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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educação e Humanidades
Instituto de Letras
Victoria Saramago Pádua
Contra a Luz:
Insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos
Rio de Janeiro
2010
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Victoria Saramago Pádua
Contra a Luz:
Insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade do estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Orientador: Prof. Dr. José Luis Jobim de Salles Fonseca
Co-orientador: Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha
Rio de Janeiro
2010
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CEHB
R175 Pádua, Victoria Saramago.
Contra a luz: insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos /
Victoria Saramago Pádua. – 2010.
150 f.
Orientador: José Luís Jobim de Salles Fonseca.
Co-orientador: João Cezar de Castro Rocha.
Dissertação (mestrado) Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Letras.
1. Ramos, Graciliano, 1892-1953 – Crítica e interpretação. 2.
Insônia na literatura – Teses. 3. Análise do discurso narrativo – Teses.
4. Ramos, Graciliano, 1892-1953 – Estilo literário – Teses. 5. Paulo
Honório (Personagem fictício) – Teses. 6. Luís da Silva (Personagem
fictício) – Teses. I. Fonseca, José Luís Jobim de Salles. II. Rocha,
João Cezar de Castro. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Letras. IV. Título.
CDU 869.0(81)-95
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta dissertação
__________________________ __________________
Assinatura Data
Contra a Luz:
Insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-
Graduação em Letras, da Universidade do estado do
Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura
Brasileira.
Aprovado em 26 de março de 2010.
Banca examinadora:
____________________________________________________
Prof. Dr. José Luís Jobim de Salles Fonseca (Orientador)
Instituto de Letras da UERJ
____________________________________________________
Prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha (Co-orientador)
Instituto de Letras da UERJ
____________________________________________________
Prof. Dr. Godofredo de Oliveira Neto
Faculdade de Letras da UFRJ
Rio de Janeiro
2010
Victoria Saramago Pádua
À memória do professor José Carlos Barcellos
AGRADECIMENTOS
“Eu sou eu e as minhas circunstâncias.” Passei a infância ouvindo meu pai repetir essa frase, e se
só há relativamente pouco tempo conheço sua autoria – José Ortega Y Gasset, filósofo espanhol
–, já há muito carrego comigo essas palavras. Circunstâncias são em grande medida criadas por
pessoas. As circunstâncias que possibilitaram não apenas esta dissertação, mas muito do que sou
hoje, não existiriam sem os seguintes:
Meus orientadores José Luis Jobim e João Cezar de Castro Rocha, pela inestimável orientação e
ajuda tanto nas questões intelectuais quanto nas de ordem prática, pelo convívio, pelas portas
abertas;
O corpo docente do Instituto de Letras da UERJ, pelos professores que me formaram
intelectualmente, agradeço a todos com carinho, em especial a Roberto Acízelo de Souza e
Marcus Vinícius Soares, que me orientaram na Iniciação Científica e na Monitoria em Literatura
Brasileira;
O corpo discente do Instituto de Letras da UERJ, da graduação e da pós, por me acompanharem
nesse longo caminho, e pelos grandes amigos dos quais já não me vejo separada. Um
agradecimento especial a Renan Ji, amigo quase irmão de alegrias e ideias;
O Clube de Leitura Entrando no Bosque e o Grupo Inacreditável de Estudos Literários, que me
ampliaram os horizontes e me puseram em convivência com pessoas maravilhosas;
Minha família: Ligia, José Augusto, Flora, Apparecida e Gilberto, Lúcia e João, Carminha,
Valentina e tantos outros essenciais às minhas circunstâncias primeiras, e a todas as outras;
Ao André, pelo passado, o presente, o futuro e tudo mais;
Às bibliotecas da UERJ, da PUC, do CCBB, da UFRJ, da Maison de France, Nacional e da
University of Oxford, pela equipe atenciosa, o excelente acervo e o silêncio;
À Faperj, pela bolsa de estudos;
Ao que quer que sejam as forças misteriosas pelas quais se criaram as atuais circunstâncias.
Uma lucidez que tudo via,
como se à luz ou se de dia;
e que, quando de noite, acende
detrás das pálpebras o dente
de uma luz ardida, sem pele,
extrema, e que de nada serve:
porém luz de uma tal lucidez
que mente que tudo podeis.
João Cabral de Melo Neto
Em alta madrugada,
o Passado e o Futuro,
de braços roçam
nos espaços ao som
de pássaros de outra
tarde.
Jacob Pinheiro Goldberg
RESUMO
PÁDUA, Victoria Saramago. Contra a luz: insônia, prosa de ficção e Graciliano Ramos. 2010.
150 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Instituto de Letras, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
A proposta primeira da dissertação Contra a Luz: insônia, prosa de ficção e Graciliano
Ramos é a de investigar desdobramentos narrativos do tema da insônia na prosa de ficção da
primeira metade do século XX. O primeiro capítulo, de um lado, traça um panorama histórico-
literário da insônia da Idade Média ao século passado e, de outro lado, propõe algumas
considerações de cunho psicanalítico sobre o tema. Pretende-se, assim, estabelecer alguns
argumentos-chave que se desenvolverão ao longo dos capítulos subseqüentes, a saber: o de que a
escuridão e o vazio noturno são altamente propícios à concentração na reflexão em detrimento da
ação e que, portanto, possibilitam uma excepcional exploração da subjetividade dos personagens
em questão. O segundo capítulo pensará tal situação no contexto da prosa de ficção moderna, a
partir de breves estudos das obras Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust; Livro do
desassossego, de Fernando Pessoa (sob o heterônimo Bernardo Soares); “Funes, o memorioso”,
de Jorge Luis Borges; e “Buriti”, de João Guimarães Rosa. Assim, serão expostas as maneiras
pelas quais, nessas obras, as cenas de insônia mostram-se essenciais tanto à proposição de uma
reflexão sobre a própria construção da narrativa, quanto permitem o aprofundamento psicológico
dos personagens e o experimentalismo formal. Estes dois eixos permearão a Parte II da
dissertação, que terá por foco a obra de Graciliano Ramos. O terceiro capítulo analisará a insônia
do personagem Paulo Honório, no romance S.Bernardo, em relação à composição da narrativa
feita por ele em suas noites em claro. O quarto capítulo, dedicado ao romance Angústia,
investigará a instalação de um clima angustiado e de experimentações narrativas a partir das
noites insones de Luís da Silva. Por fim, o quinto capítulo, abordando os contos “Insônia” e “O
relógio do hospital”, traçará algumas conclusões sobre a função da insônia no estilo de
Graciliano Ramos, e proporá também algumas considerações finais acerca de toda a dissertação.
Palavras-chave: Insônia. Prosa de Ficção. Modernidade. Graciliano Ramos.
ABSTRACT
The main proposal of Against the Light: insomnia, prose fiction and Graciliano Ramos is
to investigate narrative developments of insomnia in early 20
th
Century fiction. The first chapter,
on the one hand, traces a historical and literary panorama of insomnia from the Middle Ages to
the past century and, on the other hand, proposes some reflections on the theme through a
psychoanalytic bias. Thus, it establishes some key arguments that will be developed in the next
chapters, namely: that darkness and nocturnal emptiness may be highly propitious to the
concentration on thought rather than action and that, therefore, both enhance an exceptional
exploration of the characters’ subjectivity. The second chapter thinks such situation within the
context of modern fiction, through Marcel Proust’s In Search of Lost Time, Fernando Pessoa
(under the heteronym of Bernardo Soares)’s Book of Disquiet, Jorge Luis Borges’ “Funes the
Memorious” and João Guimarães Rosa’s “Buriti”. It is possible to envision, in these works, how
insomnia episodes turn out to be essential to think the narrative composition itself, as well as to
the characters’ psychological development and formal experiments. These two axes will pervade
the second part of the thesis, which is focused on Graciliano Ramos’ works. The third chapter
analyzes Paulo Honório’s insomnia, in the novel S. Bernardo, in relation to the narrative
composition itself made by him during his sleepless nights. The fourth chapter, concentrated on
the novel Angústia, investigates the establishment of an anguished atmosphere and of some
narrative experiments, based on Luís da Silva’s insomnia. Finally, the fifth chapter, aproaching
the short stories “Insônia” and “O relógio do hospital”, traces some conclusions on the function
of insomnia in Graciliano Ramos’ style, and gives place to some final words concerning the
whole thesis.
Keywords: Insomnia. Prose fiction. Modernity. Graciliano Ramos.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................13
Uma ideia insone.....................................................................................................................13
Hipótese e estrutura................................................................................................................16
PARTE I: INSÔNIA...............................................................................................................19
Capítulo 1. “AGORA PERURO A ESCURIDÃO”...............................................................19
1.1. Um breve histórico............................................................................................................22
1.1.1. Idade Média e início da Era Moderna: “A noite contém o que se quiser colocar nela”.....22
1.1.2. Revolução industrial e romantismo: “Vacuidade, Escuridão, Solidão e Silêncio”............24
1.1.3. A modernidade: “Nesta luz clara e triste, intensa e vacilante, prosaica e
fantasmagórica”
.........................................................................................................................30
1.1.4. “Faça-se a luz!”...............................................................................................................33
1.2. Algumas considerações de fundo psicanalítico................................................................37
1.2.1. Insônia e consciência: a retirada do mundo exterior..........................................................37
1.2.2. “O tempo à noite é muito mais subjetivo”.........................................................................39
1.3. Kafka e Huysmans............................................................................................................41
1.3.1. Kafka: “Só sonhos, nada de sono.”..................................................................................41
1.3.2. Às avessas: entre Zola e Joyce.........................................................................................44
Capítulo 2. CONTRA A LUZ: PROUST, PESSOA, BORGES, GUIMARÃES ROSA......48
2.1. Marcel ou Sherazade: em busca de mil e uma noites.....................................................50
2.2. Bernardo Soares e as indigestões da alma.......................................................................56
2.3. Irineo Funes: a memória como estância..........................................................................62
2.4. Chefe Zequiel: o insone das almas do Brejão-do-Umbigo..............................................67
2.5. Conclusão do capítulo......................................................................................................72
PARTE II: GRACILIANO RAMOS......................................................................................75
Capítulo 3. S. BERNARDO.....................................................................................................75
3.1. O olho torto ou o bezerro-encourado...............................................................................75
3.2. Da confissão à ficção.........................................................................................................77
3.3. O pio das corujas e o descaroçador..................................................................................80
3.4. Noite e outra noite.............................................................................................................84
3.5. A consumação do processo...............................................................................................90
3.6. A casa de máquinas..........................................................................................................96
Capítulo 4. ANGÚSTIA...........................................................................................................99
4.1. Espaços e alternâncias....................................................................................................101
4.2. As insônias de Luís da Silva...........................................................................................108
4.2.1. Fechar os olhos, abrir os ouvidos...................................................................................108
4.2.2. Experimentações............................................................................................................110
4.3. As infrações de Luís da Silva..........................................................................................115
4.3.1. O funcionário público e o cangaceiro.............................................................................115
4.3.2. Contravenções noturnas.................................................................................................118
4.4. Conclusão do capítulo.....................................................................................................123
Capítulo 5. INSÔNIA E CONCLUSÃO: “SIM OU NÃO?”...............................................124
5.1. Estranho lirismo.............................................................................................................124
5.1.1. “O relógio do hospital”..................................................................................................126
5.1.2. “Insônia”........................................................................................................................129
5.1.3. O estilo “Veni-vidi-vici”.................................................................................................133
5.2. Considerações finais ......................................................................................................137
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................140
13
INTRODUÇÃO
Uma ideia insone
É difícil determinar onde e quando começaram a tomar forma os argumentos contidos
nesta dissertação. Personagens insones atravessam toda a história da literatura, de Gilgamesh a
Molly Bloom, e percebo-os presentes também ao longo de minha pequena história como leitora.
Lembro-me então das noites distantes da minha pré-adolescência em que lia pela madrugada
adentro até me encontrar, como quem inadvertidamente ultrapassa uma porta estreita, naquele
quase universo paralelo que era a madrugada, a casa vazia, o silêncio, a escuridão espreitando
por detrás das lâmpadas. Como se pairasse no ambiente, a palavra misteriosa e há pouco
aprendida num conto de Machado de Assis – misantropia – tomava novas proporções.
Por muitos anos estive esquecida do misantropo d’ “A mulher de preto”, bem como de
Luís Soares, o protagonista de outro conto do mesmo volume Contos fluminenses. Que as frases
de Machado são sempre escorregadias, isto já é sabido, mas ainda assim, na época, levei longos
minutos meditando sobre o parágrafo de abertura de “Luís Soares”:
Trocar o dia pela noite, dizia Luís Soares, é restaurar o império da natureza corrigindo a obra da
sociedade. O calor do sol está dizendo aos homens que vão descansar e dormir, ao passo que a
frescura relativa da noite é a verdadeira estação em que se deve viver. Livre de todas as minhas
ações, não quero sujeitar-me à lei absurda que a sociedade me impõe: velarei de noite, dormirei
de dia. (MACHADO DE ASSIS, 1997, p. 44).
Com todo o cinismo do personagem mimado e abastado a lhe auto-justificar a falta de
disposição para a ação e o trabalho – temas aliás já tão abordados na fortuna crítica de Machado
–, ainda assim parecia haver nessas frases algo de fugidio porém quase inegável: que a noite tem
esse poder estranho de nos reduzir as ações, bem como de limitar o alcance das “leis impostas
pela sociedade”.
Muitos anos separam essas primeira conjecturas das minhas visitas à Tate Modern, e
entretanto vejo uma linha reta ligando uma a outra. Eu já tinha então mais ou menos delineada a
ideia deste trabalho quando fui à galeria londrina, quando estive naquela determinada sala inteira
dedicada ao expressionista abstrato russo-americano Mark Rothko. As obras datavam de um
período específico, os anos 1958 e 1959, momento em que o pintor, já no início da depressão que
14
o levaria ao suicídio em 1970, trocava as cores vivas de suas obras anteriores por tonalidades
sombrias: o negro, o vinho, o cinza. Ficavam todas juntas numa sala retangular com um banco de
madeira no meio, todas escuras demais. Havia muito de arroxeado no ambiente.
A meu ver, as nuances entre as tonalidades ocupam o cerne das pinturas de Rothko, e por
isso seria tão importante, num primeiro momento, estarem os quadros absolutamente visíveis.
Não era este o caso, porém: a sala com as obras de Rothko estava escura, quase tão escura
quanto as próprias obras. A sala de Rothko era algo como uma penumbra arroxeada. Quem nela
entrasse poderia pensar que os funcionários se esqueceram de acender as luzes, ou talvez se
imaginasse numa súbita queda de energia elétrica. Confesso que as duas hipóteses me passaram
inicialmente pela cabeça, não sem certa irritação com a falta de visibilidade, que durou até
sentar-me no banco ao centro para observar cada obra, até os retângulos e quadrados negros em
fundo vinho saltarem na penumbra, até sentir como que recuperada essa estranha lucidez das
minhas antigas madrugadas insones, sozinha com um abajur ao meu lado, e à minha volta só
trevas. Trocar o dia pela noite, livrar-me da necessidade da ação e das leis impostas pela
sociedade: a sabedoria às avessas de Luís Soares me incomodava tanto quanto a leitura posterior
das seguintes frases:
O “misterioso Oriente” do qual falam os ocidentais se refere provavelmente ao estranho silêncio
destes locais escuros. E ainda mesmo nós, quando crianças, sentiríamos um inexprimível arrepio
ao ingressar nas profundezas de uma alcova jamais penetrada pela luz do sol. Onde se encontra a
chave desse mistério? Em última instância, é a mágica das sombras. Se fossem as sombras
banidas destes recantos, a alcova naquele instante se transformaria em mero vazio.
1
(TANIZAKI,
2001, p. 33).
Neste fascinante ensaio que é In praise of shadows [Elogio da sombra], o romancista
japonês Junichiro Tanizaki pensa as diferenças entre as culturas oriental e ocidental com base
nesta atração que a primeira teria pela sombra e a penumbra, pelos ambientes fracamente
iluminados, pelo parcialmente visível, em contraste com a ânsia do Ocidente pela iluminação tão
completa quanto possível de todo o ambiente, elevada ao seu grau máximo com o advento da
eletricidade na virada do século XIX para o XX. Publicados originalmente em 1933, os
argumentos de Tanizaki se tratam basicamente da cultura japonesa tradicional, e abordam
1
Todas as traduções de obras em língua estrangeira são de minha autoria, exceto quando indicado.
15
justamente seu processo de ocidentalização. Ainda assim, a pergunta permanece: onde se
encontra a chave dessa misteriosa mágicas das sombras, dessa escuridão cheia de significado?
Pois eram essas as questões que me colocavam a sala arroxeada de Rothko, as madrugadas
passadas à luz do abajur, a “frescura relativa da noite”, “verdadeira estação em que se deve
viver”.
Esta dissertação é uma tentativa de investigar tais questões no contexto da narrativa das
primeiras décadas do século XX, através da análise mais direta da obra de Graciliano Ramos,
como explicarei na próxima seção. De imediato, recordo aquelas décadas em que a eletricidade
começava a iluminar os espaços escuros deixados pela iluminação a gás, quando Freud e a
psicanálise começavam a lançar luzes sobre os espaços escuros da psique humana, quando os
surrealistas, dadaístas, futuristas e outras vanguardas lançavam luzes sobre os espaços escuros da
linguagem. Quando o movimento nas ruas das cidades se estendia a horas tradicionalmente
limitadas pelo toque de recolher, quando permanecer acordado se tornava não exatamente um
hábito generalizado, mas um hábito possível, e quando, acima de tudo, escrever à noite se
tornava viável e mesmo desejável, são estes o período e o processo que aqui abordo. Pois se,
como sustenta Ricardo Piglia em El último lector [O último leitor], “a história da leitura é
também a história da iluminação” (PIGLIA, 2005, p. 146), se “a luz da lanterna de Anna
[Karenina] é a metáfora da luz do leitor, do isolamento do leitor na escuridão” (Ibid., p. 147), é
pertinente considerar que as relações entre o viver à noite e o fazer literário tomam, a partir da
iluminação a gás e sobretudo com a eletricidade, novas proporções. Pois este leitor isolado na
escuridão é também o autor que produz seus livros no silêncio da madrugada, e é ainda o
indivíduo que, embora alheio à literatura e à criação artística, encontra nesse significativo vazio
noturno esta espécie de universo paralelo, no qual suas ideias e sentimentos podem fluir quase
sem interferências externas. E é também pertinente supor que, transformados o leitor, o autor e o
terceiro indivíduo em personagens, esse viver à noite – em outras palavras, a insônia – tenha
desdobramentos interessantes nas características da prosa do período.
Hipótese e estrutura
16
Minha hipótese central, portanto, é a de a insônia de tais personagens se revela por vezes
um aspecto essencial ao argumento, à organização dos episódios, ao desenvolvimento da trama
e/ou a experimentações formais, na medida em que abre na narrativa espaços especialmente
propícios à expressão da subjetividade dos personagens. Isolados do mundo exterior, imersos na
escuridão e nesse silêncio cheio de significado, resta-lhes sobretudo a luz interior de seus
pensamentos, além de uma eventual vela ou lâmpada que os permita colocar o que pensam no
papel. A partir daí, como veremos, a insônia se torna um recurso bastante válido e mesmo
frequente para desenvolver algumas das características mais destacadas do que entendemos por
prosa de ficção moderna.
Para tanto, este trabalho está dividido em duas partes e cinco capítulos. A primeira
abordará aspectos gerais dessa relação possível entre insônia e prosa de ficção em perspectiva
comparada, ao passo que a segunda se concentrará na obra de Graciliano Ramos. A Parte I
constitui-se de dois capítulos; a Parte II, de três.
No primeiro capítulo, será traçado um rápido panorama da noite e da insônia, da Idade
Média ao início do século XX. Será pensada, a princípio, a imagem da noite como o período em
que forças incontroláveis vêm à tona, mas também como um tempo de reflexão e oração.
Passando brevemente por tópicos como as ideias de Edmund Burke acerca do sublime, pela
ficção gótica, pelo romantismo, pelo crescimento urbano, pelo desenvolvimento da iluminação a
gás e posteriormente da luz elétrica, entre outros, perceberemos como as relações entre o homem
e a noite foram se modificando e, ao mesmo tempo, como aspectos geralmente ligados ao
noturno foram ganhando novas nuances. Em seguida, serão tecidas algumas considerações sobre
a insônia por uma perspectiva psicanalítica. Meu intuito aqui não é o de propor um viés
psicanalítico para a interpretação das obras, mas o de pensar como as ideias de Freud e seus
seguidores se mostram afinadas com certos traços das figurações da noite e da insônia na
literatura do período. Por fim, algumas reflexões sobre as obras de Franz Kafka e Joris-Karl
Huysmans introduzirão os argumentos abordados no capítulo seguinte.
O segundo capítulo se focará mais propriamente em questões narrativas, e na importância
da insônia dos personagens ao seu desenvolvimento. Para isso, serão abordadas quatro obras, de
quatro autores distintos. Inicialmente, uma breve análise de Em busca do tempo perdido, de
Marcel Proust, mostrando como o personagem Marcel condiciona toda a escrita do romance às
17
horas insones, pensará o problema da autoconsciência do romance. Em seguida, a partir do Livro
do desassossego, de Fernando Pessoa – sob o heterônimo Bernardo Soares –, será discutida a
desconstrução de uma noção sólida e inteiriça de indivíduo, com base nas indagações feitas por
Soares sobre o vazio noturno. Em terceiro lugar, uma análise do conto “Funes, o memorioso”, de
Jorge Luis Borges, tratará das relações entre insônia e memória, tendo o próprio Borges se
referido à prodigiosa memória de seu personagem como uma metáfora da insônia, como veremos
adiante. Por fim, a novela “Buriti”, de João Guimarães Rosa, integrante de seu Corpo de baile,
abordará a técnica narrativa do fluxo de consciência, em contraste com uma narração mais linear,
com base na insônia aterrorizante do Chefe Zequiel.
Entrando então na Parte II da dissertação, tem início o estudo da obra de Graciliano
Ramos, certamente o autor brasileiro que, neste período, explorou com mais agudeza o motivo
da insônia em suas obras, e pensou suas relações com os processos de urbanização e
modernização por que passava a Alagoas da época. Ainda que muitas ideias relevantes pudessem
se colocar em análises de Caetés e Vidas secas, o presente trabalho se concentrará nos romances
S. Bernardo e Angústia, e nos contos “Insônia” e “O relógio do hospital”.
Dedicado a S. Bernardo, o terceiro capítulo investigará as maneiras pelas quais a insônia
do protagonista Paulo Honório, pontuando a narrativa no início, no meio e no fim, cria uma
espécie de nível paralelo, a partir do qual o fazendeiro reflete sobre sua trajetória e compõe o
texto que seria a matéria do romance. Veremos como o desenvolvimento da insônia de Paulo
Honório está intimamente ligado ao progressivo desmonte de seu instinto de propriedade para
com os demais, e à perda de sua capacidade de reificar a tudo e a todos. Veremos também como
seu processo noturno de escrita sugere a entrada numa outra noite, para usar as ideias de
Maurice Blanchot, na qual a busca pela obra é também a busca por Madalena. A insônia de
Paulo Honório como meio para esta reflexão metaficcional, portanto, revela esse pensar do
romance sobre si mesmo, tão característica da narrativa moderna.
Em seguida, o quarto capítulo, concentrando-se em Angústia, partirá das noites insones
de Luís da Silva para pensar, de um lado, a instalação de um clima angustiado na narrativa que
culminará no assassinato de Julião Tavares e, de outro lado, experimentações narrativas próprias
da modernidade, como o monólogo interior e o final aberto do livro. Veremos como, à
semelhança do que ocorre com o pio da coruja e as badaladas do relógio em S. Bernardo, os
18
traços auditivos mostram-se fundamentais à delineação destes espaços de desespero e
introspecção que marcam as noites em claro de Luís da Silva, em contraste com os episódios
ambientados nas ruas da cidade, de caráter predominantemente visual, e em relação ao ambiente
misto do quintal. Veremos também como o estar fora do perímetro urbano e do período diurno
configuram um ambiente viável à cena do assassinato, através de uma concepção mais arcaica da
noite.
Por fim, o quinto capítulo, analisando os contos “Insônia” e “O relógio do hospital”,
identificará alguns elementos recorrentes no estilo e nos motivos empregados por Graciliano,
através dos quais perceberemos por que a insônia representa um recurso tão rico e interessante
em sua obra. Serão finalmente traçadas algumas considerações finais, concernentes aos
argumentos desenvolvidos ao longo de todo o trabalho.
19
Parte I
Capítulo 1
“Agora perfuro a escuridão”
Na Chicago de 1886, o advogado e acadêmico Franklin Head publicou um pequeno e
curioso volume, intitulado Shakespeare’s insomnia and the causes thereof [A insônia de
Shakespeare e suas causas]. Com base na ideia de que “cada homem não escreve senão a partir
de sua própria experiência.” (HEAD, 1886, p. 8), Head, justificando a compilação de uma série
de trechos dos dramas shakespearianos nos quais seus personagens vivem noites insones ou
enfrentam problemas para dormir, sustenta que, se Shakespeare efetivamente sofreu de insônia
durante sua vida, então “devemos encontrar suas sombrias experiências – suas horas de patética
miséria, suas noites de desolação – presentes na voz de seus homens e mulheres.” (Ibid., p. 11).
O objetivo do autor revela-se assim o de estabelecer uma ponte entre tais personagens e uma
hipotética insônia do dramaturgo. Para tanto, após reproduzir inúmeros trechos de suas peças,
Head apresenta uma seleção de cartas dirigidas a Shakespeare – retiradas dos manuscritos de
Southampton –, em sua maioria acerca de transações comerciais e questões jurídicas, “referentes
a problemas que tendessem a perturbar o sono do poeta.” (Ibid., p. 50).
Por um lado, a proposta de Head não se cumpre, na medida em que não há prova cabal de
que os problemas expostos nas cartas tivessem de fato resultado numa insônia do bardo, nem que
a insônia de seus personagens seja consequência direta da insônia de seu autor. Por outro lado, as
razões expostas por Head para empreender tal estudo, bem como as conclusões a que chega,
ambas colocam de maneira bastante interessante os dois pontos principais a serem discutidos
neste capítulo: as figurações da insônia no próprio período em que Head escrevia, isto é, neste
final do século XIX e início do XX, e sua possível correlação com a criação literária. Vejamos
como o professor aborda cada assunto.
Head abre seu livro com a afirmação de que a “insônia, a falta do ‘doce restaurador da
Natureza fatigada’, está se tornando rapidamente o grande terror de todos os homens de vida
20
ativa que passaram da idade dos trinta e cinco ou quarenta anos.” (Ibid., p. 5). Pouco depois,
comenta que, “nos últimos anos, está na moda a literatura sobre o assunto atribuir a falta de sono
à crescente facilidade com que qualquer tipo de atividade pode ser levada a cabo.” (Ibid., p. 6).
Sua justificativa, ainda que mais afinada ao contexto norte-americano de fins do século XIX do
que à Inglaterra elisabetana, não deixa de ser digna de nota:
A aniquilação, em termos práticos, do tempo e do espaço por nossos telégrafos e estradas de
ferro, a consequente compressão do trabalho de meses em horas ou mesmo minutos, a
extraordinária competição em todos os tipos de negócios tornada então possível e inevitável, a
intensa atividade mental gerada pela insana corrida por fama e riqueza, em que os nervos e a
força mental do homem são medidos contra o vapor e o relâmpago, – estes são alguns dos fatores
usualmente apontados como causas daquela que é considerada uma doença moderna e quase
distintivamente americana. (Ibid., p. 6-7).
Ora, se Head se propõe investigar a insônia de Shakespeare, como considerá-la “uma
doença moderna e quase distintivamente americana”? A despeito da efervescência econômica e
comercial que marcou o reinado de Elizabeth I, não seria plausível, por exemplo, pensá-la no
contexto da “aniquilação, em termos práticos, do tempo e do espaço por nossos telégrafos e
estradas de ferro”. Ainda assim, há algo de pioneiro nas ideias de Head. Pois o interessante aqui
é notar como esse anacronismo inerente aos seus argumentos deixa transparecerem, de um lado,
as interferências dos processos acima expostos na dinâmica entre sono e vigília da população
sobretudo americana da virada do século XIX para o XX, e, de outro lado, nos deixa entrever as
dimensões mais amplas que deram origem a esse quadro. Afinal, se o processo exposto por Head
remete inevitavelmente à nascente sociedade capitalista e altamente competitiva que marcava a
Chicago da época, faz ecoar também, além do caso de Shakesperare, a reorganização dos
padrões de sono resultante das novas formas de iluminação – desde as lâmpadas a gás tão bem
descritas, por exemplo, por Walter Benjamin (2007) nas suas Passagens, como veremos adiante;
até a iluminação elétrica vastamente difundida nos dias atuais –; e remete também ao que
Murray Melbin (1978) classifica de a “colonização da noite”, representada sobretudo pelo
avanço do trabalho pelo período noturno após o avanço no espaço; e assim à formação de uma
“sociedade 24 horas” tão defendida por autores como Leon Kreitzman.
2
2
Em seu The 24 Hour Society [A sociedade 24 horas], Kreitzman afirma um tanto entusiasticamente, por exemplo,
que “novos padrões de atividade devem se refletir em novas tendências relativas à economia e ao ambiente de
trabalho. Devemos chegar a um acordo com o novo mantra da flexibilidade e com as novas oportunidades de
21
Todos esses aspectos levam ao surgimento de maneiras de lidar com a noite diversas
daquela que, segundo Roger Ekirch, era conhecida antes do século XVIII como “reclusão”, isto
é, “a hora de barrar as portas e aferrolhar os postigos assim que os cães de guarda estiverem
soltos do lado de fora das casas.” (EKIRCH, 2005, p. XXXII).
Em segundo lugar, já no fechamento de seu estudo, Head afirma que a insônia de
Shakespeare se manifestou devido a vários fatores, como turbulências no trabalho, mas também
porque “se deslumbrou e se perdeu pelo ‘brilho que reside nos olhos de uma mulher.’ Por mais
admirável que fosse o talento do mestre, era ele ainda humano como qualquer um de nós.”
(HEAD, 1886, p. 58). O mais intrigante dessa passagem, para os objetivos deste trabalho, é que
Head, tão cuidadoso ao mostrar que o mestre era “humano como qualquer um de nós”, tenha
deixado escapar o que seria um dos mais previsíveis motivos para uma eventual insônia de
Shakespeare: a preocupação com a produção de sua própria obra. Se tal omissão é sintomática da
visão apresentada pelo autor acerca da aceleração típica dos tempos modernos e sua
característica “doença norte-americana”, ela leva o leitor a ignorar uma certa “dimensão
metafísica” da insônia, como coloca Michèle Manceaux em seu Éloge de l’insomnie, ao
especular que, possuindo essa dimensão “uma origem essencialmente cerebral” (MANCEAUX,
1985, p. 20), os que dela participam teriam acesso a uma “‘segunda visão’ que é talvez a
primeira.” (Ibid., p. 21). Estabelecer-se-ia, portanto, um estado altamente alerta, no qual “os
pensamentos noturnos brilham num estranho esplendor.” (ZYGOURIS, 1995, p. 173) e, por isso
mesmo, propenso à criação literária.
Para investigar a questão, proponho dividi-la em três partes. Na primeira, traçarei um
breve mapeamento da relação do homem com a noite, desde a Europa pré-industrial até a difusão
das iluminações a gás e elétrica. Apresentarei, dessa maneira, alguns aspectos cuja herança
considero relevante ao conteúdo a ser desenvolvido ao longo da dissertação. Na segunda parte,
desenvolverei algumas possíveis aproximações entre o estado noturno e a criação literária.
Sempre em fundamental diálogo com as obras e os movimentos literários, a primeira parte
partirá de uma perspectiva histórica, ao passo que a segunda se pautará principalmente por um
viés psicanalítico. Na terceira parte, por fim, analisarei brevemente a insônia de Kafka e a que se
consumo e atividade oferecidas pela sociedade noite-e-dia. Em essência, temos de aprender a adaptar-nos à
inexorável extensão dos nossos dias e a um apagamento das linhas temporais.” (KREITZMAN, 1999, p. 3).
22
desenvolve no romance Às avessas, de Joris-Karl Huysmans. Perceberemos, então, a partir dos
argumentos e exemplos expostos, como a condição insone pode se mostrar fortemente
compatível com o desenvolvimento daquilo que caracterizamos como uma prosa moderna.
1.1. Um breve histórico
1.1.1. Idade Média e início da Era Moderna: “A noite contém o que se quiser colocar nela”
Em janeiro de 1882, quando alguém ligou o interruptor das primeiras lâmpadas de rua que
utilizaram aquela grande invenção [a eletricidade], nossa percepção do mundo mudou para
sempre. Rayner Banham afirmou que foi “a maior revolução ambiental na história da humanidade
desde a domesticação do fogo.”
3
(ALVAREZ, 1996, p. 30).
Nestes termos, Al Alvarez resume as primeiras impressões da noite após a implantação
da luz elétrica. Com efeito, o advento da eletricidade tanto marca o auge de um longo
desenvolvimento e difusão de tecnologias relativas à iluminação artificial, quanto traz consigo
toda uma reformulação da imagem e da função da noite na vida cotidiana e no imaginário social.
Na obra At day’s close: a history of nighttime [Ao cair da noite: uma história do período
noturno], Roger Ekirch traça um panorama da noite na Idade Média e no início da Era Moderna.
Assinalando a negligência com que o tema vem sendo tratado por historiadores – “o período
noturno tem permanecido uma terra incognita de interesse periférico, a metade esquecida da
experiência humana, embora as famílias tenham passado longas horas na obscuridade.”
(EKIRCH, 2006, p. XXV) –, Ekirch, ao documentar as diversas figurações da noite presentes
nos séculos em questão, traz à tona os motivos pelos quais a escuridão se mostrou ao mesmo
tempo fonte de constantes ameaças e um espaço privilegiado à reflexão e ao autoconhecimento.
Entre as principais constatações de Ao cair da noite, está a de que a privação da visão –
“o mais valioso dos sentidos humanos” (Ibid., p. 8), diz Ekirch – é um aspecto crucial ao
surgimento de sensações de insegurança e perigo. A ausência de iluminação pública, mesmo
dentro das áreas urbanas, fazia das ruas medievais lugares altamente sujeitos à ação de
criminosos, escondidos em meio à escuridão. Mesmo com as muralhas das cidades separando-as
3
Tradução de Luiz Bernardo Pericás e Bernardo Pericás Neto.
23
das florestas cerradas ao redor, mesmo com as rondas de sentinelas – muitas vezes elas próprias
contraventoras – pelas ruas durante a madrugada, e mesmo com as trancas nas portas, ainda
assim era a noite o período no qual a maioria dos atos violentos tinha lugar. Some-se a isto o
risco iminente de incêndios, devido à iluminação baseada no fogo, o que resultou no “curfew” –
adaptação inglesa do termo francês “couvre-feu” –, ou a ordem de apagar as luzes (normalmente
velas de gordura ou lâmpadas a óleo) num determinado horário estipulado pelas autoridades
locais. Viagens noturnas só deveriam ser empreendidas em último caso, devido tanto às chances
de o viajante se perder quanto às potenciais ameaças trazidas pela mata fechada. Acrescente-se a
frequente piora do estado dos doentes ao longo da madrugada, devido em parte ao
enclausuramento dos quartos fechados: “acreditava-se que o ar úmido da noite, ao entrar nos
poros da pele, colocava em perigos os órgãos saudáveis.” (Ibid., p. 13). Acrescente-se ainda a
ampla gama de lendas e crenças populares, segundo as quais a noite seria o reino de bruxas,
duendes, espíritos maléficos e outros seres sobrenaturais. Era basicamente à noite que as forças
demoníacas se manifestavam, como coloca Jean Verdon (1994) no primeiro capítulo de La nuit
au Moyen Âge [A noite na Idade Média]. Afinal, ao lado da violência e dos riscos reais de
incêndios, acidentes e dos perigos da locomoção, “a noite”, segundo Alvarez, “contém o que se
quiser colocar nela, e como não se pode ver, ou se pode ver muito pouco, ela dá a sua
imaginação um espaço ilimitado para trabalhar.” (ALVAREZ, 2006, p. 27).
Significativo é que esse “espaço ilimitado” para a ação da mente humana abra também
espaço à reflexão, à subjetividade, à oração. “A noite pode ser um tempo de memória,
arrependimento e reminiscência.” (DEWDNEY, 2004, p. 262), argumenta Christopher Dewdney
em seu Acquainted with the night: excursions through the world after dark [Familiarizado com a
noite: excursões pelo mundo às escuras]. A noite era o palco principal de orações, atos
devocionais e leituras religiosas, ao longo da Idade Média e do início da Era Moderna, tanto para
católicos quanto para protestantes. Jean Verdon sustenta que tanto religiosos quanto laicos
participavam de vigílias noturnas, e identifica diversas obras de autores do fim da Antiguidade
ao fim da Idade Média que estabeleciam uma “mística das trevas”, isto é, uma intrínseca relação
entre a escuridão e a revelação de verdades divinas. “À noite”, diz, Verdon, “o homem não
percebe mais o mundo visível, de modo que se aproxima melhor do invisível. É então que pode,
dentro da tradição judaico-cristã, reencontrar Deus” (VERDON, 1994, p. 263). Era também a
24
noite por excelência um período de privacidade
4
, dedicado aos desejos cuja realização seria mais
difícil durante o dia, como as relações amorosas. Era ainda o momento ideal para que familiares
e vizinhos pudessem se reunir, conviver e contar histórias ao pé do fogo, segundo Ekirch.
Assim, dessa breve exposição acerca da imagem e da função da noite nos séculos que
antecederam a Revolução Industrial, retenhamos principalmente essa profunda “ambivalência da
noite medieval” (VERDON, 1994, p. 269): simultaneamente ameaça e abrigo, palco atos pios e
reino de forças demoníacas, tempo de reflexão e autoconhecimento e, entretanto, de entrega ao
desconhecido. Pois estar acordado à noite é ao mesmo tempo ter uma clarividência dificilmente
atingível com as distrações diurnas, mas é também estar suscetível a uma série de impulsos e
aspectos geralmente ocultos à luz do dia. Mesmo após a Revolução Industrial, por maiores que
se tenham revelado as mudanças dela decorrentes, tais traços permanecem residuais porém
perceptíveis, principalmente na literatura e nas artes, como veremos adiante, através de uma
certa atração pela noite e do que se poderia denominar uma estética da sombra típica do período.
1.1.2. Revolução industrial e romantismo: “Vacuidade, Escuridão, Solidão e Silêncio
No capítulo de Microfísica do poder intitulado “O olho do poder”, Michel Foucault
afirma que
Um medo assombrou a segunda metade do século XVIII: o espaço escuro, o anteparo de
escuridão que impede a total visibilidade das coisas, das pessoas, das verdades. Dissolver os
fragmentos de noite que se opõem à luz, fazer com que não haja mais espaço escuro na sociedade,
demolir estas câmaras escuras onde se fomentam o arbitrário político, os caprichos da monarquia,
as superstições religiosas, os complôs dos tiranos e dos padres, as ilusões da ignorância, as
epidemias. (FOUCAULT, 1984, p. 216).
Tal passagem oferece uma ideia de como essa relação com a noite predominante na Idade
Média e no início da Era Moderna começou a desaparecer. Sobretudo após a Revolução
4
Apesar de atualmente vista como uma prioridade do mundo moderno, Ekirch esclarece que a noção de
privacidade já gozava de grande importância ao fim da Idade Média. “Usadas pela primeira vez nos anos de 1400,
as palavras “privacidade” e “privado” integravam o vocabulário popular na época de Shakespeare, como suas
peças deixam transparecer.” (EKIRCH, 2006, p. 151).
25
Francesa e com a lenta consolidação da democracia, a substituição de um único poder absoluto
por uma complexa teia, formada por diversas camadas de vigilância, na qual o olhar de um
indivíduo sobre o outro fomentava a autodisciplina, este processo foi, segundo Foucault,
desfazendo estes vãos obscuros na sociedade. No Século das Luzes, afinal, pouco espaço havia
aos vazios desconhecidos proporcionados pela escuridão – e veremos a esse respeito como a
ficção gótica, em especial, dialoga conflituosamente com os ideais iluministas.
Tais transformações sociais e morais foram acompanhadas também de importantes
inovações técnicas no âmbito da iluminação pública e de sua ampla difusão, o que, sem dúvida,
não apenas deu suporte à aversão à obscuridade descrita por Foucault, mas representou uma
verdadeira revolução nas formas de os indivíduos lidarem com a alternância entre dia e noite.
De acordo com Ekirch, desde a segunda metade do século XVII, autoridades em vários
pontos da Europa já vinham empreendendo esforços com o intuito de aumentar a abrangência da
iluminação pública e, assim, tornar as noites mais seguras. No período entre 1730 e 1830, “não
somente as pessoas ficavam acordadas até mais tarde mas, o mais importante, um número
crescente de indivíduos se aventurava a sair de suas casas em busca de prazer e benefícios.
Andanças noturnas tornaram-se por si sós um passatempo, tanto nas caminhadas solitárias
quanto nos passeios públicos.” (EKIRCH, 2006, p. 324). No início do século XIX, as lâmpadas a
gás começaram a ser instaladas em Londres e, até o fim da I Primeira Guerra Mundial, no início
do século XX, mesmo as regiões mais remotas da Europa gozavam desta e de outras formas mais
eficazes de iluminação.
