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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
Mestrado Acadêmico em História MAHIS
Antonio Iramar Miranda Barros
IPU NOS TRILHOS DO MERETRÍCIO: INTELECTUALIDADE E CONTROLE
NUMA SOCIEDADE EM FORMAÇÃO. (1894-1930)
FORTALEZA-CE
2009
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FICHA CATALOGRÁRFIA
BARROS, Antonio Iramar Miranda.
Ipu nos trilhos do meretrício: intelectualidade e controle numa sociedade em
formação. (1894-1930)
Orientador: Marco Aurélio Ferreira da Silva
Dissertação: Universidade Estadual do Ceará
I. Meretrício Ipu (CE) 1894-1930. II. SILVA, Marco Aurélio Ferreira da; III.
Universidade Estadual do Ceará. Dissertação em História. IV. Ipu nos trilhos do
meretrício: intelectualidade e controle numa sociedade em formação. (1894-1930)
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ - UECE
ANTONIO IRAMAR MIRANDA BARROS
IPU NOS TRILHOS DO MERETRÍCIO: INTELECTUALIDADE E
CONTROLE NUMA SOCIEDADE EM FORMAÇÃO. (1894-1930)
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Universidade
Estadual do Ceará UECE, como exigência parcial para a obtenção do
título de Mestre em História, sob orientação do Prof. Dr. Marco Aurélio
Ferreira da Silva.
FORTALEZA CE
2009
4
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ UECE
MESTRADO ACADÊMICO EM HISTÓRIA E CULTURAS
TÍTULO DO TRABALHO: IPU NOS TRILHOS DO MERETRÍCIO:
INTELECTUALIDADE E CONTROLE NUMA SOCIEDADE EM
FORMAÇÃO. (1894-1930)
AUTOR: ANTONIO IRAMAR MIRANDA BARROS
DATA DA DEFESA: ____/____/____ CONCEITO OBTIDO______
NOTA OBTIDA: __________
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
PROF. DR. MARCO AURÉLIO FERREIRA DA SILVA UECE
(ORIENTADOR)
________________________________________________________
PROFª. DRª. CHRISLENE CARVALHO DOS SANTOS - UVA
1º EXAMINADOR (A)
________________________________________________________
PROF. DR. ALTEMAR DA COSTA MUNIZ - UECE
2º EXAMINADOR
5
DEDICATÓRIA
A minha filha, Luisa Larah Lopes Miranda Barros
6
AGRADECIMENTOS
A meus pais e todos meus familiares, que vibram comigo em todas as minhas
conquistas.
Ao Prof. Dr. Marco Aurélio Ferreira da Silva, que com sua capacidade,compreensão e
conhecimento bem orientou este trabalho. Os acertos meu amigo, compartilho convosco e
quanto aos erros assumo a responsabilidade por não ter entendido realmente os conceitos e a
melhor forma de análise das fontes como indicara.
A todos os amigos e professores da EEFM Auton Aragão que souberam administrar
minhas ausências no período do curso e ao Núcleo Gestor da época, diretora Danielle
Taumaturgo Dias Soares e Coordenadora Pedagógica Maria Ferreira Barros, sinceros
agradecimentos.
Ao amigo e Prof. Ms. Francisco Gleison da Costa Monteiro UVA que desde a
graduação me acompanha, além de me influenciar com suas pesquisas sobre o meretrício.
Ao professor e amigo Francisco de Assis Martins (Chico Melo), o mais engajado
memorialista que a cidade tem e que abriu seu imenso acervo para a pesquisa, sempre muito
amigável com os historiadores de Ipu e região.
Aos amigos do Grupo Outra História, Antonio Vitorino Farias Filho, mestre em
História UECE -, Raimundo Araújo, hoje mestrando em História nesta conceituada
Universidade, Jorge Luis, mestrando em História na Universidade Federal do Ceará,
Reginaldo Arjo e Francisco Lima, historiadores por formação.
Aos professores do Curso de História da Universidade Estadual Vale do Acaraú
UVA que me deram as primeiras instruções historiográficas e aos amigos, alunos e
professores das Faculdades INTA, onde apresentamos alguns conceitos apreendidos no
decorrer de nossa carreira acadêmica.
Aos professores e amigos do Curso de Mestrado em História da UECE MAHIS- que
zelam pela aprendizagem e compromisso dos alunos.
E principalmente, a todas as meretrizes e cidadãos citados na pesquisa pois,
fundamentalmente, sem eles este trabalho não teria acontecido. Que suas falas ouvidas no
decorrer deste trabalho não sejam em o. A estes o meu total respeito e consideração sem
medidas. Que suas memórias descansem em paz.
7
RESUMO
Este trabalho analisa a formação do meretrício na cidade de Ipu nos primórdios do século XX.
A chegada da ferrovia à cidade no final do século XIX (1894), ao ligar a Terra de Iracema à
Sobral e ao porto de Camocim, contribuiu para incrementar o desenvolvimento econômico
local e produzir algumas transformações em seu espaço urbano. Ao lado disso, e como
resultado mesmo do crescimento da cidade, novos atores sociais passaram a circular em seus
espaços. A venda do sexo e o surgimento do meretcio são frutos de tais transformações. Os
grupos dominantes locais (as famílias tradicionais, conservadoras e abastadas) ao lado da
Igreja Católica passaram a atacar os costumes locais identificados com as práticas
populares”, sobretudo a compra e venda do sexo como um desvio de conduta moral, uma
“barbárie” e o “fim dos tempos”. A partir daí fundaram um discurso fortemente marcado pela
defesa da moral, condenando a mercantilização do sexo como responsável pela
desestruturação da ordem familiar. Os intensos conflitos entre aqueles guardiões da moral e
dos bons costumes” (a Igreja Católica e os grupos tradicionais) e as práticas que eram objeto
de sanções morais, levaram tais grupos à tentativa de vigiar e controlar os espaços próprios da
venda do sexo. Os jornais, revistas e livros, que circularam em Ipu nas primeiras décadas do
século XX, todos escritos por aqueles que se diziam defensores da moral e dos bons
costumes, trazem em suas páginas um discurso fortemente marcado pela defesa da moral, dos
bons preceitos e dos bons costumes. Eles revelam ainda os projetos e estratégias de controle
de tais práticas. A partir deles é que foi possível analisar a formação do meretrício em Ipu, os
embates sociais, a busca pelo controle e a resistência daqueles que eram alvos de controle.
Palavras-Chave: Cidade - Meretrício Moral - Controle Social
8
ABSTRACT
This paper analyzes the formation of prostitution in the city of Ipu in the early twentieth
century. The arrival of the railroad to town in the late nineteenth century (1894), while turning
the land of Iracema to Sobral and the port of Camocim contributed to enhance local economic
development and produce some changes in its urban space. Besides, with the result that the
growth of the city, new socials actors began to circulate in their spaces. The selling of sex and
the emergence of prostitution is the result of such changes. The locals dominant groups
(traditional families, conservative and wealthy) next to the Catholic Church, started to attack
the locals customs, practices identified with the "popular", particularly the buying and selling
of sex as a standard of morals conduct, such as Finally, the "barbarism" and "end times".
Since then founded a speech marked by strong defense of morality, condemning the
commodification of sex as responsible for the disintegration of family reasons. The intense
conflict between those "guardians of morals and good customs" (the Catholic Church and
traditional groups) and the practices that were the subject of morals sanctions, led such groups
to attempt to monitors and control the spaces for selling sex. Newspapers, magazines and
books, which circulated in Ipu the first decades of the twentieth century, all written by those
who called themselves defenders of morality and good manners, bring in your pages, a speech
marked by strong defense of morality, the good precepts and morality. They also highlight the
projects and strategies to control such practices. From them it was possible to analyze the
formation of prostitution in Ipu, the socials struggles, the quest for control and resistance of
those who were the target of control. ............................................................................. .
Palavras-Chave: City - Prostitution- Morals - Socials Controls...................................................
.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................10
CAPÍTULO 1 Chegam os trilhos, mudam-se os modos: Intelectuais X Meretrizes. 24
1.1 Na visão de progresso”, surgem as meretrizes ..............................................................24
1.2 Entre Almanaques e intenções. A cidade se transforma.................................................33
1.3 A busca de um imaginário “iracemista” em Ipu..............................................................46
1.4. Vivendo em sociedade. Conflitos e interesses................................................................59
CAPÍTULO 2 A mulher pública e o controle dos usos e (des)usos sexuais: Ipu, uma
cidade vigiada..........................................................................................................................66
2.1 Os prazeres do amor. A satisfação sexual e a convivência em sociedade. ...................77
2.2 A venda do corpo e o corpo à venda. O meretrício e a cidade......................................83
2.3 No meretcio, na cidade, nas agremiões. O jornal, os doutores e as
meretrizes..................................................................................................................................87
CAPÍTULO 3 Meretrício, Igreja e família...........................................................................92
3.1 A mulher casada e as traições do marido. Um curso católico.......................................99
3.2 Entre o lar e o meretcio. Ser casada e ser traída.........................................................106
3.3 Nos olhares dos desvios. Igreja, família e sociedade....................................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................121
FONTES.................................................................................................................................123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................124
10
INTRODUÇÃO
Todas as vezes que entregamos um trabalho pronto, seja ele de conclusão de curso ou
apenas uma pesquisa particular, temos a impressão de dei-lo inconcluso. Por quê? Ora, o
historiador se inquieta a cada descoberta e assim, no decorrer de um determinado trabalho,
quando está na busca das fontes ou ao analisá-la, várias vertentes se apresentam de forma que
fica inviável desenvolver um único projeto com todas as hipóteses e perspectivas a serem
desenvolvidas.
Assim aconteceu comigo. Logo no curso de graduação, pesquisando sobre a formação
da sociedade ipuense sob um olhar direcionado para o coronelismo
1
percebi uma grande
influência da mulher em determinadas situações que acarretaram momentos de conflitos
mudando o curso da história”.
Estas mulheres em sua grande maioria, não eram somente as esposas mas, as amantes
ou “mulheres blicas” que, não obstante, sempre existiram na cidade de Ipu. Assim, no
trabalho de especialização
2
passei a analisar o meretrício ipuense e cheguei à conclusão de
que a compra e venda do sexo nos espaços blicos e em locais privados reservados à sua
prática foram comuns na cidade de Ipu nas primeiras décadas do século XX. Mais do que
isso, tais práticas incomodaram algumas pessoas o que levou-as a atacá-las mediante a eleição
de um conteúdo moral. A partir daí, aqueles que detinham o poder de intervir nos espaços
públicos da cidade empreenderam uma verdadeira batalha contra a prostituição no centro da
cidade.
As traições dos maridos e as frequentes investidas dos homens em locais próprios para
o sexo o eram uma realidade unicamente ipuense, mas uma tradição que se desenvolvera
desde a colonização do Brasil
3
e que se estendera para as cidades interioranas, inclusive em
Ipu.
Passado as angústias e com o material em mãos, que teoricamente seria o suficiente
para a escrita de uma dissertação, tentei perceber não apenas a sociedade meretrícia mas,
também e, principalmente, a questão moral da sociedade ipuense tendo por base a formação
do cabaré a partir da chegada da estrada de ferro em Ipu no ano de 1894.
1
BARROS, Antonio Iramar Miranda. Formação Coronelística em Ipu. (1840-1914). Monografia de conclusão
de curso. Graduação em História pela Universidade Estadual vale do Acaraú - UVA. 1995.
2
BARROS, Antonio Iramar Miranda. Meretrício do Ipu. A luta do “bemcontra o “mal” numa sociedade dita
moderna. (1900-1915). Monografia de conclusão do curso em Teoria e Metodologia da História. Universidade
Estadual Vale do Acaraú UVA. 2007.
3
Ver: FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 49° ed. São Paulo: Global, 2004.
11
“Ipu nos trilhos do meretrício: intelectualidade e controle numa sociedade em
formação. (1894-1930)”, é o título deste trabalho. Entendemos que o surgimento do
meretrício é fruto do crescimento da cidade de Ipu nos primórdios do século XX. Tal
crescimento foi impulsionado pela chegada da ferrovia à cidade em 1894.
O aumento populacional e a maior circulação de capitais atraíram prostitutas de outras
praças que vieram se juntar àquelas que praticavam a compra e venda do sexo nos espaços
públicos da cidade. Isso passou a incomodar àqueles que se diziam os guardiões da “moral
recatada” e “civilizadaipuenses.
Tais pessoas se arrogavam como a “melhor sociedade ipuense” ou os filhos illustres
do lugar”, que com o crescimento local e a chegada de novidades quiseram viver em uma
cidade construída no discurso como moderna e progressista, tendo como espelho modelos de
centros urbanos como o Rio de Janeiro que na época intitulava-se uma pólis civilizada.
Incomodados com a prostituição nos espaços blicos da cidade, sobretudo naqueles
mais movimentados como a estação ferroviária e o mercado público (ambos no centro da
cidade), os guardiões da moral da “sociedade ipuense”, empreenderam um controle severo às
práticas meretrícias. Entendiam que a compra e venda do sexo ditava contra os “foros de
civilização” do povo ipuense e contra a sua moral recatada.
Aqueles que se diziam guardiões da moral do “povo ipuenseeram formados por um
grupo de pessoas com algumas características: a) Eram aqueles detentores do poder potico
em âmbito local, portanto, tinham o poder jurídico, político e repressor e ditavam normas,
estabeleciam regras e tinham autonomia para intervir nos espaços públicos da cidade; b) Se
identificavam com os valores da chamada modernidade e do progresso. Queriam viver em um
local que fosse identificado como algo novo em contraposição ao velho.
A nova cidade deveria ter novos espaços (como clubes, gabinetes de leitura, jardins,
passeios, ruas largas e limpas) e homens e mulheres educados segundo os preceitos ditados
pela civilização. Por isso, tomaram para si o projeto de intervir na realidade ipuense para
transformá-la em um espelho daquilo que queriam que ela fosse.
Para isso, ergueram um clube para a sociabilidade
4
, reunião e deleite de seus sócios (o
Grêmio Recreativo Ipuense sociedade Dançante 1924), um Gabinete de Leitura (1916), uma
espécie de grêmio literário, com um grande acervo de livros, mapas, revistas e jornais que
circularam no alvorecer do século XX nas principais cidades do país, sobretudo no Rio de
Janeiro e , alem de construirem praças e novos prédios, alargaram e pavimentaram ruas, etc.
4
BAECHLER, Jean. Grupos e Sociabilidades. In: BOUDON, Raymond (Dir). Tratado de Sociologia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995.
12
A cidade do Clube e do Gabinete, das ruas pavimentadas, “limpas” e alargadas e das
praças iluminadas (a luz de acetileno como o Jardim de Iracema 1927), era a chamada cidade
do progresso. Era um novo espaço erguido para o deleite de um grupo de pessoas que
desejaram viver em uma outra cidade.
As prostitutas, por exemplo, eram identificadas com outra realidade, apontadas como o
velho e aquilo que deveria ser destrdo. Portanto, elas, aos olhos da “cidade do progresso”
incomodavam. Primeiro porque em uma cidade identificada com valores modernos, elas eram
indesejadas então,na nova cidade não haveria lugar para elas. Segundo porque suas práticas
iam contra os valores de uma moral reconhecida como a melhor e a única possível de
existência.
As práticas meretrícias se tornaram um perigo aos bons preceitos e costumes da
“verdadeira sociedade ipuense” e, por isso, deveriam ser banidas dos espaços públicos da
cidade, principalmente do centro, identificado com os valores do progresso.
As fontes que nos foram legadas daquele período, escritas e preservadas nas
instituições daqueles que tinham o poder de ditar as regras, os valores e o futuro desta terra,
mostram claramente um projeto para a cidade e revelam uma tentativa de se construir um
novo espaço identificado com os valores do progresso e da modernidade. Tudo o que fosse
identificado com outros valores que não os defendidos por eles eram objeto de controle e aí se
inclui o caso da prostituição.
Jornais, Almanaques, discursos, enfim, a maioria de nossas fontes trabalhadas na
pesquisa, encontram-se hoje sob a guarda de familiares descendentes dos “senhores”
observados no decorrer da pesquisa. Estas fontes se apresentam em suas posses como
verdadeiras relíquias de família, acreditando estes, serem as mesmas a representação do
poder e prestígioque seus antigos parentes vivenciaram no passado numa demonstração de
repasse ideológico
5
que passa de geração para geração.
Como a maioria destes descendentes ainda hoje têm referência no poder público
municipal, não raro encontramos monumentos em homenagem as estes personagens que, num
discurso não muito antigo, “deram nova estrutura à cidade” e a livraram dos “maus costumes”
no início do século. Tal pensamento ainda hoje está presente em discursos sendo que estes
homens m em suas memórias verdadeiros monumentos servindo estes ilustres senhores
como espaço divisor de tempos
6
.
5
CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. São Paulo: Cortez, 2006.
6
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. IN.: História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2003.
13
E as meretrizes? Como nas fontes, que vistas de uma forma geral, o nos dizem nada,
mas analisadas nas entrelinhas discorrem sobre rios pontos da sociedade do início do século
XX, ainda na contemporaneidade são colocadas como intrusas, pois na constante
transformação da cidade seus espaços foram os mais atacados.
Ao redor do meretcio ipuense do início do século XX foram construídas imensas
obras públicas, como o Hospital e Maternidade Dr. Francisco Correa, a Clínica São Sebastião,
a Fundação SESP, a Escola Estadual Delmiro Golveia, o Patronato Sousa Carvalho, o Centro
Social Urbano, a Ematerce, o Ginásio Coberto Abdoral Tim e por último e não menos
expressiva a Rodoviária Intermunicipal e Inter-estadual de Ipu sufocando assim os pequenos
casebres ainda existentes e deixando-os hoje sem a característica original.
O pseudo-progresso que a cidade vivenciou transformou o meretrício ipuense num
lugar de desuso e as poucas ex-meretzes que ainda hoje vivem nas imediações sobrevivem
de suas aposentadorias ou do apoio dos familiares, entretanto, não existe mais neste espaço a
prática do sexo aceito e vigiado como no início do século XX. O “progresso” destruiu ou
transformou o velho e deu lugar ao novo, com características novas, com novas inteões,
com novos valores
7
.
Os primeiros Almanaques que foram produzidos na cidade de Ipu pelos “homens do
poderdatam de 1900 e 1901. A partir deles, se percebe novas formas de demonstração de
interesse da população para com a produção de material escrito e a aquisão ou
melhoramento de acervos para a busca de uma nova organização social que a cidade estava
conhecendo.
Estes Almanaques obedecem a estrutura de confecção dos Almanaques do início do
século, tendo como exemplo a apresentação das datas comemorativas que aconteceriam
durante todo o ano seguinte, tendo como base o calendário da Igreja Católica, a apresentação
de poemas, homenagens a pessoas da cidade, adivinhações e charadas, análises dos ciclos
lunares, entre tantas outras observações, que demonstram a influência que os Almanaques
produzidos em outras capitais tiveram sobre a criação dos Almanaques ipuenses.
Neste período muitos homens considerados “intelectuaispassaram a viver na cidade
de Ipu e unidos criaram agremiações, fundaram jornais, revistas e grupos de estudos. A leitura
e interpretação desse material permitem perceber os marcos delimitadores de uma outra
realidade ou a busca por ela. Em nossa leitura é a partir da chegada da ferrovia e do
crescimento da cidade em função dela que passa a se delinear um projeto de cidade por um
7
BERMAN, Marshall. Tudo que sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1986.
14
grupo de pessoas abastadas que se arrogavam como os intelectuais do lugar que viviam em
Ipu. Até meados de 1930, momento em que percebemos um enfraquecimento das
manifestações intelectuais em Ipu e mudanças nos quadros político e econômico em nível
nacional
8
, ainda é possível perceber alguns resquícios desse projeto.
Uma característica da escrita, é que tentamos a cada momento introjetar a
manifestação da tentativa de controle por parte da considerada “intelectualidade” para com
setores sociais considerados inferiores e assim, apresentar uma cidade “moderna” dentro dos
padrões considerados desenvolvidos, tendo como referência o “progresso” conquistado
principalmente pelas cidades da região contempladas com a estrada de ferro.
A partir de poemas, discussões, ataques a pessoas do mesmo círculo, ou não, é
possível perceber no período de nosso estudo, que ocorreram demasiadas situações que
colocaram em evidência a sociedade ipuense. Os jornais oficiais (sob o controle dos
poderosos locais) faziam a parte de esclarecimento interligando a cidade de Ipu para com as
demais através do Jornal Correio do Norte e, internamente, principalmente entre os anos de
1918 a 1924, jornais pilhéricos “infernizaram” a vida de muitas pessoas na cidade de Ipu.
Interessante perceber que as pessoas que organizavam o jornal oficial, também
produziam os “clandestinos” que eram apresentados à cidade paralelamente ao Correio do
Norte. E a cidade vivia entre o dilema destes dois modos: conviver com o oficial,
representado pelos “homens de bem”, cidadãos honrados”, que dividiam o seio da família
com a preocupação da manutenção da “boa moral” do ipuense, a partir principalmente dos
jornais como também das agremiações, e os jornais pilhéricos que fiscalizavam e banalizavam
de certa forma as pessoas que frequentavam espaços de convivência conflituosa, fossem o
meretrício ou qualquer ambiente considerado desregrado.
Por que a cidade estava em formação? Ela é volátil e desde a sua fundação vai
tomando formas. Entretanto, o que podemos perceber é que, com a chegada da estrada de
ferro em 1894, uma nova forma de ver as pessoas, os espaços e a tentativa de dar modelação à
cidade, com a construção de praças, reforma de prédios públicos, etc., fora traçada pelos
homens públicos, comerciantes, advogados, juristas, poetas. Todos eles passaram a vivenciar
espaços de sociabilidade inexistentes anteriormente. Muitos os buscavam como locais de
diversão, mas também como ambientes de ascensão social.
8
Golpe de Getulio Vargas . Revolução de 1930.
15
Nessa nova cidade, a cidade do clube, dos novos espaços e de uma nova moral, a
prostituta era indesejada. Não havia espaço para ela. Portanto, deveria ser alvo de controle e
ter sua circulação pelos espaços da cidade, vigiada ou cerceada.
No trabalho com as fontes, que na sua grande maioria fora constituída dos jornais
existentes em Ipu no período trabalhado, percebemos a busca por uma moralização nos
costumes das pessoas que, portanto, passaram a ser chamadas a partilhar um novo modo de
vida, com costumes diferentes, demonstrados a partir da aceitação de um novo olhar para com
o novo.
Queríamos perceber a sociedade ipuense neste período de uma determinado modo,
porém, as fontes nos encaminhavam para outro forma. Fomos percebendo que existia a
tentativa de apresentar a cidade de Ipu dentro de um processo de formação a partir da
interrelação entre o nativo e o europeu.
O romance Iracema de Jode Alencar tem profunda importância neste processo de
busca por uma identidade ipuense. A Índia nativa representaria a imagem de perfeição moral,
ainda inacabada, mas que tivera o contato com o moderno, com o europeu e com ele
partilhara a formação da sociedade ipuense (o filho Moacir), que deixaria de lado a
representação da formação da população brasileira e passaria a ser a formação ipuense
moldada no progresso, representada pelo Guerreiro Branco: o europeu.
Assim, quando trabalhamos alguns poemas que se apresentam, principalmente no
primeiro capítulo, o que tentamos demonstrar é a forma como o ipuense vai se apossando
desta ferramenta para demonstrar suas ânsias de projeção para a cidade e obviamente para os
que escrevem.
Apresentamos, no primeiro capítulo, a cidade mostrada por aqueles que nos legaram
fontes do peodo. Eles mostram seus espaços sicos, a demarcação das ruas, quantidade de
bairros, logradouros, entre outros. Mostramos ainda, como aqueles que escreveram entendiam
o crescimento econômico de Ipu, principalmente por conta das transformações de ordem
econômica, a partir do advento do trem.
No inicio, quando estamos inserindo a manifestação da intelectualidade em escritos,
como os almanaques, jornais, etc., o vamos encontrar referência à prostituição existente em
Ipu, entretanto, não fugindo ao cotidiano da cidade, vamos perceber a existência e a
preocupação das autoridades com relação a doenças sexualmente transmissíveis,
principalmente a sífilis, muito comum nas mulheres “de vida fácil” e nos homens que
frequentavam o meretcio.
16
Mas porque não existirem referência a estas mulheres ou a estes espaços? Ora, não
estava nos planos daqueles que queriam uma outra cidade e outra moral a divulgação de
costumes e destes espaços, muito embora já saibamos da existência e utilização daqueles
espaços por parte destes mesmos homens. Os seus projetos eram outros. A prostituta e o
meretrício ipuense eram a negação do projeto de apresentação da cidade.
Ela (meretriz) confundia-se com a Índia Iracema, com a Joana Paula Vieira Mimosa
(colonizadora européia) que se queria apresentar, ou a união do europeu com a nativa ndia
Iracema). Ambas (colonizadora européia e Índia) davam um tom de poder e representação à
população, como modelos de força e perfeição moral.
A meretriz não. Esta era o oposto do que se queria, pois se confundia nos espaços ditos
nobres da cidade, explorando (e sendo explorada) sexualmente às vistas, em primeiro
momento e tirando ainda a pureza que deveria reinar entre as famílias. Tornara-se vilã por sua
condição social.
Vamos perceber também no primeiro capítulo que os documentos produzidos, em um
primeiro momento, serviram como base de formação da sociedade, como representação do
real. Aos almanaques, jornais, etc., eram dados um valor além do observado, tornando-se na
cidade verdadeiros monumentos de valorização.
As fontes do período inicial da pesquisa versam principalmente da análise de poemas
escritos em almanaques e jornais, daí verificamos que grande parte do glamour que os
citadinos acreditavam estar vivenciando, fora apresentado em forma de poemas e versos e a
partir destes signos observamos como pensavam os grupos que discutimos no decorrer do
trabalho.
Os valores que eles cultivavam ficaram bastante expressivos nos poemas e já se
começa a perceber o sentimento que eles nutriam pela cidade e a relevância que eles
buscavam nela, com as conquistas que poderiam conseguir para o engrandecimento de sua
terra. Neste ponto, os discursos são bem claros revelando um sentimento de ligação à terra
natal, como se a cidade de Ipu somente a eles pertencesse. As meretrízes e outros espaços não
seriam assim partícipes da cidade, eram consideradas intrusas em seu próprio habitat e
deveriam ser combatidas.
Os jornais e revistas escritos, de certa forma foram apresentados como um ganho
real no crescimento da cidade, sendo emparelhado a partir desta aquisição com os grandes
centros, uma vez que não necessariamente deveriam ler somente o que vinha de outras
cidades, mas o que era produzido em Ipu, por seus cidadãos, “respeitados” e competentes”,
que representavam (e segundo eles) bem a cidade em qualquer repartição, seja na cidade ou
17
fora dela. Era o progresso que chegara a Ipu, como percebemos em algumas manifestações
escritas nos jornais.
Estes homens eram a representação
9
do progresso, em suas visões. O que importa
também, é que nas escritas dos jornais e pasquins (jornais pilhéricos), nos foram deixados
reflexos de como a cidade do inicio do século XX se apresentava. A seca estava ainda muito
presente no pensamento da população ipuense e, não obstante, se percebe a preocupação para
com ela nas manchetes.
A seca era uma preocupação maior não somente pelo fato social mas, pela ruptura que
ela poderia trazer para com o projeto de construção de uma cidade do progresso. Os retirantes,
como as prostitutas, eram mostrados como o atraso.
Nos poemas se evidenciam a inquietação com as pessoas que a “sociedade”
considerava à margem da sociedade. Não desenvolvemos este pensamento, mas os retirantes e
as prostitutas chegam a se confundir em alguns momentos. A mulher retirante e a mulher
prostituta. Uma podendo ser caracterizada como a outra na representação do processo de
construção da cidade.
A relação que a cidade de Ipu tinha adquirido com outras cidades próximas ou não
com a chegada da estrada de ferro ficou evidente nas escritas. Vamos perceber que Crateús,
representando os Inhamuns, Camocim representando o litoral e São Benedito, representando a
Serra da Ibiapaba vão estar demasiadamente presentes nos jornais, sejam estas participações
através de referências aquelas cidades, entre outras, ou pela participação de escritores
oriundos daquelas paragens, ficando clara a importância que a cidade de Ipu mantinha nestas
relações, confundindo-se principalmente o político, o econômico e ainda o literário, tão
presentes e importantes para a população ipuense do inicio do século XX.
A cultura ipuense na visão daqueles que escreviam nos jornais se confundia com a
nova manifestação cultural que rapidamente tomou conta do imaginário
10
daqueles homens.
Outro mundo se apresentava, agora com uma rapidez estranha, A cidade, após o trem era
outra. Tornara-se um importante centro econômico e o local identificado como um berço de
intelectuais, homens que construíram uma nova polis. Dotado de “novos espaços” e de “novos
homens” a cidade se transformara.
9
Entendemos como representação, o conceito de Pesavento, que trabalha a ideia de que representação é um
conceito central da chamada história cultural” ou da Nova História Cultural, e é importante posto que, por
meio dela, se busca decifrar a realidade do passado mediante o campo do simbólico. Por meio das representações
se tenta chegar “às formas discursivas e imagéticas pelas quais os homens expressaram a si próprios e o mundo”.
Ver: PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 42.
10
O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem reapresentações para conferir
sentido ao real. Ver: BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. IN: Enciclopédia Einaudi. Lisboa: imprensa
Nacional/Casa da Moeda, 1985. (Antrophos/homem, v. 5), pp. 291-332.
18
Projetando-se posteriormente no cenário estadual e nacional como importantes
escritores e pesquisadores na cidade de Ipu Leonardo Mota, Eusébio de Souza ,entre outros,
tiveram seus trabalhos apresentados no inicio de suas carreiras, utilizando as novas
ferramentas de publicação que aqui se apresentavam. Serviram como uma espécie de ensaio
dos escritos, entretanto, a pertinência principal que percebemos fora a convivência com
pessoas ligadas à preocupação para com a escrita e a observação da defesa da moral e dos
costumes, prevalecendo prioritariamente esta última..
Então, o que desenvolvemos no primeiro capítulo foi uma espécie de apresentação de
como se formara esta conjuntura social e os valores que foram estabelecidos para serem
questionados e buscados. O mesmo projeto que gerou um crescimento da cidade e fez surgir
um grupo de pessoas que quis construir um novo espaço, trouxe, igualmente, as meretrizes, o
lado oposto de uma cidade buscada como progressista.
A Índia Iracema vai merecer um destaque maior na apresentação da sociedade quando
se faz referência a Joana Paula Vieira Mimosa. Por quê? Ora, nos primeiros poemas que
analisamos do inicio do século XX, se faz alusão a Taba dos Tabajaras, mas não propriamente
a Iracema. Quando o poema tem uma projeção que transcende a critica estadual e a Índia
deixa de pertencer ao poema e passa a ser de domínio nacional, ela torna-se a representação
ideal para a cidade de Ipu. Joana Paula ainda vai ser cultivada na sua memória, entretanto,
passa-se a dar mais valor aos questionamentos que envolvem o nome da Índia.
Ruas, praças, poemas, corcios, enfim, o nome da Índia vai aparecer em muitos
destes ambiente e principalmente a luta que os grupos agremiados passam a travar, inclusive
questionando em matérias de jornais, incessantes vezes, para que o imaginário Iracemista seja
arraigado e aceito pela população.
Muitos destes questionamentos passaram a ser demonstrados como uma luta pessoal
de determinadas pessoas que, mesmo nas páginas dos jornais ao qual pertenciam e detinham
cargos de direção, foram rechaçados em suas convicções travando verdadeiras batalhas
intelectuais, na tentativa de fazer valer seus pensamentos e vontades, tendo como arma a
iniciativa e liberdade de escrever e demonstrar seus pontos de vistas.
O progresso e a moral deveriam andar juntos na imaginação dos homens dirigentes da
cidade de Ipu. O trem e as meretrizes se confundiam neste sentido. O trem representava a
chegada do progresso e as meretrizes a negação da moral. O trem deveria ser a válvula de
escape para novas apresentações e representações do novo, a meretriz deveria ser combatida,
ou ao menos vigiada e controlada, por ser a representação da imoralidade, do atraso, da
devassidão.
19
Expulsar a meretriz seria dar sinal de limpeza à cidade o simplesmente na questão
moral mas, também, estética, pois como na visão de um pequeno grupo, o novo e o velho não
deveriam se misturar. Expulsar as meretrizes do centro da cidade seria uma questão de zelo
pela comunidade e ajuda para a representação” progressista.
O que se tinha em nível de conhecimento escrito sobre a cidade de Ipu era a
manifestação de que esta cidade tinha se desenvolvido sob os auspícios da força do
bacamarte
11
, como apregoou a literatura do fim do século XIX. Esta visão de cidade passara a
ser apresentada como negativa e não rara às vezes, vamos perceber em nossas fontes a
questão: “antes era assim, hoje não vivemos mais aqueles dias”, o que demonstra a “ruptura”
existente no seio do pensamento da sociedade.
1894 é visto como um marco divisor do pensamento daqueles que quiseram viver algo
novo. O apito do trem aparece como um rito de passagem, marco divisor entre o antes e o
depois na sociedade. Agora o que se apresentaria ou deveria apresentar seria a modernidade, a
vida em sociedade e unido a isso, a busca pela manutenção ou conquista da moral, em todos
os sentidos, perpassando o público e o privado, a rua e a casa, o lar e o meretrício.
Muitas manifestações de descontentamento foram noticiadas nas páginas dos jornais,
o somente por parte dos guardiões” da sociedade, como também por parte das próprias
meretrizes. Chamou-nos atenção à forma como elas conseguiam inserir-se em espaços onde
o eram bem vindas e combatidas constantemente.
Assim, percebemos que não o novo e o velho se entrelaçam como também o jogo
de intenções, quando estamos falando em sociedade, haja vista que, entre os “espaços do
conhecimento (o Grêmio e o Gabinete, isto é, os espaços daqueles identificados com a
modernidade) também havia divergências e aceitações, uma vez que, nem todos os homens
acatavam a ideia de que as meretrizes não deveriam participar da vida em sociedade.
A própria policia inúmeras vezes fora chamada para fazer valer a lei da “limpeza” (isto
é, tirar as meretrizes dos espaços públicos) do centro da cidade. Essa limpeza estava
direcionada aos não-aceitos, aos sujos moralmente, aqueles que não tinham a permissão para
transitar entre os “homens bons” e “as mulheres de família”.
Entretanto, vamos perceber que esta mesma policia utilizou os espaços do meretricio
como exploração do sexo. Esta característica o se manifesta somente no início, mas em
todos os momentos de nossa pesquisa.
11
Ver: MACEDO, Nertan, O Bacamarte dos Mourões. Fortaleza, Ed. Editora Instituto do Ceará, 1966 e
MENESES, Antonio Bezerra de. Notas de Viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Ceará, 1965.
20
O mercado público, sendo central, não poderia ser espaço de convívio das meretrizes,
portanto, tamm fora travada uma luta para limpeza dele, uma vez que, sua aparência física
demonstrava certo abandono e desconforto. Tirar as meretrizes de lá e reformá-lo seria
também a manifestação de busca por uma cidade de certo modo apresentável socialmente e
condignamente, não ficando a cidade de Ipu aquém das suas co-irmãs vizinhas, que segundo
matérias nos jornais, estavam trabalhando o embelezamento de suas ruas e praças.
E assim, acreditamos que no primeiro capítulo fora dada demonstração de como a
cidade de Ipu se formara no que se refere ao conhecimento e busca pela manutenção da moral
e as estruturas modificantes nos espaços sicos que passaram a ser trabalhados em maior
escala com a chegada da linha férrea e ainda as modificações dos espaços da cidade, tirando
as meretrizes do centro e as transferindo para a parte periférica da mesma, longe dos olhares
da população dita “boa” e deste modo, não havendo misturas nas categorias sociais que
formavam a sociedade de Ipu.
No segundo capítulo, vamos demonstrar como a populão masculina, percebia a
condição da meretriz. Não aceita em sociedade, entretanto necessária para a manutenção de
uma ordem social, de um pudor entre as moças qualificadas como “de família”, prontas para o
matrimônio. Como aquelas meretrizes, antes “moças”, passaram a ser vista e usadas como
mulheres da coletividade, de todos que pudessem pagar por suas mercadorias.
