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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
TALITA RAQUEL ARAÚJO CREDER
ERA UMA VEZ, HÁ MUITO TEMPO ATRÁS...
A REPETIÇÃO DO CONFLITO PSÍQUICO E A CONSTRUÇÃO TICA
DO SUJEITO A PARTIR DOS CONTOS DE FADAS
Recife
2009
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Dedico aos meus pais e ao meu marido.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, que me deu toda força para realizar esse trabalho;
Aos meus pais, por sempre ouvirem minhas angústias nos momentos difíceis, e
dizerem que estariam sempre ao meu lado;
Ao meu marido, Marcos, por ter me proporcionado essa oportunidade e ter me
dado toda força e amor, e ter tido tanta paciência, sempre acreditando em mim;
Às minhas orientadoras, Dra. Nanette Zmeri Frej e Dra. Maria de Fátima Vilar
de Melo, pelo incentivo, pelos conhecimentos transmitidos e orientação
durante todo o processo de elaboração deste trabalho.
À minha supervisora Ana Izabel Corrêa, que tanto me ajudou na escolha e
nos recortes a serem estudados, nas supervisões, e pela sua presença
constante nos trabalhos que apresentei;
À Neide Azevedo, por ter me dado tanta força para continuar o trabalho e não
desistir;
Às professoras Dra. Iaraci e Dra Fernanda Andrade, pela grande disposição
em ler, criteriosamente, esse trabalho e pelas contribuições que propiciaram
para a sua elaboração, na ocasião da banca prévia;
Ao professor Ivan Corrêa, que com sua grande sabedoria e seu grande
conhecimento, muito me ajudou para a construção desse trabalho;
Ao Centro de Estudos freudianos (CEF), por sempre confiarem na minha
capacidade e pelo incentivo que recebo de todos os membros;
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A Maria José Torres Klimsa, pela colaboração na correção do texto e pela
força amiga.
Aos colegas do Mestrado, em especial àquelas que se tornaram amigas e
sempre estiveram me dando força: Paula, Lélis, Andréa e Cyntia.
As minhas amigas, Bruna Leitão, Florrie, pollianna, que me deram muita força
e escutaram muito minhas angústias.
À Coordenação do mestrado, pela disposição em sempre auxiliar e orientar
nas dificuldades;
Aos funcionários da UNICAP, Niceas Alves, Nélia Lemos, da secretaria, que
sempre se dispuseram a ajudar no dia a dia, bem como todos os outros
funcionários que estiveram sempre presentes, propiciando-nos conforto;
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RESUMO
Esta pesquisa surgiu do trabalho clínico com crianças, no qual, os contos de fadas foram trazidos,
freqüentemente, na narrativa de suas fantasias. Tem como principal objetivo, investigar esses contos
como um lugar de endereçamento que captura o sujeito ao fazer falar sua fantasia, na repetição do seu
conflito psíquico, construindo assim, o seu mito individual. Especificamente, relacionar os mitos com os
contos de fadas, e esses, com o conflito psíquico do sujeito e investigar, à luz da Aufhebung freudiana,
como a criança, através da repetição, na relação transferencial, constrói o seu mito individual. Este
trabalho focaliza a construção do mito individual, a partir dos mitos coletivos, especialmente, aqueles que
se fazem presentes nos contos de fadas. Esse processo de interposição do coletivo ao individual e vice-
versa é sustentado pelo movimento da Aufhebung freudiana proposta por Frej (2003) que vai criando
espaços e fronteiras, muitas vezes, atenuando-as, de modo que elas se dissolvem e desaparecem,
possibilitando a interposição desses mitos. Os contos se constituem como um lugar de endereçamento
que captura a criança ao narrarem suas fantasias, fazendo-se emergir o sujeito do inconsciente, por meio
dos equívocos que a narrativa oral propicia, já que esses contos são constituídos de elementos primitivos
que remontam o conflito psíquico. A criança e o adulto, na perspectiva psicanalítica, não se diferenciam
no que diz respeito a questão do infantil, na medida em que, o sujeito que se encontra em processo
analítico, traz o infantil como elemento fundador de sua demanda analítica. Na clínica com crianças a
relação transferencial é atravessada pela demanda dos pais, e se torna bastante peculiar no que diz
respeito à criança, embora, em termos conceituais, essa transferência, não se diferencie. A Transferência
que se estabelece entre a criança e a psicoterapeuta propicia o processo de repetição do conflito
psíquico e a construção do mito individual. Esta dissertação se constitui como uma pesquisa teórica em
psicanálise com pequenas ilustrações de fragmentos clínicos e pertence ao projeto Limites, fronteiras e
endereçamento entre mãe e criança, da Prof. Dra Nanette Frej da Universidade Católica de Pernambuco.
Neste tipo de pesquisa, o pesquisador está imbricado de forma mais próxima e se inclui também na
relação transferencial com o sujeito investigado, uma vez que este é compreendido em sua
singularidade.
Palavras-chave: mito, clínica com crianças, endereçamento, Aufhebung, linguagem.
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ABSTRACT
This research arose from clinical work with children, in which fairy tales were brought, often in the
narrative of their fantasies. It has as main objective, to investigate the fairy tales as a place of address that
captures the subject by making him talk about his fantasy, in the repetition of his psychological conflict,
creating his individual myth. Specifically, relating the myths to the fairy tales, and those with the subject´s
psychic conflict and investigating it, in the light of Freudian Aufhebung, as a child, through repetition, in the
transferencial relation, builds its personal myth. This work focuses on the construction of the individual
myths, from the collective myths, especially those present in fairy tales. This process of bringing an
individual to collective and vice versa is supported by the movement of the Freudian Aufhebung proposed
by Frej (2003) creating spaces and frontiers, often reducing them, so they dissolve and disappear, toning
down them, so that they dissolve and disappear, enabling to interpose those myths. The stories are like a
place that captures the child when telling his fantasies, emerging the unconscious subject, through the
mistakes provided by oral narrative, as those tales are constituted of primitive elements that date back to
psychic conflict. Child and adult, in a psychoanalytic perspective, does not differ when it comes to child
issue, in a way that the subject who is in the analytical process, brings the child as a founder of his
demand system. In the clinic with children, the transferencial relation is crossed by the demand of parents,
and becomes quite peculiar as regards the child, although in conceptual terms, this transfer does not
differentiate. The transfer that is established between the child and the psychotherapist makes the
process of repetition of psychic conflict and the construction of the individual myth. This dissertation is
constituted as a theoretical research in psychoanalysis with small illustrations of clinical fragments and
belongs to the project Limites, frontiers and addressing between mother and child, from Professor. Dr
Nanette Frej of the Universidade Catolica de Pernambuco. In this kind of research, the researcher is
overlapped so close that he also includes himself in the transferencial relation with the investigated
subject, as it is understood in their uniqueness.
Keywords: myth, clinic with infants, address, Aufhebung, language.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO......................................................................................................... 09
1 MITOS, CONTOS DE FADAS E FICÇÃO...............................................................
14
2 LITERATURA, NARRATIVA E PSICANÁLISE ......................................................
40
2.1 Literatura: a palavra na fala e na escrita.............................................................. 40
2.2 A narrativa na Literatura e na Psicanálise.............................................................
58
3 CONTOS DE FADAS E ELEMENTOS DA CLÍNICA COM CRIANÇAS.................
66
3.1 A narrativa na clínica com crianças: a repetição do conto mitificado....................
66
3.2 A Aufhebung como suporte do processo de construção mítica do sujeito............
82
CONSIDERAÇÔES FINAIS..................................................................................... 95
REFERÊNCIAS...........................................................................................................
99
9
INTRODUÇÃO
O PASTOR E O MAR
Um pastor que apascentava seu rebanho junto
à beira do mar, vendo a calmaria das águas
resolveu navegar para fazer comércio. Por
isso, vendeu seus cordeiros para comprar
tâmaras, alugou um navio e levantou uma
âncora. Veio porém violenta tempestade e o
navio estava a ponto de naufragar; nosso
pastor disse-lhe então: Meu amigo, ele ainda
deseja tâmaras, por isso está tão calmo.
(Esopo)
O tema que foi escolhido para ser pesquisado nesse trabalho envolve o conto de
fada nos discursos das crianças atendidas em consultório. De fato, existem vários
trabalhos que se declinaram sobre esse tema, em suas várias nuances, e que, sem
dúvida, restaria pouco a se contribuir para um tema tão trabalhado. Contudo, todo tema
é inesgotável, mesmo que já seja visto como lugar-comum da pesquisa clínica a
clínica pela sua extensão e sua singularidade faz das pesquisas, a ela relacionadas,
inesgotáveis.
Alguns fatos nos contos de fadas me fizeram insistir em desenvolver alguns
questionamentos e problematizações, particularmente, instigantes: o primeiro fato
reside em que, os contos de fadas estão bem mais arraigados na nossa tradição
discursiva do que se pode imaginar. Entre os gêneros literários é, sem dúvida, um dos
mais corriqueiros e um dos mais prosaicos. Pode-se, por exemplo, observar que,
apesar de toda uma visível e inquestionável transformação do mundo social nos
modelos narrativos, na diversidade estética e na própria forma de apresentação de uma
modalidade artística, os contos de fadas estão, freqüentemente presentes, seja de
forma direta ou indireta. Muitos autores da atualidade, inclusive, tentam desconstruir,
por paródias ou arremedos, a tradição desses contos, dando-lhe supostos enredos
“alternativos”, e caem numa repetição linear ou às avessas, mantendo o enredo “moral”
dos contos do séc XVII, muitas vezes, intactos. O que seria então esse enredo que se
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repete? Ou, que poder ou “magia” haveria nesses contos que o fariam, em meio às
transformações históricas, eternizarem-se? Daí vieram, então, o segundo e o terceiro
fatores que problematizaram essa pesquisa: o conceito de repetição e de mito. Esses
fatores, em psicanálise, remetem, muitas vezes, a condições que são reeditadas na
fantasia no próprio processo psicoterapêutico e estão embutidos na situação analítica,
em um outro conceito que é a transferência. Contudo, o repetir em psicanálise traduz-
se, paradoxalmente, num repetir diferente, singular e embevecido nessa transferência.
Um processo em que algo se deixa para trás e se transforma superando um estado
anterior, ou melhor, suprassumindo”, palavra que abriga, concomitante e
simultaneamente, os termos, “negar”, “conservar” e “superar” a melhor terminologia
para isso foi elucidada por Frej (2003) na Aufhebung freudiana, que norteará, como
pano de fundo, esse trabalho de pesquisa, na fronteira entre o coletivo e o individual.
Frente aos questionamentos aventados, foi realizado um recorte em que me
proponho a fazer uma confluência entre os contos de fadas e o mito individual do
sujeito.
Poder-se-ia, então, concisamente, resumir que esse trabalho tem como principal
objetivo investigar os contos de fadas como um lugar de endereçamento que captura o
sujeito ao fazer falar sua fantasia, na repetição do seu conflito psíquico, construindo
assim, o seu mito individual. De modo mais específico, relacionar os mitos com os
contos de fadas, e esses, com o conflito psíquico do sujeito. Por fim, Investigar, à luz da
Aufhebung freudiana, como a criança, através da repetição, na relação transferencial,
constrói o seu mito individual.
O conto de fada é trazido às sessões pelas crianças ou pelos seus pais, de
forma individualizada e transformada pelos equívocos da palavra, que tece a história
individual de cada um. Assim, a criança que em um momento diz que é a Branca de
Neve, em outro momento, afirma ser igual à personagem, diferenciando-se dela pelo
fato de possuir mãe, e a personagem, madrasta, logo retrucando dizendo que sua mãe
é uma madrasta, mostra uma ambigüidade no discurso proferido. Nesse pequeno
fragmento clínico, a criança remete ao conto de fada e ao mito da madrasta, em que, a
solução vem na revelação das funções da e: aquela que diz respeito à função de
mãe, propriamente dita, e a função de mulher do pai.
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Experiências outras se seguiram inclusive com outras crianças e me
inquietaram em relação à freqüência dos relatos referentes aos contos de fadas nos
discursos das crianças no consultório, e que assim, alertaram-me para uma análise
mais aprofundada acerca desse tema, e sobre a repercussão dessas narrativas no
sujeito. Um estudo que ligasse o conceito e as características do mito, e que fosse,
então, articulado com a narrativa que veio a ser chamada de contos de fadas, no século
XVII, fez-se necessário. O mito parece funcionar como uma espécie de esteio desse
gênero literário. Desse modo, foi utilizado nesse trabalho, alguns autores consagrados
da antropologia, da mitologia e do folclorismo, como Lévi-Strauss, Mircea Eliade,
Wladimir Propp, Jan de Vries, entre outros. Esse tema, nessa dissertação, constituirá
todo primeiro capítulo intitulado de “Mitos, contos de fadas e ficção”, que, em parte,
fundamentará, posteriormente, a clínica.
Antes de discorrer mais detidamente sobre as questões da clínica, um outro
tema também foi problematizado, e que, de certa forma, já introduz o saber
psicanalítico. Alguns conceitos, aparentemente, elementares, como os de literatura, de
narrativas orais e escritas - as palavras faladas e as palavras escritas se fizeram
importantes, também, nessa dissertação e impuseram, grosso modo, um melhor
desenvolvimento conceitual. E, tocar em temas que envolvem a palavra, a fala, enfim, a
narrativa, sem trazer alguns elementos introdutórios da lingüística, faria desse capítulo
seguinte, o segundo capítulo, por deveras, incompleto. Nele também serão enfocados
os aspectos lingüísticos abordados na psicanálise, principalmente, nos conceitos
estabelecidos pela escola de Jacques Lacan. Para fundamentar esse capítulo, intitulado
de Literatura, narrativa e Psicanálise, autores como Cecília Meireles, Benjamim,
Massaud, Brockmeier e Harré, Février, Ivan Corrêa, Gandulla e, obviamente, Freud, se
fizeram essenciais.
Por fim, no terceiro capítulo que foi intitulado de “Contos de fadas e elementos da
Psicanálise com criança”, discorreu-se sobre a clínica, destacando duas vertentes
conceituais. A primeira vertente que realça a repetição, a compulsão à repetição, a
transferência e seu manejo, que serão, conceitualmente, pormenorizadas e articuladas
com pequenos fragmentos ilustrativos de falas de alguns casos clínicos. Na segunda
vertente, faz-se uma descrição do conceito da Aufhebung Freudiana, descoberto por
12
Frej (2003), em que será pontuado, desde os aspectos conceituais da palavra, sua idéia
de fronteira, de lugares psíquicos à idéia de coexistência. Essa vertente se sobrepõe,
de algum modo, à primeira, pois, a Aufhebung, como está fundamentada, faz-se
presente, em toda obra freudiana. Esse termo vai fundamentar o que, nesse item,
destacaremos como processo que suporte a construção mítica do sujeito. Como se
trata de um capítulo que teoriza, mais detidamente, a clínica, optou-se por ilustrá-lo com
pequenos fragmentos de alguns casos clínicos, que envolvam, o conto de fada e o
discurso da criança, na sua singularidade.
Esta dissertação se constitui como uma pesquisa teórica em psicanálise,
ilustrada por pequenos fragmentos clínicos de crianças atendidas em consultório. Cabe
reiterar que todos os casos citados, de maneira concisa, não são de clientes em
atendimento. A escolha por ilustrar este trabalho com esses fragmentos, justifica-se
pelo fato de que, mesmo no ambiente acadêmico, qualquer pesquisa psicanalítica,
aponta para uma prática; a confecção de uma dissertação, como diz Mezan (2002, p.
410) “seria uma excelente oportunidade de pensar a clínica a partir de um recorte
específico” Desse modo, o recorte proposto enfatiza a questão discursiva do mito nos
contos de fadas. Sem ilustrá-los, esse trabalho correria o risco de se tornar um texto
insípido, ou na pior das hipóteses, de uma excessiva teorização. Esta pesquisa está
ligada ao projeto: Limites, fronteiras e endereçamento entre mãe e criança, da Prof. Dra
Nanette Zmeri Frej, da Universidade Católica de Pernambuco.
Esse tipo de pesquisa, de acordo com Delouya (2002), considera o sujeito como
imerso na linguagem, e por assim ser, submetido aos equívocos que esta provoca,
quando se emerge os conteúdos inconscientes. Neste âmbito, o pesquisador se
encontra implicado na investigação dos enigmas que se encontram, tanto naquele que
pesquisa, como naquele que é pesquisado, uma vez que também, considera os
fenômenos transferenciais que ocorrem em ambos, bem como no desenvolvimento da
pesquisa. Desse modo, mesmo se dedicando a uma pesquisa teórica, a prática sempre
vai estar presente, visto que, na psicanálise, a teoria e a prática estão bastante
imbricadas, como foi visto anteriormente por Mezan (2002).
Ressalta-se que tema dessa natureza tem uma grande relevância, não apenas
para a psicologia ou para a psicanálise, mas, também, para outras áreas do
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conhecimento como, por exemplo, a educação ou a teoria da literatura. Sabe-se que
nas escolas, os contos de fadas são utilizados como instrumento educativo. Essa
pesquisa poderá contribuir para novas formas de leitura acerca da relação que as
crianças estabelecem com esses contos. Salienta-se que para a clínica também trará
uma relevante contribuição, no que diz respeito as formas de utilização dessas
narrativas, quando trazidas para esse âmbito, no sentido de minimizar as chamadas
intervenções excessivamente “pedagógicas” – nada incomum na clínica com crianças
e estimular a construção de um discurso que possibilite a emergência do sujeito do
inconsciente.
14
1 MITOS, CONTOS DE FADAS E FICÇÃO
O estudo dos aspectos conceituais do mito se faz necessário neste trabalho,
uma vez que, o objeto contos de fadas têm como elemento axial-estrutural as
narrativas míticas que, assim como a psicanálise, essencialmente, reportam-se às
origens da constituição do sujeito. Escolheu-se, portanto, para desenvolver o tema do
mito dois autores de referência nesse campo: Claude Lévi-Strauss e Mircea Eliade. O
conto de fada, trazido pela tradição oral, repete, por assim dizer, muitos mitos da
humanidade, dando-lhe pequenas variações estéticas. Os contos e os mitos, desse
modo, misturam-se, e autores como, Wladimir Propp, Bettelheim, inclusive o próprio
Eliade, vêm corroborar das origens míticas da literatura dos ditos “Contos
Maravilhosos”.
Para se obter uma compreensão do que é um mito é preciso assimilá-lo como
algo entre a trivialidade e o sofisma, como afirma Lévi-Strauss (2003), pelo fato de que,
cada sociedade, exprime, através dos mitos, sentimentos fundamentais comuns aos
seres humanos, tais como, amor, ódio, ciúme, culpa compaixão e tantos outros.
Também há a compreensão de que o mito pode explicar fenômenos astrológicos,
meteorológicos, naturais etc.
Como ainda comenta o referido autor (2003), alguns etnólogos e alguns
psicanalistas pretendem substituir as explicações cosmológicas e naturalistas, por
explicações ligadas às ciências sociológicas e psicológicas. Dessa forma, a mitologia
seria vista como algo que reflete as estruturas e as relações sociais, a partir do
momento em que, “o sistema mitológico”, oferece um lugar privilegiado a determinado
personagem da sociedade. Lévi-Strauss (2003) cita como exemplo: uma avó malfazeja
levará a uma suposição de que nessa sociedade, as avós possuem atitudes agressivas
frente aos netos. Contextualizando para esta dissertação, cabe citar como exemplo,
uma madrasta poderia indicar que nessa sociedade, todas as madrastas seriam
más.
Se a realidade contradisser esta hipótese, poderá se dizer que, o objeto do mito
é oferecer uma derivação de sentimentos que são reais, mas que estão recalcados. É
15
válido salientar que por ser este trabalho, fundamentado, em sua maior parte, na teoria
psicanalítica, além da mitologia, antropologia, literatura, ressalta-se que, para Freud, os
sentimentos não são recalcados. O que é de fato submetido ao recalque são as
representações psíquicas. Portanto, melhor dizendo, o objeto do mito seria então
oferecer uma derivação de representações psíquicas. O estudo dos mitos levará
sempre a constatações contraditórias, pois, em um mito, tudo pode acontecer,
independente da lógica ou da continuidade (LÉVI-STRAUSS, 2003).
Como assinala Lévi-Strauss (2003), os mitos, que, aparentemente, são
arbitrários, reproduzem-se de forma semelhante em todas as regiões, ou seja, com os
mesmos caracteres, com os mesmos formatos e detalhes. Se, portanto, pensar o
conteúdo do mito, como algo incerto, impreciso, sem obedecer a uma lógica formal,
questiona-se, então, o fato de que em qualquer lugar do mundo os mitos possuem
aparências tão semelhantes. Essa aparente contradição presente no mito é semelhante
à contradição descoberta pelos antigos filósofos da linguagem, uma vez que, para que
a linguística se tornasse uma ciência, foi preciso que as suas antinomias fossem
resolvidas. Os filósofos pensavam a linguagem da mesma maneira como raciocinavam
acerca do mito. Eles observaram que, em distintas línguas, alguns sons correspondiam
a determinados sentidos e se determinaram a conhecer a relação que ligavam esses
sons aos sentidos que lhes eram atribuídos. Constataram que os mesmos sons
existiam em línguas distintas, ligadas a sentidos completamente diferentes. A partir
disso, perceberam que a língua nação o se ligava apenas aos sons, mas à forma
como eles eram combinados. Enfim, Algumas teorias mitológicas advêm de questões
semelhantes às teorias da linguagem. Não serão feitas comparações ou restrições em
relação à situação da linguística nos tempos pré-científicos com a mitologia, que em
nada irá ajudar a analisar o mito e a linguagem. Pois, o mito é parte constituinte da
língua, e é através da palavra, que ele se faz conhecido, pelo fato de sua proveniência
no discurso, ou seja, da linguagem oral. Lévi-Strauss (2003, p. 240) afirma: “Se
queremos perceber os caracteres específicos do pensamento mítico, devemos, pois
demonstrar que o mito está, simultaneamente, na linguagem e além dela.
Essa dificuldade em relação ao pensamento mítico é bastante familiar ao
lingüista, pois à maneira do mito, a linguagem se constitui em dois níveis que se
16
distinguem entre a língua e a palavra: a língua compreende um tempo reversível e a
palavra um tempo irreversível. Quanto ao mito, Tito Cardoso e Cunha (1980, p. 20), no
prefácio do livro “O mito individual do neurótico”, discorrem: “O tempo do mito é
reversível porque está sempre presente, mas cada vivência mítica particular é
irreversível no tempo porque individual”.
É relevante analisar o mito e a linguagem como algo integrado, pois, o mito faz
parte da língua, é através da palavra que o mito se faz conhecido. Mýthos, pontua
Creder (2003), significa literalmente palavra.
O mito se refere a acontecimentos passados: “Antes da criação do mundo”,
“Durante os primeiros tempos”, e aqui se acrescenta o Era uma vez... Em que se
adiciona a atemporalidade do mito no indivíduo, ou seja, o valor do mito advém de
acontecimentos que se relacionam a um tempo que integra, simultaneamente,
presente, passado e futuro. Essa estrutura histórica e não-histórica, ao mesmo tempo,
far-se-á chegar novamente ao domínio da palavra e da língua, também pode oferecer
outro nível que é de objeto absoluto como ainda aponta vi-Strauss (2003). Essa
estruturação do mito de ser, concomitantemente, histórica e não-histórica, o levará a ser
percebido como pertencente ao domínio da palavra, e assim, analisado como tal,
pertencente também, ao domínio da língua, na qual ele é formulado. E ainda, um
terceiro nível - de objeto absoluto, que do mesmo modo se refere à natureza linguística,
não obstante, se distingue dos outros dois níveis. Segundo Lévi-Strauss (2003), há uma
originalidade do mito que o diferencia de outros fatos lingüísticos. Diz ele:
Poder-se-ia definir o mito como esta modalidade do discurso onde o valor da
fórmula traduttore, traditore tende praticamente a zero. Desta perspectiva, o
lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüística, é oposto ao da
poesia, não importando o que se tenha dito para aproximá-los (LÉVI-STRAUSS,
2003, p. 242)
A “substância” do mito, ensina vi-Strauss (2003), não está no estilo ou na
estética da narrativa, ou ainda, na sua sintaxe, mas está na história que é contada. O
mito é linguagem, continua o autor, uma linguagem que possui um nível bastante
elevado, onde o sentido “Chega a decolar do fundamento lingüístico sobre o qual
começou rolando” (2003, p. 242). O mito é algo que é percebido, podemos até dizer
17
inscrito por todos no mundo inteiro, qualquer que seja o grau de ignorância ou cultura
da população onde foi colhido.
O mito, como apresenta Lévi-Strauss (2003), é constituído de unidades que
implicam a presença de elementos que fazem parte da estrutura da língua como, os
fonemas, os morfemas e os semantemas. O mito, como ainda refere esse autor, tem
um sentido que se remete a elementos isolados, embora combinados entre si; Advém e
é parte integrante da linguagem, não obstante, possui propriedades específicas, que
são mais complexas do que as que se encontram na lingüística, embora, possuam
propriedades que têm uma natureza mais complexa do que as que estão na expressão
lingüística. O autor explica:
Se aceitarmos estes três princípios, ao menos como hipóteses de trabalho,
seguem-se duas conseqüências muito importantes: 1. como todo ser lingüístico,
o mito é formado de unidades constitutivas; 2. essas unidades constitutivas
implicam a presença daquelas que intervêm normalmente na estrutura da
língua, ou seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Mas elas estão
para os semantemas assim como os semantemas estão para os morfemas e
assim como estão para os fonemas. Cada forma difere da que precede, por um
mais alto grau de complexidade. Por esta razão, denominaremos os elementos
que provêm particularmente do mito (e que são os mais complexos de todos):
grandes unidades constitutivas.
Como se procederá para reconhecer e isolar essas grandes unidades
constitutivas, ou mitemas? Sabemos que elas não são assimiláveis, nem aos
fonemas, nem aos morfemas, nem aos semantemas, mas se situam em um
nível mais elevado: senão o mito seria indistinto de qualquer outra forma de
discurso. Será necessário, pois procurá-las no nível da oração. No estágio
preliminar da pesquisa, proceder-se-á por aproximações, por ensaios e erros,
guiando-se pelos princípios que servem de base à análise estrutural sob todas
as suas formas: economia de explicação; unidade de solução; possibilidade de
reconstituir o conjunto a partir de um fragmento e de prever os
desenvolvimentos ulteriores a partir dos dados atuais (LÉVI-STRAUSS, p. 242-
3).
O mito, por ser analisado de forma independente, traduzindo a sucessão dos
acontecimentos que nele ocorrem, por meio de frases curtas, mas que são
correspondentes à determinados lugares em uma narrativa, ou seja, cada elemento que
constitui um mito, são analisados quando postos em relação.
