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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
O USO DE CANNABIS SATIVA (MACONHA) PELO
FILHO E SUAS REPERCUSSÕES NAS RELAÇÕES
FAMILIARES
RENATA TORRES DA COSTA MANGUEIRA
RECIFE / MARÇO DE 2005
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE TEOLOGIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
O USO DE
CANNABIS SATIVA
(MACONHA) PELO FILHO E SUAS
REPERCUSSÕES NAS RELAÇÕES FAMILIARES
RENATA TORRES DA COSTA MANGUEIRA
Dissertação apresentada como requisito à
obtenção do título de Mestre em Psicologia
Clínica na Linha de Pesquisa: Construção da
Subjetividade na Família, pela Universidade
Católica de Pernambuco, sob orientação do Prof.
Dr. Marcus Túlio Caldas e co-orientação da Profª.
Drª. Zélia Maria de Melo.
RECIFE / MARÇO DE 2005
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4
RENATA TORRES DA COSTA MANGUEIRA
O USO DE CANNABIS SATIVA (MACONHA) PELO FILHO E SUAS
REPERCUSSÕES NAS RELAÇÕES FAMILIARES
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________________________________________
PROFª. DRª. CRISTINA MARIA DE SOUZA BRITO DIAS
________________________________________________________________
PROF. DR. MOAB DUARTE ACIOLI
________________________________________________________________
PROF. DR. MARCUS TÚLIO CALDAS
RECIFE / MARÇO DE 2005
5
AGRADECIMENTOS
A minha estimada família, pelo apoio que me foi dado na realização deste trabalho
e pela confiança em mim depositada.
Ao professor Dr. Marcus Túlio Caldas, orientador desta pesquisa, profissional
dedicado e exemplar que, de maneira amiga e respeitosa, contribuiu imensamente para meu
conhecimento científico.
A professora Drª Zélia Maria de Melo, co-orientadora dessa pesquisa e amiga
especial.
Aos professores Drs. Cristina Maria de Souza Brito Dias e Moab Duarte Acioli,
pela disponibilidade em ler na integra esse trabalho, contribuindo para uma melhoria do
mesmo.
Aos profissionais e amigos do Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação
Humana (CECRH).
Aos amigos do mestrado, especialmente a amiga Veridiana Costa.
Aos entrevistados, por terem me possibilitado a aprendizagem nos momentos de
dúvida, por terem sido meus mestres.
A professora mestra Irinéa Nunes Catarino que me motivou a pesquisar cada vez
mais o tema das drogas.
A todos aqueles que contribuiram, de forma singular, para realização deste
trabalho, registro meu agradecimento.
6
EPÍGRAFE
“Somos aquilo que fazemos com o que fizeram conosco”.
Jean Paul Sartre
7
RESUMO
A existência de um usuário de drogas compromete a organização do sistema familiar,
interferindo na qualidade das suas relações. A revelação do uso de droga é um momento
crucial no relacionamento entre o usuário e seus familiares, e todas as condutas posteriores
dependerão de como transcorre este momento. São recentes, no Brasil, estudos sobre as
relações entre o usuário de Cannabis sativa e seus familiares. A ampliação das pesquisas e
práticas nesta área poderá ser uma alternativa a mais para tratar a dependência, o que ressalta
a relevância da nossa pesquisa. Este trabalho teve como objetivo geral realizar um estudo de
caso sobre uma família cujo filho é usuário de Cannabis sativa (maconha) e como objetivos
específicos: 1. analisar como os familiares lidam com o uso de Cannabis sativa pelo filho; 2.
investigar como o usuário acolhe as interferências de seus familiares diante do seu uso de
droga; 3. estudar o que ocorre nesta família, quando o uso de Cannabis sativa pelo filho é
revelado. Para a execução da pesquisa, mantivemos contato com um usuário em atendimento
no Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação Humana (CECRH) — instituição de tratamento
para usuários e/ou dependentes de substâncias psicoativas pertencente à Rede de Saúde do
Estado de Pernambuco — como também com seus familiares. O trabalho foi desenvolvido
com base na Teoria Geral dos Sistemas e utilizou, como técnica, a entrevista semidirigida. As
conclusões do nosso trabalho demonstraram que, a partir do momento em que a revelação do
uso de droga é assumida pela família, o filho passa a ocupar um papel central nas relações
familiares. Questões de significativa importância para essa família e que, até então, não
haviam sido discutidas, tais como o fato do filho usuário ter nascido para “substituir” uma
irmã falecida precocemente; a ausência de cuidados dos pais na vida do filho; o uso abundante
de bebidas alcoólicas pela família; a dependência de álcool do avô e do pai; assim como o uso
de Cannabis sativa pelo primo, mobilizaram a busca de uma convivência mais saudável entre
os membros dessa família, que apresenta intensa disfuncionalidade nas suas propriedades
sistêmicas. Concluímos ser essencial a terapia familiar do usuário de droga, para que o
sistema retome as possibilidades de funcionamento adequado, solucionando, assim, seus
impasses e restaurando a harmonia entre seus membros.
Palavras - chave: Família – Uso de drogas psicoativas – Teoria Geral dos Sistemas.
8
ABSTRACT
The fact of having a drug user in the family compromises its organization, interfering in the
quality of its relations. The drug use revelation is a crucial moment in the relationships
between the user and his relatives; all the further conduct will depend on how this moment
has been. Not until recently have there been in Brazil studies of the relation between the
Cannabis sativa users and their families. The increase of researches and the practice in this
area may be another alternative to treating dependency, which confirms the relevance of our
research. This paper aims generally at performing a study case of a familiy whose son is a
user of Cannabis sativa (marijuana). More specifically it aims at: 1. analyzing how relatives
deal with the use of Cannabis sativa by the son; 2. investigating how the user accepts the
requests of his family about drug use; 3. studying what happens in this family, when the use
of Cannabis sativa is revealed by the son. In the research, we had contact with one user at
Eulâmpio Cordeiro Human Rehabilitation Center (CECRH) – one institution for users and / or
people dependent on psychoactive substances in the public health care system of the state of
Pernambuco – as well as with his relatives. The work was developed based on the General
Systems Theory and used the semidirect interview aproach. The conclusions of our paper
have shown that since the moment in which the revelation of drug use is understood by the
family, the son starts to have a central role in the family relations. Matters of significant
importance to this family and that had not been discussed so far, such as the falt that the user
was born to “substitute” a sister who passed away precociously; the parents’ absence of care
for the life of the son; the abundant use of alcoholic drinks by the family; the father’s and
granfather’s alcohol dependency; as well as the use of Cannabis sativa by the cousin, led to
the search for a healthier life among the members of this family, which is intensily
disfuncional in its systemic properties. We have concluded that family therapy is essential for
the user’s family, so that this system can work properly again, thus, solving the differences
and restoring the harmony among its members.
Key-words: Family – Psychoactive drugs use – General System Theory.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................11
CAPÍTULO 1 - REFLEXÕES SOBRE A CANNABIS SATIVA ( MACONHA)..............15
1.1 Características da maconha.............................................................................................15
1.2 Vias de administração e dose...........................................................................................16
1.3 Os efeitos da maconha......................................................................................................18
1.4 Panorama jurídico atual da Cannabis sativa (maconha) no Brasil..............................25
CAPÍTULO 2 - FAMÍLIA E TEORIA GERAL DOS SISTEMAS...................................29
2.1 Família: características.....................................................................................................29
2.2 A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) aplicada à família.................................................31
2.3 A família do dependente de drogas.................................................................................40
CAPITULO 3 – MÉTODO UTILIZADO PARA REALIZAÇÃO DA PESQUISA........44
CAPÍTULO 4 - ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS.....................................47
4.1 Apresentação da família...................................................................................................48
4.1.1 Perfil dos familiares entrevistados................................................................................48
4.1.2 História do uso de maconha pelo filho.........................................................................49
4.1.3 História da família.........................................................................................................50
4.2 Análise da família..............................................................................................................53
CONCLUSÕES ......................................................................................................................68
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................72
10
ANEXOS
ANEXO Nº 1 – Termo de Aprovação do Comitê de Ética..................................................77
ANEXO Nº 2 – Termo de Consentimento.............................................................................78
ANEXO Nº 3 – Transcrição das Entrevistas........................................................................79
11
INTRODUCÃO
O interesse pelo estudo do usuário de drogas e sua família surgiu desde a época do
curso de formação em Psicologia, intensificando-se quando, visando adquirir conhecimentos
sobre a organização dessas famílias, passamos a participar, no ano de 1999, como ouvinte, do
grupo de apoio a familiares de usuários de drogas chamado "Amor Exigente".
Com o intuito de pesquisar mais sobre uso e dependência de drogas, fizemos parte
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da
professora Irinéa Catarino, com pesquisa intitulada “A família do dependente químico:
sofrimentos e implicações”, entre setembro de 2000 a julho de 2001.
Como continuidade à referida pesquisa, em dezembro de 2001, apresentamos a
monografia “Reflexões sobre a participação da família no tratamento do dependente de
drogas”, como um dos requisitos para a conclusão do curso de formação em Psicologia
Clínica.
Durante o período de julho de 2002 a dezembro de 2003, realizamos, na qualidade
de terapeuta, atendimentos individuais e de grupo operativo para usuários e/ou dependentes de
drogas (crianças, adolescentes e adultos) e seus familiares, no Centro Eulâmpio Cordeiro de
Recuperação Humana (CECRH) – instituição de tratamento para usuários e/ou dependentes
de substâncias psicoativas pertencente à Rede de Saúde do Estado de Pernambuco.
O Centro Eulâmpio Cordeiro resultou do projeto de prevenção e terapêutica das
dependências de drogas do Estado de Pernambuco. A instituição foi implantada em 1986, com
objetivo de atuar na prevenção, tratamento e pesquisa na área das dependências químicas. É
constituída por uma equipe multidisciplinar da qual fazem parte médicos psiquiatras, clínico,
psicanalistas, psicólogos, terapeuta ocupacional, assistentes sociais, odontólogo e pedagogos.
12
O uso de drogas sempre esteve presente em diferentes culturas e grupos sociais
que as utilizam por motivos que lhes são próprios, variando em forma, freqüência e função.
(BARRETO, 2000; CORDÁS; MORENO, 2001).
Segundo Kalina (1991), a drogadição poderia ter a função de neutralizar uma
carência, diminuir uma ansiedade ou devolver, temporariamente, ao indivíduo uma força
perdida ou até mesmo uma esperança.
As "soluções fáceis" e momentâneas, que as drogas proporcionam, são
comumente aceitas, em função das dramáticas necessidades afetivas de muitos seres humanos.
A droga é oferecida como uma solução possível para os males da vida, para suprir, de algum
modo, as dificuldades emocionais, estejam elas ligadas ao relacionamento humano, à perda de
objetivos de vida, ou à incapacidade de encontrar satisfação para a realização de si mesmo.
A Cannabis sativa (maconha) é amplamente utilizada em todo o mundo, sendo
considerada a droga ilícita (proibida por lei) mais consumida em nosso país. Está no centro
das discussões realizadas entre médicos, psicólogos, advogados, professores, pais de família,
adolescentes, idosos, enfim, a sociedade em geral.
Uma das estruturas sociais mais afetadas pelo uso de drogas é a família, por isso,
ao se falar em dependência de drogas não estamos nos referindo apenas a um indivíduo,
porém a uma família, que forma um sistema, no qual a dependência química de um de seus
membros, quando se instala, afeta todos os demais. Este problema, geralmente, provoca fortes
sentimentos de culpa, raiva, frustração e medo em todos os integrantes da família.
A partir da década de 50, a psicoterapia familiar surge como uma possibilidade de
tratamento para diferentes problemas, inclusive a dependência de drogas (SILVA, 2001).
Conceitos como o de homeostase familiar, paciente identificado e a teoria dos papéis foram
rapidamente adaptados a este campo de estudo (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). A
13
ampliação das pesquisas e práticas nessa área poderá ser uma alternativa a mais para tratar a
dependência.
Em nossa prática clínica, temos observado que o momento da revelação do uso de
droga pelo filho é crucial na história dessas famílias, uma vez que se trata do início de um
processo que irá repercutir de maneiras as mais diversas e inesperadas nas relações familiares.
Muitas vezes, o relacionamento com este filho torna-se difícil, estendendo-se o conflito para
outros membros da família.
O objetivo geral desta pesquisa é realizar um estudo de caso sobre uma família
cujo filho é usuário de Cannabis sativa (maconha). Temos como objetivos específicos:
1. Analisar como os familiares lidam com o uso de Cannabis sativa pelo filho;
2. Investigar como o usuário acolhe as interferências de seus familiares diante do
seu uso de droga;
3. Estudar o que acontece nesta família, quando o uso é revelado.
Esta dissertação ficou dividida em quatro capítulos, descritos a seguir:
1. Reflexões sobre a Cannabis sativa (maconha), no qual fazemos comentários
sobre a Cannabis sativa (maconha), sobre a maneira como essa droga pode ser consumida, a
quantidade que comumente é utilizada e os efeitos que provoca no organismo. Para finalizar
esse capítulo, apresentamos um panorama sobre a situação jurídica atual da maconha em
nosso país.
2. Família e Teoria Geral dos Sistemas, onde interrelacionamos família, Teoria
Geral dos Sistemas e uso de drogas, o que é fundamental para compreender o trabalho que
desenvolvemos.
3. Método, no qual descrevemos o método utilizado para a realização da pesquisa:
participantes, instrumentos, procedimentos de coleta e de análise dos dados.
14
4. Análise e discussão dos resultados, capítulo dedicado à análise e à discussão
dos resultados obtidos na pesquisa que realizamos.
Para finalizar esta dissertação, apresentamos nossas
conclusões
sobre esta
pesquisa e convidamos os leitores a fazerem suas considerações a respeito da mesma.
15
CAPÍTULO 1
REFLEXÕES SOBRE A
CANNABIS SATIVA
(MACONHA)
1.1 Características da maconha
A Cannabis sativa (maconha) faz parte do grupo de drogas consideradas
alucinógenas, perturbadoras do Sistema Nervoso Central (SNC) ou psicodislépticas, que são
aquelas que alteram a percepção e provocam distúrbios no funcionamento do cérebro, fazendo
com que ele passe a trabalhar de maneira desordenada.
A maconha comumente usada é uma mistura das folhas, sementes, caules e flores
da planta que tem o nome científico de Cannabis sativa. Pode ser verde, marrom ou cinza.
A Cannabis é obtida do cânhamo, nome este mais genérico. Mais conhecida como
maconha, é também chamada de baseado, fininho, marrom, bagulho, erva, marihuana,
diamba, fumo, brabo, malva, liamba, hemp, chasra, ganja, dagga, beck, ralf, mingote, jererê,
bangh, mato, Maria. Só nos EUA existem mais de 200 nomes diferentes que são atribuídos a
esta droga
1
.
Sobre a Cannabis, Bonet e Jiménez (1998, p.89) descrevem:
É uma planta anual que pode chegar a medir, em condições mais favoráveis de
temperatura, umidade e solo, até 6 metros de altura. É um vegetal dióico, quer dizer,
tem plantas macho e fêmea, que crescem por separado. A planta macho só morre
depois do ciclo de floração, ainda que tenha tamanho maior que a fêmea. Em
ambientes tropicais a planta segrega uma maior quantidade de resina, pelo que se
propõe que tal secreção é um mecanismo de defesa frente à umidade ambiental. A
potência de ambas, macho e fêmea, quer dizer, a riqueza em substâncias ativas, ao
contrário do que se acreditava é similar (Tradução nossa).
1
Estes nomes da maconha, que citamos, foram encontrados em autores como: Kaplan, Sadock e Grebb (1997),
Bonet e Jiménez (1998), Barreto (2000), Silveira (2000), Saint Clair, Cerqueira e Azevedo (2001), SENAD
(2001, nº 4ª e 5
b
).
16
Complementando as informações sobre esta planta, todas as suas partes contêm,
em maior ou menor proporção, canabinóides psicoativos. De acordo com Kaplan, Sadock e
Grebb (1997), são 60 componentes reconhecidos, dentre os quais o delta-9-
tetrahidrocanabinol (THC) é o mais abundante e com maior atividade.
Laranjeira e Nicastri (1996) assinalam que a potência da maconha varia de acordo
com as condições de crescimento da planta, suas características genéticas e a combinação das
diferentes partes dela que foram utilizadas. Em função da quantidade de THC que pode mudar
de acordo com o solo, clima, estação do ano, época de colheita, tempo decorrido entre a
colheita e o uso, a potência da maconha pode oscilar, ou seja, produzir mais ou menos efeitos.
A maior concentração de THC encontra-se na flor, que diminui progressivamente, à medida
que se analisam as folhas superiores, inferiores, caules e sementes.
Além da maconha comum, existe a variedade “sinsemilla” (sem semente, que só
contém botões e as flores da planta fêmea), o haxixe (que vêm da inflorescência superior das
plantas ou do exsudato seco, marrom-escuro e resinoso das folhas), a skank (maconha
cultivada por técnicas específicas em laboratório), e o óleo de haxixe (líquido resinoso e
espesso que se destila do haxixe) (SENAD, 2001, n°4
a
).
Os efeitos que a Cannabis irá produzir no organismo dependem, entre outras coisas,
da maneira como esta droga é consumida e da quantidade ingerida.
1.2 Vias de administração e dose
Quando um indivíduo fuma um cigarro de maconha, existe um pico de
intoxicação que ocorre entre 10 e 30 minutos. Seu efeito, normalmente, dura de 2 a 4 horas
dependendo da dose utilizada (LARANJEIRA; NICASTRI, 1996), porém, a alteração
comportamental e psicomotora pode durar mais algumas horas.
17
A forma de administração mais usada é a inalatória. A planta da Cannabis
geralmente é cortada, secada, picada e, então, fumada enrolada em forma de cigarro
(KAPLAN et.al., 1997). Após a inalação, o usuário geralmente mantém a fumaça nos
pulmões por alguns segundos para garantir uma maior absorção do THC pelos pulmões.
Alguns fumam em cachimbo; existe uma variedade que filtra a fumaça com água,
conhecido em inglês como “bong”. A maconha também é ingerida misturada com alimentos
(dessa forma, o efeito demora cerca de 1 hora para se instalar e, embora seja de menor
intensidade, sua duração é mais prolongada), e há aqueles que consomem em forma de chá
(CORDÁS; MORENO, 2001; LARANJEIRA; NICASTRI, 1996).
A potência da droga é medida de acordo com a quantidade média de THC
encontrada nas amostras de maconha. Laranjeira e Nicastri (1996, p.103) dizem que
um cigarro típico de maconha contém entre 0,3 e 1,0g de Cannabis, que pode variar
na concentração de THC entre 1 e 10%. Mesmo o usuário experiente, geralmente,
consegue absorver no máximo 50% do THC do cigarro. Em geral, pequenas
quantidades de 2-3 mg de THC são suficientes para produzir um breve efeito no
usuário ocasional, e um cigarro é suficiente para três a quatro fumantes. Um usuário
pesado pode consumir quatro a cinco cigarros por dia.
Mais recentemente, encontramos na cartilha da SENAD - Secretaria Nacional
Antidrogas (2001, n°4
a
, p.5), os seguintes percentuais:
A maconha comum contém uma média de 3% de THC; asinsemilla” tem uma média
de 7,5% de THC, mas pode chegar a ter até 24%; o haxixe tem uma média de 3,6%,
mas pode chegar a ter até 28%; a skank, pode ter até 35% de THC; e o óleo de haxixe
tem, em média, 16% de THC, mas pode chegar a ter até 43%.
A maior parte da bibliografia consultada aponta que as modalidades de maconha
disponíveis são cada vez mais potentes, ou seja, os percentuais de THC encontrados nas
amostras de maconha vêm aumentando ao longo dos anos.
18
1.3 Os efeitos da maconha
Alguns fatores são essenciais para determinar os efeitos que uma substância
psicoativa provocará no indivíduo. Laranjeira e Nicastri (1996); Kaplan et.al.
(1997); assim
como Seibel e Toscano Jr (2001) apontam para:
9 O tipo, a qualidade (grau de pureza), a quantidade e a forma como a droga é utilizada;
9 A pessoa que está utilizando, com suas características biológicas (físicas) e
psicológicas, o estado emocional em que se encontra, e suas expectativas em relação
ao uso da mesma;
9 O meio ambiente em que a droga está sendo utilizada, ou seja, o local, as pessoas,
enfim, toda situação de uso.
A seguir, descreveremos os efeitos mais comuns provocados pelo uso de
Cannabis sativa (maconha). Propomos classificá-los em quatro grupos: 1. Efeitos agudos
(físicos e psíquicos); 2. Efeitos adversos potenciais e complicações do uso crônico; 3.
Efeitos benéficos da erva: uso medicinal.
A respeito dos efeitos físicos (ação sobre o corpo ou partes dele) e dos efeitos
psíquicos (ação sobre a mente), podemos afirmar que sofrerão mudanças de acordo com o
tempo de uso que se considera; que, por sua vez, podem ser agudos, quando decorrem apenas
algumas horas após fumar, e crônicos, que são as conseqüências que aparecem após o uso
continuado por semanas, meses, ou anos.
Passaremos, em seguida, a detalhar os efeitos agudos (físicos e psíquicos),
produzidos pelo uso de Cannabis sativa.