Os homens que as exploravam eram os mesmos que as escorraçavam, vivendo num
paradoxo social caracterizado entre o local segregado e a “sociedade”, entre a mulher pública,
num local fechado e vigiado e a população sociavelmente aceita, cheia de pudores e tabus e
observada pelos olhos da moral.
A sociedade que produzia as meretrizes, descartando-as posteriormente, também as
utilizava em situações diferentes. A moça desonrada e expulsa da casa dos pais em primeiro
momento, passaria a posteriori a servir como rito de passagem para os “rapazotes”, quando
estes atingiam a adolescência e a necessidade de provar a masculinidade.
A meretriz então neste sentido, passava a desempenhar sua função na sociedade, que
seria a possibilidade de permissão para a iniciação sexual dos jovens, e ainda preservar a
castidade das “moças de família” para o casamento.
Não podemos negar que muitos desses “jovens iniciados” na arte sexual, retornaram
ao meretrício posteriormente. Entretanto, o que mais se conhece na historiografia ipuense é
que tais jovens, iniciados, se distanciavam do meretcio e passavam a frequen-lo depois
de casados, com família constitda e um nome a ostentar. O meretrício ipuense era um lugar
21
plural, onde os acontecimentos e situações se apresentavam de forma inesperada. Cheio de
relações, de desejos e acima de tudo, de intenções.
O boom que a cidade de Ipu vivenciou em todos os espaços sociais no período de
estudo recortado, tem como representação maior o espaço compreendido na parte central da
cidade, ou seja, na estação ferroviária. Muitas vezes, vamos perceber que a meretriz
expulsa deste ponto vai ser achada perambulando pelo centro, o que era considerado
inaceitável. Os jornais pilhéricos ou oficiais passaram a noticiar esta questão como sendo um
caso de ordem pública, uma questão a ser resolvida e, se preciso fosse, usando do aparato do
Estado ou mesmo da pressão moral sobre alguns integrantes das agremiações existentes na
cidade.
O desvio de conduta de qualquer membro da sociedade, em todos os campos,
principalmente no familiar, era notificado nas manchetes dos jornais, tendo inclusive destaque
algumas vezes na página principal, pois um grupo seleto de homens se percebia como
guardião da moral e fazer parte deste grupo acarretava uma responsabilidade muito grande.
Era a cidade representada, vigiada e controlada e não poderia fugir ao progresso
iminente. A cidade espelho para outras, influenciada pelos grandes centros e dentro de uma
organização padrão progressista. Esta era a cidade de Ipu que se queria mostrar, que se tentara
projetar para além das suas divisas, através da estrada de ferro.
O meretrício ficava distante até determinado momento do centro da cidade, porém, o
olhar que se mantinha direcionado a ele era principalmente para os seus frequentadores. As
meretrizes se revezavam na condição de mulheres públicas e assim, no jogo das intenções,
quando chegavam mulheres novas no meretrício, o vai e vem de pessoas era constante e entre
os homens frequentadores, estavam também personagens considerados “homens de bem”, que
se desviavam na conduta por um instante e que, no entanto, poderiam se redimir socialmente,
reconhecendo a sua fraqueza de homem e não mais indo frequentar estes lugares considerados
sujos e impróprios para o convívio.
No terceiro capítulo, analisamos como a Igreja Católica, unida às demais agremiações,
passou a combater o meretrício ou as práticas dos homens neste sentido. As mulheres recém
casadas deveriam participar de um curso direcionado principalmente para esta convincia
dos maridos.
Saber aceitar ou “vencer o marido pelo cansaço” era uma forma de manter o
casamento. A mulher honrada, mãe de família, caracterizada pela moralidade e bons costumes
tinha tamm que ter cautela para com as peripécias dos maridos fujões.
22
Os jornais pilhéricos noticiavam movimentações inquietantes na Rua do Chico
Novato”, onde funcionava o meretcio. Às margens do Açude Berguedof, muitas
manifestações de traições, bebedeiras, orgias sexuais, tentativas de homicídios e a
consumação destes, abortos, eram uma constante e a sociedade era vigilante.
Tornava-se até um paradoxo perceber este espaço. Era demasiadamente plural, pois as
intenções daqueles que frequentavam o meretrício, se entrelaçava com as manifestações
culturais de quem tinha este espaço como seu, se reconhecendo, dividindo as metas e os
anseios. O homem se confunde com o que vive ser meretriz no prostíbulo e depois sair para a
rua não modificava a condição de vida da mulher pública.
A força policial, encarregada de manter o controle no espaço reservado, muitas vezes
também usufruía das situações de vida desregrada. O meretcio ao mesmo tempo que
inquietava, levantava também desejos. Um espaço plural e conhecido na sua essência por
poucos, embora muitos fossem os freqüentadores, muitas vezes nem mesmo as meretrizes
sabiam realmente como era o meretrício; como era aquela vida cheia de desejos e motivações,
de angustias e explorações.
No final das contas, o que realmente interessava era a própria sobrevivência e assim,
numa sociedade onde a venda do corpo acarretava um lucro proporcionalmente mais fácil,
pagar o pro da recusa social até poderia valer a pena.
Os cursos preparados pela Igreja Católica para as moças recém casadas, era um projeto
religioso não ipuense.,entretanto, nesta cidade ele se deu em maior escala tanto por conta
da existência do meretrício, como também pela influência de jornais católicos, estritamente
conservadores e que circulavam nas casas das famílias da cidade.
A mulher não poderia cair na tentação da trair o marido. Este pecado social não
poderia ser perdoado, no entanto, o do marido era somente consequência de um casamento
que deveria ser observado, em seus princípios religioso, já na formação da sociedade colonial
brasileira,levando o homem a carregar consigo esta fraqueza que por este motivo deveria ser
perdoado.
Os namoros considerados “indecorosos” praticados não só no meretrício também
passaram a ser atacados e , não somente pela Igreja, mas pela própria sociedade. Em
determinado momento o que se percebeu foi a real preocupação social em deixar que as
manifestações que aconteciam no meretrício transcendessem as barreiras imagináveis da
sociedade controlada, do espaço do prazer liberado aos olhos dos usuários, mas que vigiados
pela sociedade em todos os seus meandros.
23
Assim, desenvolvemos o trabalho direcionado para a formação da sociedade ipuense
no quesito desenvolvimento e a busca pela preservação da moral, tendo como foco central o
meretrício ipuense que teve em seu contexto uma importância fundamental para o
crescimento e formação da cidade.
Um ponto importante deste estudo, também, foi a demonstração de que “a história
pode ser escrita através dos “temas malditos” e que as meretrizes ipuenses do inicio do século
XX também tiveram “vez” e “voz” nas humildes interpretações deste historiador.
24
CAPÍTULO 1
Chegam os trilhos, mudam-se os modos: Intelectuais X Meretrizes
1.1. Na visão de “progresso”, surgem as meretrizes
Quem investiga os factos primitivos da nossa história nota logo ao fim de
pouco tempo uma confusão de successos, narrações sem nexo, sem
critérios, datam que diviam estar depois e estão antes dos acontecimentos
respectivos, personagens que não tiveram a mínima consideração dos seus
contemporâneos, não mereceram attenção alguma do governo, não tratam
delles, nem de leve, os documentos do seu tempo, e, no entanto, apparecem
como conquistadores, homens notáveis, e cercados os seus túmulos de
verdadeiros prestígios
12
.
Dentro de uma observação historiográfica, podemos perceber a clara evidência de uma
preocupação do escritor, com relação a determinados fatos e personagens que merecem ou
mereceram destaque nos registros históricos de um determinado local e que ficaram à margem
destes registros.
Souza está falando da cidade de Ipu
13
e assim, escrevendo a “História da Cidade” a
partir de sua visão e formação. Principalmente no final do século XIX e inicio do século XX,
alguns trabalhos foram escritos nestes parâmetros, com a preensão de serem deixados para a
posteridade, como forma de demonstração do pensamento daqueles que detinham o saber” e,
consequentemente, o poder.
Se levarmos em consideração que a cidade em si não se faz independente de conflitos,
a clara manifestação de pensamentos a partir da escrita oficial deixa lacunas no que tange à
possível neutralidade, ou seja, personagens históricos ficam à margem desta escrita, por serem
considerados “inferioresno plano de apresentação da cidade para um possível blico, que
o muito raro, detém “o saber” ou o poder da escrita e convive num meio social
relativamente fechado.
As meretrizes da cidade de Ipu, neste período de formação, não aparecem diretamente
como personagens principais de contos, almanaques e artigos de jornais, porém, nas
12
SOUZA, Eusébio de. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Um pouco de historia (Chronica do Ipu).
1915. p. 157.
13
Cidade localizada segundo descrição proposta pelo IBGE. Conforme a regionalização do Ceará, o local onde
se situa a cidade de Ipu está inserida na Região Administrativa 5, composta pelos municípios de Canaubal,
Croatá, Guaraciaba do Norte, Ibiapina, São Benedito, Tianguá, Ubajara e Viçosa do Ceará, que concluem como
sendo integrantes da Serra da Ibiapaba ou Serra Grande, popularmente conhecida na região.
25
entrelinhas das escritas percebemos as relações sociais que elas desempenhavam e o
envolvimento direto e indireto no seio das grandes agremiações, fundadas em Ipu naquele
momento, muito embora, grosso modo, ficassem na maior parte das vezes na clandestinidade.
Eusébio de Souza, jurista, escritor e pesquisador
14
e um dos mais atuantes membros da
sociedade de Ipu, embora não tenha sido ele um ipuense nato, passou a ter um papel de
destaque nos rumos que tomaria a cidade. Veio para a cidade em um momento em que ela
passava por uma mudança significativa, sobretudo de ordem ecomica. Como um homem
detentor do poder, circulando nos espaços reservados os “homens ilustres” do lugar, fazendo
parte de um grupo que quis viver algo novo, passou a ter voz ativa e a decidir sobre os rumos
que tomaria a cidade a partir daquele momento.Façamos uma pausa e falemos um pouco da
cidade de Ipu dos primórdio do século XX.
Naquele momento, a cidade de Ipu passou por um processo de mudanças bastante
significativas. Tais mudanças foram fortemente influenciadas pela chegada da ferrovia que,
em 1894, ligou a pequena Ipu a cidades já destacadas, como Sobral, Camocim e Crateús. Esta
passou a ter um meio de transporte capaz de escoar a produção local e trazer novidades de
outras praças do Brasil e da Europa, uma vez que o porto de Camocim recebia companhias de
navegação nacionais e européias.
O algodão produzido em Ipu em meados do século XIX, por exemplo, após a chegada
da ferrovia, passou a figurar como principal produto da economia local. O que atesta em
1921, o jornal Correio do Norte, baseado em documentos da Estrada de Ferro. Diz o período:
o Ipú exportou 298 mil kilos de algodão beneficiado (...) não se falando na
grande porção de algodão em rama, que a casa J. Loureo, d‟esta cidade
enviou para Ipueiras onde possui uma brica de descaroçar e que d‟áli foi
remettida para Camocim (...). Serra da Matta e Ipu são os dois centros de
maior producção e exportação de algodão d‟esta zona.
15
Tendo um meio de escoar a produção e um amplo mercado consumidor para o
produto, a produção algodoeira do município cresceu significativamente.
14
Eusébio era formado em Direito pela Faculdade de Recife-Pe, assim como a maioria dos bacharéis que
habitavam a cidade. Assim, tinha toda influência da Universidade de Coimbra, em Portugal, com uma linha de
estudo mais ligada ao rural, assim como um dos acadêmicos da primeira turma desta Universidade, Pe. Ibiapina,
que direcionara seu trabalho mais para as cidades pequenas do interior do Estado. Os bacharéis daquela época,
formados pela Universidade de São Paulo, tinham influência maior da Universidade de Lisboa, com linha mais
administrativa. D haverem tantos embates acadêmicos entres estas universidades. Os ideais de progresso
podem ser direcionados à inflncia americana sofrida nas universidades, com o “espírito de libertaçãoque se
via na trajetória de vida destes bacharéis ipuenses. (Informações colhidas com o Pe. Emidio Moura Gomes, da
cidade de Reriutaba-Ce, também formado em Direito e estudioso da região. Livro no prelo).
15
Algodão. Correio do Norte. Ipu, p. 1-2, 3 agos. 1922.
26
Data dos primeiros anos do século XX um crescimento significativo dos
estabelecimentos comerciais de outras localidades que comerciavam e que compravam em
atacado o algodão dos produtores locais e os revendiam para firmas sediadas em Camocim e
Sobral, como o Armazém Dias, Aragão & Cia (1917),
16
e a firma J. Lourenço & Cia., com
filial em Ipueiras
17
. Data do mesmo período a fundação de estabelecimentos comerciais que
importavam e exportavam produtos. São exemplos a Loja do Povo de Leocádio Ximendes &
Cia.
18
, Odupho Carvalho e Cia, , F. Soares e Brandão, Loja Lima & Cia, loja Anastácio
Corsino de Mello., Aguiar & Assis, A Protetora da Silva Mourão, Francisco Soares de Paiva,
Leonardo B. de Araújo, J. R. Aragão Filho, a firma Barbosa Aragão & Cia, e outras.
19
Poderíamos enumerar muitas outras mudanças significativas que ocorreram na cidade
a partir da chegada da ferrovia, como o crescimento populacional
20
, o surgimento de novos
bairros que margeiam os trilho
21
e a segregação de alguns espaços.
A questão é que, a partir do crescimento da cidade, parte de sua população,
principalmente daqueles que enriqueceram com o seu crescimento, passou a adotar um
discurso de que a Terra de Iracema estava chegando ao progresso. É esta a tese de Farias
Filho e mais do que isso, o historiador mostra que além da tentativa de construção de uma
representação social da cidade como progressista, seus agentes adotaram práticas efetivas de
intervenção na realidade ipuense, cujo resultado foi a construção de espaços reservados para o
convívio a sociabilidade de grupos restritos. Buscava-se, desta forma, revelar uma imagem de
cidade que fosse compatível com a representação criada. Por outro lado, tudo aquilo que
pudesse representar uma mancha no retrato de uma cidade buscada como progressista e
moderna era objeto de repressão.
Agora voltemos a Euzébio de Sousa, este que veio para a cidade assumir o posto de
Juiz da comarca em 1918, se uniu a um grupo de pessoas que buscavam e lutavam para
transformar Ipu em uma cidade do progresso mediante intervenção em seu espaço urbano.
16
Revista dos Municípios, Fortaleza-Ce, ano I, nº 1, fev. 1929, p. 17.
17
Idem, p. 18.
18
Idem, p. 31.
19
Além desses estabelecimentos ligados diretamente ao comércio, surgiram outros como farmácias, oficinas
mecânicas, uma metalúrgica a “primeira da região norte”, clínicas cirúrgicas, “photos” e hotéis. Estes, sobretudo
na praça da estação ferrovria, como o Hotel Maroca, mais conhecido como Redez-vous des Amis.
20
Em apenas 15 anos (1900 a 1915), mostra o historiador Antonio Vitorino F. Filho que o crescimento
populacional da cidade girou em torno de 50%. Ele atribui iss a partir da chegada da ferrovia, uma vez que antes
dela o crescimento populacional não era significativo. Ver: FARIAS FILHO, Antonio Vitorino. O discurso do
progresso e o desejo por uma outra cidade: imposição e conflito em Ipu-CE, (1894-1930). Dissertação de
Mestrado, Fortaleza-CE: UECE, 2009.
21
São os casos do Bairro Pereiros e Corte. Este último leva este nome porque as obras de construção da ferrovia
fizeram um corte em um morro para o assentamento dos trilhos. As casas do bairro passam ser construído nos
dois lados cortados, margeando, portanto, os trilhos.
27
Aquilo que deixou escrito para a posteridade, como a “história do Ipu”, buscava convencer
que a Terra de Iracema era o lugar da “promissão”, isto é, um espaço que chegaria ao
progresso.
Por outro lado, o mesmo processo que levou homens a querer fundar uma cidade do
progresso, isto é, o momento de crescimento vivido por ela, trouxe os signos do “atraso” na
visão daqueles homens, como as meretrizes.
Assim, paralelo à chegada de “novos ilustres personagens”, como Souza e outros
tantos, várias meretrizes também foram atrdas para Ipu, acreditando ser possível desfrutar
de uma clientela maior ou mais necessitada dos prazeres da noite, uma vez que a cidade se
transformara em um local populoso e espaço de passagem para caixeiros-viajantes,
representantes de firmas nacionais e internacionais que, portanto, pernoitavam na cidade.
Quando Souza escreveu sua chronica”, atuava na cidade como juiz de direito (1913-
1918), porém, circulava entre Ipu e Fortaleza e tinha profunda representação no desfecho
cultural de ambas as cidades.
Estava ligado à chamada, na época, melhor sociedade”. Aqueles que a formavam
acreditavam ter o poder de ditar as formas de vida que deveriam ser exercidas na cidade,
creditando para si a criação e o funcionamento das melhores agremiações, dentro do contexto
social vivido.
Ao chegar à cidade Sousa se juntou a grupos de pessoas que tinham, claramente, um
projeto para ela. Tal projeto visava torná-la uma urbe do progresso ou uma grande cidade”,
e a isto, em uma visão da época, deveria estar incorporado à criação ou existência de
determinados espaços reservados para a demonstração ou reserva desta sociedade.
Dentro deste projeto que consistia em erguer na cidade signos do progresso, sobretudo
espaços sociais (agremiações, por exemplo), para circulação e convívio (sociabilidades) de
homens e mulheres abastadas, não havia espaço para as meretrizes, “antigas ou novatas”, uma
vez que eram identificadas com os signos do atraso e elementos” perigosos que colocavam
em risco a moral recatada das “famílias ilustres” do lugar.
Como os espaços de sociabilidade (os grêmios, passeios e praças) ficavam bem na
área central da cidade, aquelas mais vigiadas e onde foram erguidos os casarões dos mais
abastados, as meretrizes não eram bem vindas, embora várias vezes, percebamos a inter-
relação dessas, de forma direta ou indireta, resistindo das mais variadas formas para continuar
existindo e usando os mesmos espaços que outras pessoas.
O Ipu estava dividido em grupos distintos, de onde sobressaem dois: de um lado,
aqueles que se identificavam com o ideário do progresso e da modernidade e buscavam se
28
diferenciar das outras pessoas pelos modos de vestir, falar, de conviver, isto é, de circular em
espaços fechados ao ingresso dos menos abastados. Formavam, portanto, um grupo seleto
22
.
Parte destes se arrogavam como “intelectuais”, amantes dos livros e detentores de
diploma de curso superior, como são exemplos Euzébio de Sousa, Abílio Martins, Augusto
Passos, Leonardo Mota e José Osvaldo de Araújo, todos bacharéis em direito, ou mesmo,
pessoas como Dr. Chagas Pinto e Francisco Araújo, formados em medicina. Tais homens
detinham ainda o poder de mando em âmbito local ao dominar as principais instituições
políticas.
De outro lado, existia o grupo daqueles que viviam de forma precária, muitos deles se
sujeitando aos mandos e desmandos dos poderosos e negociando emprego e benesses em
troca de sujeição. Formavam, portanto, um grupo de pessoas que viviam nos bairros
periféricos e eram, muitos deles, objeto de controle. As meretrizes se incluem nele. A questão
é que o centro da cidade era o lugar em que todos eles circulavam e, muitas das vezes, suas
práticas culturais eram vigiadas de bem perto.
Assim, vamos perceber que a tentativa de controle dos indesejados se de forma
mais acentuada quando estes circulavam por espaços onde viviam e frequentavam os mais
abastados. Com uma cidade dividida socialmente, em que os bairros nobres (Quadro da
Igrejinha e o centro da cidade) o se separaram dos bairros pobres (Corte, Pereiros e
Pedrinhas), os conflitos se acentuaram no decorrer das primeiras décadas do século XX. Os
bairros, cada vez mais seriam demonstrados como demarcações de poder, estando a cidade
assim dividida neste período. Segundo Euzébio de Sousa:
O terreno urbano [de Ipu] divide-se em quatro bairros com uma
população nunca inferior a cinco mil almas: o do centro, o do Reino de
França, o do Alto dos Quatorze e Alagôa, todos arruados, geralmente de
ssima edificação. (...) O Ipú pecca pela falta absoluta de esthetica na sua
construcção. Afóra meia dúzia de prédios de edificação caprichosa, tudo
mais nesse meio obedeceu aos moldes antigos.
É no bairro central da cidade que se acha estabelecida a sua melhor
edificação. Constitúe elle, por excellencia, o elo principal para onde, em
regra, convergem todos os negócios, concentra-se toda a sua energia vital,
reside a sua melhor sociedade, em fim, desenvolve-se, em sofrível escala, o
comercio do município.
23
22
Quem pertencia a este “seleto grupo”, eram comerciantes, políticos, padres, advogados, juizes e promotores,
além de poetas e músicos, onde entre outros, frequentavam as agremiações existentes no início do século na
cidade de Ipu.
23
Souza. op. cit.p. 199
29
A cidade de Ipu naquela época, unindo a zona sertaneja, serrana e central contava com
uma população geral em torno de 40 mil habitantes, porém, aqueles que faziam à zona rural,
visivelmente superior em quantidade de números e terririos com uma diferea de quase 35
mil pessoas, não aparecem como destaque, como sustentáculo da economia local, mas como a
margem social por conta principalmente de não pertencerem aos “espaços de poder”.
Podemos também lançar o olhar para o lado econômico, uma vez que esta população
rural de certa forma excluída socialmente, era quem dava sustentação e base ao poder e
prestígio da população urbana, sustentando o comércio e, teoricamente, à própria cidade com
os impostos e negociações que desenvolviam. Grande parte deles eram, ainda, freqüentadores
do cabaré, tendo alguns inclusive suas parceiras preferidas.
O poder estava associado a ser agremiado, freqüentar a melhor sociedade, falar francês
e a isto vamos observar que em sua divisão aqueles que faziam parte das agremiações criadas,
o chegavam a enumerar cinqüenta freqüentadores, pois seria a melhor sociedade”. Aquela
que estava presente no poder de decisão, que tomava para si o encaminhamento cultural,
social e econômico da cidade.
Esta sociedade residindo principalmente no centro vivia em paralelo com os locais
tidos como procios para as decisões de mando. A Estação Ferroviária seria o lócus desse
movimento, então, local de deslumbre da sociedade. Assim, determinados grupos também se
destacavam, como já demonstramos, a eles se incluindo Eusébio de Souza.
Eram estes homens que tomavam para si a tarefa de transformar a cidade em um outro
espaço identificado como algo novo, diferente da “barrie”, que interferiram e se tornaram
os guardiões em defesa dos bons costumes e preceitos morais, segundo suas convicções. No
caminho de dotar a cidade de novos espaços, equipamentos identificados com o progresso, a
defesa de valores morais e o ataque ao que consideravam imoral era também parte do mesmo
processo.
Na estação, junto aos ipuenses que para se dirigiam para tratar de assuntos diversos
ou tão somente para acompanhar o vai e vem do trem e das pessoas, existia uma mistura de
intenções. Uns comercializavam produtos vindos da Serra Grande”
24
ou do litoral
camucinense, outros produtos vindo dos Inhamuns ou da capital e desse modo, o centro da
cidade, principalmente nos dias de maior pico, se tornava o ponto de encontro de diferentes
24
Como é conhecida popularmente toda a extensão da Serra da Ibiapaba, compreendendo desde a cidade de Ipu
até a divisa da cidade de Tianguá com o vizinho Estado do Piauí.
30
segmentos sociais, e estes segmentos passavam a ser também controlados, ou senão,
vigiados
25
.
Convergia para o espaço central da cidade, além dos grupos já citados, um outro grupo
que se confundia por completo com os interesses daqueles que formavam a “melhor sociedade
ipuense”. Eram as meretrizes que para a estação se dirigiam em busca da prática sexual com
os comerciantes e frequentadores daquele espaço.
A estação era um dos locais mais movimentados da cidade e aquele em que os relatos
sobre a prática da compra e venda do sexo eram mais frequentes. Sempre nos horários de
embarque e desembarque, lá estavam elas, tentando seduzir seus futuros clientes. A cena
incomodava aqueles que defendiam que a cidade estava se modernizando. Seus filhos mais
“ilustres, aqueles que se incomodavam com a cena, buscavam, mediante argumento de ordem
moral, banir as prostitutas daquele espaço. Como detinham o poder político e, portanto, os
meios repressivos usaram, não obstante, a força bruta contra as meretrizes que ali se
insinuavam.
Tirando como base interpretativa às narrativas de Souza, observamos que ele busca
mostrar a cidade como um local que progredia e se colocava mesmo com um dos agentes
responsáveis pelo momento de progresso que vivia a urbe
26
.
A mudança da estética da cidade era resultado da construção de obras e prédios novos
com recursos do erário e verbas estaduais e federais conseguidas pelo grupo que estava no
poder em Ipu e da qual Sousa era um dos membros. Se a estética da cidade estava mudando,
era preciso, por outro lado se lutar contra os costumes que não condiziam com este “novo
momento”.
Na visão de Souza, a cidade ipuense ainda é mostrada em 1915 como atrasada mas,
em profundo processo de melhoramento, onde ele no decorrer da escrita apresenta os
inúmeros “avanços” , principalmente nos meios intelectuais.
Para justificar o crescimento ele se apóia em Bezerra, muito embora não faça a citação
do autor mais o seu comentário, quando diz que “A cidade do Ipú é uma terra predestinada a
25
Em 1900, a estrada de ferro que passava pelo Ipu possuía 06 locomotivas, 10 carros para passageiros e
bagagens, e 42 Wagons para mercadorias e animais, com renda bruta anual de 350:000$000, com um trem diário
misto entre Camocim e Ipu, partindo de Camocim às segundas, quartas e sextas-feiras e regressando do Ipu nas
terças, quintas- feiras e sábados, às 06 horas da manhã. Com trens de carga facultativos e os de serviços da
estrada a média de trens se elevava a três. Ver. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. p. 18.
26
Ser agremiado, ler francês, frequentar espaços de discussões como gabinetes e editoriais, produzir e ler jornais,
eram características primordiais para se apresentar como integrantes de uma sociedade progressista, advindo
estas características com a estrada de ferro, que conduzia os aparatos necessários para a sustentação destas
circunstâncias.
31
grandes commettimentos, futuramente (...) segundo paciente observador”
27
, e o paciente
observador, Antonio Bezerra, datando o momento de sua escrita no ano de 1885, publicando-
a na primeira edição em 1889, vai trabalhar a imagem do Ipu, no seu aspecto, como sendo a
cidade que:
(...) consta de uma grande praça, circulada de vários prédios
excelentes (...).
Sua planta ocupa vasto espaço, e por sua posição em relação ao
sertão e vizinhança da serra, dispõe de meios para vir a ser uma importante
cidade.
Na praça da matriz se encontram estabelecimentos comerciais bem
sortidos, onde abundam mercadorias estrangeiras
28
É uma cidade, muito embora pequena na sua parte central, mas com prédios que se
destacam; tem uma localização que lhe favorece economicamente e ainda que neste período
o tenha sido inaugurada a estação ferroviária o comércio dispõe de artigos estrangeiros.
Dispõe de meios para vir a ser uma cidade importante, e demonstra isso, na visão de
Bezerra, pois como percebe, a cidade “já possui um gabinete de leitura enriquecido com mais
de trezentos volumes e (...) trata-se da aquisição de uma tipografia
29
.
A cidade neste momento tem os mesmos quatro bairros descritos por Eusébio. Não se
tem referência a nada sobre a estação, pois a mesma ainda não existia, mas na visão de
Menezes, o “progresso era iminente, podendo chegar a ser a cidade mais importante da
região noroeste (atual divisão) do Estado.
Também não vamos encontrar referência aos costumes da época mas, o que se percebe
com clareza, é esta disposição que determinados citadinos vão ter para com a iniciativa
principalmente da leitura, com a já existência de um gabinete de leitura, que vai acabar com o
passar dos tempos e ser retomado na segunda década do século XX e, ainda, a introdução da
tipografia, desejo neste período, que também vai se concretizar na primeira década do
mesmo século.
Pouco se escreve sobre as meretrizes desta época, ou quase nada, pois estas não
interessavam ser mostradas, e sim os “grandes feitos dos grandes homens”. Elas seriam a
manifestação clara do descaso, da incompetência da sociedade e tamm da devassidão do
homem e desprezo pela família, entidade que deveria ser preservada e vigiada, como veremos
em capítulo adiante.
27
SOUZA. op. cit. 206.
28
BEZERRA, Antonio. Notas de Viagem. Imprensa Universitária do Ceará. Fortaleza: 1965. p. 200-201.
29
Idem, p. 220
32
Neste primeiro momento, observamos algumas pessoas da chamada melhor
sociedadese destacando. Unidos a outros buscaram intervir no espaço urbano sob a alegação
de fazer a sua terra se desenvolver. São entre tantos outros o farmacêutico Thomaz de Aquino
Corrêa e o comerciante Herculano José Rodrigues que se tornam, pela memória constrda
daquele período, ícones na sociabilidade ipuense.
As primeiras agremiações e locais de sociabilidades são erguidos em Ipu a partir da
introdução da estrada de ferro. Com a chegada de outros agentes progressistas, mais tarde, tais
espaços se firmaram como importantes. São eles mesmos entendidos como espaços que
representam o “progresso” vivido pela cidade naquele momento.
Interessante perceber ainda que neste momento não vamos encontrar diretamente
nenhuma referência à mulher, principalmente a mulher considerada “pervertida”, a prostituta,
nem tampouco a existência de locais próprios para estas práticas sexuais. Óbvio que, dentro
desta maneira de escrita desenvolvida na época, assuntos desta natureza eram considerados
“malditos”, mas para nossa primeira análise podemos observar ainda, voltando a Eusébio, que
ele vai deixar referência a algumas práticas “desordenadas” na cidade, quando apresenta
alguns aspectos patológicos da mesma, quando em determinado momento, diz que:
A syphilis e blennorrhagia (sic), e as moléstias venéreas, em geral
communs a todas as cidades e a todos os paises (...) no Ipu se encontra com
muita freqüência.
As conseqüências funestas destas affecções rbidas, o estudo de
suas variadas manifestações pathologicas, não cabem nos moldes de nossa
exposição.
(...) Mesmo assim, medidas de alcance geral o requeridas e o
poder competente dellas deve cuidar
30
.
Utilizamos a descrição de Souza, para caracterizar a formão da cidade. vimos a
manifestação de que nesta existiam apenas quatro bairros e que em nenhum deles, observando
de forma atenta, percebemos a existência de um espaço reservado exclusivamente ao sexo. O
ano é 1915 e a cidade estava passando por transformações como demonstrado anteriormente.
O poder competente confunde-se com as pessoas competentes”, os representantes da
sociedade deveriam zelar pela limpeza das mulheres e consequentemente da cidade.
No centro estavam as meretrizes assim como existiam as agremiações elitistas e ainda
a tentativa de expulsão daquelas deste espaço, característica esta que trabalharemos em
determinado momento. Eusébio não revela diretamente a manifestação das meretrizes na
cidade, ou no centro dela, mas também não nega a existência de pathologias venéreas, e mais
30
SOUZA, op. cit. p. 217.
33
adiante, passa a conclamar os poderes públicos, inclusive citando leis, para que se preocupem
da melhor forma no que se refere ao combate a estas patologias e, paralelamente, a quem
possa transmiti-las.
Neste ponto, Eusébio vai chamar a atenção das autoridades higiênicas para que
observem os locais onde se pode ser contagiado por estas doenças, o que podemos perceber
como sendo espaço onde o sexo seria praticado de forma descontrolada”, ou seja, com
pessoas determinadas a estas atividades.
A cidade estava se transformando e todo um modelo de cidade progressista estava
sendo trabalhado. Toda uma forma de vida estava sendo demonstrada como perfeita e as
meretrizes, ou o costume marginal, não era o exemplo destas práticas.
Ao lado da construção de um imaginário da cidade, vista como progressista, um outro
imaginário foi criado. Uma manifestação cultural e a construção de um “imaginário perfeito”
para a cidade, representação esta descrita nos poemas e obras, como observaremos ainda neste
capitulo, que vão nortear a base de nossa análise, pois percebemos que existia toda uma
preocupação em “criar” para a cidade um modelo perfeito” a ser seguido e este modelo seria
a imagem da Índia Iracema, personagem de José de Alencar.
Esta Índia ou o imaginário desta, vai se‟ confrontar diretamente com a visão de mulher
pública, que seriam as meretrizes. Ela (índia) a mulher que deu formação à nossa sociedade, a
partir do hibridismo com o branco europeu, que deu margem à origem” do povo ipuense.
A meretriz, mulher suja, vulgar, sem “cultura”, que tinha a desonrosa atividade de
envolver os cidadãos na perversão e assim, macular a honra das famílias num costume
insano, colocando todo um projeto público em evidência por simples satisfação dos prazeres
da carne de forma adúltera por parte de um grupo indesejado.
1.2. Entre Almanaques e intenções. A cidade se transforma
O discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo
diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode ser dito e o discurso
pode ser dito a propósito de tudo, isso se porque todas as coisas, tendo
manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar à interioridade
silenciosa da consciência de si
31
.
31
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996. p. 49.
34
Toda produção é a tentativa de representação
32
do meio vivido, pois é feita por
homens e estes lançam em suas construções um manifesto de seus pensamentos, de suas
crenças, de suas ideologias e isso se dá de modo consciente ou inconsciente mas lá se acham.
Assim, podemos ter como base a alegativa foucaultiana, levando em consideração que os
discursos não devem ser considerados somente aqueles que são escritos, mas variadas
manifestações que tomam forma diante de uma observação mais apurada por parte do
pesquisador.
Estes discursos são produzidos, principalmente, a partir da iniciativa de grupos que
detêm determinado pensamento adquirido no convívio do meio em que estão inseridos.
Verdade ou mentira”, ele é imposto numa ótica direcionada, pois é escrito, na maioria das
vezes, por aqueles que possuem as condições logísticas para a reprodução deste pensamento,
que vai (ou poderá) ser concebido como verdade.
Nesse sentido, o que vai ser “mapeado” como importante para ser perpetuado” na
memória coletiva é caracterizado pelo interesse pessoal de quem produz, pois determinados
ritos, signos, reproduções ou documentos serão lançados à posteridade como “verdade”, como
bem disse Le Goff quando:
O documento não é inócuo. É, antes de mais nada, o resultado de uma
montagem, consciente ou inconsciente, da história, da época, da sociedade
que o produziram, mas também das épocas sucessivas durante as quais
continuou a viver, talvez esquecido, durante as quais continuou a ser
manipulado, ainda que pelo silêncio. (...) O documento é monumento.
Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro
volunria ou involuntariamente determinada imagem de si próprias. No
limite, o existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira.
Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo
33
.
Se fizermos um contraponto entre o que nos diz Foucault e Le Goff, os dois são
convictos da intencionalidade consciente ou inconsciente de quem produz determinados
documentos, lançando-os como verdades, fazendo (ou tentando fazer) com que os mesmos se
tornem “monumentos”, basicamente como diz especificamente Le Goff, onde faz uma análise
histórica da função do documento. Como ele se torna monumento, ou seja, para que e por
quem foi desenvolvido ou em que circunstâncias foram preservadas.
32
Ver.: FREITAS, Marcos Cezar (org), Historiografia brasileira em perspectiva. 3º ed. São Paulo: Contexto,
2000.
33
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. IN.: História e Memória. ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2003. p. 538.
35
O documento se torna monumento, quando evoca o passado, preservando a memória,
dando margem para conservação e ostentação do poder por parte de determinados grupos.
Este documento seria a “prova” concreta dos fatos, muito utilizado pela escola
metódica,assim, o documento em si já seria a comprovação da verdade.
Com a Escola dos Annales existe uma ruptura nesse conceito “positivista” de história.
A história dos grandes homens e fatos lugar a uma história social e das massas anônimas,
isto é, dos humildes com o uso de novas fontes, principalmente com as análises dos registros
paroquiais, os quais continham documentações gerais das classes, sejam elas ricas ou pobres,
certidões de óbitos ou casamentos, batizados, enfim, cerimônias gerais.
Os fundadores dos Annales Marc Bloch e Lucien Febvre colocavam em evidência a
veracidade dos documentos, estes deveriam ser questionados, pois o documento é fruto da
vontade de um grupo ou pessoa, que têm interesses próprios e buscam legar para posteridade
uma imagem do passado, segundo seus interesses.
