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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
INSTITUTO DE LETRAS
COORDENAÇÃO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
FRANCISCO DE ASSIS MOURA SOBREIRA
ESTRUTURA E DISCURSIVIDADE
DO TEXTO POÉTICO
Rio de Janeiro
2007
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1
FRANCISCO DE ASSIS MOURA SOBREIRA
ESTRUTURA E DISCURSIVIDADE
DO TEXTO POÉTICO
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em
Letras (área de concentração Língua Portuguesa)
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sob
orientação do professor Dr. Gustavo Adolfo Pi-
nheiro da Silva, como requisito parcial à obtenção
do título de Mestre.
Rio de Janeiro
2007
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
S677 Sobreira, Francisco de Assis Moura.
Estrutura e discursividade do texto poético / Francisco de Assis
Moura Sobreira . – 2007.
426 f.
Orientador : Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Poética Teses. 2. Análise do discurso Teses. 3. Semiótica -
Teses. I. Silva, Gustavo Adolfo Pinheiro da. II. Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Letras. III. Título.
CDU 82-1.09
3
EXAME DE DISSERTAÇÃO
SOBREIRA, Francisco de Assis Moura. Estrutura e discursivi-
dade do texto poético. Dissertação de Mestrado em Língua
Portuguesa apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras da UERJ. Rio de Janeiro: 1
o
Semestre de 2007.
411 p.
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva (orientador – UERJ)
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. José Carlos dos Santos de Azeredo (UERJ)
__________________________________________________________________________
Prof. Dr. Wellington de Almeida Santos (UFRJ)
SUPLENTES:
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos Siqueira de Andrade (UERJ)
_________________________________________________________________________
Prof. Dr. Rogel Samuel de Souza (UFRJ)
Aprovado em ____/____/_____
4
DEDICATÓRIA
A
Cláudia,
minha mulher
e
Ana Luísa,
minha filha,
que compõem minha existência;
Nadja,
minha irmã querida;
Otília,
minha mãe
(em memória).
5
AGRADECIMENTOS
Ao Professor Doutor Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva,
que me recebeu e amigavelmente me orientou
Ao Professor Doutor José Carlos Azeredo,
com cuja sabedoria sempre pude contar.
Ao Professor Doutor Manoel Pinto Ribeiro,
que sempre me mostrou os caminhos do saber.
Ao Professor Doutor Helênio Fonseca de Oliveira,
a quem devo ensinamentos preciosos.
6
O homem é o único animal
que sabe que vai morrer,
mas é o único animal
que sabe que está vivo.
(Gustavo Adolfo Pinheiro da Silva)
A consciência é um caminho sem volta.
7
SINOPSE
Parte I – A estrutura do texto poético: aspectos lingüísticos e formais.
Poética e Estilo: uma visão lingüística. A dimensão filosófica do estilo: o esti-
lo como trabalho. A estrutura poética do texto: aspectos estruturais e a cons-
trução do sentido poético. A adjetivação no discurso poético: aspectos grama-
ticais e discursivos do sintagma adjetival.
Parte II – Enunciação e texto poético: a dimensão discursiva do discurso poé-
tico. Teoria da enunciação: a debreagem e a embreagem, enunciação enuncia-
da e enunciado enunciado. A Estilística da Enunciação. Poética e realidade
discursiva: o conhecimento do mundo como elemento de poeticidade. Refe-
renciação e discurso poético: a categorização e a recategorização; a teoria do
ponto de vista e a construção dos sentidos no discurso poético. Objetividade e
subjetividade na linguagem poética. Gênero discursivo e texto poético. Hete-
rogeneidades enunciativas: a polifonia discursiva e o sentido poético. Uma
análise semiolingüística do discurso poético: o contrato de comunicação e a
interação discursiva.
8
RESUMO
Esta dissertação constitui uma investigação da estrutura e da discursividade do texto
poético em suas virtualidades e está dividida em duas partes, distintas, mas não estanques.
Na primeira parte, estudamos o texto poético considerando seus aspectos estruturais; na
segunda, tratamos dos fatores que envolvem seus aspectos discursivos. Em relação aos os
aspectos estruturais, consideramos o que formalmente torna o texto um objeto de arte literá-
ria. Aqui, em primeira mão, atentamos para os estudos poéticos desenvolvidos por Roman
Jakobson. Ao considerar o formalismo do texto poético, levamos em conta as noções de
poética, de estilo e de sua dimensão filosófica, bem como os aspectos da literariedade da
linguagem e os fatores da versificação como elementos de construção do sentido poético do
texto. Além disso, consideramos as noções de determinação e predicação, onde pontuamos
os efeitos estilísticos da adjetivação na formulação do sentido poético da linguagem, anali-
sados sob uma ótica sintática e funcional. No âmbito da discursividade, abordamos o
texto poético sob a esfera de uma estilística de base enunciativa, de onde procuramos extra-
ir o sentido que certas noções engendram no processamento textual. Para levarmos a termo
a dinâmica discursiva do texto poético, estabelecemos sua ligação com o universo discursi-
vo, em que os fatores da realidade discursiva são tomados como gérmen da poeticidade,
sustentada pela concepção estética da linguagem. Para tanto, consideramos os fatores da
referenciação, da subjetividade da linguagem, dos gêneros discursivos, da heterogeneidade
enunciativa e dos gêneros textuais. Finalizamos com a análise de um texto poético, em que
aplicamos as teorias da Análise Semiolingüística do Discurso, desenvolvidas por Patrick
Charaudeau.
Palavras-chave:
9
RESUMEN
Esta disertación constituye una investigación de la estructura y de la discursividad
del texto poético en sus virtualidades y está dividida en dos partes, distintas, mas no estan-
ques. En la primera parte, estudiamos el texto poético considerando sus aspectos estructura-
les; en la segunda, tratamos de los factores que involucran sus aspectos discursivos. En re-
lación a los aspectos estructurales, consideramos el que formalmente torna el texto un obje-
to de arte literaria. Aquí, en primera mano, atentamos para los estudios poéticos desarrol-
lados por Roman Jakobson. Al considerar el formalismo del texto poético, levamos en
consideración las nociones de poética, de estilo y de su dimensión filosófica, bien como los
aspectos de la literariedad del lenguaje y los factores de la versificación como elementos de
construcción del sentido poético del texto. Además de eso, consideramos las nociones de
determinación y predicación, donde puntuamos los efectos estilísticos de la adjetivación en
la formulación del sentido poético del lenguaje, analizados bajo una óptica sintética y fun-
cional. En el ámbito de la discursividad, abordamos el texto poético bajo la esfera de una
estilística de base enunciativa, de donde procuramos extraer el sentido que ciertas nociones
engendran no en el procesamiento textual. Para llevar a termino la dinámica discursiva del
texto poético, establecemos su ligación con el universo discursivo, en que los factores de la
realidad discursiva son tomados como gérmen de la poeticidad, sustentada por la concepci-
ón estética del lenguaje. Para tanto, consideramos los factores de la referenciación, de la
subjetividad del lenguaje, dos géneros discursivos, de la heterogeneidad enunciativa y dos
géneros textuales. Finalizamos con el análisis de un texto poético, en que aplicamos las
teorías del Análisis Semiolingüística del Discurso, desarrolladas por Patrick Charaudeau.
Palabra clave:
10
SUMÁRIO
Introdução ---------------------------------------------------------------------------- 13
PARTE I – A Estrutura do Texto Poético -------------------------------------------- 24
1. Poética e Estilo --------------------------------------------------------------------------------- 28
1.1. Considerações sobre Poética -------------------------------------------------------- 30
1.1.1. A Função poética da linguagem -------------------------------------------------- 57
1.2. Considerações sobre Estilo -------------------------------------------------------- 69
1.2.1. A Estilística da língua --------------------------------------------------------------- 76
1.2.2. A Estilística literária ---------------------------------------------------------------- 78
1.2.3. O Contexto estilístico --------------------------------------------------------------- 89
1.2.4. A Função estilística ----------------------------------------------------------------- 100
1.2.5. O Formalismo ----------------------------------------------------------------------- 112
2. A Dimensão Filosófica do Estilo ------------------------------------------------------------ 115
2.1. A Construção do estilo ----------------------------------------- ------------------- 125
2.2. A Forma e a construção do sentido ----------------------------------------------- 133
3. A Estrutura Poética do Texto --------------------------------------------------------------- 148
3.1. A Estrutura lingüística do texto poético ----------------------------------------- 149
3.1.1. O Plano da expressão --------------------------------------------------------------- 153
3.1.2. O Plano do Conteúdo --------------------------------------------------------------- 180
4. A Adjetivação no Discurso Poético --------------------------------------------------------- 192
4.1. Aspectos gramaticais do adjetivo ------------------------------------------------- 193
4.1.1. A Oração adjetiva
-------------------------------------------------------------- 196
4.1.2. Substantivo em função adjetiva --------------------------------------------------- 196
4.1.3. O Sintagma adjetival – estrutura e funcionamento ----------------------------- 198
4.1.4. Funções sintáticas do adjetivo ----------------------------------------------------- 202
4.1.5. As subclasses dos adjetivos --------------------------------------------------------- 206
4.1.6. A posição do adjetivo no sintagma nominal -------------------------------------- 211
11
4.2. Aspectos estilísticos do adjetivo -------------------------------------------------- 219
4.2.1. A impertinência semântica --------------------------------------------------------- 220
4.2.2. A metáfora e o contrato de comunicação ---------------------------------------- 224
4.2.3. A sinestesia, a hipálage e a sinédoque -------------------------------------------- 233
4.2.4. A determinação e o epíteto --------------------------------------------------------- 239
4.2.5. Coordenação e paralelismo -------------------------------------------------------- 244
4.2.6. A posição do adjetivo e seus valores estilísticos -------------------------------- 249
PARTE II – Enunciação e Texto Poético ------------------------------------------------ 261
1. A Teoria da Enunciação --------------------------------------------------------------------- 265
2. A Estilística da Enunciação ------------------------------------------------------------------ 278
3. Poética e Realidade Discursiva -------------------------------------------------------------- 283
3.1. A ambigüidade ----------------------------------------------------------------------- 284
3.2. Figuras de retórica ------------------------------------------------------------------- 288
3.3. Denotação e Conotação ------------------------------------------------------------- 291
3.4. Os atos discursivos ------------------------------------------------------------------- 295
4. Referenciação e Discurso Poético ----------------------------------------------------------- 301
4.1. Referenciação e sentido ------------------------------------------------------------- 302
4.2. Estratégias de processamento textual --------------------------------------------- 307
4.3. A Referenciação Estilística --------------------------------------------------------- 317
5. Objetividade e Subjetividade na Linguagem Poética ----------------------------------- 338
6. Gêneros Discursivos e Texto Poético ------------------------------------------------------- 352
7. Heterogeneidades Enunciativas no Discurso Poético ----------------------------------- 367
7.1. A Concepção dialógica da linguagem --------------------------------------------- 368
7.2. A heterogeneidade constitutiva ---------------------------------------------------- 372
7.3. A heterogeneidade mostrada ------------------------------------------------------- 376
7.3.1. Heterogeneidade mostrada marcada ----------------------------------------------- 377
7.3.2. A heterogeneidade mostrada não-marcada --------------------------------------- 383
12
8. Uma Análise Semiolingüística do Discurso Poético ------------------------------------- 400
8.1. A Semiotização do Mundo ---------------------------------------------------------- 401
8.2. A Estrutura Linguageira -------------------------------------------------------------- 404
8.3. O Contrato de Comunicação --------------------------------------------------------- 405
8.4. Análise de Texto ----------------------------------------------------------------------- 408
Conclusão ------------------------------------------------------------------------------------------ 414
Referências Bibliográficas -------------------------------------------------------------------- 419
13
INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como proposta confrontar o texto poético pelo viés das teorias lin-
güísticas. Iniciamo-lo com alguns esclarecimentos necessários à sua compreensão geral.
Em primeiro lugar, advertimos que ele não constitui uma investigação que se possa enqua-
drar propriamente na Teoria da Literatura nem na Crítica Literária, embora, em alguns
momentos, por necessidade de esclarecimento, possamos tangenciá-las. O que pretende-
mos, de antemão, é promover uma investigação da linguagem que constitui o discurso poé-
tico. Para tanto, limitamos nossas proposições à esfera dos estudos lingüísticos, tentando
verificar os alcances de atuação da Poética e do Estilo como elementos de investigação das
manifestações artísticas da linguagem.
Confrontar o texto poético não é uma tarefa fácil para o lingüista, acostumado a lidar
com um corpus menos complexo e, conseqüentemente, mais palpável para o imediatismo
das suas investigações. Embora este trabalho constitua para nós uma empreitada cujos ca-
minhos têm de ser percorridos com critérios às vezes arriscados, não foi sua dificuldade que
nos motivou às investigações que apresentaremos no seu percurso.
O lingüista é, por excelência, um ser sensível à linguagem em suas várias formas de
manifestação. Os textos de comunicação em geral, sejam jornalísticos, sejam científicos ou
coloquiais, sempre atraíram sua atenção, porque neles o trato com a linguagem remete mais
imediatamente à realidade vivencial do homem na sua relação com o mundo e com seu
semelhante. O texto literário sempre foi considerado como pertencente ao domínio da críti-
ca literária ou dos teóricos da literatura; por isso ele sempre se apresentou como algo cultu-
ralmente mítico, sobre o qual a maioria dos lingüistas naturalmente evita falar.
Mas o texto literário, a despeito de suas especificidades, é, como todos os outros, um
produto da linguagem humana e, como tal, não pode ser ignorado por quem estuda a lin-
guagem. Tomá-lo como um nicho particular destinado aos estudiosos da Literatura é redu-
zir os limites de atuação das ciências lingüísticas. Contemplá-lo como um mosaico sagrado
de adoração a distância é um fervor que não cabe ao lingüista cultivar. Observamos que as
teorias lingüísticas, até mesmo as mais modernas, evitam, por visível conveniência, o texto
poético. Salvo algumas exceções, suas abordagens limitam-se a textos em prosa, cuja lin-
14
guagem, com algumas ressalvas, não chegam a constituir, pela sua natureza narrativa e pela
busca incessante da verossimilhança, uma ruptura brusca em relação à linguagem habitual
de comunicação, o que a torna mais suscetível a uma investigação “natural” dos estudiosos
da linguagem, se comparada à linguagem da poesia.
Há uma significativa diferença entre prosa e poesia, que vai além das simples aparên-
cias, e é essa diferença que pode tornar acidentada o que seria uma leitura fluente da poesia.
Normalmente, a prosa se impõe essencialmente pelo caráter imaginário dos seus objetos e
se caracteriza como uma literatura de ficção. A poesia, por sua vez, se impõe normalmente
pelas suas características formais, caracterizando-se como uma literatura de dicção, uma
vez que ela não é senão um forma particularmente marcada e peculiarmente codificada.
Assim, o texto poético, pela sua natureza formal – verso, rima, ritmo, conjunto de imagens
etc. – é, por si mesmo, um foco de subversão da linguagem usual, e constitui um sistema
semiótico particularmente vertido sobre si mesmo. Todos esses fatores obrigariam o lin-
güista a meter-se em searas estranhas ao seu trabalho imediatamente mais ordinário, o que
implicaria uma transferência da aplicação do seu complexo teórico para um objeto com o
qual não está acostumado a lidar – o texto poético.
Intriga-nos essa reserva, porque não concebemos qualquer teoria lingüística que não
seja capaz de dar conta de qualquer linguagem. A linguagem poética tem certas peculiari-
dades, porque não tem um estatuto previamente determinado por leis gramaticais, a não ser
como pólo de contraste, visto que se manifesta pelas vias da criatividade. Assim, ela pres-
supõe um “padrão” incomum, cujas oscilações têm de ser aceitas e, como tal, não pode ser
canonicamente fixado, sob pena de se imporem limites à criatividade estética.
Isso confere ao texto poético uma certa complexidade que faz dele um corpo de difícil
penetração. Sem referente no mundo real, ele se define como um objeto autotélico, constru-
ído tão somente pelo discurso, discurso esse que não tem a aparente transparência da lin-
guagem usual. Marcado por um forte grau de opacidade, sua linguagem oblitera as vias
naturais que conduzem o leitor à realidade do mundo, obrigando-o a deter-se sobre as inci-
dências puras da própria linguagem. Esta acaba por se tornar o foco das atenções de quem
pretende confrontar o texto poético, forçando-o a investigar as fórmulas que a tornam o
fulcro de sua configuração artística. Essa ausência de referente, essa complexidade, essa
opacidade da linguagem, que tornam o texto poético um curioso e instigante objeto de con-
15
templação estética, despertam nossa atenção e nos levam a penetrar os meandros de suas
configurações mais íntimas e reveladoras, na tentativa de desvelar os artifícios que fazem
do texto literário uma manifestação artística da linguagem. Mas não o fazemos na condição
de crítico literário ou de teórico da Literatura; fazemo-lo como o lingüista que se rende ao
esplendor da linguagem e, confesso, não se pode deter diante de uma arte cuja matéria-
prima é, por excelência, o objeto de suas preocupações científicas.
Não há mais conter-se, não há mais evitar-se o inevitável. Só resta a aventura, aciden-
tada e perigosa, movida por uma paixão irrefreável, que se deve filtrar e doutrinar, diante
do alumbramento que cega a razão do investigador secretamente envolvido e apaixonado
pela bela mulher que está sendo investigada. Será possível? Como investigar o texto poéti-
co sem se deixar levar pelas seduções que ele inspira? Como evitar as avaliações impres-
sionistas (e na maioria das vezes tão convincentes) que os críticos literários imprimem nos
seus trabalhos? Defendemo-nos dessas tentações, abraçando-nos às teorias que a Ciência
Lingüística nos forneceu como instrumento de investigação do texto, embora saibamos que
não estamos confrontando um objeto comum, um objeto com o qual estamos acostumados
a lidar naturalmente e dele dar conta.
Se uma teoria não é capaz de atender integralmente todas as manifestações da matéria
que é seu objeto de estudo, só há duas opções: modificá-la ou adaptá-la. Como não nos a-
trevemos a modificá-la – ousadia demasiadamente pretensiosa e seguramente impossível –,
buscamos empregar os conhecimentos existentes sobre a linguagem na análise do texto
poético. E o fazemos em dois momentos e sob duas orientações que constituem as bases
deste trabalho. Nossa tarefa, assim, se divide em duas partes, distintas mas não estanques.
Na primeira parte, buscamos abordar a estrutura do texto poético; na segunda parte, inves-
tigamos os fatores inerentes à sua discursividade no processo de sua criação e recepção.
No primeiro momento, ressaltamos os aspectos formais que constituem as peculiari-
dades poéticas do texto, tais como sua formatação e sua linguagem, considerando os fatores
implicados na sua configuração – métrica, ritmo, rimas, conjunto de imagens, expressões
metafóricas e tudo mais que possa dar respaldo à sua estrutura e por ela construir um senti-
do poético. Além disso, confrontamos a linguagem poética com a linguagem não-poética e
extraímos da sua dissonância os valores sobre os quais a poesia se manifesta. Observando
que um dos focos dessa dissonância reside na relação entre as palavras, demos especial
16
relevo ao fenômeno da determinação e da predicação, de onde procuramos observar a im-
pertinência semântica da metáfora.
Para começar, não consideramos viável um estudo da poesia que não leve em conta a
Poética e o Estilo; aquela, como uma ciência cujo objeto de estudo é a poesia; este, como
uma linguagem autárquica que deixa transparecer as marcas da criatividade lingüística de
um autor, o qual põe em relevo a função poética da linguagem em oposição à sua função
referencial, afastando-se do que Roland Barthes denominou o grau zero da escritura. Mas,
ressaltamos, o fenômeno estilístico é uma realização com a linguagem e, como tal, se sub-
mete a uma dimensão filosófica que ratifica sua existência, a partir da noção de que ele
constitui um trabalho de escolha e organização, um processo de construção cujo material é
uma linguagem através da qual um determinado escritor de poesia é capaz de se individua-
lizar artisticamente, e não apenas um produto estruturado.
Costuma-se caracterizar o estilo como um desvio em relação a uma norma lingüística,
para a caracterização de uma linguagem poeticamente criativa. Não discordamos dessa teo-
ria, mas, por considerá-la insuficiente, ampliamo-la e incluímos a noção do processo estilís-
tico, que se manifesta por contraste no âmbito de um contexto – o contexto estilístico – que
lhe serve de pattern. Como tradicionalmente a função poética da linguagem pressupõe um
desvio na norma, o que nem sempre é rigorosamente comprovado no texto, engendramos a
noção de função estilística e demos a ela uma dimensão que, acreditamos, irá iluminar al-
gumas obscuridades no estudo do texto poético.
Nessa parte do trabalho, procuramos dar relevo a um conceito basilar que orienta nos-
sas investigações – poesia é forma, não substância. Para levarmos a cabo esse postulado,
procedemos a uma investigação da linguagem nos dois planos que lhe servem de base: o
plano da expressão e o plano do conteúdo. O primeiro situa-se no nível fonético-
fonológico; o segundo encontra-se na esfera sintático-semântica da linguagem. Dessa in-
vestigação, chegamos à conclusão de que a poesia se faz poesia pela forma como se apre-
senta e não pelo conteúdo que eventualmente proclama, o que não significa que despreze-
mos tal conteúdo, que é, em suma, a razão da existência básica da linguagem. Afinal não
existe texto que não comunique.
Um fator básico que sustenta o postulado de que poesia é forma e não substância é a
questão da tradução poética. Cada obra poética tem seu estrato formal, e qualquer modifi-
17
cação na sua estrutura modifica seu sentido original. Na tradução literária e sobretudo nos
textos poéticos, são atingidos de modo especial unidades microestrurutais de nível fônico-
lingüístico – métrica, ritmo, rima, aliterações, etc. – que podem ser radicalmente afetadas,
quando o poema é vertido para outro idioma. Emil Staiger afirma que, no caso das onoma-
topéias, um tradutor engenhoso poderá sair-se bem. Entretanto, é muito improvável que
palavras com o mesmo sentido em línguas diferentes tenham também a mesma unidade
lírica de sons e significação
1
. Como traduzir para o alemão, inglês, francês ou qualquer
outra língua esta famosa estrofe aliterante de Cruz e Sousa, sem perder o efeito de sentido
poético que ela traduz?
Vozes veladas, veludosas vozes,
Volúpia dos violões, vozes veladas,
Vagam nos velhos vórtices velozes
Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas.
O conteúdo poético, como se vê, está tão apegado à forma, que a alteração desta tira-
ria o vigor e o sentido poético de que a sonoridade das aliteração (/v/ – /l/), do ritmo e das
rimas é portadora. A poesia, como a concebemos, é intradutível, e suas “traduções” mais
reconhecíveis são, na verdade, exercícios de recriação poética. Ela é um monumento único
e definitivo, e essa definitividade repousa na sua forma primária e última. Traduzir uma
obra poética é arrancar-lhe a essência poética original, é amputá-la naquilo que ela tem de
mais precioso. Modificar sua forma é modificar sua essência. Por essa razão, separar a for-
ma do conteúdo é extirpar da poesia a sua integralidade, é amputar seu supremo valor poé-
tico e destituí-la irresponsavelmente do seu vigor artístico. Como se vê, é pela forma que
um determinado conteúdo se torna poético.
Em seus estudos, Jakobson procura descrever as propriedades lingüísticas do texto
literário em conexão direta com a definição de literariedade, ou seja, o que faz com que um
texto seja poético. Os estudos modernos ratificam a importância da noção de literariedade
desenvolvida por Jakobson, mas, a despeito de sua essencialidade, atestam sua insuficiên-
cia, sob o argumento de que há uma relação direta entre a literariedade e o enquadramento
receptivo do fenômeno literário, em termos socioculturais, e em função de uma sua inter-
1
STAIGER, Emil. Conceitos Fundamentais da Poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972, p. 22.
18
pretação de índole contratualista. Note-se que isso não anula o estatuto da linguagem literá-
ria como linguagem específica. Trata-se, na verdade, de verificar que fatores e circunstân-
cias determinam essa especificidade, levando-se em consideração o terreno da recepção
literária e dos fenômenos que envolvem o reconhecimento da percepção do texto literário.
Assim, o desenvolvimento de teorias de orientação contextual veio questionar os as-
pectos fundamentais do fenômeno literário, quando eles se reduzem a uma descrição exclu-
sivamente formal. Acentuando a importância do contexto pragmático em que decorre a
comunicação literária, essas teorias introduzem a noção de valorização do texto poético
atrelada ao fenômeno de sua recepção
2
. Um fator decisivo nessas orientações – significati-
vo por não obliterar a dimensão discursiva da linguagem literária – encontra-se na tentativa
de se definir o fenômeno literário em função da teoria dos atos discursivos, colocando a
literatura como fenômeno de linguagem na pertinência de análises lingüísticas ligadas ao
caráter ativo e interativo dos atos de linguagem. Isso a põe em conexão direta com as refle-
xões lingüístico-filosóficas de Wittgenstein, sob o signo de um paradigma da comunicabili-
dade, e com filosofia da linguagem adotada por J. L. Austin, John Searle e outros.
Por essas razões, incluímos o estudo do texto poético na esfera de uma Lingüística de
base enunciativa. Além disso, para a inclusão da Literatura na esfera da Lingüística, parti-
mos de uma equação simples e direta: A Poética trata fundamentalmente da investigação do
que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte, e seus objetivos principais são a
diferenciação específica entre a arte verbal e as outras artes. Some-se a isso o fato de que
ela estabelece a distinção entre as espécies de conduta verbal da linguagem artística e da
linguagem usual. Se a Lingüística é a ciência global que estuda o funcionamento da lingua-
gem, a Poética pode ser tomada como parte integrante da Lingüística, e o poeticista não
pode estudar a poesia – arte da linguagem das combinações verbais – sem considerar os
parâmetros e os ensinamentos da Lingüística. Partindo desses pressupostos, não vemos,
portanto, qualquer razão para que se leve a termo a tentativa de separar os estudos da poéti-
ca da lingüística geral, e isso inclui em toda sua evidência os mais recentes estudos da lin-
guagem.
2
Cf. REIS, Carlos. O Conhecimento da Literatura. Coimbra: Almedina, 2001.
19
É óbvio que uma descrição do discurso literário calcada na teoria dos atos discursivos
aponta para o princípio nuclear de “a literatura é da ordem do discurso”.
3
Movido por esse
raciocínio, atentamos, no segundo momento deste trabalho, para os valores discursivos do
texto poético. Para tanto, abordamos o caráter da enunciação do texto poético e atentamos
para uma estilística de base enunciativa, que vem ampliar o domínio de atuação da Estilísti-
ca do enunciado para a enunciação. Enquanto uma estilística do enunciado se manifesta no
nível da frase e de seus elementos, a estilística da enunciação, estendendo seus limites, re-
corre a um contexto discursivo onde, muitas vezes, só nele encontra sua razão de ser. Isto
porque o efeito de sentido de certas imagens poéticas e de certas figuras de linguagem só
pode ser plenamente compreendido quando recorremos à realidade discursiva que as inspi-
rou. Entramos, portanto, na esfera da Análise do Discurso, de onde se podem extrair certos
valores que constituem a totalidade poética do texto, totalidade esta que depende da fusão
dos seus valores estruturais e do seu teor discursivo.
Assim, orientados pelos pressupostos teóricos da Enunciação, trazemos à tona consi-
derações sobre uma estilística de base enunciativa e, sob suas diretrizes, alguns aspectos
que contribuem para a construção do sentido poético do texto. O texto poético, embora te-
nha estruturalmente um caráter autotélico, não é inteiramente desvinculado da realidade
vivencial. Com base nessas convicções, estabelecemos uma conexão entre a Poética e a
realidade discursiva, e engendramos algumas considerações sobre o processo de referencia-
ção no discurso poético, em que levamos em conta as atividades de categorização e recate-
gorização do signo lingüístico, tomado ao texto como objeto-de-discurso. Como esse pro-
cesso depende evidentemente de uma visão particular do enunciador para a construção do
sentido frente ao objeto-de-discurso, atentamos para a questão da objetividade e da subjeti-
vidade da linguagem, sob as orientação teóricas de Émile Benveniste. Considerando o fe-
nômeno da recepção textual e percepção das virtualidades poéticas, observamos as noções
de gênero discursivo, cena de enunciação e cenografia genérica do texto poético. A Litera-
tura constitui um conjunto de textos que circulam numa comunidade discursiva e seus valo-
res emanam das relações dialógicas entre os próprios textos literários e com outros textos
de naturezas distintas, o que nos levou a considerar as noções da heterogeneidade enuncia-
tiva e o sentido poético que daí se manifesta. Finalmente, colocamos em prática as noções
3
OHMANN, Richard. Speech Acts and Definition of Literature, in Philosophy and Rhetoric, 4, 1971, p. 4.
Apud, REIS, Carlos. Op. cit., p. 116.
20
da análise do discurso e procedemos a uma análise semiolingüística do discurso poético, de
onde extraímos algumas noções de semiotização do mundo, atreladas aos postulados do
contrato de comunicação, para a recepção do texto como manifestação artística da lingua-
gem em sua dimensão discursiva.
Mas considerar o texto poético na ordem do discurso tem certas implicações. É evi-
dente que o texto artístico expressa, pela sua essência e natureza, um fingimento poético, o
que lhe confere uma apreciação particular, em conseqüência do que Austin classifica como
o uso parasitário da linguagem na enunciação do discurso literário. Conjugando-se esse
princípio com o reconhecimento do caráter convencional dos atos discursivos, o discurso
literário pode ser entendido como portador apenas de uma força perlocutória ilusória que
convoca seu leitor a participar ludicamente de um jogo discursivo cujos efeitos perlocutó-
rios – a emoção estética – passam a fazer parte da concepção artística por ele engendrada.
Além disso, vislumbramos no texto poético, pelo seu teor autotélico, um ato ilocutório indi-
reto, que se alimenta de uma performatividade latente da linguagem literária, cuja dimensão
reside no que o autor realiza com ela: a construção artística.
* * *
Um trabalho que se propõe a analisar o caráter estrutural e discursivo do texto poético
necessita de um corpus que corresponda à sua proposta específica. Em conseqüência disso,
selecionamos textos que tornem possível a aplicação das teorias aqui desenvolvidas, visan-
do aos diversos aspectos que conformam o texto poético em suas mais distintas configura-
ções. Assim, privilegiamos textos de autores significativos, de acordo com as necessidades
específicas de cada análise. Nesses textos, ora abordamos os aspectos estilísticos da lingua-
gem, ora abordamos seus aspectos formais, ora os conjugamos, de acordo com o sentido
que eles possam construir. Além disso, preocupamo-nos em integrar estes textos nas mo-
dernas teorias de Enunciação, mostrando como se revelam neles os atos discursivos e os
diversos pressupostos teóricos que neles se inscrevem.
Comparando textos de feição clássica a textos de feição moderna, uma das nossas
preocupações, procuramos depreender os diferentes efeitos de sentido que emergem da re-
gularidade formal e da liberdade proporcionada pelos versos livres. Além disso, observa-
mos que a poesia clássica se caracteriza por um fluxo sintático permanente, enquanto a po-
21
esia moderna é caracterizada pela obliteração de tal fluxo, em conseqüência da palavra in-
ventada, que fortalece a tensão da escala metafórica que nela se manifesta. Isso significa
que o texto moderno, como afirma Roland Barthes, se marca pela ausência de uma Escritu-
ra, pela não-existência de um padrão pré-estabelecido para a linguagem, em conseqüência
da livre escolha do poeta. Aqui, reforçamos a distinção entre prosa e verso, e entre a poesia
e a publicidade.
Esse não é um trabalho da História da Literatura. Então, é preciso deixar claro que os
textos por nós escolhidos não obedecem a uma seqüência da hierarquia histórico-temporal,
pois não levamos em conta as orientações históricas dos Estilos de Época, embora reconhe-
çamos sua importância nas investigações de uma análise literária que pretende levar em
conta o diálogo intertextual que caracteriza seu teor discursivo. O radicalismo modernista
engendrou certas inovações a partir de reações às fórmulas poéticas tradicionais, e este é
um dos focos de nossa atenção, uma vez que essas reações implicam mudanças nas diretri-
zes estético-formalistas do texto poético, mudanças estas que vêm marcar a diferença do
comportamento da linguagem e da concepção formalista da obra poética entre a tradição e a
modernidade literária.
Sabemos que há textos cuja depreensão apresenta maior complexidade que outros e
reconhecemos que certos textos são recebidos pelo leitor com maior ou menor grau de esta-
do de euforia. Em conseqüência disso, ainda sob as orientações de Barthes, estabelecemos
os limites entre texto de prazer e texto de fruição. Aquele traz os resquícios de uma Escri-
tura que revela o engajamento do poeta num determinado estágio cultural de sua comuni-
dade discursiva; este, rompendo com tal Escritura, busca seus próprios itinerários e mos-
tram seu caráter autotélico no mais alto grau. Se o texto de prazer encontra seu pré-
construto numa dimensão cultural socialmente reconhecida, o texto de fruição se manifesta
numa dimensão própria, marcada por certa opacidade da linguagem que exige do leitor uma
disponibilidade que reavalie o problema das relações entre a linguagem e o mundo. Por
isso, sem desprezá-la, olhamos com cautela a poesia narrativa, que, a despeito de suas con-
figurações poéticas, têm um encrave maior na realidade do mundo.
Analisar a obra de um determinado poeta implica, de alguma forma, seguir sua traje-
tória artística e dela retirar determinados valores estéticos que se estabeleceram ao longo do
seu percurso. Isso significa dispensar uma atenção ao estilo individual desse artista e carac-
22
terizar sua produção a partir dos dados específicos que nela se manifestam. Como o estilo
de um autor nem sempre recobre todas as formas de manifestação da poesia, escolhemos
textos de autores diversos, de épocas distintas e de diferentes características para que pos-
samos dar conta das várias formas de manifestação do texto poético e dos diversos ângulos
que envolvem sua abordagem. Isso justifica a retomada de alguns textos em alguns momen-
tos do percurso das nossas análises. Além disso, consideramos as retomadas textuais que
aqui se processam como um artifício que visa à clareza didática e à facilidade que procura-
mos conferir à leitura deste trabalho.
Advertimos que, a despeito da diversidade de teorias com as quais operamos, este
trabalho concentra-se em um único foco, e seu objetivo específico é caracterizar o texto
poético à luz de uma investigação puramente lingüística. Mas reconhecemos que isso só se
torna verdadeiramente possível quando ele é submetido a apreciações cujos caminhos são
tão diversos quanto a riqueza das suas incidências. Sabemos das duas grandes correntes que
a Estilística apresenta no seu percurso – a Estilística da Língua e a Estilística Literária. Nes-
ta última, a que mais nos interessa de perto, não desprezamos em momento algum a Estilís-
tica Idealista sob a qual se desenvolveram as análises psicológicas de Leo Spitzer e as aná-
lises sociológicas de Erich Auerbach. Contudo, pela natureza do nosso trabalho, preferimos
nos situar nas bases do Formalismo, que remonta às terias de Roman Jakobson e se amplia
na Estilística Estrutural de Michael Rifaterre, ou ficamos na confluência de ambas, como se
posicionam Dámaso Alonso e Amado Alonso. Além disso, conforme a necessidade, che-
gamos à esfera de uma Estilística de base enunciativa. Assim, consideramos que os fatores
psicossociais são revelados nas imagens que se manifestam nas estruturas lingüísticas do
texto. Isso porque os elementos estéticos são sempre atualizados, e o sentido que eles assu-
mem estão no interior da obra enquanto forma significante.
***
As bases das nossas pesquisas têm como referencial teórico os conceitos de alguns
mestres consagrados. De um lado, procuramos autores que nos definam os aspectos estrutu-
rais do texto poético, o que compõe a primeira parte deste trabalho; de outro, compondo sua
segunda parte, autores que procuram ligar as emanações poéticas aos preceitos da Enuncia-
ção. Julgamos, assim, que, da confluências de ambas as teorias, passamos do enunciado à
23
enunciação poética, numa dialética em que ambas se definem pelas suas aplicações como
complementares e necessárias.
Na primeira instância, entre as teorias que nos serviram de orientação, destacamos as
de Roman Jakobson, no que diz respeito aos conceitos formais que caracterizam o texto
poético, tais como as noções de literariedade a partir da função poética da linguagem, que
ampliamos na trilha estruturalista de Michael Rifaterre. Servimo-nos ainda das investiga-
ções de Roland Barthes quanto ao conceito de Escritura e das noções que apontam as fron-
teiras entre o texto de prazer e o texto de fruição. Além disso, buscamos, nas teorias poéti-
cas de Jean Cohen, estabelecer o princípio basilar de que poesia é forma, não substância,
orientado pela teoria estruturalista de Ferdinand Saussure a respeito da língua.
No segundo momento, ampliando os conceitos sobre a Poética, seguimos os passos de
outros mestres, tais como Carlos Reis, que, redefinindo a Literatura como um ato discursi-
vo, liga-a, de alguma forma, às teorias de Austin, Searle, Benveniste e outros. Como leva-
mos em consideração os conceitos de Dialogismo, de Heterogeneidade Enunciativa e de
gêneros textuais, tomamos como diretrizes os princípios que se encontram nas teorias de
Mikhail Bakhtin, Autier-Revuz e Dominique Mainguenau. Além disso, considerando o
enquadramento receptivo do fenômeno literário, em termos socioculturais, e em função de
uma sua interpretação de índole contratualista, lançamos mão dos conceitos de Contrato de
Comunicação estabelecidos por Patrick Charaudeau, de onde buscamos extrair os preceitos
que regulam a interação entre o escritor e seus leitores.
Deixamos claro que as teorias das quais lançamos mão não se esgotam na humildade
deste trabalho. Sabemos que elas têm alcance profundo, mas nossos propósitos não são de
investigá-las em sua essência, como tais. O que procuramos é, numa superfície suficiente e
necessária, demonstrar sua validade nas investigações do texto poético e descobrir sua apli-
cação, buscando uma renovada visão que possa, de alguma forma, contribuir para o des-
vendamento deste objeto tão instigante que é a manifestação poética da linguagem.
24
PARTE-I
A ESTRUTURA DO TEXTO POÉTICO
Esta primeira parte deste trabalho tem como proposta a investigação dos fatores que
estruturam o texto poético nos seus diversas aspectos. Um texto poético tem uma estrutura-
ção específica, seja no que diz respeito à linguagem, seja no que se refere à sua disposição
formal. Considerando a oposição entre verso e prosa, procuramos estabelecer aqui os limi-
tes que os separam, seja na sua forma de expressão seja na sua configuração plástica. Isso
porque entendemos a poesia como uma forma de manifestação da linguagem cuja confor-
mação não encontra respaldo nas normas habituais de expressão, a não ser como pólo de
oposição, a partir da qual a poesia lingüisticamente se manifesta. É isto que nos impulsiona
diretamente neste trabalho.
Para alguns, o ato poético aparece como algo insondável, misterioso, fruto de um ar-
rebatamento, cujas origens deitam raízes no mais profundo e absconso da alma humana,
manifestado num momento de transe e de loucura divina. Para outros, porém, esse ato apre-
senta-se como uma atividade racionalmente explicável e, portanto, perfeitamente descrití-
vel. Estabelecer as linhas de força mais profundas e mais secretas do processo criador é
uma empresa que talvez não possamos levar a termo. Por isso, nossa preocupação é investi-
gar os resultados dessa produção no que diz respeito às configurações estético-formalistas
que são, afinal, o que confere ao texto o estatuto da literariedade.
Acreditando que alguns fatores estruturais da poesia podem ser racionalmente inves-
tigados, procuramos trazer à tona o que há de palpável na sua estruturação, levando-se em
conta as características específicas que ela apresenta, tais como sua configuração poética e
os aspectos estilísticos capazes de particularizá-la como tal.
Começamos por considerar que a atividade poética é, antes de tudo, um trabalho de
elaboração estético-textual. Sabemos que em todo poeta existe um homem e que na sua
atividade operam múltiplos fatores de ordem psicossomática. Assim sendo, é compreensí-
vel que, de alguma maneira, eles possam intervir na atividade da criação artística. Mas tais
fatores, acreditamos, estão fora do alcance de uma investigação poética que se quer objetiva
25
e científica. Por isso eles não se incluem nas diretrizes que aqui adotamos para o confronto
do texto poético, pois o que pretendemos é captar à luz das teorias da linguagem, como o
texto poético se caracteriza na sua forma de expressão, e não o estado de espírito do poeta
no momento da sua produção.
Revelando aguçado e lúcido senso crítico em ralação à atividade de elaboração poéti-
ca, Edgar Allan Poe estabelece alguns princípios da gênese e de elaboração de um dos seus
mais conceituados poemas – “O corvo” –, demonstrando claramente que nenhum pormenor
da sua composição se pode explicar pelo acaso ou pela intuição. O poeta declara que a obra
se encaminhou passo a passo, para o seu acabamento, com a precisão e o rigor lógico de
uma equação matemática.
4
Poe teve o trabalho de fixar o metro, o ritmo, o refrão, bem co-
mo todos os elementos formais do poema, estruturando-o em todos os pormenores técnicos
capazes de construir o sentido poético e a emoção estética desejada, em obediência ao tema
que procurou poetizar. Isso nos conduz ao fato de que a forma dá poeticidade ao conteúdo e
nos leva à conclusão de que forma e conteúdo são indissolúveis na configuração do poema,
o que torna um texto poético intraduzível.
Não levamos em conta, nas nossas investigações, fatores como inspiração ou quais-
quer outros de natureza similar. E se, em algum momento os considerarmos, o faremos sob
a ótica de Baudelaire. Francamente influenciado por Allan Poe, o poeta francês postula que
“a orgia já não é irmã da inspiração”; e vai além: “A inspiração é decididamente a irmã do
trabalho diário”.
5
Nos passos de Baudelaire, Paul Valéry refuta tudo que possa degradar a
consciência e por isso afirma categoricamente que “o entusiasmo não é um estado de alma
do escritor. (...) Escrever deve ser construir, o mais sólida e exatamente que se possa, essa
máquina de linguagem (grifo nosso) em que a expansão do espírito excitado se consome a
vencer resistências reais”.
6
Infere-se daí, pelos posicionamentos que acabamos de observar,
que a obra poética é fruto de um processo laborioso que põe em evidência a linguagem co-
mo sustentáculo de uma razão estética que se manifesta como produto de um esforço cons-
ciente de criação.
4
POE, Edgar Allan. La philosophie de la composition. In CHARPIER, Jaques & SEGHRES, Pierre. Art poé-
tique. Paris: 1956, p. 290.
5
BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, Bibliotèque de la Péiade, 1958, p. 1234.
6
VALÉRY, Paul. Oeuvres. Apud AGUIAR e SILVA, Victor Manuel. Teoria da Literatura. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 1976, p. 200.
26
Fique bem claro que não negamos que a arte possa ser produzida num momento de
inspiração do seu produtor. Acreditamos que o poeta é um ser cuja sensibilidade o impulsi-
ona em direção a um estado poético. Mas “estado poético” é algo que não se pode definir
com precisão, já que podemos entendê-lo de diversas formas, das quais poderemos ter vá-
rios entendimentos: possessão, êxtase, iluminação divina, arrebatamento, epifania ou quais-
quer outras.
Se entendermos “estado poético” como um momento de euforia psíquica em relação a
um ser, um fato ou uma situação do mundo e da vida, aceitamos que a poesia seja fruto de
uma manifestação emocional, de uma possessão divina (ou demoníaca) inexplicável. Mas
como saber desvendar esse mistério? Existem meios seguros para sua investigação? Se e-
xistem, quais os seus caminhos? Talvez existam. Mas, como este trabalho não se enquadra
num ensaio de Crítica Literária tampouco constitui um compêndio de Teoria da Literatura,
preferimos que os especialistas dessas áreas e os psicanalistas dêem conta dessas questões,
para nós absolutamente inalcançáveis, porque insolúveis.
Pela natureza do nosso trabalho, preferimos entender “estado poético” não como uma
euforia em relação às coisas do mundo, mas como um estado de disponibilidade do poeta
diante do material lingüístico, dominado por uma certa euforia do labor que o coloca em
“estado de linguagem”. Envolvido por um processo de criação, em busca de expressões
lingüísticas que configurem o texto esteticamente, o poeta constrói a linguagem poética a
partir das dissonâncias e imprevisibilidades em relação à linguagem comum ou em relação
a um contexto lingüístico. Como se vê, substituímos providencialmente a expressão vaga e
subjetiva “estado poético” por “estado de linguagem”, o que nos situa na esfera da criação
lingüística como fonte irrevogável da arte poética.
Assim, situamos nossa linha de trabalho na esfera da estrutura do discurso poético, e o
fazemos com o senso de observação do lingüista. Para nós o que interessa é o que vai no
poema como marcas de uma sensibilidade estética lingüisticamente trabalhada. Mas é pre-
ciso dizer que nossa abordagem não constitui um inventário estéril de manifestação das
figuras de retórica. Não existe linguagem desprovida de sentido, e a linguagem poética não
constitui uma exceção a essa regra. Então procuramos, a partir do que o poema estrutural-
mente nos oferece, extrair a dimensão artística e o sentido que emana do texto poético, cap-
tando na linguagem as marcas que fazem dele um produto da sensibilidade criadora.
27
Para nós, nada é gratuito no texto poético. A própria gratuidade que aparentemente se
manifesta em alguns momentos na poesia pressupõe um sentido poético encriptado, que
cabe ao leitor atento reconhecer e desvendar. Assim pensando, todo artifício formal empre-
gado pelo poeta deve ser creditado a um propósito semântico específico. O verso, a métrica,
a rima, o ritmo, as estrofes, bem como as imagens que constituem a linguagem poética não
são apenas elementos de ornamentação da poesia. São formas de manifestação poética atre-
ladas a um valor semântico que compõem a integralidade do texto poético e que cabe ao
estudioso da poesia investigar, consciente de que não há um conteúdo definido que se pode-
ria embalar numa forma predeterminada. Isso constitui a primeira parte deste trabalho.
28
1. — POÉTICA E ESTILO
Poesia é arte, arte da palavra. Confrontar um texto poético pressupõe compreender,
antes de mais nada, que a poesia quer ser poética; ela quer realizar-se poeticamente, em sua
plenitude. Isso não significa que o poeta tenha de reproduzir integralmente um determinado
modelo que lhe é proposto. A obra de arte, como a concebemos, constitui criatividade, e a
criatividade do poeta o impele a ser ele mesmo na condição de artista. A relação que o liga
aos demais poetas encontra-se no campo do trabalho livre e criador; é uma relação sempre
singular à poesia. Para cada poeta, a poesia é sempre uma exigência, mas esta exigência é
apelo e não imposição, ela define uma vocação e não uma determinação.
Assim, a idéia da poesia não é a idéia de um belo que se impõe como um cânon imu-
tável, mas a idéia de que há algo de belo a ser artisticamente construído. A poesia é, então,
um produto artístico que procura um público e, ao encontrar o seu público, que o espera,
manifesta-se com um fim em si mesma e realiza-se na percepção estética que ele exige. Se
a poesia tem um fim em si mesma, sua existência só é verdadeiramente atualizada quando
apreendida e consagrada por esta percepção. Assim, não se pode falar desse objeto que é o
poema se não passarmos pelo processo da experiência poética que o caracteriza, por inter-
médio de sua matéria-prima específica – a linguagem.
Ao colocar o problema da linguagem como princípio de toda a reflexão da poesia,
deve-se reconhecer nela sua matéria sensível, que constitui a encarnação do poético. A poe-
sia reconduz a linguagem, não inventa as palavras nem um código absolutamente novo que
o leitor desconheça, mas transfigura-os e assim os “produz”. Por meio de uma metamorfo-
se, a poesia restitui a linguagem a seu estado primitivo, e o faz porque confere a ela uma
nova forma, uma dimensão de estranhamento e de novos sentidos que lhe devolve o vigor e
o frescor originais. A poesia liberta-se dos dogmas mundanos e prende-se tão somente à
linguagem. Assim sendo, o Jardim do Éden e a feira livre podem ser tão poéticos quanto a
forma da linguagem que os representa.
Na prosa de comunicação a linguagem é instrumento, na poesia a linguagem é maté-
ria. A prosa é literatura de ficção; a poesia é literatura de dicção. Acentuando a oposição
entre prosa e poesia, Sartre afirma que “O poeta considera as palavras como coisas, e não
signos”. Interpretamos que a essa idéia de Sartre corresponde a ruptura da arbitrariedade do
29
signo lingüístico, em que a palavra se torna a matéria da imagem. A linguagem poética não
nos serve para falar, mas falar-nos ela mesma. Ela se aproxima de uma antilinguagem,
promovendo a transformação do esquema usual de informação. Nessa transformação, a
estrutura da frase é alterada por múltiplos processos que vão da inversão à supressão de
termos ou da pontuação, passando por inovações que conduzem as palavras a alianças im-
previsíveis e não-raro escandalosas.
Tomada num contexto prosaico, a palavra se desvanece e se torna obscurecida pela
sua significação comum; a poesia, ao contrário, imprime-lhe o brilho, submetendo a frase a
ela, pois cria no leitor os efeitos das associações imprevisíveis, distanciando-a da margem
de uma compreensão imediata. Assim, a palavra poética nega a probabilidade estatística e
frustra a expectativa que essa probabilidade estatística suscita no leitor. No horizonte da
linguagem usual estão os valores lexicais, o conjunto dos signos que trazem as significa-
ções básicas de uma língua, e uma sintaxe lógica está subordinada a ele por princípio. Mas
a poesia põe as palavras em liberdade e, dessa maneira, privilegia o léxico à custa de uma
organização peculiar da sintaxe.
A sintaxe é o modo de emprego da linguagem que põe em destaque o sentido discur-
sivo das unidades lexicais, trazendo à tona sua eficácia. Quando a escolha do léxico obede-
ce a uma constituição poética, a sintaxe tem uma força mais efetiva, pois, pelas combina-
ções imprevisíveis e logicamente inaceitáveis, empresta às palavras um sentido que a des-
poja dos seus valores habituais. A sintaxe da arte constitui, assim, os elementos da matéria
de que é feita a obra, fixa suas articulações numa forma perceptível, mas não tem por objeto
um léxico previamente estabelecido, isto é, um sistema de signos já portadores de uma sig-
nificação; tampouco constitui um novo sistema significação, pois seus elementos são sem-
pre atualizados, e o sentido que eles assumem estão no interior da obra enquanto forma
significante.
Como se vê, a idéia de poesia que inspira o seu criador não é a idéia coisificada ou um
produto inerte de uma atividade indefinidamente repetida. O poeta é estimulado pela pró-
pria poesia a produzir uma obra singular, fruto de um trabalho que constitui um estilo. Es-
tamos, pois na esfera da Poética e do Estilo, dos quais passaremos a tratar.
30
1. 1. – Considerações sobre Poética
Poética é um termo que, pela sua historicidade, é rico de implicações e ambigüidades,
já que pode ser empregado em sentidos vários. Em seu uso mais corrente, é adjetivo e subs-
tantivo, pois pode-se falar de uma “expressão poética” ou de um “estudo da Poética”; mas,
seja como for, está sempre associado à poesia, sendo mesmo indissociável dela. Sabe-se
que ele pode ser empregado em relação ao conjunto de características artísticas da lingua-
gem de um autor ou de uma época. Assim, pode-se falar de uma poética do Romantismo ou
da poética de Manuel Bandeira e de Machado de Assis, por exemplo. Dentre os vários sen-
tidos que tem a poética, tomamo-la aqui como uma ciência cujo objeto de estudo é a poesia.
Originariamente, a palavra “poesia” era empregada para a designação de um gênero
literário específico – o poema –, caracterizado por uma forma peculiar, configurada pelo
verso como elemento de distinção da sua estrutura. Mas este termo ganhou certas extensões
a partir do advento do Romantismo, momento em que, pelo alto grau de subjetividade de
sua produção literária, se fez a transferência da causa para o efeito, isto é, do objeto para o
sujeito. Dessa maneira, tornou-se comum falar em “sentimento poético” ou “emoção poéti-
ca”, visto que poesia tornou-se o referente de uma impressão estética particular produzida
pelo poema.
Com o decorrer do tempo, por uma extensão natural, o termo poesia foi aplicado a
qualquer objeto extraliterário capaz de provocar “sentimento poético” ou “emoção poética”.
Inicialmente, ele se estendeu às demais manifestações artísticas e, assim, passou-se a falar
em poesia da música, da pintura etc.; depois, o termo alcançou os elementos da natureza e
sua dimensão se ampliou indefinidamente. Hoje, é comum falar-se de uma paisagem poéti-
ca ou de um objeto poético, como é o caso de Mallarmé, que, após algumas contestações,
admitiu haver poesia nas emanações da lua. Ainda que exista poesia nas outras artes, ainda
que exista uma poética das coisas – fato que está fora dos nossos propósitos contestar –,
pela natureza do nosso trabalho, achamos conveniente limitar nosso olhar sobre o fenôme-
no poético que se manifesta na Literatura e em particular no poema, visto que nossa preo-
cupação se concentra na análise das formas poéticas assumidas pela linguagem.
Durante muito tempo, a poesia foi marcada essencialmente por um traço que lhe con-
feria uma cristalização, uma espécie de existência jurídica inconfundível – o verso. Isso a
31
isentava de qualquer dissipação ou de qualquer interpretação fora dos limites da sua codifi-
cação. Porque o verso era (e continua sendo) uma forma convencional e pontualmente codi-
ficada na linguagem que só se aplica ao poema, só era poema o texto em verso, e era prosa
todo texto que não se organizava em verso.
Mas o surgimento da expressão “poema em prosa”, pelo seu caráter contraditório,
obriga-nos a repensar o conceito de poesia, a começar pela revisão da sua equação tradicio-
nal. Antes essa equação obedecia a um conceito simétrico: o verso estava para a poesia as-
sim como a poesia estava para o verso. Essa simetria foi quebrada, pois, a despeito de o
verso ser característico da poesia, sua ausência hoje não é suficiente para descaracterizá-la
como tal. Lembramos que, a partir do século XIX, escritores da altura de Baudelaire, só
para citar um nome, foram capazes de alçar à categoria poética textos que se organizam em
prosa. Isso sem falar na prosa poética e nos artifícios estéticos da écriture artiste, manifesta
no impressionismo de Jules e Edmond Goncourt, seguidos de Henry James, Pierre Loti,
Joseph Conrad, Anton Tchecov, Stephen Crane, Marcel Proust, Katherine Mansfield, Tho-
mas Wolfe, Fialho de Almeida, Raul Pompéia, Graça Aranha e outros.
Se hoje a poesia não está sempre ligada à versificação, que inclui métrica, ritmo e
rima como elementos de distinção, a cômoda oposição prosa X verso deixa de possuir valor
operatório suficiente, o que dificulta o reconhecimento da poesia a partir de sua formatação
mais imediata. Mas a “taxa de poesia” de um poema em prosa não é exatamente igual à de
um poema versificado. Como veremos oportunamente, ainda que se possa enxergar poesia
em um texto prosificado, este será sempre, pelo seu propósito e pela natureza da sua estru-
tura, uma poesia mutilada. O que queremos dizer é que uma arte para atingir sua completu-
de deve usar de todos os recursos de que dispõe. Qual é a vantagem de a poesia abrir mão
do verso, artifício que sempre a caracterizou? Quando o “rap” – sigla que vem de rhythm
and poetry – abre mão da harmonia e da melodia, sustentando-se apenas na cadência rítmi-
ca, torna-se, para quem quer vê-lo como um gênero musical, incompleto e, portanto, de
compleição musical artisticamente duvidosa.
Por ser imediatamente reconhecido como um traço poemático, o verso constitui ainda
hoje um critério de poesia; mas os elementos que o compõem não são os únicos reveladores
da dimensão poética de um texto. Como o poema em prosa abriu mão deste valioso artifí-
cio, temos que buscar em outras esferas a caracterização estrutural da poesia como tradicio-
32
nalmente a conhecemos, em oposição à prosa. Há outros componentes capazes de conferir
ao texto a condição de poesia, e tais elementos se encontram no âmbito da construção da
linguagem. É a partir de tais elementos que procuramos, sob uma comprovação científica, a
distinção prosa X poesia, que constitui um dos objetos deste estudo. Para tanto, percorre-
mos um caminho que consideramos indispensável para a comprovação da necessidade do
estudo lingüístico na investigação poética.
Ampliando a definição, encontramos em Delas & Filliolet um complexo conceito de
poesia: “a arte da linguagem, geralmente associada à versificação, que visa a exprimir ou a
sugerir alguma coisa através de combinações verbais onde o ritmo, a harmonia e a imagem
têm freqüentemente muito mais importância que o próprio conteúdo inteligível.”
7
Oportu-
namente, esses autores estabelecem uma analogia que aproxima o conceito de poesia do
conceito de pintura e de música, a partir dos seus códigos específicos. Considerando as
definições de um dicionário, eles assumem que pintura é a “representação, sugestão do
mundo visível ou imaginário sobre uma superfície plana, através de cores” e que música é a
“arte de combinar os sons musicais, de organizar uma duração, com elementos sonoros”.
Pelas definições, nota-se que poesia, pintura e música são combinações de signos específi-
cos, cuja finalidade, embora de forma não muito precisa, se inscreve no espaço e/ou no
tempo. Essas categorias de espaço e tempo são distintivas para a pintura e para a música,
respectivamente, mas ambas se incluem na poesia, que atua simultaneamente no espaço da
inscrição e no tempo do dizer.
O que esses lingüistas querem provar é que, se uma semiótica das artes em geral se
basta teoricamente a si mesma, toda semiótica de uma arte em particular precisa se associar
à ciência que descreve a matéria-prima que ela utiliza. Se os estudiosos precisam considerar
que uma semiótica da música forçosamente se apóia nos princípios da organização acústica
(ritmo, melodia e harmonia), assim como uma semiótica da pintura se concentra na organi-
zação plástica (harmonia das linhas, das cores e das formas), o poeticista não pode estudar a
poesia – arte da palavra e das combinações verbais – sem considerar a Lingüística, ciência
do funcionamento da linguagem. Com base nesse reconhecimento substancial, confere-se
cientificidade ao problema sintético que diz respeito precisamente à confluência do espaço
(da inscrição) e do tempo (do dizer) no poema.
7
DELAS, Daniel & FILLIOLET, Jaques. Lingüística e Poética, p. 9. São Paulo: Cultrix, 1975.
33
Desde o primeiro momento, procuramos deixar claro que este trabalho se propõe a
estudar a estrutura do discurso poético sob uma ótica da organização da linguagem. Isto
quer dizer que a associação que tentamos fazer da Poética com a Lingüística constitui um
caminho para o saneamento das dificuldades nos processos poéticos elaborados pela língua,
acerca dessa arte que equilibra o ritmo, a harmonia, a imagem e o conteúdo inteligível, u-
nindo, à primeira vista, as duas faces do signo lingüístico – significante e significado.
Como é notório, a linguagem pode ser analisada sob dois aspectos, o fônico e o se-
mântico, ou seja, o plano da expressão e o plano do conteúdo. A oposição entre a prosa e a
poesia, denominações que doravante passaremos a empregar, se faz por caracteres existen-
tes em ambos os níveis. Os caracteres de nível fônico da poesia – métrica, ritmo e rima —
foram codificados e analisados em seus efeitos de sentido em diversos estudos. Denomina-
se verso toda forma de linguagem cuja face fônica apresenta esses caracteres, que, pelo seu
reconhecimento imediato e pela sua codificação rigorosa, constituem, ainda hoje, para o
público leitor, o critério de poesia. No que se refere ao nível semântico, reconhecemos i-
gualmente caracteres específicos capazes de constituir um segundo recurso poético da lin-
guagem. Tais recursos passaram também por uma tentativa de codificação por parte da re-
tórica. Mas o código retórico, por razões das quais nos ocuparemos oportunamente, tornou-
se facultativo, enquanto o verso permanecia na obrigatoriedade da constituição poética. O
fato de, por muito tempo, a palavra “poética”, por oposição a “retórica”, denominar exclu-
sivamente as normas de versificação constitui uma prova inconteste do privilégio que se
concede aos artifícios propriamente fônicos da arte poética.
De qualquer maneira, e isto é o que nos interessa mais de perto, pelo menos por ora,
podemos ver dois níveis distintos de processos na constituição da linguagem poética – um
fônico e outro semântico. Cabe ao escritor que visa aos objetivos poéticos, pela natureza
dos seus propósitos, associá-los ou mantê-los independentes. A partir daí, distinguimos três
tipos de poemas: os dois primeiros, frutos da independência dos processos, são considera-
dos “poemas semânticos” e “poemas fônicos”; o último, resultado da associação de tais
processos, denominamos “poemas fono-semânticos”.
Os poemas semânticos, deixando inexplorada a face fônica da linguagem, só atuam
na esfera da sua significação, ou seja, no plano do conteúdo, o que prova que os recursos
semânticos são suficientes, por si sós, para traduzir a dimensão poética de um texto, apesar
34
das restrições que fizemos anteriormente. Neste tipo de poema, podemos arrolar os cha-
mados poemas em prosa, ou a prosa poética de que falamos. Na segunda categoria, a dos
poemas fônicos, que, poeticamente, só utilizam os recursos sonoros, ou plano da expressão
da linguagem, não reconhecemos nenhuma obra literariamente significativa. A eles perten-
ceriam as produções poeticamente nulas, que não vão além da versificação do que seria
semanticamente prosa não-poética, que pejorativamente chamamos de “prosa versificada”.
Pelo que vimos, o poema semântico e o poema fônico parecem não atestar a vanta-
gem da versificação: aquele, por ser um texto poético sem versos; este, pelo fato de o verso
não lhe conferir poeticidade. Mas, advertimos, não é o objeto deste trabalho uma aprecia-
ção valorativa que compare o rendimento poético de um texto tomando por base o nível da
versificação e o da semântica. Sejam quais forem os valores que cada um desses processos
possa ter especificamente, o que nos importa é que, a despeito das novas categorias poéti-
cas (poema em prosa, prosa poética e tutti quant), tais níveis sempre atuaram em conjunto
na produção de uma “poesia integral”. Essa poesia, denominada poesia “fono-semântica”,
usando de todos os artifícios que a caracterizam, atua sobre a homogeneidade do material
observado, sem limitar o alcance do texto poético em todas as suas dimensões. É aqui que
nos situamos.
Jean Cohen
8
propõe a seguinte classificação de maneira prática neste quadro:
Caracteres poéticos
Gênero fônicos semânticos
Poema em prosa .................... +
Prosa versificada ................... + –
Poesia integral ....................... + +
Prosa integral ........................ – –
8
COHEN, Jean. Estrutura da Linguagem Poética. Trad. Álvaro Lorench e Anne Arnichand. São Paulo: Cul-
trix, Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.
35
No quadro, o lingüista inclui a prosa integral, considerando que ela seria a única a
merecer o nome de prosa, por oposição à poesia integral. Mais uma vez esbarramos na
incômoda categoria do poema em prosa. Efetivamente, no poema em prosa encontram-se os
mesmos tipos de caracteres semânticos que o poema em verso utiliza. Mas ele carece do
essencial para atingir a dimensão de uma poesia integral, essencial esse que se configura no
binarismo fono-semântico. É a ausência desse binarismo que faz com que vejamos o poema
em prosa como uma poesia sempre mutilada, como uma poema que está sempre a meio
caminho do estatuto pleno da poesia.
Se a cômoda oposição prosa X verso deixa de possuir valor operatório suficiente,
chegamos a um ponto crucial das nossas investigações. Como caracterizar o valor poético
da prosa e o valor poético da poesia? É aí que esbarramos na investigação da linguagem.
Talvez tenhamos que fazer algumas retrospectivas para alcançar a clarividência que alme-
jamos. Para tanto, buscamos apoio na dicotomia entre poesia clássica X poesia moderna.
A Poética de Aristóteles, como nós a conhecemos, é voltada para a essência e origem
da poesia. A lógica aristotélica estabelece que as operações sobre as palavras equivalem às
operações sobre as coisas, o que, de certa forma, confere às palavras o valor da coisa que
ela representa. Isto nos põe diante de uma teoria mimética, segundo a qual, sendo a poesia
uma operação sobre as palavras, é conseqüentemente imitação, mimesis. Esse conceito sig-
nifica que na arte, como na natureza, a passagem da matéria à forma se dá em conformida-
de com o mesmo processo temporal – do anterior para o posterior. Assim, o fato de a poesia
“imitar” a natureza indica essencialmente que o poeta, no momento da sua produção, reen-
contra a geração natural das coisas, o que, como frisa Dellas & Filliolet
9
, lembra o paren-
tesco morfológico existente entre poien (fazer-produzir) e poiésis (criação-produção-
poesia). Sob esse aspecto, a noção de mimesis está intimamente ligada à verossimilhança da
representação.
Segundo a reflexão antiga, o homem é confrontado com um mundo cuja realidade
preexiste ao seu olhar. A Retórica se propõe conceder-lhe os meio de apreender eficazmen-
te essa verdade superior, considerando que seria esta a única razão de ser da linguagem.
Analisando dessa forma a relação entre pensamento e linguagem, postula-se que nada se
pode dizer que não parta da lógica. Se, pensando com Aristóteles, a lógica é a arte de racio-
9
In Aproximações retóricas. Op. cit. p. 17
36
cinar corretamente, a linguagem deve ser concebida segundo uma adequação entre a forma
e o sentido. Assim, a verdade deveria residir na expressão lingüística, e linguagem e lógica
estariam filiadas para delimitar a realidade, de modo que uma metafísica lógica faça do real
e da linguagem as duas faces indissociáveis de um todo. Então, por esse prisma, a validade
da utilização da linguagem só pode ser concebida em função da verdade que ela revela.
Para melhor compreensão dos desígnios próprios da Retórica, tomemos o quadro a-
baixo, que resume suas operações e funções essenciais:
Operação Função
Invenção (Euresis) ............. Encontrar o que dizer.
Disposição (Táxis) .............. Colocar em ordem o que se encontrou.
Elocução (Lexis) .............. Acrescentar o ornamento das palavras e figuras.
Ação (Hypocrisis) .............. Representar o discurso como um ator: gestos e dicção.
Memória (Mnemé) ............. Recorrer à memória.
Como se percebe, a pertinência da retórica como ciência do discurso está ligada ao
equilíbrio de suas partes essenciais, mormente as três primeiras. Acreditamos que a hierar-
quia dessas operações não é aleatória. A primeira tem encrave maior na realidade, pois o
que se vai dizer está no mundo físico e corresponde ao tema a ser desenvolvido; a segunda,
embora se manifeste no texto, está subordinada a uma ordenação lógica estabelecida pela
natureza cósmica, e a terceira se relaciona à disposição das palavras, que, de certa forma, se
liga às anteriores por obedecer a uma convenção que não refuta a realidade, o que a enqua-
dra num discurso socialmente partilhado, de acordo com o “bom tom”, estipulado pela
“moral da linguagem” – a Escritura
10
–, por via da qual o escritor manifesta seu engaja-
mento na sociedade em que vive. Essa relação íntima com a realidade, esse humanismo
explicitamente manifesto garantem, de alguma forma, a permanência do homem em sua
historicidade no universo textual.
10
Sobre os conceitos de Escritura, ver BARTHES, Roland. Novos Ensaios Críticos. O Grau Zero da Escritu-
ra. São Paulo: Cultrix, 1974.p.
37
Isso equivale a dizer que a Retórica é filha da Lógica. Assim, ela se presta à classifi-
cação dos enunciados cuja eficácia se enquadra numa lógica sob a qual se verifica, em ter-
mos de funcionamento, o grau de veracidade ou de verossimilhança. Para Aristóteles, a
retórica seria a arte de extrair de qualquer tema o nível de persuasão, e a única diferença
entre arte retórica e arte poética seria que a primeira se refere à comunicação cotidiana, que
se faz de idéia em idéia, e a segunda à evocação imaginária, que se realiza de imagem em
imagem. Mas seja como for, o essencial é que ambas residem, em princípio, na relação de
uma coisa a outra coisa, o que situa a retórica e a poética na esfera as sintaxe.
Segundo Barthes
11
, a Poesia é sempre diferente da Prosa; mas, nos tempos clássicos,
essa diferença não é de essência, é de quantidade. Assim sendo, a dicotomia prosa X poesia
não atentava contra a unidade e a integridade da linguagem, que é um dogma clássico leva-
do às últimas instâncias. As formas de expressão eram dosadas conforme as ocasiões soci-
ais: de uma lado, considerava-se a eloqüência da prosa; de outro, o preciosismo da poesia,
preservando-se todo um ritual mundano de expressões, sempre numa linguagem única que
refletisse as categorias eternas do espírito. Dessa forma, a poesia clássica era percebida
como uma variação ornamental da prosa, fruto de uma técnica reconhecível. Ficava longe a
idéia de que a linguagem poética era uma linguagem visceralmente distinta, produto essen-
cial de uma sensibilidade peculiar. Por esse prisma, a poesia nada mais é do que a manifes-
tação decorativa de uma prosa virtualmente elaborada, subjacente a todos os modos de ex-
pressão social.
Analisada assim, a poesia não manifesta nenhuma extensão ou espessura particular do
seu próprio sentimento, nenhuma coerência autotélica, nenhum universo autonomamente
separado, “mas somente a inflexão de uma técnica verbal, a de ‘exprimir-se’ segundo re-
gras mais belas, portanto mais sociais que as de conversação”. Isso significa a projeção para
o mundo exterior de um pensamento que se lança sob uma forma de expressão já arquiteta-
da no Espírito, uma elocução previamente socializada pelas evidências de sua convenção. O
que queremos dizer é que, na arte clássica, um pensamento já formulado faz vir à tona uma
elocução que o exprime e que o traduz sob formas já preconcebidas e convencionalizadas,
capaz de enquadrá-la nos arranjos técnicos da poesia.
11
BARTHES, Roland. Existe uma escritura poética? In Novos Ensaios Críticos. O Grau Zero da Escritura.
São Paulo: Cultrix, 1974.p. 140-146.
38
Assim, na poesia clássica, nenhuma palavra, via de regra, é por si mesma densa; ela
constitui tão-somente o signo de uma realidade, funcionando muito mais como um liame
entre a poesia e o universo conceitualmente concebido. Incapaz de mergulhar na sua pró-
pria realidade corporal, ela se projeta, moldando-se, no momento mesmo da sua proferição,
a outras palavras, formando superficialmente uma cadeia de intenções na qual se dispersa.
Então a linguagem clássica torna-se viva por um movimento em que as palavras, isentas do
teor autonímico que as torna um signo estratificado, obedecem, pelas pressões intelectivas,
a uma tradição segundo a qual seu valor só se manifesta numa cadeia formalmente conven-
cionada pela lógica da linguagem. Por isso, a linguagem clássica se conforma em um moto
contínuo, numa sucessão de elementos de densidade linear sujeitos a uma mesma pressão
emocional e intelectual.
É precisa ficar claro que não estamos negando o valor da poesia clássica. Apenas es-
tamos reconhecendo os limites de manifestação da sua linguagem, cujas fronteiras se ins-
crevem na perspectiva da organização da frase, na relação da contigüidade constitutiva de
um valor poético que se conjuga no jogo de relações de suas partes. Mas isto implica reco-
nhecer que a natureza dessa poesia desconhece o impacto de um acidente fônico ou semân-
tico que concentraria em um ponto específico – a palavra em si – o frescor e o sabor da
linguagem, interceptando seu movimento inteligível em favor de um prazer transgressor.
Barthes afirma que, na poética clássica, o próprio léxico poético não passa de um léxico de
uso, não de invenção. O lingüista postula que nele as imagens são particulares em grupo,
não isoladamente; por costume, não por criação. Assim, a função do poeta não seria engen-
drar palavras novas ou encontrar palavras de maior densidade e brilho, mas pôr em ordem
um protocolo previamente estabelecido, aperfeiçoando a simetria ou a concisão de uma
relação, levando ou reduzindo um pensamento ao limite da exatidão da métrica.
Na poética clássica, as palavras se organizam na superfície da frase, cumprindo as
exigências de uma formulação elegante ou decorativa. Os artifícios clássicos são de relação,
não de palavras. Nela, as palavras não se elevam fora de uma cadeia sintagmática como um
signo que se cristaliza pelo seu próprio valor, sob o qual reside uma força semântica suble-
vadora, cuja arbitrariedade se manifesta no desconforto da metáfora mais ousada e não na
contigüidade da lógica metonímica. O que encanta, em suma, não é a potência ou beleza
delas em sua iconicidade, mas a formulação que as reúne em acidentes de forma ou de dis-
39
posição, num alinhamento que põe em prática a natureza relacional do discurso poético.
Então o discurso clássico não se concentra nas intenções de uma significação nova, entroni-
zada pelo inusitado do léxico.
Seguindo um ritual quase deontológico, os sintagmas do discurso clássico projetam
seu sentido para além, sentido este que não se concentra num signo fincado, estacionado na
linha de um percurso de significações como um marco autotélico. Ainda que reconhecida-
mente poético, esse discurso se estende na dispersão totalizante da intelecção da obra, em
busca de uma consciência comunicativa que se faz na esfera mesma das convenções soci-
ais, sob a qual sintomaticamente residia, à luz da retórica, uma espécie de gramática da ex-
pressão, como também um tratado geral de composição literária.
Esse tratado se baseava, sobretudo, na amplificação
12
, que, dentre outras coisas, com-
preendia a interpretação, a prosopopéia e a descrição. A interpretação consiste na acumula-
ção de palavras à volta de uma mesma idéia; pode ser pela enumeração de termos vizinhos
ou afins, ou pela repetição de uma idéia sob formas diferentes. A prosopopéia consiste em
fazer falar personagens mortos ou ausentes, objetos, acidentes geográficos ou até mesmo
uma abstração personificada. Mas, segundo Guiraud, é a descrição, que caracteriza o ser
diante da percepção do leitor, que constituía o processo de amplificação mais usual. Con-
forme certas convenções, alguns tratados distinguiam descrições de personagens, de objetos
e de cenas. Cícero já enumerava onze pontos na descrição de um personagem: nome, natu-
reza, modo de vida, condição etc.; na fisionomia, observavam-se sucessivamente, numa
certa ordem que achamos por bem desprezar, os cabelos, a fronte, as sobrancelhas, o espaço
que as separa, os olhos, as faces, a boca os dentes e o queixo. Esses fatores revelam que a
Literatura tinha uma espécie de lei jurídica que deveria ser mais ou menos respeitada.
Assim, na perspectiva da poética clássica, a linguagem literária, como fenômeno de
origem individual e de natureza psíquica, não podia encontrar seu lugar. Nessa perspectiva,
a linguagem era manipulada em seu movimento natural, nas suas relações com a lógica da
natureza. A linguagem clássica é portadora de euforia por ser uma linguagem imediatamen-
te social. Por isso não há gênero ou escrito clássico que não se considere um produto de
consumo coletivo. A arte literária clássica é um objeto que circula entre pessoas reunidas
por classes, um produto preconcebido para um consumo regulado segundo as contingências
12
Ver GUIRAUD, Pierre. A Estilística, p. 33. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
40
mundanas. Isso porque a retórica e a poética não possuíam um domínio reservado, o que
deixa bem claro que se ignorava uma linguagem literária enquanto tal. Assim, compreende-
se que a retórica dizia respeito a toda linguagem e à linguagem de todos. Afinal, para Aris-
tóteles, não havia poesia sem fábula, isto é, sem ação. Ele mesmo afirmou que “é preciso
que o poeta seja poeta de fábulas mais do que de versos, visto que é poeta em razão da imi-
tação, e imita as ações”.
13
A realidade lingüística era filtrada por modelos lógicos organiza-
dores, e a validade de sua utilização era julgada em função do vínculo que mantinha com os
conceitos gerais.
Tomemos estas três estrofes de “Os Lusíadas”, de Luís de Camões:
Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca de outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando uma noite, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Uma nuvem, que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
(...)
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
(...)
"Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompônio, Estrabo,
Plínio, e quantos passaram fui notório,
13
ARISTÓTELES. Poética. 1451 b 27-29. Tradução de Eudoro de Sousa. Porto Alegre: Globo, 1966.
41
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que para o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende!
Nelas, nota-se que nenhuma palavra em particular sobressai como ponto de tensão
poética particular. O discurso poético se dispersa na relação da contigüidade das palavras,
de maneira que cada uma projeta de imediato sua significação para a palavra seguinte. Não
é por outra razão que se destacam as configurações metonímicas – cinco Sóis eram passa-
dos / cortando os mares / sobre nossas cabeças – cuja compreensão obedece a uma relação
lógica de extensão sintagmática, mais palpável que na metáfora, cuja relação psíquica apre-
senta maior profundidade.
A estruturação do texto denuncia que a “invenção” poética clássica se baseia princi-
palmente nos recursos inscritos na amplificação – a interpretação, a descrição e a prosopo-
péia. A segunda estrofe que destacamos deixa entrever os aspectos da descrição, de que nos
fala Cícero. A terceira estrofe nos revela a prosopopéia, que se realiza na fala de Adamas-
tor, e a interpretação, que amplia o pensamento com idéias afins – os navegadores que
transpuseram o Tormentório.
Esses fatores nos dão a entender que Camões conhecia bem as convenções literárias
do seu tempo e obedecia a elas em suas linhas principais. Observa-se que a Retórica era, ao
mesmo tempo, arte de escrever e arte de compor; arte da linguagem e arte da literatura.
Dessa forma, a poética seguia uma orientação sempre socialmente concebida, cujo esquema
se enquadrava na perspectiva da língua, do pensamento e do locutor, considerando a moda-
lidade da linguagem, a forma do pensamento, as situações e as intenções do locutor, dentro
das exigências de um determinado gênero. Era assim que a poesia clássica seguia os movi-
mentos de uma ordem natural, em que a linguagem se submetia à plasmação de uma verda-
de irredutivelmente transparente.
Mas dessa estrutura poética pouco sobrou na poesia moderna, principalmente a partir
da virada decadentista-simbolista, com Rimbaud e Mallarmé, continuada na consciência
lúcida de Valéry. A poesia institui, daí por diante, seu discurso como uma Natureza fecha-
da, que envolve simultaneamente o aspecto funcional e estrutural da linguagem, o que sig-
nifica dizer que, poeticamente, o significante e o significado não são mais realidades hie-
42
rarquicamente independentes. Como diz Barthes, “A poesia não é mais então uma ‘Prosa
(grifo nosso) decorada de ornamentos ou amputada de liberdades. É uma qualidade irredu-
tível e sem hereditariedade.”
Não queremos afirmar aqui que a poesia moderna suprime as relações na cadeia da
frase. Defendemos que tais relações são lugares reservados, mas vazios por si mesmos. O
que queremos dizer é que, efetivamente, a poesia moderna destrói a natureza espontanea-
mente funcional da linguagem para encontrar-se com os alicerces lexicais, de onde emana
toda a energia do fluxo semântico que recobre a frase. Das antigas relações ela conserva
apenas o movimento e a exploração fônica do verso, não a noção da verdade. Assim, a pa-
lavra se projeta acima de relações esvaziadas e preenche esse vazio com uma carga semân-
tica inesperada. Esse vazio, entretanto, é necessário, visto que se presta à densidade de uma
Palavra poética “inventada”, que se eleva para além de um encantamento oco, na qualidade
de um signo cristalizado que funciona fônica e semanticamente como uma fonte de emana-
ções poéticas. Na poesia moderna, as relações são somente extensão e amplificação da pa-
lavra. Esta, sim, é o núcleo nevrálgico da base poética, uma vez que ela é que dá o fascínio
das relações; é a palavra que supre e satisfaz a dimensão poética como fonte de uma “ver-
dade” absoluta, que não se submete às condições da verdade real. Postular que há uma ver-
dade poética é admitir que a palavra poética jamais pode ser falsa, porque ela emerge em
sua totalidade no universo poético do texto, ocupando um lugar privilegiado, onde ela rei-
vindica uma liberdade que ruma na direção de inúmeras relações, possíveis mas imprevisí-
veis.
Agora a palavra poética se desfaz de suas relações fixas e, sem historicidade, se ins-
creve num projeto revelador de um valor verticalizado. Sob este aspecto, ela é, como uma
pintura abstrata, um signo sem passado imediato nas relações ordinárias da frase, um mo-
numento sem contorno nítido, algo que se projeta vagamente da sombra de suas relações e
dos reflexos de sua procedência, numa manifestação psíquica que lhe nega o confronto i-
mediato com a realidade. Segundo Barthes, é dessa forma que, na poesia moderna, reside,
sob cada palavra, “uma espécie de genealogia existencial, onde se reúne o conteúdo total do
Nome, e não mais o conteúdo eletivo como na prosa e na poesia clássica”.
14
Então, o em-
prego da palavra não obedece à intenção prévia de um discurso socializado. Desprovido das
14
BARTHES, Roland. Op. cit., 1974, p. 144.
43
relações habituais da linguagem, o discurso poético deságua no confronto direto com a pa-
lavra, exposta a um vazio que ela, por si mesma, tem de preencher, com suas emanações
virtuais assumidas no universo poético.
Assim, a nova linguagem poética cai num descontínuo e institui uma Natureza inter-
rompida, que só se manifesta por blocos, com uma autonomia que se configura no universo
fechado da poesia. Obscurecendo as ligações com o mundo, o objeto poético passa a ocupar
no discurso um lugar próprio, visto que as referenciações, recategorizadas que são, só en-
contram seu sentido na dimensão poética do texto. Dessa forma, a explosão da palavra poé-
tica institui um objeto absoluto, e essa palavra-objeto, sem ligação nítida com a realidade
imediatamente vivenciada, nega a Escritura ordinária e constrói, sobre suas ruínas, o ali-
cerce de uma nova escritura, fora da “moral da linguagem”, exclui os homens, cai no des-
contínuo do fluxo social, fora de qualquer alcance ético, porque, como diz Barthes, “põe o
homem em ligação não com os outros homens, mas com as imagens mais inumanas da Na-
tureza; o céu, o inferno, o sagrado, a infância, a loucura, a matéria pura, etc.”
A poética moderna assume a Poesia não como um exercício espiritualmente concebi-
do, um estado de alma ou um posicionamento diante da vida; mas sim como uma lingua-
gem sonhada, inventada, com suas próprias convenções, cujo esplendor, a despeito de seu
conteúdo ou de uma eventual ideologia, se revela pelo simples efeito da sua estrutura. As-
sim, a poesia moderna põe em relevo o estilo, através do qual o homem confronta o mundo,
ignorando o fluxo ininterrupto da história de uma moral social da linguagem.
Tomemos este poema de Drummond:
Cota zero
Stop.
A vida parou
ou foi o automóvel?
No poema, certas palavras-chave se manifestam sem qualquer linearidade historica-
mente discursiva. Elas emergem como elementos de base, como signos autônomos, cuja
historicidade é construída no momento mesmo de sua introdução. Seu processo de referen-
ciação é formador de uma semântica própria, sem interferências das experiências humanas
historicamente comprováveis. Isso porque o poema cria a estrutura do seu próprio discurso,
44
garantindo sua permanência através de uma forma que se cristalizou, independentemente de
qualquer manifestação social da linguagem.
O título do poema – “Cota zero” – não se contenta apenas em ser um indicativo para a
leitura. Integrando o sentido poético do texto, ele se apresenta de forma recategorizada, o
que, automaticamente, recategoriza toda a extensão do discurso. Como entidade fechada em
si mesma, o texto possibilita que os signos lingüísticos assumam uma dimensão que não
transpõe os limites criados e estabelecidos por sua própria forma.
É de se notar no texto o efeito da palavra “Stop”. Isolada como componente único de
um verso, ela funciona como uma marco poético erguido em sua singeleza. A não ser por
operações psíquicas que exigem uma leitura atenciosa – e é aí que bate o ponto –, ela não se
relaciona no imediato da corrente frasal com qualquer outra palavra. Como um módulo, ela
se mantém autonomamente explorada em todas as suas virtualidades fono-semânticas: uma
parada instantânea iconizada pela assibilação de um fonema inicial e pela violência prosó-
dica de uma vogal aberta tônica, cercada pela pronúncia impactante de duas consoantes
surdas. Além disso, no rescaldo de uma universalidade semântica localizada fora do sistema
lingüístico, a palavra enquadra o poema numa dimensão poética ampla que reflete uma si-
tuação mundial, e o faz como um monumento concreto que se ergue para além do horizonte
de uma Escritura imediatamente reconhecível.
É a partir dos valores específicos até então vistos que “vida” e “automóvel” se recate-
gorizam e admitem a ruptura de um paralelismo semântico que põe em um mesmo plano
significativo dois elementos de concepções distintas – o abstrato e o concreto – concebidos
no universo poemático como uma verdade nova, estranha à lógica familiar e racionalmente
aceitável. Mas esta ruptura só pode ser percebida no confronto com a relação lógica de uma
escritura neutra, imediatamente refutada, mas tomada como contraponto para a criação de
um universo paralelo e autônomo, cujas dimensões não podem ser pragmaticamente mensu-
radas nem submetidas à condição de uma verdade real. Sua verdade é absoluta e única, é
uma espécie de “terceira margem do rio”, onde as categorias do real e do verdadeiro ema-
nam de uma criação cuja gênese está na materialidade da linguagem.
***
45
É desse confronto entre a poesia clássica e a poesia moderna que procuramos extrair
o que caracteriza o poema em prosa, definido aqui como uma composição literária que ex-
pressa um “todo poético” organizado em parágrafo(s). Por apresentar uma estruturação li-
vre, seus parágrafos são desobrigados da estruturação habitual, com tópico frasal e idéias
secundárias. Já vimos com Barthes que a poesia clássica era sempre sentida como uma va-
riação ornamental da prosa, como resultado de uma técnica que elevava a escritura à condi-
ção de arte poética. Era uma arte de expressão, não fruto de invenção de uma linguagem. O
poema em prosa tem sua origem nas forças da organização retórica e, sem querer ser sim-
plista, evitando um reducionismo vulgarizante, se diferencia da poética clássica pelo fato de
esta ser interceptada pelas forças e pelos limites da versificação – o metro, a rima e o ritmo,
com todas as implicações de que seu tratamento é merecedor.
O poema em prosa (ou a prosa poética) pode representar uma liberdade da expressão
poética, mas é na verdade fruto de uma escritura burguesa, interessada num encrave mais
positivo na realidade vivencial. Sob esse olhar, ela nada mais é do que uma equação deco-
rativa em que a função poética é enfraquecida pela concorrência da função referencial da
linguagem, agravada pela ausência do verso. Não intentamos aqui desprestigiar a poesia
que emana na prosa; o que queremos mostrar é que tal poesia não se configura como uma
espessura particular da linguagem, não constitui nenhum universo separado da prática bur-
guesa. Ela designa somente a inflexão de uma técnica verbal que se exprime segundo regras
mais belas e conseqüentemente mais sociais que as da conversação, ou seja, sua força resi-
de na organização estética de uma linguagem que recai numa semântica convencionalizada.
Há, por trás do poema em prosa, toda uma intenção de relações sustentadas por um
pré-construto de idéias já formuladas, idéias essas que dirigem a linguagem para um uni-
verso familiarmente reconhecido. Assim, sua linguagem não reflete a si mesma; é, de fato,
uma linguagem a serviço de uma idéia previamente constituída, linguagem esteticamente
trabalhada em prol de uma eficácia semântica que absorve o estilo. Portanto, não há na pro-
sa poética o recurso de uma fala descontínua. Trilhando sempre caminhos seguros, ilumi-
nados por uma consciência coletiva e garantidos por um mapeamento compartilhado, ainda
nas manifestações mais atrevidas e apreciáveis, como é o caso de Guimarães Rosa, sua lin-
guagem é incapaz de enveredar por seus próprios caminhos, cuja luz emana de uma força
intrínseca no momento mesmo da sua criação.
46
Como na poesia clássica, o poema em prosa apresenta uma linguagem cujas relações
dirigem a palavra sempre para um sentido projetado na linha sintagmática. Com efeito, não
há ordinariamente palavras com densidade própria, capazes de interceptar o fluxo contínuo
do discurso lingüístico. Nenhuma palavra se eleva da cadeia sintática com a finalidade de
obstruir a luz natural que ilumina o discurso para, com a luz própria de uma metáfora subs-
tantiva maximalista, iluminar a escuridão que faz da linguagem poética uma aventura cujo
ponto de chegada é ela mesma. Assim, o poema em prosa é um clima, um sentimento poé-
tico que se forma na prática de um exercício do espírito, de um estado de alma, ou de uma
tomada de posição; nunca um universo independente, autoconstruído, determinado por uma
linguagem que só não é estranha a si mesma.
Tomemos este fragmento de Missal, de Cruz e Sousa:
E som e cor e cor e som, na mesma ondulação ritmal, na mesma ete-
rificação de formas e volúpias, conjuntam-se, compõem-se, fundem-se
nos corpos alados, integram-se numa só onda de orquestrações e de co-
res, que vão assim tecendo as auréolas eternais das Esferas...
O encanto do poema reside na captação de um estado onírico, através de uma lingua-
gem cujo valor poético se manifesta na dispersão sintática dos elementos frasais. Os recur-
sos de linguagem se concentram nas figuras de sintaxe – polissíndeto, quiasma, hipálage,
iteração anafórica, coordenação gradativa – e nas adjetivações, que, em certos momentos,
atingem as instâncias metafóricas por meio de combinações sintagmáticas. O que se vê é
uma euforia da linguagem que se afasta do grau zero da escritura, sem contudo negá-la,
porque nada transpõe os limites de uma linguagem reconhecidamente socializada, e nada se
constrói por si mesmo.
Deparamos com uma linguagem que tem como referência um ambiente feérico previ-
amente concebido no espírito humano, que consegue captar (não criar) os elevados ritmos
da alma, por meio dos artifícios da elocução, ou seja de uma ordenação que aciona uma
sensibilidade armazenada e, portanto, já existente no homem, à espera de uma forma lin-
güística capaz de retratá-la. Então o poema aponta para o que se encontra fora da lingua-
gem, numa plasmação que estabelece a ligação do homem com o mundo, a partir de um
jogo de impressões e projeções mentais que pressupõe os pólos do sonho e da realidade. A
47
habilidade e a criação do poeta consiste na escolha de uma forma lingüística inserida numa
ética da linguagem, mas não na criação de uma linguagem própria, com uma sensibilidade
peculiar, capaz de suscitar a perplexidade do leitor ou exigir dele o esforço de quem tenta
decifrar um código estranho à sua experiência de falante. Isto porque a linguagem obedece
ao fluxo de uma consciência partilhada, que reconhece na projeção da frase a transmissão
imediata do sentido, que vai de uma palavra a outra sem esbarrar na fronteira de um signo
fechado em si mesmo.
Confrontemos agora este poema em prosa de Bandeira:
Tragédia brasileira
Misael, funcionário público da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite
nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.
Misael tirou Maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado no Está-
cio, pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ela queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um
namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma fa-
cada. Não fez nada disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de
casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra,
Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Nite-
rói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Ca-
tumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e
de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída
em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.
(In Estrela da vida inteira)
48
O texto se caracteriza pela narratividade, que, entendida como transformação de con-
teúdo, é um componente da teoria do discurso, na qual a narração constitui a classe de
discurso em que estados e transformações estão ligados a personagens individualizados.
Optando por uma estrutura linear, preconizada pelo modo de organização discursivo da
narrativa, o texto de Bandeira refuta claramente qualquer artifício lingüístico que o remeta
para fora de uma escritura ética socialmente reconhecida. Suas conotações residem tão so-
mente no acúmulo de elementos que exigem do leitor uma série de conhecimentos do mun-
do. É de se notar que, como no texto anterior, nenhuma palavra é capaz de estabelecer um
marco sobre o qual recaia uma concentração semântica, nenhuma palavra é núcleo poético
de emanação particular de sentido. Sem querer negar a autonomia do texto poético, perce-
bemos nele um alto grau de permeabilidade que o encrava na realidade do mundo, revelan-
do uma tomada de posição do autor, que estabelece, através de um narrador, um contrato de
comunicação com um leitor supostamente engajado na conjuntura social vigente. Para tan-
to, põe a linguagem a serviço de um teor anedótico que se configura numa ordem natural e
não contraria a seqüência lógica dos acontecimentos, o que não atenta, evidentemente, con-
tra o mecanismo da disposição, inscrito nos dispositivos da Retórica.
No processo narrativo, o texto apresenta o desenrolar dos fatos com elementos lin-
güísticos típicos do mundo narrado – uso do pretérito perfeito como tempo de relevo e do
pretérito imperfeito como plano de fundo –, numa obediência ritualística que em nada con-
traria a escritura dos gêneros narrativos. Com uma nítida preocupação funcionalista, o autor
usa uma linguagem notadamente referencial, deixando que a dimensão poética do texto se
manifeste no aspecto denotativo de uma semântica que liga o texto ao mundo, num apelo
irrevogável à situação discursiva. Em seu socorro, alguns parágrafos se organizam sobre os
alicerces da amplificação, operando com os recursos da descrição e da enumeração para
engendrar a poeticidade do texto, que fica por conta das implicaturas percebidas pelo leitor.
No primeiro caso (primeiro e segundo parágrafos), a descrição estabelece, através de
predicações sintomáticas, as condições de Misael e Maria Elvira. Num processo de focali-
zação por vias de um enunciado de estado, põe-se em evidência o ponto de vista do narra-
dor, qual seja o da conjunção e da disjunção
15
dos personagens com aspectos perceptíveis
15
Os dispositivos de junção (conjunção e disjunção) estão inseridos nos conceitos de enunciado de estado
aqueles que estabelecem uma relação de junção entre um sujeito e um objeto – e de enunciado de fazer
aqueles que mostram as transformações, que correspondem à passagem de um enunciado de estado a outro.
49
somente a partir dos valores da sociedade burguesa. “Misael, funcionário público da Fa-
zenda, com 63 anos de idade.” apresenta-se em situação de dubiedade: economicamente,
está estabilizado, em plena conjunção com a fruição da vida; existencialmente, está em
disjunção com o que se entende como uma situação equilibrada – sozinho no mundo, em
idade avançada e, pelo que se pode inferir, carente de afeto. Maria Elvira, “prostituída, com
sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição de miséria.”, é
uma mulher da Lapa, região de prostituição do Rio de Janeiro e, portanto, encontra-se em
absoluta disjunção com os valores materiais e morais da sociedade. Nessa situação, o en-
contro de ambos desencadeia uma série de fatos que traduzem complicações em direção a
um desfecho trágico.
No segundo caso (penúltimo parágrafo), a enumeração, que recai no eixo sintagmáti-
co da contigüidade metonímica, mostra uma reiteração de ações em dois planos superpos-
tos: numa referenciação imediata, indica onde os amantes moraram; numa referenciação
recategorizada, estendida à semântica de um dizer implícito, indica a seqüência de amantes
de Maria Elvira. Chamam a atenção as reticências, indicando que a enumeração não se es-
gota, e o pensamento do leitor deve ir além do que está escrito. É sintomático o fato de am-
bos serem caracterizados como “amantes” (aqueles que amam), o que, pela pressuposição
de uma reciprocidade de sentimentos, constitui uma ironia, que só pode ser atestada na es-
fera de uma situacionalidade discursiva.
O texto apresenta recursos amplamente utilizados na prosa literária. O autor emprega
com propriedade a polifonia discursiva através do discurso indireto livre – incorporação do
discurso do personagem no discurso do narrador, de forma não-marcada. Com esse expedi-
ente, ele promove a capitação de um estado psicológico, revelando de forma sutil o tônus
emocional do personagem diante dos fatos narrados. Isso proporciona ao leitor uma sensa-
ção de verossimilhança, que só pode ser engendrada por meio de uma linguagem que seja
permeável à realidade vivencial, conferindo ao texto uma dimensão quase “especular” em
relação ao mundo real.
Não podemos negar que o texto se constrói sob uma criatividade que lhe confere va-
lor artístico. Mas tais valores se manifestam em relação à ruptura de certos conceitos for-
A conjunção liga um sujeito a uma determinada situação, a disjunção intercepta a ligação do sujeito com
uma determinada situação.
(Cf. FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2005)
50
mais que não atingem o núcleo nevrálgico da linguagem. Estabelecendo certa intertextuali-
dade que remonta à categoria dos gêneros textuais, por meio de certas formas de expressão
emblemáticas, há referências ao gênero jornalístico que conferem ao texto uma dissonân-
cia. O poeta se apropria de uma conjuntura textual lingüisticamente marcada por um de-
terminado tipo de escritura, revelada pela referência a alguns dados informativos – “funcio-
nário público”, “63 anos de idade” – e numa expressão técnica própria do jornalismo poli-
cial – “decúbito dorsal” –, tomada como pólo antitético de outra expressão – “vestida de
organdi azul” –, realçando na mente do leitor a brutalidade da cena.
Como se vê, a tensão poética do texto se concentra em elementos que se situam fora
da linguagem, reconhecidos pela vivência humana, pelo conhecimento do mundo, e não no
salto mais atrevido da criação lingüística. Seu valor poético, inegável, diga-se de passagem,
apóia-se numa semântica construída pelo imediato da linguagem, conferida por uma opera-
ção de referenciação que situa o leitor no universo pragmático da moral burguesa.
Por todas essas razões, o poema em prosa é, por excelência, um poema semântico,
seja porque abriu mão dos recursos fônicos da versificação, seja porque sua linguagem a-
presenta um encrave maior na realidade. É lógico que ele se constrói com uma linguagem e
essa linguagem não é neutra. Mas reconhecemos nela, a despeito das dissonâncias que a
afastam do grau zero e a fazem poética, uma Escritura, tal como na poesia clássica. Já dis-
semos aqui que a poesia clássica era percebida como uma variação ornamental da prosa,
produto de uma arte que se faz de uma técnica e jamais como fruto de uma linguagem in-
ventada, com peculiaridades próprias.
É possível que, em relação ao poema em prosa, não possamos falar de uma Retórica
no sentido tradicional do termo, mas percebemos muito de seus resquícios na sua estrutura-
ção lingüística. Como a Retórica não tinha área de atuação definida, seus recursos, que apa-
reciam na Oratória, eram também reconhecidos pela Poética. Assim, somos de opinião que
o poema em prosa é a última parada no itinerário da uma convenção da linguagem estabe-
lecida pelo dispositivo da Elocução, que migra dos domínios da Retórica para alcançar a
poesia clássica, de onde parte, para, desprovida dos recursos semânticos da versificação,
constituir a prosa poética.
Se no poema clássico tem-se uma linguagem que, excluindo as instâncias da versifi-
cação, se identifica com a escritura social de uma prosa estilizada, não é difícil perceber
51
que a prosa poética está mais próxima da poesia clássica do que da poesia moderna. Esta,
segundo Barthes, é a negação da Escritura. Quanto àquela e aos seus epígonos, não há in-
conveniente em se falar de uma escritura poética, visto que a Poesia é realmente uma certa
ética da linguagem. O que queremos dizer é que a poesia será tão moderna quanto mais se
afastar das convenções da Retórica, por conta de uma linguagem de invenção, que se volta
para si mesma, criada para a construção de uma realidade autônoma.
Assim, entendemos que há textos poéticos que, pela linearidade da sua linguagem,
estão mais próximos da Escritura, e textos poéticos que se dela se afastam pelo seu grau de
inventividade lingüística. Os primeiros apresentam uma euforia que se reencontra com os
processos de uma “gramática” poética, institucionalizada por uma historicidade reconhecí-
vel; os últimos se constroem com uma linguagem que se instala na região de um limbo lin-
güístico que não se reconhece pelo confronto com a vivência histórica.
Tomemos dois exemplos que, a nosso ver, constituem nitidamente os dois pólos des-
sas concepções poéticas: o primeiro é um fragmento de Castro Alves, poeta retórico por
excelência:
Navio Negreiro
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...
Quem são estes desgraçados,
Que não encontram em vós,
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
52
Quem são?... Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!
(...)
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras do país,
Nasceram – crianças lindas,
Viveram – moças gentis...
Passa um dia a caravana
Quando a virgem da cabana
Cisma da noite nos véus...
... Adeus! Ó choça do monte!...
... Adeus! palmeiras da fonte!...
... Adeus! amores... adeus!...
Depois o areal extenso...
Depois o oceano de pó...
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p’ra não mais s’erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas um chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer...
Inflamado pelas imagens bombásticas da elocução retórica, o texto traz as pegadas
hugoanas do Condoreirismo. O poema se estrutura em movimentos convulsivos, impulsio-
nados pelo pathos de uma linguagem explosiva, envolvente, que traz à tona a força de um
sentimento devastador, sentimento este que encontra seu jaculatório na voz altissonante de
um lirismo social à altura de sua nobreza. Ouvimos um orador cuja voz ecoa aos ouvidos de
53
uma nação que reconhece nos seus gritos um ideal partilhado, e esse reconhecimento é fru-
to de uma linguagem que se faz poética – mas que ainda soa familiar –, embalada pelo rit-
mo espasmódico de cada verso. Como é de se notar, os recursos utilizados na configuração
da linguagem são distribuídos na linearidade frasal. O uso abusivo das figuras retóricas
situam a distinção poética no repertório disponível das construções imagéticas, a serviço da
amplificação de um ideal social.
Reconhecemos que um poema se faz poema pela sua forma (linguagem e estrutura) e
não pela sua substância, mas isso não impede que as figuras retóricas desempenhem uma
função social, a partir do sentido que constroem no universo poético. Intensificando a dra-
maticidade do texto, figuras como apóstrofes, gradações, iterações, hipérboles, anáforas,
inversões, antíteses etc., que, em suma, têm sido ligadas a um estilo “sublime”, descrito
com certo pormenor desde épocas que remontam a Longino e Quintiliano, elevam a lingua-
gem ao mais alto grau de um apelo social. O sujeito poético se faz orador e, como tal, se
projeta na condição de porta-voz de uma nação, o que enquadra seu discurso numa modali-
dade poética que a escritura social também reconhece. E reconhece porque nada se constrói
fora da previsibilidade do grande pattern retórico, na medida em que um revestimento me-
tafórico decorativo e amplificador visa ao efeito de sentido no espírito do leitor, e o alcança
por intermédio de imagens, símbolos e mitos
16
reconhecidamente digeridos por uma socie-
dade culturalmente impregnada de valores partilhados pelo poeta.
Assim, calcada num ideal grandioso que atualiza mitos e símbolos deontologicamente
partilhados, através de uma imagem metapoética sintomática que, de forma refratária, traz à
tona a euforia das massas, a poesia se faz “Musa libérrima, audaz!”. Mas essa musa, des-
pertada pela voz altissonante do poeta, é uma musa de todos. Então, como o mito é social,
anônimo, comunal, o Poema é um canto que vai ao encontro de uma comunhão com a soci-
edade, canto este que se inscreve numa educação artesanal do poeta, doutrinado pelo com-
partilhamento histórico que deságua no seu tempo, cuja escritura a linguagem prontamente
reflete na organização de artifícios retóricos denunciadores de um estilo comunitário, de
natureza uniforme, do qual o autor se apropria com um objetivo específico. Sob esse pris-
ma, a linguagem dessa poesia é uma expressão sincera que relaciona o estilo poético com
16
Sobre imagem, metáfora, símbolo e mito, ver WELLEK, René & WARREN, Austin. Teoria da Literatura.
Publicações Europa-América, 1976, 3ª edição.
54
uma concepção da vida lingüisticamente marcada, ligando o mundo exterior, da natureza e
da sociedade, com o mundo interior do próprio homem.
Confrontemos agora um poema de Manoel de Barros, representante legítimo da poéti-
ca moderna:
Palavras
Veio me dizer que eu desestruturo a linguagem.
Eu desestruturo a linguagem?
Vejamos: eu estou bem sentado num lugar.
Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim.
Tira o lugar em que eu estava sentado.
Eu não fazia nada para que a palavra me desalojasse daquele lugar.
E eu nem atrapalhava a passagem de ninguém.
Ao retirar de debaixo de mim o lugar, eu desaprumei.
Ali só havia um grilo com a sua flauta de couro.
O grilo feridava o silêncio.