Em seu Insomnia: a cultural history [Insônia: uma história cultural], Eluned Summers-
Bremner nota que “a iluminação pública primeiramente gerada por gás, converteu-se ela mesma
em espetáculo. A eletricidade aniquila a noite, ao passo que o gás a ilumina.” (SUMMERS-
BREMNER, 2008, p. 113). Assim, tornou-se progressivamente mais comum a permanência de
diversas parcelas da população nas ruas por horários mais extensos, e mesmo as lojas ficavam
abertas até as oitos horas da noite ou – o que era verdadeiramente surpreendente para o período –
até as dez da noite. Uma das conseqüências de tal transformação, segundo Ekirch, foi a de que
26
a prolongada exposição à iluminação artificial, tanto dentro quanto fora de casa, alterou os ritmos
circadianos
5
tão antigos quanto o próprio ser humano. Em meados do século XIX, é provável que
apenas os indivíduos impossibilitados de arcar com a iluminação adequada vivessem ainda o sono
segmentado
6
, especialmente se forçados a se deitarem cedo. (EKIRCH, 2006, p. 334).
Dessa forma, a alteração nos padrões de sono decorrentes da exposição à iluminação,
iniciada neste período, viria se desenvolvendo nos séculos subsequentes, e permitiria uma vigília
noite adentro até então impensável.
Outro fator relevante, apresentado por Summers-Bremner, é o comércio de açúcar e café
– intimamente relacionado ao tráfico de escravos –, cada vez mais intenso nos séculos XVII e
XVIII, enquanto fator de estímulo à permanência de parte da população nas ruas até horas bem
mais avançadas do que as dos antigos toques de recolher dos séculos anteriores. Na Londres de
meados do século XVII, por exemplo, as “coffee houses” tornavam-se importantes espaços de
socialização e troca de ideias pelos homens das classes mais altas. E é importante ressaltar que,
como substâncias químicas estimulantes, o café e o açúcar, consumidos em quantidades cada vez
maiores, tiveram seu peso não apenas na alteração dos horários de sono – e consequentemente na
insônia – de seus consumidores, mas na consolidação da imagem da “mente desperta” tão cara
ao protestantismo. Segundo Summers-Bremner, “Wolfgang Schivelbusch chega ao ponto de
argumentar que o café ‘conseguira química e farmacologicamente’, no corpo, ‘o que o
racionalismo e a ética protestante tentavam atingir espiritual e ideologicamente’ no corpo
político. Isto é, estimulava a energia de forma tanto prazerosa quanto útil.” (SUMMERS-
BREMNER, 2008, p. 72).
Neste ponto, é de se perguntar de que maneira tais transformações se articulam com a
literatura do período, notadamente a literatura romântica. Uma importante sugestão é a de
Dewdney:
Nossa atitude para com a noite viveu uma revolução no século XIX, como resultado direto de
dois desenvolvimentos: a difusão da iluminação a gás nas cidades e a literatura romântica,
particularmente os poetas românticos ingleses. Eles abraçaram a noite. (...) Faz sentido a
consideração de que, psicologicamente, quando a sociedade começou a se desfazer da
mentalidade do estado de sítio noturno e a noite se transformou num pátio de recreação para as
5
Os ciclos circadianos regulam diversas funções fisiológicas, dentre elas os horários de sono e vigília nos seres
humanos.
6
Padrão de sono próprio das sociedades pré-industriais, no qual dormia-se por três ou quatro horas, despertava-se
por um breve período e depois voltava-se à cama para completar a noite de sono.
27
almas românticas, o medo da noite se tornaria, de certa maneira, recreativo.” (DEWDNEY, 2004,
p. 182).
Esse “medo recreativo”, aproveitando-se dos elementos atemorizantes da noite medieval,
é também a matéria básica da ficção gótica, que aproveita justamente essas forças demoníacas e
incontroláveis, porém agora já com seu status de ameaça real fortemente diminuído, já estando
atreladas a um passado mais remoto à medida que se firmavam novos hábitos noturnos nas
cidades mais iluminadas. Nessa vertente literária, a insônia é componente essencial, tanto nos
personagens – que tinham “seu sono perturbado por contos assustadores, eventos inexplicáveis e
persistentes ansiedades” (SUMMERS-BREMNER, 2008, p. 94) – quanto nos leitores,
particularmente as leitoras, que, como sustenta Summers-Bremner, passariam por efeitos
semelhantes. Trata-se, assim, de uma reação ao ideal das luzes, da clareza e da racionalidade
postulados pelos iluministas e neoclássicos. “Da perspectiva estética”, diz Sandra Guardini
Vasconcelos em “Romance gótico: persistência do romanesco”, “a contestação à supremacia dos
ideais neoclássicos, abrindo espaço para áreas da experiência humana que haviam sido relegadas
a segundo plano pelo figurino iluminista, começa a emitir sinais da formação de uma nova
“estrutura de sentimento”, para usar a expressão de Raymond Williams.” (VASCONCELOS,
2002, p. 120).
Essas “novas estruturas de sentimento” podem ser também nitidamente identificadas na
poesia romântica, para a qual, da mesma forma, o período noturno era um componente de peso.
Albert Béguin (1967), na clássica obra L’âme romantique et le revê [A alma romântica e o
sonho], publicado originalmente em 1939, nota que
todos os românticos de resto, tiveram grande apreço pelo cair da noite, a estação das folhas
mortas, as terras banhadas pela lua. (...) Outros [artistas], como Jean-Paul, degustavam as
metamorfoses imprevistas das formas, e a noite era para eles um tesouro de inebriantes sensações,
que se agregavam às do dia. Ou ainda, como Novalis, buscavam este afastamento dos objetos
terrestres, este dobrar-se da alma sobre si mesma que favorece a sombra, e a noite exterior lhes
servia de imagem e símbolo dos abismos em que penetravam, por meio de uma profunda
concentração espiritual. (BÉGUIN, 1967, p. 280).
Sem dúvida, a relação dos românticos com a noite possui inúmeras nuances e variações,
como demonstra Béguin em suas análises de diferentes artistas e pensadores. O que permanece
praticamente uma constante, contudo, é essa afinidade dos românticos com as horas noturnas. O
28
sonho, como assinala Béguin, era comumente tido como uma forma de acessar, através de uma
noção pré-freudiana de inconsciente, algo como uma “Alma Universal”, ou uma “Vida Divina”.
Era nas profundezas da noite que se faria possível tanto essa reintegração a uma unidade
universal quanto esse acesso a outra espécie de profundeza – a da psique.
A insônia, nesse contexto, ocupa um lugar curioso. Por um viés, de modo semelhante ao
sonho, facilita, pela via da escuridão e do isolamento, este acesso ao inconsciente. No entanto,
se, como sustenta Béguin, “a alternância da vigília e do sono é a expressão mais pungente, de
nossa inserção na vida cósmica e dessa analogia rítmica que é o elo universal” (Ibid, p. 78), o
estar desperto no momento em que deveria ocorrer a entrega ao sono pode ser interpretado como
uma ruptura com essa “inserção na via cósmica”. É o que vemos, por exemplo, nestes versos de
Wordsworth:
Even thus last night, and two nights more, I lay,
And could not win thee, Sleep! by any stealth:
So do not let me wear to-night away:
Without Thee what is all the morning’s wealth?
Come, blessed barrier between day and day,
Dear mother of fresh thoughts and joyous health!
(WORDSWORTH, 1992, p. 53-54)
Notemos que tais versos, do poema intitulado “To Sleep” (1806), são emblemáticos de
um certo tipo de poesia dedicado a examinar a natureza da insônia que persistirá nos séculos
XIX e XX. Os motivos que compõem tal tema são em geral bastante semelhantes: a aflição de
não poder adormecer, o vazio da noite e da escuridão, a solidão e o silêncio, a sensação de
descompasso para com o resto da sociedade, uma liberdade mental e criativa extremamente
aguçada, por vezes com uma tonalidade onírica, e o que talvez seja o principal: um tom
essencialmente introspectivo e egocêntrico. Todos estes aspectos permanecerão mais ou menos
constantes quando, nos próximos capítulos, forem abordados os romances de Graciliano Ramos,
bem como as obras de Marcel Proust, Fernando Pessoa, Jorge Luis Borges e João Guimarães
Rosa. E são estes aspectos que sobressaem, ademais, em antologias literárias sobre a insônia,
entre as quais Acquainted with the night: insomnia poems [Familiarizado com a noite: poemas
29
da insônia], organizada por Lisa Russ Spaar (1999), e Bedlan: an anthology of sleepless nights
[Bedlan: uma antologia das noites sem sono], organizada por Jane Messer (1996).
A julgar pela ampla reunião de textos sobre o assunto empreendida nessas antologias,
podemos constatar ainda que a vigília noturna, muitas vezes engendrada pelos próprios sonhos, é
recorrentemente apresentada como propiciadora da criação artística. De fato, em especial a partir
do período romântico, não raros são os casos de poetas que tinham frequentemente o sono
interrompido ou impossibilitado por pesadelos e sonhos marcantes, o que desembocaria no
próprio fazer literário – este mesmo já bastante identificado com o ato de sonhar, como
sustentaria Sigmund Freud (1996) quase um século mais tarde, no ensaio “Escritores criativos e
devaneios”, de 1915. Thomas Coleridge, por exemplo, não apenas afirma ter sido uma de suas
obras-primas, o poema “Kubla Khan”, inspirado por sonhos, mas, nas palavras de Alvarez, “tal
qual um pesquisador de sonhos moderno descrevendo a predominância da atividade do
hemisfério direito do cérebro na fase REM do sono, Coleridge acreditava que o eu noturno
falava ‘uma linguagem de imagens e sensações, cujos vários dialetos são muito menos diferentes
entre si do que as várias línguas [diurnas]
7
das nações.’” (ALVAREZ, 1996, p. 171). Esmagado
entre a insônia e os constantes pesadelos, Coleridge sofreu distúrbios do sono durante grande
parte de sua vida, assim como William Wordsworth e tantos outros.
Além disso, se essa “linguagem de imagens e sensações” do eu noturno pode ser
esboçada, certamente ela guardará profundas afinidades com algumas das causas
desencadeadoras do sublime, tal como definido por Edmund Burke (1958) em seu A
philosophical Enquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and the Beautiful [Uma
investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e do belo]. Publicada
primeiramente em 1757, nesta obra, cuja influência se estende a “Johnson, Blake (...),
Wordsworth, Hardy, Diderot, Lessing e Kant” (BURKE, 1958, p. IX)
8
, Burke dedica seções
inteiras a examinar a formação do sublime a partir da obscuridade, da penumbra e da escuridão.
A respeito da primeira, sustenta que, “para tornar qualquer coisa deveras terrível, a obscuridade
se faz em geral necessária. Quando conhecemos a completa extensão de qualquer perigo, quando
podemos a ela acostumar nossos olhos, grande parte de nossa apreensão desaparece.” (Ibid., p.
7
Os colchetes são do autor.
30
58-59). A penumbra e a escuridão, cuja formação do sublime se dá na súbita dilatação da pupila
quando submetida à escuridão ou, ao contrário, quando se apresenta uma luz em meio ao breu,
participam ambas desta sensação de medo, aliadas à melancolia. Mas talvez ainda mais
instigantes para este trabalho sejam as considerações acerca do sublime decorrente da privação:
“todas as privações gerais são grandes, porque são todas terríveis: Vacuidade, Escuridão,
Solidão e Silêncio.” (Ibid., p. 71).
Nesse contexto, começa a vir à tona um esboço deste insone imerso no silêncio da noite
e, ainda assim, dispondo de luz suficiente para escrever e eventualmente sair à rua. Embora uma
relação direta entre luz a gás ou elétrica e criação literária se mostre inconsistente, parece
plausível supor que esta curiosa figura dispõe de uma situação favorável tanto à criação literária
quanto ao exame de seus próprios estados de consciência. Tenhamos tais fatores em mente, uma
vez que se mostrarão relevantes às considerações a serem empreendidas adiante, sobretudo nos
capítulos dedicados a Graciliano Ramos.
Percebemos, assim, algumas das maneiras pelas quais poetas e romancistas, num
momento posterior à Revolução Industrial e ao consequente crescimento do acesso à iluminação,
exploraram características fundamentais à noite na Idade Média e no início da Era Moderna,
dando-lhes um tratamento propriamente literário. De um lado, a ficção gótica, abrindo algo como
brechas obscuras nas “luzes da razão” do racionalismo do século XVIII, deu espaço às forças
irracionais e incontroláveis do ser humano. De outro, essas mesmas forças, associadas à
concentração do indivíduo em seu próprio ego, levariam os poetas românticos, em frequentes
noites em claro, à produção literária. Vejamos como a abordagem da noite pela literatura
continuaria se desenvolvendo ao longo do século XIX e no início do século XX.
1.1.3. A modernidade: “Nesta luz clara e triste, intensa e vacilante, prosaica e fantasmagórica”
Dissemos no primeiro volume que cada época histórica está imersa em uma determinada
iluminação diurna ou noturna; este mundo, pela primeira vez, recebeu uma iluminação artificial:
8
Ainda no ensaio “Romance gótico: persistência do romanesco”, Vasconcelos destaca a crucial importância da
obra de Burke à literatura gótica.
31
ela consiste na iluminação a gás (...). Por volta de 1840 havia iluminação por toda parte, até
mesmo em Viena. Nesta luz clara e triste, intensa e vacilante, prosaica e fantasmagórica,
movimentam-se grandes insetos laboriosos, os vendedores. Egon Friedell, Kulturgeschichte der
Neuzeit, vol. III, Munique, 1931, p. 86. (BENJAMIN, 2007, p. 607-608).
O fragmento acima, retirado das Passagens de Walter Benjamin, coloca dois dados
relevantes ao papel da iluminação a gás na Europa do século XIX. Em primeiro lugar, a rapidez
com que se espalhou – em Paris, por exemplo, as primeiras tentativas com tal tecnologia datam
dos primeiros anos dos 1800, mas apenas em 1822 “o governo decidiu que as ruas seriam
iluminadas a gás.” (Ibid., p. 608). Em segundo lugar, o caráter “fantasmagórico” dos ambientes
iluminados desta forma, como aliás já notara Summers-Bremner em trecho citado no tópico
anterior. Alvarez, no mesmo sentido, sustenta que “as trêmulas e fracas clareiras de luz
projetadas pelas lâmpadas a gás de certa forma realçavam a escuridão além delas.” (ALVAREZ,
1996, p. 180). Sob essa iluminação misteriosa e por vezes insuficiente, as modernas cidades
começaram a tomar corpo, e com elas algumas de suas figuras mais representativas – como é o
caso, por exemplo, do flâneur.
“O fenômeno da rua como interior, fenômeno em que se concentra a fantasmagoria do
flâneur, é difícil de separar da iluminação a gás.” (BENJAMIN, 1989, p. 47). Em Charles
Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo, Benjamin, ao contextualizar o flâneur nessas ruas
e passagens iluminadas a gás, ocupadas por multidões em horas progressivamente mais tardias,
dá a exata dimensão do que é ser, como Baudelaire, aquele que “amava a solidão, mas a queria
na multidão.” (Idem). Com efeito, é nesse caminhar distraído que o poeta reunirá a matéria de
suas criações quando, horas mais tarde, no silêncio e na solidão da noite, se sentar para
escrever
9
. E note-se que, neste ponto, a referida noite não é mais a das primeiras horas após o
pôr-do-sol, quando as ruas estão ainda cheias e por elas o poeta passa distraído e ao mesmo
tempo observador, tampouco é a noite boêmia, próxima do dia pela profusão de luzes,
movimentos e distrações. A segunda noite a que agora me refiro é a noite profunda, da
madrugada e do isolamento – a noite da insônia, enfim. Significativamente, Spaar, na introdução
de Acquainted with the night, descreve o “insone literário” como aquele que
32
queria, literal e artisticamente, ser um olho acordado – um vidente – num mundo adormecido, um
vigilante solitário em meio aos inconscientes. A palavra watch [vigiar, observar] é proveniente do
inglês arcaico woeccan, estar ou ficar acordado, permanecer vigilante, e em muitos destes
poemas, o eu-lírico, de olhos abertos, é um zelador solitário da consciência. Abandonado pelo
sono e por aqueles que sucumbiram a seu esquecimento, esses poetas encontram-se
comprometidos e identificados pela insônia – e por vezes um tanto orgulhosos de sua maldita
vigília. (SPAAR, 1999, p. 2-3).
Assim, estar acordado à hora em que os outros dormem é, em certo sentido, possuir uma
percepção que os dormidores não possuem, na medida em que implica uma retirada do mundo
cotidiano em direção a essa vigília atenta e exacerbada, proporcionada pela incapacidade de
dormir. A insônia funcionaria então, como um índice dessa entrada num universo todo particular,
com tudo o que tal situação traga de tormento e também de orgulho, um universo em que as leis
que regem o mundo exterior se veriam como que suplantadas pelos movimentos internos do
insone em questão. Este insone seria, em outras palavras, o ser de exceção de que falarei ao fim
deste capítulo, acerca de Kafka e de Des Esseintes. O retrato traçado por Spaar é, efetivamente, o
do poeta que vê além porque observa o mundo quando os outros não o fazem. Neste ponto, a
imagem do escritor insone começa a ganhar um contexto mais amplo, aproximando-se a insônia
de uma metáfora dessa excepcional vigilância. Tal é o caso, por exemplo, do poema “The
sleepers”, assinado por um dos mais destacados poetas da modernidade, Walt Whitman.
Vejamos, por exemplo, estes versos:
Now I pierce the darkness, new beings apear,
The earth recedes from to me into the night,
I saw that it was beautiful, and I see that what
Is not the earth is beautiful.
I go from bedside to bedside, I sleep close with
the other sleepers each in turn,
I dream in my dream all the dreams of the
other dreamers,
And I become the other dreamers.
(WHITMAN, 1999, p. 31).
9
“Trapeiro ou poeta – a escória diz respeito a ambos; solitários, ambos realizam seu negócio nas horas em que os
burgueses se entregam ao sono; o próprio gesto é o mesmo em ambos. Nadar fala do andar abrupto de Baudelaire;
é o passo do poeta que erra pela cidade à cata de rimas.” (BENJAMIN, 1989, p. 79).
33
Neste trecho, o eu-lírico apresenta-se quase como um flâneur dos sonhos alheios:
passeando pelas mentes dos indivíduos – pois é a isto que as estrofes anteriores a esta se haviam
dedicado –, torna-as semelhantes aos pequenos pontos luminosos das lâmpadas a gás que, ao
longo das ruas, eram focos de luz a abafarem e simultaneamente a fazerem sobressair a escuridão
ao seu redor. Esses pontos luminosos os visita o poeta, sonhando-lhes os sonhos numa outra
espécie de sonho: o sonho como criação literária. E aqui é interessante como o jogo de imagens
dessa estrofe se articula em torno dessa dupla acepção do sonho: de um lado, seu sentido literal;
de outro, o “sonho acordado” que é, segundo Freud, o motor do fazer literário.
10
No próximo tópico, examinaremos mais detidamente a figura do sonhador acordado e
suas afinidades com a figura do insone. Por ora, notemos nesse vínculo possível entre insônia e
prosa de ficção na modernidade. Afinal, insones – sejam escritores ou não – existiram em todos
os séculos. A descrição do artista vigilante feita por Spaar, como a própria autora ressaltou, vale
tanto para Whitman quanto para Safo de Lesbos ou ainda para William Shakespeare. O que
tornaria, então, a imagem do artista insone tão interessante na modernidade?
1.1.4. “Faça-se a luz!”
A julgar por um dos trechos que integram as Passagens, as perspectivas para o mundo
das letras após o advento da iluminação artificial não seriam muito animadoras:
Por ocasião da instalação definitiva de lampiões nas ruas parisienses (em março de 1667): “Não
conheço senão o abade Terrasson, entre os homens de letras, que tenha maldito os lampiões... A
ouvi-lo, a decadência das letras começava com a instalação dos lampiões: ‘Antes desta época’,
dizia ele, ‘cada um, com medo de ser assassinado, entrava cedo em casa, o que resultava em
proveito para o trabalho. Agora, fica-se fora à noite e não se trabalha mais.’ Eis aí certamente
uma verdade que a invenção do gás está longe de transformar em mentira.” Edouard Fournier,
Les Lanternes: Histoire de l’Ancien Éclairage de Paris, Paris, 1854, p. 25. (BENJAMIN, 2997, p.
611).
10
Cf. Freud (1996), “Escritores criativos e devaneios”
.
34
Num primeiro momento, a ponderação do abade Terrasson, ainda que muito anterior à
iluminação a gás e nem um pouco unânime, como destaca Fournier, não pareceria totalmente
destituída de razão, como concorda este último. Sem dúvida, a cada vez mais prolongada
permanência nas ruas poderia soar, na época, como um entrave à concentração dos homens de
letras no trabalho. E, o que a princípio poderia parecer ainda mais grave: se os lampiões já
começam a transformar as noites em prolongamentos do dia – o que significa dizer, afastam a
noite da vida cotidiana –, as lâmpadas a gás aceleram este processo, e as lâmpadas elétricas
constituem seu apogeu. Eis assim a ironia da questão: quanto mais vivemos à noite, mais
transpomos o dia para o período noturno, e mais as características distintivas deste último nos
escapam. Não por acaso, autores de obras teóricas sobre a insônia e a noite como Alvarez,
Summers-Bremner e Ekirch afirmam, respectivamente, que “nos últimos cem anos, perdemos
contato com a noite.” (ALVAREZ, 1996, p. 17), ou que “o letramento noturno, termo com o qual
descrevo a consciência das complexas interações de diferentes formas de escuridão por si
mesmas, é algo a que a modernidade não dá valor, motivo pelo qual nos falta um léxico relativo
à aptitude para o noturno.” (SUMMERS-BREMNER, 2008, p. 8-9), ou ainda que
“transformando o dia em noite, a moderna tecnologia ajudou a obstruir nosso antigo caminho
para a psique. Esta foi, provavelmente, a perda maior.” (EKIRCH, 2006, p. 335). Deixando de
passar metade de nossas vidas às escuras – como, ressalta Ekirch, viveram os povos até o século
XIX –, não gozando mais de uma constelação de seres fantásticos e ameaçadores para descrever
o temor despertado pela escuridão e tudo o que nela haja de misterioso, e desvinculando-se
enfim os nossos padrões de sono do nascer do sol e de seu poente, é inegável que nossa
familiaridade com a noite já se encontra bastante debilitada, em relação aos níveis pré-
industriais. E é precisamente neste ponto que começar a se fazer visível uma curiosa
reelaboração dessa relação com as horas noturnas.
Vimos anteriormente como o “medo recreativo” explorado pela ficção gótica se vale da
herança das crenças medievais, e vimos também como Coleridge e outros poetas românticos se
dedicaram à observação do sonho e de seus meandros para compor suas obras. “Eles abraçaram a
noite, compondo-lhe odes.” (DEWDNEY, 2004, p. 182), dizia Dewdney. Corroborando tal ponto
de vista, Ekirch sustenta inicialmente que, “em contraste com os elogios cantados ao alvorecer,
nem na literatura nem nas cartas e diários os contemporâneos [das sociedades pré-industriais] se
35
maravilhavam diante do declínio do sol. Mais frequente era que predominassem sentimentos de
insegurança, e não de admiração.” (EKIRCH, 2006, p. 91). Esse panorama, entretanto,
modificou-se quando “a escuridão perdeu muito de sua aura de terror e mistério. Antes uma
fonte de temor para a elite letrada, a noite até mesmo se tornou, para alguns observadores, objeto
de assombro e admiração. (...) Artistas, viajantes e poetas celebravam todos sua beleza e
magnitude.” (Ibid., p. 326). Começamos a perceber que essa atração pela noite tão criticada pelo
abade Terrasson nas Passagens, se por um lado se verifica, por outro desencadeou novas formas
de pensar a noite na literatura e nas artes, nas quais a noite, de presença ameaçadora e misteriosa,
passa a objeto de culto e inspiração.
Considerando essa mudança de perspectiva, podemos perceber como essa tendência veio
se desenvolvendo e ganhando contornos complexos ao longo dos séculos XIX e XX. Se o eu-
lírico de “The sleepers” já se coloca como o poeta que vigia os sonhos dos outros e os sonha em
seu poema, a obra de Freud dará novo impulso à questão, na virada do século XIX para o XX –
curiosamente no mesmo período em que se disseminava o uso da lâmpada elétrica. Pois aqui o
afã de compreender a obscuridade, de estudá-la e lhe desvendar os mecanismos, este afã se
refina e tem seu caminho ainda mais direcionado. “Depois da conquista física da noite, a busca
avançou para a escuridão interior, a escuridão dentro da mente. Quando Freud, definindo o
objetivo da psicanálise, disse: “Onde estava o id, lá estará o ego”, ele ecoou, à sua maneira, a
primeira ordem de Deus; “Faça-se a luz.” (ALVAREZ, 1996, p. 33).
Certamente, um dos mais evidentes resultados dessa incursão pela “escuridão dentro da
mente” foi o movimento surrealista. Dentro da proposta de explorar as imagens do inconsciente
a partir da linguagem dos sonhos, o surrealismo não apenas remete à herança romântica já aqui
discutida, mas se insere em todo um contexto de discussão acerca do funcionamento da psique –
contexto no qual a psicanálise é com certeza elemento de peso, mas apenas uma das peças do
jogo. Acrescentemos também, por exemplo, as teses de Henri Bergson acerca da memória, ou os
ensaios de William James sobre o fluxo de consciência. Ou a própria prosa de ficção do período
que, como veremos, esteve também engajada em discutir tais problemas, seja numa chave
surrealista, seja em outras vertentes do modernismo literário. Técnicas como o monólogo interior
e o fluxo de consciência são provavelmente os termos que tornam mais evidente a preocupação
dos romancistas do período com os movimentos da mente. E notemos que, para desenvolver tais
36
técnicas, bem como para pensar de outras maneiras as relações eu/mundo, e mesmo para discutir
o próprio fazer literário, em todos estes aspectos a recorrência ao vazio noturno, sobretudo sob a
forma da insônia, foi constante.
Esta é justamente a proposta central deste trabalho: examinar, na prosa de ficção da
primeira metade do século XX, sobretudo na dita literatura modernista, as diversas configurações
do motivo da insônia, enquanto indicador de um estado de profunda imersão em si e no processo
criativo. Em primeiro lugar, baseio-me na circunstância pragmática de que, devido à eletricidade,
nunca antes fora tão fácil para os artistas produzir à noite. Como coloca Alvarez, “os
modernistas não descobriram a insônia (...) porém aproveitaram ao máximo sua capacidade
criativa, talvez porque a luz elétrica lhes permitisse trabalhar enquanto o resto do mundo dormia
placidamente.” (ALVAREZ, 1996, p. 192). E, mais do que isso, essa condição se faz presente
dentro das obras mesmas, quando autores como Marcel Proust ou Graciliano Ramos nelas
inserem personagens que, escrevendo à noite, refletem sobre sua história e sobre o próprio fazer
ficcional.
Em segundo lugar, parto da hipótese de que esse foco nos processos mentais dos
personagens em questão, resultando numa maior susceptibilidade às irrupções do inconsciente,
torna-se extremamente interessante ao desenvolvimento de sua subjetividade no romance,
facilitando o desenvolvimento de técnicas como, por exemplo, o fluxo de consciência. Como
veremos no Capítulo 2, é isto o que se dá no último capítulo de Ulisses, “Penélope”, no qual
James Joyce situa a personagem Molly no interior de um quarto às escuras, imóvel e quase sem
contato com o mundo exterior: é este o contexto em que se passa o que é comumente
considerado um dos mais perfeitos exemplos do fluxo de consciência. É este estado
extremamente subjetivo, oscilando entre a vigília e o sono, no qual devaneios podem por
instantes ganhar o status de realidades e aspectos até então ocultos da psique podem vir à tona, é
este momento em que sonho e clarividência como que se misturam. É isto o que torna o estado
insone tão especial à criação literária, e tão compatível com as características mais destacadas do
romance moderno.
Sem dúvida, da criação dessa atmosfera participam as heranças da noite medieval, com o
que nela haja de misterioso e incontrolável (o que, como vimos, seria essencial à literatura
gótica), e a romântica, já tendo delineada a figura do artista como criador solitário e como
37
sonhador acordado. É como se, quanto mais empenho fosse colocado nessa “colonização da
noite”, para usar com certa liberdade a terminologia de Murray Melbin, mais interesse suscitasse
toda essa imagística construída em torno dela ao longo dos séculos. E, se a colonização da noite
através da iluminação elétrica é contemporânea da “colonização” da psique pela psicanálise,
nada mais natural que a literatura e as artes se aproveitem de todos esses fatores, que lhes tracem
interconexões e lhes confiram novas dimensões. Não por acaso, Freud se valeu constantemente
de exemplos da literatura em suas análises. Repassemos, nas páginas que se seguem, algumas
aproximações entre o modelo freudiano e o que aqui proponho para a prosa de ficção moderna.
1.2. Algumas considerações de fundo psicanalítico
1.2.1. Insônia e consciência: a retirada do mundo exterior
Já n’A interpretação dos sonhos, Freud observa que “quando nós mesmos desejamos
dormir, (...) fechamos nossos canais sensoriais mais importantes, os olhos, e tentamos proteger
os outros sentidos de todos os estímulos ou de qualquer modificação dos estímulos que atuam
sobre eles.”
11
(FREUD, 2001, p. 42). Assim, o desejo de dormir se traduz numa retirada das
catexias do mundo exterior, isto é, o ego deixa de investir no mundo externo para se concentrar
em si mesmo. “O estado psíquico de uma pessoa adormecida se caracteriza por uma retirada
quase completa do mundo circundante e de uma cessação de todo interesse por ele.” (FREUD,
1996, XIV, p. 229), reafirmaria anos mais tarde em seu “Suplemento metapsicológico à teoria
dos sonhos” – texto que servirá de base a estas considerações. Trata-se de uma tentativa de voltar
à existência intra-uterina, de um retorno ao narcisismo primário que lançaria “o sujeito em uma
experiência de ser em plenitude e sem limites.” (PEREIRA, 2003, p. 136). Tal retorno não se
torna plenamente possível apenas porque permanecem no sono restos de memórias do dia
anterior no estado pré-consciente que, “reforçados por impulsos instituais inconscientes” (Ibid.,
p. 231-232), constroem os sonhos. Através deles, o ego investe ainda parte de sua energia nos
11
Tradução de Walderedo Ismael de Oliveira.
38
resíduos da vida cotidiana e nos impulsos inconscientes. Se tais impulsos, inibidos no estado
consciente e liberados nos sonhos, forem mais fortes que o esforço pelo estabelecimento de um
narcisismo absoluto operado pelo desejo de dormir, então o ego desperta ou sequer chega a
adormecer: está formado o quadro do insone. Como o define o autor, “estamos familiarizados
também com o caso extremo em que o ego desiste do desejo de dormir, porque se sente incapaz
de inibir os impulsos reprimidos liberados durante o sono – em outras palavras, em que renuncia
ao sono por temer seus sonhos.” (Ibid., p. 232).
Trata-se de um estado excepcional, em que o receio de dar espaço a conteúdos
inconscientes reprimidos conduz o ego a uma supervigilância. É uma situação contrária àquela
em que, em circunstâncias normais, o sonho é “guardião do sono”. É também uma condição
paradoxal, visto que, permanecendo o desejo consciente de dormir, a insônia é espera de um
sono que, se este vier, o indivíduo não estará consciente para apreciar, como sustenta a
psicanalista francesa Radmila Zygouris (1995) em “O espreitador do amanhecer”. Por outro
lado,
o sono não pode ser entendido como simplesmente o contrário da vigília: na insônia crônica, os
sistemas de vigília estão excessivamente ativos e, além disso, há anomalias nos mecanismos do
sono; resulta um desequilíbrio expresso pela ideia de que “o insone dorme estando muito
acordado” ([GAILLARD, 1997, 30-33]). (GANHITO, 2001, p. 104-105).
Dessa maneira, o insone permanece neste estado intermediário entre o sono e a vigília,
desejoso de dormir porém temeroso de se entregar aos conteúdos recalcados, e mesmo assim
assaltado por eles nas noites em claro.
Acrescente-se ainda o fato de que, à noite, com o afrouxamento das censuras impostas
pela sociedade ao longo do dia, é comum o afloramento de uma excepcional inventividade.
Zygouris, em “Ideias lunáticas”, comenta a respeito que “o outro dorme, o censor malevolente
cede lugar a um interlocutor imaginário, um si mesmo benevolente de ideias, no qual se
reconhece e pode se amar em absoluta impunidade.” (ZYGOURIS, 1995, p. 176). É isto o que,
segundo a autora, daria margem a processos criativos como os de Franz Kafka e Emil Cioran:
somente nesse período à parte poderiam ambos entregar-se à criação sem as censuras impostas
pela vida em sociedade.
39
Como veremos, tal situação está visivelmente afinada com a dos personagens insones a
serem analisados. Há todo um contexto formado para que o sono tenha lugar: foi retirado o
interesse do mundo externo e o ego volta-se para si mesmo; a solidão, a obscuridade e o silêncio
só reforçam esse estado; há uma especial abertura aos impulsos do inconsciente e aos resíduos
do dia anterior no pré-consciente. Só o que não há é o sono. Em seu lugar, uma consciência
fugidia, com momentos de extraordinária lucidez e criatividade, atormentada tanto pela memória
de eventos marcantes quanto pela maneira problemática com que lida com eles. Começam aqui a
ganhar nitidez os elementos de que tratarei adiante, quando abordar propriamente a prosa de
ficção.
1.2.2. “O tempo à noite é muito mais subjetivo”
A essas breves considerações de fundo psicanalítico, cabe adicionar o seguinte fator: a
noite, diferentemente do dia, não possui uma progressão tão nítida e perceptível, devido
basicamente à ausência da movimentação do sol. Como argumenta Dewdney,
Insônia à parte, nossa percepção da passagem de tempo não é a mesma à noite e durante o dia. À
luz do dia, a posição do sol e seu movimento através do céu marcam a passagem das horas, bem
como as sombras por ele lançadas, à medida que deslizam pelas ruas e pelos pavimentos. Até
mesmo nos dias chuvosos, os padrões temporais diurnos nos mantêm ocupados e servem para nos
indicar a passagem do tempo. À noite, porém, o tempo se comporta de outra maneira; seu ritmo
diminui, parece às vezes parar, ou saltita inconsistentemente. (DEWDNEY, 2004, p. 260).
Devido e essa condição, conclui Dewdney, “o tempo à noite é muito mais subjetivo.”
(Ibid., p. 260-261). Ora, é esta uma condição que nem mesmo as formas artificiais de iluminação
podem modificar, uma vez que tampouco elas apresentam variações ao longo da noite, como faz
o sol durante o dia.
Outra condição sumamente importante é a privação da visão colocada pela noite. Já
mencionada por Freud como um componente essencial ao sono, tal privação ganha, na insônia,
um status peculiar. Pois, segundo Dewdney, “à noite, como nossa visão esteja diminuída, nossos
40
outros sentidos se tornam mais acurados. Os sentidos do tato, do olfato e particularmente da
audição se expandem numa amplificação temporária similar à maneira pela qual tais sentidos são
permanentemente aguçados nos cegos.” (Ibid., p. 137). Tal apoio em outros sentidos que não a
visão ficará muito evidente quando, na segunda parte da dissertação, for analisada a obra de
Graciliano Ramos. De fato, a ausência deste sentido crucial nos leva a buscar formas alternativas
de lidar com o ambiente ao redor, ainda que insuficientemente. Afinal, como já colocara Burke, a
obscuridade é criadora do temor justamente por nos negar a apreensão da exata dimensão do que
está à nossa volta, e para isto o apoio em outros sentidos, principalmente a audição, em geral
tampouco se mostra confiável o bastante. Com base na audição, podemos imaginar qualquer
cena, mas não podemos dela ter certeza. É o que ocorre, por exemplo, quando Luís da Silva, no
romance Angústia, imagina que Marina está grávida após ouvi-la chorar através das paredes do
banheiro. Ou quando, em S. Bernardo, as badaladas do relógio e o barulho dos grilos de
madrugada só ressaltam a completa escuridão em que se encontra o protagonista Paulo Honório.
Como observa Ganhito, “nas insônias ‘atuais’, Freud destacou a irritabilidade decorrente da
hiperestesia auditiva, ‘sintoma que se deve explicar pela íntima relação inata entre impressões
auditivas e terror.” (GANHITO, 2001, p. 22).
A noite revela-se então algo como um grande vazio negro, um espaço que acomoda o que
nele quisermos projetar. E se tanto a noite quanto o dia podem comportar nossas memórias,
nossos medos, nossas reflexões, os dados aqui colocados sugerem serrem as horas noturnas
especialmente propícias, tal qual a tela de um cinema numa sala às escuras, ao autoexame, à
meditação, à necessidade de lidar com nossos próprios conflitos. É à noite, por exemplo, que
Paulo Honório se põe a escrever sua história, na tentativa de compreendê-la; a noite o leva
enfim, sob a evocação do pio das corujas e contra a sua vontade, a se autoexaminar. É também à
noite que se faz mais atormentada a existência de Luís da Silva, com os ruídos incessantes de
ratos, vizinhos e madeiras estalando: todos evidenciam seu profundo desconserto para com a
sociedade em que vive. E se durante o dia esse desconserto aparece dissolvido em problemas
cotidianos, à noite ele se torna insuportavelmente perceptível. Neste ponto, é importante notar
que tais ruídos reverberam, antes de mais nada, a desordem interna do próprio Luís. Os dados do
exterior, portanto, quando presentes, servem em geral para realçar e mesmo aprofundar essa
“retração da libido dos objetos em direção ao eu.” (GANHITO, 2001, p. 32).
41
Para analisar tais pontos mais detidamente, voltemos então às décadas que precederam os
anos 30 nos quais Graciliano escreveu a maior parte de seus romances, e voltemos também aos
últimos decênios do século XIX. Tomando dois autores representativos do que aqui proponho,
pensemos as relações entre insônia e criação literária em Franz Kafka, e entre insônia e a
construção da narrativa em Às avessas, de J.-K. Huysmans.
1.3. Kafka e Huysmans
1.3.1. Kafka: “Só sonhos, nada de sono.”
Gregor Samsa, o caxeiro-viajante transformado em “monstruoso inseto” já na primeira
frase da novela A metamorfose (1915), vai aos poucos, à medida que se desenvolve o seu estado
não-humano, desligando-se das funções vitais que o prendiam à antiga vida em sociedade. Se
desde o início do texto já não é capaz de falar com os outros membros de sua família, por
exemplo, ao longo da história deixa progressivamente de pensar como humano, de se alimentar
e, como seria presumível, de dormir: “Gregor passava as noites e os dias quase completamente
sem sono.”
12
(KAFKA, 1990, p. 65). Quanto mais inseto, mais distante de qualquer
sociabilidade, mais próximo da quase transcendência que caracterizará seu período terminal, e
mais insone.
Cerca de uma década mais tarde, em seu último romance, O castelo, sabemos, ao fim da
história, que os secretários do castelo realizam a maioria dos interrogatórios durante a
madrugada, não dormindo portanto quase nunca. O curioso é que tais eventos ocorram contra a
vontade dos secretários, não porque estes preferissem fugir às obrigações do serviço para
repousar, mas sim porque
A noite é menos adequada às negociações com as partes, porque de noite é difícil, ou
praticamente impossível, preservar na plenitude o caráter oficial das negociações. (...)
Involuntariamente a pessoa está mais inclinada a julgar as coisas de um ponto de vista mais
privado, as intervenções das partes ganham mais peso do que lhes cabe; misturam-se ao
julgamento considerações irrelevantes sobre a situação das partes tal como elas existem em outros
lugares, suas dores e suas preocupações; a barreira necessária entre partes e funcionários, mesmo
12
Tradução de Modesto Carone.
42
que exteriormente pareça intacta, se afrouxa, e onde normalmente, como devia ser, apenas
perguntas e respostas iam e vinham, se estabelece às vezes uma troca estranha, totalmente sem
cabimento, entre as pessoas.
13
(KAFKA, 2000, p. 388).
A insônia, como percebemos, atravessa a obra de Kafka tanto como uma qualidade
constante daqueles personagens que, por motivos diversos, encontram-se à parte dos demais,
quanto como sinal de um afrouxamento da rigidez da lei em favor de uma maior sensibilidade.
Tais situações transparecem também nos diários do autor quando, ao descrever suas noites em
claro, esboça explicações de seu processo criativo:
Acho que o único motivo dessa insônia é que eu escrevo. Pois, por menos e por pior que eu
escreva, essas pequenas comoções acabam me tornando suscetível, e especialmente no começo da
noite e mais ainda de manhã, sinto as contrações da possibilidade imediata de estados grandiosos
que me dilaceram e que me permitiriam realizar qualquer coisa; nesse alarido geral dentro de
mim, que não tenho tempo para ordenar, não encontro repouso. No fundo, esse alarido nada mais
é do que uma harmonia angustiada e contida que, se fosse liberada, poderia me encher por
completo, mais ainda, me expandiria e continuaria me preenchendo. Mas agora, além de
esperanças débeis, esse estado só me traz dissabores, pois não tenho forças suficientes para
suportar essa mistura presente; de dia o mundo visível me dá apoio, mas à noite sou dilacerado
sem impedimentos.
14
(KAFKA, 2003, p. 26-27).
