
. Em 1922, o Município finaliza a segunda
linha de adução até à Estação de Itamby – a qual desde então funcionou em conjunto com a linha
da Serra de Friburgo (FORTE, 1973).
Entretanto, ainda era necessário duplicar a linha de adução. Em 1927, o prefeito Manuel Ribeiro
de Almeida começou a construção de uma terceira linha trazendo águas do município de Magé
desde as fraldas da Serra dos Órgãos. Para o prosseguimento das obras, fez a aquisição dos
mananciais do Paraíso (Tibuna), Serra Queimada, Boa Vista e Falcão e a importação de 30
kilometros de tubos de o tipo Manesmann, reiniciando, então, o assentamento da canalização
desde Itamby. Construiu a ponte do Macacu, dos brejais de rio Amorins e de Guapy, chegou a
atingir o kilometro 40, um pouco além de Amorins. Ainda segundo declarações da imprensa,
nesta fase dos trabalhos serviram na Diretoria de Obras o engenheiro-chefe Romeu de Seixas
Mattos, e os engenheiros Belford Veiga, Miguel Pinho, e Rodrigues Leite, porém era Firmo de
Dutra o engenheiro-chefe de firma particular –, que se encarregou da construção da terceira
linha adutora, entre Itambí e a Represa do rio Paraíso, bem como da ponte sobre o rio Macacu
(MATTOS, 31/03/1974).
Ainda em 1930, o prefeito Castro Guimarães, deu continuidade à terceira linha na descida do
Paraíso, e estudou ao mesmo tempo o aproveitamento do manancial da Serra Queimada, de
maior descarga em altitude mais elevada, porém mais distante, tendo trabalhado nestas
explorações os engenheiros Victor Galvão, Pericles Ribeiro e Romeu de Mattos, prosseguindo o
assentamento de tubos com o empreiteiro Firmo Dutra até às margens do Iconha.
138
Tendo sido recebidos cerca de 30 kilômetros de tubos, assentado um trecho na subida para a cidade e efetuados
os trabalhos preparatórios pela administração municipal.
95
Sobrevindo a Revolução de 1930, as obras foram interrompidas e as administrações seguintes
ocupadas com os problemas do momento, não puderam dar andamento aos trabalhos
(ALMEIDA, 1929). Mas, em dezembro de 1931, assumindo o prefeito Gastão Braga, foram
reiniciados os trabalhos, tendo sido organizada a comissão da Nova Adutora, sob a chefia do
engenheiro Borges Mello, ocasião em que é adotado o projeto primitivo de captação dos córregos
Paraíso e Tribuna, devido à redão da canalização. Os serviços foram iniciados em março de
1932, tendo sido, no primeiro semestre do ano, transportada grande quantidade dos tubos aa
Vargem de Crendis. Foram realizados pelo prefeito Gustavo Lyra, de acordo com a imprensa, os
trabalhos da represa do Paraíso, desde o desmonte de terras e pedras para a caixa de decantação,
de preparo de alvenaria e cantaria para o muro da barragem, o prolongamento e melhoramento
da estrada de rodagem e outros serviços preparatórios. Ainda segundo Lyra:
[...] no decorrer do segundo semestre do ano de 1932 e primeiro trimestre do ano
corrente [1933] foi concluída a represa do Paraíso
139
quase terminada a caixa de
decantação e assentes os 140 metros de linha dupla e concluído o assentamento da
linha adutora em cerca de 10 kilômetros. Embora esteja o serviço em condições de
suprir o reservatório da cidade e cerca de 7 milhões de litros, na adutagem as obras não
estão ainda concluídas, dependendo de serviços complementares. Como a linha auxiliar
do Tribuna, a consolidação de alguns trechos de linha, reforços e levantamento do
aterro nas baixadas do Macacu e Guapy e a Ponte definitiva do rio Inconha (O Estado,
Niterói, 1933).
140
Desta maneira, mesmo não estando plenamente concluído o Sistema foi inaugurado, e sua
importância repercutiu rapidamente. A imprensa foi ligeira e o dia da inauguração foi noticiado
pelo jornal O Estado. A cerimônia não diferente das descritas neste estudo teve forte conteúdo
político, dada sua importância à Capital e, noticiada:
Seriam precisamente 16 horas, quando, fazendo-se acompanhar de todos os seus
secretários, chefe de polícia e comandantes da Força Militar e Corpo de Bombeiros,
representantes da imprensa e demais convidados, chegou ao pavilhão de manobras o
Sr. Interventor Ary Parreiras
141
. Dirigindo-se incontinente para a válvula de ligação de
distribuição da cidade, onde era aguardado. [...] e após cumprimentos da pragmática, fez
S. Ex. funcionar a chave de distribuição à cidade, sendo por essa ocasião, saudado pelos
presentes por uma prolongada salva de palmas (Ibidem).
Finalmente havia água para os niteroienses e durante algum tempo pensou-se até no regime de
‘torneiras franca’. Admitindo-se então que a pressão d’água nos canos das ruas sempre fosse
suficiente para abastecer as casas, bastando-lhes pequenas caixas d’águas, a fim de suprir as
139
A represa do Paraíso está situada na altitude de 90 metros, a caixa de decantação 140 metros distante localizada na
cota de 88 metros. A canalização de 0,25 em linha dupla tem a extensão de 140 metros da represa à decantação. O
encanamento adutor de 0,50 de diâmetro em ferro fundido de aço Mamermann tem o comprimento de 59
kilometros, a 860 metros do Pavilhão de manobras a caixa de decantação trabalhando com uma perda de carga de
0,000989 por metro (ALMEIDA, 1929).
140
Discurso do prefeito Gustavo Lyra da Silva, na solenidade de inauguração do sistema de captação de águas do
Paraíso, em reportagem do jornal O Estado, de 1933.
141
Estes em descrição de próprio Jornal, foi o “interventor” que na época de seu governo “[...] muito se interessou
pela conclusão das obras, para qual igualmente concorreram o prefeito Gustavo Lyra e o engenheiro Borges de
Mello, engenheiro-chefe da Nova Adductora.” (O Estado, Niterói, 1933).
96
eventuais perdas de carga em horas de maior consumo, e assim, totalmente supérfluas cisternas e
outros reservatórios maiores. Mas nunca se chegou a tanto, segundo Werhs
(1984, p. 260)
:
[...] por vários anos a rede de água parecia bastar às necessidades da população, embora
se deva assinalar que alguns bairros jamais tivessem sido contemplados com esse
melhoramento. Além disso, o município de São Gonçalo começa a desenvolver-se e as
sangrias nas grossas tubulações que atravessavam as suas terras foram aumentando.
O Estado Novo e a continua influência da Reforma Pereira Passos
Quase em meados do século XX, nem a Prefeitura nem o Estado
142
possuíam meios para
realização de obras de grande porte. Dessa forma, limitou-se o Estado, inicialmente, a intensificar
a arrecadação, sendo os investimentos, durante essa fase, restritos à execução de obras inadiáveis
no interior fluminense, no campo da higiene e da educação, sob a égide do populismo e da saúde
pública dando continuidade ao pensamento progressista que imperava desde o início do
século
143
. Posteriormente, segundo Werhs, graças a meios obtidos pela exploração do jogo, o
assim realizadas as grandes obras.
MAPA 12
– Planta de Niterói em 1940.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
142
Este era responsável por uma divida acumulada de aproximadamente 293 mil contos de réis (WERHS, 1984)
143
Sobre a repercussão nacional e internacional na época das realizações de Emílio Ribas e Oswaldo Cruz que
saneavam o país, seguidos ao urbano no Rio de Janeiro por Pereira Passos.
97
Assim, mesmo após a Revolução de 30, permaneceu a tutela da cidade pelo governo estadual
144
.
No Estado Novo, essa tutela se consolida com Brandão Junior, prefeito escolhido pelo
interventor Ernani do Amaral Peixoto – em cuja gestão fica difícil distinguir o que seriam
intervenções estaduais ou municipais. Com a chancela de Getúlio Vargas, Amaral Peixoto
constrói hospitais, postos de saúde, estradas e escolas, além do estádio do Caio Martins, obras
essenciais, porém coerentes com o modo de governar populista implantado pelo governo central.
Na década de 40, novamente, como reflexo das intervenções urbanas sofridas na cidade do Rio
de Janeiro, foi lançado o Plano de Urbanização e Remodelação da Cidade de Niterói que entre
outras medidas possibilitou a abertura da Avenida Amaral Peixoto
145
(inaugurada em 1942),
definindo um novo modelo de ocupação para a área com a elevação do gabarito e o surgimento
das galerias que até hoje identificam esta via.
FIGURA 27 – Panorama dos edifícios da Avenida Amaral Peixoto, Centro de Niterói (1950).
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
O embelezamento de áreas da região central, principalmente a abertura de uma “artéria”
principal, retoma o discurso que envolveu a abertura da Avenida Central (hoje Av. Rio Branco),
no Rio de Janeiro e que a autora paulista, Annateresa Fabris (2000, p. 19), observou criticamente
nas palavras do poeta e cronista da época Olavo Bilac:
144
Lembrando que entre os anos 1922 e 1929, os governos centrais eleitos eram todos apoiados pelos governadores.
145 A partir de Decreto Federal 2441/40, segundo Diagnostico da Sub-Região Centro, Prefeitura de Niterói
Secretaria de Urbanismo e Controle Urbano, 2007.
98
A ânsia com a qual o projeto é esposado pelos intelectuais e pela imprensa em geral
pode ser inferida de várias manifestações interiores e paralelas à inauguração da “grande
artéria”. Entre as primeiras avulta uma crônica de Bilac, na qual a destruição da cidade
velha é saudada efusivamente como elemento de regeneração. O contraste velho-novo
é explorado simbolicamente pelo poeta graças à humanização de duas estruturas
antagônicas: “o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Atraso, do Opróbrio” e o
“hino jubiloso” das picaretas regeneradoras, arautos da vitória da higiene, da arte e do
bom gosto.
O processo em curso tem a premissa baseada na regeneração em conformidade com a
salubridade e a modernização. Mais uma vez, a reforma urbana tem como intento moldar o
mundo de acordo com modelos ideais da realidade. Coextensivo à intensa necessidade de
transformação de um mundo que de alguma forma não se quer ao que já nos referimos da
leitura de Marshall Berman –, que penetra neste contexto e, atribui a velha cidade, à cidade
colonial.
Ainda sobre este aspecto, o Plano de Urbanização e Remodelação da Cidade de Niterói, previa
também a execução do Aterrado Praia Grande
146
, concretizado após uma longa odisséia, narrada
detalhadamente pelo Procurador Geral do Município, Herval Bazilio, através do seu parecer
02/85 que consta do processo n° 10/3384/84
147
. Posteriormente, várias transformações se darão
nos objetivos do projeto.
Neste mesmo período, a introdução do ônibus, como transporte coletivo permitiu a expansão da
cidade e a ocupação de novas áreas, tanto na zona norte quanto na região litorânea das Praias da
Baía. O bonde que até então era transporte usual, dadas suas características limitadas de
implantação não possibilitava a ligação com os bairros mais distantes A tecnologia limitava a
expansão urbana. Entretanto, na leitura do planejamento urbano da cidade, parece-nos que esta
demora era ainda necessária, a julgar pelas dificuldades que as diferentes gestões urbanas
demonstraram em prover de infra-estrutura os novos e antigos espaços. A partir da dinâmica das
vias e do automóvel, o processo se acelera ainda mais, e o planejamento por diversos motivos,
entre muitos deles notadamente de natureza política, permanece em sua lenta velocidade.
Por fim, é neste período que Luis Fernando Valverde Salandía identifica que a estruturação
urbana de Niterói a partir de 1940 se deu de formas diferentes para a cidade, e na qual
respectivamente o poder público e iniciativa a privada foram protagonistas fortes e decisivos na
definição do tecido urbano. Para o Centro foram constantemente formulados e reformulados
planos que quando implementados, aconteceram apenas parcialmente.
Entre 1940 e 1970, [...] o poder público realizou grandes planos e investimentos na
zona central, onde se repetiam os mesmos projetos de décadas anteriores, visando um
146
Decreto Federal 2441/40 cria o aterrado, que pretendia deslocar o centro da cidade 600m sobre a Baía de
Guanabara, segundo Diagnostico da Sub-Região Centro, Prefeitura de Niterói – Secretaria de Urbanismo e Controle
Urbano, 2007.
147
Transcreve a apreciação histórica da área e sua propriedade, com as peripécias administrativo-judiciais que as
envolvem, desde a corporificação da Concessionária montada por Frederico Bokel e Gabriel M. Fernandes,
originalmente registrada como: Cia. Melhoramentos de Niterói.
99
“gigantesco novo centro urbano”. De acordo com Backheuser (1994) entre 1937 e 1945
Niterói ocupou o “segundo lugar nacional em volume de obras urbanas, perdendo
apenas para o Rio de Janeiro”. Nas décadas de 1940 e 1950 a construção de prédios
públicos contribuiu para modernizar a cidade através da arquitetura, somando-se a
emblemática abertura da avenida Comandante Ernani do Amaral Peixoto (1942).
O Plano de Urbanização e Remodelação de Niterói (1943) permaneceu na ordem do
dia e resultou na elaboração, em 1956, do Loteamento Jardim Fluminense
148
, inscrito
10 anos mais tarde no Registro de Imóveis; o projeto foi parcialmente implantado pelo
concessionário, o que levou à sua desapropriação em 1971 e à criação do Grupo
Executivo de Urbanização da Nova Niterói, que incluía, além da conclusão do aterro, a
ligação do Centro às zonas de expansão dos bairros oceânicos e às zonas turísticas da
Região dos Lagos. (SALANDÍA, 2001, p.30)
Com a democratização em 1947 e na primeira eleição municipal de 1954, assume Alberto Fróes,
que administra – pela primeira vez em muitos anos – a cidade de forma independente do Estado,
possível devido ao bom relacionamento com o sucessor de Amaral Peixoto, Miguel Couto Filho.
No entanto, mais à frente, a retomada do apoio do Estado trás novamente maiores mudanças no
governo estadual de Roberto Silveira e na prefeitura de Wilson Oliveira, assumindo o Estado um
conjunto de obras que atendeu pelo nome de Operação Niterói
149
. Restabelecido o regime
democrático, Niterói modifica-se, a população cresce de um modo imprevisível, segundo dados
municipais, em 1920 a cidade contava com 82.000 habitantes, levanto trinta anos para atingir um
pouco mais que o dobro (186.000). Porém decorridos dez anos (1960) a população triplica
atingindo cerca de 250 habitantes (MATTOS, 1975). Neste acelerado processo de crescimento
urbano, os serviços públicos tornaram-se obsoletos, ultrapassados, como lembra Werhs (1984, p.
116), “[...] não houve uma proporcional ampliação das redes de abastecimento de água e esgoto;
das ruas abertas nessa época poucas foram pavimentadas, e as que possuíam calçamento
reclamavam melhor conservação”.
Nesta época, dada a necessidade e a carência existentes, a população ansiava por soluções
urgentes e algumas radicais
150
. E parte destas reivindicações do povo pôde ser logo atendida
pelos governantes estadual e municipal. Como no caso, da interferência no sistema de
abastecimento da cidade, a partir da incorporação das águas que eram derivadas em São Gonçalo,
o Estado também interviu na Companhia Cantareira em apoio às reivindicações da população.
Mais à frente, ainda o governador Roberto Silveira implementará maior desenvolvimento à saúde
e à cultura. Essas ações, seu filho Jorge Roberto Silveira, retomou recentemente, no que foi
apontado como sendo o período de recuperação da auto-estima dos niteroienses – após a
148
O projeto foi elaborado pela Companhia Territorial Fluminense SA, que à época da sentença judicial que permitia
a comercialização de lotes sub-aquáticos tinha sido sucedida pela Planurbs S.A.
149
Neste Plano, ruas são asfaltadas, é iniciada a construção da Avenida do Contorno e ações de maior envergadura
no Estado são reproduzidas no município, como o Movimento Popular de Alfabetização (CAMPOS, 1990).
150
Este período foi caracterizado por diversas manifestações em relação aos serviços públicos da cidade, a exemplo
dos episódios a empresa Cantareira que fazia o transporte marítimo para a cidade do Rio de Janeiro.
100
dissociação da capital do Estado à cidade –, onde muitos recursos passam a ser destinados para a
cena cultural, e por conseqüência para projetos urbanos estrategicamente moldados para este fim.
Águas à população crescente
Com passar dos anos a expansão urbana empreendida pelo crescimento econômico que vigorava
no Brasil, aliado à evolução dos transportes coletivos (as linhas de ônibus), Niterói cresceu em
uma projeção geométrica. Vieram os arranha-céus, e com eles, novo colapso no abastecimento.
De acordo com Werhs, a rede de distribuição havia praticamente permanecido a mesma durante
anos a fio, e para garantirem abastecimento, os grandes edifícios adotaram bombas de sucção,
resultando na canalização e níveis piezométricos negativos, ou seja, aumento de velocidade de
fluxo para a obtenção de uma maior quantidade de água. Logo muitas residências não dispondo
desses artifícios voltaram a utilizar-se de poços abertos em seus quintais.
Daí para cá a situação tem se agravado tanto que chegaram a permitir ligação de
bombas de sucção direta na rede, procedimento, aliais qualificado de criminoso no
Código Penal, que tem sido tolerado pelas autoridades competentes, em vista do estado
de necessidade, por vezes de quase calamidade, do serviço de abastecimento de água
em Niterói. (MATTOS, 11/09/1975)
Ao que se sabe, Niterói, como muitas cidades que conheceram o sistema de água encanada ainda
no século XIX apresentaram problemas de fornecimento no início do século seguinte, devido
ao rápido aumento da demanda. Quanto mais as cidades se desenvolviam, mais caro ficava
manter bons padrões de abastecimento.
Durante 1937 a 1945, no Estado Novo, os serviços de abastecimento de água foram transferidos
para a Companhia Brasileira de Águas e Esgotos de Niterói (representados por Dahne &
Conceição), esta privatização não apresentou bons resultados e trouxe prejuízos à população.
Como solução, o Estado assumiu a massa falida e criou a Companhia de Águas e Esgotos de
Niterói (CAEN). Depois, em 1952, com a Companhia de Água e Esgotos (CAE)
151
, é retomado
o controle total do sistema no território estadual.
151
Mais tarde em 1972, depois de passar por diversas denominações chega-se a Companhia de Saneamento do
Estado do Rio de Janeiro (SANERJ).
101
QUADRO 3 – Quadro de origem da CEDAE.
Fonte digital: http://www.cedae.rj.gov.br/
Esta providência permite que, ainda no mandato do governador Ernani do Amaral Peixoto, o
governo estadual e municipal – através da CAE –, no ano de 1954 coloque em carga o sistema de
captação do Canal de Imunana com tratamento na ETA (estação de tratamento de água) do
Laranjal
152
com uma vazão de mais de 500 litros por segundo. Por este canal passa as vazões de
contribuição dos rios Guapiaçu e Macacu, conduzindo-as à calha natural do rio Guapimirim. Por
sua vez, de acordo com o histórico relatado pela Companhia Estadual de Água e Esgoto
(CEDAE, 2007), as características físicas, químicas e bacteriológicas da água desse manancial,
com base nos resultados de análises e exames efetuados, determinam a necessidade de tratamento
completo para a sua potabilização. Este serviço foi encampado pela Companhia que
providenciou a construção da estação de tratamento de água.
152
A água distribuída no Município de Niterói é proveniente do Sistema Imunana/Laranjal. A captação da água
bruta é feita no Canal de Imunana, que é resultante da confluência dos rios Macacu e Guapiaçu, onde através de uma
barragem em conjunto com um sistema de comportas é garantido o nível mínimo de operação. O manancial é
operado pela CEDAE e o órgão responsável pelo seu monitoramento é a Fundação Superintendência Estadual de
Rios e Lagoas (SERLA). O tratamento se dá na ETA Laranjal, também operada pela CEDAE, sendo do tipo
convencional com seqüência de floculação, decantação, filtração, desinfecção e fluoretação. A água distribuída pela
Concessionária Águas de Niterói cumpre as normas, procedimentos, parâmetros, números de amostras e freqüência
preconizados pela Portaria nº 518 de 25 de março de 2004 do Ministério da Saúde (Águas de Niterói S/A, 2005).
102
FIGURA 28 – As obras de adução (tubos de aço com 1 metro de diâmetro que percorrem 14 quilômetros partindo do
canal de Imunana), reservatórios de passagem (com capacidade para 600.000 litros) e edificação da Estação de
Tratamento de Água Imunana-Laranjal (1954).
Fonte: ANUÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 1954.
Com a fusão, em 1975, dos estados do Rio de Janeiro e da Guanabara, houve também a fusão das
três empresas
153
que passaram a fazer o saneamento no novo Estado do Rio de Janeiro. A partir
daí com a liberação de 1,9 bilhões de cruzeiros destinados a obras de água e esgotos em todo o
Estado, houve o aumento da oferta de água para Niterói e São Gonçalo, através da reorganização
e ampliação da malha distribuidora do Sistema Imunana/Laranjal. Todavia, de acordo com
informações oriundas de entrevista com engenheiro e especialista Dr. Antônio Dahora
154
, a
situação de abastecimento de água para a Cidade era crítica. Apesar da capacidade do sistema este
não era bem administrado e nem bem operado. Excetuando a área conhecida como região das
Praias da Baía e parte da região Norte o restante da população niteroiense habitante de outras
localidades não estava ligada à rede de distribuição, e quando eram sofriam com a constante
falta de água, o mapa de levantamento da CEDAE no ano de 1982, descreve a situação.
153
Neste período eram duas as empresas de saneamento básico no Estado da Guanabara: Empresa de Saneamento
da Guanabara (ESAG), responsável pelos esgotos, e Companhia Estadual de Águas da Guanabara (CEDAG),
cuidando do abastecimento de água. Em 1975, nova mudança no mapa político tornaria Guanabara e Rio de Janeiro
num Estado, como até hoje. A fusão determinou a integração das empresas de saneamento dos dois lados,
juntando CEDAG, ESAG, e SANERJ, esta última a responsável pelos serviços de água e esgotos do território
fluminense. E assim nascendo a CEDAE, naquele mesmo ano.
154
Engenheiro e professor doutor do Programa de Pós-graduação em Recursos Hídricos da Escola de Engenharia
da Universidade Federal Fluminense, e atual Subsecretário do Maio Ambiente do Estado do Rio de Janeiro.
103
MAPA 13 – Mapa de levantamento de usos da água no município de Niterói (1982).
Fonte digital: http://www.cedae.rj.gov.br/
Assim, um quadro de mudança efetiva que perpetua até estes dias, sobre administração de Jorge
Roberto Silveira (1998), o município assumiu novamente a responsabilidade de abastecimento de
água e de coleta e tratamento de esgoto. A Concessionária Águas de Niterói
155
passa a administrar
os bens municipais referentes aos sistemas de abastecimento de água e rede de esgoto, neste
processo, a propriedade e responsabilidade é passada ao Município pelo governo do Estado.
2.4. Os Símbolos da Cidade
A modernização da Cidade
As cidades desenvolvem suntuosamente uma linguagem mediante duas redes diferentes
e superpostas: a sica, que o visitante comum percorre até perder-se na sua
multiplicidade e fragmentação, e a simbólica, que a ordena e interpreta. (RAMA, 1985,
p.77)
155
No ano de 1997, a prefeitura decidiu não mais prorrogar a concessão dos serviços à CEDAE, como vinha
fazendo desde 1992, quando venceu o contrato com a concessionária estadual, desencadeando naquele momento o
processo de privatização do setor no município. Tal processo culminou na concessão por 30 anos dos serviços de
água e esgotos da cidade à companhia Águas de Niterói, formada por um consórcio de empresas nacionais de
engenharia e construção, que venceu a licitação com base na menor tarifa, assinando contrato com a prefeitura em
outubro de 1997. Porém, a empresa só pôde assumir a operação dos serviços dois anos depois, devido a uma disputa
judicial entre a prefeitura e o governo estadual em torno da titularidade dos serviços na região metropolitana do Rio
de Janeiro. Com seu valor global estimado em 1,65 bilhões de reais, o contrato estabeleceu metas de investimento de
aproximadamente R$ 200 milhões na melhoria e ampliação dos serviços (VARGAS, 2005).
104
Pelo exposto neste capítulo, na análise sobre a formação urbana até a metade do século XX,
Niterói apresenta as feições que inicialmente podem ser percebidas, como às das cidades em
geral, reflexo de modelos políticos e econômicos. Neste aspecto de compreensão do espaço
urbano
156
, esta lógica modela a estrutura urbana, conduzindo à concentração social e espacial dos
meios de produção e da força de trabalho necessárias a seu funcionamento. Remetendo-nos ao
entendimento de que, quanto mais a realidade da cidade se impõe, mais instrumentos tornam
possível sua crescente mudança.
Este olhar sobre o meio físico, revela a importância da abordagem e análise dos momentos
políticos e econômicos da história de Niterói para um exame consistente sobre o espaço da
cidade mais especificamente em sua área central, para o que diz respeito ao aporte espacial e
temporal deste estudo. Desta forma, neste primeiro capítulo a leitura foi construída assinalando o
discurso político e os aspectos sociais e econômicos de diferentes momentos realizados
fisicamente ao plano da cidade, em conjunto ao entendimento da dialética entre a modernização e
modernidade característica especialmente influente nas transformações dos sistemas de
abastecimento de água.
Trata-se de mostrar como esse movimento transformador, iniciado em Niterói com o “Plano da
Vila Real da Praia Grande”, ganha com o passar do tempo outras formas e contornos, a partir da
essência de transformar o mundo que em um dado momento não é mais aceito, como referida
na concepção de Marshall Berman. O que pode ser claramente evidenciado, na obra Walter
Benjamim (2000, p.20), que de forma semelhante se põe a observar os efeitos da modernização
157
na dinâmica da cidade, especialmente a da cidade de Paris, diz ele:
A cidade de Paris entrou neste século com a feição que Haussmann lhe deu. Ele
realizou a sua transformação da imagem da cidade com os meios mais humildes: pá,
machadinha, alavanca, e coisas semelhantes. E que grau de destruição provocaram
estes instrumentos limitados! E como cresceram com a grande cidade os meios que a
podem destruir! Que imagens do futuro provocam!
Em sua análise é interessante constatar que pequenos instrumentos podem realizar enormes
transformações. Neste mesmo respaldo, se insere a observação de que apesar de se contar como
elemento integrante da infra-estrutura da cidade, o sistema de abastecimento foi o fulcro do
desenvolvimento urbano, pretendido nas diferentes épocas e nos diferentes planos de Niterói. Na
história da cidade e do sistema de abastecimento de água, é possível notar paralelamente, que este
mesmo é, repetidas vezes, a questão básica à infra-estrutura da cidade. De uma forma ou de
156
Para a reflexão sobre as cidades deve-se considerar, neste trabalho, além das perspectivas de Marx e Engels (1818-
1883) e (1820-1895), o enriquecimento que é trazido por outros sociólogos e filósofos, com novas perspectivas a se
somar à diversidade do meio urbano. São consideradas bases fundamentais para a evolução do estudo do urbanismo,
como os escritos de Max Weber (1864-1920), Robert Ezra Park (1864-1944), Henri Lefebvre (1901-1991), entre
outros.
