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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA - PPGH
ALINE FERNANDES DE SOUSA
A MULHER-FARAÓ: REPRESENTAÇÕES DA RAINHA HATSHEPSUT COMO
INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO (EGITO ANTIGO – SÉCULO XV A.C.)
Niterói
2010
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ALINE FERNANDES DE SOUSA
A MULHER-FARAÓ: REPRESENTAÇÕES DA RAINHA HATSHEPSUT COMO
INSTRUMENTO DE LEGITIMAÇÃO (EGITO ANTIGO – SÉCULO XV A.C.)
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do Grau
de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. CIRO FLAMARION SANTANA CARDOSO
Niterói
2010
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Aos meus pais que por muitas vezes desistiram
de seus sonhos para que eu realizasse os meus...
AGRADECIMENTOS
Sem dúvida, ao agradecer as pessoas que contribuíram para a idealização, o
desenvolvimento e a finalização deste trabalho, cometerei injustiças ao negligenciar, pelos
limites do texto ou pelo meu simples esquecimento, aqueles que de alguma forma ajudaram
na pesquisa. No entanto, nunca é demais o esforço de citar aqueles que tornaram esse estudo
possível. Declaro minha gratidão:
Ao CNPq pelo auxílio financeiro sem o qual essa pesquisa não seria viável, que
proporcionou a compra de livros e a participação em eventos acadêmicos. Sabemos o quanto
essa ajuda é importante para os estudos voltados para a História Antiga e sou grata por
consegui-la.
Ao prof. Dr. Ciro Flamarion Santana Cardoso pela ajuda, pela paciência e pela honra
de tê-lo como orientador.
À profª. Drª. Regina Bustamante por ter aceitado participar da avaliação do meu
trabalho e pelas úteis recomendações feitas no momento da qualificação.
Ao prof. Dr. Alexandre Carneiro pelo incentivo e pelos conselhos.
À profª. Drª. Sônia Rebel pelo exemplo, carinho, amizade e estímulo dado ainda no
período da graduação e por acreditar no meu potencial. Essa pesquisa não existiria sem sua
ajuda. Obrigada por tudo!
Ao professor Roberto Nunes Bittencourt por tão gentilmente ter me ajudado com a
revisão dos textos desde que este trabalho era ainda um projeto.
Aos meus colegas de Mestrado da banca de Antiga e Medieval com os quais
compartilhei momentos de pânico, mas também muitas risadas.
Aos meus amigos, em especial Thiago, Katiuscia, Maurício, Josiane e Anna por
entenderem minhas ausências e por fazerem minha da vida mais divertida.
Ao Vitor por trazer alegria nos momentos finais (e mais angustiantes!) dessa jornada.
À minha família, em especial minhas avós Ináh e Nita, pelo carinho, pela torcida
contínua e por demonstrar interesse em ouvir sobre minha pesquisa, mesmo sem entender
realmente o que eu fazia ou sobre o que eu estava falando.
Ao meu irmão, Alex, por estar sempre ao meu lado e agüentar ser o alvo principal do
meu mau humor durante esses dois anos.
Aos meus pais, Rosa e Erly, pelo amor, por me ajudarem a realizar mais um sonho,
por me ensinarem o que é a paixão pelos livros, o valor do trabalho e a grandeza do caráter.
Nenhuma de minhas conquistas seria possível sem o apoio de vocês. Obrigada por estarem ao
meu lado nos momentos mais difíceis. É pensando em vocês que caminho cada dia e foi
graças a vocês que nunca desisti. Esse trabalho também é fruto de seus esforços...
RESUMO
Em comparação com as mulheres de outras civilizações antigas, as egípcias
desempenharam um papel privilegiado em questões jurídicas e econômicas. No entanto, seu
estado ainda era inferior ao dos homens egípcios, sendo as mulheres excluídas, por exemplo,
de postos públicos dos quais o trabalho de outras pessoas dependia; apenas algumas mulheres
foram chamadas de escriba. O faraó, descendente direto do deus criador, encarnava uma
divindade masculina. Isso fazia com que o reinado de uma mulher fosse percebido como algo
contrário a Maat, a ordem cósmica e social que permeava o cosmos, conceito central para os
antigos egípcios. Por essa razão, o reinado da rainha-faraó Hatshepsut, no século XV a.C.,
ponto central dessa pesquisa, torna-se peculiar, que a mesma ocupou o trono do Egito por
quase vinte anos e produziu uma série de imagens que a representavam como um legítimo
faraó varão. As fontes selecionadas para o estudo são representações iconográficas dessa
governante, especificamente estátuas e relevos, e a metodologia aplicada às imagens foi
desenvolvida por Richard H. Wilkinson que, a partir da forte ligação entre escrita e imagem
representacional no Egito Antigo, entende que os gestos das figuras podem ser lidos e
interpretados como a representação simbólica de uma ação. Assim, tendo como uma de suas
bases teóricas o conceito de gênero, relacionado a papéis socialmente construídos, o presente
trabalho tem por objetivo identificar as estratégias empregadas por esta mulher-faraó, sexta
governante da XVIII dinastia, a fim de legitimar seu poder como soberano do trono das Duas
Terras, o Egito.
Palavras-chave: Egito Antigo, legitimidade, gênero
ABSTRACT
Egyptian women played a privileged role as to legal and economic issues, compared to
other women from ancient civilizations. Nevertheless, in contrast to Egyptian men, they were
still inferior. Thus, women were excluded from some positions, such as civil ones, on which
some people depended; only seldom women were called scribes. The pharaoh, direct
descendent from God, incarnated a male deity. This fact turned women’s reign into something
against Maat, the cosmic and social order that was permeated by the cosmos, main concept for
Egyptians. Therefore, the Hatshepsut queen-pharaoh’s reign, in the XV century B.C., this
research principal point, becomes peculiar, once this person sat on the throne of Egypt for
almost twenty years and produced a series of images that represented her as a legitimate male
pharaoh. The selected sources for the study are iconographic representations of this ruler,
mainly statues and reliefs, and the applied methodology to the images was developed by
Richard H. Wilkinson who, from the strong link between the representation of writing and
images in the Ancient Egypt, understood that the images’ gestures can be read and interpreted
as the symbolic representation of an action. Having as a theoretical basis the gender concept,
related to constructed social roles, the purpose of this work is to identify the strategies used by
this woman-pharaoh, sixth governor of the XVIII dynasty, to legitimate her power as the
sovereign of the throne from the Two Lands, Egypt.
Keywords: Ancient Egypt, legitimacy, gender
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO____________________________________________________________ 1
CAPÍTULO I
Poder e visibilidade: a monarquia divina e a arte que a eternizou __________________ 7
1. Monarquia divina __________________________________________________ 7
2. A arte egípcia ____________________________________________________ 17
2.1 Generalidades: o que é a arte egípcia e as bases que compõem seu cânone__ 17
2.2 Representações bidimensionais e tridimensionais _____________________ 24
3. O papel das mulheres na sociedade egípcia _____________________________ 28
3.1 O papel das mulheres na sociedade _________________________________ 29
3.2 Mulheres da realeza ____________________________________________ 34
3.3 A visão da egiptologia sobre Hatshepsut_____________________________ 36
CAPÍTULO II
Poder e centralização: o início de uma dinastia e a emergência do reinado da mulher-
faraó____________________________________________________________________ 38
_
1. O nascimento de uma dinastia _______________________________________ 38
2. Olhando para o passado, consolidando o presente: a realeza e a arte na XVIII
dinastia _________________________________________________________ 42
2.1 O deus Amon-Rá e a realeza na XVIII dinastia ____________________________ 42
2.2 A arte e as construções do período ___________________________________ 45
3. O papel das rainhas na XVIII dinastia _________________________________ 46
3.1 O título de Esposa do deus Amon-Rá e as rainhas na XVIII dinastia__________ 47
3.2 Rainhas regentes __________________________________________________50
4. O faraó Hatshepsut surge para governar o Reino das Duas Terras____________ 53
4.1 De princesa a co-regente ____________________________________________ 53
4.2 O faraó Hatshepsut _______________________________________________ 58
4.3 O reinado solitário de Thutmés III ___________________________________ 66
4.4 A tumba do faraó Hatshepsut e a descoberta de sua múmia _______________ 68
CAPÍTULO III
Poder e legitimidade: as imagens de Hatshepsut________________________________74
1. As representações de Hatshepsut_____________________________________74
2. A disposição das fontes analisadas____________________________________76
3. Temáticas presentes nas representações de Hatshepsut___________________118
3.1 A importância de Djeser-djeseru para a análise________________________118
3.2 Apresentação das temáticas identificadas____________________________119
4. Análise e interpretação das representações de Hatshepsut__________________120
4.1 A preponderância do deus Amon-Ra nas imagens_______________________126
4.2 Os faraós do Egito: as imagens de Hatshepsut e Thutmés III___________________129
4.3 A mulher-faraó: gêneros masculino e feminino nas representações de Hatshepsut
__________________________________________________________________ 131
4.4 As imagens apagadas de Hatshepsut_____________________________________ 138
CONCLUSÃO___________________________________________________________140
ANEXO: Aspectos evidenciados pelas imagens________________________________ 145
BIBLIOGRAFIA_________________________________________________________ 158
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fig. 1 Estátua do faraó Userkaf, f. 12
Fig. 2 Estátua do faraó Senusret III, f. 13
Fig. 3 Estátua do faraó Senusret I como Osíris, f. 16
Fig. 4 Mão do faraó Akhenaton oferecendo ramo de oliveira, f. 20
Fig. 5 Cena da tumba de Sennefer, f. 21
Fig. 6 Relevo da tumba do faraó Horemheb, f. 22
Fig. 7 Estela de doação do título “Esposa do deus” para Ahmés-Nefertari, f. 50
Fig. 8 Fragmento de estátua de Sebekneferu, f. 52
Fig. 9 Escaravelho da câmara mortuária de Hetnefer, f. 54
Fig. 10 Escaravelho de Deir el-Bahri, f. 57
Fig. 11 Escaravelho designando Neferura como “filha do rei”, f. 61
Fig. 12 Escaravelho designando Neferura como “Esposa do deus”, f. 61
Fig. 13 Mapa de tumbas de faraós na região do Vale dos Reis, f. 71
Fig. 14 Plantas das tumbas de Hatshepsut, f. 72
Fig. 15 Grafito representando ato sexual de Hatshepsut e Senenmut, f. 76
Fig. 16 Relevo do templo de Seti I em Abidos, f. 121
Fig. 17 Faraó Seti I e deusa Seshat em cerimônia simbólica, f. 122
Fig. 18 Relevo representando a concepção divina de Hatshepsut, f. 124
LISTA DE FONTES
Relevos
Relevo 1: A rainha Hatshepsut realizando oferenda junto com sua filha Neferura, f. 78
Relevo 2: Hatshepsut em inscrição comemorativa, f. 79
Relevo 3: Hatshepsut fazendo oferenda ao deus Amon, f. 80
Relevo 4: Hatshepsut sendo coroada por Amon-Ra, f. 81
Relevo 5 - Hatshepsut sendo coroada por Amon e uma deusa, f. 82
Relevo 6: Hatshepsut sendo coroada por Amon e deusa Hathor, f. 83
Relevo 7: Hatshepsut abraçando o deus Amon-Min, f. 84
Relevo 8: A mulher-faraó Hatshepsut fazendo oferenda ao deus Amon-Min, f. 85
Relevo 9: A mulher-faraó fazendo oferenda ao deus Hórus, f. 86
Relevo 10: Hatshesut fazendo oferenda ao deus Amon, f. 87
Relevo 11: Desenho da inscrição de Hatshepsut e Thutmés III, f. 88
Relevo 12: Hatshepsut em cerimônia ritual com a deusa Seshat, f. 89
Relevo 13: Hatshepsut com coroa Atef, ajoelhada, f. 90
Relevo 14: Hatshepsut sendo alimentada pela deusa Háthor, em forma de vaca, f. 91
Relevo 15: Hatshepsut e Thutmés III adorando a barca de Amon, f. 92
Relevo 16: Hatshepsut e Thutmés III adorando a barca de Amon, f. 93
Relevo 17: Detalhe do relevo mostrando Hatshepsut e Thutmés III, f. 94
Relevo 18: Hatshepsut como esfinge, f. 95
Relevo 19: Thutmés III oferecendo incenso a Hatshepsut, f. 96
Relevo 20: Hatshepsut cultuando sua imagem na forma de Osíris, f. 97
Relevo 21: Duas cenas idênticas mostrando Hatshepsut aspergindo água e fazendo oferenda
ao deus Amon-Min – uma apagada e outra não, f. 98
Relevo 22: Figura de Hatshepsut apagada, f. 99
Relevo 23: Figura de Hatshepsut apagada seguida da de Thutmes III fazendo oferenda em
frente a barca de Amon, f. 100
Relevo 24: Fragmento de relevo mostrando imagem original de Hatshepsut, mas que foi
novamente entalhada como Thutmés II, f. 101
Estátuas
Estátua 1: Hatshepsut como faraó feminino, f. 102
Estátua 2: Hatshepsut entronizada em trajes feminino, f. 104
Estátua 3: Escultura do faraó Hatshepsut, f. 105
Estátua 4: Hatshepsut entronizada como rei, f. 106
Estátua 5: Esfinge de Hatshepsut, f. 107
Estátua 6: Esfinge da rainha Hatshepsut, f. 108
Estátua 7: Hatshepsut em atitude de devoção, f. 109
Estátua 8: Estátua de Hatshepsut ajoelhada, f. 110
Estátua 9: Estátua do faraó Hatshepsut fazendo oferenda, f. 111
Estátua 10: Hatshepsut oferecendo dois vasos nw para Amon, f. 112
Estátua 11: Hatshepsut fazendo oferenda usando a coroa branca, f. 113
Estátua 12: Busto de estátua colossal de Hatshepsut como Osíris, f. 114
Estátua 13: Cabeça de estátua colossal de Hatshepsut, f. 115
Estátua 14: Cabeça da estátua de Hatshepsut com cor da pele amarelada em forma de Osíris,
f. 116
Estátua 15: Cabeça de estátua na forma de Osíris de Hatshepsut com cor da pele
avermelhada, f. 117
A MULHER-FARAÓ: REPRESENTAÇÕES DA
RAINHA HATSHEPSUT COMO INSTRUMENTO
DE LEGITIMAÇÃO (EGITO ANTIGO – SÉCULO
XV A.C.)
1
INTRODUÇÃO
Estudar História Antiga, no Brasil, tem se mostrado um grande desafio para aqueles
que encontram nessa área a fonte principal de seus questionamentos. Em primeiro lugar, pelo
pouco incentivo à pesquisa, tanto de parte dos órgãos públicos quanto no seio da
universidade, que muitas vezes os trabalhos relacionados à Antiguidade como de
importância secundária. Outro empecilho de ordem prática é a dificuldade de acesso às fontes
e à bibliografia básica, em parte pela quantidade mínima de materiais traduzidos para a língua
nacional, mas principalmente pelo estado em que se encontram as bibliotecas do país. Com
relação ao Egito Antigo o problema se agrava, já que, apesar das pesquisas relevantes
desenvolvidas por historiadores brasileiros nos últimos anos, a produção de materiais sobre
esse tema continua sendo escassa em relação aos voltados para as sociedades clássicas.
Tendo em vista essas questões, a produção de trabalhos de cunho acadêmico mostra-se
importante para o desenvolvimento das pesquisas na área.
O intuito do presente estudo é analisar as representações iconográficas da rainha
Hatshepsut, da XVIII dinastia egípcia,
1
tendo por base o conceito de gênero, que a mesma
protagonizou um momento peculiar na história do Egito Antigo: a ascensão de uma mulher
como faraó.
2
As fontes utilizadas nos ajudarão a pensar as estratégias utilizadas dentro do
discurso monárquico para garantir a legitimidade do reinado de uma mulher.
Hatshepsut ascende ao trono em uma monarquia formada por uma ideologia, uma
iconografia e convenções sociais bem estruturadas, fazendo com que a mulher-faraó as usasse
para assegurar sua legitimidade. Mais do que qualquer faraó, Hatshepsut validou seu reinado
enfatizando uma ligação do mesmo com aspectos do passado e com a religião, através
1
Esta dinastia corresponde a ascensão do faraó Ahmés I (1550-1525 a.C.) até o reinado do faraó Horemheb
(1323-1295 a.C.).
2
O reinado de Hatshepsut corresponde ao período que vai de 1473 a 1458 a.C.
2
da tentativa de recriar as características da XII dinastia, considerada uma época de esplendor
pelos egípcios.
No ano de 2005, o centro de estudos do museu Metropolitan de Nova York editou um
livro dedicado a Hatshepsut contendo artigos de especialistas de vários polos de pesquisa e
um catálogo de peças do próprio museu e de outros centros.
3
As idéias contidas nessa obra
foram de grande auxílio para a pesquisa, principalmente nos assuntos referentes a transição de
Hatshepsut de rainha-regente a faraó. Consideramos frutífero o trabalho de Catherine Keller
voltado para o estudo do desenvolvimento das estátuas de Hatshepsut e para sua sistemática
destruição ainda no reinado pessoal de Thutmés III.
Em se tratando de um tema voltado para a observação do feminino e do masculino nas
representações de uma mulher-faraó, o pressuposto teórico que sustentará a análise, como dito
anteriormente, baseia-se no conceito de gênero. Rachel Soihet entende que os gêneros
constituem as diferenças entre os papéis atribuídos a homens e mulheres e que estes são
socialmente estabelecidos, sendo, por esta razão, passíveis de modificação
4
. Isto quer dizer
que o gênero não tem a ver com o sexo biológico, mas está ligado a construções sociais que
caracteristicamente variam ao longo do tempo, permitindo sua alteração, mesmo que esta seja
considerada um desvirtuamento da ordem estabelecida. Este conceito é de extrema relevância
para a pesquisa, pois vê como possível o fato de homens exercerem papéis femininos e vice-
versa. Portanto, uma mulher pôde ser faraó - um “Hórus vivo”- e ocupar um papel entendido
como masculino, mesmo que para isto, em muitas imagens, suas características femininas
tivessem que ser suprimidas.
O conceito de gênero ganha força na década de 1970 como uma tentativa de analisar
as diferenças entre os papéis atribuídos a homens e mulheres e mostrar que as distinções
baseadas no sexo tinham uma origem cultural e social. Os estudos de gênero têm apontado
para a necessidade de rejeitar a oposição simples ou direta entre homens e mulheres,
ressaltando, pela contrário, seu aspecto relacional. Como nos mostra Soihet, não se pode
empreender um trabalho sobre os gêneros através de um estudo que os considere separados de
forma estanque. Para a pesquisadora Joan Scott, o gênero é a primeira forma de significar as
relações de poder. Por isso, a autora vai propor a política como o campo de utilização do
3
ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005,
340 p.
4
SOIHET, Rachel. História, Mulheres, Gênero: Contribuições para um Debate. IN: Neuma Aguiar (org) nero
e Ciências Humanas desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro, Ed. Rosa dos
Tempos, 1997.
3
gênero para a análise histórica
5
. Procuraremos desenvolver o assunto ao longo dos capítulos,
enfatizando a relação entre os gêneros e utilizando esse arcabouço teórico para o
entendimento do campo político que norteia o período.
Outro conceito fundamental nessa pesquisa é o de legitimidade, palavra cujo sentido
longe de ser estático, designa ao mesmo tempo uma situação e um valor de convivência
social, pois remete tanto a aceitação do regime por um segmento importante da população
como a um consenso livremente manifestado pela comunidade. A sociedade não é pensada
somente através de representações que correspondem à realidade, mas por uma imagem
projetada pelos interesses dos setores dominantes, que tem como função a legitimação do
poder constituído. Contudo, essa imagem necessita de elementos descritivos, que
correspondam a realidade social para ganhar a confiança.
6
Desta maneira, a pesquisa procura
perceber de que forma o discurso monárquico procurou garantir a legitimidade do poder de
uma mulher no trono do Egito.
Dentre os objetivos estabelecidos para esse trabalho está o de verificar a existência de
um programa de legitimação do reinado de Hatshepsut e as formas como este foi estabelecido;
analisar a construção do feminino, entendido como imagem-texto, dentro da monarquia divina
egípcia, e sua interação com o que era ao mesmo tempo seu oposto e seu complemento o
masculino; e observar, através das fontes, as formas encontradas para adaptar as imagens do
faraó feminino à figura idealizada dos monarcas e discriminar aquelas que fogem dos temas e
do padrão representacional tipicamente faraônico.
A pesquisa partiu de três hipóteses, a serem comprovadas mediante a análise das
imagens ao longo deste trabalho:
1. A existência de uma mulher como faraó na XVIII dinastia foi o ápice de um processo
iniciado no período anterior: o aumento do poder e da importância das rainhas, tanto
política quanto religiosamente.
2. A figura do deus Amon-Rá ganha proeminência com a ascensão de mais uma dinastia
tebana ao poder. Assim, sua imagem foi usada como instrumento de legitimação do
reinado de Hatshepsut, que enfatizava sua ligação carnal com a divindade como sua
filha e o fato de ter sido especificamente escolhida por ele para governar o Egito.
3. Nas representações produzidas ao longo de reinado, em imagens onde Hatshepsut é
figurada sozinha (principalmente na estatuária), os artesãos tiveram maior liberdade
5
SCOTT, Joan. História das mulheres. IN: BURKE, Peter (ORG). Escrita da História – Novas Perspectivas. São
Paulo, Unesp, 1992.
6
LEVI, Lucio. Legitimidade. In: BOBBIO, N. MATTEUCCI, N, PASQUINO. Dicionário de política.V. 2, L-Z,
12ed. Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 2004, p. 677-8.
4
de criação, o que deu origem a representações em que, ou seus traços femininos são
preponderantes, ou ganham um aspecto andrógino. em representações onde
Hatshepsut se insere em cenas onde estão homens e deuses, como forma de auto-
afirmação de seu poder, o aspecto masculino de sua condição de faraó é reforçado.
As fontes a serem analisadas são essencialmente representações reais de contexto
religioso em estatuária e relevo confeccionadas durante o reinado de Hatshepsut (desde o
período regencial), provenientes de seu templo funerário em Deir el-Bahri e da Capela
Vermelha do templo de Amon em Karnak. A escolha dos locais em questão explica-se por
conterem um conjunto variado de temas representacionais faraônicos que permitiu um
desenvolvimento mais profícuo para a pesquisa. É preciso esclarecer, entretanto, que foram
eventualmente utilizadas imagens reais e femininas oriundas de outros períodos próximos ao
pesquisado, já que se faz necessário vislumbrar adaptações e permanências intentando a
percepção daquilo que poderíamos chamar de um padrão representacional. Assim, estas
comparações ajudarão no refinamento do estudo a ser efetuado. Salientamos que a seleção
qualitativa das fontes estará de acordo com os objetivos da pesquisa e o tempo destinado para
a mesma.
As representações mencionadas são encontradas em livros e catálogos de coleções
egípcias de museus, principalmente a do Metropolitan Museum of Art, de Nova York,
instituição que detém grande parte das estátuas de Hatshepsut. Apesar de o estudo estar
voltado para uma análise iconográfica, a epigrafia auxiliará a pesquisa, fornecendo
informações complementares àquelas advindas das imagens. Algumas das inscrições de tipo
prosopográfico contidas nas imagens selecionadas e que consideramos pertinentes para o
trabalho têm tradução para o inglês nas obras mencionadas. Soma-se a isto o estudo da língua
egípcia iniciado na graduação que, ao fornecer o conhecimento básico da mesma, possibilitará
o cotejamento de algumas traduções.
A metodologia empregada para a análise das fontes foi aplicada em quatro etapas:
seleção das fontes, organização do material coletado, compreensão do mesmo e sua análise. O
corpus foi organizado em fichas de análise digital, de que consta uma descrição das fontes
selecionadas, com a inclusão dos textos que acompanham as imagens quando traduzidos e
uma decodificação das figuras presentes nos relevos, bem como das estátuas, baseada na
metodologia de Richard H. Wilkinson. Após essa fase, foi iniciada a análise de conteúdo,
optando-se pela confecção de um quadro classificatório em que foram identificadas, em cada
imagem, as características que diferenciam os gêneros dentro da arte, levando em
5
consideração a especificidade do cânone artístico egípcio. Também foram discernidas as
temáticas presentes nas imagens. O objetivo deste trabalho, a partir dos indícios levantados
com a metodologia e das hipóteses formuladas, foi perceber os aspectos enfatizados no
discurso contido nas representações de Hatshepsut e as modificações que este apresentou ao
longo de seu reinado.
As idéias de Richard H. Wilkinson serviram de arcabouço metodológico para a análise
das fontes. Partindo da forte ligação entre a escrita e a imagem representacional,
7
característica do cânone egípcio e presente desde o início da história do Egito, esse autor
defende que, mesmo não sendo correto dizer que toda arte egípcia é um hieróglifo por
natureza, é possível afirmar que os sinais da escrita formavam a base da iconografia, a qual
estava relacionada a uma função prática de tornar clara uma manifestação simbólica
específica. O uso de sinais hieroglíficos na arte egípcia ocorria em dois níveis: no primeiro, os
sinais eram usados essencialmente em suas formas escritas normais; e no segundo, objetos,
pessoas e gestos sugerem a forma de sinais hieroglíficos e assim significam uma mensagem
simbólica.
8
Deste modo, os gestos executados pelas figuras numa composição podem ser
interpretados como a representação simbólica de uma ação, seja ela real ou mítica. Os pontos
ressaltados por esse autor foram levados em consideração e estão inseridos na descrição das
imagens que serão apresentadas posteriormente.
O primeiro capítulo da dissertação apresentará uma discussão a respeito dos principais
conceitos norteadores da pesquisa. Inicialmente serão abordadas as características da arte no
Egito Antigo e a maneira como os egípcios recebiam as imagens, assim como as reflexões
sobre as bases político-religiosas nas quais foi sustentada a monarquia divina. Em seguida, as
diferentes perspectivas acerca do papel das mulheres na sociedade egípcia serão discutidas.
As informações e os dados do capítulo serão, em sua maioria, provenientes de fontes
secundárias, principalmente de obras atualizadas de autores estrangeiros.
O capítulo II estará voltado para uma contextualização do momento histórico em que o
reinado de Hatshepsut emergiu. Dessa forma, será realizada uma síntese dos eventos que
possibilitaram a centralização do Egito e o início da XVIII dinastia (1550-1307 a.C.), assim
como os acontecimentos que permitiram a ascensão de uma mulher como faraó. Também
neste capítulo, as informações serão obtidas através de fontes secundárias, principalmente de
obras estrangeiras atuais. É importante salientar que, eventualmente, fontes primárias
7
Para maiores detalhes sobre as características da arte egípcia e sobre a ligação entre escrita e imagem
representacional, ver capítulo I.
8
WILKINSON, Richard H. Reading Egyptian Art. A Hieroglyphic Guide to Ancient Egyptian Paiting and Sculpture.
Londres: Thames and Hudson Ltd., 1992, 224 p. p. 9-10.
6
auxiliarão na exposição do contexto, ocasião em que serão citadas ou reproduzidas no corpo
do texto.
No terceiro capítulo, o trabalho efetivo com as fontes iconográficas será realizado
mediante um levantamento das formas nas quais a rainha-faraó Hatshepsut foi representada. A
partir deste ponto serão observados os traços enfatizados em suas representações e as
possíveis alterações efetuadas ao longo do tempo. Entre estas fontes estão esculturas, pinturas
e relevos. As inscrições e os títulos presentes em algumas das imagens também serão
analisados. Dessa maneira, haverá uma discussão sobre o uso das imagens como veículo de
legitimidade para o reinado em questão.
A conclusão promoverá a exposição dos pontos desenvolvidos pela pesquisa como um
todo, avaliando em qual nível foi possível efetuar a constatação das hipóteses através do
confronto empírico com as fontes, assim como a ausência de informação que porventura seja
atestada.
7
CAPÍTULO I
PODER E VISIBILIDADE: A MONARQUIA DIVINA E A ARTE QUE A
ETERNIZOU
Em seu período faraônico o Egito foi comandado por quase trezentos governantes que
reafirmavam a cada reinado os pilares estabelecidos pela monarquia divina, que dava aos
mesmos o status de terem sua humanidade diminuída diante da origem divina atribuída em
decorrência da posição que ocupavam. O estudo de um reinado do Egito antigo, como no caso
desta dissertação, apesar de estar voltado para pontos específicos, torna-se incompleto quando
não atenta para as questões fundamentais que estruturaram a sociedade egípcia por quase três
mil anos. Embora seja óbvio que esse longo período não esteve isento de alterações
periféricas, podemos dizer que a manutenção das estruturas sociais básicas foi responsável
pela continuidade característica do Egito Antigo. Mesmo não tendo a intenção de desenvolver
uma análise detalhada a respeito dos conceitos que nortearão esse capítulo, uma observação
das bases políticas, artísticas e sociais faz-se necessária para o entendimento do caso
estudado. Afinal, não podemos esquecer que o reinado de Hatshepsut emerge em uma
sociedade de sistemas solidificados há quase dois milênios.
1. MONARQUIA DIVINA
O mundo contemporâneo, com sua tendência a uma constante categorização, observa
com encantamento as estruturas de pensamento das sociedades antigas, principalmente a
capacidade de não separarem a realidade em categorias estanques. Nessas civilizações, mitos,
rituais e práticas religiosas abrangiam assuntos que hoje são considerados laicos, como
política, distribuição da produção e divisão social. O conteúdo exótico é ainda mais fascinante
quando o objeto de apreciação é o Egito Antigo, terra conhecida por suas mias, riquezas e
governantes emblemáticos. A ideia de um rei cuja divindade era considerada a tal ponto que
8
resultava na construção de monumentos grandiosos como as pirâmides por seus súditos
estimulou a imaginação dos homens desde que os artefatos egípcios tornaram-se alvos da
cobiça e do interesse nos tempos de Napoleão Bonaparte. Entretanto, a constante afirmação
do faraó como deus na terra negligenciava a mortalidade dessa figura que, apesar de ter sido
objeto de culto e adoração, não podia vencer a contingência de sua humanidade. Diante disso,
quais eram os limites da percepção da divindade faraônica e como essa natureza divina era
reforçada?
Um dos pilares da sociedade egípcia foi, sem dúvida, a instituição da realeza, que
justificava ideologicamente a permanência das divisões presentes nessa civilização. De
maneira geral, a realeza é quase sempre associada a valores religiosos e, aos governantes, é
creditado um poder divino ou uma sanção dos deuses. A capacidade de os símbolos reais e de
o discurso se expressarem em termos de realeza na monarquia egípcia sobreviveu a mudanças
políticas e a instabilidade de poder. A monarquia, assim, era entendida como pressuposto da
ordem social e o monarca era o principal símbolo do país.
9
A literatura e a iconografia ao longo da história faraônica enfatizavam a característica
sagrada da realeza do faraó. O mito do rei divino era o ponto em que convergiam todas as
variantes da cosmogonia egípcia. O faraó, dentro da ideologia, era encarado como
descendente do deus criador, sendo assim, herdeiro do cosmo completo e o grande
responsável por impedir o estabelecimento do caos que no início dos tempos foi expulso para
os limites do mundo organizado do qual o Egito era o centro. Como mediador entre os
mundos divino e humano, entre o visível e o invisível, o rei era o único capaz de alimentar e
fortalecer os deuses através de oferendas de alimentos e bebidas, fazendo com que eles
continuassem a lutar contra as forças da desordem. Manter o equilíbrio e a ordem, ideias
personificadas na figura da deusa Maat, filha do deus solar Ra, era um dos grandes deveres do
monarca, que o cumprimento dessa tarefa promovia uma renovação clica que fazia com
que tudo funcionasse, desde o nascimento de um novo dia até a cheia anual do Nilo. Essa
responsabilidade era projetada de forma mais atenuada para o restante da população, que
mantinha maat no cumprimento de suas tarefas e na obediência ao seu governante, que mais
uma vez era colocado como uma referência. A monarquia divina no Egito era, portanto, uma
teofania, ou seja, não era um governo pautado em nome da divindade, mas a atuação de uma
9
BAINES, John. Kingship, definition of culture and legitimation. In: O’CONNOR, D. & SILVERMAN, D.
(ed.) Ancient Egyptian Kingship. New York: E.J. Brill, 1995, 345 p. p. 3.
9
divindade no trono que, através de um direito adquirido por herança, possuía o controle total
da terra e de seus súditos.
A ideia de uma conexão do faraó com os deuses era de extrema importância para a
consolidação do poder real. Assim, por ter uma natureza divina, o monarca distinguia-se do
resto da humanidade. Após sua coroação, o rei tinha sua figura associada ao deus falcão
Hórus que, de acordo com a mitologia, vingou o assassinato de seu pai, o deus Osíris, lutando
contra seu tio Seth para retomar o trono do Egito que era seu por direito. Com a morte do
monarca, sua imagem passava então a ser conectada à de Osíris, primeiro faraó do Egito e
que, através da intervenção da deusa Ísis, voltou à vida após ser mumificado, tornando-se
posteriormente o deus do mundo dos mortos. Dentro desse ideal, o rei era considerado por
seus súditos como a expressão terrestre da impalpável esfera divina e a ele eram prestados
culto e adoração. Contudo, a inerente mortalidade do governante não podia ser negada nem
esquecida, que fatores como o tempo e a suscetibilidade do corpo tornavam explícito seu
caráter efêmero.
As alterações sobre a forma como os egípcios viam seu faraó e o que ele representava
podem ser explicadas na dualidade homem/deus que compunha a figura real. De um lado
havia um ser imbuído de um poder sagrado que personificava uma instituição de origem
divina e de outro havia um líder que possuía uma função no mundo humano. Apesar de sua
essência divina, o rei precisava, assim como uma pessoa comum, de um túmulo para garantir
sua vida após a morte; o que estabelecia uma diferença em relação aos deuses que estes
podiam envelhecer, mas raramente tinham sua morte registrada. Antes de sua ascensão ao
trono, seu crescimento e desenvolvimento eram acompanhados pelos súditos, que estavam
cientes de situações complicadas como uma sucessão prejudicada pela falta de herdeiro ou a
existência de conspirações reais. Para David Silverman, a ampliação da literatura
propagandística, chamando a atenção para o direito de um faraó ao trono, demonstra, mesmo
que de forma implícita, que o povo estava consciente da origem humana do soberano.
10
O
trecho a seguir é retirado dos Ensinamentos para o rei Merykara, texto sapiencial proveniente
do Primeiro Período Intermediário (2150-2040 a.C.) em que o pai do faraó, de origem
desconhecida, transmite instruções ao seu filho em uma espécie de testamento político. A
existência de textos com esse conteúdo indica que o faraó era passível de erros, demonstrando
sua suscetibilidade a uma fraqueza mortal e que uma postura adequada não era adquirida
naturalmente.
10
SILVERMAN, D. O divino e as divindades no Antigo Egito. In: SHAFER, B. E. (org) As religiões no Antigo
Egito. Deuses, mitos e rituais domésticos. São Paulo: Nova Alexandria, 2002, 264 p.p. 76.
10
Não negligencies as minhas palavras, que formulam todas as leis do reino,
que te instruem para que possas governar o país. Que possas alcançar-me
(no além) sem ninguém te acusar! Não mates quem está próximo a ti, aquele
que favoreceste, (pois) o deus o conhece. Ele é um dos que tiveram ventura
na terra e os que servem na terra são deuses. Faz-te estimado por todo
mundo, um bom caráter é lembrado [quando seu tempo] passou. [...] Eis
que te disse o melhor dos meus pensamentos, age de acordo com o que está
assentado diante de ti.
11
Segundo Claude Traunecker, a dupla natureza do faraó refletia o princípio egípcio de
oposição entre pessoa e função, ideia que seria a chave para inúmeros traços da cultura
egípcia, sendo, inclusive, aplicável aos deuses, já que na religião havia distinções entre a
personalidade dos deuses e sua divina função.
12
Contudo, como salienta Silverman, a
perspectiva dual dos reis não era tão evidente nos deuses. Apesar da tendência a uma
humanização do comportamento e das atividades dos deuses ao longo do tempo, eles não
transitavam de uma esfera para a outra, ou seja, eram constantemente divinos. Já os reis
pareciam possuir aspectos que pendulavam entre o humano e o divino. Para este autor, o
entendimento da diferenciação entre pessoa e função é mais claro quando consideramos que
os antigos egípcios viam em seu regente tanto um ser quanto um cargo, o primeiro
originalmente mortal e o segundo sempre divino. Assim, mesmo humano em sua origem, ele
tinha a capacidade de atuar entre os dois mundos, enquanto os deuses pertenciam somente ao
mundo invisível.
13
Como nos mostra Ciro Cardoso, novas pesquisas apontam para o fato do
título nsw-bit(y), tradicionalmente traduzido como “Rei do Alto e Baixo Egito”, ser uma
manifestação da dualidade real: nsw remeteria ao aspecto imutável e eterno do rei, ou seja, o
monarca visto como uma expressão transitória de algo permanente, e bit(y) aludindo ao
ocupante individual do cargo, observado em sua individualidade, sendo mortal e passageiro.
14
Outro aspecto que auxilia no entendimento da dualidade existente na figura do faraó é
aquele no qual, segundo o pensamento egípcio, havia duas eternidades, uma cíclica (presidida
pelo deus Sol) e outra linear (comandada pelo deus Osíris). Assim, ao mesmo tempo em que
os ciclos faziam parte da realidade, havia uma linearidade feita de momentos que se sucediam
eternamente. O que hoje parece ser uma contradição pode não ter sido um conflito para os
antigos egípcios, assim como não eram para eles as oposições masculino e feminino, Alto
11
ARAÚJO, Emanuel. Escrito para a eternidade: A literatura do Egito faraônico. Brasília-São Paulo: EdUNB-
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2000, p. 291-2
12
TRAUNECKER, Claude. The Ritualist Pharaoh. The Religious Cult. In: ZIEGLER, Christiane (ed). The
pharaohs. New York: Rizzoli, 2002, 512 p. p. 145.
13
SILVERMAN, op. cit., p. 80-5.
14
CARDOSO, Ciro. Monumento e memória no antigo Egito. Comunicação inédita, 2008.
11
Egito e Baixo Egito, solar e ctônico, entre outras. Nessa forma de pensamento, as oposições se
complementavam e formavam uma síntese, muitas vezes resultando em um dinamismo
promotor da criação, algo claramente perceptível nos mitos cosmogônicos. O soberano estava
próximo aos deuses por essência e, ao mesmo tempo, conectava-se aos seus súditos por ter
nascido entre eles. Portanto, um rei dual era o ser mais adequado para atuar entre o mundo
humano e divino, o que fazia com que o mesmo agisse como o sumo sacerdote por excelência
de cada um dos deuses, mesmo que, na prática, ele tivesse seus substitutos.
A fluidez de elementos na figura do monarca possibilitava que os egípcios
desenvolvessem variações ao seu conceito de realeza. Um olhar criterioso sobre as fontes
demonstra que, se por um lado a instituição da monarquia continuou quase que de forma
constante durante os três mil anos de Egito faraônico, a percepção que antigos egípcios
tinham do soberano e de seu ofício não foi estática.
15
Para Dominique Valbelle, a durabilidade
da monarquia egípcia residia, justamente, em sua capacidade de manter uma continuidade ao
mesmo tempo em que possuía a habilidade de se adaptar.