Os moradores do lugar se queixavam do grilo.
Veio uma palavra e retirou o grilo da flauta.
Agora eu pergunto: quem desestruturou a linguagem?
Fui eu ou foram as palavras?
E o lugar que retiraram de debaixo de mim?
Não era para terem retirado a mim do lugar?
Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem.
E não eu.
O poema acima se estrutura fora de uma compreensão imediata da linguagem. As
imagens poéticas não se constroem sobre os alicerces de um entendimento lógico suscitado
pelo discurso poético (“O grilo feridava o silêncio”). Percebe-se de imediato a subversão
dos valores semânticos naturalmente concebíveis, e esta subversão é estabelecida por uma
referenciação escatológica, que engendra um mundo a ser criado no momento mesmo de
sua realização. Assim, deparamos com uma poética na qual circula uma dialética que induz
ao ato da concepção da poesia e à consciência de que a palavra é um ser ativo e dinâmico
55
capaz de elaborar uma nova visão do mundo. Por conseguinte, o poeta subtrai a linguagem
do seu contínuo social e nesse ato de subtração elabora uma poética de libertação, cuja lin-
guagem se des-organiza fora do âmbito de uma Escritura, e propõe à função ideacional
uma dimensão inusitada, que só encontra sua razão de ser no universo intrínseco do próprio
texto, como se pode atestar no verso “Vem uma palavra e tira o lugar de debaixo de mim.
Sem ser apenas veículo de idéias, a palavra se mostra essencial em todas as relações
do ser humano, consigo mesmo, com seus semelhantes e com o Criador. Torna-se um ser
vivo e poderoso, e o poeta torna-se fonte reveladora das coisas, que se fazem seres através
de sua nomeação. Assim sendo, a poesia torna-se o veículo que permite o acesso ao absolu-
to através da palavra. A poesia emana indelevelmente do reino da linguagem, linguagem
que possui o poder de construir o real e aprisioná-lo em sua própria essência. E assim, ao
reter o real no seu próprio universo, a poesia vislumbra as possibilidades de uma liberdade
criadora absoluta, que se manifesta no processo ilimitado da palavra voltada para si mesma.
Nesses versos, a consciência criadora faz da auto-reflexão veículo para restituir à
palavra o poder primitivo da liberdade. Portanto, a palavra insurge-se pela sublevação,
como uma forma ativa, que recorta a realidade, revelando que a poesia é a linguagem da
libertação que conduz o leitor a um novo mundo, um mundo inusitado, de uma loucura
consciente que só a arte é capaz de revelar. Assim, as palavras atuam fora dos limites pré-
estabelecidos e o poeta torna-se um demiurgo do mundo poético, soltando as amarras e
libertando-as, para que cumpram seu próprio destino. Sem conhecer limites que não sejam
os da própria criação, as palavras vão sutilmente recortando a realidade, levando o poeta a
reconhecer que “Foram as palavras pois que desestruturaram a linguagem.” O poeta en-
tende o que faz, chegando mesmo a revelar numa entrevista que “Só quem está em estado
de palavra pode enxergar as coisas sem feitio”.
Agora em sua forma absoluta, após conduzir a poesia pelo reino da natureza reco-
nhecível, a palavra conduz a poesia pelo percurso das coisas, mas um percurso que ela
mesma cria. Se na poesia clássica havia a comunhão do poeta com o mundo, esta comu-
nhão é substituída pela comunhão do poeta com a palavra. É assim que o artista entra em
estado de palavra. Enxergando as coisas ainda sem feitio, ainda sem forma, ele se subme-
te aos efeitos das palavras e ao que ela pode realizar. Assim, a palavra deixa de ser o elo
entre o homem e o universo e assume uma dimensão autotélica, caindo numa espécie de
56
metalinguagem tácita. Segundo Sartre, as coisa não fazem sentido para o mundo real.
17
Isto porque o real por si mesmo é inacessível. O que significa dizer que só através da pa-
lavra podemos senti-lo dentro da nossa concepção cultural. Como a poesia é uma forma
peculiar de plasmação do mundo, somente através de uma linguagem poética podemos
percebê-lo poeticamente. Mas essa palavra, nova e livre, liberta o homem da feição fami-
liar do universo, ao tornar-se o próprio ponto de chegada de um itinerário desconhecido.
O poema moderno é sempre uma metalinguagem radical, porque viabiliza no verso o
entrecruzamento da coisa com a palavra de tal modo que a palavra torna-se o caminho, o
centro e o objeto do seu próprio percurso, ou seja, é a palavra girando sobre si mesma.
Portanto, encontramos a palavra sendo utilizada pelo poeta como um ser capaz de frag-
mentar e re-criar o universo. Não satisfeito em manipular a palavra em tão vasta abrangên-
cia, o poeta, dominado pelo dom da palavra, conduz o seu poema de forma a alcançar a
liberdade total do ser da linguagem. Assim, o poeta faz da palavra símbolo do fazer poéti-
co, objeto que se relaciona com o sublime e ao mesmo tempo fala de si mesma, e esta au-
to-referencialidade manifesta a consciência criadora que esboça sua visão de mundo. Não
é por outra razão que ele mesmo revela que “É a palavra que me vai desvelando”. E diria
ainda: “Só sei dizer que a palavra é o nascedouro que acaba compondo a gente. O poeta é
um ser extraído das palavras. Não é a gente que faz com as palavras, são as palavras que
fazem com a gente.”
Aqui, poesia não é história, sociologia, psicologia, filosofia ou o que mais se possa
supor, embora possa falar delas livremente e tomá-las como componentes da sua semântica;
poesia é um fenômeno de linguagem, linguagem que se constrói numa evolução que cami-
nha para o absoluto e que suscita uma emoção estética. Na poesia tradicional, a competên-
cia criativa do poeta se faz pela capacidade de escolhas paradigmáticas que se ajustam igua-
litariamente à ordenação sintática. Na poesia moderna, a linearidade da lógica sintática é
corrompida pela insurreição da palavra nova, que se coloca como nascedouro de emanações
e relações surpreendentes, que promove a des-construção do sistema lingüístico e o toma
em seu status primitivo como contraponto dos valores que ela mesma suscita. Se na poesia
clássica a linguagem é uma expressão sincera que relaciona o estilo poético com uma con-
cepção da vida e da natureza, na poesia moderna a linguagem é uma expressão sincera do
próprio poema, que sobrevive e permanece sob a fruição de um código novo.
17
Apud FILHO, Ives Garcia Martins. Manual Esquemático da História da Filosofia. São Paulo: Ed. LTDA,
1997, p. 122
57
1.1.1. – A função poética da linguagem
Nos seus estudos lingüísticos, Saussure postula que a língua “é a parte social da lin-
guagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, nem pode criá-la nem modificá-la; ela não
existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre membros da comuni-
dade”.
18
Assim, a língua é uma instituição social, que existe na coletividade sob a forma de
uma soma de sinais depositados na mente de cada falante. Trata-se, portanto, de algo que
está em cada um de nós, embora seja comum a todos. É assim que, ainda segundo Saussure,
a língua pode ser estudada fora da ação da história, ou seja, numa perspectiva sincrônica
que permite defini-la como um sistema de signos cujo funcionamento se processa segundo
os eixos paradigmático e sintagmático.
Mas quando fazemos uso da língua nós nos individualizamos e nos atualizamos dis-
cursivamente, pois é através dela que marcamos nosso território no meio social e nos proje-
tamos como indivíduos, fazendo prevalecer nossos anseios, que estão intimamente ligados
à função que atribuímos à linguagem, segundo nossos propósitos. Assim, a linguagem de-
sempenha funções, e estas funções estão relacionadas com a intencionalidade do falante no
processo discursivo. O psicólogo Karl Bühler, com sua obra Sprachteorie (1934), foi quem
primeiro tratou do estudo das funções da linguagem, a partir do qual estabeleceu para ela
três modalidades:
1) Função representativa – predomínio da informação sobre a realidade, centrada no
mundo objetivo;
2) Função expressiva – predomínio da revelação dos estados emotivos, centrada no fa-
lante;
3) Função apelativa – predomínio da orientação, centrada no destinatário.
Os tempos modernos, a partir da Primeira Guerra Mundial, aceleraram o movimento
de dessacralização dos valores individuais e da arte em particular. No domínio da produção
literária e da linguagem poética, os formalistas russos se empenharam em descrever os pro-
cessos de fabricação da obra e reivindicaram para tanto um método imanente e racional,
como atesta Vitor Chklovski no seu artigo A Arte como Procedimento.
19
18
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 7ª edição, 1975, p. 22.
19
CHKLOVSKI, Vitor. A Arte como Procedimento. In Teoria da Literatura – formalistas russos. Porto Ale-
gre: Editora Globo, 1976.
58
Em busca de uma aproximação sintética e técnica desses movimentos, nascem as pes-
quisas de Jakobson, concentradas no estudos da obra poética como fenômeno de manifesta-
ção lingüística. “A poesia é linguagem em sua função estética.” diria o lingüista e, confir-
mando sua teoria, completaria:
Deste modo o objeto do estudo literário não é a literatura, mas a literariedade,
isto é, aquilo que torna determinada obra uma obra literária. E no entanto, até hoje, os
historiadores da literatura, mais das vezes, assemelhavam-se à polícia que, desejando
prender determinada pessoa, tivesse apanhado, por via das dúvidas, tudo e todos que
estivessem num apartamento, e também os que passassem casualmente na rua naquele
instante. Tudo servia para os historiadores da literatura: os costumes, a psicologia, a po-
lítica, a filosofia. Em lugar de um estudo da literatura, criava-se um conglomerado de
disciplinas mal-acabadas. Parecia-se esquecer que estes elementos pertencem às ciên-
cias correspondentes: História da Filosofia, História da Cultura, Psicologia, etc., e que
estas últimas podiam, naturalmente, utilizar também os monumentos literários como
documentos defeituosos e de segunda ordem. Se o estudo da literatura quer tornar-se
uma ciência, ele deve reconhecer o ‘processo’ como seu único herói.
20
Fazemos nossas as palavras de Jakobson e consideramos sintomática a oposição que
se estabelece entre os termos monumentos literários e documentos defeituosos, empregados
pelo autor. Isto porque, para nós, literatura é monumento e não documento, monumento
que se constrói com palavras, numa seqüência artisticamente arranjada, configurando uma
função específica da linguagem.
Sabemos que a realidade é uma mensagem lingüística, e somente uma. Mas é possível
distinguir na linguagem diferentes estruturas em função do ponto de vista escolhido e cons-
truir vários tipos de análise lingüística que sejam pertinentes à intenção do usuário do idi-
oma. Entender poeticamente a linguagem significa atribuir a ela uma função peculiar – a
função poética – e o primeiro passo a ser dado seria colocar esta função entre as outras fun-
ções da linguagem.
20
Apud SCHNAIDERMAN, Boris. In Prefácio, Teoria da Literatura – formalistas russos. Porto Alegre:
Editora Globo, 1976, p. IX-X.
59
Assim, ampliando o modelo triádico de Bühler, Jakobson aumenta para seis as fun-
ções da linguagem: emotiva, conativa, referencial, fática, metalingüística e poética, de a-
cordo com os elementos da comunicação, no quadro abaixo, e as definições a seguir:
Referente
(função referencial)
Remetente ---------------- Mensagem ------------------- Receptor
(função emotiva) (função poética) (função conativa)
Canal
(função fática)
Código
(função metalingüística)
1) Função emotiva (ou expressiva) – visa a uma “expressão direta da atitude do sujeito
quanto àquilo que fala”, tendo por tradução natural a interjeição ou outras expressões que
caracterizam emocionalidade.
2) Função conativa (ou impressiva) – visa à “orientação para o destinatário” e “encontra
sua expressão gramatical mais rara no vocativo e no imperativo” ou expressões que de al-
guma forma busquem influenciar o comportamento do receptor da mensagem.
3) Função referencial – remete ao “algum” ou ao “alguma coisa” de que se fala e que
não existe senão no discurso. Assim, a referência a um mundo percebido ou imaginado se
faz através de objetos-de-discurso, o que situa esta função na esfera discursiva.
4) Função fática – tem por objetivo manter o contato entre o destinador e o destinatário
(o codificador e o decodificador); ela designa tudo o que é posto em atividade para reter a
atenção, para verificar que o canal de comunicação está aberto.
60
5) Função metalingüística – a linguagem é empregada para assegurar que o código utili-
zado no processo de comunicação é comum ao destinatário e ao destinador; através de glo-
sas busca-se a explicação de termos empregados no discurso.
6) Função poética – visa à utilização da língua para produzir mensagens que se impõem
à atenção do leitor/ouvinte pela forma como estão construídas. Nessa perspectiva, a função
poética se caracteriza pela forma do dizer e não pelo que é dito.
Como se pode observar, a relação entre a linguagem e um determinado elemento da
comunicação – como mostra o quadro acima – denota a intenção do falante quando este se
apropria da língua. Então, por intermédio das funções da linguagem, percebe-se o que o
falante faz com a língua, como ele a utiliza segundo seus propósitos. Além disso, e é aí que
nos atemos, revela-se o tipo de relação que o enunciador quer estabelecer com o ouvin-
te/leitor através do seu ato de linguagem. Mas esta relação só é percebida por um contraste
que se estabelece no jogo dialético das funções, em que uma se sobrepõe a outra. Assim,
uma função da linguagem depende de outra, para que se revele a sua predominância. Em
outras palavras, no jogo da linguagem há sempre mais de um elemento envolvido, e, para
que um elemento da comunicação seja posto em destaque – o que implica a relevância de
uma função sobre as demais –, é necessário que outro se ponha em segundo plano. O que
queremos dizer é que, no jogo da linguagem, há sempre mais de um elemento envolvido e
que a predominância de uma função da linguagem só se justifica no jogo dialético que se
instaura entre ela e uma outra função.
Assim, na focalização de um entre os demais elementos da comunicação, gera-se um
contrato pelo qual perpassa a noção de um gênero textual. Isto é sintomático porque cada
função da linguagem se caracteriza por certas marcas que o enunciador deixa no seu enun-
ciado para atingir a eficácia do seu discurso, em oposição a outras. Se quisermos estabele-
cer uma relação entre essas funções, não será difícil perceber que existem certas associa-
ções de ordem geral no papel que elas exercem, de onde, por oposição, ressalta a noção de
predominância de uma sobre a outra. Assim, reunimos as funções em pares, para que se
estabeleça o jogo dialético no processo discursivo, através das marcas lingüísticas que o
enunciado ostenta.
61
As funções fática e a função metalingüística têm em comum o fato de assegurarem a
eficiência do processo comunicativo – aquela pela manutenção do canal de comunicação,
esta pelo ajuste no código lingüístico. As funções emotiva e conativa põem em relação um
eu e um tu, numa perspectiva de polarização dos dêiticos actanciais que, de alguma forma,
está ligada àquela de Benveniste:
A consciência de si mesmo só é possível se experimentada por contraste. Eu não
emprego eu a não ser dirigindo-me a alguém que será na minha alocução um tu. Essa
condição de diálogo é que é constitutiva da pessoa, pois implica reciprocidade – que eu
me torne tu na alocução daquele que por sua vez se designa por eu. Vemos aí um prin-
cípio cujas conseqüências é preciso desenvolver em todas as direções. A linguagem só
é possível porque cada locutor se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como
eu no seu discurso, Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sendo embora exterior
a “mim”, torna-se meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu.
21
Quanto às funções poética e referencial, as que, por oposição, nos interessam mais de
perto, ambas se constituem por um peculiar processo contrastivo que nos conduz a sentidos
contrários na relação do texto com o mundo. Nesta, a referenciação cria objetos-de-
discurso que nos conduzem do texto ao mundo por um processo de cognição; naquela, os
objetos-de-discurso nos levam do mundo para o texto, visto que, para a construção da poe-
sia, a referenciação só tem sua razão de ser no autofagismo lingüístico do universo poético.
Mas não se pode perder de vista que o sentido na polarização entre o texto e o mundo só se
materializa nas marcas do enunciado. Dessa maneira, embora não desprezemos as incidên-
cia discursivas, das quais falaremos oportunamente, voltamo-nos para uma concepção for-
malista da linguagem, que se configura nas escolhas (eixo paradigmático) e na ordenação
(eixo sintagmático) dos vocábulos. Isto porque a forma que a linguagem assume é de vital
importância para o reconhecimento dessas funções.
Na função referencial, a linguagem está próxima de um padrão que a enquadra no
grau zero da escritura, em conseqüência de uma atitude cognitivista assumida pela propos-
ta do sujeito do enunciado. Na função poética, a linguagem é surpreendente, criativa, este-
21
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral. Trad. Maria da Glória Novak e Maria Luisa Néri.
São Paulo: Pontes, 1995, p. 287.
62
tizante, conferindo à escritura um valor autotélico, que concentra a atenção do leitor sobre
o próprio texto, isto é, na sua forma e não na sua substância. Isso porque, sem descartar
qualquer encrave na realidade vivencial, sem negar que a poesia emerge numa estrutura
sociocultural na qual ela está ancorada, o texto poético visa à intransitividade, e essa intran-
sitividade está no caráter autocontemplativo e não-pragmático da sua linguagem.
Não é por outra razão que Jakobson vê como característica da função poética a meta
da mensagem enquanto tal, com ênfase sobre a mensagem em si mesma.
22
É de se ver que,
na perspectiva de Jakobson, essa função põe em evidência o lado palpável dos signos. Mas
uma mensagem poética não se reduz à sua função poética. A função poética é tão somente
um certo tipo de mensagem, a função predominante, e, pela sua relevância, reduz as demais
a um papel acessório, o que não significa que seja dispensável. A função referencial, por
exemplo, está em toda parte, em todo ato de linguagem, pois não existe ato verbal que se
mostre totalmente desprovido de informação. Assim, qualquer tentativa de reduzir um texto
poético à esfera da função poética, ou de confinar a poesia à função poética, levará a uma
simplificação excessiva e enganosa, pois isso é negar o valor significativo das palavras, o
que engendra uma iconoclastia, no fundo inconcebível, em se tratando de linguagem.
Na verdade, a função poética não refuta a informação, ela “informa” de forma peculi-
ar. Mas a poesia não é poesia pelo que informa, ela se faz poesia pela peculiaridade da sua
linguagem. Segundo Jakobson, “a função poética projeta o princípio da equivalência do
eixo da seleção sobre o eixo da combinação”, de modo que a seleção é o “produto sobre a
base da equivalência, da similaridade e da dissimilaridade, da sinonímia e da antinomia, ao
passo que a combinação, a construção da seqüência, repousa sobre a contigüidade”.
23
Isso
nos leva a crer que a seleção ganha relevância porque aparece como resultado da distribui-
ção. Assim, a nosso ver, o eixo sintagmático faz o eixo paradigmático ter relevância em
conseqüência da disposição sintática na organização da frase.
Sabemos que, sob a ótica de Jakobson, a função poética também aparece fora da poe-
sia, como na linguagem midiática (propaganda de um produto, slogan político), em provér-
bios etc. Mas nesses casos, ela desempenha um papel secundário, complementar, visto que
é utilizada para fixar na memória do destinatário uma mensagem predeterminada em sua
estrutura lingüística. Isso ocorre porque, nesses casos, a forma da expressão e a forma do
22
JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1970, p. 127-128.
23
JAKOBSON, Roman. Ensaios de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1969, p. 220.
63
conteúdo são dados anteriores à constituição da mensagem. Essa predeterminação vem de
certos valores que se quer divulgar: a qualidade de um produto, a eficácia de uma ideologia
ou a conveniência de uma moral social. Sob essas circunstâncias, a função poética tem a
finalidade tão somente de garantir a eficácia da mensagem. Então, o que se tem não é poe-
sia, é uma mensagem poetizada por formas estilísticas de expressão, com arranjos lingüísti-
cos que a Poética reconhece.
Mas, quando a função poética predomina, ela assegura a geração poética da mensa-
gem, e a poesia se constitui, e se constitui como mensagem onde a função poética é essen-
cial, e não como linguagem versificada, musical ou estilisticamente arranjada a serviço de
um propósito qualquer. Isso porque a poesia não é um jogo gratuito em relação ao arranjo
na ordem das palavras, previamente determinada pelo pensamento. Entendemos aqui uma
situação inversamente proporcional, que reforça a troca dos sentidos na trajetória que en-
volve as funções referencial e poética em relação aos pólos texto x realidade: a mensagem
poética existe quando todos os elementos utilizados são necessários à compreensão da glo-
balidade da mensagem; inversamente, quando o funcionamento globalizante condiciona a
presença de cada um desses elementos.
Como qualquer locutor, o poeta dispõe da liberdade de produzir um número infinito
de sentenças a partir de um léxico e de uma sintaxe geradora de combinações inumeráveis;
mas no caso da mensagem poética, qualquer modificação implica imediatamente um ree-
quilíbrio, uma reavaliação, tanto no seu conteúdo quanto na sua forma de expressão. É aqui
que estabelecemos a diferença entre a mensagem poetizada e a mensagem poética. Aquela
tem finalidades estranhas à poesia e revela valores estilísticos que a poética reconhece co-
mo familiar; esta tem finalidade em si mesma e surge da própria poesia como fonte de e-
manação de um sentido que só encontra redunncia na esfera da co-textualidade. Assim
sendo, a poeticidade provém das totalidades das equivalências possíveis entre o conjunto
dos elementos gramaticais da língua do texto e o conjunto dos elementos canônicos que
constituem a forma poética – os versos e as estrofes – com as implicações que ela suscita e
que a caracterizam. É do equilíbrio das forças entre esses diferentes planos de funciona-
mento que se instaura a tensão poética do texto, tornando visível a materialidade da men-
sagem poética e constituindo o critério de sua existência enquanto tal. A especificidade da
arte verbal, consiste, portanto, em demonstrar por seus meios sua própria necessidade:
64
Quadrilha
João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria fico para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
(Carlos Drummond de Andrade)
O texto de Drummond, se constrói em dois movimentos poéticos que constituem dois
momentos da existência dos seres poéticos. Esses dois movimentos são separados pela
marca gramatical da pontuação. O ponto no terceiro verso indica o final de uma etapa da
trajetória existencial dos seres, tomados aqui como objetos do discurso poético. São seres
com identidade apenas discursiva, cujo destino é construído pela combinação da linguagem
com a estrutura do texto. É sintomática a ausência de pontuação de pausa no primeiro mo-
vimento (os três primeiros versos), contrapondo-se à pontuação sistemática do segundo
movimento. Naquele, os seres estão numa linha de força que os envolve na fatalidade do
sentimento amoroso. Não há pausa, não há sanidade, tudo é um turbilhão que os arrasta
irrefreavelmente numa única direção, determinada pela dança da quadrilha, que é em suma,
a própria vida. Neste, a pontuação das pausas os separa, e cada um cumpre seu destino; mas
na totalidade, são destinos diversos que os conduzem em direções opostas.
Notamos no primeiro movimento uma frase de arrastão, que se notabiliza pela inci-
dência do relativo que, constituindo um dinamismo ininterrupto que nos remete à dança da
quadrilha com os encontros e desencontros dos casais. Levando em consideração a totali-
dade semântica do texto, a substituição dessa frase de arrastão por outra estrutura quebraria
o efeito de sentido que o poeta engendrou no poema. Condenada pela boa expressão grama-
tical, essa frase é um recurso estilístico do poeta a serviço de uma mensagem que se faz
poética no momento mesmo da sua construção, na gênese do texto. Por isso mesmo, ela
não constitui um artifício de simples adorno da mensagem; ela é elemento essencial gera-
65
dor da poeticidade, e sua forma é poética porque contribui irrefutavelmente para a instaura-
ção do valor artístico do texto, onde forma e substância se harmonizam num todo indisso-
ciável, criando um circuito cujo liame está na própria organização sintática da frase.
No segundo movimento, cessada a quadrilha, cessam também as expectativas de rea-
lização dos anseios. Sem a concretização do amor, os seres tomam direções distintas, e an-
dam por caminhos que se situam entre o desalento (“João foi para os Estados Unidos”) e a
anulação (“Teresa para o convento”), entre a tragédia (“Raimundo morreu de desastre”) e
a desolação (“Maria fiou para tia”). A realização cabe apenas a Lili – “que não amava
ninguém” –, e por isso mesmo tornou-se a mentora, diretora e executora do seu próprio
destino – “casou com J. Pinto Fernandes”. No universo discursivo do texto, João, Teresa,
Raimundo, Maria e Lili são seres poeticamente concebidos com existência e humanidade;
contrariamente, J. Pinto Fernandes é só um nome (ou melhor, um sobrenome), poetica-
mente concebido como uma marca social “que não tinha entrado na história”. E não tinha
entrado porque não tem história, porque é apenas uma convenção social abraçada por Lili.
Mas essas diretrizes semânticas só são possíveis sob a orientação do equilíbrio entre as
partes e a totalidade do texto. E aqui consideramos, mais uma vez, linguagem e estrutura,
que, em conjunto, viabilizam o sentido do que não se diz abertamente. E não se diz aberta-
mente porque a poesia tem seu modo especial de dizer, e é exatamente esse modo de dizer
que nos prende às teias de cada enunciação poética, que, por sua configuração única e ja-
mais repetida, não se presta a traduções nem a glosas.
Como se vê, as escolhas no texto poético são realizadas em harmonia com o liame
sintático. Assim, sintagma e paradigma atuam dialeticamente de forma irreversível, numa
fusão que não permite mais a separação dos eixos, que agora constituem, em conjunto, um
outro eixo, o eixo poético da linguagem, revisitado por uma mentalidade outra que não
deve especular qualquer coisa fora do próprio texto. Podemos ver então o texto poético
como um objeto de semiótica própria, mas um objeto lingüístico, fechado, produtivo, estru-
turado com dimensão concreta, cuja ambição máxima é atingir a anulação de um referente.
Essa capacidade de o texto poético adquirir a dimensão de objeto concreto está intimamen-
te relacionada com a possibilidade de ele sustentar o funcionamento icônico da linguagem,
em que a motivação do signo, afastando cada vez mais o seu caráter arbitrário, permite reu-
nir objeto material e material significante.
66
Ampliando o assunto, tomemos esta frase de um jingle:
Melhoral, Melhoral, é melhor e não faz mal.,
substituída pela atual:
Pra você ficar legal, tome Melhoral.
Segundo Houaiss, “jingle – mensagem publicitária musicada que consiste em estribi-
lho simples e de curta duração, próprio para ser lembrado e cantarolado com facilidade”.
24
Como se vê, a mensagem publicitária é própria para ser lembrada com facilidade. Isso põe
em jogo a eficácia da linguagem, o que significa dizer que todos os recursos estilísticos
empregados na mensagem – rimas, exploração do jogo léxico etc. – não passam de artifí-
cios que põem a função poética num plano secundário, atuando como elemento de fixação.
Por se tratar de propaganda, entendemos que as funções predominantes são a conativa, que
orienta o interlocutor da mensagem, e a referencial, que informa as qualidades do produto.
Diante disso, considerando as intenções do enunciador – atrair o leitor, visto como mero
consumidor – tem-se na mensagem um sentido preconcebido em busca de uma forma de
expressão que se mostre eficaz. Neste sentido preconcebido incluem-se as qualidades, as
propriedades e a marca do produto. Isso significa que o autor da mensagem não tem liber-
dade absoluta para sua criação, pois o que se pretende não é provocar no leitor o estado de
contemplação estética pelo viés lingüístico da mensagem. O que se pretende é influenciar o
leitor, tornando-o consumidor, não de arte, mas de um produto comercial.
Além disso, vale dizer, a mensagem da propaganda, por mais poética que possa pare-
cer, só tem sua razão de ser diante da existência do produto que se quer divulgar. Se tal
produto for excluído do mercado, sua propaganda não sobrevive, porque, ao contrário da
arte, ela não tem um fim em si mesma. Some-se a isso o fato de que a mensagem da propa-
ganda pode sofrer alterações nos seus dizeres, como ocorreu nos nossos exemplos, sem que
passe por uma reavaliação de caráter estético-estrutural. Tais alterações visam à atualização
do produto à exigência da época. O que queremos dizer é que, ao mudar a mensagem da
propaganda, passa-se a ilusão de que se atualiza o produto para o público consumidor.
24
HOUAISS, Antônio. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa 1.0.10 UNO
67
No primeiro slogan, há um jogo lexical lúdico entre “Melhoral” e “melhor”, que con-
tribui para a fixação da marca do produto, acompanhado de uma negação do substantivo de
valor negativo – não faz mal. Mas “não fazer mal” não é exatamente sinônimo de “fazer
bem”. Então foi providencial a atualização dos dizeres. Substituindo-se “é melhor e não faz
mal” por “pra você ficar legal”, processou-se uma mudança na mensagem que atualizou o
produto para uma época lingüisticamente marcada, o que vai ao encontro de um público
consumidor de exigência renovada. Criar a história da propaganda de um produto é criar a
história do próprio produto; mudar a mensagem da propaganda de um produto é mudar o
próprio produto.
Dessa forma, a mensagem poetizada da propaganda se dilui entre pólos determinantes
que incluem a marca do produto e suas qualidades – função referencial da linguagem – e a
impressividade do leitor/consumidor – função conativa da linguagem. A mensagem poética,
ao contrário, se fixa como mensagem, mensagem que brota do texto poético de forma in-
transitiva, porque, como já dissemos com Jakobson, a função poética é “a meta da mensa-
gem enquanto tal”. Se, na propaganda, o estilo se traduz em eficácia para a sustentação de
um sentido previamente construído por uma intenção pragmática; na poesia, o estilo cria
um sentido que emana poeticamente do aspecto intrínseco do texto, texto esse que se perpe-
tua como um monumento erigido no tempo, cuja matéria prima é a palavra. É por isso que,
quando damos ao texto poético o caráter de objeto, consideramos que a língua não é utili-
zada como suporte de um discurso, mas como constituinte de uma mensagem, e visamos ao
resgate daquilo que é essencial.
Mas há outras implicações relevantes no que diz respeito ao jogo das funções da lin-
guagem no texto poético. A poesia épica, centrada na terceira pessoa, aciona automatica-
mente a função referencial; a poesia lírica, orientada para a primeira pessoa está intimamen-
te relacionada com a função emotiva, e a poesia impressiva é assinalada pela função cona-
tiva. Em todos esses casos, a poesia não abre mão da função poética como seu elemento
determinante. Cumpre, entretanto, assinalar que certos textos poéticos de longa extensão
conferem a outras funções da linguagem papel de relevo, colocando-as em plano semelhan-
te ou às vezes superior ao da função poética. Isto porque um longo poema, tomado como
um todo, não vislumbra a preeminência da função poética da linguagem. Os longos poema
épicos, por exemplo, são sempre lembrados, a princípio, pelas histórias que contam e pelos
68
heróis de que falam. Mas, como um longo poema, épico ou lírico, é sempre lacunar e, como
partes inteiras não põe em relevo a função poética da linguagem, preferimos vê-lo em par-
tes menores. Assim, consideramos que um longo poema não é, senão, uma seqüência de
poemas breves, com os efeitos poéticos breves que se manifestam lingüisticamente nas es-
trofes e em, em particular, em cada verso, ao sabor das suas próprias circunstâncias.
Finalizemos com este metapoema de João Cabral, que, por si só, é indício de que o
texto poético consiste num trabalho lingüístico que objetiva, antes de mais nada, formar um
todo vertido sobre si mesmo, com todas as dificuldades que ele possa engendrar na apreen-
são artística e figurativa de sua leitura.
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e o oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grão pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com o risco.
Por todas as razões que o poema acima apresenta, calcadas no trabalho criativo com a
linguagem, procuramos manter a análise poética na esfera da análise lingüística e assumi-
mos que o esforço do estudioso de poesia consiste, a princípio, pelo menos para o lingüista,
na pesquisa do código particular que permite ao texto conter sua própria finalidade.
69
1.2. – Considerações sobre Estilo
Uma das questões mais instigantes no confronto com o texto poético é a categoria do
Estilo. Primeiro pela dificuldade que temos em defini-lo com precisão, segundo porque
sempre corremos o risco de cair nas armadilhas de uma subjetividade individualizante, que
não deve ser o foco de orientação de quem realiza um trabalho de investigação lingüística
sobre um determinado corpus. No caso de o corpus ser o texto poético, como é o nosso
propósito, o perigo é mais iminente, seja porque o analista pode deixar escapar suas prefe-
rências, seja porque ele, a despeito de sua condição de lingüista, sinta-se tentado a cair na
esfera da crítica literária, o que o conduziria a uma apreciação valorativa da obra em um
determinado estágio da história literária. É precisa deixar bem claro aqui que não é (ou pelo
menos não deveria ser) papel do lingüista imputar à obra de arte um conceito avaliativo de
bom ou ruim. Mas como resistir a isso? Essa é uma pergunta a que tentaremos responder no
decorrer da nossa análise.
Sabemos que qualquer texto poético aflora dentro de uma conjuntura social em que os
valores estéticos se manifestam relativamente. A arte é uma manifestação histórico-cultural
do homem, é uma criatividade que se dá num fluxo de transformações e desafios estéticos,
provocando certa perplexidade, em conseqüência de inovações que se sobrepõem como
uma invenção que surpreende e que atua na construção do seu produto com uma força de-
sagregadora de conceitos cristalizados. É papel da arte provocar no seu consumidor o olhar
atento no processo da sua construção em busca dos valores estéticos. Então é possível que,
a partir desses parâmetros, o analista seja arrebatado por comparações e autoprojeções que
o induzam a caminhos pouco científicos em que, na maioria das vezes, a intuição se sobre-
põe aos preceitos técnicos da análise lingüística.
As diversas definições de estilo nos põem diante de encruzilhadas perturbadoras. Isso
porque os conceitos vários de estilo com que muitos teóricos e escritores operam nos con-
duzem a caminhos tão distintos que chegamos a duvidar que seja possível sistematizar a
noção de estilo por vias seguras. Estilo deriva do latim stĭlus, “haste de planta”, “ferro pon-
tudo com que os antigos escreviam nas tábuas enceradas”, “maneira ou arte de escrever, de
falar”. Mas a evolução dos conceitos tomou variações que nos conduzem a noções distintas,
dependendo do modo como cada escritor ou teórico encara a arte de escrever ou falar.
70
A partir daí, encontramos os mais diversos modos de conceituar estilo, dos quais pas-
samos a nos ocupar. O autor das Viagens de Gulliver (século XVIII), Jonathan Swift, con-
ceitua estilo como “As palavras certas no lugar certo”; Buffon, escritor francês (século
XVIII), afirma que “O estilo é o próprio homem”, acrescentando que “O estilo é apenas a
ordem e o movimento que colocamos em nossas idéias”; Mário da Silva Brito, escritor e
crítico literário, assim se posiciona: “É autor de estilo tão pessoal que está impossibilitado
de escrever cartas anônimas”; Manuel Bandeira diz que “O estilo não é o enfeite: o estilo
nasce do caráter mesmo do escritor e é a marca de sua personalidade”; o filósofo francês
D’Alambert (século XVIII), postula que “O estilo diz-se das qualidades mais particulares
do discurso, mais difíceis e raras, que denotam o gênio ou o talento de quem fala ou escre-
ve”; o escritor Chateaubriand, impregnado dos conceitos do “gênio” romântico, assim se
expressa: “Em vão nos rebelamos contra a seguinte verdade: a obra melhor composta, a-
dornada de retratos muito parecidos e cheia de mil outras perfeições, nasce morta se lhe
falta o estilo. O estilo – e dele existem milhares – não se aprende: constitui um dom do céu,
é o talento”; Sílvio Elia defende que “Estilo significa o máximo de efeito expressivo que se
consegue obter dentro das possibilidades da língua”; Mattoso Câmara assim se pronuncia:
“Estilo – Lato sensu, a maneira típica por que nos exprimimos lingüisticamente, individua-
lizando-nos em função da nossa linguagem”.
Como se vê, temos para estilo as mais variadas conceituações, que vão das considera-
ções mais impressionísticas, como as de Chateaubriand, às mais próximas dos estudos da
linguagem, como as de Mattoso Câmara. Dentre as tantas definições, reduzidas ao seu de-
nominador comum, consideramos a de Pierre Giraud, uma definição bastante ampla, que
engloba os vários aspectos que a nosso ver devem ser considerados no confronto com o
texto – “O estilo é o aspecto do enunciado que resulta da escolha dos meios de expressão
determinada pela natureza e as intenções do indivíduo que fala ou escreve”.
25
Mas seja como for, o estudo do estilo é essencialmente matéria da Estilística, tomada
aqui, senão como uma ciência, pelo menos como uma disciplina do estilo. Entretanto não
foi sempre assim, pois a Estilística não existe desde sempre, pelo menos como nós a conhe-
cemos hoje. Empréstimo do alemão, a palavra “estilística” foi atestada pela primeira vez
numa obra do poeta alemão Frederico Novalis (1772-1801), pelos fins do século XVIII.
25
GIRAUD, Pierre. A Estilística. São Paulo: Mestre Jou, 1970.
71
Mas em Novalis a Estilística ainda se confunde com a Retórica, tomada como a “arte
da expressão”. A Retórica, em sua origem, foi o ato de falar em público, calcada no propó-
sito da persuasão, buscando convencer o ouvinte e levá-lo a uma decisão pela forma de uma
argumentação ao mesmo tempo lógica e emocional. Essa arte da argumentação, que teve
seu prestígio na Antigüidade e durante a Idade Média, tinha como proposta definir o discur-
so em três formas que se resumem nas operações essenciais: a invenção – que se concentra
na escolha das idéias e dos temas a serem desenvolvidos; a disposição – que está pautada
na organização e ordenação das idéias, e a elocução – que se preocupa com o estilo, isto é,
com as formas particulares da expressão, selecionando figuras e tropos, tendo em vista a
emoção e a persuasão. O orador fazia a seleção dos tropos condicionado pela natureza do
discurso, pelos seus temas e objetivos e pelas circunstâncias em que ele seria pronunciado.
Os tipos de discurso, então, constituíam-se em gêneros aos quais correspondiam uma forma
específica. Assim sendo, antes do surgimento da Estilística, com os alcances que hoje se
conhecem, o que tivemos foi o império da Retórica.
A Retórica viveu seu apogeu num mundo previamente concebido. Na Antigüidade,
bem como na Idade Média, as coisas e os seres, assim como todas as categorias da razão, da
afetividade e da sensibilidade, as noções do bem e do mal, do belo e do feio preexistiam
desde todo o sempre, exteriores ao indivíduo, em forma de idéias, como queria Platão, cuja
concepção é a de que as idéias eternas e transcendentes originam todos os objetos da reali-
dade material. De acordo com essa visão de mundo, cada coisa é nomeada segundo o pre-
ceito de que ela se acha ligada à palavra única e insubstituível que a designa e a identifica;
as idéias estão nas palavras como as almas estão nos corpos, e a função do poeta consistia
em reencontrar a forma na qual se encarna a realidade.
O declínio da Retórica é um desmantelamento em etapas que se situam nos estágios
da história política das instituições. É sintomática a diluição do gênero deliberativo junta-
mente com o declínio da República e o surgimento de um poder “divinizado”, que, por isso
mesmo, não podia ser contestado. A partir daí, impôs-se à Retórica uma dupla restrição: a)
a elocução acabou por se tornar o único domínio incontestável da retórica; b) neutralizou-se
a oposição retórica-poética, no início do Império, à época de Augusto (ano 21, século I
a.C.). Reunindo-se os dois aspectos da transposição, a retórica tornou-se o estudo do dis-
72
curso literário ornamentado, permitindo o nascimento da Literatura como objeto particular
de estudo não imediatamente ligado à língua de que trata a gramática.
O desaparecimento da invenção e da disposição se faz a favor da lógica, mas a ilusão
da existência do império retórico persistirá por toda a Idade Média e irá até o século XVII.
Com a retomada da lógica pelo viés da filosofia cartesiana, com a qual se instaura no cora-
ção da linguagem o eu do cogito (Cogito, ergo sum = Penso, logo existo), reconstitui-se o
real a partir de evidências racionais e “naturais”. Na perspectiva dos gramáticos de Port-
Royal, igualmente a Gramática remete à Lógica, e o faz sem que se reserve um lugar onde
a retórica possa se situar. Sua obra, Grammaire générale et raisonnée (século XVII), que
durante dois séculos serviu de base à formação gramatical, explica os fatos partindo do pos-
tulado de que a linguagem, imagem do pensamento, exprime juízos e que as diversas reali-
zações que se concentram nas línguas são conformes a esquemas lógicos universais. Como
se percebe, aí também o julgamento é ponto de interesse:
Não é o discurso, em seu arranjo e em sua arquitetura, que está em questão, mas
sua unidade mínima provida de significação, a frase, reduzida à sua essência, o ato da
fala e do pensamento, por meio do qual um homem não se limita a conceber as coisas
mas julga-as e afirma-as.
26
Esse retorno à concepção lógica elimina de forma explícita e definitiva os alicerces da
retórica, pois o sistema de relações homem-mundo, do qual ele emanava, é recusado e re-
constituído segundo outros princípios.
Agora não se trata mais de buscar nos artifícios retóricos uma eficácia lingüística pela
mediação especular entre o conteúdo e a expressão. O que se pretende é usar as receitas
para tornar essa língua gramaticalmente estruturada uma língua elegante intermediada por
tropos ornamentais. Os ornamentos não são mais formas eficazes de colocar uma idéia sob
a forma de linguagem de acordo com a lógica da natureza. A “normatividade” retórica não
é mais cogitada sob as considerações de uma eficiência lingüística, mas de estética socio-
cultural, tornando-se um código de marcas sociais esteticamente valorizadas. Assim, a for-
ma literária é perceptível por uma valorização estética que pode dar à retórica o direito de
26
MARIN, L. In Prefácio de A Lógica ou a Arte de Pensar, de Arnaud e Nicola. Flamarion, 1970, p. 9.
73
falar da linguagem poética. Dessa forma, as noções de gênero e forma estenderam-se da
Oratória ao conjunto das obras literárias, e a noção de estilo passou a ser compreendida
como a de forma específica da obra condicionada por sua função.
Com o surgimento do Romantismo, instaura-se o primado do gênio criador, e o estilo
do texto passa a ser entendido como expressão de uma experiência individualmente viven-
ciada. A partir de então, a liberdade e a originalidade substituem a noção finalista, pragmá-
tica e normativa das regras da retórica, e o escritor conquista o direito de rejeitar receitas
apriorísticas que modelam a boa forma de expressão. Cai o império retórico, e, a partir da
segunda metade do século XIX, quando, orientadas pelas doutrinas do Positivismo, várias
disciplinas buscam constituir-se em bases científicas, a noção de estilo, pela sua complexi-
dade, fica excluída do quadro epistemológico em que elas se inscrevem. Isso porque o esti-
lo só se manifesta e se identifica em função de um estado de língua e em função da mensa-
gem, levando-se em conta os aspectos psicológicos e afetivos manifestados na expressão
verbal, que obviamente ficam fora do alcance do materialismo positivista.
No século XIX, as investigações literárias, também influenciadas pelo racionalismo
positivista de Comte, ficam relegadas às feições do determinismo de Taine e vão buscar
suas explicações nas idéias de Sainte-Beuve, Champfleury e Duranty, pra quem os estudos
da manifestação literária não incluíam as noções de estilo. Assim, o estudo do estilo ficara
relegado ao âmbito da retórica, cujos critérios encontravam-se esclerosados e desacredita-
dos desde 1750. No início do século XX, a Estilística surge, então, postulando a existência
de todo um domínio de pesquisa que a antiga retórica tinha parcialmente ocupado e que a
lingüística de base positivista e historicista não tinha sido capaz de integrar em seus es-
quemas.
A Estilística é uma disciplina de base lingüística que analisa de forma específica o
enunciado, nos atos vários de comunicação, para depreender e descrever os recursos idio-
máticos responsáveis pela ênfase expressiva que aumenta o rendimento da mensagem. A
nova disciplina surge a meio caminho da lingüística e da literatura, sendo ainda hoje tema
de discussão se é necessário delimitar o seu campo de atuação ou se é necessário que lhe
seja atribuída uma existência autônoma. Seja como for, o fato é que a estilística é impres-
cindível para a captação dos efeitos de sentido que emanam do movimento e da inter-
relação de estruturas e processos significantes na atividade discursiva.
74
Assim como a lingüística, a estilística examina os três planos do sistema lingüístico –
o fônico, o lexical e o sintático. Dessa forma tem-se uma estilística fônica, uma estilística
lexical e uma estilística sintática. Mas sé preciso deixar claro que, ao examinar a cadeia
verbal produzida num ato discursivo, a estilística o faz sob um ângulo diverso do da lin-
güística. À estilística interessa delimitar e estudar somente as estruturas e os processos idi-
omáticos que, relativamente a cada contexto e situação específica de discurso, manifesta
uma função expressiva na qual se perceba a marca da visão pessoal do enunciador ou locu-
tor com relação ao que se diz e que, com ou sem objetivos estéticos conscientes e sistemá-
ticos, tenham sido mobilizados para atuar no espírito do destinatário.
Dentro das orientações da Estilística como uma disciplina que se pretende sistemati-
zar, é preciso que se considerem certos conceitos conexos com os quais a estilística busca
dialogar. Aqui se enquadram as noções de norma, desvio e escolha. Sabe-se que, conven-
cionalmente, os signos lingüísticos possuem um sentido de base ou denotação, e é graças a
esse sistema de convenções semânticas que a língua pode levar a termo a sua função precí-
pua de propiciar o intercâmbio das idéias numa comunidade cultural. Mas aos signos lin-
güísticos estão potencialmente aderidos certos valores semânticos secundários, aos quais se
denomina conotação, que, por um processo de atualização em variados graus no discurso,
conferem à forma da mensagem um nível de expressividade geradora de uma camada in-
formacional suplementar. É nessa suplementação que reside a força de atuação e a natureza
da estilística.
Examinando cuidadosamente a questão, verifica-se que o conceito de expressividade
pelas vias da conotação se correlaciona com a noção de escolha. Efetivamente, o código
lingüístico é um sistema de signos multifacetados. Isso implica que um mesmo conceito
pode ser referido de modos diversos, através de estruturas idiomáticas que veiculam as
mesmas denotações, mas que atualizam no discurso conotações variáveis. Isso possibilita
ao emissor da mensagem, ao nível da sua competência lingüística, uma seleção ou escolha
de formas que expressem não somente seu pensamento mas também sua sensibilidade e a
adequação ao tema, à finalidade do ato de comunicação e ao contexto no qual ele se realiza.
A operação que envolve a seleção e a combinação funcional dos signos, a partir dos recur-
sos inscritos no idioma, dá especificidade à forma do discurso e, em última análise, confere
a ele o que se denomina lingüisticamente estilo.
75
Como existem vários modos de expressão de uma mesma idéia, a estilística considera
o conceito de desvio a partir do que é mais freqüentemente utilizado e, por isso, no âmbito
da “normalidade” em relação aos outros. Essa consideração da norma se estabelece a partir
do uso de marcas formais que se representam no idioma mais conformes ao valor de base,
pelas quais a dita forma é “naturalmente” reconhecida. Por exemplo, considera-se desvio a
semântica da transposição das relações naturais de dois elementos em uma proposição, na
qual a conexão que logicamente se faria com uma das palavras presentes é feita com outra,
constituindo a hipálage, tal como ocorre em “O cheiro verde da folhagem”, em vez da ex-
pressão “O cheiro da folhagem verde”, naturalmente aceita. Esse desvio pode ser conside-
rado em relação a uma “norma” geral ou em relação a uma “norma” estabelecida no texto.
Os tempos modernos deram ao homem a consciência da relatividade de sua existên-
cia. Desde então, a sociedade, as instituições, os costumes, os valores estéticos ou morais
perderam seu reconhecimento de realidade absoluta, e a linguagem que os exprime conver-
te-se numa criação sempre renovada da experiência, e cada olhar, ao reinventar o mundo,
reinventa cada vez a linguagem. Agora, o que identifica e autentica o real é a experiência
vivenciada, plasmada pela linguagem num constante jogo de ajustamentos de sentidos. Não
se trata mais de abrir a gaveta e lá encontrar o que se deixou; trata-se de abrir a gaveta e
verificar o que há nela, atribuindo ao seu conteúdo um valor que emana das circunstâncias
virtuais. Dentro dessa visão de mundo, a estilística não se interessa pela língua com fenô-
meno exterior ao indivíduo, mas como sua realização concreta, em processo de interação de
um indivíduo com seu mundo social, e em função das variáveis de um contexto determina-
do, o que a faz aproximar-se das teorias do discurso modernamente desenvolvidas.
Nesse contexto, tomando o lugar deixado pela Retórica, a Estilística surge sob duas
grandes vertentes – a Estilística da língua e a Estilística literária. Seu surgimento ocorre,
sobretudo, graças a dois grandes expoentes que as lideram: Charles Bally (1865-1947) e
Leo Spitzer (1887-1960), respectivamente. Mas essas duas vertentes não são inteiramente
impermeáveis entre si, pois, na prática, esta separação entre a estilística da língua e a esti-
lística literária dificilmente pode ser mantida. Entretanto ela corresponde bem às duas ati-
tudes e às duas tendências da estilística atual. Embora as interseções não deixem bem cla-
ros os limites entres essas duas vertentes da Estilística, tentaremos mostrar aqui as diretri-
zes básicas que norteiam os campos de atuação de cada uma.
76
1.2.1. – A Estilística da língua
Ampliando o campo dos estudos do seu mestre Ferdinand Saussure, iniciador da lin-
güística moderna, Charles Bally em seu Traité de Stylistique Française (1902) concentra-se
no sistema da língua para inicialmente estudar os fatos expressivos da linguagem organiza-
da do ponto de vista do seu conteúdo afetivo. Posteriormente, do conceito de afetividade, o
lingüista evolui para o estudo da expressividade, mais amplo do que o primeiro.
A estilística, como Bally a entende, tem um caráter descritivo, pois põe em evidência
que os efeitos do estilo realizado no discurso pressupõe um sistema expressivo a partir do
qual os ditos efeitos podem ser engendrados. Dessa forma, tudo quanto ultrapassa os limites
puramente referencial da linguagem pertence ao domínio da expressividade – as tonalida-
des emotivas, o ritmo, a simetria, a ênfase, a eufonia, as concordâncias atrativas, as inver-
sões sintáticas etc. e também os ditos elementos evocativos, que situam o estilo com relação
a registros particulares (familiar, formal, vulgar...) ou o associam a uma determinada situa-
ção histórica, social ou cultural.
Tomando como ponto de partida uma análise racional das funções da linguagem e
dando ênfase à função expressiva, desprezada pelo estruturalismo de Saussure, a estilística
descritiva de Bally constitui um estudo das figuras de linguagem, mas o faz em bases mais
científicas e mais sólidas do que a retórica, que se contentava com seu inventário indiscri-
minado; além disso, seus estudos apóiam-se inteiramente na sinonímia e no conceito corre-
lato de variante expressiva. Para Bally, os efeitos estilísticos que emergem no enunciado
procedem de um jogo de oposições lexicais e gramaticais, tais como sumir / desaparecer,
meu filho / filho meu, e seus estudos concentram-se no sistema da língua, procurando de-
monstrar que tais efeitos decorrem das suas possibilidades. Ele propõe que o objeto de es-
tudo da estilística não sejam os efeitos, mas os valores e processos virtuais que tornam pos-
síveis tais efeitos. Dessa maneira, Bally abre espaço para um estudo aprofundado dos recur-
sos estilísticos da língua, examinando-os criteriosamente em cada nível e estabelecendo os
princípios para suas investigações sob três níveis: uma estilística fônica, uma estilística da
palavra e uma estilística sintática, que assim passamos a resumir:
a) A fono-estilística, assim denominada e ampliada em suas perspectivas por Nicolau
Trubetzkoy, tem seu ponto de partida da noção de fonética expressiva desenvolvida por
77
Bally. Sua tarefa é inventariar os procedimentos fônicos que a língua oferece para realçar a
expressividade da linguagem. Incluem-se aqui a entonação, os acentos prosódicos, as varia-
ções ortoépicas, os fenômenos onomatopaicos, as harmonias imitativas, as aliterações e as
assonâncias, ligando tais recursos aos seus efeitos de sentido.
b) A estilística da palavra leva em consideração dois tipos de fatos: os de natureza
morfológica e os de natureza semântica. Na morfologia, os fatores afetivos e expressivos se
manifestam sobretudo no âmbito da sufixação. Na semântica, considera-se a expressividade
das séries sinonímicas e antonímicas, em que o princípio da seleção atua com mais notabi-
lidade. Interessam à estilística os efeitos resultantes da combinação sinonímica numa série
enunciativa em que, pelas escolhas, se exploram as adequações, as acumulações ampliado-
ras e as gradações (clímax e anticlímax), e da contrajunção antonímica em que as escolhas
põem em relevo a noção de contraditoriedade. Mas a imagística – maneira particular de
expressão que tem por efeito substituir a representação precisa de um ser, fato ou situação
por uma alegoria, visão, evocação etc. – será o campo principal da semântica expressiva,
por intermédio dos recursos expressivos do vocabulário: arcaísmos, neologismos, estrangei-
rismos, termos técnicos, gírias etc. Considera-se ainda no campo semântico a utilização
expressiva da ambigüidade, que pode resultar da polissemia, da homonímia ou de uma in-
terseção com a estrutura sintática da frase.
c) A estilística sintática procura seus efeitos nas concordâncias atrativas ou silépticas e
nas combinações regenciais, cujo veio de exploração denuncia os aspectos positivos ou
negativos da afetividade. Mas as questões de colocação constituem o seu mais alto grau de
rendimento expressivo, em conseqüência da alteração de uma ordem natural dos elementos
frasais, através da qual se manifesta o fenômeno da focalização.
É importante ressaltar que a estilística, tal como Bally a concebeu, exclui o estilo lite-
rário de suas investigações, já que, no seu ponto de vista, o escritor sempre emprega a lin-
guagem com uma finalidade estética consciente, e a intenção estética não é nunca uma ma-
nifestação espontânea da língua, o que se afasta das suas cogitações, pois, para Bally, o
campo de observação privilegiado é justamente o da língua materna falada. Mas as pesqui-
sas de Bally se ampliaram com outros lingüistas, entre os quais Marauzeau, Cressot e De-
78
voto, que, sob alguns aspectos se opuseram a ele. Marauzeau, por exemplo, dá à estilística
um enfoque mais individual, deslocando-a do sistema para o nível do discurso. A língua,
segundo ele, é um repertório de possibilidades, um fundo comum posto à disposição dos
usuários que o utilizam conforme suas necessidades de expressão, praticando sua escolha,
ou seja, o estilo, na medida em que lhe permitem as leis da língua. Foi ainda Marauzeau um
dos primeiros a afirmar que a língua falada não é o único nem o melhor campo possível das
investigações da estilística. Assim pensando, o lingüista propõe a elaboração de monografi-
as sobre o estilo dos autores, estudando as marcas e seus procedimentos estilísticos recor-
rentes. Assim, pelas mãos desses lingüistas, as investigações do estilo não tardaram a en-
caminhar-se para o estudo dos textos literários, considerando-os por excelência o domínio
da Estilística, porque nas obras dos escritores literários se acumulam recursos expressivos
tão ricos quanto variados.
1.2.2. – A Estilística literária
Com o advento do idealismo lingüístico, segundo o qual o mundo material, objetivo,
exterior só pode ser compreendido plenamente a partir de sua verdade espiritual, mental ou
subjetiva, cujas perspectivas estão consubstanciadas na obra Karl Vossler – Positivismo e
idealismo na ciência da linguagem (1904) – , abrem-se novas perspectivas para a interpre-
tação crítica dos estilos literários. Vossler levou para os estudos da linguagem as concep-
ções estéticas de Benedetto Croce, filósofo italiano que defende a tese de que arte é intui-
ção, e, na medida em que a uma intuição corresponde sempre uma expressão, arte e expres-
são se confundem, o que integra a língua no domínio da estética geral. Na concepção de
Vossler, o sentimento estético do falante constitui fator determinante para a seleção das
formas lingüísticas, nas quais a noção de gosto infalivelmente atua. Ao afirmar que “pen-
samento idiomático é pensamento poético”, Vossler liga-se às perspectivas de Croce e,
mais remotamente, à proposição de Humboldt, para quem a obra de linguagem é érgon
produto – e energéia – força interna comum ao sujeito falante e à comunidade histórica.
Segundo a visão idealista, os aspectos criativos da linguagem, as inovações expressi-
vas emanantes da imaginação dos falantes constituem fatos de estilo; mas, uma vez incor-
79
poradas à língua comum, elas se esvaziam da intuição que lhes conferiu conformação artís-
tica e são destituídas de sua importância criativa e de seu caráter estético. Isso quer dizer
que, a despeito de as forças criadoras trabalharem a língua nas várias situações e em todos
os níveis do enunciado, é na expressão literária, na conformação estética que tais forças são
encontradas em seu estado mais depurado. Dessa forma, sob a inspiração do idealismo lin-
güístico, a estilística se volta para a pesquisa do estilo da obra literária, considerada agora
como um produto da manifestação artística da linguagem.
Estabelecido o liame entre a lingüística e a literatura, a estilística passa a se interessar
pela depreensão dos recursos estético-expressivos que particularizam a linguagem do escri-
tor. A produção literária é abordada como expressão de uma atividade psico-estética que a
condiciona e lhe dá forma, e o estilo corresponde ao modo original como o escritor lança
mão da língua para traduzir sua visão de mundo, visão essa que é recoberta por uma con-
formação estética da linguagem que a legitima como produto artístico.
A Estilística Idealista
A essa estilística literária inicial, que surge a partir das idéias estéticas de Croce e do
idealismo lingüístico de Vossler, deu-se o nome de Estilística Idealista; ela é ainda conhe-
cida por Estilística genética, por pretender chegar à gênese da obra literária. Pode-se dizer
que a estilística idealista se subdivide em duas vertentes, que não podem ser vistas de forma
estanque: uma de tradição psicologizante, cujo principal representante é Leo Spitzer, e ou-
tra de tradição sociologizante, que tem na figura de Erich Auerbach sua maior expressão.
Segundo a vertente psicológica de Spitzer, a estilística idealista parte de uma reflexão
de cunho psicologista sobre os desvios da linguagem em relação ao uso comum – uma e-
moção, uma alteração do estado psíquico normal provoca um afastamento do uso lingüísti-
co usual. Para o lingüista, qualquer desvio da linguagem usual é indício de um estado de
espírito não-habitual. Isso significa que o estilo do escritor, sua maneira individual de ex-
pressar-se, reflete o seu mundo interior, a sua vivência. Spitzer, como se vê, coloca-se co-
mo um analista da expressão lingüística para desvendar o estado de espírito criador do artis-
ta. Sem recusar a existência de leis imanentes ao sistema lingüístico, o lingüista se interessa
80
principalmente pelas variações expressivas, nas quais se inscrevem as marcas da intencio-
nalidade dos usuários do idioma.
O sistema teórico de Spitzer toma como ponto de partida o axioma de que toda parti-
cularidade psíquica tem seu equivalente numa particularidade idiomática. Então, “a toda
excitação psíquica que se afasta dos hábitos normais de nossa mente corresponde também,
na linguagem, um desvio do uso normal”. Dessa forma, constatando-se a freqüência e a
originalidade de certas formas lingüísticas empregadas pelo escritor, ou seja, o produto – o
érgon –, chega-se à força interna da obra – a enérgeia –, ao que Spitzer denominou o seu
“étimo espiritual”, que permite conhecer, através da originalidade de sua linguagem – o
estilo –, o clima espiritual do autor e sua visão de mundo. Na verdade, o que Spitzer procu-
ra descobrir é uma espécie da harmonia preestabelecida entre a expressão verbal e o todo da
obra poética.
O método adotado por Spitzer abrange três estágios sucessivos. O primeiro consiste
em descobrir, após sucessivas leituras, um elemento particular – um esquema rítmico, uma
imagem poética, um desvio sintático, umtodo de sufixação, enfim uma marca formal –
que lhe dê a pista para a captação do escopo da obra. O segundo estágio será interpretar
essa marca formal em função do psiquismo do autor. No terceiro estágio, o pesquisador
segue caminho inverso, buscando a confirmação desse “étimo espiritual” em outros traços
lingüísticos do texto que convirjam para o mesmo significado central, pois o que se deve
explicar é a obra em seu todo como uma estrutura interna.
Reconhecendo o caráter às vezes por demais subjetivo do seu sistema teórico, centra-
do no psiquismo do autor, Spitzer vai abandonando a explicação do estilo dos autores por
centros afetivos e procura subordinar a análise estilística à explicação de suas obras particu-
lares enquanto organismo poéticos em si mesmos, aproximando-se de uma linha estilística
de feição estruturalista. Na verdade, no que pese às críticas que sobre o método de Spitzer
possam recair, a psicologia para ele jamais consistiu em indagar diretamente a existência
empírica ou os dados biográficos, mas sim a enérgeia, o sentido implicado na obra e mani-
festado por seus constituintes formais diretos.
Para a vertente sociológica de Auerbach, o objetivo da obra é nada menos que a apre-
ensão dos vários modos por que a experiência social dos homens, seja histórica, moral ou
religiosa, tem sido representada em forma literária nas várias fases da cultura ocidental.
81
Assim, ele associa estilo a ideologia, e nessa associação estão intimamente relacionadas
noções de estética e concepções da realidade social, para a qual a obra é o princípio básico.
Auerbach entendeu por estilo um conceito não formalista, preconizando que o estilo é
o próprio modo como o escritor organiza e interpreta o real e estabelecendo, portanto, como
tarefa da estilística, o estudo da semântica ideológica e sociológica que está subjacente a
qualquer estilo.
27
Assim, como bem observa Aguiar e Silva
28
, em vez do nexo entre estilo e
sentimento, que encontramos na teoria spitzeriana, aparece em Auerbach a vinculação entre
estilo e ideologia, entre estilo e concepção da realidade. Nas investigações da obra literária,
Auerbach faz referências a formas lingüísticas socialmente marcadas, classificando-as co-
mo formas idiomáticas altas e baixas, à semelhança da multissecular Roda Virgiliana, ela-
borada pelos retores da baixa latinidade, em que o estilo foi subdividido em três categorias,
de acordo com as classes sociais que o empregavam: humilis styulus – estilos simples, me-
diocrus stylus – estilos médio e gravis stylus – estilo sublime:
29
Isso nos dá a medida exata de como Auerbach concebeu suas cogitações estilísticas.
Para ele, as marcas lingüísticas funcionam como pistas para a captação de um conceito so-
27
AUERBACH, Erich. Mímesis: la realidad em la literatura. México–Buenos Aires: Fonde de Cultura Eco-
nômica, 1950.
28
AGUIAR e SILVA, Victor Manuel. Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1976, p. 629.
29
Apud GIRAUD, Pierre. Op. cit., p. 26.
82
cial esteticamente convertido. Parece ficar claro que, na sua concepção, estilo é uma pala-
vra que recobre uma pluralidade de fatos e se refere desde ao uso de certas palavras social-
mente marcadas até a conceitos como trágico, cômico, sublime, complexo etc. Assim, o
estilo de uma obra, segundo ele, está relacionado com a concepção de mundo e de uma é-
poca captada pelo autor, que, se necessário, multiplica personagens e situações, e introduz
elementos da natureza, para expressar a concepção global do homem e da realidade.
A proposta de Auerbach é delimitar, em cada caso, a visão específica que cada autor
tem da realidade, e os meios de que se utiliza para representá-la. Assim, ele considera todos
os elementos de que o autor se serve para representar o mundo social. Dessa forma, os fato-
res inerentes à temporalidade, à natureza, o posicionamento dos personagens, a postura do
narrador, a apreensão psicológica, os aspectos históricos e sociais e tudo mais que esteja
lingüisticamente marcado na obra constitui estilo para Auerbach. A esse conjunto de ele-
mentos Auerbach chama de “quadro estilístico”, revelando que, a seu ver, o estilo tem me-
nos a ver com a língua do que com os elementos que compõe a totalidade da obra, e sua
conexão está ligada à forma de relação estabelecida entre autor e leitor.
Além de Spitzer e Auerbach, cujos trabalhos se definem principalmente pelas linhas
psicológica e sociológica, respectivamente, outros nomes têm grande importância no estudo
da estilística literária. Dentre eles, citamos Helmut Hatzfeld, Dámaso Alonso e Amado
Alonso, que, ainda na linha de uma estilística idealista, desenvolveram estudos de conside-
rável valor para a crítica literária.
Hatzfeld, um dos primeiros discípulos de Vossler, desenvolve uma obra de investiga-
ção estilística que ora se volta para o estudo de um texto literário (El Quijote como obra de
arte del lenguaje), ora para um estilo de época (Estudios sobre el Barroco), ora para uma
área temática (Estudios literarios sobre mística española), contribuindo para o desenvolvi-
mento da estilística no âmbito da crítica literária, como na Bibliografia crítica de la nueva
estilística, aplicada a las literaturas românicas, obra de consulta valiosa.
Ligados à escola de filologia espanhola, sob a orientação de Ramón Menéndez Pidal,
Dámaso Alonso e Amado Alonso desenvolvem uma concepção estilística que tem por tare-
fa dar uma interpretação semântica do estilo literário. Estabelecendo uma constante relação
entre a forma e a significação em todos os planos, reivindicam a motivação do signo literá-
83
rio, em detrimento da sua arbitrariedade. Assim, o inter-relacionamento de estruturas signi-
ficantes converge para a atualização de um motivo base, de forma única e insubstituível.
Dámaso Alonso amplia o conceito saussuriano de significante e significado, trans-
pondo os limites estritamente frásicos e passando a um nível transfrásico de definição. Para
ele, o significante não é apenas a “imagem acústica”, mas o som físico também, e o signifi-
cado vai além de um mero conceito, pois comporta uma complexa carga psíquica que pode
incluir emoção, afetividade, volição, intencionalidade, imaginação. A obra poética se apre-
senta como uma sucessão temporal de sons (os significantes) vinculada a um conteúdo es-
piritual (o significado). O lingüista considera que um verso, uma estrofe, um poema, ou
parte deles, são outros tantos “significantes”, cada um com seu especial “significado”, e
defende que em poesia há sempre uma vinculação motivada entre significante e significado,
pois “o ponto central da mira de toda investigação que queira ser peculiarmente estilística
(e não vagar pelos arredores) é esse momento de plasmação interna do ‘significado’ e o
imediato de ajuste num ‘significante’”. A seu ver, o conceitual é inseparável do afetivo e do
sensorial, no âmbito do significado amplo veiculado pelo significante, e os elementos ima-
ginativos adquirem decisiva importância na linguagem literária, sobretudo no verso.
Amado Alonso não toma posição muito distinta da do seu meio homônimo. Para ele,
a tarefa da estilística literária consiste em examinar como é constituída a obra literária e
considerar o valor estético que ela provoca no leitor. Assim sendo, o que interessa à Estilís-
tica Literária é a natureza poética do texto. Traços lingüísticos, assim como a visão de
mundo do autor, os dados históricos, ideológicos, psicológicos, sociológicos, geográficos,
folclóricos, etc., tudo se inscreve no valor estético da obra. Esta, afinal, está impregnada do
próprio prazer do autor ao criá-la, o que vai suscitar no leitor um prazer correspondente ao
recebê-la. Cabe, então, à Estilística, segundo o lingüista, procurar os meios mais adequados
para fazer estudos rigorosos do fenômeno poético.
Não é difícil perceber que Amado e Dámaso Alonso (não aparentados) têm posições
bem próximas, pois concebem a questão do estilo como algo que abrange, além da manifes-
tação da linguagem, o imaginativo, o afetivo e o conceitual. Na compreensão de ambos,
posição aliás bastante impressionista, toda obra literária encerra um mistério e sua compre-
ensão depende basicamente da intuição, de uma “feliz idéia”, “de um afortunado salto de
intuição”, como diz Dámaso. A obra literária, para eles, caracteriza-se pela unicidade, por
84
ser um cosmo, um universo fechado em si, e permite inclusive ser estudada cientificamente
a partir dos elementos significativos presentes na linguagem. O que se verifica, então, é
uma síntese das tendências que os precederam, às quais se acrescentam os prenúncios de
certos aspectos da Estilística estrutural moderna ou da Semiótica literária. A Bally, estão
ligados pela concepção dos elementos afetivos, imaginativos e valorativos; a Spitzer, pela
compreensão do estilo como revelação do homem; ao estruturalismo, pela preocupação
com o modo de construção da obra; à Semiótica, ligam-se pela distinção entre signo – refe-
rência lógico-intencional ao objeto – e indício – expressão, sugestão da realidade psíquica.
A Estilística funcional e estrutural
Em meados do século XX, a Estilística, ainda que com outra denominação, se de-
senvolve, em grande parte, baseada no funcionalismo lingüístico – teoria segundo a qual os
elementos de uma língua são analisados e descritos do ponto de vista de sua função no ato
da comunicação. Daí o rótulo de Estilística funcional, na qual entram as considerações so-
bre as funções da linguagem desenvolvidas pela Escola de Praga. Rejeitando os termos esti-
lística e estilo, por considerá-los demasiado imprecisos e prejudicados pela indiscriminação
do seu uso, Roman Jakobson os substituiu por poética e função poética, respectivamente.
Na visão de Jakobson, o objeto da Poética é esclarecer o que faz da mensagem verbal uma
obra de arte; estabelecer a distinção entre o que é lingüisticamente artístico e o que não é.
Para Jakobson, a Poética é uma parte da lingüística, pois se ocupa de estruturas lingüísticas
como objeto de investigação. Mas sob quais aspectos se distinguem o objeto da poética e
objeto da lingüística pura? Essa questão nos leva a pensar em uma língua poética.
A noção de língua poética em verdade vem sendo elaborada desde a Antigüidade,
mas só foi retomada pela lingüística contemporânea a partir das pesquisas dos formalistas
russos, destacando-se a respeito as proposições de Jakobson. Ao ampliar a teoria da funções
da linguagem de Bühler, Jakobson afirma que a língua poética não é apenas “algo a mais”
com relação à língua corrente, “um ornamento retórico (...) mas ela implica, em verdade,
uma reavaliação total do discurso e de todos os seus componentes”.
85
Quando Jakobson aborda sistematicamente a função que ele denominou poética, co-
meça por situá-la entre as demais funções da linguagem. Embora haja numerosas interfe-
rências num texto, dependendo da sua extensão, cada função da linguagem manifesta-se no
discurso por traços característicos, e o critério que permite que a função poética seja empi-
ricamente reconhecida é rigorosamente formulado por Jakobson: “a função poética projeta
o princípio de equivalência do eixo da seleção sobre o de combinação”. Isso significa que o
processo de seleção do paradigma é realizado visando a provocar na estrutura da frase um
efeito de estranhamento com relação ao grau de normalidade. Interpretamos que a equiva-
lência formal, que é própria dos paradigmas da língua, é transposta para o eixo sintagmático
– manifestação enunciada do discurso – o qual é comumente constituído de elementos de
natureza diferente; por exemplo, um sintagma verbal constituído por verbo-substantivo-
advérbio, cujos elementos têm número de sílabas e acentuação geralmente diferente (Com-
pramos pão calmamente). Roman Jakobson dá como exemplo de equivalência na seqüência
a célebre frase de César: “Veni, vidi, vici.” E explica: “É a simetria dos três verbos dissíla-
bos, com consoante inicial e a vogal final idênticas, que dá esplendor à mensagem lacônica
da vitória de César”.
Visualizemos o gráfico:
paradigma sintagma
veni
vidi ▬► veni, vidi, vici.
vici
Operando com essa projeção, Jakobson entra na estrutura da frase e do texto, daí uma
Estilística estrutural, e alerta para o fato de que, na função poética, a palavra é percebida na
sua condição de palavra e não como mandatária do seu objeto referente. Jakobson estabele-
ce a essência da “literariedade” a partir de uma acurada análise do instrumento utilizado
pelo escritor – a linguagem –, esforçando-se sobretudo por distinguir cuidadosamente lin-
guagem poética de linguagem corrente, e também da linguagem emotiva, com a qual a lin-
guagem poética era freqüentemente confundida e erroneamente identificada. Na função
poética, a palavra é percebida na sua condição de palavra e não como mandatária do seu
86
objeto referente. Seu caráter reside mesmo no fato de que, nela, as palavras e o seu arranjo,
o seu sentido, a sua forma interna e externa adquirem peso e valor por si mesmos.
Entre linguagem corrente e linguagem poética, abre-se um interstício significativo.
Enquanto a linguagem comum tende ao emprego de expressões culturalmente padroniza-
das, percebidas pela automatização psíquica, a linguagem poética, centrada no próprio sig-
no, se caracteriza pela atualização dos procedimentos lingüísticos, ou seja, pela desautoma-
tização psíquica, obtida pela deformação consciente dos esquemas lingüísticos convencio-
nais. A língua poética é uma língua funcional que se opõe essencialmente à língua de co-
municação, diante da qual ela se constitui, seja pela sua forma inusitada, seja pelo seu cará-
ter autotélico, que proclama o esvaziamento das funções pragmáticas.
A atualização dos procedimentos lingüísticos – desautomatização – deve ser analisa-
da e distinguida sob dois aspectos: o primeiro está na deformação da língua-padrão; o se-
gundo encontra-se na deformação do modelo poético do período cultural antecedente. Isso
porque a explicação da estrutura lingüística de uma obra literária só pode encontrar suas
bases concretas na conjugação de uma análise sincrônica da língua e de uma análise diacrô-
nica da evolução dos modelos literários. A estrutura lingüística da obra de arte é parte inte-
grante de sua estrutura total, constituída por um nível temático e um nível ideológico. São,
portanto, isomorfos o plano formal e o plano semântico, e a estrutura lingüística reproduz
em seus traços a estrutura total da obra de arte. Afinal de contas, também o funcionalismo
da linguagem poética pressupõe um método de análise e de descrição das unidades lingüís-
ticas que visa definir o papel por estas desempenhado no ato da comunicação.
Embora não seja inteiramente nova a distinção entre automatização e atualização
para a consideração dos problemas estilísticos, não se pode negar, pelo método formalista, a
contribuição da Escola de Praga na legitimação do tratamento lingüístico dos fatores estilís-
ticos. A partir dela, novos caminhos se abrem na investigação do tratamento lingüístico
dispensado à linguagem poética. Manfred Bierwisch, semanticista ligado à corrente da
Gramática Gerativa, propõe a aplicação dos métodos chomskyanos ao estudo da língua
poética. Afirma ele que, se o objeto da poética são as regularidades particulares que se rea-
lizam nos textos literários e que determinam os seus efeitos específicos, a possibilidade que
87
tem o ser humano de produzir tais estruturas e compreender-lhes os efeitos corresponde ao
que se pode chamar competência poética.
30
Num parêntese, lembramos que a pertinência de estabelecer uma relação entre as
gramáticas gerativas e a Poética também foi considerada por Chomsky. Uma gramática
gerativa é uma “máquina” que simula a atividade lingüística do cérebro humano. As agra-
maticalidades, isto é, os desvios com relação a um sistema de regras das frases engendradas
pela gramática gerativa, podem ser consideradas como resultado de modificações processa-
das na atividade desta máquina e, segundo Chomsky, no artigo Introdução à análise formal
das línguas naturais, a gramática gerativa deve estar apta a estender o seu poder explicativo
às frases que ela não engendra, mas que utilizam o vocabulário das frases corretas. Isso
pressupõe que para a gramática gerativa o estilo deriva em boa parte de um modo caracte-
rístico de utilizar o aparelho transformacional de uma língua. Mas, mesmo nesse caso, o
que acaba sendo levado em consideração é o formalismo, uma vez que uma investigação
estilística não deve se limitar à construção de um modelo revelador da estrutura profunda,
pois, com relação a esta, o que é visto pelo lingüista como redundante – a estrutura superfi-
cial – é, no texto literário, o mais importante. Assim, o trabalho do estilista se situa ao nível
das regras de transformações, mas o domínio em que ele concentradamente opera é o das
estruturas superficiais das frases, onde se tece a trama e a carne do discurso literário, onde,
por um processo de seleção e escolha, o eixo paradigmático projeta sua equivalência no
eixo sintagmático, no qual se percebe, por um processo de atualização, a deformação de um
sistema de linguagem culturalmente padronizado.
Uma questão que não deve ser desprezada na constituição do estilo poético é a noção
de gênero, da qual trataremos oportunamente nos capítulos de Enunciação e texto poético.
Tão antiga quanto à de língua poética, a noção de gênero manifesta-se hoje como indispen-
sável para a análise estilístico-literária. Se estilo pressupõe escolha, seleção de variantes em
detrimento de outras variantes que exprimam a mesma idéia, é preciso ficar claro que esta
escolha do modo de expressão está condicionada por um outra escolha anterior, que é a do
gênero do discurso. Ao escolher o gênero do discurso sobre o qual vai atuar, obriga-se o
estilista ao exame dos recursos expressivos que estarão à sua disposição, determinados den-
tro dos limites do gênero discursivo escolhido.
30
BIERVISCH, Manfred. Poetik und Linguistik. Apud Enciclopédia Mirador Internacional. São Paulo/Rio
de Janeiro: Enciclopaedya Britannica do Brasil Publicações Ltda, 1995. p. 4223.
88
As prescrições que envolvem a categoria de gênero discursivo evidentemente nos
conduzem à noção de texto, também levada em conta pela estilística contemporânea. Defi-
nido como um objeto estruturalmente finito, tessitura na qual o estilo surge como uma rede
de relações que cruza a cadeia do discurso linear, o texto literário está duplamente submeti-
do às estruturas lingüísticas: de um lado, é manifestação de uma língua natural; de outro,
ele se constitui, por si mesmo, numa linguagem. O texto literário é, portanto, uma lingua-
gem de conotação tal como foi definida por Hjelmslev, uma linguagem na qual um dos pla-
nos, o da expressão, é uma língua natural. Assim, os fatos de estilo acabaram se impondo à
idéia da imanência ao texto.
Essa idéia da imanência textual se manifesta ainda de forma implícita nas teorias de
Jakobson e se declara mais explicitamente nos postulados da Escola de Praga. Mas é, con-
tudo, nos postulados teóricos da estilística estrutural de Michael Riffaterre que tal idéia
encontra sua força plena. Para Riffaterre, os fatos estilísticos distinguem-se dos puramente
lingüísticos; então, proclamando a imanência dos fatos de estilo, ele refuta simultaneamente
toda possibilidade de que estes sejam definidos em função de uma norma exterior à mensa-
gem
31
, porque, segundo ele, uma análise puramente lingüística não está apta a discernir
quais sejam as estruturas que desempenham uma função estilística, entre os elementos de
uma seqüência. Paralelamente, os fatos de estilo são sempre portadores de uma carga ex-
pressiva, de uma ênfase que orienta a atenção do receptor-leitor, não para a significação do
enunciado, mas para a atitude do falante com relação ao que comunica. Diante disso, a tare-
fa da estilística é, segundo Riffaterre, o estudo da linguagem do ponto de vista do receptor,
uma vez que suas reações e hipóteses, com relação às intenções do emissor da mensagem,
são respostas aos estímulos codificados na seqüência verbal. Estamos, pois, na confluência
de conceitos que envolvem estrutura e função, caracterizadores dos caminhos dessa corren-
te estilística denominada por alguns como Estilística funcional e estrutural, que tem na sua
base a imanência textual.
O modelo estilístico de Spitzer ressalta a relação entre um traço determinante do dis-
curso e uma disposição do espírito. Procurando afastar-se do subjetivismo de que acusava a
estilística idealista e obter, então, um máximo de objetividade e exaustividade na depreen-
são dos elementos estilisticamente pertinentes, Riffaterre recorre ao conceito de arquileitor,
31
RIFFATERRE, Michael. Estilística Estrutural. São Paulo: Cultrix, 1971.
89
que inicialmente denominou “leitor médio”. Ele postula que o arquileitor constitui uma
soma de leituras – informantes, críticos literários, traduções, citações de dicionários –, tes-
temunhos reunidos que não se distribuem aleatoriamente: convergem para os pontos nodais
do texto. Assim, o conceito de arquileitor está atrelado a um levantamento trans-histórico
transideológico e só conta por aquilo que é componente textual, evitando, então, a subjeti-
vidade que naturalmente emana do leitor comum.
A despeito das críticas que se possam fazer às proposições de Riffaterre, é preciso
reconhecer que a sua obra constitui um dos mais significativos esforços para fundar o esta-
tuto científico da estilística. Ele procura conferir ao estudo do estilo um caráter palpável, a
partir de dados estruturais que se manifestam na esfera textual. Isso traz o estudo da Estilís-
tica para um âmbito exclusivamente lingüístico, porque tem nas construções lingüísticas do
texto o seu objeto de análise.
1.2.3. – O Contexto Estilístico
Tradicionalmente, a noção de estilo é definida a partir de um desvio da norma. Exa-
minando essas concepções, Michael Riffaterre modifica a proposição tradicional, situando
esse desvio não mais sobre o eixo paradigmático. O desvio, que seria o produto de uma
oposição a uma norma exterior ao texto, passa a ser, na concepção de Riffaterre, sobre o
eixo sintagmático. Segundo o lingüista, o desvio resulta de um contraste contextual, que
tem lugar única e exclusivamente na esfera do texto.
32
Dessa maneira, refutando a noção de
subjetividade e dando à Estilística uma consideração científica, pretende-se analisar a utili-
zação literária da língua. Para tanto, substitui-se a noção de norma geral pela de contexto
estilístico, abordando os processos estilísticos em relação a tal contexto. Assim, o escritor
chama a atenção para certos elementos formais com função estética, estudando os proces-
sos estilísticos no âmbito do texto, o que torna a “intenção” um elemento insuficiente para a
análise textual. Para Riffaterre, o que se deve considerar é a baixa previsibilidade a partir
dos elementos marcados em oposição aos elementos não-marcados, em que cada fato de
estilo compreende um contexto e um contraste, considerados como indissociáveis. O con-
32
RIFFATERRE, Michael. Op. cit.
90
texto é concebido por Riffaterre como um “pattern lingüístico corrompido por um elemento
que é imprevisível”. O efeito estilístico, emerge, portanto, por contraste, do fundo do con-
texto e cria uma estrutura bipolar de elemento textual marcado e não-marcado.
Para Riffterre a definição de estilo como entidade oposta à língua constitui uma dico-
tomia artificial. Negando a pertinência estilística do sistema, ele considera a Estilística um
estudo de exclusividade da mensagem, pois, na sua perspectiva, o estilo é fato resultante da
sua forma e apóia-se sobre um dupla série de procedimentos: uns de convergência e outros
de contraste. A convergência é uma acumulação de traços estilísticos na qual, em conjunto,
cada processo estilístico acrescenta sua expressividade à dos outros. A convergência dimi-
nui o limite da perceptividade do processo estilístico devido à sua natureza cumulativa. Ela
pode funcionar como um contexto semântico, limitando a polissemia da palavra no ambien-
te lingüístico em que atua. Sendo uma forma estilística complexa, a convergência pode ser
fator estilístico que garante a preservação do sistema codificado do poema. O contraste, por
sua vez, decorre de um jogo de oposição de signos. Os signos não têm valor absoluto; seu
valor resulta de uma oposição no contato com outros signos em uma atmosfera contextual,
e somente no contexto se atualiza seu valor expressivo, que recai sobre o leitor.
Propondo substituir a noção de norma geral pela de contexto estilístico e estudar os
processos estilísticos em relação a tal contexto, Riffaterre postula que o contexto é insepa-
rável por definição do processo estilístico e justifica sua teoria. O lingüista argumenta que,
em primeiro lugar, o contexto é automaticamente pertinente (o que não é necessariamente
verdadeiro em relação à norma); em segundo, é imediatamente acessível por ser codificado,
de modo que não se precisa recorrer a uma vaga e subjetiva consciência do valor histórico
do signo, percebido pelo leitor, no processo de recepção da obra; em terceiro, é variável e
forma uma série de contrastes com os processos estilísticos sucessivos. Essa variabilidade
explica por que uma unidade lingüística adquire, modifica ou perde seu efeito estilístico em
função de sua posição, por que cada desvio da norma não é necessariamente um fato esti-
lístico e por que efeito estilístico não implica a rigor um desvio da norma.
33
Considerando
que a intensificação estilística resulta da inserção de um elemento inesperadamente intro-
duzido num pattern, ela supõe um efeito de ruptura que transforma o contexto, introduzin-
do uma diferença essencial entre a acepção corrente de “contexto” e contexto estilístico.
33
Idem, ibidem, p. 62.
91
A ruptura, segundo a teoria do contexto estilístico, não deve ser interpretada como um
princípio de dissociação. Isto porque o valor estilístico do contraste reside no sistema de
relações que ele estabelece entre os dois elementos que contextualmente se confrontam. Por
esse prisma, nenhum efeito de estilo seria produzido fora desse sistema de relações, ou seja,
sem a associação de ambos numa seqüência, porque do mesmo modo que outras oposições
úteis na língua, os contrastes estilísticos acabam por criar um sistema de estruturas. Este
princípio de contrastes possibilita a emanação de uma pontuação estilística, pois, exami-
nando mais de perto o contexto estilístico, percebemos que a formação do pattern que con-
diciona a surpresa do leitor segue necessariamente a progressão das seqüências e é percebi-
do pelo processo de saturação das incidências estilísticas.
Sob essa ótica, a intensificação estilística resulta da inscrição de um elemento inespe-
rado num pattern. Assim, o contexto estilístico apóia-se na imprevisibilidade, que resulta
num estímulo estilístico, obedecendo a uma equação que consiste na seguinte fórmula:
contexto + contraste = processo estilístico
De acordo com essa visão, palavras e expressões comuns podem gerar um efeito esti-
lístico num ambiente estilisticamente marcado. Isso se dá pela saturação estilística do con-
texto, que ocorre por conta das seqüências estilizadas, saturação esta que anula o efeito da
novidade, eliminando o fator surpresa e criando no leitor um sentimento de previsibilidade.
Isso significa que a surpresa do leitor resulta da imprevisibilidade na progressão das se-
qüências, dentro de um vetor textual, tal como neste texto de Drummond:
Cabaré mineiro
A dançarina espanhola de Montes Claros
dança e redança na sala mestiça.
Cem olhos morenos estão despindo
seu corpo gordo picado de mosquito.
Tem um sinal de bala na coxa direita,
o riso postiço de um dente de ouro,
mas é linda, linda, gorda e satisfeita.
Como rebola as nádegas amarelas!
Cem olhos brasileiros estão seguindo
o balanço doce e mole de suas tetas...
92
É de se notar no poema o conjunto das construções estilisticamente marcadas que se
manifestam sob vários aspectos no decorrer da seqüência dos seus versos: o neologismo em
dança e redança”, a seqüência de hipálages metonímicas que se conforma nos sintagmas
sala mestiça” e “olhos morenos” criam um contexto estilístico sobre o qual opera o con-
traste introduzido pela imprevisibilidade das expressões comuns dos versos seguintes: “seu
corpo gordo picado de mosquito. / Tem um sinal de bala na coxa direita”, que inesperada-
mente criam um processo estilístico, surpreendendo o leitor. O mesmo se pode dizer de
mas é linda, linda, gorda e satisfeita. / Como rebola as nádegas amarelas!” que surgem
imediatamente após a construção estilisticamente marcada pela hipálage no verso “o riso
postiço de um dente de ouro”.
Da mesma forma, em um contexto caracterizado pela não-gramaticalidade, é a grama-
ticalidade que no texto soa como uma construção anormal, sendo ela, portanto, o elemento
imediatamente gerador do contraste com o qual se opera o processo estilístico, como ocorre
neste poema de Oswald de Andrade, em que o último verso contrasta com os demais, esta-
belecendo formalmente os limites do diálogo e da expressão do enunciador.
O capoeira
— Qué apanhá sordado?
— O quê?
— Qué apanhá?
Pernas e cabeças na calçada
Segundo a teoria do contexto estilístico, é a percepção do contraste que isola na se-
qüência verbal os elementos em relação aos quais ele se produz, conferindo-lhes o papel de
contexto. Dessa forma, é sua violação que identifica a regra, é pela anomalia que se reco-
nhece a norma, e pela ruptura que se que se percebe o pattern. Certos efeitos estéticos que
emergem no texto poético devem-se apenas ao contraste estilístico que se estabelece muitas
vezes pela ruptura do padrão lingüístico contextualmente determinado no universo poético,
pois o fato estilístico é a variante de um modelo oferecido pelo próprio texto. Num contexto
natural de uma língua literária, o emprego de uma determinada expressão lingüisticamente
cristalizada em outro contexto pode surtir expressivo efeito estilístico, como neste poema
de Quintana:
93
De gramática e de linguagem
E havia uma gramática que dizia assim:
“Substantivo (concreto) é tudo quanto indica
Pessoa, animal ou cousa. João, sabiá, caneta”.
Eu gosto é das cousas. As cousas, sim!...
As pessoas atrapalham. Estão em toda parte. Multiplicam-se em excesso.
As cousas são quietas, Bastam-se. Não se metem com ninguém.
Uma pedra, um armário, Um ovo. (Ovo nem sempre,
Ovo pode estar choco: é inquietante...)
As cousas vivem metidas com as suas cousas.
E não exigem nada.
Apenas que não as tirem do lugar onde estão.
E João pode neste mesmo instante vir bater à nossa porta.
Para quê? não importa: João vem!
E há de estar triste ou alegre, reticente ou falastrão,
Amigo ou adverso... João só será definitivo
Quando esticar a canela. Morre, João...
Mas bom mesmo são os adjetivos,
Os puros adjetivos isentos de qualquer objeto
Verde. Macio. Áspero. Rente. Escuro. Luminoso.
Sonoro. Lento. Eu sonho
Com uma linguagem composta unicamente de adjetivos
Como decerto é a linguagem das plantas e dos animais.
Ainda mais:
Eu sonho com um poema
Cujas palavras sumarentas escorram
Como a polpa de um fruto maduro em tua boca,
Um poema que te mate de amor
Antes mesmo que tu lhe saibas o mistério sentido:
Basta provares o seu gosto...
A expressão coloquial “Quando esticar a canela” constitui a ruptura de um pattern
concebido textualmente por uma linguagemnobre”, provocando um efeito estilístico.
94
A extensão do contexto estilístico é variável, podendo limitar-se a uma única unidade
lingüística. O importante é que sua função estrutural seja vista como pólo de um grupo bi-
nário, cujos componentes se opõem um ao outro, sem os quais nenhum efeito estilístico se
produz. A partir daí, pode haver uma superposição de unidades estilísticas, em que a fórmu-
la contexto estilístico + processo estilístico pode gerar um novo pattern. Isso significa que
cada processo estilístico funciona como um novo contexto para outro processo estilístico
que vem imediatamente após. A partir daí, engendram-se novos efeitos estilísticos: pode-se
recompor o padrão contextual anterior, como acontece no poema de Quintana, em que, após
a coloquialidade expressiva do verso “Quando esticar a canela. Morre, João...”, retoma-se
o padrão respeitoso tradicionalmente empregado na linguagem da poesia, ou podem-se in-
troduzir novas incidências estilísticas alicerçadas no novo contexto, como nesse poemeto de
Cineas Santos:
O amor bate à porta
e tudo é festa.
O amor bate a porta
e nada resta.
,
em que a substituição do adjunto adverbial “à porta”, no primeiro verso, pelo complemen-
to verbal “a porta”, no terceiro verso, cria o efeito estilístico promovido pela substituição
contrastante da oração “e tudo é festa” pela oração “e nada resta”, na caracterização do
início e do término do relacionamento amoroso.
Mas para a compreensão total do contexto estilístico, é necessário que se leve em con-
sideração a atividade da retroação. O sentido que Riffaterre dá à retroação, e nós assumi-
mos aqui, justifica-se pelo aspecto acumulativo da totalidade da leitura: “é o que se lê que
vai agir sobre o que se leu”. A previsibilidade, então, é apreendida a posteriori pelo próprio
inesperado do texto. Assim, qualquer percepção de relações entre dois ou mais elementos
do texto ocorre necessariamente após a percepção dos elementos subseqüentes, e não ante-
cipadamente, desde a decifração do primeiro. A exceção desse processo se dá quando uma
convenção prévia indica que o primeiro elemento é marco de orientação de uma série, co-
mo é o caso da convenção da rima, que cria no leitor uma expectativa da recorrência de
certos finais de verso desde o primeiro verso de uma seqüência.
95
Pelo que se vê, a retroação passa, necessariamente, por um processo de recategoriza-
ção de elementos anteriormente citados, que, muitas vezes, de expressões lingüísticas usu-
ais, passam posteriormente a expressões lingüisticamente estilizadas e metaforizadas. Isso
nos conduz a uma retomada mental de tais elementos, com uma valorização diferente, que
encontra suas bases de significação na lembrança das seqüências precedentes.
Vejamos o poema abaixo:
Uma hora e mais outra
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palpitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.
E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
é noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente noite.
Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.
De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdermos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras; que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou; não nos diluímos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
(Carlos Drummond de Andrade)
96
Neste poema de Drummond, a “noite” é apresentada não simplesmente como uma
ocorrência da natureza, mas como um estado de letargia existencial. Essa percepção, entre-
tanto, só é processada na progressão da leitura. Inicialmente, o primeiro verso do poema, “É
noite. Sinto que é noite”, nada nos diz disso. A concepção metafórica da “noite” só é apre-
endida no percurso do texto, quando “o grito / se calou, fez-se desânimo”. Na seqüência
textual, a “noite” torna-se um fenômeno interior, em “Sinto que nós somos noite”, confir-
mado pela dissolução do efeito da “sombra”, nas vias de uma interrogação retórica angusti-
ante – “E que adianta uma lâmpada?” –, que encontra suas bases semânticas no verso “não
porque a sombra descesse”. Na esteira de nova interrogação retórica que amplifica o senti-
mento de angústia, abre-se caminho para a constatação da nulidade existencial – “E que
adianta uma voz?” –, que atinge sua totalidade no encerramento do primeiro movimento do
poema – “é perfeitamente noite”. Todos esses fatores, por um processo de retroação, nos
obrigam a rever o sentido de “É noite.”, no início do poema.
No segundo movimento do poema (3ª estrofe), o “dia que surge” também ultrapassa o
sentido do aspecto meramente natural. Na progressão das seqüências textuais, ele metafori-
za um novo estado de ser, é o momento em que “os corpos saltam do sono”, o momento em
que “o mundo se recompõe”; mas é, sobretudo, um estado existencial de revivescência, a
restauração da vida, denunciada em “Amar: mesmo nas canções”, “o tempo / não mur-
chou; não nos diluímos!” e “Chupar o gosto do dia!”, porque, afinal, “o essencial é viver!”.
Aqui, mais uma vez, pela retroação, recategoriza-se “o dia que surge” e, por extensão, “o
sono”, que, a posteriori, é metaforizado como um estado de letargia existencial do sujeito
poético.
Como se vê, no conceito de retroação, o sentido e o valor de certos fatos de estilo já
decifrados são modificados retrospectivamente pelo que o leitor descobre, na progressão da
leitura. Isso se estende ao recurso da repetição, em que a palavra repetida é realçada, for-
mando contraste com as palavras de seu contexto que não são marcadas como ela por uma
relação de identidade com um “protótipo” (1ª ocorrência da palavra). No poema acima de
Drummond, a repetição do sintagma “É noite” constitui um fator que vai modificando a
relevância do que já foi anteriormente dito, fazendo com que o protótipo, que não foi inici-
almente notado, ou o foi por razões distintas, imponha-se novamente ao leitor com uma
valorização diferente.
97
Como um texto, poético ou não, é muito mais que a soma das suas partes, estendemos
o conceito de retroação a contextos mais amplos, desenvolvendo uma análise contextual a
partir da relação que se estabelece entre blocos semânticos de maior extensão. O que inte-
ressa agora é compreender a dialética entre as partes do universo do texto poético, ou seja, a
influência recíproca que um provoca sobre o outro. O segundo movimento do poema confi-
gura-se por contraste semântico em relação ao contexto do primeiro. Se, no primeiro mo-
vimento, o discurso poético constrói um universo existencialmente fechado, no segundo,
apresenta expressões lingüísticas cujo valor semântico são inversamente proporcionais,
constituindo um jogo de contrastes, em parte assim representado:
1º movimento 2º movimento
em noite nos dissolvemos x não nos diluímos
É noite no meu amigo x A fraterna entrega do pão
sinto que nós somos noite x Chupar o gosto do dia
que adianta uma lâmpada? x olhar de alegria
perfeitamente noite x clara manhã
etc.
Essa estrutura de contrastes estabelece uma dialética cuja síntese é a evocação das
diferentes faces da existência humana, constrda no vetor textual, através de um jogo de
prospecção e retrospecção entre os movimentos poéticos do texto. A partir desse jogo, con-
siderando a atividade da retroação, ambos os blocos semânticos significam mais do que
significavam isoladamente, pois o que se lê modifica o sentido do que já foi lido e vice-
versa, promovendo uma reavaliação do contraste estabelecido entre ambos.
Percebe-se que, segundo a teoria do contexto estilístico, o sentido poético se constrói
pelo contraste entre os pólos das estruturas binárias, num processo dialético em que um não
significa fora da relação estabelecida com o outro. Isso nos mostra a medida exata de como
o contexto estilístico tem uma extensão limitada pela lembrança do que se acabou de ler, e
98
esta limitação se dá pela percepção do que se está lendo. É preciso lembrar, contudo, que
todo o processo de avaliação do texto ocorreu no interior da sua estrutura, sem que fosse
preciso recorrer ao desvio da norma, como tradicionalmente se costuma fazer.
Sabemos que, no caso dos elementos que rompem o pattern do sistema, a manifesta-
ção estilística atua essencialmente nos limites do código. Nessas circunstâncias, a gênese
das formações mais freqüentes deve ser atribuída a um conjunto amplo de substituições
possíveis: em vez de elementos de maior previsibilidade, empregam-se termos estranhos ao
estado natural da língua – neologismos, arcaísmos, empréstimos, etc. – ou, então, elementos
de uma categoria gramatical diferente da que é permitida pela estrutura da frase – perífrase
em vez de uma só palavra, substantivo, quando o adjetivo seria o elemento de maior proba-
bilidade de ocorrência, etc. No entanto, como vimos, só essas formações não bastam para
esclarecer a bipolaridade dos contrastes estilísticos, já que podem ser anulados à medida
que saturem um contexto, tornando-se demasiadamente previsíveis, criando um pattern
particular, fornecido pelo contexto.
Mas há um fator que não se pode deixar de considerar. Muitas vezes o texto não cria
um contexto estilístico sobre o qual ocorre o contraste, em conseqüência de sua curta exten-
são. Isso acontece porque certos textos como o haicai, o monóstico ou o dístico, por exem-
plo, são tão curtos que não têm espaço para formar o pattern contextual restrito, que forma
a base do processo estilístico, não produzindo, portanto, a saturação estilística. Nesse caso,
somos obrigados a recorrer à oposição entre o texto e a norma lingüística, que funciona
como um pattern amplo para o desvio que aquele imediatamente promove. Nesse caso, o
pattern é incerto e livre, visto que as probabilidades de ocorrência estão limitadas pela es-
trutura gramatical e não apenas por um contexto específico criado na esfera textual. Em tal
circunstância, tende-se a identificar o contexto com a idéia empírica que se tem da norma.
Tomemos alguns exemplos:
Longo da linha
Coqueiros
Aos dois
Aos três
Aos grupos
Altos
Baixos
(Oswald de Andrade)
99
O texto chama atenção pela forma e não pela sua dimensão referencial. Nesse poema
de feições pré-concretistas, o título funciona como parte integrante e vetor do poema, e a
linguagem funciona com a precisão de uma lente objetiva cinematográfica, como se captas-
se a paisagem vista da janela numa viagem por uma linha férrea. A norma do código lin-
güístico é rompida pela disposição das palavras no texto, que promovem uma ruptura em
relação à sintaxe tradicional. Nessa ruptura do código gramatical, o texto cria sua própria
forma de expressão, através de um código de linguagem particular, e é notória a subversão
das normas sintáticas que regem a estrutura do idioma. Isso ocorre pela anulação das for-
mas que constituem os fatores normais pelos quais a linguagem se faz mediadora entre o
homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo
informações e comunicando a experiência.
O poema articula uma intervenção surpreendente da imagem direta, por intermédio de
extrema economia dos meios de expressão, através dos quais as palavras são dispostas ao
acaso e às conveniências do próprio poema. Subvertendo os preceitos elementares da sinta-
xe, o texto abole os elementos de coesão seqüencial e a pontuação, orquestrando as imagens
numa disposição baseada em conexões e elipses mentais. Isso aponta para a criação de uma
linguagem que tudo abandona em prol de uma expressão que combate os efeitos retóricos
da sintaxe convencional. Assim, o poema liga-se a uma idéia de linguagem orientada pela
renovação de um sistema geral de comunicação, posto em xeque pela revolução de uma
cultura industrial que sustenta a preocupação com o visual, com o aspecto tipográfico, com
o lay-out, em vez de prender-se à idéia restrita de um código lingüístico rígido.
Vejamos mais um texto:
Amor
Humor (Oswald de Andrade)
O texto acima promove uma sensível ruptura em relação à norma lingüística, constitu-
indo uma verdadeira ginástica para a mente entorpecida pela regularidade da sintaxe. O
poema revela forte expressão da estética modernista em termos formais, tendo em vista que
representa a expressão máxima da síntese, pelo emprego de um par mínimo que conduz a
um elementarismo contundente, com formas que se diferenciam por um único elemento
sonoro. Além disso, como no poema anterior, o título funciona como parte essencial na
100
construção e na significação do texto. No que se refere ao conteúdo, há a aproximação inu-
sitada de dois campos semânticos não tradicionalmente relacionados, provocando uma ten-
são que se manifesta no vago da associação lingüística. Não existe foco na relação amorosa
nem nos sujeitos envolvidos na relação, pois todo liame semântico do texto oculta-se sob
uma associação mental que deve ser exercitada pelo leitor, pelas vias de um processo de
desautomação da linguagem.
A teoria de Riffaterre, além de eleger o contexto como norma e proclamar a imanên-
cia dos efeitos estilísticos a partir dele, coloca o receptor na condição de elemento apto a
discernir os efeitos estilísticos vinculados pela mensagem, pois o enunciado é organizado
pelo emitente de modo a dirigir a atenção do receptor para uma determinada forma de de-
codificação, destituindo de qualquer pertinência estilística a referência ao autor e consig-
nando um valor autotélico para a própria forma como o enunciado foi construído no contex-
to lingüístico em que ele se encontra.
1.2.4. – A Função Estilística
Normalmente, o esforço dos estilisticistas para situar os elementos estilisticamente
marcados e não-marcados resulta de uma concepção artística da linguagem. Quando se fala
em arte verbal, pressupõe-se que o objeto de análise será escolhido em função dos julga-
mentos estéticos, ou seja, sempre se supõe a criatividade no texto literário, em oposição ao
texto não-literário. De forma alguma desprezamos esta posição, mas a consideramos insufi-
ciente, visto que a análise estilística deve ir além desses preceitos.
Se considerarmos a noção de Contexto Estilístico, percebemos que as oposições são
também dadas dentro da estrutura da linguagem e não apenas em relação à norma lingüísti-
ca. Isso significa que a forma da mensagem se atualiza quando o decodificador é obrigado a
considerar não só a norma lingüística, mas também todas as variações que caracterizam a
estrutura da seqüência. Tais variações não podem ter significação sem um pattern que elas
mesmas modificam. Sob essa ótica, o desvio estilístico resulta da baixa previsibilidade em
relação ao contexto estilístico, que funciona como um subsistema de normas automatica-
mente pertinente, analisado a partir das variações engendradas para cada efeito estilístico.
101
Acreditando na hipótese única de que o fato estilístico só pode ser explicado em rela-
ção ao um desvio da norma, Jakobson considera o princípio geral das suas modificações
como uma “expectativa frustrada”. Mas um fato estilístico nem sempre coincide com o
desvio da norma, já que os contrastes estilísticos podem ser anulados na medida em que
saturem um contexto, tornando-se demasiadamente previsíveis. Riffaterre defende a idéia
de que o agente real da expectativa frustrada é uma expectativa aumentada, anterior à ocor-
rência do elemento de baixa previsibilidade.