157
Tal essência se adéqua ao mecanismo fundamental de uma tradição da modernidade, examinada por autores
como Charles Baudelaire, Walter Benjamin, Marshall Berman: o de um movimento dialético incessante de criar para
destruir.
105
outra, foi sempre como vimos, o ponto marcante nos programas governamentais. E, no que
tange à influência no espaço da cidade por este elemento, principalmente sua existência em
determinados locais, caracterizou e direcionou fortemente a expansão de Niterói. Como no
crescimento do núcleo inicial da Praia Grande e São Lourenço, na estagnação de São Domingos
– por sua ausência –, na expansão da localidade de São Lourenço em direção ao Fonseca – com a
nascente do rio Vicência –, e na expansão do povoado de São João de Icaraí em direção a Santa
Rosa – com a nascente do morro do Bumba.
Deste modo, incorporando ao presente trabalho a dimensão simbólica dos componentes do
sistema de abastecimento, não é difícil constatar o papel que as várias intervenções urbanas
tiveram no processo de construção, destruição e reconstrução, especialmente na área central da
cidade, e como fenômenos formadores de Niterói.
MAPA 14 – Em comparação plantas da área central de Niterói em 1829 e 1922.
Fonte: WIEFELS, 2001.
As transformações podem ser percebidas mais claramente, principalmente no período após o
século XIX, marcado pelas condições econômicas e políticas presentes então. A configuração das
cidades sofreu intensas modificações nos séculos XIX e XX, passando a ser definida por uma
nova lógica urbanista, subordinada às necessidades da sociedade urbano-industrial que se
formara. Portanto no aspecto contemplado por esta pesquisa sobre a infra-estrutura urbana –,
106
devido ao acelerado crescimento populacional, nesse período houve grande intensificação dos
problemas urbanos. Destacando-se o agravamento da insalubridade, com a proliferação de
doenças e a redução da qualidade de vida nas cidades, decorrentes fundamentalmente da carência
de infra-estrutura de saneamento. As cidades passaram a requerer e a incorporar as inovações
técnicas, adquirindo uma feição diferente. Entre os novos elementos urbanos, a infra-estrutura
tornou-se fundamental a nova definição e caracterização das urbes.
MAPA 15 – Croquis representativos da evolução da malha urbana do Centro de Niterói.
Fonte: Arquivo UDU - PMN, 2007.
MAPA 16
Neste sentido, como visto nesta análise, o surgimento de um novo padrão de assentamento e de
novos hábitos urbanos determinou o reordenamento das cidades brasileiras, através de
intervenções diversas: alargamento de vias, demolições de edificações, alterações da paisagem
natural, implantação de infra-estrutura em geral e a criação de áreas de expansão urbana de
acordo com os modernos preceitos sanitaristas. Isto se deu através de mudanças de leis
regimentais, como a Constituição republicana de 1891 que determinava a organização dos
Estados para que os municípios se tornassem mais independentes. Desta forma, as cidades
passaram a legislar sobre ruas, jardins, viação urbana, e serviços e obras de interesse social
determinando suas feições estéticas e condições higiênicas – estas últimas que se transformaria no
saneamento básico.
107
O abastecimento d’água nas cidades brasileiras foi motivo de grande preocupação dos
sanitaristas, no período das maiores transformações urbanísticas dos séculos XIX e XX. Tratava
de um problema originado no período colonial, perdurara até então e, se agravara bastante com o
crescimento das cidades, exigindo, de forma cada vez mais urgente, soluções que garantissem não
apenas o abastecimento constante, mas também a boa qualidade da água, na procura de reduzir as
endemias oriundas das moléstias de veiculação hídrica que ciclicamente assolavam a população.
O processo de provimento de águas à Cidade
Niterói sofreu com os problemas de abastecimento de água desde seus primeiros anos. Para
atender as necessidades eram recolhidas águas de fontes e nascentes no sopé de morros, onde os
primeiros “aguadeiros” foram os índios, dominados pelo europeu; depois, seriam os escravos. A
água fornecida pelos aguadeiros representou o primeiro serviço de distribuição de água que a
cidade de Niterói, e outras na mesma época, conheceram. Com o advento das primeiras
canalizações, os chafarizes e bicas públicas representam um segundo momento, que permitiu o
atendimento de mais segmentos da população. E por esta razão, se perpetuaram na memória da
cidade, passando a ser a fonte da necessidade cotidiana da população e, se tornando assim, um
elemento marcante na paisagem da cidade.
Entretanto, o problema principal a cidade, assim como na cidade do Rio de Janeiro, era a
ausência de mananciais com vazões e capacidade continua de fornecer água, confirmando a
adjetivação indígena que origem ao nome da cidade as águas realmente eram escondidas, o
que remete a frase do filósofo Lefebvre: “Nature et histoire relèvent donc des mêmes lois fondamentales” –
Natureza e história dependem, então, das mesmas leis fundamentais (LEFEBVRE, 1979, p.122).
A tentativa de solução deste original problema fundamental foi concretizada só mais tarde,
quando foram executadas obras para o aproveitamento de mananciais com maiores vazões e mais
distantes, além dos limites municipais. Possível no período republicano, quando foi construída
uma adução com vários kilômetros de tubos de ferro fundido. A construção dessas adutoras
proporcionou à cidade um grande reforço, triplicando seu abastecimento. Mesmo assim, o
volume de água obtido era variável, em função das chuvas, devido ao fato de o sistema não
possuir reservatório com volume adequado à regularização das vazões, o que só aconteceria mais
tarde com o represamento do rio Paraíso.
158
Neste mesmo momento, pelo Estado e
Município
159
, são acelerados as ligações domiciliares e também são instituídas as taxas de água e
esgotos.
158
De acordo com Pedro Telles, em seu estudo “História da engenharia no Brasil”, o período em questão foi
marcado pela utilização de duas novidades da engenharia, introduzidas pelo engenheiro Henrique de Novaes: o
emprego do concreto armado nas caixas e reservatórios e o uso de bombas centrífugas acionadas por motores
elétricos (TELLES, 1993).
159
Da mesma forma que em outros municípios-capitais estaduais, em Niterói encontrou-se, em grande parte, uma
superposição do poder estadual, absorvendo parcelas do poder municipal. O que responde ao grande incremento no
setor de águas públicas para o Município, no período de que este foi capital do Rio de Janeiro, no final do século
XIX até 1975.
108
Para frente, o desenvolvimento gerado pelo crescimento populacional, acoplado ao surgimento
de novas atividades econômicas, irá, de forma espacialmente diferenciada, trazer reflexo ás
diversificações sociais e ao meio físico. No caso de Niterói, têm-se, a partir de 1940, 85% da
população habitando domicílios urbanos. Esta constatação, explica a necessidade de efetivas
mudanças no sistema e abastecimento da cidade com a construção e a incorporação do Sistema
Imunana-Laranjal em 1954, e da extensão do sistema de distribuição para outras localidades em
crescimento dentro do município. Este serviço é ampliado e melhorado após a fusão dos estados
com criação da CEDAE. Porém, a situação só é satisfatoriamente resolvida com a passagem para
o município, do serviço de abastecimento e distribuição de água. A medida foi essencial para que
o fornecimento de água se mantivesse num padrão aceitável. Entretanto, vale lembrar que a
população tem boa parte de seu problema resolvido, mas somente possível a partir de
pagamentos mensais
160
.
De forma positiva, a infra-estrutura urbana da antiga capital permitiu o crescimento da cidade a
partir da década de 70, quando ocorreu “o grande crescimento imobiliário” do município. Porém,
de para cá, a ausência de planejamento urbano trouxe à tona situações conflituosas da malha
urbana da cidade.
Cabe lembrar, em especial quanto ao atual sistema de abastecimento de água e a partir das
experiências ocorridas que, em Niterói, as operadoras privadas investiram bastante na expansão e
melhoria dos serviços, majoritariamente com recursos próprios (aportes dos acionistas). Segundo
estudos de Vargas
161
, ao contrário do ocorrido em outras privatizações de serviços de água e
esgotamento sanitário, seja fora (Buenos Aires) ou dentro do Brasil (Manaus, Campo Grande), a
concessão não resultou, até o momento, em aumentos reais de tarifas significativamente acima da
inflação
162
.
Contudo, a concessão, no tocante à sustentabilidade social revela problemas. Como os déficits de
cobertura se concentram na população de baixa renda, que vive em moradias precárias em
assentamentos urbanos irregulares
163
, a busca de universalização do atendimento envolve
160
Esta questão, por um lado, evitou o desperdício e garantiu por parte da população maior atenção ao controle da
água. Por outro lado, relata-se a taxação de um bem considerado da humanidade, prioritário a vida. O que move a
discussão para outros meios, que tem como foco o entendimento de patrimônio, neste caso, patrimônio da
humanidade essencial à sobrevivência. Contudo, a pluralidade temática da água abrange diferenciadas noções de
patrimônio, e nesta pesquisa, a discussão será desenvolvida com o conceito de patrimônio histórico e cultural.
161
Cf. Marcelo Coutinho Vargas, “O negócio da água: debatendo experiências recentes de concessão dos serviços de
abastecimento de água e esgotamento sanitário a empresas privadas no Brasil”.
162
Diferentemente do ocorrido com as tarifas de eletricidade e telefone depois da privatização, as tarifas de água e
esgotos das operadoras privadas continuam representando uma parcela relativamente pequena do orçamento familiar
nesta concessão, variando de aproximadamente 9 por cento do salário nimo vigente em dezembro de 2002.
Apesar do aumento da tarifa média registrado nas concessões privadas do Estado do Rio de Janeiro, que ficaram
acima da tarifa média da CEDAE, as tarifas correspondentes ao consumo mínimo das operadoras privadas
permaneceram abaixo da praticada pela concessionária estadual na faixa correspondente.
163
Estes dados extraídos da publicação do Plano Estratégico Municipal para Assentamentos Informais Urbanos de
Niterói (PEMAS) inserem Niterói na dicotomia crescente da cidade formal e não formal. De acordo com o censo
IBGE 2000, no período de 1996 a 2000, o número de moradores nas áreas “informais” passou de 29.781 para 50.632
109
necessariamente esquemas de tarifação social, entre outras medidas. Este problema foi
reconhecido pela concessionária do serviço de Niterói, onde estão sendo aplicados descontos nas
tarifas e/ou nas taxas de ligação para populações de baixa renda, além de medidas
complementares (contratação de o de obra local e apoio a iniciativas comunitárias). Porém o
alcance é ainda bastante limitado, o resultado desta situação é um numero elevado de ligações
irregulares realizadas pela população na rede de abastecimento. A despeito dos seus direitos e,
também dos seus deveres, o que configura muito bem o paradigma encontrado por esta pesquisa
e relatado em terceiro capítulo, descrito no desconhecimento do antigo sistema de abastecimento
de água pelos dos moradores adjacentes a este, que ocupam encosta do morro da Boa Vista, no
bairro de Fátima, e contribuem para a depredação do antigo sistema de águas.
Os símbolos da Cidade e o Estado
Este quadro de planejamento do setor de abastecimento de água é um dos aspectos que
caracteriza, através da leitura do meio urbano em paralelo com as ações do poder público
(abordada neste capitulo) em conjunto com as reflexões impetradas pelo historiador Paulo
Knauss no texto “Cidade Panteão”, a relação do Estado sobre o espaço urbano, e por
conseqüência a também relação das imagens, símbolos a cidade de Niterói. E desta, se deve a
afirmativa da conformação do espaço pela vontade do poder local, o que não muitas vezes quer
dizer respeito à necessidade da população – para melhor entendimento da realidade atual.
Novamente por Knauss (2003, p. 190), “[...] no plano simbólico, organiza-se o entrelaçamento da
Sociedade e do Estado. No cotidiano da urbanidade, os cidadãos passam a conviver com essa
concepção da história da sua sociedade atrelada à afirmação simbólica do Estado”. Deste modo,
como produto da ordem social da cidade, os símbolos tornam-se então emblemas da identidade
urbana que organiza simbolicamente o passado, fundamentando-o em bases afetivas e
inscrevendo-o na paisagem. O que adiante confirma: “A história torna-se o campo da memória
social territorializada” (Ibidem, p. 191).
Estas imagens e espaços demarcam simbolicamente a urbanidade, na medida em que assumem
conteúdos significativos que são socialmente construídos. Tornando-se representações espaciais e
históricas, relacionadas com o processo de construção social da identidade desta sociedade. Na
cidade de Niterói, estas imagens são, portanto, elementos de organização do espaço e da sua
história, como descreve Kevin Lynch (1988, p. 15): “A cidade é potencialmente o símbolo
poderoso de uma sociedade complexa. Se for bem desenvolvida do ponto de vista óptico, pode
ter um forte significado expressivo”.
Nesse sentido, os símbolos assumem papel de destaque na paisagem construída, e identificam as
áreas urbanas e suas comunidades, tornando-se marcos da cidade, ou seja, matéria de expressão
pessoas, o equivalente a 11% da população da cidade naquele período, o que significou um aumento de 70% a
população moradora.
110
dos sentidos da cidade
164
. Por este modo, esta rica perspectiva é uma das principais vertentes de
abordagem para diversos autores que analisam e estudam o tema, como Giulio Carlo Argan
(“História da arte como história da cidade”), Kevin Lynch (“A imagem da cidade”), e Roland
Barthes (“Semiologia e urbanismo”), entre outros.
Esta leitura do meio físico em consonância com sua representatividade simbólica se faz mais
necessária nesta pesquisa, na medida em que o objeto estudado se insere na área central de
Niterói. Estes símbolos urbanos, enquanto conjunto de imagens da paisagem da cidade,
freqüentemente assumem o centro das metrópoles, na forte associação do caráter político e social
que estes mesmos possuem, em um processo original de simbiose. E deste fato, destaca-se a
relevância adquirida pelo centro na perspectiva dos estudiosos da cidade, a partir de
1951.
Quando o centro definido como “coração da cidade”, foi o tema do Oitavo CIAM (Congresso
Internacional de Arquitetura Moderna), na Inglaterra. Naquele encontro, falou-se das cidades
americanas e seus subúrbios, da criação de zonas centrais para pedestres nas cidades inglesas,
suecas e holandesas e da importância dos centros históricos das cidades italianas. Eric Mumford
dá a síntese a esta nova discussão:
[...] o centro urbano: passou a ser o elemento caracterizador de uma comunidade,
voltado aos seus habitantes – como o disse Sert em sua fala –, o repositório da memória
da coletividade – como o disse Gropius, no mesmo Congresso –, e o local que
possibilita entender o aspecto comunitário da vida humana como o definiu Jacob B.
Bakema. (Munford apud MENEGUELLO, 2006)
As três marcas da Cidade
Portanto, a área central de Niterói permeia este universo simbólico. E esta perspectiva torna-se
mais pertinente, através da identificação destes símbolos para a cidade no estudo de Gustavo
Peixoto. Em seu texto Flumina praetereunt”, o autor identifica, no espaço contiguo as praças do
centro da cidade, três momentos importantes da história de Niterói.
O que repercute em seus estudos e na reflexão desta etapa do trabalho, é a confirmação da
presença de elementos do sistema de abastecimento de água adjacentes ou integrantes a estes três
momentos importantes para a Cidade. A identificação destes símbolos da cidade se dá a partir da
pertinência que estes se cristalizam no imaginário niteroiense. Desta forma, são estabelecidos pelo
autor três momentos territorializados em três conjuntos de espaços que, demonstraremos a
seguir, realizando também, um paralelismo entre estes espaços simbólicos e os elementos de
abastecimento de águas.
1º Momento:
164
Sobre a simbologia e significados destes espaços ou elementos, em terceiro capítulo, a análise realizada junto aos
moradores do bairro de Fátima aprofundará esta reflexão.
111
Caracterizado nos dois primeiros Largos planejados para a Vila no primeiro Plano de Edificação
(1820). O primeiro pretendido como pioneiro centro cívico da cidade, o Largo Municipal (atual
Jardim São João), investido das importantes edificações de caráter político e religioso, com a casa
de câmara e cadeia (primitiva sede do governo municipal não mais existente) e com a igreja
matriz (Catedral de São João Batista). O segundo, o Largo da Memória, projetado por Palliére em
homenagem da D. João VI e revestido de toda representatividade da Renascença. Em destaque,
ambos em seu projeto original, pretendiam a colocação de chafarizes públicos, o que foi realizado
ainda na fase imperial desta província
165
, abrigando o segundo chafariz, além da
representatividade da história cotidiana deste equipamento na vida dos habitantes, a imagem de
celebração da criação desta cidade sob a égide do monarca D. João VI que fora inaugurado
somente por D. Pedro II.
Do aspecto da representatividade, ao que se vê, o Jardim São João abrigou na fase imperial o
centro cívico e religioso da Cidade. Onde se percebe o poder civil municipal e o religioso
funcionando em conjunto, como o “agorá”
166
e a “acrópole”
167
, isto é, como espaço político-
comercial e sagrado – nas cidades helenísticas dos séculos IV e III A.C. Da mesma forma que os
chafarizes públicos investidos de suprir as necessidades da população atenuavam e conciliavam a
relação da população com governo monárquico de então.
2º Momento:
Considerando o conjunto do Palácio Municipal (Prefeitura Velha, e as praças Floriano Peixoto e
Martin Afonso), no período de transição do regime monárquico para o republicano, constrói-se a
afirmação da autonomia da cidade de Niterói. Neste local, que restará da área original do Largo
da Memória (o Campo de D. Helena), perpetuou-se o Pelourinho
168
e foi construída de
arquitetura eclética, a nova Sede Municipal
169
. Assim, deslocando o eixo principal da Vila, na rua
São João, para o eixo principal da cidade de Niterói, na rua da Conceição, pontuada pelo cais e
pela praça Martin Afonso. Praça ligada à identificação simbólica da origem do povoado, não mais
a um representante monarca, mas ao “índio fundador”.
Estes locais também receberam pilastras com bicas. No entanto, estes espaços são ainda mais
representativos da história do abastecimento da cidade, na medida em que as águas utilizadas para
seus respectivos chafarizes (1853) colocados nas praças Floriano Peixoto (largo junto a
Prefeitura Velha) e Martin Afonso – faziam parte do primeiro complexo de águas públicas
165
Respectivamente construídos em 1853 (Largo Municipal) e 1847 (Largo da Memória).
166
Praça comercial e cívica na Grécia antiga (BENEVOLO, 1983).
167
Espaço setor religioso da cidade grega (Ibidem).
168
Até 1889 (término do período imperial), considerava-se como um dos quesitos básicos para a um povoado poder
ser considerado cidade a existência de um pelourinho em praça pública. Esse instrumento de suplício público era
visto como um símbolo da autoridade e da autonomia municipais.
169
Do mesmo modo e com o mesma índole, no Rio de Janeiro, o antigo terreiro da Polé (pelourinho), que também
foi o largo do Paço Imperial, passou a se chamar praça Quinze de Novembro com a proclamação da República.
112
implantado em Niterói, o Complexo do Vintém. Este fato, substantiva ainda mais o momento de
autonomia da cidade, promovendo com efetiva carga o sistema de abastecimento e,
possibilitando a distribuição de um conjunto de chafarizes em outras áreas públicas (praças e
logradouros), o que ampliou e fortaleceu mais e mais a presença destes mesmos na paisagem
histórica.
3º Momento:
No espaço que Gustavo Peixoto chamou de “centro cívico da antiga capital”, é perceptível toda a
força construtora represada nos dois decênios, através dos prédios: da Assembléia Legislativa, do
Palácio da Justiça e da Biblioteca Pública. No centro deste conjunto, a Praça da República re-
afirma a cidade como capital do Estado do Rio, com o testemunho físico para um discurso
enfático, claro e grandioso. E não sob o ponto-de-vista da arquitetura, mas também do eixo
monumentalista e da localização em terreno não ocupado, onde o paisagismo, a arquitetura e a
escultura monumentais são fatos novos sobre o território virgem, livre das contingências da velha
cidade existente. A praça afirma, portanto, a nova vitalidade econômica de Niterói, que venceu a
depressão dos anos anteriores e expandiu sua malha urbana. A praça afirma, por fim, e inclusive
no nome, a República que era preciso introduzir em uma Niterói moderna onde não mais se
respirasse ares monárquicos
170
.
A modernidade trouxe também para uma elevação rochosa adjacente, o reservatório da Correção,
pouco antes de se finalizarem o conjunto de prédios ao novo centro da capital, fora realizado em
morro adjacente, o Reservatório da Correção. O primeiro reservatório expressivo que
representava solução inovadora para captar e armazenar águas extra-municipais. Este reservatório
se configuraria como pano de fundo para realização por outros governantes do deslocamento do
eixo principal para a novíssima e moderna Avenida Amaral Peixoto.
Através desta perspectiva, retomada na compreensão destes três momentos, vê-se que o
planejamento urbano em Niterói segue (ou impõe?) as mudanças do próprio estatuto político
dessa cidade, e os acompanha “transformando” a cidade, e o seu centro, como o lugar por
excelência para as alterações efetivadas ao longo da história.
170
Neste contexto de arquitetura eclética somava-se também o Palácio Municipal, o Teatro Santa Thereza, a reforma
do Palácio do Ingá, os Correios e as Barcas. Na fala e Peixoto (1994) era como se “A arquitetura monumental
eclética e palaciana de todos esses prédios públicos contemporâneos, a República se celebra com ‘retumbante brado
heróico’. (...) Eis que o ecletismo foi, no Brasil todo, a arquitetura oficial da República nascente, como o
neoclassicismo representará a monarquia”. É como se a cidade, reinvestida nas funções de capital do Estado, se
quisesse afirmar pela arquitetura eclética, oficial, solene, plena de efeitos cênicos, por vezes grandiloqüente, dos
grandes prédios públicos.
113
MAPA 17 – Mapa de localização das três áreas históricas da cidade.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2008 (a partir de sobreposição da carta topográfica de 1844, carta
topográfica de 1940 e base cadastral de 2006).
No que tange a reflexão, estas mudanças no espaço da cidade foram continuamente
acompanhadas de um discurso moldado para o que se pretendia. Este fato é mais evidente no
repertório republicano, como já descrito na importância assumida pelo conjunto das obras
públicas atrelado ao discurso político, seja na inauguração da Praça da Republica, onde a
imprensa instrumentará este processo, em que as obras são tomadas como expressão de civismo:
Esses acontecimentos, que motivaram as festas realizadas na capital fluminense,
resultaram na mais eloqüente afirmação cívica dos serviços da República, do regime,
que assim possibilita o trabalho incentivador dos governos, levando-os a, conjugando
esforços e aspirações coletivas, precipitar o ritmo da nossa civilização. (O Paiz,
21/12/1927 apud ABREU In KNAUSS (coord), 2003, p.96)
114
Ou, seja ainda na inauguração do Reservatório da Correção, que não menos importante, também
recebeu todas as possíveis homenagens nas solenidades que cabiam a um bem da Republica, onde
após o discurso do Prefeito Gustavo Lyra:
[...] tomou a palavra o comandante Ary Parreiras, que disse do grande valor da
solenidade, que vinha trazer ao povo da capital fluminense o fruto da tenacidade e
notável competência o engenheiro Borges de Mello, que com rara abnegação e cercado
de competentes auxiliares, havia satisfeito a sua talvez maior aspiração, agradeceu
igualmente a cooperação eficaz e tenaz do prefeito Dr. Gustavo Lyra, que como bom
auxiliar do seu governo tudo fizera em prol dessa realização de alto valor. Em seguida
dirigiram-se todos ao alto do Morro da Correção, o ponto onde se acha localizado
grande reservatório da cidade, ali, após prolongada visita e detido exame, sempre
acompanhados do Dr. Borges de Mello, que lhes fornecia os informes necessários,
beberam da cristalina água do novo manancial adutor. (O Estado, Niterói, 1833)
A reportagem ainda retoma a importância simbólica desta obra para a cidade pela população em
nota adiante:
Segundo ouvimos é pensamento de vários cavaleiros desta cidade, fazerem aquisição de
uma placa de bronze, por subscrição popular, afim de que seja assim perpetuado o
memorável ato do homem devendo a mesma ser colocada no reservatório da Correção
em data ainda não pré-fixada. (O Estado, Niterói, 1833)
A vida e a morte de símbolos da Cidade
Portanto, ao se debruçar sobre a história de Niterói apontam-se algumas consonâncias
fundamentais na apresentação de características simbólicas da cidade. Contudo, este mesmo
processo de identificação dos símbolos a cidade não diz respeito ao pleno entendimento destes
por parte da população, atualmente. Uma vez que, as imagens que compõe esta cidade, a partir
do simples fato de existirem estão também moldadas ao processo do ruir identificado por
Berman.
Neste principio, importantes elementos para a história de Niterói se perderam no tempo
171
, e
não diferente, elementos importantes da história de abastecimento de água da cidade, também se
perderam. Como o exemplo do antigo reservatório da Vicência
172
, e também no exemplo do
chafariz da Praça Joaquim Murtinho (atual Valonguinho), último remanescente original nesta
cidade do período áureo destes equipamentos do espaço urbano de então. Este chafariz é
relatado na história de Niterói por Mattoso Maia Forte, em função da sua notória origem, onde:
[...] o então presidente da província Aurelino de Souza e Oliveira Coutinho, ordenou
aquela obra [o chafariz do Largo da Memória] como a construção de um outro
(chafariz), que foi feito em granito pardo sob forma de coluna, com quatro torneiras de
bronze, no Valonguinho [Praça Joaquim Murtinho] de onde seria canalizada água para
o construído na Praça Martin Afonso [Praça Araribóia]. Esse chafariz foi inicialmente
construído com o produto de uma subscrição para um baile que seria oferecido ao
171
Como no caso da reconstrução da Praça da República.
172
A demolição deste reservatório foi destaque de coluna no jornal O Estado, de 26 de junho de 1951.
115
presidente da província, conselheiro Aureliano. Este ilustre estadista fluminense [...],
desistira do baile e pediu a comissão que empregasse os fundos naquele melhoramento.
As obras do chafariz foram dirigidas peio engenheiro provincial Reis Alpoim. A
inauguração foi feita por D. Pedro II, no mesmo dia em que inaugurou o da Memória,
30 de abril de 1847. Em 1847 a Câmara foi autorizada a transferir o chafariz para
dentro da praça, o que se faz em 1876. A Companhia Cantareira adquiriu da Câmara o
mercado para fazer a construção da ponte central, cuja pedra fundamental foi lançada
em 15 de novembro de 1905. No ano seguinte, ativando-se as obras, o presidente da
Companhia, visconde de Morais, ofereceu o chafariz à Prefeitura, que o colocou onde
se acha. (FORTE, 1973, p. 87)
Entretanto, a pesquisa iconográfica para recuperar a memória dos chafarizes foi quase que em
vão, infelizmente, como relatado por Divaldo Aguiar Lopes. Indiferente, aos apelos realizados
por este em diversas matérias publicadas pelo jornal O Estado, que pretendiam o conhecimento
público deste importante símbolo à memória da cidade, o governo da época desmontou o
chafariz, levando-o para a praça no morro de São Lourenço, onde seria remontado. Ainda após a
retirada de seu local original, em protesto pelo seu abandono, Divaldo permaneceu junto da peça
zelando pelo o patrimônio niteroiense durante dois dias, porém, logo após, ao calar da noite o
chafariz foi sendo aos poucos, peça por peça, surrupiado
173
. Cabendo a reflexão, a desvalorização
do patrimônio quando não existe a consciência do seu significado e importância histórica para a
população. Não que desta atitude relate-se o mau caso, mas que desta atitude relata-se o
desconhecimento sobre aquelas peças de cantaria, a história da cidade nelas contida, para os
demais niteroienses e seus próprios usurpadores.
