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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
ÁREA DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
BRUNO DE MELO OLIVEIRA
REORGANIZAÇÃO POLÍTICA NORTENHA:
O PROCESSO DE FORMAÇÃO DO REINO DAS ASTÚRIAS
(DOS SÉCULOS VIII AO X)
NITERÓI
2010
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2
BRUNO DE MELO OLIVEIRA
REORGANIZAÇÃO POLÍTICA NORTENHA: o processo de formação do Reino das
Astúrias (dos séculos VIII ao X)
Defesa da Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
História.
Orientador: Prof. Dr. MÁRIO JORGE DA MOTTA BASTOS, do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
Co-orientadora: Prof. ª Dr. ª LÍVIA LINDÓIA PAES BARRETO, do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal Fluminense.
NITERÓI
2010
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REORGANIZAÇÃO POLÍTICA NORTENHA: o processo de formação do Reino das
Astúrias (dos séculos VIII ao X)
Defesa da Tese de Doutorado apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em
História.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Dr. Mário Jorge da Motta Bastos (UFF)
Orientador
Prof. ª Dr. ª Lívia Lindóia Paes Barreto
Co-Orientadora (UFF)
Prof. Dr. Edmar Checon de Freitas (UFF)
Prof.ª Dr.ª Renata Vereza (UFF)
Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva (UFRJ)
Prof.ª Dr.ª. Maria do Carmo Parente Santos (UERJ)
Niterói
2010
4
―— O poder não é um distintivo e nem uma arma. Poder é mentir. Mentir muito e fazer o
mundo ficar do seu lado. Quando todos crêem em algo que no fundo sabem que é mentira,
você os conquistou‖.
Senador Roark, personagem do filme Sin City.
5
À minha família e aos meus amigos, por estarem sempre presentes em todas as horas.
Principalmente, nestes últimos e difíceis momentos do Doutorado.
6
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos aqui presentes compõem o encerramento de um ciclo de 10 anos
como estudante da Universidade Federal Fluminense, mais precisamente como integrante do
corpo discente da Graduação e da Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado). Minhas peripécias,
iniciadas em setembro de 1999, obviamente, não foram experimentadas sozinhas, mas foram
fruto direto da interação com diversos indivíduos até este mês de abril do ano de 2010. Tive a
oportunidade e a honra de conhecer pessoas para além do âmbito acadêmico, para além da
cadeira de História, para além da Faculdade de Letras, para além da Xerox.
Agradeço sinceramente à minha família brasileira, à minha família chinesa, aos meus
afilhados, aos fãs do Rush, do Misfits, do MötorHead, do Iron Maiden e afins, aos membros
do Magilis, aos Nobres Garotos e Garotas, às Dançarinas dos Sete Véus, à Velha-Guarda dos
Estudos Medievais (2002-2005), à família da Xerox, aos alunos da turma 2º./1999 (Noite) e
àqueles que freqüentaram o Vestibular do Chopp (com sua pizza), o Tio Cotó e o antigo Bar
da Elvira (lembrem-se do Cocoon!). Agradeço também aos meus orientadores e aos
professores que me auxiliaram na condução desta longa e sinuosa estrada chamada Estudos
Medievais.
Agradeço ao CAPES pelo financiamento de minha bolsa de Doutorado.
7
RESUMO:
A intenção central desta pesquisa é analisar a constituição do Reino das Astúrias entre
os anos 711 e 910, identificando sua estruturação enquanto entidade político-territorial
surgida após a fragmentação do Reino Visigodo de Toledo. Intentaremos constatar que o
reino nortenho não foi tão somente a continuidade da realidade precedente, nem tampouco
uma ruptura radical, mas algo que conjugou tradição e renovação política. Para isto,
concentramo-nos nos primeiros passos do nascente reino e na identificação da relação entre a
sua monarquia e setores aristocráticos laicos e religiosos, grupos que cooperavam
imediatamente com as ações perpetradas pelos jovens reis asturianos ou que resistiam aos
desígnios destes. Além destas referências contidas no interior do território que veio a
pertencer aos soberanos asturianos, agregamos ainda um fator de não pouca importância: a
pressão exercida pelos exércitos emirais. Portanto, a interação de elementos internos e
externos delimitou também a construção política nortenha. Trabalhando com fontes narrativas
latinas e muçulmanas, documentação notarial e epigráfica, procuramos rastrear as
transformações, desde a revolta de Pelágio, em 718, até o final do reinado de Afonso III, em
910.
8
RESUMÉN:
La intención central de esta pesquisa es analizar la constitución del Reino de Asturias
entre los años 711 e 910, identificando su estructuración mientras entidad político-territorial
surgida tras la fragmentación del Reino Visigodo de Toledo. Intentaremos constatar que el
reino norteño no fue solamente la continuación de la realidad precedente, ni tampoco una
ruptura radical, pero algo que conju tradición y renovación política. Para esto, nos
concentraremos en los primeros pasos del naciente reino y en la identificación de la relación
entre su monarquía y sectores aristocráticos laicos y religiosos, grupos que cooperaban
inmediatamente con las acciones perpetradas por los jóvenes reyes asturianos o que resistían a
los designios de estos. Además de estas referencias contenidas en el interior del territorio que
ha venido a pertenecer a los soberanos asturianos, agregamos todavía un factor de gran
importancia: la presión ejercida por los ejércitos emirales. Por tanto, la interacción de
elementos internos y externos ha delimitado también la construcción política norteña.
Trabajando con fontes narrativas latinas e musulmanas, documentación notarial y epigráfica,
procuramos rastrear las transformaciones, desde la rebelión de Pelayo, en 718, hasta el final
del reinado de Alfonso III, en 910.
9
SUMÁRIO:
Introdução, p. 11.
1. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA ASTURIANAS, p. 21.
1.1. Sobre a história e algumas de suas funções, p. 21.
1.2. Identificando as primeiras crônicas da Reconquista, p. 24.
1.3. O mito fundador asturiano e os redatores das crônicas de Reconquista, p. 31.
1.4. O mito fundador asturiano como um esforço pró-monárquico, p. 48.
1.5. Identificação de um cenário cultural, p, 58.
1.6. Consolidando uma imagem, p. 68.
2. OS PRIMÓRDIOS DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ASTURIANA, p. 74.
2.1. Considerações iniciais, p. 74.
2.2. Ruína de um cenário e o aparecimento de outro, p. 75.
2.3. Sobre os primórdios da dominação muçulmana na Península Ibérica, p. 92.
2.4. Formação de um novo cenário no Norte da Península Ibérica, p. 102.
2.5. Articulação em torno de uma liderança, p. 115.
2.6. Para além da fronteira meridional, p. 124.
3. CRISTALIZAÇÃO DE UM CENÁRIO POLÍTICO, p. 138.
3.1. Considerando novas modificações no fazer político asturiano, p. 138.
3.2. Demandas internas de um território em formação, p. 139.
3.3. Nova mutação: reconhecimento e disputa pela titulatura régia, p. 156.
3.4. As lideranças políticas asturianas e a legitimação pelo sagrado, p. 169.
3.5. Legitimação política e religiosa, p. 175.
3.6. Sepultamentos régios: memória funerária como expressão de poder, p. 187.
3.7. Primeiros sinais da consolidação da instituição monárquica asturiana,p. 193.
4. CONFIGURAÇÃO DO NÚCLEO OVETENSE, p. 200.
4.1. Reconhecimento dos fundamentos da autoridade asturiana, p. 200.
4.2. Acerca das desigualdades sociais nas Astúrias, p. 206.
4.3. Mais vínculos entre a religião e a monarquia asturiana, p. 215.
4.4. Edificação de uma monarquia, p. 232
4.5. Retomada da expansão territorial e identificação da cooperação política, p. 246.
10
5. DELIMITAÇÃO DE UM REINO , P. 257.
5.1. Consolidação de uma entidade política, p. 257.
5.2. Refletindo sobre a natureza dos cartulários asturianos, p. 260.
5.3. (Re)construindo um aparelho de intervenção social, p. 271.
5.4. Usurpação, distribuição e autoridade, p. 295.
5.5. Política externa asturiana, p. 304.
CONCLUSÃO, p. 311.
BIBLIOGRAFIA, p. 322.
ANEXOS, p. 331.
Anexo 1: Lista de reis, p. 331.
Anexo 2: Mapas, p. 332.
Anexo 3: Imagens, p. 337.
11
INTRODUÇÃO:
Nossa pesquisa visa analisar o processo de constituição e de consolidação do Reino
das Astúrias. Tomamos como ponto de partida a invasão muçulmana de 711 e a conseqüente
desagregação do Reino dos Visigodos, marco de fundamental importância para se
compreender a formação de uma nova entidade político-territorial nas terras do Norte da
Península Ibérica. Os sucessos das expedições lideradas pelo general muçulmano Tariq Ibn
Ziyad desarticularam as estruturas políticas do reino toledano e lançaram os fundamentos para
a construção, em boa parte do território da península, de um poder político árabe submetido
ao Califado Omíada, em um primeiro momento, e ao Califado Abássida, em seguida. A
desagregação do Reino dos Visigodos fez concluir o longo período de conflitos internos e
sucessivos golpes de estado vivenciados por esta estrutura política romano-germânica
1
. A
ausência de uma autoridade monárquica dispersou os membros da aristocracia visigoda, que
acabaram por tomar diferentes atitudes diante do invasor vitorioso. A própria origem da
irrupção islâmica em solo ibérico remontaria a um quase lendário pedido de auxílio de uma
parcela da alta aristocracia visigótica em meio a mais uma contenda pelo trono, representada
pelo conde Julião. Após a morte do rei Rodrigo em campo de batalha e o êxito das incursões
árabes e berberes, muitos aristocratas ibéricos esforçaram-se por preservar seus patrimônios e
privilégios, costurando pactos com os vencedores.
Em meio a confrontos, sublevações reprimidas e fugas, outra postura passou a
sobressair: a resistência à invasão promovida em regiões montanhosas. Crônicas árabes e
cristãs relatam o sucesso desta oposição que não contava apenas com os habitantes originais
dessas regiões, mas também com refugiados de diversas partes da Hispânia. Foi neste
contexto amplo que se manifestaria o embrião de uma nova estrutura política cristã.
Queremos dizer que uma parcela das terras ibéricas, nas zonas montanhosas dos Pirineus e na
porção do Noroeste peninsular permaneceu à margem do domínio dos califas e,
posteriormente, dos emires muçulmanos. Segundo alguns historiadores, os territórios situados
no interior da Cordilheira Cantábrica mantiveram uma vigorosa tradição de insubmissão às
investidas de conquistadores diversos, fossem eles romanos ou visigodos, e por isso
prosseguiram com suas manifestações de rebeldia frente à autoridade islâmica
2
.
1
MITRE, Emílio. La España medieval: sociedades, estados, culturas. Madrid: Istmo, 1979, p. 61.
2
Ibid., p. 199.
12
Para certa vertente historiográfica, foi nesta parte da Península Ibérica, marcada pela
preservação das estruturas tribais
3
, que surgiram grupos opositores ao avanço do recém criado
Emirado. Este ambiente turbulento do século VIII forneceu os subsídios para as narrativas
épicas sobre a batalha de Covadonga e a unificação de um grupo constituído por cristãos
visigodos, astures e cântabros que, chefiados pelo personagem histórico-lendário Pelágio,
resistiram contra as investidas dos sarracenos
4
. Este mito criador difundido por algumas
crônicas medievais e pela historiografia ibérica tradicional
5
guarda em si uma referência
fundamental: a existência de uma resistência organizada contra um inimigo estrangeiro
6
. Não
se tratou de um marco inicial da plena constituição do reino Astur, como sugere José Maria
Minguez
7
, mas da formação de uma chefatura militar que se afirmou em meio a tantas outras
que se impunham entre o Noroeste e o Nordeste da Península Ibérica no mesmo período
8
.
A referência que acabamos de estabelecer revela, per se, a importância e as
controvérsias que envolvem um tema constituído por uma vigorosa tradição historiográfica. E
é assim, portanto, que, reconhecendo a importância das pesquisas dedicadas a esse objeto
como fruto de uma longa trajetória de estudos historiográficos, abordaremos o tema a partir
de uma perspectiva de princípio descurada pela historiografia, isto é, concentrando nossos
esforços na intenção de romper com uma certa visão teleológica dos fatos que envolveram os
primórdios daquela formação política. A formação do Reino das Astúrias não foi
compreendida dentro de um processo de transformação e de complexificação da esfera
política, mas ora como a primeira manifestação de resistência cristã para a retomada daquilo
que pertencia outrora ao reino toledano, ora como fruto das transformações das sociedades
tribais nortenhas. Se a primeira posição é marcada por uma visão essencialmente
institucionalista e excessivamente continuista, a segunda equivoca-se por acreditar que o
surgimento do reino asturiano seja conseqüência da passagem de uma sociedade tribal,
3
BARBERO, Abílio, VIRGIL, Marcelo. Sobre los orígenes sociales de la Reconquista. Barcelona:
Ariel. 1974, passim. O tema acerca da preservação das estruturas tribais na Península Ibérica ainda é um tema
debatido, não sendo totalmente aceito por parte da historiografia ibérica. Ver: PLÁCIDO, Domingo. La nueva
visión de la Historia Antigua de la Península Ibérica em la obra de Abílio Barbero e Marcelo Virgil. e FACI,
Javier. La obra de Barbero y Virgil y la Historia Medieval Española. In: HIDALGO, José Maria et alii. (ed.).
“Romanización” y “Reconquista” em la Península Ibérica: nuevas perspectivas. Salamanca: Universidad de
Salamanca, 1998.
4
SANCHEZ ALBORNÓZ, Cláudio. La sucesión al trono en los reinos de Leon y Castilla. Buenos
Aires: Academia Argentina de Letras, 1945, p. 14.
5
Ibid., p. 3-4.
6
SANCHEZ ALBORNÓZ, España: un enigma histórico. Buenos Aires: Sudamericaa, 1956, 2v., p.
235.
7
MINGUEZ, José Maria. Las sociedades feudales 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 146.
8
Ibid., p. 147.
13
igualitária e fundada em laços de parentesco para uma hierarquizada, com grandes distinções
sociais e econômicas e fundamentada em uma estrutura política concentrada.
A perspectiva dita tradicional tem o mérito de apontar a preservação de vários
elementos tardo-romanos ou visigodos na formação do Reino das Astúrias, todavia, não
prestou atenção ao fato de que os fundadores da nova entidade política, segundo as próprias
fontes, não eram membros do aparelho político-administrativo do reino decaído. Apesar de
intencionalmente as crônicas asturianas afirmarem que as origens de Pelágio o inseriam no
corpo armado dos reis toledanos, talvez até como membro da família real ou como filho de
um governador visigodo exilado, a repercussão dos seus atos não demonstram qualquer
preocupação em restaurar a ordem perdida. Por outro lado, a perspectiva inaugurada por
Abílio Barbero e Marcelo Vigil aponta, como veremos, para rupturas com o período
precedente, mas equivoca-se ao tratar da fundação do novo reino sem investir na identificação
da dinâmica política nortenha pós-Covadonga. Identificar as distinções sociais, os níveis de
desenvolvimento tecnológico e as diferenciações no acesso à propriedade constituem
iniciativas importantes na configuração geral de um cenário, mas não cobrem todo ele, ainda
mais quando nos propomos a analisar o processo de formação de uma entidade política.
O foco central de nosso estudo envolve o desenvolvimento de uma estrutura política,
portanto, os elementos que iremos priorizar envolvem este tipo de campo, que é o
fundamental para se compreender a construção e consolidação do Reino das Astúrias. As
contribuições decorrentes da Antropologia Política, da Sociologia e Teoria do Estado
possibilitam uma melhor delimitação da pesquisa, fazendo-nos avançar na caracterização de
entidade política e territorial que se desenvolveu na Cordilheira Cantábrica. Quando nos
referimos a um processo de estruturação do reino, estamos tratando da construção de uma
identidade política portadora de um passado e de legitimidade para sua atuação. Esta
característica está associada a outros componentes que foram sendo agregados ao núcleo
político asturiano, surgido como uma pequena potência militar que rapidamente subjugou o
espaço circundante ao seu território primordial. A continuidade desta atuação e a
transformação progressiva de um comando guerreiro em uma entidade dotada de poder de
decisão não somente bélico demonstra a presença de um tipo específico de estrutura política.
A capacidade de intervenção social e política foram se ampliando e aquela estrutura impondo
a sua legitimidade, processo que culminou em uma nova forma de organização não dotada
de meios coercitivos, mas também de ferramentas simbólicas de poder, bem como de meios
para aquisição de recursos.
14
A complexidade do tema desta tese definiu, se não mesmo impôs, a amplitude do
corpus documental que fundamentou a pesquisa. As fontes narrativas cristãs utilizadas foram
a Crónica de Alfonso III, a Crónica Albeldense, a Crónica Profética
9
e a Crónica de
Sampiro
10
. Os três primeiros documentos citados são as mais antigas produções literárias do
mundo cristão ibérico após a queda da realeza visigótica e narram a ascensão da realeza
asturiana, destacando o período do reinado de Afonso III, datadas de fins do século IX. A
Crónica de Sampiro foi produzida em fins do século X. Esta fonte atribuída ao monge de
nome Sampiro registra os progressos da monarquia asturiana em transição para a leonesa e
as dificuldades enfrentadas devido ao avanço de Abd Al-Rahman III e as insubordinações do
conde de Castela Fernán Gonzalez
11
.
As fontes diplomáticas usadas correspondem àquelas dedicadas às relações políticas e
sociais da monarquia leonesa com a Igreja e a aristocracia ibérica. Recorremos à Diplomática
Astur, organizada por C. Floriano, que abarca o período entre 718 e 910
12
. Destaca-se o uso
das fontes produzidas durante a expansão astur-leonesa pelo vale do rio Ebro. Nesta
campanha, o reino Astur-Leonês obteve o auxílio do reino de Navarra, no século IX. São
importantes para situar a expansão da monarquia leonesa em direção às regiões localizadas à
Leste das terras originais desta realeza. As campanhas efetuadas nestas porções ocorreram
com o apoio da nascente coroa de Navarra que, no período seguinte, manifestar-se-ia como
poder concorrente ao de Leão. Além dos documentos oriundos dos arquivos do monastério de
Huesca
13
, fizemos uso de documentação jurídica para compreender a articulação social e
9
Estas três crônicas estão disponibilizadas no site do Centro Superior de Investigaciones Científicas
(CSIC), compondo parte de suas publicações. Editadas, respectivamente, por Juan Gil Fernandez [
http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/sebas.htm]; D. W. Lomax
[http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/albeldensia.htm]; e Juan Gil Fernandez
[http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/rotensis.htm].
10
Crónica de Sampiro. In: PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Sampiro: su crónica y la monarquia leonesa
em el siglo X. Madrid: CSIC, 1952.
11
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Sampiro: su crónica y la monarquia leonesa em el siglo X. Madrid:
CSIC, 1952, p. 129-136.
12
FLORIANO, Antonio C. Discurso preliminar. In: ________. Diplomática Española del período
astur: estudio de las fuentes documentales. Oviedo: Imprenta La Cruz, 1949, 1v, p. 12-17.
13
GUDIOL, Antonio Duran. Colección diplomática de la Catedral de Huesca.
Saragoça: Esc.Est.Medievales, 1969.
15
política entre a realeza, a nobreza e a Igreja: O Fuero Juzgo.
14
Este documento corresponde ao
conjunto de leis visigóticas preservadas e empregadas ainda neste período medieval
15
.
Completamos o referido corpus com outras fontes narrativas cristãs: os Analles
Castellanos I e II, o Chronicon Laurbanense e o Laterculus Regum Visigothorum. A Historia
Silense também nos apresenta algumas versões das narrativas altomedievais, e também nos
faz atentar para determinadas omissões de certos monarcas e acontecimentos. Apesar de ser
um documento datado de princípios do século XII,
16
o amanuense desenvolveu um grande
esforço ao efetuar a conservação de outras narrativas que precederam a referida fonte,
algumas delas perdidas. Sendo assim, o trabalho de compilação realizado configura-se como
um útil material para as análises historiográficas. Não fornece versões independentes dos
eventos das crônicas Albeldense, Ad Sebastianum, Rotense e de Sampiro
17
, mas a seleção das
seqüências ou omissões é fértil para as nossas especulações.
Os Analles Castellanos I
18
e II
19
nos oferecem pontuais informações cronológicas
sobre o período circunscrito pela pesquisa, abarcando os territórios castelhanos e leonêses.
o Chronicon Laurbanense
20
nos proporciona dados referentes à ocupação astur-leonesa do
território português, fornecendo assim elementos relativos aos avanços políticos e territoriais
da nascente monarquia. Por sua vez, o Laterculus Regum Visegothorum
21
é uma lista de reis
visigodos produzida no território da antiga Septimania
22
por fugitivos cristãos das conquistas
muçulmanas. Este documento destaca a continuidade da monarquia visigótica por meio da
realeza franca, mostrando o descompasso entre a produção historiográfica das porções do
sudeste dos Pirineus e as narrativas produzidas no Noroeste Peninsular. O conjunto destes
14
Também conhecido como Liber Iudicorum, Liber Iudicium, Forum Iudiciorum ou Livro dos Juízes. O
termo forum (ou foro) passa a predominar a partir do começo da Baixa Idade Moderna, para depois substituir
definitivamente o vocábulo liber (livro). Tal processo pode ser compreendido quando a palavra forum (foro, em
galego e em portugues; e fuero, em castelhano), progressivamente, obtém como valor semântico o significado de
norma, ou normas, de uma maneira geral.
15
Discurso. In: Fuero Juzgo en latin y castellano : cotejado con los mas antiguos y preciosos códices.
Madrid: Ibarra-Impresor de Câmara de S. M., 1815, p. xix-xxi.
16
PÉREZ DE URBEL, Fray Justo. Estudios. In : _________. Historia Silense : edicion, crítica e
introducción. Madrid: CSIC, 1959, p. 9.
17
Ibid., p. 19-25.
18
Disponibilizado no site do Centro Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), editada
originalmente por Manuel Gómez-Moreno [http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/].
19
Disponibilizado no site do Centro Superior de Investigaciones Científicas (CSIC), editada por Manuel
Gómez-Moreno [http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/].
20
Chronicon Laurbanense. In: Monumenta Portugaliae Historia, p. 20. Disponível no site da instituição
da Unibersidade Aberta [www.univ-ab.pt/bad/20/scroll.html].
21
Documento originalmente editado por Luis García Moreno, disponibilizado no site do CSIC,
[http://www.ih.csic.es/departamentos/medieval/fmh/].
22
SEPTIMÂNIA: Nome dado no início da Idade Média à parte do litoral da Gália meridional (entre o
Ródano e os Pirineus) onde os visigodos se instalaram após a Batalha de Vouillé (507). Foi anexada ao reino
franco em 759.
16
textos auxilia na datação e contextualização dos eventos ocorridos nos séculos que sucederam
à queda do reino visigodo, garantindo assim registros precisos quanto à datação e fornecendo
subsídios de análise.
Das fontes de origem andaluza destacamos as de natureza narrativa. A primeira
consiste no texto de Aben Abí Alfayyad, Relativo a la Historia de la Conquista de España
por los musulmanes y A los primeros valíes de Al-Andalus. Esta fonte narra as primeiras
campanhas muçulmanas contra o reino visigodo, bem como a queda deste decorrente
daquelas investidas. As ações militares foram parte de um processo de reorganização dos
poderes na Península Ibérica que estava diretamente associado às várias campanhas
pacificadoras dos muçulmanos, inclusive as direcionadas ao Norte Peninsular
23
.
Uma outra fonte utilizada, também de origem árabe, impõe um pouco mais de cuidado
pois não se processará a análise direta sobre a original, que não chegou até a atualidade.
Subsiste, em parte, uma reconstituição deficitária a partir de outros textos árabes e, por outra
parte, uma tradução portuguesa medieval, empreendida pelo clérigo Gil Perez
24
. Este
documento, a Cronica del Moro Rasis, reconstitui o cenário político e social da Península
Ibérica nos séculos IX e X, importantíssimos para a compreensão das correlações de força que
contribuíram na constituição do reino Astur e de sua expansão rumo ao sul peninsular.
Três outras narrativas árabes compõem o nosso corpus. A primeira é a History of the
Conquest of Spain.
25
. O autor da obra historiográfica, Ibn Abd-el-Hakem, como muitos
escritores muçulmanos, iniciou a sua narrativa com a conquista da Península Ibérica pelos
exércitos de Tariq, no século VIII. Ibn Abd-el-Hakem empreendeu algo corriqueiro a outros
trabalhos similares, ou seja, conectou a história e os novos acontecimentos da região recém
anexada ao Norte da África, a Ifrikyia
26
, como se o destino político do Al-Andaluz estive
unido aos domínios africanos do Califado Abássida. O autor relata também a constituição do
poder islâmico no Sul da Península Ibérica, relatando a insurreição berbere capitaneada por
Meisara
27
. A instabilidade e a turbulência propiciadas pela rebelião berbere enfraqueceram
23
Abén Abi Alfayyad. In: SÁNCHEZ ALBORNÓZ, Cláudio. En torno a los orígenes del feudalismo:
los árabes y el régimen prefeudal carolíngio. Fuentes de la historia hispano-musulmana del siglo VIII. Mendoza:
Universidad Nacional de Cuyo, 1942, 2v., p. 351-360.
24
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. En torno a los orígenes del feudalismo: los árabes y el gimen
prefeudal carolíngio. Fuentes de la historia hispano-musulmana del siglo VIII. Mendoza: Universidad Nacional
de Cuyo, 1942, 2v., p. 184.
25
JONES, John Harris (trad.). History of the Conquest of Spain. Ibn Abd-el-Hakem.. Goettingen-
Lodres: Dieterich-Willians & Norgate, 1858. <books.google.com.br>.
26
Ibid., p. 3.
27
Ibid., p. 4.
17
consideravelmente as forças militares andaluzas, favorecendo assim os primeiros passos
expansionistas cristãos.
A segunda fonte é narrativa árabe denominada a Histoire de la conquète de l'Espagne
par les musulmans
28
, de autoria de Ibn el-Kouthya. É identificada por M. A. Cherbonneau,
como sendo uma narrativa muito ―árida‖, ou seja, desprovida de ornamentos retóricos ao
abordar a descrição dos eventos que levaram ao fim do reino Visigodo
29
. A fonte destaca
eventos ocorridos no governo de al-Hakam, em 853, e aborda de maneira lacônica a ascensão
de Abd-al-Rahman ao trono toledano
30
. Este último personagem histórico foi o responsável
pelo revigoramento militar e político andaluz. Abd-al-Rahman, último representante da antiga
família califal omíada, fez-se der vitorioso de uma revolta que levou à separação do Al-
andaluz dos domínios Abássidas, formando assim o Califado Omíada de Córdoba.
No Primeiro Capítulo da tese analisaremos as primeiras fontes historiográficas asturianas,
procurando compreender o interesse dos responsáveis por suas composições, identificando
quais seriam as possíveis relações deles com a monarquia. Mais de cento e cinqüenta anos
separam as primeiras crônicas da Reconquista da invasão muçulmana, em 711, e da Batalha
de Covadonga, empreendida pelo chefe da ―resistência cristã‖ de nome Pelágio contra os
muçulmanos, em 718. O silêncio de mais de uma centúria não significa um descuido da
monarquia em preservar a memória dos acontecimentos que a legitimaram, mas sim a
inexistência de uma cultura historiográfica e de um ambiente que a preservasse, que por sua
vez só veio a se desenvolver no tempo do rei Afonso III. A partir desta época surgiram relatos
dedicados a criar uma linearidade entre Pelágio e os reis seguintes, situação que acreditamos
que não se efetuou plenamente, pois não foi estranha a conflitos e tensões nos cinqüenta anos
que antecederam ao governo de Afonso III. A historiografia asturiana procurou dar unidade a
uma realidade conflituosa e fragmentada geográfica e politicamente. Mais do que falar
unicamente do passado, são o presente e o futuro os focos das suas considerações.
No Capítulo Segundo procuramos identificar os vestígios da articulação social no século VIII
fornecidos pelas narrativas sobre a eleição de Pelágio e os primórdios das Astúrias. Levamos
em conta o que dizem as fontes eclesiásticas ou mesmo as ―estrangeiras‖ a respeito da
situação social e política do Norte da Península Ibérica. Tentamos rastrear as formas pelas
quais a sociedade nortenha se mobilizava, o que envolvia acordos de manutenção e respeito a
um poder, ou família poderosa, vinculando o rei e a aristocracia. Veremos, ainda, como as
28
CHERBONNEAU, M. A. Histoire de la conquète de l'Espagne par les musulmans. Ibn el-Kouthya.
Paris-Imprimerie Impériale,1856. <gallica.bn.fr>.
29
Ibid., p. 2.
30
CHERBONNEAU, op. cit.., p. 2.
18
expedições militares serviam como elemento de agregação em torno de um centro de poder,
primeiro para ações exteriores, e, em seguida na luta pela defesa contra ataques externos.
Notamos que a estrutura política centralizadora ainda não estava estabilizada, mas migrava a
autoridade de uma família para outra. Podemos perceber os vestígios da mudança de seus
detentores tanto por meio de acordos matrimoniais quanto pelas mudanças no epicentro
geopolítico do poder. Este esforço de concentração de autoridade não foi um processo
uniforme, oscilando conforme a força do grupo reinante e de sua capacidade de se aliar com
grupos concorrentes.
Analisaremos, no Terceiro Capítulo deste estudo, como os esforços para se produzir
hegemonia propiciou o surgimento de uma identidade política. Esboçava-se a formação de um
centro de decisões que procurava impor seus desígnios sobre um vasto território a partir do rei
Silo. Neste quadro de incertezas instaurou-se uma série de disputas pelo poder e de crises
sucessórias, o que nos permitiu constatar a ausência de regras claras de sucessão. Juntamente
com estes problemas surgidos no seio da própria família com pretensões régias, o papel da
aristocracia foi fundamental no jogo de forças em formação. A articulação com grupos
políticos estabelecidos em torno do rei, o papel de segmentos da parentela na concorrência e a
relação desta com a aristocracia são os elementos mais evidentes destas tensões,
principalmente em fins do século VIII e em princípios do século IX, como fica evidenciado
nos casos de Mauregato e Afonso II. O objeto da disputa evidencia indícios de
reconhecimento de uma esfera superior, um título a ser disputado e obtido. As disputas
transcenderam a percepção de um poder originariamente militar, expressando como o poder
régio excedia o círculo de sua domesticidade e manifestava-se sobre um conjunto de
habitantes que o reconhecia em diferentes níveis de suas pretensões. Outros fortes indícios
que corroboraram nossa afirmativa foram a realização do cerimonial de unção régia a partir de
Afonso II e o poder de atração apresentado por este monarca, como bem exemplifica a
convocação do Concílio de Oviedo, de 811, eventos que ressaltam tanto a proeminência da
figura régia quanto a legitimidade sagrada de sua função.
A preocupação do Capítulo Quarto é abordar os reflexos do fortalecimento do reino asturiano
por meio de seus testemunhos monumentais e pela sua capacidade de recuperação e afirmação
após duros e intensos conflitos internos. As expedições militares não eram únicas
demonstrações de força e de coordenação social. O desenvolvimento de obras arquitetônicas
nos revela de maneira intensa o alto grau de complexidade social atingido no Norte da
Península Ibérica, que não pode ser encarado como uma inovação do período iniciado por
Afonso II. Ao contrário, podemos verificar perfeitamente que as terras inseridas na
19
Cordilheira Cantábrica eram dotadas, havia algumas gerações, de condições técnicas e
humanas para a realização de grandes esforços construtivos, que por sua vez eram
empregados como forma de afirmação política e simbólica da monarquia. Isto nos fez remeter
ao processo de penetração da cultura tardo-romana e visigótica, de longa data, nas Astúrias,
processo fortalecido pela expansão territorial sobre os terrenos do Sul e pela presença cada
vez maior de monges visigodos que migravam para o Norte em busca de refúgio. Essa fase da
história das Astúrias Alto-Medieval foi acompanhada de tentativas de usurpação do poder
monárquico que foram rapidamente desbaratadas pelos legítimos soberanos nortenhos
apoiados por membros significativos da nobreza. O poder de superação das querelas internas
e os indícios indiretos da capacidade da monarquia de dispor de um amplo abastecimento de
recursos exemplificam a consolidação de determinados mecanismos de controle e comando.
No Quinto e último capítulo da tese analisaremos os esforços da monarquia asturiana em
empregar outros expedientes de controle sócio-político e de afirmação política para
diferenciar-se do conjunto da aristocracia nortenha. Além da prerrogativa de convocar e
presidir concílios e da capacidade de dispor de grandes quantidades de recursos extraídos de
seus súbitos, encontraremos os primeiros vestígios diretos de um aparato administrativo,
fiscal e de justiça relacionado à manutenção e fortalecimento da realeza asturiana. Se, no
capítulo anterior, tais mecanismos eram percebidos por dedução, na passagem do século IX
para o X eles serão explicitados e darão as coordenadas necessárias para a compreensão da
distribuição de poderes de coerção no Norte da Península Ibérica. Paralelamente a este
momento, analisaremos ainda as relações políticas da monarquia em meio ao cenário de
conflito com o Emirado Omíada. Esta nova fase marca o agravamento das expedições
islâmicas contra o solar nortenho, o que, por um lado, ameaçava a integridade do frágil reino
e, por outro, estimulava a atração da figura do rei, elemento que congregava as forças para a
resistência. Contudo, por mais que tenham sido intensas as pressões sobre as Astúrias,
notamos uma mudança na maneira pela qual o Emirado encarou o poderio cristão nortenho.
Ocorreu, no período de Afonso III, a possibilidade de os conflitos entre cristãos e
muçulmanos serem resolvidos por outros mecanismos que não fossem somente os recursos
das armas, situação bastante esclarecedora do amadurecimento político das instituições
políticas do reino ovetense.
Por fim ou, antes, iniciando este trabalho de pesquisa queremos deixar explícitas as
hipóteses que o nortearam:
Como hipótese central, consideramos que
20
O edifício político, identificado como o Reino de Astúrias, estruturou-se em três níveis
fundamentais: uma entidade político-territorial estável consolidada em torno do século X pela
elaboração de um discurso histórico e ideológico, pelo uso de determinados expedientes
normativos precedentes mais precisamente, pela tradição visigótica, da qual os reis astures
se fazem herdeiros e pelo esforço militar possibilitado pelo reconhecimento de uma
autoridade que se impõe sobre uma ampla região.
Como hipóteses secundárias, que convergem para a anterior, destacam-se:
1) A formação de uma identidade política no Norte Peninsular fica patente com a
redação das primeiras crônicas de Reconquista, pois a reconstrução do passado investiu na
continuidade do poder político nortenho desde princípios do século VIII até o século X. Tal
controle do passado foi empregado para legitimação de um poder que tentava ser hegemônico;
2) A formação do reino Astur é fruto imediato da disputa territorial entre senhores
locais no Norte e Noroeste da Península Ibérica, que agregaram terras em prejuízo de rivais
que se viram obrigados a aceitar a supremacia de um centro de poder que se tornou
hegemônico;
3) A expansão progressiva para o Sul levou a sociedade asturiana a entrar em contato
com regiões que estavam, em um passado recente, submetidas e inseridas na estrutura de
poder visigótica, possibilitando a penetração de vários elementos culturais ainda subsistentes
que reforçaram a estruturação do poder político nortenho em ascensão.
21
1. HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA ASTURIANAS:
1.1. Sobre a história e algumas de suas funções:
O fato de os estudos históricos contemporâneos serem fruto da especialização de
profissionais em seu campo e da autonomização da História enquanto ciência não menor
sombra de dúvida. Tal informação é parte de qualquer currículo universitário dedicado à
história da história. Um conjunto de técnicas, preocupações, perspectivas teóricas e um
período de instrução nos tornam distintos de muitos outros eruditos que se esforçaram em
preservar o passado ou vestígios dele. O salto qualitativo ocorrido no ofício historiográfico
abriu um grande abismo entre nós e eles. O mero trabalho de antiquaristas e de memorialistas
não mais satisfazia às necessidades científicas de uma nova história. Contudo, junto a este
cenário acadêmico, uma outra história emergiu, não preocupada em desvendar a obscuridade
com uma perspectiva crítica diante dos testemunhos do passado, mas, sim, mais palatável, de
mais fácil compreensão e com uma função muito bem delimitada. Esta história está
intimamente vinculada aos governos, é a versão ―oficial‖, fortemente marcada por uma visão
retrospectiva, que trilhava a senda de determinados acontecimentos em uma ―via de mão
única‖, os quais arremeteriam de maneira linear ao presente constituído. Nesta perspectiva, o
passado é legitimador do presente. Os eventos que contradissessem esta trajetória coerente
das estruturas políticas eram abafados ou não inseridos como parte do processo histórico.
Por outro lado, temos uma ―história ciência‖, muito mais jovem do que aquela
destacada acima e muito mais preocupada em desvendar contradições. Esta outra história
que temos a intenção de cultivar no conjunto desta tese demandou um longo esforço
secular. Este processo foi destacado por Íris Kantor, ressaltando que, gradualmente, desde o
século XVII, as técnicas de investigação das instituições religiosas foram sendo apropriadas
por instituições acadêmicas, fazendo surgir daí a autonomização da área de história e a
profissionalização do historiador.
31
O século XIX é o marco desta construção intelectual no
Ocidente. Se, por um lado, a história ciência se propôs principalmente com o Positivismo
como uma atividade neutra e desinteressada, a ―outra história‖ tem como principal marca a
vinculação com uma missão, explicitada com os projetos nacionalistas de cada um dos países
31
KANTOR, Íris. Academias eruditas e Estado Moderno na Europa: a historiografia acadêmica em Portugal. In:
________. Esquecidos e renascidos: historiografia acadêmica luso-americana (1724-1759). São Paulo-
Salvador: Hucitec-Centro de Estudos Baianos/UFBA, 2004, p. 23.
22
europeus. Esta história está destinada a cumprir um importante papel na construção de
nacionalidades.
O mesmo contexto histórico, que tornou a História uma cadeira acadêmica,
institucionalizou efetivamente a história criadora do mito do Estado Nacional. Como aponta
Íris Kantor, ―embora a História seja um dos domínios mais antigos do conhecimento humano,
a especialização e profissionalização da historiografia no âmbito universitário foi um
fenômeno tardio‖
32
. É a história, enquanto instrumento político, que gostaríamos de tratar
aqui. É esta história que se aproxima consideravelmente das práticas historiográficas de
outrora. A história com uma função pedagógica, instrutiva, será então ministrada. O
conhecimento do passado torna-se instrumental. Útil para construção de uma identidade e do
reconhecimento da autoridade governativa. Todo o fluxo histórico, todo o rio da história
corria em linha reta na direção dos senhores do poder do momento. Nas páginas seguintes este
tema será mais bem elucidado. O que queremos expor no conjunto deste capítulo é a relação
da narração dos fatos com as intenções, primeiro, do grupo que a produz, e, em seguida, mais
intimamente, a relação do texto e dos redatores com os senhores do jogo político. A teia de
afinidades, de trabalhos, de poderes e de memória é de fundamental importância aqui, pois ela
intenta despojar as narrativas de sua aparente coerência e linearidade.
O desafio lançado aqui nesta página esbarra em determinados obstáculos. Materiais e
imateriais. O primeiro é algo um tanto incontornável no atual estado de conhecimento das
fontes narrativas. temos quatro narrativas que abordam a gênese da realeza asturiana, seus
principais fatos e seus agentes históricos. Atrelado a este entrave, outro cerceia nosso
trabalho. A aspereza e o laconismo destas mesmas fontes escritas. De qualquer maneira,
aquele que aspira analisar e tentar reconstituir o passado remoto das Astúrias alto-medieval
terá que, necessariamente, transpor as armadilhas impostas pelos redatores das fontes. Por
outro lado, um empecilho de ordem imaterial talvez seja o mais sério dos problemas: a
ideologia
33
historiográfica e nacionalista que permeia inúmeros trabalhos acerca do tema.
mais de um século, medievalistas e mais medievalistas trilham os tortuosos caminhos nutridos
por diferentes perspectivas historiográficas, em especial, no que se refere à historiografia
ibérica isto é muito marcante, e foi objeto de comentários outrora. O historiador português
José Mattoso notou que todo estudo referente aos primórdios da realeza asturiana começa
32
KANTOR, op. cit., p. 28.
33
Conceito que abordaremos mais adiante.
23
com a revolta de Pelágio
34
. Tal rebelião nos foi referida pelas primeiras crônicas
produzidas no Norte da Península Ibérica
35
, e foi constantemente interpretado por inúmeras
gerações de historiadores como o marco inicial das lutas entre cristãos e muçulmanos,
identificados como inimigos irreconciliáveis. A conotação ideológica que esta postura
apresenta vigorou com considerável força e de maneira unânime no seio da comunidade
acadêmica. No século XIX, o português Alexandre Herculano foi um dos primeiros a reforçar
esta perspectiva na moderna historiografia peninsular.
no cenário espanhol encontramos esta visão tradicional em estudiosos como
Eduardo de Hinojosa, na passagem do século XIX para o XX, e Cláudio Sánchez-Albornoz.
O primeiro era, além de historiador, jurista. Foi o introdutor, na Espanha, da metodologia
relacionada à Escola Histórica Alemã
36
e formou um importante grupo do qual Alfonso
García Gallo foi um dos mais destacados expoentes pautado em uma perspectiva
institucionalista da análise histórica. Sánchez-Albornoz, também discípulo da escola fundada
por Eduardo Hinojosa y Naveros
37
, apresentou aquela que seria a proposta clássica para a
reconstituição histórica do passado ibérico. Abordaremos de forma mais detalhada nas
páginas que se seguirão as elaborações dos autores citados. Por ora, destacaremos que as
interpretações produzidas esforçavam-se em defender a linearidade e a coerência
supostamente mantida entre a primeira batalha entre cristãos e muçulmanos, a sua ligação
com o passado visigótico e as conquistas territoriais que se seguiram. Abordaremos,
progressivamente, tais temas na medida em que a tese avançar.
A reflexão mais importante aqui consiste em reconhecer, contudo, a natureza política
das primeiras crônicas de Reconquista. Tomaremos como um desafio as palavras de José
Mattoso destacadas na página precedente. Precisamos notar que o sentido dos acontecimentos
contidos nos textos narrativos não é neutro, mas corresponde a uma diretriz imposta pelos
cronistas responsáveis por sua redação. Este capítulo, que se esboça agora, busca justamente
analisar criticamente o trabalho historiográfico dos clérigos asturianos, percebendo suas
intenções, motivações e, dentro do possível, os elementos que possibilitaram a execução de
seus propósitos.
34
MATTOSO, José. Portugal no Reino Asturiano-Leonês. In: ________. História de Portugal: antes de
Portugal. Lisboa: Editorial Estampa, 1997, p. 393.
35
A escaramuça entre cristãos e muçulmanos identificada nas regiões montanhosas do Norte da Península
Ibérica foram mencionadas muito superficialmente pelos cronistas árabes, contudo, na presente proposta do
capítulo, nos dedicaremos, exclusivamente, a analisar a construção de memória em terras asturianas. O debate
entre fontes cristãs e muçulmanas terá seu devido espaço no capítulo seguinte.
36
SÁNCHEZ-ARCILLA BERNAL, José. De la historia y del derecho. Algunas reflexiones sobre una historia
(jurídica) del derecho. , p. 454.
37
Ibid., p. 455.
24
1.2. Identificando as primeiras crônicas da Reconquista:
Lidar com as narrativas históricas asturianas é lidar com um corpus documental muito
restrito, tanto pelo seu aspecto quantitativo quanto pela limitação discursiva imposta pelos
historiógrafos medievais. Os esforços para preservar as parcas memórias escritas nortenhas
possuíam um objetivo, estavam dirigidas para uma dada intenção, que restringiria
consideravelmente os estudos produzidos acerca do passado alto-medieval ibérico. Junto às
limitações materiais que cercam toda e qualquer tentativa de estabelecimento de informações,
além das barreiras impostas pelas perspectivas social e política do seu tempo, ainda temos
outro fator que delimita o labor dos escribas nortenhos: a noção de época do que seria
história. Ou seja, importa considerar o que deveria ser história, como deveria ser feita, quem
estaria apto a realizá-la e de que subsídios os escribas dispunham para sua tarefa. O
importante em meio a isto tudo é perceber como determinadas construções ajudaram a dar
forma a elementos até então dispersos, dar-lhes significação, atrelando aspectos descritivos a
uma tradição historiográfica específica e ancestral. Consideraremos, por ora, as matérias com
as quais devem haver-se todos aqueles que desejam trabalhar com o nebuloso passado do
alvorecer da Reconquista.
Quanto aos textos historiográficos que abordaremos, devemos compreender a maneira
pela qual tais fontes foram elaboradas, ou seja, a função deste tipo de texto conforme os seus
compositores. Em um estudo sobre crônicas portuguesas do final da Idade Média, Susani
Silveira Lemos França nos fornece elementos pertinentes para avançarmos na análise das
primeiras crônicas de Reconquista. Um primeiro elemento que emerge é o fato de que, para o
autor da crônica, os grandes acontecimentos e a sucessão de reis deveriam ser registrados para
não caírem no esquecimento
38
.
Consideraremos, em primeiro lugar, as narrativas redigidas em latim produzidas em
fins do século IX procedentes do Norte da Península Ibérica. Até o presente momento, são as
primeiras peças historiográficas conhecidas, produzidas por cristãos peninsulares que não
habitavam território muçulmano, as únicas a tratarem dos primeiros tempos da nascente
monarquia asturiana. Duas delas podem ser identificadas como a Crônica Albeldense e a
Crônica Profética, às quais se somam as pertencentes ao ciclo de Afonso III as Crônicas
Rotense e Ovetense. Faremos uso da edição organizada por Yves Bonnaz, mas, quando
38
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os saberes históricos. In: ________. Os reinos dos cronistas medievais
(século XV). São Paulo-Brasilia: Annalume-Capes, 2006, p. 93-94.
25
necessário, informaremos quando fizermos menção aos textos editados por D. W. Lomax e
Juan Gil Fernandez. A homogeneidade da matéria contida nelas é muito mais do que fruto de
intertextualidade ou do caráter dependente de uma fonte com relação à outra. Entendemos que
isto constitui apenas uma parcela da questão, e consideramos que a unidade de conteúdo é
uma das facetas das narrativas: o que mais se verifica é o fato de elas estarem imersas em uma
dada dinâmica política. Advertimos que uma análise muito rigorosa da estruturação dos
referidos textos narrativos não constitui parte de nossas metas, pois o foco central desta tese é
evidenciar as linhas gerais de composição, elencando referências básicas para nossa pesquisa.
Muito foi dito sobre este corpus documental. Inúmeros foram os historiadores que
se ocuparam dele, por isto aproveitaremos a trilha que nos fornecem. O mais antigo dos textos
é a Crônica Albeldense, narrativa que está contida no chamado Codex Vigilanus ou
Albeldensis (Codex Conciliorum Albeldensis seu Vigilanus), datado de aproximadamente
976
39
. O citado códice provém do mosteiro de San Martín de Albelda, situado no que é
atualmente Albelda de Iregua, em La Rioja. O códice albeldense contém uma recolha de
diversos textos, alguns produzidos na época visigótica, como os cânones dos concílios
toledanos, o Liber Iudiciorum, algumas decretais papais, outros documentos eclesiásticos e
narrativas históricas. A Crônica Albeldense é claramente uma compilação de diversas fontes
aspecto que discutiremos em outra parte da tese tornando sua estrutura mais complexa
do que a das demais composições. Podemos dividir a obra historiográfica em diversas
unidades conforme determinados assuntos são apresentados. É uma das obras historiográficas
mais antigas, constituída de dois textos distantes no tempo, segundo Amador de los Rios.
14. Na verdade, são coligidos todos os tempos desde o começo do mundo até a
presente era DCCCCXXI e décimo oitavo ano do reinado do príncipe Afonso , filho
do glorioso rei Ordoño, todos os anos sob único VILXXXII e desde a Encarnação do
Senhor até agora são DCCCLXXXIII anos
40
.
A parte mais antiga, datada de 881 e 883, forma o corpo principal do conjunto da obra;
a segunda é datada de 976, atribuída a Vigila, monge de Albelda
41
. Uma primeira parte do
texto dedica-se à descrição física da Península Ibérica, com a enumeração das ilhas, rios,
cidades, ópidos, províncias e povos que a compõem. Em seguida, seu posicionamento
geográfico, sua localização entre as terras da África, separada desta pelo mar, e da Gália, da
39
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Propriedad y trabajo. In: ________. Los monjes españoles en la edad
media. 2 ed. Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v., p. 361.
40
Chronica Albeldense. 14. Modo uero colligitur omne tempus ab exordio mundi usque presentem era
DCCCCXXIª et octabo decimo anno regni Adefonsi principis, filii gloriosi Hordoni regis, omnes annos sub uno
VILXXXII; et ab incarnatione Domini usque nunc anni DCCCLXXXIII.
41
AMADOR DE LOS RIOS, op. cit., p. 143.
26
qual é separada pelos montes Pirineus. Tal descrição filia-se a uma tradição que podemos
remontar a Caio Júlio César, no Comentário sobre as Guerras contra os Gauleses, e a
Amiano Marcelino, historiador romano do século IV, que em sua obra deixava um importante
espaço para descrições geográficas
42
. A matéria que vem a seguir é a continuação da
descrição geográfica peninsular, dividindo-a em regiões, enumerando suas principais cidades,
além de mencionar os rios que as cortam.
A obra está inserida no gênero História Universal, iniciando a narrativa com a criação
do mundo e o surgimento da humanidade a partir de Adão, passando por diversos estágios da
história ibérica usando, como linha condutora do tempo, a ocupação romana, bem como se
progressivo recuo, e a dominação visigótica. A Bíblia fornece subsídios para o cômputo do
tempo, com base nos anos em que viveram os homens do Antigo Testamento. Sobre este
gênero literário, Marc Bloch, todavia, adverte que as ―histórias universais, ou tidas como tais,
as histórias de povos, as histórias de igrejas emparelham com as simples compilações de
notícias, feitas de ano a ano‖
43
. A amplitude dos esforços iniciais do cronista esbarra na
ausência de notícias referentes a períodos muito distantes do seu presente, ou a regiões muito
afastadas, restando-lhe fazer uso de acontecimentos mais próximos de seu tempo. O caso da
Crônica Albeldense é paradigmático nesta posição, focando seus comentários mais nos anos
referentes ao reinado de Afonso III
44
.
A referida narrativa difere das demais crônicas de Reconquista que analisaremos por
não utilizar, exclusivamente, o cômputo da Era Hispânia
45
, incluindo no corpo do texto o
Ano da Encarnação de Cristo
46
para datar o tempo em que o cronista fazia sua obra. Também
está conjugado aos cômputos citados, paralelamente, o uso das chamadas Seis Idades do
Mundo. O documento retoma com uma preocupação geográfica, enumerando as principais
cidades e sedes episcopais existentes em território peninsular, inclusive aquelas situadas em
terras sob o domínio muçulmano.
42
SILVA, Gilvan Ventura. História, verdade e justiça em Amiano Marcelino. In: In: JOLY, Fábio Duarte
(org.). História e retórica: ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Alameda, 2007, p. 178.
43
BLOCH, op. cit., p. 107.
44
AMADOR DE LOS RIOS, op. cit., p. 145.
45
Era Hispânia: a origem da Era Hispânica permaneceu obscura durante bastante tempo, todavia, podemos
dizer, com alguma segurança é o fato de se tratar de uma forma de datação exclusivamente ibérico. É também
conhecido como ―Era de sar‖. Segundo Mário Jorge Barroca o início desta forma de datação corresponde a
concessão do título de Imperador a Augusto no ano de 38 a.C., o que explicaria a diferença de 38 anos com
relação ao calendário comum.
46
Ano da Encarnação de Cristo: o Anno Domini ou Ano do Nascimento de Cristo liga-se ao esforço do monge
Dionísio o Pequeno, no século VI, que reorganizar o calendário não mais com base no modelo pagão romano,
mas sim a partir da referëncia do nascimento do Messias. A diferença deste sistema de datação para o Ano da
Encarnação de Cristo é o fato de o primeiro tomar como referência o dia do nascimento de Cristo, enquanto o
segundo inicia-se no dia 1 de janeiro.
27
A Crônica Albeldense divide sua matéria narrativa em cinco blocos principais
referentes às cinco ordens políticas que se sucederam na Península Ibérica. Uma primeira, a
Ordo Romanorum Regum (A ordem dos Reis dos Romanos), começa com a mítica fundação
de Roma por Rômulo, passando por diversos eventos até a queda do Império Romano do
Ocidente, com uma breve extensão até seu continuador direto, Bizâncio. A segunda parte, a
Ordo Gentis Gotorum (A ordem das Gentes dos Godos), inicia-se pelo primeiro rei dos
visigodos, Atanarico, durante a regência do Imperador Teodósio
47
, e conclui com o
desmantelamento do reino Visigodo frente aos golpes da invasão Árabe na Era Hispânica de
714
48
. O tópico seguinte trata do estabelecimento da nova ordem cristã situada no Norte da
Península Ibérica, Ordo Gotorum Obetensium Regum (A ordem dos Reis dos Godos
Ovetenses). A penúltima matéria dedica-se à construção do domínio muçulmano desde a sua
chegada à península, enumerando seus governantes, além de fazer digressão sobre a pregação
de Maomé. A quinta e última parte Additio de Regibvs Pampilonensibvs (Adição sobre os
Reis dos Pamplonenses) é uma breve descrição da formação da segunda estrutura política
cristã no Norte, o reino de Pamplona, que constituiria uma espécie de concorrente do reino
asturiano a partir de fins do século IX e princípios do X. Esta última parte não consta da
edição de Yvez Bonnaz, mas faz parte daquele feita por Gil Fernandez, tal fato se explica pela
interpolação processada no manuscrito de origem riojana, território progressivamente inserido
na esfera de influência do futuro Reino de Pamplona.
A segunda fonte da qual nos ocuparemos é a Chronica Prophetica, que se estrutura em
seis tópicos principais. Iniciemos a análise a partir da segunda parte do texto, ―Aqui se inicia a
genealogia dos Sarracenos‖, que descreve a origem daqueles que invadiram a Península
Ibérica no século VIII. Esta seção toma de empréstimo o modelo genealógico do Novo
Testamento, o Evangelho de São Mateus, na descrição da estirpe de Cristo
49
. Esta fórmula é
um paradigma na descrição da árvore genealógica de qualquer indivíduo digno de nota nos
textos historiográficos
50
. Conta-se a tica origem dos árabes a partir da escrava Hagar e de
47
TEODÓSIO, Teodósio II (401-450), imperador do Império Romano do Oriente (408-450), filho e sucessor
de Arcádio. Ordenou a edificação das muralhas de Constantinopla e a redação do chamado Código Teodosiano.
No ano de 431, em Éfeso, reuniu concílio no qual foi condenada como heresia a doutrina de Nestório.
Enciclopédia., p.
48
O ano de 714 corresponde ao terceiro ano de incursões muçulmanas pela Península Ibérica. O
estabelecimento de uma estrutura política plenamente inserida nos domínios do Califado não ocorreu com a
derrota do rei Rodrigo na Batalha de Guadalete em 711, mas demandou um esforço militar considerável para
submer um território amplo e ainda pouco conhecido pelos exércitos islâmicos..
49
Evangelium secundum Matthaeum. Cap. 1, versículos 1-17. In: Biblia Vulgata. Madrid: B.A.C., 2002, p.
963-964.
50
A genealogia de Jesus Cristo apresentada no Evangelho de São Mateus (Mt 1, 1-17) serviu de modelo para
algumas narrativas medievais, como por exemplo o texto latino dedicado a contar as histórias do guerreiro
28
seu filho Ismael, do qual se originaram os Ismaelitas, passando, em seguida, pelos ancestrais
dos califas de ―Divinamente Guiados‖, seguidos pelos próprios Omíadas e terminando por
seus descendentes que constituíram o califado Omíada de Córdoba. O terceiro tópico,
História de Maomé, procura explicar a origem do profeta reverenciado pelos conquistadores
da Hispânia. Maomé é caracterizado como heresiarca, como um deturpador da mensagem de
Deus. O escriba responsável pela redação da crônica situa o surgimento do culto maometano
no sétimo ano de reinado do Imperador Heráclito. A quarta parte da narrativa refere-se A
época das incursões dos Sarracenos na Espanha:
No terceiro ano do reinado de Rodrigo sobre os Godos da Espanha, no terceiro dia
dos Idos de Novembro, na era DCCLII, os Sarracenos invadiram a Hispânia. Walid,
o amir almuminin, filho de Abd al-Malik, governou a África, no centésimo ano dos
Árabes
51
.
A data de redação da crônica pode, aproximadamente, ser determinada em fins de
outubro, princípios de novembro do ano 884
52
. O texto teria sido composto no oitavo dia dos
Idos de Novembro da era hispânica de 930, ainda nos tempos de governo do rei Afonso III. A
Crônica Profética destaca que a invasão efetuada pelos muçulmanos no reinado de Rodrigo
está situada na Era Hispânia de 752, ano 714 da era comum. O tópico Sobre os Godos que
permaneceram nas Cidades da Espanha nos mostra manifestações de resistência à conquista
dos exércitos sarracenos; sete anos de conflitos marcam os tempos que sucederam à ruína do
Reino Visigodo de Toledo
53
. A despeito destas tensões, o fortalecimento árabe consumou-se,
submetendo e pacificando as regiões ibéricas sob a autoridade do Califa Abássida. O redator
da Crônica Profética relata que nestas circunstâncias acordos e pactos políticos foram
firmados entre os vencidos e os conquistadores
54
, que progressivamente subjugaram cidades e
fortalezas outrora pertencentes a cristãos. Neste mesmo contexto, o cronista enumera os
sucessivos governantes muçulmanos, destacando os anos da administração destes até a
formação do Califado Omíada de Córdoba, com Abd Al-Rahman III.
A última seção desta fonte, Os nomes dos Reis Católicos de Leão, reconstitui a
formação do reino das Astúrias desde seus primórdios. Pelágio é aqui identificado como filho
de Bermudo e neto do falecido rei Rodrigo dos Visigodos. A atuação de Pelágio é descrita
castelhono Rodrigo Diaz de Vivar, El Cid Campeador, chamado de Historia Roderici. No manuscrito da versão
romance da Historia Pinatense podemos identificar o emprego do mesmo expediente literário.
51
Chronica Prophetica. Ruderico regnante Gothis in Spania anno regni sui tertio ingressi sunt Sarraceni in
Spani dia IIIo. Idus nouembris, era DCCLII. Regnante in Afria Ulid, amir al muminin, filio de Abdelmelic, anno
Arabum centésimo. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 6-7.
52
BONNAZ, Yves. Introduction. In: ________. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS,
1987, p. LXIV.
53
Chronica Prophetica, op. cit., p. 7.
54
Ibid., p. 7.
29
como reinado e a região asturiana, transformada em uma entidade político-territorial, é
nomeada reino (regnum). A perspectiva religiosa da Crônica Profética é justamente o seu
principal elemento articular. Com com base neste viés a narrativa é estabelecida, revestindo a
atuação dos reis asturianos de uma aura legitimadora sagrada. A culminância de todo processo
histórico contido na obra é a derrocada apocalíptica do domínio muçulmano em terras
ibéricas. Sendo assim, todo vocabulário é tomado diretamente da tradição apocalíptica da
literatura judaica e cristã, acrescido da inspiração isidoriana em definir os significados
―etimológicos‖ de palavras específicas. Os Godos, identificados como Gog
55
, sucumbiram
diante das espadas Ismaelitas
56
. O texto atribui à expedição islâmica um valor punitivo, uma
ação deliberada por Deus contra os próprios pecados dos Godos, após estes terem reinado por
trezentos e oitenta anos. A culpabilização dos Visigodos não é uma matéria nova, pois está
presente na Crônica Ovetense. A inovação apresentada neste tema se configura pelo tom
profético que guia toda a narrativa, situado como uma diretriz governamental, um projeto a
ser cumprido em breve a partir das terras asturianas. Abílio Barbero e Marcelo Vigil
dedicaram-se a explicar esta tendência profética vigente em toda a Península Ibérica
57
, não
apenas nos círculos culturais cristãos asturianos, mas também entre cristãos moçárabes e
hebreus, que produziram uma impressionante literatura apocalíptica no século IX
58
.
Procuraremos aprofundar nossa análise desta matéria em outros capítulos de nossa Tese; neste
momento nos preocuparemos com os aspectos voltados para a construção de um passado
político.
Continuemos pelo tradicionalmente chamado ciclo de Afonso III, do qual possuímos
duas fontes interligadas. A primeira está contida no Códice de Roda, manuscrito do século X,
que inclui diversas narrativas historiográficas referentes a Navarra, Pamplona e o território
que deu origem ao reino de Aragão. Dentre os textos presentes no códice destacamos as
Historiarum Advserus Paganos, de Paulo Orósio, Historia de Regibus Gothorum Valdalorum
et Suevorum, de Santo Isidoro e as narrativas navarras Genealogias de Roda, De laude
Pampilone e Epistola de Honório. Tomamos como nossa referência a versão rotense da
55
Gog e Magog: nos textos judaicos e cristãos, personificação das potências do Mal. ENCICLOPÉDIA
Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural, 1998, 11v., p. 2737.
56
Ismaelitas: diz-se de ou árabes que pretendiam descender de Ismael, filho de Abraão e Agar. Ismael (do
hebraico, Deus escuta), filho de Abraão de da serva egípcia Agar. Uma tradição popular, que se encontra na
Bíblia (Gênesis, 25), faz de Ismael o ancestral epônimo dos árabes do deserto (ismaelitas). A tradição islâmica
reconhece em Ismael (em árabe, Ismail) o ancestral dos árabes. ENCIPLOPÉDIA Larousse Cultural. São
Paulo: Nova Cultural, 1998, 13 v., p. 3247.
57
BARBERO, Abílio, VIGIL, Marcelo. La formación del feudalismo en la Península Ibérica. 4 ed.
Barcelona: Crítica, 1984, p. 252.
58
Ibid., p. 256.
30
Crônica de Afonso III. Esta é a primeira versão do ciclo que narra a história ibérica desde o
reinado de Vamba, rei dos Visigodos, até o de Ordoño I, das Astúrias. Possuímos dois
manuscritos que conservaram esta crônica, o mais antigo datado de aproximadamente 910, o
mais recente de 913
59
. Podemos separar este texto em duas partes fundamentais, uma primeira
dedicada aos acontecimentos ocorridos durante a vigência da monarquia visigótica, a partir do
rei Vamba (672-680) e até a desestruturação do poder político dos visigodos, no reinado de
Rodrigo, em 711.
A Chronica Ad Sebastianum, ou versão ovetense, seria uma cópia corrigida do texto
rotense. Segundo Ramón Menéndez Pidal, tal correção explicar-se-ia pela intenção do rei
Afonso III de respeitar a memória dos tempos passados
60
, ordenando-a de maneira mais exata,
enfatizando as pretensões políticas do governo vigente. Ambas as narrativas, para alguns, se
estruturam continuando o trabalho historiográfico empreendido por Santo Isidoro de Sevilha,
sendo isto explicitado pela Crônica Ovetense. Este aspecto isidoriano, porém, deve ser
limitado a determinadas passagens, como bem destacou José Amador de los Rios.
EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, INICIA A CRÔNICA DOS
VISIGODOS COLIGIDA DESDE O TEMPO DO REI VAMBA ATÉ AGORA NO
TEMPO DO GLORIOSO REI GARCÍA, DE DIVINA MEMÓRIA, FILHO DE
AFONSO
61
.
1a. Eu, o rei Afonso, saúdo o nosso Sebastião. Que seja conhecido por ti a História
dos Godos, pela qual conheceste pelo presbítero Dulcídio, e não quiseram escrever
pela preguiça dos antigos, mas ocultaram com silêncio. E porque Isidoro de Sevilha,
bispo da Sede Sevilhana, ensinou plenamente a crônica dos Godos até o tempo do
glorioso Vamba, e, em verdade, sobre tempo dele, ouvimos pelos nossos antigos e
predecessores e temos conhecimento que é verdadeira. Intimamos a ti brevemente
62
.
O historiador espanhol nos adverte de que esta declarada filiação isidoriana não é de
todo correta, pois recobre uma restrita parcela da narrativa
63
. Na verdade, o cronicon de Santo
Isidoro alcança até o quinto ano de reinado do visigodo Suintila, no ano de 626. Entre este
período e o reinado de Vamba, destacado no preâmbulo da obra, uma lacuna suprida por
59
MENÉNDEZ PIDAL, Ramón. Introdução. In: ________. História de España: Madrid: Espasa-Calpe, 1956,
p. X.
60
Ibid., p. X.
61
Chronica ad Sebastianum. IN NOMINE DOMINI NOSTRI IHESU XPI INCIPIT CRONICA
UISEGOTORUM A TEMPORE UUAMBANI REGIS USQUE NUNC IN TEMPORE GLORIOSI GARSEANI
REGIS DIVE MEMORIE ADEFONSI FILIO COLLECTA. In : In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes:
fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 31
62
Chronica ad Sebastianum. 1a. Adefonsus rex Sabastiano nostro salutem. Notum tibi sit de istoria Gotorum,
pro qua nobis per Dulcidium presbiterem notuisti, + pigritiaeque ueterorum scribere noluerunt, sed silentio
occultauerunt. Et quia Gotorum cronica usque ad tempore gloriosi Uuambani regis Ysidorus Spalensis sedis
episcopus plenissime edocuit, et nos quidem ex eo tempore, sicut ab antiquis et a predecessoribus nostris
audiuimus et uera esse cognouimus, tibi breuiter intimabimus, p. 31.
63
AMADOR DE LOS RIOS, José. Primeros historiadoresde la Reconquista. In: ________. Literatura
española. Madrid: Imprenta de José Rodriguez, FActor, Num. 9, 1867, 2v., p. 138
31
outra fonte produzida antes da invasão muçulmana
64
. Esta obra de José Amador de los Rios,
antigo, ainda é útil no que se refere a fornecer alguns dados sobre as primitivas narrativas
históricas asturianas. Se despojarmos o texto estabelecido por de Amador de los Rios de seus
elementos datados e incompletos (por exemplo, não qualquer comentário sobre a Crônica
Rotense), conseguimos obter proveitosos dados para localizar, de forma adequada, no tempo e
no espaço, as crônicas. Na opinião de Amador de los Rios, diferente da versão rotense da
crônica de Afonso III, na Crônica do Ovetense uma breve e incerta autoria de um certo
presbítero Dulcídio que teria dedicado sua obra ao bispo Sebastião, de Salamanca
65
ou,
para alguns, ao rei Afonso III
66
.
Os ecos de um passado tão remoto não são apreendidos em sua integridade, sendo
captados com alguma distorção, talvez fruto da ausência de textos que servissem de referência
ao trabalho do escriba ou da incerteza da memória. Tal insegurança ao empreender a redação
das narrativas nos uma clara noção do estado cultural do Norte das Astúrias, nos fornece
indícios da limitação da circulação de informações escritas na região durante os dois
primeiros séculos da Reconquista. Talvez, a alusão à figura de Isidoro de Sevilha tivesse a
intenção de escudar o trabalho cronístico com sua autoridade. De qualquer forma, como o
esclarecem os ensinamentos de Marc Bloch, as peças historiográficas medievais nos fornecem
indícios importantes sobre o nível cultural de uma época
67
. A forma como eram concebidas, a
matéria selecionada a ser narrada e como os acontecimentos são relacionados são uma parte
de grande importância em nossa análise.
1.3. O mito fundador asturiano e os redatores das crônicas de Reconquista:
Vamos considerar agora a recolha de matéria histórica de nossas fontes. Verificaremos
a estruturação textual, identificando as linhas mestras que conduzem o leitor a uma dada
posição, esclarecendo aquilo que estava nas sombras. Notemos que as opiniões e crenças dos
escribas dedicados à composição das primeiras crônicas de Reconquista enfatizam o seu
ponto de vista ou o ponto de vista dito ―oficial‖ no seu tempo. Apesar de cada uma das
narrativas trabalhadas ter surgido de diferentes penas, verificamos uma linha de pensamento,
uma ideologia, uma intencionalidade, compreendida como um empenho que vai além do
64
AMADOR DE LOS RIOS, op. cit., p. 138.
65
Ibid., p. 137.
66
Ibid., p. 138.
67
BLOCH, Marc. A memória coletiva. In: ________. A sociedade feudal. 2.ed. Lisboa: Edições 70, 2001, p.
108.
32
individual, mais do que uma simples tomada de posição saudosista ou empolgação originada
pela descoberta de um passado visto como valoroso. Com esta preocupação, empregaremos a
partir daqui o conceito de Ideologia proposto por Gonzalo Puente Ojea. O autor propõe que
este conceito esteja composto por dois níveis que se relacionam: um primeiro, constituído
pelo horizonte utópico, e o segundo pela temática ideológica concreta
68
. O horizonte utópico
integra a ideologia, pretendendo legitimar as situações sociais vigentes a partir de proposições
axiológicas (relativas aos valores) integradas a uma dada visão do mundo
69
. Almeja cristalizar
o consenso social, ―apresentando-se como um contexto ético convalidante, uma tentativa de
fazer passar a ideologia por defensora dos interesses sociais gerais ou comuns‖. Já a temática
ideológica concreta é descrita como um conjunto de formulações ―que tematizam
teoricamente e refletem em forma direta as situações reais de dominação inscritas na estrutura
econômica, social e política vigente‖
70
.
Um dado muito importante para se compreender os textos narrativos asturianos é ter
consciência de que as crônicas medievais são construções de memória A memória (e seus
inúmeros significados), na perspectiva de Patrick Geary, pode ser abordada por três
perspectivas históricas: 1) como memória social (algo pertinente à sociedade, vinculando a
experiência passada com a identidade do presente)
71
. Assim, a memória social compreende a
memória litúrgica, a genealogia, a historiografia e a tradição oral, são instrumentos de
reprodução social que fazem com que os indivíduos e os grupos entrem em contato íntimo
com o passado
72
. 2) A memória também é a história educada, técnica de memorização. 3)
Outra abordagem vincula-se com a teoria da memória, particularmente ―as teorias platônicas e
aristotélicas que constituem partes essenciais da psicologia, da epistemologia e da teologia
medievais‖
73
. Limitar-nos-emos a compreender as matérias narrativas asturianas como uma
memória social, algo pertinente para a construção de uma identidade política no Norte da
Península Ibérica.
Inúmeros elementos nos informam sobre a diretriz ideológica enfatizada nas crônicas
asturianas, sendo possível reconstruir o estado em que se encontrava a visão política no tempo
de suas composições. Tentando salientar estes caminhos, partamos para a análise dos exordia
de nossa documentação, aquilo que é apresentado logo no começo das crônicas e que lança de
68
PUENTE OJEA apud CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. Narrativa, sentido, história. Campinas:
Papirus, 1997, p. 35.
69
Ibid, p. 35.
70
Ibid., p. 35
71
GEARY, Patrick. Memória. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude (coord.). Dicionário temático
do Ocidente medieval. Bauru-São Paulo: Edusc-Imprensa Oficial, 2002, 2v., p. 167.
72
Ibid., p. 167-168.
73
Ibid., p. p. 168.
33
imediato os objetivos principais dos amanuenses; é sua ―carta de intenções‖. O ciclo de
Afonso III é muito explícito neste sentido. A Crônica Rotense nos apresenta a seguinte
passagem:
TEM INÍCIO A CRÔNICA DOS VISIGODOS DO TEMPO DO REI VAMBA
ATÉ O TEMPO DO GLORIOSO REI ORDOÑO, DE DIVINA MEMÓRIA,
REUNIDA PELO FILHO DO REI AFONSO.
74
Por sua vez, a Crônica de Afonso III, na sua versão Ovetense, abre-se com os
seguintes dizeres:
EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, INICIA A CRÔNICA DOS
VISIGODOS REUNIDA PELO FILHO DE AFONSO DESDE O REI VAMBA
ATÉ TEMPO DO GLORIOSO REI GARCÍA, DE DIVINA MEMÓRIA
75
.
Eu, o rei Afonso, saúdo o nosso Sebastião. Que seja conhecido por ti a História dos
Godos, pela qual conheceste pelo presbítero Dulcídio, e não quiseram escrever pela
preguiça dos antigos, mas ocultaram com silêncio. E porque Isidoro de Sevilha,
bispo da Sede Sevilhana, ensinou plenamente a crônica dos Godos até o tempo do
glorioso Vamba, e, em verdade, sobre tempo dele, ouvimos pelos nossos antigos e
predecessores e temos conhecimento que é verdadeira. Intimamos a ti brevemente
76
.
As Crônicas de Afonso III procurariam suprir a lacuna histórica relativa aos séculos
VII e IX, mas elas constituem um conjunto um pouco mais homogêneo se comparados com a
Crônica Albeldense como veremos nas próximas páginas. No primeiro parágrafo da
Crônica Ovetense se faz patente o descontentamento com o trabalho historiográfico anterior,
o que motivou uma ―necessária‖ correção, o que evidencia a preocupação em determinar o
que teria ocorrido efetivamente, tendo como elemento norteador a ideologia defensora da
realidade monárquica. De qualquer forma, salta aos olhos a ênfase dada à continuidade entre
os reinos dos Visigodos e Asturianos, fenômeno denominado por longas gerações de
historiadores como ―neogoticismo‖, um dos pontos de sustentação dos argumentos dos
cronistas em sua defesa da ainda jovem realeza nortenha. Como destaca Susani Silveira
Lemos França, o prólogo delimita cronologicamente a matéria a ser narrada, impõe-se com
isto a necessidade de reorganizar todas as coisas passadas
77
. Não basta esforçar-se por coligir
74
Cronica Rotensis. INCIPIT CRONICA UISEGOTORUM A TEMPORE BAMBANI REGIS USQUE
NUNC IN TEMPORE GLORIOSI ORDONI REGIS DIVE MEMORIE ADEFONSI REGIS FILIO
COLLECTA. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 31.
75
Cronica Ad Sebastianum. IN NOMINE DOMINI NOSTRI IHESU XPI INCIPIT CRONICA
UISEGOTORUM A TEMPORE UUAMBANI REGIS USQUE NUNC IN TEMPORE GLORIOSI GARSEANI
REGIS DIVE MEMORIE ADEFONSI FILIO COLLECTA, op. cit., p. 31.
76
Cronica ad Sebastianum. 1a. Adefonsus rex Sabastiano nostro salutem. Notum tibi sit de istoria Gotorum,
pro qua nobis per Dulcidium presbiterem notuisti, + pigritiaeque ueterorum scribere noluerunt, sed silentio
occultauerunt. Et quia Gotorum cronica usque ad tempore gloriosi Uuambani regis Ysidorus Spalensis sedis
episcopus plenissime edocuit, et nos quidem ex eo tempore, sicut ab antiquis et a predecessoribus nostris
audiuimus et uera esse cognouimus, tibi breuiter intimabimus, p. 31.
77
FRANÇA, op. cit., p. 94.
34
os acontecimentos passados, é de vital importância selecionar aquilo que corrobora com seus
anseios políticos legitimadores, tornando o presente em uma parte integrante de uma ―reta‖
surgida no passado.
Os cronistas asturianos investiam intensa e conscientemente nesta continuidade
institucional entre a realeza ovetense e a sua matriz toledana. Inúmeros são os indícios que
favorecem esta afirmação. Os exordia das crônicas Rotense e Ovetense destacam a clara
intenção dos seus redatores: ―contar a história dos godos‖ até o seu presente, o século IX.
Pelágio, o primeiro caudilho das Astúrias, é tornado ―espartário dos reis Vitiza e Rodrigo‖
78
,
segundo a primeira versão da crônica de Afonso III, e ―filho do duque Fáfila, que era de
semente régia‖, de acordo com a versão rotense. Membro do séqüito da realeza visigótica,
spartarius, filho do duque Fáfila e integrante da família real toledana, todos os elementos que
concederiam legitimidade ao exercício de poder de Pelágio, variantes que reforçam a origem
visigótica do caudilho, principalmente na Crônica ad Sebastianum, que atrelaria a atuação
deste chefe guerreiro a sua responsabilidade como portador de ―sangue real‖. A Rotense, por
outro lado, reforça a relação do nascente reino com a monarquia visigótica por meio do
casamento da filha de Pelágio com Afonso I. Segundo a narrativa, ―certamente, em curto
espaço de tempo, veio às Astúrias Afonso, filho de Pedro, duque da Cantábria, que era de
prosápia do reino‖
79
. Aqui não é Pelágio a ter sangue real, mas sim seu genro Afonso, por via
paterna. Já a Crônica Ovetense destaca que Afonso, assim como seu pai, descendia da realeza
visigótica, provenientes, mais precisamente, da estirpe de Leovegildo e Recaredo.
Quanto às origens dos chefes do Norte da Península Ibérica e aos primeiros momentos
do poder político nortenho narrados, além de podermos notar um desacordo entre as crônicas
de Afonso III, atestamos outra contradição com base no seguinte fragmento da Crônica
Albeldense, extraída da passagem sobre a Ordo Gentis Gotorum:
33. Vitiza reinou por X anos. Este, durante a vida do pai, residiu na urbe Tudense da
Galícia. E ali o duque Fáfila, pai de Pelágio, a quem o rei Égica expulsara, nesta
ocasião golpeou com um bastão a cabeça da esposa deste, e depois morreu. E
enquanto o mesmo Vitiza aceitava o reino do pai, Pelágio, filho de Fáfila, que se
rebelou com os Astures contra os Sarracenos, por causa do pai, ao qual nós nos
referimos, expulsou-o da urbe régia. Em Toledo, Vitiza findou sua vida, sob o
imperador Tibério
80
.
78
Chronica Rotensis. spatarius Uitizani et Ruderici regum e filium quondam Faffilani ducis ex semine regio.
In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 38.
79
Chronica Rotensis. Infra pauci uero temporis spatium' Adefonsus filius Petri Cantabrorum ducis ex regni
prosapiem Asturias aduenit., p. 44.
80
Crônica Albeldense. 33. Uittizza rg. ab. X. Iste in uita patris in Tudense hurbe Gallicie resedit. Ibique
Fafilanem ducem Pelagii patrem, quem Egica rex illuc direxerat, quadam occasione uxoris fuste in capite
percussit, unde post ad mortem peruenit. Et dum idem Uittizza regnum patris accepit, Pelagium filium Fafilanis,
qui postea Sarracenis cum Astures reuellauit, ob causam patris quam prediximus, ab hurbe regia expulit.
35
Na subseção Nomina Regum Catolicorum Legionensium da mesma fonte, conforme
edição de D. W. Lomax, outra informação nos é fornecida:
1. Pelágio, filho de Bermudo, neto de Rodrigo, rei Toledano. Ele foi o primeiro que
adentrou nos montes escarpados sob a pedra e sob o antro de Asseuva.
81
.
Na mesma parte, uma nova lista de reis é relatada, acrescentando-se o período de
reinado de Pelágio e a contagem do tempo transcorrido entre o caudilho asturiano e o governo
do rei Afonso III, como podemos verificar abaixo:
1. Pelágio, filho de Bermudo, neto de Rodrigo, rei Toledano, aceitou o reino na era
DCCLVI e reinou por XVIII anos, VIIII meses, XVIIII dias. Ele mesmo foi o
primeiro que entrou nos montes pedregosos sob a pedra e o antro de Asseuva.. E de
Pelágio até a era DCCCCLXVI, estando reinando Afonso, filho Ordoño, são
[contados] CCXI anos.
82
3. Afonso, genro de Pelágio, reinou por XVIIII anos, I mês, II dias
83
.
No fragmento referente à Ordo gentis Gotorum conserva-se a referência de Fáfila
como pai de Pelágio, como um duque visigodo residente na cidade Tudense, na Galícia.
Novos dados nos são fornecidos, o lugar de origem da família, a área submetida a sua
autoridade e administração. Já na passagem dos Nomina Regum Catolicorum Legionensium, a
filiação direta com a casa real visigótica nos é apresentada, contradizendo o tópico
precedente, mas se aproximando da Crônica Ovetense. Fáfila não é mais pai de Pelágio, mas
sim Bermudo, filho do rei Rodrigo. Se a versão Rotense da crônica de Afonso III torna o
caudilho apenas um membro do séqüito armado do monarca visigodo, em parte da Crônica
Albeldense Pelágio é filho de um duque, dux, exilado. Entretanto, não devemos tomar como
verdade absoluta estas filiações, nenhuma fonte está de acordo no mesmo ponto; quanto à
exata origem de Pelágio. Tais contradições levam-nos a questionar a idéia de continuidade
com o passado visigodo. Na opinião de Armando Besga Marroquin, tais informações não
seriam indícios de contradições, pelo contrário, seriam versões perfeitamente compatíveis e
Toletoque Uittiza uitam finiuit sub imperatore Tibério. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe.
siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 23.
81
Crônica Albeldense. 1. Pelagius filius Ueremundi nepus Ruderici regis Toletani. Ipse primus ingressus est
in asperibus montibus sub rupe et antrum de Aseuba. In : GIL FERNANDEZ, Juan (ed.). Cronicas asturianas.
Oviedo: Universidad de Oviedo, 1985.
82
Crônica Albeldense. 1. Pelagius filius Ueremudi nepus Ruderici regis Tutelani accepit regnum era
DCCLVI et regnauit annis XVIII, menses VIIII, dies XVIIII. Ipse primus ingressus est in asperibus montibus
sub rope et antrum de Aguseba. Et de Pelagio usque in era DCCCCLXVI regnante Adefonso filio Ordonii anni
CCXI. In : GIL FERNANDEZ, Juan (ed.). Cronicas asturianas. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1985.
83
Crônica Albeldense. 3. Adefonsus gener Pelagii r. a. XVIIII, m. I, d. II. GIL FERNANDEZ, Juan (ed.).
Cronicas asturianas. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1985.
36
não excludentes
84
. Com esta proposição, Pelágio seria efetivamente um visigodo refugiado,
responsável pleno da resistência aos ameaçadores conquistadores árabe. Um dado de grande
relevância surgido com isto, a noção de que as terras das Astúrias estivesse plenamente
inserida na esfera política, administrativa e militar visigótica, situação na qual nos
estenderemos ainda nesta tese.
De antemão, concordando com os postulados de Besga Marroquín, enfatizamos que o
norte das Astúrias não era um lugar isolado nas montanhas cantábricas. Longe disso, a sua
inserção na esfera política tardo-romana, mais precisamente na visigótica, favoreceu a
penetração de elementos culturais e de ideários políticos sulistas no norte peninsular.
Aguardemos, contudo, progressos neste campo nas páginas vindouras, pois o nosso foco
principal aqui é verificar como o passado foi absorvido e reinterpretado pelos redatores das
crônicas asturianas da Reconquista. A reconstrução do passado visigótico é o tema mais
comentado pela historiografia medievalística, mas não é o único. O tempo decorrido entre
Pelágio e Afonso III também foi fruto de interpretações e reconstruções e se inserem
perfeitamente na análise sobre as construções sociais e políticas no Norte da Península
Ibérica.
Como apontamos acima, a gênese do poder político asturiano é um ponto bastante
controverso se tomarmos por base os vestígios preservados nas narrativas de Reconquista. O
ponto de maior coerência entre as narrativas é o período posterior à rebelião liderada por
Pelágio. De seu sucessor e filho, Fáfila, até Afonso III, as disparidades entre os cronistas o
são, aparentemente, tão explícitas, porém as informações obtidas sobre esta época são muito
mais superficiais. Os textos são muito sucintos, conservando apenas parcas lembranças dos
anos de reinados, da sucessão no trono, do nome dos reis e fatos pontuais sobre o governo de
cada um dos monarcas asturianos. Não há, aparentemente, grandes disparidades nos relatos
sobre as lutas do reino asturiano contra os muçulmanos e nem nas datas das primeiras
investidas normandas contra o litoral nortenho nos anos que se seguiram. Porém, a sucessão
linear de um rei a outro implica em alguns problemas: conflitos são captados mesmos que
sob a forma de sutis ecos e as ações empreendidas para manter a integridade do reino
apresentam alguns pontos de tensão difíceis de serem resolvidos por uma estrutura política
dita puramente autóctone.
As incoerências no conjunto de nossas fontes são possuidoras de uma grande
coerência e estão fortemente interligadas textualmente. Uma coisa ficou clara durante nossa
84
BESGA MARROQUÍN, Armando. Orígenes hispano-godos del Reino de Asturias. Oviedo: Real
Instituto de Estudios Asturianos, 2000, p.
37
análise. De uma maneira geral, as pesquisas dedicadas à formação do reino asturiano
aproveitam os dados fornecidos pelas crônicas sem questionar a linearidade dos reis
asturianos. Historiadores como Abílio Barbero e Marcelo Vigil, em um trabalho em conjunto,
e José María Mínguez apostam na evolução política oriunda das transformações endógenas
das sociedades cantábricas e asturianas como fator de constituição do reino nortenho. A
sucessão do trono asturiano é tratada puramente como fruto das tensões entre as estruturas e
práticas políticas novas em oposição às permanências arcaicas, sem considerar a possibilidade
desta sociedade se encontrar, havia muitos séculos, em um grau mais complexo de
hierarquização social e divisão do trabalho político. Não acreditamos que em pleno culo
VIII o modelo social hegemônico se sustentasse no igualitarismo tribal, que talvez existisse
nos primeiros anos do Império Romano, no alvorecer da época do Principado de Augusto. Por
outro lado, também não acreditamos que as Astúrias fossem uma continuação simples e
mecânica do reino dos Visigodos, situação defendida pela historiografia tradicional
espanhola, ou mesmo fruto do desmembramento de uma região já em vias de se tornar
independente de Toledo, como uma expressão prematura de um longo processo de
atomização política vivenciado pelo Ocidente romano desde os últimos decênios do
Império
85
. Tais temas serão melhor abordados no decorrer dos próximos três capítulos. Pelo
momento, apenas nos restringimos a dizer que acreditamos que o processo tenha sido mais
complexo do que as proposições destacadas, algo não muito simples de se constatar
plenamente dadas às restrições das fontes do período e sobre o período.
Um primeiro ponto que desejamos evidenciar refere-se ao intervalo de tempo
transcorrido entre a revolta de Pelágio e os últimos anos do século IX e os primeiros do século
X. Desconhecemos qualquer outra produção historiográfica asturiana anterior às crônicas
Albeldense e Profética, e ao ciclo de Afonso III, pelo menos que tenha sido preservada na
íntegra, sem ser objeto de questionamento pelo conjunto representativo dos historiadores
hispanistas. Nem crônicas, nem histórias, nem hagiografias, nem anais. Cláudio Sánchez
Albornoz, por sua vez, já indicara em seus antigos trabalhos a possibilidade de ter havido uma
narrativa produzida no tempo de Afonso II fins do século VIII preservada de alguma
maneira nas citadas primeiras crônicas da Reconquista
86
. Esta posição ganhou a adesão de
Fray Justo Perez de Urbel
87
, contudo, nada além de suposições foram levantadas até hoje.
85
MENÉNDEZ BUEYES, Luís Ramón. Caracterización de la Alta Edad Media Astur: el enfoque
medievalista. In: ________. Reflexiones críticas sobre el origen del reino de Astúrias. Salamanca:
Universidad de Salamanca, 2001, p p. .
86
SANCHEZ-ALBORNOZ, Cláudio. ,p. .
87
PEREZ DE URBEL, Fray Justo., p. .
38
Existe um testamento de Afonso II, Testamentum Adefonsi regis, no qual se esboça uma
primeira menção a Pelágio como primeiro governante das Astúrias. Não afirmamos que
Pelágio não tenha sido o primeiro grande chefe da região. A rigor, não temos a preocupação
em defender a existência factual deste personagem histórico. O que pomos em causa é o fato
de alguma vez ter havido uma transmissão coerente e direta de autoridade do período de
Pelágio até o século IX. Talvez tal menção tenha se configurado em um primeiro ensaio de
construção de memória pelos reis asturianos.
Diferentemente das crônicas, o testamento limita-se a citar os acontecimentos relativos
à queda do reino visigodo e à ascensão de Pelágio, instaurando-se um terrível silêncio até
Afonso II. Acreditamos que neste lapso de tempo não havia ainda uma ―massa crítica‖ que
fornecesse informações para a confecção das primeiras obras historiográficas asturianas. Um
ponto importante é relacionar a redação destes textos com a concentração de poder político no
nascente reino. Não são ocorrências desconexas; muito pelo contrário, a atividade
historiográfica propriamente dita se tornou possível após a existência de uma entidade
político-territorial perene. Talvez o que tenha realmente retardado a elaboração de narrativas
foi a inexistência de um poder hegemônico, uma autoridade coerente capaz de se impor sobre
os territórios circundantes. Tal exercício de poder se fez sentir também em outros níveis da
sociedade, principalmente no que tange à reconstrução do passado. Assim, definimos
Hegemonia como supremacia de um dado grupo sobre outros, manifestando-se como uma
―proeminência não militar, como também econômica e cultural, inspirando-lhe e
condicionando-lhe as opções, tanto por força de seu prestígio como em virtude do seu elevado
potencial de intimidação e coação‖
88
.
O problema das fontes não se prende apenas ao conteúdo de sua narrativa; a questão
não é duvidar ou não da existência de uma revolta liderada por Pelágio ou dos nomes dos reis
que foram preservados pela historiografia alto-medieval. Não é a matéria conservada nas
crônicas que é fruto da imaginação do escriba, mas é a coerência que estes fatos tendem a
possuir e a inter-relação existente entre eles que são fruto, não da imaginação pura e simples
dos redatores, e sim de uma intenção ideológica deliberada em submeter o passado aos
interesses políticos do século IX ou mesmo interpretá-los tendo em vista o seu próprio
presente. Acreditamos também que uma perspectiva bastante anacrônica e retrospectiva tenha
auxiliado na condução das narrativas asturianas, assim, o esforço de reconstituição histórico
seria bastante facilitado. Estes não são elementos opostos, mas sim convergentes em algumas
88
BELLIGNI, Silvano. Hegemonia. In: BOBBIO, Norberto et alii. Dicionário de política. 12 ed. Brasílio:
UnB-L.G.B., 2v., 2004, p. 579.
39
situações. É o impacto político das crônicas que nos interessa aqui, é como esta construção
faz transparecer um importante estágio de concentração e monopolização de poder no Norte
da Península Ibérica. Esclarecemos, contudo, que o tema da monopolização ou do exercício
exclusivo do poder (político, militar, econômico e jurídico) é tradicionalmente rejeitado ao se
abordar a Idade Média. Nada mais estranho ao período medieval do que algum tipo de
concentração político-territorial semelhante à que se desenvolveu a partir do período moderno
juntamente com tudo aquilo que decorre de tal situação. O monopólio total da violência e
da justiça por qualquer instituição estava longe de estar presente em qualquer etapa do
medievo, porém conseguimos constatar um primeiro esboço, uma tentativa de monopolização
realizada no discurso historiográfico asturiano.
As primeiras crônicas de Reconquista conduzem seus leitores na gica política de
seus escribas; todo o período anterior ao tempo destes foi ordenado segundo o impacto das
tendências políticas e as pretensões hegemônicas do trono de Oviedo. O limitado
desenvolvimento da arqueologia nas terras nortenhas peninsulares, o silêncio das fontes e a
inexistência de outros documentos restringe as análises ao uso da Rotense, da Ovetense, da
Albeldense e da Profética. Todo historiador dedicado à abordagem dos primeiros anos dos
reinos de Astúrias e Leão precisa lidar quase que exclusivamente com as narrativas do ciclo
de Afonso III e, conseqüentemente, se submete ao filtro imposto por elas. Aquilo que poderia
parecer um empecilho mostrou-se favorável, pois é por esta filtragem que nos interessamos,
pelo que propôs Pierre Bourdieu no estudo do Estado a partir da produção de discursos que
ele mesmo impõe. As categorias discursivas são naturalizadas pelos esforços dos escribas
asturianos, impedindo que o historiador avance de maneira mais profunda, direcionando-o a
uma miragem. Contudo, são com estes mesmos elementos criados pela pena dos escritores
que podemos rastrear as suas intenções.
Não tomamos as primeiras crônicas de Reconquista como meros repositórios de
informação, de onde os historiadores selecionam e extraem mecanicamente os dados
necessários para seu ofício. É isto, mas não somente. É muito mais. Os textos, compreendidos
em seu conjunto o que dizem, como dizem e onde foram produzidos e preservados
constituem elementos que subsidiam a nossa análise. As fontes foram erigidas em um misto
de relatos, eventos, e discursos políticos, constituindo uma representação de tendências
ideológicas em vias construção. O fato e a representação do fato não são elementos
antagônicos. Não incompatibilidade entre ambos, pois, segundo Alessandro Portelli
89
, os
89
Alessandro Portelli analisa o caso do Massacre de Civitella, evento que trata da morte de uma parte dos
habitantes do vilarejo italiano de Civitella por tropas alemãs na Segunda Guerra. A reconstituição deste
40
‗fatos‘ do historiador e as ‗representações‘ do antropólogo estão relacionados
90
. Os
acontecimentos são utilizados pelas representações, afirmando que eles são ―fatos‖. Sendo
assim, os fatos são então reconhecidos e organizados por meio das representações
91
, eles
formam uma matéria-prima, um substrato inicial que alimenta as especulações e as intenções
dos redatores das narrativas e do ―público‖ ao qual se dirigem. As representações
desenvolvidas nas referidas crônicas presentificariam os fatos passados, tornando-os
acessíveis e coerentes
92
.
Ist posto, os acontecimentos, e as imagens elaboradas destes, não são realidades
estanques, mas sim esferas complementares que ganham sentido a partir do momento em que
foram ordenadas pelos escribas asturianos de fins do século IX e princípios da centúria
seguinte. Os escritores anônimos do norte da Península Ibérica tomaram como ponto de
partida os episódios pretéritos, preservando os ecos fugidios que ainda se faziam sentir de
forma intensa e deram-lhes forma, lógica, significado e relevância, para assim cumprirem seu
papel na elaboração dos discursos políticos. Para Alessandro Portelli, as ―representações se
utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos são reconhecidos e organizados de acordo
com as representações; tanto fatos quanto representações convergem na subjetividade dos
seres humanos e são envoltos em sua linguagem‖
93
. É esta ―subjetividade‖ que fornece a
intencionalidade da historiografia medieval, superando a simples crença na ―ingenuidade‖ e
―fantasia‖ atribuída às narrativas medievais de uma maneira geral, como bem nos adverte a
opinião de Bernard Guenée
94
.
Se, de início, as crônicas asturianas investiam em uma continuidade ―genética‖ entre a
monarquia visigoda e a asturiana, fundamentalmente no ciclo de Afonso III identificamos
uma evidência que enfatizava um novo começo. A Rotense e a Ovetense do jeito que
chegaram até s não se preocuparam em narrar a história, desde o começo da realeza
goda, para destacar uma linearidade entre as duas entidades políticas, visigótica e asturiana.
Defendemos que, apesar da criação do mito do ―neogoticismo‖, tais fontes se preocupam
acontecimento por diversos setores políticos e a sua utilização política no pós-guerra é um importante estudo de
caso que aborda questões relativas ao uso, à preservação e à constituição da memória.
90
CLEMENTE apud PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de
1944): mito e política, luto e senso comum. In: FERREIRA, Marietea de Moraes, AMADO, Janaína (org.). Usos
& abusos da história oral. 6.ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 111.
91
Ibip. 111.
92
A palavra de ―representação‖, como bem destaca Carlo Guinzburg, pode possuir duas acepções, sendo
a primeira delas significando substituição, como se algo pudesse ser necessariamente posto como um substituto
ou representante tal qual um delegado do rei, por exemplo. Contudo, a acepção de ―representação‖ atrela-se a
noção de tornar algo presente, como uma efígie de cera de um rei falecido. Em ambas as situações, aquilo que
está no lugar da autoridade ausente uni seus observadores às verdadeiras fontes do poder. GUINZBURG, Carlo.
93
PORTELLI, op. cit., p. 111.
94
GUENÉE, Bernard. História. In: , p. 523.
41
consideravelmente em fornecer uma explicação para o começo da jovem monarquia
peninsular. Pelágio poderia não ter sido um rei na acepção plena da palavra
95
, porém a
rebelião por ele liderada foi de grande importância para os ―historiadores medievais‖, uma
vez que fornece a matriz narrativa da gênese do reino. As partes dedicadas à invasão
muçulmana, à fuga de Pelágio para o Norte
96
, às expedições pacificadoras lideradas pelo
governador de Astorga Munnuza contra a revolta liderada pelo caudilho nortenho e às demais
situações vinculadas a tais acontecimentos cobrem uma parte muito extensa das narrativas das
Crônicas Rotense e da Ovetense. Retomando a contribuição de Portelli, podemos dizer que
―em termos narrativos, o incipit, o princípio da história, assinala a passagem do equilíbrio, do
estático e da ordem para a desordem, o conflito e o dinâmico. Antes de a história ter início,
por definição, nada acontece, ou pelo menos nada que valha a pena contar‖.
97
E, de fato,
nenhuma ação foi devidamente protagonizada em solo asturiano até que um grupo de escribas
fixasse por escrito os acontecimentos relativos à Batalha de Covadonga, este ―princípio‖
estabelece os fundamentos narrativos da história nortenha.
Este novo começo ou simplesmente, este começo torna-se objeto de
preocupação da monarquia asturiana. O tom ―novelesco‖ que as passagens consagradas à
revolta asturiana apresentam, a referência à fuga de Pelágio com sua irmã para as Astúrias, os
diálogos do caudilho com o bispo Oppas, nos quais são empregadas trechos e empréstimos de
algumas passagens bíblicas, e a menção a milagres perpetrados por Deus em favor dos
cristãos contra as hostes sarracenas são componentes demasiadamente ricos e vivos se
comparados com a superficialidade dos eventos que se seguem nas crônicas afonsinas.
Armando Besga Marroquín busca recuperar o tom verídico da arenga entre o Pelágio e o
bispo colaboracionista, esperando, mesmo que hipoteticamente, encontrar as palavras
proferidas em um momento tão delicado quanto o início de um confronto armado
98
. O esforço
de redimir tal diálogo, trazendo à luz a voz dos combatentes, todavia, mostra-se bastante
infrutífera, ainda mais se considerarmos as narrativas como um todo. São estes os únicos
diálogos em toda narrativa. Este tipo de preocupação resgatadora do passado vivo em todo
seu vigor foi bastante produzido com um corpus documental não tão restrito quanto o nosso,
como, por exemplo, o trabalho de reconstituição do Jesus Histórico. Como bem observou o
historiador Joaquim Barradas de Carvalho, esta retomada do passado tal qual ele realmente
foi, preceito tirado diretamente da historiografia de Leopold Von Ranke, não leva em
95
Tema que será discutido no próximo capítulo.
96
Que será analisada em outro momento desta tese de doutorado.
97
PORTELLI, op. cit., p. 112.
98
BESGA MARROQUÍN ...
42
consideração as lacunas deixadas pelo próprio passado e os demais limites impostos pela
própria visão do historiador
99
.
Seria muito mais produtivo direcionar a análise da fonte para outras paragens. Não
tanto no que se refere aos elementos factuais, mas aqueles que transformaram fatos do
passado em fatos históricos. Ora, não devemos esquecer nunca que estamos tratando de peças
historiográficas permeada de ideologia como se pudesse existir alguma sem ideologia e
que seus responsáveis eram dotados de certos expedientes literários de grande importância.
Os cronistas eram homens dotados de determinados conhecimentos para porem em prática o
seu ofício. Sendo assim, com base neste know-how, eles se tornavam aptos a escrever. Este
saber que intentamos destacar refere-se aos recursos retóricos a serem empregados em
determinadas obras. O que queremos dizer mais diretamente é que o embate discursivo está
muito próximo do modelo das arengas empregados por historiadores latinos antigos: Tito
Lívio, Salustio, Tácito e Amiano Marcelino
100
. Besga Marroquín não levou em consideração
os fundamentos literários dos cronistas asturianos, fator primordial para avançarmos nos
estudos sobre a Alta Idade Média Asturiana. Ao comentar o ―reinado‖ de Pelágio, os textos
nos relatam muito pouca coisa, como se o papel do novo chefe nos destinos do Norte se
restringisse essencialmente ao de congregar combatentes contra as hostes islamitas.
Quanto aos subsídios disponíveis aos cronistas asturianos para que pudessem alçar vôo
em suas obras não podemos dizer muita coisa. Que Pelágio é uma referência básica para eles
isto é inegável. Aquilo que foi relatado pelas primeiras crônicas da Reconquista compõe o
acervo original que serve de base para os textos historiográficos posteriores que são muito
mais prolíficos, mas dependentes dos primeiros. Contudo, esbarramos em determinadas
―áreas obscuras‖ de difícil transposição, limites que todo historiador deve considerar e sobre
eles refletir, evitando extrapolações e teorizações estéreis. Os ―esquecimentos‖ e as
―construções‖ são também referências importantes para nós, pois refletem uma parte das
diretrizes que permeiam as fontes asturianas narrativas. Desta forma, o início das crônicas é
determinado pelos interesses que motivaram seus redatores. O princípio, incipit destacado nas
páginas anteriores, da narrativa não é um começo puramente factual. Os eventos fornecem
âncoras com as quais os escribas confeccionavam suas obras, escolhendo os pontos que
melhor convinham às suas intenções, aqueles mais relevantes para a execução e conclusão
satisfatória do seu trabalho. A delimitação cronológica que abre os textos do ciclo de Afonso
III evidencia o investimento em marcos temporais precisos e nos fatos a eles relacionados.
99
CARVALHO, Joaquim Barradas de.
100
SILVA, op. cit., p. 177-1778.
43
na Chronica Albeldense, as marcações do tempo, aparentemente, não se coadunam
às propostas iniciais da narrativa; estruturar-se-ia, confirme já havíamos dito, como uma
história universal. Mas, se a recortarmos, verificaremos que, na verdade, as histórias dos reis
asturianos são inseridas em um contexto muito mais amplo. O presente do cronista da
Albeldense se vincula com o passado remoto e se articula com as demais estruturas políticas
circundantes. O esquema que organiza a sucessão dos fatos compõe todo o escopo da obra
historiográfica. Esta construção, juntamente com a Crônica Profética, circunscreve os
destinos políticos da península na lógica das ―Idades da Humanidade‖, sendo esta ideologia
uma ferramenta importante no edifício historiográfico latino cristão.
A situação de esquecimento‖, constante nas fontes, não é algo de anormal. O
pesquisador, historiador ou antropólogo tem que lidar, justamente, com estas omissões, como
sugere Alessandro Portelli. Aquele que se lança no estudo do passado tem o dever de
considerar tanto o fato quanto a omissão do mesmo como uma representação, notando como
um se articula com outro
101
. O silêncio das fontes sobre a situação política e social do norte
da Península Ibérica anterior a Pelágio não significa ausência de eventos ou inexistência de
processos históricos. Todavia, tal como os historiadores de nosso tempo, os do medievo
mais precisamente os asturianos determinavam o que deveria ser um fato histórico.
Acontecimentos são revestidos de significado na medida em que colaboram com a
proposição de um autor ou de um investigador; é a intencionalidade de um cronista que
tornava os eventos dignos de nota. Patrick Geary evidencia que ―a maneira como se esquecia
o passado correspondia à maneira como se conservava o seu vestígio. Sendo a memória ativa
e criativa, a dinâmica da recordação tem tendência a modificar o objeto da recordação‖
102
. O
silêncio é ocasionado não apenas pela inexistência de registros imediatos das situações
políticas, mas também é proporcionado pelo esforço ordenador dos fatos sucedidos nas terras
nortenhas peninsulares. Selecionar, organizar, dar significado. Superar as contradições e os
paradoxos. Abafar eventos que pudessem pôr em causa o edifício historiográfico. Esquecer
intencionalmente qualquer outro acontecimento. Controlar o passado, dando-lhe uma função,
estabelecendo uma ―linha reta‖ entre a data inicial e a final.
São afastados quaisquer elementos que possam comprometer a gica redacional das
narrativas, as dispersões e incoerências são retiradas para não comprometerem as explicações
que os cronistas buscavam produzir. Isto explica as interpolações tão comuns nos textos do
medievo, e nos faz entender as contradições encontradas nas crônicas de Afonso III no que
101
PORTELLI, op. cit., p. 113.
102
GEARY, Patrick, op. cit., p. 179.
44
tange, por exemplo, à origem visigótica de Pelágio ou da constituição do reino Asturiano, ou
ainda, no caso da Crônica Albeldense, na narrativa dos feitos daqueles mesmos reis,
inserindo-os no tópico chamado ―Ordem dos Reis Godos de Oviedo‖. A continuidade da
monarquia toledana nas Astúrias não é apenas um dos temas nos quais se investe, existe um
outro tópico indicado igualmente importante, mas pouco considerado: a construção da
linearidade histórica do poder político asturiano a partir da revolta de Pelágio.
Os esforços, as intencionalidades e as omissões não são tomadas como mera ilação,
mas podem ser caracterizadas pelo estudo do conjunto das primeiras crônicas de Reconquista.
Cada uma delas, isoladas, não é capaz de nos fornecer índices ou rastros do que buscamos
pesquisar, mas, se tomarmo-las conjugadas, obteremos um corpus reduzido, mas seguro
apto a apontar o que animava a composição das fontes. Podemos averiguar a existência de
uma lógica característica de um dado grupo social, grupo este que comunga com a mesma
ideologia. Desta maneira, nossa proposta ampara-se no referencial metodológico fornecido
por Lucien Goldmann, o Estruturalismo Genético. Não descartamos outras modalidades
metodológicas, apenas nos restringimos aqui, momentaneamente, a esta opção. Acreditamos
que compreender as obras historiográficas asturianas é imperativo compreender o grupo social
que as tornou possível. Aqui, mais do que identificar dados factuais, buscamos compreender
como um determinado setor da sociedade asturiana alto-medieval via o seu próprio passado,
como se estruturava a ideologia do mesmo e como ela direcionava seus esforços para
legitimar um poder que se afirmava.
Consideremos então, como nos indica Lucian Goldmann, a relação entre a vida social
e a criação literária, neste caso, das primeiras crônicas de Reconquista. O que o sociólogo
francês nos propõe é não apenas verificar a relação entre a sociedade e o texto narrativo como
algo imediatamente dado. Goldmann atenta para o fato de não haver somente analogia
imediata entre o conteúdo de determinados setores da realidade humana e o conteúdo da
própria obra estudada. Pelo contrário, a relação se constrói apenas com ―as categorias que
organizam tanto a consciência empírica (real) de um dado grupo social quanto o universo
imaginário que o escritor cria‖
103
, o que se faz presente na manifestação das preocupações
ideológicas de uma dada categoria social
104
. Os escribas, mesmo que afastados
geograficamente uns dos outros, estavam imbuídos de uma mesma visão de mundo e,
103
CARDOSO, Ciro Flamarion S. Análise histórico-literária de textos narrativos. In: ________. Narrativa,
sentido, história. São Paulo: Papirus, ___, p. 27-28.
104
Ibid., p. 28.
45
instruídos em um mesmo modelo educacional, são possuidores de uma mesma bagagem
cultural.
Do conjunto das ferramentas materiais e intelectuais empregados pelos monges
asturianos, um se destacava, a escrita, principal instrumento utilizado na preservação da
memória social. Tal aproveitamento no trabalho de conservação de acontecimentos
considerados relevantes alcançou uma grande repercussão política. Fazendo uso das
referências teóricas fornecidas por Pierre Bourdieu, verificamos que a monopolização
preservação da memória atesta, em matéria política, o fato de que um número considerável de
pessoas e de grupos foi excluído do manuseio e emprego de determinadas utensílios úteis no
controle das matérias a serem elencadas. Paralelamente, tal ―desapossamento‖ é acompanhado
de uma ―concentração dos meios de produção propriamente políticos nas mãos dos
profissionais‖. E isso foi possível de acontecer porque um número restrito de pessoas
possuía ―uma competência específica‖ o que lhe garante ―alguma probabilidade de sucesso no
jogo propriamente político‖
105
. Sendo assim, segundo pudemos perceber em nossa pesquisa,
a capacidade de compor uma narrativa histórica foi um instrumento político de grande
impacto nas Astúrias de fins do século IX, já que limitou a exposição dos acontecimentos,
propondo uma versão a ser encarada como a ―oficial‖.
Podemos dizer que os escribas nortenhos, como parte integrante da ordem monacal,
eram detentores de um habitus específico. Fundamentando este conceito com base em Pierre
Bourdieu, entendemos por habitus ―sistema das disposições socialmente constituídas que,
enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador
do conjunto de práticas e das ideologias características de um grupo de agentes‖
106
. Contudo,
este conjunto de estruturas é construído a partir de determinadas demandas sociais e políticas,
que, por sua vez, incidem-se em seguida sobre um certo número de pessoas em um processo
dialético. Aquilo que condiciona as crenças e as atitudes de alguns indivíduos é fruto de um
cenário específico. O contexto fornecerá as peculiaridades de cada habitus. Sendo assim, as
culturas letrada e historiográfica configuraram-se como partes constitutivas de um tipo de
habitus social e político originado da preparação especial investida naqueles que se tornaram
os primeiros historiógrafos da Reconquista.
Podemos perceber, com isso, que o saber erudito, letrado, dos grupos monásticos
nortenhos estes sim, herdeiros diretos das tradições e estruturas visigóticas, como veremos
105
BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In: ________.
Poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil. 2004, p. 169.
106
BOURDIEU, Pierre. Campo do poder e habitus de classe. In: ________. A economia das trocas
simbólicas. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 191.
46
nos próximos capítulos tiveram politizada a sua aprendizagem, o seu corpus de saberes
específicos. Nas palavras de Pierre Bourdieu, o conjunto dos conhecimentos é produzido e
acumulado ―pelo trabalho político dos profissionais do presente e do passado‖
107
. Aquilo que
contribui para delimitar o que pode e deve ser dito, escrito e praticado não é algo preso
puramente ao passado, mas a eficácia destas limitações e procedimentos só pôde ser dada pela
continuidade proporcionada pelos novos produtores do habitus. Para que a eficácia destas
intervenções seja alcançada, torna-se necessário inculcar geração após geração formas de
pensar, valores a praticar, crenças a serem seguida e tradições a serem preservadas e
sacralizadas. Lembrando sempre que tudo isto está sujeito a transformações de acordo com o
cenário vigente e com os recursos disponibilizados, como poderemos ver nas últimas páginas
deste capítulo.
Mesmo sendo os amanuenses responsáveis finais pelo texto, precisamos reconhecer
que eles se inserem em uma dinâmica muito mais ampla, não apenas restringida pela natureza
individual ou coletiva em geral, mas sim pela ―estrutura muito variável em que intervêem
indivíduos e grupos‖
108
. Sendo assim, essa estrutura mental não é uma criação individual,
―mas de uma classe social (ou fração dela)‖, de um conjunto de indivíduos que se encontram
em uma situação análoga e que viveram ―durante longo tempo de forma intensa um conjunto
de problemas que trataram de resolver‖
109
. Este aspecto social da produção literária favorece
a análise conjunta das crônicas: ainda que fossem diversos os seus autores, e que cada uma
esteja eivada de contradições nos seus conteúdos textuais, o que motivou as suas redações
foram as mesmas dinâmicas sociais, as experiências culturais e políticas de seus autores. Os
anônimos redatores das narrativas historiográficas dos primeiros anos da ―Reconquista‖
deram voz a uma demanda política que chegava a um ponto de maturação.
Os textos podem ser diferentes entre si, porém, como nos ensina Lucien Goldmann, a
unidade entre eles decorre das estruturas mentais que partilham
110
. Este corpus documental
pode, então, ser tratado como um conjunto coerente, unido pelo primeiro grande esforço
historiográfico atrelado à esfera de influência da realeza asturiana. Notemos que, apesar das
narrativas desejarem impor sua visão de mundo pela reconstrução da memória política das
Astúrias, como qualquer obra
111
, elas se dobram diante da realidade que constituem para se
tornarem compreensíveis para aqueles que as manusearam. ―A obra é forçada por razões
107
BOURDIEU, op. cit., 169.
108
CARDOSO, op. cit., p. 28.
109
Ibid., p. 28.
110
Ibid., p. 28.
111
Ibid., p. 29.