19
1. Efeitos agudos (físicos e psíquicos)
Os efeitos agudos físicos
mais comuns envolvem
a dilatação dos vasos sanguíneos das conjuntivas / hiperemia das conjuntivas (olhos
vermelhos), taquicardia (o coração dispara, de 60-80 batimentos por minuto podendo
chegar a 120-140 ou até mesmo mais), xerostomia (boca seca), tosse, palidez e
pupilas dilatadas. Tremores de mãos, prejuízo da coordenação motora e diminuição
da força muscular (CORDÁS; MORENO, 2001, p.339).
Os efeitos agudos psíquicos,
em geral, são excitação seguida de relaxamento,
sensação de bem-estar, euforia, vontade de rir (hilaridade), falar em demasia, diminuição da
ansiedade (SILVEIRA, 2000). Após cessar o efeito da Cannabis, a pessoa sente uma fome
irresistível (conhecido como “larica”), principalmente por doces, seguida por aumento da
sede. Embora menos freqüentes, podem ocorrer: angústia, ansiedade, que, muitas vezes, pode
chegar ao pânico, disforia ou depressão.
Como vimos, os efeitos podem ser caracterizados como agradáveis ou
desagradáveis. Quando predominam os efeitos desagradáveis, ocorre o que, comumente, se
conhece por “má viagem” ou “bode”.
Laranjeira e Nicastri (1996, p.103-104) apontam, ainda, outros efeitos agudos,
como
aumento de desejo sexual, ilusões transitórias, alucinações, aumento da sensibilidade
interpessoal, afrouxamento das associações (facilitando o aparecimento de fantasia),
uma maior percepção das cores, sons, texturas e paladar, um aparente aumento na
capacidade de introspecção e na capacidade de ser absorvido por sensações de
conteúdo sensual, sensações de flutuar e aumento na autoconfiança. As habilidades de
falar coerentemente e formar conceitos ficam comprometidas
.
Em uma pessoa sob o efeito da maconha, uma perturbação na capacidade de
calcular tempo e espaço e um prejuízo na memória e atenção, são evidentes. Dessa forma, a
20
pessoa erra grosseiramente na discriminação do tempo, tendo a sensação de que se passaram
horas, quando, na realidade, foram apenas alguns minutos. Quanto aos efeitos na memória,
eles se manifestam, principalmente, na chamada memória a curto prazo (prejuízo na memória
para fatos recentes). Pessoas sob esses efeitos não deveriam executar tarefas que dependem da
atenção e do discernimento, pois correm o risco de prejudicar outros e/ou a si próprios
2
.
Os efeitos do uso crônico misturam-se com as complicações provocadas pela
Cannabis sativa. Pela sua importância comentaremos abaixo esses aspectos.
2. Efeitos adversos potenciais e complicações do uso crônico
Os efeitos adversos potenciais mais sérios do uso da maconha decorrem da
inalação dos mesmos hidrocarbonos carcinogênicos que estão presentes no tabaco
convencional. Kaplan et.al. (1997, p.404) relatam que “os usuários pesados de Cannabis estão
em risco de doença respiratória crônica e câncer pulmonar. A prática de fumar os cigarros,
contendo Cannabis, até o final, aumenta ainda mais o consumo de alcatrão”.
Para Barreto (2000), essa erva, além de afetar os pulmões e o sistema cárdio-
respiratório, também afeta o sistema reprodutor feminino e masculino e desencadeia
problemas comportamentais. Questões como irritabilidade anormal, hostilidade e mudança
brusca de humor, atualmente, ainda são bastante discutidas e pesquisadas. Apesar da maconha
estar normalmente associada a um comportamento “tranqüilo e relaxado”, em nossa
experiência clínica no Centro Eulâmpio Cordeiro, no atendimento a usuários de maconha e
seus familiares, observamos, com uma certa freqüência, queixas da família em relação ao
comportamento agressivo do usuário após fumá-la. Não podemos dizer se esse
2
Vários autores estão de acordo com esta afirmação entre eles: Barreto (2000); Bonet e Jiménez (1998), Cordás
e Moreno (2001), Laranjeira e Nicastri (1996), Kaplan et. al. (1997), Seibel e Toscano Jr (2001), Silveira (2000).
21
comportamento deriva do efeito da maconha no organismo, ou apenas realça aspectos da
personalidade que o usuário possui, independentemente do fato de usar ou não tal substância.
No
usuário crônico
de maconha, há controvérsias sobre danos cerebrais. Muitos
relatos indicam que o uso da Cannabis, a longo prazo, está associado com atrofia cerebral,
dano cromossômico, defeitos congênitos, reatividade imunológica prejudicada, alterações nas
concentrações de testosterona e desregulação dos ciclos menstruais. No entanto, esses relatos
não foram conclusivamente replicados, e a associação entre esses efeitos e o uso da Cannabis
permanece em questão (KAPLAN et.al., 1997).
A síndrome amotivacional (perda da motivação) é um conceito bastante polêmico
e que deve ser lembrado. Tradicionalmente, tem sido associada ao uso pesado de Cannabis a
longo prazo, e caracterizada pela relutância da pessoa persistir em uma tarefa, seja na escola,
no emprego, ou em qualquer contexto que exija atenção prolongada ou tenacidade. O
indivíduo é descrito como apático e sem energia, podendo também ocorrer ganho de peso.
Não se sabe se essa síndrome está relacionada ao uso de Cannabis, ou se reflete
traços de caráter em um subgrupo de pessoas, não importando o seu uso. Várias indicações,
entretanto, a associam ao uso de Cannabis.
Descreveremos, a seguir, as conseqüências do uso de Cannabis sativa como
agente intoxicante.
De acordo com Barreto (2000, p.76-77):
A intoxicação pela maconha prejudica o aprendizado, o pensamento, a compreensão e
o desempenho intelectual. Sintomas psicóticos, como delírios e alucinações e
sentimentos paranóicos também podem ser experimentados com doses mais fortes. O
pensamento torna-se confuso e desordenado. A euforia pode ser substituída facilmente
pela ansiedade, às vezes, alcançando proporções de pânico. Em grandes doses, o
aspecto clínico é de uma psicose tóxica, com alucinação, despersonalização e perda
dos sentimentos íntimos.
Kaplan et.al. (1997) apresentam considerações semelhantes as de Barreto (2000)
em relação ao fato de que, em altas doses, esta droga pode provocar alteração da pressão
22
arterial (hipotensão ortostática), afirmando, entretanto, que jamais houve casos documentados
de morte causada por intoxicação com Cannabis.
Esses autores referem-se ainda a um prejuízo das habilidades motoras e
acrescentam que este comprometimento permanece após a resolução dos efeitos subjetivos e
euforizantes, podendo durar de 8 a 12 horas. Contudo, não é apenas na intoxicação que há este
comprometimento, mesmo em quantidade moderada e no uso social, o desempenho motor é
claramente prejudicado.
Certos distúrbios provocados na intoxicação pela maconha interferem na
capacidade de dirigir veículos. São os seguintes:
Dificuldade de visão periférica para detectar sinais, o que pode levar o motorista a
não perceber um carro que pretende ultrapassá-lo, ao lado. Dificuldade de visão
central para detectar sinais, o que pode levar o motorista a não avançar quando, à sua
frente, o sinal está verde ou, ao contrário, avançar, com sinal vermelho ou não,
reconhecer o sinal característico de contramão. Diminuição do tempo de reação, o que
pode levar a não frear o carro no momento oportuno, ou lentidão em avançar ou
desviar-se de outro veículo. Os usuários têm dificuldades em manter uma velocidade
uniforme em uma via expressa, por exemplo. Diminuição da habilidade de dirigir à
noite, com aumento do tempo necessário para se recuperar do ofuscamento e
problemas em colocar corretamente as luzes e em distinguir as dos outros veículos.
Redução do funcionamento da memória de curto prazo e do armazenamento de
informações. Assim, o motorista pode esquecer onde sair e entrar na estrada vicinal ou
onde tomar a rodovia, mesmo conhecendo-as bem. Diminuição da capacidade de
coordenação e manipulação. O motorista pode ter dificuldades em marcha à ré e
ultrapassagens, de sair ou entrar em uma rodovia de tráfego pesado ou de manobrar
em uma rua muito movimentada. (MOSKOWITZ, apud BARRETO, 2000, p. 81).
Como vimos, de acordo com as explicações que acabamos de citar, um indivíduo
sob o efeito de Cannabis fica, inquestionavelmente, impossibilitado de dirigir. É provável que
essa situação esteja associada a muitos acidentes de trânsito.
23
Um outro ponto que deve ser salientado, relacionado ao uso de maconha, é o
conceito de escalada. Sobre tal conceito Richard e Senon (apud, SEIBEL; TOSCANO JR,
2001, p.3) dizem o seguinte:
Trata-se de uma teoria de inspiração proibicionista, segundo a qual um uso intenso de
maconha produz uma inclinação ao recurso de outros tipos de drogas “pesadas”,
suscetíveis de induzir a uma dependência física. Tal teoria se popularizou
rapidamente, embora sem nenhuma comprovação científica. Historicamente se baseou
em um relatório, feito nos EUA em 1975, referindo que 26% dos usuários de
maconha viriam a se tornar dependentes de heroína
.
Verificamos, em nossa prática clínica, que usuários de drogas mais “pesadas”, (ou
seja, substâncias psicoativas com maior poder de destruição na vida do indivíduo), já tinham
feito uso de maconha, de álcool ou de tabaco. Mas, até o momento, não há pesquisas que
comprovem que o fato de alguém ter ingerido essa erva, levou a usar outros tipos de drogas.
Muitas pessoas utilizam a maconha durante muito tempo, e a consideram sua droga de
preferência (droga de eleição), sem que, necessariamente, ela seja “porta de entrada” para
outras drogas.
Apesar dos comentários que realizamos até agora, relacionando a Cannabis sativa
a prejuízos de diversas ordens, efeitos benéficos e até mesmo medicinais também são
atribuídos a esta droga, conforme comentaremos a seguir.
3. Efeitos benéficos da erva: uso medicinal.
A Cannabis e seus efeitos euforizantes foram descobertos há milhares de anos. É
uma planta conhecida por seus usos medicinais desde o terceiro século antes de Cristo. Seus
24
efeitos como analgésico, anticonvulsivante e hipnótico, foram descobertos no final do século
XIX e início do século XX (SEIBEL; TOSCANO JR, 2001).
Recentemente, o principal componente ativo da Cannabis, o THC, tem sido usado
com sucesso para estimular o apetite em pacientes com AIDS - Síndrome de Imunodeficiência
Adquirida - assim como também tem sido útil no tratamento de diversas outras doenças.
Estudos preliminares sugerem que a maconha poderia ser terapeuticamente útil no
tratamento do glaucoma agudo, diversos tipos de asma, e nas náuseas e vômitos
decorrentes do tratamento com quimioterápicos. Infelizmente a correlação de
sintomas que acompanham esses efeitos benéficos limita, parcialmente, seu uso
terapêutico (BONET; JIMÉNEZ, 1998, p.91, tradução nossa).
Dartiu Xavier da Silveira realizou uma pesquisa, em 1998, com indivíduos que
haviam conseguido largar o crack, depois de passar a fumar maconha, e constatou que a maior
parte dos pesquisados conseguiu abandoná-lo e não se tornou usuário de maconha. Segundo
os usuários, a maconha diminuiu a ansiedade que surgia ao suspender o uso do crack. Na
estratégia de redução de danos, a troca valia a pena, pois o crack tem um poder destruidor que
não se compara ao da maconha. Silveira afirma ”começamos a desconfiar que a maconha
pudesse ter um fim terapêutico”.
3
Outros conceitos que devem ser lembrados em nosso trabalho são politoxicomania
e uso de múltiplas drogas. Para falar sobre esses conceitos nos basearemos nas idéias de
Seibel e Toscano JR (2001, p.3). De acordo com estes autores:
Politoxicomanias, trata-se de uma terminologia francesa, exprimindo significado
semelhante ao de uso de múltiplas drogas, pressupondo-se a existência de
dependência a pelo menos uma das drogas consumidas. Já o uso de múltiplas drogas é
o consumo de mais de uma droga ou classe de drogas, muitas vezes ao mesmo tempo
ou seqüencial e normalmente com a intenção de intensificar, potencializar ou
neutralizar os efeitos de outra droga
.
3
Informação verbal, fornecida pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira (professor da UNIFESP e fundador do
Programa de Orientação e Assistência a Dependentes - PROAD) no Congresso dos 10 anos do Instituto Raid, em
Recife – PE, novembro de 2003.
25
O usuário que entrevistamos afirmou ter feito uso experimental de múltiplas
drogas em algum momento de sua vida, porém, ficou bastante claro que a maconha era a
substância psicoativa que predominava sobre todas as outras. Outrossim, o uso de outras
drogas não era freqüente. Ele não faz referência aos efeitos de outras substâncias, apenas da
maconha, e foi o uso da mesma que o conduziu ao tratamento no Centro Eulâmpio Cordeiro.
1.4 Panorama jurídico atual da Cannabis sativa (maconha) no Brasil
O Direito tem como finalidade a proteção dos bens e valores mais importantes e
necessários à sociedade. E as leis protegem esses bens atribuindo penas, que nada mais são do
que instrumentos de coerção que visam desestimular os comportamentos humanos tendentes a
afrontar esses valores da convivência social. Essas penas ou sanções variam de acordo com a
gravidade da conduta praticada e o seu valor para a sociedade.
Dentre esses valores protegidos pela lei, está a repulsa a toda substância
considerada tóxica, em razão de sua nocividade individual à saúde do usuário, capaz de gerar
dependência física ou psíquica, bem como social, por ser o narcotráfico uma das causas de
fomento da violência.
Nesse sentido, a Lei 6.368/76 (conhecida como Lei de Tóxicos ou Lei
Antitóxicos) considera, em seu art. 12, como criminosa a importação, fabricação, venda,
transporte, guarda, consumo, dentre outros, de substância entorpecente ou que determine
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar. Além disso, também é tipificada como criminosa a ação de quem “induz,
instiga ou auxilia alguém a usar entorpecente ou substância que determine dependência física
ou psíquica” (§ 2º, inc. I) ou “utiliza local de que tem a propriedade, posse, administração,
guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, para
26
uso indevido ou tráfico ilícito de entorpecente ou de substância que determine dependência
fisica ou psíquica” (§ 2º, inc. II). Recebe o mesmo tratamento legal quem contribui, de
qualquer modo, “para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância
entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica” (inc. III).
Quanto ao consumo, verifica-se que o art. 16 da mesma lei tipifica a aquisição,
guarda ou posse, para uso próprio, de substância entorpecente ou que determine dependência
física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou
regulamentar, como uma conduta criminosa, imputando a pena de seis meses a dois anos de
detenção, além do pagamento de 20 (vinte) a 50 (cinqüenta) dias-multa.
Por fim, temos que o art. 36 da referida Lei dispõe ainda que são consideradas
substâncias entorpecentes ou capazes de determinar dependência física ou psíquica aquelas
que assim forem especificadas em lei ou relacionadas pelo Serviço Nacional de Fiscalização
da Medicina e Farmácia, do Ministério da Saúde.
Percebe-se, a partir dos dispositivos referidos, que se está diante das chamadas
“normas penais em branco”, ou de complementação heteróloga. Essas são normas penais cujo
conteúdo concreto não pode ser deduzido da leitura do dispositivo legal (embora cominem a
sanção penal respectiva), sendo necessária uma complementação para que seja conhecido
plenamente o âmbito de aplicação de seu preceito primário (GRECO, 2004). Essa
complementação se dá através de outra norma, geralmente de nível inferior (decreto,
regulamento, portaria etc.), de modo a precisar-lhe o significado e conteúdo exatos.
Essas chamadas leis penais em branco precisam, enfim, de complementação do
seu significado, o que é trazido por outra norma. No caso em estudo, essa outra norma,
27
distinta da Lei Antitóxicos, é que vai determinar quais são as drogas ilícitas que produzem
dependência física ou psíquica.
No que diz respeito ao tema deste trabalho, temos que o THC,
tetrahidrocanabinol, seus isômeros e suas variantes estereoquímicas, princípio ativo da
maconha, foi proscrito da legalidade ao ser incluído no item 43, do anexo 1, lista "F", da
Portaria nº 344/98 da Secretária de Vigilância Sanitária do Ministério da Saúde (hoje
ANVISA – Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Tal portaria apenas confirmou o conteúdo de norma anterior, a Portaria de n.º
28/86, item 29, da Lista de Substâncias Entorpecentes e Psicotrópicas de Uso Proscrito no
Brasil, bem como no Decreto 79.388, de 14 de março de 1977, que promulgou a Convenção
sobre Substâncias Psicotrópicas, e a respectiva Lista de Substâncias Psicotrópicas,
Complementares à Convenção retro, item 10.
Portanto, pode-se dizer que, tecnicamente, a lei não proíbe diretamente o consumo
de drogas, mas somente o porte e o tráfico destas substâncias. E nos casos de porte, há uma
tendência dos Tribunais brasileiros a interpretar a lei, extraindo conclusão diversa do que
consta no sentido literal da lei.
Aplicam os Tribunais, em alguns casos de porte de substância entorpecente, o
chamado “princípio da insignificância”, que como o próprio nome diz, afasta a conduta
criminosa nas chamadas “bagatelas”, isto é, nas condutas que, embora qualificadas como
crime, não têm maior relevância para a sociedade (no caso em questão, a pequena quantidade
de substâncias encontradas com o agente). Nesse sentido, são decisões como a seguinte, do
Superior Tribunal de Justiça:
28
O crime, além da conduta, reclama resultado, ou seja, repercussão do bem
juridicamente tutelado, que, por sua vez, sofre dano, ou perigo. Sem esse evento, o
comportamento é penalmente irrelevante. No caso dos entorpecentes, a conduta é
criminalizada porque repercute na saúde (usuário), ou interesse público (tráfico). Em
sendo ínfima a quantidade encontrada (maconha) é, por si só, insuficiente para afetar
o objeto jurídico. (STJ, Recurso Especial n.º 164.861/SP, Relator Ministro Luiz
Vicente Cernicchiaro, Diário da Justiça da União de 17/12/1999, p. 171).
Portanto, mesmo a aquisição, a guarda ou a posse de entorpecentes para uso
pessoal (porte) podem não ser considerados crime, dependendo da quantidade encontrada.
Essa possibilidade de interpretação da lei penal não ocorre para estimular a prática
de crimes, mas, ao contrário, faz-se necessária para ajustar a lei às situações concretas e reais
que lhe são apresentadas e que, nem sempre, fazem da pena (especialmente a pena privativa
de liberdade) a melhor solução para o problema.
Gostaríamos de finalizar este capítulo destacando que a Cannabis sativa, apesar
de ser proibida por lei, é uma droga bastante popular.
Embora considerada por muitos como “inofensiva”, no dizer de especialistas seus
efeitos agudos e crônicos têm graves repercussões sobre o comportamento humano,
especialmente, quando utilizada com freqüência. Dessa forma, a Cannabis pode trazer sérias
conseqüências para o grupo familiar de quem a utiliza.
Em função disso, acreditamos ser importante, desenvolver no próximo capítulo,
considerações sobre a família, sobre a perspectiva da Teoria Geral dos Sistemas em relação a
esse importante agrupamento humano, e sobre de que maneira o uso de droga irá repercutir
nas relações familiares.
29
CAPÍTULO 2
FAMÍLIA E TEORIA GERAL DOS SISTEMAS (TGS)
Acreditamos que o uso de drogas por um membro da família é indissociável das
relações que se estabelecem nela. Não há possibilidade desse sistema deixar de ser afetado
pelo uso de um de seus integrantes. Por este motivo, faremos uma breve revisão das
características desse peculiar agrupamento humano.
2.1 Família: características
A família é uma instituição antiga na história da sociedade, sendo objeto de estudo
em várias áreas da ciência, como por exemplo: a antropologia, o direito, a sociologia e, mais
recentemente, a psicologia.
Apenas na década de 50 a família passou a constituir uma área de interesse da
psicologia. Foi nessa época que a psicoterapia familiar, como abordagem de
tratamento para diferentes problemas, passou a se desenvolver. Atualmente, observa-
se uma inclinação a se considerar as terapias familiares como sendo a abordagem
psicoterápica mais adequada aos nossos tempos (SILVA, 2001, p.21).
Lèvi-Strauss (1982) atribui à família três características gerais: 1. tem origem no
matrimônio; 2. está formada pelo marido, a esposa e os filhos nascidos do matrimônio, sendo
possível que outros parentes vivam com este grupo nuclear; 3. seus membros estão unidos por
laços legais, por direitos e obrigações econômicas, religiosas e outras, por uma rede de
direitos e proibições sexuais e por vínculos psicológicos emocionais como o amor, o afeto, o
respeito e o temor. No entanto, o conceito de família vem sofrendo mudanças através dos
tempos, o que nos leva a crer que o conceito exposto por esse autor já se apresenta como
inadequado para caracterizar as famílias dos dias atuais.
30
São tantas as variáveis culturais, religiosas, políticas, sociais, que determinam as
diversas composições da família, que sua definição terminou por adquirir grande
complexidade.
Para Osório (1996), a família não é passível de conceituação, mas apenas de
descrições. Segundo ele, é possível descrever as várias estruturas ou modalidades assumidas
pela família através dos tempos, mas não defini-la ou encontrar algum elemento comum a
todas as formas com que este agrupamento humano se apresenta.
