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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO ESCOLAR
RUBI E DIAMANTE VÃO À ESCOLA. E AGORA? CONFRONTOS
COM A CULTURA ESCOLAR
Glaciane Cristina Xavier Mashiba
MARINGÁ
2008
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1
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: EDUCAÇÃO ESCOLAR
RUBI E DIAMANTE VÃO À ESCOLA. E AGORA? CONFRONTOS COM A
CULTURA ESCOLAR
Dissertação apresentada por Glaciane
Cristina Xavier Mashiba, ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, Área de
Concentração: Educação Escolar, da
Universidade Estadual de Maringá, como um
dos requisitos para a obtenção do título de
Mestre em Educação.
Orientadora:
Profª. Drª: Sonia Maria Vieira Negrão
MARINGÁ
2008
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GLACIANE CRISTINA XAVIER MASHIBA
RUBI E DIAMANTE VÃO À ESCOLA. E AGORA? CONFRONTOS COM A
CULTURA ESCOLAR
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Sonia Maria Vieira Negrão (Orientadora) –
UEM
Profª. Drª. Cleide Vitor Mussini Batista – UEL
Prof. Dr. João Luiz Gasparin - UEM
2008
3
Dedico este trabalho ao Kazuo e aos filhos
Kayane e Kaká, um presente de Deus em
minha vida.
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus. Por tudo!
Aos meus filhos Kayane e Kazuo Jr., por entenderem que, mesmo amando-os
intensamente, em algumas ocasiões, precisei ser ausente.
Ao Kazuo, pelo amor, compreensão e apoio em todos os momentos.
Aos meus pais Orlando e Nadir, pelo incentivo e amor que demonstraram sempre.
Aos meus irmãos, por fazerem parte de minha vida de uma forma especial.
Ao cunhado Augusto (In memorian), pelo tempo de convivência e grande amizade.
Aos cunhados Roberto e Geneci, por me acolherem todas as vezes que precisei,
com muito carinho.
À minha orientadora, Sonia Negrão, por seu comprometimento na condução deste
trabalho e pela amizade.
Aos amigos, por serem pessoas queridas e estarem presentes em todos os
momentos de minha vida.
Aos professores da Banca Examinadora, pelas valiosas contribuições: Profª.Drª.
Cleide Vitor Mussini Batista, Profª. Drª. Sonia Maria Vieira Negrão; Profª. Drª.
Elaine Rodrigues e Prof. Dr. João Luiz Gasparin.
Às professoras que, por meio de suas experiências, colaboraram com este
trabalho.
Às profissionais do Conselho Tutelar, pela confiança e por cederem parte dos
documentos necessários à investigação.
Aos profissionais da Casa de Passagem, por compartilharem a experiência vivida.
A todas as pessoas que, de alguma forma, contribuíram para a realização deste
trabalho.
5
[...] tal olhar nos coloca assim, face a face
com o estranho, com a diferença, com o
desconhecido, que o pode ser reconhecido
nem apropriado, mas apenas conhecido na
sua especificidade diferenciadora. Não se
trata de reduzir o outro ao que pensamos ou
queremos dele. Não se trata de assimilá-lo a
nós mesmos (FLEURI, 2003).
6
MASHIBA, Glaciane Cristina Xavier. RUBI E DIAMANTE VÃO À ESCOLA. E
AGORA? CONFRONTOS COM A CULTURA ESCOLAR. 118 folhas. Dissertação
(Mestrado em Educação) Universidade Estadual de Maringá. Orientadora: Profª.
Drª. Sonia Maria Vieira Negrão. Maringá, 2008.
RESUMO
O presente trabalho é resultado de pesquisa qualitativa, especificando-se em
estudo de caso, referente à história de dois irmãos, Rubi e Diamante (nomes
fictícios para manter o anonimato das crianças). O objetivo é analisar esta história,
rica por sua peculiaridade, para responder à seguinte questão: Estaria a escola
preparada para receber alunos com diferenças culturais tão acentuadas no
contexto escolar? O material necessário foi-me possibilitado por meio de fontes
orais e documentais. Os subsídios teóricos que respaldam minha análise envolvem
estudos multi/interculturais, antropológicos da hominização, cultura escolar,
inclusão e exclusão e formação de professores. Rubi e Diamante, são crianças que
viveram isoladas em um lugarejo no Sul do Paraná, em uma estrutura familiar
composta de mãe, com patologia psiquiátrica crônica e irreversível e pai, na
maioria das vezes ausente devido às exigências de seu trabalho. Tal cotidiano
ocasionou um intenso convívio dos meninos com a cadela que se tornou um
modelo de comportamento. Assim, foram crescendo com costumes próprios, até
que o Conselho Tutelar da cidade os encontrou por meio de uma denúncia e tomou
as providências cabíveis para o caso. Posteriormente, passaram a freqüentar
escolas do ensino regular dentro dos princípios de inclusão. Contudo, após
migrarem de uma escola à outra, evadiram-se da escola pressionados pelos
confrontos culturais.
Palavras-chave: Sociedade; Cultura; Educação; Exclusão; Inclusão.
7
MASHIBA, Glaciane Cristina Xavier. Rubi and Diamond go to school. And now?
Facing the school culture. 118 pages. Dissertation (Master in Programme
Education) – University of Maringá. Tutor: Professor. Dr. Sonia Maria Vieira Negrão.
Maringá, 2008.
ABSTRACT
The present work is the result of a qualitative research, specified in case study,
referring to the history of the siblings Ruby and Diamond (unreal names in order to
keep the children’s anonymity). The aim is to analyze such peculiar history in order
to prepare the students to answer the following question: Would the school be
prepared to receive students with so outstanding cultural differences in schooling
context? The required material was given through oral and documental sources.
The theoretical subsides that based the analysis involve multi and inter cultural
studies, human anthropology, scholar culture, inclusion and exclusion, and teaching
formation. Ruby and Diamond are children who lived isolated in a small place in the
south of Parana State, Brazil, in a family structure with a mother with chronical and
irreversible psychiatric pathology and a father mostly absent due to his job. Such
routine occasioned an intense relationship between the children and the dog, which
became a model of behavior. Thus, they grew up with peculiar habits, until the
Conselho Tutelar* of the city found them through a denouncement and took the
necessary arrangements for the case. After that, they started going to school of
regular education according to the principles of inclusion. However, after going from
one school to another, they left formal education due to cultural confrontation
pressure.
Keywords: society; culture; education; exclusion; inclusion.
* Brazilian organ responsible for taking care of children under improper conditions.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................09
O RISCO E O BORDADO DO TERRITÓRIO DE UMA PESQUISA ......................14
EDUCAÇÃO E MULTI / INTERCULTURALISMO...................................................26
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA
MULTI/INTERCULTURAL........................................................................................19
REORDENAR O RISCO PARA MANTER O BORDADO.......................................26
RUBI E DIAMANTE: NARRAR UMA HISTÓRIA E CONSTRUIR UMA
FONTE.....................................................................................................................29
A ESTADIA NA CASA DE PASSAGEM: DE UM IMPOSSÍVEL A
OUTRO....................................................................................................................39
O INGRESSO DE RUBI E DIAMANTE NA ESCOLA: CENAS FORA DO
CONTEXTO.............................................................................................................42
UMA LONGA VIAGEM...TALVEZ A MAIS LONGA DE TODAS!.............................53
RAÍZES DA VIDA....................................................................................................63
RUBI E DIAMANTE CHEGAM À ESCOLA, E AGORA? CONFRONTOS COM A
CULTURA ESCOLAR.............................................................................................79
DIÁLOGOS SOBRE INCLUSÃO X EXCLUSÃO....................................................95
O PROFESSOR NÃO DUVIDA! DUVIDA?...........................................................105
CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS...........................................................................110
9
INTRODUÇÃO
Minha proposta inicial era analisar a estrutura curricular do Curso de
Pedagogia da Universidade Estadual de Marin para verificar se a mesma
contemplava a questão multicultural, porém deparei-me com a história de Rubi e
Diamante, que por sua peculiaridade, forçou-me a outros percursos.
Rubi e Diamante
1
são dois irmãos que viveram isolados em uma cidade
do interior do Paraná, tendo contato humano apenas com os pais, a mãe com
patologia psiquiátrica crônica e irreversível e o pai trabalhador itinerante, ausente
grande parte do tempo devido ao trabalho, o que ocasionou-lhes intenso convívio
com uma cadela, que se tornou modelo de comportamento para os meninos. Até
que Conselho Tutelar de R. PR. interferiu e levou os meninos para a Casa de
Passagem, situada no mesmo município, e, em seguida, matriculou-os na escola.
Quando conheci a história, elegi-a como objeto de análise de minha
investigação e várias questões se apresentaram sem resposta: Como Rubi e
Diamante organizavam a vida no isolamento social em que viviam? Elaboraram
eles uma cultura? Será que os meninos sentiam alguma necessidade consciente
de organização da vida? Por que a aproximação tão íntima com a cadela a ponto
de fazer dela um modelo de comportamento? Que conflitos viveram ao
perceberem que suas ações não produziam os mesmos efeitos no novo ambiente
em que foram colocados? O que faltou a eles para perceberem a modificação do
ambiente e atender a suas exigências? Que significado teria para eles as regras
do mundo social em que foram inseridos? A escola representou para Rubi e
Diamante um lugar significativo de aprendizagem? Estaria a escola preparada
para receber alunos com diferenças culturais tão acentuadas em seu contexto?
Minha investigação pautou-se em relatos orais e escritos. Oralmente, tive a
contribuição das conselheiras K.L.. e J.I..; professoras F.X., T.S., A.C.S.; O.M.;
pedagogas S.X. e R.B.; presidente da Casa de Passagem N.D., atendente da
Casa de Passagem T.Z. Os documentos escritos foram produzidos em dez
atendimentos prestados pelo Conselho Tutelar à família de Rubi e Diamante. Dois
relatos gravados e transcritos na íntegra; um relato manuscrito da conselheira
1
Nomes fictícios.
10
K.L; um relato manuscrito da professora F.X.; seis conversas gravadas e
transcritas na íntegra; dois relatórios do Conselho Tutelar de A. F. MT,
expedidos pelo Conselho Tutelar de M.T., incluídos nos arquivos do Conselho
Tutelar de R. - PR; Relatório Social enviado via fax pela assistente social A.O.I. de
A. F. MT; Relatório escolar da escola M.E.F., também da cidade de A. F. MT;
duas certidões de nascimento, de Rubi e Diamante, respectivamente sob os
números 17.787 e 17.622; Certidão de pedido de certidões para Rubi e Diamante;
cópia das carteiras de trabalho de João e Maria
2
; cópia do RG e CPF de João;
três resultados de exames de Maria pedidos pelo médico A.M.; um atestado de
que Maria o tinha condições para trabalho formal e uma receita, ambos
fornecidos pela psiquiatra P.Z.; a carteira de vacinação de Diamante. Além dos
documentos escolares fornecidos pelas escolas. Sobre Rubi consta: Ficha de
matrícula no Jardim III da Escola P.V. em julho de 2001; Declaração de
transferência da Escola C.N. para a Escola D.G. em setembro de 2003; Registro
de aproveitamento e assiduidade de Diamante no ano de 2003; dois Registros de
aproveitamento escolar na Escola D.G. um refere-se aos anos de 2003 e 2004;
Guia de transferência da escola municipal C.N. no ano de 2005; uma guia de
transferência no ano de 2007. Referente a Diamante consta: Ficha de matrícula
no Jardim I da Escola P.V. em julho de 2001; Cadastro de matricula na 1ª série do
Ensino Fundamental, no ano de 2004, da Escola Municipal C.N. e Guia de
transferência com registro de aproveitamento escolar e assiduidade de três
bimestres no ano de 2005.
Essas fontes são os vestígios que me auxiliaram a contar a história vivida
por Rubi e Diamante. Não a história dita como verdadeira ou única, mas a história
que me foi possível contar. Evidentemente, preme de relações por mim
estabelecidas, assim como ocorre com todos que narram uma história. Fontes
não revelam verdades, possibilitam somente a reconstrução perspectivada da
história, por isso permitem escrever uma história e não a história.
Para analisar esta história, pautei-me na interface entre Antropologia e
Educação, que me permitiu conhecer e aplicar conceitos do campo antropológico
para pensar os processos educacionais em uma perspectiva mais ampla e rica. À
2
Nomes fictícios para os pais.
11
premissa de que a educação é um fenômeno cultural, parece-me coerente que os
estudos antropológicos sejam entendidos como importantes interlocutores para
estudos em educação, aliados à História, que considerei, tamm, os
procedimentos exigidos pelas suas práticas de pesquisa em relação à elaboração
de seus objetos de estudo, isto é, as fontes.
A opção por esse caminho ocorreu durante o desenvolvimento da
investigação, quando percebi a riqueza tanto das fontes orais como documentais,
o que me levou a rever o caminho traçado anteriormente. A partir disso, no
decorrer da investigação, além de trabalhar com as fontes, busquei subsídios
teóricos que respaldassem a vivência e a integração de Rubi e Diamante no
contexto escolar: os estudos antropológicos, multi/interculturais, cultura escolar,
inclusão e exclusão e formação docente.
A metodologia utilizada foi a Pesquisa Qualitativa, porque “[...] não admite
visões isoladas, parceladas, estanques” (TRIVÑOS, 1987, p. 137), por meio de
estudo de caso sobre Rubi e Diamante em sua trajetória escolar. Utilizei a
entrevista individual semi-estruturada, com questões norteadoras ao estudo de
caso, porém de forma flexível, dando liberdade às informantes em explicitar suas
convicções e pensamentos.
A estrutura textual da dissertação contém seis partes: na primeira parte,
intitulada O Risco e o Bordado do Terririo de uma Pesquisa, descrevo, de
maneira breve, minha trajetória de formação e a elaboração de meu objeto de
pesquisa no início da investigação. Contemplo ainda, a teoria multicultural, a
educação multi/intercultural e a formação de professores sob esta perspectiva.
Em Reordenar o Risco para Manter o Bordado, segunda parte: trato do
momento em que me dei conta que o objeto de estudo seria a história dos
meninos e não a estrutura curricular do curso de formação docente.