47
literárias e estéticas a formular também os limites de tal visão, os valores humanos que,
para garantir a vitória daqueles são sacrificados‖
112
Nas palavras de Alessandro Portelli, ao abordar a reconstrução do passado por meio da
descrição de acontecimentos que no nosso caso é a elaboração de um mito fundador da
monarquia asturiana , não há, todavia, porque questionar a credibilidade dos episódios
relatados para identificar sua dimensão mítica. Um mito não é, efetivamente, uma história
falsa ou uma mera invenção, mas sim uma ―história que se torna significativa na medida em
que amplia o significado de um acontecimento individual (factual ou não), transformando-o
na formalização simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por uma cultura‖
113
. As crônicas Rotense, Ovetense, Albeldense e Profética tentam superar as
descontinuidades e contradições do passado que relatam. Estando amparadas por um fundo
comum e por uma ideologia voltada para a valorização da instituição monárquica, as
narrativas têm por base um esforço social consciente.
A unidade procurada pelos cronistas é constituída por diversas fontes escritas ou
orais que não compunham, originalmente, uma peça coerente, nem se propunham a fazê-
lo, mas sim dar coerência a um passado até então bastante fugidio. As peças historiográficas
são formadas por diferentes experiências históricas e sociais do Norte peninsular, dispersas,
contraditórias, tornadas ―irmãs‖ pela pena dos escribas. Os eventos passados foram retomados
para revestir de significado o seu tempo presente, explicá-lo e legitimá-lo aos olhos de seus
leitores. ―A função mais especificamente mítica da história, no entanto, consiste na função
clássica do mito‖
114
, não sendo uma simples sucessão de fatos narrados, ―mas uma matriz de
significados‖
115
. O que as crônicas acabam se tornando uma espécie de receptáculo da
tradição nortenha, que transformaria, seguindo a perspectiva teórica de Alessandro Portelli,
essa mesma memória em algo público. Este passado mitificado é oficializado por meio dos
seus ―narradores gabaritados‖, preservado ―nos livros de depoimentos e nas peças sacras‖
116
.
Estamos diante de peças estruturadas com base na visão de mundo de determinadores setores
da comunidade monástica nortenha e esta mesma construção interferiu na percepção do
passado e na construção política do presente e futuro. As demandas memorialísticas e
políticas serviram para motivar as redações cronísticas, que, por sua vez, assentaram certas
112
CARDOSO, op. cit., p. 29.
113
PORTELLI, op. cit., p. 120-121.
114
Ibid., p. 121.
115
Ibid., p. 123.
116
Ibid., p. 126.
48
perspectivas políticas no conjunto da dinâmica política nortenha. O passado reconstruído
passou a delimitar as tomadas de decisão no embate entre os poderes políticos nortenhos.
1.4. O mito fundador asturiano como um esforço pró-monárquico:
Além do fato de o mito histórico ter a função de revestir de significados eventos
dispersos no tempo, devemos reconhecer o quanto ele reforçou a atuação da ainda jovem
monarquia asturiana. Citando Platão, Carlo Ginzburg traz à tona a função política da
construção do mito em uma sociedade hierarquizada
117
. Após considerar a interpretação dos
elementos que compõem o mito, cuja narrativa oscila entre o conteúdo ―verdadeiro‖ ou
―falso‖, Ginzburg identifica a sua utilização como instrumento de dominação social, que
objetivava a preservação da própria sociedade
118
. Platão considera necessário que aos líderes
de uma cidade empregassem a ―mentira‖ como forma de proporcionar o equilíbrio
fundamental entre as tensões dos diversos grupos, o que seria algo mais do que legítimo
119
.
Aristóteles dedicou também espaço em suas reflexões ao tema do ―controle social através dos
mitos‖
120
. Portanto, o mito é um elemento de preservação da ordem vigente, como um
expediente de controlar conflitos sociais. Sendo assim, as construções ideológicas auxiliavam
na delimitação daquilo que poderia ser feito e dito pelos agentes sociais, precisando de
maneira eficaz o papel de cada grupo inserido na disputa. O mito criaria então regras de
atuação ou, pelo menos, impunha a necessidade de se criar regras.
De fato, quando as crônicas foram compostas, copiadas, recopiadas e compiladas, um
longo e conflituoso passado se apagou. Álava, Galícia, Astúrias, Cantábria e outras regiões do
Norte peninsular poderiam ter tantas chances de contribuir para a história-memória local
quanto às terras asturianas. Outros embates sociais e políticos dignos de nota se esvaeceram,
sem deixar quaisquer vestígios claros de sua existência. A primazia dos grandes senhores
asturianos, em parte, suprimira as marcas de ações políticas autônomas, trazendo para si o
protagonismo de toda a história inicial da Reconquista. muito timidamente poderíamos,
como será visto nos próximos capítulos, pontuar a existência destes outros atores históricos.
Nomes de chefes locais, famílias, chefes de ordens religiosas e guerreiros foram riscados da
―memória‖ sem a oportunidade de alcançar a preservação em um suporte de escrita.
117
GUIZBURG, Carlo. Mito: entre a distância e a mentira. In: ________. Olhos de madeira: nove reflexões
sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 61.
118
Ibid., p. 61.
119
Ibid., p. 61.
120
Ibid., p. 61.
49
Anularam-se outras possíveis narrativas que pudessem existir e que pudessem contradizer a
história oficial em construção. Criou-se um mito histórico, algo que transcendia a noção de
―falso‖ ou ―verdadeiro‖, como destaca Ginzburg em suas discussões, que cumprisse um papel
do controle social e político. A força das crônicas ainda é tanta que elas nos limitam as opções
de análise dos séculos VIII e IX das Astúrias. Elas se colocam como o caminho e a verdade.
Os autores das crônicas superaram os conflitos dos primeiros tempos e garantiram respostas
para aqueles que buscassem conhecer o passado ibérico. Suplantando as discórdias do
princípio, dos primeiros tempos, a monarquia asturiana teria menos um problema a
confrontar, concentrando esforços na árdua tarefa de impor sua hegemonia sobre as terras
nortenhas ao seu redor. As resistências dos grupos rebeldes à nascente autoridade régia
somente são resistências na medida em que aceitamos a representação da soberania da
monarquia asturiana descrita nos moldes apresentados pelas primeiras narrativas da
Reconquista. Descriminam-se os agentes históricos, diferenciando-se aqueles que agem
legitimamente daqueles que são enquadrados como revoltosos, os que resistem à pretensão da
realeza nascente. Os cronistas asturianos, instituindo uma ordem aos relatos dispersos,
impuseram a sua visão de mundo a todo o cenário nortenho. Não estamos dizem, com isto,
que eles criaram o Reino das Astúrias, mas sim que eles têm um papel de grande destaca em
sua representação e consolidação.
Tal esforço, no entanto, só pôde ser feito com a maturação política e social das
instituições políticas do período. Não havia complexidade política suficiente para impor um
discurso e uma ação hegemônicos nas primeiras décadas do século VIII. Não havia entidades
políticas suficientemente poderosas para tal empenho. Isto foi possível, em parte, pela
ampliação do poder coercitivo daqueles que se declaravam sucessores diretos de Pelágio. E
devemos considerar a importância daqueles que se esmeraram em compor as primeiras obras
historiográficas asturianas, cujos trabalhos foram possíveis com o devir e com a
acumulação de matérias orais e escritas sobre os tempos passados. O ofício historiográfico só
se efetuava em lugares que acumulassem documentos e saberes suficientes para esta
empreitada. Indivíduos devidamente instruídos e qualificados para a tarefa precisariam de
subsídios materiais e culturais para a redação de monumentos memorialistas. Íris Kantor, ao
analisar a produção historiográfica da Europa Moderna, nos faz lembrar uma situação similar
a esta que requeremos analisar analisado por Daniel Roche. O referido historiador também
que as academias devotadas ―aos estudos históricos eram aquelas nas quais existia tradição
50
intelectual local fortemente enraizada, com bibliotecas de colégios, livrarias privadas,
arquivos parlamentares e judiciários já razoavelmente organizados‖
121
.
Esta situação assemelha-se, consideravelmente, com a descrita por Susani Silveira
Lemos França no que tange à produção cronística portuguesa. Segundo Lemos França, o
Arquivo Régio serviu de base institucional para a produção historiográfica portuguesa
122
.
Neste lugar estavam reunidos ―alvarás, inquirições, forais, livros de registro dos reis passados,
ofícios, cartas, em suma, documentos diversos de ordem administrativa e judicial‖
123
. Desta
forma, munido de subsídios que fornecessem informações sobre o passado, os cronistas
puderam levar a diante seu trabalho de preservação dos tempos antigos. Em posição
diametralmente oposta, Amando Besga Marroquín ressaltaria a existência de entidades
devidamente estruturadas e dotadas de bibliotecas e scriptoria, o que forneceria de longa
data fundamentos literários suficientes para aspirantes a cronistas
124
. Todavia, tal proposta se
mostra terrivelmente impossibilitada, pois o conjunto do cenário nortenho, após 711,
apresenta-se em estado de (re)construção. Não seria prudente afirmar categoricamente que
acima da Cordilheira Cantábrica já estivessem estabelecidos fundos monásticos de grande
relevância. Como veremos mais a frente, a menção nas fontes a bibliotecas é muito superficial
e, em muitos casos, tratam de livros trazidos por refugiados moçárabes que buscavam
proteção nas terras nortenhas.
Rastrear as bases com as quais se fundamentaram as crônicas é perceber o nível de
desenvolvimento cultural e a possível relação dos produtores de discurso político com os
centros de poder no Norte de Península Ibérica. Bispados e catedrais, enquanto centros
tradicionais de produção historiográfica, não existiam nos primórdios da Reconquista em
Astúrias. Excetuando uma possível capela régia ou alguma igreja privada, que, mesmo assim,
não constituíam um foco coeso de produção cultural histórica, os demais espaços são os
mosteiros de franca filiação visigótica. Nestas condições torna-se impossível de se encontrar
alguém devidamente qualificado para empreitadas literárias ou historiográficas. Mencionando
a contribuição teórica de Max Weber, Pierre Bourdieu destaca a importância do trabalho de
especialistas na produção do discurso, sem se descuidar de perceber a interação destes
mesmos em situações de conflito e concorrência, conforme assinalado nas páginas
anteriores. Com base nos estudos referentes à estruturação do campo religioso, no qual Weber
121
KANTOR, op. cit., 27.
122
FRANÇA, Susani Silveira Lemos. Os saberes históricos. In: ________. Os reinos dos cronistas
medievais (século XV). São Paulo-Brasília: Annalume-Capes, 2006, p. 107.
123
Ibid., p. 107.
124
BESGA MARROQUÍN, Armando.
51
atenta para o fato de os ―produtores da mensagem religiosa‖ estarem animados por interesses
específicos que, por sua vez, interferem ―nas estratégias que empregam em suas lutas‖
125
.
Desta maneira, os produtores de conhecimentos históricos são imbuídos das ideologias
provenientes do grupo ao qual pertencem, eles participam ativamente do cenário que auxiliam
a construir, eles assumem para si próprio discurso e as classificações decorrentes dele.
Como destacamos, fundamentado nas referências fornecidas por Pierre Bourdieu,
―tentar pensar o Estado é expor-se a assumir um pensamento de Estado, a aplicar ao Estado
categorias de pensamento produzidas e garantidas pelo Estado e, portanto, a não compreender
a verdade mais fundamental do Estado‖
126
. Como assinala o sociólogo francês, o principal
poder do Estado é o de impor formas do pensamento e de ver o mundo que são utilizados de
maneira espontânea
127
. Isto não é uma realidade de pouca importância, que autores como
Hegel e Durkheim, ao interpretar a realidade estatal, tornaram-se repetidores do discurso do
próprio Estado. As proposições acima evidenciadas nos conduzem a outro tipo de reflexão,
com a qual se torna necessário se desprender de forma crítica das limitações impostas pelas
formas de pensar fornecidas pelo próprio Estado
128
. Inspirados por esta preocupação,
buscaremos, portanto, romper com as categorias de pensamento impostas pelas crônicas é
avançar na análise das mesmas, desconstruindo a naturalidade do processo de formação do
reino do Norte da Península Ibérica que as narrativas tendem a nos impor.
No espaço da naturalização do discurso encontramos a intervenção do Estado
129
.
Segundo Bourdieu, temos condições de perceber que os ―efeitos das escolhas do Estado foram
tão completamente impostos à realidade e aos espíritos que as possibilidades inicialmente
descartadas (...) parecem totalmente impensáveis‖
130
. Neste campo, que também compreende
um aspecto cultural, as divisões e hierarquizações são constituídas como fenômenos da
natureza pela ação do Estado, que ―confere todas as aparências do natural a um arbitrário
cultural‖
131
. Sendo assim, a luta pela hegemonia e pela submissão dos territórios em torno
das Astúrias se tornava algo natural, representada como um simples esforço de pacificação de
territórios rebeldes. Notamos, com tudo isto, que os fatos, os acontecimentos e as pessoas que
habitaram nas montanhosas terras nortenhas só foram citadas e tornadas importantes na
medida em que corroboravam as intenções políticas da monarquia nascente.
125
BOURDIEU, Pierre. Espírito de Estado. Gênese e estrutura do campo burocrático. In: ________. Razões
práticas: sobre a teoria da ação. 7. ed. Campinas: Papirus, 2005p. 120.
126
Ibid, p. 91.
127
Ibid., p. 91.
128
Ibid., p. 92.
129
Ibid., p. 94.
130
Ibid., p. 94.
131
Ibid., p. 95.
52
Configurou-se, desta maneira, no contexto social e político asturiano uma importante e
forte concentração de ―capital simbólico‖. Trata-se de um acúmulo de autoridade reconhecida
por certo número de pessoas pertencentes a um dado contexto histórico. Para o sociólogo
francês, ―capital simbólico é uma propriedade qualquer (de qualquer tipo de capital, físico,
econômico, cultural, social), percebida pelos agentes sociais cujas categorias de percepção são
tais que eles podem entendê-las (percebê-las) e reconhecê-las, atribuindo-lhes valor‖.
132
Uma
parcela do capital simbólico, do qual abordamos neste momento, foi fornecida pela
reconstituição do passado que os cronistas queriam transmitir. Este foi um verdadeiro
instrumento de força política contra entidades concorrentes contemporâneas e homólogas, que
não deixaram vestígios sob a forma da escrita afirmativa que será desenvolvida nos
capítulos seguintes. Todavia, nos adiantamos em dizer que a imposição de uma visão única
do processo histórico e de uma única via de sucessão e concentração de poder se fez
acompanhada de muita luta e com a supressão de possíveis visões concorrentes. Reforçamos
mais uma vez o aspecto conflituoso na reconstrução do discurso com a seguinte passagem de
Pierre Bourdieu: ―o que se apresenta hoje como evidência, aquém da consciência e da
escolha, foi, com freqüência, alvo de lutas e se instituiu ao fim de enfrentamentos entre
dominantes e dominados‖
133
.
Mais uma vez reiteramos nossa perspectiva: as primeiras crônicas de Reconquista não
são apenas simples depositários de objetivos do passado, elas são uma produção simbólica
com a qual o poder político asturiano, representado pela monarquia, imprimiu sua influência.
As aberturas de cada uma das narrativas nos revelam logo de início suas intenções. O passado
não foi inventado, não foram criados fatos do nada, os eventos que precederam a Afonso III
serviram como matéria-prima para os escribas de seu tempo e, com base nestes
acontecimentos, os mesmos elaboraram uma representação coerente do passado. Os
responsáveis diretos pelos textos não questionaram a linearidade que estavam produzindo,
investiram ativamente na participação da construção da memória monárquica, partilhando
diretamente a sua existência. Acrescenta-se a isto a organização de um habitus específico para
o exercício da tarefa cronística, algo que, por si só, delimita consideravelmente a
perspectiva ideológica a ser fixada por escrito. O que os escribas asturianos fizeram foi um
trabalho de concentração de capital simbólico para a monarquia asturiana. Segundo o
sociólogo francês:
132
BOURDIEU, op. cit., p. 107.
133
Ibid., p. 117-118.
53
Se o Estado pode exercer uma violência simbólica é porque ele se encarna tanto na
objetividade, sob a forma de estruturas e de mecanismos específicos, quanto na
―subjetividade‖ ou, se quisermos, nas mentes, sob a forma de estruturas mentais, de
esquemas de percepção e de pensamento. Dado que ela é resultado de um processo
que a institui, ao mesmo tempo, nas estruturas sociais e nas estruturas mentais
adaptadas a essas estruturas, a instituição instituída faz com que se esqueça que
resulta de uma longa série de atos de instituição e apresenta-se como toda a
aparência do natural
134
.
Devemos advertir que as posições adotadas por Pierre Bourdieu tomam como
referência a sociedade contemporânea ocidental, marcada por uma experiência histórica de
vigorosa concentração de poderes, atributos e responsabilidades nas mãos de uma entidade
denominada Estado. A soberania plena, o exercício único da justiça, a capacidade de fazer e
de impor leis por parte de uma instituição única era algo incomum no período de que ora
tratamos. Não havia também qualquer órgão institucionalmente vinculado, submetido e/ou
integrado à entidade política superior asturiana que pudesse deter legitimamente o poder de
impor, segundo os nossos padrões contemporâneos, o controle sobre a produção e reprodução
de determinados mecanismos de memória oficial. O que intentamos fazer é uma aproximação
controlada e limitada entre o nosso objeto histórico e a ferramenta teórica que optamos
empregar. Os próprios conceitos desenvolvidos por Pierre Bourdieu fundamentam-se em uma
experiência histórica diversa da que tratamos. Conscientes disto, evitamos transpor
mecanicamente determinadas referências, mas nos inspiramos naquilo que se apresenta como
manuseável para o período histórico que lidamos.
A formação da instituição política monárquica asturiana implicou no desenvolvimento
de planos que tendiam a um projeto de centralização política. E isto se torna evidente com a
tentativa de homogeneização do discurso histórico asturiano. Com base nesta visão, vemos
que as crônicas de Reconquista disciplinam o olhar sobre o passado, delimitam os espaços dos
agentes históricos e seu papel dentro das representações políticas em construção. Os
preâmbulos das crônicas dão claras mostras de que esta perspectiva é fundamental para se
compreender uma entidade que intenta se afirmar como superior as demais em um dado
território. Estas apresentações do tema que será narrado lançam a proposta geral de toda a
obra historiográfica medieval, auxiliam na sua estruturação, informam-nos da direção que o
cronista pretende discorrer a sua narrativa. Percebemos um esforço para condicionar o leitor
das crônicas, conduzi-lo por um caminho muito bem circunscrito, sendo isto um dado que
comprova o quanto que as matérias históricas estão permeadas pela ideologia defensora da
monarquia asturiana.
134
BOURDIEU, op. cit, p. 97-98.
54
O efeito social, político e histórico disto tudo é a imposição de uma única forma de se
ver o passado. ―Ao impor e inculcar universalmente (nos limites de seu âmbito) uma cultura
dominante assim constituída (...), inculca os fundamentos de uma verdadeira religião cívica‘
e, mais precisamente, os pressupostos fundamentais da imagem (nacional) de si‖.
135
As
primeiras crônicas de Reconquista superam as possíveis contradições, instituindo uma
linearidade política que teria ―existido desde sempre‖, que manifestaria a unidade política da
auto-proclamada monarquia. Podemos, inclusive, identificar discursos progressivos que
marcavam mais e mais a autoridade régia. Podemos localizar complementações progressivas e
intencionais que reforçavam a construção da imagem da realeza asturiana e seu papel
preponderante nos destinos da Península Ibérica.
Segundo o relato da Crônica Rotense:
§ 10. Logo, então, em verdade, o referido Alkama ordenou que os companheiros
preliassem. Tomaram em armas, os fundíbulos foram erigidos, as fundas foram
ajustadas, as espadas foram agitadas, as lanças foram encrespadas, as setas foram
lançadas por estas partes incessantemente. Mas, nisto, cumpriram-se as grandes
maravilhas do Senhor: com efeito, quando as lápides foram lançadas pelos
fundíbulos e alcançaram a casa da santa virgem Maria, que estava dentro da cova, os
fundíbulos arremessados retornaram e trucidaram fortemente os Caldeus. E, em
seguida, o Senhor não contava as hastes, interveio com sua mão, fazendo-as retornar
da cova à pugna. Os Caldeus retornaram em fuga e dividiram-se em duas turmas. E
aí, imediatamente, o bispo Oppa é preso e Alkama aniquilado. Naquele mesmo
lugar, no mesmo local, CXXIIII mil Caldeus são aniquilados, em verdade, os
sessenta e três mil que resistiram subiram até o vértice do monte Aseuua e desceram,
de Amossa à Livana. Mas, não afastaram a vingança do Senhor. E quando se
encaminharam pelo vértice do monte, que está sobre a margem do rio cujo nome é
Deva, junto à vila de Causegaudia, assim fez-se o julgamento de Deus, rolou para
baixo do mesmo monte, lançou LX três mil dos homens no rio e o mesmo monte
tomou a vida de todos eles, agora o mesmo rio, enquanto busca seu limite, mostra-
lhes muitos sinais evidentes. Não julgue que ele é a razão ou fabuloso, mas recorde-
se, que o Mar Vermelho se abriu ao transito dos filhos de Israel, assim oprimiu
tendo os Árabes que perseguiu a igreja do Senhor pela imensa multidão do monte
136
.
135
BOURDIEU, op. cit., p. 106.
136
Cronica Rotense. 10. Iam nunc uero prefatus Alkama iubet comitti prelium. Arma adsumunt, eriguntur
fundiuali, abtantur funde, migantur enses, crispantur aste hac incessanter emittuntur sagitte. Sed in hoc non
defuisse Domini magnalia: nam quum lapides egresse essent a fundiualis et ad domum sancte uirginis Marie
peruenissent, qui intus est in coba , super mittentes reuertebant et Caldeos fortiter trucidabant. Et quia Dominus
non dinumerat astas, set cui uult porrigit palmas, egressique de coba ad pugnam, Caldei conuersi sunt in fugam
et in duabus diuisi sunt turmas. Ibique statim Oppa episcopus est conprehensus et Alkama interfectus. In eodem
namque loco CXXIIIIr milia ex Caldeis sunt interfecti, sexaginta uero et tria milia qui remanserunt in uertize
montis Aseuua ascenderunt atque per locum Amossa ad Liuanam descenderunt. Set nec ipsi Domini euaserunt
uindictam. Quumque per uerticem montis pergerent, qui est super ripam fluminis cui nomen est Deua, iuxta
uillam qui dicitur Causegaudia, sic iudicio Domini hactum est, ut mons ipse afundamentis se rebolbens LXª tria
milia uirorum in flumine proiecit et ibi eos omnes mons ipse opressit, ubi nunc ipse flumen, dum limite suo
requirit, ex eis multa signa euidentia ostendit. Non istut inannem aut fabulosum putetis, sed recordamini quia,
qui Rubri Maris fluenta ad transitum filiorum Israhel aperuit, ipse hos Arabes persequentes eclesiam Domini
immenso montis mole oppressit. In : BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS,
1987, p. 43.
55
O anônimo cronista, ao abordar os eventos relativos à expedição punitiva muçulmana
contra o caudilho Pelágio nos fornece um dado muito interessante. A narrativa destaca a
desproporcionalidade entre os exércitos muçulmanos e a pequena resistência situada no monte
Aseva (Aseuua no vocábulo latinizado). Por mais numerosos e irresistíveis que fossem as
hostes islâmicas, este dado material não era suficiente para garantir uma vitória militar. Na
visão de mundo do escriba desconhecido, com as informações de que ele dispunha e com a
ideologia que animava seu labor, o que emerge do fragmento destacado não é uma simples
mitificação fantasiosa dos fatos, não é o fruto de uma imaginação inocente e supersticiosa de
um clérigo medieval. A intervenção divina no processo era algo plenamente plausível para um
membro de uma entidade religiosa. A presença de Deus determinando o curso dos
acontecimentos humanos não era algo impensável; antes, consistia na principal concepção de
agenciamento histórico naquele período. As Escrituras são tomadas como autoridades
primordiais que fornecem um modelo de discurso e de conteúdo. A passagem do Livro do
Êxodo (Exodus 14, 19-25) aludida na narrativa nos instrui sobre a formação religiosa de seu
redator, mas, principalmente, nos instrui também sobre a sua ―perspectiva histórica‖, e como
a toma como fundamento de uma inculcação ideológica. A forma que a obra apresenta, os
paradigmas redacionais que os cronista emprega e o vocabulário que utiliza, estruturam o
conteúdo e os objetivos desta crônica do ciclo de Afonso III. Este foi um primeiro passo no
caminho de reforçar a legitimação do exercício do poder daqueles que teriam sucedido a
Pelágio.
Destaquemos, agora, a primeira parte da Crônica Profética, Aqui se iniciam os ditos do
Profeta Ezequiel:
A palavra do Senhor foi dada a conhecer por Ezequiel dizendo: ―O filho do homem
voltou sua face contra Ismael e disse-lhe: ‗Eu te dei poder sobre outros povos, Eu te
multipliquei, Eu ti fortaleci, e pus em sua mão direita uma espada e na sua mão
esquerda um arco, e com isto você destruirá os povos e eles serão alcançados antes
de sua face como palha na face do fogo, e então por isto você entrará na terra de
Gog sobre o e matará Gog com sua espada pôs seu pé sobre o pescoço e o fez
escravo e tributário seu. Mas por causa disso você abandonou o Senhor seu Deus e
ele curvou-se sobre você. Ele te abandonará, e Eu te entregarei na mão de Gog e no
território da Líbia você e toda a multidão perecerá pela sua espada. Exatamente
como você fez a Gog, então ele fará contigo. Depois você se submeterá à servidão
por cento e setenta anos, Gog te curvará assim como você fez com ele.‘‖
137
.
137
Chronica Prophetica. 1. Factum est uerbum Domini ad Ezechiel dicens. Fili hominis, pone faciem tuam
contra Ismael et loquere ad eos dicens : « Fortissimum gentibus dedi te, multiplicaui te, corroboraui te et posui
in dextera tua gladium et in sinistra tua sagittas ut conteras gentes ; et sternuntur ante faciem tuam sicut stipula
ante faciem ignis. Et ingredieris terram Gog pede plano, et concides Gog gladio tuo, et pones pedem in ceruicem
eius, et facies eos tibi seruos tributarius. Verumtamen, quia dereliquisti Dominum Deum tuum, circumagan te, et
derelinquam te, et tradam te in manu Gog, et finibus Liyae peries, tu et omnia agmina tua, in gladio eius. Sicut
fecisti Gog, sic faciet tibi. Postquam possideris eos seruitio CLXX tempora, redeet tibi uicem qualem tu fecisti
ei. In : BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 2.
56
Acrescentemos o fragmento de Sobre os Godos que permaneceram nas Cidades da
Espanha:
Todos os anos dos domínios dos Árabes da Hispânia somam cento e sessenta e oito
anos e cinco meses.
Eles sobreviverão até o Dia de São Martinho, o terceiro dia dos Idos de Novembro;
no sétimo mês eles terão completado cento e sessenta e nove anos, e o centésimo
septuagésimo ano começará, o ano em que os Sarracenos completarão seu tempo,
conforme havia notado a predição do profeta Ezequiel. Neste tempo nós esperamos
a vingança contra nossos inimigos e a salvação dos Cristãos começar. Deus Todo-
poderoso comanda este, deste modo, aquele exatamente como o impuro universo
estimou merecedor resgatou do poder do mal pelo sangue de Seu Filho, Nosso
Senhor Jesus Cristo, então na chegada do ano ele ordenará sua igreja para ser
roubada do jugo dos Ismaelitas. Ele que vive e governa por séculos e séculos.
Amén
138
.
A Crônica Profética, breve em sua narrativa, evidencia um outro passo para a
construção da imagem redentora da monarquia asturiana. Apesar de dedicar um parco espaço
aos eventos ocorridos na Cordilheira Cantábrica, ela é marcante no seu aspecto ideológico.
Ela reveste de autoridade religiosa a realeza das Astúrias; por meio da religião, apresenta um
programa político de libertação do povo cristão ibérico. A fonte dedica um quarto de seu texto
aos aspectos religiosos da existência da realeza visigótica em seus últimos anos. A decadência
da monarquia fazia parte dos planos divinos de punir o mal que os reis de Toledo não eram
incapazes de combater, como também os praticavam. O rei visigodo, como bem destaca P. D.
King, tinha como uma das principais funções a manutenção da ordem
139
. O exercício de seu
poder estava imediatamente atrelado à pacificação da sociedade que governava. A ordem era
um desígnio de Deus. O rei que não governasse retamente, conforme afirmam as sentenças
isidorianas e repetida no Titulus Primus do Fuero Juzgo, não deveria deter a autoridade
política. Assim sendo, a incapacidade de combater o mal era automaticamente retribuída com
a punição divina.
A invasão sarracena foi a punição imposta à sociedade desviante e aos reis indolentes.
Tudo compondo um plano cósmico no qual a redenção do povo está prevista. Como em
vários livros do Antigo Testamento, o povo de Deus precisaria espiar os seus pecados para
138
Chronica Prophetica. 8. Remanent usque ad diem Sancti Martini III idues noumbris, menses VII, et erunt
completi anni CLXLIIII, et incipet annus centesimus septuagesimus quo, dum Sarraceni complerit, secundum
praedictum Ezechielis prophetae superius adnotatum, expectabitur ultio inimicorum aduenire et salus
christianorum adesse. Quod praestet omnipotens Deus ut, sicut filii eius Domini nostri Iesu Christi cruore
uniuersum mundum dignatus est a potestate diaboli redimire, ita, proximiori tempore, Ecclesiam suam iubeat ab
Ismaelitarum iugo eripere ; ipse qui uiuit in saecula saecolorum. Amen. In : BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 9.
139
KING, P. D. El rey y el derecho. In: ________. Derecho y sociedad en el reino visigodo. Madrid: Alianza,
1972, p.
57
depois atingir a sua redenção. Os muçulmanos e seus governantes eram instrumentos da
justiça divina contra a impiedade dos visigodos, e, posteriormente, após terem purgado seus
pecados, os cristãos do Norte visigodos ou herdeiros dos visigodos expulsariam o
seguidores do profeta Maomé da Península Ibérica. Os cristãos seriam algo similar ao povo
hebreu no Antigo Testamento. Era o povo eleito que desviava, mas que na hora derradeira
seria devidamente redimido e resgatado por Javé. Um novo salvador tomaria parte deste
combate espiritual e militar. E, na visão de mundo do anônimo cronista, o servo de Deus
estava personificado na pessoa de Afonso III, aquele que libertaria os cristãos do jugo
islâmico. A profecia estabelecia o dia exato do banimento dos seguidores do Profeta Maomé.
Mas, um dado sobressai na profecia da crônica: Afonso III é a autoridade máxima dos cristãos
da Península Ibérica. Não apenas líder dos asturianos, mas de todos aqueles que professam o
cristianismo em toda a península. Desconsideramos, neste momento, o tópico Os nomes dos
reis católicos de Leão, que evidenciaria o exercício de autoridade restrito a uma parcela das
terras nortenhas. Esta ―contradição‖ explica-se pelo fato de a crônica ser também uma
compilação; ela depende, textualmente, da Crônica Albeldense, de onde vem a listagem dos
reis leoneses. Preocupamo-nos apenas com o preâmbulo que baliza todo o discurso profético
da narrativa histórica.
As passagens destacadas acima apresentam um discurso que reveste de legitimidade
toda ação perpetrada pelo governo de Afonso III. A Crônica Profética é o ápice do projeto
hegemônico asturiano. Poucas décadas separam as primeiras crônicas de Reconquista entre si.
Todas elas são parte estruturante do projeto político dos reis de Oviedo e Leão. Não devemos
esquecer o que destacamos nas páginas iniciais em relação à Crônica Profética. Longe de
ser unicamente um reflexo dos medos e anseios religiosos dos últimos anos do século IX, a
profecia de queda do poderio islâmico na Península Ibérica corresponde a um outro
investimento na figura do rei. Afonso III seria, de acordo com a lógica do cronista, o
responsável pelo ocaso da pujança muçulmana ibérica. Todavia, esta proposta faria sentido
se a própria instituição monárquica representasse algo de relevante para o escriba
responsável pela narrativa. A realeza, além de deter uma primazia militar (que ainda buscava
estabelecer), estaria, aos olhos de seus contemporâneos, revestida de um algo a mais, algo que
a diferenciasse do restante dos grupos aristocráticos nortenhos. Os êxitos militares e políticos,
mais do que significar unicamente uma força laica como qualquer outra, em relação à
nascente realeza poderiam ser interpretados como manifestações de algo maior, espiritual,
divino. Isto fornecia uma parte do prestígio desta monarquia em ascensão. A coerência que
58
ela buscava ter foi possível pelo investimento feito em seu benefício, no qual as crônicas
de Reconquista têm um importante papel.
1.5. Identificação de um cenário cultural:
Diferentemente de seus confrades da época moderna, os cronistas do alto-medievo
ibérico não possuíam um espaço institucional dedicado exclusivamente ao trato com o
passado. Não havia uma academia dotada de um monopólio do saber que pudesse repelir
centros concorrentes do saber histórico. Não período mais estranho a esta e a muitas
outras monopolizações do fazer historiográfico do que o medievo, como apontamos nas
páginas precedentes. Os espaços que ainda eram dotados de algum conhecimento útil para a
produção de narrativas escritas sobre o passado eram os mosteiros, pelo menos no caso do
Norte da Península Ibérica. No estágio de desenvolvimento social e cultural dos primeiros
cem anos da Reconquista não havia, a princípio, notários que, integrando a nascente corte
asturiana, fossem capazes de exercer o ofício de cronista. A realidade dos primórdios da
Reconquista não era nada favorável para empreendimentos literários. A existência de algum
grupo de clérigos que vivesse diretamente às expensas dos monarcas nortenhos não
significava a possibilidade de existir com um ambiente propício para uma tarefa da
envergadura de uma narrativa histórica.
A centúria que se seguiu à vitória de Pelágio em Covadonga não foi um bom período
para o desenvolvimento de uma narrativa historiográfica. Os elementos que tornam possíveis
a realização da erudita empreitada cronística vão além de esforços puramente individuais ou
pela plena capacidade e familiaridade com leitura de obras e escrita latinas. A presença de
homens letrados era uma importante condição para que o ofício historiográfico se
desenvolvesse, mas que só isso não bastava. Era importante algo que ultrapassasse um esforço
simplesmente pessoal. A invasão muçulmana liderada por Tariq Ibn Ziyad fez ruir não apenas
o edifício político visigótico, mas também dificultar a manutenção de suas fundações
culturais, especialmente no que tange à cultura letrada e tudo aquilo que lhe dava suporte e
firmeza
140
. Durante a vigência do reino de Toledo, as catedrais e os mosteiros eram os lugares
140
Quando falamos nisto, queremos dizer que a relação entre a produção cultural religiosa e os poderes
políticos cristãos havia sido cortada. Reconhecemos a continuidade da atividade literária entre os visigodos
submetidos pelos muçulmanos, como tem exemplifica a figura de um Álvaro de Córdoba. A continuidade de
concílios sob o domínio muçulmano, a querela entre a ortodoxia e os adeptos da heresia adocionista e as
correspondências trocadas entre clérigos toledanos e monges dos rincões navarros são prova de como a cultura
escrita se preservou. Contudo, não podemos desconsiderar a pressão cultural islâmica e as limitações que delas
decorreram.
59
onde se concentravam os mais importantes eruditos, os principais scriptoria, a matéria-prima
para a confecção de manuscritos e, principalmente, bibliotecas.
Fray Justo Perez de Urbel havia destacado que toda cultura monacal visigótica
exigia a existência de uma ―biblioteca mais ou menos numerosa‖
141
. Segundo a regra de
Santo Isidoro, os mosteiros deveriam ter um monge responsável pela guarda dos livros, via de
regra, o sacristão, o que significasse, na perspectiva de Perez de Urbel, que os textos eram
considerados coisas sagradas
142
. A Bíblia era o livro que não poderia faltar e, muitas vezes,
era o único livro presente
143
. A ciência da religião compreendia a exegese bíblica, sua
interpretação, literal e mística. Junto ao texto Sagradas Escrituras, encontraríamos homilias e
as obras dos Santos Padres, bem como as vidas dos santos. A coleção de cânones tinha grande
utilidade tanto em igrejas quanto em mosteiros espanhóis desde o século VII
144
. Segundo os
trabalhos de Perez de Urbel, ―não cabe dúvida que, uma vez organizados os mosteiros, os
mesmos monges se encarregaram de nutrir suas bibliotecas‖
145
. Sendo assim, segundo o
referido historiador, ―pode-se dizer que a cultura espanhola do século VII era essencialmente
clerical, como destinada à salvação do indivíduo e à formação religiosa do povo‖
146
.
Após 711, contudo, a estrutura eclesiástica ibérica debilitou-se junto com o poder
político toledano, impondo assim restrições ao desenvolvimento intelectual da cristandade
ibérica. Mosteiros e sés episcopais, neste cenário de enfraquecimento da cultura erudita
originada pela presença dos novos senhores da Hispânia, tentaram dar prosseguimento ao
labor erudito eclesiástico. Não mais, como nos tempos venerandos de Santo Isidoro de
Sevilha, de São Leandro e São Bráulio de Saragoça, encontraremos a efervescência nos
scriptoria ibéricos. Esta quase total esterilidade pôde ser sentida em diversos lugares. Naquilo
que viria a constituir o Norte do atual território de Portugal, segundo Jo Mattoso, não
podemos encontrar um cenário muito animador. Segundo o referido historiador português, há
um enorme contraste entre os vestígios historiográficos produzidos pela corte régia ovetense,
seus monumentos e seus diplomas; e os rústicos e parcos vestígios, de qualquer natureza,
conservados em território português
147
. O vazio experimentado parece justificar a tese de
141
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. El trabajo. In: ________. Los monjes españoles en la edad media. 2 ed.
Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v. p. 199.
142
Ibid., p. 199.
143
Ibid, p. 200.
144
Ibid., p. 200.
145
Ibid., p. 203.
146
Ibid., p. 203.
147
MATTOSO, José. Religião e cultura. In: MATOSO, José (coord.). História de Portugal: antes de
Portugal. Lisboa: Estampa, 1997, p. 453.
60
Sánchez Albornoz sobre o ermamento
148
. Apesar de existiram indícios que a região ao norte
do Douro não tenha se esvaziado por completo, que as cidades não foram todas destruídas, o
que pode ser encontrado em Portugal são rudes vestígios de sepultamentos na pedra e um
número restrito de sarcófagos, igualmente rudes, conforte constata os estudos de rio Jorge
Barroca
149
.
O que viria a se construir ao Norte da Cordilheira Cantábrica a partir do século VIII
também não se igualaria a pujança cultural dos tempos de outrora. A produção textual no
alvorecer destes novos tempos era muito pouco significativa, não legando, até hoje, quase
nenhuma documentação. O caso português é bastante ilustrativo. Nenhum documento escrito,
anterior a 875, foi conservado. Até 900 documentos escritos serão muito raros. ―Não há como
negar a desoladora pobreza cultural das comunidades humanas que por estes anos
permaneceram no Norte de Portugal‖
150
. Os abalos causados com a presença muçulmana
levaram muitos a tomarem o rumo das terras setentrionais, cruzando as montanhas mais
distantes dos centros de dominação árabe. Destes refugiados, muitos eram religiosos, monges
cristãos que viram seus mosteiros serem destruídos ou que não queriam ter a mesma sorte que
seus pares.
Aqueles que tentaram reconstruir sua vida monacal nas terras do norte lançaram os
fundamentos do saber literário asturiano. Esta época, nomeada de Restauração por Fray Justo
Perez de Urbel, marcou a retomada das relações de cooperação entre os poderes seculares e os
eclesiásticos. A restauração da Igreja iniciou nas terras do Norte da Península Ibérica
(Astúrias, Cantábria, Vascônia e Marca Hispânica) de forma muito lenta
151
. Todavia, o tom
ufanista de Perez de Urbel precisa ser muito bem controlado, pois a formação de uma
cooperação entre poderes laicos e eclesiásticos no Norte não melhorou de imediato o cenário
geral de penúria. De uma forma geral, é preciso ampliar um pouco a área geográfica e
verificar como que o esforço de retomada da cultura escrita não foi totalmente intencional e,
ainda por cima, esbarrava na dura realidade material. Tal ponto é percebido perfeitamente por
José Mattoso ao tratar do espaço inserido entre a Galícia e Coimbra. Segundo o autor,
restringir a cultura escrita apenas ao espaço lusitano torna o estudo muito difícil devido a
limitadíssimo número de testemunhos
152
. No máximo restringir-se-ia a análise a três prólogos
de documentos e uma lista oferecida por Mumadona ao Mosteiro de Guimarães, 959. Por
148
MATTOSO, op. cit., p. 453-454.
149
Ibid., p. 454.
150
Ibid., p. 454.
151
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Labor literária de los monjes. In: ________. El monastério en la vida
española de la edad media. Barcelona: Labor, 1942, p. 220.
152
MATTOSO, op. cit., p. 466.
61
verossimilhança, é possível presumir que outros mosteiros tivessem alguma atividade
vinculada à cultura escrita, como aconteceu com referências tardias a Lorvão e Vacariça, em
Coimbra. O fato de serem protegidos por condes, de terem um importante papel no período
seguinte permitem reconhecer a existência de cultura escrita no período anterior. É possível
cogitar que mosteiros protegidos por famílias condais teriam um nível de cultura escrita
similar ao de Liébana, Samos e Celanova
153
. Apesar dos contatos com senhores locais, quase
toda literatura produzida nos primeiros tempos da Reconquista se deve aos esforços dos
monges
154
.
Diferentemente de seus antecessores, os letrados asturianos e refugiados não
dispunham dos recursos necessários para retomar o vigor de suas atividades. Neste mesmo
período (século VIII), as comunidades eclesiásticas começaram a se reorganizar e passaram a
buscar ―livros chamuscados‖ com o intuito de reconstruir o saber de outrora
155
. A produção
era limitada. De certa maneira, os principados cristãos apresentam um verdadeiro ―deserto
intelectual‖, devido ao duro esforço pela sobrevivência: colonizar e lutar
156
. Porém, podemos
encontrar alguns ―oásis‖, nas palavras de Perez de Urbel, de produção científica que
demonstram um esforço para reconstruir o haver espiritual visigótico
157
. Neste cenário de
retomada, encontra-se nas terras de Astúrias de Santillana a figura do abade Beato de Liébana
(mais famoso escritor da Reconquista): preservador da Espanha isidoriana, teólogo de
Santander, exegeta e polemista
158
. Nos mosteiros do Norte refutava a heresia adocionista e
redigia os comentários ao livro do Apocalipse, importante testemunho da agitação religiosa
experimentada no período
159
.
Ainda sobre o Beato de Liébana, Alberto Del Campo Hernandez, ao tratar
Compentario al Apocalipsis, conseguiu identificar as contes com as quais o clérigo cântabro
teria manuseado em seu trabalho no scriptorium lebaniego
160
. Tal trabalho nos esclarece um
pouco mais sobre o estado em que se encontravam as bibliotecas monásticas nortenhas. Del
153
MATTOSO, op. cit., p. 466.
154
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Propriedad y trabajo. In: ________. Los monjes españoles en la edad
media. 2 ed. Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v, p. 354.
155
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Labor literária de los monjes. In: ________. El monastério en la vida
española de la edad media. Barcelona: Labor, 1942, p. 220.
156
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Propriedad y trabajo. In: ________. Los monjes españoles en la edad
media. 2 ed. Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v, p. 354.
157
Ibid., p. 354-355.
158
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Labor literária de los monjes. In: ________. El monastério en la vida
española de la edad media. Barcelona: Labor, 1942, p. 220-221.
159
Ibid., p. 221.
160
DEL CAMPO HERNANDEZ, A. Introducción. CAMPO HERNANDEZ, Alberto del et alii. Beato de
Liébana. Obras completas y complementárias: Comentario al Apocalipsis, Himno ―O Dei Verbum‖,
Apologético. Madrid: BAC, 2004, 1v., p. 5-6.
62
Campo Hernandez aponta que já pelo prólogo da obra acima citada podemos identificar
alguns dos autores cristãos que fundamentaram o esforço do Beato: São Jerônimo, Santo
Ambrósio, Fulgêncio, Gregório, Santo Isidoro de Sevilha, Apringio e Ireneo
161
. Percebe-se a
presença de outras obras, mas elas não são suficientemente identificadas ou nomeadas nesta
parte do Compentário
162
. Além disso, o fato de a região ter trocado correspondências com
Toledo, Oviedo e com terras de além-Pirineus, respectivamente o Reino Franco e Roma,
durante a querela adocionista, sugere-nos a possibilidade também de intercâmbios de obras
religiosas. Na foi explicitado neste sentido, contudo, apresentamos esta possibilidade.
Na opinião de Fray Justo Perez de Urbel, ―os documentos nos revelam um verdadeiro
afã por refazer as antigas bibliotecas e trazem até nossos olhos ecos do pulso intelectual
daqueles homens‖
163
. Demandava-se, naquele tempo, livros eclesiásticos, dos ofícios
litúrgicos, livros místicos, importantes para as meditações e o cultivo da vida espiritual.
Possuía-se ou buscava-se a Bíblia, as obras de Santo Isidoro e de Santo Agostinho, o
Itinerário de Egeria, a História Eclesiástica de Eusébio, os escritos monásticos de Cassiano e
outras produções teológicas e ascéticas. Junto com os antigos mestres visigodos reuniam-se as
obras de autores mais recentes como Álvaro, Santo Eulógio e o Beato de Liébana
164
.
Analisando os cartulários asturianos organizados por Antonio C. Floriano, podemos ter uma
noção do que teria sido feito as antigas bibliotecas nortenhas. Identificamos dezenove cartas,
que foram redigidas entre os anos de 787 e 904. A primeira carta é de 28 de abril de 787, é
uma carta de fundação do Mosteiro de San Juan, San Esteba y San Tirso, situado na vila de
Celário
165
. Este documento é, quiçá, um dos mais instrutivos sobre a migração de cristãos
para as terras nortenhas após a invasão muçulmana
166
. Segundo esta carta de fundação, seu
fundador, Rodrigo Diácono, é proveniente da cidade de Coimbra, de onde se afastou para se
dirigir a Galícia e se estabelecer sob o monte Carvario. O texto assim se expressa:
Eu, Diácono Rodrigo, saí da cidade de Coimbra e cheguei a Galícia pelo curso
ameno do pequeno rio sob o Monte Cervario, e fundei, com as minhas mãos, a igreja
de São João Batista, Santo Estevão e São Tirso, na vila que é chamada de Cellorio
(...)
167
.
161
DEL CAMPO HERNANDEZ, op. Cit.., p. 6.
162
Ibid., p. 6.
163
PEREZ DE URBEL, op. cit., p. 221.
164
Ibid., p. 221.
165
12. El diácono Rodrigo funda el Monasterio de Santos Juan, Esteban y Tirso en villa Cellario.
In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949, p. 85.
166
Ibid., p. 85.
167
12. El diácono Rodrigo funda el Monasterio de Santos Juan, Esteban y Tirso en villa Cellario.
(…) Ego Roderigo Diagunus, egressus fuit de Colimbria Civitas, et pervenit in Galletia riba ameneda rivulo
subtus Monte Cervario, et fundauit manibus meis Ecclesias vocabulo Sancto Ioanne Baptista, et Sancti Stephani,
63
Rodrigo Diácono dota as igrejas de cruzes, cálices de prata e outros objetos litúrgicos,
contudo, o que mais chama a atenção é a presença de livros entre os bens móveis doados
168
,
cujos conteúdos e natureza desconhecemos. Não dúvida quanto à autenticidade do
documento, o que o torno fundamental para rebater a firmação de Armando Besga Marroquín
que duvida da existência de outro movimento de migração moçárabe anterior ao século X.
Como havíamos dito nas páginas anteriores, tais agentes históricos foram de vital importância
para o estabelecimento da cultura escrita nas terras nortenhas. Como bem observa, Perez de
Urbel, as cartas de fundação servem de base para se conhecer o pulso intelectual dos monges
daquele tempo
169
. Os livros que continham os diplomas de fundação dos mosteiros tinham por
finalidade as orações, a meditação e o cultivo da vida espiritual
170
.
Era indispensável um lote de livros chamado de eclesiásticos usados em orações
litúrgicas
171
, fato que não podemos admitir, pois exemplos extraídos na documentação
alto-medieval asturiana que questionada tal afirmação. Para Fray Justo Perez de Urbel, não
ata de fundação que não mencione tais livros, além do antifonário, do livro de orações, do
Manual, do Missal, do Passionário, do saltério, do Liber Ordinum, dos Livros de Horas e das
preces ou litanias
172
. De fato, a fundação do mosteiro de Asia, em terras de Castela, no ano de
836, enumera, dentre os bens móveis cedidos para o novo edifício eclesiástico, constam
livros, cuja natureza desconhecemos
173
. O mesmo valendo para a fundação da Igreja de San
Martín de Pontacre e Ferran, também no território castelhano
174
, e a carta de confirmação do
rei Ordoño I para o Mosteiro de Samos, na Galícia
175
. Uma dúzia dos documentos notariais
asturianos possui informações sobre o conteúdo das bibliotecas monásticas e eclesiásticas, o
que não significa que tivesse um quadro muito favorável para a elaboração de narrativas
historiográficas. Nem sempre a presença de livros indica de fato a existência de uma potente
cultura literária.
et Sancti Tirsi in Villa quae vocitatur Cellario (…).In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española
del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 85.
168
Ibid., p. 85.
169
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Propriedad y trabajo. In: ________. Los monjes españoles en la edad
media. 2 ed. Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v., p. 355.
170
Ibid., p. 355-356.
171
Ibid., p. 356.
172
Ibid, p. 356.
173
n° 42. Fundación del Monasterio de Asia. In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española
del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 189.
174
55. Fundación de la iglesia de San Martín de Pontacre y Ferran, In: FLORIANO, Antonio C.
(org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949p. 249.
175
57. Ordoño I confirma al Monasterio de Samos las donaciones de sus antecesores. In:
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949, p. 254.
64
Outro ponto de discordância com relação ao trabalho de Perez de Urbel tange a sua
afirmação de que toda documentação referente à fundação de mosteiros e igrejas constasse,
dentre os bens móveis, livros. Nós destacamos, ao contrário, evidências que apontam para
outra realidade. A carta de doação feita, em 23 de agosto de 775, pelo rei Silo, não nada
além uma transferência de propriedade fundiária para a criação de um mosteiro na Galícia,
mais precisamente o lugar de Lucis
176
. O mesmo vale para a fundação do Mosteiro de
Tobiellas, em 18 de novembro de 822
177
, somente a título de exemplo. Para o tempo de
Afonso III, vale citar uma carta de fundação de 18 de abril de 873, qual o presbítero Martín e
vários religiosos fundam e povoam o Mosteiro de Salcedo. O presbítero Martín e seus
associados irmãos, simul mecum sociis fratribus, criaram igrejas sob a advocação de São
Martini, S Felicis, S. Mametis, Sancte Teodosie
178
. Estes são apenas os casos de mosteiros
erigidos com a clara participação da monarquia, da aristocracia nortenha ou imigrantes
refugiados. O autor ainda deixa de se pronunciar sobre os bens dos chamados mosteiros
rupestres, fenômeno presente em toda Península Ibérica, que não contavam com muitos
recursos além dos fundiários.
Raramente, os mosteiros tinham uma Bíblia completa. Apenas no século X, possuíam-
na os mosteiros de Cardeña e Valerânica, bem como Celanova e o mosteiro lebanense de
Santa Maria de Piasca
179
. Devemos acrescentar ainda que os monges da Reconquista estavam
menos propensos à preservação de obras literárias pagãs, diferentemente daqueles que
viveram na Hispânia antes da invasão muçulmana
180
. Tal afirmação, contudo, não quer dizer
muita coisa, pois, se considerarmos o conjunto dos fundos das bibliotecas asturianas,
poderemos perceber que muitas outras obras cristãs não estão presentes, tanto no que se refere
a cultura laica, quanto a eclesiástica. Que o cartulário asturiano não fornece uma base de
dados ampla para análise não temos dúvida, entretanto, como unidades de amostra, elas são
bastante ilustrativas das debilidades livrescas. O que ainda prejudica os argumentos de nossa
análise é a não conservação de muitos documentos nortenhos, fato que não deve ser de
desconsiderado.
176
n° 9. El Rey Silo dona a varios religiosos el lugar de Lucis, entre os ríos Eo e Masma, para fundar
un monasterio. In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910).
Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 66-67.
177
30. Fundación del Monasterio de Tobiellas. In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática
española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 157.
178
103. El presbítero Martín y vários religiosos fundan y pueblan el Monasterio de Salcedo. In:
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949, p. 76.
179
Ibid., p. 356.
180
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Labor literária de los monjes. In: ________. El monastério en la vida
española de la edad media. Barcelona: Labor, 1942, p. 223.
65
De um modo geral, a gama de obras que podiam ser acessadas pelos monges era muito
pequena, pois devemos considerar um dado fundamental: o caráter de reconstrução
vivenciado a partir do século VIII nas Astúrias. Poucos eram os registros escritos contidos nas
novas bibliotecas monásticas. Só para lembrar, a biblioteca da igreja de San Martín Pontacre e
Ferrán contava, quando de sua fundação, com cerca de trinta livros. Notícias recentes, aquelas
que pudessem ser registradas a partir das ações de Pelágio e seus sucessores imediatos não
deveriam ter muito espaço nestes lugares. É muito provável que cartas de confirmação de
doações constituíssem uma parcela das fontes empregadas na reconstituição do passado
ibérico, como o Testamentum Adefonsi regis, de 812, que cita o confronto entre Pelágio e as
hostes sarracenas; e a confirmação do rei Ordoño I, feita para reconhecer as doações feitas ao
Mosteiro de Samos, na Galícia, por seus antecessores, os reis Afonso II e Ramiro I, de 853. A
documentação epigráfica com certeza forneceu importantes subsídios para a redação das
primeiras crônicas de Reconquista, pois inscrições monumentais tendem a se preservar com
maior facilidade do que a escrita depositada em suportes brandos. As igrejas, sepulturas e
mosteiros forneceriam os dados, mesmo que disperso geograficamente, a serem reunidos.
situação que nos faz refletir sobre como estes escribas encaravam a tarefa de coleta de dados.
O passado tardo-romano e visigótico deveria ocupar uma parcela importante das
míseras bibliotecas nortenhas, considerando-se a limitada produção intelectual destes tempos
primeiros da Reconquista. Em um ambiente religioso, no qual a Bíblia não era uma obra
contida na íntegra, não deveríamos esperar uma maior quantidade de subsídios úteis para o
empreendimento da tarefa historiográfica. Saindo dos escombros da Batalha de Guadalete, a
tradição visigótica muito timidamente pode dar seus primeiros passos fora da zona de
dominação muçulmana. Não havia muita coisa a se fazer nestas condições adversas. Somente
com a lenta chegada de novos manuscritos e códices é que os mosteiros encontraram meios de
retomar o ofício historiográfico.
Nem todo mosteiro dotado de um monge hábil no trato da escrita dispunha de um
cronista. Nem todo mosteiro portador de uma pequena biblioteca era capaz de desenvolver um
trabalho em torno de narrativas históricas. Era necessário, além dos elementos destacados
acima, o acúmulo de registros encarados como relevantes, novos documentos, um período de
amadurecimento intelectual dos eruditos da ordem monacal e o ganho de experiência nas
pequenas oficinas monacais. A conjugação de elementos materiais e imateriais específicos
apresentados por nós fazem gerar obras de cunho historiográfico. Guardadas as
especificidades de contexto histórico, os estudos de casos modernos iluminam a dinâmica
66
processada no medievo, ainda mais quando consideramos uma pluralidade de lugares cujas
ações destinavam-se a fixar por escrito os acontecimentos do passado.
O processo de monopolização do saber histórico pelos poderes políticos centrais é um
fenômeno que data de fins do século XVIII. Produzia-se anteriormente, com variações
regionais, a difusão de academias históricas, paralelas àquelas patrocinadas diretamente pelos
soberanos, centros regionais de produção histórica. Não era possível a ausência dos monarcas
nesta empreitada erudita, e assim a ―história tornava-se a ‗régua e o compasso‘ do governo do
Estado (...), uma diretriz que será seguida pelos seus sucessores‖
181
. Mas, dispomos para o
alto-medievo ibérico uma grande autonomia no fazer historiográfico, na qual os centros de
cultura escrita nortenhos estavam completamente livres de qualquer processo de
institucionalização nos moldes experimentados na passagem da Idade Moderna para a
Contemporânea. Se pensarmos em algum tipo de vínculo informal poderíamos chegar a uma
percepção mais coerente sobre o esforço monacal em compor uma narrativa em homenagem a
uma esfera de poder laico superior. Não devemos pensar em uma espécie de texto feito por
―encomenda‖ do soberano, ao menos não inicialmente, mas que iria progressivamente
convergir com os interesses da realeza ou do grupo letrado mais próximo da figura do rei.
Entretanto, vale destacar que muitos centros de saber letrado estavam sob a proteção da
nascente monarquia asturiana, o que significa dizer que compunham sua rede de clientela que
passou a se configurar a partir da segunda metade do século VIII. Desta forma, podemos dizer
que existe uma força de atração promovida pela jovem realeza asturiana, que tendeu a se
ampliar a partir do reinado de Afonso II. No mais, as relações erigidas entre estruturas
monárquica e eclesiástica será melhor abordadas no quarto capítulo.
A narrativa mais antiga dedicada aos primórdios da realeza asturiana, a Crônica
Albeldense, parece ter sido composta em Oviedo, como crê Fray Justo Perez de Urbel
182
, o
que poderia refletir a atração política da corte asturiana, que era capaz de inspirar a produção
destas narrativas nas terras do Norte. Este foi um primeiro passo grande passo para se
dar significado aos eventos dispersos que se produziram deste Pelágio. E como primeiro
passo, a crônica ficou a mercê, não do espírito de seu tempo, mas de suas ideologias e,
principalmente, da limitada conservação de registros do passado nortenho.
Quanto a outras fontes escritas, podemos cogitar, mera conjectura, que outros textos
tenham sido produzidos, mas não foram preservados, como muitos outros textos do medievo.
181
KANTOR, op. cit., p. 25.
182
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Las fuentes. In: ________. História del condado de Castilla. Madrid:
CSIC-Escuela de estúdios medievales, 1945, 1v., p. 17.
67
A restauração da hierarquia eclesiástica nas Astúrias restringiu consideravelmente as
atividades que demandavam o uso da escrita, como já apontamos. Também devemos levar em
conta o fato de que, no alvorecer de uma entidade política, a função da escrita em geral
limitava-se às tarefas mais ordinárias, corriqueiras, vinculando-se à administração ou
contratos privados, algo muito mais utilitarista e imediato
183
. A produção narrativa, a literária
e a arte poética são, via de regra, mais tardias. Isto nos leva a um ponto extremamente
relevante, o do vínculo entre a produção literária e o estabelecimento de uma entidade política
organizada e perene.
A partir do momento que percebemos a existência de um grupo responsável ou
habilitado a criar, preservar, explicitar e transmitir uma visão de mundo e a estabelecer uma
conseqüente divisão social e política, é que teremos condições delimitar com maior precisão o
campo político que veio a se construir nos primeiros séculos da Reconquista. Segundo Pierre
Bourdieu, o ―campo político‖ é o espaço fundamental para a criação, em meio a um cenário
de concorrência entre os seus agentes, espaço restrito aos iniciados, aos detentores da
capacidade de atuar ativamente de seus problemas, programas, análises, comentários,
conceitos, acontecimentos. Neste meio, os quais os cidadãos comuns, leigos, são reduzidos ao
estatuto de meros ―consumidores‖
184
. Desta forma, os ―produtos oferecidos pelo campo
político são instrumentos de percepção e de expressão do mundo social‖ que restringem ―a
distribuição das opiniões numa população determinada. Este contexto ―depende do estado dos
instrumentos de percepção e de expressão disponíveis e do acesso que os diferentes grupos
têm a esses instrumentos‖
185
.
O campo político limita a existência de discursos políticos possíveis, definindo o que é
pensável politicamente. ―A fronteira entre o que é politicamente dizível ou indizível, pensável
ou impensável para uma classe de profanos determina-se na relação entre os interesses que
exprimem esta classe e a capacidade de expressão desses interesses que a sua posição nas
relações de produção cultural e, por este modo, política, lhe assegura‖
186
. A mudança do
implícito para o explícito num discurso manifestado publicamente representa sua oficialização
e legitimação
187
. Desta forma, o que foi permitido escrever ou explicitar estava visceralmente
dependente da dinâmica política e ideológica das Astúrias das oitava e nona centúrias, antes
de mais devido ao contexto social e político destes períodos, à presença de um corpo de
183
Tema a ser melhor lidado nos próximos capítulos.
184
BOURDIEU, Pierre. A representação política. Elementos para uma teroria do campo político. In: ________.
Poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil. 2004, p.164.
185
Ibid., p. 165.
186
Ibid., p. 165.
187
Ibid., p. 165-166.
68
profissionais da escrita (histórica) e ao conjunto de fontes escritas ou orais passíveis de
serem empregadas. Contudo, a delimitação do discurso histórico construiu e impôs uma única
visão do passado, cristalizando um considerável esforço pela legitimação das ações políticas
do presente. O vigor deste trabalho pode ser atestado pelas diversas produções
historiográficas seguintes. Em diferentes partes da Península Ibérica cristã testemunhos do
impacto da criação historiográfica da monarquia asturiana: Cronica General de España, Liber
Regum, Cronica General de España de 1344, Historia Silense, Anales Castellanos I, Anales
Castellanos II, Cronica Pinatense e os diversos textos analíticos produzidos entre as zonas
banhadas pelo Oceano Atlântico e as fronteiras nortenhas dos Pireneus.
1.6. Consolidando uma imagem:
Podemos afirmar e antecipamos nossa posição que foi a concentração de força
monárquica nos últimos anos do século IX que forneceu as bases para a reconstrução do
passado asturiano. Quando os cronistas iniciaram o seu trabalho de composição visando
retratar os primórdios da realeza, eles tinham em mente o seu tempo, suas próprias
instituições políticas e experiências sociais e culturais. Trata-se de uma característica já
apontada por Marc Bloch quando abordou o ofício ―historiográfico‖ dos cronistas medievais.
O medievalista francês percebeu que os cronistas, na prática, não tinham a intenção, nem
mesmo podiam compreender a amplitude da eterna mudança que é o processo histórico
188
.
Para Bloch não há dúvida, o escritores das narrativas históricas, por ignorância, não
separavam a dinâmica de seu tempo da das épocas mais remotas. Mas isto também se operava
―porque a solidariedade entre o antigamente e o hoje, concebida com demasiada força,
mascarava os contrastes e afastava até a necessidade de distinguir
189
‖. Muitos cronistas ―por
um curioso paradoxo, à força de respeitar o passado‖, chegavam ―até a ponto de reconstruir
tal como deveria ter sido‖
190
, de acordo com a sua própria visão de mundo.
Somente o desenvolvimento de uma força política estabelecida em longa data
proporcionaria subsídios necessários para a promoção de um esforço historiográfico.
Particularmente, é possível que a primeira forma de monopolização realizada por uma
entidade político-territorial asturiana tenha sido o controle simbólico sobre o passado. Os
aspectos contraditórios que talvez ainda existissem no século IX foram, em parte, suprimidos
188
BLOCH, op. cit., p. 109.
189
Ibid., p. 109.
190
Ibid., p. 110.
69
nos próximos capítulos constataremos que os tímidos ecos desta situação ainda podem ser
ouvidos. Não havia qualquer outro campo em que a monarquia asturiana pudesse ser
plenamente hegemônica que não fosse o historiográfico. Os elementos que garantiram tal
atividade não poderiam encontrar sucesso sem a devida interação entre a força política
asturiana e os centros de cultura escrita localizados no Norte da Península Ibérica. A formação
de um grupo, uma família e os seguidores desta, capazes de submeter uma região que vai
além dos patrimônios particulares originais e que vai se expandindo mais e mais a cada
estação apesar das duras investidas muçulmanas garantiu um primeiro passo para a
formação de um núcleo político durável.
A capacidade de pacificar amplos territórios e de negociar acordos com outros grupos
laicos mostra-se um dado de vital importância. Porém, a partir do momento em que se
conjugam tais elementos ―mundanos‖, com pactos com ordens religiosas detentoras de
saberes historiográficos, é notaremos a formação de uma nova dinâmica política nas Astúrias,
sendo isto evidenciado nas crônicas asturianas. Aqui os interesses convergiram, reforçando a
aura de legitimidade da monarquia em formação. A junção de interesses políticos e religiosos
forneceu um vocabulário específico que investia e revestia de legitimidade a monarquia de
Afonso III e de seus ancestrais imediatos (bem como de seus sucessores). Para Pierre
Bourdieu, o monopólio dos meios de produção e reprodução política legítima está na mão de
profissionais que favorecem a censura e a limitação de outras manifestações, sendo isto
inerente ao funcionamento do campo político
191
. O legitimado aqui é a construção de um
vínculo direto com o passado mítico do Norte, algo que tornaria o exercício do poder
inquestionável e intransferível. A linearidade é a força da imutabilidade, é a pretensa
manifestação do passado no presente do monarca de então. As crônicas nos mostram uma
inovação revestida de conservadorismo, a criação dita como tradição é o controle do presente
sobre o passado, registrando-o como este deveria ser, com o significado que deveria
transmitir. Os demais grupos, letrados ou não, que apartados desta elaboração do passado
histórico estão, de acordo com a contribuição teórica de Bourdieu:
tanto mais condenados à fidelidade indiscutida às marcas conhecidas e à delegação
incondicional nos seus representantes quanto mais desprovidos estão de
competência social para a política e de instrumentos próprios de produção de
discursos ou atos políticos
192
.
O que tornou possível, ou melhor, o que forneceu sentido para o surgimento de uma
resistência à invasão islâmica precisamente no século VIII e, com isso, o desenvolvimento de
191
BOURDIEU, op. Cit., p. 166.
192
Ibid., p. 166.
70
uma entidade política, uma monarquia germinal, foi o esforço historiográfico dos clérigos do
século IX. Como ressalta Patrick Geary, ―o clero, especialmente o clero regular, era
especialista na memória‖
193
. Os escribas das primeiras crônicas da Reconquista apenas deram
forma a algo esboçado ideologicamente em seu meio social e político. A matéria
historiográfica rudimentar existia, dispersa em fatos, acontecimentos, nomes, lugares e
datas. Bastava existir uma intenção, uma motivação política para que isto ganhasse sentido,
um sentido nascido da luta pela hegemonia política nas primeiras centúrias após a invasão de
711. As crônicas geram legitimação, têm aspecto construtor, estruturador, continuador e
legitimador. Todo passado ibérico reconstituído posteriormente toma como base as primeiras
crônicas de Reconquista, bebe diretamente de suas representações. É dependente delas.
As comunidades religiosas instaladas e protegidas pela monarquia tinham, por sua
própria formação, a capacidade de apresentarem-se como os portadores da memória. Mais
uma vez nos inspirando no trabalho de Íris Kantor, que identifica que, no caso português na
transição para a modernidade, ―a escrita da história oficial, até esse momento, constituía uma
atribuição do cargo do cronista-mor do Reino, que conformava uma tradição historiográfica
multissecular iniciada com a centralização do poder real em Portugal‖
194
. As ordens
religiosas, principalmente as ordens monacais, estavam a serviço dos interesses da realeza
nortenha. A subordinação direta de inúmeras casas monacais contribuiu para o
estabelecimento de um discurso que evidenciasse a ascendência social e política da
monarquia. A partir daí, com a proteção e com o fomento material, os mosteiros obtiveram a
segurança e o subsídio necessário para praticar suas atividades necessárias a sua manutenção,
dentre elas o de lembrar e exaltar as benesses de seus defensores. A atratividade da monarquia
ovetense estimulou a retribuição de seus dependentes manifestada sob a forma de um
monumento historiográfico.
Desta forma, retomamos ao final o método de Lucien Goldman, afirmando que todo
comportamento humano tem por objetivo dar uma resposta significativa a uma dada situação,
visando criar um equilíbrio entre o sujeito da ação e o mundo que o circunda
195
. A partir
desta posição defendemos que as primeiras crônicas latinas produzidas nas Astúrias são uma
espécie de elemento estruturador de significados, ou seja, as pas historiográficas
correspondem a uma tentativa de organizar e dar voz a uma perspectiva ideológica, de marcar
a posição de um grupo. Este grupo, ou melhor, estes grupos integravam comunidades
193
GEARY, op. cit., p. 168.
194
KANTOR, op. cit., p. 30-31.
195
GOLDMANN, Lucien. O método estruturalista genético na História da Literatura. In ________. A
sociologia do romance. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 204.
71
religiosas protegidas pelos reis asturianos. Eram os únicos dotados de conhecimentos sobre a
escrita latina, retórica antiga e historiografia visigótica. Os grupos monásticos que imigraram
em várias vagas para as terras asturianas em busca de proteção portavam os conhecimentos
específicos para a produção de narrativas. Estes grupos são em última instância, o
verdadeiro sujeito da criação, são da mesma ordem que as relações entre os elementos da
obra e o seu todo‖
196
. A relação entre o grupo social e a obra literária se expressa assim:
―o grupo constitui um processo de estruturação que elabora na consciência de seus membros
as tendências afetivas, intelectuais e práticas, no sentido de uma resposta coerente aos
problemas que suas relações com a natureza e suas relações inter-humanas formulam‖
197
. O
grande escritor é aquele que consegue criar em certo domínio um universo imaginário e
coerente ―cuja estrutura corresponde àquela para que tende o conjunto do grupo‖
198
.
Dulcídio, Vigila e os cronistas anônimos das demais narrativas fizeram a tarefa de
cristalizar uma perspectiva política. Modelaram aquilo que um grupo determinado político
pleiteava. Este universo escrito coerente tirou proveito de antigos vestígios da memória da
coletividade, preservada em parte não apenas por monges, clérigos e outros religiosos
letrados, mas também por grupos laicos relacionados a eles. Os vestígios do passado não tão
remoto ainda poderiam ser vistos por muitos, facilitando desta forma o trabalho
historiográfico dos cronistas. A esta situação acrescenta-se a colaboração de clérigos,
portadores de antigos saberes e textos históricos trazidos do Sul, que ao longo de poucas
décadas operaram no resgate do minguado passado asturiano. Igrejas, estelas funerárias,
esparsos resquícios epigráficos, tradições orais, diplomas e objetos de diversas naturezas
serviram de matéria-prima para os amanuenses dedicados a assentar por escrito o passado, a
sua visão sobre ele, tal como se esperava que fosse.
Uma referência que adiantamos em confirmar é que os esforços cronísticos no Norte
da Península Ibérica foram condicionados pela construção da estrutura eclesiástica na zona
situada ao Norte da Cordilheira Cantábrica. Sendo assim, a pouca consistência que as
narrativas latinas de Reconquista apresentam nada mais é do que um claro sinal da pouca
maturidade da cultura letrada da região, que ainda dispunham de muito poucos recursos para
o desenvolvimento de um saber histórico. Poucos mosteiros, poucas bibliotecas. As que
existiam dispunha de parcos registros escritos e livros que pudessem amparar a reconstrução
do passado. O desenvolvimento de uma cultura histórica é tributária de um meio material e
196
GOLDMANN, op. cit., p. 206-207.
197
Ibid., p. 208.
198
Ibid., p. 209.
72
intelectual propícios para que tal atividade seja levada adiante. E isto logrou acontecer com
uma velocidade que não podemos precisar, alcançando uma ―massa crítica‖ na passagem do
século IX para o X, data do reinado de Afonso III. A estabilidade e a perenidade das
instituições políticas fundamentaram a construção de uma ideologia e uma tomada de posição
evidenciada nas narrativas asturianas. Quanto mais pujante e estável for a entidade político-
territorial, maior será a sua capacidade de deixar vestígios a serem recolhidos posteriormente.
A Crônica Albeldense e a Crônica Profética são os primeiros e midos esforços
historiográficos nortenhos e, como tais, são narrativas muito áridas e sucintas. A sua coleção
de fatos é breve, similar aos textos de anais. A heterogeneidade da estrutura do texto
evidencia um mosaico, um conjunto de matérias registradas pouco integradas por um escriba
que batalhava para dar sentido à sucessão de acontecimentos que corroborassem os seus
objetivos. Nosso cronista asturiano, qual um historiador, atua como um selecionador
199
. Esta
recolha inicial foi comprometida pela ainda incipiente conservação da memória asturiana. Os
cronistas da Albeldense e da Profética lidaram com um silêncio quase total de matéria
histórica, foram os pioneiros no levantamento dos eventos encarados como relevantes para o
trabalho historiográfico, importantes dada a capacidade de ilustrarem todo um fenômeno de
construção de um aparato político perene. Filhas deste mesmo contexto claudicante da cultura
escrita de matiz visigótica, os textos dos Ciclos de Afonso III são menos pontuais nos
registros dos acontecimentos. Explicitam o maior amadurecimento da cultura escrita nas
Astúrias como atestam seus textos mais prolíficos, extensos e com uma aparência menos
fragmentada. Percebemos uma maior habilidade ―literária‖ do escriba ao abordar a
reconstrução dos acontecimentos passados.
Vários ―fatos do passado‖ caíram no esquecimento por não haver alguém que lhes
reconhecesse o valor e que os inserisse em um suporte da escrita. Fixados em um texto, estes
fatos ganharam repercussão, pois foram redigidos com base em uma proposição política. E.
H. Carr assinala que, ainda que seja comum se dizer que os fatos falam por si, isto não é
verdade, pois os fatos falam quando o historiador os aborda, é ele quem decide o que é ou não
o fato histórico
200
. O anônimo cronista decidiu, também de acordo com as suas possibilidades,
o que merecia ser preservado, separando daquilo que não fazia sentido para o seu recorte
temático. Vigila, Dulcidio, ou qualquer outro, foram os responsáveis por determinar a seleção
da matéria narrada, por determinar, dentre os fatos do passado, aquele que seria o fato
199
CARR, E. H. O historiador e seus fatos. In: ________. O que é história? 5 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1982, p. 15.
200
Ibid., p. 14.
73
histórico do nascente reino. O mesmo pode ser estendido para toda uma constelação de textos
historiográficos medievais. Todos os acontecimentos e testemunhos materiais precisaram
passar pela filtragem do cronista, que colhia apenas dados que pudessem corroboram com sua
empreitada. Empregava-se aquilo que dizia alguma coisa para o historiador, apenas os
vestígios que tinham um determinado significado é que faziam parte da construção de
memória do reino.
A tarefa das crônicas asturianas foi, por meio do passado, delimitar os papeis sociais e
políticos nas terras do Norte da Península Ibérica. A legitimação das pretensões políticas da
monarquia estabelecida em Oviedo nos textos historiográficos demarcava o caminho a ser
tomado pelas próximas gerações, não apenas a realeza, mas também o conjunto dos
habitantes, em especial a aristocracia. Fundava-se então, ou melhor, reforçava-se, o fosso que
apartava o grosso da população nortenha dos discursos, símbolos e demais instrumentos de
controle social e político. Desta forma, aquele que controlava o presente tinha por missão
controlar o passado, estendendo daí até o seu tempo uma ―linha reta‖ que tornasse explícito o
cenário político vigente e a dinâmica do jogo em andamento. A construção progressiva dos
laços que uniam a realeza e as ordens monásticas será abordada com maior detalhamento nos
próximos capítulos. Se neste capítulo tivemos a preocupação de destacar e explicar as balizas
ideológicas das primeiras crônicas asturianas, nos seguintes nos debruçaremos efetivamente
sobre as fundações sociais e políticas das Astúrias. Aquilo que fundamentou as narrativas será
rastreado, despojado dentro do possível do seu conteúdo mítico e analisado. Os
conflitos timidamente suprimidos pelos escribas asturianos serão elencados a fim de garantir
uma explicação mais profunda. As questões lançadas neste capítulo são apenas o ponto de
parti dos nossos estudos.
74
2. OS PRIMÓRDIOS DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA ASTURIANA:
2.1. Considerações iniciais:
Assumimos, como proposta primeira deste capítulo, a abordagem da formação da
entidade política que deu origem ao Reino das Astúrias. Para tanto, parece-nos de grande
valia a tentativa de desenvolver um diálogo produtivo com a Antropologia e com a
Sociologia, visando a aprimorar a nossa análise. O perfil mais teórico deste capítulo objetiva a
constituição de vias alternativas de análise para a formação da monarquia asturiana, iniciativa
fundamental tendo em vista os ―percalços historiográficos‖ decorrentes do vigor com que se
impõe aos analistas o conteúdo ideológico das primeiras crônicas de Reconquista. O foco de
nosso estudo concentra-se na pretensa constituição de uma entidade política, a partir do ano
de 711, na região norte da Península Ibérica, tomando como uma das referências clássicas a
discussão da revolta de Pelágio contra os invasores muçulmanos.
Para a compreensão de tal fenômeno, será necessário dialogar com outras ciências e
com outras fontes até então não muito utilizadas. Compreendemos que esta empreitada não é
das mais simples, mas, mesmo assim, o anseio de propor uma outra visão estimula
consideravelmente nossa jornada. Procuraremos identificar outros epicentros do poder
nortenhos referidos nas fontes, fazendo notar, com isto, que a natureza da rebelião liderada
por Pelágio não é algo fora do comum, mas também não é fruto de um processo multissecular
de lutas contra inimigos estrangeiros, como propuseram Abílio Barbero e Marcelo Vigil
201
.
Parece-nos, antes de mais, que é preciso reconhecer, de forma mais efetiva, a complexidade
do processo histórico a que nos referimos. Por isto, temos a consciência de que muitas de
nossas especulações mantêm ainda uma forma embrionária, apesar de romperem em alguns
aspectos com as perspectivas produzidas e divulgadas na historiografia corrente. Buscaremos
apresentar uma outra visão, respeitando as contribuições daqueles que nos antecederam e que,
assim como nós, tentaram lançar alguma luz sobre um período bastante nebuloso.
Antecipando algumas proposições, a principal delas é que a chave para se
compreender a consolidação do reino das Astúrias sob Afonso III não se encontra na revolta
de princípios do VIII, que tem para nós outro significado, e não foi o ―ato fundador‖ de uma
entidade política e territorial que linearmente produziu a monarquia sediada no trono de
201
FACI, Javier. La obra de Barbero y Vigil y la historia medieval española. In: DIONÍSIO PÉREZ,
María José Hidalgo, GERVAS, Manuel J. R. (eds.). “Romanización” y “Reconquista” en la Península
Ibérica: nuevas perspectivas. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1998, p. 34.
75
Oviedo. Foram diversas, e contraditórias, as lutas pelo poder no Norte Peninsular, do que se
destaca não a peculiaridade da luta de Pelágio, mas a sua inserção em meio a outros
movimentos belicosos de natureza similar.
2.2. Ruína de um cenário e o aparecimento de outro:
A ruína do reino visigodo de Toledo foi objeto de análise de uma longa tradição
historiográfica. Esta entidade monárquica havia passado por um longo período de crises
institucionais e sucessivas deposições e entronizações de reis. A monarquia era forte, mas não
era capaz de impor um projeto dinástico. A divisão partidária na corte e nas províncias
próximas ou distantes debilitou, consideravelmente, as forças visigóticas contra um
inimigo estrangeiro que veio a se tornar presente em solo ibérico. Ultrapassando os limites
deste trabalho a complexidade do tema, destacamos apenas que a desagregação da estrutura
política da monarquia visigótica abriu passagem para novas formas de organização.
Paralelamente, destacamos a existência também de uma literatura histórica que tendeu a ver
uma dada unidade política nortenha como a continuadora imediata do antigo poderio dos reis
visigodos. Desde discordamos de tal perspectiva. Para desenvolver a crítica a essa visão,
começamos nossa análise pelo primeiro texto historiográfico cristão produzido após a invasão
muçulmana de 711, a Crónica Mozarabe de 754.
O texto cronístico trata da história da monarquia visigótica desde o tempo de Sisebuto
até a configuração da Espanha muçulmana em 750
202
. Da referida fonte, contamos atualmente
com três manuscritos remanescentes
203
. No que tange a autoria, apresentaremos algumas
hipóteses produzidas desde o século XIX, como a que acredita que a obra tenha sido
elaborada por Isidoro Pacense, opinião refutada por Reinhard Dozy, que não encontrou
fundamentos que corroborassem tal opinião. O arabista holandês teceu considerações acerca
do possível lugar de produção, chegando a atribuir a Córdoba o âmbito cultural de redação
desta crônica latina
204
. Por sua vez, posteriormente, o historiador alemão Theodor Mommsen,
ao organizar o texto na Monumenta Historica Germaniae, denominou a narrativa de
Continuatio Hispana, pelo fato de identificar o texto como uma continuação das matérias
históricas redigidas por Isidoro de Sevilha. Por outro lado, Ramón Menéndez Pidal concedeu
202
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. La historiografia hispana durante el siglo II de la Hejira. In: ________.
En torno a los orígenes del feudalismo: los árabes y el régimen prefeudal carolíngio. Fuentes de la historia
hispano-musulmana del siglo VIII. Mendoza: Universidad Nacional de Cuyo, 1942, 2v., p. 23.
203
LOPEZ PEREIRA, José Eduardo. La tradicion textual de la Crónica Mozarabe. In: ________. Cronica
mozarabe de 754: edicion critica y traducion. Saragoça: , 1980, p. 7.
204
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 23.
76
ao texto historiográfico o nome definitivo e apropriado de Crônica Moçárabe de 754
205
. Após
identificarmos a fontes, passemos a análise de seu conteúdo histórico propriamente dito.
Assim se expressa a fonte no que se refere à derrota do último rei dos visigodos:
52. Naquele tempo, na era DCCXLVIIII no quarto ano do império destes, LXLII dos
Árabes, retendo Ulit a autoridade do reino, Rodrigo, tumultuadamente, ocupou o
trono pelos rogos do Senado. Reinou por um ano, no quinto ano do império de
Justiniano, nonagésimo terceiro dos árabes, sexto de Ulit, na Era DCCL. Na verade,
juntou-se a ele um grande exército contrário aos árabes e mouros enviados por
Muza, isto é, Taric Abuzara e outros. Estes que estavam realizando incursões na
província havia algum tempo e devastaram muitas cidades. Rodrigo foi pelas
montanhas Transductinas para lutar contra eles e tombou nesta batalha junto com
todo exército godo que, pela rivalidade e dolosamente havia ido ao solo pela
ambição do reino. Assim, ignominiosamente, perdeu seu trono e sua pátria,
morrendo também seus rivais, ao finalizar Ulit seu sexto ano
206
.
Vemos aqui que, no tempo de Justiniano, no ano 711, na Era Hispânica de 749, o reino
dos visigodos governado então por Rodrigo foi atacado por um exército árabe liderado
por Taric Abuzara, que atuava sob as ordens de Muza, Musa ibn Nusayr, governador do Norte
da África. Destacamos aqui uma pequena imprecisão, o anônimo moçárabe confundiu Tariq
Abuzara e Tariq Ibn Ziyad, ambos comandantes das expedições muçulmanas contra as praias
meridionais da Península Ibérica, sendo o segundo a confrontar Rodrigo em campo de
Batalha. Segundo o relato cronístico aqui mencionado, Rodrigo é dado como morto, bem
como os seus rivais que haviam se envolvido na refrega em Guadalete. Era, nesta altura, o
senhor dos árabes e berberes o califa omíada al-Walid I, nomeado pelo cronista moçárabe
como Ulit. A derrocada o Reino dos Visigodos é clara nesta narrativa, noção também notada
por outra fonte, o Laterculum regum visigothorum:
Rodrigo reinou por L anos, e os sarracenos entraram na Hispânia. Devem ser
contados os anos durante os quais o senhor rei Ludovico depredou Barcelona.
Na era DCCCXXXVIIII, reinando o senhor imperador Carlos nos anos de sua
ordenação no reino XXXIIII, o rei Ludovico, filho deste, entrou na cidade de
Barcelona, sendo expulso daí todo o povo sarraceno que a dominava. O referido
Carlos reinou por XLVII anos e III meses
207
.
205
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit.., p. 24.
206
Croniza Mozarabe de 754. 52. Huius temporibus in era DCCXLVIIII anno imperii eius quarto, Arabum
LXLII, Ulit sceptra regni quinto per anno retinente, Rodericus tumultuose regnum ortante senatu inuadit. Regnat
anno uno. Nam adgregata copia exercitus aduersus Arabas una cum Mauros a Muze missos, id est Taric Abuzara
et ceteros, diu sibi prouinciam creditam incursantibus simulque et plerasque ciuitates deuastantibus, anno imperii
Iustiniani quinto. Arabum nonagésimo tertio, Ulit sexto, in era DCCL Transductinis promonturiis sese cum eis
confligendo recepiti eoque prélio fugatum omnem Gothorum exercitum, qui cume o emulanter fraudulenteque
ob ambitionem regini aduenerant, cecidit. Sicque regnum simulque cum patriam male cum emulorum
internicione amisit, peregente Ulit anno sexto. Crónica Mozárabe de 754. In: LOPEZ PEREIRA, JoEduardo.
Cronica mozarabe de 754: edicion critica y traducion. Saragoça: , 1980, p. 68-69.
207
Laterculus regum visigothorum. Rudericus regnauit annos L, et ingressi sunt sarraceni in Spania. Anni
notati quando domnus Ludobicus rex prendidit Barchinona. // Era DCCCXXXVIIII regnante domno Karulo
imperatore anno ordinationis sue in regno XXXIIII, introiuit rex Ludoychus filius eius in ciuitate Barchinona,
expulso inde omni populo sarraceno qui eam retinebant. Karolus praelibatus regnauit annos XLVII et menses III.
77
De maneira diversa ao texto do anônimo moçárabe, nós não nos deparamos somente
com o fim de uma estrutura política, vemos a transferência de uma região de uma esfera
política outra. Aqueles que se viam afastados da dominação muçulmana estavam habitando
agora as terras que ficavam sob a égide franca. Identificamos aqui que um escriba, ainda
visigodo por tradição, via como encerrada a história da realeza visigótica; o poder cristão a
quem se subordinara era o dos francos
208
. Nenhuma menção às terras do norte da Península
Ibérca é feita. O texto limita-se a enumerar os reis carolíngios até o século XI, descrevendo
brevemente algumas ações destes. O autor estava bastante distante do cenário de conflitos
ibérico, restringindo-se a pôr escrito acontecimentos mais próximos geograficamente, mais
precisamente relatando a conquista da Marca Hispânica, mais exatamente uma de suas regiões
específicas, Barcelona, libertada do jugo islâmico em começos do século IX. A ruptura com a
realidade institucional política ibérica é explícita, conforme o relato do cronista que habitava
as terras de além-Pirineus. Esta vinculação a outra esfera de influência pode ser também
percebida em fontes notariais, como veremos nas próximas páginas. Por ora, retomemos o
anônimo moçárabe para considerarmos ainda o impacto da invasão muçulmana segundo um
cristão do Al-Andaluz:
54. (...) Assim, sobre esta Espanha arruinada, em rdoba, cidade que antigamente
portava o título de Patrícia, que sempre foi a mais rica entre outras cidades próximas
e que trouxe ao reino visigodo os primeiros frutos delicados, estabelecem um reino
bárbaro
209
.
54. ―Depois de arruiná-la [a Espanha] até Toledo, a cidade régia, e oitar sem
piedade as regiões circundantes com uma paz enganosa, valendo-se de Opas, filho
do rei Égica, condena ao exílio alguns anciãos nobres que ainda permaneciam
depois de fugirem de Toledo e passa a espada em todos com sua ajuda‖.
210
O cronista moçárabe trata da dominação de regiões importantes na vida política dos
senhores visigodos a partir do fatídico ano de 711. O avanço sobre diversos territórios sulistas
ocorreu pelo aproveitamento do que havia sobrado das estradas romanas (Mapa 2). Córdoba,
ao sul da Sierra Morena, e Toledo, às margens do rio Tejo, foram os pontos principais das
conquistas de Tariq Ibn Ziyad, sendo essa última aquisição o motivo pelo qual o general
muçulmano entrara em conflito com o governador do norte da África, Musa ibn Nusayr, tema
208
BARBERO, Abílio, VIGIL, Marcelo. La historiografia de la época de Afonso III. In: ________. La
formación del feudalismo en la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1989, p. 242.
209
Cronica Mozarabe de 754. (...) Adque in candem infelicem Spaniam Cordoba in sede dudum Patricia, que
semper etintit pré ceteras adiacentes ciuitates opulentissima et regno Uuisegothorum primatibas inferabat
delicias, regnum efferum conlocant., p. 72-73.
210
Cronica Mozarabe de 754. (...) atque Toleto urbem regiam usque inrumpendo adiancentes regiones pace
fradifica male diuerberans nonnullos seniores nobiles uiros, qui utqumque remanserant, Oppam filium Egiche
Regis a Toleto fugam arripeinetes gladio patibuli iugulat et per eius occasionem cunctus ense detruncat., p. 70-
71.
78
que não será mais desenvolvido nesta tese. Aproveitamos a oportunidade para destacar a
importante menção ao bispo Oppas, sua primeira citação em um texto narrativo posterior à
queda do reino visigodo, daquele identificado como um dos principais articuladores dos
pactos entre cristãos e muçulmanos, fato este visto de maneira negativa pelo cronista
moçárabe anônimo. Também nas crônicas latinas de Reconquista o bispo nos é apresentado
como uma autoridade cristã que acompanhou os exércitos muçulmanos até as Astúrias com o
intuito de persuadir o caudilho Pelágio a não levar adiante a mobilização contra os novos
senhores da Península Ibérica. Opas, Oppas, entretanto, não foi o único a compactuar com o
invasor com o objetivo de manter os seus privilégios e propriedades, como o exemplificado
na formação de territórios cristãos semi-autônomos (Mapa 6). Vemos isto ocorre em algumas
outras circunstâncias na Península Ibérica, relatadas em outras fontes narrativas.
O estado das fontes dificulta o estudo da conquista da Península Ibérica pelos
muçulmanos: muitas das que foram produzidas nestes tempos se perderam ou serviram de
base para recolhas tardias do século X
211
. Quanto a isso, o historiador Hugh Kennedy destaca
duas fontes que se encaixam neste tipo de dificuldade: o Akhbār al-Majmū‘a e Ta’rīkh iftitā
al-Andalus. A narrativa anônima Akhbār al-Majmū‘a, data de aproximadamente do ano 940.
O Akhbār é importante por relatar o período pré-omíada no Norte da África
212
. Já o Ta’rīkh
iftitā
al-Andalus, de Ibn al- iya, de 977. O texto ordena os eventos mais ou menos em
ordem cronológica, preocupando-se em relatar fatos ligados a grandes figuras muçulmanas.
Para alguns, Ibn al- iya apenas descreveria as futilidades da corte dos emires omíadas
213
.
Não estamos diante de uma questão muito difícil para se resolver. Analisar os primórdios da
ocupação muçulmana no Norte da África Ifrikiya e o estabelecimento de seu domínio
na Península Ibérica é esbarrar no problema das fontes narrativas. Nenhuma delas é
contemporânea aos eventos que pretende relatar e têm por base uma forte tradição oral. Sua
utilidade par a compreensão da formação do Reino das Astúrias, inclusive, é praticamente
rejeitada por Luís Ramón Menéndez Bueyes, que aponta para a possibilidade de as crônicas
andaluzas fazerem uso de alguma matéria narrativa cristã
214
.
Informamos que apesar de Cláudio Sanchez de Albornoz defender a idéia de que os
fundamentos culturais espanhóis não terem sofrido nenhum tipo de ―arabização‖
215
, ele
211
KENNEDY, Hugh. A Conquista e a Época dos Emire, 711-756. In: ________. Os muçulmanos na
Península Ibérica: história política do Al-Andalus. Mem Martins: Europa-América, 1999, p. 25.
212
Ibid., p. 25.
213
Ibid., p. 25.
214
MENÉNDEZ BUEYES, Luís Ramón. La transición del mundo antiguo a la Edad Media. In: ________.
Reflexiones críticas sobre el origen del reino de Astúrias. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2001, p.
215
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. España:
79
reafirma a necessidade de se utilizá-las no intuito de aprofundar o estudo sobre a Reconquista.
O fato de inúmeras fontes usarem a irregular tradição oral, por ela estar sujeita a inúmeras
modificações e acréscimos a cada vez que é ela recitada, elas preservam em seu corpo
fragmentos originais de obras históricas precedentes
216
. Segundo Pierre Guichard, o ceticismo
incidido sobre as matérias históricas árabes deve ser minimizado, pois se toda refundição por
em cheque alguma narrativa, então devemos descartar a toda. Para redimir tais produções,
vale dizer que é possível perceber que ―no mundo árabe em formação, preocupava-se em pôr
por escrito a tradição jurídico-religiosa, em particular os hadith, reunidos em uma fonte
complementar ao Alcorão para a elaboração do direito muçulmano, elemento indispensável de
estruturação da nova sociedade‖
217
. No século IX se iniciou o esforço em criar anais que
preservassem antigas tradições até então conservadas oralmente e sem ordem cronológica.
O primeiro a ordenar efetivamente a história árabe foi Tabari, falecido em 923, sendo
produzido antes dele recolhas de tradições antigas e narrativas até então dispersas
218
. O
principal autor deste tipo de literatura foi al-Wâqidî morto em 822 responsável pelas
primeiras menções a presença islâmica no extremo oeste do Velho Mundo
219
. Infelizmente
não dispomos na íntegra da obra dedicada à conquista do Magreb e da Espanha (Futûh
Ifrîqiya), mas alguns fragmentos estão conservados em autores posteriores, como o autor de
Bagdá al-Balâdhurî morto em 892 que compôs o Livro das conquistas de países (Kitâb
futûh al-Buldân)
220
. Al-Balâdhurî emprega também fragmentos relativos à conquista de
Espanha e as recolhas do egípcio Ibn ‗Abd al-Hakam, morto em 870, que, por sua vez,
recolheu informações do Livro da conquista do Egito (Kitâb futûh Misr), obra portadora de
informações de dois historiadores egípcios, ‗Uthmân b. Sâlih (morto em 834) e al-Layth b. Sa
‗ad (morto em 791)
221
. Esta preocupação com a veracidade das compilações narrativas
andaluzas não é um fato novo
222
. Em princípios do século XX, Philip Khûri itti, ao editar e
traduzir o Kitâb futûh al-Buldân, defende a confiabilidade dos textos narrativos árabes
compostos com base em tradições orais. P. K. Hitti destaca que as diversas formas de
composição narrativa empregam a tradição oral como principal fornecedor de informações. O
216
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. Sobre.
217
Ibid, p. 18.
218
Ibid., p. 18.
219
Ibid., p. 18.
220
Ibid., p. 19.
221
Ibid., p. 19.
222
ITTI, Philip Khûri. Introduction: Arabic historiography with special reference to Al-Baladhuri. In.
ITTI, Philip Khûri (trad.). Erro! Apenas o documento principal.The origins of the islamic state: Kitâb futû
al-Buldân de al-Imâm abu-l ‗Abbâs Ahmad ibn-Jâbir al-Balâdhuri. Nova Iorque-Londres: Longmans, Green &
Co., Agents-P.S. King & Son, Ltd., 1916, 1v., p.
80
argumento que validaria esta abordagem seria o costume de se referir sempre às autoridades
iniciais das fontes.
223
Para o caso andaluz, Hugh Kennedy destaca que, ―no século X, estes relatos foram
editados e sistematizados de acordo com os critérios da historiografia analítica desenvolvidos
no mundo islâmico oriental por autoridades como al-Madā‘inī (m. 839) e al- abarī (m. 923)‖.
Segundo Kennedy, no al-Andalus, o trabalho historiográfico estava diretamente associado à
família Rā‗zī que era originária de Rayy, Irã Central, e que havia chegado a região no século
IX
224
. Estas recolhas produzidas dois séculos depois dos eventos a que se referem, foram,
como destacamos acima, questionadas em sua validade enquanto fonte histórica para a
compreensão dos primeiros anos de dominação muçulmana na Península Ibérica
225
. Muitos
duvidavam de sua credibilidade, como Collins, enquanto estudiosos como Taha aceitam quase
a totalidade desta matéria histórica. Hugh Kennedy defende uma melhor compreensão do
estado destas fontes. Segundo o autor, por exemplo, o fato de creditarem a vitória muçulmana
ao apoio de Deus não constitui um empecilho à análise do historiador moderno. Sim,
muitos elementos folclóricos e lendários, como o da descoberta de pinturas que ilustram uma
perspectiva profética sobre a dominação árabe na Hispânia, o que evidencia os empréstimos
literários orientais
226
. Aqui chegamos a ponto de grande importância: ideologia. O fato de
vestígios de folclore, de materiais lendários e de retórica religiosa não constitui em
fundamento para a invalidação do emprego destas narrativas, pelo contrário, tais
características auxiliam na identificação de um perfil cultural, político e ideológico dos seus
autores. Os aspectos de compilação e uso pouco criterioso da tradição oral são sim elementos
significativos, mas é um ponto que todos nós medievalistas precisamos confrontar.
Não estamos aqui defendendo o emprego sem qualquer critério de qualquer fonte. Ao
contrário, desenvolver uma análise criteriosa é levar sempre em consideração as
peculiaridades de cada documento, seu meio de produção e o habitus do redator ou dos
redatores. Falar isto não é nenhuma novidade aqui nesta tese, pois a mesma preocupação com
as narrativas cristãs são manifestadas com relação às crônicas árabes. Atentemos ainda para
um dado que fortalece a perspectiva defensora do uso desta matéria narrativa: a total
desvinculação com a ideologia contida nas primeiras crônicas de Reconquista. O que isto
efetivamente significa? Significa que nenhuma destas fontes estava submetida ao ideário de
valorização da jovem monarquia asturiana, ou seja, não tinham qualquer vínculo com o
223
Ibid., p. 2-3.
224
KENNEDY, op. cit., p. 25.
225
Ibid., p. 26.
226
Ibid., p. 26.
81
movimento chamado de ―neogoticismo‖ e nem com a preocupação em criar argumentos
legitimadores do exercício de autoridade dos reis nortenhos. Desligadas destes elementos
condicionadores, as crônicas andaluzas encaram os conflitos dos árabes com os cristãos
nortenhos de maneira diferenciada, fornecendo outro ponto de vista para um mesmo
acontecimento.
Daremos prosseguimento à apresentação e discussão do novo cenário ibérico após
711. O Ajbar Machmuâ é bastante informativo sobre o processo de ocupação da Hispânia
pelos exércitos vindos da África. Segundo o anônimo autor da narrativa, após a Batalha de
Guadalete, árik enviou um destacamento militar para Rayya e outro para as terras de
Granada, enquanto ele mesmo se dirigiu em seguida para Toledo
227
. No assédio produzido
contra Rayya, o Ajbar Machmuâ nos relata que uma parte considerável dos habitantes cristãos
da cidade fugiu e se refugiou nos montes
228
. O principal chefe da região, chamado neste de
―rei‖, teria fugido, mas logo capturado em seguida. Outros ―reis cristãos‖ ou foram capturados
ou fugiram para a Galícia
229
. Destacamos que o termo ―rei‖ nesta fonte não foi empregado
para identificar o chefe político de um reino, mas sim uma liderança provincial ou regional,
autoridade menor laica menor ao do monarca visigodo. Esta confusão terminológica não é
incomum, pois pode ser encontrada, por exemplo, em fontes cristãs da Baixa Idade Média
ibérica, como o Cantar de Mio Cid
230
. Acreditamos que a opção de La Fuente y Alcantara
tenha relação direta com a impossibilidade de encontrar uma palavra perfeitamente
correspondente a ―emir‖, usada indistintamente para chefe político e chefe militar.
Façamos uso de um dos testemunhos mais antigos do deslocamento muçulmano pela
Península Ibérica. Um texto de Aben Abi Alfayad, dedicado a tratar de uma série de
conquistas de Musa ibn Nusayr após a sua chegada à Península Ibérica, informa-nos sobre a
cooperação de alguns cristãos, além do bispo Oppas, no processo que resultou na dominação
muçulmana na Península Ibérica. Assim que chegou da África, Musa obteve a colaboração de
um guia cristão que o auxiliou no trajeto de Niebla até Sevilha, cidade banhada pelo
Guadalquivir, conquistada e posta sob a autoridade de um destacamento berbere no ano 713,
conforme dados a datação fornecida pelo Ajbar Machmuâ
231
. De Sevilha os exércitos de Musa
atravessaram a Sierra Morena em direção à Estremadura para subjugar Mérida, cidade às
margens do rio Guadiana (Mapa 3) que ofereceu uma irredutível resistência contra o invasor.
227
Ajbar Machmuâ. In: LA FUENTE Y ALCÁNTARA, Emílio (trad.). Ajbar Machmuâ: crónica
anónima del siglo XI. Madrid: Imprenta y Estereotipia de M. Rivadeneyra, 1867, p. 23.
228
Ibid., p. 26.
229
Ibid., p. 27.
230
CITAR:
231
Ibid., p. 30.
82
O impasse no cerco à cidade possibilitou o estabelecimento de um acordo entre cristãos de
Mérida e os exércitos de Musa ibn Nusayr:
Os cristãos enviaram emissário a Mūsā ben Nusayr, solicitando paz (...). E se
ajustaram as pazes entre ambas as partes, com a condição de que ficaria para os
muçulmanos os bens dos mortos no dia da emboscada, os bens daqueles que
marcharam, fugindo para a Galícia, e os bens das igrejas, com seus ornamentos.
Depois franquearam a porta a Musa, que fez sua entrada na cidade naquele mesmo
dia, ou seja, o da ruptura do jejum do começo da lua nova do mês de šawal do ano
93.
232
O mesmo evento nos é relatado pela História da conquista da Espanha pelos
muçulmanos:
Uma vez mestre desta importante cidade, ele marcha para Alicante, em direção ao
lugar que se chama a Garganta de Musa; mas antes ele penetrou nos muros de
Mérida, cujos habitantes, segundo nossos sábios historiadores, teriam aberto as
portas sem resistência. Saindo do desfiladeiro, ao qual ele deixou seu nome, Musa se
dirige em direção ao norte, entra na província da Galícia e a cruza de um ponto a
outro
233
.
Este texto nos fornece outro ponto de vista da conquista de Mérida, que se teria
efetivado sem grandes esforços militares muçulmanos. Para apresentar esta perspectiva
destacamos alguns fragmentos de outra fonte, a Crônica do Mouro Rasis:
E Tariq e sua gente entraram pela Hispânia, e começaram a fazer ao seu sabor aquilo
que lhes aprazia sem qualquer interdição. E quando chegaram ao termo de Astorga,
lugar de boa gente, ali [Tariq] fincara [tendas e com sua gente] saíram a eles e
lidaram e pelejaram com eles e mataram e foi muito renhida a lida que obtiveram, e
chegaram muitos mouros a socorrê-los, e acima foram vencidos.
234
E a cavalaria que foi sobre Raya, cercou Málaga e tomou-a, fugindo daqui todos os
cristãos para as serras
235
E todos os cristãos saíram de Toledo e fugiram até uma cidade que estava ao da
serra (...).
236
232
Abén Abi Alfayyad. In: SÁNCHEZ ALBORNÓZ, Cláudio. En torno a los orígenes del feudalismo: los
árabes y el gimen prefeudal carolíngio. Fuentes de la historia hispano-musulmana del siglo VIII. Mendoza:
Universidad Nacional de Cuyo, 1942, 2v.., p. 355.
233
Histoire de la conquète de l'Espagne par les musulmans. Ibn el-Kouthya. CHERBONNEAU, M. A.
Paris-Imprimerie Impériale, 1856 <gallica.bn.fr>, p. 10.
234
La “Cronica do mouro Rasis” y el “Ajbar muluk al-Andalus” de Ahmad ibn Muhammad Al-Razi.. E
Tarife e su gente entraron por España, e comenzaron a fazer a su sabor aquello que les placia sin fallar embargo.
E quando llegaron a el termino de Astorga, pieza de buena gente que alli fincara salieron a ellos , e lidiaron e
pelearon com ellos e mataron e fue muy reñida la lid que obieron, e llegaron muchos de los moros a los socorrer,
e a la cima fueron vencidos. CATALÁN, Diego. La crónica del moro Rasis. Madrid: Gredos, 1975, p. 352.
235
La “Cronica do mouro Rasis” y el “Ajbar muluk al-Andalus” de Ahmad ibn Muhammad Al-Razi. E
la caballeria que fue sobre Raya, cerco a Málaga, e tomola, ca todos los christianos fugeran a las sierras. , p. 353.
236
La “Cronica do mouro Rasis” y el “Ajbar muluk al-Andalus” de Ahmad ibn Muhammad Al-Razi. E
todos os christianos salieron de Toledo e fugeron a vna ciudad que estaba al pie de la sierra (...)., p. 354.
83
A fonte narrativa destacada acima é a Crônica do Mouro Rasis, fonte também de
origem árabe, que requer um pouco mais de cuidado do que as demais, pois não será
processada a análise direta do original, que não chegou até a atualidade com o seu texto
completo: subsiste, em parte, uma reconstituição deficitária a partir de outros textos árabes,
além de uma tradução portuguesa medieval empreendida pelo clérigo Gil Perez
237
. O cronista
árabe Rasis (889-955) registrou outros fatos relativos à ocupação muçulmana na Península
Ibérica que complementam a criação do cenário que analisaremos. Encontramos mais uma
vez referência a expedições de submissão dos territórios meridionais do antigo reino visigodo,
sendo Málaga atacada pelas forças de Tariq. A cidade fica ao norte da porção espanhola do
Estreito de Gibraltar e ao sul da Cadeia Bética, banhada diretamente pelo Mediterrâneo.
Além dos aspectos descritivos, factuais e geográficos, podemos destacar uma ligação
comum entre as narrativas destacadas acima. Neste momento inicial da década de 710, em
meio aos avanços vigorosos, identificamos um comportamento comum de uma parcela da
população nativa diante das vitórias muçulmanas: a fuga para regiões montanhosas. É um
comportamento padrão, ou melhor, a descrição de uma atitude padronizada, a busca de
refúgio dos habitantes ibéricos em zonas elevadas, montanhosas e, ocasionalmente,
escarpadas. Isto não se restringe às composições narrativas, como destacamos no primeiro
capítulo, existem documentações notariais que explicitam a procura de proteção de grupos de
clérigos de Coimbra para o Norte da Galícia. O relevo constituiu-se em uma defesa
fundamental contra um exército que ainda desconhecia profundamente as trilhas da península.
Parte da população de Málaga dirigiu-se às elevações da Cadeia Bética. Uma parcela dos
habitantes de Toledo empreendeu a mesma ação, buscando abrigo nos montes de Toledo. A
História da conquista da Espanha pelos muçulmanos, de Ibn el-Kouthya, o Ajbar Machmuâ,
a História da Conquista da Espanha de Ibn Abd-el-Hakem, a compilação narrativa de Ahmed
ibn Mohammed Al-Makkarí e o texto de Aben Abi Alfayyad, relatam a fuga de alguns
cristãos de Rayya e de Mérida em direção à Galícia, território que fica no Nordeste da
Península Ibérica. Isto se considerarmos à Galícia descrita nestes textos islâmicos produzidos
nas porções meridionais da Ibéria como constituída apenas pela antiga província da Gallaecia
romana (Mapa 1). No entanto, devemos perceber que tais narrativas foram produzidas nas
porções meridionais da Ibérica, sendo assim algumas confusões quanto ao nome dos lugares
237
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. En torno a los orígenes del feudalismo: los árabes y el régimen
prefeudal carolíngio. Fuentes de la historia hispano-musulmana del siglo VIII. Mendoza: Universidad Nacional
de Cuyo, 1942, 2v., p. 184.
84
pode ter ocorrido, ou mesmo tendo sido aplicado o nome restrito de uma dada região nortenha
a todo conjunto do Norte Peninsular.
As descrições geográficas dos textos árabes ibéricos concebem a cartografia da
Península Ibérica como um ―triângulo‖, sendo a porção setentrional identificada geralmente
como ―Galícia‖. Gostaríamos de, neste momento, restringir a Galícia a uma idéia mais
simples, identificando-a com o conjunto do norte peninsular, ou seja, tomando uma parte da
região pelo todo
238
. De posse desta noção, inferimos que a forma mais comum de defesa
contra uma força inimiga e militar superior é a busca de refúgio em terrenos acidentados,
elevados, montanhosos. Cruzar regiões elevadas foi, em diversas circunscrições do antigo
reino visigodo, o meio mais fácil de afastar-se das irresistíveis hostes orientais e africanas. De
norte a sul encontramos este comportamento padrão. A evasão de comunidades hispano-
romanas e visigodas em direção ao norte não é apenas atestada na reconstituição histórica
promovida pelas primeiras crônicas latinas de Reconquista, podendo ser verificada por fontes
cristãs e árabes, tanto nas primeiras décadas da invasão quanto nas compilações de relatos
históricos produzidos posteriormente.
Segundo a Crônica Moçárabe de 754, uma parte da população de Toledo abandonou a
cidade. Já os textos de Ajbar Machmuâ, da História da Conquista da Espanha de Ibn Abd-el-
Hakem, de Aben Abi Alfayyad e de Ibn el-Khotya, quando tratam da luta pela conquista de
Mérida, destacam a retirada de uma fração da cidade em direção à Galícia. Encontramos então
um forte paralelismo entre estas fontes e as do ciclo de Afonso III ao se deter na fuga de
Pelágio e sua irmã em direção às Astúrias. Apesar de distantes no tempo e no espaço, as
narrativas transmitem informações convergentes. Após estas buscas por abrigo, o avanço dos
exércitos muçulmanos de Tariq e Musa foram descritos da mesma maneira. O percurso, o
itinerário e os lugares são os mesmos, possivelmente fazendo uso das antigas rotas
desenhadas durante a dominação romana na Península Ibérica. Astorga, região que fica
quilômetros ao Sul dos Montes de Leon (Mapa 3), foi assediada e dominada por Tariq ibn
Ziyad segundo o testemunho do Mouro Rasis.
Os seguintes fragmentos da crônica Sarracina:
E atormentou terrivelmente os Cristãos da Hispânia. Nenhuma cidade ou ópido
fortificado pude se defender diante da potência dos recém-chegados. Entretanto, os
habitantes fugiam pelas cidades desertas até os Montes das Astúrias. Assim todas as
238
No século XI, o historiador andaluz Ibn Bassam, natural de Santarém, do atual território de Portugal
chegou a aplicar a alcunha pejorativa ―cachorro calego‖ ao nobre castelhano Rodrigo Diaz de Vivar (El Cid
Campeador), o que nos leva a cogitar a existência de uma noção geográfica pouco precisa por parte de muitos
escritores árabes, que apenas tomavam como referência genérica alguns pontos do território nortenho,
extendendo-os a todo Norte da Península Ibérica.
85
igrejas da Hispânia, que antes estavam inteiras, foram destruídas com a chegada
deles [os muçulmanos]
239
Quando os Cristãos viram aquelas coisas, em tal situação fugiram em direção aos
montes escarpados, principalmente, para as Astúrias.
240
Outro fragmento da Crônica do Mouro Rasis ilustra o vigor dos avanços dos exércitos
liderados por Tariq:
E assim o fazia. E [Tariq] foi bom rei. E alegou ter grande poder e foi sobre a
Galícia e a conquistou. E dfoi logo sobre Pamplona e a conquistou, e entrou
pela força. E partiu, e veio até Navarra, e a dominou toda. E conquistou Lupo e
Magarona. E subjugou muitas boas terras que ainda estavam com os cristãos.
241
Informamos que uma parcela das narrativas árabes tendeu a não datar os eventos
relativos à ocupação muçulmana, contudo, podemos verificar pelo Ajbar Machmuâ, por
Ahmed ibn Mohammed Al-Makkarí e por Aben-Adharí que a marcha dos exércitos de Musa
demandaram quase metade de uma década para se fazer presente em todo cenário Ibérico. Na
mesma velocidade em que se produziam as conquistas, eram realizadas também algumas
manifestações de insubordinação, como, por exemplo, em Sevilha após a saída das hostes de
Musa da cidade. A inserção de Península Ibérica à esfera de influência de Ifrikiya ainda era
bastante improvisada, resultando daí uma certa diversidade de relações com os novos
senhores da região. De qualquer maneira, a submissão das cidades e comunidades cristãs não
se restringia aos territórios compreendidos ao sul da Cordilheira Cantábrica. Muito pelo
contrário, para além da Galícia, Tariq ibn Ziyad
242
penetrou no extremo norte da Península
Ibérica. De Vigo, terra banhada pelo Oceano Atlântico, até Pamplona, ao sopé dos Pirineus,
não teria havido terra nortenha que não tivesse sido cenário da marcha dos exércitos
muçulmanos. Porém, a dominação e a inserção plena da região na estrutura político-
administrativa califal não ocorreu. Nestes primeiros anos da presença muçulmana, suas
239
Cronica Sarracina. Adflixitque mirum in modum Hipaniae Christianos. Nec fuit ciuitats, aut oppidum
munitum, quod se tueri aduersus potentiam eius posset. Sed habitatores desertis ciuitatibus confugiebant ad
Asturiae Monteis. Hic omneis Hispaniae ecclesias, quas adhuc integras inuenit, destruixit., p. 281.