Essa definição para Lévi-Strauss (2003), ainda não é satisfatória, uma vez que,
segundo este autor, os linguistas estruturalistas conhecem que todas as unidades que
compõem o mito se constituem como relações. A dupla natureza do mito tempo
18
reversível e tempo irreversível acontece, simultaneamente, de forma sincrônica, que
em lingüística, significa o espaço do discurso, ou seja, a sua linearidade. A sua
diacronia é considerada como algo submetido ao tempo. Contudo, essa forma de
pensar o mito permanece ainda pouco compreensível.
Essa constatação em relação ao mito conduz a pensá-lo sob uma perspectiva
diferente. Tal hipótese denota que ele pode ser compreendido como formado por feixes
de relação. E é sob a combinação de tais feixes que as suas partes constitutivas
começam a adquirir uma função significativa.
Cada feixe pode se apresentar em tempos diferentes, à luz de uma perspectiva
diacrônica, não obstante, se o organizamos em seu agrupamento, como diz Lévi-
Strauss, “natural”, o mito será organizado de acordo com um novo sistema temporal,
mas, que condiz, com a hipótese inicial, de duas dimensões. Essa característica do mito
está em consonância com a da língua e a da palavra. Lévi-Strauss ilustra essa
formação do mito com o seguinte exemplo:
Imaginemos arqueólogos do futuro, vindos de outro planeta, quando toda vida
humana tiver desaparecido da superfície da terra,a investigar o sítio de uma
de nossas bibliotecas. Esses arqueólogos ignoram tudo de nossa escrita, mas
tratam de decifrá-la, o que supõe a descoberta prévia de que o alfabeto, tal
como o imprimimos, se da esquerda para a direita e de cima para baixo.
Contudo, uma categoria de volumes permanecerá indecifrável desta maneira.
Serão as partituras de orquestra, conservadas no departamento de musicologia.
Nossos sábios obstinar-se-ão, sem dúvida, em ler as pautas musicais uma após
outra, começando pelo alto da página e tomando-as todas em sucessão; depois
perceberão que certos grupos de notas se repetem com intervalos, de maneira
idêntica ou parcial, e que certos contornos melódicos, aparentemente afastados
uns dos outros, oferecem analogias entre si. Talvez se perguntem, então, se
esses contornos, ao invés de serem abordados em ordem sucessiva, não
devem ser tratados como os elementos de um todo, que é necessário
apreender globalmente. Terão então descoberto o princípio do que
denominamos de harmonia: uma partitura de orquestra não tem sentido se não
for lida diacrônicamente segundo um eixo (página após página, da esquerda
para a direita), mas ao mesmo tempo sincronicamente, segundo o outro eixo,
de cima para baixo. Ou seja, todas as notas situadas na mesma linha vertical
formam uma grande unidade constitutiva, um feixe de relações (LÉVI-
STRAUSS, 2003, p. 244).
Ao expor esse exemplo, o autor pretendeu demonstrar que o mito vai se
construindo a partir de elementos aparentemente soltos, mas que se interligam dando
um sentido, ou melhor, vários sentidos. Nesse trabalho, Lévi-Strauss (2003) referencia
19
o mito conhecido por muitos: Mito de Édipo, por exemplo, muito conhecido na
Psicanálise, que chegou a a atualidade também sob a forma de fragmentos que
foram, aos poucos, sendo transmitidos, literariamente, com um cuidado estético e
moral, mais do que sob inspirações religiosas ou do uso ritual.
À luz desse mito, aspira-se apenas ilustrar o seu engendramento. Pretende-se
aqui expor o quão passível de manipulação é o mito, como foi demonstrado acima, com
o exemplo dos arqueólogos do futuro, tentando decodificar a escrita após a inexistência
humana, enquanto espécie. É semelhante à manipulação da partitura de uma música,
citado também no exemplo acima, na qual alguém tentaria, pauta após pauta, decifrar a
melodia.
Aos poucos, foi-se relacionando os elementos do mito de Édipo, esclarecendo-se
o seu sentido hipotético, em relação aos nomes próprios da sua linhagem paterna,
apesar de os linguistas não enfatizarem isso. Para eles, o que daria um significado ao
mito seria o sentido dos seus termos e suas relações com os contextos a que,
analogamente, refira-se. Desse modo, o mito se organiza de uma maneira que ele
próprio se torna contexto de si.
Esse método de estudar as origens dos mitos, como relembra o autor, é um dos
principais obstáculos para os estudos mitológicos, pois, as versões legítimas ou
primitivas dos mitos ainda não nos são conhecidas. A proposta dada pelo autor em
referência, portanto, é fazer uma junção de todas as versões do mito de forma peculiar
e defini-lo por este meio. Sobre isso ele diz: “O mito permanece mito enquanto é
percebido como tal” (2003, p. 250).
Ainda comentando Lévi-Strauss (2003), a respeito da teoria elaborada por Freud
a partir da tragédia de Sófocles, em que se relaciona com o complexo de Édipo, o fato
dessa peça grega, ter sido pautada no mito de Édipo, é irrelevante. Deter-se numa
versão apenas, não está necessariamente se remetendo ao original, ao verdadeiro ou
ao legítimo. O mito em si seria, portanto, a junção deformada de várias versões. Por tal
motivo, compreende-se o porquê de muitos estudos acerca dos mitos serem
frustrantes, uma vez que, alguns dos estudiosos pretendiam selecionar algumas
versões do mito, em vez de considerar todas. Muitas vezes, uma análise da estrutura
de uma variante de um mito recolhido em um determinado lugar, apresenta um
20
esquema de duas dimensões. Se forem empregadas diversas variantes de um mesmo
mito para o mesmo lugar, ele pode se tornar ainda tridimensional ou a multi-
dimensional.
Por assim ser, torna-se difícil o desenvolvimento da mitologia sem a invocação
de simbolismos aplicáveis a essa pluri-dimensionalidade do mito. Esta característica
apresentada pelo mito demonstra que, em sua estrutura, o mesmo elemento, o mesmo
personagem pode apresentar características paradoxais. E que, também, por conta
desta característica do mito, ele se apresenta sob várias versões em cada parte do
mundo.
Essa multi-dimensionalidade do mito permite uma relação com a matemática. A
maneira pela qual Lévi-Strauss propõe a estrutura do mito está sob as bases
matemáticas, da lógica, da proporção. Desse modo, ele demonstrou, através de
proporções, nas quais, iam-se relacionando os elementos do mito, que cada figura nele
representada poderia se fazer chegar a milhares de versões. Sobre isso Lévi-Strauss
(2003, p. 260), para exemplificar o que diz acima, discorre:
O coiote (que é um carniceiro) é intermediário entre herbívoros e carnívoros
como a névoa entre o céu e a terra; como o escalpo entre a guerra e a
agricultura (o “escalpo”) é uma colheita guerreira (...) como as vestimentas entre
“natureza” e “cultura”; como o lixo entre a aldeia habitada e o mato (...). Esta
cadeia de mediadores – se é lícito exprimir-se assim – oferecerem uma série de
articulações lógicas que permitem resolver diversos problemas da mitologia
americana: porque o deus do orvalho é também o senhor dos animais; porque o
detentor de ricas vestimentas é muitas vezes um cinderelo macho (...) Quando
se comparam aos exemplos que precedem o francês: voa, lat. “nebula” e o
papel de trazedor de sorte atribuído na Europa ao lixo (sapatos velhos), às
cinzas e à fuligem (cf. o rito de beijar o limpa chaminé); que se compare
também o ciclo americano de Ash-Boy e o ciclo indo-europeu da cinderela. (...)
Aliança matrimonial entre nobres e campônios, entre ricos e pobres.
O coiote, na cultura primitiva indígena norte americana, é denominado de
trickster. A palavra trickster traduz para o português como: enganador, trapaceiro,
vigarista. Contudo, nos estudos de mitologia das regiões citadas, é um deus, deusa,
espírito, homem, mulher, ou animal antropomórfico que “prega peças”. Fora isso,
desobedece às regras normais e normas de comportamento, um “sem-lei”, cujos atos
transgressores culminam em atos positivos. Tem a função, segundo Lévi-Strauss, de
mediar; uma passagem da dualidade à unidade. Daí o seu caráter de equívoco e
21
ambíguo. O trickster não é a única forma de mediação de um mito, já que, alguns deles,
possuem a possibilidade de consagrar todas as variáveis - de passar da dualidade à
unidade. Outra característica, além do trickster, é a dualidade pertencente a uma
mesma divindade, que ora pode ser benfazeja, ora malfazeja. Essas e outras
características do mito são que possibilitam a sua pluri-dimensionalidade.
Lévi-Strauss (2003) afirma que vários questionamentos foram feitos acerca dos
mitos e, no mesmo nível, à literatura oral. Tais questões se referem à frequente
duplicação ou triplicação de uma mesma sequência e, se tais questões possuem uma
resposta afirmativa, significa que a repetição tem como função tornar a estrutura do
mito manifesta.
Como vimos no início, o mito possui uma estrutura sincrônica e diacrônica,
permitindo que seus elementos sejam lidos em ordem diacrônica e em sentido
sincrônico. “Todo mito possui, pois, uma estrutura folheada que transparece na
superfície, se é lícito dizer, no e pelo processo de repetição” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p.
264). Apesar disso, “suas camadas” se repetem de forma rigorosamente diferentes. Se,
pois, o objeto do mito é a proposição de uma contradição, o mito se desenvolvido
como se fosse a espiral. O mesmo processo que se dá na repetição, ou melhor, na
compulsão à repetição revelada no diacronismo da clínica psicanalítica.
Portanto, o desenvolvimento e crescimento do mito são contínuos, o que se
opõe à sua estrutura que é descontínua. O mito tem uma estrutura verbal, que, no
domínio da palavra, se desestrutura para se estruturar, idiossincraticamente, de forma
análoga à metáfora dos cristais em relação à física, exemplificada neste texto por Lévi-
Strauss (2003). “Face à língua, de uma parte, da palavra, de outra, sua posição seria,
com efeito, análoga à do cristal: objeto intermediário entre um agregado estatístico de
moléculas e a própria estrutura molecular” (p. 265).
O mito e a relação de proximidade com os contos têm em comum, no aspecto
morfológico, os ritos das civilizações primevas. Mito e rito têm uma relação de
contiguidade ou de complementaridade. Lévi-Strauss (2003) comenta que muitos dos
que estudavam acerca do mito, viam-no como se fosse a projeção ideológica do rito e
lhe servia como fundamento; outros, ao contrário, viam o rito como ilustração do mito.
22
Apesar disso, Lévi-Strauss se opõe de, certo modo, a esta definição, pois ela não existe
de forma constante.
No livro “Aspectos do Mito”, Eliade (1989), outro importante autor no estudo da
Mitologia, pontua que o mito tem uma função soberana de revelar os modelos
exemplares de todos os ritos e de todas as demais atividades humanas: casamento,
trabalho, arte e outras mais. Esse modo de conceber o mito, com essa função, torna-se
relevante para compreendermos o modo de vida ou os rituais costumeiros das
sociedades arcaicas e tradicionais. Sobre essa questão dos ritos será visto adiante
quando eles forem relacionados com o mito e com o conto de fada.
Ao discorrer sobre a estrutura dos mitos, Eliade (1989) situa, sumariamente, a
forma como os especialistas ocidentais foram construindo concepções acerca do mito,
equiparando-o ao modo como ele era concebido no séc. XIX. Nos seus estudos esses
especialistas, ao contrário dos seus antecessores, que consideravam o mito como
“fábula”, “invenção”, “ficção”, idealizaram-no como os povos das sociedades arcaicas o
fizeram. Viram-no como uma história verdadeira, preciosa, uma vez que “sagrada”,
“exemplar” e “significativa”, como diz o autor. Ao mito foi atribuído um valor semântico
bastante valioso, em termos de significado. Este valor que lhe foi atribuído, como afirma
o autor em referência, faz com que, na linguagem, a palavra mito, o uso corrente dela
se torne bastante equívoco. Entretanto, o sentido desse termo é utilizado atualmente
para designar tanto ficção, ilusão, ou, como no sentido familiar, principalmente, para
alguns sociólogos, etnólogos, historiadores da religião, como um “modelo exemplar”.
A partir de Xenófanes, comenta Eliade (1989), as expressões mitológicas das
divindades utilizadas por Homero e Hesíodo foram rejeitadas e criticadas. Os gregos
destituíram todo o sentido religioso e metafísico do mythos que foi posto em oposição a
logos, a história. Passou, então, a ser designado como tudo o que não pode existir na
realidade. O cristianismo judaico o colocou no plano da mentira e da ilusão. Na
linguagem corrente, entretanto, continua Eliade (1989), não é bem assim que se situa o
mito. O objetivo do autor, com esse estudo acerca do mito, não foi compreender se ele
era visto como ficção ou não, mas, investigar as sociedades em que o mito estava ou
está vivo, e o quanto ele fornece modelos para os comportamentos humanos,
conferindo-lhes significados e valores. Propp (1983 apud GUIRLAND, 2001) pressupõe
23
que os contos advenham dos mitos. Analisa-se na clínica com crianças, por exemplo,
que esses elementos promovam para elas um valor de identificação, de espelho, de
significação bastante relevante, pelo fato de serem constituídos de elementos arcaicos
que remontam as fantasias inconscientes. Sendo assim, o mito pode ser também
considerado como uma realidade da cultura, bastante complexa e que pode ser visto e
apreendido de diversas formas, como discutiremos mais adiante.
Eliade (1989) enfatiza que as grandes religiões mediterrâneas e asiáticas foram
atravessadas por várias mitologias. Esse autor prefere não iniciar os estudos acerca
dos mitos, começando pela Grécia, pelo Egito ou pela Índia, por acreditar que esses
mitos tenham sido modificados pelos mitógrafos, etnógrafos, sacerdotes, entre outros, e
que, por esse motivo, tenham perdido sua substância mítica. Acredita também que a
transmissão oral tenha, de algum modo, deformado o mito em sua forma original,
enriquecido apenas sob influência de culturas mais desenvolvidas como sendo de valor
literário. Cabe comentar que esta acepção de mito se opõe categoricamente à acepção
de Lévi-Strauss (2003), assim como à psicanálise de um modo geral, pois essas
transformações narrativas são irrelevantes, uma vez que, o que se põe em jogo no mito
não é a sua versão, mas os seus elementos axiais.
Apesar de todas as modificações que foram sofrendo através das várias
gerações, os mitos dos tempos primitivos refletem uma condição primordial que
fundamentam culturas de cada época. Suas funções, juntamente com as dos ritos,
foram passíveis de observações e estudos pelos etnólogos.
Eliade (1989) afirma que definir precisamente o mito é uma tarefa quase que
impossível, uma vez que sendo ele um elemento que possui como estrutura uma
função peculiar para cada cultura, seria complicado encontrar uma definição que
contemplasse a sua função em todas as culturas arcaicas e tradicionais. Nesta
dissertação, acrescentar-se-ia as culturas contemporâneas, em razão de que esses
conceitos de arcaico, tradicional são definições inconsistentes, em se tratando de uma
perspectiva atemporal e dialética, na qual existem modificações, mas que conserva, por
assim dizer, alguns elementos, como é proposto por Frej (2003) quando de sua
descoberta na obra freudiana do conceito de Aufhebung, que será aprofundado no
terceiro capítulo deste trabalho.
24
Para Eliade (1989), a definição que lhe parece mais completa ou convincente é a
de que o mito conta uma história sagrada, que teve um lugar representativo nos
“tempos primevos e fabulosos dos começos”. O mito relata os grandes feitos de seres
sobrenaturais como uma realidade que passou a existir de forma total ou parcial. É
sempre “a narração de uma criação”. O mito fala daquilo que aconteceu realmente e
que se manifestou plenamente. Seus personagens são seres sobrenaturais que agiram
nos tempos primevos. Enfim, descrevem algo do sagrado e, graças a isso, o homem é o
que é hoje.
Eliade (1989), neste estudo que realizou sobre os mitos, pesquisou as
sociedades onde os mitos estavam presentes de forma mais acirrada se comparada à
sociedade atual. A sociedade citada por Eliade é a indígena, na qual uma distinção
entre mito e bula, no que tange a sua existência real. Fábula e conto se
assemelhariam como sendo histórias falsas.
Para Eliade (1989), frente os indígenas a distinção entre histórias verdadeiras e
histórias falsas tem um significado relevante, uma vez que os dois tipos de narrativas
apresentam acontecimentos que pertenceram a um passado longínquo e fabuloso. Os
personagens de ambas as narrativas, apesar de apresentarem diferenças em suas
características - os mitos com personagens que retratam seres sobrenaturais e Deuses;
e os contos, heróis e animais maravilhosos -, têm em comum o fato de todos eles
pertencerem ao mundo popular. Os indígenas, portanto, tratavam essas narrativas
como bastante distintas. Para eles, nos mitos eram retratados acontecimentos que
estavam ligados à condição humana e nos contos havia acontecimentos que diziam
respeito ao mundo, como, por exemplo, a modificação de plantas e animais em relação
as suas formas anatômicas ou fisiológicas. Observa-se aqui que, para esse autor, uma
introdução do conceito de conto em contraposição ao de mito se constitui
primordialmente na dualidade da história falsa e verdadeira, respectivamente. Os
pawnee, como diz Eliade (1989), fazem essa distinção. Para eles o mito é uma história
verdadeira e a fábula uma história falsa. As histórias verdadeiras são as que
contemplam os seres divinos e falam das origens do mundo, depois vêm os contos que
retratam falsas histórias que narram aventuras maravilhosas de heróis. Ainda se
observa que as histórias míticas ou verdadeiras têm caráter edificante do ponto de vista
25
ético, e as histórias falsas são provindas de condutas morais questionáveis. Como diz
Eliade (1989, p. 15):
Um jovem de nascimento humilde, que se transforma em salvador de seu povo,
libertando-o de monstros, arrancando-o à fome ou as outras calamidades,
realizando outros feitos nobres e benfazejos (...). As histórias falsas são as que
contam as aventuras e façanhas nada edificantes do coyote, o lobo da pradaria.
Em suma nas histórias verdadeiras trata-se do sagrado e do sobrenatural; nas
“falsas”, pelo contrário, de um conteúdo profano, pois o coiote é extremamente
popular tanto nesta mitologia como nas outras mitologias norte-americanas, em
que ele aparece caracterizado como falsificador, velhaco, prestidigitador e
perfeito tratante.
Como se pode observar, a concepção de Eliade (1989) é bem diversa da de
Lévi-Strauss (2003) na relação verdadeiro-falso e do bem e do mal, no mito e no conto.
A idéia de trickster, vista anteriomente nesta pesquisa, corrobora com o contexto da
psicanálise que desconsidera o verdadeiro e o falso na realidade mítico - psíquica.
Portanto, trabalhar-se-á, nesta dissertação, com a concepção psicanalítica da realidade
psíquica na qual verdade e mentira são partes de um único processo. Muitas vezes,
para a criança, os contos de fadas apresentam uma realidade indiscutível, verdadeira,
que faz parte do cenário de sua história, como se verá adiante no terceiro capítulo, ao
serem citados os fragmentos clínicos. Além do mais, essa concepção põe o conto, em
última análise, do ponto de vista literário, no lugar do embuste e da fé, o que seria
um generalizante equívoco.
Os mitos relatam a origem de todos os acontecimentos primevos que se
tornaram modelos para a constituição do homem da forma como ele é: sexuado,
organizado socialmente, civilizado etc. Eliade (1989), nesse texto, afirma que, para o
homem arcaico, os mitos serviram como modelos para sua existência. Dá-se então
um pouco da diferença entre o homem moderno e o arcaico, pois, se para o primeiro
sua constituição se relacionava à história, para o segundo esta se devia aos
acontecimentos míticos. Para ilustrar essa idéia ele cita o seguinte exemplo:
Um homem moderno poderia raciocinar do seguinte modo: eu sou aquilo que
sou hoje porque um certo número de acontecimentos se passaram comigo, mas
esses acontecimentos só foram possíveis porque a agricultura foi descoberta há
cerca de 8000-9000 anos, e porque as civilizações urbanas se desenvolveram
no próximo oriente antigo (...) e assim por diante. Do mesmo modo, um
“primitivo” poderia dizer: eu sou aquilo que sou hoje porque uma série de
26
acontecimentos sucederam antes de mim. que deve acrescentar
imediatamente: acontecimentos que sucederam nos tempos míticos que, por
conseqüência, constituem uma história sagrada, porque as personagens do
drama não são seres humanos mas sobrenaturais. E mais ainda: enquanto um
homem moderno, considerando-se como um produto do curso da História
Universal, não se sente obrigado a conhecê-la na sua totalidade, o homem das
sociedades arcaicas não só é obrigado a recordar a história mítica de sua tribo,
como também reactualizar periodicamente grande parte dela. É aqui que se
nota a diferença fundamental entre o homem das sociedades arcaicas e o
homem moderno: a irreversibilidade dos acontecimentos que, para este último,
é a marca característica da História, não constitui uma evidência para o primeiro
(p. 18-9).
Para o homem das sociedades arcaicas tudo o que se passou, ou seja, tudo que
pertence às origens se repete através dos ritos e por isso é necessário que haja um
conhecimento dos mitos, pois eles oferecem uma maneira de estar no mundo, como diz
Eliade (1989). Nos mitos, o sujeito repete o que os deuses e antepassados fizeram,
reatualizando-os. “Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Por
outras palavras, aprende-se não como as coisas passaram a existir, mas também
onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando elas desaparecem” (Eliade, p. 19).
O autor ensina que não basta conhecer a origem do mito, é preciso recitá-lo, ou seja,
torná-lo conhecido. O tempo mítico das origens é bastante significativo pela forte
influência dos seres sobrenaturais que estão inscritos na constituição do sujeito. O mito,
tornando-se conhecido, nos reintegra aos tempos fabulosos, nos quais se evocam os
Deuses e heróis.
A visão que Eliade (1989) propõe, no texto citado, leva-se a pensar numa
distinção entre os homens primitivos e modernos. E nessa distinção, os homens
modernos parecem estar num nível diferente do primitivo, ou seja, mais ligado aos
acontecimentos comprovados cientificamente. Essa opinião exposta pelo autor faz
questionar se o homem moderno, apesar de inserido no campo racional da ciência
também não está ligado a este mundo mítico.
Pensa-se sobre isso, nessa dissertação, começando pelo que se escuta na
clínica com crianças tanto no que concerne à fala da criança, quanto à de seus pais.
Nesses discursos é percebida a presença viva dos mitos, ao falarem de seus medos,
inseguranças, sofrimentos etc. Discutir o moderno e o primitivo em função do racional e
do não racional, no estudo dos mitos e contos, por si só, seria tema para um outro
27
trabalho. Para Eliade (1989), por exemplo, o comentário de que a vivência mítica é
uma vivência religiosa. Nesta dissertação o destaque que é dado à religiosidade tem
pouca relevância. Não se faz necessário ao dito homem moderno a religiosidade ou
não religiosidade, e, esse aspecto, não desautoriza a construção mítica individual. O
mito está presentificado nos sonhos e nas fantasias.
O autor mostra que não se vive mais no tempo cronológico, mas no tempo
primevo em que um acontecimento teve um lugar pela primeira vez, ou seja, a partir de
fatos históricos, como citado acima. Retornar ao tempo do mito, do sagrado, de
encontrar os seres sobrenaturais é o desejo que podemos perceber nas repetições
rituais dos mitos. O mito é a prova de que o mundo, o homem e a vida, como ressalta o
autor, têm uma origem sobrenatural que se torna preciosa e exemplar.
O mito, continua o autor, é uma narrativa que faz reviver o tempo das origens e
não a busca de satisfazer uma curiosidade científica. Nas civilizações primitivas o mito
estava ligado às crenças, aos rituais... Era uma realidade viva e não algo abstrato, nem
uma ostentação de imagens, mas objeto da religiosidade primitiva e da sabedoria
prática. Nesse trabalho de pesquisa, acredita-se que ainda hoje permanece algo dos
elementos míticos, na constituição do sujeito. A psicanálise, de algum modo, fez um
corte epistêmico entre o científico e o não cientifico (mítico), quando introduz conceitos
que perdem a precisão da evidência, e introduz no seu método, o mito individual de
cada um. Poder-se-ia ilustrar essa quebra da dualidade mito-ciência no texto de Freud
“Totem e Tabu” (1913), em que ele o considera, na “Psicologia das Massas” (1921),
como “um mito científico”.
A idéia da busca pela sua origem, Eliade (1989) propõe que é uma manifestação
de algo significativo na vida do sujeito. Para explicar isso, ele exemplifica que o pai, o
avô ensina à criança tudo aquilo que aprendeu dos seus antepassados, nos tempos
míticos. O pai e o avô, realizando uma imitação de seus antepassados, poderiam
pensar que obteriam os mesmos resultados que eles. Ou seja, transmitindo para os
seus descendentes, o que lhes foi passado pelas gerações anteriores, todos se
caracterizariam da mesma forma, se comportariam da mesma maneira. Pensando
desse modo, comenta o autor, o papel da origem seria desconhecido e é considerado
como um tempo forte e significativo, pois, tornou-se o receptáculo de uma nova criação.
28
Ainda em “Aspectos do Mito”, Eliade (1989) faz uma importante articulação entre
mito e conto de fadas. Sabe-se, por este autor, que houve um grande interesse por
parte dos etnólogos e folcloristas estudarem os contos, realizando a partir deles várias
interpretações. Estudaram profundamente acerca dos contos populares, registraram-
lhes e classificaram todas as suas variantes. A escola finlandesa, por exemplo, dedicou-
se a um estudo pormenorizado com o objetivo de obter a forma original de um conto.
Este fato tornou-se uma ilusão, pois as origens dos contos populares nos são
conhecidas sob a forma hipotética.
O folclorista Soviético Propp (apud ELIADE, 1989), nos contos populares a
memória dos ritos de iniciação totêmicos, idéia originalmente escrita por Saintyves.
Para Propp, de acordo com Eliade (1989), o problema se constituía em saber se o
conto descreve algum rito de cultura ou se o seu cenário está apenas no campo do
imaginário, exprimindo um modelo de “campo da psique”, a-histórico e arquetípico. O
conto seria, por assim dizer, um rito totêmico e, curiosamente, por ser um rito dessa
natureza, era vedado às mulheres, embora, o seu personagem principal, sempre fora a
mulher.
Segundo Jan de Vries (apud ELIADE, 1989), os contos teriam sua origem no
mediterrâneo oriental, sendo constituídos durante o período neolítico, conservando
ainda um modelo sócio-cultural marcado pelo matriarcado. Peuckert (apud ELIADE,
1989) procura a origem do conto no oriente próximo proto-histórico, ou seja, no período
da história imediatamente anterior à escrita, por conta da sua extraordinária riqueza
econômica, dos cultos à fecundidade e o simbolismo sexual que havia nesse período.