Em Rubi e Diamante: Narrar uma História e Construir uma Fonte, terceira
parte: narro a história de Rubi e Diamante. Dividida em três aspectos: A história,
seus silêncios e lacunas; A estadia na Casa de Passagem: De um impossível a
outro, relato o período em que Rubi e Diamante são tirados de sua casa por meio
do Conselho Tutelar e enviados para a entidade assistencial. Em o ingresso de
12
Rubi e Diamante na escola: Cenas fora do contexto, contemplo o momento em
que os irmãos foram integrados ao ambiente escolar.
Com o texto denominado de Raízes da Vida, quarta parte, inicio a análise
sobre a história narrada, refletindo sobre a questão de como os irmãos
organizaram a vida distantes do meio social. É importante lembrar que Rubi e
Diamante, antes de internos da Casa de Passagem e/ou alunos das escolas
citadas, eram crianças e, portanto, seria impossível referir-me aos mesmos sem
considerar tais especificidades. Apesar das agruras vividas pelos irmãos, a
realidade vivida foi a infância que tiveram, visto que, a “[...] criança, antes de ser
aluno, membro da escola, é um ser humano pleno” (SARMENTO (2005, p. 5).
Rubi e Diamante Chegam à Escola. E Agora? Confrontos com a Cultura
Escolar, analiso os confrontos culturais enfrentados pelos meninos em uma
cultura escolar totalmente estranha a eles assim como as dificuldades da escola
P.V. a única com que trabalho por considerar o tempo que os meninos a
freqüentaram. Nas outras duas, o tempo foi extremamente breve.
Diálogos sobre Inclusão x Inclusão, quinta parte, analiso os conceitos de
igualdade e desigualdade, inclusão e exclusão, inclusão e integração, ensino
regular e ensino especial com o objetivo de compreender e relacionar tal contexto
com as experiências dos meninos.
O Professor não Duvida! Duvida? Sexta parte, registro aqui as angústias
dos professores que trabalharam com os irmãos, mesmo sentindo a falta de
preparo para a situação.
Por fim, apresento as considerações possíveis, mantendo o risco do
traçado inicial, na tentativa de responder à problematização levantada no início do
trabalho e às questões que me inquietaram no decorrer deste Estudo de Caso.
Durante a investigação, esforcei-me por levantar as informações e passá-las da
forma mais fiel possível, na tentativa de entender e elucidar a complexidade da
vivência de Rubi e Diamante, sem esquecer-me dos conflitos vividos pelas
professoras e demais profissionais envolvidos na história que relato.
O leitor, a princípio, pode estranhar os nomes fictícios atribuídos aos
irmãos, mas no decorrer da história, poderá perceber que, de fato, tive pedras
preciosas nas mãos e procurei, com todo cuidado, entendê-las, analisá-las. A
13
analogia foi criada a partir de que, milênios, a humanidade é atraída pelas
pedras preciosas porque carregam seus mbolos, suas histórias e emanam
características próprias.
14
O RISCO E O BORDADO DO TERRITÓRIO DE UMA PESQUISA
Vamos bordando a nossa vida, sem conhecer
por inteiro o risco; representamos o nosso
papel, sem conhecer por inteiro a peça. De
vez em quando, voltamos a olhar para o
bordado já feito e sob ele desvendamos o
risco desconhecido (SOARES, 2001, p. 28).
Acredito que, como Magda Soares, cada um de s borda sua própria
história. Enquanto bordo minha trajetória profissional, assim como pontua a
autora, procuro reconhecer e compreender parte do risco do bordado.
O risco do meu bordado na educação é breve, uma vez que atuo na
educação básica, a partir do ano de 2000, como professora-pedagoga. Durante
esse tempo, pude perceber a diversidade, cultural, lingüística, de credo, classe
social, presente no contexto escolar, e me inquietava muito, por não me sentir
preparada para atuar em turmas tão heterogêneas. Esse foi um dos motivos que
me levou, em setembro de 2005, a candidatar-me ao Mestrado em Educação da
Universidade Estadual de Maringá (UEM), na linha de pesquisa Aprendizagem e
Ação Docente, com o anteprojeto de pesquisa “Educação Multicultural: Uma
Questão Emergente em Educação”.
O mundo contemporâneo, cada vez mais complexo nas suas diferentes
dimensões, vem passando por mudanças significativas e radicais, que, muitas
vezes, não se é capaz de compreendê-las, todavia possibilitam perceber
inúmeros conflitos que marcam as sociedades atuais. Muitos deles provocados
por questões de ordem cultural. Diante desse contexto, acredito que seja
necessário avançar a reflexão em torno das relações entre educação, cultura e
professores em formação.
Dessa forma, o objetivo seria analisar a estrutura curricular do Curso de
Licenciatura em Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá, com o intuito
de investigar se o mesmo contemplava o enfoque multicultural, se havia conexões
entre o currículo do curso e as questões multiculturais. Quando o trabalho já havia
avançado um pouco, pude conversar com mais propriedade sobre meu objeto,
percebendo que não teria a resposta em análises documentais dessa natureza.
15
Então, em um dia marcado para mais uma orientação, a professora Sonia
me propôs que procurasse uma história de inclusão para contextualizar a questão
da diversidade, considerando que resido na cidade de R. - PR, e havia a
possibilidade de encontrarmos um caso de criança indígena inclusa no âmbito
escolar.
Assim, antes de iniciar a alise da estrutura curricular do Curso de
Pedagogia da Universidade Estadual de Maringá, percebi que a educação
multicultural não necessariamente constituir-se-ia na forma disciplinar e nem por
isso deixaria de ser inerente ao curso, uma vez que as questões multiculturais,
provavelmente, estariam abordadas, independentemente de elencadas na
estrutura curricular.
Creio que a clara e firme condução das questões culturais pelos
professores formadores em sala de aula, em todos os componentes curriculares,
dariam maior vigor às relações da escola com as culturas.
EDUCAÇÃO E MULTI / INTERCULTURALISMO
Sob tal perspectiva, era preciso encontrar outra forma de reflexão sobre a
multiplicidade de culturas existentes na sociedade contemporânea e evidenciar a
necessidade, cada vez mais urgente, de se promover uma educação que
ultrapassasse o etnocentrismo sociocultural. A escola tem ignorado
conhecimentos e experiências dos grupos sociais cujos padrões culturais não
correspondem aos ditados pelos cânones da cultura ocidental hegemônica; a
instituição escolar parece ter dificuldade em reconhecer que grande parte da
população não se enquadra nos parâmetros determinados por uma concepção
universalista de cultura. Como as políticas educacionais ainda não se mostraram
eficazes no que se refere a implementar uma educação escolar voltada para a
diversidade cultural e social, os menos favorecidos não conseguem adaptar-se à
escola, já que, nela, seus valores e saberes não são aceitos nem validados.
Minhas leituras iniciais incidiram sobre os seguintes autores: Candau
16
(2002); Demo (2005); Fourquin (1993); McLaren (2000; 2001); Moreira (2001);
Semprini (1999); Silva (2001). Tais leituras levaram-me a compreender que ,
atualmente, uma crescente preocupação em todas as esferas sociais com a
interação entre os "diferentes", de modo que cada um tenha direito a vez e voz
em busca de uma sociedade mais democrática. Os movimentos que buscam
igualdade de direitos só os conquistam a partir de lutas que reivindiquem a
valorização de suas culturas e busquem a transformação das relações sociais.
Entre as diversas abordagens culturais, encontra-se o multiculturalismo.
Peter McLaren, canadense radicado nos Estados Unidos, um dos
principais autores engajados com as lutas sociais, políticas e econômicas dos
diversos grupos étnicos, por meio do ensino multicultural, explica que o
movimento contextualizado nos Estados Unidos, em prol dos direitos civis, por
alguns grupos minoritários que reivindicavam seus direitos quanto à liberdade, ao
poder político e à igualdade econômica, impôs à sociedade a preocupação
multiculturalista. Tal movimento iniciou-se com a comunidade negra e, mais tarde,
expandiu-se para as diversas manifestações étnicas, de classe, orientação
sexual, entre outras.
Assim, o prefixo “multisimboliza um guarda-chuva, que abrange diversas
culturas, em suas diversas etnias, identidades, padrões culturais e
socioeconômicos, instaurando uma política da diferença.
Mclaren (2001) me auxiliou a refletir sobre o multiculturalismo, que,
além de reportar-se à origem do movimento multicultural, realiza uma análise
fecunda sobre as possíveis tendências: multiculturalismo conservador,
multiculturalismo humanista liberal, multiculturalismo liberal de esquerda e
multiculturalismo crítico e de resistência ou multiculturalismo revolucionário
3
.
3
A tendência do multiculturalismo conservador adota princípios do darwinismo social,
privilegiando a assimilação cultural como mecanismo de integração. Acredita na inferioridade
cognitiva, cultural e racial dos diversos grupos raciais quando comparados aos grupos raciais
brancos, por isso, defende uma unidade nacional baseada na assimilação das práticas culturais
dominantes da cultura branca. O multiculturalismo humanista liberal preconiza a igualdade entre
os seres humanos, enfatiza que as culturas se manifestam em suas diferentes formas por terem
histórias e condições diversas, porém uma não é superior à outra, por ter uma comum
humanidade. Esta vio invoca o ideal de uma humanidade comum, universal, neutra e não
situada de autoformação, na qual todos podem participar, sem atenção às diferenças de raça,
gênero, classe, idade ou preferência sexual. O multiculturalismo liberal de esquerda enfatiza a
diferença cultural e acredita que o discurso de igualdade entre as raças pode mascarar as
diferenças. a tendência do multiculturalismo crítico e de resistência encontra-se embasada na
17
Com base nessa visão, pude perceber a importância do multiculturalismo
como instrumento de luta e não apenas como a teoria da tolerância ao “diferente”.
No Brasil, alguns autores m se destacado em estudos referentes ao
multiculturalismo, entre eles, cito Vera Maria Ferrão Candau, autora de diversos
trabalhos que envolvem a temática educação e cultura (s). Propõe uma educação
“intercultural, anti-racista e anti-sexista”, na tentativa de conscientizar os
envolvidos com a educação da importância de abranger todo o sistema escolar
nesta perspectiva, para que haja na escola o cruzamento de saberes. Pauto-me
em suas reflexões por serem condizentes à realidade escolar brasileira atual em
suas cores reais. Candau (2002) não apenas teoriza, mas fala de uma realidade
que lhe é muito próxima, o contexto escolar em suas diversas culturas.
A educação multicultural conta com extensa literatura no contexto
internacional. De acordo com Candau (2002), até os anos de 1960, foi tratada de
forma mais ampla, porém, a partir das lutas e reivindicações por igualdade de
direitos, o olhar multicultural voltou-se para a educação e, apesar de ter sua
origem nas questões afro-americanas, expandiu-se para as diversas
manifestações étnicas, de classe, orientação sexual, entre outras.
Caracteriza-se assim uma multiplicidade de sentidos dos processos
culturais, em que se torna claro que as questões culturais estão intrinsecamente
ligadas às questões de poder, que também atravessam o ambiente e a cultura
escolar, rotulando as crianças que chegam à escola e têm suas identidades
culturais negadas o que ocasiona falta de espaço e voz para as culturas menos
favorecidas.
Do ponto de vista mais crítico, as diferenças estão sendo
teoria social pós-moderna, segundo a qual as representações de classe, gênero e raça
representam o resultado de lutas sociais ampliadas sobre signos e representações. O
multiculturalismo revolucionário é um multiculturalismo feminista-socialista que desafia os
processos historicamente sedimentados, por meio dos quais identidades de raça, classe e gênero
o produzidas dentro da sociedade capitalista. Conseqüentemente, o multiculturalismo
revolucionário não se limita a transformar a atitude discriminatória, mas é dedicado a reconstruir
as estruturas profundas da economia política, da cultura e do poder nos arranjos sociais
contemporâneos, portanto, não significa reformar a democracia capitalista, mas transformá-la,
cortando suas articulações e reconstruindo a ordem social do ponto de vista dos oprimidos, vai
além da tolerância na defesa da crítica ao capitalismo. Travando uma luta contra o mesmo, para a
libertação referente à raça e ao gênero, dando ênfase às relações de poder na sociedade e na
cultura escolar (McLAREN, 2000).
18
constantemente produzidas e reproduzidas através de relações de
poder [...] Na medida em que elas estão sendo constantemente
feitas e refeitas, o que se deve focalizar são precisamente as
relações de poder que presidem sua produção (SILVA, 2001, p.
88).
O multiculturalismo é visto, por um lado, como um movimento de luta das
classes culturais dominadas para o reconhecimento de suas formas culturais e,
por outro, como uma solução para os "problemas" impostos pela presença de
grupos étnicos e raciais. Porém, de uma forma ou de outra, não se pode separar
multiculturalismo e relações de poder, os quais compelem essa diversidade a
viver no mesmo espaço.
[...] o multiculturalismo representa um importante instrumento de
luta política. O multiculturalismo transfere para o terreno político
uma compreensão da diversidade cultural que esteve restrita,
durante muito tempo a campos especializados como o da
antropologia (SILVA, 2001, p. 86).
Em referência ao currículo, Fourquin (1993) analisa que o ensino
multicultural tem uma importante divisão. os “unitaristas”, que defendem a
utilização de um único currículo, abordando, todavia, nos conteúdos, a pluralidade
de tradições e culturas e, os separatistas”, que defendem o estabelecimento de
redes escolares totalmente distintas, com base no pertencimento étnico-cultural
ou religioso para o respeito do pluralismo cultural, porque acreditam que a inter-
relação entre as diversas culturas, no mesmo espaço escolar, neutralizaria as
especificidades.
Num caso, trata-se de um multiculturalismo de justaposição, de
compartimentação, a mesmo de segregação ou de auto-
segregação, que carrega em si a ameaça de explosão social. No
outro caso, o multiculturalismo significa abertura, troca,
intercomunicação, com as promessas que isso constitui para cada
um, de enriquecimento pessoal e de alargamento dos espaços de
liberdade, mas também de riscos de desenraizamento, de
dispersão e de desagregação da identidade. Por razões de
comodidade léxica, pode-se chamar este segundo tipo de
“interculturalismo” (FOURQUIN, 1993, p. 139).