Parafraseando Le Goff, todo documento tem um cunho de mentira, assim como
também da verdade, o que leva o historiador a trabal-lo de forma que descubra o não dito
em suas entrelinhas percebendo as reais intenções e o contexto com que este documento tenha
sido produzido
34
.
Nesta perspectiva, irão ser “criados” documentos que vão se tornar monumentos logo
no inicio do século XX em Ipu, e junto a eles, toda uma formalização e demonstração de
interesse de manifestação de uma sociedade letrada e perfeita ou dividida entre letrados,
intelectuais ou integrantes de grupos, mas uma sociedade que se preocupa com as letras” e o
desenvolvimento da cidade.
O primeiro Almanaque Ipuense vai ser escrito em 1899 e publicado em 1900 e o
segundo publicado em 1901, e estes vão ser lançados como marco de um novo tempo na
cidade de Ipu e considerados documentos/monumentos.
No final do século XIX início do século XX, a cidade de Ipu passava por profundas
transformações espaciais, como vimos, obedecendo aos preceitos de que esta o é estável em
sua formação, pois sofre intervenções a todo o instante, sejam elas de cunhos territoriais,
sociais, econômicos, culturais, entre outros; nas diferentes camadas existem transformações
de acordo com o tempo vivido” pelas mesmas, pois a cidade é dinâmica e assim, percebemos
que toda organização” desta se desenvolve a partir de uma perspectiva de desequilíbrio.
34
Ver: BURKE, Peter. História e teoria Social. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
36
Nenhum agrupamento humano é destitdo de conflitos e quando se fala
principalmente de cidade, vivenciando uma temporalidade de transformação do espaço mais
visível, como no caso de Ipu, teremos uma percepção da transformação do imaginário
coletivo
35
, a partir das próprias modificações que a cidade vivencia como bem disse Oliveira
Junior, quando toda ação dos homens sobre o espaço pressupõe um intenso e engenhoso
trabalho de imaginação
36
, e esta imaginação, vem de acordo com o meio em que o homem
está inserido.
Até 1900 encontraremos em um dos livros de memórias da cidade
37
, referência à
existência de pelo menos quatro jornais manuscritos, sendo eles: “O Sol, A Brisa”
38
, “O
Espelho e o Paladino do Norte”
39
, e em 1890, “O Ipuense”
40
, os quais infelizmente não
tivemos acesso pela deterioração e falta de preservação dos referidos jornais pelos setores
competentes da cidade.
Porém, em 1899 foi escrito na cidade o primeiro Almanaque Ipuense,sendo o mesmo
lançado no ano seguinte à sua produção. A este Almanaque daremos maior ênfase nas nossas
observações se quisermos entender um pouco do que norteava o pensamento da população da
cidade.
Quem produziu e o porquê de tê-lo feito? Vamos perceber que este Almanaque vem
ser desenvolvido com a preocupação medica de construção ou perpetuação da memória de
personalidades consideradas “importantes” como “heróis da pátria”, no estilo de General
Sampaio, Padre Mororó, entre outros.
Em 1900, a cidade recebia a inflncia da chegada da estrada de ferro, porém, o
Almanaque deixa explícito ainda a preocupação que o ipuense tinha para com a seca, pois o
que distancia a publicação do referido almanaque da última grande seca que ocorreu no ano
de 1877 são apenas 13 anos e esta mesma seca deixou conseqüências negativas explícitas na
cidade. O imaginário do “progresso” com a introdução da ferrovia, ainda se confundia com a
35
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. IN.: Enciclopédia Ginaudi: Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da
Moeda, 1985 (Antrophos / Homem, V. 5). pp. 291-332. O conceito de imaginário utilizado por Baczko, muito se
assemelha com o conceito de representação social, ou ainda, com o conceito cultural, trabalhado por Maria
Beatriz Nizza da Silva, estudado por Souza. Ver: SOUZA, Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da
Cultura sobre o Brasil Colonial. In.: FREITAS, Marcos Cezar (org), Historiografia brasileira em perspectiva.
3º ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 33
36
OLIVEIRA JÚNIOR, Gerson Augusto de. O encanto das águas: a relação dos Tremembé com a natureza.
Fortaleza: Museu do Ceará / secretaria da Cultura do Estado do Ceará, 2006. p. 41
37
MELLO, Maria Valdemira Coelho. O Ipu em Três Épocas. Fortaleza: Popular Editora LTDA, 1986. p. 31
38
Redatores Félix Cândido e Thomaz de Aquino Corrêa.
39
Redator Eduardo Sabóia.
40
Primeiro Jornal impresso da cidade, com dirão de Júlio Cícero Monteiro, datado de 20/10/1890.
37
imagem da seca, dos retirantes, “frutos” do atraso em que o “nortista” então vivenciava, como
vemos:
Nas praias onde rijo sopra o vento
Agglomeram-se os filhos da desgraça...
Visita-os curiosa a populaça,
Sem alivio trazer ao seu tormento.
A nenhum compadece o sofrimmento
Dos miseveis que a fome caça;
Indifferente o orgulho passa
Ao pobre mostrando-se opulento. (...)
É assim que se vê a immensidade
Do povo, que jamais aqui virá
Sob lucto, a miseria, a orphandade. (...)
A‟ pouca sombra d‟arvore despida
Sentam-se as famílias pobres emigrantes,
Onde vém mais tarde os visitantes
Que não pensam siquer poupar-lhes as vidas
41
.
A seca, os retirantes e a fome são retratados pelo autor como uma coisa visível na
cidade, neste caso se reportando a Camocim, mas publicado numa produção da cidade de Ipu,
o que deixa margem para interpretarmos como estas duas cidades passaram a estar
interligadas com a estrada de ferro. Outros autores camucinenses também escreveram seus
poemas ou textos no almanaque, reportando-se ao que eles acreditavam ser importante para
eles ou para a “cidade de Ipu”.
Antes de qualquer análise, gostaria de mencionar que a iniciativa de dar maior ênfase
interpretativa aos poemas que se seguirão, principalmente nos almanaques, se pela
tendência que os autores tinham em dar preferência a este tipo de produção. No decorrer das
páginas veremos, muito embora não seja manifestada explicitamente esta intenção, que o grau
de “intelectualidade” dos colaboradores era visado a partir da forma como manifestavam seus
pensamentos através dos poemas e como escreviam devendo obedecer de certa forma algumas
regras na produção.
Quem escreveu e, ao mesmo tempo, que público seria os leitores deste almanaque?
Ora, o que sabemos é que a confecção deste trabalho e o seu manuseio na cidade, ficara a
41
PATRIOTA, Um. Os Emigrantes. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. p. 75. Este poema foi escrito na cidade de
Camocim no ano de 1899, e por algum motivo, o escritor se manifesta em seus poemas no decorrer do
Almanaque com a alcunha de patriota. A influência de outras cidades na produção do Almanaque vai ser visível,
principalmente nas cidades que são cortadas pela estrada de ferro, ou que entre elas existem ligações. Este
Almanaque foi escrito em menor escala por ipuenses, como veremos adiante.
38
cargo de um pequeno grupo
42
, que se tornara selecionado principalmente entre os
comerciantes que aqui se instalaram, vindos principalmente da cidade de Camocim.
Muito citado o lugarejo chamado Entre Rios, que descobrimos sua localização entre a
cidade de Sobral e Ipu, distante dos dois em cerca de 50 km, referência esta feita no próprio
corpo do almanaque. No que se refere a esta localidade, vamos encontrar o escritor
desenvolvendo sua narrativa alcunhado pela sigla F. S e, outras vezes, utilizava este a
alcunha, também, de O Patriota.
Outros narradores também vão se reportar ao mesmo lugar como o próprio redator do
almanaque Herculano Jo Rodrigues
43
, que vai dispensar quase três laudas da revista,
contando causos deste lugar, principalmente no que se refere a contos religiosos.
Herculano era formado em direito, muito embora tenha chegado à cidade somente no
final do século XIX e passando nela algum tempo, o exercera sua profissão, mas a de
comerciante se envolvendo com grupos sociais aqui existentes e fundando o Almanaque que
vai trazer em suas duas edições (1900-1901) a colaboração de pessoas do “não-lugar”, ou
seja, de forma pejorativa, o Almanaque pertence à cidade, mas não tem a sua cara, pois não
podemos reconhecê-la nas escritas, salvo em alguns pontos que se seguem escritos por
pessoas que nela moravam e comercializavam e que, mais a frente, depois de ser trabalhado”
todo um sentimento de pertencimento à mesma por parte de alguns correligionários, esta
aparece como centro principal nas produções que se seguem, principalmente nos jornais que
passarão a circular posteriormente.
Neste sentido, podemos perceber os almanaques que tiveram início com Herculano
como um embrião deste sentimento de “intelectualidade” que irá ser manifestado em seguida,
e como disse, de pertencimento a esta terra.
O Almanaque serve como um divisor comum dos tempos, ou seja, antes do
almanaque, depois do almanaque e que a ele pode-se colocar como força motriz a introdução
da estrada de ferro, pois esta fez com que determinados setores sociais da cidade que estavam
distantes ou não, para viessem para desempenhar suas atividades econômicas ou sociais
que vão surtir um reflexo na produção intelectual do lugar e também na manifestação maior
de determinados segmentos em pertencer a estes grupos.
42
O último exemplar do Almanaque conhecido hoje, é curado pelo Professor Francisco de Assis Martins, que
fora restaurado por coincidência por este autor quando remexia em suas fontes, herdadas de seu genitor João
Anastácio Martins, homem de confiança de Joaquim Lima e a quem fora confiado a guarda de referida
documentação. Estava em estado deplorável e sem condições de leitura no momento. Não se conhecia o
conteúdo do Almanaque nem sabia-se se o era realmente.
43
RODRIGUES, Herculano José. Pedra do Sino. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. pp. 72-74. Este poema foi
produzido em 1899, como está escrito no final da página.
39
Na análise dos almanaques de 1900 e 1901, a maior parte dos registros são baseados
em oferecimentos a pessoas que até então têm destaque social na cidade principalmente como
comerciantes, mas não no meio da intelectualidade, pois a esta manifestação não percebemos
maneiras de como elas fossem apresentadas.
O que se pode destacar seria o direcionamento familiar, ou seja, menções às classes
sociais de prestígio econômico. Exemplificando, encontramos, entre outros, oferecimentos à
pessoa de Joaquim F. da S. Correia através do qual fizemos então uma relação de parentesco
com a família Correia da cidade de Ipu, onde percebemos a influência que a mesma tinha
sobre esta terra. Eles detinham naquele momento, prestígio em todas as esferas sociais da
cidade consideradas representativas e, não obstante, neste almanaque encontramos seu
pensamento registrado em um dos poemas que se segue:
Em lucta insana passa noite e dia
O avaro, da ambição acorrentado;
Come mal, peior veste, o desgraçado,
Não tem um só instante de alegria.
Riquezas acumular eis seu cuidado,
A usura elle chama economia
Os nobres sentimentos repudia,
A‟ furtar passa a vida o renegado!
Enganar, extorquir a humanidade,
Com lábias de fingida piedade,
E‟ do vil avarento o vil estudo.
Mas um dia... o espírito se evóla,
Corrompe-se a material Que graçola
E os bens ficam na terra! Que canudo
44
.
Ao homem se for aceito a hipótese de que ele é produto de seu meio, isso se
demonstra através de seus atos, suas manifestações culturais, religiosas, mas
principalmente, nas suas produções literárias, ainda mais quando esta arte surge por meio da
poesia muito evidente neste almanaque.
A maior parte dele(almanaque) está estruturado nesta forma de escrita, muito embora,
acreditamos ter nexo em cada uma delas pois são escritas direcionadas. Acreditamos que as
mesmas contêm em sua essência o que o autor acredita como sendo importante de ser
relacionado e mostrado para a posteridade. Neste almanaque, vamos perceber a profunda
influência católica, pois além da relação anual dos santos da Igreja Católica encontramos
44
CORRÊA, Thomaz de Aquino.. O Avaro. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. pp. 48-49.
40
também poemas para a igreja e alguns manuscritos feitos por padres da região ou extraídos de
outros livros da época.
No caso de Corrêa percebemos esta característica pois observando atentamente seus
poemas neste instante, não encontramos outra relevância que não seja o caráter religioso de
sua escrita, o que vai deixar transparecer o seu pensamento calico, como diz Geertz,
quando:
O que o homem é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e
no que ele acredita, que é inseparável deles. É precisamente o levar em
conta, tal possibilidade que deu deter margem ao surgimento do conceito
de cultura e ao declínio da perspectiva uniforme do homem (...) não existem
de fato homens não-modificados pelos costumes de lugares particulares,
nunca existiram e, o que é mais importante, não poderiam pela própria
natureza do caso
45
.
Esta assertiva vai ratificar nosso pensamento, pois como trabalhamos, o homem
produz imagens de seu eu que passa a ser demonstrada como sendo imagens coletivas para a
posteridade, como entendemos ainda quando “qualquer grupo social fabrica imagens que exaltam
o seu papel histórico e a sua posição social, não se definindo senão através dessas representações”
46
.
A representação que Corrêa deixa transparecer é a de um grupo preocupado com a
“salvação da alma”, pois a usura, o lucro, nesta perspectiva, seria muito condenada pela
igreja, e ele como religioso que era não fugia a esta discriminação da busca pela riqueza,
muito embora o mesmo fosse além de manipulador de medicamentos (trabalhava com ervas
naturais) proprietário de uma farmácia, ainda de propriedade da família nos dias atuais, com
inauguração em 1896, ou seja, dois anos depois da inauguração da estrada de ferro Ipu -
Sobral (04/10/1894).
A família Correa, nas décadas que se seguem, vai ter profunda participação nos meios
sociais e religiosos e também vai tentar combater determinadas práticas consideradas
pervertidas, embora encontremos relatos nas fontes de “supostas visitas” de representantes
desta família em pontos da cidade considerados “malditos”.
Outro quesito que podemos perceber no almanaque seria o direcionamento que os
escritos tomam, uma vez que quem escreve, direciona os leitores explicitamente, ora
homenageando determinada personalidade, ora também lançando perguntas (charadas) para
outro, como se o público fosse bem seleto. Quem escreve e para quem escreve.
Numa sociedade em que poucos dominavam a leitura podemos ter uma idéia de quem
recebia os trabalhos publicados na cidade. Pequeno grupo que vai se formando no decorrer do
45
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. p. 26
46
BACZKO, Bronislaw. Op. Cit. P. 305
41
tempo, no espaço da cidade, grupo este que adquire uma forma de vida diferente criando
novos valores para a população, se colocando como guardiã desses valores como observamos
no decorrer do trabalho.
Quem lia este Almanaque, ou os escritos da época, sendo pessoas selecionadas, eram
vistos com olhar diferente na cidade. Uma espécie de olhar elitista, como vemos em mais um
poema do almanaque, que vai ilustrar o grau de posicionamento que eles davam para aqueles
que se manifestavam na arte da educação. Vejamos a seguir:
Hoje são quinze do meu mez de aulista,
Ando com a crista para o chão cahida;
Em os meus bolsos de estudante pobre
Dez réis em cobre já não tem guarida.
Aonde pára a infeliz mesada
A mim mandada pela mãe querida?
Talvez na bolsa de qualquer jurista
Esta hora exista bem e bem cosida. (...)
Fica sem crédito, perde o anno, a amante,
Dá em vagante o que quer que faça?
Começa então a freqüentar orgias,
E vai seus dias terminar na praça
47
.
O estudante é mostrado como “vagabundo” no decorrer do poema, pois não tem
dinheiro e vive a expensas de sua família. A maioria dos que compunham o álbum ou eram
comerciantes na cidade de Ipu e adjacências ou eram profissionais já qualificados como
padres, médicos, professores, entre outros, mas que tinham passado pelo estágio de
pobreza” que regia a vida do estudante, como vemos nos versos acima.
A cidade de Ipu era composta, em sua grande maioria, por pecuaristas e agricultores
que não davam muito crédito ao estudo mas ao trabalho na terra, e daí, percebemos isto mais
explicitamente quando observamos a preocupação que os mesmos tinham com os períodos
entre invernos, períodos estes considerados escassos no que concerne ao pasto e às bonanças
que os tempos chuvosos deixam para o homem do sertão. A educação, neste ponto, se tornava
prioridade secundária mas o prestígio estava em primeiro plano na maioria das vezes
adquirido com o dinheiro que o comércio ou a renda nas terras proporcionava.
Para concretizar este questionamento acredito ser pertinente a observação de que quem
organizou este almanaque não fora um ipuense enraizado mas, Herculano José Rodrigues que
47
M. P. F. J. O Estudante. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. pp. 111-112.
42
passara a pertencer aos quadros considerados elitistas na sociedade ipuense. Sua chegada se
deu a partir de 1894, ou seja, depois da chegada da estrada de ferro.
A idéia de produzir um almanaque se deu por sua iniciativa mas,vale salientar que, a
grande maioria de seus colaboradores não pertenciam à cidade de Ipu,no entanto, já faziam
parte de seu convívio anteriormente. Assim, podemos perceber as novas formas de
sociabilidade se formando.
Observa-se,portanto, toda uma conjuntura demonstrada como inovadora e, paralela a
ela, no jogo de interesses que rege toda uma sociedade, vão aparecer as meretrizes da cidade
que,embora em menor escala já existiam, mas não se envolvendo nos espaços de sociabilidade
elitistas, principalmente nos que agora estavam se formando. Estas estavam chegando
principalmente de trem e na estação ferroviária se firmando utilizando-a como espaço de
trabalho.
A cidade começa a se articular no intuito (inconsciente?) de formar os seus grupos
sociais e intelectuais e nesta formação o que se percebe é que para o imaginário de quem
produzia os almanaques dinheiro, prestigio e intelectualidade estavam inseridas no mesmo
patamar e assim, as agremiações vão surgindo com o passar dos tempos.
O primeiro Almanaque Ipuense data de 1900 mas foi produzido em 1899 como vimos
e, antes de fecharmos nosso raciocínio, sendo o Ipu uma cidade de origem indígena e
colonizada pela coroa portuguesa
48
como dizem os memorialistas da cidade, no almanaque
inteiro vamos encontrar um único ponto onde se tem referência a existência da tribo tabajara
nestas terras, e vejamos, pouco mais de três gerações apenas havia se constituído, se levarmos
em consideração esta informação como verdadeira, o que já está sendo questionado por
alguns historiadores recentes na cidade.
A taba dos Tabayares
nem um guerreiro tem;
Não existe mais ninguém
Desses tempos seculares.
48
Segundo os livros de memorialistas da cidade, em 1694, a coroa portuguesa doou vinte léguas de terras a
Joana Paula Vieira Mimosa, terras estas que onde se ergueu a cidade de Ipu. Estas informações foram retiradas
pelos memorialistas, da Revista do Instituto do Ceará do ano de 1915, escrito por Euzébio de Souza. Segundo
ele, em 1740, vieram para a aldeia uma comissão de padres da Ordem dos Jestas. Nesse sentido, segundo os
mesmos memorialistas, baseados em Euzébio, os índios foram sendo “pacificados” e colocados no convívio
social da cidade, sendo extintos em pouco tempo, sendo que no final do século não se tinha notícias da
existência dos mesmos nas terras ipuenses, como fica explícito no poema referendado. Sobre o assunto, VER:
Revista do Instituto Histórico para o ano de 1915. SILVA, João Mozart da. Ipu do meu xodó: Memórias.
Fortaleza: Nacional, 2005. MELLO, Maria Valdemira Coelho. O Ipu em Três Épocas. Fortaleza: Popular
Editora LTDA, 1986. Estas informações, porém, são questionadas por estudantes de graduação, especialização e
mestrado em História, pois hoje, não encontram sustentação nas fontes que são mostradas pelos memorialistas.
43
E os feitos singulares
não os recorda alguém;
Não há vestígios também
Da Taba dos Tabayares.
A trombeta dos guerreiros
não echôa nos ares
Nesses tempos derradeiros.
São hoje estranhos folgares...
Nem mais resôam pandeiros
Na Taba dos Tabayares.
49
Interessante perceber que somente neste instante seja feito referência à descendência
indígena da população ipuense. Vamos observar que a partir do início do século XX esta
população vai tentar produzir para si uma imagem de pessoas evoluídas, principalmente no
que se refere à intelectualidade, e que assim, ao menos neste momento, as raízes são
esquecidas.
Não é proposição nossa fazer este tipo de análise, ao menos neste instante, pois o que
estamos tentando demonstrar é que a cidade de Ipu estava vivenciando um processo de
transformação em seus espaços e que estas transformações, principalmente com a chegada da
estrada de ferro, vão ocasionar uma modificação no imaginário de uma parcela da população,
e ainda, que a isso se somam as transformações dos espaços geográficos e também os de
sociabilidade que vão acarretar na observação da existência de novas formas de viver em
espaços reservados para determinados fins, como veremos.
A construção de determinadas agremiações como percebemos tem como finalidade
principal, a construção de uma demarcação de espaços que, a eles, somam-se fatores que
fogem a própria percepção da intenção, ou seja, determinadas formas de vida se dão por
iniciativa de uma “força superior” e no caso de Ipu, todas as transformações espaciais e
econômicas que a cidade estava vivenciando refletiam na própria manifestação cultural desta ,
mesmo que de forma inconsciente da sociedade.
Junto a estes fatores internos ou externos, acarretou a construção ou delimitação de
espaços, fatos justificados na observação de Vieira, quando diz que devemos “conceber a
realidade, situada em qualquer plano, como uma construção (...) À iia de construção, está
associada à noção de classificação que, por sua vez, assegura a demarcação de realidades
local, regional e nacional”
50
.
49
NEROMO. A Taba dos Tabayares. Almanak Ipuense. Ipú: 1900. pp. 50-51.
50
VIEIRA, Sulamita. O sertão em movimento: a dinâmica da produção cultural. São Paulo: Annablume, 2000.
p. 146.
44
A introdução de um Almanaque na cidade pode ser concebida como influência da
própria introdução de pessoas condicionadas à arte da escrita na cidade, com o advento da
estrada de ferro. Herculano Jo Rodrigues contribuiu de certa forma com este
questionamento a partir de sua influência na organização dos almanaques, utilizando para isto
a introdução de autores extra ipuenses como vemos a seguir, quando:
Herculano José Rodrigues
F, Bricio Magalhães (Ipú)
José Affonso P. Moreno (Ipú)
Izabel O. Gondim (Sobral)
Padre Furtado (Pacoty)
José Bezerra Sobrinho (Fortaleza)
Club Myosotis (Camocim)
Datan Guaramiranga (Baturité)
João Catunda (São Benedicto)
Uma Matuta (Campo-Grande)
Mimim (S. Benedicto)
J. R. dos Santos (Entre-Rios)
Entre outros pseudônimos, sem identificação nominal
51
.
Em 1901 o almanaque vem se mostrar um pouco mais regional”, se tivermos como
parâmetro os colaboradores que trabalharam na sua elaboração.
No que se diferencia do primeiro que tem como base principal a transcrição, entre
outros pontos, de poemas, bibliografias de pessoas consagradas nacionalmente e a nível de
Estado e pelo próprio corpo geográfico que compõe a escrita, vamos perceber que uma
unidade estava sendo desenvolvida na cidade, com uma relação entre determinadas áreas
interligadas intelectualmente e economicamente pela estrada de ferro, ou seja, observamos
colaboradores da capital cearense outros do litoral(como Camocim), ligado diretamente
pela estrada de ferro; como também o Club Myosotis, e a própria Serra da Ibiapaba com dois
representantes de São Benedito e Sobral.
A partir daí, já caracterizaremos nas próximas publicações da cidade, uma referência a
uma nova ordem imaginária, com a introdução de um novo grupo que se colocará como
intelectuais na arte da escrita, filhos da cidade ou absorvidos por ela, pela pseudo- idéia de
progresso”, que a mesma estava vivenciando, como veremos. A idéia da seca ainda é muito
presente, dos retirantes andando a ermo, da falta de chuvas em tempos remotos e ainda a
própria religiosidade, também muito presente na escrita do almanaque, com poemas e
bibliografias de “vultos” religiosos e grandes heróis.
51
COLABORADORES.Almanak Ipuense. Ipú:1901.
45
Mas somando ao almanaque de 1901, já vamos perceber a introdução de propaganda
em página que fora preservada, o que não existia no almanaque anterior. E o que nos chama a
atenção em maior plano, é o fato de onde veio a matéria, ou seja, da cidade de Camocim,
quando vemos a seguir: -1901- CAMOCIM INSTRUCÇÃO ELEMENTAR- Julio C.
Monteiro, lecciona primeiras lettras em casa de sua residência, das 7 horas ás 8 ½ da manhã.
CAMOCIM”
52
.
Além da preocupação em ser colocado propagandas no almanaque vemos que, até
então, a mesma não é da cidade, mas do litoral camocinense, e ainda, que é uma propaganda
relacionada à educação primária colocada num espaço que será lido por pequena parcela da
população ipuense e adjacências demonstrando que, de certa forma, o progresso” que a
cidade estava vivenciando estava trazendo à tona uma nova preocupação numa localidade por
excelência economicamente agrária.
Ainda vamos encontrar várias transcrições de matérias de outros jornais, porém, uma
delas vai nos chamar a atenção, quando tem em sua essência a preocupação com o mito de
Iracema, até então não mencionada nos escritos dos almanaques. A preocupação com esta
tradição pelos integrantes da sociedade, como veremos, vem surgir já no século XX a partir
das transformações que a cidade estava vivenciando. Então, vejamos:
Dorme Iracema, a bella moça indiana,
Na perfumada rede, semi-nua,
E, a vacillar, na plácida cabana
Entra-lhe um raio pallido da lua.
Além na sombra enorme da floresta,
Descansa a tribu heróica e valorosa;
Só o insomne Pagé ouvidos presta
Aos mysterios da noite tenebrosa.
Entretanto, Iracema, extasiada,
Co‟o o seio em fogo e alma apaixonada,
Sente o lábio tremer-lhe em riso franco:
E‟ que ella sonha e vê neste momento
Vir baixando do azul do firmamento
O vulto amado do Guerreiro Branco
53
.
52
Almanak Ipuense. Ipú:1901. P. 109
53
MARIMAR. Sonho de Iracema. Almanak Ipuense. Ipú:1901. pp. 110-111. Ao nome da autora (ou autor),
somamos o que se encontra abaixo da publicação, entre parênteses “D‟ A Republica”, que não podemos colocar
o número da transcrição do jornal, por conta da mesma (o) não -lo feito.
46
Diferente do poema do Almanaque do ano de 1900, escrito em 1899, a alusão que é
feita à tribo tabajara, e o podemos correr o risco de sermos anacrônicos, é que o poema
Sonho de Iracema é romanceado, colocando em evidência o enlace amoroso que porventura
teria existido entre a índia nativa e o guerreiro branco.
O outro, A Taba dos Tabayares, está preocupado com a extinção da tribo,
preservando” aquilo que um dia possivelmente existiu, a partir dos relatos memoriais
repassados por seus antecessores.
O que pode ser considerado verdade ou mito nesta história seria o fato de que uma
nova ordem estava se desencadeando na cidade, a partir da introdução de um novo imaginário
acerca da narrativa sobre os primeiros habitantes desta e a construção de um mito fundador
europeu, se tivermos como pressuposto a figura de Iracema, a virgem dos lábios de mel
escrita por Alencar, dando um berço para a mesma na cidade de Ipu ou Joana Paula Vieira
Mimosa, trabalhada por Eusébio de Souza e posteriormente adaptada por memorialistas.
Se a cidade estava vivenciando o progresso”
54
, uma nova visão de sua fundação
também deveria ser criada ou lançada como verdade para a posteridade. Entra o mito de
Iracema, sendo trabalhada toda uma nova ordem e, junto a este mito, vai ser confundido as
intencionalidades pois vão aparecer outras mulheres que disputarão os espaços, mas nesta
situação, eram mulheres públicas- as meretrizes- e elas não eram bem vindas.
1.3. A busca de um imaginário “iracemista” em Ipu
E a cidade vai se adaptando a uma nova ordem social ou alguns grupos percebem
assim. O trem trazia o “progresso” e a sociedade se achava no dever de se adaptar a ele.
Novas formas de viver deveriam ser desenvolvidas como também uma nova sociabilidade. A
chegada do trem marcava o divisor temporal entre o velho e o novo tempo, pois como disse
Le Goff,
54
FARIAS FILHO, Antonio Vitorino. O Trem e a Cidade: as transformações Urbanas em Ipu-Ceará (1894-
1935). Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Teoria e Metodologia da História, para obtenção
do título de especialista em Teoria e Metodologia da História, pela Universidade Estadual Vale do Acar
(UVA), Sobral, 2007. Em seu trabalho, Farias Filho vem perceber que existiu toda uma trama da “elite ipuense
em apresentar a cidade de Ipu como progressista, tendo este acontecimento surgido com a introdução da estrada
de ferro que liga Ipu a Sobral, e ainda a introdução na cidade de vários estabelecimentos considerados frutos do
“progresso”, como Gabinete de Leituras, Grêmio Recreativo Sociedade Dançante, entre outros que veremos no
decorrer do trabalho, sendo este progresso personificado na figura de Eusébio de Souza, Leonardo Mota, Abílio
Martins, entre outros, que figuraram no cenário intelectual, jurídico e político da cidade e em âmbito estadual no
início do século XX.
47
„O progresso deve ser também intelectual e moral‟ e revela-se de
dois sintomas: o desenvolvimento da atividade social e o da atividade
individual, o progresso da sociedade e o progresso da humanidade.
55
Na conclusão da análise de Le Goff, salienta-se que não existe progresso geral mas um
progresso setorial, onde não se pode esquecer que para cada tipo de progresso existe a
necessidade de uma complementação social, ou seja, tudo está interligado inclusive a forma
como as pessoas percebem o mundo e nele também se vêem.
Para a sociedade ipuense agremiada que trazia para si a condição de guardiões do
progresso, a representação deste seria a construção de espaços reservados para a
apresentação em blico da melhor sociedade, ou ainda, espaços reservados para a leitura de
escritores já consagrados internacionalmente, principalmente os franceses.
Daí, a implantação efetiva do Gabinete de Leitura e a quase obrigatoriedade” de
frequência de todos os componentes da sociedade ipuense neste espaço, ou seja, aqueles que
detinham em seu poder os melhores cargos públicos na cidade sejam eles o de prefeito,o de
juiz, o de altos comerciantes, enfim, de todos aqueles que de certa forma mantinham o poder
de controle sobre algum órgão ou poder “coronelístico”, potica esta muito utilizada no início
do século e perpetuada através de novas formas de manifestação de controle da sociedade e
que em Ipu não teria sido diferente. Para destacar a existência deste ponto na cidade, vejamos
o que diz Leal:
Arranjar emprego; emprestar dinheiro; avaliar títulos; obter crédito
em casas comerciais; contratar advogado; influenciar jurados; estimular
e „preparar‟ testemunhas; providenciar dico ou hospitalização nas
situações mais urgente; ceder animais para viagens; conseguir passes na
estrada de ferro; dar pousada e refeições; impedir que a polícia tome as
armas de seus protegidos, ou lograr que as restitua; batizar filhos ou
apadrinhar casamento; redigir cartas, recibos e contratos, ou mandar que
o filho, o caixeiro, o guarda-livros, o administrador ou o advogado o
façam; receber correspondência; colaborar na legislação de terras;
compor desavenças; forçar casamento em caso de descaminho de
menores, enfim uma infinidade de préstimos de ordem pessoal, que
dependem dele ou de seus serviçais, agregados, amigos ou chefes
.
56
Não é nosso objetivo fazer análise desse sistema político na cidade de Ipu, porém,
estes coronéis mostrados por Leal eram uma realidade na referida cidade e transitavam
55
LE GOFF, Jacques. Progresso / Reação. IN.: História e Memória. 5ª ed. Campinas, SP: Editora da
UNICAMP, 2003. p. 258.
56
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o Município no regime representativo no Brasil. 3ª ed.
Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 1997. p. 56.
48
também pelos grupos que assumiam a condição de elitista, sendo eles mesmos referenciados
em manchetes de jornais locais como tais.
Vários dos coronéis davam suporte financeiro para a aquisição de espaços de
sociabilidade da intelectualidade muito embora se saiba, como veremos, que muitos deles (ou
a maioria) o dominavam a arte da leitura, mas que detinham um poder aquisitivo
considerável e prestigio político na cidade.
Vejamos como estes espaços elitizados eram constitdos, de certa forma,
demonstrando como se davam as relações sociais e de poder na cidade, onde neste sentido,
o existe um marco divisor de fronteiras, ou mesmo, o fato de estas não serem
intransponíveis, mas entrelaçadas por questões de parentesco, de religiosidade, políticas ou
até mesmo por interesses próprios, que envolvem setores diferentes do quadro que forma o
corpo deste centro urbano, evidenciando neste sentido a teia” de sustentação de um
determinado sistema de poder e perpetuação deste.
Vejamos :
No dia 1º de janeiro o gabinete de Leituras festejou, com uma
sessão litteraria, o primmeiro aniversario da sua fundão.
As 19 ½ horas, no salão principal do Gabinete, foi aberta a sessão
pelo presidente Dr. Chagas Pinto, estando presentes os seguintes sócios e
convidados:
Dr. Chagas pinto
Dr. Souto Maior
Dr. Leite de Albuquerque
Dr. Abílio Martins
Dr. Thompsom Bulcão
Acadêmico Francisco Peres
Cel. Manoel Dias Martins
Cel. João Bessa Guimarães
Cel. Thomaz Correa
Cel. Adulpho Carvalho
Cel. Leocádio Ximenes
Cel. Manoel Rufino
Cel. Emygdio Barbosa
Cel. Gonçalo Soares
Cel. Francisco Correa
57
57
CORREIO DO NORTE. O Gabinete de Leitura Ipuense festejou o seu 1º anniversario. Ipu Ceará, Anno
III, 102. 08/01/1920. p. 1. A estes citados, seguem-se mais 32 homens, acompanhados com suas respectivas
esposas, todos com visível projão financeira na cidade, onde nas manchetes do mesmo jornal, em outras
ocasiões, são referidos como coronéis, sendo que a partir do ano de 1926, data onde foi eleito o primeiro prefeito
da cidade com eleição direta, várias das pessoas que freqüentavam o Gabinete de Leituras, foram eleitos para o
executivo municipal, principalmente a partir de 1930, quando Getúlio Vargas deu o golpe de Estado e na cidade
figurou como intendente municipal Joaquim de Oliveira Lima, abastardo comerciante, que freqüentava todas as
agremiações criadas, e coincidência ou não, ocupava sempre o cargo de tesoureiro, inclusive do Gabinete.
49
Importante perceber que são passados vinte anos da apresentação dos dois primeiros
almanaques (1900-1901) e desse modo, a cidade havia sido demarcada em seus espaços de
poder intelectual, a partir de figuras que até então não versavam na construção imaginária de
uma nova ordem.
Neste grupo, com exceção de Thomaz Corrêa, ipuense que contribuiu com a
elaboração dos primeiros almanaques, nenhum outro vai aparecer anteriormente como
protagonista do processo de construção social e intelectual, e principalmente, se lançar como
mediador desta construção como os integrantes do Gabinete de Leituras, que por sinal, serão
quase que na totalidade os responsáveis pelo Jornal Correio do Norte.
Na lista que se segue, a grande maioria dos nomes são de pessoas da cidade, nesta
citação com exceção de Dr. Thompsom Bulcão, que tinha chegado à cidade como responsável
pela construção da estrada de rodagem que ligaria Ipu a São Benedito, todo o restante será de
pessoas de projeção ou representação no meio social e que vão tentar tomar pra si a
responsabilidade pelos rumos da cidade, como veremos adiante, principalmente nos meios
políticos.
Nas reuniões destas pessoas, que aconteciam principalmente nas agremiações criadas
para este fim “intelectual”, no Gabinete de Leituras principal espaço onde se encontravam as
maiores lideranças da cidade, eram deliberados assuntos que se diziam de interesse comum de
todos os ipuenses, ou seja, as decisões partiam de uma pequena parcela da população que se
estendiam para os demais.
O jornal Correio do Norte funcionava como um tentáculo do Gabinete, uma vez que,
as decisões tomadas em reuniões fechadas do grupo eram lançadas nas manchetes do jornal na
edição seguinte, ou seja, os mesmos integrantes do Gabinete de Leituras eram os do jornal
Correio do Norte, como também do Grêmio Ipuense Sociedade Dançante, do Theatro da
Cidade, todos ligados aos coronéis e aos grupos poticos que regiam os interesses da
comunidade.