16
Como observamos, os egípcios
viam em seu soberano tanto um ser, originalmente mortal, quanto um cargo, sempre divino e
esses dois componentes originais permaneceram reconhecíveis na realeza divina, mesmo que
essa distinção fosse mais clara em alguns períodos do que em outros.
17
Uma forma plural de percepção do farpode ser encontrada nos epítetos usados para
ele em tipos específicos de documento. Erik Hornung sistematiza essas variações ao
estabelecer que a relação do soberano com os deuses podia ser explicitada através de títulos
oficiais, referindo-se ao faraó como deus ou filho do deus, e de títulos apelativos, em que o
faraó é a “imagem” do deus, ou amado e favorecido pelos deuses.
18
No Reino Antigo (2649-
2150 a.C.), as referências ao rei em textos biográficos sempre usam o termo “majestade”, que,
ao se referir à encarnação viva do faraó e à sua pessoa, não aparece em inscrições fúnebres.
Um dos termos mais antigos designava o soberano como netjer em referência ao rei como um
deus e na IV dinastia o epíteto “filho de Rá” era usado. Mais tarde, os egípcios
desenvolveram outros termos como a classificação do monarca como a grande casa”,
referindo-se ao palácio. Para Silverman, essa pluralidade de expressões indica que os egípcios
15
SILVERMAN, David P. The nature of Egyptian Kingship. In: O’CONNOR, D. & SILVERMAN, D. (ed.)
Ancient Egyptian Kingship. New York: E.J. Brill, 1995, 345 p.p. 45.
16
VALBELLE, Dominique. Pharaonic Regality. The nature of Power. In: ZIEGLER, Christiane (ed). The
pharaohs. New York: Rizzoli, 2002, 512 p.p. 97.
17
SILVERMAN, op. cit., 2002, p. 84.
18
HORNUNG, Erik. O rei. In: DONADONI, S. (org.). O Homem Egípcio. Lisboa: Editorial Presença, 1994, p.
252.
12
utilizavam terminologias diferentes para tratar dos vários aspectos que eles entendiam estar
personificados no faraó.
19
Na iconografia encontramos mais exemplos dessa variação. Enquanto no Reino
Antigo as representações em estatuária do faraó possuíam uma postura altiva e imperial
figura 1 -, no Reino Médio (2040-1640 a.C.) elas eram mais humanizadas, como nos mostra
o exemplo da figura 2. com relação às inscrições, Donald Redford demonstra que o papel
desempenhado pelo farna formação e manutenção de um império, acabou por realçar sua
posição terrestre nos textos do início da XVIII dinastia, ou seja, enfatizou a caracterização do
faraó como homem forte e sábio.
20
Diante da complexidade da imagem faraônica e da separação muitas vezes evidente
entre a instituição e seu ocupante, fontes demonstram que nem sempre o monarca era visto
com reverência e respeito. Um caso emblemático é o grafito encontrado em uma gruta
próxima ao templo mortuário da mulher-faraó Hatshepsut (1473-1458 a.C.) mostrando uma
figura feminina com um toucado real mantendo relações sexuais com Senenmut, seu arquiteto
e homem importante da corte, provavelmente em coito anal, prática considerada desonrosa
pelos egípcios.
21
Apesar das sátiras não serem incomuns no Egito, seus alvos eram geralmente
estrangeiros e inimigos, o que indica que o reinado de uma mulher, mesmo com o caráter
sagrado da instituição, não era aceito por todos os súditos. Trataremos mais detalhadamente
desse caso nos próximos capítulos.
Figura 1
Estátua do faraó Userkaf (V dinastia - 2450 a.C.)
Referência: MALEK, Járomir. Egypt. 4000 years of art. Londres: Phaidon Press, 2003, 376 p.p. 67
19
SILVERMAN, op. cit., 1995, p. 66.
20
REDFORD, Donald B. The concept of kingship during the eighteenth dynasty. In: O’CONNOR, D. &
SILVERMAN, D. (ed.) Ancient Egyptian Kingship. New York, E.J. Brill, 1995, 345 p. p. 166.
21
Para maiores detalhes ver capítulo III.
13
Figura 2
Estátua do faraó Senusret III (XII dinastia – 1878-1841 a.C.)
Referência: MALEK, Járomir. Egypt. 4000 years of art. Londres: Phaidon Press, 2003, 376 p.p.116
Outros casos, como ações contra o rei e suas construções, também podem ser
atestados. As violações de tumbas parecem ter ocorrido em toda a história egípcia, algumas
delas poucos anos após a morte do faraó. Relatos de agressões à pessoa sica do governante
também são encontradas. Nos Ensinamentos do rei Amenemhat I (1991-1783 a.C.), o far
fundador da XII dinastia relata um atentado contra a sua pessoa:
Recolhia-me para um momento de repouso, deitado em minha cama, pois
estava cansado. Meu coração começava a seguir-me no sono quando armas
destinadas à minha proteção voltaram-se contra mim, enquanto eu estava
(desprotegido) como uma cobra no deserto. [...] Eis que a agressão
aconteceu quando eu estava sem ti [...]. De fato eu não estava preparado
para isso, não esperava isso, não previra a negligência dos criados.
22
Os exemplos apresentados não devem ser entendidos como um desrespeito à
instituição, mas ao indivíduo, ao elemento humano que a ocupa. Os questionamentos que essa
separação entre ofício e pessoa podia trazer a figura do soberano resultaram em inúmeras
tentativas de reforçar o poder real. Segundo John Baines, mesmo com a permanência da
instituição, havia uma necessidade contínua de legitimação dos monarcas.
23
O processo de legitimação era desenvolvido através de várias estratégias. Uma delas
era o ritual, fundamental para a ascensão do faraó como divindade e para resguardá-lo do
mundo circundante, que, como deus, era preciso que o monarca fosse diferenciado do
restante dos homens. As ações ritualísticas, além de reforçarem o contato do faraó com os
22
ARAÚJO, op. cit., p. 292.
23
BAINES, op. cit., p. 4.
14
deuses, ajudavam a imbuir o faraó com poderes divinos, como a celebração do jubileu ou
festival Sed, normalmente realizado por volta do trigésimo ano de reinado com intuito de
estabelecer a revitalização do monarca. É emblemático o fato de alguns faraós da XVIII
dinastia, como Hatshepsut, Amenhotep II (1427-1401 a.C.) e Akhenaton (1353-1335 a.C.),
terem realizado o jubileu bem antes dos trinta anos de reinado, demonstrando que esse ritual
era um importante instrumento para reforçar uma legitimidade tanto no plano divino quanto
no humano.
24
Ao ser colocado como o único intermediário entre homens e deuses, o faraó era
teoricamente o responsável pelos cuidados diários com a divindade. Na prática, os sacerdotes
atuavam como seus representantes diante da impossibilidade de o faraó estar em todos os
templos diariamente, mas na iconografia somente o rei era representado em um contato mais
íntimo com as imagens divinas. O faraó Akhenaton levou a questão do ritual ao extremo, pois
nas representações ele não apenas o executava como também era figura com um significado
litúrgico próprio. Traunecker cita cenas em que esse faraó aparece comendo, se lavando e se
vestindo, imagens que poderiam ser consideradas para ter algum tipo de poder
performático.
25
As raras aparições públicas do faraó, sempre envolto com símbolos mágicos e de
poder, ajudavam na formação de sua imagem divina. Em certas circunstâncias, todos
esperavam que o próprio faraó executasse as maiores liturgias diante de uma multidão de
súditos. Essa era uma ocasião para se ver o rei, os deuses em suas barcas divinas e para seguir
o aparato maciço da procissão faraônica. O ritual realizado diante de um grande público
anunciava de forma explícita a legitimidade divina do faraó. Nesse contexto, as insígnias
faziam a autoridade real reconhecível, como no caso das mais diversas coroas.
Aliado ao cerimonial, às insígnias e aos paramentos, a construção de estátuas,
colossos, templos e estelas comemorativas mostravam ao povo do Egito e seus vizinhos que o
monarca exprimia em pedras e cores a sua essência divina. Dificilmente demonstrando sua
personalidade nas obras, o monarca iniciava, a partir de sua coroação, as obras
propagandísticas do poder de seu reinado.
Estas afirmações podem gerar questionamentos sobre a amplitude e capacidade de
penetração das mensagens passadas pelas construções e representações da monarquia em uma
24
Amenhotep II sucedeu Thutmés III, faraó para o qual Hashepsut atuou como regente. Akhenaton foi o décimo
monarca da XVIII dinastia e ficou conhecido como faraó herético, ao estabelecer o culto a uma única divindade
Aton e a sua figura e de sua esposa, a rainha Nefertiti.
25
TRAUNECKER, op. cit., p. 150-3.
15
sociedade em que apenas uma minoria conseguia decodificar o simbolismo presente na arte e
na escrita. Segundo Júlio Gralha, as imagens eram percebidas de formas diferentes pelos
vários segmentos sociais. Para um egípcio comum, o significado dessas representações ficava
claro ao longo do ano e dos acontecimentos “narrados” nas capelas e nas procissões públicas.
Assim, algumas imagens tornar-se-iam compreensíveis.
26
As grandes construções e a restauração de monumentos antigos também atuavam
como propaganda para o rei, pois, primeiramente, chamavam a atenção para a prosperidade
do reino. De maneira geral, os monumentos em pedra dos grandes centros populacionais
serviam como uma constante lembrança de que havia um poderoso faraó no trono. Ao mesmo
tempo, construções como “mansão de milhões de anos” (templos) ou “casas da eternidade”
(tumbas) podiam garantir que o nome de seu fundador vivesse com eles para sempre. O papel
criador obrigava cada rei a fundar algo de novo, a superar as obras de seus antecessores. Essa
missão era facilitada pela concepção de templo egípcio, que, ao não ser projetado como uma
estrutura acabada, podia ser constantemente ampliado. Todos os novos soberanos tinham a
possibilidade de ampliar templos existentes ou criar novos. Outro aspecto é que a
possibilidade de ter uma construção maior do que a de seus antecessores constituía uma
comparação lisonjeira com o passado e era uma maneira útil de enfatizar as realizações do
presente. Somando-se a isso, as paredes dos templos serviam como um quadro óbvio e
permanente, estabelecendo uma comunicação direta com os súditos do presente e do futuro.
Ciro Cardoso, pensando na questão da transmissão da memória pela propagação da
emissão de mensagens simbólicas na forma de monumentos régios, conclui que essa memória
era da monarquia faraônica como instituição de base teológica. Os empreendimentos de cada
rei apareciam simultaneamente como algo que obedece à tradição ancestral e como algo novo
sem precedentes, o que reforça a ideia de que cada rei seria a expressão atual de uma noção
abstrata e atemporal da monarquia divina.
27
A exposição da figura real é ainda mais explícita quando analisamos o discurso
contido em textos e na iconografia que não apenas se refere como também exalta o
governante divino. Estando a maior parte voltada para o contexto religioso, as inscrições
reafirmavam a ligação do rei com os deuses. Em algumas representações o faraó é, por
exemplo, paramentado como Osíris o que constitui uma metáfora para a divindade real
(figura 3).
26
GRALHA, Julio. Deuses, faraós e o poder. Rio de Janeiro: Barroso Produções Editoriais, 2002, 190 p.
27
CARDOSO, op. cit.
16
Figura 3
Estátua do faraó Senusret I (XII dinastia, 1971-1926 a.C.) como Osíris, localizada no templo
de Amon em Karnak
Referência: HAGEN, R. & HAGEN, Rose Marie. Egipto: pessoas, deuses, faraós. Taschen, 2005, 240
p. p.169
Como reforço à natureza divina do faraó, partes do corpo do governante podiam ser
comparadas com a deidade na linguagem metafórica como, por exemplo, braços e pernas
comparados a Amon. O símile é muito usado, principalmente na literatura mortuária, em que
o rei falecido aparece em companhia dos deuses e agindo de forma similar a eles.
28
Uma das maiores expressões de legitimidade e com forte conteúdo propagandístico
representada em templos do Reino Novo (1550-1070 a.C.) foi a ideia de nascimento divino do
rei, em que representações evocavam o mito no qual o deus Amon copulava com a rainha,
dando origem ao novo faraó. Esse tema foi representado pela primeira vez por Hatshepsut e
novamente representado no reinado do faraó Amenhotep III (1391-1353 a.C.).
29
Especificamente no relativo às imagens do soberano, elas eram sempre idealizadas,
que representações de velhice, indicação de tempo, deformidade e movimento violento são
praticamente inexistentes nas obras egípcias.
30
As imagens dificilmente eram representações
individualizadas do monarca, mas sim a expressão de um poder atemporal, sem sinais do
tempo. O faraó como homem era sempre representado no apogeu de sua vida e como um deus
28
SILVERMAN, op. cit., 1995, p. 62.
29
Ibid., p. 70-1.
30
As características do cânone artístico egípcio serão tratadas com maior profundidade no próximo tópico.
17
era sempre retratado com perfeição e vigor. Um bom exemplo é o faraó Ramsés II (1279-
1213 a.C.) que, mesmo reinando por 66 anos, não foi representado em idade avançada.
31
Além de uma ligação com o divino, os governantes necessitavam evocar sua ligação
com grandes reis do passado ou com seu antecessor. Nesse caso, Hatshepsut mais uma vez
pode ser utilizada como exemplo que, como veremos posteriormente, ao lado de sua capela
mortuária em Deir el-Bahri, foi construída uma outra em homenagem ao seu pai terreno,o
faraó Thutmés I. A referência direta ao passado histórico auxiliava na consolidação dos laços
que ligavam o soberano à monarquia divina. Nas palavras de John Baines, “legitimidade e
continuidade não devem ser separadas”.
32
Diante da complexidade da figura do líder egípcio e dos meios utilizados para
assegurar e reforçar sua legitimidade, apresenta-se crucial a observação das especificidades
das manifestações artísticas no Egito Antigo, que, como veremos, a arte era utilizada como
um dos instrumentos de manipulação e divulgação do poder, da ligação real com os deuses e
da imagem monárquica idealizada.
2. A ARTE EGÍPCIA
2.1 GENERALIDADES: O QUE É A ARTE EGÍPCIA E AS BASES QUE COMPÕEM SEU
CÂNONE
Uma análise da arte voltada para as fases anteriores à modernidade requer uma série
de cuidados, principalmente no que diz respeito à nossa tendência natural de projetar para o
passado valores próprios da contemporaneidade. Termos como artista e obra de arte devem
ser usados com cautela quando observamos o conjunto das produções plásticas de uma
sociedade antiga e no caso do Egito não pode ser diferente. Assim como a instituição da
realeza, a arte egípcia manteve seus preceitos básicos quase que sem grandes modificações ao
longo o período faraônico. Em parte isso se deve à institucionalização da mesma, que atuava
dentro de regras gidas emanadas do poder maior personificado no faraó cujo primeiro
objetivo não era a satisfação dos sentidos e sim sua funcionalidade. Contudo, como salienta
Gay Robins, isso não quer dizer que os egípcios não tivessem noção do traço estético de suas
produções, apenas essa não era a preocupação principal na execução dos trabalhos.
33
31
HORNUNG, op. cit., p. 243.
32
BAINES, op.cit., p. 7.
33
ROBINS, Gay. Proportion and style in ancient egyptian art. Thames and Hudson, 1994, 283 p.p. 2-3.
18
Mediando uma comunicação entre o humano e o sagrado, as produções consideradas
no mundo contemporâneo como artísticas, atuavam no Egito como uma mensagem,
geralmente aos deuses, o que fazia com que a arte tivesse um forte caráter utilitário. Como
nos mostra Rita Freed, a arte egípcia era objeto de utilização prática constante e possuía uma
profunda ligação com a religião
34
e uma das provas de sua funcionalidade está na crença de
que era possível animar uma imagem por meio de rituais executados, ou seja, a figura era de
certo modo aquilo que representava. Com isso, dizemos que a arte egípcia era mais
conceitual, pois ao mostrar-se como um instrumento mágico não tinha como objetivo
principal a satisfação dos sentidos. Essa função fez com que a arte desenvolvesse um sistema
próprio, com regras rígidas que, juntamente com a escrita hieroglífica, podia ser lida e
entendida. Estas características são as da chamada arte canônica ou oficial, instituição do
Estado egípcio, feita por e para uma elite. A arte oficial estava baseada, como nos mostra
Cardoso, na forte ideologia da monarquia divina, explicitada anteriormente.
35
Paralela ao cânone estabelecido observa-se a existência de uma arte popular que, ao
que parece, não seguia as regras gidas estabelecidas pela oficial. Provavelmente os
trabalhadores que executavam as obras canônicas também desenvolviam trabalhos mais
livres, que extrapolavam os limites impostos. Entretanto, essa modalidade é pouco conhecida
que raramente era confeccionada com materiais duráveis, como a pedra, suficientemente
dispendiosos para impedirem seu uso corrente pela maioria da população.
No Egito faraônico não havia uma distinção entre artesão e artista. Escultores e
pintores eram vistos da mesma forma que carpinteiros, por exemplo.
36
Esses trabalhadores
participavam, de acordo com a ideologia corrente, da principal tarefa da sociedade: manter a
ordem do cosmo. Isso quer dizer que o resultado global contava mais do que o próprio artífice
e com isso poucos homens são identificados no exercício de sua função. Principalmente no
Reino Novo
37
isso vai depender da estima do soberano, que dava importância às habilidades
dos trabalhadores em realizar as obras dentro do sistema canônico, e dos clientes que
eventualmente os homenageavam nas paredes de seus túmulos.
34
FREED, R. E. Beleza e Perfeição A arte faraônica. In: SCHULZ, R. e SEIDEL, M. (ed). Egipto, o mundo
dos faraós. Colónia, Konemann, 2001, 538 p.p. 331.
35
CARDOSO, Ciro. A arte egípcia: um estudo de suas características fundamentais. Artigo Inédito.
36
A ideia de arte como produção consumida exclusivamente por sua beleza obra de arte - está ligada ao
desenvolvimento do conceito de propriedade privada e mercadoria, questões centrais do mundo capitalista. Da
mesma forma, a noção de artista, com seu caráter individual, emerge na medida em que o artífice se transforma
em agente social produtor de uma categoria específica de mercadoria, o que não se enquadra no exemplo
egípcio.
37
Reino Novo é o período composto pelas dinastias XVIII, XIX e XX (1550-1070).
19
Ao realizar o seu trabalho de maneira adequada, os artesãos poderiam obter um status
maior e uma boa remuneração, galgando em alguns casos posições de comando sobre outros
trabalhadores, sendo possível até ganhar acesso à corte faraônica. Como exemplo, temos o
fato de que em muitos casos os primeiros reis mandavam construir as sepulturas desses
trabalhadores junto dos túmulos reais. Outro ponto interessante, como nos indica Dominique
Valbelle, é que durante o reinado de Horemheb (1319-1307 a.C.) houve a criação da
instituição do Túmulo Real, com o intuito de formar uma equipe permanente de especialistas
para a construção de sepulturas no Vale dos Reis.
38
Vemos que o padrão de vida desses
artífices dependia em muitos aspectos da prosperidade das finanças estatais, já que essas obras
eram dispendiosas, não sendo acessíveis a toda a população.
A exclusividade dessas grandes produções artísticas e da construção monumental por
parte de uma pequena parcela da população põe em relevo questões como a escolha das
temáticas tratadas pela arte canônica e as regras de sua representação. Percebe-se que uma
pequena elite, que se expressava sempre em nome do rei, organizava a memória coletiva
através da elaboração de textos e imagens. Como salienta Ciro Cardoso, o monopólio da
construção e reconstrução monumental também significava uma elaboração seletiva e
mudanças no rumo da memória que se desejava preservar.
39
Assim, o sistema de
representações iconográficas tomou forma no início da história egípcia sem sofrer grandes
mudanças ao longo do tempo, fator que possibilita o reconhecimento das obras produzidas em
qualquer momento desses três mil anos como arte egípcia. Como citado anteriormente, os
egípcios, extremamente influenciados por sua visão de mundo, estabeleceram convenções
para transmitir as informações sobre o que eles desejavam comunicar, de forma que, uma vez
familiarizados com elas, os observadores pudessem facilmente compreender seu significado.
Uma primeira característica presente na arte canônica é que a representação egípcia não
estava baseada nos princípios da perspectiva, como o escorço e a adoção de um único ponto
de vista. Para Gay Robins, os antigos egípcios aceitaram a superfície do desenho como plana
e representaram os temas escolhidos nas composições através de uma série de símbolos.
Assim, o objetivo dos artesãos era descrever a natureza duradoura dos objetos e das cenas
representadas, não estando interessados em como estes podiam aparecer num momento
específico ou em um ponto de vista particular.
40
Contudo, devemos ter em mente que a não
adoção dos princípios da perspectiva está inserida nas escolhas conscientes que deram origem
38
VALBELLE, Dominique. O artesão. In: DONADONI, S. (org.) O Homem Egípcio. Lisboa: Editorial
Presença, 1994. p. 47.
39
CARDOSO, op. cit., 2008.
40
ROBINS, op. cit.
20
ao cânone egípcio. Prova disso é que durante o reinado do citado faraó Akhenaton, no
século XIV a.C., quando os limites da arte oficial não estavam tão marcados, encontramos
obras que aparecem como experimentos iniciais de representação de profundidade e espaço
nas cenas, assim como figuras mais próximas da imagem proporcionada por um único ponto
de vista. A figura 4 é um exemplo significativo, pois nela observamos a mão, provavelmente
de Akhenaton, oferecendo um ramo de oliveira ao deus Aton, que aparece com seus raios que
terminam também em mãos. O que torna essa cena única é o fato de observarmos nela o
esquematismo característico da arte egípcia, do qual falaremos posteriormente, nas mãozinhas
localizadas no final dos raios solares do deus, ao mesmo tempo em que encontramos uma
inovação. A mão do faraó é representada de maneira mais realística, em que o polegar é
mostrado em sua relação com o ramo e os demais dedos aparecem em um aspecto próximo ao
da perspectiva.
41
Figura 4
Relevo mostrando mão oferecendo um ramo de oliveira – reinado do faraó Akhenaton (XVIII dinastia)
Referência: BESSERAT-SCHMANDT, Denise (Ed.). Immortal Egypt. Undena Publications, 1978, 108 p. 105.
Como forma de organização das cenas, os artesãos dividiam a superfície desenhada
em registros horizontais colocados verticalmente um em cima do outro. Robins diz que a
própria superfície era neutra em relação ao tempo e ao espaço, não havendo, portanto, uma
indicação espacial e temporal da relação entre os registros.
42
Nas representações cronológicas
de eventos, os primeiros eram normalmente contidos nos registros inferiores. O sistema de
41
ALDRED, Cyril. Tradition and Revolution in the Art of the XVIII dynasty. In: SCHMANDT- BESSERAT, D.
(ed.) Immortal Egypt. Undena Publications, 1978, 108 p.p. 59
.
42
ROBINS, op.cit., 1994, p. 6.
21
registro foi frequentemente relaxado em cenas de batalha e no deserto, que essas
descreviam forças associadas com o caos, estando afastadas do mundo organizado no qual os
egípcios viviam.
Com relação aos temas envolvendo cenas caóticas, uma questão interessante é que a
arte canônica excluía praticamente tudo o que não estivesse ligado ao princípio de
ordem/verdade/equilíbrio. Isso se deve ao fato de que representar infortúnios, privações e
perturbações significava permitir que a desordem afetasse a realidade organizada. Portanto,
mais uma vez encontramos demonstrações de que para o pensamento egípcio as
representações podiam afetar diretamente a realidade.
A organização do material representado de acordo com um sistema de escala também
é um ponto característico dessa arte. Dentro disso, observa-se a diferença de tamanho de
acordo com a importância da pessoa representada. Assim, patrões apareciam em tamanho
maior que empregados, o faraó em tamanho maior que seus súditos, homens em tamanho
maior que mulheres. Um exemplo concreto é encontrado em cenas localizadas em tumbas,
onde o dono é representado em tamanho maior que os demais membros de sua família (figura
5). nas cenas de templos, em que o rei interage com as divindades, uma pequena
variação de escala, já que o faraó e os deuses eram vistos da mesma maneira (figura 6).
Figura 5
Cena da tumba de Sennefer, em que o proprietário aparece junto com sua esposa Mereti. Reinado de
Amenhotep II, Tebas, XVIII dinastia.
Referência: HAGEN, R. & HAGEN, Rose Marie. Egipto: pessoas, deuses, faraós. Taschen, 2005, 240 p. p. 117
22
Figura 6
Relevo do túmulo do faraó Horemheb (1319-1307 a.C.), mostrando-o diante do deus Hórus, que porta
a coroa do Alto e do Baixo Egito.
Referência: HAGEN, R. & HAGEN, Rose Marie. Egipto: pessoas, deuses, faraós. Taschen, 2005, 240 p. p. 46
Apesar dos artistas não darem a ilusão de profundidade nas superfícies desenhadas,
eles empregavam algumas “profundidades indiretas” para estabelecer a relação entre figuras e
objetos em termos reais. Uma dessas ferramentas era a sobreposição ou deslocamento. Ela
permitia que todas as figuras se tornassem visíveis. O deslocamento vertical, processo mais
empregado, ocorria quando objetos que estão lado a lado são representados um em cima do
outro. no deslocamento lateral objetos que estão no mesmo espaço, mas em planos e
profundidades diferentes são representados deslocando-se um deles para trás. Robins diz que
a sobreposição foi usada também para criar padrões nas superfícies desenhadas. Assim, o
equilíbrio e o espaço eram fundamentais na arte egípcia. Um exemplo são as cenas de
oferendas em que cada item é cuidadosamente equilibrado contra outro para formar pequenos
grupos e esses grupos são equilibrados uns contra os outros até o grupo final estar completo.
A sobreposição ajudava a prover um padrão e coerência com o todo. Portanto, o uso do
espaço pelos artistas era governado por um senso de balanço que garantia que os elementos
desenhados não ficassem tão dispersos, evitando a quebra do ritmo de toda a composição.
43
Quando atentamos para as cores utilizadas, vemos que havia uma limitação dos tipos
disponíveis, o que propiciou o desenvolvimento de algumas convenções. Como exemplo,
interessante para o nosso tema, temos que os homens eram representados com cores mais
43
Ibid., p. 8-13.
23
avermelhadas enquanto as mulheres tinham um tom marrom “claro” ou amarelado, já que a
elas eram associadas tarefas realizadas dentro das residências, como a tecelagem, o que fazia
com não estivessem tão expostas ao sol como os homens.
Apesar dos gidos cânones, Gay Robins observa dentro da arte oficial a presença de
representações mais informais, contidas principalmente nas cenas subsidiárias de relevos e
pinturas. Essas, por não atuarem com o cerne do trabalho e não representarem o personagem
principal da obra (deuses, reis, nobres ou os proprietários das tumbas e seus familiares),
tinham uma variedade de poses maiores, retratando uma pluralidade de atividades e pessoas
presentes no dia-a-dia da figura central da obra, o que abria espaço para alguma
experimentação dos artífices. As cenas em questão estavam posicionadas no mundo dos
vivos, frequentemente com o fundo indicando sua localização, enquanto o tempo é explicitado
pelas representações das estações. Nessas há uma variedade infinita de poses, em que o artista
pode capturar uma ampla margem de atividades.
44
Este ponto vai ao encontro de Arnold Hauser, para quem os artesãos, mesmo
submetidos a fortes regras sejam elas emanadas de um poder central ou de paradigmas sociais,
encontravam alternativas, ainda que inconscientemente, para a realização de sua obra com um
alto nível estético.
45
Apesar da falta de liberdade no que se refere às normas de representação,
o artesão tinha a possibilidade de decidir quais cenas dentro do repertório canônico, em
detrimentos de outras, formariam a composição.
Dentre todas as características, a mais marcante era a unidade profunda da arte
figurativa com a escrita monumental. Levando em consideração que escrita egípcia utilizava
figuras para formar palavras, percebe-se que nesse sistema linguístico as divisões entre arte
figurativa e escrita não eram estanques. Prova disso é que os gestos de figuras humanas e
divinas podiam ser lidos como se fossem hieróglifos. O processo inverso também acontecia,
já que os próprios hieróglifos eram muitas vezes organizados de acordo com seu valor
estético. Com isso, os artesãos podiam mudar a ordem dos signos para formar um conjunto
visualmente mais harmônico na sentença. Outro exemplo é encontrado em inscrições em que
o pronome sufixo .i (eu, meu) ou determinativos
46
podiam ser substituídos pelas imagens que
acompanhavam o texto. Assim, a figura representada fazia uma ligação direta com o texto,
complementando-o.
44
Ibid., p. 23
45
HAUSER, Arnold, História Social da Arte e da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1032 p.p. 26-27
46
Determinativos são signos posicionados no final das palavras com o intuito de guiar o leitor para a categoria a
que a palavra pertence. Um exemplo é o signo
que representa pictoricamente um papiro selado e como
determinativo é usado para indicar palavras de sentido mais abstrato.
24
A importância de discorrer sobre as formas de expressão pictórica egípcia encontra-se
no fato de que a arte, mais do que suscitar magicamente a realidade, tinha como papel ser um
dos pilares da construção da imagem do faraó, ponto que interessa ao estudo das imagens
produzidas durante o reinado da mulher-faraó Hatshepsut. O monarca, ao definir-se como
deus, tomava para si a primazia na manutenção da ordem universal e, com isso, além de figura
máxima da civilização, o faraó idealizado mostrava, através das representações de seus feitos
e de sua figura, ser essencial para a continuidade de toda uma cultura e o sustentáculo da
sociedade, discurso ideológico tratado anteriormente.
2.2 REPRESENTAÇÕES BIDIMENSIONAIS E TRIDIMENSIONAIS
Ao tratarmos de maneira generalizante das modalidades manifestadas pela arte no
Egito Antigo e dos cânones que serviram de base à sua estrutura oficial, não podemos deixar
de tratar especificamente das categorias tridimensionais e bidimensionais, ou seja, da
estatuária e dos relevos. A funcionalidade inerente à confecção dessas obras proporciona um
entendimento mais apurado da relação estabelecida entre arte, religião e poder.
Com relação às representações tridimensionais, podemos dizer que estas têm como
características a frontalidade e a rigidez, o que, segundo Gay Robins, é perfeitamente
explicável dentro da função para a qual foram projetadas.
47
As estátuas não eram criadas com
o sentido decorativo, mas para desempenharem um papel no culto aos deuses, ao rei e ao
defunto. Elas eram confeccionadas para atuarem como substitutos dos representados nas
ações rituais, o que dava sentido à frontalidade, ao objetivar que a ação dos vivos e o ritual
pudessem interagir com as estátuas. Outra razão para a frontalidade é que elas eram
construídas para serem vistas de frente e de lado, raramente de ¾ ou de costas, pois quase
sempre ficavam em santuários ou em nichos em paredes de templos.
48
Algumas estátuas eram feitas para fazer parte de uma montagem arquitetural, sendo,
por exemplo, colocadas na frente de entradas monumentais de portões de templos, conhecidos
como pilonos, ou em pátios, onde eram posicionadas contra os pilares, o que demonstra que a
frontalidade também está relacionada ao contexto arquitetural. As produções tridimensionais
ligadas às construções arquiteturais eram quase sempre de tamanho elevado e representavam
deuses e faraós. Por não estarem escondidas dos súditos, as estátuas do rei em grande escala
47
ROBINS, Gay. The art of Ancient Egypt. Havard University Press, 2000.
48
SIMPSON, William K. Aspects of Egyptian art: function and aesthetic. In: SCHMANDT- BESSERAT, D.
(ed.) Immortal Egypt. Malibu, Undena Publications, 1978, 108 p. p. 21-2.
25
tinham a função adicional de impressionar o observador com o poder e a piedade do
governante. Voltaremos ao tema das estátuas reais em outro momento.
As estátuas de figuras comuns, frequentemente servos e camadas mais pobres da
população, eram representadas nas mais variadas ações. A função de muitas era serem
colocadas nas tumbas da elite para servirem aos donos da construção na outra vida.
Segundo Dietrich Wildung, a escultura, ao ter como tema principal a figura humana, é
iconograficamente monótona. As imagens humanas na escultura egípcia são funcionalmente
definidas pela transcendência do tema mortalidade representado. Tinham a função de garantir
a vida eterna e criavam uma realidade tangível, trazendo o morto de volta à vida, fazendo do
ausente presente e tornando o invisível visível. Por esta razão, a imagem tridimensional tinha
um status maior do que a representação bidimensional, já que eram as estátuas dos deuses que
diariamente se tornavam objetos de culto e eram as estátuas dos defuntos que serviam de
receptáculo para seu ka
49
, possibilitado após o ritual de abertura da boca. Outro ponto
levantado por Wildung que reforçaria esta afirmação seria a existência de um vocabulário
vasto para designar “imagens plásticas e poucos termos para se referir à representações
bidimensionais. Assim, imagens bidimensionais e tridimensionais seguiam diferentes
caminhos entre formas idealizadas e individualizadas de representações, não sendo vista, pelo
autor, como uma unidade.
50
As primeiras manifestações escultóricas datam do início do IV milênio a.C. e, apesar
de simples, já apresentavam algumas das características que marcaram a arte egípcia de
períodos posteriores como, por exemplo, a representação da forma humana reduzida a seus
elementos essenciais. O aparecimento de esculturas monumentais está ligado ao progressivo
aumento da complexidade das estruturas sociais que marcou o período de unificação egípcia.
As primeiras representações colossais foram de deuses, possuindo elementos estilísticos mais
antigos como a redução da estátua a uma simples montagem de figuras geométricas.
51
Geralmente, a variedade de posturas possíveis na estatuária foi reduzida a poucos
modelos de representação estabelecidos já no Reino Antigo:
52
1- A estátua representada em : as figuras são elaboradas dando um passo, o que
indicava prontidão para a ação sem descrever uma ação real. Eram símbolos
pictóricos, pictografias de um movimento virtual.
49
De acordo com a crença religiosa egípcia, o ka era um dos elementos da personalidade humana e divina, sendo
o princípio de sustento.
50
WILDUNG, D. Eternal Presence. The image of the pharaoh in Egyptian Sculpture. In: ZIEGLER, C. (ed). The
Pharaohs. New York: Rizzoli, 2002, 512 p. p. 200.
51
FREED, op. cit., p. 331
52
WILDUNG. op. cit, p. 199-200
26
2- A figura sentada: representava o sujeito entronizado como uma pessoa morta
transfigurada.
3- A figura ajoelhada: indicava submissão em sacrifício e oração a uma deidade.
4- Estátua cubo: representação do indivíduo acocorado no chão, com as pernas dobradas
e braços cruzados sobre o joelho. Data do início do Reino Médio e é a imagem da
ressurreição na vida eterna.
5- A figura acocorada do escriba: atuava como uma expressão gráfica da pessoa
educada, a quem é destinada o serviço no Estado.
Deste repertório, apenas as três primeiras eram usadas para os reis. Esta redução, para
Wildung, indicaria que o propósito da escultura real não era transmitir uma variedade do
material existente, mas criar um veículo duradouro na estátua que transcende a mortalidade do
soberano.
No que se refere às estátuas reais, Dominique Valbelle percebe dois tipos principais:
as colossais, colocadas em entradas de templos ou em pátios acessíveis ao público em geral
em ocasiões especiais e que serviam como intercessoras entre o mundo humano e divino; e as
menores, que mostravam o monarca em vestimentas particulares ou realizando um rito em
particular.
53
No Reino Antigo, a função da imagem do rei estava concentrada nos templos
funerários, mas estátuas também eram encontradas em outros templos por todo o Egito. As
representações do soberano faziam com que o rei “material” fosse colocado como um super-
humano em contato direto com os deuses. Um exemplo disto seriam as estátuas que
representam tríades – rei e um par de deuses.
Enquanto no Reino Antigo a representação do monarca era uma instituição
divinamente inspirada, no Reino Médio, a ênfase era a representação do rei como uma
autoridade política. A estátua real retratou, assim, o contexto por detrás da personalidade
individual. Desta maneira, a partir do reinado de
Senusret
I, temos uma alteração da figura
real, em que o rosto apresentava marcas da idade, rugas na testa, olheiras e sobrancelhas
pesadas o que dava forma a uma imagem severa que impunha medo e respeito.
Durante o Reino Novo, em especial na XVIII dinastia, período de expansão das
fronteiras egípcias, o retrato real passa a ser a expressão de um soberano universal e a ser uma
forte idealização da figura faraônica. Há uma volta a idealização do Reino Antigo; as imagens
53
VALBELLE, op. cit., 2002, p. 109
27
aparecem distanciadas, sem quaisquer emoções. Nas inscrições, o faraó não age de acordo
com suas vontades, mas é encarado como um instrumento na mão do deus. Sua
individualidade é integrada na ordem do mundo estabelecida por Amon. A partir daí as
imagens atingem um grau monumental, tanto pelo seu tamanho quanto pela sua localização.
Essas esculturas tinham um laço estreito com a arquitetura, mas possuíam uma identidade
própria. Nas palavras de Wildung, as estátuas causavam impacto nos espaços profanos
públicos e serviam como elementos de encenação real. Neste contexto outro tipo de
representação ganha importância: a esfinge, que desde o Reino Antigo representava um ponto
de contato entre o deus e o rei e acabou se tornando uma manifestação divina do faraó. Diz
Wildung:
Na avenida de esfinges em frente a templos divinos, estas estátuas denotam
o caminho do profano ao sagrado e o dogma da posição real entre homem e
deus. No final deste caminho, na porta do templo, a divindade faraônica
alcançava seu auge em estátuas colossais.
54
Ginzburg nos mostra que o uso intenso da palavra representação nos dias de hoje vem
da ambiguidade realçada pelo termo, que remete, simultaneamente, a uma ausência e a uma
presença.
55
Os exemplos até aqui apresentados demonstram que, no período faraônico, a
representação tridimensional real, apesar das sutis modificações estilísticas ao longo do
tempo, manteve uma estrutura básica. Em paralelo ao seu potencial religioso, as estátuas
estabeleciam uma dimensão humana às representações reais e reforçavam uma mensagem
destinada a atingir o plano divino, mas principalmente, o terrestre.
Um dos traços já destacado presentes em pinturas e relevos é o fato da intenção da arte
egípcia não ser a representação “realista” do mundo tridimensional em um plano
bidimensional. Apesar das limitações impostas pela utilização de uma base bidimensional,
também nela observamos uma forte ligação com a realidade, que, como vimos, imagens
caóticas eram evitadas, pois de acordo com a crença todas as imagens podiam suscitar
magicamente a realidade, inclusive relevos e pinturas.
As pinturas e os relevos são encontrados, em sua maioria dentro do âmbito funerário,
cumprindo a função de servir como ajuda para o defunto, que o mesmo, assim como uma
pessoa viva, no pensamento egípcio, tinha a necessidade de consumir alimentos, por exemplo.
As imagens bidimensionais em muros ofereciam no plano pictórico tudo o que uma múmia
54
WILDUNG, op. cit., p. 204.
55
GINZBURG, C. Olhos de Madeira: nove reflexões sobre a distância.São Paulo, Cia das Letras, 2001, 336 p.p.
85-103
28
podia precisar. Dentre as temáticas representadas, podemos destacar a preparação ou
armazenamento de produtos destinados à sobrevivência do defunto na outra vida.
