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Capítulo 4
Angústia
Para começar a pensar as articulações da insônia no enredo de Angústia, retomemos
brevemente a cegueira infantil descrita em Infância
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. No capítulo anterior, vimos que, privado
da visão, o narrador voltava-se ao mesmo tempo para si mesmo e para um mundo apreendido
inteiramente pela audição. Trata-se, não por acaso, do período no qual declara ter de fato
começado a prestar atenção às palavras.
Por maior que tenha sido a importância de tal experiência, no entanto, a audição aguçada
pode proporcionar algumas situações bastante aflitivas. A pior delas, segundo o narrador, é ouvir
a fala do vizinho Chico Brabo: “era como se o homem tivesse atravessado muros e portas,
estivesse ali junto de mim. Surpreendia-me o vozeirão tremendo, quase irreconhecível despido
das gentilezas macias que o abrandavam na calçada e na rua.” (RAMOS, 2008a, p. 151). Chico
Brabo, como indica o fim da citação, não é uma má pessoa, sendo inclusive descrito como um
“sujeito amável” (Ibid., p. 154). Sua voz ouvida nas horas de cegueira, porém, o transforma
numa “criatura feroz” (Idem), inconciliável com a imagem do homem à luz do dia. Tal qual os
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Apesar de a relação entre as obras ficcional e autobiográfica já ter sido discutida no capítulo anterior,
considerando a grande similaridade apontada pela fortuna crítica de Graciliano entre o autor e Luís da Silva,
acredito serem relevantes algumas observações suplementares sobre o caso. Num dos ensaios mais clássicos sobre
a obra de Graciliano, “Ficção e confissão”, Antonio Candido (2006) observa: “parece que Angústia contém muito
de Graciliano Ramos, tanto no plano consciente (pormenores biográficos) quanto no inconsciente (tendências
profundas, frustrações), representando a sua projeção pessoal até aí mais completa no plano da arte.” (CANDIDO,
2006, p. 61); e argumenta também que “sua meninice [a de Graciliano] é, pouco mais ou menos, a narrada em
Infância.” (Ibid., p. 58). Já Wander Melo Miranda (2009), em Corpos escritos, discute com mais vagar o quão
inadequado seria simplesmente traçar correspondências estritas entre a infância de Luís da Silva e as memórias
que compõem a obra Infância, a exemplo do que fazem autores como Helmut Feldmann, Rolando Morel Pinto e
Lamberto Puccinelli. O que interessa ressaltar é que não pretendo, aqui, seguir a linha dos referidos teóricos e
buscar tais correspondências. Na verdade, parece-me mais pertinente a posição do próprio Miranda, ao identificar
a “função predominante que o ficcional e o autobiográfico desempenham na obra do autor: a função irônica.”
(MIRANDA, 2009, p. 55), isto é, o “espaço móbile da recorrência e da recriação [ou seja, das lembranças] em
confronto permanente com as novas formas e situações engendradas pela imaginação.” (Ibid., p. 58). Não me
parece possível determinar se a relação entre cegueira e reflexão na escuridão foi articulada conscientemente, na
função irônica a que alude Miranda, ou se ocupa uma camada mais profunda da prosa de Graciliano. Acredito, em
qualquer dos casos, que a cegueira e seus efeitos, já discutidos no capítulo anterior e retomados nos parágrafos
que se seguem, encontram-se em alguma medida ligados à maneira pela qual são elaboradas as cenas de insônia
nos romances, o que justifica a análise aqui empreendida. Pertencendo à função irônica descrita por Miranda ou a
outra função próxima, representariam traços autobiográficos que foram reconfigurados na ficção, e que poderiam
se combinar com outros elementos.