No jornal, o que era considerado moderno era reivindicado nas principais páginas e
para este grupo modernidade era, além das manifestações culturais (para eles) já expostas, a
construção de um mito fundador, neste sentido a índia Iracema ou Joana Paula Vieira
Mimosa, e que para isto deveria ser trabalhado todo um processo de construção e aceitação
por parte da sociedade para com este mito fundador que se configurará na construção e
representação da cidade para este fim.
Vemos a demonstração por parte destes, da necessidade de construção de grandes
prédios, de avenidas, de hygienização da cidade, ou seja, daquilo que eles absorviam como
50
princípios da modernidade oriundos principalmente das formas de vida herdadas da Europa,
que eram repassados através dos jornais, revistas, folhetins etc.e que vinham para o Gabinete
de Leituras chegando principalmente nos vagões dos trens que aqui aportavam e também das
principais manchetes dos jornais da região Sul (hoje região Sudeste, onde percebemos uma
divisão de regiões mais explicitas a partir da primeira década de século XX) e da capital do
Estado, como vemos no discurso a seguir:
Discurso do Dr. Chagas Pinto, no dia 1 de janeiro de 1920, pala
comemoração do primeiro aniversário do Gabinete de Leituras: “Para
proporcionar aos sócios a leitura de jornaes e revistas pedida a assignatura
anunual do jornal do Commercio‟, do „Correio da Manhã‟, Estado de o
Paulo, „Eu sei Tuto e „Fon Fon‟, assignaturas estas que mandei
reproduzir para este anno.
“Alem destes jornaes cujas assignaturas custeamos pelos fundos do
Gabinete, recebemos com regularidade quase todos os jornaes de Fortaleza
e alguns da zona gentilmente remmetidos pelas respectivas redacções(...)
Nossa instituição, apezer (sic) de modesta, esta fadada a prestar relevantes
serviços em prol da instrucção, e porque não dizer, DA MORAL DE
NOSSOS FILHOS”
58
.
O jornal Correio do Norte, além de se lançar como defensor do progresso e da moral,
se manifestava publicamente perante assuntos que diziam respeito também à estética da
cidade. A sua circulação era regional abrangendo toda região noroeste (atual) do Estado e
sendo distribuído para as cidades de Sobral e Camocim principais baluarte do pseudo-
progresso que a cidade estava vivenciando.
Os correspondentes mais frequentes e principalmente os anunciantes, neste momento,
eram destas duas cidades tendo, também, correspondentes da cidade de São Benedito que
representavam os leitores da “Serra Grande”, ou seja, da serra da Ibiapaba. Com muita
freqüência é feito referência ao jornal A Lucta, de Sobral, jornal potico de propriedade de
Deolindo Barreto. Nas manchetes são trocadas manifestações amistosas entre os redatores o
que demonstra tamm o caráter político do Jornal Correio do Norte
59
.
Nesse sentido, embora os proprietários do jornal fossem bem relacionados
politicamente na cidade
60
, sendo alguns mais adiante eleitos representantes no executivo e
58
Idem. p. 01.
59
Em rias ginas, é feito referência à visita de Deolindo Barreto a edição do jornal, bem como da recepção
deste feita na cidade de Sobral, quando os editores para aquela cidade de dirigiam. Também é feito referência a
jornais da cidade de Camocim, e de Granja, com a manifestação de boa sorte para os jornais que são lançados
naquelas cidades, principalmente para o jornal “Coreahu”, da cidade de Granja.
60
Abílio Martins, um dos fundadores do jornal e editor, era Deputado Estadual, sendo considerado por muito
tempo o principal representante político da cidade em Fortaleza, e a quem é dirigido no Jornal Correio do Norte
a responsabilidade por melhorias na cidade, principalmente na aquisição de grandes obras, como a construção do
51
legislativo municipal, vamos perceber as cobranças que eram feitas aos dirigentes poticos e,
ainda, a conclamação para a uno da população em prol do desenvolvimento da cidade.
Segundo a edão do jornal, a responsabilidade pelo embelezamento e formosura da
cidade, o era somente de responsabilidade do prefeito, mas de todos os filhos abastados que
realmente amavam a cidade”. Amar a cidade era ter zelo, responsabilidade e competência
para o gerenciamento da coisa pública e principalmente reconhecerem-se nela.
Daí a percepção de que em vários momentos vão ser dirigidos manifestos em defesa
da cidade e da sua ordem, bem como a demonstração de como ela deveria ser percebida por
outros segmentos sociais, principalmente de outras cidades.
As meretrizes o surgir como a contra-o desta intencionalidade e a expulsão delas
do centro da cidade vai ser reivindicada periodicamente, às vezes, nas entrelinhas das
manchetes, como vamos perceber mais adiante.
Neste sentido, torna-se mais transparente a preocupação para com a imagem da cidade
ligada à de Iracema e as cobranças para que fossem desenvolvidas obras nesta perspectiva vão
ser mais visíveis. Segundo o editorial do Jornal Correio do Norte (e aí vamos perceber que
estas cobranças vão se tornar bem mais freqüentes), a cidade estava passando por grandes
transformações, bem como o Ceará e a cidade de Ipu o poderia deixar passar este momento
de crescimento que estava acontecendo no país.
Segundo os editores,uma nova estrutura estava se concretizando e o Ipu deveria se
preparar para absorver este momento da melhor maneira e se alocar dentro deste processo de
transformação “nos gostos” que tomara conta das principais lideranças das cidades que se
avizinhavam de Ipu e também da capital cearense.
Nesse sentido é lançada toda uma campanha para fazer valer este propósito de
demonstração do progresso” nas páginas do jornal, como vemos no exemplo a seguir:
Voltamos mais uma vez a bater na velha tecla do remodelamento de
nossa cidade.
O Ipú, que em verdadeira justiça é um oásis nestes sertões
ressequidos, deve bater-se pelo soerguimento de seo progresso e
valosisação do seo feracíssimo solo, riqueza imcommensuravel.
Não será um crime deixar-no no dulce formente,(sic) de olhos
fechados ao movimento de impulso que toma todo o paiz? Porque ficamos
de braços cruzados deante da marcha ascendente de outras cidades da zona,
quando podemos acompanhal as? Camocim, Sobral em feliz evolução,
progridem para honra de nosso paiz.
Açude Bonito, na zona rural da cidade, e a abertura da estrada carroçável que liga Ipu à cidade de São Benedito.
Morreu quando era secretário de polícia do Estado, aos 39 anos, no dia 26/09/1923.
52
Um dos melhoramentos que muito valorisaria a nossa cidade, que
levantaria o nosso nome, ao mesmo tempo que emprestaria um novo
aspecto ao Ipú seria a construcção da Avenida, emo boa hora começada.
Não podemos esperar dos minguados recursos financeiros da
Municipalidade, o acabamento da valiosa obra. É aos filhos do Ipú, aos que
se acham afastados de torrão patreo como aos que aqui residem, e todos que
tem por um laço qualquer, preso o coração a essa linda terra de Iracema,
que enviamos o nosso brado em prol de seo desenvolvimento.
Fundemos um comitê para angariar contribuições, trabalhemos,
façamos alguma coisa pela nossa cidade, à qual ficará ligada o nosso nome
de filhos que muito souberam amal-a.
Avante!
61
Este pedido de cooperação estava sendo desenvolvido paralelamente à construção da
Avenida, que já estava iniciada, porém, ao que nos parece, estava paralisada por falta de
verbas. Esta avenida seria parte da representação maior do progresso que a cidade estava
vivenciando, sendo alavancada por um pseudo-progresso existente em todo o país.
Vejamos que Ipu tinha que acompanhar cidades como Camocim, Sobral, em feliz
evolução, (que) progridem para honra de nosso paiz. O progresso era “visível” nestas
cidades, como o era em São Benedito, pois lá, existia um mercado público feito com
armação de ferro, mbolo da presença deste progresso.
É DEVER de consciência nosso, como de todos que sinceramente
amam o Ipú batermo-nos pelo progresso local e sobretudo pela esthetica da
cidade. Bem sabemos como lucta o poder municipal com a exigüidade de
verba orçamentária para acudir a todos os serviços a seo cargo, entretanto,
não podemos esquecer im instante que a bos esthetica da cidade influi
demasiado para o progresso local attrahindo sempre novos elementos e
demonsyrando o zelo de seos administradores, a marcha ascendente de seo
desenvolvimento.
A Avenida, ora em construcção, verdadeiro jardim posto aos olhos
dos que vêm de fora, quando estiver prompta, não será somente o encanto
dos que aqui habitam, attrahirá, convidara ao viajente que passa e nelle fará
um amigo de nossa cidade, um admirador de nossa civilização.
Quando porém o olhar prescutador e curioso do recem-vindo,
penetrar mais longe, lastimará que não se tenha tomado providencias para
fazer de nosso Mercado Publico, um visinho digno da nossa magestosa
Avenida. É que o nosso Mercado confessamol-o com pezar, ainda obedece
aos velhos planos rotineiros. Aqui muito perto, em S. Benedicto, a boa
vontade de uma municipalidade pobre, levantou aquele collosso de ferro,
aceiado, confortável, bonito mesmo, que é o Mercado Sambenadictense.
Aquellas toneladas de ferro, relativamente caras, foram, penosamente
transportadas ladeira acima, em costas de animaes e hoje levanta-se em um
edifício que é o attestado vivo de quanto vale o Querer
62
.
61
CORREIO DO NORTE. Avenida Ipuense. Ipu Ceará. 15/09/1921. Ano IV, nº 188. p. 01.
62
CORREIO DO NORTE. A Nossa Cidade. Ipu Ceará. 24/03/1921. Ano IV, nº 163. p. 01.
53
Percebe-se que toda esta manifestação pela adoção de provincias para o término da
construção da avenida obedecia uma tendência externa. A cidade estava sendo orientada pelo
desenvolvimento de outras cidades, numa comparação de quem pode ou não se desenvolver,
crescer em suas edificações e afinal, nesta fase do processo de amadurecimento da idéia de
término da construção da praça, como vemos, vale o Querer e este querer soa como um
ultimato para a população que ama a cidade.
O gosto pela avenida é lançado como uma palavra de ordem nas páginas do jornal,
como uma “febre nacional e sendo o Ipu uma cidade em efervescente crescimento, como eles
acreditavam, não poderia estar atrás das suas co-irmãs vizinhas, nem tampouco da rede
nacional. Vejamos:
Esta se desenvolvendo no interior d‟este Estado o gosto pelas
Avenidas. Rara á a cidade, a villa que não possua uma avenida e em
algumas localidades a avenida constitue uma dependência da Igreja Matriz.
Mas nem todas essas avenidas merecem tal nome; o passeios, alguns em
quadrangulo, oval, etc. Avenida é um caminho direito ordinariamente
orlado de arvores (...).
Falta somente que os ipuenses tomem gosto por este melhoramento
de sua terra. Com boa vontade e pequeno esforço, brevemente estará
concluída a nossa avenida, que já tem nome de “Avenida Sá Roriz”
63
.
Com estas cobranças em blico, o “gosto pela avenida vai se formando (ao menos
esta fora a justificativa) e a mesma vai tomando projeção, muito embora, paralela a ela, várias
intenções sejam ocultadas. “Avenida Sá Roriz”, seria o nome defendido pelo autor da matéria,
o sendo identificada a autoria da mesma, porém, poderia abrir um parêntese neste sentido,
demonstrando que este nome não teria a aceitação daqueles que faziam a construção editorial
do jornal, pois é bem explícito a vontade de homenagear e criar a imagem de Iracema como
centro da representação da cidade.
Além da construção da praça, que estaria dentro do processo de progresso”
evidenciado em outras cidades, esta também deveria ser a complementação de um projeto de
construção de um imaginário mitológico de fundação da cidade.
Enquanto parte da população estava preocupada com estas transformações do espaço,
com o embelezamento, com a estética e com a forma de demonstração do progresso, a cidade
vai sofrendo suas variações. A avenida tinha intenção de concretização, os recursos
63
CORREIO DO NORTE. A Nossa Cidade. Ipu Ceará. 12/10/1921. Ano IV, nº 192. p. 01.
54
estavam sendo canalizados e a população restante, ficando a mercê das intenções da classe
dirigente.
O jornal Correio do Norte era feito pela alta sociedade ipuense, para deleite dela
própria, pois em páginas aleatórias do jornal fica demonstrado por eles que grande era o grau
de analfabetismo da população ipuense, sendo incluído também, parte dos coronéis que
apoiavam determinados empreendimentos que eram lançados por esta mesma sociedade.
EM torno do movimento, que actualmente se consolida em prol do
melhoramento do Ipú, já hoje podemos com grande prazer, noticiar alguns
factos.
Reuniu-se a 13 do andante, em casa de residência do Dr. Apollônio
de Barros , D. juiz de Direito da comarca, a comissão inicial da futura
Cooperativa Ipuense (...)
A commissão composta dos Drs. Appolonio de Barros, João
Esberard Beltrão, Chagas Pinto, Cels. José Aragão, Prefeito Municipal,
Thomaz Correa e Joaquim Lima ficou logo incubida da confeccção dos
Estatutos.
Todo o elemento representativo local esta interessado no êxito da
tentativa, que tem portanto a máxima probabilidade de triumpho.
Sobre a construcção da Avenida já podemos adiantar que esta quase
completa a sua arborização composta de Mongubeiras, Mangueiras e Fícus,
Benjamin, para o que se tem disvelado o nosso querido companheiro Cel.
Thomaz Correa. O illustre ipuense Auton Aragão, da firma Barbosa, Aragão
& Cia, prometteo um donativo de alto valor para o embellesamento da
Avenida, constando-no que será, o coreto central de cimento armado
64
.
“Atendendo a chamado”, Auton Aragão promete grande cifra em dinheiro para a
construção da avenida, sendo o mesmo, genro de Thomaz Correa e comerciante na cidade de
Crateús, lá chegando ao comando do poder executivo. O Dr. Appolônio de Barros, am de
juiz de direito na cidade era maestro da Euterpe Ipuense, ou seja, da banda de música que fora
adquirida em contraponto pelos integrantes do Gabinete de Leituras.
Paralelo a estas pressões nos jornais, Abílio Martins, deputado estadual, lança um
poema aos seus pares, pressionando aqueles colegas que não acreditavam na construção da
avenida, que como veremos, não receberá o nome de Sá Roriz, mas Avenida da Iracema, fruto
de um imaginário que vai ser trabalhado na população elitista, como observamos.
Caríssimo Thomaz
Acabo de saber
Com extranho (sic) desprazer
Que o Chagas e o João Bessa (...)
Afirmaram que a Avenida
64
CORREIO DO NORTE. Ipu Ceará. 21/04/1921. Ano IV, nº 166. p. 01.
55
Por você sugerida
Coitada, não se faz.
Mas, na verdade eu lhe digo:
Pode contar comigo (...)
O prefeito, a mim me disse
Que avenida era tolice
Que estava morta a Avenida
Quando eu penso que o Prefeito
Se quisesse dava um jeito...
O Auton seu genro, me disse
Que ninguém mais lhe pedisse
Concurso pra coisas tais
E que a Avenida não ia...
Ah. Thomaz, mostre energia
Mostre que é sogro, Thomaz.
Nesta terra há muita gente,
Que vive a rir, pela frente
E faz caretas, por trás...
Na frente, cara fingida,
Por trás, pau na Avenida...
Isso é lá gente. Thomaz?...
65
Junto a toda esta intencionalidade, a cidade vai se modelando a partir de uma nova
ordem, obedecendo a uma estrutura social e de interesses. Thomaz Correa era o maior
entusiasta da construção da avenida e do desejo de ver Iracema como ícone maior da
representação da cidade.
Esta intencionalidade tivera sido manifestada em 1896 quando o mesmo inaugurou
sua farmácia no centro da cidade, dando à mesma o nome de Pharmácia Iracema. A partir
deste momento, vez por outra, ele vai manifestar a sua admiração por este personagem de
Alencar e lançar como verdadeiro a questão do mito.
Ao redor de Thomaz vai ser articulado todo um processo social na cidade, pois além
de pertencer à família de tradicional importância nos meios poticos, comerciais e sociais, a
sua prole vai se relacionar com os meios de prestigio potico e comercial e assim, como
vemos na cobrança feita pelo deputado Abílio Martins, o parentesco deve ser posto em
primeira medida e não seria admitido que um genro se colocasse contrário a um interesse que
de certa forma seria particular a ele, Thomaz.
Não podemos esquecer que o mesmo Auton Aragão, em reunião fechada no espaço do
Gabinete de Leituras, tinha se disposto a doar um donativo de alto valor para o
65
MARTINS, Abílio. A Avenida do Ipu. Apud, MELLO, Maria Valdemira Coelho. O Ipu em Três Épocas.
Fortaleza: Popular Editora LTDA, 1986. p.49-50
56
embellesamento da Avenid, e que esta intenção tinha sido veiculada no jornal Correio do
Norte, expressão maior dos interesses da população ipuense, como diziam os seus
proprietários.
Uma afronta dessas seria de causar estranheza a todos os interessados na construção da
avenida e assim, como era de costume existirem pilherias no que concerne aos interesses da
sociedade ipuense, que utilizava de todas as formas possíveis para alcançar seus objetivos,
lançar um poema afrontando um dos patrocinadores” da construção da avenida e ainda, em
contrapartida, chamando o “líder maior” para tomar uma atitude perante esta afronta, seria
uma maneira de ver concretizada a construção de tão grandioso empreendimento local, que
seria a representação maior do progresso que a cidade estava vivenciando.
“Afirmaram que a Avenida / Por você sugerida / Coitada, não se faz. / Mas, na
verdade eu lhe digo: / Pode contar comigo”. Como vemos, o fica a dúvida de quem seria o
protagonista maior da construção da avenida, ou seja, Thomaz Correa. Abílio Martins já nesta
época era deputado estadual e tinha toda uma conjuntura política e econômica favorável para
ajudar na construção da referida praça.
Ao mesmo tempo em que faz uma cobrança por respeitoà família e ao sogro, se
coloca também à disposição para ajudar na efetivação da praça de Iracema. Como já
dissemos, Thomas tinha uma admiração por Iracema e não media esforços para elevar seu
nome e colocá-la(Iracema), juntamente com seu grupo, em local de representação da/na
cidade.
Em todos os momentos pertinentes, o mesmo o deixava de cantar a doçura” de
Iracema, ou o seu poder de sedução e a sua própria paixão por aquela que deveria ser o ícone
maior da cidade, a representação de seu povo, aquela que “misturou seu sangue com o
europeu branco e deu origem à nossa população ipuense”.
Como podemos perceber, Thomaz não aceitava de certa forma a maneira como os
ipuenses tratavam suas origens e ele, autodidata, poliglota, conhecedor da manipulação das
ervas, enfim, um sujeito à frente de seu tempo, com um ciclo de amizades bem definido e
ainda, com parentesco de prestígio e renome, fazendo assim circular em sua volta a melhor
sociedade” da terra, não desperdiçava em momento algum a oportunidade de manifestar seu
encantamento pela Índia. Vejamos:
Da canela gentil
Roubaste a bela cor
P‟ra teu colo grácil,
Oh! Minha linda flor.
57
Teus lábios de coral
De volúpia e amor,
Formam puros ideais,
Verdadeiro primor.
Que beleza pôs Deus
Nos meigos risos teus,
Nos olhos tão gentis.
Na boca de carmim
Um beijo, ai de mim!
Far-me-ia ser feliz
66
.
Ponto que merece destaque na configuração do grupo que formava os pantes da
sociedade ipuense, seria a explícita manifestação de romper com o passado, ou seja, com a
forma como a cidade era mostrada nos jornais e revistas anteriores à introdução das
agremiações na cidade.
Segundo a visão de parte da sociedade, era hora de modificar este “imaginário”, pois a
cidade de Ipu agora era formada por pessoas “cultas”, formadas, com anéis nos dedos e que
junto a isso, teria conseguido unir e apaziguar” setores que até então o comungavam com
esta nova forma de viver, baseada no progresso e que não aceitava determinados
posicionamentos considerados “bárbaros”, indignos para um povo que preservava a cultura e
as raízes, e assim, o grupo se posicionava: guardião da moral e dos bons costumes, se não, da
própria cidade.
A cidade era descrita no seu desenvolvimento como uma cidade sem lei e isso
perturbava a nova sociedade, principalmente porque muitos daqueles que agora faziam parte
da nova organização eram descendentes diretos daqueles anteriormente descritos como
subversivos e nocivos para esta sociedade, ou seja, toda uma nova conjuntura deveria ser
trabalhada e a índia Iracema se mostra como peça fundamental desse novo empreendimento,
principalmente na visão de Thomaz Correa, como vamos percebendo. Vejamos o que nos diz
Bezerra, quando relata que:
Eram por demais turbulentos (...) [e] sanguinários os primeiros
povoadores desta parte da província (área da matriz de o Gonçalo da
Serra dos Côcos), (...) os homens mais influentes (...) percorriam com
bandos armados da serra ao vale e do vale à serra, decidindo de tudo [na]
66
CORRÊA, Thomaz de Aquino. Uma Ipuense Chamada Iracema. Jornal Gazeta do Sertão. Ipu, 13/02/1901,
transcrito por Souza em: SOUZA, Eusébio de. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. (Chronica do Ipu).
1915. p. 230. Arquivo pessoal do Professor Francisco de Assis Martins (Profº Melo). Sobre Thomaz, podemos
dizer que, autodidata, além de poeta, era farmacêutico (manipulador de ervas), e falava francês fluentemente,
fazendo parte da instauração e desenvolvimento das principais agremiações artísticas, instituídas na cidade a
partir de 1894.
58
(...) lógica do bacamarte. Esses facínoras traziam em sobressalto Tamboril e
(...) Príncipe Imperial (Crateús), Independência, Boa Viagem, Pedra Branca,
Santa Quitéria e Ipu
67
.
Bezerra fez suas anotações no final do século XIX e a imagem que lançou para os seus
leitores fora a de que na região, hoje conhecida como noroeste
68
do Estado,incluíndo o Ipu, a
“barbárie” dominava de forma explícita, demonstrando estes recantos como cidades sem lei”.
Macedo
69
também vem corroborar com este pensamento, o que vai tornar seu livro
considerado “maldito” pela população considerada da sociedade ipuense, principalmente a
partir da segunda metade do século XX.
Podemos considerar o divisor temporal da cidade entre o antes e o depois da
“barbárie” na visão elitista, com a inauguração da estrada de ferro, pois os discursos que são
propostos (na inauguração e no seu cinqüentenário) são direcionados neste sentido. Vejamos:
Mais longe sobre as rnas do tugurio, onde a penuria esconde
esconde (sic) a sua vergonha, eleverr-se á casa onde o trabalho traz a lume a
sua bastança; as urzes e os cardos, que vicejam ali, vão servir de estrume a
novas sementeiras; o trogloyta (sic) renunciará a caverna para entrar no
convívio social, o recoveiro lugar ao maquinista, o lavrador de enchada
ao hombro, disputa ás ras o domínio das selvas, e finalmente o próprio
homem renovar-se-á na corrente das idéas novas que ha de revolver o
ambiente, elevando os costumes, esclaricendo os espíritos e fortificando os
caractéres
70
.
Como disse anteriormente, podemos perceber que é introduzido uma manifestação de
separação de peodos- o antes e o depois da estrada de ferro. O homem deveria revolver o
67
MENESES, Antonio Bezerra de. Notas de Viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Cea, 1965, p. 205.
68
Regionalização proposta pelo IBGE. A região onde se localiza atualmente a cidade de Ipu está inserida na
Região Administrativa 5.
69
MACEDO, Nertan, O Bacamarte dos Mourões. Fortaleza, Ed. Editora Instituto do Ceará, 1966. Em seu
livro, Macedo define clã, segundo Hugo Catunda, como “grande família casando quase sempre na família ou em
famílias aparentadas, guardando sempre a ufania do nome”, e a partir daí, o mesmo vai desenvolver o trabalho de
formação dos clãs cearenses, que segundo ele, vai ser originado com Antonio da Silva Mourão, chegando ao
Ceará, oriundo de Pernambuco entre os anos 1750 e 1777, no reinado de Dom JoI. A partir daí, vai ser
constituída toda uma trajetória de derramamento de sangue entre famílias, principalmente por conta das partilhas
de terras. Estes clãs vão ser originados em Crateús (antiga Príncipe Imperial) e se espalharam por todo o Estado,
chegando à cidade de Ipu, onde serão desencadeados vários confrontos entre as famílias e o aparelho repressor
do Estado. Seu livro, O Bacamarte dos Mourões, por conter em um de seus artigos, o início da genealogia da
família Corrêa (família tradicional da cidade, e que desde o início do século XX, participava de todas as
agremiações instituídas), descendentes direto do Padre Corrêa, foi considerado “perigoso para a cidade, e a
primeira edição, comprada pela família e eliminada das prateleiras. Na segunda edição, alguns foram excluídos
da destruição, chegando à cidade de Ipu, alguns poucos exemplares a pouco mais de seis anos, encontrados
empoeirados num sebo na cidade do Rio de Janeiro, passaram a ter domínio público. Os poucos existentes à
venda, tornaram-se “obras raras”, vendidos a preços exorbitantes.
70
Discurso proferido por ocasião da inauguração da Estação ferroviária de Ipu, pelo Dr. Antonio Ibiapina
(administrador da estrada de ferro) em 10 de outubro 1894; pertencente ao acervo particular da senhora Socorro
Paz.
59
ambiente introduzindo novos costumes, novas formas de vida, manifestações estas que seriam
reguladas pelo próprio vai e vem do trem, ou seja, o horário, os costumes, os espaços ou
delimitação destes e o próprio tempo seriam uma representação da forma de vida a partir da
existência do trem na cidade de Ipu.
Como se deu todo este processo?
1.4. Vivendo em sociedade. Conflitos e interesses
No dia 04/10/1894 é inaugurada a estação ferroviária da cidade de Ipu, imponente, se
diferenciando em sua arquitetura de todas as cidades vizinhas, com aparência apenas para a de
Sobral, Camocim e Crateús, coincidência ou não, as principais cidades em potencial
econômico da região, no início do século XX. Assim, passa a circular o discurso explorado
pela sociedade, demonstrando uma cidade progressiva”, que o poderia mais aceitar
determinados procedimentos existentes, enfim, uma “nova era” deveria ser inaugurada,
juntamente com a estação ferroviária. Vejamos:
No dia em que se inaugura a estação de Ipú, vós, oh cidadãos
ipuenses, deveis empenhar ao progresso a vossa atividade de tal sorte que
(...) o sibilo da locomotiva lembrando-vos que não tendes direito a
ociosidade, e sim obrigação ao trabalho (...)
71
O não direito à ociosidade, mas a obrigação ao trabalho pode ser traduzida também
como uma “nova ordem a ser estabelecida”. Os valores da cidade deveriam ser, a partir dali,
modificados juntamente com a transformação que a chegada do trem proporcionava.
Este discurso, proferido pelo Dr. Ibiapina, vai ser entendido pela sociedade da cidade
como uma palavra de ordem a ser cumprida, como veremos nos jornais que passarão a
circular já em 1913, como o Gazeta do Sertão e demais a partir de 1917, como o Jornal
Correio do Norte, que circulou semanalmente entre 1917 e 1924; Jornal O Bezouro do ano
1919; Jornal O Barbicacho de 1919 a 1920; Jornal A Espora, de 1919; Jornal O Chicote de
1919; Jornal A Futrica de 1921; ainda o livreto de cordel intitulado: Suplemento, ou adenda
71
Parte do discurso proferido por ocasião da inauguração da Estação ferroviária de Ipu, pelo Dr. Antonio
Ibiapina (administrador da estrada de ferro) em 10 de outubro 1894, e relido no cinqüentenário da mesma, em 10
de outubro de 1944, pelo então prefeito de Ipu Humberto Aragão; pertencente ao acervo particular da senhora
Socorro Paz.
60
aos excertos sobre a História do Ipu, de autoria do advogado (rábula) Augusto Passos,
publicado em 1951, que faz uma pequena análise da cidade a partir do ano de 1894
72
.
Iracema, esta cantada em versos nos jornais daria uma nova “identidade” ao povo
ipuense, pois conferia na sua existência” a fusão entre o nativo, e a raça européia, o que de
certa forma, também dava simbologia européia aos habitantes da cidade ipuense, título de
nobreza”, como bem vem dizer Ribeiro:
A busca das raízes obedece a interesses e anseios nitidamente
distintos daqueles que presidem à caça do exemplo inspirador. (...) A
legitimidade é, em última análise, um dos traços quase essenciais de todo
pensamento voltado para as raízes, e aí está seu problema, porque, com
raras exceções (a legitimação pelo povo), o pensamento da legitimidade é
conservador (...).
A índia tem os traços que habitualmente se conferem à mulher, no
pensamento que distingue os valores conforme os sexos (ou gêneros), é
fecunda, é espontânea, é verdadeira, é doce.
73
A índia Iracema se torna então o marco perfeito para a identidade de Ipu, na visão da
sociedade que começa a apregoar a sua existência como real nas matas da cidade. A praça,
rios poemas e estabelecimentos comerciais, passam a receber o seu nome dando
visibilidade aos que não conheciam a “história da virgem dos lábios de mel”, que andava nos
quatro cantos da cidade. A mulher doce se contrapunha com o homem bruto, com armas na
o, pronto para desferir golpes violentos naqueles que se opusessem aos seus interesses.
Juntamente com a estrada de ferro, vamos ver aparecer na cidade rias agremiações e
formas de vida até então desconhecidas do povo do início do século na cidade de Ipu. Juristas
e escritores consagrados em vel estadual e nacional, como Leonardo Mota e Eusébio de
Souza, em Ipu passam a desempenhar suas atividades, dando novo enfoque cultural para a
sociedade aqui existente, ciclo ao qual passam a pertencer rapidamente como já foi dito
anteriormente.
A fundação dos jornais da cidade tem as suas influências e direção, como o Gazeta do
Sertão (1913) com direção de Leonardo Mota e o Correio do Norte (1917) com organização
de Leonardo Mota e Eusébio de Souza. As agremiações criadas passam por seus crivos,
introduzindo aí a pessoa do influente potico ipuense, Abílio Martins; todos se unindo a
72
Teremos maior análise destes jornais no decorrer da pesquisa.
73
RIBEIRO, Renato Janine. Iracema ou a Fundação do Brasil IN.: FREITAS, Marcos Cezar (org),
Historiografia brasileira em perspectiva. ed. São Paulo: Contexto, 2000. p. 408
61
Joaquim Lima
74
, entre outros, começam a “manipular” os principais segmentos e a política da
cidade.
Leonardo Mota, filho de Pedra Branca (...) após deixar o seminário
(...) funda um pequeno mas movimentado colégio na cidade do Ipu, e cujo
nome de batismo foi José de Alencar. Ensinando francês, o jovem Leonardo
Mota de logo conquistou as simpatias de uma geração de ilustres ipuenses,
ávidos de saber e presos às delícias do mundo literário.
Dia vai, dia vem, formou-se definitivamente um grupo de jovens.
Fizeram assinaturas de boas revistas e de bons jornais, impressos no Rio,
que vinham ter no ipu três e quatro meses depois de editados. (...) desse
grupo faziam parte, entre outros, Abílio Martins, e Euzébio de Souza
75
.
Este grupo a que se refere “seu” Mozinho, onde de certa forma fizemos alusão
percebe determinados costumes na cidade que os mesmos consideram impróprios para a nova
ordem estabelecida.
Que a cidade estava em transformação era público e notório, mas o que não se pode
deixar de perceber, era que ainda tínhamos uma economia quase que exclusivamente agrária e
a maior parte da população, ou seja, cerca de ¾ dela, se situavam na zona rural da cidade e,
aqueles que trabalhavam atividades comerciais, na sua grande maioria, eram os que se
agrupavam em agremiações, se unindo a juristas ou altos funcionários blicos da época que
acreditavam serem os responsáveis pelo comando político, social e econômico de toda a
cidade.
Esta cidade, com uma zona urbana constitda em torno de cinco mil pessoas,
estas,por sinal,mal distribuídas em quatro bairros segundo os escritores da época, já vai contar
74
Joaquim de Oliveira Lima, era irmão do pároco da cidade, Monsenhor Gonçalo de Oliveira Lima, sendo
importante comerciante do ramo de ferragens, que assume a presidência das principais agremiações criadas,
como O Grêmio Recreativo Sociedade Dançante, o Gabinete de Leitura Ipuense (1918), a Associação
Commercial de Ipu (1922), mais tarde (1926) O Jardim Iracema, O Banco Rural de Ipu (1929), entre outras e a
partir de 1930, passa a ser o Interventor municipal da cidade, com o golpe de Estado de Getúlio Vargas, indicado
por Menezes Pimentel, deixando o cargo em 1934, acusado de desvios de verbas do Campo de Concentração de
Ipu, criado para aglomerar em um único local, retirantes da seca de 1932, chegando este campo a deter cerca de
20 000 pessoas, segundo alguns escritores, muito embora este número não seja preciso e que não raro, eram
utilizadas nos serviços públicos da cidade, construindo a cadeia pública, calçamentos, barragens, entre outras
coisas. Sobre esta questão, VER: ARAÚJO, Raimundo Alves de. O campo de concentração de Ipu, 1932.
Monografia de graduação pela Universidade Estadual Vale do Acaraú, UEVA, Sobral, 2003. Mimeo.
75
SILVA, João Mozart da. Ipu do meu xodó: Memórias. Fortaleza: Nacional, 2005. p. 29. João Mozart, nasceu
em 29/08/1901 e faleceu em 27 de agosto de 1990. Em 1926, seu “Mouzinho” inaugurou a primeira tipografia da
cidade de Ipu, chamada “Tipografia Ipu”, onde eram confeccionados os trabalhos e jornais para a cidade. Fez
parte dos ciclos da “elite”, conhecendo pessoalmente todos os citados aqui. Depois de sua morte, em 1990, seus
filhos, hoje proprietários da Editora Nacional em Fortaleza, remexendo em seus arquivos, encontraram várias
anotações feitas à mão pelo pai, onde no final, pedia que seus filhos publicassem as a sua morte, o que
aconteceu. Segundo Luciano de Paiva, prefaciador do livro, nenhuma alteração fora feita nos escritos, sendo
respeitado a originalidade de Mouzinho, onde o mesmo deixava claro, a necessidade desta observância, pois o
livro era de memórias, e como tal deveria ser respeitado.
62
com uma farmácia, uma avenida, uma projeção de praça, entre outras coisas, todas com o
nome da índia Iracema e ainda, um colégio nos moldes progressistas”, onde se ensinava
inclusive a língua francesa, com o nome de José de Alencar, ou seja, toda uma formação
imaginária em torno de um “mito”, criado ou não, conforme as declarações da época e que
todo este progresso”, vai ter como ponto central e originário a estação ferroviária.
E como vamos observar, discorrendo sobre este ponto nos capítulos seguintes, esta
estação ferroviária vai ser o ponto de encontro das classes marginalizadas” com a sociedade
e isso não poderia ser concebido dentro de uma sociedade dita moderna.
Muito temos louvado o gesto nobre do digno Te. Pinheiro fazendo
retirar as cotrovias do nosso mercado, pois aquillo constituía o que ha de
mais vergonhoso para nossa terra.
Acreditamos, porem, que o distincto official não é tá informado que na
Estação a freqüência d‟ellas na hora de chegada e partida do trem é ainda
maior que no mercado.
Muitas vezes ellas sem conhecerem o lugar que merecem vem
colocar-se juncto as famílias que alli esperam a alguém.
Se o ilustre oficial achar que temos razão ahí fica a informação.
76
Desse modo,faz-se necessário voltar uma atenção mais especifica para a condição
deste jornal. Ora, quem o fazia e quem o lia, eram as mesmas pessoas que desenvolviam o
processo de editoração, distribuição e fechamento do Jornal Correio do Norte, mas que neste
caso era produzido de forma anônima, como paralelo do jornal oficial Correio do Norte.
Inclusive a própria gráfica era a mesma e numa cidade de poucos leitores, este jornal
circulava internamente diferente do Correio do Norte que abrangia toda esta zona.