240
Cronica Sarracina. Quae quum uiderent Christiani, cum his talibus rebus fugiebant ad montes ásperos, et
praecipue ad Asturiam., p. 282.
241
Cronica do Mouro Rasis. E assi lo facia. E fue buen rrey. E allego gran poder e fue sobre Galicia, e ganola.
E de alli fuese luego sobre Pamplona, e ganola, e la entro por fuerza. E partiose, e vino para Nauarra, e ganola
toda. E gano a Lupo e a Magarona. E gano otras muy buenas tierras que todauia estaban por los christianos., p.
367-368.
242
A Crônica do Mouro Rasis, na tradução em romance, identifica Tariq Ibn Ziyad como ―rrey‖, rei, não com a
plena correspondência do significado dado pelos cristãos, mas o emprego do termo corresponde a uma tradução
da palavra árabe emir, ―al-amir‖, que não tem correspondente com qualquer nas línguas neolatinas, variando seu
sentido como governador, general ou soberanos.
86
expedições tinham um caráter muito mais de razias, objetivando unicamente a pilhagem.
Além da Península Ibérica, os olhos islâmicos voltaram-se para além dos Montes Pirineus.
62. Durante seu reinado, Alaor envia os braços da justiça pela Espanha e, durante
três anos, fizeram guerras e pactos até chegarem à Gália Narbonense. Assim,
organiza pouco a pouco a Espanha ulterior obrigando-a a pagar impostos e se
mantém na Ibéria citerior conservando o trono nos anos já indicados.
243
69. (...) Finalmente [o general Zama] conquista a Gália Narbonense e atormenta com
freqüentes guerras ao povo dos francos; para proteger convenientemente suas
defesas deixa uma guarnição de sarracenos na mencionada cidade de Narbona e,
com o exército que o acompanhava, o citado general chegou em sua luta até
Tolosa, assediando-a, intentando assaltá-la com fundas e máquinas de diversos tipos.
Então os francos, seguros de tal notícia, reúnem-se sob as ordens de seu conde Eudo.
Quando nas imediações de Tolosa os dois exércitos se encontram em dura batalha,
matam a Zama, general do exército sarracenos, e parte da tropa ali reunida. Ao resto
do exército que escapa perseguem-no em sua fuga‖.
244
74. ―(...) Também ele [Ambiza], projetando guerras contra os francos e levando-as a
cabo por meio de sátrapas enviados ao efeito, luta com sorte adversa. Mas, fazendo
escaramuças, com a formação em cunha de suas forças, atacam algumas cidades e
castelos, e assim, duplicando os impostos para os cristãos, os reprime duramente e,
carregado de honrarias, governa triunfante a Espanha‖
245
.
Não mais nos tempos do califa al-Walid, mas no reinado de Alaor, Al-Hurr, três anos
após a chegada de Tariq ibn Ziyad e Musa ibn Nusayr, os focos de resistência ainda poderiam
ser sentidos, e eram aplacados pela força ou pela imposição de tributos para aqueles que não
desejavam perder seus haveres. Em seguida, após a ocupação da Península Ibérica, a Gália
Narbonense passou a ser observada como mais um território a ser anexado por muçulmanos.
A região que é cercada pelo Maciço Central foi atingida por aqueles que cruzam os Pirineus,
possivelmente acompanhando o curso da estrada romana que partia de Tarraco, passando por
Barcino, Gerundia e Iuncara (Mapa 2). As forças do general Zama avançaram sobre as
planícies do Poitou e Vendéia, palco das resistências encarniçadas promovidas pelos francos.
A cidade de Narbona, banhada pelo Golfo de Leão, foi subjugada e Tolosa seguiria o mesmo
caminho, mas a intervenção do conde Eudo retardou os avanços do general Zama, Al-Samh.
Tal como o último, Ambiza, ‗Anbasa, afligiu duros golpes sobre o território meridional do
reino franco, cujas cidades foram sendo submetidas, ampliando o número de administradores
locais, sátrapas, responsáveis pela recolha de tributos para o novo poder em ascensão na
Península Ibérica.
243
Cronica Mozarabe de 754, op. cit 62. Huius tempore Alaor per Spaniam lacertos iudicum mittit, atque
debellando et pacificando pene per três annos Galliam Narbonensem petit et paulatim Spaniam ulteriorem
uectigalia censiendo conponens ad Ilberiam citeriorem se subrigit, regnans annos supra scriptos., p. 78-81.
244
Cronica Mozarabe de 754. 69. (...) ., p. 84-85.
245
Cronica Mozarabe de 754. 74., p. 88-89.
87
A força militar muçulmana parecia irresistível. A impressão causada nas testemunhas
destes tempos poderia levar a crer que resistir a tais conquistadores fosse uma tarefa
irrealizável, e que a dominação nas terras recém conquistadas fosse algo definitivo. Porém, as
dinâmicas histórica, social e militar são muito mais fluidas e ativas do que os fragmentos das
narrativas apresentam até aqui, como veremos adiante. Uma cidade derrotada ou uma região
submetida não significava, efetivamente, a sua entrada na esfera de influência imediata dos
senhores muçulmanos. Tanto fontes cristãs quanto muçulmanas retratam as dificuldades de se
manter sob jugo inúmeras zonas. Somado a este ambiente, acrescentamos o fato de as citadas
fugas não terem sido os únicos expedientes dos cristãos naqueles tempos. As terras
montanhosas provaram que não eram apenas um espaço de residência temporária para aqueles
que se afastavam do controle muçulmano. Para identificar os pontos de tensão entre invasores
muçulmanos e as populações cristãs, devemos retomar ao texto do anônimo moçárabe:
80. Então Abderraman, ao ver ocupada a região por seu gigantesco exército,
atravessa as montanhas dos vacceos, passa pelos terrenos pantanosos bem como
pelas planícies, entra em território franco e tão adentro penetra castigando-lhes com
a espada, que ao apresentar-lhe combate Eudo mais além do rio Garona e do
Dordonha, o faz fugir, e Deus sabe o número de mortos e desaparecidos.
246
(...)
Continuando Abderramán a perseguição do mencionado duque Eudo, enquanto se
detém a destruir palácios e queimar igrejas, intenta saquear a diocese de Tours, se
encontra com Carlos, nsul da Áustria, homem belicoso desde sua infância e muito
versado em assuntos militares, de antemão advertido por Eudo.
247
81. Ao ser repreendido o citado Abdelmelic por uma ordem do príncipe, porque
nada proveitoso obtinha com uma vitória militar sobre os francos, imediatamente sai
de Córdoba com todo seu exército; propõe-se a arrasar as montanhas pirenáicas
habitadas, e dirigindo sua expedição por lugares estreitos não consegue nada
favorável. Atacando aqui e ali com seu poderoso exército os lugares
imprescindíveis, retira-se para a planície e volta para a sua pátria por lugares
incertos, depois de perder muitos guerreiros, tendo que reconhecer o poder de Deus
a quem haviam pedido misericórdia os poucos cristãos que ocupavam as ―regiões
montanhosas‖.
248
As hostes do emir Abderraman, `Abd al-Rahmán, transitaram pela chamada região dos
vacceos, povo citado pela literatura latina antiga e que havia feito Roma se ocupar por
algum tempo
249
. O historiador latino Plínio descreveu e identificou este povo que habitava na
região da Tarraconense, ao Sul da Cordilheira Cantábrica
250
. Tal como a literatura histórica
árabe ibérica, o texto produzido pelo anônimo moçárabe emprega expressões antigas ou
246
Cronica Mozarabe de 754 p. 98-99.
247
Cronica Mozarabe de 754, p. 98-101.
248
Cronica Mozarabe de 754., p. 102-103.
249
O antigo território dos Vaceos estaria delimitado ao Sul pelo Rio Douro, a Leste pelo Rio Carrión e a
Oeste pelo Rio Esla (Mapa 3), e encontrava-se próximo das estradas romanas que ligavam as cidades de
Brigedium a Asturica Augusta (Mapa 2).
250
SARAIVA, op. cit., p. 1250.
88
genéricas para designar determinadas regiões muito afastadas de seu ponto de observação.
Podemos, porém, cogitar que o território citado estivesse ao Sul da zona basca que acesso
ao território franco, e o localizada ao Sul dos Montes de León e a Cordilheira Cantábrica,
aproveitando o leito do rio Garona, cruzando os Pirineus, passando ao sul do Platô
Lahnemezan, dirigindo-se ao norte, em direção da Guiana. A não ser se considerarmos que
teria havido uma saída das hostes de ‗Abd al-Rahmán a partir de Astorga, Asturica Augusta,
passando pela via romana que passaria por Pallantia, Numantia, Caesaraugusta, chegando a
Ilerda, atual Lérida (Mapa 2), de onde seguiu o rio Garona. Em seguida, após cruzar os
Pirineus, um pouco mais ao norte, os exércitos de ‗Abd al-Rahmán acompanharam o rio
Dordonha, afluente do Garona que atravessa as terras de Perigord. Notamos que a invasão ao
reino franco efetuou-se consideravelmente, sem que o conde Eudo pudesse fazer frente à
força tão avassaladora naquele momento.
A penetração islâmica encontrou, contudo, forte resistência com a entrada em cena do
prefeito do palácio da Austrásia, consul segundo a Crônica Moçárabe de 754, Carlos Martel,
que havia sido informado pelo próprio conde Eudo sobre os eventos recentes e o assédio
sobre a cidade de Tours. Somente com a intervenção de Carlos Martel é que a fortuna islamita
mudou. Não avançaremos aqui na análise deste êxito franco frente ao exército de ‗Abd al-
Rahmán, mas consideramos importante destacar algumas tendências então manifestas.
Retomemos uma referência de não pouca importância, a utilização dos terrenos acidentados
para o desenvolvimento de defesas contra inimigos externos. Em menor número uma dada
população podia infligir forte resistência a um inimigo aproveitando-se do território
escarpado. O aproveitamento de antigas estradas romanas e o percurso dos rios facilitava o
deslocamento das hostes andaluzas, porém, quando a marcha se efetuava em terreno irregular,
o desempenho do exército, infantaria ou cavalaria era consideravelmente comprometido.
Por exemplo, após a derrota diante dos exércitos francos, os esforços de Abdelmelic,
‗Abd al-Málic, viram-se limitados. Partindo de Córdoba, as forças islâmicas tentaram obter
novas vitórias sobre os francos nos Pirineus, contudo, como bem destaca o cronista moçárabe,
tal região era habitada e seus moradores não permitiram o trânsito ou a estada das forças de
Córdoba. Ainda que não disponhamos do nome exato do lugar ou dos nomes dos atores em
luta, sabemos que ‗Abd al-Málic recuou com seu exército até a planície, de onde empreendeu
sua retirada após perder grande número de soldados. Apesar do anonimato dos contendores
cristãos, expressa-se aqui um dado palpável sobre as lutas entre comunidades cristãs e os
dominadores islâmicos. Como mencionamos, as montanhas não mais eram um simples
89
refúgio de passivos fugitivos, elas poderiam ser utilizadas como campo de batalha
desfavorável a um exército numeroso que vinha de longe.
Aproveitando as dificuldades impostas pelo terreno, as comunidades cristãs puderam
fazer frente à pressão militar muçulmana, mantendo o seu status quo, seja ele qual fosse, pois
nada sabemos com precisão sobre a organização social de tais povos montanheses. O que
podemos destacar é o fato de que foram efetuadas resistências organizadas. Podemos, por
comparação, aventar que havia uma liderança que congregava o conjunto dos habitantes de
uma localidade contra um inimigo comum. Deixemos o aspecto da liderança política para
outro momento deste capítulo. Concentremo-nos em distinguir as regiões pirenáicas dos
territórios compreendidos pela Cordilheira Cantábrica. Pois, apesar da resistência ter se
operado de maneira semelhante, em uma topografia parecida, os frutos destas ações
desenvolveram-se de forma diferente. Nas Astúrias, na centúria seguinte, articulou-se um
poder político coerente sobre um conjunto amplo da zona nortenha, diferentemente das terras
que faziam fronteira com o reino franco.
As crônicas do ciclo de Afonso III, o anônimo historiador moçárabe, a narrativa de
Aben Abi Alfayyad, do século VIII, e a crônica de Ibn el-Khotya e os demais relatos árabes
nos apresentam ângulos diferentes de um mesmo objeto. São visões produzidas por aqueles
que resistiram no relevo montanhoso cantábrico; um relato transcrito por um cristão que vivia
no Al-Andaluz, e que tomou conhecimento das lutas encarniçadas nas terras montanhosas
pirenáicas, e, por fim, a visão daqueles que promoveram as expedições dirigidas aos grupos
montanheses. O que podemos ressaltar é que a estrutura visigótica representada pela
monarquia de Toledo não mais existia, e que este desaparecimento significou a ausência de
um poder que pudesse intervir sobre determinadas querelas e disputas existentes em seu
território.
Sendo assim, com base nestas assertivas, destacamos que, diferentemente das Astúrias,
os territórios pirenáícos margeados pela monarquia franca foram caracterizados pela formação
de grupos cuja autonomia política foi relativa. Os diversos grupos políticos aristocráticos
poderiam recorrer, conforme as situações, a uma instância superior residente além Pirineus. A
distância das Gálias, as dificuldades de acesso imediato à corte régia franca e o alto grau de
autonomia que tais regiões viviam, não significaram de forma alguma um total
desprendimento em relação à autoridade carolíngia. A presença, mesmo que simbólica do
poder franco, interferia no jogo político ―aragonês‖; havia uma limitação no conflito entre
grupos aristocráticos, estando todos abrigados sob o cetro franco que podia, inclusive, ser
chamado para arbitrar os litígios ―aragoneses‖. Tal poder, expressando-se apenas como uma
90
possibilidade, limitava o surgimento de um grupo aristocrático com pretensões hegemônicas.
Sendo assim, a chave para compreendermos a especificidade asturiana na constituição de um
poder político não reside no Norte da Península Ibérica, mas sim na comparação que se possa
estabelecer com outras regiões hispânicas cristãs, verificando como elas reagiram diante do
esfacelamento do reino de Toledo.
Os dados obtidos com a análise das narrativas nos levam a deduzir que nas terras
incrustadas nos Pirineus desenvolveram-se atividades anti-islâmicas de maneira similar às
empreendidas na Cordilheira Cantábrica. Cruzamos as referências obtidas com a análise de
nossas crônicas e percebemos que as resistências partiram das comunidades locais, isto é, o
núcleo básico da mobilização partia dos habitantes montanheses. Assim sendo, inferimos o
seguinte ponto: não diferença em essência ou aparência nas lutas locais entre os habitantes
asturianos e cantábricos e os residentes nas fronteiras montanhosas com o reino franco.
Contudo, o que teria então possibilitado a formação de entidades políticas autônomas em
terras asturianas foi a ausência de colaboração de um grupo estrangeiro que exercesse uma
espécie de protetorado. A porção ibérica dos Pirineus foi assimilada de maneira desigual na
esfera de influência franca. Percebemos que o foco de ―obediência‖ a um grande poder
político-territorial não mais se vincula aos escombros do reino toledano. Teria ocorrido uma
transferência de ―fidelidade‖, deslocada para a Gália. Não encontramos tal referência nas
narrativas ibéricas que se filiam explicitamente à tradição historiográfica visigótica, mas
apoiamos tal afirmativa nas próprias fontes produzidas em território ―aragonês‖ e o
Laterculum Regum Visigothorum, produzido na Septimânia.
Vamos aqui apresentar mais alguns elementos que reforçarão nossa proposição.
Deitemos os olhos sobre o monastério de Huesca, casa religiosa situada entre a Cordilheira
Ibérica e os Montes Pirineus, a Norte de Saragoça e Leste do Rio Gállego (Mapa 3), território
cristão semi-autônomo do poderio dos valis cordobenses em meados do século VIII. A região
se aproximou mais da esfera de influência franca no avançar do século IX, com a constituição
da Marca Hispânica, que era formada pelas terras entre o Sul da Vascônia e Barcelona. O fato
de Huesca estar nas proximidades dos territórios do Banu Qasi de Saragoça, não deixa
amortecidos os contatos entre ibéricos e francos. Podemos usar a documentação do referido
mosteiro como uma espécie de índice das transformações políticas desta parcela da Península
Ibérica.
91
1. Outorga de testamento do diácono Vicente em favor do abade Vitoriano e do
mosteiro de Asán. ―Feita carta no mosteiro de Asán no dia IIIº das calendas de
outubro, no IIº ano (de governo) do nosso senhor, rei Agila‖
251
3. Doação das possessões entre Borbosse e Higirem do conde Galindo Aznárez I
e sua esposa Guldregut a o Pedro de Siresa, no ano 833. ―Feita escritura de
doação e transmissão no dia VII das calendas de dezembro, reinando o nosso senhor,
o Imperador Ludovico‖.
252
6. Doação da vila de Echo pelo conde Galindo Aznárez I a São Pedro de Siresa.
―(...) aquilo que também confirmo por juramento em prol do divino nome da
majestade a qual é a perfeita trina e unidade indivisível e o reino do nosso glorioso
senhor Carlos rei e para sua saúde‖.
253
7. Dotação de São Pedro de Siresa pelo conde Galindo Aznárez I. ―Feita carta, na
era DCCCC.Vª, reinando o rei Carlos em França, Afonso de Ardonis filho em Gália
Comata, García Enneconis em Pamplona. Eu, presbítero de Galindo, pelo mandato
do meu senhor conde escrevi esta carta e aqui fiz sinal‖.
254
8. Memória da doação do termo compreendido entre Oza e Sireza feita a favor
do mosteriro de o Pedro por Sancho Garcês, rei de Pamplona. ―Eu, Rogitus,
escrevi esta dula da carta na era DCCCCLX, reinando em Pamplona Sancho
Garcês, Galindo Aznárez em Aragão e o senhor Ferriolus no episcopado. Que a paz
esteja convosco. Amén‖.
255
De uma simples análise geral na documentação produzida por tal instituição monástica
entre os anos 551 e 922 podemos destacar uma interessante modificação nas fórmulas de
datação. Reconhecemos que a referida documentação é extremamente lacunar. Porém, a parca
existência de textos escritos pode, contudo, fornecer alguns indícios sobre a modificação nas
relações com as esferas de poderes políticos em terras ibéricas. Não são mais indicados os
anos de governo de reis peninsulares, mas sim dos francos. O primeiro documento redigido
após a queda do reino visigodo evidencia como as comunidades situadas na região de Huesca
procuraram amparo no poder carolíngio. A resistência não ficou apenas a cargo dos grupos de
guerreiros autóctones, muito pelo contrário, a colaboração ―estrangeira‖ foi uma constante.
Desde o início, como destaca a Crônica Moçárabe, os francos intervieram diretamente no
certame entre cristãos ibéricos e as hostes islâmicas.
251
DURAN GUDIOL, Antonio. Coleccion diplomática de la catedral de Huesca. Saragoça: Escuela de
Estudios Medievales-Instituto de Estudios Medievales, 1965, 1v.Facta cártula in monastério Asani sub die II
kalendas actobris anno IIº domini nostri Agile regis., p. 19.
252
Facta scriptura donacionis et distractionis sub die VII kalendas decemris regnante domino nostro Ludouico
imparatore, p. 21.
253
(...) quod etima iuracione confirmo pro divini nominis magestatem qui est trinitas perfeta et unitas indivisa et
regum gloriosi domni nostri Karoli Regis gentique sue salutem., p. 24.
254
Facta carta era DCCCC.Vª, regnante Karlo rege in França, Aldefonso filio Ardonis in Gallia Comata, Garcia
Enneconis in Pampilona. Ego Galindonis presbiter mandato domini mei comitis hanc cartam scripsi et hoc
signum feci., p. 25.
255
Ego Rogitus scripsi hanc scedulam cartule era DCCCCLX, regnante in Pampilonia Sancio Garcianes, in
Aragone Galindo Isinari, in episcopatu domnus Ferriolus. Pax vobis amen., p. 26.
92
Na medida em que o poder político franco foi se enfraquecendo no final do século IX,
vemos a região sendo lentamente inserida na esfera de influência das entidades político-
territoriais peninsulares, com a reintrodução do cômputo da Era Hispânica nos documentos do
mosteiro oscense. Identificamos, paralelamente, a existência de grupos aristocráticos
encabeçados por condes, como o conde Galindo Aznárez que fez uma doação a Huesca, junto
com sua esposa, no ano de 833. A região, que ora fazia parte dos condados aragoneses ora dos
reinos de Navarra e Aragão, nos século X e XI ficou por dois séculos fracionada em pequenas
esferas de poder local que se unificaram com a anexação empreendida por um poder
político e militar superior em um período já muito tardio. Enquanto tal região se manteve, nos
anos que se sucederam ao ocaso visigótico, sob a influência franca, ela não logrou uma
unificação territorial e política.
2.3. Sobre os primórdios da dominação muçulmana na Península Ibérica:
Faz-se aqui necessário uma pausa na análise do cenário ibérico, para que possamos
apresentar com maior precisão aqueles que lograram desmoronar o edifício político
visigótico. Esta parte apresentará um caráter mais narrativo que analítico, para que os devidos
agentes históricos sejam mais bem identificados. Retrocederemos um pouco no tempo, para
verificar os momentos que antecederam a invasão da Península Ibérica, mais precisamente a
conquista do Norte da África pelos exércitos do califado omíada. Segundo Hugh Kennedy, a
invasão muçulmana da Península Ibérica seria a continuação lógica da expansão muçulmana
no Norte da África
256
. Alinhando-se a esta perspectiva, Robert Mantran destaca que, após a
conquista do Egito, os árabes lançaram-se em expedições sobre o Norte da África
257
. Em 647,
liderados por Abdallah ibn Sad, os árabes atacam Bizacena meridional, vencendo as tropas
bizantinas
258
. Em 642 d.C., uma expedição liderada por ʻAmr n. al-Ās conquistou as terras
de Barqa, em Cirenaica. De lá, ʻAmr n. al-Ās enviou uma expedição chefiada por ʻUqba n.
Nāfiʻal-Fhrī até Zawila
259
. ʻUqba descende da tribo árabe dos qoraixitas, grupo que fez
parte dos primórdios do Islã, fato que lhe forneceu poder para negociar com os berberes
260
. As
256
KENNEDY, Hugh. A Conquista e a Época dos Emire, 711-756. In: ________. Os muçulmanos na
Península Ibérica: história política do Al-Andalus. Mem Martins: Europa-América, 1999, p. 21.
257
MANTRAN, Robert. Expansão muçulmana: séculos VII-XI. São Paulo: Pioneira, 1977, p. 107.
258
Ibidp. 107.
259
Ibid., p. 22.
260
Ibid., p. 22-23.
93
alianças firmadas por ʻUqba contribuíram para tornar a sua família muito poderosa no norte
da África e no Al-Andalus antes da chegada dos Omíadas
261
.
Antes da chegada dos exércitos islâmicos, a região nomeada pelas fontes árabes
como Ifrikiya era ocupada por dois grupos: bizantinos e berberes. Os bizantinos ocupavam
núcleos situados na costa mediterrânea (Trípoli e Cartago), prosseguindo sua dominação após
a retomada da terra aos Vândalos por Justiniano, formando uma rede de defesa nas fronteiras
ao sul das áreas povoadas (que foi abandonada no século VII). O que sobrou do sistema de
defesa localizava-se nas zonas costeiras. O estado desta dominação tornou possível a vitória
muçulmana por terra com o apoio das tribos berberes
262
. Vale lembrar que o avanço
muçulmano encontrou uma incrível resistência de alguns grupos berberes. Em 695, após estes
eventos, uma nova ofensiva foi empreendida, resultando a conquista de Cartago. Pouco tempo
depois, os bizantinos retomariam esta cidade
263
. Em 698, os árabes retornaram e tomaram
Cartago. Aproveitando conflitos internos entre as tribos berberes, os árabes derrotaram-nos
junto com a ―profetisa‖ Kahina, que teria morrido em 702
264
. Uma das raras fontes que tratam
desse personagem semi-lendário é o Kitâb futû al-Buldân
265
, no qual confirma a
irredutibilidade de parte dos berberes diante do assédio muçulmano. Apesar da imprecisão das
narrativas árabes
266
, elas inadvertidamente contrariam a eficiência e rapidez que as expedições
califais contra seus inimigos.
Apesar das limitações naturais de tais produções textuais, conseguimos obter
informações bastante contundentes sobre os agentes históricos envolvidos na expansão
muçulmana. Os berberes, por sua vez, eram nativos do Norte da África, dispunham de sua
própria cultura e língua (não escrita), que eram diferentes do árabe e do latim
267
. Havia
grandes variações culturais entre aquele povo: alguns, influenciados pelos bizantinos, eram
cristãos; outros, por sua vez, mantinham-se pagãos
268
. Existiam berberes em cidades, ou
vivendo em aldeias. No entanto, outros grupos mantinham um estilo de vida nômade.
Diferentemente dos árabes, a genealogia berbere não tinha a mesma riqueza de registros
familiares. Pelas fontes árabes, os berberes estavam divididos em dois grupos: Butr e Bāranis.
261
KENNEDY, op. cit., p. 23.
262
Ibid., p. 21.
263
MANTRAN, op. cit., p. 108.
264
Ibid., p. 108.
265
ITTI, PHILIP KHÛRI (trad.). Erro! Apenas o documento principal.The origins of the islamic state:
Kitâb futû al-Buldân de al-Imâm abu-l ‗Abbâs Ahmad ibn-Jâbir al-Balâdhuri. Nova Iorque-Londres:
Longmans, Green & Co., Agents-P.S. King & Son, Ltd., 1916, 1v, p. 360.
266
GUICHARD, Pierre. Al-Andalus, province du Califat Omeyyade de Damas. In: ________. Al-
Andalus 711-1492: une histoire de l‘Espagne musulmane. Paris: Hachete Littératures, 2000, p. 19.
267
Ibid., p. 21.
268
Ibid., p. 22.
94
Segundo Hugh Kennedy, a maioria dos grupos berberes que invadiu a Península Ibérica era
do grupo Butr, preservadores de sua identidade tribal e, possivelmente, de sua religião pagã.
no século VI os Butr pressionavam as comunidades bizantinas no Norte da África. Os
Bāranis haviam estabelecido relações com os Bizantinos, o que possibilitou a conversão ao
cristianismo de alguns de seus membros. Na opinião de Hugh Kennedy, parece que a
diferenciação dos dois grupos não comprometeu o processo de invasão da Hispânia,
diferentemente do que aconteceu entre os árabes, com o conflito entre os Qays/Mudar e
Iémen
269
.
Para melhor explicar o êxito das campanhas árabes, Robert Mantran apresenta duas
perspectivas fornecidas por historiadores como E. F. Gautier e W. Marçais
270
. O primeiro
defende que tensões internas entre berberes sedentários e nômades teriam sido uma das
principais causas para a derrota deste grupo norte africano, sendo facção nômade, antagonista
de Kahina. Gautier embasa sua colocação por meio de uma ―análise etimológica dos nomes
das tribos‖, contudo tal tese foi refutada por W. Marçais. Entretanto, o próprio estágio atual
das fontes escritas ou arqueológicas ressalta que estamos muito mal informados sobre este
período da história magrebina, sendo a única certeza o fato de a resistência berbere ter
ocorrido por décadas, em parte alimentada pela adesão a doutrina kharidjita, momento hostil
ao califado de Damasco
271
. Esta referência a tensões internas entre os muçulmanos após a
ocupação do Norte da África pelos exércitos do Califado Omíada e, posteriormente, Abácida
são suficientemente necessárias para se compreender os constantes embates entre os
diferentes grupos étnicos que ocuparam a Península Ibérica, como veremos logo mais, parte
destes conflitos são extensões daqueles desenvolvidos em Ifrikiya.
Em 681, ʻUqba conduziu um ataque em direção ao Ocidente, pressionando Tânger e
a costa atlântica
272
. Os filhos de ʻUqba deram prosseguimento ao seu empreendimento,
desempenhando importantes papéis políticos na região setentrional africana. Contudo, tais
avanços tiveram um pequeno revés, que foi superado em 694, quando o califa ʻAbd al-
Malik enviou um grande exército sírio chefiado por assān n. al-Nuʻmān al-Ghassānī, que
capturou a guarnição bizantina em Cartago e estabeleceu, em seguida, suas forças
definitivamente em Qayrawān, em 701. O sucesso da campanha deve ser também creditado a
colaboração berbere, em especial dos membros da tribo Luwāta
273
.
269
Ibid., p. 22.
270
MANTRAN, op. cit., p. 108.
271
Ibid., p. 108.
272
Ibid., p. 23.
273
Ibid., p. 23.
95
Em 704, assān foi destituído de suas funções pelo governador muçulmano do Egito.
Tal desligamento foi motivado, segundo Hugh Kennedy, pelos êxitos excessivos do próprio
assān, sendo substituído por Mūsā n. Nu ayr, proveniente da administração financeira do
Califado Omíada. Nu ayr manteve a política de recrutamento de berberes convertidos que
reforçou o exército muçulmano, tal expediente contribuiu para a consolidação do poder califal
no Norte da África, em 708. Nu ayr chegou a estabelecer como seu governador um
colaborador berbere, āriq n. Ziyād
274
. A conquista do Norte da África é fruto da aliança
entre árabes e berberes ―em nome do Islão‖
275
. Quanto mais as conquistas eram produzidas,
aumentava-se também a importância da participação de berberes, sendo isto exemplificado na
conquista da região que compreende o atual Marrocos. Os recém convertidos obtiveram parte
do butim, porém, diferentemente de Tāriq em Tânger, não galgaram altos postos na
administração. Muitos berberes entraram em acordos individuais e coletivos, formando uma
clientela dos principais chefes árabes. ―Eram então descritos como mawlā (pl. mawāli) de
alguém (por exemplo, āriq n. Ziyād, o governador berbere de Tânger)‖. Todo mawlā era
muçulmano
276
. Muitas vezes, mais do que as solidariedades tribais, as grandes famílias dos
conquistadores tinham sua base política construída com a colaboração dos berberes
277
.
A manutenção da autoridade dos governadores (wālī ou ʻāmil) de Qayrawān
dependia diretamente dos governadores do Egito, e isto se tornou mais evidente quando da
instalação da administração árabe na Península Ibérica. Os governadores estavam à mercê de
todas as mudanças políticas ou pessoais em Qayrawān ou em Fus ā (atual Cairo)
278
. Neste
ambiente, era difícil manter-se nos cargos de comando por um longo tempo, os governadores
eram autoridades temporárias. A remuneração destes funcionários baseava-se no saque e na
aquisição de terras, sendo poucos os registros de tributos pagos por cristãos ou berberes
pagãos naquele tempo
279
. Com o fim das reservas de butim, os grupos políticos e tribos
atacavam-se uns aos outros caso não fossem empreendidas novas expedições. Findada a
conquista do Norte da África, a Península Ibérica era o alvo mais próximo
280
.
Kennedy considera possível que a invasão da península tenha se realizado sem a
aprovação da hierarquia muçulmana representada pelo governador de Ifrīqīya, Mūsā n.
274
Ibid., p. 23.
275
Ibid., p. 24.
276
KENNEDY, op. cit., p. 24.
277
Ibid., p. 24.
278
Ibid., p. 24.
279
Ibid., p. 24-25.
280
Ibid., p. 25.
96
Nu ayr e, posteriormente, pelo califa al-Walīd n. ‗Abd al-Malik, em Damasco
281
, posição
que converge com a visão de Pierre Guichard
282
, que propõe que a expedição de Tariq tenha
sido efetuada com os meios humanos da periferia, com a passagem de uma região para a mais
próxima. Guichard ainda considera provável que a presença de Musa e de seu exército tenha
ocorrido com uma chamada feita por Tariq
283
. Por outro lado, uma tradição que está
vinculada aos acordos feitos entre os chefes muçulmanos de Ifrikiya e o conde visigodo
Julião. Segundo o Ajbar Machmuâ, Muça pediu autorização ao califa Al-Walid para que a
expedição fosse realizada, obtendo deste a permissão desejada, desde que fossem enviados
exploradores antes
284
. Enviou então Muça arif Abó Zorâ, que chegou a Ilha de Andalus,
lugar que era, segundo o Ajbar Machmuâ, o arsenal dos cristãos
285
. Em seguida, após a
conquista de arif, Muça enviou árik ben Ziyed
286
. Aben Adhari concorda com o autor do
Ajbar
287
, mas acrescenta que anteriormente membros da família árabe Ferhíes fizeram
expedições na costa do Al-Andalus no tempo do califa Otsman, sendo seguidos por Tarif,
conforme dizem Al-Taberi e Ar-Razi
288
.
Todas as fontes convergem para o fato de a expedição liderada por āriq n. Ziyād ter
sido a principal ao desembarcar em terras ibéricas. O general berbere teria chegado em abril
de 711, confrontada-se com o rei Rodrigo no verão daquele mesmo ano
289
. H. Kennedy
acredita que o êxito de āriq n. Ziyād chamou a atenção de Mūsā n. Nu ayr, que decidiu
participar também dos embates na península, chegando à Aljazira ou Algeciras (Mapa
3), de onde partiu com seus exércitos, passando por Carmona, região não atacada por
āriq
290
. Após a queda de Mérida, Musa dirigiu-se para Toledo pela antiga estrada romana
que ligava Emerita Augusta a Toletum (Mapa 2), aguardando a chegada de Tariq. Entre os
anos de 714 e 715, foram os chefes convocados pelo Califa para retornarem a Damasco. Musa
deixou em seu lugar o seu filho ‗Abd al-‗Aziz, que se tornou governador
291
. O núcleo central
das expedições passou a ser Sevilha, cidade pacificada pelo próprio ‗Abd al-‗Aziz, após a
sublevação dos cristãs sevilhanos, apoiados pelos habitantes de Niebla.
292
De acordo com
281
Ibid., p. 29.
282
GUICHARD, op. cit., p. 23.
283
Ibid., p. 23.
284
Ajbar Machmuâ, op. cit., p. 20.
285
Ibid., p. 20.
286
Ibid., p. 20.
287
Abén-Adhari, op. Cit., p. 15.
288
Ibid., p. 15.
289
Ibid., p. 29.
290
Ibid., p. 30.
291
Ibid., p. 31.
292
Ajbar Machmuâ, op. Cit., p. 30.
97
Pierre Guichard, as fontes falam de uma série de expedições terrestres, cujas marchas e
deslocamentos dos exército tem sido analisados por historiadores que tentam reconstituir o
movimento dos exércitos muçulmanos
293
.
Na perspectiva de Hugh Kennedy, a dominação muçulmana ocorreu em duas fases.
Uma primeira, marcada pela ocupação das cidades principais e pelas terras férteis ao sul da
Península Ibérica e o Levante, com alguns casos de colaboração da nobreza visigoda, como o
dos filhos de Teodomiro e Vitiza surgindo daí territórios semi-independentes (Mapa 6).
Excetuando a versão romance da crônica de Ar-Razi, as demais tratam do pacto feito com
Teodomiro, entretanto, vale destacar que poucos acordos similares foram fixados nas
narrativas árabes, o que temos, de uma maneira geral, são menções indiretas ou comentários
sobre revoltas de grupos muçulmanos cujos ancestrais eram cristãos. A segunda fase vincula-
se à conquista do Norte, região ainda sob o domínio de visigodos até o início de governo de
al-Samh (718-721), sendo a época em que acordos com a nobreza cristã foram efetuados no
vale do Ebro e em outros distritos remotos, como as montanhas ao norte de Málaga
294
. Estas
possessões mais distantes do núcleo político periodicamente manifestaram movimentos
autonomistas, como veremos no decorrer de toda tese, tanto liderados pela aristocracia árabe,
como os textos árabes ressaltam, quanto cristãos convertidos, como a família Banu Qasi
citada nas primeiras crônicas de Reconquista.
A conquista da Península Ibérica tornou-se vantajosa aos muçulmanos. Inicialmente,
desejava-se manter algumas guarnições, a exemplo de Kufa e Basra no Iraque, Fustat no Egito
e Qayrawan na Ifriqiya, aproveitando-se os muçulmanos dos impostos sobre a população
295
.
No caso ibérico, os muçulmanos instalaram-se como colonizadores e proprietários de terras, o
que indicaria o não pagamento das pensões aos conquistadores, como ocorrera no Oriente
Próximo
296
. Não havia surgido o funcionalismo que iria desenvolver o sistema de listas de
pensões
297
. A lentidão da sua criação no al-Andalus é um dado da ausência de uma cultura
letrada muçulmana na região, que florescerá efetivamente na época de ‗Abd al-Rahman II
(822-852)
298
. Substituindo Sevilha, Córdoba tornou-se a capital da entidade política que
surgia, situando-se no centro de um entroncamento de rotas comerciais que ligavam de norte a
293
GUICHARD, Pierre. Al-Andalus 711-1492: une histoire de l‘Espagne musulmane. Paris: Hachete
Littératures, 2000, p. 24.
294
KENNEDY, op. cit. 31.
295
Ibid., p. 34.
296
Ibid., p. 34-35.
297
Ibid., p. 35.
298
Ibid., p. 35.
98
sul a península
299
. A população não muçulmana estava obrigada a pagar alguns impostos,
provavelmente a jizya, ou imposto de capitação, assim como uma contribuição fundiária. Uma
fonte tardia que está preservada em narrativas alude ao fato de o filho do rei Vitiza, Artabás,
ser o responsável pela arrecadação entre os cristãos
300
.
Os árabes instalaram-se nas férteis terras do vale do Guadalquivir, no Levante, em
torno de Múrcia e Saragoça, no vale médio do Ebro
301
. Homens de uma mesma tribo
concentravam-se em uma mesma área
302
. Os berberes estavam espalhados por todo o al-
Andalus, estando muitos assentados na Meseta Central, na Estremadura Espanhola, em todo o
norte e oeste, excetuando-se Saragoça. Toledo e Mérida tinham uma forte concentração de
berberes, que também estavam fixados em Valência. Estas terras eram menos ricas do que as
povoadas por Árabes. Os berberes foram obrigados a aceitar terras de menor qualidade,
evidência do tratamento diferenciado
303
. Pouco mais de trinta anos após a chegada de Tariq na
Península Ibérica, percebemos que a autoridade política ainda não havia consolidada. Muitas
tensões desenvolvidas no Norte da África foram trazidas a Hispânia. A estas foram agregadas
mais outras, agravando o cenário instável. A desigualdade ao acesso ao poder e às riquezas
entre árabes e berberes começou a se acentuar.
Os anos compreendidos entre 714 e 741 foram marcados por uma grande sucessão de
governadores, num período de grande confusão. Parece que os colonizadores empreenderam
por conta própria novas expedições que objetivavam dominar pessoalmente as riquezas e
ampliá-las, como as empreendidas na França (identificada como Dar al-Hard, a Casa da
Guerra, ou solo não muçulmano) onde o saque era possível
304
. Pouco importava se os
governadores eram eleitos pelos colonos ou nomeados por autoridades superiores, o que
interessava era a possibilidade de realizar seus próprios interesses. Esta liberdade desejada
manteve-se livre de disputas e conflitos internos até 741. Quando Mūsā n. Nu ayr deixou seu
filho, ‗Abd al-‗Aziz, como administrador, este, segundo os relatos, casou-se com a viúva de
Rodrigo dos visigodos. Abd al-Aziz foi assassinado, em razão do temor de que ele dominasse
a região como um bem familiar ou da apreensão causada pelo incentivo dado a novos
colonizadores berberes e orientais, o que exigiria mais uma repartição das riquezas locais
305
.
Os vínculos com a administração central califal eram muito frágeis devido à distância de
299
KENNEDY, op. cit., p. 35.
300
Ibid., p. 35.
301
Ibid., p. 35.
302
Ibid., p. 36.
303
Ibid.., p. 36.
304
Ibid., p. 37.
305
Ibid., p. 37.
99
Damasco. Via de regra, os governadores eram escolhidos pelos seus superiores da África,
Egito ou Damasco, porém era comum que eles fossem eleitos pela população local,
principalmente quando essa não simpatizava com o governador nomeado. Por vezes,
Damasco rejeitava a eleição
306
.
Em 718, o califa reformador ‗Umar (717-720) nomeou como governador um certo al-
Samh n. Malik al-Khawlani, citado pela Crônica Moçárabe, com o intuito de dinamizar as
reformas fiscais introduzidas pelo califado
307
. O governador al-Samh chegou para empreender
um levantamento das terras e dos tributos que deveriam ser pagos ao califado, separando as
terras obtidas pela força daquelas decorrentes dos pactos com os nativos
308
. Isto teria gerado
grande descontentamento entre os colonizadores iniciais que enviaram uma delegação a
Damasco. Porém, tais medidas reformadoras, a partir de 721, com a morte do califa,
começaram a cair em desuso
309
. Pierre Guichard percebe que a direção da conquista está nas
mãos dos árabes, com alguma participação dos clientes, mas não qualquer menção aos
elementos indígenas
310
. Salta aos olhos o fato de os berberes também estarem afastados dos
rudimentos da administração emiral. Como observa Robert Mantran, os avanços muçulmanos
na Espanha e da Gália ficaram a cargo dos berberes
311
, que não acesso igual à autoridade e
aos bens fundiários peninsulares de maior importância.
Ocorreram pelo menos mais quatro expedições contra território francês, a primeira nos
primórdios da invasão, e outras três chefiadas por governadores
312
. Em 721, al-Samh n. Malik
al-Khawlani atacou Toulouse, onde perdeu a vida; no verão de 725, ‗Anbasa n. Suhaym al-
Kalbi atacou o vale do Ródano até a Borgonha. A última razia foi liderada pelo governador
‗Abd al-rahman n. ‗Abd Allah al-Ghafiqi, e foi derrotada por Carlos Martel na famosa batalha
de Poitiers
313
. Esta batalha determinou o fim do sistema do ghanīma, saque. Eram os saques e
as pilhagens os meios para aliviar a insatisfação social e garantir a aquisição de riqueza. Já em
732, o governador não era apenas o chefe militar ou o condutor das preces dos muçulmanos,
começando a atuar como um administrador dos recursos, trabalhando na aquisição de receitas,
obrigando aos muçulmanos a viver dos recursos do trabalho agrário
314
.
306
KENNEDY, op. cit., p. 38.
307
Ibid., p. 38-39.
308
Ibid., p. 39.
309
Ibid., p. 39.
310
GUICHARD, op. cit., p. 26.
311
MANTRAN, op.cit., p. 26.
312
KENNEDY, op. cit., p. 40-41.
313
Ibid., p. 41.
314
Ibid., p. 41.
100
A primeira fase da ocupação muçulmana terminou com uma grande rebelião que se
iniciou no Norte da África e que teve repercussões no al-Andalus
315
. Explodiu, em 740, uma
rebelião berbere contra a pressão fiscal da administração árabe. Por longos anos os berberes
tinham os mesmos privilégios fiscais que os árabes, porém, ao final da expansão muçulmana,
o governador do Egito ‗Ubayad Allah n. al-Habhab ―tentou impor o kharaj (contribuição
fundiária) a esses berberes e reduzi-los a uma posição subordinada, a fim de aumentar as
receitas, agora necessárias para pagar ao exército sírio (a espinha dorsal do Califado)‖
316
.
Alguns elementos favoreceram o surgimento do clima de animosidade, como o rapto de
crianças berberes para o harém califal e a adoção das crenças kharijitas, que favoreceram o
desrespeito à autoridade omíada e o não pagamento dos impostos
317
. Rapidamente todo o
Magreb estava fora do poder dos governadores do Egito. Como reação, em Damasco, o califa
Hisham (724-743) convocou um novo exército sírio
318
.
Em pouco tempo a Península Ibérica sentiria os mesmos impactos da insatisfação
berbere. A crônica Moçárabe relata acontecimentos proecedentes nas regiões setentrionais do
al-Andalus com a atuação de um berbere de nome Munuz, em 729, que desejava estabelecer
um domínio em Cerdaña
319
. Apesar de este ter feito aliança com o duque Eudo, a sua derrota
foi decretada pela entrada no cenário dos exércitos do governador ‗Abd al-Rahman al-Ghafiq.
Em 741, a rebelião foi mais grave. Neste ano ‗Ubayad Allah n. al-Habhab estabeleceu no al-
Andalus um novo governador, Uqba n. al-Hajjaj al-Saluli, com o intuito de dinamizar e
tornar mais rigorosa a política fiscal, levando ao descontentamento os árabes andaluzes
320
.
Uqba demitiu-se e o povo andaluz escolheu ‗Abd al-Malik n. Qatan al-Fihri como
novo governador, medida que não remediou a turbulência que se instaurava. No outono de
741, explodiu uma revolta no Noroeste, que resultou na expulsão dos árabes da Cordilheira
Central. Os berberes marcharam para o sul, em direção a Córdoba, derrotando as forças de al-
Malik que solicitou apoio militar de Balj. Em 742, os sírios atravessaram o Mediterrâneo,
derrotando em seguida os berberes. Segundo Santiago Macias, o papel desempenhado pelas
tropas do chefe militar da tribo qaysita (originária da Síria) Balj b. Bishr foi um dos
elementos de suma importância para a restauração da ordem, em especial no Garb-al-
Andaluz. ―Esses exércitos, após o esmagamento de uma revolta berbere ocorrida em 741/123,
foram instalados em diversas zonas da Península, cabendo à região de Beja e ao Algarve o
315
KENNEDY, op. cit., p. 42.
316
Ibid., p. 42.
317
Ibid., p. 42.
318
Ibid., p. 42.
319
Crônica Mozarabe., p.
320
KENNEDY, op. cit., p. 43.
101
junde (exército) do Egipto‖
321
. Conforme destaca Bernard Lewis, os novos colonos da Síria
gozavam de estatuto idêntico ao que tinham no país de origem, ―sendo atribuído um distrito
espanhol aos homens de cada um dos Junds (distritos militares) Damasco em Elvira, Jordan
em Málaga, Palestina em Sidonia, Hims em Sevilha, Qinasrin em Jaen. O exército do Egipto
ficou com Beja e Múrcia‖
322
. Esta vitória fez ingressar no território ibérico mais um grupo
desejoso de aproveitar as oportunidades que a região poderia oferecer. Os sírios em Córdoba
escolheram um novo governador, superando a oposição berbere de Mérida.
Em 743, um novo governador foi escolhido pela administração de Qayrawan, com o
intuito de levar a paz à região andaluza
323
. Assim, a terra foi reorganizada com o intuito de
satisfazer as partes beligerantes
324
. Os eventos entre os anos 741 e 743 transformaram o
aspecto político da Espanha Muçulmana. Os elementos árabes e sírios aumentaram na região,
ocupando as zonas rurais do Sul
325
. Outra mudança, talvez a mais intensa, é o acirramento das
tensões dos Qays/Mudar com os do Iêmen
326
.
O resultado final do conflito foi a intensificação das tensões étnicas, tribais e políticas
no seio da comunidade muçulmana, que não pode ser totalmente contida. Tribos iemenitas
confrontaram-se com sírios nos anos de 745 até 747, quando Yusuf n. ‗Abd al-Rahamn al-
Fihri tornou-se governador pelas manobras de al-Sumayl. Yusuf era descendente direto de
‗Uqba n. Nafi‘ (herói das primeiras conquistas muçulmanas no norte da África) e pertencia a
tribo dos Quraysh
327
, e como tal poderia servir como elemento de intermediação junto aos
grupos muçulmanos
328
. Foram feitas alianças e contatos com os grupos berberes. Os iemenitas
foram derrotados graças ao apoio dos mercadores de Córdoba
329
. A confiança de Yusuf
começou a aumentar, neste momento. A queda do Califado de Damasco (747-750) pelos
ataques abássidas a Leste tornou o governo de Yusuf independente, que se fez libertar das
influências de al-Sumayl em começos da década de 750. Em 755 al-Sumayl, retirado em
Saragoça, se viu cercado por uma expedição iemenita, e sua salvação foi possível com a
intervenção de emissários de ‗Abd al-Rahman n. Mu‗awiya, o Omíada. Foi neste período que
as fronteiras setentrionais se estabilizaram e se expandiram até a costa norte, chegando a
321
MACÍAS, Santiago. Resenha dos factos políticos. In: MATTOSO, José (coord.). História de
Portugal: antes de Portugal. Lisboa: Estampa, 1997, p. 375.
322
LEWIS, Bernard. Os árabes na Europa. In: ________. Os árabes na história. 2ª.ed. Lisboa: Estampa,
1996, p. 138.
323
KENNEDY, op. cit., p. 43-44.
324
Ibid., p. 45.
325
Ibid., p. 45.
326
Ibid., p. 46.
327
Ibid., p. 46.
328
Ibid., p. 46.47.
329
Ibid., p. 47.
102
estabelecer-se um governador em Gijón
330
. A maior parte das terras do Douro, Galícia e
Cantábria estavam ocupadas por berberes, mas não foram ocupações definitivas. Hugh
Kennedy destaca que a região do vale do Douro foi despovoada de populações berberes que
migraram para o sul após a rebelião de 741
331
. Outro elemento que explicaria a queda da
densidade demográfica na região foi a grade fome de 750, que levou muitos sobreviventes a
migrarem de volta ao norte da África
332
.
2.4. Formação de um novo cenário no Norte da Península Ibérica:
Diferentemente do território ―aragonês‖, o reino das Astúrias não conheceu a intensa
proteção e influência do reino franco. Nos prirdios da ―Reconquista‖, aquilo que deu
origem ao reino dos asturianos nasceu por sua própria iniciativa, ou melhor, de seus membros
constitutivos. Como dissemos no início deste capítulo, o grupo inicial de resistência anti-
islâmica era formado predominantemente por famílias aristocráticas situadas no Norte da
Península Ibérica. O que as narrativas árabes têm para nos falar deste obscuro personagem do
passado ibérico. Iniciemos pelo Ajbar Machmuâ. Segundo a obra, quando o emir Ôkba
governava a Espanha:
Conquistou todo o país até chegar a Narbona e se fez dono da Galícia, Álava e
Pamplona, sem que ficasse na Galícia região por conquistar, exceto uma serra, na
qual se havia refugiado com trezentos homens um rei chamado Belay (Pelágio), a
quem os muçulmanos não cessaram de combater e acossar, até o extremo de que
muitos dos que morreram de fome, outros acabaram por prestar obediência, e foram
assim diminuindo até ficar reduzido a trinta homens, que não tinham mais que 10
mulheres, segundo se conta. Ali permaneceram encastelados, alimentados de mel,
pois tinham colméias e as abelhas haviam se reunido nas fendas da rocha. Era difícil
aos muçulmanos chegar a eles e assim os deixaram dizendo: ―Trinta homens? Quem
se importa?‖ Depreciando-os, portanto chegaram ao cabo de ser assunto muito
grave, como Deus mediante, referiremo-nos a esse assunto em lugar oportuno.
333
Passagem idêntica pode ser encontrada na obra de Aben-Adharí de Marruecos:
Foi costume deste Ocba combater os idólatras todos os anos, e tomava suas cidades,
sendo que conquisto a cidade de Arbona [Narbona] e submeteu a Galiquia [Galícia]
e Bambeluna [Pamplona], que fez povos de muçulmanos, chegando a compreender
suas conquistas todo o território da Galiquia, com exceção de uma penha a que se
havia retirado com trezentos homens o rei daquela região. E, como não cessaram de
oprimi-los ali os muçulmanos, vieram reduzidos a trinta, carentes de todos os
abastecimentos, que não se alimentavam senão com o mel que achavam nas fendas
da penha, mas ocultando seu estado aos muçulmanos os deixaram.
334
330
KENNEDY, op. cit., p. 47.
331
Ibid., p. 47.
332
Ibid., p. 47-48.
333
Ajbar Machmuâ, op. cit, p. 38-39.
334
FERNANDEZ GONZALEZ, Francisco (trad.). Historias de Al-Andalus por Aben-Adharí de
Marruecos. Granada: Imprenta de D. Francisco Ventura y Sabatel, 1860, 1v, p. 71.
103
Explicita-se aqui um claro caso de intertextualidade. Tanto o anônimo escrito do Ajbar
Machmuâ, quanto Aben-Adharí fizeram uso de uma mesma fonte, mas apresentando algumas
variações. Tal situação reforçaria nossa opção em utilizar a crônicas árabes, que as
transcrições dos textos mais antigos são feitas literalmente, revelando sutilmente a existência
de documentações muito anteriores às presentes compilações tardias. Entretanto, tal
consideração não é nosso foco central, mas sim evidenciar o conhecimento sobre as terras
nortenhas que foram negligenciadas pelo anônimo redator da Crônica Moçárabe. Enquanto
este clérigo cristão ocupava sua pena com os eventos produzidos na fronteira com o mundo
franco, os autores árabes lograram travar contato direto com informações sobre as regiões
montanhosas do Norte peninsular. Verificamos uma íntima relação com os eventos de
Covadonga, como podemos atestar no seguinte fragmento da Crônica Rotense:
Chegando à montanha, [Pelágio] assistiu ao concílio com todas as pessoas, que,
céleres, juntaram-se a ele até a grande montanha, cujo nome é Aseuua. E subiu pelo
lado do monte e se reuniu no antro que sabia ser seguro. Pelo que sabemos, adentrou
na grande caverna pelo rio de nome Enna. Ele recebeu o mandato por todos os
Astures, que unidos congregaram-se e elegeram para si Pelágio como seu príncipe
335
.
Já a Crônica de Albeldense:
1. Primeiro, em Astúrias, Pelágio reinou em Cangas por XVIIII anos. Este, como
dissemos supra, foi expulso por Vitiza, rei de Toledo, e ingressou em Astúrias. E
depois que a Hispânia foi ocupada pelos Sarracenos, este foi o primeiro a fazer uma
rebelião contra eles em Astúrias, estando reinando Iuzep em Córdoba e em Leão,
junto da cidade dos Sarracenos sobre os Astures, sendo procurado por Munnuzza.
336
Retornando com a versão rotense da crônica de Afonso III:
Em verdade, Pelágio estava no monte Asseuua com seus associados. Em verdade, os
exércitos dirigiram-se a ele e fixaram inúmeras tendas ante a entrada da cova.
337
Acrescentamos ainda outros fragmentos de fontes. Segundo a Crônica Rotense:
335
Crônica Rotense. Ille quidem montana petens, quantoscumque ad concilium properantes inuenit, secum
adiuncxit adque ad montem magnum, cui nomen est Aseuua, ascendit et in latere montis antrum quod sciebat
tutissimum se contulit; ex qua spelunca magna flubius egreditur nomine Enna. Qui per omnes Astores mandatum
dirigens, in unum colecti sunt et sibi Pelagium principem elegerunt. In: BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 40.
336
Crônica Albeldense. 1. Primum in Asturias Pelagius rg. in Canicas an. XVIIII. Iste, ut supra diximus, a
Uittizzanc rege de Toleto expulsus Asturias ingressus. Et postquam a Sarracenis Spania occupata est, iste
primum contra eis sumsit reuellionem in Asturias, regnante Iuzep in Cordoba et in Iegione cibitate Sarracenorum
iussa super Astures procurante Monnuzza. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris:
CNRS, 1987, p. 23.
337
Crônica Rotense. 9. Pelagius uero in montem erat Asseuua cum sociis suis. Exercitus uero ad eum perrexit
et ante ostium cobe innumera fixerunt temptoria. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe.
siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 40
104
O rei tendo ouvido aquilo, agitado pela ira da loucura, ordenou sair inumerável hoste
sobre toda Hispânia e empossou Alcamanem como seu sócio sobre o exército.
Alcamanem ordenou acometer as Astúrias com seu exército. Junto a ele estava um
certo Oppas, bispo da sede Toledana e filho de Vitiza, por quem os Godos
pereceram em virtude da fraude. Este Alcamanem decidiu, por conselho de seu
consorte, caso Pelágio não atender ao chamado do bispo, que fosse capturado no
prélio e imediatamente conduzido a Córdoba.
338
Assim se expressa a Crônica Albeldense
As hostes dos Ismaelitas com Alcamane foram exterminadas por ele [Pelágio] e o
bispo Oppas foi capturado e, por fim, Munnuza foi exterminado.
339
Podemos notar que as fontes, tanto árabes quanto cristãs, não se contradizem ao
tratarem da insurgência de Pelágio. Cada um dos autores pretende valorizar ou desconsiderar
os sucessos ou as incapacidades de seus oponentes com grande parcialidade. No entanto, a
convergência entre as narrativas é impressionante. Nas fontes árabes encontramos o
movimento de fuga de Pelágio e o pequeno número de associados que alcançaram as serras do
Norte. O ciclo de Afonso III é bem claro quanto a isto e acrescenta ainda dados relativos à
organização do esforço contra os exércitos árabes. A precariedade deste levante é explicitada
pelas narrativas árabes e sutilmente apreendida nas leituras das crônicas asturianas. O
conjunto delas nos revela um cenário de desarticulação entre os membros da sociedade
visigoda, não sendo possível constatar cooperação entre aqueles que procuraram se afastar dos
centros de poder árabe. Além dos pactos entre dominadores e autóctones, nada que indique a
preservação de uma rede auto-ajuda visigótica pode ser encontrada.
O levante de Pelágio foi espontâneo, autônomo e visava a auto-preservação. De fato,
no atual estado de nossa pesquisa, defendemos que o esforço de resistência contra as hostes
oriundas de Astorga restringiu-se às comunidades nortenhas nos primeiros anos. Isto significa
que as terras das Astúrias e adjacências estavam imersas em seus próprios jogos políticos e
seus litígios, sem a intervenção de uma entidade política exterior poderosa. Não havia
instância superior de intervenção nos conflitos locais. Existiam, sim, diversos grupos
aristocráticos que lutavam para impor a sua autoridade sobre os demais. A existência de tais
grupos pode ser averiguada indiretamente pelas narrativas asturianas, sendo o primeiro indício
338
Crônica rotense. Quo ut rex audiuit, uessanie ira commotus hoste innumerauilem ex omni Spania exire
precepit et Alcamanem sibi socium super exercitum posuit; Oppanem quendam, Toletane sedis episcopum,
filium Uitizani regis ob cuius fraudem Goti perierunt, eum cum Alkamanem in exercitum Asturias adire precepit.
Qui Alkama sic a consorte suo consilio aceperat ut, si episcopo Pelagius consentire noluisset, fortitudine prelii
captus Corduua usque fuisset adductus. Uenientesque cum omni exercitu CLXXXVII ferre milia armatorum
Asturias sunt ingressi. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 40
339
Crônica Albeldense. Sicque hab eo hostis Ismahelitarum cum Alcamane interficitur et Oppa episcopus
capitur postremoque Monnuzza interficitur. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle.
Paris: CNRS, 1987, p. 23.
105
disto a menção a Afonso I e ao duque Pedro da Cantábria. De acordo com a versão rotense do
ciclo de Afonso III:
Dentro de pouco espaço de tempo, Afonso filho do duque Pedro dos Cântabros
de prosápia régia veio às Astúrias. Aceitou em conúbio a filha de Pelágio, de
nome Ermesinda. Junto com o sogro obteve, em seguida, muitas vitórias. Logo, por
fim, retornou a paz na terra. E quanto mais crescia a dignidade do nome de Cristo,
quanto mais arrefecia as calamidades dos Caldeus. Viveu também no reino XVIIII.
Morreu em Cangas, findou a vida na era DCCLXXV
340
.
Na Crônica a Sebastião:
13. Após a morte de Fáfila, Afonso sucedeu no reino, homem de grande virtude,
filho do duque Pedro, gerado da semente dos reis Leovegildo e Recaredo; no tempo
de Égica e Vitiza foi príncipe da milícia. Este com a graça divina sustentou o cetro
do reino.
341
Na perspectiva da Crônica Albeldense:
3. Afonso, genro de Pelágio, reinou por XVIIIª anos. Este foi filho de Pedro, Duque
da Cantábria. E quando veio às Astúrias, ele aceitou Bermisinda, filha de Pelágio. E
quando aceitou o reino, produziu muitos prélios como Deus ordenara. Vitorioso, ele
invadiu as urbes de Leão e Astorga que estvam tomadas pelos inimigos. Ermou os
Campos que são ditos Góticos até o rio Douro e estendeu o reino dos Cristãos. E a
Deus e aos homens revelou-se amável. Afastou-se pela própria morte
342
.
t
Os esforços cronísticos para promover a continuidade genética entre reis visigodos e
reis asturianos não conseguiram abafar por completo as tensões e disputas no cenário
nortenho, nem ao menos suprimiram determinadas expressões que contradissessem o
―projeto‖ unificador promovido pelos escribas asturianos. Se as Astúrias formavam alguma
vez parte do território do reino dos visigodos, a região então estaria compreendida dentro
daquilo identificado pela Crônica Albeldense como ―Campos Góticos‖. Esta circunscrição
territorial está composta por cidades que realmente estavam inseridas dentro da esfera
político-administrativa visigótica. As cidades, urbes, de Astorga e Leão estavam dentro dos
340
Cronica Rotensis. Infra pauci uero lemporis spatium' Adefonsus filius Petri Cantabrorum ducis ex regni
prosapiem Asturias aduenit. Filiam Pelagii nomen Ermesinda in coniungio accepit. Qui cum socero et postea
uictorias multas peregit. lam denique tune reddita est pax terris. Et quantum cresceuat Xpi nominis dignitas,
tantum tabesceuat Caldeorum ludibriosa calamitas' . Uixit quoque in regno a. XVIIII. Morte propria Canicas
uitam finiuit era DCCLXXV. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS,
1987, p. 44.
341
Chronica ad Sebastianum. 13. Post Faffilani interitum Adefonsus successit in regnum, uir magne uirtutis
filius Petri ducis, ex semine Leuuegildi et Reccaredi regum progenitus; tempore Egicani et Uittizani princeps
militie fuit. Qui cum gratia diuina regni suscepit sceptra. Arabum sep e ab eo fait audacia conpressa. In:
BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 45
342
Chronica Albeldensis. 3. Adefonsus Pelagi gener rg. an XVIII°. Iste Petri Cantabrie ducis filius fuit. Et
dum Asturias uenit, Bermisindam Pelagi filiam Pelagio precipiente accepit. Et dum regnum accepit, prelia satis
cum Dei iubamine gessit. Hurbes quoque Legionem atque Asturicam ab inimicis possessas uictor inuasit.
Campos quem dicunt Goticos usque ad flumen Dorium eremauit et Xpianorum regnum extendit. Deo atque
hominibus amauilas extitit. Morte propria decessit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe.
siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 23.
106
limites do território visigótico e ligadas uma a outra por uma estrada romana (Mapa 2). Talvez
as Astúrias, no máximo, deveriam ser uma zona política na qual os reis de Toledo exerciam
alguma espécie de protetorado, influenciando a região, sem plenamente submetê-la. Este
fenômeno não é demasiadamente estranho, podendo ser constatado na própria estruturação
territorial do Império Romano, como pôde comprovar Norma Musco Mendes
343
. A
perspectiva adotada por esta historiadora fez notar a indistinção entre as áreas de domínio
direto romano e aquelas legadas a populações influenciadas pelas autoridades romanas,
significando que ter algum grau de autonomia não quer dizer liberdade total ou exclusão da
interferência de um poder superior. Sendo assim, mais um dado que fortalece a
descontinuidade institucional entre os reis asturianos e os toledanos.
Além deste dado, atentemos para aquilo que as três fontes tentaram suprimir: a
existência de outras lideranças no norte da Península Ibérica contemporânea ao movimento
capitaneado por Pelágio. Verificamos que a aliança firmada entre Pelágio e Afonso I da
Cantábria constituiu-se como um fenômeno de grande importância
344
. Não nos mobiliza a
tentativa de situar com total precisão onde seria a Cantábria das primeiras décadas do século
VIII. A tentativa de buscar o componente étnico primitivo que o nome Cantábria poderia
preservar supõe trazer para a arena de discussões elementos que não nos auxiliam em nada.
Os cântabros que enfrentaram Roma já não mais existiam, nem mesmo suas instituições
sociais. As fontes de fins do século IX e princípios do X não fazem qualquer menção a um
grupo denominado cântabro, apenas à região Cantábria, e uma única vez. E isto já basta. Julia
Pavón Benito aponta que uma parcela numerosa da aristocracia territorial de Navarra
rechaçou as possibilidades de negociação com os muçulmanos
345
. Muitos magnates
desgostosos com a nova ordem afastaram-se do centro de poder sarraceno nos primeiros anos
da conquista muçulmana. Esta postura pode ter sido adotada por Pedro, Cantabrorum ducis,
343
MENDES, Norma Musco. A transformação da periferia germânica: ponto de inflexão da curva do nível
de complexidade. In: ________. Sistema político do Império Romano do Ocidente: um modelo de colapso.
Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 119-120.
344
Segundo Barbero e Vigil, a versão rotense o identifica como filho do duque Pedro dos Cantabros. O termo
duque, dux, atribuído a seu pai não deve ser entendido como sendo portador de um cargo da época visigótica,
como se ele tivesse tido a função de governador ou chefe militar. BARBERO, Abílio, VIGIL, Marcelo. La
sucesión al trono en el reino astur. In: ________. La formación del feudalismo en la Península Ibérica.
Barcelona: Crítica, 1989, p. 304. Concordamos com Barbero e Vigil quanto à total impossibilidade do termo dux
usado para indicar o pai de Afonso I, Pedro, como sendo um membro do corpo administrativo e militar, contudo,
discordamos da tradução feita pelos medievalistas espanhóis, ―duque Pedro dos Cantabros‖. Eles pareceram
ignorar a narrativa Albeldense, na qual encontramos a expressão Petri Cantabrie ducis, ―Pedro, Duque da
Cantábria‖, identificando assim o exercício de poder de Pedro sobre a região. A autoridade estava sendo exercida
sobre um território. Se os cântabros existiam nos tempos do duque Pedro e de Afonso I, estes deveriam ser os
habitantes das terras da Cantábria.
345
PAVÓN BENITO, Julia. Presupuestos geohistóricos. In: _________. Poblamiento altomedieval
navarro: base socioeconômica del espacio monárquico. Barañáin: Eunsa, 2001, p. 15.
107
se levarmos em conta que o título tem fortes conotações militares
346
. As crônicas medievais o
representam como pai de Afonso I, o defensor da resistência cristã, que ataca as terras
cantábricas
347
. Esta identificação da Cantábria com Navarra é algo bastante antigo, presente
na Espanha Sagrada de Enrique Florez, primeiro a postular esta identificação
348
. Armando
Besga Marroquín critica esta proposição, pois não está amparada em qualquer dado concreto,
fonte narrativa ou vestígios arqueológicos, ao contrário, o que pode ser percebido com clareza
é a pouca precisão na identificação das localidades inseridas nas terras nortenhas
349
.
Consideramos tal perspectiva bastante correta e prudente, pois em face do grande
deslocamento dos povos da Cordilheira Cantábrica e do silêncio das fontes, afirmar
tacitamente a localização de uma comarca é demasiadamente temerário. Portanto, para nós,
definir esta região como uma porção de terra situada à Leste das Astúrias de Pelágio e o
território Navarro é o suficiente. O ponto principal aqui é notar a existência de outro grupo
político e militar que agia no mesmo período em que outras lideranças aristocráticas atuavam
contra os invasores muçulmanos. Não conseguimos, nestes tempos remotos, localizar uma
instituição perene capaz de receber a denominação reino. A importância do movimento de
Pelágio se faz patente na medida em que Afonso I intentou firmar laços com o grupo do
caudilho dos astures.
A extensão territorial dos domínios imediatos de Pelágio era insignificante demais e
nada nos indica a formação imediata de uma rede de articulações sociais e políticas
desenvolvidas sobre as terras compreendidas entre a Galícia e aquilo que seria o atual País
Basco. Não havia nada comparável com o que possamos comparar com os moldes de Afonso
III
350
, como uma estrutura político-territorial ampla e perene. Longe disto, as poucas
informações factuais, documentais ou arqueológicas limitam seu poder ao território de Cangas
de Onís e ao cenário da batalha de Covadonga. Entre os anos 722, da luta contra os exércitos
de Munnuza, e 737, ano da morte de Pelágio, o território do caudilho não deveria ser muito
diferente do que seria o de um chefe guerreiro contemporâneo seu que habitava o sopé dos
Pirineus. As fontes que chegaram até nós limitam a atuação de Pelágio apenas ao evento de
Covadonga e nada mais. Nem ao menos ele é nomeado rei, no máximo príncipe, um primeiro
entre seus iguais, escolhido entre outros aristocratas, socii. Somente com Afonso I é que
346
PAVÓN BENITO, op cit., p. 15-16.
347
Ibid., p. 16.
348
BESGA MARROQUÍN, op. cit., p.
349
Ibid., p.
350
Aguardar capítulo 5.
108
podemos atestar a ampliação do raio de ação dos ―asturianos‖
351
para além de seu nível
puramente local. Pelágio e Afonso I são os primeiros líderes nortenhos a serem nomeados por
uma fonte narrativa, mas o pouco que as primeiras crônicas de Reconquista são capazes de
nos informar nos sugere que eles não passavam de meros líderes locais, destituídos de um
projeto claro que conduzida propositalmente à constituição de uma entidade perene
continuadora do aparato político visigodo.
A cooperação política entre Pelágio e Afonso I nos fornece outras informações que
poderiam, mesmo que indiretamente, sugerir a existência de outros grupos ou focos de poder
autônomo nas terras ao Norte da Cordilheira Cantábrica. Após Pelágio ter repelido as
investidas muçulmanas da região, o caudilho, junto com Afonso I, empreendeu outras
campanhas militares bem sucedidas. Acreditamos que tais êxitos não ocorreram contra novas
expedições muçulmanas, pois, geralmente, estes eventos são bastante explicitados nas
crônicas asturianas como um movimento que implica a chegada de uma campanha punitiva.
Não houve batalha contra as hostes islamitas que não tenham sido identificadas como tais. Se
este grupo pode ser descartado, podemos então considerar a existência de outros agentes
históricos anônimos com os quais Pelágio e seu genro lutaram e vieram a pacificaram, se
dermos o devido crédito à Crônica Rotense. Também não são identificadas as localidades que
serviram de palco para os embates liderados por Pelágio, não parece ter ocorrido para além da
Cordilheira Cantábrica. Pelo contrário, é bem possível que tenha se tratado de embates
ocorridos nas imediações do núcleo de poder territorial do caudilho asturiano ou de seu genro.
As primeiras ações do núcleo político primitivo asturiano parecem tentativas de garantir a sua
superioridade frente aos seus possíveis pares e concorrentes. Dados menos superficiais são
obtidos somente nas duas décadas que sucederam a rebelião de Pelágio, mas mesmo assim
paira a obscuridade nestes primeiros momentos da Reconquista.
A esta altura, impõe-se-nos uma breve reflexão teórica. Tomemos, de início, as
proposições de Max Weber acerca do desenvolvimento de uma comunidade política,
elemento que consideramos de grande importância para a elaboração de nossa linha de
raciocínio. Refletir sobre a construção de uma realidade unificada supõe a consideração de um
―momento precedente‖, em uma sociedade cuja manifestação do fenômeno político não se
351
Acerca das reminiscências de tradições culturais e sociais e da permanência de povos autóctones da
Cordilheira Cantábrica, duvidamos que houvesse alguma distinção efetiva entre astures e cântabros, ou melhor,
entre seus descendentes, não acreditamos na possibilidade de uma demarcação cerrada entre tais populações no
século VIII. É bastante provável que o esquecimento do nome Cantábria nestes primeiros tempos da Reconquista
seja reflexo direto da homogeneização populacional na Astúria Transmonta e na Cantábria, regiões reunidas
durante o período visigótico e partes inseparáveis da ―Astúria primitiva‖ de Pelágio e Afonso I. Perspectiva
similar é adotada por Armando Besga Marroquín. BESGA MARROQUÍN, op. cit., p.
109
efetivava por meio de uma entidade que pairava acima do tecido social e que pretendia dirigi-
la, condicioná-la e defendê-la. A partir da perspectiva do sociólogo alemão Max Weber,
consideramos que uma dinâmica social pode ser demarcada por uma união comunitária
decorrente de determinados fatores, que poderiam ser tanto de ordem biológica
352
aspectos
físicos, caracteres antropológicos, fenótipo quanto culturais
353
envolvendo práticas
sociais tradicionais, costumes, crenças religiosas, educação, entre outras. As palavras do
próprio Max Weber expressam que ―não a menor dúvida de que, para a intensidade das
relações sexuais e para a formação de comunidades ‗conubiais‘, fatores raciais (...)
condicionados pela comunidade étnica, têm alguma importância, sendo às vezes até
decisivos‖.
354
Os aspectos biológicos para a distinção de uma comunidade de outra une-
se a outros fatores que estimulam a construção de uma identidade comunitária:
Quase toda forma comum ou contrária do hábito ou dos costumes pode motivar a
crença subjetiva de que existe, entre os grupos que se atraem ou se repelem, uma
afinidade ou heterogeneidade de origem. Sem dúvida, nem toda crença na afinidade
de origem baseia-se na igualdade dos costumes e do hábito. Mas, apesar de grandes
divergências neste campo, semelhante crença pode existir e desenvolver uma força
criadora de comunidade, quando apoiada na lembrança de uma migração real: de
uma colonização ou emigração individual.
355
Unir um agrupamento humano por meio de tradições e costumes em comum é algo de
grande consideração. Congregar indivíduos em um mesmo mito fundador edifica um laço
promovedor da percepção de unidade dentro de um grupo de indivíduos que se dizem
portadores de uma mesma herança que eles preservam e mantêm vivas. Este fator, contudo,
principal expressão do nosso objeto de estudo, constitui-se como um elemento tardio, pois a
construção de um mito unificador que faz convergir para uma determinada causa pode ser
promovida processualmente. Faz parte da luta pela criação de uma visão de mundo que está
fortemente presente nas crônicas latinas de Reconquista. A crença em uma origem comum,
somada à similaridade de costumes, ―é apropriada para favorecer a divulgação da ação
comunitária assumida por uma parte dos ‗etnicamente‘ unidos entre o resto dos membros,
que a consciência de comunidade fomenta a ‗imitação‘‖
356
. Considerando a questão do mito
de origem da comunidade, Marc Abélès acompanha as conclusões de Summer Maine, de que
―todas as sociedades estão longe de repousar sobre uma descendência comum, mas têm desejo
352
WEBER, Max. Relações comunitárias étnicas. In: _______. Economia e sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva. 4. ed. São Paulo: UnB-Imprensa Oficial, 2004, 1v., p. 267.
353
WEBER, op. cit., p. 268-270.
354
Ibid., p. 267.
355
Ibid., p. 269-270.
356
Ibid., p. 273.
110
desta crença para se perpetuar harmoniosamente‖
357
. A idéia de um pertencimento a um
mesmo mito fundador, como destacamos no capítulo anterior, é um esforço tardio que teve
que aguardar as últimas décadas do século IX para se configurar, como ainda veremos nesta
tese.
A existência de uma comunidade de culto, para Max Weber, poderia ser fruto tanto
das reminiscências de uma comunidade antigamente unida agora fracionada por cisão ou
pelo fenômeno da colonização ou, como no caso helênico exemplificado com Apolo
délfico o produto de uma ―comunidade cultural‘
358
. O pouco que podemos especular nos
inclina a defender que a formação de uma comunidade, ou melhor, comunidades com base em
vínculos étnicos não se aplica ao caso das Astúrias e localidades próximas. O elemento
unificador político passava por outras referências. O processo de cristianização, mesmo
tardio, poderia fomentar a criação de elementos identitários, ainda mais em virtude de um
período de conflito contra grupos invasores pertencentes à outra fé, experimentado a partir da
oitava centúria. Não estamos dizendo que o fator religioso fosse o único a explicar as
escaramuças entre os nortenhos de Pelágio e Afonso I contra os exércitos de Tariq, Musa,
Munnuza e muitos outros. Contudo, não deve ser a religião descartada do contexto.
O nascimento de um sentimento específico de comunidade não é nada raro ainda hoje
em formações políticas com uma delimitação puramente artificial
359
. A formação de uma
entidade política que compreendesse uma porção de terra maior do que os domínios imediatos
de Pelágio e de Afonso I envolveu diversas modalidades de alianças entre diversos grupos que
se viram, no estágio seguinte, unidos diante de uma tarefa maior do que as disputas internas.
E isto tudo está intimamente vinculado a uma tomada de consciência de algo maior que os
interesses localistas. Podemos dizer com certeza de que o núcleo embrionário desta formação
política que pretendemos analisar foi a comunidade de associados de Pelágio, o caudilho e
seus seguidores refugiados, que constituiu o germe das relações políticas mais complexas e
amplas nas comarcas asturianas. Deste foco inicial surgiu uma articulação mais desenvolvida
e com maior poder de ação.
Essa circunstância de que a ―consciência tribal‖, via de regra, está primariamente
condicionada por destinos políticos comuns e não pela ‗procedência‘ deve ser, segundo o que
foi dito, uma fonte muito freqüente da crença na pertença ao mesmo grupo ‗étnico‘‖
360
.
Segundo Max Weber, a existência da ―consciência tribal‖ poderia apresentar contornos
357
MAINE apud ABÉLÈS, Marc. Anthropologie de l’Etat. Paris : Armand Colin, 1990, p.
358
WEBER, op. cit., p. 273.
359
Ibid., p. 274.
360
Ibid., p. 274.
111
especificamente políticos. Diante de uma ameaça de guerra promovida por inimigos
exteriores, ou por um estímulo suficientemente forte das atividades guerreiras dirigidas contra
o exterior, ―é particularmente fácil que surja sobre essa base uma ação comunitária política,
sendo esta, portanto, uma ação daqueles que se sentem subjetivamente ‗companheiros de
tribo‘ (ou ‗de povo‘) consangüíneos‖
361
. Desta maneira, esta ação política ocasional ―pode
tornar-se com especial facilidade, apesar de faltar completamente uma relação associativa
correspondente, uma obrigação de solidariedade, com caráter de norma ―moral‖, dos
membros da tribo, em caso de um ataque‖. Quando este dever sofre uma violação, ainda ―que
não exista nenhum ―órgão‖ comum da tribo, lança as comunidades políticas em questão no
mesmo destino dos clãs de Segestes e Inguiomar (expulsão de seu território). Uma vez
alcançada esta fase de desenvolvimento, a tribo tornou-se de fato uma comunidade política
permanente, ainda que esta, em tempo de paz, tenha caráter latente e, por isso, instável
362
.
Temos a preocupação de perceber que ―a transição do meramente ‗ordinário‘ ao habitual e,
por isso, ao que se ‗deve‘ fazer é particularmente nesta área quase imperceptível, mesmo em
condições favoráveis‖
363
.
Defendemos que não foi apenas uma tentativa de vincular os asturianos aos reis de
Toledo, mas também tentativa de se construir uma solução de continuidade desde a revolta de
Pelágio até o governo de Afonso III. Identificamos com alguma clareza os choques constantes
entre diversos grupos políticos nas Astúrias. O poder político perene em formação no século
VIII evidencia muito mais descontinuidades do que avanços em plena linearidade. Antes de
avançar mais nesta colocação, devemos ressaltar uma certa limitação em nosso horizonte
interpretativo: não temos fontes sobre as Astúrias anteriores ao ano de 711. Ou seja, não
temos qualquer narrativa que pudesse nos auxiliar no trabalho de identificar as estruturas
políticas nortenhas. Temos níveis distintos de identificação desta estrutura. Deparamo-nos
com um período de total silêncio, anterior à queda do reino dos visigodos; com um período de
poucas e breves luzes na fase imediata à invasão muçulmana, e com uma época em que as
forças políticas começam a ganhar algum contorno específico (nas últimas décadas do século
VIII). Em seguida, sucede-se uma época de estruturação de um poder político quase
institucionalizado na passagem do século VIII para o IX, e uma época com plena estabilização
do poder político asturiano, marcada pela geração do próprio Afonso III.
361
Ibid., p. 274.
362
WEBER, op. cit., p. 274-275.
363
Ibid., p. 275.
112
Reconhecer as descontinuidades é fundamental para se tentar rastrear os fios que
compõem a trama principal do reino das Astúrias. Desta maneira, pelo menos em parte, a
compreensão do fenômeno de surgimento do reino das Astúrias não se vincula apenas a um
aspecto genético, como fruto de uma estrutura política precedente, mas também à nova
relação de forças surgidas na Península Ibérica no próprio século VIII. Não é apenas um
aspecto estrutural que pode fornecer respostas a elementos ―conjunturais‖ que tiveram o poder
de imprimir uma forte marca no processo histórico em curso na Cordilheira Cantábrica. Sendo
assim, rompemos com a proposição de Abílio Barbero e Marcelo Vigil, que buscavam
explicar a força do movimento de ―Reconquista‖ exclusivamente na própria dinâmica dos
povos nortenhos asturianos ou cantábricos
364
. Que a dinâmica social e econômica endógena
destes povos tem uma grande importância neste processo todo é inquestionável; contudo,
devemos reconhecer que novas equações acrescentadas neste ―gigantesco cálculo histórico‖
modificam o processo em andamento. Besga Marroquín nos adverte que não temos como
identificar de maneira alguma o que teria sido a organização social e política dos povos do
Norte, por mais que seja inquestionável a sua influência
365
. Os dados mais palpáveis o
aqueles relativos às práticas religiosas e ações políticas que se assemelham a tradição
visigótica.
A historiografia ibérica dedicou muitos esforços à consideração deste processo de
formação política nortenha. Várias explicações podem ser encontradas atualmente conforme a
perspectiva adotada por cada pesquisador. Por exemplo, José Maria García de Cortázar, de
cuja perspectiva nós nos aproximamos, defende que a força desta sociedade hispano-cristã
relaciona-se com o processo ocorrido entre os séculos VIII e XI e estaria vinculado a três
aspectos inter-relacionados: (1) a existência de uma população cântabro-pirenáica que recebe
(2) grupos oriundos das regiões meridionais em busca de refúgio nas terras montanhosas,
trazendo consigo (3) uma bagagem cultural que, simplificadamente, é denominada por García
de Cortázar de mediterrânica, dotada de cultura literária latina, da crença cristã, praticante do
cultivo do trigo, além de ser portadora de uma articulação social característica da última etapa
do reino hispano-godo
366
. García de Cortázar ainda afirma que a distinta força de cada um dos
núcleos nortenhos decorre da presença de três elementos: 1) a continuidade da tradicional
resistência dos ―povos do Norte‖ e a sua dominação por parte de poderes ―mediterrânicos‖; 2)
a colocação em prática de uma deliberada e decidida vontade, por parte dos refugiados, de
364
BARBERO, Abilio, VIGIL, Marcelo.
365
BESGA MARROQUÍN,
366
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 115.
113
recuperar o espaço de outro poder, evidentemente, mediterrâneo, contudo religiosamente
hostil. Para García de Cortázar, nada mais óbvio do que a construção de uma ideologia que
fizesse parecer aos refugiados como herdeiros de uma Espanha perdida, 3) lançando assim as
bases de um processo de criação de uma sociedade feudal, cujo primeiro passo consistiu na
aculturação dos povos do Norte por parte de elementos meridionais
367
.
Outra perspectiva é defendida por José Maria Mínguez. O fenômeno no qual Pelágio
se insere ―só é explicável no contexto das transformações qualitativas que estão
experimentando os grupos gentílicos, em geral, e a velha aristocracia tribal, em particular‖
368
.
Desde nos apresentamos como críticos a esta perspectiva, como pretendermos destacar
durante a tese, pois a própria noção de uma sociedade tribal no período que abordamos
representa um terrível equívoco. É desconsiderar o relevo de muitos outros elementos postos
em jogo e privilegiar a crença em uma dinâmica social estagnada para as populações
nortenhas. Não estamos dizendo com isto que os eventos relativos à Covadonga não eram de
forma alguma um movimento de restauração consciente, quanto isto, concordamos em parte
com José Maria García de Cortázar quando diz que, sobre os chefes como Pelágio e Afonso I:
convêm, em princípio, não imaginar a estes homens empunhando armas em tom
heróico; parece mais exato contemplá-los com a ótica dos emires de al-Andaluz:
bandos indomáveis que da montanha ameaçavam as cidades e aldeias, as linhas de
comunicações e as retaguardas dos exércitos
Não enquadramos Covadonga ou outros feitos de Pelágio e Afonso I como simples
atos de bandoleirismo oportunista, que se aproveitava puramente dos momentos de debilidade
política no Al-Andaluz. Queremos dizer que progressivamente, ações de defesa e
insubordinação tinham de forma latente elementos geradores de uma nova estrutura política, o
que nos faz nos aproximar de algumas considerações de José Maria Mínguez. De acordo com
este medievista, é possível que a pequena escaramuça de Covadonga tenha sido habilmente
explorada pelo grupo de Pelágio, que tenha servido ―para cimentar o prestígio do caudilho
entre os astures, ao que ajudou a nula atenção que os governantes de al-Andaluz prestaram às
atividades daqueles montanheses‖
369
. Prestígio este reconhecido por outro senhor do norte,
Afonso I, acrescentamos.
Discordamos, entretanto, da perspectiva adotada por José Maria Minguez, ao buscar
―constatar que estas pequenas ações vitoriosas, como a de Covadonga, contempladas em sua
projeção secular, constituem o início de um movimento expansionista que pela primeira vez
367
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 115-116.
368
NGUEZ, José Maria. Las formaciones embrionárias del norte peninsular. In: ________. História de
España II: las sociedades medievales, 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 74.
369
GARCIA DE CORTÁZAR, op. cit.., p. 115.
114
mostrou energia capaz de superar os obstáculos que se opõem a sua realização‖
370
. Como
apresentamos no início do capítulo, não havia diferença qualitativa entre Pelágio e seus
contemporâneos montanheses de outras partes da Península Ibérica. A revolta explodida em
Covadonga não é, objetivamente, o marco zero da formação de uma estrutura política
asturiana. Ela explicita sim a existência de uma pequena comunidade política surgida no
Norte da Península Ibérica e com o protagonismo de refugiados visigodos. Não um vigor
étnico que possa explicar tais movimentos, nem ao menos podemos levar a sério o mito
fundador apresentado pelas primeiras crônicas asturianas e que muitos historiadores ainda
tomam como um dado constitutivo daquilo que viria a ser o Reino das Astúrias. Entre uma
luta pluri-secular promovida tradicionalmente pelos povos do Norte e uma fundação plena de
um novo reino, optamos por um viés intermediário, mais inclinado a perceber o
desenvolvimento do Reino das Astúrias como um processo suscetível de oscilações e
incertezas. Aquilo que veio a se tornar reino não foi um simples decalque de uma entidade
política precedente, mas com certeza, seus fundadores eram membros da sociedade visigótica
que havia perdido sua capacidade de se governar.
Ainda sobre o tema que trata da formação de uma comunidade política, destacamos a
contribuição das referências fornecidas por Robert H. Lowie, para quem o fato de uma série
de grupos humanos coabitarem em uma dada circunscrição territorial não constitui um fator
suficiente para estes interiorizarem a idéia de um pertencimento a uma mesma associação
371
.
Como ele notara entre os indígenas norte-americanos que ―os povos de uma vila fossem
culturalmente indistinguíveis das restantes, embora seus dialetos fossem ou mutuamente
inteligíveis, ou mesmo idênticos, não havia nenhuma coesão entre os estabelecimentos
vizinhos‖
372
. Para Lowie, as diferenças entre as culturas materiais de populações mais coesas
e menos coesas não são suficientes para identificar a construção ou não de uma identidade
mais englobante
373
. Segundo este antropólogo americano, a maior plausibilidade do
―nacionalismo‖ do rio Colorado vinculou-se à forma marcial da cultura da tribo Yuman
374
.
Quando a destreza na guerra era acrescentada a uma motivação, a organização social atingia
os objetivos ambicionados
375
. Robert Lowie exemplifica que a ―Confederação Creek, que no
370
MÍNGUEZ, op. cit., p. 73.
371
LOWIE, Robert H. The size of the State. In: ________. The origin of the State. Nova York: Russell &
Russell, 1962, p. 7.
372
Ibid., p. 8.
373
Ibid., p. 10.
374
Ibid., p. 10.
375
Ibid., p. 12.
115
século XVIII abrangia umas cinqüenta cidades e seis línguas distintas, podia manter o
Alabama e a Geórgia contra a invasão das tribos do Norte‖
376
.
As visões de Max Weber e de Robert Lowie se cruzam no que se refere à formação de
uma comunidade com motivações políticas. Suas proposições convergem em pontos que
notam que a existência de vínculos culturais e parentais e a similaridade do modo de vida por
si não são fatores suficientemente fortes para fundamentar o desenvolvimento de uma
unidade política. O elemento fomentador da associação política estaria ligado ao fenômeno da
guerra, tanto no que se refere à defesa quanto ao ataque. Apresentando certa discordância com
os autores mencionados acima, Marc Abélès nos fornece outra nuança. Tomando como
referência Henry Summer Maine, o autor constatou que ―os grupos arcaicos se organizavam
sobre ‗o modelo ou o princípio de uma associação de parentes‘‖
377
. Tal posição, advinda
destas considerações, apresenta-nos um ponto de não pouca relevância: as relações de
parentesco como modalidade de reunião que pode mobilizar grupos humanos. Todavia, não
temos a intenção de aprofundar reflexões acerca deste tema, que nos desviaria dos objetivos
deste capítulo, mas concordamos que os vínculos de parentesco podem ser inseridos dentro de
uma dinâmica política. Se por um lado, atestamos que o movimento de rebelião de Pelágio
envolvia associados políticos, sem qualquer vínculo de parentesco, a aliança costurada com
Afonso I, da qual surgiu o matrimônio deste com a filha do caudilho, é um forte exemplo de
como é possível interagir o fenômeno político com relações familiares. Aqui a esfera política
não se opõe às relações de parentesco e nem surge com a desagregação destas.
A identidade cultural e os êxitos militares unidos talvez funcionassem como elementos
agregadores do processo de formação de uma entidade político-territorial nortenha. Não
sabemos exatamente como estes elementos convergiram favorecendo a concentração de poder
político nas mãos de indivíduos como Pelágio e Afonso I. os conhecemos a partir do
momento em que alguém dotado de conhecimento da escrita, portador de uma preocupação
memorialista teve a intenção de registrar aquilo que acontecera diante de seus olhos ou aquilo
que lhe contaram.
2.5. Articulação em torno de uma liderança:
Os picos Europa e Valle del Sella foram o refúgio de leigos e eclesiásticos da nobreza
afetada pela derrota do rei Rodrigo, de onde surgiu à resistência de Pelágio, um espartário,
376
LOWIE, op. cit., p. 12.
377
ABÉLÈS, Marc. Anthropologie de l’Etat. Paris : Armand Colin, 1990, p. 122.
116
formado no círculo palatino do último rei visigodo
378
. Com tais palavras, García de Cortázar
defende a existência de uma aliança astur-visigótica nas revoltas contra a invasão islâmica.
Para este medievalista, em 718, ―aproveitando uma reunião tribal, Pelágio foi capaz de
estabelecer um acordo entre seu grupo e os astures que serviu para orientar a hostilidade dos
montanheses contra os muçulmanos‖.
379
Concordamos plenamente com a perspectiva adotada
por José Angel García de Cortázar quando este constata a união plena entre asturianos e
visigodos na luta contra um inimigo em comum. Acreditamos, contudo, que tal convergência
de interesses não foi tão homogênea assim neste alvorecer do século VIII. Cremos que esta
tendência de unificação de interesses políticos entre os refugiados visigodos e o amplo
conjunto da população nortenha tenha ocorrido em um processo, com sucessivas ondas
difusoras. Isto será mais bem tratado no decorrer do capítulo seguinte. Por hora, nos
concentraremos nas articulações em torno de uma liderança política que progressivamente se
faz reconhecer sobre um dado território.
Retornemos às considerações teóricas. De acordo com a visão Max Weber, a
solidariedade de um determinado grupo pode se manifestar com uma ação de defesa contra
ataques externos, mas que, de início não forma, a partir daí, uma comunidade política plena e
estável. Seguindo esta abordagem, este fenômeno teria tudo para ser mais uma ação política
temporária, que cessaria em momentos de paz. Contudo, não seria este o caso asturiano.
Acreditamos, que mesmo pelos ecos deformados sobre as décadas iniciais do século VIII nas
Astúrias, não havia algo que pudesse ser qualificado como uma sociedade igualitária. O que
poderia ter se aproximado desta realidade desaparecera muito tempo nas terras
compreendidas pela Cordilheira Cantábrica. muito tempo esta sociedade pouco
hierarquizada tinha encontrado o seu fim no Norte da Península Ibérica. Abílio Barbero,
Marcelo Vigil e José Maria Mínguez apontam para a preservação de um igualitarismo de
perfil tribal, fundamentado em laços de parentesco ao invés de políticos e de apropriação
coletiva da terra, realidade não encontrada nas fontes narrativas, notariais e arqueológicas.
Esta visão é criticada por historiadores como Francisco Javier Lomas, que considera o
fato de o Norte peninsular ter sido muito pobre em redes viárias, o que implicaria em uma
fraca penetração de romanidade.
380
O autor verifica que ao sul da cordilheira Cantábrica as
rotas viárias são mais presentes e densas, em oposição ao norte, mais precisamente no interior
378
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 118.
379
Ibid., p. 118.
380
JAVIER LOMAS, Francisco. Vigencia de un modelo historiografico. De las sociedades gentílicas em el
norte peninsular a las primeras formaciones feudales. In: DIONÍSIO PÉREZ, María José Hidalgo, GERVAS,
Manuel J. R. (eds.). Romanización” y Reconquista” en la Península Ibérica: nuevas perspectivas.
Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1998, p. 110-111.
117
do território Astur e Cântabro onde temos mencionadas as seguintes vias secundárias:
Lucus Augusti-Lucus Asturum, Lucus Asturum-Asturica Augusta, Lucus Augusti-Aquis
Celenis (Mapa 2). Segundo as Tábuas de Astorga, ainda haveria uma outra rota, que partiria
Legio VII Gemina e que finalizaria em Portus Blendium. Segundo o historiador, esta a
limitação da rede viária para o norte peninsular não permitiria ―uma fácil inserção das
populações nortenhas no sistema político e cultural romano‖
381
. Findado o poder romano, o
norte peninsular permaneceria alheio ao poder dos visigodos, ainda que as escassas fontes do
período sobre a região costumassem afirmar o poder dos monarcas toledanos sobre os povos
do Norte.
382
Outros autores discordam da proposição apresentada por Javier Lomas, e
voltaremos ao tema no próximo capítulo.
Se por um lado apontam para a reocupação de assentamentos castrejo ou mesmo da
continuidade de sua ocupação, por outros podemos encontrar transformações nestes mesmos
núcleos populacionais, como por exemplo, Castro de Campa Torres. Localizado no Concelho
de Gijón, na paróquia de Jove, cabo Torres
383
, o castro de Campa Torres tem suas fundações
situadas de aproximadamente entre os séculos VI e V antes de Cristo
384
, contudo, são
encontrados testemunhos de ocupação do castro no século II a.C. Esta ocupação teria durado
até os séculos IV e V d.C., época na qual já podem ser observadas a adoção de tipos
―construtivos e urbanísticos claramente romanos, etapa na qual se inserem as habitações do
setor norte‖ do castro
385
. Luís Ramón Menéndez Bueyes nos informa ainda que alguns
edifícios identificados como castros eram, na verdade, exemplos de termas rústicas
386
.
Outro elemento que indica a inserção de uma parte das terras nortenhas são as Termas
romanas del Campo Valdés, também localizada em Gijón, a terma foi escava pela primeira
vez em 1903, sendo novamente analisada nas décadas de 1960 e 1970. Novamente uma nova
escavação foi feita, entre os anos de 1990 e 1993. Nas escavações mais recentes foi possível
identificar as etapas de construção do edifício, sendo a primeira delas datada do último quarto
do século I d.C.
387
. O segundo momento não ocorreu muito mais tarde. A terceira fase da
construção, datada da primeira metade do século II d.C., é marcada pela ampliação da
construção, com a edificação de quartos quadrados com paredes revestidas com decoração
381
JAVIER LOMAS, op. cit., p. 111.
382
Ibid., p. 112-113.
383
RIOS GONZÁLEZ, Sergio, GARCÍA DE CASTRO VALDÉZ, César. Asturias monumental: 100
referencias. Madrid: Trea, 1997, p. 32.
384
Ibid., p. 33.
385
Ibid., p. 33.
386
MENÉNDEZ BUEYES, op. cit., p.
387
RIOS GONZÁLEZ, GARCÍA DE CASTRO VALDÉZ, op. cit., p. 34.
118
pictórica
388
. A construção da muralha ao redor da terma é de fins do século III d.C. ou dos
primeiros anos do século IV
389
. Segundo Rios Gonzalez e García de Castro Valdes,
tipologicamente, ―este edifício corresponde aos modelos usuais de fins do período Flávio ou
início do século II a.C. É seguramente um edifício de caráter público‖
390
. Estes são apenas
uns primeiros elementos que gostaríamos de levantar acerca do tema. Nos capítulos seguintes
novos aportes serão debatidos.
Destacamos tais referências no intuído de dizer que não estamos lidando com uma
sociedade igualitarista, mas sim com uma marcada por diversidade nas atividades laborais e
com vestígios bastante acentuados, em algumas regiões, como Gijón. Esta região, inclusive,
não é muito afastada das terras que darão origem a Oviedo, capital do Reino das Astúrias no
tempo de Afonso II. Os elementos apresentados poderiam ser criticados, que proximidade
não significa efetivamente a interação entre estas regiões entre si ou dentro de uma rede viária
romana, contudo, o exemplo fornecido pela chamada Puente de Colloto contraria bastante a
perspectiva isolacionista. Localizada no Concelho de Siero, na paróquia de Granda, lugar de
Colloto
391
, a ponte não tem uma datação precisa, mas alguns autores, trata-se de uma
construção romana, da época baixo-imperial
392
. Tal tomada de posição é amparada pela
análise da técnica de construção e por achados de moedas romanas nas arcadas
393
. Elencamos
tais referências para dizer que não nos deparamos com sociedades portadoras de baixo nível
de hierarquização social, pelo contrário, a Astúrias mostrava-se como uma zona periférica de
uma estrutura maior.
Estas terras afastadas dos grandes centros urbanos e à margem do processo de
dominação muçulmana serviram de proteção para vários grupos cristãos, eram propícias para
um novo começo. Pacificadas e inseridas na órbita política visigótica, os territórios nortenhos
abrigaram desenvolveram uma nova estrutura política com tendências monopolistas. As novas
formas de poder que vieram a se instaurar não se associava de maneira alguma com algo que
poderia representar uma continuidade com algum tipo de ―igualistarismo tribal‖ distante.
Longe disto, com Pelágio o controle político era exercito sobre uma realidade bastante
diferenciada e portadora de desigualdades sociais. Sua autoridade estava distante de se
assemelhar com as formas do poder político presentes por sociedades primitivas estudas pelos
388
RIOS GONZÁLEZ, GARCÍA DE CASTRO VALDÉZ, op. cit., p. 34-35.
389
Ibid., p. 35.
390
Ibid., p. 35.
391
Ibid., p. 35.
392
Ibid., p. 36.
393
Ibid., p. 36.
119
antropólogos
394
. Trazer a baila tais discussões é importante, contudo, mais importante ainda é
tomar uma posição diante das necessidades de se conceituar certos fenômenos abordados por
nós. Portanto, progressivamente vamos expor nossas ferramentas teóricas. Quando
enfatizamos que Pelágio detinha uma autoridade, dizemos que ele tinha condições de
empreender uma ―dominação‖ sobre seus comandados imediatos e demais submetidos
territoriais, conceito que é definido como ―a probabilidade de encontrar obediência a uma
ordem de determinado conteúdo‖
395
. Tal posição se justifica ainda pelo fato de, nestes
primórdios da realeza asturiana, a situação de dominação de Pelágio estava ―ligada à presença
efetiva de alguém mandando eficazmente em outros, mas não necessariamente à existência de
um quadro administrativo‖
396
.
Mais uma vez destacamos a precariedade de informações fornecidas pelas primeiras
crônicas asturianas, contudo, esta superficialidade da narrativa acerca do desenvolvimento de
um poder político nortenho é instigante. Apesar do estilo lacônico na descrição dos eventos,
acreditamos poder conceber a autoridade ou dominação detida por Pelágio como ―poder
carismático‖. Segundo Max Weber, Dominação Carismática é uma forma de poder, é um
394
Em hipótese alguma poderíamos encontrar um tipo de poder identificado como ―liderança‖. Tomando
como referência as análises de Lawrence Krader aborda. Segundo este antropólogo a sociedade esqui é
destituída de órgãos formais de regulação social, entidades com poderes de veto, decisão ou supressão. Segundo
este antropólogo ―os esquimós vivem em bandos que atingem um baixo número ou no máximo umas poucas
centenas de homens‖ e que esta sociedade se caracteriza por grupos de caçadores e coletores que regem seus
próprios negócios e são marcados pela forma de vida nômade, adaptando-se às ofertas de recursos de
subsistência que os territórios possam lhe proporcionar. Em tais condições, este modelo de comunidade humana
é destituído de qualquer estrutura formal e perene que pudesse intervir sobre seus membros, tanto em aspectos
políticos quanto jurídicos. A capacidade de comandar nesta sociedade pouco estratificada é algo extremamente
volátil e não está presa a essência de um indivíduo ou grupo. Uma liderança pode se formar em períodos de
guerra, fazendo congregar um grupo em torno de um indivíduo dotado dos melhores atributos para estas
circunstâncias. A liderança, entendida segundo as proposições de Elman R. Service, corresponde a ―um ‗rol‘ de
autoridade em ocasiões de necessária ação grupal direcionada‖. Nesta forma de ação social em uma ―sociedade
igualitária não existe uma posição permanente de líder, não existe nenhum ‗chefe legal‘‖. Este fenômeno se
manifestaria quando necessário, a superioridade social decorrente dele derivaria dos atributos pessoais do
indivíduo que o praticaria e não de um poder oriundo de um ‗cargo‘ detido.
Outros antropólogos verificam como a ―noção de poder não é, como em nossa sociedade, associada à
autoridade e coerção‖. Segundo Claude Levi-Strauss, ―o poder do chefe se funda sobre o consentimento‖.
Aceitação por parte de um grupo foi a marca inicial da história asturiana, a elevação de Pelágio como líder da
revolta anti-islâmica demonstra como que a autoridade política ainda se restringia quase que exclusivamente a
delegação de poder feita pelo grupo. Neste caso, a forma de poder detida pelo caudilho se enquadraria
parcialmente na definição de ―liderança‖, contudo, ela não se mostrou temporária, esgotando-se após a resolução
da demanda social. Talvez o próprio estado constante de guerra tivesse tornado a posição política de Pelágio
perene, fazendo-o saltar de um chefe de uma clientela restrita que o acompanhou ao Norte, para comandante de
um grupo heterogêneo, formado de nativos e imigrantes sulistas. A capacidade de se por a frente dos assuntos
militares tornou sua autoridade vitalícia, algo inexistente em uma sociedade igualitária e com baixíssimo nível de
especialização de atividades sociais e produtivas. Segundo os dados elencados pela arqueologia, a sociedade
nortenha havia se aproximado bastante do nível de diferencial social romano e, posteriormente, visigodo,
reproduzindo suas técnicas construtivas e fazendo uso da língua e da escrita latina.
395
WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. In: ________. Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília-São Paulo: UnB-Imprensa Oficial, 2004, 1v, p. 33.
396
Ibid., p. 33.
120
elemento extraordinário, apreendido por indivíduos como profetas, curandeiros e líderes
guerreiros. O reconhecimento deste poder, considerado como legítimo por seus seguidores, é
possibilitado pela manutenção do carisma pessoal em virtude de provas ou milagres. O
carismático puro não depende da economia, contudo não renuncia a ela. Por exemplo, ―o
herói de guerra e seu séqüito procuram o espólio‖
397
. Pierre Bourdieu acrescenta que este
poder não é propriedade de indivíduos singulares. Na verdade, os indivíduos dotados de
carisma reúnem características sociologicamente pertinentes, que os tornam predispostos a
sentir e expressar, com força e coerência particulares, ―certas disposições éticas ou políticas já
presentes em estado implícito, em todos os membros da classe ou grupo de seus
destinatários‖.
398
O desenvolvimento da Dominação Carismática está relacionado com a eclosão de
―situações extraordinárias, especialmente políticas ou econômicas, ou internas, psíquicas,
particularmente religiosas, ou de ambas em conjunto‖
399
. Sua durabilidade é instável,
dependendo do grau de reconhecimento de seus seguidores, podendo-se transformar,
perdendo seu caráter extraordinário para inserir-se progressivamente no cotidiano,
institucionalizando-se, ―imperceptivelmente substituído, deixando de ser uma modalidade de
poder ‗pura‘. Carisma pode ser transformado em uma propriedade da vida cotidiana‖
400
. Por
exemplo, do séqüito de guerreiros de um chefe heróico pode nascer um Estado
401
, o detentor
do poder pode transformar seus comensais, privilegiados por direitos especiais, em
funcionários estatais
402
. Notemos bem, as revoltas asturianas contra o poderio muçulmano
teriam um aspecto potencial na constituição do reino das Astúrias, não necessariamente
efetivava seu nascimento. O carisma que Pelágio teria possuído só pode ser indagado na
medida em que o consideramos como um elemento unificador da sociedade. Talvez o aspecto
precário do poder carismático possa explicar também a despreocupação em se registrar o êxito
da escaramuça de Covadonga.
Não existem dados que possam dizer que estes homens não governaram ou
administraram algo que ultrapassasse os seus domínios pessoais, acreditamos que não teriam
força para constranger o conjunto dos habitantes nortenhos e direcioná-los a uma atividade
que não correspondesse aos interesses destes últimos. O seu carisma era predominantemente
guerreiro e restrito em sua extensão geográfica. O âmbito de chefes como Pelágio e Fáfila era
397
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 2004, p. 160.
398
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 74.
399
WEBER, op. cit., p. 331.
400
Ibid., p. 332.
401
Ibid., p. 332.
402
Ibid., p. 332.
121
local, não saiu da micro-região ao Norte dos Picos Europa. Neste cenário notamos uma a
delegação imediata do poder de Pelágio para seu filho Fáfila, aquele que continuaria em um
pequeno espaço de tempo tal dinâmica, situação que não pode ser radicalmente afirmada, mas
sim sugerida. Pelágio e Fáfila representariam, porém, outro nível de formação de um poder,
algo mais instável, dependente, em parte, das provas exigidas para manter a liderança. Ao
duque Pedro da Cantábria e a Afonso I correspondeu, provavelmente, um novo momento,
quando a chefatura constituída pelo carisma agregou elementos mais estáveis, algo
percebido em diversos estudos de Max Weber. A dominação carismática ligada a inovações
da sociedade, pode se converter em uma dominação apegada à tradição e a disposição
jurídica
403
.
Retomando às contribuições da antropologia, destacamos que em uma hierarquização
social mais acentuada pode auxiliar na ascensão política de um determinado grupo de
indivíduos, identificado nos estudos de Kenneth Read, como ―grandes homens‖
404
. Em uma
sociedade regida pela força da tradição, são os indivíduos ―autônomos‖, os superiores
enquanto líderes, os propensos a triunfar como chefes de uma comunidade
405
. ―A força‘ de
um homem pode manifestar-se ou provar-se em diversos contextos entre os que, em outros
tempos, a guerra foi provavelmente o mais importante‖
406
. Reafirmamos que o estado perene
de guerra no cenário peninsular foi um dado de não pouca importância, pois, como veremos
nas ginas que sucedem a este capítulo, os momentos de maior estabilidade da autoridade
régia corresponde aos períodos de maior pressão muçulmana. Este fator veio a modificar
progressivamente a estrutura e a distribuição de poder no Norte da Península Ibérica.
A efetivação de determinados êxitos destes chefes nortenhos não faz crer que tenha
havido nas Astúrias, nos primeiros anos da oitava centúria, alguma coisa que pudesse receber
a alcunha de ―reino‖, regnum, enquanto uma entidade política territorial acabada após
Covadonga. Acreditamos que o termo é anacrônico para primórdios do século VIII. Este
estado potencial não significa que aquele grupo e aquela localidade fossem o embrião único
daquilo que se tornou a monarquia asturiana. O processo não foi linear, mas sim fruto das
disputas pelo monopólio do poder político, pelo controle hegemônico da autoridade que veio
a surgir tempos depois. Service argumenta que em algumas sociedades encontramos
tendências que, em certos momentos, podem chegar a ampliar-se para criar ao menos os
403
WEBER, op. cit., p. 332.
404
KEAD apud SERVICE, Elman R. Los orígenes del Estado y de la civilización: el processo de la evolución
cultural. Madrid: Alianza, 1984, p. 91-92
405
Ibid., p. 92.
406
Ibid., p. 92.
122
primórdios de uma transmissão de poder por via hereditária. ―Parece provável, sobretudo, que
um indivíduo que conseguiu uma carreira pessoal queira que seus próprios descendentes
gozem da mesma glória‖
407
. O controle social e o controle das atividades que envolvem a
coletividade não eram efetivos, ainda estavam se gestando, superando os obstáculos que se
impunham cotidianamente. Podemos, entretanto, considerar que a partir do momento em que
um dado indivíduo tornava-se portador de um poder, era bem possível que ele tentasse
garantir a continuidade por meio de um descendente ou alguém vinculado a si, como na
passagem de Pelágio para seu filho Fáfila.
A ―transmissão‖ de autoridade, naqueles tempos, talvez estivesse relacionada aos
vínculos que os chefes pudessem erigir entre si. Apontamos para uma tentativa de aquisição
de um novo poder, que objetiva a ampliação de poder político já detido e a tentativa de
garantir a continuidade da autoridade. Talvez estejamos diante de uma mutação de um poder
temporário para um com maior longevidade, menos dependentes de feitos extraordinários.
Nas palavras de Elmann Service, existiria uma tendência quase universal da herança do status
por via da primogenitura, que trabalharia para fundamentação da estabilização do poder pelo
costume ou norma, promovendo, com o tempo, a institucionalização da autoridade,
perpetuando-a
408
.
Há que se ter cuidado com a generalização intrínseca às considerações de E. R.
Service, em especial no que se refere à primogenitura, pois não são poucos os exemplos
históricos contrariam as premissas do antropólogo. Em que pese o fato da tendência à
concentração de poder no seio de uma mesma família, daí até ao estabelecimento sistemático
de uma transmissão de autoridade em linha direta com o filho mais velho de uma linhagem
implica não um longo processo como não deve ser tomado como uma evolução natural ou
universal da sociedade. Fáfila pode ter sucedido a Pelágio, porém não temos qualquer
referência se ele por ventura era realmente um primogênito. A Europa medieval foi um
período extenso no qual vigorou em muitas situações a eleição de um chefe pertencente a uma
grande família. Neste ambiente muitas vezes o que ocorria era a partilha do território familiar
de acordo com o número de filhos que um dado ―grande senhor‖ possuía, como ocorreu,
inúmeras vezes, no caso franco. O estabelecimento do direito da primogenitura se deu
durante a Baixa Idade Média, no caso ibérico conhecemos esta modalidade de transmissão de
herança e poder com o nome de maiorazgo, no século XII
409
.
407
KEAD, op. cit., p. 91.
408
Ibid., p. 93.
409
MINGUEZ, José Maria. Las sociedades feudales 1. Madrid: Nerea, 1994, p.177.
123
Com base nas fontes asturianas, podemos destacar o fato de a transmissão de poder
nas primeiras décadas no século VIII não ser uniforme, não partia de um princípio a ser
imposto e seguido. Muito pelo contrário, a relação de interesses começava a se fazer conhecer
no seio da aristocracia. Tomando Ermesinda como esposa, Afonso I não adquiria apenas a
autoridade construída por Pelágio, ele simplesmente ampliava o leque de aliados políticos.
Unia os de antiga data àqueles reunidos pelo caudilho asturiano. Nem sabemos com certeza se
o casamento de Afonso foi uma tentativa de suceder no poder a Pelágio, que a autoridade
política perene não havia se estabelecido. O fato de não haver uma autoridade externa
exercendo-se sobre as Astúrias poderia explicar o livre jogo de disputas entre os grandes
homens nortenhos que progressivamente foram se suplantando até o ponto de haver um único
grupo dotado de plenas pretensões hegemônicas.