Nas culturas onde um hiato entre os letrados e o povo, os etnólogos,
mencionam que, a distância entre o conto e o mito é quase nenhuma. Em vez de
considerar o conto como uma dessacralização do mundo mítico, poder-se-ia dizer que
uma camuflagem dos motivos e dos personagens míticos. uma degradação do
sagrado, pois os deuses aparecem com outros nomes. Eles estão camuflados, mas
desempenham a mesma função. Encontramos, pois, todos esses elementos míticos
sagrados nos níveis profundos da psique, no inconsciente, no plano do onírico, no
imaginário. Diz Eliade (1989, p. 167):
29
Poderíamos dizer que o conto repete, num outro plano, e por outros meios, o
cenário iniciático exemplar. O conto retoma e prolonga a iniciação ao nível do
imaginário. Ele só constitui um divertimento ou uma evasão para a consciência
do mundo moderno; na psiquê profunda, os cenários iniciáticos conservam a
sua seriedade e continuam a transmitir sua mensagem e operar mutações.
Foram feitas várias tentativas de encontrar as raízes históricas do “Conto
maravilhoso”, e a ciência Russa teve toda uma escola histórica que foi dirigida, segundo
Propp (2002) nesse texto, por Vsevolod Miller. Ao estudar a Bilina, Speransky (apud
PROPP, 2002), diz que era preciso buscar nas raízes históricas dessa narrativa
elementos para encontrar uma identificação entre essas raízes e os acontecimentos
históricos que se relacionem com o folclore. O objetivo desse estudo seria encontrar na
história, a substância do Conto Maravilhoso. Entretanto, realizou o estudo de tal raízes
de forma diferente, buscando através dos fenômenos que aconteceram no passado, e
não nos acontecimentos históricos, os motivos que condicionam o Conto Maravilhoso.
Bilina, em resumo, é uma forma narrativa popular oral Russa de conteúdo épico, típica
dos Eslavos orientais, que floresceu entre os séc. XI e XIV e que narra feitos de heróis
semilendários. O objetivo, portanto, de Propp era enfatizar as raízes do Conto
Maravilhoso na realidade histórica.
O “Conto Maravilhoso” possui uma riqueza tão imensa que se torna impossível
estudar o que ele representa, de fato, em toda sua significância e em todas as culturas.
Por mais que se saiba que o Conto Maravilhoso comporta uma parte do folclore, não se
pode ignorar que faz parte de um todo. Os assuntos que constituem o conto estão
sempre condicionados e ligados entre si.
O “verdadeiro conto maravilhoso”, como diz Propp (2002), com todos os seus
elementos fantásticos: cavalos alados, czares e czarinas fantásticas e etc, é anterior ao
capitalismo e igualmente mais antigo que o feudalismo. A modificação na infra-estrutura
econômica observada por Marx, em Propp, provoca uma mudança na ideologia do
“conto maravilhoso”. Supõe-se, então, que o conto foi criado com base numa estrutura
econômica pré-capitalista. Desse modo, a origem desse gênero não teria nenhuma
ligação com a base econômica de produção vigente no início do séc. XIX, período em
que se iniciaram os seus registros sob a forma escrita. Esse modo de compreender a
origem do conto faz com que seja construída uma nova premissa para a sua origem,
30
que consistiria no seu confronto com a realidade histórica do passado. Propp (2002, p.
8), então afirma:
Se considerarmos que o conto é produzido por uma determinada infra-estrutura
econômica, obviamente temos de examinar as formas de produção que nele se
encontram refletidas.
No conto produz-se pouco, e raramente de maneira direta. A agricultura
desempenha um papel mínimo, a caça é mais amplamente representada. De
hábito, semeia-se e colhe-se apenas no início da narrativa. O início é mais
suscetível de mudanças. (...)
Entretanto, se limitarmos o estudo das formas de produção ao objeto ou a
técnica de produção, pouco avançaremos no estudo das fontes do conto. O que
importa não é a técnica de produção enquanto tal, mas sim o regime social que
corresponde a ela. Assim obteremos a primeira especificação do conceito de
passado histórico referente ao conto. Toda investigação consiste em determinar
sob que sistema social se criaram tais motivos separados e o conto como um
todo.
Porém o termo “sistema” é um conceito muito genérico. Precisamos de
manifestações concretas dele e uma delas são as instituições. Assim não
podemos comparar o conto com o sistema tribal, mas podemos comparar
determinados motivos do conto com as instituições do sistema tribal, na medida
em que nele estão refletidas ou são por ele condicionadas. Daí a premissa de
que é preciso confrontar o conto com as instituições do passado, e procurar
suas raízes.
Na busca de encontrar as raízes do “Conto Maravilhoso”, o autor encontra
subsídios em etapas arcaicas da evolução das sociedades. Encontrou vestígios desses
materiais, através de uma pesquisa histórica combinada a uma pesquisa etnográfica.
Realizou um estudo acerca desse tipo de conto, em culturas distintas, em épocas as
mais diversas e remotas, fazendo uma análise meticulosa, sincrônica e de composição.
Após uma comparação entre eles, concluiu que as partes constituintes o as mesmas
em diferentes enredos. Elas advêm umas das outras, formando um todo único. As
narrativas dos contos de fadas vão obedecendo a essa lei de forma que, mesmo com a
deformação que as narrativas vão sofrendo, os elementos axiais de cada conto vão se
repetindo em cada versão de uma mesma história.
Nesse mesmo texto, Propp (2002) faz uma pesquisa retrospectiva e demonstra
que muitos dos motivos dos contos remontam as instituições sociais, nas quais o rito de
iniciação tem um lugar bastante significativo. As concepções do “além” e a
“peregrinação” para o outro mundo, como fala o autor, também são temas importantes
na construção do motivo do conto.
31
O início de “transfiguraçãodo mito em conto, como diz Propp (2002), é sentido
quando o assunto e o ato de narrar se desprendem do ritual. É esse desprendimento
que vai dar origem ao conto, ou seja, quando passa a ser história e o rito uma pré-
história.
Segundo Propp (2002), o conto e o mito o podem ser formalmente distintos,
principalmente os mitos mais primitivos, chegando a ponto de muitas vezes os mitos
serem chamados de contos primitivos. Esses contos são obras construídas em
períodos arcaicos do desenvolvimento econômico. O conto europeu moderno foi
reinterpretado, mas ainda assim, considerado, como narrativas advindas de muitos
elementos arcaicos, que se constituem de mitos e os constroem também. Foi muito
recente a valorização do mito na ciência burguesa, continua o autor, e, a partir disso, se
firmou-se uma estreita ligação entre o mito, a palavra, as narrativas sagradas das tribos
de um lado; e do outro, os rituais, os atos morais e a organização social. Por Propp,
isso não é cogitado para os contos europeus, uma vez que estes foram reinterpretados,
não obstante, nesse estudo realizado pelo autor, eles foram encontrados numa forma
mais arcaica, quando os europeus começaram a coletar materiais etnográficos e
folclóricos da antiguidade. O autor discorre mais sobre a gênese e origem do conto
(2002, p. 22-3):
A Gênese precede a história, abre as portas para a história. Entretanto, também
nós lidamos não com os fenômenos estagnados e sim com os processos, isto é,
com certo movimento. Tomamos e analisamos como processo todo fenômeno
ao qual remonta o conto. Quando, por exemplo, estabelecemos uma ligação
entre alguns motivos de conto e concepções de morte, não partimos da “morte”
como conceito abstrato, mas como um processo de representações da morte
exposto em seu desenvolvimento. Por essa razão o leitor poderia facilmente ter
a impressão de que escrevemos a história ou a pré-história de determinados
motivos. A despeito de uma elaboração às vezes menos ou mais minuciosa do
processo, ainda assim não se trata de história. casos em que o fenômeno
ao qual remonta o conto é muito claro em si mesmo, e, contudo não
conseguimos convertê-lo em processo. Isso é verdade, por exemplo, para
certas formas de organização social muito arcaicas, notavelmente bem
conservadas pelo conto (por exemplo o rito de iniciação). A história dessas
formas exige um estudo histórico-etnográfico especial, a que o folclorista nem
sempre pode aventurar-se (...) Por essa razão, a elaboração histórica não é
sempre igualmente ampla e profunda.
32
Com essa explanação, Propp (2002) demonstra que nas construções dos contos
esta inter-relação do indivíduo com a cultura e a construção de sua própria história.
O que no conto se narrava sobre a história de um determinado rapaz, poder-se-ia
pensar, como faz Propp (2002), na história de um ancestral de uma tribo, por exemplo,
fundador dessa tribo ou de seus costumes, sobre seu nascimento miraculoso, contando
que esteve no reino dos ursos, dos lobos. Por isso, que se vê nitidamente uma
simultaneidade da construção do mito e do conto. Continuando, Propp (2002, p. 441)
discorre: “Inicialmente esses episódios eram menos narrados que encenados. Também
eram representados nas artes plásticas. Não é possível compreender as gravuras e os
ornamentos de muitos povos sem conhecer suas lendas e seus contos”.
Analisa-se que eram esses os recursos utilizados para ensinarem às crianças
sobre os acontecimentos da vida. Era através das artes, dos mitos, das lendas, dos
contos, que o neófito compreendia o que estava a sua volta, onde ele estava envolto e
o que o constituía. Os mitos pode-se acrescentar aqui os contos fazem parte da
vida de cada indivíduo de forma peculiar. Propp diferencia o conto dizendo que ele
mostra a realidade de um povo, seu modo de produção, sua organização social suas
crenças. O sentido que Bettelheim (1980, p. 34) dá ao conto é o seguinte:
Estes contos fornecem percepções profundas que sustentaram a humanidade
através das longas vicissitudes de sua existência, uma herança que não é
transmitida sob qualquer outra forma tão simples e diretamente, ou de modo tão
acessível, às crianças. Um mito, como uma estória de fadas, pode expressar
um conflito interno de forma simbólica e sugerir como pode ser resolvido, mas
esta o é necessariamente a preocupação central do mito. Ele apresenta seu
tema de forma majestosa; transmite uma força espiritual; e, o divino está
presente e é vivenciado na forma de heróis sobrehumanos que fazem
solicitações constantes aos simples mortais. Por mais que nós, os mortais,
possamos empenhar-nos em ser como estes heróis, permaneceremos sempre
e obviamente inferiores a eles.
Os motivos do “Conto Maravilhoso” e sua composição tiveram origem no regime
das tribos e sua nova estética está baseada no desaparecimento desse regime que o
gerou. O momento em que há um desligamento desse regime tribal com os assuntos do
conto é que começa a história do “Conto Maravilhoso”.
33
Sendo assim, o conto foi perdendo suas funções religiosas e assumindo mais
uma posição social, ele se adentra na livre criação artística e modifica o seu percurso,
tornando-se uma narrativa artística e passaram a fazer parte do folclore popular.
Pertencentes às lendas e folclores populares, os contos de fadas foram
transmitidos por incontáveis gerações pela cultura oral ou por forte influência de
narrativas escritas e foram, por assim dizer, consagradas na literatura européia por
Perrault no século XVIII. Falar com precisão das origens dos contos de fadas é próximo
do impossível, pelas razões da transmissão oral e pela forte tradição mítica. Pretende-
se, portanto, neste texto, fazer um pequeno recorte das possíveis origens dessa forma
de narrativa, relativizando os que tiveram influência dos mitos coletivos e dos escassos
escritos registrados em períodos mais remotos da civilização. O mito e a narrativa
escrita irão de certo modo se misturarem e se influenciarem na construção do Conto de
Fada da maneira como é conceituado na atualidade.
Segundo Guirland (2001), os primeiros estudos acerca da narrativa de uma
maneira geral, aconteceram em torno de 335 a.C. e se encontram no livro A Poética de
Aristóteles. Este livro traz a noção de mimese como sendo uma imitação ou
representação de uma ação, de uma intriga, enquanto agenciamento dos fatos,
características que consubstanciam a definição de narrativa de um modo geral. Não
pretendemos insinuar aqui a noção de mimese como uma cópia real de uma ação, mas
como uma imitação criadora ou um repetir diferente que vai dar espaço à ficção.
Coelho (1987) pontua que os contos que se assemelham aos contos de fadas de
hoje datam de 4000 a.C. Esses contos se reportavam à magia, ao inaudito, ao
misterioso. Seus registros foram feitos pelos egípcios através do “Livro Mágico” de autor
desconhecido, e apareceram posteriormente na Índia, na Palestina, na Grécia Clássica,
tendo sido o Império Romano quem divulgou esses Contos para o ocidente. No séc VII
apareceu registro na transcrição do poema épico anglo-saxão Beowulf. A materialidade
sensorial do oriente, a luxúria que havia na Arábia, na Pérsia, na Turquia e no Irã iam
de encontro à cultura celta e bretã no ocidente que era cheia de magia e
espiritualidade. A mesma autora afirma que no séc. XVI surgiu “Noites Prazerosas” de
Straparola e “O Conto dos Contos” de Basile.
34
As fadas, como personagem propriamente dito, surgiram no séc. IX no livro
Mabingion que se reporta à mitologia céltica da Grã-bretanha. Surge o ciclo do Rei
Arthur, transcrito inicialmente por Godofredo de Monmouth, ainda de forma bruta, e que
seria escrito de forma mais cortês ou menos atroz por volta de 1155, no livro de Wace,
conhecido como Wace “o Francês”: As Aventuras do Rei Arthur e Seus Cavaleiros.
Ainda nesse mesmo século, continua Coelho (1987), os poemas narrativo ou lírico Os
Lais de Marie France continham também os temas do Rei Arthur e das fadas, como no
Lai de Guingamor (em português Guingemar) que narra a história de um cavaleiro que
vai ao país das fadas viver trezentos anos em três dias. A história ou a lenda do rei
Arthur como é conhecida nos dias de hoje, vem de uma versão posterior, de 1485,
escrita por Thomas Malory sob o título: A Morte do Rei Arthur, uma versão moderna e
renascentista. Contudo, foram as narrativas épicas anteriores ou as Lais da Idade
Média, que, de fato, divulgaram os romances de cavalaria e com eles as fadas em toda
cultura européia. Coelho (1987, p. 15) contextualiza essas narrativas na antiguidade
clássica, na Idade Média e na Renascença:
Na Idade Média, esse lastro pagão choca-se, funde-se ou deixa-se absorver
pela nova visão de mundo gerada pelo espiritualismo cristão e, transformado,
chega ao Renascimento. Na Era Clássica, os contos, que tinham um profundo
sentido de verdade humana, foram perdendo seu verdadeiro significado e,
como simples “envoltório” colorido e estranho, transformou-se nos contos
maravilhosos infantis.
Esses contos “maravilhosos” infantis seriam, desse modo, os contos de fadas na
acepção atual. Ao analisar os contos russos, Wladimir Propp (1928/1983) incluiu os
contos de fadas no gênero do Conto Maravilhoso no seu livro Morphologie du Conte, de
1928, divulgado no ocidente em 1958, como menciona Guirland (2001). Esse gênero,
como foi dito, inclui as obras sobre as quais não é possível qualquer explicação racional
para os fenômenos (sobre)naturais e onde está implícito uma nova construção de leis
da natureza dentro da perspectiva do “Fantástico”. Coelho (1987, p.13) define o “conto
maravilhoso” da seguinte maneira:
[...] narrativas sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no
cotidiano mágico (animais falantes, tempo e espaço reconhecíveis ou
familiares, objetos mágicos, gênios, duendes etc.) e têm como eixo gerador
35
uma problemática social (ou ligada à vida prática concreta). Ou melhor, trata-se
sempre do desejo de auto-realização do herói (ou anti-herói) no âmbito
socioeconômico, através da conquista de bens, riquezas, poder material etc.
Geralmente, a miséria ou a necessidade de sobrevivência física é o ponto de
partida para as aventuras da busca. Eles se originam das narrativas orientais, e
enfatizam a parte material/sensorial/ética do ser humano: suas necessidades
básicas (estômago, sexo, vontade de poder), suas paixões do corpo.
Ao analisar e comparar os diversos motivos nos diferentes contos, Propp (2002)
descobriu que muitas vezes um personagem do conto tem as mesmas ações que um
personagem de um outro conto. O que se modifica de um conto a outro são as
situações, pois as funções são as mesmas. Todos os contos possuem a mesma
estrutura. As funções dos contos maravilhosos são várias e, dentre elas as principais
são: a intriga no momento da malfeitoria, que em sua morfologia se apresenta assim:
alguém da família abandona a casa, sempre um herói e uma interdição atribuída a
ele; o herói, por sua vez, transgride essa interdição, sempre um agressor, quem
agride sempre procura informações sobre a vítima e tenta enganá-la para apoderar-se
de seus bens; a vítima se deixa enganar, etc. O herói sempre passa por uma prova,
recebe um objeto de um auxiliar mágico; o objeto mágico é posto à disposição do herói;
o herói se confronta com o agressor e vence-o. Depois ele volta e chega incógnito à
sua casa. Um falso herói traz falsas pretensões, propõe-se ao herói uma tarefa difícil,
que ele cumpre. O falso herói é desmascarado e é punido. O herói recebe uma nova
aparência e sobe ao trono. Essas são funções, segundo Propp (2002), são distribuídas
entre os personagens. Existe um agressor, um doador, a princesa, o pai dela, o herói e
o falso herói.
ainda várias hipóteses sobre a origem, ou as origens, do conto de fada na
Europa. Bettelheim (2005) diz que no c. XIV surgiu neste continente a Coleção de
contos com motivos do folclore europeu, de origem Persa, chamada: Gesta
Romanorum, escrito em latim, que precedeu a clássica coleção Árabe: As Mil e Uma
Noites.
Coelho (1987) ensina que, entre o final do séc. XVI e início do séc. XVII, o
racionalismo clássico, influente na literatura de um modo geral, perde sua força, dando
lugar a uma literatura que enfatizava a fantasia, o imaginário. A junção do elemento
“Fantástico” ou “Maravilhoso” da literatura com as lendas do folclore europeu irão dar
36
início aos contos de fadas. No entanto, as lendas e mitos da cultura européia, antes de
serem escritos, atravessaram por incontáveis gerações pela transmissão oral. Parte
dessa transmissão veio dos mitos da literatura clássica ou medieval e parte estavam
enraizadas nas lendas, apenas da tradição oral. A transmissibilidade oral por si
deforma elementos dessa narrativa, mantendo alguns elementos de enredos mais
essenciais. Contudo, mesmo depois que essas narrativas foram passadas para a
literatura escrita, as deformações persistiram. A cada vez que se ia escrevendo essas
narrativas, as histórias foram, do mesmo modo, deformando-se, até que as versões
legítimas, se assim puder dizer, perderam-se com o tempo. Deixaram as suas marcas
através da narrativa construída por Perrault, no culo XVII, na França e foi quem
primeiro transcreveu esses contos para a escrita literária. A partir dessa transcrição foi
que os contos de fadas se tornaram uma literatura para crianças, como ressalta Coelho.
Uma escrita que com o passar do tempo foi sendo transformada, atenuada por diversos
autores até os dias atuais. Houve também transformações pelos irmãos Grimm na
Alemanha no séc. XVIII; Por Andersen no séc. XIX, na Dinamarca e por Walt Disney no
séc. XX.
Segundo Coelho (1987), Propp construiu uma estrutura básica para os contos na
qual havia início, ruptura, confronto, superação dos obstáculos e dos perigos e um
desfecho.
A autora comenta que na França os contos de fadas são chamados “Contes de
fées”, na Inglaterra, “Fair tale”; na Espanha, “Cuento de hadas” e na Itália, “Racconto di
fata”. No Brasil e em Portugal eram chamados de “contos da carochinha”, denominados
também por Câmara Cascudo de “contos de encantamento”. Coelho (1987, p. 14)
define o conto de fada da seguinte forma:
(...) Com ou sem a presença das fadas (mas sempre com o maravilhoso) seus
argumentos desenvolvem-se dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes,
princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes anões objetos mágicos,
metamorfoses, tempo e espaço fora realidade conhecida e etc.) e têm como
eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como núcleo
problemático a realização essencial do herói ou da heroína, realização que via
de regra está visceralmente ligado à união homem-mulher.
37
Bettelheim (2005) diz que não como distinguir o mito do conto folclórico.
Sabe-se que essas narrativas advêm de uma sociedade pré-literata. Embora, acredita-
se que a letra é algo inerente ao humano, e que é passada da mãe para a criança ao
nascer. O autor diz ainda que, tais narrativas foram chamadas nos países rdicos de
saga. Na Alemanha usa-se Sage para mito e marchen para conto. os ingleses e
franceses dão ênfase às fadas em histórias em que estas não aparecem.
Observou-se que se existem diferenças entre mitos e contos isso é algo bastante
polêmico. Sabe-se que o último advém do primeiro. Acredita-se, nesta pesquisa, que os
mitos e os contos, de algum modo, se interpõem e funcionam de uma maneira tal na
criança que interferem na construção e na eliminação dos seus sintomas, como se
apreciado no capítulo 3.
Até aqui foram trabalhados os conceitos de mitos e de contos de fadas, e se
percebeu que nesses dois tipos de narrativas a presença da ficção que será
conceituada, sumariamente, do ponto de vista literário e psicanalítico que em resumo
se diferenciam, contudo não são excludentes.
A Enciclopédia Larousse define ficção como “ato ou efeito de simular, fingimento;
criação do imaginário, aquilo que pertence à imaginação, ao irreal; fantasia, invenção”.
Todavia, a abrangência que é dada a essa palavra, nesta definição, põe a ficção não
apenas na estética literária, mas como uma conduta do sujeito, que embute a mentira
em seu esteio.
De acordo com Creder (2003), a narrativa sob a forma oral pode tomar uma nova
forma quando acrescida da imagem acústica que faz, através dessa expressividade,
emergirem sentimentos e sensações que se aproximam bastante de uma narrativa
ficcional, E por assim ser, poderia ser questionada em se tratando de uma pesquisa
científica dependendo da área em que esta estiver sendo estudada. A ficção é
interpretada por muitos como uma inverdade. Considerando o discurso oral como
sendo sujeito à mentira, o autor questiona que valor ela teria para a ciência. Tomando
como base que a mentira seria algo inerente ao ser humano, Creder (2003) afirma que
a ficção consiste numa forma de narrativa “que quer se fazer verdadeira”, e para isso se
utiliza os exageros de expressão.
38
É bastante perceptível a crença da criança naquilo que ela ouve no conto, que
se torna na clínica, algo que está entre o mito, a fantasia e a ficção. A ambigüidade da
fantasia em si parece dar ao conto uma verossimilhança que tenta destituir a ficção e
fazer dela um mito. Um mito provisório, endereçado aos elementos da realidade
psíquica, constituído de elementos críveis.
Estes dois eventos se cruzam e se diferenciam de forma peculiar: se por um lado
Assoun (1996), afirma que “A ficção é uma construção lógica ou artística à qual se sabe
que nada corresponde na realidade, por exemplo, na matemática, no romance etc” -,
Droz (1997), por sua vez, lembra que entre o mito e a ficção existem pontos em comum.
O mito se remete a acontecimentos passados, às origens, ou como cita Eliade (1989),
aos acontecimentos dos tempos primevos e fabulosos narrados de maneira fictícia. Um
acontecimento supostamente verdadeiro. Já na ficção não há, necessariamente, o
mesmo compromisso de um relato que remete a um passado precioso, incerto e
remoto, mas, como o mito, é uma narrativa que se constitui de ação e personagens. O
mito, como resume Creder (2003), seria, “uma ficção que se quer fazer verdadeira”,
embora, não a seja.
Por fim, conclui-se, sumariamente, neste capítulo que o gênero “Contos de
Fadas”, incluído por Propp (1983), como referenciou Guirland (2001), nos “Contos
Maravilhosos”, aproxima-se, e, paradoxalmente, se afasta da ficção à medida que tem a
mediação do mito. Essas filigranas conceituais são mais valorizados entre os literatas
que consideram, com justiça, os elementos estéticos e da autoria na obra literária.
Contudo, aqui neste trabalho, essas digressões conceituais serão irrelevantes, uma vez
que, em psicanálise o ineditismo ou o puramente ficcional é questionável. algo de
biográfico em toda ficção e de ficcional em toda narrativa supostamente verídica. “Os
contos de Fadas” hoje fazem parte de gênero literário, classificam-se como ficção e
fazem parte da literatura infantil, ou seja, uma literatura própria para crianças que se
utiliza, entre outros, das vertentes dos recursos da leitura ou narrativa oral e de
elementos míticos entendidos pela criança como mitos factíveis. Como comenta Kehl
(1998), a criança “leva à sério”, acrescenta-se que ela questiona “e crê no que lê”.
Esses temas que aprofundam o estudo dos contos de fadas: os formatos de narrativas
39
e o da literatura no sentido mais generalizante, de algum modo, se aproximam do
interesse da psicanálise, como se verá no próximo capítulo.
40
2 LITERATURA, NARRATIVA E PSICANÁLISE
2.1Literatura: a palavra na fala e na escrita
Como se viu no capítulo anterior, o ato de contar histórias é algo bastante antigo
e existe em todas as partes do mundo. Por esse motivo, a literatura oral, e
posteriormente escrita, vem sendo perpetuada através de incontáveis gerações, através
dos mais diversos mitos, contos, lendas etc todos os elementos das mais diferentes
culturas vão construir o conto ou a ficção moderna.
quem considere literatura como termo que se refere ao que está escrito
apenas. Pelo étimo da palavra em latim: Litterat significa arte de escrever, escritura.
Advém de littera que significa letra, caráter de escritura. Literatura, também na sua
etimologia segundo dicionário de Houaiss (2004) significa instrução, saber. Meireles
(1984), discorda que a literatura se refira a algo escrito, pois como sugere o
dicionário, refere-se também a saber, palavra que vem do lat.: sapìo, is ,ùi, ívi (ou ìi eí),
ère 'ter sabor, ter bom paladar, ter cheiro, sentir por meio do gosto, ter inteligência, ser
sensato, prudente, conhecer, compreender, saber ver sab-; f.hist. 991 sabere, saber “e
curiosamente a palavra sabor vem do lat.: sapor,óris 'sabor, gosto, senso, razão, cheiro,
aroma. Meireles (1984) afirma ainda que a literatura antecede o alfabeto, e isso é
constatado nas histórias que as pessoas “iletradas” contam. Enfim, essas também são
literatura. Mesmo os povos primitivos, quando não havia escrita, o homem compunha
seus cânticos suas histórias, suas lendas narrando-as oralmente. Foi através delas que
foram transmitidas as experiências das adivinhações, dos provérbios, dos ditos
populares, próprios da sabedoria popular.
De acordo com Meireles (1984), a literatura oral é bastante utilitária, porque usa
a própria palavra como instrumento gico de transmissão dos rituais, cânticos etc.
Segundo Meireles (1998), para contar histórias é necessário talento interpretativo,
inventivo, imaginativo, pois a voz, a arte de interpretar são indispensáveis para alcançar
determinados “efeitos” em relação à história. Acredita-se que são necessários
determinados talentos para quem exerce essa profissão. Contudo, em se tratando de
41
experiência que está sendo ressaltada neste trabalho, esse talento, pressupõe-se, é
dispensável, pois na clínica, as próprias crianças contam, narram as histórias como se
fossem as personagens; elas se apropriam dos contos para falarem de suas fantasias.
Serão mais importantes as relações do narrador ou da coisa narrada com a criança do
que a arte de narrar propriamente dita.