Assim, temos a convicção de que, a questão moralidade da cidade ou guarda desta,
defendida pelo Correio do Norte em vários de seus editoriais, vai ser trabalhada da melhor
forma por estes paralelos, jornais pilhéricos que mesmo defendendo a ordem e a moral
chegavam a atacar diretamente pessoas que freqüentavam os ciclos sociais da “melhor
qualidade” e que eram denominados a melhor sociedade.
Retirar as meretrizes do centro da cidade era considerado um ato digno de referência
em um jornal, ato de responsabilidade pública por parte de um oficial, chefe maior da Força
Pública, que mantinha contato direto tamm com esta mesma sociedade que o estava
elogiando. Mas fazendo um paralelo entre os jornais, vejamos o que o Jornal Correio do Norte
vai discorrer sobre o mesmo fato:
76
O BARBICACHO, Anno I, 15/02/1920. Nº IV. P. 02
63
Dentre as accertadas medidas policiaes que há tomado o nosso
distincto delegado especial Tenente Raymundo Pinheiro, nenhuma mereceu
tantos louvores como a que ultimamente poz em pratica, prohibindo
reuniões de prostitutas em o nosso mercado (...) O modo de agir ao Tenente
Pinheiro neste particular é digno de app’ausos de todos os ipuenses visto
com extinguia um foco de imundices que constituía uma nodoa para a nossa
civilização e até um insulto á nossa dignidade
77
.
Podemos perceber claramente que o que distancia a publicação de uma matéria em
relação à outra são apenas três dias e que a do Jornal Correio do Norte é uma matéria mais de
louvor à atitude do oficial. Já a do paralelo Barbicacho além de fazê-lo vai dar uma clara
manifestação de cobrança, demonstrando ao mesmo oficial que as mesmas estão fugindo as
regras da sua determinação e saindo para o lado considerado de maior fineza para a cidade, no
caso a estação ferroviária.
Interessante perceber que esta mesma sociedade deixa transparecer explicitamente que
o mercado público de Ipu também é considerado um local “sujo”, que precisa ser higienizado
pelo poder público, o que vai fazer com que haja toda uma cobrança por parte dos mesmos
para com as autoridades, para que o local fosse reformado e existisse ainda, um processo de
conscientização para com aqueles que freqüentavam este espaço da cidade, principalmente
para a sociedade.
Retirar as meretrizes do mercado poderia ser considerado o primeiro passo para esta
higienização e o oficial estava servindo de canal para a concretização deste empreendimento.
Fazer uma Ipú irreprehonsivelmente bella e indiscutivelmente sadia
é não somente trabalhar pelo engrandecimento de nossa cidade, mas
principalmente valorisar o nosso próprio patrimônio e justificar a verdade
dos que habitam neste Jardim do Nortecearense.
Transferir o caduco e desconchavado predio municipal onde estão a
Cadeia e a Câmara, erigir um templo mo
derno e magestoso, concertar o Velho Mercado Ipuense,
applicando-lhe os processos de hygiene consentâneos, o três marcos que
iniciarão a nova phase de prosperidade de nossa cidade, onde existem
bellos prédios e bonitos largos
78
.
Assim, para concluir o raciocínio, lançamos o olhar para a preocupação que esta
sociedade fechada estava lançando no que se refere à estética da cidade e como o jornal ou os
integrantes dele, que como disse, freqüentavam todas as agremiações, se mostravam como
defensores dos rumos que a cidade vai tomar.
77
CORREIO DO NORTE 12/02/1920. Ano III. Nº 107. p. 01 (Editorial).
78
CORREIO DO NORTE. 31/03/1921. Ano IV, nº 164. p. 01
64
Podemos dizer com propriedade, que a partir da formão destes grupos a
representação potica que vai se configurar na cidade, vai ser retirada destes membros, em
maior escala, principalmente depois dos anos 30, como veremos na análise das
transformações dos espaços da cidade com uma visão a partir do meretrício ipuense.
O que poderia ser considerado belo era o que estava dentro dos moldes progressista,
principalmente com a influência francesa. Daí surgir na cidade já neste período e a partir dele,
principalmente no Gabinete de Leituras, livros nesta língua e personagens elitistas da cidade
que falavam fluentemente o francês, como no caso de Thomaz Correa e o surgimento de uma
avenida no maior bairro da cidade - a Boulevard Sebastião Carlos, no Alto dos Quatorze -
muito embora neste momento não fosse o mais importante..
Tirar as meretrizes do mercado blico que era considerado anti-higiênico e
antiestético, mas central como demonstramos, e ainda, evidentemente, não aceitar que as
mesmas freqüentassem as partes mais nobres da cidade, que seria a estação e a Praça de
Iracema, faria com que de certa forma, uma nova ordem espacial fosse estabelecida, pois
vejamos, a cidade era propícia para o desenvolvimento das práticas sexuais consideradas
marginalizadas, pois na praça da estação havia um contingente inesgotável de transeuntes
temporários, principalmente aqueles que tinham a cidade de Ipu como um lugar de passagem.
Não se pode deixar de mencionar a própria masculinidade que para também seguia ou
chegava nos vagões dos trens e a sociedade teria classificado estas práticas (sexuais) como
tal, pois trabalhava uma sociedade perfeita.
Assim, mais uma vez vai entrar em choque o jogo de intenções: a população (ou parte
dela) querendo expulsar as meretrizes do centro da cidade e estas,por sua vez, querendo
desempenhar o seu oficio na cidade, utilizando as necessidades que os homens desta gleba (ou
o) tinham, que seria o prazer sexual, se colocarmos por esta vertente.
Vejamos o que diz Foucault:
Se for mesmo preciso dar lugar às sexualidades ilegítimas, que vão
incomodar em outro lugar, que incomodem onde possam ser reinscritas
senão nos circuitos de produção, pelo menos nos do lucro
79
.
Assim, vamos perceber entrar em cena na zona urbana de Ipu a formação de um novo
bairro diferente dos demais e que vai ter a peculiaridade de ser formado a partir da expulsão
das meretrizes do centro da cidade as quais se alocariam na parte mais distante do centro, em
79
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal. 16° Ed. 1988,
p. 10.
65
direção à cidade de Sobral, nas proximidades do matadouro público, ou seja, para longe da
sociedade central, onde os marginalizados se achariam na parte “suja” da referida cidade,
local este que se confundiria com a própria forma de vida das meretrizes e estas assim, mesmo
que de forma forçada e controlada, poderiam desempenhar seus ofícios, muito embora tendo
que se refugiar em um espaço formal, reservado, o que dificultaria o processo de sedução
delas para com seus clientes.
As meretrizes não poderiam mais seduzir na praça da estação, mas apenas esperar por
aqueles que se dispusessem a se deslocar para onde as mesmas se achavam. As tramas
começam a ser desenvolvidas de ambas as partes, tanto da sociedade como das meretrizes.
Eles querendo controlar, elas querendo existir. A “guerra” estava declarada.
66
CAPÍTULO 2
A mulherblica e o controle dos usos e (des)usos sexuais: Ipu, uma cidade vigiada
A indignação moral que a “boa sociedade” manifesta em relação à
prostituição é, sob muitos aspectos, matéria de ceticismo. Como se a
prostituição não fosse a conseqüência inaceitável de um estado de coisas
que essa „boa sociedade‟, justamente impõe ao conjunto da população!
Como se fosse a vontade absolutamente livre das mulheres prostituir-se,
como se fosse diversão para ela
80
.
Levando-se em consideração a formação de um meretcio ou a existência das devidas
práticas do sexo considerado “não sadio”, em um determinado local pré-concebido ou aceito,
nas imediações ou dentro de uma cidade, em nosso caso a progressista Ipu”
81
, ingenuidade
seria acreditar que este espaço o passasse a ser guarnecido, observado, vigiado, enfim, que
o houvesse a exisncia de uma intencionalidade de fazer deste local, a representação da
manifestação do controle dos modos e da vida em sociedade, por parte de grupos
controladores”, que circulavam por diferentes segmentos sociais, principalmente aqueles aos
quais se davam condição de mando sejam nos campos econômicos, poticos, ou mesmo
religiosos.
Assim, por que a aceitação” de um meretrício em Ipu, como vemos, mesmo que
observado, se esta sociedade não concebia com bons olhos” esta prática por parte de alguns
integrantes da comunidade? Se nos ativermos à concepção de Simmel, a ênfase maior seria a
manifestação de uma culpa social, ou seja, o meretrício ou as meretrizes seriam nada mais que
a complementação de uma vida em sociedade, pois a “boa sociedade” seria a formadora desta
condição social por parte de algumas mulheres.
Embora fosse considerada subversiva, a sociedade necessitava da existência destes
espaços e destas mulheres, uma vez que o exercício do dever” das meretrizes fazia com que a
sociedade considerada das “mulheres puras e que pertenciam aos “quadros de famílias
socialmente organizadas, continuassem nestas condições até o casamento
82
e mais ainda,
como frisa Simmel, muitas destas mulheres carregavam na sua história a angústia de terem
sido molestadas sexualmente em sua infância ou adolescência, por integrantes desta sociedade
conservadora dos costumes”, principalmente pelos filhos destes, que utilizavam da promessa
80
SIMMEL, George. Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 01
81
Esta concepção de progresso vai demarcar os conceitos trabalhados nos jornais do início do século XX,
principalmente o Correio do Norte, manifestando o pensamento daqueles que o editavam, como fica explícito na
maioria dos editoriais, quando os mesmos se intitulam “guardiões da moral e do progresso da cidade.
82
Sobre este ponto, aprofundaremos mais no terceiro capítulo.
67
de um casamento futuro e que a partir do ato sexual se distanciavam destas “infelizes” que
passavam então a pertencer a outro quadro na sociedade, o das “mulheres perdidas”.
Assim, podemos perceber que,nestas condições, esta sociedade também teria
consciência desta sua situação de vilã e daí ter mais um motivo para tolerar estes atos na
cidade, uma vez que ela também fora geradora desta situação de vida pela qual as meretrizes
estavam trilhando,quando adentravam no ambiente do meretrício passando a figurar como
“mulheres do prazer”. Estas novas iniciadas, na maioria das vezes procuravam outras cidades
para desempenhar seus ocios, o que gerava grande procura dos homens para com as
mulheres novas naquele ambiente.
Neste sentido, justificar-se-á a intensa rotatividade de mulheres nos meretrícios da
cidade, pois aquelas que já pertenciam a muito tempo aos quadros de um determinado cabaré,
passavam a o ser mais tão procuradas pelos homens, perdendo espaço para as “novas que
chegavam e assim, estas passavam a desempenhar suas atividades em outras localidades,
onde lá chegando, retornariam à mesma condição de novidade para aqueles homens que
também as procuravam.
A estrada de ferro possibilitava este intercâmbio entre as meretrizes que mudavam de
cidade de acordo com as ligações férreas e as paradas estacionais
83
.Neste sentido, é
interessante observar que vários fatores são necessários para a procura, indo desde a
apresentação sica até as artes de sedução por elas desempenhadas.
Assim, a cidade de Ipu não vai ser muito diferente das demais, pois vai ter em seu
cotidiano a presença de pessoas que passam a figurar como não permanentes no seio da
sociedade, mas passageiras, permanecendo por algum tempo, desempenhando algum oficio
trabalhista ou na busca de algo que lhes dessem sustentação e depois indo embora, como
também seriam as meretrizes e os frequentadores do meretrício, salvo alguns que figuravam
como proprietários na cidade ou assíduos frequentadores desta que entretanto tinham a sua
permanência limitada.
A cidade, assim como o meretcio, é volátil tendo como característica própria esta
rotatividade de pessoas, sendo que todas elas são intencionadas e passam a ser de certa forma,
vigiadas por aqueles que têm a cidade como um complemento seu, existindo este sentimento
de pertencimento a ela e se sentindo na obrigação de velar pelo seu desempenho social.
83
Ver: SANTOS, Carlos Augusto Pereira dos. Cidade Vermelha: a militância comunista em Camocim-CE
(1927-1950). Na apresentação do livro o autor faz referência à relação onde existiam estações ferroviárias,
partindo desde a estrada de ferro de Baturité em 1870, ligando-a à Fortaleza e consequentemente a construção da
estrada ligando a Sobral, Camocim, Ipu e Crateús, posteriormente.
68
Ora, mas o nosso recorte temporal vai ter como base o início do século XX e dentro de
uma concepção de sociedade patriarcal com família regular onde os preceitos da moral eram
tidos como base de exemplo para a formação e união familiar, como explicar a culpa desta
“boa sociedade”?
Simmel também atenta para esta questão quando diz “por que, então, não sacrificar
alguns milhares de moças para possibilitar aos homens não casados uma vida sexual normal
e proteger assim a castidade das outras mulheres?
84
De certa forma, há uma troca de valores ou mesmo inversão, pois ao mesmo tempo
que a sociedade não aceitava a existência das meretrizes em um determinado local, ela
também utilizava de seus “ocios” para manter a castidade de um grupo de moças, que assim,
continuariam “puras” para o casamento, enquanto os homens também provavam a sua
masculinidade, satisfazendo seus instintos sexuais no meretcio da cidade.
Importante perceber que não frequentavam o meretcio ipuense aqueles que
vinham no trem de passageiros de outras cidades, mas também os moços que aqui residiam,
inclusive aqueles que mais adiante passariam a pertencer a uma escola social “elitizada”,
sendo herdeiros dos costumes implantados por seus familiares e pares e ainda pela própria
classe social a que passariam a pertencer.
Certo e sabido, que a arte do sexo no meretrício ou a prostituição já vem bem antes do
nosso recorte em Ipu e daí a percepção de que, apoiando-nos na citação de Simmel, esta
sociedade “controladora” também conhecia as artimanhas das meretrizes para continuar
existindo em seus espaços.
Canalizando estes questionamentos para o início do século XX, mesmo antes da
estrada de ferro chegar em Ipu em outubro de 1894, já existiam na cidade algumas “moças
que prestavam estes serviços para os rapazes, mas o que se percebe em nossas fontes é que a
percepção delas, por parte da sociedade, era em menor escala mesmo que estas utilizassem
como espaço uma pequena ruela do centro da cidade para estes fins.
O que se percebe é que o existia ainda esta preocupação em tentar demonstrar uma
cidade ipuense representada com “certidão de nascimento” que seria a chegada do europeu
Guerreiro Branco e a sua aproximação com a índia Iracema, ou mesmo, com a aquisição das
terras ipuenses por Joana Paula Vieira Mimosa tamm européia - de Portugal, que não tiraria
o rito do nascimento da cidade, fato este tão propagado pelos memorialistas da cidade a
partir da Revista dos Municípios de 1915 editada por Eusébio de Souza.
84
SIMMEL, George. Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993.p. 09.
69
Neste momento, ou seja, antes de 1894, a cidade vai aparecer apenas como mais uma
em formação e que tinha a possibilidade de crescer mais que as outras que, também, se
encontravam em processo de desenvolvimento e progresso, como disse Bezerra
85
e a
existência de um local onde os “moços se divertiam” não chamaria tanto a atenção da
população, ao menos como forma de repreensão naquele momento, o que vai se configurar
com maior intensidade a partir da chegada da linha férrea e a formação de uma sociedade
“letrada”, principalmente aqueles homens de formação intelectual e jurídica, e junto a isso, a
introdução da cidade como marco referencial do progresso incipiente” na região Norte do
Estado.
Mas vejamos o que Silva retrata em seu livro de memórias, com relação à existência
destas mulheres e onde elas eram afixadas:
O Beco do Progresso (...) era estreito, porém pavimentado. (...) Era
composto de quinze quartos (...) todos num só estilo, construídos pelo então
major Quixadá. Essa construção data de muitos anos atrás.
Era ali que moravam as prostitutas, as “mulheres de vida fácil”, no
tempo em que a cidadezinha atrasada e sem vida, oferecia oportunidades
para que homens casados tivessem momentos de amor fora de casa. Esses
tetos, entretanto, estavam sempre superlotados, porque recebiam visitas de
outras “quengas”, que vinham dos municípios vizinhos, e até mesmo de
outros Estados, para ganhar dinheiro dos ipuenses.
(...) A cidade vivia às escuras. (...) A rapaziada tinha que recorrer ao
Beco do Progresso, pois ali fazia hora, antes do recolhimento às suas casas.
A vida noturna, para aqueles jovens, não tinha o sabor que tem hoje.
Ocorriam desordens, havia embriagados e arruaceiros procurando briga. Às
vezes, jovens da cidade se envolviam, e seus pais somente no dia seguinte
tomavam conhecimento das histórias deturpadas ao sabor dos interesses de
quem as ditava, as quais tomavam conta da cidade.
Com o passar do tempo, as mariposas deixavam o centro da
cidade.
86
Esta descrição do meretrício feita por Silva, como contribuição em primeiro plano,
como já dissemos, da existência de um meretrício no centro da cidade, mais precisamente nas
proximidades da Igreja Matriz da época - no quadro da igrejinha - e ainda paralelo ao prédio
das Escolas Reunidas, hoje a escola central Auton Aragão.
O que percebemos é a forma como ele romanceia a existência deste espaço,um local
livre para as traições dos homens casados e ainda, para deleite dos moços jovens à procura da
sua iniciação sexual.
85
Rever: MENESES, Antonio Bezerra de. Notas de Viagem. Fortaleza: Imprensa Universitária do Cea, 1965.
86
SILVA, João Mozart. Ipu do meu xodó. Fortaleza: Nacional, 2005. pp. 99-100.
70
Numa hipótese mais aberta, o meretrício ipuense servia como espaço de sociabilidade,
de convívio eram das meretrizes com os homens que as procuravam, mas também
observando-se a frequência para um “bate-papo”, colocando as “conversas em dia”,
discutindo assuntos de interesses diversos.
Nesta perspectiva, o meretcio ipuense se tornava um lugar plural, pois os espaços
eram configurados a partir das intencionalidades daqueles que os frequentavam ou lhe davam
forma, vivendo este espaço e o tempo de acordo com o que acreditavam ser pertinente para o
momento, para a sua condição como ser social.
Sobre o depoimento de Silva, atentando para a sua condição de escritor, que declarara
ser interesse deixar escrito suas memórias no que diz respeito à cidade de Ipu, para a
posteridade, tal como aconteceu”, é interessante perceber que neste primeiro momento
escreve sempre na terceira pessoa, haja vista que, fala dos homens casados, dos filhos de
pessoas da cidade, mas não se coloca na discussão.
Mais à frente em seu livro, quando continua a falar sobre o “cabaré”, parece que se
sente mais à vontade para se colocar também como um assíduo frequentador e utilitário dos
prazeres oferecidos pelas “damas da noite”, quando diz que:
cada um dos rapazes da época possuía sua lanterna a pilha. Todas as noites,
infalivelmente, saíamos do bilhar e padaria do Padeiro (...) no rumo do
que se chamava de „zona‟. (...) a ronda era geral, principalmente nas terças e
sextas-feiras, os dias dos trens de Camocim
87
.
As terças e sextas-feiras,a partir do que foi relatado, podemos afirmar que a cidade era
invadida” por diferentes pessoas das mais variadas cidades e Estados.
Assim, no meretrício, existia esta mistura de personagens, culturalmente diferentes,
uma vez que na cidade de Ipu a maioria das pessoas, inclusive Silva, naquele momento
pertencia a famílias de agricultores e aqueles que vinham no trem de outras cidades, na sua
grande maioria, pertenciam à classe de comerciantes, das mais diversas mercadorias, vindo
desde caixeiros viajantes até vendedores de gêneros alimentícios ou representantes destes.
No meretrício existia esta miscigenação cultural, o que pode caracterizá-lo, desde a
sua formação, como este espaço de sociabilidade que antes já nos referimos. Vejamos:
Ao dr. Edmundo Monte, M. D. Director da Estrada de Ferro de
Sobral
87
Idem, p. 101.
71
Reconhecendo ser o Dr. Edmundo Monte um adminstrador recto e
cumpridor de seus deveres, observador do regulamento da via rrea, em
cuja frente, longos dias, vem desempenhando o cargo de chefe, vimos
fazer publico para conhecimento dessa digna auctoridade o abuso que reina
por parte de alguns empregados da Estrada de Ferro. Sem nos referir a
todos, sabemos de fonte insuspeita que empregados da Estrada effectuam
vendas de gêneros, estivas e tuttiquanti”, nesta cidade, sem pagarem
imposto de nenhuma espécie e lesando as leis do regulamento ferroviário
em vigor. E não é o revoltante ver se taes senhores commerciarem
ilegalmente, como é admirável a facilidade com que arrumam praça para o
transporte de suas mercadorias queo, na maior parte, compradas em
Camocim, e por via das duvidas feito o despacho em nome dos
compradores.
O resultado é que os commerciantes d‟esta cidade que pagam
pontualmente impostos e requisitam carro com antecedencia de dois, ts
meses, nao se satisfaz, ao que justifica pela falta d‟agua e de material
rodante; mas , os srs empregados, não sabemos se por milagre, em todos os
horários trazem feijão, milho, etc. que aqui vendem a negociantes não
menos escrupulosos”, em prejuiso do commercio honrado e legal. Pelo
exposto o digno administrador que os seus subalternos estão fora das
normas do direito, estão abusando do lugar que lhes é confiado, erguido,
assim a sua intervenção e chefe apelando para os bons sentimentos do Dr.
Edmundo, pelgan (sic) os ter desempenhado um dever velando pelos
interesses desta terra como nos cumpre e é de nossa restricta obrigação.
UM COMERCIANTE
88
Estes mesmos trabalhadores da linha férrea, fazendo às vezes de comerciantes,
mantinham um relacionamento social e comercial na cidade, pois como bem é comentado na
manchete do jornal, “atravessam as mercadorias e revendem em Ipu, ferindo inclusive o
código da empresa a qual pertenciam.
E os comerciantes da cidade se sentiam lesados, reivindicando nas páginas do mesmo
jornal esta condição de zelo pelos digos comerciais, embora percebamos que o que estava
em vigor era a defesa de seus lucros, de seu comércio e de suas operações financeiras.
Estes trabalhadores comerciantes eram assíduos frequentadores do meretrício, unindo-
se à população ipuense, embora, de forma permanente ou não, pertencessem aos quadros
efetivos da população, pois tinham residência na cidade (embora não permanente),
principalmente em grandes galpões construídos para alojamento dos trabalhadores braçais da
estrada de ferro. Trabalhadores que agora se confundiam com os comerciantes.
Se tivermos como base o conceito de que toda fala é carregada de intenções, ou seja,
pode valer muito do que foi dito, porém, o não-dito pode ser bem mais aproveitável, voltemos
88
CORREIO DO NORTE 08/01/1920. Ano III, nº 102
72
à análise sobre o depoimento de Silva quando enfatiza sobre os rapazes da época” que saíam
- inclusive ele - para o meretrício.
Não eram casados ainda neste instante, e segundo ele, as turmas saiam em “comboio
em direção ao cabaré. Uns cantando, outros sorrindo, outros conversando principalmente
sobre assuntos pertinentes às suas aventuras amorosas durante a noite anterior, ou depois do
acontecido no retorno para a casa.
Neste recinto de prazer”, aconteciam brigas, discussões, mortes,mas o que se
procurava acima de tudo era o ato sexual.
De acordo com Silva,quando chegava uma meretriz nova, vinda de outra cidade ou
Estado,era uma revolução entre os homens à procura de quem seria o primeiro a manter
relações sexuais com ela, o que deixa margem de entendimento de que, a prova da
masculinidade por parte dos rapazes da época era uma constante e assim, de certa forma, não
seria mais somente a busca do prazer, mas toda uma demonstração simlica do sentimento
de machismo da sociedade ipuense que buscava se firmar no grupo dos homens que
computavam a maior quantidade de mulheres, no caso, as meretrizes com que tinham mantido
relações sexuais, ou mesmo, as vezes que tinham conseguido ser o primeiro na cidade a pegar
determinadas mulheres a partir da chegada desta.
Vejamos que toda esta trama se desenrolava no centro da cidade, sob os olhares da
sociedade que de certa forma aceitava os fatos. Somente com o passar dos tempos, estas
práticas não iriam mais ser toleradas naquele centro urbano, como sabemos, o que fará com
que se forme outro local para o desenvolvimento das relações sociais e consequentemente o
surgimento de um novo bairro.
Silva, com o passar dos tempos, vai trabalhar na primeira gráfica do Ipu,
posteriormente montando a sua própria e, também, passará a pertencer aos quadros daqueles
que tomavam para si a responsabilidade de conduzir a moral da cidade,uma vez que fazia
parte do conselho editorial do jornal.
Silva é o homem, que antes de sua morte em 1990, vai demonstrar o meretrício
ipuense como um lugar de aventuras e de certa forma,como relata em sua fala, necessário para
a época.
Como disse, em primeiro plano, ou seja,quando começa a escrever, ele não se coloca
como usuário daquele espaço, mas posteriormente, deixa sua fala fluir naturalmente e até faz
galanteios para com as peripécias cometidas por ele e seus amigos juntamente com as
“mulheres de vida fácil”, como ele denomina as meretrizes daquela época.
73
Outro ponto pertinente nesta relação entre as mulheres do meretrício e a sociedade
seria esta fusão existente entre o choque de interesses, pois existindo uma manifestação
cultural em todas as relações, o que se percebe entre as necessidades dos homens
frequentadores, poderia ser confundido com as reais intenções das meretrizes, pois estas
eram taxadas como desvirtuadas do modo de vida moralizado, muito embora utilizadas como
“bode expiatórios” a partir da negação sistemática por parte da sociedade.
Segundo Simmel, “a sociedade (...) faz exatamente assim, as prostitutas são os bodes
expiatórios que se punem pelos pecados cometidos pelos homens da boa sociedade”
89
, e esta
sociedade participa de todos os espaços da cidade, como também as meretrizes, seja das mais
diferentes formas, pois credita em si esta responsabilidade de controle e assim, ter o poder de
taxar determinados seguimentos sociais como desvirtuados ou moralizados de acordo com a
sua convicção ou pelo menos por parte daqueles que detêm os meios de controle desta mesma
sociedade, sejam das mais variadas formas de manifestação de poder, pois, seguindo o ideal
de desvio, o que pode ser considerado como tal, equivale a:
A idéia de desvio, de um modo ou de outro, implica a existência de
um comportamento dio” ou “ideal”, que expressaria uma harmonia com
as exigências do funcionamento do sistema social. (...) No entanto,
permaneceu a preocupação de delimitar, um tanto rigidamente,
comportamentos “normais”, embora numa perspectiva etnocêntrica. A idéia
de que uma sociedade ou cultura estabelece um modelo rígido (em certos
casos mesmo único) para os seus membros e que tal fenômeno é essencial
para a continuidade da vida social permaneceu vigorosa. A pluralidade de
comportamentos dentro de uma cultura é vista dentro de limites bem
marcados
90
.
Com relação ao meretrício ipuense, o modelo rígido de controle estabelecido por parte
da sociedade, pôde ser percebido a partir das manchetes nos jornais que circulavam na cidade,
principalmente naqueles considerados paralelos, pois tinham como meta principal observar o
modo de vida regrado das pessoas.
Não podemos desconsiderar também a ação da Igreja Católica neste sentido, porém,
neste quesito, veremos maior análise também no terceiro capítulo.
Nos jornais, podemos observar não raro matérias do tipo:
89
SIMMEL, op. cit. p. 13.
90
VELHO, Gilberto. O Estudo do Comportamento Desviante: A Contribuição da Antropologia Social. IN.:
VELHO, Gilberto (Org). Desvio e Divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979. pp. 18-19.
74
Avisamos a uma amiga nossa, que os passeios de um senhor (...) na
Rua Chico Novato já esta muito comentado, e isto não fica bem a um
senhor que se presa...
91
Esta rua seria o cognome do local onde se achavam as meretrizes da cidade, já
pertencendo a um local exclusivo para as práticas sexuais. A ida de um determinado
personagem, que de certa forma poderia ser um representante dos interesses morais da cidade
a um local “reservado e vigiado”, poderia ser considerado um ato desvirtuante e a ação do
jornal, ou de seus representantes, nada mais seria que a demonstração de uma tentativa de
controle desta sociedade para com seus pares, pois como observamos, dentro de uma
determinada cultura existem manifestações pessoais que são contrárias, pois é a demonstração
de interesses e estes são caracterizados por particularidades mesmo que não apareçam
explicitamente.
Para a sociedade a qual tal personagem pertencia, seus atos refletiam os interesses do
coletivo, de sua classe e assim, os desvios não poderiam ser tolerados, mas controlados,
devendo existir a intenção de uniformidade nas ações e pensamentos, não podendo
permanecer no seu seio ramificações contrárias e a partir da existência destas, este membro
passaria a ser considerado um “traidore por consequência, passaria a figurar no quadro dos
membros dissidentes do grupo.
Para estes denominados dissidentes, várias seriam as formas de demonstração de força
repressiva perante seus atos, partindo desde a publicação de seus nomes nos jornais, oficiais
ou pilhéricos, já existentes na cidade ou até mesmo a utilização da força de repressão a que o
Estado “lhes dava direito” nos moldes tradicionais.
verificamos que a força policial, objeto de controle oficial do Estado, agiu com
relação às práticas sexuais meretrícias no centro da cidade,tendo um olhar mais direcionado a
formação deste espaço que o determinado cidadão estava frequentando com maior
assiduidade.
Assim, o controle ficava direcionado em várias vertentes, ou seja, controle do espaço,
da moral e da própria sociedade que se tornava refém destas manifestações de vigilância dos
atos de seus integrantes e daqueles que para a cidade se deslocavam, como as meretrizes
oriundas de outras freguesias e ainda, dos transeuntes que utilizavam a linha férrea como meio
de transporte ou trabalho, passando determinado tempo na cidade de Ipu, aguardando o
desfecho de seus negócios e ainda, utilizando este tempo, para desfrutar aquilo que a cidade
91
O BARBICACHO. Anno I, 11/01/1920, Número III. P. 3
75
tinha a oferecer como diversão, e neste sentido, a existência de um meretrício seria a
demonstração de que as práticas sexuais libertinas eram uma realidade latente na cidade.
O cavalheiro de que nos vamos occupar, é o prototypo da
indecencia e deslealdade.
É casado e não se envergonha de andar mettido em aventuras
amorosas (...) ocupa um cargo federal esse bandalho
92
.
Fazendo um paralelo entre as duas últimas citações, vamos perceber que o que separa
uma publicação da outra é o intervalo de aproximadamente seis meses e que as edições são de
jornais diferentes.
Neste sentido, é relevante salientar que os editores, muito embora anônimos em ambos
os jornais, são os mesmos, como os mesmos são aqueles que editam todos os jornais paralelos
da cidade no intervalo dos anos de 1918 a 1921.
O título dos jornais paralelos é geralmente direcionado a narrativas que dão a
intencionalidade de vigilância,punição e controle, ou seja, Chicote, Espora, Futrica,
Barbicacho;e todos eles faziam referência a algum tipo de observância da sociedade.
Na última demonstração citada, vamos perceber claramente, diferente da anterior, que
o jornal vai dar a característica principal do frequentador dos espaços, ou seja, o mesmo
ocupava um cargo federal o que naquele momento era restrito a poucos na cidade.
O que podemos ter como certeza é que este mesmo frequentador vai fazer parte dos
ciclos sociais considerados elitizados por parte dos que protagonizavam a formação de
determinadas agremiações na cidade, como as já citadas no capítulo anterior, e que assim, a
estes a vigilância deveria ser mais acentuada,uma vez que se intitulavam um espelho para
restante da sociedade, ou melhor, assim se achavam no dever de o serem.
Como o ato do servidor federal era considerado um desvio, deveria ser o mesmo
punido” e a excreção de seu nome em um jornal com as características de O Chicote,
conhecido por delatar supostas quebras de regras sociais, seria a punição considerada mais
cruel por parte dos pares daquele que formavam o grupo com o qual mantinham o convívio,
porém “cada grupo cria suas regras especificas e se, por uma questão de poder, são impostas a
seus membros, então o desvio é uma criação da própria sociedade”
93
.
92
O Chicote. Jornal crítico e noticioso. Anno I, 13/07/1919. Número Único. p. 1.
93
CHINELLI, Filipina. Acusação e Desvio em uma Minoria. IN.: VELHO, Gilberto (Org). Desvio e
Divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 131.
76
... um único ato de adultério por parte de uma esposa era „uma violação
imperdoável da lei da propriedade e da idéia da descendência herediria‟
(...). O adultério por parte dos maridos, ao contrário, era amplamente
„encarado como uma fraqueza lamentável, mas compreensível .
94
O ato do servidor poderia até ser encarado como uma fraqueza, porém não poderia
passar despercebido.
O fato seria perdoado se passasse a fazer parte do passadodo transgressor, assim
como o do cavalheiro que fora ocupado anteriormente, ou seja, quando os editores dizem que
senão deixar, se não parar, etc., então é que a punição seria mais direta, ou seja, seus atos
seriam denunciados ao seu cônjugue e isso traria consequências bem mais complexas para
aqueles que fossem delatados.
A situação da mulher seria bem mais complexa, uma vez que como bem disse
Giddens, seria uma violação imperdoável.
A estas mulheres o infortúnio seria bem mais direcionado, o podendo analisar nesta
perspectiva, por o ser nossa intenção na pesquisa, mas sabendo que o futuro destas estava
condicionado a uma não aceitação social e assim, numa hitese recorrente às mulheres que
entravam nesta condição, se tornariam anti-sociais e poderiam até mesmo adentrar no mundo
da prostituição, chegando a frequentar os meretrícios.
Não raro isto acontecia e a própria sociedade acatava esta situação, pois fazia parte de
uma cultura implantada, ou seja, vários foram os casos de meretrizes que chegaram ao
cabaré de Ipu depois de terem sido molestadas sexualmente, perdendo assim a sua
“virgindade” em um ato não planejado e posteriormente, expulsas de casa pelos pais se
aventuravam no mundo das práticas sexuais pelos bordéis das cidades.
A estas, podemos recorrer à memória de Silva
95
, quando ele fala sobre as meretrizes
que vinham de cidades diferentes chegando a ser, muitas delas, ainda pouco experientes na
arte sexual meretrícia.
A elas, podem ser agrupadas algumas mulheres que antes tinham constituído família e
que por uma desventura no relacionamento ou ainda uma traição (por parte delas) foram
direcionadas à condição de “mulher pública” e a sociedade aceitava neste sentido, pois assim,
estas passavam também a entrar no rol daquelas que utilizariam seu corpo para o deleite de
um grupo de homens e dessa forma, manifestariam o seu papel na sociedade, pois para esta
94
GIDDENS, Anthony.A transformação da intimidade: sexualidade, amor e herotismo nas sociedades
modernas. São Paulo: UNESP, 1993. p. 16.
95
Rever: SILVA, João Mozart. Ipu do meu xodó. Fortaleza: Nacional, 2005. pp. 99-100.
77
o seria complexo “sacrificar algumas milhares de moças, para possibilitar aos homens o
casados uma vida sexual normal, e proteger assim a castidade das outras mulheres
96
.
2.1. Os prazeres do amor. A satisfação sexual e a convivência em sociedade
O mundo da arte meretrícia, unido ao espaço e ao tempo em que ocorrem ou
ocorreram, é demonstrado apenas em fragmentos do que era considerado real, principalmente
na questão de nossa análise, uma vez que estamos trabalhando em cima dos mesmos
fragmentos que a sociedade ipuense da época, considerada elitista, evidenciou em seus relatos
nos jornais, tanto nos oficiais como nos paralelos ou pasquins.
A memória vai sendo “construída” também a partir destes filtros e assim a cidade vai
aparecendo exposta nos acontecimentos dos espaços num determinado tempo e as relações
entre estes três pólos: espaço, tempo e acontecimento, estão ligados um ao outro, não havendo
dissociação.
Com as argumentações expostas, chegamos à convicção de que o homem, enquanto
ser social, sente a necessidade de controlar o tempo e o espaço onde vive e assim, manter
certo conhecimento dos fatos e modos de vida que o rodeia.
Assim o meretcio ipuense, na sua forma de existência passa por estes estágios, ou
seja, na sua formação, desenvolvimento e controle por parte daqueles que detêm o poder
temporal, potico, espiritual, e por último, o poder social, que pode ser observado em
diferentes proporções e formas, muito embora possamos perceber no decorrer dos tempos,
que os conceitos criados em determinadas épocas, a partir de diferentes situações, vão perder
relevância quando se confrontam com o real, pelo simples fato de ser uma coisa imposta por
um grupo que tenta se firmar por sua condição social.