FIGURA 29
– O desaparecido chafariz de granito, obra de Reis Alpoim (chafariz do Valonguinho).
Fonte: WERHS, 1984.
173
Algumas destas peças parecem evidentemente terem sido utilizadas por moradores do local na construção de suas
casas, entretanto não é possível esta comprovação.
116
3º Capítulo - Complexo do Vintém: história e significado
3.1. A História do Sistema de Águas: Complexo do Vintém
Da abrangência ao foco: a perspectiva da pequena história
A medida que nos aprofundamos no estudo dos aspectos de formação da cidade de Niterói, com
mais facilidade objetivamos a leitura deste espaço e de sua identidade. Para isso, contamos com o
passado contido neste espaço, pois por diversos aspectos, alguns dos lugares que contém a
cidade, parecem contar ainda mais sobre sua história. O bairro de Fátima na área central da
cidade nosso espaço de estudo é um destes lugares onde ainda é possível encontrar na
paisagem elementos de sua gênese urbana, seja no traçado das ruas e caminhos, ou nas
edificações que o conforma e, principalmente, nos remanescentes de elementos compositores da
infra-estrutura urbana.
Ao respeitar a multiplicidade de olhares que conformam a identidade de Niterói, devemos nos
ater que, se lembranças são experiências retrabalhadas, conservadas, transformadas, escrever
sobre elas é realizar explorações que cruzam diversos planos de realidade. Entre estes planos de
realidade neste estudo, além dos aspectos históricos gerais da cidade, nos atemos aos aspectos da
história social e urbana do bairro de Fátima. No entendimento que as lembranças se estruturam
em lugares e, como na fala de Ecléia Bosi em “Direito a Memória”, “se o espaço é capaz de
exprimir a condição de ser no mundo, a memória escolhe lugares privilegiados de onde retira a
sua seiva. As lembranças se apóiam nas pedras da cidade” (BOSI, 1992, p. 356).
Neste sentido, a escala espacial, principalmente por se tratar de análise urbana, sugere a aferição
de informações que intencionam abranger a diversidade destes diferentes planos de realidade.
Portanto, neste capítulo, os pressupostos colocados por Bernard Lepetit
174
(2001), em seu livro
“Por Uma Nova História Urbana”, configuram grande fonte conceitual para o entendimento da
área do bairro de Fátima e, também do sítio que conforma os remanescentes do antigo sistema de
abastecimento de água.
Segundo o autor, a definição das escalas permite orientar a pesquisa. Ela define duas disciplinas
que constituirão seu campo e duas questões principais: a da medida e a da dupla visão potencial
da escala, estabelecendo uma homologia entre realidade e sua imagem e, em cada uma dessas
duas esferas uma relação de proporção entre as partes. Mais do que uma relação de similaridade
174
A vasta obra crítica e metodológica de Bernard Lepetit propôs uma transformação na maneira de escrever a
História, abrindo-a ao diálogo com a Geografia, a Economia, a Sociologia, a Arquitetura e a Antropologia. Para ele, a
disciplina histórica encontrou-se, por falta de análise, quase totalmente imunizada. Como se fosse de forma
espontânea, isto é, sem reflexão crítica, a profissão praticava a macro-história. Em seu estudo a “micro-historia”
encontraria os procedimentos interpretativos diferentes que lhe permitiriam escapar ao fascínio do paradigma
quantitativo. Os principais eixos de seu pensamento são as cidades e o espaço em relação às categorias temporais e
sob escalas de observação variadas, nas quais se destaca a dinâmica da trajetória dos atores sociais.
117
com o real, a escala determina uma redução dele, exprime uma intenção deliberada de visar um
objeto e indica o campo de referência em que o objeto está sendo pensado. A adoção da escala é
inicialmente a escolha de um ponto de vista de conhecimento. Apesar de ressaltar que uma escala
não é mais real do que outra, seus estudos exprimem a importância das pequenas histórias para o
entendimento geral e vice-versa.
Além da importância aos diferentes contextos que comportam uma história, Lepetit também faz
observação que julgo fundamental para o estudo nesta pesquisa sobre um elemento da infra-
estrutura urbana que conta também uma história.
Aparentemente, a materialidade dos lugares oferece às operações de recorte do espaço
pontos de apoio e linhas de diferenciação mais sólidas do que aquelas oferecidas aos
recortes cronológicos pela passagem linear do tempo (LEPETIT, 2001, p. 198).
Neste entendimento, o estado atual de um objeto histórico é mais presente do que sua história
contada, suas marcas do tempo são evidentes e vivenciadas. Ainda, através dos parâmetros do
autor, no que concerne ao objeto, o local aparece como uma espécie de modelo reduzido de uma
dinâmica geral: uma amostra. Poderíamos ainda acrescentar a essas tradições diferentes vestígios
de realismo histórico: o local é assimilado ao real e impede qualquer tentação teorizante demais.
Assim vemos que, a soma dos fatos descritos por Lepetit, estabeleceu a necessidade de
aproximação de alguns planos de realidade que compõem a análise desta pesquisa
175
. Entre estes
planos, inicialmente, abordaremos a história de dois aspectos que coexistem na formação do
lugar, o urbano e o sistema de águas.
A Chácara e o bairro: Complexo do Vintém e Fátima
A área que sustenta o trevo de descida da Ponte Presidente Costa e Silva (Ponte Rio-Niterói) era
antigamente a Enseada de São Lourenço. Na maré cheia, as águas iam até as proximidades da
atual Casa de Detenção, no final da Rua São João, mas a maré vazante expunha o solo vasto do
mangue que foi aterrado pouco a pouco, permitindo o prolongamento da Rua do Imperador
(atual Marechal Deodoro) até a Rua S. Lourenço. Dessa forma, durante muito tempo, o lado
ímpar da Rua Marechal Deodoro era banhado pelas águas da enseada, continuando o lado par
através do mangue até a Rua São João. Ainda no final do século XIX, duas pontes de madeira
davam então passagem. Naquelas mediações o desaparecido (hoje canalizado subterraneamente)
rio dos Passarinhos vertia suas águas, vindas das encostas dos morros naquela época conhecido
como morro do Calimbá, morfologia que atualmente envolve o bairro de Fátima.
175
Esse movimento, de aproximação ou de distanciamento, não tem por efeito apenas fazer passar do grande ao
pequeno ou vice-versa numa série contínua, mas sim, refletir sobre as diferentes visões que compõem a história.
118
MAPA 18 – Mapa de Localização do Complexo do Vintém.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2009 (a partir de sobreposição da carta topográfica de 1844, base
cadastral de 2006 e cartografia desenvolvida por Romeu de SEIXAS MATTOS).
Anteriormente, como dito no segundo capítulo, no local devido a existencia de águas abundantes
nas vertentes dos morros que circundam o bairro, provavelmente, índios e jesuitas estabeleceram
as primeiras instalações rudimentares de provimento de águas das terras oficiais de Martin
Afonso. Com aquedutos de madeira, de telhas, canalizações de taguaruçu, bambus e embaubas,
intalações tanto ao norte, para o morro de São Lourenço, quanto ao sul, para o morro do
Calimbá. Essas fontes de água de considerável vazão foram, no caso da evolução do
abastecimento de água, o centro primordial desse advento, entre exemplos a citada “Bica dos
Caboclos”. Sobre o ponto de vista histórico e urbanístico, essa predestinação memorial é aliada
aos fatores de coesão social, principal responsável pela inserção na história da cidade, dos
elementos que compõe este espaço, em que se insere o sistema de águas, captação, tratamento e
abastecimento, conhecido como o Complexo do Vintém
176
.
176
Vintém 20ª parte do Cruzado, antiga moeda de cobre de Portugal e do Brasil, equivalente a 20 réis (Novo
dicionário do Aurélio, 1986, 2ª edição, Ed. Nova Fronteira).
119
Embora o espaço contenha também anteriores histórias sobre a cidade, é em 1830 que,
oficialmente integra a história pública
177
. Em 1835, a Câmara Municipal pediu ao Governo Geral
que continuasse as obras, iniciadas em 1831, para a colocação de tubos de ferro, que trariam ao
Largo Municipal a água da encosta do Morro de São Lourenço. Não tendo resposta, o orçamento
provincial (1835-36) restringiu o projeto à colocação da tubulação e a substituição do chafariz do
Largo de o Lourenço (depois Largo do Chafariz), no encontro da Rua São João com o
caminho do Calimbá (esse trecho do Caminho do Calimbá passou a ser chamado, no
Arruamento de 1840-41, de Rua Diamantina)
178
. Mas, a morosidade das obras obrigou o futuro
Visconde de Uruguai, na Presidência da Província, a decidir por uma solução provisória, dada a
premência do caso: reparou-se o antigo bicame de madeira, para contornar a situação (WEHRS,
1989).
Contudo, sendo pouca a vazão que se dispunha, pensou-se nas águas do rio Calimbá, a idéia foi
abandonada, pois o leito desse corpo hídrico não tinha declividade adequada para a canalização
necessária. Em São Lourenço prosseguiam as obras da construção de um açude com uma caixa
de decantação anexa, para evitar a entrada de detritos na tubulação. Finalmente o chafariz
provisório estava reconstruído e logo correria alguma água, talvez a metade da necessária para
abastecer o lugar. A outra metade teria que ser obtida noutra fonte. Tendo, a do Calimbá, sido
afastada das cogitações, pensou-se então, na da Chácara do Vintém, logo adiante. Então, em
1838, a ccara do Conselheiro José Antônio de Andrade Pinto é desapropriada, mas a
canalização de suas águas é finalizada apenas em 1858 e, a indenização foi paga ao Conselheiro
em 1840.
Crescendo as necessidades de água e diminuindo o rendimento da fonte da Chácara, com a
derrubada das matas, as circunstancias se modificaram exigindo uma nova estratégia para a
solução do problema. No caso o primeiro chafariz construído local, a partir desta preocupação,
na pesquisa realizada por Seixas Mattos (01/09/1973), podemos aferir, através de documentos, a
temporalidade deste sistema de águas. O que confirma a existência da chácara de Andrade Pinto e
de um chafariz, ambos de utilidade pública, é o documento que revela a preocupação e atitude do
poder local para a conservação deste manancial, no Tomo II da Legislação Provincial do Rio de
Janeiro, de 1835 a 1850, paginas 84 e 85, encontra-se o seguinte:
Não sendo a água que alimenta o chafariz da estrada de São Lourenço, nesta cidade,
cedida pelo conselheiro José Caetano de Andrade Pinto para uso público, suficiente
para abastecer os habitantes da mesma cidade, e sendo de manifesta utilidade pública a
desapropriação da outra metade, que para seu uso reserva o mesmo conselheiro, hei
essa utilidade [...] desapropriada a mesma metade d’água, a exceção de um anel dele fica
reservado para uso do dito conselheiro. Hei igualmente por desapropriado doze palmos
de terreno de cada lado do aqueduto do sobredito chafariz, em toda a sua extensão que
177
Em 1830, segundo Mattoso Maia Forte, a Câmara da Vila da Praia Grande ordenou a colocação de tubos de ferro
para conduzirem água da encosta do Morro de São Lourenço até um chafariz a ser instalado no Largo Municipal
(FORTE, 1973).
178
O Largo do Chafariz é um dos elementos que compõem o sistema de águas do Complexo do Vintém e que, em
seu próprio nome revela a influência da água como fator de coesão social.
120
corresponde a duzentos e dezenove braças, contadas desde as vertentes aa grota do
arco grande do mesmo aqueduto, ficando em roda do açude e das ditas vertentes
desapropriado o mesmo espaço de doze palmos (Palácio do Governo da Província do
Rio de Janeiro, 28 de abril de 1838, Assinado por Paulino José Soares de Souza).
Mais adiante, nas ginas 309 e 310 do mesmo Tomo II, sobre o abastecimento de água da
provincial foi descrito o seguinte:
O Presidente da Província do Rio de Janeiro, atendendo a que é absolutamente
indispensável e necessário que uma porção do terreno aos lados do aqueduto de S.
Lourenço em todo o seu prolongamento desde as nascentes d’água, seja plantada
arvoredos e contadas, a fim de que não diminua a água potável desse chafariz, o único
desta capital, como as ardentias do sol e com as secas, tem deliberado em face do art. 1º
da Lei n. 17 de abril de 1835
179
desapropriar para o indicado fim somente todo terreno
que for indispensavelmente necessário para o plantio de arvoredos de um e de outro
lado do aqueduto [...](Palácio do Governo da Província do Rio de Janeiro, 20 de abril
de 1844, Assinado por João Caldas Vianna).
Ainda por estes documentos podemos constatar que, na época da desapropriação da segunda
metade da água a ser fornecida, em 1838, existia o aqueduto de São Lourenço abastecendo
diretamente o chafariz provisório inaugurado em 1837. Este fato retifica a datação e a
desapropriação da primeira porção de terras em 1836, após a solicitação do início das obras do
sistema, conforme revelado em documento citado no segundo capítulo. Além disto, confirma
que, naquela época, o primeiro e único chafariz blico se utilizava das águas do Complexo do
Vintém. Lembro também que naquela ocasião o nome Largo do Chafariz não estava ainda
vulgarizado, da mesma forma a área entendida como morro de o Lourenço abrangia parte do
que é hoje o bairro de tima. Tanto assim que, mencionaram a estrada de São Lourenço, seria
posteriormente denominada rua Diamantina e, depois rua Marquês do Paraná. O último
documento relata a permanência no tempo da importância deste sistema de águas, sendo
principal fonte de abastecimento para a cidade, revelada na urgência da manutenção e
conservação deste manancial pela preservação cobertura vegetal de sua bacia hidrográfica.
Após as desapropriações, reflorestamento e obras no sistema (1858), a disponibilidade de água
neste Complexo era tão grande que durante um dia fornecia-se 4.000 barris de água. Em função
desta provisão foram instaladas mais nove pilastras, como sempre munidas de torneiras, a fim
evitar o desperdício. Esta, ‘relativa’
180
abundância, fez com que o proprietário da localidade,
manifesta-se direitos de comercialização do excesso das águas.
Entretanto, a atividade de comercialização da água neste Complexo, antecede a estes períodos,
sendo ela realizada por seu antigo proprietário, antes mesmo de ter parte das terras
179
Esta mesma lei também fora utilizada para desapropriação da área planejada para o Largo da Memória (terras de
Dona Helena) e, tratava-se da desapropriação de terras situadas dentro da sesmaria concedida à Martin Afonso
(Araribóia), cuja concessão era feita mediante a condição de prestar servidão de caminho, veeiros de pedras, fontes,
praças, etc.
180
Descrevo relativa, pois com o descrito por outros documentos desta pesquisa, por muitas vezes a cidade sofria
com impiedosas secas.
121
desapropriadas. O abastecimento público, dada a crescente demanda e as secas, por vezes faltava
à população. Assim, no início do século XIX, em Niterói, tornou-se recorrente o comércio de
água. A água era vendida nas ruas, trazida em carroças-pipas da Chácara do Vintém ou da
Chácara do Pena, no Cubango (Chácara do Cubango). Na memória local, contam que os
aguadeiros percorriam a cidade anunciando: “Olha a água da Chácara do Vintém que não faz mal
a ninguém”.
A descrição deste outro episódio, agora sobre a comercialização da água na cidade, é feita por
ofício que transcreve à correspondência trocada entre a Câmara Municipal e a Presidência da
Província do Rio de Janeiro.
Havendo sobras d’água no depósito edificado na chácara do finado Conselheiro José
Caetano de Andrade Pinto, e parecendo de maior conveniência que sejam aproveitadas
tais sobras: a Câmara Municipal d’esta cidade resolveu mandar pelo seu engenheiro
proceder orçamento e planta de um desito em capacidade necessária para conter
8000 palmos cúbicos d’água e com pilastra no centro da praça do chafariz em o
Lourenço servindo essa água exclusivamente para as carroças que vendem por esta
cidade [...] (Ofício n. 61, 2 de Setembro de 1858, assinado por Galvão Junior, Gomes,
Castro, Baptista, Fróes, Vicente Gomes)
Na continuidade, o Ofício n. 64 de mesma fonte, afere a autorização dado pelo Governo
Provincial, em portaria de 23 de Agosto de 1858, para a construção do reservatório de 8000
palmos cúbicos (equivalente aproximadamente a 85 metros cúbicos). Neste mesmo documento
também fica esclarecido que, esta obra seria realizada pelos cofres provinciais – o que estabelecia
esta fonte como pública. Contudo, através de deliberação provincial de 10 de Janeiro de 1881,
regulamentou-se a venda de barris de água e, inclusive conferiu-lhes um preço postulado de dois
“vinténs”, de onde se originou o nome da chácara de Andrade Pinto. Mas diferente ao postulado,
nos tempos de maior seca, os valores do barril atingiam um tostão.
Componentes do sistema de águas
Inicialmente, sobre este sistema de abastecimento de águas, podemos afirmar que a técnica usada,
quando de sua implantação, constava todo o processo de quatro etapas, a saber: a “minação”, a
filtragem, o transporte e o armazenamento. Estes processos, desde as nascentes até ao
armazenamento e distribuição, na Antiguidade Clássica, atingiu seu ápice técnico e alcance à
população urbana, na Roma Antiga, mais amplamente em quase todo o Império Romano. As
ruínas e as estruturas que ainda se encontram perfeitamente conservadas, desde o Oriente
Próximo à Gran Bretanha e do norte da África até atingir a atual Alemanha testemunham e
transmitiram a técnica por, no mínimo, os dois últimos milênios. Parte dos processos e técnicas,
no que concerne aos projetos e suas construções, não são totalmente originários do Império
Romano. Lembramos que uma das características daquele Império foi o sincretismo
absorvendo o máximo possível dos povos conquistados em benefício próprio e como
instrumento de dominação.
122
Portanto, trabalhar a pedra como um dos materiais para a tecnologia de conservação e uso das
águas encontra-se disseminada e generalizada entre quase todos os povos. o foi diferente com
os portugueses. Não foi diferente também em Niterói. A formação geológica da área em questão
foi, em amplos aspectos, favorável ao provimento da matéria-prima básica para as construções
dos diversos componentes do Complexo do Vintém.
As argilas e os saibros (piçarras) oriundos da decomposição das rochas próximas às estruturas, as
areias dos córregos e riachos ou mesmo das praias - e as rochas abundantes, tanto em blocos
como nos maciços que formam o embasamento das elevações próximas, foram amplamente
empregados nas diversas fases das construções e de sua ampliação no decorrer do
desenvolvimento do núcleo urbano.
Para as argamassas, a cal poderia ser obtida dos concheiros naturais existentes no manguezal ou
oriundas da destruição dos sambaquis
181
- testemunhos da ocupação de populações pré-históricas
locais. A argamassa de peixe aquela preparada com “cola de peixe” está também presente. A
baía de Guanabara foi, no passado, local onde se industrializava os produtos da pesca e também
os originados da caça às baleias.
Para as alvenarias, as técnicas de domínio corrente a milhares de anos se fazem presente, como, a
seguir, destacamos:
1. alvenarias estanques para os reservatórios e condutos a céu aberto (posteriormente
substituídos por tubos de ferro fundido);
2. alvenarias em pedra seca usadas em alguns muros de contenção;
3. alvenarias com argamassa, tanto em rocha como em tijolos maciços, estes fabricados com
argila.
Em alguns componentes do sistema de água, destacamos as cantarias feitas com rocha gnaisse
facoidal, dominante praticamente em toda a região. também embasamentos fundações
corridas (alicerces) provavelmente executados com pedra irregulares de tamanhos diversos,
porém, somente uma prospecção pode confirmar este uso. Nas “minações”, observamos blocos
irregulares com juntas preenchidas por pequenas cunhas de rocha e o chamado “uso liberal” das
argamassas para obtenção da estanqueidade.
181
Sambaqui, palavra de origem tupi, é o resultado do acúmulo de conchas, ossos de peixe e mamíferos, restos de
alimentos, artefatos de pedra e osso, marcas de fogueira. Às vezes restos de sepultamento, deixados pelos coletores e
caçadores que ocuparam grande parte do litoral brasileiro (GASPAR, 2000).
123
FIGURA 30 – Galerias de água, realizadas em pedra, com proporções que permitem o acesso e manutenção .
Fonte: Eduardo TRAVASSOS, 2005 e Carolina MACHADO, 2008.
Os arcos estruturais, no aqueduto e nas edificações - em tijolos, blocos de pedra quase totalmente
regulares, e nas cantarias finamente trabalhadas são traços marcantes das técnicas construtivas
trazidas pelos europeus. Os artífices europeus e a mão de obra escrava esmeraram-se na
qualidade da execução e acabamento, como prova a resistência à destruição natural e ao
vandalismo e a quase nenhuma conservação que o conjunto recebeu após sua desativação. Desta
forma, os métodos construtivos aplicados na execução deste sistema de água, é, por certo, uma
das vertentes para futuros estudos, antecipando aqui trabalhos e pesquisas que poderão continuar
ou se iniciar a partir da presente dissertação.
Assim, a compreensão dos componentes do Complexo do Vintém, também, partiu da análise de
sistemas semelhantes, construídos na mesma época e em locais próximos. A análise foi acrescida
das informações que técnicos daquela época detinham como nos dados obtidos nos relatos.
Elaborando a hipótese de similaridade de mesmo processo construtivo entre o Complexo do
Vintém e a conhecida e já referida, “Bica dos Caboclos”. Fato que neste, trabalho, a partir
também de relato de moradores do bairro de Fátima, leva-nos a hipótese de ligação entre os
sistemas, com possibilidade da água que abastecia tal bica em São Lourenço originar-se na
vertente ocidental do morro. Porém, esta suposição não pode se confirmar em função da falta de
documentos e da inviabilidade de prospecção no local – para o que esta pesquisa não dispunha de
meios. Cabendo, a futuros estudos uma possível elucidação desta hipótese.
124
FIGURA 31 – Esquema que retrata o sistema de abastecimento do Complexo do Vintém
(respectivamente: captação, filtração, transporte, armazenamento e distribuição).
Fonte: Desenho realizado por Carolina MACHADO, 2008 (a partir de documentos e levantamento local).
Todavia, segundo Seixas Mattos (20/12/1974), “em diversas épocas os jornais noticiaram a
existência de subterrâneos no morro de o Lourenço, considerados obras dos Jesuítas, a fim de
guardar tesouros ou para refúgio dos perseguidos, além de outras lendas que corriam de boca em
boca [...]”. Neste intuito, este mesmo, pesquisou sobre os túneis e procurou referências que
esclarecessem a época em que teriam sido feitos os melhoramentos referentes a bica, segundo ele
em documento, nada foi encontrado. Todavia, em Millet de Saint Adolphe achou uma referência:
José Clemente Pereira, seu primeiro Juiz de Fora. [...] fez este meritíssimo construir
várias fontes que não existem e entre elas uma na raiz do monte de São Lourenço,
que foi reedificada em 1836, [...] (Dicionário Histórico, Geográfico e Descritivo do
Império do Brasil)
Diante deste fato o autor concluiu que,
[...] sendo assim, podemos admitir que talvez o dreno e frontispício que encontrei em
1924 na fonte denominada ‘bica dos caboclos’ não fossem obras jesuítas e sim a
reedificação de 1836, mencionada por Millet, tanto mais que se trata de obras idênticas
às realizadas na fonte desapropriada do Conselheiro Andrade Pinto, em 1838, às da
parte ocidental do morro do Calimbá (1820) e às do rio Vicência, feitas em 1860”
(MATTOS, 20/12/1974).
No entanto, em referência a metodologia proposta de Bernard Lepetit, as fontes documentais,
herdada do passado, não impõe totalidade das evidencias, e é a partir das questões do presente
que a pesquisa histórica reconstitui objetos passados. Desse modo, “a história não pode desejar
ao mesmo tempo inventar problemas e reconstituir objetos: ela constrói conjuntamente uns e
outros” (LEPETIT, 2001, p.201). Este pensamento fez sentido quando tive a oportunidade, no
presente, de confirmar a similaridade entre dois dos semelhantes sistemas de águas, descritos por
Seixas, o próprio Complexo do Vintém e o Complexo da Vicência se assim, posso chamar.
Este último, realizando, inspeção em localidade ao final da Alameda São Boa Ventura, no bairro
do Fonseca, mais especificamente na comunidade conhecida como Castro Alves, constatei a
125
existência
182
. E, pude confirmar a semelhança do sistema de filtração e transporte de água com o
sistema construtivo o Complexo do Vintém. Mais tarde, após pesquisa descrita em capítulo
anterior sobre a Caixa D’água do Vicência –, através de documentos que comprovam a existência
deste antigo edifício e data a sua construção (1861), e em iconografia de matéria jornalística que
transcreve carta de leitor que denuncia sua destruição, foi possível a apuração dos fatos.
FIGURA 32
– Abrigos para aeração e visita das galerias de água do antigo sistema da Caixa D’água do Vicência, em
estado precário e incorporados, na Comunidade Morro da Castro Alves, no bairro do Fonseca.
Fonte: Carolina MACHADO, 2009.
A carta do leitor ao jornal O Estado, em 26 de julho de 1951, lembra também que o local da
‘Caixa d’água do Fonseca’, como em geral era conhecido, era pouco povoado e em sua extensão
percorrido apenas pelos pombeiros e muares, da pequena lavoura do Baldeador. Sombreado por
árvores e muito pitoresco, era em épocas passadas (cerca de um século atrás), local para
piqueniques: ia-se de bonde de burro até o final da linha e seguia-se um trecho à pé.
Nesta área, localizada em nível um pouco mais elevado, represaram-se as águas do
citado riacho e construí-se uma caixa d’água, de onde o líquido, canalizado é distribuído
à população. O reservatório era visível até seu aterramento, em função das obras da
rodovia [...] É lamentável que esta reminiscência de Niterói não seja preservada de
mutilações como as que estão ocorrendo (O Estado, 26/07/51).
Desta maneira, o todo construtivo descrito pelo engenheiro Romeu de Seixas Mattos
(20/12/1974), sobre a Bica do Caboclo, retirada à devida proporção e singularidade, também
referencia aos demais sistemas citados em face do que hoje ainda encontramos em seus
respectivos locais.
[...] encontrava-se, antigamente, sem qualquer dissimulação o frontispício de alvenaria
caiado de branco, com características de obras antigas, a entrada de um pequeno túnel
subterrâneo todo empedrado. Cujas dimensões permitiam com dificuldade a passagem
de uma pessoa agachada, túnel esse que, provavelmente, perfurou a camada permeável
da encosta e foi atingir a camada impermeável, facilitando, drenando e encaminhando a
saída do precioso líquido. Possivelmente a construção dessa galeria drenante foi
orientada pelo local onde a água aflorava na superfície da encosta, isto é, pelo olho
d’água da nascente [...].