No que se refere à localização dos relevos, esses seguiam a mesma tendência da
pintura, pois ambas as técnicas tinham uma estreita relação na civilização egípcia,
compartilhando alguns elementos característicos. Tradicionalmente, o baixo-relevo era usado
nas paredes externas e o alto-relevo no interior, que a luz do sol tem um efeito de achatar o
alto-relevo e realçar o baixo-relevo.
3. O PAPEL DAS MULHERES NA SOCIEDADE EGÍPCIA
Os estudos voltados para a história das mulheres no Egito antigo, cujas raízes
encontram-se no movimento feminista do século XX, algumas vezes apresentaram
posicionamentos extremamente radicais. A visão das egípcias como um grupo detentor de
direitos iguais aos dos homens e de um privilégio social permeou o imaginário daqueles que
tentavam encontrar nas civilizações antigas exemplos de participação ativa da mulher em
âmbitos que ultrapassavam aqueles nos quais a imagem feminina foi limitada durante séculos,
como o político e o econômico.
Essa visão, hoje repetidamente questionada por pesquisadores de todo o mundo, não é
exclusiva da contemporaneidade. no século V a.C. Heródoto de Halicarnasso, através de
um discurso exagerado, afirmava existir na sociedade egípcia uma inversão de papéis, em que
as mulheres atuavam como homens na vida diária. Durante o século XIX, G. Paturet insistia
na igualdade jurídica da mulher egípcia em relação ao homem e contrastava sua situação com
a de mulheres de outras sociedades, estudando a questão do matrimônio, herança e condição
econômica através da documentação demótica. No século XX, apesar dos avanços da ciência
histórica, Barbara Lesko, analisando principalmente rainhas e sacerdotisas, enfatiza a ideia de
uma igualdade essencial entre homens e mulheres. Para o mesmo momento, Christiane
Desroches-Noblecourt, em seu livro sobre as mulheres na sociedade egípcia
56
, escreveu uma
parte direcionada à vida cotidiana em que afirma que a igualdade entre homens e mulheres
seria uma demonstração da modernidade da civilização egípcia.
57
Entretanto, trabalhos no século XIX, como o de Eugène Revillout, apontavam para
os limites práticos da igualdade jurídica feminina, constatando que elas, por exemplo, não
56
Ver DESROCHES-NOBLECOURT, Christiane. A mulher nos tempos dos faraós. Tradução: Tânia
Pellegrini.Campinas: Papirus, 1994, 385 p.
57
REYES, José Carlos C. Señoras y Esclavas. El papel de la mujer en la historia social del Egipto antiguo.
México: El Colegio de México, 2008, 713 p.p. 30-9
29
podiam intervir na vida política do país. Com relação aos estudos mais recentes, José Carlos
Reyes afirma que a análise geral das formas de vida da mulher atinge seu auge com os
trabalhos de Gay Robins e de Joyce Tyldesley. A primeira, em seu livro Women in ancient
Egypt, demonstra que, apesar da posição privilegiada da egípcia em comparação com a de
mulheres de outras sociedades, ela continuava com um papel subordinado ao do homem.
Nesse sentido, Tyldesley apresenta um trabalho tão importante quanto o de Robins ao dar uma
abordagem arqueológica e mais ampla, analisando traços da forma de vida e trabalho da
mulher.
58
3.1 O PAPEL DAS MULHERES NA SOCIEDADE EGÍPCIA
De maneira geral, para os defensores de um privilégio feminino no Egito antigo, um
dos argumentos encontra-se no pensamento religioso. Como visto anteriormente, o
pensamento egípcio empregava inúmeras oposições que se complementavam e conduziam a
uma síntese. Dentro dessa perspectiva, masculino e feminino eram encarados como
complementares e seu contraste visto como o principal exemplo do que é dinâmico.
Em um dos mitos de criação mais conhecidos, oriundo da cidade de Heliópolis, vemos
que, nas águas caóticas e inertes do início dos tempos, antes da intervenção do deus criador, já
existiam quatro casais que apareciam como um potencial latente de movimento e
transformação. Mediante a ação do criador, surgiu o primeiro casal divino, Shu e Tefnut, que
por sua vez deu origem a outro par, Geb (terra) e Nut (céu), os quais por sua vez produziram
Ísis, Osíris, Seth e Néftis. Podemos observar nesse mito que o universo tomou forma através
da interação desses pares de deuses que representavam o masculino e o feminino. Além disso,
o mundo divino, de acordo com o pensamento religioso, era habitado por outras inúmeras
divindades femininas, a quem eram prestados cultos.
Mesmo pertencendo a um princípio único, masculino e feminino tinham esferas de
ação bem características. Às mulheres caberiam as funções de gerar, curar e manter o
equilíbrio e aos homens as funções de julgar, guerrear e conduzir.
59
Outro aspecto utilizado no discurso dos que defendem um papel feminino
preponderante é com relação à posse de terras e propriedades, pois desde o início do Reino
Antigo homens e mulheres podiam possuir bens próprios. O casamento no Egito era um ato
social, ou seja, não era consagrado por nenhuma sanção ritual ou administrativa. Contudo,
58
Ibid., pp. 40-1
59
SOUZA, Anna Cristina Ferreira de. Nefertiti: sacerdotisa, deusa e faraó: Androginia e Poder nas Imagens de
Amarna. Dissertação, UFF, Niterói, 2003, p.64
30
mesmo não sendo em si um ato jurídico, o casamento comportava consequências econômicas
ligadas a questões como legitimidade, herança e sucessão. Com o casamento, os bens da
esposa e do marido permaneciam distintos. Assim, filhos herdavam tanto do pai quanto da
mãe, o que é atestado por inscrições da III e V dinastias que mostram homens recebendo
propriedades como herança de suas mães.
60
A princípio os cônjuges não herdavam os bens um
do outro, que esses eram transmitidos aos filhos e, caso não existissem, os parentes do
morto tornavam-se os beneficiários. Porém, as mulheres podiam administrar a herança dada
pelo marido no caso de menoridade dos filhos. Documentos legais confirmam que filhos e
filhas herdavam em igualdade de condições, a não ser que os pais estabelecessem alguma
restrição enquanto vivos.
61
No Reino Novo, para as grandes propriedades rurais observamos
que, apesar dos descendentes herdarem partes iguais, era comum que toda a unidade fosse
administrada por um dos herdeiros e seus rendimentos repartidos, como forma de se evitar o
desmembramento dos bens.
62
A presença de mulheres em transações econômicas, como compra e venda, também é
demonstrada por alguns documentos, como um papiro proveniente do Reino Novo, mais
especificamente do reinado do faraó Ramsés II (1290-1224 a.C.), que trata de um processo
legal em que uma egípcia, após comprar uma escrava, foi acusada por um soldado de efetuar
o pagamento com objetos de outra mulher. O texto a seguir é de tradução de Ciro Flamarion
Cardoso e demonstra que mulheres não podiam adquirir bens, como, eventualmente, gerar
riqueza no interior de suas casas, que, neste caso, dentre os objetos dados em troca da
escrava estava uma quantidade de tecidos confeccionados pela própria compradora:
Dito pela mulher Iri-Nefert: - [Quanto a mim, eu sou esposa do Superior do
Distrito Si-Mut], eu vim morar nesta casa, e eu trabalhei e [teci] e cuidei de
minhas (próprias) roupas. No ano 15, sete anos depois de entrado na casa
do Supervisor do Distrito Si-Mut, o mercador Raia aproximou-se de mim
com uma escrava síria [...] [e ele] me disse: ‘- Compra-me esta menina e
dá-me o preço por ela’ assim ele me disse. E eu tomei a menina e lhe dei
[o preço] por ela
.
63
Quanto a questões legais, vemos que fontes provenientes do Reino Médio indicam que
mulheres podiam agir em justiça. Além de apresentarem-se aos tribunais como as querelantes,
60
ROBINS, Gay. Las Mujeres en el Antiguo Egipto. Madrid: Akal, 1996, 236 p.p. 137
61
CARDOSO, Ciro F.S. Gênero e literatura ficcional caso do antigo Egito no milênio a.C. In: FUNARI,
P.P.A., FEITOSA, L.C.; SILVA, G.J. da. Amor, desejo e poder na Antiguidade. Relações de gênero e
representações do Feminino. Campinas: Editora Unicamp, 2003
62
Ibid., p. 62
63
CARSOSO, Ciro F. S. Trabalho compulsório na antiguidade. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003, 163 p.p.
95-96
31
as egípcias atuavam como defensoras e testemunhas em pé de igualdade com os homens, o
que não ocorria em outras culturas em que era necessária a existência de tutores para as
mulheres. Diante da possibilidade de controlar suas próprias ações, as egípcias podiam
também ser responsabilizadas por elas, sofrendo métodos de interrogatório e castigo próximos
aos dos homens.
Com relação ao divórcio, a iniciativa poderia ser tanto masculina quanto feminina,
porém, provavelmente este teve baixa incidência em virtude das pesadas compensações
econômicas garantidas à parte repudiada.
Como citado anteriormente, todos os fatos até aqui apresentados são questionáveis
para alguns autores. Em primeiro lugar, o pensamento monista egípcio não invalidava a
presença de hierarquia dentro da estrutura social, o que torna errônea qualquer abordagem que
intente categorizar as mulheres egípcias como um grupo homogêneo. Além disso, devemos
ter em mente a natureza das fontes que chegaram até os dias de hoje. Essas são provenientes
de uma pequena elite que podia arcar com os custos dos materiais de maior durabilidade para
a construção de suas tumbas ou, no caso específico do monarca, para a construção dos
templos e monumentos. As fontes, portanto, não esclarecem até que ponto as ideias
representadas eram compartilhadas pelas pessoas mais humildes. Assim, mais do que afirmar
a igualdade jurídica das mulheres em relação aos homens no Egito, devemos ter em mente a
seguinte questão: qual era a possibilidade real das egípcias de exercê-la?
Amanda Wiedemann, baseada nas ideias de Bernadette Menu, demonstra que a
condição feminina sofreu um processo não-linear ao longo do período faraônico, que, em
época de descentralização ou enfraquecimento do poder central, havia a emergência de
poderes menores de âmbito local que piorava as condições de vida das mulheres.
64
De
maneira geral, as diferenças estavam presentes também nos assuntos econômicos das classes
dirigentes. O poder repousava em mãos masculinas que ocupavam grandes cargos públicos e
recebiam uma renda em cereais e outros bens, enquanto as mulheres estavam praticamente
excluídas da burocracia e da possibilidade de participarem dos ganhos provenientes desta.
Documentos oriundos de Deir el-Medina mostram que, apesar dos casos em que
observamos mulheres envolvidas na gerência de bens, egípcias presentes em transações
financeiras eram minoria o que, segundo Gay Robins, indicaria que elas não eram tão
economicamente ativas quanto os homens ou que eram eles que levavam a cabo a maioria das
64
WIEDEMANN, Amanda. A questão de gênero na literatura egípcia do II milênio a.C. Niterói, 2007. 358 f.
Tese (Doutorado em História) Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2007, p. 111
32
ações referentes às mulheres e em benefício destas.
65
O papiro Wilbour, do século XII,
apresenta uma espécie de cadastro de terras do Egito Médio e indica que somente 8% das
parcelas listadas estão em poder de mulheres.
66
No referente à corveia real (trabalho compulsório que os egípcios estavam obrigados),
as mulheres, ao serem convocadas, costumavam exercer funções como a de preparar pães para
as rações distribuídas pelos órgãos do Estado ou a de serviçais.
As fontes parecem indicar que, de meados do III milênio a.C. ao final do milênio
seguinte, houve uma diminuição das oportunidades de trabalho fora de casa para as mulheres.
Embora para o Reino Antigo possa se comprovar casos de mulheres - em número bem inferior
ao dos homens - que desempenhavam funções estatais, algumas vezes em posições de chefia,
controlando bens e mão-de-obra, isso não ocorria no Reino Médio. Nesse período, as funções
desempenhadas por mulheres não pertencentes à família real passaram a ser subalternas e a
quantidade ínfima de mulheres escribas confirma sua ausência na burocracia.
Fora de casa, mulheres da classe alta e que possuíam instrução desempenhavam um
papel importante no culto religioso de vários deuses, podendo desenvolver a função de
sacerdotisa, cantora ou dançarina. Porém, assim como as demais atribuições destinadas às
mulheres, ao longo do tempo, estas funções no templo acabaram inferiorizadas, com exceção
daquelas desempenhadas por membros femininos da família real.
Como no período anterior, durante o Reino Médio o luto era tratado como um ritual e
era uma função importante desempenhada pelas mulheres no Egito antigo. Nas fontes, as
mulheres encarregadas do luto (carpideiras) são muitas vezes anônimas, sendo difícil
identificar sua relação com o morto. Existiam também as chamadas “profissionais do luto”,
contratadas para velar o morto.
A vulnerabilidade de algumas mulheres é explícita em textos e imagens. Como
exemplo, temos a figura da viúva que estava situada entre os pobres e desassistidos da
sociedade. Em algumas biografias e textos sapienciais, em que era procurado demonstrar um
comportamento ideal, era comum dizer que uma pessoa ajudou uma viúva.
O cânone artístico também nos diz muito sobre a diferenciação entre homens e
mulheres. Ao pensar na utilização de fontes iconográficas, Gay Robins alerta para o cuidado que se
deve ter no estudo da arte oficial, que sua execão era ordenada essencialmente por uma elite
masculina. Em várias representações a variação de tamanho indicando hierarquia era aplicada para
diferenciar homens de mulheres, sendo elas desenhadas em escala menor (ver figura 5). com
65
ROBINS, op. cit., 1996 p. 141
66
CARSOSO, Ciro F. S. op.cit., 2003, p. 59
33
relação ao deslocamento, em cenas de casais posicionados lado a lado, as mulheres sempre tinham
suas figuras deslocadas, ficando atrás dos homens. Representadas de forma ideal, com uma
beleza juvenil, as egípcias, frequentemente, eram colocadas nas cenas em uma atitude passiva
em relação aos homens.
67
No referente à divisão do trabalho, mulheres raramente eram representadas em cenas
relativas às atividades agrícolas, não aparecendo realizando funções artesanais, com exceção
da fabricação de pão e cerveja e a fiação e tecelagem. Nas pinturas, essa característica fica
clara, já que os homens eram retratados com uma cor mais escura que as mulheres, mostrando
que as ocupações no exterior da casa eram majoritariamente e, algumas vezes, exclusivamente
masculinas, enquanto que as ocorridas no interior dos espaços cobertos podiam ser tanto
femininas quanto masculinas. Entretanto, devemos seguir os conselhos de Ciro Cardoso, para
quem “[...] as reconstituições de base única ou predominantemente iconográfica são sujeitas
à caução, sendo muitos os fatores culturais capazes de induzir distorções”.
68
Para este autor é
difícil imaginar que nas aldeias camponesas as esposas não trabalhassem lado a lado com seus
maridos nas plantações.
Na literatura a distinção também era marcada. As inscrições demonstram uma visão
dual das mulheres: ou elas eram honradas, quando conformadas com as normas sociais (como
os exemplos provenientes dos textos sapienciais de todos os períodos que deixavam claro que
a mulher era responsável pela casa e que seu dever era ter filhos) ou um perigo, quando não
apresentavam esta conformidade.
69
Nos textos autobiográficos, o que vemos são referências a
mulheres através de sua relação com os homens, ou seja, com seus maridos e filhos.
Reyes acrescenta que as fontes, sejam elas iconográficas ou textuais, apresentam a
mulher de maneira ambígua, ressaltando valores como a fidelidade e a obediência e a
apresentando como um ser egoísta e propenso a satisfazer seus instintos, sobretudo os sexuais.
Assim, para este autor, deve ser levado em consideração o forte caráter ideológico presente
nas representações.
70
Diante do que foi exposto, fica claro que alguns documentos mostram que os direitos
legais das egípcias não se estendiam efetivamente a todas as mulheres, que, de certa forma,
a igualdade entre os sexos tinha que encontrar um respaldo na riqueza e na base familiar.
Como alerta Robins:
67
ROBINS, G. Some Principals of Compositional Dominance and Gender Hierarchy in Egyptian Art. Journal of the
American Research Center in Egypt. The American Research Center in Egypt, v. XXXI, 1994, p. 36
68
CARSOSO, op. cit., 2003, p. 56
69
ROBINS, op. cit, 1996, p.194.
70
REYES, op. cit., pp. 75-6
34
[...] não devemos permitir que a grande visibilidade das mulheres na arte
egípcia obscureça o fato de que existia a distinção de sexos como parte da
estrutura formal da sociedade e que, em geral, as mulheres ocuparam uma
posição secundária em relação aos homens ao longo de toda a história
antiga do Egito.
71
3.2 MULHERES DA REALEZA
Com relação às consortes reais, de acordo com Barbara Lesko, as tumbas de rainhas da
primeira dinastia indicam que as mulheres da família real gozavam de considerável poder e
respeito.
72
Porém, o status da mulher da realeza era definido no início da história egípcia em
referência ao rei através de títulos como “mãe do rei” e “esposa do rei”, por exemplo. Ainda
segundo Lesko
73
, a importância da mulher da realeza estaria no fato de que três deusas foram
vitais nos dois principais mitos cosmogônicos existentes no Egito, que Ísis e Háthor foram
mães (em cosmogonias diferentes) de Hórus deus pelo qual o faraó era representado em
vida e Nut sua avó. Assim, ao longo do tempo as três deusas foram honradas como um
antepassado materno do rei divino.
Patricia Springboarg, indo ao encontro dessas ideias, acredita que o chamado
‘princípio feminino’ foi usado para validar a monarquia, como, por exemplo, na figura de Ísis
no mito do assassinato do deus Osíris e na posterior ascensão de seu filho Hórus como
faraó.
74
Esse seria um dos exemplos que identificaria o poder gerador e regenerador da
mulher.
75
Essa conexão das mulheres da realeza com o âmbito divino também é aceita por Gay
Robins que, ao descrever os vários tipos de insígnias utilizadas pelas rainhas, estabelece uma
ligação entre o enfeite de cabeça na forma de Uraeus (cobra real) com várias divindades,
como a deusa cobra Wadjyt, o deus solar e com a deusa Hathor identificada como olho de
(que protegeria o rei e os deuses dos inimigos). Sendo o Uraeus uma marca característica
dos faraós, a sua utilização como paramento das consortes estabeleceria uma conexão das
mesmas com os reis e com a realeza.
76
71
Ibid., p. 208
72
LESKO, Barbara. The Remarkable women of Ancient Egypt. Providence: Scribe Publications, 1987, p.1.
73
Ibid., p. 2.
74
Mito no qual a deusa Ísis, após conceber o deus Hórus, o protegeu, mantendo-o escondido até que ele pudesse
lutar contra o deus Seth para vingar o assassinato do pai, deus Osíris, e retomar o trono do Egito que era seu por
herança, mas que havia sido usurpado por Seth.
75
SPRINGBORG, P. Royal Persons Patriarchal Monarchy and the Feminine Principle. London: Unwin
Hyman,1990, 342 p.p. 142.
76
ROBINS, op. cit., 1996, p. 23
35
A noção de realeza feminina era complementar a desempenhada pelo rei e não restam
dúvidas que a rainha era extremamente importante em alguns rituais, atuando como
contraponto do faraó. Um exemplo é cargo sacerdotal hemet-netjer ou “Esposa do deus” que
durante a XVIII dinastia ganhou proeminência dentre os títulos portados pelas rainhas.
77
O
título sugere que sua portadora estaria a serviço do deus Amon atuando como sua esposa,
sem, portanto, se casar com um “marido humano”. Porém, ao levarmos em conta que as
portadoras eram rainhas sabemos que esta suposta regra era irrelevante na atuação cerimonial
no templo. O título “Mão do deus” usado algumas vezes em conjunto com o de “Esposa do
deus” enfatizava o conteúdo sexual de ambos, já que o primeiro seria uma referência a mão do
deus criador que se masturbou, formando o primeiro casal divino, Shu e Tefnut. Porém, não
sabemos a implicação deste conteúdo no ritual templário. O que pode ser dito é que “Esposa
do deus” constituía um exercício efetivo do culto de Amon e que a rainha que o portava
encarnava o princípio feminino, próprio a manter os ardores criativos do deus.
78
Outro aspecto que talvez explicasse o papel de destaque das mulheres da realeza seria
a importância maior que parece ter tido o casamento com uma princesa real para um homem
que aspirasse ao trono do que o seu próprio nascimento. Muitos estudiosos defendem que as
mulheres, além de abonarem o direito ao trono, também garantiriam a característica divina
atribuída aos faraós.
79
A ideia de que o direito ao trono seria transmitido por uma linhagem
feminina da família real, a chamada “teoria da herdeira”, é refutada por Gay Robins.
80
De
acordo com Robins se essa teoria estivesse correta, seria possível traçar uma linha de
descendência de mulheres reais, o que, segundo ela, é inviável. A utilização pelas mulheres de
nascimento real do título “filha do rei” não constitui uma prova para a XVIIIª dinastia, que
se atestam casos de mulheres de sangue não-real a quem era concedido esse título com o
intuito de aumentar-lhes o status. Também o deve ser ignorado o fato de as esposas
principais de Thutmés III (1479-1425 a.C.), Amenhotep II (1427-1400 a.C.) e Amenhotep III
(1390-1352 a.C.) serem de origem não real.
Alguns casamentos da XVIII e XIX dinastias parecem ter sido feitos para estabelecer
alianças diplomáticas. Em contrapartida, um documento do reinado de Amenhotep III mostra
que princesas egípcias o eram dadas em casamento a outros governantes. Apesar da grande
importância desses casamentos, as mulheres tinham pouco acesso às negociações
77
A importância do título e sua utilização pelas rainhas da XVIII dinastia, incluindo Hatshepsut, serão tratadas
com maior profundidade no próximo capítulo.
78
Id., 1996, p. 161-8
79
TEETER, E. Hatshepsut. KMT: A Modern Journal of Ancient Egypt. San Francisco, KMT Communications, v.
1, n. 1, p. 2-63, Spring 1990, p.6
80
ROBINS, op. cit., 1996, p. 26.
36
diplomáticas e eram importantes na medida em que, através da união com seus parceiros,
proporcionavam alianças internacionais.
Apesar do importante papel desempenhado pela rainha em algumas esferas, os
exemplos apresentados demonstram que a realeza em si não era um ofício aberto às mulheres.
O papel das mulheres do âmbito real era completar o aspecto divino da realeza masculina.
Tradicionalmente, a rainha representava o princípio feminino do universo através da qual o rei
varão podia renovar a si mesmo, ou seja, elas proporcionavam herdeiros do trono em
potencial. Esses aspectos retornarão nos próximos capítulos quando analisaremos o aumento
da importância das consortes reais no início da XVIII dinastia.
3.3 VISÃO DA EGIPTOLOGIA SOBRE HATSHEPSUT
Desde as primeiras descobertas arqueológicas, as opiniões sobre Hatshepsut foram
influenciadas por sentimentos e crenças dos egiptólogos. Afinal, a peculiar ascensão de uma
mulher como faraó e a grandiosidade das construções ordenadas por ela acabaram por
construir uma aura de mistério em torno de sua figura. O desconhecimento inicial sobre o
começo da XVIII dinastia e sobre os processos de sucessão fez com que autores vissem nela
uma governante feminina de sucesso nos moldes da rainha Vitória, ou seja, uma mulher
experiente que comandou o Egito durante prósperos e pacíficos vinte anos.
Com as escavações conduzidas por Herbert Winlock e a descoberta de estátuas de
Hatshepsut sistematicamente destruídas nas imediações do templo de Deir el-Bahri nas
décadas de 20 e 30
81
, ajudaram a compor a imagem que perduraria por muitos anos, inclusive
na década de 60, período em que um aumento do conhecimento sobre a XVIII dinastia.
Segundo Joyce Tyldesley, Hatshepsut passou a ser vista nos moldes das madrastas de contos
de princesa, portanto, como uma mulher gananciosa e usurpadora do trono de seu enteado.
O ataque a memória e a imagem do faraó Hatshepsut promovido por Thutmés III, do
qual falaremos no próximo capítulo, estimulou a ideia de uma mulher inescrupulosa, capaz de
qualquer atitude para conseguir os poderes régios. Emblemática é a afirmação de William C.
Hayes, curador de arte egípcia do Metropolitan Museum of Art de Nova York e um dos
líderes das escavações no templo de Deir el-Bahri: “Não demorou muito...até que essa
81
Expedições arqueológicas da primeira metade do século XX, financiadas pelo Metropolitan Museum of Art de
Nova York, possibilitaram a descoberta de um grande número de estátuas de Hatshepsut após escavações no
templo de Deir el-Bahri chefiadas por Herbert Winlock.
37
vaidosa, ambiciosa e inescrupulosa mulher se revelasse em todas as suas verdadeiras
facetas.”
82
Para autores como Tyldesley, Hatshepsut não pode ser simplesmente classificada
como boa ou e hoje reações radicais como essas foram abandonadas.
83
As análises da sua
reputação pessoal foram substituídas por pesquisas cujo foco está voltado para o dinamismo
de seu reinado.
84
Principalmente após a identificação de sua múmia no ano de 2007, uma série
de publicações procurou reconstituir seu reinado e buscar explicações para a sua permanência
no poder durante tantos anos.
Mais do que uma simples categorização da figura de Hatshepsut, os trabalhos
produzidos voltam-se para os mecanismos utilizados para sustentar um governo que em sua
origem não correspondia à ordem estabelecida. O presente estudo segue essa linha,
objetivando através de um reinado atípico conhecer um pouco mais as bases que permitiram à
realeza egípcia uma continuidade estrutural que perdurou, praticamente sem interrupções, por
quase três milênios.
82
BROWN, Chip. O rei está nu(a). Separata de: National Geographic Brasil. São Paulo: Editora Abril, abril de
2009, p. 38-59.
83
TYLDESLEY, Joyce. Hachepsut. The female pharaoh. New York, Viking, 1996, 270 p. p. 2-3.
84
KELLER, Cathleen. Hatshepsut’s reputation in history. In: Hatshepsut from queen to pharaoh. The
Metropolitan Museum of Art, New York, 2005, 340 p.p.296.
38
CAPÍTULO II
PODER E CENTRALIZAÇÃO: O INÍCIO DE UMA DINASTIA E A
EMERGÊNCIA DO REINADO DA MULHER-FARAÓ
O reinado de Hatshepsut é iniciado em meio a uma dinastia próspera, marcada por um
processo de expansão de fronteiras e pela construção de grandiosos monumentos. Nomes de
faraós emblemáticos que sucederam a mulher-faraó como Thutmés III, Amenhotep I e
Akhenaton deram o contorno a um dos momentos mais conhecidos e pesquisados da história
egípcia.
A XVIII dinastia emerge após um período de quase cem anos de descentralização que
sujeitou o Egito a uma instabilidade política, resultando no desmantelamento das antigas
estruturas que haviam sustentado o esplendor de séculos anteriores. Consolidada a partir das
lutas de reunificação, essa dinastia, além de dialogar com o passado, tão importante para a
reconstrução de sua época de ouro e para o restabelecimento de maat, também acrescentou
novas bases àquelas que sustentaram a realeza faraônica por milênios e que as batalhas que
colocaram fim ao chamado Segundo Período Intermediário tentaram tão fortemente restaurar.
1. O NASCIMENTO DE UMA DINASTIA
O faraó Amenemhat IV (1799-1787 a.C.), sétimo governante da XII dinastia, ao
morrer sem deixar herdeiros, transferiu o poder para sua irmã Sebekneferu, que governou o
Egito por pouco mais de três anos.
85
Seu reinado pôs fim à XII dinastia, que seria conhecida
como a Era de Ouro egípcia por ser caracterizada por reis fortes que controlaram as lideranças
85
O caso atípico de Sebekneferu será tratado com maiores detalhes posteriormente.
39
locais, consolidando o poder real, e pelo florescimento da arte, marcando o período clássico
da língua egípcia e da literatura.
Sebekneferu foi substituída por um nobre sem relação familiar direta com os
governantes anteriores, iniciando a XIII dinastia que acabou não dando origem a uma família
real com poder sólido e duradouro. Assim, menos de cem anos após seu início, houve um
declínio monárquico e a dinastia entrou em colapso, resultando na descentralização territorial
do Egito. O Segundo Período Intermediário (1640-1550 a.C.), nome pelo qual essa época é
conhecida, foi formado pelas dinastias XV, XVI e XVII. A XIV dinastia, constituída através
de uma dissidência interna, foi composta por reis de importância menor que, preocupados
com a tomada da cidade de Avaris por estrangeiros, governaram independentemente pequenas
regiões no Delta do Nilo.
86
Esses monarcas talvez tenham sido contemporâneos da dinastia
anterior ou da seguinte.
Durante o Segundo Período Intermediário, o Egito e a Núbia foram divididos em três
reinos, governados por diferentes dinastias. O primeiro, no extremo sul, era controlado pelo
reino núbio de Kerma, enquanto um pequeno grupo de egípcios ligados a antiga família real
dominava o sul do Egito da cidade de Tebas (XVII dinastia). O norte era comandado por
invasores conhecidos como hicsos (XV dinastia) e, paralelamente, por outro grupo estrangeiro
(XVI dinastia).
87
As informações sobre o Segundo Período Intermediário são confusas e geralmente
deturpadas pelos egípcios de outros períodos. Segundo Nely Feitoza, além dos problemas
comuns aos documentos antigos em geral, as referências a essa época têm como agravante o
fato dela ser encarada como uma fase ruim na memória egípcia. Monumentos e documentos
do período são raros, não devido às restaurações empreendidas por faraós posteriores,
como pela tentativa de se apagar tal passado, considerado desonroso.
88
em fins da XII dinastia, a região do Delta oriental estava densamente povoada por
povos asiáticos que governariam a região durante a descentralização. Inicialmente, os
estrangeiros não eram vistos como uma ameaça, chegando a se inserirem como mão-de-obra,
o que demonstra que houve uma lenta aproximação e até uma assimilação dos mesmos pelos
egípcios.
89
Durante a XIII dinastia, os grupos estrangeiros começaram a formar comunidades
parcialmente independentes no Delta do Nilo, ao mesmo tempo em que líderes locais
86
FEITOZA, Nely A. O Reinado de Kamés, o Forte. Um estudo sobre a ideologia monárquica no Egito
faraônico. Niterói, 1995. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1995, p. 21.
87
TYLDESLEY, op.cit., p. 19
88
FEITOZA, op. cit., p. 13-19.
89
FEITOZA, op. cit., p. 22.
40
aumentavam seu poder e a unidade político-administrativa egípcia começava a ruir.
Lentamente, a terra foi descentralizada em regiões sob o controle de diferentes poderes, como
supracitado.
90
Os hicsos, cujo nome em egípcio (hekau-khasut) significa “príncipes de terras
estrangeiras”, estabeleceram sua capital em Avaris, no Delta oriental do Nilo, no Baixo Egito.
Apesar do que as inscrições posteriores tentariam afirmar, ou seja, de que esse era um povo
brutal de invasores, os soberanos estrangeiros hicsos acabaram egipcianizados e escolheram
Seth como deus dinástico. Eles, além de adotarem muito da cultura tradicional egípcia,
acabaram por influenciá-la, que estabeleceram um amplo contato com povos do Oriente
Médio.
A perda do isolamento e o início de relações diplomáticas do Egito com esses povos
desencadearam um afluxo de objetos que estimulou a economia e a produção artística, além
de proporcionarem a introdução na região de inovações tecnológicas conhecidas na Ásia
Ocidental. Um dos exemplos mais significativos foram os carros de guerra e o cavalo que
durante muitos anos possibilitaram a superioridade bélica dos hicsos sobre os egípcios. Para
Joyce Tyldesley, foram os hicsos que deram a ideia de estabilidade nesse momento, que
governaram o norte do Egito por mais de cem anos.
91
A XVII dinastia governou a cidade de Tebas, continuando a tradição do Reino Médio,
mas em uma escala reduzida ao âmbito local. Mesmo com a redução de poder, os faraós
tebanos inicialmente mantinham uma relação pacífica com seus vizinhos do norte, sendo,
inclusive, tributários deles. evidências que sugerem que a filha de um dos reis hicsos,
Apepi, pode ter se casado com um membro da família real tebana. Uma relação amistosa
também é identificada entre os hicsos e o reino de Kerma.
Apesar do desenvolvimento tecnológico e das relações temporariamente pacíficas, a
descentralização do poder acabou por provocar a degradação de antigos monumentos, que,
com a ausência de uma tributação centralizada, nenhum outro grupo foi capaz de agregar
recursos comparáveis aos controlados pelos faraós no Reino Médio, necessários para a
manutenção e construção desse tipo de empreendimento. A escassa produção da XVII dinastia
estava limitada a algumas construções, como as pirâmides, estruturas diminutas posicionadas
no topo de tumbas cortadas nas rochas.
Donald Redford salienta que o Segundo Período Intermediário caracteriza-se pelo
abandono de dois princípios fundamentais da monarquia egípcia. O primeiro encontra-se no
90
TYLDESLEY, op. cit., p. 19
91
TYLDESLEY, op. cit., p. 19.
41
contexto da origem mitológica real e é o conceito de realeza filial. No período em questão tal
estrutura sofreu séria degradação, já que foi constituída por uma infinidade de reinados
efêmeros liderados por reis vulgares em suas origens, sem ligação com a tradicional família
real. Assim, o termo filho acabou perdendo uma referência estritamente biológica, tornando-
se também um termo hierárquico, denotando um alto posto, uma posição poderosa. Contudo,
esse poder era obtido através da aprovação dos deuses. O outro princípio perdido foi a pureza
da descendência mitológica do deus-rei que sentou no trono de Hórus e herdou a terra, devido
à virtude de sua linhagem. Os motivos dessa perda seriam óbvios, que durante séculos o
trono do Egito foi dividido entre governantes que, mesmo com a adoção de parte da cultura
egípcia, cultuavam seus próprios deuses, falavam uma linguagem diferente. Para o mesmo
autor, com exceção do rei Apepi, os invasores não fizeram questão de adotar as tradições
egípcias em sua totalidade, que a dinastia hicsa continuou a enfatizar seus antepassados
humanos e a devoção aos seus deuses.
92
Com o passar do tempo, o reino tebano foi reforçando suas relações com o extremo sul
e com o norte, regiões que haviam passado por um gradual processo de enfraquecimento.
Quando o rei Sekhenenra Tao II chegou ao poder em Tebas foi iniciada uma série de lutas
contra os demais reinos, objetivando a expansão das áreas de domínio e restabelecimento das
fronteiras antigas. Esse faraó lutou contra os hicsos no Médio Egito antes de morrer por
ferimentos sofridos em batalha. O faraó Kamés, que reinou durante um pouco mais de três
anos, substituiu seu pai nas batalhas e avançou para o norte até Avaris e para o sul contra a
Núbia, obtendo o controle de uma rota de comércio vital no rio.
93
Porém, a morte prematura
desse rei fez com que surgisse em cena aquele que seria o fundador da XVIII dinastia, o faraó
Ahmés I, irmão mais novo do monarca falecido.
O faraó Ahmés I (1550-1525 a.C.) foi responsável pela completa expulsão dos hicsos
do território egípcio. Além disso, tomou a localidade de Sharuhen na Palestina, último posto
fronteiriço do reino hicso, e restabeleceu o domínio egípcio no território núbio até a segunda
catarata. No seu reinado e no de seu sucessor, Amenhotep I (1525-1504 a.C.), as fronteiras
foram reforçadas, consolidando progressivamente a ordem em terras egípcias.
94
O faraó seguinte, Thutmés I (1504-1492 a.C.), além de manter as fronteiras,
estabeleceu as fundações para o desenvolvimento do império egípcio na Ásia. Como política
92
REDFORD, op.cit., p. 157-9.
93
TYLDESLEY, op. cit., p. 23-4
94
SILVERMAN, op. cit., p. 53.
42
interna, executou um programa de construções extensivo em toda a região de Tebas. Em seu
reinado é iniciada a primeira fase de embelezamento do templo de Amon em Karnak
promovida por monarcas da XVIII dinastia. Thutmes I reinou por mais de dez anos e foi alvo
da admiração e do respeito de sua filha, a mulher que comandaria o Egito por duas décadas: o
faraó Hatshepsut.
2. OLHANDO O PASSADO, CONSOLIDANDO O PRESENTE: A REALEZA E A
ARTE NA XVIII DINASTIA
Os primeiros cinqüenta anos da XVIII dinastia foram marcados pela restauração das
antigas estruturas que sustentaram a realeza egípcia por mais de um milênio. Diante disso, a
atitude mais conveniente era olhar para um passado estável e próspero, tentando retomar o
esplendor da terra dos faraós. Para Edna Russmann, essa espécie de arcaísmo, ou seja, a
imitação ou influência de trabalhos de períodos antigos, foi um componente importante da
cultura conservadora egípcia, principalmente no início de novas dinastias e de eras políticas.
95
Assim, observa-se uma forte influência da XII dinastia nas estruturas de poder, nas produções
artísticas e na religião do período, o que se torna lógico diante do deprimente passado
imediato, em que o Egito foi dividido e controlado por estrangeiros.
Contudo, olhar para o passado não fez da nova realidade egípcia um simples
prolongamento do auge temporariamente interrompido pelo Segundo Período Intermediário.
Como vimos, ao contrário do que as inscrições posteriores tentam afirmar, a descentralização
do reino egípcio não trouxe o caos para mundo organizado, mas possibilitou a introdução de
novas tecnologias, um contato mais próximo com outras culturas e, sem dúvida, a formação
de uma nova imagem faraônica. O rei das Duas Terras não era apenas uma divindade na terra,
mas um guerreiro que através de sua força trouxe maat de volta às margens do Nilo. Portanto,
passado e presente formaram a base que sustentou a nova dinastia e que daria o tom ao
contexto no qual emergiu o reinado de Hatshepsut.
2.1 O DEUS AMON-RÁ E A REALEZA NA XVIII DINASTIA
Os reis da XVIII dinastia, além da admiração pela XII dinastia, partilhavam com os
governantes dela a mesma origem tebana. O deus Amon de Tebas já havia emergido como um
95
RUSSMANN, Edna R. The rise of the eighteenth dynasty and the emergence of the thutmoside style in
sculpture and relief. In: Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art, New York, 2005,
340 p.p. 23.
43
deus de grande proeminência com as famílias dessa cidade que governaram o Egito durante a
XI e XII dinastias
96
. Com o tempo, esse deus foi associado ao deus sol Ra, tradicional deidade
do Reino Antigo, na forma de Amon-Ra. A vitória e a ascensão de mais uma linha
proveniente desta cidade fez com que o papel primordial do deus fosse reforçado.
Assim como os monarcas anteriores, os faraós do início da XVIII dinastia não viam
Amon apenas como o deus de sua cidade natal, mas como a fonte de sua legitimidade
monárquica, atribuindo ao mesmo os sucessos obtidos contra os hicsos e, posteriormente,
contra outros adversários. As grandes cenas do faraó como guerreiro triunfante colocadas em
paredes de templos reforçavam a ligação entre devoção e vitória.
97
Observa-se também que,
mesmo quando os reis não moravam mais em Tebas, eles eram coroados na cidade e quando a
cerimônia era realizada em outro lugar, sentiam necessidade de prestar homenagem ao deus
no templo tebano logo após a coroação.