Este grupo espera assimilação dos demais membros da sociedade na condição de
imposição e, posteriormente vai cedendo à fragilidade conceitual, quando novas formas de
percepção do real o sendo adquiridas por grupos paralelos considerados subalternos, pois a
estes foram unindo-se diferentes manifestações culturais que vão se confrontar com conceitos,
pois como disse Velho:
...a Cultura não é, em nenhum momento, uma entidade acabada,
mas sim uma linguagem permanentemente acionada e modificada por
96
SIMMEL, George. Op. cit. p. 9.
78
pessoas que não desempenham „papéis‟ específicos, mas que têm
experiências existenciais particulares
97
.
Em pouquíssimos momentos, nossas fontes vão trazer a público a questão do dinheiro,
ou melhor, este como ponto principal do reconhecimento, do prestígio social, da condição de
cada um em sociedade ou como esta sociedade percebia cada um dentro ela.
O dinheiro seria o princípio da formação social, como conquistar este dinheiro era
outro ponto. Entretanto, a partir desta conquista,seja por meio do latifúndio,da pecuária, do
comércio,ou ainda , dos estudos a vel superior, principalmente no campo da medicina ou da
advocacia, as “portas” sociais se abriam e a aceitação por meio da sociedade estava
formalizada.
Assim acontecendo, as regras sociais deveriam ser obedecidas e a participação dos
agora pares” em locais considerados libertinos, provocativos e denegrentes da sociedade
procurada e trabalhada como perfeita, como exemplo o meretrício, não poderia ser aceita e
este “homens bons” deveriam ser punidos a rigor.
As mulheres e o espaço meretrício continuariam existindo. Pessoas com determinados
propósitos também “poderiam utilizar este espaço”, mas não todos. A uns, o que caberia seria
a vigilância, o controle e a observância, mas o o uso nem a permanência.
Os jornais oficiais ou não teriam como finalidade esta condição de estampa social. Ser
puro e honesto para com os preceitos sociais seria uma virtude que com certeza seria
apresentada nos periódicos, porém, a quebra ou desvio de conduta também seria, mesmo que
nos jornais ou pasquins informais.
O meretrício e o desvio são relacionados ao prazer e a vergonha também numa relação
de controle da moral. Comprar o prazer e ao mesmo tempo ser submetido aos olhares de uma
sociedade que tudo e tudo controla se tornaria um jogo em social.
A meretriz não trabalhava de graça. Seu ocio também era pago. Se sujeitar aos
falares e ainda ter que pagar por isso era uma condição e esta situação muitas vezes trazia
consequências que se tornavam perniciosas para o convívio, pois o “homem bom se
entranhar com a sujeira ou escore da sociedade seria uma manifestação condicional da
tentativa de contaminação impura para esta sociedade, mesmo que inconsciente, mas
existente.
97
VELHO, Gilberto. O Estudo do Comportamento Desviante: A Contribuição da Antropologia Social. IN.:
VELHO, Gilberto (Org). Desvio e Divergência: uma crítica da patologia social. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1979. p. 21.
79
Desse modo, não existiria, se assim se concretizasse, a confirmação de uma sociedade
perfeita, ariana, com descendência propriamente européia, galgada definitivamente no
ancestralismo de Soares Moreno ou Joana Paula Mimosa, mas numa meretriz, impura,
vendida, entregue ao bel prazer de quem quisesse pagar.
Neste contexto, a própria sociedade também se tornaria um produto à venda, como
quem passasse a representá-la agora fosse não à meretriz, mas o homem que também se
vendeu, pois como representante desta, não poderia se comportar como tal, ou seja, visitando
e utilizando de espaços que não deveriam ser seus, mas combatidos a todo custo, limpando o
nome e apresentando a cidade como pura, limpa e boa.
Se a meretriz tinha consciência de sua condição, não vamos adentrar neste campo,
contudo, ela também tinha seus interesses.
Além de “comerciante do corpo”, também tinha sua própria vida e neste sentido, tinha
que conviver entre dois pólos: o de ser objeto e o de ser também às vezes senhora.
A maioria destas meretrizes tinha prole e munido a este ponto, deveriam acomodar o
sentimento de maternidade,pois mesmo tendo uma vida desregrada, em determinado
momento poderiam igualar-se às outras mulheres no que se refere ao amor materno, de
possuidora da qualidade de transmissão de seu gene para a posteridade.
Faz-se necessário salientar ainda, que viviam um paradoxo: ter a vida desregrada
sexualmente e ao mesmo tempo ter que apresentar ou representar perante os seus uma
condição de controle sobre sua própria vida, sobre seu destino e sua “família”.
Até que ponto pode ser percebido como perdição os atos das mulheres perante a
sociedade? No espaço meretrício, qualquer ato já passava a ser considerado em desfavor
destas mulheres. O fato de ter família ou não, não as condicionavam como puras, mas se
tornavam ainda mais um agravantes, pois esta situação representava a falta de condições de
segurança e de planejamento familiar. As tornavam como partícipes desse processo de uso e
desuso social aceito, porém passivo de punição. Observado e controlado. Regrado dentro dos
padrões sociais previamente estabelecidos pela sociedade.
A sociedade elitizada não aceitava estas práticas em blico, e por isso, reservara um
local para estas situações: o meretcio, local de desregra e libertinagem, usado também por
pessoas com estas mesmas características. Pessoas estas que compunham a “elite” e também a
escória social. A sociedade que se tinha e a que se queria apresentar. De certa forma, era um
dilema que deveria ser vivido, para continuar existindo.
As sociedades de todas as épocas têm conflitos que podem ser contrastados com as
relações que vivenciam. Não podemos perder de vista estas relações.
80
Na medida em que o soberano {sociedade} legítimo tem menos motivos e
menor necessidade de ofender seus súditos, é natural que seja por estes mais queridos;
e, se não tem defeitos extraordinários que o tornem odiado, é perfeitamente normal
que o povo lhe queira bem; qualquer alteração na ordem das coisas prepara sempre o
caminho para outras mudanças, mas num longo reinado os motivos e as lembranças
das inovações vão sendo esquecidos.
98
Porque colocar a sociedade em ênfase nesta situação? Ora, de certa forma, antes de
estarmos adentrando no mundo do meretcio ou sua formação, estamos inseridos num
contexto de sociedade e como viemos tratando desde o princípio, como parte desta sociedade
se percebe na condução dos rumos da cidade de Ipu, tratando do nosso recorte.
Os representantes dos jornais, das entidades sociais, grêmios, sociedades dançantes,
políticos, etc., se viam soberanos neste emaranhado populacional. Como já vimos se
colocavam como representantes diretos da própria sociedade, pois partilhavam todos ou a
maioria, dos melhores campos de comando da sociedade.
Se percebiam como soberanos mesmos e os demais, como súditos, que deveriam
reverenciar não suas pessoas, mas suas atitudes, seus mandos, seus posicionamentos. A cidade
estava crescendo,assim como eles também estavam. Nada era por acaso, mas era por conta de
suas vontades.
A cidade de Ipu, passava por um processo de “civilidade”, não por conta de seus
agentes próximos, mas também por conta de uma potica estadual, refletindo assim nos atos
de quem dirigia política, social e economicamente esta cidade interiorana.
A década de 10, dos anos 1900 vem carregada de profundas transformações poticas
em nível estadual e nacional.Muitos atos acontecidos em Ipu fazem parte de tramas
planejadas na própria capital. Todo um projeto de lá fora canalizado para o interior do Estado,
principalmente no que concerne à civilidade dos povos. Vejamos:
Teófilo (...) era um dos agentes sociais que acreditavam que a cidade
precisava civilizar-se para que povo pudesse sair da ignorância, ociosidade, debilidade
e barbarismo em que se encontrava
99
.
O Ipu se apresentava dentro destes contextos relatados. A escrita de Martins retrata
episódios sociais acontecidos em Ipu. Como a sociedade vivenciava as transformações
98
MAQUIAVEL, N. O Príncipe, Ed Martin Claret, 2004. p. 31
99
MARTINS, Francisco Magalhães. O Coronel João Martins da Jaçanã. Separado da Revista „Aspectos‟ N
11- Ano 1977 da Secretaria de Cultura, Desporto e Promoção Social. Editora Henriqueta Galeno, 2 Edição,
Fortaleza, 1977. pp. 05-06.
81
acontecidas no ano de 1914, dentro de uma estrutura de observância e controle em todos os
parâmetros.
A sociedade ipuense acreditava que ignorância seria viver fora dos novos padrões
sociais, vivenciando ainda conceitos que naquele momento o condiziam com a realidade
buscada ou vivida. Ociosidade seria não se manifestar com indignação perante as estruturas
ainda arcaicas, na visão deles, por conta do modo de vida das pessoas ou de parte dos
integrantes da sociedade ou dos considerados homens bons.
Debilidade seria não entender como certas práticas de vida, percebidas no cotidiano da
cidade de Ipu, no nosso objeto de estudo, o uso e desuso do meretrício, seriam perniciosas
para a condução de uma sociedade pura e ariana, nos moldes europeus, como já frisamos.
E por último, o barbarismo que se manifestava na cidade, no que se refere à questão
sexual, as outras falas, o que não se entendia, ou vice-versa, mas que não se queria entender,
porém vivenciar. Que sociedade seria esta? Sociedade viciada, galgada ainda nos padrões de
uma colonização e formação a partir das mais diferentes formas de manifestação sexual, ou
uso do sexo ou prazer.
Como bem disse Freyre, “O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase
intoxicação sexual”
100
. Atentando de forma mais abrangente e nos apoiando na problemática
da micro-história, Freyre fala de forma generalizada, mas não podemos esquecer que a
sociedade ipuense também vivenciava estas necessidades sexuais e na falta de condições
procias para a satisfação do desejo e vontade, e o meretcio o acessível a todos, por conta
das barreiras sociais e mesmo econômica, outras práticas eram desenvolvidas, como também
disse Freyre:
...procuram satisfazer o furor com que o instinto sexual madruga
neles servindo-se de vacas, de cabras, de ovelhas, de galinhas, de outros
bichos caseiros; ou de plantas e frutas da bananeira, da melancia, da fruta
do mandacaru. São práticas que para o sertanejo suprem até a adolescência,
às vezes até o casamento, a falta ou escassez de prostituição doméstica ou
pública as amas, as mulatas, os moleques de casa, as mulheres públicas
de que tão cedo se contaminam os meninos nos engenhos e nas cidades do
litoral
101
.
Assim, podemos concluir este ponto, reforçando a tese que lançamos de que o
meretrício ipuense se desenvolveu junto com as transformações econômicas e sociais da
100
FREYRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal. 49° ed. São Paulo: Global, 2004, p. 161
101
Idem, p. 212
82
cidade, e ainda, que essas práticas sexuais se consolidaram a partir do próprio envolvimento
da cidade buscando o progresso”, ou seja, toda transformação traz consequências nem
sempre desejadas, que posteriormente irão ser trabalhadas de acordo com o processo que os
óros sociais desejam.
Assim, entra em cena um outro contexto, que é o controle, dado de diferentes formas,
por diferentes classes sociais, sejam poticas, eclesiásticas ou da própria sociedade, que
utiliza de artifícios para manter tudo de acordo com suas vontades, principalmente quando se
trata da “moral”, tão trabalhada na formação de nossa sociedade.
Muitas práticas, muitas formas, muitos desejos. A vontade do homem deveria ser
satisfeita de alguma maneira e o meio social vivido em Ipu naquele momento, não poderia ser
diferente. A história oficial ipuense começa em 1694, com a doação das vinte guas de terras
feitas a D. Joanna Paula Vieira Mimosa pelas cortes de Portugal
102
, ou seja, menos de dois
séculos depois da colonização brasileira. Assim, as colocações de Freyre podem ser atribuídas
também para a sociedade ipuense.
Na história oficial ipuense, a Igreja Católica tem participação desde a doação das
guas de terras no que se refere às catequizações indígenas e daí por diante. Porém, com
relação ao meretcio, na sua formação vamos perceber algumas nuances que merecem
destaque.
Em Ipu, não encontramos em nossas fontes referência da intervenção da Igreja
Católica no período de formação do meretcio de uma forma direta, muito embora
percebamos sua preocupação com a referida moral em todos os processos da formação de
nossa sociedade.
Na formação da nação brasileira, temos a clareza dessa intervenção católica, muito
embora os motivos sejam outros, quando vemos serem explícitas as intenções de povoamento
do território brasileiro e a limpeza moral dos lusos metropolitanos.
Também recorremos a Freyre para essa afirmação, quando diz:
A nossa verdadeira formação social se processa de 1532 em diante,
tendo a família rural ou semi-rural por unidade, quer através de gente
casada vinda do reino, quer das famílias aqui constituídas pela união de
colonos com, mulheres à-toa, mandadas vir de Portugal pelos padres
casamenteiros
103
.
102
SOUZA, Eusébio de. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Um pouco de historia (Chronica do Ipu).
1915. p. 153.
103
FREYRE, Gilberto, p. 85.
83
A “mulher à toa” de Portugal aqui no Brasil seria vista por uma nova óptica. A visão
do casamento, servia como purificação da alma, do corpo e ainda, sendo esta mulher de
origem européia e pele branca, principalmente, serviria como modelo de sociedade
embranquecida nas relações entre nativos e europeus.
A meretriz portuguesa seria no Brasil uma senhora do lar, com família preconcebida,
formalizada nos padrões da sociedade “civilizada”, comprometida com os modelos sociais
vigentes.
O meretrício ipuense já seria diferente. Era um lugar plural, da busca do prazer, da
conversa de amigos, da provação da masculinidade;diferentes intencionalidades eram
vivenciadas neste espaço de socialização.
2.2. A venda do corpo e o corpo à venda. O meretrício e a cidade
O jornal Correio do Norte deixara em suas páginas várias manifestações de como a
mulher do meretcio era vista e também como os homens que lá frequentavam eram
percebidos pela sociedade. A questão dos valores: o que seria bom para se ter boa
representação na sociedade.
Tão somente frequentar o meretrício, manter relações sexuais e utilizar os espaços, não
era o suficiente para que o homem fosse considerado aquém da sociedade, ou melhor,
desvirtuado socialmente. Deveria também obedecer a regras que transpunham os limites do
próprio meretrício. Regras sociais, mas também regras comerciais como vemos no seguinte
poema:
AMOR VENAL
“Não tem valor o oferecido”! Intriga
O velho adágio. E eu me sinto e vejo triste,
Quanta verdade de verdade existe,
Neste provérbio que ninguém abriga.
Disseste: A ti somente o amor me liga
E eu fui um crente louco e cego. Viste,
Vinte dias depois tu me traíste,
Por dinheiro somente, falsa amiga.
Quanta vaidade tens, mulher barata...
Tu não possues o predicado raro
Que se chama pudor. E‟s insensata.
Caro que foi! Que dinheirão perdido!
84
Por 50$000! ... Compraram caro
O teu discreto amor, tão bem fingido
104
.
Abdegard Brazil Corrêa.
O “oferecido”, no caso a prostituta, que era a mulher romanceada por Abdegard, não
pode ser compreendido desta forma. Diferentes eram as táticas de sedução utilizadas no
meretrício, menos o oferecimento direto. O corpo era vendido, negociado e, neste caso, por
um tempo de 20 dias.
Passados os 20 dias, o corpo era vendido a outro, negociado pela quantia de 50$000
(cinqüenta mil réis), quantia esta demasiadamente pequena para quem entregava o amor a
uma prostituta. O valor da compra seria apenas a do momento eo do próprio amor.
Inocência seria acreditar na verdadeira manifestação do amor, nos braços de uma prostituta e
assim o “romântico” percebeu e difundiu o poema..
O corpo seria negociável, o amor não. Quanta vaidade tens, mulher barata...Tu não
possues (sic) o predicado raro. Que se chama pudor. E‟s insensata.” “Mulher barata” e
“insensata”. Barata porque vendeste o corpo por uma quantia ínfima e insensata por não dar
espaço para o próprio amor. Sentimento este que fora manifestado nas entrelinhas do poema,
como forma de não aceitação pela “traição” acontecida por uma mulher de meretrício.
Podemos também perceber que quem escreveu não era “qualquer um”, mas uma
pessoa que percorria todos os espaços da cidade, principalmente os de sociabilidades, como os
gabinetes de leituras, espaços gremistas, entre outros, inclusive nas escritas dos próprios
jornais, como o Correio do Norte e o fez questão do anonimato.
Assinou com o próprio nome e percebamos que o escritor é de família representativa
na cidade, com prestígio social reconhecido e como seria de praxe, nas próximas páginas do
mesmo jornal, retaliações seriam postadas, de forma suscinta, no entanto, direcionadas.
Vejamos:
São fructos da carestia da vida... e depois 50$ não é pouco,
principalmente depois de supportar este poeta por 20 dias.
Livra!!
105
A venda do corpo unida à venda do amor em local pré-estabelecido, como o
meretrício, passaram a servir como segundo plano na escrita do “anônimo”. A forma de
escrita do poema se tornara mais importante.
104
CORREIO DO NORTE 06/05/1920. Ano III, nº 119. p. 03
105
Idem, p. 03.
85
Se o, para os pares acadêmicos o que ficou como representação fora a escrita,
suprimindo o conteúdo dos fatos, que fora uma relação de certa forma proibida socialmente.
Seria uma tática para camuflagem intencional? Ora, a sociedade estava ou deveria ser
controlada. Os compatriotas estes mais diretamente. Mas todos vivenciavam o mesmo espaço
social, a cidade Ipu. Lembremos, como trabalhamos no primeiro capítulo, quem eram as
pessoas que tramitavam por estes espaços, principalmente os de formação.
Ao analisar a importância da classe média‟ emblematizada na figura
do bacharel em Direito, grau de instrução majoritário entre os românticos
(...) por desenvolverem suas atividades nos principais centros urbanos e,
portanto, estarem mais expostos à influência européia (...) „escrevendo em
jornais ou revistas, publicando livros que se destinavam a um público leitor
cujos limites não ultrapassavam muito os das oligarquias ou dos grupos
urbanos que compunham sua clientela
106
Na cidade de Ipu, esta regra” não se diferenciava muito. Como já percebemos e
trabalhamos no primeiro capítulo. Toda esta problemática, do ser, pertencer, vivenciar e
principalmente compartilhar os espaços, se esbarrava nessa trajetória intelectual. Uma gama
de projetos era desenvolvido a partir dos conhecimentos adquiridos principalmente através da
literatura que chegava à cidade nos vagões dos trens.
Assim o adultério, a frequente investida ao meretrício e principalmente a manifestação
de uma paixão a uma prostituta, com direito a versos publicados e ainda, com a decepção de
um abandono por ela, manifestando o preço cobrado pelo amor momentaneamente
dispensado, comprometera a estrutura social de quem escrevera, principalmente por este
pertencer aos altos escalões da sociedade.
Fator interessante de ser percebido também, como já dissemos, são estas entrelinhas
que intrigam a nossa análise. Como bem citado, os intelectuais, principalmente os românticos
poetas, tinham um público alvo seleto, não perpassando uma continncia de amantes das
letras e o Jornal Correio do Norte não possuía uma grande margem de leitores, mas somente
os assinantes da cidade de Ipu e região que detinham certa autonomia econômica e prestigio
social. Os espaços são determinados como já vimos e, unindo-nos a Albuquerque Junior,
quando diz que:
Os espaços servem para localizar, em seu duplo sentido, de fixar ou
delimitar ou mesmo inteirar-se do paradeiro de um dado objeto ou sujeito
106
MARQUES, José Wilton. O poeta e o poder: favores e afrontas. In.: Estudos Históricos. Intelectuais. Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, nº 32, 2003. p. 36
86
no sentido de que esta localização atribui um valor ou descreve um lugar
dado numa determinada hierarquia de poder. Saber qual o seu lugar, se
colocar em seu lugar ou se por em seu lugar o expressões que em nossa
língua remetem a esta noção do espaço, que supõe a observância de lugares
e de uma hierarquia de poder e valores que os distribui socialmente
107
.
Abdegard Brazil Corrêa tinha o seu espaço, como a meretriz que ele “amara” também
tinha o dela e ambos não poderiam “ser misturados”, ainda mais quando esta miscigenação
territorial escondia entre suas intenções um amor proibido socialmente, por parte daqueles que
freqüentavam as mesmas agremiações que Corrêa , ou seja, onde as aventuras amorosas eram
inaceitáveis para os componentes do ciclo e por outro lado, a meretriz que ele tanto amara,
o poderia se entregar a um único amor, pois a esta, mais precisamente, a força amorosa
estava na questão de quem pagara mais, no caso, os 50$000 mil is.
Os espaços se tornam delimitados de acordo com as intenções. Podem até ser
ocasionalmente ou não utilizados, mas com a demarcação social que deve ser obedecida. A
quebra desta regra é observada inclusive por quem transita pelos mesmos espaços, ou seja, a
presença de um “corpo estranho” se torna motivo de preocupação e observação, não podendo
o sistema ser quebrado de forma direta, mas transformado a partir dos conflitos que se
formam a partir das relações, como percebe também Albuquerque Júnior quando diz que:
O espaço deixa de ser localização e extensão para ser relação,
pertencimento a uma trama, elemento que participa dos diversos
afrontamentos e acontecimentos que se dão no social. Cada atividade
humana carrega em si uma dimensão espacial que a ela pertence e por ela é
definida. As fronteiras, as identidades espaciais, os territórios, os lugares
passam a ser pensados como tendo sido definidos a partir de contendas, de
conflitos, sendo frutos de relações que se estabeleceram entre diferentes
agentes e agências em um dado momento histórico, sendo, portanto,
passiveis de dissolução, desconstrução, sempre que as relações sociais que
os engendraram sejam modificadas, que os saberes que os puseram de pé
sejam desmontados e que as relações de poder que os sustentam sofram
deslocamentos
108
.
Podemos concluir então que estas relações conflituosas existentes entre as meretrizes
ipuenses e a própria sociedade, representada na sua grande maioria por aqueles agremiados,
que como vimos, chamavam para si a condução da cidade em todos os aspectos e assim
acreditavam ter este poder, fizeram com que a cidade de Ipu fosse tomando formas e
acolhendo valores que perpassavam a própria intencionalidade almejada.
107
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nos destinos de fronteira: história, espaços e identidade
regional. Recife: Bagaço, 2008. p. 68
108
Idem, p. 72
87
2.3. No meretrício, na cidade, nas agremiações. O jornal, os “doutores” e as
meretrizes.
Existia a sociedade desejada, ao menos no imaginário social de alguns membros da
sociedade e também a sociedade real, que era esta sociedade galgada nos conflitos existentes e
que de certa forma dera uma representação do que era a cidade, ou seja, dividida entre os
grupos dirigentes e os considerados à margem social no caso em estudo, as meretrizes.
Em quanto possuirmos homens de critério e patrícios de dignidade,
havemos de palmilhar a senda do progresso, collocando o bem geral acima
do egoísmo, arcando embora contra as pretenções injustas de espíritos
mesquinhos, ridículos.
Com nosco estão os commerciantes honrados, o Sr. Prefeito Municipal e a
maioria do povo ipuense, para, unidos, repelirmos em esta idea torpe gerada
nos cérebros avariados de certa gente, que longe de ver as cousas pelos
verdadeiros prismas, se hombreiam com os suínos, charturdam-se na lama
do atraso, da ignorância
109
.
Tudo que não estivesse nos conformes sociais, visto como bom pra toda cidade
pelos olhos dos que direcionavam os movimentos sociais, poticos e econômicos, era
tachados aquém da sociedade, como porcos que o queriam sair da lama, sendo esta
representada pelo atraso, pela ignorância, pelo desprezo pelo progresso.
A família organizada (patriarcal) era a representação maior desta sociedade. A cidade
organizada era a complementação desta família. Uma deveria complementar a outra. A
existência de um meretrício e das meretrizes circulando, poderia ser considerado o contraste
dessas intenções organizacionais. Isso trabalharemos com maior intensidade no próximo
capítulo.
Tudo deveria ser percebido, tudo deveria ser controlado. O jornal era a válvula de
escape para estas retaliações. Não obstante, vez por outra vamos perceber as relações
existentes entre quem escrevia as matérias e quem era citado, sejam estes os “maus
comerciantes”, as meretrizes, os policiais truculentos, os jogadores compulsivos, enfim, todos
os que estavam ou se colocavam à margem da sociedade.
Mas como sabemos que são as relações que definem as representações da sociedade e
a população ipuense do inicio do século XX era compacta, pelo menos a urbana, em torno de
4000 habitantes,como já dissemos, tudo ou todos poderiam ser relacionados no que se refere
ao próprio convívio, sejam as relações trabalhistas, políticas, econômicas ou mesmo sociais,
109
CORREIO DO NORTE 03/06/1920. Ano III, nº 123. p. 2
88
de parentesco, de amizade ou até mesmo de subserviência social. Porém, existiam e o se
poderia furtar a esta condição.
Assim, não se tornaria tão incomum que determinados grupos penetrassem vez por
outra em espaços que não lhes fossem convenientes, ao menos de forma direta, aceita e/ou
chamada.
Nestes espaços delimitados de poder, tanto da sociedade como das meretrizes e de
toda a cidade, para que existissem as condições propicias de sustentação de uma determinada
ordem, o uso das meretrizes para as práticas sexuais, fazia com que mandos e desmandos
acontecesse, como disse Foucault que, para o poder existir, ele também tem que ceder em
determinados momentos. Vejamos:
O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente
porque ele não pesa como uma força que diz não, mas que de fato ele
permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso.
Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo
social muito mais do que uma instância negativa que tem por função
reprimir
110
.
Os “homens bons” não aceitavam o meretrício, mas utilizavam as meretrizes. Era um
mal necessário, mas combatido. Era uma situação de “amor, ódio e insatisfação” que os
jornais da cidade, principalmente os pilhéricos, tinham como fuão demonstrar.
percebemos que várias foram as vezes que nas manchetes dos jornais apareceram
reclamações para com determinadas situações existentes na cidade, situações estas que
aconteciam de forma direta ou indireta.
Ora, o jogo, a prostituição no mercado publico e no meretrício, a sujeira na cidade,
todas estes itens citados apareciam corriqueiramente nas manchetes dos jornais. Porém, como
conseguir uma meretriz afrontar diretamente os poderes da cidade, e principalmente, os
homens desta, num jornal de circulação conhecida?
D. Mariana Cururu, Tauhaense, solteira, (...) vem pela columna de O
Barbicacho protestar contra a sua, prisão efectuada pela policia que não lhe
soube receber os carinhos de “mamãe”, generosa (...).
Apesar de tanto captivar os moços d‟esta terra tem recebido d‟estes a
maior desconsideração pessoal
111
.
110
FOUCAULT, Michel: Microsica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 08
111
O BARCICACHO. Anno I, 15/02/1920, Nº IV. p. 04
89
Percebemos que a condição de vida que a meretriz no município de Ipu estava
exposta, era de submissão, estranhamento, porém, de relações, tendo que se submeter a uma
condição com dúbio significado, ou seja, viver numa sociedade extremamente conservadora
tendo seus passos” controlados e vigiados e, ao mesmo tempo, servir como elo de transição
no período de iniciação sexual dos rapazes de “boa” família que na necessidade de provar sua
virilidade utilizavam dos “serviços” das meretrizes para se firmarem como homens em
potencial na sociedade.
Nesse sentido, as meretrizes desempenhavam sua “função social”, em servir como
espécie de “conservadoras da inocência das moças”, pois os rapazes não necessitariam
“forçar” relações sexuais antes do casamento contrariando assim todo um sistema também de
controle, que seria o da castidade, tão trabalhado pela Igreja.
Assim, em determinado momento, percebemos uma “trégua” no controle deste espaço
e das meretrizes, pois de certa forma, estavam fazendo um “bem à sociedade”.
temos a convicção da separação das camadas sociais existente na sociedade
principalmente das meretrizes, porém, Mariana pode ser considerada uma exceção nesse
momento por ter a possibilidade de participar de outro campo social que não era o seu.
Como poder adentrar na redação (utilizaremos este termo, muito embora saibamos que
as matérias eram feitas - ou entregues - nas dependências das casas ou em locais privados, por
conta da natureza clandestina do jornal) de um jornal e ter a possibilidade de anunciar maus
tratos contra a sua pessoa, ainda mais fazendo alusão dos carinhos” que dispensara nesta
sociedade?
Junto com o poder vem à resistência a este. Qual a relação que Mariana possuía dentro
desta cidade, com quais pessoas manteve contato e o porquê da tamanha insatisfação de uma
“forasteira” em Ipu, em não aceitar as manifestações de insatisfação da sociedade para com
sua conduta?
Sobre Mariana não temos maiores informações, pois ao que tudo indica, a partir desta
manifestação de repúdio, se ausentou da cidade, procurando novos caminhos para continuar
seu ocio. Porém, a partir de seu depoimento e do silêncio que acompanhou os jornais
seguintes, com relação a sua pessoa, tiramos a conclusão de que a sociedade ipuense tomou
providências para a sua saída da cidade, ainda mais porque ela fez relação a duas classes de
peso na manchete: a polícia e a própria sociedade.
Entendemos então que quando a sociedade aceita determinada situação, mesmo que a
contra gosto, ela está maquinando inconscientemente uma forma de manipular e extirpar de
seu convívio determinadas características a que está submetida.
90
Mariana Cururu, neste momento foi uma exceção. Muitas foram as investidas das
meretrizes nos jornais, mas nenhuma delas as fizeram de cara limpa”, utilizando o próprio
nome, atacando instituições e grupos, reclamando da forma como era vista ou tratada pelos
homens desta urbe.
O seu peso social poderia estar condicionado às suas relações com pessoas de dentro
das edições. Diferente das outras manchetes, em todos os sentidos, não houve comentário a
respeito do assunto no referido jornal, nem nos outros como o Correio do Norte, que como
sabemos , era editado por pessoas que transitavam em todos os parâmetros sociais e escreviam
em todos os jornais.
Os jornais serviam como discurso e estes eram a produção ou reprodução do que se
queria ou aceitava na cidade de Ipu. O meretrício era real, as agremiações também e os
conflitos existentes davam uma demonstração de descontentamento por ambas as partes.
Cada sociedade tem o seu regime de verdade, sua „política geral‟ de
verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros
112
.
Nem as meretrizes estavam erradas neste sentido e menos ainda a sociedade. Era o
jogo de interesses e valores que se configurava e dava a potencialidade verdadeira na cidade.
Cada um se percebia de uma forma diferente, com suas convicções e intenções.
Era uma divisão. A chegada da estrada de ferro trouxera consigo novas formas de ver
a vida e de manifestar novas tenncias, principalmente econômicas, e o sexo ou a mulher
prostituta, com seu espaço de relações seriam também conseqüências dessa nova ordem.
A prostituição configurou um espaço visível, espetacularizado e
quantificável, à medida que se tornava uma profissão reconhecida com a
expano do mercado capitalista (...) as práticas do amor venal ganhavam
toda topografia da cidade, possibilitando a constituição de saberes
especializados
113
.
Rago é bem ampla neste ponto, na medida em que vem identificar uma transformação
da conjuntura espacial da cidade, em nosso caso, com a formação de novas ruas ou bairros.
Identificamos que fora introduzida na cidade uma das maiores representações do
sistema capitalista no período - no caso a ferrovia - e também percebemos que uma parcela da
112
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. p 12.
113
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e digos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 20
91
população “se via” num processo de transformação intelectual e progressiva com esta
instalação ferroviária. Daí, como já percebemos, a moral desta sociedade deveria ser
guarnecida e controlada, sendo trabalhado assim, nas manchetes moralistas dos jornais e
pasquins do inicio do século XX.
Assim, como tentamos demonstrar por todo o capítulo, várias foram as formas de uso
dos espaços da cidade, sejam territoriais, institucionais ou de relações.
No entanto, ficamos direcionados neste âmbito da escrita, apenas à sociedade, pom,
uma instituição maior existente não em Ipu mas a vel mundial também estaria
preocupada com estas práticas sexuais utilizadas em espaços reservados e aceitos e toda uma
ordem nova seria manifestada por esta instituição chamada Igreja Católica e que iremos
trabalhar com maior afinco no pximo capítulo.
Ora, a importância que a Igreja Católica desempenhou sobre as famílias ipuenses fora
de tal forma que livretos condicionando as maneiras como os fiéis deveriam se portar diante
das facilidades consideradas mundanas foram introduzidos na cidade, com um trabalho mais
direcionado às esposas, supostamente as que mais sofreriam com as traições por parte dos
maridos.
Portanto, neste processo, não nos admiramos quando encontramos referências diretas
as práticas meretrícias nestes livros. O cabaré existia na cidade e isto era um fato, e em vista
disso, percebemos que parte considerada representacional nesta urbe frequentava estes meios.
Daí ser uma das preocupações da religiosidade em nossa cidade para com estes costumes
proclamados como “malditos”.
92
CAPÍTULO 3
Meretrício, Igreja e Família
Do édito para regulamentar a prostituição de 14 de abril de 1830: Art. 1) ...
Igualmente fica-lhes proibido aparecer a qualquer hora e por qualquer
pretexto nas galerias, nos jardins públicos e bulevares. Art. 2) As mulheres
públicas só poderão se dedicar à prostituição nas casas de tolerância. Art. 3)
As mulheres autônomas, isto é, aquelas que não habitam as casas de
tolencia, poderão ir a estas casas após acesos os lampiões de rua. Elas
deverão se dirigir diretamente a essas casas vestidas com simplicidade e
decência ... Art. 4) Elas não podeo, em uma mesma noite, deixar uma casa
de tolerância para ir a outra. Art. 5) As mulheres autônomas deverão ter
deixado as casas de tolerância e voltado às suas próprias casas às onze horas
da noite... Art. 7) As casas de tolerância podeo ser indicadas por um
lampião, e, nos primeiros tempos, por uma mulher idosa, que se manterá à
porta... Assinado: Mangin.
114
Tanto a prostituição em si como quem a praticava sempre foram motivos de
preocupação por parte dos poderes constituídos e pela sociedade. Não obstante, existiam
códigos de conduta e observação geral para com as atitudes e espaços existentes na cidade.
Em Ipu, não raro, vamos perceber relatos de pessoas que trabalharam no quesito
controle destas mulheres, principalmente nas repartições da Força Pública, como era chamada
a Polícia da época em estudo.
Ficar na rua, transitar entre as “senhoras de respeito” e utilizar vestimentas que as
confundissem com “pessoas de bem”, tudo isto era motivo para que retaliações fossem
provocadas. No próprio meretrício, a luz, o modo como o balcão do bar era colocado, as
bebidas servidas, as músicas, os frequentadores, tudo tinha um padrão que deveria ser
seguido.
percebemos que não os usuários do meretrício com poder aquisitivo e social
mais elevado frequentavam o espaço.Havia também os useiros frequentes. Aqueles que
faziam do meretrício sua morada e a junção de todos estes parâmetros davam forma peculiar
ao espaço meretcio. O lugar se confunde com quem o utiliza, se faz dele e com ele,
principalmente.
Entretanto, existem as forças externas, que provocam modificações espaciais que nem
sempre condizem com as reais intenções de quem vivencia determinados espaços. Uma força
que não só se manifesta em forma institucional, mas temporal, não percebida na sua plenitude,
mas existente.
114
F.F.A. Béraud. As mulheres Públicas de Paris e a Polícia que as controla. Paris e Leipzig, 1889, II. pp. 133-
135. Apud, BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo/Jogo e prostituição / 1ª
ed. São Paulo, 1984.
93
Estas forças podem ser apresentadas principalmente, naquilo que se acredita, enquanto
dogma, que se torna mais forte que a própria consistência racional. A família pode ser uma
demonstração desta força, principalmente quando ela está respaldada pela instituição
religiosa, representada no momento pela Igreja Católica.
O meretrício ipuense se formara ou fora impulsionado a se formar na parte oeste da
cidade, mas precisamente na saída para a cidade de Sobral, às margens do matadouro público,
ou seja, ambos os locais considerados sujos e que não poderiam ser aceitos na parte central e
às vistas de todos.
Mas a cidade vai crescendo geograficamente e observando mais atentamente percebe-
se que o meretrício ipuense passa a ser “sufocado por prédios e repartições blicas de
grande porte com o decorrer dos tempos, mas a primeira a ser trabalhada ou construída, é a
Nova Igreja Matriz de Ipu, que tivera a benção da sua pedra primeira já no ano de 1914 com o
Pe. Aureliano Mota e localizando-se a cerca de dois quarteies do foco do meretrício.