182
Esta visita realizei, em função do trabalho de levantamento das áreas informais do Município, em 8 de novembro
de 2007, quando ainda trabalhava como arquiteta e urbanista da Secretaria Municipal de Urbanismo e Controle
Urbano.
126
O que também acrescenta e confirma a forma de captação, transporte e armazenagem deste
sistema de águas são os relatos do engenheiro Carlos Reviérre descrito pelo historiador Carlos
Wehrs (1984, p.258), em memória aos primeiros métodos utilizados na construção deste primeiro
sistema público de águas da cidade.
[...] as madeiras do aqueduto logo se estragaram e teriam de ser substituídas por outras,
alcatroadas
183
; o açude não tinha ainda fundo ladrilhado; por outro lado, era mister uma
cobertura para os depósitos, a fim de protegê-lo de folhas, animais mortos e outras
impurezas que poluíam as águas. Tudo isso foi executado sob as vistas do engenheiro
Carlos Reviérre, e às expensas do erário provincial, e as águas do chafariz provisório de
São Lourenço, passaram a melhorar. [...] Cogitou Reviérre, então, substituir o álveo de
madeira por tubos de ferro ou chumbo, em virtude dos excessivos gastos que a
freqüente troca acarretava. Em 1842 relata-se terem as madeiras apodrecido, apesar de
alcatroadas. Juntamente com a sua substituição por canos metálicos, projetava-se levar
parte do líquido até a Rua da Praia, esquina da rua Conceição [o projeto para
abastecimento dos chafarizes dos largos da Memória e Martin Afonso].
Mais a frente, em 1843, ocorreu à substituição do chafariz [do Largo do Chafariz] por um de
pedra, mas a finalização do sistema, com suas diversificadas caixas de passagens para a
purificação da água, ocorreu em 1858.
FIGURA 33
– Tampa de filtro em peça de cantaria e trechos do aqueduto que recebeu,
posteriormente, a canalização em ferro.
Fonte: Carolina MACHADO, 2008.
A arquitetura e engenharia do sistema de águas do Complexo do Vintém, em sua conformação
final, possui uma quantidade apurada de elementos de filtragem e transporte realizados em pedra
de cantaria. A começar pelo processo de minação da água que através de galeria transportam a
água a pontos de visita para oxigenação e manutenção e filtragem realizada por banco de areia e
peças de cantaria e ferro fundido. Após este processo, por gravidade, são transportadas as águas
através aquedutos também confeccionados em pedra (alguns mais tarde receberam a adução por
ferro fundido), até área de armazenagem constituído de dois reservatórios o primeiro e maior
semi enterrado possuindo cobertura, suas características arquitetônicas fazem referência ao
período colonial, aludindo à uma benfeitoria com janelas e porta, próximo a este configura
183
O engenheiro faz referência à antiga técnica de impermeabilização de madeiras, assim, para conferir maior
resistência à água, as madeiras recebiam alcatrão.
127
também uma torre circular de deságüe intermediário. Após, a continuação dos arcos em pedra
que levam ao segundo reservatório e ao chafariz.
MAPA 19 – Mapa de Localização dos Componentes do Complexo do Vintém.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2009,
(a partir de levantamento, relatos e documentos sobre base cadastral de 2006).
A confirmação da localização, tanto do Largo do Chafariz, como de algumas estruturas que
compõem o Complexo do Vintém [como os reservatórios de armazenamento], acontece em
Ofício n. 72, que relata ao Presidente da Província do Rio de Janeiro a propriedade de terreno
onde seria instalada a casa de detenção, é esclarecida.
Pelo Tesouro Nacional, foi remetida à Coletoria das rendas gerais d’esta cidade uma
relação de possuidores de terrenos de marinhas, na qual figura a Câmara Municipal
d’esta cidade como possuidora de um que, em algum tempo pertenceu à Luiz José de
Brum, sito no Largo do Chafariz, em São Lourenço, cujo terreno tendo sido
desapropriado pela Câmara, foi depois tomado pelo governo d’esta província para
construir-se acomodações para galés sentenciados [...] (Ofício n. 72, 28 de outubro de
1858, assinado por Galvão Junior, Gomes, Castro, Baptista, Fróes, Vicente Gomes, Dr.
Victorino, Dr. França Junior)
Por este documento certifica-se que a área do Largo do Chafariz, vinha até em frente à Casa de
Detenção, terras essas de “marinhas”, de propriedade de Brum, desapropriada mais tarde pela
Câmara e tomado pelo Governo Provincial, para nele construir a Casa de Detenção. Observa-se
ainda, através dos documentos que, o reservatório que vendia água para as carroças, era o
reservatório menor (85 metros cúbicos) construído dentro do largo e não o reservatório maior
(200 metros cúbicos) este dentro dos limites da chácara, cada um desses reservatórios possuía
placa de mármore informando relativamente a data e outros detalhes de sua inauguração – talvez
em semelhança a placa comemorativa da Caixa D’água da Vicência –, mas infelizmente as placas
foram retiradas ficando apenas os vestígios.
Segundo pesquisador e ex-funcionário da prefeitura Romeu de Seixas Mattos (01/09/1974) o
reservatório maior durante muito tempo ficou em atividade, “em 1924, quando atingi a chefia do
128
Serviço de Abastecimento de Água de Niterói, encontrei o reservatório maior ainda em pleno
funcionamento e dele fazia uso, na distribuição de água da cidade [...]. O reservatório menor,
encontrei perfurado, nele funcionando a oficina de ferreiro do Serviço de Águas”.
Atualmente depois de servir como habitação para funcionário do Serviço de Águas da cidade,
descaracterizado transformou-se em residência particular, e do que lhe caracterizava restou
apenas uma parede em rústica cantaria que limita a casa.
A situação deste reservatório, em relação a titularidade de suas terras descreve também a maneira
como se encontram parte das áreas, que anteriormente compunham o Sistema (VER ANEXO I
Plantas do Loteamento Vila Paraná). O núcleo inicial do sistema onde ocorre a captação e
filtragem da água, como revelado teve parte desapropriada (1838) e outra pequena porção
mantida com a família de Andrade Pinto. No entanto, em 1870 a totalidade das terras do sistema
são passadas para a Fazenda Provincial.
MAPA 20 – Mapa da Situação Territorial – Loteamento Vila Paraná, Terrenos de Abílio Soares e Prefeitura Municipal.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2009 (a partir de sobreposição sobre Planta do Loteamento Vila
Paraná e base cadastral 2006).
as áreas que contornam o aqueduto e que faz parte o reservatório, encontram-se atualmente
em terra de terceiros, da família de Abílio, que hoje é proprietária de grande parte das terras da
vertente do morro que leva o seu nome. O local onde se encontrava o Largo do Chafariz foi
desmontado para a abertura da Avenida Marquês do Paraná. A área oposta junto a Casa de
Detenção, incluindo o morro que nesta passou a se chamar morro da Correção, ainda fazia parte
das terras de Andrade Pinto desapropriadas também em 1870. E tanto o morro quanto a
benfeitoria logo abaixo antiga edificação eclética –, acomodaram e ainda acomodam a
companhia de águas da cidade. Estas terras assim como a passagem administrativa do serviço de
129
abastecimento de água, ao longo dos tempos foram de titularidade da Fazenda Provincial, que
naquela época administrava os bens públicos da cidade. Após 1956, todas estas áreas municipais
que compunham o sistema de abastecimento da cidade, são passadas para a futura, a
Superintendência de Águas e Esgotos de Niterói (SAEN)
184
.
MAPA 21 – Mapa da Situação Urbana do Complexo do Vintém
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2009 (a partir do Loteamento Vila Paraná e base cadastral 2006).
Atualmente a administração destes locais, após a reintegração à municipalidade de todo o sistema
de abastecimento de água da cidade e abertura de consórcio em 1999, cabe a Concessionária
Águas de Niterói, que atualmente possui sede na área referenciada, ao sopé do morro da
Correção, atual Morro das Águas
185
. Em exceção, a área de origem do sistema [conhecida como
área de Chácara], segue sem definição administrativa, pois no período de gestão da Companhia
Estadual de Água e Esgoto (CEDAE) este local funcionou como clube de seus funcionários,
sendo inclusive realizada obras onde foram adicionados piscinas e áreas de lazer. De acordo
com o contrato assinado entre o Estado do Rio de Janeiro e o Município de Niterói, tal local seria
abrangido pelo acordo de transferência, porém em função de seu uso agregado, esta questão
ainda encontra-se em suspenso. Fato este que colabora consideravelmente para o processo atual
de acelerada degradação e abandono, pois não existe mais no local a supervisão e cuidado que era
realizada por funcionários da CEDAE. Assim, nesta área encontrei, em visita realizada em
184
Entre eles, o Reservatório da Correção, o Complexo do Vintém, a Caixa D’água do Vicência, entre outros.
185
Nomeação definida, pelo Plano Urbanístico das Praias da Baia, Lei n. 1.967 de 04 de abril de 2002, na qual institui
o morro como Parque Municipal Urbano.
130
dezembro de 2008, aberto, e abandonado, sendo depredado, com a vegetação avançando e
crescendo e com vários montes de lixo, inclusive abandono de carcaça de carro.
MAPA 22 – Mapa de Caracterização dos Componentes do Complexo do Vintém – Levantamento Atual.
Fonte: Mapa realizado por Carolina MACHADO, 2009 (a partir de sobreposição sobre imagem de satélite – Google
Earth 2009).
A seguir a partir de dois levantamentos realizados em diferentes momentos, o primeiro realizado
por Eduardo Travassos em novembro de 2002, e o segundo realizado para esta pesquisa, em
dezembro de 2008, no qual foi possível acrescentar o esboço de danos. Pode-se observar que a
degradação acentuou-se. Pelo relatado por Travassos, anteriormente ainda havia na área da
Chácara, controle e manutenção do local que, mantinha integro, tanto seus filtros e galerias, o que
não ocorre mais.
FIGURA 34
– Peça do filtro em cantaria, ao lado, o local sem a peça.
Fonte: Eduardo TRAVASSOS, 2005 e Carolina MACHADO, 2008.
131
Com o crescimento da necessidade de fornecimento de água ao Município de Niterói, algumas
antigas fontes de abastecimento da Cidade tornaram-se insuficientes, atendendo apenas à
demanda de água do entorno próximo, restringindo-se muitas vezes apenas à propriedade e ao
redor em que se situava, como no caso da Chácara do Vintém. Porém, diante de alguns fatos,
atuais, a degradação e quase desuso
186
, torna-se difícil transmitir a importância e perenidade destas
águas que, durante mais de um século foram utilizadas, mesmo quando das tentativas (a primeira
e 1892) de se captar água da Serra de Friburgo.
FIGURA 35
– Torre de abastecimento das carroças d’água incorporada por muro de residência.
Fonte: Eduardo TRAVASSOS, 1998 e Carolina MACHADO, 2008.
Outro componente e um novo sistema de águas
Cabe lembrar ainda, na descrição da área, a identificação de importante componente que, com o
tempo, no processo de desenvolvimento de abastecimento de água da cidade, instalou-se
próximo ao local, ainda em terras de Andrade Pinto. Com o acréscimo de outros sistemas de
águas para suprir a cidade, o reservatório da Correção [ou também Detenção] foi elemento
representativo de um momento de efetiva mudança. Sobre este novo componente da história da
água para a cidade tive a oportunidade de investigar em meu trabalho final de graduação e, farei
aqui uma menção sucinta, porém necessária, sua influência no entorno e na área do bairro de
Fátima, em constante presença na paisagem e proximidades configura, junto com o Complexo do
Vintém, uma unidade para a provisão de águas, o que fortalece o tema abordado.
Deste modo, o Reservatório da Correção, ainda em funcionamento na área do Centro, localizado
no Morro das Águas, também foi área comprada pela Fazenda Provincial em 1870. Sua função
era armazenagem das águas vindas da serra de Teresópolis. As grandes dimensões da construção
para a época revelam seu valor à cidade
187
. Este mesmo valor e o potencial da área onde está
186
Pois atualmente, nem a população do bairro de Fátima sabendo do estado em que se encontra o sistema tem
coragem de consumir suas águas.
187
Medindo a bacia 27 mil metros cúbicos, a caixa d’água do morro da Correção tem fundações profundas, bem
como são profundos seus pilares interiores. As alvenarias acima do solo têm para uma parte de cimento, três de areia.
132
localizado, fez com que em 2002 fosse também transformado em um Parque Urbano. A
efetivação deste projeto pude acompanhar na época da realização em 2006. Através de uma
pareceria, entre a Prefeitura Municipal e a Companhia Águas de Niterói que utiliza e faz a
manutenção e uso do reservatório, promoveu-se a adequação do terreno de aproximadamente 32
mil metros quadrados, como parque e área de visitação do reservatório, também usado como
espaço comunitário para a educação ambiental.
FIGURA 36
– Reservatório da Correção fachadas frontal e posterior e corte transversal.
Fonte: Carolina MACHADO, 2004.
Em suas medidas, este foi um projeto que na execução carregou diferentes proporções e, tanto a
acessibilidade, os espaços vegetados e espaços internos (como áreas de exposição para temática
da água e área interna do reservatório) foram realizados parcialmente. É fato que, ainda hoje, o
Parque não possui acessibilidade para portadores de necessidades especiais e melhores meios para
pessoas idosas, assim como as intervenções realizadas no reservatório não respeitaram
importantes aspectos do seu tombamento, referentes à qualificada restauração e adequação a
visitantes. Contudo, a validade da iniciativa, dada as devidas proporções, se estabeleceu como um
primeiro passo para o aproveitamento de área verde e de importante momento para a cidade.
Esta atitude reforça as intenções deste estudo, em lembrar que estas áreas e seu conjunto erigido
são como miradas
188
para o passado. Abrem a cidade do presente para a confirmação de sua
identidade (VER ANEXO II – Reportagem de Inauguração do Parque das Águas). Estes lugares,
interpelados pelo processo de ser a cidade, encontram-se dentro de cada niteroiense que os
visitam e, os interpretam.
Por este meio, adiante, analisaremos a formação do bairro de Fátima, que para esta análise tem
relevância fundamental. Pois ao longo do tempo, o desenvolvimento de outros sistemas de águas
As fundações de concreto tem 2 metros de profundidade, e o leito empedrado, tem mais um metro. É cobertura da
caixa, com abobadas apoiadas em pilastras de cinco metros de altura, espaçadas de 5 e 5 metros com esquadrias
realizam a ventilação de 60 centímetros de altura por 60 centímetros de comprimento. O reservatório semi-
enterrado, escavado em moledo duro, possui esta condição por características de conforto térmico que se repetem na
adoção da camada de cobertura vegetal disposta em nível superior. Sua arquitetura possui características referentes ao
seu período construtivo (final do século XIX), com linguagem eclética sua entrada principal tem porta bizantina com
adornos em massa simples e desenhos de falsas colunas e blocos (MACHADO, 2004).
188
As áreas históricas sobre a água nesta cidade, singularmente, em função de medidas técnicas (a necessidade de
gravidade em seus locais de armazenamento de água para distribuição), promovem mirantes para a cidade, logo, são
janelas que se abrem tanto para o presente como para o passado.
133
para a cidade e o meio particular de desenvolvimento do bairro, foram fatores essências para a
permanência neste local destes componentes. Ou seja, para o bem e para o mau cabendo a
interpretação de cada um –, o esquecimento desta área, cultivou sua permanência, a indiferença
do restante da cidade, mas não de seus moradores que desta maneira por seus meios
promoveram a manutenção do sistema através de seu uso até os dias atuais –, guardou e protegeu
esta área de especulações. Desta maneira, mesmo no estado de ruínas, muito dos elementos,
conservaram o pensamento explicitado por Hannah Arendt, a propósito da obra de Walter
Benjamin:
O que conduz este pensamento [o de Benjamim] é a convicção de que embora o que é
vivo esteja sujeito à ruína do tempo, o processo de decadência é ao mesmo tempo um
processo de cristalização, pois que nas profundezas do mar, onde jaz e é dissolvido o
que outrora viveu, algumas coisas “sofrem uma mutação marinha” e sobrevivem em
novas formas e em configurações cristalizadas que permanecem imunes aos elementos,
como se elas apenas estivessem à espera do pescador de pérolas que um dia mergulhará
até elas e as trará para o mundo dos vivos – como “fragmentos de pensamento”.
(ARENDT, 1973, p. 51)
3.2. Moradores do Bairro de Fátima: Percepção e Significado
Território e identidade: a caracterização do bairro de Fátima
A identidade da cidade é formada a partir de sua diversidade, e não de sua homogeneidade.
Assim, entendemos que, o bairro de Fátima é uma unidade que compõe o todo niteroiense.
Quando caminhamos pelas ruas do bairro, retemos memórias e identidades, buscamos criar
sentidos, pontos de referência no mar da cultura niteroiense, na diversidade da paisagem urbana
da cidade.
Contudo, apesar de buscarmos referências em Niterói, são as particularidades do lugar que
permitiram criar em Fátima, vivências, referências e memórias, que, segundo Alain Bourdin
(2001), reforçam, no habitante, o sentimento de pertencimento a um grupo social e a um
território. Abrindo campo de atuação na área da valorização da história local e do patrimônio
cultural em seu mais amplo aspecto. Logo, a particularidade presente na identidade física (espaço,
costumes e tradições), na área onde estão contidos os objetos deste trabalho reforça ainda mais a
necessidade de rememoração destes objetos.
Esta identidade tem início nas características físicas e geográficas do bairro que, influenciaram a
sua ocupação e expansão. Embora próximo do Centro e de outros bairros, Fátima
189
é separada
destes por morros, entre eles, os morros de São Lourenço e Boa Vista. Neste relevo, as terras de
Andrade Pinto abrangiam grande parte do território, que, como vimos, uma fração foi passada ao
189
Fátima é um bairro que pela divisão de áreas municipais estabelecidas pelo Plano Diretor de 1992, localiza-se na
Sub-região Centro, limítrofe ao Centro, além de São Lourenço, Santa Rosa, Pequeno e Cubango. Seu nome tem
origem religiosa, a Associação de Moradores (antigo Centro Pró-Melhoramento da Vila Paraná) criada em 1945,
intencionou trocar o nome da Vila para Nossa Senhora de Fátima, porém os moradores que não eram católicos não
aceitaram esta denominação passando então o bairro a chamar-se simplesmente, Fátima.
134
município. Outras partes foram compradas pela Companhia Proprietária Brasileira que, após
aquisição de outras áreas próximas, projetou e executou o loteamento Vila Paraná, abrindo ruas,
não só nos vales existentes, mas também nas encostas
190
, dando origem ao local.
Porém, é na década de 50 que, o bairro apresenta uma ocupação acentuada, composta
principalmente por casas isoladas para fins residenciais, fruto do processo de ocupação vivido
com o Plano de Urbanização e Remodelação de Niterói (1943) e com a dilatação do próprio
Centro da cidade. Mais a frente, devido à expansão imobiliária da década de 70, beneficiada pela
construção da Ponte Presidente Costa e Silva (Rio-Niterói), surgiram nos limites do bairro
prédios de apartamentos financiados pelo antigo BNH (Banco Nacional de Habitação), o que
contribuiu para sua atual configuração. No bairro estão presentes os exemplares mais
significativos da época em que se instalaram grandes conjuntos habitacionais para a classe média,
com até seis pavimentos, contrastando com a tipologia de casas com até dois pavimentos.
Os reflexos da construção da Ponte, em Niterói foram muitos, a influência gerada pelos novos
acessos a cidade, que por muito tempo eram feitos principalmente pelo mar, promoveu a
transformação de locais em áreas de passagem, como o aterrado de São Lourenço, e trechos dos
bairros do Fonseca, Barreto, Fátima e Centro
191
. A principal influência sobre o bairro de Fátima,
além do crescimento mencionado, foi o rompimento da peculiar ligação com o centro da
cidade
192
.
Deste modo, todas as ruas de acesso ao bairro partem da rua Marquês do Paraná. Além das
poucas ruas principais de acesso e de circulação, no bairro um conjunto de ruas íngremes
(ladeiras), entremeadas de vielas (todas pavimentadas). Com isso o bairro, o perto do Centro,
fica isolado e resguardado da agitação e de muitos problemas do Centro, adquirindo um aspecto
de evidente tranqüilidade. Este aspecto gerou um maior isolamento do bairro, o que também
permitiu a conservação de características tradicionais de moradia e bito, aludindo às
características anteriormente cultivadas pelo centro da cidade.
190
Por este motivo, a construção de imóveis no bairro teve um ritmo inicial lento já que, apesar de sua proximidade,
a precariedade de serviços e características de muitos lotes (com acentuada declividade) exigiam custo alto e apuro
técnico nas construções. Mas, por tratar-se de um bairro recente e fruto de parcelamento, a divisão fundiária é bem
regular composta por lotes de cerca de 360 metros quadrados (12 X 30) em geral.
191
O velho centro tradicional da cidade sofreu com as mudanças, tudo parece ter sido feito para se evitá-lo e ignorá-
lo, recém espoliado da condição de capital para a qual cresceu, foi posto à margem da cidade. Os tentáculos da
Ponte, as avenidas criadas, o planejamento do tráfego, direcionou a chegada da ponte para Icaraí, para os bairros
novos de Itaipú, Piratininga, e para São Gonçalo e Região dos Lagos. Até a chegada da Ponte no Rio, no Caju,
próxima a avenida Brasil, deslocou Niterói, na psico-geografia carioca à condição de subúrbio. Antes a Capital
Fluminense se relacionava com o Estado da Guanabara (e antes com o Distrito Federal) pela barca, de centro à
centro econômico; depois as cidades se viram ligadas pelos seus pelos fundos.
192
Para atender um fluxo enorme de veículos duplicou-se o eixo de ruas formado pela rua Três de Outubro (Jansen
de Mello) e Marquês de Paraná, destruindo no caminho, uma quantidade de imóveis de interesse, mutilando e
descaracterizando outros tantos, o antigo abrigo de bondes da Companhia Cantareira e Viação Fluminense entre eles.
135
FIGURA 37
– Tipologias: comercial e residencial do bairro de Fátima.
Fonte: Carolina MACHADO, 2008.
Todavia, a ocupação informal, tema constitutivo de muitas cidades brasileiras, não privou Niterói
e nem o bairro de Fátima, trechos íngremes das encostas de seus morros, principalmente as áreas
conhecidas como morro do Abílio, morro da Boa Vista e morro de Fátima, atualmente são
ocupadas por moradias informais. Logo, no bairro, apesar da existência de moradias de alto
padrão construtivo, predomínio de residências de médio e baixo padrão. Assim, Fátima é o
resultado da superposição e do entrelaçamento de camadas históricas da produção política, social
e econômica, arquitetônica e urbanística, além dos aspectos naturais que compõem o meio.
FIGURA 38
– Diversidade de tipologias, panorama do bairro de Fátima a partir do Parque das Águas.
Fonte: Rubens MOREIRA, 2006.
Contribuindo ainda mais para esta superposição, mais recentemente, aspectos urbanos
referendados por lei
193
, permitiram ao longo da Avenida Marquês do Paraná, taxas de ocupação e
gabaritos elevados que, contribuem ainda mais para o distanciamento físico e o rompimento da
ligação dos bairros com os demais tecidos urbanos, além da desfiguração morfológica desta área
também original à cidade. Desta forma, não obstante, as áreas limítrofes à Av. Roberto Silveira e
à Av. Marquês do Paraná apresentam diversos tipos de uso como comercial e institucional, entre
outros. Assim, apesar de apresentar o uso predominantemente residencial, outros usos tiveram
incidência considerável principalmente nos últimos anos.
193
A Lei n. 1967 de 04 de Abril de 2002, Plano Urbanístico das Praias da Baia, intencionando o incentivo a ocupação
por moradia e comércio em trechos das avenidas, Jansem de Mello, Marquês do Paraná e Roberto Silveira, permitiu a
construção edifícios de até 14 pavimentos em torno das mesmas.
136
FIGURA 39
– Ruína do reservatório presente na paisagem do bairro.
Fonte: Valverde SALANDIA, 2007.
Portanto, os aspectos urbanos produziram em Fátima particularidades, e conseqüentemente sua
singularidade. Até hoje, na face mais próxima da atual Marquês de Paraná, permanecem casarios
característicos das primeiras ocupações residências do bairro no início do século XX. Se nos
aprofundarmos no vale que configura o próprio bairro, temos o elemento de sua origem, o
núcleo remanescente da chácara de Andrade Pinto, que alcançava grande parte da área a sua
volta.
No entanto, a singularidade deste lugar se revela não na permanência de fortes aspectos
urbanos originais (antigas casas, vielas e chácara), mas também na ambiência que envolve o modo
de vida de seus moradores. É também, a predominância de ocupação residencial que, mantém
seu modo de vida particular em um tempo que mais se assemelha aos antigos bairros
niteroienses, apesar das transformações urbanas ao seu redor. Neste lugar, as memórias são
vividas continuamente no ritmo das atividades cotidianas do bairro, indiferente ao tempo atual,
antigos hábitos e costumes são perpetuados; crianças brincam na rua e adultos conversam em
cadeiras dispostas nas calçadas. Este semelhante processo de perpetuação também ocorre com as
memórias do Complexo do Vintém, como veremos adiante, alguns moradores ainda fazem uso
de suas águas, e da mesma forma relacionam-se diretamente com seus remanescentes. A partir
destas questões, relembremos o dinâmico e incessante movimento da memória, descrito por
Maria Stephanou (STEPHANOU & BASTOS, 2005, p. 420):
A memória é uma espécie de caleidoscópio composto por vivências, espaços e lugares,
tempos, pessoas, sentimentos, percepções/sensações, objetos, sons e silêncios, aromas
e sabores, texturas, formas. Movemos tudo isso incessantemente e a cada movimento
do caleidoscópio a imagem é diversa, não se repete, infinitas combinações, assim
como, a cada presente, ressignificamos nossa vida. Esse ressignificar consiste em nossos
atos de lembrar e esquecer, pois é isso a Memória, os atos de lembrar e esquecer a partir
das evocações do presente. A memória pode ser histórica, mas não é histórica por si só.
É vestígio. Apesar de indomável, esforça-se em assegurar permanências, manifestações
sobreviventes de um passado, a capacidade de viver o inexistente. A memória é,
então, também o lugar das permanências (STEPHANOU & BASTOS, 2005, p. 420).
137
Sendo assim, além do espaço edificado, para reflexão patrimonial, devemos resgatar a memória,
entendida como um somatório das vivências e percepções acumuladas, que vem a luz por
estímulos e situações diversas. A este respeito, a pesquisa propõe, portanto, a investigação do
significado atribuído por seus moradores aos componentes do sistema de água, entre outras
derivações do tema. Cabendo-nos a medida crítica, observada na hipótese de Canclini de que
“toda operação científica ou pedagógica sobre o patrimônio é uma metalinguagem, não faz com
que as coisas falem, mas fala delas e sobre elas” (CANCLINI, 1997, p. 202).
Representação e significado
No marco anteriormente explicitado, interessa agora refletir sobre as nuanças que assume o
patrimônio, quando o objeto da análise é interpretado pela população imediata. Nesse sentido,
devemos partir do pressuposto anteriormente explicitado por Augé (2004), onde um lugar não
pode ser destituído de significado, mas apenas ter tal significado reconstituído. Este ponto de
vista, torna necessário a reflexão sobre os aspectos de representação e significado socialmente
assumido por estes lugares.