O autor enfatiza que o prefixo “inter” carrega todo um sentido de
solidariedade, troca, dinamismo, opondo-se ao “diferencialismo estático”, como
19
pontua Martine Abdallah-Pretceille “Um define a diferença como uma relação
dinâmica entre duas entidades que se dão mutuamente um sentido [...]” o outro
“[...] se satisfaz com uma composição cultural mosaica” (ABDALLAH-
PRETCEILLE, 1984, p.12, apud, FOURQUIN, 1983, p. 139).
Acompanhando o mesmo raciocínio, Moreira (2001) aborda a proposta de
autores como Kreutz e Valente, que propõem a troca do termo Multiculturalismo
pelo termo Interculturalismo, afirmando que o Multiculturalismo nos leva a
imaginar a sociedade como um ‘mosaico’”, com diversas culturas, porém, cada
uma delas estática, enquanto o segundo sugere uma” inter-relação dinâmica entre
as culturas.
[...] o prefixo inter expressa o sentido de interação, troca,
reciprocidade e solidariedade entre culturas. Permite também
considerar que, ao interagir com outras culturas, uma dada cultura
pode se desestabilizar, ser relativizada ou contestada em seus
princípios básicos, expondo-se à crítica, o que favorece a
eliminação dos seus elementos negativos (MOREIRA, 2001, p.
74).
Dessa forma, compreendi que, para pôr em prática os preceitos da
educação intercultural, o/a professor/a precisará não apenas acolher as diversas
culturas que se expressam nas instituições escolares, mas estabelecer o diálogo
entre elas; precisará acolher as histórias de vida, as crenças, os valores e a
experiência de alunos/as e aprender a lidar com as diferenças e os conflitos.
Nesta perspectiva, a reprovação e a evasão escolar, muitas vezes decorrentes da
exclusão sociocultural, poderiam ser amenizadas por uma educação para a
diversidade, em que saberes e experiências de crianças e jovens sejam acolhidos
e respeitados.
Compreendi tamm que professores, ao abraçarem a perspectiva
intercultural, devem contribuir para a construção de uma educação capaz de
compreender a complexidade das interações humanas, superar preconceitos e
exclusão sociocultural e criar condições para que haja crescimento de todos os
indivíduos e seus respectivos grupos, promovendo mudanças profundas na
educação: currículo, metodologias, técnicas, instrumentos pedagógicos, formação
de professores, quadros administrativos.
Candau (2002) enfatiza a necessidade de uma educação pautada na
20
interculturalidade, valorizando as diversas formas de expressão, para que se
possa estabelecer uma interação entre os educandos, no sentido de enfatizar a
riqueza de cada cultura. Uma vez que:
A interculturalidade orienta processos que têm por base o
reconhecimento do direito à diferença e a luta contra todas as
formas de discriminação e desigualdade social. Tenta promover
relações dialógicas e igualitárias entre pessoas e grupos que
pertencem a universos culturais diferentes, trabalhando os
conflitos inerentes a esta realidade. Não ignora as relações de
poder presentes nas relações sociais e interpessoais. Reconhece
e assume os conflitos procurando as estratégias mais adequadas
pra enfrentá-los (CANDAU, 2002, p. 99).
Após esse estudo preliminar, reitero o posicionamento dos autores
citados e aloja-se em mim a questão: como seria a formação capaz de possibilitar
ao professor interagir com as complexidades da vida social contemporânea,
fundamentada na interculturalidade?
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES NA PERSPECTIVA
MULTI/INTERCULTURAL
Acredito que a formação de professores/as na perspectiva
multi/intercultural seria um passo importante para se romper com a idéia de
homogeneidade do ensino, para compreender que o cotidiano de alunos/as, bem
como sua cultura de origem podem orientar e direcionar a prática pedagógica e
atender aos interesses dos diversos grupos sociais que freqüentam a escola.
Além disso, uma formação de professores que alertasse para questões
multi/intercultural possibilitaria a compreensão: da diversidade sociocultural
presente nas escolas, das causas e conseqüências do processo da globalização
na vida de alunos/as, do consumismo, da desigualdade social, do fracasso
escolar e da apregoada adaptação escolar.
À medida que se entenda a educação como instrumento capaz de
propiciar a alunos/as de grupos populares a possibilidade de resgatarem a
21
dignidade e lutarem por melhores condições de vida, essas questões não podem
ser ignoradas.
De acordo com a perspectiva intercultural, os docentes podem contribuir
no próprio ambiente escolar, onde devem considerar o educando em suas
diferenças não apenas de classe, mas tamm relacionadas à cultura, etnia,
credo, entre outros. Além disso, estarão estabelecendo um elo entre os
“diferentes” para que eles, em suas singularidades, possam interagir entre si e
inserir-se na luta política em defesa de seu reconhecimento.
Existem diferentes posturas profissionais em relação à educação
multicultural. Candau (2002) sistematizou as seguintes: postura a-crítica:
relacionada aos profissionais da educação que não têm clareza da relação escola
x culturas. Para a autora, esta talvez seja a postura mais comum entre os
professores, visto que, ao se depararem com um conflito no âmbito escolar,
tratam-no como problema de relacionamento ou de grupos específicos, ignorando
a dimensão cultural.
A postura transcultural: relativa aos profissionais que enfatizam a escola
como o lugar da “igualdade” e não da diversidade. Desta forma, o objetivo da
escola é reproduzir conhecimentos científicos, historicamente acumulados, todos
estão na escola para aprenderem e os conteúdos cientificamente elaborados são
disponibilizados a todos. Refere-se a uma igualdade que não considera as
diferenças, é mais relativa à “uniformizaçãodos educandos (CANDAU, 2002, p.
98).
A postura assimilacionista: nessa visão, estão os professores que
percebem as diversidades culturais e tentam integrá-las à cultura dominante, os
professores privilegiam a cultura hegemônica e tentam “encaixar” as demais
culturas neste modelo. Os adeptos mais radicais dessa postura acreditam que as
diferentes culturas devem participar de escolas próprias, para que não haja a
neutralização das diferenças, negando a identidade dos grupos menos
privilegiados em relação aos grupos socioculturais hegemônicos. Cada cultura
deve ter uma escola própria, para que as culturas “minoritárias” não sejam
negadas em função da cultura dominante.
E, por fim a postura intercultural: valoriza a interação e comunicação
22
recíproca entre as diferenças, reconhecendo seus direitos e lutando contra todo o
tipo de discriminação e desigualdade social. Numa interação dialógica, o
professor trabalha, buscando estabelecer o diálogo entre diversas culturas.
De acordo com Candau (2002), a postura intercultural docente é a mais
adequada para nosso contexto atual, tendo em vista que a interculturalidade
supõe a inter-relação entre as diversas culturas. A dialogicidade seria o meio de
superação das divergências e até mesmo dos conflitos, facilitaria a obtenção de
harmonia entre as mesmas, superando preconceitos, desigualdades sociais e
culturais. Sua reflexão direciona-me ao modelo de educação multicultural
proposto por Banks (1999, apud CANDAU, 2002), o qual parte da análise de dois
paradigmas, o da privação cultural e o da diferença.
O paradigma da privação cultural considera como problema a cultura em
que os alunos foram socializados e não a cultura escolar, alega a falta de
experiências fundamentais para o bom rendimento na escola. Este paradigma
reconhece a diversidade cultural, mas diferencia as diversas culturas em posições
hierárquicas. A educação se reduz à compensação cultural, negando a diferença.
O paradigma da diferença cultural opõe-se à hierarquização das culturas,
afirmando que cada cultura possui valores, linguagens e símbolos diferentes e
que devem ser considerados. Este paradigma nega o anterior e propõe a
mudança da cultura escolar, por ser monocultural, constituída pelo modelo cultural
hegemônico. Para Banks, a educação multicultural tem como prioridade o
desenvolvimento de
[...] habilidades, atitudes e conhecimentos necessários para atuar
no contexto da sua própria cultura étnica, no da cultura dominante,
assim como para interagir com outras culturas e situar-se em
contextos diferentes de sua origem (BANKS, 1999, apud CANDAU
2002).
O autor citado pontua que, no contexto escolar, existem dez paradigmas
diferentes, com seus programas e práticas escolares: paradigma étnico-aditivo,
paradigma do desenvolvimento do autoconceito, paradigma da privação cultural,
da linguagem, do racismo, radical, genético, paradigma do pluralismo cultural, da
diferença cultural e paradigma do assimilacionismo.
Desta forma, Banks (1999, apud CANDAU, 2002) propõe um modelo
23
próprio de educação multicultural, o qual pode fundamentar a práxis diária dos
professores, contemplando cinco dimensões: a integração de conteúdos, prática
em que os docentes utilizam, em sala de aula, exemplos e conteúdos
provenientes de diversos grupos para ilustrar conceitos e teorias em sua
disciplina; o processo de construção do conhecimento tem por objetivo entender
em que medida o docente auxilia os alunos a entenderem como pressupostos
culturais implícitos exercem influência na construção do conhecimento; uma
pedagogia da eqüidade, pressupõe a diversificação de métodos de ensino por
parte dos professores, visando ao aproveitamento acadêmico dos alunos oriundos
dos diversos grupos; a redução do preconceito, propõe-se a alterar a atitude
preconceituosa de alguns alunos por meio de determinados métodos de ensino e
recursos didáticos, e uma cultura escolar e estrutura social que reforcem o
empoderamento de diferentes grupos, em que a cultura e a organização da
escola devem ser reestruturadas, para que haja entre os alunos a eqüidade
educacional.
A concretização de uma prática educativa multicultural requer
conhecimento teórico por parte do professor, condição sine qua non para uma
práxis comprometida com a transformação social das relações de poder no
âmbito escolar, que considere os educandos em suas individualidades culturais,
econômicas, religiosas, entre outras tem como pressuposto valorizá-los a partir da
sua realidade e buscar uma interação entre seu contexto e a realidade escolar.
Com base nestes pressupostos, Moreira realiza uma investigação da produção
científica sobre currículo e multiculturalismo no Brasil, enfatizando, entre outros
temas, a formação docente, e salienta que:
[...] a associação da questão didática à perspectiva multicultural;
a importância do currículo na promoção de uma educação
cultural; a reiteração de que é indispensável articular as
experiências curriculares e os projetos dos alunos; o apelo à
maior integração escola-família-comunidade nas experiências a
serem desenvolvidas; a centralidade da categoria cultural na
compreensão do currículo em ação; a sempre necessária
constatação de que em nossas escolas e em nossas salas de
aula persistem relações de poder opressivas que precisam ser
enfrentadas; a preocupação com a construção de uma história de
práticas pedagógicas multiculturalmente orientadas; a ênfase
atribuída às histórias de vida na promoção do respeito ao outro; o
24
reconhecimento de que os significados construídos e
compartilhados em espaços culturais que não a escola afetam a
formação de identidades sociais (MOREIRA , 2001, p. 72).
De acordo com os autores citados neste texto, todos comprometidos com
a multi/interculturalidade, faz-se necessário redimensionar as práticas educativas
e construir uma pedagogia multi/intercultural no âmbito escolar, que considere a
diversidade de valores, costumes e etnias implícitos no espaço escolar, para que
haja uma leitura crítica e ampla desta questão por parte dos futuros professores,
sem se deixarem levar pelos modismos, mas tomando o devido cuidado para não
excluir as diferentes formas de expressão na busca de uma escola mais
democrática e inclusiva.
Para mim, uma questão chave para os professores é como
desenvolver um multiculturalismo atento à especificidade
(histórica, cultural) da diferença (em termos de raça, classe,
gênero, orientação sexual, etc.), mas que não deixe de levar em
conta o componente comum dos diversos Outros sob a lei, com
respeito aos princípios universais de igualdade e justiça
(MCLAREN, 1997, p. 309).
O autor esclarece o tipo de igualdade por ele almejado e que se identifica
com as necessidades de cada cidadão/cidadã, seja ele aluno ou não. Uma
igualdade que respeite o “Outro” em suas singularidades e limites, para que se
possa viver em harmonia, cada cultura lutando por seus direitos e ideais. Saliento,
porém, a necessidade da interculturalidade para que isso aconteça.
Vale reforçar tais leituras, no que se refere à educação, a
interculturalidade não apenas compele a coexistência da diversidade, mas luta
pela promoção do diálogo entre as diferentes culturas, estabelecendo uma
relação dinâmica entre elas. Desta forma, entre as diferentes posturas de
professores, acredito que, a partir do momento em que a escola esteja apta a
receber alunos "diferentes" do padrão estabelecido, com sua cultura e
organização reestruturada, a postura intercultural é a que faz do professor o elo
que estabelece o diálogo entre as diversas culturas.
Para que a escola esteja apta a acolher a coexistência entre os
"diferentes" alunos e acolher as diferentes posturas culturais dos professores, é
25
preciso que sua cultura seja redimensionada, porque, da forma como a cultura
escolar está estruturada atualmente, o espaço para alunos como Rubi e
Diamante. Alunos que têm uma cultura própria, bitos e valores que não são
condizentes com a cultura aceita pela escola.
Após esse rápido vôo sobre minhas leituras iniciais, volto a percorrer o
risco de meu bordado e os primeiros pontos efetuados. Fui aprovada na seleção e
passamos a conversar, minha orientadora e eu a respeito do projeto e dos
possíveis encaminhamentos. Passei a ler algumas bibliografias indicadas por ela
e fomos trabalhando com o intuito de analisar a estrutura curricular do Curso de
Pedagogia da UEM. Minha proposta inicial de investigação permanecia como citei
a princípio.
Durante as orientações, recebi diversas recomendações de leituras
referentes à origem do Multiculturalismo, seu discurso, as diferentes posturas dos
profissionais, sua aplicação pedagógica e didática e, nessa linha, comecei a
estruturar o texto de qualificação, com o intuito de, posteriormente, analisar a
estrutura curricular do Curso de Pedagogia. No entanto, risco e bordado o me
pareciam harmoniosos. Não ignoro os embaraços que senti diante de tal situação,
mas isso não me afastou de minha empreitada, aventurei-me a reordenar o risco
para continuar o bordado.
26
REORDENAR O RISCO PARA MANTER O BORDADO
Olho para trás, observo o bordado, tento
adivinhar o segredo do risco.
E então vejo que não é um risco harmonioso, de
um bordado em que cada forma se vai
acrescentando à anterior e a ela se ajustando.
cortes bruscos de linhas que de repente se
interrompem plantas arrancadas – e o risco
toma outra direção, tão diferente! (SOARES,
2001, p. 31).