A Igreja Matriz de São Sebastião vai ser concretizada em 1940, entretanto, desde o
período de sua construção ocios religiosos passaram a ser ministrados no local em que a
mesma seria erguida.
Intencional? Vejamos as relações. Leonardo Mota, irmão do Pe. Aureliano Mota,
comentado no primeiro capítulo, veio de Fortaleza para Ipu a chamado do iro pároco
justificando ser o Ipu uma cidade onde o progresso era corrente e para um jovem jurista a
carreira seria promissora. Leonardo Mota aqui chegando, torna-se promotor de justiça e
assume relação fraterna com a sociedade ipuense fazendo parte de todos os escritos em jornais
da cidade.
Aureliano Mota, que deu inicio à construção da Igreja, chega no ano de 1911 e sai em
1916 e desta data até o ano de 1947, o pároco foi Gonçalo de Oliveira Lima, iro de
Joaquim Lima, alto comerciante da cidade, tido como grande intelectual da época, fazendo
parte também dos jornais escritos e um dos membros fundadores do Gabinete de Leituras
ipuense, assumindo alto cargo na organização deste. Em 1930 é nomeado intendente do
município de Ipu, por conta do Golpe de Estado instalado por Getúlio Vargas.
Em 1914, o presidente da Câmara de Vereadores era Abílio Martins, que assumiu a
função de chefe do Executivo Municipal e era também um dos organizadores do jornal
Correio do Norte, ou seja, mantinha estreito laço de amizade com todos os parâmetros sociais
da cidade
115
.
115
Ver. MELLO, Maria Valdemira Coelho. O Ipu em três Épocas. Popular editora LTDA, Fortaleza,1986.
94
Assim, percebemos um emaranhado de intenções que se confundiam. O poder
temporal, econômico, potico e eclesiástico formavam uma cadeia de ligações que poderia
transpor barreiras inimagináveis se fossem colocados de maneira organizada.Pois conforme
percebemos,todas as agremiações que existiam eram relacionadas.
Os juizes e promotores de justiça, quando em Ipu chegavam ou se já fossem da cidade,
imediatamente eram assediados para as agremiações e jornais oficiais, sendo sempre aquelas
consideradas na cidade como as melhores.
percebemos que todas as situações consideradas transgressivas, eram tachadas na
cidade como desviantes e por natureza, necessárias de que fossem combatidas. O jogo, o
comércio aberto aos domingos, dia sagrado para a Igreja e por isso proibido, as meretrizes,
tudo era observado. Sobre o comércio e a Igreja católica, vejamos manchete em jornal:
Em 1904 um grupo de commerciantes desta cidade, a frete dos quaes se
paz, Manoel Marinho de Sousa Lima, conseguio que fosse, por um Lei
municipal, fechado o nosso commercio aos domingos. Esta Lei mereceu
applausos de todos os que desejavam ver o Ipú na vanguarda do progresso,
emparelhando-se com as cidades civilisadas. (...)
Passados annos, alguns dos teimosos beneméritos, levantaram a idéia
retrograda de fazer a nossa Câmara Municipal derrogar a Lei referida,
contando para isto com o appoio de alguns vereadores. Foi isto ao tempo
em que por aqui passou, em visita pastoral, o Exmo. Sr. D. Manoel, o qual
sabendo da exdruxula pretensão, aproveitando a occasião em que a mara
Municipal d‟esta cidade lhe fora cumprimentar, pedio encarecidamente a
seus vereadores, que não cogitassem de fazer cahir uma Lei, que equiparava
o Ipú às cidades adeantadas onde os domingos o consagrados ao
descanso. Mostrou o Exmo. Príncipe da igreja a vantagem da Lei que se
pretendia anular e as desvantagens de serviços aos domingos. Da presença
do S Bispo sahiram os nossos Edis certos de não consentirem no
desproposito projectado.
De certo tempo para cá, alguns commerciantes, po‟ diversas vezes, tentaram
infringir a Lei alludida; foram reprimidos. Agora, porém, estão alguns,
desrespeitando ostensivamente a Lei municipal referida.
alguns domingos se quartos da Feira, com UMA PORTA aberta,
e os seus proprierios pretextando vender gêneros alimentícios aos
operários da Estrada de Rodagem, vendem tudo o que se procura
comprar
116
.
Compreendemos então, a interrelação dos setores institucionais nos diversos pontos
existentes na cidade. A intervenção do Bispo do Ceará numa situação pertinente aos políticos
de Ipu, demonstra a força que esta instituição tinha nos acontecimentos que em Ipu se
desencadeavam.
116
CORREIO DO NORTE . Commercio aos domingos. 27/05/1920. Ano III, nº 122. p. 01
95
Interessante perceber também, que o lucro chegava a falar mais alto, pois alguns
comerciantes abriam “uma porta” numa demonstração de “meio respeito”. Não acatavam
por completo a decisão dos poticos e o pedido da Igreja, no entanto não escancaravam sua
insatisfação por completo abrindo suas portas.
A Igreja Católica se assegurava de manter a ordem em todos os pontos e para isto
contava com a colaboração de seus parceiros em todos os campos, como dissemos. Muitas
vezes, estas intenções se confundiam, pois as festas religiosas que em Ipu aconteciam, na sua
grande maioria, eram financiadas pelos grandes comerciantes e por quem representava
instituições públicas de alta contextualização.
Mas como a cidade é dinâmica e tem vida própria, as “cousas” aconteciam e se
manifestavam. Em Ipu, mesmo existindo todo um projetode modernidade, acontecimentos
considerados extraordinários passavam a ser publicados e comentados com alarde, tanto nos
ambientes de conversas como nos altares das Igrejas e nos jornais apareciam os resquícios dos
acontecimentos comentados por grande grupo.
A população não percebia que muitos dos atos praticados e situações vividas eram
frutos de uma nova ordem que estava se estabelecendo em Ipu com a chegada da estrada de
ferro. Um dos fatos de maior relevância nos jornais, segue-se:
Em noite de 27 para 28 findo, pessoas residentes nas immediações do
Açude Breguedof, desta cidade ouviram vagidos de criança partindo do
referido açude.
O facto inexplicável despertou a curiosidade dos moradores de tal local, que
vencendo enfim o terror supersticioso, entraram n‟agua e com grande
surpreza encontraram em um balseiro de matto, boiando milagrosamente
uma creança do sexo masculino.
Trazido o recém nascido às margens do Breguedof, verificou-se ter sido a
poucos momentos jogado ali com o fim de ser morto afogado, naturalmente
pela mãe desnaturada que procurava desta maneira occutar o fructo de um
amor criminoso.
Por vestigios inconfundíveis pela manhã foi verificado o local de
nascimento da creança, mesmo ali nas areias que marginam o Açude.
A policia tomou conhecimento do facto e procura a autora ou autores da
cruel tentativa de infanticídio.
Parece-nos que as diligencias vão em bom caminho, estando conhecida a
progenitora do recemnascido, que ágio sosinha com o fito de occultar a
vergonha de seo estado clandestino.
Trata se do caso de pessoas do povo mesmo residentes
117
.
117
CORREIO DO NORTE 01/08/1921. Tentativa de Infanticídio. Ano IV, nº 186. p.01
96
O Açude Bergdoff, na escrita e pronuncia correta, foi construído no ano de 1877, por
conta da seca que assolava o Estado Nordestino naquele ano. Projetado pelo engenheiro
alemão do mesmo nome, para homenageá-lo a população passou a chamá-lo no linguajar
popular de Breguedoff.
Não obstante, com a formação do meretcio ipuense, em suas margens foram
construídos casebres e pontos comerciais que serviam para as práticas meretrícias. Era de
(do açude) onde a população do meretrício retirava a água necessária tanto para lavagem
como para o consumo próprio e ao passar dos tempos, com as fortes chuvas que caíram em
Ipu, suas barreiras não suportaram a força das águas e ruíram, nunca mais sendo
reconstruídas, formando assim um aglutinado de casas que faziam a continuação do
meretrício.
O local no ano de 1921 foi utilizado por uma meretriz como esconderijo e abandono
de um filho recém-nascido, com a finalidade de que o mesmo morresse afogado”, pela mãe
desnaturada que procurava desta maneira occultar o fructo de um amor criminoso”.
O amor criminoso, como retratado na matéria do jornal, poderia ser decifrado de
rias maneiras. Quem era o pai da criança? Geralmente as meretrizes possuíam incontáveis
parceiros e não era fácil saber quem realmente era o genitor. Nos cartórios de registros
ipuenses, não raro se acha registros de crianças sem o pai ou pai ignorado.
Quais eram as condições de sobrevivência desta mãe e a forma como era vista na
sociedade? Ora, a meretriz, como já viemos percebendo desde o inicio, não tinha a
possibilidade de ascensão social fácil. Sua vida era baseada numa constante luta pela
sobrevincia, tanto como pessoa como profissional.
Ter um filho, levá-lo para as condições de vida considera desregradas, num ambiente
de sexo e bebidas, recebendo homens, vivendo entre olhares e regras e ainda, ter ou não a
aceitação por parte das “madames”
118
de uma criança no “ambiente de trabalho seria
demasiadamente complicado.
Ser mãe para a meretriz, diferente do que acontecia com as famílias institucionalmente
organizadas, trazia sérios problemas para a sua vida enquanto mulher e profissionais do sexo..
Vejamos que a pocia fora acionada para resolver este problema e que o jornal oficial
da cidade fez questão de noticiar tal fato em primeira página, demonstrando a situação para a
118
Sobre este conceito, ver: MONTEIRO, Francisco Gleison da Costa. A cidade e o meretrício: trilhas e
memórias do mundo da cancela: Tianguá-Ceará 1950-2002. Fortaleza: Dissertação de mestrado pela
Universidade Federal do Ceará, 2004.
97
população, como forma de angústia e velo para com tal acontecimento. E quem era esta
polícia?
Infelizmente, em nossas fontes, encontramos comentários sobre ações policiais,
filtradas a partir dos interesses de quem escrevia, geralmente, de cima para baixo”, portanto,
recorremos à hisria oral neste momento, para tentar entender um pouco de como
funcionavam as relações entre a Força Pública e o meretrício, a partir do depoimento de um
velho policial aposentado, não esquecendo o que nos disse Portelli, quando nos propomos a
trabalhar com este tipo de fonte. Vejamos:
A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social
dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e
compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes,
contraditórias e sobrepostas.
119
O policial que trataremos, chegou à cidade de Ipu na década de 50, mas frequentes
eram as suas investidas no meretrício, tanto a trabalho, como nos horários de folga e
recorremos a ele, no sentido de que tinha a experiência repassada por seus colegas mais
antigos, como bem afirmou em várias de nossas conversas. São semelhanças
compartilhadas”, nas palavras de Portelli.
Como eles tratavam as meretrizes, e sobre os temas aqui abordados, é enfático quando
diz que:
... agente tinha que manter a ordem. Essa determinação de prender as
raparigas se fossem pegas na feira partiu do delegado, um sargento muito
duro, que não queria “disordi” na cidade, nem bater de frente com a
população (...) mas eu nas hora de folga, também dava minhas “iscapulida”.
Eu gostava...
120
Estes policiais que deveriam manter a ordem, frequentavam o meretrício. Vejam o que diz o
soldado, quando narra que o delegadonão queria bater de frentecom a população. Mas que ele
também dava as suas “iscapulidas” junto com os companheiros e que gostava desta situação. Era um
jogo duplo.
119
PORTELLI, Alessandro. Tentando Aprender um Pouquinho. Algumas Reflexões Sobre a Ética na História
Oral. In: Projeto História. São Paulo: Programa de Estudos Pós-Graduados em História e Departamento de
História. Nº 15. 1997. p. 16
120
F A E. (Identidade preservada, sendo utilizada somente as iniciais de seu nome) Policial aposentado, com
mais de 40 anos de policia, aposentado com a graduação de sargento, (mora atualmente em Ipueiras-Ce, a 28 km
de Ipu) que fala com muito orgulho das suas peripécias, segundo ele, quando visitava o cabaré. Conclui dizendo
que, cedo ia “botar moral”, depois fechava o cabaré para ficar com as “putas”, com mais alguns companheiros.
Trabalhou muitos anos em Ipu. Entrevista concedida em 26/05/2005
98
percebemos anteriormente que a sociedade cobrava nos jornais este controle de
circulação das meretrizes na cidade. Vimos também que existiam “leis” que regimentavam
este controle, muito embora não fosse aqui e num tempo diferente, porém, o meretrício, ou as
práticas meretrícias deveriam ser observados de perto, e neste sentido, a polícia estava
fazendo o papel que a sociedade esperava.
Mas agora era um caso excepcional. Além dos crimes cometidos para com a sociedade
pelas práticas meretrícias, uma criança fora literalmente lançada às águas de um açude para
que acontecesse o anonimato de uma situação ou fuga para a condição de vida em que a
protagonista do ato vivia.
A policia deveria agir com a utilização da razão, esquecendo as “amizades” existentes
no meretrício e os jornais, ao que se esperava também fazer suas cobranças no que se referia
inclusive à questão da vida.
No entanto, o que se percebe na edição seguinte é uma observância totalmente
diferente do que se esperava. A meretriz não fora colocada como um monstro”, como na
primeira edão, mas como tima da sociedade. Vamos à matéria:
(Uma pobre moça do povo deo a luz occultamente no açude Breguedof e
deixou o recém nascido em uma moita de capins. A creaa foi salva
milagrosamente).
Ao sahir ca neste mundo
Foi logo escapando a morte
Sô mesmo filho... sem pai
Pode ter tão grande sorte.
Qualquer cria de casal
Não terá vida o forte.
Qual Moysés salvo das águas
Salvou-se sobre o capim
Se Moysés fez tanta coisa
Que não fará o Negrim?
121
J.P
A meretriz é chamada de pobre moça”, talvez por conta da sua infeliz situação de
vida, mas não se esquece que ela é do povo, mundana ou à margem da sociedade. Suaviza-
se a forma como era tratada. Não se faz menção à retaliação ou punição que a mulher deveria
ser submetida, mas ao acontecimento em si, que passa a ser romanceado, mesmo que de
forma depreciativa em alguns pontos.
121
CORREIO DO NORTE. Um facto cada semana. 07/08/1921. Ano IV, nº 187. p. 01
99
mesmo filho... sem pai”, utilizando as retincias para não dizer diretamente: filho
de prostituta. Se fosse filho de casal, não teria tanta sorte. O filho da prostituta já nascia com o
estigma de que travaria uma batalha pela vida no seu nascimento. Sua vida seria uma luta
constante pela própria sobrevivência.
Na vida em família regular, o filho já nasceria dentro dos padrões relativamente
sociais e a sua vida seria definida de acordo com as intenções dos pais. Previamente já se
saberia qual o destino dos filhos e a sorte não precisaria, a certo ponto, ser conclamada, pois
as condições de vida os direcionava provavelmente para o comércio ou para as faculdades de
direito ou medicina, que eram as mais procuradas no momento.
É um poema que demonstra muito dos valores da época. Talvez um dos que mais nos
traz reflexos de como a população que circulava entre os jornais percebia os demais
integrantes da sociedade.
Se Moysés fez tanta coisa, Que não fará o Negrim”. O menino, mesmo nascendo
vencendo a própria morte, sendo aclamado como “salvo das águas”, não perde a sua condição
de filho de prostituta e muito menos a sua condição racial. Pouco se percebia até então estas
questões nas escritas dos jornais, embora muito se achasse e se soubesse da forma como os
negros ainda eram tratados nestas primeiras décadas do século XX.
E ninguém mais falou no assunto. Não nos jornais. Não nos meios oficiais de
comunicação da cidade, não nos impressos. E ninguém sabe qual fora o fim tanto do menino
salvo das águas e nem de sua genitora, que tentara cometer o ato de infanticídio para com o
fruto de suas relações meretrícias.
Saber quem era o pai, esta seria a questão mais difícil de ser respondida. E este talvez
nunca tenha sabido do que acontecera com seu filho, logo ao nascer. O que se sabe é que
existiram especulações de várias maneiras, de prováveis pais para a criança, mas a história
tomou o rumo do silêncio e alguém criou a criança, sem podermos dizer quem tivera tal ato de
coragem.
Uma família fora buscada para o Mois Ipuense. E Moisés não veio salvar os seus.
3.1. A mulher casada e as traições do marido. Um curso católico
ADVERTENCIA: A leitura do presente livrinho é prohibida aos menores
de 18 annos, mas muito aconselhada a maiores dessa edade e aos paes,
principalmente.
122
122
MME. PERMOND. Conselhos d’uma mãe a suas filhas. Petrópolis RJ, ed. Centro da Boa Imprensa,
1923. (Folha de advertência solta dentro do livro, datada de dezembro de 1923, com timbre da gráfica Boa
Imprensa).
100
Por que uma advertência desta natureza em um livro escrito e impresso por órgãos
religiosos e direcionados para serem trabalhados nas Igrejas Católicas? Antes desta análise,
vamos ver as condições reais desta fonte
123
.
Embora fosse uma prática comum as mulheres chegarem ao casamento antes dos
dezoito anos de idade, entendemos que a Igreja Católica apoiava a necessidade da maioridade
dos jovens para que o ato fosse executado.
O livro era um trabalho relacionado à formão de jovens mulheres calicas que
estavam às vésperas do casamento, e assim, como era de costume na época (e ainda hoje),
existir a necessidade de um curso para as futuras esposas antes da realização do ato cerimonial
pelo padre.
Este curso não dispensava outro, que era a reunião p-nupcial
124
, onde aí sim, se
encontravam os casais, homens e mulheres para receberem as instruções a respeito da vida em
matrimônio e a forma como deveriam conduzir suas famílias que a partir daquele instante
passaria a ser formada.
Que situações preocupavam tanto a Igreja e o porquê desta preocupação? Entendemos
que, se existia a preocupação era porque existia o problema e de certa forma de maneira bem
acentuada. Um problema a ser trabalhado de forma direta pois assim acontecendo, poderia ser
extirpado do seio da sociedade ipuense.
Adentrando no conteúdo do livro, relacionando o que ele tinha a ver com as práticas
meretrícias por parte dos maridos e a vivência das esposas, vamos esclarecer primeiramente
as condições em que ele se achava no momento de nossa primeira abordagem.
O encontramos numa caixa grande, entre várias outras, que continham livros e
documentos, a maioria relacionados a formações religiosas como se fossem espécies de
cruzadas a serem realizadas por integrantes de grupos da Igreja.
Eram documentos de todas as espécies, desde cânticos e louvores, orientações dos
bispos e padres e até mesmo determinações transcritas oriundas do Vaticano. Todos os
documentos estavam organizados e selecionados por categoria, demonstrando a preocupação
em não misturar o direcionamento dos trabalhos religiosos; e cada setor religioso divido em
grupos de voluntários ficava responsável por um segmento a ser trabalhado na comunidade
religiosa.
123
Este paradoxo entre livro/fonte escrito no parágrafo, ocorre devido às condições em que fora utilizado o
livro/documento na cidade de Ipu. O manejo e as intenções pelo qual ele aqui chegara. Quem trouxe e quem
trabalhou os cursos, era pessoas diretamente ligadas aos serviços religiosos, daí existir a relação neste caso que
não podemos nos furtar entre ele ser realmente uma referência bibliográfica e/ou uma fonte a ser trabalhada.
124
Estas reuniões com pessoas da Igreja Católica, por muito tempo ficaram conhecidas como “banhos”. Sem elas
o ato cerimonial não poderia acontecer.
101
Estes documentos estavam na casa da falecida Valderez Soares, que dedicou sua vida
às práticas religiosas, sendo catequista missionária da Igreja Católica de Ipu, e assim, entre os
livros adquiridos no decorrer de sua vida, encontravam-se vários outros que herdara de sua
família conhecida pela tradição religiosa que dispuseram ao longo de sua existência.
Sendo assim, por que a intenção da editora religiosa em manter o máximo de
resguardo para com um livro que, necessariamente, seria utilizado num curso para recém
esposas?
É um livro escrito em forma de cartas direcionadas, com assuntos específicos, que
serviam como “conselhos”, como bem dita o título e que entre as vinte cartas nele contidas,
formando um total de 160 páginas, nos chama maior atenção 06, pela sua relevância para com
nossa pesquisa.
Carta I: A Simplicidade
Carta III: Cautelas que a mulher deve ter (página 16)
Carta IV: Os primeiros tempos do casamento (página 21)
Carta VI: A importância de agradar o marido (página 40)
Carta VIII: Reflexões sobre distracções mundanas (página 56)
Carta XIII: Procedimentos da mulher chistan nas infidelidades do marido
(página 94)
125
Não esqueçamos que o curso, com estas prerrogativas era direcionado para todas as
mulheres que ficavam noivas, no entanto, quem ministrava eram pessoas ligadas aos
convívios de sociabilidade direcionados à “boa gente” ou “melhor sociedade” de Ipu,
principalmente as mulheres, esposas dos integrantes das agremiações que já nos reportamos.
A mulher casada deveria ser simples, honrada e acima de tudo, virtuosa, sabendo
conviver com as situações que porventura o casamento propiciasse e, além disso, manter o
distanciamento de pessoas consideradas aquém da sociedade, inclusive nocivas a ela, no caso,
as mulheres consideradasblicas.
A cidade vigiada, os costumes controlados e a Igreja, como os homens da cidade
atentos aos novos acontecimentos quando pensavam que:
Na épocha em que vivemos, têm as meninas tantas liberdade que
nunca será demais repetir-lhes, que tenham todo o cuidado nos seus
propósitos e palavras, pois que, pela sua leviandade e falta de reflexão,
poderão chegar a commeter faltas irreparáveis
126
.
125
MME. PERMOND. Conselhos d’uma mãe a suas filhas. Petrópolis RJ, ed. Centro da Boa Imprensa,
1923. pp. 159-160.
126
Idem, p. 14.
102
A mulher era controlada neste sentido, as meretrizes vigiadas e os “senhores” também.
Embora as formas como se davam estes olhares acontecessem de formas diferenciadas, o fim
real seria o mesmo,a manutenção de uma boa sociedade. A moral social que serviria de
parâmetro para a ostentação de uma sociedade caracterizada pelo respeito e pela ordem.
A união dos homens e mulheres deveria ser galgada pelos preceitos religiosos, pela
ordem divina, pelo controle social. A família deveria ser respeitada, como a mulher também.
Neste sentido, podemos ainda justificar o porquê de o meretcio ser fechado, reservado, pois
nestas características não poderia ser confundido com um lugar familiar, mas um ambiente de
busca de prazer e orgias, de conversas as escondidas, de debates que poderiam transformar os
rumos da sociedade.
Homens e mulheres deveriam ser os responsáveis sociais por estas situações de
manutenção da ordem, do zelo pela convivência pacífica, ordeira, mas acima de tudo,
familiar. E os jornais, oficiais ou não, estavam prontos para agir quando esta ordem fosse
inobservada.
As cidades em suas transformações, trazem situações que nem sempre agradam a
todos ou parte dela. As modificações existentes em hemisférios diferentes são conduzidas
para as cidades numa manifestação de ligação, pois como já vimos, nos trilhos da linha férrea
ipuense, muitos jornais, revistas e pasquins chegaram e eram tidos como verdadeiras requias
por aqueles que os recebiam.
O namoro ou um determinado namoro, se exposto e não oficializado, passaria a ser
observado.
Grande revolução no inferno, por causa das danças. Schottis, ch e
mazurk triumpham o namoro dos dois casados. O que diz a mãe Nogueira
(...) Peço mandar repórter syndicar namoro do F. Frota (viúvo) se é mesmo
p‟ra cazar ... do contrario...
Valeriano
127
Percebemos que a Igreja tinha a intenção de preparar a mulher para o casamento e o
homem deveria ter também a preocupação do zelo pelas mulheres da cidade. Aparecer num
jornal no estilo de A Futrica era o presságio da vigilância, da observação.
Os integrantes e editores” deste jornal eram os mesmos que escreviam e editavam no
Correio do Norte. Este, porém, de circulação local. Em todas as suas edições, que não chegou
127
A FUTRICA. ORGAM CRITICO DE UMA SOCIEDADE ANONYMA. Anno I, Ipu, 05 de junho de 1921.
NUM. 3. p. 01.
103
a dez, direcionava as pessoas que deveriam ler as manchetes, ou seja, apenas aqueles que
pertenciam ao quadro que integrava a sociedade.
Não se discute, entretanto, se as mulheres dos envolvidos tinham acesso aos conteúdos
escritos nestes jornais, porém, fica difícil acreditar que diferente acontecesse.
Numa sociedade de “futricas”, “fuxicos” e observações, e não obscuras as intenções,
fácil se achariam exemplares destes jornais nas residências locais. Não raras às vezes,
matérias publicadas chegaram a ser discutidas nas reuniões acadêmicas e gremistas da
sociedade. Sensações de desagravo aconteceram várias vezes por esses motivos, pela
exposão de nomes que certamente” não deveriam ser apresentados em público.
Relembremos que a função de alguns jornais era mesmo esta e não existia interesse de
esconder estas intenções.
COM LICENÇA. Esporando o seu corcel, fugindo as carícias da
“Bailarina” e frostrações (sic) eil-a que chega sorridente “A Espora”.
Este nosso jornalzinho vem prehencher uma lacuna de nossa critica
local, mas critica não immoral como muita gente boa suppõe que critica é
immoralidade.
O nosso programma será defender a moral e corregir as proezas de
nossos moços bonitos” e demais assumptos que interessam a
collectividade. Esperamos anciosos o melhor acolhimento e não irritem-se
com nossas palestras e aconselhamos andarem bem direitinho para não
desmantelarem a rota d‟ “A Espora”
128
.
Portanto, vemos que não a Igreja, mas todo um corpo organizado se aprontara no
intuito de talhar a boa ordem da sociedade. A mulher e os “moços bonitos” de Ipu se achavam
entre olhares tanto temporal como religioso e neste sentido, fazia-se necessário que toda uma
trama se desenrolasse entre estes olhares.
Esta sociedade não acatava deslizes de homens nem de mulheres, pom, estas eram
bem mais vigiadas, se o as consequências para com elas seriam das mais severas,
principalmente no quesito social, pois:
Quando um ser humano se equivoca na sua escolha, principalmente
se o ser que vacila e se perde na busca do ideal é uma mulher, a sociedade,
tão exigente e deformada pela moral contemporânea, não o acode. Pouco
importa à sociedade que a alma e o coração de uma mulher que se equivoca,
se destrocem no fragor das decepções. Não a ajudará, mas, ao contrário, a
perseguirá com fúria vingativa para, inexoravelmente, condena-la
129
.
128
A ESPORA. ORGÃO CIVILISTA CRITIC, LITTERARIO E NOTICIOSO. Redactor Dr. MATTA BICHO.
Anno I. Ipu, 19 de janeiro de 1919. NUM. 01
129
KOLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. São Paulo: Expressão Popular. 2008. p. 32
104
Embora Kolontai trabalhe sobre a mulher contemporânea, esta é a do inicio do século
XX, sobre o qual baseamos nossa pesquisa. O homem errava e a mulher também. O homem
participava da família, da sociedade, entretanto, vivenciava também o meretrício. Viver entre
estas questões, estes pontos, tornava-os ambíguos nas intenções. Os olhos que vigiavam
estavam em todas as partes e estas questões eram resolvidas nos padrões que a época
ostentava como correta e aceita.“Esporar” os homens e as mulheres que se desvirtuavam na
sociedade, dar-lhes a devida punição que deveriam receber e execrar seus nomes nos jornais
para que toda a sociedade tomasse conhecimento.
Muitos foram os casos em que pessoas do rol social considerado elitista foram
colocadas “entre aspas” ou com cognome, como vimos, pom, não raras às vezes,
apareceram também toda a nomenclatura de quem se queria apresentar, inclusive com as
situações pela qual foram apontados como infratores no jornal.
Os olhos que tudo via não deixava escapar nada, como bem frisavam em suas
manchetes e como vimos na apresentação que se seguiu, o que interessava eram os homens
tidos como importantes entre todos, o que dava a eles um lugar de destaque nas manchetes e,
portanto, um maior interesse em se ler o que se escrevia nas páginas dos jornais.
Esta rua do Chico Novato está digna de nota.
Uma noite destas um grupo de moças brincava a prenda e o redactor
d‟ O Barbicacho achegou-se e conseguio presenciar tudo; quando aponta
no canto da rua o Campos e o Aderbal, uma moça brada! lá vem os
redactores d‟ „O Barbicacho” !.. Te esconde Vicente!!.. e Vicente não
achando lugar acocou-se juncto a ella e ella cobriu elle com a saia de sorte
que passaram os dois sem Vicente ser visto.
Ora tamanha indecência não se pode tolerar. Que moça!... e “O
Barbicacho” tudo vê e tudo ouve, depois quando foge uma noiva de lá...
130
Com certeza estas moças e estes rapazes que estavam na Rua do Chico Novato, que
conhecemos do Capítulo II, passaram despercebido pelos ensinamentos da Igreja, entretanto,
o passaram pelos olhares e escritos do jornal. Lembremos que era nesta rua que funcionava
o meretcio e assim, vai acontecer à fusão entre as “moças” que habitavam aquele local, os
rapazes que frequentavam e os “olhos” que procuravam os erros da sociedade.
Um dos fatores que nos chamou a atenção foi o contato que as meretrizes tiveram com
os redatores do jornal O Barbicacho. Saber que a exposição de determinadas pessoas poderia
acarretar consequências negativas para si, tendo a preocupação de escondê-los inclusive em
130
O BARBICACHO. VIDA NOVA E NOVA VIDA. ANNO I. NUM. 03. Ipu, 11 de janeiro de 1920. p. 03.
105
suas saias, para protegê-los das falácias ou das escritas nos jornais ou mais precisamente no
Barbicacho.
Estas “moças fugidas” do meretrício eram aquelas que saiam do espaço reservado a
suas atividades e transitavam pelo centro da cidade, sem a preocupação de serem
importunadas pelas autoridades competentes e pela própria sociedade, que não acatava suas
investidas nestes espaços centrais.
Um determinado cidadão ou mais, que adentrava no meretrício e fazia uso das
mulheres, dando a elas a liberdade de convívio, mesmo que reservado, poderia servir como
canal de ligação entre a cidade em si, representada pelos homens agremiados e selecionados
em instituições com suas famílias e o meretcio, local impuro e renegado, exposto as mazelas
de vidas desregradas.
Os jornais, como a Igreja, tinham essa relação de controle. E vejamos que do ano de
1918 em diante, até meados de 1922, esporadicamente, pilhéricos são lançados na cidade,
com nomes fictícios e autores anônimos. Sabemos que os redatores são os mesmos, então,
pressupõe-se da necessidade que estes homens tinham de também vivenciar o lado mico
nos jornais, mesmo que observando a cidade.
Quando A Futrica” apparece, muitos mocinhos que estão alto
descem.
E é o caso.
O jornal critico é uma arma do abuso e intolerancia deste pessoal que
sem cabresto quer viver a uma exploração que damnificam a moral.
E não tenham queixa.
Quem não quer ser bobo não lhe veste a pelle
131
.
Viver sem cabresto, numa sociedade que possuía ou deveria possuir regras de
convivência, de respeito às leis, tanto temporais como espirituais e principalmente respeito à
ordem, e transgredir estas regras, aparecia como uma afronta social.
O padre, a sociedade, as famílias, enfim, todos os segmentos deveriam se unir para
combater estas intransigências e por fim as atitudes que se apresentavam como perniciosas
para o convívio em sociedade, principalmente a ipuense que se mostrava, cheia de tendências
futuristas, na visão de alguns.
Praça da Matriz 4. Chamo vossa attenção para o namoro de dois gajos nos
corredores da Igreja, durante a novena.
Deó.
131
A FUTRICA. ORGAM CRITICO DE UMA SOCIEDADE ANONYMA. Anno I, Ipu, 05 de junho de 1921.
NUM. 3. p. 02.
106
N. da R. Queixe-se ao seu pai ou então ao sr. vigário. Não somos nem
sineiro meu bem...
132
Conforme nos é a apresentado nas ultimas fontes, é frequente no mesmo período uma
interrelação entre os poderes sociais “constituídos” e a Igreja. Ambos preocupados com a
forma como a sociedade e a família se moldavam, se configuravam e se desenvolviam.
No namoro dos dois gajos”, percebemos a transcendência do acontecimento. Deixa
de ser particular, na vida a dois para tornar-se público, passivo de chegar às páginas do jornal
e ainda, quando se refere à possibilidade de retaliação para com o ato, o pai ou o padre é quem
deveria tomar as provincias, entretanto, não deixa de ser veiculado a manchete no referido
jornal.
A moral ou busca de manutenção desta é uma constante. A mulher deveria ser família,
e o homem, perpassando todos os pontos de crescimento enquanto ser, deveria manter ou
ajudar manter o bom condicionamento da família e da sociedade.
Violar os preceitos sagrados, com namoros na presença do óro dirigente maior da
cristã, ou seja, da Igreja Católica da época, seria a caracterização de desrespeito maior, de
inconstância religiosa e, sobretudo, de menosprezo pelos ensinamentos religiosos, deixando-
se a necessidade carnal sobrepor-se sobre a moral, principalmente religiosa.
3.2. Entre o lar e o meretrício. Ser casada e ser traída.
As prostitutas, cuja „condição é vergonhosa‟, e „não aquilo que elas obtêm‟
(...) encontram-se, pois em grandes ou pequenos bordeis comunais ou
privados, banhos públicos e outros lupanares, vidas dos arredores da cidade,
onde exercem o mais antigo oficio do mundo‟, frequentemente após terem
sido violadas por grupos de jovens que buscam, por sua vez, exercer e
aguçar sua virilidade. Relegadas, mas igualmente reguladoras da sociedade,
as prostitutas vivem em seus corpos as tensões da sociedade (...)
133
.
Relegadas e reguladoras da sociedade. A condição da prostituta descrita por Le Goff
em sua análise o se diferencia muito da descrão desta feita em nossa pesquisa. A vida em
sociedade com todos os seus conflitos, mostram essas diferenciações intencionais. Essas
práticas existenciais.
A mulher não escolheu ser meretriz por simplesmente querer. Toda uma estrutura foi
desencadeada para esta prática como percebemos ao longo da pesquisa, principalmente no
132
Idem, p. 02.
133
LE GOFF, Jacques. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p.
55
107
capítulo II. Mas a esta vida adentrando, sua condição social a lançaria para outra estrutura: a
de reguladora.Consciente ou não, a meretriz agia como se o meretrício fosse além do seu lar a
extensão de outros lares dos homens que lá frequentavam.
Ter uma família também era um desejo seu. Constituir uma vida regrada, claro que
o funcionando em sua totalidade esta assertiva, era também uma intenção das mulheres que
viviam no meretrício. Deixar a vida à toa e constituir um lar, com um marido somente seu e
uma casa com filhos para serem cuidados com decência e até dentro dos moldes que a
sociedade acatasse.
Estas mulheres eram frutos do seu destino, da sua vida condicionada logo na infância
ou adolescência, tiradas de uma determinada vida social e colocadas num parâmetro de
observação e controle, num ambiente confinado e explorado: num meretrício.
“As de natureza frágil e passiva continuam fortemente vinculadas ao lar. Se
as necessidades materiais as arrancam do lar para lançá-las na tormenta da
vida, estas mulheres deixam-se levar pelo caminho fácil da prostituição
legal ou ilegal, casam-se por conveniência ou lançam-se à rua”
134
.
Nas cartas de Madame Permond, nos jornais ou mesmo na própria historiografia,
percebemos que existe uma intrínseca ligação entre o lar e as práticas meretrícias quando nos
referimos aos maridos. A preocupação direta destas situações contrárias a ordem social.
Kolontai trabalha a forma como as mulheres deixam de ser privadas para tornarem-se
públicas. Casar por casar ou lançar-se à “vida fácil” do meretrício, da prostituição.
E o homem achava-se entre estes dois parâmetros da sociedade. Sentia a necessidade
de lançar suas taras pecaminosas, seus instintos sexuais devassos e neste sentido, a meretriz
desempenhava este ofício e com propriedade e a convincia no lar, com uma vida sexual
nem sempre fugindo a ordem do patriarcalismo, ou seja, a mulher esposa servindo apenas
como companheira e fonte de procriação, como bem determinava a passagem bíblica de
Gênesis quando fala sobre a criação.