Os pais, por exemplo, são narradores de significativa importância, pois com eles
se dá, não apenas uma narração comum, usual, mas envolve questões relacionais bem
mais cruciais. Entende-se por questões cruciais as questões que envolvem aspectos
conflitivos e pedagógicos de controle sobre os filhos, a responsabilidade educativa, e,
no contraponto, os comportamentos rebeldes, negligentes, irresponsáveis, contumazes
etc. Ainda, algo bastante relevante, o desejo que os pais depositam nos filhos, no
sentido de que estes realizem o que eles - os pais - não puderam realizar.
O sentido do narrar para a criança tem várias funções. Nesta pesquisa serão
destacadas, duas, aparentemente, opostas: tranqüilizarem-na na hora do sono ou,
muitas vezes, causar-lhe medo nos momentos mais impertinentes. Os pais ao
narrarem, também trazem, ainda, outra função. Suas narrativas veiculam elementos de
seus próprios desejos e interditos advindos de diversas gerações. Essa narrativa põe o
filho como personagem de uma história familiar, social e cultural, uma vez que tais
histórias, pertencem ao patrimônio histórico-cultural de um povo, e foram transmitidas
através das gerações, aos dias atuais, por diversos autores.
A introdução do conto escrito, realizada por Perrault, e, posteriormente, pelos
irmãos Grimm, Andersen e outros, fez com que esse gênero literário fosse preservado.
Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, as variantes narrativas persistiram na
evocação mnêmica do contador de histórias. E assim, não quem não possua a
riqueza de algo que foi contado através da literatura oral na infância. Meireles (1984)
diz:
O negro na sua choça, o índio na sua aldeia, o lapão metido no gelo, o
príncipe em seu palácio, o camponês à sua mesa, o homem da cidade
em sua casa, aqui, ali, por toda parte, desde que o mundo é mundo,
estão contando uns aos outros o que ouviram contar, o que lhes vêm de
longe, o que serviu a seus antepassados, o que vai servir a seus netos,
nesta marcha da vida (p. 48-49).
42
A autora ensina que o prazer de contar histórias equivale ao de escrever, e que, os
primeiros narradores anônimos serviram de inspiração, de exemplos para todos os
escritores. Essas narrativas estavam endereçadas ao anonimato (esse tema será
aprofundado no capitulo 3) e os escritores, assim como fazem as crianças, vão
contando ou escrevendo à sua maneira. Meireles (1984, p. 49) continua:
As conquistas da imprensa não inutilizaram por completo o ofício de
narrador. Por toda parte ele se mantém, e a cada instante reaparece,
por discreta que seja sua atuação. Antes de todos os livros, ele
continua presente nas manifestações incansáveis da literatura
tradicional: na canção de berço que a mãe murmura para seu filho; nas
histórias que mães, avós, criadas, aos pequenos ouvintes transmitem;
nas falas dos jogos, nas parlendas, nas cantigas e adivinhas com que
as próprias crianças se entretêm umas com as outras, muito antes da
aprendizagem da leitura.
Com isso, de acordo com Meireles (1984), é impossível imaginar a infância
começando logo com a gramática e a retórica. As narrativas orais circularam entre as
crianças do passado, assim como, entre as de hoje. Todas as narrativas: contos, mitos,
lendas, entre outros, ocupavam, no passado, o lugar literário que hoje está concedido
aos livros infantis. Continua Meireles (1984, p. 55-6):
A idade média aparece como grande época da difusão das narrativas
tradicionais. É quando a História passa à história: os heróis das batalhas
brilham com luzes novas são quase heróis imaginários... Grécia,
Roma, Bretanha, França afluem como grandes temas das canções de
gesta: Alexandre, Carlos Magno, Roldão, o Rei Artur e os Cavaleiros da
Távola Redonda multiplicam suas aventuras, em sucessivas
transformações, chegam até nós sob a forma de literatura de cordel
que importa? depois de terem sido, na Europa ocidental, como as
figuras do Maabarata e do Ramaiana, Índia, como as Sagas dos
finlandeses, e as Bilinas dos russos...
Apesar do surgimento da literatura escrita, a literatura oral ainda permanece na
tradição de contar histórias e se apresenta de forma diversificada em cada país e,
paradoxalmente, a mesma em todo o mundo. Diz Meireles (1984, p. 81-2):
Em todas as grandes vidas, esse elemento tradicional aparece como
raiz profunda, que penetra igualmente o solo da pátria e o solo do
43
mundo; que vem da infância de cada um e da infância de todos, e
concorre para essa fusão do individual no coletivo, do coletivo no
individual, essa identificação do homem com a humanidade.
Ainda segundo essa autora, a literatura tradicional é a que primeiro se instaura,
ou se funda, na criança, que, mesmo antes de aprender a ler, a escrever, possui a
sua literatura. Essa influência da literatura tradicional pode ser ilustrada por um
atendimento de uma criança de três anos que reconhecia nos livros as várias histórias
que continha. Contava as histórias de acordo com as imagens. Ao falar sobre os livros
infantis Meireles (1984, p. 31) pontua:
O fato de a criança tomar um livro nas mãos, folheá-lo, passar os olhos
sobre algumas páginas não deve iludir ninguém. mil artifícios e mil
ocasiões para a tentativa de capturar esse difícil leitor. São os
aniversários, são as festas, são as capas coloridas, são os títulos
empolgantes, são as abundantes gravuras...
Ah! Tu, livro despretensioso, que, na sombra de uma prateleira, uma
criança livremente descobriu, pelo qual se encantou, e, sem figuras, sem
extravagâncias, esqueceu as horas, os companheiros, a merenda... tu,
sim, és um livro infantil, e o teu prestígio será na verdade, imortal.
Pois não basta um pouco de atenção dada a uma leitura para revelar
uma preferência ou uma aprovação. É preciso que a criança viva a sua
influência, fique carregando para sempre, através da vida, essa
paisagem, essa música, esse descobrimento, essa comunicação...
Meireles (1984) insistia que na literatura infantil permanecesse o tradicional tanto
em seu formato oral, como escrito, pois, através do tradicional, a criança atravessaria
os tempos e as distâncias da história da humanidade, permitindo-lhe uma identificação.
Por meio da junção das histórias, de seus estilos, de seus ensinamentos,
compreendendo os sentidos das narrativas milenares, que foram traduzidas de maneira
mais amena, esse acervo de histórias tradicionais constroem laços entre os povos, os
tempos, as culturas, por entre os séculos. A autora (1984, p. 79) afirma:
Nem todos terão aberto livros, na sua infância. Mas quem não terá
ouvido uma lenda, uma fábula, uma adivinhação? Quem o terá
brincado com uma canção que um dia lhe aparecerá noutro idioma?
Quem não terá pensado e agido em função de exemplos que são os
mesmos de outros povos, de outras eras, provenientes de um esforço
análogo do homem para adaptar-se à sua condição na terra?
44
De acordo com Meireles (1984), a literatura infantil é uma obra literária, em se
tratando da qualidade do gênero. Para essa autora, a criança tem grande sensibilidade
em relação à arte literária e gosta das histórias tradicionais da literatura infantil, que, por
sua vez, o bastante ricas de conteúdos humanos. A longevidade desse acervo
cultural demonstra a qualidade que possui esse gênero, assim como, os testemunhos
de todos os que recordam de sua infância. Cada pessoa tem na recordação, pedaços
de histórias que ouviram na infância, e que, de algum modo, ficaram marcadas. Até
mesmo palavras, que naquele momento, não compreendiam, por não conhecerem a
leitura, as histórias provocavam certas emoções, que lhes faziam viajar no tempo, ou
como disse Meireles (1984, p. 123), “causavam a emoção poética de viajar sobre
pontes, de atravessar o vazio de voar pelas páginas do livro...”.
Corrêa (2003) afirma que o sujeito, mesmo antes do seu nascimento, está
imbricado no campo da palavra e no que é visível, ou seja, na voz e no olhar, que são
na teoria lacaniana, algo da ordem do objeto a. Mesmo antes de falar, como menciona
o autor, o bebê se encontra envolto na linguagem e sujeito às suas leis. Antes de
nascer, a criança é falada pelos pais e familiares. lhe são designadas várias
qualidades que são da ordem do desejo desses pais. Essas falas, o os significantes
que vão constituir a criança, e irão destiná-la ao campo da palavra, para que ela possa,
a partir disso, construir sua própria história, o seu mito individual.
Gandulla et al. (1982) afirma que Freud foi aprendendo a ler a história humana e
a construir o seu futuro através da remontagem do passado. Na tese sua tese de
doutorado, Frej cita um dos trabalhos de Freud- Leonardo Da Vinci, uma lembrança de
infância (1910), e ressalta o trecho:
Enquanto as nações eram pequenas e fracas, não cuidavam de
escrever a sua história. Os homens lavravam as suas terras, lutavam
com seus vizinhos defendendo sua sobrevivência e procuravam
conquistar mais território e riquezas. Foi uma época de heróis e não de
historiadores. Seguiu-se outra época a da reflexão; os homens
sentiram-se ricos e poderosos e agora sentiam uma necessidade de
saber de onde tinham vindo e como haviam evoluído. Os relatos
históricos, que começaram por anotar os sucessos do presente, voltam-
se então para o passado recolhendo lendas e tradições, interpretando
os vestígios da antiguidade que subsistiam ainda em costumes e usos,
e dessa maneira criou-se uma história do passado. Era inevitável que
essa história primitiva fosse a expressão das crenças e desejos do
45
presente, e não a imagem verdadeira do passado; muitas coisas
haviam sido esquecidas enquanto outras haviam sido destorcidas e
alguns remanescentes do passado eram interpretados erradamente, de
modo a corresponderem às idéias contemporâneas. Além do mais, o
motivo que levava as pessoas a escreverem história não era uma
curiosidade objetiva mas sim o desejo de influenciar seus
contemporâneos, de animá-los e inspirá-los, ou mostrar-lhes um
exemplo onde mirar-se (FREUD, 1910 – vol XI, p. 77-78).
Segundo Gandulla et al. (1982), desde a organização das hordas rudimentares
do paleolítico, desde o momento em que o homem pré-histórico precisou interagir com
outros semelhantes, constituiu-se a verdadeira linguagem. Não foi isso que a
constituiu e, muito menos a linguagem escrita, que é um produto contemporâneo, da
era da revolução urbana, do período neolítico. Com isto, esse autor quis dizer que,
tanto a linguagem oral, como a linguagem escrita, são produtos da cooperação social,
sendo a escrita não veículo de continuidade, mas um sinal de afirmação da
consciência social que homogeiniza as formações primitivas socioeconômicas.
Van Ginne Ken (apud GANDULLA et al., 1982) diz que a aparição da escritura
precede a linguagem falada, sendo ainda da existência dos clics, forma
extraordinariamente arcaica, da comunicação humana. Como por exemplo, os
pictogramas que representavam a transposição gráfica dos gestos. que as palavras
clics representavam os gestos, os signos gráficos estavam em relação com essas
palavras. E em conseqüência, eram as palavras clics e não as palavras gestos que eles
representavam. Assim, progressivamente, chegaram a representar as palavras faladas.
As palavras clics são fonemas que correspondem aos barulhos do bebê
mamando. Esses ruídos se encontram nas línguas sul-africanas e em algumas línguas
do Cáucaso. Essas palavras clics, como diz Février (1995), são fragmentadas em
grupos de consoantes. Se, entre essas consoantes, tivessem surgido, algumas vogais,
que não possuíssem nenhum timbre, e tivesse, como única função, a pronúncia e a
distinção das consoantes, é que se poderia dar importância ao papel das raízes
consonantais no Egito antigo e nas línguas semíticas. Mais adiante, a diferenciação das
vogais seria precisada por fazer parte da palavra nas línguas indo-européias.
De acordo com Tablant (apud FÉVRIER, 1995), diante dos novos fatos trazidos à
discussão por P. Tchang Tcheng Ming, julgou-se ser possível uma teorização acerca
46
das relações entre a linguagem e a escritura. De acordo com ele, a primeira linguagem
seria por gestos, em especial, os das os. Poder-se-ia, a partir disso, remontar ao
passado. Esse meio de expressão era empregado, independentemente da linguagem,
nos índios de peles-vermelhas, assim como, nos chineses. Entretanto, essa linguagem
gestual nos é convencional. Apenas posteriormente, numa época próxima a nossa,
foi que apareceu a linguagem articulada, possibilitada unicamente pelos clics.
Para resumir o desenvolvimento da escrita, é preciso considerar que ela traz
uma larga etapa, até que se constitua a linguagem articulada, com a qual se poderá
adquirir uma forma convencional, formada por palavras, mais ou menos estáveis, onde
as formas de escrita serão, de certa maneira, autônomas. Haverá um período, em que a
escrita coincida com a linguagem articulada, ainda que se trate de algo superior a uma
correspondência aproximada, na qual, um signo de uma escritura, ou um grupo deles,
sugira uma frase, mas não a registre. É um sistema gráfico bastante variado, uma vez
que a relação entre o pensamento e a frase é infinita (GANDULLA et al., 1982).
No texto, As bordas do saber, Corrêa (2000), discorrendo sobre a escrita,
aponta, por exemplo, que quando os gregos calcularam a diagonal de um quadrado
equilátero, chegaram ao resultado de que era igual à raiz quadrada do número dois.
Tangenciavam, portanto, o campo dos números até então conhecidos. Ou seja, algo
impossível de ser dito, de ser calculado, e por assim ser, fora do discurso. É algo que
se escreve, mas não se fala, embora acompanhe e sustente essa fala. Posteriormente,
ainda segundo o referido autor, os matemáticos tentando resolver a equação do
segundo grau encontraram como resultado, a raiz quadrada de menos um, uma outra
impossibilidade do dizer. Qualquer número, multiplicado por ele mesmo, daria sempre
um resultado positivo. Estes números, após um século e meio foram considerados
“imaginários”. Apenas com Bombelli foi que se conseguiu construir um artifício, no qual,
a raiz quadrada de menos um seria igual a “i”. Desse modo, esses números passaram a
fazer parte da ordem numérica e ampliaram o seu campo pela invenção dos “números
complexos”. Corrêa (2000) comenta sobre a lógica aristotélica, afirmando que a
primeira etapa dessa gica aconteceu, quando o estagirita substituiu no silogismo, os
termos que eram concretos, por variáveis simbólicas. E a lógica se enunciava, como
ressalta Corrêa (2000), “em língua natural”. Esta língua é uma língua falada, que apesar
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de ter vindo pela escrita, está em função, apenas, como um meio de transmitir a
palavra. Então, parte-se da hipótese de que a palavra estar primeiramente no homem
por fazer parte de sua constituição, enquanto que a escrita (da palavra) é adquirida
posteriormente. A lógica permaneceu por muito tempo sujeita à palavra, e é começando
com a palavra, que a lógica se torna compreendida. Até o Renascentismo se lia em
voz alta ou movimentando os lábios; depois o homem foi se habituando com a palavra
interior. Foi que se começou a ler em silêncio. “Para os antigos da mesma forma que
a palavra falada envia à idéia, da mesma forma a palavra escrita envia à palavra falada,
que é o intermediário necessário para atingir a idéia” (CORRÊA, 2000, p. 2).
Segundo Aristóteles (apud CORRÊA, 2000), os sons que são emitidos pela voz
simbolizam os estados da alma, e as palavras escritas simbolizam as palavras que são
emitidas pela voz. Diz o autor (2000, p. 3):
Uma reviravolta se produz, no entanto, se passarmos da escrita
fonética para a ideográfica que exprime diretamente a idéia, sem passar
pela mediação da palavra falada. (Lacan refere-se à escrita chinesa e à
japonesa...) Na álgebra simbólica, por exemplo, a escrita não se deixa
ler em voz alta, isto é, não se deixa ser traduzida vocalmente, segundo
os quadros da língua usual, sem deformação, o que revela a impotência
da palavra. (...) A expressão oral envia-nos à fórmula escrita que ela
evoca. Mas por vemos que é a fórmula escrita que é o texto
autêntico, sem equívocos. Lacan diz que “só o matema se transmite
integralmente”. O enunciado oral apenas uma aproximação mais ou
menos exata, introduzindo o equívoco. O que, por outro lado permite
que seja possível que haja Psicanálise e chiste.
Sem a equivocidade das palavras, não seria possível haver nem
Psicanálise nem chiste. Freud dizia na Interpretação dos sonhos”, que
as palavras são o lugar privilegiado da ambigüidade.
Vistas por esse ângulo, a palavra falada e a palavra escrita são percebidas de
forma diferenciada. A escrita fonética será substituída por uma ideográfica, ou seja, em
contato com as idéias que ela precisa exprimir. A escrita é beneficiada pela
bidimensionalidade e pela permanência dos caracteres, ou seja, das letras.
Chemama e Vandermersch (2007) ressaltam que a letra como caractere é o
suporte material do significante e o que se diferencia dele. Lacan, citado por este autor,
constrói a partir dos estudos da linguagem uma teoria sobre a gênese da escrita. Nessa
teoria ele afirma que a escrita é um produto da linguagem e que esperava ser
48
fonetizada. As marcas, portanto, que havia nas cerâmicas egípcias, foram denominadas
de signos da escrita.
Azevedo (2007) faz alusão ao o conto “A Carta Roubada” de Edgar Allan Poe
que traz uma referência de grande importância no que diz respeito à instância da letra
em Psicanálise. A letra se transforma num significante que vai se encadeando e
deslizando nas linhas da carta, com escrita, remetente, conteúdo, no intuito de ser
aberto e revelado. Com isso, ele quis falar da relação entre a letra que é falada e a letra
que é escrita, ou seja, falantes e escritores, respectivamente. Vemos que a carta se faz
presente, justamente pela sua ausência, pois, ela não pode ser encontrada por
ninguém. Essa é uma característica da letra, como ainda comenta a referida autora. Ou
seja, a letra não se faz presente no conteúdo, no significado, mas está ligada ao traço,
ao risco, ao que é apagado.
No texto freudiano: Uma nota sobre o bloco mágico” (1925-1924), o autor
comentou que a escrita é a materialização da memória, que fará com que o
pensamento seja preservado e por que não dizer, perpetuado, como aconteceu com
os contos de fadas e muitos mitos? – Foi a partir do registro dessa memória, ou seja, da
escrita, que o sujeito que escreve, inscreve um traço de sua memória, no papel. Esse
traço que fica permanente pode deixar de ter valor para quem o fez e ficará retido na
memória.
Além do papel, o homem foi criando vários outros artifícios para deixar
registrados esses traços mnésicos que são permanentes e, paradoxalmente, mutáveis.
A metáfora usada por Freud do bloco mágico ilustra bem esse paradoxo: na medida em
que se escreve na superfície de maneira aparentemente transitória, há uma outra
“inscrição” permanente embora sejam traços ou impressões muitas vezes “ilegíveis” à
lógica da consciência.
Esse traço mnésico caracterizado por Freud, através da analogia com o bloco
mágico, comprovam que existem algumas inscrições no inconsciente ou no pré-
consciente, que podem subsistir ou serem reativados, quando são investidos. Supõe-se
que o mesmo ocorre quanto ao lugar que os contos de fadas ocupam na memória da
humanidade e do indivíduo, ou seja, os contos veiculam elementos que são evocados
pela criança, no processo analítico. Esses contos são constituídos de elementos
49
primitivos, arcaicos, que remontam as fantasias inconscientes coletivas e individuais.
Desse modo, as crianças, ao entrarem em contato com esses contos, repetem, de
algum modo, todos os desejos e fantasias, inscritas e recalcadas no inconsciente, e
que, algumas vezes, retornam deformadas, através das histórias e dos seus
personagens.
Lacan (apud CHEMAMA; VANDERMERSCH, 2007), inspirado no conceito
freudiano de traço único e na linguística de Saussure – que diz que a língua se constitui
por elementos cujo valor está na diferença introduziu o conceito de traço unário que
seria o significante na sua forma mais elementar. Mas não sediscorrido aqui sobre
esse conceito. Freud utilizou o termo traço único (Einziger Zug), para explicar a
identificação do sujeito com o objeto perdido, na ocasião em que um investimento, que
estava sendo dirigido a esse objeto, é substituído por um outro investimento, uma outra
identificação, por sua vez, parcial e que conserva apenas um traço.
Caldas (2007) afirma que o estruturalismo lacaniano abordou a escrita e a fala no
homem como algo extremamente original. A autora sugere, portanto, que as inscrições
pré-históricas sejam marcadas por um traço distintivo e não apenas como escritas
imaginárias. Nesse tipo de escrita: ideográfica, como continua a autora, os desenhos,
as marcas, podem ser consideradas simples reproduções da imagem que os gerou.
Apesar de serem inspirados pelas imagens, não deixam de serem lidos e, assim,
evocarem a fala. Quando esse ideograma se insere na escrita silábica, acontece o
encontro do sujeito com o olhar e sua associação com a fala. Desse modo, a imagem
juntamente com o uso fonético é transformado em letras do alfabeto. A escrita silábica
surgirá no momento em que o registro fonemático estiver desenvolvido. A leitura,
entretanto, acontece a partir da união do olhar e a voz, e irá englobar uma identificação.
Essa identificação acontecerá através dos significantes, que vão emergindo dos
contos de fadas, através dos enredos que eles remontam para o sujeito, por meio de
seus personagens. Personagens que fazem com que sejam evocados, no sujeito, os
significantes derivados do significante primeiro, que inaugura o conflito psíquico,
possibilitando a esse sujeito, construir, no processo analítico, um discurso próprio a
partir dos contos e da identificação com estes. Os contos de fadas oferecem preciosos
significantes que podem emergir nos equívocos da fala singular.
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Freud (1908[1907]), em seu texto, “Escritores Criativos e Devaneios”, questiona
se o homem deveria, desde a infância, procurar o seu traço de atividade imaginativa.
Comenta que a criança ao brincar, atua como se fosse um escritor criativo, uma vez
que ela cria um mundo peculiar, põe elementos nele, modifica-os e leva tudo isso muito
a sério. O caráter de seriedade, para Freud (1908[1907]), não faz oposição aos jogos e
às brincadeiras das crianças. O que constituirá a antítese ao brincar será o real. Freud
(1908[1907]) comenta que, apesar de a criança, investir sua energia na brincadeira,
acrescenta-se aqui, nos contos de fadas, ela consegue distinguir o que é do mundo do
brinquedo, daquilo que é da realidade. Esse comentário de Freud se torna bastante
próximo quando se escuta, comumente, das crianças, ao brincarem: Eu era isso e tu
era aquilo, mas só de brincadeirinha.
Ao crescer, essa época de brincadeiras cessa, deixando transparecer que o
prazer causado por aquele brincar foi abdicado. Entretanto - continua Freud -, na
realidade, o homem nada renuncia. Em vez de brincar, ele passa a fantasiar. E as
forças que motivam essas fantasias, nos adultos, são os desejos insatisfeitos. De modo
que, a fantasia, torna-se a realização de um desejo. Melhor dizendo, é como se
estivesse reorganizando a realidade, por hora insatisfatória. As fantasias são
transmitidas por intermédio das histórias, que são atravessadas pelos desejos dos pais
e recebem a marca do traço único, e o transmite para o filho nos significantes
singulares, sociais e culturais. É assim que os pais, ao contarem histórias aos seus
filhos, histórias essas, que pertencem ao patrimônio cultural, podem veicular suas
insatisfações ou corrigi-las, naquilo que narram aos filhos.
Essas histórias fazem parte do tesouro popular sob diversas maneiras, como por
exemplo, nos mitos, nas lendas e nos contos de fadas. Freud (1908[1907]), nesse
mesmo texto pressupõe que essas narrativas “sejam vestígios distorcidos de fantasias
plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem” (p.
157).
De acordo com Azevedo (2007), Freud comentava que os seus casos clínicos
poderiam ser lidos como contos, o que para essa autora soou como que fosse pelo
estilo da escrita freudiana. No entanto, Azevedo (2007) constatou que tal comentário se
daria pela forte ligação que a Psicanálise tem com a literatura e, de forma mais
51
especial, a relação da clínica com a ficção. Freud, conforme comenta a autora, designa
um lugar de destaque à escrita como maneira de ensino ou de transmissão da
Psicanálise. E não qualquer tipo de escrita, mas em especial o gênero do conto. Na
realidade, pode-se constatar que a escrita literária e dramática sempre se mostrou mais
instigante e mais reveladora para Freud.
Píglia (2004 apud AZEVEDO, 2007), um crítico escritor argentino, assinala que
no conto, o que de mais importante nunca se conta. A história é sempre construída
com um mistério e algo de não-dito, sempre subentendido. A definição que é dada por
esse autor, a esse tipo de gênero literário, torna-o mais próximo da experiência
psicanalítica, pois, nesta, também existe uma história que se conta e, simultaneamente,
uma história que fica inaudita. Desse modo, como continua Azevedo (2007), um
ponto onde se cruza o conto, como narrativa fictícia, e a análise, que não de outra
forma, também lida com esse tipo de fala. Na Psicanálise é o que se chama de talking
cure, literalmente a cura pela fala, como foi nomeada por Anna O., paciente de Breuer.
O conto como gênero narrativo da ficção e a narrativa de um sujeito em análise -
que do mesmo modo conta uma ficção - tornam essas falas como algo que circula em
torno de uma falta, de algo que não pode ser dito, que está nas “entrelinhas” como diz a
autora. É isso que vai instaurar o sujeito da fala, um sujeito do discurso.
Chemama e Vandermersch (2007) comentam que Lacan introduz quatro
conceitos de discurso que faz elo com a estrutura de funcionamento de cada sujeito. De
acordo com Kaufmann (1996), em 1960, Lacan realizou uma exposição sobre esses
quatro discursos, oriundos das fontes freudianas.
Kaufmann (1996) comenta que, a partir de algumas especulações, feitas por
Lacan, em Freud, dentre elas, no texto: “A psicopatologia da vida cotidiana” (1901),
acrescenta que, o conhecimento sombrio, pertencente ao inconsciente, provoca a
construção de uma realidade “supra-sensível” que a ciência transformou numa
“psicologia do inconsciente”. A construção das formas de discurso se opera pela sua
diversificação, no registro da realidade, que origem ao simbólico, e, por sua vez,
estrutura a metáfora. O simbólico, representado pelos significantes, obedece as suas
leis: um significante representa o sujeito para um outro significante. O discurso seria,
portanto, o lugar permanente, se comparado aos determinantes que estruturam a fala.
52
Na medida em que, ocupam um lugar na metáfora, o significado não é representado por
um significante, mas se remete a um outro significante. Desse modo, a verdade,
continua o autor, não é representada, de imediato, por quem profere o discurso, mas
também pelo seu destinatário. Toda essa estrutura do discurso terá correspondência
com o estatuto da significação no que diz respeito à diacronia da fala, ou seja, no
registro do discurso. O discurso tem a função de distribuir os elementos da cadeia
significante. De acordo com Kaufmann (1996), a estrutura permanente de todo discurso
se constitui pela verdade, pelo agente, pelo outro e pela produção, que numa visão
esquemática, resta inscrever-se o corte que vai banir a intermediação entre a verdade e
sua representação, e realiza a mediação entre “o lugar de encaminhamento da
mensagem social e sua produção” (KAUFMANN, 1996, p. 132).