Por esta perspectiva, o lugar é um conceito que remete a reflexão de nossa relação com o mundo,
induzindo a análise de sujeitos e objetos a dimensão da existência, que segundo Santos (1997)
“refere-se a um tratamento geográfico do mundo vivido”. Nesta perspectiva, o lugar se
singulariza a partir de visões subjetivas vinculadas a representações emotivas. Assim como o
conceito de lugar, os estudos com abordagens nas representações sociais vêm ganhando adeptos.
Estudar o espaço em uma perspectiva perceptiva leva as investigações a recorrer a dimensão
humanista para estruturar os seus estudos. De acordo com Oliveira (2004, p. 131) a percepção
pode ser definida como:
[...] conhecimento que adquirimos através do contato atual, direto e imediato com os
objetos e com seus movimentos, dentro do campo sensorial. Depende do indivíduo,
sendo secundária, variando de um observador para outro, portanto é individual,
incomunicável e irreversível, é o aqui e agora [...] é aquilo que percebemos,
dependendo, é o produto da seleção segundo o significado, para atender à necessidade
e ao interesse: não é objeto nem a imagem mental: é o que percebemos, dependendo da
contribuição do percebedor.
Logo, o uso da representação e do significado para a realização dessa investigação está associada
ao fato de ambos terem como embasamento teórico a corrente humanista, nesse caso, o
indivíduo e seu meio são tratados como entes indissociáveis, possibilitando uma interpretação
menos dicotômica entre a sociedade, natureza e sua cultura. Para isso, abordamos aqui alguns
conceitos sobre a temática do patrimônio onde, principalmente, se observou a necessidade de
entendimento dos valores atribuidos pela sociedade a tal assunto. Não diferente a esta questão,
neste capítulo, o aprofundamento sobre a natureza social que conforma o bairro de Fátima, nas
explicitações das falas de seus moradores, principalmente, quanto ao Complexo do Vintém, onde
se pretende a reflexão quanto aos valores patrimoniais atribuídos socialmente.
138
Nestes termos, o desafio agora é refletir sobre a relação dos grupos sociais do bairro de Fátima e
o seu espaço, principalmente no que abrange esta pesquisa. Sobre esta perspectiva sociológica, a
Escola de Chicago
194
contribuiu decisivamente para o estabelecimento de um estudo do meio
urbano, mais condizente à complexidade da realidade atual. Assim, a leitura de importantes
autores da Escola de Chicago auxiliou a compreensão de que a realidade urbana não necessitava
apenas de uma adequação metodológica e de entendimento das camadas históricas, e sim de uma
abordagem que agregasse os diferentes extratos do tema, também referenciados por Lepetit,
como as diferentes escalas de abordagem e seus aspectos sociais. Entendo que, os principais
trabalhos da Escola de Chicago apontaram que a realidade urbana é passível de ser estudada, se
levarmos em conta a relação peculiar travada nela, como destaca Robert Park (1967, p. 29),
importante oriundo daquela escola:
[...] a cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de
conveniências sociais, ruas, edifícios, luz elétrica, linhas de bonde, telefones, etc; algo
mais também que uma constelação de instituições e dispositivos administrativos –
tribunais, hospitais, escolas, polícia e funcionários civis de vários tipos. Antes, a cidade é
um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes
organizados, inerentes a esses costumes e transmitidos por essa tradição [...] A cidade
como Oswald Spengler observou recentemente, tem sua cultura própria [...]
Finalmente, a cidade é o habitat natural do homem civilizado. Por essa razão, ela é uma
área cultural caracterizada pelo seu próprio tipo cultural peculiar.
Em complemento sobre o aspecto cultural, Simmel que também influenciou os sociólogos da
Escola de Chicago afirma que se caracteriza pelo ar blasé do habitante citadino, isto é, nota-se
uma determinada superficialidade nas reações dos indivíduos quanto aos estímulos que a cidade
oferece, e dentre eles, a interação com outros indivíduos. O que torna interessante observar que
em Fátima esta atitude ganha pouco impulso, pois de maneira geral o comportamento dos
moradores mais antigos ainda agregam atitudes de solidariedade e de intensa convivência em
comum. Este aspecto torna-se importante, na medida em que antigos valores são conservados e
vividos, logo, os moradores que guardam esta atitude estão mais propensos a rememorar e
cultivar suas lembranças, que também são as lembranças do lugar, aqui a Chácara do Vintém.
Este comportamento cultivado pelos moradores de Fátima tem causa, segundo Simmel (1976),
nas transformações atuais pelas quais passam a cidade que, na sociedade contemporânea, ensejam
freqüentemente discursos alusivos a diferentes temporalidades. O espaço e a vida urbanos
aparecem como se fossem submetidos a sucessivas perdas que remontam à nostalgia do passado,
194
O grupo ao qual me remeto é o que ficou conhecido na história de nossa disciplina antropológica como a Escola
de Manchester. Tal escolha metodológica resultou em rupturas teóricas desse grupo de autores com seus
antecessores estrutural-funcionalistas, visto que os últimos concebiam as sociedades como entes sempre tendentes ao
equilíbrio. A partir da perspectiva da ação dos indivíduos, aspectos da sociedade antes encobertos ganham luz. Nesse
momento, o ponto de vista diacrônico se integra ao estudo antropológico, que a história sempre foi e continua a
ser feita pelos indivíduos e seus grupos.
139
de maior sociabilidade e intimidade entre indivíduos, tal como apontou Simmel em seu estudo
sobre a metrópole e a vida mental.
195
Em meio à agitação da existência humana, ao fluxo dinâmico e incessante da vida moderna,
repleta de elementos novos a todo instante, em que os instantes são cada vez mais rápidos, é
preciso ter algo a que se apegar, algum elemento conhecido, que sirva de referencia ao oferecer
segurança e estabilidade. É preciso algo contínuo, permanente, duradouro, sólido, para se apoiar.
Por isso a nostalgia do passado, a necessidade de retomar uma história conhecida, que deve ser
mencionada, recontada, revivida, restabelecida e que desperte novamente no indivíduo quem ele
é. O patrimônio, a história, a memória coletiva e as lembranças individuais configuram-se como
esse ponto de sustentação, que restabelece referencias e oferece compensações, isto é,
funcionando como lugares de memória.
Esta conduta abordada por Simmel, em Fátima, pode ser explicada através de alguns dados
relevantes do bairro que contribuem para este processo de transformação, instabilidade e
conseqüente afeição ao antigo, ao conhecido. Segundo o Censo de Demográfico de 1991
dados oficiais mais recente –, o bairro acompanha o crescimento da cidade, instituindo um
aumento crescente de sua população, este fato se deve, principalmente por duas questões
importantes; o aumento da construção de condomínios verticalizados e o aumento das ocupações
informais. A intensificação desta última, a informalidade, é revelada também pelos dados do
rendimento médio mensal do chefe de domicílio, onde 54,11% das remunerações mensais estão
na classe de rendimento até cinco salários mínimos e 29,71% na classe entre cinco a dez salários
mínimos, logo, as duas classes representam 83,82% do total, o que permite classificar Fátima
como um bairro de classe média-baixa e classe baixa.
Ainda sobre o aspecto investigativo, no que se refere ao conteúdo social, devemos atentar que, as
conclusões que resultam de uma análise conduzida numa escala particular não podem ser opostas
às conclusões obtidas numa outra escala, cada escala é a capacidade explicativa da disciplina que
se encontra engajada. Elas são acumuláveis apenas com a condição de que se levem em conta os
níveis diversos em que foram estabelecidas, pois "uma cidade, uma campina, de longe são uma
cidade e uma campina: mas, à medida que nos aproximamos, são casas, árvores, telhas, folhas,
gramas, formigas, pernas de formigas, ao infinito. Tudo isso se reveste com o nome de campo"
(PASCAL, 1963 in LEPETIT, 2001, p. 226). Assim, tentaremos fazer um acréscimo a esta
pesquisa, a propósito, das questões da escala e generalização, que se relacionam, tanto na
projeção do significado dos sistemas de abastecimento de água da cidade
196
, quanto na projeção
do significado do Complexo do Vintém para os moradores de Fátima.
195
O tempo anterior sinalizaria o momento no qual era possível ter controle sobre os processos citadinos, incluindo
a comunicação entre habitantes (SIMMEL, 1976).
196
Sobre esta significação no segundo capitulo atribuímos um conjunto geral de significados que foram com o tempo
perpetrados na cidade e em sua identidade.
140
Análise das entrevistas: representações e significados
Não é sua destinação original que confere à essas obras a significação de monumentos;
somos nós, sujeitos modernos, que à atribuímos. (RIEGL, 1999)
A afirmativa de Reigl confere, a partir das conceituações anteriormente realizadas, a conduta que
pauta a análise das experiências de em campo neste trabalho. Neste ponto da pesquisa, fizemos
entrevistas de forma a contribuir para a leitura da significação daquele espaço para os moradores.
Partindo-se da ótica da percepção espacial e histórica, analisamos os aspectos de reconhecimento
e entendimento dos objetos da pesquisa como bens patrimoniais pelos moradores locais. Assim
como, a influência destes mesmos na construção da identidade local, com o objetivo de permitir
um estudo de caso sobre a importância da água na construção da identidade niteroiense.
Com base nos dados apresentados e analisados nas entrevistas, procuramos sobre um conjunto
de amostras, fornecer informações necessárias para se proceder à identificação de elementos que
respondem ao significado patrimonial do local. Assim, realizamos uma abordagem em que, além
da descrição dos conteúdos das entrevistas, foram trazidas à tona os temas mais expressivos, com
base na análise efetuada. A fim de trabalhar as informações coletadas de maneira a evidenciar
pontos e elaborar inferências, foram articuladas as falas dos indivíduos com o contexto histórico
e atual de Fátima e Niterói, e com o aporte conceitual relativo aos valores patrimoniais e a
memória social.
Em relação ao patrimônio edificado, a maioria das falas foi marcada pela nostalgia e constatação
de perdas. Verificamos que essa questão abrangeu quase a totalidade dos entrevistados com
exceção de um morador que morava dez anos em encosta do morro da Boa Vista junto a
Chácara, e ignorou ter qualquer conhecimento sobre aquele elemento, e quando questionado
sobre o que via disse não ter para ele significação histórica.
Disso, eu não sei não. [referindo-se a existência do antigo sistema de água no bairro] Eu
pegava água como todo mundo pegava água na bica, mas o sabia que era antigo não
(auxiliar de obra, 27 anos, morador há 10 anos)
A vivência do jovem entrevistado com o espaço, explicitada no trecho acima, é recente, sendo
baseada na configuração atual da cidade; para ele que, tomando como parâmetro os demais
entrevistados, vive a pouco tempo no bairro e em uma área do bairro recentemente ocupada, não
existe outra significação, pois não tem em suas memórias este espaço. Nesse caso, os interesses
particulares, os significados apreendidos e a memória estão fortemente imbricados e irão
depender da posição do individuo na sociedade.
141
FIGURA 40
– Bica d’água ainda utilizada por moradores e portão de acesso ao Clube dos Funcionários da CEDAE
(Chácara).
Fonte: Carolina MACHADO, 2008.
Sobre este aspecto, no bairro, algo interessante a destacar é que em muitas vezes a população de
nível superior, supostamente de classe média, são moradores antigos, e moram no bairro mais
de 10 anos, enquanto os moradores de nível dio ou fundamental, aparentemente de baixa
renda, moram no bairro, pouco tempo. Essa diferença de classe ao tempo de moradia é
revelada quando perguntados sobre os pontos positivos e negativos do bairro, a atuação da
prefeitura e sobre possíveis mudanças no bairro. Nestas questões, foi comum os moradores
antigos identificarem o aumento da violência, a falta de policiamento e o descaso da prefeitura
com o lugar, além da ausência de infra-estrutura como transporte e comércios. Entretanto, essa
visão muda na perspectiva dos moradores novos, pois ressaltam que o bairro é próximo do
centro, a prefeitura está sempre presente. Embora reconheçam o aumento de residências
informais nas encostas do bairro. Essa pluralidade de percepções, aparentemente contraditórias
revela a singularidade de cada indivíduo ao se relacionar com aquele espaço, isso é a percepção, e
é através dela é que se materializa o sentido de lugar, o seu significado.
Fátima era um bairro maravilhoso quando vim de São Gonçalo, 23 anos em função
de meu casamento, o bairro era super calmo, colocávamos as cadeiras na rua para
sentar. Hoje em dia, de 10 anos pra cá, o bairro ficou muito violento. A CEDAE
construiu uma piscina onde rios moradores freqüentavam, depois começou aparecer
vários barracos ao redor do bairro. O pessoal do morro tomou conta da piscina. Esse
pessoal veio do Rio pra cá e nos do bairro não podemos fazer nada, 10 horas da noite é
perigoso, ocorrem vários assaltos. A única coisa boa é que tem área verde ao redor,
pássaros cantando o que mantém alguma beleza, calma no bairro. Se pudesse me
mudaria para Icaraí, que pelo menos tem a praia para caminhar (enfermeira, 42 anos,
moradora há 23 anos).
Em muitas falas, como veremos, fica claro nos relatos saudosismo do bairro de anos atrás,
confirmando as prerrogativas de Simmel sobre o sentimento de nostalgia. Algo que chama
atenção, de maneira geral, é a associação dos elementos do Complexo do Vintém e da natureza
ainda presente enquanto amenidades no bairro. Desta forma, é também a partir de sentimentos
de transformação e perda que o patrimônio se estrutura. Como coloca Agier (2001), os elementos
urbanos ligam-se diretamente à identidade dos grupos sociais, podendo funcionar como fatores
de criação, encadeamento ou reforço dos processos identitários.
142
Essas lembranças ou esquecimento são ferramentas mentais, que permitem ao ser humano, ao
mesmo tempo em que mantém referenciais externos, proteger-se da perda e adaptar-se ao mundo
atual. A lembrança é uma estratégia do individuo para reter memórias referentes a coisas e lugares
que determinam sua identidade e o sentimento de pertencimento a determinado grupo, sendo um
esforço contra o esquecimento, contra a tendência natural das lembranças ficarem mais vagas, na
medida em que o tempo passa, pois o presente passa a ocupar o primeiro plano (HALBWACHS,
2006). Contudo, o esquecimento também pode ser encarado como estratégia, uma vez que, como
não se pode voltar no tempo, o que resta é negar a lembrança e admitir o novo. É preciso
acostumar-se com o espaço atual, estabelecer pontos de fixação no mundo, pois quando a
paisagem muda é preciso encontrar outros referenciais.
É desse fluxo incessante entre lembrar e esquecer, pois nem tudo deve ser lembrado, que é feita a
seleção do que fica na memória: “As demandas desse presente é ele que interpela o passado
elegerão o que lembrar e o que esquecer (a dialética freudiana), em um esforço contínuo de
mudança, de re-atualiação” (BRAVIN, 2004, p.04).
Quando instados a lembrar, os pesquisados foram guiados tanto por sentimentos afetivos, de
vivência e apropriação – sobre a água da bica ao final da rua Andrade Pinto que algum dia saciou
a sede –, como pela memória coletiva, lembrada pelo valor que tem para o grupo como na
lembrança por muitos moradores da importância do elemento como antiga fonte de
abastecimento de água da cidade.
Essa nascente ai abasteceu o bairro de Fátima anteriormente, desde que eu me entendo
por gente. Todo abastecimento de água era feito por essa nascente, hoje em dia ela é
desviada para o esgoto (comerciante, 36 anos, morador há 36 anos).
Nos dias atuais, no bairro de Fátima, a lembrança ainda se sobrepõe ao esquecimento, motivada
pelo fato, relato anterior, onde ainda é possível a conservação de antigos hábitos de convivência.
A paisagem recente, o crescimento de grandes prédios junto a Avenida Marques do Paraná e a
mudança viária que aumentou em muito o numero de vculos que circulam no bairro, ainda não
cobriu aquela paisagem mais conhecida pela memória, que subsistirá enquanto o grupo (ou a
condição) existir.
Uma das vantagens do bairro, ainda é a concentração de verde, o bairro ficou mais
violento, mas quem mora aqui é gente antiga, está acostumado, conhece todo mundo.
No meu caso não me mudaria, pois moro 40 anos. A violência aqui é comum em
vários lugares, na cidade, de maneira geral (bancária, 55 anos, moradora há 40 anos).
Para alguns entrevistados, cumpre destacar que, muitas vezes, a perda foi detectada, mas havia
certa indiferença e distanciamento, tratando o fato como inevitável, como conseqüência natural,
um ônus a ser suportado em virtude do desenvolvimento econômico e do crescimento da cidade.
Da mesma forma, o crescente processo de degeneração a qual algumas áreas do bairro são
expostas, principalmente em relação a ocupação de suas encostas e a falta de segurança, são
declarados por moradores do bairro em semelhante atitude.
143
O bairro o é mais tranqüilo [lembrando sua antiga condição de calma], mas não tem
mais nenhum lugar que não tenha violência. Não é a Comunidade que aumentou a
violência não, mas agora com este tumulto do transporte [mudança viária que desviou
parte do trânsito da av. Marquês do Paraná para as primeiras ruas dentro do bairro,
aumentando em muito o movimento nesta parte do bairro], aumentou o numero de
assaltos de carros (cabeleleira, 50 anos, moradora há 50 anos).
Esta área que era do Sindicato da CEDAE está abandonada. Deve ter mais de dez anos
que ninguém usa, só quem usa é o pessoal do morro. Minha família antigamente
morava ai dentro, meu pai tomava conta disso ai [declarando que seu pai era
funcionário da CEDAE que mantinha o local]. Até teve um colega meu estes dias aqui
em casa que, disse que aconselhou a CEDAE a colocar isso ai abaixo. Isso ai não tem
mais jeito, as pessoas estão destruindo (dona de casa, 69 anos, moradora há 69 anos).
Sobre este aspecto, no tocante ao objeto esta questão influi atualmente de forma direta, pois a
partir de declaração de moradores e em visita ao local, foi possível a constatação da deflagrada
depredação da Chácara do Vintém.
Estão estragando tudo, estão quebrando a canaleta que passa água [denunciando a
quebra da peça de cantaria que fazia parte do processo de filtragem]. Algumas pessoas
vão apedrejam, estão até cometendo crime ai dentro. Quer dizer, está um ponto de
droga lá dentro (comerciante, 36 anos, morador há 36 anos).
Retomando a questão do significado patrimonial, as respostas majoritárias de preocupação com o
antigo sistema de água, contudo, não podem ser imediatamente atribuídas à existência de uma
consciência patrimonial. Neste caso, é usual o entrevistado utilizar-se de lugares comuns para
embasar sua fala ou para estabelecer cumplicidade com o entrevistador, usando “noções que são
partilhadas culturalmente (estereótipos, frases feitas alusões literárias ou históricas, máximas)”
(BRAVIN, 2004, p. 22).
Minha filha fez turismos e, na faculdade dela, falou sobre isso. Era um reservatório
muito antigo da cidade, feito pelos escravos. Chama Complexo do Vintém. É muito
importante, Niterói é isso e o Museu. [referindo-se ao Museu de Arte Contemporânea –
MAC, e agregando o Complexo ao conjunto de símbolos da cidade] Daquela torre ali,
mais na frente era onde se via também a baia, porque o mar vinha até aqui na frente, na
Marques de Paraná (funcionária pública, 45 anos, moradora há 35 anos).
Ao ressaltar que o patrimônio edificado deveria ser preservado, invariavelmente ocorria a menção
aos acontecimentos históricos e as suas qualidades, como se, ao lembrar daquele elemento, a
importância da preservação fosse justificada. A associação com a idéia de “objeto histórico” foi
reafirmada na fala de alguns indivíduos com a citação de fatos históricos e a alusão as antigas
edificações do sistema.
É histórico né. É de 1830. Era um antigo sistema da cidade. Junto com aquela ruína
na frente, este sistema aqui atrás, e os pontilhões em cima, era tudo interligado. Está
abandonado, mas vai ser revitalizado, vai ser transformado pela Prefeitura, pelo
vereador Zé Vicente, em um espaço para comunidade ( comerciante, 36 anos, morador
há 36 anos).
144
A referência à história da cidade foi feita pela metade dos entrevistados, corroborando que um
dos elementos que compõem a memória são acontecimentos que marcam o grupo social
(POLLAK, 1992). Contudo na outra metade das entrevistas as referências ao objeto estão ligadas
a experiências individuais, a lembranças pessoais vividas no local, que também são um
componente da memória. Como o proprietário de “lava-carros” que sabe do sistema de água,
utiliza as águas em seu estabelecimento logo abaixo da caixa d’água, mas tem em sua memória a
história contada por seus pais.
ouvi tanta história disso ai. [sobre o antigo reservatório no alto do morro]. Quando
eu era criança, meus pais falavam que nisso ai tinha leões e resto de ossos de gente, que
eles jogavam para morrer. Os jesuítas jogavam para morrer era isso que me contavam.
Eu cresci acreditando nisso. (proprietário do lava-carros, 39 anos, morador há 37 anos)
FIGURA 41
– Lava-carros que utiliza a água do antigo sistema.
Fonte: Carolina MACHADO, 2008.
Alguns sujeitos entrevistados, além de definir o Complexo do Vintém como um “bem” do bairro,
apontaram quem deveria ser os responsáveis pela ação de conservação, sugerindo medidas a
serem tomadas e apresentando as dificuldades em preservar, tanto do poder público quanto do
órgão entendido por alguns deles como responsável pela propriedade, a CEDAE.
Era um sistema que fazia a captação em cima [apontando a área do antigo clube e
chácara], que vinha por túneis e depois pontilhões [aquedutos em pedra], passando no
alto do morro por rotatórias que não existem mais e, ai para a caixa d’água na frente.
Era todo um sistema que ia até São Lourenço [revelando a hipótese do sistema do
Complexo do Vintém estar interligado ao sistema de águas que abasteceu também o
morro de São Lourenço, conhecido como a “bica dos caboclos”].
O que eles fizeram aqui dentro, o dano que eles provocaram aqui. Quebraram tudo.
Aqui funcionava duas adutoras que vinham da caixa e distribuía a água. Graças à Deus,
que não quebraram essas escadas aqui [referindo-se as escadas em pedra de cantaria que
dão acesso aos galerias subterrâneos de passagem das águas]. Isso aí, enquanto a
CEDAE ou a Águas de Niterói, não tomar conta, vai acabar. Isso aqui era muito
bonito, era um patrimônio, mas o próprio morador do bairro não quer saber disso
(aposentado, 77 anos, morador há 70 anos).
145
Outros relatos destacam a demora no processo de reconhecimento deste bem, o mais importante,
entretanto, é que uma destas denuncias foi realizada aparentemente por indivíduo que deveria
demonstrar maior preocupação na efetivação deste processo. Como fez a moradora que habita há
mais de 40 anos a área junto ao reservatório principal do Complexo e, que, segundo ela possui
autorização do poder público para uso do local, mas ainda não possui titularidade
197
. Assim, é
interessante observar, portanto que, mesmo supondo algumas implicações que este processo de
tombamento traria, a moradora reconhece sua importância coletiva.
Eu moro aqui há minha idade, 44 anos. Minha mãe está aqui há 56 anos. Essa área, eles
estão alegando que vai ser tombada como patrimônio histórico, agora eu não sei. Estão
esperando uma verba. Ia ser tombado como patrimônio histórico por causa da caixa
[referindo-se ao reservatório]. Mas até agora nada.
Ela é antiga. Mas esta assim a muito tempo, tem mais de quarenta anos que não tem
telhado, aqueles buracos ali tinham portas grandes de madeira, era todo fechado
(diarista, 44 anos, moradora há 44 anos)
A preservação do objeto foi vista por muitos indivíduos como uma atitude a ser tomada, dentro
de uma política pública de preservação, com vistas a transformá-lo em atrativo de cultura e lazer
para o bairro.
Isso é uma antiga caixa d’água do tempo da escravidão e, ela é original do bairro, tinha
uma chácara que abastecia. Mas do jeito que está não é patrimônio nenhum. Fica
dentro bicho, porco, cavalo. O bairro não tem nada de atrativo, eles poderiam fazer
alguma coisa, concertar (funcionário público, 51anos, morador há 8 anos).
A Prefeitura do município, principalmente na figura de dois vereadores, foi citada como órgão
público interessado no aproveitamento do espaço. Porém, nenhuma instituição patrimonial, seja
municipal ou as demais foi lembrada, ou inserida neste processo.
Isso ai foi o primeiro reservatório de águas de Niterói. Quando eu chequei para
trabalhar aqui ainda tinha um galão, tipo uma pipa de ferro que ficava junto da favela
que foi retirada.
198
Quem usava eram os moradores do morro.
Eu tinha uma reportagem de jornal que fizeram na época, tinha um vereador, Felipe
Peixoto, que estava querendo fazer alguma coisa ai, tombar. Aquilo ali [morro onde se
encontra o reservatório principal] é uma área particular, que é do mesmo dono da
pedreira ao lado, a família do Abílio (funcionário da padaria, que trabalha no bairro
28 anos).
Tem um projeto disso aqui com o vereador Felipe Peixoto e a Águas de Niterói, um
projeto que envolve meio ambiente também. Essa parte ai na frente, eles têm a intenção
de fazer um mirante, uma área de caminhada. Acho que, querem fazer um parque.
(comerciante, dono de antiga padaria do bairro, 64anos, morador há 60 anos)
Por meio da fala de um entrevistado, constatou-se que, se por um lado as mudanças ocorridas em
Fátima são vistas de maneira inerente, avaliando que este é um processo inseparável à vida na
197
Vale lembrar que, pelo órgão municipal constam estas terras como propriedade de Abílio Soares.
198
Esta comunidade chamava-se Morro da Chácara do Vintém e, existiu na área próxima a caixa d’água, entre as
décadas de 40 e 80. Foi retirada por processo movido pela família Soares, proprietária das terras.
146
cidade, por outro lado, percebeu-se que as perdas relativas aos seus bitos, cotidiano e
patrimônio edificado foram sentidas pelos sujeitos.
Isto era do tempo dos índios, era um forte que passou a ser caixa d’água. Era tudo mar.
Não pode destruir não que é um bem tombado.
Tem um túnel que leva água e, que vai sair lá em São Lourenço. Água limpinha, dura há
muitos anoso acaba. Aqui na frente de noite a mina da água molha tudinho.
[constatando que ainda existe passagem de água até o reservatório]. Isto não pode
acabar não.
Esse desvio [mudança viária implantada no final de 2007] trousse muitos assaltantes.
Os caras roubavam muito ai dentro, carro, gente. Isso aqui era um bairro sossegado, eu
moro trinta anos nunca tinha visto assalto aqui. Era calmo, mas o prefeito está
querendo fazer isso aqui igual à Icaraí, com um monte de prédio. Não gosto disso não,
aqui é um bairro calmo (mecânico, 57 anos, morador há 30 anos).
A postura em relação a esse desaparecimento oscila de um pensamento em que progresso e
preservação são itens excludentes a uma postura que lamenta a perda e que, às vezes de forma
mais incisiva, em outros momentos de maneira mais tímida, se insurge contra a destruição e
considera de estrema importância a preservação dos bens.
FIGURA 42
– Semáforo implantado no bairro após mudança viária.