Poderíamos nos referir àquele contexto como o de uma Sociedade De Chefatura. Esta
é definida, por Elman R. Service, como uma modalidade de organização social caracterizada
por uma direção centralizada e distribuições de status hierárquicos hereditários com ethos
aristocrático, mas sem qualquer espécie de aparato formalizado, legal ou responsável pela
repressão com o uso de força
410
. Esta modalidade de organização teria emergido de uma
primitiva sociedade igualitária, fruto de um longo processo. Tal estruturação, referida por
Service, de sociedades sem Estado, concorre para esclarecer algumas manifestações de
centralização de uma autoridade social. Neste ambiente, com a natureza temporária do
Carisma, a concentração de um poder permanecia muito instável e fraco. Porém, nos
deparamos com uma realidade híbrida e oscilante que passaria a manifestar a concentração de
poder patrimonial em determinados segmentos de um agrupamento humano. Convergindo
este elemento com o exercício de uma autoridade Carismática que em determinadas
situações Elmann Service identificaria mais como influência, não como poder
411
, surgiria
um novo tipo de poder. Este novo poder teria maiores condições de intervir na realidade
social de maneira mais efetiva e perene, menos ocasional e dependente de eventos
extraordinários.
Considerando que aquele que detém um determinado poder e possui grande destaque
social tenderia a ambicionar a preservação de sua autoridade e transmiti-la para sua
descendência. Assim nos deparamos com uma outra espécie de centralização de autoridade.
Não diria um outro estágio desta realidade, mas consideraria que este novo momento
decorreria de determinadas condições que se processaram ao longo do tempo. O novo poder
410
SERVICE, op. cit., p. 34.
411
SERVICE, op. cit., p.
124
não decorreria única e exclusivamente dos efeitos temporários do carisma, este fenômeno
como tal não mais existiria em sua forma pura neste novo cenário. Sendo assim, podemos
fazer uso do conceito Dominação Patrimonial, já que esta modalidade pode emergir da
Dominação Carismática quando esta perde seu aspecto extraordinário e vai se
institucionalizando, ligando-se aos acontecimentos cotidianos e rotineiros (rotinização). É este
elemento de continuidade que compõe parte das características de Dominação Patrimonial
412
.
Este conceito é entendido como a autoridade de um chefe exercida sobre seus subordinados,
regida pelos costumes, tradição, ou disposições jurídicas
413
.
O poder detido pelo senhor é limitado pelos fatores citados acima, a tradição ou o
direito regulando sua relação ―santificada‖ com seus comandados
414
. Tem influência sobre as
estruturas políticas, sendo um fundamento para a construção de uma realidade estatal
415
.
Afirmando-se para o exterior do ambiente doméstico do senhor, é uma extensão deste,
tornando o chefe presente por meio de seus servidores. Tais agentes administram e regem
segundo os interesses de seu senhor superior. Esta forma de dominação é caracterizada pela
tênue distinção entre o público e o privado
416
, sendo a esfera política ―tratada como assunto
puramente pessoal do senhor, e a propriedade e o exercício de seu poder político como parte
integrante de seu patrimônio pessoal‖
417
. Elman R. Service propõe que o novo chefe surgido
deste processo é aquele que se posiciona como um redistribuidor de bens e recursos
418
. Para o
antropólogo, ―quanto melhor for a liderança, e quantos mais estável, mais instrumental pode
ser a extensão e a formulação do sistema de troca e intercâmbio‖
419
.
2.6. Para além da fronteira meridional:
Cogitamos que tenha ocorrido uma mudança na maneira como os caudilhos nortenhos
lidaram com os seus conterrâneos, o que possibilitou a ampliação do raio de ação original
controlado por Pelágio e Fáfila. O que as parcas notícias cronísticas parecem nos revelar é que
o líder da primeira revolta antiislâmica nas Astúrias tinha a sua autoridade restrita a um
pequeno núcleo encravado nas proximidades dos Picos Europa. O perfil de seu poder deveria
ser predominantemente local, intervindo em um grupo populacional bastante limitado. Talvez,
412
WEBER, op. cit., p. 238.
413
Ibid., p. 237-238.
414
Ibid., p. 236.
415
Ibid., p. 239.
416
Ibid., p. 253.
417
Ibid., p. 253.
418
SERVICE, op. cit., p. 94.
419
Ibid., p. 94.
125
a força política detida por seu genro, Afonso, se inserisse em uma escala maior.
Possivelmente, antes de Pelágio, Afonso I já era em seu tempo um grande der político
independente que viu na vitória de seu par uma oportunidade de firmar uma aliança
proveitosa. De um poder localista, teria surgido neste momento um poder de alcance regional
com a capacidade de expandir o seu teatro de operações. A primeira grande expansão do reino
asturiano nos é relatada pela Crônica Rotense:
13. Tendo aquele morrido, Afonso foi eleito no reino pelo imenso povo, ele com a
divina graça sucedeu no cetro. Foi aldacioso com os inimigos. Que com o irmão
Froila, pelo cerco do exército, capturou muitas cidades guerreando _, isto é, Lugo,
Tuda, Portucalis, Anegia, Braga metropolitana, Viseo, Flávias, Letesma,
Salamantica, Numância que então era chamada Zamora, Abela, Astorga, Leão,
Simancas, Saldanha, Amaya, Segovia, Oxoma, Sepúlveda, Arganza, Clunia, Mabe,
Oca, Miranda, Revendeca, Carbonarica, Abeica, Cinasaria e Alesanzo, seus castelos
com vilas e seus vicos, também aniquilando todos os Árabes pelo gládio, porém
conduziu os Cristãos consigo até a pátria.
420
14. Neste tempo, povoou as Astúrias, Primorias, Liveira, Transmera, Subporta,
Carrantis, Bardulias, que então era chamada Castela e as partes marítimas [e]
Galícia, Alava, com efeito, Viscaia, Aizone e Urdunia, foram retomadas e sejam
pelos seus sempre possuídas, assim como Pamplona [Degius é] e Berroza. Ele foi
um grande homem. Destacou-se por Deus e por todos. Fez muitas basílicas. Viveu
no reino XVIII anos. Afastou-se pela própria morte
421
.
Essas correrias não passaram despercebidas pelos historiadores muçulmanos:
Os galegos se sublevaram contra os muçulmanos, e crescendo o poder do cristão
chamado Pelágio, de quem havíamos feito menção no começo desta história, saiu da
serra e se fez dono do distrito das Astúrias. Os muçulmanos da Galícia e Astorga se
resistiram por longo tempo, até que surgiu a guerra civil de Abol-Jatar e Tsuaba. No
ano 33 foram vencidos e arrojados (os árabes) da Galícia, voltando-se a tornar
cristãos todos aqueles que estavam duvidosos em sua religião, e deixando de pagar
os tributos. Dos restantes, uns foram mortos e outros fugiram pelos montes até
Astorga. Mas quando a fome se espalhou, arrojaram também os muçulmanos de
Astorga e outras povoações, e foram-se recolhendo por detrás das gargantas da outra
cordilheira, e até Coria e Mérida, no ano 35
422
.
420
Chronica Rotensis. 13. Quo mortuo ab uniuerso populo Adefonsus eligitur in regno, qui cum gratia diuina
regni suscepit sceptra. Inimicorum ab eo semper fuit audatia conprensa. Qui cum fratre Froilane sepius exercitu
mobens multas ciuitates bellando cepit, id est, Lucum, Tudem, Portugalem, Anegiam , Bracaram
metropolitanam, Uiseo, Flauias, Letesma, Salamantica, Numantia qui nunc uocitatur Zamora, Abela, Astorica,
Legionem, Septemmanca, Saldania, Amaia, Secobia, Oxoma, Septempuplica, Arganza, Clunia, Mabe, Auca,
Miranda, Reuendeca, Carbonarica, Abeica, Cinasaria et Alesanzo seu castris cum uillis et uiculis suis, omnes
quoque Arabes gladio interficiens, Xpianos autem secum ad patriam ducens. In: BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 45.
421
Chronica Rotensis. 14. Eo tempore populatur Asturias , Primorias, Liueria, Transmera, Subporta, Carrantia,
Bardulies qui nunc uocitatur Castella et pars maritimam [et] Gallecie; Alaba namque, Bizcai, Aizone et Urdunia
a suis reperitur semper esse possessas, sicut Pampilonia [Degius est] atque Berroza. Hie uir magnus fuit. Deo et
ominibus amauilis extitit. Baselicas multas fecit. Uixit in regno a. XVIII. Morte propria discessit. In: BONNAZ,
Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 46.
422
Ajbar Machmuâ, op. cit, p. 66-67.
126
Além do Ajbar Machmuâ, Adharí de Marruecos recorda também as expedições
promovidas pelos cristãos
423
. Apesar das narrativas responsabilizarem Pelágio pela invasão
aos domínios muçulmanos situados nas cidades galegas, pela data do evento, que deveria ser
entre 744 e 746, o comandante da empreitada era Afonso I, afirmativa que é corroborada pelas
crônicas asturianas. No que se refere ao grupo nortenho, na opinião de José Maria Mínguez,
―essas ações conduzidas por Afonso I e seu irmão Froila aportam riqueza e força de trabalho
ao solar astur em uma medida impossível de avaliar. Mas não se articulam como um intento
de estabelecer um domínio nem político e nem militar sobre os territórios da bacia do Douro‖
424
. De fato, nenhuma das expedições do período chegou a estabelecer uma presença perene
nas terras que avançaram para além da Cordilheira Cantábrica. Provavelmente, restringiam-se
a simples incursões que visavam à obtenção de butim, algo que se produzia periodicamente
como uma atividade ―extrativa‖. Os frutos destas atividades levadas a cabo por Afonso I não
podem ser identificados, mas com certeza vinculavam-se à complementação daquilo que era
produzido nas Astúrias, ressaltando a figura do chefe guerreiro tanto como um líder
carismático, quanto um grande homem que redistribuía os bens móveis pilhados.
Por outro lado, para Abílio Barbero e Marcelo Vigil, a ascensão ao poder de Afonso I
implica algumas questões, das quais queremos ressaltar as contradições que, segundo estes
historiadores, envolvem a transição de Pelágio-Fáfila para Afonso I. A Albeldense e a
Rotense informam que Afonso I chegou às Astúrias quando Pelágio reinava
425
, enquanto que
a versão Ovetense omite tal referência. O casamento de Afonso I com Ermesinda é situado
pela Albeldense e pela Rotense durante o reinado de Pelágio, enquanto que a Ovetense
suprime o evento, retirando o parágrafo contido na Rotense
426
. Para Barbero e Vigil, a
supressão do parágrafo é motivada pelo maior goticismo da Crônica de Afonso III, versão
ovetense
427
. A Crônica Albeldense, por sua vez, diz que Afonso aceitou o reino (regnum
accepit, enquanto que a Rotense diz que ele foi eleito por todo o povo após a morte de
Fávila
428
. Coexistem nas crônicas a versão local para a formação do reino das Astúrias
e a pró-gótica. A Albeldense preserva a versão mais primitiva, informando sobre a chegada
em Afonso I, em tempos de Pelágio, seu casamento e a tomada do reino
429
. A ruptura com
esta tradição é referida pela rotense, vinculada à ascendência régia de Afonso e ao fato de ele
423
FERNANDEZ GONZALEZ, Francisco (trad.). Historias de Al-Andalus por Aben-Adharí de
Marruecos. Granada: Imprenta de D. Francisco Ventura y Sabatel, 1860, 1v., p. 91.
424
MÍNGUEZ, op. cit., p. 74.
425
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 305.
426
Ibid., p. 305.
427
Ibid., p. 305.
428
Ibid., p. 305-306.
429
Ibid., p. 306.
127
ter obtido o reino por eleição, identificada como graça divina
430
. Na ovetense a posição pró-
gótica é mais acentuada, fazendo de Afonso I um descendente de Leovigildo e Recaredo, sem
mencionar a eleição ou o vínculo de parentesco com Pelágio.
431
Apesar de considerarmos correta a perspectiva de que as crônicas refletem a
progressão de uma idéia neo-gotista a idéia de continuidade da herança visigótica pelos
primeiros soberanos asturianos, discordamos de algumas colocações apresentadas por Abílio
Barbero e Marcelo Vigil. Na Crônica Albeldense tanto no Item nomina regum catolicorum
legionensium quanto no Item ordo gotorum obetensium regum, não qualquer menção a
qualquer expressão que indicasse a existência da eleição dos chefes asturianos, não faz parte
do vocabulário do escriba que redigiu a narrativa. É mais comum encontrar a forma verbal
accepit, ―aceitou‖, enquanto que na Crônica Rotense, o cronista faz uso da forma verbal
elegerunt e elegitur, para indicar a eleição de algum líder. Mas, estão também presentes,
accepit, ―aceitou‖, bem como successit, ―sucedeu‖. Isto indicaria diferentes formas de tomada
de poder no reino, sugerindo uma oscilação na maneira como os soberanos nortenhos se
sucediam. Acreditamos que, neste ponto, a diferença das narrativas estivesse mais ligada ao
estilo usado pelos cronistas. A Albeldense é, no seu conjunto, muito mais sucinta do que os
demais textos, dedicando-se muito mais à enumeração dos eventos do passado do que a sua
narração. Se a produção das narrativas estava revestida de intenções de continuidade com o
trono toledano, como a Ovetense, devemos ainda lembrar que as pretensões políticas
esbarravam nas próprias contradições do passado, o que condicionava consideravelmente os
trabalhos dos historiógrafos asturianos. Sendo assim, nenhuma das versões, em nossa opinião,
se opõe, muito pelo contrário, complementam-se, e nos informam sobre a preocupação em se
controlar o passado.
No nosso ponto de vista, é a partir da liderança estabelecida com Afonso que podemos
vislumbrar um esforço efetivo de concentração de poder político. O guerreiro das terras
setentrionais obteve a chefatura por meio do apoio do ―imenso povo‖ que habitava em uma
área geográfica muito delimitada. A eleição não corresponde aqui, necessariamente, a escolha
de um continuador político de uma estrutura minimamente estabelecida.) Como vimos
afirmando neste capítulo, as Astúrias, como instituição política mais ou menos perene se
estabelecerá nas décadas finais do século VIII. Sendo assim, o que podemos fazer é supor que
a opção por Afonso I se fez com base na identificação de interesses entre os membros da
aristocracia nortenha, a sua ascensão ao poder como fruto do consentimento. Com o apoio
430
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 306.
431
Ibid., p. 306.
128
asturiano em peso, uma força política mais coerente tendeu a se consolidar e articular de
maneira eficiente os habitantes inseridos em sua esfera de influência
432
.
Como afirmamos anteriormente, não se impusera nenhum direito de primogenitura,
mas possivelmente a escolha dos líderes nortenhos fosse realizada em um círculo restrito de
pessoas dotadas de grande proeminência social. O fato de os cronistas asturianos afirmarem a
ascendência visigótica dos primeiros caudilhos asturianos talvez possa significar também uma
explicação tardia para a limitação no número de pessoas aptas a tomarem as rédeas do jogo
político nortenho. Além dos talentos pessoais necessários para o exercício da liderança, seria
preciso ser um membro de uma das principais famílias, seja lá quais tenham sido elas
efetivamente. Podemos inferir que as qualidades pessoais contribuírem para o fortalecimento
de parte do processo de centralização do poder e este novo reforço que contribuiu para o
estabelecimento de uma família poderosa que buscou atuar dar continuidade a suas atividades.
Os feitos militares promovidos por Afonso I seriam sobre as terras timidamente submetidas
pelos árabes, dando assim prova da sua capacidade política que, com isso, obtinha condições
de aumentar a força do seu ―campo gravitacional‖, ampliando o número de colaboradores nas
tarefas ousadas contra o poderio muçulmano. Quanto às populações submetidas, não temos
muito como falar delas. Reconhecemos que as campanhas dirigidas até as fronteiras do rio
Douro não significaram plena ocupação asturiana, muito pelo contrário, a pujança das
expedições não foram o suficiente para expandir extraordinariamente o território sob o
domínio imediato de Afonso I.
A capacidade de congregar seguidores submetidos a sua autoridade direta ou indireta
significou um aumento considerável da solidez do nascente aparato político asturiano.
Fortalecido em seus propósitos, Afonso I foi efetivamente o primeiro grande líder do norte
que tirou proveito da instabilidade de seu inimigo (cristão ou muçulmano), suplantando as
limitações que a dinâmica política local lhe impunha. Fez dela um aliado, tornou mais
vigorosa a articulação entre os poderosos locais. Esboçou a constituição de um poder
hegemônico que acossou comunidades políticas menores que não tiveram lograram se
fortalecerem antes. A imprevisibilidade deste processo é algo que deve ser visto como
432
Uma concentração de poder similar é também apontada por Robert H. Lowie para o caso Asteca, onde a
distinção social era baseada na bravura pessoal tornada hereditária, na qual o chefe asteca para a guerra era eleito
dentre um círculo restrito de parentes, sendo então este o caminho inicial para a constituição de um rei, processo
que não chegou à conclusão na Confedereção Asteca. no que se refere aos Incas, estes efetivamente se
constituíram concretamente como império. Diferentes dos Astecas, os Incas conduziram ―ao estabelecimento de
uma área muito maior sob o controle central‖, tal como no México, a expansão territorial se efetuou pela
conquista militar, contribuindo para o fortalecimento do maquinário governamental. As tribos conquistadas
foram agrupadas em quatro províncias distintas, submetidas à supervisão do aparato central, incluindo justiça e
administração. LOWIE, op. cit., p. 13
129
fundamental, essencial. Não foi fruto da fragmentação do pré-feudalismo visigodo, mas a
formação de uma entidade político-territorial nas Astúrias desenvolveu-se com base nas
tensões locais, nas disputas e nas relações de força das terras meridionais. O contato com o
mundo visigodo não significou a submissão às estruturas políticas e administrativas toledanas.
A presença de comunidades visigodas refugiadas poderia apenas ter intensificado a dinâmica
existente. No entanto, nos limitaremos a manter a análise da cristalização da concentração
do poder político após Afonso I. Conforme nos informa a narrativa do ciclo de Afonso III,
versão rotense:
16. Na era DCCLXLV, tendo Afonso se afastado, Froila, filho deste, sucedeu-o no
reino. Este foi homem de fortíssimo temperamento. Conseguiu muitas vitórias.
Realizou prélio com as hostes Cordobenses no local Pontubio, província da Galícia,
e aniquilou LIIII mil Caldeus; também tomou a cavalo um duque de nome Aumar
e, neste lugar, capturou-o. Superou os rebeldes Vascões e daquele lugar tomou para
si esposa de nome Munina, em quem engendrou um filho, Afonso. Superou os povos
rebeldes da Galícia e depredou fortemente toda a província. Pôs fim ao crime que,
no tempo de Vitiza, os sacerdotes praticvam por costume contrair matrimônio.
Como muito mosteiros permanecessem no crime, percorreu todos levando-lhes
punições. Assim, a partir de então, o casamento foi proibido aos sacerdotes e, deste
modo, decretou sentenças canônicas. No seu tempo, a Galícia foi povoada até o rio
Minho. Este homem tinha rudes costumes. Matou seu irmão de nome Vimarane com
as próprias mãos. Passado o muito tempo, o Senhor retornado a sucessão fraterna
dele, aniquilou os seus. Reinou por XI anos, III meses, na era DCCCVI
433
.
Nas breves passagens da Crônica Albeldense, segundo a edição de D. W. Lomax:
3. Afonso, genro de Pelágio, reinou por XVIIII, I mês, II dias
434
.
4. Froila, irmão deste, reinou por XII anos, VI meses, XX dias
435
.
Vejamos o não tão breve item sobre Da ordem dos reis dos godos ovetenses, contido
também na Crônica Albeldense, conforme a edição de Yves Bonnaz:
4. Froila, seu filho, reinou por XI anos. Não obteve vitórias, mas foi de
temperamento aguerrido. Matou seu irmão, de nome Vimara, devido à inveja do
433
Chronica Rotensis. 16. Era DCCLXLV post Adefonsi discessum Froila filius eius successit in regnum. Hic
uir mente acerrimus fuit. Uictorias multas fecit. Cum hostem Cordubensem in locum Pontubio prouintia Gallecie
prelium gessit, ibique LIIIIor milia Caldeorum interfecit; ducem quoque equitum nomine Aumar uibum
adprehendit et in eodem loco capite troncauit. Uascones reuelantes superauit huxoremque sibi Muninam nomine
exinde adduxit, unde et filium Adefonsum genuit. Gallecie populos contra se reuelantes superauit omnemque
prouintiam fortiter depredauit. Iste scelus, quam de tempore Uitizani sacerdotes huxores habere consueberant,
finem inposuit. Etiam multis in scelera permanentibus flagella inferens monasteriis perligauit. Sicque ex tunc
uetitum est sacerdotibus coniungia sortire, unde canonicam obserbantes sententiam magna iam creuit eclesiam.
Istius namque tempore usque flumine Mineo populata est Gallecia. Hic uir asper moribus fuit. Fratrem suum
nomme Uimaranem propriis manibus interfecit. Qui non post multo tempore, uicem fraterna ei Dominus
reddens, a suis interfectus est. Regnauit a. XI, m. III, era DCCCVI. In: BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 47.
434
Chronica Albeldensis. 3. Adefonsus gener Pelagii r. a. XVIIII, m. I, d. II. In : GIL FERNANDEZ, Juan
(ed.). Cronicas asturianas. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1985.
435
Chronica Albeldensis. 4. Froila frater eius r. a. XII, m. VI, d. XX.In: GIL FERNANDEZ, Juan (ed.).
Cronicas asturianas. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1985.
130
reino. Depois o mesmo [Froila], pela ferocidade do temperamento, foi aniquilado em
Cangas na era DCCCVIª.
436
Este fenômeno expansionista foi objeto de análise de vários historiadores espanhóis.
Na perspectiva de García de Cortázar, os grupos dispersos pela Cordilheira Cantrábrica e nos
Pirineus começaram a se aglutinar ―a partir do século VIII em torno de certos núcleos
políticos, o que, ao final de trezentos anos, permitirá (...) reconhecer a existência de cinco
áreas políticas diferentes que de Oeste a Leste da Península são: o conjunto das Astúrias, Leão
e Galícia; Navarra, Aragão, e o que ainda não se chama Catalunha‖
437
. Para José Maria
García de Cortázar, o ―domínio do território de onde havia nascido o primeiro núcleo de
resistência ao Islã, que, em meados do século VIII, parece entender-se do Eo ao Asón, o levou
a cabo Afonso I transferindo a população cristã dos núcleos da meseta superior aos vales
cantábricos‖
438
. Como tentamos demonstrar nas páginas precedentes, o pretenso primeiro
núcleo de resistência contra os muçulmanos, o de Cangas de Onís, não foi o responsável pelas
expedições que cruzaram a Cordilheira Cantábrica. Não parece ter sido o grupo originário da
liderança de Pelágio a assolar as terras do vale do Douro ou a região de Astorga e Leão.
Um dos feitos de grande envergadura de Afonso I teria sido a transferência da
população cristã destas áreas para o norte. Este fenômeno remete-nos a uma antiga questão: a
tese do despovoamento do vale do Douro. Há mais de um século, Alexandre Herculano
propôs a existência de um deserto estratégico criado por Afonso I ao ―sul das fronteiras
serranas do reino das Astúrias, para protegê-las de previsíveis ataques muçulmano‖
439
. Esta
proposição mereceu grande adesão, dentre as quais a de Barrau-Dihigo. Porém, o historiador
Alberto Sampaio, ao estudar as vilas ao norte de Portugal, lançou-se contra tal tese, assim
como Ernesto Mayer. Sampaio havia analisado documentos apócrifos, como os de Odoário,
enquanto Mayer não desenvolveu uma réplica contra Herculano
440
. Outra postura foi
assumida por Sánchez Albornoz. Ele não segue a tese do despovoamento do Vale do Douro
apresentada por Alexandre Herculano, não a repete integralmente, mas considera que tenha
realmente havido um esvaziamento da região
441
. A passagem referente a este acontecimento
nas crônicas do Ciclo de Afonso III possui correspondência com alguns fragmentos do texto
436
Chronica Albeldensis. 4. Froila filius eius rg. an. XI. Uictorias egit, sed asper moribus fuit. Fratrem suum
nomine Uimaranem ob inuidia regni interfecit. Ipse post ob feritatem mentis in Canicas est interfectus era
DCCCVIª. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p 24.
437
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 114.
438
Ibid., p. 119.
439
SANCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. Inmaturez del feudalismo español. In: ________. España: un enigma
histórico. Buenos Aires: Sudamericana, 1956, 2v., p.16.
440
Ibid., p. 16.
441
Ibid., p. 16-17.
131
de Ibn Alatir, no qual estão descritos os ataques atribuídos a Froila I contra as terras de Viseu,
Ledesma, Ávila e Segovia
442
. Sanchez Albornoz toma informações contidas nas fontes
arábicas que relatam a migração de ―muitos hispano-godos às terras montanhosas do Norte da
Espanha, com a ocasião da conquista sarracena‖
443
.
O abandono da Galícia e do Vale do Douro por ocasião da revolta berbere, em 742,
deve ser levada em consideração, assim como a grande fome que levou uma parcela dos
habitantes da Andaluzia para o Norte da África, a fuga de hispano-godos para o norte e a
epidemia de varíola que assolou a Península Ibérica
444
. A região nunca esteve muito
densamente povoada como pode ser atestado pela escassez de inscrições latinas
provenientes do Norte do Douro
445
. Contudo, destacamos que tal afirmativa é um tanto
contraditória para alguém criador da tese do ―Vazio Estratégico‖ entre as terras cristãs e as
muçulmanas
446
. A opinião de José Mattoso diz que entre os territórios asturianos e os do
califado, havia uma zona desorganizada, cujos habitantes não haviam desaparecido por
completo, mas haviam ficado mais rarefeitos, limitados aos próprios recursos para a
sobrevivência econômica e militar
447
. No que tange ao território galego-português, parece
que:
o modo de vida das populações situadas entre o Mondego e a zona da Galiza
marítima a norte de Lugo, que, segundo a Crónica de Afonso III, foi <<povoada>>
por Afonso I, deve, portanto, ter-se modificado profundamente. As cidades,
atrofiadas, deixaram de controlar os territórios que delas dependiam, assim como os
respectivos lugares habitados
448
.
Estes acontecimentos, acrescidos pelas expedições lideradas por Afonso I
contribuíram consideravelmente para o esvaziamento das terras banhadas pelo rio Douro. Os
poucos sobreviventes, segundo Sanchez Albornoz, no Norte do Douro, dirigiram-se aos
montes cantábricos por ocasião das constantes refregas entre cristãos e muçulmanos na
região
449
. Para este historiador, somente a zona inserida entre o Douro e a Cordilheira
442
Ibid., p. 17.
443
Ibid., p. 17.
444
As narrativas árabes são unânimes ao atribuir o deslocamento das populações muçulmanas do Norte da
Península Ibérica a fome e surtos epidêmicos. Parece que este cenário foi geral em boa parte da península. O que
torna o cenário galego diferente das demais regiões ibéricas é o fato de esta comarca servir diretamente como
campo de batalha entre as tropas emirais e os exércitos asturianos. A instabilidade interna comprometia ainda
mais este cenário tão desfavorável.
445
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 17.
446
MENÉNDEZ BUEYES, op. cit., p. 25.
447
MATTOSO, José. Origens. In: MATOSO, José (coord.). História de Portugal: antes de Portugal.
Lisboa: Estampa, 1997, p. 398.
448
Ibid., p. 398.
449
SANCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 17.
132
Cantábrica, principalmente Leão e Castela, podem ter sofrido com o despovoamento
450
. É
a toda a intenção de fixar os nomes dos que se vinculavam porque eles não nos foram
transmitidos pela história, nem pela tradição
451
. ―E nem mesmo com a ajuda dos documentos
medievais podemos fixar os lugares em que se situavam muitas das cidades e domínios que
fixavam em vias de importância secundária‖
452
.
Dentro das fronteiras do reino de Oviedo, cujo limite localizava-se junto ao Douro e o
Mondego, não há qualquer menção a uma civitas hispano-romano, e aquelas que foram
conquistadas no processo de expansão asturiano não lograram preservar os antigos nomes
453
.
Esta ruptura com o passado se fez também patente nas antigas divisões paroquiais
454
.
Notemos que estes são as afirmações de um árduo defensor da continuidade institucional
visigótica em terreno asturiano. A ambigüidade parece, em nossa opinião, estar diretamente
vinculada a tensão existente entre o Sánchez Albornoz historiador e o Sánchez Albornoz
nacionalista ferrenho. Em um dado momento o animo ufanista acaba fazendo sobressair os
dados obtidos pelo conjunto de sua pesquisa. Nas terras castelhano-leonesas não é possível
reconstituir os limites das antigas sés episcopais
455
apesar de alguns raros exemplos
456
.
―Consta expressamente que foram reabilitadas após a reconquista a maior parte das igrejas
visigodas que subsistiram até hoje nas terras que sofreram o despovoamento aqui em
estudo‖
457
. Isto se processou com as igrejas de Quintanilla de las Dueñas (Burgos), San Pedro
d Nave (Zamora), Santa Comba de Bande (Orense) e San Fructuoso de Montelios (Braga).
Muitos mosteiros passaram por um período de abandono e ruína até o momento de sua
restauração
458
.
Os documentos alto-medievais dariam prova do despovoamento das terras do Douro
até a Cordilheira Cantábrica
459
. ―A realidade do deserto do Douro explica em parte porque
Galícia e Leão não foram atacadas pelas armas cordobesas no século IX, enquanto golpearam
ano após ano as fronteiras de Álava e Castela. Até estas podia chegar-se pelas terras
cultivadas do Tejo e do Ebro. Para evitar o deserto, ainda na segunda metade do século IX,
várias vezes as hostes muçulmanas percorreram rumo a Leão um estranho caminho. Ao
450
Ibid., p. 18.
451
Ibid., p. 18.
452
Ibid., p. 19.
453
Ibid., p. 19.
454
Ibid., p. 20.
455
Ibid., p. 20.
456
Ibid., p. 20-21.
457
Ibid., p. 21.
458
Ibid., p. 21.
459
Ibid., p. 21.
133
invés de adentrar diretamente nas planícies castelhano-leonesa, reduzindo sua marcha em uma
centena de quilômetros, ganhavam Saragoça, remontavam o Ebro, entravam em Castela pela
raia setentrional de La Rioja e avançavam depois até Leão e Astorga pela via romana que ao
sul dos montes atravessava terras já povoadas de cristãos‖.
460
A intensidade do despovoamento também é criticada com base nos testemunhos de
centenas de documentos alto-medievais
461
. Segundo Abílio Barbero e Marcelo Vigil, no que
tange à suposta existência de um ―deserto estratégico‖, Afonso I teria exterminado os
muçulmanos nas terras ao Sul da Galícia e, em seguida, teria retirado os cristãos das áreas
para o norte, esvaziando a região do vale do Douro.
462
O povoamento das terras que
compreendiam o reino asturiano representaria uma visão estratégica das expedições de saque
de Afonso I.
463
As terras ―repovoadas‖ que formaram o primitivo reino asturiano
compreenderiam as regiões que não foram submetidas ao domínio visigótico, fincadas na
cordilheira Cantábrica, sem centros urbanos importantes, formada por vales e distritos que
mantinham seus nomes antigos
464
.
Na perspectiva de José Maria García de Cortázar, tal ―transferência de população,
unida à tradicional débil densidade da meseta do Douro e aos anos de seca que, entre 750 e
755, assolaram-na, explicam que se convertera numa área quase despovoada, salpicada
unicamente por reduzidos núcleos de agricultores e pastores que não deixaram uma folha
escrita de sua existência‖.
465
Por sua vez, Froila I, quando ascendeu à liderança em 768 manteve a política agressiva
de Afonso I, seu genitor. As notícias sobre suas ações são muito breves. No documento de
812, Froila é identificado como filho de Ermesinda (Filha de Pelágio), sem se fazer qualquer
menção a Afonso I
466
. Ele teria avançado mais uma vez sobre a Galícia, atacando as terras de
Pontubio, que estava então mais uma vez sob o domínio de Aumar, emir que representava a
autoridade de Córdoba na região compreendida entre o Rio Minho, os Montes de Leão e o
Oceano Atlântico. Além destas ações nas porções do Noroeste da Península Ibérica, Froila I
dirigiu sua atenção, tal como seu antecessor, às terras dos Vascões, obtendo uma esposa de
nome Munina. Um matrimônio político buscaria pacificar as tensões nas regiões a Leste dos
domínios asturianos, garantindo-se o apoio de um grupo que colaborasse nas empreitadas do
460
SANCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 22.
461
Ibid., p. 22.
462
BARBERO, Abílio, VIGIL, Marcelo. La sucesión al trono en el reino astur. In: ________. La formación
del feudalismo en la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1989, p. 280.
463
Ibid., p. 280.
464
Ibid., p. 280-281.
465
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 119.
466
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 307.
134
sucessor de Afonso I. Possivelmente orientado pelas mesmas perspectivas de seu pai nos
tempos de Pelágio, Froila I continuou uma política comum no medievo de firmar acordos com
os grandes chefes locais por meio de casamentos arranjados. Porém, a submissão dos povos
situados entre o Vale do Ebro, dos Pirineus e do Golfo de Biscaia não se efetuou, sendo muito
constante a não consolidação do poder asturiano na região
467
. Robert Lowie verifica que
acordos entre os membros de uma sociedade ou entre grupos podem muito bem produzir uma
esfera superior de intervenção na realidade social
468
. Este exemplo de ―efeito combinado de
militarismo e de atitude administrativa, especialmente sob a influência de uma personalidade
potente‖ pode ser ilustrada por algumas sociedades africanas
469
.
Outro ponto chama consideravelmente a atenção em nossas análises. Convergindo
para um mesmo ponto, as crônicas do ciclo de Afonso III e a Crônica Albeldense nos revela
um primeiro sintoma de tensão, fruto de uma disputa velada pelo poder. A figura de Vimara,
irmão de Froila I, foi trazida das sombras para ilustrar uma competição por controle político
que se esboçava neste contexto. Segundo Abílio Barbero e Marcelo Vigil, podemos
perceber a tensão na sucessão no reino por seu irmão Vimara
470
. A capacidade de firmar
relações políticas, de dirigir a sociedade (ou uma parcela dela) e o de comandar expedições
começou a ser objeto de disputa no seio da família principal das Astúrias. A potencialidade de
Vimara de exercer a chefatura das terras nortenha teria, talvez, se tornado uma ameaça. A
―inveja do reino‖, somada ao ―temperamento rude‖ de Froila I, fortaleceriam o conflito e o
estado de tensão, tornando a liderança militar objeto de disputa. Não sabemos ao certo se
podemos confirmar a existência do exercício de poder com base um título dito monárquico.
Nestes tempos, acreditamos que seja mais provável que a concorrência se estabelecesse no
plano das relações sócio-políticas. A atividade de comando não encontraria sua sustentação
apenas no consentimento no conjunto da aristocracia e (ou parte) do povo, no carisma e nas
habilidades pessoais. Tais elemento não eram mais as únicas bases da autoridade política de
indivíduos como Froila I. As últimas décadas do século VIII, talvez, teriam sido marcadas por
467
Segundo a contribuição do antropólogo Mar Abeles, um ―governo centralizado pode fazer a guerra de
maneira mais efetiva, pode manter a paz de maneira mais efetiva e pode resolver os problemas internos do
governo de formas que não são possíveis em uma sociedade igualitária‖. Em seu movimento expansionista, esta
forma de organização social transforma seus novos integrantes, se estes forem sociedades igualitárias o que
não existia no Norte da Península Ibérica , em imitação à pequena escala da sociedade central maior,
simplesmente aceitando a seus líderes na hierarquia dominante. SERVICE, op. cit., p. 97-98.
468
Segundo o antropólogo americano, ―se aceitas as narrativas lendárias dos Iroquois a respeito de Hiawath
puderem ser aceitas, a união de povos distintos poder ser efetuada com os meios pacíficos da sagacidade do
estadista. Por outro lado, uma maneira mais freqüente foi certamente à derrota das populações rivais, seguida
pela sua incorporação em uma política comum‖. LOWIE, op. cit., p. 16-17.
469
Ibid., p. 17.
470
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 307.
135
um cenário marcado por tornar a população nortenha a se habituar a um comando. O poder
político começava a se obter uma maior durabilidade.
2.7. Balanço sobre as transformações iniciais no Norte da Península Ibérica:
A rebelião asturiana não foi um evento extraordinário. A revolta liderada por Pelágio
foi uma de muitas outras atividades daqueles que se refugiaram nas terras altas e dos povos
montanheses da Península Ibérica contra os exércitos muçulmanos. Toda região montanhosa
configurou-se como um refúgio e fortaleza daqueles que não desejavam se submeter à
autoridade dos valis de Córdoba. Inicialmente, as regiões elevadas foram adotadas como
abrigos contra invasores, porém, rapidamente começaram a surgir atividades de resistência
que aproveitavam a topografia para se defender. A dificuldade de acesso a estes territórios
comprometia o avanço das hostes, retardando sua progressão. Como já havia apontado Lucien
Barrau-Dihigo, os montes asturianos formavam uma incrível defesa, mas isto não era uma
peculiaridade restrita aos Picos da Europa. Dos Pirineus até as porções ocidentais da
cordilheira Cantábrica o motim ibérico foi uma constante, sem se configurar exatamente como
uma empreitada política que objetivasse formar uma entidade político-territorial ou restaurar
as ruínas do reino visigodo. Pelágio não formou um regnum, reino, no conjunto territorial das
Astúrias, pelo contexto geral da época, não tinha esta intenção. A Batalha de Covadonga por
si nada mais era do que um esforço desesperado de um grupo de refugiados unidos aos
membros da aristocracia local. O pálido esboço de uma entidade política mais abrangente
teria surgido não muito mais tarde, por meio da aliança com um indivíduo alheio não
pertencente à comarca dominada originalmente por Pelágio ou Fáfila.
A aliança político-matrimonial com Afonso I deu o primeiro grande passo para a
estabilização de uma realidade política fundamentada não com base em uma instituição
outrora estabelecida e recuperada, mas nas qualidades pessoais de liderança e destreza nas
ações bélicas dos chefes guerreiros destes tempos. Como temos repetido inúmeras vezes
neste capítulo, nossas especulações tendem a esbarrar nas limitações que as parcas fontes nos
impõem. Porém, ousamos avançar com base nos indícios que as crônicas asturianas nos
fornecem. Nossa análise pauta-se em dois níveis distintos, um primeiro proposto no
capítulo precedente, que é o de observar a estruturação dos documentos narrativos.
Procuramos identificar as linhas condutoras do raciocínio dos amanuenses da Alta Idade
Média ibérica, compreender o projeto político que modela a descrição e o valor dos
acontecimentos históricos dos primeiros anos da Reconquista. Reconhecemos um esforço
136
explícito em modelar o passado tomando como referência a ideologia dos escribas do século
IX, que intentavam estabelecer uma linha plena de continuidade não apenas entre os visigodos
e os astures, mas também entre Pelágio que aqueles que, no período seguinte, comandaram
parcelas do Norte da Península Ibérica.
Cientes deste trabalho historiográfico, passamos a buscar as contradições presentes
nos textos, elementos que não foram totalmente domesticados pelos cronistas e que vinham à
tona constantemente. Após tentar superar a imagem de excepcional da revolta de Pelágio,
comparando diversas fontes cristãs e muçulmanas, nos propomos a rastrear as falhas na
uniformização da narrativa. Percebemos que a linha reta traçada de Pelágio até Afonso III não
foi privada de rupturas e oscilações. Atestamos que uma estrutura política não havia surgido
após a sublevação de 718-722, o exercício de poder não se fundamentava em uma entidade
denominada reino, mas nas relações pessoais que uniam os grupos aristocráticos nortenhos e
visigodos para fazer frente aos avanços muçulmanos. O poder fundava-se no vínculo que unia
o líder e seus seguidores, o consentimento na atividade agregadora social foi o marco inicial
desta autoridade, vivenciado nos tempos de Pelágio e Fáfila.
A presença de Afonso I demonstraria outra quebra na continuidade política asturiana.
Primeiramente, por que ele romperia com a ―singularidade‖ de Pelágio, no que se refere ao
espaço nortenho mais próximo. Quando Afonso I chegou em Cangas de Onís após a batalha
de Covadonga, ele trouxe consigo o seu próprio ―poder gravitacional‖. Afonso não veio em
posição subalterna, mas como um igual a Pelágio, alguém com as mesmas qualidades para
liderar e guerrear, as quais deduzimos que fossem maiores e melhor articuladas, conforme
podemos apreender da análise das campanhas militares desenvolvidas para além da
Cordilheira Cantábrica como nos informam as crônicas asturianas e árabes. Contudo,
reconhecemos também as limitações destas expedições que não ampliaram a extensão do
território sob seu domínio imediato. Identificamos também que houve uma mutação na
manifestação e exercício de poder entre Pelágio-Fáfila e Afonso I-Froila I.
Constamos isto pela magnitude destas mesmas ações militares. Os esforços
despendidos nelas evidenciam o desenvolvimento de uma rede de cooperação jamais vista até
então. A explosão de uma revolta por si não é capaz de evidenciar a manifestação de uma
entidade política dotada de uma meta auto-reprodutiva, mas seus sucessos e sua repercussão
sim tornaram atraentes os chefes das mesmas. A partir daí vínculos políticos mais extensos
são formados. O que de início se limitava a um grupo de refugiados, passou a agregar os
habitantes de uma localidade. O êxito de Covadonga, por sua vez, estimulou a construção e
acordos que possibilitavam ações com maior amplitude geográfica. A vitória sobre os
137
inimigos garantiram não apenas a grupos submetidos, mas também proporcionaram a
edificação de acordos voluntários. A partir destas condições foram lançadas as fundações para
a cristalização de uma autoridade perene dotada de poderes de maior magnitude mantidos
pelos guerreiros asturianos. A ascensão de Afonso I fomentou a continuidade da autoridade
mas mãos de um mesmo grupo familiar, que logrou submeter um número maior de regiões. A
sucessão de Afonso I para Froila I não se expressou por meio da eleição, mas, como no caso
Pelágio-Fáfila, por uma transmissão de poder de pai para filho. Este monopólio inicial do
poder evidencia a manifestação de concorrências internas por ele, ou seja, identificamos o
surgimento de conflitos no seio da própria família de Afonso I, mais precisamente entre Froila
I e seu irmão Vimara. Dentro da própria casa governante, a autoridade era objeto de disputa,
tornando clara a importância de uma autoridade superior sobre as Astúrias. A luta pela
hegemonia começava a se esboçar, mas até que se efetivasse a consolidação de uma entidade
política perene, precisaríamos aguardar um longo caminho.
138
3. CRISTALIZAÇÃO DE UM CENÁRIO POLÍTICO:
3.1. Considerando novas modificações no fazer político asturiano:
O que buscamos enfatizar até o presente momento é que a constituição de um reino
nas Astúrias não se efetuou nas primeiras cadas do século VIII com base na revolta de
Pelágio. Mesmo que nossa proposição se estruture apenas no campo da especulação, que
não dispomos de documentação suficiente para afirmar peremptoriamente sobre o caso,
acreditamos que existem indícios capazes de apontar um caminho. A trilha na qual nos
lançamos só foi possível graças às contradições e oscilações nos textos das primeiras crônicas
de Reconquista. Verificamos no capítulo anterior que a revolta de Pelágio não se configurou
como a primeira manifestação de resistência anti-islâmica na Península Ibérica. Conseguimos
atestar que em outras localidades do solar ibérico, por conta própria, organizaram-se
atividades com o intuito de enfrentar o inimigo recém chegado à Hispânia. O cenário padrão
destas ações foi formado por regiões montanhosas, áreas de difícil acesso aos invasores e
perfeitos pontos de defesa. Percebemos também que as lideranças constituídas na Cordilheira
Cantábrica não foram tiveram a intenção de construir uma entidade político-territorial. Muito
pelo contrário, o poder não estava em uma instituição nascente, mas em chefes guerreiros que
se articulavam com seus pares e com a preocupação de se mobilizarem em uma causa comum.
Sendo assim, Pelágio o foi um governante ou administrador, mas um chefe guerreiro em
meio a seus pares.
A breve atuação de Fáfila, apontada nas narrativas da Alta Idade Média Ibérica, não
parece indicar uma modificação do que havia sido feito por Pelágio. Uma primeira mutação
adviria, contudo, da aliança entre Pelágio e Afonso I (outro senhor da guerra das terras
nortenhas), manifestada no acordo matrimonial que envolvia a filha do primeiro caudilho‖
asturiano. A expansão territorial e as expedições militares promovidas por Afonso I e seu
filho Froila I juntamente com o irmão Vimara destacariam uma diferenciação no fazer
político dos tempos de Pelágio. Em um breve período de tempo o modo de agir nortenho se
modificou, possibilitando uma maior envergadura nas atividades coletivas das comunidades
do Norte. Porém, ainda não poderíamos considerar tais eventos como provas da plena
estruturação de uma entidade política perene. Inclinamo-nos a analisar tais ações como sendo
vinculadas aos atributos pessoais dos chefes nortenhos, algo sem um vínculo imediato com o
reconhecimento de uma instituição suprema que se impusesse ao conjunto da sociedade.
Como veremos nas próximas páginas, produziu-se a superação de um estado essencialmente
139
personalista da liderança política para um outro nível que envolvia a constituição de um poder
mais estável e com forte pretensão em desempenhar um papel político hegemônico no norte
ibérico.
3.2. Demandas internas de um território em formação:
Devemos voltar a um ponto de não pouca importância em nosso presente estudo: a
fragmentação política do norte peninsular. Primeiramente, nossa idéia de transformação na
sociedade asturiana toma por base as parcas informações fornecidas pelas primeiras narrativas
cristãs nortenhas. Reconhecemos que existiram outros níveis de transformações sociais dos
quais nada podemos dizer, a não ser se contarmos com os dados pontuais das épocas de
dominação romana e visigótica. Porém, não é possível acreditar que todos os superficiais
elementos contidos nestas fontes romanas e tardo-romanas pudessem corresponder ao modelo
de organização social experimentado por Pelágio e seus sucessores políticos imediatos.
Acreditamos piamente na existência de vários processos que operavam com diferentes
velocidades e que se impunham sobre as comunidades nortenhas, imprimindo nelas a sua
marca. Fatores externos e internos deram origem a novas organizações sociais e políticas.
Quanto aos primeiros, quase não podemos dizer nada; já em reação ao segundo, verificamos o
desenvolvimento de algo coerente, tangível e um pouco mais estável, algo que se impunha
sobre o conjunto das populações de uma determinada área e que reivindicava para si
determinados monopólios materiais e simbólicos.
Nestas primeiras décadas do século VIII, as resistências ao poderio dos chefes
asturianos manifestavam-se em resposta ao crescimento das esferas de influência e das
pretensões conquistadoras destes. A partir deste ponto de vista, o conjunto dos choques
representava a obstinação daqueles que não se sentiam nem um pouco obrigados a aceitar a
superioridade de um igual nortenho. Em seus empenhos de criar uma dominação sobre sua
égide, os chefes guerreiros asturianos tiveram, por um longo tempo, que lidar com a oposição
de vários núcleos locais a seus objetivos políticos. As disputas pela supremacia não se
restringiram aos membros de dois grupos familiares, como pretendia Cláudio Sanchez
Albornoz. Para o historiador espanhol, a sucessão de governantes asturianos seria restrita aos
membros da família de Pelágio e Afonso I, grupos fundadores da soberania asturiana,
perspectiva da qual discordarmos por não nos parecer possível tomar com marco fundador da
estrutura político-territorial asturiana a revolta liderada por Pelágio e por haver indícios que
informam da cooperação e integração de outras famílias.
140
No mesmo sentido, distanciamo-nos da recorrente preocupação da historiografia com
a definição da gica referente à transmissão sucessória do poder político no contexto em
questão. Como bem destacaram Abílio Barbero e Marcelo Vigil, a questão da sucessão do
reino asturiano seria um dos pontos mais importantes para se compreender a formação do
Estado na Península Ibérica, fenômeno ao qual os historiadores tenderam a aplicar as regras
de sucessão dinástica das monarquias modernas, ou lhe impuseram como referência as
práticas do reino visigodo de Toledo
471
. Afastamo-nos desta preocupação de uma maneira
radical. As próprias fontes narrativas nos fornecem os dados para este nosso posicionamento.
Tomemos como referência os seguintes fragmentos da Crônica Albeldense. Pela edição de D.
W. Lomax, o primeiro trecho pertence ao Item nomina Regum Catolicorum Legionensium:
4. Froila, irmão deste, reinou por XII anos, VI meses, XX dias
472
.
5. Aurélio reinou por VI anos, VI meses
473
.
6. Silo reinou por VIIII anos, I mês
474
.
Ainda na Crônica Albeldense, editada por Bonnaz, no item Da ordem dos reis dos
godos ovetenses:
5. Aurélio reinou por VII anos. Durante o seu reinando, os servos desobedientes, nos
seus domínios, foram capturados e reduzidos a sua antiga servidão. E no seu tempo,
Silo, futuro rei, aceitou em casamento Adosinda, irdo rei Froila, com a qual
obteve posteriormente o reino. Em verdade, Aurélio afastou-se ao morrer
475
.
6. Silo reinou por VIIII anos. Quando este aceitou o reino, firmou o sólio em Právia.
Por causa da mãe, manteve a paz com a Hispânia. Afastou-se daí pela própria morte
e não deixou nenhuma prole
476
.
Crônica Rotense:
17. Após a morte daquele, Aurélio, seu confrade, sucedeu no reino. Os servos
insurgiram-se, naquele tempo, contra os próprios domínios da tirania, mas foram
superados pela ação do rei que reduziu todos à antiga servidão. Não fez nenhum
471
BARBERO, Abílio, VIGIL, Marcelo. La sucesión al trono en el reino astur. In: ________. La formación
del feudalismo en la Península Ibérica. Barcelona: Crítica, 1989., p. 285.
472
Cronica Albeldense. 4. Froila frater eius r. a. XII, m. VI, d. XX. In: LOMAX, D. W. (ed.). Una crónica
inédita de Silos. In: Homenaje a Pérez de Úrbel. Silos, 1976.
473
Cronica Albeldense. 5. Aurelius r. a. VI, m. VI. In: LOMAX, D. W. (ed.). Una crónica inédita de Silos. In:
Homenaje a Pérez de Úrbel. Silos, 1976.
474
Cronica Albeldense. 6. Silo r. a.VIIII, m. 1. In: LOMAX, D. W. (ed.). Una crónica inédita de Silos. In:
Homenaje a Pérez de Úrbel. Silos, 1976.
475
Cronica Albeldense. 5. Aurelius rg. an. VII. Eo regnante serbi dominis suis contradicentes eius industria
capti in pristina sunt serbitute redacti. Suoque tempore Silo futurus rex Adosindam Froile regis sororem
coniugem accepit, cum qua postea regnum obtinuit. Aurelius uero propria morte decessit. In: BONNAZ, Yves.
Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 24.
476
Cronica Albeldense. 6. Silo rg. an. VIIII. Iste dum regnum accepit, in Prabia solium firmauit. Cum Spania
ob causam matris pacem habuit. Morte propria ibi decessit et prolem nullum dimisit. In: BONNAZ, Yves.
Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 24.
141
prélio. Manteve paz com os Caldeus. Reinou por seis anos. No sétimo ano, com
efeito, o mesmo morreu, findou a vida na era DCCCXI
477
.
18. Após aquele óbito, Silo aceitou em conúbio a filha de Afonso, de nome
Adosinda, por este motivo adquiriu o reino. Teve paz com os Ismaelitas. Superou
para si a rebelde Galícia e subjugou por mais de uma vez ao seu império, pelo
certame, o monte Cupério. Enquanto este reinava, Afonso, filho de Froila, sobrinho
de Afonso o Maior, governou o palácio, pois Silo não engendrou filho da njuge
Adosinda. Este, depois de VIIII anos de reinado, afastou-se apenas pela morte na era
DCCCXI
478
.
Crônica a Sebastião:
17. Após Froila ter morrido, Aurélio, consobrinho deste e filho de Froila, o irmão de
Afonso, sucedeu no reino. Naquele tempo, os libertini submetidos levantaram armas
contra os próprios domínios, mas foram superados pela ação do rei que reduziu a
todos a antiga servidão. Não fez nenhum prélio. Manteve a paz com os Caldeus.
Reinou por seis anos. No sétimo ano, morreu em paz na era DCCCXII
479
.
18. Após o fim de Aurélio, Silo sucedeu no reino e escolheu como cônjuge
Adosinda, filha do príncipe Afonso. Este teve paz com os Ismaelitas. Dominou os
povos rebeldes da Galícia no monte Cuperio e os subjugou ao seu império. Reinou
por VIIII anos e no seu décimo fundou sua vida na era DCCCXXI
480
.
Podemos perceber que não havia uma única via de sucessão. Desde Pelágio, algumas
formas de ascensão ao poder foram empregadas. Com a morte de Froila I, em 767, Aurélio, o
seu ―confrade‖, confrater, segundo a Crônica Rotense —; ou ―consobrinho‖, consubrinus,
segundo a versão ovetense da Crônica de Afonso III obteve o poder do ―reino‖,
mantendo-se neste momento a autoridade política no seio de uma mesma família,
considerando como ramo paterno aquele filiado ao ancestral Afonso I. Os cronistas não são
precisos ao determinar com clareza o grau de parentesco entre Froila I e Aurélio, o que
revelaria o desconhecimento da posição do segundo na rede familiar de Afonso I. Apesar
477
Cronica Rotensis. 17. Post cuius interitum confrater eius Aurelius successit in regnum. Cuius tempore
seruilis orico contra proprios dominos tirannide surrexerunt, set regis industria superati in seruitute pristinam
omnes sunt redacti. Prelia nulla gessit. Cum Caldeis pacem abuit. Sex annis regnauit. Septimo namque proprio
moruo uitam finiuit era DCCCXI. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS,
1987, p. 48.
478
Cronica Rotensis. 18. Post cuius obitum Silo Adefonsi filiam nomine Adosindam in coniungio accepit, pro
qua re etiam adeptus est regnum. Cum Ismaelites pacem habuit. Galleciam sibi reuellantem inito certamine in
monte Cuperio superauit et suo imperio subiugauit. Qui dum iste regnaret, Adefonsus Froilani filius, nepus
Adefonsi maioris, palatium guuernauit, quia Silo ex coniunge Adosinda filium non genuit . Hic post regni annis
VIIII propria morte migrauit e seculo era DCCCXXI. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe.
siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 49.
479
Cronica ad Sebastianum. 17. Post Froilani interitum consubrinus eius Aurelius filius Froilani fratris
Adefonsi successit in regnum. Cuius tempore libertini contra proprios dominos arma sumentes tyrannice
surrexerunt, sed principis industria superati in seruitute pristina sunt omnes redacti. Prelia nulla exercuit, quia
cum Arabes pacem habuit. Sex annos regnabit. Septimo namque anno in pace quieuit era DCCCXII. In:
BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 48.
480
Cronica ad Sebastianum. 18. Post Aurelii finem Silo successit in regnum, eo quod Adosindam Adefonsi
principis filiam sortitus esset coniungem. Iste cum Ismahelites pacem habuit. Populos Gallecie contra se
rebellantes in monte Cuperio bello superabit et suo imperio subiugabit. Reg. an. VIIII et decimo uitam finibit era
DCCCXXI. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 49.
142
disto, devemos ainda levar em consideração o fato de os termos empregados para identificar
os membros de uma família, estamos em uma época bastante imprecisa quanto a isto. De
qualquer forma, a autoridade estava detida, naquele momento histórico, por um único grupo.
Talvez estejamos diante da primeira transmissão de poder por via fraterna, o que poderia fazer
supor que todos os membros descendentes masculinos estivessem aptos ao exercício de
governo no norte da Península Ibérica. Já a Crônica Albeldense, a mais antiga das narrativas
nortenhas, não nos informa sobre a forma pela qual Aurélio alcançou o ápice da liderança
política do Norte, apenas refere-se ao fato de ser filho de Afonso I, irmão de Froila I. Em
seguida, em 773, após o falecimento de Aurélio, Silo tornou-se a autoridade daquilo que seria
o território do reino asturiano. A obtenção do poder teria sido possibilitada pela união
matrimonial com Adosinda, irmã de Aurélio. O casamento parece ter ocorrido, segundo a
Crônica Albeldense, durante o governo do falecido rei, e, segundo a Crônica Rotense, a união
teria se produzido após a morte de Aurélio.
Para os historiadores Abílio Barbero e Marcelo Vigil, este acordo de casamento
firmado entre Adosinda e Silo seria o segundo indício das permanências gentílicas dos povos
nortenhos
481
, que se manifestava aqui pela sucessão do poder por via feminina, como se as
mulheres tivessem a capacidade de transmitir a autoridade de seu sangue para os seus
cônjuges
482
. Com base nesta premissa, a importância das mulheres na transmissão de poder
estaria presente também no caso de Afonso I e da filha de Pelágio, Ermesinda, bem como em
um testemunho mais do que tardio do Cantar dos Infantes de Lara. Este papel destacado da
figura feminina seria expressão dos vestígios de uma sociedade matriarcal em vias de
desaparecimento no norte da Península Ibérica. Tal perspectiva se explica pela aceitação dos
trabalhos de G. Thomson ao explicar a sucessão na realeza romana
483
e de J. Caro
Baroja ao apontar a importância da ascendência feminina entre os povos do Norte da
Península Ibérica
484
. Porém, por um simples expediente de raciocínio lógico devemos
considerar que, para se tratar de uma permanência ou manifestação de um modelo em
desagregação, podemos reconstituir ou identificar os elementos que fundamentam o momento
precedente. De que maneira é possível identificar a sociedade na qual se praticava a
matrilinealidade nas Astúrias antes do século VIII? Onde estaria esta sociedade? Em que
fontes anteriores? Destacando que os casos acima apontados são de um período anterior ao
que nós estudamos: um dos primórdios da história romana e outro sobre os primeiros anos da
481
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 333.
482
Ibid., p. 333.
483
Ibid., p. 330.
484
Ibid., p. 331.
143
dominação romana na Península Ibérica. Para afirmarmos que algo está desagregando e
modificando, precisaríamos apontar pelo menos o que teria sido o momento em que ele
estivesse consolidado. Os dois casos alto-medievais podem ser considerados como
testemunhos diretos deste mundo no qual a mulher tinha um papel político importante por
fruto de uma sociedade gentílica ou pelo fato dela constituir um elemento importante nas
trocas e negociações políticas? Neste segundo caso, toda Idade Média é repleta de exemplos,
o que talvez possa ter ocorrido efetivamente no caso asturiano.
O outro aspecto que gostaríamos de ressaltar é o fato de permanecerem existindo
poderosos chefes locais que não estavam submetidos ao poder dos senhores de Cangas de
Onís. Nenhuma das fontes cronísticas referem-se a Silo como um subalterno político ou
membro da clientela régia, mas, implicitamente, é identificado como a um igual, que estaria
em de igualdade com indivíduos como Aurélio. Com Silo podemos notar que teria
ocorrido uma nova mudança no centro de gravidade política do Norte da Península Ibérica.
Tal mudança, ocorrida em 773, talvez pudesse significar a ascensão política de um outro
grupo familiar, cujo cleo patrimonial e de poder se situasse na região de Právia. É possível
ainda que, no período compreendido entre Aurélio e Silo, tenha havido uma aceleração na
formação de uma nova concepção poder político, o que levaria a uma maior concentração de
autoridade por aquele que lutava para ser o ápice das decisões políticas nas Astúrias.
Abílio Barbero e Marcelo Vigil insistem em sua obra que a formação do reino astur é
fruto da desagregação da sociedade gentílica dos povos do norte
485
. Os choques e tensões
sociais e políticas explicar-se-iam pela gica das transformações ocorridas nas comunidades
que habitavam na Cordilheira Cantábrica, cujas estruturas sociais em processo de
desarticulação teriam favorecido a constituição de um regime senhorial e a submissão do
campesinato
486
. Diante das referências documentais foi levantada a hipótese de a rebelião dos
camponeses nomeados pela Crônica Albeldense e pela Crônica Rotense como servus, e
como libertini pela Crônica Ovetense ser uma clara manifestação da luta contra o processo
de subordinação social imposta pela aristocracia
487
. Em uma região incerta dos domínios
imediatos do antecessor de Aurélio um grupo dos produtores rurais se rebelou, sendo, porém
reduzido à sua antiga condição graças aos esforços repressores do rei Aurélio. Contudo,
outros historiadores se inclinam por uma perspectiva diametralmente oposta. As mesmas
parcas linhas motivaram diferentes perspectivas em relação aos mesmos eventos.
485
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 358-362.
486
Ibid., p. 361.
487
Ibid., p. 261.
144
Acompanhando os caminhos traçados por Barbero e Vigil, José Maria Mínguez, por
seu turno, alertaria para o fato de as revoltas de ―libertos‖ ocorridas nos tempos de Aurélio se
relacionarem aos processos de transformação interna das sociedades nortenhas. As hesitações
terminológicas que aparecem nas distintas versões das crônicas do Ciclo de Afonso III entre
serbi, servilis orico e libertini são suficientemente ―expressivas da incompatibilidade na
realidade social de esquemas preestabelecidos de ordem jurídica no momento em que essa
realidade se acha submetida a rápidas e profundas transformações‖.
488
Para Mínguez, ―a
acelerada dissolução do escravismo que, por outra parte, havia tido implantação superficial
nas sociedades gentílicas, unida à fragmentação dos grupos extensos de aparentados e à
intensificação da ação repovoadora a partir de Afonso I, teriam provocado um processo
generalizado de liberação camponesa que terminaria por romper a relação da propriedade
entre o senhor e o escravo, assim como as travas coletivas que o parentesco extenso impunha
à família restrita e ao indivíduo‖
489
. Tal fato ―explica o intento dos libertos de apartarem-se
dos últimos vestígios de submissão que os vinculavam geneticamente à escravidão e de
ascender ao status de liberdade que se insinuava como tendência das transformações que
estava se operando‖
490
. Proposição similar postulou García de Cortázar, para quem as revoltas
de servos ocorrida na década de 770 explicariam o processo de enquadramento social
promovido pela monarquia. Os revoltosos lutaram contra a servidão estimulada pelos reis
astures
491
.
Diferentemente de Abílio Barbero e Marcelo Vigil, para Pierre Bonnassie os territórios
compreendidos entre o Ródano e a Galícia teriam preservado as estruturas sociais, políticas e
jurídicas da época tardo-romanas, que contam como alguns dos seus elementos constitutivos o
sistema escravista e o campesinato livre. Na opinião de Pierre Bonnassie pode ser confirmada
uma redução significação do número de escravos nestas regiões, principalmente no período
circunscrito do século X, tendo sido isto ―conseqüência das manumissões e fugas‖
492
. Tais
considerações defendem a continuidade por um longo tempo de uma enorme quantidade de
mancipia, escravos que trabalhavam em equipes nas villae. Para o medievalista, ainda era
488
MÍNGUEZ, José Maria. Las formaciones embrionárias del norte peninsular. In: ________. História de
España II: las sociedades medievales, 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 75.
489
Ibid., p. 75-76.
490
Ibid., p. 76.
491
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Maria. La ofensiva y expansion de Europa em el escenario español: el
triunfo de la Cristianidad sobre el Islan a traves de la Reconquista. In: ARTOLA, Miguel (dir.). Historia de
España: La época medieval. Madrid: Alianza, 1988, p. 120.
492
BONNASSIE, Pierre. Del Ródano a Galícia: génesis y modalidades del régimen feudal. In: BOUNNASSIE,
Pierre et alii. Estructuras feudales y feudalismo en el mundo mediterráneo. Barcelona: Crítica. 1984, p. 32-
33.
145
possível encontrar em pleno século X ―escravos em Astúrias e em Leão, na Galícia e inclusive
em Castela, apesar de sua reputação de terra da liberdade‖. Desta maneira, a ―exploração do
grande domínio repousava, pois, em mão-de-obra servil, que trabalhava nas reservas e,
mesmo assim, no arrendamento das terras restantes aos camponeses livres‖
493
. Em nossa
opinião, acreditamos que esta perspectiva é bastante acerta, desde que aplicada aos territórios
galegos. Da documentação notarial constante da compilação de Antonio C. Floriano, podemos
dizer que as cartas que revelam a existência de pessoas detidas em trabalho compulsório são
provenientes, em sua maioria da Galícia, mais precisamente oriundos de centros urbanos ou
de seu subúrbio. Dados similares são encontramos de maneira muito sutil e obscura na zona
asturiana propriamente dita.
Possivelmente, poderíamos estar diante de uma única manifestação de
descontentamento de grupos de camponeses desejosos de se livrar das pressões senhoriais.
Porém, mais uma vez a brevidade dos dados nos empurra a levantar outras questões. Não
descartamos as interpretações dos demais historiadores citados, o que pretendemos propor é
um outro exercício de reflexão, cogitando a presença de outra realidade que poderia muito
bem ter coexistido ou até justapor-se às hipóteses de Abílio Barbero, Marcelo Vigil, José
Maria Mínguez e José Maria García de Cortázar. Postulamos que a tal rebelião camponesa
enfrentada por Aurélio, na década de 760, durante os breves anos de seu governo, estivesse
diretamente vinculada à lógica de resistência à expansão territorial asturiana e à sua tentativa
de se impor como autoridade suprema sobre comunidades alheias à égide de um poder
superior.
As antigas cidades situadas fora da zona cântabro-asturiana teriam efetuado uma
oposição diferente àquela realizada pelo campesinato asturiano? Várias não foram as ações
rebeldes contra os senhores de Cangas de Onís e de Právia? Aqueles que lançaram as
fundações do edifício monárquico possuíam um território limitado sob seu controle direto.
Notamos que uma campanha efetuada sobre uma localidade não significava necessariamente a
redução desta ao domínio imediato e à autoridade de governantes como Afonso I e Froila I.
Não havia o arrefecimento, contudo, do desejo de preservar a sua autonomia frente a agentes
externos. Sendo estas terras cristãs ou não, mantenedoras ou não, de suas estruturas sociais
ditas autóctones, o que precisamos considerar é a entidade política que tais regiões foram, ou
melhor, as comunidades existentes nestas regiões se configuravam como unidades políticas
em uma escala muito reduzida. Os servi, os libertini, os indivíduos de orico seruilis não
493
BONNASSIE, op. cit., p. 33.
146
compõe senão um grupo de origem mais do que incerta, identificados com base em uma ótica
social aristocrática tardia sobre a realidade social e política dos tempos de outrora. Talvez,
não haja nada que possamos afirmar com total certeza sobre o estatuto social destes grupos
insurgentes, porém, podemos especular, pelo tempo da ação de Afonso, Froila, Silo e Aurélio
que a expansão do poder asturiano enfrentou dificuldades e resistências.
Englobar os territórios adjacentes demandava um esforço considerável para pacificar
aqueles que foram recentemente anexados e submetidos. Se alguns grupos representavam um
campesinato livre que aspirava conservar sua autonomia, outros formavam uma aristocracia
que se impunha sobre de micro-regiões, tais quais os lendários Pelágio e o duque Pedro da
Cantábria. A maneira com a qual a proto-realeza lidava com suas presas deveria diferenciar de
acordo com os ânimos reticentes de alguns. Mais uma vez dizemos que, por um período de
quase três quartos de culo, a única citação explícita de um agrupamento de pessoas de
origem não-aristocrática em meados do século VIII provém de fontes tardias. Devemos
esperar para os primeiros documentos notariais das duas últimas cadas da centúria citada
para encontramos alguma referência sobre camponeses, livres, libertos ou de condição servil.
Para encontrarmos qualquer documento que desse conta de descrever as articulações de
comunidades campesinas, seu modo de vida ou desse voz a alguém deste grupo, devemos
aguardar pelos primeiros anos da Idade Moderna. Toda e qualquer fonte escrita fornecerá
exclusivamente o ponto de vista do grupo sócio-político dominante que não tinha a menor
preocupação em representar, no período e no lugar que estamos analisando, aquilo que não
fosse aristocrático. Já esbarramos no problema de identificar com precisão as categorias
sociais dominantes, quanto mais às ditas ―subalternas‖.
Resumindo, então, a rebelião dos tais ―libertos‖ ou ―servos‖ ocorreram ao mesmo
tempo em que categorias sociais ―não-servis‖ demonstraram o seu descontentamento em face
das pretensões hegemônicas daqueles identificados pelas fontes tardias como reis asturianos.
São eventos desenrolados no mesmo contexto. Se, em algumas circunstâncias, determinados
grupos são mais inclinados a resistir, outros podem considerar a aliança com as ―forças
estrangeiras‖ uma alternativa aceitável, ainda mais se forem levadas em consideração as
vantagens que tal aliança poderia trazer. O acordo político firmado entre os grupos
aristocráticos pode ser mais claramente compreendido em razão dos objetivos comuns ou das
benesses que um pacto poderia oferecer. Como nos tempos de Pelágio, quando foi atribuída
ao caudilho uma liderança para empreender uma luta contra os invasores muçulmanos, outras
concordatas poderiam ser efetuadas em planos cada vez maiores.
147
Podemos inferir que, em outras situações, quando os acordos não eram estabelecidos,
outras modalidades de afirmação de autoridade tivessem lugar, como o uso da força, arma
freqüentemente de grande eficácia. Suprimir a voz dos descontentes é um caminho plausível
quando não se chega a um termo adequado entre as partes envolvidas em um dado cenário.
Não dúvida que os proto-monarcas asturianos desejassem se impor como senhores das
terras do norte e, partir daí, empreendessem uma luta pela afirmação de sua hegemonia.
Porém, devemos compreender que o êxito das pretensões dos reis asturianos foi um processo
de velocidade irregular, dependendo muito de como os submetidos estejam acostumados com
o novo dominador. A obediência diante de um senhor superior praticado por uma parcela
ampla dos dominados esbarra no fato de a presença deste ser bastante recente, não sendo mais
do que nominal em certas situações. Portanto, o exercício de autoridade nestas circunstâncias
não era usual. A compreender esta preocupação empregaremos o conceito weberiano de
―uso‖, ou seja, ―probabilidade efetivamente dada de uma regularidade na orientação social‖,
regularidade esta que existe pelo exercício efetivo
494
. O respeito aos desígnios da autoridade régia
ocorria enquanto esta se fazia presente diretamente, sem isto, o estado de auto-comando retornaria
ao estado inicial, quando os monarcas asturianos não determinavam as diretrizes para os habitantes
locais.
Acreditamos que parte dos elementos que envolvam a formação de uma autoridade é
com certeza a formação de um ―costume‖, de uma regularidade da obediência. Segundo Max
Weber, o uso é Costume ―quando o exercício se baseia no hábito inveterado‖ cuja ―regularidade é
condicionada pela ‗situação de interesses‘‖ nos quais os indivíduos orientam ―por expectativas suas
ações puramente racionais referentes a fins‖
495
. Acrescentamos ainda o fato de que um costume pode
se instaurar por meio da inculcação, instrução regular que permite a aquisição de determinada visão de
mundo legitimadora, neste caso, da autoridade monárquica asturiana. As antigas campanhas sobre a
Galícia feitas por Afonso I poderiam ter subordinado muito superficialmente estas
terras ao poderio crescente das Astúrias. Sendo assim, quando a autoridade monárquica já não
se fazia mais presente ou debilitava, as populações domadas há pouco tempo poderiam
rapidamente romper com os pactos de paz e cooperação, desobedecendo aos desígnios dos
vencedores de outrora. As comunidades que habitavam o monte Cupério, nos tempos do rei
Silo, possivelmente não se habituaram a responder às ordens de um agente que ambicionava
monopolizar as ações políticas e militares no Norte da Península Ibérica. Muitas comunidades
494
WEBER, Max. Conceitos sociológicos fundamentais. In: ________. Economia e sociedade:
fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília-São Paulo: Unb-Imprensa Oficial, 2004, 1v., p. 18.
495
Ibid., p. 18.
148
nortenhas não estavam acostumadas a obedecer às ordens dos reis asturianos, portanto, nada
mais natural que se insubordinar quando era possível.
Devemos lembrar que a entidade política que deu à luz o chamado Reino das Astúrias
não havia obtido, como temos tentado evidenciar, consolidar de imediato sua estrutura ou
fazer reconhecer sua pretensão de autoridade. As terras, ou melhor, os habitantes de uma
localidade, que não permaneceram por muito tempo sob o jugo de um chefe poderiam não se
acostumar com as exigências que este indivíduo e seu grupo pudesse fazer. Não
havendo colaboradores do rei em número suficiente, tais regiões não teriam muito interesse
em seguir a suas ordens ou permanecerem sob sua égide. A falta de interesse ou de
necessidade auxiliaria na compreensão deste cenário construído na segunda metade do século
VIII, pois os reinados de Aurélio e Silo corresponderam a um período de paz com o poderio
político muçulmano. Sem a presença das expedições islâmicas, os galegos de Cuperio não
teriam a motivação necessária para buscar a proteção dos grandes chefes guerreiros da
Cordilheira Cantábrica. Sem este incentivo e sem a plena constituição de um poder político
devidamente reconhecido, os moradores dos montes da Galícia não teriam o porquê de se
porem sob a guarda e mantido a fidelidade com os monarcas asturianos.
Além dos dados obtidos com as fontes narrativas, precisamos dirigir nosso olhar para a
documentação diplomática produzida a partir do reinado de Silo. Poucos documentos
autênticos foram preservados destes primórdios da Reconquista, impossibilitando maiores
avanços no estudo de nosso objeto de pesquisa. Contudo, os poucos que dispomos auxiliam
para precisar a extensão territorial dos domínios dos primitivos senhores do Norte, como pode
ser evidenciado no diploma de doação de Silo, documento datado de 775
496
.
(Cristo). Silo. Grande e magnífico é o local de habitação para mercê de minha alma,
faço doação aos frades e servos de Deus, presbítero Pedro, converso Alanti,
converso Lubini, presbítero Aviti, presbítero Valentino e outros frades que estão no
mesmo local para que Deus conduza aí aquele que podes por nós refugiar-se estão os
mesmos servos de Deus para darem a eles local de oração no nosso celeiro que está
entre Iube e Masoma, entre o rio Alesanci e Mera, local que é dito Lucis.
497
A doação efetuada por Silo destinava-se a fundação a uma instituição monástica na
região situada entre o rio Eo que divisa as atuais comunidades autônomas das Astúrias e
Galícia e o rio Masma. O território denominado Lucis, compreendido entre estes dois rios,
está situado na Galícia, explicitando assim a existência de um domínio efetivo, no mínimo, no
496
9. El Rey Silo dona a varios religiosos el lugar de Lucis, entre os ríos Eo e Masma, para fundar un
monasterio. In: FLORIANO, Antonio C. Diplomática española del período astur: estudio de las fontes
documentales del reino de Asturias (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1949, 1v., p. 66-67.
497
Ibid., p. 66.
149
entorno das terras concedidas. A região na qual estava inserida Lucis estaria então
suficientemente pacificada para que o rei pudesse transferir a posse de terras para que fosse
edificada uma casa monástica. A rebelião promovida pelos habitantes do monte Cuperio não
entram em contradição com o exposto acima, pelo contrário a promoção de resistência contra
uma força superior demonstra muito mais quão dinâmica e fluida era a pressão da autoridade
dos grandes senhores asturianos. A pretensão asturiana foi efetivando a construção do poder
dos seus reis sobre rias zonas do Norte peninsular, mas sem constituir isto em um processo
linear. Não sabemos a ordem exata destes dois acontecimentos, consideramos, contudo, a
necessidade de relacioná-los como parte intrínseca da luta pela efetiva expansão da área de
influência dos soberanos das Astúrias. Cada vez temos mais resistências produzidas para além
da Cordilheira Cantábrica e nenhuma eclodida nos arredores dos Picos da Europa.
Além da referida transmissão de terras e da luta pela se impor sobre parte da Galícia,
Silo legou à posteridade um edifício que marcaria a fixação do novo centro territorial de
decisões políticas em Právia, A nova corte, situada na localidade de Santianes, pertencente ao
atual município de Právia
498
, explicitou o poder que detinha construindo a capela de San Juan
na qual haveria duas inscrições em seu interior. Não sobraram muitos vestígios de edifícios
ligados a atividade arquitetônica do século VIII. Da edificação original de Santianas de
Pravia, obra do rei Silo, restaram a planta baixa, paredes e alguns elementos construtivos,
partes trazidas à luz graças às escavações arqueológicas feitas entre 1975 e 1979
499
. A
primeira explicava a quem era dedicado o edifício ESTA CASA FOI CONSTRUIDA EM
HONRA DE JOÃO, APÓSTOLO E EVANGELHISTA
500
—, que ficava ―na parte superior do
janelão tríplice do abside‖
501
. A lápide fundamental da igreja de Santianes de Pravia encontra-
se muito danificada, mas, graças ao esforço de José Menéndez-Pidal, pudemos obter a
seguinte reconstituição:
O príncipe Silo o fez
502
A peça encontrava, de acordo com Tirso de Avilés, sobre o alto de um arco situado no
meio da igreja de Santianes de Pravia, onde permaneceu até 1662, quando foi parcialmente
498
SUARÉZ SUARÉZ, Florentino. La corte de Pravia: el rey Silo.
<http://rspeluqueria.iespana.es/silo/index.htm>
499
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 108.
500
IN HONORE IU[A]NNIS APOS[TO]LI ET EVA[N]GEL[ISTE HEC D]OMVS SI[TA CON]NSISTI[T].
SUÁREZ SUÁREZ, op. cit., p.
501
Ibid.,
502
35. Santianes de Pravia (Pravia). Laberinto del Rey Silo. SILO PRINCEPS FECIT. In: GARCÍA
DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real
Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 82.
150
destruída
503
. A região onde se situa o edifício religioso foi palco dos últimos debates
cristológicos do cristianismo ocidental, a bem conhecida querela entre o Beato de Liébana e
Etério de Osma contra o bispo Elipando de Toledo
504
e Félix de Urgel. A obra arquitetônica,
que segundo Florentino Suárez Suárez, representaria uma espécie de encruzilhada entre os
modelos artísticos visigóticos e o pré-românico asturiano
505
. As escavações produzidas em
seu interior revelaram vestígios da primitiva construção, como o pavimento, construído com o
composto chamado de opus signinum segundo o modelo romano, ―hormigón consistente en
mortero de cal y arena, con piedras y restos de cerâmica y teja machacada‖
506
. No altar da
igreja se conservam vários restos decorativos de temática próxima a visigótica, com rosetas,
rodas e ‗cenefas‘ de talos vegetais, estando também presentes na construção capitéis
reutilizados como pias para a água benta
507
. As partes mais antigas desta igreja, pavimento e
elementos decorativos, estão ligadas às práticas arquitetônicas tardo-antigas, mais
precisamente aos protótipos paleo-cristãos dos séculos V-VI
508
. Contudo, como bem aponta
García de Castro Valdés, resta saber:
se tal herança é resultado do substrato local, ou produto de uma importação forânea.
Em todo caso, Santianes se mostra independente do que se configurará a partir de
princípios do século IX como planta basilical asturiana, caracterizada pela cabeceira
tripartida reta, assim como do tipo ao que verossimilmente pertenceu Santa Cruz de
Cangas de Onís, enraizado nas construções de ‗silleria‘ e santuário quadrangular
único do século VII
509
.
Fugindo um pouco no tema que envolve o processo de apropriação de modelos
artísticos não originários das terras asturianas, o que gostaríamos de evidenciar aqui é o
inegável emprego em um edifício de técnicas de construção oriundas das zonas meridionais
das montanhas astur-cantábricas. E, além, disso, nos deparamos com uma divisão de trabalho
jamais encontrada em um meio com poucas clivagens sociais. O trabalho de arquitetos, de
talhadores, de pedreiros, de marceneiros, de pintores e de ourives respondia, primeiro, aos
desígnios dos idealizadores do prédio religioso, e, segundo, na crença que tais desejos fossem
encarados como legítimos. Poder-se-ia inferir que tal atividade poderia ser efetuada com base
na coação dura, pura e simples, porém, não podemos descartar a cooperação com esta pressão
503
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 82.
504
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 108.
505
Ibid.
506
Ibid., p. 113.
507
Ibid., p. 113.
508
Ibid., p. 113.
509
Ibid., p. 113.
151
exercida sobre uma parcela da população não pertencente ao grupo aristocrático das Astúrias
e que tais serviços pudessem ter sido remunerados.
Os quinze anos somados dos governos de Aurélio e Silo parecem ter contribuído de
maneira distinta para a ampliação da rede política do Reino das Astúrias. No plano externo
não podemos enumerar expedições militares semelhantes às desenvolvidas por Afonso I e
Froila I, temos alguma coisa para especularmos sobre a idéia de fortalecimento político do
reino como uma perene estrutura dedicada ao domínio das terras nortenhas. É possível
perceber o reconhecimento de parte da população que habitava ao Norte da Cordilheira
Cantábrica e em seus arredores, que deveriam colaborar de alguma maneira com os
soberanos. Porém, aqueles que viviam nas periferias deste poder, em vias de construção,
permaneciam reticentes em aceitar a cooptação dos monarcas asturianos. De modo geral,
contudo, começamos a perceber a existência de grupos que não participavam da alta esfera de
decisão políticas das Astúrias, identificamos de maneira direta grupos clérigos e monges que
se abrigavam sob a proteção da proto-monarquia, percebemos a presença, de forma indireta,
de grupos habilitados na construção civil, braços qualificados para o labor das artes manuais
herdadas do passado recente visigótico. Estes grupos não seriam a demonstração de uma
inovação operada a partir dos anos de reinado de Silo. Pelo contrário, tanto monges quanto
construtores deveriam se dedicar aos seus ofícios nas regiões asturiana e cantábrica desde,
no mínimo, os tempos da rebelião liderada por Pelágio.
Não constitui como parte de nossos objetivos debater questões relativas sobre presença
cristã no Norte Peninsular, apenas estamos levantando os pontos que resvalam de alguma
forma com nossa pesquisa. Quando falamos de cristianização, demonstramos preocupação
com dois elementos: existência de um corpo sacerdotal e de operários aptos ao trabalho da
construção civil. Encontrando ambos disporemos de dados para refutar a perspectiva
defensora de um primitivismo astur, cantábrico ou vascão. Identificando a presença de
religiosos e de construtores, poderemos nos deparar, de maneira muito indireta, com possíveis
outros grupos que não exerçam atividades produtivas, quem sabe chefes guerreiros,
aristocratas e líderes políticos. No que se refere aos primeiros, destacamos dois indícios para a
região asturiana. O primeiro é uma lápide funerária encontrada como parte dos elementos
construtivos da igreja de Santa Cristina de Lena. A lápide foi encontrada foi encontrada por
Manuel Jorge Aragoneses que publicou o texto contido nela em 1954. Em 1991, foi objeto de
estudo de Lorenzo Arias Páramo, de quem García de Castro Valdés toma como referência
152
direta a descrição do suporte
510
. A inscrição que, encontra-se danificada, fornece o seguinte
texto:
(...) Foi sepultado (...) de março na Era DCLXXXI
511
A epigrafia, datada do ano 643, é acompanhada das letras ―T........L L I‖, segundo
Arias Páramo, entretanto, que não interfere em nada na reconstituição do texto
512
. A data de
fundação desta igreja nos é desconhecida e os poucos conhecimentos que dispomos são
indiretos
513
. A igreja, possivelmente construída no ano de 850 ou nas cadas seguintes,
emprega materiais reaproveitados provenientes do século VII
514
. A inscrição datada do ano de
643 é uma das peças trazidas para a edificação do templo de Santa Cristina de Lena,
juntamente com as colunas e os capitéis coríntios
515
. A maneira pela qual a igreja foi
construída no intuito de fazer o ―arco triunfal e a cancela‖.
Caso este exemplo não satisfação os defensores da tese gentílica, acrescentamos outra
referente a uma lápide fundacional encontrada na igreja de San Martín de Argüelles. A
seguinte inscrição fundamental encontra-se no templo de San Martín de Argüelles,
testemunho mais antigo até hoje de um edifício de culto cristão em solo asturiano
516
.
Foi fundada no quarto dia das Calendas de Maio, na Era DCXXI
517
.
A construção religiosa se situa em Siero, terras situadas a Nordeste de Oviedo,
encontra como patrono San Martin, e estaria integrada a uma cadeia de fundações
eclesiásticas no Noroeste ibérico edificadas em honra do santo turonense
518
. Tal situação
vincular-se-ia a atuação do bispo-abade de Dúmio, Martín o Panônio, durante o século VI.
Para García de Castro Valdés, tal fato não é de se estranhar, que ―em um dos territórios
mais habitados das Astúrias se tenha fixado uma comunidade de culto cristão na citada data‖
510
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 57.
511
1. Santa Cristina de Lena (Lena). (...) SEPULTUS EST/ (...) MARCIAS IN ERA DCLXXXI. In:
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo:
Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 57.
512
Ibid., p 57.
513
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 78.
514
Ibid., p. 78.
515
Ibid., p. 81.
516
Ibid., p. 120.
517
34. Sant Martín de Argüelles (Siero). IIII K[A]L[ENDAS] M[AIAS] FONDATA EST ERA DCXXI.
In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 80.
518
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008., p. 120.
153
519
. É um importante testemunho, tanto pela epigrafia quanto pelas celosías, para se
compreender o processo de cristianização nas terras do norte hispânico
520
. A acima
mencionada lápide relaciona-se epigrafia visigótica emeritense, a letra ―L‖ tem o ―traço
inferior oblíquo, como na época visigótica‖
521
. Estes indícios se confrontam com a tese que
defende a ―tardia cristianização das terras a Norte da Cordilheira Cantábrica, essencialmente
apoiada no argumento ‗ex-silentio‘‖
522
.
Sobre este tema, García de Castro Valdés não se opõe à crença na presença cristã no
interior do território asturiano em fins do século VII, o que o autor defende é que nas zonas
orientais, naquilo que corresponde ao povoado dos vadinienses, havia comunidades cristãs
desde o século V, conforme o aproveitamento dos trabalhos de F. Diego Santos sobre os
testemunhos epigráficos romanos nesta região
523
. Quanto ao argumento sobre o ―silêncio‖ dos
testemunhos, García de Castro Valdés destaca que ainda faltam prospecções e investigações
arqueológicas dedicadas a Antigüidade Tardia nas Astúrias, portanto, os estudos atuais ainda
estão distantes de poderem afirmar alguma coisa mais cristalizada sobre essa questão
524
.
Além destes vestígios de arquitetura monumental, não podemos esquecer de um tipo
construtivo não muito mencionado e que evidencia um modelo mais autônomo de atividade
religiosa: as igrejas rupestres. Tal construção, segundo Enrique Bolado Gutierrez, está
associação àquilo que é qualificado como arquitetura rupestre, ou seja, construções ―surgidas
como ‗covas artificiais‘ escavadas em rochas naturais aproveitando vazios internos
existentes‖
525
. Estas ‗covas artificiais‘ podem ser de dois tipos, segundo a função a qual se
destinam: 1) ―igreja rupestre‖: quando destinadas a funções de culto litúrgico, como acontece
com Santa Maria de Valverde, Campo de Ebro, Cadalso e Arroyuelos
526
. 2) ―habitações de
acolhimento‖ ou ―laudas rupestres‖: destinadas a albergar eremitério ou mosteiro, conforme o
número de seus membros e o tamanho da rocha
527
. Às vezes, ambos os casos podem ser
intercambiáveis, ora servindo de edifício de culto, ora de refúgio a eremitas
528
. Eugenio Riaño
Pérez nos adverte para o fato nem todas as covas, no entanto, terem claras suas funções.
519
GARCIA DE CASTRO VALDES, op. cit., p. 120.
520
Ibid., p. 121.
521
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 81.
522
Ibid., p. 81.
523
Ibid., p. 81.
524
Ibid., p. 81.
525
BOLADO GUTIÉRREZ, Enrique. Arquitecturas rupestres en Valderredible. Cantabria infinita, local:
Editora, volume ou ano, número, período, ano, p. 21. Disponível em: < >. Acesso em: 09 jan. 2010.
526
Ibid., p. 21-22.
527
Ibid., p. 22.
528
Ibid., p. 22.
154
Somente em alguns casos, a certeza pode ser destacada, como o caso de Treviño. Já em La
Rioja, núcleos eremíticos identificados como tais estão em Belorado e Bilibio em Tirón, San
Millán, Mahave-Camprovin na Najerilla, Abelda-Alberite em Iregua, Amedillo, Herce e
Arnedo no Cidacos
529
. Em Nájera, as covas não teriam função eremítica, mas eram habitações
civis
530
.
Dediquemo-nos somente as covas artificiais com evidente sentido religioso. Segundo
Eugenio Riaño Pérez, o fenômeno dos eremitérios rupestres é algo amplo no mundo
mediterrâneo antigo, sendo os mais destacados aqueles que se situam em: Capadócia, Egito,
Terra Santa, Itália, Gálias e Península Ibérica
531
. Na Península Ibérica, os eremitérios
rupestres se concentram na região da Cordilheira Cantábrica e arredores, destacando-se a
Galícia, Bierzo (Leão), Alto Arlanza, San Baudelio de Berlanga (Soria) e San Frutos
(Segovia) em Castela; Liébana em Cantábria; Alto vale do Ebro e San Juan de la Peña
(Aragão)
532
. Dentro do âmbito peninsular destacamos ainda focos na Catalunha (Montserrat),
Baleares, Múrcia e Andalucia. Contudo, o foco de maior concentração destes fenômenos é no
vale do Ebro, tendo como principais núcleos regionais o Alto Pisuerga, Valderredible, Alto
Ebro burgalês: Valdivielso, Baixo Ebro burgalês: Oña, Tobalina, Cuenca del Omecillo
(Álava) e Treviño no sudeste
533
.
Pere Ferrer Marset, analisando o caso do eremitério rupestre de Ares del Bosc, Apesar
do interesses de historiadores e arqueólogos, as covas artificiais tem sido pouco estudas, tal
realidade se faz patente na pouca bibliografia produzida acerca do tema. Muitas vezes, em
Valencia, tais covas são mencionadas como mera curiosidade antiga, o que impede o
desenvolvimento de trabalhos sérios de investigação
534
. Enrique Bolado Gutierrez destaca que
A investigação sobre a arquitetura rupestre em Valderredible é bastante recente e vincula-se
aos trabalhos de Carrión Irún, González Echegary, García Guinea e Bohígas Roldán
535
.
Outras partes peninsulares, como País Basco, Burgo, La Rioja e Cantábria, estudos sobre
covas artificiais vem sendo desenvolvidos alguns anos, produzindo-se artigos e
529
RIAÑO PÉREZ, Eugenio. Eremitorios rupestres y colonización altomedieval, Salamanca. Universidad
de Salamanca, 1995, n. 13, 1995, p. 52. Disponível em: < >. Acesso em: 10 jan. 2010.
530
Ibid., p. 52.
531
Ibid., p. 49.
532
Ibid., p. 49.
533
Ibid., p. 49.
534
FERRER MARSET, Pere. L‘eremitori rupestre d‘Ares del Bosc. Valencia, Editora, volume, n., ano, p.
11. Disponível em < >. Acesso em: 10 jan. 2010
535
BOLADO GUTIÉRREZ, op. cit., p. 22.
155
trabalhos, como a tese doutoral de Monreal Jimeno, que publicou em 1989, chamada
―Eremitorios Rupestres altomedievales‖
536
.
A datação dos habitats rupestres, como nos informa Eugenio Riaño Pérez, tem sido
uma obsessão para os investigadores, que, de uma maneira geral, divergem quanto aos
aspectos cronológicos de seus objetos
537
. Alguns investigadores datam os eremitérios
rupestres no século V, apesar da pouca fundamentação documental e arqueológica. Tal
datação se fundamenta apenas na vitalidade, na época, do eremitismo visigótico
538
. Outros
investigadores, por outro lado, datam estas covas artificiais entre os séculos VIII e IX, período
de repovoamento medieval cristão. Ferrer Marset, propõe um recorte um pouco mais amplo,
ressaltando que são da Alta Idade Média, mais precisamente edificadas entre os séculos VII a
IX
539
. Para Riaño Pérez, o problema que envolve a cronologias das covas artificiais se vincula
a pouca quantidade de indícios que precisem o tempo de sua origem, ainda mais quando se
percebe que tais objetos não são uniformes, sendo frutos de constantes e irregulares
intervenções e ocupações.
Segundo Eugenio Riaño Pérez, arqueológicamente podemos remontar as covas de
Trevinho e de San Millán de Suso ao século VI
540
. Contudo, uma incrível falta de dados
que indique a continuidade da ocupação das mesmas covas entre os séculos VI e X. A
periodização de uma necrópole próxima pode indicar uma continuidade no século IX
541
. No
que tange aos demais conjuntos rupestres, Riaño Pérez enfatiza que foi bastante intenso o
emprego de eremitérios rupestres após a conquista muçulmana para a zona citada, valendo o
mesmo para os arredores, como o vale de Tobalina
542
. Estes rudimentares testemunhos do
passado não se comparam em monumentalidade com as igrejas pré-românicas asturianas,
todavia, seu valor enquanto fonte é inestimável. Apesar dos problemas decorrentes da
periodização de tais habitats rupestres e da constante intervenção humana ao longo dos
séculos, o que muda os recursos estilísticos inclusive, podemos perceber um nível mais
simples de atividade cristianizadora, esforço que não demandava o emprego de amplos
recursos para sua manutenção. A amplitude do fenômeno denota um incrível avanço de um
modo de vida e de uma perspectiva ideológico-religiosa sobre os territórios nortenhos. Esta
presença, com o tempo, foi se intensificando em velocidade desigual dependendo da região,
536
BOLADO GUTIÉRREZ, op. cit., p. 111.
537
RIAÑO PÉREZ, op. cit., 51.
538
Ibid., p. 51.
539
FERRER MARSET, op. cit., p. 111.
540
RIEÑO PÉREZ, op. cit., p. 51.
541
Ibid., p. 51.
542
Ibid., p. 51.
156
mas que representariam uma forte aculturação dos povos do norte nos elementos tardo-
romanos preservados pelos visigodos.
3.3. Nova mutação: reconhecimento e disputa pela titulatura régia:
Se sobre as vontades, os anseios e a cooperação das categorias sociais que exerciam
atividades produtivas não podemos nos pronunciar, felizmente o mesmo não pode ser dito de
outras categorias da sociedade nortenha. Mesmo que timidamente, podemos nos deparar com
referências que nos remetem às tensões políticas na nascente corte asturiana e a sua interação
com facções aristocráticas mais delineadas. Podemos dissipar um pouco as brumas que
limitam a visão do historiador e reunir mais um elemento da dinâmica transformação política
do Reino das Astúrias. Os relatos que vêm a seguir referem-se à sucessão ao trono Astur na
segunda metade do século VIII, com a morte do rei Silo e o governo de Afonso II, até ter sido,
em seguida, temporariamente afastado do trono, usurpado por Mauregato:
Mauregato tendo obtido o reino, reinou tiranamente por V anos
543
.
Segundo a Crônica Rotense:
19. Tendo Silo morrido, todos os magnatas do palácio constituíram Afonso no reino
com a rainha Adosinda no sólio paterno. Mas o tio deste, Mauregato, nascido,
todavia, do príncipe Afonso o Maior com uma serva, era arrogante, inflamado pela
soberba e expulsou o rei Afonso do reino. Tendo aquele fugido, dirigiu-se a Alava e
reuniu-se com os propínquos de sua mãe. Mauregato invadiu aquele reino
tiranamente e por VI anos vingou. Ausentou-se pela própria morte na era
DCCCXXVI
544
.
20. Tendo Mauregato morrido, Vermudo, filho de Froila, cujo primeiro (filho dele)
foi referido na crônica de Afonso o Maior, pois foi irmão deste, foi eleito para o
reino. Este Vermudo foi um grande homem. Reinou por três anos. Abdicou do reino
para ser diácono. Seu sobrinho, Afonso, a quem Mauregato expulsara do reino,
instituiu para si sucessor no reino e com ele viveu por muitos anos. Migrou pela
própria morte pelo século na era DCCCXXVIIII
545
.
543
Cronica Albeldense. 7. Maurecatus tiranne accepto regno rg. an. V. In: LOMAX, D. W. (ed.). Una crónica
inédita de Silos. In: Homenaje a Pérez de Úrbel. Silos, 1976.
544
Cronica Rotensis. 19. Silone defuncto omnes magnati palatii cum regina Adosinda in solio paterno
Adefonsum constituerunt in regno. Sed tius eius Mauricatus ex principe Adefonso maiore de serua tamen natus,
superuia elatus intumuit et regem Adefonsum de regno expulit. Quo fugiens Adefonsus Alabam petiit
propinquisque matris sue se contulit. Mauricatus regnum quod tirannide inuasit VI a. uindicauit. Morte propria
discessit era DCCCXXVI. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987,
p. 49.
545
Cronica Rotensis. 20. Mauricato mortuo Ueremudus Froilane filius, cuius prius in cronica Adefonsi maioris
mentionem fecimus quia frater eius fuit, in regno eligitur. Hic Ueremudus uir magnus nimis fuit. Tres annos
regnauit. Exponte regnum dimisit ob causam quod diaconus fuit. Subrinum suum Adefonsum, quem Maurecatus
a regno expulerat, sibi in regnum successorem instituit et cum eo plurimis annis karissime uixit. Morte propria a
seculo migrauit era DCCCXXVIIII. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris:
CNRS, 1987, p. 50.
157
Já a versão ovetense ou Ad Sebastianum:
§ 19. Tendo Silo morrido, Adosinda, com todo ofício palatino, constituiu Afonso,
filho do seu irmão, rei Froila, no sólio paterno. Mas, surpreendido pela fraude de
Mauregato, seu tio, filho de Afonso Maior, todavia nascido de serva, tendo saído do
reino demorou-se junto os propínquos de sua mãe em Alava. Porém, Mauregato
dominou maliciosamente o reino por seis anos. Apartou-se pela própria morte na era
DCCCXXVI
546
.
§ 20. Tendo Mauregato morrido, Vermudo, sobrinho de Afonso Maior, certamente
filho de Froila, foi eleito no reino. Este Vermudo foi grande homem, reinou por II
anos. Deixou o reino porque se tornou diácono. Seu sobrinho Afonso, a quem
Mauregato expulsara do reino, fez-se sucessor no reino na era DCCCXXVIIII e com
ele viveu por muitos anos. Findou a vida em paz
547
.
A maneira como retornou ao trono régio só nos é indicada pela Crônica Albeldense:
8. Vermudo reinou por II anos. Este por três anos foi clemente e pio. Durante o
reinado deste, fez prélio em Burbia depois sob a era ***.
9. Afonso Magno reinou por LI anos. No XIº ano de seu reino foi expulso
tiranamente e foi encerrado no mosteiro de Abelanie, de onde foi retirado por
Teudane e outros fiéis e foi restituído ao reino de Oviedo
548
.
A versão deixada para a posteridade, fornecida pela Historia Silense omite os reinados
de Silo, Mauregado e Vermudo I, restringindo-se a filiar Afonso I ao rei Froila I, monarca
anterior aos três regentes citados há pouco:
(Froila) Domou os Navarros que eram rebeldes a si, dos quais obteve esposa de
nome Munia, da qual gerou um filho, a quem impôs o nome de seu pai, Afonso
549
.
A Historia Silense prossegue ainda:
Tendo aquele partido, Afonso, homem casto e pio, em seguida elevou-se sucedendo
no reino, firmou seu sólio, que decorado era uma obra forte e bela
550
.
546
Cronica ad Sebastianum. § 19. Silone defuncto regina Adosinda cum omni officio palatino Adefonsum
filium fratris sui Froilani regis in solio constituerunt paterno. Sed preuentus fraude Maurecati ti i sui, filii
Adefonsi maioris de serua tamen natus, a regno deiectus apud propinquos matris sue in Alabam conmoratus est.
Maurecatus autem regnum quod callide inuasit per sex annos uindicabit. Morte propria discessit era
DCCCXXVI.In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 49.
547
Cronica ad Sebastianum. § 20. Maurecato defuncto Ueremundus subrinus Adefonsi maioris, filius
uidelicet Froilani, in regnum eligitur. Qui Ueremundus uir magnanimis fuit. III an, regnauit. Sponte regnum
dimisit reminiscens ordinem sibi olim inpositum diaconii. Subrinurn suum Adefonsum, quem Maurecatus a
regno expulerat, sibi in regno successorem fecit in era DCCCXXVIIII et cum eo plurimis an. carissime uixit.
Uitam in pace finibit.In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 50.
548
Cronica Albeldense. 9. Adefonsus magnus rg. an. LI. Iste XI° regni anno per tirannidem regno expulsus
monasterio Abelanie est retrusus; inde a quodam Teudane uel aliis fidelibus reductus regnique Ouetao est
culmine restitutus. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 24.
549
Historia Silense. Domuit quoque Nauarros sibi rebelantes, vnde uxorem nomine Monniam accipiens, genuit
ex ea filium, cui nomen patris sui inposuit Adefonsum. p. 137.
550
Historia Silense. Qui profecto Adefonsus castus et pius vir, postquam in regnum succedendo emicuit,
solium suum, forti et pulcro opere decoratum, Oueti firmauit., p. 137.
158
Claramente nos confrontamos com um novo momento de cisão no trono asturiano,
patente no caso da deposição de um monarca. A irmã de Froila I, e também esposa do rei Silo,
juntamente com a aristocracia cortesã em Právia tentaram impor como sucessor do falecido
Silo o filho de Froila, Afonso II. Esta é a primeira notícia sobre a mobilização para a escolha
de um novo chefe político nas Astúrias por parte de um grupo da aristocracia nortenha, mais
precisamente e possivelmente aquele pertencente ao círculo mais restrito da corte. Este
grupo é descrito como sendo formado pelos ―magnates do palácio‖, segundo o texto rotense, e
―ofício palatino‖, segundo a versão ovetense. Não discutiremos aqui a razão do emprego
diferenciado dos termos, mas sim nos atermos aquilo que é mais útil para esta parte do
capítulo, a aparição explícita de um séquito bastante fechado. Entre os anos 781 e 782,
aproximadamente, teria se articulado este ―partido‖, atuando em prol da manutenção do título
de rei por este ramo da família monárquica. O que poderia ter sido uma sucessão inconteste,
como as que lhe antecederam, apresentou um foco de tensão. Parcialmente semelhante ao
conflito latente pela liderança nortenha nos tempos do próprio Froila e Vimara, identificamos
aqui uma verdadeira disputa pelo exercício da chefia política nortenha e pelo papel de
protagonista da luta pela hegemonia no entorno da cordilheira Cantábrica e da porção norte da
Galícia.
Não temos referências relativas ao período de atuação de Afonso II como governante.
Nas crônicas asturianas de Reconquista quase nada encontramos, e não podemos senão supor
que tenha sido muito breve devido à intervenção de um grupo descontente com sua ascensão.
A deposição de Afonso II, em 782, foi atribuída a Mauregato, um descendente direto de
Afonso I que, segundo as fontes narrativas, cobiçava ardentemente o posto alcançado por seu
sobrinho. Não temos qualquer menção direta da colaboração de parte de determinados setores
da aristocracia asturiana, mas é claro que essa participação, tal como a articulada na ascensão
de Afonso II, foi fundamental para o êxito da deposição, identificada como um evento
negativo pelo conjunto dos textos narrativos da Alta Idade Média Ibérica.
Notemos a fórmula ―tendo obtido o reino‖, no latim um ablativo absoluto, accepto
regno. Podemos verificar que uma outra acepção da forma verbal pode ser também traduzida
como ―tendo aceitado o reino‖, cabível se fizermos algumas considerações relativas ao verbo
accĭpěrě. Não significa simplesmente ―aceitar‖, como se aquele que recebe não tivesse
forçado a outra parte a promover a transferência de algo, neste caso o reino asturiano.
Todavia, etimologicamente podemos ver que o verbo accĭpěrě é originário da fusão entre a
159
preposição ad e o verbo căpěrě
551
. Este verbo, segundo F. R. dos Santos Saraiva, ―parece ter
relação com o grego comer com avidez; e com o hebraico , Kaf, palma da
mão‖
552
, significando então tomar, agarrar, pegar, apanhar, apossar-se de e apoderar-se de
553
.
Acrescenta-se, ainda, o advérbio de modo, tiranne, tiranamente, o que completa a descrição
da figura do rei Mauregato. Usurpador é o termo adequado, mas não constante nas crônicas
asturianas de Reconquista. Talvez esta sua atitude, promovendo a instabilidade da ordem
social e política, seja um dos fatores que levaram a sua exclusão da lista de monarcas
asturianos na Historia Silense.
A partir destas referências compreenderíamos o impacto das ações de Mauregato, e
como elas foram caracterizadas após os anos da sua morte. A escolha dos vocábulos pelo
escriba não é aleatória; muito pelo contrário, reitera a representação negativa da pessoa deste
monarca. Faz-se então uma oposição com o rei que retornaria em seguida, realizando-se um
jogo de contrastes com aquele que é descrito como um legítimo representante da casa real.
Para ressaltar a posição indevida, a versão ovetense da Crônica de Afonso III refere-se a uma
origem materna. Diferentemente de Afonso II, Mauregato seria filho de uma serua, serva
doméstica, pessoa de baixa extração social. Parte da ilegitimidade como rei decorreria, aos
olhos da sua geração e da seguinte, a seu parcial afastamento das grandes famílias do
Noroeste Peninsular, por não advir de prosápia régia.
De todo o exposto impõe-se uma reflexão crítica: seria este evento descrito pela
perspectiva de um escriba de fins do século IX? Até que ponto podemos dar credibilidade a
esta visão pejorativa da tomada do poder por Mauregato? A deposição de Afonso II não foi
seguida, aparentemente, de qualquer vestígio de tensão política que estimulasse uma revolta.
Nos seis anos de atuação governamental do usurpador não conseguimos rastrear nenhum
vestígio de descontentamento capaz de levar adiante um confronto mais intenso entre os
grupos aristocráticos. A facção derrotada não conseguiu impor-se sequer pela violência, talvez
pela incapacidade de levar a cabo tal tarefa. Se a ascensão de Mauregato não foi seguida por
uma deflagração de violência entre as partes envolvidas na disputa pela hegemonia, será que a
origem materna do governante teria sido motivo de escândalo para seus contemporâneos?
Será esta uma preocupação limitada a uma realidade social tardia? Nenhuma fonte narrativa
descreve os parcos anos de reinado de Mauregato. Como os cronistas tendiam a escrever
aquilo que consideravam relevante para seus monumentos historiográficos, podemos supor
551
SARAIVA, F. R. dos Santos. Dicionário latino-português. Rio de Janeiro: Garnier, 1993, p. 12.
552
Ibid., p. 179.
553
Ibid., p. 179.
160
que teriam a preocupação de relatar os fatos que reforçassem os aspectos negativos do
exercício do poder pelo ―usurpador‖, coisa que realmente não ocorre. Talvez o que os escribas
do século IX desejavam apresentar, com o caso da ascensão de Mauregato, era uma
modalidade de sucessão que não deveria ser repetido, enquadrando-a como um mau exemplo
para as próximas gerações.
Se as narrativas não são capazes de nos fornecer elementos que indiquem o estado das
relações políticas no tempo de Mauregato, precisaremos fazer uso de outros textos, como por
exemplo, documentos contemporâneos a seu reinado. De documentação notarial nada nos foi
legado. Epigrafia ou construções monumentais ou igrejas também não colabora com nossos
objetivos, contudo, o hino, atribuído ao Beato de Liébana, dedicado a Santiago, é a única
fonte não narrativa a fazer menção ao rei Mauregato. Intitulado de O Dei Verbum, o hino tem
um acróstico que diz o seguinte:
Ó Rei dos Reis, escuta o piedoso rei Mauregato. Defenda-o e proteja-o com teu
amor
554
.
Este hino faz parte do ―ofício litúrgico do rito moçárabe na festividade do Apóstolo
Santiago‖
555
e está, junto com as demais obras atribuídas do Beato de Liébana, inserido nas
tensões geradas pela chamada ―Querela Adocionista‖. Advertimos que não daremos espaço
para uma abordagem acerca desta questão, deixando isto para o capítulo seguinte. Aqui
devemos apenas nos ater àquilo que fornece dados sobre a posição de destaque da monarquia
asturiana e que indique o nível de articulação social e política imediata constituída ao seu
redor. Para agregar mais informações, recorremos a um fragmento do chamado Apologético:
Lemos a carta de tua procedência no presente ano e dirigida, não a nós, mas ao
abade Fidel sob o sigilo no mês de outubro, na era 823, a qual nós ouvimos, mas que
tivemos condições de -la no sexto dia das calendas de dezembro. E havendo-
nos conduzido ao irmão Fidel, não na curiosidade daquela carta, mas pelos recentes
votos da religiosa senhora Adosinda, ouvimos que estava publicamente difundido
por toda Astúrias este escrito contra nós e nossa fé
556
.
554
O Dei Verbum. O raex regum regem piium Maurecatum aexaudi cui prove oc tuo amoré preve. In:
CAMPO HERNANDEZ, Alberto del et alii. Beato de Liébana. Obras completas y complementárias: Comentario
al Apocalipsis, Himno ―O Dei Verbum‖, Apologético. Madrid: BAC, 2004, 1v, p. 652.
555
GONZÁLEZ ECHEGARAY, J. Introduccion. In: CAMPO HERNANDEZ, Alberto del et alii. Beato
de Liébana. Obras completas y complementárias: Comentario al Apocalipsis, Himno ―O Dei Verbum‖,
Apologético. Madrid: BAC, 2004, 1v, p. 645.
556
Apologetico. I. Legimus litteras prudentiae tuae anno praesenti, et non nobis, sed Fideli abbati mense
Octobri in aera 823 clam sub sigillo directas; quas ex relate adveninsse audivimus, sed eas usque sexton
Kalendas Decembres minime vidimus. Cumque nos ad fratrem Fidelem, non litterarum illarum compulsio, sed
recens religiosae dominae Adosindae perduceret devotio, audivimus ipsum libellum adversum nos et fidem
nostram cuncta Asturia publice divulgatum., In: CAMPO HERNANDEZ, Alberto del et alii. Beato de Liébana.
Obras completas y complementárias: Comentario al Apocalipsis, Himno ―O Dei Verbum‖, Apologético. Madrid:
BAC, 2004, 1v p. 674.
161
Também conhecido como Carta de Eterio y Beato de Liebana a Elipando, o
Apologetico, é uma carta destinada ao bispo Elipado de Toledo, representante principal da
igreja sob terreno dominado pelos muçulmanos. Por meio desta carta, o Beato rebateria as
tentativas do bispo toledano de trazer boa parte da cleresia asturiana e nortenha para o seu
ponto de vista teológico. Entretanto, independentes disto, o texto está circunscrito ao período
de reinado de Mauregato, sendo o Apologetico aquele que possui uma data muito bem
delimitada, era 823, ou seja, ano 785 da era vulgar. Ambas as obras foram redigidas no
mosteiro do território de Liébana, em plena zona habitada pelos antigos cântabros. A
referência a Adosinda, esposa do rei Silo, relaciona-se com o momento aparentemente recente
em que ela ingressa na vida monástica, muito possivelmente poucos anos após a deposição de
Afonso II. Por sua vez o hino O Dei Verbum não tem qualquer outra possibilidade de datação
que não seja a fornecida pelo acróstico. Tais informações possibilitam notar que, pelo menos,
uma parcela da comunidade sacerdotal nortenha reconhecia a autoridade política detida por
Mauregato e que um de seus membros compôs uma peça litúrgica solicitando proteção divina
para o governante asturiano. Não uma proteção pelo fato deste monarca ser um usurpador,
mas porque tal oração se insere de um conjunto de práticas religiosas cristãs que envolvem o
apoio divido para a condução dos negócios do reino ou sucesso em expedições militares.
Além do exposto acima, começamos a notar que o núcleo político nortenho era
reconhecido por membros da hierarquia eclesiástica em zona muçulmana. Podemos
depreender do Apologetico indícios de que o bispo Elipando, enquanto chefe do que sobrou
da igreja visigótica, lançava suas pretensões sobre a comunidade clerical que se organizava
em terras nortenhas, representados aqui por Eterio e Beato e, implicitamente, detinha
conhecimento da existência de uma rainha: Adosinda. Dentro deste contexto, uma parte da
igreja asturiana possuía relações bastante íntimas com a casa real, tanto no que se refere ao
novo soberano quanto à antiga rainha. Tais referências atestam de maneira bastante clara a
capacidade atrativa da monarquia asturiana, significando isto que estamos diante de uma
estrutura política cuja existência é reconhecida e respeitada por um grupo considerável.
Encontramos pelos testemunhos do Beato de Liebana o conjunto de pessoas espalhadas por
uma extensa porção geográfica, desde Lucis, na Galícia, até Liebana, nas zonas orientais.
Dentro desta circunscrição se constituiria o corpo estável do Reino das Astúrias, tendo Právia
como seu centro político.