Nesta importante passagem retirada das anotações de seu diário no dia 2 de outubro de
1911, fica evidente essa sensação de infinitude e preenchimento potencialmente infindável
proporcionada pelo contato “sem impedimentos” com tais “estados grandiosos”. Foi nesta
situação, por exemplo, que a novela A metamorfose foi escrita, entre 17 de novembro e 7 de
dezembro de 1912, predominantemente à noite, como assinala Modesto Carone (1990) no
posfácio à edição brasileira por ele traduzida. É este, afinal, “o verdadeiro espólio [que] só se
encontra nas profundezas da noite, na segunda, terceira, quarta hora.” (Ibid., 2003, p. 127).
Trata-se, em outras palavras, da excepcional criatividade de que fala Zygouris em “Ideias
lunáticas”, nessa clarividência que só pode ocorrer quando não há mais o apoio do mundo
visível.
No entanto – como tão próprio de Kafka, diga-se de passagem –, esse privilégio cobra o
seu preço, e seu preço é o dilaceramento interno provocado pela insônia e pelos sonhos. No
conto “A colônia penal”, o personagem condenado à morte só conhece seu crime quando,
submetido a uma máquina letal, tem sua falta gravada na carne, cada vez mais profundamente,
13
Tradução de Modesto Carone.
43
até dela perecer. Ecos dessa proposta podem se fazer sentir nesta passagem dos diários
kafkianos, datada de 3 de fevereiro de 1922: “Insone, quase completamente; atormentado por
sonhos como se eles tivessem sido entalhados em mim, um material resistente.” (Ibid., p. 134).
Tais sonhos, mesclando-se ao processo de escrita e alimentando-o, são sentidos pelo autor numa
potência tal que, assim como a escrita, por vezes se aproximam de um martírio, de uma
condenação a ser suportada. “Em suma, passo a noite inteira num estado que uma pessoa
saudável experimenta por alguns instantes antes de simplesmente adormecer. Acordo rodeado de
sonhos em que evito pensar.” (Ibid., p. 25), diz ele.
Dessa forma, não dormir e sonhar para Kafka são praticamente sinônimos, uma vez que
sua insônia é marcada precisamente por essa presença intermitente de sonhos e imagens que vêm
e vão. É como se o escritor vivesse, no plano da vigília, a experiência do sono e do sonho. Não à
toa Freud pergunta: “Acaso é realmente válido comparar o escritor imaginativo ao ‘sonhador em
plena luz do dia’, e suas criações com os devaneios?” (FREUD, 1996, p. 139). Se seus devaneios
diurnos já se mostram obras literárias em potencial, a noite parece o lugar por excelência em que
tal realização terá lugar. Para Ganhito, “feito de qualidades sensíveis, este pensar tem afinidades
com o “pensar por imagens” do sonho.” (GANHITO, 2001, p. 212). Tal inventividade, assim,
seria resultado do afrouxamento da censura já mencionado nos artigos de Zygouris, de um lado,
e, de outro, da presença aguçada desse estado sonhador em meio à vigília. O artista insone é
aquele que se cria nessa tênue fronteira entre o sono e a condição desperta, aquele que vê seu
pensamento extraordinariamente livre precisamente por tê-lo próximo ao estado do sonho, por
achar-se nessa frágil fronteira entre o delírio e a reflexão
15
. Nas palavras de Jane Messer na
introdução de Bedlan: an anthology of sleepless nights, “por que estar sem sono não é o mesmo
que estar desperto? A falta de sono é vaga e cheia de percalços (...). Os insones têm visões e
pensamentos impossíveis aos outros, uma vez que estes outros estão na cama, adormecidos. Os
insones desenterram segredos.”
16
(MESSER, 1996, p. XIV).
Três constatações, portanto, se fazem necessárias. Em primeiro lugar, temos a imagem do
insone como um ser de exceção, que goza de uma existência diferente dos demais e dá vazão às
14
Tradução de Ricardo F. Henrique.
15
“Uma fronteira é também uma passagem, por isso escrever de madrugada. Para os escritores, a tarefa – à beira do
impossível – representa uma tentativa de transportar para a vigília as “estranhas potências” que emanam do
espírito quando nosso corpo está em repouso.” (GANHITO, 2001, p. 218).
44
suas peculiaridades no período noturno. Tal imagem, num segundo momento, comporta também
a do autor insone que escreve à noite enquanto os outros dormem. Veremos como esse modelo
não apenas é frequente nos dados biográficos dos autores modernos, que já dispõem de lâmpadas
a gás ou elétricas para produzir madrugada adentro, como é o caso de Kafka, mas como também
se transforma por vezes na própria estrutura do romance, como é o caso do Paulo Honório de S.
Bernardo e do Marcel de Em busca do tempo perdido, por exemplo. Ainda que este trabalho não
proponha críticas de caráter biográfico, é interessante e também relevante notarmos esses
intercâmbios entre a vida e a obra dos autores, isto é, nos indagarmos acerca dos desdobramentos
estéticos dessas noites em claro. Por fim, ressaltemos que esse processo criativo é
recorrentemente comparado à produção de sonhos, o que denota essa abertura especial das horas
insones à subjetividade e aos impulsos das camadas pré-consciente e inconsciente.
Dito isto, vejamos como tais aspectos se constroem na narrativa de Às avessas, de J.-K.
Huysmans.
1.3.2. Às avessas: entre Zola e Joyce
Para os objetivos deste trabalho, o romance Às avessas, publicado pela primeira vez na
Paris de 1884 e assinado por Joris-Karl Huysmans, encontra-se numa posição singular, para não
dizer estratégica. Considerado por muitos a “bíblia do decadentismo”, essa corrente do fim dos
Oitocentos, próxima ao simbolismo e ao art-nouveau, o romance em questão traz como
protagonista Floressas des Esseintes, último representante de uma linhagem nobre porém
completamente arruinada. Após anos vivendo as experiências mais diversas e vendo sua saúde
irremediavelmente condenada, Des Esseintes junta o que lhe restou da herança familiar e,
trancado numa casa em Fontenay-aux-Roses, na periferia de Paris, entrega-se a uma solidão
total, dedicada à fruição de sua coleção de obras de arte, à sua biblioteca, aos seus perfumes e
licores, enfim, aos prazeres solitários de seus gostos refinados e exóticos. Tal opção de vida o
leva a trocar voluntária e definitivamente o dia pela noite, o que confirma, como já vimos em
Kafka, a sua natureza de ser de exceção, apartado de qualquer convívio social.
16
As traduções de todas as passagens desta obra são de minha autoria.
45
No último capítulo de Mimesis, “A meia marrom”, Erich Auerbach discorre sobre as
inovações empreendidas por autores do início do século XX tais como Virginia Woolf e Proust,
em sua subordinação dos eventos da narrativa à consciência dos personagens. Entre os
precursores da técnica do “monólogo interno” nessa ficção moderna, Auerbach cita Huysmans e
este seu romance. Seria ele um exemplo, em terceira pessoa, das obras narrativas do fim do
século XIX
que tentavam nos transmitir, em seu conjunto, uma impressão extremamente individualista,
subjetiva, amiúde excentricamente marginal da realidade e que, evidentemente, nem tentavam (ou
não eram capazes de) averiguar qualquer coisa de universalmente válido ou de objetivo acerca da
realidade. (AUERBACH, 2007, p. 483).
Ainda que as diferenças entre a prosa de Às avessas e a ficção que abordarei nos
próximos capítulos sejam bastante visíveis, como argumenta o próprio Auerbach, o romance de
Huysmans se mostra um significativo ponto de transição entre o realismo de Émile Zola e o
modernismo de James Joyce. E a insônia de Des Esseintes constitui um fator fundamental
simultaneamente à caracterização do personagem e à proposta básica e estruturante da obra.
Antigo adepto da escola naturalista francesa, Huysmans rompeu com o mestre Émile
Zola, ao publicar Às avessas. No importante “Prefácio escrito vinte anos depois do romance”,
datado efetivamente de 1903 e desde então anexado ao livro, justifica sua desvinculação do
naturalismo nos seguintes termos: “ela [a escola naturalista] não admitia de modo algum, em
teoria pelo menos, a exceção; confinava-se pois à pintura da existência comum, esforçava-se, a
pretexto de trabalhar ao vivo, em criar seres que fossem tão parecidos quanto possível à média
das pessoas.” (HUYSMANS, 1987, p. 255-256). Se por um lado Huysmans está centrado
principalmente na árdua tarefa de tornar o livro compatível com a doutrina católica, da qual se
tornaria um fervoroso praticante pouco depois da publicação de Às avessas, por outro lado sua
argumentação apresenta um interesse estético maior: ao contrário do que defendiam os preceitos
naturalistas, o que pretende o autor é trabalhar não os tipos comuns, mas sim a exceção. “Eu o
representava fugindo à toda pressa para o sonho, refugiando-se na ilusão de magias
extravagantes, vivendo sozinho, longe do seu século.” (Ibid., p. 259). O que está em questão,
portanto, como coloca José Paulo Paes (1987) em “Huysmans ou a nevrose do novo”, é criar um
46
personagem às avessas da sociedade, mas criar também um romance às avessas da estética
naturalista.
Como já foi dito, entre as medidas para um tal exílio voluntário, está a troca do dia pela
noite, de modo a tornar ainda mais improváveis os contatos do protagonista com os demais
personagens – é verdade que tal contato se dá inúmeras vezes, mas sempre contra a vontade de
Des Esseintes, em momentos de crise. O isolamento na casa de Fontenay e na madrugada, dessa
forma, tem as seguintes consequências a serem consideradas: ao mesmo tempo em que confirma
a personalidade peculiar do nobre de traços decadentistas, cria uma estrutura narrativa
especialmente propícia à exploração de seus pensamentos, gostos e opiniões. Trata-se, em outras
palavras, de uma “abertura da forma romanesca”, à maneira do modernismo, mas também de um
estudo da conduta humana ainda afinado com o naturalismo, como coloca Paes. Afinal,
esvaziado o texto de eventos externos e de diálogos, resta ao leitor acompanhar a aventura das
reflexões e aguçadas sensações de Des Esseintes pelos aposentos de sua residência.
Com efeito, no minucioso estudo realizado pelo personagem a respeito de todos os
detalhes que o circundam, está a arte da decoração para ser apreciada à noite, à luz dos
candeeiros. Pois, se o elogio do artificial em detrimento do natural é uma das premissas básicas
do romance, é de se esperar que este englobe também o âmbito da iluminação, o que fica claro
em passagens como esta, acerca das cores a serem escolhidas para as paredes:
O que desejava eram cores cuja expressão se afirmasse à luz artificial dos candeeiros; pouco lhe
importava que se mostrassem, à claridade do dia, insípidas ou ásperas, visto que ele só vivia à
noite, por julgar que se estava melhor na própria casa, sozinho, e que o espírito só se excitava e
crepitava ao contacto com a noite vizinha; sentia também um prazer especial em ficar num
aposento muito bem iluminado, o único desperto e de pé em meio a casas às escuras,
adormecidas: um tipo de prazer onde entrava talvez uma ponta de vaidade, uma satisfação assaz
singular, conhecida dos trabalhadores tardios quando, erguendo as cortinas das janelas, percebem
que à sua volta está tudo apagado, tudo mudo, tudo morto. (Ibid., p. 44).
Através dessa passagem, em que se explicita a situação do ser de exceção acordado
enquanto os outros dormem, pode-se ter uma ideia do tom que acompanha o livro: em estilo
indireto livre, com trechos que beiram o fluxo de consciência, acompanhamos o vaguear do
pensamento do protagonista em seu isolamento noturno. Por um ponto de vista, como coloca
José Paulo Paes no texto citado, Às avessas é ainda assim um romance naturalista, na medida em
que “o romancista volta o foco da sua atenção para a patologia da conduta humana, embora
47
cuide de ilustrá-la com o caso de um indivíduo de exceção e não de um grupo social, como os
naturalistas ortodoxos.” (PAES, 1987, p. 13). Ao mesmo tempo, de acordo com Marc Fumaroli
em seu “Préface” à edição francesa da Gallimard publicada primeiramente em 1977 – prefácio
inclusive citado por Paes em seu ensaio: “em seu esforço ‘inconsciente’ para escapar ao beco
sem saída naturalista, Huysmans abriu na forma romanesca as comportas de sua deriva moderna,
que conduziria, para além de sua própria obra, a Dujardin, Proust, Joyce e Leiris.” (FUMAROLI,
1997, p. 26). Temos, então, um romancista participando de uma proposta até certo ponto voltada
para o naturalismo, apesar da ruptura oficial com o grupo, identificado ainda com a geração
decadentista-simbolista, e também precursor de experimentos narrativos que seriam explorados
pelos modernistas.
Como vimos, a opção pelo isolamento e pela insônia de Des Esseintes é fator essencial
não apenas à caracterização dandesca do personagem, mas também à análise de sua
personalidade e à proposta de lhe acompanhar os movimentos da consciência. Nessa obra,
portanto, podemos perceber algumas configurações preliminares daquilo que será o principal
objeto de estudo deste trabalho: como essa condição insone pode ser interessante, na prosa de
ficção moderna, tanto à caracterização dos personagens quanto às próprias soluções formais da
narrativa.
No capítulo que se segue, analisarei estes aspectos em maior profundidade.
48
Capítulo 2
Contra a luz:
Proust, Pessoa, Borges, Guimarães Rosa
Um aspirante a romancista que, após décadas de vida mundana, percebe a importância de
se retirar da sociedade, para, no silêncio e na solidão da noite – tal qual uma Sherazade, na
imagem evocada pelo próprio artista –, dedicar-se afinal à composição de sua obra. Ou um
ajudante de guarda-livros que se declara acometido de uma “moléstia de etiologia metafísica”
(PESSOA, 1997, II, p. 92) definida como uma “insônia da alma” (Ibid., I, p. 165). Ou então um
deficiente físico que, preso à sua cama e à sua prodigiosa memória, vê-se impossibilitado de se
desligar de tudo o que há a ser lembrado para enfim entregar-se ao sono. Ou ainda um
trabalhador rural que, dono de uma audição tão notável quanto a memória do paralítico há pouco
mencionado, vê-se, ao contrário deste, aterrorizado todas as noites por ruídos provenientes das
profundezas da mata.
Os personagens acima citados se encontram nas obras de autores importantes ou mesmo
fundamentais à prosa de ficção na primeira metade do século XX. Ou seja, são autores que
propõem, em seus textos, uma problematização do fazer ficcional, e por isso mesmo, para além
do rótulo de modernistas, podem ser considerados modernos.
17
O primeiro, o paradigmático
protagonista de À la recherche du temps perdu [Em busca do tempo perdido], expõe na obra as
ideias de Marcel Proust acerca da criação literária. O segundo, o Bernardo Soares do Livro do
desassossego, fora definido por Fernando Pessoa como um semi-heterônimo que, nas palavras de
Pessoa, “aparece sempre que estou cansado ou sonolento.” (PESSOA, 1997, I, p. XLVI). Já o
terceiro, o personagem homônimo do conto “Funes el memorioso” [“Funes, o memorioso”],
17
Ainda que a maior parte dos autores aqui abordados possa ser considerada “modernista”, adoto neste trabalho o
termo “moderno”, que, a meu ver, possui uma amplitude mais adequada para tratar de autores relativamente
distantes espacial e temporalmente. Como coloca João Alexandre Barbosa no ensaio “A modernidade do
romance”, “entre moderno e modernismo é preciso atentar para o fato de que, se o primeiro termo indica um
fenômeno de bases universais, apontando para tudo o que significou problematização de valores literários no
amplo movimento das ideias pós-românticas, o segundo termo, confundindo-se, em alguns casos, com a própria
ideia de vanguarda, já aponta para a retomada, num nível de intervenção cultural, dos desdobramentos do
primeiro.” (BARBOSA, 1990, p. 119). Mesmo que tais termos não sejam estritamente intercambiáveis, os
aspectos aqui analisados enquadram-se em grande medida naquilo que geralmente é caracterizado como “prosa
modernista”.
49
protagoniza o texto que seu autor, Jorge Luis Borges, afirma ter aparecido “como uma espécie de
metáfora da falta de sono.” (BORGES, 1970, p. 319). Por fim, e já entrando nos primeiros anos
da segunda metade do século, João Guimarães Rosa desenvolve um curioso jogo narrativo
através da noite do sertão vivida pelo Chefe Zequiel em sua insônia, na novela “Buriti”. Além da
posição destacada de seus autores, estes personagens possuem em comum uma curiosa
característica: em maior ou menor escala, todos sofrem de insônia.
Ora, tendo em mente as considerações tecidas no primeiro capítulo deste trabalho,
pensemos por um momento as implicações desse estado de vigília para os personagens em
questão. Todos eles, em suas noites insones, encontram-se completamente apartados do convívio
social e das preocupações da vida cotidiana, numa quase ausência de ações e eventos externos.
Ao contrário, o ambiente ao seu redor revela-se próximo a um grande vazio negro, em meio ao
qual, com poucas distrações provenientes do exterior, só lhes resta de modo geral a opção de se
concentrarem em si mesmos, em seus conflitos particulares, em seus processos mentais e,
eventualmente, na própria composição da narrativa.
A partir desses fatores, desenvolverei neste e nos próximos capítulos a hipótese de que
essa condição insone, tal como descrita, tende a proporcionar dois desdobramentos interessantes.
De um lado, a criação de uma espécie de nível paralelo a partir do qual o personagem pode
pensar a própria narrativa, funcionando assim como uma metáfora da autoconsciência artística.
De outro lado, a exploração de estados psíquicos diversos, o que propicia tanto o
aprofundamento psicológico dos personagens em questão quanto as experimentações formais a
serem discutidas adiante. Levando em conta esses dois desdobramentos, proponho que a insônia
por vezes se revela um fator relevante para pensar alguns dos traços que tornam os textos
abordados tão representativos da prosa de ficção na modernidade. Em outras palavras, trata-se de
considerar em que medida esse estado de profunda vigília – isto é, extremamente reflexivo e
voltado para a interioridade dos personagens – se mostraria altamente propício ao
desenvolvimento de algumas das características mais marcantes daquilo que entendemos por
romance moderno.
Para tanto, este capítulo está dividido em quatro tópicos, cada um dedicado à discussão
da insônia nas obras acima citadas, e ao final terá lugar uma breve conclusão. O primeiro tópico,
tendo por base o romance Em busca do tempo perdido, tratará da autoconsciência no romance; o
50
segundo, abordando o Livro do desassossego, pensará o problema do “sujeito vazio”, isto é, a
diluição de uma noção de personalidade nitidamente delimitada; o terceiro, acerca de “Funes, o
memorioso”, abordará o problema da discrepância entre os tempos cronológico e psicológico;
por fim, serão tecidas algumas considerações sobre os movimentos da consciência, sobretudo no
que tange a técnica do fluxo de consciência e a desestabilização do enredo, na novela “Buriti”.
18
2.1. Marcel ou Sherazade: em busca de mil e uma noites para escrever
Decerto, o sono e a insônia ocupam um lugar de relevo nas reflexões de Marcel, narrador
e protagonista de Em busca do tempo perdido, como o provam as discussões acerca da natureza
de tais estados presentes em todos os volumes do romance. Seja na angústia do personagem
ainda criança à espera do beijo materno para poder dormir; sejam nos diversos momentos em
que, sozinho na penumbra dos quartos por que passa ao longo da vida, divaga sobre as diferenças
entre o dormir e o despertar, com eventuais e às vezes explícitas alusões às ideias de Henri
Bergson acerca do sono e dos sonhos; seja nas insônias sofridas por inúmeros personagens –
sobretudo quando apaixonados, como é o caso de Swann para com Odette ou Charlus para com
Morel; ou quando doentes, como Bergotte em seus últimos dias –; seja na passageira
tranquilidade experimentada por Marcel ao assistir ao profundo sono de Albertine,
provavelmente os únicos momentos em que a sente tão cativa quanto possível; todos estes e
muitos outros episódios poderiam exemplificar a presença constante do sono ou de sua ausência
no desenrolar da trama.
19
O que aqui proponho, entretanto, não é abordá-los todos, mas pensar
18
Apesar de não serem traçadas correspondências diretas, esses quatro tópicos tratam, de modo geral, do que
Malcolm Bradbury definiu como as “quatro grandes preocupações” do romance modernista: “com as
complexidades de sua própria forma, com a representação de estados íntimos de consciência, com um sentimento
de desordem niilista por trás da superfície ordenada da vida e da realidade, e com a libertação da arte narrativa
diante da determinação de um oneroso enredo.” (BRADBURY, 1989, p. 321).
19
O próprio autor, ademais, foi durante toda a vida atormentado por fortes períodos de insônia. Observações
interessantes e compilações de textos sobre o assunto podem ser encontrados em Bedlan: an anthology of sleepless
nights [Bedlan: uma antologia das noites sem sono], organizado por Jane Messer (1996); Acquainted with the
night [Familiarizado com a noite], de Christopher Dewdney (2004); e Èloge de l’insomnie [Elogio da insônia],
organizado por Michèle Manceaux (1985).
51
de que maneira a insônia do narrador aparece como um fator relevante à composição da
narrativa, e mais ainda, à sua autoconsciência.
Tomemos, inicialmente, as célebres considerações de Marcel sobre a criação artística
quando, em Le temps retrouvé [O tempo redescoberto], encontra-se solitário da biblioteca dos
Guermantes: “A verdadeira vida, a vida enfim descoberta e esclarecida, por consequência a
única vida plenamente vivida, é a literatura. Essa vida que, de certa maneira, reside a cada
instante em todos os homens tanto quanto no artista. Mas eles não a veem, porque não procuram
esclarecê-la.”
20
(PROUST, 2007b, p. 202).
É nessa distinção entre os homens comuns e o artista que se articula o trabalho deste
último, que é, segundo Marcel, o de “procurar perceber sob a matéria, sob a experiência, sob as
palavras algo de diferente.”
21
(Idem). O ponto que aqui que se coloca é que esse “algo de
diferente” não poderia engendrar uma efetiva obra de arte caso o artista insistisse não apenas em
dedicar seus dias à vida em sociedade, mas em pautar sua obra pela linguagem que rege as
conversações nos salões mundanos. Afinal, “os verdadeiros livros devem ser os filhos não do dia
claro e da conversação, mas da obscuridade e do silêncio.”
22
(Ibid., p. 204), e é por isso que
encontramos na verdadeira obra literária “a doçura de um mistério que não é senão o vestígio da
penumbra que precisamos atravessar, a indicação, marcada com exatidão como que por um
altímetro, da profundidade de uma obra.”
23
(Ibid., p. 204).
Através destas e de outras passagens, podemos perceber que as ideias centrais à
concepção proustiana da criação artística, extensamente desenvolvidas no ensaio Contre Saint-
Beuve
24
e em certa medida relacionadas ao vocabulário “da solidão e do silêncio”
25
, encontram
em Em busca do tempo perdido um vínculo ainda mais forte com o motivo da noite. Pois são
20
No original, « La vraie vie, la vie enfin découverte é éclaircie, le seule vie par conséquent pleinement vécue, c’est
la littérature. Cette vie que, en un sens, habite à chaque instant chez tous les hommes aussi bien que chez l’artiste.
Mais ils ne la voient pas, parce qu’ils ne cherchent pas à l’éclaircir.»
21
No original, « chercher à apercevoir sous de la matière, sous de l’expérience, sous des mots quelque chose de
différent. »
22
No original, « les vrais livres doivent être les enfants non du grand jour et de la causerie mais de l’obscurité et du
silence. »
23
No original, « la douceur d’un mystère que n’est que le vestige de la pénombre que nous avons dû traverser,
l’indication, marquée exactement comme par un altimètre, de la profondeur d’une oeuvre. » Tradução minha.
24
“Esse método [de Saint-Beuve] que desprezava aquilo que uma convivência um tanto profunda com nós mesmos
pode ensinar : que um livro é o produto de um outro eu e não daquele que manifestamos nos costumes, na
sociedade, nos vícios. Aquele eu, se desejamos tentar compreendê-lo, está no fundo de nós mesmos, tentando
recriá-lo em nós é que podemos atingi-lo.” (PROUST, 1988, p. 52) Tradução de Haroldo Ramanzini.
52
estas as condições primeiras colocadas por Marcel para que seu romance possa ser escrito. É
privado do convívio social, bem como das distrações diurnas, é alheio ao ruído dos vendedores
ambulantes que tanto despertavam os desejos de Albertine em La prisonière [A prisioneira], é
enfim apartado de sua própria vida que o narrador pode observá-la, avaliá-la, comentá-la, que
pode então encontrar “este universo desconhecido [que] era extraído do silêncio e da noite.”
26
(PROUST, 2006, p. 238):
Não é de baixo, no tumulto da rua e na balbúrdia das casas vizinhas, é quando se está afastado
que, das encostas de uma colina próxima, a uma distância de onde toda a cidade desapareceu ou
forma ao nível do solo apenas uma aglomeração confusa, que se pode, no recolhimento da solidão
e da noite, avaliar, única, persistente e límpida, a altura de uma catedral.
27
(PROUST, 2007a, p.
76).
A imagem da catedral, à qual Marcel chega a comparar sua obra, semelhante também aos
homens que, observados ao longo de tantos anos, tornam-se algo próximo a “seres monstruosos,
como se ocupassem uma área tão considerável, (...) como gigantes imersos nos anos.”
28
(PROUST, 2007b, p. 353), essa catedral só pode ser, como a vida de Marcel, avaliada durante a
solidão da noite. Significativamente, a imagem da catedral remete também à igreja de Balbec
que Marcel tanto desejara conhecer quando criança, evocada por Swann ainda em Combray. E é
interessante notar que o próprio Swann tenha ressaltado na catedral de Balbec uma certa
tonalidade “persa” (PROUST, 2007a, p. 83). Pois é nos seguintes termos que Marcel descreve
seu processo de criação literária:
Durante o dia, quando muito, eu poderia tentar dormir. Se trabalhasse, seria somente à noite. Mas
me faltariam muitas noites, talvez mil. E eu viveria com a ansiedade de não saber se o Mestre do
meu destino, menos indulgente que o sultão Shariar, quando pela manhã eu interrompesse minha
narrativa, consentiria em adiar minha sentença de morte e me permitiria retomar o relato na
próxima noite.
29
(PROUST, 2007b, p. 348).
25
“Não esquecer: os livros são filhos da solidão, e as crianças do silêncio.” (PROUST, 1988, p. 145).
26
No original, « cet univers inconnu [qui] était tiré du silence et de la nuit. »
27
No original, « ce n’est pas d’en bas, dans le tumulte de la rue et la cohue des maisons avoisinantes, c’est quand on
s’est éloigné que des pentes d’un coteau voisin, à une distance où toute la ville a disparu ou ne forme plus au ras
de terre qu’un amas confus, qu’on peut, dans le recueillement de la solitude et du soir, évaluer, unique, persistante
et pure, la hauteur d’une cathédrale. »
28
No original, « êtres monstrueux, comme occupant une place si considérable, (...) comme des géants plongés dans
les années à des époques »
29
No original, « le jour, tout au plus pourrais-je essayer de dormir. Si je travaillais, ce ne serait que la nuit. Mais il
me faudrait beaucoup de nuits, peut-être mille. Et je vivrais dans l’anxiété de ne pas savoir si le Maître de ma
53
Nessa passagem fundamental à proposta deste trabalho, notemos que não apenas se
explicita a intrínseca correlação entre a criação literária e a vigília noturna, mas uma relação
ainda mais curiosa é tecida: a vinculação já tanto estudada entre Em busca do tempo perdido e
As mil e uma noites. Afinal, se não é a primeira vez que Marcel se compara a Sherazade (como
já se comparara ao califa Haroun Al Raschid, por exemplo), em poucos momentos se tornam tão
claras as semelhanças entre os dois narradores que, à noite e para escapar da morte
30
, dedicam-se
à narração de seus relatos.
Com efeito, As mil e uma noites são frequentemente descritas como um dos modelos do
romance proustiano, ao lado das Memórias de Saint-Simon. Desenvolvendo tal hipótese em
Proust et ses modèles: les Mille et une nuits et les Mémoires de Saint-Simon [Proust e seus
modelos: as Mil e uma noites e as Memórias de Saint-Simon], Dominique Jullien sustenta que as
três obras “são livros noturnos
31
(...) [e que] a insistência sobre o nascimento noturno da obra
enriquece a realidade biográfica proustiana de uma justificação estética que faz da noite não
apenas o meio favorável ao recolhimento, mas o símbolo da descida a si.” (JULLIEN, 1989, p.
13-14).
Neste ponto, contudo, faz-se necessário abrir um parêntese para notar que, como já fora
sugerido no primeiro parágrafo deste tópico, a noite em Em busca do tempo perdido não é
necessariamente criativa ou propícia à criação artística. Pois esse artista que lucidamente
trabalha madrugada afora não é o mesmo a que alude Marcel na abertura d’O caminho de Swann,
por exemplo, ao colocar que
quando eu acordava no meio na noite, como ignorasse onde me encontrava, não sabia mesmo
num primeiro momento quem eu era; possuía apenas, na sua simplicidade primeira, o sentimento
da existência que poderia fremir ao fundo de um animal; eu estava mais desnudado que o homem
das cavernas.
32
(PROUST, 2008, p. 5).
destinée, moins indulgent que le sultan Sheriar, le matin quand j’interromprais mon récit, voudrait bien surseoir à
mon arrêt de mort et me permettrait de reprendre la suite le prochain soir. »
30
Como argumenta Dominique Jullien, “Proust extrai [d’As mil e uma noites] uma significação, um sentido místico.
O livro vencerá o poder mortal do tempo.” (JULLIEN, 1989, p. 15).
31
Como aliás o próprio Proust evidenciara na n’O tempo redescoberto, ao remarcar que os dois livros foram
“escritos também durante a noite.” (PROUST, 2007b, p. 348). No original, “écrits eux aussi la nuit”.
32
No original, « quand je m’éveillais au milieu de la nuit, comme j’ignorais où je me trouvais, je na savais même
pas au premier instant qui j’étais ; j’avais seulement dans sa simplicité première, le sentiment d’existence comme
il peut frémir au fond d’un animal ; j’étais plus denué que l’homme des cavernes. »
54
Assim, da mesma forma que a lembrança de si vai aos poucos retirando Marcel do
esquecimento do sono, da mesma forma os instantes em que Marcel ingere a madeleine o lançam
à “vida enfim descoberta e esclarecida”. É isto o que sustenta Jean Rousset no ensaio “Proust. À
la recherche du temps perdu” [“Proust. Em busca do tempo perdido”]. Examinemos um pouco
mais detidamente a questão.
Segundo Rousset, as páginas de abertura do romance, ao tratarem desse estado de semi-
despertar, introduzem em toda a Combray I um estado de descontinuidade, uma amnésia
próxima ao sono profundo, visto que “aquele que dorme perdeu seu eu; [e] à sua volta
redemoinham não apenas o tempo e os lugares, representados pelos múltiplos quartos, mas todos
os seus eus sucessivos e fora de órbita.” (ROUSSET, 1967, p. 141). Trata-se da experiência do
“dormidor desperto”, expressão que alude, inclusive, a um dos contos d’As mil e uma noites. Já
em Combray II, situada após a cena da madeleine – após, portanto, a recuperação da chamada
memória involuntária, por tanto tempo adormecida no narrador –, Marcel enfim reencontra seu
centro e o passado surge de sua xícara de chá nítido como um gênio saído de uma lâmpada.
Essas “duas experiências do tempo” (Ibid., p. 142), como as define Rousset, se repetirão ao
longo de todo o romance, a primeira concentrada na vida social de Marcel, a segunda revelada
em momentos como a cena da madeleine, a percepção do desnível no calçamento do pátio dos
Guermantes etc. No primeiro caso, o “tempo vivido e (...) os eus descontínuos”; no segundo, o
“‘atemporal’, onde o eu recupera a posse de sua unidade e de sua permanência.” (ROUSSET,
1967, p. 142). Pela “descida a si” de que fala Jullien, portanto, não devemos entender exatamente
o deixar-se levar pelo “fio das horas” (PROUST, 2008, p. 5), ou tampouco a noite da morte
33
,
mas essa noite plena de “excitação intelectual” (PROUST, 2007b, p. 341), essa noite em que se
revela afinal a verdadeira vida – que é a literatura.
Assim, sendo a noite criativa uma espécie de nível primeiro na narrativa a partir do qual
tem lugar o ato de narrar, chegamos a algo próximo ao que Jullien denominou o “encaixamento
de contos e de histórias (...) (ramificação interna seguida de fechamentos progressivos até o
retorno à contadora persa do início)” (Ibid., p. 17). Trata-se de algo próximo ao “encaixamento”
de que fala Todorov (1971) a respeito da estrutura dos contos árabes, mas com uma diferença
55
significativa em relação à narrativa proustiana: enquanto Sherazade narra histórias que nada
dizem respeito a si mesma, ao sultão ou a qualquer aspecto desse primeiro nível da narrativa, o
narrador Marcel, por sua vez, isola-se para escrever algo que, não sendo exatamente sua própria
vida, ainda assim nutre-se fortemente dos fatos que a compõem
34
. Como colocam Bradbury e
Fletcher, para introduzir suas considerações sobre a importância de Proust ao romance
modernista, “o processo de elaboração torna-se não só elemento integrante da lógica
significativa da história: ele se torna, na verdade, a própria história.” (BRADBURY &
FLETCHER, 1989, p. 328).
Ora, este “romance cônscio de si” (Ibid., p. 324) é, segundo os mesmos autores, uma das
mais básicas características do gênero na modernidade. É este traço o responsável, por exemplo,
pela quebra da distância estética de que fala Adorno em seu ensaio “Posição do narrador no
romance contemporâneo”, de modo que, “quando em Proust o comentário está de tal modo
entrelaçado na ação que a distinção entre ambos desaparece”, a distância entre o narrador e a
narrativa “varia como as posições da câmara no cinema: o leitor é ora deixado do lado de fora,
ora guiado pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de máquinas.” (ADORNO, 2008,
p. 61). Sem dúvida, o que cabe aqui assinalar é que, no caso de Em busca do tempo perdido
assim como em inúmeras outras obras, dentre as quais os romances de Graciliano Ramos S.
Bernardo e Angústia, de que tratarei no próximo capítulo –, a visita do leitor à “casa de
máquinas” do romance se dá nesta espécie de nível paralelo composto das horas insones de seu
narrador, com toda a maquinaria que lhe é característica: a penumbra ou a escuridão, o silêncio,
a solidão, a imobilidade, a ausência de estímulos externos, a extrema introspecção. É,
finalmente, essa suspensão do narrador da ordem dos acontecimentos o que lhe permite
suspender-se também do tempo vivido para, através da escrita, recuperá-lo.
Nesse sentido, poderíamos indagar se a insônia de Marcel não funcionaria, em seu caso e
no de outros personagens, como uma metáfora da autoconsciência artística. Isto é, a insônia pode
ser pensada como um recordar-se da narrativa sobre si mesma, à maneira do que veremos nas
seções dedicadas a Borges e Guimarães Rosa. Decerto, essa autoconsciência pode ser expressada
33
“Mas então vem a noite que não pode ser figurada, e sobre a qual o dia não mais se levantará.” No original,
« Mais déjà vient la nuit où l’on ne peut plus peindre, et sur laquelle le jour ne se relèvera pas. » (PROUST,
2007b, 340)
56
através de inúmeras outras imagens – das quais a própria “casa de máquinas” proposta por
Adorno é um exemplo –, o que leva à constatação de que a relação entre insônia e
autoconsciência artística é antes de ordem metafórica do que metonímica. Ainda assim, no caso
de Proust e no da maior parte dos autores aqui abordados, a insônia dos personagens se
aproxima, nas palavras de Michèle Manceaux, dessa “’segunda visão’ que é talvez a primeira.”
(MANCEAUX, 1985, p. 21).
2.2. Bernardo Soares e as indigestões da alma
Discorrendo sobre a figura do flâneur na sua “Paris do Segundo Império”, Walter
Benjamin detém-se, em determinado momento, no conto “O homem da multidão”, no qual Edgar
Allan Poe apresenta um flâneur diferente da clássica imagem de Baudelaire pelas ruas de Paris.
“Para Poe”, diz Benjamin, “o flâneur é acima de tudo alguém que não se sente seguro em sua
própria sociedade. Por isso busca a multidão.” (BENJAMIN, 1989, p. 45). O “homem da
multidão” é, nesse caso, aquele que “não se permite ser lido”
35
(POE, 1996, p. 202) justamente
porque, diluído na grande massa de transeuntes presente nas ruas a qualquer hora do dia ou da
noite, não há nele uma personalidade própria passível de ser identificada. Com efeito, não seria
difícil, mesmo na Londres em que se passa o conto, permanecer noite e dia vagando pelas hordas
de uma cidade em que, como a Paris descrita por Benjamin, “as lojas nas ruas principais não
fechavam antes das dez da noite. Era a grande época do noctambulismo.” (BENJAMIN, 1989, p.
47).
Decerto, a Lisboa do início do século XX vivia situação bem mais provinciana e menos
vibrante que Paris ou Londres. Ainda assim, ao menos durante o dia, suas ruas são agitadas o
suficiente para que Bernardo Soares possa afirmar: “Se de dia ellas [as ruas] são cheias de um
bulício que não quere dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quere dizer
34
Na terminologia de Gérard Genette (1972), As mil e uma noites seriam um exemplo de “narrativa metadiegética”,
ao passo que Em busca do tempo perdido seria o que Genette classifica de “narrativa pseudo-diegética”.
35
No original, “does not permit itself to be read.”
57
nada. Eu de dia sou nullo, e de noite sou eu.”
36
(PESSOA, 1997, I, p. 70). A passagem a
princípio parece clara: durante o dia Bernardo Soares, tal qual o homem da multidão de Poe,
desapareceria em meio ao movimento das ruas. Ao cair da noite, porém, a ausência de pessoas à
sua volta faria emergir algo como o verdadeiro Bernardo Soares, em sua personalidade
individual e singular – e aqui sua insônia se distinguiria fundamentalmente da do “homem das
multidões”, cuja vigília eterna é antes um prolongamento infindável do dia possibilitado pela
“grande época do noctambulismo” do que o que Jullien define, a respeito de Proust, como uma
“descida a si”. A questão, contudo, é menos simples, e traz problemas instigantes – a começar
pelo fato de o próprio Soares não ser nem um indivíduo, nem exatamente um heterônimo de
Fernando Pessoa. Trata-se, antes, de um “semi-heterônimo” ou uma “personalidade literária”
(Ibid., p. XLVI), para citar alguns dos termos usados por Pessoa para definir Soares.
Antes de entrar nas implicações da heteronímia pessoana, entretanto, analisemos mais
detidamente o que quer que se possa entender por um “indivíduo” Bernardo Soares. Ao título do
Livro do desassossego – suposto diário íntimo de Soares, escrito aos fragmentos
37
– segue-se o
subtítulo: “composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa.”
(Ibid., I, p. 1). O caráter ordinário de sua profissão e a alusão a Lisboa, inicialmente, parecem
fazer de Soares mais um “homem da multidão”. Com efeito, o próprio observa que ninguém lhe
presta mais atenção do que seria esperado a um obscuro funcionário. A leitura de suas notas,
entretanto, rapidamente deixa claro ao leitor que a situação é outra, pois Soares não possui
aquele “contentamento de cada pobre bicho vestido com a consciencia inconsciente da propria
alma.” (Ibid., I, p. 88). Ao contrário, “a minha alma era a mesma de sempre, entre os lençóes
como entre gente, dolorosamente consciente do mundo.” (Ibid., I, p. 208). Assim, para Soares,
toda a gente dorme e sonha durante todo o tempo, e consigo passa-se o mesmo, mas com a
diferença de que o ajudante de guarda-livros tem “aquella sensibilidade tenue, mas firme, o
sonho longo mas consciente (...) que forma no seu conjunto o meu privilegio de penumbra.”
(Ibid., I, p. 101).
36
Respeitando o estilo de Bernardo Soares, mantenho, a partir de agora, a ortografia original nas citações do Livro
do desassossego.
37
Robert Bréchon se refere à obra como “este livro de humor e de inquietude, de exaltação e de dúvida [que] é uma
das primeiras obras-primas desta literatura subjetiva tipicamente moderna, nascida do enxerto do diário romântico
sobre o ensaio clássico.” (BRÉCHON, 1985, p. 93).
58
Se aqui começamos a entrever, com o “privilegio de penumbra”, o tema da noite, não é
por acaso: Soares é notoriamente um insone, e sua insônia definida como uma “indigestão na
alma.” (Ibid., I, p. 140). Com efeito, a importância dessa condição insone à sua auto-
caracterização se mostra evidente quando, quase numa resposta a Hamlet, afirma: “Não durmo.
Entresou.” (PESSOA, 1997, I, p. 66)
38
. Ou então: “Sim, não dormi, mas estou mais certo assim,
quando nunca dormi nem durmo. Sou eu verdadeiramente nesta eternidade casual e symbolica
do estado de meia-alma em que me illudo.” (Ibid., I, 169) Tal “estado de meia-alma” é algo que
transcende as meras fronteiras entre o dormir e o estar acordado. É de fato o estabelecimento de
uma condição de sonolenta insônia
39
aquilo que media todos os contatos de Soares com a
realidade exterior, seja em suas atividades, seja na mera percepção do mundo ao seu redor.
“Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em vida e a dormir, que tambem é vida. Não ha
interrupção em minha consciencia: sinto o que me cerca se não durmo ainda, ou se não durmo
bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo.” (Ibid., II, p. 16). Por um lado, não haveria
espaço neste trabalho para rastrear melhor as extensas reverberações filosóficas e mesmo
religiosas contidas nessa passagem; por outro, essas considerações são fundamentais à
compreensão de uma vida calcada nessa consciência de sonhar.
Sabemos, até agora, que Soares vive, à semelhança do Kafka em suas noites insones,
como vimos do Capítulo 1, num “estado de meia-alma”, no qual não há distinção clara entre o
sono e a vigília, estando os dois ocupados pelos sonhos. Em qualquer dos casos, contudo, a
consciência de estar sonhando não desfaz a ilusão do sonho. Afinal, tanto sonhar quanto pensar
são ações
40
. E um dos mais básicos lemas de Soares é o de que “ver claro é não agir.” (Ibid., II,
p. 202). Dessa forma, obrigado à ação durante o dia – na sua profissão, nos deslocamentos pelas
ruas lisboetas, nos superficiais contatos com as outras pessoas –, à noite, entretanto, sua
necessidade de agir diminui consideravelmente. Nas palavras de Soares,
38
Ainda no universo shakesperiano, seria interessante compará-la por exemplo, com a de Macbeth ao afirmar, logo
após o assassinato do rei, que “Me parece/ Que ouvi uma voz gritar “Não dorme mais!/ Macbeth matou o sono” –
o mesmo sono/ Que tece o embaraçado por cuidados,/ Morte diária, banho da labuta,/ Bálsamo bom de mentes
machucadas,/ Pra natureza uma segunda via,/ Alimento maior da vida.” (SHAKESPEARE, 1995, p. 217).
Tradução de Anna Amélia Carneiro de Mendonça e Barbara Heliodora.
39
“Tenho vestigios na consciencia. Pesa em mim o somno sem que a inconsciencia pese...” (Ibid., I, 66)
40
“Só no devaneio absoluto, onde nada de activo intervem, onde por fim até a nossa consciencia de nós mesmos se
/atola/ n’um lodo – só ahi, nesse morno e humido não-ser, a abdicação da acção competentemente se attinge.”
(Ibid., II, p. 200).
59
Só quando vem a noite, de algum modo sinto, não uma alegria, mas um repouso que, por outros
repousos serem contentes, se sente contente por analogia dos sentidos. Então o somno passa, a
confusão do lusco-fusco mental, que esse somno dera, esbate-se, esclarece-se, quase se illumina.
Vem, um momento, a esperança de outras coisas. (Ibid., I, p. 165).
É este então o prenúncio do momento em que “tudo em meu torno é o universo nú,
abstracto, feito de negações nocturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a
sensação do corpo um conhecimento metaphysico do mysterio das coisas.” (Ibid., I, p. 103). No
entanto, “essa esperança é breve. O que sobrevém é um tedio sem somno nem esperança, o mau
dispertar de quem não chegou a dormir. E da janella do meu quarto fito, pobre alma cansada de
corpo, muitas estrellas; muitas estrellas; nada, o nada, mas muitas estrellas...” (Ibid., I, p. 165).
Nesses trechos, vemos como as “negações noturnas” criam esse vazio que poderia
desembocar numa inação completa. Contudo, um “amolecimento da alma” lhe traz novamente à
consciência os pormenores da vida cotidiana e com eles o “tedio sem somno nem esperança” e,
consequentemente, a impossibilidade de se atingir uma “competente abdicação da ação
novamente se esvai, [visto que] pensar, ainda assim, é agir.” (Ibid., I, p. 200). Volta-lhe então
“um somno como o que pesa inutilmente /sobre/ o corpo nas grandes insomnias da alma.” (Ibid.,
I, p. 165). Ou, como sustenta Bréchon, “esta consciência, que não altera nem nega o real, é a
princípio, fundamentalmente, uma consciência sonhadora. O estado primeiro da consciência de
Bernardo Soares é um estado de distração, que lhe oculta não somente a realidade exterior mas
também a verdade interior.”
(BRÉCHON, 1985, p. 96).
Esta “insônia da alma” – ou a “molestia de etiologia metaphysica” (PESSOA, 1997, II, p.
92) – é precisamente este estado constante no qual Soares, ainda que preso ao sonho e à ilusão,
pode ao mesmo tempo entrever não apenas a completa inação que é seu ideal, mas a “noite [que]
é um peso immenso por traz do afogar-me com o cobertor mudo do que sonho.” (Ibid., I, p. 140).
E é importante ressaltar, neste ponto, que aquilo que está por trás desta espécie de “véu de Maia”
a envolver Soares em seus sonhos seja definido como a noite por trás de um cobertor. Com
efeito, essa fronteira é eventualmente quase cruzada: “mesmo eu, o que sonha tanto, tenho
intervallos em que o sonho me foge. Então as cousas aparecem-me nitidas. Esvae-se a nevoa de
que me cerco.” (Ibid., II, p. 83). Tal evento, entretanto, é raro e fugidio, não chegando a se
estabelecer plenamente, uma vez que, se a “insônia da alma” lhe dá a consciência da própria
60
inconsciência, há sempre “a horrorosa histeria dos comboios, dos automóveis, dos navios [que]
não (...) deixa dormir nem acordar” “aos que pensam e sentem, aos que estão dispertos.” (Ibid.,
II, p. 131).
A insônia de Bernardo Soares se define assim como essa sonolência sem sono, esse
“estado de meia-alma” que, sobretudo ao longo da vigília noturna – quando o termo cabe
conotativa e denotativamente –, lhe dá a dimensão de si mesmo e de seus sonhos, mas lhe nega o
acesso à “noite por trás do cobertor”. A insônia de Bernardo Soares, como vimos, é algo
próximo a um “ser incompletamente”: “Não durmo. Entresou.” (Ibid., I, p. 66). Mas o que
significaria, em última instância, “entreser”? Certamente, inúmeras vias interpretativas aqui se
apresentam, e uma das mais interessantes, a meu ver, é a da heteronímia
41
.
Em carta a Adolfo Casais Monteiro datada de 1935 – o ano de sua morte –, Pessoa afirma
sobre Soares: “é um semi-heterônimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não
diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade.”
(PESSOA, 1997, p. XLVI-XLVII). De fato, a despeito das semelhanças biográficas entre ambos,
muito mais evidentes do que as existentes entre o poeta e qualquer de seus heterônimos, Soares,
não sendo idêntico ao ortônimo Pessoa, não chega a possuir uma personalidade marcada como a
de um Alberto Caeiro, um Ricardo Reis ou um Álvaro de Campos. Não possui, porém, a
consciência de existirem estes outros heterônimos – o que já é também uma mutilação, e o que
justifica seu status de “semi-heterônimo” em relação ao ortônimo Pessoa.
O problema ganha novos contornos, porém, se considerarmos que Soares, não tendo
consciência de Caeiro, Reis e Campos, entre tantos outros, ainda assim os possui a todos. Pois,
como defende Eduardo Lourenço: “o Livro [do desassossego] comporta todos os textos de
Fernando Pessoa, todas as suas mais características tonalidades desde o ultra-simbolismo
sonambúlico dos jovens até ao simbolismo (ultra, também ou menos ultra) de fim de percurso e
41
Assim explica Pessoa os heterônimos e sua gênese: “Tive sempre, desde criança, a necessidade de aumentar o
mundo com personalidades fictícias, sonhos meus rigorosamente construídos, visionados com clareza fotográfica,
compreendidos por dentro das suas almas.” (PESSOA, 1976, p. 92). “A cada personalidade mais demorada, que o
autor destes livros conseguiu viver dentro de si, ele deu uma índole expressiva, e fez dessa personalidade um
autor, com um livro, ou livros, com as ideias, as emoções, e a arte dos quais, ele o autor real (ou porventura
aparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevê-las, o médium de
figuras que ele próprio criou.” (Ibid., p. 82).
61
vida.” (LOURENÇO, 1985, p. 356). Esse curioso traço, inexistente nos outros heterônimos
42
,
conduziria ao que Lourenço classifica de um suicídio da mitologia heteronímica, uma vez que no
Livro do desassossego os heterônimos “se articulam entre si e os outros textos não-
heteronímicos sem solução de continuidade, revelando-nos assim, não o caráter fabricado dos
textos heteronímicos, mas tão só o caráter lúdico da sua autonomização, tanto como a sua função
oculante.” (Ibid., p. 361).
A hipótese que aqui coloco, então, é a de que Soares, ao assimilar traços dos outros
heterônimos sem entretanto ter consciência de tal processo ou mesmo da existência desses
outros, deixa transparecer o caráter propriamente ficcional de sua existência – ou o caráter
lúdico, nos termos de Lourenço. A insônia de Bernardo Soares constitui então esse “entreser”,
que é ser um “semi-heterônimo”, que é ter uma “indigestão na alma”, que é em última instância a
semi-consciência de haver algo para além da sua existência que, entretanto, não pode ser
captado. Sendo este “algo além” a presença de todos os heterônimos no Livro, é isto também a
constatação de que Soares, transpassado por tantos outros discursos, não possui uma
personalidade delineável em relação aos outros heterônimos. Soares é uma “meia-alma”, um
vácuo, quase um “homem da multidão”, se por multidão entendermos as dezenas de heterônimos
criados por Pessoa ao longo da vida. Ser um semi-heterônimo, nesse caso, é ser simultaneamente
um heterônimo e um personagem de ficção – e essa posição dúbia é fortemente sugerida pela
“insônia da alma” vivida por Soares.
Tal condição de sua ficcionalidade, para concluir, está essencialmente calcada no que
Leyla Perrone-Moisés chama de um “sujeito vazio”, na obra Fernando Pessoa: aquém do eu,
além do outro. Nas palavras da autora, “o que é original em Pessoa, e radicalmente moderno, é a
experiência de certo “sujeito vazio”, que não se beneficia mais do conforto logocêntrico, nem se
ilude mais com a falsa “unidade profunda” da pessoa psicológica.”
43
(PERRONE-MOISÉS,
42
É verdade que os heterônimos pessoanos não raramente declaram conhecer as obras uns dos outros, e não
raramente as comentam. Mas o caso de Soares é diferente porque, não as conhecendo, ele assimila traços de cada
um.
43
Visto que este estudo de Perrone-Moisés é ligeiramente anterior à primeira edição do Livro do desassossego, não
é de se estranhar que Bernardo Soares dele esteja ausente. Na edição brasileira de 1986, contudo, organizada pela
mesma autora, esta, no prefácio à obra, comenta também que Soares carrega “aquele que é, a meu ver, o tema
maior da obra pessoana: a experiência da inexistência de um eu profundo, a vertigem do sujeito reconhecendo-se
como brecha incolmatável, o reconhecimento do logro de qualquer ‘personalidade’.” (PERRONE-MOISÉS, 1986,
p. 21).
62
1982). A meu ver, o Livro do desassossego afirma e expande a ideia do “sujeito vazio”, ao trazer
à tona um personagem que, ao contrário dos próprios termos em que Pessoa define a
heteronímia, não possui uma personalidade marcada e distinta de seu criador. É isto o que
confere a Soares um caráter, mais do que heteronímico, ficcional, e é também o que faz com que
o Livro conste neste trabalho – não como um romance, gênero no qual dificilmente poderia ser
encaixado, mas como prosa de ficção. Que o ficcional em Pessoa seja precisamente aquela obra
que mais se aproxima do estilo e da biografia dele mesmo, bem, eis mais uma das geniais ironias
pessoanas. Explicada, inclusive, pelo próprio, numa justificativa ao fato de os heterônimos
escreverem predominantemente em verso: “em prosa é mais difícil de se outrar.” (PESSOA,
1976, p. 86).
2.3. Irineo Funes: a memória como estância
Os pontos de contato entre Fernando Pessoa e Jorge Luis Borges já foram assinalados por
estudiosos como Emir Rodríguez Monegal
44
(1985), seja pelo viés da forte presença da cultura
britânica em suas vidas, seja pela problematização da noção de autoria empreendida por ambos.
Curioso seria também notar uma relativa afinidade entre Bernardo Soares e Irineo Funes, o
protagonista do conto “Funes el memorioso” [“Funes, o memorioso”], publicado em Ficciones
[Ficções]. Vejamos uma declaração como a de Bernardo Soares acerca de “qualquer coisa”:
“consideral-a cada vez de um modo differente é renoval-a, multiplical-a por si mesma. É porisso
que o espirito contemplativo que nunca sahiu da sua aldeia tem contudo á sua ordem o universo
inteiro.” (PESSOA, 1997, II, p. 165).
Se fosse esta afirmação originalmente composta em espanhol, seria ela facilmente
atribuída a Funes, visto que o narrador do conto de Borges declara acerca deste e de seu
“vertiginoso mundo” que “este [Funes], não nos esqueçamos, era quase incapaz de ideias gerais,
platônicas. Não só lhe custava compreender que o símbolo genérico cachorro abarcava tantos
indivíduos díspares de diversos tamanhos e diversa forma; incomodava-lhe que o cachorro das
44
No ensaio “Jorge Luis Borges, el autor de Fernando Pessoa”.
63
três e quatorze (visto de perfil) tivesse o mesmo nome do cachorro das três e quinze (visto de
frente).”
45
(BORGES, 2007, p. 589). E não deixa de ser instigante o fato de que tal forma de
perceber o mundo seja, à maneira do que se dá com Soares, descrita como insone. Mas, antes de
analisar melhor a questão, voltemos um pouco não apenas às causas para que uma tão
assombrosa percepção do mundo se desenvolvesse em Funes, mas às diferenças entre o tempo e
o espaço de “Funes, o memorioso” em relação às obras de Proust e Pessoa.
O primeiro volume de Em busca do tempo perdido foi publicado em 1914; o último, em
1923. O Livro do desassossego só seria editado em 1982, mas os fragmentos atribuídos a
Bernardo Soares vão de 1914 a 1935. A situação do conto de Borges é um tanto distinta: o
volume intitulado Ficções só sairia em 1944 – após, portanto, o fim da censura a Ulisses, a
publicação em livro de Finnegans Wake e quando as obras do chamado Alto Modernismo ou
High Modernism já eram comumente vistas com reserva. A questão geográfica, da mesma forma,
deve ser levada em conta: ao mesmo tempo que Borges, marcado por uma formação cosmopolita
e multicultural, participou do ultraísmo em Madrid, se alfabetizou em inglês e escreveu sobre
Joyce já em 1925, é certo que a cultura argentina tradicional e a literatura gauchesca possuem
um peso considerável em sua obra – inclusive no caso de um conto que, como “Funes, o
memorioso”, se passa numa remota estância no Uruguai. Portanto, mesmo com todas as
diferenças existentes entre os primeiros modernistas europeus, é necessário – como também será
o caso de Guimarães Rosa, mais adiante –, considerar as questões por eles colocadas já num
segundo momento e num espaço bastante distinto, o que significa pensar de que maneira Borges
retrabalha tais problemas nessas novas condições.
Ambientado na década de 1880, numa estância dos pampas uruguaios, o conto nada
parece trazer da cronométrica rigidez da vida nas grandes metrópoles. Com efeito, nada mais
estranho à cidadezinha de Fray Bentos do que as implacáveis badaladas do Big Ben a pontuarem
um romance como Mrs. Dalloway. No entanto, Funes – um rapaz de bombacha, alpergatas e
rosto duro, como convém a um típico gaucho –, ao contrário de Clarissa e de tantas outras
personagens de Virginia Woolf, era “célebre por algumas peculiaridades como (...) a de saber
45
No original, “Éste, no lo olvidemos, era casi incapaz de ideas generales, platónicas. No sólo le costaba
comprender que el símbolo genérico perro abarcaba tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa
forma; le molestaba que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las
tres y cuarto (visto de frente).”
64
sempre a hora, como um relógio.”
46
(Ibid., p. 584). A própria circunstância em que o narrador
conhece Funes – este passava por um caminho mais alto, acima de uma espécie de muro de
tijolo, de modo que parecia andar por uma parede – dá a este último ares de relógio.
O contraste entre o bucolismo das estâncias e o “cronométrico Funes” (Ibid., p. 584)
certamente não é casual. Tampouco o seria o destino do rapaz, pouco após esta primeira visita do
narrador: vítima de um acidente que o deixara paralítico, Funes ficara também inexplicavelmente
dono de uma memória infalível e de uma aguçadíssima capacidade de perceptiva. Com uma
rápida olhada, era capaz de perceber “todos os brotos e cachos e frutas que há em uma parreira.
Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do 30 de abril de 1882.”
47
(Ibid., p. 587). Ao
contrário do Marcel que, na recepção na casa dos Guermantes ao fim d’O tempo redescoberto,
surpreende-se com o envelhecimento geral de todos sem que, ao longo dos anos, se desse conta
de que seus companheiros e ele mesmo estavam sujeitos à ação do tempo, “Funes discernia
continuamente os tranquilos avanços da corrupção, das cáries, do cansaço. Notava os progressos
da morte, da umidade.”
48
(Ibid., p. 589).
Não menos significativa – e agora voltando à proposta central deste trabalho – é a
situação em que o narrador acha este Funes já memorioso ao visitá-lo em sua casa. Pois, ao
chegar nela, a mãe do rapaz “me disse que Ireneo estava no cômodo dos fundos e que não
estranhasse encontrá-lo às escuras, porque Ireneo sabia passar as horas mortas sem acender a
vela.”
49
(Ibid., p. 586). Com efeito, ao chegar, o narrador percebe-se numa total ausência de luz.
Provavelmente a escuridão e o isolamento do personagem já soarão ao leitor familiares: são
estes, afinal, alguns dos traços mais característicos das cenas de insônia que vimos analisando.
De um lado, são um recurso bastante útil ao próprio formato do conto: estando os dois
personagens – o narrador e Funes – a sós no escuro, sem enxergarem sequer um ao outro, cria-se
todo um ambiente favorável à concentração total da narrativa na experiência de Funes.
Por outro lado, tais fatores antecipam o que já seria esperado de um caso como este: de
fato, Funes não só se declara insone, mas sua insônia está intrinsecamente atrelada à sua nova
46
No original, “mentado por algunas rarezas como (…) la de saber siempre la hora, como un reloj.”
47
No original, “todos los vástagos y racimos y frutos que comprende una parra. Sabía las formas de las nubes
australes del amanecer del 30 de abril de 1882.”
48
No original, “Funes discernía los tranquilos avances de la corrupción, de las caries, de la fatiga. Notaba los
progresos de la muerte, de la humedad.”
65
maneira de perceber a realidade à sua volta. Nas palavras do narrador, “era-lhe muito difícil
dormir. Dormir é distrair-se do mundo.”
50
(Ibid., p. 589). E não nos esqueçamos que o próprio
Borges afirmara, em entrevista a L.S. Dembo, que “Funes, o memorioso” é “uma metáfora da
falta de sono”, visto que o autor sofria grandemente de insônia:
A terrível lucidez da insônia. E há uma palavra comum no espanhol argentino para “despertar”:
recordarse, lembrar-se de si. Quando você está dormindo, não pode lembrar-se de si – de fato,
você não é ninguém, embora possa ser qualquer um em sonhos. Então de repente você desperta e
“lembra-se de si”; e diz, “sou tal pessoa; estou em tal lugar, estou vivendo em tal ano.” Mas
recordarse é usado comumente e não creio que alguém tenha solucionado suas implicações.
(BORGES, 1970, p. 319).
Nesta instigante passagem, Borges estabelece, através de “Funes, o memorioso”, uma
fundamental relação entre a memória e a vigília: de maneira próxima a Proust e Pessoa, coloca
que dormir é distrair-se do mundo e esquecer-se de si. Mesmo quando acordados, aqueles que
não prestam atenção ao mundo e não refletem sobre si mesmos estão de certa forma dormindo.
Pois, antes do acidente, Funes “dezenove anos havia vivido como quem sonha: olhava sem ver,
ouvia sem ouvir, esquecia-se de tudo, de quase tudo.”
51
(BORGES, 2007, p. 587).
Indaguemos de que forma esses dados podem ajudar a examinar o clássico conflito entre
os tempos cronológico e psicológico, tão explorado pela prosa moderna. Em seu Modernist
Fiction [Ficção modernista], Randall Stevenson observa nos autores modernistas “um amplo
incômodo com a subordinação ao tempo”, e atenta para as ansiedades “especificamente acerca
de relógios e mecanismos, [que] aparecem com surpreendente frequência na escrita modernista.”
(STEVENSON, 1992, p. 84). Seria relevante aqui lembrar o primeiro Funes, anterior ao
acidente, que, tal qual um relógio, media as horas e guardava mecanicamente os nomes das
pessoas. E mais interessante se torna a questão se, ainda no texto de Stevenson, lermos que “a
memória se torna para a narrativa modernista um dispositivo central e estruturante para a criação
de um ‘tempo da mente’ que, através da aleatoriedade da recordação afasta-se da ‘sucessão
mecânica’ e do controle do relógio.” (Ibid., p. 93). Seria ocioso entretanto insistir na importância
49
No original, “me dijo que Ireneo estaba en la pieza del fondo y que no me extrañara encontrarla a oscuras, porque
Ireneo sabía pasarse las horas muertas sin encender la vela.”
50
No original, “Le era muy difícil dormir. Dormir es distraerse del mundo.”
51
No original, “diecinueve años había vivido como quien sueña: miraba sin ver, oía sin oír, se olvidaba de todo, de
casi todo.”
66
da memória ao conto em questão, e na sua fundamental oposição à mecanicidade e ao
esquecimento das singularidades determinado pelo tempo cronológico.
O que proponho, nesse caso, é que o conto de Borges pode ser lido como uma espécie de
releitura paródica dessa oposição entre o chamado “tempo da mente” e o “tempo ditado pelo
relógio”, largamente abordada pela ficção modernista das décadas de 1910 a 1930. Tal qual os
personagens desse período, que não veriam mais a vida como “uma série de lâmpadas de
carruagem simetricamente dispostas” mas sim como “um halo luminoso, um invólucro semi-
transparente nos envolvendo dos primórdios da consciência até o fim” (WOOLF, 2007, p. 75),
Funes contempla com especial talento os inumeráveis átomos “enquanto caem, enquanto se
acomodam à vidinha de segunda ou terça-feira.” (Idem). Efetivamente, quase poderia constar seu
nome no clássico ensaio de Virginia Woolf, “Ficção moderna”. E se digo que isto quase poderia
ocorrer, digo-o porque Funes não é um dos personagens aos quais Woolf se dirige, mas uma
releitura deles – e em certa medida bem irônica.
Em primeiro lugar, Funes tem consciência de sua memória, de modo que se recorda de
cada uma das vezes em que se lembrou de algo. Trata-se de uma situação certamente não
prevista por Woolf em “Ficção moderna” e poucas vezes utilizada na prosa de ficção da época.
Afinal, pode-se dizer que Ulisses, por exemplo, contém ou pretende conter os pensamentos de
Leopold Bloom, mas isto não significa que o próprio Bloom vá se lembrar, no dia seguinte ao do
livro, de tudo o pensou naquele 16 de junho de 1904. Dessa forma, Funes, ao lembrar-se de seus
pensamentos, aproxima-se não do personagem modernista ideal, mas da própria narrativa
modernista ideal. Em segundo lugar, sua condição de imobilidade e sua atitude essencialmente
contemplativa beiram a caricatura daqueles personagens em cujo pensamento o foco é tão
intenso, que pouco espaço resta às suas ações. É como se Borges retrabalhasse essas questões tão
presentes na ficção modernista do início do século XX, como se lhe tirasse esses temas centrais
para realocá-los e repensá-los numa distante estância uruguaia – e o narrador faz questão de
ressaltar o quão remota é ela – e ainda no século XIX, muitas e muitas décadas antes do
momento em que o narrador escreve seu suposto depoimento sobre Funes. A distância espácio-
temporal só realça a problematização das questões abordadas por Borges: se por um viés as
67
desvincula dos grandes centros
52
, por outro exagera-as e as distorce, criando uma paródia que é
também já um elemento independente do elemento parodiado. De fato, mesmo não sendo essa
dimensão paródica necessária à leitura, não deixa de ser cômico que, após a tão minuciosa
exploração da consciência humana empreendida pelos modernistas, Funes, acometido de uma
exagerada capacidade de perceber o mundo, tenha morrido de congestão pulmonar – isto é, de
excesso de ar, de informações, de vida.
Da mesma forma, é importante assinalar que, no cerne dessa sua postura receptiva a todos
os estímulos, está a sua insônia, signo da impossibilidade de distrair-se. E mais ainda: sendo essa
sua postura receptiva realimentável por suas próprias memórias – afinal, ele se lembra de cada
lembrança –, sua insônia aparece novamente como componente fundamental ao isolamento
exigido por esse processo de lembrar-se da lembrança. Sendo ele tão sensível a qualquer imagem
ou qualquer ruído, não é de se espantar que desejasse e buscasse a escuridão total – como o
encontra o narrador no início do conto, e como, segundo sua mãe, passava longas horas – sendo
este o único estado no qual se poderia manifestar o que Déborah Danowski, como veremos no
próximo tópico, classificou de a “insônia dos espíritos”.
2.4. Chefe Zequiel: o insone das almas do Brejão-do-Umbigo
No ensaio “Filosofia com literatura: quatro casos de insônia”, Déborah Danowski (2006)
parte da teoria das mônadas de Leibniz para, através de suas considerações acerca da capacidade
perceptiva do ser humano, pensar três casos de insônia em obras literárias – sendo o quarto caso
mencionado no título a insônia do próprio Leibniz. Significativamente, Danowski cita um trecho
da juventude do filósofo, “Fragmento sobre os sonhos”, no qual
Leibniz dizia que acordar é relembrar [recolligere] de si mesmo, e pensar: “Dic cur hic?”; isto é:
“me diga: por que você está aqui mesmo? ou “o que você está fazendo aqui?”. Acordar é
“começar a conectar seu estado presente com o resto de sua vida, ou com você mesmo.” Só temos
52
“Babilônia, Londres e Nova York perturbaram com feroz esplendor a imaginação dos homens; ninguém, em suas
torres populosas ou em suas urgentes avenidas, sentiu o calor e a pressão de uma realidade tão infatigável como a
que dia e noite convergia sobre o infeliz Irineo, em seu pobre subúrbio sul-americano.” (BORGES, 2007, p. 589).
No original, “Babilonia, Londres y Nueva York han abrumado con feroz esplendor la imaginación de los
hombres; nadie, en sus torres populosas o en sus avenidas urgentes, ha sentido el calor y la presión de una realidad
tan infatigable como la que día y noche convergía sobre el infeliz Irineo, en su pobre arrabal sudamericano.”
68
certeza de estarmos acordados quando nos lembramos onde estamos, e “por que viemos parar em
nossa posição e condição presentes...” (DANOWSKI, 2006, p. 4).
Ora, a grande semelhança com o conto e a passagem da entrevista de Borges
anteriormente transcrita levanta alguns pontos de interesse. Inicialmente, por apresentar quase
nos mesmos termos a vinculação entre vigília e memória. Em segundo lugar, porque Funes é
precisamente um dos insones trabalhados no texto de Danowski. Outro é o Chefe Zequiel,
personagem da novela “Buriti”, de João Guimarães Rosa.
Habitante da fazenda de Buriti Bom, Zequiel sofre de uma insônia e uma audição
terríveis, que lhe obrigam a passar as noites às escuras num moinho, identificando cada um dos
sons da mata. Tanto Funes quanto Zequiel possuem uma capacidade totalmente fora do normal
de perceber o mundo. E por mais que Funes, ao contrário de Zequiel, passe seus dias fascinado
com tal estado, este é nocivo a ambos, tendo em vista tanto o terror de Zequiel quanto a morte de
Funes por congestão pulmonar. É que, como sustenta Danowski, “Que a maior parte de nossas
percepções permaneça confusa e obscura é providencial. (...) Aliás, a mera proliferação de
percepções distintas, diria Leibniz, ainda que não desagradáveis em si mesmas, ser-nos-ia talvez
insuportável.” (Ibid., p. 3). É este, justamente, o caso de Zequiel: dotado dessa audição noturna
exagerada, os ruídos do sertão lhe aparecem de forma aterrorizante. “O chefe, por erro de ser,
escuta o que para ouvido de gente não é, por via disso cresceu nele um estupor de medo, não
dorme, fica o tempo aberto, às vãs...” (GUIMARÃES ROSA, 1993, p. 114).
Entretanto, uma importante diferença se impõe entre o chefe e o rapaz uruguaio: o
primeiro possui apenas uma percepção excessiva do exterior, ao passo que o segundo possui,
além desta percepção, a memória, a capacidade de recordarse, de lembrar-se de si. É isto o que
leva Danowski a definir a insônia de Zequiel como uma “insônia das almas” e a de Funes como
uma “insônia dos espíritos”. “A autoconsciência”, diz Danowski, “instaura em nossa vida mental
uma dimensão de infinitude inacessível aos outros tipos de almas, e muito diferente daquela que
caracterizava a realidade fenomênica em que a matéria se dispõe para nós, motivo da insônia do
Chefe Zequiel.” (DANOWSKI, 2006, p. 5). Se Zequiel sofria apenas de “um mal causado pela
percepção exagerada” (Ibid., p. 3), “no caso das mônadas espirituais, [como é o caso de Funes],
caracterizadas pela “personalidade” ou autoconsciência, o sono ou o atordoamento é também um
afastamento ou esquecimento de si mesmo. (Ibid., p. 4).
69
Dito isto, pensemos as implicações da insônia de Zequiel à composição da narrativa de
“Buriti”. Tal como Borges, Guimarães Rosa escreve décadas após o boom de técnicas narrativas
como o fluxo de consciência ou o monólogo interior, e após uma significativa desestabilização
da ordem dos eventos no enredo: parte integrante do Corpo de baile, “Buriti” seria publicado
apenas em 1956. Tal como Borges, Guimarães Rosa localiza sua narrativa num espaço bastante
diverso de cidades como Paris ou Lisboa: “Buriti”, como a maioria absoluta da obra rosiana, é
ambientada em pontos remotos do sertão brasileiro, especialmente no estado de Minas Gerais. E
tal como o autor argentino, Rosa repensa e expande em seus textos muitas das inovações
narrativas que marcaram a prosa de ficção das primeiras décadas do século XX. “Buriti”, nesse
contexto, é um exemplo excelente de tal processo.
Como já fora dito, Zequiel sofre de uma insônia provocada por uma audição assombrosa.
“Escuta até aos fundos da noite, escuta as minhocas dentro da terra. (...) Para ele, a noite é um
estudo terrível.” (GUIMARÃES ROSA, 1993, p. 99). Vejamos uma amostra da prosa que
acompanha as noites do chefe:
A noite é cheia de imundícies. A coruja desfecha os olhos. Agadanha com possança. E õe e rõe,
ucrú, de ío a úo, virge-minha, tiritim: eh, bicho não tem gibeira... Avougo. Ou oãoão, e psiuzinho.
Assim: tisque, tisque... Ponta de luar, pecador. O urutau, em veludo. Í-éé... Í-éé... Ieu... Treita do
crespo de outro bicho, de unhar e roer, no escalavro. No tris-e-triz, a minguável... É uma pessoa
aleijada, que estão fazendo. Dou medida de três tantos! Só o sururo... Chuagem, o cru, a renho...
Forma bichos que não existem. De usos – as criaturas estão fazendo corujas. Dessoro d'água,
caras mortas. Quereréu... Ompõe omponho... No que que é, bichos de todos malignos formatos. O
uivo de lobo: mais triste, mais uivoso. Avoagem, só eu é que sei dos cupins roendo. Para outros, a
noite é viajável. Que não tenho pai nem mãe, meus menos... É a morma, mingau-de-coisa, com
fogo-frio de ideia. Dela, esta noite, ouvi só dois suspiros, o cuchusmo. Mortemente, Malmodo me
quer, me vem, psipassa... Quer é terra de cemitério. (GUIMARÃES ROSA, 1993, p. 149-150).
Essa passagem é parte de uma maior, na qual, no mesmo estilo, tem lugar a insônia de
Zequiel, e episódios semelhantes irrompem inúmeras vezes na narrativa. Próximo a falas de
personagens como o homem-onça de “Meu tio o Iauaretê”, tal trecho faz parte da página que o
tradutor italiano de Guimarães Rosa, Edoardo Bizzarri, classificou de “diabólica”, como expõe
Ana Luiza Martins Costa (2005) no artigo “O mundo escutado”. Com efeito, as agruras
enfrentadas por Bizzarri na tradução das insônias de Zequiel deixa entrever em que medida a
prosa destas é contorcida e labiríntica, como se, nas palavras de Costa, “sempre em busca de
formas que expressem aquilo que não tem voz nem contornos definidos, a escrita de Rosa
70
brinca[sse] com a linha tênue e arbitrária que distingue as coisas do mundo. Ela quer captar o
que é ambíguo e escorregadio, ignoto ou difícil de ser apreendido.” (COSTA, 2005, p. 51).
O mais curioso, contudo, é o modo pelo qual essa linguagem peculiar se relaciona com o
todo da narrativa. Dentre a ampla gama de personagens que atravessam o enredo e a fazenda, o
foco narrativo, frequentemente em discurso indireto livre, alterna-se entre Miguel e Lalinha. E é
importante lembrar que são estes os dois únicos personagens provenientes da cidade e
pertencentes a um modo de vida fundamentalmente urbano, sendo portanto digno de nota o fato
de a história ser narrada através do ponto de vista dos dois. Assim, a primeira parte acompanha a
perspectiva de Miguel, a segunda a de Lala e a terceira volta à de Miguel. A trama em geral
permanece em terceira pessoa, ainda que eventualmente se reverta para a primeira, quando o
foco está em Miguel. E, com exceção das noites insones de Zequiel, a prosa é em geral bem mais
regular, com relativamente poucas “construções diabólicas”.
Nas insônias do Chefe, entretanto, tudo muda de figura. Normalmente inseridas nas
partes da novela cujo foco narrativo pertence a Miguel – o que não é mero acaso, visto que este
se mostra habitualmente bem mais aberto aos discursos e concepções de mundo alheios do que
Lala –, nas horas de terror de Zequiel interrompe-se o desenrolar da trama, e a própria sintaxe
das frases muda por completo. Tudo parece cessar para dar espaço a uma prosa entrecortada e
sombria, com pouca coerência e muita onomatopeia, como se dedicada a transcrever palavra por
palavra o que Zequiel pensa e ouve em sua agonia. É como se o próprio Brejão-do-Umbigo, a
região pantanosa nas imediações da fazenda, como imagem dos recônditos mais inacessíveis do
sertão, tomasse à história as paredes da casa-da-fazenda: “O Chefe, ele escuta, de escarafuncho.
Trás noite, trás, noite, o mundo perdeu suas paredes. Fere um grilo, serrazim. Silêncio. E os
insetos são milhões.” (ROSA, 1993, p. 142). Dessa forma, toda a história passada no interior das
paredes da casa cede ante o poder imobilizante e esvaziador do sertão através da abertura ao
discurso de Zequiel, “que procurava exprimir alguma outra coisa, muito acima do seu poder de
discernir e abarcar.” (Ibid., p. 188).
A meu ver, ainda que haja outros personagens insones ao longo da trama, há uma
distinção fundamental entre as suas noites em claro e as de Zequiel: enquanto a insônia dos
outros habitantes do Buriti Bom fluem perfeitamente na narrativa, integrando-se aos eventos do
enredo ou mesmo os engendrando, a insônia do Chefe constitui uma espécie de pausa, de
71
interrupção, de erupção imprevista de uma outra realidade que, até certo ponto subterrânea e
alheia aos acontecimentos, passa fora da visão dos personagens, ainda que tão próxima a eles,
ainda que componente essencial do seu modo de entender o mundo.
Mudando assim totalmente de figura, a narração das insônias de Zequiel sugere uma
interferência direta do discurso e dos pensamentos do Chefe, bem como dos ruídos por ele
escutados. É como se o leitor, nesses trechos, tivesse um acesso direto à mente do chefe:
praticamente desaparece a mediação de um narrador e, em alguns momentos, a voz narrativa
chega ser transferida para a primeira pessoa de Zequiel, detendo-se em fragmentos de frases que
lhe passassem pela cabeça. Trata-se, com efeito, de um procedimento que poderia ser descrito
como “um tipo de ficção em que a ênfase principal é posta na exploração dos níveis de
consciência que antecedem a fala com a finalidade de revelar, antes de mais nada, o estado
psíquico dos personagens.” (HUMPHREY, 1976, p. 4), para usar os termos com os quais Robert
Humphrey definiu a técnica do fluxo de consciência. Como sustenta Costa Lima em “O Buriti
entre os homens ou o exílio da utopia”, “ao distinguir cada voz, ao escutar o impossível, ao
nomear o que a todos mais seria improvável, Zequiel desvela o caráter discreto e significativo do
que, para os outros, seria apenas rumor, confusa mistura.” (COSTA LIMA, 1974, p. 161).
O que chama a atenção é que tal procedimento esteja restrito basicamente ao terror
noturno de Zequiel, e que, engasgado e isolado do mundo, perturbe o desenrolar dos
acontecimentos, formando uma espécie de clareira, um vazio na narrativa. Dessa forma, ao pôr
lado a lado uma narração mais regular e o fluxo de consciência à maneira do que encontramos,
por exemplo, em Joyce ou Faulkner, ao estabelecer este contraste, Guimarães Rosa atinge um
efeito extremamente interessante, que contrapõe a vida cotidiana dos personagens na fazenda,
pontuada pelo movimento do monjolo
53
, com aquela força profunda e misteriosa vinda do sertão,
o “mundo sem paredes”. Afinal, como coloca Miguel, “o sertão é de noite.” (ROSA, 1993, p.
92). Por um viés, tal contraposição se dá na construção das frases – o que fica evidente no
contraste entre o fluxo de consciência e o discurso indireto –; por outro viés, ela desestabiliza a
fluência do enredo, ao criar nele os já mencionados vazios.
53
Instrumento rústico, de origem árabe, que, através de canos de madeira, utiliza a energia da água para moer café,
milho e outros alimentos. Em “Buriti”, funciona como um relógio, marcando o tempo aos personagens.
72
É possível verificar, desta forma, mais uma reelaboração daquelas características
comumente atribuídas à prosa de ficção das primeiras décadas do século XX. Agora já
transpondo o limiar da metade do século, Rosa reorganiza algumas dessas inovações narrativas
no espaço do Buriti Bom para, a partir delas, trabalhar questões tão caras à sua obra quanto o
sertão, suas vozes, sua influência, as configurações sociais nele inscritas. Mais uma vez, a
insônia de um personagem se apresenta como condição fundamental para que tais temas sejam
articulados na própria estrutura da narrativa.
2.5. Conclusão do capítulo
As análises aqui empreendidas certamente são muito breves para dar conta da
complexidade das obras escolhidas e das questões colocadas – um estudo mais aprofundado será
empreendido na segunda parte da dissertação, quando nos aproximarmos da obra de Graciliano
Ramos. Mostram-se úteis, no entanto, para começarmos a pensar por que o recurso à insônia por
vezes revela-se altamente interessante à prosa de ficção moderna, e por que foi explorado por
autores tão significativos. No mesmo sentido, a análise dessas obras se justifica e se faz
importante para deixar claro tanto que o romancista alagoano não estava sozinho ao se valer dos
procedimentos em questão quanto que, embora cada autor os insira dentro de sua problemática
particular, como pretendi demonstrar neste capítulo, algumas convergências podem ser
estabelecidas.
Antes de mais nada, aproveito para chamar a atenção para uma questão metodológica
importante que atravessa o trabalho: ainda que por vezes não constitua o assunto ou elemento
central aos textos em questão, a insônia dos personagens revela-se antes um fator que catalisa ou
potencializa certas estruturas. Dessa maneira, as cenas de insônia, como ficou especialmente
visível nas leituras de Proust e de Guimarães Rosa, são bastante propícias à criação de um nível
paralelo na narrativa. Marcados por elementos tais como a total solidão, a escuridão ou a
penumbra, a ausência de estímulos externos e contatos com outros personagens, esses momentos
tendem a focalizar a vida interior dos personagens, seus conflitos, seus processos psíquicos ou,
73
quando narradores, o próprio processo de escrita, bem como os comentários a ele. Ademais, ao
privilegiarem a reflexão em detrimento da ação, podem ser peças relevantes a inovações formais
tanto no plano da frase quanto no do enredo. Vejamos cada um desses pontos.
A respeito de Em busca do tempo perdido, Martin Turnell argumenta que “esta retirada
de Proust do mundo para meditar sobre o tempo e a memória lhe confere o carimbo do artista do
século XX.” (TURNELL, 1967, p. 253). Ora, este meditar de Proust é um meditar do romance
sobre si mesmo, é ler dentro da narrativa os comentários ao próprio ato de narrar, à influência de
outras obras, aos motivos para que a escrita tivesse lugar. É o que se dá em Proust, mas é
também o que veremos mais detidamente, por exemplo, com o Paulo Honório de S. Bernardo.
Essa quebra das distâncias entre o narrador e o narrado, entre o comentário e narrativa, bem
como a consequente relativização da posição do narrador, são estes alguns fatores que resultam
no que Adorno, como vimos, definiu como a quebra da distância estética, colocando-a como um
dos traços fundamentais à prosa de ficção na modernidade.