Fonte: Carolina MACHADO, 2008.
Neste sentido, a grande maioria dos sujeitos apontou a importância de preservação do objeto de
estudo. Contudo, questiona-se até que ponto as resposta revelam uma tomada de decisão
individual, uma vez que a necessidade de conservação dos bens patrimoniais é uma idéia
incorporada ao sistema de valores da sociedade atual. Sendo assim, a recorrência ao tema pode
revelar a ancoragem
199
, vinculado o objeto histórico aos demais bens históricos da cidade, e lhe
199
Por meio do mecanismo de ancoragem o individuo articula conceitos novos, que não lhe são muito claros, a
outros similares existentes no sistema de conhecimento. Esta forma de representação permite que o não-familiar
passe a ser familiar. Com esse processo, os sistemas de água, ainda que diferente dos padrões das edificações
patrimoniais, são atribuídos pelo contexto do antigo e destes recebe tratamento coerente com valores atuais que, vêm
importância em sua preservação.
147
atribuindo um critério geral de importância de preservação disseminada socialmente para os
demais bens patrimoniais.
Como exposto esta representação positiva a cerca da conservação pode ser reflexo tanto de uma
consciência patrimonial, como da apropriação e reprodução de idéias disseminadas na sociedade.
Além disso, deve-se considerar a expectativa social da resposta, isto é, os entrevistados tendem a
responder o que é socialmente aceito, o que é referido como “adequado” ou “certo” para aquele
grupo social.
Como resultado da investigação, na análise dos dados, com base nas representações atribuídas
pelos moradores, pode-se atingir que, o sujeito atribui valores e interpreta a realidade por meio
das representações sociais, utilizando-as como uma das fontes de informação para embasar suas
ações, sejam de apropriação ao de distanciamento (FREIRE, 1997). Estabelecendo um
movimento contínuo entre ação e representação: a vivência do espaço determina a construção de
certas representações, ao mesmo tempo em que as representações elaboradas contribuem para
cada tipo de relação que os sujeitos estabelecem com os diversos pontos da cidade, e
principalmente do bairro.
Cabe lembrar, que alguns fatos ou imagens são mais ou menos diluídos entre os indivíduos na
sociedade, dependendo de fatores como escolaridade, classe social, orientação política, valores
culturais, papel do indivíduo no corpo social, acesso à informação, etc.
É preciso entender que, ao se atribuir significados dados pelos moradores de Fátima ao
Complexo do Vintém, esta representação social, não está se referindo a uma representação única,
pois mesmo considerando sua dimensão social, a representação é individual e cada sujeito, sendo
um processo psíquico, ligado aos sentimentos, identidade e memórias particulares. Sendo assim,
este significado é múltiplo, sendo mais do que o conjunto das representações individuais: é a
representação de cada individuo, contextualizada com as representações sociais dos demais
integrantes dos grupos sociais, que compõem a representação coletiva dos moradores sobre
determinado objeto.
O objeto histórico, recontado, às vezes fantasiado e, portanto, representado, é tomado com um
elemento de memória individual, mas que também se insere nas memórias coletivas do bairro.
Antigamente aquela água dava confusão [referindo-se a água vinda do Complexo]
porque o pessoal de baixo [as casas na parte mais baixa do bairro] também queria água
da nascente.
tinha um registro aqui, que a gente fechava para dar água ao pessoal aqui de cima, ai
dava briga. Porque a água não dava para todo mundo.
Depois veio a CEDAE, desviou a água, ai ninguém mais usa. Isso tem uns dez anos,
mas a gente usava a água para beber, para outras coisas, a água da rua [a água fornecida
pela CEDAE] era usada. Mas o pessoal do morro sempre pegou a água para beber
(aposentado, 77 anos, morador há 70 anos).
148
Assim, com a análise das entrevistas, verificamos que os indivíduos em Fátima identificam um
patrimônio construído no Complexo do Vintém, denunciam sua destruição em função do
desenvolvimento da cidade e demonstram apropriação ao revelarem o sentimento de perda e
reconhecerem a importância de sua preservação.
Foi ressaltada ainda a preservação desse patrimônio material como ultimo depositário da
memória, que não pode desaparecer, sob o risco de também não subsistirem as lembranças
daquele grupo social: é preciso salvar da destruição os resquícios do patrimônio do bairro e da
cidade. Destruir-lo seria o mesmo que apagar a memória, a história e os referenciais de identidade
da população.
Neste contexto, aquele sistema de abastecimento de água assume, então o papel de lugar de
memória. Sua perda é identificada como algo que atinge a coletividade, mas também e sentida
individualmente. Os sujeitos conseguem identificá-lo como elemento urbano que, por fazer parte
da sua própria história ou da história da cidade, pode ser considerado como patrimônio. Esses
espaços foram vividos, revestidos de valor e, portanto, apropriados. Isso indica que a falta de
reação da população como um todo, em relação à degradação não é um indício de distanciamento
dos indivíduos. Esse comportamento deve ser explicado por outros fatores, como a inexistência
de uma instituição ou liderança que conclame os indivíduos a se manifestarem ou a falta de uma
tradição de ações relativa aos bens patrimoniais.
Como discutido anteriormente, o patrimônio é uma construção cultural, assim estabelece-se uma
relação bastante estreita entre as noções de valor e patrimônio, uma vez que será considerado
como bem patrimonial aquilo que é importante para o grupo social. Isto é, o patrimônio é algo a
que são atribuídos valores em certo tempo por determinada sociedade. Essa qualificação de um
bem como patrimônio, em virtude da atribuição de valor dado por alguém, apareceu na fala de
alguns entrevistados. A materialidade do patrimônio é ressaltada ainda quando se refere à idéia de
um bem da cidade. Assim, a dimensão urbana, palpável, visível e vivenciada, reveste-se de valor
cognitivo, pois possibilita a compreensão do espaço, identificando-o como lugar que funciona
como suporte da identidade, por meio de seus símbolos e significados.
Como vimos no segundo capítulo, na área central da cidade também são atribuídos significados,
representados por meio de símbolos ao espaço (as três marcas da cidade). Enquanto é
apropriado, seja como lugar de memória ou pelo uso atual, a imagem desta área oscila de uma
área histórica a um espaço dinâmico em função de suas atividades econômicas.
O espaço passa a determinar quem o habitante é, tornar-se aquilo que o caracteriza, o que é
fundamental para que ele seja e para que saiba quem é, para sentir-se cidadão. Como vimos a
Niterói: “cidade sorriso”, “cidade invicta”, “capital do estado” e atualmente a “cidade do MAC”
149
(Museu de Arte Contemporânea, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer), são a representação
da cidade que também estrutura a identidade dos indivíduos
200
.
3.3. Legislação Patrimonial
A legislação e as novas acepções patrimoniais
A identificação da presença de componentes dos sistemas de abastecimento de água diretamente
relacionados à composição urbana de Niterói estruturou os objetivos deste trabalho que, este
item, propõe realizar uma reflexão sobre as práticas legais de valorização e preservação do
patrimônio urbano. Principalmente, dos bens patrimoniais que não apresentam atributos de valor
artístico, característicos de muitos bens do patrimônio cultural tombado pelos órgãos de
preservação em nível federal (IPHAN), estadual (INEPAC) ou municipal (DEPAC). Estes bens
são integrantes da cultura humana, por relatarem a história do homem em seu meio e, apesar de
para alguns possuir valor estético, sua importância não deve apenas ser referendada por este
caráter.
Esta questão insurge da dificuldade, no âmbito patrimonial, de inserção de novas acepções no
contexto cultural que, não atribuam apenas valor aos bens vinculados às questões patrióticas ou
estéticas. Todavia, dando-se as devidas proporções, a respeito da necessidade de novas acepções,
também foram encontradas, pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)
na época do primeiro levantamento de bens da cultura nacional, dificuldades em aferir valores
aos bens que se diferenciavam do conduto patrimonial estabelecido por valores clássicos
enraizados pela cultura européia. Naquele momento Mário de Andrade, a respeito da riqueza e
desconhecimento da arte religiosa barroca, em uma de suas missões declarou: “É um fóssil,
necessitando ainda de classificação, de que pouca gente ouviu falar e ninguém incomoda”
(ANDRADE, 1987, p. 19).
Hoje, um dos maiores desafios à gestão do patrimônio cultural é definir conceitual e legalmente
novas formas de acautelamento compatíveis com sua abrangência, cada vez maior, e com o
exercício dos direitos culturais do cidadão. Direitos estes reconhecidos no texto da Constituição
de 1988, particularmente no artigo 215: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos
direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional [...]” e no artigo 216: “O Poder Público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por
meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação” (BRASIL, 2004, p. 53).
Durante praticamente um século de trabalho e discussões no âmbito internacional, e 64 anos
no Brasil, o caráter simbólico do patrimônio vem sendo ampliado. Além, dos desafios ditos
200
É preciso lembrar que a construção identitária não é percebida conscientemente pelos indivíduos, pois é essencial
que ela seja vista como algo inerente aos sujeitos e grupos sociais. Assim, uma vez estruturada a identidade, todo o
processo é apagado, a fim de não comprometer a idéia do seu surgimento como um fato natural (AGIER, 2007).
150
anteriormente, a contemporaneidade trouxe aos administradores públicos, o desafio de promover
uma economia sustentada, somando-se ao resgate da identidade local. Garantir que esses pontos
se equilibrem e seja possível a construção da cidade habitável, com o mínimo de conflitos
urbanos, tornou-se um desafio para os gestores urbanos.
Neste sentido, faremos algumas considerações sobre o Patrimônio Histórico e Artístico no Brasil.
A preocupação com os lugares a serem preservados partiu de expoentes da arquitetura moderna.
Em nosso país, os arquitetos criaram o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(SPHAN) em 1937 seguindo as idéias e ideais de Mário de Andrade. A denominação SPHAN foi
mudada para Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e prevalece até
hoje. Mesmo com a mudança do nome, a data de criação permanece a mesma, pois a função do
atual IPHAN não foi alterada.
Este foco da política patrimonial para as questões nacionais foi mantido até a década de 70,
quando por iniciativa do então Ministério da Educação e Cultura, foi realizado um encontro de
secretários de Estados e Municípios para o estudo da complementação das medidas necessárias à
defesa do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; a oficialização de um movimento em
direção à descentralização. Na ocasião foi assinado o Compromisso de Brasília, que, por um lado,
apoiou a política de proteção dos monumentos encaminhada pelo órgão federal. Por outro
reconheceu “a inadiável necessidade de ação supletiva dos estados e municípios à atuação federal
no que se refere à proteção dos bens culturais de valor nacional” e que “aos Estados e
Municípios também compete, com a orientação técnica do IPHAN, a proteção dos bens culturais
de valor regional”, recomendando a criação de órgãos estaduais e municipais adequados à
proteção, sempre articulados com o IPHAN, procurando uniformidade da legislação (MEC,
1980, p.139-142).
201
No âmbito estadual, muitas entidades afins têm sido criadas, seguindo os princípios que regem a
atuação do Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural (IBPC), como o Instituto Estadual do
Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA), em Minas Gerais, o Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural (INEPAC), no Rio de Janeiro, o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT), em São Paulo, e o Instituto do
Patrimônio Artístico Cultural (IPAC), na Bahia. Também em nível municipal essa integração se
revela importante, na medida em que os promotores agem onde o Ministério Público Federal não
existe, fiscalizando o cumprimento dos direitos instituídos pela Constituição. O tombamento de
bens estaduais tem o mesmo significado, força e responsabilidade do tombamento federal, mas é
regulamentado por legislação específica no âmbito de cada administração
201
A formação e a implementação da política governamental referente à preservação do Patrimônio Cultural
brasileiro competem atualmente ao IBPC- Instituto Brasileiro de Patrimônio Cultural, vinculado à Secretaria da
Cultura da Presidência da República. Criado em 1990, a partir da extinção da Fundação Nacional Pró-Memória e da
Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional, então ligada ao Ministério da Cultura, o IBPC recebe
0,001% do orçamento da União e atua em todo o país através de unidades regionais, articulando-se muitas vezes com
estruturas, através de parcerias, convênios, ou acordos (NOBRE, 1992).
151
A Constituição de 1988 veio finalmente afirmar no seu artigo 30: “Compete aos municípios
promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação
fiscalizadora federal e estadual”. Essa iniciativa, tal como foi proposta 30 anos, tinha um
caráter de abertura conceitual em direção à abrangência na abordagem do patrimônio cultural e
não de desresponsabilização da União em relação à sua atribuição legal de proteger o patrimônio
nacional. Ao se falar de “ação supletiva” e de “articulação” com o órgão existente encarregado da
gestão do patrimônio, anunciavam-se, por um lado, novas alianças e, por outro, “lealdades
divididas” (ARANTES, 1996, p.11) na construção de um novo equilíbrio entre o nacional e o
local.
As condições para viabilizar esse plano eram não a reforma e a modernização administrativa,
mas também a continuidade e o aprimoramento de um sistema de trabalho que priorizava a
produção de conhecimento, bem como a seriedade e a autonomia na condução das questões
técnicas. As dificuldades para dar seqüência a esse sistema comprometeram ou adiaram o
estabelecimento dos novos órgãos de preservação, aliado a falta de recursos financeiros à política
do patrimônio na década de 1980, levou o IPHAN a um lento processo de desarticulação e
desmonte, até condená-lo à sua limitada condição burocrática atual.
Ausente da maioria das políticas públicas de planejamento físico-territorial e dos planos de gestão
municipal, o patrimônio foi sendo tratado como questão de responsabilidade do Estado ou da
União, divorciado do planejamento das cidades, visto apenas sob o enfoque do desenvolvimento
econômico ou simplesmente ignorado. A descontinuidade administrativa dos municípios, a
inexistência de políticas culturais locais, a falta de investimento na formação de técnicos na área, a
suscetibilidade às pressões de grupos da comunidade, o forte jogo de interesses imobiliários, a
aceitação generalizada de uma noção de progresso e desenvolvimento associada à verticalização e
a instauração de processos de renovação contínua das cidades sobre elas mesmas são fatores que
podem esclarecer o fato de cidades como Niterói estarem cumprindo o mesmo destino das
cidades modernas, identificado por Claude Levi-Strauss em 1953, pelas “cidades que passam do
frescor à decrepitude sem conseguirem ser antigas” (Levi-Strauss apud FONSECA, 2005).
Para compreender esse processo, deve-se levar em conta a inexistência de um pensamento
urbano no âmbito dos órgãos de preservação, mesmo que estes tenham se ocupado do
tombamento e da gestão de núcleos urbanos desde 1938 e que sempre tenham considerado o
monumento tombado inserido em uma área envoltória maior, protegida como ambiência. Por
outro lado, existe a predominância de uma concepção de planejamento urbano que raciocina
essencialmente em termos da economicidade dos espaços, priorizando fluxos de tráfego,
adensamento de tecidos, aproveitamento racional da infra-estrutura urbana, e que renega a um
plano secundário os componentes históricos e estéticos do urbanismo ou mesmo nega sua
inclusão entre os valores urbanos a serem considerados (ARGAN, 1993). Esses dois fatores
concorrentes foram suficientes para que as cidades deixassem de ser vistas como uma questão
152
cultural e passassem a ser parte de um fenômeno que, apesar de não ser brasileiro, aqui
conheceu sérias dimensões, sendo definido ainda por Argan (1993, p. 201) como a “rejeição da
história pelo pragmatismo”.
Deste período aos dias atuais a situação vivida pelo Patrimônio Histórico / Cultural
Arquitetônico se tornou insustentável, pois os incentivos financeiros voltados para esses bens
culturais são ínfimos e com isso muito se tem perdido, pois, a maioria de seus proprietários
quando o se trata de patrimônio publico –, não possuem condições econômicas para manter
essas edificações em condição desejáveis ou não têm conhecimento das formas de uso de tais
patrimônios e, por isso, muitos deles acabam demolidos.
A negação da história e da memória em favor de uma suposta modernidade, muitas vezes,
condenou irremediavelmente as malhas urbanas tradicionais, as construções históricas oficiais, os
marcos e as referências das cidades, os conjuntos singelos de casario, a arquitetura vernacular e a
arquitetura modernista, os bairros e as sedes rurais, as capelas, os chafarizes, os sítios
arqueológicos, antigos sistemas de abastecimento de água, as paisagens, as estações de estrada de
ferro, os cinemas, as praças e, com eles contando com o crescimento dos meios de
comunicação de massa as festas, as tradições, enfim, a alma das comunidades. Como nos
lembra Cecilia Santos (2001, p.46) em seu artigo “Novas Fronteiras e Novos Pactos para o
Patrimônio Cultural”:
Se é verdade que a cidade não é feita de pedras, mas sim de homens (ARGAN, 1993),
também é verdade que as lembranças se apóiam nas pedras da cidade (BOSI, 1992), e
não é por outra razão que os homens, ao longo dos culos, têm lhes atribuído valor e
trabalhado para que permaneçam (ou desapareçam) enquanto expressões da memória
coletiva, de uma identidade compartilhada.
Estatuto da Cidade: fortalecimento e democratização das práticas patrimoniais
municipais
Para somar-se a estas forças da coletividade descritas por Cecília Santos, propostas encaminhadas
à Constituição Federal de 1988 deram novas esperanças em relação à preservação do Patrimônio
Cultural. Com o artigo 182, a obrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor para as cidades
com mais de 20.000 habitantes, os movimentos sociais urbanos ganharam força e passaram a
questionar, com veemência, os planejamentos tradicionais. Esses questionamentos
impulsionaram o tema Reforma Urbana, politizando aprofundando o debate e influenciando o
discurso e as propostas nos meios técnicos e políticos envolvidos com a formulação de
instrumentos urbanísticos.
Podemos citar também como ato que referenda o patrimônio cultural, a Agenda 21, que defende
o direito a cidade sustentável e, por sua vez, explicita sua preocupação incluindo a preservação da
herança histórica e cultural e o direito de usufruir de um espaço culturalmente rico e
diversificado. Como preservar esses bens quando isso é desejo da comunidade e como
153
contribuem para a melhoria da qualidade de vida da população como um todo e como se
integram na idéia de desenvolvimento sustentável, é uma discussão que vem sendo feita desde a
reunião de cúpula Rio-92 e consta como uma das propostas daquela agenda.
No entanto, o Estatuto da Cidade
202
é posterior a Agenda 21, e este passou à vigorar em 10 de
outubro de 2001 e propõe novas oportunidades para o Patrimônio Cultural Arquitetônico através
dos instrumentos de política urbana que já estavam previstos desde a Constituição de 1988 e que
agora podem ser colocados em prática pelos municípios.
Pode-se dizer, portanto, que uma política pública definida por uma perspectiva
"processual" de recuperação do patrimônio edificado foi sucedida por outra, que aporta
recursos para a recuperação física desses imóveis e promove intervenções que
viabilizam uma reestruturação do uso do solo num período curto de tempo.
Novas idéias passaram a ter como intenção primordial o Plano Diretor, um processo político que
canaliza seus esforços e capacidade técnica em direção a objetivos prioritários, que são a
resolução dos problemas reais. Neste caso, o Plano Diretor chega-nos como um organizador de
princípios, de regras e da ação dos agentes que constroem e que utilizam o espaço urbano. Assim,
ao ser instituído o Estatuto da Cidade, o Plano Diretor passou a ser um instrumento obrigatório
garantindo que a cidade cumpra com sua função social. Portanto, agora, encontramos, na
legislação federal que transfere responsabilidades aos municípios, respaldo previsto por lei, ao
nosso Patrimônio Cultural, Histórico e Artístico que atingiu perspectivas mais otimistas, que
um dos parâmetros do Estatuto da Cidade é a sua proteção, preservação e recuperação.
Ao contrário dos planos diretores anteriores o Estatuto da Cidade define que os planos atuais
pretendem sair do hermético, tecnocrático e convidam a população a participar e discutir a cidade
real, com seus problemas e conflitos a serem resolvidos. A participação da população é requisito
constitucional do Plano Diretor
203
. De acordo com Miratan Barbosa Souza (1999, p.05)
204
fica
claro que, não a legislação patrimonial como os projetos de intervenção necessitam de um
instrumento que estabeleça este encontro entre a função social e o patrimônio, o que trás a
participação ativa da comunidade nas decisões relativa aos bens pelo do executivo e legislativo:
202
Desde os primeiros planos urbanos praticados no Brasil, havia a proposta de melhorar as condições de vida da
população, porém eles eram mais ligados às questões de organização viária e das condições sanitárias. Com o passar
do tempo e com o crescimento das cidades, a preocupação com a qualidade de vida proposta para centros urbanos,
acabou passando por mudanças importantes no tratamento de questões como moradia, meio ambiente e cultura.
Com essas novas perspectivas para os centros urbanos, os estudos concentraram-se na tentativa de melhorar a
qualidade de vida das pessoas possibilitando maior acesso à cultura, moradia e lazer. No entanto, para que isso
acontecesse foi aprovada a Lei no. 10.257 de 01 de Julho de 2001, Estatuto da Cidade, que entrou em vigor no dia 10
de outubro de 2001 “estabelecendo diretrizes gerais da política urbana objetivando principalmente o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e a garantia ao direito a cidades sustentáveis” (ESTATUTO DA
CIDADE, 2002, p. 15).
203
O Plano Diretor pretende chamar a comunidade, através de associações representativas para participar e atuar em
conjunto, partindo de uma leitura de cidade real, preocupando-se com aspectos urbanos, sociais, econômicos e
ambientais, sem, todavia, desejar resolver tudo, como era a promessa dos Planos Diretores antigos (Planos Diretores
de Desenvolvimento Integrado - PDDI) que tudo prometiam, mas pouco resolviam.
204
Autor do artigo: “Poder local e planejamento urbano”.
154
A política pública ao tratar a questão patrimonial, principalmente na demarcação de
áreas protegidas é marcada por um forte institucionalismo, que embora necessário,
desconsidera as percepções do indivíduo sobre o ambiente, uma vez que há forte
dificuldade deste plano regulamentador em identificar as relações históricas presentes
no espaço. A medida que os projetos institucionais incorporam as percepções
individuais, identificando as relações históricas presentes no espaço, contribuem para
um significado social da questão patrimonial e da própria política publica, tornando-a
menos autoritária e mais humana.
Legislação patrimonial em Niterói
Em Niterói, segundo Salandia (2001), Subsecretário da Secretaria de Urbanismo e Controle
Urbano de Niterói em 2004, o Plano Diretor
205
de 1992 reestruturou a legislação urbanística e
ambiental organizando-a em quatro categorias. As de caráter geral são as normas comuns a todo
o Município, isto é, a Lei de Uso e Ocupação do Solo, Lei de Parcelamento do Solo, Lei de
Controle Ambiental e Códigos de Posturas e de Edificações. As Regionais tratam das normas
fixadas para as cinco Regiões de Planejamento estabelecidas no Plano Diretor, isto é, os Planos
Urbanísticos Regionais PUR; estes complementam a Lei de Uso e Ocupação do Solo, estes
planos têm como meta o desenvolvimento e a estruturação urbana de cada uma das regiões,
respeitadas as suas características físicas, sociais e econômicas e incorporados os anseios da
população. O terceiro tipo abrange aspectos de Caráter Local, fixando normas para áreas com
características peculiares, regulamentando as “Áreas de Especial Interesse” estabelecidas no Plano
Diretor com as seguintes possibilidades: econômico, turístico, pesqueiro, agrícola, ambiental,
paisagístico, urbanístico ou social. As Leis Ordinárias viriam a regulamentar “aspectos específicos
ou emergentes da vida urbana”. Para o autor, esta reestruturação acaba com a “colcha de
retalhos” existente anteriormente que além de não obedecer a uma “lógica de planejamento ou a
uma necessidade da cidade” era composta por parâmetros diversos e sobreposição de áreas.
No Plano, o capítulo Patrimônio Cultural aponta diretrizes à formulação e execução de projetos
visando a revitalização, preservação e recuperação das Áreas de Preservação do Ambiente
Urbano e de Áreas de Preservação do Ambiente Paisagístico, observando a destinação de áreas
para atender às demandas das comunidades carentes. Prioriza que sejam delimitados inicialmente
os então chamados Corredores Culturais de Niterói, do Centro, de São
Domingos/Gragoatá/Boa Viagem e da Ponta d'Areia, nos termos do Decreto Municipal n.º
6101, de 16 de abril de 1991. Desta maneira, outra análise a ser feita, refere-se as Áreas de
Espacial Interesse Urbanístico, incorporada à legislação municipal, na categoria Urbanística, em
1992 através do Plano Diretor Municipal.
IV – Interesse Urbanístico:
205
No Plano Diretor de Niterói (lei 1157/92) as diretrizes setoriais apontadas pelo Plano abordam Desenvolvimento
Econômico, Habitação, Meio Ambiente, Patrimônio Cultural, Transporte e Sistema Viário, Patrimônio Imobiliário
Municipal e Serviços Públicos e Equipamentos Urbanos e Comunitários.
155
a) Áreas de Especial Interesse Urbanístico, aquela onde o Poder Público Municipal tem
interesse na implantação de projetos visando alcançar transformações urbanísticas e
estruturais na cidade e provê-la de equipamentos urbanos e serviços públicos (Lei
1157 de 29 de Dezembro de 1992, Niterói – RJ).
Assim, as Áreas de Especial Interesse Urbanístico podem se configurar onde o poder público
municipal tem interesse na implantação de projetos visando alcançar transformações urbanísticas
e estruturais na cidade e provê-la de equipamentos urbanos e serviços públicos. Essa definição foi
posteriormente ratificada e especificada pelo Plano Urbanístico Regional das Praias da Baia (Lei
1.967 de 4 de abril de 2002), indicando para Sub-Região Centro, as seguintes áreas de Especial
Interesse Urbanístico: AEIU do Caminho Niemeyer; AEIU do Campus da UFF, AEIU do Porto
de Niterói, AEIU da Praça Renascença tendo, por fim, aditada a essa lista a AEIU do Antigo
Abrigo de Bondes através da Lei nº 2090 de 07 de outubro de 2003.
206
Outra decorrência do Plano Diretor, executada nos Planos Urbanísticos, são as Áreas de
Preservação do Ambiente Urbano, entendidas como áreas com peculiaridades locais que
testemunham a formação da cidade, a escala tradicional, visando-se manter conservadas as
principais relações ambientais dos seus suportes físicos (espaços públicos ou livres de edificações
e a volumetria das edificações). Enquanto o tombamento é o instrumento jurídico através do qual
se protege os bens móveis e imóveis de notável valor nas suas características individuais, um
instrumento mais recente, a Área de Preservação do Ambiente Urbano (APAU), cuida da
proteção dos ambientes urbanos históricos. Pode-se, ainda, entender essa forma de proteção do
patrimônio cultural como um alargamento do enfoque do tombamento, onde um conjunto de
imóveis, mesmo que individualmente não contenham características notáveis, tenham valor
cultural.
Tal instrumento envolve, pois, três conceitos fundamentais, a saber: ambiência, lugar e
conjunto urbano. O conceito de ambiência deve ser entendido enquanto conjunto de
elementos físicos e vivenciais que configuram um determinado lugar. O lugar deve ser
compreendido enquanto espaço diferenciado por características peculiares e por uma
escala local, uma escala de vizinhança, contrapondo-se ao espaço global, aquele que
pode estar em qualquer ponto do mundo e que não apresenta singularidade, referindo-
se portanto a um padrão mundial. E finalmente o conceito de conjunto, que remete ao
conceito de todo, opondo-se ao conceito de individual. O conjunto é formado por partes
que só têm sentido se estiverem ligadas (Fundação de Arte de Niterói, 2007).