Os soberanos asturianos seriam, na linguagem adotada de Elman Service, ―homens
centros‖, aqueles que, por suas condições materiais e qualidades pessoas, atrairiam um grande
número de colaboradores e súditos, detentores de meios de articular o conjunto da sociedade
162
em seu benefício. Sem o emprego da força coercitiva esses reis lograram obter os serviços de
seus súditos, fato que indica que a titulatura régia constituiu um elemento de afirmação social
e política, tornando legítimas suas ações sobre o reino. Atuar em favor do monarca tornou-se
um costume, naturalizado, necessário. As ações realizadas pelos habitantes da zona asturiana
passaram a estar condicionadas pelas possibilidades de se atuar enquanto súditos, estando
estes cientes das implicações de determinados posturas adotadas entre si e diante do monarca.
Precisar efetivamente quanto tal cenário se constituiu não é uma tarefa simples, mas com
certeza total isto veio a se instaurar no tempo de Silo e Mauregato, tendo alguma
probabilidade de ter sido assim no tempo do rei Aurélio. O período de paz com o Islã Ibérico
significou um período de melhores condições para a definição do poder monárquico
asturiano. Além do emprego de expedientes coercitivos, a monarquia começou a contar com
a colaboração de um número importante de habitantes nortenhos.
O único fenômeno político que as crônicas do ciclo de Afonso III e a Albeldense
relatam, além da sucessão de Mauregato, é a sua expedição contra o território de Álava, então
denominado pela Crônica Rotense de regnum‖, reino. Qual seria o significado exato do
conceito destacado? possibilidade de que Álava já mantivesse uma certa autonomia
política frente ao Reino das Astúrias, uma região ainda não submetida perenemente à
autoridade da entidade política que Mauregato então regia. Se considerarmos a notícia
preservada na Historia Silense, os ataques perpetrados por Froila I contra as terras dos
―Navarros‖ que haviam se rebelado seriam então um indício de que Álava fazia parte do
horizonte conquistador antes de Bermudo I. Suprimida a revolta, o monarca tomou como
esposa Munia, mãe de Afonso II, possivelmente uma forma de acordo político entre as partes
beligerantes. Mais uma vez estamos diante de um acordo matrimonial com total função
política, que objetivava firmar a paz entre grupos que se confrontaram. O termo ―Navarros‖
pode muito bem ser uma modificação do cronista de fins do século XI, pois as terras que
compreenderiam a antiga Álava descrita nas crônicas alto-medievais estariam, após o ano
1000, submetidas ao domínio dos reis navarros. De qualquer forma, a citada região deveria,
segundo os autores das primeiras crônicas de Reconquista, estar inserida na esfera de
influência asturiana desde os tempos de Afonso I. Muito provavelmente configurando-se
como um território dotado com algum tipo de chefia política, similar ao que veio a se
constituir ou se revelar em Castela, por exemplo. Não devemos esquecer que outras comarcas
nortenhas eram dotadas de sua própria dinâmica política, que foram sendo trazidas à tona de
acordo com o esforço expansionista asturiano. Como podemos atestar, ela, durante o reinado
163
de Froila I, estava se insurgindo, contudo, quando Mauregato governava, ela serviu de refúgio
para o deposto Afonso II.
A capacidade de resistir ao assédio dos senhores asturianos pode lançar uma parca luz
sobre o grau de complexidade política destas terras situadas no vale do rio Ebro. Para autores
como José Maria nguez, a rebelião contra Froila I e o abrigo oferecido a Afonso II,
destacando que estas seriam as terras e o povo de sua mãe do segundo, atestaria a preservação
do vigor tribal alavês, que foi transferido para a retomada política deste rei. Atribuir esta
oposição alavesa contra a dominação asturiana a continuidade de práticas beligerantes
oriundas de um meio ainda tribalizado não significa nada. Primeiro, porque a procura de
amparo político e social entre os parentes era algo muito corrente no medievo ocidental, ainda
mais se consideramos o fato de não existirem estruturas jurídicas capazes de proteger os
indivíduos, que apenas contavam com os laços de solidariedade familiar. E, segundo, porque
o desenvolvimento de atividades militares ou resistências políticas não tem qualquer vínculo
imediato e genético com aquilo chamado genericamente de sobrevivências tribais. Se assim o
fosse, todas as manifestações de oposição ao avanço muçulmano na Península Ibérica em
zonas montanhosas poderiam ser descritas como ações ligadas a esta preservação tribal.
Posição um tanto fora de questão. Estas lideranças nos são totalmente anônimas, a não ser
pelo fato do nome de Munia ser citado pela Historia Silense, o que logicamente nos informa
sobre a posição de sua família no jogo de poder no norte peninsular.
Após a morte de Mauregato em 788, Vermudo I, filho de Froila I, portanto sobrinho
do rei Afonso I. Segundo o ciclo de Afonso III, ele ascendeu ao trono asturiano por meio de
uma eleição. Além dos elogios dedicados ao monarca, não temos mais nenhuma informação
sobre o seu reinado. Quase não fez guerras para pacificar populações rebeldes,
insubordinações aristocráticas, para lutar contra expedições andaluzas ou empreender razias
sobre território muçulmano, pelo menos de acordo com as crônicas do ciclo de Afonso III.
Encontramos uma breve referência a uma campanha em Burbia, em data incerta, que o
testemunho da Crônica Albendense está incompleto. As únicas informações narrativas sobre
este governante decorrem de seu afastamento da vida pública, sua retirada para ingressar na
vida religiosa como diácono, diaconus, como bem confirmam a Crônica Rotense e a Crônica
Ovetense. O autor da Crônica Albendense enfatiza este aspecto religioso com o recurso às
expresões ―clemente e pio‖, clemens et pius. Este vínculo mais íntimo com a estrutura
eclesiástica ibérica nos obriga a refletir sobre os contatos políticos entre os chefes asturianos e
os quadros da hierarquia da Igreja.
164
A escassez de dados não se restringe às fontes narrativas, quanto a documentação
notarial asturiana destes tempos primitivos não dispomos de um corpus grande. O governo de
Vermudo I também praticamente não deixou registros que pudessem ser utilizados para
análise, exceto um. O único preservado é datado de 1º. de janeiro de 790, e se refere à entrada
de vários monges no mosteiro de Águas Cálidas
557
. Além de destacar o nome dos homens e
das mulheres que ingressaram na referida casa monástica, da doação da herdade pertencente
ao mosteiro, encontramos uma única referência a Vermudo I.
O pacto foi feito sob o dia das calendas de janeiro, na era DCCCXXVIII e sendo
Vermudo rei em Astúrias
558
.
Não temos nada além destas informações. Nem uma igreja ou lápide. O único evento
extraordinário foi a abdicação de Vermudo I. A transição deste monarca para Afonso II é uma
das fases mais obscuras da história do reino. Contamos com três versões para o seu retorno. A
primeira delas é fornecida pela Crônica Rotense, que atribui o retorno do monarca exilado
pela própria vontade de Vermudo I, que o instituiu como seu sucessor. A versão ovetense diz
que Afonso II fez-se sucessor, enquanto que a Crônica Albeldense nos fornece um relato um
pouco mais detalhado deste evento, mais precisamente a participação de um membro do
séquito do rei desterrado. Teudane, muito provavelmente, encabeçava o movimento de
restituição da autoridade de Afonso II, estava acompanhado por outros fiéis seguidores do
monarca. Esta versão albeldense não contradiz a Crônica Ovetense. Contudo, que caminho
tomar agora? Fazer uma ―compilação‖ dos fatos não nos parece ser a melhor saída, todavia,
fugir a questão não é uma alternativa muito honrosa. A opção que se configura mais produtiva
em análise envolve o retorno do filho da rainha Adosinda de seu confinamento no mosteiro de
Abelanie. O papel político dos companheiros de Teudane demonstra-nos o poder de
organização da clientela régia. Não dados sobre a origem destes personagens, nem se eram
―magnates do palácio‖ que elegeram o monarca em 782 ou aristocratas provenientes de outras
regiões do reino. Todos são identificados pela Crônica Albeldense como ―fiéis‖, fideles,
grupo que deteve força suficiente para impor o regresso de Afonso II e a imposição deste
como sucessor de Vermudo I. Esta situação que revelaria uma debilidade da monarquia para
impor o seu próprio sucessor e um vigor daqueles que sustentaram o pretendente a rei
A reentronização de Afonso II ocorreu no ano de 791, período que abre longos anos de
reinado, período profundamente marcado por uma pujança construtiva nunca antes
557
14. Pacto monástico de accesión al Monasterio de Aguas Cálidas de varios monjes que deseaban
ingresar en él. In: FLORIANO, op. cit. Factus pactus sub die calendas ianuarias, era D CCC XXVIII et rege
Uermudo in Asturias., p. 89-90.
558
Ibid., p. 90.
165
experimentada em Astúrias e também pela presença de sinais que evidenciam certa mudança
na titulatura régia. As fontes revelam um investimento intenso na produção de uma imagem
monárquica, algo que o se fazia presente na época precedente. É evidente que esbarramos
na parca produção de fontes, mas, mesmo assim, é algo merecedor de nossa atenção.
Diferente dos monarcas anteriores, Afonso II é muitas vezes referido por seus vínculos
familiares, por suas origens e por seu nome representar a continuidade das ações de seus
antepassados. Seus epítetos ressaltam o valor que lhe foi investido pela posteridade. Em um
diploma de doação ao Mosteiro de São Salvador destaca-se:
Na era DCCXLVIIII, a glória do reino dissipou-se com Rodrigo. Com efeito, ele
sustentou com mérito o gládio contra dos Árabes. Desta calamidade, Cristo, pela tua
destra, fez patente teu fâmulo Pelágio. No princípio, este altivo lutador conduziu
vitoriosamente pela potência as hostes e vitorioso defendeu o povo dos Cristãos e
dos Astures. Froila disintgüiu-se como fiho mais ilustre do reino. Por ele, com
efeito, neste local que é denominado Oviedo, foi fundada igreja dedicada ao Teu
Sacrossanto Nome (...)
559
.
Datado no ano de 812, o diploma é o documento mais antigo preservado sobre Afonso
II. Nele está explicitada pela primeira vez a idéia de continuidade entre o primeiro caudilho
asturiano e aquele monarca, tanto por via familiar quanto pelo dever de guiar os cristãos do
noroeste Peninsular. Em um período ainda não muito claro, Právia deixou de ser a capital do
reino, que foi transferida para Oviedo, núcleo populacional que permanecerá neste status por
cerca de um século. Neste lugar encontraremos os testemunhos mais claros da
intencionalidade construtiva dos reis asturianos, portadora de fins políticos e religiosos que
corroboram com a tendência de fortalecimento da atratividade gia. Aqui a monarquia deixa
de contribuir pontualmente com a renascente igreja ibérica, passando a investir
arquitetonicamente em símbolos de poder. Qualitativamente não se diferencia tanto daquilo
feito por grandes casas aristocráticas, mas a grandiosidade, a quantidade e o valor simbólico
ultrapassam tudo que já foi feito e o que permanecia sendo feito. Sobre tais atividades,
contamos com esta notícia contida na doação a Igreja de São Salvador está presente nas fontes
do ciclo de Afonso III, segundo a Albeldense:
559
24. Dotación fundacional de la Iglesia de San Salvador de Oviedo por el Rey Alfonso II.
(Testamentum Regis Adefonsi). (...). In era dcc xl viiiiª simul cum rege roderic regni amisit gloria, mérito
etenim arabicum sustinuit gladium. Ex qua peste; tua dextera Christe famulum tuum eruisti pelagium, Qui In
principis suplima tus potentia uictorialiter dimicans hostes perculit et christianorum asturumque gentem uictor
sublimando defendit, Cuius ex filia filius clarior regni apice froila extitit decoratvs; ab illo etenim in hoc loco qui
nuncupatur ouetdao fundata nitet aclesia tuo nomine sacratuoque sacro nomine dedicata, atsunt et altaria
duodecim apostolorum simule t eclésia Iuliani et basilisse martyrum tuorum. (...). Diplomática do período astur
(718-910). In: FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo:
Cartulario Crítico, 1v. 1949, p. 120-121.
166
Este, em Oviedo, edificou o templo de São Salvador com os XII apóstolos; fabricou
admiravelmente em sílica e pedras a aula de Santa Maria com três altares
560
.
A Crônica Rotense por sua vez assim transmite esta informação:
Este firmou seu sólio em Oviedo. Edificou, também, uma basílica em honra de
Nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, o altar dos doze apóstolos e igreja em honra
a santa Maria, sempre virgem, e ali fabricou admirável obra de sólida construção
561
.
A Crônica de Afonso III, versão ovetense:
Este firmou sólio do reino em Oviedo. Construiu uma basílica, também, em nome do
Redentor, Nosso Salvador Jesus Cristo, obra admirável, que foi chamada
especialmente de igreja de São Salvador, tendo acrescentado ao altar principal por
ambos os lados o dobro do número de ornamentos, encerradas as relíquias de todos
os apóstolos
562
Estes breves fragmentos de textos nos servem para demonstrar os paralelismos entre
os documentos compostos a posteriori e aquele produzido durante o próprio reinado de
Afonso II. Estes testemunhos produzidos deste momento do Reino das Astúrias seriam, na
opinião de José Angel García de Cortázar, indícios explícitos de fortalecimento da igreja
563
. O
reinado de Afonso, segundo este historiador, representa uma ruptura com as estruturas
políticas precedentes, correspondendo então à consolidação de uma entidade política
estável
564
. Para García de Cortázar a ―obra política deste monarca inclui o fortalecimento
interno do novo reino e a proposição de uma política de permanente hostilidade contra o
Estado cordobês, que o círculo palatino justifica ideologicamente‖
565
. No que se refere à
política externa de Afonso II, podemos perceber uma mudança de comportamento. Reiniciaria
uma nova fase de belicismo fruto da herança tribal alavesa trazida pelo novo monarca. Assim,
rompia-se, na perspectiva deste historiador, com a política ―pacifista‖ de seus predecessores.
A nova configuração estabelecida permitiu o reinicio dos conflitos com os muçulmanos,
560
Cronica Albeldense. Iste in Ouetao templum sancti Salbatoris cum XIIm apostolis ex silice et calce mire
fabricauit aulamque sancte Marie cum tribus altaribus hedificauit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 24.
561
Cronica Rotensis. Iste solium suum Oueto firmauit. Baselicam quoque in honore Domini et Saluatoris
nostri Ihesu Xpi + cum bis seno numero apostolorum altaris adiungens, sibe eclesiam hob honorem sancte Marie
semper uirginis cum singulis hinc atque inde titulis miro opere atque forti instructione fabricauit. In: BONNAZ,
Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 50.
562
Cronica ad Sebastianum. Iste prius solium regni Oueto firmabit. Basilicam quoque in nomine Redemptoris
nostri Saluatoris Ihesu Xfii miro construxit opere, unde et specialiter ecclesia sancti Saluatoris nuncupatur,
adiciens principali altari ex utroque latere bis senum numerum titulorum reconditis reliquiis omnium
apostolorum. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 50.
563
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Angel. La ofensiva y expansión de Europa en el escenario español: El
triunfo de la Cristiandad sobre el Islam a través de la Reconquista. In: ARTOLA, Miguel (dir.). Historia de
España 2, la época medieval. Madrid: Alianza. 1999, p. 120.
564
Ibid., p. 120.
565
Ibid., p. 120.
167
havendo ocasiões, mais precisamente, duas, em que as expedições islâmicas foram rechadadas
da própria capital Oviedo
566
.
A interpretação de José Maria Mínguez sobre estas transformações destoa muito desta
visão tão corrente entres os historiadores
567
. Para Mínguez, faltaria em boa parte da
historiografia espanhola ―sensibilidade para captar a extraordinária importância de algumas
notícias presentes nas próprias crônicas‖
568
. Foram nos reinados que antecederam a Afonso II
que demonstram as turbulentas transformações nas Astúrias. As usurpações do trono, as
rebeliões camponesas e revoltas nos territórios recém conquistados pela nascente monarquia
são indícios claros da importância, diferentemente do que crêem muitos historiadores, dos
reinados de Aurélio, Silo, Mauregato e Vermudo I
569
. Segundo José Maria Mínguez, as
narrativas revelariam a ―existência de graves tensões sociais que indicam profundas
transformações que constituem o ponto de arranque de novas linhas de ação que vão marcar a
evolução posterior do reino na ordem econômica, social e política a médio ou longo prazo‖
570
. Nos arredores do ano de 800, ocorreram novas atividades expansionistas e colonizadoras,
acompanhadas de reações do exército de Córdoba
571
.
Parte destas transformações na sociedade asturiana manifesta-se com ―o nascimento de
uma consciência de restauração neogótica‖ que é patente ―ao longo do dilatado reinado de
Afonso II‖
572
. Este é o momento mais valorizado por García de Cortázar, que destaca o
grande êxito deste monarca na ampliação territorial asturiana e na reorganização, de Alava à
Galícia
573
. Em ambas as regiões surgiram sedes episcopais que atuaram ―como focos de
colonização e evangelização de galegos e bascos‖
574
. Segundo este medievalista, foi neste
cenário que o reino desenvolveu uma nova faceta. A imigração de moçárabes oriundos das
terras islâmicas fez as Astúrias incorporar novos elementos culturais, religiosos e políticos,
com especial destaque para a cleresia, que era o grupo realmente nostálgico dos dias de glória
e privilégios da época visigoda
575
. São novos grupos infiltrando-se pelo reino asturiano,
trazendo consigo uma bagagem cultural e social que ajudava a reforçar o espírito de retomada
da independência política cristã em cenário ibérico. Não acreditamos que tais imigrantes
566
GARCÍA DE CORTÁZAR, op, cit., p. 121.
567
MINGUEZ, José Maria. Las sociedades feudales 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 74-75.
568
Ibid., p. 75.
569
Ibid., p. 75.
570
Ibid., p. 76.
571
Ibid., p. 76.
572
MITRE, Emílio. La España medieval: sociedades, estados, culturas. Madrid: Istmo, 1979, p. 102-103.
573
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 121.
574
Ibid., p. 121.
575
Ibid., p. 121.
168
tivessem levado uma ―nova cultura‖, algo diferente do que estava sendo praticado em
Astúrias, mas sim uma variação de uma mesma matriz, um pouco modificada pelas injunções
do tempo e pela presença árabe.
Para García de Cortázar, neste ambiente nasceu o ―sentimento neogótico‖, que teria
despertado a consciência de continuidade entre o Estado hispano-godo e o reino astur, seu
legítimo restaurador
576
. O medievalista ainda verifica que tal efervescência foi fruto do
exagero dos cronistas do século IX, que produziram os textos do chamado Ciclo de Afonso
III, interpretando e descrevendo o translado da capital régia para Oviedo como uma
demonstração da restauração visigótica, representada pelo ―Ofício Palatino‖, Officium
Palatinum
577
, como destacado pela versão ovetense da Crônica de Afonso III. Segundo García
de Cortázar, as expressões ideológicas do ressurgimento do poderio visigodo no Noroeste
peninsular contribuíram para levar à confusão muitas gerações de medievalistas espanhóis,
que teriam se equivocado ao atribuir aos bascos e cântabros povos que resistiram à
ocupação romana e visigótica a condição de continuadores diretos do antigo reino de
Toledo
578
.
Além dos feitos militares do período em questão, José Miguel Novo Güisán elenca
outros elementos para caracterizar as mudanças ocorridas no reinado de Afonso II. Este
historiador ressalta alguns, dentre eles, a transferência da capital de ―Cangas de Onís‖ para
Oviedo, a criação do bispado de Oviedo, a celebração do Concílio de Oviedo, a descoberta da
tumba do apóstolo Santiago. O esforço empreendido possibilitou a criação de uma igreja
―nacional‖ asturiana, ―independente tanto da carolíngia quanto da toledana‖
579
. Entretanto,
apesar daquilo exposto por Novo Güisán, não podemos deixar de apresentar uma outra
perspectiva acerca do período, como a apresentada por um antigo representante da
historiografia espanhola, Cláudio Sanchez-Albornoz. Ele não considera possível a retomada
das instituições visigodas pelos reis asturianos, ―porque estava esquecida a velha
organização cortesã e eclesiástica da sede gia de Toledo‖
580
. De fato, Sánchez Albornoz
considerou as diferenças dos cenários asturiano e toledano para tecer seus comentários, nós,
no entanto, afirmamos ainda que toda retomada ou apropriação de algum elemento ou
576
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 121.
577
Ibid., p. 121.
578
Ibid., p. 122.
579
NOVO GÜISÁN, José Miguel. Los pueblos vasco-cantábricos y galaicos en la Antigüidad Tardía (siglos
III-IX). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá-Servicio de Publicaciones, 1992, p. 85.
580
SANCHEZ-ALBORNOZ, Cláudio. España: un enigma histórico. Sudamericana: Buenos Aires, 1956, 2v.,
p. 374.
169
tradição esbarra impossibilidade desta atitude de se efetivar na prática. Quase cem anos
separam Afonso II do último rei dos visigodos.
Sanchez-Albornoz, contudo, apesar das limitações impostas pelo tempo, verifica que
este ideário neogótico rapidamente se arraigou nas mentes e nas vontades de uma minoria
nobiliárquica e eclesiástica que rodeava os monarcas asturianos
581
. Os escribas compuseram
genealogias que pretendiam provar a linha de continuidade entre os reis asturianos e
visigodos, vinculando o destino das Astúrias aos antigos projetos políticos da monarquia
hispano-goda por meio de profecias embebidas nas Sagradas Escrituras
582
. Para Abílio
Barbero e Marcelo Vigil, este discurso de continuidade entre Astures e Visigodos possuía a
clara preocupação de garantir a legitimidade da realeza asturiana
583
. O que as crônicas
tenderam a realizar foi a exaltação pró-gótica do reinado de Afonso II, possibilitada pela sua
aclamação pela aristocracia do palácio, ou Ofício Palatino, e pela unção
584
. Barbero e Vigil
destacam também o empenho de se afirmar a importância da filiação patrilinear como um dos
fundamentos da ascensão ao trono, como é destacado na versão ovetense da Crônica de
Afonso III, que nem chega a mencionar a unção de Afonso II
585
. Por outro lado, o documento
de 812, na visão destes autores, ―insiste na ascendência materna que enlaçava Afonso II a
Pelágio, sem mencionar Afonso I‖
586
. Não custa lembrar nossa discordância quanto a este
ponto ainda mais, como destacamos nesta tese, a idéia da matrilinearidade não é capaz de
se sustentar pelo fato de a sucessão monárquica não estar amparado em uma tradição, costume
ou qualquer elemento ordenador. O único elemento palpável é a existência de um jogo de
interesses que determina sim a transmissão de poder. A correlação de forças é o elemento
preponderante da ascensão de um monarca, vide as duas vezes em que Afonso II alcançou o
trono, com o apoio da aristocracia palaciana, o sucesso da usurpação de Mauregato, a
entronização de Aurélio, irmão de Froila I e coroação deste mesmo Froila após a morte do
pai, Afonso I.
3.4. As lideranças políticas asturianas e a legitimação pelo sagrado:
581
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 374.
582
Ibid., p. 374.
583
BARBERO, Abílio, VIRGIL, Marcelo. La formación del feudalismo en la Península Ibérica. 4 ed.
Barcelona: Crítica, 1984, p. 316.
584
Ibid., p. 316.
585
Ibid., p. 317.
586
Ibid., p. 317.
170
Nesta altura do trabalho, precisamos nos deter em um tema de vital importância: a
relação entre a monarquia asturiana e a nascente estrutura institucional eclesiástica do norte da
Península Ibérica. Não vamos nos deter no complexo processo de difusão do cristianismo na
região da Cordilheira Cantábrica e adjacências
587
, mas sim tentar analisar de que maneira
foram costuradas as relações políticas entre o aparato político laico nortenho e os grupos
religiosos locais. Precisamos avaliar o peso da colaboração dos setores eclesiásticos na
dinâmica política a partir do século VIII, bem como o seu papel na construção do edifício
ideológico monárquico asturiano.
Acompanhando as proposições de Maria Isabel Loring García, a inserção das terras da
Cantábria e Astúrias primitivas na Cristandade Latina havia sido efetuada de maneira mais
intensa desde Leovegildo, que no ano de 574
588
empreendera expedições punitivas contra o
povo dos saepi conforme está escrito na narrativa de João Biclarense. No período que se
estende entre a pacificação feita por este rei visigodo e a passagem do VIII para o IX culo,
podemos dispor, mesmo que muito timidamente, de parcas notícias sobre a região que se
limitam a mencionar a presença de evangelizadores de origem monástica cruzando aquelas
montanhas. Além dos dados fornecidos pela documentação escrita, nos deparamos também
com fontes arqueológicas que apontam a existência de determinados núcleos populacionais
onde é maior a concentração de manifestações de cultura material relacionadas com o
cristianismo. Loring Garcia, por exemplo, refere-se à abundância de achados na região que
corresponderia a Cangas de Onís. A historiadora associa estas peças à formação do primeiro
centro político nortenho após a invasão de Tariq ibn Ziyad. Orientando sua proposição por
este viés, a autora acreditou poder lançar luz sobre certas notícias presentes nas crônicas
asturianas de Reconquista. Coteja a fonte arqueológica com a narrativa extraindo desta
operação cognitiva uma interpretação curiosa, identificando o lugar da reunião que elegeu
Pelágio, Covadonga ou Coua dominica, ―Cova do Senhor‖, com a expressão Domus
Dominica, ―Casa do Senhor‖, conforme consta na epigrafia destacada. Tal sugestão se fez
pelo fato de Covadonga possuir um oratório erguido em honra da Virgem Maria, de acordo
com as crônicas do ciclo de Afonso III.
A relação entre um dado e outro não nos parece suficientemente seguro. Como bem
aponta Armando Besga Marroquín, notar uma relação imediata entre Coua dominica e domus
587
Para uma maior compreensão deste processo histórico, consultar o trabalho de Maria Isabel Loring García
que desenvolveu uma Tese Doutoral dedicada à instalação do Cristianismo, primeiro da porção Sul da Península
Ibérica, durante o Baixo Império, e a sua chegada na zona cântabra-astur na passagem da Antiguidade para o
período de dominação visigótica.
588
LORING GARCIA, op. cit, p. 117.
171
dominica não é uma postura de todo adequada. Primeiro porque o achado arqueológico no
território de Cangas de Onís não se produziu efetivamente o centro político asturiano
construído e nem foi inserido dentro de uma análise global das demais pesquisas
arqueológicas sobre o tema. Um centro de culto cristão pode não significar efetivamente a
possibilidade de surgimento um núcleo político, ainda mais se compararmos com a
identificação de vasos litúrgicos de bronze espalhados por uma ampla zona da Cordilheira
Cantábrica. O que torna a interpretação de Maria Isabel Loring García mais problemática é a
pouca clareza na associação entre o achado arqueológico de Cangas de Onís com o
Covadonga. As similaridades das expressões latinas não são nem um pouco factíveis se
considerarmos uma ampla difusão do Cristianismo no Norte de Península Irica, sendo
possíveis se comungarmos com a perspectiva historiográfica defensora de uma grande
permanência de cultos pagãos na região e a dificuldade e tardia difusão das crenças da igreja
nela.
Apesar da discordância acerca de proposição de Loring García, podemos torná-la
viável no sistema de crenças que vigorava nas Astúrias. Não podemos em hipótese alguma
desconsiderar o trabalho do Cristianismo na definição de uma visão de mundo que norteava
comportamentos e condicionava as explanações produzidas em determinados eventos. Mesmo
que de maneira irregular, o culto cristão deixou fortes marcas nos habitantes do Norte de
Península Ibérica, criando a identidade de uma comunidade de culto. Com isto estabelecido,
fica mais fácil o fortalecimento de um sistema de crenças, interferindo, inclusive, na forma
pela qual alguns acontecimentos são encarados. A manifestação miraculosa da vitória de
Pelágio sobre as hostes muçulmanas de Munnuza, auxiliado por uma ―chuva de pedras‖ que
dispersou os invasores pode ser, em parte, um reforço na valorização do êxito cristão. Mas, o
que importa ressaltar é a ultra-valorização ―propagandística‖ feita por alguns monges
amanuenses de algo que era encarado muito tempo como intervenção de Deus em favor
de seus favoritos. Se, desde pelo menos 718 é possível que a crença nestes fenômenos
estivesse interiorizada na mente dos asturianos, isto pode significar que havia um contato
entre os pregadores anônimos com a comunidade nortenha, contato este já praticado há
algumas gerações. O fato de a caverna na qual se inseria o citado oratório ter sido utilizado
como lugar sagrado de algum culto pré-cristão significaria uma presença ainda recente de uma
religião pagã? A afirmativa e a negativa a esta resposta precisam ficar em suspenso. Não
dados para se datar a substituição de um elemento sagrado por outro.
Se, neste caso, é impossível pontuar e avançar no que se refere à prática do
cristianismo e da preservação das antigas crenças religiosas, podemos, pelo menos, especular
172
sobre a função e a utilização da religião cristã dentro em meio à dinâmica política e social nas
Astúrias, em especial em relação à nascente monarquia asturiana. Quando empregamos o
termo ―nascente monarquia‖, nos referimos aos chefes guerreiros asturianos dos primeiros
tempos após a invasão muçulmana de 711, e aos vínculos destes com as instituições
eclesiásticas. Desta forma, nos deparamos com uma forte relação entre o campo político e o
religioso; para avançar nestas análises, faremos uso das considerações sobre a relação entre a
política e o sagrado desenvolvidas pela Antropologia Política e pela Sociologia, mais
precisamente pelos trabalhos de Georges Balandier e de Pierre Bourdieu.
No que se refere a esta relação, podemos perceber que mesmo nas sociedades
laicizadas, a esfera religiosa não é totalmente apartada da dinâmica política. Georges
Balandier, citando a Herbert Spencer, destaca que o ―Estado conserva sempre algum caráter
da Igreja mesmo quando se situa no término de longo processo de laicização‖
589
. Por sua vez,
Por seu torno, Karl Marx também prestou atenção nos vínculos entre religião e política,
notando que em toda sociedade estatal pode ser sentida a presença ―de um dualismo
semelhante ao que opõe o profano ao sagrado‖. Sendo assim, ―o poder estatal e a religião, em
sua essência, são de natureza semelhante, mesmo quando o Estado, separado da Igreja, a
combate‖. Existiria então uma espécie de similaridade devido ao fato de que o ―Estado se
situar além da vida real, numa esfera cujo afastamento evoca o de Deus ou de deuses‖
590
. A
proposição de Pierre Bourdieu converge também para esta opinião, pois, segundo ele, a
religião faz derivar a sua estrutura da aplicação sistemática de um único e mesmo princípio de
divisão e, deste modo, pode organizar o mundo natural e social recortando nele grupos
antagônicos
591
. Fornece uma linguagem que atribui sentido à arbitrariedade de determinadas
situações, criando uma lógica de ordenação do mundo
592
. As divisões sociais tenderiam a se
tornar divisões políticas e garantiriam a legitimidade destas diferenças na sociedade
593
.
Por sua vez, Max Weber consegue identificar os vínculos entre o discurso mítico e
religioso e os interesses daqueles responsáveis pela sua produção, configurando assim o
―sistema de crenças e práticas religiosas como a expressão mais ou menos transfigurada das
estratégias dos diferentes grupos de especialistas em competição pelo monopólio da gestão
dos bens da salvação e das diferentes classes interessadas por seus serviços‖
594
. Esta idéia
weberiana destacada por Bourdieu converge com as proposições marxianas citadas
589
SPENCER apud BALANDIER, op. cit., p. 93.
590
MARX apud BALANDIER, op. cit., p. 94.
591
BOURDIEU, , p. 30.
592
Ibid., p. 30.
593
Ibid., p. 30-31.
594
WEBER apud BOURDIEU, op. cit., p. 32.
173
por Balandier na qual ―religião cumpre uma função de conservação da ordem social
contribuindo, nos termos de sua própria linguagem, para a ‗legitimação‘ do poder dos
‗dominantes‘ e para a ‗domesticação dos dominados‘‖
595
. Weber desenvolve importantes
considerações para superar as posições simplistas sobre a autonomia radical da esfera
religiosa ou sobre a sua subordinação incondicional a determinados interesses de classe
596
.
Weber notou que o trabalho religioso empreendido por especialistas investidos de um
poder institucionalizado ou não corresponde a ―uma categoria particular de necessidades
próprias a certos grupos sociais‖
597
, criando neste processo um sistema de produção de uma
ideologia religiosa
598
.
O que Pierre Bourdieu quer nos dizer é que há uma correspondência entre as estruturas
sociais e mentais, estabelecida por intermédio das estruturas dos sistemas simbólicos, língua,
religião, arte etc. Sendo assim, a religião auxiliaria na imposição (dissimulada) dos princípios
da estruturação da percepção e do pensamento do mundo e, em particular, do mundo social,
―na medida em que impõe um sistema de práticas e de representações cuja estrutura
objetivamente fundada em um princípio de divisão política apresenta-se como a estrutura
natural-sobrenatural do cosmos‖
599
.
Por sua vez, Balandier, citando a Emile Durkheim, destaca a importância, em toda
sociedade, da associação entre sua organização com algum tipo de ordem que a transcenda,
investindo-lhe de caráter sagrado
600
. Georges Balandier considera que mais importante do que
a ordem por si só, é considerar os meios para sua manutenção: o uso legítimo da coerção
física
601
. Citando a Luc de Heusch, o antropólogo francês afirma que todo governante é
portador de diferentes perfis, sendo ao mesmo tempo aquele responsável pela manifestação de
um poder sagrado como de um poder coercitivo
602
. Por meio desta lógica, duas facetas
acabam por se destacar, uma ligada à sacralização da ordem mantenedora da segurança,
prosperidade e perene, e outra, vinculada ao emprego da força, que permite realizar a
ordem
603
.
O que a contribuição da antropologia política faz, por exemplo, é demonstrar que
algumas sociedades reconhecem o uso da força como capacidade de agir sobre os homens e as
595
MARX apud BOURDIEU, op. cit., p. 32.
596
WEBER apud BOURDIEU, op. cit., p. 32.
597
Ibid., p. 32-33.
598
Ibid., p. 33.
599
BOURDIEU, op. cit., p. 33-34.
600
DURKHEIM apud BALANDIER, op. cit., p. 94-95.
601
BALANDIER, op. cit., p. 95.
602
Ibid., p. 95.
603
Ibid., p. 95.
174
coisas, de forma positiva ou não, conforme os objetivos de quem a emprega. A força é um
instrumento de comando, ao mesmo tempo em que ela é quem domina seus portadores, pois
está associada não à pessoa física e mortal do chefe, mas a uma função que se afirma como
eterna. As contendas travadas para a obtenção de autoridade são lutas empreendidas pelo
controle dos instrumentos que fixam e canalizam o próprio exercício do poder. Nesta lógica, o
campo político não detém com exclusividade e nem é a fonte do vocabulário usado para
expressar as manifestações de poder. O léxico religioso pode muito bem investir o portador de
poder e autoridade com determinadas qualidades, delimitando sua ação
604
.
Podemos considerar que existem procedimentos específicos e rigorosamente
empregados, como bem destaca J. Beattie, que permitem ao soberano preservar a ordem
605
.
Percebemos, neste tipo de ambiente social, que os acontecimentos insólitos e as perturbações
sociais são encarados como expressões de uma ameaça externa à ordem. As infrações
resultantes disso forçariam uma resposta do governante. Desta maneira, situações de
―passagem‖ apresentam-se como uma grave ameaça para a manutenção da ordem em
sociedade. Nesta realidade, o aparelho político deve intervir para regular as mudanças. A
posse de determinados elementos sagrados define e circunscreve a autoridade detida por um
líder
606
.
Os trabalhos desenvolvidos por Aidan W. Southall ressaltam que a dominação
exercida pelo chefe é permitida por suas características benfazejas. Sua força é organizadora e
fecundante, mas não é eterna, podendo perder sua intensidade
607
. Esta força sobrenatural é
identificada como um aspecto que determina o vigor da intervenção a serviço dos homens, a
partir de três fatores: a continuidade, a personalidade de quem o emprega e a conformidade
das relações estabelecidas com o sagrado
608
.
Para determinadas populações, o poder político legítimo requer a posse de um
elemento sagrado capaz de manter a ordem, a verdade e a harmonia social
609
, enquanto o
soberano é encarado como manifestação simbólica do universo e do seu próprio povo. Seu
conceito de poder sagrado reporta-se àquele surgido no tempo das origens, vindo dos
ancestrais, o qual garante o seu domínio sobre os homens
610
. Isto evidencia uma dupla
origem, divina e histórica, e faz dele uma potência sagrada que confere ao líder a supremacia
604
BALANDIER, op. cit., p. 95.
605
Ibid., p. 95.
606
Ibid., p. 96.
607
SOUTHALL apud BALANDIER, op. cit., p. 97.
608
Ibid., p. 97.
609
BALANDIER, op. cit., p. 98.
610
Ibid., p. 98-99.
175
e a capacidade de governar o grupo
611
. Para alguns povos, este poder sagrado do soberano é
recebido por meio de rituais e da posse de símbolos sagrados.
612
Em suma, ―o sagrado é uma
das dimensões do campo político; a religião pode ser instrumento do poder, garantia de sua
legitimidade, um dos meios utilizados no quadro das competições políticas‖
613
. As estruturas
rituais e as estruturas de autoridade estão estreitamente ligadas, de forma que seus respectivos
dinamismos se acham em correspondência
614
. Os notáveis de uma sociedade afirmavam seu
poder tanto pelas posições em que se situavam na genealogia quanto pela posse de altares de
antepassados, o que possibilitava ao chefe a capacidade de invocar eficazmente seus
ascendentes
615
.
Por sua vez, Pierre Bourdieu destaca a grande importância da instauração de um
processo de monopolização da gestão dos bens de salvação por um corpo de especialistas
religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores exclusivos de um corpus
deliberadamente organizado de conhecimentos secretos (e, portanto, raro). Tal realidade
correspondente à formação de um campo religioso, e, conseqüentemente, de um grupo
desapropriado e excluído de capital religioso, identificado como leigos, que reconhecem a
legitimidade desta exclusão pelo seu desconhecimento dos assuntos sagrados
616
. A partir daí
se efetua um processo que visa ―acumular e concentrar entre as mãos de um grupo particular
um capital religioso até então distribuído igualmente entre todos os membros da
sociedade‖
617
. Acreditamos na perspectiva weberiana de que a visão de mundo proposta pelas
grandes religiões universais é o produto de grupos bem definidos e até de indivíduos que
falam em nome de alguns grupos
618
. Constrói-se então uma oposição entre os detentores do
monopólio da gestão do sagrado e os leigos objetivamente definidos como profanos, no duplo
sentido de ignorantes da religião e de estranhos ao sagrado e ao corpo de administradores do
sagrado
619
.
3.5. Legitimação política e religiosa:
611
BALANDIER, op. cit., p. 99.
612
Ibid., p. 99.
613
Ibid., p. 109.
614
Ibid., p. 109.
615
Ibid., p. 109.
616
BOURDIEU, op. cit., p. 39.
617
DURKHEIM apud BOURDIEU, op. cit., p. 39.
618
WEBER apud, p. 42-43.
619
BOURDIEU, op. cit., p. 43.
176
Antes de analisar o caso asturiano, partiremos para algumas considerações acerca da
relação entre a realeza e o sagrado, tema intensamente debatido pela historiografia medieval.
Comecemos por ressaltar que, na perspectiva de João Bernardo, a especificidade do poder do
rei medieval decorre da relação direta que mantinha com o conjunto do campesinato
independente
620
. Os ―reis desempenham assim a função de chefes tradicionais de sociedades
pré-senhoriais‖
621
, situando-se no topo da sociedade, exercendo relações diretas tanto com as
casas aristocráticas quanto com os produtores agrícolas, tornando-se assim soberano
622
.
Ninguém na comunidade possuía, como o rei, a capacidade de conjugar ―a chefia tradicional
do campesinato independente com a sua situação de supremo senhor, e por isso um reino
definia-se, sobretudo, pela pessoa do rei, não pelas suas fronteiras‖
623
. Sendo assim, para João
Bernardo, quanto maior e mais vasta fosse a autonomia das comunidades camponesas, maior
seria também o poder político detido pelo rei, que mantinha sua especificidade diante do
restante da aristocracia
624
. Na medida em que os camponeses foram sendo submetidos, o
poder do rei foi conseqüentemente se reduzindo, perdendo uma das suas bases de sustentação
política.
Quanto ao caráter sobrenatural ou sagrado imanente à figura do rei e à sua
família, João Bernardo destaca que tal atributo não foi exclusividade dos monarcas medievais,
pois poderia ser encontrado em inúmeras e tão diferentes civilizações
625
. Contudo, não foram
as casas monárquicas as únicas capacitadas a monopolizar um prestígio de natureza
sacralizada, pois ―a riqueza e a força de uma família, a sua prosperidade, eram consideradas
manifestação visível da graça divina, criando-se entre a elite da aristocracia uma
hereditariedade de méritos, transmitidos a nível ideológico com os nomes familiares e
na realidade com a herança dos conjuntos senhoriais‖
626
. Em resumo, esta idealização
do caráter sobrenatural era ao final a idealização e a valorização do poder terreno
627
. Não
devemos nos enganar com o reconhecimento do poder sobrenatural dos grupos senhoriais
como uma imediata correspondência destes com o processo de santificação. Tal prática
620
BERNARDO, João. Poder e dinheiro: do poder pessoal ao Estado impessoal no regime senhorial, séculos
V-XV. Porto: Afrontamento, 1995, 1v., p. 241.
621
Ibid., p. 241.
622
Ibid., p. 241.
623
Ibid., p. 241.
624
Ibid., p. 241.
625
Ibid., p. 249.
626
Ibid., p. 249.
627
Ibid., p. 249.
177
ocorreu lentamente, enquanto nestes séculos do medievo o que prevalecia era ―a veneração
popular a fazer os santos
628
.
Por sua vez Marc Bloch, em um estudo clássico, evidencia que as realezas
medievais desde suas origens pagãs são revestidas de uma aura de sacralidade
629
. Tácito
havia verificado também que a eleição destes chefes se fazia pela seleção de um membro de
uma dada família, que era hereditariamente dotada de uma virtude sagrada
630
. Para o
medievalista francês, muito dos vínculos dos reis com as divindades tenderam a se expressar
por meio de elaborações de genealogias míticas que legitimam o exercício de poder destas
dinastias predestinadas
631
. A eleição do chefe político era apenas uma parcela do
reconhecimento da autoridade régia, a sua plenitude se constituía pela origem familiar daquele
que iria se tornar rei
632
. Tendeu-se a acreditar que os ―reis verdadeiramente divinos possuíam
certo poder sobre a natureza‖
633
. Os monarcas legítimos tinham o poder de proporcionar boas
colheitas e, caso a colheita malograsse, o rei era imediatamente deposto, como no caso dos
Burgúndios
634
.
A prosperidade era encarada como uma das formas de manifestação das benesses
divinas, mas tal conexão com o sagrado não se resumia apenas a isto. Como João Bernardo
aponta, mesmo quando os senhores não contavam com ―nenhum santo entre os antepassados
procuravam, ao fundar estabelecimentos religiosos destinados a reforçar a coesão familiar,
colocar relíquias sagradas, atraindo a população de uma área mais ou menos vasta,
consoante o prestígio dos despojos que assim se veneram‖
635
. Esta prática, também realizada
pela linhagem real, não era diferente daquilo realizado pelo conjunto da aristocracia. A
diferença proporcionada pela monarquia ocorria a nível quantitativo, pois ela era a mais
poderosa e bem-sucedida casa aristocrática, aquela que fornecia preferencialmente pessoas
santificáveis, reverenciada desde os seus primórdios e merecendo veneração superior
636
.
Devemos evidenciar ainda que a casa real também era a responsável pelo maior número de
fundações de estabelecimentos religiosos, e eram estes que detinham o maior número de
relíquias, inclusive as dos monarcas já falecidos
637
.
628
BERNARDO, op. cit., p. 249.
629
BLOCH, op. cit, p. 70.
630
Ibid., p. 70-71.
631
Ibid., p. 71.
632
Ibid., p. 71.
633
Ibid., p. 71.
634
Ibid., p. 72.
635
BERNARDO, op. cit. ,p. 250.
636
Ibid., p. 250.
637
Ibid., p. 250.
178
A especificidade do caráter sagrado do rei frente ao conjunto da aristocracia se fazia
pela sua própria ancestralidade, pelos elementos conservados pelo sangue de sua família que
desde longa data entrecruzam-se com a esfera sobrenatural
638
. Segundo João Bernardo, desde
―antes da introdução do cristianismo que os chefes de vários destes povos reivindicavam uma
ascendência divina, e em seguida, com a nova religião, os reis-santos passaram a ser
considerados como antepassados-fundadores das famílias reinantes‖
639
. O rei, nas palavras de
João Bernardo, era o chefe de uma família sagrada por excelência, e como tal intermediava o
sobrenatural e o terreno, intercedendo pelos homens junto a Deus
640
. Caso o rei obtivesse
êxito em suas ações políticas, a sociedade poderia manter-se regrada
641
.
A manifestação sagrada do poder do rei não se vinculava somente ao exercício de sua
soberania, mas também à realização de um cerimonial específico dedicado exclusivamente a
sua pessoa
642
. O ato da aclamação do novo rei pelos guerreiros livres se constitui, por
exemplo, em um importante ritual entre a realeza franca
643
. Entre os Visigodos também o
novo rei era aclamado pelos guerreiros, verificando-se ainda este costume após meados do
século VII
644
. Na perspectiva de João Bernardo, o ato de ―aclamação confirmava um monarca
como chefe dos camponeses guerreiros e, portanto, referia-se apenas à base tradicional do seu
poder, em alheamento da outra, assente nas hierarquias senhoriais. Esta assimetria, e numa
cerimônia tão importante, não podia deixar de ser posta em causa pela hegemonia do regime
senhorial‖
645
.
Muitos historiadores persistiram na mais do que necessária natureza sagrada da
monarquia, como José Manuel Nieto Soria, defensor do ideário político do medievo hispânico
fundamentado no reconhecimento da natureza sagrada da realeza. Para o medievalista
espanhol, o que deve ser enfatizado aqui é o fato de que o verdadeiro poder era oriundo de
Deus, majestade suprema, que fazia dos monarcas humanos seus meros representantes na
terra. Sobre este princípio estruturou-se com base em reflexões da teologia política da época,
―cuja finalidade principal seria apresentar a realeza como uma instituição de origem divina
possuidora, portanto, de uma inquestionável projeção teológico-religiosa‖
646
. Na concepção
638
BERNARDO, op. cit., p. 250.
639
Ibid., p. 250.
640
Ibid., p. 251.
641
Ibid. p. 251.
642
Ibid., p. 252.
643
Ibid., p. 252-253.
644
Ibid., p. 254.
645
Ibid., p. 254.
646
NIETO SORIA, José Manuel. Fundamentos ideológicos del poder real en Castilla (siglos XIII-XVI).
Madrid: Eudema, 1988, p. 49.
179
de Nieto Soria, o que a realeza fez foi transpor para o vocabulário político aquele da esfera
religiosa, empregando símbolos e conceitos extraídos deste campo
647
. Todavia,
tradicionalmente nega-se à monarquia castelhana, por exemplo, qualquer caráter sobrenatural
ou sagrado, devido às parcas informações sobre este tema, como o fazem historiadores como
Maravall e Américo Castro
648
. Porém, Nieto Soria se propôs a atestar a existência do
fenômeno religioso como um dos sustentáculos da monarquia castelhana
649
.
A origem divina da monarquia castelhana poderia ser atestada por sua origem advir da
Providência, sendo isto expressão de uma terminologia teológico-política
650
. Esta expressão,
conservada na Baixa Idade Média, no reino de Castela, corresponderia a uma longa tradição
que creditava o poder régio aos desígnios de Deus, o primeiro e verdadeiro governante
651
.
Para Nieto Soria, este princípio serviria de alicerce para as pretensões hegemônicas da casa
real
652
frente a possíveis opositores. Para auxiliar a sacralização da figura do monarca são
empregadas expressões ou imagens que contribuem para a sua idealização, posicionando a
pessoa do rei em ―uma posição de incomparável superioridade‖
653
aos demais membros da
sociedade. Nós aqui, neste ponto, devemos nos afastar das concepções construídas por José
Manuel Nieto Soria, pois como temos tratado até aqui, nós não nos deparamos com uma
monarquia cristalizada, mas sim com um processo de constituição do poder régio asturiano,
analisando a maneira pela qual os principais chefes guerreiros asturianos vieram a se tornar
reis. Não é possível, durante o período de vigência do trono em Oviedo, perceber a pessoa do
rei enquanto sagrada, notamos sim a realização de tentativas de tornar a figura monárquica
superior aos demais membros da aristocracia. Mas isto foi um investimento lento e tardio, não
sendo encontrado nem sombra disto nas primeiras décadas do século VIII nas Astúrias.
Podemos ter certeza, no entanto, que na medida em que a atuação os reis asturianos se amplia,
novos elementos de justificação passam a se fazer presentes. Não são monarcas sagrados em
sua origem, nem ao menos sua função o era. Precisamos aguardar a transição do culo VIII
para o IX para encontrarmos uma relação visceral entre a atuação política do rei e o papel
sagrado de sua atribuição.
Neste processo histórico de construção da imagem régia foi, progressivamente,
instalando-se um elemento religioso específico. A cerimônia de unção régia, na qual ―o alto
647
NIETO SORIA, op.cit, p. 49.
648
Ibid., p. 50.
649
Ibid.., p. 50.
650
Ibid., p. 50-51.
651
Ibid., p. 51.
652
Ibid., p. 51.
653
Ibid., p. 60.
180
dignitário eclesiástico vertia na cabeça do rei óleos consagrados‖
654
, apareceu primeiro entre
os Visigodos em data incerta, mas possivelmente instaurada durante o segundo ou terceiro
quartel do século VII
655
. Outras realezas praticaram este ritual, entre os Francos, por exemplo,
tal prática talvez date de 751, após a deposição do último rei Merovíngio pela nova casa
dinástica
656
. No que se refere aos Francos, segundo Marc Bloch tal cerimônia se praticou após
longas décadas de debilitação da família merovíngia e pelo vigor da autoridade manifestada
de fato mas não de direito por Carlos Martel. Apesar de seus sucessos contra os
Sarracenos em Poitiers e contra os revoltosos da Aquitânia, este não ousou nomear-se rei
657
.
Após Carlos Martel, seu filho, Pepino, ousando romper com a ordem, ―resolveu
mandar para o convento os últimos descendentes de Clóvis‖ e em seguida tomou ―para si
tanto o poder quanto as honras reais‖
658
. Pepino procurou se revestir de uma espécie de
prestígio religioso que contrabalançasse o ato da usurpação
659
. Para tornar seu exercício de
poder plenamente sacralizado, a nova dinastia iria se afirmar por meio de um ―ato formal,
justificado pela Bíblia, plenamente cristão‖
660
. Esta cerimônia, extraída do Velho
Testamento, legitimava a entronização dos monarcas da nova dinastia franca, garantindo-lhes
não apenas a autoridade de fato, como também de direito e legítima. O caso que nos importa
neste trabalho corresponde ao dos Asturianos; Bloch acreditou que esta nova monarquia cristã
tenha renovado este uso após a queda do reino visigodo, pelo menos a partir de 886
661
.
Contrariando a posição do historiador francês, João Bernardo, faz notar que ―desde o extremo
final do século VIII e ao longo do seguinte foram vários os reis asturianos a receber a unção,
incluída habitualmente na cerimônia de entronização‖
662
. Concordando com a referência de
fins do culo VIII, referente a Afonso II, todavia, discordamos da defesa do emprego do
cerimonial de unção nos reis seguintes. A unção régia só irá se repetir novamente no Norte da
Península Ibérica na primeira metade do século X. Até lá, nenhuma menção a ela será feito
nas narrativas cristãs.
Vejamos agora o contexto geral de retomada da cerimônia no Norte da Península
Ibérica. O aparecimento deste ritual na região dos Montes Cantábricos, segundo historiadores
como Cláudio Sanchez-Albornoz, justificar-se-ia pela filiação com antigas as tradições
654
BERNARDO, op. cit., p. 254-255.
655
Ibid., p. 255.
656
Ibid., p. 255.
657
Ibid., p. 73.
658
Ibid., p. 77.
659
Ibid., p. 77.
660
Ibid., p. 77.
661
Ibid., p. 294.
662
Ibid., p. 255.
181
visigóticas e indicaria a ―afirmação da tendência para a hereditariedade no trono ou, pelo
menos, para a nomeação pelo monarca de seus sucessores‖
663
. A necessidade da cerimônia de
unção, para alguns historiadores estaria vinculada, para o caso Franco, à necessidade de se
sacralizar a dinastia que depôs os Merovíngios, pois esta nova casa real estaria desprovida da
sacralidade especificamente régia, por isto, ―tinha de legitimar o golpe de força que a
substituíra aos Merovíngios. Com a aliança do papado, a unção serviria para este fim‖
664
.
Desta forma não apenas o rei, mas também toda a família era investida desta legitimidade
sagrada. Segundo João Bernardo, entre os Visigodos, e, em seguida, entre os Asturianos, a
cerimônia de unção tornou-se o principal elemento no processo de entronização dos novos
monarcas.
Para se ungir um rei era necessária a intermediação eclesiástica, cujos membros
ameaçavam de excomunhão aqueles que pretendessem encontrar em outras famílias um novo
soberano
665
. Em um período em que os ritos pagãos não mais faziam sentido e o ato da
aclamação já não era suficiente para legitimar o rei, então a unção entrava como um elemento
estabilizador nos processos de transição política. Para João Bernardo, o ―que ocorreu de
verdadeiramente decisivo foi, em todos os reinos, a intervenção da Igreja para a afirmação
deste caráter sobrenatural‖
666
. Dentre os instrumentos de que se utilizava a Igreja, a unção
correspondia aos ritos de passagem legitimadores das alterações decisivas de estado:
―surgimento para a vida, com a unção confirmatória do batismo; a entrada na vida eterna,
como a extrema-unção; a transição para o estado sacerdotal, com a unção própria‖
667
. Com o
peso adquirido pela intervenção eclesiástica na investidura régia, ―o recurso à unção constituía
a solução ritual mais evidente‖
668
.
Para José Manuel Nieto Soria, ―o ato da unção régia, como é bem sabido, significava a
plasmação litúrgica da crença em um rei como vigário de Deus, assim como na existência de
um eixo de relação entre Deus e o monarca‖
669
. Tal rito contribuía para a edificação da figura
do monarca como imago Dei, o que para o medievalista espanhol o transformava quase em
um sacerdote
670
. Por outro lado, Marc Bloch diria ―quase-sacerdotal‖, pois a assimilação entre
as funções reais e sacerdotais nunca foi completa
671
, pois, ―do ponto de vista católico, o
663
SÁNCHEZ-ALBORNOZ apud BERNARDO, op. cit., p. 255.
664
Ibid., p. 256.
665
BERNARDO, op. cit., p. 256.
666
Ibid., p. 256.
667
Ibid., p. 256.
668
Ibid., p. 256-257.
669
NIETO SORIA, op. cit., p. 61.
670
Ibid., p. 61.
671
BLOCH, op. cit., p. 148.
182
sacerdócio comporta privilégios de ordem supra-terrestre que estão perfeitamente definidos e
que apenas a ordenação confere‖
672
. Destaca-se, em relação à Baixa Idade Média, que a
―ausência de unção, como ato público e litúrgico, no acesso ao trono dos monarcas
castelhanos se faz ainda mais impressionante se temos em conta o importante peso que o ideal
neogótico teve em todo curso do medievo castelhano, sendo a unção régia uma instituição
muito arraigada na Espanha visigótica‖
673
. Todavia, como poderemos ver a seguir, esta
certeza não é de todo correta, conforme podemos apreender dos trabalhos de Marius Ferotín.
Em todo caso, cremos que será bastante instrutivo retornar aos primeiros passos deste
tipo de ritual. O paradigma desta cerimônia encontra-se nos modelos veterotestamentários.
Outro ponto é o caráter genérico deste cerimonial, sendo a unção um elemento comum a
outros rituais de passagem, fato que inviabiliza a perspectiva de que os reis adquirissem uma
qualidade sacerdotal
674
. Como indica João Bernardo, ―o escopo deste ritual é vasto e as suas
implicações dependem da cerimônia em que se insere‖. Diferente da visão de Nieto Soria, ―a
unção não convertia um sacerdote em rei, nem rei em recém-nascido ou em fiel defunto‖
675
.
Ainda segundo João Bernardo, o rei possuía poderes de intermediação junto à esfera sagrada,
relacionando-a com a humana, não devendo ―isso aos santos óleos, mas ao caráter
especificamente sagrado dos monarcas. A função intercessora, que se atribuía aos investidos
pelo ritual cristão, caracteriza já os aclamados na tradição pagã‖
676
.
O ponto principal repousa não sobre o ato da unção em si, mas na relação instaurada
entre a realeza e a Igreja, ―manipuladora exclusiva dos óleos consagrados‖
677
. O monopólio
do sagrado não se restringe a este campo, mas é parte das relações intra-senhoriais erigidas
entre a família real e os membros da hierarquia eclesiástica. Esta última, na opinião de João
Bernardo, não constituía ―um corpo social distinto e, por isso, foi enquanto grandes senhores
que os monarcas, tal como toda a aristocracia, teceram indestrinçáveis elos com as
instituições eclesiásticas‖
678
. O monarca pretendia situar-se no vértice superior das relações
sociais: ―os reis afirmavam sobre a Igreja a mesma superioridade que sobre a restante
aristocracia. Na monarquia visigoda o rei era o chefe da Igreja‖
679
.
Nas Astúrias, também o rei intervinha nos assuntos internos da Igreja, não somente
supervisionando as questões administrativas eclesiásticas como também a definição das
672
BLOCH, op. cit., p. 148.
673
NIETO SORIA, op. cit., p. 61-62.
674
BERNARDO, op. cit., p. 257.
675
Ibid., p. 258.
676
Ibid., p. 258.
677
Ibid., p. 258.
678
Ibid., p. 258.
679
Ibid., p. 258.
183
questões dogmáticas
680
. O rei não distinguia a elite eclesiástica do restante da aristocracia,
toda ela se subordinava ao rei, cujas relações com a Igreja eram, portanto, um aspecto das
relações intra-senhoriais. ―Criou-se assim o quadro ideológico em que a unção veio
naturalmente a surgir e a afirmar-se como elemento principal nas cerimônias de entronização‖
681
.
Para Nieto Soria, é insuficiente dizer que ―a unção supunha uma excessiva submissão
da realeza à autoridade eclesiástica que impunha o óleo. Deve-se ter em conta que tal inversão
eclesiástica também se produzia nas coroações carentes de unção
682
. De qualquer forma,
todas as coroações possuíam um caráter claramente litúrgico, pois a monarquia nunca foi
excluída de quaisquer atributos teológico-religiosos, o que permitia o emprego da unção sobre
os monarcas
683
. Nieto Soria contradiz-se neste ponto, pois, até então, ele vinha defendendo a
presença da unção régia como um fenômeno sem qualquer descontinuidade após sua
retomada durante o processo de Reconquista. coroações, mas não unções? No que
tange ainda às atribuições régias, poder-se-ia confirmar em todos os casos ibéricos uma
função teológica? Em que nível construiu-se a relação entre o campo político e o campo
religioso na história da Península Ibérica? O que podemos confirmar é que nada disso surgiu
do nada e demandou qualquer tipo de aperfeiçoamento. O ideário religioso monárquico,
quando se revelou a nós, nasceu da conjugação dos esforços de reorganização religiosa em
torno da figura monárquica que estava em vias de criar novos discursos de auto-afirmação.
Que tipo de situação a história das Astúrias alto-medieval nos revela? Podemos levar
adiante as reflexões sugeridas pelos historiadores expostos nas páginas anteriores?
Acreditamos que o principal problema é antecipar as respostas, impor uma solução antes de
uma análise acurada daquilo que as fontes nos revelam. Transpor mecanicamente
determinadas perspectivas é algo demasiadamente temerário. Cada caso fornecerá as
dificuldades e respostas que lhe são peculiares. Esperar uma plena coerência de uma estrutura
política em vias de cristalização é no mínimo achar que ela, a partir do momento que começa
a tomar forma, já está suficientemente constituída. Acreditamos que só no final do século IX é
que podemos identificar uma entidade suficientemente amadurecida. Preferimos partir daquilo
que a documentação é capaz de informar, mesmo que seja sempre com base em referências
muito superficiais. É mais seguro trabalhar com o amparo dos dados do que trabalhar
unicamente com postulados que afirmem uma excessiva formalização amadurecida. O que
680
BERNARDO, op. cit., p. 258.
681
Ibid., p. 258.
682
NIETO SORIA, op. cit., p. 62.
683
Ibid., p. 62.
184
defendemos com esta afirmação é que precisamos considerar a realidade social e histórica
mais complexa e fugidia do que pregam determinadas teorias. O caso asturiano é bastante
ilustrativo quanto a este ponto. No que se refere à retomada do poder político por Afonso II,
nos deparamos com uma realidade muito complexa e, para tentar lançar alguma luz sobre ela,
retornaremos a um ponto específico de fins do século VIII. Os documentos narrativos que
relatam a sucessão ao trono Astur com a morte do rei Silo destacam o fato de que Afonso II
foi afastado do trono temporariamente, pois o mesmo foi usurpado por Mauregato, filho de
Afonso I.
Como havíamos dito nas páginas precedentes, a usurpação promovida por Mauregato
não parece ter causado um grande impacto na constituição política do reino das Astúrias.
Aparentemente, não se manifestou qualquer tipo de reação à tomada da chefia política da
região. Porém, apesar da ausência de registros sobre possíveis insubordinações frente ao novo
governante, podemos pensar que as informações podem ser obtidas se considerarmos o
período seguinte, com a elevação política de Afonso II. O reinado de Mauregato em si pode
não fornecer muitas respostas, mas se ampliarmos o foco de nossa análise poderemos
vislumbrar mais uma transformação na formação política da jovem monarquia cristã. Talvez,
o retorno ao poder do filho de Froila I, Afonso II, tenha evidenciado aos seus contemporâneos
a fragilidade do edifício político que se confeccionava. Acreditamos que seja possível ver que
a elite política notou a necessidade de se agregar novos elementos que pudessem contribuir
para a elaboração da posição suprema do rei. É importante separar o monarca dos demais
membros da comunidade política. Foi neste cenário que se introduziu o cerimonial de unção
régia. A primeira menção à unção régia nas Astúrias deve-se ao seguinte fragmento da
Crônica de Afonso III, versão rotense:
O referido rei Afonso Magno foi ungido no reino na XVIIcalendas de Outubro, na
supradita era [DCCCXXVIIII].
684
Não temos como reconstituir com precisão os procedimentos empregados no ritual de
unção na Península Ibérica. Segundo Marius Ferotin, não chegou até nossos dias o cerimonial
completo, pois nenhum documento visigótico ou asturiano o preserva na sua totalidade
685
. Os
textos referentes à sucessão na monarquia omitem o ritual, como, por exemplo, o ―IV
Concílio de Toledo, em 633, que no seu cânone LXXV regulava o modo de eleição do
684
Cronica Rotensis. 21. Hunctus est in regno predictus rex magnus Adefonsus XVIII Kalendas Octobris era
quo supra. Cronica Rotensis. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS,
1987, p. 50.
685
FEROTIN, Marius (osb.). Le Liber Ordinum: en usage dans l‘eglise wisigothique et mozarabe d‘Espagne
du cinquième au onzième siècle. Roma: Edizione Liturgique, 1996, p. 353.
185
príncipe sem falar da unção real‖
686
. Por testemunhos indiretos podemos constatar a
existência e empreender a reconstituição do cerimonial de entronização do rei. O registro do
bispo de Toledo, São Julião, em sua Historia Galliae, narra que Vamba, antes de empreender
uma expedição para submeter os revoltos da província da Septimânia, exigiu, após sua eleição
pela aristocracia e pela aclamação popular, que ele mesmo fosse sagrado monarca na capital
do reino (672). Assim São Julião nos informa:
Não permitiu ser ungido pelas mãos dos sacerdotes, tendo este [Vamba] se dirigido a
sede da urbe régia e tendo alcançado o apoio da antiguidade paterna, na qual obteve
para si o consenso dos fundadores, não apenas para sustentar com muita paciência os
estandartes da sacra unção, como também para sustentar a sua eleição.
687
Esta cerimônia teria ocorrido na basílica de São Pedro e de São Paulo, também
conhecida como ecclesia praetoriensis, ou igreja palatina
688
. Um relato contemporâneo ao
fato ainda nos descreve:
E [Vamba] veio para portar o signo da santa unção na Igreja Palatina, isto é, de São
Pedro e São Paulo. Apresentou-se, prostando-se diante do altar divino para o culto
régio, conduziu a fé do povo conforme o costume. Depois, curvado e de joelhos, foi-
lhe vertido óleo bento e com abundância de bençãos foi apresentado pelas mãos do
pontífice, São Quiricus.
689
(IDEM)
O rei seguinte a ser ungido foi Égica, em 687, e segundo um cronista anônimo:
O nosso senhor Égica foi ungido no reino na Igreja Palatina de São Pedro e São
Paulo, no dia VIII das calendas de dezembro, no domingo, na XV lua, na era
DCCXXV
690
.
Possuímos uma narração mais detalhada com a coroação de Vitiza, no ano de 701. A
cerimônia é apresentada em duas partes constitutivas: a professio fides, profissão de fé; e a
unção propriamente dita
691
. Esta cerimônia toma por referência os ritos de sagração dos reis
de Israel, cujo fragmento apresentamos abaixo. Descrição no Livro de Samuel da sagração do
rei Saul:
E quando amanheceu e tão logo clareou o dia, Samuel chamou Saul no terraço
dizendo: ―Levanta-te, vim despedir-me‖. E Saul se levantou: e, em verdade junto
686
Ibid., p. 353.
687
Vngi se per sacerdotis manus ante non passus est, quam sedem adiret regiae urbis, atque solum peteret
paternae antiquitatis, in qua sibi opportunum esset et sacrae unctionis uexilla suscipere et longe positorum
concensus in electione sui patientissime sustinere. Historia Galliae. In: FEROTIN, op. cit., p. 353.
688
FEROTIN, op. cit., p. 353.
689
At ubi uentum est quo sanctae unctionis susciperet signum in Praetoriensi ecclesia, sanctorum scilicet Petri
et Pauli, regio iam cultu conspicuus ante altare diuinum consistens, ex more fidem populis reddidit. Deinde
curuatis genibus, oleum benedictionis per sacri Quirici pontificis manus uertici eius refunditr, et benediciotnis
copia exhibetur. Ibid., p. 354.
690
Vunctus est autem dominus noster Egica in regno in ecclesia sanctorum Petri et Pauli Praetoriensis, sub die
VIII kal. Decembris, die dominico, luna XV, aera DCCXXV. In: Chronica regum Wisigothorum apud
FEROTIN, op. cit., p. 354.
691
FEROTIN, op. cit., p. 354.
186
com o mesmo Samuel. E quando desceram até o limite da cidade, Samuel disse a
Saul: ―Antecipe teu servo para que os ultrapasse; tu, porém, espera, para que eu te
faça ouvir a palavra do Senhor‖.
Então Samuel pegou o frasco de óleo e o derramou sobre a cabeça deste [Saul],
beijou-o e disse-lhe: ―Aqui está, Senhor, unta-o de príncipe sobre a sua herança, e
liberta o seu povo das mãos de seus inimigos, que estão ao seu redor. E este é o sinal
de que Deus te ungiu como príncipe‖.
692
Extraímos destes fragmentos algumas reflexões. As esferas políticas e religiosas não
são unidades hermeticamente fechadas, em qualquer sociedade uma se ampara na outra.
mencionamos nas páginas precedentes que a própria estrutura estatal das sociedades
laicizadas preserva um pouco do discurso religioso. Tal situação se deve ao papel semelhante
que os dois campos podem realizar, notadamente em relação a nosso objeto, uma importante
função de mantenedora da ordem social e política frente a possíveis e ocasionais
manifestações de questionamentos ao poder constituído. O que destacamos aqui é o peso que
a religião pode deter em relação à conservação das hierarquias, ainda mais se prestarmos
atenção ao caso asturiano.
Armando Besga Marroquín, tecendo um curioso comentário acerca da unção régia nas
Astúrias, propôs uma datação um pouco mais antiga para a ação deste cerimonial, retroagindo
até, pelo menos, o período de Pelágio, cogitando que este teria sido também ungido. As bases
de seu argumento estruturam-se em uma ―hipótese negativa‖, sugerindo que o silêncio das
fontes não indicaria ausência desta prática antes de Afonso II. A proposição soa
demasiadamente deslocada e fora de propósito, tendo apenas coerência dentro de um discurso
que alega a plena estruturação das Astúrias como reino desde os momentos de articulação da
Batalha de Covadonga. Acreditamos que as especulações devem permanecer dentro de um
contexto bastante delimitado para evitar a produção de afirmativas pouco ou nada batizadas.
O cerimonial de unção é uma resposta às demandas de um dos ramos da realeza das Astúrias.
Este rito foi empregado pela necessidade de salvaguardar a instável hegemonia que a
monarquia procurava afirmar sobre o conjunto das comunidades no Noroeste Peninsular.
A primeira vez em que Afonso II foi entronizado, esta cerimônia não havia sido posta
em prática, nem mesmo com a posterior usurpação, e nos dois governos que seguiram ao
primeiro reinado do citado monarca ela não foi realizada. Precisaríamos esperar a última
692
1 Samuel 9, 26. Cumque mane surrexissent, et iam elucesceret, vocavit Samuel Saulem in solário, dicens:
Surge et dimittam te. Et surrexit Saul: egressique sunt ambo, ipse videlicet, ET Samuel. Cumque descenderant in
extrema parte civitatis, Samuel dixit ad Saul: Dic puero ut antecedat nos ET transeat: tu autem subsiste paulisper,
ut indicem tibi verbum Domini.; 10,1:2. Tulit autem Samuel lenticulam olei, et effudit super caput eius, et
deoculatus este um, et ait: Ecce, unxit te Dominus super haereditatem suam in principem, et liberabis populum
suum de manibus inimicorum eius, qui in circuitu eius sunt. Et hoc tibi signum, quia unxit te Deus in principem..
In: Bíblia de Jerusalém, p. 431-432.
187
década do século VIII para vermos o primeiro rei ungido da Península Ibérica após a ruína do
reino dos Visigodos, no ano de 791. Se nosso esforço interpretativo estiver correto, podemos
notar similaridades situacionais entre a ascensão de Saul e da reentronização de Afonso II.
Muito provavelmente, os clérigos responsáveis pela retomada deste cerimonial tenham visto
pontos em comum entre os eventos presentes no texto veterotestamentário e a realidade que
estavam testemunhando. A realeza judaica era ainda muito jovem, não havia ainda
cristalizado o papel do monarca como um indivíduo distinto dos demais habitantes do reino.
Esta pouca maturidade deixava a instituição régia frágil para se defender de questionamentos.
A autoridade do rei ainda não havia se consolidado, os súditos, de uma maneira geral, não
estavam acostumados a ter que lidar e se adequar a uma dominação que ultrapassava as
imposições dos reis precedentes. A alusão ao texto bíblico, para obter êxito, deveria ser de
conhecimento de uma parcela importante dos súditos, sendo, portanto, inculcar a nova
construção da imagem régia.
O citado Mauregato não enfrentou oposição durante o seu reinado, obtendo com
certeza apoio de parte considerável da aristocracia, e assim pôde tentar encerrar em um
convento o rei deposto se pudermos dar crédito à Crônica Albeldense. Qual seria
exatamente o papel desta cerimônia nas Astúrias? Seria este o elemento fundamental para a
sacralização dos monarcas asturianos tal como pode ser verificado no caso franco? Não
encontramos qualquer referência que corrobore esta perspectiva. Estamos diante de um
processo de estabilização de instituições políticas, e não temos como atestar a cristalização de
determinados procedimentos que investiam em uma imagem régia plenamente caracterizada
como inviolável e sagrada. Podemos vislumbrar, até princípios do século IX, que em algumas
ações pragmáticas dirigidas à elevação de algum pretendente ao poder supremo asturiano
outros elementos convergiam para a construção da legitimidade governamental. Por exemplo,
Mauregado era de estirpe real, descendente direto dos primeiros caudilhos astures que
pretenderam se alçar como grandes chefes políticos no Noroeste Peninsular. Mauregato era
portador do sangue régio que corria em suas veias, algo que poderia ser encarado por alguns
como sendo o suficiente para torná-lo um pretendente ao sólio, solium, trono da nascente
monarquia. O direito de primogenitura e a afirmação de um dos ramos familiares sobre o
outro em questões sucessórias só se imporá séculos mais tarde.
3.6. Sepultamentos régios: memória funerária como expressão de poder:
188
Procuramos chamar a atenção para um ângulo diferente no que se refere à constatação
de um processo de cristalização de uma estrutura política perene. Juntamente com alguns
indícios narrativos e fontes escritas, nos amparamos em vestígios de cultura material deixadas
pelos homens do século VIII e IX. Nossa proposta apresentada é marcada pela verificação de
um estágio de ampla difusão de diversos poderes políticos no cenário do Norte peninsular nos
primórdios da Reconquista. Paralelamente, temos defendido a inexistência de um poder
hegemônico na zona cantábrica surgido após a imediata derrocada do reino visigodo de
Toledo. Por algumas cadas, não havia um senhor superior que impusesse seus desígnios
sobre as terras nortenhas. O que vigorou foi uma disputa entre diversos senhores da guerra,
confrontos estes que não tinham necessariamente a intenção de construir uma entidade
política perene. O cenário de lutas originou uma tendência à concentração de autoridade que
se desvela tanto na documentação escrita como na cultura material.
A ascensão da Igreja marca o início de sua penetração nos grupos familiares e na
comunidade. O clero se afirmou como grupo especializado no trato com a memória dos
mortos. Na visão de Peter Brown, a Igreja sempre teve uma visão muito clara sobre a crença
no Além. As tradicionais comemorações nos cemitérios não bastavam, eram necessários
outros elementos. As oferendas e as orações garantiam a lembrança do nome do morto entre
os membros da comunidade
693
. As anuais comemorações em honra ao morto passaram a se
realizar no átrio da igreja ou no seu interior, que ela, e não mais a cidade, tinha poder de
celebrar ―a glória dos desaparecidos‖
694
.
A noção de ―terra consagrada‖ atraiu o enterramento dos mortos para próximo das
basílicas
695
. Os cemitérios administrados por clérigos, existentes desde o século III,
comportavam galerias subterrâneas construídas para abrigar o maior número de pobres
possível
696
. A criação de nichos incrustados nas catacumbas evidencia a preocupação da
Igreja em se tornar patrona dos pobres
697
. Contudo, no final do século IV, difundiu-se a
hierarquia de estima entre os membros da comunidade cristã, refletindo-se isso na disposição
dos restos mortais nas proximidades aos lugares consagrados. Peter Brown notou que, para
garantir o repouso definitivo ao seu morto, as famílias tratavam diretamente com o clero,
progressivamente se afastavam no trato com os ritos funerários.
693
BROWN, Peter. A Igreja. In: VEYNE, Paul. História da vida privada 1: do Império Romano ao Ano Mil.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 272.
694
Ibid., p. 272.
695
Ibid., p. 272.
696
Ibid., p. 272-273.
697
Ibid., p. 273.
189
Assim, no período carolíngio Michel Lauwer verificou que as abadias eram os
principais lugares de preservação da memória funerária, vistas como a perfeita comunidade
cristã segundo antigos autores cristãos. Esta mesma comunidade tornava-se perfeita para a
realização de funções que unissem os vivos aos mortos. Lauwer atestou que, ―além disso, a
gestão da memória dos mortos ia ao encontro de certas dimensões da espiritualidade
monástica. O estado monástico era em si uma morte, simbólica para o mundo, permitindo
antecipar no Aqui a alegria eterna‖
698
. Ocupavam os monges um lugar intermediário entre
vivos e mortos. Eram eles encarregados de distribuir esmolas para os pobres em nome dos
fundadores que tinham seu pecado remido
699
. Em meados do século VIII, as comemorações
realizadas pelos monges irlandeses foram institucionalizadas em todas as igrejas, ficando os
bispos e abades comprometidos em orar entre si para a remissão dos seus pecados. Desta
maneira, as ordens religiosas trocavam listas com os nomes de seus monges, pelos quais
deveriam ser feitas orações e missas especiais.
700
Nos séculos XI e XII, surgiram contratos e compromissos ―entre diferentes horizontes
da memória dos mortos‖. Os grandes senhores, potentados locais, chefes de castelos,
reclamaram para si e seus parentes defuntos os favores litúrgicos das comunidades religiosas.
―Clérigos e monges forneceram-lhes orações e os acolheram em seus cemitérios. Os
estabelecimentos religiosos transformaram-se em verdadeiros conservatórios das memórias
familiares‖
701
. Desta maneira os grupos aristocráticos fizeram cultivar a memória de seus
‗ancestrais‘ e, associando-se a eles, ―os doadores lembravam que estes lhes haviam legado o
poder que exerciam. Eles não tinham outra maneira de legitimar sua autoridade: transmitido
no interior de famílias aristocráticas, o poder senhorial supunha que a memória dos ancestrais
fosse conservada‖.
702
A relação entre memória e poder não é algo estranho no ocidente, nem é uma invenção
medieval. Fustel de Coulanges evidencia uma prática similar encontrada nos ritos funerários
romanos clássicos, o que auxilia, consideravelmente, na compreensão dos enterramentos em
lugares específicos que enfatizavam o prestígio social. Os antigos gregos e romanos fizeram a
relação entre os deuses domésticos e o solo. O altar do lar, símbolo de vida sedentária, deveria
estar fixo no solo e nunca mudar de lugar. Espera-se fixar o lar para sempre. Sua permanência
no lugar não deve ser efêmera, mas espera-se que fosse eterna, que durasse para sempre,
698
LAUWERS, Michel. Morte e mortos. In: LE GOFF, Jacques, SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático
do Ocidente medieval. Bauru-São Paulo: Edusc-Imprensa Oficial, 2002, 2v., p. 249.
699
Ibid., p. 249.
700
Ibid., p. 249.
701
Ibid., p. 251.
702
Ibid., p. 252.
190
enquanto a família existisse e conservasse sua chama acesa. Desta forma, o lar toma posse da
terra, tornando-a sua propriedade
703
. A família é obrigada a se organizar em torno do lar,
estabelecendo junto a ele o domicílio. A família está ligada ao lar e o lar, à terra. No espaço
do lar a família deve fixar residência permanente, nunca dele e dela se afastando, salvo por
motivo de força maior
704
. A propriedade da terra pertence ao lar. A terra o pertence a uma
pessoa individualmente, ela pertence à família como um todo. Todos os membros da família
devem nascer e morrer junto ao lar.
705
Parece-nos que as referências de Fustel de Coulanges aplicam-se plenamente ao nosso
objeto de estudo, e então podemos verificar que a estabilização do poder político de ―tipo
monárquico‖ dentro de um núcleo familiar não existia nos primórdios da Reconquista.
Tomemos por referência aqueles que são identificados como os primeiros soberanos
asturianos. A relação entre poder familiar e ordens monásticas pode ser verificada, como no
caso do sepultamento de Pelágio no mosteiro de Santa Eulália de Velamio, que ficava
próximo de Covadonga
706
. Já Fáfila teria sido sepultado no dólmen da Capela da Santa Cruz,
em Cangas de Onís
707
. O dólmen da Capela da Santa Cruz foi objeto de estudo muito
tardiamente e isto se reflete na bibliografia que o analisa como um monumento pré-
histórico
708
. Esta construção, que se localiza em Cangas de Onís, segundo Miguel Angel de
Blas Cortina, parece ser um claro sinal da sobrevivência de crenças pré-cristãs, isto se
considerarmos a (desaparecida) inscrição fundamental, datada de 737, dedicada ao túmulo de
Fáfila, sobre o qual foi erigida uma pequena igreja. O lugar foi construído para guardar a
Santa Cruz, objeto de madeira que, segundo a tradição, pertencia a Pelágio
709
. A igreja
construída como fundação nova ou como edificação sobre um antigo prédio representa um
processo de ―cristianização radical e, portanto, a desvirtuação das bases de sustentação
ideológica de uma estrutura monumental antiga em torno da qual, ainda no século VIII, devia
sobreviver com intensidade práticas e crenças firmemente arraigadas‖
710
.
703
COULANGES, Fustel de. O direito de propriedade. In: ________. A cidade antiga. 4 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 58.
704
Ibid., p. 58-59.
705
Ibid., p. 59.
706
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. La restauración em León y Castilla. In: ________. Los monjes españoles
en la Edad Media. 2. Ed. Madrid: Ancla, 1954, p. 277.
707
DE BLAS CORTINA, Miguel Angel. La decoracion parietal del dólmen de la Santa Cruz (Cangas de Onis,
Astúrias). <dialnet>, 1978, Oviedo, p. 717.
708
Ibid., p. 717.
709
DE BLAS CORTINA., p. 717.
710
Ibid., p. 717-718.
191
Os reis anteriores a Afonso II escolheram seus próprios espaços de jazigo conforme o
lugar de sua predileção, fundando mosteiros em seus lugares de descanso eterno
711
. Afonso I
jaz em Covadonga, Froila I diante da basílica de Salvador de Oviedo
712
. Por um longo tempo,
o que vigorou nas Astúrias foi uma dispersão nos lugares de sepultura dos chefes asturianos,
cada um encontrando repouso em áreas independentes umas das outras, algo que poderia
indicar certa descontinuidade na passagem da autoridade de um chefe guerreiro para outro.
Apesar da maioria dos enterramentos terem se efetuado na região de Cangas de Onís, cada um
deles tinha seus restos mortais depositados em terrenos diferentes nas adjacências de igrejas
ou mosteiros igualmente diferentes. Por algumas décadas os sepultamentos se faziam em
lugares independentes uns dos outros, justamente em um período em que os territórios
nortenhos que pertenciam ao ―reino‖ eram ainda exíguos, pela descrição das crônicas latinas
de Reconquista. Da mesma forma que as fronteiras do ―reino‖ eram efêmeras, o poder detido
pelos chefes nortenhos e seus familiares também não era dos mais estáveis.
Com a ascensão de Silo, em 774, à liderança nas Astúrias, a dispersão dos
enterramentos chegou ao fim. E o que isto pode significar? Talvez, considerando a
experiência romana, possamos vislumbrar certa descontinuidade no exercício de poder a partir
de uma dada família. Talvez isto fique mais claro a partir do momento que o centro de poder
deixa Cangas de Onís em direção às terras de Právia, ato promovido por Silo. Centro político
em Právia, jazigo familiar em Právia. A rainha Adosinda descansaria nas terras do mosteiro
de San Juan Bautista de Právia
713
, juntamente com seu esposo Silo e Mauregato, o dito
usurpador
714
. Se os sepultamentos foram promovidos de forma difusa, é bem possível que
cada um dos lugares de enterramento correspondesse a específicas propriedades familiares,
sendo cada um deles um lugar de preservação de memória dos ancestrais, daqueles que
haviam legado a sua autoridade aos seus descendentes. Não foi escolhido para tal fim um
lugar qualquer, mas um possuído por especialistas no culto funerário que eram,
possivelmente, receptores de doações feitas por membros da família de Silo, proveniente da
região de Právia.
Com Afonso II, a relação entre sepultamento e estabilização política obtém um novo
reforço. Por mais que o período de Afonso II tenha sido identificado pelos historiadores como
711
SELGAS, Fortunato de. La primitiva basílica de Santa Maria del rey Casto y su real panteón. Boletín de la
Real Académia de la Historia. Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes <www.cervantesvirtual.com>. 1887, p.
300.
712
Ibid., p. 300.
713
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. La restauración em León y Castilla. In: ________. Los monjes españoles
en la edad media. 2 ed. Madrid: Ediciones ―Ancla‖, 1954, 2v., p. 277.
714
SELGAS, op. cit., p. 300.
192
sendo a fase marcada pelo ―neo-goticismo‖, percebemos que essa retomada dos valores
culturais visigóticos encontrava grandes limitações, pois, diferentemente dos demais regentes
nortenhos, a partir do rei casto todos os reis serão sepultados no interior dos edifícios
religiosos. Trata-se de uma influência franca na prática dos enterramentos asturianos.
Originariamente, os concílios visigóticos proibiam o enterramento no interior dos edifícios
religiosos. Um exemplo que contraria estas deliberações é o sepultamento do presbítero
Crispino na Igreja de Santa Maria de Sorbaces, em Guarrazar
715
. Os reis francos,
contrariando o concílio de Nantes (600), fizeram inumações em igrejas, como nos tempos da
monarquia merovíngia, como informam as capitulares do bispo Teodulfo de Orleans e de
Carlos Magno, de 797
716
. Michel Lauwers, em concordância com Fortunato Selgas, indica
que somente nos séculos VIII e IX os clérigos começaram a se preocupar com os mortos, o
que se revela nos sínodos e capitulares carolíngios, desenvolvendo um maior rigor nas
práticas funerárias, tentando afastar a comunidade daquelas consideradas supersticiosas
717
.
Passou-se a exigir maior preparação dos padres em assuntos funerários. Fortunato Selgas
percebe que no mesmo período em que as citadas capitulares foram compostas, Afonso II
lavrava a capela que levaria seu nome, (793-812) para seu próprio enterramento, sendo ele o
primeiro monarca a aceitar a influência cultural francesa possibilitada pela influência da
monarquia carolíngia sobre a asturiana
718
.
O edifício do qual tratamos é a basílica de Santa Maria de Oviedo. De qualquer forma,
segundo Fortunato Selgas, podemos dizer que, de Pelágio até Vermudo I, todos os reis foram
inumados em cemitérios que circundavam templos, pórticos e vestíbulos exteriores, sendo
Afonso II o primeiro rei a ser enterrado dentro do sagrado recinto da basílica
719
. Em seguida,
os reis leoneses foram enterrados dentro das igrejas fundadas por eles mesmos, como Ordoño
II e Froila II, Ramiro II, Ordoño III e Sancho I, que foram inumados no átrio da basílica do
Salvador de Leão
720
. As parcas proporções do panteão e a pobreza da construção nos indicam
que a basílica destinava-se unicamente ao jazigo de Afonso II e sua esposa Berta. Com a
fixação definitiva da capital política do reino em Oviedo, os sucessores do rei Casto
desejaram também repousar seus corpos no lugar. O recinto da basílica encerrava onze
715
SELGAS, op. cit., p. 298.
716
Ibid., p. 298.
717
LAUWERS, op. cit., p. 248.
718
SELGAS, op. cit., p. 298-299.
719
Ibid., p. 301.
720
SELGAS, op. cit., p. 301.
193
tumbas, sendo três de príncipes mortos na infância. No centro delas estava a tumba do
fundador, o rei Afonso II, sem adornos ou inscrições que informassem seu nome
721
.
Se considerarmos os enterramentos como dados, podemos empregá-los na
compreensão do estabelecimento de uma entidade política em vias de construção.
Acreditamos que a dispersão dos enterramentos dos ―soberanos‖ asturianos representa
também a dispersão política e a instabilidade da autoridade detida por eles. A partir do
momento em que o poder começou a ser mantido, por um tempo mais longo, num
determinado círculo de pessoas que concentravam autoridade superior à de guiar seus
conterrâneos em expedições militares, os sepultamentos também começaram a ocorrer em um
lugar específico, servindo de área para repouso dos reis que se seguiram a um determinado
―soberano‖. Como havia atentado Fustel de Coulanges para o caso romano, podemos
considerar tais ―terras sagradas‖ como ambientes físicos que explicitavam os vínculos que
uniam um certo grupo. Preenchendo o silêncio das fontes narrativas dos primeiros tempos da
Reconquista, os vestígios das inumações régias asturianas explicitam um processo de
estabilização do poder político. A ―terra sagrada‖ das sepulturas certificava a posição detida
pelo monarca reinante, legitimava o seu tulo, demarcava publicamente a origem do poder
político.
3.7. Primeiros sinais da consolidação da instituição monárquica asturiana:
Com base nos argumentos e dados expostos nas páginas anteriores, podemos constatar
os de indícios de um processo de cristalização da instituição monárquica das Astúrias.
Processo este repleto de muitas oscilações, avanços e recuos. Antes do governo de Mauregato,
os conflitos pela liderança política pareciam se manifestar fora dos quadros da realeza. O
único caso a respeito do qual podemos inferir uma latência na disputa por aquilo que se
configurou como uma entidade política que tinha como o seu cume o rei ocorreu nos tempos
de Froila I, que havia dado cabo de seu irmão e possível rival, Vimara. Mas, pelo próprio
estágio ―embrionário‖ da monarquia, não temos como identificar nesta situação mais do que
uma luta por uma estrutura política em menor escala. Talvez, o conflito entre Froila I e
Vimara se aproximasse mais das lutas pela liderança da ―matilha‖, sem qualquer preocupação
com o controle ou a posse de determinados elementos de legitimação do exercício da
autoridade política.
721
Ibid., p. 302.
194
Nos últimos anos do século VIII nos deparamos com uma modificação considerável na
dinâmica política nas Astúrias. Pela primeira vez, podemos notar que a posição de rei era
objeto de disputa, bem como os privilégios adquiridos por ele e também a posse e o controle
de uma entidade política que dava seus primeiros passos como algo que timidamente pairava
acima da sociedade. Tomar as rédeas desta estrutura, ainda jovem, era se colocar muito acima
dos demais membros de sua comunidade, era a possibilidade de gerenciar com
reconhecimento os homens e os recursos à sua volta. Estamos diante da posse de um
privilégio sacralizado, fruto da disputa pelo monopólio de governar, de reger a vida dos
homens, sendo este um direito amparado por Deus para seus lugares-tenentes na terra. O
esforço por se efetuar o cerimonial de unção seria então empregado, a partir daí, como uma
tentativa de garantir a legitimidade de um poder que se exercia de fato, sem torná-lo sua
essência sagrada por si só, mas sim sacralizando a sua posição política diante de seus
contemporâneos. Não mais o puro apoio da nobreza da corte bastava, bem como a filiação
direta a um dado governante precedente ou o pertencimento a uma proto-casa real. Sugerimos,
assim, que a realização desta cerimônia religiosa está vinculada a outras circunstâncias, como
será visto no final.
A autoridade garantida pelo apoio político de uma parcela da aristocracia asturiana
ainda deve ser levada em consideração, que Mauregato, até bem pouco tempo, preservou o
reino até sua morte e impôs como seu sucessor Vermudo I, filho do antigo rei Froila I. Não
dispomos de quase nenhum outro dado sobre o reinado de Vermudo I, como pode ser
constatado pelas Crônicas de Afonso III. A abdicação do trono deste rei que procurou
ingressar na vida monástica nos forneceria um indício sobre a aura sagrada com que os
cronistas de fins do século IX gostavam de ornar estes indivíduos. O elogio contido nas
citadas fontes e o fato deste monarca ter concluído sua vida portando hábito clerical não
apenas incensaria a pessoa de Vermudo I da pérfida usurpação de seu antecessor, mas
contribui também para a edificação do aparato ideológico que transforma a família reinante
em um grupo apto ao exercício do poder. Não apenas isso, mas o ingresso de monarcas e
rainhas no meio monástico ressaltaria também o alto grau de cooperação de um grupo com o
outro, isto atestaria a convergência de interesses entre a monarquia nascente e o corpo
eclesiástico em processo de reestruturação.
Podemos afirmar, neste ponto, que apesar da pessoa física do rei ser objeto de
questionamento como o verdadeiro representante e portador de autoridade, a instituição
monárquica nascente não era posta em causa. Encontramos a disputa ao acesso ao ápice da
hierarquia política nas Astúrias. Contudo, paralelamente a isto, o jogo de forças era uma
195
constante, dependendo da capacidade de manter-se e de sobrepujar os rivais, aquele que
portava o cetro real se via obrigatoriamente limitado em muitas das suas pretensões. Mesmo o
monarca não depositava totalmente a essência de sua força nas qualidades pessoais como um
elemento que por si imprimiria o reconhecimento de sua autoridade, o que era forte era o
reconhecimento da entidade que ele procurava dirigir. A unção régia seria então mais um
elemento de distinção política, era o selo que certificava e capacitava determinado indivíduo a
governar, afastando outros que pudessem se lançar na mesma empreitada política.
Tal como seu usurpador, a nova entronização de Afonso II foi precedida pela
manifestação de apóio de uma parte da aristocracia, que o recolocaram no trono asturiano.
Não sabemos se ocorreu alguma reconciliação com os antigos correligionários de Mauregato,
ou se houve algum pacto para o restabelecimento da ordem que poderia ruir. Apesar de novo,
procura-se atribuir ao cerimonial de unção régia um ar de tradição, que o vinculava a um
passado que não devia ser questionado. Fora praticado entre os Visigodos na Península
Ibérica, mas como havíamos destacado nas algumas ginas acima, a monarquia toledana
não vinculava geneticamente ao jovem reino astur. Houve uma tendência a identificar esta
prática a um ―neo-goticismo‖ que tentou vigorar nas Astúrias, mas, como disse Sánchez-
Albornoz, ele foi conservado em um círculo restrito de funcionários régios ou clérigos,
visigodos de origem ou influenciados pelos novos refugiados das terras islâmicas, que
preservavam a lembrança desta cerimônia.
A unção foi uma expressão política que garantia a legitimidade e pode ser uma medida
para por fim a instabilidade anterior, esta cerimônia procuraria preservar a pessoa do rei de
novas manifestações de rebeldia, forçando a todos os súditos o reconhecimento incondicional
da autoridade. O Antigo Testamento fornece outro paradigma, o da inviolabilidade do corpo
do rei. Davi, mesmo sendo inimigo do rei Saul, impedeu que seus seguidores o matassem:
E disse aos seus homens: ―Favoreça-me, Senhor, nem faça alguma coisa ao meu
senhor, a um ungido do Senhor, afaste minha mão dele‖. Com este sermão não
permitiu a seus homens que se lançassem contra Saul:
722
Davi declara a Saul que poderia tê-lo matado, porém não o fez:
Hoje mesmo, os teus olhos viram como o Senhor te trouxe às minhas mãos na
caverna: eu cogitei te matar, mas meus olhos pouparam a ti: então disse: Não
estendam a mão contra o meu senhor, pois ele é o ungido de Senhor.
723
722
1 Samuel 24, 7:8. Dixitque ad viros suos: Propitius sit mihi Dominus, ne faciam hanc rem domino meo,
christo Domini, ut mittam manum meam in eum, quia viros suos sermonibus, et non permisit eos ut consurgerent
in Saul.
723
1 Samuel 24, 11. Ecc hodie viderunt oculi tui, quod tradiderti te Dominus in manu mea in spelunca: et
cogitavi ut occideram te, sed pepercit tibi oculus meus: dixi enim: Non extedendam manuem meam in dominum
meum, quia christus Domini est.
196
Os opositores do rei não seriam apenas seus adversários políticos, mas também se
tornavam rebeldes diante da ordem estabelecida e sacramentada por Deus. Mais uma vez,
convergem os discursos políticos e religiosos com a preocupação de controlar a sociedade
instaurando um mito preservador de privilégios e propriedade. Como havia destacado
Balandier, estas práticas cerimoniais detêm uma dupla função: explicar a ordem vigente e
justificar sua existência em termos morais. Em nosso objeto de pesquisa, a unção reforçaria
ainda mais a proeminência política e social que o monarca detinha, firmando uma missão,
um objetivo delimitado para sua autoridade, expresso também em termos religiosos. Todavia,
esta missão foi fruto de transformações sociais e ideológicas, mais precisamente com o
estabelecimento mais claro de um corpo especializado no trato com o sagrado, grupo que
monopolizava uma boa parte de seu conteúdo.
O historiador Novo Güisán destacou que foi no reinado do Afonso II que encontramos
o desenvolvimento da pujança da Igreja asturiana, expressada, por exemplo, pela fundação de
um bispado que ficava sediado em Oviedo, na capital do reino, e pela descoberta do túmulo
do apostolo Santiago; em Compostela, situado em terras galegas. O achado marcou o início da
edificação do mosteiro de Antealtares
724
, casa religiosa intimamente vinculada ao rei Afonso
II
725
. Não são eventos de pouca importância, ao contrário, se levarmos em consideração os
epítetos dedicados a Afonso, notaremos que o vínculo com os especialistas da é mais um
indício do estreitamento dos laços firmados entre a realeza e as ordens religiosas deste
período. Pio, pius, casto, castus e grande, magnus, correspondem a atributos destinados a
caracterizar indivíduos muito bem enquadrados na ideologia religiosa daqueles tempos, em
comparação com os monarcas precedentes.
Talvez, não temos certeza, a Galícia tenha correspondido no primeiro grande foco de
concentração de refugiados visigodos, que, progressivamente começaram a influenciar de
maneira mais intensa todo o Norte Peninsula. Isto pode ser inferido com base em um
documento notarial datado de 28 de abril de 787, uma carta de fundação do mosteiro de San
Juan, San Esteban e San Tirso, localizado na vila de Cellario
726
. O responsável pelo
documento é o diácono Rodrigo, clérigo oriundo de Coimbra que foi buscar refúgio na
Galícia, região na qual ele fundou as casas monásticas. Além de identificar a localização
geográfica do mosteiro, o que nos chama a atenção é o conjunto de bens ofertados por ocasião
724
ALVAREZ, Manuel Lucas. Introductión. San Paio de Antealtares, Soandres y Toques: tres monasterior
medievales gallegos. Edicios do Castro, 2001, p. 13.
725
Ibid., p. 13.
726
FLORIANO, op. cit., p. 85.
197
da fundação do citado mosteiro. Encontramos, como parte do patrimônio, ―livros, cruz, arca,
cálice de prata e vestimentas‖
727
, objetos comuns de serem encontrados em qualquer mosteiro
e que compõe os instrumentos do ofício litúrgico. Mas não apenas isto, tais artefatos
correspondem a bens materiais pertencentes a um determinado grupo social, dotado de um
tipo de cultura proveniente do sul da Cordilheira Cantábrica. O papel de preservador cultural
não deve ser jamais subestimado, pois, como apresentamos no primeiro capítulo, os mosteiros
lograram preservar o que havia soçobrado da estrutura eclesiástica visigótica. Sendo assim,
cultura escrita e poder político puderam se entrecruzar.
A fundação de um bispado forneceu muito prestígio para a casa real, marcando uma
ruptura com os bispados remanescentes nos territórios submetidos pelos exércitos
muçulmanos no sul peninsular. Foi realizada a independência institucional eclesiástica frente
aos bispos moçárabes e os oriundos do território franco. Apesar dos vínculos políticos entre
estas sés, a autonomia asturiana só pode se afirmar tanto em questões religiosas quanto
políticas com a tutela direta dos monarcas Asturianos. Entramos, assim, mais uma vez na
questão do monopólio de símbolos reconhecidos como válidos e que fornecem grande
prestígio para aquele que os detém. Afonso II também fundou igrejas como a dedicada a São
Salvador conforme o diploma datado de 812. Neste documento ainda podemos encontrar os
vínculos familiares do monarca, remetendo aos reis anteriores, remontando até ao Pelágio,
líder da revolta anti-islâmica de 718, transformando também estas instituições religiosas em
reservatórios da memória régia, edificando uma auréola sagrada nesta produção de memória
familiar, legitimando aqueles membros da estirpe que vieram a ocupar o trono.
Estamos diante da construção de elementos que legitimavam a autoridade detida por
aqueles que portavam o título real. Vislumbramos como a prática do cerimonial de unção
régia abriu um novo caminho para as práticas políticas asturianas ou mesmo, não
descartamos, tenham apenas dado o arremate para um processo já adiantado. O jogo político
das terras nortenhas teria a partir de então que lidar com novos procedimentos políticos dos
atores sociais que progressivamente foram ganhando importância. O vínculo fortalecido entre
as novas instituições eclesiásticas no Norte da Península Ibérica e a jovem monarquia se
explicita consideravelmente na opção pelo ritual de unção. Afonso II evidenciou
publicamente que posição estava tomando e de que lado iria ele partilhar da experiência na
construção do aparato administrativo, religioso, jurídico e político. Desta maneira, o monarca
daria uma dupla resposta aos seus contemporâneos, tanto laicos quanto eclesiásticos,
727
Ibid., p. 65.
198
explicitaria que posição ideológica iria seguir, consolidando assim a união formal entre Igreja
e Realeza. Clérigos nortenhos e recém chegados dos domínios muçulmanos ou das ―terras de
ninguém‖ se poriam sob a proteção da nova autoridade cristã reconhecida na Península
Ibérica.
O ―neogotismo‖ nada mais é do que o mais efetivo enquadramento e a retomada mais
ou menos pujante das atividades literárias dentro do possível, é claro das instituições
políticas no ideário daqueles monges e religiosos que ainda portavam o que havia sobrado do
ocaso da Realeza Toledana. Aqueles que testemunharam a repercussão imediata da batalha de
Guadelete não mais existiam, mas aqueles indivíduos instruídos por estes, dotados de um
saber histórico, religioso e jurídico preservaram, a seu modo, o que deveria ser uma
instituição política cristã, como deveria ser um reino e como deveria atuar um governante. E é
evidente que tudo isto para se efetivar deveria passar pela participação de membros da
hierarquia eclesiástica. Não estamos aqui preocupados se o espírito de renovação visigótica
era experimentado por todos os homens do norte da mesma maneira, não temos a menor
pretensão de fazer isto, nem se quiséssemos tal empreitada encontraria bom êxito, devido ao
problema citado no capítulo primeiro da terrível escassez de fontes sobre o período que
cobre os séculos VIII e XI. Nosso objetivo se dirige mais para o processo de formação e a
repercussão de um aparato político, e na construção do monumento ideológico asturiano.
Estes sim podem ser rastreados e analisados pelos historiadores com algum grau de
segurança.
Verificamos neste capítulo o quão importante foi o papel dos líderes políticos que
chefiaram as ações no Norte da Cordilheira Cantábrica, chamamos a atenção para o fato de o
efeito constante das ações destes governantes, mesmo com as manifestações de resistências
terem auxiliado na construção de uma experiência de direção política mais perene, não tão
breve em sua duração, percebemos que isto foi um passo importante na construção de uma
entidade com pretensões hegemônicas, mas não era o bastante. As populações que
progressivamente obtiveram o costume de serem dirigidas por líderes vitalícios passaram a se
enquadradas, seguindo uma tradição em construção. Esta mesma tradição que reforçou o
exercício do poder dos reis asturianos era algo muito importante, porém insuficiente para se
confirmar a estabilização de uma entidade política relativamente autônoma da sociedade.
Com a monarquia vista como algo a ser tomado como um instrumento de poder, surgiu a
necessidade de abrir um abismo entre o dirigente máximo do reino e seus súditos. Mas o
cerimonial de unção dava conta de uma das praticas na dinâmica política, era preciso
outros elementos que garantissem mais do que a legitimação, mas também a legalidade das
199
atitudes dos monarcas asturianos, que, assim como seus antecessores visigodos, punham-se
em defesa das leis, expedientes de grande importância para a manutenção da ordem e do
fortalecimento do discurso hegemônico da monarquia asturiana, como poderemos verificar no
próximo capítulo.
200
4. CONFIGURAÇÃO DO NÚCLEO OVETENSE:
4.1. Reconhecimento dos fundamentos da autoridade asturiana:
Vamos tentar sintetizar tudo aquilo que vimos apresentando. Um dos pontos que
entendemos como basilar para esta tese é o fato de a constituição do Reino das Astúrias ser
fruto de um processo complexo que em parte pode ser comprovado por vestígios diretos e em
parte atestado por meio de indícios ou de sinais indiretos e esparsos. As abordagens
produzidas sobre o reino tendem a desconsiderar totalmente ou dar pouca importância aos
aspectos referentes às transformações das estruturas políticas nortenhas. Enfatizamos aqui que
o desenvolvimento daquela estrutura política partiu de bases mais simples e fragmentadas até
intensificar a amplitude de sua intervenção na realidade a par das fortes pretensões
centralizadoras e monopolizadoras.
Esta nova entidade política que intentamos caracterizar originou-se de pequenas
unidades políticas locais. A força e o raio das ações neste estágio inicial eram tímidos e
circunscritos apenas às cercanias de seu centro político de poder, o do parco território
dominado por Pelágio e por seu filho Fáfila. As brevíssimas notícias das crônicas asturianas
sobre esta época, os testemunhos epigráficos e a nascente documentação notarial servem
como indícios para tentarmos alcançar o que teria sido o mundo político das terras ao Norte
da Cordilheira Cantábrica. Rastreamos, com estas notícias, os ecos exíguos de uma realidade
marcada por múltiplos núcleos políticos rudimentares, cujo passado foi praticamente apagado,
salvo algumas exceções. Percebemos que não havia qualquer hierarquia entre estes núcleos
territoriais de poder. O caráter hegemônico de Cangas de Onís como centro político de
Pelágio e Fáfila era aparentemente nulo ou bastante restrito. Talvez possamos estender a
breve descrição deste cenário para a última década do século VII, pelos menos em relação às
regiões circunvizinhas de Cangas de Onís e Covadonga.
O poder desta entidade política de pequena escala balizar-se-ia em dois pontos:
consentimento e uso da força. O consentimento, algo muito próximo daquilo que entendemos
por legitimidade, era muito limitado, e era dependente da aceitação de outros aristocratas que
estavam imediatamente vinculados aos caudilhos asturianos. É claro que agregamos a este
conjunto de pessoas os membros da própria parentela do chefe político, nunca esquecendo a
importância dos vínculos familiares como parte dos artifícios de articulação social e política.
A sucessão no poder, neste primeiro caso, efetuou-se diretamente de pai para filho. No mais,
no que tange ao emprego da coerção como instrumento político e elemento catalisador, o
201
comando em tempo de guerra é evidente com Pelágio e implícito com Fáfila. A repulsão do
exército muçulmano foi uma atividade de auto-preservação que concentrou a autoridade nas
mãos de Pelágio, garantindo-lhe proeminência nos assuntos militares nortenhos. O uso da
violência como instrumento necessário para a atratividade da proto-realeza asturiana deve,
após Covadonga, ter se manifestado fundamentalmente dentro dos limites desta exígua
entidade política compreendida entre Cangas de Onís e Covadonga.
Este estado inicial deve ter se desequilibrado por duas situações: a repercussão do
êxito asturiano em Covadonga e a aliança entre Pelágio e Afonso I. A partir daí, na modesta
unidade política nortenha começou-se a gestar um esforço de ampliação e concentração de
autoridade nas mãos de um círculo restrito de famílias. É possível dizer que a propagação da
notícia da vitória de Pelágio sobre as hostes muçulmanas instigou Afonso I a buscar firmar
um pacto político. Esta ação marca uma profunda transformação nas relações políticas
asturianas. Deparamo-nos com uma aliança que se revelou próspera. Gostaríamos de destacar,
antes de tudo, que a presença de Afonso I é um primeiro indício direto da existência de outros
chefes guerreiros independentes a Norte da Cordilheira Cantábrica. Pelágio exerceria apenas a
liderança de um número restrito de pessoas. Se a Batalha de Covadonga foi relevante para
constituição do Reino das Astúrias, o foi na medida em que serviu de estímulo para a
construção de novas redes de alianças que viriam a se ampliar futuramente.
O pacto estabelecido entre Pelágio e Afonso I teve como um dos primeiros efeitos a
ampliação do poder coercitivo asturiano. As breves pistas cronísticas, tanto cristãs quanto
muçulmanas, nos dão mostras de como este reforço no emprego da violência foi de grande
importância na ampliação do território submetido ao poder destes caudilhos. Os confrontos
iniciais efetuaram-se nos arredores de Cangas de Onís. Estas terras, muito mal identificadas,
deveriam ainda estar limitadas às montanhosas regiões no Norte. O sucesso da aliança deve
ser entendido à luz da ampliação do consentimento de uma parcela da aristocracia, que passou
a se aproximar de um grupo familiar bem específico detentor da autoridade militar. Esta
aproximação garantiu o emprego de força necessária para a domesticação de grupos
aristocráticos ainda autônomos ou reticentes a somarem seus esforços à nova autoridade que
surgia. Um grupo mais coeso e mobilizado e que respondia de imediato aos anseios de um
núcleo restrito de tomada de decisão mostrou-se eficiente frente ao mosaico de poderes
políticos menores e menos articulados.
O período que abarca a constituição da aliança entre Pelágio e Afonso I, a ascensão de
Fáfila e a entronização de Afonso I correspondem a um momento de mutação das práticas
políticas asturianas. Não encaramos estes eventos como uma reação natural das forças
202
vigentes nesta época, mas compreendemos que as transformações vivenciadas são de caráter
processual, dinâmico, oscilante, não-linear e imprevisível, sobre as quais incidiram diversas
pressões e variáveis também inconstantes e mutáveis. Entendemos que após a ―eclosão dos
eventos iniciais‖, novos elementos foram acrescentados ao ―jogo político‖. A experiência
asturiana de unificação e articulação de ações militares poderia muito bem ter malogrado e
limitando-se aos eventos de Covadonga. Contudo, como podemos verificar, não foi isso que
ocorreu.
Retornando ao ponto da ascensão política de Afonso I, nos confrontamos com uma
inovação de não pequena importância. Temos o primeiro testemunho preservado de um
grande número de expedições empreendidas pelo rei, em primeiro lugar, às terras
imediatamente situadas ao sul da Cordilheira Cantábrica, principalmente, em direção a oeste,
em território galego e leonês. Ultrapassando estes limites, em seguida, foram feitas razias
sobre regiões mais intensamente dominadas por muçulmanos. Este êxito afonsino pode ser
explicado também pela debilidade das defesas islâmicas posicionadas em território galego e
leones, nas proximidades do vale do Douro. As revoltas berberes deflagradas entre as décadas
de 740 e 750 e a ausência de uma autoridade político-militar andaluza suficientemente forte
tornaram possíveis as expedições asturianas, que avançaram pelo interior de muitas regiões
outrora detidas pelos invasores muçulmanos.
As crônicas asturianas nos informam sobre ataques a cidades submetidas aos
contingentes berberes. No entanto, para além da convulsão social, política e militar andaluza,
o que vimos tentando enfatizar é que a envergadura das expedições é resultado da maior
coesão sócio-política asturiana. Encontramos, a partir de 740-750, uma superação das bases
de articulação puramente locais. O desejo de pilhar núcleos habitacionais dotados de
excedentes agrícolas e bem móveis foi saciado por uma cooperação mais intensa do que as
experimentadas em solo asturiano até então. O consentimento mais amplo aumentou
imediatamente a autoridade e o poder coercitivo dos chefes asturianos, que se mostraram
hábeis líderes, fornecedores de meios de obtenção de riquezas e, possivelmente, grandes
distribuidores de benesses. A queda de barreiras que cerceavam o solar asturiano atuou como
um catalizador, acelerando um conjunto de modificações em curso. A reação a isso foi a
fundamentação de uma base territorial mais extensa do que a existente quando da revolta de
Pelágio. Com bases geográficas mais amplas, maiores foram os esforços que garantiram a
perpetuação da submissão de territórios recentemente conquistados.
A manutenção deste novo modelo de estrutura política não pode ser entendida como
algo cristalizado de imediato e institucionalizado de fato. Defendemos que somente com base
203
em ações constantes e coordenadas por parte de um núcleo de tomada de decisões é que
podemos constatar a formação de uma entidade constituída por múltiplos territórios
dominados e interligados. Contudo, a existência desta entidade depende de que o núcleo de
tomada de decisão possa ser visto como um ponto de convergência para diversos grupos
aristocráticos pertencentes a várias localidades vizinhas ao centro de poder. Temos aqui uma
articulação mantida pelo uso da força dentro e fora da zona primordial astur-cantábrica,
baseada na habilidade militar e política de coordenar diferentes interesses em favor de um
certo empreendimento. Progressivamente, este contexto forneceu os alicerces de um novo
elemento que, passo a passo, veio a favorecer o uso da coerção. Acreditamos que a adoção
prolongada da coação foi disciplinando os ―ânimos‖ de parte da população nortenha,
respaldando o enquadramento destas nos projetos dos chefes nortenhos.
Pensemos no tempo transcorrido entre Pelágio e Afonso I e seu sucessor Froila I, entre
718 e 768. Mais de quatro décadas de constantes intervenções na realidade social e potica
nortenha correrias, razias articuladas, punições e repressões contra aqueles que insistiam em
não obedecer às ordens dos senhores da guerra , modelaram a maneira pela qual agiram
todos aqueles que habitavam os territórios nortenhos alheios à dominação muçulmana. Um
certo adestramento e imposição de modelos de cooperação foi produzido pelo freqüente uso
da força. E este adestramento foi paulatinamente substituindo o emprego constante desta
mesma força, criando assim um costume. As comunidades enquadradas tiveram suas ações
controladas de tal forma que nem sempre o emprego da coerção se fazia necessário. Tradição
seria a palavra mais exata para configurar este novo fator que entrou neste jogo. Assim a não-
violência ocuparia um espaço junto às atividades puramente coercitivas. Inicialmente pelo
medo de uma possível represália, posteriormente a participação dos habitantes do Norte, tanto
aristocratas quanto produtores rurais, passou a se efetivar também pela tradição e pelo
costume de se responder ao chamado de um líder superior.