O traçado do risco é formado de linhas sinuosas e imprevisíveis, no qual
muitas vezes, é preciso voltar sobre os bordados pontos, para encontrar outras
possibilidades de continuar meu movimento de pesquisa. Então, surgiu a seguinte
questão: Caso o multiculturalismo o se constituísse em disciplina no currículo
do Curso de Pedagogia, ele estaria ausente da formação do pedagogo nessa
instituição? Será que a estrutura disciplinar seria a única forma de reflexão da
questão multicultural?
O pensar caminhos para a incorporação das questões multiculturais nos
cursos de formação de professores ainda é bastante recente entre nós, além de
que a identidade de cada curso e de cada instituição formadora traça seu
percurso dentro do currículo para promover a educação multicultural, visando a
uma educação mais democrática, mais igualitária, porém não necessariamente
homogeneizante.
Os cursos procuram desenvolver, de várias formas, a sensibilidade para a
pluralidade de valores e universos culturais, decorrente do maior intercâmbio
cultural no interior de cada sociedade e entre diferentes sociedades. Podem,
tamm, resgatar valores culturais ameaçados, visando garantir a pluralidade
cultural. Podem buscar reduzir os preconceitos e as discriminações, podem,
ainda, destacar a responsabilidade da instituição escolar, dos professores, dos
funcionários, pais, enfim, a responsabilidades de todos os envolvidos na formação
integral das crianças, no esforço por tornar o mundo menos opressivo e injusto.
Com o apoio da educação multicultural pode-se, por fim, propiciar
a contextualização e a compreensão do processo de construção
27
das diferenças e das desigualdades, enfatizando-se que elas não
são naturais e que, portanto, resistências o possíveis. A
educação multicultural pode também ser usada, em outro
enfoque, para integrar grupos que contestem valores e práticas
dominantes, celebrar manifestações culturais dominantes, garantir
a homogeneidade e tentar apagar (ou esmaecer) as diferenças,
bem como evitar que a compreensão da constituição das
diferenças questione hierarquias estabelecidas (MOREIRA, 2001,
p.66).
Levando-se em consideração a recente produção científica sobre
currículo e multiculturalismo no Brasil, o conjunto de princípios organizadores da
educação multicultural é nômade, pode migrar de uma disciplina para outra do
currículo de formação de professores e em vários componentes curriculares para
além das disciplinas. Parece-me provisoriamente adequado para a reflexão da
prática pedagógica multicultural, sem contudo, haver a necessidade de um
espaço privilegiado que ilumine ou sirva de parâmetro para a questão.
Esse contexto poderia estimular o surgimento de uma forma pós-
disciplinar, que contribuísse para apontar a arbitrariedade de inúmeras
demarcações historicamente consagradas na formação de professores. Entre
elas, quero mencionar as fronteiras disciplinares e os muros acadêmicos, certos
conceitos teórico-filosóficos, além de outros fracionamentos instituídos por
categorias taxonômicas, como raça, gênero, religião, etnia e aqueles relacionados
às disposições físicas e intelectuais das pessoas que fazem o papel inverso
dentro de uma organização curricular, predestinada a formar professores. Agora,
ao analisar o risco do bordado, percebo os volteios e o quanto episódico ele tem
sido; a direção que tomei anteriormente, talvez não me leve ao caminho desejado,
é preciso revê-la, pois o bordado precisa seguir seu risco. O seu risco em espiral.
Quando minha orientadora pediu-me que encontrasse uma história de
inclusão, a princípio fiquei apreensiva, porque não conseguia imaginar que
história seria essa e de que maneira iríamos contextualizá-la no trabalho, mas a
cada orientação, a professora perguntava se eu já havia encontrado o caso e isso
me inquietava muito. Então, passei a perguntar aos colegas do Colégio onde
trabalho se conheciam algum caso de inclusão interessante para investigação. E,
para minha surpresa, uma professora perguntou-me se eu tinha conhecimento do
caso de dois irmãos, matriculados em uma escola municipal, sem terem
28
quaisquer sinais de socialização. Fiquei perplexa com o que ouvi e resolvi ir ao
Conselho Tutelar da cidade em que resido para saber se realmente havia ocorrido
o fato.
Duas conselheiras (J.I. e K.L.) confirmaram o relato, e, a partir daí, tive
uma história apaixonante para me debruçar e analisar. A inclusão de Rubi e
Diamante no contexto escolar, considerando que, naquela ocasião, eu não
visualizava as prováveis opções de análise dessa história, muitas possibilidades
descortinaram-se: descrição e análise dos primeiros contatos dos meninos com
outras pessoas; as tentativas de socialização; aspectos relacionados a seus
hábitos e costumes; linguagem; e a questão do processo de aprendizagem
dessas crianças. Passei, então, da proposta inicial, para a investigação desta rica
e instigante história.
29
RUBI E DIAMANTE: NARRAR UMA HISTÓRIA E CONSTRUIR UMA FONTE
A teia é o passado que reconstruímos,
desvendando para nós mesmos, tanto quanto
para os outros, o risco que guiou o bordado
(SOARES, 2001, p. 28).
Como todo silêncio é bordado de murmúrios, meu desafio, neste trabalho
como pesquisadora é resgatar a teia da história de Rubi e Diamante, buscando
retratar, da maneira mais fiel possível cada detalhe, na tentativa de fazer ecoar
suas vozes. Afinal, considerando as palavras de Walter Benjamin, Nada do que
aconteceu deve ser perdido para a história” (BENJAMIN, apud, GINZBURG,
1987, p. 31).
A HISTÓRIA, SEUS SILÊNCIOS E LACUNAS
Foi assim. Havia dois jovens, João e Maria, ambos paranaenses, ele de J.
nascido em vinte e nove de outubro de 1960
4
, e ela de P., nascida em vinte de
junho de 1975
5
. João era lavrador e analfabeto. Maria tamm era analfabeta e
foi educada somente para o lar, para a maternidade, assim como todas as moças
de sua comunidade. Não sei como se conheceram, mas bem que poderiam ter-se
conhecido na quermesse da igreja de alguma cidadezinha do interior do Paraná,
onde os jovens se conhecem e namoram, por se tratar de único evento social de
muitas pequenas cidades do interior.
E, como na maioria das histórias românticas, eles se casaram, ela de
branco, véu e grinalda, ou será que João fugiu com ela para evitar despesas, que,
para eles seriam desnecessárias? Bem provável, porque não uma certidão de
casamento. O certo é que viveram juntos em uma pequena cidade do Paraná
4
Conforme documentos: Certidão de Nascimento, Carteira Profissional, com emissão em 22 de
Novembro de 2002.
5
Conforme Certidão de Nascimento e Carteira Profissional, emitida em 22 de abril de 2004.
30
(Conforme relato da conselheira J.I., em 2007) e quero crer que tenham vivido de
forma próxima de muitos casais jovens do meio rural. Muitos sonhos,
sentimentos, esperanças, temores, raiva, desespero, esse misto que preenche a
vida de todos nas cidades ou no campo. De vez em quando, os relatos orais me
levam a crer nisso, no entanto, também mostram que eles formaram um casal
muito diferente dos outros, outro contexto cultural, no qual a vida foi se moldando.
Não foi possível rastrear o relacionamento conjugal dos dois e nem
porque se isolaram em lugar tão ermo, sem amigos, sem vizinhos próximos. Maria
em casa e João com seu trabalho itinerante de lavrador, indo onde houvesse
trabalho de plantio e colheita. “As vítimas da exclusão social, tornam-se os
depositários do único discurso que representa uma alternativa radical às mentiras
da sociedade constituída [...]” (GINZBURG, 1987, p. 24); assim esses
personagens escolheram o isolamento e o anonimato à margem da comunidade.
Ou, será que não foi uma escolha?
O certo é que, com o tempo, Maria, que devia não ser muito falante,
acostumou-se a quase não falar, possível conseqüência da solidão em que vivia...
Com o nascimento do primeiro filho, como relatou João
6
, ela emudeceu.
Opa, mas, assim, dou um salto muito grande na história!
A data em que João e Maria vieram para T. II, em E.C. não consta nos
registros do Conselho Tutelar de R., apenas que viveram no ano de 1995 na
cidade de C. A.; quando nasceu Rubi, o primeiro filho, foi, então, que uma dobra
se vincou na vida de Maria. De repente, ela dobrou-se sobre si mesma após o
parto; afastou-se da vida, deixou de falar, seu olhar tornou-se vazio, longínquo
como que sondando o horizonte. Tornou-se incapaz de zelar da casa, da família.
Trouxera ao mundo sua primeira pedra preciosa e, no entanto, não era capaz de
lhe prover as necessidades sem a ajuda de seu esposo. O que houve com Maria?
João nunca conseguiu entender, somente aceitou resignado.
Rubi nasceu em 28 de março de 1995 em casa
7
, embora conste, na
6
Relato oral feito às conselheiras K.L. e J.I., em 2007.
7
Embora conste em certidão que Rubi nasceu no Hospital da cidade de C. A. PR saliento que
em relato, João contou à conselheira “R. P. M.” ao falar sobre o nascimento do filho, que o mesmo
nasceu em casa “e posteriormente foi levado ao Hospital para atendimento”.
31
certidão
8
, que Rubi nasceu em 28 de março de 1995 no Hospital da cidade de
C.A. - PR. João contou à conselheira K.L. que o filho nasceu em casa “e,
posteriormente, foi levado ao Hospital para atendimento”. Se assim foi, Maria deu
a luz sozinha? Ou João estava com ela? Como ainda moravam em C. A. PR, é
provável que vizinhos tenham-lhe prestado ajuda e amesmo os tenham levado
ao hospital, mãe e filho, pois João cumpria sua sina de marido e pai ausente
devido ao seu trabalho itinerante.
Debilitada física e mentalmente, Maria passava os dias em companhia do
filho e certamente recebia ajuda das vizinhas durante a ausência de João. Mas
um dia, João mudou-se para F.F., no município de R. Muito provavelmente, em
busca de trabalho. Não imagino sua lida diária diferente da anterior, ela sempre
foi igual: levantar-se cedo, preparar se café preto, fazer uma panela de arroz, e
deixá-la em cima do fogão, que ele mesmo construíra, para que Maria se
alimentasse durante o dia. Sem a ajuda da vizinhança, como Maria cuidava de
Rubi? Será que o amamentava? Será que conseguia sentir sua presença? Será
que ouvia seu choro?
Infiro, inspirada em alguns depoimentos de João (Conforme relato da
conselheira J.I., 2007), que, ao cair da noite, João voltava para casa e, muitas
vezes, era visível para ele que cachorros andarilhos entravam em casa,
derrubavam a panela no chão e comiam o arroz. Será que Maria tinha se
alimentado? Novamente, ele cozinhava mais arroz e destinava para Rubi a água
do arroz espremida no pano
9
. Antes, Maria tinha leite que chegava a escorrer de
seu seio, então ele amparava o bebê enquanto sugava o leite materno, mas, com
o tempo, o leite acabou e João precisou improvisar como pôde. Depois de
alimentar Rubi, ele tentava alimentar Maria, com pequenos punhados de arroz
colocados diretamente em sua boca.
Apesar do cansaço, deve ter havido noites em que João não conseguia
conciliar o sono, seu corpo pedia o corpo de Maria. Aquela Maria o distante que
não mais lhe falava, não mais lhe acariciava. No entanto, era impossível para ele
8
Registro Civil, Nascimento nº. 17.787.
9
ouvi muitas histórias de mães que não produziam leite e, desprovidas de bicos de borracha
que eram colocados em garrafas ou mesmo mamadeiras, alimentavam seus filhos, no meio rural
paranaense, como fazia João.
32
não prestar atenção no corpo estendido no chão, ao lado do seu. Corpo bem
contornado de mulher jovem. Ele tomava-lhe o corpo. Algumas vezes, ela olhava-
o fixamente e ele sentia seu consentimento para a intimidade pressentida; em
outras, ela o empurrava e arranhava aos gritos.
O tempo segue inexorável, não se importando com a miséria ou com a
solidão do homem. O tempo o se atém às dores humanas e, em 19 de outubro
de 1998, a família já morava em F. F., na cidade de R. PR, Maria a luz a
outro menino, Diamante, consta em certidão
10
seu nascimento em domicílio, nas
mesmas condições desfavoráveis do primeiro parto. Agora, João e Maria tinham
dois filhos. Diamante foi inserido naquela dinâmica familiar de solidão, carências e
necessidades, mas Rubi não estava mais sozinho. Logo, logo, eles seriam
companheiros de infortúnio.
No tempo em que viveram lá, a precariedade era absoluta. Residiam em
um único cômodo. Na casa, roupas velhas jogadas em um canto e um pedaço de
espuma constituíam o espaço onde pai, mãe e os dois filhos dormiam. Não havia
nenhum móvel, apenas um pequeno fogão improvisado com tijolos. Os poucos
utensílios domésticos eram panelas bastante usadas e latas. No quintal da casa,
havia um cercado para a cadela. Não sei se Rabugenta
11
chegou ali sozinha ou
se João a trouxe para casa, já que ele era o único que saia de casa.
Maria pouco a pouco passou a ignorar os afazeres domésticos e os
cuidados com os meninos. Seu olhar tornou-se vago, fixo em algum ponto. Até
mesmo seu movimento corporal estancou. Ficava sempre em pé, parada no meio
do único cômodo da casa. Seu único movimento era roçar os braços, estirados,
no quadril e coxas. Tal compulsão feriu-os até sangrar e infeccionar. João relatou
que assim Maria passava os dias e as noites, sequer se deitava para descansar
ou dormir.
João continuava sua rotina, antes de sair de casa, cozinhava o arroz,
dele retirava um pouco para seu sustento e tentava, em vão, alimentar Maria, e o
restante deixava para os meninos. Que, por sua vez, muitas vezes, perdiam-no
10
Certidão n°. 17.622.
11
Nome que dei à cachorra que foi encontrada com a família, uma vez que estava infestada de
rabugem.
33
para os cachorros andarilhos. Quando não, era dividido com Rabugenta,
companheira fiel. Com ela, passavam a maior parte do tempo no cercado; às
vezes, soltavam-na e os três se embrenhavam no mato. Como resultado dessa
amizade, os meninos aprenderam a se alimentar de frutos e raízes, andar e correr
usando os pés e as mãos, latir, uivar, sibilar. Como preço dessa amizade,
encheram-se de pulgas e rabugem.