Como afirma Chemama e Vandermersch (2007), o discurso se refere ao modo
de comunicação linguageira que acontece nas relações do sujeito com o objeto e com
os significantes, que o determinam e regulam suas maneiras de estabelecerem seus
laços sociais, uma vez que antes do seu nascimento, o sujeito já está imerso no
discurso dos pais.
Segundo Nóbrega (2002), o discurso é uma repetição que não tem fim, para
nada dizer, mas que atravessa o sujeito sobre uma outra linha e vai produzindo um
sentido. Lacan (apud LEITE, 1994), nos ensina que o inconsciente apresenta todas as
leis da linguagem e que o seu limite é o conceito de falta. Falta essa que é o elemento
central que gira em torno do inconsciente e da teoria psicanalítica.
Quanto à fala, Kaufmann (1996) comenta que esse ato traz consigo a presunção
de que o sujeito irá erguer a voz diante de um Outro e dele obter resposta. A fala,
portanto, designará um espaço de silêncio em que o locutor fica a esperar uma palavra
que corresponda ao seu desejo. Desse modo, a fala, como diz Kaufmann (1996), passa
a ser compreendia como algo que se remete à castração, tem como estrutura, a
linguagem, e possui, no discurso, algo contemporâneo da sessão. Constitui-se de um
contar e de um enunciar que correspondem, reciprocamente, ao lembrar e à produção
de sentido. Essa noção de fala, continua Kaufmann (1996), marca para Freud, a
fundação da própria psicanálise, onde o analista, no seu lugar de escuta, possibilita ao
sujeito a evocação de um saber que não se sabe. “O discurso pressupõe o analista
53
como presença, a fala pressupõe sua escuta como presença” (p. 189). Espera-se que
surja, a partir de uma fala, uma interpretação. A enunciação, possibilita um dizer que se
remete à verdade. A fala se refere a uma verdade singular e traduz a impossibilidade
instaurada pelo Nome-do-Pai, que se constitui como metáfora paterna e se sustenta
pela identificação com o traço unário.
Saussure (1997) distingue a língua da fala, afirmando que, a primeira se constitui
como um sistema de signos, e a segunda, possui relações internas, na qual os seus
elementos são interdependentes, ou seja, a realidade de um elemento está relacionada
aos outros elementos do conjunto. A língua possui um status social e a fala um status
individual, e por assim ser, fora da lingüística saussuriana.
Ao se referir ao circuito da fala Saussure (1997) menciona que os termos que
estão implicados no signo lingüístico são psíquicos, e se inter-relacionam no aparelho
cerebral por meio de associações. O signo, portanto, não une uma palavra a uma coisa,
mas um conceito a uma imagem acústica. Essa imagem acústica não se define pelo
som material, mas pela sua representação psíquica nos nossos sentidos. Segundo
Saussure (1997): “a palavra falada é a realização da imagem interior no discurso” (p.
80).
Por outro lado, Saussure (1997) reconhece que na ambigüidade presente nas
palavras poderia haver um impasse se o signo fosse a união de um conceito a uma
imagem acústica. Sendo assim, o signo passou a ser designado pela união entre o
significado (conceito) e o significante (imagem acústica). Saussure (1997, p. 81) diz:
“Esses dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os separa, quer entre
si, quer do total que fazem parte”. O signo lingüístico, portanto, possui duas
características fundamentais que se tornaram seus princípios: A arbitrariedade e a
linearidade.
A palavra arbitrário, comenta Saussure (1997), necessita ser melhor observada,
pois o significado não pode ficar à deriva de uma livre escolha do que fala. No entanto,
o que Saussure quis demonstrar com a característica arbitrária do signo, foi que o
significante é imotivado em relação ao significado, e afirma que, entre eles, não existe
nenhum laço natural na realidade.
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O princípio da linearidade do signo, como assinala Saussure (1997), considera o
significante como constituinte de uma natureza auditiva e se desenvolve unicamente no
tempo, ou seja, representa uma extensão mensurável, numa dimensão que seria
uma linha. Esse princípio foi considerado bastante simples, porém fundamental e com
conseqüências imensuráveis, pois todo mecanismo da língua depende dele. Esse
caráter da linearidade exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos de forma
concomitante. Esses elementos se alinham, um a um, na cadeia da fala. Desse modo, a
língua passa a ser considerada como um sistema de valores, no qual, em seu
funcionamento, estão presentes as idéias e os sons.
Segundo Saussure (1997) a abstração que se faz, utilizando como meio de
expressão, as palavras, impressão de que o pensamento seria uma massa amorfa e
indistinta. Inclusive os filósofos e lingüistas sempre concordaram que sem o recurso do
signo, seria impossível realizar a distinção de suas idéias. A língua, como comenta
Saussure (1997), teria, então, subdivisões simultâneas que agiriam no plano de idéias
confusas e um plano que corresponde ao fluxo dos sons. Diz Saussure (1997, p. 131):
O papel característico da ngua frente ao pensamento não é criar um
meio fônico material para a expressão das idéias, mas servir de
intermediário entre o pensamento e o som, em condições tais que uma
união conduza necessariamente a delimitações recíprocas de unidades.
O pensamento, caótico por natureza, é forçado a precisar-se ao
decompor. Não há, pois, nem materialização de pensamento, nem
espiritualização de sons; trata-se, antes, do fato, de certo modo
misterioso, de o “pensamento-som” implicar divisões e de a língua
elaborar suas unidades constituindo-se entre duas massas amorfas.
Imaginemos o ar em contato com uma capa de água: se muda a
pressão atmosférica, a superfície da água se decompõe numa série de
divisões, vale dizer, de vagas; são estas ondulações que darão uma
idéia de união e, por assim dizer, de acoplamento do pensamento com a
matéria fônica.
A língua tomaria a palavra como artifício de articulação, onde cada termo é um
membro. Desse modo, o signo seria a articulação entre o som e o pensamento, que se
constitui na divisão de duas massas amorfas.
A palavra possui um valor, como, por exemplo, pode representar uma idéia. E
nesse fato, os aspectos do valor lingüístico, adquire sua importância. De acordo com
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Saussure (1997), no discurso, um encadeamento que se baseia no caráter linear e
que se manifesta pelo sintagma. No sintagma, um termo adquire seu valor, na medida
em que, vai se opondo ao seu antecessor, ou ao que se segue, e até a ambos. Fora do
discurso, as palavras que são ambíguas se associam na memória e formam as relações
as mais diversas. Isso mostra a limitação do caráter arbitrário do signo, que, uma
parte deste, pode ser imotivada, e outra, relativamente motivada.
Essa construção teórica de Saussure terá uma grande influência na psicanálise
lacaniana. Segundo Lemaire (1989), o pensamento de Lacan foi influenciado, entre
outras ciências, como a antropologia, a filosofia, a matemática etc, também pela
lingüística, que contribui bastante, no que se refere ao inconsciente e suas formações.
Inclusive, no seu aforismo que diz que o inconsciente é estruturado como uma
linguagem.
No congresso realizado em Roma (1953), como assinala Lemaire (1989), Lacan
afirma que o significante seria o conjunto de materiais da linguagem que se ligam por
uma estrutura. Para Lacan (apud LEMAIRE, 1989), o significante é o suporte material
do discurso e não se refere nem ao sinal, nem ao signo e nem ao significado da coisa.
O significante age de forma separada de sua significação e à revelia do sujeito.
Como continua Lemaire (1989), Lacan enfoca os termos significante e
significado, em relação, respectivamente, à língua e à fala. Esses termos o duas
redes de relações que não se recobrem.
Inspirado nos termos de Jakobson: seleção e combinação. O primeiro, seleção,
que se refere à substituição de um termo por outro e o segundo, combinação, remete-
se às associações que se pode fazer de uma palavra. Na seleção, a substituição está
ligada pela similaridade ou oposição; na combinação mantém laços de contigüidade, de
concatenação. Esses termos o representados, respectivamente, por metáfora e
metonímia. Esses processos caracterizam o funcionamento do inconsciente.
Lacan (apud LEMAIRE, 1989), nos conceitos de metáfora e metonímia,
considera bastante a noção de valor, e insiste no fato de que, o significante, o
significado e o signo funcionam, ao mesmo tempo, inter-relacionados. Lacan, citado por
essa autora, fica fascinado pelo conceito de ponto de estofo do significante, no que diz
respeito aos desvios simbólicos do sentido. O significante e o significado são duas
56
ordens distintas, separadas por uma barra que institui a distância em relação à
significação. No ponto de estofo, como pontua Lemaire (1989), se evidencia que a
verdade se furta à linguagem, ou seja, em direção à verdade sempre ocorre uma falha,
um impossível. Para Lacan, de acordo com Lemaire (1989), existe uma autonomia da
cadeia significante em relação ao significado e sobre este último, acontece o
deslizamento dos significantes, que chegando ao ponto de estofo encontra seu limite na
impossibilidade de ligação com o significado. Essa junção, segundo Lacan, é
essencialmente mítica. Segundo Lemaire (1989), os mecanismos responsáveis pela
supremacia do significante em relação ao significado são as metáforas e as
metonímias, que por serem mecanismos mediados pela linguagem, explicam a
alienação de um pensamento ou de um significado.
Para Lacan (apud NÓBREGA, 2002), ainda, a metonímia é quem vai tecendo a
cadeia dos significantes por meio da ligação de uma palavra a outra. na metáfora
acontece a substituição de uma palavra que não emerge entre dois significantes,
igualmente atualizados, mas entre dois significantes, de modo que um substitui o outro.
A metáfora é, portanto, como diz Lacan, citado por Nóbrega (2002 p. 232), “uma
estrutura de superposição de significantes”. Metáfora e metonímia são conceitos que
correspondem aos conceitos freudianos de deslocamento e condensação
respectivamente. Esses elementos, estudados por Freud, na “Interpretação dos
Sonhos” (1900), fundamentarão a narrativa peculiar em Psicanálise, chamada de livre-
associação, que será comentada no próximo item deste capítulo.
Os contos de fadas também se constituem de metáforas e metonímias, que
aparecem entre os significantes emergidos nos seus enredos. E, muitas vezes, ao
serem contados pelas crianças, no processo analítico, aparecem com vários equívocos,
constituindo o lugar de onde o sujeito aparece. O conto passa a veicular esse lugar de
endereçamento que captura o sujeito ao fazer falar a sua fantasia inconsciente. Essa
noção de endereçamento será mais bem esclarecido no próximo capítulo. Ao se contar
uma história, os significantes que nela são emergidos podem tocar em algo da criança.
Algo com que ela se identifique. Essa história, então, pode se tornar a literatura
individual daquela criança, através do processo de repetição, na clínica, onde é
possibilitado a ela construir o seu mito individual.
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A criança vai dando um sentido ao conto, as vezes, acrescentando elementos e
falas, que representam metáforas do seu sintoma. Nos escritos I (1998), Lacan afirma
que o inconsciente é marcado por um hiato que é ocupado por uma mentira. Diz, ainda,
que a verdade pode ser resgatada de onde ela está escrita em algum lugar. Citou
como exemplo, as tradições, as lendas, que, sob formas heroicizadas, veiculam o
inconsciente.
Diante disso, pressupõe-se que no trabalho clínico, traduz-se para a criança que
aqueles equívocos, que a palavra propicia, ao serem revelados, na relação
transferencial, e ao se mergulhar neles, a história pode ser transformada, por eles
próprios. E que eles podem transformar as suas histórias, através da fala. Esta fala
vai se emergir por meio do traço único, com o qual ele se identifica, fazendo evocar os
traços mnésicos que vão aparecendo pela fala, no processo de repetição. A repetição
não como uma cópia intica do conflito, mas um repetir diferente. Esse processo vai
possível ao sujeito, mergulhar no seu sintoma, dando-lhe uma outra configuração,
aceitando a falta (castração) que o constitui, traço único de todo sujeito. É a partir dessa
falta, que irá fazer-se emergir o sujeito do desejo. Como disse Corrêa (2007), em
seminário no CEF (Centro de Estudos Freudianos), a inserção da palavra tem como
conseqüência, a presença de uma ausência. A ausência que a palavra presentifica é a
coisa como morta, como escreve Kondera (1998), e é justamente, a característica da
linguagem de produzir equívocos, que daum sentido à coisa que estava morta e que
foi recoberta pela palavra. As coisas recobertas pela palavra, e fundadas por ela,
emergem no momento em que a criança vai contar a sua história na clínica. Elas
retornam, muitas vezes, deformadas, com as vestimentas de lobo mau, de bruxas, de
fadas e outros personagens que estão nos contos de fadas, como será citado no
próximo capítulo.
Desse modo é dado um destino à pulsão. A literatura, como continua Kondera,
no mesmo texto, irá expressar o que está recalcado no inconsciente da criança. A
palavra vai abrir um novo campo de transformação, pois, é ela, que vai construir a
narrativa. E, a partir desse discurso, surgirão os equívocos, que causarão na criança
um estranhamento, que, paradoxalmente, lhe é familiar, como será visto no próximo
item.
58
2.2 A narrativa na Literatura e na Psicanálise
Narrativa literalmente em dicionário de Houaiss (2005) significa exposição de um
ou vários acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio
de palavras ou de imagens. Em sua origem etimológica está ligada a gnoma que vem
do grego gnome que designa faculdade de conhecer, julgamento, reflexão.
Em crítica literária a narração é a arte de narrar, como afirma Massaud (2004),
arte de expor os fatos. Muitas vezes é utilizada como sinônimo de fábula, história. O
vocábulo narrativa, designa um recurso expressivo da poesia épica tradicional ou da
ficção, lado a lado com a descrição, com o diálogo. Consiste no relato de
acontecimentos ou fatos, envolvendo ação, movimento e o transcorrer do tempo. Para
Massaud (2004), o autor da narrativa não é quem a conta, mas também aquele que
a ouve.
De acordo com Brockmeier e Harré (2003), um grande número de formas
narrativas. Entretanto, entre essas existem várias características que as unem, dentre
elas é que a narrativa é um conjunto formado por estruturas linguísticas e psicológicas
que foram sendo transmitidas ao longo da história, pelas mais diversas culturas, que
iam se delimitando de acordo com o que cada sujeito podia dominar, bem como,
através das técnicas sócio-comunicativas e habilidades relacionadas à linguística, como
denominou Bruner (1991 apud BROCKMEIER; HARRÉ, 2003). Ao se comunicar
alguma situação da vida, um sonho, uma angústia, etc, estar-se-ia assumindo uma
forma narrativa. São versões da realidade de um sujeito, que se instrumentalizam das
formas linguísticas, como é o caso dos gêneros narrativos, das estruturas dos enredos
e modalidades retóricas. Desse modo, quem conta e quem ouve a história tem uma
relação com o cenário cultural dessas narrativas.
Brockmeier e Harré (2003) referem que o uso do termo: narrativa veio a emergir,
de forma mais acirrada, apenas recentemente. A lingüística organizou os diferentes
discursos, no intuito de investigá-los de uma forma mais pontual. Essas investigações
acontecem, desde os discursos que focalizam aspectos fonológicos, a os que
59
investigam suas sintaxes, semânticas, estéticas etc. As narrativas, como continuam os
autores, dividem-se em diversos gêneros que vão desde os contos populares, fábulas,
mitos, passando pelos contos de fadas, até as narrativas de histórias corriqueiras do dia
a dia das pessoas. Trata-se, portanto, de um instrumento que as pessoas utilizam para
darem sentido às suas experiências: seus conflitos, suas tensões, seus medos, enfim.
Dentro do vocabulário narratológico, a narrativa designa a prática de comparar, relatar,
agrupar, organizar experiências, dentre outras. É de certa forma onipresente, uma vez
que mesmo antes de sua concepção, ser humano está embutido nos repertórios da da
cultura, ou seja, da narrativa. A narrativa ainda é bastante difícil de ser definida
(BROCKMEIER; HARRÉ, 2003).
De acordo com Benjamim (1992), os narradores buscam a substância de suas
histórias nas experiências que são passadas de boca em boca, transmitidas pela
literatura oral, no dia a dia, e se caracterizam pelo seu anonimato. Os narradores se
enraízam nas experiências populares, principalmente as extraídas dos trabalhadores
manuais, que abrange o camponês, o marítimo e o urbano, como diz o autor: “uma
forma artesanal da comunicação” (p. 37). Aquele que narra, segundo Benjamim (1992)
sempre é alguém que sabe dar conselhos a quem lhe ouve, o que parece ser na
sociedade vigente, um hábito bastante antigo, já que se tem observado que essa
comunicação está sendo cada vez menos utilizada. De acordo com esse autor, a
subutilização da comunicação oral acontece pelo forte aparecimento de outros meios
de comunicação. Não obstante, considera-se aqui, nesta pesquisa, que a atividade de
narrar histórias é algo que ainda está bastante presente, e que, é parte da
constituição humana. Esses narradores, continua o autor, buscam suas histórias nas
imagens das experiências coletivas, tornando-as cada vez mais individuais. A narrativa
imprime marcas na vida do narrador para, posteriormente, retirar dele, outras narrativas.
É por tal motivo que nas narrativas se encontram as impressões de quem narra. Para
esse autor os contos são os primeiros conselheiros das crianças. Neste sentido,
Benjamim (1992, p. 49-50) diz que:
O conto, que ainda é hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque o foi
outrora da humanidade, vive ainda secretamente na narrativa. O primeiro
verdadeiro narrador é e continua a ser o do conto. Quando era difícil obter um
conselho, era o conto que o sabia dar; e quando esse conselho era premente,
60
era no conto que estava a ajuda mais próxima. Esta premência era a premência
do mito. O conto dá-nos notícia das cerimônia mais antigas que a humanidade
encontrou para libertar-se do pesadelo que o mito colocou no seu peito. Na
personagem do tolo mostra-nos como a humanidade “se fez tola” para fazer
face ao mito; na personagem do irmão mais novo, mostra-nos como as suas
oportunidades aumentam com o distanciamento dos tempos míticos primitivos;
na personagem daquele que saiu de casa para conhecer o medo, mostra-nos
que as coisas das quais temos medo podem ser compreendidas; na
personagem do inteligente, mostra-nos que as perguntas que os mitos nos
coloca são simples, como é o caso da pergunta da esfinge; na personagem dos
animais que vêm em auxílio da criança da história, mostra-nos que a natureza,
embora sabendo-se cativa do mito, se prefere associar ao Homem. O conto
ensinou outrora à humanidade e ensina ainda hoje às crianças que o mais
aconselhável é enfrentar o poder do mundo mítico com astúcia e arrogância
(assim o conto dialectiza a coragem, em dois pólos, a astúcia e a arrogância). A
magia libertadora de que o conto dispõe não põe em cena a natureza de uma
forma mítica, mas é a indicação da sua cumplicidade com o homem libertado. O
homem adulto se apercebe dessa cumplicidade de vez em quando, isto é,
quando está feliz; para a criança surge-lhe pela primeira vez no conto, e fá-la
sentir-se feliz.
A narrativa, sendo vista não apenas como uma estrutura de discurso, que possui,
começo, meio e fim, mas como um lugar onde possa haver equívocos, assume uma
posição bastante relevante na clínica, uma vez que o sujeito narra os contos, as ficções
misturando a elas, elementos de suas vidas, tecendo sua cadeia de significantes,
dando à história que está sendo narrada, o seu próprio sentido.
A prática clínica, que tem como fundamento, a teoria psicanalítica, irá propiciar
ao homem, uma escuta que enfatiza o discurso inconsciente. Essa escuta do discurso
inconsciente foi ainda pouco estudada pelos psicanalistas, no que diz respeito ao fato
de considerá-lo uma narrativa ou não. Em Psicanálise, esse discurso privilegia e
emergência do sujeito do inconsciente, conforme comenta Carreira (2002), bem como,
materializa uma demanda desse sujeito, que se endereça ao analista. Ainda segundo a
autora, esse aforismo utilizado por Lacan de que “a oferta cria a demanda”, faz com que
se considere a narrativa como uma resposta que o sujeito dá a quem o escuta, através
da transferência. O sujeito narra, muitas vezes, o passado que se encontra presente
nele, sob várias vestimentas.
A narrativa junto à escuta do analista, proporcionará, ao indivíduo, que ele fale
livremente, de forma que ele acaba narrando algo da ordem do inusitado, e que vai lhe
causar estranhamento. Essa narrativa da qual se está falando e que vai ser descrita de
maneira mais detalhada é o método psicanalítico da livre associação, considerado aqui,
61
neste trabalho, como fazendo parte do âmbito das narrativas. Freud não a chamou
assim, literalmente, mas, pelas definições que foram obtidas de narrativa, a partir de
Massaud (2004), Brockmeier e Harré (2003) e Benjamim (1992), considera-se, neste
trabalho, que esse método também o seja.
A livre associação, de acordo com Laplanche e Pontalis (2000), define-se por ser
um método, no qual o sujeito vai falando indiscriminadamente tudo o que lhe vem à
cabeça, sem qualquer tipo de restrição. Pode ser exprimido a partir de uma palavra, de
um sonho ou outra representação qualquer. Sua descoberta, ainda segundo esses
autores, aconteceu entre os anos de 1892 e 1898, quando Freud iniciou suas
investigações acerca do inconsciente. Nessas investigações, lançava mão da sugestão
e da concentração mental do paciente, na tentativa de encontrar o elemento patogênico
representante de determinado sintoma, que logo desapareceria através da expressão
espontânea. Laplanche e Pontalis (2000) afirmam que o processo da livre associação
foi utilizado por Freud em sua auto-análise, bem como, na análise dos seus próprios
sonhos.
Chemama e Vandermersch (2007) comentam que a associação livre foi indicada
a Freud por uma de suas pacientes, que, ao ser interrompida por ele, inúmeras vezes,
pediu-lhe que a deixasse falar, livremente, o que vinha em seus pensamentos. Exprimir
suas idéias, imagens, emoções, etc, sem restrição alguma, por mais impertinente que
esse discurso lhe parecesse. E igual ao que foi exposto acima, essas associações,
podem emergir a partir de palavras, sonhos, lembranças e tudo o que permite a
expressão dos materiais inconscientes. Ao narrar seus conteúdos inconscientes,
mesmo sendo o que lhe vem à cabeça, mesmo ao contar um sonho e mesmo que haja
na psicanálise, alguns cortes, que são dados no discurso, o sujeito sempre conta seu
sofrimento através de uma retórica, ainda que advenha do material inconsciente. E, é
na construção dessa retórica, dessa narrativa, que vão aparecer os equívocos,
elemento crucial na psicanálise.
As crianças, por exemplo, vão narrando suas fantasias articuladas aos contos de
fadas, misturando-se com eles e até se apropriando de seus personagens, a partir dos
quais veiculam sua própria história. A literatura, por ter esse lado ficcional que fascina,
fisga o sujeito, de maneira tal, que tem como efeito a emergência dos significantes que
62
tecem, através dela, os seus sintomas. Emerge-se, então, aquilo que o sujeito jamais
pensaria que poderia ser dito.
Em “O Estranho”, Freud (1919) reporta-se ao elemento assustador que provoca
medo, mas que se remete ao que é familiar, conhecido. A palavra alemã, Unheimlich
(estranho) é o oposto da palavra Heimlich (familiar). Heimlich é uma palavra ambígua.
Pertence a um conjunto de idéias que são, no alemão, muito diferentes, ou seja, tem
várias significações, muitas vezes opostas. De acordo com Schelling, citado em Freud
nesse texto, Unheimlich é o que deveria ter permanecido obscuro, secreto, mas veio à
luz.
Segundo Freud (1919), Jentsch propõe que ao se contar uma história, usa-se
como principal recurso, efeitos causadores de estranheza, fazendo com que seu
espectador daquela história fique na incerteza de que a figura tratada na história seja
um humano ou um autômato. Imagine a criança que não fica de espectador na
história, mas se apropria dos personagens ou, muitas vezes, torna-se também um
personagem daquela história. O conto de fada passa muito essa incerteza na criança,
embora ela acredite na história que ouve.
Freud (1919), no “Estranho”, enfoca o trabalho no conto fantástico: “O Homem de
Areia” de Hoffmann que narra a história de um homem que arrancava os olhos das
crianças e, em seguida, atirava-lhe areia. O conto é narrado a um menino por duas
personagens: sua mãe e sua babá. Cada uma delas dava uma versão diferente ao
evento: a mãe contava ao filho uma história de ficção, e a babá, por sua vez, narrava-
lhe uma história, atribuindo-lhe um caráter de veracidade, e além do mais, o
personagem tinha uma função de controle sobre a conduta das crianças atacava
quando havia, porventura, alguma desobediência, algum comportamento rebelde.
Freud ao tecer comentários sobre esse conto reitera a idéia do poder mítico do conto na
criança que no caso especifico do “Homem de Areia”, seria um amigo da família
deslocado na figura do homem-monstro, idéia que persistiu na criança até a sua
juventude.
Pode-se compreender, no texto freudiano, a relação identificatória que a criança
estabelece com a narrativa. Ela se envolve com o conto de tal forma, que as
características da história narrada, com os sentimentos que pertencem ao personagem,
63
começam a fazer parte de sua própria história. O conto propicia a insurgência, como se
vem relatando nesta pesquisa, de vários significantes do sujeito, e assim, vai
propiciando toda a rede de construção mítica individual. No caso da criança do conto
de Hoffmann, citado por Freud (1919), desenvolveu-se um temor irracional de perder os
olhos. Pode-se relacionar esse temor, referente à perda dos olhos, ao temor à
castração, e está bem elucidado no mito de Édipo.
Ainda sobre esse texto freudiano, pode-se elucidar a ambigüidade presente no
conto, de sentimentos de estranheza e de familiaridade, gerados no personagem
temido. Na realidade, essa ambigüidade é bem destacada nos paradoxos, como medo
e desejo, ou, amor e ódio. Segundo Freud (1919), esses conflitos que são atribuídos às
causas infantis, trata-se de um fenômeno, denominado - o “duplo” - que se apresenta
de diversas formas, e em todos os graus do desenvolvimento. O medo que a criança
sente ao ouvir o conto de fada pode estar remetido ao que foi recalcado e retornou com
a vestimenta de lobo, de bruxa, de bambi, de chapeuzinho vermelho, etc. Do mesmo
modo, essa mesma criança, que se amedronta ou se comove com as histórias, solicita
que lhes seja contada, repetidamente, muitas vezes, de forma idêntica, sem cortar ou
atenuar nenhum fragmento. Como se aquela narrativa lhe causasse um medo
prazeroso.
Freud, nesse mesmo texto, menciona que os contos de fadas fazem com que a
criança possua uma onipotência de pensamento e desejo. Para ele é inimaginável que
uma história de fada possa conter algo em si de estranho para a criança. Diz Freud
(1919, p. 306-7):
Ficamos sabendo que há estranheza no mais alto grau quando um
objeto inanimado um quadro ou uma boneca adquire vida; não
obstante, nas histórias de Hans Christian Andersen, os utensílios
domésticos, a mobília e os soldados de chumbo são vivos e, ainda
assim, nada poderia estar mais longe do estranho. E dificilmente
consideraríamos estranho o fato de que a bela estátua de Pigmalião
adquire vida.