O tempo de investimento constante e prolongado reforçaria a formação de um
costume. Este costume não é apenas compartilhado por parte de uma população dedicada
predominantemente às atividades produtivas, mas é algo também nutrido por aqueles que se
especializaram no ofício guerreiro. Paralelamente a isto, nutriu-se uma visão que percebia o
poder da liderança como algo diferenciado da forma de comando praticada até então. A
monopolização deste poder nas mãos da família de Afonso I talvez tenha iniciado ou
reforçado tal processo de modificação. A capacidade de comandar e de dirigir a coerção
começou a ser encarada como uma manifestação superior de poder diante das pequenas
células políticas ainda existentes no Norte peninsular. Após 750, percebemos inclusive
204
tensões no seio da família dirigente motivadas pela concorrência pelo controle deste aparato
de tomada de decisão. Contudo, além dos esforços para a construção e manutenção deste
poder, há, logicamente, resistências contra a sua efetivação. Não há poder sem qualquer
manifestação de oposição a ele. As forças que lhe concretizaram e que lhe contrariaram
modelaram o seu perfil e contribuíram para sua edificação.
Ações punitivas contra rebeliões galegas ou navarras exemplificam não apenas o raio
de ação dos chefes asturianos, mas também o quanto o espaço asturiano foi sendo
progressivamente pacificado. Não foi um processo homogêneo, periodicamente nos
deparamos com insubordinações, porém, o número de revoltas no primitivo território
asturiano foi proporcionalmente menor do que aquelas ocorridas nas franjas do domínio
territorial asturiano. Tal cenário poderia ser explicado pelo fato de as zonas marginais terem
sido as últimas conquistadas pelos monarcas asturianos e, conseqüentemente, eram regiões
menos habituadas à condução ou às interferências de um poder externo superior. Que nome
daríamos a este tipo de entidade política? Poderíamos dizer que existe de fato um indivíduo
pertencente à família mais poderosa e que tem o poder de reger, coordenar, organizar,
articular e atrair um conjunto significativo de pessoas. Poderíamos dizer também que esta
capacidade de reger foi sutilmente disputada no interior da família mais importante do
período. um território que possui um centro geográfico de poder: Cangas de Onís. Temos
agregado a isso tudo uma possível criação de costume, que fortalece e colabora com as
práticas coercitivas de controle social e político.
O período da ascendência de Pelágio, quando da rebelião asturiana, em 718,
corresponde ao primeiro estágio identificável de transformação das estruturas políticas
nortenhas. O período compreendido entre a aliança Pelágio-Afonso I, o governo de Fáfila e os
primeiros anos de governo de Afonso I (739-757) constituiu uma segunda fase. A terceira foi
iniciada nos momentos que precederam as expedições de pilhagem contra as terras ao Sul da
Cordilheira Cantábrica, configurando-se a quarta com a aliança firmada entre a família de
Afonso I e a de um outro grande senhor do norte, Silo, aquele que promoveu a transferência
da capital de Cangas de Onís para Právia. Com Silo encontramos indícios de modificações no
cenário e na prática política. Esta época parece ter aberto uma fase de maior pacificação
interna do reino. O território mais a Leste, a zona alavesa, continuou, entretanto, sendo palco
de atos insurgentes periodicamente reprimidos pelos senhores de Právia, a nova capital. O
extremo Oeste da zona galega, de forma menos intensa, desliga-se das articulações
promovidas pelos deres asturianos. Na época iniciada por Silo não encontramos qualquer
conflito sério com o mundo hispano-muçulmano.
205
Do ponto de vista interno, a dinâmica é outra. A esfera superior de tomada de decisão
parece ter obtido um reforço em sua autonomização, diferente da capacidade de comando e de
repressão praticada por líderes como Pelágio, por exemplo, e do poder surgido apenas pelo
consentimento de uma parte da aristocracia. Quando pensamos no consentimento, pensamos
automaticamente na cooperação ativa da aristocracia na manutenção do poder com base em
um conjunto de regras informais que determinava as atribuições de cada um dos grupos
envolvidos no jogo político. Com Silo e seus sucessores, a primeira fase de Afonso II e os
reinados de Mauregato e de Vermudo I, podemos notar que, apesar da insurgência em
algumas regiões, a crença em uma esfera superior de comando e articulação política não se
viu desmanchada. Sessenta ou setenta anos de ações contínuas dos líderes nortenhos
modificaram a maneira pela qual a autoridade política era encarada, fazendo surgir uma outra,
muito mais estável, a partir da precedente. A existência de um poder que busca impor-se
hegemonicamente passou a ser reconhecida e ele, disputado. Mas, a ameaça ao chefe não
punha em risco a manutenção do edifício político em construção.
Como poderíamos caracterizar esta entidade política que surge a partir da época de
Silo? Primeiramente, gostaríamos de destacar que este contexto deixou seus vestígios nos
primeiros diplomas asturianos, constituindo o início da maior produção de documentação
epigráfica concernente aos monarcas asturianos. As crônicas preservaram com menor grau de
contradição um número maior de informações sobre este período do que sobre o precedente.
Com base nos dados obtidos podemos dizer que: 1) os elementos mais antigos coação e
consentimento por parte da aristocracia imediatamente circundante de manutenção e
realização do poder são mantidos como instrumentos políticos; 2) construção de uma rede de
alianças com outros grandes aristocratas para além do foco de resistência anti-islâmica
Cangas de Onís superando, contudo, a pretensa igualdade de poder; 3) recurso à aliança
com estes mesmos grandes aristocratas tanto na pacificação interna quanto nas novas
conquistas; 4) desde Pelágio, os esforços de manutenção do poder contribuíram para o
disciplinamento da população aristocrática ou não inserida no território influenciado
pelos grandes chefes asturianos que progressivamente vão reconhecendo a superioridade
destes chefes; 5) a luta para impor a hegemonia sobre uma zona ampla nas Astúrias contribuiu
para a autonomização da autoridade dos senhores de Cangas de Onís e, depois, de Právia,
sendo objeto posterior de disputa; 6) os monarcas asturianos são reconhecidos como
autoridades que tendem a proteger a incipiente, mas ativa estrutura eclesiástica asturiana; 7)
as resistências às pretensões hegemônicas são produzidas nas zonas periféricas, onde a
autoridade dos chefes asturianos é menos sentida; 8) diferentemente da periferia oriental, a
206
zona periférica ocidental foi menos resistente, pois pontos de contatos mais estreitos foram
estabelecidos principalmente em razão da proteção asturiana dispensada às casas monásticas.
A autoridade dotada de meios de condução de um conjunto amplo da sociedade
envolvia a concentração destes mesmos instrumentos nas mãos de um grupo restrito. Por mais
que a cooperação começasse a abarcar uma porção cada vez mais ampla da geografia
nortenha, apenas um núcleo pequeno que cercava os monarcas é que estabelecia os ditames
finais das diretrizes no jovem reino. Segundo Hermann Heller, no conjunto do povo existe
uma minoria que influencia no ser e no dever ser do Estado, minoria esta que participa as
atividades conscientes na conservação, manutenção e formação estatal. Em uma concepção
contemporânea, mas mesmo assim, utilizável neste ponto de nossa tese, a participação ou
colaboração da população se inscreve da seguinte forma:
A grande massa, porém, enquanto é impelida para um agir concorde com o estatal
por algo mais que a dominação das necessidades fundamentais, concebe a realidade
normal ou eficaz como um dever ser; para essa massa a normatividade ou, mais
exatamente, a habitualidade apenas consciente do fático, significa uma base de
justificação suficiente do Estado
728
.
O desapossamento do poder de decisão de grande parte dos habitantes da Cordilheira
Cantábrica, além do distanciamento de pequenos senhores locais que pudessem resistir aos
seus propósitos, a camada não-aristocrática era enquadrada a tal ponto que tendia a naturalizar
a dominação, seguindo os seus ditames. A autoridade manifestada por esta entidade política
foi exercida de fato, ou seja, efetivou-se como ação social e política, tornou-se presente e
manifesta diretamente. Sua capacidade de pressionar e de proteger foram suas bases
fundamentais. Todavia, percebemos o desenvolvimento de alguns focos de legitimação desta
atuação e o seu reconhecimento independentemente da ação coercitiva que pudesse ser
empreendida. Tal situação relaciona-se tanto com a criação do hábito e do costume
provenientes da coerção antiga, quanto com a maneira como determinados setores sociais
cooperaram espontaneamente com estes monarcas. Paulatinamente, o poder dos senhores
nortenhos foi se concentrando, afastando-se de possíveis concorrentes, restringindo a esfera
da participação neste monopólio e fazendo respeitar-se também por vias não-violentas. O
retorno de Afonso II acrescenta mais um elemento ao conjunto destas características: a
legitimação pelo sagrado.
4.2. Acerca das desigualdades sociais nas Astúrias:
728
HELLER, Hermann. Essência e estrutura do Estado. In: ________. Teoria do Estado. São Paulo:
Mestre Jou. 1968, p. 260.
207
O que são as Astúrias no período compreendido entre os últimos anos do século VIII e
as primeiras décadas da centúria seguinte? Mais precisamente, o que significa o reinado de
Afonso II? Qual o impacto de suas ações? É evidente que quando levantamos tais
questionamentos, temos em mente algo dinâmico e complexo. Preocupamo-nos em trazer a
baila um processo histórico e apresentar algumas de suas linhas mestras. Sendo assim,
abordaremos um tópico que se relaciona diretamente com o contexto social e político
asturiano no tempo do ―Rei Casto‖. Um ponto de não pouca importância vincula-se
diretamente com o ―Neogoticismo‖ que teria sido experimentado em Astúrias. Destaque-se
que, em discordância com a tese de Abílio Barbero e Marcelo Vigil, as terras do Norte da
Península Ibérica estavam vinculadas, de alguma maneira, às tradições visigóticas. Não
acreditamos que o surgimento daquilo que veio a se tornar o Reino das Astúrias estivesse
unicamente amparado por práticas tribais ou em seus vestígios, ainda mais quando ninguém
até o presente momento conseguiu precisar o que teriam sido efetivamente os costumes
indígenas nortenhos.
De fato, ainda sob o Império Romano, não foi plena a inserção da geografia cântabra e
astur na esfera de poder latino, tanto no que se refere às divisões administrativas e quanto no
relativo à participação na estrutura tributária. Como bem adverte Júlio Mangas, ―durante os
primeiros cem anos que se seguiram à submissão a Roma, não havia nenhuma cidade
privilegiada no âmbito cántabro-astur‖
729
. Porém, esta submissão incompleta não impedia a
presença de manifestações culturais romanas nesta região. Não estar submetido a Roma não
significa de maneira alguma falta de influência cultural. Este tempo serviu para uma
progressiva integração das populações por várias vias nos modelos hegemônicos romanos
730
.
Afirmamos que as transformações sociais neste cenário foram desiguais e ocorreram em
ritmos que variavam de uma região para outra, de comunidade para comunidade, de acordo
com a documentação atualmente disponível. Podemos dizer, no entanto, que existiu uma
cidade com panteão romano puro, Asturica Augusta, por exemplo, e que em áreas rurais se
constata a presença de deuses locais cujo culto é atendido pela instituição municipal, e outras
em que o panteão conjugava deuses locais e romanos
731
.
729
MANGAS, Julio. Pervivencias sociales de astures e cántabros em los modelos administrativos
romanos: tiempos e modos. In: DIONÍSIO PÉREZ, María José Hidalgo, GERVAS, Manuel J. R. (eds.).
“Romanización” y “Reconquista” en la Península Ibérica: nuevas perspectivas. Salamanca: Ediciones
Universidad de Salamanca, 1998, p. 123.
730
Ibid., p. 123.
731
Ibid., p. 126-127.
208
Desde fins do século I d.C existem municípios no ocidente peninsular, que vinham
sendo:
mediatizados pelos efeitos dos grandes distritos mineiros e pela presença de várias
vias estatais de comunicação. As formas organizativas tiveram nessas zonas uma
duração mais curta do que as formas mentais: as oligarquias locais assumiram a
religião, a cultura e o direito romano sem perder de todo certo vínculo com as
crenças religiosas indígenas.
732
Na área oriental dos astures e na maior parte da área cântabra, mais afastadas dos grandes
centros econômicos e das redes viárias, as organizações sociais indígenas preservaram-se por
mais tempo, constatando-se isto até o século III d.C.
733
Esta preservação de diversos elementos das antigas sociedades gentílicas é uma crença
partilhada por outros autores. Por exemplo, na opinião de Francisco Javier Lomas, o Norte
peninsular era muito pobre em redes viárias, o que fez escassear a penetração da
romanidade
734
. Não devemos esquecer, no entanto, que este autor inclina-se mais para a
defesa das permanências culturais locais frente às modificações suscitadas pelo aparato de
dominação romano, que estava totalmente condicionado pela existência de estradas e redes
urbanas. Ao sul da cordilheira Cantábrica as rotas viárias são mais presentes e densas,
enquanto na região nortenha, no interior do território Astur e Cântabro, são poucas e
secundárias as vias existentes: Lucus Augusti-Lucus Asturum, Lucus Asturum-Asturica
Augusta, Lucus Augusti-Aquis Celenis. Segundo as Tábuas de Astorga, uma outra rota partiria
da Legio VII Gemina finalizando em Portus Blendium. Para Javier Lomas, as limitações da
rede viária do Norte peninsular não permitiram uma fácil inserção das populações nortenhas
no sistema político e cultural romano.
735
Com uma perspectiva diferente, José Miguel Novo Güisán nos chama a atenção para a
existência de uma villa na região cântabro-astur, Lancea, único exemplar deste tipo no Norte
Peninsular
736
. A presença desta unidade produtiva em terras setentrionais confirmaria, na
opinião do autor, a presença romana de longa data, o que indicaria a penetração cultural e
social romana nas zonas rurais situadas a Norte da Cordilheira Cantábrica. Este testemunho é
bastante limitado? Sim, realmente é um indício bastante superficial para embasar uma teoria
732
MANGAS, op. cit., p. 127
733
Ibid., p. 127-128.
734
JAVIER LOMAS, Francisco. Vigencia de un modelo historiografico. De las sociedades gentilicias em
el norte peninsular a las primeras formaciones feudales. In: DIONÍSIO PÉREZ, María José Hidalgo, GERVAS,
Manuel J. R. (eds.). Romanización” y “Reconquista” en la Península Ibérica: nuevas perspectivas.
Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 1998, p. 110-111.
735
Ibid, p. 111.
736
NOVO DE GÜISAN, José Miguel. Los pueblos vasco-cantábricos y galaicos en la Antigüidade
Tardia (siglos II-IX). Alcalá de Henares: Universidad de Alcalá-Servicio de Publicaciones, 1992, p.
209
defensora da plena inserção nortenha na estrutura política e social de Roma. Porém, não
podemos supor que sociedades e culturas tão vizinhas estivessem fechadas em si mesmas e
que isto gerasse uma repulsão total e completa entre os modos de vida indígenas e romano.
Um primeiro contato já era suficiente para gerar algum tipo de transformação, não o suficiente
para garantir os fundamentos de uma futura realeza Alto Medieval, devemos acrescentar. O
Cristianismo, importante vetor de transmissão de cultura romana, também deve ser
considerado nesta dinâmica
737
. Nas terras nortenhas, suas primeiras manifestações são
rastreadas após o século IV e avançaram muito timidamente
738
. Nós podemos defender com
tais elementos que uma aproximação cultural e social passou a ocorrer entre os povos do norte
e os hispano-romanos, mesmo que esta tenha sido ainda muito superficial.
No período da dominação política visigótica, pouco pode ser dito acerca da relação
entre visigodos e cântabros-astures. Precisaríamos esperar pelo reinado de Leovigildo para
colher a primeira menção aos povos (Sapii) do Norte. Este rei visigodo reprimiu uma rebelião
astur no ano de 574
739
, não apenas pacificando, mas possivelmente trazendo a região dos
montes Cantábricos para a esfera de influência do reino de Toledo
740
. Fontes visigodas
costumavam afirmar o poder dos monarcas toledanos sobre os povos do Norte.
741
Segundo
Maria Isabel Loring García, tal evento é de grande importância para o processo de
cristianização do Norte Peninsular, fenômeno que implicou profundas transformações nas
sociedades destas terras.
Uma terceira vaga de cultura tardo-romana teria penetrado na região em princípios do
século VIII, após a invasão árabe liderada por Tariq, entre os anos de 711 e 722. Esta última
data correspondente à revolta capitaneada por Pelágio, época de desagregação política e
territorial do reino toledano e da fuga da nobreza laica e eclesiástica para as terras asturianas.
Concordamos com García de Cortázar ao defender que realmente estes grupos de refugiados
constituíam uma minoria dirigente entre os povos do norte
742
, situação que não configura,
para nós, que houvesse distância social e cultural entre visigodos e nortenhos tão radical
naqueles tempos. Como tentamos destacar no segundo capítulo desta tese, várias são as
narrativas, tanto cristãs quanto muçulmanas, que tratam da fuga de diversas partes da
Hispânia em direção ao Norte Peninsular. Ora a região de refúgio é chamada de Galícia, ora
737
LORING GARCÍA, María Isabel. Los comienzos de la cristianización cantabra. In: ________.
Cantábria en la Alta Edad Media: organización eclesiástica y relaciones sociales. Madrid: Editorial
Complutense, 1987, p. 94.
738
Ibid., p. 98.
739
Ibid., p. 117.
740
Ibid., p. 117.
741
JAVIER LOMAS, op. cit., p. 112-113.
742
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 119.
210
de Astúrias. Duas narrativas dão conta, inclusive, do caso de Pelágio, referido como um
refugiado visigodo. As crônicas asturianas e uma crônica árabe descrevem o caudilho
apartando-se da zona de dominação muçulmana e se dirigindo para as terras setentrionais. As
obras historiográficas poderiam ser criticadas pelo seu teor panfletário, contudo o mesmo não
pode ser dito do texto árabe. Quanto dizemos ―panfletário‖, afirmamos que estes textos
asturianos estavam imbuídos de uma tarefa legitimadora da monarquia asturiana, perspectiva
estranha à crônica de Ibn Kouthya. Trata-se uma compilação tardia do século XI, mas de
antigos registros preservados no Al-Andaluz desde as invasões do século VIII.
Acreditamos que as condições sociais entre asturianos e visigodos fossem bastante
próximas, por um lado pela própria dinâmica interna asturiana, na qual atuava o fenômeno de
hierarquização social atestado nos autores romanos. Apesar do que acabamos de expor,
mantém-se com considerável vigor a perspectiva que defende a preservação de estruturas
arcaicas nas sociedades nortenhas. Consideremos, mesmo que brevemente, a contribuição da
Antropologia no que tange ao peso das permanências nas comunidades humanas. Claude
Lévi-Strauss dedicou um artigo à analise das implicações do uso das noções de arcaísmo e
primitivismo na análise antropológica, questões vinculadas com uma perspectiva que acredita
piamente no imobilismo de determinadas culturas. A aparente ausência de transformações
sociais seria, portanto, a marca de diversas comunidades humanas, identificadas como
primitivas e arcaicas. Todavia, o antropólogo francês nos chama a atenção para alguns dados
de ordem teórica, destacando que muitos problemas foram gerados pelo próprio emprego dos
termos ―primitivo‖ ou ―arcaico‖.
Claude Lévi-Strauss afirma que, apesar das suas imperfeições conceituais, o termo
―primitivo‖ está bastante ―incorporado ao vocabulário etnológico e sociológico
contemporâneo‖, mas, ao se abordar e analisar sociedades identificadas como primitivas,
torna-se necessário um esforço para precisar o sentido exato do termo, tornando-o mais
rigoroso. Apesar de aparentemente clara, a palavra ―primitivo‖ é utilizada para nomear um
conjunto de povos que ignoram a escrita, comunidades humanas impossíveis de serem
estudadas segundo a metodologia do ―historiador puro‖. Lévi-Strauss ressalta ainda que
vários dos povos ditos ―primitivos‖ vieram a ser conhecidos muito recentemente pela
expansão da ―civilização mecânica‖ com a qual são comparadas
743
.
Por comparação, então, os ―povos primitivos‖ são assim enquadrados por serem
estranhos às nossas estruturas sociais e às noções de economia e filosofia política, que são
743
LEVY-STRAUSS, Claude. A noção de arcaísmo em etnologia. In: ________. Antropologia
estrutural. 6. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 121.
211
elementos fundamentais de nossa sociedade
744
. Uma das observações fundamentais de Lévi-
Strauss refere-se ao fato de que um ―povo primitivo‖ não é um povo sem história, embora o
desenrolar desta nos escape freqüentemente‖
745
. Por exemplo, os estudos de C. G. Seligman
sobre indígenas da Nova-Guiné revelam como esta sociedade se transformou ou se conservou
em razão de vários acontecimentos contingentes‖ (guerras, migrações, rivalidades e
conquistas)
746
. Em resumo, o que a alusão ao trabalho etnográfico de C. G. Seligman, feita
por Lévi-Strauss, nos instruiu é para a impossibilidade de qualquer sociedade dinâmica, que
sofre pressões externas e tensões internas, manter-se estagnada. O mesmo vale, logicamente,
para os habitantes do Norte Peninsular.
A América do Sul fornece um exemplo que contraia a tudo isto. Claude Lévi-Strauss
nota que casos de grupos indígenas que ao afastaram-se de sua aldeia original por um
período de alguns anos, ―ao voltarem, não conseguem mais se adaptar a nova ordem‖
estabelecida na comunidade de origem
747
. Não bastando este exemplo, agregamos mais
informações sobre um povo com estilo de vida e nível de organização social ainda mais
simples que os ameríndios supracitados. Lévi-Strass, sobre este tema, chega a levantar a
seguinte questão: os fueguinos e alguns outros povos seriam os únicos verdadeiramente
primitivos e, junto com os pigmeus, teriam realmente durado tanto tempo e não tendo uma
história? A defesa destes dois pontos é explicável por dois argumentos. O primeiro diz que ―a
história destes povos nos é totalmente desconhecida e, devido a sua ausência e pobreza de
tradições orais e vestígios arqueológicos, nunca será atingida: não poderíamos concluir daí a
sua inexistência‖
748
. O segundo argumento é que ―êstes povos evocam, pelo arcaísmo de suas
técnicas e instituições, o que podemos reconstituir do estado social de populações muito
antigas, tendo vivido a uma ou duas dezenas de milênios; daí a conclusão de que assim o eram
nesta distante e assim permanecerem até hoje‖
749
.
Os dados acerca das formas de organização social de cântabros e astures ou de
qualquer população nortenha são inferidos com base em fontes dispersas da Antigüidade.
Fontes estas que distam consideravelmente do mundo e do tempo de Pelágio e Afonso I,
quanto mais do tempo de Afonso III. As Tábulas Vadienses não dão conta de todo o território
abarcado pela Cordilheira Cantábrica, referindo-se apenas a uma parcela específica da região,
a Sul do território Vascão. Se tal documento pode ser uma prova do vigor autonômico das
744
Ibid., p. 121.
745
LEVY-STRAUSS, op. cit., p. 122.
746
Ibid., p. 122-123.
747
Ibid., p. 123.
748
Ibid., p. 123.
749
Ibid., p. 123.
212
comunidades nortenhas e da nula influência romana nelas, então por que tal texto foi redigido
em latim? Os Vadienses eram tão isolados do mundo romano para preservarem suas próprias
instituições sociais? Como bem destacou Lévi-Strauss, para o caso dos habitantes da Nova
Guiné, pressões diversas impunham modificações nas estruturas sociais. É claro que a
influência romana não foi uniforme e igualmente avassaladora, mas também não foi nula. O
próprio conceito de Romanização adotado por Abílio Barbero e Marcelo Vigil não
apontava para isso? Supondo que os povos cântabros, astures e vascões estivessem isolados
hermeticamente do contato romano, isto significaria que, para que eles pudessem preservar
uma outra tradição ou prática social ou instituições políticas, fosse necessário permanecer em
estado tribal? O que significa exatamente tal palavra? O que podemos dizer é que para autores
como Abílio Barbero, Marcelo Vigil e José María Minguez, tal palavra opõe-se totalmente a
qualquer elemento que pudesse ter relação com política. A lacuna que vai do século III até o
VIII indicaria que nada teria mudado, por exemplo, nas Astúrias?
Tais autores opõem sociedade tribal e sociedade política, perspectiva bastante
questionada pelos antropólogos. Nenhum dos autores defensores da tradição tribal ligada ao
nascimento do Reino das Astúrias preocupou-se em conceituar tal vocábulo. Ele não é
significativo por si só, não é auto-explicativo, mas demanda um necessário esforço reflexivo.
Tal como os conceitos ―primitivo‖ e ―arcaico‖, o termo ―tribo‖ envolve alguns problemas. A
falta de rigor em sua definição chegou a levar alguns a abandonarem o conceito
750
, postura à
qual se opõe Patrícia Crone. Apesar de haver muita imprecisão em determinados aspectos
seus, o conceito de tribo ainda é importante, e as críticas de que foi alvo podem favorecer a
resolução do problema forçando o seu aprimoramento
751
.
pouca discordância quanto ao fato de a tribo representar um gênero de sociedade
que produz a maior parte de seus papéis sociais, dando mais importância a características
biológicas, ou seja, fundamentando-se nas relações de parentesco, sexo e idade. Por outro
lado, toda e qualquer forma de organização que se paute em elementos não-biológicos não é
enquadrada na categoria tribo, mesmo que o parentesco, o sexo e a idade interfiram de alguma
maneira na sua dinâmica
752
. Por outro lado, qualquer omissão de elementos puramente
750
CRONE, Patrícia. A Tribo e o Estado. In: HALL, John (org.). Os Estados na história. Rio de Janeiro:
Imago, 1992, p. 74.
751
Ibid., p. 74.
752
Ibid., p. 74.
213
biológicos auxilia na demarcação do que é e do que não é tribal
753
. Todavia, as sociedades
tribais não são exatas correspondências entre fatores biológicos e sociais.
754
De uma maneira geral, para Patrícia Crone, o conceito lato-senso de tribo significa
uma sociedade primitiva, cujo primitivismo corresponde a uma organização fundamentada em
bases biológicas (parentesco, sexo e idade). O papel social dos indivíduos inseridos nesta
forma de organização é estabelecido pelo nascimento, crescimento e morte, sendo a mudança
de um status social para outro processado de maneira automática. A tribo funciona melhor
com a ausência de diferenças sociais. Então, nestas sociedades, todos podem exercer as
mesmas funções (coleta, pesca, etc.), todos possuem o mesmo nível de renda material e de
influência política. Quando as diferenças políticas e materiais começam a surgir, mais difícil
se torna manter este modelo social durante o processo de formação de hierarquias
permanentes. Todos na sociedade tribal compartilham o mesmo nível de conhecimentos,
cultura, linguagem e religião
755
, fato que, para o caso asturiano, é totalmente ausente. O Norte
da Península Ibérica possui sociedades marcadas por clivagens sociais significativas, uma
divisão de papeis sociais e desníveis de acesso a bens materiais e simbólicos, como poderá ser
visto ainda neste capítulo.
O sentido restrito do termo tribo é aplicado para nomear ―um grupo de linhagem que
constitui uma comunidade política‖
756
. A tribo pode ser ―subdividida em grupos menores de
linhagem‖ que fazem a operação política na tribo, sendo justamente esta integração política o
elemento distintivo do sentido amplo de tribo. No conceito específico, tribo tem uma função
política e agregadora social. A presença de linhagens ou famílias alargadas não faz qualquer
oposição a uma estrutura política, na verdade, são tais elementos que compõe o cenário
político tribal. Percebemos, por Patricia Chrone, que hierarquização social, diferenciação no
exercício do trabalho, diferentes categorias sociais, separação no trabalho religioso são
elementos que não colaboram com a preservação de estruturas tribais. Dizer que as estruturas
sociais e políticas asturianas não eram muito complexas se comparadas com às do Reino dos
Visigodos não é a mesma coisa que dizer que as populações asturianas preservavam diversos
elementos de sua condição tribal.
O mais provável é que já tivesse se processado uma aproximação das estruturas sociais
nortenhas com aquelas presentes na sociedade visigótica, a julgar pela presença da villa de
Lancea, anteriormente citada, e das igrejas localizadas em território asturiano, datadas de
753
Ibid., p. 74.
754
Ibid., p. 74-75
755
CRONE, op.cit.., p. 75.
756
Ibid., p. 76-77.
214
antes do culo VIII, como bem enfatizamos no capítulo anterior. A cristianização do norte
foi obra de monges após a conquista levada a cabo por Leovigildo. Eram monges praticantes
de um monacato eremítico, adaptado às realidades sociais pouco urbanizadas, muito afastado
do tipo de monacato isidoriano ou agostiniano, que era muito ―subordinado à hierarquia
episcopal‖.
757
Os monges que vêm das terras do Ebro e de Tierra de Campos para pregar em
terras nortenhas eram habitantes de igrejas rupestres. O contexto de cristianização
corresponde ao do grande desenvolvimento da vida monacal no século VII, configurando-se
na busca de lugares afastados, equivalentes dos desertos do Mediterrâneo oriental
758
. A
cristianização da Cantábria por meio de atividades de monges deixou vestígios no território
hagiotoponímia , como podemos constatar pelos exemplos de Santa Eulalia, São
Romão, São Frutuoso e São Millan
759
.
De acordo com José Miguel Novo Güisán, duas foram as tradições que descreveriam o
começo da cristianização do Norte. A primeira é referente a San Millán, cuja lenda é
reproduzida por São Bráulio de Saragoça, em 613. A pregação de Santo Emiliano remontaria
ao ano 574, data da tomada de Amaya pelo rei Leovigildo dos Visigodos. Segundo o seu
biógrafo, o bispo de Tarazona tornou San Millán retirou-se em uma região identificada com a
Amaya dos cântabros, onde teria curado pessoas da região, desde senadores até servos
760
. A
julgar pela onomástica, a atuação de San Millán parece ter-se exercido sobre região
romanizada
761
. Alguns, entretanto, admitem uma atuação cristianizadora prévia de S. Toríbio
de Palência nos tempos do rei Amalarico (526-531) nas terras de Liébana, que daria origem
ao primitivo cenóbio lebaniego. Outros consideram esta tradição apócrifa
762
. As terras do
antigo Conventus Asturum converteram-se no século VII em um importante lugar de
desenvolvimento monástico. São Frutuoso e São Valério de Bierzo são duas grandes
personalidades da região. Ambos deixaram importantes vestígios biográficos
763
. A região da
Asturia Transmontana não deveria ter ficado a parte deste processo, do século VII, de acordo
com os vestígios de bronzes litúrgicos e de uma inscrição em Santa Cristina de Lena
764
.
Muitos autores, contudo, defendem que a definitiva cristianização das Astúrias e Cantábria
757
NOVO GÜISÁN, José Miguel. La cristianizacion. In: ________. Los pueblos Vasco-cantábricos y
galaicos em la Antigüidad Tardía (siglos III-IX). Madrid: Universidad de Alcalá, s.d., p. 377.
758
Ibid., p. 377.
759
Ibid., p. 378.
760
Ibid., p. 378.
761
Ibid., p. 378.
762
Ibid., p. 378.
763
Ibid., p. 378.
764
Ibid., p. 379.
215
veio mesmo a acontecer com a chegada maciça de visigodos refugiados após 711
765
. Depois,
Afonso I teria reforçado a presença visigótica na região. Para muitos, essa presença
cristianizou definitivamente a região. Provas arqueológicas, literárias e epigráficas nos dariam
provas seguras da cristianização dos astures e cântabros já na época visigoda
766
.
4.3. Mais vínculos entre a religião e a monarquia asturiana:
Se, por um lado, afirmar a forte preservação das estruturas primitivas asturianas sem o
recurso às fontes é uma tomada de posição bastante temerária, por outro, asseverar que a
região nortenha estava totalmente ―visigotizada‖ sem a apresentação do que seria esse traço
visigodo é outra tomada de posição igualmente delicada. As fontes que tratavam do processo
de cristianização se considerarmos esta religião como um importante vetor de transmissão
cultural e de modificação social nos informam de alguns missionários conhecidos e
sugerem a atuação de outros. Neste ponto tudo se processou com base na atuação de
―estrangeiros‖, pessoas originariamente alheias às comunidades nortenhas.
Partamos para algumas referências vinculadas àquilo que chamamos de cultura
material, mais precisamente, os vestígios concretos deixados pelos habitantes das Astúrias e
arredores. Desde alertamos que vamos nos concentrar aqui mais nos indícios legados pelas
igrejas, mosteiros e pelos esforços dos monarcas asturianos. Intentaremos cotejar os fatos
políticos e as edificações e as inscrições epigráficas com o intuito de agregar mais
informações sobre a dinâmica do período. Antes de tudo, alguns historiadores sugerem que há
indícios que comprovam o vigor das práticas sociais indígenas. Isto seria possível pelos
vestígios pelos castros e habitações, portadores de sinais claro da reutilização do lugar por
gerações. A reocupação periódica de um mesmo habitat constataria as permanências de
antigas tradições locais. Contudo, tal hipótese pode não se confirmar.
Reaproveitar os elementos do habitat por um mesmo grupo humano não é sinônimo de
preservação de tradições indígenas. Poder-se-ia dizer que o significado do lugar usado era
diferente se comparado com as gerações anteriores, lembrando que seus ocupantes, bem como
seus ancestrais tiveram que lidar com a experiência de interagir, de diferentes maneiras, com
os agentes históricos preservadores das tradições culturais, sociais, institucionais e religiosos
tardo-romanas. Todavia, precisamos ter a honestidade em reconhecer os limites de nossas
colocações, lembrando que uma parcela considerável daquilo que foi asturiano e daquilo que
765
Ibid., p. 379.
766
NOVO GÜISÁN, op. cit., p. 379.
216
foi visigodos não foi preservado, perdendo-se então pelo corroer do tempo histórico. Mesmo
se tratássemos de sociedades contemporâneas, não teríamos plenas condições de captar certos
nuances da vida humana. No máximo, trabalhamos como paleontólogos catando os
fragmentos de animal pré-histórico. Com alguma sorte encontramos o esqueleto completo,
mas a formação dos músculos, a conexão com dos tendões, a cor e a textura do couro estarão
para sempre perdidos, sobrando apenas às possibilidades e interpretações mais ou menos
plausíveis.
Talvez, a sorte do medievalista em algumas situações, não seja encontrar um
fragmento de osso, mas as ―pegadas‖ com as quais podemos identificar o caminho trilhado
por ―nosso animal‖ e para onde se dirigia. Direcionemo-nos às ―pegadas‖ deixadas.
Pensemos, como dissemos acima, na ―cultura material‖. O estudo dedicado à ―cultura
material‖ se explica pela natureza das próprias fontes, como assinala Jean-Marie Pesez, que as
define como aquelas através das quais os arqueólogos abordam as sociedades do passado, de
maneira que, nas reconstituições que propõem, os aspectos materiais das civilizações
prevalecem naturalmente‖
767
. Jean-Marie Pesez não pretende propor uma definição que
esgote todas as situações que abarcam o tema, apontando simplesmente para a ―materialidade
associada à cultura‖
768
. Segundo Pesez, ―a cultura material tem uma relão evidente com as
injunções materiais que pesam sobre a vida do homem e às quais o homem opõe uma resposta
que é precisamente a cultura‖
769
.
Após a considerações de Jean-Marie Pesez, apresentaremos os dados materiais que
dispomos. Sobre os lugares de enterramento próximos de igrejas ou capelas dos primeiros reis
asturianos não podemos dizer quase nada. Por meios de testemunhos indiretos, principalmente
pelo padre Yepes, deparamo-nos com ―sombras‖ que sugerem uma construção ou edificação
aqui e ali. Para o caso de Fafila, filho do caudilho Pelágio, possuímos o decalque de uma
inscrição fundamental datado de 737. Tal texto estava fixado até o século XVII na capela da
Santa Cruz, edificação que foi destruído nesta época. Pouco ou nada sabemos da atividade
arquitetônica das primeiras décadas do século VIII, sendo necessário esperar a segunda
metade da mesma centúria. Não sobraram muitos vestígios de edifícios ligados a atividade
arquitetônica do século VIII. Da edificação original de Santianas de Pravia, obra do rei Silo,
767
PESEZ, Jean-Marie. História da cultura material. In: LE GOFF, Jacques. A história nova. São Paulo:
Martins Fontes, 2005, p. 240.
768
Ibid., p. p. 241.
769
Ibid., p. p. 241.
217
restaram a planta, o murario e os construtivos, partes trazidas à luz graças às escavações
arqueológicas feitas entre 1975 e 1979
770
.
A peça encontrava, de acordo com Tirso de Avilés, sobre o alto de um arco situado no
meio da igreja de Santianes de Pravia, onde permaneceu até 1662, quando foi parcialmente
destruída
771
. A região onde se situa o edifício religioso foi palco dos últimos debates
cristológicos do cristianismo ocidental, a bem conhecida querela entre o Beato de Liébana e
Etério de Osma contra o bispo Elipando de Toledo
772
e Félix de Urgel. As escavações
produzidas em seu interior revelaram vestígios da primitiva construção, como o pavimento,
construído com o composto chamado de opus signinum segundo o modelo romano
773
. No
altar da igreja se conservam vários restos decorativos de temática próxima a visigótica, com
rosetas, rodas e barras de talos vegetais, estando também presentes na construção capitéis
reutilizados como pias para a água benta
774
. As partes mais antigas desta igreja, pavimento e
elementos decorativos, estão ligadas às práticas arquitetônicas tardo-antigas, mais
precisamente aos protótipos paleo-cristãos dos séculos V e VI
775
. Contudo, como bem aponta
García de Castro Valdés, resta saber:
se tal herança é resultado do substrato local, ou produto de uma importação forânea.
Em todo caso, Santianes se mostra independente do que se configurará a partir de
princípios do século IX como planta basilical asturiana, caracterizada pela cabeceira
tripartida reta, assim como do tipo ao que verossimilmente pertenceu Santa Cruz de
Cangas de Onís, enraizado nas construções de ‗silleria‘ e santuário quadrangular
único do século VII
776
.
A edificação de Santianes de Právia é um dos primeiros edifícios litúrgicos produzidos
na época da Reconquista, vinculado a uma época marcada pelo grande afluxo de cristãos
fugitivo da dominação muçulmana, fato que confirmaria uma cristianização-latinização muito
tardia das terras do Norte da Península Ibérica. Contudo, outro dado deve ser agregado. Tal
informação possibilita a compreensão da idéia de um ―neogoticismo‖ mais concreto do que
ideológico. A seguinte inscrição fundamental encontra-se no templo de San Martín de
Argüelles, testemunho mais antigo até hoje de um edifício de culto cristão em solo
asturiano
777
.
770
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 108.
771
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 82.
772
Ibid., p. 108.
773
Ibid., p. 113.
774
Ibid., p. 113.
775
Ibid., p. 113.
776
Ibid., p. 113.
777
Ibid, p. 120.
218
Foi fundada no quarto dia das Calendas de Maio, na Era DCXXI
778
.
A construção religiosa se situa em Siero, terras situadas à Nordeste de Oviedo,
encontra como patrono San Martin, e estaria integrada a uma cadeia de fundações
eclesiásticas no Noroeste ibérico edificadas em honra do santo turonense
779
. Tal situação
vincular-se-ia a atuação do bispo-abade de Dúmio, Martín o Panônio, durante o século VI.
Para García de Castro Valdés, tal fato não é de se estranhar, que ―em um dos territórios
mais habitados das Astúrias se tenha fixado uma comunidade de culto cristão na citada data‖
780
. É um importante testemunho, tanto pela epigrafia quanto pelas celosías, para se
compreender o processo de cristianização nas terras do norte hispânico
781
. Estes indícios se
confrontam com a tese que defende a ―tardia cristianização das terras a Norte da Cordilheira
Cantábrica, essencialmente apoiada no argumento ‗ex-silentio‘‖
782
.
Sobre este tema, García de Castro Valdés não se opõe à crença na presença cristã no
interior do território asturiano em fins do século VII, o que o autor defende é que nas zonas
orientais, naquilo que corresponde ao povoado dos vadinienses, havia comunidades cristãs
desde o século V, conforme o aproveitamento dos trabalhos de F. Diego Santos sobre os
testemunhos epigráficos romanos nesta região
783
. Quanto ao argumento sobre o ―silêncio‖ dos
testemunhos, García de Castro Valdés destaca que ainda faltam prospecções e investigações
arqueológicas dedicadas a Antigüidade Tardia nas Astúrias, portanto, os estudos atuais ainda
estão distantes de poderem afirmar alguma coisa mais cristalizada sobre essa questão
784
.
Estamos diante de técnicas de construção e arquitetura complexas demais para terem
surgidos no século VIII ou fosse proveniente de um tipo de sociedade em estágio bastante
atrasado de desenvolvimento. Pelo exposto acima as técnicas empregadas para construir e
talhar objetos e edifícios tem uma inegável vinculação com o passado visigótico. Uma das
questões mais marcantes sobre o legado romano refere-se aos vestígios de cultura material
785
.
São poucos os vestígios disso, mas, como disse García de Castro Valdés, tomadas de
778
34. Sant Martín de Argüelles (Siero). IIII K[A]L[ENDAS] M[AIAS] FONDATA EST ERA DCXXI.
In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 80.
779
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008., p. 120.
780
Ibid., p. 120.
781
Ibid., p. 121.
782
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 81.
783
Ibid., p. 81.
784
Ibid., p. 81.
785
MENÉNDEZ BUEYES, Luís Ramón. La transición del mundo antiguo a la Edad Media. In: ________.
Reflexiones críticas sobre el origen del reino de Astúrias. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2001, p.
235.
219
posições mais seguras dependem ainda de novas e mais atentas escavações sobre o passado
tardo-romano, visigótico e asturiano das terras do Norte
786
. Entretanto, com as breves
informações disponíveis, temos condições de tecer algumas considerações, ampara ainda em
outro aporte. Menéndez Bueyes, citando a L. Caballero, atesta a continuidade da cultura
material em Astúrias envolveu também modificações, mas, de uma maneira geral, o estilo
mantém-se igual ao da época visigótica
787
. No âmbito da cultura material se atestou a
continuidade nas Astúrias da arte palaciana visigótica. Sobre a idéia de ruptura das formas
opina I. G. Bango Torviso o seguinte: a influência tardo-romano continuará para além do ano
711, constituindo-se a arte asturiana como uma aproximação incrível com a arte do período
hispano-visigodo
788
.
A existência de construtores conta de algumas constatações óbvias. A primeira
delas é que, por mais que sejam mais rústicos os exemplos nortenhos, os edifícios são
evidentemente fruto da experiência arquitetônica absorvida de meios visigóticos. O aspecto de
degeneração nada mais é do aspecto incompleto e não ausência de contatos culturais entre o
território dominado por Toledo e a zona cantábrica. Se eram arquitetos, artesãos e
marceneiros visigodos de origem, descendentes deles, imigrantes recém chegados ou
nortenhos aculturados não faz a menor diferença, pois o que importa é a existência de um
grupo especializado diferenciado do grupo dos produtores rurais e pecuaristas. Se por um lado
as notícias cronísticas nos informam sobre a elite governante, as cabeças dos grupos
aristocráticos e a nobreza palaciana, se os primeiros diplomas nos dão um retrato muito
borrado de grupos não aristocráticos, limitando-se a trabalhadores rurais submetidos ao
trabalho compulsório, e indivíduos de categoria social indeterminada, a atividade
arquitetônica garante-nos ―pegadas‖ que no levam até uma sociedade bastante hierarquizada,
dotada de diferentes grupos participantes de diversas atividades produtivas, serviços e
comando.
Neste ponto somos obrigados a afirmar nossa posição diante desta ―visigotização‖ do
Norte peninsular. Todavia, acreditamos piamente na ausência de um modelo único do ―ser
visigodo‖. Não havia um modelo oficial, cristalizado ou homologado pela coroa toledana.
Sendo assim, não devemos esperar uma prática baseada em uma teorização aprofundada.
Existiam linhas gerais que eram completadas pelas ações cotidianas. Mais do que um modelo
único, o que podemos destacar para o período visigodo e para o período asturiano é a
786
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 167.
787
MENÉNDEZ BUEYES, op. cit., p. 236.
788
Ibid., p. 236.
220
preponderância de medidas, ações e discursos limitados pelas demandas diárias,
demonstrando muito mais a manifestação de um perfil empírico que se adéqua
progressivamente às necessidades diárias. Acreditamos que, tanto no nível arquitetônico,
quanto no político, a região das Astúrias deveria seguir linhas gerais e oscilantes de práticas
políticas inspiradas pela longa experiência nortenha com a pressão das sociedades tardo-
romana e visigótica.
Sendo assim, o que começamos a chamar de ―neogoticismo‖, segundo as primeiras
crônicas de Reconquista, poderia ser pode ser a maior força e coerência política e intensidade
cultural nas Astúrias, possibilitada pela consolidação de uma estrutura de poder em processo
de centralização e ampliação representada pelo comando de Afonso II. Desta forma, o ―rei
casto‖ daria mais um passo na diferenciação de um comando puramente local para um
comando mais amplo e geral diferenciado daqueles que seriam seus equivalentes vizinhos.
Além do fato da incerteza do que exatamente sendo restaurado, ainda os limites de uma
―refundação‖ do reino de Toledo pelas condições naturais, sociais e políticas da zona
cantábrica. O que podemos deduzir que a ―restauração visigótica‖ ocorreu por vias indiretas e
com consideráveis restrições. Como nos faz lembrar Armando Besga Marroquín, citando os
estudos de Sánchez Albornoz, que destaca que ―muito pouco da complexa organização da
corte toledana se recriou em Oviedo‖
789
. Nem ao menos o reino das Astúrias tomou a
iniciativa de cunhar moedas
790
.
Explicitamos nas páginas passadas que havia uma forte presença de know-how tardo-
romano entre os artesões nortenhos, contudo não explicitamos aquilo que se configura como
parte constitutiva da compreensão da cultura material: o consumo. Todos os exemplos citados
até agora advêm de um grupo de ―consumidores‖ que definiram exatamente o que desejavam
de seus contratados. Todos os exemplos são parte da cultura material vinculado a tradições
religiosas, igrejas, basílicas, inscrições funerárias ou fundacionais, objetos de origem litúrgica
que subsistiram, mesmo com grandes percalços, até os nossos dias. A arquitetura eclesiástica
e monárquica conseguiu preservar mais testemunhos do passado do que qualquer edificação
de funções puramente laicas ou vinculadas a determinados segmentos da aristocracia
nortenha.
Os exemplos não são extensos, mas servem como indícios de um desejo por
construções que seguissem modelos tradicionais arquitetônicos visigodos. Em especial a
789
BESGA MARROQUÍN, Armando. Los primeiros años del reinado de Alfonso II (791-812). In:
________. Orígenes hispano-godos del reino de Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturias, p.
2000. 436.
790
Ibid., p. 436.
221
―monarquia‖, havia um grupo interessado em reproduzir edifícios fabricados em terras
meridionais, grupo que entendia perfeitamente as representações, as linhas, as funções e o
simbolismo das construções erguidas pelos obreiros no Norte. Se este grupo, que chamamos
de monárquico reconhecia o processo de construção, a necessidade de matéria-prima e a
técnica empregada, então ela estava suficientemente acultura e inculcada com paradigmas
culturais visigóticos. Lembrando sempre dos limites de sua reconstituição, talvez, muito das
propostas e discursos ideológicos ―neogoticista‖ seja uma ―reprodução limitada‖
conscientemente. As bases materiais, técnicas, culturais e sociais serviram para o
embasamento discursivo dos tempos de Afonso II, não sendo o ―neogoticismo‖ um simples
devaneio de um grupo clerical recém-chegado, mas também era mais ou menos percebido por
grupos laicos.
Deduzimos que o elemento catalizador de todo este fenômeno deveria estar nas
práticas reais da nascente monarquia. O grupo familiar ou político de Afonso II deveria ser
portador de bastante prestígio social e político que fazia convergir até ele parte dos anseios
das populações nortenhas como um todo. A pujança política que começou a ser notada com
Silo tivesse chamado a atenção de grupos de refugiados de diversas origens sociais.
Acreditamos ainda que tenha ocorrido uma identificação entre a nascente monarquia asturiana
e a toledana. E esta identificação tivesse se passado pela maneira como ela interferia no tecido
social, servir de intermediador de determinadas querelas e de proteger determinados
segmentos sociais. É muito provável que o maior exemplo desta ―nova velha imagem‖ se
materialize na interferência na querela adocionista no tempo de Silo e Mauregato e,
principalmente, na convocação do Concílio de Oviedo de 811. Segundo Campo Hernéndez,
Afonso II teria aproveitado, em um momento seguinte, a querela adocionista para tornar a
igreja asturiana independente da toledana, com o auxílio de Carlos Magno. Isto se
interpretarmos a fundação do bispado de Oviedo (810) como um marco. Elipando teria se
esforçado para manter as Astúrias sob a jurisdição eclesiástica toledana
791
. Vejamos o que diz
o texto das Atas do Concílio de Oviedo:
Permanecendo a providência do Onipontente, após a destruição de muitas urbes dos
Hispânicos pelo braço dos gentios, em castigo pelos grandes pecados cometidos, e
em virtude do assíduo cuidado do gloriosíssimo rei Afonso, o Casto, e do bispo
Adulfo de Oviedo, como também por conselho do piedosíssimo príncipe Carlos dos
Francos, quem enviou uma embaixada, reunimo-nos em Oviedo, decidimos por esta
negociação, nós, os Pontífices: Teodemiros Coninbricense, Argimundo Bracarense,
Diego Tudense, Teoderindo Irense, Vicentio Leonense, Recaredo Lucense, Gomelo
Asturicense, Abundantio Palentino e João Oscense, estando o rei presente e tendo
791
CAMPO HERNÁNDEZ, Alberto del. Introducción. In: CAMPO HERNANDEZ, Alberto del et alii.
Beato de Liébana. Obras completas y complementárias: documentos de su entorno histórico y literário.
Madrid: BAC, 2004, p. 369.
222
favorecido para nós o concílio de todos os Hispânicos: elegemos a urbe de Oviedo
como sede metropolitana
792
.
Muitos historiadores não têm dúvida sobre a realização do citado concílio, o que é
posto em causa é justamente o problema das interpolações constantes no texto. uma
unanimidade em atribuir as modificações na redação do concílio ao bispo Pelágio de Oviedo,
religioso do século XII, conhecido por suas falsificações e interpolações que visavam impor a
hegemonia do bispado de Oviedo sobre as temas igrejas do Norte da Península Ibérica. A
citação acima possui vestígios desta alteração creditada ao bispo ovetense. Por exemplo, o
fragmento de texto que identifica uma interpolação creditada ao bispo Pelágio é a qualificação
da recém fundada episcopal de Oviedo como ―metropolita‖, Ovetensem urbem (...)
Metropolitam Sedem. Em momento algum a cidade oventense pode portar tal nomeação, a
dignidade de ―metropolita‖ somente empregada para as principais cidades que faziam parte do
Reino dos Visigodos, como Braga, Toledo e Mérida, pare exemplificar. O que Pelágio de
Oviedo desejava era impor a proeminência de sua diante de outros bispados das terras
nortenhas. Estas e muitas outras interpolações fizeram as Atas do Concílio de Oviedo perder
muito de sua importância para a reconstrução do passado nortenho. Todavia, o núcleo central
de sua informação permanece intacto, preservando o dado fundamental que é a convocação de
um concílio por um monarca. [DESCOLAR O TEXTO]
A lembrança deste concílio não foi conservada por nenhuma narrativa alto-medieval,
as crônicas asturianas nem chegam a noticiar qualquer tipo de conferência entre Afonso II e
os bispos situados nas terras do Norte Peninsular. Da mesma maneira, omite-se qualquer
menção às relações entre Carlos Magno e os monarcas asturianos, elemento que reforçaria o
descrédito da veracidade das atas conciliares. Entretanto, esta não é o único evento não
mencionado pelos anônimos cronistas asturianos. Outro dado não conservado nas primeiras
narrativas da Reconquista é a tensão entre a nascente estrutura eclesiástica asturiana e as
velhas instituições eclesiásticas visigóticas que viviam sob a zona de dominação muçulmana.
Os textos produzidos pelo Beato de Liébana, as discussões produzidas durante a querela
792
Actas del Concilio I de Oviedo. SUMMI dispositoris providentia permanente, plerisque
Hispaniensium a gentilibus subversis urbibus, mole peccaminum exigente, gloriosissimi Regis Adephonsi Casti,
et Adulphi Ovetensis Episcopi solerti consideratione, necnon piissimi Francorum principis Caroli consilio, quem
ecquidem missa legatione, super hoc convenimus Oveti negotio nos hic subscripti Pontifices: Theodermirus
Oveti, Argimundus Bracarensis, Didacus Tudensis, Theoderindus Iriensis, Vincentius Legionensis, Recaredus
Lucensis, Gomellus Asturicensis, Abundantius Palentinus, et Joannes Oscensis, Rege presente, et universali
Hispaniensium concilio nobis favente: Ovetensem urbem Metropolitam eligimus Sedem. In: Actas del Concilio I
de Oviedo. Erro! Apenas o documento principal.TEJADA Y RAMIRO, Juan (ed.). Colección de canones y
de todos los concilios de la iglesia de España y de America: concilios del siglo IX en adelante. Madrid:
Imprenta de D. Pedro Montero, 1861, tomo III, p. 18.
223
adocionista, intervenção franca neste assunto ibérico e a salvaguarda garantida aos defensores
da ortodoxia fornecida pela corte asturiana durante meados do século VIII passaram em
brancas nuvens, mas deixaram registros escritos considerados fidedignos. Como havíamos
mencionado no primeiro capítulo desta tese, as crônicas relatam fatos, acontecimentos e
mencionam os nomes de pessoas e lugares que convém ao escriba interessado em resgatar
aquilo que considera útil e necessário para sua reconstituição histórica.
O que podemos dizer é que as fontes de diferentes naturezas colaboram de distintas
maneiras para nossa reconstituição do passado asturiano. As narrativas das primeiras crônicas
de Reconquista, a Ata do Concílio de Oviedo e os escritos do Beato de Liébana constituem
referências básicas para se discutir a ―força gravitacional‖ da monarquia asturiana em fins do
século VIII e princípios do século IX. No que tange a outras fontes destacamos as edificações
e textos epigráficos legados por este tempo, como, por exemplo, a Catedral de Oviedo,
construída entre os anos 791 e 842:
Seja quem fores que contemplar este templo digno de honra a Deus, reconhece que
anteriormente havia aqui outro, situado na mesma ordem, e que o príncipe Froila
fundou suplicando ao Senhor Salvador e dedicando doze altares aos doze apóstolos;
em favor do qual seja vossa pia oração a Deus, para que o Senhor dignos prêmios
sem fim. Aqui o edifício, outrora parcialmente foi destruído em parte pelos gentios e
contaminado pelos impuros, que seja conhecido que novamente foi todo fundado
pelo Afonso, fâmulo de Deus, e totalmente renovado em melhor estado. Que ele
tenha, Cristo, mercês por tal labor e que haja aqui louvor sem fim a Ti.
793
Esta inscrição não chegou até nossos dias, contudo, seu conteúdo foi preservado e
transmitido por outros testemunhos. Segundo César García de Castro Valdés, foi conhecida
no tempo do bispo Pelágio de Oviedo, que copiou a inscrição em seu Liber Testamentarum,
de 1118-1120
794
. Muitos outros autores reproduziram tal transcrição a partir do século XVI,
após os trabalhos antiquaristas de Ambrosio Morales
795
. Apesar das dúvidas acerca de sua
autenticidade, como defendeu Barrau-Dihigo e Hübner, que a qualificavam como mais uma
falsificação produzida por Pelágio de Oviedo, Sánchez Albornoz, Uría Riu e Farnández
793
21. Catedral de Oviedo. Inscripción de renovación. 1. QUICUMQUE CERNIS HOC TEMPLUM
DEI HONORE DIGNUM, NOSCITO HIC/ 2. ANTE ISTUM FUISSE ALTERUM, HOC EODEM ORDINE
SITUM, QUOD PRINCEPS/ 3. CONDIDIT SALVATORI DOMNO SUPPLEX PER OMNIA FROILA,
DUODECIM / 4. APOSTOLIS DEDICANS BISSENA ALTARIA; PRO QUO AD DEU SIT VESTRA / 5.
CUNCTORUM ORATIO PIA, UT VOBIS DET DOMINUS SINE FINE PRAEMIA DIG / 6. NA.
PRAETERITUM HIC ANTE HEDIFICUM FUIT PARTIM A GENTILIBUS DI/ 7. RUTUM SORDIBUSQUE
CONTAMINATUM, QUOD DENUO TOTUM A FAMULO / 8. DEI ADEFONSO COGNOSCITUR ESSE
FUNDATUM ET OMNE IN MELIUS RE/ 9. NOVATUM. SIT MERCES ILLI PRO TALI, CHRISTE,
LABORE ET LAUS HIC IUGIS/ 10. SIT SINE FINE TIBI. In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César.
Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos,
1995, p. 177.
794
Ibid., 177.
795
Ibid., p. 177.
224
Conde consideram-na genuína
796
. O texto da inscrição trata da refundação da Catedral de
Oviedo identificado como templum por Afonso II, após sua destruição pelos sarracenos
entre os anos de 794 e 795, no tempo do emirado de Hixam I. Anteriormente, como bem
destaca a lápide, havia um templum edificado por Froila I, pai de Afonso II, entre os anos de
757 e 768.
A inscrição desaparecida pertencia à igreja de San Tirso, em Oviedo, santuário
mencionado pelas crônicas asturianas como sendo obra de Afonso II (791-842)
797
. Segundo
García de Castro Valdés, da ―construção alto-medieval se conservou no topo da parede do
santuário‖
798
. Uma parte dos elementos construtivos e decorativos são peças reaproveitadas
que dataria provavelmente da época visigoda, mais precisamente dos séculos VI e VII,
enquanto duas colunas centrais são obras locais do século IX
799
.
Aquele que aqui, nesta basílica, por seus pecados...
800
Foi confeccionada no tempo de Afonso II, 791-842, segundo García de Castro Valdés,
pois o texto da inscrição segue a mesma rmula daquela relativa à renovação de San
Salvador de Oviedo
801
. Proveniente da mesma época que a outra lápide citada assim se
expressa a inscrição:
Beatíssimo Tirso, para que me sejam perdoados pelo Senhor todos os meus pecados,
pelo mesmo que te elegeu para si...
802
A inscrição, atualmente perdida, foi recuperada por C. M. Vigil em 1878. A lápide foi
encontrada sob os escombros de uma pilastra durantes as obras na igreja de San Tirso de
Oviedo
803
. Está incompleto, a reconstituição hipotética proposta por García de Castro Valdés
e a análise efetuada sobre as descrições sobre o suporte original da escrita faz com que ela
seja identificada como sendo de fins do século VIII, princípios do IX. Segundo o historiador,
o texto ―formava parte de uma inscrição provavelmente dedicatória, na qual Afonso II
796
Ibid., p. 178.
797
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 28.
798
Ibid., p. 28.
799
Ibid., p. 28.
800
26. Sant Tirso de Oviedo. Fragmento de inscripción deprecatória. 1. + QUISQUIS HIC IN HANC/
2. BALICIĀ PRO SUA DELICTA. In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la
alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 184.
801
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 184.
802
27. San Tirso de Oviedo. Inscripción deprecatória. 1. ... BEATISSIME TIRSE.../ 2. UT SINT MICI
A D(OMINO)/ 3. DIMISSA OMNIA P(ECCATA)/ 4. PER IPSU[M] QUI TE ELEGIT SIBI. In: GARCÍA DE
CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto
de Estudios Asturianos, 1995, p. 185.
803
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 184.
225
perpetuaria a doação à basílica, dedicada a San Tirso, como médio de implorar a intercessão
deste‖
804
.
A igreja de San Julián Santullano está posicionada fora dos muros originais da
cidade de Oviedo e incrustada em um de comunicações terrestres de origem romana
805
. O
conjunto arquitetônico palaciano circundante, do qual fazia parte, não existe mais
806
.
Santullano de Oviedo não possui qualquer fonte direta que de conta da data de sua edificação.
Sabemos que foi construída por ordem de Afonso II, como fica patente pelas crônicas do ciclo
de Afonso III
807
. Segundo Árias Páramo, A igreja de Santullano foi construída durante o
reinado de Afonso II (791-842), talvez entre os anos de 812 e 842, data esta proposta devido à
ausência de qualquer menção a esta igreja no Testamentum do referido monarca
808
. Segundo
Garcia de Castro Valdés, contrariando a Árias Páramo, o edifício religioso encontra-se a uma
distância de cento e cinqüenta metros do palácio real do ―rei casto‖, mas, por esta distância,
descarta-se alguma dependência funcional entre ambas as construções, não configurando
Santullano como uma espécie de igreja palatina
809
. No que refere à hipótese de Santullano ser
uma igreja palatina, Lorenzo Árias Páramos evoca um estudo de Sabine Noack, que ressalta a
importância ―eclesiástico-política‖ da construção, pois a sua localização favoreceria também
uma função política
810
. Da igreja era possível ver o centro urbano ovetense e, conforme o uso
das igrejas toledanas, poderia ser o lugar para a saída e a chegada do rei em suas campanhas
militares, conforme pode ser verificado no Liber Ordinum
811
. Poderia ter servido também de
lugar para o Concílio de Oviedo
812
.
O edifício foi consagrado aos mártires egípcios Julián e Basilisa, santos cujo culto foi
bastante difundido em tempos alto-medievais
813
. Evitando uma longa descrição do templo,
reservamo-nos, mais uma vez, o direito de delimitar apenas algumas de suas características. A
decoração escultória de Santullano ―se reduz à arqueria perimetral interior da capela maior,
dotada de oito capitéis coríntios reutilizados, de cronologia provavelmente visigótica, pois
804
Ibid., p. 185.
805
ARIAS PÁRAMOS, Lorezo. La iglesia de San Julián de los Prados (o de Santullano). In: _______.
Arte prerrománico asturiano: San Julián de los Prados. Gijón: Trea, 1997, p. 11.
806
Ibid., p. 11.
807
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 20.
808
ARIAS PÁRAMO, Lorezo. La iglesia de San Julián de los Prados (o de Santullano). In: _______. Arte
prerrománico asturiano: San Julián de los Prados. Gijón: Trea, 1997, p. 9.
809
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 20.
810
ÁRIAS PÁRAMO, op. cit., p. 11.
811
Ibid., p. 11-12.
812
Ibid., p. 12.
813
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 21.
226
não dúvidas de seu caráter reutilizado‖
814
. Como bem observa García de Castro Valdés,
percebe-se uma grande discrepância das técnicas empregadas. Tais peças, em comparação
com os demais elementos arquitetônicos da igreja são muito bem talhadas, similar a outras de
mesma tipologia encontradas desde as terras de Bierzo leonês até as montanhas de Norte de
Burgos
815
. Tal semelhança faz surgir a hipótese de que tenham saído da mesma oficina de
artesãos
816
. O conjunto da decoração é totalmente ausente de representação humana, que, para
alguns corresponde a uma inspiração direta do monacato visigodo, e que teve grande
repercussão no mundo carolíngio; e outros que interpretam está ausência como manifestação
artística da querela adocionista, o que faria com que se descartasse a representação humana de
Cristo
817
. De qualquer maneira, Santullano ―é o maior dos edifícios alto-medievais
conservados em Astúrias. É um bom testemunho da capacidade construtiva e financeira das
oficinas e promotores nas Astúrias de princípios do século IX‖
818
.
Não podemos esquecer a Igreja de Antealtares. O edifício de San Pedro de Antealtares
começou suas atividades reunindo doze religiosos que custodiavam o sepulcro do apóstolo
Santiago Zebedeo
819
. San Pedro de Antealtares era mantido pelas oferendas dos fiéis,
contudo, mudanças passaram a acontecer. A nova comunidade, sem perder sua antiga função,
―aspira novos objetivos‖. Diversas categorias sociais (nobres, burgueses e camponeses)
passam a se interessar por ela, provendo-a com ofertas e doações, situação que favorece o
fortalecimento de seu patrimônio, contribuindo para a sua independência. Os monarcas
protegeram a instituição, fornecendo-lhe privilégios e imunidades
820
. A igreja de Santiago
tornou-se capaz de formar seu próprio quadro eclesiástico e adquirir prestígio a revelia da
igreja
821
.
Quanto à casa monástica, Manuel Lucas Álvarez afirma que:
Até o hoje não se realizou um estudo completo do mosteiro em sua fase medieval. O
trabalho de López Ferreiro em seus Apuntes históricos sobre el monastério de San
Pelayo de Antealtares de la ciudad de Santiago não passa de um primeiro esboço,
com grandes lacunas e incidências nos textos mais conhecidos, se bem que aporta
novos dados sobre a lista de abades
822
.
814
Ibid., p. 23.
815
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 23.
816
Ibid., p. 23.
817
Ibid., p. 27.
818
Ibid., p. 27.
819
ÁLVAREZ, Manuel Lucas. Introducción. In: ________. San Paio de Antealtares, Soandres y
Toques: tres monastérios medievales gallegos. A Coruña: Ediciós do Castro, 2001, p. 9.
820
Ibid., p. 9.
821
Ibid., p. 9.
822
Ibid, p. 12.
227
Segundo Manuel Lucas Álvarez, ―o mosteiro de Antealtares tem sua origem na
descoberta do sepulcro do apóstolo Santiago nos primeiros decênios do século IX e na
proteção que desde o primeiro momento dispensaram os monarcas cristãos a partir de Afonso
II o Católico‖
823
. Estes dois acontecimentos foram estudados tanto em seus vestígios
documentais quando às pesquisas arqueológicas desenvolvidas, principalmente nas
escavações feitas no templo catedralício e o entorno nororiental (1949-1964) feitas por
Chamoso Lmas, Guerra Campos, López Alsina e Freire Camaniel
824
. ―A titulação de
Antealtares está justificada desde a origem, como vimos, por sua imediatez e situação diante
do altar e túmulo de Santiago, como atesta o documento da Concordia e os testemunhos
posteriores‖
825
. O patronato celestial sofreu muitas transformações entre os séculos IX e XII.
Primeiro, com base na menção aos santos patronos, que são datadas do século IX, destacamos
aos que se referem a primeira igreja construída, como pode ser verificado com a dedicação
dos altares: ―San Salvador‖, ―San Pedro‖ e ―San Paulo‖. Esta dedicação não é definitiva,
como podemos verificar com a freqüência a citação de San Salvador e Santa María no caso do
patronato de diversas igrejas nos séculos IX e X
826
.
Segundo Manuel Lucas Álvarez, por causa do V Centário de San Paio como cenóbio
feminino e em consideração ao Año Santo Compostelano de 1999, foi realizada uma
exposição no mosteiro de San Paio. Nela constaram várias peças da história do mosteiro
827
. A
mais antiga é a ―Ara de San Paio‖, uma das peças mais valiosas do patrimônio artístico do
mosteiro, e tem relação com o sepulcro primitivo de Santiago (p. 103). O objeto consta de
suas partes: 1) a ara do altar com uma antiga inscrição funerária romana (que foi mutilada
devido a seu caráter pagão por ordem do arcebispo Don Juan de San Clemente) e um suporte
de mármore datado dos séculos XII e XIII (p. 103-104). Segundo o testemunho de Ambrósio
Morales e Yepes, a ara pertencia ao sepulcro de Santiago
828
. Pela Concórdia, sabemos que a
ara foi transferida para San Paio
829
.
No reinado de Afonso II foi explicitada uma nova fase na constituição no Reino da
Astúrias que já se configurava, pelos menos, desde as últimas quatro décadas. Diversos
823
ÁLVAREZ, Manuel Lucas. El monastério y su asentamiento. In: ________. San Paio de Antealtares,
Soandres y Toques: tres monastérios medievales gallegos. A Coruña: Ediciós do Castro, 2001, p. 13.
824
Ibid., p. 13.
825
ÁLVAREZ, Manuel Lucas. La comunidad monástica. In: ________. San Paio de Antealtares,
Soandres y Toques: tres monastérios medievales gallegos. A Coruña: Ediciós do Castro, 2001, p. 27.
826
ÁLVAREZ, op. cit., p. 27.
827
ÁLVAREZ, Manuel Lucas. El patrimonio artístico. In: ________. San Paio de Antealtares, Soandres
y Toques: tres monastérios medievales gallegos. A Coruña: Ediciós do Castro, 2001, p. 103.
828
Ibid., p. 104.
829
Ibid., p. 104.
228
vestígios nos revelam a intensidade da atividade construtiva asturiana, demonstrando o vigor
da monarquia no intuito de proteger, fundar e reconstruir edifícios religiosos. Não estamos
dizendo que grupos aristocráticos não fizessem a mesma coisa, não estou pregando uma
diferença qualitativa extrema, mas enfatizar a extensão e a proporção das ações de Afonso II
no que tange ao reforço as nascentes estruturas eclesiásticas nortenhas. Os primeiros
exemplos que apresentamos, as epigrafes e edifícios religiosos, foram manifestações
produzidas em Astúrias, com maior concentração na capital do jovem reino. O último
exemplo, entretanto, está demasiadamente distante do solar asturiano, sendo, mais
precisamente, um território inserido no extremo Oeste da antiga província romana da
Gallaecia. Como havíamos comentado no capítulo precedente, as terras da Galícia e uma
parcela de seus habitantes foram sendo postos sob a autoridade de Silo algunas décadas antes
de Afonso II o que significa como que aquilo que veio a constituir a casa real começou a ter
habilidade e força na mobilização e com grande capacidade articuladora se comparado aos
demais chefes de famílias aristocráticas nortenhas.
A maior eficiência em desenvolver uma rede de colaboradores laicos e eclesiásticos
garantiu a sustentabilidade da autoridade de Afonso II. Temos, evidentemente, mais indícios
das relações costuradas com os meios eclesiásticos, constituindo-se assim em rastros mais
diretos disso. No que se refere a outros grupos, possuímos dados obtidos indiretamente.
Vejamos o que as narrativas alto-medievais nos informam das atividades do rei casto na
Galícia. Assim se expressa a Crônica Albeldense:
Produziu muitas vistorias sobre os Ismaelitas, e superou no prélio as hostes dos
Gétulos sob as Astúrias no local de Lutis e outra na província da Galícia no local de
Anceo. E em seu tempo, alguém da Hispânia de nome Mahamut, fugido do rei
Cordobense com todos os seus, subiu às Astúrias por este príncipe, e depois
promoveu na Galícia rebelião no castro de Santa Cristina. o rei o aniquilou no
prélio e capturou o mesmo castro com tudo
830
.
Não sabemos dizer se a seqüência dos fatos contidos neste fragmento da crônica
corresponde à sucessão exata dos acontecimentos durante o reinado de Afonso II. Mais uma
vez nos deparamos com termos genéricos, sem qualquer precisão étnica ou geográfica,
empregados para identificar os muçulmanos. Ismaelitas e Getulorum designam nada mais na
menos do que membros dos exércitos emirais acantonados no Norte da Península Ibérica, em
830
Cronica Albeldense. Super Ismahelitas uictorias plures gessit, Getulorumque ostes unam infra
Asturias in locum Lutis et aliam in Gallicie prouintiam in locum Anceo prelio superauit. Suoque tempore
quidam de Spania nomine Mahamut a rege Cordouense fugatus cum suis omnibus Asturias ab hoc principe est
susceptus, posteaque in Galliciam ad reuellium in castro sancte Cristine peruersus. Ibi eum hic rex prelio
interfecit castrumque ipsum cum omnia cepit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle.
Paris: CNRS, 1987, p. 24-25.
229
terras de Galícia e partes da Astúrias. Tal fato ilustraria a reativação dos confrontos militares
entre sarracenos e asturianos após os reinados de Silo, Mauregato e Vermudo I. A Albeldense
não se alonga nestas campanhas, restringindo-se a noticiar que ocorreram várias e que teriam
como resultado a vitória de Afonso II.
Quanto a este cenário assim se expressa a Chronica Rotensis:
22. No trigésimo segundo ano do reino deste, ingressaram os exércitos dos Caldeus
em Galícia e sobre eles dois irmãos de nomes Alcurexis Alhabaz e Melik, eram
governadores. Mas, um no local que é dito Naron, outro no rio Nazeo ao mesmo
tempo até que são destruídos. Naquele tempo, na era DCCCXXXVII, um homem de
nome Mahamuth rebelou os cidadãos de Mérida da nação do enfraquecido rei
Abderraman e muitos prélios dele s em fuga os exércitos como logo não queria
habitar na pátria, voltou-se para o mesmo rei Afonso e o rei o susteve honrosamente.
Ele, certamente, por sete anos, com todo seu colégio na província da Galícia era tido
como habitante e aí, tomado pelo orgulho e pela soberba maquinou, sem razão,
contra o rei e o mesmo contra a pátria. Aglomerou os associados, reuniu a hoste,
depredou a pátria. Como o rei descobriu o feito, congregou o exército e apressou o
cerco a Galícia. O referido Mahamuth quando ouviu sobre a chegada do rei, em um
certo castelo fortíssimo ele se reuniu com os seus associados. O rei perseguiu-o e
cercou-o no castelo com o exército. Que enormidade? Neste mesmo dia conduziram
o prélio e aniquilaram o referido Mahamuth, levaram as cabeças deles separadas até
o rei. Eles imediatamente romperam as lanças, ingressaram no castelo, mataram
mais de cinqüenta mil sarracenos que vieram até ele partindo das províncias da
Espanha. O rei retornou a Oviedo em grande triunfo.
831
Sendo um pouco menos superficial que a Chronica Albeldense, a versão rotense do
ciclo de Afonso III identifica os muçulmanos com Caldeorum. A Albendense atesta a refrega
acontecida no interior do território asturiano, em Lutis, e outra na Anceo, nas terras galegas.
As informações fornecidas pela Rotense, além de serem diferentes ao identificar o lutar do
prélio, elas são mais precisas quando a datação de um dos conflitos entre cristãos e islamitas,
tendo o confronto ocorrido no ano de 799, Era Hispânica de 837. O cenário do combate é de
fato a Galícia, nas terras de Naron nas proximidades do rio Nazeo. Os chefes dos exércitos
emirais são identificados como prefecti, praefecti no original vocábulo clássico, que optamos
traduzir por ―governadores‖. Ao que parece a função exercita envolvia não somente o
831
Chronica Rotensis. 22. Anno regni eius tricesimo duo exerciti Caldeorum Gallecie sunt ingressi; et
super eos duo fratres Alcurexis nominibus Alhabaz, Melik erant prefecti. Set unus in locum qui dicitur Naron,
alius in flumine Nazeo unum tempore usque ad internicionem sunt deleti. In illius namque tempore era
DCCCXXXVII uir quidam nomine Mahamuth ciues Emeritensis natione mollitis regi Abderrahman reuellauit
eique prelia multa intufit et exercitos fugauit. Quumque iam patriam illam auitare non ualuit, ad idem
Adefonsum regem adtendit et rex eum honorifice suscepit. Ille uero per septem annis cum omni collegio suo in
prouincia Gallecie hauitator extitit, ibique fasto superuie elatus contra regem uel patriam est inanniter meditatus.
Socios adclomerauit, hostem adunauit, patriam depredauit. Quo rex ut factum conperit, exercitum congregauit et
Galleciam properauit. Quo predictus Mahamuth dum aduentum regis audiuit, in quodam castello fortissimo cum
sociis suis se contulit. Quem rex persequitur et in castro ab exercitu circumdatur. Quid multa? Eodem die
prelium comittunt et prefatum Mahamuth occidunt; kapud eius abscisum regis presentiam adferunt. Qui statim
acies disrumpunt, castrum ingrediunt, plus quam quinquaginta milia Sarracenorum, qui ad eum ex prouinciis
Spanie aduenerant, interficiunt. Rex uero cum magno triumfo reuersus est Oueto. In: BONNAZ, Yves.
Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 51.
230
domínio territorial sobre uma determinada zona, mas também envolvia o desempenho de
atividades de chefia militar e condução de campanhas contra povos limítrofes.
um ponto de convergências entre as narrativas e elas se dirigem a um mesmo
evento, o da rebelião de Mahamut, administrador muçulmano fixado nas terras de Mérida.
Este personagem deslocara-se para as zonas fronteiriças da Galícia, que mais uma vez viria a
ser tornar cenário de embate das escaramuças produzidas por Afonso II. Mas tal situação
poderia ter passado despercebido se não fosse o fato dele ter-se reunido com seus associados,
socii, e permanecido sete anos em terras galegas de maneira insubordinada. É bem possível
que tais atitudes de Mahamut representassem um grau de autonomização de poder em áreas
periféricas do Emirato de Córdoba. Como ainda veremos, as franjas do poder emiral
mostrava-se terreno propício para desobediências. Talvez, o não envio de tributos e/ou a
ameaça aos territórios circundantes dos domínios de Mahamut consistissem em motivos
concretos para que as autoridades emirais reprimissem as tentativas de independência de
determinados setores da administração civil e militar muçulmana em terras ibéricas.
Assim chegamos ao ponto que desejávamos: o pedido de asilo de Mahamut. Não
indício narrativo maior da representatividade de Afonso II como principal líder político
nortenho do que esta solicitação de auxílio proferido pelo rebelde muçulmano. A debilidade
política do emir cordobês Abderraman foi suficiente para estimular as pretensões
autonomistas de Mahamut, contudo, este, limitado pelos recursos materiais e humanos, não
tinha condições de confrontar o líder máximo do Islã ibérico. Entretanto a mesma atitude
diante de seu emir foi repetida contra o príncipe das Astúrias, promovendo então uma rebelião
que foi suprimida pelo rei casto. Assim é o que pelo menos nos informa a Chronica
Albeldense, que noticiaria que Mahamut estaria no castelo de Santa Cristina, na Galícia, lugar
que foi assediado e conquistado pelas forças asturianas. a crônica de Afonso III versão
rotense faz menção ao assédio promovido por Córdoba contra o insurgente muçulmano. O
castelo onde havia se instalado foi reocupado por tropas fiéis ao emir omíada. Todavia, tal
guarnição não pode se fixar por muito tempo, já que uma razia asturiana aniquilou os
muçulmanos, depredou o castelo e retornou triunfante a Oviedo.
Dois anos após este embate, no ano 801, nos deparamos com mais um choque militar
entre os exércitos emirais e asturianos. Segundo Abén-Adharí de Marrocos, nos primeiros
anos de retorno de Afonso II, veio às Astúrias uma hoste punitiva:
E no ano 179 [da Hégira] o imam Hixem ben Abdi-r-rahman enviou Abdu-l-carim
ben Mugueyts em expedição de verão até chegar a Medina-Astorca dentro da
Galiquia, de onde chegou a notícia de que Adhefonx reunia a gente de seu país e
pedia auxílios aos Al-Baxconex e às gentes daquelas comarcas, que eram vizinhas,
de Al-Magos e outros, e que acampou seu exército com eles no que está posicionado
231
entre a Galiquia e a serra, dando anúncio aos habitantes da planície para que se
retirassem aos altos montes do lado das costas
832
.
O governador Abdu-l-carim enviou o general Farg ben Canena com quatro mil
cavaleiros para reforçar as tropas que iriam combater as forças asturianas
833
. Ainda de acordo
com o relato árabe, muitos cristãos foram mortos ou escravizados e os muçulmanos
encontraram na região ―sementes cultivadas e as arruinaram, enquanto tomaram adiante os
bens‖
834
. Farg ben Canena avançou em direção a Afonso, que recuou pelos montes para
chegar a sua fortaleza em Guada-Balon
835
. A narrativa de Abén-Adharí ao tratar do ataque a
cidade de Astorga, Medina-Astorca, revela-nos a constância das investidas contra os
monarcas asturianos que se realizavam anualmente. O ponto específico da ofensiva
muçulmana teria se concentrado em um importante centro urbano e religioso do reino, fato
que obrigou Afonso II, Adhefonx, a congregar todos os seus colaboradores para deter as
investidas cordobesas. O relato nos fornece informações sobre o estado de poder atrativo que
os reis asturianos possuíam, como pode ser muito bem notado pela presença dos bascos, Al-
Baxconex, no cenário de batalha ocidental. As origens familiares de Afonso II podem explicar
o auxílio fornecido por populações tão afastadas das terras galegas. O fato de o rei Froila I ter
contraído núpcias com uma aristocrata, como pode ser visto no capítulo segundo, incrementou
o círculo de colaboradores das atividades militares asturianas e, por sua vez, a inserção direta
do Rei Casto neste circuito garantiu o apoio necessário para suas ofensivas em defesa do
reino.
A expedição muçulmana logrou obter seus objetivos: punir o Reino das Astúrias.
Contudo, tal limitou sua amplitude até a cidade de Astorga e seu entorno rural, como bem
ressalta o texto de Abén-Adharí. Destruição dos meios de subsistência da população local,
dispersão dos seus moradores e a captura para o mercado de escravos andaluz. A crônica
árabe observa que os exército asturianos foram desbaratados e fugiram para a fortaleça de
Guada-Balon, localidade incerta mas que Francisco Fernandez Gonzalez supõe que seja
Nalon ou Naron. Comparando com as crônicas asturianas, poderíamos supor que seja a terra
de Naron, próxima ao rio Naceo, que foi outrora objeto dos ataques emirais ainda no reinado
de Afonso II. Outro dado que podemos extrair da situação refere-se à capacidade asturiana de
frear os avanços dos exércitos islâmicos. Nenhuma das campanhas empreendidas por Córdoba
pôde atingir o núcleo central do Reino das Astúrias, permanecendo intacto, enquanto as
832
Abén-Adharí, op. Cit., p. 135-136.
833
Ibid., p. 136.
834
Ibid., p. 136.
835
Ibid., p. 136.
232
porções mais longínquas de Oviedo, mas próximas das fronteiras do mundo muçulmano,
recebiam os golpes mais duros das investidas emirais. O tempo dos pactos com os grandes
senhores muçulmanos havia passado, não existiam mais acordos firmados por aristocratas
territoriais com os emires de Córdoba para a preservação dos privilégios e propriedades. Após
as conturbadas primeiras décadas do século VIII, a passagem da oitava centúria para a nona
parece marcada pela delimitação mais estável dos papeis sociais e políticos dos agentes
históricos ibéricos.
Após décadas, os asturianos puderam confrontar o inimigo muçulmano, fazendo-o se
retirar de uma parte das terras galegas. Tendo esta ação ocorrido nos últimos anos do século
VIII, podemos dizer que a esfera de influência territorial se expandiu sobre uma parte
considerável da Galícia se consolidou. Não podemos precisar exatamente a extensão do
território asturiano naqueles tempos, mas podemos dizer que houve uma pacificação parcial e
o estabelecimento de uma hierarquização política na qual o senhor de Oviedo punha no ápice
desta pirâmide.
4.4. Edificação de uma monarquia:
Após o reinado de Afonso II avançamos para uma nova época, iniciada em 842,
período no qual se insere a ascensão de Ramiro I, que tomou o trono régio encontrando
resistência de parte da nobreza palaciana. Segundo os estudos de Cláudio Sánchez de
Albornoz dedicados a sucessão ao trono régio asturiano, afirma-se que Ramiro I não pertencia
ao ramo principal da parentela de Afonso II
836
, situação que explicaria sua ausência em
Oviedo quando do falecimento do Rei Casto. O problema da transmissão da autoridade de um
monarca para seu substituto ainda pairava sobre as Astúrias. Por mais que tempo tenha
decorrido entre a revolta de Pelágio e a elevação de Ramiro I, não encontramos nenhuma
regra de passagem de um monarca para outro, por mais que identifiquemos uma maior
maturidade institucional da realeza asturiana. Como bem apontam Abílio Barbero e Marcelo
Vigil, os primeiros anos do novo rei foram marcados pela dificuldade deste em conservar sua
titulatura
837
. No entanto, podemos concordar aqui com José María Mínguez ao afirmar que foi
a partir de Ramiro I que a hereditariedade se impôs como regra de transmissão de poder
838
.
836
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. La sucesión al trono en los reinos de León y Castilla. Buenos
Aires: Academia Argentina de Letras, 1945, p. 20.
837
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 320.
838
MÍNGUEZ, José Maria. La cristalizacion del poder político em la epoca de Alfonso III. In:
FERNANDEZ CONDE, Francisco Javier (org.). La epoca de Alfonso III y San Salvador de Valdedios:
233
Para os reis Ramiro I, Ordonho I e Afonso III se tornaram os primeiros a inaugurar a
consolidação de linha sucessória ordenada, muitos conflitos precisaram ser superados.
A fixação deste modelo acesso ao trono merece alguns comentários. O novo momento
vivido nas Astúrias marca uma incrível diferença com relação ao período anterior. ―Porém, se
a afirmação da hereditariedade é significativa por si mesma, o é ainda mais ao se inscrever em
um conjunto de manifestações coincidentes todas elas no tempo que desvelam umas formas
de atuação do poder radicalmente novas
839
. Concentremo-nos, por ora, nos dados legados
pelas narrativas. Assim se expressa a Chronica Albeldense sobre a ascensão política de
Ramiro I:
Ramiro reinou por VII anos. Foi a vara da justiça. Arrebatou arrancando os olhos
ladrões. Pôs fim aos magos pelo fogo e os submeteu e exterminou os tiranos com
admirável velocidade. Antes, superou Nepociano na ponte de Narcie e assim aceitou
o reino. Naquele tempo vieram, pela primeira vez, os Normandos às Astúrias.
Depois, do mesmo Nepociano e de outro tirano, Adroito, arrancou-lhes os olhos das
frontes, e, vencedor, aniquilou o soberbo Piniolo
840
.
Tal como último fragmento analisado, o que se refere a reinado de Ramiro I não deve
ter sido posto na ordem dos acontecimentos, portanto, separemos nossa análise por temas
delimitados. Discutamos, em primeiro lugar, as circunstâncias acerca de sua elevação como
rei. O falecimento de Afonso II em 842 se deu de tal maneira que a ascensão de Ramiro I foi
dificultada. Pela segunda vez, identificamos a movimentação da nobreza da corte régia. Sendo
o mesmo relatado pela Rotense:
23. Na era DCCCLXXXI depois da partida de Afonso, Ramiro, filho de Vermudo,
foi eleito príncipe no reino. Neste tempo afastado estava da própria sede e chegara à
província Varduliense para aceitar esposa. Quando o mesmo referido príncipe
Afonso faleceu, Nepociano, conde do palácio obteve o reino tiranamente. O príncipe
Ramiro que ouviu o ocorrido, combater nas regiões da Galícia e na cidade Lugo
reuniu o exército. Após pouco tempo irrompeu sobre os Astures. Aquele Nepociano
soube da chegada deles, foi até ponte do rio cujo nome é Nartie com o exército.
Certamente, concluído o certame por todos os seus foi destituído e fugido sem
demora: foi apanhado e teve seus olhos arrancados na província Premoriense pelos
dois condes Cipião e Sonan. Este rei Ramiro ordenou encarcerá-lo no mosteiro e
terminou a vida em hábito monástico
841
.
Congreso de Historia Medieval Oviedo (27 setiembre 2 Octubre) 1993. Oviedo: Universidad de Oviedo,
1994, p. 73.
839
Ibid., p. 73.
840
Cronica Albeldense. 10. Ranemirus rg. an. VII. Uirga iustitie fuit. Latrones occulos euellendo abstulit.
Magicis per ignem finem inposuit, sibique tyrannos mira celeritate subuertit atque exterminauit. Prius
Nepotianum ad pontem Narcie superauit et sic regnum accepit. Eo tempore Lordomani primi in Asturias
uenerunt. Postea idem Nepotiano pariter cum quodam Aldroitto tiranno occulos ab eorum frontibus eiecit,
superbumque Piniolum uictor interfecit. In locum Ligno eclesiam et palatia arte fornicea mire cons truxit. In:
BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 25.
841
Cronica Rotensis. 23. Era DCCCLXXXI post Adefonsi discessum Ranemirus filius Ueremudi
principis eligitur in regnum. Eo tempore abscens erat a propria sede et in Uarduliensem prouintiam fuerat
aduectus ad accipiendam huxorem. Dum idem prefatus princeps Adefonsus migrauit a seculo, Nepotianus palati
comes regnum tiranziide est adeptus. Ranimirus princeps ut factum audiuit, Gallecie in partibus se contulit et in
234
No ano 842, o filho de Vermudo I, segundo a versão rotense, teria sido eleito para
tomar o reino fora da capital ovetense, que foi deixada sob a custódia da nobreza cortesã
representada pelo texto por Nepociano, chamado de conde apenas pelo ciclo de Afonso III.
Pejorativamente Nepociano é nomeado como tirano pelo cronista, atributo outrora empregado
para Mauregato, pelo fato de ambos terem empreendido a usurpação da autoridade régia. A
rebelião palaciana contra o novo monarca parece ter sido de curta duração, sendo
rapidamente, segundo a fonte, reprimida pelo novo rei. Das quatro cartas produzidas e
conservadas no período em que reinara, apenas duas mencionam o reinado de Ramiro, sendo
as duas datadas do ano em que a rebelião de Nepociano havia sido deflagrada. A primeira é
carta de doação feita por Severa aos monjes de San Salvador de Villeña
842
, datada
precisamente de 13 de janeiro de 843. Já a segunda corresponde à outra carta de doação ao
mosteiro de San Salvador de Villeña
843
. Ambas constituem em um testemunho da rápida
supressão da usurpação de Nepociano. Além disso, como observam Barbero e Vigil, tais
ações apontam para o fato de o usurpador ter possuído, mesmo por um breve momento, a
autoridade reconhecida por parte considerável dos habitantes nortenhos
844
.
O combate teria ocorrido nas proximidades de uma ponte que cruzaria o rio Nárcea, no
qual teria o rebelde encontrado seu fim. Algumas coisas precisam ser melhor detalhada, sendo
uma primeira delas o fato de Ramiro I estar ausente da capital do reino quando da rebelião. A
Chronica Rotensis é mais detalhada no que tange a esta situação citada a pouco.
Desconhecemos por completo a origem do conde rebelde. Não é possível identificar com
segurança se ele era o principal nobre que fazia parte do séquito de Afonso II. Sua aparição
histórica restringe-se a tentativa de tomada do trono das Astúrias. Talvez o vocábulo conde,
comes, preserve apenas um significado bem delimitado, o de companheiro, alguém que
coabitava no palácio do rei casto, alguém próximo o suficiente, íntimo conhecedor da rede
política costurada pelo monarca precedente.
Para Fray Justo Pérez de Urbel afirma que as querelas produzidas pela sucessão ao
trono de Afonso II estavam associadas às pretensões de Nepociano, reforçado pelo
ciuitatem Lucensem exercitum quoadunauit. Post paucutn uero temporis spatium in Astores inruptionem fecit.
Quo Nepotianus tit eius aduentum audiuit, ad pontem flubiii cui nomen est Nartie cum exercitu obius fuit. Inito
uero certamine a suis omnibus est destitutus et sine mora fugatus: in prouincia uero Premoriensem a duobus
comitibus Scipionem et Sonnanem est conprehensus et oculis excecatus. Quem Ranimirus rex eum in monasterio
religare precepit, et in monastico auitu uitam finiuit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe.
siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 53.
842
n° 48. Severa dona varias heredades a los monjes de San Salvador de Villeña., p. .
843
n° 52. Sempronio dona a San Salvador de Villeña cuanto posee en Cosgaya, Fresno y Pombes., p.
844
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 321.
235
matrimônio com a irmã do Rei Casto, elemento que lhe garantiu algum sucesso em se firmar
no sólio ovetense
845
. Isto não seria uma inovação, pois havia sido praticada associação do
novo monarca ao trono por meio de matrimônios políticos, como no tempo de Afonso I e
Silo
846
. No entanto, desenvolvendo uma perspectiva diferente, José Maria nguez afirma
que as rebeliões de Nepociano, Aldroito e Piniolo revelam a passagem de uma velha
aristocracia tribal para uma aristocracia que funda seu poder na apropriação de bens rústicos e
de poderes transformados em políticos
847
. Por sua vez, José Angel Garcia de Córtazar afirma
que tais revoltas evidenciam ―o conflito entre as tradições matrilinear e patrilinear na
sucessão, que concluirá com o triunfo da segunda a partir de Ramiro I, em meados do século
IX‖
848
. Afastamo-nos das perspectivas apresentadas por Mínguez e García de Cortázar, pois
elas não têm qualquer respaldo em análise de fontes ou perspectiva teórica convincente
quanto a este ponto. Entretanto, vale lembrar que o reconhecimento da legitimidade da
autoridade monárquica não era ainda algo acabado, sofrendo sempre ataques de insurgentes
ou concorrentes pelo poder de controle social e político.
A idéia vinculada a transformações de um tipo sucessório para outro é profundamente
descabido e débil, que estamos tratando de uma época sem cânones ou regra formal de
transmissão de poder político. Estamos tratando aqui de disputas políticas, conflito pela
participação política ativa, concorrência que, como observa Pierre Bourdieu, decorre da
concentração de capital político por parte de determinados agentes sociais, empossados de
instrumentos matérias e instruídos na lógica política necessária para sua atuação
849
. Os demais
são simples aderentes
850
. Além disto, como apresentamos nas páginas precedentes, não é
possível identificar nada como tribal em terras asturianas muitos séculos e, caso existisse,
não faria oposição a qualquer construção de estrutura política. Apesar do obscuro estado de
fontes para este período, podemos nos aproximar mais da hipótese lançada por Pérez de Urbel
e Sánchez Albornoz, ao limitarem a rebelião de Nepociano ao círculo mais fechado das
relações políticas e sociais do Reino das Astúrias.
845
PÉREZ DE URBEL, Fray Justo. Los primeros siglos de la Reconquista (Años 711-1038). In:
MENÉNDEZ PIDAL, Ramón (dir.). Historia de España: comienzo de la Reconquista (711-1038). Madrid:
Espasa-Calpe, 1950. 6 v, p. 60.
846
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 323.
847
MÍNGUEZ, José Maria. Las formaciones embrionárias del norte peninsular. In: ________. História de
España II: las sociedades medievales, 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 75.
848
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Angel. La ofensiva y expansion de Europa em el escenario español:
el triunfo de la Cristianidad sobre el Islan a traves de la Reconquista. In: ARTOLA, Miguel (dir.). Historia de
España: La época medieval. Madrid: Alianza, 1988, p. 120.
849
BOURDIEU, Pierre. ―A representação política. Elementos para uma teroria do campo político‖. In:
________. Poder simbólico. São Paulo: Bertrand Brasil. 2004, p. 164.
850
Ibid., p. 164.
236
É possível que ele tenha participado ativamente das ações perpetradas por Afonso II.
O maior conhecimento das articulações anteriores e o plausível fato de ele compactuar com
uma parte da nobreza asturiana tenha lhe dado confiança para tomar a iniciativa do golpe.
Poderíamos dizer que a liderança destes movimentos é possível a um número restrito de
pessoas, enquanto outras estariam em uma posição subalterna no campo político:
Estão tanto mais condenados à fidelidade indiscutida às marcas conhecidas e à
delegação incondicional nos seus representantes quanto mais desprovidos estão de
competência social para a política e de instrumentos próprios de produção de
discursos ou actos políticos
851
.
Esta rebelião palaciana seria diferente da deposição idealizada por Mauregato.
Nepociano, ao contrário deste último, não tinha ―sangue real‖, não era descendente dos
antigos caudilhos asturianos. Se o fosse, os cronistas talvez mencionassem o golpe como uma
querela de família, como fez em várias situações, no entanto, novo pretendente a rei era
portador de meios políticos que legitimava suas ações para os seus partidários. Esta tomada de
decisão tinha por objetivo a conquista do título de autoridade por alguém que estivesse
afastado de uma possível linha sucessória, mas que sabia das possibilidades de ganhos que a
usurpação poderia trazer para si.
A mobilização de Nepociano objetivava a tomada de controle da estrutura política
mais importante no norte da Península Ibérica. A luta e o esforço pela conquista de poder
nada mais era do que uma disputa por algo que não era acessível a todos, por isso era um
objeto valioso, algo que estimulava o empenho pelo afastamento daquele que tivesse maior
legitimidade de dominar o reino. Como pode ser deduzido destes breves palavras, as ações de
Nepociano não visavam a destruição da monarquia, objetivavam a plena inserção nela e o
domínio sobre seus instrumentos de controle e prestígio. O antropólogo inglês M. Gluckman,
analisando os conflitos em estados africanos, nota que a ―rebelião aparece aí como um
elemento inerente ao sistema; ela oferece a uma sociedade o meio de superar suas tensões‖
852
. O que Gluckman procura evidenciar é que as entidades políticas analisadas são portadoras
de um equilíbrio social muito instável
853
, situação que se assemelha bastante com o caso
asturiano de Ramiro I e, posteriormente, de Afonso III.
Estamos falando de uma rebelião feita para manter a entidade monárquica nas mãos de
outro grupo, na qual o pretendente não pertencia ao cleo familiar pelagiano e afonsino.
Podemos tomar esta situação como um índice do amadurecimento institucional da realeza
851
BOURDIEU, op. cit., p. 165.
852
ABÉLÈS, Marc. Politique (Anthropologie). In: BONTE, Pierre, IZARD, Michel (dir.). Dictionnaire de
l’ethnologie et de l’anthropologie. Paris : Presses Universitaires de France, 1992, p.581.
853
Ibid., p. 581.
237
nortenha. De qualquer maneira, Nepociano foi derrotado em suas intenções e Ramiro I voltou
a ter domínio sobre seu reino. O conde palatino foi mutilado e terminou seus dias encerrado
em um mosteiro, procedimento inspirado no que havia ocorrido com Afonso II nos tempos da
usurpação de Mauregato. A Chronica Rotensis destaca que a captura de Nepociano foi obra
de dois condes Scipião e Sonna em terras de Primorias, região estabelecida na comarca de
Cangas de Onís, núcleo original do poder asturiano
854
. Ambos os aristocratas não são
identificados como condes do palácio, sendo possivelmente autoridades, representantes do
monarca em alguma de suas terras ou autoridade locais. A versão oventense acrescentaria
ainda a formação de um exército de Astures e Vascões para reprimir o conde rebelde.
Após a revolta de Nepociano, uma outra foi empreendida por outros dois condes
palacianos: Adroito e Piniolo. Não dispomos de documentação notarial para encontrar uma
datação aproximada destes novos eventos, nem outra referência que pudesse ser cotejada com
a documentação narrativa. O período de governo de Ramiro I, que segundo Sánchez Albornoz
já era bastante ancião quando aceitou o reino
855
, foi breve, durando cerca de sete anos, mas foi
marcado pela insubordinação de seus súditos que acabaram por gerar ―guerras civis‖, bellis
ciuilibus, que objetivavam seu destronamento. Como dissemos acima, tais atos de insurgência
adéquam-se melhor a manifestações de disputa pela titulatura régia. Fazer-se reconhecer
como autoridade máxima do reino era o que estava em jogo. A revolta foi duramente
reprimida e, assim como o feito contra Nepociano, Ramiro I impôs um duro castigo a seus
opositores, a extração dos globos oculares dos responsáveis pela revolta e pela incitação a
guerra e a imposição da pena de morte aos seis filhos do conde Piniolo pela colaboração na
sedição. Tais punições estavam, segundo Barbero e Vigil, prescritas em leis canônicas
856
, que
impunham a reclusão em mosteiros daqueles afastados da autoridade monárquica
857
, enquanto
o ato de cegar os pretendentes-insurgentes relaciona-se aos castigos corporais em vigor entre
francos e bizantinos, punições instituídas na ―legislação visigoda desde a época de
Chidasvinto‖
858
Os adversários não são dignos da piedade régia e são descritos com responsáveis pela
desestabilização da ordem. Contudo, acobiça‖ da nobreza não comprometeu o edifício
político asturiano, pelo contrário estava inserido nele, que delimitava as oportunidades de
ação de cada um dos participantes na disputa. Vale dizer sobre este jogo político asturiano,
854
BARBERO, VIGIL, op. Cit., p. 321.
855
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 20.
856
BARBERO, VIGIL, op. cit., p. 324.
857
Ibid., p. 324.
858
Ibid., p. 324-325.
238
fazendo uso das considerações de Bourdieu, que a entrada nele é fruto da preocupação do
político não se ver prejudicado pelo seu afastamento e pela busca do sucesso advindo da sua
participação
859
. Isto significa que o jogo é defendido mais profundamente quanto maior for
sua lucratividade e esta estiver ameaçada
860
. Tanto Gluckman quanto Bourdieu percebem que
a concorrência pelo controle do espaço político não é uma ameaça a sua integridade, ao
contrário é parte constitutiva dele, sendo um dos elementos que compõe o cenário. A saída do
conflito implicava o afastamento daquilo que tornava o certame atraente, a posse de
instrumentos de controle, cooperação e de auto-afirmação, além de outros objetos que foram
sendo revelados com o tempo nas Astúrias. Para compreendermos isto, precisamos verificar
os vestígios deixados pelo reinado de Ramiro I.
O cenário de conflito instaurado nos tempos de Ramiro I não rompeu com a prática de
edificação de edifícios religiosos pelos monarcas asturianos, o que demonstra a continuidade
do fomento por parte da realeza da criação de novas edificações religiosas. Estas novas
atividades arquitetônicas levadas a cabo por Ramiro I representou o apogeu dos esforços
artísticos asturianos, denominados como bem indica Emílio Mitre de Arte Ramirense
861
. A
Chronica Albendense noticia a construção de San Miguel de Lillo, em Oviedo. A decoração
escultória desta igreja é bastante variada, segundo García de Castro Valdés, sendo uma parte
desta é fruto de reaproveitamento de outras edificações
862
. Da fachada original, nos lados
voltados para Sul e Oeste, podem ser notados, principalmente na celosia meridional, que seu
contorno segue modelos de origem paleobizantinos
863
, sendo tal paradigma encontrado
também em San Martín de Argüellos, em Sierro
864
. A inspiração decorativa é diversa,
possuindo grande variedade, inclusive no que tange à qualidade dos trabalhos efetuados, o
que demonstraria que diferentes mãos lançaram a esta obra arquitetônica
865
. Vale destacar
ainda que uma parcela dos elementos escultórios é equivalente aos encontrados, de maneira
dispersa, pela Galícia, Norte de Portugal
866
. Nos chama também a atenção a existência de
representações iconográficas provenientes da Antigüidade Tardia, com ―cenas de circo e
jogos, presididos pela imagem do cônsul‖, presentes nos dípticos
867
.
859
BOURDIEU, op. cit., p. 173.
860
Ibid., p. 173.
861
MITRE, Emílio. Estructuras socioeconômicas de la España Cristiana en la Alta Edad Media. In:
________. La España Medieval: sociedades, estados, cultura. Madrid: Istmo, 1994, p. 144.
862
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit, p. 48.
863
Ibid., p. 48.
864
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 48.
865
Ibid., p. 49.
866
Ibid., p. 49.
867
Ibid., p. 50.
239
Outra obra arquitetônica promovida por Ramiro I foi a edificação de Santa María de
Naranco, narrada assim pela Chronica Rotensis:
Depois outro tombou naquela guerra civil, edificou muitos edifícios de murice e de
mármore sem madeiras sendo obra de idolatria no lado do monte Naurantio distando
duas milhas de Oviedo
868
.
José Angel García de Cortázar reconhece o impacto causado na sociedade asturiana
pelos esforços arquitetônicos perpetrados pelo rei Ramiro I. Segundo o historiador, este novo
cenário ficaria evidente com ―a surpresa‖ manifesta cronista da Rotense ao preservar a notícia
da construção por Ramiro I
869
. A forte impressão causada, em meados do século IX, pela
edificação de igrejas de pedras, evidenciaria também a falta deste material nas edificações
militares, cuja importância estratégica havia se ampliado graças ao emprego de materiais
construtivos de maior durabilidade
870
. Todavia, esta interpretação de inovação na construção
não é partilhada por nós, ao contrário, nas páginas precedentes, evidenciamos que muito antes
de meados da nona centúria era possível encontrar edifícios erigidos com pedras, empregando
técnicas apuradas provenientes do passado tardo-romano. Parece que o autor, desconsidera a
existência das igrejas idealizadas por Afonso II ou outras, mesmo em que pouquíssima
quantidade, espalhadas pelo conjunto territorial asturiano. Acreditamos, como poderá ser
visto mais adiante, que o caráter intencional destes projetos arquitetônicos foi algo realmente
marcante na história alto-medieval asturiana.
Tal edificação teria sido feita após as guerras civis instauradas em seu reinado. Deste
tempo, contamos ainda com inscrições epigráficas que tão conta de sua edificação. A seguinte
inscrição procede da igreja de Santa Maria de Naranco, construção atribuída pelas crônicas
asturianas a Ramiro I (842-850) no monte Naranco
871
. Atividades arqueológicas
desenvolvidas em 1998, desenterrou estruturas arquitetônicas situadas pouco mais de vinte
cinco metros de distância do edifício religioso. No entanto, tal resto não foi devidamente
identificado e datado, mas corresponde a um muro de traçado curvo, possivelmente circular,
que ficava próximo a via romana do Camín Real del Puerto de la Mesa
872
. a hipótese
868
Chronica Rotensis. Postquam a uella ciuilia quieuit, multa edificia ex murice et marmore sine lignis
opere forniceo in latere montis Naurantii duo tantum miliariis procul ab Oueto edificauit. In: BONNAZ, Yves.
Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 54.
869
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Angel. La ofensiva y expansion de Europa em el escenario español:
el triunfo de la Cristianidad sobre el Islan a traves de la Reconquista. In: ARTOLA, Miguel (dir.). Historia de
España: La época medieval. Madrid: Alianza, 1988, p. 121.
870
Ibid., p. 121.
871
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 34.
872
GARCIA DE CASTRO VALDÉS, op. cit.., p. 34.
240
deste muro compor uma antiga edificação defensiva em Naranco
873
. Por sua vez, a igreja
propriamente dita, sua denominação devirá da inscrição dedicatória a Santa María que estava
situada no altar, mas que atualmente está depositada no Museu Arqueológico provincial
874
. O
edifício, segundo García de Castro Valdés, ―não participa de nenhuma das características
arquitetônicas que definem os templos asturianos, salvo sua perfeita orientação segundo o
eixo Oeste-Leste‖
875
. Os desenhos que decoram a igreja tem clara função religiosa, apesar
das funções litúrgicas, devemos pensar nos antecedentes civis da construção. Tal posição é
levantada devido aos motivos decorativos e iconográficos que revestem a fachada, que possui
precedentes na arquitetura tardo-antiga e paleo-bizantina do Oriente Próximo
876
. A influência
deste estilo em Astúrias é mínimo, excetuando a igreja de Santa Maria de Lena
877
.
No que tange a inscrição:
Cristo, Filho de Deus, que entraste no ventre da Virgem Santa Maria sem concepção
humana e saíste sem corrupção; que mediante teu fâmulo Ramiro, príncipe glorioso,
com a reina cônjuge Paterna, renovaste esta habitação consumida por muita
antiguidade e por meio deles edificaste esta ara de bendição à gloriosa Santa Maria
neste lugar elevado; ouça-os desde sua morada até os céus e perdoa seus pecados.
Que vives e reina por infinitos séculos dos séculos, Amén. No nono dia das
Calendas de Julho, na Era DCCCLXXXVI.
878
De outras construções, no entanto, quase nada pode ser aproveitado, como por
exemplo, no que se refere a San Julián de Graméu, situada em terras de Cabranes, que possui
uma epigrafia datada do ano 846. Esta inscrição encontrava-se na fachada Oeste da igreja
paroquial, mais precisamente sobre a porta de entrada:
Em nome do Senhor, se fez esta igreja na Era DCCCLXXX: Adeganio...
879
873
Ibid., p. 34.
874
Ibid., p. 36.
875
Ibid., p. 42.
876
Ibid., p. 42.
877
Ibid., p. 42.
878
53. Santa María de Naranco (Oviedo). Inscripción de la Mesa de Altar. 1. + CHRISTE: FILIVS .
D[E] I: Q(VI) IN VTERO.VIRGINIS: BE(ATAE) MARIAE.INGRESS(VS ES SINE HV)? 2.
MANA:CONTEPTIONE ET EGR(E)SSVS SINE CORRVPTIONE. QVI P[ER] FAMVLVM/ 3. TVV[M]
RANIMIRV[M] (P)RINCIPE GLO[RIO]SV[M] CV[M] PA(TERN)A R(EGIN)A CONIVGE RENOVASTI
(HOC)/ 4. HABITACVLV[M] NIMIA VETVSTA TE CNSV[M]PTV[M].E(T PRO E)IS AEDIFICASTI
HANC HARAM B(ENEDIC)/ 5. TIONIS.GLO[RIO] SAE.S[NA]C[TA]E MARIAE : IN LOCV[M] . HVNC .
SV[MMV] M : EX (AVDI E)OS DE CAELO[VM] HABITACVLO TVO ET DIMI(TTE PECCA)? 6. (TA
E)ORV [M] . QVI VIVIS ET REGNAS.P[ER] I(NFINIT)A S[AE]C[V]LAS.S[AE]C[V] LOR[VM] : AMEN./
7. (DI)E VIIIO K[A]L[EN]D[]S IVLIAS ERA DCCCLXXXVIA. In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César.
Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos,
1995, p. 113.
879
36. San Julián de Graméu (Cabranes). IN N[O]M[IN]E D[OMI]NI FAC(T)A EC[C]L[ESI]A IN
ERA DCCCLXXXIIIIA:DEG(ANI). In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la
alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 83.
241
A igreja de Graméu, onde esta fixada a placa, não é mencionada em nenhuma
documentação alto-medieval e, infelizmente, não se conserva nada de sua edificação
primitiva, exceto a pia batismal que é muito similar a correspondente em San Salvador de
Priesca
880
. Estamos diante de uma prática muito comum nas construções altomedievais
asturianas, o reaproveitamento de peças arquitetônicas e, muito provavelmente, advindas de
terras ao Sul, que estavam a muito mais tempo inseridas no antigo circuito cultura, social e
político Tardo Romano. Tomemos como exemplo a Igreja de Santa Cristina de Lena, situada
em terras de Lena, que possuía como parte dela uma inscrição datada do ano de 643
881
. A
lápide foi encontrada foi encontrada por Manuel Jorge Aragoneses que publicou o texto
contido nela em 1954
882
. Segundo Lorenzo Árias Páramo, a igreja de Santa Cristiana de Lena
não possui lápide fundacional, nem é registrada em qualquer fonte narrativa
883
.
Tradicionalmente, sua construção parece ser posterior ao edifício de Santa María de Naranco,
ou seja, logo após a ascensão de Ordono I. Assemelha-se ao pavilhão de Ramiro I, mas
apresenta variações tanto construtivas quanto artísticas. Filia-se ao modelo das oficinas
ramirenses, porém é execução de outro arquiteto
884
.
A data de fundação desta igreja nos é desconhecida e os poucos conhecimentos que
dispomos são indiretos
885
. A igreja, possivelmente construída no ano de 850 ou nas décadas
seguintes, emprega materiais reaproveitados provenientes do século VII
886
. A inscrição datada
do ano de 643 é uma das peças trazidas para a edificação do templo de Santa Cristina de Lena,
juntamente com as colunas e os capitéis coríntios
887
. A maneira pela qual a igreja foi
construída no intuito de fazer o ―arco triunfal e a cancela‖, além de valorizar o acesso ao altar,
dificultar a visão dos laicos presentes do santuário
888
. Esta ocultação dos rituais diante dos
fiéis está de acordo com as liturgias alto-medievais que tentam garantir o aspecto de mistério
das cerimônias, como pode ser bem atestado pelo cânone XVIII, do IV Concílio de Toledo,
no ano de 633
889
.
880
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 83.
881
Ibid., p. 83.
882
Ibid., p. 83.
883
ARIAS PÁRAMO, Lorenzo. Iglesia de Santa Cristina de Lena. In: ________. Santa Cristina de Lena.
Gijón: Trea, 1997, p. 9.
884
Ibid., p. 9.
885
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 78.
886
Ibid., p. 78.
887
Ibid., p. 81.
888
GARCIA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 81-83.
889
Ibid., p. 83.