Apesar disso, este autor caracteriza a família da seguinte maneira:
Família é uma unidade grupal onde se desenvolvem três tipos de relações pessoais –
aliança (casal), filiação (pais/filhos) e consangüinidade (irmãos) – e que a partir dos
objetivos genéricos de preservar a espécie, nutrir, proteger a descendência e fornecer-
lhe condições para a aquisição de suas identidades pessoais, desenvolveu através dos
tempos funções diversificadas de transmissão de valores éticos, estéticos, religiosos e
culturais. A família pode se apresentar, a grosso modo, sob três formatos básicos: a
nuclear (conjugal), a extensa (consaguínea) e a abrangente. Por família nuclear
entenda-se a constituída pelo tripé pai-mãe-filhos; por família extensa a que se
componha também por outros membros que tenham quaisquer laços de parentesco e a
abrangente a que inclua mesmo os não parentes que coabitem (p.16).
Atualmente, não existe, no Brasil, um modelo único e generalizado de família. O
sistema familiar contemporâneo brasileiro está em fase de transformação no seu modelo de
organização nuclear tradicional (pai, mãe e filhos vivendo sob o mesmo teto).
O número crescente de casamentos que são seguidos de descasamentos e
recasamentos, caracteriza uma nova composição familiar. Mulheres sozinhas cuidando da
família (famílias monoparentais), a inserção da mulher no mercado de trabalho, a ampliação
do papel paterno para além das tarefas de provedor, o estabelecimento do consumo como
pauta cultural no mundo atual, são outros elementos que afetam a organização familiar em
nosso país (OSÓRIO; VALLE, 2002; ZIMERMAN, 2002).
São tantas as mudanças que vêm ocorrendo na vida familiar que se ouve falar em
31
sua extinção como instituição humana. No entanto, a família parece estar cada vez mais forte,
fato evidenciado pela tendência, na contemporaneidade, em buscar-se no refúgio da vida
familiar, saídas para o mal-estar que vigora em nossa sociedade (OSÓRIO, 1996).
A importância da família dentro das sociedades humanas é primordial. Ao
pensarmos em grupos humanos, inevitavelmente pensamos no grupo familiar. Todo indivíduo
vive, ao longo de sua existência, imerso em uma rede de relações e atividades conectadas de
uma forma ou de outra por laços familiares. A família, tanto do ponto de vista da reprodução
da espécie, como do ângulo da transmissão da cultura, constitui o eixo central do ciclo vital de
acordo com o qual transcorre nossa existência como indivíduos e assegura a continuidade da
sociedade de geração em geração (MUSITU; ALLATT, 1994).
Compreendida a família em suas características gerais, sentimos a necessidade de
refletir sobre uma teoria que propiciasse uma compreensão mais ampla das relações familiares
que o usuário de drogas estabelece. Encontramos na Teoria Geral dos Sistemas, o que
buscávamos. É sobre esta teoria, aplicada à família, especialmente à família dos que recorrem
às drogas, que comentaremos a seguir.
2.2 A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) aplicada à família
A partir da década de 20, a Teoria Geral dos Sistemas (TGS) começou a se
desenvolver e foi elaborada pelo biólogo Ludwig von Bertalanffy, que a propôs como uma
nova disciplina, cujo objetivo era fornecer um modelo de trabalho que permitisse definir os
fenômenos que não encontravam explicação através do reducionismo mecânico da ciência
clássica.
A TGS tem como fundamento a formulação de princípios válidos para “sistemas”
em geral, sejam quais forem a natureza de seus elementos componentes e as reações de forças
32
reinantes entre eles. De acordo com esta teoria, nenhum elemento pode ser concebido como
isolado, deve-se prestar atenção às interações.
Para Bertalanffy (1968), os métodos científicos tradicionais - baseados na
simplicidade, estabilidade e objetividade - já não serviam para explicar os acontecimentos. O
tratamento por partes, adotado como método de análise científica, mostrou-se insuficiente
para a compreensão de objetos complexos.
Vasconcellos (2002) considera o pensamento sistêmico como o “novo paradigma
da ciência”. Para ela, esse modo de pensar implica ter assumido três novos pressupostos, os
quais descreveremos a seguir:
Paradigma da complexidade ao contextualizar o fenômeno, ampliando o
foco, o observador pode perceber em que circunstâncias o fenômeno acontece, verá relações
intrassistêmicas e intersistêmicas, verá não mais um fenômeno, mas uma teia de fenômenos
interligados e, portanto, terá diante de si a complexidade do sistema.
Paradigma da instabilidade
ao distinguir o dinamismo das relações presentes
no sistema, o observador estará vendo um processo em curso, um sistema em constante
mudança e evolução, auto-organizador, e estará, portanto, assumindo a instabilidade, a
imprevisibilidade e a incontrolabilidade do sistema.
Paradigma da intersubjetividade ao reconhecer sua própria participação na
constituição da realidade com que está trabalhando, e ao validar as possíveis realidades
instaladas por distinções diferentes, o observador se inclui, verdadeiramente, no sistema que
distinguiu e estará atuando nesse espaço de intersubjetividade que compõe com o sistema com
que trabalha.
Para Vasconcelos (2002), os pressupostos da complexidade, da instabilidade e da
intersubjetividade formam em conjunto uma visão de mundo sistêmica, e um cientista ou
profissional é sistêmico ou novo-paradigmático, quando assume esses novos pressupostos.
33
De acordo com a TGS, existem sistemas fechados e abertos. “O sistema fechado é
aquele em que não existe intercâmbio com o meio. Está orientado para o progressivo caos
interno, desintegração e morte. Tal modelo se aplica aos sistemas físicos”(DIAS, 2001, p.2).
Segundo esta autora, o sistema aberto é aquele que permuta matéria, energia ou
informação com o meio. É orientado para a vida e o crescimento. Todo sistema vivo é antes
de tudo um sistema aberto. Os sistemas biológicos, psicológicos e sociais obedecem a esse
modelo. A família é, portanto, um sistema aberto.
Para Souza (1997), o universo em que vivemos é constituído de sistemas os quais
dependem uns dos outros. O homem não existe isolado, está inserido em outros sistemas
maiores. Poderíamos dizer que o homem (consiste em um subsistema) está inserido em sua
família (que é um sistema) que, por sua vez, está inserida na comunidade (que é um supra-
sistema).
A família é um organismo e, como todo organismo, possui um ciclo vital: nasce,
cresce, amadurece e morre; podendo ou não dar origem a uma nova família. É, portanto, um
sistema vivo constituído por partes (que são os membros dessa família), cujo comportamento
e expressão de cada uma das partes influencia e é influenciado pelas demais. Caso uma dessas
partes apresente transtornos, o sistema corre o risco de entrar em colapso.
Essa maneira de pensar dos teóricos sistêmicos, tornou essa teoria (que nasceu no
ramo das ciências exatas) de grande valor para as ciências humanas; ela pode ser aplicada a
diferentes ciências, especialmente no trabalho com famílias. Entender a família a partir do
ponto de vista sistêmico significa vê-la como um todo, compreendendo os indivíduos dentro
dos contextos interacionais nos quais funcionam.
É fruto desse ponto de vista a mudança de perspectiva em relação aos transtornos
mentais (como, por exemplo, os transtornos relativos ao uso de drogas); estes passam a ser
34
compreendidos dentro das relações significativas que o paciente estabelece com os seus
próximos, abandonando-se, conseqüentemente, a idéia de individualidade.
A enfermidade psíquica do paciente sinaliza para uma perturbação em seu grupo
familiar. Daí porque se utiliza o termo “paciente identificado”, para designar aquele que
denuncia, através de seus sintomas, as disfunções do sistema familiar. Foi essa mudança de
ênfase do intrapsíquico para o interpessoal, que originou a terapia familiar sistêmica, por volta
da década de 50 (CERVENY, 2000; TONDO, 1998).
Entendendo a família como um sistema aberto, podemos dizer que a mesma opera
de acordo com certas propriedades, tal como descritas por Bertalanffy. Concordamos com
Dias (2001), quando ela afirma que essas propriedades não se excluem mutuamente, mas,
pelo contrário, coincidem em parte e ajudam a definir-se mutuamente. As propriedades dos
sistemas abertos, apresentadas por esta autora, são as seguintes:
1. Globalidade ou totalidade;
2. Interdependência ou não-somatividade;
3. Hierarquia;
4. Auto-regulação e controle ou retroalimentação;
5. Intercâmbio com o meio ambiente;
6. Equilíbrio ou homeostase;
7. Mudança e adaptabilidade;
8. Equifinalidade.
A seguir, descreveremos cada uma dessas propriedades, aplicando-as à família.
1. Globalidade ou totalidade - postula que o sistema constitui um todo único, ou
seja, toda e qualquer parte de um sistema está relacionada de tal modo com as demais partes
35
que uma mudança em uma delas acarretará alteração em todas as partes e no sistema geral
(DIAS, 2001).
Assim, o comportamento de uso de droga por um ou mais membros da família
está relacionado e depende do comportamento de todos os outros membros. Os integrantes da
família do usuário de drogas podem não ser usuários, mas favorecem o consumo da mesma,
através de uma série de comportamentos que, por fim, provocarão o uso da substância.
Esta propriedade está intrinsecamente relacionada à descrita a seguir.
2. Interdependência ou não-somatividade – esta propriedade evidencia que um
sistema não pode ser simplesmente considerado a soma de suas partes. Há em cada ser um
potencial único e é impossível ver as partes do todo como entidades isoladas ou somar
características das partes para entender o todo.
Como afirma Zimerman (2002, p. 22), “a maneira como as diversas partes estão
integradas e estruturadas no todo é mais importante do que cada uma delas isoladamente, por
mais importantes que elas possam ser”.
De acordo com esta propriedade, uma família não pode ser entendida só pelas
partes, ela é mais do que a soma de seus membros. O indivíduo, apesar de sua complexidade,
não está isolado do contexto sócio-familiar. Em outras palavras, podemos dizer que existem
características próprias do sistema, ou seja, padrões de interação que transcendem as
qualidades dos membros individuais.
Baseando-se nesta propriedade, poderíamos dizer que é comum a situação do
usuário de droga que, após o tratamento, volta para casa e apresenta recaída, ou a melhora do
usuário é seguida por algum transtorno em outro membro da família. O sintoma do uso de
droga pode encobrir outros conflitos que são deixados de lado por conta desse problema.
36
Nesse sentido, o usuário pode estar exercendo um papel solicitado pela família, e/ou servindo
de proteção e segurança à relação familiar.
3. Hierarquia – esta propriedade considera que nos sistemas complexos há um
certo número de subsistemas. O sistema é uma série de níveis de crescente complexidade. O
indivíduo é constituído de uma série de células, órgãos, e corpo, e, por sua vez, é parte de um
grupo, cultura e sociedade. Na família, como em todo grupo social, há uma hierarquia de
papéis a serem desempenhados por seus membros (DIAS, 2001).
Minuchin (1982) acredita que a inversão da hierarquia é a grande força
destruidora da estrutura familiar. Reordenar hierarquias confusas é uma das metas para se
alcançar a saúde familiar.
Uma visão sistêmica do universo mostra que o funcionamento das partes deve estar
voltado para o bem-estar do todo, sendo imprescindível que uma das partes seja
capaz de ordenar as demais, organizá-las, tendo sempre em vista o que será mais
adequado ao todo. Esta parte denomina-se “SUBSISTEMA DECISÓRIO”(SOUZA,
1997, p.71).
Aplicando-se essa idéia de subsistema decisório à família, poderíamos dizer que a
ausência ou ineficiência do subsistema decisório pode ser extremamente prejudicial ao seu
funcionamento, podendo levar a disfunções na família. O subsistema decisório deverá ser
flexível para que possa ser exercido em diferentes momentos por pessoas diversas, porém,
num sistema familiar onde freqüentemente “todos mandam”, corre-se um sério risco de se
transformar num sistema onde “ninguém manda”, gerando desorganização e/ou até padrões de
funcionamento inadequados. Em famílias com um membro usuário de drogas, observamos,
com freqüência, a ausência da função paterna, sendo a autoridade exercida por quem assume a
função materna. Isso altera gravemente o subsistema decisório e, assim, afeta o sistema como
um todo.
37
4. Auto-regulação e controle ou retroalimentação – esta propriedade pode
ainda ser chamada de retroação ou feedback, e também é um ponto-chave da Teoria Sistêmica
aplicada à família. Consiste no fato de que o sistema é orientado para determinadas metas e é
governado por seus propósitos.
O que acontece num sistema é administrado por suas finalidades e o sistema
controla seu comportamento para realizá-las. Para isso, é necessário que as partes de um
sistema comportem-se de acordo com suas regras, adaptando-se ao ambiente na base de
feedback. Esta propriedade postula que o input do sistema é determinado, pelo menos em
parte, pelo output. Isto quer dizer que uma parte da saída é enviada de volta para a entrada
como informação sobre o resultado preliminar da resposta. A relação é, portanto, circular. É
pela retroalimentação que as partes do sistema se mantêm unidas (DIAS, 2001).
O uso de droga pelo filho seria um input (uma informação) e as repercussões que
este uso provoca na família, um output (o retorno dessa informação), que procuraremos
compreender a partir do sistema de comunicação da família.
5. Intercâmbio com o meio ambiente – Os sistemas abertos dependem das trocas
com o meio circundante para manter sua integridade e funcionamento; as trocas são
fundamentais à sobrevivência no ambiente (BERTALANFFY, 1968).
O aprendizado do indivíduo como ser social tem início nas experiências
familiares, e à medida que ele cresce, amplia sua participação nos sistemas exteriores à
família (OSÓRIO, 1996; SOUZA, 1997).
O sistema aberto possui fronteiras que separam o seu interior do ambiente à sua
volta. Estas fronteiras devem ter um certo grau de permeabilidade que permita algumas
entradas e saídas necessárias e impeça outras.
38
Há famílias que se caracterizam por uma permeabilidade intra-sistêmica, que é
uma abertura nas trocas entre seus membros e/ou por uma permeabilidade inter-sistêmica, que
seria uma abertura nas trocas em relação aos supra-sistemas. Outras, ainda, se caracterizariam
por uma impermeabilidade, que seria um funcionamento fechado, um isolamento em relação
aos outros sistemas como, por exemplo, no caso das famílias que não permitem a entrada de
opiniões, informações e conteúdos que não os seus. A intensidade e repetição de determinado
tipo de fronteira é que poderá se tornar causa de conflito, patologia, ou até mesmo, de sua
destruição. Há uma necessidade de ordem nas trocas, tanto entre as partes do sistema, como
entre ele e o ambiente.
Minuchin (1982) não se refere especificamente à afetividade na família, no
entanto, nos seus conceitos de família emaranhada e desligada, fica claro que elas estão
embasadas na preferência por um tipo especial de interação entre os seus membros. Na
“família emaranhada”, por exemplo, o sentimento de pertinência exige uma renúncia muito
grande da autonomia de seus membros e isso faz com que suas habilidades cognitivo-afetivas
sejam inibidas, para que permaneçam unidos. As famílias desligadas, ao contrário, dão uma
grande liberdade a seus membros, e oferecem pequena sensação de pertinência e pouco apoio,
apoio esse que só é conseguido em situações de estresse máximo.
No que se refere às trocas entre a família e a sociedade, podemos dizer que
vivemos em uma sociedade que estimula o consumo, onde a droga também participa como
objeto a ser utilizado. Apesar da ilegalidade de muitas substâncias psicoativas, elas são
facilmente encontradas e consumidas, oferecendo, freqüentemente, “soluções fáceis” (ainda
que momentâneas), para dificuldades em geral, entre elas as dificuldades familiares.
6. Equilíbrio ou homeostase – podendo também ser chamada de força
morfoestática, significa “mesmo estado”, e trata-se de um conjunto de mecanismos
39
reguladores, úteis para manter a estabilidade, a ordem e o controle dos sistemas em
funcionamento, o que não implica imobilidade e estagnação (que seriam funcionamentos
excessivos dos mecanismos homeostáticos).
“Em termos familiares, refere-se à tendência da família em manter um certo
padrão de relacionamento e empreender operações para impedir que haja mudanças nesse
padrão de relacionamento já estabelecido” (CERVENY, 2000, p. 26).
Observamos, em nossa experiência clínica com famílias de usuários de drogas,
que, muitas vezes, se estabelece uma “homeostase patológica”, ou seja, o usuário de drogas,
mesmo apresentando um comportamento disfuncional, servirá para manter a família unida em
torno de suas “crises tóxicas”.
7. Mudança e adaptabilidade –
o sistema deve ser adaptável, pois existe um
meio ambiente em constante mudança. “Os sistemas avançados devem ser capazes de efetuar
mudanças e de se reordenarem a base das pressões ambientais”(DIAS, 2001, p.4). O aspecto
da mudança de estrutura é chamado de morfogênese, o qual é descrito por Cerveny (2000,
p.26) da seguinte maneira:
Por sua grande adaptabilidade e flexibilidade, os sistemas têm a capacidade de
autotransformação de forma criativa. A família tem potencial para mudança e a
morfogênese designa uma mudança dentro da ordem estrutural e funcional do
sistema, de modo que este adquire nova configuração qualitativamente diferente da
anterior.
As freqüentes recaídas que os usuários de drogas apresentam, exigem que a
família se reorganize (mude) para lidar com este problema. Diante das recaídas, muitos
familiares apresentam comportamentos inadequados, o que demonstra as dificuldades destas
famílias de lidarem com contextos de mudança os quais exigem flexibilidade e
adaptabilidade.
40
8. Equifinalidade - em qualquer sistema fechado, o estado final está
inequivocamente determinado pelas condições iniciais. O mesmo não acontece nos sistemas
abertos, pois pode se chegar ao mesmo estado final, partindo de diferentes condições iniciais e
por diferentes caminhos.
O sistema adaptável, que tem por meta um estado final, pode alcançá-lo de acordo
com várias condições ambientais diferentes. O sistema é capaz de processar os dados
recebidos (inputs) de diferentes maneiras a fim de produzir os resultados (outputs).
(DIAS, 2001, p.4).
Relacionando as propriedades de retroalimentação e equifinalidade, verifica-se
que certas famílias podem absorver grandes reveses e até convertê-los em motivos de
reagrupamento e solidariedade, enquanto outras parecem incapazes de suportar a crise mais
insignificante (DIAS, 2001, p.5).
O comportamento do usuário de drogas, freqüentemente, parece desorganizado e
errático, porém apresenta uma finalidade bem clara e objetiva – manter a família unida
quando esta se vê ameaçada em sua capacidade de organização, e quando não encontra outras
maneiras de alcançar este objetivo.
Desse modo, concluímos nossos comentários sobre as propriedades da família
entendida como sistema aberto, apontando de que maneira o uso de drogas pode provocar
alterações nas constituições familiares. A seguir, refletiremos, de maneira mais específica,
sobre a família dos que recorrem às drogas.
2.3 A família do dependente de drogas
Quando falamos em uso e dependência de drogas, não estamos abordando apenas
um indivíduo que se droga e sim uma família, que forma um sistema, no qual a dependência
química de um de seus membros se instala.
41
No que se refere à família e à etiologia da dependência de drogas há posições
diversas e, muitas vezes, conflitantes. Assim como não podemos definir a dependência como
um evento único, mas multideterminado, igualmente não podemos afirmar que exista uma
família típica do dependente de drogas.
Entretanto, a experiência cotidiana dos profissionais que trabalham nessa área
vem demonstrando que algumas características têm se repetido nestas famílias, como também
determinadas configurações familiares que podem ser facilitadoras e/ou indutoras do consumo
de drogas.
Kalina e Kovadolf (1983) chamam essas famílias que geram adictos de "famílias
psicotóxicas", isto é, famílias em que o modelo de recorrer aos tóxicos para enfrentar os
problemas têm uma história com significados particulares e que se apresentam com uma
intensidade muito maior do que em outras.
Outro fato que observamos em nosso trabalho clínico com usuários e /ou
dependentes químicos, e que comumente está presente na biografia deles, diz respeito ao
“desejo” dos pais em relação ao seu nascimento. Como exemplos, poderíamos citar o caso em
que uma criança substitui outra: um irmão ou irmã mortos; ou a inexistência de desejo do
nascimento da criança por parte dos pais. Ou seja, a criança vive no lugar de outro, não no seu
próprio, e toda tentativa de reivindicação desse lugar próprio vai acarretar a mesma reação, a
remoção à não-identidade (OLIEVENSTEIN,1990).
Outro ponto complementar e importante no processo evolutivo das pessoas que
recorrem a drogas é que se assinala uma alta incidência de privação parental na vida dessas
pessoas, muitas das quais experimentaram a separação ou morte de um progenitor – mais
comumente o pai – geralmente, antes dos dezesseis anos (STANTON; TODD, 1994).
Sobre esta questão, Kalina (1991) também faz suas observações. De acordo com
suas pesquisas, desde o princípio da vida pós-natal, os dependentes, geralmente, sofreram de
42
abandonos manifestos - tendo ficado à mercê de outras pessoas durante dias, semanas ou
meses - e/ou de microabandonos, ou seja, os pais nem abandonam definitivamente o filho,
mas também não o assumem.
Olievenstein (1985) afirma que as relações pai-filho nestas famílias são descritas
pelo dependente como muito negativas, com uma disciplina rude e incoerente. Em suas
experiências no Centro Marmottan, o autor verificou que seus pacientes tinham, em geral, um
mau relacionamento com seus pais.
Observamos em nossa prática clínica com usuários de drogas que a maior parte
deles têm parentes próximos (pai, avô, tio, primo) que foram ou são usuários ou dependentes
de drogas. Não raramente, encontramos usuários que, apesar de não terem pais apresentando
problemas com drogas, têm avós que apresentam ou apresentaram transtornos nessa área.