98
O primeiro templo de Amon em Tebas foi construído em Karnak e era orientado
perpendicularmente em relação ao Nilo. Um segundo templo tebano localizava-se em Luxor,
próximo a Karnak e construído em paralelo ao rio. Com a emergência da XVIII dinastia e sua
prosperidade, Tebas se tornou o principal centro religioso do Egito, com um amplo número de
templos dedicados a Amon e outras deidades. Cada monarca mostrava sua devoção extrema a
Amon ultrapassando seus predecessores no embelezamento do complexo de Karnak. Os
templos deste deus tornaram-se ricos devido aos butins e às dotações e seus sacerdotes
extremamente poderosos.
99
Segundo Tyldesley, a religião de estado tebana passou a ser organizada de maneira
mais profissional, que, na metade do Reino Novo, a fundação religiosa controlava 1/3 das
terras cultivadas e empregava aproximadamente 20% da população. Assim, podemos dizer
que o templo de Amon tornou-se um núcleo político e econômico de grande importância.
Ainda segundo a autora, a emergência de um poderoso culto a Amon tinha uma dupla
conseqüência: se por um lado reforçava a ligação faraônica com o deus e conseqüentemente
legitimava o governante como filho de Amon, por outro poderia permitir, caso o faraó
falhasse, que um forte e rico grupo sacerdotal fizesse cair um monarca fraco.
100
Portanto, além
96
É importante salientar que, embora provenientes da cidade de Tebas, os monarcas da XII dinastia não
estabeleceram sua capital na mesma, mas na cidade de Iti-tauí, no Fayum. Somente com os reis da XVIII dinastia
é que a capital foi estabelecida na região tebana. No entanto, depois estes tenderam a reinar na cidade de Mênfis.
97
TYLDESLEY, op. cit., p. 29
98
ALLEN, J.P. The role of Amun. In: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The
Metropolitan Museum of Art, New York, 2005, 340p. p. 83.
99
ROBINS, Gay. The God’s wife of Amun in the 18th dynasty in Egypt. In: CAMERON, A. & KHURT, A.
Images of Women in Antiquity. Routledge, 1993, 334 p. p. 65-66.
100
TYLDESLEY, op. cit., p. 33
44
de estabelecer uma ligação com o deus, os monarcas da XVIII dinastia precisavam enfatizar
seu poder. Mais do que evidenciar o reinado sobrenatural de Amon, o reino terrestre devia ser
visto como reflexo do divino.
A visão egípcia de realeza, a partir do final do Reino Antigo, de acordo com Redford,
demandou três papéis ao faraó que à primeira vista parecem contraditórios, mas que
contribuíram para a formação da figura real. O primeiro estava ligado à ideia de divindade
real em que o monarca era associado a rus, filho de Osíris e herdeiro de Geb, descendente
do deus sol, atribuindo ao monarca uma legitimação solar e ctônica. O segundo papel,
consolidado no segundo milênio, encarava a monarquia mais como um ofício, uma função na
terra, e seu ocupante como um substituto terreno do deus. Assim, o rei replicava a deidade em
um nível terreno. No último papel o rei era visto como um homem forte, propenso à violência
e que se distinguia no campo de batalha. Ou seja, a medição de sua legitimidade estava na
habilidade de agir, tanto acabando com a oposição quanto beneficiando seu povo.
101
O início da XVIII dinastia contribuiu para o reforço da posição terrestre da figura
faraônica, em parte devido ao papel que os monarcas foram obrigados a desempenhar na
reunificação e na expansão das fronteiras que, mais tarde, dariam forma ao Império egípcio. O
aspecto militar se tornou uma excelente propaganda para o rei, pois ser visto defendendo seu
território e subjugando estrangeiros auxiliava na manutenção de seu controle sobre a
população. O exército passou a ser socialmente aceitável como profissão para as classes
educadas e os príncipes passaram a ter uma formação militar, que o faraó era o cabeça da
instituição.
Apesar dessa imagem do novo homem forte, o monarca da XVIII dinastia também
promoveu a noção antiga de rei sábio. O contato com outros povos marcou outro traço da
figural real do período que enfatizava a sua característica terrestre, ou seja, o faraó passou a
ser visto como um líder entre os vários existentes na terra. É evidente que tal visão não
acabou com a crença na superioridade egípcia sobre os demais povos, já que a ideia de o faraó
como um ser humano e divino ainda prevalecia.
Redford diz que os mesmos eventos que ajudaram a estabelecer a imagem do faraó
como um homem forte, um representante do deus na terra e a imagem do deus, um intelecto
superior, combinaram paradoxalmente para humanizá-lo. Assim, tornou-se necessário o
desenvolvimento de novos artifícios para reafirmar sua posição diferenciada e frear uma
possível perda da imagem divina.
102
Um exemplo foram os oráculos proferidos pelo deus
101
REDFORD, op. cit., p.159-161.
102
Ibid., p. 173-5.
45
dinástico Amon que, através de ações públicas repentinas, colocava o poder nas mãos do
deus, tornando-o teoricamente inquestionável. Outro fator foi a representação do nascimento
divino que, apesar de ser um motivo derivado de um protótipo antigo, emergia condicionada
pela consciência do conflito que podia existir entre a aclamação da divindade real e uma
evidente humanidade do governante.
Uma ação significativa presente na dinastia foi a afirmação do faraó no culto, com a
restaurações de templos e a renovação do serviço divino. Esses artifícios serão vistos em
maior ou menor grau em todos os reinados da XVIII dinastia, principalmente no de
Hatshepsut que possuía uma necessidade intrínseca de legitimar e reforçar seu poder.
2.2 A ARTE E AS CONSTRUÇÕES DO PERÍODO
Diante dos novos aspectos ressaltados, as construções monumentais e produções
artísticas
103
tornaram-se fundamentais para a exposição da figura real. A arte do período teve
o passado como base para a sua produção e mais uma vez nota-se a tentativa de se resgatar o
auge alcançado na XI e XII dinastias.
Quando os primeiros reis da XVIII dinastia chegaram ao poder, os monumentos de
Montuhotep IV (XI dinastia) e de Senusret I (XII dinastia) estavam parcialmente preservados
após as intensas lutas de reunificação e acabaram sendo encarados como exemplos de
trabalhos clássicos executados pelos ilustres ancestrais da linha tebana. Segundo Cyril Aldred,
a estatuária privada também sofreu grande influência do Reino Médio, período em que se
encontram as duas dinastias mencionadas. Contudo, o autor salienta que é preciso ter cuidado
ao identificar uma inspiração do Reino Médio, pois não deve ser esquecido que muito do que
conhecemos da XVIII dinastia provém dos monumentos tebanos e o Baixo Egito é
praticamente desconhecido.
104
Edna Russmann vai mais além ao dizer que os artesãos
imitavam apenas aquilo que podia ser visto, ou seja, apenas monumentos existentes podiam
servir de protótipos. Assim, os relevos de Karnak do rei Senusret I foram as principais fontes
de inspiração dos faraós Ahmés I e Amenhotep I da XVIII dinastia. Porém, a influência das
imagens do mesmo faraó não é encontrada nos relevos de Ahmés I e Amenhotep I em Abidos.
103
Lembrando que a utilização da palavra arte e de suas derivações tem como propósito apenas dar maior fluidez
ao texto. As bases e as peculiaridades dos nones egípcios e a inadequação do uso da palavra arte em seu
sentido moderno para o caso estudado foram discutidas no capítulo 1.
104
ALDRED, op. cit. pp. 51-2
46
A autora conclui que qualquer generalização que não analise todos os dados disponíveis
resulta em conclusões equivocadas.
105
Apesar da possível influência do passado nas produções plásticas e na arquitetura, a
XVIII dinastia foi rica em novas formas. Como mencionado anteriormente, a relação com os
povos asiáticos e com a Núbia foi incrementada durante o período de expansão das fronteiras,
o que afetou a arte. Podemos notar nas representações certo exotismo, com uma maior riqueza
e variedade na produção. Observa-se que a experimentação de diferentes tendências que
resultaram em formas mais naturalistas e expressivas de representação.
Uma das inovações da época foram as estátuas colossais e as grandes avenidas de
esfinges. As estátuas colossos eram representações do monarca, sendo consideradas imagens
de culto. Apesar de encontradas no Reino Médio, a produção dessas estátuas era uma
iniciativa real que manifestava o tom principalmente da XVIII e das dinastias seguintes. Elas
eram objetos de súplica e não estavam escondidas do público. A grandiosidade dessas
estátuas, ao extrapolar os limites da dimensão humana, transmitia uma imagem de poder e
magnificência.
A arte, assim como ocorreu com os aspectos básicos da realeza, necessitou “olhar para
trás” como forma de resgatar um passado encarado como suntuoso. Parte disso deve-se ao
fato das grandes empreitadas necessitarem de um nível de organização e de estabilidade
perdido durante o Segundo Período Intermediário. Dessa maneira, com a reunificação, foi
necessário voltar às referências tangíveis, como as produções da XI e XII dinastia. Ao mesmo
tempo, a interferência estrangeira tornou impossível um retrocesso puro e simples, que a
introdução de novos artigos e produtos acabou por modificar, mesmo que de forma periférica,
as escolhas dentro do cânone artístico. Essas características, em que tradição e inovação se
mesclam, foram consolidadas ao longo da dinastia, sendo a base na qual os artesãos
fabricaram todo o conjunto de representações do faraó Hatshepsut.
3.
O PAPEL DAS RAINHAS NA XVIII DINASTIA
Os primeiros séculos da XVIII dinastia demonstram um aumento significativo do
status das rainhas, processo iniciado na dinastia anterior. Apesar de sempre terem ocupado
um lugar de destaque na sociedade e nas representações, sendo inclusive reconhecida uma
origem divina em sua ocupação, este aspecto nunca havia sido tão enfatizado quanto neste
105
RUSSMANN, op.cit., p. 23
47
momento. Joyce Tyldesley esse aumento de importância da figura da rainha como um
reflexo das condições nas quais a realeza tebana emergiu. Para esta autora, em momentos de
guerra, como foi o de expulsão dos hicsos, as mulheres acabavam atuando em áreas que
extrapolavam os limites de seus deveres habituais e isso ficaria ainda mais evidente nesta
família real, em que algumas rainhas (muitas delas irmãs e meias-irmãs dos faraós)
descendiam dos fundadores da dinastia e que, por esta razão, também tinham interesse na
permanência de sua família no poder.
106
A rainha Ahhotep, mãe do unificador Ahmes I, seria
um exemplo a ser citado. Esse faraó, em uma estela construída em Karnak, demonstra o
importante papel que sua mãe desempenhou durante as lutas de reunificação, sendo forte a
possibilidade de a rainha ter comandado o Egito como regente durante a menoridade de seu
filho, chegando, de acordo com alguns autores, a chefiar tropas.
107
3.1 O TÍTULO DE ESPOSA DO DEUS AMON E AS RAINHAS NA XVIII DINASTIA
Um dos exemplos mais significativos do aumento de status das rainhas pode ser
encontrado no título sacerdotal “Esposa do deus”. As menções mais antigas a ele são
provenientes do Reino Médio, em que o mesmo aparece seguido por nomes de mulheres não-
reais. Contudo, nessas inscrições o título não era acompanhado do nome do deus a que fazia
referência, o que torna incerta a afirmação de que fosse originalmente uma referência ao deus
Amon.
Outros títulos relacionados ao de “Esposa do deus” podem ser encontrados ainda mais
cedo. No Primeiro Período Intermediário (2150-2040 a.C.), a esposa do deus Min é conhecida
e do Reino Antigo em diante um título relacionado a uma adoradora divina do deus, aparece
no culto a outros deuses.
Na XVIII dinastia o título de “Esposa do deus” passa a ser usado por mulheres da
família real, fazendo referência ao deus Amon, ou seja, a designação estabelecia uma estreita
ligação entre suas portadoras e o deus Amon, conseqüentemente também com a cidade de
Tebas. Na maioria das inscrições o que aparece é somente o termo hemet –netjer, ou seja,
“Esposa do deus”. Diversas cenas mostram a “Esposa do deus” como uma sacerdotisa dentro
do contexto do ritual templário e ao lado de sacerdotes masculinos. As vestimentas presentes
nas cenas aludem àquelas usadas por sacerdotisas no Reino Médio e não têm relação com
106
TYLDESLEY, op. cit., p. 47
107
ROBINS, op. cit., 1996, p. 46.
48
insígnias usadas por rainhas ou filhas reais, demonstrando que estas eram, antes de tudo,
oficiantes do culto.
108
Para Patricia Springboard, o título tinha referências complexas, pois além da inovação
desenvolvida pela família tebana no poder, através da qual a esposa principal teria sido
divinamente fertilizada” pelo deus criador Amon, a “Esposa do deusestava ligada a uma
antiga doutrina que considerava a esposa do chefe real como a única capaz de dar a luz a uma
criança de uma linhagem de sangue real (casamento consanguíneos).
109
Apesar das imagens demonstrarem uma ênfase no aspecto cultual, as fontes em que
consta o título, provenientes dos primeiros cem anos da XVIII dinastia, pouco esclarecem
sobre a função precisa a ser desempenhada pelas portadoras. Sabe-se que economicamente a
“Esposa do deus” tinha um domínio próprio formado por terras e administradores, o que dava
a esta função um poder efetivo.
A primeira “Esposa do deus” da realeza foi Ahmes-Nefertari, esposa do faraó Ahmés
I, que sobreviveu, inclusive, ao reinado de seu filho. Textos indicam que Ahmes-Nefertari
participou de alguns assuntos de Estado, ajudando nos projetos de construção de seu marido e
sendo muito ativa religiosamente. Não pode ser afirmado que ela atuou como regente durante
a menoridade de seu filho, o faraó Amenhotep I (1525-1504 a.C.), mas sabe-se que tanto
durante o reinado deste governante como o do faraó seguinte, Thutmés I (1504-1492 a.C.), a
ela eram concedidas grandes honras. Após sua morte foi deificada junto com seu filho e seu
culto durou todo o Reino Novo, principalmente na região de Deir el-Medinah.
O documento conhecido como Estela da doação (figura 7), presente no templo de
Amon em Karnak, confere pela primeira vez o título de Esposa do deus a Ahmes-Nefertari e
suas herdeiras. Na imagem que acompanha as inscrições temos a representação do faraó
fazendo uma oferenda de pão branco a Amon que retribui oferecendo às narinas do rei os
símbolos da vida e da estabilidade. Ao lado do soberano o herdeiro é representado em
tamanho menor. A rainha é representada com a uma coroa típica da deusa Tefnut, divindade
identificada com a umidade, e apoia a mão esquerda sobre o ombro do marido. A inscrição
principal relacionada às representações refere-se a rainha:
A filha real, irmã real, esposa do deus, grande esposa real – todas as coisas
ordenadas (lit. ditas) [por ela] (é) aquilo que é executado (it. aquilo feito)
108
ibid., p. 7
109
SPRINGBORG, op. cit., p. 148-9
49
para ela no (lit. sobre o) Alto e no Baixo Egito, Ahmes-Nefertari (=O deus
da Lua a gerou; [É] belo o relativo a ela), que ela viva!
110
Outras inscrições presentes na estela mostram que a cena insere-se no contexto em que
a rainha renuncia ao cargo de Segundo Profeta de Amon, título sacerdotal importante, em
troca de bens. O rei teria oferecido por sua renúncia os meios necessários para implantar o
ofício de “Esposa do deus”, que seria garantido a ela e suas herdeiras. Portanto, ser sua
herdeira garantia legitimidade e poder, o que talvez explique a utilização dos títulos de
“Herdeira” e “Esposa do deus” pelas rainhas na XVIII dinastia. Em resumo, “o matrimônio
da sacerdotisa com o deus perpetuava a ideia do mito cósmico, mantinha relações com a
monarquia divina e legitimava o faraó”.
111
Outras fontes do período mostram que nos momentos em que Ahmes-Nefertari era
representada como “Esposa do deus” nenhum outro título real aparecia. Em contrapartida, ao
ser representada com os tulos e as insígnias de rainha, o termo hemet-nejter estava presente,
como no caso da inscrição mostrada. Gay Robins salienta que normalmente o título que
antecede o nome é o mais importante e no caso das rainhas, o comum era o uso dos títulos de
“mãe do rei” ou “esposa principal do rei”. Com exceção de Hatshepsut, nenhuma outra
consorte usou somente Esposa do deus”, indicando talvez que, para Ahmes-Nefertari, este
título era tão importante quanto o de rainha.
112
A portadora seguinte do título foi Meritamon, filha de Ahmes-Nefertari, esposa e irmã
do faraó Amenhotep I. Sabe-se pouco sobre ela, apenas que não deixou herdeiros para o faraó,
que acabou sucedido por um general de meia idade – Thutmés I.
A mãe de Thutmés foi uma mulher de sangue o real e, por não ter sido rainha,
aparecia em inscrições com o título de “Mãe do rei”. Thumés casou-se com Ahmés, cuja
origem gera discordância por parte dos especialistas. Embora Ahmés apareça com o tulo de
“Irmã do rei” (sent nesu), não inscrições com o título de filha do rei (Sat nesu), o que
indicaria que esta fosse irmã ou meia-irmã de Thutmés I.
113
Após Ahmes-Nefertari, a portadora mais importante da designação “Esposa do deus”
foi Hatshepsut que, como veremos posteriormente, através de sua utilização reiterou não
apenas sua posição como rainha, como também garantiu a proeminência de sua filha,
Neferura, anos depois.
110
ALDRED, Cyril. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames and Hudson, 1988, p. 137. Tradução: Ciro
Flamarion Cardoso
111
SOUZA, op.cit., p. 32
112
ROBINS, Gay. op.cit., 1993, p. 73.
113
TYLDESLEY, op. cit., p. 62-5.
50
Figura 7
Estela da doação do título “Esposa do deus” para Ahmés-Nefertari
Referência:
ALDRED, Cyril. Akhenaten: King of Egypt. London: Thames and Hudson, 1988, p. 137.
3.2 RAINHAS REGENTES
De acordo com as estruturas religiosas, a realeza feminina era complementar a realeza
masculina e a interconexão entre elas demonstra que uma não existiria sem a outra, já que em
um dos mitos no qual estava assentada a monarquia divina observamos o forte papel
desempenhado pelo deus Osíris, primeiro faraó, e por sua consorte, a deusa Ísis.
114
Dessa
forma, o aumento da importância das consortes reais na primeira metade da XVIII dinastia,
teoricamente poderia abrir a possibilidade de alguma rainha almejar vôos maiores, como o
trono do Reino das Duas Terras. Sem dúvida, o horror egípcio à mudança, vista como
sinônimo de caos, e a crença em maat, que incluía o dever divino de um faraó no trono,
personificação do deus Hórus, e os interesses envolvidos nos processos de sucessão
dificultariam a questão. Tendo em vistas esses aspectos, qual seria a real possibilidade de uma
mulher alcançar o poder como líder do Egito?
114
ROBINS, op. cit., 1996, p. 45
51
Rotineiramente a mulher egípcia tinha um papel secundário na sociedade em relação
ao homem, mas em momentos decisivos era aceitável e até encorajado que ela agisse para
garantir os direitos do marido ou do filho. Dentro dessa lógica, uma regência feminina era
aceita, ou seja, vários são os casos na história do Egito faraônico em que rainhas
comandaramo país como regentes, por períodos curtos, para salvaguardar a posição de seus
familiares. Para Betsy M. Bryan a possibilidade, mesmo que infreqüente e ideologicamente
inconsistente, de uma mulher assumir o trono era uma clara e significativa distinção da
sociedade egípcia.
115
A explicação mais coerente para a rainha, e o um homem da família, assumir a
regência em períodos delicados de sucessão seria a de que tal ato preservaria o trono do
legítimo herdeiro, que afastaria do trono outras figuras masculinas da família rel. Para
Joyce Tyldesley, o fato dos príncipes aparecerem com menor freqüência que as princesas e do
título “Filho do Rei” ser atestado na XVIII dinastia enquanto o mesmo não ocorre com o de
“Irmão do Rei”, poderia indicar que, quando um novo rei ascendia, seus irmãos, apesar de
respeitados, perdiam o direito à realeza, mesmo eventual. Caso essa restrição seja verdadeira,
para a autora, essa poderia ser uma forma de reduzir o número de indivíduos com potencial
para reivindicar o trono.
116
Religiosamente havia um precedente para a escolha da rainha como regente do
herdeiro e como garantidora de seus direitos: o mito de Osíris, Ísis e Hórus. A deusa Ísis, após
o assassinato de seu marido (o deus Osíris) pelo irmão (o deus Seth), que almejava o trono do
Egito, conseguiu, através da magia, trazer seu consorte de volta e engravidar dele. Assim, com
o nascimento de seu filho, o deus Hórus, Ísis o escondeu até que o mesmo crescesse e pudesse
resgatar o trono que era seu por direito, vingando o assassinato de seu pai.
Embora a regência fosse um papel aceitável para as consortes reais em determinadas
circunstâncias, o mesmo não pode ser afirmado da possibilidade de uma mulher prolongar seu
poder ou se autoproclamar faraó, pois alguns casos indicam que as ocupantes do trono não
tinham ligação direta com herdeiros. Além de Hatshepsut, outros exemplos de mulheres que
governaram o Egito extrapolando suas posições como regente podem ser atestados. Segundo
Bryan, a análise dessas exceções sugere que a emergência de mulheres como governantes era,
115
BRYAN, Betsy M. In women good and bad fortune are on earth. In: CAPEL, Anne K. & MARKOE, Glenn
E. (ed). Mistress of the House, Mistress of Heaven. Women in Ancient Egypt. New York, Hudson Hills Press,
1996, 237 p. p. 25.
116
TYLDESLEY, op. cit., p. 56. Cf. ROTH, Ann Macy. Models of authority: Hatshepsut’s predecessors in
power. In: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art. New
York: Yale University Press, 2005, 340 p.p. 10.
52
na verdade, uma última tentativa de linhas dinásticas decadentes de se manterem no poder.
Assim, situações extremas superavam as restrições ao gênero feminino.
117
Um exemplo significativo, que em muitos aspectos estabelece um paralelo com o
reinado de Hatshepsut, pode ser encontrado em fins da XII dinastia. Como dito anteriormente,
Sebekneferu ocupou o trono do Egito após a morte de seu irmão e esposo Amenemhat IV. Ela
foi a primeira mulher a utilizar todos os títulos de rei e alguns estudiosos chegam a defender
que a mesma foi co-regente do faraó anterior. Sabe-se que ela construiu monumentos em seu
nome na margem oriental do Nilo. Na estatuária, a utilização em sua representação do
toucado nemes, um paramento real, parece não ter tido precedentes até então (figura 8).
As poucas fontes do período não parecem indicar uma oposição ao seu reinado, mas é
preciso ter em mente que mesmo se um embate tivesse acontecido, dificilmente seria
explicitado nas produções que almejavam, antes de tudo, a reprodução da ordem do mundo.
118
A brevidade do reinado de Sebekneferu traz à tona a possibilidade de uma pessoa ter
tirado vantagem da circunstância não usual na qual ela emergiu. Contudo, vários autores
apontam que a presença de seu nome em listas de reis, como a de Turin e a de Manethon,
diferentemente do que aconteceu com Hatshepsut, demonstra o reconhecimento do governo
de uma mulher.
Figura 8
Fragmento de estátua de Sebekneferu usando o toucado nemes (Louvre E27135)
Referência: www.wikipedia.orgwikisobekneferu.org (acesso em 03 de julho de 2009)
117
BRYAN, op.cit., p. 27
118
TYLDESLEY, op. cit., p. 18
53
Além de Sebekneferu e Hatshepsut, poucos casos mal documentados podem ser
atestados, como o da rainha Tausret (1198-1196), que em fins da XIX dinastia substituiu seu
consorte, o faraó Seti II. A falta de herdeiro com a rainha fez com que, após sua morte, o
trono passasse para Merenptah Siptah, filho do rei com uma esposa secundária de origem
síria. Devido à menoridade do novo rei, Tausret atuou como regente e gradualmente assumiu
todos os instrumentos de controle, passando de rainha para co-regente. Com a morte
prematura de Siptah e com a ausência de um sucessor para retirar sua autoridade, a rainha
continuou seu papel como co-regente, reforçando sua posição ao utilizar, assim como
Sebekneferu e Hatshepsut, todos os títulos destinados a um monarca varão. Seu reinado
solitário durou apenas dois anos e ela desapareceu das fontes, sendo substituída pelo faraó
Setnakht, fundador da XX dinastia.
119
Embora não existisse, pelo menos em teoria, nenhum artifício concreto para impedir
uma mulher de governar o Egito, a tradição, imbuída de valores religiosos e políticos, tornava
tal acontecimento estranho aos paradigmas estabelecidos. Sem dúvida, o faraó era um homem,
personificação do deus Hórus e herdeiro do cosmo completo.
4.
O FARAÓ HATSHEPSUT SURGE PARA GOVERNAR O REINO DAS DUAS
TERRAS
4.1 DE PRINCESA A CO-REGENTE
Os únicos relatos referentes à infância de Hatshepsut foram inscritos sob suas ordens
no templo de Deir el-Bahri e em Karnak durante o período em que reinou. Esses registros
indicam que Hatshepsut teve dois irmãos (Amenmés e Udjamés) e uma irmã (Akbitneferu)
que morreram prematuramente. Assim, com o fim do reinado de seu pai, o faraó Thutmés I
(1504-1492 a.C.), quem assumiu o poder foi o filho do monarca com uma esposa secundária,
seu meio-irmão e marido, Thutmés II.
O reinado de Thutmés II seguiu os padrões convencionais, dando continuidade às
construções tradicionais no templo de Amon em Karnak e suprimindo pequenas revoltas nas
regiões da Núbia e da Palestina.
120
Hatshepsut aparece pela primeira vez representada em uma estela de Thutmés II como
sua principal esposa. Os poucos monumentos produzidos no período em que foi rainha não
119
TYLDESLEY, op. cit., p. 226-8.
120
TEETER, op.cit., p. 6
54
evidenciam nenhum status maior ou exercício de um grande poder por ela. Como esposa do
faraó, usou os títulos normais de rainha como “Grande Esposa do Rei” e “Esposa do deus
Amon”.
Na figura 9 temos a imagem de um escaravelho
121
encontrado na múmia de Hetnefer,
mãe de Senenmut, poderoso homem da corte de Hatshepsut. Em sua base uma inscrição
em que o nome de Hatshepsut aparece junto ao título de “Esposa de deus” na parte superior, e
embaixo duas figuras ajoelhadas surgem em torno de um motivo vegetal que representa a
fecundidade.
Figura 9
Escaravelho encontrado em câmara mortuária de Hetnefer (final do reinado de Thutmés II/início do
reinado de Thutmés III)
Referência: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art, New
York, 2005, p. 94.
No período em que Thutmés II se tornou faraó ainda não havia sido estabelecida uma
tradição clara de funeral das rainhas. Mesmo existindo alguns casos de rainhas cujas múmias
foram colocadas em túmulos separados do de seus maridos, o comum para o período que
antecede o Reino Novo era a colocação do corpo das consortes reais em câmaras localizadas
nas tumbas dos próprios faraós. Porém, foi construída para Hatshepsut uma tumba própria,
encontrada inacabada, na região hoje conhecida como Wadi Gabbanat el-Qurud.
121
O escaravelho era uma analogia ao percurso do sol e seu renascimento toda manhã, de acordo com a
mitologia egípcia. Acreditava-se que os jovens escaravelhos se formavam do estrume rolado pelos escaravelhos
adultos e nasciam diretamente da terra. Como símbolo do deus Sol, o escaravelho era usado como amuleto. Ver
SCHULZ, R. e SEIDEL, M. (ed). Egipto, o mundo dos faraós. Colónia, Konemann, 2001, 538 p.p. 514.
55
Catharine Roehrig diz que já na preparação de seu funeral, a rainha Hatshepsut
demonstrava talento para a inovação, pois a tumba preparada para esta rainha possuía algumas
novidades.
122
Em primeiro lugar, a localização chama a atenção, que foi escavada na base
de um penhasco, sendo formada basicamente por três grandes corredores e três câmaras, uma
delas em nível mais baixo que as demais (configuração comum às tumbas construídas para os
faraós no Vale dos Reis).
Dentro de uma das câmaras que compõem a tumba foi encontrado um sarcófago de
quartzo que possuía inscrições com títulos de rainha. Hatshepsut é proclamada “Grande
Princesa, grande em favor e graça, Senhora de todas as terras, Filha Real e Irmã Real, Grande
Esposa Real, Senhora das Duas Terras”. Esta foi a primeira vez que um sarcófago foi
confeccionado todo em pedra, o que acabou se tornando uma tradição nas tumbas dos faraós
do Reino Novo. O sarcófago era uma versão em pedra do caixão externo de madeira usado
nos enterros das rainhas Ahhotep e Ahmes-Nefertari.
123
É importante destacar que nesta
tumba não qualquer referência à “escolha” de Hatshepsut para ser uma grande
governante
124
, diferentemente do que as inscrições de seu templo em Deir el-Bahri tentam
transmitir. Como exposto, a tumba foi abandonada antes de ser terminada, no momento em
que Hatshepsut assumiu o poder no Egito.
A morte prematura de Thutmés II e o fato deste não ter tido filhos homens com
Hatshepsut enfatizaram um problema cujas origens remetem ao início da XVIII dinastia: a
sucessão real. A alta taxa de mortalidade infantil e baixa expectativa de vida no Egito
125
tornavam difícil manter a exclusividade da família real. Tal fato fazia com que, teoricamente,
esposas secundárias e concubinas pudessem gerar futuros reis. Porém, essa forma não era
encarada como ideal, sendo um problema recorrente entre os thutmessidas, o que acabou
abrindo caminho para o reinado de uma mulher.
O segundo faraó da XVIII dinastia, Amenhotep I (1525-1504 a.C.), morreu sem deixar
herdeiros. Assim, o trono do Egito coube a Thutmés I, militar sem ligação direta com a
família real, mas casado com a irmã do antigo faraó, a princesa Ahmés. Ela, por também ser
filha do primeiro monarca da XVIII dinastia (o faraó Ahmés I.), representava a linhagem
responsável pela reunificação do Egito. O reinado de Thutmés I parece ter conseguido, ao
longo de seus seis anos, legitimidade perante os súditos.
122
ROEHRIG, C. The two tombs of Hatshepsut. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh.
New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p.p. 184.
123
TYLDESLEY, op.cit., p.84-6.
124
DORMAN, Peter. Hatshepsut: princess to queen to co-ruler. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen
to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 87
125
Pesquisas indicam que a expectativa de vida no Egito Antigo estava em torno de 30 e 40 anos.
56
Da união do casal real, nasceram Hatshepsut e seus irmãos que uniam as duas
linhagens, pois, além de possuírem o sangue real dos Ahméssidas (referente aos descendentes
do rei Ahmés I), também tinham o sangue da nova linhagem Thutméssida. Além desses
filhos, o faraó Thutmés I teve um menino com uma esposa secundária, que não possuía, por
essa razão, o sangue real dos responsáveis pela reunificação. Com a morte dos filhos homens
gerados pela rainha, este menino acabou se tornando o sucessor do monarca. Porém, para que
tivesse direito ao trono era necessário casá-lo com uma herdeira legítima. Assim, o futuro
sucessor de Thutmés I Thutmés II desposou Hatshepsut, sua meia-irmã. Desse casamento
nasceu a princesa Neferura e da união de Thutmés II com uma esposa secundária nasceu o seu
futuro sucessor Thutmés III que parece ter também casado com sua meia irmã para ter
direito ao trono.
126
Baseado em autores que defendem a idéia de que os sucessivos nascimentos de
herdeiros oriundos de esposas secundárias acabaram gerando uma espécie de disputa pelo
trono do Egito, Júlio Gralha afirma que tal conflito seria extremamente favorável para a
ascensão de Hatshepsut como faraó no momento seguinte.
127
Voltaremos a este ponto quando
falarmos do período em que ela se auto-intitulou faraó.
Após a morte de Thutmés II, Hatshepsut atuou como regente diante da impossibilidade
de Thutmés III assumir o trono (o herdeiro tinha 2 ou 3 anos
128
). Poucas são as fontes que
abarcam o período regencial, mas para Peter Dorman, Hatshepsut controlava todos os
mecanismos de governo, o que criou a necessidade de expressar esse controle
ideologicamente. Assim, de forma considerada por ele precoce, Hatshepsut elaborou um
prenome para si, equivalente a um nome de trono – Maatkare (Maat é o ka de Ra)
129
.
Mesmo sendo uma regente no reinado de seu sobrinho/enteado, ela continuou a usar as
insígnias de “esposa principal do rei”. O nome Maatkare aparece em várias inscrições do
período juntamente com o de “Esposa do deus”, mostrando o início de uma confluência entre
os atributos de consorte e de faraó.
130
A figura 10 é um exemplo desse período, nela um
escaravelho em que aparece a inscrição “Esposa do deus, Maatkare, Senhor das Duas Terras”.
126
Como exposto no capítulo anterior, a ideia de uma linhagem de herdeiras legítimas, a chamada “teoria da
herdeira”, em que o direito ao trono seria transmitido através de uma linha feminina da família real não é aceita
por todos. Para Gay Robins essa teoria não explica o fato das esposas de Amenhotep II e Amenhotep III não
terem sangue real. Ela também enfatiza que não evidências que comprovem o casamento entre Thutmes III e
a filha de Hatshepsut, a princesa Neferura.
127
GRALHA, op.cit, p. 109.
128
Para alguns autores, Thutmés III teria pouco menos de doze.
129
DORMAN
,
op. cit., p.p. 88
130
As imagens referentes ao período regencial serão tratadas detalhadamente no capítulo III.
57
Assim, podemos concluir que Hatshepsut adotou seu nome de trono antes de transmitir o
título de “Esposa do deus” para sua filha Neferura, como veremos posteriormente.
Figura 10:
Escaravelho encontrado na fundação do templo de Deir el-Bahri
Referência:
ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art, New
York, 2005, p. 94.
Hatshepsut começou cedo seu programa de construções, antecipando sua elevação ao
trono ao encomendar um par de obeliscos da pedreira de granito em Assuã quando ainda era
rainha regente. Obeliscos eram objetos de culto do Reino Novo que pretendiam ser uma
representação em pedra dos primeiros raios de luz que iluminaram o mundo; eram dedicados
ao deus pelo rei. Para Gay Robins essa era uma ação tipicamente real. A mulher-faraó
considerou os obeliscos uma das maiores realizações de seu reinado, relembrando o transporte
deles em uma série de ilustrações contidas na Capela Vermelha em Karnak e no pórtico sul do
templo mortuário de Deir el-Bahri. Uma das inscrições mostra que a chegada dos obeliscos
em Tebas foi recebida com uma celebração pública e Hatshepsut aparece apresentando os
obeliscos ao seu pai Amon. Atualmente, a base desses obeliscos pode ser vista no templo de
Amon em Karnak, mas suas hastes foram destruídas.
Ela também foi representada na construção de Karnak fazendo oferenda diretamente
aos deuses o que era normalmente feito só por reis. Como regente, ela reforçou sua autoridade
através de títulos e ações. Entretanto, alguns anos após se tornar regente, mudanças foram
efetuadas em suas representações: Hatshepsut passou a se autodenominar e a se representar
como um autêntico faraó.
58
4.2 O FARAÓ HATSHEPSUT
Entre os estudiosos há certo consenso quanto a ser o sétimo ano de reinado de
Thutmés III
131
, aquele em que há, pela primeira vez, a utilização das insígnias de faraó por
Hatshepsut. A partir desse momento, além de usar os títulos de rei, ela aparece na maioria dos
monumentos com trajes de monarca e representada como homem.
O difícil estabelecimento de uma data precisa para a elevação de Hatshepsut como rei,
está no fato dela usar a mesma contagem de anos de reinado de Thutmés III, ou seja, datava
seu próprio reinado a partir da ascensão ao trono de seu enteado, o que poderia indicar que
Hatshepsut se via como rei ou co-regente desde a morte de seu marido, Thutmés II. Entretanto
os dados do templo de Semna, Núbia, confirmam que, pelo menos em teoria, Hatshesput
estava subordinada a figura de Thutmés III durante o segundo ano de seu reinado.
Podemos destacar três linhas teóricas que tentam explicar a ascensão de Hatshepsut ao
poder.
132
A primeira, que atualmente não parece ter muitos seguidores, classifica a rainha
como usurpadora do trono, por ser a única herdeira com o sangue real dos reunificadores.
Entre os autores que defendem tal proposição está Barbara Lesko
133
. A segunda Hatshesut
como co-regente, por se basear na biografia de um alto funcionário que designa Thutmés III
como rei no palácio e Hatshepsut como responsável pelos negócios do país. Já a terceira linha
teórica a designa como faraó e tal reinado poderia ter tido um caráter dual, ou seja, com dois
reis coroados, tendo o faraó Hatshepsut como a figura proeminente, tendo Thutmés III um
papel secundário em relação à ela. Esta última linha é defendida por autores como Gay
Robins e Cathleen Keller
134
e é a que consideramos mais pertinente.
Registros da época não fornecem indicações sobre uma possível objeção à ascensão de
Hatshepsut como faraó;
135
embora, como vimos para o caso de Sebekneferu, caso houvesse,
não seria representada por evocar as forças do caos. Assim, Gay Robins refuta a imagem de
Hatshepsut como usurpadora do trono e as explicações que justificam esta tomada de poder
pelo fato dela ser a única remanescente de uma linhagem dinástica. A autora levanta duas
hipóteses para explicar a tolerância dos burocratas com relação à ascensão da rainha: 1-uma
forte personalidade de Hatshepsut e um grande poder demonstrado no período regencial; 2-
131
Mesmo tendo como regente Hatshepsut, dizemos que os anos são do reinado de Thutmés III, que seria este
o sucessor direto de Thutmés II e originalmente o verdadeiro faraó.
132
GRALHA, op. cit., pp. 110-111
133
LESKO, op.cit. p. 5.
134
KELLER, C. The joint reign of Hatshepsut and Thutmose III. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from
queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p.p. 96
135
TEETER, op.cit., p. 8
59
uma escolha cuidadosa feita pela rainha daqueles que a serviriam
136
. Outra autora que vai ao
encontro dessas ideias é Cláudia M. Farias, que acredita que Hatshepsut se beneficiou por ter
ao seu serviço pessoas de alta capacidade intelectual e administrativa, como o arquiteto
Senenmut, o sumo sacerdote de Amon, Hapuseneb, e o vizir Useramon.
137
Diferentemente, alguns autores defendem que a posição de Hatshepsut como monarca
foi possibilitada pelo fato do Egito, mesmo com algum tempo de reunificação, ainda estar em
processo de reorganização e que por essa razão não poderia arriscar um novo conflito; daí a
escolha de um monarca que pudesse estar ligado às duas linhagens reais.
138
As campanhas militares do reinado de Hatshepsut geram grandes discussões. Para
certos historiadores o período deve ser encarado como um momento de paz interna, já que, em
comparação com o reinado solitário de Thutmés III, seria marcado por ações militares
isoladas. Assim, o reinado de Hatshepsut deveria ser visto como um momento em que a
expansão das fronteiras foi interrompida, o que teria colocado Thutmés III em uma posição
complicada no início de seu reinado solitário. Seguindo essa linha, o fato de Hatshepsut não
apenas se representar como um rei, mas como um rei guerreiro tradicional, conquistador de
todo o mundo é questionado por pesquisadores como Catherine Keller, para quem esse tipo
descrição fazia parte apenas de uma retórica imperialista típica de governos
faraônicos/masculinos.