Ademais, o estado de imobilidade tão típico das cenas de insônia permite uma ampla
sondagem dos movimentos da consciência em diversos níveis. Consideremos o que diz Erich
Auerbach no último capítulo de Mímesis: “[ao contrário da ficção anterior,] no caso de Virginia
Woolf, os acontecimentos exteriores perderam por completo o seu domínio; servem para
deslanchar e interpretar os interiores.” (AUERBACH, 2007, p. 485). Auerbach baseia essa
afirmação numa passagem de Rumo ao farol na qual o conserto de uma meia convive com os
pensamentos de Mrs. Ramsay, numa cena absolutamente prosaica. Mas o que ocorre, por
exemplo, com uma Molly Bloom no famoso monólogo que fecha Ulisses, é precisamente uma
retirada dos acontecimentos exteriores, de modo a só haver lugar à sua reverberação na mente de
Molly. Na minha opinião, ademais, um dos fatores mais relevantes a que “Penélope” se tornasse
um dos trechos paradigmáticos do chamado fluxo de consciência não é outro senão a
imobilidade de sua protagonista, essa quase ausência de contato com o exterior, consequência
direta da retirada da visão devido à obscuridade. Provavelmente em poucos outros momentos o
leitor pôde vivenciar tão nitidamente a predominância de um “caos interior” sobre a “superfície
ordenada da vida e da realidade.” (BRADBURY; FLETCHER, 1989, p. 321).
Por fim, esta quase total concentração na consciência, digamos, de Molly Bloom, é
elemento essencial ao que Anatol Rosenfeld colocou como a quebra da “ordem lógica da oração
74
e a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à sequência dos acontecimentos.”
(ROSENFELD, 2006, p. 84). É o que fica evidente nos longos períodos que desordenadamente
acompanham o fluir da consciência de Molly. É também, por contraste com uma narrativa mais
tradicional, o que Rosa desenvolve nas insônias de Zequiel. É ainda o processo parodiado por
Borges ao criar um personagem que, como Funes, representa o ideal antes de um romance
modernista do que de um personagem modernista, ao conter em si a memória de tudo o já visto,
vivido, lembrado e relembrado. Na maior parte dos caso, como terá se tornado perceptível ao
leitor, as experiências vividas pelos personagens insones em questão os aproximam, ainda, da
ideia de seres de exceção, como já exposto no final do Capítulo 1.
Este capítulo pretendeu, finalmente, delinear algumas das maneiras pelas quais seria
possível pensar a insônia dentro das características mais marcadas da prosa de ficção moderna.
Naturalmente, não haveria aqui espaço para uma análise mais exaustiva. Espero, entretanto, ter
colocado fatores de relevo, dos quais alguns terão grande importância no estudo de Graciliano
Ramos que agora se iniciará.
75
Parte II
Capítulo 3
S. Bernardo
3.1. O olho torto ou o bezerro-encourado
Um bom ponto de partida para pensar a insônia na obra de Graciliano Ramos é um dos
aspectos mais recorrentemente trazidos pela escuridão da noite: a privação da visão. Pois a
cegueira provisória ou oftalmia – ou ainda “doença de olhos”, como a denomina Graciliano –
aparece com certa constância em sua obra memorialística, seja nos longos dias privados de luz
durante a infância, seja na memória já adulta desses períodos.
Significativo, por exemplo, é um trecho do capítulo XXV da parte IV de Memórias do
cárcere, que narra um retorno provisório da oftalmia numa noite na cadeia, ocorrida durante a
leitura. Da mesma forma, o tema vem à tona no capítulo XVIII também da parte IV, no qual o
narrador, muito emocionado pelas lembranças da oftalmia infantil, vê-se impossibilitado de
auxiliar um companheiro de prisão que, sofrendo do mesmo mal, precisava pingar colírio nos
olhos.
Poucos dentre textos do autor, contudo, detêm-se nas agruras da cegueira de forma tão
pungente quanto o livro de memórias Infância, uma vez que as piores crises de oftalmia
ocorreram, ao que tudo indica, nestes primeiros anos. No capítulo intitulado “Cegueira” – que
curiosamente ocupa o centro exato do livro, como notara Sérgio Antônio Silva (2006), com 19
capítulos anteriores e 19 posteriores
54
–, o autor descreve as épocas marcadas pela doença de
olhos: “torturava-me semanas e semanas, eu vivia na treva, o rosto oculto num pano escuro,
54
Silva discute brevemente a importância dos números para Graciliano e da disposição central do capítulo
“Cegueira” em Infância. Em acréscimo às suas observações, cabe notar que o capítulo XIX de S. Bernardo
fundamental para a organização do enredo, como veremos – também ocupa o centro deste romance.
76
tropeçando nos móveis, guiando-me às apalpadelas, ao longo das paredes. (...) Qualquer luz me
deslumbrava, feria-me como pontas de agulhas.” (RAMOS, 2008a, p. 143).
Experiência desagradável, sem dúvida, mas também bastante enriquecedora. Pois,
impedido de frequentar a escola ou de sair de casa, afastado do convívio social e ridicularizado
pela própria mãe, o narrador, solitário e envolto na “treva”, começava a desenvolver outras
formas de percepção do ambiente. “Na escuridão percebi o valor enorme das palavras. Em dias
de claridade e movimento entretinha-me a observar a loja e o armazém, percorria alguns metros
do largo e alguns metros da rua da Palha, de casa para a escola, da escola para casa.” (Ibid., p.
146). Agora, porém, “os ruídos avultavam, todos os sons adquiriam sentido. Os passos
revelavam as criaturas, quase se confundiam com elas.” (Ibid., p. 147).
Dessa forma, com o escamoteamento da visão e sua consequente concentração alternativa
na audição, o narrador não apenas é levado a delinear uma concepção de mundo na qual o peso
com frequência decisivo do visual é relativizado, mas volta-se para aquilo que, em meio à
distração proporcionada pela observação do movimento nas ruas, não possuía tanta relevância:
as palavras. Ou as memórias, ou os pensamentos. Ou, como coloca o narrador: “na comprida
noite esforçava-me por decifrar esse desconchavo. O pensamento divagava, escorregava de um
assunto a outro, buscava segurar-se a paredes negras.” (Ibid., p. 149). Começamos a entrever
aqui como, através desta experiência inicial, a “comprida noite” vai se configurando como um
período no qual os pensamentos têm livre curso. Trata-se de uma situação bastante semelhante,
por exemplo, à do Bernardo Soares que, na escuridão de seu quarto, goza de uma lucidez
impensável no bulício diurno das ruas.
A cegueira recorrente na infância, portanto, de um lado configura um universo todo
peculiar e reordenado pela audição, e de outro abre um espaço à introspecção do narrador, isto é,
a uma forte concentração em seus processos mentais, em reflexões e memórias. É o caso do
“desconchavo” a que se refere na passagem acima, relacionado à tentativa de recompor a letra de
uma antiga música cantada por sua mãe. Pensamentos igualmente aleatórios têm lugar ao longo
do capítulo, memórias dos anos anteriores vão e vêm. O mundo observado encontra-se nesses
momentos à parte do ouvido e imaginado. Quando seus olhos estão saudáveis, o narrador é um
menino normal e relativamente aceito pelas outras pessoas. Durante a oftalmia, ao contrário, com
os olhos lacrados por uma resina formada a base de clara de ovo batida e vendado por um pano
77
escuro, só lhe resta, bem ao gosto dos personagens mais complexados e deslocados da obra de
Graciliano, incorporar os epítetos dados pela mãe: cabra-cega e bezerro-encourado.
Graciliano ainda desdobraria o tema nos contos infantis de Alexandre e outros heróis,
através da figura do olho torto, já discutida pela fortuna crítica do autor.
55
Quem possui um olho
torto é justamente o protagonista das histórias, Alexandre, que o teve arrancado em sua
juventude e em seguida recolocado na órbita. O curioso é que o olho foi de início posto pelo
avesso. “Querem saber o que aconteceu? Vi a cabeça por dentro, vi os miolos, e nos miolos
muito brancos as figuras de pessoas em que eu pensava naquele momento.” (RAMOS, 1979, p.
23). Ou seja, até mesmo em sua obra infantil o autor explora o tema do olho que, impedido de
enxergar o mundo exterior, volta-se para interior do personagem, literalmente para suas
entranhas e para os movimentos de sua consciência. E não deixa de ser relevante o fato de que,
após ter-se visto por dentro e recolocado já o olho no lugar certo – meio torto, porém –, “aqueles
troços do interior se sumiram, mas o mundo verdadeiro ficou mais perfeito que antigamente.”
(Ibid., p. 23-24). Ora, se Alexandre chega à conclusão implícita de que o voltar-se para si e para
seus próprios pensamentos proporciona uma visão mais rica do mundo exterior, os protagonistas
dos romances de Graciliano, indiretamente, parecem tomar a mesma direção deste herói vesgo.
3.2. Da confissão à ficção
Dito isto, deixemos as memórias do autor e passemos à sua ficção propriamente dita.
Transição um tanto delicada, aliás. Pois o próprio Graciliano discorreu nos dois livros
autobiográficos sobre a impossibilidade de reconstruir com precisão o passado, bem como acerca
da lacuna intransponível entre o momento dos fatos narrados e o da narração. Em sua obra
ficcional, esse lapso do efetivamente vivido ao seu aproveitamento nos romances se mostra ainda
mais evidente. Ou, nas palavras de Antonio Candido, suas obras autobiográficas “revelam certas
características pessoais transpostas ao romance.” (CANDIDO, 2006, p. 69). Assim, não cabe
78
aqui investigar nem o peso real da oftalmia nas épocas da infância e da prisão, ou tampouco sua
possível presença na obra ficcional do autor. Prova disso é que não há uma única personagem de
relevo nos seus romances que tenha manifestado, ao menos denotativamente, alguma espécie de
cegueira. O que importa retirar da experiência da cegueira narrada nas memórias é o que
efetivamente se fará visível na obra ficcional do autor e nela ganhará contornos interessantes e
bem característicos, sobretudo nas cenas de insônia. Dois desses aspectos permanecem presentes
em inúmeros de seus textos, e portanto permanecerão presentes também neste estudo. Vejamos
quais são eles.
O primeiro é a cisão demarcada pelo autor entre o mundo percebido basicamente pela
visão – este último em geral associado aos espaços exteriores e diurnos ou iluminados a gás ou
eletricamente, ao convívio social e à distração –; e aquele outro mundo em que a audição
predomina – quase sempre apresentado em espaços fechados e noturnos ou escuros, onde há
pouco ou nenhum contato com outras pessoas, e onde o foco recai sobre o protagonista e seus
conflitos interiores. Tal cisão, já implicada nos casos de cegueira descritos na obra
memorialística, toma novas proporções quando, realocada na ficção, transparece nas próprias
engrenagens dos enredos dos romances. Como observara Rolando Morel Pinto já em 1978, “não
se dispensou ainda a necessária atenção aos aspectos sonoros do ‘mundo’ criado por Graciliano.
Não é perigoso afirmar que o estudo dessas sensações muito contribuiria para o esclarecimento
de outros segredos do seu estilo literário.” (PINTO, 1978, p. 261). Com efeito, Pinto se colocaria
próximo ao “segredo do estilo literário” de Graciliano aqui destrinchado, ao identificar, em
vários de seus textos, sucessões de
noites de insônia, irritadas por uma multiplicidade de sons e ruídos, ampliados pela imaginação
doentia. Sobressaem as pancadas do relógio, mensagem do tempo exterior, interrompendo o
estado inconsciente do pesadelo e restabelecendo a realidade insensata da vigília. (Ibid., p. 262).
Se o trecho aqui transcrito se refere especificamente a Paulo Honório, a imagem das
noites insones pontuadas por ruídos diversos que, obsessivamente constantes, mantêm os
personagens de alguma forma presos à sua realidade exterior, impedindo-os de mergulhar por
55
Entre os trabalhos mais recentes sobre o assunto, estão Papel, penas e tinta: a memória da escrita em Graciliano
Ramos, de Sérgio Antônia Silva (2006); e a Um olho torto na literatura de Graciliano Ramos, de Wagner da
Matta Pereira (2008).
79
completo em suas próprias obsessões, essa imagem é válida para vários de seus protagonistas, e
permanece um elemento recorrente nas passagens dedicadas às noites em claro.
O segundo aspecto certamente ficará evidente se retomarmos afirmações do narrador de
Infância tais como “na escuridão percebi o valor enorme das palavras.” (RAMOS, 2008a, p. 146)
ou “o pensamento divagava, escorregava de um assunto a outro, buscava segurar-se a paredes
negras.” (Ibid., p. 149). Em outras palavras, e como já fora observado no Capítulo 2 deste
trabalho, são estes os momentos nos quais os protagonistas não agem, mas pensam. São estes os
momentos maiores de suas reflexões, aqueles nos quais as palavras ganham um peso imenso e os
mais propícios, consequentemente, à fundamentação de uma tensão na narrativa. São também,
em certa medida, uma confirmação de uma “progressão no sentido de uma maior interioridade.”
(MENDILOW, 1972, p. 231), nos termos usados por Mendilow para definir a ficção moderna.
Pois, como notara Álvaro Lins já nos anos 40, tanto em S. Bernardo quanto em Angústia é
possível identificar uma abstração do tempo, i.e., um tempo psicológico que leva à ausência de
ação direta – a ação reflexiva.
Assim, a exploração dessa alternância entre o dia e a noite – ou, mais precisamente, entre
o claro e o escuro – ganha, como recurso narrativo na ficção do autor, contornos bastante
interessantes. Mais interessantes ainda, de fato, se considerarmos que todos os seus protagonistas
em primeira pessoa são insones. Acredito que, não por acaso, essa constância da insônia estaria
ligada de maneira intrínseca ao que Antonio Candido classificou como uma “pesquisa da alma
humana” empreendida por Graciliano.
Após estas considerações, inicio minha análise dos romances de Graciliano por S.
Bernardo. Primeiramente, pensarei as relações entre a insônia de Paulo Honório e a profunda
problematização de seu chamado “instinto de propriedade” para com outros indivíduos. Num
segundo momento, desenvolverei algumas ideias acerca do fundamental capítulo XIX, tanto pela
introdução de uma “outra noite” na narrativa – para usar a expressão de Maurice Blanchot em O
espaço literário – quanto por sua a função de corte no movimento da narrativa. Levando em
conta esse movimento, no início ascendente e posteriormente descendente, proponho então
pensá-lo em conjunção com os capítulos II, XIX e XXXVI, que o pontuam e são, não por acaso,
os capítulos dedicados à insônia criativa. Por fim, traçarei breves aproximações entre o a função
da insônia em S. Bernardo e em Em busca do tempo perdido, a partir das quais veremos como
80
Graciliano cria, de maneira próxima à de Proust, um “romance cônscio de si.” (BRADBURY &
FLETCHER, 1989, p. 324).
Passemos então ao pio das corujas que atormenta Paulo Honório.
3.3. O pio das corujas e o descaroçador
No capítulo de abertura de S. Bernardo, o narrador Paulo Honório descreve a famosa e
malograda tentativa de compor um livro por divisão de trabalho. Um livro não apenas para
contar sua história, mas composto bem à sua maneira: um grupo de empregados trabalhando com
eficiência máxima sob seu comando, um com as citações latinas, outro com a composição
literária, ainda outro com a pontuação, a ortografia e a sintaxe, e assim por diante. Naturalmente,
não é difícil entender por que seu plano fracassou. O que resta entender é por que o rico
fazendeiro capitalista, a partir do segundo capítulo, insiste na escrita do livro: “Abandonei a
empresa, mas um dia destes ouvi novo pio de coruja – e iniciei a composição de repente,
valendo-me dos meus próprios recursos e sem indagar se isto me traz qualquer vantagem, direta
ou indireta.” (RAMOS, 2008b, p. 11).
A coruja já piara no fim do primeiro capítulo, e é justamente seu pio o que leva Paulo
Honório a lembrar-se da finada esposa, Madalena, e mencioná-la pela primeira vez no livro. Pois
o pio da coruja é motivo recorrente em toda a obra e possui sempre uma função muito evidente:
trazendo à tona a memória de Madalena, leva o narrador a refletir e, consequentemente, escrever.
Em outras palavras, é o prenúncio da problematização do mundo que progressivamente se
estabelece na vida do fazendeiro. O pio da coruja representa, assim, aquilo que escapa à divisão
de trabalho e à força dominadora do protagonista. É aquilo que, desvinculado de “qualquer
vantagem, direta ou indireta”, anuncia o abandono do gesto de “reificar”
56
os outros indivíduos,
gesto este sistematicamente adotado por Paulo Honório ao longo da obra e tão característico de
sua personalidade. E é, ademais, uma clara marca de sua insônia.
56
Baseio-me aqui no ensaio de Luiz Costa Lima intitulado “A reificação de Paulo Honório” (1969), no qual o autor
sustenta que o mecanismo básico que rege as ações de Paulo Honório é a “reificação”, processo pelo qual tudo o
que integra o universo do personagem é traduzido em termos quantitativos. “Homens, coisas, relações,
sentimentos, os seus próprios monólogos lidam com cifras.” (COSTA LIMA, 1969, p. 58).
81
Também presentes em outras obras do autor
57
, as corujas e seus pios carregam
inesgotáveis possibilidades interpretativas. Gilberto Mendonça Teles, por exemplo, afirma que
“neste romance a ideia de escrever está relacionada a um pio de coruja, como se este fosse o
sinal da inspiração (ou da sabedoria da maturidade) ou, simbolicamente, a percepção de algum
remorso na personagem narradora, levando-a à criação como meio de resgatar o seu
comportamento injusto com Madalena.” (TELES, 1996, p. 410). Há, assim, algo como dois
processos paralelos e interligados consolidando-se nos dois anos anteriores à escrita do romance:
o fim da atitude reificadora de Paulo Honório para com os demais, e a consequente revisão de
sua relação com Madalena.
Aos pios das corujas acrescento ainda dois dados importantes. O primeiro é o seu caráter
auditivo – o pio da coruja é, afinal, um barulho. O segundo é o seu caráter noturno – sendo a
coruja por excelência a ave da noite, a que permanece acordada e atenta até as primeiras horas da
manhã. Não à toa, Godofredo de Oliveira Neto chega a classificar a coruja como a “força da
zoomorfização da noite.” (OLIVERIRA NETO, 2008, p. 231). Pois é nesta situação que Paulo
Honório se dedica à escrita de seu romance: “Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da
sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo.” (RAMOS, 2008, P. 117). As horas em que os
grilos cantam são, explicitamente, as horas da noite ou da escuridão. É inclusive curioso lembrar
uma passagem de Infância que já abordava o tema de modo semelhante: “Os sapos só se
explicavam de noite: durante o dia as vozes deles misturavam-se a outros rumores.” (RAMOS,
2008a, p. 146). Já começamos a perceber na prosa de Graciliano a forte correlação entre o
ambiente noturno e os ruídos dos animais. A imagem do pio da coruja, nesse contexto, funciona
perfeitamente para assinalar a proximidade desse mundo paralelo. Talvez por isso seja utilizada
com tanta frequência, inclusive em momentos nos quais o pio parece ter se manifestado antes na
mente de Paulo Honório do que no ambiente à sua volta: “Uma coruja pia na torre da igreja. Terá
realmente piado a coruja? Será a mesma que piava há dois anos?” (RAMOS, 2008b, p. 119).
A gradual entrada do protagonista nessa nova realidade, porém, vai muito além da mera
alternância entre o predomínio da visão e o da audição. Com efeito, a noite em S. Bernardo
57
Gilberto Mendonça Teles, no artigo citado a seguir, identifica menções a torres povoadas de corujas em Infância
e as compara às de S. Bernardo, concluindo: “Não se trata de uma simples coincidência, mas de uma impressão de
infância levada à ficção.” (TELES, 1996, p. 411). Trata-se de uma afirmação interessante sobretudo se associada
às marcas da oftalmia na prosa de Graciliano por mim expostas no início deste capítulo.
82
assume a dimensão de tudo aquilo que Paulo Honório desconhece e se vê entretanto
repentinamente obrigado a assimilar: a dúvida, a reflexão, a sensibilidade. Ou, nas palavras de
João Luiz Lafetá: “A vida terminou, o romance começa.” (LAFETÁ, 1980, p. 210). Trata-se,
portanto, do momento em que se inicia a escrita do romance, ou da “confissão” de Paulo
Honório, o momento no qual sua auto-problematização e a conseqüente “desreificação” do
outros ganham contornos mais nítidos. Assim, à medida que se instala no livro uma atmosfera
sombria e menos palpável, instalam-se também na sua vida, nas palavras de Candido, “os
fermentos de negação do instinto de propriedade, cujo desenvolvimento constitui o drama do
livro.” (CANDIDO, 2006, p. 36).
Ora, sendo o aludido “instinto de propriedade” o traço mais destacado de Paulo Honório,
detenhamo-nos nele por um momento. Pobre na infância, trabalhador de lavoura na juventude e
enfim rico fazendeiro na maturidade, o protagonista tem na sua extraordinária capacidade de
administrar e acumular bens o maior trunfo. Tal capacidade, como seria esperado, não poderia
ser posta em prática sem um aguçado talento para manipular em seu favor o que quer que seja.
Manipular pressupõe conhecer, e conhecer por completo. De fato, o instinto de propriedade
exercido por Paulo Honório não seria possível sem sua extremada perspicácia para compreender
as engrenagens de tudo aquilo que deseja possuir, mostrando-se assim capaz de prever o seu
funcionamento. Tal capacidade de “extrair o caroço” do que quer que seja poderia ser entendida
através da afirmação de Costa Lima de que Paulo Honório não é uma anomalia, visto que “nele a
reificação apenas se perfecciona.” (Ibid., p. 69).
É por isso que, por exemplo, quando ainda almejava arrebatar a fazenda de S. Bernardo
de seu frouxo proprietário, o Padilha, esboça uma amizade por ele e lhe aconselha a iniciar um
empreendimento para o qual certamente não estava preparado. Quando Padilha lhe chega com a
tola ideia de cultivar mandioca, o aspirante a proprietário da fazenda responde simples e
estrategicamente: “É bom”, mas não sem antes fazer a ressalva ao leitor: “Burrice. Estragar terra
tão fértil plantando mandioca!” (RAMOS, 2008b, p. 23). Essa discrepância entre o que Paulo
Honório pensa e o que diz apenas para agradar repete-se com o governador que lhe sugerira
construir uma escola em S. Bernardo – ideia absurda, na opinião do fazendeiro, mas que pode
lhe render vantagens políticas; ou então quando a velha Margarida lhe pede um tacho novo para
doces que sua idade não mais lhe permitirá produzir: Paulo Honório expõe minuciosamente ao
83
leitor a inutilidade da compra do tacho, mas, querendo agradar à velha que o criou, responde que
“Está bem, mãe Margarida, terá um tacho igual ao outro.” (Ibid., p. 66). É ainda o que ocorreria
nos primeiros tempos do casamento com Madalena, quando o marido ainda se esforçava para
agradá-la.
Em todos os casos, o mesmo mecanismo: Paulo Honório, num raciocínio sempre baseado
nas possibilidades de lucro, seja material seja humano, cede aos desejos e opiniões das outras
pessoas para delas tirar proveito mais tarde. Isto é, lhes manipula, destrincha seu funcionamento,
exatamente como faria com a maquinaria da fazenda, e à sua semelhança também: tal qual um
descaroçador, Paulo procura, por processos mecânicos, extrair o caroço, o âmago das pessoas.
Antes de ceder às suas vontades, porém, faz sempre uma ressalva, à qual apenas o leitor tem
acesso, para expor enfática e por vezes grosseiramente todas as suas objeções ao que julga serem
as tolices dos outros.
Dessa forma, transcorre toda a primeira parte do livro. Com um misto de autoritarismo e
eficiência, o protagonista, ao implantar algo como o protótipo de um modo de produção moderno
e capitalista, traz ao meio rural inovações que influem na vida de seus habitantes, ainda que o
bem-estar deles não fosse uma prioridade ao fazendeiro. Dentre suas muitas modernizações, uma
é de especial interesse a este trabalho: “Devagarinho, foram clareando as lâmpadas da
iluminação elétrica. (...) Luz até meia-noite. Conforto!” (Ibid., p. 56). Trata-se, com efeito, de
uma modernização considerável, potencialmente reformuladora de toda a vida na fazenda, a
julgar pelas transformações promovidas pela eletricidade descritas no Capítulo 1 deste trabalho.
Mas significa também que até mesmo a opacidade da noite estaria agora subjugada à natureza
controladora do narrador. Afinal, como sustentara Foucault a respeito do sistema panóptico,
controlar pressupõe a possibilidade de ver, e ver pressupõe luz. Como coloca Foucault: “daí o
efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de
visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder. Fazer com que a vigilância seja
permanente em seus efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação.” (FOUCAULT, 2007, p.
166). O interessante é que permaneçam corujas ocultas nas torres escuras das igrejas
58
, bem
como recantos da psique de Paulo Honório que este não pode acessar ou iluminar.
58
E aqui consideremos um curioso detalhe: na citação de Foucault transcrita no Capítulo I, vimos que as escuridões
às quais se opunham as Luzes da Razão estavam largamente identificadas com o passado católico e com a igreja
84
É por essa época que, pensando em se casar, com o objetivo declarado de gerar um
herdeiro para S. Bernardo, Paulo Honório escolhe para esposa uma professora criada na cidade,
pouco religiosa e cheia de idéias progressistas, quiçá comunistas. Decerto, não seria possível
afirmar nem até que ponto o herdeiro seria o propósito único do casamento, nem se as idéias de
Madalena seriam de fato comunistas. O que fica explícito desde o momento em que o fazendeiro
pede a mão da professora é que esta dificilmente se tornará uma esposa dócil e submissa,
dedicada apenas a gerar herdeiros. Em resumo, Madalena dificilmente concordará em ser mais
um elemento dominável, isto é, uma propriedade do marido. Nas palavras de Costa Lima, “os
atritos com Madalena nascerão de que ela se negue a servir de objeto possuído pelo marido.”
(COSTA LIMA, 1969, p. 63).
3.4. Noite e outra noite
É bem verdade que, no início, Paulo Honório se esforça para dispensar a Madalena o
tratamento habitual, mas sem muito sucesso: “Tive, durante uma semana, o cuidado de procurar
afinar a minha sintaxe pela dela, mas não consegui evitar numerosos solecismos. Mudei de rumo.
Tolice. Madalena não se incomodava com essas coisas. Imaginei-a uma boneca da escola
normal. Engano.” (Ibid., p. 110). Por “afinar minha sintaxe pela dela”, não é difícil imaginar que,
como fizera com os outros, Paulo Honório estivesse procurando dominar os mecanismos de seu
discurso e, com isso, comprar sua estima e angariar vantagens para si. De fato, é este o seu
ímpeto inicial. Com o qual não atinge o resultado esperado, note-se. O surpreendente é que tenha
se enganado, que tenha cometido uma tolice, e mais, que tenha admitido mudar de rumo. Pois até
então o protagonista raramente hesitara e jamais voltara atrás em seus propósitos: o engano e a
dúvida, que não faziam antes parte do vocabulário de Paulo Honório, deste ponto em diante
apenas se expandem, apesar de seus esforços para detê-los:
romana. Não parece significativo que, em S. Bernardo, seja precisamente a igreja o local escolhido para refúgio
das corujas, sendo elas os signos das forças inconscientes não controláveis por Paulo Honório?
85
Quando as dúvidas se tornavam insuportáveis, vinha-me a necessidade de afirmar. (...)
- Indubitavelmente, indubitavelmente, compreendem? Indubitavelmente.
As repetições continuadas traziam-me uma espécie de certeza.
Esfregava as mãos. Indubitavelmente. Antes isso que oscilar de um lado para o outro. (RAMOS,
2008b, p. 177).
Esta passagem foi retirada do capítulo XXIX, mas já no capítulo XVIII se consolida tal
impressão. Tradicionalmente, Paulo Honório se valera da estratégia de ser bruto com seus
subalternos e amável com seus iguais ou superiores – uns dominava pela força; outros, pela
simpatia. Pois a discussão ocorrida no capítulo XVIII leva o narrador a, perdendo a paciência,
apelar para a grosseria no tratamento de seus iguais durante um jantar – incluindo-se aí
Madalena –, o que deixa bastante evidente a sua já iniciada perda da sua capacidade de
persuasão. Como seria previsível, suas palavras brutais causam péssima impressão nos convivas
e o levam a concluir: “Um bate-boca oito dias depois do casamento! Mau sinal.” (Ibid., p. 115).
Sem dúvida, o “mau sinal” é exposto em todos os seus desdobramentos nas páginas
seguintes, ganhando aqui a insônia do narrador um especial relevo. Classificado por Antonio
Candido como “um dos mais belos trechos da nossa prosa contemporânea” (CANDIDO, 2006, p.
46), o capítulo XIX desloca-se no tempo para retratar um Paulo Honório velho e decadente, já no
presente da narração, quando, estimulado pelo pio da coruja a pensar em Madalena, luta para
compreender sua situação através da escrita. Ou seja, é o presente dos primeiros capítulos, nos
quais o narrador inicia a criação do romance.
“Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se
revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente.” (RAMOS, 2008b, p. 117). A abertura
do capítulo já sugere o desenrolar do romance: sendo sua mulher uma incógnita, restam a Paulo
Honório “emoções indefiníveis”, uma “inquietação terrível” e um “desejo doido de voltar”
(Idem), que transparecem inclusive na narrativa, composta agora de frases mais longas e macias,
menos peremptórias do que o habitual. Trata-se de um tom radicalmente diferente do que vinha
se desenvolvendo desde que o narrador começara a contar sua vida.
59
Um tom de reflexão, de
tentativa de compreender o outro:
59
A esse respeito, comenta Lafetá: “O estilo se distende um pouco, a tensão arrefece. A preferência do narrador
volta-se agora para a técnica da cena, e surgem os detalhes concretos, as caracterizações mais alongadas das
86
Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras,
reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo
exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até
ficarmos dois vultos indistintos na escuridão. Lá fora os sapos arengavam, o vento gemia, as
árvores do pomar tornavam-se massas negras. (Ibid., p. 118).
Talvez se esclareça, nessa importante passagem, o peso crucial da escuridão, da solidão e
da ausência dos ruídos do cotidiano – em outras palavras, da insônia – ao processo rememorativo
do narrador. É, com efeito, no apagar das luzes que pode se concentrar melhor em suas próprias
aflições, de maneira significativamente semelhante ao narrador de Infância, quando este enfrenta
longos períodos de oftalmia ou cegueira provisória, num trecho próximo ao já aqui citado: “Na
escuridão percebi o valor enorme das palavras. Em dias de claridade e movimento entretinha-me
a observar a loja e o armazém, percorria alguns metros do largo e alguns metros da rua da Palha,
de casa para a escola, da escola para casa.” (Ibid., p. 146). Agora, porém, “os ruídos avultavam,
todos os sons adquiriam sentido. Os passos revelavam as criaturas, quase se confundiam com
elas.” (Ibid., p. 147).
Compondo a cena, o ambiente natural ao redor de Paulo Honório – sapos, vento, grilos,
corujas – marca a impossibilidade de permanecer no mundo diurno e cotidiano, o mundo já
destrinchado e subjugado. E cabe ressaltar que, ao contrário da realidade até então vivida pelo
fazendeiro, este novo mundo não conhece relações de lucro e dominação: jamais os ruídos da
natureza ou mesmo pio das corujas poderão lhe trazer qualquer vantagem material. Assim, o
movimento central do livro – a problematização do instinto de propriedade de Paulo Honório –
está em grande medida fundamentado na crescente tendência do protagonista a viver à noite, a
colocar-se à parte dos outros indivíduos, a deixar fazerem-se ouvir os sons antes abafados, a
transformar os elementos à sua volta numa grande massa negra. Ou, nas palavras de Godofredo
de Oliveira Neto, “o impulso para a escrita é determinado por um elemento exterior [o pio da
coruja], numa atmosfera noturna, onde o homem perde um pouco as fronteiras do cotidiano e do
racional e se torna mais permeável aos signos da natureza.” (OLIVEIRA NETO, 2008, p. 227).
Notemos ainda que, no capítulo XIX, até mesmo os escassos pontos de contato com a
realidade exterior vão-se pouco a pouco desfazendo, quando o narrador começa a chamar para si
os fantasmas dos outros personagens, a começar por Madalena: “A voz dela me chega aos
personagens, os diálogos miúdos sobre os assuntos do dia-a-dia. O tom compacto se esgarça de leve e a narrativa
87
ouvidos. Não, não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos. Estou encostado à mesa,
as mãos cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a tolha branca.” (RAMOS,
2008b, p. 228). Ou seja, o narrador não dispõe senão dos olhos e ouvidos da memória, e por isso,
a partir desse ponto, tudo o que descreve como visível ou audível se insere num terreno ambíguo,
que pode pertencer tanto à realidade palpável quanto à sua imaginação: “A toalha reaparece, mas
não sei se é esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco anos.”
(Ibid., p. 119). A mesma dúvida se estende aos ruídos dos animais, e então aos passos e
conversas de personagens já há muito desaparecidos. Mas se estende também ao empregado
Casimiro Lopes, fiel como um cão tanto nos anos passados quanto naquelas noites insones, e o
Casimiro a que Paulo se refere pode ser o de qualquer momento.
Atravessado assim o limiar entre o percebido e o imaginado, cessados os sons por
completo, instaura-se a total escuridão:
Há um grande silêncio. Estamos em julho. O nordeste não sopra e os sapos dormem. Quanto às
corujas, Marciano subiu ao forro da igreja e acabou com elas a pau. E foram tapados os buracos
de grilos. Repito que tudo isto continua a azucrinar-me. O que não percebo é o tique-taque do
relógio. Que horas são? Não posso ver o mostrador assim às escuras. Quando me sentei aqui,
ouviam-se as pancadas do pêndulo, ouviam-se muito bem. Seria conveniente dar corda ao relógio,
mas não consigo mexer-me. (Ibid., p. 120).
Nesse significativo trecho final do capítulo, vários dados se colocam. Em primeiro lugar,
não sabemos se o narrador voltou de seu parcial delírio – sendo as corujas e os sapos e o vento
parte dele – para se dar conta de que, com tudo em silêncio, se esquecera de dar corda ao relógio;
ou se aprofundou seu estado delirante a ponto de não ouvir mais nada à sua volta, a ponto de
perder os poucos laços que ainda o prendiam à realidade exterior, sendo eles precisamente as
corujas, os sapos, o vento, o relógio. O que fica claro em qualquer dos casos é que, já privado da
visão e imerso na escuridão, o narrador perde também todo o contato com o mundo audível.
Seria possível indagar, inclusive, se tal momento chegaria à beira de um monólogo interior, à
maneira do que veremos no capítulo 4 a respeito de Angústia. Trata-se ademais de um fator
significativo, uma vez que, como já observara Rolando Morel Pinto, a preocupação com o tempo
associada à sensibilidade auditiva é uma constante nos momentos mais críticos por que passam
os personagens de Graciliano. Segundo Pinto, “ao refugiar-se nas paragens oníricas, Paulo
salta de um tema para outro.” (LAFETÁ, 1980, p. 197).
88
Honório vai perdendo ao longe o tique-taque de um relógio fixado nos arcanos da
subconsciência.” (PINTO, 1978, p. 263). Concretiza-se assim a própria exclusão de tudo aquilo
que não remeta de forma imediata à consciência de Paulo Honório e à angústia que, como ele
mesmo coloca, continua a azucriná-lo. É quase como se Paulo Honório passasse ao que Maurice
Blanchot (1987) denomina, em O espaço literário, de “a outra noite”. Pensemos mais
detidamente este ponto.
Na obra mencionada, Blanchot coloca que há duas noites. A “primeira noite” é aquela em
que “tudo desapareceu.” (BLANCHOT, 1987, p. 163), permanecendo, porém, ainda “uma
construção do dia. (...) A noite só fala do dia, é o seu pressentimento, é a sua reserva e
profundidade.” (Ibid., p. 167). A “outra noite”, para além desse momento inicial, é “o
aparecimento de ‘tudo desapareceu.’” (Ibid., p. 163). Trata-se de um período nitidamente mais
profundo e essencial, e por isso mesmo, destacado da verdade do dia, isto é, desligado dos laços
que o prendem ao dia e ao mundo cotidiano. Um período em que, tal qual os ruídos dos grilos e o
tique-taque do relógio, há “apenas um sussurro imperceptível, um ruído que mal se distingue do
silêncio, o escoamento de grãos de areia do silêncio.” (Ibid., p. 169); ou, tal qual o pio de uma
coruja, um período em que “o animal deve ouvir o outro animal.” (Idem).
A meu ver, é tarefa delicada determinar se, em outros capítulos de S. Bernardo, há de fato
uma passagem da primeira noite à outra noite – na verdade, delicado também é determinar até
que ponto cabe nos pautarmos rigidamente por essa distinção. O que me parece inegável é que,
no capítulo XIX, há efetivamente um mergulho num espaço muito mais primordial, há como um
despir-se do mundo operado por Paulo Honório e expresso com clareza quando o personagem
duvida de que os ruídos à sua volta sejam realidade exterior e, acima de tudo, quando se declara
imóvel. Pois não há certamente em todo o romance parágrafos nos quais se manifeste com mais
agudeza esse processo de afastamento por que passa Paulo Honório de tudo aquilo que o
circunda – o que resulta numa progressiva aproximação da “essência da noite” (Ibid., p. 171),
para usar os termos de Blanchot –, assim como de poucos dos outros capítulos do romance seria
possível dizer de Paulo Honório, à maneira de um Orfeu em busca de sua Eurídice, que
somente no canto Orfeu tem poder sobre Eurídice, mas também no canto, Eurídice já está perdida
e o próprio Orfeu é o Orfeu disperso, o “infinitamente morto” que a força do canto faz dele, desde
agora. Ele perde Eurídice e perde-se a si mesmo, mas esse desejo e Eurídice perdida e Orfeu
89
disperso são necessários ao canto, tal como é necessária à obra a prova da ociosidade eterna.
(Ibid., p. 173).
Nesse trecho, evidenciam-se alguns importantes fatores a todo o processo em questão: o
desejar Eurídice que é também perdê-la e perder-se a si mesmo, mas que é simultaneamente
desembocar no canto, na criação artística, e mais do que isso: é ter nesse canto Eurídice – não a
Eurídice corpórea e diurna, mas a Eurídice obscura, invisível. Ou, nas palavras de Wander Melo
Miranda em Corpos escritos e voltando o foco de Eurídice a Madalena, “a recuperação de
Madalena dá-se somente no mundo das palavras, no mundo de papel que é o livro.”
(MIRANDA, 2009, p. 49). E aqui seria bastante proveitoso considerar os textos de Miranda e
Blanchot lado a lado.
Citando Leo Bersani, Miranda coloca que o desejo é “uma ameaça à forma da narrativa
realista, pois, se subverte a ordem social, também estilhaça a ordem romanesca.” (Ibid., p. 48), o
que significa uma desagregação em termos formais. Esse desejo por Madalena – ou “desejo do
Outro” (Ibid., p. 49) que, ainda segundo Miranda, tanto contribui para a perda do controle de
Paulo Honório sobre a narrativa (o que transparece na perda de sua exatidão e sua clareza), esse
desejo desemboca no ato de escrever, sendo também nele que o protagonista “descortina seu
malogro, sendo capaz de perceber a precariedade (in)definidora do sujeito.” (Idem).
De forma semelhante, afirma Blanchot que “a inspiração, pelo olhar de Orfeu, está ligada
ao desejo.” (BLANCHOT, 1987, p. 176). Porque seria precisamente o desejo de Orfeu por
Eurídice o que o levaria, impaciente e imprudentemente, a voltar-se para trás e olhar a amada,
perdendo assim por completo o controle da situação, desestruturando tudo o que fora
previamente arranjado. “Da inspiração só pressentimos o fracasso, apenas reconhecemos a
violência extraviada.” (Ibid., p. 174). É este o fracasso de Paulo Honório, embutido no seu
próprio ato de escrever e na sua completa desestruturação – sua e até certo ponto a da própria
narrativa – provocada pelo desejo por Madalena. Mas é, ao mesmo tempo, este o seu sucesso,
visto que é este olhar para trás em busca de uma Madalena que já não existe o que liga enfim seu
desejo à inspiração e desemboca na escrita do livro. Assim poderá Paulo Honório, à maneira do
colocado por Miranda, recuperar Madalena nas palavras e na criação literária. E este movimento
denota ainda um movimento mais amplo, isto é, a consolidação de uma atitude não-reificadora
por parte de Paulo Honório para com os demais.
90
Tal processo certamente seria impossível fora do que Blanchot chama a outra noite, o
colocar-se à parte dos acontecimentos, ou a perda de si e o contato com o mundo. É esta, enfim,
a estrutura do romance: dos capítulos presentes, solitário e insone, Paulo Honório escreve sobre
os passados, sobre sua vida e suas experiências. Trata-as, em certa medida, de algo próximo à
estrutura de Em busca do tempo perdido, como veremos no último item deste capítulo. Por ora,
notemos que é este apartar-se da realidade cotidiana e instalar-se no mais profundo da noite para
que possa então a escrita ter início, é isto o que traz o capítulo XIX de S. Bernardo. É esta enfim
a sua contribuição fundamental à obra. Vejamos de que modo essa contribuição se dá.
3.5. A consumação do processo
Poderíamos nos perguntar, num primeiro momento, o porquê do capítulo XIX estar
localizado no meio do livro e não no seu início ou no fechamento, quando a escrita do relato
ganha mais destaque, isto é, quando nos deslocamos ao presente da narrativa. Afinal, a
superposição de diversas temporalidades é recurso corriqueiro num romance como o que
Graciliano escreveria em seguida, Angústia. Contudo, num enredo que vinha se desenvolvendo
de forma bastante linear como o de S. Bernardo, não deixa de causar certa estranheza um
deslocamento temporal tão abrupto e tão sem relação imediata com o que vinha sendo narrado.