Muitos autores, como por exemplo, Sternschuss e Angel (1991); Kalina e
Kovadolf (1983); Olievenstein (1984); Stanton e Todd (1994), ressaltam a importância das
interações familiares para o surgimento da dependência de drogas e afirmam que o tipo de
relacionamento pais-filhos pode ter influência sobre a iniciação dos jovens à droga.
Kalina e Kovadolf (1983, p.102) afirmam: “não encontramos em nosso trabalho
farmacodependência que não tivesse na família ou em seu meio social sua fonte de
inspiração”.
Concluem esses autores, afirmando que ninguém é original em sua patologia e que
não existe nenhum dependente que não faça parte de um contexto familiar com alguma
conduta drogadita manifesta ou latente.
Como vimos, a abordagem sistêmica é essencial para a compreensão dos
fenômenos da atualidade, e, principalmente, bastante útil para refletir sobre o usuário de
droga, o qual está em constante interação com o contexto familiar e social no qual está
inserido. A visão da família como sistema facilita a compreensão das relações familiares.
43
Com estes dois primeiros capítulos, encerramos nossa fundamentação teórica.
Concluímos esta parte do nosso trabalho, com o desejo de continuar pesquisando este tema,
que consideramos de suma importância.
44
CAPÍTULO 3
MÉTODO UTILIZADO PARA REALIZAÇÃO DA PESQUISA
Trata-se de pesquisa qualitativa e, como tal, não teve como proposta a elaboração
e/ou verificação de hipóteses previamente elaboradas. Dessa, forma o problema da pesquisa
está centrado em responder questões relacionadas às repercussões que o uso de maconha pelo
filho provoca nas relações familiares.
Nesse sentido, foi desenvolvido um estudo de caso, definido como “unidade
significativa do todo e, por isso, suficiente tanto para fundamentar um julgamento fidedigno
quanto propor uma intervenção” (CHIZZOTTI, 1995, p. 102).
A análise de um único caso de fato fornece uma base muito frágil para a
generalização. No entanto, os propósitos do estudo de caso não são os de proporcionar o
conhecimento preciso das características de uma população, mas sim o de proporcionar uma
visão global do problema ou de identificar possíveis fatores que o influenciam ou são por ele
influenciados.
3.1 PARTICIPANTES
Para execução da pesquisa, foram entrevistados, além do usuário de Cannabis
sativa (maconha) que estava em tratamento no Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação
Humana (CECRH), seu pai, sua mãe e sua tia (irmã do seu pai). A tia foi incluída por ter
assumido os cuidados do usuário, quando este tinha dois anos de idade, e por ele a
considerar sua “tia-mãe”. Os quatro são membros de uma família, que denominamos
Almeida.
45
3. 2 INSTRUMENTOS
1 - Prontuário clínico do usuário de maconha que entrevistamos, o qual registra as
informações relativas a dados de identificação do paciente, queixa principal (motivo da
procura pelo tratamento), história da doença atual (histórico sobre o uso de droga do
paciente), história das doenças familiares, exame mental, diagnóstico e prognóstico.
2 – Entrevista semidirigida. De acordo com Ocampo (1981), uma entrevista é
semidirigida quando o entrevistado tem a liberdade de se expor, diante das perguntas feitas
pelo entrevistador, começando por onde preferir, incluindo o que desejar.
Acreditamos que essa técnica estava diretamente relacionada com o método
apresentado, visto que deu, aos entrevistados, grande liberdade para se expressar e, desta
forma, possibilitou a obtenção de maior quantidade de conteúdos espontâneos e qualitativos.
3. 3 PROCEDIMENTO DE COLETA DE DADOS
Inicialmente, realizamos um estudo exploratório com quatro usuários de Cannabis
sativa, em atendimento no Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação Humana (CECRH), e
seus familiares. Selecionamos uma dessas quatro famílias para termos a oportunidade de
estudá-la de maneira mais aprofundada. A escolha se deu pelo fato de que esta família se
destacou entre as demais pela riqueza de informações obtidas, pela disponibilidade
apresentada em nossos encontros e pelo desejo que expressaram em participar como
entrevistados da nossa pesquisa.
Cada membro familiar que pesquisamos foi entrevistado individualmente. As
entrevistas aconteceram em salas de atendimento individual no Centro Eulâmpio e duraram,
46
em média, 1 hora cada. No início da entrevista, garantimos o anonimato aos entrevistados, os
quais assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, cujo modelo encontra-se no
anexo2. Utilizamos - para um melhor aproveitamento dos dados obtidos nas entrevistas – o
gravador. Todas as entrevistas foram transcritas literalmente (encontram-se no anexo3), para
possibilitar uma análise mais detalhada.
3.4 PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DOS DADOS
Organizamos os dados colhidos através da análise de conteúdo, observando os temas
que emergiram nas entrevistas semidirigidas. Posteriormente, relacionamos estes temas aos
objetivos propostos e à literatura consultada.
47
CAPÍTULO 4
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A seguir, apresentaremos o estudo de caso que realizamos sobre a família
denominada Almeida. Os nomes e dados que pudessem vir a identificar os membros dessa
família foram alterados sem prejuízo para a fidedignidade do conteúdo da pesquisa.
Todos os relatos dos familiares pesquisados, que citamos em nossa análise, foram
retirados das entrevistas realizadas e encontram-se no anexo3.
Num primeiro momento, faremos uma apresentação desta família; logo em
seguida, passaremos a analisá-la, visando responder aos objetivos da nossa pesquisa a
partir das entrevistas realizadas, estabelecendo relações com temas que emergiram em
nosso trabalho, quais sejam:
1 - As repercussões familiares do uso de maconha pelo filho;
2 - A “substituição” da irmã falecida precocemente;
3 - A ausência de cuidados dos pais na vida do filho usuário de maconha;
4 - Família psicotóxica e repetição do uso de drogas;
5 - A organização do sistema familiar.
48
4.1 APRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA
Durante o período de realização das entrevistas (agosto de 2004), dos quatro
membros da família Almeida, apenas o filho usuário de Cannabis sativa encontrava-se em
tratamento, participando de um grupo operativo para usuários de drogas, no Centro Eulâmpio
Cordeiro, há três meses. Trata-se de uma família de baixa renda, residente em bairros da
periferia da cidade do Recife. A seguir, descreveremos o perfil dos familiares que
entrevistamos.
4.1.1 Perfil dos familiares entrevistados
1. André (filho, usuário de Cannabis sativa)
dezessete anos de idade. Primeiro
grau completo, estudante do primeiro ano do segundo grau e não trabalha. É solteiro e não
tem filhos. Atualmente, mora com sua tia Ana (irmã de seu pai).
2. Mércia (mãe de André), trinta e cinco anos de idade. Primeiro grau
incompleto, era empregada doméstica, porém faz três anos que parou de trabalhar e
atualmente é dona-de-casa. Separada de Antônio há quinze anos, é casada com Francisco, que
tem quarenta e um anos de idade e é pedreiro. Quando questionada sobre os filhos Mércia diz:
“Eu tenho três filhos, quer dizer, quatro com André, ? Ele é o mais velho dos quatro filhos
que eu tenho. Tive André com Antônio e os outros três são da pessoa com quem eu... é que eu
não sou casada,
eu vivo com uma pessoa há mais ou menos cinco anos, tenho gêmeos e mais
outro filho com ele”. O primeiro filho que ela teve com Francisco tem dois anos de idade e os
meos têm dez meses.
3. Antônio (pai de André), trinta e nove anos de idade. Segundo grau completo,
funcionário público/guarda municipal da cidade do Recife. Separado de Mércia há quinze
49
anos, é casado com Bernadete há treze, ela é dona-de-casa e tem vinte e oito anos de idade.
Pai de três filhos, sendo André do primeiro casamento e duas filhas (uma de oito anos e uma
de dez) do segundo.
4. Ana (“tia-mãe”
4
de André) irmã do pai de André, quarenta e três anos de
idade. Possui o primeiro grau incompleto, é costureira, mas atualmente não está trabalhando.
Solteira, mãe de dois filhos, Luiz, de dezenove anos e Marcela, de quatorze. Assumiu os
cuidados de André, quando ele tinha apenas dois anos de idade. Ao perguntarmos quantos
filhos ela tinha, respondeu: “três, com André”.
4.1.2 História do uso de maconha pelo filho
André comenta que iniciou o uso de maconha aos treze anos de idade. Relata que
usou pela primeira vez por “curiosidade e astúcia”, acrescentando que jamais sofreu a
influência de amigos. Ele não se considera um “viciado”, pois acredita que “viciado é uma
pessoa, assim, que necessita de certa substância no organismo pra poder bem, pra não ficar
se sentindo mal, eu não me sinto assim não”.
Apesar de não se considerar “viciado”, a pedido da tia Ana, iniciou o tratamento
no Centro Eulâmpio Cordeiro, em maio de 2004 (três meses antes de realizarmos a entrevista
com ele). Relata já ter experimentado vários tipos de drogas: crack, comprimidos como artane
e rohypnol, álcool e tabaco. No entanto, deixa bastante claro que é a maconha que ele prefere,
e é sobre seus efeitos que faz referência durante a entrevista. Afirma que após iniciar o
tratamento no Centro Eulâmpio diminuiu bastante o uso da maconha e comenta: “Semana
passada, eu pisei na bola, tive uma recaída, vacilei. Mas, aos poucos, eu deixando de usar; o
tratamento aqui no Centro me ajudando muito”.
4
André se refere à Ana como sendo sua “tia-mãe”.
50
4.1.3 História da família
Os pais de André começaram a namorar quando Mércia tinha 15 anos de idade e
Antônio, 19. Após namorarem dois anos, Mércia ficou grávida de uma menina e, apesar de
Antônio não ficar satisfeito com esta gravidez, os dois passaram a morar juntos, e assim
permaneceram durante cinco anos. Diz Antônio: “...em conseqüência da família da minha
mãe eu fui obrigado a morar com ela. Fui obrigado não, tive que morar junto...”.
Seis meses após nascer, a menina morreu devido a problemas pulmonares. O casal
continuou a morar junto e um ano após a morte da menina Mércia ficou grávida de André. Ela
relata que, apesar da gravidez não ter sido planejada, foi bem aceita por ela e Antônio.
Antônio refere que “não queria, mas devido à morte da menina eu vou ter que aceitar” e
acrescenta: “eu fiquei com medo, porque de tanto eu querer que ela extraísse a menina,
extraísse mesmo, eu queria mesmo, a menina não, o bebê, na época. Aí, quando aconteceu...
com seis meses de vida ela morreu, aí eu levei como se fosse um castigo”. Ele afirma sentir
remorso e se culpa por ter rejeitado a filha.
O pai de André bebia em excesso (parou no ano de 2002, ou seja, dois anos antes
de realizarmos a entrevista com ele). Segundo Mércia, ele tinha outras mulheres. Sobre os
cinco anos que moraram juntos (de 1986 a 1991), ela diz o seguinte: “o relacionamento entre
eu e o pai dele, num era ruim, mas também não era tão bom. Quando eu comecei a namorar
com ele, eu já... já comecei a sofrer, ? Porque ele tinha outras, eu muito adolescente, ?...
Aí pronto, depois eu me entreguei a ele, aí fiquei grávida”.
Os dois brigavam constantemente, chegando, muitas vezes, a se agredir
fisicamente, inclusive na frente de André. Quando André tinha dois anos de idade, Mércia
resolveu se separar de Antônio, ele não concordou, mas, mesmo assim, a separação
aconteceu.
51
Após a separação, seguindo os conselhos do seu pai José, Mércia foi morar
sozinha em São Paulo, “para arrumar um emprego e se organizar”, deixando André com
Margarida, avó materna de André, que trabalhava como empregada doméstica e não tinha
tempo para cuidar do mesmo que, por sua vez, passava o dia na casa de uma vizinha, só
ficando com a avó à noite, quando esta retornava do trabalho.
Sobre tal questão, Mércia faz o seguinte relato: “Eu ia levar André comigo. Num
levei porque o pai dele disse que não, que não ia deixar, entendendo? Aí, no caso, eu ia
levando ele escondido. Quando ele descobriu, disse que eu não ia levar”. Em relação aos três
anos que morou em São Paulo, Mércia comenta: “... pensava que ia ser bom pra mim. Mas
não foi, porque eu fiquei longe de André...”.
André passou apenas alguns dias na casa de Margarida, pois ao saber que Mércia
tinha ido morar em São Paulo, Antônio o tirou da casa de Margarida e o levou para morar
com ele na casa de Maria, avó paterna de André, que faleceu quando ele tinha quinze anos de
idade. Assim, André passou a ser cuidado por Maria e sua tia Ana (irmã de Antônio), que
morava com eles. Nesta casa, também moravam - e moram até hoje - os dois filhos de Ana e
Arnaldo, tio de André.
Antônio que, desde a separação, morava na casa de Maria, ao casar com
Bernadete (quando André tinha cinco anos de idade), foi morar na vizinhança (duas casas
depois), onde reside até hoje com sua esposa e as duas filhas que tiveram. Mas, André
continuou morando com Maria e sua tia Ana.
Mércia também casou novamente, atualmente mora com Francisco e seus três
filhos nascidos dessa união.
Portanto, desde que seus pais se separaram, André reside com sua tia Ana, na casa
da sua avó paterna.
52
Durante sua vida, André fez várias tentativas de morar com os pais, mas sempre
voltava a morar com sua tia. Aos quinze anos, foi morar na casa da mãe, onde permaneceu
durante um ano. Ela, o colocou “para fora de casa, pois não tava agüentando mais, porque ele
não queria me obedecer, não agüentava mais o mau comportamento dele” - esse comentário
foi feito por Mércia no final da entrevista, após desligarmos o gravador.
Ao ser expulso da casa da mãe, André foi levado pelo pai, para morar com ele e
Bernadete, porém André brigou com Bernadete e terminou voltando para a casa da tia Ana.
Sobre a briga entre André e Bernadete, diz Antônio: “ela era nova, tinha dezesseis anos, não
aturava a idéia de ser madrasta. Ela não o aceitou, e até hoje não aceita André. Ela hoje tolera,
mas não transmite um carinho, uma atenção”. Ele admite que, após casar com Bernadete,
afastou-se bastante de André.
53
4.2 ANÁLISE DA FAMÍLIA
André tem uma maior proximidade com sua família paterna, quase não tem
convívio com a família materna. Ele se refere à sua tia Ana como sendo sua “tia-mãe” e se diz
mais “apegado” a ela do que a seus pais.
Sobre sua relação com seus familiares, André comenta: “a gente senta pra
conversar, mas só quando acontece alguma coisa...”. “... Eu tenho dificuldade pra me
relacionar com meu pai. Ele é assim... assim o estilo dele... dele, ele num é assim... num é
muito parecido comigo não... ele num ...num (gagueja) tenho dificuldade em me relacionar
com ele, mas ele é gente fina, é uma pessoa boa”. Tentando sintetizar seu relacionamento com
o pai comenta: “a gente é meio distante. Uma vez eu até disse a ele: “pai você não foi falho,
você foi falto”. E continua: “A relação com minha mãe é... a gente gosta muito de conversar
um com o outro, assim... se entende! Muitas vezes, ela conta os problemas dela pra mim, falo
de mim pra ela...A minha mãe que eu falando é minha tia, porque com minha mãe eu... eu
tenho mais contato com minha tia”. Ele afirma que, quando seus pais se separaram ele passou
três anos sem ter contato com sua mãe, que estava morando em São Paulo, e diz: “Só uns dois
ou três anos depois (quando ela voltou de São Paulo), foi quando eu comecei a revê-la.
Assim...férias, final de semana, eu tava sempre por lá...”.
Segundo André, ele não conversa muito com os pais, porém, com Ana, está
sempre conversando. Comenta: “a gente sabe o que está se passando na vida um do outro”.
No que se refere à sua relação com André, diz Ana: “Eu tenho uma relação muito
boa com André, com ele, eu conto muito pra tudo. Eu tenho essa dificuldade com ele, porque
ele parece um passarinho que tão tentando prender, quer voar. Mas agora, principalmente,
agora que ele ficando mais velho, com todos esses defeitos dele, eu tenho uma relação boa
com ele... Às vezes, quando ele apronta, ele olha pra mim com voz chorosa e diz: ‘mainha eu
54
não queria ser assim, eu não queria lhe fazer sofrer’. Aí eu digo: ‘eu sei’. Porque eu entendo
ele - graças a Deus - eu ainda me entendo bem com ele. Meu irmão mais velho, Arnaldo, diz
até que eu que estrago ele”.
Antônio reconhece sua ausência na vida do filho e comenta que o fato de ter sido
alcoólatra contribuiu para essa ausência. Mércia, ao se referir ao relacionamento entre ela e
André, afirma: “eu me sinto mal. Porque eu acho que é muito assim...afastado”.
Olievenstein (1985) destaca um mau relacionamento entre as pessoas que
recorrem às drogas e seus pais. No caso da família de André, verificamos que ele não
consegue manter um bom relacionamento com seus pais, se relaciona melhor com sua tia
Ana. O apoio que recebe dos seus pais parece só existir em situações de grande estresse,
como, por exemplo, quando o uso de maconha é revelado, o que evidencia uma
impermeabilidade intra-sistêmica entre ele e seus pais, ou seja, não há uma abertura nas trocas
entre André e seus pais, apenas entre ele e sua tia.
No tema que segue, analisamos as repercussões que o uso de maconha por André
provoca em sua família. Inicialmente, podemos afirmar (baseados na propriedade da auto-
regulação e controle ou retroalimentação) que o uso de maconha por André é um input (uma
informação) e as repercussões que este uso provoca em sua família um output (o retorno dessa
informação).
1 - As repercussões familiares do uso de maconha pelo filho
Tanto Mércia, como Ana e Antônio já desconfiavam do uso de maconha pelo
filho, mas não admitiam.
55
A maneira como os familiares obtiveram a revelação (confirmação) do uso de
Cannabis sativa por André e como lidaram com esta questão; assim como a forma como
André acolheu as interferências de seus familiares diante dessa situação, foram as seguintes:
Mércia, a mãe – já suspeitava do uso de maconha por André, diz que as pessoas
vinham lhe dizer, mas não queria admitir. Ela afirma: “as pessoas diziam, eu perguntava, aí
ele dizia: ‘não mainha, não vá na cabeça de ninguém não’. Só que eu ficava com aquele
pensamento, meu Deus. Eu não queria admitir, porque ele é tão inteligente”. Descobriu, ou
melhor,
confirmou o uso de maconha por André, pois o mesmo usou dentro de casa,
quando estava morando com ela (a genitora estava dentro de casa quando ele usou a
droga). Ao descobrir, bateu nele: “ele saiu, pulou a janela, quebrou o portão com raiva,
puxou o cabo de vassoura de mim e quebrou. Parecia o “Incrível Hulk”, porque ele é
magrinho e, na época, ele tava bem magrinho.
Aí, ele saiu e disse que num ia voltar mais
nunca em casa
”.
Na seqüência desses atos, Mércia, então, o colocou “de casa pra fora”, pois disse
que não suportava seu mau comportamento. Porém, logo em seguida, ela buscou se
reaproximar de André para tentar ajudá-lo.
Ana, a “tia-mãe” – sabia que ele já tinha usado maconha, mas não tomou
nenhuma atitude. Então, André usou droga dentro de casa e ela viu. Sobre tal questão, ela
relata: “... às vezes eu digo a ele assim... meu Deus, como eu sou boba, boba, burra, porque eu
nunca percebi isso de vocês. Aí ele disse: ‘não, mãe, não é porque a senhora é boba não, é
porque a senhora ama demais a gente’. Mas, mesmo assim, André... amor, mas tem que se
perceber os defeitos da pessoa. Como é que eu não conseguia ver que você ia pra escola e
fumava maconha? Com é que eu não conseguia ver?”. Isto nos lembra a “cegueira familiar”,
descrita por Bepko e Krestan (1994). Para estes autores, em muitos familiares, o mecanismo
de negação é tão intenso que provoca esta “cegueira”.
56
Continuando nossas considerações sobre a reação de Ana, num primeiro
momento, sua atitude foi de chamar Antônio para que ele tomasse uma providência.
Segundo ela, “foi um reboliço, aquela confusão, agente botou de castigo!”. Posteriormente,
ela levou André para se tratar no Centro Eulâmpio. Sobre a revelação, ela comenta:
“olhe... de impacto a gente fica tão chocada, eu mesma fiquei tão chocada... foi horrível,
horrível, horrível, eu nunca tinha visto ele naquele estado, drogado, eu nunca vi não, minha
filha, ele drogado não. Agente percebe depois de todas essas confusões que foram
acontecendo, foi que eu comecei a perceber a diferença, assim, do olhar...”.
Antônio, o pai – já desconfiava do uso de maconha por André e acredita que
ele “começou cedo”. Refere que percebeu pelo jeito dele conversar, pelo linguajar e pelo
comportamento. Diz: “eu afirmei de uma maneira tal que ele não pôde nem negar, eu disse:
‘eu sou macaco velho e eu sei que você está fumando maconha’.... E ele baixou a cabeça...
Isso foi há uns três anos atrás, eu estava no álcool ainda...É como se não fosse surpresa pra
mim. Fiquei muito magoado”.
Antônio não quis levá-lo para um psicólogo. Sobre esta questão, diz Ana: “Eu
sei, sinceramente, que era pra ele ter tido uma ajuda de psicólogo há muito tempo, mas o pai
dele num acreditava em psicólogo, achava que o que resolvia era umas boas lapadas nele, mas
eu dizia: ‘Antônio, o meu jeito não é de bater’. E todo mundo me cobra, dizem, às vezes, que
ele ficou rebelde porque eu não bati, mas é o meu jeito, eu não sei bater, eu só sei escutar”.