139
Outros autores como Joyce Tyldesley criticam os trabalhos que encaram tais registros
como uma fraude por estarem baseados na ideia da agressividade como atributo masculino.
Para ela, a política militar de Hatshepsut deve ser vista mais como uma defesa ativa do que
uma ofensiva deliberada. Algumas pesquisas apontam que a mulher-faraó empreendeu uma
série de campanhas no território núbio e na Palestina.
140
Segundo Tyldesley, se não foi capaz
de ampliar as fronteiras do Egito, Hatshepsut conseguiu preservá-las. Ainda de acordo com a
autora, as incursões militares de Hatshepsut foram mais impressionantes que as de Thutmés
II. Nesse sentido, as campanhas mais agressivas de Thutmés III, seu sucessor, é que não
seriam usuais, ao levarmos em consideração os reinados precedentes.
141
várias indicações de que houve uma ampla política estrangeira no reinado de
Hatshepsut, o que pode ser classificado como um ambicioso comércio e exploração. Um dos
136
ROBINS, op. cit., 1996, p. 50.
137
FARIAS, Cláudia M. Hatchepsut. In: ARAÚJO, Luís M. (Dir.), Dicionário do Antigo Egito. Lisboa, Editorial
Caminho, 2001, p. 406.
138
GRALHA, op. cit., p.111
139
KELLER, op.cit., p. 96
140
TEETER, op.cit., p.9
141
TYLDESLEY, op.cit., p. 143
60
exemplos é a expedição realizada em Punt, que pode ser considerada o clímax de uma série de
missões comerciais realizadas no período, que incluem idas à região do Sinai em busca de
cobre e turquesa.
A terra de Punt é conhecida desde o Reino Antigo como uma terra divina criada por
Amon, rica em produtos exóticos como mirra, ébano, mármore, ouro e até dançarinos
pigmeus, que eram apreciados na corte egípcia. Além dos nativos, acredita-se que a região de
Punt era também intermediária de produtos de outras regiões africanas.
142
Expedições a Punt
foram uma marca de vários reinados do Reino Médio, já que a região era particularmente rica
em resinas preciosas das quais o Egito precisava para manufaturar o incenso cultual.
A localização exata de Punt é desconhecida, mas o ambiente natural descrito nos
relevos de Deir el-Bahri indica que se tratava da região costeira nordeste da África,
provavelmente situada na atual Somália. A ida a essa região no reinado de Hatshepsut teve
por objetivo a obtenção de incenso e outros materiais preciosos para o culto de Amon em
Karnak, além de ter um caráter exploratório.
143
O retorno dessa expedição parece ter ocorrido
por volta do ano nove de reinado e a importância do evento para Hatshepsut pode ser
percebida pelo destaque dado ao mesmo nas paredes de seu templo mortuário em Deir el-
Bahri.
144
Com a ascensão de Hatshepsut, sua filha Neferura, até então ausente nas fontes,
começou a ter um lugar proeminente nas representações e o título de “Esposa do deus” foi
transferido para ela. Robins acredita que a proeminência das representações de Neferura como
‘esposa do deus’ se deu pela necessidade vital para Hatshepsut, como faraó feminino, de ter
seu contraponto em alguns rituais em que era necessária a presença da mãe do rei/ esposa do
rei.
145
Como filha do rei, Neferura foi a única da XVIII dinastia a aparecer amplamente nos
monumentos, usando ocasionalmente as insígnias de rainha. A grande quantidade de
escaravelhos de Neferura tem algumas inscrições que a descrevem como “Esposa do deus” e
uma minoria como “filha do rei”. Na figura 11 temos um exemplo em que Neferura aparece
somente com o título de “Filha do rei”. O interessante nesta inscrição é que o título poderia
fazer referência tanto a Thumes II, seu pai, quanto a Hatshepsut, sua mãe. Porém, pelo fato de
sua proeminência ter acontecido no reinado da mãe é provável que se trate do segundo caso.
142
CARDOSO, C. O Egito e o antigo Oriente Próximo na segunda metade do segundo milênio a.C. Revista
Hélade. Rio de Janeiro: 1 (1), 2000, 17-37. Disponível em
<
http://www.heladeweb.net/N1%202000/ciro_flamarion_cardoso.htm> Acesso em 24 de julho de 2009.
143
Ibid.
144
TYLDESLEY, op.cit., p. 146
145
ROBINS, op.cit., 1996, p. 52
61
O escaravelho da figura 12 mostra, seguindo o nome de Neferura, o título de “Esposa do
deus”.
Figura 11
Escaravelho com o nome de Neferura e o título de “Filha do rei
Referência: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art, New
York, 2005, p.143
Figura 12
Escaravelho com o nome de Neferura e o título de “Esposa do deus
Referência: ROEHRIG, C. (ed.). Hatshepsut from queen to pharaoh. The Metropolitan Museum of Art, New
York, 2005, p.143
Com o decorrer do reinado, o faraó Hatshepsut promoveu um programa de
reconstruções de estruturas deterioradas, como o templo de Amon em Karnak, e uma série de
novas construções, dentre elas seu famoso templo funerário em Deir el-Bahri.
No templo de Amon, Hatshepsut reformou largas seções construídas por seu pai e seu
marido. Como sinal de piedade, erigiu um novo santuário para a barca de Amon chamado
hoje de Capela Vermelha que possuía em sua decoração representações da rainha fazendo
oferendas aos deuses.
62
No deserto do Médio Egito, Hatshepsut dotou dois templos dedicados a divindade
Pakhet, uma deusa feroz com cabeça de leão que era cultuada localmente. Pelo fato dos
gregos, tempos depois, terem equiparado essa divindade com a deusa Ártemis, o maior templo
é amplamente conhecido pelo nome clássico Speos Artemidos. O templo menor da deusa é
conhecido como Speos Batn el-Bakarah e foi gravemente deteriorado no reinado de Thutmés
III. O Speos Artemidos sobreviveu até o reinado de Seti I (1306-1290).
Speos Artemidos possui duas câmaras: um vestíbulo que leva através de uma passagem
estreita a um santuário interior cortado na rocha com um nicho em sua parede traseira.
pouca decoração, apesar de cenas e textos gravados na parede sul do vestíbulo ao redor da
porta do santuário enfatizarem o vínculo filial de Hatshepsut com Amon, o pai que a teria
escolhido para governar o Egito. Este tema foi amplamente utilizado por Hatshepsut em seus
monumentos. Nas inscrições do templo podemos ler palavras que proclamam a realeza de
Hatshepsut: “Declaração de Amon-Ra, Senhor do trono das Duas Terras...’minha amada
filha Maatkare, eu sou teu amado pai. Eu estabeleci para ti teu posto na realeza das Duas
Terras.”
A cena que acompanha a inscrição mostra Hatshepsut ajoelhada em frente a Amon
sentado no trono enquanto a feroz Pakhet estende seu braço esquerdo e promete apoio ao
novo rei. Outra inscrição presente contém um pronunciamento da política do reinado de
Hatshepsut, ou seja, de renovação e restauração. Ela diz que no momento de sua criação ela
foi destinada a restaurar a pureza dos templos egípcios em todas as suas glórias passadas.
Eu fiz essas coisas pelos conselhos de meu coração. Eu nunca cochilei como
um desatento, mas eu tornei forte o que estava deteriorado. Eu levantei o
que estava desmembrado, até os dos primeiros tempos quando os Asiáticos
em Avaris da Terra Norte... eles governaram sem Ra... Eu bani as
abominações dos deuses, e removi da terra suas pegadas.
146
O exagero de Hatshepsut ao relatar eventos e invocar a lenda da perda da maat durante
o Segundo Período Intermediário acabava por enfatizar a paz e a estabilidade de seu próprio
reinado. Nesse caso, Hatshepsut faz uma revisão histórica de eventos e recebe o crédito pela
expulsão dos estrangeiros e por restaurar os monumentos e a religião de seus antecessores.
Entretanto, como explicitado, os hicsos haviam governado o Egito muitos anos antes de
Hatshepsut chegar ao poder. Essa não era uma mentira porque o papel exercido pelo faraó, ou
seja, a instituição, era permanente e passada de indivíduo para indivíduo, o que fazia ser
perfeitamente viável a utilização pelo monarca reinante das realizações de outros faraós.
146
TYLDESLEY, op.cit., p. 157
63
Como o trecho anterior evidencia, Hatshepsut encarregou-se de restaurar monumentos
de seus antepassados, principalmente aqueles do Reino Médio, que sofreram grandes estragos
durante o Segundo Período Intermediário. Um exemplo é o templo de Hathor em Cusae,
cidade do Alto Egito. Restauração de monumentos de ancestrais era uma ação vista com bons
olhos pelos egípcios, pois a ideia era que o faraó que respeitasse antigas construções teria as
suas respeitadas. A restauração de monumentos trazia ordem ao caos e a lembrança de que um
faraó do passado era visto como um pequeno eco do papel da realeza e como o sustentáculo
de maat. Porém, esse princípio não era sempre seguido pelos faraós, inclusive por Hatshepsut,
que desmantelou o santuário de Amenhotep I e Ahmes-Nefertari, por este ficar na trajetória
do caminho processual que levava ao seu templo mortuário.
O “castelo de milhões de anos”, tipo de santuário real, frequentemente classificado por
estudiosos como “templos mortuários”, foi considerado durante muito tempo como uma
construção realizada por cada faraó com o intuito de que fossem servidas oferendas e outras
cerimônias funerárias em seu favor após a morte, o que fazia com que parte dos rendimentos
de algumas propriedades rurais fosse destinada a esse local. Contudo, estudos mais recentes
acreditam que esse tipo de templo era dedicado ao culto ao rei, promovendo a união do faraó
com os deuses, sendo que alguns deles também assumiam uma função funerária em favor do
monarca morto. Tendo em vista essas atribuições, Hatshepsut vai construir seu próprio templo
funerário: Djeser-djeseru.
Sua transformação em faraó foi fortemente reafirmada na decoração do templo de Deir
el-Bahri, cuja construção parece ter começado no sétimo ano de reinado e continuado até a
morte de Hatshepsut, por volta do ano 1458 a.C. Segundo Ann M. Roth, esse templo era a
expressão da agenda política de Hatshepsut, já que o uso de alusões históricas, como a
descrição de sua expedição a Punt, e religiosas foi feito para consolidar e demonstrar seu
poder.
147
O templo mortuário da mulher-faraó Djeser-djeseru ficava na margem oeste do
Nilo, perto do arruinado templo mortuário da XI dinastia do rei Montuhotep II e quase
diretamente oposto ao complexo templário de Karnak. O templo de Hatshepsut foi fortemente
influenciado pelo de Montuhotep, o primeiro templo no Egito a utilizar terraços que
construíam diferentes níveis, com a parte mais sagrada do templo cortada diretamente dentro
da montanha tebana.
147
ROTH, Ann M. Hatshepsut’s Mortuary Temple at Deir el-Bahri: Architecture as Political Statement. In:
ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005,
340 p. p.147
64
Hatshepsut pretendia que seu novo templo alojasse sua própria capela mortuária e, em
menor escala a de seu pai, Thutmés I. A capela era um lugar onde o vivo podia fazer
oferendas de comida, bebida e incenso para sustentar o ka do defunto na outra vida. A estátua
de culto era o foco dessas oferendas diárias. Entretanto, uma capela mortuária real não era
apenas isso, o faraó divino podia depois de morto se associar com um número importante de
deidades, principalmente Osiris e Ra. Durante o Reino Novo elas também significam o
crescimento do poder de Amon que ganhou um papel proeminente nas cenas que decoravam
as paredes e cujo santuário formava o foco da capela mortuária.
Todos esses elementos podem ser encontrados em Deir el-Bahri, designado como um
templo multifuncional por seus complexos de santuários devotados ao culto de diversas
divindades, como o da deusa Hathor e do deus Anúbis e pequenos santuários consagrados à
memória dos ancestrais de Hatshepsut, assim como um templo solar (com seu telhado aberto,
dedicado ao culto de Ra-Harakhte). Porém, o principal santuário era dedicado a Amon.
O santuário de Amon era o foco da “Bela Festa do Vale”, uma celebração anual de
morte e renovação, que contava com a participação do rei, de sacerdotes e da população de
Tebas, o que tornava Djeser-djeseru uma parte importante da vida religiosa da região. Nesse
dia a estátua de Amon, acompanhada das de Mut e Khonsu, saída de seu isolamento templário
e atravessava o rio passando a noite com Hathor em Djeser-Djeseru.
Usualmente os templos do Reino Novo eram decorados com cenas que mostravam a
ligação do rei com os deuses. As partes mais públicas dos templos, como pilono e o pátio,
normalmente descrevem o faraó em seu papel de rei guerreiro, defendendo sua terra contra os
tradicionais inimigos do Egito, enquanto nas áreas mais privadas temos cenas em que o
monarca é mostrado em um contato mais íntimo com a imagem da divindade, agindo como
um alto sacerdote ou fazendo uma oferenda a uma estátua de culto. Porém Djeser-djeseru não
pode ser classificado como um templo típico do Reino Novo, principalmente pela mensagem
propagandística fortemente expressada em suas paredes.
Com o intuito de se legitimar como soberana, o templo é decorado por uma série de
imagens e de textos que J. Gralha divide em quatro esferas de ação:
1- Aqueles que enfatizam a legitimidade dada diretamente pelo deus Amon-Ra a ela
como herdeira do trono. Como exemplo, podemos citar a representação de seu
mito de nascimento e a descrição de sua cerimônia de coroação.
2- Os que destacam sua natureza dual através de um culto a sua pessoa e do mito do
nascimento divino.
65
3- Os que dão ênfase a sua ligação com os Thutméssidas através de todo um mito e
grupo iconográfico envolvendo seu pai, Thutmés I, e o deus Amon-Ra.
4- Aqueles que destacam o caráter divino de sua mãe, a rainha Ahmés que
representava a linhagem Ahméssida, através da representação da teogamia, a qual
o deus Amon, tomando a forma do faraó, manteria relações com a rainha, gerando
Hatshepsut.
Para reforçar seu papel como governante, Hatshepsut desenvolveu textos em que
aparece sendo escolhida por seu pai para sucedê-lo e, por isso, apresentada aos deuses como
tal. O desenvolvimento do mito do nascimento divino, na qual ela teria sido gerada através da
união do deus Amon com sua mãe Ahmés, também foi utilizado para consolidar sua
legitimação. Este aspecto vai ao encontro da ideia de que a função e o poder da “Esposa do
deus” seriam responsáveis por perpetuar o mito cósmico. Uma das representações mais
interessantes contidas nesse templo mostra o deus Khnum, oleiro dos deuses, modelando a
criança (Hatshepsut) para ter um corpo e ka masculino, como deve ser tradicionalmente o
faraó. Como bem nos explica Christiane D. Noblecourt: a criança é um menino; não nos
enganemos com isso: todo morto torna-se um Osíris e todo candidato ao trono assume a
forma do pequeno Hórus, no além.”
148
A mulher-faraó realizou seu jubileu, ritual público de renascimento e renovação para o
rei idoso e para aumentar a confiança pública em seu reinado, com quinze anos de reinado.
Um segundo par de obeliscos foi encomendado para marcar essa data. Eles foram erigidos na
sala hipóstila de Thutmés I no complexo templário de Karnak. A inscrição contida na haste e
na base mais uma vez enfatiza o relacionamento dela com seus pais, terreno (Thutmés I) e
divino (Amon-Ra), assim como seu direito ao trono. Tradicionalmente, o jubileu era realizado
após trinta anos de reinado, mas ela não foi a primeira a quebrar a regra. Possivelmente,
Thutmés I mandou erigir obeliscos em comemoração ao seu jubileu e sabe-se que ele não
governou por mais de duas décadas. Uma celebração dessa amplitude, realizada relativamente
cedo para o reinado de Hatshepsut pode ter tido um eco político, alçando a moral e provendo
um bom augúrio para a prosperidade futura do governo e Hatshepsut sentiu necessidade
depois de quinze anos de uma renovação.
Thutmés III, ainda como um co-regente, foi representado menos freqüentemente do
que Hatshepsut e mesmo em cenas onde apareciam juntos, Hatshepsut era o parceiro
148
DESROCHES-NOBLECOURT, op. cit., p. 155-156
66
dominante. As fontes parecem indicar que Hatshepsut sempre tomava cuidado em subordinar
a figura dele em representações dentro do território. Em regiões fora do Egito, Thutmés III
possuía monumentos próprios.
Para Catherine Keller, durante o reinado em conjunto foram produzidas poucas
manifestações da rivalidade entre os dois reis e suas respectivas cortes.
149
Emily Teeter cita
um jarro oriundo provavelmente do equipamento funerário de Thutmés III no Vale dos Reis.
Nele uma inscrição com o nome de Hatshepsut. Para essa autora, caso houvesse um ódio
do enteado para com sua madrasta, não seria lógico ter uma lembrança dela nas peças
destinadas ao seu funeral.
150
No vigésimo segundo ano de reinado, Hatshepsut deixou de ser representada,
provavelmente devido à sua morte. A estela do templo de Montu em Armant parece ser um
marco, já que nela Thutmés III é chamado duas vezes nas inscrições de “Thutmés, governante
de Maat”, o que remete ao tradicional papel do faraó como mantenedor da ordem, justiça e
verdade. Com relação ao fim das representações da rainha-faraó, muita polêmica foi gerada
por autores que insistiam que o mesmo foi causado por seu assassinato, que apenas por
meio da violência Thutmés III teria conseguido o poder.
151
Contudo, não dado algum a
esse respeito e tal conjectura foi ainda mais desacreditada com a descoberta da múmia de
Hatshepsut, assunto que abordaremos posteriormente.
4.3 O REINADO SOLITÁRIO DE THUTMÉS III
O reinado do novo faraó foi caracterizado por freqüentes ações militares contra povos
nômades e por expedições em regiões da Ásia que acabaram expandindo as fronteiras
egípcias. De acordo com as fontes, essa política imperialista de Thutmés III foi marcada pela
ênfase na educação, pois ele não tomava os príncipes de outras regiões como reféns, mas
levava-os para o Egito, expondo-os à cultura local. Sem dúvida, Thutmés, principalmente com
o passar dos anos, reforçou sua imagem como um grande militar.
152
Outro ponto bastante controverso na história deste monarca é com relação à proscrição
das imagens e dos nomes de Hatshepsut. Alguns pesquisadores defendem que tal proscrição
ocorreu imediatamente após a tomada do poder por Thutmés III, mas a teoria mais aceita
149
KELLER, op. cit. p. 96
150
TEETER, op.cit., p. 13.
151
Para maiores detalhes sobre essas ideias ver JOHNSON, Paul. História Ilustrada do Egito Antigo. Rio de
Janeiro, Ediouro, 2001.
152
ALLEN, James. After Hatshepsut: the military campaigns of Thutmose III. In: ROEHRIG, C. (Ed)
Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p.
67
atualmente é que essa destruição das imagens ocorreu nos últimos anos de reinado desse
faraó, possivelmente duas décadas após o seu início.
Dentre as teorias que procuram explicar o motivo de se apagar a memória do far
Hatshepsut, temos a que defende um problema quanto à linhagem real dos Ahméssidas da
qual Hatshepsut descendia. Essa teoria acredita que a proscrição se deu no final do reinado de
Thutmés III, período em que Amenhotep II (filho de Thutmés e sem ligação com a linhagem
do faraó reunificador Ahmés I) atuou como co-regente. Essa ação teria sido realizada para
assegurar a ascensão do novo faraó Amenhotep, que haveria outro possível sucessor ligado
à dinastia Ahméssida. Daí a tentativa de se apagar as imagens do último faraó a pertencer a
essa linhagem.
Ann Roth compartilha de tal hipótese e afirma que os primeiros reis da XVIII dinastia
tiveram muitas filhas e que estas tinham uma descendência mais próxima da linhagem dos
fundadores do que Thutmés III e seu filho, Amenhotep. A monarquia derivava sua autoridade
de uma sucessão direta de governantes (de Osíris à Hórus), assim, para essa autora, atacar as
imagens de Hatshepsut negava magicamente seu reinado, o que facilitaria a ascensão do filho
de Thutmés III.
153
Entretanto, esta teoria não tem muita aceitação entre os estudiosos por não
haver provas sobre a existência de outro sucessor disputando o poder.
154
Para Joyce Tyldesley, a remoção do nome e da imagem de Hatshepsut serviu a dois
propósitos: além de reescrever uma história, também atacava o espírito do morto, que o
nome e a imagem eram a garantia de sobrevivência no outro mundo.
155
Como vimos, a
imagem era, na crença egípcia, aquilo que representava, atuando na realidade e muitas vezes
atuando como substituto de pessoas e ações.
156
Dentre as ações executadas para a proscrição
de Hatshepsut estão o desmantelamento da Capela Vermelha, a derrubada dos obeliscos e a
destruição de várias estátuas e relevos provenientes do templo de Deir el-Bahri.
Peter Dorman vai destacar que a proscrição das imagens de Hatshepsut não pode ser
caracterizada como damnatio memoriae, ou seja, como uma tentativa de apagar todos os
traços da personalidade existente, isto porque as representações de Hatshepsut como rainha
não foram atacadas, apenas suas representações e nomes como faraó.
157
153
ROTH, Ann M. Erasing a reign.
In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The
Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p.281
154
ALLEN, op.cit.
155
TYLDESLEY, op.cit., p.216
156
Ver capítulo I, tópico 2.
157
DORMAN, P. The proscription of Hatshepsut. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh.
New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 267.
68
Segundo Gay Robins, os ataques foram motivados não pelo ódio, mas pelo desejo de
se apagar a memória de uma mulher que havia ocupado o trono do Egito. De acordo com essa
autora, é possível que com o passar do tempo necessidades políticas tenham feito com que
Thutmés III apagasse as representações da mulher-faraó, algo que não correspondia à maat,
ordem do mundo.
158
O processo de sucessão de um monarca, por representar uma transição, não apresenta
bases fortes, consolidadas, ainda mais quando o reinado anterior teve uma longa duração,
como no caso de Hatshepsut. Acreditamos que esse fator pode explicar porque a proscrição às
imagens de Hatshepsut ocorreu no fim do reinado de Thutmés III. Assim, no início do reinado
teria sido preciso manter a imagem do governante anterior até que o novo faraó consolidasse
seu poder e sua imagem em ações e representações. Posteriormente, Thutmés III pode ter
achado que seria mais seguro remover todos os traços de um reinado não convencional
liderado por uma mulher, pois esse poderia ser interpretado pelas futuras gerações como uma
séria ofensa a maat.
O reinado de uma mulher abria um precedente perigoso. Isso porque, ao contrário de
outras rainhas reinantes, Hatshepsut teve um reinado de sucesso no meio de uma dinastia
florescente política e economicamente. Assim, outra explicação seria que seu nome foi
apagado para não servir de exemplo. Ao reescrever sua história, Thutmés III estabelecia uma
sucessão direta com Thutmés II, sem a interferência de uma mulher.
A ideia de que a proscrição ocorreu pelo fato de que uma mulher-faraó não
corresponderia à ordem é sem dúvida a mais aceita e se justifica por ser uma forma de evitar
que casos como esse voltassem a ocorrer. Assim, vemos uma ligação com a religião e não é
possível ligar essa proscrição a uma vingança pura e simples de Thutmés III contra a memória
daquela que teria usurpado seu poder, como muitos ainda querem acreditar.
4.4 A TUMBA DO FARAÓ HATSHEPSUT E A DESCOBERTA DE SUA MÚMIA
Quando assumiu o trono do Egito, Hatshepsut deslocou os preparativos da tumba
confeccionada para ela no período em que foi rainha de Thutmés II, para a construção de uma
nova tumba localizada na região conhecida como Vale do Reis (ver a figura 14, que contém
as plantas das duas tumbas de Hatshepsut). A primeira tumba a ser construída neste local, a
oeste de Deir el-Bahri, foi a do pai de Hatshepsut, o faraó Thutmés I. A partir daí, este passou
a ser lugar em que alguns faraós do Reino Novo construíram seus complexos funerários.
158
ROBINS, op. cit., 1996, p. 55.
69
A tumba associada a Hatshepsut é a KV20 que fica na base de um penhasco no lado
leste do Vale dos Reis. Ela foi descoberta em 1799 com a expedição de Napoleão ao Egito. O
pórtico inicial da tumba KV20 não possuía inscrições, o que fez com que durante mais de um
século seu dono permanecesse sem identificação. Sua identidade foi descoberta com a
escavação feita por Howard Carter em 1903 em várias tumbas, entre elas a de Hatshepsut, a
de Thutmés I (KV38), a de Thutmés III (KV34) e uma pequena destinada à ama-de-leite de
Hatshepsut de nome Sitre (KV60)
159
. Ele descobriu na entrada da KV20 peças contendo o
nome de trono de Hatshepsut, Maatkare. Na mara funerária principal ele encontrou dois
sarcófagos de quartzo (com as mesmas características daquele encontrado na tumba de rainha
de Hatshepsut). Em um dos sarcófagos havia uma inscrição que designava Hatshepsut como
rei. O outro parece originalmente também ter sido confeccionado para ela, porém foi adaptado
e entalhado com o nome de seu pai, Thutmés I.
A partir desta comprovação, Carter concluiu que Hatshepsut encomendou uma tumba
para si própria e tinha o intuito de transferir a múmia de seu pai para lá, que, além do
sarcófago, foram encontradas mais três câmaras mortuárias além da principal. Esta ideia foi
interpretada por muitos como mais um veículo utilizado por Hatshepsut para se legitimar,
que esta transferência associaria a múmia de seu pai à sua tumba
160
.
Em 1974, John Romer apresentou uma nova teoria para explicar a história da tumba de
Hatshepsut. Segundo o pesquisador, KV20 foi originalmente construída por Thutmés I, sendo
posteriormente alterada por Hatshepsut, que acrescentou à construção uma nova câmara para
acomodar, além da múmia de seu pai, a sua própria. Esta teoria é rebatida por autores como C.
Roehrig, que defendem que Thutmés I foi na verdade colocado na tumba originalmente
destinada para ele, a KV38. Assim, KV20 teria sido confeccionada por um dos antecessores
de Hatshepsut e readaptada por ela.
Segundo especialistas, provavelmente a tumba era de Thutmes II, seu esposo e meio-
irmão. A presença na tumba de três câmaras indicaria, para esses autores, que a intenção era,
além de transferir a múmia de Thutmes I, manter a de Thutmes II no local (tal múmia foi
encontrada em Deir el-Bahri). É importante salientar que a múmia de Hashepsut não foi
encontrada na tumba, o que estimulou muitos autores a desenvolverem teorias sobre um
possível assassinato, dignas das mais complexas histórias de conspiração.
No dia vinte e sete de julho de 2007, o Conselho Supremo de Antiguidades Egípcias
(CSAE) emitiu um comunicado que anunciava a descoberta da múmia da rainha Hatshepsut.
159
A figura 13 mostra a disposição das tumbas no Vale dos Reis.
160
ROEHRIG, op. cit., p. 185
70
Segundo o documento, a múmia estaria localizada em uma das tumbas escavadas por J.
Carter, mais especificamente a KV60, destinada à ama-de-leite de Hatshepsut.
Nesta pequena tumba de 40m2 foram encontradas duas múmias danificadas de
mulheres, uma da própria Sistre e outra parcialmente desenfaixada, obesa, de meia idade, com
dentes gastos e cabelo avermelhado. Essa múmia foi encontrada com o braço esquerdo
cruzado sobre o peito, posição típica do enterro real da XVIII dinastia.
161
Alguns pesquisadores, como a arqueóloga americana especialista em necrópoles
tebanas Elizabeth Thomas, durante anos levantaram a possibilidade da mia encontrada no
chão da tumba ser de Hatshepsut, devido à posição em que foi encontrada, indicando que se
tratava de um membro da realeza. Entretanto, esta ideia foi duramente rebatida por Zahi
Hawass, diretor de antiguidades egípcias do museu do Cairo, que, na época, disse não ser
possível atribuir a identidade de uma múmia à posição de sua mão.
Em uma conferência realizada no ano de 2006 no Metropolitan Museum de Nova
York, Zahi Hawass relevou ter identificado a múmia de Hatshepsut como aquela encontrada
no sarcófago. As pesquisas para identificação haviam sido retomadas ao encontrarem as
múmias da KV60 no terceiro subsolo do Museu do Cairo. Elas foram levadas ao museu
depois que a tumba foi “redescoberta” por Donald Ryan em 1989. Pouco tempo depois,
Hawas desmentiu às informações, dizendo não haver provas suficientes.
Em 2007 a equipe de Hawass no museu do Cairo, recorreu a uma tomografia
computadorizada para comparar os traços das múmias da KV60 com os de outras pertencentes
à família de Hatshepsut. A descoberta de um dente contendo a inscrição do nome de trono de
Hatshepsut em um vaso localizado na região de Deir el-Bahri, fez com que a equipe iniciasse
exames complementares na arcada dentária das múmias. O resultado apontou que o dente era
da múmia deixada no chão da tumba. Testes de DNA ainda estão sendo realizados, mas
segundo Hawass não é preciso aguardar os resultados, pois haveria provas suficientes para
a sua identificação. Alguns arqueólogos rebatem essa afirmação, dizendo que a identificação
de uma múmia é difícil e necessita de inúmeras provas antes de se chegar a qualquer
confirmação.
161
http://br.news.yahoo.com/s/afp/egito_arqueologia (acesso em 27/06/07)
71
FIGURA 13
Localização das tumbas de alguns faraós na região do Vale dos Reis
Referência: Neste mapa temos a localização das tumbas de Thutmés I, Hatshepsut e Thutmés II, Thutmés II e a
de Sitre, ama de Hatshepsut. Mapa retirado de: ROEHRIG, C. The two tombs of Hatshepsut. In: Hatshepsut:
from queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, p. 185.
72
FIGURA 14
Planta das tumbas de Hatshepsut (como rainha e como faraó)
Referência: Na imagem superior temos a planta da tumba construída para Hatshepsut na época em que ela era
rainha. Na inferior, a planta da tumba KV20 destinada a receber o faraó Hatshepsut. Vemos nesta última as três
câmaras que, como alguns autores defendem, receberiam a múmia de Hatshepsut, a de seu pai Thutmés I e a de
seu marido e meio-irmão Thumés III. Plantas retiradas de: ROEHRIG, C. The two tombs of Hatshepsut. In:
Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, p. 184-5
73
Independentemente dos motivos que levaram à transferência de sua múmia para a
KV60, o plano original de sua colocação em uma tumba, ficando próxima ao corpo de seu pai,
Thutmes I, nos leva à seguinte questão: qual a necessidade da soberana de associar sua figura
à de seu pai? Para Winlock, arqueólogo responsável pela escavação do templo de Deir el-
Bahri, Hatshepsut precisou usar os restos mortais de seu pai para realçar sua própria
divindade. Tendo em vista que uma mulher como faraó não correspondia à normalidade, a
constante necessidade de expressão ideológica da aprovação divina e terrena de um reinado e
do poder faraônico ganhou maior força com Hatshepsut. Assim, não surpreende o abandono
da tumba anteriormente destinada à rainha Hatshepsut para uma mais apropriada à sua nova
posição. Para o pensamento egípcio, formado por noções complementares que não dividiam a
realidade em esferas estanques, material e espiritual faziam parte da totalidade coerente que
era o mundo. Mais do que a construção de uma estrutura equivalente ao status de um faraó,
ter um ancestral na mesma tumba da monarca reafirmava, nas duas esferas, o que era
constantemente explicitado por ela nas grandes construções, nas paredes dos templos e nas
estátuas: após sua ascensão, Hatshepsut deixava marcado para a eternidade que, mais do que
uma mulher, mais do que uma rainha, ela foi um ser meio humano, meio divino, cuja imagem
tinha lugar ao lado dos deuses e de seus ancestrais: ela foi o faraó do Egito.
74
CAPÍTULO III
PODER E LEGITIMIDADE: AS IMAGENS DE HATSHEPSUT
1. AS REPRESENTAÇÕES DE HATSHEPSUT
O material selecionado para esta pesquisa emana principalmente de dois sítios: a
Capela Vermelha de Amon em Karnak e o templo construído por Hatshepsut em Deir el-
Bahri Djeser-djeseru. Contudo, duas fontes utilizadas são provenientes de outros locais do
Egito: o grafito da região de Assuã (relevo 2) e a inscrição encontrada em uma mina no Sinai
(relevo 11). O relevo 4, em que aparece cena representada em um obelisco, apesar de não
fazer parte da Capela Vermelha, está inserido no complexo templário de Karnak.
Até meados do século XIX, momento em que a arqueologia se estruturava enquanto
campo de saber e que deu início a uma série de intensivas escavações na terra dos faraós,
Hatshepsut permaneceu desconhecida. A partir desse momento, emergiu a imagem da
soberana que, como vimos, acabou estimulando a imaginação de pesquisadores que
desenvolveram variadas categorizações a respeito de suas ações e de seu caráter.
Durante os anos de 1922-1929, o egiptólogo Herbert Winlock chefiou expedições
arqueológicas em cemitérios do Reino Médio localizados na região de Deir el-Bahri. Ao
longo das escavações na área entre o templo da mulher-faraó e o templo do faraó Montuhotep,
da XI dinastia, foram encontrados fragmentos de estátuas, dentre elas as estátuas osirianas de
Hatshepsut, que fazem parte do corpus por nós selecionado. Esses artefatos foram
sistematicamente descartados ainda na Antiguidade, provavelmente no final do reinado de
Thutmés III. O trabalho de reconstrução das estátuas, em muitos casos incompleto, deu
origem a um grupo significativo de peças que hoje fazem parte do acervo do Metropolitan
Museum of Art, instituição financiadora dessas escavações, e de outros museus espalhados
75
pelo mundo.
162
A Capela Vermelha, que recebeu esse nome devido à cor do quartzito, material usado
na sua construção, fazia parte do complexo templário de Amon e foi construída para abrigar a
barca desse deus, que aparece em inúmeras representações. Foi redescoberta em 1950, sendo
hoje apreciada, após sua reconstrução no Museu a céu aberto de Karnak, como parte
individual da grande estrutura original. Os blocos que formam a capela
163
tiveram um número
significativo de seus relevos apagados no reinado de Thutmés III, após o desmantelamento da
estrutura.
Observamos que os ataques à imagem de Hatshepsut acabaram por acrescentar um
problema àqueles inerentes ao estudo de fontes antigas, como a ação do tempo e o roubo de
artefatos. É evidente que, mesmo se intentássemos nos restringir ao templo de Deir el-Bahri
que possui abundante material, muito do que foi produzido no período acabou perdido.
Assim, a análise muitas vezes aparece limitada por lacunas, que dificultam a pesquisa.
Outro ponto a ser destacado é que, embora as representações que servem de fontes
para esta pesquisa tenham sido produzidas pelo poder central e sejam fruto da arte canônica
egípcia, sabemos que, como observado no capítulo 1, havia uma arte popular que não estava
encarcerada nas regras estabelecidas pelas produções oficiais. Um exemplo dessa modalidade
que chegou aos dias atuais foi o mencionado grafito em que Hatshepsut aparece em coito
anal com o que parece ser seu favorito na corte, Senenmut (figura 15). Não qualquer
inscrição que identifique a imagem à mulher-faraó. Porém, a representação de uma mulher
com o toucado real nemes e a proximidade da gruta em que tal imagem foi encontrada com o
templo mortuário de Deir el-Bahri sugerem que a mulher era Hatshepsut. Essa representação,
apesar de não inserida no corpus, visto que o ponto central do estudo encontra-se no uso das
imagens faraônicas como instrumento de legitimidade, é de grande importância para
pensarmos até que ponto o discurso legitimador encontrava ou não eco fora do poder
centralizado pelo soberano e a elite.
Tendo em mente os limites dos materiais que chegaram a atualidade e as opções
efetuadas, o corpus da presente pesquisa foi formado a partir da disponibilidade e da
significação das imagens para o tema escolhido - representações da rainha Hatshepsut como
162
ROEHRIG, Catherine. Hatshepsut and the Metropolitan Museum of Art. Separata de: KMT A Modern
Journal of Ancient Egypt. San Francisco, KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 28-33, Spring 1990.
163
Cerca de 300 blocos foram total ou parcialmente preservados e hoje encontram-se no museu
de Karnak.
76
instrumento de legitimação - , ou seja, a partir de sua especificidade diante daquilo que foi
produzido no período e que chegou aos dias de hoje.
FIGURA 15
Grafito representando o ato sexual de Hatshepsut e Senenmut
À
Direita: detalhe do desenho encontrado em uma construção inacabada nas imediações do Templo
de Hatshepsut
Referência:
http://www.maat-ka-ra.de/english/personen/senenmut/senenmut_hatschepsut.htm
(Acesso
em 13 de janeiro de 2010)
2. A DISPOSIÇÃO DAS FONTES ANALISADAS
Com o intuito de facilitar a consulta, as fontes foram organizadas e numeradas a partir
de dois grandes grupos: relevos e estátuas. Essa divisão teve como intuito proporcionar
coerência a um corpus em que, muitas vezes, torna-se impossível datar com precisão as
imagens, chegando-se apenas a definir o período aproximado de sua confecção.
Dentro desses grupos as imagens foram organizadas a partir da idéia, apresentada nos
capítulos anteriores, de que, no processo de ascensão de Hatshepsut de rainha regente a faraó,
as representações da mesma foram enfatizando os aspectos masculinos inerentes à sua posição
de soberano do Trono das Duas Terras. Apesar da dificuldade mencionada de se classificar
por data as representações analisadas, houve uma tentativa de dar uma ordem temática e
cronológica às imagens, baseada na presença de aspectos femininos, fortemente presentes no
77
período regencial, mas ocultadas ou reduzidas a partir da auto-proclamação de Hatshepsut
como faraó.
No primeiro grupo foram dispostos vinte e quatro relevos, na seguinte ordem: 1-
aqueles produzidos no período em que Hatshepsut aparece como rainha, 2- na fase em que foi
regente durante a menoridade de Thutmés III e 3- durante seu reinado como faraó. O último
momento mencionado é o que conta com o maior número de fontes. As imagens foram
dispostas em temas como “coroação” e “culto aos deuses” (oferendas e rituais), ficando por
último a imagem que mostra Thutmés III adorando Hatshepsut e representações apagadas ou
substituídas durante o reinado do sucessor da mulher-faraó. Para o grupo dos relevos foi
desenvolvida uma numeração própria, que vai de 1 a 24.
No que concerne às estátuas, foram organizadas seguindo lógica semelhante àquela
empregada para os relevos. As imagens de Hatshepsut foram distribuídas a partir dos temas
“representações entronizadas”, “representações como esfinge”, “representações de culto aos
deuses” (oferendas, por exemplo) e, por fim, “representações osirianas”. As esculturas
também receberam uma numeração, de 1 a 15.
Para cada imagem foi feito um quadro em que são separados, tendo em vista a
proposta metodológica, os aspectos femininos e masculinos presentes nas representações (ver
anexo 1). É importante salientar que a citação de terminações de palavras e nomenclaturas no
quadro ocorreu somente nos casos em que inscrição e em que a mesma foi traduzida. A
ausência de textos ou de sua tradução em algumas imagens não causou grande prejuízo que
o foco da pesquisa está nas representações iconográficas de Hatshepsut. A presença desses
textos atua no estudo como um reforço às conclusões obtidas com a aplicação da metodologia
escolhida às figuras.