Após este capítulo, inclusive, Paulo Honório retoma a história do ponto em que a havia deixado
no capítulo XVIII, sem nenhuma alusão ao curioso interlúdio.
Inicialmente, notemos que dois tempos verbais são usados na narrativa, o pretérito e o
presente. No primeiro Paulo Honório narra sua história, ao passo que o tempo presente é
empregado para narrar a escrita dessa história. Dessa forma, o presente começa a ser empregado
no início do Capítulo II, precisamente quando o fazendeiro assume a autoria do texto que seria o
romance: “Continuemos. Tenciono contar minha história.” (RAMOS, 2008b, p. 11). São três os
capítulos nos quais Paulo Honório descreve seu processo de criação literária no presente: o II, o
XIX e o último, XXXVI. Cabe ressaltar que o capítulo I, apesar de muito próximo ao início da
escrita do romance, não chega ao ponto em que Paulo de fato escreve, encontrando-se portanto
91
ainda no passado. Na verdade, funciona sobretudo como uma apresentação de seu estilo ao
leitor.
Fernando Cristóvão (1972), em Graciliano Ramos: estrutura e valores de um modo de
narrar, empreende, num formato estruturalista, um interessante estudo do uso dos tempos verbais
na obra de Graciliano. Dele resulta um quadro de percentagens no qual é possível perceber, na
medida do possível, a predominância do tempo presente nos referidos capítulos. Acerca do
assunto, o autor sustenta: “O subjetivismo desse capítulo 19, onde Paulo Honório faz uma
evocação de Madalena, está refletido nos 77% do emprego do presente contra 23% do pretérito.
É o capítulo onde a atitude comentadora é mais intensa, ainda que a percentagem de tempos que
a definem seja igualada pelo capítulo 2, mais extenso e reflexivo.” (CRISTÓVÃO, 1972, p. 113).
Em que pese o rigor matemático da observação, destaca-se a conclusão de que o personagem
assume nesses capítulos uma atitude comentadora ou auto-reflexiva: é este o ponto que aqui mais
interessa.
Estes três capítulos, um no início, outro exatamente no meio e outro no final do livro,
pontuam a história com seu próprio processo de escrita. E apresentam todos três uma mesma
situação: o narrador está sozinho numa noite de insônia, sentado à mesa de jantar, entre o canto
dos grilos e os goles de café, remoendo o passado e procurando compreendê-lo através da
criação literária. E assim permanecerá: “E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até
que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.” (RAMOS, 2008b, p.
221). A noite e o isolamento revelam-se então peças-chave à caracterização deste momento de
profunda introspecção, de maneira próxima à descrita por Blanchot como a outra noite. Ora,
levando em conta o drama crucial de S. Bernardo – a passagem de uma mentalidade
patologicamente egocêntrica e dominadora a um estado agudo de auto-questionamento e
reflexão – processo que poderia ser tomado inclusive como uma patologia social –, torna-se
inevitável a conclusão de que a instalação de um ambiente noturno no romance é fundamental à
consolidação desta transformação.
Mas o mais curioso é o papel do capítulo XIX nesse contexto. Como vimos, ele se
encontra no centro aritmético do romance. Até então, praticamente só haviam sido narradas as
conquistas de Paulo Honório: como o menino pobre trabalhara para levantar um pequeno capital,
como contraíra empréstimos para prosperar, como prosperara até o ponto de adquirir a fazenda
92
de S. Bernardo, como passara por inúmeras dificuldades e assumira riscos para transformá-la
num empreendimento altamente bem-sucedido, como angariara a estima das figuras ricas e
importantes, como impusera terror e respeito aos subordinados, como enfim decidira prolongar
sua estirpe com um herdeiro e para isso se casara com uma mulher bela e admirada por todos.
Chegando a esse ápice, entreveem-se as primeiras dificuldades com a mulher, e repentinamente
surge o capítulo XIX como um corte arrasador do movimento ascendente que se vinha
delineando. A partir daí Paulo não mais pode dar corda ao relógio da sua vida, pois percebe-se
impedido de se mexer.
60
Iniciada a decadência de seus domínios, introduz-se a imagem do
dínamo emperrado
61
e, do capítulo XX até o final, cada episódio só faz aprofundar a perda das
forças do narrador. O capítulo XIX funciona então como uma espécie de limiar que divide a
história em duas. Desse ponto em diante, o pio das corujas se fará ouvir com cada vez mais
intensidade.
A degradação de Paulo Honório, porém, estabelece-se aos poucos. “É certo que tenho
experimentado mudanças nestes dois últimos anos”, diz ele, porém completa: “mas isto passa”
(Ibid., p. 121). A princípio, tal movimento transparece no questionamento de seus modos por
parte de Madalena e d. Glória, com a tácita aprovação dos empregados mais instruídos e
próximos das senhoras. Pouco depois, os próprios empregados tomam parte no conflito. O
fazendeiro vê-se assim deslocado do grupo quando o encontra conversando, e sente-se
intimamente um intruso, sente que lhe querem esconder algo:
Puxei uma cadeira e sentei-me longe deles. Era possível que a palestra não me interessasse, mas
suspeitei que estivessem falando mal de mim. Provavelmente. D. Glória sempre com segredinhos
ao ouvido de seu Ribeiro. E Madalena escutando o Padilha. O Padilha, que tinha uma alma baixa,
na opinião dela. Entretidos, animados. Conspiração. Talvez não fosse nada. Mas para quem,
como eu, andava com a pulga atrás da orelha! Aborrecia. (Ibid., p. 142).
É assim que suas ordens e seus métodos de trabalhar parecem cada vez mais tirânicos e
despropositados, sob o olhar crítico dos demais personagens. Finalmente, é assim também que
surgem os ciúmes por Madalena: uma tentativa desesperada de domínio sobre forças que lhe
60
“Seria conveniente dar corda ao relógio, mas não consigo mexer-me.” (RAMOS, 2008b, p. 120).
61
“Era domingo de tarde, e eu voltava do descaroçador e da serraria, onde tinha estado a arengar com o maquinista.
Um volante empenado e um dínamo que emperrava. O homem prometera endireitar tudo em dois dias.
Contratempo.” (Ibid., p. 139).
93
escapam com mais e mais intensidade. Todo este processo desembocará na primeira importante
noite de insônia do protagonista na história, sob a perspectiva do tempo cronológico.
Decerto, Paulo Honório já passara em sua juventude muitas noites sem dormir, como é
expresso na narrativa, seja pela ansiedade de ver seus negócios darem certo, seja pela
necessidade de proteger o recém-conquistado território de S. Bernardo do vizinho Mendonça.
Tais noites, entretanto, além de escassamente mencionadas, enquadram-se dentro do projeto de
conquista da personagem. Isto é, não apenas estão previstas nos sacrifícios a serem feitos em
nome do lucro, como pressupõem um controle deliberado do sono. A opção por não dormir aqui
implica, portanto, uma postura ativa.
Totalmente diferente é a natureza da insônia descrita no capítulo XXVI. Dele em diante
(na perspectiva cronológica, independente da ordem da narração), surge essa segunda insônia
que é antes metáfora da perda de controle, que se impõe ao fazendeiro contra a sua vontade. Essa
impossibilidade de conciliar o sono no desejo de dormir traz, precisamente, um nível maior de
consciência pela perda da autoconsciência. Mas voltemos ao capítulo XXVI Sua frase de
abertura já é claro indício: “Fui indo sempre de mal a pior.” (RAMOS, 2008b, p. 163). Após
ataques de ciúmes e suas previsíveis brigas homéricas com a mulher, o protagonista, disparando
sua ira para todos os lados, põe-se a desconfiar do juiz Magalhães:
À noite não consegui dormir. Passei horas sentado, odiando Madalena. (...). Com o dr.
Magalhães, homem idoso! Considerei que também eu era um homem idoso, esfreguei a barba,
triste. Em parte, a culpa era minha: não me tratava. Ocupado com o diabo da lavoura, ficava três,
quatro dias sem raspar a cara. E quando voltava do serviço, trazia lama até nos olhos: deem por
visto um porco. (...) Que mão enormes! As palmas eram enormes, gretadas, calosas, duras como
casco de cavalo. E os dedos eram também enormes, curtos e grossos. Acariciar uma fêmea com
semelhantes mãos! (Ibid., p. 164).
Esse trecho, crucial à mudança que se operará em Paulo Honório, assinala uma prática até
então inédita a ele: o autoexame. Sim, é esta a primeira vez – do ponto de vista cronológico – em
que o personagem volta-se para si mesmo, em que se avalia antes de avaliar os outros, antes de
pensar em formas de adquirir ou subjugar os outros. Nunca até então Paulo Honório se
questionara sobre como os outros o viam, sem qualquer viés utilitarista. Nunca se dera o trabalho
de se enxergar de fora, de admitir seus defeitos, de refletir sobre o que de fato era e o que poderia
portanto esperar. Paulo Honório nunca se relativizara. É quase como se tivesse vivido num
94
contexto à parte, como se os outros existissem apenas enquanto objetos ou animais a serem
manipulados.
Olhar para si, e mais ainda: interpretar-se; enxergar enormes e calosas as mãos ou
medonho e áspero o rosto, enxergar o próprio envelhecimento e perguntar-se até que ponto seria
ele atraente a uma moça bem mais nova e criada na cidade. Essa transformação na sua visão de si
e do mundo é aí pela primeira vez explicitada. Não à toa, ocorre na solidão da noite – ainda
talvez no que Blanchot consideraria uma “primeira noite”, porém –, quando os afazeres diurnos
não mais o importunavam nem os outros personagens lhe poderiam distrair. A Paulo Honório se
abre enfim um espaço no qual ele mesmo é posto em foco, como problema a ser resolvido – e
irresolvível, diga-se de passagem.
Certamente, um dos traços mais perceptíveis dessa auto-problematização é uma
reformulação empreendida pelo fazendeiro em seu próprio discurso. Antes categórico e cheio de
certezas, só fazia perguntas para respondê-las ele mesmo logo em seguida, aumentando assim a
sensação de seu poder sobre os demais. Com o agravamento da crise – alimentada pelos ciúmes e
o auto-questionamento – suas perguntas, cada vez mais numerosas, não encontram mais
resposta: “Padilha sabia alguma coisa. Saberia? Ou teria falado à toa? Conjecturas. O que eu
desejava era ter uma certeza e acabar depressa com aquilo. Sim ou não.” (Ibid., p. 175). As
certezas, contudo, parecem cada vez mais distantes: “Será? não será? Para que isso? Procurar
dissabores! Será? não será?” (Ibid., p. 176). Neste ponto, as palavras de Paulo Honório chegam a
se semelharem à prosa do Luís da Silva de Angústia, ou mesmo à do narrador do conto
“Insônia”. O curioso é que, como se sabe, poucas personagens de Graciliano são tão antitéticas
quanto Luís da Silva e o Paulo Honório da primeira fase.
Não por acaso, se há algo crescendo na mesma proporção das dúvidas, é o pio das
corujas. E a associação simbólica entre um e outro merece especial atenção. Pois a noite do
suicídio de Madalena fora precedida de uma longa conversa entre ela e o marido na igreja, na
qual ambos ensaiaram uma última e longa tentativa de compreensão e de abordagem dos
problemas do casal. Madalena, naturalmente, já estava se despedindo. Paulo Honório, ignorando
a decisão da mulher, parecia acreditar ser ainda possível consertarem-se as coisas. Nesse sentido,
não deixa de ser bastante sugestivo que assim se iniciem a noite e o capítulo nos quais se dá essa
conversa crucial: “Uma tarde subi à torre da igreja e fui ver Marciano procurar corujas. Algumas
95
se haviam alojado no forro, e à noite era cada pio de rebentar os ouvidos da gente. Eu desejava
assistir à extinção daquelas aves amaldiçoadas.” (Ibid., p. 183). Para seu desgosto, entretanto,
sua tentativa de resolver o problema viria tarde demais: não só Madalena já estava convicta do
suicídio, mas as corujas tampouco se calariam.
A decadência do império de Paulo Honório, já então consolidada, apenas se acelera após
a morte da mulher. Em poucos capítulos, os habitantes de S. Bernardo debandam, a crise chega,
a revolução estoura, o lucro cai drasticamente. Paulo Honório já perdeu a tal ponto o controle da
situação que chega ao cúmulo de se permitir o uso do discurso indireto livre – um indício
interessante da desestruturação mencionada por Miranda – para introduzir a fala do amigo
Azevedo Gondim. Trata-se de algo inédito e não desprezível, pois o narrador jamais antes
deixara outro discurso se insinuar no seu – excluindo-se, naturalmente, os momentos nos quais
reproduzem-se as falas de outros personagens. A única possível exceção tem lugar ainda no
início da obra, quando o protagonista narra a vida de seu Ribeiro, mas com o aviso prévio: “Dei-
lhe alguma confiança e ouvi a sua história, que aqui reproduzo pondo os verbos na terceira
pessoa e usando quase a linguagem dele.” (Ibid., p. 43). Ou seja, um discurso indireto livre que,
justamente por se auto-declarar, deixa de sê-lo.
Mas na verdade isso pouco importa a Paulo Honório, pois “agora a vela estava apagada.
Era tarde. A porta gemia. O luar entrava pela janela. O nordeste espalhava folhas secas no chão.
E eu já não ouvia os berros do Gondim.” (Ibid., p. 209). Ressalte-se que já não se fala em luz
elétrica: Paulo Honório escreve à luz de velas. Lembremos o que fora dito no Capítulo 1 por
Eluned Summers-Bremner: “a eletricidade aniquila a noite.” (SUMMERS-BREMNER, 2008, p.
113). Neste caso, a ausência de eletricidade – não sabemos se por falta de recursos ou se por
opção de Paulo Honório – num local onde a energia elétrica costumava existir, tal ausência é
altamente indicativa dessa entrada num ambiente paralelo, à revelia da censura e dos afazeres
diurnos. A vela apagada deixando entrar o luar só corrobora a quase total retirada da iluminação
particular em prol de algo como a “outra noite” a que se referira Blanchot. A partir daí, após um
breve capítulo no qual, tudo desmoronado, Paulo Honório declara estar “de braços cruzados,
contemplando melancolicamente o descaroçador e a serraria” (Ibid., p. 212), têm lugar o capítulo
e a insônia finais.
96
Trata-se, na verdade, do completamento do processo que se vinha instalando desde o
corte operado pelo capítulo XIX. A insônia se apresenta aqui como a própria consumação da
decadência das finanças e do prestígio do narrador, como a imagem mesma de seu isolamento
perante o mundo, como a entrada enfim na “outra noite” de Blanchot. O estar acordado enquanto
os outros dormem o aparta enormemente; mas, se antes tal situação fazia parte da posição
superior em que habitualmente se colocava, no último capítulo, já tendo ele noção de seus
defeitos, já tendo se relativizado e se tornado uma interrogação a si mesmo, estar sozinho neste
momento equivale a ter consumado o longo processo de quebra do instinto de propriedade e do
gesto reificador antes tão predominante. E equivale também, por outro lado, a ter atingido uma
capacidade de autorreflexão até então impensável para um personagem como o fazendeiro.
Por fim, a sua insônia aqui evidencia com clareza o isolamento tanto físico quanto
emocional e social. Seu tom assim é um misto de revolta e desilusão, marcado por uma forte
noção de sua própria responsabilidade na derrocada, mas permeado também pela sensação de
que não há mais nada a ser feito senão escrever, senão deixar que o olhar para trás consuma
afinal a estreita ligação entre desejo e inspiração. Nesse sentido, os parágrafos finais do livro são
emblemáticos:
A vela está quase a extinguir-se. (...) Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio.
Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. (...) É horrível! Casimiro Lopes está
dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora,
até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos. (Ibid., p. 221).
3.6. A casa de máquinas
Acerca dessas horas de insônia de Paulo Honório, Rui Mourão significativamente ressalta
o fato de “não haver propriamente dimensões espácio-temporais. As ações se encontram
reduzidas a coisa nenhuma; o que se impõe é uma lucidez que se derrama, que a tudo envolve,
que persiste sendo aguçada.” (MOURÃO, 1971, p. 63). Caberia portanto assinalar, nas palavras
de Godofredo de Oliveira Neto, que “o homem se desligou da prática, e vive encerrado apenas
no espaço da escrita.” (OLIVEIRA NETO, 1990, p. 45). Ora, este viver lucidamente encerrado
no espaço da escrita, e mais do que isso, este trazer o espaço da escrita para dentro da própria
97
escrita, ou seja, este trazer a narração para dentro da narrativa, é este um gesto bastante
compatível com o de guiar o leitor “pelo comentário até o palco, os bastidores e a casa de
máquinas” (ADORNO, 2008, p. 61), como colocara Adorno a respeito do romance moderno. É
este o romance “cônscio de si” a que haviam aludido Bradbury e Fletcher, e é também isto o que,
como vimos no Capítulo 2, faz Proust em seu Em busca do tempo perdido.
As relações entre Proust e Graciliano haviam sido apontadas já em 1967 por Bélchior da
Silva, no ensaio “O pio da coruja em São Bernardo de Graciliano Ramos”. Após associar o pio
da coruja de S. Bernardo à Madeleine proustiana, diz ele que “força é reconhecer que Proust e
Graciliano (“Paulo Honório”) realizaram a sondagem do passado, seguindo processos
psicológicos paralelos.” (SILVA, 1967, p. 18); e que “em ambos, resultado idêntico: a obra de
arte, o livro.” (Ibid., p. 19). Se, por um lado, seria provavelmente forçado estabelecer uma
influência direta de Proust sobre Graciliano, como sugere Silva no mesmo ensaio,
62
por outro
lado é instigante a conclusão de que ambos empreenderam processos semelhantes – que em geral
são as noites insones – para chegar ao mesmo resultado, que é o livro.
A meu ver, o que há é não uma influência direta, mas uma convergência de
procedimentos nos quais, para trazer à tona “os bastidores e a casa de máquinas” da narrativa,
tanto Graciliano quanto Proust localizam seus narradores na solidão de suas casas e ao longo de
noites claro. Podemos identificar, a partir das obras desses autores, a formação de um modelo
narrativo no qual o narrador, apartado do convívio com os demais por estar acordado nas horas
em que os outros dormem, cria uma espécie de plano paralelo na narrativa, no qual é possível ao
romance, tal como colocara Bradbury, preocupar-se “com as complexidades de sua própria
forma.” (BRADBURY, 1989, p. 321). A noite afirma-se, então, no mesmo sentido que a vim
analisando nos primeiros capítulos deste trabalho, como um território altamente instável,
propenso à dúvida e ao autoexame que, em obras como estas, instala-se no próprio formato da
narrativa, estando ela mesma propensa à dúvida e ao autoexame.
É isto o que vemos nas obras aqui citadas, mas é também o que aparece, por exemplo, no
primeiro romance de Graciliano, Caetés. Comumente esquecido e rotulado de pré-modernista,
62
“Teria Marcel Proust influenciado diretamente Graciliano?” (SILVA, 1967, p. 18).
98
este livro não apenas guarda traços fortemente modernos
63
, como já apresenta um prenúncio da
problemática que se desenvolveria em S. Bernardo. Segundo Silviano Santiago, “a obra da
modernidade seria aquela obra que contém em si uma reflexão própria sobre o fazer dessa obra...
de repente, então, Caetés pode não ser modernista, mas é altamente moderno!”
64
(SANTIAGO,
1987, p. 445). Afinal, é também digno de nota que nesta primeira obra haja um narrador, João
Valério, que cômica e inutilmente procura escrever um épico indianista em formatos já
anacrônicos para a época, e que suas batalhas com o papel se deem “assim de noite, quando a
gente não tem sono...” (RAMOS, 2006, p. 43). Pois a função da insônia como propiciadora da
criação literária, como vemos, já estava presente em Graciliano antes mesmo de S. Bernardo, e
prosseguiria em textos posteriores, enriquecendo-se e ganhando outras dimensões.
Por fim, a aproximação entre os romances de Proust e de Graciliano mostra-se ainda mais
pertinente se considerarmos o que estabeleci, no início do Capítulo 2, como o primeiro dos dois
desdobramentos da insônia na prosa de ficção moderna que me parecem mais frequentes e
característicos, e que por isso mesmo seriam mais amplamente desenvolvidos nesta dissertação.
Este desdobramento era “a criação de uma espécie de nível paralelo a partir do qual o
personagem pode pensar a própria narrativa”, e a ele foi dedicado este terceiro capítulo, através
do estudo do romance S. Bernardo. No Capítulo 4, que tratará de Angústia, desenvolverei o
segundo desdobramento, isto é, o problema da “exploração de estados psíquicos diversos”. Dito
isto, passemos a ele.
63
Para maiores explicações acerca da distinção entre moderno e modernista, conferir a nota1 do Capítulo 2 deste
trabalho.
64
Este trecho foi retirado da transcrição de um debate entre Santiago e outros críticos sobre Graciliano, o que
justifica o caráter oralizado da escrita.
99
Capítulo 4
Angústia
Para começar a pensar as articulações da insônia no enredo de Angústia, retomemos
brevemente a cegueira infantil descrita em Infância
65
. No capítulo anterior, vimos que, privado
da visão, o narrador voltava-se ao mesmo tempo para si mesmo e para um mundo apreendido
inteiramente pela audição. Trata-se, não por acaso, do período no qual declara ter de fato
começado a prestar atenção às palavras.
Por maior que tenha sido a importância de tal experiência, no entanto, a audição aguçada
pode proporcionar algumas situações bastante aflitivas. A pior delas, segundo o narrador, é ouvir
a fala do vizinho Chico Brabo: “era como se o homem tivesse atravessado muros e portas,
estivesse ali junto de mim. Surpreendia-me o vozeirão tremendo, quase irreconhecível despido
das gentilezas macias que o abrandavam na calçada e na rua.” (RAMOS, 2008a, p. 151). Chico
Brabo, como indica o fim da citação, não é uma má pessoa, sendo inclusive descrito como um
“sujeito amável” (Ibid., p. 154). Sua voz ouvida nas horas de cegueira, porém, o transforma
numa “criatura feroz” (Idem), inconciliável com a imagem do homem à luz do dia. Tal qual os
65
Apesar de a relação entre as obras ficcional e autobiográfica já ter sido discutida no capítulo anterior,
considerando a grande similaridade apontada pela fortuna crítica de Graciliano entre o autor e Luís da Silva,
acredito serem relevantes algumas observações suplementares sobre o caso. Num dos ensaios mais clássicos sobre
a obra de Graciliano, “Ficção e confissão”, Antonio Candido (2006) observa: “parece que Angústia contém muito
de Graciliano Ramos, tanto no plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente (tendências
profundas, frustrações), representando a sua projeção pessoal até aí mais completa no plano da arte.” (CANDIDO,
2006, p. 61); e argumenta também que “sua meninice [a de Graciliano] é, pouco mais ou menos, a narrada em
Infância.” (Ibid., p. 58). Já Wander Melo Miranda (2009), em Corpos escritos, discute com mais vagar o quão
inadequado seria simplesmente traçar correspondências estritas entre a infância de Luís da Silva e as memórias
que compõem a obra Infância, a exemplo do que fazem autores como Helmut Feldmann, Rolando Morel Pinto e
Lamberto Puccinelli. O que interessa ressaltar é que não pretendo, aqui, seguir a linha dos referidos teóricos e
buscar tais correspondências. Na verdade, parece-me mais pertinente a posição do próprio Miranda, ao identificar
a “função predominante que o ficcional e o autobiográfico desempenham na obra do autor: a função irônica.
(MIRANDA, 2009, p. 55), isto é, o “espaço móbile da recorrência e da recriação [ou seja, das lembranças] em
confronto permanente com as novas formas e situações engendradas pela imaginação.” (Ibid., p. 58). Não me
parece possível determinar se a relação entre cegueira e reflexão na escuridão foi articulada conscientemente, na
função irônica a que alude Miranda, ou se ocupa uma camada mais profunda da prosa de Graciliano. Acredito, em
qualquer dos casos, que a cegueira e seus efeitos, já discutidos no capítulo anterior e retomados nos parágrafos
que se seguem, encontram-se em alguma medida ligados à maneira pela qual são elaboradas as cenas de insônia
nos romances, o que justifica a análise aqui empreendida. Pertencendo à função irônica descrita por Miranda ou a
outra função próxima, representariam traços autobiográficos que foram reconfigurados na ficção, e que poderiam
se combinar com outros elementos.
100
ruídos ameaçadores vindos da mata para perturbar o Chefe Zequiel no “Buriti” de Guimarães
Rosa, a voz de Chico Brabo ecoando invade o espaço interno do narrador e o desespera. E a
descrição de tal acontecimento é especialmente instigante se comparada ao comportamento de
Julião Tavares, o antagonista de Angústia. Pois nos seguintes termos é descrito o vozeirão de
Chico Brabo e seu efeito sobre o menino:
Arrepiava-me, cobria as orelhas com as palmas das mãos úmidas, torcia-me com desespero,
mentalmente me dirigia a um esconderijo. (...) Na minha imaginação um corpo lento se
desenroscava, o toicinho da papada tomava consistência, a brancura e a moleza se coloriam.
Dedos curtos se alongavam, transformavam-se em garras. (Ibid., p. 153).
Ora, a inegável semelhança entre Julião Tavares e Chico Brabo é certamente digna de
nota, e agrega-se à ideia defendida por Helmut Feldmann (1967) de que Julião teria sido
composto à imagem do advogado e poeta Armando Wücherer. De fato, a obesidade, a moleza, a
brancura, a gordura invasiva são precisamente alguns dos adjetivos mais frequentemente usados
por Graciliano para compor um personagem asqueroso e desagradável. Caracterização já
presente no Evaristo Barroca de Caetés, e da qual não foge o rival de Luís da Silva: “a voz
precipitada de Marina era ininteligível; a de Julião Tavares percebia-se distintamente e causava-
me arrepios: fazia-me pensar em gordura, em brancura, em moleza, em qualquer coisa
semelhante a toicinho cru. (...) A palavras gordas iam comigo.”
66
(RAMOS, 2008c, p. 114-115),
e completa: “necessário dar cabo daquela voz. Se o homem se calasse, as minhas apoquentações
diminuiriam.” (Ibid., p. 115). Mais tarde voltaremos às maneiras empregadas por Luís para se
livrar da voz de Julião. Por ora, notemos apenas que a voz gordurosa, o discurso artificial, a
maneira do homem de entrar sem convite na casa de Luís à noite e na redação do jornal para
conversas não desejadas, todos esses elementos criam de Julião uma sensação odiosa e
profundamente invasiva.
Mas não é apenas a voz do rival o que perturba a tranqüilidade de Luís. Há, com efeito,
toda uma gama de ruídos e falas de outrem que lhe tiram o sono, que o infernizam. Ou, nas
palavras de Rolando Morel Pinto (1978), “estimulados pela tensão dos nervos, os sentimentos
estão alertas, especialmente o da audição e Luís da Silva desperta do seu devaneio para ouvir os
101
ruídos mais insignificantes do ambiente.” (PINTO, 1978, p. 264). Quanto mais intimista se
mostra a situação do protagonista, mais insuportáveis se tornam tais barulhos. Como seria de se
esperar, é nas as noites de insônia que esse processo atinge seus pontos culminantes,
desembocando, de um lado, em um aprofundamento psicológico do personagem e, de outro lado,
na realização de alguns dos mais importantes eventos da trama.
Neste capítulo, portanto, analisarei a insônia de Luís por duas vias. Primeiramente,
proponho que as noites em claro vividas pelo protagonista em sua casa, por promoverem uma
incursão à psique de Luís em alguns de seus momentos mais conflituosos, tanto são essenciais à
instauração de um clima propriamente angustiado na narrativa quanto abrem espaço a alguns dos
trechos mais experimentais do romance, como é o caso de suas páginas finais. Em segundo
lugar, levanto a hipótese de que eventos cruciais, tais como a conquista de Marina, o roubo de
Vitória e o assassinato de Julião dependem de uma espécie de jogo com as concepções de noite
pré e pós-eletricidade. Dessa forma, o viver à noite de Luís mostra-se essencial para que tais
ações sejam levadas a cabo.
Para entender melhor estes dois pontos, contudo, recuemos um pouco e vejamos como se
articulam na narrativa as categorias espaciais pública e privada, os sentidos da visão e da audição
e a alternância entre claridade e escuridão.
4.1. Espaços e alternâncias
Decerto, a organização espacial é um aspecto fundamental de Angústia. Como nota
Wander Melo Miranda, “a distribuição dos espaços na narrativa é importante enquanto
desveladora dos mecanismos da produção textual, fazendo ressaltar a especificidade da posição
do narrador.”
67
(MIRANDA, 2009, p. 51). Assim, é importante distinguir os lugares públicos,
66
Curioso é notar como essas “palavras gordas” corroboram o discurso artificial e vazio de Julião, num estereótipo
beletrístico analisado com agudeza por Marcelo Magalhães Bulhões (1999) em Literatura em campo minado: a
metalinguagem em Graciliano Ramos e a tradição literária brasileira.
67
Interessante também é a afirmação de Sônia Brayner de que “alguns motivos espaciais tornam-se mesmo
obsessivos, reiterando para o leitor a importância do espaço para um ser fragmentado.” (BRAYNER, 1978, p.
208).
102
compreendendo as ruas, as praças, os bondes, os cafés, a redação do jornal etc; do privado, que é
a casa. A utilização de determinados sentidos em determinados ambientes merece também ser
observada. Pois a cidade é claramente descrita através do visual, ao passo que na casa verifica-se
certa tendência para o auditivo.
Do primeiro, um bom exemplo é a viagem de bonde nos trechos iniciais, na qual o
narrador vai descrevendo as diversas camadas do espaço urbano, do centro à periferia; ou então
os cafés nos quais Luís afirma passar “uma hora por dia, olhando as caras.” (Ibid., p. 27, grifo
meu); ou distraído diante dos cartazes do cinema – “estive olhando sem ver os cartazes do
cinema, entrei maquinalmente.” (Ibid., p. 95, grifo meu); ou simplesmente andando na rua –
“tornei a baixar a cabeça, desanimado, continuei a olhar os pés dos raros transeuntes que
passavam na rua.” (Ibid., p. 94, grifo meu).
Notemos, em primeiro lugar, que esta cidade pela qual passeia Luís não é mais uma
fazenda afastada como a S. Bernardo de Paulo Honório, na qual e eletricidade é escassa,
privilégio apenas daqueles que vivem à mercê de um grande administrador, como é o fazendeiro
dos primeiros tempos. Na Maceió de Luís, ao contrário – e inclusive por Angústia ser
ambientado num momento posterior a S. Bernardo –, a eletricidade e outras formas de
iluminação pública, como os candeeiros de petróleo, são já amplamente difundidas – o que,
como veremos, possui sua importância da narrativa. Pois, como foi colocado no Capítulo 1 desta
dissertação, a eletricidade não apenas possibilita a permanência dos cidadãos nas ruas por um
período bem mais extenso, como cria um outro tipo de relação do indivíduo com a noite. Em vez
de um terreno indefinido em que se alojam toda sorte de seres marginais e sobrenaturais, em vez
de um período em que, devido à escuridão e à quase impossibilidade de trabalho, o indivíduo vê-
se muito mais propenso à reflexão, ao autoexame e à oração, o que a eletricidade promove é
precisamente uma transposição da vida diurna para a noite.
Certamente, algumas diferenças ainda se fazem notar. Como afirmara Dewdney (2004), a
luz elétrica não varia de movimento e intensidade como a solar. E, como notara Melbin (1978),
os habitantes noturnos são em geral grupos marginalizados – o que não impede que
eventualmente se encontrem com os trabalhadores diurnos, como é o caso desta noite em que
Luís se vê sozinho em uma bodega: “Vagabundos? Nada. Estavam ali indivíduos de várias
profissões.” (RAMOS, 2008c, p. 141). Ainda assim, o fator eletricidade/iluminação pública é o
103
que permite que Luís perambule pelas ruas madrugada adentro, que cruze com mendigos,
prostitutas e famílias miseráveis sem se sentir por eles ameaçado. Luís é, afinal, um inadaptado:
ao trabalho nas repartições, aos seres que vivem à noite, aos antepassados sertanejos:
68
Levantava-me, subia a ladeira Santa Cruz, percorria ruas cheias de lama, entrava numa bodega,
tentava conversar com os vagabundos, bebia aguardente. Os vagabundos não tinham confiança
em mim. (...) Eu queria dizer qualquer coisa, dar a entender que também era vagabundo, que
tinha andado sem descanso, dormido nos bancos dos passeios, curtido fome. Não me tomariam a
sério. Viam um sujeito de modos corretos, pálido, tossindo por causa da chuva que lhe havia
molhado a roupa. (Ibid., p. 140).
E é devido a esse descompasso que caminha incessantemente pelas ruas, que lê
romances, que vai ao cinema, que procura enfim esquecer-se de si.
Esquecer-se de si. De fato, este parece ser o objetivo central do personagem: passear para
distrair-se de seus problemas. E para isso Luís não parece encarnar a imagem daquele que Georg
Simmel (1987) descreveu como o típico cidadão das grandes cidades: como consequência de
uma superestimulação provocada pelos estímulos urbanos, os nervos “cessam completamente de
reagir”, o que resulta num “embotamento do poder de discriminar” (SIMMEL, 1987, p.16),
levando os indivíduos a tratarem tudo com absoluta indiferença. Em outros termos, a conhecida
atitude blasé:
Passeei à toa pelas ruas, parando em frente às vitrinas (...). Fui ao jornal, li os telegramas. (...)
Estive olhando sem ler os cartazes do cinema, entrei maquinalmente. (...) Na sala de projeção
fiquei de pé, ao fundo, por baixo da cabina, sem ver a tela. Nunca presto atenção às coisas, não
sei para que diabo quero olhos. (RAMOS, 2008c, p. 95-96).
Mas talvez essa atitude seja ainda preferível à total ausência de distrações externas. Pois
como bem raciocina Luís,
os canteiros, o coreto, os globos opalinos, não me serviam para nada. Estimaria que os fios da
Nordeste encrencassem e a cidade ficasse às escuras. Mover-me-ia como um cego, esqueceria as
mulheres pintadas que imitam d. Mercedes, esqueceria Julião Tavares, que estava em todos os
bancos. A treva apagaria aquela exposição desagradável. Mas dar-me-ia a recordação de coisas
mais desagradáveis ainda. (RAMOS, 2008c, p. 225-226).
68
Sobre o assunto, Antonio Candido escreve que “passam a colidir no mesmo indivíduo um ser social, ligado à
necessidade de ajustar-se a certas normas sociais para sobreviver, e um ser profundo, revoltado contra elas,
104
É precisamente nas trevas estabelecidas no espaço privado que essas recordações se
colocam mais cruas, mais desnudas, acompanhadas apenas dos ruídos que desde o início da
trama se colocam e vão se afirmando com cada vez mais força, até uma longa passagem na qual
Luís, enumerando os barulhos desagradáveis que vêm e vão, constata: “o que eu devia fazer é
mudar de casa. Esta é inconveniente, cheia de barulhos, parece mal-assombrada.” (Ibid., p. 108).
Afinal, se durante o dia o protagonista já não consegue se concentrar para ler e escrever, “as
noites eram medonhas.” (Ibid., p. 110), devido basicamente a relógios, tosses, ratos correndo,
pulgas, miados de gatos, galos, grilos, formigas e, acima de tudo, o ranger da rede de Marina na
casa ao lado. Como veremos mais adiante, toda essa massa de ruídos vai se tornando
gradualmente mais presente, acompanhando o aprofundamento do desespero de Luís e
culminando nas suas grandes noites de insônia. É, de fato, como colocara Rolando Morel Pinto,
este momento em que a audição de Luís parece estar mais alerta, mais propensa a captar
qualquer ruído para dar ao ambiente, nas palavras de Fernando Cristóvão, “um certo ‘caráter
alucinatório.’” (CRISTÓVÃO, 1986, p. 69). Pois é nessas horas que, como sustentara Alvarez,
“a noite contém o que se quiser colocar nela, e como não se pode ver, ou se pode ver muito
pouco, ela dá a sua imaginação um espaço ilimitado para trabalhar.” (ALVAREZ, 2006, p. 27).
Começamos a entrever aqui como Graciliano Ramos arquiteta um jogo entre a claridade e a
escuridão, que se revelará essencial à narrativa, na medida em que alterna a distração de Luís na
ambientação urbana da história com suas angustiadas reflexões no interior de sua casa. A
primeira, intrinsecamente ligada à visão; a segunda, à audição: “Quando a realidade me entra
pelos olhos, o meu pequeno mundo desaba.” (RAMOS, 2008c, p. 96).
Antes de tecer conclusões sobre a questão, porém, consideremos ainda o quintal da casa
de Luís, fronteiriço ao da casa de Marina, no qual os dois sentidos se alternam, mas ainda assim
se distinguem. É o que se dá, por exemplo, na cena que antecede a conquista de Marina por Luís,
quando este, deitado na rede do quintal e fingindo dormir, acompanha a circulação da moça pelo
jardim, com os olhos ora semi-cerrados, ora fechados – mas com os ouvidos bem abertos para o
“chichichi” de Marina:
inadaptado, vendo a marca da contingência e da fragilidade em tudo e em si mesmo. Daí a incapacidade de viver
normalmente e o senso de culpa, ou autonegação.” (CANDIDO, 2006, p. 114).
105
Soltei o livro e fechei os olhos, aborrecido. Mas os olhos não ficaram bem fechados: através das
pálpebras meio cerradas distinguiam-se as coisas que estavam perto do chão, dez ou quinze
metros em redor. (...) Chap, chap, chap. Era o vascolejar da água nas garrafas. Líquido se
derramava: o homem triste enchia dornas. D. Adélia tossia no banheiro, espremendo roupa. E
Vitória, na cozinha, cantava. (...) De repente a fraguinha [Marina] surgiu dentro do meu reduzido
campo de observação. (...) Voltava-me as costas: - Chi, chi, chi. Um riso semelhante a um
cochicho. Curvava-se para a frente: a cintura fina sumia-se, os quadris aumentavam. (...) - Chi,
chi, chi. O cochicho risonho afastava-se, chegava-me aos ouvidos como o chiar de um rato.
(RAMOS, 2008c, p. 68-71).
E é desta forma que Marina chega até o protagonista: “mais perto, mais perto, o cheiro
mais vivo, o chichichi mais perceptível – e eu sentia uma espécie de desmaio com aquela
aproximação. O livro caiu, cruzei as pernas, sentei-me, vi Marina em pé junto da cerca, rindo
como uma doida.” (Ibid., p. 72). Nesse trecho, como em todo o episódio, a entrevisão de partes
do corpo de Marina e a audição de seus barulhos se alternam para dar uma sensação de
movimento. A descrição dos ruídos nessa passagem é em muitos aspectos semelhante às
presentes nas cenas de insônia, e é interessante que, ainda no início do relacionamento com
Marina, Luís explore os barulhos – dela e dos vizinhos – como elementos que perturbam seu
acomodado estado de imobilidade quando, deitado na rede, lê um livro. Como veremos, tal
movimento, introduzido sobretudo nesse episódio da rede, será ampliado ao longo do romance, e
se mostrará essencial ao aprofundamento da angústia de Luís.
Também em relação ao quintal, o jogo entre claro e escuro se mostrará desde o início um
aspecto a ser considerado: “o quintal estava escuro. Por cima das árvores havia claridade, até se
enxergava, a distância, um anúncio que se podia ler; mas perto do chão era aquele pretume.
Fastidiosa música de grilos, certamente no canteiro das hortaliças.” (Ibid., p. 50). Não por acaso,
o que se vê são os cartazes da cidade – isto é, as distrações urbanas –, ao passo que à mata
restam o pretume e a “música de grilos” – ou seja, a concentração nos próprios conflitos e o
tormento dos ruídos.
Torna-se assim perceptível o quanto os estímulos auditivos correspondem em geral a um
terreno mais profundo da identidade de Luís, que fica encoberto pelos galhos das árvores e
escapa à faceta pública ou oficial do protagonista, enquanto os visuais concentram-se em torno
de aspectos típicos do espaço urbano. Assim, quando Luís se detém mais demoradamente sobre
alguma lembrança, ou no momento crucial do assassinato de Julião Tavares, é comum assinalar a
presença da chuva e da neblina, como cortinas que lhe impedissem a visão e ressaltassem a
106
audição: “Uma garoa que se adensava ia toldando as luzes capiongas. Um, dois – impossível
contar os postes de iluminação, que a neblina ocultava.” (Ibid., p. 229-230). E mais do que isso:
à medida que a angústia de Luís pela perda de Marina aumenta, à medida que se vê obrigado a
deixar sua habitual inércia para tomar atitudes bem pouco condizentes com um trabalhador
descrente do mundo e paralisado numa existência vazia – como é a personagem frequentemente
retratada pela crítica
69
–, isto é, à medida que a existência antiga se faz impossível, que o
desespero por Marina e a revolta com Julião o dominam por completo, aí também gradualmente
a audição vai se fazendo cada vez mais presente, acompanhada quase sempre de um clima
noturno. Adensam-se então as insônias de Luís, os longos períodos em que, movimentando-se
por sua casa, vê-se atormentado por diversos ruídos. “Impossível dormir. (...) Silêncio de alguns
minutos. Iam deixar-me dormir. Nada.” (Ibid., p. 125-126).