O pai comenta que já esperava que André, um dia, viesse a usar droga, acha que o
filho usa maconha como uma maneira de puni-lo e diz: “Eu tenho certeza que ele está
querendo me punir, me punir não, que ele não vai conseguir não, quem vai perder é ele...”. A
reação do pai diante da revelação foi deixar o filho de castigo dentro do quarto durante
uma semana: “coloquei ele de castigo, encarcerado mesmo dentro de casa... ele ficou no
57
quarto, só saía pra fazer as necessidades, e eu ia lá todo dia e perguntava: ‘E aí negão como é
que tu tás?’”.
Segundo Antônio,
André ficava dentro do quarto lendo e não reclamou, em
nenhum momento, do castigo, comportou-se bem e, aos poucos, o pai foi deixando que
ele saísse do castigo.
COMENTÁRIOS
Como vimos, os familiares obtiveram a revelação (confirmação) do uso de
maconha, da mesma forma, através do próprio filho, de maneira explícita. Entretanto,
tomaram atitudes diferentes em busca de uma solução para o problema do uso de maconha
por André. Isso nos remete à propriedade da equifinalidade, conforme descrita por Dias
(2001). De acordo com esta autora, nos sistemas abertos pode se chegar ao mesmo estado
final partindo de diferentes condições iniciais e por diferentes caminhos. Manter André
afastado da droga passou a ser a meta (equifinalidade) desse sistema, que seus familiares
buscaram alcançar de maneiras diferentes.
A maneira como os familiares reagem e como o usuário acolhe estas reações,
exerce forte influência nos relacionamentos intrafamiliares posteriores à revelação. Há,
necessariamente, uma mudança no modo dos subsistemas se relacionarem.
Mércia bateu em André e depois o colocou "de casa pra fora”, o que parece ter
agravado os conflitos existentes no relacionamento entre eles. Já a atitude do “castigo-
cuidado” do pai parece ter melhorado o relacionamento entre ele e André e os aproximado
mais.
Após a revelação, observamos uma tentativa dos membros desse sistema em
recuperar uma hierarquia que já não existia. Tanto o pai passa a se comportar mais como pai,
58
tentando cuidar mais do filho, como o filho se comporta mais como filho, sendo obediente,
aceitando os limites que seu pai impôs e que ele parecia desejar e necessitar. No período em
que coloca André de castigo dentro do quarto, Antônio tenta aproximar-se mais dele,
parecendo se esforçar para ser um pai melhor. André tenta ser um filho melhor, não reclama
do castigo e respeita as ordens do pai. Segundo Antônio, “ele conquistou... foi saindo do
castigo devagarzinho, ele ia jantar, depois passava cinco, seis minutos na mesa conversando,
aí ninguém mandava ele pro quarto. Quando eu chegava em casa, na casa da minha mãe, e ele
estava na mesa, ele passava por junto de mim e se recolhia por causa da minha presença”.
Imaginamos o quanto ficou difícil para Antônio – que também fazia uso excessivo
de álcool - interferir no uso de droga de André. Ele demonstrou, em muitos momentos da
entrevista, não saber a melhor maneira de agir, como, por exemplo, no trecho em que
comenta: “O que estou fazendo por você é só porque eu te amo. Agora se errar, infelizmente,
eu peço até desculpa a ele, porque eu não tenho tato pra lidar com ele, eu sou assim, sou
muito bruto, peço desculpas a ele, porque sou grosso”.
Se interrelacionarmos as propriedades da globalidade ou totalidade, da auto-
regulação e controle ou retroalimentação e da mudança e adaptabilidade (conforme descritas
na fundamentação teórica deste trabalho), podemos afirmar que a revelação do uso de
maconha por André (input) provoca mudanças em todas as partes e no sistema em geral.
Neste momento, sua família é intimada a se reorganizar e se reaproximar para tomar atitudes
visando alcançar uma meta, que seria adaptar-se a esta nova informação, ou seja, a este input.
O fato de antes mesmo da revelação, já haver por parte dos familiares de André
um conhecimento implícito, acompanhado de uma negação, nos lembra o que autores como
Bepko e Krestan (1994) e Prado (1996) teorizam sobre a vergonha, os segredos e a negação
nas famílias aditivas. Esses autores afirmam que, situações que causam vergonha à família,
como, por exemplo, o uso de uma droga ilícita pelo filho, são negadas e mantidas em segredo,
59
sendo, neste caso, o segredo utilizado no sentido de não se discutir na família algo vergonhoso
ou desagradável.
As considerações que se seguem, nos ajudarão a entender como o sistema familiar
de André foi se organizando até chegar à sua organização atual.
2 - A “substituição” da irmã falecida precocemente
A relação de Antônio e Mércia com o nascimento dos filhos é bastante
emblemática de como transcorreu sua própria relação. A princípio, vão morar juntos
“obrigatoriamente”, devido à gravidez de Mércia. Entretanto, após a morte precoce da filha,
aos seis meses de idade, permanecem juntos durante mais um ano, quando Mércia engravida
de André. Então indagamos: por que será que Antônio deixou que Mércia engravidasse pela
segunda vez, “sem que eles quisessem”? Qual seria, então, o sentido desta gravidez? Seria
uma tentativa de superar a perda da filha?
Para Olievenstein (1990), existem certos elementos que, com uma certa
freqüência, estão presentes na biografia das pessoas que recorrem às drogas, como o caso de
uma criança substituir outra, por exemplo, um irmão ou irmã mortos; ou a inexistência de
desejo do nascimento da criança por parte dos pais. Ou seja, a criança vive no lugar de outro,
não no seu próprio, e toda tentativa de reivindicação desse lugar próprio vai acarretar a
mesma reação, a remoção à não-identidade.
O sentimento de culpa que moveu os pais de André a permanecerem juntos e a
“tentarem” uma nova gravidez não impediu, todavia, que permanecessem ambivalentes, tanto
em relação ao novo filho quanto ao seu próprio casamento. Esses afetos permaneceram
conflitantes e desencadearam a situação que comentaremos a seguir.
60
3 - A ausência de cuidados dos pais na vida do filho usuário de maconha
Stanton e Todd (1994) assinalam uma alta incidência de privação parental (a
separação ou morte de um progenitor), geralmente antes dos dezesseis anos, entre os que
recorrem às drogas. Sobre esta questão, Kalina (1991) também faz suas observações: ele
afirma que, desde o princípio da vida pós-natal, os dependentes de drogas, geralmente,
sofreram abandonos manifestos, tendo ficado à mercê de outras pessoas durante dias, semanas
ou meses; e/ou de microabandonos, ou seja, os pais nem abandonam definitivamente o filho,
nem o assumem.
Este parece ser o caso de André. Seus pais não o abandonaram definitivamente,
mas também não o assumiram. Desde que se separaram, André ficou sob os cuidados da tia
Ana, com quem ele mora hoje em dia e considera sua “tia-mãe”.
André verbaliza que “não é muito apegado aos pais”, porém seu comportamento
parece indicar o contrário. Ele demonstra não se conformar com este microabandono e
durante sua vida fez várias tentativas de morar com os mesmos, sendo todas elas mal
sucedidas, como anteriormente comentamos.
Tanto Mércia como Antônio reconhecem sua ausência na vida do filho. Mércia
afirma que foi José (seu pai) quem deu a idéia dela ir para São Paulo, pois ele achou que isso
seria o melhor para ela, mas ela diz que não foi bom ter ido porque ficou longe do filho.
Comenta: “eu me sinto mal. Porque eu acho que ele é muito assim... afastado. Eu num sou
muito, num converso muito com ele. Só que assim... eu gosto demais, entendendo?”.
Durante os três anos que morou em São Paulo, Mércia não manteve nenhum contato com
André, ele só voltou a vê-la quando estava com cinco anos de idade. Um trecho da entrevista
realizada com Mércia nos chamou atenção: ela diz que, numa discussão com André, ele a
chamou de “chocadeira”.
61
Antônio afirma que seu uso excessivo de álcool contribuiu bastante para sua
ausência na vida do filho. Refere-se à época em que bebia como sendo a parte “podre”, a parte
“negra” da sua vida, e admite sentir vergonha, demonstrando auto-crítica. Diz ainda:
“Antigamente eu era falho, estava muito ausente como pai, como amigo, como eu estou sendo
hoje, como estou tentando ser hoje. Saía, bebia, batia minha pelada. Agora estou há dois anos
afastado do álcool... Eu marquei mais nesses dois anos que fiquei longe do álcool, do que
quinze anos que eu bebia...Hoje em dia, vejo ele todos os dias, já o vi hoje de manhã”.
Ele conclui suas observações, comentando: “estou tentando tapar os buracos que
deixei abertos”. E relata que André diz que ele está conseguindo. Então, indagamos: de que
maneira ele está conseguindo?
Ana faz o seguinte relato sobre a infância de André: “eu sei que ele teve uma
infância, assim, meia difícil. Porque o pai dividido, a mãe dividida... Porque muitas vezes a
pessoa está com a mãe e não tem o carinho da mãe... mas, no caso dele é diferente, ele não
tinha e ele não sabia se tinha o carinho ou não”.
Podemos pensar que o nascimento de André não só não “resolveu” a perda
anterior, como acrescentou mais ambivalência e culpa a seus pais, que responderam com uma
série de microabandonos, geradores de mais culpa e sofrimento.
Dando continuidade à nossa análise, refletiremos, agora, sobre mais um tema
importante que emergiu no estudo desta família.
4 - Família psicotóxica e repetição do uso de drogas
Na família de André, verificamos a presença de alguns usuários de drogas, além
dele e do pai, como, por exemplo, seu primo Luiz (filho da tia Ana), que faz uso de maconha
62
(e também está se tratando no Centro Eulâmpio Cordeiro) e seu avô paterno que era
alcoólatra.
Sobre tal questão, Ana comenta que, antigamente, quando André ainda era
criança, na casa onde eles moram havia festas nos fins de semana, quando a família se reunia,
e que sempre bebiam em excesso nessas ocasiões. Relata: “eu tomava cerveja, minha outra
irmã, meus irmãos, aí... mas, depois de um tempo a gente foi cortando. Meu pai também
bebia, ele morreu quando André tinha uns oito anos... ele era alcoólatra”.
Esta família que serviu de modelo para André, durante a maior parte de sua vida,
apresenta características de uma “família aditiva ou psicotóxica”, conforme descrita por
Kalina e Kovadolf (1983). Neste momento, devemos lembrar que Luiz, primo de André, o
qual também teve essa família como modelo, é usuário de maconha.
Pode-se perceber que a maneira como os familiares lidam com a questão das
drogas parece ter mais influência do que as informações que eles dão aos filhos, pois tomando
como base os modelos identificatórios, o que é feito é mais importante e mais efetivo do que o
que é dito. Confirmando esse fato, estudos apontam que filhos de pais que usam drogas estão
mais propensos a usá-las (KALINA, 1991; OLIEVENSTEIN, 1990).
Cerveny (2000) ressalta que, no atendimento às famílias, um dos fatos que
emergem, com maior freqüência, são os padrões interacionais familiares que tendem a se
repetir ao longo das gerações.
Concordamos com esta autora quando afirma que seria restrito aceitar a repetição
apenas como resultado de modelos paternos. O sistema familiar, como um todo mais amplo,
incluindo gerações passadas, é o contexto onde ocorre a transmissão dos padrões interacionais
que, às vezes, pode até pular gerações.
Na família de André, seu uso de droga parece dar continuidade a um padrão de
comportamento que vem desde seu avô paterno, passando pelo seu pai e chegando até ele.
63
Será este o motivo pelo qual Antônio afirma que já sabia que o filho um dia usaria drogas,
assim como ele usou álcool? Poderíamos pensar no mito girando em torno do “se meu pai
usava droga e eu também, por que meu filho não usaria?”.
Sobre o uso de maconha por parte de André, Antônio comenta: “...ele não é...
dependente, porque o dependente é aquele que é eufórico. Porque o meu uso de álcool é o
seguinte: eu não bebia em jejum, eu não bebia só, eu não bebia de noite, quer dizer eu gostava
muito era da cachorrada. Aí, quando eu começava, eu não parava”. Parece que Antônio quer
dizer que o uso de droga do filho segue os mesmos padrões do seu uso, dando a impressão de
ser um padrão de comportamento que identifica esta família.
Em seguida, apresentaremos algumas conclusões sobre a maneira como a Família
Almeida se “organiza”.
5 - A organização do sistema familiar
André não faz referência a um espaço próprio, “a casa da minha mãe”, “a casa do
meu pai”, “a casa da minha tia Ana”. Em nenhum momento da entrevista, ele diz “a minha
casa”. Mora na casa da tia Ana, mas está sempre fazendo tentativas de ir morar com os pais.
Vive em busca de seu lugar.
Tenta entrar no sistema familiar do pai, mas não consegue se entender com a
esposa dele e volta para a casa da tia. Tenta entrar no sistema familiar da mãe, pede para ir
morar com ela, mesmo sem ser convidado; ela o aceita em sua casa, porém um ano depois o
expulsa. Diz Mércia: “...quando ele tava com quinze anos, queria porque queria voltar pra
ficar comigo. Eu disse que tudo bem, porque eu queria, mas só que no fundo, no fundo, eu
tava com aquele pensamento, né? Eu sozinha, eu num ia poder tomar conta dele, porque na
época eu tava trabalhando como doméstica. Aí ele... aí eu aceitei, ?”.
64
Essas mudanças pelas quais André passou tiveram início quando seus pais se
separaram. Ele comenta: “quando meus pais se separaram eu fui morar com pai na casa de vó.
Aí, ele casou, construiu a casa dele, mas eu não fui morar na casa dele, eu continuei lá na casa
de ... Depois eu decidi... fui pra casa de mãe. Aí eu fui pra lá... depois eu voltei”.
André procura se sentir integrando uma família. Porém, qual? Participa da família
da mãe, do pai, da tia Ana. No entanto, não consegue fazer de nenhuma delas sua própria
família.
Qual deles é o sistema familiar de André: o da mãe, o do pai, ou o da tia? É difícil
para ele definir o que é um pai, o que é uma mãe, o que é uma tia, o que é uma família.
Pelo que pudemos perceber, este sistema apresenta características disfuncionais
desde seu início. Trata-se da união de Mércia e Antônio, um casal que resolveu morar junto
por causa de uma gravidez que não foi desejada, e brigava constantemente, chegando a se
agredir fisicamente na frente de André. Antônio bebia excessivamente e traía Mércia com
outras mulheres.
André parece não se conformar com o fato dos pais terem se separado, constituído
novas famílias e o deixado sob os cuidados da sua tia. Ele procura vivenciar um modelo
organizado de família, o que certamente não irá conseguir. Sofre, tentando dar uma solução
para sua família “desligada”. De acordo com as idéias de Minuchin (1982) famílias desligadas
são aquelas que oferecem pouca sensação de pertinência e apoio, apoio esse que só é
conseguido em situações de estresse máximo. Imaginamos que André não busca apenas uma
família, porém, um modelo de organização familiar nuclear tradicional (pai, mãe e filhos
vivendo sob o mesmo teto). Parece tentar resgatar o sistema familiar que vivenciou durante
seus dois primeiros anos de vida (quando morava com seus pais), ainda que esse sistema
apresentasse características disfuncionais.
65
Segundo Mércia, André sempre falou: “eu queria que minha mãe e meu pai
ficassem juntos”. Ela acredita que ele tinha essa “revolta” e acrescenta: “do jeito que ele tem
crise de choro lá - quando ele lá (na casa da tia Ana) - quando ele ia pra mim, ele também
dava. Uma vez a gente fez o aniversário dele de nove anos, todo mundo lá animado, tudinho,
fiz tudo direitinho, fiz um bolinho, fiz os pratinhos. André não quis saber de nada, deu uma
crise de choro nele, ele chorava e brabo, brabo. Minha mãe pegava ele, todo mundo
acalentava ele e ele não queria. Até hoje, eu não sei porque foi aquela crise de choro. Eu
pergunto a ele e ele não me responde”.
Apesar de residirem em casas separadas, os familiares de André continuam se
relacionando, em parte, graças a ele. O uso de maconha por André, parece servir para manter
esse sistema, ainda que disfuncional, em relação, porque reaproxima seus familiares que
precisam encontrar uma solução para seu comportamento aditivo. Isso caracteriza a
homeostase patológica”, conforme já comentamos na fundamentação teórica deste trabalho.
Esse processo nos leva a dizer que, na família Almeida, a revelação do uso de
maconha pelo filho (o input) gera como respostas familiares (o output) uma reaproximação
entre seus membros.
Esta demonstra ser a maneira de André tentar organizar seu próprio sistema
familiar. Cabe aqui perguntar se seus pais contribuem para que esse sistema se organize.
O que pensar de um pai “falto” que se descobre amoroso e toma para si a “tarefa”
de resolver o problema do uso de drogas de André?
O que pensar de um filho rebelde, inconformado e “independente” que obedece
cegamente a um pai que critica pelo estilo inadequado de educar?
O que pensar de uma mãe, sempre distante, e mais preocupada com as suas
próprias dificuldades, que se reaproxima, lamentando a distância que se abriu entre ela e o
filho?
66
O que pensar de uma tia que às vezes considera André como filho, às vezes como
sobrinho?
Por que a família Almeida fecha-se sobre si mesma, recusando - por um bom
tempo – tratamento especializado a André? Tratamento este que é tão divulgado pela mídia
em nossos tempos de comunicação? Imaginamos que, agindo dessa forma, essa família
demonstra uma impermeabilidade inter-sistêmica, ou seja, um fechamento de suas fronteiras,
impossibilitando a entrada de opiniões, informações e conteúdos que não os seus, dificultando
o intercâmbio com o meio ambiente. Vale salientar que, de acordo com Bertalanffy (1968), os
sistemas abertos dependem das trocas com o meio circundante para manter sua integridade e
funcionamento; as trocas são fundamentais à sobrevivência no ambiente.
A partir dessa análise, observamos como é profunda a interrelação entre a
revelação do uso de maconha por André e a organização de seu sistema familiar, o que nos
leva a perceber que ele toma para si a responsabilidade de unir e organizar sua família, tendo
a si mesmo como centro, em torno do qual gravitam seu pai, sua mãe e sua tia.
Como já dissemos anteriormente, em famílias de usuários de drogas observa-se,
com freqüência, a ausência paterna, sendo a autoridade exercida por quem assume a função
materna, o que altera o “subsistema decisório” e afeta o sistema como um todo.
No caso da família de André, observamos tanto a ausência paterna como a
materna. Além do abandono dos pais, a tia Ana parece não ter conseguido exercer, de maneira
satisfatória, a função materna, uma vez que André, em alguns momentos, a considera mãe, em
outros, tia, assim como ela não considera André como seu filho em todos os momentos.
De acordo com uma visão sistêmica, é imprescindível a presença de um
“subsistema decisório”. Percebemos que a família Almeida não consegue eleger um
“subsistema decisório”, ou melhor, alguém que ordene e organize as partes desse sistema,
tendo sempre em vista o que é mais adequado ao todo. Nela, “todos mandam”, e, na realidade,
67
“ninguém manda”. Não há uma hierarquia bem definida. Isto nos leva a crer que não existe
na vida de André uma definição de quem seja o responsável por ele. É difícil para o mesmo
decidir que modelo de família deve seguir. O da mãe, o do pai, ou o da tia?
A “des”organização desse sistema familiar dificulta que os mecanismos de auto-
regulação próprios da família superem o problema do uso de droga por André. Vale salientar
que, na época em que entrevistamos André, apesar dele estar diminuindo o uso de maconha,
teve uma recaída uma semana antes da entrevista.
Para finalizar a análise deste caso, lembramos que a propriedade da
interdependência ou não-somatividade evidencia que a maneira como as partes estão
integradas no todo é mais importante do que cada uma delas isoladamente. Como já dissemos
anteriormente, é comum a situação do usuário de droga que, após tratamento, volta para casa
e apresenta recaída. Portanto, consideramos essencial a terapia familiar, e não apenas
individual, daqueles que recorrem às drogas.
68
CONCLUSÕES
Após a realização desta pesquisa, com base na abordagem sistêmica,
apresentamos os seguintes resultados:
Devemos entender o uso de droga como um sintoma emergente de um
contexto interpessoal. Cada uma das partes do sistema familiar que
estudamos influenciou e foi influenciada pelas demais;
O uso de maconha pelo filho é um input (uma informação) e as
repercussões que este uso provoca, em sua família, um output (o retorno
dessa informação);
Num momento anterior à revelação do uso de maconha pelo filho, esta
família apresentava características de uma família “desligada”, oferecendo
pouca sensação de pertinência e apoio. A revelação do uso de maconha
pelo filho (input) provoca mudanças em todas as partes e no sistema como
um todo, gerando como resposta da família uma reaproximação entre seus
membros (o output);
Os familiares já desconfiavam do uso de maconha pelo filho, mas não
admitiam, demonstrando um forte mecanismo de negação;
A maneira como os familiares reagem e como o usuário acolhe estas
reações, exercem forte influência nos relacionamentos intrafamiliares
posteriores à revelação. Há, necessariamente, uma mudança no modo dos
subsistemas se relacionarem.