A posição que assumimos aqui se situa a meio caminho das duas teorias, pois
consideramos que ambos os casos ocorrem. Acreditamos que o fato estilístico resulta de um
desvio da “normalidade” que se manifesta sob dois aspectos hierarquizados, determinados
por várias circunstâncias, engendradas pela concepção de uma época lingüisticamente mar-
cada ou pelo código de linguagem de um determinado gênero discursivo. Acreditamos que,
inicialmente, rompe-se com um pattern amplo, estabelecido pela cultura lingüística de uma
determinada comunidade, em uma determinada época. Esse pattern está próximo da con-
cepção do que Barthes denominou grau zero da escritura. Depois, no âmbito da esfera tex-
tual, observam-se as manifestações estilísticas promovidas pelo contexto estilístico. Assim,
o mesmo fato lingüístico adquire, modifica ou perde seu efeito estilístico em função de sua
posição na seqüência textual.
A função poética preconizada por Jakobson prevê, como já vimos, o desvio da norma
lingüística sobre a qual ela se manifesta. Substituindo a noção de norma, que sempre sugere
preceitos de regulação, pela noção de normalidade, ampliamos tal noção para o contexto
estilístico e buscamos captar o desvio de estilo tanto em relação ao código quanto em rela-
ção à esfera textual. Além disso, consideramos que o fato estilístico não é apenas uma ma-
nifestação estética da linguagem, podendo se processar fora dos limites da arte verbal. Re-
conhecemos que, ao tratar da função poética da linguagem, Jakobson afirma que a lingüís-
tica não pode limitar-se ao domínio da poesia. Mas, ainda assim, há uma insistência exces-
siva e exclusiva sobre a poesia versificada, negligenciando, de certa forma, a “variedade
prosaica da arte verbal”, encarada como uma forma intermediária. Sem dúvida, as formas
métricas, nas quais se concentrou Jakobson, prestam-se melhor à análise estilística do que a
prosa, o que justifica a nomenclatura estereotipada de Função Poética.
102
Considerar que a manifestação estilística ocorre apenas nos textos artístico-literários é
uma atitude que reduz a área de atuação da Estilística. Nos primórdios, a Retórica tinha por
objetivo o convencimento. Substituída pela Estilística, esta assumiu várias atribuições, que
vão desde o aspecto pragmático da linguagem até suas configurações mais complexas, tais
como as que esteticamente se configuram. Assim, propomos que a Estilística seja analisada
sob dois pólos básicos: uma estilística pragmática e uma estilística poética. A primeira
enquadra-se nos textos de prazer, e a segunda, nos textos de fruição; a primeira liga-se ao
sentimento de euforia em relação aos fatos do mundo, a segunda liga-se ao sentimento de
“degustação”, provocado pelo prazer do texto, pelo valor autotélico da linguagem. Assim,
consideramos que a função poética é uma vertente da função estilística, tendo como seu
contraponto a função pragmática, tal como visualizamos no gráfico:
/ – pragmática – função utilitária
Função estilística
\ – poética – função estética
As concepções que giram em torno do texto de prazer e do texto fruição estão nas
concepções de Roland Barthes
34
. O lingüista estabelece dois regimes de leitura: uma leitura
de prazer e uma leitura de fruição. A primeira vai direto às articulações da anedota, consi-
dera a extensão do texto, ignora os jogos de linguagem, não é fascinada por nenhuma perda
verbal ou por qualquer subversão sob a qual se denuncie um salto que ponha em risco a
fluência natural e a compreensão da linguagem; a segunda não desconhece nada; ela pesa,
adere ao texto, explora-o, investiga-o, apega-se a ele e a si mesma, torna-se a razão do tex-
to, que procura o leitor, que o provoca, que o seduz pelo jogo de linguagem e o arrebata,
para que ele apreenda em cada ponto da leitura o óbice metafórico, a opacidade da imagem,
o interstício do assíndeto ou o vago da elipse que cortam a linguagem. Esses regimes de
leitura vêm da natureza dos textos sobre os quais o leitor se debruça. Estamos, pois, diante
de dois tipos de texto: o texto do prazer e o texto da fruição. O primeiro está ligado a uma
34
BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2004.
103
leitura fluente, menos complexa; o segundo liga-se a uma leitura de obstruções, portanto
mais complexa.
O texto de prazer é aquele que contenta o leitor, provoca o sentimento de completude,
dá sensação de euforia; é aquele que se origina da cultura, não rompe com ela, está ligado a
uma prática de reconforto pela leitura, por meio de uma linguagem que ele, o leitor, imedia-
tamente reconhece. O texto de fruição é aquele que põe o leitor em estado de perda, de des-
conforto, faz vacilar as bases históricas de sua cultura, atinge de forma cortante sua psico-
logia, abala a consistência do seu gosto, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em
crise sua relação com a linguagem. Enquanto o texto do prazer circula na consistência do
ego, o texto de fruição circula nos labirintos do desconhecido, conduzindo o leitor à procura
da perda, que é, em suma, sua fruição. O texto do prazer sustenta uma moral da linguagem,
que está a serviço da anedota, proporcionando ao leitor a sensação reconfortante do auto-
reconhecimento; o texto de fruição, ao contrário, provoca a derrocada e põe em ruínas o
auto-reconhecimento do leitor, pois seu arrebatamento se dá pelo jogo da linguagem, em
lances perigosos e seqüencialmente surpreendentes; não pelo aspecto anedótico do texto.
Não há como negar que em ambos encontram-se os sulcos da função estilística, mas
eles surgem em níveis distintos. Nos textos de prazer, resguardam-se todos os resquícios de
uma cultura imanente da pragmática da vida burguesa, das cenas possíveis no sentido do-
méstico da palavra; nos textos de fruição, o sujeito tem de coabitar a linguagem, que se
torna o lugar único de sua existência, pois é no fluxo da imprevisibilidade que está o des-
frute, partindo do princípio de que, afinal, o que ocorre à linguagem nem sempre ocorre no
discurso. É aqui, respectivamente, nestas duas margens da linguagem, por natureza opostas,
que situamos a função pragmática e a função poética nas vertentes da função estilística. A
primeira reside na margem da sensatez – conforme, plagiária, em que a língua se manifesta
ainda em seu estado canônico; a segunda situa-se na margem da insensatez – ilógica, mó-
vel, de contornos imprevisíveis, subvertendo o estado canônico da língua, fazendo surgir a
emoção estética.
Mas é preciso reconhecer que não é propriamente a ruína da linguagem que faz mani-
festar o sentimento da fruição estética. Este surge da fenda entre as margens, e esta fenda é
que proporciona o erotismo artístico da linguagem. Isso significa que não é a linguagem em
si subvertida o elemento da fruição estética, é o ato da subversão; não é o resultado do jogo
104
o responsável pela degustação, é jogo em cada lance, que se realiza no paraíso da lingua-
gem. Em outras palavras, a fruição se sustenta na fenda que se abre entre as duas margens
da linguagem: o que interessa é o lugar da perda, que é, ao mesmo tempo e em suma, onde
se ganha. Isso porque a fruição não se relaciona com a avidez do conhecimento, mas com o
ritual que nos leva a ele, ritual esse que se faz no jogo do que se lê com o que foi lido. Não
é a extensão lógica e cognitiva que cativa, não é o desfolhamento das verdades, mas o fo-
lheado da significância que produz o prazer do texto (aqui oposto ao texto do prazer). Este
prazer do texto está no que se vai no fluxo da leitura, no que acorre na fenda das duas mar-
gens da linguagem, no interstício da fruição e produz-se no volume da linguagem, isto é, na
enunciação e não na seqüência materializada dos enunciados.
Para desfrutar o prazer do texto, cabe ao leitor descobrir, no fluxo da leitura, o proces-
so de criação e caminhar pelos trilhos da construção artística, percebendo na agregação e
desagregação da linguagem a intermitência que instiga. A fruição não está no resultado
final, não está na visão última da zona erótica que se desnuda aos olhos da avidez; ela resi-
de no espaço que deixa entrever o que a imaginação anseia por ser abertamente visível. Não
é no acorde final, após o qual nada resta, que está o prazer do texto; ele se encontra na jubi-
lação contínua da fruição verbal, suportando todas as acusações de ilogismo sintagmático
ou de infidelidade paradigmática. Isso se faz pelo inesperado jogo entre os vocábulos, entre
as associações improváveis do adjetivo ao substantivo, do substantivo ao verbo. A tmese,
fonte inesgotável e figura do prazer, produz-se no momento do seu consumo e não se su-
bordina diretamente à estrutura das linguagens.
O texto de fruição conduz a linguagem ao mais alto grau da função poética, pois ele é,
por excelência, o espaço da linguagem, uma ilha de palavras numa dimensão oceânica cul-
turalmente neutra, e sua neutralidade social é o lugar em que a linguagem se desliga da mo-
ral da escritura (de Barthes) e chama a atenção pela forma, buscando nela sua razão de ser,
o que faz dele um objeto absurdamente autotélico. Assim, ele prescreve as atitudes grama-
ticais; não é prescrito por elas. Ele é a força emanadora da linguagem, mas de uma lingua-
gem nova, inventada, porque o prazer do texto é irredutível ao seu funcionamento gramati-
cal e é extraído do corpo erótico do texto, não das idéias que ele proclama. Então, o prazer
do texto não está na saciedade, está no percurso da sua leitura. Como no percurso temporal
da audição musical, nada mais existe além da linguagem.
105
As fruição encontra sua razão de ser na gratuidade da escritura, na perda abrupta da
socialidade. Sua manifestação mais pura só tem possibilidade no absolutismo do novo. Se o
texto de prazer, traz no seu bojo as marcas das instituições oficiais da linguagem, o texto de
fruição é marcado pelo lingüisticamente inconcebível. A regra é o abuso, a exceção é a fru-
ição, fruição que recai num hedonismo que só não foi reprimido entre as sensibilidades
lingüísticas marginalmente depuradas – Valéry, Drummond, Manuel de Barros, entre ou-
tros. Isso porque no texto de fruição a linguagem não quer ser confundida com a ciência,
nem como suporte de relatos socialmente reconhecido. Nos textos de prazer, o escritor é
passivo, o prazer é dizível; mas a fruição é in-dizível, só pode ser revelada nas entrelinhas.
Com ela o texto desfaz a nomeação, e essa defecção é que a sustenta e torna o texto absolu-
tamente intransitivo, conduzindo o leitor a uma viagem de itinerário irreconhecível, cuja
paisagem é estranhamente incomum.
Nos textos de prazer, a linguagem traduz, como já se disse, uma certa euforia em rela-
ção ao universo pragmático da cultura burguesa. É nessa euforia que ele se alicerça. Poderí-
amos enquadrar aqui determinados tipos de textos que circulam na comunidade cultural,
tais como a publicidade e certos textos poéticos, nos quais, a despeito de certa complexida-
de, a livre penetração cultural não deixa abolir a sensação reconfortante de passividade.
Na publicidade, a linguagem procura criar uma sensação de bem-estar e de necessida-
de em relação ao produto veiculado. Nesse caso, a função estilística é ativada na sua ver-
tente pragmática. Há certas sanções que obedecem a um ritual deontológico envolto num
conjunto de valores morais socialmente pré-estabelecidos, que atualizam o homem na sua
comunidade. A marca do produto, os desígnios de prazer, a projeção social deixam na lin-
guagem chancelas inconfundíveis, cujos valores têm lugar definido no mercado das rela-
ções sociais – “bem-estar”, “satisfação”, “comodidade”, “felicidade”, “alegria”, etc.
Vejamos um pequeno texto publicitário:
Novo Samsung X480 .
É lindo, é lançamento, é Claro.
106
Na publicidade acima, nota-se uma linguagem marcada por um apelo fortemente so-
cial, que conta com o conhecimento partilhado do leitor: a marca do produto, “Samsung”, e
o nome da empresa que o manipula, “Claro”, o que, de certa forma, subordina o texto a
certas obediências culturalmente convencionadas. Tudo gira em torno da sedução, da eufo-
ria, da criação de uma imagem de prazer, mas um prazer estabelecido pelas leis e conven-
ções sociais, que sutilmente determinam a adesão, o enquadramento do homem nos padrões
de uma sociedade de consumo, cujos valores estão atrelados a determinações impessoais
veladamente disfarçadas.
A linguagem é empregada pela sua eficácia, pela capacidade funcional de despertar
no decodificador o sentimento de avidez e o desejo de saciedade, que é seu fim último. Ve-
ladamente, porque sem imposição deliberada, disfarçada pela função estilística, emerge a
função conativa da linguagem, manifestada na psicologia do decodificador. As marcas re-
gistradas , “Samsung” e “Claro”, não ultrapassam os limites do código lingüístico. Grafa-
das com os mesmos recursos tipográficos, sem qualquer iconicidade ou notação que as i-
dentifique como tal, a não ser pela inicial maiúscula que impõe respeito, elas se enquadram
no vocabulário comum, sugerindo familiaridade e aproximação com o decodificador, trans-
formado em mero consumidor. A polissemia da expressão “é Claro” não vai além do pro-
pósito de enquadrar o produto na experiência lingüística do leitor. A designação técnica
X480, distanciada do ponto gráfico, além de identificar o produto, funciona, pelo esoteris-
mo, como uma cabala cujo segredo é privilégio de quem retém o conhecimento de uma
tecnologia que não está ao alcance dos mortais. Além disso, o texto realça a nominalidade
da frase, confirmada pelo uso do verbo transpositor, que, no presente do indicativo, aponta
para a ausência de temporalidade e dinamismo, sugerindo a perenidade do produto. O adje-
tivo que inicia a primeira frase, em antecipação ao substantivo, determina a novidade do
produto, distinguindo-o dos demais. Além disso, obedecendo a um paralelismo de estrutu-
ras, reforçado pelo assíndeto, a linguagem procura uma fixação da forma na segunda frase,
numa seqüência predicadora que põe a marca registrada no topo de sua expansão.
Como se vê, no texto publicitário nada conduz à autotelia, nada é gratuito, nada é pu-
ramente estético, nada permanece em sua essência puramente auto-reveladora. A função
estilística contribui pragmaticamente para a eficácia da mensagem, a serviço de um estado
de euforia e de avidez. O que resta em suma é o desejo de saciedade. Função cumprida.
107
Outros textos, poéticos, apesar de sobreviverem no âmbito de certa clivagem em rela-
ção à linguagem corrente, não chegam à ruptura essencial para a fruição, a despeito da fun-
ção poética sobre a qual se constroem. Tais textos se encontram com maior freqüência na
tradição poética, que antecedeu a modernidade literária. Não atingem a plenitude da mar-
gem da destruição e ainda preservam traços da uma escritura, que deliberadamente não
conseguem romper, e neles ainda ecoa o “canto das sereias dos mares longínquos”, ou a
celebração de “regiões inabitadas”, “ilhas solitárias”, “luares leitosos” e “nuvens fugidias”,
imagens que em nada destoam da associação com o prazer da existência física e natural,
configuradas em uma linguagem que edulcora as adversidades do homem no mundo. E isso
porque não há o salto perigoso no vazio, já que nada recai no inesperado absoluto da lin-
guagem nem destrói com a iconoclastia da perversão a envergadura moral da escritura,
embora sob certos aspectos se afaste dela. A linguagem encontra-se ainda no domínio pleno
da socialidade, seus rasgos não comprometem totalmente a transparência e não obstruem a
visão do mundo com a opacidade desconcertante que caracteriza a fruição.
Não queremos dizer que tais textos sejam poeticamente pobres. O que buscamos ates-
tar é que eles se constroem com uma linguagem que a sociedade reconhece, porque não
rompe com a seqüencialidade e não trilha os caminhos da perversão. Não há marginalidade,
não há o divórcio entre eles e uma cultura que, de alguma forma, está pacificada por uma
linguagem sem fendas. Não se trata aqui, é bom lembrar, de valoração da obra, trata-se da
investigação de como a linguagem se manifesta poeticamente nos textos de prazer.
Analisemos este poema de Castro Alves:
O Coração
O coração é o colibri dourado
Das veigas puras do jardim do céu.
Um – tem o mel da granadilha agreste,
Bebe os perfumes, que a bonina deu.
O outro – voa em mais virentes balsas,
Pousa de um riso na rubente flor.
Vive do mel – a que se chama – crenças, –
Vive do aroma – que se diz – amor.
108
O texto de Castro Alves contenta, dá euforia, traduz sensação de completude. Está
ligado a uma prática de leitura confortável, porque vem da cultura, não rompe com ela. Su-
as referências metafóricas estão na mãe natureza, abordada em seus aspectos mais aprazí-
veis, nas suas dimensões mais paradisíacas, em imagens suaves e idealizadoras, tais como
veiga pura” e “jardim do céu”. Nada está além da História, nada corrompe o remanso da
enseada poética, cuja leveza sugere o repouso da alma, o porto seguro de uma dimensão
poética reconfortante, edificado por uma linguagem apaziguadora, encantatória, que atinge
o leitor no seu ponto fraco mais propositalmente exposto. O leitor, afinal, encontra o que
procura, fingindo não procurar.
O texto tem como ponto de partida e como base semântica a metáfora predicativa
35
que se configura no verso “O coração é o colibri dourado”, no qual um elemento B passa
a denominar um elemento A. Há uma passagem de um campo semântico a outro, ocorre
uma transferência de valores de um para outro elemento, através da fórmula simples de
uma equação direta, assegurada pelo verbo equativo (A é B A = B), que dá garantia da
seqüencialidade lógico-sintática na construção lingüística. Os elementos envolvidos nesse
processo metafórico não vão além do que a tradição cultural cristalizou como pêndulos de
sentimentos e de sublimidade, o “coração” e o “colibri” – aquele, por sua função orgânica
essencial; este, por traduzir uma manifestação da natureza associada à contemplação da
Criação Divina. Além disso, os efeitos de estilo encontram-se nos recursos estilísticos mais
imediatamente depreensíveis, recursos esses que saltam gritantes às vistas do leitor: a esco-
lha de certos adjetivos incomuns e sua anteposição em relação ao substantivo com o qual
forma sintagma – “virentes balsas”, “rubente flor”. Como se pode perceber, o texto é uma
celebração da vida, e nele nada se marginaliza, nada corrompe de forma imperiosa o que a
linguagem poética imediatamente reconhece. A escritura romântica permanece, e é sob sua
sombra frondosa que o escritor, engajado na cultura do seu tempo, passivamente trabalha,
fazendo fluir, sem o risco de uma imprevisibilidade absoluta, o regato cristalino de uma
linguagem poética que não ultrapassa os limites do imediatamente reconhecível. Texto de
prazer , texto de euforia, a serviço de um prazer estético que preenche o ego, que a fruição,
pela sua dimensão reduzida, não é suficiente para interceptar.
35
Para os tipos de metáfora, ver RIBEIRO, Manuel P. Gramática Aplicada da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Metáfora, 2006.
109
Sabemos que nenhum texto é absolutamente isento de ideologia, mas não é na ideolo-
gia que está o seu prazer. O prazer do texto não escolhe ideologia, é, portanto, a-ideológico;
este prazer é puramente intelectual, não edipiano. Ele se enquadra no segundo regime de
leitura, na leitura da fruição, leitura que melhor convém ao texto moderno, cuja linguagem
se constitui sobre as ruínas da escritura, longe das articulações da anedota. Longe da visão
especular da linguagem, o prazer do texto é irredutível ao seu funcionamento gramatical,
pois ele é extraído do próprio caráter genotípico do texto, do erotismo do seu corpo, não das
idéias que ele proclama. Como já se disse, o que ocorre à linguagem não ocorre ao discur-
so. O interstício da fruição produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na
seqüência materializada dos enunciados.
Confrontemos este poema de Manuel de Barros:
Carrego meus primórdios num andor.
Minha voz tem um vício de fontes.
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.
Quando a criança garatuja o verbo para falar o que
não tem.
Pegar no estame do som.
Ser a voz de um lagarto escurecido.
Abrir um descortínio para o arcano.
O poema proclama que a ignorância é o estado primeiro da criação e do conhecer. A
ignorância que constrói a poesia não é um estado mental – é um ato de sensibilidade, de
abstração e quase de loucura. Criar é inicia-se no des-conhecer:
Eu queria avançar para o começo.
Chegar ao criançamento das palavras.
Lá onde elas ainda urinam na perna.
,
110
dando características subjetivas a proposições objetivas, proclamando uma relação com os
sentidos no conhecer das coisas, para só então submetê-las ao crivo das idéias palpáveis: a
idéia do tato —
Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos,
da visão Ser a voz de um lagarto escurecido,
da audição:
Pegar no estame do som.
E tudo se constrói com uma linguagem inusitada que destrói a escritura e alcança a
margem da insensatez – “Eu queria avançar para o começo” –, criando um interstício por
onde se processa a fruição.
A fruição está interdita, ou só pode ser dita nas entrelinhas. Com ela o texto renuncia
à nomeação original, e essa renúncia é que a sustenta e torna o texto absolutamente intransi-
tivo pois o prazer do texto se manifesta na reivindicação contra a separação do dizer o do
dito. O que o texto diz é a ubiqüidade do prazer, a utopia da fruição. Assim, a referenciação
e a recategorização se fazem em prol do próprio texto e não vão além dele, como neste ou-
tro poema de Manuel de Barros, em que um objeto deixa de ser ele mesmo para ser apenas
um constituinte da criação poética, um significante do prazer do texto:
Uma didática da invenção II
Desinventar objetos. O pente,
por exemplo.
Dar ao pente funções de não pentear. Até
que
ele fique à disposição de ser uma begônia.
Ou
uma gravanha.
Usar algumas palavras que ainda não
tenham idioma.
Como se pode notar, o texto moderno não é seqüencial, é intersticial. A fruição está
no percurso acidentado da sua leitura, nos abismos que se abrem, nas fendas que conduzem
o leitor ao salto mais alto, fazendo-o captar o vazio que ele deve preencher. Antes do texto
há a expectativa. Após o texto não há mais nada. Ao fechar o livro, nada mais resta, a não
111
ser o prazer de tê-lo lido. No texto de fruição nada há além da linguagem que não é outra
coisa senão ela mesma.
Mas em qualquer texto, o saldo de tudo é fornecido pela linguagem, pois todo texto é
fruto de um trabalho lingüístico, que, na perspectiva de Granger, pressupõe estilo
36
, fato
que irrefutavelmente nos conduz à função estilística. De uma forma ou de outra, acredita-
mos, duas funções estão sempre presentes – a estilística e a referencial –, e a função estilís-
tica é a única verdadeiramente centrada na mensagem. Todas as demais estão orientadas
para algo exterior a ela; organizam-se em torno do codificador, do decodificador e do con-
teúdo. Assim, a comunicação é estruturada por cinco funções direcionais e sua intensidade,
expressiva ou artística, é modulada pela função estilística.
Isso significa que, embora uma mensagem possa estar, em teoria, orientada para um
referente objetivo, seu poder efetivo, cognitivo ou denotativo, depende do efeito do signo
sobre o destinatário, da força da informação que esse signo transmite, e não da maneira
mais ou menos completa e fiel pela qual ele representa a realidade. Ainda que tal signo seja,
em tese, “neutro”, a representação da realidade depende de um esforço que engendrará sua
expressividade e controlará a decodificação. Assim, pela imposição que a função estilística
exerce sobre nossa atenção, ela terá, no trabalho textual, sempre maior importância opera-
cional que a função referencial.
A eficácia de uma mensagem depende da adequação do estilo a seu gênero discursivo,
e seu código de linguagem é regulado pelo estilo, pela atitude do locutor diante do assunto.
Assim, os traços fisionômicos da linguagem dependem da função estilística, que realça os
efeitos do signo. No texto poético, o referente tende a tornar-se meramente verbal, e a “poe-
sia obscura” é o ponto de chegada dessa evolução. A partir do momento em que as ambi-
güidades permanecem, em vez de serem resolvidas, uma coerção máxima se impõe na de-
codificação, e a função referencial cessa. Então a função estilística impera, e, enquanto ob-
jeto, a mensagem consegue plena autonomia.
36
GRANGER, G.G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva-EDUSP, 1974.
112
1.2.5. – O Formalismo
Está fora das nossas cogitações duvidar da validade dos muitos conceitos até aqui
expostos para a análise do texto poético; mas para a competência lingüística, caso nosso,
escolhemos um caminho – o do formalismo –, que se aproxima das teorias do funcionalis-
mo e do estruturalismo de Jakobson e Riffataerre. Partindo do princípio inicial de que poe-
sia é forma e não substância, entendemos que é na forma do texto que uma análise lingüís-
tica deve procurar suas respostas. Para tanto, a solução é colocar a poética ao lado da lin-
güística e aceitar que o estudo poético arrasta consigo toda a ciência da linguagem, e a poe-
sia é a linguagem em sua função estética, é a dominação no plano lingüístico da construção
da obra poética.
Não é de hoje que se busca no estudo da linguagem a combinação de forma, função e
sentido, e o texto poético não está isento disso. A linguagem poética, assim como o texto
poético, não podem ter a forma da linguagem não-poética e do texto não-poético, porque o
aspecto formal denuncia a funcionalidade e o sentido que deles emana. Nessa perspectiva, o
estudo da linguagem retoma toda sua primazia na análise do texto literário, e o que importa,
em primeiro plano, é o processo, a organização da obra como produto estético, jamais fato-
res externos.
Sabemos que, na sua história, a arte é permeada de fatores psicológicos e sociológicos
e não os desprezamos; mas, para nós, o ponto de partida para sua percepção está exatamen-
te na construção do texto, nas formas que ele engendra, nas imagens criadas pela linguagem
poética como indício de tais fatores. Se, em lugar da forma da poesia, nos basearmos uni-
camente no espírito com que foi escrita, jamais atingiremos o cerne da questão poética em
seu sistema nervoso. Se o estudo da obra literária quer tornar-se ciência, ele deve, antes de
mais nada, reconhecer o “processo” como o primeiro caminho a ser tomado. A poesia é
linguagem em manifestação estética; logo a investigação minuciosa da obra literária não é a
Literatura em si, como uma instituição, mas a literariedade, ou seja, a forma, aquilo que
torna determinada obra um produto literário.
Ao colocarmos a forma poética como o elemento primordial da análise poética, não
ignoramos que uma obra literária tem um fundo semântico que emana do seu sentido; mas
rejeitamos a dicotomia fundo-forma, por considerá-la artificial e inoperante, pois ela impli-
113
ca um conceito de forma estático, como um invólucro que envolve um conteúdo. Em vez
desse conceito estático e espacial, optamos por um conceito dinâmico em que expressão e
conteúdo estão em correlação e integração. Assim, os elementos cognitivos, emocionais,
psicológicos e histórico-sociais, que aparecem numa obra poética, estão encarnados numa
forma e não podem ser analisados e valorizados fora da sua corporação artística. Numa
obra poética, esses elementos não existem como valores independentes de um contexto
literário. Em conseqüência disso, eles devem ser estudados nas especificações da forma e
da sua função literária. Dessa maneira, a noção de forma tende a identificar-se com a pró-
pria obra artística conceituada na sua unidade e na sua integralidade, dispensando qualquer
termo correlato e complementar.
No formalismo, o essencial é a observação da forma, desde a palavra até a configura-
ção total do texto. Trata-se, de alguma maneira, da análise de um texto poético como uni-
verso, como totalidade, e da investigação de suas leis de organização, de sua própria estru-
tura. Na outra margem, como termo de comparação, está a linguagem usual. A dissonância
entre as duas linguagens é produtora de efeitos de sentido. Essa usualidade tem certas com-
plexidades que as Teses de 1929 do Circulo Lingüístico de Praga podem definir mais espe-
cificadamente:
A linguagem poética tem, do ponto de vista sincrônico, a forma da palavra, isto é,
de um ato criador individual, que toma seu valor, por uma parte, do fundo da tradição
poética atual (língua poética) e, por outra parte, do fundo da língua comunicativa con-
temporânea. (...) Uma propriedade específica da linguagem poética é acentuar um ele-
mento de conflito e de deformação (...). Assim, por exemplo, uma aproximação da pa-
lavra poética com a língua de comunicação é condicionada pela oposição à tradição e-
xistente.
37
Esses elementos de conflito e deformação precisam ser de quando em quando refor-
mulados, porque, segundo Jakobson, e como a citação acima deixa entrever, a linguagem
poética se desgasta de tempos em tempos, tornando-se demasiadamente previsível, a exem-
plo do que acontece, de forma mais imediata, com o contexto estilístico. Torna-se preciso,
37
SCHNAIDERMAN, Boris. “Prefácio”, in Eikhenbaum, B. et alii. Teoria da Literatura – formalistas rus-
sos. Porto Alegre: Editora Globo, 1976, p. IX-XII.
114
então, absorver da linguagem cotidiana outras formas de construção poética, para que fique
mais perceptível o desvio e o “efeito de estranheza” que configuram o processo estilístico
no jogo das imagens. No domínio da tradição e da dinâmica literária, o desvio se marca em
relação às normas artísticas predominantes num determinado momento. A forma nova apa-
rece para substituir uma forma que, por desgaste, encaminha-se para o automatismo e já
não desempenha sua função estética. A arte é compreendida como um meio de destruir o
automatismo perceptivo. A imagem poética não procura nos facilitar a compreensão de seu
sentido, mas construir uma percepção particular do objeto; busca a criação de uma visão e
não de seu reconhecimento. Mas isso não está previsto numa linguagem usual e só pode ser
concretizado no intermédio de uma linguagem poética, que é marcada pela imprevisibilida-
de e difere da linguagem prosaica pelo caráter perceptível de sua construção (aspecto fôni-
co, morfossintático, semântico) ou pela combinação de palavras e sua disposição no texto.
Sem desprezar muitas das teorias acima expostas, tais como as noções de contexto
estilístico e de função estilística, nossas análises serão norteadas pelo formalismo do texto.
Afinal, partimos do princípio de que poesia é forma, não substância. Então, irremediavel-
mente, a despeito de toda modernidade que se possa cogitar ao longo deste trabalho, aca-
bamos por cair na tripartição clássica dos estudos estilísticos e seguimos as orientações
lúcidas do mestre Gladstone Chaves de Melo:
Há de tentar-se, pois, uma Fonologia, uma Morfologia e uma Sintaxe afetiva ou
psicológica, e uma investigação tão profunda quanto possível sobre as conotações do
vocabulário.
38
Assim, é essencial que uma análise do texto poético considere, entre outras coisas, os
estudos estilísticos calcados nas expressividades fônicas (aliterações, assonâncias, harmo-
nias imitativas), mórficas (formações vocabulares, valor dos afixos, das desinências, etc.),
sintáticas (paralelismos, rupturas nas associações, coordenações, etc.) e semânticas (neolo-
gismos de sentido, conotações metafóricas e metonímicas, etc), que conferem ao texto o
efeito de sentido poético.
38
MELO, Gladstone, Chaves de. Ensaio de Estilística da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1976.
115
2. — A DIMENSÃO FILOSÓFICA DO ESTILO
A noção de estilo é de natureza bastante abrangente, o que significa dizer que há mui-
tas formas de abordá-lo, de estudá-lo e de compreendê-lo. Podemos entender o estilo como
manifestação lingüística de uma época, de uma comunidade, de um grupo, de um gênero ou
de um indivíduo. Consideramos aqui, a princípio, o estilo como uma noção geral, na uni-
versalidade da sua essência filosófica, como algo que se constrói pela atividade lingüística,
independentemente, portanto, de qualquer desses aspectos. O que nos importa de perto nes-
ta abordagem é a atividade estilística como manifestação de certas peculiaridades que se
fazem notar pelas interferências que atuam sobre a linguagem natural.
Reconhecemos que a noção de estilo pode ser investigada nas mais diversas áreas da
atividade lingüística – textos científicos, jornalísticos, conversacionais, literários etc. Entre-
tanto, pelas conveniências do nosso trabalho, que nos fazem voltar o olhar para uma deter-
minada direção, procuramos trabalhar com um corpus que não seja estranho ao nosso pro-
pósito, qual seja o da investigação da estrutura do discurso poético. Assim, daremos ênfase
à noção da criatividade no estilo, que caracteriza o formato do texto poético em sua dimen-
são estética, o que não significa que as demais concepções estilísticas sejam por nós des-
prezadas. Por esta razão, encontramos nos textos poéticos o núcleo das nossas investiga-
ções, seja pelas nossas intenções, seja porque tais textos são, em sua própria essência, pro-
pensos à manifestação estilística.
Para que possamos discutir o estilo em sua dimensão filosófica, tomaremos por base a
idéia de que, apoiados nas investigações de Granger
39
, a concepção de estilo abrange as
atividades humanas em suas mais variadas manifestações. Um homem é o que é em suas
individualidades, em suas idiossincrasias. Assim, tanto pode haver estilo na linguagem na-
tural como nas demais formas de manifestação da linguagem. O que se deve levar em con-
sideração é que o analista tenha a capacidade de enxergar os diferentes graus de manifesta-
ção do estilo em cada situação em particular, já que, ainda segundo Granger, não existem,
efetivamente, critérios absolutamente seguros e totalmente diferenciados que possam dis-
39
GRANGER, G.G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva-EDUSP, 1974.
116
tinguir estilística ou estilo, em relação à linguagem natural e em relação a outras lingua-
gens.
Para desenvolver nossa linha de raciocínio, importa-nos de imediato caracterizar a
criação estilística como trabalho, como atividade de produção em que não se pode despre-
zar o homem enquanto ser que garante sua historicidade no processo de produção da lin-
guagem, por mais padronizada que esta possa parecer. Se assim não fosse, estaria decretada
a morte do estilo e, conseqüentemente, a morte do homem enquanto criatura sensível, capaz
de se projetar como criador da sua própria expressão, segundo a sua visão de mundo, ainda
que em obediência a certos limites estabelecidos pelos valores culturais que se impuseram
ao longo da sua formação.
Assim, encaramos o estilo como fruto de um trabalho, como algo inscrito no processo
de construção da linguagem que garante a individuação do sujeito. Mas isso só é aceitável
porque não tomamos a linguagem apenas como um produto previamente estruturado, e sim
como algo inacabado e em constante estado de elaboração. Dessa maneira, procuramos
afixar a noção de que o individual permanece no horizonte da atividade lingüística, ainda
que, algumas vezes, em conseqüência das práticas sociais, isto não se faça de uma forma
que ressalte aos nossos sentidos de maneira facilmente perceptível. Essa noção de individu-
ação perpassa todos os níveis da linguagem, da linguagem científica à linguagem literária,
passando, evidentemente, pela “linguagem natural”. Atrelando essa individuação à questão
do trabalho, da produção da linguagem, encontramos critérios idênticos em todos os níveis
da linguagem para a caracterização do estilo e da estilística.
Como já preconiza Saussure, a língua é um sistema de formas; portanto deve ser vista
como uma estrutura. Apresenta valores opositivos, relativos e negativos que se explicam
nos valores intrínsecos das suas inter-relações. Assim sendo, o homem é excluído do com-
plexo estrutural da linguagem, sendo negada sua intervenção nessa rede de relações, que
prevêem, por um vínculo de associação, que os termos implicados no signo lingüístico são
ambos psíquicos e estão unidos, em nosso cérebro, aproximando-se de uma visão corres-
pondentista entre a língua e o mundo.
Os recentes estudos lingüísticos negam a idéia de que há uma concepção especular da
linguagem em relação ao mundo. Essa antiga visão correspondentista põe o individual co-
mo o lado negativo das estruturas. Contra essa visão positivista, a Escola Filosófica de Ox-
117
ford desenvolve a filosofia analítica da linguagem, segundo a qual a análise lingüística tem
como objeto a especificidade da linguagem nas circunstâncias em que valem as formas
lingüísticas que escolhemos estudar. É exatamente nessas circunstâncias que se manifesta o
individual, nas várias modalidades da linguagem.
Benveniste postula que enunciação “é a colocação em funcionamento da língua por
um ato individual de utilização”. Essa definição é partilhada e ampliada por Anscombre e
Ducrot
40
, segundo os quais a enunciação é “a atividade linguageira exercida por aquele que
fala no momento em que fala. Ela é, portanto, por essência histórica, da ordem do aconte-
cimento, e, como tal, não se reproduz nunca duas vezes idêntica a si mesma”. Isso implica
que a linguagem tem ancoragem na realidade, o que pressupõe uma subjetivação, que se faz
através dos signos dêiticos, analisados como elementos caracterizadores da individualidade
de um sujeito ou da individuação de um discurso. Esses conceitos se opõem ao conceito de
enunciado, que é “a manifestação concreta de uma frase, em situações de interlocução”.
41
Assim, o enunciado é o objeto lingüístico resultante da enunciação, é o que é dito. Em ou-
tras palavras, é o produto da enunciação. Ratificamos assim a idéia de que, quando se con-
sidera a linguagem como processo e não como produto, o individual permanece na ativida-
de da linguagem.
Temos, então, as representações gráficas:
Língua Æ Estrutura
-----------------------------------
Processo Æ Estilo
Processo x Produto
-----------------------------
Estilo x Estrutura
Procuramos mostrar aqui de que maneira o individual se instala e aparece na lingua-
gem. Granger
42
, focalizando a linguagem científica, aponta três modalidades de individua-
ção da linguagem: 1) a escolha; 2) o temperamento do enunciador; 3) a conjuntura.
40
Ver CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São
Paulo: Cultrix, 2004.
41
KOCH, Ingedore G. Villaça. A Inter-Ação pela Linguagem. São Paulo: Contexto, 2003.
42
GRANGER, G.G. Op. Cit.
118
Pelas razões já aqui apresentadas, aplicamos, sob as orientações de Possenti
43
, estas
modalidades às linguagens naturais, segundo nossos propósitos, mas não necessariamente
nessa ordem.
1) Abordemos, em primeira mão, a caracterologia do temperamento do enunciador.
Aqui se procura na linguagem os traços do temperamento do seu estruturador. Isso significa
que o lingüista deve operar numa faixa não-estruturada da manifestação da linguagem. Afi-
nal, atuar no campo da Psicologia é mover-se em uma área movediça sobre a qual o lingüis-
ta não tem qualquer controle, em conseqüência da falta de garantia empírica que essa ciên-
cia proporciona. Além disso, ele tem que atuar com uma noção de estilo centrada no sujeito
que constrói a linguagem e não na linguagem propriamente dita, embora os traços do cons-
trutor da linguagem estejam marcados na linguagem mesma, sem o que não seria possível a
apreensão dos traços estilísticos.
Nesta teoria do estilo, os desvios lingüísticos em relação a uma “norma” caracterizam
os desvios psicológicos do autor, nem sempre interessantes para o receptor da mensagem.
Mas, de qualquer forma, como atesta Possenti
44
, essa teoria do estilo não deixa de despertar
interesse, em conseqüência da reação que os interlocutores têm diante de certas formas de
elocução emocionalmente marcadas no mercado linguageiro, ainda que tais marcas sejam
categorias estruturalmente pouco confiáveis, na medida em que falam do caráter de um
indivíduo e o definem como organismo de recepção e emissão de mensagens.
O que se pode extrair disso tudo é que, a despeito de uma caracterologia do indivíduo
ser um suporte sem muita precisão para uma teoria do estilo, ela não deve ser, por algumas
razões, totalmente desprezada. Dentre essas razões, apresentamos duas: em primeiro lugar,
porque ela atua discursivamente com interferências marcadas por categorias pouco estrutu-
radas – apoiadas em traços epilingüísticos e epidiscursivos – sobre uma linguagem natu-
ralmente estruturada; em segundo lugar, porque, de alguma maneira, por se ancorar na situ-
ação enunciativa, essa forma de individuação da linguagem estaria atrelada a uma estilística
da enunciação, que envolve os efeitos de sentido do discurso relatado, o que inclui algu-
mas escolhas feitas conscientemente pelo locutor do discurso citante.
43
POSSENTI, Sírio. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
44
Idem, ibidem.
119
2) Tratemos agora da modalidade de individuação da linguagem, que se configura
pela relação do enunciador com a conjuntura. Aqui, leva-se em consideração como o enun-
ciador se deixa envolver pela conjuntura lingüística na qual se encontra inserido, conjuntura
essa que pode ser atrelada à noção de influência ou espírito da época, ou ainda à noção de
condições de possibilidade. Como cada usuário de um sistema lingüístico percebe a língua
de forma distinta e adquire certas estruturas em diferentes fases, essa teoria do estilo busca
investigar como cada locutor se apodera da língua, conforme sua condição social, seu papel
nas práticas sociais e sua visão de mundo.
Por esse prisma, fixamos a noção de que, mesmo no conceito do espírito da época, o
autor se apodera praticamente de uma conjuntura de maneira peculiar que o individualiza.
Assim, a individuação está em como cada locutor se apropria do sistema lingüístico, visto
que a utilização da linguagem distingue um locutor de outro. Exemplo disso é a célebre
dicotomia entre estilo individual e estilo de época, levada a termo pela teoria literária, em
que um determinado autor se individualiza dentro de um certo contexto cultural, a despeito
das diretrizes básicas de uma determinada escola literária, sem ser apenas uma via de pas-
sagem ou um vazadouro da conjuntura e das práticas lingüísticas vigentes.
3) Finalmente chegamos à noção de escolha como modalidade de individuação da
linguagem. Como nosso trabalho se concentra no viés da materialidade lingüística, vemos
nessa teoria do estilo o principal veio de exploração para a caracterização estilística. Pri-
meiro porque evitamos os riscos de circularmos entre teorias cujas marcas categoriais não
se mostram suficientemente confiáveis para uma estruturação mínima; segundo porque,
ficando no nível da linguagem mesma, podemos manipular a noção de estilo a partir de
uma referência sobre a qual o enunciador atua para sua individualização, o que se torna
viável pela possibilidade de uma estruturação mínima, que se dá por contraste com o grau
zero da escritura, que lhe serve de pattern; terceiro por considerarmos que ela gerencia
todos os outros modelos, na medida em que se baseia em marcas categoriais que refratari-
amente deixam pistas para a incursão em áreas de interesses diversos, sejam elas de nature-
za psicológica ou sociológica.
120
Tomemos esse exemplo revelador da feminina delicadeza que condiciona a fluidez e a
capacidade de sugestão da poesia de Cecília Meireles, que, pela constante da sua obra, esta-
ria ligado ao temperamento da autora:
Distância
QUANDO o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.
Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve seco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)
Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...
E este, em que o discurso direto é empregado estilisticamente para sugerir, de forma
explícita, o estado psicológico e a carga dramática do enunciador, criando um efeito de sen-
tido de realidade e exemplificando escolhas estilísticas conscientemente controladas pelo
autor, Manuel Bandeira:
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...
121
E mais estes, em que a utilização da linguagem distingue um escritor de outro, refle-
tindo como cada escritor se apodera da língua, no complexo das influências de uma conjun-
tura social e lingüisticamente marcada pelas imposições de um regime político de força.
Pátria Que Me Pariu
brasil
pátria que me pariu
de generais generosos com os trustes
de políticos polidos pelos trustes
de cardeais cordiais com os trustes
ó pátria amarga
idólatra
salva-me
salva-te
da aliança pára progresso
do progresso
sem aliança operário-camponesa
da esso em cada passo do progresso
dos trustes
que nos tratam
a patadas
como trastes
(Félix de Athayde)
122
Cantada
Você é mais bonita que uma bola prateada
de papel de cigarro
Você é mais bonita que uma poça d’água
límpida
num lugar escondido
Você é mais bonita que uma zebra
que um filhote de onça
que um Boeing 707 em pleno ar
Você é mais bonita que um jardim florido
em frente ao mar em Ipanema
Você é mais bonita que uma refinaria da Petrobrás
de noite
mais bonita que Ursula Andress
que o Palácio da Alvorada
que o mar azul-safira da República Dominicana
Olha,
você é tão bonita quanto
o Rio de Janeiro
em maio
e quase tão bonita
quanto a Revolução Cubana
(Ferreira Gullar)
Essa visão conjuntural de mundo, vista como uma ocorrência particular, se configura
na materialidade de um enunciado, e este enunciado reflete uma individuação.
Como o estilo é uma região a princípio não-estruturada, torna-se mais produtivo tra-
balhar com base na caracterização do estilo como decorrência da escolha. Assim, os desvios
permanecem no interior da linguagem mesma, evitando o empirismo psicológico ou socio-
lógico. Por essas razões, consideramos a escolha como traço constitutivo fundamental do
estilo e conseqüentemente da individuação da linguagem. Como não existe só um modo de
123
representação da realidade, a concepção de estilo constitui a marca do processo de constru-
ção da linguagem. Dentre as formas existentes, o fato de um enunciador preferir uma forma
e não outra é um traço de sua individualização. Então o processo de construção da lingua-
gem está marcado na escolha da expressão lingüística que estrutura formalmente o texto.
Consideramos a noção de estilo como a atuação do falante sobre a própria linguagem,
vista como um mecanismo que permite aos sujeitos diversificadas inserções no real. Se é a
linguagem que plasma o mundo, podemos afirmar que o estilo revela a forma como o mun-
do é plasmado. Dessa forma, o estilo possibilita, através de certos efeitos de sentido, que
vejamos o mundo de forma peculiar, o que, sem ele seria inviável. Ele é a definição de uma
personalidade em termos lingüísticos e constitui o máximo de efeito expressivo que se con-
segue obter dentro das possibilidades da língua, um produto sempre inacabado.
Mas, para nós, essa noção de escolha ultrapassa o sentido imediato. Se considerarmos
o tripé da constituição do estilo, deparamos com as noções de norma, desvio e escolha.
Tomamos aqui a noção de norma como o enquadramento da linguagem no âmbito ordinário
da normalidade, ou seja, a expressão lingüística que não causa qualquer estranhamento no
receptor da mensagem. É a partir dessa “normalidade” que se estabelecem os desvios, que
são, de certa forma, assistemáticos e, por assistemáticos, imprevisíveis. Essa imprevisibili-
dade se configura em oposição à prática, consagrada pelo uso sistemático da língua por
uma determinada comunidade cultural, que, no seu trabalho, constitui a língua, em oposição
à atividade do sujeito, que produz discursos. É na esfera dessa produção que vemos a noção
de escolha, atrelada a uma possibilidade e não a uma necessidade, porque o produto só é
como é porque o autor escolheu que como tal ele fosse, seja pelas variações inscritas na
própria língua, seja pela criação de formas inusitadas e não-pertinentes ao sistema.
A concepção de estilo como marca de trabalho inclui diferentes modalidades de refe-
rir-se a seres, fenômenos e fatos. As línguas naturais são sistemas com várias possibilidades
para as mesmas referências a “cenas” ou fenômenos. Operar lingüisticamente sobre a reali-
dade e sobre o interlocutor são finalidades simultaneamente inscritas nas línguas naturais.
Isso pressupõe uma escolha da linguagem dentre as formas previamente disponíveis ou
providencialmente criadas. O processo de construção da linguagem (trabalho) está marcado
na escolha da forma de representação, seja ela pré-existente ou inventada. O estilo reside no
modo como o locutor constitui seu enunciado para a obtenção de um efeito pretendido.
124
Observemos, neste poema de Manuel Bandeira, como o autor se individualiza através
da particularização da linguagem, inclusive com formas por ele mesmo criadas:
Neologismo
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
(Estrela da Vida Inteira)
Como vimos até aqui, o estilo é a atuação do falante sobre a própria linguagem, é a
maneira de apreender um conceito, é um modo particular como um sujeito se apropria do
sistema lingüístico na produção do discurso. Assim, o estilo expressa a relação do locutor
com a realidade na sua representação, uma vez que o mesmo fato pode ser representado de
diferentes maneiras, mesmo em discursos ideologicamente marcados, pois o locutor os atu-
aliza individualmente através da sua visão particular de mundo. O estilo não é uma necessi-
dade imperiosa que anula a ação volitiva do sujeito, mas uma possibilidade que se reflete na
escolha da forma de construção textual. Isso porque o sujeito não é uma subjetividade pura,
nem uma consciência meramente receptiva, que reconhece forma, sentido e unidade, mas
não leva em conta a construção laboriosa do estilo, por considerar que ele seja uma ativi-
dade puramente mecanicista passivamente praticada. Seguindo Granger, acreditamos, con-
trariamente, que o sujeito produz acontecimento, garantindo sua historicidade e seu lugar
como elemento criador na manipulação da linguagem, um produto sempre inacabado em
que se encontram as marcas recuperáveis que podem ser interpretadas como indícios de
construção de sentido.
Vejamos estes exemplos, em que fica clara a ação construtora do sujeito na formula-
ção do sentido poético do texto:
125
Penetra surdamente no reino das palavras
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
(Carlos Drummond de Andrade)
Poética
I
Que é a Poesia?
uma ilha
cercada de palavras
por todos
os lados
II
Que é o Poeta?
um homem
que trabalha o poema
com o suor do seu rosto.
Um homem
que tem fome
como qualquer outro
homem.
(Cassiano Ricardo)
2.1. – A Construção do Estilo
O Estilo é o modo como o autor em particular se apropria da língua. É o resultado
de um processo que pressupõe um modo de elocução, isto é, peculiaridades que identificam
um sujeito – a individuação que torna, pelo trabalho, um ser sujeito. Por ser um produto
sempre inacabado, nenhuma linguagem é ela mesma em si. Por não se apresentar caracte-
risticamente por si mesma, ela deve ser vista como o resultado de um processo, de um tra-
126
balho constante dos seus usuário. Assim sendo, um estilo é construído continuamente, ele
resulta de um processo de elaboração da linguagem que individualiza o sujeito no momento
mesmo de sua elocução.
Não há um estilo previamente construído, e, se assim o percebemos, é por conta de
uma ingenuidade que confunde o estilo do sujeito com os traços essenciais que caracteri-
zam o “estilo do trabalho”, ou seja, do tipo de trabalho que o construtor da linguagem efe-
tuou, pelo fato de sua constituição “psicológica” ser de um tipo e não de outro. Em outras
palavras, não se pode dizer que Camões tenha um estilo épico ou lírico; épico e lírico são os
tipos de trabalho que porventura Camões efetuou. Os traços estilísticos têm que aparecer
necessariamente na constituição da linguagem, caso contrário torna-se impossível a pesqui-
sa estilística.
O fato é que nenhuma característica psicológica ou sociológica pode ser concebida
como independente, mas sempre numa rede de relações cuja tessitura é viabilizada pela
linguagem. Falar do caráter psicológico ou sociológico de um indivíduo é defini-lo organi-
camente como uma instância actancial de recepção e emissão de mensagens. Acreditamos,
contudo, que traços psicológicos ou sociológicos possam ser detectados no fio do discurso.
Mas isso se faz através de aspectos epilingüísticos, que muitas vezes têm consideráveis
efeitos perlocucionais.
É preciso esclarecer que esses aspectos epilingüísticos provêm de avaliações classifi-
catórias de algumas formas lingüísticas, às quais se atribuem efeitos que se vão dissemi-
nando numa comunidade cultural, pressionada para que se reconheça nelas uma certa uni-
formidade de reação frente ao seu uso, inserindo-se, a partir daí, num contexto estilístico
sobre o qual elas possam atuar. É necessário lembrar que a força perlocucionária dessas
formas lingüísticas não está inscrita na língua; ela advém de uma conjuntura social lingüis-
ticamente marcada, pertencendo portanto à esfera do discurso, da situação discursiva com a
qual interage o locutor da mensagem no momento de sua escolha.
Como já antecipamos, um dos fatores essenciais para a constituição do estilo é a ati-
vidade da escolha. A escolha implica determinada preferência, relacionada com uma certa
inserção que acaba por revelar no discurso o estilo do locutor – e conseqüentemente a si
mesmo –, à luz de suas experiências lingüísticas e de seus objetivos. No caso do discurso
poético, um objetivo estético. Nessa escolha, deve-se levar em conta a exploração das parti-
127
cularidades da língua, a manipulação dos seus recursos, visando à construção do sentido e
de seus efeitos – quais sejam ergatividade, acusatividade, progressividade, subjetividade
etc. – que revelam sutilezas lingüistas do idioma.
Como se pode perceber, a escolha implica competência lingüística, já que ambas atu-
am dialeticamente na mesma direção. A competência lingüística se relaciona com a produ-
ção de discursos, operando escolhas segundo os objetivos do emitente, que explora, no seu
trabalho lingüístico, as possibilidades oferecidas pela natureza do sistema. Além disso, é a
partir dela, por conhecer o mecanismo de funcionamento da língua na construção dos senti-
dos, que o autor imprime sua criatividade e atua na constituição dos desvios sobre uma cer-
ta “normalidade” que lhe serve de pattern, com formas mais ou menos distanciadas do que
é pertinente ao sistema.
Em escalas talvez variáveis, toda língua é potencialmente dotada de recursos esteti-
camente expressivos, e a expressividade ocorre num processo que se situa entre valores
epilingüísticos e epidiscursivos a eles agregados, no interior de uma comunidade lingüísti-
ca. Então, os critérios estéticos são variáveis em épocas e contratos de comunicação distin-
tos. Isto significa que o processo estilístico é construído numa dimensão filosófica que a-
brange valores sociais, históricos e culturais estratificados no tempo. Como o falante é um
sujeito que lingüisticamente trabalha, deve-se observar o papel da coletividade e do traba-
lho do indivíduo numa escala dialética que se situa entre um padrão coletivo e os traços
não-pertinentes a este padrão, produzidos por este sujeito:
Padrão coletivo Å Estilo Æ Trabalho do indivíduo
Aprofundemos um pouco mais essa noção da propriedade do estilo pela presença de
elementos não-pertinentes. Como a língua é um sistema de formas com elementos pertinen-
tes, o estilo se baseia na expressão de elementos não-pertinentes a tal sistema, constituindo
assim o complexo estilístico. Mas esses elementos não-pertinentes acabam, pelo uso, crian-
do uma pertinência paralela, marcada pela constância, numa espécie de subsistema do códi-
go lingüístico. Pelo fato de estarem associados aos aspectos epilingüísticos, os elementos
não-pertinentes ancoram o discurso nas práticas vivenciais do falante, o que os torna perfei-
tamente pertinentes, ao menos na atividade discursiva.
128
É natural que o estilo seja baseado nesses elementos não-pertinentes, porque, dialeti-
camente, eles evidenciam a noção de que a língua é uma estrutura, um sistema de formas
organizado, por mais que se queira reconhecê-las próximas da experiência vivencial; até
porque a aproximação dessas formas às práticas da realidade vivencial não constitui um
problema da língua, mas do discurso, isto é, do que se faz com ela em determinadas cir-
cunstâncias.
A verdade é que esses elementos não-pertinentes, por se situarem numa esfera epilin-
güística, por serem uma redundância do vivido, seriam suficientes por si sós para uma an-
coragem na realidade, ainda que não levemos em conta os elementos dêiticos, que, na con-
cepção de Benveniste, pertencem não à língua, mas à linguagem, e, na visão de Granger,
são elementos que distinguem a linguagem natural da linguagem artificial.
Mas o estilo só é estilo quando se submete a uma análise. Assim, ele não pode ser
algo fortuito ou bissexto. Ele que tem de ser reconhecido, notado, percebido, identificado e
finalmente possível de ser analisado, o que só é exeqüível se configurado numa seqüência
que o faça ressaltar. Portanto, para sua constituição, é necessário que haja elementos que se
possam minimamente estruturar. Assim, só se pode falar verdadeiramente em estilo na me-
dida em que tais elementos não apareçam diluídos e distribuídos aleatoriamente. Contrari-
amente, eles devem aparecer seqüencialmente organizados, com uma certa constância que
possibilite uma análise e, conseqüentemente, o reconhecimento da estruturação estilística.
* * *
Na construção do estilo, levamos em conta a individuação. Já dissemos aqui que, em
termos de língua natural, o trabalho lingüístico de todos produz uma língua, e a atividade
lingüística do sujeito produz discursos. E lembramos que a noção de discurso abrange a
atividade da enunciação, que, segundo Benveniste, “é a colocação em funcionamento da
língua por um ato individual de utilização” ou ainda, segundo Anscombre e Ducrot, é “a
atividade linguageira exercida por aquele que fala no momento em que fala. Ela é, portanto,
por essência histórica, da ordem do acontecimento, e, como tal, não se reproduz nunca duas
vezes idêntica a si mesma”. Isto significa que a atividade linguageira é por excelência fruto
do trabalho de um sujeito que toma para si a responsabilidade de transmitir mensagens con-
troladas, conscientemente ou não, por suas habilidades lingüísticas, numa atitude de subje-
tivação que orienta todo o processo comunicativo, demarcado nas instâncias enunciativas.
129
A noção de trabalho e de atividade, pelas pressões e coerções sociais, as quais se po-
dem denominar condições de produção, deve ser associada à esfera do discurso. Em decor-
rência disso, atrelamos a produção textual – e aqui incluímos o texto poético – a um univer-
so discursivo. Nesse universo, postulamos que, se o trabalho é uma atividade que constrói
um estilo, a prática social são as condições que dão a ele uma significação particular. Se
aceitarmos esta postulação, verificamos que nela ocorre uma concepção dialética através da
qual ressalta uma individuação, individuação esta que só se manifesta numa escala de rela-
tividade na qual se leva em conta o geral e o particular.
A língua é um sistema de formas com elementos pertinentes, e o estilo é a modalidade
de integração individual num processo concreto que é o trabalho. Assim, o estilo se baseia
na expressão de elementos não-pertinentes que constituem a individuação da mensagem.
Para a compreensão da individuação do estilo, deve-se considerar a linguagem de um falan-
te dentro de uma classe de falante. Isso significa dizer que, dentro de um período literário, é
necessário que se considerem as formas e as estruturações lingüísticas a ele condizentes,
visto que elas constituem um contexto estilístico sobre o qual o indivíduo atua com suas
marcas pessoais.
Nas investigações da individuação do estilo, é preciso que se leve em consideração o
papel da instâncias de produção e de recepção de um texto, já que ambas constituem os
limites dentre os quais se processa a construção dos sentidos textuais. Assim, é imperioso
que se especule sobre a função do autor e do leitor de um texto. E aqui temos de levar em
conta a natureza do texto sobre o qual se debruça a análise. Para tanto, seguimos as orienta-
ções de Umberto Eco
45
, segundo o qual se deve considerar, conforme a natureza do texto, a
cooperação do leitor, mostrando como uma mesma obra pode ser lida de diversas maneiras.
Na concepção de Eco, com a qual concordamos plenamente, a presença do autor pode
se processar de diversas maneiras. Tratando-se de um texto em função lingüística referenci-
al, o destinatário lança mão das marcas dêiticas (eu, tu, etc.), interpretadas como índices de
referencialidade e de subjetivação da linguagem. Nesse caso o EU identifica o sujeito em-
pírico do ato de enunciação, de onde emana todo o processo da atividade linguageira, com
marcas específicas da individuação do estilo.
45
ECO, Umberto. Lector in fabula. Apud POSSENTI, Sírio. Op. Cit. p. 215.
130
Mas em um texto analisado somente enquanto texto, como é o caso particular do texto
poético, no qual o sujeito empírico que o enunciou é desconsiderado como tal, o Emitente
(o autor) e o Destinatário (o leitor) exercem funções textuais específicas não tanto como
pólos de enunciação, mas como papéis actanciais do enunciado. Nesse caso, diz Eco, o
autor é manifestado textualmente apenas como um estilo reconhecível, visto como uma
espécie de idioleto textual de corpus ou de uma época literária. Apagado como sujeito em-
pírico, projetado apenas como puro papel actancial, o sujeito se institucionaliza como uma
instância produtora de um enunciado, ou seja, sem preocupação de quem seja o enunciador
empírico. Por esse prisma, quando um autor de um texto poético diz EU, não indica rigoro-
samente uma pessoa chamada X, mas uma estratégia textual, um estilo literário. Vejamos:
Profissão de fé
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto-relevo
Faz de uma flor.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro
Por isso corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel
(...)
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase; e, enfim,
No verso de ouro engasta a rima,
Como um rubim.
Quero que a estrofe cristalina
Dobrada ao jeito
Do ourives saia da oficina
Sem um defeito:
E horas sem conta passo, mudo,
O olhar atento
A trabalhar, longe de tudo
O pensamento.
Porque o escrever – tanta perícia,
Tanta requer,
Que ofício tal... nem há notícia
De outro qualquer.
(...)
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena forma!
(Olavo Bilac)
131
Poética
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com o livro de ponto expediente
[protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
[o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de
[si mesmo
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
(Manuel Bandeira)
Os textos acima são reconhecidamente representações emblemáticas de diferentes
comportamentos estilísticos na história da produção poética brasileira. Seus autores, ainda
que se individualizem na conjuntura lingüística de cada período literário, não são vistos
132
aqui como sujeitos empíricos que se dirigem a um receptor igualmente empírico de sua
mensagem. Eles são, a rigor, papéis actanciais de um enunciado, representações estilísticas
que se manifestam na urdidura do texto, representações estas que podem estender-se a um
determinado corpus de uma determinada época da produção literária. O primeiro estratifica
as emanações estilísticas de orientação clássica da estética parnasiana; o segundo constitui
as cristalizações estilisticamente marcadas da liberdade poética da estética modernista.
O que se quer dizer é que Bilac, Bandeira, e aqui se acrescentam os leitores, apesar de
serem pessoas que ocupam uma posição no mundo, com identidade social, registro em car-
tório etc., não são aqui considerados como sujeitos empíricos individualmente identificados
em sua essência humana, mas como instâncias actanciais produtoras e receptoras de um
enunciado. Nos textos acima, os índices dêiticos, implícitos ou explícitos, de primeira pes-
soa não apontam propriamente para as pessoas de Bilac e de Bandeira; eles representam, na
verdade, um estilo que se manifesta.
No caso dos poemas acima, os autores não passam de estratégias textuais que estabe-
lecem certas correlações semânticas construídas no texto. Assim, nestes versos do primeiro
texto: “Assim procedo. Minha pena / Segue esta norma, / Por te servir, Deusa serena, /
Serena forma!”, e neste, do segundo texto: “ Não quero mais saber do lirismo que não é
libertação.”, as revelações engendram intenções que emanam de uma instância produtora
de um estilo. Dessa maneira, “procedo” e “quero” não são apenas formas reveladoras do
desejo de um sujeito empírico; elas assumem certa extensão, extensão esta cujo alcance
institucionaliza um determinado estilo, no caso, o estilo Bilac e o estilo Bandeira.
Argumentamos a favor dessa teoria com o fato de que a linguagem literária se carac-
teriza como fenômeno autônomo, que se apóia na noção de que a criação literária constitui
uma atividade intencional e finalística cujo ponto de chegada é o seu próprio ato de cons-
trução, que é deliberadamente estético. Então, ao escrever um texto poético, o escritor tem
consciência de duas situações: primeiro, de que ele será tomado como um texto literário, o
que estimula a obediência a determinados protocolos próprios da dimensão da literariedade;
segundo, de que ele, como tal, fará parte de um corpus cuja peculiaridade não se encontra
no que comunica, mas no estilo, na forma como comunica. Assim sendo, o escritor sabe
que esse ato deliberadamente estético requer, antes de tudo, uma competência técnico-
artística que caracteriza seu estilo, e o faz de modo que o vejamos como um estilo poético.
133
2.2. – A forma e a construção do sentido
A tradição nos mostra que a forma tem sido o objeto de estudo da Estilística, fato com
o qual concordamos plenamente. O problema é que a forma tem sido tomada independente
do sentido, como se este fosse previamente estabelecido e, de alguma maneira recíproca,
independente dela ou, mais radicalmente, como se fosse algo que se opõe a ela. Essa visão
é ingênua e redutora. Na verdade, não existe uma oposição entre forma e significado, mas
um jogo dialético no qual os dois elementos, numa conspiração íntima e numa produção
conjunta, contribuem para que o conteúdo se constitua através da fusão de uma forma e de
uma substância, entendida aqui como sentido, significação, efeito de sentido etc.
Apresentamos aqui um exemplo radical da relação entre a forma e o sentido textual.
Vejamos o texto:
O Dom
Não te amo mais.
Estarei mentindo dizendo que
Ainda te quero como sempre quis.
Tenho certeza que
Nada foi em vão.
Sinto dentro de mim que
Você não significa nada.
Não poderia dizer jamais que
Alimento um grande amor.
Sinto cada vez mais que
JÁ TE ESQUECI!
E jamais usarei a frase:
EU TE AMO!
Sinto, mas tenho que dizer a verdade:
É tarde demais...
(Clarice Lispector)
134
O texto acima apresenta duas possibilidades de leitura, uma de cima para baixo, e
outra de baixo para cima. Percorrendo o caminho de ambas as leituras percebemos um sen-
tido reverso, o que transmite a relatividade do amar / não amar. Se, por uma lado, é na for-
ma poética que o texto se materializa, por outro lado, todo texto tem de fazer sentido. Então
é pela conspiração entre forma e significação que o texto comunica. Assim, caracteriza-se,
no poema, o fato de que a dicotomia forma /significação é na verdade uma ilusão, já que
ambos são indissociáveis. No texto acima, a construção do sentido poético só se realiza
plenamente pelo aspecto da indissolubilidade dessas duas instâncias poéticas. É aí que resi-
de “O Dom” da poesia, de que fala o título do texto.
Uma forma não retrata nem cria um conteúdo; na verdade ela faz que o conteúdo apa-
reça. Igualmente, um conteúdo suscita uma forma, exige um trabalho de escolha para en-
contrar a melhor maneira de fazer-se aparecer. Desse modo, o conteúdo pressiona no senti-
do da seleção da forma. Nenhum elemento preexiste ao outro; ambos funcionam dialetica-
mente, numa operação de conjunção e solidariedade.
Fixamos que no processo de construção da linguagem há um jogo sutil que envolve a
forma e o sentido. A ausência de uma embreagem com a realidade concreta não significa
que a linguagem não tenha qualquer ancoragem na realidade e muito menos que não se
produza um resultado específico ou um efeito de sentido a partir da forma como lingüisti-
camente se representa a realidade. O trabalho com a linguagem tem de ser visto como uma
maneira de relacionar uma forma e um sentido, pois uma obra solicita e manifesta os pro-
cessos de escolha entre modos de estruturação diferentes.
O sentido de um texto é dado pelos elementos pertinentes da linguagem, que se orga-
niza numa determinada forma, resultante do trabalho de um sujeito. Se o papel precípuo da
linguagem é comunicar conteúdos, não podemos aceitar a existência de formas lingüísticas
semanticamente neutras. Assim sendo, deve-se ressaltar o papel da forma como construtora
do sentido textual. Como essa forma se dá por escolha, como possibilidade e não como
necessidade, podemos ver nessa escolha uma intenção semântica que se ressalta na forma.
Por isso, uma abordagem do estilo, para ter alguma significação que não se situe apenas no
nível da análise do discurso, deve considerar dois fatores fundamentais que atuam dialeti-
camente: o papel da forma na constituição do sentido e a ação do sentido com um condicio-
nador da escolha de uma forma.
135
Como o sentido é fornecido pelos elementos pertinentes da linguagem, o estilo, que se
constrói no trabalho do sujeito com elementos não-pertinentes, constitui uma individuação
cuja forma enfatiza o sentido de um texto. Sintetizamos:
Elementos pertinentes Æ construção do sentido
Elementos não-pertinentes Æ reduplicação do sentido
Pelo que se vê, a função do estilo é redobrar esteticamente o sentido, ou seja, dizer de
outra maneira, através de elementos intencionalmente marcados. Dessa maneira, rompe-se
a noção de arbitrariedade do signo lingüístico, e este, pela ação estetizante e reduplicadora
do estilo, se transforma de signo arbitrário em signo motivado, frente à percepção do de-
codificador no confronto com o texto e na relação da linguagem com o mundo. Nessa di-
mensão filosófica, por força do seu valor estético-expressional, o estilo se manifesta como
redundância, pois, além do processo natural da referenciação, a formação estilística do dis-
curso contribui, esteticamente, para a construção do sentido textual, o que põe por terra a
noção de neutralidade semântica e gratuidade estética da configuração formal, como se
pode observar nos exemplos abaixo.
Vejamos inicialmente este fragmento do poema “Canção do Vento e da Minha Vida”,
de Manuel Bandeira:
O vento varria as folhas,
O vento varria os frutos,
O vento varria as flores...
E a minha vida ficava
Cada vez mais cheia
De frutos, de flores, de folhas.
136
No fragmento apresentado, as aliterações com os fonemas /v/ e /f/ não são uma “mu-
sicalidade” gratuita
46
. Elas redobram esteticamente um sentido já expresso no fio do discur-
so, qual seja o do som do vento, que varre as folhas, os frutos e as flores, sugerindo o as-
pecto volátil e fugaz da existência humana, indiciado no próprio título do poema.
Apreciemos agora este poema concretista de José Paulo Paes:
Epitáfio para um banqueiro
n e g ó c i o
e g o
ó c i o
c i o
0
Abolindo a sintaxe tradicional o texto elabora uma forma de comunicação poética de
apelo visual. Para tanto, o poeta emprega processos que visam a atingir e a explorar as ca-
madas materiais do significante – o som, a letra impressa, a linha, a superfície da página,
rejeitando toda concepção poética que esgote no tema ou na realidade psíquica do emissor o
interesse e a valia da obra. A palavra se manifesta em três dimensões, simultaneamente:
verbal – aspecto semântico; oral – aspecto sonoro; visual – aspecto gráfico. Daí a síntese
do aspecto verbivocovisual da poesia concreta. Em termos genéricos, o texto é identificado
como um poema-objeto, mas um objeto de linguagem, que constitui, pela forma, uma rea-
lidade em si, não um poema sobre uma realidade. A comunicação poética do texto não se
faz no nível do tema, mas no nível da própria estrutura verbo-visual, em que o signo lin-
güístico atinge a dimensão de palavra-coisa.
Aqui, percebe-se, de forma irrefutável, a mais íntima conspiração entre a forma e o
sentido. Neste poema, em que se faz um “Epitáfio para um banqueiro”, pela via de uma
configuração formal peculiar, enfoca-se um tema literário ligado ao universo atual do Capi-
talismo, cujo núcleo semântico é o “negócio”, do qual se extraem as noções do egoísmo,
que resulta na solidão do indivíduo e até mesmo na falta de comunicação que o leva ao iso-
46
Sobre a questão da musicalidade no texto poético, ver o capítulo A Estrutura Poética do Texto deste traba-
lho.
137
lamento nos limites de sua própria existência. Assim, o mundo aparece deformado por uma
visão existencial individualista, sustentada pela ganância e pela falta de altruísmo.
É interessante notar que o poeta decompõe a palavra “negócio” em signos fortemente
sintomáticos – “ego”, “ócio”, “cio” e “0” (zero) –, que se erguem de uma base morfo-
semântica por si só denunciadora. Nessa operação, resume-se o que seria o núcleo filosófi-
co da existência de um banqueiro. Entendendo-se o último signo como zero, pela própria
natureza algo estranho ao universo da poesia, o que constitui de certo forma um grau de
impertinência, deparamos com o resultado de uma equação em que poeticamente se fundem
a adição e a multiplicação. Essa equação, porém, se faz em dois estágios e conseqüente-
mente apresenta dois resultados relativos, um positivo e outro negativo.
O primeiro estágio situa-se na esfera reduzida da vida material, em cuja operação os
elementos convivem numa semântica equativa que pode ser assim resumida:
negócio = ego + ócio + cio.
O segundo estágio situa-se na esfera da vida espiritual, onde se denuncia o fracasso da
existência pela ocorrência inexorável da morte, em cuja operação convivem os mesmos
elementos numa semântica equativa acrescentada de um elemento denunciador de um nii-
lismo fatalista, que pode ser assim sintetizada:
negócio = ego + ócio + cio = 0 (zero).
É evidente que esses sentidos e seus efeitos não poderiam ser percebidos e captados senão
pela forma do estilo que proporciona o seu aparecimento, forma essa que é fruto de um
trabalho de elaboração do sujeito, pressionado por uma determinada intenção e por uma
conjuntura social que promovem as sobredeterminações da estrutura do discurso poético.
Note-se este trecho da prosa poética de Guimarães Rosa, em “Grande sertão: veredas
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as cau-
das, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de guampos,
estrondos de baques, e o gado junqueira, de chifres imensos, com muita tristeza, saudades
dos campos, querência dos pastos, de lá do sertão...
138
O autor explora, numa organização sintática insólita, o ritmo frasal no qual ressoam
cadências populares e medievais das redondilhas, para apreensão de um momento que se
situa entre o material e o psicológico. O ritmo das redondilhas sugere o caminhar compas-
sado da boiada, entremeado de incidentes que a forma da linguagem providencialmente
denuncia. Ao lado do ritmo, a escolha de certas palavras redobra o sentido da mensagem. O
emprego intencional da palavra “estralos”, variante de estalos, sugere, pelo grupo conso-
nantal /tr/, o crepitar dos “guampos” (chifres), no atropelo da massa embolada do gado,
também reduplicada no sintagma “estrondos de baques”, através da exploração da camada
sonora da linguagem.
Retomemos agora este poema semântico-descritivo de Oswald de Andrade:
Ao longo da linha
Coqueiros
Aos dois
Aos três
Aos grupos
Altos
Baixos
O poema se organiza a partir de justaposições, numa seqüência sintática que opera
propositadamente com certos apagamentos sintáticos e elipses mentais caracterizadores de
um ponto de vista particular. As imagens sugeridas se corporificam pela combinação do
título com o corpo do poema. No processo de referenciação, a introdução do referente “co-
queiros” transforma-o de objeto de mundo em objeto-de-discurso, re-categorizado no fio
discursivo. Apoiado numa anáfora inferencial, este referente é relacionado a um referente
base – ao longo da linha” –, construindo um sentido textual, a partir do qual se percebe
uma paisagem dinâmica vista do interior de um vagão ferroviário em grande velocidade. A
disposição estético-formalista do poema nos proporciona, pela organização da linguagem, a
sensação de percepção de uma cena dinâmica captada com a precisão de uma objetiva ci-
nematográfica, atestando a conjunção da forma com o sentido.
Analisemos ainda este poema fono-semântico de Manuel Bandeira:
139
Trem de ferro
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim
Café com pão
Agora sim
Voa fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força
Oô...
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
No riacho
Que vontade
De cantar!
140
Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
Oô...
Vou mimbora
vou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Oô...
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
Todo conteúdo, pelas pressões que exerce, suscita uma forma e uma significação (es-
tendido aqui à noção de significado, sentido ou efeito de sentido) na construção de um tex-
to. Em se tratando de um gênero peculiarmente marcado como é o gênero poético, essa
pressão se faz notar de forma mais relevante, seja pelo reconhecimento de sua estrutura
cristalizada, que exige por parte das instâncias actanciais uma atenção específica, seja pelo
tipo de trabalho que esta estrutura determina para a construção de um sentido.
O título do poema direciona a captação da semântica do texto. A partir do referente
Trem de ferro”, o leitor infere o sentido que se manifesta na camada fônica e no ritmo da
linguagem do poema. O processo de referenciação ativa na memória discursiva do leitor um
conjunto de fatores relacionados aos referentes que se categorizam e recategorizam como
objeto-de-discurso na interação discursiva. Percebe-se que o trabalho do construtor do texto
é moldado por uma intencionalidade em que as várias categorias da linguagem (fônica, rít-
141
mica, mórfica, sintática, discursiva) atuam em níveis que anulam qualquer noção de gratui-
dade meramente estética, embora o fator estético seja em particular o ponto de chegada no
estilo do texto poético.
Mas é preciso que essa dimensão estética não seja vista apenas como resultado, o que
seria uma atitude extremamente redutora da atividade linguageira. Antes, propomos, mais
uma vez, que se veja a produção conjunta da forma e do significado para a construção do
estilo e conseqüentemente de um sentido estético que emana daí.
O material fônico do poema tem um caráter funcional que se pode comprovar sob
várias interpretações. Os três versos iniciais compõem-se de vocábulos que se iniciam com
as consoantes oclusivas /k/ e /p/, como se revelasse o esforço inicial para o rompimento da
inércia da composição, em movimentos bruscos, entrecortados por um deslizamento suge-
rido pela consoante fricativa /f/. É interessante notar que a repetição desses versos é tam-
bém marcado por um semitravamento silábico formalmente representado pela semivogal,
do ditongo nasal ao final de cada verso, numa reduplicação de sentido, que assim represen-
tamos:
Café com pão — /k/ – /f/ – /k/ – /p/ – /ãw/
Café com pão — /k/ – /f/ – /k/ – /p/ – /ãw/
Café com pão — /k/ – /f/ – /k/ – /p/ – /ãw/
No quarto verso, ocorre uma harmonia imitativa marcada pela assonância da vogal
tônica fechada /i/, que, numa variação estilística processualmente prolongada e entrecortada
por uma pausa, remete a memória do leitor, segundo os princípios da cooperação griceana,
ao ecoar do apito longo da locomotiva:
V
irge Mariaque foi – isso maquinista[iiiiiii-iiiiiii][iiiiiii-iiiiiii]
A partir da terceira estrofe, os versos terminam em vogal, sem qualquer tipo de tra-
vamento silábico, o que pode ser interpretado como o deslocamento livre do trem de ferro
já em velocidade acentuada. A exceção se encontra em dois versos que podem ser particu-
larmente analisados: “Café com pão
cujo semitravamento silábico pode ser interpretado
como o esforço final para vencer a inércia do trem, e “De cantar!” (“Que vontade / de can-
142
tar!”) – que mais representa uma manifestação psíquica e, portanto, fora do dinamismo da
cena exterior.
A cadência do poema, nos seus versos curtos, de ritmo ligeiro, sugere o deslocamento
de uma composição ferroviária em dois estágios. Inicialmente, um ritmo lento, marcado
pelas circunstâncias já descritas; a seguir, um ritmo acelerado, ininterrupto, marcado pela
cadência das cesuras binárias dos versos trissilábicos e tetrasslábico.
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada ,
modificado pelas redondilhas menores:
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficiá
,
que se alternam com versos trissílabos:
Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
,
num movimento uniformemente variado. É de se notar a constância aliterada da consoante
bilabial /p/, como a sugerir a sonoridade mecânica no deslocamento do trem de ferro.
143
Quanto ao aspecto morfológico, sua contribuição ocorre em conjunção com o aspec-
to gráfico dos vocábulos, através do qual se percebem as marcas construtoras de um senti-
do. A grafia de certos vocábulos – “Virge”, “prendero”, “canaviá”, ”oficiá” – e da expres-
são “vou mimbora”, revela como o autor se apropria individualmente de uma determinada
conjuntura social lingüisticamente marcada, indicando a ambiência rural que compreende a
trajetória do trem de ferro.
O tratamento sintático em muito contribui para o sentido do poema, a começar pelo
predomínio das orações coordenadas e a ausência da pontuação, que libera os constituintes
sintagmáticos, bem como as orações, coordenadas ou subordinadas, para a integração do
ritmo imposto no discurso poético. Além disso, certas reiterações, que, bem longe de serem
gratuitas, vão além de um recurso meramente enfático. Elas são, na verdade, recategoriza-
ções de um referente, ao qual se acrescenta, num somatório progressivo, um novo sentido
no processo de referenciação, a cada estágio de sua repetição.
Vejamos:
Muita força
Muita força
Muita força
(...)
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...
Não deixa de despertar interesse, no último verso do poema, como se vê acima, o em-
prego das reticências, indicando que o pensamento do leitor deve ir além do que está escri-
to, sugerindo a continuidade da marcha ininterrupta do trem, que segue sua viagem em di-
reção a um horizonte que se vislumbra ao longe, e criando uma imagem altamente sugesti-
va em que se fundem fantasia e realidade, num apelo providencial à memória do leitor, a-
trelado às práticas vivenciais alimentadas pela imaginação.
É ainda sintomática, na organização sintática do discurso, uma sutileza que, apesar do
ritmo linear do poema, não deixa de chamar a atenção nos versos abaixo. E essa sutileza se
torna mais significativa pela alternância ou repetição do timbre das vogais tônicas:
144
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pasto
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçado
No riacho
Nota-se que, nos dois primeiros versos do segmento acima destacado, os vocativos
bichos” e “povo” são referentes que entram como objeto-de-discurso em situação de ativi-
dade, o que revela a quebra da quietude rural, provocada pelo pedido para passagem do
trem, soberano no seu trajeto irrefreável. Por outro lado, a partir do terceiro verso, os refe-
rentes “ponte”, “poste”, “pasto”, “boi” e “boiada” são objetos-de-discurso tomados como
sujeitos inergativos, passíveis, absolutamente imunes à passagem do trem, que nada lhes
diz, mas, como parte da paisagem, são alvo de apreciação do leitor, transformado em um
viajante que goza com o olhar puro e poético de uma criança a poética viagem do trem de
ferro – “Café com pão ... Café com pão ... Café com pão...
Finalmente, tomemos este poema fonético – Die Schacht (A Batalha) – de Ludwig
Kassak, que explora a “semântica” do significante constituída a partir do letrismo.
Berr... bum, bumbum, bum...
Sssi... bum, papapa bum, bumm
Zazzau... Dum, bum, bumbumbum
Prã, prã, prã... ra, há-há, aa...
Hahol...
Observa-se que a exploração do significante resulta em um complexo de significações
que se acoplam à noção das explosões de uma guerra. Não se fala sobre elas, o poema re-
produz redundantemente a sonoridade, mostrando o processo da batalha de que fala o título.
145
Pelos exemplos analisados, percebe-se que, entre autores ou no mesmo autor, a esco-
lha da forma poética varia formalmente em contextos de diferentes formalidades. A indivi-
duação é relativa, ou seja, em níveis de estruturação diversos, haverá tipos diversos de re-
dundância. Para assuntos “nobres”, uma forma socialmente mais elevada:
Oferta
Saibam quantos estes meus versos virem
Que te amo
Do amor maior
Que possível for
(Oswald de Andrade)
para assuntos triviais, uma forma menos elevada, tendendo à informalidade:
A Europa curvou-se ante o Brasil
7 a 2
3 a 1
A injustiça do Cette
47
4 a 0
2 a 1
2 a 0
3 a 1
E meia dúzia na cabeça dos portugueses
(Oswald de Andrade)
Esta adequação entre a constituição formal e o assunto que serve de tema ao poema
reforça a relação entre a forma e a significação, ainda que se trabalhe com elementos não-
pertinentes ao sistema, porque, afinal, o uso de tais elementos, para constituir um estilo,
tem de ser minimamente estruturado.
Em casos de estereotipia, a redundância, que na verdade é a forma redobrada do con-
teúdo, ocorre em menor escala, porque não há grau acentuado de individuação. Nesse caso,
a captação do estilo do autor depende da cooperação do leitor, que, em conseqüência da sua
vivência literária, é capaz de identificar o autor pelo tipo de trabalho que este costumeira-
mente realiza. Mas aqui é preciso mais uma vez que se leve em consideração as noções de
47
Cette – hoje Sète, cidade francesa. O texto é uma referência a uma derrota da Seleção Brasileira de Futebol
durante uma excursão internacional que causou sensação à época.
146
necessidade e possibilidade. Como já se disse, um texto não precisa necessariamente ser
como é; ele só assume uma determinada forma pela escolha deliberada do autor, que por
essa forma acentua a significação e marca seu estilo. Assim, uma forma estereotipada pode
atestar o estilo em uma outra dimensão. A estereotipia, por si só, já constitui uma modali-
dade estilística marcada por uma escolha. E é essa escolha que põe em pauta o trabalho de
individualização do autor, cuja proposta é apagar a individuação da forma, fazendo ressal-
tar, propositadamente, a forma estereotipada de um determinado gênero, agora poeticamen-
te tratado e por isso mesmo reinterpretado na atividade de recepção.
Vejamos como isso ocorre neste poema de Oswald de Andrade:
Maturidade
O Sr. e a Sra. Amadeu
Participam a V. Ex.ª
O feliz nascimento
De sua filha
Gilberta
O poema é uma espécie de “ready-made”, caracterizado pela mera transcrição de uma
fórmula de cortesia, que, destacada do seu contexto habitual, ganha um inesperado sentido
crítico e conseqüentemente um sentido poético. Esse destaque do contexto habitual, esse
deslocamento da normalidade do eixo semântico traduzem o trabalho da formulação poéti-
ca do autor, constituindo sua criatividade estilística numa dimensão que exige do leitor uma
observância mais apurada para o reconhecimento do texto poético.
* * *
Consideradas estas questões, é ingênuo não ponderar a relação entre forma e signifi-
cado. É necessário que se abandone a tradicional oposição entre ambos e se verifique sua
produção conjunta, visto que, a noção de trabalho leva em conta, prioritariamente, não um
resultado, mas um processo. Assim, a preocupação primeira ao confrontar o estilo não deve
ser com o trabalho do ponto de vista do autor nem tampouco com sua caracterologia ou
ainda sob o ponto de vista da conjuntura lingüística. Esses elementos, ainda que não sejam
totalmente ignorados ou desprezados, não devem constituir o fundamento da investigação
147
estilística. Não é neles que estão as marcas do estilo que contribuem para a construção do
sentido textual.
Tudo o que diz respeito ao estilo deve se resumir no ponto de vista fundamentalmente
da obra. Afinal é na sua forma que se manifestam os processos de escolha entre os modos
de estruturação diferentes. Assim, ela é que, de fato, representa o modo como o estilo se
caracteriza. É no enfoque da obra mesma, na sua materialidade, que se percebe o trabalho
do autor. O texto é o lugar da interação e das intervenções do autor com a estrutura do idi-
oma, para a criação dos traços não-pertinentes; portanto é nele que o lingüista deve enxer-
gar o trabalho estilístico e a criatividade na linguagem, onde, numa relação dialética de
forma e sentido se constrói processualmente a dimensão estética da obra poética.
148
3. — A ESTRUTURA POÉTICA DO TEXTO
Antes de iniciarmos nossa discussão sobre a estrutura poética do texto, faz-se necessá-
rio um esclarecimento, para nós fundamental. Procuramos delimitar, de antemão e mais
uma vez, o alcance do nosso trabalho sobre esse objeto tão fascinante que é o texto poético.
Todo texto poético é, por excelência, um produto artístico-literário. Ele é, portanto, um ob-
jeto de estudo reivindicado pela ciência da Teoria da Literatura. Com justa razão, os teóri-
cos da Literatura se ocupam dele como elemento merecedor das suas reflexões e conceitua-
ções. Nada mais justo que um crítico literário, um professor ou um estudante de Literatura
se debruce sobre ele nas mais minuciosas investigações. Nada mais adequado que a Litera-
tura se ocupe dele como um componente do seu corpus.
Mas o texto poético é também, e antes de mais nada, um produto da linguagem huma-
na, produzido e interpretado com material lingüístico e, como tal, não pode fugir à esfera do
interesse dos estudos da Lingüística. Assim, é também produto de interesse do lingüista. É
aqui, dizemos mais uma vez, que nos situamos. O que se propõe nesse trabalho é uma in-
vestigação do texto poético como produto lingüístico, é verificar, sem o intuito de limitar,
até onde se pode chegar com a linguagem na produção dos textos e investigar o uso da lin-
guagem em suas mais diversas formas de manifestação. Deixamos claro que não é nossa
pretensão ultrapassar os limites (se há limites, pelo menos claramente) das investigações da
linguagem como foco dos nossos interesses.
Sabemos que os estudos literários vêem os textos poéticos como monumentos artísti-
cos de uma determinada época – clássica, romântica, moderna – carregados de conceitos
estéticos, filosóficos e ideológicos, em consonância com o momento de sua manifestação.
Mas sabemos também que a linguagem é um organismo vivo que se manifesta dentro da
cultura de um povo em um determinado momento de sua cultura, o que obriga a tarefa do
lingüista a situar-se em um momento da história da cultura da língua.
É assim que este trabalho se destina a investigar a estrutura do texto poético sob a
ótica da Lingüística, a partir da observação do plano da expressão e do plano do conteúdo.
Como já se disse, não nos cabe aqui o papel que se costuma atribuir à crítica literária. Se
em alguns instantes do nosso trabalho viermos a tangenciá-lo, será muito mais por necessi-
dade em busca de soluções de impasses do que por pretensões exegetas. O que nos interessa
149
de perto são os aspectos lingüísticos que estabelecem a poeticidade de um texto, ou seja, a
estrutura da linguagem poética, a fim de que possamos alcançar na investigação da lingua-
gem a dimensão estético-formalista que o caracteriza. Para tanto, procedemos à investiga-
ção do texto sob a perspectiva da literariedade lingüística e buscamos estabelecer uma fron-
teira, ainda que não tão nítida, entre o poético e o não-poético através dos estudos de uma
estilística moderna e, conseqüentemente, de alcance mais amplo.
Visamos aqui estabelecer os princípios que separam o estilo de uso coletivo do estilo
como criatividade estética, através dos desvios daquilo que se costuma estabelecer como
linguagem normal, ou, em outra terminologia, o grau zero da linguagem, como quer Ro-
land Barthes
48
. Para melhor esclarecimento desses fatores, e por considerarmos que a poe-
sia é linguagem em processo esteticamente estilizado, apoiamo-nos na concepção filosófica
do estilo visto como trabalho, verificando o processamento de construção da linguagem e
não apenas o produto lingüístico estruturado.
Nesse processo de construção da linguagem, observamos a escolha como atividade e
elemento gerador do estilo, sob cuja concepção se oculta a manifestação de uma intenção
estética. A partir daí, intentamos definir a criação poética como uma união sutil de intenção
criadora e expressão artística, e procuramos relacionar a eleição (escolha) feita com a pala-
vra pelo criador e a correspondente intenção que se radica no estudo dos meios de expres-
são – a linguagem.
3.1. – A Estrutura Lingüística do Texto Poético
Um dos problemas mais complexos do texto poético encontra-se na tentativa de de-
terminar onde reside o fator nuclear que estabelece e garante sua poeticidade. Sabe-se que,
na maioria das vezes, costuma-se medir a dimensão poética de um texto pelo seu aspecto
anedótico. Em outras palavras, é comum o valor poético do texto ser relacionado às refe-
rências que ele veicula, e o poema ser considerado mais ou menos poético pelo tipo de te-
mática que o poeta se propõe a desenvolver. Sem querer invadir os domínios da Teoria da
Literatura, visto que nosso trabalho se situa na esfera da Lingüística, acreditamos que esse
48
BARTHES, Roland (1975)
150
pensamento põe em jogo um conceito básico: o de que a literatura se manifesta como a arte
da palavra.
Um poema de natureza filosófica, pela própria essência e nobreza do tema, estaria em
uma escala poética maior que um poema que se propusesse a abordar assuntos prosaicos do
cotidiano? Já foi constatado que esse conceito de poesia não foi capaz de sustentar as con-
cepções da modernidade que afetaram as produções poéticas atuais. Também é notório que
existem maus poemas com temas “nobres” e bons poemas cujos temas são extraídos da
realidade prosaica e imediata do cotidiano. Há poetas “filósofos”, cuja poesia se manifesta
na contemplação reflexiva da existência, e há poetas do cotidiano, cuja poesia se manifesta
na apreensão de realidades comuns e aparentemente apoéticas, o que põe em discussão a
valoração da poesia a partir da temática desenvolvida no poema como objeto artístico. En-
tão, onde procurar a essência poética de um texto?
Antes de mais nada, procuramos evitar aqui a noção ingênua de que o significado
textual não tem importância para a dimensão poética do texto. Afinal, o que caracteriza um
texto, literário ou não-literário, é a unidade de sentido que ele é capaz de portar em si. Um
texto que não comunica não pode ser caracterizado como tal. O que queremos discutir é se
o sentido textual, por mais atraente que possa parecer, é suficiente para caracterizar um
texto como poético e, a partir daí, buscar o cerne da questão poética como elemento da ma-
terialidade lingüística.
Como afirma a Lingüística Textual, um texto, poético ou não-poético, é muito mais
que a soma das suas partes e, como tal, ele tem que constituir um sentido. O sentido básico
que encontramos em um texto poético pode ser encontrado em um texto não-poético. As
relações semânticas dos enunciados constituem o efeito de sentido de um texto. Inegavel-
mente todo texto é capaz de comunicar, e a comunicação é campo específico da linguagem,
e em particular da linguagem verbal, sobre a qual passamos a fazer algumas considerações.
A linguagem se compõe de duas realidades, existentes por si sós e independentes uma
da outra. A tais realidades, Saussure denomina significante e significado, e Hjelmslev cha-
ma expressão e conteúdo. Como se sabe, o significante é a cadeia fônica articulada, e o
significado é a idéia conceitual de uma determinada coisa, estendida à própria coisa, à coisa
em si. Tais realidades constituem o que se denomina signo lingüístico. Assim, o signo lin-
güístico é composto de dois elementos que remetem um para o outro, e esse processo de
remissão constitui o que se costuma chamar de significação.
151
Essas realidades, consideradas em si mesmas, não são propriamente lingüísticas, visto
que são elementos físicos, existentes no mundo material; são, portanto, substâncias. Mas
essas substâncias se expressam em uma determinada forma. Assim, tanto no plano da ex-
pressão quanto no plano do conteúdo, é preciso distinguir uma forma e uma substância.
Enquanto a substância é a coisa em si, com sua dimensão física, da qual a linguagem lança
mão ou para a qual aponta; a forma constitui o conjunto das relações estruturais estabeleci-
das por cada elemento dentro do sistema lingüístico, e é esse conjunto de relação que dá a
tais elementos a condição de desempenhar lingüisticamente sua função no sistema.
Analisando o plano da expressão, percebemos que a substância é de nível fonético e a
forma é de nível fonológico, o que significa dizer que aquela é meramente acústica, e esta é
de caráter estrutural. Dito com outras palavras e ressalvando-se alguns traços supra-
segmentais, como a acentuação e a tonalidade frasal, a substância se encontra na variação
da fala, que obedece a fatores psicológicos, emocionais e regionais quando da emissão dos
fonemas. A forma encontra seu lugar na pertinência lingüística dos fonemas, encampados
como elementos estruturais por seu feixe de traços distintivos. É bom lembrar que o fone-
ma, sendo sinal e não símbolo, por si só não significa, mas dá significado, e essa significa-
ção advém das relações que cada fonema estabelece com outros na cadeia da fala.
Na projeção da fala, notam-se diferentes maneiras de pronunciar uma palavra. Isso
significa dizer que, em tal palavra, do ponto de vista meramente acústico, não há diferença
estrutural. As alofonias não constituem traço pertinente na estrutura do idioma. Se, no Rio
de Janeiro, ocorre a pronúncia carta com o /r/ velar e em algumas regiões de São Paulo a
pronúncia é realizada com o /r/ retroflexo, não se tem um novo signo lingüístico. Essa é
uma diferença apenas de natureza fonética, isto é, da produção do material acústico, e, con-
seqüentemente, não é propriamente lingüística, como o é, por exemplo, entre carta e casta,
em que a diferença é de natureza fonológica e conseqüentemente opositiva.
Observando agora o plano do conteúdo, notamos que a substância é a realidade men-
tal ou ontológica, isto é, de natureza semântica, e aponta para um ser que está no mundo,
para uma realidade extralingüística referenciada pela linguagem, ao passo que a forma é a
relação sintagmática que se configura na cadeia vocabular, ou seja, é a realidade tal como é
estruturada pela expressão. O fato é que o sentido de uma palavra só emana no jogo das
suas relações de oposição com outras palavras da língua.
152
Quando esses conceitos se ampliam para a construção da frase, notamos que é possí-
vel dizer a mesma coisa – a substância – com estruturações distintas – a forma. Em outras
palavras, dizer “No século passado, meu avô presenciou o eclipse solar.” é traduzir para
uma linguagem mais simples a frase “Na pretérita centúria, meu progenitor presenciou o
acasalamento do astro-rei com a rainha da noite.” Ambas as frases têm exatamente o
mesmo significado, significado este que se traduz em substância, mas se revela em estrutu-
rações distintas, estruturações tais que configuram a forma. O significado das frases está
acoplado ao mundo, aos fatos exteriores à linguagem, à realidade da qual se pode falar ou
que simplesmente se pode vivenciar.
Essas discussões sobre o plano da expressão e o plano do conteúdo vão ao encontro
do conceito saussuriano de que “A língua é forma e não substância.” A língua é um sistema
abstrato de regras que só se manifesta verdadeiramente quando tal sistema é posto em exe-
cução. E são essas regras que estabelecem na língua as relações de oposição através dos
traços distintivos dos elementos formais, relações estas que nos permitem o processamento
para a materialização do pensamento.
Como se vê, sem que desprezemos o valor de troca dos signos lingüísticos, sem que
viremos as costas para os valores inter-relacionais que emanam do intercâmbio linguageiro
no processo de semiotização do mundo
49
, acabamos por cair numa concepção estruturalista
da língua. E não nos esqueçamos, providencialmente, de que o Estruturalismo se volta para
a interioridade do sistema lingüístico, investigando suas engrenagens de funcionamento
interno a serviço da construção do sentido.
Para maior esclarecimento, observemos o gráfico:
Plano da expressão
formasubstância
(fonema) (fone)
Plano do conteúdo
formasubstância
(sintagma) (sentido)
LÍNGUA
49
Ver CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolingüística do texto e do discurso.In PAULIUKONIS,
Maria Aparecida & GAVAZZI (orgs.), Da Língua ao Discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005
153
Quanto ao material lingüístico do texto poético, é preciso também que se observem
certas particularidades. Quando se toma a linguagem poética como objeto de estudo, nem
sempre se define tal objeto com clareza. Na verdade, há duas formas de encarar o poema:
uma que é lingüística e outra que não o é. Seguindo as lições de Jean Cohen
50
, aplicaremos
à própria linguagem, quer dizer à mensagem lingüística, a mesma visão formalista que o
Estruturalismo aplica ao sistema lingüístico.
Se, dentro de uma mesma língua, prosa e poesia distinguem dois tipos diferentes de
mensagem lingüística, duas mensagens podem se opor, tanto no plano da expressão quanto
no plano do conteúdo, seja pela forma, seja pela substância. Como a mesma substância
pode ser expressa de diferentes maneiras, é na forma que nosso trabalho irá procurar a ori-
gem da diferença que sustenta a dimensão poética de um texto em relação a um texto não-
poético. Passemos às considerações do texto poético.
3.1.1. – O Plano da Expressão
Considerando em primeira mão o plano da expressão, confrontamos a dicotomia ver-
so-prosa. De imediato, tomemos a prosa como uma forma de expressão continuada, que se
organiza em parágrafos, e o verso como o conjunto de palavras que formam, dentro de
qualquer número de sílabas, uma unidade fônica e melódica, sujeita a um determinado rit-
mo. Referir-se ao verso dessa maneira é situar-se na esfera onde o verso é considerado na
linha, sem atender à unidade de sentido.
O verso se baseia no metro e na rima, e a princípio, tomado em si mesmo, visto ape-
nas na sua dimensão substancialista, não é uma unidade significativa e não é, portanto, per-
tinente. Se uma palavra rima ou deixa de rimar, não tem, por conta disso, sua significação
alterada. O mesmo ocorre com uma mensagem, que também não altera seu sentido em con-
seqüência de um determinado número de sílabas. E sabemos que sílaba e fonema são uni-
dades menores que a palavra ou monema, ou seja, que a unidade mínima de significação.
Pode-se concluir, a partir do que se expôs, que metro e rima não são elementos lin-
güisticamente pertinentes, já que constituem uma superestrutura que altera apenas a subs-
tância sonora, isenta de qualquer valor semântico, portanto sem qualquer funcionalidade
50
COHEN, Jean.Estrutura da Linguagem Poética. São Paulo: Cultrix, 1974
154
propriamente lingüística. Visto desse prisma, funcionalmente o discurso versificado equiva-
le ao discurso prosificado. E, se o verso traz alguma contribuição estética para o poema,
essa contribuição está no verso em si mesmo, portador de uma ornamentação sonora de
efeito estético próprio, mas que em nada contribui para o valor semântico do poema.
Mas por trás dessa aparente simplicidade oculta-se um conjunto de valores que mere-
cem ser confrontados, entre eles a questão da musicalidade poética. Não há como negar a
existência de uma música no verso, música que agrada por si mesma. É irrefutável que há
um certo hedonismo na repetição regular de certas cadências e de certos sons na recitação
poética. Assim, esta concepção de verso talvez não seja totalmente equivocada, mas rejei-
tamos a idéia de que o verso se preste unicamente a isso e não acreditamos que seja esta a
função mais importante da versificação.
Quando a poesia se separou da música, ela renunciou a uma parte considerável de
seus recursos musicais. Na língua portuguesa – para não irmos longe –, desde o período da
Poesia Palaciana portuguesa, os poetas buscaram nos recursos lingüísticos as potencialida-
des literárias da poesia, e a música deixou de ser a muleta em que o texto poético se susten-
tava. Dessa maneira, o texto poético passou a ser estudado como texto em si mesmo, e o
verso tornou-se um componente poético que vai além da musicalidade.
Buscaremos no chamado letrismo “poético” os indícios da teoria que tentamos defen-
der. O letrismo inventou seus próprios “fonemas”, suas próprias “palavras” na pura subs-
tância sonora, sem remeter o leitor para qualquer realidade. Se é verdade que ele criou sua
própria arte, uma espécie de música concreta e esteticamente válida, também é verdade que
tal arte não pode ser enquadrada na categoria da arte da linguagem. Afinal, linguagem é
significação, e é significação pelo que á capaz de referir através de um processo de “reme-
ter para”, que implica a transcendência para o significado no processo de semiotização.
Não desprezamos aqui as noções de sugestividade ou expressividade que emanam da
emissão do significante, objetos de estudo da estilística fônica. Mas acreditamos que o va-
lor de sugestão e expressão da camada fônica da linguagem só pode ser considerado quando
ancorado em um sistema lingüístico reconhecido por uma comunidade cultural e em con-
textos muito específicos. Os sons estranhos a um sistema lingüístico provocam no falante
uma natural rejeição que é imediatamente confirmada por um vazio semântico, em conse-
qüência da falta de correspondência na estrutura do idioma. E, se esse vazio semântico pode
ser preenchido, isso é feito por meio de certas convenções onomatopaicas estabelecidas por
155
contextos e situações específicas previamente determinadas, como, por exemplo, nas histó-
rias em quadrinhos.
Não acreditamos que a articulação fonética de um poema tenha sentido próprio, como
quer o letrismo. Afinal, não se pode operar livremente com ela, sem as preocupações com
as imposições do sentido. Além disso, a articulação fônica de um poema se limita apenas às
combinações estruturais de fonemas autorizadas pela língua, combinações essas que estão
inscritas na estrutura fonológica de um sistema lingüístico, o que rechaça os sons arbitrários
que são reivindicados como material estético do letrismo. Analisemos este poema:
Fogos
(Impressões de uma noite de S. João)
Tátá... Chiii... Quetá!...
Prráá... Bumbum!!! Búbú!...
Chiii ... Toque ta! Prrráá...
Tique bum! Bambam... Bá...
Chóóó . Xiii... Viut... ú...
Brra... Chiiin... papàu!
Tatá! prrr... Bóóó...
Ti bum! Crr... Fiáu...
Crro óóó . Xin... Bóbó!...
Prr... Brrrá... Chiii... Tibão!
— O’i o balão! O’i o balão Santos Dumão!..
(Correia Júnior)
Os versos que apelam para o letrismo não têm qualquer significação autônoma. Se
eles são portadores de um sentido, este sentido é sustentado pelas indicações presentes no
poema – o título (Fogos), o subtítulo (Impressões de uma noite de S. João) e o último verso
(
— O’i o balão! O’i o balão Santos Dumão!...) –, que fornecem um contexto semântico para
que os demais versos se transformem em signos onomatopaicos, que não remetem para a
realidade, mas apenas a representam através de um processo de harmonia imitativa.
Retomemos agora este poema fonético de Ludwig Kassak, que explora a “semântica”
do significante constituído na perspectiva do letrismo.
156
Die Schacht
Berr... bum, bumbum, bum...
Sssi... bum, papapa bum, bumm
Zazzau... Dum, bum, bumbumbum
Prã, prã, prã... ra, há-há, aa...
Hahol...