Não é fácil compreender como viveram tanto tempo nessa armadilha,
formada cotidianamente, sem que João percebesse o perigo eminente da
convivência familiar instaurada. Afinal, ele e Maria possuíam uma história social e
cultural bem diferente dessa a que eles se submeteram. Por quê? O que era a
vida para João? Qual a representação de paternidade para ele? Por que deixou
Maria presa em seu tormento? Por que agia com tanta passividade? Por que sua
vida, escabrosa para a maioria dos homens, parecia-lhe tão natural? Por que
nunca procurou ajuda?
Mas a armadilha continuava seu movimento e não demorou para que
seus elos se apertassem ainda mais. Um transeunte descobriu a inóspita vida de
Maria e de seus dois filhos. Passou a freqüentar o local sistematicamente, e, em
suas visitas, abusava sexualmente de Maria. Rubi e Diamante presenciaram
algumas vezes essas cenas. Pressentiram o perigo, e agrediram o homem com
socos e pontapés e, com ajuda de Rabugenta, que ora latia desesperada, ora
mordia o calcanhar do invasor, evadiram-no. Mas o mal estava feito. Maria
engravidou.
João sempre tão passivo para os acontecimentos de sua vida, dessa vez,
registrou queixa na polícia sobre os abusos que a esposa vinha sofrendo. Seria
porque estava ferido em seus brios, no sentido de ser “proprietário” de Maria?
Não sei se motivado por terceiros, o fato é que dessa desdita nasceu um menino
que João entregou para adoção. Eis, , valores adquiridos socialmente em
tempos atrás que ele soube guardar, por isso sentiu-se ofendido, percebendo ser
aquele um caso de polícia. E Maria, qual foi o entendimento que ela teve desse
triste fato. O que provocou em seu estreito mundo esse fado?
A vida prosseguiu, João e Maria, os meninos e Rabugenta teciam juntos
os emaranhados de seus destinos e isolados. em 2000, o Conselho Tutelar de
34
R. PR foi informado das agruras dessa família, por um senhor da pequena
localidade que, caminhando pelas redondezas, deparou-se com a resincia de
João e Maria e penalizou-se com a situação encontrada.
As primeiras visitas realizadas pelo Conselho Tutelar à família foram no
final do ano. Essas visitas, a princípio, eram informais e não possuem registros.
As conselheiras (K.L. e J.I.) relatam sobre o difícil acesso para chegar ao local. Ao
chegarem à residência, as conselheiras encontraram Maria com os filhos. Os
meninos estavam no cercado com Rabugenta, com as roupas aos pedaços e
imundos. Ao tentarem se aproximar, eles fugiram para o meio do mato. Segundo
relato das conselheiras, eles correram apoiados nos pés e nas mãos.
Conseguiram pegar apenas o mais novo, Diamante; ele, em total desespero,
chorava e se debatia.
Como João não se encontrava e a comunicação com Maria foi impossível,
elas soltaram o menino que voltou a desaparecer no mato. Maria estava em pé,
em posição de sentido, tinha as mãos e os s muito inchados. Recordam que,
em suas visitas, Maria foi encontrada sentada ou deitada; estava sempre na
mesma posição; descrevem-na como branca, acentuada pela falta de sol, cabelos
castanhos, aproximadamente vinte e cinco anos, grávida de mais ou menos
quatro meses.
O primeiro registro
12
de visita do Conselho Tutelar é do dia 5 de fevereiro
de 2001, realizado pelas conselheiras K.L. e J.I., juntamente com a assistente
social A.M. Consta visita à família, onde foram encontradas duas crianças com
problemas de saúde, sem a descrição de quais problemas seriam, e a mãe
deficiente, também sem descrição do caso. Em relação aos meninos, o registro
descreve:
[...] as crianças correram pro mato de quatro pés mesmo! Eles
tinham aquele assovio e aquele grito, era um grito que não tinha
comunicação de voz nenhuma, era assovio e grito, fala não
haviam desenvolvido (Conselheira K.L., 2006).
Somente na quarta visita à família, as conselheiras encontraram João,
portando um facão na cintura e uma espingarda artesanal. Ele estava cortando
lenha e, ao perguntarem se a informação que receberam procedia, o mesmo
12
Conselho Tutelar de R. – PR, Atendimento nº. 566.
35
confirmou: “têm realmente esses dois meninos, estão doentes mesmo e são meus
filhos; eu saio de madrugada, planto verdura pra um cidadão e eles ficam com a
mãe
13
”.
Fácil é compreender a reação de João à presença das conselheiras e o
interrogatório, para ele, seu domínio de chefe de família estava garantido.
Trabalhava de sol a sol para o sustento de sua família. Os filhos ficavam com a
mãe, a responsável natural por eles. E, assim mesmo, ele também despendia
atenção aos três quando chegava em casa. Falar, não falava muito com os
meninos, não porque era homem de poucas palavras. João não entendia a
interferência que estava sofrendo das conselheiras.
Como possivelmente pareceu às conselheiras um disparate a gravidez de
Maria, a conselheira K.L. o interpelou sobre a gravidez. João, em sua simplicidade
e seu olhar natural sobre o mundo por eles constituído, explicou que Maria
melhorou por um tempo, até mesmo algumas palavras ele havia dito. João deve
ter entendido que esse foi um período de calmaria e reciprocidade às suas
procuras noturnas.
As conselheiras descrevem João como um homem de aproximadamente
1,65m de altura, com quarenta anos, moreno, cabelos pretos, barba comprida,
que mal sabia assinar o nome. Embora não conversasse com os filhos, ele lhes
pareceu bastante falante; a princípio, não aceitou nenhuma espécie de auxílio,
afirmando que a família era de responsabilidade sua. Enquanto conquistavam a
confiança da família, as conselheiras K.L. e J.I. entraram em contato com a
agente de saúde e a assistente social que atendiam a comunidade para que as
mesmas pudessem auxiliar o caso.
O ano estava chegando ao fim e o Espírito de Natal se manifestava. Não
tem outro jeito, essa magia contagia a todos. A alegria, solidariedade e a
amizade são sentimentos que permitem resgatar um pouco da verdadeira
essência humana e libertar, ainda que por pouco tempo, da obsessão de trabalhar
apenas para pagar as contas.
O Natal obriga todos a serem mais humanos. Amar o próximo, em
qualquer outra época do ano, soa piegas, soa como demagogia ou mesmo
13
Informação relatada pela conselheira J.I. e transcrita na íntegra.
36
idiotice, pois seria um grave sinal de fraqueza. O “acontecimento Natal”, por mais
deturpado que seja, serve como pretexto para realizar o que faz bem, e que se
tem vergonha de fazer sempre: amar o próximo!
Com essas imagens guardadas no pensamento, as conselheiras, K.L. e
J.I. dirigiram-se à rádio em R.- PR e anunciaram à população a história da família
de João. Como era esperado por elas, a resposta da comunidade foi bastante
satisfatória, as pessoas ajudaram conforme podiam e, juntando todas as doações,
as conselheiras puderam oferecer um Natal mais “digno à família”, (Conforme
relato da conselheira J.I.).
O Natal na roça, de que muitos guardam lembranças da infância,
começava e ainda começa com os preparativos no dia 23 de dezembro com a
matança de porcos, frangos e muita pinga para o peru. Descrevo, aqui, o
ambiente do Natal na roça, lembrado por um velho:
Lembro-me de Natais, onde num almoço compareciam mais de
cinqüenta pessoas, algumas com desculpas de que "só vim
cumprimentar a comadre e o compadre"! Nesses casos, meu pai,
Seu Joaquim, os recepcionava da seguinte maneira: - Podem
chegar!. Vão chegando e se assentando. O menino Jesus passou
por aqui! E assim, o almoço de natal era servido até que a noite
chegasse. A mesa nunca era desfeita. A presença do Deus
Menino era coisa palpável, que também junto com todos, faziam a
festa de natal prorrogar e fechava-se a noite com teo, e uma
roda de viola. Às vezes, o grupo de baianos e mineiros que faziam
parte da "Folia de Reis" compareciam por cortesia. Com lágrimas
nos olhos, lembro vocês daqueles natais, daqueles cantares, da
bandeira dos reis magos, dos versos, das homenagens "tiradas"
pelo líder da folia de reis e do palhaço, que não entrava na casa e
ainda tinha que dançar, ao som das caixas e zabumbas lá fora, no
quintal fronteiriço da casa grande, para ganhar as "boas festas"
(SANTOS, 2008, p.7).
Todavia não me parece que essa fosse a lembrança que João e Maria
pudessem ter guardado na memória; talvez, a descrição de Sanches Neto se
assemelhe às possíveis recordações dos personagens.
Não havia ceia na noite que antecede o nascimento de Jesus,
mas todos iam à missa do galo, mesmo os que não eram
37
religiosos. Saíam no fim da tarde, enchendo os carroções de roda
dura, aos quais se atrelava mais um cavalo, devido à tumultuada
carga humana. As pessoas vestiam suas roupas de trabalho, mas
levavam um embrulho com as vestes novas, que seriam trocadas
na cidade, na casa de conhecidos. Na entrada da cidade,
apeavam do carroção, dispersando-se por vários endereços.
Banhavam-se em baciões de lata, mudavam a roupa e seguiam
para a missa, que começava pontualmente à meia-noite, pois não
havia a ceia para atrapalhar o programa religioso, principal evento
da data. A partir da uma, no dia 25, todos voltavam no mesmo
carroção, agora com as roupas novas no corpo e as velhas
envoltas em papel de embrulho, amarradas com barbantes
Ninguém trocava presente, mas todos mandavam preparar uma
muda nova de roupa e compravam calçados, estreados na missa
do galo e depois usados, meio sujos, no dia de Natal
14
(SANCHES NETO, 2005, s/p.).
Ocorre-me que nem João, nem Maria guardassem lembranças do Natal, é
possível que eles nem mesmo atentassem para o calendário. Assim, nunca os
meninos Rubi e Diamante ouviram falar de Natal e muito menos de Papai Noel.
Mas, naquele Natal, a casa foi limpa por um mutirão de abnegadas pessoas,
impregnadas pelo espírito natalino, que lhes levaram cestas básicas, utensílios
domésticos e roupas. O único a entender toda essa movimentação foi João que
passou a dar mais crédito às visitas das conselheiras K.L. e J.I. (De acordo com o
relato da conselheira J.I., 2007).
Nessa ocasião, as conselheiras K.L. e J.I. explicaram ao João o que era o
Conselho Tutelar e que sua finalidade era ajudar a família. Prontificaram-se a
levar os meninos para a Casa de Passagem
15
e encaminhar Maria para
tratamento, caso ele permitisse.
João prometeu pensar, apesar de perceber os benefícios das visitas das
duas conselheiras, ainda não confiava inteiramente e resistia àquela intromissão.
Enquanto enfrentavam o desafio de conseguir a confiança de João, as
conselheiras K.L. e J.I. levaram Rubi e Diamante ao Posto de Saúde para
atendimento médico (Conforme relato da conselheira K.L., 2007).
Sem entender o que estava acontecendo, mas acostumados com as
14
SANCHES NETO, Miguel. Natal na Roça. Disponível em
<http://www.verdestrigo.org/sitenovo/site/cronica_ver.asp?id=843>. Acesso em: 10/03/2008.
15
Entidade Assistencial que visa promover a proteção integral da criança até 12 anos de idade
incompletos.
38
conselheiras, que tudo fizeram para se tornarem amigas de Rubi e Diamante
nesse pouco tempo de convívio, os meninos as acompanharam com um misto de
medo e euforia com tudo que desconheciam, sobretudo com a nova experiência
de andar de carro. Gostaram do vento no rosto, sentados cada um próximo a uma
das janelas traseiras do carro. Na chegada à cidade, o colorido e as formas das
edificações faziam os olhos dos dois dobrarem de tamanho e eles emitiam sons
que facilmente eram entendidos como encantamento. No entanto, a permanência
no ambulatório foi difícil para os irmãos, uma vez que o odor, a presença próxima
de estranhos e a sisudez do local os assustaram muito. Não foi possível a
imediata remoção das pulgas e bichos de pé, razão principal da visita ao Posto de
Saúde, e foi preciso agendar intervenção cirúrgica no Hospital da Criança em P.
G. – PR.
Apesar do medo que passaram, os meninos gostaram do passeio e não
se negaram a, novamente, passear com as já amigas conselheiras K.L. e J.I.,
mas, dessa vez, o passeio terminou com Rubi e Diamante gritando, mordendo,
chutando e empurrando as amigas que precisaram ajudar as enfermeiras a
segurá-los para que fosse possível a intervenção cirúrgica. Os médicos retiraram
mais de cem pulgas e bichos-de-pé de cada um.
Ao voltarem para casa, Rubi e Diamante tinham a cabeça, pescoço,
braços e barriga doendo e ardendo devido ao processo cirúrgico, e os pés e mãos
enfaixados, que estes membros foram os que precisaram de maior atenção
médica. K.L. e J.I. ficaram penalizadas de ver o sofrimento dos meninos com as
pontas dos dedos dos pés e das mãos dilacerados. Pensaram elas que nunca
mais os irmãos teriam os dedos normais. Porém, depois de alguns meses, seus
dedos estavam inteiramente recuperados.
Entre as circunstâncias adversas que a família de João e Maria vivia
estava a ausência de documentação; assim as conselheiras K.L. e J.I.
encaminharam a questão, faltavam-lhes os meios que a cultura consagrou para
certificar, diante de si e diante dos outros, a sua genealogia de pai, mãe e filhos.
Sem registro de nascimento, Rubi e Diamante não eram reconhecidos
pela sociedade e mal existiam para si mesmos! O simples acontecimento
biológico não os promoveu à instituição do humano. Faltaram-lhes os meios que a
39
cultura consagrou para certificar, diante de si mesmos, os ritos determinados pelo
Estado para estabelecer formalmente a existência da pessoa e do cidadão.
Conscientes da importância do registro de nascimento e de que a sua
falta implica em ausência de reconhecimento oficial, entrave à constituição do
sujeito e do cidadão, as conselheiras providenciaram a certidão de nascimento de
Rubi e Diamante. uma diferença entre os registros das conselheiras K.L. e J.I.