Os temas da morte e reanimação dos mortos são freqüentes nos contos de
fadas. Uma criança no consultório dizia que a Branca de Neve morria, mas ficava viva
novamente quando o príncipe viesse salvá-la, dando-lhe um beijo e saiam num belo
64
cavalo. A criança dizia ainda; “E sabe o que é que aconteceu? Eles saíram correndo no
cavalo e foram felizes para sempre. Sabia que meu pai tem um monte de cavalos?”
(sic!) Indaguei-lhe sobre o seu gosto por cavalos. Afirmou que gostava, e mostrou,
montada num cavalinho de madeira que tem na sala, como era que andava à cavalo. A
criança falava como se aquilo fosse algo corriqueiro, e assim, poderia acontecer
normalmente, entretanto, aquilo lhe causava uma angústia, estava sendo deslocado
para o conto de fada, na transferência, que como será visto, reatualiza os conflitos do
sujeito. Compreende-se que o estranho, como diz Freud, nesse texto, é o retorno do
recalcado, e por isso, causa angústia. Esse tema, portanto, não será aprofundado nesta
pesquisa.
O estranho pode acontecer de forma mais impetuosa, posteriormente, quando
na idade adulta ou mesmo na juventude, ao ler determinados contos, venham as
recordações dos sentimentos que lhe eram despertados ao ouvirem determinadas
histórias e lembrar os personagens com quem se identificava. Observa-se isso com
freqüência quando os pais narram historias dos tempos de criança para os filhos
adultos.
Freud comenta, nesse mesmo texto que, além do tema da morte existem outros
elementos que causam uma sensação de estranheza, como os elementos que se
remetem à sexualidade, etc. Freud (1919) afirma que esse estranho advém do que lhe
é familiar, mas que foi recalcado. O que desperta na criança seja, além desse paradoxo
entre o familiar e estranho, é uma angústia pelo retorno do recalcado. Sobre o estranho
Freud (1919, p. 310) discorre:
O estranho, tal como é visto na literatura, em histórias e criações
fictícias, merece na verdade uma exposição em separado. Acima de
tudo, é um ramo muito mais fértil do que o estranho na vida real, pois
contém a totalidade deste último e algo mais além disso, algo que não
pode ser encontrado na vida real. O contraste entre o que foi reprimido
e o que foi superado não pode ser transposto para o estranho em ficção
sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para
seu feito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste de
realidade. O resultado algo paradoxal é que em primeiro lugar, muito
daquilo que não é estranho em ficção se-lo-ia se acontecesse na vida
real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar
efeitos estranhos na ficção, do que na vida real.
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A imaginação que tem o escritor, de representar o seu mundo, como sugere
Freud (1919), coincide com as representações que nos são familiares. A realidade e o
“sistema animista” de crenças são manifestados. Os desejos realizados, os
pensamentos onipotentes, os poderes secretos, etc, que são comuns nos contos de
fadas, não exercem uma representação estranha, pois eles podem despertar a
evocação dos conflitos, que foram superados ou não, entretanto, são possíveis, por
meio dos postulados dos contos de fadas.
A criatividade do escritor pode construir um cenário menos imaginativo do que o
dos contos de fadas, uma vez que irá reduzir o conteúdo imaginativo, como no
cenário poético, onde as figuras perdem a sua estranheza. Como exemplo Freud (1919)
cita: As almas de Dante no Inferno, as aparições em Hamlet e outros que podem ser
obscuros, mas não são mais estranhos que as histórias dos deuses de Homero, por
exemplo.
Os elementos dos contos de fadas consubstanciam as fantasias, as ansiedades
infantis, entre outros. Elementos esses que não foram superados pela maioria dos
homens e que, por assim ser, permeiam as fantasias trazidas pela criança na clínica,
como se verá no próximo capítulo.
66
3 CONTOS DE FADAS E ELEMENTOS DA CLÍNICA COM CRIANÇAS
3.1 A narrativa na clínica com crianças: a repetição do conto mitificado
Como se pode observar, foram expostos neste trabalho, desde o início,
elementos que se fazem presentes na clínica psicanalítica de uma maneira geral. Essa
inclusão paulatina, justifica-se pelo fato de alguns conceitos psicanalíticos serem muito
próximos dos conceitos trabalhados até então por exemplo, mito, narrativa, escritura,
palavra, fala etc supõe-se que os temas enfatizados nesta pesquisa, em sua maioria,
perfilam o que se chama de espaço clínico, no que abrange, tanto a psicanálise com
adultos, como a psicanálise com crianças. Esses temas que permeiam o imaginário
popular fazem parte, como diz Freud, citado anteriormente (Capítulo II), dos “sonhos
seculares da humanidade jovem”. E, é por estarem enraizados na história da
humanidade, que esses elementos estão tão presentes na clínica com crianças, objeto
de estudo principal desta nossa pesquisa.
Zornig (2000) afirma que, ao se falar em clínica psicanalítica com crianças,
automaticamente, surge um paradoxo, pertinente nessa clínica, pelo fato de serem
postas demandas, que podem se sobrepor. Muitas dessas demandas não partem da
criança, mas dos pais. Estes são os que primeiro chegam aos consultórios, e com eles
são combinados o valor da sessão, horários, enfim. São eles quem contam a história do
filho, explanando seus problemas. A criança chega imbuída das demandas de seus
pais. Portanto, como propõe Zornig (2000), as questões que envolvem a criança, na
análise, estão relacionadas ao lugar em que ocupam no desejo e na fala desses pais.
Desse modo, faz-se necessária, a escuta da demanda dos pais e o acolhimento da
transferência com os mesmos, para que o processo de análise aconteça. A criança
depende dos pais, que, por sua vez, apresentam uma demanda narcísica relacionada
ao filho, o que apontaria para um lugar de idealização que é ocupado pela criança, por
designação dos pais. Desde o seu nascimento, a criança é posta nesse lugar de ideal.
Inicialmente ela se identifica com esse lugar, que, para sobreviver, ela necessita que
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se tenha uma demanda externa, em relação a ela, para a realização dos cuidados
básicos que lhes são necessários.
No texto “Projeto para uma psicologia científica”, Freud (1985 apud ZORNIG,
2000), introduz a noção do desamparo primordial do ser humano, que designa à criança
esse lugar daquele que necessita de uma ajuda externa para que possa sobreviver.
Essa ajuda exterior é dada pelo outro que o constitui e o reconhece como objeto de
cuidados (FREUD, 1985 apud ZORNIG, 2000), afirma que durante a primeira
experiência de satisfação, a criança necessita desse outro. Posteriormente, essa
necessidade de satisfação, deixa de ser algo concernente apenas a uma necessidade,
como por exemplo, alimentar-se, mas passa a surgir algo que vai além do puramente
necessário. Lacan (1964, apud ZORNIG, 2000), retoma essa teoria freudiana e afirma
que a experiência primeira de satisfação chamada por Freud, que acontece desde o
início da vida, não é apenas uma demanda de satisfação puramente de uma
necessidade, mas também é uma demanda de amor.
Ao postular a teoria da sedução, na etiologia dos sintomas histéricos, (FREUD
apud ZORNIG, 2000), reconhece que o desejo dos pais ocupa um lugar de grande
relevância na constituição do sujeito, mesmo que este reconhecimento ainda venha
confundido com as “produções fantasmáticas das pacientes histéricas”. Essa sedução,
mesmo que não tenha ocorrido “na realidade”, estaria funcionando como um trauma na
criança, como está demonstrado numa carta à Fliess. Freud (1897), em Zornig (2000),
delega ao narcisismo parental, um lugar fundamental, demonstrando que o amor dos
pais seria um retorno e uma reprodução do seu próprio narcisismo. Envolvendo-o em
suas próprias aspirações, os pais colocam o filho no lugar de “sua majestade o bebê”,
como diz Freud (apud ZORNIG, 2000), aquele que irá realizar todos os sonhos e
compensar o que o pôde ser vivenciado por eles, realizando seus desejos (FREUD,
1914)
Segundo Zornig (2000), muitos autores desenvolveram estudos sobre as
relações entre o desejo materno, a criança e a “lei encarnada pelo pai”. Ferenczi (apud
ZORNIG, 2000) referenciou que a diferença entre o mundo adulto e o mundo infantil
está na introdução da sexualidade adulta no mundo infantil, considerada por ele, por
Freud e por tantos outros, como sendo traumática para a criança. Esse infantil, como
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refere Ferenczi (1933 apud ZORNIG, 2000), torna-se a questão fundamental do sujeito
em processo de análise, pelo fato de desvelar a dimensão traumática da sedução, que
ao incorrer sobre a criança, materializa-se, como desamparo e como um fragmento
psíquico. Esse infantil irá demarcar todo o processo psicanalítico, seja ele como
neurose infantil ou compulsão à repetição que acontecerá na transferência.
Por outro lado, ainda segundo Zornig (2000), não se pode deixar de perceber
que a clínica com crianças possui as suas singularidades. Uma delas foi citada
acima, que é a questão de que a criança é apresentada ao psicoterapeuta pelos pais;
outra, que ainda está ligada à primeira, refere-se ao fato de que esse sujeito é portador
de uma história que lhe foi atribuída pelos pais, e que, inicialmente, identifica-se com
esta história. Dessa maneira, como continua a autora, a criança é marcada pela
demanda e pelo desejo dos pais, característica que singulariza essa clínica. Portanto, o
psicoterapeuta que trabalha com esse público, mesmo que enfatize o seu trabalho na
questão infantil, não pode deixar de considerar as peculiaridades dessa clínica na
relação transferencial. Freud (1933 apud ZORNIG, 2000 p.133) assinala que, pelas
razões das especificidades do trabalho com crianças, ou seja, em função dessa
incidência e influência da demanda e do desejo dos pais na criança, faz-se necessário
que o seu tratamento aconteça, concomitante, ao tratamento dos pais, correndo o risco
desse tratamento não acontecer devido à resistência deles.
De acordo com Manoni (1999), na análise com crianças estão implicadas a
transferência do analista, a dos pais e a da criança. A maneira como os pais reagem,
integram o sintoma e o tratamento da criança. O analista, por sua vez, implicado nesse
conjunto, muitas vezes, não consegue trabalhar suas angústias e não permite a
neurose de transferência, necessária ao tratamento. Não é incomum se escutar
histórias de mães que ficam enciumadas diante da relação do filho com seu analista,
por se sentirem ameaçadas de perderem o seu amor, o que várias vezes isso é
provocado pelo próprio profissional. Ou, muitas vezes, escuta-se por parte dos analistas
coisas horrendas acerca dos pais, ou, mais especificamente, da mãe, e que se observa
claramente que faz parte daquela transferência e da angústia que acomete o
profissional, de forma que o deixa sem condições de continuar o tratamento. Como
ressalta Manoni (1999), o sintoma da criança é o que suporte à angústia dos pais,
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de maneira tal que, tocando nesse sintoma, pode-se fazer emergir essa angústia dos
pais e é por isso que todo tratamento com crianças põe em causa também os pais.
Em “Inibição, Sintoma e Angústia” (1926[1925]), Freud considera o sintoma como
o sinal de uma substituição daquilo que foi recalcado. O sintoma se referia à histeria e
era deslocado para dizer algo quer se remete à libido. De acordo com Chemama e
Vandermersch (2007), partindo do pressuposto, de que o inconsciente é compreendido,
como efeito da linguagem, e se a psicanálise se dispõe, unicamente, da fala, como
forma de tratamento do sintoma; e se a pulsão, resulta, de uma “montagem gramatical”,
compreende-se, que as propriedades da língua, determinam o destino sintomático do
sujeito.
Lacan, em 1953, no seu “Discurso de Roma” resgatou de Freud essa intuição de
que o sintoma seria uma palavra dirigida ao outro, semelhante, no intuito de que um
Outro sujeito suposto saber possa decifrá-lo em seu enigma. O sintoma se
apresenta por meio dos significantes. Desse modo, o sintoma representa o sujeito para
outro significante, na medida em que, este é considerado como pleno de sentido
(LACAN, 1998).
No Seminário, “As formações do inconsciente”, de 1957, Lacan afirma que o que
foi apreendido por Freud em relação ao sintoma ou aos sintomas foi que este seria a
expressão do desejo, pois ele o classificava como sendo patológico ou normal e se
manifestava, também, por meio dos sonhos. Seria uma satisfação às avessas, cujo
aparecimento se sob uma máscara. O que Lacan chama de sintoma é o que é
susceptível de análise, ou seja, o sintoma fala na sessão, está no discurso do sujeito,
seja adulto ou criança.
Como afirma Zornig (2000), o fato da psicanálise, centrar seu trabalho no sujeito
do inconsciente, e que tanto os adultos como as crianças possuem essa característica,
observa-se que, desde o princípio, a distinção entre criança e adulto, nessa ciência,
ainda não é bem definida. De acordo com a referida autora, Freud, ao estimular a
observação de crianças, no intuito de reafirmar suas hipóteses acerca da sexualidade
infantil, até o momento, advindas dos “materiais fantasmáticos” dos adultos, faz com
que se confunda a criança com o infantil. De acordo com Zornig (2000) para a
psicanálise, esses termos são diferenciados. À luz dessa ciência, o infantil consiste no
70
que é esquecido, material que funda, que constitui a história do sujeito. É esta infância
recalcada que vai se emergir no processo psicanalítico (ZORNIG, 2000), por meio dos
contos de fadas.
Uma criança, por exemplo, chegou ao consultório porque não se alimentava,
chegando, inclusive a ser internada. Isso ocorria quando era contrariada pela mãe. O
pai relatou que lhe era agradável dormir com sua filha. Em determinado dia, a criança
que tinha oito anos de idade, lendo comigo a história de Chapeuzinho Vermelho,
acrescentou no conto uma vaca, que era de onde a vovó tirava o leite para a neta. No
trecho em que o lobo engolia a vovó, a criança fazia uma modificação narrativa. Na sua
historia, sua anão era engolida pelo lobo, apenas vestia suas roupas. Essa criança
só dormia quando o pai – só o pai – contava-lhe histórias. O pai aumentava as histórias
e, muitas vezes, incluía a criança no enredo, ou seja, criava uma nova narrativa, que,
provavelmente, expressava um pouco da história daquela criança e sua família. A
exclusão na história do lobo que engolia-comia a avó não é tão sem sentido. O lobo
seria, então, a representação mítica da devoração, que a paciente repetia no dia a dia.
Os contos de fadas são constituídos de elementos primitivos, míticos, que
remontam as fantasias infantis, como se pôde ver nesse fragmento de caso. Sendo
assim, ocupam um lugar de endereçamento que captura o sujeito ao fazer falar a suas
fantasias, na repetição do seu conflito psíquico, fazendo emergir o seu sintoma,
construindo assim o seu mito individual. O sintoma vem sob a máscara dos contos de
fadas na fala da criança. Como afirma Lacan em 1960, no Seminário da Transferência,
o mito tem relação com o inexplicável do real. E tudo o que não se explica, tem haver
com o desejo. Esse desejo é acessível pela lei do significante. Para isso, faz-se
necessário recorrer ao mito. Diz Lacan: “Toda conexão se faz no plano do mito. E o
mito à maneira como está sendo visto se remete ao que se diz. Vemos surgir mitos no
momento necessário para suprir a hiância daquilo que pode ser assegurado
dialeticamente” (p.123). A criança, na transferência, recorrendo ao mito ou ao conto de
fada irá repetir a trama do conflito psíquico, pelo remanejamento do traço mnésico,
puxando o traço identificatório, o traço único; e repete, reconstruindo, a sua história. A
história distorcida aparece marcada pelo que Freud denominou de traço único, traço de
identificação mais primitiva entre o eu e o outro.
71
Freud, em seu texto Psicologia das Massas e Análise do Ego (1923), afirma que,
na formação do sintoma, o eu se identifica de uma forma bastante primitiva com o
objeto de afeto. Kaufmann (1996) cita como exemplo, referindo-se ao conceito
freudiano de traço único, o Caso Dora, no qual a paciente repetia a tosse do pai,
absorvendo assim, algo que era do objeto de afeto. Para Freud (1923), esse objeto,
com o qual, o eu se identifica, pode ser objeto amado ou não amado. De acordo com
Freud (1923) esse traço teria o valor de uma assinatura, por meio da qual, o sujeito é
identificado. O traço único se refere ao que foi apagado e que permaneceu no sujeito
pela sua ausência, ou seja, através de sua marca. Para Lacan, de acordo com
Kaufmann (1996), seria o traço unário, que designa a falta, a castração.
Podemos inserir também como objeto dessa identificação, os personagens
representados por animais dos contos de fadas, que apresentam características
humanas, e seres que apresentam comportamentos primitivos, como: a devoração do
lobo mau, a sedução, a “ingenuidade” e as transgressões infantis, no conto:
“Chapeuzinho Vermelho”. Em Bambi, observa-se a luta pelo território, pelo objeto de
amor; assiste-se à perda a morte. Em Branca de Neve, lê-se a negação da morte, a
competição pelo objeto de amor-ódio, a relação com o espelho como objeto da
rivalidade e a construção do Ideal de Eu. Em Pinóquio, observa-se a fantasia de
transgressão em meio a mentiras e repetições de atos impulsivos. Estes são alguns dos
elementos que se encontram nas entrelinhas dos contos, dos mitos e, por fim, na
constituição do sujeito. Por assim serem, aparecem nos discursos das crianças.
Esses conteúdos conflituosos reaparecem na análise, através dos personagens
e dos conteúdos dos contos de fadas, conforme foi citado acima. A criança como se
pôde observar, ao narrar o conto, deixa que sua fantasia seja emergida, e, através dela,
os vários conteúdos do seu conflito psíquico, que vem à recordação pelo que vai se
evocando por meio desses contos. Os contos de fadas, como já foi visto neste trabalho,
torna mais palatável ao sujeito, falar da morte da mãe e do pai, das dificuldades com
eles, do medo do abandono, do amor-ódio por seus pais e irmãos, entre outros, que
vão se emergindo no discurso transferencial.
Segundo Laplanche e Pontalis (2000), a transferência é um processo, no qual
acontece uma atualização dos desejos inconscientes em determinadas relações, no
72
tratamento analítico. Para Chemama e Vandermersch (2007), a transferência se
estabelece, automaticamente entre o paciente e o analista, onde são atualizados e
incansavelmente repetidos os significantes que foram o sustentáculo dos seus objetos
de amor-ódio na infância, ou seja, o sujeito, na análise, atribui ao analista o lugar de
objeto a, alternando-se com o lugar do Outro, aquele a quem se atribui o poder tanto de
“curar-lhe” como de ameaçar-lhe.
O sujeito, como assinala Chemama (2007), procura uma análise buscando uma
ajuda, no sentido de uma resposta, de uma decisão. A fala daquele que procura um
auxílio psicoterapêutico está relacionada a uma demanda que é endereçada ao
analista. Essa definição de endereçamento, como continua o autor está para além do
outro, ou seja, está endereçada ao Outro. E nessa relação um endereçamento tanto
ao outro, semelhante, como ao Outro, que é o lugar onde a fala pode revelar algum
sentido. O conto de fada, por sua vez, encontra-se endereçado ao anonimato, isso o
deixa submetido à leitura do seu blico, o que, como está sendo realçado neste
trabalho, coloca o conto num lugar que está além do que nele se tece em palavras, num
lugar que permite ao sujeito, um encontro com o seu conflito psíquico, revelado,
parcialmente, no seu sintoma, através da fala.
Surgiram também crianças que chegavam ao consultório, tendo como queixa
principal, o medo da bruxa, que dizia estar em seu quarto, ou outras, que se
apresentavam desconfiadas das pessoas, por verem o nariz de algumas pessoas
crescerem, tal qual o de Pinóquio, quando mentiam. Inclusive, crianças em
brincadeiras, colocando-se no lugar de Chapeuzinho Vermelho, conversando com o
lobo mau e com a bruxa pedindo para não fazerem maldades. Nesses diálogos havia o
intermédio da psicoterapeuta ocupando o lugar dos dois personagens vilões. Logo após
aqueles diálogos, a criança me contava tudo o que havia conversado com os
personagens como se eu não estivesse presente na sala, naquele momento.
Observa-se, nos pequenos fragmentos clínicos ilustrativos, os elementos dos
contos de fadas sendo reconstruídos, em função de questões da história individual da
criança, de seus mitos, identificações, que são repetidos na narrativa e na transferência
que se estabelece no processo analítico. Observa-se que essas deformações narrativas
são de fundamental importância para o entendimento da construção mítica da criança.
73
Mas para que isso se estabeleça, faz-se necessário que a transferência tenha se
consolidado e o analista faça o adequado manejo dessa demanda transferencial.
De acordo com Lacan (apud MOURANO, 2006), o sujeito que procura uma
análise atribui ao analista o saber do Outro, bem como, esse analista funciona como
uma referência para a organização subjetiva, que vai acontecendo quando da inserção
do indivíduo na linguagem. É ao Outro na figura do analista que o sujeito se dirige
visando a “cura” do seu sofrimento, como se esse obtivesse a verdade sobre ele, o que
Lacan chamou de sujeito suposto saber.
Ao se dirigir ao analista em busca dessa verdade, a transferência vem ocupar o
lugar do sintoma, na condição de torná-lo desvelado. Desse modo, é esperado que o
analista torne exeqüível a acessibilidade a esse saber. A transferência, portanto, como
afirma Lacan (1960 apud MOURANO, 2006), não se limita à repetição como sendo algo
que vai viabilizar ao sujeito o acesso ao saber de sua verdade. A repetição vai
acontecer porque o sujeito espera que o analista, no lugar em que ele o coloca, possa
lhe oferecer a “cura” esperada. No entanto, essa repetição vai possibilitar ao sujeito, o
encontro com a falta que o constitui, que acontece, concomitantemente, ao fracasso
dos desejos e fantasias infantis, com o qual sempre se vai deparar, no manejo da
transferência. Esse manejo transferencial, como refere Mourano (2006), é habilitado
pelo desejo do analista, ou seja, é necessário que esse desejo seja posto em função do
trabalho analítico. Para tanto, o analista deve procurar vencer as resistências que vão
atribular o processo, que a transferência possui duas faces, que, paradoxalmente,
facilitam, dificultam ou impedem a análise. Está claro que tudo o que é trazido pelo
sujeito, no processo, estará vinculado à transferência com o analista. Certamente, algo
da analista desperta na criança, para que esta introduza os contos de fadas, ao relatar
a sua história. Entretanto, o que viabiliza o processo analítico é o manejo que vai se dar
à transferência. Todo afeto que o sujeito vai despertar na analista, deverá ser percebido
por ela, para que possa direcioná-los, de uma forma adequada, e conduzi-los em favor
do processo analítico do analisante.
Freud (1914), em seu texto “Recordar, Repetir, Elaborar”, interessa-se pela
relação que a compulsão à repetição tem com a transferência e a resistência. A
transferência se trata de uma repetição de um passado que foi esquecido, para,
74
posteriormente, ser recordado. Essa recordação se dará segundo a forma como se
estabeleceu a transferência, ou seja, se foi positiva ou negativa. Para Freud, se a
transferência é positiva, facilitará a emergência dos conteúdos recalcados. Do contrário,
poderá ocorrer, mais facilmente, a atuação, a resistência e uma maior dificuldade em
recordar. Freud relata: Todavia, o instrumento principal para reprimir a compulsão à
repetição e transformá-la num motivo para recordar reside no manejo da transferência
(p. 201). Através da transferência o sujeito revive algo de real, que foi esquecido e
reaparece na situação da análise.
Freud (1914) assinala que o que foi esquecido pelo sujeito se evidenciará na
análise através das lembranças encobridoras. São as lembranças, as recordações, que
ele escutou nas análises que ele realizava nas pacientes, e sobre as quais escreveu
seu texto (1899) “Lembranças Encobridoras”. Nesse texto, Freud relata que no
processo analítico de suas pacientes, sempre havia se deparado e lidado com
recordações fragmentadas da infância. Os traços que a infância imprime no sujeito,
muitas vezes, são “esquecidos” e trazidos por ele, por meio dessas lembranças
encobridoras. Essas lembranças, como continua Freud (1899) remontam os períodos
infantis entre dois e quatro anos. Outras, apresentam conteúdos de períodos ainda
mais remotos. Alguns conteúdos possuem maior relevância, outros, aos quais são
atribuídos menor valor, são retidos. A partir dessa afirmação, Freud questiona sobre a
aparente irrelevância do que foi recalcado e aponta para as forças psíquicas que estão
envolvidas nesse processo mnêmico. Uma dessas forças é a resistência, que como
foi mencionada nesse trabalho, está bastante ligada à questão transferencial. Nesse
texto, Freud ainda não fala claramente da transferência como processo, mas introduz
sobre as forças que tentam trazer à memória, algumas lembranças, e forças que, ao
mesmo tempo, tentam retê-las. Essas forças como ele mesmo assinala, não se anulam,
mas se conciliam, talvez, pela transferência. Sobre isso Freud relata:
O que é registrado como imagem mnêmica não é a experiência relevante em si
– nesse aspecto, prevalece a resistência; o que se registra é um outro elemento
psíquico intimamente associado ao elemento passível de objeção e, nesse
aspecto, o primeiro princípio mostra sua força: o princípio que se esforça por
fixar as impressões importantes, estabelecendo imagens mnêmicas
reprodutíveis. O resultado do conflito, portanto, é que, em vez de imagem
mnêmica que seria justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi
75
até certo ponto associativamente deslocada da primeira. E já que os elementos
da experiência que suscitaram objeção foram precisamente os elementos
importantes, a lembrança substituta perde necessariamente esses elementos
importantes e, por conseguinte, é muito provável que se nos afigure trivial. Ela
nos aparece incompreensível porque nos inclinamos a buscar a razão de sua
retenção em seu próprio conteúdo, ao passo que essa retenção se deve, de
fato, à relação que existe entre seu conteúdo e um conteúdo diferente, que foi
suprimido. entre nós um dito corrente sobre as falsificações, no sentido de
que, em si mesmas, elas não são feitas de ouro. É bem possível aplicar essa
mesma comparação a algumas experiências infantis retidas na memória. (p.
274)
Segundo Freud (1914), o tratamento se iniciará a partir da repetição do sujeito.
Por esse motivo, continua Freud, ao pedir ao paciente que ele fale tudo que lhe vem à
cabeça, muitas vezes, ele silencia. O sujeito em tratamento sempre está à serviço da
compulsão à repetição, o que não deixa de ser uma maneira de recordar. Lacan (1992)
se remete à transferência como um automatismo da repetição, que vem insistentemente
na cadeia significante.
De acordo com Lachaud (1997), Lacan articula a noção de repetição à estrutura
do sujeito. O sujeito, sendo estruturado, pela linguagem, a palavra deve ser liberada. A
repetição vai permitir ao sujeito reescrever a sua história e fazer ressurgir o traço unário
primitivo ou como Freud chamou, o traço único.