242
As primeiras décadas do século IX correspondem ao primeiro grande período da
história da Reconquista das atividades construtivas, situação que é de grande valia para esta
parte da tese. Até agora temos empregado como referências principais para análise da
formação do reino asturiano as documentações narrativas cristãs, com dados obtidos do
patrimônio arquitetônico nortenho pudemos perceber que, além de ser uma entidade capaz de
se fazer reconhecer por vários setores da sociedade, a entidade político-territorial da
Cordilheira Cantábrica era um grande usufruidor de recursos produzidos por seus súditos. O
Reino das Astúrias, enquanto uma autoridade estatal, fazia uso não de expedientes
coercitivo, mas também das riquezas de suas terras. O sociólogo Charles Tilly apontou que a
constituição de uma entidade estatal requer ―uma série espantosa de combinações entre a
coerção e o capital‖
890
. Na perspectiva deste sociólogo, a maior parte das organizações
políticas, que são qualificadas como Estado, controlavam os principais meios concentrados
de coerção dentro de territórios delimitados e exerciam prioridade, em alguns aspectos, sobre
todas as outras organizações que atuavam dentro desses territórios‖
891
.
Tilly nos chama a atenção para uma tendência que passa a se apresentar e processar de
maneira vigorosa também nas Astúrias. A pujança arquitetônica produzida insere-se em uma
lógica de maior acumulação de recursos e concentração por parte de uma única entidade, que
destina uma parte dele segundo os seus interesses. Não temos ainda indícios dos meios que
tornavam tais aquisições e direcionamento de bens, podemos confirmá-los por meios de
suas manifestações suntuosas e religiosas. O consumo daquilo que era obtido evidencia um
desnível social considerável daqueles que produziam tais bens daqueles que usufruíam deles,
fato que se manifesta de maneira intensa no fortalecimento das estruturas de dominação e
articulação social do Reino das Astúrias. Este cenário relaciona-se com uma dinâmica mais
ampla, que se vincula com a construção de cooperação de camadas da sociedade aristocrática
como organismo superior de tomada de decisão, que, além do auxílio na arrecadação de
recursos internos, atuavam também no movimento de obtenção de bens provenientes do
exterior.
As reutilizações de materiais de construção são uma constante nestas edificações
asturiana, não há uma igreja asturiana pré-românica destituída de elementos decorativos de
diversas procedências. A citada Ara de San Paio do mosteiro de Antealtares, na Galícia,
possui peças originalmente afastadas de seus lugares e funções de origem. Excetuando
aquelas que, pela maneira mais rústica e talhada com menor labor, as peças mais refinadas e
890
TILLY, Charles. Coerção, capital e estados europeus (990-1992). São Paulo: Edusp, 1996, p.50.
891
Ibid., p. 50.
243
portadoras de representações iconográficas menos cristianizadas são uma mostra de quão
longe foram as expedições perpetradas pelos monarcas asturianos. Fortunato Selgas indica
que as extremidades das colunas de rmore da antiga igreja de Santa Maria de Oviedo,
construídas por Afonso II, deveriam pertencer a construções romanas de alguma cidade como
Leão, Astorga ou Iria Flávia
892
. O avanço periódico sobre os territórios meridionais contribuía
para o acumulo de bens espoliados, que, por sua vez, destinavam-se a realização de
construções religiosas.
Revelam que foram atacadas áreas romanizadas, zonas habitadas desde longa data por
grupos sociais inseridos diretamente na esfera de influência cultural e social romana ou tardo-
romana. Os materiais reaproveitados são espólios de guerra, bem como diversos objetos
móveis, que migraram forçosamente para o Norte desde tempos de, pelo menos, Afonso I.
Isto pode nos mostrar que, mais do que uma guerra contra os muçulmanos que objetivava
libertar os cristãos, as razias desenvolvidas pelos governantes asturianos viam o Sul como
uma fonte de enriquecimento. As expedições militares asturianas possuíam uma função muito
bem delimitada: a de responder materialmente aos interesses dos seus participantes. A guerra
também respondia a uma necessidade política. A articulação e os preparativos para as
campanhas militares demandavam um esforço de cooperação, no qual o rei serviria como
elemento agregador. O rei, nestas situações, nada mais era do que um chefe de guerra. Um
líder que conduzia seus comandados na busca de riquezas.
Por sua vez Garcia de Cortázar ressalta outro ponto relativo a este tipo de atividade: o
crescimento econômico produzido entre Afonso II e Ramiro I. No tempo de Afonso II, entre
791 e 842 alguns indícios são fornecidos
893
. Quatro coisas atestam tal crescimento: 1) a
vontade de construir o reino a imagem do de Toledo, tanto na formação da estrutura
eclesiástica quanto na política; 2) a cristalização de Santiago de Compostela como centro
religioso; 3) o desenvolvimento de um programa arquitetônico ovetense com Afonso II e
Ramiro I; 4) notícias sobre esforços colonizadores nos vales da primitiva Castela (menção às
presúras). Os três primeiros dados nos indicam a reunião de excedentes em lugares muito bem
identificados: Oviedo e Santiago, mais precisamente. a identificação de uma força com
capacidade e vontade de gerar excedentes e transformá-los ―em forma de suntuária. Em forma
892
SELGAS, Fortunato, p. 296.
893
GARCIA DE CORTÁZAR, José Angel. Crecimiento econômico y sintomas de transformacion em las
estructuras de la sociedade e del habitat em el reino de Alfonso III de Asturias. In: FERNANDEZ CONDE,
Francisco Javier (org.). La epoca de Alfonso III y San Salvador de Valdedios: Congreso de Historia Medieval
Oviedo (27 setiembre 2 Octubre) 1993. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1994, p. 32.
244
de imagem do poder‖
894
. O quarto elemento, entretanto, corresponde à forma menos
concentradora de esforço, a forma mais dispersa de geração de bens: a ocupação do bosque e
o arroteamento
895
.
Fizemos uso, em um primeiro momento, do registro das igrejas construídas no período
abarcado entre Ramiro I e Ordoño I como índices, vestígios do labor arquitetônico asturiano
tratado como fonte para compreensão da realidade política do período. Destacamos que estes
monumentos se inserem em um processo intenso de acumulação de recursos característico de
entidades estatais que, para sobreviver, precisa tomar posse dos frutos do trabalho dos
habitantes nortenhos. A conjugação de monopolização de determinados recursos e o uso da
força física convergiram para uma finalidade bastante clara, a auto-afirmação da autoridade
asturiana a partir de meados do século IX. Por mais que conheçamos a importância das
edificações militares e palacianas, podemos notar que elas estavam muito mais expostas
àquilo que Manuel Nuñez Rodriguez chama de ―ação destruidora da modificação
constante‖
896
, ou seja, submetidas a constantes intervenções arquitetônicas conforme o gosto
ou necessidade de cada época. Portanto, pelo menor grau de mudanças nas suas características
construtivas e decorativas, privilegiamos, como pôde ser atestado, identificar e descrever
alguns edifícios religiosos das Astúrias.
Os estudos de Manuel Nuñez Rodriguez possibilitaram a identificação de um outro
nível na constituição da autoridade do Reino das Astúrias, algo que percebemos como fruto
de um controle de capital e de articulação social amadurecidos desde o começo do século IX.
O acúmulo e o direcionamento de recursos e bens extraídos da população asturiana tinham um
destino bastante claro. A realização de obras arquitetônicas constituía-se em um projeto
coerente de causar uma grande impressão em seus contemporâneos. Nuñez Rodríguez toma
de empréstimo a concepção de arquitetura da autoridade de Albert E. Elsen, ou seja, a noção
de que as obras arquitetônicas se relacionam com ideologias, situação que as transforma em
instrumento de propaganda da autoridade constituída
897
. Portanto, como sugere Nuñez
Rodríguez, o projeto edilício asturiano a partir de 800 vincula-se a preocupação em deixar
uma imagem durável da autoridade política. Apesar da crítica de García de Castro Valdés aos
aspectos político da disposição interna da Igreja de Santullano, devemos considerar um
894
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 32.
895
Ibid., p. 32.
896
NUÑEZ RODRIGUES, Manuel. La arquitectura como expresion de poder. In: FERNANDEZ
CONDE, Francisco Javier (org.). La epoca de Alfonso III y San Salvador de Valdedios: Congreso de Historia
Medieval Oviedo (27 setiembre 2 Octubre) 1993. Oviedo: Universidad de Oviedo, 1994, p. 116-117.
897
NUÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., p. 113.
245
conjunto mais amplo de obras do que o isolamento de apenas uma delas, afim de que a
mensagem política delas possa ser trazida a tona.
Desde o deslocamento da capital para Oviedo, produziu-se um ambiente, segundo
Núñez Rodriguez, de recuperação militar e espiritual, que veio a se manifestar materialmente
em edifícios
898
. Inicialmente, tais obras teriam um caráter de oferenda a divindade
899
, como
explicitação dos vínculos firmados entre o Céu e a Terra e, principalmente, evocar a
autorictas do príncipe
900
. A disposição da tribuna régia no interior das igrejas não se compara
com o que foi confeccionado anteriormente, possuindo uma posição de destaque, o que
reforçaria a imagem de proeminência do monarca e sua família, que ficava separado dos
demais participantes dos cultos. É em um espaço como este que a autoridade monárquica
evidencia a sua superioridade sobre o conjunto de seus súditos, como pode ser atestado em
San Julian de los Prados, Lillo, Valdediós, Tuñón e Compostela
901
. Mais do que um simples
estilo arquitetônico, estas disposições espaciais, são agregadas às considerações religiosas
produzidas no intuito de reforçar e legitimar a atuação da monarquia. ―Também Afonso I,
Ramiro I e Afonso III parecem participar deste princípio teológico-político que tem como
dever fundamental procurar a aliança entre Deus e seu povo‖
902
.
A monarquia asturiana configurou-se como o principal construtor das terras do Norte
da Península Ibérica e empregava conscientemente sua capacidade de arrecadadora em
projetos que afirmassem a sua superioridade diante de todos aqueles inseridos em sua esfera
de proteção e coação. Mas, para se manter e ampliar suas pretensões político-ideológicas, a
entidade precisou dispor de uma ampla quantidade de recursos conseguidos, em parte, pelo
processo de expansão territorial experimento no mesmo período. O sucesso de suas intenções
se expressa, em parte, por meio de seu legado arquitetônico, que força ainda mais aquilo que
o emprego da força lhe garantia. Por mais que a autoridade monárquica asturiana precisasse se
impor pelo uso da coerção física, isto não era suficiente para diferenciá-la do setor
aristocrático. Somente com o investimento em determinados expedientes é que a realeza
asturiana pode se sobrepor como uma força diferente e suprema. A capacidade de gerir as
riquezas produzidas e fornecidas por seus súditos fixados em uma ampla extensão de seus
domínios forneceu as bases materiais de seu poder, a exclusividade de convocar concílios e de
se identificar com o elemento construtor e regulador da sociedade é sua manifestação
898
NUÑEZ RODRÍGUEZ, op. cit., p. 113.
899
Ibid., p. 113.
900
Ibid., p. 114.
901
Ibid., p. 114.
902
Ibid., p. 115
246
ideológica. Com tais instrumentos o Reino das Astúrias obteve êxito em se colocar como
autoridade hegemônica das terras do Norte.
4.5. Retomada da expansão territorial e identificação da cooperação política:
A oscilação entre período de paz e período de guerras civis não deve ser considerado
como um empecilho para a consolidação do Reino das Astúrias. Tais tensões eram inerentes à
própria formação e estruturação desta entidade política que, quando conseguir estabilizar o
cenário de conflitos internos, rapidamente se organizava para empreender esforços militares
de ataque ou defesa. Suplantar a discórdia no interior de seu reino e edificar monumentos
religiosos não foram os únicos trabalhos de Ramiro I em seus dias de monarca. No ano 846, o
general Al-Hakam atacou o Reino das Astúrias, qualificado mais uma vez de Galícia
903
.
A pacificação do reino coincide com a preparação para novas investidas contra o
território dominado pelos muçulmanos. Condições mais favoráveis para a reunião de forças
para o desenvolvimento de atividades de conquista territorial e pilhagens lançadas sobre as
ricas terras emirais. A superação das dificuldades iniciais do reinado de Ramiro I foi notável,
não interrompendo o processo iniciado por Afonso II. A intensidade dos ataques muçulmanos
são respostas proporcionais aos inconvenientes causados pelo monarca asturiano e seus
súditos. Aparentemente, devemos dizer, a capital do reino permaneceu intocada, dado que
pode vir a se constituir em uma prova da eficiência das práticas defensivas asturianas e da
ameaça que o reino passa realmente a ser das comarcas pertencentes ao Emirado de Córdoba.
Inserimos aqui mais algumas considerações de Charles Tilly acerca do papel da guerra no
processo de fortalecimento de entidades estatais. Segundo o sociólogo os governantes mais
poderosos tenderam a ditar as regras aos mais fracos que ou aceitam os ditames ou se aliam
para defesa
904
. Isto significa que os chefes mais poderosos tinham a capacidade de exigir a
participação daqueles que estão sob a sua influência:
A guerra e a preparação da guerra fizeram com que os governantes tentassem extrair
os meios da guerra de outros que detinham os recursos essenciais homens, armas,
provisões, ou dinheiro para comprá-los e que relutavam em ceder-lhes sem uma
forte pressão ou compensação
905
.
Tilly ressalta que ―dentro dos limites estabelecidos pelas exigências e remunerações
dos outros estados, a extração e a luta pelos meios de guerra criaram as estruturas
903
FERNANDEZ GONZALEZ, Francisco (trad.). Historias de Al-Andalus por Aben-Adharí de
Marruecos. Granada: Imprenta de D. Francisco Ventura y Sabatel, 1860, 1v., p. 172
904
TILLY, op. cit., p. 62.
905
Ibid., p. 62.
247
organizacionais centrais dos estados‖
906
. Reforçando suas bases políticas e sociais, o reino
pode manter suas ações conquistadoras sobre áreas outrora pertencentes aos monarcas
visigodos e repelir as anuais investidas muçulmanas. Tais avanços sobre o território
meridional garantiu o acesso a mais elementos provenientes dos antigos domínios visigodos,
favorecendo a aculturação das terras do Norte, mesmo com a morte de Ramiro I e durante o
reinado de Ordoño I, em 850. Os relatos das crônicas asturianas dão conta de informar sobre
expedições promovidas sobre territórios variados ao Sul das Astúrias. A Albeldense assinala o
sucesso sobre a conquista de Leão e Astorga, duas cidades fundadas quando da ocupação
romana na Península Ibérica.
Morton Fried nos adverte para o fato de haver uma relação direta entre a mior
intensidade das guerras e a maior complexidade das sociedades
907
. Segundo o antropólogo, ―é
a atividade guerreira que aumenta de freqüência à medida que as sociedades se tornam mais
complexas‖
908
. Isto significa que o exercício bélico tem a capacidade de reforçar as
desigualdades sociais e políticas existentes em um dado momento, servindo como
importante instrumento de manutenção desta divisão. Diferente das descrições das primeiras
conquistas militares dos primeiros governantes asturianos, podemos confiar na plena inserção
das zonas acima mencionadas por uma expressão bastante confiável, a forma verbal
populauit, ―povoou‖, no sentido não se fixar colonos ou grupos sociais em novas terras,
mas no de inserir tal localidade na rede política construída pelas Astúrias. Por sua vez, o ciclo
de Afonso III destaca a mesma situação, o que significa que, superando as barreiras naturais e
aproveitando a instabilidade política emiral, o novo rei, Ordoño I expandiu consideravelmente
o horizonte geográfico asturiano, empreendendo ações militares jamais praticadas pelos
primitivos asturianos que se confrontaram com Roma. De início, os acréscimos eram tímidos
e circunscritos às adjacências a Cordilheira Cantábrica, com Afonso II, mas principalmente
com Ramiro I e Ordoño I, as ações foram lançadas para muito além do solar cântabro e astur.
Ainda sobre o papel da guerra, Morton H. Fried indica que determinadores setores
tiram proveito das ações militares para adquirirem ―excedentes tanto de bens de produção
quanto de consumo‖
909
. A função econômica da guerra não está de forma alguma dissociada
dos objetivos econômicos, relacionam-se intensamente, fortalecendo as estruturas políticas e
os instrumentos de articulação política e social detidos pela autoridade asturiana. O
deslocamento de peças arquitetônicas, como o indicado nas páginas acima, compõe parte dos
906
TILLY, op. cit., p. 62.
907
FRIED, Morton H. Sociedades estratificadas. In: ________. , p. 211.
908
Ibid., p. 211.
909
Ibid., p. 211.
248
bens conseguidos pelas atividades predatórias. Todavia, como toda ousadia cristã reverte-se
ou em pilhagem ou em anexações territoriais, não poderíamos deixar de considerar suas
repercussões. Segundo o relato de Aben-Adhari do Marrocos, no verão do ano de 853, foi
realizada uma expedição contra a Galícia, Galiquia
910
. Notemos a continuidade do emprego
do nome ―Galícia‖ para identificar o conjunto do Reino das Astúrias. Para os cronistas árabes,
valia identificar o todo por uma de suas partes, preferencialmente a mais próxima e a que
estava efetivamente dentro da esfera de influência dos monarcas ovetenses. O avanço dos
exércitos emirais foi comandado por Muhammad Ebnu-l-Amir Abdi-r-rahman que atacou a
cidade de Leão
911
. Os seus habitantes, antecipando o terrível desfecho, resolveram evacuar
suas residências, deixando a região livre para os avanços muçulmanos, que se reverteram em
depredações, pilhagens de bens móveis e captura de cristãos
912
.
Eventos similares poderiam ser interpretados como um forte indício de fraqueza, fator
que ameaçava consideravelmente a preservação da autoridade dos reis asturianos. Todavia, tal
reflexão não se mostra de todo correta, pois os confrontos ocorridos dentro dos territórios do
reino não chegavam a desarticular a rede de auxílio político e militar cristão e nem debilitava
o reconhecimento do poder político dos senhores de Oviedo. Ao contrário, o que as narrativas
árabes tratam é de algo diametralmente oposto. Abén-Adhari, por exemplo, nos informa que
ainda nos tempos de Ordoño I, ocorreu uma revolta em Toledo:
E no ano 240 [junho de 854], o amir Muhammad saiu em pessoa contra Toledo no
mês de Muharram; e quando chegou, foi informado que o povo de Toledo enviara
mensagem a Ordon ben Adhefonx, senhor da Galíquia, nformando de seu apuro e
implorando seu auxílio; e enviou-lhes seu irmão Gatson com exército considerável
de cristãos. Chegando a notícia ao amir Muhammad que estava próximo de Toledo,
estudou manha e estratagema e adotou no peito uma grande resolução, e preparando
as tropas escondeu emboscadas nas imediações de Guada-Salit; depois foram
aprestadas as máquinas de guerra e se apresentou com os primeiros do exército em
reduzido número, o qual quando vieram as gentes de Toledo, deram notícia ao elche
do que havia visto de número escasso de muçulmanos, e se pôs em movimento o
elche cheio de gozo, posto que havia desejado o triunfo e a presa e aproveitar a
ocasião, mas quando chegaram a encontrar-se as duas multidões, saíram os
emboscados pela direita e pela esquerda, e seguiu a cavalaria em esquadrões que
perseguiam a esquadrões, até que cobriram aos inimigos (...)
913
.
A rebelião berberisca não foi a única manifestação de uma solicitação de auxílio
militar aos reis das Astúrias. No ano 868, um dos condes de Álava, de nome García, nesta
época estava recebendo apoio de ―Ordon, senhor da Galiquia
914
. Devemos perceber que a
910
Aben-Adhari, op.cit., p. 178.
911
Ibid., p. 178.
912
Ibid., p. 178.
913
Ibid., p. 190-191.
914
Abén-Adharí, op. cit., p.195.
249
formação de um poder político nas terras nortenhas havia alcançado um alto grau de
maturidade, chegando ao ponto de ser reconhecido como um poder constituído e que tinha
plenas condições de fornecer ajuda àqueles que lhe dirigiam a suplica. Paralelamente a isto,
podemos agora notar com maior nitidez a existência de chefes regionais, condes, que são
senhores de suas próprias terras, pequenos centros gravitacionais que, mesmo autônomos,
recorriam aos reis asturianos em momentos de grave ameaça a seus domínios.
Ocasionalmente, como veremos no capítulo seguinte, tais condes estarão anexados ao
conjunto maior da rede de articulações políticas do Reino das Astúrias, sendo mais um de
seus súditos. Temos condições plenas de identificar as Astúrias como um vigoroso centro de
poder, dotado de uma autoridade especial e totalmente conhecida pelos demais agentes
históricos da Península Ibérica. Este núcleo de tomada de decisão influenciava sobre de
alguma maneira os territórios fora de sua fronteira.
Expedições punitivas de verão são uma constante nesta época, produzindo, ao invés de
dissensão entre os subordinados dos monarcas de Oviedo, mais justificativas para que estes se
mantivessem sob sua guarda e proteção. O relato de Abén-Adharí nos informa que no ano 869
com base no texto original perdido de Ar-Razi o emir dos crentes atacou novamente o
―país da guerra‖, terra dos cristãos
915
. Todavia, o cenário nortenho voltou a se modificar,
tornando-se mais favorável aos reis asturianos. Segundo ainda Abén-Adharí, o governador de
Tseguer, comandante da nova expedição, Abud-l-lah ben Yahia desejou informações sobre
uma melhor entrada na terra dos galegos, Galiquies
916
. As dificuldades para avançar sobre
território cristãos mostrou-se mais difícil, demandando a procura de novas rotas de acesso.
Outras regiões, conforme podemos verificar nos texto de Abén-Adharí, passaram a ser mais
assediadas, como Álava e Al-Quilé, zonas dotadas de poderes políticos próprios. A
capacidade de resistir às investidas das hostes emirais são mais indícios da eficiência da
construção das relações políticas asturianas, dotada de habilidade para erigir uma rede
defensiva mais segura.
Continuemos a aproveitar as informações legadas por Abén-Adharí do Marrocos:
E no ano 249, Abdu-r-rahman, filho do emir Muhammad, saiu contra os castelos de
Álava e Al-Quilé, e era alcaide Abud-l-malic ben Al-Abbés e entrou e deu morte aos
homens, e destruiu a fábrica e se estendeu por suas planícies de lugar em lugar
assolando campos semeados e cortando frutos. Com este motivo fez sair Ordon ben
Adhefonx a seu irmão ao desfiladeiro de Al-Feg para que se corta-se o passo aos
muçulmanos, acometendo-os ali. Mas se adiantou Abdu-l-malic e os bateu no
desfiladeiro, até que os fez fugir e os atacou com golpes de espada e os dispersou,
depois chegou as tropas restantes, e derramou seu sangue impunemente a cavalaria
por todos os lados e resistiram os inimigos de Deus com grande sofrimento e ao
915
Ibid., p. 195-196.
916
Ibid., p. 196.
250
final, foram postos em fuga, e Deus concedeu aos muçulmanos as costas deles e
fizeram súbita matança e foram mortos dezenove condes de seus grandes alcaides
917
.
No ano 871, os ataques levados até Álava e Al-Quilé forçaram Ordoño I a empreender
uma resposta. Prestemos atenção nestes dados obtidos com a narrativa: Galiquia, ou melhor, o
Reino das Astúrias não foi alvo da campanha muçulmana. A ofensiva liderada por Abdu-r-
raman não atingiu um grande centro urbano, como Leão ou Astorga, ou um conjunto
defensivo de castelos, mas sim centros produtores rurais alaveses e castelhanos. Os territórios
setentrionais não foram tocados. Embora os exércitos asturianos tenham sido vencidos e
postos em fuga, podemos notar que a atuação de Ordoño I se fez enquanto defensor de sua
esfera de influência. A importância dada ao local se pode perceber pela presença direta do
monarca juntamente com seu irmão, que não foi nomeado.
Outro ponto de grande importância no que diz respeito à organização político-militar
daqueles tempos é a menção a condes capturados e mortos durante o embate. Podemos agora
notar a existência de uma empreitada militar coordenada e ampla na qual tomavam parte não
somente o monarca e sua parentela, como também seus súditos mais eminentes, condes,
juntamente, como deduzidos, com seu séquito armado pessoal. A intervenção asturiana em
outros campos continuou a ser sentida, como em 882, quando o general Al-Mundhir ben Al-
Amir Muhammad atacou Saragoça e Pamplona
918
e na rebelião contra o emir Hixem
919
. É
claro que tais intromissões cobrar o seu preço, como aconteceu em 886, quando o general Al-
Biré ben Malic entrou com tropas árabes nas Astúrias e em 888, quando o Emirado de
Córdoba produziu-se novos ataques contra os soberanos asturianos
920
.
Quanto às porções orientais do Norte peninsular, destacamos as campanhas sobre
Tude e Amaya, de acordo com a Albeldense. A liderança de Ordoño, segundo as crônicas
asturianas, é preponderante nos assédios e nos demais confrontos militares. Todavia, tal
protagonismo não é unânime. Vejamos as brevíssimas notícias nos Annales Castellanos
Primeiros e Annales Castellanos Segundos, respectivamente:
Na era DCCCLXVIII o conde Rodrigo povoou Amaya e rompeu Talamanca
921
.
Na era DCCCXXVVIII o conde Rodrigo povoou Amaya
922
.
917
Abén-Adharí, op. cit., p. 196.
918
Ibid., p. 201.
919
Ibid., p. 203.
920
Ibid., p. 204.
921
Anales Castellanos I. In era DCCCLXVVIII · populavit Rudericus commes Amaya et fregit
Talamanka. In: GÓMEZ-MORENO, Manuel (ed.). Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia.
Madrid , 1917.
922
Anales CAstellanos II. In era DCCCLXXVVIII populavit Rudericus comes Amaia. In: GÓMEZ-
MORENO, Manuel (ed.). Discursos leídos ante la Real Academia de la Historia, Madrid , 1917.
251
O primeiro fragmento é uma obra caracterizada pela sua simplicidade textual e pela
proximidade que o relato possui, segundo Pérez de Urbel, dos acontecimentos que procura
preservar
923
. A data da sua composição parece ser pouco após 939, ano em que finaliza o
último acontecimento conservado no texto. Já o segundo fragmento procede dos Anales
Castellanos Segundos, também conhecido como Anales Complutenses, que corresponde à
continuação da primeira narrativa, tendo sido produzida em 1126
924
. É a primeira vez que
fazemos uso de uma fonte cristã, não asturiana e que propõe outro ângulo sobre os avanços
cristãos sobre território muçulmano. Identificamos a atuação de outro guerreiro conde
Rodrigo, comes Rudericus, que teria subjugado a cidade de Amaya, que na versão rotense do
ciclo de Afonso III, é qualificada como Amaya Patricia. Os Anales Castellanos I aponta ainda
para Rodrigo a responsabilidade pela tomada de outra cidade, Talamanca. Não é demais dizer
que as crônicas asturinas creditam a conquista a Ordoño. Como estas crônicas têm por
objetivo preservar e enaltecer as façanhas dos monarcas asturianos, não é de se estranhar que
se faça a omissão ao conde castelhano. Mas atribuir as conquistas territoriais ao monarca
asturiano significa que seu êxito se produziu por meio de seus colaboradores nas terras
orientais do reino, ou seja, os condes estavam inseridos na rede de articulação política
mantida pelos grandes senhores ovetenses.
Abén-Adharí não deixa de registrar também a protagonismo de outros grandes
guerreiros nortenhos, em 873, chagando a nomeá-los:
Rodrigo de Al-Quilé, Gundixalb de Burgia, Gomes de Misanica (...)
925
.
Neste mesmo ano o cronista árabe narra a campanha produzida na região de Castela,
mais precisamente contra a fortaleza de a Al-Mal-leha, uma das
mais formosas obras de Ludheriq e assolou o que havia nos arredores e arruinou
seus monumentos, logo caminhou adiante propondo-se a sair a Feg Al-Cagüiz, e se
apartou do exército, e se adiantou Ludheriq com suas tropas e exércitos, e acampou
no fosse vizinho aos pozo (Maracagüin) e Rudheriq havia procurado fazer
inacessíveis durante os anos em que fez trabalhar as gentes de seu senhorio e
havendo cortado pela parte do monte escarpado, foi levantado sua borta e corta
assimismo a senda que à conduzia
926
.
Estamos tratando aqui do conde Ludheriq, Rodrigo de Castela, citado anteriormente
pelos anais castelhanos. A crônica árabe indica que a região possui como principal
representante o referido conde sem, contudo, desmerecer a atuação de Ordoño I. De acordo
923
PEREZ DE URBEL, Fray Justo. Las fuentes, p. 15.
924
Ibid., p. 15.
925
Abén-Adharí. Op. cit., p. 197.
926
Ibid., p. 197.
252
com que podemos obter desta fonte, percebemos que o monarca asturiano tem sua autoridade
reconhecida pelos castelhanos no momento em que as expedições muçulmanas foram
efetuadas. Rodrigo é autoridade suprema de seu condado, mas responde a uma instância
superior de dominação. Os anais, todavia, não fazem uma oposição entre monarcas asturianos
e condes castelhanos, chegando a mencionar, inclusive, os anos de reinado dos monarcas
asturianos paralelamente às ações castelhanas. A referência de datação é o ano de reinado
asturiano. Cogitamos, como muitos outros autores, que os condes castelhanos deste tempo
sejam colaboradores dos monarcas de Oviedo, apesar do crédito dado a Rodrigo.
Nesse ponto se fazem necessárias considerações teóricas acerca da relação de
cooperação militar com os intentos de manutenção da estrutura política vigente. Um dado que
chama atenção nas pesquisas de Charles Tilly refere-se à percepção de que todos que
concentraram poder de coerção tenderam a expandi-lo sobre outras populações e seus
recursos
927
. O sociólogo americano afirma que toda forma de governo para ter sucesso em sua
expansão e enfrentar os seus limites originais, precisou fazer ―uma combinação de conquista,
proteção contra antagonistas poderosos e coexistência com vizinhos cooperativos‖
928
. Não
devemos radicalizar demais esta perspectiva, pois, como aponta os antropólogos Marc
Swartz,Victor Tuner e Arthur Tunden, o direcionamento das ações políticas envolve outros
elementos além da força. Ela é um importante instrumento de dominação, mas nunca pode ser
visto como único meio da sustentação nos sistemas política
929
. ―A ‗legitimidade‘ é um tipo de
sustentação que se deriva não da força ou da sua ameaça, mas dos valores prendidos pela
formação dos indivíduos, influenciando, e sendo afetado por extremidades políticas‖
930
.
Ocasionalmente os condados orientais e ocidentais se insurgiam contra os senhores de
Oviedo, contudo, quando a monarquia lograva aplicar meios coercitivos ou se tornar um
elemento de interação entre os guerreiros, o êxito nas ações defensivas era mais significativo.
Os resultados desta união de interesses favoreciam o enriquecimento daqueles envolvidos nos
feitos expansionistas. No que tange a formação da história ibérica do pós-711, a cristalização
de um poder interventor na sociedade, segundo Mínguez, envolve a participação dos
monarcas astures em assuntos até então não lidados por eles, mesmo que por via de seus
delegados, que expressariam seu caráter público
931
. As ações levadas a cabo por condes
927
TILLY, op. cit., p. 61.
928
Ibid., p. 61.
929
SWARTZ, Marc J., TUNER, Victor W., TUDEN, Arthur. Introduction. In: ________ (ed.). Political
anthropology. Nova York: Aldine, 1979, p. 11.
930
Ibid., p. 11.
931
MÍNGUEZ, José Maria. La cristalizacion del poder político em la epoca de Alfonso III. In:
FERNANDEZ CONDE, Francisco Javier (org.). La epoca de Alfonso III y San Salvador de Valdedios:
253
galegos e castelhanos teriam procedido enquanto parte constitutiva de uma esfera superior de
decisão, que valida as ações coercitivas paralelas. Tais ações não têm caráter privado, mas
corresponde a ações de poderes delegados de caráter público
932
. As ações régias não se
limitam apenas as atitudes povoadoras
933
. Para esta linha de raciocínio:
O repovoamento, no que tem de intervenção oficial do poder político consiste, mais
do que na criação de novos núcleos de povoação, no reconhecimento formal dos
existentes e em sua integração em uma estrutura e em um espaço politicamente
definidos
934
.
As ações de repovoamento têm um caráter de constituição e existência de um aparato
político e administrativo, que se constitui como um instrumento de articulação e integração de
novos grupos humanos e de novos espaços, superando assim as antigas atribuições da
caudilhagem astur
935
. Na visão de Charles Tilly, o ordenamento e a exploração do espaço é
uma das conseqüências da aplicação da coerção. Isto significa que ―quando [os guerreiros]
conseguem subjugar os seus antagonistas fora ou dentro do território que reclamam, os
aplicadores de coerção julgam-se obrigados a administrar as terras, os bens e as pessoas que
conquistaram‖
936
. No capítulo seguinte, trataremos do que nós entendemos sobre poderes
públicos, já que a sua caracterização não foi elaborada por José Maria Minguez, que restringiu
a empregar o termo aos instrumentos de dominação e articulação política da monarquia astur-
leonesa. Acreditamos que seja necessário debater um pouco nas próximas páginas desta tese o
que vem a ser a diferenciação entre a esfera pública e privada, buscando identificar o que teria
sido exatamente a configuração dos poderes blicos no alto-medievo asturiano. Contudo,
não se pode duvidar da eficácia política dos feitos militares asturiana, o que demonstra um
incrível fortalecimento do reino. Para Hermann Heller, no que tange a força da ação política,
elas serão mais firme quando conseguir fazer com que seja reconhecida a ―pretensão de
obrigatoriedade para as suas próprias idéias e ordenações normativas e para as regras do
costume, moral e direito por êle aceitos e que são, ao mesmo tempo, o seu fundamento‖
937
.
A identificação de governantes destas cidades como ―reis‖ são indícios indiretos da
fragmentação política e territorial das zonas periféricas do Emirado de Córdoba daqueles
tempos. Enquanto que no tempo de Afonso II o governador Mahamut foi perseguido pelas
Congreso de Historia Medieval Oviedo (27 setiembre 2 Octubre) 1993. Oviedo: Universidad de Oviedo,
1994, p. 74.
932
Ibid., p. 74.
933
Ibid., p. 74.
934
Ibid., p. 74-75.
935
Ibid., p. 75.
936
TILLY, op. cit., p. 68.
937
HELLER, op. cit., p. 250.
254
forças de Córdoba, Mozenar e Muz puderam lograr manter suas pretensões autonomistas a
revelia das autoridades emirais. Contudo, como resultado negativo, tal independência
favoreceu o sucesso dos ataques cristãos. A Chronica Albeldense limita-se a narrar estas
vitórias contra os sarracenos, mas o ciclo de Afonso III prodigaliza-nos com outros dados que
reforçam a intensidade das expedições asturianas no interior das fronteiras do Emirado. Não
há como se comparar estas campanhas militares com aquelas empreendidas pelos povos
nortenhos contra Roma e o Reino dos Visigodos em um passado distante. Uma prova disto
é o ataque à cidade de Toledo perpetrado por Ordoño I. Teria ocorrido algo também jamais
praticado pelos primeiros astures, a pacificação pela força de um território vizinho, mais
precisamente a Vascônia.
Como pode ser notado, não temos dedicado uma linha para o esforço de ocupação de
espaço por parte dos camponeses. A documentação asturiana coligida por Antonio C. Floriano
contem diversos exemplos de arroteamentos e ocupações de terras ganhas aos Islão. Estas
fontes notariais ao informar os nomes dos seus ocupantes não empregam quaisquer termos
que pudesse especificar a origem social deles, mas as expressões contidas nos cartulários nos
revelam um esforço familiar ou grupal que efetuado por trabalhadores rurais livres e atuando
por conta própria. Reconhecemos a importância destes atores históricos totalmente omitidos
pelos cronistas alto-medievais, contudo, o que está em jogo aqui não é propor uma
investigação sobre o protagonismo da expansão territorial, mas sim verificar de que maneira
os monarcas asturianos tiraram proveito deste tipo de movimento. Podemos apontar para tal
fenômeno de crescimento populacional e deslocamento sobre terras ainda não muito
aproveitadas como um processo de infiltração da interferência régia nas terras recentemente
adquiridas. Se por um lado, a monarquia ovetense não deteve o monopólio da conquista de
terras ou mesmo de sua organização após a sua aquisição, por outro podemos dizer que a
atuação dos súditos asturianos contribuiu em muito para o processo de fortalecimento da
monarquia.
A própria produção dos cartulários são bastante significativos ao identificarem o
período de reinado de um dado monarca ou atuação de um certo conde. Nomear tal rei ou
conde é identificar a quem se deve prestar honrarias. Mesmo que simbolicamente, tais
expressões acabam por nos mostrar como a realeza asturiana tendia a se irradiar. Se a guerra
direta contra as hostes emirais era um grande instrumento de demonstração de poder e de
afirmação de autoridade, o esforço do camponês em desbravar terrenos tornava possível a
expansão da própria monarquia.
255
O camponês, neste cenário, seria uma espécie de agente régio, levando o nome do
reino para terras cada vez mais longínquas. Como poderemos verificar no próximo capítulo,
as fórmulas contidas nas cartas asturianas vão-nos apresentando os meios pelos quais o
aparelho político oventense tende a se fazer reconhecer. Todavia, por hora, manteremos aqui a
preocupação em se definir minimamente o que deveria ser a esfera de influência asturiana.
Em linhas gerais, temos a obrigação em reconhecer a informalidade dos expedientes levados a
cabo pela monarquia, não qualquer sistematização no que tange a definição de obrigações
ou concessões de privilégios. Tal como o problema sucessório, que por longos anos não foi
nem um pouco consolidado, pelo menos, até Ramiro I, não temos um modelo único de
configuração de uma realidade política.
Como dissemos logo acima, por exemplo, a realeza asturiana não detinha prioridade
no processo de ocupação de novas terras, mas que os camponeses detinham um papel de
bastante importância. Estas labutas esparsas pelo aproveitamento do espaço para a produção
rural não se faziam, entretanto, sem algum tipo de respaldo, uma cobertura que fornecesse
segurança em momentos de crise. Não podemos também deixar de considerar que tal atuação
camponesa poderia ser realizada se o terreno que fosse ocupado pertencesse a uma área
minimamente segura. Era necessária a existência de uma esfera superior mantenedora da
ordem e que tinha plenas condições de satisfazer as necessidades defensivas camponesas.
Estamos falando aqui de um esforço conjugado, tratamos de uma interação entre poder real e
trabalho camponês. O rei tiraria proveito da ausência de uma aristocracia e traria para seu
campo gravitacional os novos moradores das fronteiras.
O espaço político, o território do reino, se construiu com os arroteamentos dos
camponeses livres, com o trabalho dos mosteiros e casas religiosas fundadas e com
expedições conquistadoras de figuras aristocráticas como os condes castelhanos e galegos. A
partir do momento que ambos atuam dentro dos limites impostos pela monarquia, podemos
dizer que pode ser encontrada a esfera de influenciada mesma. Conforme pudemos ver
pelas fontes narrativas árabes e asturianas, existiam momentos que o chamado do rei era
respondido por habitantes vindos de outras partes da Península Ibérica, como a Vascônia.
Notamos que em momentos de sublevação e guerras internas, alguns monarcas puderam
encontrar refúgios em regiões afastadas da capital do reino, como Álava, no tempo de Afonso
II, ou Castela, como no começo da revolta de Nepociano contra o rei Ramiro I. Mais do que
terras, o domínio do reino está na capacidade do rei em se impor como autoridade máxima e
reconhecida, capaz de solicitar eficientemente o auxílio de seus combatentes na hora de maior
necessidade. A influência se faz sobre as pessoas e grupos que compõe a configuração do
256
Reino das Astúrias. É algo bastante oscilante e inseguro, dada a sua natureza informal, mas é
o meio pelo qual pode ser realizada a estrutura política asturiana. A consolidação deste
cenário, contudo, não significa em hipótese alguma a inexistência de conflitos e ameaças a
ordem. As rebeliões aqui apresentadas são um forte exemplo desta sociedade conflituosa. No
próximo capítulo poderemos ver que esta tendência se manterá, mas não será encarada como
uma ameaça a perpetuação do reino asturiano.
257
5. DELIMITAÇÃO DE UM REINO :
5.1. Consolidação de uma entidade política:
Abordar a constituição plena do Reino das Astúrias é perceber o desenrolar de um
processo. Não é possível defender a existência de um quadro já consolidado quando as
próprias fontes nos trazem um cenário de reconstrução e de luta pela preservação de entidades
ainda timidamente reveladas. Se as primeiras sete décadas da Reconquista foram marcadas
pela incipiência do aparato político asturiano e pela total obscuridade no que se refere às
articulações sociais e políticas, o período seguinte, principalmente após Silo, Mauregato e
Afonso II, nos traz elementos que favorecem a ampliação da análise. Encontramos a partir daí
uma maior profusão de documentos, tanto escritos, notariais, epigráficos e construções
eclesiásticas, que permitem uma caminhada menos insegura no terreno brumoso da Alta Idade
Média asturiana. A estabilidade institucional e o enquadramento de um conjunto geográfico
bastante amplo no Norte da Península Ibérica contribuíram para a criação de um ambiente
igualmente mais constante. A segurança gerada pela cristalização de um cenário sócio-
político permitiu a produção de mais testemunhos.
Temos trabalhado até agora com a formação e consolidação de um centro de tomada
de decisão política. E, apesar do absurdo silêncio documental, tal centro de poder legou a
posteridade marcas inapagáveis de sua existência. Por mais que a documentação notarial dos
primeiros tempos seja muito superficial, os esforços construtivos preservados evidenciam a
presença de uma entidade superior, dotada informalmente de meios de coerção e articulação
que extraía da sociedade os meios necessários para sua conservação. Tal situação era
possível pela elaboração de uma estrutura dinâmica que investia intensamente no monopólio
de autoridade desta mesma entidade. Não estamos falando da passagem de uma sociedade
tribal para uma sociedade política, pois esta já existe desde 711. Estamos apontando para uma
formação de um órgão poderoso, reconhecido como tal e com enorme capacidade de atrair
para si as atenções e os melhores instrumentos de atuação política. Não abordamos apenas
diferenciações quantitativas entre aquela que se tornou a casa monárquica e as outras famílias
aristocráticas. Se fosse apenas isso, analisaríamos apenas a desproporção no que tange à
criação de mosteiros ou às doações, ao desenvolvimento de séquitos armados e de grupos de
fiéis seguidores. Se nos restringíssemos a isto, não teríamos condições de diferenciar a
monarquia da aristocracia, a primeira seria uma simples continuação da segunda. Procuramos
258
afirmar até agora que, apesar das similaridades, a realeza, mais precisamente o monarca, foi
uma figura detentora de prerrogativas exclusivas.
Por mais que a maioria dos casos de sucessão no trono, por exemplo, não nos revele
um modelo ou sistema de ascensão ao núcleo de tomada de decisão política, aquele que
tomava o título de rei tendia a advir de um limitado e restrito círculo, de uma determinada
parentela, mesmo que o acesso a ela se fizesse por associação. Com o tempo, podemos
perceber a existência de casos no século IX que nos mostram uma competição pelo ápice do
centro de poder diferente do que havia sido produzido no século VIII. Na centúria
precedente, a disputa ocorreu entre os filhos do monarca Afonso I em um momento em que a
própria autoridade régia ainda se encontrava em processo de construção, estágio ―prematuro‖
no qual concorria com estruturas similares existentes no Norte da Península Ibérica. Neste
cenário inicial subsistia um mosaico de poderes ainda não submetidos ou influenciados por
uma dominação superior. De Álava até a Galícia, as manifestações externas de resistência aos
avanços asturianos eram freqüentes. A expansão territorial asturiana foi incorporando grupos
de camponeses, comunidades monásticas, famílias aristocráticas e antigas sés visigóticas
situadas na Galícia.
Cooptadas ou colaboradoras ativas, as regiões anexadas no processo de crescimento
territorial asturiano cumpriram um papel muito importante na criação da rede de súditos dos
reis de Cangas de Onís, Právia e Oviedo. Quanto mais o Reino das Astúrias se ampliava,
maiores modificações se produziam no seu interior. Precisava se adequar às novas realidades
e dinâmicas sociais. A construção do poder régio foi influenciada pelo seu próprio
crescimento e pela necessidade de negociar com novos integrantes de seu território. Em fins
do século VIII, o Reino das Astúrias já era uma realidade configurada, a despeito das
transformações que ainda se processariam. Por mais que a estrutura de comando estivesse
vigorando, ainda era necessário salvaguardá-la do inconveniente de algumas usurpações. A
unção gia, como instrumento de legitimação, cumpriu o seu papel no reinado de Afonso II,
quando este retornava de seu exílio. Com este monarca podemos definir um perfil bastante
diferenciado dos reis em relação aos demais aristocratas do reino. Uma distinção que antes
decorria, sobretudo, de referências quantitativas, com o ―rei casto‖ passou a ser caracterizada
com elementos que se tornaram atribuições particulares da figura régia, inerentes a própria
atuação monárquica.
Se não podemos falar do monopólio dos meios de coerção, de empreender a guerra ou
de conquistar terras, podemos, todavia, muito bem constatar que à realeza era reconhecida a
autoridade de realizar concílios. O primeiro deles, o Concílio d1e Oviedo, realizado no ano de
259
811, correspondeu à materialização da monarquia como figura máxima das terras do Norte.
Não obstante a interpolação promovida por Pelágio de Oviedo ou o descrédito de suas atas
junto aos pesquisadores de uma maneira geral, a reunião do concílio nos tempos do rei
Afonso II nunca foi posta em dúvida. A sua realização significou a reestruturação das
hierarquias eclesiásticas sob os auspícios da monarquia, como ocorrera antes no reino
toledano. Outros concílios parecem ter sido organizados posteriormente, como os de Astorga,
sob a proteção do rei Ramiro I, em 839; o de Oviedo, em 872, o de Compostela, em 900, e o
de Oviedo, em 901, no reinado de Afonso III
938
. Esta situação era, até aquele momento,
impraticável, que a instituição monárquica ainda não havia alcançado um grau de
maturidade ou de ascendência para aqueles que habitavam sob sua esfera imediata ou nas
adjacências. Por mais que o período de Silo e de Mauregato apresente sinais de convergência
da realeza com grupos religiosos, somos obrigados a reconhecer que tal relação ainda era
bastante pontual.
Para alguns, a confluência entre a monarquia asturiana e a Igreja auxiliou
sobremaneira a legitimidade da atuação dos soberanos ovetenses. Nem ao menos a cerimônia
de unção substituiu a sacralidade de origem pagã dos reis asturianos por uma vinculada ao
culto cristão. Em primeiro lugar, isso é questionável em razão da repercussão do próprio rito,
não constatado em inúmeras situações posteriores, conforme podemos notar nas crônicas
asturianas e na Crônica de Sampiro. Em segundo lugar, estamos falando de um processo, de
um movimento de transformação no qual a monarquia ainda estava se constituindo. Este
aspecto de construção, transitório e inacabado, é um dos fatores preponderantes para se
desconsiderar a existência de uma imagem sacralizada da pessoa real ou de uma sacralidade
atrelada à essência do rei. A elaboração deste tipo de legitimação é fruto de uma experiência
de longa data, coisa que não corresponde à situação asturiana.
Por mais que a monarquia fosse uma referência necessária à construção das
associações políticas supremas nas Astúrias, ela ainda não era um alvo afastado das
pretensões de determinados intrusos. Ramiro I precisou afirmar seu domínio empregando a
força contra a usurpação de Nepociano e seus correligionários, aqueles que desrespeitaram um
projeto que tentava se cristalizar, ou melhor, os desígnios daqueles que buscavam restringir o
acesso ao poder àqueles que saíssem diretamente das fileiras de uma família. Esta família e
938
Não temos a pretensão de abordar o conteúdo e as discussões referentes a estes concílios asturianos,
apenas tomamos a liberdade de mencioná-los como índices bastante ilustrativos do poder de atração que a
realeza asturiana passou a controlar. O monarca é o único dotado de poderes para convocar tais reuniões. Não
dispomos de subsídios para avançar nas deliberações de cada um destes concílios, lembrando, ainda, que não
compõe nosso objetivo geral ou específico tratar de forma aprofundada da formação da hierarquia eclesiástica no
período da Reconquista.
260
seus ramos colaterais e agregados construíram sua dominação com o tempo, com energia e
coerção, no início, passando a agregar tradição e costume como bases de sustentação de sua
posição. Somente as experiências cotidianas e freqüentes garantiam a manutenção desta
autoridade à qual se opunha muitas vezes resistência, como ainda ocorria na passagem do
século IX para o X. O edifício político ainda não estava acabado: impunha-se circunscrever a
área de atuação dos atores históricos ibéricos, suas regras gerais e suas limitações. Sobre tais
aspectos nos debruçaremos nas páginas que se seguem.
5.2. Refletindo sobre a natureza dos cartulários asturianos:
Quando atingimos o reinado de Afonso III, percebemos que a quantidade de vestígios
notariais e epigráficos aumenta consideravelmente em relação aos reinados precedentes. O
novo e amadurecido ambiente é explicado pelo fato de os esforços do rei Afonso e de seus
sucessores imediatos, segundo José María Mínguez, terem logrado empreender ―feitos de
importância fundamental como [foram] a consolidação da monarquia como instituição
política superior à simples chefatura militar, o aperfeiçoamento da estrutura político-
administrativa e a perfeita definição do espaço político astur-leonês‖
939
. A despeito dos
graves problemas referentes à conservação de fontes escritas estabelecidas em suportes
bastante perecíveis, devemos nos curvar às limitações de nosso ofício e nos debruçar sobre os
parcos dados que ainda podemos manusear. Não consideramos viável a prática de uma análise
serial rigorosa ou mesmo necessário o investimento feito com o intuito de quantificar
informações minuciosamente oriundas de fontes cuja principal característica é o seu número
restrito. Sendo assim, mais do que quantificar, lançamo-nos em um esforço mais depurado.
Devemos nos preocupar em encontrar referências díspares em meio a uma massa de dados
repetitivos e seriados. Aquilo que destoa em meio ao similar e monótono será o indício com o
qual trabalharemos.
Tomemos como referência as fontes de natureza notarial coligidas por Antonio C.
Floriano referentes ao período asturiano. Sem nenhuma exceção, todos são documentos de
natureza privada, e, em essência, fontes do direito privado. Estamos diante de textos jurídicos
configurados como cartas de compra e venda, doações simples, doações piedosas para a
remissão de pecados de vivos e mortos, dotações e fundações de igrejas, transmissão de
propriedades e direitos sobre as mesmas e sobre aqueles que nela habitavam.
939
MÍNGUEZ, Jo Maria. Consolidación y expansión de las sociedades del norte peninsular. In:
________. Historia de España II: las sociedades medievales, 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 92.
261
Nenhum dos documentos aludidos é, por natureza ou origem, referente ao domínio do
direito público, mas sim algo relativo a acordos firmados entre pessoas privadas, delimitando
a atuação e os poderes de cada um em um negócio. Acerca de um longo período de tempo os
únicos documentos jurídicos preservados foram estes contratos privados. Podemos vislumbrar
uma pálida e delicada presença do direito tardo-antigo, mas, de qualquer maneira, nada que
testemunhe diretamente a presença do direito público ou dos poderes públicos. Tal situação
deveria impor-nos uma séria restrição a nossa proposição de trabalho, mas não foi este o caso.
A parca ou nula existência de documentos jurídicos de natureza pública não é um traço
peculiar à história das Astúrias do período, nem ao menos algo restrito à Alta Idade Média de
uma maneira geral. O direito escrito que serviu de base, inspiração ou referência e que
rotulamos de Direito Romano não era caracterizado por sua ampla produção de fontes de
direito público, ao contrário, as fontes por excelência do direito são fontes do direito
privado
940
. Desde as chamadas Leis das Doze Tábuas, o campo do direito formalizado que
mais se destacou na Roma Clássica ou na Roma Tardo-Antiga foi o direito privado:
instituições de direito privado que deram origem, em diversos países europeus, ao Direito
Civil, fundamentalmente empregado para gerir relações entre homens ou entre homens e bens.
Nem mesmo no Baixo Império Romano, em pleno processo de concentração de poder
da máquina pública romana ou da monopolização da atividade legislativa, encontraremos uma
grande profusão de textos formais dedicados ao campo público. Uma ou outra constituição
imperial poderia contradizer tal constatação, contudo, isto era a exceção, o a regra, mas um
desvio dentro de um conjunto maior de dados. Estas características foram legadas ao Ocidente
Medieval, pelo menos no que se refere à Europa Continental, em especial nas terras banhadas
pelo Mar Mediterrâneo mais precisamente, marcadas por um processo muito mais profundo
de romanização.
Em meio a este cenário constituíram-se os chamados Reinos Romano-Germânicos,
período no qual podemos constatar a preponderância na produção de fontes do direito
privado, caso que possibilitou o desenvolvimento da crença de que os povos de origem
germânica eram destituídos da capacidade de diferenciar o campo público e do privado.
Historiadores como Michel Rouche destacam o quanto os germanos estavam alheios às
abstrações e refinamentos das construções jurídicas e políticas romanas
941
. Ao abordar a
940
BRETONE, Mário. Direito e história. In: ________. História do direito romano. Lisboa: Estampa,
1990, p. 16.
941
ROUCHE, Michel. A vida privada na conquista do Estado e da sociedade. In: ARIÈS, Philippe,
DUBY, Georges (dir.). História da vida privada: Do Império Romano ao ano mil. São Paulo: Cia. das Letras,
2007, 1v., p. 405.
262
perspectiva personalista das leis germânicas Rouche, para comprovar o quanto os bárbaros
organizavam suas vidas e a sociedade a partir de uma ―postura privatista‖, em oposição à
tradição universalista romana, chega a citar o fato de os direitos germânicos possuírem,
preponderantemente, leis que tratam de questões privadas
942
. Na lei sálica, por exemplo, os
parágrafos que tratariam do direito público, no que tange aos direitos do rei e ao fisco, são
confundidos com os direitos das pessoas
943
. Em sentido contrário, entretanto, ―o Código
Teodosiano, promulgado em 438, comporta em dezesseis livros algumas dezenas de leis; a
metade do livro VIII e o livro IX são consagrados ao direito privado‖
944
. Todavia, estamos
tratando de uma sociedade, como identificaria Norberto Bobbio, marcada pelo primado do
privado, o que se relaciona com a expansão do direito romano no Ocidente: ―o direito
chamado das Pandectas é em grande parte direito privado, e as suas instituições principais são
a família, a propriedade, o contrato e os testamentos‖
945
.
Algo que não pode ser observado no conjunto do texto deste medievalista é o fato de
que também os romanos, como o dissemos, não eram especialistas na redação de fontes do
direito público. Parece-nos que se ignora tal dado, o que reforçaria os aspectos rudes e
bárbaros de povos como francos, burgúndios e visigodos. Ignora-se também o avançado
estágio de patrimonialização existente no próprio Baixo Império Romano. Por mais paradoxal
que esta afirmação possa parecer, foi justamente na época em que o imperador formou sua
guarda pessoal de modo similar ao comitatus germânico, que concentrou a sua administração
em seu palácio e dividiu o império entre seus herdeiros, que surgiram fontes com um perfil
mais voltado para o direito público ou para a esfera pública de uma maneira geral. Estabelecer
o direito deixava de ser apanágio de juristas ou de jurisconsultos integrantes do aparelho
estatal, e que agiam com alto grau de autonomia, e passava para as mãos de um conselho
mantido diretamente pelo Estado Imperial que ditava as diretrizes a serem seguidas.
Outro ponto que gostaríamos de abordar é o fato inquestionável de que o Estado
Romano estava imbuído da consciência da separação entre a esfera pública e a privada. De
uma maneira bastante ampla, concede-se à Civilização Romana os fundamentos de toda
instituição jurídica ocidental, ainda que mais recentemente tenha evidenciado-se a
especialização romana em direito privado. Contudo, se pretendemos avançar na identificação
de uma esfera pública nos primeiros séculos da Reconquista, torna-se necessário refletir sobre
a diferenciação desta esfera em oposição à privada. De uma maneira geral, o que viria a ser a
942
ROUCHE, op. cit., p. 408.
943
Ibid., p. 408.
944
Ibid., p. 408.
945
BOBBIO, op. cit., p. 182.
263
esfera pública? Segundo Norberto Bobbio, dois trechos do Corpus Iuris Civilis definem os
significados de público e privado [em Institutas e em Digesto]. Ambos os conceitos foram
longamente utilizados pelo pensamento Ocidental, sem apresentar qualquer grande
alteração
946
. A dicotomia entre eles foi objeto de rios campos de estudo, como a história, o
direito e a sociologia. A grande dicotomia pode ser compreendida por que: a) os elementos
contidos em uma das esferas não podem ser encontrados na outra; e b) todos os elementos da
realidade tendem a se inserir nessa divisão. No uso jurídico, esta distinção se sobrepõe às
demais dicotomias, além do fato dela ter sido usada constantemente em diferentes épocas
históricas
947
.
Acerca disto, Fustel de Coulanges nos informa que ao final da dominação da classe
sacerdotal na cidade antiga em Roma e em Atenas , outra classe ascendeu para atingir o
mesmo nível dos ―antigos chefes das gentes‖, evento que marca o início de um novo
período
948
. Houve uma renovação social que não significa simplesmente a substituição de um
grupo por outro no poder, mas sim uma substituição de velhos princípios por novas regras de
governar
949
. Por muito tempo a religião foi o único preceito para o desempenho das funções
políticas
950
; na ausência deste, era necessário um novo preceito que embasasse o governo da
sociedade, salvaguardando-o de atribulações e instabilidade
951
. O novo princípio foi então
fundado no ―interesse público‖
952
. Fustel de Coulanges destaca que, antigamente, o que
regulava o governo da sociedade era a religião e não o interesse. Sendo assim:
O princípio regulador de que todas as instituições devem tirar dali em diante sua
força, o único superior às vontades individuais e que pode obrigá-las a submeter-se,
é o interesse público. Aquilo que os latinos chamavam res publica, e os gregos
koinón, é o que substituiu a velha religião
953
.
O debate ainda não se encerra, pois, no que tange à noção de utilitas, podemos opor a
utilitas singulorum e a res publica, que se configura como o assunto da sociedade não apenas
por um vínculo jurídico, mas por se ligar a utilidade comum
954
. Não deve ser surpresa que na
língua latina clássica exista a clara oposição entre publicus e privatus
955
. Segundo Georges
946
BOBBIO, Norberto. Público/Privado. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi: Estado-
Guerra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 14 v., 1989, p. 176.
947
BOBBIO, op. cit., p. 176.
948
COULANGES, Fustel de. Novo princípio de governo. O interesse público e o sufrágio. A cidade
antiga. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 359.
949
COULANGES, op. cit., p. 359.
950
Ibid., p. 360.
951
Ibid., p. 360.
952
Ibid., p. 360.
953
Ibid., p. 360.
954
BOBBIO, op. cit., p. 177.
955
DUBY, op. cit., p. 20.
264
Duby, para Cícero, agir privatim significava agir não como um magistratus, como uma pessoa
investida de um poder emanado do povo, mas atuar como um simples particular, em seu
domicílio, no ―interior de sua casa, isoladamente‖. Privatum refere-se àquilo de uso próprio,
enquanto privus é aquilo que é pessoal
956
. Acerca deste tema da ―utilidade‖ como elemento
fundamental para se estabelecer a diferença entre público e privado, precisaremos situar
historicamente o momento no qual tal dicotomia se tornou um objeto perceptível. Tomemos
como referência inicial a gênese do conceito em meio às transformações sociais e históricas
nos primórdios da República Romana. A submissão aos princípios religiosos amplamente
aceitos e indiscutidos na Realeza cedeu espaço a elementos que favorecem a interação
humana e a regulação da vida social por meio do interesse da coletividade. Tal interesse
manifestou-se pela eleição de magistrados e pela autoridade do Senado. Portanto:
Nas deliberações dos senados ou das assembléias populares, quer se discuta a lei ou
se fale sobre a forma de governo, quer se vote sobre determinado ponto de direito
privado ou se aprecie alguma instituição política, já não se pergunta qual a
prescrição da religião, mas interroga-se sobre o que convém ao interesse geral
957
.
Enquanto Norberto Bobbio concentra sua abordagem no estabelecimento de papéis
jurídicos e numa discussão filosófica acerca da distinção entre ambas as esferas, Fustel de
Coulanges nos chama a atenção para a gênese destes conceitos. Fazer notar o ambiente no
qual a definição de público e privado se manifesta é apontar para uma dinâmica social e
histórica que dará o conteúdo específico dos termos. Não são tipos absolutos e atemporais,
mas são fruto daquilo que cada sociedade realiza, estão condicionados por determinadas
conjunturas específicas. O ponto em comum, talvez, entre as diferentes maneiras de perceber
o que é a esfera de atuação do público, esteja justamente na interação política entre os seres
humanos. O caso romano trazido a baila por Fustel de Coulanges é bastante esclarecedor
quanto a isto:
As prescrições de interesse público não são tão absolutas, tão claras, tão manifestas,
como as da religião. Podemos discuti-las; nem sempre se percebem à primeira vista.
O modo que pareceu como o mais simples e o mais seguro para se conhecer aquilo
que o interesse público exigia foi o de reunir os homens e consultá-los. Este
processo julgou-se necessário e foi empregado quase diariamente
958
.
Quando à dicotomia entre público e privado no Medievo, ―ouçamos‖ Georges Duby:
―O que era a vida privada nos tempos feudais?‖. Para chegar ao núcleo da questão, torna-se
necessário ir fundo na compreensão do campo semântico, com o objetivo de ser mais fiel ao
956
DUBY, op. cit., p. 20.
957
COULANGES., p. 360.
958
Ibid., p. 360.
265
que era entendido no passado
959
. Nos dicionários franceses do século XIX, época em que
surge efetivamente a idéia de vida privada, encontra-se o verbo privar, cujo significado é
domar, domesticar. O adjetivo privado, por sua vez, contem a idéia de familiaridade, casa,
interior. Sendo assim, privado se opõe a público
960
. A palavra público, pela definição de
Littré, é algo que ―pertence a todo um povo, o que concerne a todo um povo, o que emana do
povo‖
961
. Sendo assim, o público relaciona-se com a autoridade e as instituições do Estado
962
.
Outro significado informa que público é tudo aquilo que é de uso de todos, para uso comum,
que não constitui objeto de apropriação particular
963
.
Georges Duby, analisando os dicionários de Du Cange, de Niemeyer e de Godefroy,
percebe que os significados das duas palavras no medievo remetem aos dois extremos acima
mencionados
964
. ―O latim das crônicas e das leis qualifica de publicus o que depende da
soberania, do poder de regalia, o que é da alçada da magistratura encarregada de manter a paz
e a justiça no povo (como nas expressões via publica, functio publica, Villa publica ou, na
fórmula merovíngia de Marculfo, publica judiciária potestas)‖
965
. Aquele que é chamado de
público é agente do poder, a persona publica é aquela que age em nome do poder para
defender os interesses da comunidade
966
. ―O verbo publicare significa confiscar, apreender,
subtrair ao uso particular, à posse própria‖
967
. Mas, e para o caso asturiano, como podemos
proceder, que nem nas narrativas, nem nas fontes epigráficas e tampouco nos cartulários
podemos encontrar diretamente tais vocábulos? Se palavras que denotam a idéia de público e
privado não foram suficientes para identificar diretamente as instituições e normas públicas
de Roma, o que podemos fazer para encontrar uma esfera pública no Reino das Astúrias?
Como se originaram as instituições de direito público romano? Que elementos teriam
permitido a sua identificação em meio às instituições de direito privado? A principal
―autoridade‖ relativa ao tema é Theodor Mommsen, na segunda metade do século XIX
968
.
Membro fundador da Escola Histórica Alemã, que tinha como principais representantes
diversos estudiosos das fontes do direito, Mommsen empreendeu um esforço descritivo e de
959
DUBY, Georges. Poder privado, poder público. In: ARIÈS, Philippe, DUBY, Georges (dir.). História
da vida privada: da Europa feudal à Renascença. São Paulo: Cia. das Letras, 2004, 2v., p. 19.
960
Ibid., p. 19.
961
Ibid., p. 19.
962
Ibid., p. 19-20.
963
Ibid., p. 20.
964
Ibid., p. 20.
965
Ibid., p. 20-21.
966
Ibid., p. 21.
967
Ibid., p. 21.
968
EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Brasília: Unb-Imprensa Oficial, 1987, p.
31
266
reconstrução daquilo que chamamos de esfera pública e direito público em Roma. Em meio a
um mar de fontes de direito privado, Mommsen pôde identificar textos que evidenciam a
existência de um direito público. Segundo Eugen Erlich:
O que Mommsen nos apresenta sob o título [de direito público] é, excetuando-se o
conteúdo das poucas leges do direito público, uma descrição daquilo que os órgãos
governamentais romanos efetivamente executaram durante a existência do império
romano. Mommsen apresenta prescrições jurídicas gerais, mas estas, com
reduzidíssimas exceções, são resultado de seu próprio trabalho mental; ele próprio as
derivou dos fatos; em Roma elas nunca forma regras aplicadas aos fatos.
Evidentemente pode-se dar a isto o nome de direito público romano, mas com
certeza não se trata de uma constituição romana
969
.
Não eram fontes diretas, como leis e compilações normativas, mas fontes indiretas do
direito, que tratariam da prática do Estado Romano. Percebeu-se que a manutenção do Estado
Imperial deixava seus rastros na vida administrativa, política e econômica, produzindo textos
e cartas que dessem conta de seus esforços organizativos. Theodor Mommsen apresentou aos
especialistas de sua época um perfil da prática do Estado Imperial Romano. As ordens
enviadas ao conjunto do território imperial, a descrição de seu quadro administrativo, a
formalização de determinados procedimentos judiciais, o enquadramento dentro de certos
parâmetros, as normas e a monopolização da prática normativa constituíram-se em
fundamentos para a reconstituição da esfera blica do Direito Romano. Norberto Bobbio
destaca que o direito romano não era desprovido de princípios acerca do direito público, como
pode ser atestado pela Lex regia de imperio [Digesto, I, 1, I], pela qual aquilo que o príncipe
estabelece tem força de lei
970
. Todavia, mesmo Bobbio é obrigado a se curvar às afirmativas
de Eugen Erlich:
Quem quer conhecer de fato o direito público de um Estado oriental, deve inteirar-se
da atividade dos diversos órgãos estatais e este contato direto com a realidade
substituiu plenamente o Corpus Iuris Latinarum
971
.
Realmente, os esforços de Mommsen germinaram um construto artificial, mas bastante
inspirador para nossa atual tarefa. Com base neste longo preâmbulo, podemos seguir adiante
com o nosso foco central. As referências apresentadas acima servem, contudo, para nos
indicar previamente o caminho de nossas próximas análises. No período que abordamos, o
reinado de Afonso III (866-910), a chamada documentação notarial permanece vinculada à
trajetória ocidental do desenvolvimento das fontes jurídicas privadas. A produção de um
direito próximo ao que chamamos de público deverá surgir ao longo da segunda metade do
969
ERLICH, op. cit., p. 31.
970
BOBBIO, op. Cit., p. 183.
971
ERLICH, op. Cit., p.31.
267
século X, com a redação das cartas forais, a partir do estabelecimento do trono régio em
Leão e não mais na antiga capital de Oviedo. Alguns poderiam criticar esta afirmação
destacando o caso do Fuero de Bañosuera, editada na compilação de Tomás Muñoz y
Romero
972
, objeto de análise daqueles que se dedicam ao estudo de período tão obscuro e
debatido da história peninsular. Antonio C. Floriano comprovou que tal documento é uma
falsificação do século XI ou XII, remontando às pretensões do mosteiro de Bañosuera
973
.
Portanto, até 950, com a redação do Fuero Melgar de Suso, confirmado pelo conde castelhano
Garci Fernandez, nenhum documento similar chegou a ser elaborado no Reino das Astúrias.
No mais, do conjunto de documentos que será analisado decorrem dados significativos para o
conhecimento do estado de formalização jurídica e institucional do reino ovetense. Inspirados
pelo exemplo de Theodor Mommsen, procuraremos avançar nas considerações relativas à
estruturação social, política e jurídica do período.
Primeiramente, como bem observa Ernesto Pastor Diaz de Garayo, os territórios
cristãos ibéricos possuem uma realidade muito homogênea no que tange à concepção e ao
exercício de justiça
974
. Mas, antes de tudo, vale a pena considerar algo a que poucos prestaram
a devida atenção. Não há, de maneira alguma, uma rigorosa formalização ou burocratização
de todo aparato político, administrativo ou jurídico no caso em questão. O campo que
denominamos ―estatal‖, nesta época, não deve ser identificado como uma manifestação
imperfeita ou deformada dos preceitos que qualificam o Estado na atualidade. Como bem
observa Paul Veyne, em uma recente publicação sobre a realidade política e institucional do
Império Romano, não se encontra nenhuma referência a práticas administrativas ou
governativas que apontem para a definição de regras rigorosas e plenas de papéis, cargos,
funções e normatização
975
. O exemplo estudado por Veyne da constituição do poder imperial
pode servir como referência para nosso objeto. O exercício de poder político nunca se pautou
em um rigoroso modelo de comportamento político. O que podemos atestar é uma série de
relações de força inseridas em um determinado campo de disputas, mas tais contendas não
eram regradas de maneira minuciosa, havendo uma ampla possibilidade de tomadas de
decisão por parte de seus participantes. Além disto, estas possibilidades não eram restringidas
com base em um enquadramento de um Estado Burocrático. Como temos dito nos capítulos
972
Fueros de Brañosuera dados por el conde Muñio Nuñez en 15 de octubre del año de 824. In:
MUÑOZ Y ROMERO, Tomás. Colección de fueros municipales y cartas pueblas: de los reinos de Castilla,
Leon, Corona de Aragon y Navarra. Madrid: Atlas, 1978, p. 16-18.
973
FLORIANO, Antonio C., p.
974
DÍAZ DE GARAYO, Ernesto Pastor. Castilla en el tránsito de la Antigüedad al Feudalismo:
poblamiento, poder político y estructura social. De Arlanza al Duero (siglos VII-XI). Valladolid: Junta de
Castilla y León-Consejería de Educación y Cultura, 1996, p. 183.
975
VEYNE, Paul. O império greco-romano. Rio de Janeiro: Campus-Elsevier, 2009, p. 2-3.
268
anteriores, devemos levar em consideração a autonomia dos que agiam integrados às esferas
superiores de tomada de decisão, mas também precisamos sempre considerar que a tradição, o
costume e as relações de força atuavam como limitadores das ações.
Cientes destas limitações e não devendo nunca imputar às sociedades passadas as
injunções próprias de nossa contemporaneidade, as análises devem voltar-se à constituição de
um conjunto de normas genéricas em vias de cristalização. Ora, que a formalização restrita
constituiu um dos elementos fundamentais de confusão entre a esfera pública e a privada não
dúvida, mas a maneira pela qual tais campos chegam a ser minimamente identificados é
um ponto que pretendemos elucidar. Mesmo na atualidade, existe um espaço no qual a
informalidade dos atos políticos podem se expressar alheios a qualquer restrição
formalizadora e rigorosa.
Os acordos costurados pelos corredores de um palácio, em confraternizações e em
ambientes informais sempre nos escaparam. Não produziram fontes imediatas, e apenas
podemos sentir os seus efeitos sem que sejamos capazes, em inúmeras situações, de precisar e
localizar, de maneira segura, o epicentro de determinadas tomadas de decisão. Muitas vezes,
presumimos que, para que tais atos tivessem o efeito desejado, seria necessário o sigilo e a
discrição. Os subterrâneos e os bastidores serão sempre as zonas obscuras do fazer político,
sendo um habitat blindado e protegido de qualquer observação. Talvez, mesmo incapazes de
mensurar, possamos identificar uma silhueta sutil em meio às brumas que acobertam.
Passemos ao mundo notarial e seus vestígios, talvez, menos inseguros. Quando nos
deparamos com a documentação recolhida por Antonio C. Floriano temos a impressão,
confirmada pelo organizador, de que os textos, as cartas, as doações e os pactos monásticos
inserem-se em um dado enquadramento textual. Diaz de Garayo observa o mesmo para toda a
Península Ibérica livre da dominação muçulmana. Isto se deve a um conjunto de formulários
provenientes do período anterior à dominação muçulmana na Península Ibérica conhecidos
por formulae visigóticas. Trata-se de um conjunto de textos-padrão destinado a ser empregado
em diversos atos jurídicos como os citados anteriormente. Segundo Marcelo Caetano, os
―formulários têm (...) grande importância prática na vida do Direito: por eles se pauta a
redação dos atos jurídicos que devem respeitar certas solenidades para serem válidos ou
eficazes‖
976
. ―A fórmula é uma fonte de história jurídica do maior valor porque nos mostra
como as leis eram aplicadas‖
977
. Para que isto acontecesse, era necessária a existência de uma
976
CAETANO, Marcello. Domínio Germânico. In: ________. História do direito português. 2 ed.
Lisboa: Verbo, s.d., p. 108.
977
Ibid., p. 108
269
estrutura de sustentação que tornasse válidas todas as escrituras bem como suas funções. Ou
seja, este fundo comum evidencia não o reconhecimento de certas formatações, mas o
compartilhamento de um dado conjunto de práticas sociais.
Nenhuma das fórmulas visigóticas reaproveitadas após o século VIII foi obra da
imposição governamental dos monarcas ovetenses, o que quebra um pouco a noção de que
aquele que detém o monopólio do poder tem a capacidade de ―dizer o direito‖, de impor as
regras a serem seguidas por todos no interior do reino, como tendia a ocorrer sob os
imperadores romanos na época tardia. Talvez, o único rei nortenho a exercer tal prerrogativa
tenha sido Vermudo II, em fins do século X
978
. Não como afirmar o momento exato em
que começaram a ser produzidas cartas de valor jurídico nas Astúrias e demais territórios
nortenhos, sabemos apenas que o seu uso se vincula à reestruturação política desenvolvida e
processada após Covadonga e que este uso fornece informações ao nosso estudo. A despeito
das limitações, consideramos que a distribuição geográfica de tais cartas e a presença de
determinados índices e conteúdos são capazes de nos auxiliar no reconhecimento de alguns
vestígios de um direito e de uma esfera pública. Lembremos de que nunca foi objetivo destes
monarcas nortenhos, até então, fazer menção à fundamentação pública de seus documentos.
Outro ponto que temos condição de destacar é que dificilmente encontramos a
manifestação de um poder monárquico plenamente atuante e definidor de regras.
Contraditoriamente, a impressão que nos passa é a de que, em algumas situações, o Estado
existia apenas nominalmente ou no ―mundo das idéias‖. Encontram-se, nos documentos, a
datação corrente de Era Hispânica, segundo a própria tradição visigótica, a identificação de
que ―um certo rei reina em...‖ ou ―... está sediado em Oviedo‖ etc. Muitos documentos fazem
menção a situações de desrespeito ao patrimônio de uma dada pessoa e que tal infração deve
ser punida com a restituição do dano causado ―em dobro‖ ou ―no triplo‖ do bem danificado.
Ou seja, as contendas que pudessem surgir deveriam ser resolvidas entre as partes envolvidas,
alheias à intervenção governamental no litígio. Destes documentos organizados por Antonio
C. Floriano, apenas um indica a possibilidade da contenda ser resolvida com base nos usos da
terra, usus terre, o que mais uma vez torna claro, a princípio, o quanto os poderes gios
pouco ou nada interferiam no tecido social. Uma ressalva poderia ser feita, justificando-se
esta aparente abstenção do poder monárquico em se infiltrar em tais circunstâncias, como a
distância de algumas regiões citadas com relação à sede Ovetense. Isto é plausível, mas não
era regra, o que a faz insuficiente como justificativa.
978
GARCÍA LÓPEZ, Yolanda. Estudios críticos de la “Lex Wisigothorum”. Alcalá: Universidad de
Alcalá, 1996, p. 135-136.
270
O alheamento monárquico em relação às pendências sociais poderia servir muito bem
de crítica aos defensores de uma monarquia asturiana herdeira direta das tradições hispano-
godas. Não há, em um primeiro momento, quaisquer referências a oficiais régios que
pudessem penetrar nas propriedades particulares. Isto deporia contra a perspectiva defensora
da continuidade visigótica no Reino das Astúrias, ao menos no que se refere à regras do
direito compilado, mas a realidade é um pouco mais complexa. Ora, estamos diante de um
período de construção institucional, limitada, ademais, pela desestabilização gerada pela
invasão muçulmana que desarticulou o fragilizado aparelho administrativo e político
hispano-godo. O que ainda subsistia por volta de 711 estava em processo de desarticulação,
aliás já evidenciada no contexto do Baixo Império Romano Ocidental.
As próprias condições políticas internas do Reino de Toledo não eram das mais
estáveis. Lembremos que os aparelhos administrativo, fiscal e político concentravam-se nas
cidades e nas urbes, e que estes centros vivenciaram um franco processo de transformação, o
que nos impede precisar o que ainda estava em vigência e em que medida permanecia em
vigência nos últimos séculos do domínio visigodo. Toda preservação demanda adaptações e
modificações difíceis de serem mensuradas. Esbarramos uma vez mais em zonas sombrias e
nebulosas. Somente por vias indiretas é que podemos alcançar, mesmo que timidamente, tal
realidade social. Se o aparato político e fiscal estava fincado em zonas urbanas, o que ocorria
com as zonas marginais e rurais, territórios afastados dos grandes centros citadinos? O fisco
não atingia tais áreas? Não estavam inseridas na ―malha visigótica‖?
Acreditamos que os documentos notariais revelam antigos vestígios da ―prática
jurídico-política‖ do reino toledano. Aparentemente, os textos notariais asturianos indicariam
a preservação de uma tradição e de uma prática compatível ao conteúdo e forma das fontes.
Ou seja, aqueles que se colocam como partes do acordo ou contrato, bem como suas
testemunhas, estão cientes da importância da materialização por escrito de suas intenções. A
postura de Marc Bloch quanto a esse tipo de documentação é de atribuir um valor secundário
ao registro escrito, priorizando a presença de testemunhas, estes sim portadores futuros de
garantias de respeito aos contratos
979
. Não nos parece prudente tal perspectiva. Apesar de as
testemunhas presentes no ato de assinatura garantirem um reforço à decisão tomada entre as
partes contratantes, a oficialização do ato reside no escrito, naquilo que pode ser consultado
na posteridade. Se não fosse assim, os grandes mosteiros medievais espanhóis não se
preocupariam em falsificar atos legais, datando-os de épocas bastante recuadas para lhes
979
BLOCH, Marc. Os fundamentos do direito. In: ________. A Sociedade feudal. Lisboa: Edições 70,
2001, p. 131.
271
garantir autoridade. ―especialistas‖ em conhecimentos cartoriais fundamentais para que o
ato seja devidamente registrado.
Retomando a idéia de reconstrução de um aparelho administrativo após a conquista
muçulmana, devemos acrescentar que não apoiamos de forma alguma a hipótese da existência
de uma ligação genética e institucional entre Toledo e Astúrias. O Reino das Astúrias não
correspondeu a uma ―versão simplificada‖ da antiga estrutura política visigótica, não foi um
decalque seu. Tratou-se de um ―novo começo‖, sob novas bases, com outras fundamentações
materiais e em outro meio geográfico. Seus fundamentos culturais e políticos são visigóticos,
mas apropriados e reelaborados, e nem poderia ter sido de outra forma, pois, após 711, um
novo cenário se estabeleceu na Península Ibérica. Como bem observa Maria C. Torre Sevilla-
Quiñones de Léon, a invasão muçulmana representou o desmembramento deste sistema
administrativo e a tentativa de recomposição a partir do Reino das Astúrias
980
.
É bem possível que o amadurecimento desta estrutura política, com a identificação das
categorias sociais fundamentais para a constituição de uma rede política tenha se tornado mais
visível no tempo de Afonso III (866-910). Estamos diante de um esforço efetivamente
concentrado na conservação do aparato político existente, independentemente de que nos
fiemos ou não nas crônicas asturianas produzidas neste momento. Se, por um lado, a matéria
historiográfica se esforçava para estender uma ―linha reta de continuidade‖ entre Pelágio e
Afonso III, bem como entre os visigodos toledanos até os asturianos do pós-711, outras fontes
constatam a permanência de um aparato político que interfere no meio social. Antes de
retomarmos as fontes notariais, avancemos sobre as fontes epigráficas e demais vestígios de
cultura material do período em questão, para, em seguida, relacionar os dados obtidos com
suas referências e cotejá-las com aqueles proporcionados pelas fontes notariais.
5.3. (Re)construindo um aparelho de intervenção social:
Comecemos por uma inscrição epigráfica confeccionada em Oviedo que integra a
compilação empreendida por García de Castro Valdés. Estamos nos referindo à lápide da
fortificação de Afonso III, datada aproximadamente entre os anos 872 e 873. Segundo o
próprio García de Castro Valdés, a lápide ainda pode ser encontrada na parede norte da
980
SEVILLA-QUIÑONES DE LEÓN, Margarita C. Torre. La organización del poblamiento. In:
________. El Reino de León en el siglo X: el condado de Cea. Leão: Edicones Universidad de León, 1998, p.
37.
272
catedral de Oviedo, do lado esquerdo em relação à porta que acesso à capela do rei Afonso
II. O conteúdo da epígrafe é a seguinte:
Em nome do Senhor Deus e Salvador nosso Jesus Cristo, e à glória de todos, da
gloriosa Santa Maria Virgem, aos doze apóstolos e demais santos mártires, em cuja
honra foi edificado o templo neste lugar Ovetano por um certo religioso príncipe
Afonso; desde sua morte até agora sucedendo-lhe no reino o quarto de sua prosápia,
filho do rei Ordoño, de divina memória, mandou edificar esta fortificação com a
esposa Ximena, havendo nascido deles dois filhos, para que a defesa da fortificação
da sala do tesouro desta santa igreja permaneça sem dano; cuidando para que nada
pereça pois os gentios desejam capturá-la com seu exército pirata naval, o que não
ocorra. Esta obra oferecida por nós, seja concedida por direito a mesma igreja
981
.
Segundo García de Castro Valdés, o texto nos informa sobre a existência de uma
fortificação anterior que tinha por objetivo defender a sala do tesouro de San Salvador. Uma
segunda fortificação teria sido erigida com o intuito de servir de proteção contra qualquer
ataque muçulmano ou de pagãos
982
. A autenticidade da placa foi bastante debatida, contudo é
considerada verdadeira e não uma invenção do bispo Pelágio de Oviedo
983
.
Outro dado nos é fornecido por uma fonte epigráfica presente em uma fortaleza
levantada por Alfonso III, no ano de 875. Esta placa estaria, para alguns, na porta do castelo-
fortaleza de Oviedo, opinião contraria à de Fortunato Selgas, para quem a inscrição estaria na
entrada principal do palácio de Afonso III, sendo transferida quando o edifício se converteu
em uma igreja
984
. García de Castro Valdés não duvida que tal placa estivesse na porta de
entrada da fortaleza
985
. O suporte da inscrição tem gravado nele a cruz de braços desiguais,
estando embaixo dos braços laterais as letras alfa (Α) e ômega (Ω). Sete linhas compõem a
inscrição com o seguinte texto:
981
37. Oviedo. Lapida de la fortificación de Alfonso III. 1. + IN NME DNI DI ET SALVATORIS NS
IEHV XPI: SIVE OMNIVM DECVS GLSE SCE MARIE VIRGINIS BISSENIS APÓS/ 2. TOLIS
CETERISQVE SCIS MARTIRIBVS: OB CVIVS HONORE . TEMPLV EDIFICATV EST IN HVNC LOCV
OVETAO. A CONDA RELIGIOSO ADEFONSO/ 3. PRINCIPE: AB EIVS NAMQVE DISCESSV VSQUE
NVNC QVARVS EX ILLIVS PROSAPIE IN REGNO SVBCEDENS CONSIMILI NOME/ 4. ADEFONSVS
PRINCEPS. DIVE QVIDEM MEMORIAE HORDONI REGIS FILIVS: HANC AEDIFICARISANCSIT/ 5.
MVNICCIONEM CVM CONIVGE SCEMENA DVOBVSQVE PIGNERE NATIS: AD TVICCIONEM
MVNIMINS/ 6. TENSAVRI AVLAE HVIVS SANCTAE AECLESIARE RESIDENDVM INDEMNEM:
CAVENTES QVOD/ 7.ABSIT DVM NAVALI GENTILITAS PIRATO SOLENT EXERCITV PROPERARE.
NE VIDEATVR/ 8. ALIQVID DEPERIRE : HOC OPVS A NOBIS OFFERTVM . IDEM AECLESIAE
PERENNI. SIT IVRE CONCESSV: In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la
alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 84.
982
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 85.
983
Ibid., p. 86.
984
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 88.
985
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p., p. 89.
273
Ponha, Senhor, o signo da salvação nestas casas, para que não permitas que entre o
anjo exterminador. Em nome de Cristo, o príncipe Afonso com sua cônjuge Ximena
mandaram construir este recinto na Era DCCCCXIII
986
Ambas as construções são expressões claras dos esforços conscientes no reinado de
Afonso III em produzir uma coerência nas ações governamentais, destinadas não apenas à
ostentação, mas à utilidade daqueles que habitam o reino. O trabalho de fortificação poderia
ser interpretado como algo que auxiliasse apenas os interesses do monarca e do grupo a ele
vinculado diretamente. Contudo, afirmamos que a defesa do centro político nortenho
favoreceu a preservação da estrutura política da região, estrutura política que se arvorou em
defensora exclusiva daquelas paragens.
Juntemos mais alguns dados para prosseguirmos em nossa labuta historiográfica.
Façamos uso de mais um testemunho epigráfico procedente dos tempos de governo de Afonso
III. Falamos de outra inscrição ovetense, oriunda, segundo García de Castro Valdés, da
mesma fortaleza da qual provêm os testemunhos precedentes. Foi encontrada na fortaleza
edificada por Afonso III no ano de 875.
Sob este signo se protege o pio, sob este signo o inimigo é vencido. Põe, Senhor, o
signo da Salvação nestas portas, para que não permitas entrar o anjo
exterminador
987
.
A inscrição é constituída por duas construções textuais, sendo a primeira frase da
epígrafe de estilo recorrente na monarquia asturiana desde o aparecimento da Cruz de los
Angeles, de 808
988
, e a segunda uma adaptação de uma antífona da liturgia hispânica
989
.
Apesar das lascas que mutilaram a lateral da inscrição, o texto não fornece qualquer
dificuldade de leitura
990
. Juntamente com a inscrição de no. 38, a epígrafe vem da chamada
Fortaleza ou Castelo de Oviedo, construído por Afonso III, em 875
991
.
986
38. Oviedo. Fortaleza levantada por Alfonso III. 1. + SIGNVM SALVTIS PONE DNE/ 2. IN
DOMIBVS ISTIS VT NON PMITAS IN/ 3. TROIRE ANGELV PCVTIENTEM/ 4. + IN XPI NOMINE
ADEFONSVS PRIN/ 5. CEPS . CVM CONIVGE SCEMENA:/ 6. HANCAVEAM CONSTRVERE/ 7.
SANCSERVNT IN ERA DCCCCXIII A. In: GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, sar. Arqueología Cristiana
de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 89.
987
55. Oviedo. Inscripción de procedência no documentada, probablemente de la Fortaleza. HOC
SIGNO TVETVR PIVS: HOC SIGNO VINCITVR INIMIC(VS) SIGNVM SALVTIS PONE DOMINE IN
IANVIS ISTIS: VT NON PERMITTAS INTROIRE ANGELVM PERCVTIENTEM. In: GARCÍA DE
CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias. Oviedo: Real Instituto
de Estudios Asturianos, 1995, p 121.
988
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 121.
989
Ibid., p. 121.
990
Ibid., p. 121.
991
Ibid., p. 122.
274
E mais ainda, quanto mais ousadas são as edificações feitas diretamente sob os
auspícios do monarca, mais percebemos a cooperação de diversos setores da sociedade
asturiana. Além disto, começamos a perceber que tais empreendimentos régios demandam
uma quantidade considerável de recursos, que precisam ser captados por uma aparelhagem
tributária com algum tipo de eficiência. No período em questão, não fomos capazes de
identificar qualquer vestígio direto sobre a existência de práticas voltadas à arrecadação de
impostos ou tributos de uma parcela considerável da população nortenha. As narrativas alto-
medievais apenas abordam elementos factuais, militares, milagres (mesmo sendo muito
parcos) e um projeto de legitimação política. Portanto, além da dedução sustentada por dados
indiretos, o que mais podemos apresentar para sustentar tal hipótese?
Tomemos como referência os parcos dados obtidos pela análise dos cartulários
asturianos. Como podemos verificar, tratam-se de meras repetições de fórmulas de atos
jurídicos corriqueiros, fontes do direito privado, que, em tese, não estão habilitadas a fornecer
qualquer informação sobre as instituições de direito público do Reino das Astúrias. Todavia, o
não-intencional transborda de alguns textos. Na coletânea organizada por Antonio C.
Floriano, há uma carta, procedente originalmente do Mosteiro de Samos, na Galícia, e que nos
mostra o quanto podemos nos surpreender com a força de determinadas instituições. Quando
nos referimos a instituições, consideramos a sua inserção no mundo real das relações sociais e
políticas, identificamos as instituições como algo que pertence ao mundo concreto, que
interfere na sociedade, produzindo resultados de não pouca importância. Vejamos exatamente
o que é este diploma asturiano.
Para tentarmos entender os expedientes de obtenção de recursos pela realeza
precisaremos remontar quatro décadas antes da ascensão de Afonso III, mais precisamente à
época do reinado de Afonso II. Consideremos uma carta de fundação do mosteiro de
Tobiellas, documento datado de 18 de novembro de 822. Pelo registro deste cartulário, o
abade Abitus funda o mosteiro de Tobiellas e doa-lhe terras que o próprio religioso havia
arroteado (scalidauit) nas proximidades do território de Tobiellas
992
. Junto à doação destes
bens fundiários, o abade Abitus também doou terras obtidas por presura que o próprio
apresou
993
, bem como salinas e bens móveis como bois e mulas. Tudo isso feito para a
992
30. Fundación del Monasterio de Tobiellas. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática
española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 156.
993
30. Fundación del Monasterio de Tobiellas. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática
española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 157.
275
redenção da alma do próprio abade e de seus gasalianes
994
. Da carta de fundação do abade
Abitus constam as tradicionais imprecações de cunho espiritual contra os infratores que
tentassem depredar ou invadir a propriedade monacal, além da estipulação de reparação
monetária de C sólidos a ser entregue ao mosteiro, e esta a novidade a ser ressaltada de
mais C referentes à parte do Conde, comitis
995
. A fórmula de datação é a corrente, a era
hispânica, reinando o príncipe Afonso em Oviedo
996
.
Trata-se da primeira menção (salvo engano de minha parte) a uma possível reparação
monetária no caso asturiano. Ademais, além das fórmulas de maldição, excomunhão ou
anátema, que são muito correntes nos cartulários ibéricos da Alta e da Plena Idade Média,
deparamo-nos com uma multa pecuniária a ser paga a um agente da justiça monárquica. Não
referência ao nome do conde, e muito menos informação sobre sua origem, se um
poderoso local ou um fiel regis. Contudo, a referência principal aqui é à existência de um
preposto que arrecadava recursos em situações litigiosas. O fim desta multa não nos é
conhecido, nem sabemos se as quantias obtidas nestas circunstâncias seriam revertidas
diretamente aos cofres régios. Mantenhamo-nos, por enquanto, apenas com este dado pontual:
o da existência de uma autoridade interventora e arrecadadora de multas. Felizmente,
dispomos de outras informações complementares.
Trinta anos mais tarde, durante o reinado de Ordoño I (850-866), encontramos uma
carta de doação de propriedades feitas pelo próprio monarca cedendo rias vilas e igrejas ao
mosteiro galego de Samos. O documento foi redigido em 17 de abril de 854
997
. Aquele que
tentasse depredar ou invadir a propriedade concedida deveria ressarcir o apenas o que foi
danificado, mas também pagar com ―dois talentos e ouro e prata‖
998
. Presumimos que o
pagamento fosse feito diretamente ao donatário, mas não podemos ter plena certeza disto. De
qualquer forma, nestas porções situadas mais ao sul do Reino das Astúrias, aparentemente não
havia a presença de funcionários régios capazes de receber a multa pecuniária. Todavia, outro
exemplo provém da região castelhana. Trata-se de uma carta de repovoamento das igrejas dos
santos Román e Pedro de Dondisla, redigida em 4 de julho de 855
999
. Segundo carta, o Abade
994
30. Fundación del Monasterio de Tobiellas. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática
española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 157.
995
Ibid., p. 157.
996
Ibid., p. 158.
997
59. Ordoño hace donación de varias villas e iglesias al Monasterio de Samos. FLORIANO,
Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949,
p. 261.
998
n° 59. Ordoño hace donación de varias villas e iglesias al Monasterio de Samos., p. 262.
999
61. Carta de repoblación de las iglesias de san Román y San Pedro de Dondisla. FLORIANO,
Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949,
p. 265.
276
Paulo, o presbítero Johannes e o clérigo Nunno arrotearam (excalidavimus) terras, fizeram
casas (domos) e presuras
1000
. Além dos anátemas contra eventuais invasores, estes deveriam
pagar ao conde três libras de ouro (et dissolvat a parte comitis tres libras Auro cocto), além
de reparar o dano material que tivessem causado
1001
.
Semelhantemente ao documento proveniente de Tobiellas, podemos aqui ter a certeza
de que a arrecadação da multa ficava a cargo de um conde, comes. No entanto, não sabemos
qual a situação efetiva de Castela com relação ao Reino Ovetense. Não temos como precisar
se os condes das reges castelhanas atuavam como funcionários régios e, como tais,
respondiam como autoridade local, responsável por fazer a autoridade monárquica presente e
fomentada por recursos locais. Pelas fontes árabes, sabemos que havia outros condes
castelhanos além do conde Rodrigo. Os Annales Castellanos I e II, destacados no capítulo
precedente, também nos falam de grandes chefes políticos e guerreiros locais, todavia, sem
explicitar se eram fideles regis ou outros aristocratas de maior envergadura que faziam parte
da rede político-administrativa asturiana. Tomamos conhecimento da existência de uma
autoridade local com plenos direitos de intervir ou de ser chamada a intervir e, com isso, de
obter uma parte das riquezas produzidas em determinadas regiões.
Na mesma década, encontramos outra referência ao pagamento de multa a uma
autoridade judicial, um caso interessante de adultério. Aqui temos uma carta que explicita a
condenação judicial de Letasia, mulher sem qualquer identificação de sua categoria social em
especial, que foi obrigada a entregar a Hermenegildo sua herdade no território próximo ao rio
Tambre, em 25 de agosto de 858
1002
. Por causa de um adultério cometido com o servo
Ataulfo, que pertencia a Hermenegildo, Letasia teve que pagar uma multa em bens móveis e
imóveis
1003
. Esta decisão foi tomada por um juiz, judex
1004
. Pelas custas do processo,
deveriam ser pagas duas libras de ouro
1005
. Era juiz do processo o bispo Froarengum
1006
. Com
este documento começamos a sair um pouco das zonas sombrias. Mais um dado deve ser,
1000
Ibid, p. 265-266.
1001
Ibid., p. p. 266.
1002
n° 68. Letasia, en virtud de condena judicial entrega a Hermegildo su herdade en el territorio del
río Tambre. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo:
Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 294.
1003
Ibid., p. 294.
1004
Ibid., p. 294.
1005
Ibid., p. 295.
1006
n° 68. Letasia, en virtud de condena judicial entrega a Hermegildo su herdade en el territorio del
río Tambre., p. 294.
277
contudo, acrescentado. Dispomos de um documento datado do dia 5 de maio de 863
1007
, no
qual o abade Severo e o Conde Diego entregam-se, juntamente com seus bens, ao mosteiro de
San Felices de Oca. O texto ainda prescreve determinadas sanções caso o contrato não seja
respeitado. Além da multa por invasão ou depredação dos patrimônios, da restituição,
acréscimo e a excomunhão, uma parte da pena pecuniária deverá ser remetida diretamente a
pessoa conde a quantia de sete libras de ouro ao conde
1008
.
Segundo Marcelo Caetano, na época romana as autoridades com incumbências
administrativas e militares também exerciam função judicial. O Liber Iudiciorum (II, 1, 27)
destacava que juízes eram os que tinham poder de julgar: dux, comes, vicarius, pacis adsertor,
thiuphadus, millenarius, quingentenarius, centenarius, defensor, numerarius, árbitros
escolhidos pela partes litigantes ou ―juiz designado para certa causa do rei‖
1009
. Paulo Merêa
destacou a existência de um magistrado visigodo denominado judex, título atribuído àqueles
que detinham funções judiciais ou uma autoridade especial
1010
. Ao que parece, a figura do
judex constituía, de alguma maneira, um representante do rei em assuntos judiciários, ou seja,
qualquer litígio deveria ser objeto de solução por parte de um árbitro devidamente constituído
pela realeza. Ao que tudo indica, sugere-se a existência de um poder delegado por uma esfera
superior, à qual deveria prestar contas. Em oposição ao exemplo fornecido pelo caso do
adultério de Letasia, com a intervenção do bispo Froarengum, o caso do ingresso do conde
Diego e do abade Severo no Mosteiro de San Felices de Oca passa pela intermediação de um
senhor local e autônomo. O expediente empregado nos dois casos foram idênticos.
Encontramos aqui a existência de esferas superiores de intervenção social que são
reconhecidas e intimadas a se fazer presentes. Se, por um lado, é bastante lucrativa a
participação em litígios alheios, por outro lado, o reconhecimento de sua autoridade depende
diretamente de suas decisões, ou pelo menos, parece ter sido assim. De qualquer forma, o
emprego de multas pecuniárias a serem recebidas por terceiros teve uma ampla difusão nos
territórios cristãos nortenhos.
Nossos próximos exemplos seguem a mesma linha de raciocínio, contudo,
apresentando alguma matização. Consideremos uma carta que confirma a restituição de bens
1007
n° 78. El Abad Severo y el Conde Diego donan sus personas y bienes al Monasterio de San Felices
de Oca. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta
―La Cruz‖, 1v. 1949, p.
1008
Ibid., p. 318.
1009
CAETANO, Marcello. Domínio Germânico. In: ________. História do direito português. 2 ed.
Lisboa: Verbo, s.d., p. 98.
1010
MERÊA apud CAETANO, op. Cit., p. 98.
278
por Rebello à igreja de Santa María del Puesto, em 13 de dezembro de 863.
1011
Aquele que
não cumprisse o acordo deveria pagar três libras de ouro ao rei da terra, et ad regis terre
similiter tres libras aureas
1012
. O exemplo seguinte, já no governo de Afonso III, corresponde
à carta de fundação e dotação do mosteiro de Orbañanos
1013
. O abade Guisando e seus
―associados‖, soccis meis, concederam a título de fundação e dotação do mosteiro um
antifonário, missal, commico, líber ordinum, oratiomumm, ymnorum, psalterium, canticorum,
passionum, além de terras situadas em Castela, nas proximidades do rio Ebro
1014
. Aquele que
incorresse em qualquer infração deveria pagar três libras de ouro ao conde
1015
. Mais uma vez,
um contraste se verifica: o destino de quem recebe efetivamente as multas do litígio. Nas
terras castelhanas, o arrecadador final é a figura do conde, nas demais porções, é o rei ou seus
delegados.
A seguir, quatro outros exemplos de arrecadação originada de multas por desrespeito à
propriedade alheia. O primeiro documento é uma carta de fundação e povoamento feita pelo
presbítero Martín e outros vários religiosos ao Monastério de Salcedo, em 18 de abril de
873.
1016
O presbítero Martín e seus companheiros e irmãos, simul mecum sociis fratribus,
criaram igrejas sob a advocação de São Martini, S Felicis, S. Mametis e Sancte Teodosie
1017
.
Quem descumprisse tal acordo deveria solver quatro libras de ouro como a sendo a parte
referente ao que cabia ao rei e que seja pago a parte lesada o dobro do valor do bem
depredado, a parte regale exolvat quatuor libras auri, et quod retemptu duplatu restituat
1018
.
a carta de doação de Gundisalbo Telliz, juntamente com sua esposa Flamula, destinava-se
ao abade Damian de San Pedro de Cardeña. Datada do dia 24 de outubro de 902
1019
, os
objetos da cessão foram uma serna
1020
em Peternales e outros bens, móveis e imóveis.
1011
79. Restitución de bienes por Rebello, a la Iglesia de Santa Marí del Puesto. FLORIANO,
Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949,
p. 320.
1012
Ibid., p. 320.
1013
87. Fundación y dotación fundacional del monastério de Orbañanos. FLORIANO, Antonio C.
(org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta “La Cruz”, 2v. 1949, p. 2.
1014
p. 26.
1015
Ibid., p. 27.
1016
103. El presbítero Martín y vários religiosos fundan y pueblan el Monasterio de Salcedo.
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949.
1017
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta
―La Cruz‖, 1v. 1949., p. 76.
1018
Ibid., p. 76.
1019
167. Gundisalbo Telliz y su esposa Flamula donan al abad Damian de San Pedro de Cardeña
una serna en Peternales y otros bienes., p. 281.
1020
Como destaca Ernesto Pastos Díaz de Garato, os termos serna, facendera, lauores de palatio designam
alguma espécie de prestação de trabalho, sendo identificado no Fuero de Castrojeriz como tarefa de transporte e
trabalhos agrícolas em terras fiscais. DÍAZ DE GARATO, Ernesto Pastor. Las bases del poder condal. Tierras
279
Segundo o estabelecido na carta, o indivíduo que ousasse acometer a propriedade cedida
deveria pagar XXX libras de ouro ao rei, et ad regiam partem exolbat XXX libras aureas in
cauto”
1021
.
O terceiro documento é uma carta de venda feita por Felix em união com sua esposa e
filhos a Juan, de cognome Albavita, acordo firmado em de fevereiro de 909
1022
. Dentre as
cláusulas que estabelecem a defesa do acordo e da propriedade vendida, consta o pagamento
de multa, que consistia na entrega ao rei de cinco libras de ouro, et ad regiam partem inferat
in cauto V. libras”. O último documento asturiano que faz menção a esta prática de
arrecadação de recursos por vias judiciais é outra carta de venda. Em 23 de julho de 909
1023
,
Zaher y su mujer Proba vendem a Iohannes umas terras junto ao rio Ubierna. Quem desejasse
invadi-la, inrumptere, deveria pagar multa de cinco libras de ouro, et ad regiam partem
reddat in cauto V libras áureas.
1024
Os quatro últimos exemplos elencados são bastante esclarecedores quanto à
constituição e consolidação da prática em se remeter as multas de litígios diretamente ao rei.
Repete-se aqui em quatro ocasiões a termo latino ad regiam partem (...) in cauto, expressão
não utilizada anteriormente, nem no reinado do próprio Afonso III, quando de seus
antecessores. Apesar de parecer, de uma maneira geral, em um procedimento bastante
difundido, parece-nos que a ela é acrescida de outra valoração ou quem sabe de uma maior
legitimação. O caso da carta de doação ao mosteiro de Salcedo pode servir como uma breve
indicação de como o período de Afonso III demarca uma cristalização do papel monárquico
asturiano. Mesmo com a citação do governo do conde Rodrigo, Castela parece estar inserida,
naquele preciso momento, na pujante esfera de influência ovetense. Afonso III dispunha de
mais uma região fornecedora de recursos para seus empreendimentos construtivos.
O cartulário asturiano analisado até agora dava conta apenas de situações litigiosas.
Toda a arrecadação dependia da ocorrência de alguma infração em um acordo firmado entre
particulares. Não temos nada, até agora, que possa comprovar a existência de um aparelho
fiscales y derechos públicos. In: ________. Castilla en el tránsito de la Antigüedad al Feudalismo:
poblamiento, poder político y estructura social. De Arlanza al Duero (siglos VII-XI). Valladolid: Junta de
Castilla y León-Consejería de Educación y Cultura, 1996, p. 168.
1021
167. Gundisalbo Telliz y su esposa Flamula donan al abad Damian de San Pedro de Cardeña
una serna en Peternales y otros bienes. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período
astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949.,, p. 281.
1022
194. Felix en unión de su esposa e hijos vende a Juan, congomento Albavita, sus tierras.
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949.
1023
199. Zaher y su mujer Proba venden a Iohannes unas tierras junto ao río Ubierna.
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949.
1024
P. 383.
280
perenemente em funcionamento para a aquisição de recursos a serem entregues à coroa
asturiana. Salvo um testemunho. Estamos falando da carta n° 99, na qual o abade Reterico doa
ao rei Afonso III as iglesias de San Pedro e Santa María de Mezonzo. Tal entrega foi
acompanhada daquilo que seria de uma oferta que deveria ser feita anualmente ao monarca.
Datado do dia 17 de setembro de 870
1025
, o texto preserva o temor de seu doador com relação
à ira do rei pelo atraso do pagamento do censo anual, que para aplacar uma possível ira do rei.
O abade Retericus envia seu sobrinho juntamente com o documento de cessão de propriedade
e as escusas pela demora
1026
.
Apesar disto tudo, o que esta constatação pode significar? Compreendemos que desde
a primeira metade do século IX o Reino das Astúrias possuía uma prática arrecadadora. O
conteúdo expressa a intenção do abade Retericus em reverter os problemas causados pelo
desrespeito às imposições e exigências do rei Afonso III. Confrontamo-nos aqui com uma
carta que reflete a extrema preocupação de seu idealizador com o estado em que se encontrava
a sua relação com o monarca ovetense, explicitando-se a caráter ameaçador do poder
monárquico, como podemos inferir, e que, como tal, devia dispor de força para fazer cumprir
suas exigências. Ainda que se mantenha implícito, as escusas insistentes do abade e a maneira
pela qual reforça e realça a sua submissão diante do líder político indicam-nos a feição
coercitiva da realeza asturiana que as crônicas de Reconquista não se esforçaram para
descrever. Ao contrário, além de uma caracterização do monarca como um protetor da Igreja
e de seus súditos, a documentação dos cartulários traz aos nossos olhos a configuração da
potestade régia. De fato, o vigor de sua existência levava a solicitar com veemência recursos
de seus colaboradores.
Não se trata, aqui, de uma arrecadação de recursos esporádica, incerta e totalmente
dependente do desrespeito às normas e acordos. Nestes casos, um funcionário régio
presente em determinadas localidades, um judex ou um comes, que atuariam como
representantes da ordem vigente e como mantenedores da mesma. Contudo, o caso do abade
Retericus nos revela um aparelho acionado com regularidade e com uma finalidade bem
1025
99. El abad Reterico dona al rey Alfonso III las Iglesias de San Pedro y Santa María de
Mezonzo, promete pagarle la oferción anual por su gobierno y somete a su domínio vários siervos a las
que habia concedido la liberdad., FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur
(718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p.
1026
In Dei nomine. Ego Retericus abbas licet immerito; tibi gloriosissimo principi nostro Adefonso. Placuit
mihi atque conuenit, nullo congentis império Nec suadentis articulo, sed própria mihi accesit uoluntas, ut tibi
domino meo facerem donationem sicut et facio de omnibus rebus meis; (p. 65-66) (...) [A carta foi entregue por
um sobrinho do abade Reterico ao rei Afonso III] Ego nanque peccator alumnus uester retentus sum ab
egrirudine graui, quod uidere non ualeo presentiam domini mei. Tamen profiteor me per singulos annos, dum
uixero, per istum monachum dirigere meam offertionem sicut et feci et sempre faciam, (...)FLORIANO, Antonio
C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 65-66.
281
determinada. Ao invés de taxações ou vergelds, estamos tratando de tributos a serem obtidos
com regularidade, algo que devia ser feito com obrigatoriedade, a que ninguém poderia
escapar. O não pagamento do imposto anual devido ao rei, ao que parece, era algo que punha
em risco um indivíduo de cair em desgraça. Retericus, consciente desta possibilidade, optou
por enviar o pagamento anual, mesmo em atraso, e acrescentá-lhe as suas propriedades, as
igrejas de São Pedro e de Santa Maria de Mezonzo. Juntamente a estes bens imóveis, foram
juntados bens móveis, servos que haviam obtido a sua manumissão por meio do abade, mas
que perderam seu novo e efêmero estatuto para fazer parte do conjunto de mercês entregues à
maneira de submissão ao grande monarca asturiano.
Surpreendemo-nos aqui com um testemunho não-intencional que nos permitiu
vislumbrar um dos instrumentos arrecadadores da monarquia asturiana, que possivelmente
estivesse em curso, com segurança, desde os tempos de Afonso II. Sabemos que tais
arrecadações contribuíam consideravelmente para o esforço construtivo levado a cabo pelos
reis nortenhos. Contudo, algumas questões ainda precisam ser lançadas, com o intuito de
elucidar a natureza deste modelo de arrecadação de impostos asturiano. O caso que acabamos
de abordar refere-se a um abade em dívida com o seu soberano. É o único testemunho de que
dispomos para considerar, mas que se revela útil como elemento que suscita questionamentos
e discussões. Não ainda para o período que estamos estudando nenhum vestígio de
concessão de imunidades, nem a laicos, nem a eclesiásticos. Não qualquer referência que
possa nos dizer diretamente se tal cobrança era estendida a toda comunidade eclesiástica
nortenha e submetida à autoridade asturiana. o podemos afirmar categoricamente que a
exigência de pagamento anual de tributos recaía também sobre a aristocracia laica. Estamos,
sem sombra de dúvida, em terreno bastante movediço.
Os documentos de doação, venda, permuta, divisão de bens ou mesmo cartas de
fundação de mosteiros são claros ao enumerar o conjunto de seus patrimônio: cabeças de
gado, cavalos, muares, pomares, prados, moinhos, e, em alguns lugares, salinas. Propriedades
laicas e eclesiásticas não se diferenciavam de maneira alguma, todos dependiam diretamente
destas atividades rurais. Extraíam-se as riquezas dos trabalhos empreendidos nas vilas, nas
unidades produtivas. Os reis, como aristocratas, obtinham o seu sustendo da exploração de
suas propriedades fundiárias. Aqui estamos no campo da esfera privada, de como cada um se
sustenta. Podemos dizer então que parte dos recursos obtidos pela monarquia para
empreender edificações religiosas, militares e para sua manutenção e reprodução era
proveniente da exploração imediata do patrimônio fundiário monárquico exclusivamente? De
maneira alguma! A análise das fontes nos mostra que, além do uso do trabalho camponês,
282
livre ou jornaleiro, existiam outros expedientes. Como havíamos destacado nas páginas
precedentes, era de grande importância a extração de recursos com base em multas sobre o
descumprimento de contratos e o desrespeito à propriedade alheia.
Considerando a perspectiva de continuidade das tradições visigóticas no Reino das
Astúrias, podemos dizer que as punições contra invasores, descumpridores de contratos ou
depredadores de patrimônios e contratos alheios relacionam-se com bastante intimidade com
o Liber VIII do Fuero Juzgo, a parte que se dedica a De inlatis violentiis et damnis
1027
. As
punições estabelecidas nos Títulos I e II, respectivamente, I Titulus de invasionibus, et
direptionibus e II Titulus De incendiis, et incensoribus, são chibatadas, tanto nas chamadas
leges antiquae quanto nas demais. A punição corporal nos cartulários asturianos não é
freqüente, mas, de qualquer maneira, a relação das sanções é atrelada aos preceitos contidos
no Lex Visigothorum, ainda mais no que tange ao III Titulus De damnis arborum, hortorum,
vel frugum quarumcumque, no qual a pena pecuniária é estabelecida nos dezesseis cânones
que compõem esta parte do código visigótico. Estamos falando aqui de danos causados
intencionalmente, não por animais ou acidentes, as sanções estabelecidas são destinadas a
punir o dano causado por pessoas, evidenciando assim a intencionalidade da depredação.
Com os novos dados acrescentados acima teríamos condições de dizer que os
fundamentos que garantiram a aquisição de recursos por meio da extração das multas é parte
de um aparato tributário anterior à monarquia asturiana, proveniente de uma instituição em
processo de retomada e reorganização após a invasão árabe. Deste modo, o direcionamento da
parte do rei nada mais seria do que a manutenção de mecanismos de arrecadação derivados
das instituições baixo-imperiais e, portanto, estaria afastada de uma apropriação de natureza
senhorial. Todavia, nem sempre podemos apostar de maneira tão radical nesta opção, ainda
mais se considerarmos as transformações sociais, institucionais e políticas dos últimos quatro
séculos que precederam o reinado de Afonso III. Como diria Marc Bloch, para desespero dos
historiadores os homens não inventam novas palavras sempre que se transforma a realidade a
que as mesmas se referem!
Reflexões similares podem ser desenvolvidas em relação ao tributo anual pago ao rei
conforme o indicado no documento do abade Retericus. O que seria este imposto anual? A
quem submetia? Nem ao menos sabemos se constitui uma inovação das últimas décadas do
século IX ou a radicalização e consolidação de uma prática antiga. De qualquer maneira, o
que podemos inferir dele é o fato de a posição do monarca possibilitar tal postura superior e
1027
Fori Ivdicvm. , p. 103.