69
Os familiares obtiveram a revelação (confirmação), da mesma forma,
através do próprio filho, que usou a droga na frente dos pais. Primeiro,
usou na frente da mãe, depois, na frente da tia e do pai. No entanto, eles
reagiram de formas diferentes. Diante da revelação, a meta desse sistema
(equifinalidade) passou a ser manter o filho afastado da droga;
A mãe bateu no filho e depois o expulsou de casa, o que parece ter
agravado os conflitos existentes no relacionamento entre eles. Porém, logo
em seguida, ela buscou uma reaproximação com o filho para tentar ajudá-
lo;
A tia, num primeiro momento, chamou o pai para que ele tomasse uma
providência. Posteriormente, encaminhou o sobrinho para um local de
tratamento especializado;
O pai aplicou um “castigo-cuidado”, o que parece ter melhorado o
relacionamento entre ele e o filho e os aproximado mais;
Após a revelação, observamos uma tentativa dos membros desse sistema
de recuperar uma hierarquia que já não existia. Tanto o pai passou a se
comportar mais como pai, tentando cuidar mais do filho, como o filho se
comportou mais como filho, sendo obediente, aceitando os limites que seu
pai impôs e que ele parecia desejar e necessitar;
O uso de droga pelo filho serve para manter esse sistema, ainda que
disfuncional, em relação, porque reaproxima seus familiares, que são
intimados a se reorganizar para encontrar uma solução para o
comportamento aditivo do filho, o que caracteriza uma “homeostase
patológica”;
70
A partir da revelação do uso de Cannabis sativa (maconha) pelo filho,
questões de significativa importância para essa família e que, até então não
haviam sido discutidas, começam a ficar em evidência, dentre elas, o fato
do filho usuário ter nascido para “substituir” uma irmã falecida
precocemente e a ausência de cuidados dos pais na vida do filho. As
demais questões, que emergem com a revelação, como o uso abundante de
bebidas alcoólicas pela família, a dependência de álcool do avô e do pai, e
o uso de Cannabis sativa pelo primo, são sinais que caracterizam um
modelo de família conhecido como “família psicotóxica”.
Por um bom tempo, esse sistema familiar fecha-se sobre si mesmo,
recusando tratamento especializado a André, apesar desse tratamento ser
tão divulgado pela mídia em nossos tempos de comunicação. Agindo dessa
forma, essa família demonstra uma impermeabilidade inter-sistêmica, ou
seja, um fechamento de suas fronteiras, impossibilitando a entrada de
opiniões, informações e conteúdos que não os seus, dificultando o
intercâmbio com o meio ambiente, que é essencial para manter sua
integridade e funcionamento;
É profunda a interrelação entre a revelação do uso de maconha pelo filho e
a organização de seu sistema familiar, o que nos leva a perceber que ele
toma para si a responsabilidade de unir e organizar sua família, tendo a si
mesmo como centro, em torno do qual gravitam seu pai, sua mãe e sua tia;
A organização peculiar desse sistema familiar dificulta que os mecanismos
de auto-regulação funcionais próprios da família superem o problema do
uso de droga pelo filho. Na época da entrevista, ele afirma que tem usado
menos a maconha, mas que na semana anterior à mesma teve uma recaída.
71
Esse trabalho de pesquisa reforçou em nós a importância da abordagem sistêmica
para o entendimento de fenômenos da atualidade. Sua aplicação numa família com usuário de
Cannabis sativa facilitou, enormemente, a compreensão das relações familiares,
aprofundando nossas perspectivas teóricas. Podemos afirmar, ao final desse trabalho, a nossa
certeza de que o usuário de Cannabis sativa é apenas uma parte de um sistema que deve ser
estudado e compreendido, caso queiramos oferecer saídas terapeuticamente válidas para o
problema do uso de drogas. Portanto, uma terapia familiar, baseada em premissas da Teoria
Geral dos Sistemas, é essencial nesse processo.
A análise de um único caso de fato fornece uma base muito frágil para a
generalização. No entanto, os propósitos do estudo de caso não são os de proporcionar o
conhecimento preciso das características de uma população, mas sim o de proporcionar uma
visão global do problema ou de identificar possíveis fatores que o influenciam ou são por ele
influenciados.
Por fim, salientamos a inexistência de uma literatura abrangente nessa área, em
nosso país, como um estímulo para continuar pesquisando sobre esse tema.
72
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77
78
ANEXO Nº 2
TERMO DE CONSENTIMENTO
O uso de Cannabis sativa ( maconha ) pelo filho e suas repercussões nas relações
familiares.
EU ....................................................................., abaixo assinado, dou meu consentimento livre e
esclarecido para participar como voluntário do projeto de pesquisa supracitado, sob a responsabilidade
do pesquisador Marcus Túlio Caldas, professor da Universidade Católica de Pernambuco— UNICAP.
Assinando este Termo de Consentimento estou ciente de que:
1. O objetivo geral desta pesquisa é realizar um estudo de caso sobre uma família cujo filho
é usuário de Cannabis sativa (maconha);
2. Durante o estudo serei entrevistado sobre o relacionamento entre o usuário de Cannabis
sativa ( maconha) e seus familiares;
3. Obtive todas as informações necessárias para poder decidir conscientemente sobre a minha
participação na referida pesquisa;
4. Estou livre para interromper, a qualquer momento, minha participação na pesquisa;
5. Meus dados pessoais serão mantidos em sigilo. Os resultados gerais obtidos através da
pesquisa serão utilizados apenas, para alcançar os objetivos do trabalho exposto acima,
incluindo sua participação na literatura científica especializada;
6. Poderei contatar o Comitê de Ética da UNICAP para apresentar recursos ou reclamações
em relação a pesquisa através do telefone ( +55 ) ( 81 ) 3416.4000, o qual encaminhará o
procedimento necessário.
Recife, ...............de..................2004
Voluntário....................................................... RG
Pesquisadora.......................................................
79
ANEXO Nº 3
TRANSCRIÇÃO DAS ENTREVISTAS
LEGENDA
Nas entrevistas a seguir será utilizado o seguinte sistema de sinais:
P = PESQUISADOR
E = ENTREVISTADO
... = PAUSA
S = SILÊNCIO
X = será utilizado para não identificar pessoas que foram citadas ocasionalmente nas
entrevistas.
Y e Z = bairros da periferia da cidade do Recife que foram citados.
Obs: as palavras que estão com letra maiúscula são as que foram enfatizadas pelos
entrevistados.
80
ENTREVISTA Nº 1
ENTREVISTA COM ANDRÉ (FILHO USUÁRIO DE MACONHA)
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Nome: André
Sexo: Masculino
Idade: 17 anos
Estado civil: Solteiro
Nº de filhos: 0
Naturalidade: Recife
Escolaridade: 1º grau completo
Profissão: Estudante
Religião: Evangélico – Casa da Benção. Praticante? Não
Instituição de Tratamento: Centro Eulâmpio Cordeiro de Recuperação Humana – CECRH
Tempo na instituição: Desde maio de 2004
P – Gostaria que você falasse um pouco sobre sua relação com sua família?
E – Ah ... ôxe... minha relação com minha família é... é ótima. Assim... não tem
tias... assim... não tem nenhum parente pra eu dizer assim .. que eu possa dizer assim que eu
não goste...é tudo gente fina, todo mundo me entende, e eu entendo todo mundo
P - Tanto na família materna como na paterna?
E - A família por parte de mãe é assim... a relação também é...é boa, só que eu
assim... eu não tenho convívio... não converso muito com eles, freqüentemente. Mas, é tudo...
tudo ótimo.
P – Você tem mais contato com a família por parte de pai?
E – É... assim, eu moro na casa de minha avó; hoje em dia ela é falecida, mas eu
moro na casa dela. Aí eu... mora minha mãe, que é minha tia, os filhos dela, mais um tio meu,
e eu. E logo ao lado, tem mais uma vizinha da gente que é tia, é tia minha. Um pouco mais
adiante a casa do meu pai, é tudo próximo. Aí, tem meu pai, tem mais outra tia na outra rua,
tudo próximo, tudo por perto.
P - Como é sua relação com seus pais?
E - ... Eu tenho dificuldade pra me relacionar com meu pai. Ele é assim... assim o
estilo dele... dele, ele num é assim... num é muito parecido comigo não... ele num ...num
(gagueja) tenho dificuldade em me relacionar com ele, mas ele é gente fina, é uma pessoa boa.
P - Você poderia falar um pouco sobre estas dificuldades?
E – Assim, é porque... ele, ele diz assim, que ele e o pai dele, assim meu avô, eles
não conversavam muito assim porque... a gente senta pra conversar, mas só senta pra
conversar quando acontece alguma coisa. Por exemplo, agora eu fui pra terça negra, ele não tá
sabendo ainda não, mas quando ele ficar sabendo, quando ele souber, já tô me preparando, ele
... eu acho... eu espero que não, mas tudo indica que vai ser os extremos, porque ele já
conversou bastante comigo e pediu, né? Mandou não! Pediu, que eu andasse na linha. Aí eu,
na hora da curva, eu escapei... mas, ele é uma pessoa boa, assim, a gente num senta pra
conversar assim ... do dia da gente, de como foi o dia, num tem uma conversa... sempre
quando acontece alguma coisa... Diferente de minha mãe, tô sempre conversando com ela.
P - E como é sua relação com sua mãe?
E -
A relação com minha mãe é... a gente gosta muito de conversar um com o
outro, assim... se entende! Muitas vezes ela conta os problemas dela pra mim, falo de mim pra
ela... a gente sabe o que está se passando na vida um do outro.
P – Então, você tem mais contato com sua mãe do que com seu pai?
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E – É. A minha mãe que eu tô falando é minha tia, porque com minha mãe eu... eu
tenho mais contato com minha tia, converso bastante com ela.
P – E com sua mãe biológica? Como é sua relação com ela?
E - Minha mãe... faz muito tempo que eu não a vejo, por culpa também... por
culpa minha também, por conta das drogas e tal e... meu pai... e... eu acho também que é
verdade, assim, porque se eu for pra lá minha mãe vai ter pouco tempo pra mim , tá ligada? Aí
eu vou assim , vou ter mais tempo pra droga, vou ficar mais... mais... mais exposto pra droga,
aí... quando eu tiver totalmente recuperado eu acho que vou tornar a visitá-la...vou tornar a
visitá-la.
P – Você poderia falar um pouco mais sobre isso?
E – Não... assim... depois que eu vim pra cá, comecei a freqüentar o Centro, eu
não fumava na casa dela. E minha mãe é sozinha, tem três filhos... (S) mais três filhos. Aí, se
eu for pra lá, ela não vai ter tempo pra mim, pra ficar me regulando, pra tá num sei o quê e tal.
Ela fica preocupada nos menor, são três menores. Aí, meu pai acha que se eu for pra lá vai ser
um espaço que eu vou ter pra me encontrar com a droga, vou estar mais... vou estar com
espaço pra droga... e ele tem razão, se eu for pra lá... não necessariamente que eu vou usar...
mas, vai ficar mais fácil. Por isso também, assim, que eu não tô questionando esse caso. Esse
caso eu não tô questionando não.
P - Que caso?
E -
Justamente esse, deu não tá vendo a minha mãe.
P - Você não poderia ver sua mãe sem necessariamente ter que ir pra lá?
E - Não. Fica difícil pra ela também.
P – Por que?
E - Por causa dos três meninos. Os três... o mais velho tem dois anos, os outros
dois são gêmeos. O mais velho eu acho que você já conheceu na entrevista com ela.
Eu posso falar com ela pelo telefone, mas também assim... eu sou muito relaxado
em questão de telefone, eu não gosto muito de falar no telefone não, aí eu não ligo não.
Meu pai também até fala: “negão e tal, onde tu tiver e pa tu liga e... tu liga pra
manter a família informada, porque assim... tu liga pra poder avisar”. Mas... o quê aconteceu
terça-feira, se eu tivesse pedido a ela, a minha mã... a minha tia... ela não teria deixado, mas se
eu tivesse dito assim... “mainha eu tô indo, é rapidinho, e volto”. Com os argumentos...eu
argumentava e ela deixaria eu ir, determinava o horário pra eu voltar, só que eu num... num
liguei.
P – Você foi sem avisar?
E - Foi, fui sem avisar, foi por isso que a situação piorou. Cheguei em casa tarde...
era doze horas, bem tarde.
Pois é ... semana passada, eu pisei na bola, tive uma recaída, vacilei. Mas, aos
poucos, eu tô deixando de usar; o tratamento aqui no Centro tá me ajudando muito.
P – Qual é a droga que você usa?
E - Maconha
P – Mais alguma?
E - Já usei, mas num... a que eu uso mermo é só maconha.
P – Já experimentou mais alguma?
E -
Já fumei crack, já tomei comprimido LS... é... artane, rophynol, álcool, o
tabagismo.
P – Você ia falando LSD?
E - Não... todas elas ofendem, nessa questão não tem pior não.
P - Como você iniciou o uso de drogas? E por quê?
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E - Assim... curiosidade e... astúcia também, né? Nem mesmo a influência... eu
acho que não.
Eu acho que eu devia ter uns treze pra quatorze anos, de três a quatro anos atrás.
P – Como você se sente quando usa droga?
E -
Como a maioria dos viciados... é, é... (sorriso sem graça) nada. Mas, assim...
(S).
P – Você se considera viciado?
E - Não... o viciado é assim... eu acho que é uma pessoa, assim, que necessita de
certa substância no organismo pra poder tá bem, pra não ficar se sentindo mal, eu não me
sinto assim não.
P – Seus familiares sabem que você usa drogas? Como e quando eles
descobriram?
E - Eu acho que eles já sabiam, né? Mas só que eu tava... eu fui pego com uma
lata de cola dentro do banheiro.
P – Quem pegou?
E - A família, todo mundo viu, e... eu acho que uma semana antes meu pai já tinha
sentido cheiro de maconha em mim, mas assim... ele descobriu... ele não descobriu não! Que
quando ele perguntou pra mim eu disse... ele perguntou e eu disse: “tô”. Aí ele perguntou: “tá
fumando?”. Eu falei: “tô!” Mas só que ele argumentou: “não negão e pa... não dá não, porque
é errado e pa...”.
A cola, ele descobriu há uns três meses, e a maconha foi logo quando eu vim
morar com ele, faz uns dois anos eu acho, não tenho certeza não.
P – Você começou a usar maconha quando foi morar com sua mãe?
E - Não. Eu tava morando com minha tia, minha avó ainda era viva. Aí, eu morei
dois anos com ela.
P – Com sua mãe biológica?
E - Sim.
P – Você já morou com seu pai?
E - Na casa dele, eu nunca morei na casa dele não, mas ele mora na mesma rua
que a gente. Eu morei com ele quando ele morava na casa da minha avó, antes dele casar de
novo. Ele é casado e tem mais duas filhas.
P – Alguém na sua família já usou algum tipo de drogas?
E -
Já. Tem o meu primo, que eu costumo chamar ele de irmão, que ele é filho da
minha tia. Ele até está freqüentando aqui o Centro Eulâmpio. Tem mais outros primos que...
que bebe, e mais ninguém. Só alguns primos que moram distante que fumam maconha
também.(S)
Meu pai não bebe... bebeu, mas não bebe mais. E também ele é ex-fumante, ele
não fuma também mais não.
P – Como era o uso do álcool dele?
E - Era porre.
P – E sua mãe?
E - Mainha... ela assim... bebe, eu não vou dizer normal, porque beber não é
normal. Também não vou dizer social, porque pra mim não existe isso não. Ela bebia pouco.
Além dela beber pouco, em grandes intervalos assim... entende, né? Cigarro ela nunca fumou.
P – Como você via a relação de seus pais?
E - Eu não alcancei não, eles separaram-se eu tinha apenas dois anos... ela foi pra
São Paulo e ele foi morar com vó, com a mãe dele.
P – E você foi morar com quem?
E - Com ele... Aí depois ela retornou, uns dois ou três anos depois. Aí, foi quando
eu comecei a revê-la. Assim...férias, final de semana, eu tava sempre por lá... Aí ele casou,
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construiu a casa dele, mas eu não fui morar na casa dele, eu continuei lá na casa de vó...
Depois eu decidi... fui pra casa de mãe. Aí eu fui pra lá... depois eu voltei.
P – A quem você é mais apegado?
E - Minha tia. Nem minha mãe, nem meu pai. Em termos de conversa eu não
tenho muita facilidade pra conversar com eles.
P – Com qual dos dois você tem mais dificuldade de se relacionar?
E - Mãe, porque ela é assim ....ela não é uma pessoa culta. E pai, porque ele é uma
pessoa inteligente, mas ele é uma pessoa muito... rude NÃO! Ele é uma pessoa muito radical,
pra ele ou é ou não é, não existe um meio termo. A gente é meio distante. Uma vez eu até
disse a ele: “pai você não foi falho, você foi falto”.
P – Tem alguma coisa que eu não perguntei que você gostaria de
acrescentar?
E - Não.
ENTREVISTA Nº 2
ENTREVISTA COM ANA (TIA DE ANDRÉ)
Obs: André foi criado pela tia Ana, refere-se a ela como sendo sua “tia-mãe”
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Nome: Ana
Sexo: Feminino
Idade: 43 anos
Estado civil: Solteira
Nº de filhos: 3, com André
Naturalidade: Recife
Escolaridade: 1º grau incompleto.
Profissão: Costureira (atualmente não está trabalhando).
Religião: Católica Praticante? Não.
OBS: Não participa de nenhum tipo de tratamento psicoterápico ou de apoio psicológico
P – Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre sua família relacionada a
André?
E -
André na minha família ele é meu filho, assim. Então, além dele ser o meu
filho, ele é sobrinho (enrola a voz), é... meus irmãos, é como... ele é... lá em casa, graças a
Deus, somos uma grande família, porque é assim: se minha irmã tem um problema, o
problema não e dela é nosso, se meu irmão Antônio (pai de André) tem um problema, o
problema não é dele é nosso, desde que cada um assim... se sinta assim... bote, exponha o
problema, se a pessoa fica pra si agente também não se mete, só se mete com a permissão,
assim... pergunta se pode dar opinião, sempre é assim. Então, lá em casa sempre foi aberta,
assim, a convivência com André, os problemas de André, desde que ele chegou lá
pequenininho... minhas irmãs adoram ele, todo mundo gosta dele, todo mundo dá conselho e
todo mundo dá carão, não tem esse negócio.
P – Ele chegou na casa de vocês com que idade?
E - Com dois anos de idade. Foi uma separação meio confusa lá, e eu não sei bem.
Na época meu irmão não morava lá, tinha saído de lá da casa da minha mãe onde a gente
morava.
Antes, ele teve com a mãe de André uma menina. Moravam com a gente aí...
depois dessa morte da menina ela resolveu ir embora pra perto da família dela, porque a gente
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morava em Y (bairro da periferia da cidade do Recife), e a família dela em Z (bairro da
periferia da cidade do Recife). Até ela criou uma confusãozinha lá em casa pra poder ter uma
espécie de briga, meu irmão ficou com raiva da gente e tudo, uma confusão mesmo, que ela
criou pra poder forçar ele a ir embora. Aí, ele foi embora com ela, aí lá foi que nasceu André
tudinho.
P – Como foi a confusão que ela criou?
E - Foi comigo mesmo. Porque ela criou uma confusãozinha, aí se estendeu na
família, mas foi... não era um motivo assim... para ela ir embora, mas ela achou que era e meu
irmão assim... No momento não foi nada sério, porque ela assim... eu estava grávida, aí
chegou um colega do meu irmão lá na minha casa, lá na casa onde a gente morava, porque a
gente morava tudo, olhe: meu pai, minha mãe, eu, Antônio, Mércia e mais três irmãos que
eram solteiros; na época, tudinho moravam lá. Aí meu irmão pegou um colega dele que
bebeu, bebeu, bebeu e botou na minha cama, aí quando eu cheguei do trabalho, aí eu peguei
simplesmente e disse assim (Antônio tinha ido trabalhar, porque ele tava no quartel) eu disse:
“mas é muito engraçado, porque ele não botou na cama dele? Eu só disse isso, aí ela pegou e
ficou zangada, esperou meu irmão chegar no outro dia e fez o maior fuzuê, sabe? Disse que eu
mandei o rapaz dormir com ela, a expressão que ela usou foi essa, porque meu irmão tinha ido
trabalhar, aí era para o cara ir dormir com ela. Mas, não foi nesse sentido que eu disse, na hora
eu nem me liguei que a cama dele era dela, entendeu? Porque não foi nesse sentido. Mas,
como ela queria ir embora, ela aproveitou isso como um pretexto. E depois disso, muitos anos
depois, ela reconheceu que criou um clima sem necessidade, depois de muito tempo que caiu
na cabeça dela... Aí foi aquele clima, ele ficou zangado comigo porque eu mandei a mulher
dele... Aí, foi embora. Lá nasceu André, tudinho.
Ele passou um bocado de tempo sem vir pra cá, magoado, depois ele foi se
chegando pa, pa, pa, aí depois fez as pazes. Aí, lá criou um clima entre eles - que eu também
não sei o que foi - e acabou se separando. Ela disse que ele bateu nela, aquilo tudinho. E ela
foi embora para São Paulo, lá em casa ela contou que ele bateu nela e que por isso que se
separou.
Ela foi pra São Paulo e deixou André com a mãe dela, só que a mãe dela
trabalhava em casa de família, num podia ficar com André direto; já deixava ele na casa de
uma vizinha pra poder ir trabalhar, e de noite vinha da casa de família.
Aí, alguém lá da parentada dela mesmo - eu não sei dizer quem - ligou pra meu
irmão, pra loja onde ele trabalhava, contando o que tava acontecendo: que ela tinha ido pra
São Paulo, que André tava na casa de um vizinho. Aí, meu irmão foi lá, constatou, e
simplesmente não teve esse negócio de ir pra juiz não, botou o menino embaixo do braço...