Nota-se que o corpo de poema, como no anterior, encontra sua significação na con-
textualização referida pelo título. O que é interessante notar é que o titulo do poema pode
ser traduzido para a língua portuguesa (Die Schacht = A Batalha), mas os versos permane-
cem originais, o que significa dizer que, por si sós, não constituem uma mensagem, porque
não fazem parte de qualquer sistema lingüístico. Tal como no poema anterior, os versos
constituem signos especiais de face única, em que se anula a dicotomia entre significante e
significado, já que tais elementos, por conta do contexto, não constituem em conjunto ape-
nas solidariedade, mas identidade, através de uma fusão representativa que se configura na
onomatopéia de uma batalha, cujos sons podem ser igualmente representados por qualquer
falante de um determinado sistema lingüístico, mas não pelo sistema lingüístico em si.
Como se vê, o letrismo levou às últimas instâncias a lógica do substancialismo e por
isso mesmo decretou sua inoperância poética, já que, na sua pretensão de ser poema, con-
denou-se a si próprio pela sua incapacidade de significar. Afinal, um poema que não é lin-
guagem não tem significação, e por isso mesmo não pode ser poema. Não é de hoje que
críticos se debruçam com ressalvas sobre os “poemas letristas”. Na sua Anthologie de la
Poésie Française
51
, J. Rousselot inclui alguns “poemas letristas”, mas o faz sob esta obje-
ção: “Contestamos seu caráter poético”.
Sem qualquer pretensão crítico-literária, frisamos que, no plano da expressão, a subs-
tância – materialidade sonora sem caráter estrutural, realidade extralingüística – não confi-
gura linguagem e conseqüentemente não pode se sustentar autonomamente como material
poético, por não se constituir como elemento estrutural da língua. Quando André Martinet
estudou a dupla articulação da linguagem, atribuiu à fonologia e não à fonética o papel da
segunda articulação. Aqui, as unidades são distintivas em suas dimensões hierárquicas: a
frase fonológica, os grupos de força, os vocábulos fonológicos, as sílabas e os fonemas,
51
J. ROUSSELT, J. Anthologie de la Poésie Française. Paris: Seghers, 1962.
157
estes como unidades mínimas constituídos por um feixe de traços fônicos distintivos (fe-
mas), opondo estruturalmente um vocábulo a outro, o que os distingue do fone – som vocal
estudado apenas na sua realização física e articulatória, sem valor estrutural.
O Verso e sua estrutura
A despeito das profundas modificações sofridas pelo verso, das quais logo nos ocupa-
remos, ele persiste como veículo de indiscutível eficácia na formulação poética. Se é ver-
dade que Baudelaire, Cruz e Sousa e Mário Quintana – para só falar de alguns – foram
grandes poetas cuja poesia se manifestou também na prosa, não é menos verdade que o
melhor desses poetas está nas suas produções em verso. O verso não pode ser considerado
um artifício ornamental desnecessário que se aplique a uma linguagem cujo destino poético
reside em outras instâncias. Tanto é verdade que a derrocada modernista fez dele um dos
instrumentos seguros para proclamar sua liberdade de expressão: modificou-o, mas não o
aboliu; flexibilizou-o, mas não o ridicularizou. Contrariamente, um dos pontos da moderni-
dade deu-se exatamente na existência do verso, pelo qual a nova poesia se fez nova, visto
que seu grau maior de irreverência se manifesta na ruptura das leis rígidas da versificação.
Não queremos aqui cometer a heresia de negar a existência ou a beleza da prosa poé-
tica, entretanto a sua limitada produção se destaca por constituir um “desvio da normalida-
de poética”. O fato é que o verso nem é essencial nem inútil, porque o processo de poetiza-
ção abrange os dois níveis da linguagem – o fônico e o semântico. Para comprovação dessa
realidade, lembramos que o poema em prosa existe poeticamente como manifestação de
linguagem, ao passo que o verso “letrista”, como já vimos, só tem existência “musical”.
A poesia pode prescindir do verso, assim como a música pode prescindir do ritmo ou
da harmonia – esta sustentando-se apenas na melodia; aquela apoiando-se na semântica das
imagens poéticas. Mas por que o fariam? Qual seria o grande proveito que tais manifesta-
ções artísticas tirariam? Uma arte para atingir sua plenitude deve lançar mão de todos os
recursos disponíveis de seu instrumento. O poema em prosa, não utilizando todos os recur-
sos fônicos da linguagem versificada, manifesta-se sempre como uma poesia mutilada, co-
mo um texto que quer ser poesia e, apesar da incontestável beleza artística de alguns textos,
não o é por lhe faltarem alguns atributos típicos que só são encontrados no verso. Assim, o
158
verso é, na sua essência, um artefato poemático, uma figura poética que institucionaliza a
poesia, construído no processo de poetização, e é dessa maneira que deve ser confrontado.
Já se percebe que situamos o verso no nível fônico; mas, coerentes com a posição que
defendemos, não o encaramos sob uma dimensão meramente substancialista. Adiantamos
que sua funcionalidade poética está vinculada a uma relação entre o som e o sentido. As-
sim, o verso deve ser analisado como uma figura poética que, como as demais, tem certa
peculiaridade, e sua peculiaridade está em apresentar uma estrutura fono-semântica. E este
semantismo reside nas relações estruturais perceptíveis na forma e não na substância, já
que, como vimos, ele opera com fonemas e palavras, e não com sons estranhos ao sistema
lingüístico.
Obedecendo a um convencionalismo poético, Jean Cohen
52
afirma que “Todo verso é
versus, ou seja, retorno. Por oposição à prosa (prosus), que avança linearmente, o verso
volta sempre sobre si mesmo.” Na seqüência de Gerard Hopkins, Jakobson admite o verso
como um “discurso que repete total ou parcialmente a mesma figura fônica”.
53
Como se vê,
o verso é fundamentalmente uma “figura de som recorrente. Mas aceitar que o verso se
fundamenta na sonoridade não significa dizer que ele seja unicamente uma substância sono-
ra que não vai além de si mesma. Confinar certas convenções poéticas tais como a rima, o
metro, o ritmo, as figuras fônicas e todas as implicações do verso ao plano meramente so-
noro é no mínimo uma atitude reducionista que acaba por valorizar a materialidade fônica
em detrimento da construção de sentido promovida pelas operações nas relações de oposi-
ção significativas. Diante disso, redefinimos o verso e o aceitamos como unidade rítmica
melódica e de sentido, que se justapõe a outras unidades semelhantes.
A rima
Sabe-se que a rima se articula através de fonemas, que, apesar dos seus traços distin-
tivos, são unidades não-significantes da língua. Mas não se pode considerar a rima apenas
como uma mera identidade sonora.
52
Cohen. Op. Cit., p. 47.
53
Apud Cohen. Idem, ibidem
159
Ouçamos Jakobson:
54
“Conquanto a rima, por definição, se baseie na recorrência regular de fonemas
ou grupos de fonemas equivalentes, seria uma simplificação abusiva tratar a rima me-
ramente do ponto de vista do som. A rima implica necessariamente uma relação se-
mântica entre unidades rímicas.”
Talvez tenha sido por esta razão que Drummond escreveu no “Poema de sete faces”:
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, mas não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo
mais vasto é meu coração.
e na “Consideração do poema”:
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm
.
Note-se que o poeta mineiro rejeita a identidade sonora como simples componente
poético substancialista, que não leva em consideração a construção do sentido engendrado
pela forma do poema. Isto levaria a poesia modernista à recusa da obrigatoriedade da rima
como artifício sonoro gratuito, sem qualquer funcionalidade lingüística, por situar-se tão
somente no nível da substância.
Eis outro exemplo nesta estrofe de “Os sapos”, de Manuel Bandeira, em que o poeta
utiliza ironicamente a rima gratuita, numa referência ao esvaziamento deste artifício:
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
— “Meu pai foi à guerra!”
— “Não foi!” — “foi!” — “Não foi!”
54
JAKOBSON (1970: 144)
160
Se o poema de Bandeira apresenta uma consciência crítica que justifica a funcionali-
dade do emprego irônico da rima, talvez seja interessante observar como, na prática, essa
convenção rímica denuncia a ingenuidade por conta da gratuidade com que a rima é subs-
tancialmente empregada. Vejamos o trecho de uma conhecida canção regional brasileira:
Fizemos a última viagem,
Foi lá pro sertão de Goiás.
Fui eu e o Chico Mineiro,
Também foi o capataz.
No decorrer da história trágica que a canção conta, a figura do capataz é perfeitamen-
te dispensável, já que ela se desenrola em torno de Chico Mineiro e o eu-lírico. Por isso
mesmo, o referente “capataz” não é digno de qualquer retomada na progressão do texto, só
aparecendo uma única vez na letra da canção. Assim, a rima entre “Goiás” e “capataz” em
nada contribui para a construção de sentido poético. A ingenuidade poética do autor o le-
vou a buscar uma identidade sonora gratuita, apenas substancialista, sem qualquer funcio-
nalidade semântica, tornando o texto poeticamente empobrecido.
Por outro lado, levando-se em consideração o paralelismo som-sentido, a negação da
rima pode traduzir estruturalmente significação relevante, pelo lugar que ela ocupa ou que
deveria ocupar. Analisemos uma situação específica pela apreciação desta estrofe do poe-
ma-canção “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil, lançado a público em 1973, período
de plena ditadura militar no Brasil:
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
(Literatura Comentada - Chico Buarque de Hollanda P. 42. São Paulo Ed. Abril - 1980)
161
A estrofe destacada se estrutura a partir de uma coesão recorrencial (repetição siste-
mática de estruturas), para a qual a rima contribui decisivamente. Os versos pares mantêm
uma seqüência rímica que estabelece um paralelismo fônico. Mas essa estrutura paralelísti-
ca é rompida no antepenúltimo verso – “Melhor seria ser filho da outra” –, pela negação
da rima. Analisando a seqüência sintagmática “engolir a labuta / não se escuta / filho da
outra / força bruta”, acreditamos que a ausência da rima no terceiro sintagma da seqüência
alcança uma dimensão sígnica historicamente demarcada. Se a rima é, como defendemos,
um componente poético significativo, temos que encará-la na totalidade do texto poético e
não como um elemento visto isoladamente.
No texto, a ausência da rima é sintomática e tem uma significação visceral. Na verda-
de a ruptura paralelística constitui no poema um não-dito cujo alcance vai além da explici-
tude. Afinal, o não-dizer deixa uma lacuna que se completa com um olhar crítico mais pro-
fundo, norteado por uma perplexidade denunciadora que enfatiza a censura e a opressão
promovida pela ditadura militar. E isso é feito pela substituição de um signo que se faz pro-
ibido por outro de expressão vaga, que, por ser vaga, denuncia o silêncio físico, vigiado por
uma força putrefata, mas absolutamente incompetente para calar um ideal coletivo. Afinal,
Mesmo calada a boca resta o peito”.
Para elucidarmos nossa linha de raciocínio, apelaremos tecnicamente para a análise
do discurso em cujo contexto sociocultural o poema está inserido. No fragmento, em con-
seqüência do contexto social de sua produção, encontram-se marcas de uma heterogenei-
dade discursiva que denuncia a superposição de uma voz social à voz do eu-lírico, o que se
pode observar no verso “Silêncio na cidade não se escuta”. Para sermos diretos, isso signi-
fica que podemos ver na estrofe acima um lirismo coletivo revestido por uma voz social
que traz indícios de uma cultura de massa. Quando um Eu fala, fala por si mesmo, mas fala
também através dele um segmento social que entrecorta a linguagem, de que esse Eu é o
porta-voz – um ser coletivo, que a Análise Semiolingüística do Discurso, de Patrick Cha-
raudeau, denomina Ça (isso). Segundo Charaudeau, na decomposição dos estratos sociais,
o Eu é, metonimicamente, o menor dos Ças.
55
55
Sobre esses conceitos, ver OLIVEIRA, Ieda de. O Contrato de Comunicação da Literatura Infantil e Ju-
venil. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003, p. 35.
162
Aplicando esses conceitos ao poema, vemos nele um Eu-lírico coletivo, que se ex-
pressa num poema social. Considerando o segmento social representado pelo eu-lírico (o
povo) e o momento crítico da realidade brasileira de então, a estrutura do paralelismo seria
recomposta a partir dos indícios (filho da outra) de uma expressão cristalizada da insatisfa-
ção popular (filho da puta), habilmente disfarçada pelo poeta. Eis a estrofe com o parale-
lismo recomposto:
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da puta
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Que conclusão se tira disso? Ora, se uma rima não marcada pode traduzir tanta signi-
ficação, que dizer de uma rima explicitamente marcada? Além disso, a ausência da rima
se faz notar por oposição à sua presença. Então, podemos concluir que a rima – marcada ou
não marcada – não pode ser tratada como um mero artifício que se incorpora no poema
com uma finalidade meramente fônica. Tanto quanto outros, ela constitui estruturalmente
um elemento estético-formalista de significação relevante.
Para aprofundarmos um pouco mais essa discussão, vamos tratar a rima na esfera do
seu estudo específico, a versificação. Consideremo-la sob seu aspecto valorativo, para não
irmos muito além dos nossos objetivos. Tratemos das rimas gramaticais – com homofonia
incidente nos elementos gramaticais fonicamente idênticos, como sufixos, desinências etc.
(maldade / bondade; vender / bater) – e das rimas lexicais – com homofonia nas palavras
extraídas da contingência da língua (abrigo / trigo; nuvem / enviúvem). A partir do século
XVII, certas liberdades poéticas não são mais permitidas, e as rimas gramaticais, conside-
radas “fáceis”, passaram a ser evitadas ou até mesmo proibidas. Qual a verdadeira razão de
tal proibição? Seria o gosto pela dificuldade em busca de um mero preciosismo estilístico?
Pode ser, mas de qualquer forma arte não é acrobacia, e uma peça artística não é bela pela
dificuldade que apresenta na sua produção. Se, rejeitando a rima fácil, a poesia dificultou o
163
trabalho do artista, foi em conseqüência de motivos mais relevantes, relacionados à funcio-
nalidade mais profunda da rima.
Para desenvolver nosso raciocínio, falemos um pouco da lógica lingüística. O grau
zero da linguagem, ou seja, a linguagem não-poética, estrutura-se a partir de certas leis
naturais que a regulam. Tais leis estão intimamente relacionadas com o eixo paradigmático
e com o eixo sintagmático, o que inclui, evidentemente, considerações sobre a morfologia e
a sintaxe no processo de construção do sentido da linguagem.
Sabe-se que, por conveniência da língua, as palavras se classificam em categorias
morfológicas: substantivos, adjetivos, verbos etc. A tais categorias gramaticais correspon-
dem categorias semânticas. Tradicionalmente, o substantivo designa substância; o adjetivo,
qualidade; o verbo, processo etc. Em conseqüência disso, as palavras de mesma categoria
gramatical, independentemente do seu sentido específico, mantêm entre si uma base de
significação comum.
Também não nos é estranho o fato de que uma frase se estrutura a partir de certos
paralelismos semânticos e sintáticos. Cada palavra, substantivo, adjetivo, verbo etc., é esco-
lhida e empregada em oposição a outra de mesma categoria, considerando-se toda sua car-
ga semântica. Portanto, a lógica da linguagem rejeita uma construção frasal que não consi-
dere os princípios básicos do paralelismo gramatical. Uma frase como esta: “Visitei duas
cidades: uma grande e outra rapidamente.” ou como esta: “Não é necessário preocupação
nem saíres nessa chuva.” corrompem as leis do paralelismo gramatical.
Então seria natural que o poema se estruturasse a partir desses paralelismos. Mas a
linguagem poética não é uma linguagem natural. Na verdade, por ser poética, ela se consti-
tui em um subcódigo e, não-raro, se constrói sob as ruínas da concepção lógica da lingua-
gem. Assim, ela busca sua própria lógica no antilogismo, na antinomia do sistema lingüís-
tico. A rima gramatical (bondade / maldade; sofrer / morrer) respeita o princípio do parale-
lismo semântico, pois, segundo dissemos, a semelhança de som corresponde a uma seme-
lhança de sentido. Ela se baseia no princípio que Saussure denomina “arbítrio relativo”, no
qual interfere a motivação interna, e a motivação interna é mínima no léxico e máxima na
gramática. Por isso, a rima gramatical é motivada, e as homofonias são significativas.
É exatamente em conseqüência do sentido que certa poesia procura evitar a rima
gramatical. Já no século XIX, o poeta Theodoré de Banville prescreveu: “Fareis rimar, tan-
to quanto possível, palavras muito semelhantes como som e muito diferentes como senti-
164
do”. Essa função é realizada com eficiência pela rima lexical, relevando de forma mais en-
fática a oposição entre prosa e poesia. Enquanto a prosa evita as homofonias, promovendo
uma espécie de paralelismo diferencial, a poesia rompe esse paralelismo, pois não só as
aproxima como as coloca na mesma posição. Mas essas homofonias não são gratuitas, são
significativas; portanto, a oposição entre rima lexical e rima gramatical não tem uma cará-
ter meramente substancialista, ela se faz principalmente pelo sentido.
A rima não é um elemento que se incorpora ao poema como resultado de uma ginás-
tica versificatória, com intenção meramente ornamentalista. Entendemos que é na sua rela-
ção com o significado que ela deve ser definida. Essa relação pode ter um caráter positivo
ou negativo, mas em qualquer circunstância ela é uma relação interna que constitui o pro-
cesso poético. A rima é uma similaridade de som, e, em poesia, segundo Jakobson, qual-
quer similaridade fônica notável deve ser avaliada em função de similaridade e/ou desse-
melhança no significado. Isto porque a poesia é uma área de atividade lingüística em que o
nexo interno entre som e sentido se converte de latente em patente, e a substância se con-
verte em forma.
Achamos oportuno abordar, ainda que de passagem, o problema da aliteração e da
assonância. Consideramos que ambas constituem um processo análogo à rima. Elas são
provenientes das contingências da língua e, como a rima, conseguem um efeito de homofo-
nia. Mas atuam dentro do verso e realizam entre palavras o que a rima efetua entre versos.
Jean Cohen
56
opõe uma homofonia interna, para a aliteração e a assonância, a uma homo-
fonia externa, para a rima. Mas qual é a função dessas figuras? Poderíamos justificá-las à
luz da musicalidade. Mas a música, ainda que tenha uma estrutura própria, é substância
sonora, e poesia é forma, não substância. Então é preciso investigar esses artifícios poéticos
sob uma ótica semanticamente funcional.
A princípio, se a aliteração e a assonância são homólogas à rima, deve-se atribuir a
elas a mesma função que esta exerce, ou seja, uma função estético-formalista significativa.
No discurso prosificado, toda homofonia é inoportuna. Ninguém encontra qualquer beleza
em se dizer: “Vicente já não sente dor de dente como antigamente”. A versificação, pelo
contrário, procura-a e faz dela um dos seus artifícios mais preciosos. Concluímos daí que a
versificação não é a negação da prosa, é a antiprosa. A versificação postula que a poesia
tem sua própria norma e, mais ainda, que sua norma é a antinorma da linguagem natural.
56
Cohen. Op. Cit. 72
165
Uma das características da linguagem poética é a tentativa de romper com o conceito
da arbitrariedade da língua. Isto porque ela cria um sistema paralelo que atua sobre o siste-
ma vigente. Dessa forma, ela cria maneiras de dizer que reduplicam o sentido da mensa-
gem, numa espécie de redundância que só a ela é permitida. Para tanto, a linguagem poéti-
ca lança mão de certos recursos, como a aliteração e a assonância, que promovem certas
harmonias imitativas. Foi pensando nisso que o poeta inglês Alexander Pope, citado por
Jakobson nos Ensaios de Lingüística Geral, afirmou que “O som deve parecer um Eco do
Sentido”. Note-se, contudo, que só se reconhece nesses recursos uma função efetivamente
motivadora quando sua configuração propriamente expressiva, isto é, no que tange à sua
articulação sonora, se relaciona com a construção semântica do texto poético. Em outras
palavras, quando insinua aquilo a que se refere, conferindo ao signo lingüístico uma dimen-
são icônica reconhecível.
Vejamos este verso de um dos poemas de Orfeu Rebelde, de Miguel Torga:
Rasguei-me como um raio rasga o céu,
em que a acumulação aliterante do fonema vibrante /r/ sugere, por meio de uma associação
fônico-acústica, o gesto abrupto que evoca, qual seja o ato de rasgar o tecido que encobre
uma intimidade. Tomemos agora estes versos de um poema-canção de Fagner e Belchior:
Aquela estrela é bela
Vida vento vela leva-me daqui
em que a aliteração dos fonemas /v/ e /l/ reduplicam o sentido do som do vento e do ruflar
das velas da embarcação. E ainda estes versos de Castro Alves:
Auriverde pendão da minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança!
em que a repetição aliterada do fonema /b/, como um ícone sonoro, traduz o som do beijo
na bandeira. E para completar, tomemos mais uma vez, esse fragmento do já citado poema
Trem de Ferro, de Manuel Bandeira:
166
Café com pão
Café com pão
Café com pão
Virge Maria que foi isto maquinista?
no qual o último verso promove uma harmonia imitativa do apito do trem, através da asso-
nância da vogal tônica /i/.
Pelos exemplos acima, nota-se que a exploração da camada fônica da linguagem não
é um simples artifício substancialista. As figuras fônicas têm no texto poético um teor sig-
nificativo que vai além do simples adorno musical. É preciso lembrar que elas são estuda-
das na esfera da Estilística e não nos manuais de Música. Não nos consta que tais figuras
estejam em qualquer partitura musical.
Mas que dizer do Simbolismo, que faz desses recursos uma constante em busca da
musicalidade? Na verdade, a “musicalidade” simbolista enquanto tal é apenas manifestação
aparente. É preciso lembrar, antes de mais nada, que a poesia simbolista não é música, é
poesia, e poesia se faz com signos lingüísticos, que são elementos sonoros significativos.
Na verdade, o Simbolismo fez da musicalidade poética um significante lingüístico cujo
significado se apóia numa macrossemântica de sugestividade metafísica, como forma de
oposição ao espírito positivista da estética parnasiana. É precisa ainda lembrar que esta
“musicalidade” só se realiza dentro das potencialidades fonêmicas da estrutura da língua e
não com sons aleatórios e estranhos ao sistema lingüístico.
Pode ser que haja música na poesia, mas não é exatamente isso que a poesia busca. Se
há música na poesia, e talvez haja mesmo, por que não deixar que os musicistas se ocupem
dela? É provável que também haja música na cadência rítmica de uma locomotiva. Pela
aceleração do seu ritmo, pode-se perceber a velocidade do seu deslocamento, mas os enge-
nheiros não se ocuparam dela, a não ser como indício de uma normalidade ou anormalidade
do funcionamento da máquina. Mallarmé elegeu a musicalidade da poesia como um dos
seus artifícios prediletos, mas foi também Mallarmé quem afirmou que poesia se faz com
palavras. Por que o poeta quis ser poeta e não músico? A matéria-prima da poesia é a lin-
guagem, e, como diz Saussure, linguagem é forma, não substância.
167
O metro e o ritmo
Tratemos, a princípio, do metro. O metro é o número de sílabas que o verso possui.
Mas é de se notar que, nele, o importante não é a quantidade de sílabas em si, mas o fato de
essa quantidade se repetir sistematicamente, de forma idêntica, de um verso para outro. É
essa repetição sistemática que caracteriza o versus, ou seja, o retorno a si mesmo. O essen-
cial é que o número de sílabas adotado em um verso seja o mesmo adotado em outro ou em
vários versos. O verso só é verso em oposição à prosa, e só é métrico em razão mesmo da
sua homometria.
A prosa tem uma regra geral ditada pela linguagem natural: seqüencia de frases cujo
comprimento, medido pelo número de sílabas, apresenta variações. Essas variações têm
procedência aleatória, pois emanam da diferenciação numérica nas cadeias dos significan-
tes, para engendrar cadeias de significados diferentes. O verso, pela sua própria natureza,
pela sua periodicidade regular de versus, contraria e inverte a natureza dessa lei: cunha fra-
ses semanticamente diferentes através de cadeias fônicas numericamente semelhantes, o
que pode ser notado pela periodicidade perceptível do ritmo. Assim, há semelhança de som
onde não há semelhança de sentido. Tanto é assim, que as frases ritmadas que não são pro-
priamente versos, mas que são versus, são, em sua maioria, construídas em cadeias fônicas
periódicas que se cristalizaram, tais como os ditos populares. Eis algumas:
Rei morto, / rei posto.
Casa de ferreiro, / espeto de pau.
Água mole em pedra dura / tanto bate até que fura.
O verso é cíclico, a prosa é linear. O verso tem estrutura própria, e o metro e ritmo
são fatores constitutivos dessa estrutura. Como nada na poesia é gratuito, pelo menos nos
poetas conscientes de sua arte, é preciso atribuir a ambos uma funcionalidade. A princípio,
se o verso se opõe à prosa por apresentar uma periodicidade que, como já dissemos, envol-
ve o semantismo, o metro e o ritmo não podem estar excluído desse processo. Mas a situa-
ção é mais complexa e exige certas investigações. Em relação com a prosa, o verso consti-
tui uma dissonância entre o som e o sentido, que envolve o fenômeno da pausa.
A pausa, a princípio, é um fenômeno fisiológico exterior ao discurso, mas que, de
alguma forma, tornou-se portadora de significação lingüística. Segundo Saussure, a cadeia
168
fônica tem como princípio básico o fato de ser linear. Mas o discurso é dividido em partes,
e há entre elas uma relação de solidariedade variável, de acordo com o valor das partes i-
mediatamente relacionadas: capítulos, parágrafos, frases, sintagmas, palavras. Essa divisão
é feita segundo o sentido e se torna mais compreensível na medida em que, entre elas, se
impõem fronteiras demarcadas pela voz. Como o falante acha natural fazer uma pausa na
emissão da voz, ele a realiza de acordo com o sentido da frase. Dessa maneira, a pausa ga-
nha uma dimensão significativa, por marcar uma independência semântica entre as partes
às quais se interpõe. Assim, na linguagem natural, a divisão semântica é acompanhada de
uma divisão fônica paralela, que torna o semantismo frasal mais perceptível e atribui à pau-
sa um valor semântico.
E quanto à linguagem versificada? Sabe-se que o verso regular é caracterizado pela
homometria e por um ritmo de certa regularidade. Consideremos os versos abaixo, extraí-
dos do poema “O Morcego”, de Augusto dos Anjos:
Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Entre eles, interpõe-se uma pausa métrica, cuja função não é propriamente à da pausa
da linguagem normal. A pausa métrica tem a função de indicar que o metro está plenamente
preenchido e o verso está concluído. Como se vê, na linguagem poética, a pausa não tem, a
princípio, valor semântico; com efeito, a pausa separa duas unidades estreitamente solidá-
rias que compõem o binarismo sintagmático. Na passagem de um verso a outro, através do
processo do enjambement, o verbo auxiliar separa-se do verbo principal pela pausa métrica
que se interpõe entre eles (Chego / A tocá-lo). Mas Jean Cohen questiona como distinguir,
no poema, a pausa métrica da pausa semântica:
Oralmente, ambas são marcadas por silêncios e não há nenhum meio de dife-
renciá-las. Assim sendo, cumpre atribuir aos dois sistemas de pausa um mesmo valor,
seja semântico, seja métrico, seja ambos. Em todos estes casos, trai-se a estrutura ao
mesmo tempo métrica e semântica do discurso.
57
57
COHEN, Jean. Op. Cit. p. 52.
169
Nos versos destacados, os silêncios decompõem, efetivamente, as seqüências em cin-
co grupos, assim compreendidos:
Pego de um pau.
Esforços faço.
Chego
A tocá-lo.
Minh’alma se concentra.
Nesse caso, teríamos cinco versos e quatro frases, onde, originariamente, havia quatro
frases e dois versos. Para evitar essa dissonância, o recitante tem duas possibilidades: igno-
rar a pausa métrica ou, contrariamente, eliminar a pausa semântica. Procedemos ao exame
das duas possibilidades.
No primeiro caso, a dicção obedece ao sentido e, marcando a pausa depois de “Esfor-
ços faço”, liga sem interrupção os elementos do sintagmaChego a tocá-lo”. Assim:
Pego de um pau.
Esforços faço.
Chego a tocá-lo.
Minh’alma se concentra.
Essa dicção obedece ao sentido da frase, mas ignora a versificação que o poeta origi-
nariamente estabeleceu, o que contradiz um princípio que Grammont enuncia formalmente:
Quando há conflito entre o metro e a sintaxe, é sempre o metro que vence, e a
frase deve curvar-se às suas exigências. Todo verso, sem nenhuma exceção possível,
é seguido de uma pausa mais ou menos longa.
58
Ao priorizar o metro, Grammont deixa claro que não se pode ignorar a versificação, o
que torna a dicção semântica poeticamente inadequada. Fiquemos então com a segunda
58
Apud COHEN, Jean. Op. Cit. 52.
170
possibilidade, que elimina a pausa semântica em benefício da metrificação rítmica, que
pode ser percebida da seguinte maneira:
Pego de um pau esforços faço chego
A tocá-lo minh’alma se concentra.
Esse tipo de dicção é aberrante fora da esfera poética. Ignorando a pontuação, ela
enfraquece a estrutura da frase e provoca uma ruptura do paralelismo fono-semântico, no
qual se apóia a linguagem natural. Deve-se entender que o conflito entre o metro e a sintaxe
é provocado pela própria essência do verso. Os dois sistemas de pausa são incompatíveis.
Portanto, se pretendermos salvar o metro e, com ele, a poesia, devemos sacrificar a sintaxe
e, com ela, a rigidez do sistema. Mas, como se pode ver, a linguagem poética se estrutura
sobre as ruínas da linguagem natural.
Até aqui, mostramos o quanto a métrica e o ritmo são capazes de interferir no sentido
do texto poético, por romper o paralelismo fono-semântico. Nesse caso, o que se percebe é
que o verso tem um caráter sempre negativo, de feição destruidora. Mas não é sempre as-
sim. O metro e o ritmo podem ser também responsáveis pela construção de sentido poético
do texto, em consonância com o tema que este desenvolve. Prova disso é a variação métrica
e rítmica que Gonçalves Dias imprime ao seu poema narrativo I-Juca Pirama, no qual um
índio tupi torna-se prisioneiro de uma tribo inimiga. Sobre ele, assim se pronuncia o crítico
Antônio Cândido:
A rotação psicológica do poema, as alternativas de pasmo e exaltação, se reali-
zam de modo impecável na estrutura melódica, nos movimentos marcados pela vari-
ação de ritmo e amparados na escolha dos vocábulos. Bem romântico pela concep-
ção, tema e arcabouço, o “I-Juca Pirama” tem uma configuração plástica e musical
que o aproxima do bailado. É mesmo, talvez o grande bailado da nossa poesia, com
cenário, partitura e riquíssima coreografia, fundidos pela força artística do poeta.
59
Comprovemos o que diz o mestre, com exemplos por ele mesmo citados, exemplos
esses que caracterizam o movimento e o ritmo do ritual tribal indígena. Inicialmente, esta
estrofe de versos eneassílabos com cesura na 5ª, na 8ª e na 11ª sílaba:
59
CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia, 1975; São Paulo: Edu-
esp, 1975
171
Entanto as mu
lheres com leda trigança,
Afeitas ao
rito da bárbara usança,
O índio já
querem cativo acabar:
A coma lhe
cortam, os membros lhe tingem,
Brilhante endu
ape no corpo lhe cingem,
Som
breia-lhe a fronte gentil canitar.
Os versos dessa estrofe sugerem, com sua cadência rítmica, a avidez dos gestos das
mulheres, entregues ao frêmito da barbárie. A seguir, esta outra, com providencial variação
rítmica, demarcada pela alternância de versos decassílabos sáficos, com cesura na 4ª, na 8ª
e na 10ª sílaba (os dois primeiros e o último), e decassílabos heróicos, com cesura na 6ª e
na 10ª sílaba (os demais), sugerindo uma mudança de foco, pela alteração da métrica e do
ritmo em relação à estrofe anterior:
Em larga roda de novéis guerreiros
Ledo ca
minha o festival timbira,
A quem o sacri
cio cabe as honras.
Na fronte o cani
tar sacode em ondas,
O enduape na
cinta se embalança,
Na destra mão so
pesa a iverapeme
Orgulhoso e pu
jante. Ao menor passo,
Colar d’alvo mar
fim, insígnia d’honra,
Que lhe orna o
colo e o peito, ruge e freme.
Os versos agora sugerem a festiva dança macabra e o andar heróico do chefe timbira.
E finalmente estas redondilhas de ritmo binário, com cesura na 2ª e na 5ª sílaba:
Meu canto de morte,
Guer
reiros ouvi:
Sou
filho das selvas,
Nas
selvas cresci;
Guer
reiros descendo
Da
tribo tupi.,
cuja iconofonia dá conta da fala ofegante e ansiosa do prisioneiro.
172
É ainda de se notar, no mesmo poeta, a primeira estrofe da Canção do Exílio, em que
a variação rítmica de um verso introduz nas redondilhas uma dissonância em relação aos
demais. Dos quatro versos da estrofe, três apresentam uma cadência binária, com acentua-
ção tônica na 3ª e na 7ª sílaba. O terceiro verso revela uma variação sintomática de ritmo,
em consonância com o sentido da mensagem que a estrofe expressa:
Minha terra tem palmeiras,
Onde
canta o Sabiá;
As
aves que aqui gorjeiam,
Não gor
jeiam como .
A respeito desse fato específico, ouçamos o crítico José Guilherme Merquior:
Justamente no verso em que introduz o tema da terra alheia, Gonçalves Dias
faz variar o ritmo. Essas aves fora do trilho métrico são o único elemento não brasi-
leiro da estrofe. Discrepam, em conseqüência, no ritmo como na imagem. Mas – suti-
leza reveladora – mesmo essa variação, ainda que tão perceptível, é pequena, de bre-
vidade quase instantânea. A pressa com que o verso recupera a concordância com o
esquema geral da estrofe traduz a urgência com que o poeta, a caminho da obsessão
pela terra nativa, retorna ao ritmo que a designa desde o estribilho.
60
De tudo isso, tiremos o saldo. Bem se vê que o metro e o ritmo, embora sejam elemen-
tos constitutivos do verso, têm também uma função específica na estrutura do texto poético,
função essa que os projeta para além do aspecto meramente substancialista da camada fônica
da linguagem. Na verdade ambos integram a estrutura do poema e têm um valor estrutural
relevante para a construção do seu sentido.
60
MERQUIOR, José Guilherme. Razão do Poema. Rio de Janeiro: Topbooks, 1966, 2ª edição, p. 61.
173
O verso livre
Até agora tratamos do verso regular. Mas é preciso que se considere o verso livre, con-
quistado pela poesia moderna. Não falar sobre ele é excluí-lo como categoria poética, e isso
não seria justo. Já se disse aqui que todo verso é versus e, opondo-se à prosa, volta sempre
sobre si mesmo. Assim, o verso seria um discurso que sempre repete total ou parcialmente a
mesma figura fônica. Mas isso não se aplica ao verso livre, que não respeita nem o metro,
nem o ritmo, nem a rima. O grande problema é que a definição de um objeto tem que dar
conta de todos os objetos de sua classe. E se essa definição não se aplica a todo tipo de verso
é preciso reavaliá-la.
Quando o Modernismo tornou o metro, o ritmo, e a rima artefatos opcionais, libertou
a poesia da “musicalidade” obrigatória, e o poema confirmou definitivamente seu status de
arte literária, já que formalmente ele só é plenamente perceptível enquanto poema a partir
da linguagem escrita. Isso significa dizer que a diferença entre o poema e o poema em pro-
sa se percebe mais vivamente pelo aspecto gráfico. Assim, é exatamente sob o aspecto es-
trutural que vamos buscar a caracterização do verso: uma linha do poema que se separa de
outra por um espaço em branco que vai da última letra ao fim da página. Isto porque, à
primeira vista, uma página em verso se diferencia de uma página em prosa pela composi-
ção tipográfica. Após cada verso, o poema muda de linha. Se quisermos nos situar nos da-
dos objetivos indiscutíveis, devemos obedecer ao que o poeta prescreveu explicitamente.
Pelo que se viu até aqui, a versificação parece contrariar as regras do discurso normal,
pois coloca pausa onde o sentido recusa, e não a coloca onde o sentido exige. Para garantir
uma convergência total dos dois sistemas de pausa, seria necessário um paralelismo exato,
em que as pausas métrica e semântica coincidissem.
Assim, segundo Cohen:
Pausa métrica Pausa semântica
fim de verso = fim de frase (ou ponto)
fim de hemistíquio = fim de oração (ou vírgula)
fim de medida = fim de sintagma de oração
174
Mas não é assim que a poesia se comporta. A frase é uma totalidade lógico-
gramatical orgânica, analisável em unidades menores – orações, grupos sintáticos etc. – que
constituem o objeto de estudo da teoria sintagmática, a partir da determinação dos compo-
nentes da frase. Nela, os silêncios pausais são marcados por sinais de pontuação. Mas a
poesia apresenta uma discordância metro-sintaxe, que a conduz a um agramaticalismo, a-
centuado ao longo da história, a partir do Romantismo. Na evolução da poesia, nota-se que
o enjambement rompe em grau cada vez maior a solidariedade gramatical, acentuando a
diferença entre a prosa e a poesia. Até o Simbolismo, esse fenômeno se devia às vezes ao
formalismo da métrica e da rima. Mas, com o verso livre, sem a obrigatoriedade desses
fatores, o Modernismo desenvolve esse artifício de forma deliberada, já que o verso não é
mais uma figura fônica que sistematicamente se repete.
Isso nos leva a refletir que a agramaticalidade é o único fator que se encontra tanto no
verso regular quanto no verso livre. Esse fato levanta uma hipótese: a de que a ruptura com
a gramaticalidade no texto poético talvez não seja um mero acidente, mas sim um caráter
próprio da versificação.
Comparemos estes dois textos de Mário Quintana e tiremos daí algumas conclusões
que podem elucidar essas questões:
O poema
Uma formiguinha atravessa, em diagonal, a página a-
inda em branco. Mas ele, naquela noite, não escreveu nada.
Para quê? Se por ali já havia passado o frêmito e o mistério
da vida...
Alegria
Não essa alegria fácil dos cabritos monteses
Nem a dos piões regirando
Mas
Uma alegria sem guisos e sem panderetas...
Essa a que eu queria:
A imortal, a serena alegria que fulge no olhar dos santos
Ante a presença luminosa da morte!
175
O primeiro texto se classifica como prosa, e o segundo como verso. Mas o que os
distingue? O primeiro texto estabelece as pausas sempre no final das frases, em respeito ao
paralelismo das estruturas fônica e semântica. No segundo texto, pelo contrário, notamos
que o corte dos versos e o corte das frases não são coincidentes. O poeta não hesita em mu-
dar de linha, separando os elementos dos constituintes imediatos, tal como ocorre após a
conjunção mas e após os dois pontos. No segundo poema, é também sintomático o fato de
os versos se iniciarem todos com letra maiúscula, que, na linguagem normal, é empregada
para início de frase. E tudo isso é marcado pelo fato de não haver exigência do metro ou da
rima. Portanto, a ruptura do paralelismo fono-semântico é deliberada, o que nos leva a pen-
sar em tal ruptura como um objetivo em si mesma, sendo, portanto, um fator efetivo da
versificação na estrutura do texto poético.
Observemos os gráficos:
PROSA
Som ---------------- (pausa) --------------- (pausa) ------------------------ (pausa)
Sentido ---------------- (pausa) --------------- (pausa) ------------------------ (Pausa)
POESIA
Som ----------- (pausa) ----------------(pausa) --------------- (pausa) ---------------
Sentido ------------------------- (pausa) -------------- (pausa) ------------------( pausa)
No discurso natural, a pausa apresenta certas variações com duração proporcional ao
grau de independência das partes. Na frase, onde a pausa tem valor semântico, a língua
escrita usa nos espaços em branco certos sinais diacríticos que são signos de pontuação.
Mas no discurso poético versificado não há essa proporcionalidade entre os versos. Talvez
seja por isso que a poesia moderna se dá o direito de anular esses signos de pontuação, co-
mo ocorre neste poema de Drummond:
176
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca ame esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nos versos acima, o poeta cria certas geminações sintáticas, que se podem verificar
entre o segundo e o terceiro verso, enfraquecendo a gramaticalidade do discurso e constru-
indo sentidos simultâneos: indicar a seqüência ininterrupta do percurso da existência hu-
mana e seus eventuais obstáculos. Isso revela o quanto a pausa e o ritmo interferem no as-
pecto semântico do texto poético tanto no verso regular quanto no verso livre.
O verso livre precisa ser analisado com cautela. Antes de mais nada não se pode ver
nele uma idéia de proibição, mas sim de opção e de escolha. Como diz Carlos Reis
61
, “o
verso livre não constitui uma recusa ou impossibilidade técnica de respeitar o isossilabismo
de esquemas métricos definidos”. De fato, poetas respeitáveis como Manuel Bandeira, Car-
los Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, só para citar alguns, souberam empregar,
conforme as circunstâncias, tanto o verso livre quanto os versos regularmente metrificados.
A liberdade para a invenção formal corresponde à modernização das artes em geral,
que marcou a fase heróica do Modernismo. Contrariamente ao rigor formal da poética tra-
dicional, a criação artística se liberta e se faz universal até mesmo no plano formal. Para o
artista moderno, cada obra de arte cria sua própria forma. A cada poeta corresponde a li-
berdade de projetar ritmos, metros, temas e soluções poéticas conforme a necessidade do
poema. É a supremacia da criação artística contra as determinações acadêmicas da “escola
61
REIS, Carlos. O Conhecimento da Literatura. Coimbra: Almedina, 2002, p. 331.
177
literária”, que dá ao artista a possibilidade de se renovar a cada obra realizada, driblando a
padronização que o limitava.
Assim, liberdade e originalidade são traços marcantes da poética moderna contra a
opressão formalista da tradição. E a mais expressiva forma da conquista dessa liberdade
encontra-se na parte técnica da criatividade poética. Por conta disso, a noção de liberdade
se associa ao verso livre. A criação a partir do verso livre leva ao ritmo pessoal de cada
poeta, ao sabor de cada poema. Dessa maneira, o poeta, por sua liberdade, estrutura a nova
forma que configura a nova poesia. O verso livre, aliado à liberdade temática, livra o poeta
da expressão normativa do tradicionalismo, e o artista, com sua liberdade criadora, trans-
cende a velha forma e os padrões poéticos convencionais. Cada poema cria a sua própria
forma, e a cada poeta corresponde a liberdade de projetar ritmos, metros, temas, soluções
poéticas conforme a necessidade do poema, agora sem a fôrma que o limitava.
Um outro fator de vital importância para a poesia moderna encontra-se na opção pela
ausência de rimas. Rejeitando o preciosismo estético-formalista, de que resulta a ginástica
versificatória que encantou o Parnasianismo, o poeta moderno não se refugia nas rimas
ricas, raras e preciosas que adornavam a fachada da poética parnasiana. Sem a obrigatorie-
dade das rimas, a poesia torna-se mais democrática, mais humana, saindo dos gabinetes
para as ruas, ao encontro do povo, da vida, dos dramas do homem e da existência humana.
Ao adotar o versilibrismo, o Modernismo criou mais opções de expressão, pois a mé-
trica e o ritmo regulares, assim como a rima, sem obrigatoriedade de uso, passaram a fun-
cionar como uma escolha do poeta para a construção de sentido do texto poético. Dessa
forma, preferimos olhar o versilibrismo, dentro da revolução da linguagem poética operada
pela poesia moderna, como a adoção de uma faculdade técnico-formalista que permite ade-
quar o ritmo à fluidez dos sentidos representados. O fato é que a flutuação rítmica que o
verso livre instituiu não é mero produto de uma rebeldia voltada para a desarticulação gra-
tuita dos metros convencionais. Passado o furor modernista do primeiro momento, perce-
bemos que tal flutuação rítmica decorre do propósito motivador de um discurso poético
inteiramente livre, em termos mais complexos do que à primeira vista pode aparentar, haja
vista as incursões da poesia experimental nos movimentos vanguardistas.
Com a liberação da poesia em relação à obrigatoriedade de certos artifícios da versifi-
cação, expedientes como a rima, a métrica e o ritmo ganham relevância no universo discur-
sivo do poema. O poeta os emprega deliberadamente, em busca de um sentido que transpõe
178
o nível da simples substância sonora. Essas figuras passam a ter, pela escolha do seu uso,
um caráter de criatividade que em alguns momentos chegam a ser vitais para a construção
de sentido do texto. Para percebermos a prática desses artifícios, analisemos alguns textos
em que eles contribuem notadamente para o sentido poético.
Poema tirado de uma notícia de jornal
João Gostoso era carregador da feira livre e morava no morro
[da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
(BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: Ed. José Aguilar, 1974)
O primeiro verso revela o aspecto caótico dos ambientes sociais referidos no texto: a
feira livre, o morro da Babilônia, cujo nome já é sintomático, e o barracão sem número.
Tudo isso se amplifica pela sua longa extensão e pela sua prosódia ininterrupta, que, além
disso, denunciam a vida sacrificada de João Gostoso. Em seguida, opondo-se à extensão do
primeiro verso e contrastando com os demais, temos uma seqüência de três versos curtos,
com um único vocábulo cada um (Bebeu / Cantou / Dançou), sugerindo os poucos momen-
tos de prazer na vida de João Gostoso, prazer simples e singelo como a extensão e o ritmo
binário dos versos. E isso se realiza numa seqüência alfabética (B, C, D) que, associada à
extensão e o ritmo dos versos, denuncia avidez e expressa a trajetória inexorável de uma
existência sofrida, cujo fim se denuncia na fatalidade de um processo irreversível.
A ausência das pausas, marcada pela ausência da pontuação, desarticula a gramatica-
lidade do texto e contribui para a metáfora do caos, provocando a frouxidão da coesão tex-
tual e construindo uma coerência interna ao universo semântico do poema. É interessante e
curioso notar o ponto final – o único empregado no texto – como um signo icônico do des-
fecho trágico e irreversível do fato poético.
179
O texto revela realidades contraditórias. Entre elas, as referências ao morro da Babi-
lônia e à Lagoa Rodrigo de Freitas – o Caos e o Sistema. Essas realidades contraditórias
são reduplicadas pela dissonância entre os versos longos e breves, numa arritmia que de-
nuncia o descompasso social, arritmia essa que também é reforçada pela ausência da pon-
tuação e pela agramaticalidade das frases. É a versificação a serviço do sentido poético.
Leiamos este outro poema:
Relâmpago
A onça pintada saltou tronco acima que nem um relâmpago
[de rabo comprido e cabeça amarela:
Zás!
Mas uma flecha ainda mais rápida que o relâmpago fez rolar
[ali mesmo
aquele matinal gatão elétrico e bigodudo
que ficou estendido no chão feito um fruto de cor que tivesse
[caído de uma árvore!
(RICARDO, Cassiano. Martin Cererê. Rio de Janeiro: Ed José Olímpio, 1974)
O texto, inicialmente, descreve uma cena dinâmica e, como prenuncia o título, é mar-
cado pelo instantaneísmo. Imagens poéticas simultaneístas traduzem a vertiginosidade da
cena narrada. Mas o dinamismo da cena não teria o mesmo efeito de sentido se não fosse
pela disposição e pela métrica dos versos. O primeiro verso, pela sua extensão e ausência
da pontuação, proporciona a sensação de velocidade, ratificada no segundo verso, constitu-
ído apenas pelo signo icônico de uma onomatopéia. O terceiro verso, num segundo movi-
mento, dá seqüência ao dinamismo. Mas esse dinamismo é bruscamente interrompido pela
queda da “onça pintada”. Essa interrupção é reduplicada pelo corte que o enjambement
realiza na passagem para o quarto verso, separando o verbo (rolar) do seu sujeito (aquele
matinal gatão elétrico e bigodudo). Finalmente, a quietude se faz, e mais uma vez pelo
efeito do enjambement, que separa a oração adjetiva do seu termo núcleo. Em todo o texto,
a anulação dos signos de pontuação contribui para as variações rítmicas do poema, em con-
seqüência da liberação das pausas.
180
Aqui se impõe de forma definitiva, a importância dos versos no processo da constru-
ção do sentido poético do texto. Com já se disse anteriormente, o verso livre não é uma
obrigatoriedade da poesia moderna, é mais um recurso que o Modernismo conquistou. A
poesia coloca pausa onde o sentido recusa, e não a coloca onde o sentido exige, e o verso
livre acentua fortemente esse caráter. De uma forma geral, o verso não é algo que vem de
fora para juntar-se à poesia. Ele deve ser visto como um elemento estrutural que suscita no
destinatário um modo de compreensão diferente daquele da mensagem comum.
3.1.2. – O Plano do Conteúdo
O plano do conteúdo está ligado ao aspecto significativo da linguagem propriamente
dito e, como já dissemos anteriormente, ele é constituído de forma e substância. A forma
são as relações sintáticas que as palavras mantêm na estrutura frasal, e a substância é a sig-
nificação, que se estende ao referente, ao objeto ou fato tratado pela linguagem. Esse con-
ceito lingüístico norteia a investigação do texto poético. Para tanto, faz-se necessário con-
siderar, antes de mais nada, que o poema é linguagem e, como tal, ele tem a função de re-
meter o leitor para um significado, a substância, que representa um ser ou um fato do mun-
do, algo existente em si, independente de qualquer expressão, verbal ou não-verbal, num
processo de referenciação compreensível por uma comunidade cultural.
A substância é a significação, e essa atividade pressupõe a semiotização do mundo,
que, segundo Charaudeau (1995), envolve o processo de transformação, o qual, sob a ação
da linguagem, parte de um mundo a significar e o transforma em mundo significado, atra-
vés de quatro tipos de operação – a identificação, a qualificação, a ação e a causação. Na
identificação, os seres do mundo são transformados em identidades nominais para que se
possa falar deles e estão sujeitos à nomeação e conceituação para que sirvam de objetos de
referenciação. Na qualificação, os seres do mundo são transformados em identidades des-
critivas e se submetem à caracterização de propriedades e especificações para sua identifi-
cação. A ação transforma os seres do mundo em identidades narrativas que se inserem em
esquemas conceitualizados, conferindo-lhes o atributo da ação que podem praticar ou so-
frer. Na causação, a sucessão dos fatos do mundo é transformada em relações de causali-
181
dade – os seres agem ou sofrem a ação em razão de certos motivos que os inscrevem numa
cadeia de causalidade.
Como se vê, nesse processo, a linguagem é empregada em uma das suas funções mais
essenciais. A esse respeito, assim se pronuncia Jean Cohen:
As palavras são simples substitutos das coisas, existem para permitir um in-
formação sobre as coisas que as próprias coisas nos forneceriam mais adequadamente
se pudéssemos percebê-las.
62
E diz ainda o lingüista:
A linguagem, portanto, é um simples intermediário codificado da própria expe-
riência. De modo que a comunicação verbal supõe duas operações inversas: a codifi-
cação, que vai das coisas às palavras; a descodificação, que vai das palavras às coi-
sas. Compreender um texto não é porventura discernir o que se esconde por detrás
das palavras, ir das palavras às coisas, em suma, separar o conteúdo de sua própria
expressão?
Entretanto, nesse processo existe um inconveniente, pois há casos em que o pensa-
mento não pode ser concebido sem as palavras que os exprimem. A Psicologia postula que
não pode haver pensamento sem linguagem, e esta é a própria realização do pensamento.
Essa concepção encontra particularmente sua verdade na idéia abstrata, que, por não se
referir a um ser do mundo, só tem existência quando é nomeada. Wittgenstein postula que o
que não pode ser dito não deve ser pensado. Mas é preciso que se leve em consideração
aqui mais uma vez a noção de forma e substância. Afinal, solidariedade não quer dizer exa-
tamente identidade, pois, embora o pensamento não possa prescindir da expressão, o que
implica uma relação de indissolubilidade, ambos são coisas diferentes. Nada prova que um
determinado pensamento esteja atrelado a uma determinada expressão de forma cristaliza-
da. Há sempre a possibilidade de relacionar o pensamento, qualquer que seja ele, com ex-
pressões distintas.
62
COHEN, Jean. Op. Cit. (31-32)
182
A maior prova de que a solidariedade entre expressão e pensamento não é identidade
e de que ambos são coisas distintas é a tradutibilidade, pois um mesmo pensamento pode
ser traduzido tanto em línguas diferentes como na mesma língua. Isto significa que o con-
teúdo permanece distinto da expressão. Traduzir é dar a um mesmo conteúdo expressões
diferentes, num circuito de comunicação em que o tradutor se interpõe entre o remetente e
o destinatário dentro de um determinado esquema:
TRADUÇÃO
Remetente – mensagem 1 Æ Tradutor – mensagem 2 Æ Destinatário – recepção
A tradução se realiza com eficiência, se a mensagem 2 for semanticamente equivalen-
te à mensagem 1, isto é, se o conteúdo da mensagem transmitida for o mesmo. No processo
da tradução, quanto mais objetivo for o conteúdo da mensagem, menos ele depende da lin-
guagem. É por isso que os textos científicos são perfeitamente traduzíveis. A autonomia do
conteúdo é indiscutível quando se trata de textos meramente informativos. Mas que dizer
dos textos literários, e em particular da poesia? É possível a tradução da poesia com a
mesma propriedade com que se traduz um texto não-poético? Acreditamos que não.
O texto poético não admite tradutibilidade, se conservar suas características artísticas
originais. Mas qual é a causa da intradutibilidade poética? É aqui que se faz necessário dis-
tinguir a forma e a substância no plano do conteúdo. No texto poético a tradução substanci-
al é possível, mas a tradução formal não o é. Na tradução, o sentido tem que ser o mesmo
em ambas as formas de expressão. Isso porque a tradução consiste em preservar o sentido,
ou seja, a substância, modificando a forma de expressão lingüística. No plano do conteúdo,
a substância é a significação, a forma é o estilo.
O problema está exatamente aí, porque a poesia está no estilo e não na significação:
poesia não é o que se diz, mas como se diz; poesia é forma e não substância. Quando na
língua de partida e na língua de chegada a significação traduzida se apresenta em prosa, ou
seja, em “linguagem normal”, o nível formal não tem a menor importância, visto que a pro-
sa geralmente se aproxima do grau zero do estilo, em que as coisas ditas são mais impor-
tantes do que o modo como são ditas. Assim, é sempre possível traduzir um texto científi-
co, porque nele a expressão permanece exterior ao conteúdo, e este independe da expressão,
183
porque a máquina de traduzir tem uma preocupação fundamental com a significação da
mensagem, visto que a forma tem que ser mudada a serviço do entendimento do conteúdo.
Mas quando o texto é poético, há intervenção do estilo, e a situação não pode ser ana-
lisada da mesma maneira: a expressão dá ao conteúdo uma estrutura específica, uma forma
cristalizada que não é possível dar de outro modo, pois, se ela for mudada, perde o seu for-
mato original, e o texto já não tem a mesma essência poética. Assim, o que fica claro é que,
na tradução, o sentido do poema pode ser preservado na sua substância, mas a forma se
perde, e, com ela, perde-se a poesia. A tradutibilidade / intradutibilidade torna-se então um
critério para diferenciar a linguagem natural da linguagem poética, a partir da ênfase que se
dá à substância e à forma do conteúdo, respectivamente.
Para explicarmos melhor, tomemos este poema de Carlos Drummond de Andrade:
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um burro vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
Se na primeira estrofe déssemos à mensagem um caráter mais linearmente discursivo,
com a presença de verbos que lhe preenchessem mais adequadamente o sentido, é provável
que a compreensão do texto fosse mais clara. Mas isso seria mutilar o poema, tirar dele o
prazer de se fazerem as associações permitidas pelas elipses mentais que estabelecem a
relação do nexo entre as palavras. Sem os verbos, tais relações se tornam mais livres e con-
seqüentemente mais provocativas, por não conterem um direcionamento pré-estabelecido
no processo da descodificação da mensagem. Além disso, se o texto explicasse as referên-
cias sígnicas que nos conduzem ao universo discursivo por ele referenciado – o universo
bucólico do Romantismo –, o poema deixaria de ser uma criação artística para se transfor-
184
mar em um artigo literário, por conta do desvendamento do sentido que as palavras assumi-
ram em cada uma das suas incidências.
Por outro lado, se na segunda estrofe o poeta escrevesse de forma mais direta e sucin-
ta a mensagem contida nos três versos, é provável que muito se perdesse do sentido poético
que o texto contém em sua formatação. Em outras palavras, substituir a repetição das estru-
turas que caracterizam a coesão recorrencial por um único verso – “Um homem, um burro e
um cachorro vão devagar” – é tirar a forma do sentido poético engendrado pela estrutura
do texto. A informação seria mais direta, mas o poema perderia a sugestão da repetição e do
marasmo da vida sem perspectiva de uma cidadezinha interiorana, denunciada pelo modo
de estruturação ritualística da construção do texto.
Quanto à terceira estrofe, a estrutura metonímica do penúltimo verso – “Devagar... as
janelas olham” – traduz, de forma inusitada, a sensação de uma inércia progressiva, ampli-
ficada pelas reticências e pela repetição do advérbio, agora em posição inversa em relação
à estrofe anterior, o que provoca uma andiplose denunciadora do automatismo. Finalmente,
o último verso expressa a recusa da vida interiorana. É interessante notar que tal recusa é
feita através de um clichê lingüístico – “Eta vida besta, meu Deus. – providencialmente
empregado, pois, de uma certa forma, ele expressa de forma irônica o modo da dicção cai-
pira da fala brasileira.
Como percebemos, o poema não é poema pelo que ele disse, mas pela forma como ele
o fez. Seu status de poema não está na concepção anedótica, está na estrutura que o poeta
criou, estrutura esta que se cristalizou e que o identifica como uma peça única no universo
discursivo de todos os poemas.
Citemos ainda este fragmento do poema A Bomba, do mesmo poeta:
A bomba
tem um clube fechadíssimo
A bomba
pondera com olhos neocríticos o Prêmio Nobel
A bomba
é russamericanenglish mas agrada-lhe os eflúvios de Paris
Por meio do neologismo – “russamericanenglisho poeta faz uma referência às
nações que possuíam a bomba atômica na época da Guerra Fria. É evidente que o efeito de
185
sentido não seria o mesmo se poeta escrevesse que a bomba é “russa, americana e inglesa”.
Na formação da palavra está sugerido um bloco compacto de poderosa ameaça à vida na
Terra, composto pelas três nações inscritas nos radicais da palavra. Observa-se ainda a que-
bra do paralelismo entre o metro e a sintaxe, na qual o enjambement, separando os termos
constituintes do sintagma oracional, dá destaque ao sujeito “A bomba”, através do processo
de focalização.
A diferença entre prosa e poesia não está no significado da mensagem e nem depende
dele. A relação do significado entre as palavras não é a mesma, conforme sua distribuição
na organização sintática do poema. Como se trata de uma relação, falamos de estrutura ou
forma, a forma do sentido. Na prosa, o mesmo sentido pode ter mais de uma forma, mas
quando confrontamos a poesia, reconhecemos uma forma do sentido poético, que, como tal,
não pode ser traduzida.
É claro que nós conhecemos traduções (?) poéticas, mas elas precisam ser apreciadas
de forma especial. A rigor, essas “traduções poéticas” não passam de trabalho de re-
construção da própria poesia, o que significa dizer que a “tradução poética” é uma atividade
estética direcionada para a captação do espírito estético (e somente o espírito) do texto ori-
ginal. Mas essa captação não constitui a mesma obra de arte, porque apresenta formas dis-
tintas, e, lembramos, na poesia a forma contribui sensivelmente para o sentido poético do
texto. Talvez se possa falar aqui de uma atividade metapoética que deve ter um valor em si
mesma.
Vejamos este fragmento do poema O Corvo, de Edgar Allan Poe:
And the Raven, never flitting, still is sitting, still is sitting
On the pallid bust of Pallas Just above my chamber door;
And his eyes have all the seeming of a demon’s That is dreaming,
And the lamp-light o’er him streaming throw his shadow on the floor;
And my soul from out that shadow that lies floating on the floor
Shall be lifted – nevermore.
Agora, esta “tradução” de Fernando Pessoa:
186
E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão e nada mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há mais e mais
Libertar-se-á... nunca mais!
E finalmente esta outra do poeta brasileiro Haroldo de Campos, após ter lido a análise
de Jakobson, que provavelmente o influenciou esteticamente:
E o corvo, sem revôo, pára e pousa, pára e pousa
No pálido busto de Palas, justo sobre meus umbrais:
E seus olhos têm o fogo de um demônio que repousa
E o lampião no soalho faz, torvo, a sombra onde ele jaz:
E minha alma dos refolhos dessas sombras onde ele jaz
Ergue o vôo – nunca mais.
É de se notar que temos três textos poeticamente diferentes. As duas “traduções”, por
se expressarem em um sistema lingüístico – língua portuguesa – distinto daquele do texto
original – língua inglesa – já são naturalmente diferentes em relação ao primeiro. Se o idi-
oma é diferente, a sensibilidade lingüística não pode ser exatamente a mesma. O sistema
fonológico e sintático de ambos exigem atitudes diferentes por parte dos artistas no trabalho
de construção da forma do sentido poético.
Deixando de lado o plano da expressão, cujos limites já traçamos, vamos nos ater ao
plano do conteúdo. Embora os três textos desenvolvam o mesmo tema, não podemos afir-
mar que a substância seja exatamente a mesma. Seria a mesma se a tradução fosse em pro-
sa, onde a linguagem permanece externa ao sentido, já que o sentido poderia ser expresso
de várias formas. Mas os três textos são poéticos, e por isso a forma atua inelutavelmente
sobre o sentido, sobrepondo-se a ele por um processo de conspiração. É por isso que fala-
mos de re-construção poética e não de tradução poética, pois a poesia é forma e não subs-
tância e não pode ser traduzida, o que faz com que, em cada um dos textos, percebamos a
sensibilidade estética de cada artista em particular.
187
Opomos insistentemente a forma à substância, isto é, à realidade extralingüística ou,
num sentido amplo, à coisa propriamente dita, para a qual a linguagem remete. A coisa,
considerada em si mesma não é poesia porque não é poética, o que não significa dizer que
ela seja prosa. Na verdade, ela é neutra em relação à oposição prosa-poesia. Cabe à lingua-
gem decidir. As coisas só são poéticas em potencial, portanto cabe à linguagem fazer com
que este potencial se manifeste. A realidade, tão logo é lingüisticamente expressa, entrega
seu destino estético à evidência da linguagem. Ela será poética se for poema, será prosaica
se for prosa. Se há uma poética das coisas, não acreditamos que ela seja um objeto de estu-
do da Lingüística, pois, no que concerne ao poema, não é com as coisas em si que lidamos,
mas com as coisas através da linguagem.
Já sugerimos aqui que o Modernismo conduziu a poesia à sua verdadeira condição de
arte literária. Quando dissolveu a fronteira entre o que era tradicionalmente considerado
poético e apoético, ele entregou a poesia ao seu verdadeiro destino estético, o da lingua-
gem. A evolução da arte literária levou-a a um estado democrático. Se a poesia era reserva-
da aos deuses e aos escolhidos, hoje ela abriu as portas à grande multidão de plebeus. Os
chamados “temas nobres” já não influenciam (ou não deveriam influenciar) o caráter artís-
tico da poesia. Da “caravela perdida do mar alto”, de Alphonsus de Guimaraens, ao beco,
de Manuel Bandeira, passando pelo “sangue podre das carnificinas”, de Augusto dos An-
jos, todos adquirem cidadania poética, quando são assumidos pelas palavras, que os trans-
formam em objetos poéticos. Em poesia, a semântica do sentido não é causa da forma, é um
dos seus efeitos.
Ainda hoje se procura analisar o poema sob uma perspectiva ideológica ou psicológi-
ca, desprezando-se o seu aspecto lingüístico ou, quando muito, considerando-o como sin-
toma. Se a Sociologia ou a Psicanálise quer se apossar da poesia como objeto dos seus es-
tudos, tanto melhor. Acreditamos mesmo que o poema pode ser portador de elementos que
despertem interesse nessas ciências, mas duvidamos da competência estética que muita vez
se atribui a elas. A poesia é imanente ao poema; portanto, entregar à Sociologia ou à Psi-
canálise a função da investigação estética do poema, é desviar-se do seu verdadeiro objeti-
vo, que é essência estética, porque se procura para além da linguagem o que está na própria
linguagem.
188
Os operadores poéticos
Por definição, a linguagem natural é a prosa; a poesia é a linguagem artística e, por
conseguinte, artificiosa. Já afirmamos que a linguagem poética se constrói sobre as ruínas
da linguagem natural. Mas a poesia só destrói a linguagem para construí-la num plano dife-
rente, e esse plano diferente da linguagem é a única maneira de nos fazer sentir as coisas de
forma diferente da que normalmente sentimos. É sob esse ponto de vista que consideramos
as figuras de linguagem como operadores poéticos.
Conseqüentemente, na ordem da linguagem, as figuras não devem ser consideradas
detalhes ou ornamentos inúteis dos quais se possa abrir mão na seqüência do discurso; elas
constituem a própria essência da arte poética, pois são elas que liberam a carga de poetici-
dade que o mundo potencialmente carrega e que a prosa mantém subjugada aos valores
pragmáticos da linguagem. Assim como as rimas e as aliterações, de cujos valores já fala-
mos, as figuras, tropos e metáforas, configuram uma violação da normalidade do código
lingüístico, constituindo o que Michael Rifaterre
63
chama função estilística da linguagem.
Segundo Fontanier
64
, podem-se distinguir dois tipos de figuras: as figuras de uso e as
figuras de criação. Para o entendimento dessa oposição, é necessário distinguir na própria
figura a forma e a substância. Enquanto a forma é a relação que une os termos, a substância
são os próprios termos. Se tomarmos como exemplo o caso da metáfora, percebemos que
ela é constituída sobre uma relação lógica idêntica a si mesma em metáforas cujos termos
são radicalmente diferentes.
Observemos este fragmento de Manuel Bandeira:
ver de dia
ver de noite
verde noite
negro dia
verde-negro
e este de Cruz e Sousa:
63
RIFATERRE, Michael P. cit. p. 138
64
Apud COHEN, Jean, Op. Cit. p. 40.
189
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas.
Em “verde noite” e “áureas correntezas” existem dois pares de termos e de substân-
cias completamente distintas; mas a relação que em cada um deles une o adjetivo ao subs-
tantivo é exatamente a mesma:verde” está para “noite” assim como “áureas” está para
correntezas”.
A estrutura sintagmática é idêntica, e é esta estrutura que torna cada uma dessas fór-
mulas uma metáfora, para as quais Jean Cohen sugere as seguintes equações, em que So é o
significado, e R é a relação:
Teoria substancialista Æ Prosa = So 1 + So 2
Poesia = So 3 + So 4
Teoria estruturalista Æ Prosa = (So1) R1 (So2)
Poesia = (So3) R2 (So4)
E afirma o lingüista: “A diferença entre R1 / R2 é uma diferença formal que, como
tal, pode ser idêntica em significados diferentes e diferente em significados idênticos.”
Nota-se que na teoria substancialista não se considera a relação entre os termos, por-
que nela só se leva em conta os termos em si mesmos. Na teoria estruturalista o que está em
relevo é a relação entre os termos, pois é nessa relação que está o teor metafórico da ex-
pressão, o que significa dizer que, quando o poeta cria uma metáfora original, o que ele
inventa são os termos, não a relação. Assim, ele enquadra uma forma antiga numa substân-
cia nova.
Como se pode notar, a dimensão poética de um texto está na sua configuração formal.
Vejamos como se pronuncia Rifaterre a respeito da forma:
190
A forma, por si só, não pode chamar a atenção se não for específica, ou seja, se
não puder ser repetida, memorizada, citada. Se não, o conteúdo seria o objeto primei-
ro da atenção e poderia ser repetido através de outras expressões equivalentes. A
forma é preeminente porque, se o número, a ordem e a estrutura dos elementos ver-
bais fossem mudados, a mensagem e seu conteúdo perderiam a especificidade identi-
ficável e imperativa.
65
Mas reconhecemos que muitas dessas realizações são freqüentemente retomadas, o
que as torna “figuras de uso”. Dessa maneira, expressões tais como negro destino, fome
negra etc. tornam-se de uso corrente e de inteligibilidade imediata, o que faz com que o
desvio não seja percebido, provocando o desaparecimento do efeito estilístico, cuja função
é surpreender o leitor, a partir da quebra do automatismo psíquico. É por essa razão que
Rifaterre fala em contexto estilístico. A lingüística do sistema pode analisar qualquer tipo
de expressão, ao passo que a lingüística do estilo estuda apenas as estruturas específicas,
que não admitem qualquer tipo de substituição, sob pena de se romper a essência poética
do texto.
* * *
O que procuramos deixar aqui como idéia básica é que o texto poético tem de ser
confrontado e analisado em suas peculiaridades que o tornam emblemático. Encampamos
aqui a idéia de que o texto poético é marcado por uma estrutura peculiar que o transforma
em objeto de arte. Embora os estudos modernos da Lingüística tenham introduzido os con-
ceitos desenvolvidos pela Teoria de Enunciação, tão bem aceita pela sua eficiência na aná-
lise do discurso, o texto poético é ainda marcado pela sua feição estruturalista.
Sendo uma criação artística com a palavra, o poema tem que ser analisado, como
qualquer obra de arte, na forma que o estratificou e, como tal, em suas duas dimensões: o
plano da expressão e o plano do conteúdo, considerando-se em ambos o aspecto formal. O
que se tem de relevar como argumento irrefutável para a valorização do aspecto formal do
poema é a sua intradutibilidade. Um poema só pode ser traduzido em sua substância; mas
traduzir simplesmente a substância poética de um texto é retirar dele o que há de mais rele-
65
RIFATERRE. Op. Cit. 141
191
vante, que se encontra na configuração formal. Assim, nessa tradução, salva-se o conteúdo,
e destrói-se a forma, e com ela a própria poesia.
Assim, verso, métrica, rima, construções frasais, imagens formais etc. são elementos
estruturais próprios da poesia, elementos esses que, em conjunto, contribuem para a cons-
trução do sentido poético de um texto. Então, abalar a estrutura do texto poético é abalar a
poesia, é converter a obra poética num pastiche, é tirar-lhe o essencial, que constitui o ali-
cerce da configuração artística. Afinal, um texto poético é concebido estruturalmente como
uma obra fechada, de configurações emblemáticas próprias que constituem o que se define
como objeto artístico.
Uma forma poética, para ser considerada como tal, é aquela que pode ser citada, cris-
talizada e posta em relevo, sobrepondo-se a forma ao seu conteúdo semântico, isto é, ao
conteúdo da mensagem. Dessa maneira, é no plano estrutural que um poema tem de ser
lingüisticamente analisado, o que inviabiliza a tradução poética de um texto. Isto porque
poesia não é o que se diz, poesia é a forma como se diz, forma esta que condensa em si
mesma um sentido poético específico que não pode ser concebido de outra maneira.
Traduzir uma metáfora ou uma imagem poética que subverte um grau da normalidade
lingüística para uma forma de expressão “natural”, para o grau zero da escritura, é aniqui-
lar as potencialidades poéticas de um texto. A linguagem poética se constrói sobre as ruínas
de um padrão previamente concebido, seja pelo sistema de um código lingüístico ou por
um pattern contextualmente construído no poema. Reconstituir este padrão é salvar o sis-
tema, mas é também aniquilar a poesia. Afinal, insistimos, poesia é forma e não substância.
192
4. — A ADJETIVAÇÃO NO DISCURSO POÉTICO
Nosso objetivo aqui é analisar as potencialidades sintáticas do adjetivo sob a ótica
gramatical e estilística. Para tanto, são feitas algumas confrontações do seu emprego, con-
siderando as várias nuances que esta classe de palavra pode apresentar na construção de
sentido de um texto e em particular do texto poético. Assim, a partir da distinção entre as
modalidades do seu uso, procuramos mostrar seus aspectos gramaticais e os desvios estilís-
ticos que os envolvem, tomando como base a relação sintagmática do adjetivo com o subs-
tantivo na estruturação da frase.
Sob o aspecto gramatical do adjetivo, procuramos mostrar a posição de autores con-
sagrados, tais como Celso Cunha e Lindley Cintra, Maria Helena de Moura Neves, Mário
Perini, José Carlos Azeredo, entre outros. Semanticamente, distinguimos as funções quali-
ficadora e classificadora do adjetivo, e, à luz da sintaxe, abordamos a estrutura do sintagma
nominal com o adjetivo como elemento componencial. Assim, levamos em consideração a
posição do adjetivo em relação ao núcleo do sintagma nominal e buscamos compreender, a
partir daí, o sentido que essa classe de palavra é capaz de construir na estruturação da frase.
Sob o aspecto estilístico do adjetivo, consideramos os fatores que caracterizam a dis-
tinção estilística, tais como a norma, o desvio e a escolha, tomados como parâmetros para a
dimensão da criatividade em busca de valores afetivos e estéticos. Isso significa dizer que, a
princípio, ficamos entre a estilística da língua e a estilística literária, já que consideramos
que a estilística da língua, preconizada por Charles Bally, e a estilística literária, desenvol-
vida por Karl Vossler, Spitzer, Alonso e outros sob certos aspectos se complementam.
Importa-nos aqui a discussão sobre gramaticalidade, redundância e pertinência se-
mântica, segundo a teoria da significação chamada por muitos de “contextual” ou “funcio-
nal”, na qual o sentido de uma palavra é o conjunto dos contextos em que ela pode figurar.
Nessa visão, a semântica encontra-se com a sintaxe, visto que a significação nada mais re-
presenta do que o conjunto de combinações permitidas para um termo dado na estruturação
das sentenças inseridas em um determinado contexto.
Como não se pode reconhecer um desvio sem que se conheça a norma, dividimos esta
análise em duas partes. Na primeira mostramos os aspectos lógico-gramaticais que envol-
vem o emprego do adjetivo – seus valores lexicais e sintáticos –; na segunda, seus aspectos
193
estilísticos, com seus valores afetivos e estéticos, onde abordaremos as várias facetas da
subjetividade à luz da conotação lingüística.
4.1. – Aspectos gramaticais do adjetivo
Discutimos em primeira mão a natureza da classe dos adjetivos. Adjetivo é uma pala-
vra essencialmente modificadora do substantivo. Os adjetivos são usados para atribuir uma
propriedade singular a uma categoria denominada por um substantivo, categoria esta que já
é um conjunto de propriedades. Essa atribuição funciona de duas maneiras:
a) qualificando:
Lembro-me de alguns, Dr. Cincinato Richter, homem grande, gentil e sorridente, que às vezes
trazia seu filhinho Roberto e a esposa, moça bonita e simpática. (Zélia Gattai)
b) subcategorizando:
Na reunião mensal da indústria têxtil, discutiu-se a ação judicial movida contra a empresa.
Ampliando os conceitos acima, podemos dizer que os adjetivos, conforme afirma Cu-
nha & Cintra
66
, são empregados:
1) para a caracterização dos seres, dos objetos ou das noções nomeadas pelo subs-
tantivo, indicando:
a) uma qualidade ou um defeito:
pessoa honesta homem bondoso
b) o modo de ser:
mulher feliz moça delicada
c) o aspecto ou aparência:
mar azul janela grande
66
CUNHA, Celso & CINTRA, Lindley. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 3ª ed. – Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
194
d) o estado:
homem envelhecido árvore florida
2) para estabelecer junto ao substantivo uma relação de tempo, de espaço, de matéria,
de finalidade, de propriedade, de procedimentos etc. Aqui se encontram os adjetivos de
relação:
reunião mensal (= reunião relativa ao mês)
comida brasileira (= comida típica do Brasil)
indústria têxtil (= indústria que fabrica tecidos)
movimento literário (= movimento relativo à literatura)
casa paterna (= casa onde moram os pais)
ação judicial (= ação de natureza jurídica)
atitude infantil (= atitude própria de criança)
Existem, na língua portuguesa:
a) adjetivos simples:
As grandes festas juninas do Nordeste movimentam R$ 1 bilhão em negócios. (O Globo)
b) adjetivos perifrásicos (locuções adjetivas):
As grandes festas juninas do Nordeste movimentam R$ 1 bilhão em negócios. (O Globo)
O preço dos automóveis aumentou assustadoramente. (O Globo)
É possível encontrar um adjetivo da língua correspondente a uma locução adjetiva,
como ocorrem em:
festa do interior (= interiorana) jogada de mestre (= magistral)
Contudo, independente de existir ou não um adjetivo correspondente a uma locução
adjetiva, esta se configura como tal, desde que exerça uma função adjetiva. O fato de existir
ou não um adjetivo a ela equivalente é uma questão do léxico e não da gramática da língua.
Observe os exemplos:
195
O pano da cortina não era de boa qualidade, mas o pano de pratos era de algodão.
Receita flagra contrabando de 66 mil fardas do Exército. (O Globo)
Escuta negro sem vergonha. (N. Rodrigues)
As locuções adjetivas são normalmente formadas por:
a) preposição + substantivo
Tesoureiro do partido diz não saber o que o deputado fez com o dinheiro. (O Globo)
Passei o resto da manhã caída sobre a cama, em lágrimas. (O. Farias)
Os alunos sem uniforme não poderão entrar na escola. (aviso afixado em uma escola)
Ao sair de um dos corredores, foi dar num polígono vazio donde partiam novos corredores cin-
zentos e sem fim. (A. Machado)
b) preposição + advérbio
Parreira pode barrar Kaká ou Adriano na semifinal de hoje contra a Alemanha. (O Globo)
Equilibrando-se nas patas da frente, o cavalo rodopiava na arena do rodeio.
Uma locução adjetiva pode conter dois substantivos, coordenados por nem, quando
iniciada pela preposição sem, conforme afirma Maria Helena de Moura Neves:
67
Quando lá chegamos, já noitinha, havia muita gente, cachaceiros, vadios, gente sem eira nem
beira. (E. Lopes)
67
NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de Usos do Português. 4ª reimpressão – São Paulo: UNESP,
2000.
196
4.1.1. – A Oração adjetiva
As orações adjetivas valem por adjetivos e, na trama do período, subordinam-se a
qualquer termo da oração anterior cujo núcleo seja um termo de natureza substantiva –
substantivo ou equivalente do substantivo. Portanto a caracterização do substantivo pode
ser feita por meio de uma oração adjetiva, seja ela desenvolvida (com verbo em forma fini-
ta):
Ele (Dirceu) tem clara compreensão do esforço que o país precisou fazer nessa momento. (Pa-
locci)
Não vamos admitir críticas no seu trabalho, que está no caminho certo. (J. Dirceu)
seja ela reduzida (com verbo em forma nominal):
Aqueles homens gotejantes de suor, bêbedos de calor, desvairados de insolação, a quebrarem, a
espicaçarem, a torturarem a pedra, pareciam um punhado de demônios revoltados... (Aluísio
Azevedo)
Vede Jesus, despejando os vendilhões do templo... (Rui Barbosa)
Estes são os novos alunos da universidade, matriculados após o último exame vestibular.
4.1.2. – Substantivo em função adjetiva
Um substantivo pode atuar como classificador ou como qualificador de outro subs-
tantivo, atribuindo o conjunto de propriedades que indica, como se fosse uma única propri-
edade. Nesse caso ele deixa de ser referencial e passa a funcionar como se fosse um adjeti-
vo (Neves – 2000: 175).
Esse fenômeno ocorre tanto em função predicativa:
Romãozinho, que era assim chamado por ser pequeno: era menino e malévolo. (N. Rodrigues)
197
como em função adnominal:
Havia um jeito garoto dela de dizer as coisas. (D. Trevisan)
As propriedades de um substantivo empregado como não-núcleo de um sintagma
nominal podem ser mantidas ou não
68
. Se o substantivo mantiver suas propriedades, obser-
va-se que ele:
a) não é suscetível de intensificação;
b) não concorda com o nome nuclear do sintagma.
A adjetivação do substantivo fica mais evidente quando o substantivo modificador
concorda com o substantivo modificado:
Deputados médicos acham inquietante o quadro clínico. (Folha de São Paulo)
Dirigido a todos os bispos membros das conferências episcopais nacionais, o documento ostenta
ilustrativo título. (Veja)
Entretanto, nos casos em que não há concordância, o substantivo conserva um relativo
estatuto de sua classe:
Após as atividades, realizávamos reuniões relâmpago para uma avaliação do trabalho.
Como a intensificação é uma característica exclusiva do elemento qualificador, o
substantivo da direita que se submeter à manifestação da intensificação terá evidenciada sua
função semântica qualificadora e, conseqüentemente, sua adjetivação.
Ninguém é menos rei do que quem tem reinado.
A Amazônia é uma região tão
Brasil quanto São Paulo. (Rachel de Queiroz)
68
NEVES, Maria Helena de Moura. Op. cit., p. 176.
198
A ocorrência de um adjetivo relacionado com o substantivo modificador – o da direita
– constitui uma evidência da manutenção das propriedades do substantivo.
Minha geração não admite mais conviver com um Brasil gigante econômico mas pigmeu soci-
al. (Collor)
Assim, temos o seguinte esquema:
Brasil – substantivo modificado / gigante – substantivo modificador / econômico – adjetivo
Brasil – substantivo modificado / pigmeu – substantivo modificador / social – adjetivo
4.1.3. – O Sintagma adjetival – estrutura e funcionamento
Definimos sintagma adjetival como a classe dos constituintes que podem desempe-
nhar a função de modificador do núcleo do sintagma nominal.
Façamos algumas considerações sobre o sintagma adjetival:
a) Tipos de sintagma adjetival
Azeredo aponta dois tipos de sintagma adjetival. Segundo ele, o sintagma adjetival
pode ser básico ou derivado
69
. Assim ele classifica:
- Sintagma adjetival básico – seu núcleo é um adjetivo, precedido ou não de advérbio de
intensidade. Certos adjetivos são seguidos de complemento preposicionado:
flores cheirosas — casas muito confortáveis
Os jogadores estavam certos da vitória
69
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000,
p. 203
199
- Sintagma adjetival derivado – assume a forma de um sintagma preposicionado:
Ele mora em uma casa de cômodos.
ou de uma oração convertida em sintagma adjetival. Essa é a oração adjetiva, que, introdu-
zida por um transpositor anafórico (pronome relativo), torna-se modificador de um nome
ou pronome, podendo vir integrada no sintagma nominal, como um adjunto, ou logo após
ele, como um aposto.
70
Helena encontrou seu namorado que mora em Niterói.
(A oração acima sublinhada está integrada no sintagma nominal)
Helena encontrou seu namorado, que mora em Niterói.
(A oração acima sublinhada está fora do sintagma nominal, separada dele pela pontuação.)
b) Sintagmas nominais derivados por preposição
Estes sintagmas, pela sua própria natureza, colocam-se, obrigatoriamente, em posição
posposta ao núcleo do sintagma nominal:
O Naturalismo produziu romances de tese.
As palavras
do presidente levaram o país ao caos.
Mas é preciso considerar, e aqui mais uma vez recorremos a Azeredo (2000-204), a
coexistência de sintagma nominal básico (sem preposição) e sintagma derivado (com pre-
posição) modificador do mesmo substantivo. Vejamos a lúcida lição do mestre:
A co-ocorrência de sintagma adjetival básico e sintagma adjetival derivado modi-
ficador do mesmo substantivo – um carro
de passeio italiano – está condicionada à es-
70
AZEREDO, José Carlos de. Iniciação à Sintaxe do Português. 8ª ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003,
p. 89
200
truturação do significado do SN. Enquanto carro italiano de passeio varia livremente
com carro de passeio italiano, o mesmo não acontece com um pedaço de cabrito assa-
do e um pedaço assado de cabrito, já que um pedaço de cabrito assado tem duas leitu-
ras – [um pedaço] [de cabrito assado] e [um pedaço de cabrito] [assado], ao passo que
um pedaço assado de cabrito só admite a segunda leitura.
Percebemos que a análise da dupla possibilidade de leitura realizada pelo mestre rea-
viva a teoria chomskyana, que distingue estrutura superficial e estrutura profunda, e a teo-
ria dos constituintes imediatos da lingüística estrutural de Bloomfield.
Por essa razão, despertamos a atenção para a leitura e análise de certos sintagmas.
Observemos o exemplo abaixo:
O empregado lavou o carro preto do patrão.
O sintagma nominal destacado na frase acima apresenta dois sintagmas adjetivais: um
básico – preto – e outro derivado – do patrão. O sintagma básico – preto – modifica o nú-
cleo do sintagma nominal – carro. A questão é saber que elemento é modificado pelo sin-
tagma preposicional do patrão. Entendemos que o adjetivo preto é um delimitador de car-
ro, o que nos leva a duas interpretações: a de que, dentre os carros do patrão, aquele que o
empregado lavou foi o de cor preta, ou dentre os carros pretos, o que o empregado lavou foi
o do patrão. Diante disso, uma análise que veja carro como núcleo modificado por do pa-
trão é redutora e ingênua. Na verdade há uma hierarquização dos adjuntos adnominais no
sintagma nominal.
71
Desprezando o artigo o, propomos a seguinte análise em que o sin-
tagma carro preto do patrão é assim dividido em constituintes imediatos: [carro / preto]
[do patrão], em que preto é modificador de carro, e do patrão é modificador de carro pre-
to.
c) O sintagma adjetival em função predicativa
71
Ver MACEDO, Walmírio. Gramática da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Presença, 1991, p. 278, 279.
201
Situado no domínio externo do sintagma nominal, o sintagma adjetival exerce função
predicativa, passando a referir-se a um SN por meio de um verbo. Nesse caso, faz-se neces-
sária a distinção do papel do adjetivo como complemento predicativo, quando ele é um
constituinte obrigatório do sintagma verbal cujo verbo é um transpositor, como nos exem-
plos abaixo:
As flores são vermelhas. A panela era de ferro.
A comida estava
fria. Os homens ficaram de pé.
do seu papel como adjunto predicativo, em que o sintagma adjetival é opcional e, favoreci-
do pela variação de colocação, expressa uma circunstância atrelada ao processo indicado
pelo verbo da oração principal:
As crianças chegaram alegres do colégio. (circunstância de modo)
Carente de vitamina, o neném adoeceu. (circunstância de causa)
d) Sintagmas adjetivais derivados por orações adjetivas
Esses sintagmas têm posição marcada após o substantivo ou pronome a que se refe-
rem. Os sintagmas adjetivais derivados por orações adjetivas ocupam sempre o último lu-
gar da área direita do SN. Isso significa dizer que tais sintagmas estão sempre após o sin-
tagma adjetival e o sintagma preposicional que incorporam o sintagma nominal:
Estes são os livros de Literatura que o professor indicou.
O carro preto do patrão
que o empregado lavou estava muito sujo.
Confirma-se aqui, mais uma vez, a hierarquia dos adjuntos adnominais. Analisemos o sin-
tagma nominal destacado na frase abaixo, desprezando, mais uma vez o artigo o:
O
carro preto do patrão que o empregado lavou estava muito sujo.
202
carro preto do patrão que o empregado lavou – sintagma nominal
carro – núcleo do sintagma nominal
preto – sintagma adjetival modificador do núcleo carro.
do patrão – sintagma preposicional modificador de carro preto
que o empregado lavou – sintagma oracional modificador de carro preto do patrão.
O fato é que o transpositor anafórico que tem como antecedente toda a expressão car-
ro preto do patrão, e não apenas carro. Afinal, o empregado poderia ter lavado o carro ver-
melho do patrão, o carro preto do vizinho ou qualquer outro que não fosse o carro preto do
patrão.
4.1.4. – Funções sintáticas do adjetivo
O adjetivo desempenha as seguintes funções sintáticas:
a) Adjunto adnominal – O adjetivo refere-se, sem intermediário, ao substantivo, ao qual
pode vir anteposto ou posposto. Nesse caso o adjetivo é periférico no sintagma nominal e
atua como modificador do seu núcleo:
A regressão histórica deve deter-se em um determinado ponto, pois é contraproducente preten-
der explicar um sistema filosófico em função de suas origens mais remotas e longínquas. (Esta-
do de São Paulo)
Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste e o ca-
minhão.
203
A função de adjunto adnominal pode ser exercida por adjetivo perifrásico (locução
adjetiva) ou oração adjetiva:
Dirceu listou providências que o governo vem adotando nas esferas da Polícia Federal. (O
Globo)
b) Predicativo – O adjetivo é núcleo no sintagma verbal, sendo, portanto, núcleo do predi-
cado.
Se o verbo é transpositor (de ligação), só o adjetivo é núcleo do predicado, e ele de-
sempenha a função tradicionalmente denominada predicativo do sujeito. Nesse caso o pre-
dicado é nominal.
A cidade parece encantada. (C. D. Andrade)
Os mortos são ridículos como bonecos de engonço a que cortassem os fios... (Mário Quintana)
A respeito do núcleo do predicado, vale a pena ressaltar a posição de Mário Perini.
Diz gramático:
(...) o verbo desempenha na oração unicamente a função de núcleo do predicado:
essa é a única função que um verbo pode desempenhar, e somente um verbo pode ser
núcleo do predicado. Em outras palavras, o verbo é sempre o NdP da oração; e o NdP
da oração é sempre um verbo.
72
E diz ainda:
A aceitação desse postulado leva a análises diferentes da tradicional em alguns
casos como em
Meu nariz está entupido.
onde está deve ser analisado como NdP. (...) Chamar está de “núcleo” do predicado
não quer dizer que seja essa a palavra mais importante, nem que esteja transmitindo a
72
PERINI, Mário. Gramática Descritiva do Português. 4ª ed. – São Paulo: Ática, 2003, 71.
204
parte mais relevante da mensagem. Relembro (caso seja necessário) que estamos lidan-
do, neste capítulo, com a sintaxe da oração – isto é, com sua organização formal, e não
com sua interpretação semântica.
É possível a ocorrência do predicativo sem que o verbo de ligação esteja presente.
Nesse caso, o verbo de ligação é facilmente subentendido.
Apesar de amáveis, era evidente que também os Barros estavam constrangidos. (O. Farias)
(= apesar de serem amáveis)
Pode ocorrer o emprego de um mesmo adjetivo, no mesmo enunciado, como adjunto
adnominal e como predicativo:
Nunca houve rei louco ou ditador feroz, bastante louco ou bastante feroz para confessar em
praça aberta sua maldade e seus crimes. (Rachel de Queiroz)
No exemplo acima, louco e feroz, na primeira ocorrência, são adjuntos adnominais; na se-
gunda ocorrência, são núcleos de predicativos.
Não sendo o verbo de ligação, há, além do adjetivo, um núcleo verbal, e o predicado é
verbo-nominal. Nesse caso, considera-se que o verbo de ligação está implícito (Cf. Cunha
& Cintra - p. 262). Nessas circunstâncias o adjetivo pode ser:
- Predicativo do sujeito
E quando procuro, ansioso, entre os nevoeiros da memória, uma data esquecida, um nome, uma
citação, ei-lo que aparece... (Mário Quintana)
- Predicativo do objeto
Tatiana viu Betinha petrificada. (C. H. Cony)
Na escola a professora também lhe chama teimoso. (Alves Redol)
205
- Predicativo do predicativo
Esta na foto é minha irmã, fantasiada.
- Predicativo do complemento nominal
Todos têm receio de Piedão bêbado.
- Predicativo do adjunto adnominal
Tenho uma foto de Joana nua.
- Predicativo do adjunto adverbial
Seu namorado não saía com ela maquiada.
- Predicativo do vocativo
Você, descalço, retire-se da sala.
c) ApostoO adjetivo é empregado para explicar uma qualificação de um ser citado na
frase. Nesse caso, constitui uma expansão de um termo ocorrente na estrutura da oração,
podendo, portanto, ser omitido sem que se afete radicalmente sua estrutura.
Foi sempre assim, dona Cômoda: gorda, fechada, egoísta. (Mário Quintana)
Vovô tem um riso de cobre – surdo, velho, azinhavrado – um riso que sai custoso, aos vinténs.
(Mário Quintana)
d) Função argumental – O adjetivo desempenha função na estrutura argumental do nome
com o qual se relaciona sintaticamente. Nessas circunstâncias, exerce a função tradicional-
mente denominada complemento nominal.
206
Anita fugia, sem puritanismo, àquela obsessão matrimonial e àqueles destemperos do sexo.
(B.H.)
(= obsessão pelo matrimônio)
4.1.5. – As subclasses dos adjetivos
Quanto às propriedades semânticas, o adjetivo divide-se em duas subclasses, de acor-
do com as propriedades que indicam na sua relação com o substantivo: adjetivos classifica-
dores e adjetivos qualificadores.
a) Adjetivos qualificadores (ou qualificativos)
Os adjetivos qualificadores indicam no substantivo com o qual se relacionam uma
propriedade que não compõe necessariamente o feixe de propriedades que o caracterizam.
Tais adjetivos qualificam o substantivo, atribuindo a ele característica mais ou menos sub-
jetiva, mas sempre portadora de certa vaguidade. Como a atribuição dessa propriedade
constitui um processo de predicação, esses adjetivos são considerados de tipo predicativo.
Vejamos o exemplo:
Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. (Zélia Gattai)
A predicação não é tratada aqui como um fato sintático. Sintaticamente, na frase aci-
ma, simples é adjunto adnominal, e rica, alegre e sadia são predicativos. Contudo cada um
dos adjetivos empregados na frase promove uma atribuição ao substantivo que acompanha,
isto é, predicam; logo são adjetivos predicativos e, por isso mesmo, são qualificadores.
Os adjetivos qualificadores apresentam certas propriedades que se ligam ao próprio
caráter vago que se pode atribuir à qualificação. Assim sendo:
207
- são graduáveis e intensificáveis
Outras seriam mais bonitas, mais modernas, mais pimponas, mais arrebatadas na cama, ne-
nhuma contudo mais solicitada, por nenhuma se lhe comparar no trato. (J. Amado)
Diógenes – tão ativo, tão equilibrado – não pudera ocorrer consigo uma dessas coisas sobrena-
turais e inexplicáveis, que lhe tomou por instante a razão. (S. Mendes)
- expressam valores semânticos de modalização e avaliação:
É evidente que não tendes nenhuma pretensão à santidade. (Gilberto Amado)
(modalização)
Eram altos, baixos, gordos, magros – mas tinham impressionante ar de família. (Pedro Nava)
(avaliação)
Classificam-se como qualificadores:
- adjetivos com prefixos negativos – in-, des-:
Há uma cor que não vem dos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos. (Má-
rio Quintana)
Deixou cair lentamente a mão em meu ombro, o olhar descrente... (A. Leite)
- adjetivos terminados por sufixos formadores de deverbais – -do /-da; -to, -nte:
Que imaginação depravada têm as orquídeas! (Mário Quintana)
Era um não se quê, um flapt, um inquietante animalzinho... (Mário Quintana)
- adjetivos formados por sufixos de abundância de qualidade – -oso, -udo, -ucha:
208
E sente-se que Nosso Senhor, em comemoração de abril, instituirá hoje valiosos prêmios... (Má-
rio Quintana)
Suas mãozinhas gorduchas folheiam com desembaraço a velha edição em espanhol da Crítica
da Faculdade de Julgar. (Z. Tavares)
Arraia-miúda não está muda, carrancuda, tartamuda, bochechuda, barriguda, arraia-miúda só
ajuda. (C. Buarque & R. Guerra)
- adjetivos formados com prefixos intensificadores – hiper-, -super-:
As aulas pareciam super-simplificadas. (F. Gabeira)
Eu sabia que, quando se conhece uma pessoa numa viagem, depois fica um relacionamento
hipervazio. (M. R. Paiva)
- adjetivos que admitem sufixo superlativo – íssimo-, inho-, etc.:
Chorei biliões de vezes com a canseira / de inexorabilíssimos trabalhos. (A. Anjos)
Me lembro dela limpinha, jogando vôlei. (I. Ângelo)
b) Adjetivos classificadores (ou classificatórios)
Os adjetivos classificadores põem o substantivo com o qual se relacionam em uma
subclasse e trazem em si uma indicação objetiva sobre essa subclasse. Assim, eles constitu-
em uma verdadeira denominação para a subclasse. Por essa razão, são denominativos, e não
predicativos. Possuem, portanto, um caráter não-vago. Não são graduáveis nem intensificá-
veis.
As indústrias têxteis reivindicam junto ao governo diminuição de impostos.
209
No exemplo acima, dentre as várias classes de indústrias, classificadas de acordo com
as suas atividades, uma dessas classes é a que fabrica tecidos, denominada têxtil.
Esses adjetivos geralmente equivalem a locuções adjetivas (de + nome) e, conseqüen-
temente, têm na frase, a mesma distribuição que essas locuções e freqüentemente se coor-
denam com elas.
Companhias seguradoras e de transporte têm lucro anual acima da média. (Jornal do Comér-
cio)
São adjetivos classificadores, pelo seu aspecto não-vago:
- adjetivos com prefixo de valor numérico:
Todos os seres vivos, sejam animais ou vegetais, unicelulares ou pluricelulares, têm, para ma-
nutenção da vida, necessidades semelhantes. (Pincetta S. E.)
- adjetivos derivados de nomes próprios:
Os personagens machadianos são complexos, pela sua dimensão psicológica.
Se usassem bigodes, eles na certa seriam Nietzscheanos, na imposição enérgica de uma rude
filosofia. (F. Sabino)
- certos adjetivos com noções adverbiais:
Durante o ano retrasado, quando estava quase aposentado, ele escreveu dois artigos para o Diá-
rio da Libertação, de Xangai. (Exame)
No próximo sábado a gente vai fazer um piquenique na chácara. (L. F. Teles)
Tratava-se, pelo jeito, de uma nave central e duas naves laterais, como convém a qualquer igre-
ja que se preze. (I. Pessotti)
210
Há prefixos que dão força predicativa a adjetivos classificadores. Geralmente tais
prefixos introduzem uma noção de oposição, aproximando-se do valor de negação.
O plano anti-inflacinário do governo Collor, que diminuiu a liquidez da economia, não prejudi-
cou o comércio de animais leiteiros. (Folha de São Paulo)
c) A permeação entre as subclasses dos adjetivos
Os adjetivos classificadores podem passar a qualificadores, dependendo do substan-
tivo com o qual se relacionam, em uso metafórico, admitindo assim a anteposição.
Desconhecido olhava a cena tomado dum subterrâneo temor. (Érico Veríssimo)
A mancha que lhe adviera com o parto da filha dava lugar ao júbilo celeste do chorinho da neta.
(A. Vasconcelos)
Em conseqüência de diferentes efeitos de sentido, adjetivos classificadores admitem
gradação, o que revela seu valor qualificador.
Da terra e da nossa raça não tinha nada, porém se pode afirmar que tinha o demais porque não
havia ninguém mais brasileiro que ela. (Mário de Andrade)
Marisaura, de sapato baixo, grosseiro, num vestido claro, simples e não muito feminino, olha
concentradamente através da janela. (O. Luís)
Percebe-se o caráter classificador dos adjetivos destacados nos exemplos acima na
comparação com os adjetivos nos sintagmas:
povo brasileiroroupa feminina.
Alguns adjetivos que, a princípio, são qualificadores podem funcionar como classifi-
cadores junto de determinados substantivos e em certas situações:
211
O mar fica a trinta léguas de distância mas diz o povo que escuta o estrondo da estrela cadente
quando se afoga na água salgada. (Raquel de Queiroz)
Naquela fazenda há uma grande plantação de batata doce.
Percebe-se o caráter classificador dos adjetivos destacados nos exemplos acima na
comparação com os adjetivos nos sintagmas:
comida muito salgadatorta muito doce
4.1.6. – A posição do adjetivo no sintagma nominal
a) A visão discursiva
Consideremos dois tipos de modificadores no sintagma nominal: o modificador inter-
no, que está intimamente relacionado com o núcleo do sintagma nominal e, via de regra,
não pode separar-se dele, e o modificador externo, que pode separar-se do resto do sintag-
ma nominal (cf. Perini – 2003-113). Tais modificadores têm no sintagma nominal funções
específicas. Vejamos o exemplo abaixo, considerando apenas o papel dos adjetivos com
relação ao núcleo substantivo:
Construíram uma rede elétrica eficiente.
Consideremos que o segmento destacado é um sintagma nominal, em que rede é o
núcleo (NSN), elétrica é o modificador interno (Mod-I), e eficiente é o modificador externo
(Mod-E). Neste sintagma é possível a seguinte variação:
Construíram uma rede elétrica, eficiente.
212
Nota-se que o Mod-E (eficiente) foi separado por vírgula do resto do sintagma nomi-
nal, sem que o sentido seja considerado inaceitável. Entretanto a seguinte variação seria
semanticamente impossível:
Construíram uma rede eficiente, elétrica.
A transposição acima provoca uma impertinência semântica, o que torna a frase logicamen-
te inaceitável.
Além disso, nem sempre o modificador interno tem a mobilidade que o modificador
externo apresenta. Observemos:
(a) Construíram uma rede elétrica eficiente.
(b) Construíram uma eficiente rede elétrica.
(c) Construíram uma rede eficiente elétrica.
(d) Construíram uma elétrica rede eficiente.
Nos exemplos (a) e (b) encontramos pertinência semântica, nos exemplos (c) e (d) ocorre
ausência de lógica pela configuração sintática semanticamente inaceitável.
As operações acima realizadas são suficientes para mostrar que elétrica tem função
diferente de eficiente, pois elétrica não pode ocorrer nem em último lugar nem antes de
rede, ao passo que eficiente pode ocorrer em ambas as posições. Isso prova que Mod-I e
Mod-E têm funções distintas no sintagma nominal.
* * *
Sintaticamente, o adjetivo, quando incorporado ao sintagma nominal, exerce a função
de adjunto adnominal, e, semanticamente, por conta do seu caráter restritivo, é empregado
para delimitar uma parcela da significação abrangente do substantivo (cf. Azeredo – 2000-
203):
Um homem gordo entrou no restaurante e pediu uma garrafa de vinho tinto.
213
No exemplo acima, os adjetivos gordo e tinto restringem, respectivamente, a signifi-
cação ampla dos substantivos homem e vinho. O que se quer dizer é que, entre os tipos de
homens fisicamente existentes, um homem gordo foi quem entrou no restaurante, e, entre
os tipos de vinhos que existem, foi um vinho tinto que o homem pediu.
Mas nem sempre o adjetivo tem essa função delimitadora. Ele pode exercer uma fun-
ção meramente explicitadora, e isso ocorre quando o adjetivo não é empregado para distin-
guir um ser entre os tipos de seres de uma mesma espécie, representada lingüisticamente
pelo substantivo com o qual o adjetivo se relaciona no sintagma. Vejamos agora este exem-
plo:
A bailarina exercitava suas pernas musculosas.
No exemplo acima, não seria possível fazer uma leitura delimitadora do adjetivo mus-
culosas, já que, por razões lógicas, a expressão destacada nos revela que ambas as pernas
são musculosas. Esse entendimento que temos não é fornecido por qualquer razão de ordem
sintática, mas por condicionamentos discursivos ditados pelo nosso conhecimento do mun-
do.
Nossa experiência lingüística revela que a colocação do adjetivo em algumas frases
produz nelas efeitos distintos. Na frase acima, se invertermos a posição do adjetivo em re-
lação ao substantivo (musculosas pernas), não haveria alteração lógica de sentido, pois,
salvo a dimensão subjetiva que escapa à lógica da linguagem, em ambas as posições, pelas
mesmas razões óbvias a que nos referimos acima, musculosas tem papel não-restritivo.
Mas tomemos um novo exemplo:
O professor elogiava seus alunos
inteligentes.
Nessa frase, o adjetivo inteligentes tem valor delimitador, pois podemos supor que o
professor tenha alunos que não sejam inteligentes. Se invertermos agora a ordem dos ter-
mos (inteligentes alunos), o adjetivo passa a qualificar a totalidade dos seres referenciados
pelo substantivo, o que significaria dizer que o professor tecia elogios a todos os seus alu-
nos, que eram, sem exceção, inteligentes.