(Conforme relato da conselheira K.L., em 2006) e as certidões de nascimentos de
Rubi e Diamante com relação à idade dos irmãos. Pelas certidões, Rubi estaria
com seis anos e Diamante com a idade de três anos e, nos documentos do
Conselho Tutelar, consta um menino de sete anos de idade e outro de três anos
de idade. Porém, nada os comprometia mais do que a ausência de identificação.
Documentos providenciados, era hora de cuidar de Maria. Com
autorização de João, as conselheiras K.L., J.I. e F.H. levaram Rubi e Diamante
para a Casa de Passagem Filhos de Deus e buscaram cuidados médicos para
Maria em R. - PR.
No dia 18 de maio de 2.001, houve outra visita registrada
16
à família,
realizada pelas conselheiras K.L., J.I., F.H. e pela assistente social A.M.
Na data de 18-05-01, fomos a a localidade de F. com a
assistente social para prestarmos atendimento à família do sr [...]
Trouxemos a senhora [...] para consultar e fazer exames, também
abrigamos os menores na Casa de Passagem para medida de
proteção e tratamento médico e psiquiátrico (CONSELHO
TUTELAR, 2001).
A conselheira K.L. hospedou Maria em sua casa, por ter que esperar o
início da semana pela vinda, de P.G. - PR, da psiquiatra que atendia no Posto de
Saúde de R. - PR Maria aquietou-se em um canto da casa, mas seus olhos
percorriam todo o ambiente. J.I.. observou que parecia haver em seu olhar um
resquício de consciência e arriscou perguntar-lhe se estava com fome. Foi
surpreendida pelo movimento de cabeça afirmativo. Com tranqüilidade, J.I.
conduziu sua hóspede para a cozinha, preparou-lhe um prato de comida e a
sentou à mesa. Sempre carinhosa, ofereceu-lhe os talheres, mas Maria os
recusou com um movimento de cabeça. Esses dois movimentos foram a primeira
16
Atendimento no. 665 – Conselho Tutelar.
40
comunicação entre elas. Maria alimentou-se pouco e com as mãos. Seu
comportamento era titubeante e subserviente, porém bem mais tranqüilo do que
havia presenciado anteriormente. À noite, Maria recusou-se a dormir na cama
oferecida por J.I. e deitou-se no chão.
Na manseguinte, J.I. convenceu Maria a deixá-la a ajudar para que
tomasse banho; em seguida, vestiu-lhe um vestido seu branco em tecido leve
com florzinhas bem delicadas. Quando se viu refletida no espelho, Maria esboçou
um leve e rápido sorriso. J.I. penteou-lhe os cabelos e precisou insistir muito para
cortar-lhe as unhas dos pés e das mãos, as quais estavam arcadas de tão longas
e sujas. Primeiro, precisou mostrar-lhe cortando suas próprias unhas e
evidenciando-lhe que tal ato não era doloroso (Conforme relato da conselheira
J.I., 2006).
O domingo transcorreu em tranqüilidade, a não ser quando Maria
percebia que, na casa, entravam outras pessoas. Sua fisionomia era de pânico e
seus movimentos repetitivos de braços recomeçavam. Então, J.I. pedia que seus
familiares se ausentassem do ambiente em que Maria estivesse para novamente
acalmá-la. Na manhã seguinte, as duas se dirigiram ao Posto de Saúde. Após a
consulta, a Doutora P.Z. requereu o internamento de Maria no Hospital
Psiquiátrico S. C. em P.G. – PR.
João foi avisado e assinou a documentação necessária para o
internamento e voltou para casa, para seu trabalho, voltou para a solidão. Para
conviver com ela João dedicava suas horas livres consertando bicicletas velhas
(Conforme relato da conselheira K.L., em 2006). Sua companhia limitava-se a
Rabugenta. Ah! Rabugenta também foi tratada e já se recuperava da escabiose.
Maria ficou internada por mais de um mês, não sei o tempo exato.
Durante seu internamento, o recebeu a visita de João. Ao receber alta, Maria
levou na alma o diagnóstico de portadora de patologia psiquiátrica crônica e
irreversível e, para casa, remédios para serem tomados continuamente.
Dessa forma, ela voltou a falar, a cuidar da casa, lavar roupa, tudo sob
orientação das conselheiras do Conselho Tutelar, que também lhe levavam, todos
os meses, os remédios e uma cesta básica.
A vida permanecia igual. Levantavam-se cedo, João tomava seu gole de
41
café, agora feito por Maria, e ia trabalhar. Ela ficava com Rabugenta a quem
aprendera a conhecer, cuidar e alimentar. Porém Maria nunca mais se viu
refletida no espelho com o vestido branco com ramos de flores delicadas e os
cabelos penteados, perdia-se em seus dias, era engolida pelo frio da solidão, sem
dor, nem saudade, afastada da loucura, mas com lampejos dela.
Rubi e Diamante estavam na Casa de Passagem e João explicou à Maria
o motivo da ausência dos meninos. Estavam na cidade para estudarem, disse-lhe
ele, contudo sua capacidade de compreensão vagava em vislumbres negados
pela razão.
Nessa época, orientados pelas profissionais que os assistia, o casal
mudou-se para E.C., na cidade de R. – PR, com a justificativa de que lá Maria não
ficaria tão enquanto João estivesse no trabalho, e, quando os meninos
voltassem para casa, poderiam estudar na escola local. A família estaria reunida
novamente. Se é que algum dia essa família esteve reunida. Havia esperança por
parte daquelas profissionais que a realidade, no futuro fosse alterada.
A ESTADIA NA CASA DE PASSAGEM: DE UM IMPOSSÍVEL A OUTRO
17
Rubi e Diamante foram abrigados na Entidade Assistencial Casa de
Passagem, situada à Rua G. M., n°. 1213, no centro da cidade de R. PR. Essa
entidade foi fundada em 24 de abril de 2001. A Casa de Passagem tem por
objetivo primordial a proteção integral da criança até 12 anos de idade
incompletos, que tenha seus direitos, reconhecidos por Lei oficialmente,
ameaçados ou violados, além disso busca assegurar o direito fundamental do
convívio familiar por meio de retorno à família natural ou inserção em família
substituta.
Funciona em prédio cedido pela Prefeitura Municipal de R. PR.
17
Alusivo ao título do livro de Mannoni: De um impossível a outro. Tradução de Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro, ZAHAR, 1985.
42
Atualmente, conta com oito funcionárias fixas e uma funcionária que trabalha nas
folgas e férias das demais. As funcionárias são divididas em turnos, sendo que
duas trabalham das 07:00 h. às 19:00h, folgando 24 horas após o plantão e duas
que entram às 19:00h. e saem às 07:00h. com o mesmo período de folga
posterior.
As funcionárias o responsáveis pelos cuidados com a limpeza da casa,
o preparo da alimentação para as crianças, arrumá-las para irem à escola
18
e,
sempre que necessário, levá-las ao médico e demais profissionais da saúde.
As crianças internas têm uma rotina que deve ser cumprida, levantam às
07:00h, tomam café e são levadas com transporte da prefeitura à escola; os
menores são levados ao Centro de Educação Infantil, onde ficam até às 16:00h.
Quanto aos maiores, às 12:00 h., o transporte da prefeitura pega-os novamente e
os leva ao Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), onde almoçam e
realizam atividades, como: informática, bordado, aulas de religião e brincadeiras
diversas. Às 16:00h., o motorista do transporte da prefeitura pega todas as
crianças no PETI e na Creche e os leva novamente à Casa de Passagem. As
crianças, eno, tomam banho, assistem à televisão até às 19:30h, jantam e
recebem uma sobremesa ou doce posteriormente. As atendentes auxiliam nas
tarefas, deixam o material arrumado para o próximo dia de aula e, por volta das
22:00h. as crianças são colocadas nos quartos para dormirem.
Os quartos são dois, divididos para meninos e meninas, com vários
beliches. Ao acordarem, os internos têm o dever de arrumar cada um sua cama e
dobrar seu pijama, além disso são orientados a realizar uma oração antes das
refeições.
Rubi e Diamante foram fincados, cravejados nessa realidade
completamente estranha para eles. Era um novo mundo. A vida na Casa de
Passagem deveria ser um estranho mundo. Para sobreviver, seria necessária a
extrema união dos dois irmãos. O medo deve ter tomado conta deles, por terem
sido despojados de todas as referências anteriores que possivelmente lhe traziam
algum conforto.
Havia certas regras que eles não conheciam e, portanto, não entendiam
18
Uso escola para toda instituição escolar, seja de educação infantil ou anos iniciais do ensino
fundamental.
43
como, por exemplo, tomar banho. No início, eram auxiliados pela atendente T.Z.
Resistiam ao máximo e, algumas vezes, defendiam-se tomando atitudes vistas
pelos demais como agressivas.
O mesmo acontecia com relação às refeições. Por várias vezes, foram
surpreendidos com a boca no prato, então, a atendente mostrava o garfo e a
maneira como deveriam usá-lo. A reação dos irmãos era de indignação. Tal
imposição os irritava profundamente, e a irritação quase sempre era transformada
em atitudes agressivas para com a atendente.
Na casa de passagem, havia objetos que eles jamais haviam visto: uma
caixa da qual saiam vozes de dentro. Um fogão que fazia fogo sem ter que por
lenha. Outra caixa, um pouco maior, na qual cabiam muitas pessoas lá dentro e,
mesmo que procurassem bem, não conseguiam entender como elas haviam
entrado lá. Estranho mundo esse em que estavam cravados. Pouco a pouco, o
medo foi substituído pela curiosidade e passaram a achar engraçado, mas não
chegavam perto de tais objetos e não ousavam tocá-los. (Relato da conselheira
K.L., em junho de 2006)
Quando conversei com o presidente da Casa de Passagem N.D., relatou-
me a dificuldade encontrada por todos no convívio com Rubi e Diamante. Será
que a angústia dos meninos não era visível? O presidente informou-me que Rubi
precisava tomar medicação controlada, a ausência do remédio o deixava bastante
agressivo. E, nessas ocasiões, seu irmão Diamante acompanhava o
comportamento do irmão mais velho e os dois tentavam bater nas demais
crianças e transtornavam o ambiente da casa (Conforme presidente da Casa de
Passagem, N.D. em fevereiro de 2008).
Ministrar o remédio para Rubi era um trabalho digno de Hércules, era
preciso que duas atendentes o segurassem, e, com freqüência, ele catrafiava o
remédio na boca a que o soltassem e, posteriormente, jogava-o fora. A
atendente T.Z. relatou que foi preciso, em várias ocasiões, derrubá-lo no chão
para que ele engolisse o remédio. Em uma dessas cenas, Rubi se debateu e
esperneou o quanto de, mas, quando percebeu que não tinha força suficiente
para se desvencilhar de C.M. mordeu-a com muita força, então foi preciso que o
derrubassem no chão e o imobilizassem (Relato do presidente da Casa de
44
Passagem, N.D, em fevereiro de 2008).
De tanto assistir a essas cenas, um dia, Diamante, que é descrito pela
atendente T.Z. como agressivo em um de “seus atos de fúria”, encheu uma colher
com soda ustica e tentou dá-la a uma criança. Quando uma das atendentes
tentou se aproximar ele havia posto a soda na colher e se dirigia aa criança
para fazê-la comer. (Relato da atendente da Casa de Passagem T.Z., em
fevereiro de 2008). Não me foi relatado como Diamante teve acesso à soda
caustica e, se por manusear apressadamente tal produto tão corrosivo, o menino
sofreu ou não alguma queimadura.
Ainda pelo relato do presidente da Casa de Passagem, N.D. (fevereiro de
2008), tomei conhecimento de que Rubi e Diamante quebraram, por diversas
vezes, as vidraças da Casa de Passagem com pedras, e de algumas casas da
vizinhança. Relata que era comum as atendentes se queixaram das atitudes
abrutalhadas dos irmãos, mas ele próprio nunca presenciou tais cenas.
Nesta parte do texto, procurei narrar os acontecimentos pela ótica
institucional, procurando ser fiel aos relatos que ouvi e gravei. Entretanto foi-me
difícil não inferir como os meninos sentiram e viveram essa passagem, sem tentar
dar-lhes voz, visto que saíram de um impossível para outro, com uma grande
diferença, o segundo impossível era um estranho mundo. A emoção perturba o
meu fazer científico e, na memória, desponta-me Graciliano Ramos em A Infância
escrito em 1945 redescobridor de seu mundo de menino nordestino, repleto de
lembranças dolorosas. Num misto de imaginação e memória, o retrato de sua
meninice revela o desprezo pela criança como sujeito social, na passagem do
século XIX para o XX, em que o autor deixa perceber claramente a severidade
como instrumento mais eficaz para o modelo de educação vigente. Ai de mim,
ai das crianças abandonadas na escuridão” (RAMOS, 1985, p. 98).
O INGRESSO DE RUBI E DIAMANTE NA ESCOLA: CENAS FORA DO
CONTEXTO
45
Depois de um mês de atendimento na Casa de Passagem, os tons da lã
que tecia a história de Rubi e Diamante ficaram mais vivos e quentes. Em junho
de 2001, os meninos foram matriculados em uma turma de Jardim I na escola
P.V.
Quem sabe o que passou pela cabeça de Rubi e Diamante no dia em que
lhes foi anunciado que iriam para a escola? Sua vida, ultimamente, mudava tanto
que não dava nem tempo de compreender as novidades e outras já iam surgindo.
Primeiro foi o passeio de carro. Foi ótimo, o vento batendo no rosto, chegar à
cidade, tão grande, tão cheia de gente. A segunda vez foi o prenúncio de dor e
desespero, voltaram enfaixados, doloridos.
Depois, novamente, o carro levou-os para a cidade e lá ficaram eles na
Casa de Passagem. Tantas novidades precisaram ser enfrentadas: o banho, a
cama, a comida, o jeito de comer, os horários, o remédio, o jeito de engoli-lo.
Tudo tão estranho, tanta solidão, tanta raiva, tanto desespero, tantos inimigos.
Até que, um dia, acordaram de manhã e a roupa, para ser vestida, estava
diferente. Estranharam, puxaram pelo braço a atendente que os auxiliava todas
as manhãs. Aquela roupa não era a deles. Não queriam vestir. - Sim, é esta a
roupa que irão vestir hoje”, disse-lhes ela. “Este é o uniforme para irem à escola.