A alternância entre dia e noite, ou entre escuridão e claridade, se torna então mais e mais
presente ao longo da história. As cenas noturnas vão ganhando terreno após a traição de Marina,
e principiam-se aí as longas insônias de Luís no interior de uma casa que ele próprio classifica de
mal-assombrada, tantos são os ruídos de grilos, sapos, ratos e outros animais; as tábuas
rangendo; as relações sexuais dos vizinhos; a movimentação da criada Vitória; as batidas do
relógio. “As noites eram medonhas. Os galos marcavam o tempo, importunavam mais que os
relógios. E os ratos não descansavam. (...) O gato amava nos telhados, gato ordinário. (...)
Irritava-me um som de armadores de rede. (...) Seu Ramalho tossia.” (Ibid., p. 110). As cenas
diurnas vão-se aos poucos impregnando da angústia noturna, como a que introduz a corda na
vida de Luís – elemento essencial ao assassinato – ou a cena da ronda do protagonista pela casa
onde Marina realizará o aborto. Ainda assim, Luís continua considerando o espaço público um
refúgio de si mesmo, um lugar onde pode circular distraído de seus próprios conflitos, como se
dá neste trecho em que, já não suportando permanecer em casa à noite por saber que Marina
estava com Julião, põe-se a vagar pelas ruas: “Esforçava-me por esquecer o nariz e o ouvido,
abria os olhos.” (Ibid., p. 139).
A todo este movimento, acrescente-se um outro, fundamental: a memória da infância de
Luís no sertão. Segundo Letícia Malard, “a estruturação acional do enredo se fundamenta nas
69
Por exemplo, para José Paulo Paes (1990), Luís é emblemático da figura do “pobre diabo” no romance brasileiro.
Já Hélio Pólvora (1978) atesta que Luís vive um “desespero monótono” (PÓLVORA, 1978, 130). Lembremos
107
recordações de infância, que podem elucidar as diversas fases do desenrolar da narrativa e os
aspectos patológicos da personalidade de Luís da Silva.” (MALARD, 1976, p. 54). Portanto,
alternando-se ao longo de toda a obra com o tempo presente, esse passado rural representa algo
como um plano paralelo que vem à tona a todo o momento, contrastando com os eventos atuais e
conferindo-lhes novas nuances. É interessante inclusive lembrar que foi essa multiplicidade de
linhas narrativas o que levou Álvaro Lins, ainda em 1947, a considerar apenas Angústia como
um efetivo romance, ao passo que Caetés e S. Bernardo seriam antes novelas. Isso se deveria ao
fato de que apenas em Angústia há “vários episódios, que circulam o drama principal, ou com ele
se cruzam em múltiplas direções, de modo que a ação se processa em diversos planos.” (LINS,
1967, p. 80).
De uma maneira geral, as “micronarrativas” – para usar a denominação de Lúcia Helena
Carvalho (1983) –, tanto as que invocam o passado quanto as que tratam do presente, todas
funcionam como uma ilustração do estado de espírito e dos pensamentos de Luís. É assim, por
exemplo, que o desafortunado namoro com Marina lhe ressuscita lembranças das relações
amorosas no passado rural, bem como a obsessão com a morte de Julião lhe aviva as imagens de
assassinos ilustres desse outro tempo, de seus crimes e seus castigos. E acima de tudo, a
memória da infância afirma-se como fator essencial à gradativa instalação de um ambiente
angustiado e propenso à violência, de modo que as “micronarrativas” vão alimentando as tensões
que, como veremos, explodirão nas noites insones.
Podemos, assim, identificar uma dinâmica bastante específica, que poderia ser dividida
em dois pólos: claridade/visão/distração e escuridão/audição/reflexão. O primeiro, ligado
principalmente às ruas e aos espaços públicos, concentra os momentos em que Luís foge de seus
próprios conflitos, entretendo-se com as caras nos cafés, as letras nos cartazes ou as construções
pela cidade. É este por excelência o espaço da eletricidade, dos postes de iluminação que, à
maneira de sentinelas, dificultam as contravenções e trazem os dias para dentro das noites. No
segundo, ao contrário, todos estes elementos desaparecem para dar lugar ao breu e a ruídos que,
ao incomodarem Luís, impedem-no de dormir e, com isso, obrigam-no a pensar. O personagem
ingressa então num processo doloroso e corrosivo de remoer a perda de Marina e o ódio por
Julião, de tornar complexos ambos os sentimentos ao contrastá-los com as memórias da infância
ainda a análise de Fernando Gil (1999), a ser retomada adiante.
108
e da juventude, de deixá-los infiltrarem-se por fim em todos os meandros de sua existência. Mais
ou menos na altura em que Marina, após ter abandonado Luís, começa a relacionar-se com
Julião, mostram-se vãos os esforços do protagonista para “abrir os olhos” e “fechar os ouvidos”,
isto é, para permanecer constantemente distraído com os estímulos exteriores provenientes da
cidade e, com isso, esquecido de seus próprios conflitos. Este segundo pólo vai, assim,
impregnando a narrativa, o que significa dizer que Luís vai se tornando progressivamente mais
insone.
Por “estar insone”, então, entendo não simplesmente estar acordado à noite, visto que a
noite iluminada artificialmente permite também a existência distraída própria da vida diurna. O
estar insone de Luís é estar imerso nessa segunda noite, é não ter a opção de dormir, é ter
fechada a visão do mundo externo, é perturbar-se simultaneamente com os ruídos ao redor e com
os pensamentos no interior, é não ter mais a pequena realidade particular destruída pelo mundo
que “entra pelos olhos”. Quase poderia Luís afirmar, à maneira de Bernardo Soares no Livro do
desassossego, que “se de dia ellas [as ruas] são cheias de um bulício que não quere dizer nada;
de noite são cheias de uma falta de bulício que não quere dizer nada. Eu de dia sou nullo, e de
noite sou eu.”
70
(PESSOA, 1997, I, p. 70). Entregando Luís a seus próprios bulícios por conta da
“falta de bulício” externa, portanto, a insônia do personagem vai estabelecendo laços cada vez
mais profundos com sua própria angústia. Começamos aqui a ter uma ideia de sua relevância ao
desenvolvimento do enredo.
Examinemos então as angustiadas noites insones de Luís no interior da sua casa, e seu
papel na narrativa como um todo.
4.2. As insônias de Luís da Silva
4.2.1. Fechar os olhos, abrir os ouvidos
Notemos, antes de mais nada, que a insônia de Luís está intrinsecamente ligada à relação
com Marina. Antes de conhecê-la, jamais o personagem mencionara sofrer desse mal, e é após os
70
Localizando, naturalmente, a noite artificialmente iluminada na categoria dos dias, e aproximando as noites de
Soares às insônias de Luís.
109
primeiros contatos com a moça que afirma: “Não pude dormir: os cabelos de fogo, os olhos e
especialmente as pernas da vizinha começaram a bulir comigo.” (RAMOS, 2008c, p. 46). Mais
tarde, com a consolidação da crise do casal, após os encontros noturnos na rede, após Marina ter
aceitado casar-se com Luís e ter desperdiçado as suas economias num suposto enxoval, após ter
rompido o relacionamento e começado a se envolver com Julião Tavares, aí a angústia de Luís,
cada vez mais alarmante, lhe tira por completo o sono. É quando o protagonista começa a se
queixar dos excessivos barulhos da madeira estalando, dos animais e do relógio, quando não
consegue dormir devido aos ruídos das relações sexuais dos vizinhos na casa ao lado, quando a
movimentação da criada Vitória pelos cômodos lhe causa aflição, quando aflição ainda maior é
ouvir o ranger da rede de Marina e não poder fazer nada, é enfim essa profusão de barulhos
incômodos uma das marcas mais nítidas da progressiva impossibilidade de Luís ter uma vida
normal. Atrelada a ela, a insônia.
Durante o dia Luís tenta distrair-se de seus problemas, ora andando pelas ruas da cidade,
ora lendo romances no quintal – e é interessante notar que praticamente não há cenas de
distração no interior da casa, com exceção daquelas em que o personagem se volta para a janela
e observa o exterior. À noite, a distração se torna mais difícil, pois o recurso ao visual se
encontra um tanto diminuído, e a predominância da audição só faz aumentarem os conflitos
internos do personagem. Trata-se, curiosamente, de uma situação bastante próxima à cegueira
infantil exposta em Infância: a privação da visão leva à reflexão, à introspecção e à atenção aos
barulhos e às palavras. Algo semelhante ocorrera também com Paulo Honório e com
personagens analisados nos capítulos anteriores deste trabalho. E aqui é bastante significativa a
constatação de Cristóvão, a respeito do protagonista, de que “o mundo exterior só interessa
quando interiorizado, e uma das suas formas de interiorização é a da passagem do luminoso ao
noturno, e a das informações visuais às auditivas, o que confere à realidade um certo ‘caráter
alucinatório’.” (CRISTÓVÃO, 1986, p. 69).
Com o atrito de todos esses elementos conflituosos a se alternarem e girarem em torno de
um eixo chamado Luís, a impossibilidade de repouso vai aos poucos ganhando ritmo mais
acelerado, acompanhando a velocidade com que a angústia se instala no protagonista. Esse
processo, desencadeado certamente com o início das relações de Luís com Marina, vai então
dominar por completo seus pensamentos e, consequentemente, estende-se por pontos diversos da
110
narrativa: “Não fiz nenhum esforço para observar o que se passava na multidão, ia de cabeça
baixa, dando encontrões a torto e a direito nos transeuntes. De repente um grito, uma palavra
amarga, um suspiro – e algumas figuras se criaram, foram bulir comigo na cama.” (Ibid., p. 159-
160). É também no isolamento do banheiro, quando a madrugada dá lugar à manhã, nesse
ambiente quase nulo tamanha é a falta de bulício, que Luís fuma nu e reflete, antes das
sucessivas chegadas de Marina e seus familiares para se banharem no banheiro contíguo. “De
ordinário fico no banheiro, sentado, sem pensar, ou pensando em muitas coisas diversas umas
das outras, com os pés na água, fumando, perfeitamente Luís da Silva.” (Ibid., p. 163).
Com a crise, como vimos, o ambiente vai se tornando cada vez mais obscuro, cada vez
mais dominado pelos estímulos auditivos, as memórias da infância ficam mais agudas e seu lado
mais violento vem à tona, além de introduzir-se a ideia fixa da corda e suas variantes, a gravata e
o cano. Em outras palavras, a angústia de Luís vai ganhando novas proporções. Inutilmente o
funcionário tenta afastar-se de seus problemas vagando pelas ruas ou observando-as pela janela,
inutilmente tenta se concentrar no trabalho ou se convencer de que poderá se livrar das dívidas,
ou mesmo retomar sua antiga existência. As cenas diurnas ou iluminadas artificialmente só
assinalam sua impossibilidade de readaptação ou retorno à antiga existência. Assim, as “noites
medonhas”, dominadas por ruídos e pensamentos incômodos, abrem no enredo pontos nos quais
um aprofundamento psicológico possibilita a exploração de técnicas narrativas próximas ao
monólogo interior, que expandirão o clima de angústia no enredo. E aqui nos deparamos com
uma questão delicada.
4.2.2. Experimentações
Angústia é comumente apontado como o mais experimental dos romances de Graciliano.
Com efeito, o “caráter alucinatório” a que se refere Cristóvão, ou o “monólogo de tonalidade
solipsista” (CANDIDO, 2006, p. 57), para usar os termos de Candido, estas e tantas outras
expressões elaboradas para definir o romance o situam no rol da prosa moderna que vim
analisando ao longo deste trabalho, o que levou a crítica a utilizar recorrentemente termos como
111
“monólogo interior” ou “fluxo de consciência” para definir as escolhas estilísticas levadas a cabo
no romance. Haveria nesse caso, como coloca Fernando C. Gil (1999) em seu O romance da
urbanização, “uma profunda subjetivização do discurso ficcional, determinada pela utilização da
técnica do monólogo interior” (GIL, 1999, 71), o que explicaria por que “a relação com Marina e
a morte de Julião Tavares, ainda que dominantes na mente do personagem e no nível dos
acontecimentos, não têm força de história e nem se pode dizer, com muita precisão, que haja
constituição de enredo a partir destas duas situações.” (Ibid., p. 75). Segundo Gil, não se poderia
dizer que “os processos mentais de Luís preparam e fundamentam os acontecimentos exteriores.”
(Idem).
A meu ver, é possível verificar a “profunda subjetivização do discurso ficcional” de que
fala Gil, bem como o fato de que ela em certa medida parece promover uma “dissolução da
‘realidade objetiva’ em estados subjetivos de Luís da Silva.” (Ibid., p. 75). Contudo, acredito que
merecem ser vistas com reserva as considerações de que não há constituição de um enredo, bem
como a identificação generalizada da prosa do romance com o monólogo interior.
Quanto ao primeiro problema, consideremos a seguinte passagem de Angústia:
Antes da minha cabeçada com Marina, eu não aguentava aquilo [as barulhentas relações sexuais
dos vizinhos]. Escrevia, lia, dormia, acordava, levantava-me, tornava a deitar-me. (...) Agora não
podia arredar-me dali. Parecia-me que, na minha ausência, Julião Tavares penetraria na casa e
levaria o que me restava: livros, papéis, a garrafa de aguardente. Sentia-me preso como um
cachorro acorrentado, como um urubu atraído pela carniça. Se ao menos pudesse dormir...
(RAMOS, 2008c, p. 124, grifos meus).
Por mais breve que se mostre esse trecho, nele podemos identificar dois elementos
relevantes. O primeiro é o de que há, sim, um enredo e uma relação de causalidade. A atitude de
Luís para com o mundo e os demais tornou-se outra porque conheceu Marina, porque teve uma
relação e uma desilusão com ela. É isto o que levará às últimas consequências o ódio de Luís por
Julião, já esboçado desde as primeiras menções ao antagonista, mas não ainda forte o suficiente
para desembocar no assassinato. Percebemos, portanto, que há no romance um enredo e uma
relação de causa e efeito.
71
Parece-me que o que aqui estaria sendo entendido como dissolução
71
Valho-me aqui da definição feita por E.M. Forster de enredo em Aspectos do romance: “Vamos definir um
enredo. Definíramos a estória como uma narrativa de acontecimentos dispostos em sua sequência no tempo. Um
enredo é também uma narrativa de acontecimentos, cuja ênfase recai sobre a causalidade. ‘O rei morreu e depois a
112
do enredo aproxima-se antes do que Alan Friedman definira em The turn of the novel [A virada
do romance] como o “caráter aberto” do romance moderno.
72
Segundo Friedman, o padrão
tradicional dos séculos XVIII e XIX deixa subentendido que
os momentos climáticos de maior expansão moral serão regularmente seguidos por uma situação
moral cerceadora, uma reorganização final da experiência que restringe, seja pelo estreitamento
ou pelo movimento em direção oposta, a específica expansão emocional e ética desenvolvida no
clímax.” (FRIEDMAN, 1966, p. 17).
Ou seja, esta seria uma experiência fechada, ao contrário da do romance das primeiras
décadas do século XX, a qual se classificaria de aberta porque
episódios finais de reorganização (espeficicamente) estão simplesmente ausentes; (...) a
reorganização específica da experiência emocional e moral que é delineada é finalmente aquela
que contém a carga anterior de conflito (...) em níveis não reduzidos ou mesmo intensificados. Ou
seja, trata-se de dizer que o fluxo de consciência em expansão na ficção moderna é finalmente
deixado aberto. É “aberto” em três sentidos: finalmente não-contido, finalmente não-reduzido, ou
finalmente ainda em expansão. (Ibid., p. 30).
Dito isto, tenhamos em mente o último episódio de Angústia, no qual Luís, traumatizado
por todos os eventos vividos desde o início da relação com Marina e especialmente após o
assassinato de Julião, passa dias a fio em delírio no seu quarto. É esta a situação –
profundamente aberta e inconclusa, diga-se de passagem, além de uma das mais experimentais
de todo o romance – que fecha o livro. Voltaremos a estas páginas derradeiras assim que
tivermos pensado com mais vagar os problemas de se considerar Angústia um livro basicamente
composto segundo a técnica do monólogo interior.
O segundo elemento a ser considerado é o de que, no trecho em questão, podemos notar,
bem como na maior parte da narrativa, um tipo de enunciação discursiva que se choca
diretamente com uma acepção mais rigorosa de monólogo interior, supostamente presente na
prosa de Angústia. Atentemos para os termos por mim destacados na citação: “eu não
aguentava”, “parecia-me” e “sentia-me”. Tomemos a definição do clássico estudo de Robert
rainha’ – isto é uma estória. ‘Morreu o rei, e depois a rainha morreu de pesar’ é um enredo.” (FORSTER, 1970, p.
69).
72
É verdade que Friedman se concentra em obras europeias, sobretudo britânicas, e que a tese de Gil se pauta pela
premissa de que a experiência brasileira é muito diferente da europeia. Se tal premissa, por um lado, se mostra até
certo ponto válida, acredito, por outro lado, que ela não dá conta da complexidade estética da questão. Afinal, a
113
Humphrey O fluxo da consciência, segundo a qual “o monólogo interior é, então, a técnica usada
na ficção para representar o conteúdo e os processos psíquicos do personagem, parcial ou
inteiramente inarticulados, exatamente da maneira como esses processos existem em diversos
níveis do controle consciente antes de serem formulados para fala deliberada.” (HUMPHREY,
1976, p. 22). Ora, é de se imaginar que, caso o leitor tivesse esse acesso mais direto aos
pensamentos e sensações de Luís, não poderia haver termos que os introduzissem, tais como
“pensava que” ou “sentia que” – notem-se, para tanto, meus grifos no último trecho transcrito do
romance. Contudo, essa passagem e o resto do texto deixarão explícito, tais formas discursivas
são constantes. Portanto, os pensamentos de Luís, ainda que eventualmente são sejam
introduzidos por tais expressões, são, em geral, antes narrados do que diretamente expostos.
Tal constatação conduz, assim, à hipótese de que a prosa de Angústia está calcada em
uma mistura do monólogo interior com o solilóquio se, tomando a acepção de Humphrey,
entendemos que
O solilóquio no romance de fluxo de consciência pode ser definido como a técnica de representar
o teor e os processos psíquicos de um personagem diretamente do personagem para o leitor sem a
presença do autor, mas com uma plateia tacitamente suposta. Por conseguinte, é necessariamente
menos sincero e mais limitado do que o monólogo interior na profundidade da consciência que
pode representar. O ponto de vista é sempre o do personagem e o nível da consciência geralmente
se encontra próximo à superfície. (HUMPHREY, 1976, p. 32).
Na minha opinião, dessa forma, Graciliano mescla frases mais próximas ao monólogo
interior estrito com outras que, por serem explicitamente introduzidas por expressões que
indicam pensamento ou sensação, se enquadrariam melhor no que Humphrey descreve como
solilóquio. Decerto, em inúmeros momentos a narrativa pende para o monólogo interior,
especialmente no delírio final do romance, quando todos os personagens e eventos fluem
livremente e misturam-se na grande massa amorfa e aleatória que se mostra a consciência de
Luís.
Resta, então, esclarecer a importância e a relação da insônia para com todas essas
constatações. Vimos que estas últimas páginas do livro, este período de “alma de parafuso” –
termo com o qual Luís se autodefine –, conferem ao mesmo tempo um final aberto ao romance e
tese de Gil nos levaria a tomar Angústia antes por um feixe de pensamentos vagos, desestruturados e incapazes de
engendrar acontecimentos exteriores, afirmação que, como vimos, não se sustenta.
114
lhe proporcionam alguns de seus trechos mais próximos desse conjunto de técnicas narrativas
vanguardistas que procuravam expressar os processos da psique humana. E este é um período
insone:
Depois, a escuridão cheia de pancadas, que às vezes não se podiam contar porque batiam vários
relógios simultaneamente, gritos de crianças, a voz arreliada de d. Rosália, o barulho dos ratos no
armário dos livros, ranger de armadores, silêncios compridos. Eu escorregava nesses silêncios,
boiava nesses silêncios como uma água pesada. Mergulhava neles, subia, descia ao fundo, voltava
à superfície, tentava segurar-me a um galho. Estava um galho por cima de mim, e era-me
impossível alcançá-lo. Ia mergulhar outra vez, mergulhar para sempre, fugir das bocas da treva
que me queriam morder, dos braços da treva que me queriam agarrar. O sim de uma vitrola
coava-se nos meus ouvidos, acariciava-me, e eu diminuía, embalado nos lençóis, que se
transformavam numa rede. Minha mãe me embalava cantando aquela cantiga sem palavras. A
cantiga morria e se avivava. Uma criancinha dormindo um sono curto, cheio de estremecimentos.
Em alguns minutos a criança crescia, ganhava cabelos brancos e rugas. Não era minha mãe a
cantar: era uma vitrola distante, tão distante que eu tinha a ilusão de que sobre o disco passeavam
pernas de aranha. Um disco a rodar sem interrupção a noite inteira. (RAMOS, 2008c, p. 272-
273).
Se transcrevo esta longa passagem, é para dar uma ideia de como se desenvolve o delírio
de Luís. De um lado, pensamentos desconjuntados e pouco coerentes entre si. De outro, frases
ainda assim estruturadas, muito distantes da fragmentação sintática, por exemplo, do monólogo
de Molly Bloom no Ulisses de James Joyce. De outro lado ainda, essa oscilação entre a narração
dos pensamentos e a presença direta deles. Tudo isso ambientado num quarto fechado, em noites
insones e dias também quase insones, visto que em grande parte privados da luz solar e do
contato com o exterior (exceto por eventuais ruídos da vizinhança que abafassem as pancadas do
relógio), e visto que “no tempo não havia horas.” (Ibid., p. 272) e que “o dia estava dividido em
quatro partes desiguais: uma parede, uma cama estreita, alguns metros de tijolo, outra parede.”
(Idem). Todos esses fatores são depositários desse isolamento reflexivo tão característico da
insônia. Estão todos inseridos, enfim, nesse “disco a rodar sem interrupção a noite inteira” que é
a consciência de Luís em suas noites em claro.
Minha conclusão, portanto, é a de que esse fragmento final é essencial à sensação geral
de que, com Angústia, as características da prosa moderna analisadas no Capítulo 2 deste
trabalho atingiram, na tradição literária brasileira, um novo patamar. Essa sensação se dá
principalmente pela maior tendência ao monólogo interior quanto pelo final aberto da narrativa,
115
no qual o tradicional relaxamento posterior ao clímax é substituído por um episódio tanto quanto
ou ainda mais conturbado.
73
Igualmente importante a esse caráter moderno da obra é o seu tempo multifacetado, com
o qual abrirei a segunda via de análise da insônia em Angústia. Através dela pensaremos como as
diferentes experiências da noite antes e depois da eletricidade podem ser significativas aos
eventos do enredo.
4.3. As infrações de Luís da Silva
4.3.1. O funcionário público e o cangaceiro
Consideremos inicialmente o que Antonio Candido denominou um “tempo tríplice” em
Angústia:
A narrativa não flui, como nos romances anteriores. Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num
ritmo de vaivém entre a realidade presente, descrita com saliência naturalista, a constante
evocação do passado, a fuga para o devaneio e a deformação expressionista. Daí um tempo
novelístico muito mais rico e, diríamos, tríplice, pois cada fato apresenta ao menos três faces: a
sua realidade objetiva, a sua referência à experiência passada, a sua deformação por uma crispada
visão subjetiva. (CANDIDO, 2006, p. 113).
Os dois últimos fatores apontados por Candido – a referência à infância e a deformação
subjetiva – integram de certa maneira um mesmo movimento, na medida em que constituem
variações dos pensamentos de Luís a dialogarem com as situações por ele vividas. Ainda assim,
é esse tempo multifacetado descrito pelo crítico o que leva Fernando Cristóvão a notar que o
andamento do romance é lento, com inúmeros momentos nos quais “a narração está parada,
como o protagonista, e deixa que a representação apresente ao leitor o clima mental de Luís da
Silva.” (CRISTÓVÃO, 1986, p. 64). Essenciais à lentidão e à predominância da representação
sobre a narração são as recordações da infância, que prenunciam o crime empreendido por Luís.
Como coloca Cristóvão, “outro valor indicial destas recordações é o de atualizar o desejo de
73
É verdade que o início da história trata do período posterior a este delírio, constituindo portanto uma espécie de
conclusão. No entanto, nem este momento final, descrito no início do romance, é conclusivo, nem o fato de ele
existir faz de Angústia um romance menos aberto. Afinal, a opção de Graciliano por concluir o livro com o delírio
só acentua seu propósito de proporcionar ao leitor um fecho altamente instável e inconcluso.
116
vingança do protagonista”, e ressalta que “por valor indicial se deve entender não simplesmente
o aspecto estático do clima que envolve as personagens e os objetos do relato, mas também o
valor dinâmico de preparar e facilitar a marcha do mesmo relato.” (Ibid., p. 67). Dessa forma, a
memória do sertão constitui algo como uma camada subterrânea, estática como o lamaçal do
Brejão-do-Umbigo de “Buriti”, mas depositária do âmago da personalidade de Luís – ou de seu
umbigo, ou o “ser profundo” (CANDIDO, 2006, p. 114) de que fala Candido, por oposição ao
“ser social” (Idem). Por um lado, essa camada paralisa parcialmente a narrativa ao encharcá-la de
detalhes e episódios não diretamente ligados à trama principal. Por outro, são esses detalhes e
episódios os que não apenas criarão a atmosfera do livro, mas abrirão caminho à ação. Afinal,
tornarão possível a um funcionário público achatado por uma existência medíocre concretizar o
assassinato de um homem muito mais poderoso e mesmo muito mais volumoso do que o próprio
protagonista.
Em outras palavras, Luís da Silva não seria capaz de seduzir Marina, roubar Vitória e
acima de tudo assassinar Julião, se a ele fosse negada essa capacidade de, em algumas ocasiões,
ultrapassar a vigilância opressiva da cidade que lhe obrigava à existência medíocre, para
estabelecer uma relação com a noite ainda própria das épocas anteriores à iluminação pública.
Certamente, tais ações contrastam com o modo pelo qual Luís se apresenta e os ambientes e
personagens que lhe rodeiam. Pois Luís está indiscutivelmente mais enfraquecido que seus
antepassados. Não à toa, Helmut Feldmann o classifica como o “protótipo do fraco”
(FELDMANN, 1967, p. 153). Com efeito, o protagonista não possui a iniciativa, a força física
ou a coragem de seus ancestrais; ao contrário, passa os dias trancado em escritórios e repartições
escrevendo o que não lhe agrada, ou perambulando pelas ruas de uma cidade que tampouco lhe
desperta qualquer sensação de conforto.
A cidade é, afinal, hostil. Nos rostos indiferentes dos transeuntes, nos seus modos
ríspidos, no ar conspiratório dos grupos nos cafés, a massa se mostra pronta a lhe tomar muito e
lhe oferecer quase nada. Até mesmo seu amigo Moisés, por quem tem enorme simpatia, é na
verdade seu credor. E Julião, por quem nutre absoluta antipatia, insinua-se como seu amigo
quando lhe convém, ou vai à sua casa para conversar quando bem entende. Tal qual o Chico
Brabo de Infância, Julião é a própria imagem da hostilidade invasiva que, nesse caso, perpassa a
vida na cidade: “À noite chegava-me a casa, empurrava a porta e, quando eu menos esperava,
117
desembocava na sala de jantar (...). E lá vinham intimidades que me aborreciam.” (RAMOS,
2008c, p. 52). Sua voz se faz ouvir alta e estridente quando Luís só deseja silêncio, seu discurso
fere o que Luís acredita ser um mínimo de bom senso, seu modo desembaraçado de se
esparramar em qualquer local incomoda o reservado protagonista. “Necessário dar cabo daquela
voz. Se o homem se calasse, as minhas apoquentações diminuiriam.” (RAMOS, 2008c, p. 115).
A vizinhança, por sua vez, permanece numa posição ambígua: ora representa uma aliada,
ora um juiz implacável. Tal qual o sistema panóptico de Foucault, “no panopticon, cada um, de
acordo com seu lugar, é vigiado por todos ou por alguns outros; trata-se de um aparelho de
desconfiança total e circulante, pois não existe ponto absoluto. A perfeição da vigilância é uma
soma de malevolências.” (FOUCAULT, 1984, p. 220-221). E Luís tem plena consciência de que,
se afinidades de origem e poder aquisitivo o aproximam dos vizinhos, sua estranha figura pode
pô-los contra si sem grandes dificuldades, como ocorrera com o vizinho Lobisomem: “O que
mais me aborrecia [, comenta Luís,] era não saber se as pessoas que falavam dele acreditavam na
história suja. Enchia-me de raiva por não conseguir livrar-me dos fuxicos.” (Ibid., p. 80).
Progressivamente, a própria casa se torna hostil com seus ruídos intermináveis, mas aí o
problema se revela mais complexo, pois nessas horas Luís está sozinho e, como vimos, é o seu
dilaceramento interior que então se faz ouvir.
Enfim, onde quer que esteja, Luís não está à vontade. Sua fraqueza, sua impossibilidade
de se impor, seu acanhamento, sua inércia, sua resignada aceitação de situações desvantajosas,
tudo isso compõe o retrato de um homem imóvel ou paralisado, como apontam recorrentemente
as críticas sobre o livro.
74
Seria esta talvez a própria imagem do cidadão achatado pelas forças
urbanas, com os sentidos embotados, incapaz de qualquer iniciativa, tal como descreveu Georg
Simmel (1987) em “A metrópole e a vida mental”.
Contudo, não parece curioso que um personagem tão impossibilitado de agir tenha, ao
longo da obra, conquistado uma moça muito mais jovem e bela, que tenha cavado a árvore do
quintal para roubar as economias da criada Vitória e, principalmente, que tenha assassinado um
homem muito mais forte que ele mesmo, e que tenha içado seu pesado corpo numa árvore? É no
mínimo instigante que tantos limites se tenham ultrapassado, sobretudo se considerarmos que o
74
Num primeiro momento, a própria narrativa sugere essa imagem, em passagens como “Pensava na miséria antiga
e tinha a impressão de que estava amarrado de cordas, sem poder mexer-me.” (RAMOS, 2008c, p. 119).
118
personagem em questão sempre se afirmou covarde e incapaz de qualquer ato parecido aos que
cometeu. Como então poderia Luís ter chegado a tais ousadias, como poderia tentar seduzir
Marina em seus encontros noturnos na rede, como teria roubado o dinheiro de Vitória diante dos
olhos do gato brilhando na escuridão, como seria possível assassinar Julião torpemente pelas
costas, na calada da noite e num terreno afastado?
4.3.2. Contravenções noturnas
Talvez já se tenha tornado perceptível um elemento comum a ligar as infrações: foram
todas cometidas à noite. Não a noite diurna dos cafés, dos globos opalinos e das praças
iluminados pelos fios da Nordeste, mas sim os lugares aos quais “a iluminação da cidade
chegava (...) muito reduzida.” (Ibid., p. 149), estando portanto alheios à vigilância das
autoridades e à presença constante de transeuntes – trata-se de algo semelhante ao que, como
vimos no primeiro capítulo deste trabalho, ocorria nas noites medievais. É nesses espaços que a
ânsia por Marina e o ódio por Julião terminam por extrapolar as fronteiras internas do
personagem e dão lugar a atos externos.
A primeira investida de Luís para arrebatar uns beijos de Marina, por exemplo, se deu
ainda quando estava escurecendo, mas já com a entrada no ambiente noturno marcada pelo “Boa
noite” de d. Adélia, mãe da garota. E quando esta última se vê obrigada a atender aos pais e
voltar para casa, Luís lhe faz uma proposta sugestiva: “Por que é que a gente não se encontra
aqui no escuro, meia-noite, quando estiverem dormindo?” (Ibid., p. 77). O consentimento da
garota em tais encontros leva Luís a ir mais longe, a tentar levá-la para dentro de sua casa, ao
que Marina se opõe com firmeza. E apesar de posteriormente condenar Julião por ter tirado a
virgindade da moça, não devemos nos esquecer de que o próprio Luís tentou nessas noites fazer
o mesmo, sem sequer tocar com seus pais no assunto do casamento. Não por acaso, sobre essas
horas Luís observaria mais tarde: “Parecia-me que Marina estava vestida de preto.” (Ibid., p.
149), ou “enrolada na escuridão.” (Ibid., p. 151). É o oposto da maneira pela qual Julião seduz
119
Marina, à luz do dia – ou das lâmpadas – e sob a vista de todos. Pois Julião, como veremos,
desconhece a noite não dominada pela eletricidade, e este será seu maior infortúnio.
O roubo das economias de Vitória, da mesma forma, se deu nas horas noturnas. Não de
madrugada, mas na hora do teatro, pouco depois de os últimos automóveis passarem em direção
à sala de concerto, quando as ruas já estavam vazias e a criada já se deitara, isto é, quando Luís
se viu sozinho no silêncio e na escuridão semelhantes às das noites com Marina no quintal, não
fosse pelos olhos de um gato no muro que, como brasas, “cresciam, cresciam
extraordinariamente, iluminavam todo o quintal.” (Ibid., p. 153). De fato, os olhos do gato, as
brasas do cigarro e os postes embaçados pela neblina, como pontos a iluminarem as infrações de
Luís, funcionam nitidamente como algo próximo a uma consciência da culpa, a uma percepção
de estar transgredindo. Curioso é apenas que a sedução de Marina não tenha suscitado tais
recursos – talvez por não ter sido consumada, ao menos não como esperava Luís. De qualquer
forma, os pequenos pontos vermelhos como alfinetes formando-se na pele da moça em seus
encontros noturnos com o protagonista se aproximam dessa criação de pontos luminosos
assinalando a culpa, como o seriam também os olhos aterrorizantes da mulher grávida na qual
Luís esbarrara na rua, ou os olhos de um hipotético guarda que mais tarde salvasse Julião da
morte. Novamente, vemos aqui a profunda correlação entre luz e vigilância. Afinal, como coloca
Foucault, “a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia.”
(FOUCAULT, 1984, p. 210).
Retornando ao roubo de Vitória, notemos que é precedido por uma das primeiras
manifestações de revolta de Luís para com sua vida. Quer dizer, insatisfeito sempre estivera, mas
até então não surgira um claro desafio à sua sujeição ao sistema. “`Pensam que vou ficar assim
curvado, nesta posição que adquiri na carteira suja de mestre Antônio Justino, no banco do
jardim, no tamborete da revisão, na mesa da redação? Pensam?” (Ibid., p. 146). É como se o
personagem recuperasse aos poucos a força e a valentia de seus antepassados, como se todos os
anos sentado escrevendo não mais lhe impedissem sequer os feitos dos antigos cangaceiros, entre
os quais o roubo e o assassinato. “Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu
era um homem. Ali era um homem.” (Ibid., p. 236).
Na cena do assassinato, com efeito, tal sensação de poder dificilmente se poderia
estabelecer se não fossem dois elementos fundamentais: a longa distância separando Luís e
120
Julião das outras pessoas e da cidade – a cena se dá numa área afastada do perímetro urbano; e a
densa escuridão provocada pelo nevoeiro noturno – a ação se passa por volta das duas da
madrugada. Tais condições são constantemente evocadas, e assinalam o clima da situação: “A
escuridão esbranquiçada feita pela neblina aumentava, escuridão pegajosa em que os postes
espaçados abriam clareiras de luz escassa.”
75
(Ibid., p. 230). Nesse contexto, Julião andava
sossegado como sempre, sem atentar para o perigo contudo existente: “uma hora, meia hora
depois, passaria pelo guarda adormecido junto a um poste, seria forte, mas ali, debaixo das
árvores, era um ser mesquinho e abandonado.” (Ibid., p. 233). Percebemos assim um choque
fundamental. De um lado a segurança de Julião, ao acreditar que sempre estará protegido pelas
autoridades e que, portanto, poderá andar pelas ruas mais desertas como se fossem elas
amplamente iluminadas. De outro lado, a noite de Luís, espaço vazio e propenso a atos violentos,
que assinala a formação de toda uma atmosfera própria, quase a entrada num outro mundo,
regido por leis que fogem às que regulam a vida nas cidades e, imersas nas micronarrativas a
presentificarem as histórias dos cangaceiros ouvidas no passado, aproximam-se do imaginário
levantado por Luís acerca de sua infância no campo. Pois da seguinte maneira é descrita quase
didaticamente a metamorfose:
Se me achasse diante de Julião Tavares, à luz do dia, talvez o ódio não fosse tão grande. Sentir-
me-ia miúdo e perturbado, os músculos se relaxariam, a coluna vertebral se inclinaria para a
frente, ocupar-me-ia em meter nas calças a camisa entufada na barriga. Afastar-me-ia
precipitadamente, como um bicho inferior. Agora tudo mudava. Julião Tavares era uma sombra,
sem olhos, sem boca, sem roupa, sombra que se dissipava na poeira da água. A minha raiva
crescia, raiva de cangaceiro emboscado. Por que esta comparação? Será que os cangaceiros
experimentam a cólera que eu experimentava? (Ibid., p. 234).
A citação acima traz, de fato, dados bastante significativos: a diferença entre o Luís à luz
do dia na cidade – e aí todos os seus modos acanhados e suas cismas se mostram adequados – e o
Luís numa noite de neblina, à hora em que todos dormem; a mudança na maneira de Luís de
encarar Julião, passando este último de ameaça a ameaçado; a herança do sertão e da
convivência com cangaceiros na infância vindo agora à tona e conferindo a Luís uma identidade
e uma coragem até então insuspeitas. Porque Luís nesse momento deixa de ser o funcionário
75
É interessante notar que Antonio Candido já atentara para essa utilização de elementos tais como “escuridão,
névoa, sons percebidos através de um anteparo, círculo estreito em volta das lâmpadas” como elementos
121
curvado sobre seus papéis para incorporar um sertanejo prestes a todos os feitos heróicos
comumente negados aos cidadãos comuns. Luís toma a pele, assim, não só dos seus
antepassados, e não à toa o episódio da morte de Julião está absolutamente impregnando de
alusões às histórias de cangaceiros de seus primeiros anos – que aliás já vinham gradativamente
aumentando sua presença no enredo –, mas muitos dos atos de Luís vêm acompanhados de
correspondências com feitos das personagens lendárias da infância. O movimento que antecede o
instante do assassinato, por exemplo, é descrito da seguinte maneira: “Retirei a corda do bolso e
em alguns saltos, silenciosos como os das onças de José Baía, estava ao pé de Julião Tavares.”
(Ibid., p. 237). José Baía, naturalmente, é um desses personagens.
Percebemos então que este segundo nível, fazendo reviverem as memórias de infância e
trazendo à tona o ódio e a valentia dos antigos cangaceiros, este nível não apenas perpassa toda a
obra, mas possui um peso fundamental à mudança de atitude por que passa Luís. Como sustenta
Lúcia Helena Carvalho (1983), “laçando Julião Tavares – a besta –, Luís da Silva se eleva,
perante seus próprios olhos, à condição grandiosa de homem, reiscrevendo-se, por outro lado, na
galeria dos mitos sertanejos.” (CARVALHO, 1983, p. 38). É, por exemplo, o fim da presença do
censor que se dá nas noites insones, mencionado por Radmila Zygouris (1995) em seu “Ideias
lunáticas”. É por essa mudança de atitude e devido a ela, afinal, que o protagonista reunirá forças
suficientes para levar a cabo o assassinato. E é também a partir dessa segunda camada que se
fundamentarão o episódio do crime e das outras contravenções, com tudo o que neles haja de
suspense e de intrusão do desconhecido.
Com o aguçamento do conflito interno de Luís vão então se concretizando, assim, de
forma pontuada mas com ousadia cada vez maior, as ações que fazem Luís recuperar na cidade o
comportamento e a mentalidade de seus antepassados. E uma significativa diferença entre Paulo
Honório e Luís da Silva se faz então sentir: se o primeiro passa de uma postura ativa à situação
de um “dínamo emperrado”
76
a girar sobre seu próprio eixo, o segundo, ao contrário, parece
pouco a pouco pôr seu próprio dínamo em funcionamento. É o que atestam, a princípio, a
sedução de Marina e o roubo de Vitória – ambas as ações passadas no quintal, terreno híbrido e
indefinido, como sabemos, e à noite, quando a vigilância dos vizinhos já não existe.
“dissolventes das formas nítidas” (CANDIDO, 2006, p. 119), que acentuariam dessa forma as deformações
expressionistas da narrativa.
122
Posteriormente, após a introdução de um elemento altamente significativo, a corda
77
que
enforcará Julião, tem lugar o assassinato deste, nas bordas do perímetro urbano e nas bordas do
período diurno – isto é, ultrapassadas as fronteiras do espaço e do tempo, quando a vigilância
dos policiais e dos cidadãos já não chega. São estas as passagens nas quais o movimento de Luís
é, como já foi dito, o de mesclar as zonas rural e a noturna para transcender sua inexpressiva
situação de funcionário público explorado e forçadamente resignado. Cada uma delas o conduz
não apenas à insônia, mas ao transporte dos aspectos mais violentos de seu passado do terreno da
memória para o da ação, ou do mundo interior para o exterior.
Certamente, a realização de tais ações durante a madrugada se aproxima de uma ideia de
insônia enquanto fuga à realidade diurna e/ou artificialmente iluminada, mas pode também
parecer pouco afinada com as situações que aqui vimos analisando, nas quais as cenas de insônia
assinalam antes um estado de reflexão e imobilidade do que de ações cegas e desmesuradas.