Ao longo da pesquisa foram priorizados aspectos significativos para o tema escolhido.
Portanto, nem todos os detalhes presentes nas composições foram considerados e analisados,
como, por exemplo, a variação de coroas e paramentos nas representações. Tendo sido feitas
as devidas observações, segue-se a apresentação das fontes.
78
Relevo 1: A rainha Hatshepsut realizando oferenda junto com sua filha Neferura.
Figura:
Material
-
Dimensões
-
Local
Karnak
Data
Reinado do faraó Thutmés II (1492-1479 a.C.)
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROBINS, G. Las Mujeres en el Antiguo Egipto. Madrid: Akal, 1996, 236 p. p. 26
Descrição e
comentários
A imagem mostra Hatshepsut fazendo oferenda a uma divindade que não pode ser
identificada. Ela utiliza uma longa túnica e usa uma coroa típica de rainha, em forma de asas
de abutre que são posicionadas ao lado da cabeça, juntamente com a cobra real (uraeus) que
é colocada sobre a parte frontal da cabeça. Acima, a dupla pena de falcão descansa sobre a
cabeça da rainha (insígnia usada pelas esposas principais do faraó desde a XIII dinastia).
Hatshepsut carrega dois vasos nw, em mais um exemplo em que a rainha aparece realizando
oferenda. Ela é precedida por outra representação feminina que, ao que tudo indica, trata-se
de sua filha Neferura. Ela é representada no mesmo tamanho que a rainha e segura um cetro,
tendo à cabeça uma base circular com o uraeus em sua fronte.
Esta é uma das poucas representações do período em que Hatshepsut aparece nas
imagens como esposa principal de Thutmés II. Nela vemos a ausência de qualquer atributo
faraônico ou de qualquer alusão a uma suposta escolha de Hatshesput para ser governante
do Egito, diferentemente do que ocorrerá em representações tardias.
Inscrição
Não traduzida.
79
Relevo 2: Hatshepsut em inscrição comemorativa
Figura:
Material
-
Dimensões
-
Local
Assuã
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 87.
Descrição e
comentários
Este é o grafito de uma inscrição feita por Senenmut na região da primeira catarata do
Nilo (atual Assuã), comemorando a transferência de dois obeliscos para Karnak, por ordem
da rainha Hatshepsut. A inscrição é oriunda dos primeiros anos de sua regência.
A rainha é representada de frente para Senenmut, trajando uma longa túnica e portando
uma coroa com dupla pluma. Para Robins, a origem desta coroa de rainha é controversa
que a dupla pluma era atribuída aos deuses falcões masculinos
164
. Entretanto, a
pesquisadora acredita que essa insígnia (utilizada pelas rainhas a partir da XIII dinastia)
estaria ligada a deusa Háthor, que em suas representações portava um par de plumas de
avestruz curvadas.
Hatshepsut segura o cetro hedsh e o símbolo da vida (ankh). O ankh não constitui um
símbolo especial da rainha (era mais comum em representações do faraó e de divindades), já
que esta aparece portando-o em situações em que a identificavam com uma deusa ou em
cenas em que ela é retratada juntamente com particulares/pessoas comuns, como no caso
desta representação, onde Hatshepsut é retratada com Senenmut. Este símbolo coloca seu
portador em uma posição superior a outras pessoas presentes na imagem, por dar a ela um
caráter que extrapola o âmbito humano.
Senenmut é representado de frente para a rainha, usando um saiote simples de ponta
triangular. Portanto, nesta representação, Hatshepsut é retratada com as insígnias
tradicionais de uma rainha, mostrando ser esta peça do início do seu período como rainha-
regente.
Inscrição
Na inscrição Hatshepsut é designada como “Esposa do deus Amon, título de muitas
rainhas da XVIII dinastia.
164
ROBINS, G. Las Mujeres en el Antiguo Egipto. Madrid: Akal, 1993, 236 p. p. 27
80
Relevo 3: Hatshepsut fazendo oferenda ao deus Amon
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha, Karnak
Data
Período de regência da rainha Hatshepsut (1479-1473 a.C.)
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C.(ed). Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 88.
Descrição e
comentários
Esta imagem é oriunda de um dos blocos que compunham a Capela Vermelha do templo
de Amon em Karnak. Mesmo danificado, percebemos que Hatshepsut realiza uma oferenda
ao deus Amon. Ela é representada em trajes femininos, vestindo uma longa túnica. A rainha
usa também a coroa real khnum (emplumada dupla com chifres de carneiro e o disco solar)
com uraeus (a cobra real), insígnias faraônicas. Hatshepsut segura dois vasos nw e suas mãos
estão na posição que indica o ato de ofertar. o deus, cuja representação é pouco visível
devido ao estado da peça, segura o cetro de poder was, que significa domínio.
Esta peça data possivelmente dos últimos anos de regência de Hatshepsut, sendo assim
uma obra de transição, pois marca sua mudança de rainha regente para faraó do Egito.
Inscrição
O cartucho é precedido pela inscrição dos títulos de “Rei do Alto e Baixo Egito (título
masculino dado aos faraós) e “Senhora do Ritual” (título feminino). Assim, a imagem e o
texto contidos no bloco mostram que o amálgama entre os atributos femininos e faraônicos
(caracteristicamente masculinos) estão presentes neste relevo.
81
Relevo 4: Hatshepsut sendo coroada por Amon-Ra
Figura:
Material
Granito Vermelho
Dimensões
Largura: 30 cm
Local
Templo de Amon em Karnak
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
MALEK, J. Egypt. New York: Phaidon Press, 2003, 376 p. p. 128.
Descrição e
comentários
Na cena, Hatshepsut encontra-se ajoelhada, usando o saiote shendyt. o deus Amon-
Ra está em seu trono colocando delicadamente a coroa azul (khepresh) na cabeça da
mulher-faraó (representada totalmente masculinizada). Com esta representação o deus
dinástico/primordial legitima seu governo e reforça a autoridade do faraó Hatshepsut. Outro
aspecto interessante é que os braços do deus formam o signo do ka, sustento de vida. Assim,
além de investir o rei com a coroa, Amon dá simbolicamente “poder-vida” ao faraó.
Um aspecto importante nas representações de Hatshepsut é a associação de sua imagem
com o divino, com o intuito de justificar e fortalecer seu poder, sua posição como faraó.
Esta imagem é muito significativa e faz parte de um conjunto de relevos presente em um
dos obeliscos transportados para Karnak por ordem da rainha.
Inscrição
Na inscrição presente no obelisco já observamos a adoção do nome de trono Maatkare.
82
Relevo 5 - Hatshepsut sendo coroada por Amon e uma deusa
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Modern Journal of Ancient Egypt. U.S.A.: KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 2-63,
Spring 1990. p. 23
Localização
atual
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Descrição e
comentários
Cena idêntica à anterior, com a diferença de que a deusa Háthor foi substituída pela deusa
Neit que, no mundo subterrâneo, protege os vasos canópicos do defunto juntamente com as
deusas Ísis e Néftis. Neste caso, Hatshepsut usa a coroa azul, sendo coroada por seu pai
Amon-Ra.
Inscrição
Não traduzida.
83
Relevo 6: Hatshepsut sendo coroada por Amon e deusa Hathor
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Modern Journal of Ancient Egypt. San Francisco.: KMT Communications, v. 1, n. 1, p.
2-63, Spring 1990. p. 23.
Localização
atual
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Descrição e
comentários
Mais uma cena em que Hatshepsut aparece sendo coroada por divindades. Nessa, a
soberana é representada com a coroa atef e saiote. À sua frente encontra-se a deusa Hathor
que com a mão esquerda oferece o símbolo da vida (ankh) às narinas do rei. Atrás de
Hatshepsut, Amon aparece entronizado, abençoando e coroando Hatshepsut.
Inscrição
Não traduzida.
84
Relevo 7: Hatshepsut abraçando o deus Amon-Min
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Morden Journal of Ancient Egypt. San Francisco.: KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 2-
63, Spring 1990. p. 21
Localização
atual
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Descrição e
comentários
Hatshepsut aparece nesta cena usando um toucado com uraeus, amplo colar e saiote
triangular. O faraó está abraçando o deus Amon em sua forma fálica (Amon-Min) que o liga
a idéia de fertilidade, aludindo a ideia do deus criador que gerou a si mesmo.
O deus encontra-se numa base (indicando tratar-se de uma estátua) e a ação real de
abraçá-lo remete ao momento do ritual diário em que o sacerdote abraça a estátua do deus
passando-lhe um pouco de sua vitalidade para que parte da personalidade divina possa
entrar na imagem e receber as oferendas. A representação do faraó abraçando o deus
também demonstra um relacionamento especial do soberano com a divindade.
Inscrição
Não traduzida.
85
Relevo 8: A mulher-faraó Hatshepsut fazendo oferenda ao deus Amon-Min
Figura:
Material
Pedra Calcária
Dimensões
-
Local
Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Baixo-relevo
Referência
Bibliográfica
HAGEN, Rainer. Egipto: pessoas, deuses e faraós. Taschen, 2005, 240p. p. 200.
Descrições e
comentários
Hatshepsut, em mais uma cena ritual, é representada fazendo oferenda ao deus Min,
divindade ligada à fertilidade associado nesta função ao deus Amon-Ra. Os braços da
governante encontram-se na posição que significa ofertar e ela usa um saiote curto de
ponta triangular, juntamente com a coroa nemes com uraeus e barba real. O deus porta a
alta coroa emplumada, segurando o flagelo, insígnia que significa “dignidade real”
(nekhakha). Nesta cena Hathsepust aparece com características exclusivamente faraônicas,
ou seja, de forma masculina.
Inscrição
Não traduzida.
86
Relevo 9: A mulher-faraó fazendo oferenda ao deus Hórus
Figura:
Material
Pedra Calcária
Dimensões
-
Local
-
Data
1473 – 1458 a.C.
Técnica
Baixo-relevo
Referência
Bibliográfica
HAGEN, Rainer. Egipto: pessoas, deuses e faraós. Taschen, 2005, 240 p. p. 200.
Descrições e
comentários
Nesta cena, Hatshepsut é mais uma vez representada totalmente masculinizada,
trajando um saiote curto de ponta triangular e portando a coroa nemes com uraeus,
juntamente com a barba real. O faraó, com as mãos posicionadas indicando o ato de
oferecer, aparece fazendo oferenda de ungüentos ao deus Hórus (representado com cabeça
de falcão) que porta o cetro de poder was e segura o ankh, símbolo da vida.
Inscrição
Não traduzida.
87
Relevo 10: Hatshesut fazendo oferenda ao deus Amon
Figura:
Material
-
Dimensões
-
Local
Parede da câmara sul - terraço superior do templo de Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p.p. 278
Descrição e
comentários
Esta imagem é peculiar, pois serve de fonte para a pesquisa de dois reinados
marcantes: o de Hatshepsut e o de Akhenaton (1352-1336 a.C.). Hatshepsut é representada
à esquerda da cena, com o saiote curto de ponta triangular, usando um largo colar e
braceletes, juntamente com a coroa branca do Alto Egito com uareus e barba real. Ela faz
oferenda de linho a uma figura à direita, cujo relevo encontra-se extremamente danificado.
Trata-se de Amon-Ra, que teve sua imagem restaurada após sua destruição no período
amarniano, momento em que o faraó Akhenaton estabelece Aton como deus supremo e
ordena a supressão das imagens de outros deuses.
Inscrição
A representação de Hatshepsut não ficou de todo ilesa já que a maioria das terminações
e pronomes femininos foi atacada. O cartucho que continha seu nome de trono foi apagado
incompletamente e o nome de Thutmés III foi entalhado por cima dele.
88
Relevo 11: Desenho da inscrição de Hatshepsut e Thutmés III
Figura:
Material
Arenito (original)
Dimensões
Altura 87 cm/ largura: 75 cm (área com inscrição)
Local
Sinai
Data
1453 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 99
Localização atual
Museu do Cairo
JE45493 (fora de exibição)
Descrição e
comentários
Desenho de uma inscrição em estela localizada próxima a uma mina de turquesa no
Sinai. Ela data do décimo sexto ano de reinado de Hatshepsut e Thutmés III (monarquia
dual). No início do reinado foram reiniciadas as expedições de mineração nessa região, que
foram interrompidas durante o Segundo Período Intermediário.
Na imagem vemos o signo que representa o céu formando o topo de uma cena
simétrica de oferenda, mostrando tratar-se de dois governantes. À direita temos
representada Hatshesput usando um saiote curto com ponta triangular e um amplo colar,
assim como a coroa azul. Na cena, Hatshepsut aparece oferecendo dois vasos nw (como
indica a posição de suas mãos) a uma divindade identificada como “Sopedu, Senhor do
Oriente” que usa em sua cabeça uma dupla pluma e segura o cetro de poder was (aplicável
a qualquer divindade). Este deus originalmente era associado a um deus falcão e era
venerado especialmente a leste do Delta. Na crença, protegia as fronteiras orientais do
Egito e as rotas que conduziam ao Sinai.
Thutmés III é representado no lado esquerdo da cena com saiote shendyt e utiliza a
coroa vermelha do Baixo Egito. Sua mão esquerda aparece estendida segurando o mbolo
da vida (ankh), enquanto a direita está em uma posição que significa oferecer, no caso, um
pão para a deusa Hathor, que também segura o ankh e porta o cetro de poder was.
Inscrição
A inscrição da direita identifica Hatshepsut como “Rei do Alto e Baixo Egito,
Maatkare”. A inscrição da esquerda identifica Thutmés III como “Deus bom, Senhor das
Duas Terras, Menkheperkare”.
89
Relevo 12: Hatshepsut em cerimônia ritual com a deusa Seshat
Figura:
Material
Pedra Calcária
Dimensões
-
Local
Deir el-Bahri
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Baixo-Relevo
Referência
Bibliográfica
HAGEN, Rainer. Egipto: pessoas, deuses e faraós. Taschen, 2005, 240 p. p. 192.
Descrições e
comentários
Esta imagem, proveniente do templo de Deir el-Bahri, mostra uma cena ritualística
onde o faraó Hatshepsut, juntamente com a deusa do cálculo e responsável pelos “arquivo
dos rolos divinos” – Seshat – delimita o terreno em que será erguido o templo. Esta
cerimônia simbólica é designada como “estender a corda”.
Hatshepsut é representada em trajes masculinos, vestindo um saiote curto e usando a
coroa com plumas de avestruz e chifres de carneiro (atef) juntamente com a barba real. Ela
segura, assim como a deusa Seshat, um bastão utilizado para a delimitação ritualística do
terreno. Não vemos nesta representação quaisquer atributos femininos, diferentemente da
deusa retratada com uma longa cabeleira feminina.
Na representação em questão, observamos um claro contraste entre a deusa – aspecto
feminino e o faraó Hatshepsut aspecto masculino. Tendo em vista que este ritual tem
como intuito a demarcação de um espaço sagrado para a construção de um templo (ou seja,
processo em que se a criação), o feminino e o masculino, complementares no
pensamento egípcio, atuam como forças criadoras, dinâmicas. Assim, além da necessidade
de reforçar os atributos masculinos provenientes de sua posição como faraó, a ênfase neste
âmbito torna-se ponto importante para o ritual.
Inscrição
Não traduzida.
90
Relevo 13: Hatshepsut com coroa Atef, ajoelhada
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Morden Journal of Ancient Egypt. San Francisco.: KMT Communications, v. 1, n. 1, p.
2-63, Spring 1990. p. 26
Descrição e
comentários
Neste relevo Hatshepsut aparece ajoelhada usando a coroa atef, barba real e saiote
shendyt. A cena faz parte do ritual executado para uma divindade, no caso, Amon-Ra.
Inscrição
Não traduzida.
91
Relevo 14: Hatshepsut sendo alimentada pela deusa Háthor, em forma de vaca
Figura:
Material
-
Dimensões
-
Local
Capela de Hathor em Deir el-Bahri (parede sul do santuário)
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p.280
Descrição e
comentários
Esta representação mostra Hatshepsut de joelhos, sendo amamentada pela deusa Hathor,
que aparece transfigurada em forma de vaca. De acordo com os arqueólogos que analisaram
a peça, Hatshepsut foi representada com seios, apesar de seu corpo masculino. Os danos
presentes na cena parecem ter sido acidentais e o cartucho contendo o nome de trono da
mulher-faraó está intacto. Hatshepsut aparece usando um saiote curto e um toucado com
uraeus. Esta peça representa uma exceção se comparada às demais, pois em nenhuma delas
vemos a presença de seios em representações do faraó Hatshepsut em relevo.
Inscrição
-
92
Relevo 15: Hatshepsut e Thutmés III adorando a barca de Amon
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Morden Journal of Ancient Egypt. San Francisco.: KMT Communications, v. 1, n. 1, p.
2-63, Spring 1990. p. 22
Descrição e
comentários
Mais um exemplo em que Hatshepsut é representada com Thutmés III em frente a
barca de Amon. A mulher-faraó aparece com saiote triangular, amplo colar e coroa atef. Os
braços elevados da soberana indicam alegria e remetem ao signo “adorar”. Em uma das
mãos ela porta o cetro sekhem, símbolo de poder e comando.
Hatshepsut é seguida por Thutmés III que, vestido com o mesmo aparato, aparece com
os braços estendidos ao longo do corpo.
Inscrição
Não traduzida.
93
Relevo 16: Hatshepsut e Thutmés III adorando a barca de Amon
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Thutmose_III_and_Hatshepsut.jpg
Acesso em 13 de abril de 2007.
Descrições e
comentários
Hatshepsut é representada com saiote de ponta triangular e com a coroa atef. Ela segura
um cetro e tem as mãos levantadas em sinal de alegria ao adorar a barca de Amon à sua
frente, que não aparece na foto. Thutmés III é retratado logo depois usando o mesmo saiote
e a coroa azul khepresh. Na cena, Thutmés aparece oferecendo um incenso com defumador
à barca de Amon. Esta ação tem dois significados: em primeiro lugar reforça o papel de
Hatshepsut como deus vivo, descendente de Amon, que deve ser adorada; e em segundo
lugar a coloca como figura dominante na cena em relação à Thutmés III, que aparece de
forma secundária. Outras imagens também reiteram esse significado. Como exemplo,
podemos citar relevos da mesma capela em que Thutmés adora Hatshepsut, estando ela sob
a forma de Osíris (mais uma vez consolidando sua imagem como deus vivo, filha do
demiurgo criador).
Esta cena é muito interessante e serve como exemplo pontual para a corrente que
entende o período como composto por uma monarquia dual, tendo o faraó Hatshepsut à
frente do governo.
Inscrição
Não traduzida.
94
Relevo 17: Detalhe do relevo mostrando Hatshepsut e Thutmés III
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Bloco da capela vermelha de Karnak, Tebas
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 96.
Descrição e
comentários
Neste relevo vemos Hatshepsut e Thutmés III sendo representados de forma idêntica,
com trajes típicos de um faraó. Ambos vestem um saiote com ponta triangular e portam a
coroa azul (khepresh) com uraeus. Eles seguram o bastão e o símbolo da vida (ankh). Este
símbolo, além de seu significado específico, colocava seu portador em uma esfera sobre-
humana, servindo para reforçar a diferença entre os faraós e os sacerdotes que realizam o
transporte da barca sagrada que conduz o deus Amon. Mesmo aparecendo de forma
idêntica é interessante observar uma distinção com relação ao posicionamento, em que
Hatshepsut aparece na frente oficiando o culto a Amon. Esta precedência também pode ser
observada em outras representações.
Inscrição
Especificamente nessa imagem, outro aspecto interessante é que a inscrição designa
Hatshepsut como “Deus bom” eSenhor das Duas terras”, enquanto Thutmés III é
chamado por seu nome de coroação e por “Deus bom”. Vemos então que a ele consta a
atribuição de Governante da Cidade de Tebas” e não “Senhor das Duas Terras” como
Hatshepsut, o que indica que apesar de existirem dois faraós, ela estava à frente do
governo.
95
Relevo 18: Hatshepsut como esfinge
Figura:
Material
Pedra calcária pintada
Dimensões
Altura: 21,6cm/ largura: 37,5 cm/ diâmetro 7,5 cm
Local
Templo de Hatshepsut em Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 167
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1923, 23.3.172
Descrição e
comentários
Esse fragmento originalmente fazia parte da base de uma estátua. As dimensões do
mesmo indicam que a estátua, não encontrada, representava o rei de pé.
Hatshepsut é representada como esfinge e tem como intuito proteger o cartucho com o
nome de trono do rei.
Inscrição
Aparece apenas o cartucho com o nome de trono de Hatshepsut, maatkare.
96
Relevo 19: Thutmés III oferecendo incenso a Hatshepsut
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Modern Journal of Ancient Egypt. San Francisco, KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 2-
63, Spring 1990. p. 22
Localização
atual
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Descrição e
comentários
Nesse relevo Thutmés aparece com a coroa Khepresh (azul) com uraeus de frente para
uma imagem de Hatshepsut como Osíris. Enquanto com a mão esquerda, Thutmés oferece
incenso aceso a Hatshepsut com um instrumento (ato de purificar), com a direita as mãos
indicam o ato de adorar.
Essa imagem demonstra que Hatshepsut era o governante que tinha a primazia, que
não são encontradas cenas de Hatshepsut adorando Thutmés III.
Inscrição
Não traduzida.
97
Relevo 20: Hatshepsut cultuando sua imagem na forma de Osíris
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
http://www.absoluteastronomy.com/topics/Hatshepsut
Acesso em 15 de janeiro de 2010
Descrição e
comentários
Essa cena representa a expressão máxima da imagem de Hatshepsut como deus vivo.
No canto esquerdo uma representação de Hatshepsut oferecendo incenso à sua imagem
na forma de Osíris. O rei Hatshepsut usa saiote triangular e coroa azul. Já o deus Hatshepsut
é representado com a dupla coroa.
Inscrição
Na inscrição observa-se em cima da imagem osiriana de Hatshepsut seu nome de trono,
já na sua imagem como oficiante do culto temos a presença de seu nome de nascimento.
98
Relevo 21: Duas cenas idênticas mostrando Hatshepsut aspergindo água e fazendo oferenda
ao deus Amon-Min – uma apagada e outra não.
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha do templo de Amon em Karnak
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
KMT A Modern Journal of Ancient Egypt. San Francisco, KMT Communications, v. 1, n. 1, p. 2-
63, Spring 1990. p. 27
Descrição e
comentários
Nestas cenas idênticas, uma delas apagada, Hatshepsut aparece em dois momentos do
culto a Amon-Min, ligado a fertilidade. No primeiro momento, com um toucado nemes e
saiote triangular, o faraó aparece aspergindo água na purificação da divindade. Na cena
seguinte o faraó surge adorando o deus com a mão direita enquanto com a esquerda faz
oferenda de incenso aceso, o que remete ao ato de purificar.
O primeiro exemplo mostra o ataque à imagem de Hatshepsut, o mesmo ocorrendo com
o cartucho da governante. A imagem do deus foi mantida intacta.
Inscrição
Não traduzida.
99
Relevo 22: Figura de Hatshepsut apagada
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Templo de Amon em Karnak
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 268
Descrição e
comentários
A imagem apresentada foi encontrada numa seção atrás da parede nova construída por
Thutmés III, entalhada com seus Anais. Originalmente a cena mostrava Hatshepsut envolta
por símbolos da vida, ankh, aspergidos pelos deuses Hórus e Toth.
Inscrição
Não traduzida.
100
Relevo 23: Figura de Hatshepsut apagada seguida da de Thutmes III fazendo oferenda em
frente a barca de Amon.
Figura:
Material
Quartzito
Dimensões
-
Local
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 268
Localização
atual
Capela Vermelha de Amon em Karnak
Descrição e
comentários
Neste relevo, a imagem de Hatshepsut em frente à barca de Amon, bem como seu
cartucho, foram apagados. Atrás dela Thutmés III aparece usando a coroa azul com o braço
esquerdo estendido ao longo do corpo, carregando o símbolo da vida ankh. Com a mão
direita ele oferece incenso aceso num incensário (turíbulo), indicando o ato de purificar.
Inscrição
Não traduzida.
101
Relevo 24: Fragmento de relevo mostrando imagem original de Hatshepsut, mas que foi
novamente entalhada como Thutmés II.
Figura:
Material
Pedra Calcária
Dimensões
Altura: 44cm/ largura: 33 cm
Local
-
Data
1479-1458 a.C.
Técnica
Relevo
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 155
Localização
atual
Musées Royaux d’Art et d’Histoire, Bruxelas, E3044
Descrição e
comentários
Nesta representação o faraó utiliza a coroa atef (coroa branca com penas de avestruz,
chifres de carneiro e disco solar), juntamente com a barba real e um largo colar. Estudos na
peça mostram que o perfil da imagem foi alterado durante o reinado de Thutmés III. Em
mais uma representação vemos que Hatshepsut reforçou sua imagem como faraó e,
consequentemente, sua posição como soberana fazendo-se representar como homem.
Inscrição
O pequeno texto preservado mostra que ele foi entalhado novamente na Antiguidade
com o nome de trono de Thutmés II, mas os hieróglifos à direita do cartucho, que possui o
símbolo da vida ankh seguido da terminação feminina t, indica que o rei originalmente
entalhado foi Hatshepsut.
102
Estátua 1: Hatshepsut como faraó feminino
Figura:
Material
Granito
Dimensões
Al. 167 cm
Local
Deir el-Bahri, Tebas Ocidental
Data
1473–1458 a.C. – XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 171
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1929, 29.3.3
Descrição e
Comentários
Nesta estátua, Hatshepsut é representada usando vestido longo, amplo colar, braceletes
e tornozeleiras. Esta seria uma representação mais ou menos padrão de uma mulher da
realeza, exceto pelo fato da mesma estar entronizada e usar o toucado real nemes com
uraeus, símbolo do poder faraônico. É importante destacar que, nesse exemplo, a
governante não usa a barba real, talvez por não estar de acordo com os fortes traços
femininos presentes na representação.
O corpo da estátua parece ter sido feito sem grandes detalhes, com exceção dos
pequenos seios, desviando o olhar do observador para o rosto, formado por olhos
expressivos, sobrancelhas arcadas, nariz fino e lábios delicados formando um leve sorriso.
Para Catherine Keller, os traços da estátua demonstram que esta não foi uma representação
idealizada, mas uma imagem individualizada da governante.
Outra estátua, também encontrada em Deir El-Bahri, tem a mesma temática. Segundo
especialistas, como a citada Catherine Keller, a pose da estátua sugere que a mesma era
foco de culto e de oferendas.
um precedente da combinação corpo feminino e coroa masculina: um torso de
quartzito da mulher-faraó Sebekneferu, XII dinastia.
Na parte posterior do trono está preservada uma cena não usual. Temos uma
representação da deusa Taueret, uma divindade protetora, representada como um
hipopótamo com pernas felinas. Esta deusa era protetora de mulheres grávidas e crianças,
sendo, portanto, associada às rainhas. Há grande possibilidade de essa estátua ter sido
esculpida para a capela de Hathor no templo de Deir el-Bahri. (ver detalhe ficha 1a)
Inscrições
Na inscrição contida no trono e no pilar posicionado na parte posterior, vemos a
utilização de prenomes e terminações femininas para se referirem à Hatshepsut. No texto
escrito ao lado de suas pernas na parte frontal a governante já adota o nome de trono
Maatkare.
A mistura de atributos pertencentes a reis e rainhas sugere que esta estátua é do período
em que Hatshepsut fazia a transição de rainha regente para co-regente juntamente com
Thutmés III.
103
1a - Detalhe da imagem da escultura – Fragmento de imagem da deusa Taueret, localizada na
parte de trás do trono.
Figura:
Descrição e
Comentários
Neste detalhe vemos o fragmento da imagem da deusa Taueret, associada à proteção da
mulher no parto e de crianças. Era representada como um hipopótamo de pernas felinas.
104
Estátua 2: Hatshepsut entronizada em trajes feminino
Material
Diorito
Dimensões
Sem dimensões (tamanho natural)
Local
Deir El-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p 159.
Localização
atual
The Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1930, 30.3.3
Descrição e
comentários
Nessa representação, parcialmente destruída, Hatshepsut aparece entronizada, usando
um longo vestido, toucado khat e jóias. O corpo, com seios bem marcados e formas
arredondadas, não deixa dúvidas de que a figura representada trata-se de uma mulher.
Inscrição
Inscrições da estátua descrevem Hatshepsut com títulos reais e terminações femininas.
105
Estátua 3: Escultura do faraó Hatshepsut
Figura:
Material
Pedra calcária pintada
Dimensões
Altura: 194,9 cm/ largura. 49 cm/diâmetro: 114 cm
Local
Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
http://www.metmuseum.org/
Acesso em dezembro de 2006
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York,
Rogers Fund, 1929, 29.3.2
Descrições e
comentários
Esta estátua foi representada praticamente na mesma pose que a estátua em que
Hatshepsut aparece trajando uma longa túnica feminina. Porém, na imagem agora
analisada, o faraó é representado usando o saiote shendyt e corpo e os membros são esguios
e alongados. Soma-se a isso a presença de seios discretos que parecem querer transparecer
o gênero feminino do faraó. O rosto tem um formato que os especialistas chamam de
“formato de coração”, com a testa mais ampla terminando em um queixo bem estreito. A
boca é pequena e o fragmento do nariz indica que ele era proeminente. O faraó usa um
amplo colar, braceletes e o toucado nemes é usado como emanação da pessoa do faraó,
juntamente com o uraeus que serve como proteção. Não consenso quanto a localização
real da estátua.
Inscrição
A inscrição contida na parte da frente do trono possui exclusivamente formas
femininas de títulos reais e epítetos. Hatshepsut é descrita como “Deusa perfeita, Senhora
das Duas Terras, Maatkare, amada de Amon-Ra, Senhor do Trono das Duas Terras, que
ela viva eternamente!”. Esta inscrição é muito interessante, pois mostra a junção de três
aspectos importantes e constantemente presentes nas representações de Hatshepsut. Em
primeiro lugar está sua divinização e ligação com o deus Amon, seu pai, ao ser chamada de
“Deusa Perfeita” e “amada de Amon”. o título de “Senhora das Duas Terras” é dado às
rainhas o que marca seu gênero feminino. Por fim, a presença do nome de trono Maatkare
(Maat é o Ka de Ra) evidencia seu papel como faraó, governante máximo do Egito. Outra
inscrição também está contida ao lado da perna direita da estátua que diz “A filha física de
Ra, Khenemet-Amun-Hatshepsut, amada por Amon-Ra, rei dos deuses, que ela viva
eternamente!
106
Estátua 4: Hatshepsut entronizada como rei
Figura:
Material
Diorito
Dimensões
Não indicada (em tamanho natural)
Local
Deir El-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 161
Localização
atual
The Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1931, 31.3.168
Descrição e
comentários
Essa estátua mal preservada mostra o faraó entronizado, usando um saiote shendyt e
corpo de formas masculinas, o que indica que sua confecção foi realizada no final do
reinado.
Inscrição
Na estátua faltam textos que confirmem ser de Hatshepsut a representação. Contudo, a
destruição proposital do cartucho presente no cinto indica se tratar da imagem da soberana.
107
Estátua 5: Esfinge de Hatshepsut
Figura:
Material
Granito pintado
Dimensões
Altura: 131 cm./ Diâmetro: 287 cm;
Local
Templo de Deir El-Bahri
Data
1473–1458 a.C. – XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 165
Localização
atual
Ägyptiches Museum and Papyrussammlung
Staatliche Museen zu Berlin 2299
Descrição e
comentários
Temática antiga na arte egípcia, a esfinge, no Reino Antigo (2686-2160 a.C.),
funcionava como protetora de complexos funerários. Das representações de Hatshepsut
como esfinge, seis de tamanho colossal sobreviveram no templo de Deir El Bahri e sua
provável localização era o terraço inferior, sendo organizadas em duas filas, sentido leste-
oeste, ladeando a rota sagrada até a rampa que levava ao nível seguinte.
A posição dessas esculturas fazia das mesmas guardiãs do templo e da procissão
religiosa que passava ao longo da rota. Importante destacar que, apesar de formarem um
conjunto, as seis esfinges não eram idênticas.
No exemplo apresentada vemos o rosto da governante adornado pelo toucado real
nemes e pela barba real. O símbolo uraeus não foi preservado. Ainda é possível observar
resquícios dos pigmentos que davam cores a estátua, sendo o amarelo e o azul cores
predominantes.
Inscrições
Presença de inscrição com o prenome do rei, juntamente com o epíteto de Amon
“preeminente em Djeser-djeseru
108
Estátua 6: Esfinge da rainha Hatshepsut
Figura:
Material
Pedra calcária pintada
Dimensões
Altura: 60 cm, / Largura 29 cm/ Comprimento: 110 cm.
Local
Deir el-Bahari
Data
1473–1458 a.C. – XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ALDRED, Cyril. Egyptian art in the days of the pharaohs, 3100 320 BC. London:
Thames and Hudson, 1985, 340 p. p. 154.
Localização atual
The Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1931, 31.3.94
Descrição e
comentários
Estátua de Hatshepsut sob a forma de esfinge. A peça faz parte de um grande
conjunto localizado em Deir el-Bahri. Esta, em especial, foi encontrada fragmentada,
sendo restaurada logo após sua descoberta. Ainda na estátua um pouco do pigmento
original: a barba real e a juba foram pintadas de azul, o corpo tem um tom de
amarelo e os traços aparecem em marrom.
Para Catherine Keller, diferentemente das esfinges de tamanho maior, que
expressavam grande poder, as de dimensão inferior transmitiam uma expectativa
tranqüila. Estudiosos acreditam que esse tipo de esfinge foi colocada nas rampas entre
o terraço inferior e intermediário, logo após as de tamanho colossal.
As esfinges do templo de Hatshepsut foram inspiradas em modelos provenientes
do Reino Médio (2055-1650 a.C.), entretanto, um novo toque foi dado devido às novas
escolas e materiais usados no Reino Novo. A grande peculiaridade dessas esfinges,
clara neste exemplo, é a junção de traços delicados e femininos com o corpo tenso e
grande do leão. Os lábios delicados, o nariz fino e as linhas que formam os olhos
conseguem a difícil proeza de passar feminilidade a uma estátua com corpo de leão!
Estas características fazem das esfinges de Deir el-Bahri únicas na arte egípcia. A
presença de traços femininos sugere que sua confecção foi realizada no início da co-
regência, período mais experimental nas representações da soberana.
Inscrições
Os textos encontrados nas esfinges de Deir el-Bahri são similares: “Maatkare,
amada de Amon, que viva eternamente”. Nesse exemplo também há presença de
pronomes femininos. Interessante notar que uma estátua similar, presente atualmente
no museu do Cairo, possui o mesmo texto, mas com pronomes masculinos.
109
Estátua 7: Hatshepsut em atitude de devoção
Figura:
Material
Granito
Dimensões
Altura (sem a base): 242 cm/ largura 74 cm/ diâmetro: 111 cm.
Local
Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 170
Localização
atual
The Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1928, 28.3.18
Descrição e
comentários
Apenas duas estátuas de Hatshepsut em pé, dando um largo passo, provenientes de Deir
El-Bahri, sobreviveram. Uma encontra-se no Museu do Cairo, enquanto o exemplo
apresentado faz parte do acervo do Metropolitan Museum. Assim como a maioria das
estátuas em que Hatshepsut aparece ajoelhada, esta possui membros volumosos e bastante
simplificados. Nessa imagem, Hatshepsut é apresentada com a coroa nemes com uraeus,
saiote curto e barba real. Os braços, estendidos ao longo do corpo, estão com as palmas das
mãos voltadas para baixo, apoiadas na projeção triangular do saiote. Esta pose representa
devoção para com uma divindade e este tipo de estátua começou a ser confeccionado no
Reino Médio, sendo encontrados exemplos no templo de Montuhotep II, ao sul de Deir El-
Bahri.
A face de Hatshepsut é ampla, terminando em um queixo estreito. A boca esboça um
leve sorriso. As características da estátua fazem com que alguns estudiosos defendam que
sua execução se deu nos últimos anos de reinado de Hatshepsut, que não traços que
indiquem que o faraó era uma mulher.
Inscrição
Continha originalmente três inscrições no pilar, no cinto e na base da estátua que faziam
referência a Hatshepsut, usando formas masculinas e femininas.
110
Estátua 8: Estátua de Hatshepsut ajoelhada
Figura:
Material
Granito pintado
Dimensões
Altura: 87 cm/ largura: 32,5 cm/ diâmetro: 51,5 cm
Local
Deir El-Bahri
Data
1473–1458 a.C. – XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 167
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York.
Rogers Fund, 1923, 23.3.I
Descrição e
comentários
Pelo menos uma dúzia de pequenas estátuas ajoelhadas de Hatshepsut como essa e que
adornavam Deir El-Bahri foram encontradas. Para especialistas, como Catherine Keller, o
número de estátuas - 12 - pode estar conectado com os rituais de doze dias e doze noites que
aparecem na decoração do santuário de culto do rei e da corte solar, ambos localizados no
terraço superior do templo.
No exemplo apresentado, Hatshepsut aparece portando um vaso nemset com um pilar
djet (objeto sagrado conectado ao deus Osíris) na frente em alto-relevo. O rei usa o toucado
khat com uraeus, indicando o seu status real. Seu corpo não apresenta a menor indicação de
que o faraó em questão trata-se de uma mulher.
Inscrição
No pilar posterior aparece o nome e o prenome de Hatshepsut.
111
Estátua 9: Estátua do faraó Hatshepsut fazendo oferenda
Figura:
Material
Granito Vermelho
Dimensões
Altura 75cm
Local
Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
HAGEN, Rainer. Egipto: pessoas, deuses e faraós. Taschen, 2005, 240 p. p.122
Localização
atual
Agyptisches Museum, Berlim
Descrição e
comentários
Esta peça faz parte do um conjunto de doze estátuas idênticas, mencionado anteriormente.
Elas estavam ligadas ao culto do rei e da corte solar (corte divina). Nela vemos a rainha de
joelhos em sinal de adoração segurando um grande vaso (nemset), tendo este o pilar Djet em
alto relevo a sua frente. O pilar era um objeto sagrado ligado ao deus Osíris e tinha como
significado a “permanência” e a “estabilidade”, justamente por ser esse deus o primeiro
mumificado, àquele que permaneceu.
Hatshepsut usa saiote real shendyt e cabeleira curta (khat) com uraeus (a cobra real),
indicando seu status como governante. As formas de seu corpo em nada lembram a
graciosidade feminina presente em outras representações da rainha. A cintura e o ombro
largo passam ao observador a idéia de um faraó, um homem, caráter este reforçado pela
utilização da barba real.
Inscrição
Não traduzida.
112
Estátua 10: Hatshepsut oferecendo dois vasos nw para Amon
Figura:
Material
Granito
Dimensões
Altura. 261, 5 cm/ largura 80 cm/ diâmetro 137 cm.
Local
Deir El-Bahri
Data
1473–1458 a.C. – XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p.168
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York.
Rogers Fund, 1929, 29.3.1 (não está em exibição)
Descrição e
comentários
O faraó Hatshepsut aparece ajoelhado, o que enfatiza a ação realizada, usando o toucado
nemes e barba real. O rei oferece dois vasos nw à divindade.