214
Com essas operações, concluímos que a função restritiva do adjunto adnominal só se
manifesta quando este está posposto ao substantivo, o que significa dizer que, anteposto ao
substantivo, o adjetivo tem seu valor restritivo esvaziado. Sobre esse aspecto, ouçamos o
que diz o mestre Azeredo (2000 - 203):
Essa característica semiótica do adjetivo anteposto – ou epíteto – revela que, de
fato, a qualidade por ele expressa nessa posição é irrelevante para a compreensão do
objeto ou conceito denotado pelo substantivo.
É por essa razão que os adjetivos denominais que apresentam sentido meramente des-
critivo, não têm esse potencial. Sobre tais adjetivos denominais, Lobato (1993) observa que
adjetivos que são exclusivamente de função denotativa são sempre pós-nominais em portu-
guês.
73
Vejamos os sintagmas nominais abaixo:
peça teatral — indústria têxtil — guarda florestal — inquérito parlamentar
Os adjetivos dos sintagmas acima, em situação normal, jamais figuram em posi-
ção anteposta ao substantivo. A natureza da língua portuguesa rejeita ordenações do
tipo:
teatral peça — têxtil indústria — florestal guarda — parlamentar inquérito
Para concluir, ouçamos o que diz Basílio e Gamarski (1999-636), com alguns dos
seus exemplos e grifos nossos na segunda série:
A relevância da função denotativa de adjetivos denominais se faz sentir de ma-
neira especial no caso de palavras de cunho muito geral que necessitam de um preen-
chimento semântico a ser fornecido via de regra por um adjetivo denominal, substanti-
vo ou sintagma preposicionado.
73
BASÍLIO, Margarida & GAMARSKY, Léa. Adjetivos denominais no português falado. In Gra-
mática do Português Falado. Maria Helena de Moura Neves (org.) – 2ª ed. – São Paulo: HU-
MANITAS / FFLCH / USP; Campinas: Editora da Unicamp, 1999, p. 633.
215
a. e isso se deve ao fator monetário
* e isso se deve ao fator
b. toda a parte judicial
* toda a parte
Entretanto, o caso de ocorrência mais numerosa, por causa do maior número de
elementos disponíveis, se constitui da especificação de substantivos de diferentes graus
de generalidade, com o objetivo de definir referentes específicos, como nos exemplos
a. e bebida alcoólica?
b. abriram uma conta bancária
em que só temos especificação, de modo que o enunciado continua válido mesmo com
a retirada do adjetivo
Como já vimos, a ocorrência de dois ou mais adjetivos que, na composição do sin-
tagma nominal, se refiram ao mesmo substantivo, submete-se a determinadas regras de
colocação. Os adjetivos tipicamente descritivos colocam-se imediatamente após o substan-
tivo, constituindo o Mod-I; os que apresentam potencial afetivo-conotativo se colocam a-
pós o adjetivo descritivo, constituindo o Mod-E, ou, pela sua mobilidade, antes do núcleo
do sintagma nominal:
Ele teve um ataque cardíaco fulminante. ou Ele teve um fulminante ataque cardíaco.
Os adjetivos aos quais se sigam complementos nominais são também obrigatoriamen-
te pospostos ao núcleo do sintagma nominal (cf. Azeredo 2000- 204):
O professor indicou livros condizentes com a matéria.
mas não
O professou indicou condizentes com a matéria livros.
216
b) A visão gramatical
Ao contrário de línguas flexionais como o latim, as relações entre os termos são mar-
cadas mais pelas posições respectivas do que pelas desinências. Línguas como o português
e o espanhol apresentam maior flexibilidade na ordem dos elementos do SN, dando mais
liberdade à posição que o adjetivo ocupa, se comparada ao inglês, por exemplo, em que os
adjetivos são sempre antepostos.
No âmbito da gramática tradicional, prepondera na oração declarativa a ordem direta,
que corresponde à seqüência progressiva do enunciado lógico. Como elemento acessório da
oração, em função de adjunto adnominal, o adjetivo vem com maior freqüência depois do
núcleo substantivo ao qual se refere. Mas a natureza do nosso idioma não rejeita a chamada
ordem inversa, mormente nas formas afetivas da linguagem, em que a anteposição de um
termo constitui uma forma de realçá-lo.
Segundo Mira Matheus
74
, a posição do adjetivo pós-nominal associa-se a uma inter-
pretação restritiva, especificadora. Assim sendo, a posição à direita do núcleo do sintagma
nominal é [– marcada], por vezes obrigatória, como nos exemplos abaixo:
terreno retangular / * retangular terreno
avaliação anual / * anual avaliação,
por vezes opcional, como atestam os seguintes exemplos:
criança obediente / obediente criança
acontecimento trágico / trágico acontecimento.
Em relação a certos adjetivos, essa dupla posição está associada a significados dife-
rentes. Nesse caso, a anteposição é [+ marcada] e vista com mais freqüência em texto literá-
rios ou em contextos específicos, produzindo, em geral, um efeito de maior subjetividade,
como nos exemplos a seguir:
74
MIRA MATHEUS, M. H. et alii. Gramática da Língua Portuguesa. Lisboa: Caminho, 2003.
217
rapaz bravo / bravo rapaz
família pobre / pobre família
livro grande / grande livro
mulher boa / boa mulher
Adotando uma visão mais funcional, Neves (2000-200) afirma que a primeira obser-
vação sobre a posição que o adjetivo ocupa no sintagma nominal diz respeito ao fato de
existirem diferenças no comportamento das duas grandes subclasses – os qualificadores e
os classificadores:
a) Os adjetivos qualificadores, usados como adjuntos adnominais, podem ser pos-
postos – posição menos marcada – como em:
Uma pancada suave na porta, e aparece a dona do hotel. (A. Machado)
Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morre, ei-lo defunto. (Dalton Trevisan)
ou anteposto – posição mais marcada – como em:
Menino de Azougue, todo pessoa e curiosidade, forte pingo de vida. (G. Rosa)
Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste e o ca-
minho. (Dalton Trevisan)
Os adjetivos que admitem mais freqüentemente a anteposição são aqueles que expres-
sam qualidades atribuídas a termos que têm uma relação específica com o substantivo qua-
lificado, como nos dois últimos exemplos, em que o adjetivo não tem valor absoluto, mas
se refere a uma característica inerente ao substantivo. Assim, em forte pingo de vida, o ad-
jetivo forte se refere a uma “força” especificamente ligada à entidade pingo de vida. Da
mesma maneira, no exemplo seguinte, o homem é indefeso como homem, e a máquina é
frágil como máquina.
218
b) Os adjetivos classificadores, em função adnominal, incluídos aí os que exercem
papel na estrutura argumental do nome, aparecem, segundo a autora, normalmente pospos-
tos:
Nos anos cinqüenta, o debate da reforma agrária estava ligado à discussão mais geral dos rumos
da industrialização brasileira. (J. G. Silva)
A promotora Maria Ignez Pimentel responde a ação por improbidade administrativa. (O Globo)
Existem, entretanto, construções cristalizadas em que o adjetivo vem sempre antepos-
to, preservando a posição da língua de origem:
O pátrio poder era exercido pelo homem, com a ajuda da mulher, até 1997, quando saiu a lei do
divórcio. (Veja)
Aqui chegou como mero roceiro, e hoje é latifundiário. (A. B. Holanda)
Observa-se que, por analogia, quando se cria um sintagma paralelo a um sintagma
cristalizado existente, mantêm-se as características de posição dos elementos:
Se pátrio é de pai, devia ser era mátrio poder quando só a mãe é quem dá conta. (Raquel de
Queiroz)
Dinah Callou
75
observa que, quanto à natureza semântica, os substantivos são dividi-
dos em [+ material] (como em crianças enjeitadas e estimada carta), e [– material] (como
em boas qualidades e idéia implícita), e defendem a idéia de que a posição do adjetivo é
decorrente da sua combinação com o semantismo do seu núcleo. Assim, a possibilidade de
o adjetivo ocupar a posição pré-nuclear ou pós-nuclear não estaria previamente marcada no
léxico. Sua posição resultaria do “estado de conspiração” entre o substantivo e o adjetivo.
75
CALLOU, Dinah et. alii. A posição do adjetivo no sintagma nominal: duas perspectivas de análise. In
Análise Contrastiva de Variedades do Português: Primeiros estudos. Sílvia Figueiredo Brandão & Maria
Antónia Mota (org.). Rio de Janeiro: In-Fólio, 2003. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
219
Além disso, através de exaustiva pesquisa que abrange os dois últimos séculos, a mes-
tra revela que uma análise variacionista indicou os seguintes fatores que favorecem a apli-
cação de regras da anteposição do adjetivo:
a) A natureza do adjetivo – Os adjetivos avaliativos são os que aparecem mais freqüente-
mente à esquerda do núcleo. Se o adjetivo é descritivo, e o núcleo é material, a possibilida-
de de o adjetivo vir antes do núcleo é quase nula.
b) A dimensão do adjetivo em relação ao núcleo – Os adjetivos fonicamente “mais pesa-
dos” (com maior número de sílabas) são aqueles que ocupam preferencialmente a posição
pós-núcleo. Isso significa que, no âmbito da fonética acústica, a anteposição é marcada na
prosódia, interferindo no padrão prosódico subjacente.
c) O tipo de texto – O caráter mais formal e objetivo de certos textos, como editoriais,
normalmente textos do redator ou da redação do jornal de caráter informativo/opinativo,
provoca uma menor ocorrência de adjetivos antepostos ao núcleo substantivo.
Como se vê, a opção pela posição pós-nominal e/ou pré-nominal do adjetivo parece
obedecer a restrições de caráter semântico. Percebe-se que, na verdade, existe uma motiva-
ção muito mais semântico-discursiva que estritamente sintática na posição que os adjetivos
ocupam no sintagma nominal.
4.2. – Aspectos estilísticos do adjetivo
É inegável a importância estilística do adjetivo como recurso expressivo. Sem ele o
substantivo carece de especificidade e individualidade. É ele que traduz nuance, cor e tona-
lidade à expressão, tornando-se em alguns casos a medida de avaliação da capacidade lite-
rária, seja no uso qualitativo, seja no uso quantitativo. O adjetivo, quando empregado com
propriedade, é o elemento lingüístico do poder diferenciativo de um estilo, já que seu em-
prego exige proficiência, sensibilidade e, sobretudo, capacidade de criação estética.
220
O adjetivo é o indicador mais sensível das modalizações intelectuais e emocionais de
um escritor diante do mundo. Sem ele o substantivo perde em alcance, e sua extensão se
atrofia, já que sua escala de valores é interceptada pela nudez e pela falta de colorido. É por
meio dos epítetos e dos qualificadores que se pode estabelecer, em certas proporções, uma
valoração dos aspectos estético-estilísticos da linguagem e, a partir daí, inferir uma particu-
lar visão e avaliação do mundo e da existência, revelada no universo artístico-literário.
Mas, como vimos, é preciso ter em mente que o adjetivo como recurso de expressão é
passível de uma duplicidade de funções: de um lado, seu valor objetivo, que traduz noções
intelectivas e conceptuais; de outro, seu valor subjetivo, com noções afetivas, emocionais e
estéticas. Assim, o adjetivo é capaz de promover uma permeação entre universos distintos,
através de matizes que direcionam o sentido dos substantivos para nosso universo cognos-
cível ou para as zonas insondáveis do nosso inconsciente. Essas operações são realizadas
através de vínculos verbais associativos, de acordo ou não com os padrões de gramaticali-
dade e normalidade semântica do idioma.
4.2.1. – A impertinência semântica
Com efeito, a gramática rege a combinação associativa das palavras entre si, de acor-
do com seu valor mais geral. Ela prevê que um adjetivo pode se relacionar com um subs-
tantivo sem especificar de que substantivo ou de que adjetivo se trata. Mas uma especifica-
ção dessas categorias gerais em categorias menores seria suficiente para dar conta dos des-
vios do tipo semântico. A verdade é que o código gramatical é meramente formal, pois dis-
tribui as palavras em classes ou categorias formalmente marcadas, autorizando ou proibin-
do as associações de palavras apenas em funções de tais categorias. Assim, segundo certas
teorias lingüísticas, toda e qualquer seqüência enunciativa que se conforme com o pattern
tomado aqui como modelo específico que representa, de maneira esquemática, uma estrutu-
ra da língua ou do comportamento verbal dos falantes – é formalmente correta.
Mas é preciso não perder de vista que a linguagem é comunicação, e nada se comuni-
ca se o discurso não for compreendido pelo interlocutor. O princípio máximo da linguagem
está na construção do sentido. Afinal, como afirma Jean Cohen (1974-89), “Toda mensa-
gem deve ser inteligível”, e por “inteligível” entende-se dotado de sentido, sentido este a-
221
cessível ao destinatário. Para tanto, não é suficiente que se respeite o código gramatical de
uma língua, é necessário também que a decodificação da mensagem seja viável. Então, em-
bora a característica da fala, como afirma Saussure, seja a liberdade de combinação, esta
liberdade tem certo número de restrições, constituindo assim outras tantas regras de um
código que lhe é próprio. Afinal, a decodificação implica que “a forma tomada pela mensa-
gem deve poder ser compreendida pelo receptor para que se estabeleça a relação social, que
é a finalidade da comunicação”.
76
É necessário lembrar que a atividade da fala implica selecionar no repertório do falan-
te certas entidades lingüísticas (eixo paradgmático) e promover sua combinação em unida-
des sintagmáticas (eixo sintagmático). Isto nos conduz a uma operação que se realiza em
dois planos da linguagem que interagem dialeticamente em uma única dimensão léxico-
sintagmática. Jakobson (1970-37) afirma que “quem fala seleciona palavras e as combina
em frases, de acordo com o sistema sintático da língua que utiliza; as frases, por sua vez,
são combinadas em enunciados”. E, tangenciando o Princípio de Cooperação de Grice, a-
crescenta: “Mas o que fala não é de modo algum um agente completamente livre na sua
escolha de palavras: a seleção (exceto nos raros casos de efetivo neologismo) deve ser feita
a partir do repertório lexical que ele próprio e o destinatário da mensagem possuem em
comum.”
Para exemplificar o que se disse, tomemos o famoso exemplo de Chomsky, seguido
do comentário de Othon Moacyr Garcia:
Incolores idéias verdes dormem furiosamente.
Diz Garcia:
A célebre e assaz citada e comentada frase de Chomsky apresenta os traços de
gramaticalidade integral; no entanto, constitui (fora, evidentemente, do plano metafó-
rico, onde todas as interpretações são possíveis) um enunciado incompreensível no
plano referencial-denotativo, pois há incompatibilidade lógica entre seus componen-
tes, que, se isoladamente têm sentido, no conjunto não têm (...)
77
76
DUBOIS, Jean et. alii. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1988, p. 37.
77
GARCIA, Othon Moacyr. Comunicação em Prosa Moderna. 7ª ed. – Rio de Janeiro: Editora da Fundação
Getúlio Vargas, 1978, p. 8.
222
Procedendo a uma análise intelectiva, percebemos que a frase é problemática tanto no
sintagma nominal quanto no sintagma verbal da oração que a constitui.
Constatamos que os vocábulos incolores, idéias e verdes não formam uma seqüência
significativa aceitável, porque idéias não podem ser verdes nem incolores. Por outro lado,
há uma incongruência entre idéias e dormir, já que tais vocábulos não se combinam para a
formação de uma seqüência lógico-semântica. Fiquemos com o sintagma nominal, em obe-
diência ao nosso propósito.
Se admitirmos que, no plano metafórico, todas as interpretações são possíveis, temos
que fazer um exercício de profunda subjetividade. Denotando cor ou ausência de cor, na
seqüência lingüística em destaque, um adjetivo exclui o outro e nenhum dos dois se combi-
na com idéias, já que esta é uma entidade abstrata e não comporta as características conti-
das nos adjetivos incolores e verdes. Para que seja possível uma significação no plano me-
tafórico, temos que aceitar que um dos adjetivos ou os dois se desvincularam do seu traço
semântico habitual. Assim, por conta da impertinência semântica entre os elementos, per-
cebemos que a seqüência analisada só é admitida como frase na sua estrutura formal e só é
mensagem na esfera metafórica.
Vejamos como se posiciona Jakobson (1970 – 94/95) frente a essa frase de Chomsky:
Chomsky fez uma tentativa engenhosa de construir uma “teoria completamente
não-semântica da estrutura gramatical”. Esse intrincado experimento constitui realmen-
te um magnífico argumentum a contrario, particularmente útil às investigações em cur-
so acerca da hierarquia das significações gramaticais. Os exemplos trazidos à discussão
no livro de Chomsky Syntactic Structures (1957) podem servir como interessantes ilus-
trações para a delimitação que Boas fez da classe das significações gramaticais. Dessar-
te, analisando a sentença pretendidamente absurda Colorless green ideas sleep furious-
ly, “Incolores idéias verdes dormem furiosamente” (1957 – 15), extraímos seu sujeito
plural “idéias”, das quais se diz que desenvolvem uma atividade, “dormir”, e ambos os
termos são caracterizados – as “idéias” como “incolores verdes” e o sono como “furio-
so”. Tais relação gramaticais criam uma sentença dotada de sentido que pode ser sub-
metida a uma prova de verdade: coisas como verde incolor, idéias verdes, idéias que
dormem, ou sono furioso existem ou não? “Verde incolor” é uma expressão sinônima
de “verde pálido”, como o efeito ligeiramente epigramático de um oxímoro aparente. O
epíteto metafórico em “idéias verdes” faz lembrar o famoso green thought in a green
223
shade, “verde pensamento numa sombra verde”, de Andrew Marvell, ou a expressão
russa “tédio verde” (zelenaja skuka) ou “horror vermelho, branco e quadrado” (Vse tot
zhe azhas krasnyj, belyj, kvadratnyj), de Tolstoi.
E o lingüista diz mais:
Todavia, mesmo que censuremos, por pedantismo, toda expressão através de i-
magens e neguemos a existência de idéias verdes, mesmo então, como no caso da
“quadratura do círculo” ou “leite de pato”, a não-existência, o caráter fictício dessas en-
tidades, não tem relação alguma com a questão de seu valor semântico. A possibilidade
mesma de pôr sua existência em dúvida é a melhor advertência contra uma confusão de
irrealidade ontológica com a ausência de sentido. Não existe, ademais, nenhuma razão
para atribuir à espécie de construções aqui discutidas “um grau inferior de gramaticali-
dade.”
A questão é de desvio, entendido aqui, no sentido retórico, como alteração notada do
grau zero da escritura, e este, por sua vez, tomado como o grau de normalidade lingüística.
Mas esse grau de normalidade precisa ser relativizado em certos contextos, como veremos
oportunamente.
Passamos a abordar a partir de então a questão do falso e do absurdo na linguagem.
Correta segundo a sintaxe, incorreta segundo o sentido, a frase de Chomsky não é apenas
falsa, é absurda. Apesar de a distinção entre proposição falsa e proposição absurda ser de
caráter semântico, ela não se desvincula do caráter formal. A proposição falsa pode ser
verdadeira, se o predicado é um dos predicados possíveis do ser; a proposição absurda ja-
mais alcança o estatuto de verdade porque o predicado não é um predicado possível do ser.
Dizer Este carro é bom pode ser falso ou verdadeiro, pois o predicado é bom é aplicável ao
sujeito este carro; mas dizer Este homem é ovíparo é absurdo, pois o predicado é ovíparo
não se aplica ao sujeito esse homem.
Assim, há de se seguir uma lei geral da linguagem, segundo a qual, em toda frase
predicativa, o predicado tem de ser pertinente em relação ao sujeito. Como os termos lexi-
cais têm função gramatical determinada, todo termo gramatical deve ser semanticamente
capaz de exercer sua função na construção de sentido da linguagem. Essa regra pressupõe
um axioma de inteligibilidade que envolve o nível semântico a partir de associações sintáti-
224
cas operadas na frase. É neste nível que buscamos a caracterização da linguagem poética, a
partir da infração a essa regra do código da linguagem, considerando a pertinência e a im-
pertinência semântica do adjetivo, como elemento de predicação do substantivo.
4.2.2 – A metáfora e o contrato de comunicação.
Como o sentido de uma palavra é o conjunto dos contextos em que ela pode figurar, o
discurso poético é um discurso de gramaticalidade inferior, gramaticalidade esta represen-
tada pela pertinência semântica. Compreender o sentido de uma palavra é compreender as
frases que se pode construir com ela. Assim, compreender a palavra céu, é saber que a ela
se pode relacionar certos adjetivos próprios de sua grade sêmica – azul, nublado, cinzento,
estrelado, mas não quadrado, verde, melancólico, mortal, que não pertencem logicamente
aos seus componentes semânticos. Isso nos leva a pensar na existência de construções pos-
síveis, de acordo com a pertinência estabelecida por um código de linguagem que se acha
na memória dos usuários de um idioma. Falar é escolher na memória, entre os signos pos-
síveis, aqueles que correspondem a uma situação e combiná-los adequadamente de forma a
construir sentidos. É a partir daí que ativamos nosso sentimento lingüístico para perceber as
infrações ao código ou desvio como fenômeno geral na construção da linguagem poética.
É evidente que, nas frases poéticas, só se pode considerar a metáfora se tomarmos a
palavra no sentido literal, sendo aquela um desvio dessa literalidade. Inversamente, para
desfazer o desvio, faz-se necessário mudar o sentido dessa palavra. Como nos interessa de
perto a atuação do adjetivo na linguagem poética, tomemos esses versos de Casimiro de
Abreu:
Como são belos os dias
Do despertar da inocência!
Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor!
225
Nos versos O mar – é lago sereno” e “O céuum manto azulado”, os adjetivos têm
absoluta pertinência, já que os núcleos metafóricos de ambos se encontra nos substantivos
lago e manto. Entretanto, no verso “O mundo – um sonho dourado”, o adjetivo – e só es-
tamos tratando do adjetivo – é empregado metaforicamente, reforçando o complexo meta-
fórico do verso. Nosso sentimento lingüístico é imediatamente ativado para a percepção de
que o adjetivo dourado constitui um desvio semântico, pela sua associação com sonho.
Esse desvio, para ser desfeito, terá que passar pela mudança de sentido do adjetivo: O mun-
do é um sonho encantador. Isso reduz imediatamente o desvio criado pela impertinência no
sintagma nominal, o que diminui a energia metafórica do verso. Assim, concluímos que a
metáfora intervém para promover a redução do desvio criado pela impertinência.
A impertinência constitui uma infração ao código da fala e é situada no plano sintag-
mático; a metáfora constitui um desvio do código lingüístico e, portanto, situa-se no plano
paradigmático. Mas precisamos estabelecer os limites da metáfora adjetiva e, para tanto, é
preciso que se tenha em mente que a metáfora é um fato lingüístico e, como tal, se realiza
no plano da linguagem. Então é necessário questionar aqui como um predicado é atribuído
de forma impertinente a um substantivo.
Na linguagem literária, para a caracterização da metáfora, é necessário levar em con-
sideração a teoria dos Contratos de Comunicação de Patrick Charaudeau, no que se refere
aos gêneros e subgêneros textuais (Cf. Oliveira – 2003, 40-42). É nesse ponto que falamos
de relativização da normalidade e do desvio. Em uma fábula, um apólogo, um conto de
fadas ou na literatura fantástica, deve-se levar em consideração a suspensão voluntária da
descrença, para a constatação do desvio lingüístico. Vejamos um exemplo:
Ao lado de Vanessa (a borboleta elegante), achava-se um besouro muito pernós-
tico e pretensioso, que tinha mania de elegância. Estava todo perfumado, e sua carapa-
ça, polida com cera de abelha, brilhava tanto que não se podia olhar para ela sem piscar
os olhos.
(...)
Veio voando uma lindíssima borboleta. Era grande, e suas asas de um azul vivo
brilhavam tanto que pareciam feitas de lamê.
(ALMEIDA, Lúcia Machado de. O Caso da Borboleta Atíria. Ed. Ática, 2002)
226
No primeiro parágrafo, os adjetivos pernóstico, pretensioso e perfumado, não consti-
tuem no contexto qualquer desvio, pois seu sentido é relativizado pelo contexto e conse-
qüentemente pelo contrato de comunicação. No segundo parágrafo, porém, o adjetivo vivo
constitui um desvio cuja redução só é possível se assumir novo sentido (realçado, expressi-
vo), já que, analisado logicamente, não se combina com o substantivo azul.
Em situação de grau zero do sentido da linguagem, o código lingüístico em vigor é o
código usual. Se a frase não se ajusta a tal código, ela é retificada por alteração de sentido,
ou, conseqüentemente, é posta fora da linguagem por ser considera absurda. Os enunciados
inovadores, que passam ao largo do código usual, são tomados como desvio. Mas, numa
obra do gênero da que destacamos acima, o que seria desvio do grau zero assume-se como
signo de literalidade, através do qual o Eu-cominicante – para usar da terminologia de Cha-
raudeau – procura deixar claro para o Tu-interpretante que a impertinência deve ser atribu-
ída às coisas e não à linguagem.
Pensando assim, o “Era uma vez...” da literatura infantil constitui um signo de litera-
lidade, pois alerta ao leitor que as incompatibilidades estão em fase de suspensão, e as apa-
rentes impertinências – e eu disse aparentes – não devem ser atribuídas às palavras e sim às
coisas. Nesse universo, sintagmas como árvore falante, montanha mágica, cavalo voador
não revelam qualquer impertinência semântica por parte do adjetivo.
Dessa forma, do ponto de vista literário, o maravilhoso não é poesia, o que não signi-
fica que o texto não seja “poético”. Mas nessas circunstâncias a poesia como efeito estético
emana das coisas e não das palavras. E emana das coisas porque estas se apresentam feeri-
camente, ofuscando a compreensão imediata e comum da realidade como tal. A linguagem,
nesse caso, cumpre seu papel de forma condizente com o contexto em que ela se desenvol-
ve, a partir do contrato de comunicação que tal contexto estabelece, em conseqüência do
gênero textual. Aqui, é preciso levar em consideração alguns pormenores que envolvem a
noção de contrato de comunicação. O que é absurdo em um contexto pode não ser em ou-
tro, o que pode ser caracterizado como desvio em um gênero pode não ser em outro. O que
se quer dizer, afinal, é que uma expressão que é metáfora em um gênero pode deixar de sê-
lo em outro gênero. Em contextos como esse, o “feérico” é uma categoria do ser, e não da
linguagem, isto é, aplica-se ao conteúdo, não à forma. Não queremos dizer com isso que o
feérico não possa ser poeticamente expresso, mas a ligação não é imprescindível.
227
Para jogar luz na escuridão, advertimos que o poema busca o que Rimbaud chamou
de “alquimia do verbo”, e a proposta máxima da poesia não é a expressão fiel de um uni-
verso anormal, mas a expressão anormal de um universos comum, prosaico, através da qual
se unem termos incompatíveis, segundo as normas usuais da linguagem. O problema às
vezes está em saber se o poema se refere ao universo feérico ou se este é uma metáfora
ampla criada pela linguagem.
Vejamos o poema a seguir, de Mário Quintana:
Esses inquietos ventos...
Esses inquietos ventos andarilhos
Passam e dizem: “Vamos caminhar,
Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Bosques antigos onde é bom cismar...
E há tantas virgens a sonhar idílios!
E tu não vieste, sob a paz lunar,
Beijar os seus entrefechados cílios
E as dolorosas bocas a ofegar...”
Os ventos vêm e batem-me à janela:
“A tua vida, que fizeste dela?”
E chega a morte: “Anda! vem dormir...
Faz tanto frios... E é tão macia a cama...”
Mas toda a longa noite inda hei de ouvir
A inquieta voz dos ventos que me chama!...
No poema acima, a ambiência feérica constitui uma metáfora da condição existencial
do Eu-lírico. O que se quer dizer é que o prosaico é tratado feericamente no universo do
poema. Para tanto, o poeta opera com a magia da linguagem, para a qual os adjetivos con-
tribuem efetivamente. Como o adjetivo não constitui um signo de referenciação e só encon-
tra sua razão de ser na substância do nome, os adjetivos “inquietos” e “andarilhos”, atribu-
228
ídos a “ventos”, contribuem para a energia metafórica no poema. Para compreendermos
isso, devemos observar que “ventos” está no plural, e a pluralização retira o substantivo do
senso comum, o que constitui aqui uma metáfora que contém um certo número de suges-
tões, por conta da associação com os adjetivos que envolvem o núcleo substantivo.
No poema de Quintana, podemos entender que os adjetivos inquietos” e “andari-
lhos” consubstanciam uma projeção dos anseios do sujeito poético, que se perdem nas di-
vagações dos desejos irrealizáveis, presos à mesquinhez da existência humana. Isso porque
a linguagem poética do texto opera uma analogia simbólica que magicamente liga o plano
material, físico-natural, ao plano existencial, psicológico-afetivo. E essa analogia perpassa
e domina o universo de sugestões poéticas do texto.
Assim, nos sintagmas “misteriosos trilhos”, “bosques antigos” e “paz lunar”, embora
não se perceba uma desvio tão acentuado do adjetivo, este contribui para a expansão da
atmosfera quimérica do universo poético. No primeiro, pela referência ao inusitado, ao des-
conhecido, que convida à experimentação pela aventura, desejada por um espírito romanti-
camente insatisfeito, o que remete o sujeito poético para longe do imediatamente reconhe-
cido – daí, “misterioso” –, limitado pelo imediatismo da realidade comezinha; no segundo,
pela sugestão do imutável da alma humana, que remonta ao complexo das fantasias e so-
nhos eternos – e, como tal, “antigos” –, advindos de um tempo mítico que, por isso mesmo,
é indecifrável; no terceiro, por conta do apelo à sugestão de uma tranqüilidade espiritual
que se instala para além das angústias do homem frente a si mesmo, tranqüilidade esta que
vem de uma paz que não é da Terra, a “paz lunar”. No percurso do poema, encontra-se o
sintagma “entrefechados cílios”, que sugere, pelo caráter indefinido do adjetivo, um istmo
que liga a realidade à imaginação fantasiosa, criando sensações que se debatem entre o pra-
zer e o desespero, configuradas no sintagma “dolorosas bocas a ofegar (= ofegantes).
Mas, cessado o primeiro movimento do poema, cessam também os devaneios, e vem
a consciência da realidade, marcada pela inexorabilidade da morte. Agora a adjetivação
expressa diferentes direcionamentos. Em “é tão macia a cama” (da morte), o adjetivo con-
tribui para expressar na metáfora um conformismo permeado por uma ironia amarga. No
sintagma “(por) toda a longa noite”, ele comanda, apesar da fatalidade da morte, a perma-
nência de um sonho que se estende na consciência do sujeito poético, anunciada pela “in-
quieta voz dos ventos”, sintagma em que o adjetivo metaforiza uma intermediação entre o
plano quimérico e as ebulições psíquicas do eu-lírico.
229
É de se ver, portanto, que o metafórico e o usual dependem de uma contextualização
e de um contrato de comunicação que relativiza o plano da linguagem, o qual deve ser con-
siderado dentro de uma categoria de gêneros textuais, em que encontramos pistas que nos
remetem a uma análise adequada para a avaliação lingüística.
A metáfora como mudança de sentido é uma transmutação do sistema no eixo para-
digmático. Na verdade, a figura constitui um conflito entre o sintagma e o paradigma, entre
o discurso e o sistema. A normalidade do discurso inscreve-se na linha do sistema, de con-
formidade com suas leis. O discurso poético promove a inversão do sistema e, nessa opera-
ção, é o sistema que cede e aceita a transformação. Na expressão de Valéry, a poesia é uma
“linguagem dentro da linguagem”, e constitui uma nova ordem fundada sobre os escombros
da antiga, através da qual se constituem os desvios em busca de novos sentidos. Isso signi-
fica dizer que o “absurdo” da construção poética não é preconcebido. Ele constitui o itine-
rário inelutável que o poeta deve percorrer, caso queira expressar o que a linguagem nunca
expressa em condições normais.
Vejamos esse exemplo de Drummond, extraído do poema “Lembranças do mundo
antigo”:
Clara passeava no Jardim com as crianças.
O céu era verde sobre o gramado,
a água era dourada sob as pontes,
outros elementos eram azuis, róseos, alaranjados,
Nos versos “O céu era verde sobre o gramado / a água era dourada sob a ponte”, os
adjetivos “verde” e “dourada” são semanticamente incapazes de exercer sua função predi-
cativa. Há, portanto, uma impertinência semântica que traduz a dimensão poética do texto.
O estranhamento provocado pelas associações inusitadas entre os adjetivos e os substanti-
vos provoca a desconstrução do sentido normal da linguagem e garante a construção de um
sentido novo, sobre o qual reside toda a carga de poeticidade.
Pela inversão dos valores lógicos na associação adjetivo-substantivo, Drummond
consegue um grau de plasticidade indiscutivelmente poético. Sobre a grama está o mundo
de Clara, um mundo de encantamento, ingenuidade e pureza só comparado ao céu. Não o
céu físico que conhecemos, não o céu como firmamento azulado, mas um céu cujas dimen-
230
sões transpõem os limites do real palpável, onde a água é dourada e os demais elementos,
também marcados por adjetivos, são azuis, róseos e alaranjados, constituindo uma verda-
deira aquarela que só o artista é capaz de criar. Mais uma vez, através de uma analogia
simbólica, passa-se do plano material físico-natural para o plano existencial psicológico-
afetivo.
Como se vê, a poesia nasce da impertinência, e o verdadeiro poeta, consciente da sua
arte, não desconhece isso. Em um texto poético, basta anular ou atenuar o desvio lingüísti-
co para que se expulse dele sua dimensão poética. Nesse caso, preserva-se o código, e sa-
crifica-se a poesia. Se disséssemos que o céu era azul sobre o gramado verde, teríamos a-
penas uma constatação da realidade explicitada pela lógica da linguagem, o que enfraque-
ceria a energia poética que emana do texto.
Mas nem toda metáfora é poética, e aqui falamos da metáfora de uso. Expressões
metafóricas tais como “vida cor de rosa” ou “negro destino” já não constituem criatividade
respeitável, e as expressões adjetivas em nada contribuem para amenizar o caráter enfra-
quecido da metáfora. Pelo contrário, são elas que explicitam a palidez metafórica, demar-
cada pelo uso que a incorporou ao sistema. A verdade é que não basta violar o código para
escrever um poema. Para a poesia, o desvio é uma impertinência cometida propositadamen-
te para obter sua própria correção, e esta só se faz no poema regida por uma intenção esté-
tica, e para que isso seja feito é preciso, na maioria das vezes, elevar a função poética da
linguagem até o seu mais alto grau.
Chegamos a um ponto em que é necessário falar de graus metafóricos. Para tanto,
estabelecemos a diferença entre metáfora objetiva e metáfora subjetiva, em que se pode
caracterizar o grau de impertinência como parcial e total, respectivamente. Por conseguinte,
distinguimos aqui, de acordo com a nomenclatura de Jean Cohen, dois graus na metáfora e,
correlativamente, dois graus na impertinência. Tem-se impertinência de 1º grau, se a rela-
ção semântica entre os elementos for de interioridade, e impertinência de 2º grau, se a im-
pertinência for de exterioridade.
Na expressão “cabelos de ébano”, podemos adotar o seguinte processo de análise
para a expressão adjetiva:
ébano = madeira + negra
231
No esquema acima, notamos que a impertinência só atinge uma das duas unidades de
significação (madeira), que se encontra implícita. Uma vez retirada esta unidade, restaura-
se a pertinência da expressão (cabelos negros). Neste caso, constata-se que a impertinência
da expressão adjetiva (de ébano) só é parcial, pois a metáfora que reduz o desvio encontra
sua razão de ser numa relação metonímica, portanto de interioridade, visto que o traço per-
tinente é um componente efetivo da totalidade do significado. A esse tipo de impertinência,
a essa metáfora motivada, que se limita apenas a um dos elementos do significado e é redu-
tível pela simples subtração desse elemento, Cohen denomina impertinência de 1º grau.
Passemos agora a este fragmento da prosa poética do simbolista Cruz e Sousa, extraí-
do de “Região azul”, do livro “Missal”:
Músicas passam, perpassam finas, diluídas, finas, diluídas, e delas, como se a
cor ganhasse ritmos preciosos, parece se desprender, se difundir, uma harmonia azul,
azul, de tal inalterável azul, que é ao mesmo tempo colorida e sonora, ao mesmo tem-
po cor e ao mesmo tempo som...
Nota-se no fragmento acima a impertinência semântica nos sintagmas nominais. Ne-
les, como é próprio da estética simbolista, a associação inusitada das palavras vai tecendo
uma rede de imagens vagas e sugestivas, com o entrelaçamento de sons, cores e formas. O
objetivo do poeta é sugerir, evocar, impressionar os sentidos e não encadear logicamente
suas idéias. Como o texto não nos remete a um único significado mas a uma rede de suges-
tões, cabe ao leitor elaborar subjetivamente as associações sugeridas pelos sintagmas adje-
tivais em relação ao núcleo substantivo.
Encontra-se no texto o que os psicólogos chamam de sinestesia, isto é, a associação
de sensações que pertencem a registros sensoriais diferentes. No caso, uma sensação audi-
tiva representada por um substantivo é associada a sensações visuais e táteis, representadas
por adjetivos nos sintagmas “músicas (...) finas”, “músicas (...) diluídas”, “harmonia azul
e “harmonia colorida e sonora”.
A sinestesia, a rigor, pertence ao campo da Psicologia, mas ela nos interessa aqui
como fenômeno lingüístico que estabelece relação entre dois significados. Se os lingüistas
reconhecem na sinestesia um tipo de metáfora, podemos vê-la como um grau da metáfora,
ou como uma metáfora em alto grau, na medida em que, pelo seu valor puramente subjeti-
232
vo, nenhum dos seus elementos pode ser considerado como uma parte componente do sig-
nificado; logo a relação semântica entre os elementos é de exterioridade, o que constitui
uma impertinência de 2º grau.
Pode-se dizer que no sintagma “cabelos de ébano”, pela relação de interioridade que
traduz seu caráter objetivo e intelectivo, tem-se uma metáfora explicativa, e no sintagma
harmonia azul”, pela relação de exterioridade que traduz seu caráter subjetivo e psíquico,
tem-se uma metáfora afetiva. Essa metáfora afetiva corresponde, portanto, a um máximo de
impertinência, em virtude do princípio segundo o qual a grandeza da impertinência é pro-
porcional à grandeza da mudança de sentido necessário para que essa impertinência seja
reduzida, ou, em outras palavras, proporcional à distância que separa o sentido denotativo
do sentido conotativo.
Mas é preciso verificar, como diz Mikel Dufrenne, de que maneira a poesia dispõe as
palavras em liberdade. Segundo o lingüista, ela “dá privilégio ao léxico à custa da sinta-
xe”
78
, o que significa dizer que, através da sintaxe, o léxico ganha relevância poética, em
conseqüência da rede estrutural que se estabelece no discurso. Com efeito, a poesia trata a
linguagem com respeito, mas, ao mesmo tempo, com uma extrema desenvoltura. Já disse-
mos que a linguagem poética se constrói sobre as ruínas da linguagem padrão, a partir da
qual se constroem as impertinências semânticas em busca de novos sentidos.
A metáfora subjetiva apresenta-se em sua forma mais provocante, uma vez que cada
palavra altera brutalmente seu sentido na rede de relações com a outra à qual vai de encon-
tro, sem que, às vezes, se possa ter a possibilidade de desenvolver ou justificar racional e
intelectivamente a comparação que implicitamente se processa. É dessa alteração que surge
o que Reverdy denomina na linguagem “a imagem criação pura do espírito”
79
, na qual a
palavra é liberada pelo afrouxamento dos vínculos sintáticos. Nessa relação, o esquema
usual de informação é transformado, a estrutura frasal é alterada por uma nova relação, as
palavras são induzidas a formar alianças escandalosas, e os novos vínculos que são constru-
ídos na relação entre adjetivo e substantivo respondem às exigências mais abscônditas da
expressão poética.
78
DUFRENNE, Mikel. O Poético. Porto Alegre: Editora Globo, 1969, p. 54.
79
Apud DUFRENNE, Mikel. ibidem
233
4.2.3. – A sinestesia, a hipálage e a sinédoque
A adjetivação deve ser vigorosamente lógica, pois adjetivo e substantivo devem
guardar seu significado objetivo dentro de suas respectivas funções de substância e aciden-
te. O adjetivo caracteriza, mas não mostra a substância essencial do ser. Assim, os limites
entre ambos estão perfeitamente definidos sem que haja permeações. Procura-se, pela com-
binação entre eles, comunicar percepções cujo conteúdo conceitual ou emocional pertence
ao mundo da experiência coletiva, do geralmente entendível ou sensível. Mas a arte poética
não se conforma com essa rigidez e com essa aliança lógica dos termos tão claramente pre-
visíveis. Em busca da criatividade, fugindo ao rigor lógico da previsibilidade, a poesia evita
exatamente o adjetivo que, por sua propriedade lexicológica, se junta ao nome pelas vias do
seu sentido dicionarizado. Em vez disso, impõe ao substantivo uniões desconcertantes, com
epítetos e qualificativos à primeira vista inadequados, que parecem evitar a relação com
ele, criando, a partir daí, sentidos surpreendentes que só são perfeitamente compreendidos à
luz da sensibilidade do espírito.
Essas operações se baseiam na descoberta imaginativa de diferentes tipos de vínculos
associativos que atuam permanentemente em nosso espírito sem que tenhamos consciência,
como resultado de cruzamentos, elipses mentais, contaminações e associação de idéias.
Esses arranjos sugerem certos sentidos aparentemente distanciados do seu conteúdo objeti-
vo, ativando, como que por magia, certas relações que estão ocultas em nosso subconscien-
te. Mas as representações ou sensações suscitadas por esses enlaces não se encontram nos
elementos que as compõem. Elas vêm por meio de uma técnica de deliberada propriedade
adjetiva, realizada com acurado instinto estético e psicológico. São na verdade hábeis subs-
tituições do termo apropriado por outro, no qual aquele está contido por associações meta-
forizadas que não raro provocam representações adicionais de caráter físico ou psíquico,
dando ao substantivo uma multiplicidade de planos.
Essas associações mostram uma tendência a apoiar-se em valores difusamente emo-
cionais. Seu tom e seu propósito são deliberadamente líricos, e seu efeito resultante é es-
sencialmente poético. Se a sinestesia pertence à esfera da psicologia, a hipálage e a sinédo-
que pertencem ao âmbito das relações sintáticas. E é aqui que ambas se entrecruzam, uma a
serviço da outra, tornando-se difícil distingui-las, já que, em dados momentos, aquela é
operacionalizada por estas. Para sermos práticos, podemos dizer, grosso modo, que enquan-
234
to a sinestesia se realiza no plano paradigmático, pela escolha do adjetivo, a hipálage e a
sinédoque se configuram no plano sintagmático, pela associação formal do adjetivo ao
substantivo. De qualquer forma, os efeitos poéticos são incontestáveis, e a atuação do adje-
tivo é fundamental para a construção das impertinências, que, como veremos, nem sempre
são explicáveis à luz da lógica.
É de se notar como, através do adjetivo, opera-se a captação e a plasmação de idéias e
sensações de caráter plural, antitético ou abstrato, que ficam delicadamente atreladas na sua
adjetivação. Utiliza-se o significado do adjetivo não só para a consecução de cruzamentos,
choques e misturas semânticas de grande sugestividade como também, por meio de uma
habilidosa estratégia de colocação na frase, fazê-lo ultrapassar os limites de suas funções
gramaticais. Isso conduz o adjetivo a ações múltiplas que culminam com a contaminação
do seu significado a todos os elementos frasais, o que, de certa forma, implica, dialetica-
mente, sua contaminação por eles.
Essas operações não-raro se baseiam em contrastes nos quais o nome concreto é qua-
lificado por um adjetivo de sentido abstrato e vice-versa. Por esses processos, o sentido
concreto do nome se dilui em qualificações psicológicas ou morais ou o sentido abstrato do
nome se torna mais preciso, corporificando-se pela delegação de um atributo concreto:
Vejamos estes exemplos:
“os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio... (Drummond)
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstantes exaustivas e convocando ao suicídio. (Drummond)
Em dois milhões de habitantes,
quantas mulheres prováveis
interrogaram-se no espelho (Drummond)
Ressuscitar, em pleno domínio, a vida solitária dos monges. (Graça Aranha)
235
A cozinheira era preta
Preta e gorda
Com seu fresco sorriso de lua... (Mário Quintana)
Naquele nevoeiro
Profundo profundo...
Amigo ou amiga,
Quem é que me espera. (Mário Quintana)
Vejamos este poema de Cruz e Sousa, uma espécie de profissão de fé da sua poética,
em que, de conformidade com a estética simbolista, os recursos estilísticos com o adjetivo
são abundantes e funcionais:
Antífona
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
De luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Formas do Amor, constelarmente puras,
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolências de lírios e de rosas...
Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
236
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Fecundai o Mistério destes versos
Com a chama ideal de todos os mistérios.
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que fuljam, que na Estrofe se levantem
E as emoções, todas as castidades
Da alma do Verso, pelos versos cantem.
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
Que brilhe a correção dos alabastros
Sonoramente, luminosamente.
Forças originais, essência, graça
De carnes de mulher, delicadezas...
Todo esse eflúvio que por ondas passa
Do Éter nas róseas e áureas correntezas
Cristais diluídos de clarões álacres,
Desejos, vibrações, ânsias, alentos,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Fundas vermelhidões de velhas chagas
Em sangue, abertas, escorrendo em rios...
Tudo vivo e nervoso e quente e forte,
Nos turbilhões quiméricos do Sonho,
Passe, cantando, ante o perfil medonho
E o tropel cabalístico da Morte...
(Cruz e Sousa- Broquéis)
237
Acreditando em uma única origem para todas as coisas e tomando o mundo material
como manifestação refratária do Universo Espiritual, a poesia do Simbolismo, a partir de
Baudelaire, desenvolve noções de correspondências entre elementos aparentemente díspa-
res e distintos. Mas essas correspondências são perceptíveis apenas pela sensibilidade do
espírito. Assim, a Cor, o Som, o Perfume, o Sabor e os elementos táteis são colocados em
um único plano, fundindo o concreto ao abstrato, o sólido ao volátil.
Trabalhando com a linguagem de forma inusitada, o poeta apresenta inumeráveis re-
cursos estilísticos que se caracterizam pela presença abundante de hipálages, capazes de
criar o aspecto mágico e encantatório do símbolo. Para configurar as correspondências, o
poeta explora sem economia as construções sinestésicas, misturando as sensações percebi-
das pelos diferentes sentidos humanos. Observa-se a participação ativa dos adjetivos nesses
processos de construção poética:
Formas claras / De luares
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...
Infinitos espíritos dispersos,
Inefáveis, edênicos, aéreos,
Do Sonho as mais azuis diafaneidades
Que o pólen de ouro dos mais finos astros
Fecunde e inflame a rima clara e ardente...
238
Do Éter nas róseas e áureas correntezas
Cristais diluídos de clarões álacres,
Fulvas vitórias, triunfamentos acres,
Os mais estranhos estremecimentos...
Flores negras do tédio e flores vagas
De amores vãos, tantálicos, doentios...
Apreciemos agora este fragmento de Graça Aranha, que, por influência da estética
impressionista, busca revelar o fluxo do inconsciente através dos aspectos inusitados da
linguagem, para os quais o adjetivo constitui um poderoso artifício:
Carnaval
Alguns dias depois explode em baixo o Carnaval Maravilha de ruído, encanta-
mento do barulho. Zé Pereira bumba, bumba. Falsetes, azucrinam, zombeteiam. Viola
chora e espinoteia. Melopéia negra, melosa, feiticeiro, candomblé. Tudo é instrumen-
to, flautas, violões, reco-recos, saxofones, pandeiros, latas, gaitas e trombetas. Instru-
mentos sem nome, inventados subitamente no delírio da improvisação, do ímpeto mu-
sical. Tudo é canto. Os sons sacodem-se, berram, lutam, arrebentam no ar sonoro dos
ventos, vaias, klaxons e aços, estrepitosos. Dentro dos sons e das cores movem-se as
cores, vivas, ardentes, pulando, dançando, desfilando sob o verde das árvores, em face
do azul da baía, no mundo dourado. Dentro dos sons e das cores movem-se os chei-
ros, cheiro negro, cheiro mulato, cheiro branco, cheiro de todas as excitações e de to-
das as náuseas. Dentro dos cheiros, o movimento dos tatos violentos, brutais, suaves,
lúbricos, meigos, alucinantes. Tatos, sons, cores, cheiros que se fundem em gostos de
gengibre, de amendoim, de castanhas, de bananas, de laranjas, de bocas e de mucosas.
Libertação dos sentidos, envolventes das massas frenéticas, que maxixam, gritam, tre-
sandam , deslumbram, saboreiam, de Madureira à Gávea, na unidade do prazer desen-
cadeado.
Carnaval.
(Graça Aranha – A Viagem Maravilhosa)
239
O texto acima pertence ao Impressionismo. Nele, o artista registra suas impressões,
procurando captar o momento. O estilo é profundamente sensorial, e o que interessa é a
relação interna provocada na mente do artista e revelada no fluxo do inconsciente. O artista
opta pela valorização das sensações. Valorizam-se os aspectos voláteis e sugestivos das
cenas e paisagens, percebidos pela sensibilidade humana, em detrimento da visão objetiva e
única da realidade. Então o que interessa é a captação da atmosfera, através dos aspectos
pictóricos, sonoros, sensoriais. Daí a freqüência da sinestesia e da hipálage como elementos
estéticos predominantes, para as quais o adjetivo contribui de maneira fundamental.
Melopéia negra, melosa...
arrebentam no ar sonoro dos ventos...
vaias, klaxons e aços, estrepitosos.
movem-se as cores, vivas, ardentes...
Dentro dos sons e das cores movem-se os cheiros, cheiro negro, cheiro mulato, cheiro branco,
cheiro de todas as excitações e de todas as náuseas.
Dentro dos cheiros, o movimento dos tatos violentos, brutais, suaves, lúbricos, meigos, aluci-
nantes.
4.2.4. – A determinação e o epíteto
Lingüisticamente, a determinação é, antes de tudo, o ato de precisar os termos ou
limites, isto é, distinguir um objeto dentro de um conjunto, separá-lo dos outros. Em outros
termos, quando se trata de vários objetos, indicar com clareza qual deles.
Se houvesse uma língua formada exclusivamente de nomes próprios, essa função não
seria necessária, visto que tais nomes são totalmente determinados por si mesmos, como
ocorre com Ana, Niterói, Sol, Lua, Terra etc. Mas uma língua dessa natureza guardaria um
sem-número de termos que ultrapassaria os limites da memória. Por essa razão, o sistema
240
da língua considerou mais prático reservar os nomes próprios a um limitado número de
seres específicos – pessoas, cidades, obras de arte, empresas etc. – e reunir em classes o
conjunto dos outros seres, segundo suas propriedades comuns, e nomear somente as clas-
ses. Entretanto, quando queremos nos referir a uma parte destas, a uma espécie ou a um ser
individual, fazemos uso de um processo lingüístico particular, encarregado especialmente
de operar a delimitação. A esse processo a Lingüística chama determinação, que consiste
em acrescentar ao termo comum um ou vários outros termos denominados determinantes.
O sistema lingüístico possui toda uma categoria de termos especialmente incumbidos dessa
determinação, entre eles o adjetivo.
Diferentemente do predicativo, que enriquece a compreensão do sujeito, esses adjeti-
vos não acrescentam qualquer caráter novo ao termo que determina. Em O homem magro é
ágil, o adjetivo magro nada mais faz do que indicar a quem se refere o predicativo. Daí se
conclui que, enquanto o predicativo aumenta a compreensão do sujeito, o termo determina-
tivo só limita sua extensão.
A determinação é desempenhada por uma categoria de termos previstos para isso,
com a função de adjunto adnominal. Nesse trabalho, interessa-nos em particular a determi-
nação pelo adjetivo, à qual oporemos a função epitética deste. Para delimitar o âmbito do
nosso trabalho, tomamos aqui o epíteto como o adjetivo que atribui ao substantivo uma
qualidade a ele inerente, tal como nos aparece em frio gelo e branca neve.
Hoje, para alguns, o epíteto só tem valor gramatical, mas antigamente tinha um senti-
do gramatical e também retórico. Por epíteto designamos, no sentido retórico, uma figura
que, pela sua redundância, se diferencia do adjetivo propriamente dito. Segundo Cunha &
Cintra (2001-268), o epíteto retórico é empregado:
a) para acentuar uma parte do significado do substantivo com o qual se relaciona (epíteto
de natureza), e, neste caso, pode vir posposto ou anteposto ao substantivo, embora a pri-
meira colocação seja mais freqüente:
a noite escura — a branca neve
b) para exprimir uma conhecida qualidade distintiva e individual de um nome próprio (epí-
teto característico), caso em que vem sempre anteposto ao substantivo:
241
a sábia Minerva — a bela Vênus
Para esse último caso, os dois gramáticos afirmam que a posposição do qualificativo
transformaria o epíteto característico num mero adjetivo classificatório.
Enquanto o adjetivo comum é necessário, imprescindível mesmo para a determinação
ou complementação de sentido, sendo, portanto, indispensável, o epíteto, contrariamente, é
às vezes apenas útil, servindo somente para ornamento e energia do discurso, ou sendo
mesmo dispensável, pelo seu caráter redundante. Eliminando-se o adjetivo adnominal de
uma frase, ela fica incompleta ou revela um sentido diferente. Com a eliminação do epíteto,
o sentido da frase pode manter-se íntegro, mas semanticamente a frase ficará solta ou en-
fraquecida.
Vejamos os dois exemplos abaixo:
Não deixou de recordar que em algumas partes do globo o espetáculo é mais grandioso: as cria-
turas humanas é que disputam aos cães os ossos e outros manjares menos apetecíveis...
(Ma-
chado de Assis)
Carlos não suportaria mais o mal-entendido, isso via-se. A angústia interior, imperiosa, aterro-
rizante, avisava-o também disso.
(Mário de Andrade)
No primeiro exemplo, eliminando-se o adjetivo humanas, a extensão do sujeito seria
transformada e, por conseguinte, o campo de aplicação do predicado seria modificado, pois
rematizaria não só uma espécie mas todas as criaturas, o que traria problemas semânticos à
frase. Mas poderíamos eliminar sem inconveniente o epíteto interior do segundo exemplo,
ainda que essa supressão tornasse a frase semanticamente enfraquecida. Percebemos assim
que o adjetivo como adjunto adnominal prova seu valor puramente determinativo, delimi-
tando uma espécie dentro do gênero.
Para desempenhar sua função, é necessário que o adjetivo em função de adjunto ad-
nominal se aplique somente a uma parte da extensão do substantivo, analisada aqui como
uma subclasse deste. Caso o adjetivo se aplique a toda a extensão do substantivo, tem-se
uma construção redundante, que caracteriza o epíteto. O primeiro exemplo é um caso típico
de subclasse do substantivo, já que “criaturas humanas” é uma subclasse de criaturas. O
242
segundo, pelo contrário, é um caso de redundância epitética, visto que “angústia interior
é extensivamente igual a angústia, pois o adjetivo se aplica à angústia em geral. Afinal não
se pode falar de uma angústia como um sentimento que não seja interior.
É de se notar que entre o adjunto adnominal e o predicativo existe uma diferença ao
mesmo tempo gramatical e lógica. O adjunto distingue-se gramaticalmente do predicativo
por ligar-se imediatamente ao substantivo, enquanto o predicativo é ligado ao substantivo
por meio de um verbo de ligação. Logicamente a diferença reside no fato de o predicativo
poder aplicar-se a todo ou a parte do substantivo, ao passo que o adjunto adnominal só se
poder aplicar exclusivamente a parte do substantivo.
Diante disso, pode-se dizer que há uma estrutura análoga à figura da impertinência.
Classificamos como impertinente o predicado lexicalmente incapaz de exercer sua função
predicativa. No caso do epíteto, que reconhecemos como redundante, revela-se uma inca-
pacidade de desempenhar como adjunto adnominal sua função determinativa, o que de cer-
ta forma constitui uma impertinência. Afinal, em ambos os casos estamos diante de pala-
vras cujos sentidos as tornam incapazes de desempenhar o papel que a Gramática lhes atri-
bui – um, pela incongruência; outro, pela redundância. Para desempenhar normalmente sua
função, o adjunto adnominal deve aplicar-se a uma e somente uma parte do substantivo. Se
não convier para nenhuma ou se convier para o todo, ele é anormal. Assim, pelo seu caráter
de anormalidade, concluímos que o epíteto constitui uma característica da linguagem poéti-
ca.
Vejamos estas passagens:
Verdes solidões,
merencórios prantos,
queixumes de outrora (Drummond)
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal! (Fernando Pessoa)
Se, no primeiro exemplo, “verdes solidões é uma expressão cuja incongruência re-
vela que o adjetivo não se refere a nenhuma parte do substantivo, no exemplo seguinte,
mar salgado” revela, por sua vez, que o adjetivo não determina o substantivo, visto que se
aplica a seu todo e, portanto, não delimita uma espécie dentro do gênero. Nos versos cita-
243
dos, “salgado” constitui um desvio porque está encarregado de desempenhar uma função
determinativa que não é capaz de cumprir. Portanto, o adjetivo adnominal não funciona
como tal, e temos aqui um desvio propriamente lingüístico. Ao nível gramatical, “mar sal-
gado” designa necessariamente uma espécie de mar, mas, ao nível lexical, a expressão de-
signa todos os mares. Sendo assim, a parte é igual ao todo, o que constitui efetivamente um
desvio de ordem lógica.
Por essas razões, expressões tais como “o grande mundo” (Drummond) e “o lívido
marfim” (Quintana) são figuras poéticas. Dizer “o mar é salgado” não constitui qualquer
invenção; porém, em “mar salgado”, a invenção consistiu exatamente em criar um epíteto a
partir de um adjetivo incapaz de desempenhar a função de adjunto adnominal. É nisso que
a figura é poética, pois o adjetivo, incapaz que é de exercer sua função determinadora, é
carregado de uma forte carga sugestiva no contexto em que se encontra. O mesmo adjeti-
vo, porém, perde seu poder sugestivo quando se comporta dentro da normalidade lingüísti-
ca. A expressão “água salgada” pertence à linguagem intelectiva, não-poética, porque o
adjetivo determina com propriedade o substantivo, já que nem toda água é salgada.
Por ser imprevisível, apenas o predicado novo traz informação, mas não existe regra
gramatical que obriga a linguagem a trazer informação. Caímos então na teoria da informa-
ção e situamo-nos na esfera do discurso, em que a ausência de informação nova contraria
os preceitos da informatividade, desenvolvidos por Dressler e Beaugrande
80
, e as máximas
da quantidade e da relação, preconizadas pelos Princípios de Cooperação de Grice
81
. Co-
mo o epíteto é uma redundância, e a redundância leva ao absurdo, estamos diante de um
desvio, desvio que provém de uma oposição entre o léxico e a gramática. Para reduzir tal
desvio, é preciso mudar aquele ou esta. Em outras palavras, ou transformamos o adjetivo
em predicativo ou damos um novo sentido ao adjetivo. Se optarmos pela primeira opera-
ção, alteramos a originalidade do texto, e aí criamos um novo problema: salva-se o sistema,
e mata-se a poesia. Resta-nos a segunda opção. Então é preciso que a metáfora intervenha
para que o desvio seja reduzido. Com ela associamos a expressão “mar salgado” a uma
idéia de tortuosidade, sacrifício, dor, sofrimento, labuta, já que muito do “sal” do mar pro-
vém do heroísmo dos navegantes portugueses.
80
Ver KOCH, Ingedore G. Villaça. Introdução à Lingüística Textual. 1ª ed. – São Paulo: Martins Fontes,
2004.
81
Ver PINHEIRO DA SILVA, Gustavo Adolfo. Pragmática – A Ordem Dêitica do Discurso: as Represen-
tações do Eu e seus Efeitos de Sentido. Rio de Janeiro: ENELIVROS, 2005.
244
4.2.5. – Coordenação e paralelismo
A gramática gerativa transformacional de Chomsky preceitua que não se podem co-
ordenar frases que não comportem constituintes do mesmo tipo. A coordenação é, como
sabemos, um processo de encadeamento de valores sintáticos idênticos – paralelismo sintá-
tico – mas é também o encadeamento de idéias similares, isto é, de mesma natureza – para-
lelismo semântico. Em certos casos, Como diz Othon Moacyr Garcia, ocorre paralelismo
gramatical, mas não há paralelismo de sentido entre os elementos coordenados ou conveni-
ência de situações.
82
Jean Cohen afirma que, “Como toda função, a coordenação submete-se a leis grama-
ticais codificadas. Pode-se dizer que de maneira geral ela exige a homogeneidade ao mes-
mo tempo morfológica e funcional dos termos coordenados.”
83
Isso quer dizer que toda
coordenação requer certa unidade de sentido entre os termos coordenados. Na verdade,
existe um correlato semântico da regra gramatical, o que significa aceitar que a homoge-
neidade formal exigida pela gramática corresponde a uma homogeneidade de sentido exi-
gida pela lógica. Assim, compreende-se que só há verdadeira coordenação de idéias se as
expressões que se seguem na frase formarem um todo, uma unidade de pensamento.
A coordenação deve pertencer ao mesmo universo do discurso. Isso pressupõe que
deve existir uma idéia-núcleo que possa construir o tema comum, que muitas vezes é de-
terminado pelo título, para o qual o corpo do texto serve de rema. É por essa razão que os
textos de natureza intelectiva não podem dispensar o título. Mas que dizer do poema, que,
não-raro, se permite dispensá-lo? O poema suprime o título porque, muita vez, lhe falta
uma idéia sintética da qual o título seja a expressão. Em um texto não-poético, cada termo
conduz normalmente ao seguinte, e a falta de transição se justifica por evidências que o
leitor é capaz de restabelecer. Isso não ocorre na poesia, onde a unidade emocional é o re-
verso da inconseqüência nocional. É nesse ponto que se dá o desvio.
Obedecendo a nosso interesse, canalizemos o problema para a área atuação do adje-
tivo. Vejamos esse poema de Drummond, que, por conveniência, transcrevemos na íntegra.
82
GARCIA, Othon Moacyr. Op. cit., p. 28, 29.
83
COHEN, Jean. Op. cit., p. 134.
245
Não se mate
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
reserve-se todo para
as boda que ninguém sabe
quando virão
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
do quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira, você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
246
Na estrofe final, percebemos que a combinação entre os adjetivos melancólico e ver-
tical provoca uma impressão de incongruência, e por isso temos o sentimento de um desvi-
o, desvio esse provocado pela ligação de idéias cuja relação lógica é difícil de estabelecer.
Expressões como melancólico e taciturno ou mesmo firme e vertical não provocam im-
pressão de incongruência porque os pares de adjetivos envolvidos são de mesma natureza
semântica: no primeiro par os adjetivos se situam no plano psíquico; no segundo, no plano
físico. Mas a expressão poética de Drummond constrói uma mistura indevida do plano psí-
quico com o plano físico.
A esse tipo de desvio que consiste em “coordenar duas idéias que, aparentemente, não
têm nenhuma relação lógica entre si” Jean Cohen (1974: 138) chama inconseqüência. Nele,
rompe-se a coordenação e quebra-se o fio do discurso. Neste caso, portanto, ocorre incoe-
rência pela quebra do paralelismo semântico. Entretanto a seqüência do texto marca expli-
citamente o desvio que opera a redução.
É evidente que a redutibilidade do desvio coordenativo inscreve-se no próprio desvio.
O leitor deve descobrir a homogeneidade entre os termos heterogêneos, o que será feito
pela evocação da metáfora para a redução do desvio, tal como vimos anteriormente. Assim,
deve opera-se uma mudança de sentido que modifique um dos adjetivos coordenados, fa-
zendo a seqüência voltar ao normal. Talvez possamos, no poema, atribuir ao adjetivo “ver-
tical” o sentido de inabalável, firme, o que manteria no poema a aparência de resistência do
sujeito poético frente às adversidades da existência.
A seqüência nas idéias é a submissão à Razão Universal, e a razão é, antes de qual-
quer coisa, conseqüência. Por esse motivo, os clássicos, na sua suprema racionalidade, não
ousaram empregar a inconseqüência como recurso poético. A poesia começou a usar a in-
conseqüência como processo sistemático de criação poética a partir do Romantismo. Os
românticos tiveram a audácia de romper a ordenação do discurso, mas o fizeram modera-
damente. Com o advento do Simbolismo, a poesia deu o grande salto que separa a razão de
desrazão. Na Europa, devemos esse grande salto a Rimbaud, com as “Illuminations”. No
Brasil, é possível atribuir aos simbolistas, mormente a Cruz e Sousa, a sistematização desse
recurso poético, que se estendeu até a poesia contemporânea.
Para melhor elucidação, selecionamos outros exemplos em que o adjetivo participa
ativamente desse recurso nas suas mais variadas nuances semânticas.
247
Vejamos este exemplo de Manuel Bandeira em que a seqüência adjetiva explora valo-
res morais, sociais e físicos:
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
Agora, este exemplo de Drummond em que os valores morais se misturam a um as-
pecto físico representado pelo adjetivo perifrásico:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso, de ferro.
E ainda esta passagem de Cruz e Sousa, na qual, numa metáfora sinestésica, os adje-
tivos coordenam sensações de diferentes naturezas e, mais adiante, põem em paralelo uma
sensação visual e uma consideração de ordem moral:
Sobe às estrelas rútilas e frias,
Brancas e virginais eucaristias,
De onde uma luz de eterna paz escorre.
A coordenação da adjetivação binária com freqüência incita no leitor uma percepção
dual, em que um elemento físico se põe em paralelo com uma impressão moral, revelando
as duas faces de uma realidade – a objetiva e a subjetiva. Assim, ao mesmo tempo, ela re-
vela, de um lado, situações que não dependem de nós e, de outro, as impressões que elas
causam em nosso espírito. Dessa forma, um dos atributos caracteriza concreta e objetiva-
mente a coisa percebida, e o outro expressa a emoção concomitante que esta característica
provoca. O primeira serve de acesso ao segundo; da percepção sensorial, parcial, passa-se
para uma impressão valorativa que estabelece um julgamento completo do objeto.
248
Tomemos, como exemplo, estas passagens de Eça de Queiroz, cujo trabalho com os
adjetivos é digno de apreciação, como bem o demonstrou Guerra da Cal.
84
... apertei na palma larga e leal os dedos fugidios do sr. Adelino. (A Relíquia)
... uma voz áspera e canalha cantava em falsete... ( O Primo Basílio)
Mas a coordenação da adjetivação binária muitas vezes se presta à expressão de qua-
lidades divergentes ou opostas das coisas. Essas concepções antitéticas ora se expressam na
esfera psicológica, ora se expressam nas incompatibilidades reais e aparentes de nossa per-
cepção do mundo. Citemos mais uma vez os engenhos de Eça de Queiroz, captados pelo
senso crítico de Guerra da Cal:
... sentia aquelas vidas imóveis, silenciosas e sonoras que árvores, ramagens... (Prosas Bárba-
ras)
Toda aquela decoração ... enchia-me dum terror profundo e trivial. (Ibid.)
Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. (A Correspondência de Fradique
Mendes)
– a terma romana donde uma criatura maravilhosa, de mitra amarela, se ofertava lasciva e pon-
tificial. (A Relíquia)
A coordenação entre adjetivos também pode se prestar à expressão do grau superlati-
vo através da sua repetição. Frisamos que a repetição aqui não se processa para a obtenção
de uma mera ênfase; nesse caso ela ocorre para a formação de um sentido novo, que trans-
cende o valor habitual da simples adjetivação, na medida em que dirige a percepção do
leitor para a elevação da qualidade ou da característica que o adjetivo expressa:
É um abril de pureza: – é lindo, lindo! (A. Patrício)
84
CAL, Ernesto Guerra da. Língua e Estilo em Eça de Queiroz. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.
249
A avó, que tem oitenta anos,
está tão fraca e velhinha...
Teve tantos desenganos:
Ficou branquinha, branquinha,
com os desgostos humanos. – (Olavo Bilac)
Seus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar! (Castro Alves)
São uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar (Gonçalves Dias)
Nos exemplos acima, a repetição do adjetivo vai acrescentando sentidos novos, como
se o substantivo fosse sendo passo a passo recategorizado na sua concepção semântica.
4.2.6. – A posição do adjetivo e seus valores estilísticos
A posição do adjetivo pode resultar em admirável expediente estilístico, dada a sua
variação semântica, que implica maior ou menor subjetividade, de acordo com a posição
que ele ocupa na estrutura do sintagma nominal. Rodrigues Lapa
85
afirma que “quando o
adjetivo está logo depois do substantivo, tende a conservar o valor próprio, objetivo, inte-
lectual; quando está antes, tende a perder o próprio valor e a adquirir um sentido afetivo”.
Assim – diz ainda o mestre –, “uma rapariga
bela pode não ser uma bela rapariga, porque
a primeira se distingue pela beleza física, a segunda pela beleza moral”. Percebemos que o
primeiro exemplo citado pelo mestre se aproxima do grau zero do sentido da linguagem, ao
passo que o segundo traduz um matiz semântico cuja captação depende de uma interpreta-
ção mais subjetiva, que se afasta o adjetivo da “normalidade” lingüística.
Vejamos como esse artifício funciona na poesia. Por conveniência, destacamos dois
adjetivos de mesma natureza (indicativos de cor), modificando núcleos de mesma natureza
(partes do rosto) e cuja posição no verso, em relação ao núcleo substantivo, não implica
85
LAPA, M. Rodrigues. Estilística da Língua Portuguesa. 3ª ed. – Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica. 1959,
p. 119.
250
prejuízo para a rima ou para a métrica do poema. Escolhemos, tamm propositadamente,
dois poetas brasileiros de uma mesma escola – a escola romântica – para que fique caracte-
rizado que não há diferença de comunidade lingüística e de época. Assim, livre de influên-
cias diatópicas e diacrônicas, sem diferença do valor semântico básico dos adjetivos e de-
sobrigada do artifício da rima ou da escansão, a posição do adjetivo recai tão somente no
propósito estilístico dos autores, que certamente repousa na focalização.
Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo dessa lembrança
De uns olhos cor de esperança
De uns olhos verdes que eu vi! (Gonçalves Dias)
Em frente do meu leito, em negro quadro,
A minha amante dorme. É uma estampa
De bela adormecida. A rósea face
Parece em visos de um amor lascivo
De fogos vagabundos acender-se... (Álvares de Azevedo)
A diferença de sentido provocada pela posição dos adjetivos nos exemplos acima
deve-se à focalização. Emolhos verdes”, a focalização recai sobre olhos – que se repete
na estrofe –, e verdes, visto pelo poeta como um adjetivo mais ou menos concreto, é um
elemento caracterizador que, embora provoque um certo encantamento, não é o grande
responsável pelas emoções do sujeito poético; este se deve ao olhar da amada, olhar que lhe
despertou paixão e, associado a determinada simbologia da cor verde, deu-lhe um senti-
mento de esperança. Em “rósea fase”, a focalização recai sobre róseo, visto pelo poeta co-
mo um adjetivo mais ou menos abstrato, e o processo lírico é diferente, porque não alude
ao rosado da face propriamente dito, mas às emoções, ao prazer que lhe suscita a cor rósea
que repousa sobre a face da amada.
Como se vê, o adjetivo anteposto ao substantivo forma com ele uma espécie de con-
junto fraseológico, em que ambos perdem um pouco de seu valor, em proveito do conjunto.
Quando se diz a branca nuvem ou o verde campo, enuncia-se uma idéia geral, sem grande
precisão, porque nem sempre a nuvem está branca ou o campo está verde. Portanto, nem
251
sempre essas posições impressionistas têm contorno definido para a nitidez das idéias. É
por essa razão que o grupo adjetivo + substantivo tende a construir popularmente séries
usuais de intensidade e clichês, tais como amado mestre, ilustre deputado, inspirado poeta.
Conclui-se daí que o adjetivo anteposto destina-se a exprimir as qualidades primitivas ou
geralmente consagradas de um ser. Estabeleceu-se um dia que o mestre deve ser amado, o
deputado deve ser ilustre, e o poeta deve ser inspirado. Então, com vistas ao permanente, ao
absoluto, despreza-se o relativo. E para essa inclinação pré-construída, estereotipada, esco-
lheu-se com um instrumento “infalível” a anteposição do adjetivo ao substantivo. Esse ex-
pediente, pelo seu uso freqüente, acabou provocando o enfraquecimento poético. Diante
disso, como caracterizar a criatividade poética? Como separar a expressão artística da ex-
pressão afetiva de uso? São a essas perguntas que tentaremos responder daqui por diante.
A ordem das palavras obedecem a uma regra que Bally denomina “seqüência pro-
gressiva”. Essa ordem estabelece que o determinado deve antepor-se ao determinante.
Com relação aos adjetivos, já mostramos que, dependendo da sua natureza, eles podem vir
pospostos ou antepostos ao núcleo substantivo, sem provocar aberrações ou desvios inacei-
táveis, havendo aqueles que podem ocupar as duas posições com valores diferentes.
Se considerarmos a linguagem poética, notamos que nela a anteposição do adjetivo
aparece com uma freqüência nitidamente mais elevada, o que nos leva à conclusão de que
essa figura é um traço específico da poesia. Mas a evolução da poesia apresenta uma parti-
cularidade: nos poetas modernos, pelo desgaste sofrido, esse recurso se mostra menos fre-
qüente, o que nos conduz à compreensão de certas peculiaridade que envolvem a colocação
estilística do adjetivo no sintagma nominal.
Há um fator importante a se considerar, para a apreensão do valor estilístico na posi-
ção do adjetivo, fator esse que mostra a estreita ligação entre a sintaxe e a semântica. A
tendência para a posposição do adjetivo é normal em português, mas é mais ou menos a-
centuada de acordo com o sentido do adjetivo. A. Blinkenberg afirma: “Quanto mais o sen-
tido do adjetivo se aproximar dos sentidos bom-mau, grande-pequeno (qualidade, número,
grau), mais comum, portanto mais natural, será a anteposição; quanto mais o sentido do
adjetivo se afastar desses sentidos, mais excepcional será a anteposição, e maior, porém
mais arriscado, será o efeito estilístico conseguido.”
86
Por esse prisma, só haverá verdadei-
86
BLINKENGERG, A. L’ordre des mots em français moderne. Copenhague: 1298. Apud COHEN, Jean. Op.
cit., p. 154.
252
ramente ruptura de norma se a anteposição afetar um adjetivo que não tem sentido nem
qualitativo nem quantitativo, e, para todos os demais, a inversão constitui somente um des-
vio mínimo.
Se, por um lado, os textos não-literários não comportam a anteposição dos adjetivos
não-avaliativos, em poesia, ao contrário, a inversão desses adjetivos é praticada com fre-
qüência. Na poesia moderna, pela seu caráter inovador e pela violência de suas rupturas,
essa freqüência aumenta consideravelmente. A poesia antes do Modernismo praticou lar-
gamente a inversão do adjetivo, mas, na maioria das vezes, trata-se de adjetivos de sentido
avaliativo, que, como já se disse aqui, acabou por se transformar numa figura de uso e debi-
litou seu valor poético. Concluímos que o efeito estético da colocação do adjetivo no sin-
tagma nominal reside no seu aspecto inusitado, que realça a focalização, e não na sua posi-
ção em si. Nota-se que o efeito estilístico desaparece quando a ordem é habitual, seja qual
for essa ordem, seja qual for o tipo de adjetivo.
Vejamos como o aspecto inusitado da posição do adjetivo no sintagma nominal pro-
voca um estranhamento que condiz com a proposta estilística engendrada pelo poeta:
Estes poemas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporaram
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinícius
sua mais límpida elegia, Bebo em Murilo. (Drummond)
O perdido caminho, a perdida estrela
que ficou lá longe, que ficou no alto,
surgiu novamente, brilhou novamente
como o caminho único, a solitária estrela. (Drummond)
Todas as vidas dentro de mim:
Na minha vida –
A vida mera das obscuras. (Cora Coralina)
És minguante, és crescente, és nova, e cheia,
E sempre que tu vens, é um novo assalto
Misterioso à pobre alma que vagueia,
Caravela perdida no mar alto... (Alphonsus de Guimaraens)
253
A posição do adjetivo na estrutura do enunciado pode ter um valor semântico em si,
ou seja, sua colocação na frase ou no verso pode funcionar, por si só, como um recurso de
construção de sentido na estrutura geral do texto. Nesse caso, a sintaxe, mais do que qual-
quer outro fator, é a grande responsável pela ampliação da carga semântica do adjetivo. Sua
posição na estrutura do enunciado transpõe os limites da mera ornamentação para ganhar
em contundência. Vários são os recursos empregados para esse fim. Aqui, mais uma vez, é
necessário que apelemos para a apreciação dos gêneros textuais, pois o que serve para a
poesia nem sempre se pode aplicar à prosa.
Para falarmos da poesia, vamos estabelecer uma diferença entre frase e verso. A frase
apresenta uma totalidade lógico-gramatical, mas essa totalidade é orgânica e, como tal,
analisável em unidades menores – orações, grupos sintáticos, palavras –, o que constitui a
teoria sintagmática. O verso, por sua vez, é uma estrutura fono-semântica que só existe co-
mo relação entre o som e o sentido. Diante disso, nem sempre a versificação está de acordo
com o discurso gramatical, pois às vezes coloca uma pausa onde o sentido recusa, provo-
cando o fenômeno conhecido como enjambement.
O enjambement consiste na quebra da seqüência imediata entre os constituintes ime-
diatos de um sintagma, de modo que o termo determinante e seu determinado ficam em
versos distintos. Portanto, ele é uma figura de discordância entre o metro e a sintaxe, um
caso particular do conflito metro-sintaxe. Vamos abordá-lo na relação sintática do adjetivo
na seqüência lógico-sintática da frase:
Vê?! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro da tua última quimera.
(Augusto dos Anjos)
Com efeito, a pausa entre os elementos destacados não tem valor semântico; ela sepa-
ra duas unidades estreitamente solidárias – o nome e o adjetivo –, criando um impasse para
o restabelecimento na normalidade: salva-se a sintaxe ou salva-se a métrica do verso? Co-
mo em um discurso versificado não se pode ignorar a versificação, estabeleceu-se um des-
vio de paralelismo fono-semântico, através do qual o adjetivo ganha relevo pela sua posição
no final do verso.
254
Mas o leitor atento pode não conferir esse efeito ao talento criativo do poeta, alegando
que o enjambement se fez por uma necessidade imperiosa da versificação. Sem tirar de todo
a razão desse leitor crítico, lembramos que a leitura do poema deve ser feita a partir de co-
mo ele está escrito. É inócuo especular “como poderia ser” numa obra de arte. Ela sim-
plesmente “é como é”, e cabe ao leitor aceitá-la como ela se consolidou e dela extrair as
possibilidades de sentido que ela é capaz de construir.
De qualquer maneira, com os versos livres, fica mais patente a intenção estética do
poeta. Por definição, o verso livre não obedece a nenhuma lei estrutural. Assim, não há
como pensar que o enjambement está subordinado às exigências formais do poema. Nesse
caso, portanto, a ruptura do paralelismo fono-semântico ocorre por deliberação do poeta e
constitui um objetivo em si, empregado para a construção estética do sentido poético:
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus Maiakóvski (Drummomd)
A divisão do sintagma nominal no exemplo acima põe em posição privilegiada o adje-
tivo chamejante, conferindo-lhe um destaque a partir da focalização.
É de admirar o efeito conseguido por Manuel Bandeira com o enjambement que en-
volve o adjetivo no poema abaixo:
Pardalzinho
O pardalzinho nasceu
Livre. Quebraram-lhe a asa.
Sacha lhe deu uma casa,
Água, comida e carinhos.
Foram cuidados em vão:
A casa era uma prisão,
O pardalzinho morreu.
O corpo, Sacha enterrou
No jardim; a alma, essa voou
Para o céu dos passarinhos!
(Manuel Bandeira)
255
O isolamento do adjetivo livre acentua com precisão a dimensão do sentido poético
que Bandeira quis sugerir. Se, no primeiro verso, o adjetivo estivesse imediatamente ao
lado do verbo (O pardalzinho nasceu livre), a noção de liberdade estaria bem definida, mas
seu valor poético seria enfraquecido dentro do sentido geral do texto. O adjetivo, por conta
da posição em que se encontra no poema, submete-se a um processo de focalização, que lhe
confere uma importância que certamente ele não teria em posição gramaticalmente normal.
Aqui, a forma ratifica o sentido da liberdade. Seja como for, o fato é que a posição do adje-
tivo tem um valor em si, pois a colocação que lhe foi imposta é significativa. O sistema
gramatical mais uma vez cedeu para que a poesia se manifestasse.
Na prosa, a colocação do adjetivo amplifica mais claramente a intenção do autor.
Dentro dos limites da liberdade lingüística, este pospõe ou antepõe o adjetivo ao núcleo
substantivo de acordo com o melhor efeito que a posição do adjetivo possa produzir na es-
trutura do texto. E este efeito se manifesta de acordo com a natureza semântica do próprio
texto, em consonância com a ambiência lingüística em que o adjetivo se encontra, como
ocorre neste “Estouro da Boiada”, de Euclides da Cunha:
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-los. Acamam-se as caatingas,
árvores dobradas, partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam de repente as
baixadas num marulho de chifres, estrepitam, britando e esfarelando as pedras, torren-
tes de cascos pelos tombadores; rola surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e lon-
go de trovão longínquo.
Destroem-se em minutos, feito montes de leivas, antigas roças penosamente
cultivadas, extingue-se, em lameiros revolvidos, as ipueiras rasas; abatem-se, apisoa-
das, os pousos; ou esvaziam-se, deixando os habitantes espavoridos, fugindo para os
lados evitando o rumo retilíneo em que se despenha a “arribada” – milhares de corpos
que são um corpo único, monstruoso, informe, indescritível, de animal fantástico, pre-
cipitado na carreira douda. E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou arremessando-se
impetuoso na esteira de destroços, que deixa após si aquela avalanche viva, largado
numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos, e cerros e galhadas – enristado o
ferrão, rédeas soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho, preso às crinas do
cavalo – o vaqueiro!
(Os Sertões)
256
Nota-se na passagem acima um estilo “estilhaçado” de alta voltagem poética, ponti-
lhado aqui e ali por adjetivos que ora se pospõem ao substantivo ora se antepõem a ele,
insolitamente, contribuindo para a tensão, para o dinamismo e para o ritmo espasmódico da
linguagem. As frases se tornam contundentes, angulosas, convulsas, ampliadas pelas elasti-
cidade da sintaxe que a coordenação adjetiva proporciona em crescentes dramáticos. É de
se ver, portanto, que a adjetivação não tem no texto valor meramente ornamental; sua con-
tribuição é fundamental para a impressão de caos que a cena revela.
Outro fator de importância indiscutível para a colocação do adjetivo na seqüência do
enunciado está intimamente relacionado à sua função como elemento musical e rítmico da
frase ou do verso. Como se sabe, um dos aspectos fundamentais da Literatura como arte da
palavra encontra-se na arquitetura musical das construções lingüísticas. Para isso, às vezes
é necessário contrariar os padrões de ordenação verbal consagrados na estrutura gramatical
da língua portuguesa. Nesse particular, além de outros fatores de natureza psicológica, a
colocação do adjetivo flexibiliza a estrutura da frase, conferindo-lhe uma nova linha meló-
dica e um ritmo sugestivo, proporcionando o prazer estético da leitura, que é a função pre-
cípua da arte literária.
Além do já citado exemplo de Euclides, em que esse recurso é também explorado,
tomemos estas passagens de Eça de Queiroz:
... os velhíssimos tetos de rico carvalho sombrio... (A Cidade e as Serras)
... As longas barbas tenebrosas... (A Cidade e as Serras)
Neles a adjetivação binária envolve o substantivo – um posposto e outro anteposto –,
tornando os três elementos uma unidade rítmica e significativa. Na ordem tradicional, os
dois adjetivos deveriam estar antes ou depois do substantivo, ligados entre si pela conjun-
ção.
Agora uma seqüência assindética de adjetivos antepostos ao nome provoca um efeito
de tensão ascendente rítmica e significativa:
... um santo, tumultuoso, inflamado delírio... (A Relíquia)
257
Nesta, agora posposta, o ritmo e a melodia acentuam o valor semântico da frase:
... um pacto taciturno, profundo e mortal. (Ibid.)
Esta combinação de ritmos, harmonização vocálica e jogos de acentuação e gradação
silábica produz efeitos que contribuem para a evocação e o enriquecimento do conteúdo
significativo da frase:
Correu ao coupé, parado à porta dos seus quartos, mudo, fechado, misterioso, aterrador. (Os
Maias)
A questão da unidade rítmica do sintagma nominal torna-se mais complexa na poesi-
a, já que esta apresenta aspectos estético-formalistas que envolvem métrica e ritmo na sua
estruturação. Diante disso, a ordem do adjetivo no verso pode ser de natureza imperativa ou
obedecer à livre escolha de poeta.
Nos sintagmas destacados nestes versos de “O Uraguai”, de Basílio da Gama, a posi-
ção do adjetivo é determinada pela necessidade estrutural do texto. A acentuação tônica dos
vocábulos fonológicos determina a cadência rítmica do poema; e o número de sílabas dos
sintagmas, bem como a existência ou não do travamento silábico, é elemento determinante
para a escansão e a cesura que estruturam a métrica dos versos:
Açouta o campo coa ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Agora, nos sintagmas destacados nos mesmos versos, a posição do adjetivo se dá por
livre escolha do poeta. A colocação do adjetivo, por não provocar qualquer prejuízo na es-
258
truturação formal do poema, obedece tão somente à sensibilidade do poeta, que opta por
uma ou outra forma, segundo a focalização ou a seqüência melódica do verso.
Açouta o campo coa ligeira cauda
O irado monstro, e em tortuosos giros
Se enrosca no cipreste, e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
No exemplo abaixo, ocorre uma variação rítmica que dinamiza os versos: passa-se do
alexandrino clássico (com acentuação regular na 6ª e na 12ª sílaba) para o alexandrino ro-
mântico (com acentuação regular na 4ª, na 8ª e na 12ª sílaba).
E o velhinho andrajoso e magro como um junco,
O olhar febril, o crânio calvo e o bico adunco. (Guerra Junqueiro)
Nota-se que a posposição do adjetivo contribui para a cadência rítmica, além de manter,
na seqüência coordenada, um paralelismo que torna contundente o sentido do verso.
É de se perceber, pelos exemplos apresentados, que a posição do adjetivo é um fator
de considerável importância para a dimensão estilística da linguagem. Através dela, de
forma consciente, o artista da palavra amplia o alcance poético de um texto. Resta ao leitor
desenvolver a capacidade de percepção para alcançar a beleza e o sentido poético que esta
classe de palavra pode proporcionar.
O saldo de todas essas observações é que consideramos, ao final das contas, que a
posição do adjetivo em um texto literário obedece ao fenômeno poético que se configura
em cada texto e em cada situação em particular. Estabelecer uma posição poética ou não-
poética para o adjetivo é uma atitude temerária. Acreditamos que, na estruturação poética
da linguagem, fatores como a focalização e o ritmo são determinantes na escolha do poeta.
Assim, pospor ou antepor o adjetivo no sintagma nominal não garante a poeticidade de um
259
texto. O que se deve observar é a influência particular que cada adjetivo exerce em cada
caso, em consonância com a posição por ele ocupada na estrutura do verso ou da estrofe, da
frase ou do parágrafo, considerando o grau de conspiração entre ele e seu substantivo.
Estamos certos de que muito haveria para desenvolver sobre a classe dos adjetivos.
Mas está claro que não tivemos a pretensão de esgotar, o que talvez nos fosse uma tarefa
impossível, todas as potencialidades gramaticais e estilísticas que o adjetivo possa oferecer.
O fato é que, embora não nos contentemos com o que aqui foi desenvolvido, procuramos
apresentar os aspectos mais básicos que envolvem a sintaxe do adjetivo, seja no âmbito
gramatical seja na esfera estilística.
Como afirmamos anteriormente, o sentido de uma palavra reside no conjunto de con-
textos em que ela pode figurar. Assim, não há adjetivos poéticos ou apoéticos, adjetivos
gramaticais ou adjetivos estilísticos. O método de escolha pelo qual as pessoas selecionam
um adjetivo obedece tão somente a um propósito que convenha objetiva ou subjetivamente
à natureza de um texto, no qual um determinado ser representado por um substantivo possa
ou deva ser caracterizado de uma ou de outra forma.
Isso permite confrontar o critério clássico de verdade objetiva com o critério subjetivo
da verdade poética. A gramática é o pilar que sustenta a significação da linguagem. A partir
de certo grau de desvio em relação às regras de ordem e concordância, a frase desmorona, e
a inteligibilidade desaparece. Mas o poder poetizante da gramática deve ser sentido tanto
pelo lingüista como pelo poeta. A esse respeito, em “Ensaios de Lingüística Geral”, Jakob-
son afirma: “Os recursos poéticos dissimulados na estrutura morfológica e sintática da lin-
guagem, enfim, a poesia da gramática e seu produto literário, a gramática da poesia, foram
raramente reconhecidas pelos críticos e quase totalmente desprezadas pelos lingüistas; em
compensação, os escritores criadores sempre souberam aproveitá-la magistralmente.”
A função da gramática é denotativa, a função da estilística é expressiva. Deve-se dis-
tinguir, portanto, os dois efeitos da expressão da linguagem: transmitir um fato e produzir
uma emoção estética. Caímos então em uma dicotomia que envolve a função referencial e
a função poética da linguagem. Não privilegiamos esta ou aquela na nossa abordagem so-
bre o adjetivo, por considerar que cada uma tem seu valor preservado pela natureza do tex-
to em que essa classe de palavra se encontra. Ao mesmo tempo reconhecemos que ambas
se realizam numa interação dialética, pois o poético só se realiza como tal diante do não-
poético. Assim, é de se ver que, sem um referencial estabelecido pela ordem gramatical, a
260
linguagem poética, e isso se aplica ao adjetivo, não alcança conscientemente sua dimensão,
visto que, sem esse referencial gramatical, não se pode medir o grau de criatividade que a
poesia exige para ser poesia.
Além disso, lembramos, na análise, há de se levar em consideração a noção acidental
do parttern criado pelo contexto estilístico, pois tal contexto pode determinar a taxa de poe-
ticidade do adjetivo no texto. Isso porque, como já se disse anteriormente, um determinado
contexto estilístico pode provocar a saturação de uma determinada estrutura, fazendo com
que a ruptura dessa estrutura torne-se um fator de criatividade a partir de um vetor textual.
Uma forma habitual de expressão pode, em conseqüência da contrastitividade em relação
ao pattern contextual, suscitar valores estilísticos que poeticamente só podem ser conside-
rados na esfera da co-textualidade.
Tentamos, finalmente, estabelecer uma distinção entre a função intelectiva e a função
poética do adjetivo, a partir das duas modalidades da linguagem – a referencial e a poéti-
ca. A emoção real é expressa pelo sujeito à maneira do seu estado de espírito, como uma
modificação de si mesmo, cuja causa exterior é o mundo. A emoção poética, ao contrário, é
apreendida como uma qualidade do mundo; e, por esse prisma, sentir é experimentar um
sentimento não como um estado do ser, mas como uma propriedade do objeto, tratando-se,
portanto, de uma modalidade da consciência das coisas, uma maneira original e específica
de lingüisticamente apreender o mundo. A emoção real se concentra no indivíduo, numa
projeção subjetal, porque emana do estado de espírito do sujeito, e por isso mesmo consti-
tui uma “imagem intelectiva” do objeto. A emoção estética se concentra no objeto, é ima-
nente a ele e, numa captação objetal, constitui o que se pode denominar “imagem afetiva”
do objeto. Então, de um mesmo objeto, pode-se ter, concomitantemente, duas imagens ou
representações psicologicamente distintas, que constituem os dois tipos de significação,
induzidas pelos dois tipos de linguagem.
261
PARTE-II
ENUNCIAÇÃO E TEXTO POÉTICO
Esta parte do nosso trabalho tem como proposta a análise do texto poético pelo viés
de uma estilística de base enunciativa. Vamos começá-lo com um questionamento a nosso
ver bastante significativo. Uma Estilística tradicional, focada nas estruturas formais do e-
nunciado, é capaz de traduzir os aspectos poéticos que se situam fora da estrutura do siste-
ma lingüístico? Acreditamos que não. Há efeitos de sentido que não podem ser percebidos
por uma análise estilística que se situe estritamente no interior da língua, ou seja, nas inci-
dências fônicas, mórficas e sintáticas que constituem um sistema de linguagem. Questões
que envolvem efeitos poéticos provocados pela realidade sociocultural, pela subjetividade
da linguagem ou pela heterogeneidade discursiva não se encontram na gramática nem na
semântica da língua; logo só podem ser apreendidas quando levamos em conta o processo
enunciativo da linguagem, que, dentre outras coisas, nos remete à cena de enunciação, à
realidade do mundo ou a certos contextos discursivos.
Embora, sob as concepções de Jakobson, se reconheça no formalismo da obra o esta-
tuto que assegura sua literariedade, há outros fatores que vêm completar certas lacunas con-
ceituais na operação do seu reconhecimento. A comunidade de leitores precisa reconhecer o
texto como uma obra literária. Já Rifaterre, a despeito de reconhecer a autonomia estético-
discursiva do texto literário, prenuncia que a força estilística da linguagem poética, como
instrumento de sua caracterização, deve atuar no leitor como instância receptiva da obra
literária, o que, de certa forma, enquadra a literatura na ordem do discurso.
Todo texto pressupõe um ato discursivo, movido por uma intencionalidade discursiva.
Postular o discurso literário como o resultado de um ato discursivo que suscita certos efei-
tos decorre diretamente de se reconhecer na instância receptiva o elemento de legitimação
da obra literária. Na Antigüidade, já se refletia sobre a arte como um estudo das condições
de sua recepção, isto é, da percepção da obra de arte como tal, teoria plenamente partilhada
pelo filósofo racionalista A. Gottlieb Baumgarten
87
, que, sintomaticamente cita Horácio
nos seus estudos sobre o efeito da experiência estética. Como sugere Costa Lima
88
, o leitor
87
Apud COSTA LIMA, Luiz. O Labirinto e a Esfinge, in Teoria da Literatura em Suas Fontes. Rio de Janei-
ro: Francisco Alves, 1975.
262
precisa perceber não a “realidade da coisa”, mas a “realidade da imagem”. Isso porque é
próprio da arte criar em torno de si, ao ser percebida, uma aura intensa de associações, um
jogo intenso de emoções estéticas que, simultaneamente, nos cativa e nos ofusca. Esta per-
cepção está, para nós, relacionada aos fatores de contextualização, de que nos falam as teo-
rias da Lingüística Textual.
A configuração e a longevidade da arte, muitas vezes, resulta da capacidade de o texto
se metamorfosear diante certos contextos e de situações novas. Nesse sentido, a noção de
contexto anula a oposição interno X externo, pois ele encontra-se tanto dentro quanto fora
do texto, sendo este fora apresentado numa comunidade textual de sua própria natureza. Se
estendermos a noção de contexto estilístico a um pattern mais amplo, podemos estender a
relação imediata que existe entre os signos à relação entre os textos. Se um signo pode tor-
nar-se poético pela contrastividade contextual, um texto também pode tornar-se poético
pela relação que apresenta com seu contexto. Expliquemos em outras palavras: se uma
manchete de jornal anuncia que o jogador de futebol “x” será punido pelas suas ações, a
interpretação de tal manchete dependerá de certos fatores de contextualização. Se essa man-
chete se encontra no caderno esportivo do jornal, interpretamos o delito do jogador como
uma ocorrência na esfera esportiva (xingamento do árbitro, agressão ao adversário, etc.); se
essa manchete se encontra no caderno policial, fica visível que suas ações são de natureza
criminal. Isso nos leva a pensar que um determinado texto pode ser legitimado como poéti-
co em conseqüência do contexto em que ele se encontre.
Isso não parece tão absurdo. Conta-se que um poeta anunciou em um jornal a venda
do seu apartamento. Buscando impressionar o eventual comprador, o anúncio foi produzido
com uma linguagem estilisticamente elaborada, que, de certa forma, a função poética reco-
nhece. Posteriormente, esse anúncio apareceu em um dos seus livros de poemas, o que pro-
vocou imediatamente uma recategorização do seu gênero textual, e sua forma se justificou
pela teoria da cenografia genérica, da qual falaremos nesta parte do trabalho. Os “Sermões
de Vieira não foram escritos inicialmente como as obras literárias que hoje se estudam.
Pensando nas lacunas deixadas pela Estilística do enunciado, buscamos outros cami-
nhos que, acreditamos, nos possam conduzir a uma visão mais ampla no confronto com o
texto poético. Com as novas tendências da Lingüística, surgiram também algumas perspec-
88
COSTA LIMA, Luiz. Idem, ibidem.
263
tivas teóricas para a Estilística que, certamente, vão lançar luz sobre certos pontos – até
então obscuros – que ficavam à margem na tradição das análises textuais. De posse dessas
novas teorias, objetivamos uma análise mais abrangente e esclarecedora que inclua no seu
processo pelo menos alguns dos resíduos ignorados pela tradição estilística, mas de valor
relevante na construção de sentido poético do texto.
Nos seus estudos lingüísticos, Tzevetan Todorov distingue no Dicionário das Ciên-
cias da Linguagem duas Estilísticas – a Estilística do Enunciado e a Estilística da Enuncia-
ção. A primeira se ocupa da configuração verbal da linguagem – suas particularidades fôni-
cas, morfológicas, sintáticas, semânticas; a segunda se ocupa da relação entre os protago-
nistas do discurso – locutor, receptor, referente. Com base nesta última, que constitui o ob-
jeto desta parte do nosso estudo, procuramos investigar como os fatores que envolvem a
Teoria da Enunciação contribuem para a configuração artística do texto poético, isto é,
como os aspectos enunciativos da linguagem atuam estilisticamente na construção do senti-
do poético dos textos literários.
Como não intentamos esgotar um assunto tão vasto como esse, estabelecemos algu-
mas diretrizes e alguns recortes que servirão de base para os caminhos que pretendemos
trilhar aqui, como manifestação de uma estilística de base enunciativa e os efeitos de senti-
do que delas se podem depreender. Abordaremos a questão do gênero discursivo, sob a
ótica da encenação e da cenografia genérica, de onde procuraremos extrair certos efeitos
de sentido; algumas figuras retóricas vistas do ângulo da enunciação, estabelecendo a rela-
ção entre a linguagem poética e a realidade discursiva; os aspectos da objetivida-
de/subjetividade da linguagem no enunciado, considerando as noções de debreagem e em-
breagem; a heterogeneidade enunciativa, em que levamos em conta a combinação de enun-
ciados de locutores diferentes, e o fenômeno da referenciação, na qual destacamos aspectos
da categorização e da recategorização, além das noções de ponto de vista.
Mas, para falarmos de uma Estilística da Enunciação, faz-se necessário que, antes,
passemos por alguns conceitos básicos, a fim de que possamos criar uma base de compre-
ensão dessa modalidade da Estilística. Sabemos que até há algum tempo a Lingüística se
ocupava, quase que exclusivamente, do enunciado. Nas últimas décadas, porém, ela se tem
voltado, também, para os fatores da enunciação, a partir de enunciado realizado. Recusan-
do-se a ver a enunciação apenas como um mero ato de produção do enunciado sem rele-
vância significativa, ela está procurando descobrir as leis que regem a enunciação e seus
264
efeitos de sentido. Como ainda não se descobriram meios de se captarem certas estruturas
específicas na atividade da enunciação, capazes de regulamentar seu processo formal, ela
vem partindo das pistas deixadas no interior do enunciado realizado. Buscam-se, pois, tra-
ços do ato de produção no produto. Assim, a Lingüística da Enunciação pesquisa no enun-
ciado as marcas dos vários elementos relacionados com a enunciação – situação de produ-
ção, contexto histórico-social, locutor, receptor, referente. É a partir daí que nos situamos
nesta parte do nosso trabalho.
265
1. — A TEORIA DA ENUNCIAÇÃO
Uma apreciação geral nos permite definir Enunciação como um ato de comunicação
verbal. Mas esse termo na esfera da Lingüística ganhou certas ampliações e interpretações
nem sempre pacíficas, em conseqüência da sua complexidade. Vejamos algumas defini-
ções: “Enunciação é a colocação em funcionamento da língua por um ato individual de uti-
lização.” (Émile Benveniste); “Enunciação é a atividade de linguagem exercida por aquele
que fala no momento em que fala.” (Anscombre e Ducrot); “Enunciação é o evento único e
jamais repetido de produção do enunciado.” (Kock). A despeito das várias formas de com-
preensão do termo e por algumas distinções que essas definições possam apresentar, elas
têm um ponto em comum: o aspecto da atividade lingüística, a linguagem considerada no
momento mesmo em que ela é posta em funcionamento.
É interessante notar, como dissemos, que estes conceitos receberam certas ampliações
que consideramos sintomáticas para os nossos objetivos. Como na enunciação um indiví-
duo põe a língua em funcionamento para dizer algo a outro(s) indivíduo(s) que deve(m)
também conhecer a mesma língua, ele implica falar e ouvir. Por isso mesmo, Catherine
Kerbrat-Orecchioni ampliou a definição de Anscombre e Ducrot: “Enunciação é a atividade
de linguagem exercida por aquele que fala no momento em que fala, mas também por aque-
le que escuta no momento em que escuta (grifo nosso)”.
89
Isso nos conduz a um processo
de interação que põe em relevo os efeitos de sentido de um texto, escrito ou falado, sobre o
leitor, que é pressionado a absorver, e para tanto deve estar apto, as implicações de ordem
psicossocial que emanam do enunciado.
O enunciado é a manifestação concreta de uma frase em situações de interlocução, é a
sucessão de frases emitidas entre dois brancos semânticos, duas pausas da comunicação. É
no enunciado que a enunciação se materializa lingüisticamente. Assim, ele é o objeto lin-
güístico resultante da enunciação, é o que se diz, é o produto da enunciação. Um estudo
lingüístico de um texto sob a perspectiva de sua estruturação em língua permite tomá-lo
como enunciado; mas quando o enunciado é considerado do ponto de vista do mecanismo
discursivo que o condiciona, tem-se o discurso. Pensando dessa maneira, podemos conside-
89
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L’enoncioacion – de la subjectivité dans le langage. Paris: Armand
Colin, 1980.
266
rar que o enunciado é o liame entre a língua e o discurso, constituindo uma relação engen-
drada pela atividade da enunciação.
Sob a perspectiva da análise do discurso, a enunciação constitui um ponto fundamen-
tal de investigações. A partir das suas considerações, diversos tipos de fenômenos de ordem
enunciativa tornaram-se objetos de estudo, particularmente os dêiticos pessoais, espaciais e
temporais, o discurso citado, a polifonia, as aspas, entre outras coisas. Charaudeau & Main-
guenau
90
destacam dois níveis em que as problemáticas da enunciação são mobilizadas, em
constante processo de interação:
a) “O nível local das marcações de discurso citado, de reformulações, de modalidades
etc., que permite confrontar diversos posicionamentos e caracterizar gêneros de discurso.”
b) “O nível global, em que se define o contexto no interior do qual se desenvolve o dis-
curso. Nesse nível, pensa-se em termos de cena enunciação, de situação de comunicação,
de gênero de discurso...”
Como se percebe, para a análise do discurso não é satisfatória uma abordagem que
se situe numa esfera estritamente lingüística da enunciação como colocação em funciona-
mento individual da língua. Do seu ponto de vista, a enunciação é fundamentalmente con-
siderada no interdiscurso, o que significa dizer, segundo Pêcheux e Fuchs que “a enuncia-
ção coloca fronteiras entre o que é ‘selecionado’ e, pouco a pouco, tornado preciso (através
do que se constitui o ‘universo do discurso’) e o que é rejeitado. Desse modo se acha, pois,
desenhado num espaço vazio o campo de tudo a que se opõe o que o sujeito disse”.