A criança vai se dizendo através do conto sem recordar o que recalcou, não
obstante, esse conteúdo pode reaparecer através da ação, da brincadeira, etc. Por
exemplo: uma criança disse que assistira ao filme Chapeuzinho Vermelho. Foi relatando
toda a história que tinha assistido. De repente, no desfilar de sua narrativa, cometeu um
ato falho, dizendo que Chapeuzinho vermelho comeu o lobo e a vovozinha. Logo
retrucou: “não o lobo mau comeu a vovó e a Chapeuzinho”. Disse que tinha visto essa
cena no filme: tomou um bonequinho de pano e pôs em cima de duas bonequinhas,
comentado que a cena ocorrera daquela maneira. Como se observa, a criança não
falava sobre o ato sexual, mas através do gesto, deixou que fosse dito o que estava em
sua fantasia. Essa criança, afirmava que nunca havia lido, nem escutado história
alguma de conto de fada. Dizia que na escola ouvia falar desses personagens, contudo,
ela assistia aos filmes que remontam aos contos, pois, tinha preferência por filmes a
livros. Todavia, o que chamou atenção, nesse caso, foi que, a sua narrativa,
correspondia a uma versão tradicional, escrita por Perrault. Esse fato reforça a idéia de
76
um inconsciente que vai sendo transmitido pela filogênese e repetindo na ontogênese.
A cena descrita pela criança não foi reproduzida como uma lembrança, mas como uma
ação.
Nas Conferências introdutórias (1916[1917]), Freud afirma que as fantasias
trazidas na análise, por meio dos sonhos, dos atos falhos, etc, pertencem aos resíduos
da família humana primordial, de civilizações pré-históricas. Essa família pré-história,
mítica para o sujeito, seria algo a que este não tem acesso, por pertencer ao passado
remoto, por se remeter às narrativas orais das lendas, dos mitos, ou quiçá, dos contos,
transmitida ao sujeito pelos pais, avós, de geração em geração.
Em “Além do Princípio do Prazer”, Freud (1920) se propõe a deixar de lado o
tema da neurose traumática, e inicia seu estudo examinando o método de
funcionamento do aparelho mental, em uma de suas primeiras atividades “normais”,
como ele denominou, referindo-se à brincadeira de crianças. As teorias sobre essas
brincadeiras foram discutidas por Pfeifer, em Freud (1920) a qual, este último se
remete, destacando, que tais teorias, tinham como principal foco, descobrir o que
levava uma criança a brincar, no entanto, essas teorias não priorizam o motivo
econômico em relação à produção de prazer envolvida na brincadeira.
Freud (1920) exemplificou sua observação referente a uma criança de um ano e
meio, seu neto, com o qual conviveu por algum tempo. Percebeu que a criança
inventara uma brincadeira que repetia, incansavelmente. Essa criança tinha uma
relação de bastante apego com sua mãe, que, por sua vez, cuidava dele sem ajuda de
qualquer outra pessoa. A criança costumava pegar os seus brinquedos e lançava-os
para lugares distantes e difíceis de apanhá-los de volta. Freud, junto à mãe da criança,
perceberam que, ao realizar tal brincadeira, emitia uma expressão de satisfação: “o-o-o-
ó”. Observaram, portanto, que essa expressão, não era apenas uma interjeição, mas
representava a palavra Fort, que significa em inglês, gone, do verbo To go, que em
português seria usado na expressão “ir embora”. A brincadeira, então, era ir embora
com os brinquedos. Essa criança possuía um carretel de madeira que tinha um cordão
amarrado em sua volta. Ela segurava o carretel, arremessava-o embaixo da cama, e
emitia a mesma expressão de satisfação. Logo em seguida, puxava o carretel que se
encontrava, por alguns segundos, embaixo da cama, e saudava o seu reaparecimento
77
com a expressão Da”, que significa, “aqui”. A brincadeira se resumia em
desaparecimento e retorno. Observava-se que a brincadeira da criança continha duas
partes: a primeira, “Fort”, repetido, incansavelmente, pela criança, e a segunda parte, o
“Da”, que foi observado como causador de um prazer, ainda maior, na criança.
Freud (1920) considerava essa brincadeira como uma realização cultural da
criança. Significava uma renúncia da ordem do instinto, revelada quando a criança
aceitava que a mãe “fosse embora” sem que ela fizesse protesto algum. Certamente,
como pensava Freud, a partida da mãe não causava um sentimento agradável à
criança, não obstante, repetia essa experiência, sob a forma de brincadeira, assim
como as crianças citadas nessa dissertação, faziam com o conto de fada. Esse gesto
se harmoniza ao Princípio do prazer, de acordo com Freud (1920), que interpretou que
a partida da mãe teria que ser encenada para que tivesse o alegre retorno. Essa
mesma criança, após um ano, agarrava os brinquedos, e quando sentia raiva deles,
jogava-os no chão e dizia: “vá pra frente”. Essa atitude foi vista por Freud como algo
comum entre as crianças: utilizar-se das experiências desagradáveis nas suas
brincadeiras. Isso foi visto por ele como se o prazer obtido nessas brincadeiras viesse
de uma outra fonte; o que lhe lembrava os espetáculos artísticos, nos quais, mesmo
aqueles, trágicos, eram assistidos pelos espectadores de uma maneira extremamente
prazerosa. Parece que o mesmo ocorre quando as crianças pedem para que lhe
narrem os contos de fadas. Muitas vezes, quando é contada alguma parte mais trágica,
a criança sempre emite alguma expressão, umas riem, outras choram, não obstante,
em meio a qualquer atitude dessas, percebe-se o sentimento ambíguo de querer ouvir,
e ao mesmo tempo, caracterizar determinados momentos, como se tivessem lhe
causando tristeza e em meio a isso um sentimento de prazer. É bastante comum, entre
as crianças pedir para que sejam repetidas determinadas partes de uma história.
Freud (1920) assinala que, o material recalcado, que o paciente não consegue
recordar em sua totalidade, impulsiona-o à repetição. Essa repetição vai acontecer,
como foi dito, na esfera transferencial com o analista. Nesse contexto, pode-se dizer
que a “neurose primitiva” foi substituída pela “neurose de transferência”. O analista
deve propiciar a repetição do material recalcado, e, ao mesmo tempo, cuidar para que
algo permaneça desconhecido. Como diz Freud (1920, p. 52):
78
As manifestações da compulsão à repetição (que descrevemos como ocorrendo
nas primeiras atividades da vida infantil, bem como entre os eventos do
tratamento psicanalítico) apresentam em alto grau um caráter instintual e,
quando atuam em oposição ao princípio do prazer, dão a aparência de alguma
força “demoníaca” em ação. No caso da brincadeira, parece que percebemos
que as crianças repetem experiências desagradáveis pela razão adicional de
poderem dominar uma impressão poderosa muito mais completamente de
modo ativo do que poderiam fazê-lo simplesmente experimentando-a de modo
passivo. Cada nova repetição parece fortalecer a supremacia que buscam.
Tampouco podem as crianças ter as suas experiências agradáveis repetidas
com freqüência suficiente, e elas são inexoráveis em sua insistência de que a
repetição seja idêntica.
No entanto, Freud (1920), esclarece que essa repetição idêntica, por maior que
seja a obstinação do sujeito, em realizá-la, torna-se, inalcançável. Para reforçar esse
pensamento, Freud comenta que, se um chiste é escutado uma outra vez, não vai
causar o mesmo efeito que causou na primeira. Embora, o que é novo, seja uma
condição que causa satisfação. As crianças insistem em pedir que os adultos lhes
contem, repetidas vezes, as mesmas histórias, exigindo que seja de forma idêntica,
corrigindo aquele que alterá-la. A repetição do idêntico, para Freud, é fonte de prazer.
Neste caso, entretanto, se a compulsão à repetição, dos acontecimentos da infância,
ocorre no processo de análise, despreza o princípio do prazer em todos os modos (p.
53).
Lacan (apud KAUFMANN, 1996), baseado em Freud, assinala que a repetição é
algo inerente ao inconsciente, na medida em que neste, tendência a repetir.
Segundo Lacan, nesse mesmo texto, a compulsão à repetição vai reforçar a idéia de
um sujeito emergido entre os significantes, uma vez que, perante esta compulsão, o
sujeito se impulsionará a repetir, o que lhe propicia o reencontro desse, com sua
impotência. Surge a partir disso, um paradoxo acerca dessa repetição, na teoria
psicanalítica, no qual se põe em questão a característica da repetição ser idêntica ou
não. A repetição, no sentido psicanalítico, seria esta tentativa de reencontrar o traço
único (enzinger zug) como diria Freud, o qual Lacan denominou de traço unário. A
relevância desse traço primeiro, que poderíamos denominá-lo de, inaugural, seria esse
Um - aquele que vai inaugurar a função da repetição. E essa compulsão à repetição se
daria em torno desse Um perdido, que impulsiona à repetição, em busca desse objeto
perdido. Esse movimento, faz com que aquilo que vai ser repetido, não coincida um
79
com o outro. Ou seja, a repetição nunca será igual. Ao introduzir o conceito de traço
unário, Lacan (apud KAUFMANN, 1996), nos atenta para o fato de que esse traço que
vai sendo evocado pelo sujeito “se repete por não ser jamais o mesmo” (p. 449).
Portanto, a repetição da qual se fala não é a mesma coisa que uma reprodução, uma
vez que, nesta repetição, emerge a diferença.
Essa compulsão à repetição, afirma Lacan (apud KAUFMANN, 1996), não
corresponde ao princípio do prazer, o que levou Lacan a delegar à repetição, como
pertencente a um mais-além do princípio do prazer. Isso, de algum modo, estaria
impulsionando o funcionamento da cadeia significante, que este é o único que dá
suporte à experiência de repetição. De acordo com Kaufmann (1996), Freud em
“Inibições, Sintomas e Angústia”, propõe que o que não foi possível acontecer segundo
o desejo, anula-se pela repetição diferente, e que é por tal motivo que o sujeito insiste
nelas.
Na clínica, o que insiste em se repetir no conflito psíquico, através da fala, é o
sintoma. Conforme foi pesquisado nessa dissertação, o sujeito repete, na sua fala,
através de várias vestimentas o seu sintoma. Nas inovações que fizeram nos contos de
fadas, no intuito de atenuarem para as crianças, o seu teor trágico, percebe-se nesses
contos, a permanência de tais conteúdos. E mesmo que muitas vezes, a criança
demonstre ficar triste, com aquilo que está ouvindo, ao perguntarmos sobre a história,
geralmente enfatiza o fragmento trágico, na maioria das situações. As frações que são
mais trágicas o as que representam melhor a trama do conflito psíquico, portanto,
não deixa de ser algo prazeroso e que impulsiona à repetição. A vestimenta pela qual o
sintoma vai se emergir no caso desta pesquisa é o conto de fada, utilizado na repetição
do conflito psíquico, onde é possibilitada, também, a repetição do sintoma. De acordo
com Freud (1920), o sujeito não recorda tudo o que foi recalcado, e o que ele não
recorda, trata-se daquilo que é essencial. Ele repete o material recalcado como se
fosse algo do presente e não como algo do passado. Essa repetição vai acontecer na
neurose de transferência. E nessa repetição, na relação transferencial, será
possibilitada, ao sujeito, a construção do seu mito individual. O sujeito repete, na
transferência, situações tristes, desagradáveis, que, naturalmente, não levariam a uma
satisfação, ao contrário, levariam ao desprazer. Tais repetições poderiam está a
80
serviço de uma compulsão, como afirma Freud (1920). O impulso que leva a criança a
brincar está relacionado com essa compulsão a repetição, pois para Freud a
brincadeira da criança é considerada uma satisfação agradável, se não estiver no
âmbito de uma situação analítica, como já mencionado acima.
Conforme foi discorrido neste capítulo, na relação transferencial vai acontecer o
processo de repetição do conflito psíquico, no qual o sujeito vai desvelando o seu
sintoma. Essa fala do sintoma, endereçada ao analista, como foi visto, demonstra a
busca pelo sujeito, de uma ajuda, uma resposta para o seu conflito, fato que denota a
repetição da carência primeira que o bebê vivencia quando do seu nascimento, na sua
instauração enquanto sujeito.
A tensão causada pela carência primeira, de acordo com Ferreira (2000), só será
suavizada a partir da intervenção de alguém. Pela incapacidade que ae tem realizar
a ação específica, a qual o bebê está clamando, é que esse vai ser estimulado a se
inscrever na linguagem. E é a partir daí que ele vai se tornar sujeito: na instauração
dessa falta constituinte de todo ser humano.
Na constituição dessa falta inaugural, o Bebê é, pois, submetido a esse Outro,
que tem o poder da palavra sobre ele, no caso, a mãe. È o que Lacan chamou de
“operação de alienação”. Nessa alienação, continua Ferreira (2000), o sujeito fica sendo
representado por um significante. Ele não é nada, pois, é preciso um segundo
significante. Neste hiato do nada após o primeiro significante vai surgindo um outro
significante e assim por diante. É o significante, que surge no campo do Outro, que
inaugurará o “sujeito da significação”. E na psicoterapia que toma como base a
psicanálise, na qual se trabalha na transferência, o sujeito transfere esse lugar de Outro
e de objeto a para o analista. O Outro, em Chemama e Vandermersch (2007), é o lugar
onde se situa o que está externo ao sujeito, mas que o constitui e o determina. Está na
ordem do inatingível. E na medida em que surge alguém que ocupa para o sujeito um
lugar de Outro é que ele vai se instituir enquanto tal. E o objeto a, seria esse lugar
vazio, da falta que vai bordejar o Outro. Esse objeto é o que vai impulsionar à repetição,
uma vez que se trata do objeto perdido, que não necessariamente o foi, mas que
naquilo que falamos de operação de alienação, o sujeito imagina que perdeu. É esse
algo que o sujeito passa sua vida a procurar.
81
Corrêa (2005) no texto “A criança e o Significante” chamou esse momento de
“jogo de substituição tropológia”, uma vez que, nesse jogo, vai se fazendo os desvios
na linguagem, quando esta nova relação com o Outro é estabelecida pelo que ele tem.
O desfalecimento do significante primeiro, vai introduzir a falta, através do não sentido,
responsável pela retórica na criança, uma vez que é nesse “não sentido”, que se
estabelece a falta.
Como comenta Corrêa (2005), faz-se, muitas vezes o julgamento de que as
crianças são incapazes de compreender os desvios que as metáforas e as metonímias,
próprias da linguagem, fazem no discurso. Essa facilidade que a criança tem de ir
contando suas histórias, deixando-se levar, como diz o autor, “pelos desfiladeiros da
linguagem”, é o que vai introduzi-la num processo analítico, pois, com isso, ela está
utilizando o método da livre associação, próprio da psicanálise, definido no capítulo
anterior. Essa livre associação, como continua o autor, vai girando em volta do desejo,
da palavra. E como já foi dito, a palavra vai presentificar o ausente. Para tanto ela utiliza
o mecanismo do mito, do conto, uma vez que esse ausente vai ser evocado e
presentificado por meio desses recursos.
No processo transferencial da clínica, o conto de fada é utilizado pela criança
para repetir o seu conflito psíquico, o qual convoca a psicoterapeuta à escutá-la em seu
discurso, e, através do manejo da transferência, vai propiciando ao sujeito a construção
de sua história, do seu mito individual. Na construção do seu mito individual, que se
como vimos, através da repetição, conforme foi explanado. O sujeito vai repetindo o
conflito, de uma maneira diferente, mas, conserva, algo do mesmo. Por esse motivo é
que ele repete, de forma incansável. Nesse movimento, pode-se perceber o processo
da Aufhebung freudiana, elucidada por Frej (2003). Esse termo move todo o processo
analítico, uma vez que se trata de um movimento que parte do inorgânico ao orgânico e
para o social, delimitando fronteiras, que não são claramente delimitadas, e que, em
determinados momentos, podem ser atenuadas e até apagadas como diz Frej (2005),
no artigo: “Ao longo do caminho tem uma pedra”. A partir da relação com o analista, e
das intervenções que vão sendo feitas por ele, utilizando, como instrumento dessa
intervenção, a palavra, vai sendo possibilitada ao sujeito, a construção de novos
82
espaços, novas elaborações, que lhe propiciarão a transformação do seu sintoma,
através da repetição.
3.2 A Aufhebung como suporte do processo da construção mítica do sujeito
Para iniciar esse item, gostaria de falar um pouco sobre o processo que dá
suporte à interposição ou a construção do sujeito a partir dos mitos coletivos. Estes vão
sendo individualizados na inscrição do sujeito, que ao mesmo tempo, a partir dele,
também vai construindo novos mitos. A noção de sujeito apresentada nesse trabalho foi
a do sujeito da linguagem, da falta, proposto por Lacan. Entretanto, o sujeito estudado
por Frej (2003) é o sujeito do fremde Hilfe, ou seja, da ajuda estrangeira. Essa ajuda
estrangeira é realizada pela pessoa que está atenta aos cuidados necessários ao bebê
desde o momento do seu nascimento. No primeiro momento o vivente é uma massa
amorfa, que necessita de uma ajuda estrangeira (fremd Hilfe), que estaatenta aos
cuidados desse vivente. Nesse momento, estabelece-se um intervalo entre essa
pessoa e o bebê. Nesse intervalo, como continua a autora, acontece o corte que
constitui a condição de reciprocidade entre a e e o bebê, e que abre o caminho para
a constituição do aparelho psíquico. E, no mesmo momento, em que vai se estabelecer
uma diferença entre o mundo externo e o organismo humano, supondo uma
diferenciação entre o espaço interno e o espaço externo, momento este, que como
menciona Frej (2003), é ejetado do organismo, uma descarga motora, proveniente do
que é externo, e que é nocivo para o eu nascente, inaugurando a criação de um espaço
interno diferenciado do externo, que dará origem ao sujeito. É o espaço que se inscreve
entre os neurônios que se desdobra constituindo um outro espaço, desta vez entre o eu
e o externo. Esse outro espaço que é constituído vai garantir a ilusão de uma unidade
no eu. Esses espaços e lugares se constituem antes do aporte da palavra. Entretanto, o
sujeito que mencionamos neste trabalho se constitui a partir da palavra, do que Lacan
denominou do Nome-do-pai, significante primeiro, esses lugares que são constituídos
pela palavra, conforme foi mencionado no item anterior, são propiciados, também, pelo
movimento da Aufhebung freudiana.
83
O termo Aufhebung foi descoberto por Frej (2003) durante a realização da sua
tese de doutorado ao verificar que na tradução brasileira e na tradução francesa da
obra freudiana os termos aufheben e Aufhebung não foram considerados no seu
sentido dialético. Desse modo, Frej propõe que a versão para o português siga a que foi
sugerida por Pe. Paulo Meneses, da Universidade Católica de Pernambuco, no seu
livro: Para Ler a Fenomenologia do Espírito (1985), apoiado na solução proposta por
Gauthier, que traduziu esses termos, na língua francesa, por Sursumer e sursomption.
Para a língua portuguesa oferece os termos que respeitam o movimento interno e
dialético que constitui a vida humana: Suprassumir e Suprassunção. O movimento
referido contém em si a conservação do que é negado. Conservação enquanto um
mesmo e enquanto um outro, no qual o primeiro se transforma. Segundo Frej (2003), os
termos sugeridos por Pe. Paulo Meneses foram oficializados no campo da Filosofia,
para os hegelianos, nos países de língua portuguesa, na Espanha e na Argentina. Em
Freud, esses termos tocam em algo do originário.
Frej (2005), em seu texto Ao Longo do Caminho tem uma Pedra, esclarece que
os termos propostos por Pe. Paulo Meneses partiram de sua tradução da
Phänomenologie des geistes de Hegel. Continua Frej, citando Meneses (1985) que em
seu livro intulado: Para Ler a fenomenologia do Espírito, afirma:
Algumas opções na tradução dos termos hegelianos, procurando
encontrar para cada termo técnico um vocábulo correspondente, que
não fosse utilizado para outras significações que talvez sejam sinônimas
no glossário comum, mas que na Fenomenologia tem um significado
particular. Assim, aufheben não tem equivalente no superar espanhol,
pois Hegel usa outros termos para ultrapassagem, e muito menos no
suprimir de Hyppolite, que está expressamente dito na percepção
que Aufhebung “conserva o que suprime”. Seria distorcer a significação
verter por um termo que retém um dos dados do movimento. (Aliás,
etimologicamente, suprimir é antes o oposto de aufheben: um calca
para baixo enquanto o outro levanta para cima...) Qualquer sinônimo
vulgar seria menos deformante: tirar, levar, não implicam a eliminação,
mas antes a conservação do que é retirado. Adotamos assim
suprassumir, suprassunção, - calcados no francês Susumer,
surpsomption, propostos por Yvon Gauthier em 1967 e adotados por
Labarrière. (MENESES apud FREJ, 2005, p. 2).
84
Diante do impasse, que surpreendeu Frej (2005), na sua leitura da tradução
francesa, da obra freudiana, em relação a esses termos, a autora buscou na obra
original Alemã, onde encontrou este termo, no momento em que Freud falava no
começo do desenvolvimento do ego, no qual o bebê distingue o seu eu, do mundo
externo.
Segundo a autora citada, esta distinção se realizará no momento em que o bebê
se der conta de algumas fontes de excitação, como, por exemplo, dos órgãos do corpo,
que lhe enviam sensações o tempo todo, enquanto que outras, como o contato com o
seio da mãe, é-lhe dado apenas por alguns momentos. Esse momento quando retirado
provisoriamente do bebê podem ser trazidas de volta quando de seus gritos pedindo
ajuda.
No momento em que Freud fala sobre isso no texto citado acima, continua a
autora, ele utiliza o verbo aufheben traçando uma fronteira concomitantemente à
criação e distinção do espaço interno e do espaço externo, em continuidade. Como
menciona Frej (2005, p. 4), essa fronteira primeira que se estabeleceu se repetirá da
mesma maneira, ao mesmo tempo, diferente. Como diz:
A fronteira que terá sido a primeira é aquela que se constitui não pela
emissão de sinais fisiológicos sobre o corpo, mas a que constitui a
fisiologia do corpo a partir dos estímulos internos que, agindo
incessantemente, abrem caminho para que os órgãos internos possam
ser distinguidos uns dos outros. A consciência da existência dos órgãos
vai se dar quando esses emitem as quantidades de estímulos que os
alcançam e que não são por ele metabolizados. Esse excesso, que não
cabe no metabolismo do órgão, gerando desprazer, será projetado no
mundo externo e vai se constituir como algo vindo de fora como se o
indivíduo não tivesse nenhuma implicação no desprazer, cuja origem é
atribuída ao que é exterior ao seu próprio corpo.
Segundo Frej (2005), de acordo com o que foi citado acima, no texto freudiano,
novamente se encontra a referência à suprassunção, desse modo, como se constituído
no passado. Frej, nesse mesmo texto, assinala que Freud, ao se remeter ao organismo
e aos estímulos que dele provém, e que, por sua vez, incidem sobre o ser humano,
afirma que esses estímulos são suprassumidos. O que vai dar condição a uma relação
com o outro semelhante. Para dar subsídios a esta afirmação, Frej, citando Freud, parte
85
dos gritos e das agitações motoras, realizados pelo bebê, quando se sente
intensamente estimulado, buscando ajuda naquele que dele cuida e o traduz. Frej
(2005) afirma:
Essa tradução em linguagem permite que aquele registre os sons que
escuta da pessoa que lhe oferece cuidados, e de quem ele não se
distingue, e permite também que ele se aproprie desses sons. Assim
fazendo, ele pode evocá-los quando a pessoa que o socorre se ausenta.
Ainda que essa evocação esteja submetida e restringinda por seu nível
de desenvolvimento fisiológico, brinca com os sons evocados. Desse
modo, ele tenta realizar em si a experiência de satisfação, movimento
que resulta da ação específica realizada pela pessoa que traz ajuda ao
bebê. (p. 4)
Um outro momento, que Frej (2005) pontuou como sendo um momento que
também geraria espaços e fronteira, é o que situa o indivíduo na sociedade e na
cultura. Esse terceiro momento, que a autora articula à questão edípica, terá tido sua
influência sobre a criança a partir da inserção da palavra, uma vez que é a palavra que
irá possibilitar o movimento da Aufhebung. Essa mesma palavra que propicia a
passagem de um registro do organismo, ao registro de um corpo, que está situado em
um espaço, vai ser a mesma que interditará o acesso da criança à mãe. O lugar e a
maneira como a criança se posicionará em relação ao conflito edípico, vão influenciar
no modo como se desdobrará o complexo de Édipo. No desdobramento desse
complexo, como afirma Frej (2005), o movimento da Aufhebung, poderá ocorrer ou não.
Sobre o desfecho do complexo de Édipo, Freud (1924 apud FREJ, 2005, p. 6) diz que:
Não vejo razão para negar o nome de “repressão” ao afastamento do ego
diante do complexo de Édipo, embora posteriores ocorram pela maior parte
com a participação do superego que, nesse caso, está apenas sendo formado.
O processo que descrevemos é, porém, mais que uma repressão. Equivale, se
for idealmente levado a cabo, a uma destruição e abolição do complexo.
Plausivelmente podemos supor que chegamos aqui à linha fronteiriça nunca
bem nitidamente traçada entre o normal e o patológico. Se o ego, na
realidade, o conseguiu muito mais do que uma repressão do complexo, este
persiste em estado inconsciente no id e manifestará mais tarde seu efeito
patogênico.
Observa-se que neste dizer de Freud, enfatizado por Frej (2005), a autora
elucidou o movimento da Aufhebung que está implicado no desenrolar desse complexo,
86
criando um outro espaço e fronteira. Portanto, as fronteiras, entre o normal e o
patológico, como pontua Frej (2005), referindo-se ao que foi posto por Freud, não está
delimitada de uma forma clara, e que, em determinados momentos, estas, podem ser,
atenuadas, ou mesmo, eliminadas.
A Aufhebung, portanto, conceitua Frej (2003), seria um termo que está presente
em toda obra freudiana, e se refere aos momentos de delimitação de fronteiras e
lugares psíquicos na vida humana. Trata-se de um movimento que abarca toda a
energia que atravessa o psiquismo, passando pelo organismo, até o social. Esse termo
apreende o movimento dessa energia desde o momento em que ainda está prevalecido
o inorgânico, que será, suprassumido, desmembrando-se em órgão, corpo, psiquismo,
inseridos na sociedade e na cultura, em contato com o que chamamos de coletivo, e
vai, nessa circulação, inscrevendo o psiquismo. Desse modo constituirá fronteiras e
lugares que, algumas vezes, não são delimitados de forma nítida, não obstante
coexistem e funcionam ao mesmo tempo. É neste sentido; nesta constituição de
lugares e fronteiras que o coletivo e o individual vai se aproximando, e porque não
dizer, se interpondo, dando suporte à construção do mito individual do sujeito, através
dos mitos do coletivo.