Diferentemente das estátuas entronizadas da mulher-faraó, as de tamanho maior que o
natural eram participantes ativas do ritual no templo. O exemplo dado estava localizado no
terraço central do templo de Deir El-Bahri que era dedicado ao deus Amon, cuja barca
atravessava o rio, saído do templo de Karnak, até o templo durante a anual Bela Festa do
Vale. No festival a imagem atravessava o terraço intermediário passando entre uma série de
estátuas colossais de Hatshepsut.
Para Catherine Keller, o rosto da estátua é menos individualizado, indicando talvez que
a confecção da mesma ocorreu próximo ao final do período de co-regência, fato reforçado
pelos traços masculinos que não fazem qualquer alusão ao sexo, entendido enquanto
categoria biológica, do soberano. Contudo, o emprego de terminações femininas nas
inscrições contidas na estátua demonstra que mesmo após a total transformação da imagem
de Hatshepsut em faraó, masculino por excelência, ainda havia a confluência de gêneros.
Inscrição
Segundo Keller, o texto contido na base declara que o faraó oferece maat ao deus
Amon. Um dos significados de maat era ser o sustento dos deuses, que diziam “viver em
maat”. Assim, através dessa oferenda um reforço do papel do rei como mantenedor da
ordem social e, conseqüentemente, da ordem cósmica. O resultado de tal significado é um
reforço da legitimidade real. Na inscrição, como anteriormente citado, o emprego de
terminações femininas nas inscrições.
113
Estátua 11: Hatshepsut fazendo oferenda usando a coroa branca
Figura:
Material
Granito
Dimensões
Altura 285 cm/ largura: 79 cm/ diâmetro: 142 cm
Local
Deir el-Bahari
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ALDRED, Cyril. Egyptian art in the days of the pharaohs, 3100 – 320 BC. London:
Thames and Hudson, 1985.
Localização
atual
The Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 1930, 30.3.1.
Descrição e
comentários
Esta é a estátua que possui a face mais bem preservada de todas as representações de
Deir el-Bahri que mostram Hatshepsut ajoelhada fazendo oferenda. Nesta, o faraó aparece
usando a coroa branca do Alto Egito (hedjet) e saiote shendyt. A barba real foi destruída,
mas um pedaço ainda se conserva no queixo da soberana. Ela está ajoelhada segurando dois
vasos nw, em uma posição que reforça o significado “ofertar”. A forma do corpo é
totalmente masculina e os traços, apesar de ainda conterem formas delicadas, dão à estátua
um aspecto austero.
A porta traseira do terraço superior que marca a entrada do santuário da barca de Amon
é cercada por relevos com quatro imagens de Hatshepsut em bases, ajoelhada e oferecendo
vasos nw. As imagens do norte apresentam a coroa vermelha e as do sul, a coroa branca.
Assim, é possível que essa estátua estivesse localizada na fila sul que flanqueava o caminho
processual através do terraço intermediário.
Inscrição
Possui a inscrição “Maatka[re] que oferece plantas frescas a Amon” que contém
terminações femininas. O texto da única coluna do pilar diz “O poderoso Hórus do k[as, Rei
do Alto e Baixo Egito, Maatkare, filho (ou filha) de Ra] Khenemet Amon Hatshepsut,
[amada de A]mon que reside em Djeser-djeseru, dotada de vida.”
114
Estátua 12: Busto de estátua colossal de Hatshepsut como Osíris
Figura:
Material
Pedra Calcária
Dimensões
-
Local
Deir el-Bahri, pórtico superior do templo
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p.161
Localização
atual
Deir el-Bahri
Descrição e
comentários
Nessa foto a cabeça de uma estátua foi colocada na parte superior do corpo de outra
estátua similar para a realização da foto. Na imagem, Hatshepsut é representada com barba
real e portando o símbolo da vida ankh, o báculo e o chicote, símbolos do poder faraônico e
do deus Osíris. A coroa não foi preservada, mas tratando-se de uma representação do
soberano sob a forma de Osíris é possível que a seja a coroa dupla ou a atef.
Inscrição
-
115
Estátua 13: Cabeça de estátua colossal de Hatshepsut
Figura:
Material
Pedra calcária
Dimensões
-
Local
Santuário do templo de Deir El-Bahri –
Data
1473-1458 a.C. - XVIII dinastia
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 159
Localização
atual
Metropolitan Museumof Art, New York
Rogers Fund, 1931, 31.3.155
Descrição e
comentários
Este é mais um exemplo de representação de Hatshepsut como Osíris. Esse tipo de
imagem apresentava o faraó como um soberano defunto, pois o representava como o deus
do mundo dos mortos. Essa estátua seria uma das localizadas originalmente no santuário de
Osíris em Deir El-Bahri. Apesar de a imagem estar em preto e branco, este é mais um
exemplo de representação com o tom da pele amarelado, típico de imagens femininas.
Inscrições
Não traduzida.
116
Estátua 14: Cabeça da estátua de Hatshepsut com cor da pele amarelada em forma de Osíris
Figura:
Material
Pedra calcária pintada
Dimensões
Altura 126 cm/ largura: 34 cm
Local
Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
ROEHRIG, C. (ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. The New York: Metropolitan
Museum of Art, 2005, 340 p. p. 140
Localização
atual
Metropolitan Museum of Art, New York
Rogers Fund, 31.31.164
Descrição e
comentários
Nessa representação de Hatshepsut como Osíris, o faraó aparece com a coroa dupla do
Alto e Baixo Egito, barba real. O uraeus não foi preservado. Sem dúvida o ponto mais
interessante dessa imagem está no uso das cores que a mesma apresenta resquício dos
pigmentos. A barba foi pintada de azul e a pele ganhou um tom amarelado da pele
(tradicionalmente usado em representações femininas). Esse último traço indica que a
estátua foi realizada no período anterior a Hatshepsut se auto-proclamar faraó.
Grupos similares de estátuas foram posicionados em nichos na parede posterior do
terraço superior do templo de Deir El-Bahri. Na metade sul da parede, Hatshepsut aparece
usando a coroa branca do Alto Egito, enquanto na metade norte com a coroa dupla.
Em seu artigo sobre a estatuária do reinado de Hatshepsut, C. Keller cita o
Inscrição
Não traduzida.
117
Estátua 15: Cabeça de estátua na forma de Osíris de Hatshepsut com cor da pele avermelhada
Figura:
Material
Pedra Calcária Pintada
Dimensões
Altura: 61 cm
Local
Templo Funerário de Hatshepsut em Deir el-Bahri
Data
1473-1458 a.C.
Técnica
Escultura
Referência
Bibliográfica
DIETRICH, Wildung. A cima Oitava Dinastia. In: TIRADRITTI, Francesco (Ed.).
Tesouros do Egito do Museu do Cairo. São Paulo: Manole, 1998, p. 163.
Localização
atual
Museu de Berlin
Descrição e
Comentários
Esta é sem dúvida uma das representações mais famosas de Hatshepsut e atualmente
encontra-se no museu de Berlin. O fragmento da escultura foi localizado em um dos pilares
de Osíris que decora o pórtico do terceiro terraço do templo em Deir el-Bahri. Nesta peça
temos a representação de Hatshesput com a barba real pintada de azul e o pedaço do
turbante indica que usava a coroa dupla (pshenti). A representação possui olhos grandes,
nariz fino e boca que esboça um leve sorriso. O tom vermelho escuro da pele, característica
masculina, justifica-se pela representação de Hatshepsut como faraó na forma de Osíris, o
que indicaria que a peça foi confeccionada na fase final de construção do templo, ou seja,
no final do reinado de Hatshepsut.
Inscrição
Não traduzida.
118
3. TEMÁTICAS PRESENTES NAS REPRESENTAÇÕES DE HATSHEPSUT
3.1. A IMPORTÂNCIA DE DJESER-DJESERU PARA A ANÁLISE
No tópico anterior foi chamada a atenção para o fato de que as fontes não possuem a
mesma origem, mas que formam um todo coerente quando observamos a produção de
imagens faraônicas durante o reinado da mulher-faraó. Quando avaliamos o que foi produzido
após a regência de Hatshepsut, nota-se que as representações oriundas da Capela Vermelha e
do templo de Deir el-Bahri possuem características semelhantes, como a forte presença do
deus Amon interagindo com o monarca, por exemplo. Essa preponderância explica-se pelo
fato de que a Capela Vermelha fazia parte do complexo templário dedicado a Amon em
Karnak e Djeser-djeseru foi o templo mortuário de Hatshepsut, contendo uma área extensa
dedicada ao culto desse deus.
165
No capítulo 2, vimos que logo após a ascensão de Hatshepsut como faraó foi iniciada
a construção do templo em Deir el-Bahri, trabalho que continuou até a sua morte. Dessa
maneira, torna-se evidente que as produções encontradas nesse local merecem uma atenção
especial. A magnificência de tal monumento faz com que suas peças, sendo estas
especialmente estátuas, acabem tendo uma importância significativa. Claro que não podemos
deixar de perceber como relevante a série de reconstruções e ampliações do templo de Amon
em Karnak desenvolvidas a mando de Hatshepsut já na fase regencial e que deram origem aos
obeliscos e a Capela Vermelha, porém, o amplo período em que Djeser-djeseru foi construído
fornece informações preciosas sobre as modificações e permanências na imagem de
Hatshepsut ao longo do tempo.
3.2 APRESENTAÇÃO DAS TEMÁTICAS IDENTIFICADAS
Após a aplicação da opção metodológica expressa no item anterior, especificamente o
princípio de decodificação inserido nas fichas produzidas, no qual os gestos das figuras, sejam
elas representações em relevo ou escultura, podem ser lidos como um hieróglifo, remetendo a
uma ação, foi possível dividir as imagens de acordo com as seguintes temáticas:
165
A função dos chamados templos mortuários, modalidade em que se encaixa Djeser-djeseru, foi explicitada no
capítulo 2.
119
I. Culto à divindade
1.1 Oferenda: Relevos 1, 3, 8, 9, 10, 11
Estátuas 8, 9, 10, 11
1.2 Purificação: Relevos 21, 23
1.3 Purificação e adoração: Relevos 16, 19, 21
1.4 Tocar o deus: Relevo 7
1.5 Adoração: Relevos 13, 15, 16, 17
Estátua 7
II. Culto ao faraó: Relevos 19, 20 e 22 (Purificação)
III. O faraó sendo alimentado pela deusa Hathor: Relevo 14
IV. Coroação: Relevos 4, 5, 6
V. O faraó entronizado: Estátuas 1, 2, 3, 4
VI. Ritual: Relevo 12
VII. Inscrição comemorativa: Relevo 2
VIII. Forma de esfinge: Relevo 18
Estátuas 5, 6
XIX. Associação da imagem faraônica com imagem divina (Osíris): Relevo 19
Estátuas 12, 13, 14, 15
Das imagens referentes às oferendas, duas delas são do período anterior à proclamação
de Hatshepsut como faraó, uma do período em que a mesma era rainha do faraó Thutmés II
(relevo 1) e outra proveniente do período regencial (relevo 3). Ainda com relação temática
“oferenda”, 5 imagens contendo oferendas de vasos nw, 2 de vaso nemset, 1 de unguentos,
1 de leite, 1 de pão e 1 de linho.
A repetição do relevo 16 que aparece tanto no grupo “adoração” quanto no grupo
“adoração e purificação” explica-se pelo fato de que na imagem, enquanto Hatshepsut aparece
adorando a barca do deus Amon, Thutmés III adora e purifica a mesma barca, portando em
uma das mãos um incensário.
120
Tratando especificamente dos relevos que foram apagados ou substituídos de maneira
sistemática
166
é possível discernir os seguintes temas:
I. Culto ao deus Amon: Relevos 21, 23
II. Culto ao faraó (purificação): Relevo 22
Nas representações de culto ao deus Amon, dois relevos presentes no corpus são
exemplos de imagens atacadas. Em um deles, Hatshepsut aparece realizando o culto diário ao
deus (relevo 21) e no outro o soberano surge oficiando o culto e adoração a barca de Amon
(relevo 22). no relevo 23, o faraó aparece sendo purificado por duas divindades, Hórus e
Toth.
No que diz respeito ao ataque a imagens, dois exemplos interessantes destoam
daqueles supracitados. O relevo 10 possui uma figura danificada, porém, a imagem apagada
não foi a de Hatshepsut, mas a de Amon-Ra, demonstrando que o ataque foi executado em
época diferente dos demais. Assim, essa imagem não faz parte do grupo relacionado à
destruição das representações da mulher-faraó. No relevo 24, a imagem de Hatshepsut não foi
atacada, apenas seu nome de trono foi substituído pelo o de seu marido, faraó Thutmés II.
Falaremos com maiores detalhes sobre isso posteriormente. Contudo, é importante
salientar que nas fichas a datação refere-se à confecção dos relevos e não ao período em que
os mesmos foram atacados.
4. ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES DE HATSHEPSUT
A constatação do que se escolheu representar dentro de todas as possibilidades
oferecidas pelo discurso faraônico, a observação, quanto ao que foi representado, da forma em
que aparecem os temas identificados e o que não aparece dentro do conjunto de
representações de Hashepsut mostra-se relevante para a análise das fontes selecionadas.
Observamos no capítulo 1 que tanto a literatura quanto a iconografia enfatizavam a
característica sagrada da realeza faraônica. Como descendente do deus criador e tendo em sua
figura aspectos humanos e divinos, o faraó cobria templos por todo o Egito de representações
suas em contato direto com os deuses, seja cultuando-os, seja recebendo bênçãos dos mesmos.
166
Como exposto, as estátuas de Hatshepsut encontradas por Herbert Winlock foram deliberadamente destruídas.
Contudo, a opção por pontuar apenas os temas dos relevos atacados explica-se pelos mesmos apresentarem
composições que permitem discernir o que foi atacado e em que circunstâncias.
121
Essas imagens, além de servirem como garantia para execução do culto, que a imagem
“era” aquilo que representava de acordo com a crença egípcia, também reforçavam seu poder
e legitimidade, assim como marcavam sua diferença e primazia em relação aos demais
egípcios.
Visto isso, a presença de representações de Hatshepsut transfigurada em deus Osíris
(estátuas 12, 13, 14, 15 e relevo 19) ou executando etapas do culto diário aos deuses
(oferenda: relevos 1, 3, 8, 9, 10, 11 /estátuas 8, 9, 10, 11; Purificação: Relevos 21, 23;
Purificação e adoração: Relevos 16, 19, 21; Tocar o deus: Relevo 7; Adoração: relevos 13,
15, 16, 17 e estátua 7) não apresenta, num primeiro momento, inovações.
O faraó, como figura dual, humana e divina, era o único que podia cultuar diretamente
os deuses e o único que podia ser representado em tal ação, mesmo que na prática os
sacerdotes executassem o ritual como seus substitutos. Assim, representações do faraó
realizando etapas do culto diário, como a purificação do deus ou o toque para transmitir-lhe
um pouco de sua vitalidade, são recorrentes em relevos de templos. Um exemplo são os
relevos do templo funerário do faraó Seti I (1306-1290 a.C.) em Abidos. Na figura 16 o rei
em questão aparece fazendo oferendas.
FIGURA 16
Relevo do templo de Seti I em Abidos mostrando o faraó executando culto à divindade
Referência: http://www.ask-aladdin.com/abydous.htm. Acesso em 20 de dezembro de 2009
122
As representações em que o faraó surge na forma de Osíris são comuns dentro do
discurso imagético faraônico. Na parte 1 do capítulo 1, foi exposto que ao chegar ao trono a
imagem do soberano era associada à do deus Hórus e após a sua morte à do deus Osíris.
Portanto, a presença de estátuas e relevos de Hatshepsut na forma osiriana não representa uma
novidade e justifica-se, inclusive, pelo local em que foram encontrados, o templo funerário de
Deir el-Bahri. Exemplares como esses surgem em toda a história faraônica.
Como ser divino, o faraó aparecia em rituais com os deuses, como ocorre no relevo
12, em que Hatshepsut é representada numa cerimônia simbólica em que ela e a deusa do
cálculo, Seshat, aparecem delimitando o terreno do templo que seria construído. Desde os
tempos mais remotos essa deusa foi associada ao ritual de fundação dos templos,
especificamente ao traçado de suas plantas
167
, tornando comum a presença de sua imagem
realizando-o nas paredes das construções templárias. Esse tipo de composição, que aparece
em outros reinados (figura 17), reforçava o caráter divino do soberano, que o mesmo
participava ao lado da deusa de uma ação ritualística.
FIGURA 17
Relevo do templo de Abidos representando o faraó Seti I e a deusa Seshat em cerimônia simbólica
Referência: http://nefred.over-blog.com/categorie-790033.html. Acesso em 20 de novembro de 2009
Deuses e faraós apareciam na iconografia de maneira semelhante, tanto com relação
aos paramentos utilizados quanto às posturas. Em várias representações o soberano aparece
com coroas e cetros também utilizados pelos deuses. Com relação às posturas, aquela em que
167
SCHULZ, Regine, SEIDEL, Mathias. Egipto: o mundo dos faraós. Colónia, Könemann, 2001, 538 p. p. 523.
123
o figurado aparece entronizado é utilizada na representação de vários deuses, enfatizando seu
poder e marcando a diferença entre os mesmos e os demais seres. Exemplos disso podem ser
vistos nos relevos 4, 5 e 6. Como um ser portador de divindade, o faraó era igualmente
representado entronizado: estátuas mostrando o soberano com um dos principais símbolos do
poder sobre o Egito o trono eram produzidas. As estátuas 1, 2, 3 e 4 estão entre os
materiais encontrados nas proximidades de Deir el-Bahri e mostram a soberana no auge de
seu poder, sentada no trono do Egito, como legítima descendente do deus criador. No
capítulo 2 foi observado que os chamados templos funerários eram construções dedicadas ao
culto do rei, promovendo a união do soberano com o divino, o que faz da presença dessas
estátuas uma reiteração do poder faraônico, sendo comum o tema na produção iconográfica.
Com relação às fontes em si, essas estátuas parecem ter sido alvos de culto e oferenda.
168
As esfinges formam outra temática bastante corriqueira nas representações faraônicas
(o caso mais emblemático é o da grande esfinge que protege as pirâmides de Gizé) e
acabaram se tornando símbolo da civilização egípcia para o mundo. Várias estátuas com o
corpo de leão e a cabeça do soberano foram encontradas em Deir el-Bahri (estátuas 5 e 6).
Elas, além de protegerem o templo da mulher-faraó, funcionavam como guardiãs da rota
processual que a barca de Amon atravessava durante a “Bela Festa do Vale”. Esfinges
também foram confeccionadas em bases de estátuas como forma de garantir proteção a elas,
como demonstra o exemplo do relevo 18.
Uma das imagens selecionadas mostra a deusa Hathor em forma de vaca alimentando
a jovem Hatshepsut (relevo 14), representação que foi repetida em outros relevos. Essa deusa
possuía vários aspectos e estava associada aos mais variáveis sistemas mitológicos, sendo
cultuada por todo o Egito, em especial na região de Dendera.
169
Hatshepsut construiu um
santuário para Hathor no pórtico sul do segundo terraço do templo de Deir el-Bahri. Nos
relevos que falam sobre o nascimento divino, dos quais falaremos mais detalhadamente nas
linhas subseqüentes, Hathor tem um papel significativo, que aparece, além de alimentando
Hatshepsut, apresentando a mulher-faraó a seu pai Amon.
As cenas de coroação também fazem parte do repertório imagético faraônico. Os três
relevos que possuem essa temática (relevos 4, 5 e 6) são provenientes do templo de Amon em
Karnak e têm como imagem central a figura de Hatshepsut sendo coroada pelo deus Amon.
Em duas delas, deusas abençoam o novo faraó, oferecendo o símbolo da vida às suas narinas.
168
KELLER, C. The joint reign of Hatshepsut and Thutmose III. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from
queen to pharaoh. New York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 171.
169
SCHULZ, Regine, SEIDEL, Mathias. Egipto: o mundo dos faraós. Könemann, 2001, 240 p. p. 522.
124
Representações de Hatshepsut sendo coroada por Amon também aparecem no templo de Deir
el-Bahri como parte dos relevos que figuram o mito do nascimento divino da governante.
170
Nesses relevos, Amon aparece sob a forma do faraó e engravida a rainha, gerando o futuro
faraó Hatshepsut (figura 18). Após etapas como a formação de um corpo e ka masculinos
para a criança pelo deus Khnum, seu nascimento e apresentação de Hatshepsut ao pai Amon,
há a cena de coroação, seguida por uma inscrição e imagem em que o pai terreno da soberana
o faraó Thutmés I descreve como está satisfeito com as decisões de Amon-Ra,
legitimando o futuro poder de Hatshepsut que, apesar do mito, é descrita como filha desse
faraó.
171
Portanto, ao ser representado sendo coroado pelo deus dinástico, o faraó demonstrava
que seu poder era legitimado pela divindade.
FIGURA 18
Reprodução em desenho do relevo que representa a concepção divina de Hatshepsut
Nesta composição, o deus Amon-Ra o símbolo da vida (ankh) à rainha Ahmés, mãe de Hatshepsut. Ambos
estão sentados, sendo erguidos por duas divindades. Essa é a representação da concepção do futuro rei pela
união do deus com a rainha.
Referência: http://www.maat-ka-ra.de/english/bauwerke/djeser/dj_portico_2_hall_birth.htm. Acesso em 28 de
dezembro de 2009
De todas as temáticas apresentadas, sem dúvida, as mais interessantes são as referentes
às imagens de Hatshepsut e de seu enteado, herdeiro do trono, Thutmés III. No relevo 11
observamos Hatshepsut e Thutmés III fazendo oferendas a deidades diferentes, mas um não
parece ter preponderância sobre o outro. Contudo, a inscrição que acompanha a imagem é
170
Ver capítulo 1.
171
GRALHA, Julio. Deuses, faraós e o poder. Rio de Janeiro: Barroso Produções Editoriais, 2002, 190 p. p.123.
125
reveladora, que somente Hatshepsut é proclamada “Rei do Alto e Baixo Egito”. Nos
relevos 15, 16 e 17 ambos aparecem à frente da barca de Amon; mas em todos os casos é
Hatshepsut quem aparece oficiando no culto.
Nenhum relevo é mais emblemático do que aquele que mostra Thutmés III, com sua
titulatura de faraó e nome de coroação, oferecendo incenso a Hatshepsut em forma osiriana
(relevo 19). Segundo Júlio Gralha, essa composição poderia ter um duplo significado: na cena
(não visível) Hatshepsut está à frente da barca de Amon-Ra e a tradução do texto fala de
queimar incenso para esse deus, o que poderia indicar que Thutmés III estaria, ao mesmo
tempo, cultuando Amon e sua imagem em vida – o deus Hatshepsut.
172
Das representações que chegaram aos nossos dias é interessante notar, pensando no
repertório imagético da monarquia divina egípcia, a ausência de representações de Hatshepsut
golpeando inimigos estrangeiros. Essa temática é observada em todas as épocas da história do
Egito, incluindo a famosa paleta do rei Narmer (2990 a.C.) um dos mais antigos trabalhos
de arte faraônica- sendo encontrada principalmente na entrada de grandes construções como
templos, protegendo magicamente os lugares sagrados contra as forças caóticas. Esse tipo de
representação fixava em rocha o triunfo do faraó e possuía uma dupla importância, que se
por um lado colocava o faraó sob a efígie de garantidor da ordem estabelecida pelos deuses,
por outro demonstrava que perigos circundavam os limites das Duas Terras.
173
Os
estrangeiros, vistos como agentes do caos, eram figuras adequadas para a transmissão desse
tipo de mensagem.
A maior parte dos reis do Reino Novo, que efetivamente estiveram em campo de
batalha, usou seus próprios sucessos militares para ilustrar a vitória da ordem contra o caos.
Mesmo quando a realidade não apresentava o sucesso em campo de batalha, os governantes
não tinham problemas em se representar vitoriosos. Isabelle Franco cita o caso do far
Ramsés II (1290-1224 a.C.) da XIX dinastia, que evocou nas paredes de templo como
derrotou, com a ajuda de Amon, os hititas na Batalha de Kadesh, mesmo que, na realidade,
este por pouco não tenha sido um dos maiores desastres militares dos egípcios.
174
A ausência
de tal imagem será retomada quando tratarmos das questões envolvendo os aspectos
femininos e masculinos nas imagens de Hatshepsut.
172
GRALHA, Julio. Deuses, faraós e o poder. Rio de Janeiro: Barroso Produções Editoriais, 2002, 190 p. p. 125.
173
FRANCO, Isabelle. The Pharaoh, Guarantor of World Equilibrium. The victories over the enemies. In:
ZIEGLER, Christiane (ed.) The Pharaohs. New York: Rizzoli Publications, 2002, 512 p. p. 423.
174
FRANCO, Isabelle. The Pharaoh, Guarantor of World Equilibrium. The victories over the enemies. In:
ZIEGLER, Christiane (ed.) The Pharaohs. New York: Rizzoli Publications, 2002, 512 p. p. 423.
126
4.1 A PREPONDERÂNCIA DO DEUS AMON-RA NAS IMAGENS
Após a observação dos temas que aparecem no conjunto de imagens analisadas é
necessária a avaliação da maneira como essas temáticas foram trabalhadas e as escolhas feitas
dentro do repertório imagético da arte canônica egípcia.
Em quase todas as representações, a figura de Hatshepsut aparece interagindo com
divindades, mesmo na estatuária, em que a pessoa figurada aparece de forma isolada, tal fator
é discernível, pois em vários exemplos a mulher-faraó, ou está ativa no culto ou incorporando
características de um determinado deus. Contudo, em todas as imagens temos uma clara
preponderância da figura do deus Amon, que teve sua influência aumentada após as lutas de
reunificação que deram início a XVIII dinastia, que a ele foram atribuídas as vitórias
conseguidas.
Com a tomada do poder pela dinastia tebana, o deus ganhou destaque e passou a ser
visto como a divindade criadora nos principais mitos cosmogônicos. Assim, na cidade de
Tebas foi desenvolvido um mito em que Amon-Ra aparece como deus criador, surgindo como
o primeiro da Enéada de deuses, numa posição tradicionalmente ocupada por Atum. No mito
de Mênfis, Amon acabou absorvendo as funções do deus Ptah, que teria emergido das águas
primordiais na forma de um monte chamado Ta-Tenen e através desse processo o deus teria
estabelecido a vida e o mundo como conhecido.
175
Hatshepsut tonou-se faraó menos de um século após o fim das lutas que expulsaram os
invasores hicsos e promoveram a reunificação da terra, tempo suficiente para a criação de um
imaginário em torno do período e para a afirmação do deus Amon-Ra como divindade
poderosa e peça fundamental para o retorno de maat ao Egito. Assim como a imagem do deus
foi fortemente utilizada para a solidificação do poder de mais uma dinastia oriunda da cidade
de Tebas, Hatshepsut enfatizou sua proximidade com essa divindade no momento em que
ocupou o trono do Egito. O ápice desse processo é encontrado no discurso presente no mito
do nascimento divino (figura 18), em que torna explícita sua ligação filial com Amon.
A aceitação a sua ascensão como faraó é claramente expressa nos relevos em que
aparece sendo coroada por Amon. A representação dessa ação parece ter tido uma grande
importância para a monarca, que observamos a presença da mesma no obelisco do
complexo templário de Karnak (relevo 4), na Capela Vermelha proveniente do mesmo local
(relevos 5 e 6) e em Speos Artemidos. Nas imagens localizadas nesse último santuário, a
175
GRALHA, op. cit. p. 45-6.
127
composição é praticamente idêntica àquela presente no corpus, contudo, a deusa que
acompanha a cena, abençoando o faraó, é Pakhet, divindade à qual foi dedicado o templo. Em
Djeser-djeseru, a cena aparece descrita dentro do mito do nascimento divino.
176
Quando
analisamos esse dado à luz da crença egípcia de que as imagens atuavam magicamente na
realidade, sendo aquilo que representavam, constatamos uma ênfase na representação dessa
ação e um reforço da idéia de que o poder, graficamente expresso pela coroa, foi-lhe
transmitido diretamente por Amon-Ra. No relevo 6, o deus coroa Hatshepsut com o
ornamento atef, utilizado pelo deus Osíris.
Em várias das composições analisadas, Hatshepsut aparece realizando culto a uma
divindade, especialmente a Amon. O aspecto interessante é que já no período regencial, a
mulher-faraó é representada fazendo oferenda sozinha a esse deus, uma atitude tipicamente
faraônica, como ocorre no relevo 3. Nessa representação, uma inscrição em que ela é
designada com o título feminino “Senhora do Ritual” ao mesmo tempo em que é
proclamada “Rei do Alto e Baixo Egito”.
Deixemos momentaneamente a confluência dos aspectos femininos e masculinos na
imagem e nas inscrições de Hatshepsut, para nos determos à importância da figura de Amon
no período regencial. No relevo 2, a regente aparece com o título de “Esposa do deus Amon”
que, como visto nos capítulos precedentes, ganhou importância com as rainhas da XVIII
dinastia, estabelecendo um papel crucial às mesmas no mito do nascimento divino do rei.
Além disso, tal inscrição faz parte de um texto em que é comemorada a transferência de dois
obeliscos por ordem de Hatshepsut. O obelisco era uma construção que simbolizava o deus-
Sol, sendo normalmente colocado aos pares na entrada de templos. Acredita-se que, no início
do Reino Médio, o deus Amon sofreu um processo de solarização, adquirindo as prerrogativas
do deus Ra, divindade associada ao astro solar por excelência. Assim, tal monumento estava
relacionado à figura de Amon-Ra e foi confeccionado para o templo de Karnak. Nessa ação,
tipicamente régia, a regente demonstra sua piedade e devoção à divindade, algo que dominou
o discurso do momento seguinte.
Nos relevos 7, 8, 10, 13, 15, 16, 17, 21 e 23, a governante aparece em composições
que representam sua interação com Amon quando de seu culto. Os relevos 15, 16, 17 e 23
mostram Hatshepsut participando da adoração à barca de Amon durante a Bela Festa do Vale
e os relevos 7, 8, 10, 13 e 21 representam a mesma realizando etapas do culto, ação
importante para a manutenção de maat, pois ao realizar o culto diário, principalmente ao deus
176
GRALHA, op.cit., p. 114-121.
128
criador, o faraó agradava os deuses e cumpria sua obrigação de manter o caos fora dos limites
do mundo organizado do qual o Egito era o centro.
Com relação às estátuas, a forte presença de Amon também pode ser observada. Na
estátua 3, em que a governante aparece entronizada, a inscrição localizada na base da peça a
proclama “filha física de Ra” e “Amada de Amon” (este último também aparece na estátua
6), já na esfinge classificada no corpus sob o número 5 do grupo das estátuas observa-se a
presença do prenome do rei seguido com o epíteto de Amon “preeminente em Djeser-
djeseru”. Nas estátuas 10 e 11, situadas originalmente no terraço intermediário (dedicado ao
deus Amon-Ra) do templo de Hatshepsut, inscrições exaltam a ação desse faraó no culto de
Amon. Na primeira é declarado que Hatshepsut oferece maat ao deus, na segunda aparece que
“Maatkare oferece plantas frescas a Amon”. Ambas as estátuas apresentam o faraó
oferecendo dois vasos nw, indicando que eram ativas no ritual do templo. Com isso, o faraó
podia diariamente prover Amon de todas as coisas boas, sem necessariamente estar em pessoa
executando o culto.
Mesmo quando Amon não está presente é possível estabelecer uma ligação com seu
culto. No relevo 14 há uma representação de Hatshepsut sendo amamentada pela deusa
Hathor. Como mencionado, nos relevos que tratam do nascimento divino de Hatshepsut em
Deir el-Bahri, Hathor aparece como aquela que apresenta a criança para Amon-Ra. Contudo,
a presença de um santuário para essa deusa em Djeser-djeseru também remete ao deus
dinástico. Na mitologia heliopolitana, Hathor atuava como mãe do deus Hórus, olho de e,
assim como ocorreu com Amon, essa deusa ganhou proeminência no Reino Novo,
apresentando uma associação solar. A idéia dessa divindade abastecendo os kau dos reis
aparece no texto das pirâmides
177
e é ampliada em períodos posteriores. Ao longo do período
dinástico sucessivas rainhas eram identificadas com Hathor e no Reino Antigo algumas
consortes atuavam como sacerdotisas em seu templo. Com a ascensão de fortes rainhas na
XVII e XVIII dinastias, elas são associadas à deusa em seu papel dual de consorte divina e
mãe do rei. Hatshepsut parece ter tido uma devoção especial a essa deusa. Para Patricia
Springboard, esses dados são importantes para entender a forte presença de Hathor em
inscrições e representações em Deir el-Bahri e no Speos Artemidos, onde Hatshepsut
apresentava Hathor como um modelo.
178
Joyce Tyldesley levanta uma questão interessante ao
afirmar que a ligação existente entre Hatshepsut e uma poderosa deusa demonstra que ela,
177
Provenientes do Reino Antigo (2649-2150 a.C.).
178
SPRINGBORG, P. Hathor, Hatshepsut and ‘The House of the Morning’. In: Royal Persons Patriarchal
Monarchy and the Feminine Principle. London: Unwin Hyman, s/d, p. 151.
129
apesar de sua conhecida associação com o deus Amon, não tinha aversão a ter seu nome
ligado a um culto predominantemente feminino.
179
Apesar da emergência de Amon como deus da dinastia dezoito, nenhum faraó da
XVIII dinastia anterior a Hatshepsut havia expressado de forma tão enfática sua filiação e
proximidade com o deus. A constante afirmação de que o reinado foi corroborado pelo deus
dinástico, tanto através de suas ações quanto através de uma ligação filial, parece ter sido de
extrema importância para a mulher-faraó.
4.2 OS FARAÓS DO EGITO: IMAGENS DE HATSHEPSUT E THUTMÉS III
No capítulo anterior, mencionamos as teorias cujo intuito é explicar a ascensão e a
dinâmica do reinado de Hatshepsut.
180
A existência de uma mulher no trono do Egito como
faraó, a presença de representações em que a mulher-faraó aparece tanto com traços
femininos e símbolos faraônicos, quanto como um soberano varão em todo esplendor de seu
poder, e a descoberta de imagens atacadas fizeram com que os primeiros pesquisadores
observassem nela o reflexo de uma mulher ambiciosa e ardilosa. Entretanto, as pesquisas que
apontam que os ataques às imagens de Hatshepsut ocorreram em fins do reinado de Thutmés
III e início do reinado seguinte acabaram por inviabilizar esta teoria, que perdeu seguidores ao
longo das décadas.
Outra idéia contida nos estudos referentes ao reinado em questão é a que percebe
Hatshepsut como uma co-regente, em que Thutmés III seria identificado como o verdadeiro
soberano. Tal perspectiva está baseada nas designações atribuídas aos dois monarcas na
biografia de um alto funcionário da corte. Todavia, algumas fontes selecionadas para essa
pesquisa demonstram a inconsistência dessa teoria. Enquanto no relevo 11 tanto Hatshepsut
quanto Thutmés III recebem titulaturas reais, “Rei do Alto e Baixo Egito” e “Senhor das
Duas Terras” respectivamente, no relevo 17 somente Hatshepsut é chamada de “Senhor das
Duas Terras”, Thutmés III aparece apenas como “Governante da Cidade de Tebas”.
A noção de que o poder no período analisado estava baseado em uma monarquia dual,
ou seja, com dois faraós no comando é, sem dúvida, relevante. Após o sétimo ano, Hatshepsut
deixa de ser representada como rainha-regente e passa a usar o conjunto iconográfico
faraônico em sua totalidade; mas, apesar de sua ação, o verdadeiro sucessor continuava vivo,
acompanhado pela corte. Torna-se difícil imaginar que, diante dos acontecimentos que
179
TYLDESLEY, Joyce. Hachepsut. The female pharaoh. New York: Viking, 1996, 270 p. p.171-3.
180
Ver capítulo II, p. 38.
130
possibilitaram a ascensão de Hatshepsut e do progressivo amadurecimento do herdeiro, a
mulher-faraó conseguisse manter seu poder sem ter como um importante sustentáculo a figura
de Thutmés III.
Em várias imagens, como a contida no supracitado relevo 11, o caráter dual do
reinado é revelado. Especificamente nessa composição, os dois governantes aparecem
executando o mesmo gesto oferecer para divindades diferentes. Portando a coroa
vermelha do Baixo Egito, Thutmés oferece pão à deusa Hathor no canto esquerdo da cena e,
em uma posição simétrica àquela relatada, Hatshepsut é representada à direita oferecendo dois
vasos nw à divindade Sopedu. A proximidade com os deuses é evidente nas duas ações e fica
difícil num primeiro momento afirmar qualquer primazia de uma figura sobre a outra. A
designação de ambos através de títulos faraônicos reforça a idéia de que dois faraós
atuantes. Um ponto que não deve ser ignorado é a localização da representação (mina de
turquesa no Sinai), que composições presentes em outros pontos não apresentam a mesma
configuração.
Apesar da igualdade expressa na composição anterior, cenas representadas na Capela
Vermelha tornam clara a primazia de Hatshepsut no reinado. No relevo 15 Hatshepsut
aparece adorando a barca de Amon-Ra, enquanto Thutmés surge em seguida, atrás da mulher-
faraó. As duas figuras são representadas portando a coroa atef e com relação às vestimentas
não há nada que os diferencie. Contudo, Thutmés claramente encontra-se em uma posição
secundária em relação à Hatshepsut, que ela é quem realiza a ão e está à frente da
adoração, próxima ao deus. Outro ponto a ser destacado é que apenas Hatshepsut porta o cetro
sekhem, símbolo de poder e comando.
No relevo 16 uma cena próxima àquela destacada no de número 15. Porém,
enquanto Hatshepsut usa a coroa atef e porta o cetro de poder, Thutmés usa a coroa azul e tem
papel ativo oferecendo incenso à barca de Amon. Mais uma vez a mulher-faraó tem a
primazia na composição, pois está à frente da barca do deus.
A igualdade figurativa aparece em relevos da Capela Vermelha, como o exemplo do
número 17 do corpus. Nele, Hatshepsut e Thutmés III são representados com a coroa azul e
portando um bastão e o símbolo da vida (ankh). Novamente, a mulher-faraó é preponderante
na cena, ao estar mais próxima da barca de Amon-Ra. A inscrição que acompanha a
representação reforça esta afirmação, pois, como observamos, somente Hatshepsut é
designada como “Senhor das Duas Terras”.
A representação de um governo dual, tendo à frente Hatshepsut, foi amplamente
utilizada nas construções executadas no período. A presença de Thutmés III nas composições
131
afirmava a continuidade da linha dinástica, tão importante para o pensamento egípcio, e ao
mesmo tempo consolidava o papel da mulher-faraó como principal governante das Duas
Terras. Ao agregar a imagem do herdeiro à sua, destinando-lhe ao mesmo um posicionamento
secundário, Hatshepsut reforçava seu poder e demonstrava que este era legítimo também no
âmbito terreno. Todavia, nenhuma composição é mais emblemática do que a presente no
relevo 19. Nela, Thutmés III aparece cultuando Hatshepsut, que surge em forma osiriana, ou
seja, como um deus. O herdeiro é assim colocado em uma posição inferior em relação à
mulher-faraó que, na imagem, surge como uma divindade a ser cultuada por ele.