Assim, no intuito de resguardar importantes testemunhos históricos na cidade de Niterói por suas
ambiências urbanas, a legislação urbanística nessas áreas, comumente dita como restritiva, na
realidade, em todas as suas versões até aqui, enfrentou o desafio de proteger a morfologia urbana
tradicional e garantir aí o desenvolvimento econômico e social.
206
A primeira AEIU do Caminho Niemeyer foi recentemente regulamentada pela Lei 2411 de 26 de dezembro
de 2006, a qual, finalmente, definiu os parâmetros urbanísticos para área, entre outras providências para a reabilitação
urbana do Centro de Niterói. As demais AEIUs, estão inscritas em frações urbanas específicas e seguem padrões
urbanísticos próprios.
156
Todavia, apesar das definições legais terem o foco acima destacado a conjugação dos diversos
interesses e os problemas acumulados nas últimas décadas, frutos de processos sociais e
econômicos que chegam aos nossos dias, fazem com que essas áreas ainda tenham sinais de
decadência sócio-econômica e degradação física, não sendo fácil sua gestão. Um dos fatos que
contribui para esta situação é a idéia de que os objetos que integram o patrimônio, por muito
tempo representaram apenas a evocação do sentimento de coletividade, existindo como
elementos de representação, como objetos de valor simbólico, relacionados às mentalidades e
ideologias e não aos habitantes da cidade. Além disto, especificamente no que tange aos
processos econômicos relacionados à urbanização, a proteção ao patrimônio edificado ainda é
vista, por muitos agentes econômicos, como algo que desvalorizava a propriedade imobiliária,
porque inibi o processo de verticalização, de substituição de uso, e possui manutenção e
conservação custosas em função da mão-de-obra especializada.
Em algumas cidades, no entanto, esta perspectiva vem mudando e, o patrimônio começa, cada
vez mais, a ser visto como algo que pode fazer parte da economia, como fator de geração de
renda e emprego e, até mesmo, como fator de valorização imobiliária. Logo, esse quadro sugere a
reflexão das normativas vigentes no sentido de incorporar a experiência de todo este período.
Uma visão mais amadurecida dos conceitos de preservação de ambientes históricos, dispositivos
mais adequados às necessidades econômicas e sociais e incentivos fiscais que colaborem na
preservação dos imóveis e na vitalidade econômica das áreas, estão vindo à tona.
207
Os novos instrumentos legais
Novas propostas às leis municipais insurgidas com o Estatuto da Cidade, contribuem em muito
para estas necessárias negociações que incluem os atores urbanos, o patrimônio e o espaço. A
permanência destas áreas ou bens patrimoniais, através da reflexão realizada no primeiro capítulo,
está vinculada também, ao processo de democratização da formulação das leis referentes à cidade
e ao patrimônio.
Cada vez mais eminente, a necessidade da participação social, gerou a revisão do Plano Diretor
da cidade. Entretanto, segundo o estudo da “Sistematização do Plano Diretor do Município de
Niterói” realizado pelo Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais
(Instituto Pólis), na readequação da Lei do Plano Diretor em 2004 houve muito pouca
participação. As considerações manifestadas a partir da visão de diferentes agentes relatam que, as
propostas foram muito pouco discutidas, incorrendo em um processo rápido, e aparentemente
pontual, de caráter mais técnico. Na opinião de alguns agentes, na realidade, esta lei atualizou os
207
Numa análise mais detida na APAU Centro, foram identificados aspectos positivos e negativos que extrapolam
os limites estritos da morfologia e incorporam os efeitos do uso do espaço urbano como resultado das atividades
econômicas e sociais aí desenvolvidas e, cuja leitura orientam, respectivamente, as potencialidades a serem exploradas
e os problemas a serem resolvidos nos futuros planos urbanísticos e nas ões de gestores públicos e privados.
Sendo, portanto, um exemplo a ser considerado, para este estudo.
157
instrumentos para que ficassem coerentes com o Estatuto da Cidade e viabilizassem a aplicação
dos Planos Urbanísticos, pois o Plano anterior não apresenta o conteúdo nos termos da
Resolução 34 de 1/7/2005 do Conselho das Cidades.
208
Porém, apesar das constatações negativas referenciadas à revisão, foram colocados dois aspectos
importantes realizados por esta. O primeiro aspecto atribui valor ao Plano anterior que,
anteriormente, principalmente no tema Patrimônio Cultural, possuía extenso e detalhado
conteúdo. O segundo aspecto diz respeito ao ganho de instrumentos legais. Neste caso, por
exemplo, nas Áreas de Especial Interesse Urbanístico, onde são definidas diretrizes e parâmetros
urbanísticos diferenciados, quando for o caso, há a possibilidade da realização de operações
consorciadas entre a prefeitura do Município e terceiros, citada no Estatuto da Cidade, Seção X -
Das operações urbanas consorciadas:
Art. 32. Lei municipal específica, baseada no plano diretor, poderá delimitar área para
aplicação de operações consorciadas.
§ 1
o
Considera-se operação urbana consorciada o conjunto de intervenções e medidas
coordenadas pelo Poder Público municipal, com a participação dos proprietários,
moradores, usuários permanentes e investidores privados, com o objetivo de alcançar
em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização
ambiental.
§ 2
o
Poderão ser previstas nas operações urbanas consorciadas, entre outras medidas:
I – a modificação de índices e características de parcelamento, uso e ocupação do solo e
subsolo, bem como alterações das normas edilícias, considerado o impacto ambiental
delas decorrente (Lei n 10.257 de 10 de julho de 2001, Brasil)
Com o Estatuto criaram-se mecanismos de estímulo para atividades típicas ou compatíveis com
objetivos de revitalização. Por lei a preservação pretendida o se aproxima da idéia de congelar
espaços urbanos, mas cria possibilidades de preenchê-lo com a vida, trabalho e lazer dos
cidadãos. Trabalham com o conceito do preservar reciclando as estruturas históricas pela
convivência com as novas estruturas. A regulamentação específica de seu perímetro significa: (1)
dar diretrizes às edificações existentes e às novas, garantindo requisitos de funcionalidade e
estética de conjunto, bem como de sua utilidade social; (2) criar instâncias para a sua análise, (3)
dar incentivos tributários para a preservação. Incluindo-se o uso da Transferência de Potencial
Construtivo.
Dentre todos os instrumentos sugeridos pelo Estatuto da Cidade, existem alguns que atingem, ou
melhor, contemplam mais diretamente as questões que dizem respeito ao Patrimônio Cultural
que é:
Transferência do direito de construir (art. 35)
- o objetivo da transferência do direito de construir é viabilizar a preservação de
imóveis ou áreas de importante valor histórico ou ambiental.
208
Cabe lembrar que a partir da aprovação do Estatuto da Cidade, conforme reza a lei, todos os municípios com
mais de 20 mil habitantes, que pertençam a Regiões Metropolitanas, de Interesse Turístico ou que possuem grandes
projetos de interesse nacional devem elaborar os seus planos diretores, e no caso destes já existirem, devem
promover a sua revisão.
158
O primeiro fator que deve estar resolvido pelo poder público são as condições de transferência
desse imóvel, e seu potencial de aplicação do instrumento. Porém, em Niterói como em alguns
lugares onde houve a aplicação desta lei criou-se certo problema, porque muitos imóveis, com
interesse para preservação, não dispõem de potencial a ser transferido (coeficiente de
aproveitamento real já é superior ao permitido pela legislação). Outra questão é que se tornam
concorrentes o instrumento de transferência de potencial e a venda do solo criado. No momento
em que os dois casos acontecem ao mesmo tempo, uma preferência do mercado pela
aplicação do instrumento solo criado, pois esse possibilita mudanças de uso e não apenas
potencial construtivo. Um outro aspecto é que o solo criado que, para atrair os empreendedores,
é vendido bem abaixo de sua avaliação no mercado imobiliário. É claro que, qualquer uma dessas
leis aplicadas pode causar impactos ao meio ambiente, por isso preocupa a aplicação estabelecida
para Niterói, pois é preciso estudo antecipado e algumas precauções para minimizar ou até
mesmo sanar esses problemas.
Outro instrumento é o Direito de Preempção. O poder público, nesse caso, tem a preferência
para aquisição de imóvel urbano. Para essa aquisição, ou seja, o direito de preempção, algumas
normas ou finalidades devem ser estabelecidas como: regularização fundiária, execução de
programas e projetos habitacionais de interesse social, criação de espaços públicos de lazer e áreas
verdes, proteção de áreas de interesse histórico cultural ou paisagístico.
Apesar dos instrumentos, contidos no Estatuto da Cidade, serem bastante modernos e com
grandes possibilidades de aplicação, temos que, considerar que a situação financeira da maioria
dos municípios, incluindo Niterói, e o incentivo financeiro destinado à cultura, de uma forma
geral, o é nada alentador. Neste momento, nos certificamos da necessidade de aplicação das
leis existentes mostrando alguns exemplos que deram certo. A Lei citada abaixo é um
instrumento presente na Lei Orgânica do Município de Curitiba:
Em Curitiba (Lei nº.6337/1982 e Lei nº.9803/2000) o custo de restauro de um imóvel
público a ser preservado é dividido em cotas de potencial construtivo a ser transferido
(o valor médio aproximado é de R$ 200,00 por m2), que são vendidas, gerando
recursos para financiamento de restauração do imóvel. Estas cotas o transformadas,
em potencial adicional de construção para imóveis comerciais. Mecanismo semelhante-
conversão de área de preservação em metros quadrados, potenciais adicionais- é
aplicado para imóveis residenciais. O instrumento foi muito utilizado e gerou para o
município mais de 7 milhões de reais, que foram empregados com a transformação de
áreas verdes em parques e restauro de imóveis históricos (ESTATUTO DA CIDADE,
2002, p. 76).
Este exemplo foi citado justamente para podermos salientar que preservar não significa estagnar,
muito ao contrário, pode nos dar diretrizes para um desenvolvimento sustentável, que é hoje, um
dos temas mais discutidos em relação ao crescimento e a qualidade de vida das cidades. Desta
forma, um dos meios freqüentemente utilizado na aproximação e manutenção da relação do
patrimônio e seus protagonizadores é a adequações de uso, sendo recorrente a reformulação de
elementos que têm seu valor de uso atribuído a épocas passadas. Nesta discussão, o objeto deste
159
trabalho foi equipamento que compôs a infra-estrutura urbana de Niterói, mas que com o tempo
foi desviado de sua função original. No entanto, este elemento patrimonial ainda pode ser
considerado equipamento da cidade, e sua reformulação de uso pode, também, ser negociada e
discutida com a população. Pois cabe lembrar que, uma das prioridades das áreas planejadas é o
equipamento, sua transformação e sua nova função na comunidade.
O equipamento de uma área é o conjunto de meios materiais destinados a assegurar a
valorização dos recursos naturais e o desenvolvimento humano de seus habitantes. A
implantação dos equipamentos não é função somente de sua rentabilidade direta e
imediata, mas também de sua utilidade indireta e futura (BIRKHOLZ, 1983, p. 10).
Neste caso, o equipamento que estamos discutindo agrega dois importantes valores, o valor
essencial como componente da infra-estrutura urbana (utilizado em épocas) e, o valor cultural
como patrimônio edificado que conta a história da cidade e valor histórico, de conter objetos e
técnicas construtivas antigas. Diante disso, ressaltamos a importância desta questão e por
acreditar que conservar e preservar a história e poder usufruir dela, propicia à comunidade
melhor qualidade de vida e traz o resgate de valores de cidadania, quesitos básicos para
prosperidade e manutenção do lugar e permanência da memória coletiva.
Devemos relatar nesta análise, portanto, que a compreensão da importância de alguns
componentes dos sistemas de águas, em muitas cidades, obteve êxito, a maioria deles
pertencentes a áreas públicas, como chafarizes e fontes. Entretanto, no Estado do Rio de Janeiro,
na década de 90, o Instituto do Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC)
209
, diante de um
quadro de possível privatização da CEDAE, no intuito de preservar e consolidar os bens de
interesse geral da população, gerou um levantamento intenso do patrimônio cultural da
Companhia. Porém, a urgência do fato e a dificuldade no levantamento de dados referentes às
edificações não permitiu aprofundar ainda sobre a história e a arquitetura de muitos componentes
de sistemas de águas que foram tombados.
Entre estes componentes, em Niterói, foi tombado, em 1998, o Reservatório da Correção (VER
ANEXO III Inventário de Tombamento), a julgar pelas observações constantes do primeiro
item deste capítulo, a regulamentação de seu tombamento sofreu com a negligência dos aspectos
mínimos para o seu resguardo e preservação. No que se refere à Lei Estadual de Tombamento, se
reserva ao Conselho de Tombamento a responsabilidade da avaliação e aprovação de projetos
novos vinculados a bens tombados estaduais.
209
Em 1974 os antigos Estados do Rio de Janeiro e da Guanabara se fundiram. Por força do artigo 2º, da Lei
Complementar n. 20 de 1 de julho de 1974, permaneceu válida no novo Estado a legislação da Guanabara. Ela e o
determinado no artigo 141 da Constituição do novo Estado deram origem ao atual órgão estadual, o Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural – INEPAC. Com a criação do órgão uma das diretrizes estabelecidas foi a
substituição do conceito excessivamente histórico por uma noção maior que incluiria a história como uma das
possibilidades de interpretação do ente geral – Cultura. Daí passou-se à preservação de um leque mais aberto de bens
de significação diversificada e exemplar. Dessa maneira, pode-se dizer que o INEPAC é um órgão cuja principal
função legal é a de executar as medidas de proteção legal referentes ao tombamento de bens culturais em nível
estadual. Na realidade, entretanto, o INEPAC funciona como órgão executivo de um sistema estadual de proteção ao
patrimônio cultural que tem no Conselho Estadual de Tombamento o órgão normativo e deliberativo, tudo no
âmbito da Secretaria de Cultura do Estado.
160
Art. 1º - O Conselho Estadual de Tombamento, integrante da estrutura da Secretaria do
Estado de Educação e Cultura, é órgão consultivo e de assessoramento do Governo do
Estado no que diz respeito a documentos, obras, locais de valor histórico, artístico e
arqueológico.
Art. 2º - Compete ao Conselho Estadual de Tombamento:
I - Exarar parecer prévio sobre os atos de tombamento e destombamento, o qual terá
efeito vinculativo para a Administração se, num ou outro caso, concluir contrariamente
à providencia.
II - Emitir pronunciamento quanto:
1) à demolição, no caso de ruína iminente, modificação, transformação, restauração,
pintura ou remoção de bem tombado pelo Estado;
2) à expedição ou a renovação, pelo órgão competente de licença para obra. Afixação
de anúncios, cartazes ou letreiros, ou para a instalação de atividade comercial ou
industrial em imóvel tombado pelo Estado;
3) à concessão da licença para obras em imóveis situados nas proximidades de bem
tombado pelo Estado e à aprovação, modificação ou revogação de projetos
urbanísticos, inclusive os de loteamento, desde que umas ou outras, possam repercutir
de alguma forma na segurança, na integridade estática, na ambiência ou na visibilidade
de bem tombado pelo estado, assim como em sua inserção no conjunto panorâmico ou
urbanístico circunjacente;
4) à pratica de qualquer ato que de alguma forma altere a aparência do bem tombado
pelo Estado (Lei n. 509 - 03/12/1981).
Ou seja, no caso do bem tombado, quaisquer alterações na edificação e no seu entorno deve
passar por avaliação do Conselho. Desta forma, as questões condizentes ao bem tombado, por
um lado, estão vinculadas a membros do Conselho que, a partir do debate, com base em diversos
parâmetros (técnicos, sociais, econômicos, cognitivos, entre outros), estabeleceram as medidas a
serem tomadas, revelando um processo construído pela participação. Por outro lado, no entanto,
a composição do Conselho deve abranger a diversidade necessária à temática do patrimônio
cultural, o que sugere a participação de diversos extratos da sociedade, cabendo, assim, a
indagação da real composição deste Conselho.
Desta forma, no processo de tombamento, verificamos que a proteção do patrimônio cultural
arquitetônico das cidades depende de políticas urbanas que contemplem a diversidade,
respeitando o espaço-tempo de grupos sociais, preocupando-se com a necessidade do
desenvolvimento e da modernização dos locais. Porém, para que se realize o tombamento é
necessário um trabalho de investigação, ou seja, o preparo de documentação que sustentação
técnica a tal resolução, assim:
Tombar significa inventariar, registrar, pôr sob a guarda para conservar e proteger, bens
móveis e imóveis de interesse público. [...] Os termos “tombamento” e “Livros do
Tombo” são provenientes, segundo os juristas, do Direito Português, para o qual a
palavra tombar significa inventariar, arrolar ou inscrever nos arquivos do Reino,
guardados na Torre do Tombo em Lisboa, Portugal. Foi usado pela primeira vez no
Código de Processo Civil Luso de 1876 como sinônimo de demarcação. A palavra
“Tombo” tem origem no latim vindo de tumulus (elevação de terra) e não se confunde
com o verbo “tombar”, que significa botar a baixo”, que deriva da palavra tômon,
originaria da língua alemã, que foi passada para o inglês, que passou para o espanhol,
que por sua vez chegou ao idioma português (BORGES, 2006, p. 09).
161
Como vimos, o tombamento é um ato administrativo que pode ser praticado pelo Poder Público
em suas diversas instâncias (Federal, Estadual e Municipal). A lei de Tombamento-Decreto-Lei
Federal no. 25, de 03 de novembro de 1937, descreve alguns tipos de tombamento de bens
imóveis:
-Integral: incide sobre os planos externos e internos de um bem cultural.
-Parcial: incide sobre determinados aspectos do bem cultural (planos de fachadas,
volume, altimetria, etc.)
Ainda na legislação federal de tombamento, a modalidade jurídica de preservação não altera a
propriedade do bem tombado. O proprietário pode continuar a exercer sobre seu bem o domínio
e a posse, utilizando-o diretamente, vendendo, alugando, etc. Entretanto, o bem tombado não
pode ser destruído ou descaracterizado, que o objetivo do tombamento é dignificá-lo,
garantindo sua permanência sempre que possível de forma original e autêntica. Logo, as obras e
serviços somente são admitidas quando visam a restauração ou conservação, e tais intervenções
devem ser previamente aprovadas.
210
Outro importante instrumento na preservação do Patrimônio Cultural é o inventariamento, que
não tem força legal, mas respalda o processo de realização do tombamento:
Inventariamento: é a identificação do acervo cultural através de pesquisa e
cadastramento de bens de interesse e preservação. Faz-se o registro dos bens culturais
do município através de pesquisa histórica, juntamente, com a investigação
arquitetônica, arqueológica, espeleológica e antropológica, com vistas a valorizar o
despertar de uma consciência salvaguardando e difundindo o patrimônio. O inventário
apóia o processo de tombamento no que diz respeito a identificação de bens que
possuem valor histórico, artístico e científico, porém, ele não tem força jurídica.
(SECRETARIA DE ESTADO DA CULTURA DE MINAS GERAIS; MINISTÉRIO
DO TRABALHO/FAT, 1998, p. 73)
Desta maneira, a gama de instrumentos legais descritos nesta reflexão, agregam novas formas de
resguardo para os bens patrimoniais. Porém, a complexidade de aspectos que revela cada bem
patrimonial e a variedade dos espaços existentes, descrevem a pluralidade que estes instrumentos
legais necessitam alcançar. Como vimos, em se tratando do patrimônio cultural esta pluralidade
diz respeito a diversidade social, o que comunica diretamente a importância da democratização
das decisões referentes ao patrimônio. Assim, se retomarmos a primeira lei do município de
Niterói, concebida para a preservação do patrimônio cultural, Lei Municipal nº. 827/90,
encontramos a descrição de ações que, apesar do tempo, ainda se mantêm coerente aos desafios
atuais.
Art. - Integram o patrimônio cultural do Município de Niterói os bens móveis e
imóveis, naturais e construídos, materiais simbólicos, públicos ou privados, existentes
210
A legislação ainda indica que o proprietário de um bem tombado é o primeiro responsável por sua integridade,
cabendo-lhe, se não dispuser de recursos para sua conservação e reparação, comunicar ao órgão público responsável,
auxilio para sua conservação.
162
no território do Município, que pelo seu valor mereçam a proteção do Poder Público
Municipal.
§ - Os bens e as manifestações referidos no “Caput” deste artigo poderão ser de
qualquer natureza, origem ou procedência, tais como: históricos, arquitetônicos,
ambientais, naturais, paisagísticos, arqueológicos, museológicos, etnográficos,
arquivísticos, bibliográficos, documentais ou quaisquer outros de interesse das demais
artes ou ciências.
§ - Na identificação dos bens a serem protegidos pelo Poder Público Municipal
levar-se-á em conta os aspectos cognitivos estéticos ou afetivos que estes tenham para a
comunidade.
Art. - A proteção do Patrimônio Cultural se fará por formas adequadas e exigidas
pela natureza do bem, através do inventário, registro, tombamento, desapropriação e
outras formas de acautelamento, como a criação de Zonas de Preservação Urbana, leis
de uso do solo com fins de preservação da memória e identidade urbana das
comunidades, inclusive política de estímulos fiscais à preservação e revitalização de
conjuntos arquitetônicos, sítios e áreas identificadas como de interesse histórico e
cultural.
Parágrafo único - Cabe à comunidade participar na preservação do Patrimônio
Cultural, zelando pela sua proteção e conservação.
(LEI 827, DE 25 DE JUNHO DE 1990, grifo nosso)
Este primeiro instrumento geral para salvaguarda dos bens patrimoniais torna-se importante por
designar parâmetros necessários para o acautelamento e para o tombamento que, pela lei, serão
realizados pelo poder público com a participação da população. Neste sentido, a reflexão
realizada anteriormente sobre o Plano Diretor, na atualidade principal instrumento municipal
para a gestão e planejamento participativos, estabelece sua prioridade. Entretanto, fica claro que,
o problema mais recorrente aos municípios e, para Niterói, é a dificuldade de implementação dos
atos descritos pela lei.
Ao preservar o patrimônio cultural arquitetônico, colaboramos para permanência da história do
homem e, propiciamos as futuras gerações o acesso a ele. Considerando esta ponderação,
podemos destacar um pouco mais a importância da demarcação do Complexo do Vintém como
um bem do município. Durante as últimas análises percebemos que, uma política de
conscientização aliada ao estudo aprofundado de cada área com suas peculiaridades e com suas
vocações poderá incentivar a concretização de projeto que integre o vazio urbano, renove a área
abandonada e faça reviver um patrimônio arquitetural restaurado e reciclado para atender às
demandas sociais do bairro e da cidade. Sem, contudo, esquecer que este é um processo coletivo,
no cumprimento das leis patrimoniais.
Propostas de preservação
Algumas considerações devem ser abordadas sobre a possível preservação dos componentes do
Complexo do Vintém. Devido a sua importância como documento histórico, autêntico
testemunho do processo de formação da cidade e de algumas características culturais do
163
niteroiense, é de extremo interesse que as construções sejam protegidas. Apesar desta
importância, o Complexo encontra alguns impasses que apontam dificuldades a sua preservação.
Estas dificuldades, pude constatar pessoalmente como arquiteta da Secretaria de Urbanismo e
Controle Urbano da Prefeitura de Niterói, trabalhando com a equipe do Departamento de
Urbanismo na revisão das leis urbanísticas da área central da cidade. Propusemos a criação de
Área de Especial Interesse Urbanístico do Complexo do Vintém e formulamos indicativo de seu
tombamento ao Departamento do Patrimônio Cultural. Contudo, a consolidação desta proposta,
não recebeu adesão necessária da Câmara dos Vereadores e, após o período das eleições
municipais, foi relegado ao esquecimento.
Na proposta de revisão urbanística, procuramos utilizar o instrumento denominado Operação
Consorciada, contida no Estatuto da Cidade, que se estabeleceria na negociação para a
construção de um parque urbano em parte das terras onde se localizam componentes do sistema
de água. Ao proprietário, seriam autorizados novos parâmetros construtivos e urbanos que
possibilitassem a ocupação de outra parte de suas terras na área da antiga pedreira. Todavia, com
a concepção difundida em algumas instâncias administrativas do município, a idéia de salvaguarda
oficial torna-se difícil de se equacionar devido ao choque de interesses da sociedade em geral e os
do proprietário, que prefere dispor de sua propriedade conforme sua vontade e necessidade.
Além disso, a estagnação daquela proposta deveu-se também à falta de continuidade do processo
de salvaguarda do antigo Sistema. É interessante observar que a área onde se encontram o
reservatório principal, a torre de abastecimento e aquedutos, em planta de loteamento é reservada
ao domínio público municipal.
Diante desta experiência, algumas reflexões podem ser feitas, a primeira, de fundamental
importância, se deve à ausência, no processo de elaboração da proposta, da participação e da
negociação com os atores envolvidos diretamente com o espaço e com seu processo de
tombamento. O segundo fato diz respeito à descontinuidade da proposta pelo Poder Público. O
terceiro a destacar é a ausência de nova proposta para outro componente do Complexo, a antiga
área do Clube de Funcionários da CEDAE.
Deve-se enfatizar que reestruturar áreas degradadas, isto é, promover a reabilitação dos imóveis e
a requalificação dos espaços, implica na integração dessas áreas às necessidades da vida
contemporânea, sendo indispensável que as novas destinações de uso sejam compatíveis com a
morfologia, com a escala do bairro e com o desejo dos usuários que ali habitam. Além disto, é
fundamental que esses usos sejam multifuncionais, incluindo a recuperação da importância
histórica e harmônica com a recomposição paisagística dos marcos visuais a partir de novas
visões do Parque das Águas, a adaptação morfológica das novas edificações, o reflorestamento do
entorno, a ambiência e a integração com o Bairro de Fátima, ainda carente de áreas públicas de
lazer.
164
FIGURA 43
– Ruína do reservatório maior, ao lado, a partir do mesmo, vista do bairro de Fátima e do Parque das Águas.
Fonte: Eduardo TRAVASSOS, 2002.
A criação de Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) ainda é um meio que possibilita
definir parâmetros e configurar a área com atenção ao conjunto histórico. No entanto, este meio
pode-se agregar a outros, entre eles, o tombamento municipal do conjunto que configura o
sistema de água e, a utilização dos instrumentos de operação consorciada, envolvendo não a
Prefeitura e o proprietário, mas também a Companhia Águas de Niterói
211
. Outro ponto de vital
importância no processo de recuperação da imagem deste segmento da cidade é o de agregar
valor ambiental. Assim, um aspecto positivo seria o somatório da área proposta como parque
urbano com as áreas de proteção, de recuperação e uso especial, ressaltando a importância da
Área de Proteção Permanente do Morro da Boa Vista e Abílio que compõe o entorno (VER
ANEXO IV Mapa de Zoneamento das Frações Urbanas do Centro). Cabe lembrar, a
necessidade de participação tanto dos moradores de bairro de Fátima, como os demais
moradores de Niterói, no processo de elaboração, votação e acompanhamento da implementação
da lei, seja de forma direta ou indireta – através de seus representantes eleitos.