91
A enunciação, entre outras coisas, supõe a conversão individual da língua em dis-
curso, e portanto determina a que título aquilo que se diz é dito. Antes da enunciação, a
língua não passa de uma possibilidade da língua; após a enunciação, a língua é efetuada em
uma instância de discurso, que emana de um locutor. Agora, a questão é perceber como o
“sentido” se forma em “palavras”. É a semantização da língua que está no centro desse pro-
cesso, e ela conduz à teoria do signo e à análise da significância, considerando os procedi-
mentos pelos quais as formas lingüísticas da enunciação se diversificam e se engendram
para a construção do sentido. Confirma-se assim que, na enunciação, a língua se presta à
90
CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Pau-
lo: Contexto, 2004.
91
PÊCHEUX, M. & FUCHS, C. A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectiva.
In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Mi-
chel Pêcheux. 2ª ed. Campinas: Editora da UNICAMP, 1993.
267
expressão de uma certa relação com o mundo, e a condição da mobilização e da apropria-
ção da língua neste processo constitui, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso
e, para o alocutário, a possibilidade de co-referir, de forma idêntica, no consenso pragmáti-
co que faz de cada locutor um co-locutor. Assim, a referência é parte integrante da enuncia-
ção. Isso pressupõe um salto transfrástico que alcança a realidade fora do sistema lingüísti-
co, embora seja por ele captado.
Mas para que o processo de enunciação tenha êxito, é necessário que o sujeito enun-
ciador tenha certas competências, competências essas que são de várias ordens:
92
a) Competência lingüística – que é a competência básica para a produção de um enun-
ciado. Aqui o falante deve ter conhecimento da gramática – fonologia, morfologia e sintaxe
– e do léxico do sistema lingüístico com o qual ele opera, para, através dele, produzir enun-
ciados gramaticais aceitáveis.
b) Competência discursiva – que, entre outras coisas, abrange, de um lado, a tematiza-
ção e a figurativização e, de outro, a actorialização a espacialização e temporalização, assim
como os mecanismos argumentativos que incluem a utilização dos implícitos, as figuras de
pensamento, os modos de citação do discurso alheio e os efeitos de sentido de objetividade,
realidade e subjetividade etc.
c) Competência textual – que está relacionada à utilização da semiótica-objeto em que
o discurso será vinculado, tal como os procedimentos de textualização em língua natural,
que decorrem do caráter linear dos significantes de seus signos.
d) Competência interdiscursiva – que se refere à heterogeneidade constitutiva do dis-
curso.
e) Competência intertextual – que diz respeito às relações contratuais ou polêmicas
que um texto mantém com outros, incluindo a maneira de textualizar, tal como ocorre, por
exemplo, na estilização.
f) Competência situacional – que se relaciona com o conhecimento referente à situa-
ção em que ocorre a comunicação e com o parceiro do ato comunicativo.
É evidente que todas essas competências podem ser comuns ao enunciador e enuncia-
tário em maior ou menor grau. Ressaltamos, porém, que, a princípio, quanto maior for a
92
Ver FIORIN, José Luiz. As Astúcias da Enunciação. São Paulo: Ática, 2002, p. 32 e 33.
268
interseção entre ambos, melhor será a compreensão dos enunciados produzidos. Aqui nos
aproximamos das Máximas Conversacionais e dos Princípio do Cooperação, postulados
por Grice, através dos quais se leva a bom termo as atividades comunicativas no processo
enunciativo. Quando se produz um enunciado, estabelece-se uma espécie de “convenção
fiduciária” entre um enunciador e um enunciatário, a qual determina o estatuto viridictório
do texto. Segundo Fiorin (2002: 35), este acordo fiduciário apresenta dois aspectos:
a) como o texto deve ser considerado do ponto de vista da verdade e da realidade;
b) como devem ser entendidos os enunciados: tal como foram ditos ou ao contrário.
Em relação ao primeiro aspecto, existem procedimentos – variáveis de cultura para
cultura, de grupo social para grupo social – que determinam o estatuto de verdade ou não-
verdade do texto, de realidade ou de ficção. Quanto ao segundo aspecto, leva-se em conta a
existência de certas marcas discursivas que indicam se o enunciado dever ser entendido na
sua literalidade ou não-literalidade, o que envolve aspectos da conotação, da ironia etc. Isso
convenciona dois tipos de contratos enunciativos: o de identidade e o de contraditoriedade,
que devemos considerar para a compreensão ampla do texto, e em particular do texto literá-
rio, pelas suas peculiaridades e pela intencionalidade que impulsiona sua formulação.
***
Benveniste estabelece uma oposição entre uma lingüística das formas e uma lingüísti-
ca da enunciação. A primeira concebe seu objeto como algo estruturado e procura estudar
as leis internas de sua estrutura. A segunda, embora continue admitindo aquele objeto estru-
turado, inclui nos seus estudos o aparelho formal da enunciação, constituído pelo comple-
xo dos elementos cuja função é colocar o locutor em relação constante e necessária com sua
enunciação e com tudo que a envolve na situação discursiva. Como se vê, a enunciação é da
ordem do acontecimento e constitui o pivô da relação entre a língua e o mundo, pois, se por
um lado, permite representar fatos no enunciado, por outro, constitui por si mesma um fato,
um acontecimento único que se define no tempo e no espaço. Na enunciação levam-se em
consideração as condições de produção – tempo, lugar, papéis representados pelos interlo-
cutores, imagens recíprocas, relações sociais, objetivos visados na interlocução – que são
constitutivas do sentido do enunciado.
269
O conceito fundamental da lingüística saussuriana afirma-se na noção de valor, o que
significa dizer que “na língua só há diferença”, isto é, que ela só comporta diferenças de
conteúdo e de expressão, que nela só existem relações. Isso faz considerar a língua como
forma, não como substância. Esse princípio exclui os elementos pertencentes à linguagem,
pois esta é multiforme e heteroclítica, e, por isso mesmo, a Lingüística não poderia se ocu-
par dela, já que ela estaria no domínio individual e no domínio social, e não na inscrição de
um sistema de formas. Ao contrário da linguagem, a língua é única e homogênea e não
constitui, portanto, “uma função do falante”; a língua é um produto passivamente registrado
por ele
93
, que, por isso mesmo, não pode promover nela nenhuma interferência.
A Lingüística estrutural, pelo método da comutação, viabilizou análises rigorosas nos
diferentes planos da linguagem, que vão da fonologia à semântica da palavra. Mas, a des-
peito de todo o seu mérito – justificadamente, diga-se de passagem –, reconhecemos que,
num certo estágio, os estudos lingüísticos precisavam transpor os espaços de atuação por
ela estabelecido, porque seus métodos apresentam certas limitações, próprias do seu objeto
de estudo, o aparelho formal da língua. Ao estabelecer a oposição langue x parole e privi-
legiar a primeira, já que a segunda é da ordem do acontecimento, ela descarta a História e,
com isso, elimina o falante das suas investigações.
Para Saussure, a Lingüística deve limitar-se ao estudo da língua em si mesma, e esta
deve ser definida e analisada como um sistema de signos e regras, como um conjunto de
convenções próprias de todos os locutores, um código invariável, único e homogêneo, à
disposição de uma comunidade de falantes. Assim, por esse método, a Lingüística estrutu-
ral não inclui um modelo de atualização, isto é, de conversão da língua em discurso e, a-
firmando que a parole é o espaço da liberdade de criação, não dá conta de que existem leis
de organização do discurso. Além disso, considera que cada ocorrência lingüística é uma
sucessão de operações previstas pelo código, o que exclui dos seus estudos os componentes
da comunicação que sejam externos a ele.
94
Mas, como afirma Fiorin (2002: 29), é preciso considerar que cada manifestação da
langue põe em jogo um enunciador e um enunciatário com pontos de vista, que ela ocorre
num tempo e num espaço precisos, que se refere a uma semiótica do mundo natural, visan-
do, em última instância, à persuasão. Além disso, diz o lingüista, “sendo sociais os pontos
93
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix, 1969, p. 22.
94
Cf. CERVONE, Jean. A Enunciação. São Paulo: Ática, 1989, p. 10.
270
de vista do enunciador, a parole só pode ser vista como individual se for tomada como o
mecanismo psico-fisiológico de exteriorização do discurso”.
Evidentemente, os postulados teóricos que polarizam estas discussões sobre a lingua-
gem estão baseados nas noções de estabilidade e instabilidade lingüística. Embora a Lin-
güística tenha afirmado a primazia da oralidade sobre a escrita, ela sempre privilegiou os
modelos textuais escritos, onde há maior nível de estabilidade, haja vista o falante ideal de
Chomsky. Só a partir dos estudos conversacionais ela incorporou efetivamente a especifici-
dade da linguagem oral, onde a instabilidade se manifesta de modo mais relevante.
A noção de estabilidade e instabilidade lingüística está atrelada ao que é previsível e o
que é imprevisível pelo sistema. Os modelos estáticos consideram apenas os elementos
indispensáveis para a realização das operações lingüísticas, desprezando o que pode ser
visto como inessencial de um ponto de vista sistêmico. Mas esse inessencial, esse “supér-
fluo” reflete um resíduo estrutural do sistema. Então o que era desprezível passa a ser o
foco de interesse de uma nova teoria da linguagem.
O fato é que esses modelos estáticos analisam os objetos como algo já organizado e,
conseqüentemente, ocultam uma propriedade subjacente, mas essencial da linguagem, que
é seu dinamismo interno. Isso porque eliminam do campo de sua análise tudo que estaria na
esfera da inconstância, da oscilação e, portanto, da instabilidade. A linguagem é uma rela-
ção de equilíbrio precário que se deriva do jogo de forças estabilizadoras e desestabilizado-
ras, isto é, de elementos previstos e não previstos pelo sistema lingüístico. É de se conside-
rar que uma das fontes do dinamismo do sistema é a atração do extra-sistêmico para a órbi-
ta do sistema e a expulsão do sistêmico para o domínio do sistema (Fiorin - 2002: 18, 19).
Pela ruptura dos limites do Estruturalismo, pela ampliação da visão que se derramou
sobre os estudos da linguagem, as teorias do discurso muito contribuíram para a compreen-
são da instabilidade lingüística. A enunciação não se apropria da língua como se ela fosse
algo totalmente independente que pré-existe ao ato enunciativo. Antes da enunciação a lín-
gua é apenas uma possibilidade que se concretiza no ato anunciativo. A enunciação é uma
operação dialética, porque, ao trabalhar a língua, não só faz uso dela como também a cons-
titui, e o faz num jogo de estabilidade e instabilidade, no movimento mesmo da sua apro-
priação. Isso porque, através do discurso, algumas formas até então consideradas estáveis
se desestabilizam e mudam, pressionadas pelas condições discursivas, provocando o que se
pode chamar de efeitos de sentido.
271
Mas instabilidade não significa desorganização. As mudanças não ocorrem de forma
caótica; elas obedecem a um sistema operacional compreensível. Benveniste postula que a
enunciação é a instância do ego-hic-nunc (eu-aqui-agora). Ela é um mecanismo com que se
opera a transformação da língua em discurso, e essa transformação ocorre através de cate-
gorias que pertencem não à língua, mas à linguagem. O discurso, sendo da ordem do acon-
tecimento e da História, constitui o lugar privilegiado da instabilidade lingüística. Mas as
instabilidades são construtoras de sentido, e portanto não se realizam aleatoriamente; elas
são organizadas por um sistema que garante a existência e a eficiência desse sentido. Esse
sistema inclui as categorias de actorialidade, temporalidade e espacialidade, e suas razões
não estão na ordem sistêmica ou frasal, encontram-se na ordem do discurso e não do siste-
ma da língua; portanto tal sistema não está inscrito no aparelho formal da língua, mas no
aparelho formal da enunciação.
Como vimos, a enunciação pode ser tratada como sistema. Isso quer dizer que sob a
diversidade infinita que promove a instabilidade lingüística dos atos particulares de enunci-
ação, opera sempre o esquema geral, que permanece invariante. A enunciação é a instância
lingüística de mediação entre as estruturas narrativas e discursivas que, pressuposta no e-
nunciado, pode ser reconstituída a partir das marcas que deixa nele. Ela é a instância consti-
tutiva do enunciado, que deve ser entendido como o produto que dela resulta, independen-
temente de suas dimensões sintagmáticas. Considerando dessa forma enunciação e enunci-
ado, entende-se que a relação entre eles está marcada por certos elementos no fluxo frasal
do enunciado que remetem à instância da enunciação: pronomes pessoais, adjetivos e ad-
vérbios apreciativos, dêiticos espaciais e temporais que compõem o conjunto enunciativo.
Esse processo enunciativo colocado no interior do enunciado não constitui a enuncia-
ção propriamente dita. Esta só existe no texto-objeto como pressuposto logicamente conce-
bido pela existência do enunciado. Assim, têm-se dois conjuntos no texto-objeto: a enunci-
ação enunciada, que é o conjunto de marcas que remetem à instância da enunciação, e o
enunciado enunciado, que é a seqüência enunciada desprovida de marcas de enunciação.
Fiorin (2002: 38), distingue enunciação em sentido lato e em sentido estrito: são fatos e-
nunciativos em sentido lato “todos os traços lingüísticos da presença do locutor no seio de
seu enunciado”, recaindo na teoria da subjetividade na linguagem, de Benveniste; em senti-
272
do estrito, “os fatos enunciativos são as projeções da enunciação (pessoa, tempo e espaço)”,
que Benveniste chamou de “aparelho formal de enunciação”.
95
Segundo Benveniste, “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito,
uma vez que, na verdade, só a linguagem funda, na sua realidade, que é a do ser, o conceito
de ego”.
96
Assim, a subjetividade é a capacidade de o locutor projetar-se como sujeito do
seu enunciado. Diz o lingüista: “é ‘ego’ quem diz ‘ego’. Encontramos aqui o fundamento
da ‘subjetividade’, que se determina pelo estatuto da ‘pessoa’”. O eu só se constitui por
oposição ao tu, e eu e tu são papéis actanciais reversíveis no processo dialógico que os
constitui através da polaridade das pessoas.
E, ratificando, diz ainda o lingüista:
A linguagem só é possível porque cada locutor se coloca como sujeito, remetendo a
ele mesmo como eu em seu discurso. Por isso, eu propõe outra pessoa, aquela que, sen-
do embora exterior a “mim”, torna-se meu eco – ao qual digo tu e que me diz tu.
97
Percebe-se, então, que a categoria de pessoa é fundamental para a transformação da
linguagem em discurso. Assim, esse eu não é uma referência a um indivíduo e muito menos
a um conceito; ele se refere a algo de exclusividade lingüística, isto é, a um ato discursivo
individual em que se pronuncia eu para designar seu locutor. Confirma-se, assim, que o
fundamento da subjetividade está no exercício da língua. Afinal, seu único testemunho ob-
jetivo é o fato de eu enunciar-se e, assim, assumir-se como sujeito do seu próprio enuncia-
do, pois a enunciação é o lugar de instauração do sujeito.
O homem vive num espaço determinado e está obrigatoriamente inscrito no fluxo da
linha do tempo. Assim, toda noção de espaço e tempo na linguagem organiza-se em função
do sujeito, tomado como fonte de referência, o que significa dizer que espaço e tempo estão
na dependência do sujeito, ou seja, do eu que neles se enuncia – o aqui é o espaço do eu, e
o agora é o tempo da enunciação em que esse eu se projeta. A partir desses dois elementos,
sistematizam-se todas as relações espaciais e temporais.
95
A respeito da subjetividade na linguagem e aparelho formal de enunciação, ver BENVENISTE, Émile.
Problemas de Lingüística Geral. São Paulo, Pontes, 1995.
96
BENVENISTE, Émile. “Da subjetividade na linguagem”, in Problemas de Lingüística Geral. São Paulo,
Pontes, 1995. p. 284
97
BENVENISTE, Émile. Op. cit. p. 286
273
Como é a linguagem que funda o estatuto do sujeito, é de se compreender que ela o
faça através de marcas lingüísticas que estão inscritas no enunciado. Então essas marcas
lingüísticas – dêiticos pessoais, temporais e espaciais – são índices de garantia da existência
logicamante pressuposta da enunciação. São elas signos vazios, cuja referência só é preen-
chida na situação enunciativa e, embora pertençam à estrutura da linguagem, compõem o
que Benveniste denominou aparelho formal da enunciação. Esse “aparelho” contém, por-
tanto, os mecanismos lingüísticos de instauração de pessoas, tempo e espaço no enunciado
e de ancoragem do enunciado em uma situação de enunciação. Os mecanismos de projeção
da enunciação no enunciado são dois a debreagem e a embreagem.
98
Consideremos o primeiro mecanismo de projeção da enunciação no enunciado – a
debreagem. Entende-se por debreagem o mecanismo em que se projetam no enunciado as
pessoas eu/tu, o tempo agora e o espaço aqui da enunciação; e a pessoa ele, o espaço alhu-
res e o tempo então do enunciado. No primeiro caso, (projeção do eu-aqui-agora), ocorre
uma debreagem enunciativa; no segundo caso (projeção do ele-alhures-então), ocorre uma
debreagem enunciva.
99
Vejamos como se distinguem esses tipos de debreagem. A debreagem enunciativa é
aquela em que se instalam no enunciado as instâncias enunciativas – os actantes da enunci-
ação (eu/tu), os espaço da enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora). Ela está
intimamente relacionada com a enunciação, como no exemplo:
Hoje, eu vivo bem, aqui, nesta cidade.”
De acordo com as instâncias da enunciação, a debreagem enunciativa pode ser actan-
cial, espacial e temporal. A debreagem actancial enunciativa é aquela em que se instalam os
dois actantes da enunciação, eu e tu. A debreagem espacial enunciativa é aquela em que se
instala o espaço da enunciação aqui e ali. A debreagem temporal enunciativa é aquela em
que se instala o tempo da enunciação agora, do presente, em oposição a outros tempos.
98
Seguimos aqui as orientações de Geimas e Parret, por considerá-las mais adequadas aos nossos propósitos.
“Os termos advêm da tradução francesa do termo shifters, utilizado por Jakobson em seu artigo “Les em-
brayeurs, les catégories verbales et le verbe russe”. O lingüista russo mostrava nesse artigo que a significa-
ção geral de um embreante não pode ser definido fora da referência à mensagem. Greimas criou os verbos e
os substantivos de ação e deu a eles um sentido particular.” (FIORIN, José Luiz. 2002 nota 14, p. 57).
99
Ver FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2005, p. 58.
274
Na debreagem actancial enunciativa, deve-se levar em conta que o eu só se constitui
por oposição ao tu, e vice-versa, visto que eu e tu são papéis reversíveis no processo dialó-
gico que os constitui. Assim, a presença de um garante a existência do outro, e vice versa,
no enunciado. É sintomático este exemplo de Vinícius de Moraes:
“Sem você, meu amor eu não sou ninguém.”,
em que o eu só se constitui diante do tu (você).
Na debreagem espacial enunciativa é preciso considerar que todo o espaço ordenado
em função do aqui é um espaço enunciativo. Assim, o que se contrapõe ao aqui é enun-
ciativo, como neste exemplo do Gonçalves Dias:
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como .
Na debreagem temporal enunciativa, são enunciativos os tempos que se ordenam em
relação ao agora, ou seja, que têm como referência o tempo presente do enunciador. Aqui,
considera-se o momento da enunciação como um tempo zero e aplica-se a ele a categoria
topológica concomitância/não-concomitância, isto é, de anterioridade e posterioridade to-
mando como referência o tempo da enunciação, como neste fragmento de Manuel Bandei-
ra, em que o passado se constitui no confronto com o tempo da enunciação, o presente:
Quero quero
A solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível...
E ainda esse poema de Mário Quintana, no qual o futuro tem como referência o tem-
po da enunciação, o tempo zero:
275
Poeminho do contra
Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
A debreagem enunciva é aquela em que se instalam no enunciado as instâncias enun-
civas – os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (alhures) e o tempo do enun-
ciado (então). Como se vê, ela está intimamente relacionada com o enunciado, tal como no
exemplo:
Naquela época, ele vivia bem, , naquela cidade.”
Enunciação é o ato de enunciar; então, o processo enunciativo existente no interior do
enunciado não é a enunciação propriamente dita. A enunciação tem sua evidência, como já
dissemos, no pressuposição lógica do enunciado. Isso significa que todo enunciado provém
de uma enunciação, e que não há enunciação que não produza enunciado. Então enunciado
e enunciação existem numa dialética cujos elementos são indissociáveis. Mesmo quando as
marcas da enunciação não estão explícitas no enunciado, a enunciação existe, pois nenhuma
frase pode projetar-se espontaneamente. Se pensamos dialeticamente, a ausência das mar-
cas da enunciação é evidenciada por outras marcas que não a caracterizam. A partir daí,
podemos pensar em dois tipos de conjuntos enunciativos no texto-objeto: a enunciação
enunciada e o enunciado enunciado.
A enunciação enunciada é a seqüência lingüística que contém o conjunto de marcas
identificáveis no texto, que remetem às instâncias de enunciação – a actancial (eu), a espa-
cial (aqui) e a temporal (agora). O enunciado enunciado é a seqüência lingüística despro-
vida das marcas de enunciação
100
. Aquela está relacionada com a debreagem enunciativa,
assim como este está relacionado com a debreagem enunciva. A enunciação enunciada e o
enunciado enunciado criam no processo discursivo certos efeitos de sentido. Mas esses e-
feitos de sentido são distintos: o de subjetividade e o de objetividade, respectivamente. A
enunciação enunciada produz efeitos de sentido de subjetividade em conseqüência do olhar
100
Ver FIORIN, José Luiz, 2002, p. 36, e GREIMAS, A. J. & COURTÈS, J. Sémiotique Dictionnaire Rai-
sonné de La Théorie du Langage. Paris: Hachette, 1979, p. 48.
276
apreciativo viabilizado pelas instâncias enunciativas (eu-aqui-agora), que aproximam o
enunciador dos objetos-de-discurso. O enunciado enunciado produz efeitos de sentido de
objetividade em conseqüência do distanciamento garantido pela ausência das marcas da
enunciação, sugerindo que o enunciador mantém um caráter imparcial diante do fato apre-
sentado, como ocorre naturalmente no discurso científico.
Um outro aspecto que é preciso considerar no estudo da enunciação é o fenômeno da
debreagem interna. Trata-se de que um actante do enunciado ou da enunciação anterior-
mente debreado se transforme em uma instância enunciativa. Ao se tornar uma instância
enunciativa, este actante opera uma segunda debreagem, ou seja uma debreagem de segun-
do grau, que tanto pode ser enunciativa quanto enunciva. Cria-se, a partir daí, uma cadeia
de enunciação estabelecida por uma relação de subordinação, e a debreagem pode ser de
terceiro grau, se o sujeito debreado em segundo grau fizer outra debreagem. Teoricamente
esse processo seria infinito, mas é quase impossível, seja por razões práticas seja pela limi-
tação da memória, que ele ultrapasse o nível da debreagem do terceiro grau.
Normalmente a debreagem interna ocorre no texto literário e se realiza por meio da
instalação do discurso direto, no qual o eu que fala no discurso citado é dominado por um
eu narrador, que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo enunciado. A debreagem
interna, sendo uma enunciação reportada, corresponde no interior do discurso a um simu-
lacro da relação de comunicação entre o enunciador e o enunciatário, e aqui é preciso que
se levem em consideração todas as implicações envolvidas no processo de sua realização.
Na enunciação enunciada o enunciador impõe ao enunciatário um ponto de vista sobre os
acontecimentos narrados. Na enunciação reportada esse processo cria diferentes efeitos de
sentido, tal como realidade, objetividade ou subjetividade, como veremos adiante, ao fa-
larmos dos efeitos de sentido das heterogeneidades enunciativas.
Agora passemos à análise do segundo mecanismo de projeção da enunciação no e-
nunciado – a embreagem. Chama-se embreagem a neutralização das oposições de pessoa,
de tempo ou de espaço no processo da discursivização. Como se vê, nesse mecanismo de
enunciação no enunciado ocorrem variações do ponto de referência, ou seja, a anulação da
oposição pelas categorias dêiticas ou pela denegação da instância do enunciado. Como a
embreagem também se relaciona com as três categorias da enunciação (eu-aqui-agora)
temos, tal como na debreagem, embreagem actancial, embreagem espacial e embreagem
temporal.
277
A embreagem actancial diz respeito à anulação das categorias de pessoa da enuncia-
ção e do enunciado. Imaginemos um professor, em sua sala de aula, dizendo a seus alunos:
O professor não está na sala para influenciar, mas para orientar seus alunos.”, em que se
anula a oposição entre a terceira e primeira/segunda pessoa. Nesse caso ele (o professor)
significa eu, e eles (os alunos) significa vocês – “Eu não estou aqui para influenciar, mas
para orientar vocês”. A embreagem espacial anula as categorias espaciais da enunciação
enunciada e do enunciado enunciado. Tomemos o exemplo de um chefe de família dirigin-
do-se aos familiares, dentro da sua própria casa: “Na casa em que moro não existem pre-
conceitos.” Anulando a oposição entre o espaço do enunciado e o espaço da enunciação, o
(“a casa em que moro”) é, na verdade o aqui – “Aqui não existem preconceitos”. A em-
breagem temporal se relaciona com a neutralização nas categoria do tempo da enunciação e
do enunciado. Vejamos o exemplo de um noivo se referindo ao próprio dia em que está se
casando: “O dia 10 de outubro de 2006 ficará gravado na minha memória.”, em que se
anula a oposição entre o tempo do enunciado e o tempo da enunciação: o então (“o dia 10
de outubro de 2006”) na realidade é o hoje Hoje ficará gravado na minha memória”.
Na embreagem, manifesta-se um efeito de identificação entre sujeito, espaço e tempo
do enunciado e sujeito, espaço e tempo da enunciação. Segundo Greimas e Courtès, a em-
breagem apresenta-se ao mesmo tempo como um desejo de alcançar a instância da enuncia-
ção – referência ao sujeito – e o mundo que cerca o homem enquanto referente – referência
ao objeto. Mas essas duas “referências”, com as quais se procura sair do universo fechado
da linguagem, prendê-la a uma exterioridade outra, ao fim das contas produz apenas ilu-
sões: a ilusão referencial e a ilusão enunciativa.
101
Distinguem-se ainda a embreagem homocategórica e a embreagem heterocategórica.
Aquela afeta a mesma categoria, a de pessoa, a de espaço e a de tempo, como nos exemplos
até aqui utilizados. Esta afeta categorias distintas, como no exemplo – “Eu sou a pátria e o
futuro da felicidade.”, em que se confundem as noções de pessoa, espaço e tempo: A pre-
sença do eu exigiria predicativos cuja grade sêmica se referisse a pessoa; entretanto as no-
ções de lugar e tempo atribuídos ao eu anulam as oposições das categorias enunciativas.
Assim, pessoa e lugar se confundem, tempo e espaço se misturam, pessoa e tempo se mol-
dam, aproximando-se da enálage, numa percepção quase sinestésica da realidade.
101
Ver PINHEIRO DA SILVA, Gustavo Adolfo, in Pragmática – As representações do eu e seus efeitos de
sentido. Rio de Janeiro: Enelivros, 2005, p. 73-75. Ver também FIORIN, José Luiz, 2002, p. 50.
278
2. — A ESTILÍSTICA DA ENUNCIAÇÃO
A Estilística da Enunciação, como já dissemos, se preocupa com as marcas que a e-
nunciação deixa no enunciado. Através delas, captamos aspectos e efeitos de sentido que
não podem ser observados somente na estrutura formal do enunciado. Com freqüência, o
sentido de uma expressão só é totalmente compreendido quando atentamos para a atividade
da enunciação ou quando ativamos na nossa memória discursiva certos conhecimentos do
mundo ou ainda quando nos reportamos ao universo do discurso no qual o texto está inseri-
do. Mas em se tratando de texto poético, como é o caso deste estudo, a situação exige mais
cautela, em conseqüência da sua natureza peculiar.
Já se disse que a razão de ser de um texto poético concentra-se no seu próprio univer-
so, visto que uma obra poética é sempre algo vertido sobre si mesmo. Isto porque a função
poética da linguagem, base constitutiva da linguagem da poesia, constitui a meta da mensa-
gem enquanto tal. Nela, a linguagem não é utilizada como suporte de um discurso, mas
como constituinte da mensagem, vista como objeto de apreciação estética. Mas dizer que o
texto poético é um objeto de concepção autotélica não significa dizer que ele não tenha
qualquer encrave na realidade. Este é um fato que não se pode perder de vista, porque o
conhecimento da realidade pode contribuir para a totalidade da emanação poética do texto.
Assim, seguindo as orientações de Delas & Filliolet
102
, propomos estabelecer a situação da
mensagem poética considerando as relações entre texto poético e universo discursivo como
condicionamentos determinados pelo princípio da totalidade poética.
Falar de discurso poético pressupõe que o poético provém da análise do discurso. E
aqui se coloca uma questão: ou o discurso é definido como a sucessão das frases e se con-
funde com o objeto da lingüística, ou o discurso é um conjunto de saberes partilhados,
construídos, conscientemente ou não, pelos indivíduos de uma comunidade cultural, sabe-
res que são ativados pela memória discursiva dos interlocutantes no processo da interação
comunicativa. Assim, ficamos na interseção de duas esferas discursivas que interagem dia-
leticamente. Pela natureza do texto poético, não é difícil aceitar que as duas concepções de
discurso se fundem, num jogo de confluência, constituindo um objeto em que forma e con-
teúdo se tornam indissociáveis. Por esse prisma, o texto poético deve ser definido como
102
DELAS, Daniel & FILLIOLET, Jaques. Lingüística e Poética. São Paulo: Cultrix, 1975.
279
uma totalização em funcionamento, pois nele se pronunciam aspectos lingüísticos e extra-
lingüísticos que, em conjunto, constituem um todo de significação poética.
Mas o texto poético é peculiar, e, por isso mesmo, na sua confrontação é preciso re-
conhecer algumas particularidades. O estudo da enunciação pode perfeitamente revelar-se
essencial para a compreensão da relação entre a instauração da mensagem e o mundo de
que se fala, mas é inessencial para a tomada de consciência do funcionamento poético da
linguagem. Assim, o lugar que lhe reservamos aqui é aquele equivalente ao conferido à
totalização do funcionamento poético de um texto.
Para a Estilística da Enunciação, o essencial é a atualização da estrutura poética, e os
procedimentos lingüísticos que interessam são os que remetem para a situação de discurso,
mas apenas na medida em que contribuem para equilibrar o todo na configuração poética
do texto. Essa atualização se processa em dois níveis: transforma a língua em discurso poé-
tico e coloca o texto num lugar de referência no interdiscurso do universo dos textos poéti-
cos, estabelecendo sua legitimação numa rede ampla de relações intertextuais.
Tratamos o poema como um todo, como um universo autotélico, provido de instân-
cias enunciativas construídas para compor o próprio universo poemático. Sua relação com o
mundo tem como fonte enunciativa um sujeito poético ou um narrador que são frutos da
construção poética. Essa instância enunciativa é uma fonte de informação controlada pelo
poeta, que é o responsável pela criação estética do texto. Isso nos conduz à noção de que a
relação da poesia com o mundo se faz por um movimento centrípeto de significância. A
ideologia vem de fora e se instala no texto por processos de referenciação e recategorização
que a transformam em objeto-de-discurso; ela é colhida e introduzida no texto como um
elemento que se cristaliza com dupla função – a estética e a referencial – numa interdepen-
dência tão absoluta quanto indissociável. Isso porque a especificidade da função poética da
linguagem possui um valor tão essencial que nenhuma ideologia poderia desfazer, e a ideo-
logia está sempre presente, porque a “poesia pura” não existe, a não ser como uma utopia
necessária ao vislumbre dos valores estéticos.
Embora o texto poético seja vertido sobre si mesmo, ele não é algo que possa existir
no isolamento de sua essência. Ele é um produto cultural cujo estatuto só é legitimado na
comunidade cultural pela sua rede de relações com outros textos poéticos. Assim como um
quadro artístico, ele é um objeto instalado entre dois vazios, ocupando o espaço de sua ma-
nifestação, e deve ser encarado como um objeto visível, apreensível em sua totalidade. O
280
poema é um objeto semiótico que deve ser apreciado a um só tempo em sua materialidade e
em sua significância. Por causa disso a incidência de certos recursos lingüísticos ligados a
fatos que transcendem a realidade textual permite uma compreensão mais vasta da lingua-
gem. Mas o fato de conferir a certos constituintes lingüísticos um papel relevante de signi-
ficância não altera sua função na estrutura do texto. Assim, a mensagem poética deve ser
analisada sob dois pontos: a) relação entre texto poético e universo discursivo; b) condicio-
namentos determinados pelo princípio de adequação da parte ao todo, como elemento de
contribuição para a condição de literariedade.
O texto poético é uma totalização em funcionamento, e essa totalização pressupõe o
código de linguagem e o nível do discurso. Assim, a língua não é utilizada apenas como
suporte do discurso, mas como constituinte dele e como constituinte de sua poeticidade.
Compreende-se, então, que, no texto poético, uma unidade lingüística deve ser justificada
pela sua função discursiva e pela sua função textual, pois o sentido discursivo se faz poético
quando é materializado em uma forma que se reconhece como poética.
Os elementos dêiticos, que num texto não-poético não passam de uma ponte para a
exterioridade da língua, no texto poético tornam-se também essenciais para a constituição
do estatuto da poesia. E é assim, porque as estruturas de superfície, lugar de manifestação
poética, constituem o ponto de partida necessário; então a escolha das formas que integram
tais estruturas se dá por conta de seu reconhecimento e de sua identificação como fonte de
manifestação estética. Assim, conservando-se o poético no seio da lingüística e mantendo-
se a análise poética a partir da estrutura de superfície, permite-se que o texto contenha sua
própria finalidade e demonstre a pertinência dos seus elementos para a construção dos efei-
tos de sentido que discursivamente se manifestam.
A Poesia é um mundo construído com palavras, e a linguagem faz o mundo poético
pela sua performatividade. Em poesia, dizer é fazer, e esse fazer, ainda que traga para o
texto as idéias circulantes no mundo dos homens, confere a ele uma autonomia estrutural
definida apela peculiaridade da linguagem. A Poesia não é poesia porque tem no seu interi-
or as referências à realidade; mas a poesia, como vimos, não pode existir sem ela, como a
música existe. Sendo a poesia um elemento estruturalmente projetado como objeto de apre-
ciação estética, nela a noção de gratuidade não tem razão de ser, e seu lugar é conseqüen-
temente negado. Então, negada a noção de gratuidade, temos que considerar essas referên-
cias não como simples alicerce sobre o qual a poesia se constrói, mas como uma sombra do
281
real que esteticamente se projeta no universo poético para esteticamente garantir a existên-
cia da poesia. Sob esse prisma, a realidade não aparece como tal no mundo poético; ela
transparece como um componente discursivamente construído por um processo enunciativo
cuja finalidade é orientada por um ato ilocutório de criação estética.
Isso conduz uma análise que recai sobre dois aspectos para nós fundamentais. Sabe-se
que o texto poético deve ser tomado como uma unidade auto-suficiente. Então não se pode
tratar o texto poético negligenciando o que está presente sobre a página, na superfície do
texto. Todo estudo de funcionamento poético perfaz a totalidade do seu percurso para além
da lingüística da língua que lhe serve de suporte, mas passa obrigatoriamente por ela. Dizer
que um texto poético é fechado, limitado por um espaço e tempo que lhe são próprios e
que, portanto, não tem referente, não implica que ele seja divorciado da realidade exterior,
pois é no confronto com ela que ele produz os seus efeitos de sentido. Afinal, como afirma
Merleau-Ponty
103
, a linguagem poética é depósito e sedimentação dos atos de fala, nos
quais o sentido que se quer construir não encontra apenas o meio de se traduzir para o exte-
rior, mas também adquire existência por si mesmo, e é verdadeiramente criado como senti-
do, sentido este, acrescentamos, que brota de um vetor textualmente estabelecido.
Esse sentido não pode ser aleatório; ele é orientado por certas forças que emanam de
uma estrutura palpável. Admitir a frouxidão de sentido de um texto, e em particular do tex-
to poético, sob o pretexto de que ele produz uma infinidade de sentidos, não só nega a pos-
sibilidade de um sentido seguro como também a possibilidade de organização de sentido a
partir do próprio texto. A partir da linguagem o homem se projeta no mundo e com o mun-
do, e deixa transparecer sua visão da realidade. Isso que dizer que o ato de expressão per-
tence ao mesmo tempo a duas esferas que já foram abordadas pela visão estruturalista de
Saussure – o mundo lingüístico e os outros mundos – o significante e a significação. É nes-
se jogo entre a linguagem e a realidade que enxergamos a construção do sentido poético de
um texto, assim sintetizado:
Texto
linguagem realidade
(
constru
ç
ão de sentido
)
103
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Rio: Freitas Bastos, 1971.
282
Se a Estilística do Enunciado se reduz às operações lingüísticas que ocorrem na su-
perfície do texto, a Estilística da Enunciação abrange os dois níveis da linguagem – o nível
da organização da frase e o nível de significação que repousa no conteúdo. Estamos, pois,
na esfera de classificação do enunciado sob dois aspectos: o enunciado-tipo e o enunciado-
ocorrência. Consideramos o enunciado-tipo aquele que se define como unidade de comuni-
cação elementar, uma seqüência verbal investida de sentido e sintaticamente completa, ou
seja, uma frase ou uma sucessão de frases emitidas entre dois brancos semânticos, duas
pausas de comunicação. Tomamos como enunciado-ocorrência a realização de uma frase
ou de uma sucessão de frases atrelado a um determinado contexto em uma determinada
situação. Assim, olhar um texto sob a perspectiva de sua estruturação “em língua” permite
tomá-lo como um enunciado-tipo; olhar um texto sob a perspectiva de sua estruturação lin-
güística cujo sentido dependa da situação histórico-cultural ou de suas condições de produ-
ção permite considerá-lo na esfera do discurso e tomá-lo como um enunciado-ocorrência.
Na verdade, todo enunciado-ocorrência pressupõe um enunciado tipo, pois qualquer
forma de expressão passa por uma estruturação “em língua”, ou seja, é organizado a partir
das potencialidades estruturais de um sistema de linguagem. Isso nos leva a pensar a estilís-
tica da enunciação de forma mais criteriosa. Na estilística do enunciado, os efeitos estilísti-
cos são visíveis a partir do modo como se estrutura a frase em sua camada significante, isto
é, a partir do que se materializou na forma do enunciado tipo. Na estilística da enunciação,
hão de se considerar dois aspectos: as marcas formais do enunciado tipo e o sentido extraí-
do da sua relação com o mundo, que faz dele um enunciado-ocorrência. Afinal, não se pode
falar de Estilística, mormente no texto poético, sem que se fale em estilo de linguagem, o
que nos faz retornar aos postulados de Merleau-Ponty, que citamos acima.
Um discurso não é poético porque nos seduz, mas principalmente porque, além disso,
nos faz ver as operações da sedução e do inconsciente. Em linguagem poética, os signos
habituais da língua, em lugar de serem apreendidos como praticamente utilizáveis, revelam-
se coordenados por novas relações que o fazem recuperar sua autonomia. Lembrando Ro-
land Barthes, o prazer do jogo subverte o jogo do prazer, em que o jogo do prazer está rela-
cionado ao texto de prazer, assim como o prazer do jogo está relacionado com o texto de
fruição. Diante do texto poético erige-se, então, um sujeito que desfruta ao mesmo tempo e
contraditoriamente o hedonismo profundo de toda cultura – o prazer – e a consistência ino-
vadora de uma expressão lingüística através da qual esse prazer se manifesta – a fruição.
283
3. — POÉTICA E REALIDADE DISCURSIVA
No jogo das funções da linguagem, é basicamente impossível a exclusividade de uma
função em um texto. O que se tem é uma relação de predominância e secundaridade. Mas
ser secundário não significa ser dispensável. Sabe-se que o texto poético é o lugar de pre-
dominância da função poética da linguagem, que confere ao texto a literariedade que o par-
ticulariza; mas sabe-se, também, que nenhum texto existe sem apresentar um grau mínimo
de informatividade, o que torna obrigatória a presença da função referencial da linguagem.
Como um texto não se faz poético pelo que informa, já que um texto não-poético também
pode informar, aceitamos que a informatividade não é responsável pela poeticidade de um
texto, mas entendemos que ela existe como parte integrante da sua conjuntura poética e que
a operação de confluência que envolve forma e substância é algo inerente ao universo da
poesia. Assim, a totalização em funcionamento do texto poético sustenta-se na forma da
substância, o que implica, de alguma maneira, que um conteúdo se faz poesia quando é
revelado em uma forma poética.
O texto poético constitui um gênero textual peculiar, tanto pela sua forma quanto pela
sua linguagem. A meta principal de um texto poético é a construção estética, provocada
pela expressão artística da linguagem. Então temos que admitir que o texto poético torna-
se produto de uma linguagem específica, impregnada de “desvios” que se notabilizam pela
criatividade do dizer. Essa tal criatividade comumente se encontra na estruturação da lín-
gua, mas freqüentemente se configura no âmbito de uma semântica discursiva, na qual se
ressaltam certos aspectos ligados à figurativização que a Estilística da Enunciação procura
investigar. Essa investigação, embora parta do enunciado, com freqüência obriga o leitor a
procurar o sentido da mensagem na realidade extralingüística, remetendo-o a um universo
cultural que se armazena na sua memória discursiva como conhecimento de mundo. Essa
operação põe em funcionamento a competência interdiscursiva, que, entre outras coisas, diz
respeito aos conhecimentos culturais e ideológicos, o que põe em evidência o Princípio de
Cooperação de Grice, no processo da decodificação textual. Aqui, leva-se em consideração
o desvendamento dos frames, as implicaturas, as polissemias, as ambigüidades, os parale-
lismos semânticos e tudo mais que constitui as bases da construção do sentido textual.
***
284
3.1. – A ambigüidade
A linguagem não existe por si mesma; ela tem sempre uma função social e é um ele-
mento essencial na comunicação humana. Apropriar-se da linguagem é construir sentidos,
sentidos esses que emanam de um determinado contexto da realidade sociocultural. A ati-
vidade linguageira é sempre um jogo e requer a participação das instâncias enunciativas de
emissão e recepção. Esse jogo obedece a determinadas regras, estabelecidas pela natureza
de cada tipo de gênero discursivo, que fornece pistas ao leitor, orientando-o para a adequa-
da atribuição do sentido textual. As dessemelhanças entre os gêneros discursivos exigem do
leitor certas competências textuais, e o gênero poético tem certas especificidades com as
quais o leitor é obrigado a conviver, se quiser penetrar na sutileza das suas mensagens. Afi-
nal, não se lê um poema como se lê um bilhete, um manual de instrução ou um texto de lei,
e a mensagem poética não é uma mensagem que deve ser encarada com o pragmatismo da
mensagem de outros textos. O que é defeito em um texto referencial pode ser uma qualida-
de no texto poético. Isso nos conduz a certas considerações sem as quais se torna imprati-
cável a interação entre o autor e o leitor do texto literário.
Um fator relevante da caracterização da linguagem literária é o que remete para as
peculiares propriedades semânticas dos seus discursos. Não estamos nos referindo aqui aos
termos amplos em que a obra literária pode ser interpretada, como signo ideológico ou re-
presentação de uma cosmovisão. Referimo-nos à pontualizada questão da ambigüidade.
Sendo o discurso literário um discurso de natureza verbal, ele está exposto, como
qualquer outro discurso verbal, às afetações do fenômeno da polissemia na sua relação com
o universo real. Efetivamente, quando empregamos a linguagem corrente em diversas acep-
ções no processo comunicativo, somos obrigados a recorrer a contextos específicos para a
apreensão do sentido literal de um vocábulo ou de uma frase. Isso significa que o texto poé-
tico, pela especificidade do código de linguagem que caracteriza o seu gênero, exige do
leitor um esforço concentrado para a captação do sentido poético que emana do encrave que
tal texto tem com a realidade discursiva.
A ambigüidade na linguagem poética tem de ser vista de uma forma especial. Não
tendo o texto poético de se submeter a uma preocupação imediatamente utilitária, a ambi-
güidade gerada no seu interior pela polissemia constitui um fator de enriquecimento semân-
tico e de caracterização cultural que se legitima no discurso literário. O que se quer dizer é
285
que a ambigüidade poética, ao contrário da ambigüidade do texto não-poético, não se con-
forma como um elemento perturbador do processo comunicativo. Em vez disso, ela consti-
tui um desafio à capacidade do leitor para a apreensão da multiplicidade de sentidos e dos
surpreendentes efeitos que ela pode engendrar no discurso literário. Por isso mesmo, o dis-
curso literário se conforma com uma linguagem plural, o que faz dele uma obra aberta.
Não é por outra razão que Umberto Eco descreve a ambigüidade como um “artifício muito
importante, porque funciona como vestíbulo da experiência estética”. E diz mais:
Quando, em vez de produzir pura desordem, a ambigüidade desperta a atenção do
destinatário e o põe em situação de ‘orgasmo interpretativo’, o destinatário é estimula-
do a interrogar a flexibilidade e a potencialidade do texto que interpreta, tal como a do
código a que se refere.
104
Segundo Carlos Reis (2001: 330), a ambigüidade foi consagrada a partir da obra fun-
dadora de William Empson, Seven Types of Ambiguity (1930). Partindo de uma acepção
extensiva do termo, Empson toma por base o princípio geral de que a ambigüidade é um
fenômeno próprio de toda linguagem verbal. Procurando descrever circunstancialmente as
várias formas de ambigüidade, o lingüista declara: “Deste modo, um vocábulo pode ter
vários sentidos distintos; vários sentidos relacionados entre si; vários sentidos que depen-
dem uns dos outros para completar os seus sentidos; ou vários sentidos que se agregam de
modo que o vocábulo signifique uma relação ou um processo”. Desde então, a ambigüidade
assume uma dimensão estética própria em contextos literários, onde ela pode ser tomada
como elemento de criação de múltiplos sentidos, pela plurissignificação que ela engendra e
que deve permanecer como artifício consciente na constituição poética do texto.
No discurso literário, a ambigüidade não constitui um acontecimento aleatório; ela
deve ser analisada como propriedade relevante, com a condição de que sua utilização favo-
reça uma configuração semanticamente plural, que, como tal, precisa ser preservada na
internalidade da coerência do texto literário. Por essa razão, a ambigüidade não é algo que
tenha um valor em si, como um simples arabesco adornamental. Nenhum escritor conscien-
te da sua arte busca a ambigüidade na sua inocuidade, por isso mesmo ela deve emergir dos
requisitos peculiares de uma situação que a justifique no movimento da obra.
104
ECO, Umberto. Tattato di semiotica genenerale. Milano: Bompiani, 1978. Apud, REIS, Carlos, Op. cit.
286
Analisemos este poema de Adélia Prado:
Explicação da poesia sem ninguém pedir
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
Mas atravessa a noite, a madrugada, o dia
Atravessou minha vida,
Virou só sentimento
No poema acima, as palavras extrapolam seu sentido comum e chegam a surpreender
pelos efeitos que traduzem em conseqüência do contexto em que são empregadas. O texto
valoriza sobremaneira a plurissignificação de certas palavras, com as quais constrói senti-
dos inesperados, por conta da oscilação entre a denotação e a conotação que as envolve. É
de se notar que a noção polissêmica das expressões poéticas emerge do jogo da figuração e
da literalidade, que se opera em um contexto estilístico que é fonte de emanação da contras-
tividade evidenciadora dos pólos semânticos de que elas são portadoras.
A expressão “trem-de-ferro”, assume configurações semânticas ambíguas. Em princí-
pio, empregada em sentido comum, ele é “uma coisa mecânica”; depois, pelo ambiente
semântico em que ela se inscreve por elipse, apresenta uma significação inusitada e, por
isso mesmo, surpreendente. As formas verbais “atravessa” e “atravessou” têm como agente
condutor do seu processo o “trem-de-ferro”, mas aqui, desvinculadas da sua acepção pri-
meira (= transpor), diante da qual se constitui conotativamente, elas assumem uma referên-
cia nova (= acompanhar), introduzindo um deslizamento semântico pela relação incompa-
tível com seus complementos – “a noite”, “a madrugada”, “o dia”, a “vida”. A partir daí,
ocorre um processo de recategorização em que “o trem-de-ferro”, “uma coisa mecânica”,
transforma-se em algo volátil, de natureza existencial, e vira só – “sentimento”.
Além disso, os tempos verbais distintos no texto apresentam experiências distinta-
mente vivenciadas. O presente do indicativo – “atravessa” –, como tempo do mundo co-
mentado, é, no texto, uma referência a fatos que não estão pontualmente situados na linha
do tempo e funciona como uma constatação cuja subjetividade é limitada pelo modo gené-
rico como o fato é enunciado. Embora seja o tempo da enunciação – o agora –, ele nos re-
vela no poema um fato da existência humana, que, embora seja captado pela sensibilidade
do sujeito poético, pertence a qualquer um. O pretérito perfeito – “atravessou” –, como
287
tempo do mundo narrado, representa uma experiência vivenciada pelo sujeito poético, revi-
vida na recordação (ação de retornar ao coração), que permite que o sujeito poético se afas-
te do aqui-agora e busque nas revivescências do seu passado ( “Atravessou minha vida”) as
marcas de sua própria existência, pois, afinal, o mundo narrado no texto é o mundo existen-
cial do sujeito poético. Some-se a isso a categoria dos aspectos verbais variados: o presente
do indicativo – “atravessa” – traduz uma ocorrência de aspecto não-concluído e não-
progressivo, por isso vemos o fato como uma constatação que configura o fluxo da existên-
cia humana. O pretérito perfeito – “atravessou” –, por sua vez, revela a ocorrência de um
fato concluído e não-progressivo, o que expressa uma situação definitivamente irrevogável
na intimidade do universo absconso do sujeito poético. O que se tem, ao final das contas, é
um mesmo verbo empregado com sentidos distintos, e com efeitos variáveis, que promo-
vem recategorizações semânticas do conteúdo poético e desafiam a sensibilidade do leitor
para a compreensão do valor poético do texto.
Não negamos ao texto a existência de outras possibilidades de análise, pois, se assim
o fizéssemos, estaríamos negando o estatuto de obra aberta que o texto poético conquistou,
como já o dissemos. Mas é preciso deixar claro que tais análises têm de ser coerentes com
o movimento semântico do texto. O que queremos dizer é que no processo interpretativo
das ambigüidades existem interpretações possíveis, que são limitadas pela coerência textual
e pela memória semântica das palavras, que têm “mil faces secretas” ocultas “sob a face
neutra”. Não é, com certeza, por outra razão, que Drummond revela magistralmente, entre
a consciência de suas diretrizes poéticas e certa dose de ironia, que a ambigüidade é um
recurso que deve ser empregado com a consciência artística de quem a produz e deve ser
analisada com a acuidade de quem a interpreta:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres
Trouxeste a chave?
288
3.2. – Figuras de retórica
Sob certas circunstâncias, como bem afirma Nilce Sant’Anna Martins
105
, alguns me-
talogismos que a retórica clássica denominava figuras de pensamento só podem ser exami-
nadas à luz de referências reconhecíveis no universo discursivo ou na cena de enunciação.
Figuras como a antífrase, o paradoxo, o eufemismo, a hipérbole e a símile, por exemplo, só
encontram seu efeito de sentido se o leitor atentar para a conformação ou violação da rela-
ção de verdade entre o que o emissor diz literalmente e aquilo de que ele fala. Nesses casos,
o conhecimento do referente é indispensável para a compreensão do sentido que se deve dar
ao enunciado: na antífrase, o sentido oposto ao literal; no paradoxo, os aspectos contraditó-
rios associados à caracterização do referente; no eufemismo e na hipérbole, o sentido alte-
rado para atenuação ou o exagero; no símile, a conformação da realidade referida. O mes-
mo se pode dizer de algumas metáforas e metonímias cujos efeitos de sentido dependem do
seu encrave na realidade. É evidente que essas ocorrências estão na materialização do e-
nunciado, mas estão lá como pistas estéticas que nos remetem à instância da enunciação, o
que vem a confirmar o princípio de que uma estilística do enunciado não é capaz de dar
conta de todas as incidências que configuram a poeticidade de um texto. Vejamos:
Vozes dÁfrica
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, senhor Deus?
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia,
Infinito galé!...
Por abutre – me deste o sol ardente,
E a terra do Suez – foi a corrente
Que me ligaste ao pé... (Castro Alves)
105
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística. São Paulo: TAQ, 2000, p. 217.
289
Como se percebe, há no texto certas referências histórico-culturais que contribuem
para a totalidade da expressão poética. O verso “Há dois mil anos te mandei meu grito
induz o leitor ao reconhecimento de uma realidade histórica relativa. Se entendermos o ver-
so como uma referência ao processo de escravização da África negra que se deu no Brasil,
temos uma hipérbole; se o entendermos como uma referência ao processo de escravização
geral no qual a África está inserida, temos apenas uma alusão. De qualquer forma, o verso
traduz de forma dramática a situação de exploração do continente africano pelo flagelo da
escravidão. No poema, é ainda sintomático o símile que se processa nos versos:
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia,
Infinito galé!...”.
Aqui, exige-se do leitor um conhecimento enciclopédico específico. A referência a
Prometeu” remete o leitor a um episódio mitológico: a punição infligida ao deus que deu
ao homem o livre arbítrio. Por meio dessa referência, intensifica-se o sofrimento do povo
africano. A esses versos segue-se uma metáfora específica – “Por abutre – me deste o sol
ardente”. A associação metafórica do “abutre” ao “sol ardente só é compreendida quando
a relacionamos ao abutre que devorava o fígado de Prometeu, que se regenerava para ser
novamente devorado, numa seqüência infinita.
Assim, o poeta se apropria de um fato cultural com o qual aponta para o sofrimento
do povo africano como algo terrível, que se prolonga infinitamente, o que se confirma na
sugestão das reticências dos versos seguintes. Essas incidências poéticas se processam na
esfera de uma estilística que transcende os limites da frase, onde se situa o campo de atua-
ção da Estilística da Enunciação.
Por esse prisma, é indispensável, para a total compreensão do todo poético, que se
considere a relação da linguagem com o mundo. Bakhtin afirma que “a relação do artista
com a palavra enquanto palavra é um momento secundário, derivado, condicionado por sua
relação primária com o conteúdo, ou seja, com o dado imediato da vida e do mundo da vi-
da, da sua tensão étnico cognitiva.”
106
Isso significa que é impossível um poema constituí-
do apenas de “forma”, isto é, sem mensagem. Mas é por meio da palavra que o artista traba-
106
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 180.
290
lha o mundo, pois o todo numa obra poética é o todo verbalizado no essencial. Estamos
assim numa interseção dialética em que forma e conteúdo se unificam, pois, se o artista
trata primeiramente com o objeto enquanto momento de acontecimento do mundo, é na
palavra que ele busca o meio de expressão que confira artisticidade ao mundo textualmente
concebido.
Então, se a emoção do artista está em relação direta com o mundo, é pelo esteticismo
da linguagem que essa emoção se transforma em emoção estética. Assim, o poeta subordina
o mundo a seu desígnio artístico, criando uma tensão entre a linguagem e a realidade. Dessa
tensão é que se extrai o efeito poético do sentido. A forma não pode ser entendida indepen-
dentemente do conteúdo, pois, na poesia, a linguagem artisticamente trabalhada é a única
forma de dar à realidade uma dimensão estética, pela qual o mundo é sentido de forma es-
pecial. Essa realidade é esteticamente captada por um processo de imantação da linguagem,
que atrai para o universo literário o material externo necessário para a totalização estética
da obra. Isso significa que, na criação artístico-literária, o processo de referenciação é um
ato estético que ocorre para a auto-alimentação da poesia.
O artista da palavra não sente a língua como o lingüista, isto é, considerada em si
mesma, como um objeto puro de apreciação no qual seu esforço se concentra, muito menos
como um falante comum, para o qual ela é um mero instrumento de comunicação com o
mundo. Para o artista da palavra, a língua é muito mais que uma língua. Para ele, a língua é
um meio de expressão artística da realidade. Assim como para o escultor o mármore é uma
possibilidade artística de expressão plástica, para o poeta a língua é uma possibilidade artís-
tica de expressão oral. Assim, sua forma é condicionada, por um lado, a um dado conteúdo,
e, por outro, à peculiaridade do material e aos meios de expressão de sua elaboração.
O poeta não confronta a linguagem com a precisão investigativa do lingüista nem com
o pragmatismo de um usuário comum. Para ele a linguagem é uma matéria a ser manipula-
da para dar forma poética ao objeto de conhecimento, que sobre ele repousa e que pela
forma ela deixa transparecer. Se é verdade, como diz Wittgeinstein, que os limites do mun-
do real estão nos limites da linguagem, sendo poesia forma e não substância, os limites do
mundo poético estão nos limites da forma da linguagem. O mundo poético é um mundo
criado pela linguagem do artista, linguagem esta construída no percurso do processo cria-
dor. Portanto esta linguagem não está “pronta”, e não está porque não é pré-concebida, não
291
está nos moldes da usualidade. Estamos, pois, no campo da denotação e da conotação, con-
ceitos inerentes ao plano semântico da atividade da linguagem.
3.3. – Denotação e Conotação
Não tem sido muito fácil confrontar a oposição que se articula entre a denotação e a
conotação. Dizer que conotação e denotação são pólos de linguagem completamente distin-
tos pelo seu uso é ignorar os alicerces lingüísticos que gerem as duas formas de abordar a
realidade. Por outro lado, afirmar que a denotação é a linguagem em seu sentido básico e a
conotação é a linguagem em seu sentido figurado, embora tenha sua razão de ser, é uma
postura bastante redutora. No aprofundamento da linguagem, verificamos que uma não
existe sem a outra. Afinal, ambas se alimentam de um mesmo sistema – a língua.
Não existe uma língua de denotação e uma língua de conotação. Assumir que ambas
são coisas radicalmente distintas significa que a Estilística constitui uma nova língua. Os
lingüistas que recentemente se apegaram à definição do discurso poético em sua originali-
dade encontram apoio na teoria de Hjelmslev, segundo a qual “Uma linguagem de conota-
ção não é uma língua. Seu plano de expressão é constituído pelos planos do conteúdo e da
expressão de uma linguagem de denotação. É, pois, uma linguagem em que um dos planos,
o da expressão, é uma língua”
107
, teoria que podemos diagramar assim:
Linguagem da denotação
Plano da expressão + Plano do conteúdo = Plano da expressão
(língua que serve de meio)
\
Linguagem da conotação
Plano do conteúdo
Essa dupla articulação constitui um dos elementos fundamentais da natureza lingüísti-
ca da mensagem poética, visto que ela promove um deslizamento no processo de semioti-
107
HJELMSLEV, L. Prolégomène à une Théorie du Langage. Paris: Minuit, 1943. Apud DELAS, Daniel &
FILLIOLET, Jaques. Lingüística e Poética. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 69.
292
zação do mundo e implica, obrigatoriamente, as seguintes compreensões para os termos
denotação e conotação:
a) o texto submete-se à leis da língua natural;
b) constitui por si só uma nova linguagem, na medida em que cria objetos e estabelece
relações entre eles.
108
Entendemos a conotação como o conjunto de alterações ou ampliações que uma pala-
vra agrega ao seu sentido literal (denotativo), por associações lingüísticas de diversos tipos
(estilísticas, fonéticas, semânticas), ou por identificação com algum dos atributos de seres
da natureza ou do mundo social. Por estar atrelada à noção de sentido, defendemos que a
conotação constitui uma operação que se realiza na linguagem, estabelecendo uma relação
com a esfera do discurso, na abrangência de um conceito filosófico. Mas esse processo se
dá em níveis diversos, dos quais extraímos a extensão de um determinado sentido. No sími-
le “Helena é branca como a irmã.” há uma associação razoável e lógica e deve ser compre-
endida em sua literalidade; dizer “Helena é branca como a neve.”, embora seja uma associ-
ação razoável (compare comHelena é branca como o mar.”), conduz-nos a uma lógica
secundária situada em um nível facilmente depreensível. A isotopia da brancura produz um
sentido apoiado na noção de um frame que nos remete a implicaturas culturalmente conce-
bíveis – o exagero da palidez, a inocência, a imaculabilidade etc. – cuja interpretação de-
pende de um contexto.
Mas, como dissemos, a conotação pode ocorrer em níveis mais complexos e ser pro-
cessualmente conduzida por um impulso psicológico da manifestação de uma significação
latente. Em “Helena é branca como a paz.”, a isotopia deve ser investigada sob a ocultação
de uma lógica complexa, que se manifesta no lugar em que a metáfora deve atuar como
elemento redutor do desvio da lógica da linguagem. É exatamente aqui que se situa o apro-
fundamento estético da linguagem poética; é no mergulho da distorção realizado no nível
da denotação que percebemos o alcance da conotação. É, enfim, na dialética entre o dito e o
depreensível que se instaura a tensão poética do texto, manifestada por uma linguagem que
confronta o mundo pela distorção que faz dela o núcleo nevrálgico da poesia.
Mas o que se diz conotativamente pode ser dito denotativamente. A conotação, então,
é uma operação lingüística que se realiza na sobreposição de um sistema denotativo de lin-
108
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral. Campinas: Pontes, 1995.
293
guagem. Dizer conotativamente é provocar efeitos de sentido a partir da subversão de uma
lógica natural na superfície do texto, subversão esta que só pode ser percebida pela violação
da relação natural entre a linguagem e o mundo. Os referentes são transformados em obje-
tos-de-discurso, que, no texto literário, passam a objeto-poético a partir de uma recategori-
zação que se dá no momento mesmo do processo de referenciação
109
.
Apreciemos este soneto de Augusto dos Anjos, que perfaz a primeira parte de um
longo poema:
Os doentes
Como uma cascavel que se enroscava,
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!
Mordia-me a obsessão má de quanto havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfão que gemia!
Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckel compreenderam...
E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!
O poema de Augusto dos Anjos constitui, em toda sua essência, uma grande conota-
ção, que se percebe, de imediato, no deslizamento semântico da linguagem da denotação.
Vejamos:
Como uma cascavel que se enroscava,
109
Ver o capítulo sobre Referenciação e Discurso Poético deste trabalho.
294
A cidade dos lázaros dormia...
A incompatibilidade lógico-semântica que se opera no símile dos dois primeiros ver-
sos, por conta da ruptura do paralelismo semântico, nos mostra uma visão distorcida da
realidade. O conjunto de elementos que conduzem os processos verbais “enroscava” e
dormia” recai na formulação de uma conotação em que os objetos-de-discurso “cascavel
e “cidade dos lázaros” transformam-se em objetos-poéticos a partir do título “Os doentes”,
referente que funciona como fonte geradora da energia poética do texto. Essa conotação é
proporcionada pela recategorização, através da qual se re-inventa a realidade.
Dando continuidade a esse processo, todo o poema se revela como a criação de um
mundo que se configura estranho a uma avaliação ordinária. No universo poético construí-
do, a “metrópole vazia”, a “obsessão má”, o “fígado doente que sangrava”, a garganta do
órfão que gemia” são conotações de uma realidade existencial angustiante, captada pela
sensibilidade do olhar artístico, que se consolida na expressão de uma linguagem cujos va-
lores têm de ser reavaliados. Por esse viés, a realidade ganha uma dimensão que só pode ser
percebida por uma sensibilidade construída por uma nova lógica da linguagem. Aqui, ins-
taura-se um novo plano de cognição, onde linguagem e realidade se reencontram conjunta-
mente reconstruídas num processo de convergência e indissolubilidade.
As artes “abstratas”, como a música, as modalidades artísticas sem “objeto”, como
arabescos, ornamentos etc., são inicialmente sensações vagas ou caleidoscópicas. Mas, em
se tratando de arte poética, isso não é concebível, porque ela é especial e não se presta a
essas impressões, visto que sua matéria-prima – a palavra – é, por excelência, um elemento
que significa. Assim, a poesia pura é uma experiência insustentável, que não tem prosse-
guimento, por não se relacionar com o mundo real. Essa deontologia nos obriga a pensar o
texto poético como um monumento semântico, que, por isso mesmo, tem, obrigatoriamen-
te, uma relação com o mundo, um encrave na realidade. Mas essa relação é especial, por-
que, no processo de referenciação, a realidade torna-se realidade poética.
Embora o processo da produção literária se origine na luta artística primária, ou seja,
no confronto com o elemento étnico-cognitivo cru da vida, é a arquitetônica do mundo ar-
tístico – a ordem, a disposição, o acabamento e o encadeamento das formais verbais – que
determina a composição da obra de arte. Se o primeiro contato do artista é com a realidade,
295
diante da qual sua sensibilidade se manifesta, é na linguagem que percebemos sua realiza-
ção artística.
Assim, concluímos que a obra de arte dá forma artística à realidade através de um
processo esteticamente elaborado. Essa elaboração se faz a partir de uma linguagem de co-
notação, cujo plano de expressão encontra suas bases no somatório do plano da expressão e
do plano do conteúdo da linguagem de denotação. É nesse plano de expressão, novo, inven-
tado, desconcertante, que a realidade encontra sua forma artística, que se configura na ten-
são entre a rutilância e a opacidade – aquela, pela forma de expressão inovadora da lingua-
gem; esta, pela obstrução da relação direta entre a linguagem e o mundo. É por esta lente
artisticamente distorcida – a linguagem poética – que o artista concebe o revela o mundo,
cuja arquitetura é sentida de forma inusitada, surpreendente, inquietante. Na conformação
artística, a realidade comum passa a realidade-outra, e essa alteridade é produto de uma
linguagem que se conforma para construí-la, pois só através dela podemos sentir a confor-
mação poética do mundo. Ao final das contas, a linguagem é sempre o ponto de partida e o
ponto de chegada da conformação e recepção artística da obra poética.
3.4. – Os atos discursivos
Observamos que falar de realidade discursiva inclui as instâncias de emissão e recep-
ção do texto, pois a legitimação de um texto como unidade discursiva passa obrigatoria-
mente pelo reconhecimento da comunidade na qual ele circula. Assim, todo processo co-
municativo pressupõe um emissor e um receptor, seres de existência real, com identidade
social, intermediados por um ato discursivo (ou ato de fala, ou ato de linguagem), e a Lite-
ratura não está isenta disso. Pensando dessa maneira, a constituição da linguagem literária e
do discurso que a configura podem também ser compreendidos como resultado de um ato
discursivo, mas um ato discursivo próprio, que propõe a uma comunidade de leitores um
texto que tal comunidade reconhecerá como texto literário. Isso implica que o discurso lite-
rário como resultado de um ato discursivo capaz de suscitar determinados efeitos – desig-
nadamente o de produzir um texto estético-verbal – decorre diretamente da relevância que
se reconhece à instância receptiva, como instância decisiva no reconhecimento da literarie-
296
dade.
110
Essa postulação implica uma reavaliação do princípio de que a literariedade de-
pende exclusivamente de características intrínsecas reconhecidas no discurso literário.
Isso nos conduz ao acrescentamento de uma nova hipótese de postulação da literarie-
dade, que está relacionada com enquadramento receptivo do fenômeno literário em termos
socioculturais e em função de uma sua interpretação de caráter contratualista. Isso não sig-
nifica que os atributos formais do discurso literário sejam irrelevantes ou que estejamos
negando o postulado de que poesia é forma e não substância. Não cometemos aqui a levi-
andade de desqualificar e muito menos desprezar o resultado de um labor finalístico e in-
tencional que, a partir de certas propriedades estruturais, normalmente caracteriza o discur-
so poético. O que está em jogo, é fundamental que se note, não é a anulação da linguagem
literária como linguagem específica; trata-se, na verdade, de saber que fatores e circunstân-
cias determinam essa especificidade.
A evolução dos modernos estudos literários, nos quais situamos os significativos tra-
balhos de Bakhtin (Estética da Criação Verbal) e os mais recentes estudos de Maingueneau
(Pragmática para o Discurso Literário, O Contexto da Obra Literária e O Discurso Lite-
rário), favoreceu o acrescentamento do terreno da recepção na questão da literariedade,
acentuando a importância da contextualização pragmática na decorrência da comunicação
literária. Nesse sentido, um contributo decisivo – que em momento algum oblitera a dimen-
são discursiva da linguagem literária – provém da tentativa de considerar o fenômeno lite-
rário em função da teoria dos atos discursivos, que nos conduzem à pertinência de análises
lingüísticas relacionadas com o caráter ativo e interativo na apreensão da realidade poética
pelas vias do processo comunicativo.
Remotamente ligadas às teorias de Peirce e Morris – designadamente no que se refere
ao estabelecimento da tripla dimensão (sintática, semântica e pragmática) da semiose –
essas análises lingüísticas relacionam-se intimamente com as reflexões filosóficas e lingüís-
ticas de Wittgeinstein
111
, para quem a linguagem é sempre um “jogo” entre duas instâncias
que atuam no processo de semiotização do mundo, e aprofundam-se no seio do que se de-
nominou “filosofia da linguagem corrente”, particularmente com as obras de J. L. Austin e
John Searle. Para Austin, trata-se de demonstrar que os atos discursivos, ultrapassando sua
110
Ver REIS, Carlos. O Conhecimento da Literatura – Introdução aos Estudos Literários. Coimbra: Almedi-
na, 2001, p. 111.
111
WITTGEINSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. In: Os Pensadores,
2ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 12
297
imanência lógica ou lingüística, podem, por meio dos verbos performativos (prometer, or-
denar, afirmar etc.) realizar ações, com base nos aspectos performativos da linguagem.
112
Desenvolvendo uma Pragmática ilocucional, Austin traz à tona os estudos lingüísti-
cos baseados na Teoria dos Atos de Fala, posteriormente desenvolvida nos trabalhos de
John Searle. A partir da distinção entre atos constativos e atos performativos, distinção esta
que seria depois superada, Austin postula a existência de três tipos de atos discursivos: os
atos locutórios – que consistem na articulação de fonemas, palavras e frases, constituindo
um enunciado com sentido de referência; os atos ilocutórios – que enunciam frases e simul-
taneamente realizam uma ação através dessa enunciação (por exemplo, a ação de prometer,
jurar, ordenar, interrogar, assegurar), e os atos perlocutórios – que atingem fins extralin-
güísticos, agindo diretamente sobre o receptor e exercendo nele certos efeitos por meio do
enunciado. Searle assim se pronuncia sobre o alcance destes últimos:
Correlativamente à noção de atos ilocucionários está a noção das conseqüências
ou efeitos que tais atos têm sobre as ações, pensamentos ou crenças, etc., dos ouvintes.
Por exemplo, mediante uma argumentação eu posso persuadir ou convencer a alguém,
ao aconselhá-lo posso assustá-lo ou alarmá-lo, ao fazer um pedido posso lograr que
ele faça algo, ao informar-lhe posso convencê-lo (instruí-lo, elevá-lo espiritualmente –,
inspirá-lo, lograr que se dê conta). As expressões em grifo denotam atos perlocucioná-
rios.
113
Uma descrição do discurso literário baseado na teoria dos atos de fala enquadra a
literatura na ordem do discurso e conjuga esse princípio com a convencionalidade dos atos
ilocutórios. Mas a Literatura é uma simulação e como tal deve ser analisada. Assim, o dis-
curso literário deve entendido como um quase-ato discursivo
114
, já que apenas simula uma
força ilocutória que é, a rigor, apenas ilusória, porque o discurso literário não enuncia as-
serções reais. Numa obra poética, a voz do locutor – narrador ou sujeito poético – apenas
imita o ato de produzir essas asserções, e, por uma convenção genérica e contratual, o seu
enunciador solicita ao leitor a competência e a disponibilidade para obedecer a essa con-
venção, com a consciência de que se trata de um jogo discursivo. Aqui o leitor se coloca
112
AUSTIN, J. L. How to do Things with Words. New York: Oxford University Press.
113
SEARLE, J. Actos de Habla. Ensayo de filosofia del lenguage. Madrid: Cátedra, 1980, p. 34. Apud REIS,
Carlos, Op. cit. p. 116.
114
O termo quase-ato discursivo é empregado por Carlos Reis. Op. cit. p. 116
298
numa posição não-pragmática, pois uma obra literária constitui-se de um discurso cuja for-
ça ilocutória é apenas mimética, o que o particulariza frente aos outros discursos.
Imitando os atos discursivos, a obra literária exibe os quase-atos discursivos e dá des-
taque às frases que os realizam. Exibindo-os, chama atenção para eles, para a sua comple-
xidade de sentido e para a sua forma de expressão. Considerando que os quase-atos discur-
sivos, por serem uma simulação, não cuidam dos fatos e das coisas do mundo, o leitor deve
entendê-los de um modo não-pragmático, permitindo, desse modo, que eles concretizem
seu potencial estético-emocional. Isto porque a suspensão das forças ilocutórias normais
transforma os atos ilocutórios em tropos poéticos que orientam a atenção do leitor para os
efeitos de sentido que compõem a totalidade poética do texto.
Exemplifiquemos com este soneto de Mário Quintana:
Dorme, ruazinha... é tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranqüilos...
Dorme... não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas brilham como grilos...
O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...
Só os meus passos... mas tão leve são
Que até parecem pela madrugada,
Os da minha futura assombração...
O ato ilocutório atribui ao conjunto do enunciado, constituído pelo ato locutório, uma
determinada força: de pergunta, de asserção, de ordem, de promessa etc., que não se sub-
mete à avaliação de falso ou verdadeiro. Segundo os seus estudiosos, o ato ilocutório pode
ser realizado de forma explícita, isso é, através do uso do verbo performativo, ou de forma
299
implícita, sem o uso do performativo. No segundo caso, contudo, seria sempre possível
recuperar o verbo performativo obtido, tal como ocorre em:
1) O trem chegará às sete horas — Eu assevero que o trem chegará às sete horas.
2) Você vai viajar? — Eu pergunto se você vai viajar.
3) Saia daí! — Eu ordeno que você saia daí.
No poema de Quintana, os atos discursivos são na verdade quase-atos de fala, visto
que não passam de imitações proferidas por um sujeito poético que nada mais é do que um
ser constituído apenas de identidade discursiva, criado no universo poético do texto, o que
faz dele um ser sem identidade social. O ato locutório está na própria constituição do enun-
ciado. O ato ilocutório se manifesta, no imperativo – “Dorme” – de onde se extrai a noção
performativa do aconselhamento ([Eu te aconselho:]Dorme, ruazinha...”), na interroga-
ção ([Eu pergunto:] “quem é que pode ouvi-los?”), na asserção, em que a forma verbal per-
formativa (1ª pessoa do presente do indicativo) – “asseguro – está claramente explícita
(“não há ladrões, eu te asseguro...”), ou implícita (Eu afirmo que] “Não há nada...”).
No texto, o caráter imitativo dos atos discursivos introduz efeitos poéticos significati-
vos. A imitação se reforça na figura da prosopopéia, através da qual um ser inanimado é
poeticamente recategorizado e ganha dimensão humana. O ato ilocutório soa poeticamente
como um acalanto, e sobre ele repousa a tensão poética do texto. O tom melancólico traduz
a lamentação de um sentimento que corre como um remanso interior, prolongado pelo uso
das reticências ao longo do texto, que acentuam a sensação de abandono, solidão e autoco-
miseração do sujeito poético. Nesse quase-ato discursivo, o sujeito poético se legitima di-
ante do seu mundo e diante de si mesmo. E o faz pela revelação de uma autoconsciência
que o leva a buscar os efeitos da força perlocutória da linguagem, qual seja a de provocar
num ser poeticamente construído um sentimento de paz que deve mantê-lo longe (mas não
isento) de uma consciência demiúrgica que suporta dores e caminha para a fatalidade de
um destino inexorável.
Mas até aqui, falamos da voz do narrador e do sujeito poético. Sendo a Literatura uma
simulação, ela é por excelência uma manifestação polifônica do discurso, que se manifesta
em dois planos. Nela há uma voz que simula e outra que é simulada. A voz simulada é a do
sujeito poético, e essa voz que simula é a voz do autor, que produz o discurso literário, de
300
onde também emana um ato de fala ilocutório, já que, segundo Austin, “não se pode nunca
emitir um enunciado qualquer sem realizar um ato de fala dessa natureza”.
115
Esse ato de
fala revela a performatividade da linguagem poética, pois ele constitui um fazer, que é, no
final das contas, o próprio fazer poético. Consideramos, pois, que, por traz de cada texto
poético, lateja o aspecto performativo da linguagem, cuja força perlocutória reside na pro-
vocação da emoção estética do leitor, que é, no ajuste de contas, o propósito finalístico da
obra literária.
Nesse ato de fala do poeta é que devemos enxergar a manifestação estética da lingua-
gem, responsável pela arquitetura artística do texto. O poeta é um ser com identidade soci-
al, que produz um texto artístico com a consciência de quem está fazendo arte. Reconhecer
no poema os sentimentos do autor é um presente do leitor afinado com certas teorias socio-
lógicas ou psicológicas, presente que não lhe pode ser dado pelo lingüista, que confronta o
poema como objeto lingüístico através do qual a palavra se manifesta artisticamente. Se o
sujeito poético é um ser que se revela, o poeta é um ser que trabalha poeticamente para que
essa revelação seja artisticamente possível, de forma única e portanto intradutível. Seu ato
de fala, portanto, não é uma simulação, e ele deve saber disso, como nós sabemos. Ele não
simula um ato estético com a linguagem, ele faz esse ato estético, trabalhando artisticamen-
te a performatividade da linguagem. A simulação de que falamos não está na sua ação lin-
güística, ela é parte do conteúdo do seu ato, é uma criação do seu ato. Não queremos com
isso invalidar análises que se prestem a enxergar no poeta um portador de posições socio-
lógicas, das quais se aproxima Auerbach, ou uma fonte de manifestações psíquicas com as
quais se identifica Spitzer. Aceitamos que essas análises tenham sua validade. Só procura-
mos deixar claro que esta não é a nossa linha de trabalho, porque não pode ser a posição de
quem se propõe a estudar, sob uma ótica lingüística, a estrutura do discurso poético.
115
AUTIN, J. L. Performativo-Constativo. In OTTONI, Paulo, Visão Performativa da Linguagem. São Paulo:
Editora da Unicamp, 1998, p. 109-121.
301
4. — REFERENCIAÇÃO E DISCURSO POÉTICO
As análises a que procedemos aqui, têm, como proposta básica, abordar os aspectos
da referenciação sob uma ótica estilística. Para tanto, procuramos dividir este capítulo em
duas etapas, a partir das quais percebemos os efeitos que a força estilística é capaz de pro-
duzir: a primeira cuida dos conceitos que a atividade da referenciação exige; a segunda tem
como diretriz revelar como as operações estilísticas podem contribuir na esfera discursiva
para que o processo da referenciação seja efetuado.
Partindo do princípio de que os novos estudos lingüísticos trouxeram uma nova luz
para a compreensão textual, estabelecemos uma oposição entre os conceitos tradicionais de
referência e a atividade discursiva da referenciação, a partir de uma perspectiva sociocog-
nitiva e interacionista, no entendimento da relação entre a linguagem e o mundo. Seguindo
as orientações de alguns mestres, procuramos mostrar como os estudos modernos desviam
o eixo da Semântica de uma ótica que privilegiava a estrutura proposicional para uma abor-
dagem que privilegia a atividade interacional no ato do acontecimento do discurso, em bus-
ca da construção do sentido textual, sentido este que está sujeito a transformações constan-
tes, em conseqüência das categorizações e recategorizações.
Dessa maneira, abrimos espaço para a intersubjetividade, em cujo âmbito os objetos
do mundo se transformam em objetos-de-discurso, e o sentido do referente é discursiva-
mente construído. Entretanto, ainda que correndo os riscos a que todo trabalho intelectual
expõe, adotamos aqui uma atitude mediadora que não despreza certas concepções que con-
sideramos básicas como ponto de partida para certas compreensões, que, acreditamos, de-
pendem de noções elementares para as quais a modernidade vem fechando os olhos. Assim,
procuramos não ignorar o conceito de referência, como uma etapa primária que se cumpre
na atividade da cognição, da qual se passa à referenciação, considerada por nós uma se-
gunda etapa, que depende da atividade sociointeracionista da linguagem.
Sabemos que a Estilística é a forma específica de aplicação e estudo da linguagem em
função de sua afetividade, sua expressividade e sua criatividade. Mas durante muito tempo
os teóricos se preocuparam com uma Estilística do enunciado, que não ia além dos limites
frásticos, abordando suas particularidades fônicas, mórficas, semânticas e sintáticas. Com a
introdução da Teoria de Enunciação, tornou-se imperativo que a atividade estilística se
302
ampliasse para a esfera do discurso, constituindo o que Todorov denominou de Estilística
da enunciação, da qual procuramos lançar mão em obediência ao propósito deste trabalho.
Procurando ainda adequar a atividade estilística à linha da nossa abordagem, tomamos
como ponto de referência as noções de função estilística e contexto estilístico desenvolvi-
das por Michael Riffaterre. Estas noções, que são para nós fundamentais, jogam sobre a
atividade lingüística uma luz que, pelo menos em parte, se distancia dos conceitos básicos
das Funções da Linguagem e da Estilística, normalmente tomada como desvio da norma do
sistema lingüístico.
Além disso, como um recurso de abordagem que este trabalho exige, adotamos a teo-
ria do ponto de vista, com a qual procuramos mostrar as modalizações várias no processo
de referenciação, a partir dos diferentes olhares que se lançam sobre os referentes, o que
nos conduz às noções de heterogeneidade discursiva, que serão futuramente por nós abor-
dadas em níveis suficientes para a compreensão do que pretendemos expor.
Como a nossa intenção é verificar a referenciação pelas operações estilísticas, traba-
lhamos, como corpus, textos poéticos de autores diversos, por considerarmos que eles são
os mais propícios às manifestações estilísticas em seu mais alto grau de criatividade nas
formas da linguagem. Assim, procuramos adotar uma linha que esperamos ser coerente
com o fio das nossas intervenções.
4.1. – Referenciação e sentido
Um dos problemas mais instigantes na comunicação lingüística é a relação da lingua-
gem com o mundo. Não há dúvida de que essa relação sempre exerceu um certo fascínio
sobre os estudiosos da linguagem, seja pelas particularidades que a envolvem, seja pela
curiosidade que ainda hoje ela desperta nas investigações lingüísticas. Talvez ainda não se
tenha chegado ao seu absoluto desvendamento, mas, com os novos estudos lingüísticos que
levam em consideração os aspectos interacionistas, a partir da Teoria da Intersubjetividade,
levada a termo por Émile Benveniste a partir de 1966
116
, novos horizontes se abriram em
direção ao aprimoramento das idéias que se debruçam sobre ela.
116
BENVENISTE, Émile. Problemas de Lingüística Geral, vol I. São Paulo: Pontes, 1995, 4ª edição.
303
Em meio ao emaranhado de concepções sobre a relação entre a linguagem e o mundo,
torna-se difícil para nós escolhermos uma em particular. De qualquer forma, tentaremos dar
aqui algumas noções a respeito desse assunto. Avisamos, de antemão, que não temos aqui a
pretensão de criar uma nova concepção sobre tão controversa matéria. Até porque seria por
demais ousado objetivar a tanto, já que alguns grandes mestres já o fizeram, à luz de hoje
sem grande sucesso, e outros, com algumas restrições, a despeito de sua inquestionável
competência. O que pretendemos, na verdade, é revelar o que colhemos das teorias várias
que chegaram até nós e, a partir daí, expormos nossa visão, com algumas intervenções da-
quilo que consideramos viável, dentro do que pretendemos desenvolver neste trabalho.
Não há dúvida de que os estudos modernos da Lingüística conduziram a linguagem
para uma análise de novos caminhos e de novos horizontes. E isso se aplica ao estudo da
relação língua-mundo. Mas é preciso cautela para não se cometerem as injustiças que a
modernidade proporciona. Há noções de modernidade que só são verdadeiramente viáveis
quando se apóiam nos alicerces de certas tradições. Ao afirmar isso não significa que recu-
samos a riquíssima contribuição da lingüística moderna. O que queremos é um ajuste de
contas que ponha cada coisa em seu lugar, com o valor devido que cada uma deve ter.
Concordamos que a noção de referência, como um problema de representação do
mundo em termos vericondicionais, ou seja, de correspondência com o “mundo real”, não
seja suficiente para dar conta do entendimento da relação entre linguagem e realidade mun-
dana, já que isso seria regredir para uma concepção adâmica da linguagem. Por isso abri-
mos nossa visão para a perspectiva sociognitiva, interacionista, introduzida no entendimen-
to dessa relação. Mas o fazemos cautelosamente, buscando uma alternativa mediadora que
trabalhe com uma hipótese dialética. A partir daí, acreditamos que essa relação se realize
em duas etapas, etapas essas que muitas vezes a obviedade nos dificulta enxergar.
Para que o homem se comunique com o mundo, ele necessita de um instrumento de
suporte – a língua – que o leve a compartilhar, no seu uso, suas idéias e percepções. Não há
comunicação lingüística sem o domínio de uma língua. E aí entra o conjunto do seu léxico
e com ele a noção da referência. Nós só podemos falar das coisas quando as nomeamos,
quando as transformamos de realidades em referentes. Um objeto não nomeado é apenas
um objeto que não entrou no domínio cultural de uma comunidade, um ser que ainda não
foi percebido, algo ao qual ainda não temos acesso, já que a realidade em si mesma é ina-
304
cessível, e a acessibilidade do mundo é ditada simbolicamente pela ação da linguagem no
processo de plasmação do mundo.
Talvez seja por isso que a Análise Semiolingüística do Discurso, de Patrick Charau-
deau
117
, fale em um duplo processo de semiotização do mundo – o processo de transfor-
mação e o processo de transação. O primeiro parte de um “mundo a significar” e o trans-
forma em “mundo significado” sob a ação de um sujeito falante; o segundo faz deste
“mundo significado” um objeto de troca com um outro sujeito que desempenha o papel de
destinatário deste objeto.
No processo de transformação há quatro operações: a identificação, a qualificação, a
ação e a causação, dos quais selecionamos os dois primeiros em razão dos nossos propósi-
tos. Segundo Charaudeau, a identificação revela a necessidade de “apreender no mundo
fenomênico os seres materiais ou ideais, reais ou imaginário, conceituá-los e nomeá-los
para que se possa falar deles. Os seres do mundo são transformados em ‘identidades no-
minais’” (grifo nosso), e a qualificação postula que “estes seres têm propriedades, caracte-
rísticas que, a um só tempo, os discriminam, os especificam e motivam sua maneira de ser.
Os seres do mundo são transformados em ‘identidades descritivas’”(grifo nosso).
Salvo engano, interpretamos esse processo de transformação como uma operação de
referência, através do qual o mundo é identificado pela língua. Sabemos que é pelo domínio
da linguagem que compreendemos o mundo, mas esse domínio da linguagem está atrelado
ao conjunto de signos de um sistema lingüístico. Um falante de vocabulário limitado certa-
mente tem, por princípio, sua percepção de mundo limitada.
Reconhecemos, porém, que essa visão correspondentista da linguagem não é capaz de
dar conta dos meandros da comunicação. Esse quadro, que perdurou por longo curso e
ainda tem seus defensores, vem sendo mais recentemente posto em dúvida pelos adeptos de
uma perspectiva sociocognitiva, interacionista. Aqui, acreditamos, entramos em uma se-
gunda etapa circunscrita na relação da linguagem com o mundo e no seu processo de semi-
otização, que Charaudeau classifica como processo de transação. Este se realiza dentro de
quatro princípios: os princípios de alteridade, pertinência, influência e regulação, que, co-
mo já se disse, faz do “mundo significado” um objeto de troca que se configura na ativida-
de sociolinguageira.
118
117
CHARAUDEAU, Patrick. Uma análise semiolingüística do texto e do discurso. In PAULIUKONIS, Maria
Aparecida & GAVAZZI (orgs.), Da Língua ao Discurso. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005.
118
CHARAUDEAU, Patrick. Op. cit.
305
A nosso ver, estamos numa encruzilhada em que se configuram dois processos – o
processo de transformação e o processo de transação – que se realizam segundo procedi-
mentos diferentes, mas solidários um do outro, mormente através do princípio de pertinên-
cia, sobre o qual repousa um saber comum, construído precisamente ao término do proces-
so de transformação. Mas essa solidariedade obedece a um princípio de hierarquização,
pois as operações do processo de transformação não se fazem eleatoriamente. Elas se efe-
tuam sob liberdade vigiada, submetidas ao processo de transação, dentro das diretivas des-
te, diretivas tais que ao mesmo tempo ordena e orienta as operações comunicativas na cons-
trução de sentido do texto.
Estabelecendo a dependência do processo de transformação ao processo de transa-
ção, postula-se uma mudança de orientação nos estudos lingüísticos e busca-se reconhecer
o valor semântico-discursivo dos fatos da linguagem, ou seja, o sentido comunicativo extra-
ído da atividade linguageira. Reconhecemos que não é satisfatório contentar-se apenas com
as operação correspondentistas e internalistas da linguagem, tomadas isoladamente. Tor-
nou-se hoje necessário considerá-las em um quadro situacional determinado pelo processo
de transação, em um quadro que serve de alicerce para a construção de um contrato de co-
municação. Mas não se contentar não significa ignorar. Então, a hierarquização desses dois
processos nos conduz às seguintes correlações, assim configuradas:
Processo de transformação Å -------------Æ Processo de transação
Mundo a significar Å -------------Æ Mundo significado
Mundo significado Å -------------Æ Objeto de troca
Sujeito falante Å -------------Æ Sujeito destinatário
Segundo L. Mondada e D. Dubois
119
, no entendimento da relação entre linguagem e
mundo, “ao invés de se privilegiar a relação entre as palavras e as coisas, desvia-se o foco
para a relação intersubjetiva e social no seio da qual as versões do mundo são publica-
mente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações
em curso dos enunciadores.’”
119
Apud KOCH-, Ingedore Villaça et alli (Orgs.). Referenciação e Discurso, Introdução. São Paulo: Contexto,
2005, p. 7
306
Como se vê, ocorre uma mudança de atitude. Em vez de uma filosofia representacio-
nista, em que se estabelece uma correspondência direta entre o pensamento e o mundo, ope-
ra-se com uma filosofia analítica, que toma o discurso como uma atividade em cujo proces-
so se constroem os sentidos da linguagem. Esses sentidos são intimamente relacionados
com as negociações interacionistas, alicerçadas no valor social dos signos determinado pelo
mercado linguageiro. Dessa forma o sentido proposicional se subordina ao sentido intera-
cional.
Apoiamo-nos no princípio filosófico de que “a racionalidade é o modo como traça-
mos a relação entre nossa inteligência e o mundo”, mas entendemos também que “Falar é
um modo de relacionar-se com o mundo”.
120
Berthrand Russel já afirmava que a verdadeira
genialidade consiste em transitar das imagens às palavras e vice-versa. Isso nos leva a uma
relação dialética entre o texto e seu contexto, na qual deparamos com o mundo criado pelas
palavras – o texto – e o mundo representado pelas palavras – o contexto. Dessa forma, op-
tamos por uma abordagem que leva em consideração o interacionismo na atividade socio-
linguageira, na qual a língua é, ao mesmo tempo, determinada e determinante, estruturada e
estruturante, organizada e organizadora.
Isso implica a introdução de elementos que a tradição estruturalista considera heteró-
clitos na análise da linguagem – interatividade, intersubjetividade, reflexibilidade, discursi-
vidade, argumentatividade, contextualidade etc., em que as posições internalistas cedem
espaço às posições externalistas. Assim, a relação constitutiva entre a linguagem e a reali-
dade obedece a uma visão textual-discursiva, interativa e sociocognitiva no que diz respeito
ao fenômeno da referenciação. Isso se faz de modo que o referente, tratado na esfera do
discurso, não preexista ordinariamente à atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falan-
tes; ele é concebido fundamentalmente como um produto cultural de tal atividade
121
, nego-
ciado pelo seu valor de troca na esfera social, livre, portanto, de uma concepção unilateral e
solipsista da linguagem.
Por esse prisma, o referente textual não é mais considerado algo cristalizado pela lín-
gua como mero objeto do mundo; ele passa a ser visto como objeto-de-discurso e, como tal,
120
ANDRADE, Abrahão Costa. Para que Serve a Filosofia. In Discutindo a Filosofia, revista nº 1, ano 1. Ed.
Escala, 2006.
121
Ver APOTHELÓZ, D. & REICHLER-BÉGUELIN, M. – J. Contruction de la référence et stratégies de
désignation. In KOCK, Ingedore Villaça et alli (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto,
2005.
307
não remete a uma verbalização de um objeto autônomo, tomado como um bem não-
negociável e isento das práticas linguageiras. Transpondo os limites da codificação lingüís-
tica, ultrapassando o imediatismo da relação entre o pensamento e o mundo, o referente é
constituído através de um processamento estratégico, mediado pela atividade interacionista
da linguagem.
Nessa atividade interativa, a língua se transforma em discurso, e essa transformação
traz no seu bojo um conjunto de implicações assinaladas pela passagem da referência à
referenciação. Nessa trajetória, resgata-se a historicidade do sujeito como um ser social que
constrói mundos textuais. No interior desse processo, o cognitivismo dá lugar ao sociocog-
nitivismo, desencadeando um efeito cascata: do significante vai-se à significação, do enun-
ciado passa-se à enunciação, e o referente se transforma em objeto-de-discurso. Assim, a
cognição é concebida como uma construção social intersubjetiva e historicamente situada,
através de uma operação lingüística de atualização, que faz um vocábulo passar da língua
ao discurso, correspondendo à referenciação, ao inseri-lo numa situação lingüística na qual
ele está associado a um referente.
4.2. – Estratégias de processamento textual
O processo de semiotização do mundo, que se realiza através da discursivização ou
textualização do mundo por meio da linguagem, vai além de um mero processo de elabora-
ção de proposições. Ele se configura por meio de um processo de re-construção da própria
realidade, no qual a discursivização ou textualização do mundo são fundamentais. Os obje-
tos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística; na verdade eles a re-
constroem no fio do processo de interação. A construção, a manutenção e a alteração da
realidade não se dá apenas pela forma como nomeamos o mundo, ela ocorre em uma pers-
pectiva de cognição social interacionalmente situada, que nos leva a interpretar e construir
nossos mundos.
Assim, os objetos-de-discurso são entidades que não se concebem referencialmente
numa relação especular com os objetos do mundo. Eles são produzidos interativa e discur-
sivamente pelos interactantes do processo comunicativo, de acordo com a intenção do su-
jeito falante, no direcionamento da construção do sentido que emerge do universo textual.
308
Então a referenciação constitui uma atividade discursiva na qual o sujeito, no ato da
interação verbal, opera sobre o material lingüístico disponível, realizando escolhas signifi-
cativas que representem estados de coisas, tendo como objetivo a concretização de sua pro-
posta de sentido.
Tudo isso está intimamente relacionado com as estratégias de processamento textual,
que implicam a mobilização dos diversos sistemas de conhecimento, que Koch
122
divide
em três: estratégias cognitivas, estratégias interacionais e estratégias textuais, às quais, re-
sumidamente, passamos a nos referir.
As estratégias cognitivas consistem em estratégias de uso do conhecimento. Elas
dependem dos objetivos do usuário e da gama de conhecimentos dos interactantes, incluin-
do suas crenças, opiniões e atitudes, o que permite, no momento da compreensão, que se
reconstrua não só o sentido circunscrito na intenção do autor do texto como também outros
sentidos que escapam ao seu propósito, mas que são percebidos pelo co-enunciador. Essa
complexidade nos permite associar as estratégias cognitivas à noção de inferência, que via-
biliza a geração de informações semânticas novas a partir das informações já processadas
em determinado contexto.
As estratégias interacionais são socioculturalmente determinadas e objetivam esta-
belecer a interação verbal. Tais estratégias estão intimamente relacionadas com os atos de
fala, com a criação de um ethos e com as estratégias de preservação da face, que envolvem
o emprego de formas de atenuação e estratégias de polidez.
123
As estratégias interacionais
envolvem a negociação, que se define na própria situação comunicativa, o que torna possí-
vel o ajustamento de distorções e dificuldades, a partir de um contrato de comunicação
previamente estabelecido pela categoria do gênero textual. Assim, as estratégias interacio-
nais têm por princípio levar a termos aceitáveis o “jogo de linguagem” no processo da inte-
ração verbal.
As estratégias textuais, que, em sentido lato, monitoram os dois tipos de estratégias
anteriormente citadas, dizem respeito às escolhas textuais que os interactantes realizam nas
suas diferentes funções, na busca da construção dos sentidos a serem alcançados. Segundo
Koch (2003), tais estratégias envolvem a organização da informação – que leva em conta
122
KOCH, Ingedore Villaça. O Texto e a Construção dos Sentidos. São Paulo: Contexto, 2003.
123
Ver PINHEIRO da SILVA, Gustavo Adolfo. Pragmática – As Representações do EU e seus Efeitos de
Sentido. A Ordem Dêitica do Discurso. Rio de Janeiro: Enelivros, 2005.
309
as articulações dicotômicas dado/novo e tema/rema –; a formulação – que tem função de
natureza cognitivo-interacional e inclui os vários tipos de inserção e reformulação –; a re-
ferenciação – que se presta a (re)ativação de referentes textuais através dos diversos pro-
cessos anafóricos, que envolvem expressões pronominais, nominais, frames, scripts, cená-
rios etc. –, e o “balanceamento” entre o explícito e o implícito – que regula as informações
textualmente processadas e conhecimentos prévios, pressupostamente partilhados.
Nas estratégias de referenciação, devemos levar em consideração que certas introdu-
ções de referentes são de alguma forma ancoradas no universo co-textual, fato que lhes
confere um caráter anafórico. Essas ocorrências têm sido designadas como anáforas por-
que, ainda que não retomem diretamente o mesmo objeto-de-discurso e introduzam uma
nova entidade no universo textual, trazem uma ou outra marca co-textual que são, de certa
maneira relacionáveis no discurso. A esse tipo de anáfora, dá-se o nome de anáfora indire-
ta, que geralmente se constrói através de expressões nominais, definidas ou indefinidas, e
pronomes, cuja interpretação não corresponde a um antecedente explícito no texto. Segun-
do Marcuschi, “Trata-se de uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não
de uma reativação de referentes já conhecidos, o que constitui um processo de referencia-
ção implícita.”
124
Tomemos esses versos de Mário Quintana:
Olha! Eu folheio o nosso Livro Santo...
Lembras-te? O “SÓ”! Que vida, aquela vida...
Vivíamos os dois na Torre do Anto...
Torre tão alta... em pleno azul erguida!...
O resto, que importava?... E no entanto
Tu deixaste a leitura interrompida...
E em vão, nos versos que tu lias tanto,
Inda procuro a tua voz perdida...
E continuo a ler, nessa ilusão
De que talvez me estejas escutando...
Tu porém dormes... Que dormir profundo!
124
MARCUSCHI, Luís Antônio. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. In KOCK, Ingedore Villa-
ça et alli (Orgs.). Referenciação e Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
310
E os pobres versos do Anto lá se vão...
Um por um... como folhas ... despencando...
Sobre as águas tristonhas do Outro Mundo...
Percebe-se que “a leitura”, e a primeira incidência de “versos” são expressões refe-
renciais novas no texto, mas funcionam como se fossem informações já processadas e co-
nhecidas. Elas, na verdade, encontram cognitivamente sua ancoragem na expressão nomi-
nal antecedente “o nosso Livro Santo”, o que as torna um caso típico de anáfora indireta.
As anáforas indiretas se distinguem das anáforas diretas pelo fato de estas retoma-
rem referentes previamente introduzidos, estabelecendo uma relação de co-referência com
o elemento anaforizante e o elemento anaforizado, e aquelas não estabelecerem entre am-
bos uma relação de co-referência. Dessa forma, a anáfora indireta põe em jogo a noção
clássica de coerência estabelecida pelo processo de coesão na estrutura superficial do texto.
Por conta disso, alguns autores tomam a noção de coerência não como uma propriedade
que emana do texto, mas como uma operação cognitiva que se realiza no processamento
textual, como um princípio de interpretação que depende da competência textual do falante
e não como um fator de encadeamento enunciativo ou de boa formação textual.
Nas anáforas indiretas, não ocorre, a rigor, uma retomada de referentes. Na verdade,
ocorre uma ativação de novos referentes; mas essa ativação se processa movida por uma
motivação ou ancoragem no universo textual. Dividindo as anáforas em co-referenciais e
não-co-referenciais, Koch
125
incluiu entre estas as anáforas indiretas, termo genérico que
abrange as anáforas encapsuladoras, as anáforas associativas e as anáforas inferenciais.
As anáforas encapsuladoras têm necessariamente um caráter resumitivo, pois sinteti-
zam conteúdos expressos no co-texto, através de um processo de reativação da memória do
interlocutor. Tomemos esses versos de Gonçalves Dias:
Tantos encantos me tinham,
Tanta ilusão me afagava
De noite, quando acordava,
De dia em sonhos talvez!
125
Ver CAVALCANTE, M.M. Expressões referenciais: uma proposta classificatória. In Cadernos de Estu-
dos Lingüísticos. Campinas: IEL/Unicamp, n. 44, jan/jun. 2003, pp. 295-235.
311
Tudo isso agora onde pára?
Onde a ilusão dos meus sonhos?
Tantos projetos risonhos,
Tudo esse engano desfez!
Esse tipo de anáfora em que figura o dêitico textual “tudo isso”, designado por Caval-
cante
126
como dêitico discursivo, não reativa um referente focalizado, pois não existe uma
âncora em particular que seja co-referenciada por ele. O que ocorre é um encapsulamento
das proposições reveladas no texto, tomadas contextualmente como falácias do amor.
Quanto às anáforas associativas e inferenciais, a distinção é sutil e reside nos seguin-
tes aspectos: a anáfora associativa provém da seleção conveniente de termos pertencentes a
um mesmo campo lexical, viabilizando, por uma relação meronímica, a construção dos
referentes; as anáforas inferenciais, por seu turno, não se configuram por aspectos lexicais
estereotipados, mas por uma relação indireta que se constrói inferencialmente, a partir do
co-texto, alicerçada no conhecimento do mundo, o que envolve noções de frames, scripts,
esquemas e cenários etc. Citemos como exemplo estes versos de Drummond:
Infância
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robson Crusoé,
cumprida história que não acaba mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que apreendeu
a amar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
126
CAVALCANTE, M.M. Expressões indiciais em contextos de uso: por uma caracterização dos dêiticos
discursivos. Recife: 2000, Tese, Doutorado em Lingüística, UFPE.
312
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robson Crusoé.
Observa-se que a introdução do referente “campo” credencia um encadeamento de
anáforas associativas – “mangueiras”, “mato”, “fazenda” – que têm nele seu ponto de an-
coragem. O mesmo se pode dizer sobre os referentes “senzala” e “irmão pequeno”, que
ancoram, respectivamente, as anáforas “preta velha”, e “berço”. Nota-se que as anáforas
apontadas não reativam propriamente os referentes aos quais remetem; na verdade, em vez
de um processo de co-referenciação, os signos que as representam sofrem um processo de
ativação, com uma motivação promovida pelos elementos co-textuais, cuja relação se esta-
belece por critérios semântico-lexicais.
Mas nem sempre as anáforas não-co-referenciais se processam com base na semânti-
ca do campo lexical. Enquadram-se aí as anáfora inferenciais, em que muita vez as rela-
ções se constroem pelo contexto interno ao universo textual, ou seja, pelo modelo do mun-
do textual precedente – como, por exemplo, na expressão “minha história”, no texto de
Drummond, que remete aos fatos da infância do eu-lírico – ou por modelos mentais mini-
mamante organizados nos conhecimentos partilhados por uma comunidade cultural.
Para a caracterização e reconhecimento das anáforas inferenciais, tomemos este
fragmento do mesmo poeta:
Visão 1944
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.
313
Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incompreensivas, feias e vorazes.
Meus olhos são pequenos para ver
a fila dos judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro – e o muro é branco.
Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.
(...)
Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
que não pôde esperar a voz dos sinos.
Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.
A Visão 1944” de que fala o texto (4) é um referente que remete à 2ª Guerra Mundi-
al, o qual, por um processo de motivação, desencadeia a ativação de um conjunto de refe-
rentes a ele relacionados. Mas, para sua interpretação, precisamos de algo além do conhe-
cimento lingüístico, pois essa relação não se orienta por critério de base semântico-lexical;
só é percebida em conseqüência do nosso conhecimento de mundo circunstanciado, arma-
zenado e ativado na nossa memória discursiva. Para tais referentes, estabelecemos as se-
guintes re-categorizações, a partir da sua relação com o referente que lhes serve de âncora:
314
a) o deslizar do peixe sob as minas — a ameaça silenciosa.
b) corpos repartidos — a carnificina.
c) coqueiros rasgados e tombados — a destruição.
d) latas, na areia — a desolação.
e) formigas incompreensivas, feias e vorazes — a corrosão.
f) fila dos judeus de roupa negra, de barba negra — o holocausto.
g) para perto do muro – e o muro é branco — o fuzilamento e a ironia amarga.
h) essa fila de carne, de querosene, sal ou de esperança — a carência física e existencial.
i) todos os mortos, todos os feridos — a chacina.
j) este sinal no queixo de uma velha que não pôde esperar a voz dos sinos — o desespero.
l) países mutilados como troncos — a barbárie.
m) a vida lateja subterrânea e vingadora — a esperança.
Segundo Marcuschi
127
, de maneira geral, as anáforas indiretas, evidenciam três aspec-
tos essenciais: a) não se vinculam à co-referencialidade; b) não se relacionam com a noção
de retomada; c) promovem a introdução de um novo referente. Assim, na sua concepção, “a
anáfora indireta é uma estratégia endofórica de ativação de referentes novos e não de uma
reativação de referentes já conhecidos, o que constitui um processo de referenciação implí-
cita”. Por ser motivada por um elemento co-textual que lhe serve de âncora e por ativar
referentes ainda não processados no texto, a anáfora indireta fica a meio caminho da endo-
foricidade e da exoforicidade. Situando-se entre a concepção anafórica e a concepção dêiti-
ca, a anáfora indireta não seria o caso típico de uma anáfora em sentido estrito nem um caso
de dêixis. A dêixis serve para o deslocamento do foco de atenção do endereçado de um
objeto de discurso existente para outro novo. A anáfora, por outro lado, é um sinal de con-
tinuidade de um foco de atenção já existente pré-estabelecido no texto.
Um dos fatores mais importantes nas estratégias de processamento textual é o binô-
mio categorização/recategorização, que devem ser vistas como atividades inerentes à refe-
renciação, na trajetória de construção do sentido textual. Dentro da concepção de texto que
procuramos adotar, encontra-se a noção básica de que o sentido não está cristalizado no
texto, mas se constrói no processo da estruturação textual.
127
MARCUSCHI, Luís Antônio. Op. cit.
315
A categorização constitui o enquadre de um determinado objeto do mundo, tornado
objeto-de-discurso dentro de uma visão cultural publicamente compartilhada pelas práticas
sociais, práticas essas que estabelecem um julgamento de valor, a partir dos conceitos que
delas emergem. Ao ativar um determinado referente, podemos vê-lo de várias formas: um
quadro na parede pode ser visto como um objeto de decoração ou como uma obra de arte, o
que depende da forma particular como o focalizamos dentro dos nossos propósitos. Então,
nesse julgamento de valor, o objeto-de-discurso pode ser modificado a qualquer momento,
e a atividade dessa modificação não escapa às idiossincrasias dos interactantes, que vão re-
ajustando sua visão sobre tal objeto em função da subjetividade de seus julgamentos. Isso
significa dizer que o referente base que serve de âncora pode ser reativado e passar por um
processo de recategorização, construída no jogo da atividade verbal, e proceder a uma su-
cessão progressiva no encadeamento da dicotomia tema-rema.
Esse processo de recategorização, a princípio, pode ser efetuado a partir de escolhas
lexicais, de glosas e predicações, de acordo com a pretensão argumentativa do emissor do
texto, no confronto com o receptor. Mas considerar unicamente essas operações é trabalhar
com uma hipótese extremamente redutora. Sendo essencialmente uma redefinição do refe-
rente e proporcionando alterações nas associações entre representações categoriais, a reca-
tegorização se constitui em maior ou menor desestabilização da categoria em mudança.
Assim, é o próprio traço explícito ou implícito de um referente que viabiliza a recategori-
zação, seja depois de já introduzido no discurso para ser transformado, seja no momento
mesmo em que ele é introduzido, remetendo indiretamente, por um processo mental, a uma
âncora inferencialmente compartilhada e ativada na base da memória discursiva de uma
determinada comunidade cultural.
Admitir que a recategorização só se processa por meio das anáforas co-referenciais é
portar-se ingenuamente na análise do discurso. É preciso que se tenha em mente que o pro-
cesso cognitivo de recategorização não é exclusividade das instâncias anafóricas. Ele pode
também se realizar por meio de introduções referenciais puras, ou seja, a transformação no
referente pode ocorrer integralmente na operação cognitiva. Prova disso são as introduções
recategorizadoras que ocorrem antes da introdução do referente-âncora, nas quais se intro-
duz a posteriori o objeto já transformado.
Por esses motivos, introdução referencial, anáfora indireta e recategorização não
podem ser consideradas dentro de esferas conceitualmente incompatíveis, visto que sua
316
compatibilidade atesta não só o caráter dinâmico das categorias, como também a própria
relação que tais categorias mantêm entre si. Visto assim, a cristalização dos protótipos ca-
tegoriais, deve ser substituída pela consideração dos julgamentos dos sujeitos, o que nos
leva a ver a questão categorial atrelada às situações em que esses julgamentos são proces-
sados, tematizados, endereçados, intercambiados etc. Essa atitude nos passa da visão estra-
tificada de um realismo cognitivo para uma análise cognitivo-interacionista, que atua pro-
gressiva e incessantemente no intercâmbio linguageiro.
Tomemos como exemplo estes versos de Mário Quintana:
Naturezas-mortas
Havia talhadas de melancias rindo...
E os difíceis abacaxis: por fora uma hispidez de bicho insociável;
Por dentro, uma ácida doçura...
Morno veludo de pêssegos...
Frescor de amoras...
E, a mais agreste e dócil das criaturinhas,
Cada pitanga desmanchava-se como um beijo vermelho na boca.
Eu passo, sem querer, as costas da mão nos meus lábios:
Não sei por que desenho essas coisas no tempo passado...
No texto acima, o referente-título “naturezas-mortas” serve de âncora para os referen-
tes “talhadas de melancia rindo”, “os difíceis abacaxis”, “morno veludo de pêssegos”,
frescor de amoras” e “cada pitanga”, que, pelo nosso conhecimento de mundo, compõem,
associativamente, as imagens de uma natureza-morta. Estes referentes, porém, não retomam
o referente que lhes serve de base. Eles foram introduzidos por uma associação indireta,
que permite a
recategorização. As “naturezas-mortas” são recategorizadas por meio de al-
guns recursos lingüísticos que recaem em acidentalizações inusitadas, através de associa-
ções semântico-sintagmáticas naturalmente incompatíves, entre substantivo e verbo (talha-
das de melancias rindo), entre substantivo e adjetivo ou sintagmas preposicionais (difíceis
abacaxis / morno veludo de pêssegos / frescor de amoras), o que orienta nossa percepção
cognitiva para uma esfera surpreendente, de acordo com a construção de sentido almejada
pelo autor.
317
A recategorização ainda se dá, no texto, via sumarização – “essas coisas”, que en-
capsula em um segundo momento os referentes recategorizadores, num desdobramento de
tematização/rematização progressiva. É interessante notar ainda a introdução do referente
a mais agreste e doce das criaturinhas”, que recategoriza, no momento mesmo da sua
introdução no texto, um referente já transformado, posteriormente introduzido, confirman-
do que o processo cognitivo de recategorização também se realiza por meio de introduções
referenciais puras, cuja relação de ancoragem depende da competência inferencial dos inte-
ractantes.
4.3. – A Referenciação Estilística
Sobre as estratégias cognitivas, Van Dijk & Kintsch postulam que “o processamento
cognitivo de um texto consiste de diferentes estratégias processuais, entendendo-se estraté-
gia como ‘uma instrução global para cada escolha a ser feita no curso da ação.’”
128
Os
autores citam, entre as estratégias de processamento cognitivo, as estratégias proposicio-
nais, as de coerência local, as macroestratégias, as estratégias esquemáticas, as estilísticas,
as retóricas, as não-verbais e as conversacionais. Como neste trabalho nos ocupamos em
particular do texto poético, daremos especial atenção às estratégias estilísticas.
Como já dissemos, Tzevetan Todorov distingue no Dicionário das ciências da lin-
guagem duas Estilísticas: a Estilística do enunciado, que se ocupa do aspecto verbal, suas
particularidades fônicas, morfológicas sintáticas e semânticas, e a Estilística de enunciação,
centrada na relação entre os elementos do discurso: locutor, receptor e referente. Ratifican-
do os objetivos deste trabalho, daremos aqui especial atenção a este último tipo de Estilísti-
ca, que busca seu campo de atuação no processo da interação da linguagem, capturando no
processamento do discurso os valores semântico-estilísticos que emanam da negociação
interacionista promovida pela atividade lingüística.
Um dos fatores que devem ser considerados na estilística de enunciação é o binômio
objetividade/subjetividade, cujas marcas se acham incrustadas na manifestação materializa-
da do enunciado. A Lingüística/Estilística da enunciação se concentra no nível da subjetivi-
128
VAN DIJK, T.A. & W. Kintsch. Strategies of discourse comprehension. Nova Iorque: Academic Press,
1983. Apud KOCK, Op.Cit. 2003.
318
dade do discurso. Considerando que a linguagem é sempre produto da manifestação de um
falante, ela tem, por excelência, um certo teor de subjetividade. Mas tal subjetividade tem
níveis distintos que não podem ser precisamente especificados, até porque não há discurso
isento de qualquer subjetividade. A escolha de uma palavra e não de outra, a preferência
por uma formulação sintática e não por outra já são dados suficientes para a caracterização
de um estilo e da individuação. Caímos aqui numa concepção filosófica do estilo.
A linguagem é um mecanismo que permite aos sujeitos formas diversificadas de
inserções no real, de acordo com os diversos papéis que tais sujeitos exercem na sociedade.
Diante disso, podemos ver o estilo como a atuação do falante sobre a própria linguagem,
como uma forma de apreensão de um conceito. Assim, ele é a maneira particular como um
sujeito se apropria do sistema lingüístico na produção do discurso. A rigor, o estilo expres-
sa a relação do locutor com o mundo na representação dos fenômenos, uma vez que o
mesmo fato pode ser representado de diferentes maneiras, mesmo em discursos ideologi-
camente marcados, pois o locutor os atualiza individualmente através da sua visão particu-
lar de mundo.
Se a linguagem plasma o mundo, o estilo revela a forma como o mundo é plasmado; e
a forma de organização dessa linguagem é fruto de um trabalho e não de uma “recepção
gratuita”. Portanto, estilo não é uma necessidade, mas uma possibilidade que se reflete na
escolha, escolha essa que não se deve desprezar, já que muitas vezes ela tem consideráveis
efeitos perlocucionais. O sujeito não é uma subjetividade pura, nem uma consciência me-
ramente receptiva, que dá forma, sentido e unidade, mas não leva em conta o trabalho do
estilo, por considerar que ele seja uma atividade puramente mecanicista.
Na contramão desse conceito, Granger
129
considera que o sujeito produz aconteci-
mento, garantindo sua historicidade e seu lugar como elemento criador na manipulação da
linguagem – um produto sempre inacabado –, pois nela estão as marcas recuperáveis e in-
terpretáveis, com significações identificáveis. Isto porque está na sua perspectiva considerar
o processo de construção da linguagem – a enunciação – e não somente o produto estrutu-
rado – o enunciado. Possenti
130
defende a hipótese de que a linguagem, embora não tenha
embreagem com a realidade concreta, é capaz de produzir um resultado específico sobre a
forma como a realidade é representada. Assim, o fato de o autor escolher, entre as várias
129
GRANGER, G.G. Filosofia do estilo. São Paulo: Perspectiva-EDUSP, 1974.
130
POSSENTI, Sírio. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993
319
possibilidades, uma forma e não outra é o bastante para que se considere o trabalho de
construção estilística, cuja expressão materializada é apenas o resultado final.
A partir da ênfase que se dá a determinada instância do discurso, têm-se diferentes
tipos de estilo, que, na concepção de Martins
131
, pode ser de três tipos, emotivo, modalizan-
te e avaliativo. Se no discurso ocorre certa ênfase no locutor, tem-se o estilo emotivo; se o
locutor enfatiza a avaliação da verdade do enunciado, tem-se o estilo modalizante; se o lo-
cutor dá relevo ao referente, tem-se o estilo avaliativo. É no estilo avaliativo que encontra-
mos de forma mais nítida a via estilística de acesso à referenciação.
A avaliação pode manifestar-se em graus e esferas variáveis: a quantitativa – que
leva em consideração a mensuração de objetos e fatos; a modalizadora – que considera os
fatos como verdadeiros ou falsos, certo ou incerto, possível ou desejável, e a apreciativa ou
axiológica – que imprime um julgamento de valor moral ou estético. É nesta última que a
subjetividade mais se intensifica, pelo seu caráter fortemente pessoal, em conseqüência das
tonalidades emotivas.
Lembramos que a subjetividade é a possibilidade de um locutor colocar-se como su-
jeito do seu próprio enunciado. Assim, o tipo fundamental de subjetividade é a dêitica, ou
explícita, que se manifesta por meio dos elementos dêiticos, caracterizadores das instâncias
enunciativas: a temporal – com formas verbais no presente, expressões adverbiais que ca-
racterizam o mundo comentado em oposição ao mundo narrado (agora, hoje etc); a espaci-
al – com expressões adverbiais que remetem à cena enunciativa (aqui, neste lugar etc), e a
actancial – com verbos em primeira pessoa e pronomes dêiticos que remetem ao enuncia-
dor (eu, me, mim, meu, isto, este etc.). Apreciemos este poema de Cecília Meireles, em que
o tema da efemeridade do tempo tem uma visão estritamente pessoal do sujeito poético.
1º motivo da rosa
Vejo-te em seda e nácar
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e frágil.
131
MARTINS, Nilce Sant’Anna. Introdução à Estilística. São Paulo: T. A. Queiroz, Editor, 2000.
320
Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.
Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.
Nota-se no texto que o eu-lírico põe em evidência suas impressões pessoais a respeito
do objeto poético. Sendo um ser naturalmente ensimesmado, o sujeito poético formula seu
discurso centrado deiticamente na primeira pessoa (vejo, penso, meus, meu), o que revela,
de modo explícito, ser ele a fonte de referência de todas as emanações categorizadoras dos
elementos a que o poema remete, deixando explícita a subjetividade do discurso.
Por via indireta, a subjetividade também pode ser não-dêitica, ou implícita, que ocor-
re quando o enunciador não se manifesta abertamente; ele o faz através de participações
veladas, efetuadas por meio de julgamentos e certas modalizações realizadas na escolha dos
vocábulos e no seu teor metafórico. De qualquer forma, todo enunciado de julgamento traz
no seu interior certa dose de subjetividade, visto que o locutor não deixa de estar por trás da
afirmação.
Exemplifiquemos com estes versos, em que destacamos os elementos responsáveis
pelos indícios de subjetividade:
Ao delicioso toque do clitóris
já tudo se transforma, num relâmpago.
Em pequenino ponto desse corpo,
a fonte, o fogo, o mel se concentraram. (Drummond)
O adjetivo no primeiro verso e a expressão adverbial no segundo revelam as impres-
sões pessoais que provém das experiências do sujeito poético, deixando transparecer uma
avaliação que categoriza o referente ativado na ação do sujeito poético. Além disso, as ex-
321
pressões destacadas no último verso proporcionam uma ativação referencial já recategori-
zada pela carga metafórica de que elas são portadoras. Sem a presença explícita dos dêiti-
cos de primeira pessoa, a subjetividade se configura de forma implícita e indireta e está
marcada nas modalizações aparentemente impessoais.
No âmbito da subjetividade, deve-se levar em conta diferentes graus de afetividade,
solenidade, intimidade ou distanciamento, que se manifestam através de certos recursos
gramaticais, inscritos no sistema lingüístico, tais como formas de tratamento, sufixos dimi-
nutivos e aumentativos, adjetivos qualificativos, advérbios e expressões adverbiais modali-
zadoras, superlativos, expressões metafóricas, construções sintáticas etc., empregados com
valor de predicação no processo de referenciação. Tais recursos deixam no enunciado mar-
cas do posicionamento do locutor diante de determinada matéria e denunciam seu estado
psíquico no confronto com a realidade.
Tomemos estes fragmentos de “Lembrança de Morrer” de Álvares de Azevedo, em
que as diferentes formas de tratamento revelam graus de intimidade e solenidade distintos,
em obediência à subjetividade romântica, num processo de hierarquização:
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz e escrevam nela:
— Foi poeta – sonhou – e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha,
Que minh’alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai-lhe o canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia-noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque abri os ramos...
Deixai a lua prantear-me a lousa!
322
No texto, notamos a aproximação respeitosa em relação à mulher amada – “minha
virgem dos errantes sonhos” (contigo); a neutralidade no tratamento em relação aos interlo-
cutores – os homens (descansem), e reverência solene em relação aos elementos da nature-
za – “Sombras do vale, noites da montanha
(protegei, derramai) / Arvoredos do bosque
(abri, deixai), tomados em total grau de nobreza pela ideologia romântica:
E agora estes versos extraídos do poema-canção “Tarde em Itapuã”, que, no processo
de referenciação, descrevem um cenário que identifica o estado psíquico do sujeito poético
por meio de palavras e expressões que destacamos:
Um velho calção de banho
O dia pra vadiar
Um céu que não tem tamanho
E um arco- íris no ar (Vinícius de Moraes)
A antecipação do adjetivo na expressão “velho calção de banho” denota discursiva-
mente a afetividade na referência a algo tomado como inerente ao modus vivendi do sujeito
poético, e esse modus vivendi se confirma na atividade lúdica que se expressa no sintagma
adverbial “pra vadiar”. O sintagma oracional “que não tem tamanho” funciona como um
predicador de “céu”, traduzindo a visão hiperbólica de uma felicidade que se metaforiza no
referente “arco-íris”.
Vejamos agora este soneto de Vinícius de Moraes:
Soneto da devoção
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica em meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
323
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
No poema se processa afetivamente um jogo de aproximação/afastamento na constru-
ção do objeto-de-disurso: Este vai se construindo a partir de nominalizações (“Essa mu-
lher”), portadoras de um determinante dêitico de 2ª pessoa (essa), determinante este que
promove o afastamento do referente na relação com o universo existencial do sujeito poéti-
co, opondo-se à aproximação que se daria, se a nominalização se desse com o demonstrati-
vo dêitico de 1ª pessoa (esta mulher). Mas essas expressões nominais são seguidas de pre-
dicações e referentes que indiretamente confirmam esse afastamento (fria, lúbrica, miséria,
um mundo, uma cadela), ou o negam (grandeza, bela).
Esses recursos revelam, de forma indireta, por associações ou inferências, os diferen-
tes níveis de subjetividade que se estampam no discurso, principalmente nos textos poéti-
cos, que são, pela excelência de sua natureza, propícios a certos tipos de avaliação.
No estudo da Estilística, deparamos com as chamadas figuras de linguagem, que, com
muita freqüência, são injustamente reduzidas a um mero objeto de trabalho de nomeação e
reconhecimento de seus caracteres específicos, sem que se leve em conta sua funcionalida-
de na construção de sentido do texto. Dentre as figuras de linguagem, apontamos as que a
Retórica Clássica chamou de figuras de pensamento e que a Retórica Geral denomina me-
talogismos como as que mais se prestam à esfera da atividade discursiva. Isto porque elas
podem se relacionar com os elementos da enunciação especificados no esquema da Teoria
da Comunicação desenvolvida por Jakobson. Assim, figuras como prosopopéia, litotes,
antífrase, antítese, paradoxo, hipérbole, símile, eufemismo, apóstrofe etc., que nos remetem
à realidade, apresentam efeitos de sentido que só podem ser apreendidos pelo receptor
quando este percebe a violação da relação de verdade entre o que o locutor diz literalmente
e o objeto do mundo ao qual ele se refere.
No emprego dessas figuras, é indispensável o conhecimento do referente, para que se
perceba a manifestação da criatividade estilística na expressão da subjetividade e da afeti-
324
vidade do sujeito falante. A liberdade criativa aparece mais particularmente na utilização
das imagens. A linguagem corrente faz espontaneamente apelo a associações razoáveis e
pertinentes, do tipo “A terra é redonda como uma laranja”, em que a redondeza é efetiva-
mente uma característica comum à terra e a uma laranja. Entretanto a linguagem poética
produz associações inusitadas, que revelam a violação da relação de verdade nas associação
imagéticas, tais como nestes versos:
Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos.
(Augusto dos Anjos)
A compreensão da imagem criada por meio do símile, no texto acima, só é possível se
o receptor tem conhecimento do aspecto ameaçador da matilha de cães ferozes, estilistica-
mente categorizada como “uma horda de cães famintos”, ampliado por outra imagem, “u-
ma estação deserta”. A compreensão dessa imagem torna refratário o estertor existencial
configurado metaforicamente nos dois últimos versos da estrofe. Esse exemplo nos dá a
dimensão de como as figuras de teor discursivo podem contribuir para a construção do sen-
tido textual, no que diz respeito à referenciação, pela forma como elas categorizam e reca-
tegorizam os objetos de mundo.
Há outras figuras de vital importância para categorização/recategorização no processo
de construção dos objetos-de-discurso. Não se pode descartar a atuação da metáfora no
direcionamento da categorização e da recategorização. Sendo uma espécie de comparação
elíptica, em que há um apelo psíquico na associação com a realidade, a metáfora tem pro-
priedades tipicamente recategorizantes, pelo fato de transformar de forma inusitada os obje-
tos do mundo em objetos-de-discurso, dando a eles um sentido diferente que só é possível
perceber através de um processo especial de referenciação, em conformidade com os pro-
pósitos do enunciador. Vejamos estes versos:
A terra onde o lilás e a balsamina medra
Para mim teve sempre um coração de pedra.
(Guerra Junqueiro)
325
Notamos que a metáfora “coração de pedra”, pela sua própria natureza, recategoriza
indiretamente o referente “terra”, atribuindo a ele um caráter negativo que traduz a aridez
do solo, atrelada à dor do sujeito poético. Mas essa percepção só é possível quando atenta-
mos para o fato de que a expressão “coração de pedra” viola a relação de verdade inerente
à realidade a que os versos remetem, o que evidentemente nos conduz à esfera do contexto
discursivo, alcançado pela Estilística da Enunciação.
Mas, para que se alcance a extensão da função da Estilística e seus efeitos no processo
discursivo, talvez seja necessário retomar o que Rifaterre denominou de função estilística
da linguagem. Substituindo a nomenclatura jakobsoniana de função poética da linguagem,
Rifaterre postula que “A estilística deve ser uma lingüística dos efeitos da mensagem, do
rendimento do ato de comunicação, da função de imposição que esta exerce sobre nossa
atenção”.
132
Assim, segundo o lingüista, a Estilística deve se preocupar com os elementos
utilizados no enunciado lingüístico para impor ao decodificador a maneira de pensar do
codificador. Isso significa que a Estilística considera o ato de comunicação não como mera
produção de uma cadeia verbal, mas como portador da marca da personalidade do locutor,
chamando a atenção do destinatário.
Ora, ao incluir o locutor e o destinatário na concepção da Estilística, Rifaterre, de
alguma forma, conduz a operação estilística para a esfera do discurso, onde seus efeitos são
pragmaticamente construídos, sob vigilância das práticas cognitivas socialmente negocia-
das. Mas, no campo estilístico, os efeitos de sentido estão intimamente condicionados à
forma da expressão, na qual o signo assume determinada intensidade semântica, em conse-
qüência da estruturação lingüística particular em que ele figura.
Na esfera da Estilística,
a forma é preeminente, e esta forma per si, só pode chamar a
atenção se for específica, isto é, se puder ser repetida, cristalizada, memorizada, citada;
caso contrário, o conteúdo torna-se mais importante do que sua forma de expressão. Daí a
importância da função estilística, que garante a supremacia da forma, impedindo que o de-
codificador escolha livremente o que lhe convém e extraia, a seu bel prazer, o minimamente
necessário para a decodificação da mensagem. Em outras palavras, o decodificador é obri-
gado a se ater à forma emblemática da construção lingüística criada pelo emissor da men-
sagem. É assim que a função estilística atua nos processos de referenciação, cujo efeito é
132
RIFATERRE, Michael. Op. cit.
326
limitar a liberdade de percepção durante a decodificação, mormente na execução de uma
obra poética, cujo campo é o mais propício para a manifestação da Estilística. Isso garante
ao codificador a imposição de sua maneira de interpretar e plasmar o mundo na interação
pela linguagem frente ao decodificador.
Vejamos como se pronuncia o lingüista:
Sou de opinião que só duas funções – estilística e referencial – estão sempre pre-
sentes, e que a função estilística é a única centrada na mensagem, ao passo que as outras
estão todas orientadas para algo exterior a ela, e organizam o discurso em torno do codi-
ficador, do decodificador e do conteúdo. É por isso que me parece mais conveniente-
mente dizer que a comunicação é estruturada por cinco funções direcionais e que sua in-
tensidade (desde a expressividade até a arte) é modulada pela função estilística.
Sendo assim, a função estilística terá sempre maior importância que a função refe-
rencial. Ainda que uma mensagem possa em teoria estar orientada para um referente ob-
jetivo, seu poder efetivo, cognitivo ou denotativo, depende do efeito do signo sobre o
destinatário, da informação que este signo transmite, e não da maneira mais ou menos
completa, mais ou menos fiel, pela qual ele representa a realidade (grifos nossos).
133
Mas no âmbito da Estilística, os efeitos da mensagem estão condicionados a determi-
nadas situações discursivas que o autor denomina contexto estilístico. Como já dissemos
aqui, Rifaterre substitui a noção de norma geral pela de contexto estilístico e estuda os pro-
cessos estilísticos em relação a tal contexto. Afirma ele que o contexto, inseparável por
definição do processo estilístico, é automaticamente pertinente, o que não é necessariamen-
te verdadeiro para a norma; é imediatamente acessível por ser codificado, de modo que não
se precisa recorrer a um vago e subjetivo modelo de expressão; é variável e forma uma sé-
rie de contrastes com os processos estilísticos sucessivos. Postula o lingüista que só esta
variabilidade pode explicar por que uma unidade lingüística adquire, modifica ou perde seu
efeito estilístico em função de sua oposição, por que cada desvio da norma não é necessari-
amente um fato de estilo e por que efeito de estilo não implica necessariamente anormali-
dade.
134
133
RIFATERRE, Michael. Op Cit. p. 146-147.
134
RIFATERRE, Michael. Op Cit. p. 62.
327
Mesmo quando o efeito estilístico é resultado de uma intenção, a percepção dessa
intenção não é suficiente para captá-lo. Se o escritor quiser chamar a atenção do leitor para
determinados elementos formais a que se atribui uma importância particular, como uma
intenção estética, por exemplo, é necessário entender que todo texto literário se impõe ao
leitor pela forma. Se o que permite uma decodificação mínima é a previsibilidade dos ele-
mentos que vêm depois de um membro frasal, então é graças a uma baixa previsibilidade
que o processo de decodificação pode ser controlado. Isso significa que é através de uma
forma-surpresa contextualmente percebida que o enunciador impõe sua forma particular de
categorização e recategorização de um referente, e é por meio dessa forma-surpresa que se
configura a criatividade estilística.
À exceção das metáforas de uso, que já se cristalizaram como tal, a maioria das metá-
foras se constroem na atividade discursiva, em obediência a um determinado contexto. As-
sim, cada fato estilístico compreende um contexto e um contraste em relação a tal contexto.
Dessa forma, o contexto estilístico se define como um pattern rompido por um elemento
imprevisível. O estilo, na verdade, não é uma ênfase contínua, pois o que caracteriza uma
estrutura estilística em um texto é o jogo dialético entre elementos marcados que contras-
tam com elementos não-marcados, ou seja, um contexto e o contraste em relação a esse
contexto, tomados como elementos inseparáveis, já que, estruturalmente, um não existe
sem o outro. Assim, cada fato estilístico compreende um contexto e um contraste, que pode
emanar da estrutura textual e não só e simplesmente da estrutura contextual de um padrão
previamente estabelecido.
Não afirmamos aqui que o contexto desse padrão pré-estabelecido – tomado aqui co-
mo um pattern maior, em que a função estilística atua essencialmente nos limites do código
– possa ser desprezado, já que ele serve de um contexto mais amplo. Mas o efeito das for-
mas contrastivas pode sofrer uma saturação contextual por conta de certas marcas lingüísti-
cas excessivamente exploradas, tornando-se demasiadamente previsíveis. Assim, é possível
estabelecer uma distinção entre contexto interior e contexto exterior do processo estilístico,
isto é, entre o contexto que cria a oposição do processo estilístico e o contexto que modifica
essa oposição.
Essa teoria reffaterriana do contexto estilístico, que já abordamos anteriormente e por
clareza retomamos, é indiscutivelmente profícua para o que se denomina categorização e
recategorização na atividade da referenciação. Isto porque cada processo estilístico fun-
328
ciona como um contexto para outro processo estilístico que vem imediatamente após, cri-
ando uma cadeia de recategorização, que se realiza por anáforas indiretas, expressões pre-
dicativas, glosas ou proposições, a partir de um elemento anteriormente categorizado que
serve de âncora para o encadeamento. Essa cadeia pode configurar uma progressão metafó-
rica, assim reconhecida em conseqüência do contexto em que ela se constitui.
Como já sinalizamos anteriormente, defendemos aqui o fato de que algumas introdu-
ções referenciais recategorizadoras sofrem um processo que abrange dois estágios: o da
ativação de um novo objeto-de-discurso imediatamente seguido de uma reativação implíci-
ta. Isso ocorre quando um determinado referente é introduzido de forma metaforizada, oca-
sionando duas operações seguidas, em tempo mínimo, que, por ser mínimo, é imperceptível
à primeira vista. Ativando um novo referente, tomado ao mundo, a princípio, em seu valor
de base culturalmente partilhado, e imediatamente transformado em objeto-de-discurso, o
decodificador percebe a ruptura provocada pela metáfora e é motivado a reavaliá-lo pron-
tamente por meio de uma associação psíquica que caracteriza seu teor metafórico. Isso cria
um contexto estilístico para outras operações estilísticas em cascata, provocando o que a
Retórica Clássica denomina de alegoria.
Sendo um campo propício para as alterações de perspectiva e para a multiplicidade de
interpretações, os textos poéticos mostram-se mais expostos à volubilidade constitutiva da
atividade lingüística. Neles, a referência e o sentido nunca atingem absoluta plenitude, visto
que podem sempre ser reorientados e redefinidos no âmbito das esferas contextuais possí-
veis de ampliação a cada leitura, inclusive pela incorporação de outros textos à memória
discursiva do leitor que, com isso, passa a reconhecer certas situações de polifonia e, por
isso, é capaz de fazer mais associações e inferências que contribuem para a construção do
sentido.
Vejamos a riqueza estilística no processo de referenciação deste poema Quintana:
Triste encanto...
Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras.
329
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Nenhum azul para te distraíres...
Ah, seu eu pudesse, tardezinha pobre,
Eu pintava trezentos arco-íris
Nesse tristonho céu que nos encobre!...
O referente “triste encanto”, embora não seja retomado ao longo do texto, serve de
âncora e contexto para as proposições cognitivas reveladoras da atmosfera melancólica que
metaforicamente se instaura no poema, constituindo uma espécie de anáfora diluída numa
referenciação indireta amplamente abrangente, como nestes versos abaixo, que ativam na
memória discursiva do leitor uma imagem de profundo desalento:
A tarde lembra um passarinho doente
A pipilar os pingos das goteiras.
,
e ainda nestes, cujas imagens remetem a um absoluto estado de abandono:
A tarde pobre fica, horas inteiras,
A espiar pelas vidraças, tristemente,
O crepitar das brasas na lareira...
Meu Deus... o frio que a pobrezinha sente!
É curioso notar no poema como o referente “tardes borralheiras” serve de âncora
metafórica para outros referentes. No momento mesmo em que ele remete à melancolia de
uma tarde chuvosa, cujo cenário é armazenado em nossa memória discursiva, recategoriza
metaforicamente a própria noção de tarde, abrindo caminho para que seus elementos anafó-
330
ricos se enquadrem na dimensão estilística em que ele foi recategorizado. Assim, ele serve
de âncora para outros referentes que são ativados, numa cadeia de anáforas diretas ou indi-
retas configuradas em metáforas recategorizadoras do referente base. No contexto poético
específico em que se encontram, os referentes “a tarde pobre” e “a pobrezinha” constituem
anáforas diretas que nos fornecem uma dimensão de tarde de apelo psíquico incomum, cre-
denciada pela memória enciclopédica do leitor versado em histórias infantis, capaz de asso-
ciar, com todas as implicações, “tardes borralheiras” a “gata borralheira”, numa operação
de intertextualidade implícita. Some-se a isso o emprego não menos sugestivo das anáforas
indiretas configuradas nos referentes “cinza” e “névoa”, que ancoram na complexidade do
referente base.
É evidente que “cinza” e “névoa”, se fossem empregados em seu valor mundano natu-
ralmente partilhado pela comunidade cultural, já seriam suficientes para caracterizar a me-
lancolia de uma tarde chuvosa; mas isso não basta à poesia, que busca sempre mais e o faz
através de rupturas surpreendentes, rupturas essas que frustram a expectativa de um leitor
que vê abalado o seu mecanismo de automatização psíquica. Recordemos o contexto sin-
tagmático em que se encontram esses referentes:
Triste encanto das tardes borralheiras
Que enchem de cinza o coração da gente!
(...)
Por que é que esses Arcanjos neurastênicos
Só usam névoa em seus efeitos cênicos?
Já dissemos aqui que expressões que são índices de literalidade em determinado con-
texto podem ser índices metafóricos em outros e vice-versa. No caso específico de “cinza
e “névoa”, por conta da especificidade do seu contexto poético, são conotação metafóricas
de melancolia e abatimento. Isso abre no texto precedentes contextuais para novas introdu-
ções referenciais também metaforicamente categorizadas. É o caso dos referentes “azul” e
arco-íris” – nos segmentos “Nenhum azul para te distraíres” e “Eu pintava trezentos ar-
co-íris” –, aos quais, a despeito do valor antitético que assumem no texto – alegria em face
da tristeza – e talvez até por ele mesmo, não se pode negar, por um sistema de oposições, o
331
estatuto de anáforas inferenciais, que se confirma no referente também anafórico “Nesse
tristonho céu que nos encobre!...”.
Um outro fator, visto como indispensável para a total compreensão textual, é a ques-
tão do ponto de vista
135
na introdução e (re)catagorização dos referentes. Como já se fez
notar ao longo deste capítulo, nossa proposta é dispor das operações estilísticas a serviço
da referenciação. E fazemos isto por considerar que ambas são perfeitamente compatíveis
na atividade da construção do sentido textual. Mas, para tanto, faz-se necessário esclarecer
alguns conceitos aparentemente contraditórios que envolvem essas atividades lingüísticas.
Michael Riffaterre preconiza que a Estilística deve estudar a linguagem do ponto de
vista do decodificador, visto que suas reações, suas hipóteses e julgamentos são respostas
aos estímulos codificados na seqüência verbal.
136
Por outro lado, Apothéloz & Reichler-
Beguelin
137
postulam que a referência é, acima de tudo, operações de categorização e iden-
tificação dos referentes realizadas pelos sujeitos falantes, e essas operações dependem mui-
to mais do ponto de vista de um enunciador e do contexto interacional.
Ora, a questão é de critério. Enquanto a operação estilística se preocupa com a forma
de expressão, a atividade de referenciação se ocupa da transformação dos objetos do mundo
em objetos-de-discurso. Assim, é natural que cada uma dessas atividades seja observada
sob a esfera a que elas estão submetidas. Enquanto aquela se presta ao efeito de sentido
captado pelo decodificador a partir de uma forma de expressão, esta traz para o texto refe-
rentes que se categorizam e se recategorizam na busca de um sentido que se manifesta se-
gundo o ponto de vista e as intenções de um enunciador.
Além disso, tratando-se do texto poético, é preciso levar em consideração dois aspec-
tos: o valor estético da linguagem e a informação veiculada. Enquanto o primeiro é de res-
ponsabilidade do autor, que é um ser do mundo e possui uma intenção estética, o segundo é
de responsabilidade de um sujeito poético, que atua como o locutor da mensagem, ou de
um personagem poeticamente construído, ambos portadores de uma intenção informativa,
com identidade apenas discursiva, que só têm existência enquanto instâncias textuais.
Sem a pretensão de aprofundarmos a questão do ponto de vista, diremos apenas que
ele caracteriza uma intenção avaliativa de um determinado enunciador na apreciação de um
135
Ver CHARAUDEAU, Patrick. & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São
Paulo: Cultrix, 2004.
136
RIFFATERRE, Michael. Op Cit. p 139.
137
Ver APOTHELÓZ, D. & REICHLER-BÉGUELIN, M. – J. Op. Cit.
332
determinado referente introduzido no texto. Assim, tomado como objeto-de-discurso, esse
referente é categorizado e recategorizado segundo a ótica particular que um enunciador-
focalizador manifesta no seu “projeto de sentido”. Por esse prisma, é possível relacionar
Teoria da referenciação e Teoria do ponto de vista. Essa relação mostra preocupação com
a instância que assume a responsabilidade sobre o modo como o objeto-de-discurso é apre-
sentado.
Mas nesse processo é comum a manifestação de várias instâncias, cujas vozes apare-
cem diluída ou pontualmente localizadas no fio do discurso, caracterizando um processo
dialógico que Authier-Revuz
138
denominou de heterogeneidade discursiva, que abordare-
mos oportunamente. Segundo a autora, esse processo pode se manifestar de duas formas,
que ela classifica como heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. A pri-
meira corresponde à presença localizável de um discurso outro no fio do discurso; a segun-
da se relaciona com o discurso que se constitui através de um debate com a alteridade, ca-
racterizando o interdiscurso, ou seja, o discurso que se constitui a partir de outro.
São distintos os efeitos estilísticos desses dois processos. Na heterogeneidade consti-
tutiva, o discurso original serve de pattern contextual para o novo discurso, a partir do con-
traste que se estabelece entre ambos nas formas de expressão, numa relação de intertextua-
lidade. Na heterogeneidade mostrada, o efeito é imediato e se realiza no relato do discurso
direto, direto livre, indireto, indireto livre –, relativamente ao estatuto das noções enunci-
ativas.
O discurso relatado constitui uma enunciação sobre outra enunciação, em que o dis-
curso citante é o discurso que insere a fala do enunciador citado, e o discurso citado é o
discurso que se insere na fala do enunciador citante. Estilisticamente, essas modalidades
discursivas apresentam formato e efeitos de sentido diferentes, revelando maior ou menor
envolvimento com o fato apresentado, promovendo distanciamento, aproximação ou isen-
ção em relação à matéria apresentada no processo discursivo, além de deixar entrever certas
nuances psicológicas, perceptíveis nas marcas que deixa no discurso. Vejamos:
1) o discurso direto reproduz integralmente o discurso de outro enunciador com sina-
lizações específicas (travessões, dois pontos, aspas, modalizações autonímicas); cria o efei-
138
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de Estudos Lingüísticos.
Campinas, (19): 25-42, jul./dez. 1990.
333
to de sentido de realidade; revela que a objetividade do locutor-1 mantém todos os traços de
subjetividade do locutor-2; cria autenticidade, indicando que as palavras relatadas são real-
mente as proferidas pelo locutor-2; promove o distanciamento critico do enunciador, e se
presta a citação de autoridade.
2) o discurso direto livre apresenta propriedades lingüísticas do discurso direto, mas
sem nenhuma sinalização específica; reúne os enunciados do narrador e do personagem,
sem nenhuma indicação, além do próprio conteúdo de cada um; sugere instantaneidade da
mudança de emissores e a conexão imediata entre as duas enunciações, o que aproxima de
forma mais íntima os enunciadores.
3) o discurso indireto transmite apenas o conteúdo intelectual do enunciador citado;
anula os sinais diacríticos empregados no discurso direto, mas tais sinais podem aparecer,
caracterizando fidelidade do discurso, ênfase, ironia, dúvida do citador; sintetiza o enuncia-
do citado; conduz a narração de um ato de elocução com um caráter mais racional; promo-
ve a supressão da expressividade, a subjetividade fica na dependência do enunciador do
discurso citante.
4) o discurso indireto livre realiza a fusão perfeita de duas vozes, de modo que não
se define exatamente que palavras pertencem ao enunciador citado e que palavras perten-
cem ao enunciador citante, criando uma polifonia que constitui uma mistura perfeita de
duas vozes; compreende as transformações dêiticas exigidas pelo discurso indireto; mantém
todo o tônus afetivo do discurso direto, e revela um filete de penetração psicológica desen-
cadeado no monólogo interior e no fluxo de consciência.
Como se pode perceber, essas modalidades do discurso relatado apresentam certas
características formais que podem contribuir para a construção do sentido de um texto, a
partir de suas características e de seus efeitos de sentido, como aderência, afastamento ou
ironia, por conta do aspecto polifônico e do ponto de vista que ele engendra.
Para aplicação desses conceitos, retomemos este texto de Drummond:
334
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(Carlos Drummond de Andrade)
O poema, esta pequena obra-prima, se constrói por anáforas indiretas que compõem o
cenário de uma “cidadezinha qualquer”. Os referentes textuais estabelecem um processo de
coesão por anáforas associativas e inferenciais, ancoradas no referente título. Tais referen-
tes são categorizados segundo pontos de vista distintos, que o autor explora e dos quais tira
proveito para, através de uma recategorização, impor sua visão de mundo. Por meio da po-
lifonia discursiva, ocorre um entrecruzamento de discursos que se conforma na voz do lo-
cutor, por meio de sua visão discordante em relação a outros pontos de vista.
O texto, através da heterogeneidade discursiva, apresenta um cruzamento de pontos
de vista que contribui para a construção do sentido da mensagem. Apoiado na figura da
antífrase, o poema revela um profundo senso de uma ironia velada que se manifesta na o-
posição de uma visão poética moderna, em relação à atitude romântica. Como já vimos na
análise anterior, há um significativo apelo à memória discursiva do leitor no que diz respei-
to à evolução da história literária: de um lado, os pressupostos que nos conduzem à estética
romântica com sua visão bucólica da existência; de outro, uma visão discordante e descon-
certante que caracteriza a negação de uma poética considerada ultrapassada pela moderni-
dade participante do autor.
O jogo de oposição se mostra sob dois aspectos discursivos. De uma parte, ocorre
uma heterogeneidade constitutiva que se apóia em um discurso (ou tipo de discurso) que a
tradição literária consagrou, o que se conforma com uma interdiscursividade constituída a
partir de um formato ao qual se recorre como contexto discursivo sobre o qual se cria vela-
damente um contraste; de outra, uma heterogeneidade mostrada, a partir de um conjunto de
335
vozes marcadas, que atuam concomitantemente no fio do discurso poético. Percebe-se, a
partir daí, a existência de vários pontos de vista que constituem a significação textual. Esses
pontos de vista revelam olhares diversos sobre os referentes introduzidos no texto, trans-
formados em objetos-de-discurso segundo as intenções do autor, pela captação do sentido
que cada um deles engendra no processo discursivo.
A visão romântica representa a base constitutiva das intervenções do sujeito poético.
É sob esta visão romântica que se introduzem na primeira estrofe os referentes “casas”,
bananeiras”, “mulheres”, “laranjeiras”, “pomar”, “amor”, “cantar”, categorizados como
elementos que constituem a visão bucólica e reconfortante de uma época artística cuja ideo-
logia se marcava pelo escapismo e pela idealização da existência. Aí se percebe um ponto
de vista coletivo de quem vê na poesia o remanso balsâmico da alma.
Na segunda estrofe, tem-se um ponto de vista marcado por um artifício metonímico
estilisticamente elaborado. “As janelas” que olham constituem o olhar dos moradores da
cidadezinha sobre a rotina inexpressiva do lugar. Os referentes “homem”, “cachorro” e
burro” que vão “devagar” representam os elementos que metaforizam, a paz inabalável do
lugarejo, sob a ótica dos moradores locais. É curioso como o autor elabora, a partir de um
contexto estilístico, o jogo significativo da inversão sintática que funciona como contraste
de um pattern padronizadamente construído. Nota-se que na segunda estrofe o advérbio
devagar”, repetido sob a forma da epístrofe, constitui o sentido do olhar, que parte de um
sentido inverso, sentido este que se faz notar pela anadiplose provocada pela inversão da
posição do advérbio no penúltimo verso.
Tudo se processa lenta e rotineiramente sob a visão entediada do sujeito poético. A
falta de perspectiva se configura no trabalho de linguagem do poeta. A coesão recorrencial,
revelada na exploração da repetição das estruturas frasais constitui um padrão que busca
romper a arbitrariedade da linguagem em relação à realidade referida, inclusive pelas reti-
cências que denotam o olhar que se perde no longínquo da vida interiorana. Mas essa estru-
tura é rompida no último verso, que caracteriza o ponto de vista do sujeito poético.
A construção lingüística “Eta vida besta, meu Deus.” derrama sobre o poema uma
recategorização de todos os referentes anteriormente introduzidos, vistos agora de forma
depreciativa. Através do referente “vida besta” introduz-se no texto a heterogeneidade dis-
cursiva, que lança sobre os discursos anteriores uma modalização peculiar. O sujeito poéti-
co estabelece com essa intervenção uma polifonia discursiva, visto que os discursos anteri-
336
ormente citados são reavaliados ironicamente. Em outras palavras, através do discurso rela-
tado, estabelece-se uma visão dissonante nos discursos anteriores: à visão romântica, que se
vê na primeira estrofe, justapõe-se a visão duvidosa do locutor; sobre a visão conformada
dos moradores dessa cidadezinha, lança-se a visão questionadora do sujeito poético. Este
somatório de vozes que constitui a heterogeneidade discursiva permite a construção de um
sentido poético a partir de um contexto criado no universo textual.
É conveniente mostrar como a operação estilística contribui para o processo de refe-
renciação. O referente “cidadezinha qualquer” é introduzido de forma a se perceber nele
uma recategorização imediata. A ordem dos termos no sintagma referencial associada ao
sufixo diminutivo introduz um sentido construído especificamente no texto para o referente
cidade – o de uma cidade inexpressiva e sem perspectiva. Sem uma âncora textual, para
que se processe a recategorização, o leitor é obrigado a processá-la implicitamente, a partir
do valor “natural” do referente, socialmente partilhado por uma comunidade cultural, de-
nominado por Barthes como o grau zero da linguagem, que serve de alicerce para a trans-
formação engendrada pelo ponto de vista do sujeito poético.
* * *
Partindo do princípio de que, no processo de referenciação, o referente é tomado da
realidade como objeto do mundo e transformado textualmente em objeto-de-discurso, cujo
sentido é discursivamente construído no processo da interação verbal, é preciso considerar
como os recursos da linguagem são empregados pelos interlocutores para fins de interação,
e como eles emergem, configuram-se e reconfiguram-se no transcurso das ações. Assim, é
de vital importância que se atente para o papel preponderante da atividade do discurso em
sua dimensão situacional, social e interacional. Para tanto, acreditamos, a Estilística muito
pode contribuir, principalmente no que diz respeito aos efeitos de sentido por ela criado.
Não há como negar que, no contexto do discurso poético, o processo de referenciação,
atrelado à função estilística da linguagem, ganha uma dimensão textual de grande proveito
na categorização e na recategorização dos referentes. Como o texto poético é marcado por
uma estrutura peculiar que o transforma em objeto de arte, devemos entender que é na pró-
pria estrutura da poesia que a Estilística vai buscar seu próprio contexto – o contexto estilís-
337
tico –, a partir do qual é possível perceber imediatamente os desvios criativos da invenção
lingüística para construir artisticamente um sentido.
Cada olhar que recai sobre o referente proporciona uma forma de avaliação segundo a
qual se pode derramar impressões várias, em conformidade com as distintas visões de mun-
do projetadas no objeto-de-discurso. Isso nos dá a medida de como o ponto de vista atua na
avaliação deste objeto, que se constrói segundo um ângulo de focalização orientado pelas
intenções do focalizador. Mas é preciso não esquecer que um ponto de vista é captado pelas
marcas que os recursos da linguagem deixa no texto, criando no decodificador um determi-
nado efeito de sentido.
Finalmente, advertimos que, no texto poético, os signos funcionam como elementos
que conduzem o leitor até bem próximo do ponto de origem do poeta, com a intenção de
fazê-lo penetrar inteiramente no universo artístico que se tenciona criar. Nesse caso, no uso
insólito dos signos lingüísticos, ocorre uma imposição cognitiva, psicológica ou memorial
do referente nas representações mentais do locutor frente ao decodificador. Esse jogo da
linguagem, que opera com as oscilações semânticas no processo de cognição, traduz a va-
gueza, a ampliação, a polissemia e a conotação, com todas as peculiaridades que tornam
especial o texto literário, no processo da referenciação estilística.
338
5. — OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NA LINGUAGEM POÉTICA
O poema se inscreve no espaço, assim como na língua, e essa operação de confluên-
cia, em que a atividade enunciativa traz para o nível da linguagem o que está fora dela, já
seria suficiente para justificar uma Estilística da Enunciação. Mas isso não é tudo. Se a lin-
güística do sistema leva em consideração o aparelho formal da língua, constituído pelo
complexo de sua estrutura formal, a lingüística do discurso leva em consideração o apare-
lho formal de enunciação, constituído pelo complexo dos elementosos dêiticos actanci-
ais, temporais e espaciais – cuja função é colocar o locutor em relação constante e necessá-
ria com sua enunciação. Daí emanam inúmeras possibilidades que contribuem para que o
texto poético atinja sua totalidade.
Um dos fatores para nós importante no processo de construção poética é a dicotomia
que se estabelece entre a objetividade e a subjetividade na linguagem. A subjetividade, co-
mo a encaramos aqui, não é meramente a da linguagem expressiva, veículo do pensamento
afetivo, como fez Bally. Tampouco tratamos aqui a noção de subjetividade apenas como a
projeção psicológica do indivíduo em manifestação de estados emocionais. Como nosso
trabalho está fundamentalmente voltado para os fatores inerentes à manifestação da lingua-
gem na legitimação do gênero poético, o que pretendemos, em princípio, é investigar tecni-
camente, a gênese dessa subjetividade. Assim procuramos, como fez Benveniste, atribuir
um estatuto verdadeiramente lingüístico à noção de subjetividade, definida como a capaci-
dade que tem o locutor de se projetar como sujeito do seu próprio enunciado. Pela natureza
do nosso trabalho, a realidade psíquica, emocional e cognitiva do ser humano, comprometi-
da com a apropriação intelectual dos objetos externos, só nos interessa verdadeiramente
enquanto manifestação de linguagem e dos mecanismos lingüísticos de subjetividade.
Aspecto de valor relevante para a construção de sentido textual da subjetividade é o
complexo teórico que envolve a atividade da debreagem. A debreagem enunciativa e a de-
breagem enunciva criam em princípio dois grandes efeitos de sentido: o de subjetividade e
o de objetividade, respectivamente, porque na debreagem enunciativa o eu coloca-se no
interior do discurso, ao passo que na debreagem enunciva o eu se ausenta dele. A debrea-
gem enunciativa cria uma enunciação enunciada, ao projetar no enunciado os actantes, o
339
tempo e o espaço da enunciação. A debreagem enunciva gera apenas um enunciado enunci-
ado, deixando ausente da cena do discurso as instâncias enunciativas.
No texto poético, o efeito de sentido da subjetividade é marca fundamental da poesia
lírica, caracterizada pela projeção do eu enunciador. Tomemos este texto de Mário Quinta-
na em que a subjetividade lingüística é demarcada pela debreagem enunciativa, criando
uma enunciação enunciada, na qual o eu é o núcleo de emanação da matéria poética:
Na minha rua há um menininho doente,
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
Ouve também o carpinteiro, em frente,
que uma canção napolitana engrola.
E pouco apouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...
Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...
O texto apresenta a visão pessoal de uma realidade, captada por um eu que se mani-
festa lingüisticamente por intermédio de certas operações que asseguram o processo enun-
ciativo. Esse eu é a categoria de pessoa essencial para que a linguagem se torne discurso. É
ego quem diz “ego”, e é nesse processo que se encontra o fundamento da subjetividade da
linguagem, que se determina pelo estatuto lingüístico da pessoa
139
. Como a pessoa enuncia
num espaço e num tempo determinados, as noções espácio-temporais organizam-se em
torno do sujeito do enunciado, tomado sempre como ponto de referência no processo da
139
BENVENISTE, Émile. Op. cit. p. 286.
340
discursivização, que é o mecanismo criador da pessoa, do espaço e do tempo da enunciação
e, ao mesmo tempo, da representação da instâncias do enunciado – eu-aqui-agora.
São consideráveis os efeitos de sentido que a subjetividade engendra no texto poético.
No poema acima, tudo se manifesta sob a ótica pessoal do sujeito poético. É ele a fonte das
considerações e das formulações filosófico-existenciais que traduzem a visão poética da
realidade textual. O poema se divide em dois movimentos: o primeiro, constituído pelos
dois quartetos; o segundo, pelos dois tercetos. No primeiro movimento, a visão do sujeito
poético focaliza o mundo exterior, sobre o qual recai sua sensibilidade; no segundo movi-
mento, a visão do sujeito poético reflete sua própria condição existencial. Do confronto
entre os dois movimentos amplia-se a tensão poética do texto.
O primeiro verso “Na minha rua há um menininho doente” deflagra o processo de
subjetividade do texto. Nele se instalam as instâncias actancial do eu (“minha”), do aqui
(“minha rua”) e do agora (“” – presente do indicativo). A partir daí, o sujeito poético se
constitui como núcleo de observação que particulariza o objeto poético do primeiro movi-
mento do poema, representado pelo “menininho doente”, separando-o dos “outros”, que
partem para a escola”. Essa particularização se amplia pela escolha vocabular que carac-
teriza a sensibilidade do sujeito poético na percepção da realidade.
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
(...)
E pouco apouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...
Os advérbios “sonhadoramente” e “gradativamente” são índices de um olhar poético
que se detém sobre o sujeito objeto, captando o aspecto velado do seu estado de espírito e
as sutilezas na mudança que nele se opera. É de se notar a escolha do verbo “evolar-se”,
que está em plena consonância com o contexto em que está inserido. Empregado com o
sentido de “desaparecer por evaporação, esvaecer-se, dissipar-se”, esse verbo introduz uma
dimensão poética volátil, que se sustenta numa configuração subjetiva, amplificada pelo
uso providencial das reticências, sugerindo leveza e progressividade e enunciando que o
pensamento do leitor deve ultrapassar os limites frásticos e ir além do que está registrado
no enunciado.
341
O segundo movimento do poema é introduzido pela conjunção “mas” que traduz uma
noção de restrição em relação ao movimento anterior. Ele é marcado por uma subjetividade
que reflete a condição existencial do sujeito poético, sendo ele mesmo o objeto poético no
qual toda a força enunciativa se concentra. Essa subjetividade, entretanto, é disfarçada pelo
uso da terceira pessoa, que marca a debreagem enunciva, cujo efeito de sentido é a objeti-
vidade e o distanciamento. Mas há um processo de neutralização em que se suspende a o-
posição entre as pessoas do eu e do ele, perceptível no verso “E está compondo este soneto
agora”, que denuncia uma convergência do enunciador (o poeta) e do locutor (o sujeito
poético). Estamos aqui no território da embreagem.
A embreagem é o mecanismo que neutraliza as oposições de pessoa, de tempo e de
espaço. Portanto, da mesma forma que no caso da debreagem, existe uma embreagem ac-
tancial, espacial e temporal, produzida pela neutralização de tais elementos. Em conseqüên-
cia disso, obtém-se na embreagem um efeito de identificação entre o sujeito do enunciado e
o sujeito da enunciação, espaço do enunciado e espaço da enunciação, tempo do enunciado
e tempo da enunciação. A embreagem que aparece no texto é actancial, porque suspende a
oposição entre a terceira pessoa e a primeira pessoa, criando um efeito de distância entre os
actantes da enunciação, colocando-se o enunciatário fora do espaço da cena enunciativa.
Mas no poema, a neutralização, por estranha, acaba por acentuar o sentido subjetivo
do texto, na medida em que sugere o total isolamento do sujeito poético na sua relação com
o universo criado no poema. A carga desse sentido subjetivo se intensifica em certas ex-
pressões que, na sua contextualidade, concentram sentimentos de melancolia, desvaneci-
mento e abandono. O adjetivo no sintagma “operário triste” traduz uma autocomplacência
que se dilata nos versos:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.
É notável o uso do diminutivo no sintagma “alminha boa do menino doente...”, que
comporta uma afetividade fortemente significativa, projetando a visão subjetiva que o sujei-
to poético deixa transparecer e que se prolonga no uso mais uma vez das reticências.
Tomemos agora um texto em que ocorrem outros tipos de embreagem, observando
o efeito de sentido que esse mecanismo introduz no texto poético.
342
João e Maria
Agora eu era herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do Cowboy
Era você além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu botoque
E ensaiava o roque
Para as matinês
Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigado a ser feliz
E você era a princesa que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país
Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Vem me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido
Agora era fatal
Que o faz de conta terminasse assim
Pra lá desse quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim.
(Chico Buarque de Hollan
343
Há dois aspectos significativos a considerar no texto de Chico Buarque: de um lado, a
não-aceitação de uma realidade presente; e de outro, a projeção para um mundo onírico,
para uma realidade utópica, em que o ideal se manifesta como um sonho que precisa ser
restaurado na memória discursiva do sujeito poético. A desolação da realidade temporal do
mundo comentado, o momento da enunciação, é fruto dos acontecimentos do mundo narra-
do, expresso em “você sumiu no mundo sem me avisar”. Esse mundo real, recrudescido
pelos acontecimentos tão dolorosamente vivenciados, só é suportado na recusa de sua reali-
dade, realidade essa em que a lucidez é a marca do reconhecimento de uma angústia cabal,
que se impõe inexoravelmente diante da fatalidade da existência. É dessa consciência pura,
levada à exaustão, que surge o limiar do escapismo, o interstício em que se movimenta o
espírito da redenção.
Esse jogo de não-aceitação e projeção impulsiona a re-construção de um mundo do
faz-de-conta”, que só pode ser viável poeticamente, e isso é feito pela fusão de tempo do
então no tempo do agora, manifestada pela embreagem temporal construída nos versos –
Agora eu era herói” / “finja que agora eu era o seu brinquedo” – e nesta seqüência –
Vem me dê a mão / A gente agora já não tinha medo”, pela incompatibilidade semântica
entre o advérbio (“agora”) e seu verbo no pretérito, e pelos tempos verbais do imperativo
em correlação com o pretérito imperfeito. No texto, o mecanismo da embreagem reconstrói
o mundo do faz-de-conta, anulando a oposição entre o passado e o presente, revigorando o
universo infantil, em que os limites entre a realidade e a fantasia são eliminados. Nesse
universo poético da infância, nesse mundo encantado, construído pela impertinência da
linguagem, todas as impossibilidades tornam-se possíveis, na medida em que só havia uma
lei, única e determinante: “A gente era obrigado a ser feliz”.
Esse espaço mítico de “João e Maria”, restaurado por um sentimento nostálgico, con-
figura-se como um universo autônomo, contraditoriamente gerido pela ausência de leis e
por uma lógica racionalmente impalpável. Aí se manifesta mais uma vez o mecanismo da
embreagem, e desta vez heterocategórica, já que a neutralização se faz entre instâncias de
naturezas diferentes:
Pra lá desse quintal
Era uma noite que não tem mais fim
344
Nos versos destacados, uma instância espacial (o “quintal”) correlaciona-se com uma
instância temporal (a “noite”) que se expressa numa manifestação da natureza. Anula-se a
oposição entre espacialidade e temporalidade, numa imagem metafórica que se aproxima da
sinestesia. Tomando-se a metáfora como elemento redutor do desvio, temos, para “quintal
e “noite”, sentidos de espaço de felicidade e de tempo de sofrimento, respectivamente.
Pela análise que fizemos, podemos avaliar a questão da subjetividade da linguagem e
seus efeitos de sentido a partir dos mecanismos de debreagem e embreagem no processo da
enunciação. E essa subjetividade é sempre uma manifestação da linguagem que tem como
ponto de referência a instância actancial – o enunciador – em torno do qual gravitam as
demais instâncias enunciativas – a espacial e a temporal. Essas instâncias enunciativas, que
compõem o aparelho formal da enunciação, são o núcleo de emanação da subjetividade
lingüística, demarcada pelos componentes da cena de enunciação.
Como se percebe, é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como
sujeito, e ele o faz apropriando-se de certas formas de que a língua dispõe. Isso ocorre fun-
damentalmente com o pronome eu, cujo uso é, para o sujeito, o próprio fundamento da
consciência de si; mas, como diz Benveniste, essa consciência de si só é possível quando
ela se testa por contraste, diante de um tu. Isso significa que não há subjetividade sem inter-
subjetividade. Mas há outras formas lingüísticas que participam da instauração da subjeti-
vidade; entre elas estão as formas temporais e outros indicadores da dêixis – este, aqui,
agora, amanhã etc. – bem como os verbos modalizadores, tais como crer, supor, presumir,
que, empregados na primeira pessoa, exprimem a atitude adotada pelo locutor diante do
conteúdo de sua enunciação. Um enunciado do tipo “Os rios vão secar” é um enunciado
“objetivo”, ao passo que “Suponho que os rios vão secar” é uma enunciação subjetiva.
Reconhece-se uma certa tradição lingüística de objetividade que procura manter a
enunciação afastada da cena discursiva como garantia de “imparcialidade”. Existem com-
provadamente recursos que sugerem objetividade, que permitem fabricar no texto a ilusão
do distanciamento do enunciador em relação à matéria textual. O principal procedimento é
o de produzir o discurso em terceira pessoa, no tempo do então e no espaço do . Sabe-se,
porém, que nenhum texto está totalmente isento de subjetividade, que a imparcialidade ab-
soluta não existe, pois a enunciação, de todo modo, está marcada no enunciado, filtrando
por seus valores e fins tudo que é dito no discurso. Para vencer essa ilusão de objetividade
que a tradição consagrou, procuramos nos servir de outros recursos.
345
Dando continuidade aos trabalhos de Benveniste, Kerbrat-Orecchioni
140
realiza o in-
ventário e a descrição dos lugares de ancoragem em que mais amiúde se manifesta a subje-
tividade linguageira. A lingüista amplia o inventário dos marcadores de subjetividade – os
subjetivemas – , distinguindo, além dos dêiticos, os termos afetivos, os avaliativos axioló-
gicos e não-axiológicos, os modalizadores, e outros lugares ainda de inscrição no enunciado
do sujeito da enunciação – escolha denominativa, seleção e hierarquização das informações
etc. A autora conclui que “a subjetividade está em todo lugar” e que todos os discursos são
subjetivamente marcados, mas segundo formas e graus extremamente variáveis.
A Estilística da Enunciação se interessa por essas formas e graus de subjetividade do
discurso. Quando a subjetividade se reduz ao mínimo e praticamente se anula, tem-se um
enunciado objetivo. Isso ocorre quando o locutor se ausenta do enunciado e o torna inde-
pendente dele e da situação de enunciação. Considera-se ainda objetivo o enunciado cuja
exatidão pode ser comprovada pelo receptor; a objetividade resulta do esforço da razão para
atingir o geral, o universal, que predomina sobre o pessoal e o particular. A subjetividade se
manifesta de forma mais perceptível através dos signos dêiticos, das instâncias enunciativas
eu, aqui, agora – e das formas verbais de primeira pessoa, que marcam a presença do
locutor no enunciado. Além disso, as formas de segunda pessoa também implicam subjeti-
vidade, pois elas só se legitimam na relação com o eu que as profere. Esse tipo de subjeti-
vidade, por jogar com as instâncias enunciativas, é denominada subjetividade dêitica.
A subjetividade pode ser explícita ou implícita. A subjetividade explícita se manifesta
claramente através dos signos dêiticos, que identificam a presença do locutor no enunciado;
a subjetividade implícita ocorre quando o locutor se denuncia indiretamente, através de
julgamentos, de juízos de valor, em que o locutor não deixa de estar por trás da afirmação.
Dizer “Eu considero Drummond o maior poeta brasileiro” é uma subjetividade explicitada
pela presença do dêitico eu; dizer “Drummond é o maior poeta brasileiro” é uma subjetivi-
dade implícita, porque revela o locutor por trás do julgamento, a despeito de sua presença
não estar marcada pelo signo dêitico.
Um dos aspectos de manifestação da subjetividade encontra-se na avaliação. Para
Nilce Sant’Anna Martins
141
, existem diversos tipos de avaliação, nos quais a subjetividade
140
KERBRAT-ORECCHIONI, Catherine. L’Enonciation de la subjectivité dans le langage. Paris: Armand
Colin, 1980.
141
Op. cit. p. 191.
346
se manifesta em níveis variáveis: a quantitativa, a modalizadora, e a axiológica (apreciati-
va) que sucintamente passamos a abordar:
a) A avaliação quantitativa pode expressar objetividade quando se realiza através de
medidas exatas; mas tais medidas, quando relacionadas a critérios de avaliação, provocam
uma fenda por onde passa a subjetividade. Pela imprecisão, mais subjetiva é a avaliação
quantitativa com certas expressões indefinidas tais como muito, pouco etc. e comparati-
vos/superlativos tais como maior, menor etc., que dependem de uma referência que se ori-
gina do espírito do locutor.
b) A avaliação modalizadora revela se o locutor considera o fato a que se refere como
verdadeiro, falso, certo, incerto, possível, desejável, indesejável etc. Sendo o fato conside-
rado verdadeiro, o locutor emprega o modo do indicativo, que pode vir acompanhado por
expressão adverbial modalizadora, tal como realmente, lamentavelmente etc. Se o fato é
considerado falso, o locutor pode contestá-lo de forma mais ou menos veemente, o que de-
pende de sua subjetividade. Caso o locutor queira ressaltar o estatuto da dúvida, pode em-
pregar, à sua escolha e conveniência poética, uma forma modal denotadora de incerteza ou
possibilidade, como o futuro do presente, o futuro do pretérito ou o subjuntivo.
c) A avaliação axiológica aborda valores morais ou estéticos e liga-se aos binômios
bom/mau, bonito/feio, útil/inútil. Aqui ocorre a intensificação da subjetividade pelo viés das
tonalidades emotivas através das quais se avaliam os fatos.
A subjetividade pode apresentar índices de afetividade, e a subjetividade afetiva é
típica das composições líricas, pois se relaciona com o fato de o falante mostrar-se emocio-
nalmente envolvido com o conteúdo do seu enunciado. O locutor pode declarar explicita-
mente os seus sentimentos, falando diretamente de si mesmo, ou deixar transparecer suas
emoções através do léxico, de determinadas figuras ou construções, de implicaturas e reca-
tegorizações. Além disso, consideramos importante o emprego dos tempos verbais, princi-
palmente na oposição entre os tempos do mundo narrado e os tempos do mundo comenta-
do, em que se estabelecem as fronteiras entre a história e o discurso, em cujo interstício se
manifestam as tensões poéticas do texto. Essa subjetividade afetiva, que pode estar em tex-
347
tos de qualquer natureza, está sempre presente em toda a poesia, que é, por excelência, o
lugar das manifestações emocionais, evidentemente construídas por uma linguagem que
tem como proposta básica transformá-las em emoções estéticas.
Analisemos este poema de Drummond:
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
Por isso me grito,
Por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navio que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre das mãos,
tão calma! vai inundando tudo...
348
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão do indivíduo
desaprendi a linguagem
com que os homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! nós te criaremos.
No poema, a subjetividade se manifesta de várias formas, à luz de construções que
visam à conformação estética da obra em seu contexto. O texto de Drummond se constrói
num jogo de avaliações subjetivas entre o mundo e o sujeito poético. É nesse jogo de avali-
ações que o poeta estabelece o papel da sua poesia, em oposição a uma poesia de escapismo
349
e alienação. Numa forma de contestação velada, o poeta confronta duas estéticas e traça as
diretrizes de uma poesia atuante e atual.
Entre o título e o corpo do poema emerge uma concepção poética que projeta sobre o
texto uma dimensão estética perturbadora, problematizante, adversa a uma estética recon-
fortante e anacrônica. Já nos primeiros versos, o poeta parte de um pressuposto que põe em
dúvida uma poética tradicionalmente legitimada:
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Pela via da negação, ocorre a rejeição de uma concepção artística egocêntrica, em que
o eu é maior que o mundo. A partir daí, desencadeia-se um conjunto de avaliações subjeti-
vas que se revelam direta ou indiretamente, como se percebe em toda a segunda estrofe:
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
A subjetividade se manifesta fortemente na adjetivação que, pelo processo de predi-
cação, antecede o verbo, dando destaque às expressões avaliativas:
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração
ou por intermédio da ruptura providencial do paralelismo semântico em expressões figura-
das, que, por si mesmas, já são índices de subjetividade:
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo
350
e finalmente pelo simbolismo das alegorias que estão dispersas ao longo do poema, tais
como as que selecionamos, para citar algumas:
Outrora escutei os anjos, / as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Meus amigos foram às ilhas. / Ilhas perdem o homem.
É ainda notável o emprego dos tempos verbais, que, a despeito dos propósitos distin-
tos, dão relevo a impressões subjetivas, que têm no locutor sua fonte de emanação. Obser-
vemos, inicialmente, o emprego do futuro do presente, que, associado a imagens poéticas
contextualmente sintomáticas e ao jogo articulatório do quiasma, enfatizam o efeito de sen-
tido de uma dúvida angustiante:
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
São relevantes o emprego do presente do indicativo e do pretérito perfeito do indicati-
vo; o primeiro caracterizando o mundo comentado, e o segundo, o mundo narrado. Entre
ambos se estabelece a tensão de um jogo de adesão e rejeição, que se instaura no confronto
de duas concepções poéticas distintas, sobre as quais se projeta a subjetividade do locutor.
O mundo narrado constitui um universo poético de sonho, de idealização e de escapismo:
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
(...)
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar
,
de individualismo egocêntrico:
Nunca escutei voz de gente,
sobre o qual recai uma visão crítica e desmitificante, engendrada no mundo comentado:
Em verdade sou muito pobre,
351
que oscila entre a possibilidade de restauração:
Então, meu coração também pode crescer
e o reconhecimento das limitações:
meu coração cresce dez metros e explode,
para se recompor na projeção subjetiva de uma esperança:
– Ó vida futura! nós te criaremos.
O gênero poético constitui um simulacro de situações e exige uma análise que atente
para o caráter de sua simulação. No que se refere às instâncias actoriais, é preciso estabele-
cer planos de emanação da subjetividade. Ao longo do poema, percebe-se que o locutor é
sempre o pêndulo das avaliações, é o elemento de referência de todas as modalizações que
se processam pelas vias de uma subjetividade que, direta ou indiretamente, dá o tom poéti-
co do texto. Mas esse locutor, que a literatura denomina eu-lírico, é produto da criação poé-
tica, ao qual não se pode creditar a arquitetura artística do texto. Esta deve ser creditada ao
poeta, ao qual se atribui a subjetividade da escolha lexical e da organização da linguagem
poética. Talvez se possa falar de uma confluência de enunciadores, mas, sendo a literatura
um ato de criação, preferimos manter separadas as duas instâncias. Se o locutor é o respon-
sável pela subjetividade da mensagem poética, o poeta é o pólo de enunciação responsável
pela subjetividade da organização estético-formalista do poema – construção de imagens,
escolhas formais e lexicais, recategorizações etc. – para os efeitos do sentido poético.
A lingüística da enunciação, que se tem caracterizado por oposição a uma lingüística
das formas, origina-se das análises dos shifters de Jakobson, dos performativos de Austin e
da categoria da pessoa de Benveniste. À Estilística da Enunciação, como se pode ver, inte-
ressa a captação do modo como as operações em que esses elementos estão inscritos podem
contribuir para a emanação do poético no texto. Fatores articulatórios através dos quais a
subjetividade se processa, tais como a debreagem, a embreagem e os atos de fala, tornam-
se relevantes, na medida em que, através deles, se manifestam as projeções do eu, que tra-
duzem uma visão de mundo da qual o poema se alimenta e com a qual ele se lança no uni-
verso discursivo
352
6. — GÊNEROS DISCURSIVOS E TEXTO POÉTICO
Fator de relevância na análise dos textos é a categoria de gêneros discursivos (ou gê-
neros textuais). Gêneros discursivos são formas relativamente estáveis de enunciado pelas
quais a comunicação verbal se materializa nas diferentes práticas sociais. Os gêneros textu-
ais não são simplesmente os meios apropriados às nossa intenções e finalidades comunica-
tivas segundo as diversas práticas sociais; do ponto de vista de quem fala ou escreve, eles
são expressões de papéis sociais, aos quais dão legitimidade; do ponto de vista do ouvinte
ou leitor, eles fornecem uma primeira orientação para uma adequada atribuição de sentido.
Isso nos diz que ao deparar com um texto de qualquer natureza, poético, publicitário, cientí-
fico, o leitor deve lê-lo como tal, isto é, considerando todas as implicações que esse tipo de
texto apresenta – código de linguagem, estrutura formal etc., que o tornam tipos de enunci-
ado auto-reconhecíveis.
Um gênero textual não se afirma apenas pela intenção que existe por trás da produção
de um texto; ele se impõe tamm e principalmente pela forma, estrutura e código de lin-
guagem que o caracteriza. Assim, a legitimidade de um gênero textual não se configura
somente no dictum apropriado a um determinado gênero, mas também no modus como ele
se manifesta. Então é na relação dialética entre dictum e modus que um texto se enquadra
em um determinado gênero discursivo. Grosso modo, podemos dizer que um gênero textual
tem seu próprio ethos, que se construiu ao longo de uma tradição cultural através da qual
ele se constituiu e ganhou legitimação. O que se quer dizer é que um texto como uma recei-
ta médica ou um relatório técnico, a despeito do conteúdo específico, não tem legitimidade
se for construído sob a forma de poema ou de anúncio publicitário, porque, para a legitima-
ção de um gênero, o dictum tem que ser ratificado pelo modus, numa conjunção identitária.
Na abordagem dos gêneros discursivos, levamos em conta a cena da enunciação.
Segundo Charaudeau e Maingueneau
142
, a cena de enunciação é uma noção que, em análise
do discurso, é freqüentemente empregada em concorrência com a de “situação de comuni-
cação”. Mas, falando-se de cena de enunciação, releva-se o fato de que a enunciação acon-
tece em um espaço instituído, definido pelo gênero de discurso, mas também sobre a di-
142
CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Op. cit.
353
mensão construtiva do discurso, que se “coloca em cena”, instaurando, numa operação dia-
lética, seu próprio espaço de enunciação. Dentre tantas noções que esse termo pode engen-
drar, citamos a de Maingueneau, que propõe uma análise da cena de enunciação em três
cenas distintas: a cena englobante, a cena genérica e a cenografia.
143
A cena englobante é aquela que atribui a um texto um estatuto pragmático relaciona-
do ao tipo de discurso a que ele pertence. Ela estabelece que o leitor, ao confrontar um tex-
to, deve ser capaz de determinar se ele pertence ao discurso político, científico, religioso
literário etc. Em outras palavras, em qual cena englobante o texto se coloca para interpelar
o seu leitor, orientando-o no seu processo de recepção, a partir do tipo de texto.
A cena genérica são as marcas formais de um texto que definem cada gênero de dis-
curso em particular. Cada gênero de discurso define seus próprios papéis. Assim, cada gê-
nero de discurso implica, efetivamente, a especificidade de uma cena que inclui papéis para
seus parceiros, circunstâncias que se relacionam particularmente com um modo de inscri-
ção no espaço e no tempo, um suporte material, um modo de circulação, uma finalidade etc.
A cenografia é a configuração formal assumida pelo texto aos olhos do leitor. Um
panfleto publicitário, por exemplo, pode apresentar-se aos olhos do leitor sob a forma de
uma carta ou de uma receita culinária. A cenografia não é imposta pelo tipo ou pelo gênero
de discurso; na verdade ela é instituída pelo próprio discurso. Assim, ela é, a um só tempo,
aquilo de onde vem o discurso e aquilo que esse discurso engendra; ela legitima o enuncia-
do que, dialeticamente, deve legitimá-la, mostrando que ela é necessária para tornar discur-
so a intenção de uma enunciação. Mas nem todo gênero de discurso é sensível a uma ceno-
grafia. Há gêneros que, pela própria natureza e pela sua forma enrijecida, mantêm-se em
sua cena genérica. É o caso, por exemplo, de listas telefônicas, receitas médicas, ou textos
de leis, cuja credibilidade depende da sua forma esteriotipada na comunidade discursiva.
O gênero poético, sendo movido por uma intenção estética, torna-se perfeitamente
permeável a cenografias diversas, que obedecem tão somente a um propósito de criativida-
de na busca do efeito de sentido poético. Um poema pode assumir a forma que o poeta de-
sejar dentro das cenografias que lhe são peculiares – um soneto ou um haicai, por exemplo.
Depois das conquistas formais do Modernismo, as formas fixas de expressão poética torna-
ram-se uma opção no repertório de escolhas do poeta. Sem a obrigatoriedade das normas
143
MAINGUENEAU, Dominique. Análise de Textos de Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002
354
poéticas tradicionais, o valor da forma escolhida pelo poeta se enquadra no equivalente ao
conferido à totalização do funcionamento poético de um texto.
Retomemos este poema de Vinícius de Moraes, e vejamos como a forma fixa do sone-
to é providencial:
Soneto da devoção
Essa mulher que se arremessa, fria
E lúbrica em meus braços, e nos seios
Me arrebata e me beija e balbucia
Versos, votos de amor e nomes feios.
Essa mulher, flor de melancolia
Que se ri dos meus pálidos receios
A única entre todas a quem dei
Os carinhos que nunca a outra daria.
Essa mulher que a cada amor proclama
A miséria e a grandeza de quem ama
E guarda a marca dos meus dentes nela.
Essa mulher é um mundo! – uma cadela
Talvez... – mas na moldura de uma cama
Nunca mulher nenhuma foi tão bela!
(Vinícius de Moraes)
No pequeno universo do poema, o poeta cria uma situação de acentuada sensualidade
e erotismo que, levando em consideração o aspecto conteudístico e formal do soneto, en-
contra correspondência física e existencial no par dos últimos versos. Associamos aqui a
forma fixa da “moldura de uma cama” à forma fixa da moldura do soneto: em ambas a mu-
lher se revela em toda sua sensualidade, fundindo, assim, iconicamentemo, universo poe-
mático ao universo do mundo referenciado. A cama e o soneto constituem o lugar da ação
erótica manifestada no império do discurso, na confluência entre cenografia e mensagem.
355
Da mesma forma, ainda se beneficiando da liberdade de expressão conquistada pelo
advento do Modernismo, a cenografia deste poema de Bandeira corresponde ao ethos que o
poeta procurou criar através dela na comunidade discursiva:
vEJAMOS:
Poética
Estou farto de lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
[protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o
[cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si
[mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
[exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes ma-
[neiras de agradas às mulheres, etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare
— Não quero mais saber de lirismo que não é libertação.
(Manuel Bandeira)
356
Observa-se que a forma do poema está em perfeita consonância com seu conteúdo.
Não faria o menor sentido se o poema revelasse a mensagem que revela sob a forma de um
soneto ou de outra qualquer forma que obedecesse às leis da tradição poética. Aplicamos
aqui, mais uma vez, o princípio da adequação da parte ao todo poético. A forma livre do
poema está a serviço da liberdade de expressão que o texto reivindica. A ausência de rimas
e a irregularidade da métrica (e conseqüentemente do ritmo) manifestam-se como meio de
traduzir para o exterior um sentido que é criado pela própria organização da linguagem. É
evidente que esse sentido só se legitima na interdiscursividade, no confronto com a alteri-
dade manifestada pela deontologia da cenografia genérica da tradição antemodernista.
Mas o gênero poético, em conseqüência da especificidade da sua linguagem, pode
permitir-se uma certa permeabilidade que não chega a descaracterizá-lo. Por conta disso,
pode travestir-se de outras cenografias colocando em segundo plano a cena englobante e a
cena genérica que lhe são próprias, fazendo aparecer estereótipos de outros gêneros – ter-
mos técnicos, expressões cristalizadas, vocabulário marcado etc. Nesse caso, o estatuto do
gênero poético repousa na configuração do seu próprio código de linguagem, que lhe dá a
garantia da convenção poética. Esse código de linguagem, que se manifesta pela forma de
apropriação da língua, pode realizar-se pela captação ou pela subversão (ou paródia) do
estilo de um determinado gênero, criando uma tensão através da qual se manifesta o sentido
poético do texto. Assim o poema pode assumir a cenografia de uma ata, de um convite for-
mal, de uma oração, de uma piada, de um anúncio publicitário etc. Retomemos este texto:
maturidade
O Sr.e a Sra. Amadeu
Participam a V. Exa.
O feliz nascimento
De sua filha
Gilberta
(Oswald de Andrade)
O poema explora a forma de um comunicado formal, com fórmulas lingüísticas mar-
cadas por lugares comuns, típicas de uma atividade social determinada, e se faz poema por
um processo de “colagem”, a partir do qual promove o deslizamento de uma função social
357
para outra, em conseqüência da comunidade textual em que o texto está inserido. Na ver-
dade, o texto de Oswald constitui, de forma irreverente, uma reação aos postulados da poé-
tica convencionalmente imposta até antes da sanha modernista. Usando as técnicas de
composição do ready-made, levada a termo pela estética dadaísta, o poeta transforma um
objeto estranho ao mundo poético em poesia, e o faz pelo deslocamento do setor social de
atuação do gênero correspondente à cenografia sob a qual ele se apresenta. Aqui a criação
artística está na atitude desse deslocamento do “já pronto” do seu contexto habitual para
um universo que não lhe é reconhecível. Através dessa atitude questionam-se os valores de
uma sociedade burguesa que não ultrapassava os limites das suas próprias convenções.
É evidente que esse “empréstimo” cenográfico tem sua funcionalidade limitada por
um contexto social artisticamente marcado – o momento da revolução modernista. Entram
aqui os conceitos de interdiscursividade, em que se manifestam as noções providenciais de
enunciado-tipo e enunciado-ocorrência. Sob a máscara daquele, este se revela, dentro de
um propósito definido por uma intenção estética orientada pela irreverência, em que se
manifesta a tensão de uma ironia estética, através da qual se extraem os efeitos de sentido
poético desejado, que só podem ser captados pela intertextualidade operada na estilização.
Mas não se perca de vista que a linguagem é o lugar de manifestação das idéias. En-
tão não se fala de gêneros discursivos sem se considerar a relação que estes têm com o có-
digo de linguagem. Bakhtin, estabelecendo uma relação dialética entre a linguagem e reali-
dade, afirma que “a língua passa a integrar a vida através de enunciados (que a realizam); é
igualmente através de enunciados concretos que a vida entra na língua”.
144
Postula ainda o
filósofo que todo estilo está indissociavelmente relacionado com as formas típicas de enun-
ciados, ou seja, com os gêneros do discurso. Pensando com ele, defendemos que essa rela-
ção orgânica e indissolúvel do estilo com o gênero discursivo se concentra na questão da
funcionalidade do estilo, e os estilos de linguagem nada mais são do que estilos de gêneros
que se manifestam nas diversas esferas das atividades humanas e da comunicação. Em cada
campo das atividades humanas existem gêneros aos quais correspondem determinados esti-
los. Assim, uma determinada função – científica, religiosa, literária – e determinadas con-
dições de comunicação discursiva geram determinados gêneros e, conseqüentemente, de-
terminados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente está-
veis. Então, o estilo integra a unidade de gênero do enunciado como seu elemento.
144
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 265
358
Colocadas essas questões, vemos a cisão dos estilos em relação aos gêneros discursi-
vos como uma atitude redutora para uma compreensão mais ampla do estudo da linguagem.
Isso não significa que o estilo não possa constituir um campo específico dos estudos lin-
güísticos, como bem tem mostrado a estilística da língua como disciplina autônoma. Mas,
convenhamos, a Estilística do Enunciado deixa de fora uma série de questões históricas de
fundamental importância, visto que as mudanças históricas dos estilos estão indissociavel-
mente ligadas às mudanças dos gêneros, das cenas genéricas e das cenografias de cada gê-
nero. É aqui que nos situamos para atestar a validade de uma Estilística da Enunciação.
A linguagem literária é, por excelência, um sistema dinâmico e complexo do estilos
de linguagem; e isso se acentuou com a liberdade modernista, em que a supremacia da es-
cola literária cedeu lugar à do estilo de cada autor. Sem fórmulas pré-estabelecidas, cada
poema tornou-se uma obra única, com feição própria e cenografia particular, porque o peso
específico desses estilos e sua inter-relação no sistema de linguagem estão em mudança
permanente, adaptando-se a cada instante a uma estética particular que emana da configu-
ração de cada poema em particular. E isso se dá por conta de uma ótica particular de mun-
do, que se reflete irrefutavelmente na formatação genérica da obra, seja no plano do conte-
údo, seja no plano da expressão.
A linguagem poética obedece a uma sistematização bastante complexa que se orga-
niza historicamente em suas próprias bases. Para compreender a complexa dinâmica histó-
rica dessa sistematização e ir além de uma descrição simples e redutora dos estilos que se
manifestam alternadamente no curso da história, é necessário observar com acuidade a evo-
lução dos gêneros discursivos, que projetam de modo preciso todas as mudanças que trans-
correm na vida social e que se refletem na organização estética da obra.
Observemos os textos abaixo:
Mulher, Irmã, escuta-me: não ames,
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas de mentira
E o juramento é manto de perfídia.
(Joaquim Manuel de Macedo)
359
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não, Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA
(Manuel Bandeira)
O poema de Macedo obedece a uma orientação genérica que corresponde à cultura
romântica, pela qual perpassa o ethos de uma gravidade quase doutoral. O sujeito poético
assume uma postura de recato que transparece na formulação de uma linguagem “nobre”,
declamatória, como bem convém às práticas discursivas convencionalmente aceitas pela
comunidade discursiva de então – cujos postulados estéticos convergem para uma ética de
linguagem que legitima o gênero poético como uma manifestação cultural historicamente
marcada. No texto, as imagens poéticas se corporificam pela escolha de vocábulos cuida-
dosamente selecionados que em nada lembram os aspectos prosaicos da existência comum.
Contribui para isso a formulação de sintagmas cujos efeitos de sentido estão envoltos em
uma aura de sacralidade tão cara à poesia romântica. Expressões poéticas como “homem
terno e curvo”, “pranto de sangue”, “galas de mentira” e “manto de perfídia” fazem parte
de um “repertório” poético que pretende fugir do lugar comum da linguagem cotidiana.
Além disso, o respeito à regularidade métrica e ao ritmo dão sustentação a uma poéti-
ca que traz no seu bojo uma cenografia genérica poeticamente convencionada, ratificada
por um código de linguagem que lhe serve de alicerce. O texto se constitui numa adequa-
ção de conveniências estéticas: à “nobreza” do tema poético corresponde a “nobreza” da
forma e do estilo poético; à visão de mundo corresponde uma visão artística, ao ethos cul-
tural corresponde uma cenografia genérica necessária para sua credibilidade e indispensá-
vel à sua legitimação. Ainda que não se possa ignorar o estilo individual, visto que ele está
sempre presente, a legitimação do gênero discursivo como categoria poética subordina-se
mais à supremacia de uma escola literária do que à individualidade criadora do artista.
360
O poema de Bandeira encontra-se numa interseção cujos elementos constituintes se
manifestam pela forma poética assumida e pela interdiscursividade, por meio da qual cons-
trói sua referência axiológica, em que também está inserida sua própria forma. Integrado no
momento estético da revolução modernista, o poema constitui uma reação aos postulados
estéticos da tradição romântica, estabelecendo uma relação intertextual com o poema de
Macedo. Essa relação intertextual se dá por um processo de imitação que abrange os dois
planos poemáticos: o plano da expressão e o plano do conteúdo, sobre os quais constrói a
cena de enunciação do seu gênero discursivo.
Já dissemos que as mudanças históricas dos estilos de linguagem estão indissocia-
velmente ligadas às transformações dos gêneros discursivos. Como a linguagem literária é
um sistema dinâmico dos estilos de linguagem, é preciso acompanhar o dinamismo históri-
co desse sistema para compreender o conjunto de mudanças que se corporificam na confi-
guração genérica assumida pelo texto. Se, por um lado, a cena englobante e a cena genérica
nos permitem caracterizar o texto como poético, por oposição aos gêneros não-poéticos,
por outro, em um nível que o texto poético permite, temos uma cenografia que se configura
no interdiscurso pelo confronto com o intertexto.
Considerando a noção de intertextualidade com o texto de Macedo, analisemos, em
princípio, o plano do conteúdo, que se manifesta num processo de captação. Ambos os
textos desenvolvem um mesmo tema – a falácia no galanteio amoroso –, buscando o efeito
de sentido por um ato de fala ilocutório que se caracteriza no emprego do imperativo – “es-
cuta-me”, “não ames”, “não creias, não” / “Não acredita não”, “cai fora”. Isso põe os dois
textos em pé de igualdade, já que em ambos a visão de mundo é idêntica no que diz respei-
to às relações humanas. Neles um eu se dirige a um tu, diante do qual cria um ethos de
afetividade, revelando preocupação em relação à vivência do sentimento amoroso.
Mas o texto poético se faz poético pela linguagem, e é pela subversão que percebe-
mos a diferença entre ambos. As marcas formais que caracterizam a liguagem são indícios
de contrastividade no tratamento do tema. O texto de Bandeira procura desmitificar pelo
viés da linguagem a noção de “nobreza” que o texto de Macedo confere ao tema. Por meio
de uma linguagem coloquial aparentemente entregue ao sabor da espontaneidade, Bandeira
dá um novo matiz à cenografia genérica do seu texto. Contaminado pela iconoclastia mo-
dernista, o texto recategoriza, pelo código de linguagem, a dimensão filosófica assumida
pelo texto de Macedo, dando a este um caráter desprestigiado pelo anacronismo.
361
Aqui, cenografia e linguagem estão em plena consonância, já que ambas atuam diale-
ticamente na constituição de um ethos genérico aos olhos do leitor. No texto de Bandeira,
nada nos conduz à sublimidade reivindicada pelo texto de Macedo. A forma das expressões
lingüísticas revelam descrença em relação ao sentimento amoroso manifestado no galantei-
o, e isso se faz pela escolha dos vocábulos de que se constituem os sintagmas. Há no texto
de Bandeira um jogo de expressões que no percurso discursivo se opõem frontalmente à
ginástica declamatória do texto de Macedo, e se opõe pelo seu caráter coloquial e usual,
tradicionalmente considerado apoético ou antipoético. Vejamos o quadro de oposições:
não ames x cai fora
homem terno e curvo x algum sujeito
jurar amor x jurar uma paixão do tamanho de um bonde
chorar pranto de sangue x se rasgar todo
não creias, não x não acredita não
ele te engana x é mentira
as lágrimas são galas de mentira x é lágrima de cinema
manto de perfídia x tapeação
Além do nível da linguagem, a organização formal do poema contribui também para a
reconstrução da cenografia genérica do texto. Os versos livres manifestam uma liberdade
de expressão pela qual o poeta se inscreve numa comunidade discursiva, engendrando uma
prática de discurso que põe em relevo uma dimensão poética cuja diretriz se estabelece na
adequação do parte ao todo. O aspecto estético-formal é elemento que se manifesta como
um dos responsáveis pela constituição do sentido poético do texto. Forma e linguagem
constituem pela interdiscursividade uma reação aos postulados estéticos estratificados pela
tradição poética.
O poema de Bandeira promove uma nova atualização da expressão poética, e essa
atualização se legitima pela ruptura do pattern de um contexto estilístico que só se percebe
no interdiscurso. Estamos, pois, no liame da historicidade de um gênero discursivo, através
da qual percebemos a instalação de novos valores poéticos, que se manifestam no próprio
ato de ruptura, pois é nele que o usual se torna inusitado e o apoético se torna poético, já
que a coloquialidade é trabalhada como elemento de manifestação estética.
362
Confrontemos agora dois poema – o primeiro, de Luís de Camões, o segundo, de um
poeta desconhecido:
Texto I Texto II
Alma minha gentil que te partiste Sogra minha imbecil, que te partiste
tão cedo desta vida descontente, tão tarde desta vida de repente,
repousa lá no céu eternamente escalda-te no inferno incandescente
e viva eu cá na terra sempre triste. e não pense que eu choro ou fico triste.
Se lá no assento etéreo, onde subiste, Se lá no averno mundo onde sumiste
memória dessa vida se consente, te afogaste na fornalha ou na água quente,
não te esqueças daquele amor ardente, Não te esqueças, megera impertinente,
que já nos olhos meus tão puro viste. que mal que sempre dura não existe.
E se vires que podes merecer-te E se acaso nem mesmo o Demo possa
alguma coisa a dor que me ficou nas geenas do abismo conservar-te,
da mágoa, sem remédio, de perder-te; olha, escuta, te juro, e não é troça,
roga a Deus, que teus anos encurtou, que se voltas a esse mundo em exorcismo,
que tão cedo de cá me leve a ver-te, arrebento-te de pau, dou-te uma coça,
quão cedo de meus olhos te levou. na primeira seção de espiritismo.
O poema de Camões se reveste de uma forte carga dramática, amplificada por uma
linguagem expressiva, retórica, como bem convém ao estilo clássico. Marcadas pelas in-
versões, as construções sintagmáticas aproximam-se da sintaxe latina. Isso se deve às influ-
ências do período pseudo-etimológico
145
que marcou o século XVI, quando os escritores
buscavam imitar o modo de expressão dos clássicos antigos. Embora essa imitação tenha
ocorrido mais fortemente no plano lexical, não se pode negar que no plano da sintaxe esse
fenômeno também se fez presente. A expressão “alma minha”, geralmente criticada por
formar um cacófato, era própria do século XVI, quando diversos autores empregavam
construções como “amigo meu”, “amiga minha”, “alma minha”, etc. Nessa época, estuda-
145
Ver COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1978, p. 75.
363
va-se o latim puro, e era comum o uso de expressões latina tais como “amicus meus” (e não
meus amicus”), “anima mea” (e não “mea anima”), o que mostra claramente a influência
da sintaxe latina na literatura de então. Camões recorreu a asse artifício outras vezes, como
bem atesta o soneto que começa com o verso “Ah Fortuna cruel! Ah duros Fados”, e ter-
mina com estes:
De queixar-te, alma minha, te retira:
alma, de alto caída em penas graves,
pois tanto
amaste em vão, em vão te queixas.
A influência da língua latina na produção literária do quinhentismo era, na verdade,
uma maneira de conferir à literatura uma chancela de respeitabilidade e nobreza. No texto,
camoniano, esse indício de nobreza poética é ratificado pela própria forma do soneto (pe-
queno som), que, desde o seu surgimento, na Idade Média (século XIII), sempre foi consi-
derado um gênero poético prestigioso e, por conta do seu próprio prestígio, sempre esteve
associado a um comportamento poético historicamente marcado pelo refinamento temático
e expressional.
Vejamos o que diz sobre o soneto um especialista:
O soneto foi, e é, um Sol que surgiu na Idade Média, período-base das literatu-
ras ocidentais, para se projetar pelos séculos afora, enfim, o único poema de forma
fixa que ainda subsiste.
Quase ao término da longa noite medieval – noite em que se ostentaram inúmeras
estrelas luminosas – nasceu a maior delas, o Soneto, com um destino de magia, capaz
de perenizá-lo, como, incontestavelmente, vem acontecendo.
146
E ouçamos ainda o que diz um ardoroso admirador do soneto:
A arte de fazer sonetos pode ser comparada à arte de enfiar pérolas.
147
(Rosemond Gérard)
146
LIMA, Vasco de Castro. O Mundo Maravilhoso do Soneto. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1987. p. 61.
147
In LIMA, Vasco de Castro. Idem, contracapa.
364
Descontado o tom exaltado e subjetivo, os depoimentos e opiniões acima confirmam
o prestígio dessa secular forma de manifestação poética. Estamos, pois, diante de um gêne-
ro discursivo que se fixou na história da literatura universal como uma forma de manifesta-
ção poética cujo caráter atemporal o transformou numa referência da boa poesia, irretocá-
vel e indefectível, que o código de linguagem tem a obrigação de ratificar e legitimar, como
ocorre no poema de Camões.
Recriando o poema de Camões, o texto II se constitui, simultaneamente, por um pro-
cesso de captação/subversão do texto I. É interessante notar como aquele se constrói poeti-
camente diante deste, pelo viés da interdiscursividade. Mantém-se a cena genérica do po-
ema, mas, em obediência ao processo parodístico, rompe-se a convenção nobiliárquica da
cenografia do soneto. Tudo se processa num providencial jogo estratégico de apropriação e
recusa, que se situa entre uma ironia fina e uma agressão direta, e isso se faz não só pela
desmitificação da abordagem temática como também por um modo de apropriação especí-
fico da linguagem.
No plano anedótico, a figura sublime de um ser idealizado e de um amor incondicio-
nal é desmitificada e substituída pela figura culturalmente estigmatizada da “sogra”. Passo
a passo, a paixão cede à rejeição, a salvação dá lugar à danação, e o sagrado configura-se
no maldito. No plano lingüístico, o texto II se beneficia do código de linguagem do poema
camoniano, ora retomando-o ora contrapondo-se a ele.
As retomadas, por um lado, ocorrem pela escolha da certas formas de expressão e de
certos vocábulos que, de alguma forma, correspondem a referências ao texto de Camões. O
texto II recorre a certos recursos expressionais do intertexto e mantém com ele os traços
identitários necessários para o reconhecimento da relação entre ambos: as inversões sintáti-
cas que o caracterizam (alma minha / sogra minha), o tom ilocutório do imperativo (repou-
sa / escalda-te), a segunda pessoa gramatical (te), o aspecto prosódico e esquemático das
rimas (subiste / consente / ardente / viste X sumiste / quente / impertinente /existe), e a
métrica e o ritmo dos decassílabos heróicos (acentuação na 6ª e 10ª sílaba poética):
Alma minha gentil, que te partiste
Sogra minha imbe
cil, que te partiste.
365
Some-se a isso o uso, no texto II, de certos vocábulos de natureza erudita, tais como
averno e geenas, que, de alguma maneira, estabelecem uma estilização a partir do léxico de
Camões, como ratificação da intertextualidade. Mas esses traços de identidade são, na ver-
dade, recursos empregados para a configuração da ironia. Esta se processa pelo viés da
heterogeneidade enunciativa, através da qual o caráter erudito funciona como uma captação
estilística que alicerça uma voz que se levanta para ridicularizar o objeto-de-discurso,
transformado aqui em objeto poético, em conseqüência da natureza genérica do texto.
Por outro lado, num processo de oposição explícita ao texto I, o texto II se encerra
num corolário de expressões grotescas, como a confirmar de forma incontinente o que se
vinha prenunciando ao longo do seu percurso enunciativo. Não há mais conter-se, após as
insinuações veladas que se processaram no decorrer do texto. Expressões prosaicas como
arrebento-te de pau” e “dou-te uma coça” atualizam definitivamente a visão poética que
se desenvolve no interdiscurso. Impõe-se aqui, sem pejo, uma nova concepção poética,
obediente às irreverências e iconoclastias reivindicadas pela poética modernista. Então, sob
a forma fixa do soneto, gênero poético por excelência prestigiado e prestigioso, manifesta-
se uma reação inusitada – em vez da reverência, a galhofa; em vez do nobre, o prosaico;
em vez do sublime, o grotesco – que, pelo seu aspecto desconcertante, é incondizente com
a cenografia genérica do texto.
É interessante notar, ainda, que o texto II promove uma ruptura formal em relação ao
texto I. A soltura do verso 10 – “nas geenas do abismo conservar-te” – estabelece uma
quebra no esquema rimático do poema. A ausência de rima deste verso não só expressa
uma irreverência formal como também tem valor significativo para o sentido poético do
texto, pelo aspecto semântico que ela engendra. Essa dissonância formal nos coloca diante
de uma situação de exceção, que abre uma fenda pela qual o objeto poético (a sogra) esca-
pa do universo textualmente criado – o “inferno incandescente”, o que acentua seu estigma
e seu caráter negativo. Assim, o que se tem é uma formulação semântica oriunda da combi-
nação da forma com o sentido da mensagem poética, pelo viés da subversão da cenografia
de um gênero fixo, protegido e enrijecido por uma tradição historicamente cristalizada.
Percebe-se, então, que todos esses conceitos que envolvem a cena da enunciação es-
tão intimamente relacionados com o modo de apropriação da língua – o código de lingua-
gem –, em obediência a um determinado gênero. Assim, a voz que fala o que fala deve falar
como convém falar, pois o código de linguagem legitima o ethos que se pretende criar.
366
A cena de enunciação no texto poético, pela natureza do seu gênero, se traduz de
forma muito específica. Como já dissemos anteriormente, e nunca é demais repetir, poesia é
forma, não substância. Por esse prisma, a legitimação do texto poético começa pela sua
forma, que tem um estatuto jurídico quase deontológico. Isso significa dizer que sua cena
genérica é indício da legitimação do seu gênero, que já se manifesta no seu projeto inicial.
Mas, como todo gênero discursivo, é preciso que o código de linguagem ratifique, como
convém, a configuração do gênero poético. Aqui, mais do que nunca, é necessário que a
linguagem intervenha como elemento de legitimação do estatuto poético do texto. E isso se
faz no poema pela via da sedução, da criatividade estética que se manifesta no fluxo da
linguagem.
Diferentemente de alguns outros gêneros discursivos cuja rigidez traduz seu auto-
reconhecimento, o gênero poético não necessita de termos chave para sua legitimação. Ela
se dá em meio ao processo de construção da linguagem, no fluxo da sua produção, em obe-
diência a um projeto estético que emana do próprio poema, e não por meio de expressões
características, cristalizadas em certos gêneros, como nos textos de lei, por exemplo. O que
queremos dizer é que certos gêneros textuais se manifestam por intermédio de um vocabu-
lário específico, como os textos jurídicos, por exemplo; mas o mesmo não se pode dizer do
texto poético, pelo menos como o entendemos. Não há na linguagem fórmulas poéticas
como há para os textos jurídicos. A linguagem poética é criada ao sabor das suas circuns-
tâncias, ela é articulada em um contexto estilístico do qual emana, pelo viés de uma con-
trastividade que se faz na relação com um pattern contextual, promovida pela baixa previ-
sibilidade. A poesia, enfim, garante seu estatuto pela forma, mas legitima-se pela sua feição
estilística, pelos aspectos estéticos que contribuem para a construção do sentido poético que
emana da sua formulação.
367
7. — HETEROGENEIDADES ENUNCIATIVAS NO DISCURSO POÉTICO
Um dos fatores que a Estilística da Enunciação deve ter como preocupação é a capta-
ção dos efeitos de sentido gerados pela heterogeneidade discursiva. Um texto poético, como
todos os textos, situa-se numa determinada esfera discursiva na qual ele circula; portanto
ele dialoga com outros textos de épocas várias. O homem é um ser historicamente marcado,
e uma obra de arte é avaliada como um monumento cultural, cujos valores artístico se rela-
cionam com a cultura de uma determinada época. Em vista disso, muita vez o texto poético
se projeta como tal por oposição ou similitude frente a outros textos poéticos, de onde se
pode extrair e compreender a dimensão de sua criatividade. Nesse nível, uma Estilística de
base enunciativa deve considerar a heterogeneidade enunciativa, para a percepção da inter-
textualidade sobre a qual o texto manifesta sua poeticidade.