Hoje vocês irão à escola!”.
Sem entenderem bem o que era uma escola, desceram da Kombi muito
ressabiados e pela primeira vez, os irmãos pisaram no ambiente escolar. Outro
espaço completamente novo e estranho. Entre pessoas desconhecidas, no meio
de uma porção de crianças que eles não conheciam, algumas o assustadas
como eles mesmos. Certamente, sentiram-se abandonados pelas únicas pessoas
com quem possuíam mais intimidade, as conselheiras J.I. e K.L. e,
provavelmente, foram tomados por terrível angústia. Sentiram-se "traídos" e a
sensação de abandono deve ter-se acentuado. E, como resultado, não quiseram
entrar.
Na chegada, Rubi gritava muito, emitia um som selvagem, demonstrando
desespero nos gritos, na fisionomia e nos gestos. Foi então que a conselheira J.I.
chegou e tentou acalmá-lo por volta de uma hora. Quando ele ficou mais calmo, a
conselheira o deixou com a professora. Ao vê-la sair, o desespero tomou conta
do menino que tornou a gritar e, gritando cada vez mais alto, tentava subir na
46
janela e, para isso, arrastava as mesinhas até a janela. Durante uma hora e meia,
essa foi a cena na sala de aula da professora F.X.
19
.
Após esse tempo, a professora conseguiu acalmá-lo no colo, em posição
de segurar bebê, com as pernas presas à sua cintura, mas logo Rubi recomeçou
a chorar e a pular nas mesas, totalmente descontrolado. A professora, então,
chamou a pedagoga S.X. para assumir a turma enquanto ela tentava acalmar o
menino na parte externa da escola, um espaço bem arborizado. Mas Rubi, ao
enxergar as árvores, começou a correr, tentava subir nas árvores e no muro para
sair da escola. Como a tentativa de acalmá-lo fugiu do controle da professora, ela
o levou novamente para a sala de aula.
Muito arredio, Rubi não falava nada, somente emitia sons como os que
ouvia no mato, o latido da cadela (ele latia, uivava e andava como a cadela) toda
vez que a professora se aproximava dele ou entravam pessoas na sala ele
gritava e se colocava de quatro (AU,AU,
AU,U,U,U,U,U,U,IE,IE,IE,IE,EI,IE,IE,I,I,I,I,I,I,I,I,I, e sons dos pássaros).
(Depoimento da professora F.X., em junho de 2007).
Caso fosse tocado, Rubi se encolhia no chão e começava a rodar em
atitude defensiva. Puxava os cabelos das outras crianças, empurrava, mordia e
levava tudo à boca: massa de modelar, papel, lápis, giz de cera, tudo era levado à
boca e mastigado:
[...] eu percebia o desespero estampado nos gritos, na fisionomia
dele, nos gestos. O primeiro dia, a primeira semana
especificamente foram assim: gritos. Aí, eu com toda a minha
inexperiência, todo o meu despreparo para a situação, levei ele pro
banheiro, no momento do lanche, vamos lavar a mãozinha. Aí, ele
parou, fez xixi na porta do banheiro e quando viu a água ele
começou a gritar, ele queria bater na torneira, chutava a porta
(Professora C.O.S)
20
.
A professora tentou explicar-lhe que o banheiro era lugar para lavar as
mãos e urinar. Rubi parecia entender e gostava de ver a água saindo da torneira
19
Professora do Jardim I – Escola P.V.
20
Conversa gravada e transcrita na integra.
47
e no vaso sanitário. No entanto, fazia xixi na porta ao invés de utilizar o vaso. Em
seguida, gritava, batia em quem estivesse por perto, chutava a porta. “Então, a
primeira semana foi terrível, porque foi basicamente isso: chutes, gritos, tentativas
de fuga, por várias vezes ele me arranhou!(Professora F.X.). Rubi reagia como
se ela fosse agredi-lo, como se ela representasse perigo a ele e ao irmão. As
outras crianças, ao perceberem as reações “diferentes” dos novos colegas de
classe, ficaram bastante assustadas e evitavam o contato com presença de
meninos “tão estranhos”. Inclusive, alguns alunos pediram aos pais para não irem
mais à escola por medo deles e esses se dirigiram à direção para reclamar. A
professora F.X. afirma que algumas mães apresentaram uma “[...] rejeição
terrível” quanto à presença de Rubi e Diamante na mesma classe dos seus filhos.
Afinal, a Escola P.V. é uma instituição particular e a maioria dos alunos era
proveniente de uma classe social mais privilegiada.
Foi um processo bastante lento, mas, assim que as crianças se
acostumaram com os dois irmãos e conseguiram assimilar que eram apenas
crianças que apresentavam um comportamento diferente do delas, passaram a
auxiliar a professora no atendimento aos dois colegas. Intervinham quando Rubi e
Diamante colocavam materiais como giz, lápis, papel, massa de modelar na boca,
mesmo antes da professora ver o que estava acontecendo. Preocupavam-se com
a ausência deles.
Durante os sete meses que os irmãos estiveram nessa classe, a
professora F.X., diz que Diamante não conseguiu acompanhar as demais
crianças nas atividades pedagógicas, mas demonstrava mais atenção e, algumas
vezes, conseguia realizar as atividades propostas, enquanto que Rubi não fez
uma única atividade pedagógica; ele comia e jogava os materiais. Mas, segundo
F.X., a prioridade no trabalho era a socialização, ensiná-lo a usar o banheiro,
higienizar-se, usar colher e copo; no primeiro mês, ele jogava o suco no chão e
lambia”; ensiná-lo a permanecer sentado durante algumas atividades (Conforme
relato da Professora F.X.)
21
.
Aos poucos, Rubi foi aceitando a aproximação dos colegas e da
professora, deixando que os mesmos o tocassem e a professora o ensinou a
21
trecho da entrevista gravada com a professora, transcrito na íntegra.
48
abraçar e beijar a face. Aí, a todo instante, ele queria beijo e abraço, abraçava
todos que se aproximavam; diminuiu consideravelmente a “degustação” de
objetos, e começou a balbuciar tal qual bebê.
O tempo foi passando e, por volta de três meses de freqüência à escola,
Rubi tentava se expressar oralmente, demonstrava estar prestando atenção nas
conversas em sala de aula. A professora F.X. o auxiliava, segurando em seu
queixo, pedindo-lhe que percebesse o movimento da língua enquanto repetia,
junto com ela, palavras curtas como: bola, sapo, carro, pão, entre outras.
Passaram-se cerca de quatro meses para que ele começasse a repetir algumas
palavras.
Diamante estava familiarizado com a escola e as pessoas e dizia:
OI, TCHAU, DIA, TIA, MEU, DÁ, XIXI, BOLA, apesar de ser uma pronúncia
bastante distinta. Por exemplo, ao falar a palavra oi, a pronúncia era óóóii. Emitia,
tamm compreensivelmente, o nome dos colegas. Aos poucos, a turma
aprendeu a aceitar as dificuldades dos meninos e a ajudá-los a superá-las. Eles
tentavam comunicar-se, perguntavam como eles estavam e eles respondiam:
ahlelala, ahblablablablãblãblã, o balbucio de um bebê, né?” (Conforme relato
da Professora F.X.)
22
.
A professora F.X., afirma que, pouco a pouco, as atitudes agressivas
foram desaparecendo e tanto Rubi quanto Diamante passaram a retribuir, por
meio de sorrisos e gestos, o carinho demonstrado por ela e pelos colegas da sala
de aula. Mas ela sofreu bastante (conforme seu relato) pelo despreparo para agir
em uma situação como essa, e lembra que, na sala de aula, foi um trabalho à
parte com essas crianças:
[...] eu acabei trabalhando separado mesmo com Rubi e
Diamante, porque eu não sabia, não tinha a menor idéia de como
conseguir trabalhar os conteúdos com eles, além de que o
trabalho foi muito voltado para a socialização (Professora F.X)
23
.
No ano de 2002, o Rubi foi para a turma de Jardim III, segundo a
pedagoga da S.X., por causa de sua idade, que era incompatível com a dos
22
Trecho da entrevista gravada com a professora, transcrito na íntegra.
23
Professora F.X., entrevista gravada e transcrita na integra.
49
demais alunos, apesar destes terem entre cinco e seis anos de idade e ele
tinha de sete para oito anos. A turma contava no total com quarenta e dois alunos.
Com a mudança, o drama recomeçou. Ao chegar nessa turma, Rubi
urrava, gritava e falava a sílaba final de algumas palavras. Por exemplo: se
perguntassem, qual é o seu nome? Ele balbuciava, balbuciava e no final dizia “o”,
seu nome terminava com “o”. Para chamar alguém, geralmente, o menino corria
atrás e puxava a roupa de quem queria chamar atenção. Mostrava com o dedo o
objeto que queria. Desenvolvia uma linguagem gestual e tentava imitar a
linguagem oral de seus colegas.
Novamente, não se relacionava com ninguém e demonstrava muita
desconfiança com todos. A professora T.S. ressalta sua angústia em trabalhar
nessa turma com quarenta e dois alunos, e conceder atenção especial a um aluno
que exigia cem por cento de assistência. Destaca, tamm, a dificuldade de
receber um aluno com necessidades educacionais especiais em uma turma
regular de ensino. T.S. considera que sua formação não lhe deu o suporte
necessário para atuar efetivamente naquela situação específica.
Quanto ao processo de aprendizagem de Rubi durante os quatro meses
em que esteve nessa turma, ele conseguia repetir algumas palavras e contar a
dez. Porém, segundo a professora T S., era repetição, não que soubesse o
que estava dizendo. Os dias da semana, por exemplo, ele só pronunciava a
sílaba final, para dizer segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, ele somente dizia
“a”, a”, “a”. Ele fazia: hãmmmãhmmm; por exemplo, caderno: lalala-NO, seu
nome: lalala-LO.
Para tal situação, a professora T.S. expende:
[...] de onde ele veio, a socialização era zero e a cultura, se é que
a gente pode chamar isso falta de cultura, porque eu acho que era
mais falta de carinho, de amor, de socialização, do que falta de
cultura e acho que juntando tudo isso dá uma, como posso dizer...
a falta de cultura, a falta de socialização, falta de ambiente escolar
e falta de ambiente humano” (Professora T. S.)
24
.
Quanto à atuação escolar de Rubi no que diz respeito á linguagem oral, a
professora T.S. diz que, no final do ano, já conseguia entender algumas palavras
24
Professora L.S., entrevista gravada e transcrita na integra.
50
que ele “dizia” porque tinha pego “as manhas” dele. “Muitas vezes, ele preferia
mostrar com o dedo, assinalar, a ter que repetir uma palavra” (Conforme relato da
professora T.S). Quanto aos demais desempenhos, ela ressalta que Rubi o
tinha limite de espaço na folha de desenho, preferia cores fortes: preto, vermelho,
azul, alaranjado e seus desenhos eram riscos, às vezes três ou quatro riscos, um
de cada cor e estava pronto.
Rubi demonstrava muita dificuldade com a coordenação motora fina, tinha
dificuldade de segurar um lápis na mão, segurar e fazer bolinha com a massa de
modelar, ou bolinha de papel, picar papel com a tesoura; ele rasgava o papel ao
invés de cortar. Em atividades com massa de modelar, Rubi continuava ingerindo-
a, o realizava a atividade proposta, cujo objetivo era o desenvolvimento da
coordenação motora; o mesmo acontecia com as tintas: se gostasse da cor, ele a
colocava na boca e a deglutia.
Se a professora insistisse, ficava irritado, rasgava, mastigava a folha ou
amassava e jogava fora. Rubi não aceitava ser constrangido, não realizava as
atividades quando obrigado. Entretanto, nas aulas de educação física, ele gostava
de pular, correr, pegar joguinhos de montar e fazer encaixe.
A pedagoga S.X.
25
da Escola P.V., ressalta que a experiência com Rubi e
Diamante foi um desafio. Como as professoras requeriam seu auxílio; foram
necessárias várias reuniões pedagógicas para discutir o caso, pois os meninos
não possuíam a socialização necessária para conviverem em grupo(Conforme
seu relato).
Dessa forma, não se pautaram nos planejamentos das séries, mas
passaram a desenvolver atividades relacionadas à socialização e ao
desenvolvimento de hábitos de higiene necesrios a essas crianças. A pedagoga
S.X. também destaca que as dificuldades encontradas pelas professoras, e ela
une-se às colegas, são provenientes da ausência de fundamentação teórica sobre
a inclusão escolar nos cursos de formação docente.
Ao se depararem com o caso, as professoras apelaram para o sico,
iniciaram pela educação que a maioria das crianças recebe antes de ir à escola,
25
Pedagoga da Escola P.V. – Educação Infantil.
51
uma vez que Rubi e Diamante, nas palavras de S.X., não foram preparados para
a vida social.
As demais crianças, novamente, ficaram bastante assustadas e curiosas,
afinal Rubi e Diamante eram diferentes para elas, não se expressavam oralmente,
tinham modos que o eram usuais, posicionavam-se de maneira diferente para
comer, colocavam a boca diretamente no prato, tinham modos muito estranhos! A
pedagoga comenta que houve uma situação em que precisou chamar Rubi em
sua sala, por seu comportamento agressivo e anti-social em sala de aula;
conversou por algum tempo com ele e teve a impressão de que ele não
compreendeu nada do que ela falou, e demonstrava estar assustado. Em diversas
ocasiões, a falta de socialização causou transtorno nas relações escolares.
F.X. explica que as dificuldades em trabalhar com uma turma
heterogênea numerosa e atender os dois irmãos delineavam-se na organização
de atividades para os recém-chegados. Ressentia-se com a ausência de
experiência profissional para atuar em um caso o peculiar como o de Rubi e
Diamante.
Ao relembrar a história dos meninos, F.X. recorda-se de fato bastante
marcante que aconteceu na sala de aula diversas vezes. Os meninos não
conheciam “pão francês” e, sempre que os colegas traziam-no como lanche, eles
o pegavam das mochilas dos colegas sem que a professora percebesse e nos
horários em que lhes fossem mais convenientes. Rubi, particularmente, adorou
comer pão francês. Mas a satisfação dos irmãos gerou conflito com as outras
crianças, e os pais vieram à escola para esclarecer o que estava acontecendo
com o lanche dos filhos. Foi preciso muito diálogo, visto que poucos pais
entenderíam a situação, a maioria demonstrava insatisfação com o que estava
acontecendo.