Com efeito, as noites em que ocorrem tais contravenções situam-se numa esfera anterior à
problemática aqui proposta, num tipo de relação com as horas noturnas próximo à infância rural
de Luís e ao que vimos a respeito das noites medievais no Capítulo 1. Justamente por sua feição
arcaizante, tal aproveitamento do período noturno se torna particularmente interessante quando
situado numa obra que, como Angústia, trabalha tão detidamente os impactos da modernização
sofridos pela sociedade dos anos 30. E, a despeito das objeções por mim apontadas às ideias de
Fernando Gil no item 2.3 deste capítulo, acredito que sua tese mais importante acerca do
romance em questão mostra-se aqui extremamente válida e pertinente. Diz Gil que
Minha hipótese é a de que o que está em jogo em Angústia de modo particular, e no romance da
urbanização de modo geral, é o conflito de dois tempos históricos distintos que correspondem a
espaços e valores sociais e culturais também diversos e que, até certo ponto, formalizam-se no
nível estético como irreconciliáveis para a vida do nosso protagonista. De um lado, tem-se o
tempo presente da cidade, da vida urbana; de outro, o passado do campo, da vida rural. A meu
ver, são as contradições e os conflitos dessa diferença histórico-temporal que dão feição
particular à narrativa de Angústia. Neste sentido, a linguagem deste romance se constrói como
uma espécie de fratura histórica que fende de modo profundo o sujeito-narrador e o seu mundo.
(GIL, 1999, p. 73).
76
João Luiz Lafetá (1980) tece interessantes considerações sobre esta imagem no ensaio “O mundo à revelia”.
77
Segundo Candido, a corda integra uma tríade de símbolos fálicos, composta também das “cobras da fazenda do
avô” e dos “canos de água de sua casa” (CANDIDO, 2006, p. 52). Já Lúcia Helena Carvalho (1983) classifica a
corda como um dos semas pertinentes ao significante morte.
123
Prosseguindo no raciocínio de Gil, proponho que essa fratura histórica se articula no
romance, entre outros aspectos, através dessa dinâmica peculiar entre claro e escuro, entre locais
iluminados artificialmente e locais envoltos na escuridão, ou nas chuvas e névoas que apagam os
postes de iluminação e consequentemente a vigilância. A cena do assassinato, em especial, se
forma a partir do conflito existente entre as diferentes concepções de noite dos personagens
envolvidos: se Julião segue acreditando-se protegido pela noite urbana e movida a eletricidade,
Luís sabe que já não é esta a situação real na periferia erma e escura em que se encontravam
ambos. É justamente este contraste entre a noite urbana e a rural que, evidenciando a fratura
histórica descrita por Gil, permitirá a Luís alçar-se à categoria de seus antepassados sertanejos e
realizar o crime.
4.4. Conclusão do capítulo
Chegando ao fim deste quarto capítulo, percebemos o quanto a problemática da insônia e
da noite perpassa a obra de Graciliano Ramos. Vimos como a insônia de Paulo Honório se fez
essencial à estrutura da narrativa, na qual o próprio personagem, sozinho e sem distrações
externas, reflete sobre sua vida e compõe sua obra. Vimos, em Angústia, como a insônia de Luís
constitui um recurso de peso para que um clima angustiado possa se expandir pela narrativa, e
como também o estado insone propicia algumas importantes inovações formais. Vimos ainda
como, nas duas obras, o jogo entre a noite pré-eletricidade, a noite iluminada a velas e lampiões
e a noite urbana e/ou pós energia elétrica frequentemente transparece na ambientação dos
episódios e em seu próprio conteúdo. Passando assim ao último capítulo deste trabalho, dois
contos do volume Insônia serão ainda abordados, e terá lugar uma conclusão acerca da função da
insônia no próprio estilo de Graciliano.
124
Capítulo 5
Insônia e conclusão:
“Sim ou não?”
Chegando à etapa final deste estudo, já terão certamente se tornado mais claras as
maneiras pelas quais Graciliano Ramos desenvolve cenas de insônia ao longo de sua obra. Como
espero ter demonstrado, mais do que um simples tema recorrente, as noites em claro dos
personagens possuem um papel significativo na própria construção das narrativas aqui
analisadas.
Assim sendo, a presente conclusão possui dois objetivos principais. O primeiro é o de,
partindo de uma análise dos contos “Insônia” e “O relógio do hospital”, e considerando as ideias
já colocadas acerca dos romances, formular certas conclusões sobre a insônia especificamente no
estilo de Graciliano. Já o segundo objetivo é o de, levando em conta a obra de Graciliano e os
argumentos centrais de todo o trabalho, tecer algumas considerações finais.
5.1. Estranho lirismo
Como já deve ter se tornado evidente, a insônia é um dos traços mais constantes dos
protagonistas de Graciliano: Paulo Honório, Luís da Silva e até mesmo o protagonista de Caetés,
João Valério, todos enfrentam noites em claro.
Em S. Bernardo, como vimos, a insônia de Paulo Honório constitui um sinal fundamental
da progressiva problematização do mundo e de si mesmo empreendida pelo personagem.
Atormentado constantemente pelo pio das corujas – essas aves noturnas e sombrias que, ao
mesmo tempo, funcionam como índices de reflexão e maturidade –, tem como única opção a de
debruçar-se sobre suas próprias questões e girar em torno delas, à maneira de um dínamo
emperrado. Não lhe resta alternativa, portanto, senão apresentar um comportamento contrário ao
125
que sempre lhe fora característico: em vez de compreender as engrenagens dos outros para
manipulá-los, só lhe cabe fazer agir seu “descaroçador” em si mesmo.
78
Tal processo é levado a cabo necessariamente à noite, quando o sono dos habituais
interlocutores e a ausência das demandas do cotidiano o deixam a sós com seus próprios
pensamentos. São estas afinal as horas do mais completo isolamento de Paulo Honório, as horas
nas quais atinge um nível máximo seu ressentimento por não poder mais restabelecer os contatos
humanos baseados em sua antiga autoridade. São também esses, não à toa, os momentos em que
a criação literária pode se desenvolver, dessa vez com um caráter de confissão e agonia que
muito a difere do livro composto por “divisão de trabalho”, proposto nos primeiros capítulos de
S. Bernardo.
Também em Angústia, como vimos, a insônia de Luís da Silva se mostra um fator
relevante. Antes de mais nada, porque suas noites em claro, marcadas por uma predominância da
audição, da escuridão e da reflexão, contrapõem-se aos momentos em que Luís, como mero
funcionário público, movimenta-se num espaço coletivo, sob a claridade solar ou artificial,
entregue a ações e distrações pouco significativas, mas que o afastam de seus próprios conflitos.
Vimos que esta configuração traz consigo alguns aspectos a serem observados. Por um
viés, são as noites insones as responsáveis por muitos dos trechos mais experimentais do livro,
aqueles que mais se aproximam de um monólogo interior propriamente dito, e aqueles em que se
faz mais perceptível o “caráter alucinatório” a que aludira Cristóvão. Essa espécie de
experimentalismo narrativo, aliada ao final aberto proporcionado pelo delírio de Luís, são
fundamentais à roupagem altamente moderna da obra.
Ademais, tais cenas vão instalando um clima propriamente noturno e angustiado no
romance, que culminará no assassinato de Julião Tavares. Esse ato, bem como as outras
contravenções de Luís, decorre de sua entrada numa concepção de noite pré-eletricidade, isto é,
numa noite cheia de ameaças e tomada por forças e seres desconhecidos; em outras palavras,
uma noite para a qual não foi transposta a claridade do dia, e na qual, portanto, não são mais
válidas as regras diurnas. Percebemos, assim, de que maneira o estado desperto de Luís nas horas
78
Nas palavras de Abel Baptista (2005), “na passagem da decisão do livro ao momento da escrita há uma perda –
perda da determinação, do domínio, do programa. No fundo, perda do livro por força da emergência da escrita.”
(BAPTISTA, 2005, p. 132).
126
em que os outros dormem se faz essencial a alguns dos mais marcantes eventos que compõem a
trama.
5.1.1. “O relógio do hospital”
Após os estudos dos romances S. Bernardo e Angústia aqui empreendidos, é de se
perguntar o que então teria levado à escolha da obra de Graciliano Ramos para matéria de toda a
segunda parte desta dissertação. Cabe indagar o que haveria de destacável ou de singular no
modo como são compostas as cenas de insônia em seus romances e, mais do que isso, como tais
cenas se articulam com o estilo de Graciliano. Assim, talvez ficasse mais visível o motivo pelo
qual o caso de Graciliano é tão interessante para as ideias centrais aqui desenvolvidas. Para
abordar melhor a questão, detenhamo-nos antes nos contos “Insônia” e “O relógio do hospital”.
Iniciemos pelo segundo conto. E iniciemos também por um comentário bastante
esclarecedor feito por Graciliano, em entrevista a Homero de Senna (1978):
Não suportando os interventores militares que por lá [Maceió] andaram, larguei o cargo e voltei
para Palmeira dos Índios, onde, numa sacristia, fiz São Bernardo. Estava no capítulo XIX,
capítulo que escrevi já com febre, quando adoeci gravemente com uma psoíte e tive de ir para o
hospital. Do hospital ficaram-me impressões que tentei fixar em dois contos – “Paulo” e “O
relógio do hospital” – e no último capítulo de Angústia. (RAMOS apud SENNA, 1978, p. 52).
Nessa curiosa passagem, interligam-se o capítulo XIX de S. Bernardo – ao qual
tanta atenção foi dada no capítulo dedicado a S. Bernardo –, o trecho final de Angústia – também
abordado com vagar – e o conto “O relógio do hospital”, do qual por ora nos ocupamos. Todos
marcados pela mesma situação de febre e semi-delírio, e todos apresentando o mesmo estado de
espera atormentada tão próprio às cenas de insônia presentes na obra de Graciliano. Pois, tal
como os capítulos dos dois romances, o conto em questão trabalha a audição incômoda e
exacerbada, a impossibilidade de dormir a despeito do cansaço, a escuridão cheia de vultos, as
batidas do relógio: “O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível. Parece
que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.” (RAMOS, 1953, p. 41).
127
Dessa forma, no delírio pós-operatório que ocupa toda a história, passada em um
quarto coletivo de hospital, o narrador debate-se entre a dificuldade de contato com o mundo
exterior e uma badalada do relógio a cortar seus pensamentos, para usar os próprios termos do
narrador. “Parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, me entrou na carne
como lâmina de navalha.” (Ibid., p. 43). Em meio a toda a situação “há uma noite profunda, um
céu pesado que chega até a beira da minha cama.” (Ibid., p. 41).
Pensemos mais detidamente os elementos dados. No centro do conto está o protagonista,
imobilizado num leito hospitalar e ainda sob efeito da anestesia. Não lhe é permitido buscar
ativamente qualquer contato com o exterior. Ao contrário, sua única opção é permanecer atento à
movimentação dos médicos e das enfermeiras, ao estado dos outros doentes. O narrador vê-se
obrigado, portanto, a uma atitude passiva diante do mundo. Em tais circunstâncias, lhe é
permitido apenas pensar, ouvir, delirar, tentar – por vezes em vão – tirar conclusões acerca do
que se passa a seu redor.
De um lado, há o mundo acessível ora pela visão ora pela audição. Durante o tempo
passado no leito – o qual pode ser tanto um dia quanto dois meses, pelas contas incertas do
narrador –, aparecem-lhe “o trabalho dos médicos” (Ibid., p. 38), as árvores e os telhados pela
janela, e também “gargalhadas na rua, barulho de automóvel, o pregão de um vendedor
ambulante.” (Ibid., p. 44). É este o contato possível, às vezes descrito em termos bastante
concretos, às vezes deformado por instantes de alucinação do protagonista. De qualquer forma, é
o que há de um universo minimamente lúcido e ordenado.
De outro lado, esse contato está sempre em vias de ceder ao delírio do narrador. Quando
isso ocorre, os médicos e doentes desaparecem, assim como os ruídos da rua e dos corredores. É
como se toda a realidade fosse substituída por um vazio negro no qual só há lugar estabelecido
para um elemento: o relógio e suas pancadas. Pois assim o narrador descreve a transição: “Noite.
A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. (...) Durmo uns minutos,
acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados – rolar de automóveis, um
canto de bêbedo, lamentações dos outros doentes – avultam as pancadas fanhosas do relógio.”
(Ibid., p. 39). A presença das baladas vai se tornando cada vez mais dominante, até atormentar
por completo a noite do personagem. E não deixa de ser ironicamente curioso que essa tão
cerrada marcação do tempo promovida pelas badaladas do relógio seja um dos principais fatores
128
a enfraquecerem as noções do narrador de tempo e espaço. Pois aqui bem se poderia considerar o
que disse Godofredo de Oliveira Neto a respeito de S. Bernardo: “Os tempos perdem a sua
clareza, a ordem cronológica é radicalmente perturbada e é impossível reconstituir o fio
cronológico dos acontecimentos.” (OLIVEIRA NETO, 1990, p. 47).
Também instigante é notar como, para descrever essa situação, Graciliano com
frequência se vale de termos notavelmente próximos a alguns dos mais constantes elementos de
Angústia: “No silêncio as notas compridas enrolam-se como cobras, estiram-se pela casa,
invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem a cama onde me agito apavorado. Que
fim levaram as pessoas que me cercavam?” (RAMOS, 1953, p. 41). Nessa passagem, evidencia-
se não apenas o embrião do motivo da cobra/corda, fundamental em Angústia, mas fica também
visível a maneira pela qual as notas do relógio parecem conduzir o narrador a uma espécie de
realidade paralela, na qual já não há espaço para aqueles que o cercavam. Tal realidade,
nitidamente construída sobre o estado de delírio pós-operatório, instaura-se por excelência à
noite. Não por acaso, a despeito da sonolência provocada por seu frágil estado de saúde, o
narrador encontra dificuldades para dormir. E o trecho abaixo transcrito é emblemático:
Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero
em vão o fonfonar de um automóvel, a cantiga de um bêbedo, as vozes de comando, o rumor dos
ferros na autoclave. Tenho a impressão de que o pêndulo caduco oscila dentro de mim, ronceiro e
desaprumado. (Ibid., p. 46).
Nessa passagem, é possível destacar tanto semelhanças com as noites insones de Paulo
Honório quanto com as de Luís da Silva. A internalização das pancadas do pêndulo, a lenta
transformação dos ruídos do exterior em partes do delírio, e em meio a isso tudo a
impossibilidade de dormir e consequentemente de esquecer, ora, tanto o capítulo XIX de
S.Bernardo quanto o trecho final de Angústia estão aí claramente esboçados. Pois “O relógio do
hospital” é precisamente isto: algo como um ponto de contato entre ambos. Escrito pouco depois
da redação de Angústia, como nota Graciliano em Memórias de cárcere
79
, este conto remete,
entretanto, a uma experiência da qual participam a escritura dos dois romances. Ocupa, com isso,
79
No capítulo IV da Parte IV de Memórias do cárcere, Graciliano (2008) discorre sobre como escreveu “O relógio
do hospital” e “Paulo” na cadeia, poucos meses depois de, devido à prisão, ter se visto forçado a dar Angústia por
concluído.
129
uma posição privilegiada para pensar possíveis interseções entre dois romances que tanto
diferem entre si, em suas propostas e nas perspectivas dos protagonistas.
Contudo, se tais pontos de contato podem ser inúmeros e fortemente variados, o que mais
interessa aos objetivos deste trabalho é identificar elementos característicos às cenas de insônia
na obra de Graciliano, algo como elementos-base. Vêm à tona então, como a breve análise do
conto já deve ter tornado claro, dados já amplamente presentes ao longo de todo este trabalho.
Entre eles, a perda do contato com os outros e com o mundo diurno e cotidiano, o consequente
encerramento nessa espécie de camada paralela na narrativa, a predominância atormentadora de
estímulos auditivos, a quase ausência de estímulos visuais, a escuridão opressora, o foco nos
pensamentos do narrador-personagem, suas eventuais alucinações, sua propensão a transpor os
limites, regras e valores da sociedade em que vive. Todos esses fatores, evidenciados no conto
“O relógio do hospital”, certamente já se terão tornado um tanto quanto familiares ao longo da
leitura destas páginas. Estão todos presentes em S. Bernardo, em Angústia, em Caetés – ainda
que em menor medida neste último –, n’”O relógio do hospital”, e como veremos, sobretudo em
“Insônia”. Todos apresentam os “seres de exceção”, à maneira do que vimos a respeito de Kafka
e Des Esseintes no Capítulo 1 deste trabalho e, juntos, formam o que poderíamos considerar uma
espécie de vocabulário básico da insônia na obra de Graciliano. Interessante seria pensar em que
medida poderiam funcionar como índices, através dos quais Graciliano rapidamente poderia
acessar esse estado de auto-reflexão e problematização de mundo frequentemente desenvolvido
nas noites em claro. Interessante seria pensar também em que medida tal “acesso rápido”
corroboraria alguns dos mais marcantes traços estilísticos do autor. Antes de traçar conclusões
sobre o assunto, contudo, passemos ao conto “Insônia”.
5.1.2. “Insônia”
Como o próprio título do texto já deixa explícito, “Insônia” não poderia estar ausente em
um trabalho como este. Neste conto de abertura do volume Insônia – reunião de contos
publicada em 1947 –, muitos dos principais recursos utilizados por Graciliano nos romances para
130
expressar o desespero de seus personagens são retomados e exponenciados. Nele, como já
evidencia o título da obra, a insônia ocupa lugar central.
A história abarca uma única ação: no meio da noite, o narrador é subitamente despertado
por uma pergunta estarrecedora: “Sim ou não?” O peculiar é o modo com a pergunta se coloca:
“Para bem dizer não era pergunta, voz interior ou fantasmagoria de sonho: era uma espécie de
mão poderosa que me agarrava os cabelos e me levantava do colchão, brutalmente, me sentava
na cama, arrepiado e aturdido.” (RAMOS, 1953, p. 9). Atentando para a hipótese de ser aquilo
uma alucinação, o protagonista é então atingido por um jato de luz intermitente, descrito por ele
como funesto e diferente de todos os outros, que o imobiliza e o retira por completo da
tranquilidade do sono. Acreditando ouvir as pancadas de um relógio que o trouxesse à realidade,
mas duvidando constantemente de que sejam verdadeiras, o narrador não consegue se prender a
nada que o conduza à sua existência ordinária: “Um, dois, um, dois. Tudo isto é ilusão. Ouvi
uma pancada dentro da noite, mas não sei se o relógio está longe ou perto: o tique-taque dele é
muito próximo e muito distante.” (Ibid., p. 11). Da mesma forma, o corpo se levanta contra a sua
vontade e o impede de dormir: “o desgraçado corpo está erguido e não tolera a posição
horizontal. Poderei dormir sentado?” (Ibid., p. 9).
O narrador permanece, dessa maneira, preso neste nível paralelo, não sendo possível
traçar uma linha a separá-lo do que não seja o seu delírio. As pancadas do relógio podem ser
delírio, como já ocorrera em S. Bernardo, ou podem aos poucos se transformar em delírio, como
parece ocorrer n’”O relógio do hospital”. “Certamente aquilo foi uma alucinação, esforço-me por
acreditar que uma alucinação me agarrou os cabelos e me conservou deste modo, inteiriçado, os
olhos muito abertos, cheio de pavores.” (Ibid., p. 10). A luz intermitente, no mesmo sentido,
pode ser alucinação ou deformação de uma luz já existente. Pois em vão o personagem tenta
manter alguma ordem ou lucidez no mundo à sua volta: a luz permanece diante de si e, com ela,
a ilusão.
Por fim, a luz se extingue: “Houve agora uma pausa nesta agonia, todos os rumores se
dissiparam, a vidraça escureceu, o soalho fugiu-me dos pés – e senti-me cair devagar na treva
absoluta.” (Ibid., p. p. 12). O que não significa de forma alguma o fim dos tormentos do
narrador. Afinal, segue ecoando sem cessar a pergunta: “Sim ou não?” O personagem nada mais
é que “um feixe de ossos, [que,] escorado à mesa, fuma.” (Ibid., p. 13) e, enquanto isso, se
131
lembra com rancor dos que estão, no momento, tranquilamente dormindo, dos que não têm de
lidar com a fatídica e ameaçadora voz: “Como é possível uma voz apertar o pescoço de
alguém?” (Ibid., p. 14).
Até o fim do conto, permanece então o personagem sentado à mesa, remoendo o desejo
de “conversar, voltar a ser um homem, sustentar uma opinião qualquer.” (Ibid., p. 16), ou mesmo
de percorrer “as ruas como um bicho doméstico, um cidadão comum, arrastado para aqui, para
acolá, dizendo frases convenientes.” (Ibid., p. 15). Impossível, porém, diante da pergunta
chacoalhada até nos ossos e da brasa do cigarro, tal qual “um olho zombeteiro. Vai e vem, lenta,
vai e vem, parece que me está perguntando alguma coisa.” (Idem).
Como já deve ter se tornado perceptível, há algumas fortes semelhanças entre certas
passagens e elementos característicos de Angústia. Entre os mais óbvios, está a presença de
brasas ou constantes focos de luz no escuro. À maneira de olhos zombeteiros, aparecem no
romance sob a forma da brasa do cigarro, dos olhos do gato ou dos postes embaçados pela
neblina. Como já fora dito no capítulo 4, uma de suas mais básicas funções é fazer aflorar o
sentimento de culpa do personagem, seja Luís da Silva, seja o protagonista de “Insônia”. É como
se esta culpa, para ser visível e efetiva, precisasse ser sempre observada por terceiros. É como se
houvesse uma plateia a julgar os personagens, tal qual um juiz invisível. Ou, voltando ao sistema
panóptico de Foucault, “um olhar que vigia e que cada um, sentindo-o pesar sobre si, acabará por
interiorizar, a ponto de observar a si mesmo; sendo assim, cada um exercerá esta vigilância sobre
e contra si mesmo.” (FOUCAULT, 1984, p. 218).
A audição, da mesma forma, ganha peso considerável:
O silêncio é um burburinho confuso, um sopro monótono. Parece que um grande vento se
derrama gemendo sobre as árvores dos quintais vizinhos. Um zumbido longo de abelhas. E as
abelhas partem os vidros da janela escura, o vento vem lamber-me os ossos, enrolar-se no meu
pescoço como uma gravata. (RAMOS, 1953, p. 15).
Num trecho como este, o vento e os sons dos animais – presentes tanto em S. Bernardo
quanto em Angústia – unem-se a outra imagem muito característica desta última obra, a da
gravata que se enrola ao pescoço do cidadão como uma corda prestes a enforcá-lo. “Tenho um
nó na garganta, unhas me ferem, uma horrível gravata me estrangula.” (Ibid., p. 13).
132
No romance, o motivo da gravata remete ou à condenação do homem a ter sua força de
trabalho explorada pelo mundo capitalista, ou à condenação dos criminosos num sertão arcaico.
No conto, entretanto, equivale a uma condenação pura e simples, sem qualquer causa ou punição
à vista, exceto o próprio sentimento de culpa do personagem. Essa presença massiva da culpa se
faz ainda mais evidente quando, com a luz apagada e o quarto semelhante a uma sepultura, a
pergunta central do conto, já completamente internalizada pelo narrador, continua a atormentá-lo
ao menor movimento externo: “O frio sacode-me os ossos. E os ossos chocalham a pergunta
invariável: – Sim ou não? Sim ou não? Sim ou não?” (Ibid., p. 16).
Notemos, portanto, que todos os ínfimos detalhes, sejam os ruídos do vento e dos
animais, sejam as pancadas do relógio, seja a luz intermitente ou a brasa do cigarro, seja o frio
ou até mesmo os vermes subterrâneos, tudo concorre para condenar o narrador, e sua punição é a
eterna dúvida: “Sim ou não?” Naturalmente, estar entregue à questão é estar em permanente
vigília. Afinal, como mostra praticamente toda a obra de Graciliano, a dúvida é por excelência o
motor da insônia. O que só deixa o narrador mais apartado das outras pessoas – e neste
momento, tal qual um Paulo Honório que se revoltasse contra os outros a dormirem tranquilos
enquanto ele se via só e desolado, o narrador de “Insônia” esboça algo como uma reivindicação
de seus direitos: “Há uma terrível injustiça. Por que dormem os outros homens e eu fico arriado
sobre uma tábua, encolhido, as falanges descarnadas contornando órbitas vazias?” (Ibid., p. 14).
Como já fora exposto ao fim da análise d’”O relógio do hospital”, tanto este último conto
quanto “Insônia” trazem muitos dos principais traços utilizados por Graciliano para compor suas
cenas de insônia, já abordados ao longo deste trabalho. O conto em que agora nos detemos, em
especial, forma algo como um pequeno inventário de tais recursos. O curioso em “Insônia”,
entretanto, é que não há exatamente a formação da camada paralela já aludida: o estado de
tormento e solidão é, com efeito, a única camada. O conto se inicia com ela, quando o narrador é
acordado no meio da noite por um raio intermitente no centro de seu quarto, e prossegue até o
fim, quando o vemos agora sentado à mesa com um cigarro nas mãos. É como se Graciliano
estivesse, neste conto, concentrando ou investigando todo este conjunto de recursos tão
frequentes nos romances. É como se empreendesse um estudo das maneiras pelas quais seria
possível criar o clima de tensão, revelar os sentimentos de culpa e dúvida – através, por exemplo,
133
da imagem do “olho zombeteiro” –, bem como explorar a situação da escuridão completa e
repleta de ruídos incômodos, dentre os quais se destacam as badaladas do relógio.
5.1.3. O estilo “Veni-vidi-vici”
Assim, o que encontramos neste conto, bem como n’”O relógio do hospital”, é uma forte
concentração de todos esses índices, que permitiriam um acesso rápido a um estado altamente
propenso à reflexão, à dúvida, à problematização. É o que seria provavelmente observável se
destacássemos dos romances os trechos que mais se assemelham a estes dois contos.
Pensemos agora os possíveis pontos de interseção entre tais considerações e o que se
entende habitualmente por um “estilo graciliano”. Em seu ensaio “Visão de Graciliano Ramos”,
Otto Maria Carpeaux (1978) sustenta a respeito do autor:
É muito meticuloso. Quer eliminar tudo o que não é essencial: as descrições pitorescas, o lugar-
comum das frases feitas, a eloquência tendenciosa. Seria capaz ainda de eliminar páginas inteiras,
eliminar os seus romances inteiros, eliminar o próprio mundo. Para guardar apenas o que é
essencial, isto é, conforme o conceito de Benedetto Croce, o “lírico”. O lirismo de Graciliano
Ramos, porém, é bem estranho. (CARPEAUX, 1978, p. 25).
Com efeito, essa ânsia de despir o texto de tudo o que não seja essencial é comumente
apontada como um dos mais característicos aspectos da prosa de Graciliano. Sua própria maneira
de reelaborar seus romances está calcada no corte: após uma primeira versão do romance pronta,
vai retirando trechos e mais trechos, até que só reste o essencial.
80
É essa a aversão à “gordura
narrativa”, típica do estilo beletrístico tão frequente na época, manifestada em artigos de Linhas
tortas tais como “Porão” e “O fator econômico no romance brasileiro”. É também essa secura a
matéria de influentes estudos sobre o autor, como o de Rolando Morel Pinto (1962) em
Graciliano Ramos: ator e autor, no qual longos capítulos são dedicados a destrinchar a “magreza
da frase”, com orações simples, períodos coordenados assindéticos, frases nominais e diálogos
80
A título de exemplo, segundo carta de Graciliano a Antonio Candido, transcrita na introdução de Ficção e
confissão, o texto final de Angústia teria sido muito prejudicado pois, preso logo após a redação de uma versão
134
reduzidos. Em suma, um estilo “Veni-vidi-vici”, termo cunhado, segundo Pinto, por Helmut
Hatzfeld, para o estilo de notas e diário.
Lembremos ainda uma técnica muito própria ao autor: a introdução e repetição de
pequenas expressões ou elementos que instauram uma determinada atmosfera ou visão de
mundo. Agem, portanto, como chaves que abrissem determinadas portas na narrativa. Seria, por
exemplo, a figura do rato comparada à personagem, trazendo à tona sua natureza animalesca e,
com isso, diminuindo-a. Ou então o vocábulo “perfeitamente”, empregado obsessivamente por
Graciliano até mesmo em sua obra memorialística, para assinalar que, em geral contra a sua
vontade, a personagem está se rendendo às ordens de terceiros e se conformando ao seu reles
lugar na sociedade. Ou ainda a retomada de falas de outros personagens que, remoídas pelo
protagonista, são repetidas com direito a parágrafos e travessões, às vezes de forma idêntica, às
vezes com mínimas variações.
81
Sua constante reafirmação lhes confere uma força especial,
tornando-as pequenos refrões a dirigirem as reflexões dos protagonistas.
Trata-se de um recurso especialmente rentável numa obra que, como a de Graciliano,
prima pela economia de meios e por uma linguagem seca e direta. É como se o autor, por meio
de uma rápida ponte, conseguisse atingir de imediato um tom ou situação específicos. Assim,
tais expressões ou elementos, consistindo de uma ou duas palavras exatas ou de toda uma técnica
de repetição – como o prova a reiteração de falas marcantes –, não sintetizam ou exprimem
situações, mas antes introduzem ou incrementam um certo clima, que será então desenvolvido.
São, antes de qualquer coisa, vias de acesso.
Minha hipótese é, em primeiro lugar, a de que a insônia representaria mais uma dessas
chaves: quando o personagem não consegue dormir, é sinal de que o leitor está prestes a entrar
em contato com seus problemas mais íntimos. Seria assim uma notável economia de recursos
para introduzir algo habitualmente não-econômico como a expressão da subjetividade ou o que
Carpeaux denomina um lirismo, um “desejo de dissolver em canto o mundo das coisas”
(CARPEAUX, 1978, p. 25) que faltaria ao romancista. Um possível lirismo de Graciliano,
portanto, pautar-se-ia pelo mínimo necessário: os elementos acima descritos, já largamente
associados a uma retirada do mundo e a uma concentração nos próprios pensamento e
preliminar, ter-lhe-ia sido impossível “recompor tudo, suprimir excrescências, cortar pelo menos a quarta parte da
narrativa.” (RAMOS apud CANDIDO, 2006, p. 11).
135
sentimentos, permitiriam a criação de um espaço altamente subjetivo com uma relativa economia
de recursos. É assim que o pio das corujas indica a autoproblematização de Paulo Honório, que
se realizará plenamente nas noites em que, insone, escrever seu relato. É assim também que a
chuva, a neblina e outros traços que indiquem a predominância do auditivo sobre o visual
progressivamente desligarão Luís de sua pacata vida de funcionário público e o inserirão num tal
estado de angústia que o levará, na calada da noite e sem vigilância externa, a agir à revelia da
lei. Verifica-se uma presença ainda mais nítida de tais recursos nos contos aqui abordados,
sobretudo em “Insônia”, em que ocupam a totalidade do texto.
A segunda observação a ser colocada é a de que esses recursos seriam, contudo, uma
chave mais complexa do que as repetições de vocábulos e expressões acima expostas, uma vez
que, não apenas introduzindo uma certa atmosfera na narrativa, configurariam ainda um fator
central ao próprio desenvolvimento do enredo. Afinal, não há dúvida de que determinadas
situações facilitam o caminho a determinados eventos – como a noite facilita a reflexão. A
questão é que Graciliano, a meu ver, desenvolveu ampla e progressivamente esse fator, dando-
lhe papel cada vez mais relevante no desenho geral de suas obras. Trata-se, portanto, de um
recurso muito afinado com seu próprio estilo, reafirmando o que Rolando Morel Pinto
classificou como o modo “Veni-vidi-vici” de narrar típico do autor.
Duas considerações finais se fazem então necessárias. A primeira é a de que, no interior
da trama, a insônia é efeito, e não causa, das aflições do personagem. É a instabilidade
emocional trazida por Marina e por Madalena que levam Luís da Silva e Paulo Honório ao
desespero e, conseqüentemente, à impossibilidade de dormir. A insônia constitui dessa maneira,
dentro da trama, um mero resultado de acontecimentos prévios.
No entanto, no âmbito externo da estruturação do enredo, notamos que as cenas de
insônia, como as referidas chaves, abrem espaço à exposição do conflito interior das
personagens. Funcionam assim como elemento introdutório, assinalando a entrada numa zona
destacada dos outros eventos, uma zona toda peculiar, onde a incerteza e a reflexão possuem
posição proeminente. Nesse plano, a insônia não é exatamente causa, mas propicia a expressão
da subjetividade das personagens. É o pio da coruja anunciando o conflito.
81
Outros exemplos são apontados por Pinto (1962) em Graciliano Ramos: ator e autor.
136
Dessa forma, através de inúmeros expedientes usados por Graciliano, como 1) a
predominância da audição em detrimento da visão, 2) a reflexão em detrimento da ação, 3) a
criação de um plano paralelo na trama, por vezes instável e fronteiriço, 4) as incursões às
camadas mais obscuras da psique das personagens, e 5) a frequente instalação de uma atmosfera
de medo; todos esses recursos concorrem para desenvolver os movimentos principais de cada
romance, conferindo à história a sua essencial complexidade psicológica, e não raramente
desencadeando seus eventos mais importantes. Trata-se, portanto, de um procedimento narrativo
que pode ser tomado como efeito de eventos vividos pelos personagens, mas que, na composição
do enredo, conduz à problematização do mundo e à expressão da subjetividade. E o faz de
maneira rápida e direta: sendo a noite uma espécie de índice maior desse estado reflexivo, os
outros fatores que a acompanham, tão explícitos nos contos “Insônia” e “O relógio do hospital”,
reiteram o clima e a situação que terá lugar.
Chegando então à questão final de minhas considerações sobre a obra de Graciliano,
pergunto ao leitor por que seria tão interessante a escolha desse autor específico à tese principal
deste trabalho. Em outras palavras, por que este “estranho lirismo”, como Carpeaux definiu o
estilo de Graciliano, por que este modo simples e direto de narrar deixa tão evidente o que aqui
proponho. E pergunto ainda: se, como verificamos, o autor parecer ter elegido a noite como um
índice que permitiria um rápido acesso à reflexão, e se, na “magreza” de seu estilo, este é de fato
um dos elementos-base à expressão da subjetividade dos personagens, ora, essa escolha estaria
reforçando a ideia maior de que a vida noturna e a insônia, certamente por todo o imaginário
sócio-cultural que as acompanham, e com todos os exemplos de romances e contos já aqui
expostos, 1) propiciam a entrada nesse estado em que a reflexão predomina sobre a ação; 2)
seriam, por essa mesma razão, extremamente interessantes ao que entendemos por
autorreflexividade e exploração da consciência no romance moderno. Proponho, em resumo, que
a presença constante do elemento noturno nos romances de um autor que tanto preza pela
economia de meios, como é o caso de Graciliano, que essa presença só ressalta a pertinência de
lançar mão de tal elemento para desenvolver as já mencionadas características da prosa de ficção
moderna. Se esse recurso já transparece em todas as obras analisadas no Capítulo 2, na obra de
Graciliano, que tanto deseja “eliminar tudo o que não é essencial” (CARPEAUX, 1978, p. 25), a
recorrência com que se faz presente só deixa ainda mais evidente a importância para o enredo
137
desse “olhar para dentro”. Afinal, como dizia Alexandre a respeito de seu olho torto, o olho que
saiu para fora das órbitas e depois viu o interior do herói, as suas entranhas e seus pensamentos:
“acreditem vossemecês que este olho atravessado é melhor que o outro.” (RAMOS, 1979, p. 24).
5.2. Considerações finais
Proponho, dessa maneira, duas conclusões. A primeira é a de que, nos referidos
romances, o jogo entre dia e noite, entre o estar acordado enquanto os outros dormem e sua
estreita correlação com o estar impossibilitado para a vida cotidiana quando estão os outros
despertos, essa alternância desempenha por vezes papel relevante à própria estruturação da
narrativa e ao seu aprofundamento psicológico, através da criação das camadas paralelas que são
as noites insones dos personagens, nas quais estes se encontrariam aptos a agir de modo diverso
à sua conduta na vida cotidiana – seja meditando, seja cometendo crimes. Tal processo se faz
evidente e relevante na obra de Graciliano, na qual, de Caetés a Angústia, as cenas passadas na
solidão noturna parecem ganhar cada vez mais importância na construção do enredo e se
mostram mais complexas, estando intrinsecamente ligadas ao drama pessoal do protagonista e ao
desenvolvimento do conflito central na trama. O que decerto não é nada surpreendente, se
considerarmos que a noite é, tradicionalmente, a hora em que aspectos obscuros da psique
humana vêm à tona.
Dessa maneira, destacando o indivíduo dos demais e deixando-o só com seus problemas
– entre os quais a própria escritura da narrativa –, a insônia dos personagens é por excelência o
resultado e o elemento propiciador de sua problematização do mundo e da narrativa, da reflexão
e do autoexame. E é também, pela ausência de estímulos externos e a consequente concentração
da narrativa na mente dos personagens em questão, um espaço altamente propício ao
desenvolvimento de técnicas narrativas ligadas à exploração de estados psíquicos diversos,
notadamente experimentações ligadas ao fluxo de consciência, ao monólogo interior e ao final
aberto.
Tais constatações conduzem à segunda conclusão, a de que são estes alguns dos traços
mais marcantes da modernidade de Graciliano e dos outros autores analisados que transparecem
138
nas cenas de insônia: de um lado, a narrativa que se auto-problematiza, que pensa sobre si, que
pensa seus próprios processos, seu discurso, seus pontos de chegada e partida; de outro, a criação
de um “monólogo de tonalidade solipsista” (CANDIDO, 2006, p. 57), como o define Antonio
Candido, o que conduz a uma maior abertura do texto a experimentações formais nos moldes do
monólogo interior e do final em aberto. São estes os dois desdobramentos que privilegiei ao
longo desta dissertação, tanto na obra de Graciliano quanto nas de Marcel Proust, Bernardo
Soares, Jorge Luis Borges, João Guimarães Rosa e, em menor escala, James Joyce, das quais
tratei no Capítulo 2. Na medida em que, como sustenta Silviano Santiago, “a obra da
modernidade seria aquela obra que contém em si uma reflexão própria sobre o fazer dessa obra”
(SANTIAGO, 1987, p. 445), Graciliano, como se verifica também nos autores citados,
frequentemente localiza tal reflexão nas horas noturnas.
Assim, com base em todo o estudo aqui empreendido, percebemos como a exploração da
insônia e da vida noturna, com toda a carga simbólica nela implicada, representou, não
raramente, objeto de discussão e recurso narrativo para autores fundamentais ao que chamamos
uma prosa de ficção moderna. Decerto, desde a Antiguidade a literatura já vem tratando de tais
estados.
82
O interessante, entretanto, é que, concomitantemente à difusão da iluminação pública
e o desenvolvimento de tecnologias da iluminação – entre as quais as lâmpadas a gás foram um
primeiro grande marco –, a relação do homem com a noite tenha passado por profundas
mudanças: de espaço ameaçador e entregue a forças incontroláveis, a noite se transformou em
objeto de culto e admiração, sem que, contudo, essa sua imagem de período aberto ao
desconhecido tenha se desvanecido por completo. É isto o que vemos, por exemplo, na poesia
romântica e na literatura gótica, e certamente tais correntes literárias ajudaram a firmar essa
imagem da noite em décadas posteriores.
Na virada do século XX, dois fatores deram rumos mais específicos e este processo. De
um lado, a difusão da luz elétrica – aquela que, ao transpor o dia para a noite, extingue esta
última – resultou no que teóricos como Ekirch, Summers-Bremner e Alvarez definem como uma
perda do conhecimento e da intimidade com as horas noturnas. De outro, a psicanálise iluminava
recônditos da psique até então obscuros, contemporaneamente à investigação da consciência
82
Veja-se, por exemplo, o épico babilônico e anônimo Gilgamesh, o mais antigo texto literário conhecido, no qual o
herói, Gilgamesh, no episódio do encontro com Utnapishtin, passa sete noites sem dormir para provar sua força.
139
levada a cabo por estudiosos não ligados ao movimento psicanalítico, como é o caso de Henri
Bergson e William James.
Nesse contexto, pudemos ver, ao longo destes capítulos como também a literatura do
período se ocupava de questões semelhantes, inserindo-a inclusive como componente de peso na
composição da narrativa. Pois seja em autores europeus das primeiras décadas do século, seja em
autores brasileiros e de outras nacionalidades, seja em décadas mais tardias – como os anos 40 e
50 –, seja ainda em contextos sócio-culturais tão diversos quanto a Paris do início do século XX
ou a zona rural alagoana, em todos estes autores, com todas as variantes ligadas às suas
problemáticas particulares, podemos perceber essa discussão da função e da relevância das horas
noturnas tanto em suas tentativas de expressar os meandros da psique humana quanto na
caracterização do artista enquanto o “familiarizado com a noite”, isto é, aquele que vive e produz
em horas diferentes dos demais indivíduos, e ainda na recuperação dessa noite primeira que,
alheia às inovações tecnológicas, abre este espaço peculiar que é fonte tanto de terror quanto de
inspiração. Nesse sentido, e considerando as implicações de uma tal afirmação à criação literária,
torna-se no mínimo instigante a colocação de Alvarez de que “a noite contém o que se quiser
colocar nela, e como não se pode ver, ou se pode ver muito pouco, ela dá a sua imaginação um
espaço ilimitado para trabalhar.” (ALVAREZ, 2006, p. 27).
140
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