A associação da imagem de Hatshepsut ao deus, tão presente nas estátuas do templo
mortuário de Deir el-Bahri, é explicitada no relevo 19 e demonstra a tentativa de estabelecer
um culto ao faraó ainda em vida. A soberana transcendia sua natureza humana ainda em vida,
não somente como a personificação de um deus, mas como a própria divindade a ser venerada
e que precisava ser cultuada pelo herdeiro do trono.
O ápice desse processo encontra-se em uma cena presente na Capela Vermelha em que
Hatshepsut aparece cultuando a si própria em forma osiriana (relevo 20). Esse tipo de
composição, em que o monarca é cultuado por ele mesmo, parece não ter tido precedentes até
então, aparecendo novamente décadas depois com o faraó Amenhotep III (1391-1353 a.C.).
181
Essa pode ser considerada a maior expressão de Hatshepsut como um deus vivo.
4.3 A MULHER-FARAÓ: GÊNEROS MASCULINO E FEMININO NAS
REPRESENTAÇÕES DE HATSHEPSUT
Apesar de todo um conjunto representacional em que Hatshepsut aparece no auge de
sua autoridade faraônica, como um deus vivo e incorporando características masculinas,
inerentes ao papel desempenhado como governante, torna-se difícil acreditar que membros da
corte, inseridos na dinâmica do poder, esquecessem que o faraó era mulher. A construção do
gênero feminino na sociedade egípcia delineava claramente as características consideradas
adequadas para representações de mulheres dentro do cânone artístico. Assim, as figurações
de Hatshepsut a partir do sétimo ano de reinado apresentavam um desafio: como trabalhar a
contradição inerente a existência de um faraó feminino?
181
GRALHA, Julio. Deuses, faraós e o poder. Rio de Janeiro: Barroso Produções Editoriais, 2002, 190 p. 126.
132
Em seu estudo teórico, Rachel Soihet identifica o gênero com papéis socialmente
construídos
.
Aoo ligar este conceito ao sexo biológico, rejeitando o caráter fixo da oposição entre
feminino e masculino, Soihet aponta para a possibilidade de estes papéis serem
intercambiáveis.
182
Indo ao encontro dessa iia, Gay Robins afirma que havia uma profunda
tensão entre o sexo biológico de Hatshepsut e o gênero masculino de sua função
183
. Esta
“tensão” acabou estimulando a produção de obras inovadoras que marcavam a posição de
Hatshesput como monarca, sem negligenciar totalmente o gênero feminino atribuído ao seu
sexo. As imagens presentes no corpus indicam que no período regencial começa a
assimilação de atributos faraônicos em sua imagem.
Antes de pensarmos nas representações faraônicas de Hatshepsut, não podemos
esquecer que a primeira imagem conhecida que a representa mostra-a como rainha do faraó
Thutmés II. Temos pouquíssimos exemplos deste período; um deles pode ser visto no relevo
1. Como uma rainha, não nos surpreende que sua representação esteja dentro da tradição, em
que as consortes reais eram retratadas com insígnias picas de sua posição, como a coroa de
abutre, e dentro dos cânones de representação de mulheres (longa túnica e longa cabeleira,
presença de seios e etc.). Especificamente na imagem do relevo 1, a rainha Hatshepsut
aparece fazendo oferenda a um deus que não pode ser identificado. Atrás de sua figura, vemos
a imagem de outra mulher que possui um papel secundário na representação, mas que também
participa do ritual. Acredita-se que esta seria sua filha Neferura. São raras as cenas em que
rainhas aparecem fazendo oferendas diretamente aos deuses sem a presença do faraó, mas elas
eventualmente ocorriam. Devido ao péssimo estado de conservação da peça, fica difícil
determinar a distribuição de toda a cena e as figuras que a compunham. Não saberíamos dizer
se originalmente a imagem do faraó estava nesta composição. Assim, observamos que esta é
uma imagem em que Hatshepsut aparece com todas as características atribuídas na arte
canônica ao feminino. Porém, com a morte de Thutmés II e a transformação de Hatshepsut em
regente, as representações da rainha ganham outros aspectos que serão utilizados para a
consolidação de seu poder e de sua posição como governante do Egito.
Como visto no presente trabalho, logo após assumir o papel de regente diante da
impossibilidade de Thutmés III governar, Hatshepsut ordenou a transferência de dois
obeliscos para Karnak e, de forma precoce, adotou um nome de trono (maatkare). Com o
182
SOIHET, Rachel. “História, Mulheres, Gênero: Contribuições para um Debate”. In: AGUIAR, N. (org)
Gênero e Ciências Humanas desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro, Ed. Rosa
dos Tempos, 1997, p. 10
183
ROBINS, G.
Some Principles of Compositional Dominance and Gender Hierarchy in Egyptian Art. In:
Journal of the American Research Center in Egypt. V. 31, 1994. p. 48.
133
exercício de um controle total sobre o governo egípcio, criou-se a necessidade de demonstrá-
lo ideologicamente.
O relevo 2 é uma inscrição comemorativa à transferência de dois obeliscos e
provavelmente foi confeccionado no início do período regencial. Nele, Hatshepsut aparece
usando uma túnica e uma coroa com a dupla pluma usada por rainhas. Contudo, o que parece
ser uma representação típica àquelas do gênero feminino, possui sutilezas que já apontam para
a confluência nos atributos. A regente porta na imagem o cetro hedsh e o símbolo da vida
ankh. Este último símbolo era mais comum em representações de divindades e faraós, sendo
usada por consortes somente quando as mesmas estavam em alguma situação que as
identificavam com deusas. Além disso, o ankh colocava seu portador numa posição superior à
de outras pessoas representadas na composição e nesse relevo Hatshepsut é figurada junto
com Senenmut. Os atributos femininos de sua imagem talvez exigissem de uma regente
elementos que a diferenciassem da figura masculina localizada na mesma composição.
Acreditamos que o uso do símbolo, mais do que um atributo adequado a sua função regencial,
servia na composição para marcar a diferença entre as duas personagens representadas, já que
a posição superior era ocupada por uma mulher, algo incomum na estrutura do poder.
Outro ponto interessante a ser destacado nessa imagem é o acontecimento descrito na
inscrição. A construção de obeliscos é uma ação tipicamente régia e Hatshepsut a executa
nos primeiros anos de sua regência. Uma inscrição como essa demonstra seu poder faraônico,
apesar de sua posição como rainha regente. O seu papel como consorte real ainda é destacado
pela presença da designação “Esposa do deus Amon”, importante título usado por diversas
rainhas na XVIII dinastia, inclusive a poderosa Ahmes-Nefertari.
No relevo 3, temos uma cena em relevo que mostra Hatshepsut com uma longa túnica
(traje feminino) e usando a coroa faraônica knhum com uraeus (cobra real), em uma clara
união de atributos. Soma-se a isto o fato dela estar fazendo oferenda ao deus diretamente, sem
a presença de nenhuma outra figura na cena. Este fato, além de reforçar o seu poder ao
mostrar uma proximidade com a divindade, enfatiza o aspecto masculino oriundo de sua
posição como governante. Nesta imagem, temos a presença do título dado aos faraós, Rei
do Alto e Baixo Egito”, que aparecerá em praticamente todas as suas representações
posteriores. Entretanto, ainda são utilizados títulos femininos para descrevê-la, como, por
exemplo, “Senhora do Ritual”.
Vimos até agora os relevos que, pela confluência explícita de atributos dos gêneros
masculino e feminino, podem ser consideradas obras produzidas durante o período regencial.
O mesmo pode ser percebido na estatuária. A estátua 1 é a representação de Hatshepsut
134
entronizada com uma longa túnica usando a coroa nemes e jóias. Os seios deixam claro que a
figura é uma mulher e os títulos contidos na peça mostram uma interessante combinação: o
uso de prenomes e gêneros finais femininos para descrever Hatshepsut juntamente com o
nome de trono maatkare (faraônico e, por esta razão, essencialmente masculino). Na parte
posterior do trono a representação da deusa Taueret, divindade protetora de mulheres
grávidas e crianças e por isso associada às rainhas.
Como observado anteriormente, esse tipo de imagem teve um precedente: a estátua
da rainha Sebekneferu que governou o Egito como faraó por poucos anos em fins da XII
dinastia. A forte influência dessa dinastia tebana, cujos reinados foram considerados parte de
um período de ouro para os egípcios, pode explicar a utilização desse tipo de representação,
pois é possível que os artesãos tivessem contato com as antigas produções que sobreviveram
ao Segundo Período Intermediário.
A estátua 2 apresenta uma composição semelhante à anterior. Os seios da imagem
deixam claro que a personagem figurada é uma mulher, apesar da utilização do toucado khat.
Também é possível observar a descrição de Hatshepsut com títulos faraônicos e com
terminações femininas. Já a estátua 3 pode ser considerada tardia em relação as anteriormente
citadas, pois percebe-se que o processo de incorporação na imagem de Hatshepsut de todo os
símbolos que caracterizam a realeza faraônica pode ser observado, principalmente no que
diz respeito ao gênero atribuído a sua posição. Para Catherine Keller esta estátua é a apoteose
de um rei egípcio feminino. Hatshepsut é representada com saiote shendyt e toucado nemes,
mas presença discreta de seios que explicitam o sexo do faraó. Outro ponto em que a
mistura de gêneros ocorre é no referente à inscrição que acompanha a estátua. Nela o nome de
trono de Hatshepsut é acompanhado do título atribuído às rainhas, “Senhora das Duas
Terras”.
Outro exemplo que se acredita ter sido confeccionado no período regencial é a estátua
6 que mostra Hatshepsut na forma de esfinge e em sua base há um texto formado por
pronomes femininos acompanhando a inscrição “Maatkare, amada de Amon, que viva
eternamente”. Os traços delicados do rosto transmitem uma feminilidade que contrasta com o
corpo tenso do leão. Uma estátua similar encontrada possui a mesma inscrição, mas com
pronomes masculinos.
As imagens osirianas de Hatshepsut também apresentam características interessantes
com relação aos aspectos femininos e masculinos. As estátuas 14 e 15, apesar de possuírem a
mesma temática, representação do faraó como deus Osíris, apresentam características distintas
quanto ao tom da pele que mostram-se interessantes para a análise. Enquanto na de número 14
135
(assim como ocorre na estátua 13) o tom de pele é amarelado, característico de
representações femininas, na estátua 15 a cor avermelhada é usada, tom típico de imagens
masculinas.
184
No ano de 1979, Roland Tefnin publicou uma cronologia do desenvolvimento
artístico e iconográfico da estatuária de Hatshepsut. Estudando principalmente as estátuas que
mostram a mulher-faraó representada como o deus Osíris, Tefnin levantou as hipóteses de que
a ornamentação do templo acompanhou todas as fases do seu reinado e que as características
das peças mudaram de acordo com a forma escolhida como a mais conveniente para
representação faraônica ao longo deste tempo
185
. Isto quer dizer que, para ele, as esculturas
que a representam mais masculinizada são oriundas do final de seu reinado, momento em que
a manutenção do poder em suas mãos se tornava cada vez mais difícil. Com isso, a análise
detalhada das esculturas e da ornamentação do templo mostraria às alterações graduais
empreendidas nas representações deste faraó e indicaria as diferentes mensagens a serem
passadas pelas mesmas. Porém, apesar destas idéias nos ajudarem a pensar o processo de
construção da imagem de Hatshepsut, não consideramos que as variações imagéticas de sua
figura obedeçam exclusivamente ao critério cronológico. É evidente que nos últimos anos de
reinado os atributos faraônicos, ou seja, masculinos, foram enfatizados, como podemos
perceber na diferença contida nas estátuas mencionadas, que retratam Hatshepsut como deus
Osíris, ambas localizadas no templo de Deir el-Bahri. Contudo, ao acrescentarmos à análise as
representações de Hatshepsut confeccionadas em relevo e as inscrições que as acompanham,
acreditamos que suas imagens obedeceram a critérios mais sutis e que ainda para períodos
tardios é possível encontrar o amálgama de atributos que fez das imagens da mulher-faraó
exemplos únicos na história egípcia.
A partir do sétimo ano, com a auto-proclamação de Hatshepsut como faraó do Egito
acompanhamos uma mudança significativa das imagens da mulher-faraó. Os atributos
masculinos provenientes de sua posição como soberano das Duas Terras começam a
sobrepujar os femininos.
Dentro do conjunto de imagens entronizadas de Hatshepsut, a estátua 4 mostra-se
diferente das que foram apresentadas. Podemos perceber na peça parcialmente destruída que
Hatshepsut é representada com o saiote shendyt e o corpo tem formas masculinas. A estátua 5
184
As características da arte egípcia e distinção do tom usado em representações de homens e mulheres está no
tópico 2 do capítulo I.
185
KELLER, C. The Statuary of Hatshepsut. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New
York, The Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 158
136
também, ao contrário da esfinge anteriormente analisada, não apresenta quaisquer atributos
femininos que indiquem que o faraó era uma mulher.
Outros exemplos mostram a total transformação de Hatshepsut em faraó com a
incorporação de todo os atributos masculinos provenientes de sua posição. As cenas de
coroação presentes nos relevos 4, 5 e 6 não fazem referências ao gênero feminino. Tal
ausência não é surpreendente, se levarmos em consideração que o deus dinástico está
coroando seu descendente, soberano do Egito que, a partir dessa ação associava-se à imagem
do deus falcão, Hórus.
Algo semelhante ocorre nas representações de Hatshepsut executando ritual (ver
relevos 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 15, 16, 17, 19, 20, 21/ estátuas 8, 9, 10). Tanto com relação ao
trajes quanto às insígnias observamos a representação de um faraó no auge de seu poder. As
inscrições também não indicam uma confluência de gêneros, o que demonstra que, com a
transformação de rainha regente para faraó foi necessária uma adequação das imagens
confeccionadas, tornando essas pertinentes ao discurso do cânone faraônico. Entretanto,
alguns exemplos demonstram que mesmo para o período em que Hatshepsut reinou como
faraó, havia alguns resquícios de aspectos femininos.
A estátua 11 mostra a soberana com indumentária faraônica e corpo masculino,
fazendo oferenda. Em sua base uma inscrição que a designa como Rei do Alto e Baixo
Egito, mas esta também possui palavras com terminações femininas. O mesmo ocorre no
relevo 24 e na estátua 7. No primeiro exemplo, o relevo mostra Hatshepsut masculinizada,
mas a inscrição, atacada na Antiguidade possui um símbolo ankh seguido por uma terminação
feminina. na estátua, é possível observar inscrições que faziam referência a Hatshepsut
usando formas masculinas e femininas.
No relevo 14 em que aparece sendo amamentada por Hathor, Hatshepsut é
representada com saiote masculino, mas possuindo seios na composição, exemplo único para
relevos do período.
Como mencionado anteriormente, um fator interessante é a ausência de representações
de Hatshepsut massacrando inimigos. Apesar de surgir em textos como o rei guerreiro
tradicional que restaurou maat, tema comum dentro da retórica faraônica, uma representação
iconográfica com essa temática nunca foi encontrada. Pensando na atividade militar como
algo atribuído a faraós guerreiros, imagem fortalecida no reinado de Thutmés III, surge a
seguinte questão: poderia ser a representação de um faraó, sabidamente uma mulher,
massacrando inimigos como um guerreiro varão algo demasiadamente audacioso, não
permitindo a confluência de atributos, fator tão comum nas imagens de Hatshepsut?
137
Conclusões são precipitadas, mas se levarmos em consideração que se tratava de uma
monarquia dual e que pesquisas apontam para a forte atuação de Thumés III no âmbito militar
no reinado de Hatshepsut, talvez tal representação não fosse um ponto central dentro do
discurso legitimador da mulher-faraó.
No anexo 1 um quadro em que são discriminados em cada fonte os aspectos
femininos e masculinos presentes na representação de Hatshepsut. Diante do que foi possível
analisar, fica claro que, após a auto-proclamação de Hatshepsut como faraó, suas imagens
sofreram mudanças significativas. Porém, no período regencial a inserção de atributos
masculinos/faraônicos em sua representação.
Com relação às composições executadas após o sétimo ano de reinado, concordamos
com autores que atribuem ao período a assimilação do discurso faraônico em sua totalidade.
Roland Tefnin tem razão ao afirmar que a construção de Deir el-Bahri, desenvolvida ao longo
do reinado, foi impactada por essa mudança. Entretanto, entendemos ter havido um processo,
em que as representações perderam gradativamente seus traços femininos, mas sem excluí-los
totalmente, como algumas imagens nos evidenciam.
As razões que levaram a essa progressiva ênfase no discurso faraônico são difíceis de
serem concluídas. Hatshepsut teve um governo próspero e estável, marcado pela reconstrução
de estruturas deterioradas e pela criação de novos monumentos. Com o crescimento do
herdeiro é possível que tenha ficado cada vez mais difícil à mulher-faraó justificar seu
domínio. É interessante notar que em nenhuma das representações analisadas, em que
Hatshepsut e Thutmés III aparecem juntos, são identificados traços ou inscrições que aludam
ao gênero feminino. Isso talvez possa ser explicado pelo fato de que ficaria difícil em cenas
em que os dois eram representados, colocar a preponderância numa figura possuidora de
características femininas. Durante o período entre a menoridade de Thutmés III, a regência e
os primeiros anos de reinado é provável que a presença de aspectos femininos não resultasse
em um problema. Com o passar do tempo, tornou-se cada vez mais necessária a ênfase na
legitimidade da soberana, daí a necessidade de um reforço das características inerentes a sua
posição como faraó, masculinas por excelência.
138
4.4 AS IMAGENS APAGADAS DE HATSHEPSUT
No capítulo anterior vimos que, após a morte de Hatshepsut, os monumentos
produzidos durante seu reinado foram sistematicamente atacados. Parte dos ataques foi
realizada durante a reforma religiosa do faraó Akhenaton (1353-1335 a.C.), em que imagens
de deuses, principalmente de Amon, foram destruídas. Um exemplo pode ser encontrado no
relevo 10, em que a mulher-faraó é figurada fazendo oferenda ao deus dinástico que foi
apagado da composição. Outro exemplo é que textos contendo a inscrição “Hatshepsut,
amada de Amon” foram destruídos com maior frequência do que as que continham o nome de
trono da soberana, maatkare, o que indica que os mesmos foram realizados nesse mesmo
período.
Apesar dos danos causados durante o reinado de Akhenaton, a maioria dos ataques foi
executada décadas antes e eram direcionados à imagem e ao nome de Hatshepsut. O foco da
destruição era às representações da soberana como um típico faraó. Imagens de Hatshepsut
com sutis características femininas e as que a representavam como uma mulher raramente
foram atacadas.
186
Os cartuchos contendo o nome de Hatshepsut foram corriqueiramente apagados, mas
em algumas ocasiões os nomes divinos de Ra e Amon que os acompanhavam eram deixados
intactos. As marcas do feminino na escrita egípcia, como o t e o estativo feminino tj, assim
como epítetos e títulos foram apagados em várias composições.
Segundo Ann Roth, oito técnicas podem ser percebidas nos ataques ao nome e à
imagem da mulher-faraó. A primeira delas seria a raspagem, que foi corriqueiramente usada
em pronomes e terminações femininas e algumas vezes em imagens. A silhueta das imagens
também podia ser lascada, ação executada na composição do relevo 22. Partes retangulares de
um conjunto eram tornadas ásperas para cobrir a figura e o nome da governante, como
ocorreu nos relevos 21 e 23. As imagens também podiam ser cobertas por uma camada de
gesso e essa técnica foi comum em algumas capelas de Deir el-Bahri. Já a substituição da
imagem de Hatshepsut por outros desenhos (mesa de oferendas, por exemplo) e do cartucho
da governante pelo de outros faraós (caso do relevo 24) foi uma técnica muito usada. A
representação de Hatshepsut podia ser parcialmente retirada e blocos remendavam a
composição sendo esculpidos com novos traços. Imagens localizadas em lugares sagrados,
como os obeliscos do templo de Karnak, podiam ter seus relevos cobertos. Por último, o
186
ROTH, Ann M. Erasing a reign.
In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The
Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 277.
139
desmantelamento de estruturas foi uma forma de supressão radical da imagem de Hatshepsut,
como ocorreu na Capela Vermelha. Nesse último caso acredita-se que a estrutura foi destruída
para a construção de um novo santuário para a barca de Amon.
187
Vimos que várias teorias procuraram explicar a destruição das imagens da soberana,
desde uma vingança do herdeiro afastado do poder por uma madrasta ambiciosa a uma
tentativa de se garantir a sucessão dos descendentes de Thutmés. Independentemente do
motivo, a tentativa de se apagar Hatshepsut do conjunto de deuses que governaram o Egito
como faraós demonstra que seu sexo não foi esquecido e que uma mulher como governante
do Trono das Duas Terras não correspondia à ordem estabelecida numa terra governada por
homens.
187
ROTH, Ann M. Erasing a reign. In: ROEHRIG, C. (Ed) Hatshepsut: from queen to pharaoh. New York, The
Metropolitan Museum of Art, 2005, 340 p. p. 277-80.
140
CONCLUSÃO
As informações a respeito da sociedade egípcia que são utilizadas com o intuito
muitas vezes frustrado de compreender a dinâmica de uma época milênios distante da
nossa, provêm, fundamentalmente, de uma pequena elite que foi capaz de concentrar os meios
necessários à construção de monumentos que resistissem à fúria contínua do tempo. O
comando do Egito estava concentrado nas mãos de um grupo que desenvolvia em torno de si
todo um discurso legitimador, perpassado por valores religiosos que justificavam e garantiam
sua primazia no poder.
De acordo com a crença, o deus criador deu origem a uma rie de divindades que
culminaram na figura do faraó, a quem foi dado o controle do Trono das Duas Terras. A partir
de sua ascensão como governante, o monarca adquiria um status especial que o diferenciava
do resto da humanidade ao ter sua imagem associada ao importante deus da religião egípcia,
Hórus. Como ser meio humano, meio divino, descendente da divindade criadora, o faraó
incorporava os atributos e as insígnias inerentes à sua posição no momento em que chegava
ao trono. Coroas e cetros faziam com que o soberano demonstrasse seu lugar enquanto
divindade, masculina por excelência. Além disso, esse traço da personalidade real era
constantemente reforçado através de um discurso que corroborava a monarquia divina, sendo
repetido nas paredes das construções monumentais executadas pelas ordens do monarca.
Assim, o poder e a divindade eram transmitidos, idealmente sem interrupções, de pai para
filho, de faraó para herdeiro. Contudo, observamos que questões terrenas dificultavam a
sucessão e acabavam se contrapondo à lógica estabelecida pela mitologia que amparava a
monarquia egípcia.
Apesar da conhecida importância atribuída às divindades femininas, estas atuavam
como complemento e contrapartida dos deuses, sendo necessárias para a criação e auxiliando
na manutenção da ordem do mundo. O reflexo desse arranjo é percebido na forma como as
consortes reais eram caracterizadas e representadas, ou seja, como um complemento vital para
141
o rei no referente à continuidade do poder. Prova disso são os mais variados títulos destinados
às rainhas que as categorizavam através de sua relação com a divindade do rei. Portanto, ser
mãe do rei, filha do rei ou esposa do rei era um importante papel dentro da estrutura
governamental e mitológica. Isso porque, como observamos, mesmo possuindo uma posição
privilegiada se comparada a outras sociedades, a mulher egípcia, inclusive das camadas que
ocupavam o centro do comando, tinha uma posição inferior à do homem.
O início da XVIII dinastia foi marcado pela existência de figuras femininas fortes que,
devido às lutas de reunificação, assumiram papeis importantes dentro da monarquia, atuando,
inclusive como regentes. Ahmés-Nefertari, rainha do primeiro monarca da dinastia, a quem
décadas mais tarde seria prestado culto como divindade protetora, foi honrada e atuou em
assuntos de Estado. Consideramos confirmada a hipótese segundo a qual o processo de
aumento da importância política e religiosa das rainhas alcançou seu ápice durante o reinado
de Hatshepsut. no período em que atuou como regente, a mulher-faraó enfatizou como
nenhuma outra rainha a sua posição com título sacerdotal “Esposa do deus Amon”, título
portado pela primeira vez por Ahmés-Nefertari; e, mais tarde, eternizou em pedras como sua
mãe, descendente dos reunificadores, através de uma ligação com o deus dinástico, havia
dado origem ao faraó do Egito, Maatkare.
Embora a existência de uma mulher como regente tenha sido algo aceitável e algumas
vezes estimulado para proteger o trono de um herdeiro menor de idade, a ascensão de uma
mulher como faraó apresentava-se como uma contradição, levando em consideração o
discurso que conectava a imagem do soberano a de deuses masculinos. A emergência de
Hatshesput como faraó a partir do sétimo ano de regência gerou a necessidade de dar ênfase
às ações legitimadoras que justificassem sua permanência no trono.
Observamos que, apesar das inovações identificadas no período regencial, como a
transferência de obeliscos e a representação da rainha com características femininas e
ornamentos faraônicos, Hatshepsut utilizou ferramentas corriqueiras dentro do discurso
monárquico e as temáticas escolhidas dificilmente apresentavam algo nunca antes utilizado.
Até os inovadores relevos do nascimento divino do rei, podem ser encarados de tal maneira, já
que foram a representação iconográfica de uma crença há muito utilizada por faraós e
registrada em inscrições de monumentos para legitimar a posição do soberano.
Acreditamos que a singularidade do reinado de Hatshepsut encontra-se na maneira e
na freqüência com a qual os temas do discurso faraônico foram utilizados. Poucos soberanos
antes de Hatshepsut souberam construir de maneira tão forte uma ligação com os deuses. A
constante ênfase em sua relação com o deus dinástico, Amon-Ra, mostrou-se uma importante
142
ferramenta para legitimar seu poder terreno. Cenas como a de sua coroação e de seu
nascimento divino mostravam que seu governo tinha o apoio dos deuses e era legítimo por ser
ela a herdeira de Amon, o que corrobora a segunda hipótese, que Hatshepsut utilizou
fortemente a figura dessa divindade para consolidar seu poder.
A idéia de um faraó mantenedor da ordem anteriormente destruída por agentes do caos
também fez parte dos temas usados por Hatshepsut durante seu reinado. Os melhoramentos
executados no templo de Amon em Karnak, com a construção da Capela Vermelha,
mostravam aos súditos que um governante poderoso estava no poder, servindo e auxiliando os
deuses na tarefa de manter a desordem longe do mundo organizado. Outra demonstração de
poder do monarca foi a construção do imponente e inovador templo de Deir el-Bahri, que em
alguns de seus relevos exibia a expedição a Punt realizada durante o reinado, em que foram
obtidos, dentre outras coisas, materiais necessários para o culto de Amon. A própria
construção do templo foi uma prova da prosperidade e do poder do faraó.
Outro aspecto evidenciado pelas fontes é que, em todas as composições nas quais
Hatshepsut aparecia com o herdeiro, ela tinha a primazia na cena, demonstrando quem era o
monarca no trono das Duas Terras. Thutmés III, apesar de ser descrito com reverência,
sempre tinha um papel secundário em relação à sua tia/madrasta. Contudo, é importante
salientar que mesmo tendo claramente Hatshesput o papel como governante exaltado nas
imagens, Thutmés III nunca deixou de ser representado. Tal ação deve-se à existência de uma
monarquia dual na qual dois faraós governavam o Egito, tendo um deles o controle maior.
Isso é coerente, pois acreditamos que havia uma necessidade intrínseca de manter a imagem
do herdeiro ligada à de Hatshepsut, mesmo depois do momento em que ela emerge como
faraó. Não devemos esquecer que foi para manter o trono do herdeiro menor de idade que
Hatshepsut começou sua regência. Assim, mesmo após o início de seu reinado faraônico,
representar Thutmés III ao seu lado, inclusive com este cultuando-a, reiterava a idéia de que
seu governo era legítimo, sendo respeitado até mesmo pelo herdeiro do faraó anterior.
Especificamente com relação à imagem de Hatshepsut, observamos uma gradual
transferência de representações com fortes características atribuídas ao gênero feminino para
imagens completamente masculinizadas da soberana. A dificuldade em atribuir uma data
precisa aos artefatos tornou a organização cronológica das fontes uma tarefa de difícil
realização. Porém, as representações deixam claro que, no seu período regencial, Hatshepsut
começa a usar terminologias e títulos faraônicos misturados com sua imagem feminina,
como a estátua em que aparece usando vestido e toucado real. A partir do sétimo ano e com
sua auto-proclamação como faraó, torna-se evidente que os aspectos associados a seu sexo no
143
cânone artístico egípcio perdem espaço para aqueles ligados à sua posição como faraó. Assim,
as representações da mulher-faraó perdem os contornos femininos e passam a ser o reflexo da
imagem de um soberano varão no auge de seu poder.
Esse processo foi intensificado ao longo dos anos e atribuímos esse fato a dificuldade
cada vez maior de justificar o poder da mulher-faraó com o crescimento de Thutmés III.
Como aventado na terceira hipótese dessa pesquisa, nota-se que nas imagens em que
Hatshepsut aparece com Thutmés III não há traços femininos, tanto iconográficos quanto
textuais. Contudo, em cenas nas quais a mulher-faraó é representada com deuses e,
principalmente, na estatuária ainda podem ser percebidos traços que indicam que o faraó era
uma mulher, mesmo que estes fossem diminutos diante de sua figura faraônica/masculina.
A posterior destruição de suas representações faraônicas demonstra que o reinado de
uma mulher, mesmo próspero e pacífico, não correspondia à ordem estabelecida milênios.
Assim como ocorreu com Sobekneferu, o reinado de Hatshepsut foi sistematicamente
apagado da memória tão cuidadosamente eternizada nas paredes de templos e de outras
construções. Além disso, o grafito que apresenta uma imagem supostamente de Hatshepsut
em coito anal com Senenmut evidencia que seu reinado, apesar das constantes tentativas de
legitimação não era aceito por todos.
A produção do reinado de Hatshepsut deixa claro que ela procurou usar todas as
possibilidades contidas dentro do discurso faraônico para reforçar seu poder como
governante. Sua ligação com Amon-Ra, a aprovação de seu pai humano, a subserviência do
herdeiro, as construções, a apresentação do culto à sua imagem ainda em vida foram algumas
estratégias utilizadas para afirmar que havia um soberano legítimo no poder.
Os ataques evidenciam que mesmo para os últimos anos de reinado, o gênero atribuído
ao seu sexo não foi totalmente sublimado, aparecendo em terminações femininas nas
inscrições que acompanhavam as representações ou em traços delicados nas estátuas que
tornam únicas as representações de Hatshepsut. Nos relevos, a imagem masculina de
Hatsheput contrasta, muitas vezes, com as inscrições que se referem a ela. Por ser uma arte
tridimensional, é na estatuária que encontramos os exemplos mais emblemáticos da
confluência dos gêneros na imagem da soberana. Em algumas figurações em que aparece
masculinizada ainda é possível perceber a delicadeza dos traços ou a cor amarelada presente
nas imagens de mulheres, fator reforçado nas inscrições que mesclavam títulos masculinos e
terminações femininas. Quando atentamos para a pequena quantidade de estátuas de
Hatshepsut que chegou aos dias atuais, é impossível não pensar nas obras que foram
totalmente destruídas e nos aspectos originais que elas deveriam conter. A arte no Egito, além
144
de produção ideológica, procurava capturar a permanência, a eternidade. Esta foi a arte
utilizada por Hatshepsut que, mesmo sem intentar tal coisa, deixou marcada na História a
existência de uma mulher que se fez faraó do país das Duas Terras.
145
ANEXO
Aspectos evidenciados pelas imagens
Relevo 1
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Vestido
- Coroa em forma de asa de abutre, portada
por rainhas
2
Aspectos
Masculinos
0
Relevo 2
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Utilização de uma túnica longa
- Coroa típica de rainha formada por dupla
pluma.
- Título “Esposa do deus Amon”
2
Aspectos
Masculinos
- Inscrição comemorativa do transporte de
dois obeliscos por Hatshepsut, ação
tipicamente real.
- Porta o ankh
2
Relevo 3
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Hatshepsut representada com uma longa
túnica, traje caracteristicamente feminino.
- Presença no cartucho do título “Senhora do
ritual”
2
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa real Khnum, formada por
duas plumas com chifre de carneiro e disco
solar.
- Presença no cartucho do título “Rei do Alto e
Baixo Egito”
- Representada fazendo sozinha oferenda ao
deus Amon, em uma ação caracteristicamente
faraônica.
3
146
Relevo 4
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- 0
Aspectos
Masculinos
- Utilização do nome de trono Maatkare
- Coroação por Amon-Ra
- Utilização da coroa azul
- Saiote shendyt
4
Relevo 5
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidad
e
numéri
ca
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Coroa khepresh
- Saiote shendyt
- Faraó coroado pelo deus Amon
3
Relevo 6
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro
Unidade
numéric
a
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Coroa khepresh
- Saiote shendyt
- Faraó coroado pelo deus Amon
3
Relevo 7
147
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Toucado real com uraeus
- Saiote triangular
- Aparece abraçando o deus Amon-Min
3
Relevo 8
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Toucado nemes
- Barba real
- Saiote triangular
- Faraó faz oferenda diretamente ao deus
Amon
4
Relevo 9
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- 0
Aspectos
Masculinos
- Toucado nemes com uraeus
-Barba real
- Saiote shendyt
- Faraó faz oferenda diretamente ao deus.
4
Relevo 10
148
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de terminações e pronomes
femininos.
1
Aspectos
Masculinos
- Faraó usa a coroa branca com uraeus.
- Barba real
- Saiote triangular
- Realiza oferenda para Amon
4
Relevo 11
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa azul (khepresh)
- Saiote com projeção triangular.
- Representado em posição ritual
- Inscrição nomeia Hatshepsut “Rei do Alto e
Baixo Egito”
4
Relevo 12
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Faraó usa a coroa atef
- Barba real
- Saiote shendyt
- Participação em ritual para delimitar o
terreno de um templo com a deusa Seshat.
4
Relevo 13
149
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Coroa atef
- Saiote shendyt
2
Relevo 14
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de seios 1
Aspectos
Masculinos
- Utilização de saiote curto
- Aparece se alimento da deusa Háthor
- Presença de seu nome de trono
3
Relevo 15
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa azul (khepresh)
- Saiote tradicional de faraó
- Oficiando o ritual
- Inscrição designando Hatshepsut como
“Senhor das Duas Terras”
4
Relevo 16
150
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Coroa atef
- Barba real
- Saiote triangular
- Cetro sekhem
- Primazia no culto a Amon
5
Relevo 17
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa azul (khepresh)
- Saiote tradicional de faraó
- Oficiando o ritual
- Inscrição designando Hatshepsut como
“Senhor das Duas Terras”
4
Relevo 18
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
-Representação de Hatshepsut como esfinge
-Presença do nome de trono
2
151
Relevo 19
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Uso da coroa dupla
- Símbolos de poder como o cetro e o flagelo
- Hatshepsut aparece representada como
Osíris
- Thutmés III aparece adorando Hatshepsut
4
Relevo 20
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Coroa azul com uraeus
- Saiote triangular
-Faraó aparece purificando o deus
3
Relevo 21
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Toucado nemes
- Barba real
- Saiote triangular
-Faraó aparece purificando o deus
4
152
Relevo 22
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Devido aos danos da imagem não é possível
analisar a presença de aspectos femininos.
Contudo, o ataque sofrido e a cena indicam a
inexistência de aspectos femininos na
imagem.
0
Aspectos
Masculinos
- Hatshepsut aparece com duas divindades
que, em cena ritualística, oferecem o símbolo
da vida ao faraó.
1
Relevo 23
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
Mesmo não sendo possível observar a
representação de Hatshepsut devido aos danos
da imagem, é possível que a mesma tenha
sido representada de forma idêntica a de
Thutmés III como ocorre em outras imagens.
- Toucado khat
- Saiote shendyt
- Oficiando o ritual à frente de Thutmés III
3
Relevo 24
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Terminação feminina contida na peça
original após o cartucho que, depois de
alterado, passou a ter o nome de Thutmés III
1
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa atef
- Barba real
2
153
Estátua 1
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Estátua de Hatshepsut representada em trajes
femininos, com saiote longo.
- Presença de seios no corpo da estátua
- Presença de títulos e epítetos femininos.
-Presença da imagem da deusa Taueret,
associada a proteção das mulheres grávidas e
crianças.
4
Aspectos
Masculinos
- Porta a coroa nemes, real atributo reservado
ao faraó.
- Hatshepsut aparece entronizada
- Presença do nome de trono Maatkare em
inscrição.
3
Estátua 2
Figura
de
referênc
ia
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Vestido longo
- Presença de seios
- Terminações femininas nas inscrições
3
Aspectos
Masculinos
- Utilização do toucado real khat
- Representação de Hatshepsut entronizada
- Presença de títulos reais nas inscrições
3
Estátua 3
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de seios
- Inscrição que a designa como “Senhora das Duas
Terras”
- Formas femininas de títulos reais
2
Aspectos
Masculinos
- Coroa nemes
- Saiote shendyt
- Hatshepsut aparece entronizada
- Nome de trono
- Ênfase em sua divinização
5
154
Estátua 4
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Representação de Hatshepsut entronizada
- Saiote shendyt
2
Estátua 5
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Representação sob a forma de esfinge
- Toucado real nemes
- Barba real
- Epíteto de Amon, juntamente com o
prenome do rei
4
Estátua 6
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de prenomes femininos 1
Aspectos
Masculinos
- Estátua em forma de esfinge
- Barba real
- Presença do nome de trono
3
Estátua 7
155
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de formas femininas na inscrição 1
Aspectos
Masculinos
- Toucado nemes
- Saiote shendyt
- Barba real
- Representação em atitude de devoção
- Formas masculinas na inscrição
5
Estátua 8
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Uso do toucado khat
- Barba real
-Porta vaso nemset com pilar djet conectando-
a com Osíris.
-Presença do nome do trono
4
Estátua 9
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Toucado khat
- Barba real
- Porta vaso nemset com pilar djet conectando-
a com Osíris
3
Estátua 10
156
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Presença de terminações femininas na
inscrição
1
Aspectos
Masculinos
- Toucado real nemes
- Barba real
- Saiote shendyt
- Texto indica que faraó oferece maat à Amon
4
Estátua 11
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Uso da coroa Branca
- Barba real
- Saiote shendyt
- Termo “poderoso Hórus”
4
Estátua 12
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Presença de coroa real não preservada
- Porta símbolos reais: ankh, báculo e chicote
- Barba real
3
Estátua 13
Figura de
Categoria
Unidade de registro
Unidade
157
referência Temática numérica
Aspectos
Femininos
- Estátua apresenta cor amarelada, típica das
representações femininas
1
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa dupla (não preservada)
- Representação de Hatshepsut sob a forma de
Osíris
2
Estátua 14
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidade
numérica
Aspectos
Femininos
- Estátua apresenta cor amarelada, típica das
representações femininas
1
Aspectos
Masculinos
- Utilização da coroa dupla
- Utilização da barba real.
- Representação de Hatshepsut sob a forma
de Osíris
3
Estátua 15
Figura de
referência
Categoria
Temática
Unidade de registro Unidad
e
numéri
ca
Aspectos
Femininos
0
Aspectos
Masculinos
- Presença de barba real
- O resto do turbante indica a utilização da
coroa dupla (pshenti).
- Tom de pele mais escura, típica de
representações masculinas.
- Representação sob a forma de Osiris
4
158
BIBLIOGRAFIA
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