A idéia de mito coletivo e de mito individual vem de Lévi-Strauss e se refere à
dialética do constructo indivíduo-cultura. Para esse autor, as representações míticas
possuem uma eficácia simbólica, por possibilitarem a verbalização de conteúdos
inconscientes que fazem parte do universo cultural e que se desintegraram por meio do
inconsciente. A eficácia simbólica deriva do fato do sujeito acreditar em seu próprio
mito.
Lévi-Strauss faz uma aproximação entre a figura do xaman que se caracteriza
por um povo com aptidões sobrenaturais atribuídas a um feiticeiro, com a figura do
psicanalista, criando a expressão mito individual, que depois, foi utilizada por Lacan
(2007, p. 16), quando dizia:
O paciente atingido de neurose liquida um mito individual opondo-se a um
psicanalista real; a parturiente indígena supera uma desordem orgânica
verdadeira identificando a um xaman miticamente transposto. E leva mais longe
ainda a comparação entre os dois personagens e o respectivo processo de
cura, mostrando como, em ambos os casos, se trata de constituir um mito que o
paciente deve viver ou reviver. Num caso (Psicanálise) trata-se de um mito deve
87
construir a partir de elementos fornecidos pela sua história pessoal, enquanto
que no outro é um mito social que o paciente aceita do exterior. Para além de
que, num caso o paciente fala e o psicanalista escuta (uma vez que é o
paciente que constrói o seu próprio mito), enquanto no outro o xaman fala
(narrando o mito social) enquanto o paciente escuta.
Em ambos os casos o mito tem um papel central na cura, em ambos os casos
se trata – na expressão de Lévi-Strauss – de um mito fundador da cura. Apenas
difere a origem do mito: individual ou coletiva.
Diante dessa citação, salienta-se que essa diferença referida acima vai se
dissipando, no momento em que, o sujeito, acredita no seu pprio mito. Nesse
momento, ele se torna individual e histórico, já que este mito vai sendo transformado de
acordo com a estrutura psíquica de cada um. Como já observado no item acima e como
veremos neste item, as crianças, ao introduzirem os seus discursos na clínica, lançam
mão dos contos de fadas como lugar de endereçamento, que as captura, no intuito de
fazer falar a sua fantasia, construindo uma nova história, o seu mito individual.
Considerando que os contos de fadas surgiram a partir dos mitos da história da
humanidade, e que, por assim ser, também podem ser julgados como pertencentes ao
universo mítico, e serem constituídos, por elementos primitivos, que remontam ao
conflito psíquico, capturam o sujeito, de um modo que este se utiliza dessas narrativas
para construir o seu mito individual e construir novos mitos. Observa-se que muitos dos
personagens que estão inseridos nos contos de fadas, assim como suas
características, estão presentes no discurso popular, de uma forma mítica. Dizemos
desse modo, pelos conceitos de mito e de conto de fada que foram explanados no 1º
capítulo desta pesquisa. Utilizando-se do termo da Aufhebung, como esse movimento,
que circula e constrói lugares, no interno e no externo, construindo também fronteiras,
cujas delimitações, não são julgadas como nítidas, de forma constante, pressupomos
que, do mesmo modo, que os mitos e os contos de fadas, oferecem modelos, para a
construção mítica do sujeito; esses mesmos sujeitos, também constroem,
simultaneamente, outros mitos ou, reatualizam-os.
Será, portanto, discorrido nesta dissertação alguns dos mitos que foram
derivados dos contos de fadas e que influenciam na constituição psíquica dos
indivíduos, na sociedade e na cultura. Os exemplos clínicos, que ilustraram este
capítulo, demonstram a forte incidência desses mitos, nos discursos das crianças e nos
significantes que os perfilam.
88
Ouve-se falar, por exemplo, que toda mulher que se casa com o pai que não a
mãe é uma madrasta, e que por assim ser, é má. Ou quando a mãe tem com o filho
uma relação conflituosa, ela não é mãe, e sim, madrasta, como insinuou uma criança
citada acima. Verificando o étimo da palavra madrasta, vê-se que vem do latim
matrasta, que significa mulher do pai. Mulher incapaz de sentimentos afetuosos e
amigáveis como diz Houaiss (2004). Como por exemplo, escutamos de uma criança de
seis anos: “Eu sou a Branca de Neve, a única diferença é que eu tenho mãe e ela
madrasta, mas minha mãe é uma madrasta”.
O lobo mau também que foi se constituindo como um mito, geralmente
representando a figura paterna. No caso do Homem dos Lobos de Freud (1918[1914]),
essa figura é bastante referida. O paciente de Freud, contou em sua análise, que havia
visto um livro com várias figuras de lobos, o que lhe causou bastante medo. Via um lobo
de pé, andando à passos largos, o que lhe causou medo em relação ao animal. Este
poderia lhe comer. Alguns problemas sexuais surgiram nele, após a sua familiarização
com os contos de fadas: Chapeuzinho Vermelho e O Lobo e os Sete Cabritinhos. Neste
último, as crianças eram tiradas da boca do lobo. Foi quando ele questionou se o lobo
seria uma figura feminina, ou se os homens também poderiam ter crianças dentro do
corpo. Na época desses questionamentos, ele ainda não tinha medo de lobos. Freud
(1918[1914]) citou um dos sonhos do seu paciente no qual ele julgava que havia muitos
conteúdos dos contos de fadas. Segue o Sonho (p. 45):
Sonhei que era noite e que eu estava deitado na cama. (meu leito tem o da
cama voltado para a janela: em frente da janela havia uma fileira de velhas
nogueiras. Sei que era inverno quando tive o sonho, e de noite). De repente, a
janela abriu-se sozinha e fiquei aterrorizado ao ver que alguns lobos brancos
estavam sentados na grande nogueira em frente da janela. Havia seis ou sete
deles. Os lobos eram muito brancos e pareciam-se mais com raposas ou cães
pastores, pois tinham caudas grandes, como as raposas, e orelhas empinadas,
como cães quando prestam atenção a algo. Com grande terror, evidentemente
de ser comido pelos lobos, gritei e acordei.
O paciente de Freud falava que durante anos na infância, ao ler os contos de
fadas, aterrorizava-se. Freud atrelou o medo do lobo à história de Chapeuzinho
Vermelho e ao conto do Lobo e os Sete Cabritinhos. Ele questiona se o lobo foi apenas
um representante paterno e se essas histórias, no seu conteúdo oculto, podem dar
89
margem a esses medos. Nos sonhos desse paciente de Freud, o personagem do lobo
apareceu várias vezes, sempre como substituto da figura paterna e ligada à cena
primária do coito dos pais; como Freud lembrava, na história de Chapeuzinho Vermelho
o lobo fica deitado na cama.
Ouvimos, popularmente, várias expressões em que o lobo aparece como
personagem, entre elas: “era um lobo com cara de cordeiro”. Como derivação do lobo,
temos o lobisomem, homem que se transforma em lobo, como castigo aos seus
malefícios e maldições. Um ser molestado. Inclusive, existe uma doença: Lupus que
é derivada desse mito, pois, com ela, o sujeito fica com aparência de lobo.
Freud (1918[1914]), em O Homem dos Lobos, também comenta o medo que
seu paciente tinha de bruxas, como também foi um dos fragmentos de casos que
citamos. A bruxa tem uma origem pré-romana, do latim brouxa ou do hápax lat pussc,
que significa mulher que tem fama de se utilizar supostas forças sobrenaturais para
fazer malefícios. Segundo Brunel (2005), a origem da escrita não poderia apagar o mito
da feiticeira, que assume características físicas e comportamentos determinados, fixos
e previsíveis. Todas senis, careteiras, que usam vassouras, roca de fiar, chapéu
pontudo e tem uma verruga no nariz.
O animal sapo, que em muitos contos vira príncipe, após um beijo, também se
tornou um mito. Nos casamentos atuais, em vez de jogar o bouquet, a noiva joga um
sapo príncipe para que ele se transforme num homem príncipe. E quando alguém
deseja que outro consiga um namorado, dá um sapinho.
A fada madrinha que tem origem no latim fata, deusa do destino, significa, ser
imaginário, do sexo feminino, a que se atribui poder mágico de influir no destino das
pessoas.
Existe a expressão utilizada tanto pelas bruxas como pelas fadas: Abracadabra
que foi uma fórmula utilizada na época medieval, segundo Chevalier (1991). Bastaria
utilizar esta expressão, como uma espécie de filactério, para conjurar várias doenças.
Tem origem hebraica: Abreg ad hábra, e era uma espécie de mitra, o deus solar,
sacrificador e salvador.
Esses foram alguns dos elementos dos contos que são marcantes na sociedade,
que, na opinião de muitos autores, com os quais concordo, tornaram-se mitos na
90
sociedade e são trazidos constantemente à clínica pelas crianças e pelos seus pais. O
mais marcante deles é o E foram felizes para sempre... Esta frase sempre finaliza o
conto. Mais adiante se discorre um pouco sobre esse mito.
Lacan (2007), utilizando a palavra de Lévi-Strauss, em seminário aprofunda Mito
Individual, individualizado na psicanálise, ou seja, o mito individual do neurótico. Diz em
seu Seminário da Transferência (1992) que, na situação de análise, o sujeito recorre ao
mito para falar do inexplicável que tece o seu conflito. O indivíduo constrói o seu próprio
mito, entrelaçado com mitos do coletivo como aqui no caso os contos de fadas, que
como foi visto no primeiro capítulo, constituem-se dos mitos da história da humanidade,
de acordo com Propp (2002, p. 12) e esse mito é trazido de um modo, pela
palavra:
(...) A psicanálise é talvez a única disciplina comparável a estas artes liberais,
pelo que preserva da relação do homem consigo mesmo relação interna,
fechada sobre si mesmo, inesgotável, cíclica que comporta por excelência o
uso da palavra(...) Ela implica sempre no âmbito de si mesma a emergência de
uma verdade que não pode ser dita, que o que a constitui é a palavra e seria
preciso de alguma maneira dizer a própria palavra, o que é propriamente
falando, o que não pode ser dito enquanto palavra.
É pelo fato da psicanálise se dar no campo da fala que ela não é objetivável. E o
sujeito em análise não fala a verdade no seu dizer, porque esta é impossível de ser dita
pela fala, e é por este motivo que a experiência analítica é propriamente falando, um
mito.
Corrêa (2001), reportando a clínica, no texto, A Psicanálise e seus Paradoxos,
exemplifica a fala de pessoas que se lamentam, por todo o tempo, de seus sofrimentos,
sempre responsabilizando os outros por seus infortúnios e que, de algum modo, dizem
que todos vivem melhor que elas, etc. Tais pessoas, como relembra esse autor,
retratam o que Hegel chamou de Bela alma, e continua, não existe ninguém no mundo
que não possua sofrimentos. Nesse texto, produzido através de seminário, o autor é
questionado sobre a busca da harmonia perfeita, desejada por todos, que ele situa
como o Mito da harmonia perfeita. Esse mito, destaca-se nesta pesquisa, encontra-se
nos contos de fadas, na famosa frase: E foram felizes para sempre. O mito, como nos
ensina Corrêa (2001), apresenta duas dimensões: Uma que diz respeito ao inatingível e
91
a outra que está no paradoxo de que sem mitos ninguém pode viver. O mito se constitui
como algo da ordem do ideal, o qual sempre buscamos, portanto, algo de individual e
não tão somente coletivo.
Corrêa (2001) assinala ainda, que a partir dessa dimensão mítica, entramos no
“reino da palavra”. Todos nós somos atravessados pelo mito da origem. E se pudermos
perceber, cada um, constrói um mito de sua própria origem. Uma criança no consultório
disse que, no momento do seu nascimento, chorou muito porque queria ir logo para os
braços da mãe e sair dos braços do médico. Mas o que narrava, inconscientemente,
deslizava-se no significante do desejo de não sair de perto da mãe, ou quiçá, de não
sair da mãe, que é seu sintoma.
Ao falar sobre isso a criança comentou depois sobre os seus medos, de ficar
dormindo, só, no quarto, em tempos chuvosos, pois achava que tinha uma bruxa em
cima do telhado de sua casa, mas ao mesmo tempo sabia que era o gato. Quando eu
contei pra ele a história de Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque, que em resumo
narra a historia de uma criança que ressignifica elementos para ela temerosos,
modificando as palavras para assim dominá-las, LOBO invertia-se em BOLO, bruxa em
XABRU, falou que era exatamente aquilo que fazia quando sentia medo. Ou seja,
criava artifícios de poder e dominação para lidar com o seu medo, que era a forma
racional de vivenciar a angústia que a afligia. E como se pode perceber, esse mito
criado por ela, entrelaçado com a solução no campo imaginativo, distorce a realidade.
Iguala-se a isso os “tropos” que Corrêa (2001) fala da linguagem. Esses “tropos” que
constituirão os desvios, os equívocos da fala, através de figuras retóricas. Vimos, com
esse autor, que desde os gregos, utilizava-se a palavra “tropos” para falar dos desvios
que ocorrem na linguagem, no sentido de produzirem uma retórica. Ivan Correa (2001),
por fim, quer dizer que, a partir dessa retórica, o sujeito traz uma estética ao seu
equívoco. Isso faz lembrar a fala de uma criança que ao assistir ao filme “chapeuzinho
Vermelho”, narra e reconstrói a história a sua maneira, de forma detalhada: no final
Chapeuzinho come o lobo e a vovozinha. Após intervenção, corrige-se e narra uma
versão que não corresponde a que é relatada no filme, mas que corresponde ao
desfecho dado por Perrault (1994), na versão clássica, na qual acontece um evento de
devoração que encerra a história. Este fragmento de caso clínico foi explicitado no item
92
acima. Ou seja, a criança não fala, não obstante, o que está embutido, refere-se ao
conflito psíquico, presentificado na sua ausência.
Faz-se necessário aqui, trazer novamente, a questão do endereçamento
proposto nesta pesquisa, quando pressupomos que o conto de fada ocupa um lugar de
endereçamento, que captura a criança, para fazer falar sua fantasia inconsciente e
construir o seu mito individual. Segundo a referida autora, Freud, ao construir a
psicanálise, escrevia cartas a Fliess, a quem Manoni (apud FREJ, 2003) chamou de
analista originário, e nos revelou a noção de “endereçamento”. De acordo com Frej
(2003) no seu texto Com um Grande X, essas cartas se apresentavam como
endereçadas a um destinatário sem nome. Ressalta que esta característica de
anonimato, em relação a este endereçamento, demonstra que a psicanálise foi se
fundamentando e constituindo sua base. Faz referência ao texto de Freud, O mal estar
na civilização (1929/1930) no qual ele se dirige ao público leitor dizendo: “a escrita foi,
em sua origem, a voz de uma pessoa ausente. E a casa para moradia constituiu um
substituto do o útero materno, o primeiro alojamento, pelo qual, com toda probabilidade,
o homem ainda anseia, e no qual se achava seguro e à vontade”. (FREUD 1930 apud
FREJ, 2003, p. 110-1). Considera-se importante a continuação desse dizer de Freud
(1930, p. 111):
Essas coisas que através de sua ciência e tecnologia, o homem fez surgir na
terra, sobre a qual, no princípio, ele apareceu como um débil organismo animal e
onde cada indivíduo de sua espécie deve, mais uma vez, fazer sua entrada (...)
como se fosse um recém-nascido desamparado – essas coisas não apenas
soam como um conto de fadas, mas também constituem uma realização efetiva
de todos – ou quase todos os desejos de contos de fadas. (p.111)
A partir desse momento da fala de Freud à Fliess, é que ela nos aponta o lugar
da voz do ausente, ou seja, do anonimato do endereçamento. E é nesse lugar do
ausente que se anuncia o movimento que Freud, em sua obra propõe, e que Frej
(2003) elucidou, que se refere ao termo Aufhebung, termo que Freud utilizava, e que
toca em algo do originário. E, esses termos, continua a autora, inclina-nos para esses
espaços que se constituem no homem, como fronteira entre o sujeito e o objeto.
Os contos de fadas também foram lançados ao anonimato, e depois, com o
surgimento do novo conceito de família burguesa, como mostra Zilberman (2003), no
93
qual passou a se construir o conceito de infância, foi que esse tipo de literatura tornou-
se endereçada a um público infantil, com o objetivo de educação.
Esse endereçamento dos contos de fadas para as crianças torna-se diferente do
endereçamento proposto por Frej (2003); uma vez que, ainda com o objetivo de atender
ao público infantil, ou seja, que tenham sido escritos para que fossem lidos pelas
crianças, com o objetivo de educá-las, os contos de fadas são endereçados para a
linguagem, ou seja, ao anonimato. Desse modo a criança escuta a história, ou e
apreende de várias formas. Cada uma delas traz uma história singular articulada aos
contos de fadas, e isso vai fazer com que, a partir do discurso transmitido pelo conto,
dos elementos que os constituem, a criança construindo sua própria história
começando com os significantes que os contos vão lançando no inconsciente de cada
uma delas.
Como então diferenciar o mito individual do mito coletivo? Lacan (2007) propõe
que a diferença se trata de razões históricas, que explicarão a narrativa mítica de
acordo com a crença existente nela, ou seja, a crença individualiza o mito coletivo.
Essa individualização do mito, Lacan (2007 ), diz que implica numa “possessividade” do
mesmo. Dito de outro modo, a criança quando traz o conto de fada, ao falar da sua
fantasia, ela se apropria do conto, tornando-o assim, individual. E o conto deixa de ser
apenas uma ficção, e passa a fazer parte, também, do universo mítico daquela criança
e de sua família.
Mito significa, como se observou, palavra. Palavra significa em dicionário
unidade da língua escrita, entre dois espaços em branco, como diz Houaiss (2004).
Chama-me atenção essa definição pelo que aprendemos em seminários quando
falamos da relação que a mãe estabelece com o bebê ao nascer. Uma relação que é
atravessada pela linguagem, por meio do que Lacan chamou do Nome- do-pai,
significante primeiro, que vai permitir à criança, a passagem para a condição de sujeito.
É através da palavra, desses espaços em branco, dessa falta, que o homem se torna
sujeito. E a palavra justamente irá surgir nos espaços em branco da escrita inscrita no
inconsciente, através do que o sujeito traz pela fala. Corrêa (2007), em seminário no
CEF (Centro de Estudos Freudianos), afirma que a palavra presentifica o ausente. De
acordo com Frej (2005), esse momento, indiferenciado, da mãe com o bebê, o reenvia
94
para aquele estado ficcional, que segundo Freud (2005), antecede o momento que se
refere à primeira experiência de satisfação, que serve de base para o surgimento do ser
humano. É naquilo que, em sentido não cronológico, antecede a experiência de
satisfação, momento onde prevalece uma continuidade que, em sua tese, Frej (2003),
denominou de merenfant, que irá se dá o corte, constituinte da primeira fronteira entre o
organismo e o ser humano. Essa inscrição primeira é marcada por uma Aufhebung dos
estímulos endógenos, como afirma Frej (2005). E nesse momento, continua a autora, o
bebê, que ainda se encontra incapaz de realizar a ação específica para retornar ao seu
equilíbrio, recebe uma ajuda estrangeira, daquele que lhe cede cuidados. Este que,
marcado também por este corte primeiro, dado pela ação da palavra, possibilitará a
inscrição dessa falta no bebê, instituindo-o enquanto sujeito.
Magalhães (1998), citando Freud Em “Romances Familiares”, nos ensina que a
criança tenta encontrar no mito, acrescenta-se aqui, no conto de fada, um recurso para
dizer o que é impossível de ser dito. É através do conceito de inconsciente que Freud
traz para a Psicanálise o valor do mito. Diz Freud (op. Cit.) que, do mesmo modo que
no mito está o que de mais real, igualmente está no sonho também, o que de
mais real. E foi no cerne do mito individual do neurótico que Freud estendeu toda a
ficção literária. E toda ficção, (FREUD apud MAGALHÃES, 1998), constitui-se a partir
da linguagem. O mito como fazendo parte da linguagem, conforme foi exposto, se
torna para cada um, idiossincraticamente, uma maneira de dizer o que é impossível de
ser dito.
Por fim, sempre algo de faltante no dizer, no falar e no narrar, e a criança, ao
se deparar com esse algo mais, inaudito, repete a história, várias vezes, e se
presentifica O era uma vez... Repete, reconta, reconstrói, pede para que seja narrada,
até que, na exaustão, tropece nos equívocos de sua história, no mito de sua história
individual.
95
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Coyote, Coyote, Please tell me
What is magic?
Magic is the first taste
of ripe strawberries and
magic is a child dancing
in a summer’s rain.
Peter Blue Cloud, “Elderberry Flute Song (1989)
(Coiote, Coiote, por favor, me diga/ O que é a magia?/
Magia é o primeiro gosto/ das framboesas maduras, e/
magia é uma criança dançando/ sob a chuva de verão)
Este trabalho de dissertação, apesar de cunho teórico, propiciou várias reflexões
e descobertas que me fizeram pensar, com mais desenvoltura, a clínica com crianças,
principalmente, no momento em que se elucida os contos de fadas aqui destacados.
Muitos analistas e psicólogos utilizam-se dos recursos das narrativas desses
contos como qualquer outro elemento da psicoterapia, e que, no caso da criança,
poderia ser visto apenas como um suporte transferencial, “empático”, pois, de certo
modo, traria o aspecto lúdico às sessões.
Contudo, é preciso pensar que a clínica com criança não é a “miniatura
superficial” da clínica com adultos. O falar da criança é gestual e é uma mimesis, no
sentido aristotélico da palavra. Uma imitação que em psicanálise se retrata também na
repetição. Enfim, na clínica com criança, esses supostos elementos “infantis” são
palavras, significantes, que se reeditam do mesmo modo que no adulto, mas de outra
forma. Com base na teorização empreendida sobre a criança, o adulto e a questão do
infantil, observa-se que a distância que se estabelece entre o adulto e a criança não é
tão alargada. Adultos também continuam sendo capturados pela narrativa dos contos
de fadas: não seriam incomuns discursos de Gatas Borralheiras, de Alices, de
Pequenos Polegares, de Príncipes Encantados e de Rapunzéis entre as pessoas mais
maduras.
96
A questão trica considerada mais relevante nesse trabalho remete a essa
clínica com crianças, na qual os contos de fadas foram evidenciados como um veiculo
de tratamento psicoterapêutico. O conto de fada, como foi visto no primeiro capítulo
deste trabalho, não é um conto qualquer. Na realidade, tem uma carga mítica
significativa, e não é sem motivo, que ele se repete em sua forma mais “tradicional”, nos
discursos do sujeito contemporâneo. Essa proximidade, esse lugar de uma fronteira
indemarcável, entre o conto de fada e os mitos primitivos, foi, quiçá, a maior surpresa
que esse trabalho pôde trazer. De fato, pode-se observar que, a humanidade, com todo
seu atual aparato tecnológico e de tradição epistêmica, fortemente influenciada pelo
racionalismo, pelo pragmatismo e pelo empirismo, ainda assim, na sua individualidade,
acredita em duendes, em feiticeiras, em bruxas, em sereias, em Monstro do Loch Ness
entre outros. Os norte-americanos mantém o temor ao Coiote e ao Grande. Entre
nós, os brasileiros, teme-se os encantamentos da Comadre Florzinha, da Caipora e as
travessuras do Saci-Pererê. Como se pode compreender tamanho anacronismo? Penso
que pelo estudo da mitologia e pelas contribuições da psicanálise, se pode
compreender, de maneira menos paradoxal, esses impasses. Os contos, conforme foi
pesquisado, repetem, na ontogênese uma tradição filogenética. A psicanálise, talvez
tenha sido, um dos únicos saberes, a não trazerem isso como um anacronismo, mas
como uma sobreposição, ou como diz Frej (2003) uma Aufhebung, onde se conserva e
se supera elementos primevos e contemporâneos, mantendo-os num lugar de fronteira.
Além do mais, como é sabido de todos, a psicanálise é um dos poucos saberes que
mais se utilizou de textos míticos e literários para se fundamentar e fundamentar a sua
clínica.
Na elaboração desse trabalho, nos pequenos fragmentos ilustrativos, destacados
nesta pesquisa, fui percebendo que, ao falar a sua fantasia, ao narrar a sua história, a
criança ia construindo um mito individual a partir do conto de fada e dos significantes
que iam sendo emergidos nas entrelinhas de cada enredo. Lacan no seu livro: “O mito
individual do neurótico”, deixou claro que o mito se torna individual quando o sujeito
acredita nele. De acordo com o teórico Propp o conto de fada surgiu a partir dos mitos e
retratam os rituais das sociedades. Desse modo, penso que se uma construção do
conto de fada, do mito, segundo as tradições das sociedades, os contos, que a cada
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geração, vai se modificando, também segue o mesmo trajeto. Se os contos e os mitos –
como foi mostrado por Benjamim, Propp, Bethelheim e outros – oferecem modelos para
os comportamentos humanos, e acredito, para sua constituição, o sujeito também vai
construindo novos mitos que vão se consolidando na história. No entanto, esses mitos e
contos, ainda que transformados, permanecem com os elementos axiais de suas
origens, se assim puder ser designado, pois como foi estudado, não se tem uma origem
definida dessas narrativas. Entretanto o que se pôde ver, à luz da psicanálise de Freud
e Lacan, foi que esses contos são constituídos de elementos arcaicos que remontam ao
conflito psíquico, de modo que pudemos observar na clínica, que as crianças repetem o
seu conflito, utilizando como veículo, os contos de fadas, e vão, na relação
transferencial, construindo o seu mito individual.
As descobertas dos elementos míticos, transpondo-os à psicanálise nos
conceitos de repetição e transferência, foi bastante elucidativo. Contudo, todo estudo
que envolve um saber tão extenso, sempre se mostrará incompleto, mesmo que nele se
estabeleça recortes que tentem fazê-lo conciso. Uma pesquisa que envolva a
psicanálise, e que se aproxime da clínica, cria, por vezes, um entrelace de
possibilidades de temas a serem problematizados. A exemplo, um simples relato de um
fragmento de sonho narrado por Freud, o conhecido sonho da “Injeção de Irma”, gerou
inúmeras e incontáveis possibilidades de construções teóricas; que dizer de um
trabalho que fala de conto de fadas?
Desse modo, várias idéias se abrem para aprofundar esse tema: seria muito
interessante estudar, por exemplo, os formatos de narrativas em outros meio de
apresentação: na televisão, no cinema, no teatro. Outra questão, que também se
levantou durante o percurso dessa dissertação, residia nas atenuações ou
transformações que os contos iam tendo à medida que se chegava aos períodos mais
atuais (contudo o enredo mesmo deformado tendia a esse manter). Uma informação
interessante, elucidou-se na relação de deslocamento entre alguns personagens dos
contos de fadas e a figura paterna dentro dos princípios da horda primeva. Outra
possibilidade seria um aprofundamento no que diz respeito à angústia causada pela
relação que a criança estabelece com os contos de fadas, assim como a relação com o
texto “O Estranho”, de Freud. São tantas possibilidades, cada uma mais atraente que a
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outra, e que, certamente, poderiam ser problematizadas em outro, ou outros, trabalhos.
Trabalhos que assim como no poema, trazem de volta a magia mítica que toca no
sujeito: a criança e nas framboesas maduras, ou seja, nos adultos.
99
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