283
ameaçadora. É ―a parte do rei‖. É ―o pagamento anual devido‖. Não se trata, de maneira
alguma, de um rei que é um simples líder de razias. Ao que tudo indica, esta característica
passara a ser, muito tempo, paralela ao perfil de um rei que era capaz de extrair de seus
súditos, independentemente da categoria social, recursos diversos. Extração de rendas ou
arrecadação tributária? Como medir a alçada de uma e de outra, ou mesmo saber se elas eram
encaradas como mecanismos distintos. Diferentemente de Marcelo Cândido da Silva, como
veremos logo a seguir, não tivemos a sorte de encontrar vocábulos que tratassem do tesouro
régio ou do fisco. E quando nos deparamos com expressões que explicitam a existência de um
fisco, notamos que o documento no qual se insere esta realidade é uma falsificação da Baixa
Idade Média. Salvo uma exceção.
Lancemos nossos olhos sobre o documento n° 63. Ordoño I concede al abad Ofilon, a
sua hermana María y al presbítero Vicente el Monasterio de Samos
1028
, documento datado de
20 de maio de 856. Mais uma doação dos reis asturianos ao mosteiro de São Julian de
Samos
1029
. Além de terras, são doados livros e ornamentos para a igreja
1030
. É o único
testemunho, datado do período situado entre os anos 711 e 910, que trata diretamente da
existência de um fisco ou de um aparelho de tributação estatal em funcionamento
efetivamente em meados do século IX. Não apenas isto, tal máquina de arrecadação estaria
vigente desde, pelo menos, Afonso II, avorum nostrum, o que significa que poderíamos
retroagir seu funcionamento até um período imediatamente anterior, talvez, em fins do século
VIII. É temerário confiar neste vestígio do passado? De onde se origina tal insegurança? Será
possível acreditar que o fisco praticado pelos avôs de Ordoño I seja, de alguma forma, um dos
restos deixados pelo passado visigóticos na Galícia? E que este aparelho ainda vigente foi
apropriado pelos monarcas asturianos desde pelo menos Afonso II? O mosteiro de Samos fica
nos confins da Galícia. San Julián de Samos foi, de acordo com a coletânea de Antonio C.
Floriano, a casa eclesiástica que mais se regalou com dádivas régias em zonas tão distantes. A
título de comparação, se não for forçoso demais, o exemplo navarro diante da dominação
muçulmana pode ser bastante ilustrativo. Na ausência de um aparato fiscal próprio, os
invasores árabes tiraram proveito do sistema em funcionamento que era de origem tardo-
romana. Mesmo quando insubordinado ao poderio visigótico de Toledo, tal aparelho de
1028
n° 63. Ordoño I concede al abad Ofilon, a sua hermana María y al presbítero Vicente el
Monasterio de Samos. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910).
Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 2710
1029
Ibid., p. 270.
1030
Illas, in Salinenses Villa, quae dicunt Lustri et Ecclesiae Sancti Petri, in Ripa Minei Monasterio, quae
dicunt Hicorantes, cum omni sua aedificia, vel illas Piscarias, quas ibidem sunt in Mineo super Portum ambas
Mestas, qui ex Fisco Avorum nostrorum, fiscales vocatae sunt, p. 271.
284
arrecadação ainda se fazia presente e capitaneado por um representante político local, que no
caso da presença muçulmana era da família Arista.
O problema da fiscalidade na Idade Média é também foco de análise para aqueles que
se dedicaram ao estudo da esfera pública no reino franco. Para Marcelo Cândido, a questão é
saber exatamente a que o termo ―público‖ se refere no século VI
1031
. Um dos pontos mais
polêmicos referentes à administração franca é a questão em torno do ―fisco‖, um dos temas
mais caros para se defender o caráter patrimonial da realeza
1032
. Os defensores desta tese
afirmam que os merovíngios confundiam o tesouro público com o tesouro particular
1033
.
Defendendo a tese patrimonialista, os historiadores citam Gregório de Tours
1034
, cuja menção
ao ―tesouro do rei‖ corresponderia, na verdade, ao ―tesouro público‖. ―O termo ‗tesouro‘
empregado pelo bispo de Tours é às vezes bastante ambíguo e se presta à confusão. Somente
nas Histórias, é possível identificar três acepções distintas desse termo‖. A primeira acepção é
de ―tesouro‖ como ―erário‖, ―lugar onde eram conservados ouro e dinheiro‖
1035
. A segunda
acepção é a de depósito de diplomas oficiais
1036
. A terceira é a de tesouro pessoal do rei, dos
membros da família real ou do dote
1037
. Lamentavelmente, a documentação asturiana não nos
permite estabelecer qualquer precisão.
Segundo Luís Ramón Menéndez Bueyes, um dos argumentos para se defender a
preservação do aparelho político-administrativo hispano-godo nos reinos da Reconquista é a
presença de uma estrutura fiscalista. No que se refere à ―Escola Fiscalista‖, esta sustenta a
continuidade dos elementos tardo-romanos na Idade Média por meio ―da fiscalidade tributária
(ingressos do Estado, gasto público, gestão das finanças públicas, exército, administração de
justiça) ao longo de todo o mundo romano e dos reinos germânicos, ligando-se assim com os
tempos alto-medievais‖
1038
. A ruptura com o modelo de captação romano não teria se
produzido no século V, mas sim no século X
1039
, momento de mudança, não necessariamente
de ruptura, mas de evolução que conduzirá a uma revolução feudal
1040
. Nesta perspectiva, o
1031
SILVA, Marcelo Cândido da. O ―interesse público‖ no século VI. In: ________. A realeza cristã na
Alta Idade Média: os fundamentos da autoridade pública no período merovíngio (séculos V-VIII). São Paulo:
Alameda, 2008, p. 136.
1032
SILVA, op. Cit.., p. 136.
1033
Ibid., p. 136.
1034
Ibid., p. 137.
1035
Ibid., p. 138.
1036
Ibid., p. 138.
1037
Ibid., p. 138.
1038
MENÉNDEZ BUEYES, Luís Ramón. La transición del mundo antiguo a la Edad Media. In: ________.
Reflexiones críticas sobre el origen del reino de Astúrias. Salamanca: Universidad de Salamanca, 2001, p.
236.
1039
Ibid., p. 236-237.
1040
Ibid., p. 237.
285
colonato não seria a ―pedra de toque de toda polêmica sobre as origens do sistema feudal
como uma forma de dependência privada entre os potentiores e camponeses, mas como uma
forma de dependência fiscal entre pessoas livres, e sempre dentro de uma estrutura estatal que
delegava de forma tradicional a autoridade pública em mãos privadas (os dominus), pelo que
se nega, desta maneira, a existência de um feudalismo no mundo germânico‖
1041
. O foco
central seria a villa não como unidade econômica, mas como uma demarcação fiscal,
possuidora de contribuintes, servi, enquadrados em unidades fiscais, mansi
1042
.
Esta tese é bastante polêmica e amparou-se em pesquisas sobre a Europa Central.
Lembremos a ambigüidade das nomenclaturas na Península Ibérica e o problema da escassa
romanização do Norte Peninsular, além do fato de muitas vilas serem de origem
germânica
1043
. Segundo Menéndez Bueyes, o amálgama daquilo que constituía o erário
público e o patrimônio do príncipe teria se originado no reino dos visigodos, consolidando-se
quando se estabeleceu a hereditariedade nos reinos hispânicos
1044
. Esta mesma ―confusão‖
ocorreria entre as prestações privadas de tipo senhorial (extração de rendas e serviços do
campesinato) e os verdadeiros impostos de origem pública (voltados à sustentação do
Estado)
1045
. Desarticulado o reino visigodo, os reinos da Reconquista demoraram a
reorganizar sua Fazenda
1046
. Seus ingressos não eram regulares e estavam mais relacionados
às necessidades momentâneas de aprovisionamento de meios econômicos
1047
. A economia
natural dos primeiros séculos da Idade Média impunha o pagamento de prestações em
espécie, fator, segundo Font Rius, que aumentaria a conjugação dos ingressos de tipo público
e os de tipo privado
1048
. Somente com o avanço de uma economia monetária é que a distinção
entre um e outro passou progressivamente a se estabelecer
1049
.
A postura que procuramos adotar quanto a esse tema é nos restringir somente a
instrumentalização desta aquisição de bens e riquezas por parte da monarquia e da aristocracia
nortenha. Para isso, empregamos mais uma vez nesta tese reflexões fornecidas por Charles
Tilly, para quem ―A história diz respeito ao capital e à coerção‖
1050
. A partir de tal
perspectiva, pode-se notar que a maior parte das organizações político-territoriais, apesar de
1041
MENENDEZ BUEYES, op. cit.,p. 237.
1042
Ibid., p. 237.
1043
Ibid., p. 237.
1044
Ibid., p. 51.
1045
Ibid., p. 51.
1046
Ibid., p. 52.
1047
Ibid., p. 52.
1048
Ibid., p. 52.
1049
Ibid., p. 52.
1050
TILLY, op. Cit., p. 63
286
refletirem intensamente a organização da coerção, na verdade mostram-se também por meio
dos efeitos da acumulação de capital
1051
. Em outras palavras, poderíamos dizer que a
expansão e complexificação de grandes poderes territoriais envolvem necessariamente, para
sua manutenção, a aquisição e controle de quantidades cada vez maiores de recursos. Se as
articulações políticas e discursos de legitimação compõem elementos fundamentais na
constituição do Reino das Astúrias, a extração de rendas e riquezas não deve ser, de modo
algum, deixada de lado. Todavia, não dispomos, até o momento, de estudos referentes ao
período asturiano, o que nos força a apresentar uma reflexão com base em um período
posterior, mas próximo, da realidade que por hora tentamos identificar. Abaixo seguem três
estudos, apresentados brevemente, sobre os esforços de extração de riquezas produzidos nas
zonas leonesa, galega e castelhana.
Em um trabalho datado de uma década, encontramos Maragita de León, que
dedicou-se a analise a formação do condado leonês de Cea, no século X. Margatita de León
Sevilla-Quiñones, de início, adverte-nos da pouca quantidade de fontes, fato este que se
configura em um entrave na análise da constituição do patrimônio da linha condal de Cea
1052
.
Contudo, seguindo os breves indícios fornecidos por alguns diplomas, poder-se-ia ter uma
idéia da possível capacidade e do poder econômico dos condes de Cea, percebidos por sua
prática de doações e de fundações de mosteiros
1053
. O silêncio documental debilita os esforços
do estudo da fazenda condal, os quais são acrescentados de outros obstáculos: ―o grande
desconhecimento existente da fiscalidade alto-medieval astur-leonesa‖
1054
. Falta um marco
amplo e seguro de informações para recompor uma tipologia das rendas
1055
, situação que
torna impossível saber a natureza exata dos tipos de prestações constantes nos diplomas
1056
.
Todavia, segundo a historiadora, se for empregado o esquema construído por S. Moxó,
poderíamos dizer que a origem das rendas são duas: fiscais e jurisdicionais
1057
. A segunda
forma de extração de riquezas era a mais rentável e diferia dos pressupostos herdados do
período baixo-imperial
1058
. Segundo o estudo de Sevilla-Quiñones de León:
os principais ingressos ou, ao menos, aqueles dos que possuímos mais ampla gama
de informação, correspondem ao que na documentação da época apareço consignado
sob o nome de iudicato, ainda que não deva esquecer que a mesma existência deste
1051
TILLY, op. cit., p. 63.
1052
SEVILLA-QUIÑONES DE LEÓN, Margarita C. Torre. Hacienda Señorial. In: ________. El Reino de
León en el siglo X: el condado de Cea. Leão: Ediciones Universidad de León, 1998, p. 162.
1053
Ibid., p. 162.
1054
Ibid., p. 164.
1055
Ibid., p. 164-165.
1056
Ibid., p. 165.
1057
Ibid., p. 165.
1058
Ibid., p. 165.
287
tipo de rendas de caráter jurídico apareça em alguns diplomas dentro das cláusulas
cominatórias como pariet ad parte comite, pague à parte do conde, ou seja, a sua
fazenda
1059
.
O que pode ser então verificado que ―as prerrogativas judiciais eram um componente
essencial da autoridade condal e o exercício desta faculdade proporcionava, à par, parcos
benefícios ao magnate a frente do territorium
1060
. No pagamento dos serviços judiciais, o
condenado deveria entregar o que cabe ao delegado real ou seus representantes
1061
. Tal
aquisição de renda, portanto, proporcionava ao conde um aumento constante de sua
fazenda
1062
. Esta realidade observada no território leonês de Cea parece também estar presente
em outras porções daquilo que compunham as terras do Reino de Astúrias, como, por
exemplo, a região da Galícia. Amancio Isla Frez ressalta que as escrituras galegas informam-
nos que os habitantes de condados ou mandações recebidas por aristocratas laicos e religiosos
deveriam se submeter à autoridade destes e pagar os tributos que outrora eram pagos a
autoridade gia
1063
. As referencias aos impostos e tributos não são casos isolados ou mero
acidente, elas representam o fortalecimento dos condes com base na arrecadação obtidas das
comarcas recebias, além de terras dos devedores, donativos de toda espécie
1064
.
Se os curiales e outros antigos arrecadadores de impostos foram substituídos por
grandes senhores locais, inclusive bispos e abades, é possível que, após o fim da dominação
do reino toledano, tais indivíduos, grupos ou famílias tenham preservado esta prerrogativa de
promover a arrecadação tributária. Para se compreender esta situação, devemos lembrar os
apontamentos de Ernesto Pastor Díaz de Garayo, que nos informa que o exercício do poder
fiscal atuava também como fonte de ingressos importantes
1065
. Portanto, o que os monarcas
asturianos faziam era penetrar nos círculos sociais preexistentes e apropriar deles os
elementos que auxiliassem em sua manutenção e fortalecimento. Assim, nos tempos de
Ordoño I (850-866), não encontraremos mais um sistema tributário em mãos de curiales,
representantes do estado, mas sim um fisco controlado por grupos familiares de grande
importância e que adaptaram este sistema precedente aos seus próprios interesses. O que a
monarquia asturiana, aparentemente, teria feito foi deslocar os recursos obtidos pelos comites
locais para os seus próprios fundos.
1059
Ibid.., p. 166-167.
1060
SEVILLA-QUIÑONES DE LEÓN, op. cit., p. 167.
1061
Ibid., p. 167.
1062
Ibid., p. 167.
1063
ISLA FREZ, Amancio. La nobleza en epoca asturleonesa. La sociedad gallega en la Alta Edad
Media. Madrid: CSIC, 1992., p. 151.
1064
Ibid., p. 151.
1065
DÍAZ DE GARAYO, op. cit., p.183.
288
A parte do rei (ou do conde) era a parte do rei, e os direitos de exploração seriam
tratados, mesmo que superficialmente, como elementos distintos. Mais do que certeza ou
constatação explícita, nossas afirmações se balizam pelo contraste entre ambas as referências.
Pelo menos até Afonso III, a parte do rei deveria ser entregue por todo indivíduo ou grupo
livre, isto se extrapolarmos as considerações contidas no documento do abade Retericus.
Todos aqueles que mantinham alguma relação direta com o monarca deveriam colaborar
anualmente com o sistema tributário asturiano, do qual não poderiam se esquivar. Tal sistema
fundava-se na apropriação de uma parcela dos produtos do trabalho dos camponeses
diretamente submetidos aos senhores da terra ou mesmo do emprego de trabalhadores rurais
livres em momentos específicos da atividade agrícola. São estes os direitos de exploração,
restritos à atividade produtiva. Ao que tudo indica, foi essa a dinâmica social até o alvorecer
do século X. Lastimamos, mais uma vez, a exigüidade dos dados.
Sabemos, contudo, que esse sistema espraiava-se por uma longa franja entre a costa da
Galícia e as regiões montanhosas de La Rioja. Vimos, desde o terceiro capítulo desta tese,
elencando vários exemplos do esforço construtivo dos reis asturianos. Os cartulários nos
informam que, embora em menor escala, outros senhores nortenhos empenhavam-se em
iniciativas semelhantes. Houve, portanto, uma constante no emprego de recursos em setores
―não-produtivos‖. Dotados de uma posição social e política superior à de seus ―pares‖, os
monarcas conseguiram articular um sistema de arrecadação que se mostrou bastante
proveitoso para seus objetivos. Além das despesas com a construção de igrejas e mosteiros,
verificamos também um exemplo de beneficiamento de uma dada região em conformidade
com o bem comum.
O monumento que gostaríamos de apresentar é a Foncalada, único testemunho da
arquitetura hidráulica da Alta Idade Média. De todas as edificações asturianas, esta é aquela
de que menos dispomos de informações. Nenhuma crônica alto-medieval lhe faz alusão,
sendo mencionada pela primeira vez em um documento de 1096
1066
. É uma construção
revestida de inscrições pouco legíveis, exceto a que se situa na ―fachada principal do templete
ou edículo, que reproduz o texto de uma antífona do Liber Ordinum Episcopalis, um dos
livros litúrgicos em vigor durante a Alta Idade Média hispânica, equivalente ao Pontifical do
rito romano‖
1067
. Datado da primeira metade do século IX, a Foncalada é composta por três
partes estanque, edículo e canal , conforme os trabalhos arqueológicos levados a cabo
1066
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arte prerrománico en Asturias. Pola de Siero: Ménsula
Ediciones, 2008, p. 30.
1067
Ibid., p. 30.
289
nos primeiros anos da década de 1990
1068
. O canal foi parcialmente desenterrado, contudo,
não se conhece a procedência das águas que o alimentavam
1069
.
Segundo García de Castro Valdés, o presente ―tipo arquitetônico reproduz modelos de
fontes de tradição romana, bem representadas em Pompéia‖
1070
. Há, ainda, além da função
prática, segundo García de Castro Valdés, uma importante função simbólica que pode ser
apreendida pelo recurso a textos litúrgicos que compõem sua epigrafia
1071
. No que se refere às
inscrições, as legendas seguem um modelo textual muito comum em Astúrias. Como já
destacamos acima, modelos litúrgicos inspiraram a sua redação
1072
. Há, todavia, diferenças
paleográficas quando comparadas a outras peças epigráficas, estando o estilo das letras mais
próximo das capitais romanas do que das visigóticas, como ocorre na inscrição de San Tirso,
que remonta ao período de Afonso II
1073
.
Esta manifestação de arquitetura hidráulica nos revela algo de muito elaborado em
terras ditas até então como preservadora de primitivismos. Não estamos diante de uma
sociedade rudimentar, de maneira alguma, estamos diante de uma região dotada de um
importante centro de poder, com autoridades que tomam proveito e se esforçam para manter e
ampliar uma rede de cooperação social e política. Percebemos também que uma parte dos
esforços de cristalização de um poder hegemônico nortenho passava por uma certa primazia
no canalização de recursos. Sendo assim, este poder, de natureza monárquica, era capaz de
realizar grandes obras, empregar construtores competentes e continuadores de técnicas
construtivas originadas de um passado relativamente remoto e que, para alguns, era
inacessível para os homens do norte.
Segundo Garica de Castro Valdes, estilo arquitetônico da fonte é idêntico ao
empregado nas construções atribuídas a Afonso II, indício que nos inclina a responsabilizar
tal monarca como o responsável por sua edificação
1074
. Esta e outras obras construtivas no
levam a empregar outra consideração fornecida por Charles Tilly. Para o sociólogo, ―Quando
o capital se acumula e se concentra dentro de um território, o crescimento urbano tende a
acontecer dentro do mesmo território com maior intensidade no ponto de maior
concentração, e de modo acessório em outros locais‖
1075
. Lembremos que a cidade de Oviedo
1068
Ibid., p. 30.
1069
Ibid., p. 31.
1070
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, op. cit., p. 32.
1071
Ibid., p. 32.
1072
GARCÍA DE CASTRO VALDÉS, César. Arqueología Cristiana de la alta edad media en Asturias.
Oviedo: Real Instituto de Estudios Asturianos, 1995, p. 92.
1073
Ibid., p. 92.
1074
Ibid., p. 92.
1075
TILLY, op. Cit., p. 65.
290
é, neste tempo, capital do Reino das Astúrias, região com grande capacidade de reunir enorme
quantidade de riquezas. O caso da Foncalada nos mostra como a pressão tributária
monárquica poderia ser revertida para o beneficiamento de seus súditos. Esta manifestação de
ervergetismo monárquico não constante nas crônicas ou na documentação notarial alto-
medieval deve ser devidamente destacada. A sua função social está entrelaçada à sua função
monumental. É a manifestação material dos benefícios trazidos pela existência de um bom
governante. O peso de suas exigências é comparável à sua liberalidade para com o seu povo.
A arrecadação envolvia uma contrapartida, o beneficiar o seu povo. Talvez estejamos diante
de um chefe de guerra que ultrapassou a barreira limitada e efêmera das concessões de bens
móveis produzidos pelo butim das razias. Enquanto a entrega de terras constitui uma
referência a um acordo entre pessoas, privado, bilateral, a edificação da Foncalada envolve
toda a comunidade dos súditos, favorecendo o seu bem estar. Encontramos aqui o primeiro
exemplo de beneficiamento coletivo e perene dos monarcas asturianos, mercê que pode lançar
um pouco de luz sobre a relação dos reis asturianos com a coletividade de seus súditos.
Trata-se de um pacto monástico datado de 871, outorgado por Unila e outros religiosos
e religiosas que assumiam vida comunal sob a autoridade do abade Fulgaredo
1076
. Mais que
um exemplo de casa monástica dúplice, o texto apresenta as intenções de um conjunto de
pessoas devidamente nomeadas que se propõem a se submeter à autoridade, imperio, do
abade Fulgaredo, responsável pela vigilância da regra adotada pelos pactuantes, dado comum
e genérico de qualquer pacto monástico. A referência que nos chamou a atenção diz respeito
às proibições decorrentes da obediência à autoridade do abade e da observância da regra.
Assim se expressa o texto:
Todos nós nos comprometemos contigo em um único desejo, para que se acaso
alguns de nós for contra os teus preceitos, ou for murmurante, sussurrante e
caluniador contumaz contra os documentos da santa regra, neste caso, tenhas poder
de emendar cada um de nós segundo sua culpa ou negligência, sendo flagelado pela
excomunhão por dois ou três dias segundo a qualidade da culpa. E que se aquele que
arrastar alguns de nós para o mal e estes perseverarem, escandalizarem os irmãos e
voltarem ao século, que sejam excomungados de todas as coisas dos mosteiros
aqueles que se afastarem, e perca toda voz sendo censurado pelas leis mundanas.
1077
1076
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo:
Cartulario Crítico, 2v. 1949, p. 73.
1077
No. 102. Sane illut omnes uno animo compromitimus tibi, ut si quis ex nobis contra tua precepta, UEL
sancte regula documenta contumax, murmurnas, susurrans UEL calumpniator extiterit, tunc abeatis potstatem
unumquemque nostrum secundum suam culpam UEL negligentiam emendare, flagella excommunicationem
biduana et diuturna triduana secundum qualitatem culpe. Vt si quod absit aliquis ex nobis in malis
perseverauerint et fratres scandalizauerint et ad seculum reuerti uoluerint, sint excomunicati de omni re
monasterii quos ibi abstulit, et careat omnem uocem causandi pro impsa legis mundane. In: FLORIANO,
Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Cartulario Crítico, 2v. 1949, p.
73-74..
291
Via de regra, as punições de atentados contra pactos monásticos ou desrespeitos aos
acordos firmados em uma carta de transmissão de propriedade envolvem algum tipo de
excomunhão ou maldição. Fórmulas que amaldiçoam o infrator são uma constante em uma
sociedade temerosa das forças divinas, ainda mais no que tange àqueles que tencionavam
constituir uma comunidade religiosa. Todos os seus atos estão submetidos a preceitos
religiosos ou à autoridade de um chefe tanto comunitário quanto religioso. Todavia, algo
chama nossa atenção: a referência a ―leis mundanas‖, legis mundane. Sua menção pode nos
indicar a existência de um conjunto de normas laicas que não ―blindam‖ grupo não unidos sob
uma regra monástica. O pacto, placitum, proporciona a formação de um grupo unido e
protegido por uma regra, regula. Marc Bloch destaca que, no caso do direito anglo-saxão, o
indivíduo destituído de laços ou não submetido a um senhor deveria ser tratado como um
marginal pela lei
1078
. O mesmo aconteceria com o indivíduo que rompesse com os preceitos
da regra, afastando-se do mosteiro e de seus irmãos e irmãs em corpo e espírito, submetendo-
se tal indivíduo unicamente às duras leis dos homens, legis mundane, segundo os termos do
próprio pacto.
Destacamos, nas ginas precedentes, que os expedientes contidos nos contratos, no
que tange à punição aos desrespeitosos, bebem diretamente nas tradições contidas no Fuero
Juzgo. A multa pecuniária por depredação ou invasão de propriedade, cuja composição
deveria ser entregue à autoridade competente e revertida aos monarcas não era encontrada nos
documentos notariais asturianos anteriores ao culo IX. Ao contrário, o que vigorava até
então eram fórmulas de maldição que eram lançadas contra os infratores, além de uma
esporádica recuperação do dano causado, somadas à reparação do dano o acréscimo e
melhoria da propriedade atingida. Tais elementos prosseguiram, mas foram sendo acrescidos
de outras referências que reproduziam preceitos da Lex Visigothorum. Mas isto não era tudo, e
nos primeiros anos do Reino das Astúrias novas situações foram sendo agregadas a esta
realidade.
Tratamos de algo que aparentemente era alheio à realidade judiciária asturiana. Nos
primórdios do reino, o contrato era lei. Uma parte das contendas tinha como solução sanções
prescritas no próprio documento de fundação de mosteiro ou igreja, concessão de
propriedade, venda ou permuta, pelo menos se limitava à ―esfera civil‖, na relação entre
indivíduos e bens e dos indivíduos entre si. Contudo, isso não abarca toda a esfera legal alto-
medieval, mas sim uma parcela dela. A documentação preservada apresenta outros recursos a
1078
BLOCH, Marc. Perspectiva européia. In: ________. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 2001, p.
195.
292
serem utilizados na resolução de conflitos, algo também vinculado à presença de notáveis
locais ou enviados do rei, que denotam um esforço consciente em intervir no tecido social e se
fazer reconhecer por esta ação.
Estamos falando dos últimos anos de reinado de Ordoño I, em meados de 861. A fonte
que auxilia na identificação deste cenário é uma manifestação de Toresario ocorrida diante de
juízes reunidos pela petição de Sendino, representante da Iglesia de Braga. O litígio
instaurado pelo esforço da sé de Braga em fazer Toresario reconhecer que tanto ele quanto sua
família pertencem a ―plebe y família‖ da referida episcopal
1079
. O registrado da audiência
consta na carta feita na presença do conde Frollano e dos abades Framalani, Adulfo, Honorici
e Stephani que analisaram petição de Sidini, representante do bispo Gladilani de Braga
1080
. É
uma manifestação de Toresario contra a de Braga, na qual informa que não é descendente
da plebe, pleue, ou da família de Braga
1081
. O resultado desta contenda esta manifestada no
diploma de número 75 da compilação de Antonio C. Floriano, no qual Toresario se viu
obrigado a firmar um pacto com o bispo Gladilano, sendo obrigado a lhe servir na igreja e na
vila de Moreta
1082
. Toresario não tem outra opção a não ser forçado a entrar no serviço do
bispo de Braga
1083
, caso não cumpra suas funções, Toresario poderá sofrer o flagelo da
excomunhão
1084
.
Os dois documentos acima referem-se ao mesmo litígio que envolve o presbítero
Toresario. Procedente das terras que compõem atualmente o norte de Portugal, o caso acima
apresentado relaciona-se à resistência por parte de determinados setores sociais em reconhecer
seu estado de dependência. Toresario, nesta situação, é um servidor da de Braga, alguém
cuja ancestralidade padecia de liberdade restringida, estando, pois, submetido
hereditariamente a uma autoridade privada que cerceava sua atuação. A desobediência de
Toresario gerou uma reação na qual intervieram diversos árbitros que constituíram um
conselho. O bispo de Braga, ciente de suas prerrogativas, agiu com a intenção de suprimir as
pretensões autonômicas de Toresario. Como podemos notar, não referência a nenhum
acordo feito anteriormente entre ambos os litigantes, nem ao menos parece que tenha havido
1079
74. Manifestación de Toresario ante los jueces reunidos a petición de Sendino, representante
de la Iglesia de Braga, de haber sido él y sus antepasados plebe y família de la iglesia de Braga.
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949., p. 307.
1080
Ibid., p. 307.
1081
Ibid., p. 308.
1082
75. Toresario hace pacto con el obispo Gladilano de servirle en la iglesia y Villa de Moreta.
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 1v. 1949, p. 309.
1083
Ibid., p. 309.
1084
Ibid., p. 309.
293
alguma documentação que pudesse comprovar a origem doméstica de Toresario. Longe disto,
o que operou, neste âmbito, foi o choque entre ―memórias‖ ou ―tradições‖ que afirmavam
distintas origens para o indivíduo em questão.
Aqui destacamos o fato de ter-se formado um ―conselho‖ para analisar a situação e
garantir um veredicto, dando, portanto, uma solução para uma demanda apresentada. Quando
as duas partes de um processo não chegavam ao devido acordo, tornava-se necessária a
intervenção de terceiros, representantes da autoridade responsável pela manutenção da ordem.
Aqui foram chamados a intervir o conde Frollano e os abades Framalani, Adulfo, Honorici e
Stephani, que se pronunciaram. O interessante é que o esforço para fazer Toresario a
reconhecer suas origens é lembrá-lo de seu pertencimento a plebe, pleue, o que poderia
sugerir que tal vocábulo era indicado para identificar todo aquele que não fosse de categoria
aristocrática e que este setor estivesse submetido diretamente à autoridade e ao arbítrio de um
senhor. Contudo, aqui, mais uma vez, as palavras não significam exatamente aquilo que seu
valor semântico parece expressar. No caso explicitado, deparamo-nos com uma especificação
importante. O documento afirma que Toresario é pertencente à família de Braga, ou seja, não
apenas ele provem de escalões baixos da sociedade nortenha, como também está fazendo
parte de uma relação de submissão explícita.
Mas, o que importa aqui, o nosso foco central, é a intervenção sócio-jurídica em
situações litigiosas. A presença de um conde encabeçando a lista de árbitros do juízo em
questão pode significar a existência de esferas superiores de intervenção, que respondem pela
manutenção da ordem estabelecida, ou seja, dotados de poderes para manter a ordem e de dar
respostas a demandas conflituosas. O caso galego é bastante ilustrativo, pois nele se
apresentam focos de poderes locais devidamente constituídos. Este procedimento, ligado às
atuações judiciárias, trás à tona o estabelecimento de esferas de tomada de decisão superiores
e presentes em uma parcela importante do Norte da Península Ibérica. Estas mesmas esferas
parecem manter um comportamento padrão, ultrapassando a esfera de um poder privado,
constituindo-se uma instância à qual os grupos sociais estavam obrigatoriamente submetidos.
Situação idêntica é a que se refere à sentença proferida por Afonso III, que veio a
intervir em questões de propriedades entre seus súditos. Os litigantes eram Indisclo, bispo de
Astorga, Baroncello e os filhos de Catelino, que disputavam o controle da vila de Brimeda. O
documento no qual consta a sentença do monarca asturiano é datado de 6 de junho de 878
1085
.
1085
120. Sentencia real pronunciada en juicio confirmado a Indisclo, obispo de Astorga, en la
posesión en la villa de Brimeda cuya propriedad le era disputada por Baroncello y los hijos de Catelino.
294
Outro diploma asturiano que nos mostra a realização de uma audiência judicial data de 7 de
dezembro de 885. Os envolvidos são Lellitus e Lillus que teriam recibido do bispo Sisnando a
igreja de San Adrián situada na vila de Sionda, na região de Liébana
1086
. Os três últimos
exemplos sendo os dois finais pertencentes ao período de Afonso III auxiliam-nos na
reconstituição de um cenário consideravelmente nebuloso. Conseguimos, com eles, superar a
efetiva escuridão para adentrarmos em um ambiente de penumbra, o que, para o período que
estamos analisando, é um considerável avanço. Até o reinado de Ordoño I, não
dispúnhamos de nenhum dado acerca da formação de instâncias superiores de tomada de
decisão no que se refere a procedimentos judiciários. Estamos diante de categorias dotadas de
reconhecimento para tomar uma determinada decisão: rei, conde e bispo. São funções
pretendidas como intrínsecas a atuação caso do monarca, ou delegadas a certas figuras
aristocráticas. De que maneira, entretanto, tais delegações de funções se processavam é algo
não muito claro. Em algumas circunstâncias tem-se a impressão de que, no caso dos condes
castelhanos, a função de arbítrio máximo é algo inerente à sua posição social e política.
Contudo, encontramos um momento no qual os reis asturianos parecem restringir a atuação
destes condes, submetendo a uma esfera de tomada de decisão maior. Sendo assim, em
momento que não podemos precisar, os condes castelhanos atuam tais quais os condes das
demais regiões inseridas na esfera de influência ovetense.
Para não deixarmos de sermos repetitivos em nossas lamúrias, lamentamos os parcos
subsídios legados pelo passado nortenho. O malogro e o perecimento da documentação da
Alta Idade Média nortenha apenas conservaram uns parcos exemplos para nossas análises.
Lancemos nossos olhos sobre dois diplomas produzidos na primeira metade da década de 910.
O primeiro documento é datado de 22 de outubro de 904, correspondendo a uma doação feita
por Afonso III ao Mosteiro de Sahagun.
1087
Concede ao abade Afonso autoridade sobre a
população de vila Zacarías
1088
. O documento seguinte também se refere a relação construída
entre o monarca e o mosteiro galego. Datado de 10 de novembro de 905, o texto trata da
restauração promovida por Afonso III e sua esposa Ximena do Mosteiro de Sahagun. Além
dos reparos dos danos produzidos por uma expedição muçulmana, a casa monástica é dotada
FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La
Cruz‖, 2v. 1949, p.127.
1086
134. Manifestación en juicio hecha por Lellitus y Lillus de haber recibido del obispo Sisnando
y retenido en su poder la Iglesia de San Adrián sita em la villa Sionda, en la Liébana. FLORIANO, Antonio
C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p.161.
1087
173. Alfonso III concede al Monasterio de Sahagun, juridicción sobre los moradores de Villa
Zacarías. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur (718-910). Oviedo:
Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p. 291.
1088
Ibid., p. 291.
295
de novas vilas e igrejas, bem como conseguindo novas ampliações de sua jurisdição sobre os
habitantes das terras recentemente adquiridas
1089
Os documentos são de princípios do século X e provenientes das regiões galegas, de
terras conquistadas aos muçulmanos ou situadas no limite destas. De qualquer maneira, são
terras distantes da zona de atuação imediata do poderio dos monarcas asturianos e, talvez por
isso, tenha se optado pela delegação de autoridade sobre a população dos distritos destacados
acima. Desconhecemos por completo as atribuições e as delimitações dos poderes concedidos
ao Mosteiro de Sahagun. Todavia, tratava-se da transferência de autoridade do rei para seus
delegados regionais. Por meio destes documentos tomamos conhecimento do detentor último
de autoridade nortenha: o rei. Até o presente momento não encontramos nenhuma referência
que indique que mosteiros como o de Sahagun estivessem livres de cobranças de impostos e
tributos, mas temos noção de que contavam com apoio da monarquia. Nem todos dispunham
deste tipo de graça real.
5.4. Usurpação, distribuição e autoridade:
Todo o percurso que fizemos até aqui neste capítulo foi o de ressaltar a pujança dos
monarcas asturianos diante daqueles identificados como súditos. Também pudemos verificar
o quanto era vantajoso estar de posse de uma máquina arrecadadora de impostos e multas. Na
passagem do século do século IX e X é perceptível a incrível capacidade da realeza asturiana
em penetrar em redes de relações sociais cada vez mais amplas e distantes, superando aquilo
que foi o núcleo original de resistência cristã dos tempos de Pelágio. Todavia, por mais que
reconheçamos o dinamismo e o poder monárquico, devemos ter sempre em mente que, por
mais forte que uma autoridade possa ser, sempre haverá resistências à sua manifestação. Isto
não indica, de forma alguma, a fragilidade da estrutura em funcionamento, ao contrário,
evidencia a inserção dela no mundo real e conflituoso. As tensões que se manifestam à sua
volta e a tenacidade com que se resiste às suas ações auxiliam na configuração do poder que
se impõe ou tenta se impor.
O caso do próprio Afonso III é bastante paradigmático quanto a isto. Os primeiros
momentos de seu reinado não foram nada tranqüilos. O jovem rei viu-se diante das pretensões
usurpadoras do conde Froila da Galícia. Tal empreitada política obteve êxito após o primeiro
1089
n° 181. Alfonso III y Ximena restauran el Monasterio de Sahagun, le dotan de villas e iglesias y le
conceden jurisdición sobre los habitantes de su término. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática
española del período astur (718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p.
296
ano de reinado de Afonso III. Os períodos de transição no trono parecem ter sido momentos-
chave para a tomada de poder por parte de determinados setores da aristocracia nortenha.
Devemos lembrar os comentários feitos no segundo capítulo desta tese, no qual discutimos as
questões sucessórias que giraram em torno dos reis asturianos. A juventude das instituições
políticas asturianas não havia ainda consolidado um caminho preponderante para a aquisição
do trono monárquico. Assim, o clima tenso que marcava o fim de um reinado e o início do
seguinte constituiu-se em momento delicado na vida política do Reino das Astúrias.
Vejamos agora o que as narrativas asturianas o capazes de nos informar sobre tal
contexto. Primeiro, aproveitaremos os testemunhos da Cronica Albeldense:
12. Afonso, filho deste, conduziu o reino por dezoito anos. Este, no florescer da
adolescência e no primeiro ano de reinado, com dezoito anos de nascimento, foi
privado do reino pela tirania do conde Froila da Galícia, e o mesmo rei dirigiu-se a
Castela. E não muito tempo depois, o mesmo tirano e nefasto rei Froila foi morto em
Oviedo pelos fieis do nosso príncipe, o mesmo glorioso rapaz retornou de Castela e
reinante tomou o sólio do pai, que desde o início do reinado teve sempre o favor
daqueles que obtiveram vitórias sobre os inimigos.
A ascensão de Afonso III ocorreu no ano de 866, quando tinha ainda seus dezoito
anos, sucedendo a seu pai tal qual este havia feito com o próprio pai, Ramiro. Entre os anos
de 866 e 867, o conde galego Froila destituiu o jovem monarca, que precisou se exilar em
terras de Castela. Uma primeira questão a destacar é que a fonte nada diz sobre o conde a não
ser o fato de que fosse da Galícia, e que tiranamente expulsara Afonso III. A título de mera
ilação, é bem possível que o usurpador fosse o mesmo conde Froila referido no cartulário
asturiano, em documento datado de junho de 861, no qual encontramos um certo conde
Frollano, um dos árbitros do litígio entre a de Braga e o presbítero Toresario. Se fosse
possível confirmar nossa suposição, o conde galego teria posição de grande destaque político
no Reino das Astúrias, ainda mais se consideramos a importância dada à região da Galícia
desde o suposto descobrimento da tumba do Apóstolo Santiago.
Outro testemunho da usurpação promovida pelo conde Froila consta do diploma no
qual o rei Afonso III restitue ao bispo de Iria Athaulfo (II) a vila de Carcaria. Os efeitos das
atuações do conde rebelde carecia de reparações como no caso do confisco das terras postas
outrora sob a responsabilidade do bispo irense.
1090
O documento é datado de 20 de janeiro de
867 e contem como uma das testemunhas da reparação do rei Afonso III o conde Rodrigo
1091
.
A importância dada por Afonso III a esta região do reino, que pode ser constatada pela ampla
1090
86. Alfonso III restituye al obispo de Iria Athaulfo (II) a villa de Carcaria que le había sido
arrebatada a la mencionada iglesia por el rebelde Fruela.
1091
Ibid., p. 23.
297
doação de terras e de cessão de direitos e autoridade a Sahagun, pelo aumento das concessões
à Igreja Compostelana e pelo casamento com Ximena, possam servir de indícios a nossa
afirmação. A ação de Froila como principal árbitro do conflito de interesses entre a sé
bracarense e o presbítero Toresario pode lançar alguma luz sobre a inserção do usurpador na
rede política do reino. E isto explica muito bem o êxito da revolta deflagrada no alvorecer do
reinado de Afonso III. Este conde galego, sentindo-se efetivamente fortalecido e apoiado,
levou adiante seus objetivos, despojando o filho de Ordoño I do trono. Tomando de assalto o
poder, Froila procurou fincar suas mãos no topo da estrutura política nortenha, a capital do
reino, Oviedo.
O destaque dado à fuga para Castela também é sintomático da inserção da região na
esfera de influência asturiana. Quando observamos a Carta de repoblación de las iglesias de
san Román y San Pedro de Dondisla, de julho de 855, percebemos que, além da datação na
Era Hispânica, indica-se o governo do conde castelhano Rodrigo. outra carta El
presbítero Martín y vários religiosos fundan y pueblan el Monasterio de Salcedo de abril de
873, mantém os mesmos expedientes cronológicos das demais fontes, mas apresenta uma
inovação: além de dar destaque ao nome do conde castelhano, Rodrigo, refere-se também ao
governo de Afonso III, em Oviedo. O mesmo acontece na carta em que Felix en unión de su
esposa e hijos vende a Juan, congomento Albavita, sus tierras, de fevereiro de 909, na qual
consta, junto ao nome do monarca ovetense, o nome do conde Munio de Castela. Portanto, é
desta maneira que devemos entender a fuga de Afonso III, ocorrida em direção a um de seus
pontos de apoio político, território mais seguro, naquele tempo, do que as porções ocidentais
do reino.
O retorno do rei ao poder foi atribuído, pelo cronista da Albeldense, ao auxílio de seus
fideles, que destronaram o usurpador Froila levando-o à morte. Tal situação expressaria o
prestígio experimentado por Afonso III e, aparentemente, o reconhecimento do monopólio
detido por parte de uma família de um poder de direção política exclusiva. O golpe de Froila
revelou-se uma conjuração de baixíssimo impacto político, dada à sua brevidade. A duração
exata da usurpação não nos é especificada, mas, com certeza, podemos dizer que mais outras
duas teriam acontecido em seguida, nos anos que vieram. As crônicas asturianas de
Reconquista se calam com relação a elas, mas graças ao contributo do cartulário organização
por Antonio C. Floriano, podemos identificar seus agentes e a data aproximada da eclosão da
revolta. Tal como Ramiro I, Afonso III precisou se esforçar para manter o seu trono,
contornando o estado de turbulência instaurado e reforçando o poder dos monarcas.
298
A usurpação do conde Froila não foi o único ocorrido no reinado de Afonso III,
poucas cadas depois, uma nova tentativa de golpe foi promovida pelo conde Vitiza. O
registro desta revolta não consta nas narrativas alto-medievais asturianas, mas em um diploma
de 11 de julho de 895. O documento assinala mais um confisco de propriedades fundiárias em
terras galegas, mais precisamente na vila de Vivelmi
1092
. As revoltas do tempo de Ramiro
(842-850), conforme se encontra na Crônica Albeldense, apresentam as punições físicas
infligidas aos seus promotores, os cartulários nos informam o confisco de bens imóveis. Tais
testemunhos notariais nos revelam a prática de transferência, apropriação e redistribuição de
concessões feitas pelo monarca a seus fiéis súditos. Segundo García de Cortázar, estamos
diante de expedientes reconhecidos destinados a ampliação ―de uma parcela de terra ou
ocupar uma outra diferente do espaço em que convive ou aspirar conviver uma parte da
sociedade‖
1093
. Estamos diante de uma modalidade de transmissão de direto de posse ou
propriedade ―feita por uma autoridade rei, nobre laico ou eclesiástico com poderes
reconhecidos, isto é, com justos títulos prévios de ocupação ou de domínio das terras que são
objeto da dita concessão
1094
. Em boa parte do período medieval, tais concessão tinham por
objetivo são três: estratégico-militar, político-social e econômico.
1095
Segundo Amancio Isla Frez, o exemplo de Vitiza indica que ele perdeu suas terras,
que foram confiscadas pelo rei que as transferiu para o magnate Hermenegildo Gutiérrez
1096
.
Esta situação é parte das próprias características do reinado de Afonso III, do qual ―procedem
várias notícias de sublevações e posteriores doações à sede jacobea dos bens confiscados aos
rebeldes‖
1097
. Na concepção deste historiador, todos os casos a ―ruptura dos vínculos de
fidelidade, que aprece de maneira explícita no texto dos documentos, é a que faz
juridicamente possível o confisco de suas propriedades, permitindo também que o rei
entregue esses bens a outros fiéis‖
1098
. Isla Frez defende que os bens concedidos aos fideles
seriam preservados pelos descendentes deste, caso não houvesse manifestações de
infidelidade
1099
. Os cânones conciliares do V e do VI Concílio de Toledo, bem como parte da
1092
n° 147. Alfonso III permuta con Stocia la villa de Trasariz, confiscada al rebelde Vitiza por otras
propriedades en Villa Uiuelmi. FLORIANO, Antonio C. (org.). Diplomática española del período astur
(718-910). Oviedo: Imprenta ―La Cruz‖, 1v. 1949, p.
1093
GARCÍA DE CORTÁZAR, Jo Angel. A ocupação do espaço. In: ________. História rural
medieval. Lisboa: Imprensa Universitária-Estampa, 1983, p. 66.
1094
Ibid., p. 68.
1095
Ibid., p. 68.
1096
ISLA FREZ, Amancio. La nobleza en epoca asturleonesa. La sociedad gallega en la Alta Edad
Media. Madrid: CSIC, 1992, p. 167.
1097
Ibid., p. 167.
1098
Ibid., p. 167.
1099
Ibid., p. 166.
299
legislação visigótica, que prevêem penas físicas, confisco de bens e excomunhão aos que
desrespeitam a autoridade régia
1100
. Todavia, inclinamo-nos por uma postura mais flexível
quanto tais confiscos, defendendo que eles não se limitavam ou aparentemente não se
limitavam a rupturas da fidelidade para com o monarca.
Nada sabemos sobre o fim de Vitiza e seus conjuradores, mas temos uma idéia exata
do que se sucedeu com as propriedades detidas pelos mesmos. Outra informação de grande
importância nos esclarece sobre o confisco e a redistribuição de riquezas quando alguém se
alçava contra o poder máximo das Astúrias. As duas cartas que tratam da revolta de Froila e
de Vitiza têm por objetivo restaurar o dano produzido no período de usurpação dos mesmos,
mas tal reparação, que era a restituição de patrimônio, é justificada no corpo do texto.
Inferimos que, a cada sucessão monárquica, houvesse uma redistribuição de patrimônios
fundiários entre aqueles que compunham o núcleo das relações políticas asturianas. A disputa
política era, paralelamente, uma disputa por bens imóveis entregues provisoriamente e não a
título vitalício ou hereditário. Tratava-se, no máximo, de uma remuneração pelo apoio
conferido aos partidários imediatos do monarca, em terras produtivas procedentes, muitas
vezes, dos territórios conquistados aos muçulmanos.
Para aprofundar as discussões referentes às entregas de bens fundiários,
aproveitaremos as contribuições dos trabalhos de Cláudio Sánchez Albornoz. A palavra
stipendium nos fornece, segundo Sánchez Albornoz, a chave para a melhor compreensão das
cessões estipendiárias hispano-godas
1101
. Reconstituindo-se seu valor semântico, sua origem
se prende à concessão de soldos aos legionários romanos e também ao tributo pago pelos
provinciais
1102
. Era também o imposto pago pelas cidades conquistadas, cuja arrecadação
servia para o pagamento dos soldados
1103
. Sidônio Apolinário e Jordanes empregam o termo
para identificar o pagamento feito aos germanos a serviço de Roma
1104
.
O Stipendium passou a ser o pagamento para o sustento do soldado, como pode ser
notado em textos galo-francos e hispano-godos do século VI
1105
. O sentido clássico de tributo
seria empregado para identificar a renda de alguns colonos, que tributum é nome dado
―também ao cânon pago por eles‖
1106
. Entre os visigodos, conforme pode ser observado pelo
cânone do VI Concílio de Toledo (638), e pelo cânone 33 do IV Concílio de Toledo (633),
1100
ISLA FREZ, op. cit., p. 166.
1101
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. El stipendium y las concesiones estipendiarias. El stipendium”
hispano-godo y los orígenes del benefício prefeudal. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras, 1947, p. 68.
1102
Ibid., p. 68.
1103
Ibid., p. 68.
1104
Ibid., p. 69-70.
1105
Ibid., p. 70.
1106
Ibid., p. 70.
300
stipendium equivalia na época goda à soldada, honorário ou meio de vida recebidos pelos
clérigos como remuneração por seus serviços religiosos‖
1107
. A expressão assumiria, assim, a
configuração de meio de sustento. Com o tempo, a única novidade a ser agregada ao termo
seria a sua relação com o sistema de concessões de terras em substituição do pagamento em
metálico
1108
. Sendo assim, tanto pelos monarcas quanto pela Igreja, o termo foi aplicado à
doação de terras como forma de remuneração por serviços prestados
1109
. ―As cessões in
stipendio, causa sitpendii ou sub stipendio, haviam sido, portanto, concessões de terras em
precarium, feitas para pagar soldadas, naturalmente em remuneração de serviços‖
1110
.
Esta modalidade de concessão está geneticamente ligada ao instrumento jurídico
chamado de precarium. Segundo a noção do jurisconsulto romano Ulpiano, o precarium era a
concessão voluntária e gratuita de um bem, que poderia ser revogável conforme a vontade do
doador
1111
. Com base nesta caracterização, Paulo nota que isto não era um contrato, não
requisitava a redação de um documento e nem dispunha de um prazo para se revogar a
doação
1112
. Não se estabeleciam obrigações entre as partes, tanto do concedente quanto do
precarista
1113
. Esta natureza revogável teve como origem o fato de patronos concederem aos
seus clientes terras provenientes do ager publicus que havia sido ocupado
1114
. A
revogabilidade decorria da situação de submissão do cliente diante do patrono
1115
.
Na prática, o precarista detinha a posse do bem recebido
1116
. ―O precário podia durar
tanto como a vida do precarista e inclusive até depois da morte de quem o havia recebido‖
1117
.
Isto significa que enquanto os concedentes (ou seus sucessores) não revogasse o precário, o
precarista (ou seus herdeiros) manteriam a posse do bem
1118
. Inspirados pelo direito
helenístico, os imperadores romanos tenderam a favorecer com longi temporis praesciptio aos
possessores de algum bem, situação que garantia força aos precaristas para rechaçarem as
reivindicações dos concedentes
1119
. Com Constantino, o precarista será dono do bem se
1107
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit.., p. 76.
1108
Ibid., p. 76.
1109
Ibid., p. 76-77.
1110
Ibid., p. 77.
1111
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. Precarium, stipendium y precaria. In: ________. El “stipendium”
hispano-godo y los orígenes del benefício prefeudal. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras, 1947, p. 41.
1112
Ibid., p. 41-42.
1113
Ibid., p. 42.
1114
Ibid., p. 42.
1115
Ibid., p. 43.
1116
Ibid., p. 43.
1117
Ibid., p. 45.
1118
Ibid., p. 45-46.
1119
Ibid., p. 46.
301
permanecer com ele por quarenta nos, reduzindo-se este prazo para trinta anos, a partir de
Teodósio II
1120
.
Um texto de Pompônio nos revela que progressivamente o precarista foi se
beneficiando com o prolongamento do precarium por meio da prescrição
1121
. A Espanha e a
Gália também se viram diante desta aplicação da prescrição desde muito cedo
1122
. Na Espanha
visigoda, no concílio VI de Toledo, encontram-se preocupações em evitar prejuízos que a
posse alargado no tempo poderia causar aos bens eclesiásticos
1123
. Tais posses eram parecidas
com o precarium. Se o precarium clássico era caracterizado pela gratuidade, pela não
contratualidade e pela isenção de pagamento de um cânon, no período visigodo, as doações de
terra causa stipendii era verdadeiras possessões in precario
1124
. O stipendium visigodo era
caracterizado pelo desfrute dos bens concedidos, pelo prazo indefinido da concessão, pela
revogabilidade da doação e com não rara invocação do praescriptio
1125
.
Para Sánchez Albornoz, as cessões causa stipendii, feitas conforme as regras
tradicionais do precário, permitem-nos deduzir o seguinte: ―a soprevivência na Espanha goda
da antiqüíssima instituição do precarium, com seus contornos clássicos, junto à figura
jurídica, moderna ao período, da precária‖
1126
. Segundo este historiador, ―esse sincronismo
das duas instituições tem grande transcendência para a histórica das origens do beneficium
visigodo e do beneficium em geral‖
1127
. Cláudio Sánchez Abornoz procurar crer que o
pagamento de stipendia a título de precarium foi uma medida muito satisfatória para a Igreja,
contudo, já em fins do século IV, os clérigos deveriam prover seu sustento com a força de seu
trabalho
1128
. No Concílio Agathense, de 506, o rei godo Alarico regulamentou tais concessões
com o nome de stipendia, e diversos cânones conciliares indicam a generalização do emprego
do termo em todo o Ocidente
1129
. As concessões de tais terras eclesiásticas, sob o título de
precarium, devido à submissão dos recebedores das cessões, fazendo com que este situação
seja encarada como gratuita, de prazo incerto e revogável
1130
.
1120
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit.., p. 46.
1121
Ibid., p. 46-47.
1122
Ibid., p. 47-48.
1123
Ibid., p. 50-51.
1124
Ibid., p. 51.
1125
Ibid., p. 51.
1126
Ibid., p. 51.
1127
Ibid., p. 67.
1128
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. El stipendium y las concesiones estipendiarias. El stipendium”
hispano-godo y los orígenes del benefício prefeudal. Buenos Aires: Facultad de Filosofia y Letras, 1947, p. 77.
1129
Ibid., p. 77-78.
1130
Ibid., p. 78.
302
No século VI, tais concessões não envolviam necessariamente a encomendação
1131
.
Nenhum texto comprova que os magnates laicos da Espanha goda outorgaram
cessões sub stipendio, iure precario¸ a seus patrocinados. No obstante o silêncio das
fontes, poderíamos sem dúvida deduzir que também fizeram tais concessões, do que
sabemos sobre seu outorga pelos bispo e pelos reis. Mas cabe alegar prova mais
decisiva. Não é duvidido, como fica demosntrado, que boa parte dos clientes dos
grandes hispanogóticos eram soldados privados. E o mundo romano haviam
aparecido e se haviam generalizados tais clientelas armadas no século V, e seus
membros haviam recebido o nome de buccelalarii
1132
É inegável que os Carolíngios aceleraram o processo de formação do regime pré-
feudal, introduzindo nele modificações
1133
. Tal situação nos forma a questiona quais foram as
transformações ocorridas nas instituições vassálicas e beneficrias post-visigóticas astur-
leonesas
1134
. Antes de abordar tal tema, Sánchez Albornoz adverte que o período de dois
séculos iniciais da Reconquista que trata este tema é bastante escasso quanto às fontes
1135
,
contudo, esta situação não melhora para o terceiro culo
1136
. O historiador espanhol ainda
destaca que ―os reis de Astúrias e Leão aparecem rodeados de um grupo de fideles, como os
visigodos. Integravam, como no reino godo de Toledo, os membros da comitiva de origem
imperial, os condes, e, em especial, os continuadores e sucessores dos gardingos regis
1137
.
Os fideles palatii, chamados desde o século X de milites palatii, prestavam serviços militares
e prometiam fidelidade ao rei. Sánchez Albornoz cogita a possibilidade que a entrada neste
grupo passava pelo cerimonial de beija-mão
1138
.
Os milites ou fideles recebiam do rei doações plenas de domínios ou restritas, sendo
estas proibidas de serem legas em herança ou objeto de novas cessões ou benefícios
1139
.
Segundo Sánchez Albornoz, existem muitos testemunhos de doações plenas feitas a laicos e
eclesiásticos
1140
. ―Chegaram até hoje vários testemunhos das doações restringidas dos
príncipes de Astúrias e Leão; e precisamente uma dessas doações, que concedia só uma
propriedade não transmissível a terceiros, aparece outorgada por Ordoño II a um de seus
fideles
1141
. ―E ainda que não se tenha conservado nenhum testemunho preciso que ateste a
1131
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 79.
1132
Ibid., p. 85.
1133
SÁNCHEZ ALBORNOZ, Cláudio. Los árabes y España y el nacimiento del feudalismo. In: ________.
En torno a los orígenes del feudalismo: los árabes y el gimen prefeudal carolingio. La caballería musulmana y
la caballeria franca del siglo VIII. Mendoza: Universidad Nacional. 1942, Tomo III, p. 273.
1134
Ibid., p. 273.
1135
Ibid., 273-274.
1136
Ibid., p. 274.
1137
Ibid., p. 274.
1138
Ibid., p. 274.
1139
Ibid., p. 274.
1140
Ibid., p 274.
1141
Ibid., p. 274.
303
outorga de cessões temporárias e beneficiárias aos milites ou fiéis do rei, não pode duvidar-se
da realidade de tais mercês‖
1142
. Sánchez Albornoz justifica tal afirmativa por dois
expedientes: o primeiro pela existência de um testemunho da segunda metade do século X que
trata de tal concessão feita pelo rei a parentes, sob a forma de encomenda, de uma certa vila
na Galícia
1143
.
Ao que tudo indica, com base nas cartas destacadas, a intervenção e o confisco de bens
fundiários se fazia sobre, aparentemente, sobre as concessões régias, sobre as terras entregues
a título de posse, precária e revogável se o monarca assim o quisesse. A doação de vilas e
territórios, na maioria dos casos, não representava um acréscimo ao patrimônio do donatário.
Salvo os casos de entrega de bens para a remissão dos pecados do rei doador ou de seus
familiares e ancestrais, mas, mesmo assim, havia uma separação do que era de origem do
próprio recebedor da doação e o que era a coisa doada. Desta forma, conscientes de tais
limitações sutis, os novos monarcas ou usurpadores sabiam exatamente de onde extrair o bem
fundiário, para depois transferi-lo a um outro agente, sendo este fiel a sua própria pessoa. A
terra do rei era uma coisa e a terra dos súditos era outra, ainda mais em um período de
expansão e arroteamento que começa a ficar bastante evidente em fins do século IX e
princípios do X. As unidades produtivas ou os bens imóveis, de uma maneira geral, que os
monarcas poderiam deter não se confundiam com toda a extensão territorial do próprio reino.
Eram esferas separadas aparentemente. A autoridade delegada sobre uma região não
significava exatamente a transformação da localidade controlada em uma parte constitutiva do
patrimônio fundiário do administrador.
Quando, por acaso, o monarca quisesse transferir o comando de uma certa região do
reino para alguém, ela apenas sobrepunha um tipo de articulação política, administrativa e
fiscal, sobre outras formas de organização econômica e social, sem confundi-las ainda.
Talvez, possamos transpor este tipo de reflexão para esferas maiores, na qual o próprio rei
encare a demarcação, separação e distribuição de comarcas como não sendo exatamente uma
fratura territorial, mas sim uma divisão de funções. Sendo assim, o reino, enquanto entidade
territorial, não seria o objeto de partilhas, mas sim a autoridade tornada um bem de família e
que, portanto, poderia ser legada em herança. A passagem de Ramiro I até Afonso III,
passando por Ordoño I, tenham significado um adensamento desta perspectiva patrimonial
específica, não tanto quando uma fragmentação territorial em si mesma, mais uma
1142
SÁNCHEZ ALBORNOZ, op. cit., p. 274.
1143
Ibid., p. 274-275.
304
fragmentação da autoridade original, considerada um bem pertencente muito tempo a uma
família específica do Reino das Astúrias.
5.5. Política externa asturiana:
O Reino de Astúrias no tempo de Afonso III usufruiu de um momento positivo para
realizar avanços territoriais e superar as hostes cordobesas. Produziu-se um considerável
avanço em direção às terras do Sul, fazendo a fronteira do reino oventense atingir o vale do
Douro e estabelecendo um importante marco territorial. O aspecto de novidade daí surgido
é possível pela nitidez que começa a se evidenciar as mudanças das últimas décadas do século
IX, mas que preserva grandes aspectos de continuidade com o período imediatamente
anterior. Garcia de Cortázar, É a fase vinculada a Ordoño I e Afonso III, abarcada entre os
anos 850-911, período no qual o reino avançará mais intensamente para além da Cordilheira
Cantábrica, atingindo assim o vale do Douro
1144
.
Segundo o relato preservado na Crônica de Sampiro:
Dalí veio a Leão e povoou Sublancia, que é agora chamada assim pelo povo e Cea
cidade maravilhosa. Em verdade, o mesmo agitado por estas obras, um ncio veio
de Álava revelando que seus habitantes inflamaram-se contra o rei. Em verdade,
tendo rei ouvido isto, tratou aquelas partes com muita ira. A sua chegada,
constrange-os pelo terror e, subtamente, sabedores dos direitos devidos, suplicantes
oferecendo o pescoço a ele, e se submeteram ao reino, juraram permanecer fiéis ao
seu domínio. Ele mesmo subjugou Álava tomada ao próprio império. Em verdade,
Eylone que parecia ser conde deles, foi vencido trazido pela espada até Oviedo
1145
.
Segundo a Crônica Albeldense:
Este, reunindo-se com seu exército, humilhou a ferocidade dos Vascões. Outrora,
uma grande hoste Ismaelita veio até Leão com o duque Almundar, filho do rei
Abderraman, que era irmão de Mahomat, rei Cordobense. Porém, quando o rei veio
até ele, repeliu-o, ali o exército restante, fugindo, debandou com muitas mil perdas.
Nestes dias, outras hostes chegaram em Vergido arrasando-a. E desfez muitos
termos dos inimigos. Este capturou o castro de Dezzam, tomou Anezam pela paz,
ermou Coimbra ocupada pelos inimigos e, em seguida, povoou a Galícia e subjugou
muitos outros castros para si. Foram povoadas pelos Cristãos as urbes I. Bracarense,
II. Portucalense, III. Ocense, IIII. Eminiense, V. Vesens e VI. Lamacense. A sua
vitória erguei e destruiu pela espada e consumiu pela fome os limites dos
1144
GARCÍA DE CORTÁZAR, José Angel. La ofensiva y expansion de Europa em el escenario español:
el triunfo de la Cristianidad sobre el Islan a traves de la Reconquista. In: ARTOLA, Miguel (dir.). Historia de
España: La época medieval. Madrid: Alianza, 1988, p. 122.
1145
Crónica de Sampiro. Exinde uenit Legionem, ac populauit Sublanciam, quod nunc a populis
Sublancia dicitur, et Ceiam, ciuitatem mirificam. Ipse uero istis satagens operibus, nuncius ex Alauis uenit, eo
quod intumuerant corda illorum contra regem. Rex uero hec audiens, illuc ire disposuit. Terrore aduentus eius
compulsi sunt, et subito iura debita congnoscentes, supllices colla ei submeserunt pollicentes se regno et dicioni
eius fideles existere, et quod imperaretur efficere. Sicque Alauam obtentam proprio imperio subiugauit. Eylonem
uero, qui comes illorum uidebatur, ferro uinctus secum Ouetum adtraxit. In: REZ DE URBEL, Fray Justo.
Sampiro: su cronica y la monarquia leonesa en el siglo X. Madrid: CSIC, 1952, p. 276-277.
305
Caurisenes, Egitaniense e outros limites da Lusitânia até Mérida e até um braço do
mar
1146
.
Estamos diante de eventos ocorridos em uma datação bastante incerta, compreendida
entre os anos iniciais da ascensão de Afonso III, em 866, e o ano de 870. Apesar da
periodização pouco precisa podemos notar que diversas regiões periféricas do Reino das
Astúrias procuraram impor sua autonomia aproveitando o estado de instabilidade causado
pela já citada rebelião de Nepociano. Excetuando Castela, comarca que serviu de refúgio para
o jovem rei, as demais precisaram ser devidamente pacificadas pela força, submetidas pelos
duros golpes do reestabelecido exército asturiano. Álava, não citada na Crônica Albeldense,
forneceu o nome de um de seus notáveis, o conde Eylone, que foi capturado e conduzido a
capital asturiana, Oviedo, fato que, junto com a submissão dos vascões, completaria a
restauração da ordem. As forças reunidas com a pacificação do conjunto do reino
possibilitaram o empreendimento de expedições conquistadores em direção à fronteira
setentrional do Emirado de Córdoba, sendo elas enumeradas pela Crônica Albeldense,
enquanto que o relato do monge Sampiro restringe seus comentários a aquisição de Sublancia
e Leão, terras situadas já fora da Cordilheira Cantábrica.
A ocupação seguiu critério político-estratégico da monarquia e dos seus colaboradores
(condes galegos e castelhanos). ―Este tipo de repovoação oficial se prestava à constituição de
extensos patrimônios, dos que foram beneficiários os grandes nobres e alguns mosteiros em
especial na área galego-portuguesa, onde foi especialmente rápido o avanço até o sul‖.
1147
A
expansão territorial fez o reino se dividir em três regiões: galega, astur-leonesa, cantabro-
castelhana
1148
. Afonso III parece ter encontrado problemas com galegos e vascões. Para tentar
selar uma paz com estes últimos, Afonso III casou com Ximena, membro da casa de
Pamplona
1149
.
Entretanto, apesar do exposto acima, optamos por considerar um outro aspecto desta
expansão territorial, ressalta mais o seu impacto político no conjunto da Península Ibérica. Foi
1146
Crônica Albeldense. Uasconum feritatem his cum exercitu suo contriuit atque humiliauit. Illius
tempore preterito iamque multo Ismahelitica ostis ad Legionem uenit duce Almundar filio de Abderhaman rege,
fratre de Mahomat Cordouense rege. Sed dum uenit sibi inpediit, nam ibi multa milia amissa ceterus exercitus
fugiens euasit. Ipsisque diebus alia hostis in Uergido ingressa usque ad nicilum est interemta. Multosque
inimicorum terminos est sortitus. Dezzam castrum iste cepit, Antezam pace adquisiuit, Conimbriam ab inimicis
possessam eremauit et Gallecis postea populauit multaque alia castra sibi subiecit. Eius tempore eclesia crescit et
regnum ampliatur. Hurbes quoque I Bracarensis, II Portucalensis, III Aucensis, IIII Eminiensis, V Uesensis VI
atque Lamecensis a Xpianis populantur. Istius uictoria Cauriensis, Egitaniensis et ceteras Lusitanie limites gladio
et fame consumte usque Emeritam atque freta maris heremauit et dextruxit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques
asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 26
1147
GARCÍA DE CORTÁZAR, op. cit., p. 123.
1148
Ibid., p. 124.
1149
Ibid., p. 124.
306
justamente nesta conjuntura de fortalecimentos das expedições cristãs, que o emirado se
encontrava mais uma vez em momento de grande turbulência, tentando suprimir as insistentes
manifestações de insurgência em diversas partes de seu território. Os Berberes de Toledo
sempre ofereceram motivos para expedições punitivas dos emires omíadas, contudo, isto não
deve ser encarado como mais um indício de rivalidades étnicas no seio da comunidade
andaluza. Desde o final do século IX as porções periféricas do Al-Andaluz rebelaram-se
constantemente, gerando um cenário de intensa fragmentação territorial, o que favorecia o
trabalho interventor dos potentados cristãos nortenhos. Segundo Abén-Idhari do Marrocos, no
ano 890, Al-Mundhir ben Al-Amir Muhammad, alcaide de Hixem ben Abdi-l-aziz atacou
Saragoça, Saracusta, depois, se apoderou do castelo de Rota, depois atacou Álava e Al-Quilé,
tomando aí mais castelos
1150
.
Saragoça, em inúmeras situações, comprometeu a integridade o Emirado Omíada. Não
é uma situação que pode ser identificada como recente, que grupo iemenita nas primeiras
décadas da invasão árabe chocava-se com as autoridades de Córdoba. A participação da
família muladí dos Banu-Qasi deu prosseguimento às insurgências na região, inserindo-se em
um conjunto maior de revoltas guiadas por outros grupos muladís espalhados pelo emirado. O
mesmo movimento dos exércitos emirais envolvidos nas expedições punitivas na Marca
Superior abrangiam também focos adjacentes de ameaças, como Álava e Al-Quilé. Contudo,
diferente das sublevações dos primeiros anos do emirado, estas novas encontram apoio ativo
da cristandade, como o evento ocorrido em 907:
No mesmo ano Lub ben Muhammad de Tolaitola avançou até Giyen, e acampou em
Hisn-Castelona, onde havia cristãos, que combatiam Obeidu-l-lah ben Omeya,
conhecido por Ebn-x-Xalia e tomou o castelo e deu morte aos agemíes e chegou ali
a notícia da morte dada a seu pai Muhammad ben Lub, enquanto sitiava
Saracusta‖
1151
.
Mais de quinze anos separam o evento comandado pelo alcaide Al-Mundhir e Lub ben
Muhammad. O tempo transcorrido entre os dois acontecimentos evidenciam um problema
endêmico na região de Saragoça, algo que ainda daria mais alguns frutos de sedição,
comprometendo a hegemonia dos emires omíadas. Aqui, neste segundo confronto, é
ressaltada a participação cristã, que tenderá a crescer mais uma vez, tendo, em muitas
ocasiões, participação direta dos reis asturianos. Agravando ainda mais o comprometido
ambiente, estourou no ano 908, a revolta do caudilho Aben-Hafson. Segundo o Abén-Adharí
do Marrocos, este muladí havia cometido apostasia, rejeitando o Islã e revelando
1150
FERNANDEZ GONZALEZ, Francisco (trad.). Historias de Al-Andalus por Aben-Adharí de
Marruecos. Granada: Imprenta de D. Francisco Ventura y Sabatel, 1860, 1v, p. 206.
1151
Ibid., p. 264.
307
publicamente seu retorno à religião cristã. Vale dizer que tal conversão foi paralela às
negociações que tornaram possíveis a sua rebelião
1152
.
Na perspectiva de José María Mínguez, os acontecimentos político-militares se
vinculam com transformações profundas das estruturas sociais, como a expansão
colonizadora e mudanças de ordem econômico-social que põe em evidência o caráter de
transição para as estruturas feudais do período seguinte
1153
. Discordando um tanto deste
posicionamento, vale descartar a possibilidade de que a regiões atacadas como Álava e
Castela terem se envolvido nas querelas internas no Al-Andaluz pelo fato delas preservarem a
pujança beligerante dos povos nortenhos peninsulares. O envolvimento foi essencialmente
político, configurando-se Álava e Castela enquanto unidades territoriais dotadas de núcleos de
autoridade política reconhecidos. E o conjunto destes eventos foi totalmente interligado e
contínuo, transformando a zona fronteiriça entre a esfera de dominação cordobesa e a esfera
de influência cristã se tornar um intenso teatro de guerra, como continuo a ser ainda no ano
908, conforme relata Aben-Adharí:
No mesmo ano Lub ben Muhammad saiu até Baiex dos alfozes de Álava, que está
contiguo a região, a esta época que estava o elche Adhefonx sobre o castelo de
Ar...on (*), sitiando sua gente, quando chegou a notícia de que entrava Lub ben
Muhammad em Hisn-Baiex, saiu fugindo
1154
.
Agravou-se a tensão entre as diversas regiões do Emirado de Córdoba, conflito que
acabou por envolver quase toda Península Ibérica:
E no mesmo ano saiu Muhammad ben Abdi-l-malic At-Tagüil para Aragão, em
direção a Bambelona, com o objetivo e reunir-se ali com Abdu-l-lah Aben-
Muhammad ben Lub e chegou até o castelo de Al-Berber, onde queimou tudo o que
havia ao seu redor, sendo arruinadas as igrejas daqueles lugares, e isto no mês de
Ramadhan; mas havendo desistido de ir ao encontro de Aben-Lub e de dirigir-se a
Bambelona, voltou e acampou em um de seus castelos, chamado Xera-Caxtila
(...)
1155
.
Restringir as ações externas do Reino das Astúrias nos tempos de Afonso III às
atividades expansionistas ou feitos militares, significa adotar uma postura bastante simplista.
Na verdade, podemos dizer que a ampliação territorial e o sucesso no esforço bélico asturiano
favoreceu o desenvolvimento de um outro nível de relações políticas. A dinâmica centrada
quase que exclusivamente na guerra se viu conjugada com um elemento dinâmico e, de certa
maneira, ―pacífico‖. Não estamos dizendo que uma oposição entre às expedições cristãs
1152
Ibid., p. 264.
1153
MÍNGUEZ, Jo Maria. Consolidación y expansión de las sociedades del norte peninsular. In:
________. Historia de España II: las sociedades medievales, 1. Madrid: Nerea, 1994, p. 92.
1154
Ibid., p. 267.
1155
Aben-Adhari, op. cit., p. 275.
308
sobre território muçulmano e a troca de embaixadas entre as partes beligerantes, pois ambas
influenciam-se mutuamente. Se considerarmos a primeira citação da Crônica de Sampiro feita
aqui neste capítulo, poderemos perceber que o envio de emissário constituía uma prática
necessária entre as autoridades reconhecidas como tais. Álava despachara um núncio para
tratar dos eventos que envolviam a rebelião alavesa empreendida nos primeiros anos de
governo de Afonso III. Até essa época, não dispomos de quaisquer fontes que tratasse de
situação similar, nem ao mesmo fomos capazes de rastrear indícios de que algo dotado de
mesma natureza tivesse existido antes da primeira metade do século IX. O campo de batalha é
deslocado para outro espaço, uma esfera na qual os combatentes confrontam-se face a face,
apresentando suas pretensões diretamente, confrontando-se assim, de maneira verbal, os seus
interesses imediatos.
A Crônica Albeldense é bastante claro no que tange a essa nova forma de confronto
adotado pela monarquia asturiana:
Todavia, em outro dia, nosso rei esperou com alegria os pugnadores chegar a urbe,
mas a mesma hoste não veio a Leão, mas de nenhum modo tomou a via do ano
anterior, nem atravessar o rio Estaram, mas retornaram pelo castro de Coianca ao
caminho de Ceia, e demoliram a casa dos santos Facundo e Primitivo até às
fundações. E o mesmo retornou pelo porto que é dito Valat Comalti ingressaram na
Hispânia. Em verdade, quando o mesmo Abuhalit foi aos termos de Leão, dirigiu
palavras de paz ao nosso rei. Por este motivo nosso rei direcionou um legado e nome
Dulcídio a urbe com epístolas ao rei Cordobense ―presuiterum‖ no me de Setembro,
de onde ainda não retornou até Novembro corrente. Desde modo, o supra dito
Ababdella não cessou de dirigir os legados em prol da paz e pela graça de nosso rei
―sepius‖, mas até aqui seria perfeito aquilo que agradaria ao Senhor
1156
.
Estamos no ano 883, após o mês de agosto, época na qual as crônicas árabes dentem a
identificar como sendo a mais propícia para as expedições punitivas cordobesas contra os
cristãos nortenhos. O fragmento de texto selecionado nos informa sobre as escaramuças
desenvolvidas nas proximidades de Sublância, região que havia servido de arena entre os
exércitos muçulmanos e cristãos nos primeiros anos de reinado de Afonso III. Diferente do
período anterior, a situação apresenta um recuo das investidas emirais, um retorno das forças
militares para seu próprio território. Antes da sua volta as forças islâmicas atacaram o castro
1156
Crônica Albeldense. Alio tamen die cum alacritate eos rex noster ad urbem pugnaturos sperauat, sed
ipsa hostis non tantum ad Legionem non uenit, sed et uiam preteriti anni nullatenus arripuit nec Estoram flubium
non transcendit, sed per castrum Coianca ad Ceiam iterum reuersi sunt, domumque sanctorum Facundi et
Primitiui usque ad fundamenta diruerunt. Sicque retro reuersi por portum cui dicitur Ualat Comaltti in Spaniam
ingressi sunt. Ipse uero Abuhalit dum in terminis Legionenses fuit, uerba plura pro pace regi nostro direxit. Pro
quod etiam et rex noster legatum nomine Dulcidium Toletane urbis presuiterum cum epistolas ad Cordouensem
regem direxit Septembrio mense, unde aduc usque non est reuersus Nobembrio discurrente. Supra dictus quoque
Ababdella legatos pro pace et gratia regis nostri sepius dirigere non desinit, sed aduc perfectum erit quod
Domino placuerit. In: BONNAZ, Yves. Chroniques asturiennes: fins IXe. siècle. Paris: CNRS, 1987, p. 30.
309
de Coianca, mas não se confrontando diretamente com as hostes asturianas, que aguardavam
pelo confronto na urbe de Leão, como havia sido no ano anterior. Todavia, um simples evento
não significa uma tendência, que recuos parecidos haviam sido feitos anteriormente como
bem relatam as crônicas cristãs.
O normal, se compararmos as narrativas cronísticas asturianas e árabes, é que uma
campanha militar cordobesa seja feita em diversas regiões. O comportamento padrão é a
eclosão de conflitos em diversos pontos da fronteira com o mundo nortenho, geralmente
atacando praças fortes identificadas como castros, pelas fontes cristãs. No entanto, tal cenário
cessou, produzindo algo ainda não visto no conjunto da história da Reconquista até as duas
últimas décadas do século IX. Rompendo com a tendência que vigorava até então, Abuhalit
tomou uma decisão jamais tomadas pelos emires precedentes, dirigiu emissário para a cidade
de Leão para travarem negociações diretamente com o rei Afonso III. Por um período de
aproximadamente cento e oitenta anos, as únicas vezes em que uma autoridade muçulmana
negociou com os monarcas asturianos, fizeram enquanto rebeldes que buscavam auxílio
contra o poder central cordobês. Grandes senhores regiões do Al-Andaluz, como os de
Mérida, Toledo e Saragoça, produziram diversas negociações com os poderes cristãos
nortenhos. Foram acordos efêmeros, mas bastante significativos. Tais pactos políticos
ilustram o estado de instabilidade em solo muçulmano e também o reconhecimento detido
pelos senhores de Oviedo, vistos como uma força importante e capaz de desequilibrar a
balança do poder ibérico contra os emires de Córdoba.
A partir de 883, contudo, o que podemos verificar é que Córdoba não podia mais
encarar os monarcas asturianos como um grupo causador de instabilidade política, precisando
negociar diretamente, em oposição aos insurgentes das zonas fronteiriças e periféricas. A
Crônica de Albelda nos mostra um fato novo, cujo conteúdo imediato não pode ser
efetivamente precisado, mas a repercussão dentro de uma análise global confere a esta troca
de mensageiros uma importância considerável. Desde o começo de nosso trabalho,
procuramos analisar a trajetória de formação do poder monárquico asturiano, tentando
identificar os pontos que convergem para a estabilização de sua estrutura. Estamos aqui com
um dado que apresenta o pleno amadurecimento do edifício político ovetense, que passou a
ser identificado por seus rivais como uma força política reconhecida, com a qual é mais do
que preciso trazer para a mesa de negociações. O governo de Afonso III inaugura uma
tendência a ser seguida pelas gerações seguintes, mas que não abordaremos aqui nesta tese.
Contentamo-nos com avaliar este evento como uma informação que corrobore com nossas
pretensões. A Crônica de Sampiro trata do mesmo acontecimento, informando-nos ainda que
310
a trégua inaugurada teria durado parcos três anos, com a paz sendo rompida, segundo o
monge cronista, pela perfídia muçulmana, o que inicia mais uma fez os choques militares
entre o Reino das Astúrias e o Emirado de Córdoba.
Por mais que a paz entre cristãos e muçulmanos tenha se mostrado débil, não podemos
dar as costas ao esforço gerado pelas negociações entre o emir e o monarca nortenho.
Deslocar o conflito para um outro nível representa a consolidação da entidade política
chamada Reino das Astúrias, não dizemos apenas pela capacidade dela de investir
militarmente sobre território inimigo, isto serviu como um estímulo ao poder emiral que se
viu obrigado a negociar com seu rival, reconhecendo-o como tal. Conflito direto e negociação
influenciam-se mutuamente, um justifica a realização do outro. As negociações são
expedientes que levam em consideração direta a possibilidade do reinício de um conflito
armado, fenômeno que se deseja evitar em um momento de debilidade de uma das partes. De
qualquer forma, ambas as partes em discussão reconhecem-se como similares, estando,
tecnicamente, no mesmo nível, reconhecendo um conjunto de regras estipuláveis por meio de
um diálogo formal. Portanto, os dois grupos sentem-se suficientemente seguros para
dirigirem-se uns aos outros para tratar de suas demandas. O conjunto geral deste cenário
constata a cristalização total do Reino das Astúrias enquanto poder político, antes de mais
nada, sólido no que se refere a permanência e o investimento na manutenção de uma esfera
superior de tomada de decisão, tanto em questões internas quanto externas.
311
CONCLUSÃO
Que espécie de estrutura de poder procuramos identificar e descrever no conjunto de
páginas que formam esta tese? É inegável que o estágio de desenvolvimento político
circunscrito no período inicial de nosso recorte cronológico diferencia-se daquele alcançado
próximo de seu termo. Ainda que a expressão reino tenha sido empregado indistintamente
para o momento de atuação de Pelágio e para o período de governo de Afonso III, não
podemos dizer que estamos tratando de uma mesma realidade política; ao contrário, logramos
perceber um processo de complexificação das relações sociais e políticas nas Astúrias.
Todavia, apesar das diferenças entre ambas as épocas, porque chamados de reino o território e
as relações políticas desenvolvidas no seu interior? Conceitualmente, reino, regnum, deriva da
palavra latina rei, rex, ou seja, aquele que conduz o seu povo. Partem do mesmo radical, reg-,
os termos ―regência‖, ―reger‖, ―regimento‖ e ―reino‖, regnum. Portanto, reino é a
circunscrição territorial na qual o rei manda, comanda e governa. Isto cobre parte de nosso
trabalho, mas não compõe nem metade dele, é apenas uma consideração inicial.
Entre os anos de 711 e 718, a dinâmica política visigótica se viu terrivelmente
comprometida com a invasão muçulmana liderada pelo general berbere Tariq Ibn Ziyad. A
articulação das redes sociais e políticas construídas em torno da figura do rei visigodo foi
suprimida. As regras do jogo político visigótico, que envolviam a cooperação, a resistência e
a concorrência com o poder monárquico deixaram de existir como tais, sendo substituídas por
outras modalidades de articulação que envolviam um alto grau de subordinação aos novos
senhores da Península Ibérica. Desaparecendo o rei, desaparecia também o reino, juntamente
com boa parte daquilo que o constituía. Por outro lado, como tivemos oportunidade de
vislumbrar, a conquista muçulmana não se configurou na cristalização de um novo modus
operandi político homogêneo, ao contrário, por longos anos os emires necessitaram
reconhecer graus diversos de autonomia e submissão. No período inicial da ocupação, teve
lugar um tipo de pacto ahd acordo que garantia a manutenção de privilégios da
aristocracia do desaparecido reino, o que significou reconhecer a existência de uma série de
potentados locais mais ou menos integrados sob uma instância superior.
Naquilo que constituía o domínio direto dos muçulmanos, encontramos um mosaico
territorial dividido entre berberes de diversas procedências, árabes citadinos e nômades, sírios,
iemenitas, egípcios, coraixitas, clientes, escravos, uma gama incrível de subdivisões clânicas
jamais encontrada em nenhuma outra parte do califado damasceno. E cada um destes grupos
apreendia para si uma parte da Península Ibérica em oposição aos demais membros da
312
comunidade dos crentes. No ápice deste conjunto encontrava-se um emir, o chefe da província
recém-dominada. Sediado inicialmente em Sevilha, depois em Córdoba, este comandante teve
sempre que se haver com as oscilações de humor e dos desígnios incertos de seus superiores.
Além de lidar com este tipo de situação, os emires precisaram lidar diretamente com o
descontentamento de seus subordinados, fato que ameaçava a preservação de seu cargo e que
possibilitava a constituição de poderes locais muçulmanos a revelia da estrutura central
cordobesa. Apesar de seu vigor militar impressionante, a autoridade do emir não era nem um
pouco estável, deparando-se com inúmeras ocasiões de intensa insubordinação.
Para muito além destas circunscrições territoriais bem definidas, encontramos zonas
marginais, menos ou nada urbanizadas, montanhosas, que serviram de refúgio para aqueles
que escaparam à nova ordem. Nestas comarcas, encontramos movimentos de resistência mais
acentuados e eficientes, que, no futuro engendrariam novas estruturas políticas. Segundo o
relato do anônimo cronista de origem moçárabe, destacaram-se as insurgências nascidas em
algumas terras altas que compõem os Montes Pirineus e que foram bem sucedidas no
confronto contra as expedições muçulmanas ainda nas primeiras décadas da conquista
peninsular. Pelas narrativas cristãs e muçulmanas foi possível identificar outras rebeliões
contra os invasores, desta vez ocorridas na Cordilheira Cantábrica. Ambas as mobilizações
cantábrica e pirenaica se desenvolveram dentro de um mesmo contexto e representam um
nível mais baixo de organização política entre cristãos em zonas periféricas ao domínio
muçulmano. Posicionamo-nos desta maneira por comparação dos séculos seguintes ao ano de
711. Entre esta data e meados do século X, pudemos notar a formação de entidades político-
territoriais mais amplas, dotadas de um núcleo superior de tomada de decisão, uma rede
ampla e móvel de articulação política e o reconhecimento da existência do mesmo.
Chegamos, então, às primeiras manifestações documentadas das articulações políticas
em curso na região, promovidas por Pelágio e seus associados. Diferentemente do caso
pirenaico, a rebelião asturiana nos legou o nome dos participantes da luta contra os
muçulmanos. As novas relações políticas autônomas surgiram a partir de Pelágio e de seus
colaboradores imediatos, não sendo possível, contudo, precisar se esses integravam o seu
séquito armado, se eram seus comensais ou aliados dotados também de grupos armados e
colaboradores, mas que aceitaram a proeminência da autoridade de Pelágio. As fontes
narrativas asturianas apenas nomeiam estes indivíduos por socii, aqueles que participavam
dos negócios políticos e da organização militar erigida em torno do líder, capaz apenas de
repelir uma investida aproveitando-se das barreiras naturais de Covadonga, nos Picos da
313
Europa. O fato de tratar-se de uma região muito marginal talvez tenha levado as forças
muçulmanas a darem pouca importância ao evento.
No que consistiu, efetivamente, o espectro total da autoridade de Pelágio talvez não
seja nunca desvendado. Contudo, com base nos parcos dados que possuímos sabemos que ele
não englobava uma grande amplitude geográfica, não ultrapassando os limites impostos pelas
barreiras montanhosas, circunscrito mais precisamente entre Covadonga e Cangas de Onís.
Talvez Pelágio tenha sido um grande senhor de senhores menores, um ―homem centro‖, cuja
intensidade do poder alcançou um alto nível em momento de conflito armado. Cessando o
período marcado por uma iminente ameaça externa, sua autoridade reduziu-se na prática,
tornando-se mais difícil manter um amplo conjunto de indivíduos subordinados à qualquer
liderança política. Essa tendência poderia ser timidamente comprovada pela pífia atuação de
seu filho Fáfila como chefe da região das Astúrias, uma vez que parece impossível
reconstituir a sua atuação política ou militar, o que pode significar que a articulação inicial
costurada por seu pai havia se dissolvido.
O sucesso da Batalha de Covadonga parece não ter trazido benefício imediato para a
casa pelagiana, a não ser pela aliança matrimonial constituída com um outro grande senhor do
Norte, Afonso I. A aliança contra as expedições de Munnuza era efêmera se comparada com o
acordo firmado entre Pelágio e seu genro. É bastante provável que a origem de uma
autoridade mais estável guarde relação com este evento, em decorrência da união de duas
grandes famílias e de suas clientelas, superando as rivais homólogas em solo nortenho. O
somatório deste pacto ao empreendimento de campanhas militares para além do núcleo
original do reino de Pelágio foi uma inovação ainda não experimentada em Astúrias. O
avanço sobre as urbes galegas, sobre os territórios leoneses e as comarcas alavesas e navarras
representam um alto grau de autoridade concentrada nas mãos de um chefe vitalício. Não se
tratou apenas de aproveitar a situação de debilidade no Al-Andaluz gerada pelas querelas
internas entre árabes e berberes. Este cenário de fragilidade ao Sul da Cordilheira Cantábrica
apenas favoreceu o sucesso de uma grande aliança previamente estruturada.
Por acaso, seria este o mesmo cenário experimentado por Afonso III? Em hipótese
alguma. Entre os tempos de Pelágio e Afonso III produziu-se uma ―transformação
quantitativa‖ da entidade entendida como reino. Sim, podemos qualificar o conjunto do
território dominado originalmente por Pelágio como regnum pelos motivos que expomos nos
primeiros parágrafos desta conclusão. O caudilho era dotado de autoridade sobre o seu círculo
político e sobre um território delimitado. Armando Besga Marroquín cogita a possibilidade de
qualificar Pelágio como rei, apesar de nenhuma narrativa ou fonte notarial o nomear desta
314
forma. Todavia, o emprego do termo princeps, príncipe, na identificação de Pelágio quando
da preparação da rebelião no Monte Asseua parecer remeter a um significado bastante restrito,
mais próximo de caudilho, o principal chefe de um determinado grupo. Etimologicamente, é
esse o sentido da palavra. Fáfila, contudo, nem assim foi designado, nem mesmo na sua lápide
funerária, referência que consta nas dos chefes políticos asturianos seguintes. Segundo as
próprias narrativas asturianas, Pelágio só se tornou líder político por ocasião da invasão
muçulmana, ou seja, sua autoridade originava-se em uma situação de exceção, enquanto que o
domínio detido por Afonso I advinha da preservação de uma situação precedente, continuada
e em processo de diferenciação em relação a outras formas de comando.
Aquilo que Pelágio e Afonso I detinham, em comparação com o conjunto das terras
submetidas ao Islã, representava muito pouco, ou melhor, era uma diminuta serra que repeliu
os assédios de um comando militar superior em número. Entretanto, não devemos minimizar
a configuração desta pequena comarca nortenha, pois, como disse Robert Lowie, empregar o
critério de tamanho na constituição de entidades políticas não é um princípio classificatório
sadio
1157
, ainda mais se considerarmos o devir desta mesma entidade. Poderíamos chamar tal
realidade de Estado? Particularmente, não gostaríamos de fazer uma afirmação desta natureza,
pois a nossa proposta era verificar um marco cronológico dilatado para podermos agregar
informações e compreendê-las dentro de um processo de transformação política e social nas
Astúrias. Portanto, designar o reino de Pelágio de Estado viria a ser uma tomada de posição
bastante prematura. Aportes provenientes da antropologia são instrutivos no nosso trabalho de
classificar a entidade política chamada Reino das Astúrias. Favoreceu-nos ainda o fato de
lidarmos com uma realidade em construção. Não nos deparamos com um esforço
classificatório de algo plenamente constituído, mas sim com a formação de uma entidade
que vinha agregando paulatinamente novos elementos que modelaram o seu perfil.
Nossa proposição, portanto, é que a configuração da condição dos sucessores de
Pelágio pode ser compreendida dentro de um processo histórico amplo, com base nas
modificações das relações entre os súditos e o monarca. Estamos tratando da passagem de
uma estrutura política débil e constantemente questionada para uma estrutura política
disputada e, posteriormente, monopolizada por um único ramo familiar (o que não a livrou,
contudo, das tensões políticas que marcaram sua existência e reprodução). Este processo de
modificação não foi nem um pouco simples, mas sim repleto de sobressaltos e oscilações. Em
outras palavras, analisamos a passagem do efêmero para o perene, daquilo que originalmente
1157
LOWIE, Robert H. The size of the State. In: ________. The origin of the State. Nova York: Russell &
Russell, 1962, p.
315
dependeu de toda uma conjuntura favorável para uma estrutura que sobreviveu aos percalços
das conjunturas.
A ascensão de Pelágio e seus sucessores foi muito mais fruto das necessidades e
possibilidades da dinâmica política e da conjuntura de um dado momento do que de uma
estrutura consolidada e tradicional que envolvia a transmissão de autoridade política nortenha.
Após o século VIII, é possível também perceber o fortalecimento das estruturas eclesiásticas,
recuperando-se a Igreja da obscuridade e da dispersão pelo desenvolvimento de um aparato
mais coerente, amplo e perene. De uma maneira geral, os novos tempos traziam a marca de
suas próprias demandas e limitações. O Reino das Astúrias não foi um decalque das antigas
estruturas políticas do Reino Visigodo de Toledo, nem seus reis foram herdeiros diretos da
família real visigótica. A sociedade visigoda forneceu as bases culturais, sociais, religiosas e
técnicas ao mundo nortenho, mas as estruturas fiscais e administrativas foram tragadas pelo
desaparecimento do Reino Visigodo.
Se, por um lado, podemos atribuir uma filiação à sociedade visigótica, por outro lado
não devemos esquecer as injunções do pós-711 na configuração do Reino das Astúrias.
Depois da Batalha de Covadonga e após a chegada de Afonso I às Astúrias podemos perceber
a formação de uma nova autoridade político-territorial cristã, um poder cuja fonte de
sustentação inicial era composta por um pequeno círculo de fiéis seguidores que sustentavam,
neste cenário primordial, meios coercitivos para pacificar e dominar parte dos arredores dos
Picos Europa, de Cangas de Onís e de Covadonga. Aqui estavam os primeiros fundamentos
da monarquia asturiana: uma clientela aristocrática atuando como fonte de coação. A entidade
política nasceu de um esforço de resistência e perdurou como órgão perene de intervenção
social. A informalidade da situação inicial da rebelião pelagiana foi substituída pela
continuidade de um comando militar com fortes tendências expansionistas e com incríveis
pretensões hegemônicas sob Afonso I. Os esforços para se impor sobre uma região cada
vez maior opuseram-se à resistência de populações que rejeitavam ser englobadas por uma
autoridade superior. A repressão constante cimentou os passos consecutivos da entidade que
veio a se formar nas décadas seguintes.
Não bastava a violência pura e simples. A tradição, ―naturalizando‖ a realidade,
cumpriu o seu papel, inculcando-se em breves gerações e levando à obtenção de resultados
muito positivos. Tratava-se, aqui, de situações embrionárias que dariam seus frutos nas
décadas seguintes. Na primeira metade do século VIII, a monarquia asturiana ainda era muito
frágil e dependente dos acordos efêmeros realizados por chefes guerreiros. Contudo, pudemos
notar uma modificação. Como destacamos no capítulo três, identificamos esforços
316
conscientes para transmitir a idéia de continuidade entre os soberanos nortenhos. Silo teria
apontado para uma direção que tendeu a se confirmar, a criação de lugares específicos para os
monarcas falecidos, escolhendo-se um locus sacralizado, próximo da morada dos especialistas
no culto dos mortos ilustres. Právia foi o primeiro panteão régio. Por mais que o período
situado entre a ascensão do rei Silo e o falecimento de Vermudo I tenha sido muito breve, a
experiência de se inumar os restos dos reis em um mesmo espaço suscitou um reforço do
monopólio da autoridade militar nas mãos de um círculo familiar. O exercício de poder pelos
parentes e descendentes de Afonso I deixou suas marcas não apenas nas narrativas tardias de
fins do século IX, mas também passou a se fazer freqüente na documentação notarial. As
cartas mais antigas preservadas registram a hegemonia dos monarcas asturianos, descritas
como grupo reinante no norte. Nenhum outro grupo proporcionou este tipo de comentário
entre seus contemporâneos, por mais que percebamos a presença de outros senhores da guerra
atuando na região. Os sucessores de Pelágio e Afonso I parecem ter sido revestidos de um
prestígio entre os seus contemporâneos, mesmo os das terras mais distantes do núcleo de
poder asturiano. E este prestígio consolidou-se em uma parentela específica.
Quando falamos de continuidade não pretendemos transmitir a idéia de linearidade e
legitimidade presa à essência da família monárquica. Não se pode desconsiderar as
vicissitudes e os questionamentos experimentados continuamente. Queríamos ressaltar que
todo empenho pela auto-afirmação foi acompanhado de secessões e conflitos, mas que isso
condicionou o fortalecimento da estrutura política em funcionamento. A superação dos
entraves foi o principal trabalho da monarquia asturiana. Havia, então, um centro de tomada
de decisão que era capaz de se perpetuar e reproduzir-se, dotado de meios de coerção postos
em funcionamento com certa freqüência, que, por sua vez, eram reforçados pela tradição que
fazia reconhecer a presença de um grupo político seleto e forte.
Seguindo a linha de raciocínio de Charles Tilly no que tange à formação de uma
realidade estatal congregamos duas referências-chave: guerra e controle de recursos. A
instrumentalização política do fenômeno bélico foi com certeza algo manifestado desde a
gênese do Reino das Astúrias, possibilitando a constituição de uma entidade superior que agia
para benefício próprio sobre outras comunidades humanas, aristocráticas, laicas, religiosas ou
camponesas. A cooperação ou oposição destes agentes históricos pode ser sentida em diversos
momentos, sob a forma de rebeliões, insurgências territoriais, pretensão ao poder em
formação, participação de expedição conquistadora ou razias etc. Pelo menos foram estes os
elementos iniciais que pudemos considerar acerca dos primeiros anos do reino nortenho. A
estabilização e o crescimento desta realidade política interferiram na lógica de distribuição e
317
aquisição de recursos. O Estado costuma ser o maior usufrutuário de recursos materiais
disponíveis, conduzindo a sua distribuição e emprego. Em Astúrias, encontramos centros de
maior concentração de bens transformados em obras monumentais, igrejas, fortalezas,
mosteiros, palácios e doações. Onde quer que a entidade política atuava, deixava grandes
vestígios de sua presença. Contudo, a diferença entre este novo poder e a aristocracia era
meramente quantitativa, ou seja, o Estado asturiano era um órgão com superior poder de
comando e de fruição de recursos em relação a seus rivais e colaboradores. Acreditamos,
todavia, na necessidade de transcender esta perspectiva, agregando-lhe fatores que
demonstram as diferenças qualitativas entre aristocracia e realeza-Estado asturiano.
Segundo as perspectivas de Aidan Southall relativas ao Estado Segmentário
1158
, a
configuração e o exercício do poder neste modelo estatal reconhecem a existência de
elementos homólogos que não conseguem suprimir, ainda que se encontrem hierarquizados e
reconheçam a existência do poder superior. Este modelo de Estado é caracterizado por uma
soberania territorial reconhecida, mas limitada ao aplicar-se sobre regiões mais afastadas do
centro; pelo compartilhamento do poder; por um centro administrativo especializado cuja
força se esbate na medida em que se distancia do epicentro de seu exercício. A autoridade
central não detém o uso exclusivo e legítimo da força, mas constitui-se em uma estrutura
piramidal marcada por níveis distintos e variados de subordinação das elites locais. As
autoridades subordinadas têm mais chances de mudar de obediência quando ocupam posições
periféricas
1159
.
Ainda segundo o antropólogo, em meio a grupos étnicos ou culturais situados em um
dado território, um deles, detentor de um aparato político ―eficaz em grande escala dispõe
dos meios que permitem organizar politicamente um espaço ampliado e acaba impondo sua
supremacia a micro-sociedades com as quais se acha em relação‖
1160
. Outro elemento que
favoreceria a formação do Estado seria a existência de líderes carismáticos guiando um dos
grupos étnicos que se tornam ―solicitados pelas sociedades vizinhas‖
1161
, ou se tornam
modelos para a formação de outros poderes
1162
. Se tratamos de uma estrutura de dominação, é
imprescindível destacar as considerações de Max Weber, para quem uma autoridade encarada
como legítima pode estar fundada em uma modalidade de poder pessoal que se ampara em
uma ―tradição sagrada, isto é, no habitual, no que tem sido desde sempre, tradição que
1158
SOUTHALL apud BALANDIER, Georges. Antropologia política. São Paulo: Difel, 1969, p. 145.
1159
Ibid., p. 145.
1160
Ibid., p. 145.
1161
Ibid., p. 145.
1162
Ibid., p. 145.
318
prescreve obediência diante de determinadas pessoas‖
1163
. Podemos, ainda, considerar que
este poder pessoal se fundamenta no extraordinário, na crença do carisma
1164
. Segundo Max
Weber, Dominação Carismática é uma forma de poder, um elemento extraordinário
apreendido por indivíduos como profetas, curandeiros e líderes guerreiros. O reconhecimento
deste poder, considerado como legítimo por seus seguidores, é possibilitado pela manutenção
do carisma pessoal em virtude de provas ou milagres. O carismático puro não depende da
economia, contudo não renuncia a ela. Por exemplo, ―o herói de guerra e seu séqüito
procuram o espólio‖
1165
. Pierre Bourdieu acrescenta que este poder não é propriedade de
indivíduos singulares. Segundo o autor, os indivíduos dotados de carisma reúnem
características sociologicamente pertinentes, que os tornam predispostos a sentir e expressar,
com força e coerência particulares, ―certas disposições éticas ou políticas presentes em
estado implícito em todos os membros da classe ou grupo de seus destinatários‖.
1166
Como tais referências se manifestaram na realidade política asturiana? A época de Silo
e Mauregato, na segunda metade do século VIII, constituiu-se em uma fase de grande
importância para a constituição plena do reino asturiano. A estabilização da entidade
monárquica pode ser percebida pelos vestígios materiais legados à posteridade, circunstância
que aponta para a concentração e privilégio de empregar os recursos existentes no Norte da
Península Ibérica, distinguindo-se do seu colaborador imediato: a aristocracia. Notamos que,
paralelamente à constituição de clientelas armadas em torno de um monarca, apareceram
grupos de clérigos que, mesmo em regiões geograficamente distantes, cooperavam e
reconheciam a primazia destes chefes políticos.
O caso do Beato de Liébana é bastante significativo no tempo de reinado de
Mauregato, que exemplifica a presença de uma rede entre os membros da nascente hierarquia
eclesiástica. Independentemente do distanciamento geográfico, havia um círculo de
seguidores dos monarcas asturianos pertencentes ao clero nortenho, uma parte significativa
dele foi acolhida e protegida pelos reis asturianos em pleno auge da querela adocionista. Este
grupo rodeou os chefes políticos do Norte de maneira mais estável pelo fato de serem mais
dependentes das benesses concedidas e reconhecidas por eles. Soma-se a esta situação o fato
de uma parte considerável de muitos destes religiosos serem imigrantes refugiados que
procuraram intencionalmente a assistência monárquica. Como tivemos oportunidade de
1163
WEBER, Max. Sociologia da Dominação. In: ________. Economia e sociedade: fundamentos da
sociologia compreensiva. Brasília-São Paulo: UnB-Imprensa Oficial, 2004, 2v, p. 198.
1164
Ibid., p. 198.
1165
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília: Ed. UnB, 2000, p. 160.
1166
BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 74.
319
verificar, muitas das cessões de propriedade com plena capacidade de ―uso e abusoforam
feitas a ordens monásticas, como, por exemplo, o mosteiro de Samos, na Galícia. Neste
momento preciso da história asturiana, o meio monástico e o nascente episcopado nortenho
constituíram-se em grupos cuja fidelidade mostrou-se mais estável, superando, inclusive,
barreiras naturais.
Justaposta a essa rede de fidelidades, encontramos um outro tipo de associação ao
poder real, a do grupo heterogêneo dos condes, comites, cuja intensidade da lealdade e
autonomia não se configurou com base em princípios geográficos. Sua participação e
cooperação nas atividades política oscilaram consideravelmente de acordo com o reinado. Na
medida em que configuramos a forma de dominação asturiana como patrimonialista,
precisamos levar em conta o fato de as relações políticas serem profundamente
personalizadas, com todo o prestígio, reconhecimento ou concorrência passando pelo crivo do
bom relacionamento com o monarca e deste com os seus seguidores. O distanciamento físico
interferia no grau de autonomia e colaboração, mas não parece ter se constituído como um
elemento decisivo ou preponderante. Tudo dependia do grau de interação e cooperação entre a
capital, a pessoa do rei e as demais regiões inseridas em seu reino. Mais do que dificuldades
geográficas, estamos diante de resistências pessoais e de choques de interesses. Em algumas
situações as resistências partiram de dentro da própria capital, como na revolta de Nepociano
que solapou o trono de Ramiro I.
Quanto à manifestação da esfera pública intrínseca à instituição política em formação,
acreditamos que sua primeira expressão pode ser identificada na realização do Concílio de
Oviedo, em 811. Por mais que a veracidade do documento seja questionada, não podemos,
contudo, repudiar o seu significado para o conjunto da história peninsular. Foi a primeira vez,
desde o fim do reinado dos visigodos, que um rei convocou um concílio. A repercussão do
evento produziu-se sob a forma de enquadramento territorial por meio da divisão
administrativa eclesiástica. O concílio ovetense configurou-se como uma tarefa bem sucedida
ao trazer para um espaço de agregação os elementos que até então se encontravam dispersos.
Os participantes do concílio estavam sob a guarda e proteção do monarca Afonso II, que
demonstrava nesta situação toda a ascendência de sua autoridade.
Aparentemente, os concílios asturianos não intervieram em questões relativas à
aristocracia laica, mas o monarca animava os trabalhos, disciplinando seus participantes. Este
tipo de reunião, apesar de destacada das atribuições políticas imediatas do reino, cooperava
diretamente no processo de sua estruturação e estava integrada à dinâmica do Norte da
Península Ibérica. Não se tratava de um aparato de Estado, mas era instrumentalizado por ele
320
na medida em que promovia regras e estabelecia ordens de enquadramento religioso, social e
espacial. A realização dos concílios ocorria em momentos de maior fortalecimento da
autoridade monárquica, quando o conjunto da sociedade respondia ao seu chamado e
reconhecia a sua ascendência e proeminência. Ninguém mais poderia alçar-se como cabeça
desta assembléia, não tendo ocorrido em nenhuma ocasião que a sua condução fosse feita por
algum potentado local, bispo ou conde, fato que demonstra o estabelecimento de delimitações
para a atuação política e social. Nem mesmo nas épocas em que o poder monárquico se via
questionado diretamente por seus súditos notáveis, as prerrogativas de comandar concílios
eram usurpadas ou compartilhadas. É esta restrição que indica perfeitamente a distinção
qualitativa entre a monarquia e a aristocracia, existindo uma clara separação de atribuições
políticas e religiosas. A intensidade do poder político do rei podia oscilar, mas o que pertencia
à sua alçada permaneceu muito bem salvaguardado.
Totalmente alheia ao ―campo magnético‖ asturiano, encontramos uma entidade
radicalmente independente e opositora ao jovem reino cristão: o Emirado de Córdoba. Desde
a invasão muçulmana, nenhuma autoridade muçulmana identificada como um ―poder político
oficial‖ sequer chegou a entrar em negociações com os reis do Norte. O máximo de política
externa praticada contra os soberanos nortenhos manifestava-se sob a forma de expedições
punitivas. Todavia, em fins do século IX, tal prática sofreu uma mudança de incrível
proporção, o que demonstra o pleno amadurecimento do Reino das Astúrias. A política de
constante guerra foi acrescida de instrumentos de conciliação e negociação jamais vistos antes
da Península Ibérica pós-711. A troca de embaixadas configurou-se em um grande exemplo
de como a autoridade asturiana era encarada como algo diferente da realidade aristocrática do
Norte. Os reis de Oviedo representavam um ponto nítido nas relações políticas ibéricas, algo
tangível a ser trazido para a mesa de negociações. A maneira efêmera com que se apresentou
este expediente político não significou a desistência de seu emprego para a solução de muitas
demandas. Os breves três anos de trégua devem ser encarados como o primeiro de muitos
passos em direção à consolidação de estruturas políticas e territoriais e ao enquadramento
final do papel de cada uma delas no jogo de forças da Península Ibérica.
Assim, o Estado Alto-Medieval de Astúrias foi uma entidade político-territorial dotada
de um centro político móvel identificado mais com o monarca e seus fideles do que com uma
capital fixa no reino. Ela dispunha do poder de intervir diretamente na sociedade produzindo
uma cooperação fundamental para a realização de seus interesses. Seu poder de coação se fez
por meio da atuação direta do chefe político e de seus delegados. Devemos ter em mente que
tal exercício de poder encontrou seus limites e empecilhos para sua plena execução, mas tais
321
barreiras não foram dadas unicamente pelo distanciamento geográfico das terras periféricas
com relação ao núcleo de poder. Aqui, a geografia não foi determinante para criar restrições à
atuação régia, mas relacionou-se mais estreitamente com a fidelidade de determinados setores
da sociedade aristocrática nortenha.
No Estado Alto-Medieval Asturiano a autoridade detida pelo rei não era sagrada, mas
sim sacralizada como uma função mantenedora da ordem vigente. As manifestações de
disputa pelo cargo e pelo título tornam nítida a concentração de poder detido pelos monarcas,
o que os tornavam alvos, em determinadas circunstâncias, da pretensão de familiares e de
alguns altos dignitários do reino. Neste tipo de dinâmica, a concorrência e a resistência não
devem ser compreendidas como indícios de fraqueza ou ameaça à integridade desta estrutura
política; ao contrário, auxiliaram a configuração de seu perfil e muitas vezes podiam ser um
sinal de sua força e importância. O perfil do estado e o seu poder foram tanto fruto da atuação
do núcleo político e de seus colaboradores laicos, eclesiásticos, aristocratas ou a plebe ,
quanto da oposição e concorrência de seus antagonistas presentes ou o na sua esfera de
influência. O Estado instituído nas Astúrias nos séculos alto-medievais foi, portanto e por fim,
o maior protagonista e, como tal, o mais relevante objeto de disputa no cenário político de
então.
322
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331
ANEXOS:
Anexo 1: Lista de reis:
Fáfila
duque de Astúrias
Pelágio Pedro
rei de Astúrias duque de Cantábria
718-737
.
Fáfila Ermesinda ─────┬───── Afonso I Froila
rei de Astúrias rei de Astúrias
737-739 739-757
.
Adosinda Froila I Mauregato Aurélio Vermudo I
= Silo rei de Astúrias rei de Astúrias rei de Astúrias rei de Astúrias
rei de Astúrias 757-768 783-788 768-774 788-791
774-783
.
Alfonso II F Ramiro I
rei de Astúrias = Nepociano rei de Astúrias
791-842 rei de Astúrias 842-850
842
Ordoño I
rei de Astúrias
850-866
Afonso III
rei de Astúrias
866-910
332
Anexo 2: Mapas:
Mapa 1: Divisão territorial do reino visigodo.
Mapa 2: Distribuição das estradas romanas pela Península Ibérica.
333
Mapa 3: Mapa físico da Península Ibérica.
334
Mapa 4: Mapa físico da Galícia contemporânea.
335
Mapa 5: Península Ibérica após a queda do reino visigodo de Toledo.
Mapa 6: Expedições militares muçulmanas e territórios cristãos semi-autônomos no século
VIII.
336
Mapa 7: Expedições de Afonso I e rebeliões berberes.
Mapa 8: Segunda metade do século VIII e primeiras décadas do século IX.
337
Anexo 3: Imagens:
Fig. 1 Dólmen de Eguilaz (Alava) Fig. 2 Câmara do dólmen após a destruição do
túmulo e da antiga capela durante a Guerra Civil
(1936-1938)
Fig. 3 Covadonga Fig. 4 Jarro litúrgico visigótico
338
Fig. 5 Interior da Igreja de Santa Cristina de Lena.
Fig. 6 Igreja de San Juan de Právia, edificada nos tempos de Silo.
339
Fig. 7 Planta da Igreja de San Juan de Právia. Fig. 8 Fragmento de inscrição
epigráfica encontrada no interior da Igreja
de San Juan de Právia.
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Fig. 9 Reconstituição da inscrição feita por Emilius Hübner conforme experiências
precedentes produzias na Argélia (mosaico de Orleansvile, de aproximadamente 324) e
exemplos produzidos em obras poéticas contidas em códices carolíngios e riojanos.
340
Fig. 10 Inscrição epigráfica encontrada em Alava.
Fig. 11 Igreja de San Julián de los Prados (Oviedo), edificada nos tempos de Afonso II
341
Fig. 12 Igreja de San Tirso (Oviedo), edificada nos tempos de Afonso II
Fig. 13 Descoberta da tumba de Santiago pelo bispo Teodemiro
(Tumbo da Catedral de Santiago)
Fig. 14 Escavações em Santiago revelaram restos de necrópoles da época romana e sueva.
342
Fig. 15 Planta da basílica de Santa Maria (Oviedo), edificada no tempo de Afonso II.
Fig. 16 Exterior da Igreja de Quintanillas de las Viñas (Burgos)
343
Fig. 17 Escultura de Quintanilla de las Viñas.
Fig. 18 Arco da entrada do presbitério na ermida de Quintanilla de las Viñas (Burgos).
344
Fig. 19 Fachada sul do palácio de Afonso II.
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