Aí: “não, mas não pode”. Aí ele disse: “pode, eu sou o pai, e diga a avó dele que depois eu
passo aqui pra falar com ela, e se ela achar ruim ela vá na justiça”. Aí pegou o menino, do
jeito que tava mesmo, e veio simbora. Aí, depois ele foi lá, falou com a avó, aí ela também
não fez questão, ela sabia que lá em casa ele tava mais assim... muito bem amparado; tanto
que pela avó ele nunca teria ido morar com a mãe.
Aí, os anos passaram, e ela lá em São Paulo e ele cá. Ele era um menino assim
sabe? Que ele sentia muita falta... ele tinha dois anos, mas ele sentia muito a falta da mãe. Eu
não sei se era falta da mãe, eu não sei o que era, mas ele chorava, chorava, era um desespero,
uma agonia. Às vezes o pai perdia a paciência, queria bater, a gente NÃO. Eu e e minha mãe
ficava horas e horas de madrugada se balançando numa cadeira pra André... quando não era
eu era minha mãe, eu ficava. Aí, às vezes, como eu ia trabalhar no outro dia, minha mãe dizia:
“vá dormir que eu fico” (choro) e (S).
Mas, ele foi ficando com aquela esperança da mãe voltar, dele voltar pra mãe
tudinho, e também, por outro lado, o pai dele sempre foi assim... responsável do ponto de
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vista de não faltar as coisas pra ele - isso aí eu não posso dizer que foi não - agora também
nunca foi assim aquele pai presente, sabe?
Ia com ele prum jogo de futebol... Mas também uma coisa mesmo que marcou -
marcou muito eu sei que marcou ele, porque me marcou - foi numa formatura do ABC dele,
todo bonitinho, todo bonitinho lá, ele chorou, deu uma crise de choro que não ia mais pra
formatura, que não queria ir mais pra formatura, mas ele ia ser orador da turma e eu dizia:
“não, você tem que ir, você tem que ter responsabilidade, você não disse que queria ler na
frente, a professora botou você, papapapa... depois ele se calou. Eu e minha mãe, minhas
irmãs, ajeitou ele todinho, todo bonitinho, cada um deu uma coisa: um deu um relógio novo a
ele... mas, o pai não foi, porque ficou simplesmente bebendo numa farra. O pai dele era assim,
na hora mais importante... Ele sabia da festa, do dia, da hora, porque foi ele mesmo que
comprou comigo o sapato, o cinto pro menino.
P – E a mãe de André foi?
E - Não. A mãe estava em São Paulo, num tinha voltado ainda não. Ela voltou
quando ele já tinha uns dez anos... eu acho que ele já tinha uns dez anos já, ele já tava bem
sabidinho.
E não foi só nessa ocasião que aconteceu isso, teve outras coisas mesmo, como na
festinha do colégio, muitas vezes...
Teve ocasião mesmo, que nas festas de colégio, muitas vezes, o pai tava em casa,
mas não ia, ficava bebendo, bebendo. O pai bebeu muito, o pai dele bebeu muito, embora
nunca foi irresponsável de largar emprego, perder emprego por bebida, mas bebeu muito o pai
dele. Eu tambémo sei se era muito problema que ele tinha que ele se enfiava na bebida, que
deixava ele outra pessoa, ele se transformava.
Num aniversário que a gente fez uma festinha, fez um bolinho pra ele, e o pai
num... o pai tava em casa, mas não participou, porque foi beber. Aí, isso foi muito assim,
também, muito...
Aí eu sei que a mãe dele veio... passou-se o tempo, passou-se, passou-se e ele
esperando a mãe voltar. Ele sempre foi um menino muito mal criado, assim... mal criado que
eu quero dizer é respondão... sempre foi isso com todo mundo, não tinha esse negócio de
tirar... não porque era dona fulana, nem a avó, nem... ele respondia, se ele achasse que tava
errado ele respondia, ele respondia. Eu até essa semana tava falando com uma pessoa que
meus filhos são muito rebeldes, mas não foram criados assim não, ser respondão com vizinho
esses negócio não. André até disse um dia desses: “mainha eu ainda me lembro uma vez que
Dona X - uma vizinha nossa que ainda tá viva, ela é bem velhinha - ela falou comigo e eu
estirei o dedo pra ela, tá mainha eu me arrependo tanto de ter feito isso com ela, ela é uma
pessoa tão boa, tão boa”. Aí eu disse a ele: “ainda bem que você se arrepende, agora quando
você passar por ela você diga a ela que lembra disso e que se arrependeu” (Risos).
P – Como é sua relação com André?
E - A minha relação com André? Eu tenho uma relação muito boa com André,
com ele eu conto muito, eu conto muito com ele pra tudo, eu tenho essa dificuldade com ele
porque ele parece um passarinho que tão tentando prender, quer voar. Mas agora,
principalmente, agora que ele ta ficando mais velho, com todos esses defeitos dele, eu tenho
uma relação boa com ele. Mesmo quando ele era menor, sabe? Que ele era muito mal criado,
muito fujão e tudo, a gente se entendia bem. Ele é muito carinhoso - apesar de tudo - ele é
muito carinhoso. Às vezes, quando ele apronta, ele olha pra mim com voz chorosa e diz:
“mainha eu não queria ser assim, eu não queria lhe fazer sofrer”. Aí eu digo: “eu sei”. Porque
eu entendo ele - graças a Deus - eu ainda me entendo bem com ele. Meu irmão diz até que eu
que estrago ele (Risos sem graça com lágrimas nos olhos).
P – Qual o tipo de droga que ele usa?
E - Que a gente tem certeza, assim, é que ele fuma maconha e já cheirou cola.
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P – Quando ele começou a usar?
E - Eu não sei dizer exatamente quando foi. Ele nunca me disse, eu já tentei puxar
esse assunto, mas eu não sei ser agressiva com ele pra puxar esse assunto, eu gostaria que ele
me dissesse naturalmente, ele não quer me dizer.
P – Como vocês descobriram? E qual foi a reação de vocês diante da
descoberta do uso de drogas de André?
E - Olhe... de impacto a gente fica tão chocada, eu mesma fiquei tão chocada.
Assim a gente já, eu já sabia que ele já tinha fumado maconha... quando ele foi pra casa da
mãe dele. A mãe dele disse a mim que ele fumou quando estava na minha casa, e quando ele
foi pra casa dela ele já fumava. Aí eu disse: “você tem certeza?” E ela disse: “tenho, tenho
certeza que quando ele chegou lá ele já fumava maconha”. Aí eu disse: “olhe Mércia (mãe de
André) eu sinto muito, mas eu nunca percebi isso”. E realmente, às vezes eu digo a ele assim:
“meu Deus como eu sou boba, boba, burra, porque eu nunca percebi isso de vocês”. Aí ele
disse: “não mãe, não é porque a senhora é boba não, é porque a senhora ama demais a gente”.
“Mais mesmo assim André... amor, mas tem que se perceber os defeitos da pessoa. Como é
que eu não conseguia ver que vocês iam pra escola e fumavam maconha? Com é que eu não
conseguia ver?”.
Ele, junto com meu menino mais velho Luiz, que também está se tratando aqui no
Centro, iam pro vídeo game, de vez em quando, à noite. Mas não se justifica, porque não
viviam na rua direto, é isso que eu não entendo. Aí, eu fico dizendo a ele: “eu não entendo
como aconteceu um negócio desse, e como é que eu podia desconfiar se vocês não viviam na
rua, só no colégio, e às vezes a noite eu deixava vocês irem pro vídeo game.
P – Como foi a reação de vocês quando descobriram?
E - Mais foi um reboliço, aquela confusão, a gente botou de castigo! Esses
meninos ficaram de castigo, meses, semanas, e eu não sei como é que esses meninos
conseguem ainda tá...
Eu mesma nunca desconfiava deles não, aí eu tenho uma irmã que sempre dizia
assim pra mim: “Ana, observe esses meninos, do que jeito que eles vai pra rua, do jeito que
eles vêm”. E eu digo: “O que é que eles têm que eu não consigo ver?”
P – Essa sua irmã morava na mesma casa que vocês?
E - Não, na mesma casa não. Mas, os filhos dela viviam na rua, escutavam o
comentário, e falavam alguma coisa pra ela, né? Assim das amizades, esses negócio. Eu
falava das amizades, eu só reclamava das amizades, eu dizia: – porque tem um velho ditado
que diz assim – “quem se junta com os porcos, porcos é... aliás... quem se junta com porcos
farelo come, eu dizia, né?” Que minha mãe dizia isso. A gente foi criado no meio da favela,
porque eu fui de favela, fui criada numa favela, e minha mãe dizia pra gente falar com todo
mundo, pra gente FALAR, mas nunca PARAR. Podia ser o maior maconheiro, assaltante, que
morava lá, a gente era: “bom dia seu fulano, boa tarde, tudo bom? Como vai?”. A gente tinha
que dizer isso, porque minha mãe obrigava a gente a dizer. Ela sempre dizia: “nunca queira
ser melhor do que eles, mas também nunca queira ser igual”. Minha mãe quando tava viva
conversava com eles. Na época André foi embora pra casa da mãe dele - minha mãe tava viva
- ele passou um ano na casa da mãe dele, foi pra lá. Porque ele começou a dar muito trabalho,
fugir, esse negócio, aí ele foi embora. Porque ele queria ir, ele foi porque ele queria ir. Aí, cá
ele pintou o sete mesmo, ele fugiu, ele foi reprovado porque quis, chegou na hora da prova aí
disse: “eu vou ser reprovado - disse na minha cara mesmo - eu vou ser reprovado”. Aí, foi
reprovado e foi embora.
P – Então a senhora acha que ele fazia tudo isso para ir embora para casa da
mãe?
E - É, eu acho que sim, ele queria ir, ele num queria ir?... Eu achava que era isso,
porque se ele queria ir e eu não concordava, eu: “André sua mãe não tem condições, sua mãe
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trabalha em casa de família, não tem condições de cuidar de você. Você não vai e passa o
final de semana com ela quando você quer? Que eu até nem concordo que você vá demais, eu
não concordo porque sua mãe bebe muito, vai pras farra, eu num concordo. Mas é sua mãe,
seu pai concorda e tá tudo certo”. Ela não convidou ele pra ir! Ele queria e ela concordou, ela
aceitou.
P – Quantos anos ele tinha quando foi morar com a mãe?
E - Ele devia ter uns quatorze anos, ele passou um ano lá.
Aí, André, lá na casa da mãe dele, teve a maior confusão lá. A mãe dele disse ao
pai que ia botar pra fora, aí botou ele pra fora, aí o pai trouxe ele pra casa dele. Porque quando
André foi pra casa da mãe, o pai dele já tinha casado novamente.
Aí, André vai pra casa do pai - não veio pra minha casa - chega lá na casa do pai
teve a maior confusão dele e a esposa do pai, ela deu nele, arranhou ele, foi alguma mal
criação que ele fez, que ele era mal criado mesmo. Depois foi lá pra casa de volta, aí o pai
começou a fazer marcação cerrada nele, até que um dia o pai dele botou ele de castigo dentro
de casa, aí eu nem lembro mais porque foi, o pai dele botou ele de castigo, parece que foi
porque ele tava dizendo que tava indo para o colégio e não foi, passou uns dias sem ir, e o pai
tava pagando, porque até o ano passado ele tava estudando em escola particular, o pai dele
tava pagando; o pai botou ele de castigo, e ele cheirou cola dentro de casa, até aí a gente não
sabia também da cola. Aí eu não sei se a cola foi só porque ele tava preso e não tinha a
oportunidade de outra coisa, né?
Quando eu vi ele dentro do banheiro, aquela gritaria, aquele negócio - ele gosta de
cantar dentro do banheiro, ele gosta de cantar, mas um negócio meio estranho- daqui a pouco
ele começava a abrir a porta... e fechando... eu disse: “Que brincadeira é essa menino?” Aí eu
mandei chamar o pai dele, aí foi horrível, horrível, horrível, eu nunca tinha visto ele naquele
estado, drogado, eu nunca vi não minha filha, ele drogado não. A gente percebe depois de
todas essas confusões, que foram acontecendo, foi que eu comecei a perceber a diferença,
assim, do olhar... mas nunca tinha visto não, foi horrível, foi... André drogado e o pai dele
puxou ele, pegou, rasgou minha cortina do banheiro e tudo, mas não adiantou nada porque
André tava drogado. Isso foi no ano passado, na época que ele veio pra cá, no período das
férias em julho que ele tava de férias. E quem forneceu a cola foi meu menino Luiz, que era o
único que tinha saída. Aí foi uma confusão só, foi um aperreio.
Aí foi quando a gente resolveu que ia procurar ajuda. Eu disse: “vocês vão agora
quer vocês queira, quer vocês não queira, porque sempre a gente fala, fala que tá na hora de
procurar ajuda e vocês dizem que não precisa”. Aí André disse: “não mãe, não precisa, a
gente não tá mais nessa não!”.
Eu sempre digo a ele: “seja sincero comigo pra eu poder amenizar com seu pai,
porque se você não for sincero comigo, como é que eu posso amenizar?”.
P – Fora o pai de André que a senhora disse que bebia bastante, e seu filho
Luiz, mais alguém na família bebe ou usa algum outro tipo de droga?
R – Não, na minha família não. Lá em casa, quando eles eram crianças, às vezes a
gente fazia festa nos fins de semana, e sempre tinha muita bebida. Hoje em dia não tem mais,
porque eu tomava cerveja, minha outra irmã, meus irmãos, aí... mas, depois de um tempo a
gente foi cortando. Meu pai também bebia, ele morreu quando André tinha uns oito anos.
P – Seu pai teve problemas com o álcool?
E - Teve, ele era alcoólatra.
P - A senhora acha que André usa drogas por que?
E – Às vezes eu fico, assim, pensando mil coisas, mas na verdade eu não faço
nem idéia, porque eu sei que ele teve uma infância, assim, meia difícil. Porque o pai dividido,
a mãe dividida, mas ele não foi um menino carente, se ele tivesse sido um menino carente, até
seria é... (S) diferente do... carinho da mãe, da vontade de você estar com sua mãe, não é nem
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o carinho, é a vontade de você estar com a mãe, porque muitas vezes a pessoa está com a mãe
e não tem o carinho da mãe... mas, no caso dele é diferente, ele não tinha e ele não sabia se
tinha o carinho ou não. Apesar de que quando a mãe dele voltou, que ele ainda era garoto, eu
num lembro bem a idade dele quando ela voltou, se era dez anos, se era oito anos, nas
primeiras vezes que ele foi pra casa da mãe, passar o dia com a mãe, ou o final de semana,
tinha pobrema. Ele voltava a mãe dele dizendo que não levava mais, que ele fazia vergonha.
Mas, André não fazia vergonha a ninguém não, era mal criado, mas não fazia vergonha a
ninguém não! Aí ela disse que ele fazia vergonha a ela, ela pegou bateu nele, ele disse que ela
meteu a cabeça dele no poste no meio da rua, assim “toim”, com raiva dele.
Aí, eu num sei o que foi que levou esse menino a ... a ... ser... (S) Eu sei,
sinceramente, que era pra ele ter tido uma ajuda de psicólogo há muito tempo, mas o pai dele
num acreditava, num acreditava em psicólogo, achava que o que resolvia era umas boas
lapadas nele, mas eu dizia: “Antônio o meu jeito não é de bater”. E todo mundo me cobra,
dizem as vezes que ele ficou rebelde porque eu não bati, mas é o meu jeito, eu não sei bater,
eu só sei escutar.
P – A senhora gostaria de comentar alguma coisa que eu não perguntei?
E - Não, não.
ENTREVISTA Nº 3
ENTREVISTA COM MÉRCIA MÃE DE ANDRÉ
Obs: Mércia é a mãe biológica de André
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Nome: Mércia
Sexo: Feminino
Idade: 35 anos
Estado Civil: solteira.
Nº de filhos: 4
Naturalidade: Recife
Escolaridade: 1º grau incompleto
Profissão: Dona-de-casa
Religião: Católica Praticante? Não
OBS: Não participa de nenhum tipo de tratamento psicoterápico ou de apoio psicológico.
P- Eu gostaria que a Sra falasse um pouco sobre sua família, relacionada a
André.
E – Eu tenho três filhos, quer dizer, quatro com André, né? Ele é o mais velho,
dos quatro filhos que eu tenho. Tive André com Antônio e os outros três são da pessoa com
quem eu... é que eu não sou casada,
eu vivo com uma pessoa há mais ou menos cinco anos,
tenho gêmeos e mais outro filho com ele.
O relacionamento entre eu e o pai dele, num era ruim, mas também não era tão
bom. Quando eu comecei a namorar com ele, eu já... já comecei a sofrer, né? Porque ele tinha
outras, eu tava com dezessete anos, muito adolescente, né? Aí eu já tava... Aí eu comecei a
sofrer, porque ele tinha outras, eu sabia, ele passava pela porta da minha mãe com outras,
tudinho. Aí pronto, aí depois eu me entreguei a ele, aí fiquei grávida. Pra falar a verdade eu
tive a primeira, que é irmã de André do mesmo pai e da mesma mãe, aí... ela faleceu novinha,
nasceu com problema. Aí pronto, depois da menina eu passei dois anos pra ter André. Aí,
89
depois de dois anos que a menina faleceu eu tive André, o pai dele tava desempregado, mas
ele disse: ”não, a gente dá um jeito, tudinho”. Aí tudo bem.
P – Vocês planejaram essa gravidez?
E - Não, mas depois a gente quis, né? Lógico. Mas, também aconteceu muita
coisa boa, Antônio começou a trabalhar. Aí pronto, eu tive ele, foi muito bom quando eu tive
ele. Mas depois que.... aí, depois começou as brigas entre eu e o pai dele, era muita briga
mesmo, briga mesmo de ir as tapas mesmo eu e ele. Aí, a gente viu que num dava mais certo,
só que ele não queria me deixar, disse que num ia me deixar assim, disse que se me deixasse
ia levar o menino, aí eu disse que não. Ele chegava a bater em mim mesmo. Eu tive que ir na
casa da minha ex-sogra conversar com ela, pra ela conversar com ele, pra gente se separar
numa boa. Aí, meu pai, que agora já é falecido, disse: “eu vou levar você pra São Paulo,
quando chegar lá você arruma um emprego, aí se organiza”. Só que ele pensava que ia ser
bom pra mim, mas... não foi, porque eu fiquei longe de André, eu ia levar ele, mas depois foi
descoberto, o pai dele soube.
P – A senhora ia levar André para São Paulo?
E - Eu ia levar André comigo, num levei porque o pai dele disse que não, que não
ia deixar, tá entendendo? Aí, no caso, eu ia tá levando ele escondido. Aí, quando ele
descobriu, ele disse que eu não ia levar. Aí, teve uma vez que ele foi roubou o menino de mim
de madrugada, a gente morava num barraquinho de tábua, ele foi roubou o menino de mim, eu
fui pro juiz, foi a maior confusão na minha vida. Ele já tinha dois anos quando eu e o pai se
separou. Aííííííí (fala mais alto), eu fui passar uns tempo em São Paulo, ele ficou uns dias com
mãe, mas depois o pai dele - a família, né? - ficou sabendo que eu tinha ido embora, e levou
André pra morar com ele. De dois anos até agora ele mora com a tia dele Ana, irmã de
Antônio. Aí eu fui trabalhar lá, mas só que eu pensei que ia ser uma coisa, mas foi outra
diferente.
Aí, quando eu voltei pra cá, eu fui logo lá vê André, tudinho. E eu sei que André,
ele é meio revoltado...
Aííí (fala mais alto), quando eu voltei, eu ia buscar, ele passava o fim de semana.
P – Quanto tempo a senhora passou em São Paulo?
E - Três anos. Aí eu ia pegar ele, aí ficava o final de semana com ele. O pai dele
nunca queria que eu passasse mais tempo com ele, assim... uma semana, ele num queria, só
final de semana. Aí, eu ia pegar e ia levar, ia pegar e ia levar.
Quando teve a formatura de ABC de André, eu já tava aqui, só que ninguém me
avisou que ia ser a formatura, quer dizer, me avisaram, só que não disseram assim... vai ser tal
dia, aí eu não sabia, aí eu não fui, aí quando eu soube já tinha tido.
Aí, a tia dele disse pra mim que deu uma crise de choro nele, porque ele viu as
mães todinhas lá e num me viu.
Ele sempre falou: “eu queria que minha mãe e meu pai ficassem juntos”. Aí, eu
acho que ele tinha essa revolta, e do jeito que ele tem crise de choro lá - quando ele tá lá -
quando ele ia pra mim ele também dava. Uma vez a gente fez o aniversário dele de nove anos,
todo mundo lá animado tudinho, fiz tudo direitinho, fiz um bolinho, fiz os pratinhos, André
não quis saber de nada, deu uma crise de choro nele, ele chorava e brabo, brabo. Minha mãe
pegava ele, todo mundo acalentava ele, e ele não queria. E, até hoje, eu não sei porque foi
aquela crise de choro. E eu pergunto a ele, e ele não me responde.
P – Como é sua relação com André?
E -
Eu me sinto mal. Porque eu acho que ele é muito assim... afastado. Eu num
sou muito, num converso muito com ele. Só que assim... eu gosto demais, tá entendendo? Só
que na época, quando ele veio morar comigo, ele ficou mais solto, porque não tinha ninguém
pra ficar prendendo ele. Porque, quando ele tava com quinze anos, ele queria porque queria
voltar pra ficar comigo. Aí, eu disse que tudo bem, porque eu queria, mas só que no fundo, no
90
fundo, eu tava com aquele pensamento, né? Eu sozinha, eu num ia poder tomar conta dele. Eu
trabalhando, aí ele...