Entretanto, os desafios não terminam aí. Uma vez tombado, a intervenção em um bem histórico
deve ser pautada em conhecimento específico, fundamentada em reflexões teórico-críticas e
experiências práticas para atuar com diferentes materiais e métodos construtivos.
212
Assim,
211
Sobre o processo de preservação de um bem, Riegl considerava que a conservação ideal de um monumento era
através da conservação original do uso. Neste sentido, componentes do sistema de água, localizados na área do
antigo Clube de Funcionários da CEDAE, ainda em funcionamento, a partir de restauração e manutenção, poderiam
cumprir seu papel atendendo, por exemplo, a demanda do entorno, além de funcionar como objeto educativo,
quando exposto à visitação. É claro que para a viabilidade desta proposta deverão estar em acordo a Prefeitura do
município e a Companhia de abastecimento de água. Assim, a forma de proteger estes componentes é fornecer
suporte técnico para a manutenção e conservação das construções mantendo a integridade de sua materialidade.
212
Reservo-me aqui à colocação de alguns aspectos sobre a intervenção realizada por ação consorciada entre a
Companhia de Águas de Niterói e a Prefeitura Municipal de Niterói, no Reservatório da Correção. Como referido
anteriormente, foi executada limpeza parcial e reforma, porém, a operação não contou com profissionais capacitados
tecnicamente para a recomposição e inventário dos elementos parcialmente deteriorados que foram retirados. Da
mesma maneira, aplicou-se sobre a alvenaria antiga revestimento e fechamento (novo gradil) sem qualquer análise
165
ponderações sobre as formas de preservação dos remanescentes do Complexo do Vintém, a
cerca da importância como documento histórico, devem ser realizadas. Alguns destes
remanescentes, pelo seu atual estado de degradação física, assemelham-se mais a uma ruína, o que
os aproxima do valor de antiguidade.
Portanto, partindo de Riegl, uma abordagem plausível seria a conservação das ruínas, ou seja, a
adoção de medidas que possam garantir a xima sobrevivência deste bem. No caso, a ação
sobre o bem justificável é mínima, visto que o avançado estado de degradação física,
principalmente no reservatório maior (sem telhado) e nos aquedutos (soterrados), onde seu
revestimento de argamassa e a madeira estão expostos às intempéries que os tornam mais
próximos de uma ruína do que de um bem de uso. Qualquer complemento ou adição seria pouco
justificável, se formos pensar a partir da avaliação de sua instância histórica e artística o valor
primordial deste objeto reside em sua importância como documento histórico, importante para a
História e para a Antropologia, visto que não se trata de arquitetura significativa para a História
da Arte. Neste caso, justifica-se uma intervenção com pouca modificação à materialidade,
respeitando as estratificações dos elementos, sem romper com o processo de identidade que os
relacionam com seus habitantes, como bem salienta Nestor Garcia Canclini:
Parece que devem importar-nos mais os processos que os objetos, e não sua capacidade
de permanecer “puros”, iguais a si mesmos, mas por sua representatividade
sociocultural. Nessa perspectiva, a investigação, a restauração e a difusão do patrimônio
não teriam por finalidade central almejar a autenticidade ou restabelecê-la, mas
reconstruir a verossimilhança histórica e estabelecer bases comuns para uma
reelaboração de acordo com as necessidades do presente (CANCLINI, 1997, p.202).
prévia, ou seja, apesar deste reservatório constar como um bem tombado estadual, não mereceu a devida
consideração.
166
Considerações Finais
As cidades se transformaram, num movimento que toma para si espaços, construindo neles
outros sentidos. Assim, resta à memória a compreensão do que um dia existiu, dando-nos uma
medida da transformação, revelando o embrião do que se vê. Um olhar mais atento perceberá
nestes espaços o mosaico da história humana ali, ainda presente.
A água, neste contexto, está profundamente inserida na história dos cidadãos. Este envolvimento
é destacado pelas diversas camadas do saber, seus significados são múltiplos, assim como seus
usos. Para muitos estudiosos e artistas é um elemento indutor da memória. Deve-se isso ao fato:
de ser essencial para o homem, da sua ocorrência e estabilidade físico-química na superfície
terrestre. Contribui e contribuiu para o processo de apropriação do espaço, ao se ligar às
experiências, como memória, é elemento que influencia e influenciou a humanidade. Por estes
aspectos, a água se liga fortemente à memória do homem, à história de formação das cidades e,
por conseqüência, à formação do território niteroiense.
Em Niterói, o homem, neste caso, o europeu, se fixou, em determinada época, criando infra-
estrutura de apropriação dos recursos hídricos, que sobrevivem mesmo que alterados ao longo do
tempo. Representam marcas da cultura e testemunhos dos momentos históricos em que
surgiram, vividas e desenvolvidas pelo homem. Sistemas de abastecimento de água, assim como
outros componentes desenvolvidos na relação do homem com a água, são peças do mosaico que
conta parte da história da cidade.
Repensar a cidade sob a ótica de sua memória requer a investigação dos significados atribuídos à
noção de patrimônio que, supõe compreender a lógica das prioridades sobre o uso e valorização
de espaços efetivados ao longo do tempo, bem como de seus recursos naturais. Prioridades que
aparecem como coletivamente construídas são objeto permanente de disputas que revelam
interesse de diferentes atores sociais. Com isso, queremos dizer que a história e a memória da
cidade, materializadas no conceito de patrimônio, expressam versões diferenciadas ou visões de
um imaginário
213
urbano, nem sempre convergentes.
Se as representações e práticas que se efetivam no contexto urbano ligam-se à lógica das
intervenções e ao lugar ocupado por distintos atores sociais, é importante também pensar nas
significações imaginárias que moldam o próprio conceito da Cidade. Isso porque as cidades:
213
O espaço urbano é tanto objeto como sujeito do imaginário, isto é, ao mesmo tempo em que o imaginário elabora
imagens e símbolos sobre ele, os seus atributos físicos constituem-se elementos para a composição do imaginário.
Esses símbolos servem de código que permitem a identificação destes grupos. O imaginário sobre as cidades,
evocado em diferentes situações, constituiu um rico caminho analítico para se pensar o modo como as circunstancias
históricas viabilizam projeções de sociabilidade urbana em Niterói.
167
Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez nos moldam por meio da resistência
que aparece quando tentamos impor-lhe nossa própria forma pessoal. Nesse sentido,
parece-me que viver numa cidade é uma arte, e precisamos do vocabulário da arte, do
estilo, para descrever a relação peculiar entre homem e material que existe na contínua
interação criativa da vida urbana. A cidade tal como imaginamos, a suave cidade de
ilusão, do mito, da aspiração do pesadelo, é tão real, e talvez mais real, quanto a cidade
dura que podemos localizar nos mapas e estatísticas, nas monografias de sociologia
urbana, de demografia e arquitetura (RABAN, apud HARVEY, 1989, p. 13)
É na instituição do imaginário e seus efeitos sobre as formas urbanas de intervenção que a cidade
dialoga com seu passado. A tentativa de recuperação de algo perdido e a busca de liames
temporais conduzem a discursos sobre o patrimônio, lugar por excelência de negociação entre
passado e presente.
Observa-se, portanto, a existência de diferentes articulações estabelecidas entre as cidades e seus
tempos. Diálogos temporais com o passado ou as projeções de futuro são construídos não
apenas como via para pensar a formulação de uma identidade, são também para revelar as
características discursivas de atores urbanos. Em Niterói, com a sua formação urbana, existem,
ainda, espaços que simbolizam e traduzem seus diversos momentos políticos.
Observamos que alguns dos espaços identificados carregam também memórias da água. São
componentes de sistemas de abastecimento de água que gravaram a trajetória de conquista,
ocupação e permanência no território. Logo, a preocupação e persistência na obtenção da água,
desde a fundação da Vila Real da Praia Grande até a inauguração do conjunto que hoje ainda
perdura, foram atitudes administrativas praticadas por seus governantes em diferentes momentos.
De forma, semelhante às outras importantes questões para a Vila, a Cidade ou a Capital, nestes
componentes da infra-estrutura urbana havia também a articulação simbólica expressa em cada
momento de diferentes maneiras: o Chafariz de D. João, o primeiro Sistema de águas
Complexo do Vintém para a recém instituída Cidade, e o grande Reservatório da Correção
do novo sistema de águas para a Capital do Estado.
Na descrição da construção desta seqüência de sistemas de abastecimento de água, foi possível
correlacioná-los com modos de vida, a formação social, vez por outra capturada em histórias,
narrativas memoriais e vivências relacionadas ao uso da água.
214
Além do patrimônio físico, a
considerar os fatos sociais e culturais dos usos da água neles imbricados, que estabelecem as
formas de apropriação do recurso numa interação entre o meio natural e as ações antrópicas.
Como pudemos perceber no segundo capítulo, entre os meios naturais, onde se dão as formas de
apropriação das águas, estão as características geográficas e climáticas da região. Niterói fez
ressalvas à origem de seu nome e revelou a carência de meios para abastecimento da sua
crescente população, recorrendo, assim, a áreas e mananciais vizinhos. Por outro lado, no
214
Como a população que fazia uso dos chafarizes blicos, dispondo nas filas, lavando roupa, saciando a sede, e
alimentando os animais. também os relatos da comercialização da água por carroças-pipas que traziam água da
Chácara do Conselheiro Andrade Pinto, o regime de torneiras fechadas, entre outras estórias.
168
controle das práticas relacionadas ao uso das águas, o poder político local também relacionado
às questões econômicas representa o fato social importante, em nome das quais se
estabeleceram as regras de controle da quantidade e das qualidades das águas necessárias à
população para uso cotidiano nas habitações, no comércio e na indústria.
Com o desenvolvimento de relações socioeconômicas mais complexas, foram introduzidas
algumas estratégias de gerenciamento do abastecimento de água, para eventualmente garantir um
uso sustentado dos recursos disponíveis, como a lei para preservação das áreas entorno dos
mananciais. As formas de controle qualitativo e quantitativo destes sistemas resultaram em
práticas de saúde pública e de prevenção da contaminação, como forma mais eficaz de combater
as pragas e epidemias, o que destaca as reformas urbanas empreendidas no final do século XIX,
tanto na cidade do Rio de Janeiro como em Niterói.
215
Todavia, foi possível também perceber
que nestas formas de controle ocorreram dificuldades, o planejamento e a visão de longo prazo
para os eventos naturais muitas vezes negligenciados resultaram nas rias e graves secas que
assolaram a cidade.
O conhecimento dos aspectos sócio-culturais relacionados com a água serviu para a base de
entendimento das questões por ela afetadas, o que inclui sua influência sobre a possível utilização
deste mecanismo como instrumento de controle social, sobre os fatores de ocupação do
território niteroiense e sobre o imaginário popular.
O que se nota, entretanto, é que quanto mais o tempo passa, mais os componentes dos sistemas
de águas, chafarizes, aquedutos e reservatórios vão perdendo a sua função original, isolando-se da
cadeia de relações socioeconômicas e culturais primitivas, ou originais, para se estabelecerem
ainda nas relações sócio-culturais, mas sobretudo vinculadas por aspectos da memória e da
história.
A superação, transformação e abandono de alguns sistemas de águas, entre eles o do Complexo
do Vintém é o que abordamos. Todavia, foram também objeto de análise e seu entorno que,
acreditamos, enriquecem esta pesquisa. A partir da sua investigação, pudemos constatar
características socioculturais vinculadas ao espaço e ao sistema de abastecimento de água que em
sua particularidade agregam outros dados referentes à memória. Assim, além do valor histórico
estabelecido pelo objeto, outros são inseridos pela ambiência e pelos costumes e práticas ainda
instituídos pelos moradores do bairro de Fátima. São fatos que podem ser observados com mais
cuidado, na paisagem, na escala reduzida; casarios, construções modestas, ruas calmas, ainda
arborizadas, algumas vezes permeadas por áreas livres que emolduram matas nas elevações e nas
vertentes e, compõem a urbanização local sem apresentar os destaques de monumentalidade.
Estão presentes entre os componentes do sistema de abastecimento de água e merecem nossa
215
É importante registrar que antes do desenvolvimento dos modernos sistemas de tratamento de dejetos os hábitos
de higiene eram bastante rudimentares tanto nas formas de abastecimento quanto nas de disposição final.
169
leitura, são elementos cujo sentido se manifesta não por si, porém pela articulação que entre si
estabelece e que lhes dá suporte.
A ambiência, o conjunto natural e antrópico que envolve a área do Complexo do Vintém e
integra o bairro de Fátima é um sistema de objetos, socialmente apropriados, percebidos como
capazes de sustentar as representações de um ambiente urbano que por sua vez se alinha ao
objeto histórico o Complexo e ao fato social presentes.
216
Na medida em que o espaço deixa
marcas no indivíduo, contribuindo para a construção da sua identidade (HALBWACHS, 2006), o
modo dos habitantes locais relacionarem-se com os espaços do bairro e o antigo sistema de água
revelou a coexistência entre o meio, os habitantes e o objeto.
Ao trabalhar com a memória socialmente construída, portanto, tornou necessária à investigação
do significado do objeto de estudo, o que ele expressa quanto às referências pessoais e coletivas.
Portanto, as significações ou representações identificadas, nas entrevistas com os moradores de
Fátima, referem-se não apenas ao objeto patrimonial em estudo, mas também aos temas
correlatos, como a representação do espaço urbano, do aspecto simbólico da cidade, da perda do
patrimônio arquitetônico e urbanístico e do ideal de preservação. Deste modo, a manifestação
dos moradores, contribuiu para reforçar o laço deste testemunho da cultura niteroiense com os
demais bens patrimoniais da cidade. Um objeto traz em seu bojo outras representações ligadas a
outros objetos ou conceitos semelhantes.
Na procura de significados, foi interessante observar que o processo de degradação das
construções e a indiferença da população eram compreendidos, antes da elaboração do estudo,
como indicativos da falta de apropriação dos bens. Contudo, a partir das representações
identificadas, constatamos que, ao contrário do que se pensava, os habitantes antigos
apropriaram-se das edificações e os atuais anseiam por isto. Consideram a necessidade de
preservação desses bens pelo seu valor, principalmente histórico e de suporte de memórias.
Frente a isso, verificamos que é preciso reelaborar as hipóteses sobre a falta de reação da
população à destruição dos componentes do Sistema de Águas. Questionando acerca das razões
que explicariam tal comportamento, algumas conjecturas podem ser feitas. Em primeiro lugar,
pode-se considerar que o descaso existe, mas a população não o revela em suas falas, pois o
individuo como foi dito instado a refletir sobre o objeto, reproduz idéias disseminadas na
sociedade, seja por considerar que aquela opinião é sua e não do grupo, bem como para
estabelecer cumplicidade com o entrevistador. Outra consideração baseia-se na representatividade
do desenvolvimento da cidade, as perdas patrimoniais são detectadas, mas fazem parte do
processo de desenvolvimento da mesma.
216
Aspectos urbanos que conformam o bairro de Fátima, como vimos, são fatores que além do objeto desta pesquisa
(ou Complexo do Vintém) relatam a singularidade do bairro e, destacam, portanto, a importância da sua abrangência
nas propostas patrimoniais para o local.
170
A denúncia da perda por boa parte dos moradores foi a representação por meio da qual se pode
identificar a apropriação em relação ao objeto, o que refletiu na associação do valor afetivo ao
patrimônio. As falas dos moradores foram repletas de referências a sua própria história de vida,
revelando a apropriação desses lugares. Na constatação e lamento dessas perdas, fizeram
referência à importância da preservação, em que foi mencionada a necessidade de manutenção da
memória coletiva, de um bem que a cidade não poderia perder, sob o risco de se descaracterizá-
la. Consideram que impedir esse processo é possível com a atuação do poder público, a
Prefeitura Municipal, no caso, deve adotar medidas que garantam a conservação das edificações,
promovam o tombamento e a destinação dos bens a um uso que lhe garanta a permanência para
as próximas gerações.
Assim, a partir dos significados atribuídos pelos moradores de Fátima ao Complexo do Vintém
foi possível apontar algumas representações: do patrimônio como atribuição de valor; do
patrimônio como história, memória e referencial; da dimensão material dos bens patrimoniais; e
do patrimônio como fator de coesão social para servir à comunidade. Essas representações,
embora apresentadas separadamente, estruturam-se a partir de elementos comuns estudados
durante a pesquisa: a noção de valor, seja histórico, cultural ou cognitivo; a idéia do patrimônio
como bem coletivo; as ões públicas municipais no passado e na atualidade, e a relação com a
própria história da formação e da transformação da cidade. Sendo assim, não podemos
considerar estes significados isoladamente, mas um conjunto de representações que identificam a
cidade e estabelecem a sua identidade.
Tais constatações revelaram-se extremamente importantes para compreender a relação entre o
individuo, considerado tanto isoladamente quanto como integrante da população de Niterói, e o
antigo sistema de água, levando em conta seu papel de lugar de memória e, apresentando
conceitos e valores a ele associados, o que nos permite refletir sobre as ações de proteção a serem
implementadas.
Atualmente, ao termo patrimônio, somam-se novos significados e a nossa preocupação no
presente trabalho voltou-se especificamente a três linhas de investigação: primeiro, o histórico,
sobre a formação urbana, segundo, o social, sobre os significados incorporados pela população
do bairro de Fátima e o terceiro, a legislação e a política, para a análise das leis patrimoniais. Esta
tarefa exigiu a interação com diversas outras áreas do conhecimento.
Nos limites da pesquisa, a fundamentação teórica de cada tema relacionado respondeu a algumas
de nossas perguntas iniciais. Constatamos que o patrimônio cultural, que hoje abrange um vasto
conjunto de bens, tanto materiais quanto imateriais, funciona como uma espécie de ponto de
apoio ou externalização onde a memória social ancora-se. Essa memória, uma reconstrução ou
manifestação continuamente atualizada do passado, é importante porque fala da identidade
cultural. Nela, a identidade cultural comporta modificações e alterações num processo aberto e
171
flexível de constante realimentação, o que garante sua sobrevivência. Para seu desenvolvimento
pressupõe-se o conhecimento de extensos segmentos do passado.
217
Então, preservar o patrimônio seria operar em um dos meios pelos quais é possível a tomada de
consciência desse passado que, sendo reinterpretado por novas gerações (ou pela população em
geral), segundo os contextos históricos, culturais e sociais em que elas estão inseridas, contribuiria
para a sua atualização, e assim para a construção e crescimento da memória social. Esta
reinterpretação seria possível, portanto, através de instrumentos legais que garantissem o
envolvimento dos diferentes segmentos sociais envolvidos neste processo de reconhecimento e
preservação.
Neste caminho, consideramos as projeções estabelecidas pelo Estatuto da Cidade, todavia,
ressaltamos que seus novos instrumentos legais são um dos meios que se agregam ao processo de
preservação. Assim, a diversidade existente no espaço urbano deve contar, cada vez mais, com
diferentes formas de apropriação do espaço em acordo principalmente com seus habitantes. Cabe
lembrar que esta questão relaciona-se diretamente com a efetivação das intenções propostas por
estas leis construídas coletivamente, o que assume também a responsabilidade do gestor
municipal, dos legisladores da cidade e da população que os elege.
A preservação patrimonial envolve, portanto, uma dimensão política que não pode ser descurada.
Os objetos e equipamentos urbanos que fogem à formalidade usual da arte e da configuração de
monumentalidade, como o Complexo do Vintém, percorrem, ainda, um caminho de
desconhecimento. Ao falarmos deste sistema imaginamos a promoção de seu conhecimento por
um número maior de mentes que, com novas vozes, façam repercutir toda a sua importância. Da
mesma forma, ao atribuir significados ligados à memória de Niterói, procuramos abranger a
diversidade de significados que culturalmente o homem desenvolve. Ao refletirmos sobre a
permanência dos remanescentes da memória da relação com a água, no presente, procuramos
contribuir para o debate sobre a identidade niteroiense e, quem sabe, sobre outras cidades que se
formaram com a forte presença da água.
Essas informações, acreditamos que são ferramentas para que as políticas urbanas, de modo
geral, e as políticas patrimoniais, em particular, sejam mais efetivas. Hoje entendemos que, além
de servir ao conhecimento do passado, os remanescentes materiais de cultura são testemunhos de
experiências vividas, coletivas ou individualmente, e permitem aos homens lembrar e ampliar o
sentimento de pertencer a um espaço, mesmo que em épocas diversas, de partilhar uma cultura e
217
Como vimos, o interesse pela preservação deste componente da infra-estrutura urbana decorre, sem dúvida, do
desejo de manter laços de continuidade com o passado. Contudo, devemos nos ater que este sistema, assim como os
demais bens patrimoniais, chegam às gerações sucessivas como herança, mas ao mesmo tempo, a sua persistência
resulta de ações e interpretações que partem do presente em direção ao passado. Destaca-se, assim, um importante
pressuposto sobre a preservão deste patrimônio que deve, como qualquer “trabalho de memória” (BOSI, l992), ser
pensado como um trabalho transformador e seletivo de destruição e reconstrução do passado (BERMAN, 1986),
que é realizado no presente e nos termos do presente.
172
desenvolver a percepção de um conjunto de elementos comuns, que fornecem o sentido de
grupo que compõem a identidade coletiva.
A ampliação e divulgação do conhecimento é também extremamente importante para fomentar a
elaboração de políticas públicas de preservação que se pretendam democráticas e que objetivem,
antes de tudo, a salvaguarda de bens patrimoniais efetivamente representativos para a população,
por funcionarem como suporte de memória e serem referenciais para a identidade coletiva.
A revitalização dessas áreas significa a humanização dos espaços e a valorização da nossa história.
É um entendimento cada vez mais consensual que, sem a participação dos habitantes que
vivenciam diretamente o espaço, as medidas de preservação não são sustentáveis a longo prazo,
correndo o risco de grandes investimentos em restauração, revitalização e reabilitação da área
tornar-se inócua. Aproximar a visão técnica à percepção do habitante pode ser um dos caminhos
para garantir a elaboração de uma proposta de uma gestão urbana mais democrática, propiciando
a estruturação de um ambiente que corresponda às necessidades e aspirações humanas.
Por se tratar da água, este estudo além de envolver ações de responsabilidade histórica, cultural e
comunitária, envolve aspectos de educação ambiental, da discussão da importância do antigo
sistema de abastecimento de água, emergindo o debate sobre a necessidade e a expansão do
saneamento básico e o uso responsável dos recursos naturais.
Assim, a Água tem um papel aglomerante como fator de reconstrução de uma nova mentalidade
para os homens, compatível com a vida e com um processo viável de desenvolvimento. Não cabe
dúvida quanto ao valor natural e histórico da água, entretanto, é preciso ressaltar a importância
do seu patrimônio arquitetônico e urbanístico, como um destes remanescentes, o Complexo do
Vintém, merece interesse. Afastado do mar por sucessivos aterros, oculto por prédios, o bairro
de Fátima e o Complexo do Vintém estão parcialmente esquecidos. Com o passar do tempo
conservaram uma unidade, tanto o bairro, pela permanência da ocupação residencial original da
área central da cidade, como o sistema de água, por ser o primeiro sistema de captação e
abastecimento de água. Diferente à volúpia pela modernização que pode conferir aos espaços
fundamentações ausentes de estruturas que os sustentem, tornando-os também ausentes de
significado, no bairro de Fátima, os remanescentes transmitem aos moradores significados
autênticos. Estes componentes são constantemente atualizados na memória dos moradores, pela
sua inserção na paisagem e, para alguns, nas atividades diárias, contudo, sua ampliação de uso
caracterizaria, dada a sua importância, uma ampla reapropriação dos lugares por todos os
niteroienses.
No Complexo do Vintém, suas águas abrigam muitas memórias, tanto as lembranças dos seus
zeladores os antigos moradores do bairro –, como os devaneios de desconhecidos visitantes. É
na materialidade da igualdade de todas as águas que se comungam as memórias coletivas
(BACHELARD, 1989). Contudo, entre outras palavras, dentre todas as águas que habitam as
173
mais belas e ricas áreas formadas pela natureza e pelo homem, é para mim a fonte da minha
cidade a de maior importância. Consciente de que as águas que dela bebi, pela unidade natural,
fazem parte de todas as nascentes, ribeiras, rios e oceanos que se juntam para formar os oceanos
e, quiçá, os demais oceanos do universo.
Guiados por esse pensamento, esperamos que essa pesquisa, que explorou reflexões sobre
patrimônio cultural, memória e o bem natural, Água, tenha contribuído efetivamente para um
discernimento e que incentive outros trabalhos nesse campo de estudo que merece ser mais
explorado.
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dês Études de I’ Amérique Latine, Université de Paris III – Soborne , Paris, 2001.
Entrevistas específicas:
Entrevista com REZENDE, Rui Veloso. Arquiteto, que participou do processo de tombamento
do Reservatório da Correção, e Professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói
RJ, 2005.
Entrevista com DA HORA, Antonio. Doutor, Engenheiro Civil e Professor da Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói – RJ, 2007.
183
Anexos
I – Plantas do Loteamento Vila Paraná
II – Reportagem da Inauguração do Parque das Águas
III – Inventário de Tombamento do Reservatório da Correção
IV – Mapa de Zoneamento das Frações Urbanas do Centro (Lei Municipal N. 1.967)
V – Roteiro de Entrevista para os Moradores do Bairro de Fátima
184
I – Plantas do Loteamento Vila Paraná
218
218
Fonte: ARQUIVO DO DEPARTAMENTO DE URBANISMO - Secretaria Municipal de Urbanismo e Controle
Urbano, Prefeitura Municipal de Niterói. Banco digital de imagens. Niterói, 2007.
185
186
II – Reportagem da Inauguração do Parque das Águas
219
219
Fontes: Jornal O FLUMINENSE, 04 de Setembro de 2005 e Jornal O GLOBO, 04 de Junho de 2006.
187
188
III – Inventário de Tombamento do Reservatório da Correção
220
220
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL, Arquivos do Departamento de Patrimônio
Cultural e Natural, 2005.
189
190
IV – Mapa de Zoneamento das Frações Urbanas do Centro (Lei Municipal N. 1.967)
221
221
LEI N. 1.967 DE 04 DE ABRIL DE 2002. Plano Urbanístico da Região (PUR) das Praias da Baía, Prefeitura
Municipal de Niterói.
191
V – Roteiro de Entrevista para os Moradores do Bairro de Fátima
Identificação do entrevistado:
Data: ____/____/ ____ Local:_______________________________________
Sexo: ( ) Feminino ( ) Masculino
Idade:__________________________
Atividade Profissional:_________________________________________________________
Questões:
1. O(a) senhor(a) mora há quanto tempo no bairro?
___________________________________________________________________________
2. O(a) senhor(a) tem conhecimento sobre a antiga chácara que fica atrás da bica d’água, na rua
Andrade Pinto?
___________________________________________________________________________
3. E sobre a ruína que fica mais à frente na mesma rua, senhor(a) tem conhecimento?
___________________________________________________________________________
4. O(a) senhor(a) sabe me dizer o que a ruína e a chácara eram?
___________________________________________________________________________
5. E hoje, para o(a) senhor(a) o que elas são?
___________________________________________________________________________
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