A Igreja, em determinados momentos, fazia “vista grossa” para as traições dos
homens, embora as condenasse. Entretanto a família deveria ser preservada e este era o ponto
de preocupação do clero: a manutenção desta ordem. No curso direcionado às mulheres
noivas, este quesito era trabalhado com maior assiduidade, dada assim à possibilidade mais
uma vez de termos como certeza que os homens eram usuários destas práticas meretrícias.
134
KOLONTAI. op. cit. pp. 18-19.
108
A finalidade principal dos ensinamentos era a forma como a mulher deveria proceder
no casamento, de maneira correta e convivendo (se fosse o caso), com as práticas ditas
mundanas que o marido pudesse adquirir ao longo do matrimônio.
Se o marido usasse destas práticas, os ensinamentos religiosos davam dicas de como a
mulher traída procedesse para que o mesmo se afastasse de tais práticas, ou se não
conseguisse, ao menos mantivesse os filhos distantes daquela “contaminação”.
Vejamos:
Uma vez não são vezes, e, se o marido começa a teimar para um lado e a
mulher para outro, elle há de espreitar a ocasião de lá ir (...) ou enganal-a, o
que será ainda bem peior
135
.
Quando a Igreja tentava incutir no pensamento da mulher casada que “uma vez não
são vezes”, podemos perceber que a ela lançava-se a base da tolerância em relação as saídas
do marido, e que ela deveria agir com cautela, para que este tomasse consciência da atitude
que tivera como errada e não voltasse a trair.Perceba que o texto é expcito em dizer que o
homem pode incorrer no erro novamente, se a mulher começar a “teimar”, ou seja, “brigar”,
ou cobrar explicações sobre os atos praticados pelo cônjuge.
Uma vez não são vezes, ou seja, ainda teria jeito para que o homem se conscientizasse
e a Igreja reconhecia esta fraqueza do homem, assim como também reconhecia a existência do
meretrício e as práticas na cidade. Estamos falando de uma instituição moralizadora, mas que
de certa forma, nestas cartas, vai tentar lançar base para que a mulher utilizasse seus dotes”
para prender o marido no seio da família, mesmo que para isso, precisasse se sujeitar à
tolerância da prática da traição por algumas vezes, ou seja, “vencendo o marido pelo
cansaço”, nas suas saídas para o meretcio.
Vejamos o que nos diz Rago a respeito disso:
A construção da prostituição como fantasma atingia alguns alvos
estratégicos precisos: instituía as fronteiras simbólicas que não deveriam ser
ultrapassadas pelas moças respeitáveis, ao mesmo tempo que se organizava
as relações sexuais num espaço geográfico da cidade especialmente
destinado à evasão, aos encontros amorosos, à vida boêmia. O ideal de
pureza de mãe, que se reforça na passagem do século (...) tornava necessária
a presença imaginária da meretriz em lugares destinados para a liberação
135
MME. PERMOND. Conselhos d’uma mãe a suas filhas. Petrópolis RJ, ed. Centro da Boa Imprensa,
1923. pp.57
109
das fantasias sexuais, para o desfrute do prazer, para a „descarga‟ das
energias libidinais masculinas, como se acreditava então.
136
Rago também concorda com a existência do meretrício como espaço reservado às
praticas sexuais e “descarrego” de fantasias por parte dos homens. Porém, percebemos relação
com nosso objetivo neste instante, quando faz alusão ao ideal de pureza de mãe, e aí,
recorremos à nossa última citação, que discorre sobre o procedimento que a mulher deveria
ter a partir das “saídas” do marido para este lugar que Rago se refere como boêmio, próprio
para as satisfações libidinosas que o marido porventura pudesse ter, e , o dever da esposa em
transformar seu marido numa espécie de exemplo para com os filhos e a sociedade.
A Igreja não nega esta existência nem as práticas meretrícias, quando trabalha esta
conscientização por parte das esposas. A mulher esposa deveria ser pura e capaz de purificar
também o seu lar, e para isto, deveria estar preparada para as possíveis desventuras de seu
casamento, a que é trabalhado nesta cartilha no momento das reuniões dos pré-casamentos.
Confronto entre as esferas de atividade erótica hoje e em meados do século
passado: o jogo social do herotismo gira hoje em torno da questão: a onde
pode ir uma mulher digna sem se perder. Representar os prazeres do
adultério sem provas (...) O terreno onde se decide o duelo entre o amor e a
sociedade é, pois, o âmbito do amor “livre”, em sentido muito amplo.
137
Não podemos perder de vista, que estamos nos reportando ao inicio do século XX e
que, não a cidade de Ipu, mas em todo âmbito nacional, estavam existindo transformações,
sejam nos campos poticos, econômicos ou sociais, principalmente depois da Proclamação da
República Brasileira, em 1889.
Nos Estados também existiam diferenças e o município ipuense estava interligado aos
acontecimentos, a partir das instituições que aqui se instalavam e ainda, com os livros que
eram encomendados da Europa para o Gabinete de Leituras, chegando aos munícipes a partir
da estação ferroviária.
Entre estes livros, se encontravam livros de poesias, contos, manchetes nacionais e
internacionais através das revistas e jornais, clássicos da literatura, cartilhas religiosas e vários
livros sobre a Igreja Católica e os cavaleiros templários
138
, onde acreditamos que, muito
136
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. p. 41
137
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo/Jogo e prostituição / 1ª ed. São
Paulo, 1984. p. 241.
138
Parte destes livros de acham na Biblioteca Francelina Martins da Escola Auton Aragão, principalmente os que
se referem às categorias aqui citadas.
110
embora tenham chegado pelas vias da estrada de ferro, podem ter sido dirigidos pela diocese
de Sobral, ou foram trazidas de forma particular pelo pároco ou agremiados.
No entanto, sabemos que aqui existiam estes materiais, que trabalhavam condutas
familiares e que era de responsabilidade da Igreja Católica em repassar estes ensinamentos.
Este espaço divirio entre o lar e o meretcio, percorrido por determinados maridos,
colocava a mãe de família numa situação de vigilância contínua, pois tinha que controlar seus
atos, para não perder o marido, conforme percebemos anteriormente, a partir dos
ensinamentos da Igreja no curso para o casamento. Vejamos outro ponto que dividia a esposa
nas suas ações, perante as “escapulidas do marido”.
E por isso é necessário que uma senhora joven, depois do casamento, se
fortaleça vigorosamente nas suas creas religiosas e a sua energia moral
seja tão grande que possa affrontar o perigo sem se deixar cahir nelle. Ella
tem de ser sempre a sentinella vigilante da honra de seu lar.
A mãe de família tem de mostrar sempre desgosto d‟esses divertimentos
pouco moraes, d‟essa literatura infame, que corrompe todas as classes da
sociedade; tem de pensar nos perigos a que se expõe a mocidade,
principalmente os seus filhos, que nunca deve deixar contaminar.
139
Vamos perceber o perigo paralelo que as esposas estavam inseridas, quando não
aceitassem” as saídas do marido em relação ao meretrício, não controlando de forma segura
o seu casamento, a partir dos ensinamentos da igreja. até onde pode ir uma mulher digna
sem se perder”, utilizando as palavras de Benjamin, e corroborando com a citação supra.
A esposa não poderia se influenciar pelas escapulidas do marido, tendo que controlar o
seu casamento como sentinela e vigilante do lar. A mulher estava inserida neste contexto,
ainda mais emblemático, quando na carta a autora vai colocar os divertimentos pouco moraes
(sic), como sistema impregnado na sociedade, como se a prática meretrícia não escolhesse seu
público, mas fosse generalizada.
No fim da citação, outro ponto embletico, seria a preocupação da mãe de família
para com a formação de seus filhos, e aí, percebemos que as práticas meretrícias seriam
lançadas para os meninos homens, dentro dos ensinamentos religiosos, como perniciosa da
moral e bons costumes, práticas estas defendidas pela Igreja.
Vamos nos ater mais ao ponto em que nos é lançado esta homogeneização das traições
na sociedade, muito embora as cartas fossem lançadas para diversas paróquias e escritas em
caráter geral, como se em todos os locais existissem as mesmas situações.
139
MME. PERMOND. op. cit. pp. 59-60
111
Não é, portanto, nossa intenção perceber isso de maneira geral, pom, estes
ensinamentos foram escolhidos para serem trabalhados em Ipu, onde já sabemos da existência
do meretrício, como trabalhamos anteriormente.
A preocupação de maneira direta para com estas práticas na cidade nos motiva a
pensar nas tendências meretcias que se instalaram em Ipu, ou seja, a partir do início do
século, bem como já vimos, no controle que se lançava para com estas práticas, seja por conta
da sociedade, seja pela Igreja, como estamos percebendo.
Com essa premissa, observamos que toda organização se dá sobre uma perspectiva de
desequilíbrio, ou seja, para os poderes sociais e religiosos da época a existência do meretrício
fazia com que se necessitasse de um planejamento familiar e uma conscientização dos fiéis,
surgindo a partir da Igreja, bem como o controle da sociedade que utilizava os jornais para
denunciar as andanças de seus membros “ilustres” nestes espaços reservados para a boemia e
práticas sexuais “aceitas”.
3.3. Nos olhares dos desvios. Igreja, família e sociedade
O público e o privado às vezes se confundem e estes dois unidos, também podem
confundir-se com o poder religioso, representado pela Igreja Católica. Lembremo-nos que as
pessoas que desenvolviam trabalhos em todos os segmentos da sociedade ipuense, tinham
estreitos laços com o clero e assim, como já vimos, o controle era direcionado com frequência
também nos arredores e interior da Igreja, representante maior da moral e da família.
Percebemos que o casamento não era apenas uma mera formalidade familiar, mas um
compromisso sério que deveria ser respeitado em suas peculiaridades.Mulheres e homens
tinham atribuições e relações familiares que perpassavam os interiores das casas, a
comodidade do lar, o respeito enquanto casal.
O sexo familiar fazia parte do “contrato, porém de forma mais religiosa do que
prazerosa e daí tantas investidas dos homens nos locais reservados para as práticas sexuais,
pois o casamento:
... enquanto nculo tão exclusivo quanto possível (...) para um conjunto de
questões que dizem respeito à integração, ao papel, à forma e à finalidade
dos atos de prazer no jogo das relações afetivas e estatutárias entre o
homem e a mulher
140
.
140
FOUCAULT, Michel. A mulher/os rapazes: História da Sexualidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p.
51
112
Neste sentido, a Igreja era a formalização da integração entre homens e mulheres, da
família em si. Os regimentos eclessticos representavam uma espécie de contrato, de estatuto
que, a partir dos cursos religiosos, ou seja, dos banhos, deveriam ser respeitados, ao menos na
forma mais explícita.
O local religioso, como os próprios representantes da Igreja, fossem estes os clérigos,
os beatos ou quem quer que fosse, deveriam ser resguardados das atividades ditas
“mundanas”. A Igreja deveria ser respeitada e a família como parte integrante da igreja
também.
Atos considerados perniciosos para a Igreja, como vimos deveriam ser atacados e
assim a ordem familiar prevalecida.
Insistentemente, vamos perceber que pessoas ligadas aos considerados de “boa
famíliavão quebrar ou insistir em denegrir esta ordem, ao menos na visão maior daqueles
que pertenciam aos quadros dos jornais, pilhéricos, pasquins ou não.
Portanto, mais uma vez vemos que o público e o privado às vezes também se
confundiam com os espaços religiosos, com os locais considerados sagrados e que tinham a
função de zelar pela moral da sociedade e esta,por sua vez, também deveria ter tal zelo.
Acabaser (sic) nomeada espiã de namoroz e comportamentos na Egreja
durante a festividade de S. Sebastião mesmo com todo espantalho da
„Bailarina‟ a celebérrima „beta‟ Alexandrina M. Escolheu para base de
operações o coro da matriz, local esse reservado as cantoras. Nos apreçamos
em entrevistar essa nova adepta de {Bolo Pachá}e grande auxiliadora da
grande firma Mexericos e Cia. Recebeu-nos amavelmente e ficou
satisfeitíssima sabendo o fim de nossa missão.
Começa a entrevista:
- Acabamos de saber que v. excia. Foi nomeada exp de namoros é
verdade? E certo que fui nomeada.
- O que tem pescado ultimamente?
- Ih!!! Muitas coisinhas feias!
- Que quer dizer nossa beatitude com isso?
- Quer dizer que muitas moças e rapazes olham-se com má intenção na casa
de Deus.
- Mas olharem-se não quer dizer nada.
- Nada? Então os senhores também namoram?
- Não senhora. Levemos a conversa por outro rumo.
- Queira nos informar sobre o estado actual dos namoros.
- Darei uma explicação clara aqui vae:
-O Sr. Gonçalo Tiocádio anda conquistando uma miss‟, gordinha e chiq,
mas...
-O Sr. Edgard... noivo. Por isso não é de se estranhar seu afuncamento.
-O Sr. Joaquim Lima idem idem.
- Zeca Aragão triste muito triste com a falta de alguém.
Os Srs sabem! Manoel Bessa... nada vos digo desse dengoso, esta nos
braços da influenza.
113
Como está perto de desbulhar meu rorio e velar com a visinha sobre a
vida alheia, basta por hoje.
Então boa noite agradecido.
E a velha ficou retalhando nossa vida, mas sahimos consolados em saber
tantas novidades.
141
No comentário de que a sociedade é constituída por signos e estes significados são
representados em todos os segmentos, numa matéria de jornal, relaciona à Igreja e aos seus
frequentadores, percebemos que as intenções se misturam.
Não seria nem um pouco interessante relacionar em um jornal as “saídas” dos
senhores bem familiarizados para o meretcio, entretanto, namorar nos arredores da Igreja
também seria uma demonstração de desrespeito com a sociedade e a própria religião.
Com as festas religiosas da cidade de Ipu, tanto do mês de janeiro como de outubro
142
,
a cidade tomava outros modos de vida. Respirava-se a religiosidade, se vivia para a Igreja,
entretanto, paralelo a este festejo, no meretrício ipuense, as animações também se
caracterizavam mais fortemente.
Pessoas de todos os lugares (e não mais os frequentadores assíduos do
meretrício, mas outros senhores e personagens) passavam depois das novenas, momentos de
prazer e festa no meretrício da cidade.
Todos os pontos se animavam, onde as vitrolas cantarolavam sambas, bregas e tangos
dos mais diferentes autores e o contraste entre a religiosidade e as “orgias mundanas” se
apresentavam em maior escala.
Junto a estes acontecimentos, podemos perceber que neste período, invariáveis vezes
parte do meretrício se destacava de seu espaço, pois não raramente, vamos encontrar
meretrizes que saíam do cabaré ipuense e eram vistas rondando no centro da cidade,
principalmente nas ordenanças da praça da estação ferroviária.
Mas como deixar isto acontecer, assim naturalmente? Ora, nestes momentos de festas,
destacamos que muitas pessoas, de rios lugares e camadas sociais para a cidade de Ipu se
deslocavam.
Controlar estas pessoas, estes hábitos neste instante se tornava tarefa não muito cil,
principalmente pelo fato de que não se sabia como agir em determinadas situações, com o
aparato oficial que possuíam. Os jornais que trabalhamos, neste momento, não prevaleciam
141
A ESPORA. ORGÃO CIVILISTA CRITIC, LITTERARIO E NOTICIOSO. Redactor Dr. MATTA BICHO.
Anno I. Ipu, 19 de janeiro de 1919. NUM. 01. p. 04
142
No mês de janeiro comemora-se a festa do Padroeiro da cidade de Ipu, São Sebastião, começando dia 10 com
a alvorada e terminando dia 20, com uma procissão e no mês de outubro, comemora-se a festa de São Francisco,
começando já em setembro, no dia 25 e terminando dia 04 de outubro também com uma procissão pela cidade.
114
como instrumento de controle: não para os que da cidade de Ipu não possuíamnculos
sociais consistentes, mas passageiros.
A estes, aparecer ou não no jornal seria apenas uma mera condição, até complicada de
acontecer, pois como percebemos, a cidade pertence a quem dela faz uso constante e assim,
o “vir por vir” de determinadas pessoas, não ocasionava o enraizamento social que tantos por
aqui se motivaram a desenvolver, consciente ou inconsciente.
Não entra como ponto principal em nossa escrita o cotidiano do meretrício, mas o
controle deste, entretanto,o podemos perder de vista esta característica que se destacava em
rias das passagens dos jornais e fontes de nossa pesquisa.
O meretcio ipuense era um local onde aflorava as mais variadas emoções.
Percebemos, entretanto, que o à procura do sexo era levada em consideração, como
desenvolvemos noutro capítulo, mas as demasiadas situações eram percebidas neste espaço.
Deliberações poticas, provas de masculinidade, o simples “beber umas no cabaré”,
enfim, uma quantidade enorme de situações levava os homens ao meretrício, principalmente
em períodos de festa, mas a “mulher fácil” ou a presença desta, fazia com que situações de
disputa acontecessem e que, em determinados casos,foram levadas a situações extremas,
como percebe Dias quando diz que o meretrício:
Era um mundo furtivo, onde grassavam paixões violentas, a criminalidade
era elevada, tropeiros saudosos disputavam seus ciúmes com armas de
ponta
143
.
Acreditamos assim, que a preocupação da sociedade em relação ao controle do
meretrício não estava associada tão somente com a questão da moral, mas também pela forma
como a populão se comportava em sociedade, trabalhando assim a questão da vivência de
um modelo de sociedade que deveria ser apresentado na forma mais complexa, ou seja, uma
sociedade em desenvolvimento progressista e de costumes mais prósperos, diferentes dos que
aconteciam no meretrício.
Em Ipu, um pouco mais à frente de nosso recorte entretanto, pertinente para análise,
vamos perceber como se dava o cotidiano violento do meretcio. A vida humana era
banalizada em relação aos costumes que a sociedade queria que fossem implantados. A
masculinidade falava mais forte e como frisou Dias, a ponta da arma era utilizada.
143
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. Ed. São Paulo:
Brasiliense, 1995. p. 204
115
No baixo meretrício, quatro pessoas se engalfinharam em forte luta a faca,
saindo todos feridos, dois dos quais com os intestinos à mostra, valendo
salientar ter no meio dos quatro, uma mulher. Sem motivos justificáveis,
Raimundo Chaves Neto, mais conhecido por Sebo, feriu o individuo
Antonio Barreira, tendo o instrumento penetrante perfurado o intestino da
vitima em cinco partes
144
.
Motivo justifivel, no meretrício, entende-se: afronta à masculinidade do homem.
Não vamos encontrar nenhuma alusão à interferência do poder público neste caso, entretanto
o que se pondera é a forma como se deu o acontecimento. Uma mulher no conflito e esta
mulher podemos ter a certeza de que era uma meretriz e que se envolvia nas as atividades que
aconteciam no meretrício.
O ciúme poderia ter ocasionado o conflito. Na maioria dos confrontos é interessante
perceber, que este ciúme nem sempre partia somente dos homens, mas também das
meretrizes, o que não deveria ser aceito pela comunidade meretrícia como correto, pois a
meretriz não tinha dono, era uma mulher pública e esta publicidade a condicionava como
matéria de uso dos homens. Mas isso nem sempre acontecia.
Parecia tudo calmo, quando uma mundana incendeia um casebre, no bairro
da Grota, com uma criança no leito, morrendo esta carbonizada. O motivo
foi a loucura e ciúme. É hoje no Ipu, a fera da Grota
145
.
Assim, a meretriz, a cidade, os jornais, etc., confundiam-se. O bairro da Grota era nas
margens do meretcio, e sendo esta mulher considerada “mundana”, não se torna difícil
entender que fosse uma das mulheres pertencentes ao meretcio.
As margens reservadas para o funcionamento das práticas sexuais aceitas poderiam ser
transpostas em determinados locais e sabemos que neste bairro periférico, existiam também
essas atividades.
Como dissemos, nos períodos de festejos da cidade, as atividades no meretrício se
desenvolviam com maior intensidade. As danças, as farras, as investidas dos homens, a
chegada de novas meretrizes, enfim, tudo isso era uma constante nestes períodos e assim, a
cidade se transformava juntamente com as intenções dos homens que nela viviam.
Se estivéssemos trabalhando a questão policial, poderíamos perceber que o índice de
ocorrências aumentava rapidamente nos períodos de janeiro a outubro, margeando
principalmente o antes e o depois das festas, mas com maior frequência na própria festa dos
padroeiros.
144
IPU EM JORNAL. Novembro, 1961. p. 02
145
Idem, p. 03.
116
Somando-se a isto, a Igreja Católica também atentava, pois sabia destas questões
existentes. Enquanto o padre estava celebrando a missa, vários homens e mulheres se
prostituíam no meretcio, não se distanciando muito este da Igreja Matriz de Ipu.
E as famílias que moravam nestes arredores tinham que conviver entre estes dois
parâmetros,o de servir a Deus e o de testemunhar a vida desregrada, ou na representação
deste, na vista de homens que chegavam e saíam do meretrício no limiar da noite. As
famílias se preocupavam com isto e a Igreja em maior escala, como percebemos.
Neste período, chegavam mulheres diferentes e homens considerados de bem
passavam também a procurar por seus “serviços”, o que não era acatado assim, com tanta
naturalidade pelas pessoas que os conheciam. Já percebemos que nomes foram publicados nos
jornais por conta destas situações. Mas os momentos de festas na cidade traziam também esta
tentação, tanto para os homens como para as mulheres.
COISAS QUE ME ENCOMMODAM: a mania do Rochinha querer
conquistar todas meninas que chegam de fora
146
.
Estas meninas de fora, não são as donzelas das casas de família, mas as mulheres
novas que chegavam ao meretrício e este Rochinha frequentemente aparece nas manchetes
dos jornais, seja nas mais variadas situações, entretanto, ele faz jus às manchetes, ou seja,
demonstrando que interage na sociedade mas que também quebra os decoros dela.
E por conta desta situação que ele vivencia, segue-se o jornal dizendo:
-se lá qualquer bestinha
C‟os olhos postos em alvo,
Fazendo p‟ra qualquer moça
Ademanes de papalvo.
Trajados de papangú,
Se suppõem papafina,
E assim, penamcomsigo,
Que por si morre a menina
147
.
Os galanteios de determinados homens da sociedade para com as mulheres públicas
acarretavam versos de repúdio nos jornais. Serviam de inspiração para os editores, muito
embora não se identificassem.
146
A FUTRICA. ORGAM CRITICO DE UMA SOCIEDADE ANONYMA. Anno I, Ipu, 05 de junho de 1921.
NUM. 3. p. 04
147
Idem, p. 04
117
A situação da sedução meretcia é identificada como “bestinha”, ou seja, não trazendo
honraria alguma para quem conseguisse atingir este estágio do galanteio. Pelo contrário, trazia
uma repugnância social, pois sendo a mulher pública, mercadoria de consumo, o que o
homem deveria fazer nada mais era que ir colher o momento que esperava receber, no
momento do sexo ou mesmo do momento compartilhado e depois debandar para suas
atividades comuns do dia a dia.
A mulher deveria se prestar ao senso de responsabilidade e como já percebemos neste
capítulo, aprender a tratar a traição do homem como algo não natural, mas passível de ser
transformado, a partir dos ensinamentos da Igreja, sendo esta atenta a todos os momentos de
desenvolvimento da sociedade. Neste sentido, muitas situações se confundiam.
A mariposa, insecto, às vezes o bello, não conhece o perigo que o ameaça
ao approximar-se do fogo.
E então, o que succede?
Queima as azas e assim se perde.
O mesmo succede a tantas {moçass}. Lavadas da natural leviandade,
aproximam-se do fogo de um amor extemporâneo, e se queimam... e se
perdem
148
.
Ora, mas o que um jornal da Bahia teria como efeito religioso na cidade de Ipu? De
início nada teria, se ele não tivesse obtido ampla divulgação na cidade e mesmo já nos
primórdios da chegada da estrada de ferro em 1896.
Podemos justificar este ponto, quando em determinados momentos das edições,
percebemos a busca de um aumento de assinantes, pois para cada 10 novos assinantes
conseguidos por uma pessoa, seus nomes eram registrados como colaboradores nos jornais e
somente entre os anos de 1921 a 1923, tivemos a possibilidade de reconhecer mais de 15
nomes de pessoas de Ipu, principalmente aquelas ligadas à Igreja e as agremiações, o que dá a
oportunidade de vermos que somente nestes três anos circulavam mais de 150 assinantes em
Ipu
149
.
O foco principal de suas atenções está intimamente ligado à moral e é interessante
perceber que, as cartas que analisamos neste capítulo, muito têm a ver com o conteúdo dos
jornais e ainda, que muitas das matérias trabalhadas tanto no Correio do Norte como nos
jornais pilhéricos foram retirados de suas manchetes.
148
MENSAGEIRO DA FÉ. Com permissão eclesiástica. ANNO XIX. BAHIA. 16 de janeiro de 1921. 02. p.
09.
149
Os jornais de 1921 a 1923 foram encadernados pelo Sr. Francisco das Chagas Paz e conservados em sua
residência, sendo doados a este pesquisador por sua filha Maria do Socorro Paz e agora conservados para alise
em sua residência, em perfeito estado de conservação.
118
A sedução dos homens, o exercício das práticas meretrícias, a maçonaria, o ateísmo, o
socialismo, o jogo, tudo isso é atacado de forma pejorativa no Jornal Mensageiros da Fé, pois
como ele se intitula, é um jornal para a família e estes pontos em sua concepção eram
perniciosos para que a família se apresentasse de forma digna e perfeita, dentro dos moldes
que a Igreja e a sociedade deveriam desenvolver.
Assim, a cidade ia vivendo entre a insistência de uns em manter a ordem e a negativa
de outros em obedecer. A Rua do Chico Novato apresentava os contrastes entre estas
tentativas de vincia, pois muitos não acatavam a ideia de um momento de prazer no
meretrício da cidade e também, muitos eram os casos de homens viúvos ou solteiros que
viveram em Ipu no inicio do século XX.
Os jornais talhavam também diretamente estes homens em algumas páginas e, não
obstante, fazia-se questionamentos de o porquê deles irem ou não ao meretrício, fazendo estas
arregimentações de forma jocosa, porém, com teor de cobranças.
PENSAMENTOS DOS SOLTEIROS
F. Corrêa Quem? Quem vae nisso? Amarrado só boi...
Abdoral Não tem como se jogar em duas loterias do Natal.
Apolônio Quero demais... porém tenho tanto medo...
Adherbal É preciso se estar preparado; volto e vou pensar.
M. Bessa Não é tempo, quando for, eu digo.
Edgard Sou descidido! Inda não foi porque... „porque o tempo esta cru.
A. Cícero o posso... se pudesse era já.
Adalberto A primeira que se agradar de mim, faço um barulho!
J. Maria O seguro, parece que esta na normalidade?:
F. Rocha o! Vou bem na zona
150
.
Todos estes homens eram editores dos jornais oficiais e pilhéricos. Alguns
participaram dos Almanaques do final do século XIX e início do século XX e posteriormente
galgaram altos pontos de mando na cidade, destacando-se no comércio ou mesmo na potica.
percebemos que neste momento eram solteiros em sua grande maioria e o que pensavam
em relação ao meretrício.
Mas e este último depoimento? Ir “bem na Zonapara o conhecido “Chico Rocha” era
o suficiente para que ele mantivesse em dia suas necessidades de convivência no quesito
feminino.
150
O BARBICACHO. VIDA NOVA E NOVA VIDA. ANNO I. NUM. 01. Ipu, 14 de dezembro de 1919 pp.
03-04.
119
Satisfazia-se com as meretrizes e acatava esta ideia normalmente, publicando em
jornal seu pensamento. E percebemos que o faz sem nenhuma ressalva, até mesmo com
orgulho de sua característica.
Percebemos também que este seu posicionamento não vai ser atacado posteriormente e
ainda, com o conhecimento de todos, não sabendo qual o grau de importância que Chico
Rocha tinha dentro dos jornais, pois até fora deixado margem de zelo por seu comentário. E
os outros?
O meretrício estava lá, a estação como ponto de partida e os jornais atentos. Vejamos:
LA na Rua da Estação à coisa vae grossa e mesmo animada...
N. R. Não sei se a coisa pega
Pois esta muito animado
Se o homem for viúvo
deve está preparado
151
.
À frente, na mesma edição, vamos perceber a alusão direta ao meretrício da cidade,
mas explicitamente na Rua do Chico Novato, local popularmente conhecido como meretrício.
Dizem que na Rua do Chico Novato, appareceu um senhor muito caridoso
que as esmolas d‟elle merecem sempre uma boa recompensa... porque são
muito boas.
poucos dias (...) viu uma senhora dizer: aquelle seu... é homem bom;
pois hontem eu dizendo que o tinha nem um vintém elle meteu a mao no
bolso tirou um vale e disse: tome você me pague se quizer
N. R. Estas esmolas assim
Dá p‟ra se desconfiar
Depois você nao se queixe
Que não lhe foram avizar.
A senhora e o caridoso sabem
Que nós do Barbicacho vemos
É bom que as esmolas se acabem
Não queira que o entreguemos
152
.
Portanto, percebemos que a sociedade ipuense, em determinados parâmetros vai estar
condicionada à observação e à tentativa de controle dos mais variados pontos e que estes se
entrelaçavam, sejam poticos, comerciais, religiosos ou familiares, em todos os padrões e que
esta observão e tentativa de controle desencadeavam conflitos que dava forma à cidade de
Ipu, complexa e volátil, com uma cara de sociedade meretrícia que explorava os seus
frequentadores e usuários.
151
O BARBICACHO. VIDA NOVA E NOVA VIDA. ANNO I. NUM. 03. Ipu, 21 de dezembro de 1919. p. 03.
152
Idem, p.03
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo desta pesquisa buscamos mostrar como a cidade de Ipu, a partir das
transformações econômicas e sociais, vividas com a chegada da ferrovia, sofreu modificações
na maneira como determinados grupos percebiam as relações amorosas. Ao lado do
crescimento da cidade e das transformações em seus espaços urbanos, novos grupos passaram
a adotar um discurso de que a sua cidade estava em processo de desenvolvimento,o progresso
havia mesmo chegado. A partir daí, passaram a identificar, em algumas práticas sociais de
seus habitantes, comportamentos que não condiziam com o “progresso” da cidade. Uma delas,
dizia respeito à compra e venda do sexo.
A cidade, com o seu incremento econômico (crescimento do comércio, aumento da
circulação de capitais, surgimento de instituições bancárias), passou a atrair pessoas de outras
localidades (viajantes, vendedores, representantes de firmas nacionais e estrangeiras, pedintes,
e outros indivíduos). O aumento da população local, verificado pelos censos demográficos das
últimas décadas do século XIX e as primeiras décadas do século XX, transformou o espaço
público da cidade em um local convidativo para a mercantilização do corpo feminino. Foi
nesse cenário que as prostitutas de outras cidades, atraídas pela possibilidade de lucro fácil,
vieram se reunir às poucas meretrizes nativas que faziam a alegria de homens vigorosos e
cheios de amor.
Em um primeiro momento, as meretrizes passaram a praticar a venda do corpo nos
espaços públicos da cidade, principalmente na Praça da Estação, o lugar mais movimentado
da cidade, e no mercado blico, local onde ficavam as vendas. Com seus corpos seminus ou
usando pouca roupa, as meretrizes exerciam um chamamento para a prática do sexo aos
viajantes, jovens solteiros e homens casado. A banalização de suas práticas passou a
incomodar os homens e mulheres que se diziam os defensores da moral e dos bons costumes.
As reclamações contra as práticas das prostitutas passaram a se avolumar nos periódicos que
circulavam em Ipu nas primeiras décadas do século XX, sobretudo, nas páginas do jornal
Correio do Norte, órgão oficial, isto é, representante dos “homens do poder”, aqueles que
detinham o poder político local. Da reclamação veio o controle. A força policial foi usada
como meio de reprimir as “práticas imorais destas cutruvias”, que se aventuraram à venda do
sexo.
Dentro do ideário dos grupos incomodados com as meretrizes era preciso extinguir
suas práticas, pois tais eram incompatíveis como o momento de progresso vivido pela
cidade e atacavam os verdadeiros valores das “boas famílias ipuenses”.
121
O Cabaré surge deste contexto. Alvo de reclamações e do controle policial, sofrendo a
discriminação de praticar ações contra os valores dos defensores dos bons preceitos e dos
ideais da boa família, as meretrizes, percebendo que não podiam lutar contra o poder
repressor, passaram a praticar a venda do corpo em locais reservados para isso e distante dos
olhos arregalados” da “sociedade illustre ipuense”. O cabaré, erguido distante dos espaços
públicos da cidade, distante do centro, no meio do matagal, passou a ser tolerado,porém
vigiado de perto pelo poder local. Ali, distante dos olhos das famílias destacadas do local, que
no discurso, se horrorizava com a prostituição, a prática da venda do sexo passou a ser aceita,
ainda que com desconfiança.
Assim, em uma sociedade em transformação, que percebia o momento vivido pela
cidade como um “novo momento, as meretrizes, o outro lado da mesma moeda, eram vistas
como intrusas, capazes de destruir a moral dos “verdadeiros ipuenses”, isto é, das famílias
ilustres do lugar, uma vez que traziam a cena o risco de corromper a moral recatada, os
valores católico-cristãos, de uma sociedade percebida como saudável, mas que poderia
adoecer se nada fosse feito.
O meretcio é, pois, resultado de um processo de transformação da cidade, de seus
espaços urbanos e da percepção entre o que deve ser a boa moral e o que é percebido como
imoral.
Os jornais do período, fruto também desse momento de transformação da cidade,
escritos pelos homens do poder local, que tinham um projeto de sociedade e de cidade, foram
amplamente utilizados para atacar práticas consideradas imorais, como veículos que
permitiam chamar a atenção para as práticas meretrícias e como veículo, também, que
permitiu criar um consenso sobre a necessidade de controlar práticas desviantes.
Através de tais veículos foi possível perceber a cidade em suas entranhas, em seus
espaços e práticas cotidianas. Foi possível ainda, visualizar projetos, visões de mundo,
tentativas de controlar, resistências das ões populares, enfim, as próprias prostitutas, nosso
objeto central.
A partir das questões levantadas acima buscamos, em nosso trabalho, problematizar
alguns pontos: como foi possível, a partir das transformações vividas pela cidade nas
primeiras décadas do século XX, a formação do meretrício em Ipu; como da compra e venda
do sexo no espaço público da cidade surgiu à busca do controle e crião de um discurso que
condenava as práticas meretrícias como alvo que atacava a conduta e a boa moral das famílias
ditas, ilustres; como do controle, veio à resistência das meretrizes; como a Igreja Católica,
reduto defensor da família cristã, atacou o meretrício e sua prática na sociedade ipuense.
122
FONTES
1. Fontes Escritas
A ESPORA. ORGÃO CIVILISTA CRITIC, LITTERARIO E NOTICIOSO. Redactor Dr.
MATTA BICHO. Anno I.l
A FUTRICA. ORGAM CRITICO DE UMA SOCIEDADE ANONYMA. Anno I, Ipu, 05 de
junho de 1921. NUM. 3.
Almanak Ipuense. Ipú: 1900.
CORRÊA, Thomaz de Aquino. Uma Ipuense Chamada Iracema. Jornal Gazeta do Sertão. Ipu,
13/02/1911.
Discurso proferido por ocasião da inauguração da Estação ferroviária de Ipu, pelo Dr. Antonio
Ibiapina (administrador da estrada de ferro) em 10 de outubro 1894; pertencente ao acervo
particular da senhora Socorro Paz.
IPU EM JORNAL. Novembro, 1961.
JORNAL CORREIO DO NORTE IPU/CE
MENSAGEIRO DA FÉ. Com permissão eclesiástica. ANNO XIX. BAHIA. 16 de janeiro de
1921. Nº 02.
MME. PERMOND. Conselhos d‟uma mãe a suas filhas. Petrópolis RJ, 2ª ed. Centro da Boa
Imprensa, 1923. (Folha de advertência solta dentro do livro, datada de dezembro de 1923,
com timbre da gráfica Boa Imprensa).
O Chicote. Jornal crítico e noticioso. Anno I, 13/07/1919. Número Único. p. 1.
O BARCICACHO, Anno I, 15/02/1920. Nº IV
SOUZA, Eusébio de. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. Um pouco de historia
(Chronica do Ipu). 1915. p. 157.
2. Fonte Oral
F A E. (Identidade preservada) Policial aposentado, com mais de 40 anos de profissão,
aposentado com a graduação de sargento, (mora atualmente em Ipueiras-CE, a 28 km de Ipu).
123
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