Aí eu aceitei, né? Aí eu conversei com o pai dele, o pai dele disse: “é, eu acho que
ele deve dar um tempo lá pra ver, mas se acontecer alguma coisa ele volta”. Eu tratava ele do
mesmo jeito; meu marido comprou uma cama pra ele, só que André sempre teve ciúme de
mim, ele não aceita eu com ninguém, outro homem nenhum, ele não aceita. Mas, deve ter sido
muito difícil pra ele, né?
Eu botei ele no colégio. Ele disse: “mainha eu quero estudar em tal colégio”, aí eu
fui, me acordei de madrugada, peguei uma vaga. Aí tudo bem, ele começou indo pro colégio
numa boa, só que depois ele passou três meses sem aparecer no colégio e eu não sabia. Eu
saia de manhã pra trabalhar, deixava a comidinha dele pronta, tudo arrumadinho, a roupa,
tudinho passada, pensando que ele ia pro colégio. Depois ele chegou: “mainha ó, a diretora
disse que a senhora tem que renovar minha matrícula”. Aí, quando eu cheguei lá, todo mundo
espantado olhando pra ele, pareciam que tinham visto ele fazia muito tempo, aí um dizia:
“voltasse, voltasse?” Aí eu: “que foi? O que é que tá acontecendo?” Aí, ele: “nada mainha!”.
Quando a diretora me chamou pra conversar comigo, ela disse a mim que fazia três meses que
André não tinha chegado no colégio, não tinha ido no colégio. E eu peguei deu uma crise de
choro em mim, porque eu pensando que ele tava indo, né? Ele me fazendo de palhaça, porque
eu saia de manhã pra trabalhar, e falava: “vá pro colégio André, vá pro colégio”, e ele dizia:
“não mainha, eu vou, eu vou”, mas ele não ia. Ele disse que saia por aí pra andar, pra
conhecer os lugares (S).
P – A senhora sabe quando ele iniciou o uso de drogas?
E -
Eu não sei...
P – Como a senhora descobriu que ele usava drogas? E qual a sua reação
diante do uso de droga de André?
E - As pessoas viam e vinham me dizer, só que ele não queria admitir, tá
entendendo?
P - Então, na família quem soube primeiro foi a senhora?
E - Eu não sei se a família do pai soube, né? Eu sei que eu soube. Inclusive, uma
vez ele fez até um cigarro dentro de casa, pra fumar dentro de casa, comigo lá. Aí deu uma
revolta dentro de mim, eu bati nele, bati nele, ele saiu, pulou a janela, quebrou o portão com
raiva, puxou o cabo de vassoura de mim e quebrou, parecia o “Incrível Hulk”, porque ele é
magrinho, e na época ele tava bem magrinho. Aí saiu, e disse que num ia voltar mais nunca
em casa.
P – Então, foi nesse dia que a senhora descobriu?
E - As pessoas diziam, eu perguntava, aí ele dizia: “não mainha, não vá na cabeça
de ninguém não” , “não mainha, não vá na cabeça de ninguém não” . Só que eu ficava com
aquele pensamento, meu Deus. Eu não queria admitir, porque ele é tão inteligente. Aí eu
dizia: “mas, André num faça isso não meu filho, você vê o resultado de quem vive fazendo
isso, ou é no cemitério, ou é no presídio”, eu ficava dizendo assim, e ele dizia: “não mainha,
eu não mainha, eu num sou doido não mainha”.
Quando ele soube que eu tava grávida, ele saiu de casa, passou uns quatro dias
fora de casa, sujo, sem querer tomar um banho, ele chorava, ligava pra minha mãe, o pai dele
conversou com ele, minhas tias conversou com ele, aí disse: “André, tu tem que entender
André, teu pai num já casou? Teu pai num tem outros filhos? Tua mãe é nova, tua mãe
demorou a ter filho, porque não aconteceu, mas ela arrumou uma pessoa”. Aí ele disse: “não,
isso aí é uma chocadeira”. Ele me chamou de chocadeira, e eu num sei nem o que é isso. E eu
atrás dele, chegava do trabalho ficava atrás dele pela rua pra saber. Ficava perguntando as
pessoas: “você viu André?”. Aí, diziam: “ah, eu vi André passando por aqui, com uma roupa
só”. Ele tava dormindo num sei por onde. Aí, um dia eu vi ele de longe, aí corri atrás dele pra
91
conversar com ele, aí ele me chamou assim: “essa mulé”, aí eu disse: “essa mulé não, eu sou
sua mãe André, bora lá pra conversar”.
Assim, eu acho que alguém fez a cabeça dele contra mim. Eu penso isso.
P – E quem a senhora acha que fez isso?
E -
Eu acho que o pai dele. Só que eu nunca perguntei isso ao pai dele, e eu
pergunto isso a ele, e ele fica calado.
Sim, aí quando ele saiu de casa, e eu fui atrás dele, aí conversei com ele e disse:
“meu filho, sua mãe lhe ama, bora pra casa, mamãe lavou sua roupa, sua caminha tá lá
forrada, bora dormir, aí ele olhou pra mim com aquele rosto feio, sabe? Aí ele disse: “não
mãe, não faça isso comigo não, que eu quero me matar”. Aí ele voltou pra casa. Sujo,
fedendo, cabeludo. Aí, eu dei o dinheiro, ele cortou o cabelo. Tomou banho, eu fiz comida pra
ele, ele comeu, depois dormiu. Eu disse: “ tá vendo André, você tem a sua casa, você tem a
sua mãe, suas coisas, sua cama, seu quarto, por que você fez isso? Ele disse: ”não porque a
senhora não me entende”. Eu digo: “Por que você diz que eu não entendo? Você quer que eu
aceite você fazendo isso André? Eu não posso aceitar você fazendo isso não.
Ele dizia: “é, quando ele nascer o que a senhora fazia por mim, vai dar só pro
outro”, e eu disse: “não André, a gente mãe, a gente pode ter dez filhos, mas a gente ama
todos dez do mesmo jeito, do jeito que eu amo você eu vou amar esse, do mesmo jeito”.
Depois ele foi aceitando, mesmo quando o bebê ainda tava na barriga, ele já foi
aceitando, ele dizia: “eu quero um homem, eu quero um homem”.
Aí pronto, ele ficou lá em casa, ele saiu porque eu liguei pro pai dele, disse ao pai
dele que eu não tava agüentando mais, porque ele não queria me obedecer.
Quando eu chegava em casa ele já tava fora, com um monte de gente, fumando,
bebendo.
OBS: A partir desse momento, tivemos que interromper a entrevista, pois o filho
de Mércia de dois anos, que estava na sala durante a entrevista, começou a chorar pedindo
para sair. A pedido de Mércia tentamos dar continuidade à entrevista, porém a criança
continuou chorando, o que tornou inaudível o som e tivemos que interromper.
ENTREVISTA Nº 4
ENTREVISTA COM ANTÔNIO (PAI DE ANDRÉ)
DADOS DE IDENTIFICAÇÃO
Nome: Antônio
Sexo: Masculino
Idade: 39 anos
Estado civil: Casado
Nº de filhos: 3
Naturalidade: Recife
Escolaridade: 2º grau completo
Profissão: funcionário público/guarda municipal da cidade do Recife
Religião: Católica Praticante? Não.
OBS: Atualmente não participa de nenhum tipo de tratamento psicoterápico ou de apoio
psicológico.
92
P- Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre sua família, relacionada a
André.
E - O meu convívio com ele e com a mãe dele?
P- Pode ser.
E -
Foram seis anos só, e não teve amizade, muito contato, era aquela coisa muito
ausente. Naquele tempo eu bebia, era muito ausente em casa. Não tinha muito amor com a
outra, entre eu e ela, por causa da idade, eu tinha dezenove anos. Era um relacionamento bem
diferente de agora com trinta e nove. Aí, a cabeça bem louca, ela também. Ela não tinha o
amadurecimento necessário como esposa e como mãe. Tínhamos muito pouco a oferecer a
André.
P - Vocês eram casados?
E - Não. Morávamos maritalmente. Aí, ela engravidou, e, em conseqüência da
família da minha mãe, eu fui obrigado a morar com ela. Fui obrigado não, tive que morar
junto... moramos cinco anos ainda... acho que chegou a isso. A gente se separou André com
dois anos. Porque tínhamos uma menina antes, antes de André, não sei se você já sabe?
P - Como foi?
E – Aliás, eu fui morar com ela não foi da gravidez de André não, foi de uma
menina antes de André, que faleceu com seis meses de vida. A menina faleceu, depois de dois
anos ela engravidou de André.
P - Vocês planejaram essa gravidez?
E - Nenhuma delas
P - E depois que souberam que ela estava grávida aceitaram bem?
E -
A primeira não, a primeira eu fiz muita pressão, muita, muita mesmo (S).
P - E de André?
E -
Não. Não queria, mas devido à morte da menina eu vou ter que aceitar. Como
se fosse um castigo, ou uma recompensa, eu fiquei com medo, porque de tanto eu querer que
ela extraísse a menina, extraísse mesmo, eu queria mesmo, a menina não o bebê na época. Aí,
quando aconteceu... com seis meses de vida ela morreu, aí eu levei como se fosse um castigo.
P - Morreu de quê?
E - Insuficiência pulmonar. Saudável, aquela coisa toda, depois de seis meses
internou-se, passou uma semana, aí faleceu. Depois de um ano ela engravidou de André,
porém também não planejada, eu também não queria, mas não deixei nem transparecer, né?
Por... por causa do... a cabeçinha acha que é castigo, ou alguma coisa, mas que eu queria não
queria não. Mas, eu acredito que ele não sabe disso não.
P- E como foi quando ele nasceu?
E - Ótimo. Eu tinha certeza como era um menino, né? Meu primeiro filho. Foi
uma benção, porque no ano que ele nasceu foi o ano que eu tive o primeiro emprego da minha
vida. Entrei numa empresa naquele período extra Natal, só para concluir o final de ano.
Quando o pessoal soube que eu tinha um filho pra nascer, me contrataram, me apadrinharam
naquela mesma data, foi uma luz...
P- Vocês passaram quanto tempo juntos depois que André nasceu?
E - Só dois anos. O primeiro ano foi bom, mas o último ano foi muito tumultuado.
P - Por causa da bebida?
E - Acredito que não tenha sido não, porque até o meu teor de álcool veio piorar
agora. Eu bebia, mas trabalhava, aquela coisa toda. Também não vou justificar, mas eu acho
que a questão de André mesmo era... era... eu acho que o erro não era eu não.
Por coincidência, eu conversando antes de ontem com um primo nosso que
conviveu, que vivenciou a minha história, aí ele falou dela. Porque ele também é preocupado
com André, ele é de Z (bairro da periferia da cidade do Recife), onde a gente morou. Aí ele
perguntou: “Como é que tá o negão?” Aí eu fui e falei, né? Do tratamento que ele tá fazendo
93
aqui no Centro Eulâmpio, que eu fui com ele no curso de inglês. No mais, eu estou tentando
cercá-lo, tô tentando até sufocá-lo mesmo. Aí eu falando disso, ele (o primo) falou: “Olha
Antônio, Mércia pisou na bola de novo”. Quer dizer, porque ela já me traiu maritalmente e
depois de quinze anos - ele até citou assim - ela cometeu o mesmo erro, com o rapaz que até
adotou André, tinha o maior carinho com André quando ele foi morar com ela. Depois de
quinze anos aconteceu a mesma coisa que aconteceu comigo.
P - Ela traiu o atual marido dela?
E - Sim, o marido atual Francisco.
P - Ela traiu o senhor também?
E -
Também. Aí teve esse caso, aí eu fico pensando: “E por quê? Porque
Francisco não bebia, se for colocar na balança pode dizer assim: ele é melhor do que Antônio,
é melhor do que eu. Porque se eu errei dei motivo, e Francisco?”
P - Quando vocês se separaram como foi? André ficou com quem?
E - De priori eu deixei com ela, e no primeiro final de semana fui buscá-lo, fiz um
rapto propriamente dito, peguei, botei dentro do carro e levei sem avisar. Aí foi aquela
conseqüência, polícia, ela buscou as autoridades. ficou naquela questão, uma semana com
ela, por causa da idade dele, uma semana comigo, aí ficou uma assistente social conversando
com nós, aquela coisa toda, então, eu disse: “Se for ficar assim eu abro mão pra você ficar
com o menino”. Tive que abrir mão, alguém tem que abrir mão, aí eu abri mão. Dentro de um
mês, que eu abri mão, ela foi para São Paulo, e deixou o menino com a mãe dela.
P- O senhor abriu mão, mas continuou vendo ele?
E - Sim. Ele ficou morando com ela, mas todo fim de semana eu estava lá. Eu
acho que havia assim como uma implicância, eu queria por implicância e ela também, acho
que foi aquela implicância de casamento rompido.
Quando ela foi para São Paulo foi a oportunidade que eu queria. Depois, quando
ela voltou, depois de dois anos, ele não a conheceu, mas eu sempre falei: “Sua mãe está
trabalhando”, e contei a história.
P - Antes de ir para São Paulo ela falou com o senhor?
E - Ela chegou pra mim e disse: “Eu vou pra São Paulo”. Então eu disse: “Pega o
menino, leva lá em casa, conversa com minha mãe”. Aí ela disse: “Não, deixa com minha
mãe”. Aí eu deixei. Quando ela foi embora, no mesmo dia que ela viajou, eu levei ele pra
casa. A desculpa era que ele ia passar o fim de semana comigo, como eu era o pai...
Até dois anos, quando ela voltou de São Paulo, ele não conhecia, mas ele sabia da
história dela, não da história real, mas sabia que ela foi trabalhar. Aí ela veio, ele a
reconheceu, teve aquele papo todo de filho pra mãe e continuou ela vindo visitar. Porque a
minha irmã e minha mãe realmente tinham... o adotaram, né?
P - Então ele tinha quatro anos quando ela voltou de São Paulo?
E -
É. Aí, de quatro anos quase até dez, doze anos, foi quando ela começou a
freqüentar mais lá em casa, até então não freqüentava. Aí, foi quando ela conheceu esse
Francisco, depois que ela conheceu esse Francisco ela começou a freqüentar mais,
demonstrou até mais carinho, mais atenção, mais amor. Foi quando teve a idéia de levar ele
para Z (bairro da periferia da cidade do Recife), ele já tava com seus dez anos, ele passou dois
anos sem estudar. Aí eu defino o seguinte: que esse periodozinho foi que ele... tirou de Y
(bairro da periferia da cidade do Recife), aliás, tirou ele da gente, ele morava com minha mãe,
minhas irmãs, aquela criação bem arcaica, meio rigorosa, levou pra Z (bairro da periferia da
cidade do Recife), não discriminando a favela, mas ali é um local que a gente tudinho
conseguiu sair de lá. Enquanto o negão passou lá dois anos, conhecendo muita gente, sem
estudar, não respeitava... aquela coisa totalmente diferente. Aí, foi quando eu tentei resgatá-lo
de volta. Antigamente eu era falho, estava muito ausente como pai, como amigo, como eu
94
estou sendo hoje, como estou tentando ser hoje. Saía, bebia, batia minha pelada. Agora estou
há dois anos afastado do álcool.
P - O senhor já teve problemas com a bebida?
E - Já.
P – André sabe disso?
E - Sabe
P – O que ele acha disso?
E - Vergonhoso
P – E o senhor?
E -
Também, claro. Eu tô tentando me manter afastado. Quando eu converso
muito com ele - que eu converso muito - eu cito meu exemplo.
Uma vez eu tava bêbado e chamei ele para sair comigo e com meus amigos, e ele
disse pra meus amigos: “Quando pai estiver bêbado desse jeito eu não quero sair com ele não,
que faz vergonha”. Aí eu cito isso pra ele, a vergonha que eu o fiz, então, não me... não me
puna não, porque você me envergonha.
Eu marquei mais esses dois anos que eu fiquei longe do álcool, do que quinze
anos que eu bebia, tô bem mais forte nesses últimos dois anos.
P - Com quem André mora hoje em dia?
E - Com minha irmã, e eu moro com minha esposa na mesma rua, duas casas
depois. Hoje em dia vejo ele todos os dias, já o vi hoje de manhã.
P - O senhor sabe quando ele iniciou o uso de drogas?
E - Não. (S). Eu Acredito que ele começou cedo na maconha, porque teve uma
vez que eu notei um jeito de conversar...
P – O senhor chegou a perguntar algo a ele?
E –
Não. Eu afirmei, eu afirmei de uma maneira tal que ele não pôde nem negar,
eu disse: “Eu sou macaco velho e eu sei que você está fumando maconha, eu sei que você está
fumando maconha”. E ele baixou a cabeça.
P – Como o senhor percebeu?
E - Notei pelo comportamento, o linguajar. Isso foi há uns três anos atrás, eu
estava no álcool ainda, já tinha aquela suspeita no ar.
P - Qual foi a sua reação quando descobriu que ele estava usando droga?
E - (S) É como se não fosse surpresa pra mim. Fiquei muito magoado. Quando ele
foi para Z (bairro da periferia da cidade do Recife) minha família perdeu o total controle dele,
quando ele vinha de lá, vinha totalmente mudado. A gente conversava com ele, assim vou dar
um exemplo: negócio de arma, ele dizia: “Mas rapaz, mataram um cara ali com um trinta e
oito tal e tal”. Era um conhecimento que ele tinha, falava da favela tal e ele dizia: “Já fui lá”.
Ele falava de coisas que mesmo eu com esta idade, mesmo durante o uso do álcool, na
minha... na minha parte podre não, na minha parte negra da vida, não conhecia. E ele com
quatorze, quinze anos já falava de uma maneira que... agora ele tem um lado assim muito
inteligente (S).
P – O senhor acha que ele usa droga por que?
E - Não tenho nem idéia... Se o fator psicológico da pessoa influencia muito, ele
deve estar procurando refúgio, porque ele agüentou uma barra muito grande. Eu conversando
com minha irmã - eu também não sabia disso - ela disse que a mãe dele fez um aborto desse
Francisco (atual marido da mãe dele), e só quem soube foi André, e ele estava gostando muito
da idéia de ter um irmão e ela fez um aborto. E esse Francisco (atual marido da mãe de
André) gostava muito de André, ele ia lá em casa, buscava o menino, a gente se aturava pelo
menino, eu não gostava, mas também não tinha porque não gostar, a gente se aturava por
educação de ambas as partes.
95
E também pelo meu lado, porque quando eu comecei a namorar minha atual
esposa, ele estava com cinco anos, ele foi rejeitado isso eu sei. Aí foi realmente que eu fiquei
ausente, com a namorada, aquela coisa toda, ela era nova, tinha dezesseis anos, não aturava a
idéia de ser madrasta. Eu acredito muito que isso mexeu muito com André. Ela não aceitou, e
até hoje ela não aceita ainda André, ela hoje tolera, mas não transmite um carinho, uma
atenção.
P - Como o senhor vê o uso de droga dele?
E - Eu tenho certeza que ele está querendo me punir, me punir não que ele não vai
conseguir não, quem vai perder é ele, mas ele não é... dependente, porque o dependente é
aquele que é eufórico. Porque o meu álcool é o seguinte: eu não bebia em jejum, eu não bebia
só, eu não bebia de noite, quer dizer eu gostava muito era da cachorrada. Aí, quando eu
começava eu não parava.
Depois que eu descobri, e coloquei ele de castigo, encarcerado mesmo dentro de
casa, acho que se ele fosse um dependente ele tinha estourado tudo, quebrado tudo. Ele ficou
no quarto, só saia pra fazer as necessidades, e eu ia lá todo dia e perguntava: “E aí negão
como é que tu tás?”.
Ele estava lendo, ele lia bastante, ele gosta muito de ler, leu “O Alquimista”. Ele
tava conversando, não estava eufórico, se estava conseguiu disfarçar muito bem. Eu dizia a
ele: “O que estou fazendo por você foi o que minha mãe fez comigo quando eu era mais novo,
gazeei aula, e ela me deu uma surra, que bendita surra e no ano seguinte eu passei de ano sem
uma nota vermelha”.
Ele não reclamou nadinha do castigo, e eu dizia: “O que estou fazendo por você é
só porque eu te amo”. Agora se errar, infelizmente, eu peço até desculpa a ele, porque eu não
tenho tato pra lidar com ele, eu sou assim, sou muito bruto, peço desculpas a ele porque sou
grosso. E ele conquistou... foi saindo do castigo devagarzinho, ele ia jantar, aí depois passava
cinco, seis minutos na mesa conversando, aí ninguém mandava ele pro quarto, aí quando eu
chegava em casa - na casa da minha mãe - e ele estava na mesa, ele passava por junto de mim
e se recolhia por causa da minha presença (S).
P – Tem algo que eu não perguntei que o senhor gostaria de acrescentar?
E - A minha esposa... pelo fato dele sentir que eu gostava mais dela do que dele,
eu acho que ele sentiu isso, o que não é verdade, eu só estava empolgado com o namoro.
Eu acredito que ele está fora das drogas, pois ele está muito policiado, sei a hora
que ele vai, e que volta da escola. Todo sábado ele está batendo pelada comigo, ele está bem
próximo mesmo.
André uma vez me disse: “Pai o senhor não foi falho, o senhor foi falto”.
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