Sabemos que o texto poético é genericamente marcado por uma linguagem que o ca-
racteriza, pelo modo como ele é estruturado e pelas incidência estilísticas que recaem sobre
sua criatividade em busca de valores estéticos. Mas todo texto tem seu dito, porque, afinal,
ele tem que comunicar, e isso se aplica a qualquer texto. Então, insistimos na pergunta, uma
análise textual baseada somente nos valores estruturais do texto poético é capaz de dar con-
ta dos efeitos de sentido que conferem a ele a poeticidade? Acreditamos que não, pois, em-
bora o texto poético, como o conhecemos, seja fruto do trabalho de uma linguagem peculi-
ar, que se afirma pelo viés da sedução, tem ancoragem na realidade e, portanto, se relaciona
com um universo discursivo no qual ele marca poeticamente o seu lugar. Assim sendo, é
necessário que se compreenda, nessa relação, a semântica discursiva do texto, para a capta-
ção de valores que a semântica do sistema da língua não é capaz de captar.
Como todo texto que circula na sociedade, o texto poético tem sua existência marcada
na historicidade e, portanto, no dialogismo. Muitas vezes, como se vem comprovando ao
longo das análises, os efeitos de sentido de um texto só podem ser captados quando com-
preendemos sua posição no universo textual, ou seja quando entendemos que o discurso do
texto estabelece um jogo com outros discursos, quando se percebe a alteridade diante da
qual o texto se legitima nos seus propósitos.
368
Tomando por base as noções de dialogismo desenvolvidas por Bakhtin e os princípios
de heterogeneidade postulados por Authier-Revuz, compreendemos que o texto poético
está integrado num sistema de relações com outros textos, poéticos ou não, para a constitui-
ção de sua legitimidade. Diante dos textos poéticos ele se afirma como único, já que sua
proposta é legitimar-se na originalidade artística; diante dos textos não-poéticos, ele se legi-
tima como texto poético, a partir das marcas do gênero a que ele pertence e que o distingue
dos textos dos gêneros não-poéticos. Assim, se quisermos entender como o texto poético se
manifesta como tal, não podemos desprezar a rede de relações que ele estabelece com ou-
tros textos, ainda que de naturezas distintas.
7.1. – A Concepção dialógica da linguagem
A língua, em seu uso real, em sua “totalidade concreta” tem fundamentalmente a pro-
priedade de ser dialógica. Essa concepção dialógica não se atém ao quadro reduzido e es-
treito do diálogo face a face. Na verdade, segundo Mikhail Bakhtin, existe um dialogismo
interno da palavra, que se deixa perpassar sempre pela palavra do outro. Isso significa que
o enunciador, na constituição do seu discurso, leva em consideração o discurso de outrem,
que está inserido no seu. Além disso, no que diz respeito ao discurso, não se pode conceber
o dialogismo em termos relacionais lógicos e semânticos, pois o que constitui o dialogismo
na esfera discursiva são posições de sujeitos como seres sociais, dos quais emanam pontos
de vista acerca da realidade.
Dessa maneira, o dialogismo transparece, entre outros aspectos, na bivocalidade, na
polifonia, no discurso relatado, na imitação, na ironia, no discurso carnavalesco etc. Assim,
configura-se o princípio da heterogeneidade a partir da idéia de que a linguagem é por na-
tureza heterogênea, e o discurso é tecido a partir do discurso do outro, que é o “exterior
constitutivo”, ou seja, o “já dito”, sobre o qual um discurso se constitui. Diante disso, con-
clui-se que o discurso não opera sobre a realidade vivencial, sobre coisas e fatos, mas sobre
outros discursos que circulam numa comunidade cultural. Os discursos são, conseqüente-
369
mente, “atravessados”, “ocupados”, “habitados” por discursos outros.
148
O conceito de he-
terogeneidade é uma maneira peculiar de precisar o conceito de dialogismo engendrado por
Bakhtin
149
, pois a fala é fundamentalmente heterogênea em sua constituição, e isso porque,
sobre a palavra de um, está sempre a palavra de outro, que é condição constitutiva de qual-
quer discurso. Assim, falar em heterogeneidade do discurso é reconhecer uma relação radi-
cal entre seu “interior” e seu “exterior”, que se realiza num jogo dialético a partir do qual
emana um efeito de sentido.
A heterogeneidade pode ser mostrada ou constitutiva. A heterogeneidade mostrada
recai sobre as manifestações explícitas, que são recuperáveis a partir de uma diversidade de
fontes enunciativas, ao passo que a heterogeneidade constitutiva não é aparente na super-
fície textual, mas se pode definir num jogo de formulação de hipóteses, que se faz através
do interdiscurso – conjunto de unidades discursivas com as quais um discurso particular
entra em relação implícita ou explícita. A primeira é a inscrição do outro na cadeia discur-
siva, alterando sua aparente unicidade; a segunda não se mostra no fio do discurso. Enquan-
to aquela exibe sua alteridade ao longo do processo discursivo, esta não revela a alteridade
em sua manifestação.
A heterogeneidade mostrada pode ser marcada ou não marcada. A heterogeneidade
marcada circunscreve explicitamente a presença do outro por meio de certas marcas lin-
güísticas – discurso direto, discurso indireto, metadiscurso do enunciador, negação, aspas
etc.; a heterogeneidade não marcada não demarca explicitamente a presença do outro que
está inscrito no discurso, mas sua existência é garantida por certas formas de manifestação
lingüísticas tais como o discurso indireto livre, a ironia e a imitação. Authier Revuz afirma
que a ambivalência das manifestações da heterogeneidade mostrada não marcada é indício
da incerteza que caracteriza a referência ao outro. Elas operam com a diluição, com a disso-
lução do outro no locutor enunciador e, em conseqüência, está a meio caminho da hetero-
geneidade marcada e da heterogeneidade constitutiva.
150
Esses dois tipos de heterogeneidade representam, na visão de Authier-Revuz, duas
ordens de realidade diferentes: a dos processos reais de constituição de um discurso e a dos
148
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). In: Cadernos de Estudos Lingüísticos.
Campinas, (19): 25-42, jul./dez. 1990.
149
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. São Paulo: Pontes, 1997.
150
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Op. cit., 1990, p. 34.
370
processos de representação, num discurso, de sua constituição. A primeira é uma heteroge-
neidade radical, exterior, não localizável e não representável no discurso que constitui, on-
de estão em jogo o interdiscurso e o inconsciente; a segunda, oposta à primeira, representa
no discurso as diferenciações, disjunções, fronteiras interior e exterior, pelas quais um su-
jeito ou discurso se delimita na pluralidade dos outros e ao mesmo tempo afirma a figura de
um enunciador exterior ao seu discurso. Isso não quer dizer que essas duas ordens não se-
jam articuláveis, que não mantenham relações, que não sejam solidárias, mas, na verdade,
que são irredutíveis.
151
Entendemos daí que a heterogeneidade constitutiva e a heterogeneidade mostrada são
dois modos de apreensão do outro no discurso. A primeira não deixa marcas perceptíveis,
pois as palavras, os enunciados alheios estão tão intimamente incorporados ao texto que
não podem ser apreendidos por uma abordagem lingüística stricto sensu; a segunda é aces-
sível aos aparelhos lingüísticos e permite a apreensão de seqüências demarcadas que ex-
põem claramente sua alteridade. Como a heterogeneidade constitutiva não deixa marcas
visíveis, sua apreensão só se torna possível pela memória discursiva de uma determinada
formação social, que permite captar as relações polêmicas entre os diferentes discursos que
circulam nos contextos sociais, com interesses divergentes e pontos de vista múltiplos sobre
uma realidade vivenciada por classes e grupos distintos. Tudo isso, vale lembrar, está inse-
rido na consideração de que a linguagem é fundamentalmente dialógica, ou seja, que ela é
constitutivamente heterogênea.
O discurso sobrevive numa área de análise de oscilação e multiplicidade. Ele é, a um
tempo, um objeto integralmente lingüístico e integralmente histórico. Assim, ele atua num
interstício dialético em que se dá uma realização da linguagem e no qual existe um conjun-
to de saberes que historicamente se instalaram na memória discursiva dos falantes de uma
comunidade cultural. Isso significa que ele é uma estrutura lingüística gerada por um siste-
ma de regras que define sua especificidade, mas, ao mesmo tempo, que nem tudo é dizível.
A comunicação é uma atividade inerente ao homem, e este é um ser de identidade natural-
mente marcada no curso da sua história. Assim, uma teoria do discurso deve, concomitan-
temente, possibilitar a análise do funcionamento discursivo e de sua inscrição histórica, sem
que se privilegie qualquer um desses aspectos, evitando então um fosso metodológico entre
análise do funcionamento do discurso e da inscrição histórica. O que se pretende não é uma
151
Idem., ibidem
371
ação puramente mecânica da conexão de uma análise lingüística e uma análise histórica,
sociológica, mas promover o desenvolvimento de uma teoria lingüística da historicidade
discursiva, observando a enunciabilidade, aceitando o discurso como um dizer e um dito,
uma enunciação e um enunciado.
Considerando com Bakhtin que, em termos de análise do discurso, o dialogismo cons-
titui o princípio que fundamenta a discursividade e que a interação enunciativa tem um ca-
ráter constitutivo, visto que o discurso é fundamentalmente heterogêneo, entendemos que a
unidade de análise do discurso desloca-se para o interdiscurso. Assim, a unidade pertinente
passa a ser o espaço de intercâmbio entre vários discursos, no qual um só se constitui no
confronto com outro, e a identidade de um é garantida pelo outro. Aprofundando essas no-
ções, Maingueneau define uma série de termos que recobrem o primado da interdiscursivi-
dade na análise do discurso:
152
a) discurso – uma “dispersão” de textos cujo modo de inscrição histórica permite defi-
nir como um espaço de regularidades enunciativas.
b) formação discursiva – sistema de restrições de boa formação semântica que se opõe
ao conjunto de enunciados produzidos por esse sistema ( superfície discursiva).
c) universo discursivo – conjunto de formações discursivas de todos os tipos que inte-
ragem numa conjuntura dada.
d) campo discursivo – conjunto de formações discursivas que se encontram em concor-
rência e se delimitam reciprocamente em uma determinada região do universo discursivo.
e) espaços discursivos – subconjuntos de formações discursivas relevantes para os pro-
pósitos das relações da análise discursiva.
A partir desses conceitos, tecemos algumas considerações importantes para a compre-
ensão da interdiscursividade. Um universo discursivo se constitui de muitos campos discur-
sivos – o político, o religioso, o filosófico, o artístico etc., e cada campo discursivo, em cujo
interior se constitui o discurso, é formado de vários espaços discursivos, que são, na verda-
de o interdiscurso. Essa constituição se processa sobre formações discursivas pré-
existentes. Então, reconhecer o primado do interdiscurso significa “construir um sistema no
qual a definição da rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coin-
152
MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. Curitiba: Criar Edições, 2005, p. 15, 20, 36 a 37.
372
cide com a definição das relações desse discurso com seu Outro.”
153
Isso implica dizer que,
no nível da constituição discursiva, não é possível gerar uma identidade autônoma, fecha-
da, mas tão somente uma identidade relacional que se forma a partir de intercâmbios enun-
ciativos, de onde emana o sentido discursivo. Sendo o enunciado do discurso fundamen-
talmente dialógico, seu funcionamento só se constitui em relação polêmica com seu outro,
por ele contestado no espaço discursivo. Isso porque todo discurso é, na sua constituição,
uma unidade diédrica em si mesma avessa, cujas faces são indissociáveis. A relação discur-
siva não é, portanto, mecânica, mas dialética, que faz que um discurso só se modifique a
partir de outro que a ele se opõe.
7.2. – A heterogeneidade constitutiva
Assumindo a concepção dialógica da linguagem, verifica-se que a heterogeneidade
constitutiva se funda numa polêmica da interincompreensão
154
, visto que cada sistema con-
sidera o sistema semântico do outro em termos de categoria negativa do seu próprio discur-
so. Isso quer dizer que o modo conflitual de constituição do discurso implica a tradução do
outro como negatividade. Assim, todo discurso tem seu direito e seu avesso, e aquele só
aparece no transparecimento deste. Um discurso é constitutivamente heterogêneo, porque
suas categorias semânticas se constituem em oposição a categorias semânticas do discurso
outro, e isso se faz por meio da contraditoriedade de pontos de vista que se instalaram numa
comunidade cultural, em determinado ponto do curso histórico da sociedade. Nele ressoam
duas vozes , dois pontos de vista; sob as palavras de um discurso, há outras palavras, outro
discurso, outro ponto de vista social ou filosófico.
Essa heterogeneidade não está marcada no fio do discurso. As duas perspectivas em
oposição não estão mostradas no interior do texto; no entanto, nossa memória discursiva
nos conduz à percepção de que o discurso se constrói nessa relação polêmica. Quando le-
mos um texto contrário a uma certa posição social, percebemos que ele só pode ter surgido
numa formação social em que há discursos a favor de tal posição. Esses pontos de vista são
153
MAINGUENEAU, Op. cit. 2005, p. 38
154
MAINGUENEAU, Op. cit., 2005, p. 103.
373
sociais e apresentam as posições divergentes sobre determinada questão. O discurso é sem-
pre uma arena em que lutam esses pontos de vista em oposição. Pode ser que um desses
pontos de vista seja dominante, mas isso não invalida as concepções contrárias que se arti-
culam sobre um determinado assunto.
Um discurso é sempre a materialização lingüística de uma ideologia, e, sob essa ótica,
nenhuma palavra é “neutra”, porque ela é inevitavelmente “carregada”, “ocupada”, “habi-
tada”, “atravessada” pelos discursos outros, nos quais “viveu sua existência socialmente
sustentada”. Pensando assim, Bakhtin afirma que “Somente o Adão mítico, abordando com
sua primeira fala um mundo ainda não posto em questão, estaria em condições de ser ele
próprio o produtor de um discurso isento do já dito na fala de outro.”
155
Como os discursos estão em relação polêmica uns com os outros, estabelecem-se pon-
tos de vista contraditórios ao longo do curso histórico de uma sociedade. Por esse prisma,
todo discurso é histórico, e sua historicidade é garantida por essa relação polêmica em que
ele se constitui. Nesse sentido, o sujeito é o suporte e o efeito do discurso, o que significa
dizer que ele é um lugar múltiplo fundamentalmente heterônimo, ainda que ele tenha a pre-
tensão – espontânea ou teoricamente conduzida – de ser a fonte autônoma do sentido que
comunica através da língua.
Teorias diversas têm atestado que toda fala é determinada de fora da vontade do sujei-
to. Segundo tais teorias, o sujeito “é mais falado do que fala”, isto é, o sujeito é assujeitado,
o que torna o seu discurso um produto do interdiscurso. Aqui, postula-se um funcionamento
regulado do exterior, do interdiscurso, que dá conta da produção do discurso, “maquinaria
estrutural ignorada pelo sujeito que, na ilusão, se crê fonte deste seu discurso, quando ele
nada mais é do que o suporte e o efeito”.
156
Por esse prisma, esse processo que determina o
sentido e o discurso é efetivamente indissociável de uma teoria da ilusão subjetiva da fala e
de um questionamento das teorias lingüísticas da enunciação, que correm o risco de refletir
“a ilusão necessária constitutiva do sujeito”, ao se contentar em reproduzir, no nível teórico,
esta ilusão do sujeito enunciador capaz de escolhas, intenções e decisões.
157
155
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Op. cit., 1990, p. 27.
156
Idem, ibidem.
157
PÊCHEX, M. & FUCHS, C. In PÊCHEUX, M. “Analyse de discours et lingustique générale”, Langages.
Paris: Laousse, 1975, nº 37. Apud AUTHIER-REVUZ. Op. cit., 1990, p. 28.
374
Mas é preciso reconhecer que essa posição não é pacífica. Autores existem que não
compartilham a idéia do assujeitamento absoluto do sujeito, chegando mesmo a recusar
esse automatismo psíquico na relação da linguagem com o mundo. Entre tais autores, apon-
tamos Courtine & Merandin
158
e Culioli
159
, aos quais se filia Possenti
160
.
Courtine e Merandin, assumem uma postura fortemente crítica diante dessa teoria de
interpelação-assujeitamento do sujeito. Afirmam eles, de forma contundente, que os resul-
tados obtidos nesse processo, de modo geral, consistem na construção de classes da equiva-
lência distribucional, interpretadas como classes de paráfrase discursiva, que manifestam a
presença de invariantes e de classes de comutação. Para esses autores, tudo se resume em
“uma variação regrada na ordem do mesmo e da repetição, isto é, na ordem do pré-
construído como repetição do mesmo, reiteração do idêntico, num espaço onde repetição e
recorrência se confundem.”
161
Dizem os autores ainda, em tom extremamente questionador:
Laborioso percurso para bem magros resultados, para desalojar a evidência e re-
dobrar o sentido, numa fascinação pela repetição produzida. Em suma, no fim das con-
tas, um fracasso da heterogeneidade como elemento constitutivo de práticas discursivas
que se dominam, se alienam, se defrontam, num certo estado de luta ideológica e polí-
tica, no seio de uma formação e uma conjuntura histórica determinada.
162
Culioli, também questionando essa postura da análise do discurso, afirma que há uma
obsessão francesa pela significação e que, na França, ligou-se muito cedo a lingüística à
sociologia. Segundo ele, enquanto na Grã-Bretanha se estudavam as línguas por elas mes-
mas, para formar bons missionários, na França, já no século XVIII, o interesse era pela
relação da língua com a ideologia, e isso parece ter continuado. O lingüista defende a idéia
de que seria desastroso que a análise do discurso seja “uma lingüística do pobre, uma semi-
lingüística ou uma semi-história” e afirma: “ela deve efetivamente dar-se os meios de en-
158
COURTINE, J. J. & MARANDIN, J. M. “Quel objet pour l’analyse du discours?”, in Matérialités discur-
sives. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1981.
159
CULIOLI. A. – VÁRIOS. “Table ronde discours-histoire-langage”, in Matérialités discursives. Lille:
Presses Universitaires de Lille, 1981.
160
POSSENTI, Sírio. Discurso, Estilo e Subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
161
Apud POSSENTI, Sírio. Op. cit. p. 18 e 19.
162
idem, ibidem. p. 19.
375
frentar a articulação entre domínios heterogêneos, senão, a meu ver, não será mais que um
discurso redobrado (redoublé).”
163
Em meio ao conflito dessas teorias, arriscamos aqui uma posição modesta. Conside-
ramos que, no campo sociológico ou psicanalítico, o homem, como um ser marcado pela
historicidade, é atravessado por discursos sobre os quais ele constrói o seu. Mas arriscamos
preservar no âmbito da individualidade outros discursos que reportam à condição existenci-
al do homem enquanto indivíduo, movido pelas suas circunstâncias. Quando um menino
diz “Eu não vou lavar a louça porque isto é trabalho de mulher.”, não se pode negar que
ele esteja reproduzindo um discurso machista, que certamente se opõe a um discurso femi-
nista; mas que dizer de discursos como “Eu sinto dores nas pernas.” ou “Adoro minha mu-
lher e não viveria sem ela.”? Acreditamos que cada discurso se realiza dentro de uma esfe-
ra específica e peculiar. Do contrário cairíamos numa posição positivista que nos anularia
enquanto criaturas sensíveis, incapazes de reagir às necessidades existenciais que nos per-
mitem reconhecer que somos o que somos sob nossas próprias circunstâncias individuais.
Salvaguardadas essas posições, voltemos ao que Bakhtin designa por saturação da
linguagem, que constitui uma teoria de produção do sentido e do discurso, porque coloca os
outros discursos não como ambiente do qual emanam conotações a partir de um elo de sen-
tido, mas como um núcleo exterior constitutivo do já dito, com que se realiza a tessitura
mesma do discurso na trama da construção do seu sentido. Nessa linha de pensamento, o
estatuto do sujeito sustentado nas noções de “intenção” ou “orientação de um discurso a um
objeto” é redimensionado, porque este sujeito deixa de ser a fonte pura de onde parte a tra-
jetória semântica do discurso para ser dialeticamente, segundo uma teoria da dialogização,
suporte e efeito do processo discursivo.
Vejamos este poema de Jorge de Lima:
163
Idem, ibidem, p. 20.
376
Mulher proletária
Mulher proletária – única fábrica
que o operário tem, (fábrica de filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.
Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário da máquinas burguesas
salvar teu proprietário.
O texto de Jorge de Lima é um exemplo da preocupação social do autor. Na visão do
poeta o homem contemporâneo é o resultado histórico de várias gerações, de equívocos
sociais e desenganos; ele configura a síntese das várias quedas, individuais e coletivas, que
compõem a história humana. Como se vê, o poema molda-se sobre um discurso socialista
atravessado pelas concepções cristãs, que se constitui por oposição a um discurso capitalis-
ta burguês. Opondo-se à produção da riqueza material das máquinas burguesas, ergue-se a
produção do gênero humano que fornece “anjos para o Senhor Jesus”. É evidente que o
valor poético do texto, quanto ao seu sentido e ao seu discurso, tem historicidade garantida
pelo jogo dialético no qual se insere a noção do discurso como produto do interdiscurso.
7.3. – A heterogeneidade mostrada
Já se disse aqui que a heterogeneidade mostrada é a inscrição do discurso do outro
no fio discursivo. Totalmente diferente da heterogeneidade constitutiva, aqui a heterogenei-
dade é mostrada no liame do discurso. Através das suas formas, altera-se a unicidade apa-
rente da cadeia discursiva, pois elas aí inscrevem o outro, de acordo com modalidades dife-
377
rentes – com marcas ou sem marcas unívocas de ancoragem. De acordo com Althier-
Revuz, a heterogeneidade mostrada opera uma dupla designação: “a de um lugar para um
fragmento de estatuto diferente na linearidade da cadeia e a de uma alteridade a que o
fragmento remete.”
164
A heterogeneidade mostrada corresponde à presença localizável de uma discurso ou-
tro no fio do discurso. Assim, a natureza dessa alteridade será ou não especificada na linha
do discurso. Distinguem-se as formas não-marcadas dessa heterogeneidade e sua formas
marcadas (ou explícitas). Dessa maneira, tem-se a heterogeneidade mostrada sob duas ver-
tentes – uma heterogeneidade mostrada marcada – que especifica explicitamente os
limites de cada discurso – e uma heterogeneidade mostrada não-marcada – que não dei-
xa nítida a fronteira entre os discursos convergentes na superfície do texto.
7.3.1. – Heterogeneidade mostrada marcada
A heterogeneidade mostrada marcada é aquela que é assinalada com marcas lingüísti-
cas que delimitam claramente os dois discursos. As formas marcadas da heterogeneidade
mostrada são assinaladas de maneira unívoca. Segundo Maingueneau
165
, os principais me-
canismos de marcar a heterogeneidade mostrada são a negação, o discurso direto ou discur-
so indireto, as aspas, as glosas, a pressuposição ou a paráfrase, dos quais selecionamos al-
guns para os propósitos do nosso trabalho.
a) A negação
Uma negação implica sempre duas perspectivas distintas sobre uma determinada
questão, pois nela existe uma oposição a uma afirmação anterior, refutando a posição afir-
mativa a ela correspondente. Ela pode ser descritiva – nega um dado da realidade –, ou po-
lêmica – opõe-se a um ponto de vista social, construindo um novo discurso – e metalingüís-
tica – nega os termos de um enunciado oposto, visando ao locutor que assumiu a nega-
ção.
166
Vejamos:
164
AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Op. cit. p. 31.
165
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. São Paulo: Pontes, 1997.
166
Idem, ibidem, p. 84.
378
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao amanhecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.
Analisemos os efeitos de sentido da negação na matéria poética do texto acima, ob-
servando o quanto ela contribui para a apreensão do sentido textual no universo discursivo
no qual o texto está inserido.
No texto, os operadores lingüísticos – o advérbio não e a conjunção nem – demarcam
os dois pontos de vista, as duas vozes mostradas no poema. Através deles o enunciador
renega um tipo de poesia que não se enquadra na sua perspectiva poética, qual seja a de
uma poesia participante, não alienada, integrada na atualidade. A despeito de essas duas
perspectivas estarem delimitadas pela negação, temos de lançar mão de nossa memória
discursiva, de nosso conhecimento dos textos e estilos literários, para captar o sentido pro-
fundo da poética do texto.
Através dos versos em que a negação se manifesta, o poeta estabelece uma oposição
aos textos e estilos literários que primam pela evasão, pelo escapismo, pela fuga da realida-
de imediata, em busca de idealizações. O texto de Drummond é uma manifestação poética
notadamente anti-romântica, não só pelo enfrentamento da realidade que sugere como tam-
bém pelo modelo poético através do qual se expressa. Assim, por meio das negações e da
negação de um modelo poético, o poeta circunscreve no texto dois discursos a respeito da
379
poesia – contesta uma estética que nega dimensão poética à realidade imediata e assume
como sua uma concepção de poesia que busca nessa realidade a expressão de sua essência.
b) O discurso direto e o discurso indireto
Ao contar o que as personagens disseram, o narrador insere na narrativa uma fala que
na realidade não é de sua autoria, garantindo a alteridade pela citação do discurso alheio.
Os discursos direto e indireto são as manifestações mais clássicas da heterogeneidade enun-
ciativa. Ducrot postula que há polifonia – a existência de mais de uma voz num enunciado
– quando se pode distinguir em uma enunciação dois tipos de personagem: os enunciadores
e os locutores.
167
Assim, ele estabelece a distinção entre o sujeito falante e o locutor de um
enunciado. O primeiro desempenha o papel de produtor do enunciado, ou seja, do enuncia-
dor; o segundo representa a instância que assume a responsabilidade do ato de linguagem.
O discurso direto – O quadro polifônico de Ducrot orienta que o discurso direto se
caracteriza pela aparição de um segundo locutor no enunciado que se atribui a um primeiro
locutor. Este tipo de discurso relatado constitui uma espécie de teatralização da fala dos
outros. Em conseqüência disso, produz um efeito de sentido de verdade, buscando provocar
no leitor/ouvinte a impressão de preservação da integridade e autenticidade do discurso
alheio, mantendo assim toda a carga de subjetividade do locutor citado. Apresentando-se
como a reprodução de um dizer, promove o apagamento do locutor diante do enunciado
que ele repete textualmente, passando a ilusão de neutralidade, de objetividade por parte do
locutor citante. Por meio de certos sinais diacríticos (aspas, travessão), o discurso direto
provoca uma ruptura na cadeia sintática e dela assim é isolado; com isto julga-se domar o
sentido, aprisionando o dizer.
168
Por representar um ato de fala imediato, este tipo de dis-
curso pertence ao mundo comentado, ao universo do discurso.
167
DUCROT, Oswald. “Esboço de uma Teoria Polifônica da Enunciação”, in O dizer e o dito. Campinas:
Pontes Editores, 1987, p. 161-218.
168
Cf. MEDEIROS, Vanise Gomes de.“Trajeto histórico de dois tipos de discurso relatado – o discurso
direto e o discurso indireto, in Revista Philologus, Ano 9, nº 27. Rio de Janeiro: CIFEFIL, set./dez.
2003, p. 138.
380
O discurso indireto – Este tipo de discurso relatado se apresenta como a tradução de
um dizer. Pela sua natureza, pertence mais propriamente ao mundo narrado. Como há dois
tipos de discurso indireto
169
– o que analisa o conteúdo e o que analisa a expressão –, essa
forma de citação do discurso alheio pode proporcionar diferentes tipos de efeito de sentido.
O discurso indireto que analisa o conteúdo elimina os elementos que podem traduzir
qualquer tônus emocional ou afetivo por parte do locutor citado (interrogações, exclama-
ções, formas imperativas, interjeições etc.), produzindo um efeito de sentido de objetivida-
de analítica. Nesse tipo de discurso, o narrador procura revelar somente o conteúdo do dis-
curso do personagem e não o modo como ele se expressa. Com esse expediente, estabelece-
se um distanciamento entre a posição do locutor citante e a posição do locutor citado, viabi-
lizando assim réplicas e comentários. Essa modalidade de discurso indireto despersonaliza
o discurso citado em nome da objetividade, criando então a impressão de que o locutor ci-
tante analisa o discurso citado de maneira racional e isenta de modalizações emocionais, já
que ele não se interessa pela individualidade do falante. É a forma preferida de textos narra-
tivos, pois mantém o distanciamento e a isenção do locutor citante no processo da narração.
O discurso indireto que analisa a expressão é empregado para analisar as palavras, o
modus dicendi dos outros. Nessa modalidade de discurso, as palavras ou expressões em
análise se submetem ao aspeamento, preservando o modo de dizer do locutor citado. Usan-
do o discurso indireto para analisar o modo de expressão do locutor citado, o locutor citante
põe em relevo uma típica forma de expressão, manifestando uma particularidade dela. As-
sim, esse tipo de discurso indireto denuncia peculiaridades que se manifestam nas forma de
expressão e pode mostrar a posição do locutor citante em relação ao modo de falar do locu-
tor citado, produzindo um efeito de desagrado, desdém, condescendência, ironia etc.
Numa análise textual cujo teor estilístico se apresente em bases enunciativas, é neces-
sário que se verifiquem os efeitos de sentido do discurso direto e do discurso indireto, dos
quais o autor pode tirar proveitos significativos.
Vejamos, então, este poema de Manuel Bandeira e analisemos como o discurso direto
contribui para a construção do sentido poético de um texto:
169
Cf. FIORIN, José Luiz. “Bakhtin e a concepção dialógica da linguagem”, in ABDALA JR., Benjamim
(org). Margens da Cultura: Mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.
381
Irene no céu
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.
Imagino Irene entrando no céu:
— Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
— Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.
O texto apresenta duas incidências do discurso direto. A primeira teatraliza a fala de
Irene; a segunda, a fala de São Pedro. Observa-se que nas duas incidências o poeta busca
produzir, pela imaginação do eu-lírico, um efeito de sentido de verdade, causando no leitor
a impressão de realidade pela preservação da integridade do discurso dos locutores citados.
Esse artifício mantém na locução do eu-lírico, o locutor citante, toda a carga de subjetivida-
de dos locutores citados que o discurso indireto, pela objetividade, não poderia revelar. Es-
se efeito é conseguido pelo apagamento do locutor citante, permitindo a manifestação das
vozes dos outros locutores, que erigem na ruptura da cadeia sintática do seu discurso.
Poeticamente, o discurso direto é providencial na estrutura do texto. No poema, Irene
é caracterizada como um ser humilde e generoso. Seu discurso – “Licença, meu branco!” –,
revelado de forma direta na sua integridade, obedece a uma estratégia de efeito de sentido
que se caracteriza por deixar perceber a entonação exclamativa respeitosa e reverente do
vocativo, o que não seria possível na cadeia do discurso citante. Por outro lado, São Pedro,
na sua condição superior, revela-se extremamente receptivo à chegada de Irene no céu. A
integridade do seu discurso – “Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.” – deixa entre-
ver o tom amistoso com o qual se expressa. Nele, é relevante o tom coloquial que se revela
na não-coincidência das pessoas gramaticais (“EntraxVocê”), denotando intimidade e
afetividade, no tratamento com o interlocutor. Todos esses fatores contribuem para a tona-
lidade lírica do texto e conseqüentemente para uma estética totalizante do discurso poético.
Agora, confrontemos este soneto de Bastos Tigre:
382
Argumento de defesa
Disse alguém, por maldade ou por intriga,
que eu de Vossa Excelência mal dissera:
que tinha amantes, que era “fácil”, que era
da virtude doméstica, inimiga.
Maldito seja o cérebro que gera
infâmias tais que, em cólera, maldigo!
Se eu disse tal, que tenha por castigo
o beijo de uma sogra ou de outra fera!
Ponho a mão espalmada na consciência
e ela, senhora, impávida, protesta
contra essa intriga da maledicência!
Indague a amigos meus; qualquer atesta
que eu acho e sempre achei Vossa Excelência
feia demais para não ser honesta...
Na sua estratégia textual, o autor busca uma expressão poética que se ajusta ao propó-
sito argumentativo do texto. Na primeira e na última estrofe do poema, o discurso indireto
assegura a alteridade que se manifesta na heterogeneidade mostrada, provocando um efeito
de sentido de objetividade que caracteriza o distanciamento e a isenção do locutor citante.
Mas todo o processo está a serviço de uma ironia final, que acentua a questão da alteridade.
Na primeira estrofe, o locutor apresenta o discurso indireto nas duas modalidades: o
que analisa o conteúdo e o que analisa a expressão. Na primeira modalidade, deparamos
com o discurso indireto em dois estágios hierárquicos, visto que ocorre um processo de
citação em cadeia: o locutor citante do discurso “que eu de Vossa Excelência mal dissera
passa a locutor citado no discurso “que tinha amantes, que era “fácil”, que era / da virtude
doméstica, inimiga.” Isso quer dizer que o discurso citado é a um só tempo discurso citante,
assim como o locutor citado é também locutor citante. Na primeira citação, o locutor citante
se defende de algo que é citado em seguida e que ele afirma não ter dito, rejeitando-o, por
383
considerar uma infâmia o que se disse e o que a ele foi atribuído. Dessa forma, o locutor
citante afasta de si um ponto de vista que ele afirma não defender – “que tinha amantes,
que era “fácil”, que era / da virtude doméstica, inimiga.” Na segunda modalidade o locutor
citante analisa uma forma de expressão – “fácil” – com a qual ele sugere, por meio das as-
pas, não concordar, dado o seu caráter pejorativo. Todo esse processo em que se inscreve a
heterogeneidade põe o locutor citante em situação defensiva pela estratégia argumentativa
sustentada na noção de alteridade.
Na última estrofe, o locutor citante é também um locutor citado, já que a citação feita
pelos “amigos seus” – “que eu acho e sempre achei Vossa Excelência / feia demais para
não ser honesta...é de suas próprias palavras, palavras que ele assume como suas na
estratégia do seu argumento. O fato de suas palavras aparecerem no discurso de outros,
considerados idôneos, dá ao locutor citante certo grau de credibilidade pelo caráter de tes-
temunho que o discurso outro assume.
Mas todo o processo argumentativo de preservação da face empregado pelo poeta na
defesa da honra do personagem se inscreve numa intenção irônica do texto, visto que os
argumentos de defesa são na verdade uma preparação para um desfecho que contraria o
aspecto positivo da reverência e do tom respeitoso com que o locutor se dirige à interlocu-
tora e que ele finge assumir. Isso acentua o caráter de alteridade do texto, já que temos dois
discursos, duas vozes: a do enunciador e outra que ele nega.
7.3.2. – A heterogeneidade mostrada não-marcada
Há procedimentos lingüísticos que servem para mostrar diferentes vozes no texto,
mas que não demarcam com precisão os limites entre elas. Isso quer dizer que às vezes não
existem fronteiras nítidas entre os discursos convergentes em um texto, o que, parece-nos,
deixa a heterogeneidade não-marcada a meio caminho da heterogeneidade mostrada e da
heterogeneidade constitutiva. O co-enunciador identifica as formas não-marcadas (discurso
indireto livre, alusões, ironias, pastiches...) combinando em proporções variáveis a seleção
de índices textuais ou paratextuais diversos e a ativação de sua cultura pessoal. Entre os
muitos mecanismos lingüísticos caracterizadores desse fenômeno na estruturação textual,
selecionamos alguns que obedecem à natureza dos nossos propósitos.
384
a) O discurso indireto livre
O discurso indireto livre se caracteriza por não apresentar uma fronteira nítida entre o
discurso citante e o discurso citado. Nessa forma de citação do discurso alheio, misturam-se
duas vozes sem que haja marcas que definem uma e outra, como, por exemplo, os dois pon-
tos, o travessão ou as aspas do discurso direto ou a conjunção integrante que do discurso
indireto, para demarcar nitidamente onde começa a fala do narrador e onde inicia a fala do
personagem. No discurso indireto livre, por este não estar associado a marcas claras, lin-
güísticas ou tipográficas, a heterogeneidade deve ser reconstruída a partir de índices varia-
dos. Não há, fora de contexto, formas seguras de conferir com nitidez o estatuto do discurso
indireto livre a um enunciado; isso está relacionado com a propriedade que este tipo de dis-
curso possui de relatar alocuções que fazem ouvir duas vozes diferentes inextrincavelmente
misturadas (Bakhtin) ou dois enunciadores (Ducrot). Na concepção de Maingueneau, “O
discurso indireto livre se localiza precisamente nos deslocamentos, nas discordâncias entre
a voz do enunciador que relata as alocuções e a do indivíduo cujas alocuções são relatadas.
O enunciado não pode ser atribuído nem a um nem ao outro, e não é possível separar no
enunciado as partes que dependem univocamente de ou de outro.”
170
Analisemos este poema social de Carlos Drummond de Andrade:
170
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. São Paulo: Pontes, 1997, p.
97.
385
Morte do leiteiro
Há pouco leite no país,
E como a porta dos fundos
é preciso entregá-lo cedo.
também escondesse gente
Há muita sede no país,
que aspira ao pouco de leite
é preciso entregá-lo cedo.
disponível em nosso tempo,
Há no país uma legenda,
avancemos por esse beco,
que ladrão se mata com tiro.
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Então o moço, que é leiteiro
Sem fazer barulho, é claro
de madrugada com sua lata
que barulho nada resolve.
sai correndo e distribuindo
Meu leiteiro tão sutil
leite bom para gente ruim.
de passo maneiro e leve,
Sua lata, suas garrafas,
antes desliza que marcha.
seus sapatos de borracha
É certo que algum rumor
vão dizendo aos homens no sono
sempre se faz: passo errado,
que alguém veio do último subúrbio
vaso de flor no caminho,
trazer o leite mais frio
cão latindo por princípio,
e mais alvo da melhor vaca
ou um gato quizilento.
para todos criarem forças
E há sempre um senhor que acorda,
na luta brava da cidade.
resmunga e torna a dormir.
Na mão a garrafa branca
Mas este acordou em pânico
não tem tempo de dizer
(ladrões infestam o bairro),
as coisas que lhe atribuo
não quis saber de mais nada.
nem o moço leiteiro ignaro,
O revólver na gaveta
morador na rua Namur,
saltou para sua mão.
empregado no entreposto,
Ladrão? se pega com tiro.
com 21 anos de idade,
Os tiros na madrugada
sabe lá o que seja impulso
liquidaram meu leiteiro.
de humana compreensão.
Se era noivo, se era virgem,
E já que tem pressa, o corpo
se era alegre, se era bom.
vai deixando à beira das casas
não sei,
uma apenas mercadoria.
é tarde para saber.
386
Mas o homem perdeu o sono
de todo e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida do nosso irmão.
Quem quiser que chame o médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
(Carlos Drummond de Andrade)
Para que não se proclame a gratuidade, é preciso que se observem os efeitos de senti-
do que o discurso indireto livre provoca. Em um texto, o uso do discurso indireto livre tem
várias funções e uma delas se destina a dar verossimilhança ao texto, a criar uma impressão
de verdade, manifestando desejos, pensamentos, enfim, o universo interior de um enuncia-
dor cuja voz está mesclada à voz de um locutor citante. No poema, o discurso indireto livre,
ao misturar os procedimentos do discurso direto e do indireto, faz que a voz do personagem
se mescle à do narrador. Assim, os pensamentos vão surgindo sem ser claramente relatados
pelo narrador, nem proferidos pelo personagem, situando o discurso indireto livre numa
fronteira diluída entre a subjetividade e a objetividade.
O poema funde no fio do discurso um conjunto de vozes que se manifestam na fala do
locutor citante, com pontos de vista que ora são convergentes ora são divergentes. Nesse
conjunto de vozes, ocorrem conjunções e contrajunções de pontos de vista sob vários ní-
veis. De um lado, o conjunto de vozes revela a conjunção dos pontos de vista ora do locutor
e do leiteiro, ora do locutor e da ordem social; de outro, revela a contrajunção dos pontos de
vista do locutor e da ordem social, criando uma relação polêmica no discurso. É nesse jogo
de conjunções e contrajunções de pontos de vista dos enunciadores que se vai constituindo
dialogicamente o sentido poético do texto.
Para melhores esclarecimentos, destacamos, providencialmente, entre tantos, os se-
guintes versos:
387
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há neles duas constatações – “Há pouco leite no país / Há muita sede no país” – e
uma modalização – “é preciso entregá-lo cedo”. As opiniões que se materializam no enun-
ciado são partilhadas pelo locutor citante e por enunciadores tomados no poema como por-
tadores de vozes socais. Isso enquadra o conjunto de enunciadores num ponto de vista con-
vergente e revela a preocupação social do enunciador do poema, contribuindo para um efei-
to de sentido que se constitui poeticamente a partir de um jogo entre o poema e a comuni-
dade social na qual ele circula.
Nos versos seguintes:
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro
que barulho nada resolve.
ocorre a conjunção de dois enunciadores, cujas vozes se mesclam no discurso indireto livre,
para a revelação de que o locutor citante e o locutor citado compartilham o mesmo ponto de
vista, o que se denuncia no uso providencial da primeira pessoa do plural. Isso cria um efei-
to de sentido que põe em relevo a noção de cumplicidade entre os enunciadores, rompendo
a imparcialidade do relato e denotando uma íntima aproximação que orienta o sentido da
leitura.
Observemos agora estes versos:
(ladrões infestam o bairro)
Ladrão? se pega com tiro.
Neles, através do discurso indireto livre, se faz ouvir um conjunto de vozes: a do per-
sonagem, a de um consenso social e a do locutor. Entre as duas primeiras, existe uma con-
388
cordância de pontos de vista, rompida pela voz do locutor, que derrama uma visão crítica
sobre o discurso da violência que é compartilhado pela sociedade. Isso demonstra uma in-
terseção entre a heterogeneidade mostrada não-marcada e a heterogeneidade constitutiva,
pondo em foco a noção do interdiscurso. Com esse artifício, cria-se uma tensão polêmica
que sustenta o aspecto poético do texto, amplificada nestes versos:
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida do nosso irmão.
Eis o saldo triste da violência:
Quem quiser que chame o médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Nos versos acima, o discurso indireto livre revela, concomitantemente, a visão prag-
mática da sociedade e a visão denunciadora do enunciador que se projeta no locutor citante.
Em ambas as vozes, porém, percebe-se um tom dramático, em que à dor da perda se soma
uma reflexão, ao mesmo tempo piedosa e denunciadora, sobre a banalização da morte.
Como se vê, o discurso indireto livre em muito pode contribuir para a constituição do
sentido da poesia, na medida em que à noção estrutural que caracteriza o gênero poético ele
acrescenta uma semântica discursiva que se faz notar numa fronteira tênue entre enuncia-
ções que se convergem numa única estrutura formal. Os efeitos de sentido provocados pelo
discurso indireto livre são múltiplos e dependem da regulação do seu uso no processo de
negociação com a alteridade para a construção do sentido poético do texto.
b) A ironia
A ironia constitui uma rejeição implícita de um ponto de vista do enunciado. Temos,
então, dois discursos, duas vozes – a do enunciador e aquela que ele refuta em seu discurso.
Para sanar certas dificuldades na identificação da ironia, julgamos necessário algumas
elucidações. Enquanto o discurso indireto livre instaura um jogo nos limites entre discurso
389
citado e discurso citante, a ironia subverte a fronteira entre o que é assumido o que não é
assumido pelo locutor citante. Se, por um lado, uma negação explícita se faz por um opera-
dor lingüístico que a demarca, a ironia, por outro, possui uma propriedade de rejeição que
não depende de um operador explicitamente marcado.
No momento em que um locutor põe em cena um enunciador que adota uma posição
absurda por meio de uma alocução que ele (o locutor) não pode ou não quer assumir, ocorre
um distanciamento que deve ser marcado por diferentes índices, que podem ser lingüísticos,
gestuais ou situacionais. A negação dessa deontologia nos conduz a dificuldades provoca-
das pelo uso da ironia. Como na expressão escrita não é possível recorrer ao tônus prosódi-
co ou à gestualidade para identificá-la, faz-se necessária a variação dos meio utilizados para
sua apreensão – hipérboles, eufemismos, modalizações do verbo dicendi que explicitam a
entonação, (“diz ele ironicamente”), aspas, reticências, ponto de exclamação. A ausência
desses índices nos força a recorrer ao contexto para que se recuperem os elementos de con-
traditoriedade que fundam a ironia.
Pela sua natureza, a ironia não-raro suscita anfibologias que, com freqüência, a inter-
pretação textual não consegue sanar. A ironia é um fenômeno sutil que nem sempre é per-
cebida na esfera dos enunciados, só sendo possível sua captação quando se recorre à situa-
ção enunciativa ou ao interdiscurso, o que a situa numa fronteira entre a heterogeneidade
mostrada e a heterogeneidade constitutiva. Por conta disso, ela é passível de interpretações
e análises diversas, cuja extensão é difícil de circunscrever por mais que estejamos próxi-
mos de exemplos antifrásticos cristalizados.
Como em análise de texto não deve haver gratuidade, é conveniente que se tenha em
mente que a ironia é um gesto destinado a um destinatário, não uma atividade lúdica, desin-
teressada e desprovida de um fim perlocucionário. Assim, é preciso que se leve em conta o
efeito de sentido que uma ironia engendra. Pelo conflito entre a voz do enunciador e a voz
do outro, estabelece-se uma relação polêmica sobre a qual o discurso se constrói. Em se
tratando, como é o nosso caso, de um texto poético, deve-se levar em consideração como a
ironia pode contribuir para a constituição da poeticidade do texto, a partir da dissonância
entre o que se diz e o que se quer dizer. Afinal, no processo antifrástico, a tensão provocada
pelo conflito das vozes acaba por se transformar na tensão poética do texto.
Vejamos a aplicação desses conceitos:
390
Deus lhe pague
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Pelo prazer de chorar e pelo estamos aí
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
Um crime pra comentar e o samba pra distrair
Deus lhe pague
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
O amor malfeito, depressa, fazer a barba e partir
Pelo domingo, que é lindo, novela, missa e gibi
Deus lhe pague
Pela cachaça, de graça, que a gente tem que engolir
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia agonia pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zumbir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
E pelas moscas-bicheiras pra nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague.
(HOLLANDA, Chico Buarque de. In Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980)
O poema se reveste de uma ironia manifestada a partir do reconhecimento de uma
situação social que constitui o interdiscurso. Assim, sua compreensão plena só é possível a
partir da memória discursiva do leitor, onde se armazena o conjunto das informações pro-
cedentes para a análise textual. Na verdade, o desvendamento do texto e a apreensão dos
seus efeitos de sentido dependem de uma interação entre os interlocutores, o que nos con-
391
duz, mais uma vez, aos Princípios de Cooperação postulados por Paul Grice – “Que sua
contribuição conversacional corresponda ao que lhe é exigido para a meta ou para a direção
aceitas da troca fala na qual você está engajado”.
171
É de se notar que a constituição de sentido do texto se faz por meio de uma negocia-
ção com a alteridade, negociação esta que constitui o processo da ironia sobre a qual se
manifesta a heterogeneidade. O texto é permeado por dois discursos, por duas vozes: o lo-
cutor põe em cena um enunciador cujo discurso se funda no discurso de outro, que ele finge
assumir, mas que, na verdade, paradoxalmente rejeita no ato mesmo da enunciação.
Ironicamente, o texto faz referências implícitas a uma época socialmente marcada – o
período da ditadura militar no Brasil. A partir desse conhecimento, que transpõe os limites
frásticos do texto, podemos entender a dimensão poética do sentido textual. O poema nos
remete a um confronto excludente entre o mundo da vida e do prazer, de um lado, e a esfera
da repressão, de outro. Perpassa o texto a idéia básica da ironia cortante de que o único pra-
zer que restou foi o “prazer de chorar”.
Observemos estes versos:
Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague
Neles, a potência repressora, cuja forma extrema é o fascismo, invade os recônditos
das atividades humanas, destruindo qualquer possibilidade de autonomia do homem na ges-
tão da sua própria vida, o que se confirma em “O amor malfeito, depressa, fazer a barba e
partir”. Dessa forma, resta ao indivíduo, a quem foi negada a possibilidade de ser o mentor,
o diretor e o executor da sua própria história, nada mais do que os paliativos ordinários para
suportar uma existência massacrada pela ordem social então vigente. Tais paliativos são
ironicamente tomados ao texto como um conjunto de “benfeitorias” que o sistema, impla-
cável, dá ao homem como uma concessão de (in)esperada “bondade”, como atestam estes
versos, que aleatoriamente selecionamos:
171
Apud CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São
Paulo: Contexto, 2004.
392
Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir
(...)
Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui
(...)
Pela cachaça, de graça, que a gente tem que engolir
(...)
Pelo domingo, que é lindo, novela, missa e gibi
(...)
Deus lhe pague
Mas nesses paliativos, diversões baratas das grandes massas, estão incluídos os ín-
dices da miséria existencial, que se prenuncia nas limitações e obrigações impostas pelo
Sistema Social. Afinal, “o futebol” é para aplaudir, não para jogar, e “a cachaça” – índice
indispensável de alienação – “a gente tem que engolir”. Isso constitui uma interseção que
dá margem a uma miséria existencial declarada, que surge sem pejo nos versos seguintes:
Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir
Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair
Deus lhe pague
Por mais um dia agonia pra suportar e assistir
Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zumbir
E pelo grito demente que nos ajuda a fugir
Deus lhe pague
Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir
Deus lhe pague.
É de se ver que, em oposição ao “bem-estar” concedido pelo Sistema, surge a dor e o
desespero, e surge em meio a um estado de tensão absoluta, denunciado “Pela fumaça, des-
graça, que a gente tem que tossir” e “Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair”.
E é uma tensão que se acentua até alcançar a forma agônica do estupor de “mais um dia de
agonia”, que se configura “Pelo rangido dos dentes” e “Pelo grito demente”, no universo
caótico da “cidade a zumbir”, que estrategicamente disfarça um prenúncio de morte no cho-
ro da “mulher carpideira pra nos louvar e cuspir”.
393
Assim, o poema se constrói a partir de uma energia represada e vive numa tensão que
se con-forma entre “Um crime pra comentar e o samba pra distrair”, tensão nunca aplaca-
da por uma catarse cuja totalidade é negada. Mas ainda assim há umDeus lhe pague”, que
ironicamente recobre todo o poema. É um “Deus lhe pague” pela miséria e pelo falso pra-
zer, mas é também umDeus lhe pague” por uma esperança que não se apaga, que o siste-
ma não consegue eliminar e que, portanto, se mantém; é, enfim, um “Deus lhe pague” que a
ironia grita “pela paz derradeira que enfim vai nos redimir”. E tudo isso se revela pela iro-
nia, pela dissonância entre o que se diz e o que se quer dizer, entre o discurso do um que
rejeita o discurso do outro que ele insere no seu para a constituição da alteridade.
c) A imitação
A imitação é a produção de enunciados que remetem a um outro enunciado tomado
como parâmetro. A imitação pode remeter a um texto determinado ou a um determinado
estilo textual. Ela pode ser por subversão ou por captação. Quando a imitação é realizada
para desqualificar, ridicularizar ou negar o texto ou o estilo imitados, tem-se uma imitação
por subversão (que muitos autores chamam de paródia); quando se imita o texto ou o estilo
sem desqualificá-lo, ridicularizá-lo ou negá-lo, tem-se uma imitação por captação. Dessa
forma, na subversão acentuam-se as diferenças entre o texto imitado e o texto que imita, e
na captação, acentuam-se as semelhanças entre ambos. O fato é que quando um falante se
apaga por trás de um “locutor” de um determinado estilo ou de um determinado texto, mos-
trando que o faz, poderá pretender beneficiar-se da autoridade ligada a este tipo de enuncia-
ção ou ridicularizá-la. Havendo captação, a imitação incide sobre a estrutura explorada;
mas, havendo subversão, a desqualificação desta estrutura ocorre no próprio movimento de
sua imitação.
A subversão aproxima-se da ironia; seus objetivos, porém, são nitidamente distintos,
pois enquanto a ironia anula paradoxalmente o que enuncia no próprio ato enunciativo, a
subversão mantém um distanciamento entre as duas fontes de enunciação, que ela hierar-
quiza. Contudo, da mesma forma que a ironia, a subversão pode não ser percebida como
tal, e nesse caso, aos olhos do leitor, resta apenas uma única fonte enunciativa. Assim, para
que possamos perceber o texto ou o estilo imitados, faz-se necessário que nos valhamos da
nossa memória textual, ou seja, do nosso conhecimento sobre textos já produzidos ou de
394
estilos de escrever, considerando que o que determina um estilo é o conjunto de traços rei-
terados e não uma característica isolada.
Tomemos os textos a seguir:
Meu Deus como ela era branca!...
Como era parecida com a neve...
Porém não sei como é a neve,
Eu nunca vi a neve!
Eu não gosto da neve!
E eu não gostava dela...
(Mário de Andrade)
O texto de Mário de Andrade constitui uma imitação que se conforma na existência
de dois pólos enunciativos, entre duas fontes de enunciação estrategicamente mantidas a
distância por uma hierarquização. A alteridade se constrói através de um jogo de apropria-
ção e rejeição que cria uma relação polêmica da qual emana o sentido poético do texto.
Analisemos os dois primeiros versos:
Meu Deus como ela era branca!...
Como era parecida com a neve...
Neles o autor promove a estilização pela captação das formas expressionais do estilo
que caracteriza o Romantismo, marcado por idealizações e por modalizações que expres-
sam a subjetividade do locutor romântico. As predicações são índices idealizadores mani-
festados pela alteridade. Nelas a mulher surge envolta numa aura de sacralidade que a colo-
ca no nível da sublimidade dos elementos considerados símbolos poéticos da estética ro-
mântica – a brancura e a neve – , índices metafóricos de pureza e fragilidade, que se opõem
ao universo materialista do pragmatismo burguês, rejeitado pela concepção poética do es-
capismo romântico.
Mas a reação se manifesta nos versos finais:
Porém não sei como é a neve,
Eu nunca vi a neve!
Eu não gosto da neve!
E eu não gostava dela...
395
A conjunção porém engendra uma nova concepção poética, agora adotada pelo enun-
ciador que o locutor na verdade representa. E aqui se estabelece a negação polêmica da
qual emana o efeito de sentido que configura o valor poético do texto – “nunca vi a neve /
não gosto da neve / não gostava dela”. E essa é a rejeição de uma fórmula poética conside-
rada ultrapassada pela atualização discursiva do mundo moderno, por uma poética de mo-
dernidade engendrada no Brasil pela Semana de Arte Moderna e levada a termo a partir da
geração modernista de 22. Manifestam-se aqui os índices de uma poética que reivindica o
encurtamento da distância entre poesia e realidade e, por conseqüência, rejeita as fórmulas
surradas de um lirismo escapista, tomado como piegas pela nova comunidade literária, que
fala em uníssono através do texto, constituindo um “ethos de coesão”.
Assim, por via de um processo polifônico, o poema estabelece uma heterogeneidade
discursiva que se manifesta no interstício do mostrado e do constitutivo. Protegido por uma
manifestação genérica estruturalmente marcada, o texto mantém um processo de interação
específica e depende de um conhecimento prévio do campo discursivo e do espaço discur-
sivo para sua compreensão e para a constituição do seu sentido. Então, situamo-nos aqui no
universos das práticas discursivas, de que fala Mainguenau
172
, que estão relacionadas com
o texto e com a questão da situacionalidade e que inclui a noção de ethos dos enunciadores
e sua posição na comunidade discursiva. Essa comunidade discursiva constitui grupos que
produzem textos, textos estes que dão visibilidade às idéias nela circulantes, onde o discur-
so já é o encontro de uma produção textual e uma produção de mundo. E tudo se faz através
de um código de linguagem
173
, em que se leva em conta o modo de apropriação da língua
em obediência a um determinado gênero, no caso particular o gênero poético, legitimando o
ethos que se pretende criar.
A imitação pode coincidir sobre um gênero ou um estilo, isto é, produzir enunciados
que não remetem a nenhum texto autêntico, conhecido pelos destinatários, ou ainda pode
produzi-los sobre um texto em particular e, nestas circunstâncias, também absorve, eviden-
temente, todas as coerções do gênero ao qual o texto imitado pertence, trazendo no proces-
so da imitação suas marcas características, como é o caso que apresentamos a seguir:
172
MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. São Paulo: Pontes, 1997, p.
53-70.
173
Idem, ibidem.
396
Texto I Texto II
Vandalismo Bandalhismo
Meu coração tem catedrais imensas,
Meu coração tem butiquins imundos,
Templos de priscas e longínquas datas,
antros de ronda, vinte-e-um purrinha
Onde um nume de amor, em serenatas,
onde trêmulas mãos de vagabundo
Canta a aleluia virginal das crenças.
batucam samba-enredo na caixinha.
Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Perdigoto, cascata, tosse escarro,
Vertem lustrais irradiações intensas
um choro soluçante que não pára,
Cintilações de Lâmpadas suspensas
piada suja, bofetão na cara
E as ametistas e os florões e as pratas.
e essa vontade de soltar um barro...
Como os velhos Templários medievais
Como os pobres otários da Central
Entrei um dia nessas catedrais
Já vomitei sem lenço e sonrisal
E nesses templos claros e risonhos...
o P. F. de rabada com agrião...
E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
Mais amarelo do que arroz de forno,
No desespero dos iconoclastas,
voltei pro lar, e em plena dor de corno
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!
Quebrei o vidro da televisão.
(Augusto dos Anjos) (Audir Blanc – LP Bandalheira, RCA, 1980)
Como se percebe, aqui a imitação se processa sobre um texto em particular. Entre os
dois poemas, instaura-se uma heterogeneidade mostrada não-marcada (ou pouco marcada)
a partir da imitação por subversão. O texto II traz as marcas estilísticas do texto I sob uma
ótica invertida, que recai no que a retórica chama de paródia. No complexo discursivo do
texto I, manifesta-se a voz da alteridade sobre a qual se sustenta um jogo de tensões e rela-
ções polêmicas que engendra a semântica discursiva de que emanam os efeitos do sentido
que conferem valor poético ao texto. Também nessas condições, precisa-se recorrer a uma
memória discursiva na qual se inscrevam um campo discursivo e um espaço discursivo.
Por meio de um código de linguagem apropriado ao tema, o texto I faz, de forma so-
lene, uma incursão no universo existencial do seu enunciador. Seguindo o princípio de rup-
397
tura da arbitrariedade da linguagem, segundo o qual o estilo ratifica o dito, o que é próprio
do gênero poético, o texto se expressa numa linguagem “nobre”, “declamatória”, que põe
em relevo a “nobreza” do seu próprio tema.
O título Vandalismo” obedece a um processo de referenciação em que o referente é
recategorizado no momento mesmo da sua ativação e introdução no texto
174
. Isso transfor-
ma o referente em um objeto-de-discurso cujo valor de “nobreza” se corporifica no texto,
no transcorrer do seu fluxo poemático. E esse fluxo é marcado por formas lexicais e sin-
tagmáticas que erigem no poema como marcos de nobreza poética, tais como “nume de
amor”, “aleluia virginal das crenças” e “Templários medievais”, que legitimam o gênero
textual a que pertence o texto. Tudo isso ratifica os próprios sonhos” que se manifestam
entre lustrais irradiações intensas”, Cintilações de Lâmpadas suspensas”, E as ametis-
tas e os florões e as pratas”, que traduzem um efeito de sentido de poesia.
O texto II, por seu turno, retomando a temática do texto I, constrói-se pela denegação
do valor de nobreza em que este se sustenta. Aqui, a legitimação se faz por vias inversas.
Orientado pela intenção subversora da imitação, seu código de linguagem subverte delibe-
radamente o código de linguagem da alteridade, fazendo manifestar um antilirismo que se
configura na ruptura do discurso Outro, pela exploração de termos e aspectos grotescos da
realidade, como o submundo urbano, com suas carências e decrepitudes morais.
Assim, o título “Bandalhismo” se recategoriza como objeto-de-discurso, em oposição
ao “Vandalismo” do texto I. E essa recategorização se amplia no curso poemático das coe-
sões, pelos aspectos prosaicos da realidade. Novamente rompendo a arbitrariedade da lin-
guagem, que ratifica o dito por meio da expressão estilística, o texto explora formas de ex-
pressão que coincidem com a realidade referenciada, conferindo, assim, legitimidade à ma-
nifestação genérica da paródia do texto poético, através da imitação pela subversão. Se o
texto I nobremente enuncia: “Meu coração tem catedrais imensas”, o texto II mostra o lado
subversor dessa nobreza: “Meu coração tem butiquins imundos” (e note-se a grafia sinto-
mática de “butiquins e não botequins), revelando o prosaico e o grotesco da existência.
A partir daí toda a nobreza se deteriora em “antros de ronda, vinte e um, purrinha
(que subverte a ludologia porrinha), e a sublimidade é implacavelmente carcomida por
Perdigoto, cascata, tosse escarro”. Tudo isso porque não existe mais a solenidade dos
174
Sobre introdução referencial recategorizadora, ver CAVALCANTE, Mônica Magalhães. “Anáfora e dêi-
xis, quando as retas se encontram”, in KOCK, Ingedore Villaça et alli (Orgs.) Referenciação e Discur-
so. São Paulo: Contexto, 2005, p. 125-145.
398
Templários medievais”; agora só existem de fato “os pobres otários da Central”, logra-
douro imundo onde se vomita “sem lenço e sonrisal / o P. F. de rabada com agrião”, co-
mida barata, de alto teor alimentício, cuja confecção geralmente se processa em grande
escala, para uma coletividade, o que anula a individualidade do sujeito poético. No universo
poético do texto II, não há “o desespero dos iconoclastas” do texto I (e não há porque não
existem mitos), o que há é “plena dor-de-corno”, porque nele só existem párias; não se
quebram os “próprios sonhos” (que nunca existiram), em vez disso, num brutalismo arqui-
tetônico em que o poema traz a olho nu uma espécie de imediatismo primitivo, quebra-se o
vídeo da televisão” (que presumivelmente não funciona).
Embora submetido às coerções do gênero ao qual o texto I pertence, e, paradoxalmen-
te, até por isso mesmo, todo o efeito de sentido poético do texto II se constrói no jogo dis-
cursivo da heterogeneidade. Esse jogo se processa intertextualmente pela subversão da es-
trutura semântica que desqualifica o texto imitado, e essa desqualificação estrutural da alte-
ridade ocorre discursivamente no movimento mesmo da sua imitação, pelo conflito entre a
voz do enunciador e a outra voz à qual ele se contrapõe no curso da enunciação.
* * *
Pelo que podemos perceber, o discurso é integralmente lingüístico e integralmente
histórico. A história não é algo exterior ao discurso, é interior a ele, pois o seu sentido é
fundamentalmente histórico, isto é, ele emana da relação com outros discurso no curso da
história, já que o discurso não opera sobre a realidade vivencial, sobre coisas e fatos, mas
sobre outros discursos que circulam numa comunidade cultural. Assim, a historicidade dis-
cursiva não pode ser percebida por meio de anedotas sobre a produção de um determinado
discurso. É preciso captá-la no curso lingüístico de sua heterogeneidade, visto que é no
movimento de produção de um discurso que se compreende a noção do seu fluxo histórico.
O conceito de dialogismo mostra que é na relação com uma exterior idade, com o dis-
curso Outro, que se apreende a história que perpassa o discurso que se inscreve nele. As-
sim, com a concepção dialógica da linguagem, a análise histórica de um texto deixa de ser a
descrição da época de sua produção e torna-se uma análise semântica que considera os des-
lizamentos de sentido, os confrontos semânticos, os apagamentos de significados, as inte-
rincompreensões, as recatgorizações semânticas etc., o que nos leva ao reconhecimento de
399
que o sentido histórico do texto está no seu interior e não na exterioridade. Por isso, para
perceber claramente o sentido do texto, é preciso situá-lo em seu universo, em seu campo,
em seu espaço discursivo e apreender os confrontos sêmicos que geram os seus sentidos.
A análise do discurso retrabalha o conceito de dialogismo com a noção de heteroge-
neidade, captando a exterioridade de forma mostrada ou constitutiva. E é daí que procura-
mos compreender a relação do texto poético com a comunidade discursiva na qual ele cir-
cula, entendendo na sua historicidade os valores estéticos emanentes que o constituem co-
mo obra de arte.
400
8. — UMA ANÁLISE SEMIOLINGÜÍSTICA DO DISCUSO POÉTICO
Sabemos que existem várias correntes que procuram dar conta da análise do discur-
so. Cada uma dessas correntes têm suas peculiaridades e, evidentemente, suas vias de aces-
so ao texto. A Análise do Discurso se encontra na encruzilhada de interdisciplinaridade
necessária às ciências humanas e sociais. Vem daí a sua diversidade, que se configura em
várias correntes, umas mais próximas ao núcleo lingüístico e outras mais periféricas:
- Análise Automática do Discurso – O estudo do discurso político, inspirado nas idéias
marxistas e na psicanálise lacaniana. Não se interessa pela produção individual do discurso
(Michel Pêcheux).
- Análise do Discurso Anglo-Saxã – Interessa-se pela conversação cotidiana. Dá ênfase à
fala e se situa num ponto mais próximo do núcleo hard da língua (Gillian Brown e George
Yule).
- Análise Crítica do Discurso – Visa a estudar as formas de poder que se instauram por
intermédio do discurso entre as raças, as classes sociais, os sexos, etc. (Van Djik e Wodak).
- Análise semiolingüística do discurso – Busca ligar os fatos da linguagem entre si, se-
gundo sua dimensão lingüística, psicológica e sociológica, sem deixar de ser estritamente
lingüística, psicológica e sociológica (Patrick Charaudeau)
A Análise Semiolingüística do Discurso, segundo Patrick Charaudeau, consiste em
estabelecer entre si certos questionamentos que abrangem os fenômenos da linguagem sob
dois aspectos, independentes mas inter-relacionados: um externo e outro interno ao univer-
so da linguagem: de um lado, a lógica das ações e influências sociais; de outro, a constru-
ção do sentido da linguagem e a construção dos textos. Assim, encontramo-nos numa en-
cruzilhada de situações que, em conjunto, nos conduz a uma dimensão psico-socio-
linguageira do discurso, atrelada à construção do processo de semiotização do mundo.
401
Isto porque a linguagem é portadora de uma tridimensionalidade, uma vez que apre-
senta uma dimensão cognitiva, que pressupõe a percepção e a categorização do mundo;
uma dimensão social e psicossocial, que abrange o valor de troca dos signos e valores de
influências dos fatos da linguagem, e uma dimensão semiótica, que, num sentido amplo,
relaciona a construção dos sentidos com a construção das formas, ou seja, como se realiza a
semantização das formas e como se faz a semiotização do sentido. Essas dimensões justifi-
cam o aspecto semiolingüístico desta análise do discurso:
a) Semio (de “semiosis”) – corresponde à construção do sentido e sua configuração,
que se realizam através da conspiração forma-sentido. Considera-se a forma do texto, que
abrange o tipo e o gênero textual e seu modo de organização discursivo, e o sentido que
esta forma pode suscitar. Essa construção de sentido se realiza sob a responsabilidade de
um sujeito provido de uma intencionalidade, dentro de um quadro de ação no âmbito social.
Aqui estamos envoltos em uma esfera psico-socio-semio-pragmática.
b) Lingüística – a matéria-prima da forma do discurso é o material lingüístico, é a
linguagem natural, por sua dupla articulação e pela particularidade combinatória de suas
unidades no eixo sintagmático e paradigmático nos diversos níveis – palavra, frase, texto.
Peculiarmente, as línguas naturais, pelo seu alcance, impõem um procedimento de semioti-
zação do mundo diferente dos outros sistemas de linguagem.
8.1. – A Semiotização do Mundo
A Análise Semilingüística do Discurso, de Patrick Charaudeau, como já se viu, pos-
tula que a semiotização do mundo obedece a dois processos que, embora se realizem se-
gundo procedimentos distintos, pela interdependência no processo comunicativo, tornam-se
solidários na construção do sentido discursivo. O primeiro é o processo de transformação,
que transforma um “mundo a significar” em “mundo significado”, sob a atitude de um su-
jeito falante; o segundo é o processo de transação, que torna este “mundo significado” um
objeto de troca, na interação com outro sujeito, tomado como destinatário deste objeto.
402
a) Processo de Transformação
Segundo Charaudeau, o processo de transformação compreende quatro tipos de ope-
ração – a identificação, a qualificação, a ação e a causação. Na identificação, os seres do
mundo são transformados em identidades nominais e estão sujeitos a nomeação e conceitu-
ação para que sirvam de objetos de referenciação. Na qualificação, os seres do mundo são
transformados em identidades descritivas e se submetem à caracterização de suas proprie-
dades e especificações para sua identificação. A ação transforma os seres do mundo em
identidades narrativas, e se inserem em esquemas conceitualizados que lhes conferem o
atributo da ação que podem praticar ou sofrer. Na causação, a sucessão dos fatos do mundo
é transformada em relações de causalidade – os seres agem ou sofrem a ação em razão de
certos motivos que os inscrevem numa cadeia de causalidade.
b) Processo de transação
O processo de transação, de acordo com Charaudeau, ocorre segundo quatro princí-
pios que estão inseridos em um postulado de intencionalidade: os princípios de alteridade,
pertinência, influência e regulação:
Princípio de alteridade – qualquer ato de linguagem se realiza numa troca entre os
parceiros de um processo comunicativo; mas esses parceiros precisam se reconhecer como
tais, nas suas semelhanças e diferenças. As semelhanças se encontram nos saberes partilha-
dos sobre o universos de referência e na motivação comum que constitui a finalidade do ato
de linguagem; as diferenças dizem respeito aos papéis dos interlocutantes do processo co-
municativo: papel de sujeito comunicante para o emissor da mensagem e de sujeito inter-
pretante para o receptor da mensagem. O reconhecimento dos parceiros, que ocorre num
processo recíproco de interação, confere a estes uma legitimidade. Assim, todo ato de co-
municação implica um reconhecimento e uma legitimação recíproca dos parceiros. O prin-
cípio da alteridade constitui o fundamento do aspecto contratual do ato de comunicação.
403
Princípio da pertinência – nesse princípio, realiza-se o reconhecimento do univer-
so de referência, que se dá pelo compartilhamento dos saberes implicados no ato de lingua-
gem – saberes sobre o mundo, sobre os valores psicológicos e sociais, sobre os comporta-
mentos etc. Neste princípio, os atos de linguagem devem ser apropriados a seu contexto e à
sua finalidade, confirmando o aspecto contratual do dispositivo sociolinguageiro.
Princípio de influência – através deste princípio, busca-se atingir o interlocutante,
afetando-o nas suas ações, emoções e pensamentos. Este princípio se relaciona diretamente
com a finalidade intencional que se acha inscrita no dispositivo sociolinguageiro.
Princípio de regulação – os parceiros procedem à regulação do jogo de influências.
Assim como todo sujeito receptor de uma mensagem é alvo de influência do sujeito emis-
sor, toda influência pode estar exposta a uma contra-influência. Esse jogo de influência e
contra-influência pode causar confronto ou ruptura do processo comunicativo. Assim, para
a regulação, os parceiros recorrem a estratégias no interior de uma quadro de situações e
este espaço de estratégia está inscrito no dispositivo sociolinguageiro.
As operações do processo de transformação não se realizam autonomamente. Elas
são efetuadas sob o controle do processo de transação, conforme as diretrizes deste, o que
significa dizer que, na dialética entre os dois processos, há uma dependência do primeiro
em relação ao segundo. Essa dependência marca uma mudança de orientação dos estudos
sobre a linguagem, buscando-se apreender o sentido comunicativo nos valores semânticos
que emanam da operação discursiva. Isto pressupõe, em outras palavras, que o valor propo-
sicional se subordina aos valores inter-relacionais no intercâmbio do processo linguageiro.
É sempre possível construir um enunciado que mobilize as diferentes operações do
processo de transformação. Um enunciado tipo são apenas marcas lingüísticas a serem in-
terpretadas dentro de um quadro situacional que o transforma em enunciado ocorrência,
analisado agora no processo dinâmico da enunciação. A célebre frase de Aníbal Machado,
“Não sabemos definir o que queremos, mas sabemos discernir o que não queremos.”, não
teria, em outras circunstâncias, o mesmo sentido que adquiriu na época da Semana de Arte
Moderna, quando a arte brasileira tentava uma renovação em relação às formas cristaliza-
das da poética tradicional.
404
Já se vê que não se podem considerar as operações de transformação isoladamente.
Estas operações devem ser consideradas em um quadro situacional no qual se insere o pro-
cesso de transação, o intercâmbio linguageiro. Este quadro situacional, envolvendo um con-
junto de componentes que atuam na construção do sentido discursivo, serve de base para a
construção do contrato de comunicação.
8.2. – A Estrutura Linguageira
O duplo processo de semiotização do mundo corresponde a um postulado de inten-
cionalidade no qual se fundamenta o ato de linguagem. Como se pode perceber, esse ato de
linguagem pressupõe uma intencionalidade – a dos sujeitos falantes, que são parceiros de
uma troca. Por conta disso, tal ato de linguagem depende da identidade dos parceiros, visa a
uma influência, é portador de uma proposição sobre o mundo e se realiza em uma situação
de tempo e espaço determinados, os quais incluem um conjunto de fatores envolvidos pela
conjuntura histórico-cultural.
Para que um ato de linguagem seja válido, é necessário que os parceiros se reconhe-
çam e reconheçam em cada uma deles o direito à fala – o que depende de sua identidade – e
que possuam um mínimo de saberes postos em jogo no ato da troca linguageira – princípio
de interação e pertinência.
O princípio de pertinência transcende a instância da enunciação do ato de linguagem,
pois inclui um conhecimento prévio sobre o mundo – valores sociais, culturais, psicológi-
cos, comportamentais etc. Essa abrangência recai numa cena enunciativa que comporta um
duplo espaço e um duplo circuito de significância da verbalização do ato de linguagem –
um espaço externo, que corresponde ao circuito do fazer, e um espaço interno, que corres-
ponde ao circuito do dizer. Isto determina dois tipos de sujeitos da linguagem, os interlocu-
tores e os intralocutores. Aqueles são seres com identidades sociais, portadores de uma
intenção comunicativa, denominados sujeito comunicante e sujeito interpretante; estes são
seres que portam apenas identidade discursiva, responsáveis pelo ato de enunciação, de-
nominados sujeito enunciador e sujeito destinatário. É dessa cena enunciativa que emana o
contrato de comunicação.
405
Diante disso, um ato de linguagem se alimenta de dois espaços de negociação: um
espaço de restrições e um espaço de estratégias. O espaço de restrições compreende as
condições mínimas para validação do ato de linguagem, que se relacionam com os princí-
pios de interação e pertinência, ou seja, a identidade dos parceiros e os saberes comuns. O
espaço de estratégias corresponde às escolhas possíveis à disposição dos sujeitos na mise-
en-scene do ato de linguagem, que envolvem os princípios de influência e regulação.
8.3. – O Contrato de Comunicação
Contrato de comunicação é a condição para que os parceiros de um ato de lingua-
gem se compreendam minimamente e possam interagir na construção do sentido, que é a
meta essencial de qualquer ato de comunicação. Ele estabelece o que faz com que o ato de
comunicação seja reconhecido como válido do ponto de vista do sentido. Sendo um dos
conceitos básicos da análise semiolingüística do discurso, o contrato de comunicação de-
fine um conjunto de “regras” discursivas que determinam o que é e o que não é “permitido”
na produção e na análise de textos (orais ou escritos). Estabelece, portanto, os alcances da
codificação e decodificação textual.
O contrato de comunicação tem como base o quadro situacional controlado pelo pro-
cesso de transação. Ele está intimamente relacionado com o princípio de alteridade, que
constitui o fundamento do aspecto contratual do ato de comunicação, pois implica o reco-
nhecimento e uma legitimação recíproca entre os parceiros. O princípio da pertinência con-
firma o aspecto contratual na medida em que envolve o reconhecimento do universo de
referência, ou seja, o compartilhamento dos saberes implicados do ato de linguagem.
Para o estabelecimento do contrato de comunicação, segundo Charaudeau, alguns
elementos devem ser considerados. Dentre eles, os tipos de texto (jornalístico, científico,
literário etc.), os gêneros textuais (notícia, artigo, romance, poema etc.) e os modos de or-
ganização discursiva (narrativo, descritivo, argumentativo e enunciativo). Além disso, con-
sidera-se a credibilidade do sujeito comunicante, estabelecido pelo viés do saber fazer,
atrelado aos objetivos da linguagem: informar – fazer saber, persuadir – fazer crer, incitar –
fazer fazer e seduzir – fazer prazer. Esse objetivos, de certa forma, põem em prova a com-
406
petência discursiva dos interlocutantes e, sob certos aspectos, em decorrência do objetivo
da linguagem, lança mão dos aparatos da Estilística na construção discursiva do sentido.
Mas os contratos de comunicação podem variar, segundo sua natureza interlocutiva
ou monolocutiva, presencial ou não-presencial. Isso estabelece a margem de risco do proje-
to de comunicação, porque os aspecto contratual, em conseqüência da ausência física do
intelocutante, pode deixar vaga a captação, controlada pelos princípios de influência e de
regulação, como acontece, por exemplo, em um texto literário escrito.
Para elucidação de alguns conceitos, aprofundemos um pouco as noções desenvolvi-
das por Charaudeau. Segundo ele, modo de organização discursivo é “o conjunto de proce-
dimentos de colocação em cena do ato de comunicação, que correspondem a algumas fina-
lidades (descrever, narrar, dissertar...). Trata-se, para esse autor, de distinguir as operações
linguageiras que são postas em funcionamento em cada um dos níveis de competência: o
nível situacional, o nível discursivo e o nível semiolingüístico. Em outras palavras, os mo-
dos de organização discursivo são as maneiras de organizar a mise en scène do projeto de
comunicação do Eu-comunicante.
Os tipos de texto são as modalidades textuais atreladas a um ramo da atividade
humana – o jornalismo, a literatura, a publicidade, a burocracia, etc. Os tipos de texto se
relacionam à situação comunicativa, sendo, portanto, uma noção extratextual enquanto a de
modo de organização é intratextual. Enquanto os modos de organização do discurso estão
ligados à estrutura básica do texto, particularmente na sua relação das coisas com o tempo,
os tipos textuais se prendem à sua função básica, ou seja, à sua declarada finalidade.
Para cada tipo de texto subjaz um contrato de comunicação. Assim, textos jornalísti-
cos, científicos, publicitários, literários etc. têm contratos de comunicação distintos entre si.
O mesmo ocorre em cada gênero textual. Essas noções não podem ser ignoradas por quem
pretende levar a termo uma investigação do texto poético. O contrato da epopéia não é o
mesmo do soneto, que por sua vez é diferente do da ode, e assim por diante.
O conjunto de restrições e liberdades ligado a um ato de linguagem enquadra-o ao
mesmo tempo num contrato de comunicação e num gênero textual. Os contratos de comu-
nicação subjacentes aos gêneros textuais variam conforme a cultura. Os Estilos de Época da
Literatura são um exemplo disso. Um poema, afinal, não é igual a um romance, um poema
moderno, por sua vez, não é igual a um poema romântico ou um poema clássico e assim
por diante.
407
Para efeito de esclarecimento, visualizemos o quadro abaixo:
(Fonte: OLIVEIRA, Ieda de – O Contrato de Comunicação da Literatura infantil e Juvenil)
Cada modo de organização discursivo, cada tipo de texto e cada gênero textual
apresenta uma série de marcas específicas. Para bem interpretarmos um texto, devemos
estar aptos a ver todos os sinais que compõem sua estrutura e sua significação. Há certa
correlação entre gêneros textuais e modos de organização do discurso: um editorial é
sempre dissertativo-argumentativo, a ficção é sempre narrativa, o poema pelas suas
peculiaridades é sempre marcado por um modo de dicção, etc. Os modos de organização
discursivo podem se misturar, havendo, no entanto, a predominância de um deles, e no
poema, em particular, isso deve ser considerado como artifícios para a construção do
sentido poético do texto.
Somem-se a esses fatores as noções de poética e realidade discursiva, as
heterogeneidades discursivas, as denotações e as conotações, a objetividade e subjetividade
da linguagem, etc., que, associados aos fatores estruturais, compõe a totalidade poética do
texto, totalidade esta que liga a obra poética à realidade do mundo, aprisionando-a como
elemento estético indispensável à manifestação artística do texto.
408
8.4. – Análise de Texto
Para procedermos à nossa análise textual, fazem-se necessárias duas advertências. A
primeira é que não podemos conceber uma análise de discurso que não dê conta de todos os
tipos de discursos, e aí incluímos o discurso poético, o que justifica a escolha do nosso ob-
jeto de análise. A segunda é que, pela abrangência do modelo de análise que escolhemos,
tomaremos o termo discurso em dois sentidos: no primeiro, enquadramos o termo discurso
no espaço do dizer, em que ele é tomada como atividade lingüística; no segundo, o termo
discurso está relacionado a um conjunto de saberes partilhados, construído, de modo cons-
ciente ou não, pelos indivíduos de uma comunidade cultural, que são ativados pela memó-
ria discursiva dos intelocutantes no processo da interação comunicativa. Com esta atitude,
ficamos a meio caminho das duas esferas discursivas que interagem dialeticamente.
Eis o poema:
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
(Manuel Bandeira A Cinza das Horas – Teresópolis, 1912)
409
Um texto literário tem peculiaridades e, como tal, merece uma apreciação peculiar,
porque um poema ou um romance não têm a mesma finalidade de um texto de comunica-
ção. Mas nem por isso consideramos que ele deva escapar às considerações de uma análise
do discurso. Pelas suas peculiaridades, a linguagem literária se caracteriza como um fenô-
meno autônomo que se apóia, antes de mais nada, na noção de que a criação literária consti-
tui uma atividade intencional e finalística. Assim, o que se verifica é uma verdadeira mu-
dança de estatuto determinada por incidentes de ordem contratual que interferem no modo
como o texto literário deve ser confrontado. Sobre esse conceito, ver Reis (2001: 19 e 111).
Isto nos conduz a alguns caminhos. Se todo falar é um fazer, entendemos que, no tex-
to literário, falar é um fazer poético, e nele o objetivo da linguagem é antes de tudo o da
sedução, demarcado pelo viés do fazer prazer, o que nos desvia da tentação de uma análise
biográfica. A partir daí, seguindo as propostas de nossa análise, tomamos aqui o texto en-
quanto texto, isto é, desconsideramos o sujeito empírico que o enunciou. Para tanto, segui-
mos as orientações de Granger e a trilha dos passos de Humberto Eco, segundo o qual as
categorias de autor e leitor são consideradas não tanto como pólos de enunciação, mas co-
mo papéis actanciais do enunciado.
175
Nesse caso, o autor é textualmente manifestado ape-
nas como um estilo reconhecível, visto como um idioleto textual, ou de corpus ou de época,
e o leitor nada mais é do que uma instância receptora da produção artística. Ao Eu-lírico,
fica reservado o papel de componente da criação artística.
O texto de Manuel Bandeira pertence ao tipo de texto literário e se enquadra no gêne-
ro poesia. É a partir do reconhecimento desse gênero textual que se desenvolve toda a aná-
lise do texto, pois não se pode dizer nada sobre o objeto discursivo sem que se tenha uma
teoria do gênero a que ele esteja ligado. No texto, a partir da definição do gênero, percebe-
se uma vivência lírica, visto que o Eu-poético mergulha em suas próprias emoções e con-
fessa as razões do caráter emocional de sua poesia, fato que se torna o centro nervoso da
mensagem poética do texto.
Quanto aos modos de organização discursiva, o texto apresenta um caráter híbrido, já
que, pelas estratégias discursivas, organiza-se discursivamente de forma variável. Pelo seu
caráter metadiscursivo (o texto é um metapoema), é gerido pelo modo enunciativo, como se
verifica nos primeiros versos de cada estrofe:
175
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1978. Apud POSSENTI, Sírio. Op. Cit., p. 165.
410
Eu faço versos como quem chora
(...)
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
(...)
E nestes versos de angústia rouca
e no último verso do poema:
—Eu faço versos como quem morre.
Sob esta gestão ele oscila, de acordo com os movimentos que estruturam o poema,
entre o modo argumentativo da primeira estrofe, o modo descritivo da segunda, para reto-
mar o modo argumentativo na terceira estrofe. Mas tanto em um quanto em outro modo de
organização discursivo, o poema apresenta um caráter fortemente pessoal, como é típico do
gênero lírico, em que o poeta expõe as razões de sua poesia ter um caráter tão subjetivo e,
por isso, argumenta que seu livro não deve ser lido por quem não tem “motivo nenhum de
pranto”.
O poeta tem consciência de sua função de poeta, e a partir da legitimidade, que ocupa
o espaço externo da cena de enunciação, confirmada pela sua condição de poeta, e da cre-
dibilidade, que ocupa o espaço interno da cena de enunciação, onde se manifesta o Eu-
lírico, ele desenvolve suas estratégias linguageiras. O sujeito-comunicante (o poeta) dirige-
se ao sujeito-interpretante (o leitor). A partir daí, dá-se o reconhecimento dos parceiros
interlocutantes e se estabelece o contrato de comunicação. Cria-se, então uma cena enunci-
ativa, em que o sujeito-enunciador, tornado Eu-lírico, é a imagem que o sujeito-
comunicante projeta de si mesmo. Este, por sua vez, dirige-se a um sujeito-destinatário,
que é o leitor idealizado pelo sujeito-comunicante, leitor este que deve ter domínio do uni-
verso discursivo dos textos poéticos e, mais ainda, que tenha sensibilidade para a absorção
de uma mensagem lírica.
O sujeito-comunicante, buscando um leitor que seja capaz de entrar em sintonia com
o estado de espírito do Eu-lírico, rejeita o leitor que não está capacitado a absorver o liris-
mo de sua poesia, e o faz através de um ato de linguagem ilocutório configurado no impe-
rativo destes versos, que estabelecem o viés lírico da sua composição poética:
411
Fecha meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
O sujeito-comunicante estabelece no texto um postulado de intencionalidade, e, atra-
vés de um objetivo comunicativo que se enquadra no viés sedutor do fazer prazer, reconhe-
ce-se de imediato o caráter poético do texto. É este reconhecimento que direciona particu-
larmente nossa visão diante do texto. Diante da poesia, é preciso discutir outro critério de
normalidade discursiva, e esta discussão permite entrever a perspectiva de um outro lugar
de pertinência e, assim, de uma outra significação do mundo. Para que essa nova significa-
ção possa se impor, é necessário que se reconheça que o sujeito poético é legitimado por
um estatuto de poder que o torna crível pelo saber fazer, característica que o qualifica pelas
etiquetas do gênero a que o texto está ligado.
Mas esse novo critério de normalidade discursiva se dá por certos desvios lingüísticos
que envolvem problemas da sintaxe e da semântica na construção do sentido poético do
texto. Esses desvios consistem, como afirma Jean Cohen (1974), em atribuir a certas pala-
vras uma função gramatical que, pela aplicação lógico-intelectiva da linguagem, ela não é
capaz de exercer. Esses desvios configuram a estrutura da linguagem poética e enquadram
o texto no gênero a que ele pertence. É bom lembrar que tais desvios conferem ao sujeito-
comunicante a legitimidade e a credibilidade que faz com que o reconheçamos como poeta.
Analisemos a estrofe abaixo:
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.
Os predicativos “sangue”, “volúpia ardente”, “tristeza esparsa”, “remorso vão” e
amargo e quente” são logicamente incompatíveis com seu sujeito – “meu verso”. Por ou-
tro lado, esse mesmo sujeito é incompatível com os predicados “dói-me nas veias” e “cai
gota a gota do coração”. Essas incompatibilidades instauram o desvio lingüístico que se
configura na impertinência semântica. Para desfazer tais impertinências, seria preciso subs-
tituir as palavras por outras que logicamente se compatibilizariam com o sentido lógico do
412
sistema lingüístico, mas essa substituição faria sucumbir o sentido poético do texto, e aí se
instaura um dilema já visto por nós: salva-se o sistema, mata-se a poesia.
Mas o texto é poético e temos que aceitá-lo como tal, aceitá-lo como um gênero cujo
contrato de comunicação exige dos sujeitos comunicantes uma visão de mundo construída
na esfera de uma sensibilidade lingüística diferente da habitual. É nesse ponto que precisa-
mos considerar a metáfora como estratégia discursiva na esfera da linguagem. A necessida-
de de se considerar a metáfora se impõe como um recurso que promove a redução do des-
vio. Assim, ela atribui aos termos lingüísticos um novo matiz semântico que constrói o sen-
tido poético do texto.
Com esse expediente, passa-se de um ordem lingüística para outra, cujos valores são
construídos numa esfera psíquica que nega a ordenação lógica da linguagem. O que se quer
dizer é que uma nova ordem lingüística se impôs à custa da destruição de outra, sobre cujas
ruínas se construiu um novo sentido. Este novo sentido foi estabelecido por um projeto de
comunicação especial, cujo contrato de comunicação exige dos interlocutantes um esforço
e uma vivência literária que os capacita para a apreensão dos valores imanentes ao gênero
poético.
Para o sujeito-comunicante, o verso é sangue, é volúpia, é tristeza e é remorso. Assim
ele ganha uma dimensão que se situa entre o concreto (“sangue que dói nas veias e que
cai gota a gota do coração”) e o abstrato (“volúpia ardente”, “tristeza esparsa” e “remor-
so vão”), mas, seja como for, é “amargo e quente” e, portanto, visceral. Na voz lamentosa e
suplicante do sujeito-enunciador, a poesia é profunda, marcante e dolorosa, como nestes
versos:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
,
em que se explora a nasalidade de um pranto incontido (/en/, /en/, /an/), prolongado pelas
reticências e marcado pelas repetições fonéticas das aliterações e dos parequemas (“de de-
salento ... de desencanto”). E é também um jaculatório de dores existenciais que jorram em
ritmos de cadências espasmódicas,
demarcadas pela acentuação tônica da 4ª e 9ª sílaba poé-
tica dos versos eneassílabos:
413
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
— Eu faço versos como quem morre.
Os versos brotam no estertor de uma “angústia rouca” e se tornam vida, mas uma
vida acre, cuja acidez é melancolicamente anunciada já no título do poema – “Desencanto”.
Na análise semiolingüística do discurso, em decorrência do processo de semiotiza-
ção do mundo, no qual se combinam forma e sentido, tudo é levado em consideração: a
linguagem, a disposição das palavras, a diagramação etc. Isso faz com que consideremos a
disposição do último verso do texto. Isolado, esse verso ganha destaque e funciona como o
corolário do poema. Nele, a poesia se torna angústia, e todos os versos se transformam no
remanso de uma agonia lenta, agonia de quem morre no estertor de cada passo diante da
face angulosa da vida. Assim, pela sua disposição e pelo seu sentido, o último verso torna-
se a proposição decisiva que encerra a mensagem poética, através da qual, no seu projeto
de comunicação, o sujeito-comunicante atinge o sujeito-destinatário como o elemento re-
ceptor por ele idealizado.
Concluímos esta análise considerando certos aspectos, para nós, úteis e indispensáveis
à análise textual. A análise de um texto não pode restringir-se apenas ao seu aspecto estru-
tural. Considerar um texto apenas pela sua estrutura é deixar de fora certos aspectos que
preenchem muitas lacunas necessárias à sua total compreensão. Assim, hão de se considerar
certos fatores como modo de organização discursivo, tipos de texto, gênero textual, situa-
ção discursiva, etc., dos quais emanam um contrato de comunicação específico para cada
modalidade textual.
414
CONCLUSÃO
O poema é, por excelência, um objeto instigante e sedutor. Ou o consideramos uma
obra divina e o reverenciamos em uma ara protegida pelas auras celestiais, aceitando-o sem
falar dele, ou o consideramos fruto de uma elaboração minuciosa e consciente da lingua-
gem, e o confrontamos abertamente com todos os riscos que esta tarefa possa nos apresen-
tar. Ou nos acovardamos diante dos mistérios que o envolvem e deixamo-nos possuir pelos
alumbramentos que ele nos provoca, ou lançamo-nos ao desafio de investigá-lo nas suas
minúcias. Não seria próprio do lingüista dobrar-se vencido diante de um objeto cuja matéria
constitui o interesse dos seus estudos. Por isso, a despeito de todos os enganos que possa-
mos ter inadvertidamente cometido, e certamente o fizemos, aceitamos a tarefa de estudá-
lo, julgando trazer algum esclarecimento e estabelecer algumas diretrizes para a compreen-
são dos seus procedimentos, dos seus valores e das suas peculiaridades. Resta-nos o saldo.
O texto poético é um objeto de valor próprio, de densidade autotélica e, ao mesmo
tempo, insere-se num tempo real e num espaço histórico-cultural do homem. Isso pressupõe
uma análise que seja capaz de observá-lo como um objeto duplamente facetado. Sua apre-
ciação, como vimos, depende de dois fatores essenciais para que ele possa ser compreendi-
do em toda sua plenitude. De um lado estão seus fatores estruturais, que consideram sua
forma, sua linguagem e tudo mais que possa contribuir para a constituição intrínseca do seu
instrumento poético; de outro sua vocação discursiva, que nos leva ao homem em sua di-
mensão cultural e histórica. Ignorar um desses elementos é limitar o alcance da arte literária
em toda sua pujança.
Sem a intenção de sobrepujar as várias formas de investigação que tradicionalmente
nortearam a análise do texto poético, procuramos investigá-lo à luz de uma orientação cujos
caminhos sejam racionalmente aceitáveis. Sendo o poema um produto da linguagem huma-
na, entendemos, como fez Jakobson, que sua matéria – a Poética – constitui um elemento
componencial da Lingüística. Isso nos conduziu aos caminhos dos estudos lingüísticos,
pelos quais, por sua natureza palpável, percorremos com alguma segurança, evitando os
atalhos sempre perigosos da Psicologia e Sociologia. Isso não significa que tais componen-
tes não possam contribuir para a exegese do texto poético. Não desprezamos a idéia de que
tais elementos possam constituir o sentido da obra literária, mas nosso objetivo foi mostrar
415
que eles também são indiciados pela estrutura da linguagem, que é, em suma, a matéria-
prima do monumento literário.
A poesia é uma forma peculiar da linguagem verbal. Ela é criada com o que distingue
o homem dos demais seres do mundo – a linguagem. Mas a linguagem poética, como tal,
tem um fim em si mesma; ela não é no poema um mero suporte da mensagem, ela é a pró-
pria matéria poética a ser investigada. O discurso poético é, antes de mais nada, auto-
referencial, e através dele, procede-se à criação de um universo auto-suficiente, cujos valo-
res não existem fora da sua suprema autotelia. A especificidade da sua linguagem afasta-a
de um padrão social imediatamente reconhecível, e o faz pela sua forma, que nada mais é
do que um modo particular de dizer as coisas. Esse modo particular se constitui por um
processo de desautomatização da linguagem, percebido pelo obscurecimento da transparên-
cia entre a linguagem e o mundo. Na poesia, as coisas têm valor absoluto, não transcendem
os limites do texto e se constituem como componentes estéticos, criados tão-somente como
objetos-de-discurso, transformados em objeto poético pela própria linguagem.
Consideramos que o discurso literário se apresenta em graus variáveis que obedecem
à autonomia do gênero discursivo e dos subgêneros em que ele se vivifica. Confrontar a
prosa literária com a poesia é comparar a taxa de poeticidade que em ambas existem. En-
quanto a prosa é, por natureza, literatura de relato, movida e pressionada pelos objetos dos
quais tem de falar e dar conta, a poesia é devaneio de linguagem, é desvario prosódico. A
prosa é literatura de ficção, a poesia é literatura de dicção. Por isso, a taxa de poesia da pro-
sa é naturalmente inferior à taxa de poesia do poema. Suas imagens são de naturezas distin-
tas. Enquanto as imagens da prosa se fazem por relações frasais mais longas, as imagens da
poesia se manifestam em módulos, nas relações mais imediatas dos signos que se confron-
tam. Na tradução de um texto em prosa, há perda, mas não há aniquilação do seu objeto;
traduzir um texto poético implica a aniquilação dos elementos que o tornam monumento
único e inimitável. Isto porque a prosa tem um encrave mais acentuado na realidade, e a
poesia apenas vislumbra a realidade para reconstituí-la segundo seus próprios códigos e
apreendê-la nos limites da sua própria linguagem.
O poema usa certos artifícios que lhe são bem próprios: métrica, rima, ritmo, estrofes
etc., além de uma linguagem típica, que lhe conferem uma forma única e absoluta. Esses
fatores estruturais, como já vimos, conferem ao texto poético certas unidades de sentido
que o aprisionam e o definem na sua especificidade. Sem eles, o poema se dilui e perde sua
416
essência mais pura e mais caracterizadora. Mas, atestamos, a visão puramente estrutural do
texto poético acabou por tornar-se insuficiente para uma análise que possa dar conta da sua
totalidade artística. Diante disso, tornou-se necessário recorrer a uma contribuição discursi-
va, que leva em consideração o estatuto da recepção e da percepção, o que enquadra o texto
poético na ordem do discurso. Assim sendo, é imperioso que se considere o texto literário
como manifestação de um ato discursivo.
Mas em se tratando do caráter mimético do texto literário, os atos de discurso consti-
tuem, na verdade, um “jogo discursivo” entre enunciador e enunciatário, uma vez que eles
são, a rigor, imitações, ou quase-atos de discurso. Esse jogo exibe os atos discursivos, cha-
mando atenção para eles, considerando-os como atividade estética e realçando sua comple-
xidade de sentido e sua regularidade formal, potencializando, assim, seu teor afetivo. Co-
mo, no texto literário, os atos discursivos inserem-se numa atividade quase lúdica, ocorre a
suspensão das forças ilocutórias normais, de modo que a atenção do leitor se concentra nos
próprios atos ilocutórios e nos seus efeitos perlocutórios.
Desse modo, na distinção entre o discurso literário e o discurso não-literário, não se
pode considerar apenas suas propriedades de natureza formal. Se algumas dessas proprie-
dades formais são responsáveis por sua especificidade, lembramos que tais propriedades
também ocorrem no discurso não-literário, continuando a ser, por si sós, insuficientes para
a determinação formal da literariedade, como é o caso do discurso publicitário, que utiliza
com freqüência procedimentos usuais que o discurso poético reconhece – a rima, a métrica,
o ritmo, a conotação etc.
No discurso publicitário, o que aparenta ser um simples “jogo discursivo” é, de fato,
um ato discursivo que busca no leitor seu efeito perlocutório persuasivo, legitimado pelo
produto que se encontra à disposição do seu consumo. Isso tem certas implicações: enquan-
to o discurso literário permanece ad aeternum, o discurso publicitário é efêmero e tem sua
permanência limitada pela existência do produto que veicula no mercado. Daí, dividirmos a
função estilística em duas vertentes – a vertente pragmática e a vertente poética. Distinguir
pragmatismo de poeticidade na linguagem depende da situação discursiva em que o texto
está ancorado. Enquanto o discurso literário é livre de pressões externas; o discurso publici-
tário é pressionado pelas diretrizes deontológicas que o condicionam, tais como a marca do
produto, sua qualidade, preço, vantagens na sua aquisição etc., que condicionam sua exis-
tência e seu tempo de circulação na comunidade discursiva.
417
Quem se lembra destes versos que circulavam em catazes nos transportes coletivos?
Veja, senhor passageiro,
Que belo tipo faceiro
O senhor tem ao seu lado;
No entretanto acredite:
Quase morreu de bronquite.
Salvou-o o Rum Creosotado.
Eles não têm mais sua razão de ser na sociedade atual, e não têm porque o produto a
que eles fazem referência não circula mais como mercadoria de consumo. Findo o produto,
finda a publicidade, porque o discurso publicitário, ao contrário do texto poético, não per-
manece independentemente do produto que ele proclama. Isso esbarra na questão da contra-
tualidade que reside nos fatores de contextualização. O texto publicitário tem seus meios de
circulação: revistas, jornais, cartazes, outdoors etc., que são favoráveis à sua circulação e
são permanentemente renovados. Não se tem notícia de uma antologia publicitária como se
tem das antologias poéticas, que são adquiridas e reeditadas.
Além desses fatores, a noção de contraste que emana do contexto estilístico de que
nos fala Riffaterre não alcança o discurso publicitário com a mesma força que alcança o
discurso poético. Naquele, o contraste vem de fora, é extralingüístico e se encontra na com-
paração entre os produtos ou entre seus consumidores. No discurso literário, o contraste se
estabelece no vetor textual, no percurso da sua estrutura; logo ele é intrínseco, porque se faz
no nível da linguagem.
É preciso deixar claro que propomos uma ampliação da visão do texto literário e não
uma substituição do método de análise. Isso implica ver o texto literário como um produto
estruturado do discurso. Assim, dois aspectos devem ser considerados: sua visão estrutural
e sua dimensão discursiva. A fusão desses dois aspectos compõe a totalidade poética do
texto, pois os aspectos semânticos do texto poético advêm da confluência da sua forma com
o conteúdo que ele proclama, o que significa dizer que o conteúdo assume no texto uma
forma específica que o qualifica como o lugar da manifestação da poesia. Em outras pala-
vras, estamos dizendo que a forma – estrutura e linguagem – confere poeticidade ao conte-
údo proclamado.
418
Sabemos que, mesmo em graus variáveis, qualquer texto tem encrave na realidade.
Mas no texto poético essa realidade funciona como um componente estético do texto, pois
nele o processo de referenciação tem uma função específica, qual seja a de inscrever na sua
ambiência co-textual a matéria transformada em matéria poética. E isso se faz por meio de
uma linguagem cuja função é ressaltar a si mesma como elemento de atenção do leitor. Por
esse viés, a linguagem promove um grau de opacidade considerável em relação à realidade
mundana. Ela distorce tal realidade de modo que nos conduz a duas implicações na percep-
ção do texto, implicações estas que inscrevem a matéria poética e a linguagem numa fusão
indissolúvel. Somente dessa maneira o poema se traduz como o lugar de construção de uma
sensibilidade peculiar em relação ao mundo.
Fundir estrutura e discursividade no texto poético é ampliar os limites da atuação esti-
lística da linguagem. Isso significa passar de uma estilística do enunciado para uma estilís-
tica do discurso e estabelecer entre ambas um istmo revelador das duas dimensões textuais
– a dimensão estrutural e a dimensão discursiva – que atuam numa relação dialética, neces-
sária à totalidade poética do texto. Dessa maneira, vislumbramos o contexto discursivo co-
mo elemento da emanação poética do texto, assegurada por uma forma que constitui um
gênero textual legitimado por um código de linguagem marcado pelas configurações espe-
cíficas da função poética. Assim, transitar entre uma estilística do enunciado e uma estilís-
tica da enunciação é possibilitar o deslizamento de uma análise que vai da estrutura ao dis-
curso, num percurso que viabilize uma visão ampla e esclarecedora do texto poético.
Naturalmente a análise poética não deve privilegiar qualquer das duas dimensões tex-
tuais aqui citadas. Acreditamos que o privilégio de uma obscurece a função de outra. Se,
por um lado, a matéria poética é extraída da realidade contextual, é na riqueza formal da
língua que tal matéria vai encontrar as estruturas adequadas para sua conformação. Isso se
torna mais visível no texto poético, porque ele depende mais do que os outros tipos de texto
de uma forma de linguagem através da qual ele se legitima. Mas, lembramos, essa forma de
linguagem não é previamente estabelecida. Não há uma fórmula específica de conformação
estética. Então, acreditar que o simples desvio da norma lingüística é uma forma segura de
criação poética é uma atitude ingênua de analise do texto poético. O que existe é uma meta
para a constituição estética do texto. Na construção poética, o belo é, antes de tudo, um
objetivo a ser alcançado; a poesia é, acima de tudo, uma manifestação a ser artisticamente
inventada, criada com a linguagem e por ela manifestada.
419
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