Enfim, parecia que os piores momentos estavam superados. Tanto para
os meninos, que demonstravam maior tranqüilidade no ambiente escolar, nos
relacionamentos com as professoras e com os colegas, como para as
professoras, que haviam conseguido traçar uma prática pedagógica menos
angustiante e conflituosa em relação ao processo de inclusão dos irmãos Rubi e
Diamante.
52
De repente, outro uniforme apareceu na vida de Rubi e Diamante. No
segundo semestre do ano de 2.003, eles foram matriculados na 1ª. série do
Ensino Fundamental na Escola Municipal C.N. Considerando que todos os
internos da Casa de Passagem iriam estudar nesse estabelecimento aquele ano,
o presidente da mesma, N.D., entrou com requerimento das transferências. A
escola está localizada à Rua A. B. C., centro, na cidade de R. – PR.
Não é de se estranhar o comportamento assumido pelos pequenos e
desventurados personagens desta história. A professora A.C.
26
. que os recebeu
na nova escola, além de seu relato que os meninos apresentavam hábitos
diferentes dos demais alunos, narra que os irmãos deitavam-se no chão da sala e
fingiam que estavam desmaiados. Então, ela os chamava por várias vezes, e eles
não a atendiam. A professora continuava a trabalhar o conteúdo programático
com os demais alunos e ignorava o que Rubi e Diamante faziam. Os irmãos
ficavam imóveis no chão da sala por volta de quinze minutos e, como percebiam
que não estavam chamando a atenção dos demais alunos e da professora,
levantavam-se normalmente e se sentavam em suas carteiras. Apresentavam
comportamento agressivo com a turma, mesmo que, aparentemente, não
houvesse motivo para isso. Diamante era mais calmo que Rubi, mas
acompanhava o irmão em tudo que se propusesse a fazer.
Em determinada ocasião, a pedagoga R.B. precisou chamar o presidente
da Casa de Passagem para comunicá-lo que, por diversas vezes, os meninos
deixavam a sala de aula para subir em uma árvore que havia no pátio e que,
mesmo após conversas e aconselhamentos, o fato voltava a ocorrer. Rubi e
Diamante se revezavam no alto da árvore e, quando eram procurados, sempre
um deles estava lá no alto, dominando a situação.
Os meninos freqüentaram esse estabelecimento de ensino até o dia 26 de
setembro de 2003. Então, o Conselho Tutelar requereu transferência para a
Escola Municipal. D.G., em E. C. R.-PR., local em que a família morava, com o
intuito de reintegrá-los ao ambiente familiar.
A escola D.G. não conta com diretor(a), nem pedagogo(a), apenas com
três professoras. Rubi e Diamante foram matriculados na primeira série do Ensino
26
Professora da 1ª. série do Ensino Fundamental, E.M.C.N.
53
Fundamental, porém Diamante não freqüentou a escola nesse ano, por não estar
matriculado, fato este que não pude entender os motivos. Ao relatar a história de
Rubi, a professora O.M. ressalta que ele freqüentou a escola por um curto espaço
de tempo e, nesse período, pôde perceber que ele falava muito pouco e ela tinha
dificuldade em comunicar-se com o menino, muitas vezes não entendia o que ele
dizia.
Durante as atividades, Rubi fazia bolinhas de papel para jogar nos
colegas, riscava, rasgava papel e, em atividades de leitura, reconhecia algumas
letras. A professora O.M. reafirma o depoimento de sua antiga professora,
nenhuma atividade poderia ser forçada porque ele se irritava e ficava agressivo.
A agressividade de Rubi tornou-se uma característica demonstrada em
diversas ocasiões. No intervalo, ele brigava com os colegas, puxava seus
cabelos, atacava-os com pedras. O transtorno maior aconteceu no dia em que ele
levou uma faca para a sala de aula, segundo a professora, com intenção de cortar
os colegas, o que gerou muito medo entre os demais alunos. A professora,
porém, limitou-se a apaziguar a situação, que não contava com o auxílio de um
professor pedagogo, nem de diretor na escola. Dessa forma, apenas quando a
situação fugia de seu controle, ela entrava em contato com a Secretaria Municipal
de Educação.
A professora O.M. lembra que, diversas vezes, Rubi se ausentava da sala
de aula e ficava no pátio da escola arrancando a grama por volta de uma hora ou
mais, e seu irmão Diamante, mesmo sem estar matriculado, ficava do lado de fora
do pátio. Ela não interferia porque a reação dele tamm era agressiva.
Rubi freqüentou apenas dois meses essa escola, até o dia 26 de
setembro de 2003, quando foi matriculado novamente na primeira série do Ensino
Fundamental para freqüência no próximo período letivo no ano de 2004, mas
evadiu-se da escola como consta em ata do Conselho Tutelar e em sua ficha
individual na escola.
No período em que ficaram fora da escola, os irmãos retomaram suas
vidas na localidade, relembrando os tempos em que corriam soltos pelas matas e
brincavam livremente com Rabugenta, sem preocupar-se com regras, horários ou
coisas do gênero.
54
Enfim, os meninos regressaram ao lar. Quais seriam os sentimentos de
Maria e João com a expectativa da chegada dos filhos? Como Rubi e Diamante
foram recebidos pelos pais? Como eles se sentiam depois de tanto tempo sem
sequer uma visita? Contudo o retorno foi cheio de conflitos tanto para os pais
como para os meninos, assim como para as novas professoras e para os novos
colegas.
Após as crianças voltarem para a família, o Conselho Tutelar de R. PR
realizou visitas quinzenais com o intuito de averiguar a situação da família e se
havia condição de Rubi e Diamante permanecerem com os pais. Consta em ata
do Conselho Tutelar uma visita em 19 de outubro de 2003, na qual as
conselheiras R.O. e K.L. registraram que a casa estava em condições péssimas
de higiene e as crianças tamm. Essa foi a segunda casa em que família morou
na localidade de E. C., a qual ficava menos isolada.
Mas o fato mais penoso registrado pelas conselheiras trata-se da
agressão sofrida por Maria. Rubi havia batido na mãe doente. Maria, desolada,
queixou-se às conselheiras. Qual seria o motivo? Como Maria se comportou ao
viver esta triste situação? Será que ela foi capaz de compreender o que lhe
acontecia? E Rubi? Qual seria sua compreensão? Quando Maria foi agredida, no
passado, por um estranho, os dois filhos a defenderam. Por que a agressão filial?
Será que Diamante tentou defender a mãe?
No dia 14 de novembro de 2003, o Conselho Tutelar voltou a visitar a
família. Dessa vez foram as conselheiras R.O e F.H. que para se dirigiram.
Encontraram apenas a mãe dos meninos em casa, a qual reclamou que Rubi não
obedecia e que novamente a havia agredido, machucando a sua mão direita com
uma colher, os dedos estavam com hematomas. As conselheiras, então,
perguntaram à mãe se era verdade que ele havia levado uma faca para a escola
e a mãe confirmou.
Os relatos por parte dos pais, das professoras, dos vizinhos ao Conselho
Tutelar giravam normalmente em torno do irmão mais velho, Rubi, mas, para
espanto da conselheira R.O., ao chegar à casa da família em 12 de dezembro de
2003, recebeu a notícia de que Diamante havia tomado os remédios da mãe, mas
55
já se encontrava bem de saúde. A conselheira salientou, novamente, as péssimas
condições de higiene da mãe, dos meninos e da casa.
A família, então, mudou-se para uma terceira casa na mesma localidade,
dessa vez, próxima à escola. Novos conflitos tumultuaram os dias da família e
seus novos vizinhos. Os meninos cortavam as casas dos vizinhos com foices e
eram agressivos, jogavam pedras nas casas mais próximas, quebravam vidraças.
Quanto à Maria, quando os vizinhos recebiam visitas, ela ficava alterada e ia até a
casa deles, muitas vezes precisavam fechar a porta e ela ficava do lado de fora
chutando e batendo com as mãos na porta.
João, por sua vez, sempre que possível, falava às conselheiras K.L. e J.I.
e à assistente social A.M. de sua vontade de rever a família, que, segundo ele,
residia em A. F. MT. Então, a assistente social A.M. entrou em contato com o
Conselho Tutelar de A. F. e, com o auxílio da rádio local, anunciou que havia, na
cidade de R. PR, um senhor chamado João, que procurava por sua família.
Para sua surpresa, localizaram os pais e uma irmã de João morando em um
Assentamento na cidade de A. F. – MT. Assim, João e Maria foram encaminhados
para viverem junto à família. Rubi e Diamante retornaram à Casa de Passagem,
aguardando o momento de serem liberados pelo promotor de justiça para se
encontrarem com os pais. Para isso, o Conselho Tutelar de A. F.- M.T. precisaria
realizar uma visita à família e comunicar ao Conselho Tutelar de R.- PR. se havia
condições de as crianças reintegrarem-se à família.
UMA LONGA VIAGEM... TALVEZ, A MAIS LONGA DE TODAS!
Rubi, Diamante, Maria e João haviam partido de R.-PR. quando tomei
conhecimento de suas histórias, contudo estive muito próxima deles durante os
últimos meses de minha vida, por isso resolvi que iria até os locais onde viveram
e estava ansiosa pela companhia das lãs e das cores reais que formavam o risco
desse bordado. Fui conhecer o local em que tudo aconteceu. Iniciei pela chácara
56
do T. II. Senti que a viagem seria longa, embora estivesse a uma hora do local
que foi cenário da vida dessa peculiar família.
Como seria o local que me descreveram? Seria totalmente isolado? Daria
para descer de carro até lá? Havia estrada ou apenas carreiros? Que curiosidade!
Eu precisava chegar logo, mas, por mais que me esforçasse para isso, como
parecia distante.
No trajeto, senti o paradoxo entre um lugar tão bonito, repleto de verde,
cachoeiras, pássaros, ar puro, o encanto da estrada de ferro, que lembrava a
infância quando visitava uma amiga na E.
27
,e, com a audácia e inocência de
criança que não enxergava o perigo, brincava em cima dos trilhos e o choque em
deparar-me com uma história de isolamento e exclusão, faziam-me pensar quão
contraditório era aquele lugar.
A imagem da estrada de ferro isolada em meio à natureza me fascinou
tanto quanto me inquietou: O lugar seria o paraíso ou um caos? Não sabia ao
certo, mas a história de vida pela qual me apaixonei havia acontecido ali, isso me
bastava. Durante o percurso, pude lembrar dos relatos das conselheiras (K.L. e
J.I.) sobre o difícil acesso da residência, realmente, precisei andar, em média, 1,5
km. a pé, seguindo os trilhos do trem que ficavam a uns 800 metros da casa.
Mesmo depois de percorrer esse trajeto, não foi possível enxergá-la,
porque a casa ficava em um local bastante isolado. Conversei com uma vizinha,
que morava a 1,5 km. do local em que deixei o carro, e ela relatou-me que o João
fora até a sua casa algumas vezes para prestar-lhe serviços e que levara os
meninos. Segundo essa senhora, Rubi e Diamante não conversavam e ficavam
observando o pai por todo o tempo que lá estiveram. Apenas emitiram alguns
barulhos estranhos com a boca. E, quando fez perguntas a respeito dos meninos
ao José, este lhe disse que os meninos eram mudos, nada falavam.
Despedi-me da senhora e continuei pela trilha até deparar-me com um
casebre de madeira, que destoava da beleza do local. Para todos os lados que
olhei, não avistei nada, somente árvores. Bem distante, trabalhadores retiravam
pedras, mal consegui distingui-los. Nem sinal de vizinhos.
27
Localidade situada no interior do município de R. – PR.
57
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e
portas, e pátios e escadas, e salas e poços [...] Tecia e
entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando
o ritmo da lançadeira (COLASANTI, 1998).
Ao contrário do palácio da moça tecelã, a casa tinha apenas um modo,
mas nem por isso assistiu a uma história feliz, somente acomodou o triste fado da
família de Rubi e Diamante. As paredes relataram-me cenas que jamais pude
imaginar. Creio que não há outra casa que abrigou tal infortúnio. Fiquei por alguns
minutos ali, parada. O filme todo parecia rodar em minha cabeça, desde o
primeiro dia em que tive contato com a história.
Estava muito cansada por ter andado na chuva e, para minha surpresa, a
máquina fotográfica havia descarregado durante o tempo em que fotografei as
escolas e a Casa de Passagem naquele mesmo dia. Seria necessário voltar uma
segunda vez.
Sentei-me no chão desolada, enquanto a chuva caía e, então, resolvi ir
embora, passei novamente por todos os locais, pela estrada de ferro e,
inutilmente, tentei fotografar, não havia nada a fazer. Fui para casa, mas a
sensação incômoda de o ter feito as fotos não me deixava ter paz. Voltei dois
dias depois e, aí assim, fotografei todo o cenário dos fatos que me foram
narrados.
Após morarem algum tempo nesse local, a família mudou-se para E. C.,
local em que tinham vizinhos mais próximos. Foi quando o Conselho Tutelar
encaminhou os meninos para a Casa de Passagem e ficaram apenas João e
Maria, que estava grávida. Uma vizinha contou-me que algumas pessoas tiveram
que arrombar a porta para auxiliar Maria no parto, porque ela se trancava em
casa e não deixava as pessoas se aproximarem. Afirmou, tamm, que se
deslocava até a casa para dar remédio à Maria, mas que fazia isso na porta por
ela ser agressiva e, por várias vezes, correra atrás dela com pedaço de pau. Essa
senhora auxiliava Maria voluntariamente, mas contou-me que parou de ajudá-la
quando engravidou com medo das agressões. Ao final de nossa conversa, disse-
me que João trabalhou por um período para a sua família e sempre foi uma
pessoa honesta e que trabalhava muito.
O bebê que nasceu em E.C. – R. – PR. foi encaminhado para adoção.
58
Voltei para casa. Na estrada, decidi que entraria em contato com o
Conselho Tutelar de A. F. - em MT Para mim, seria imprescindível saber notícias
recentes sobre a família, sobre os meninos. Teriam eles ido à escola novamente?
Estariam eles mais socializados, teriam amigos? Estariam se comunicando
verbalmente? Saberiam ler e escrever? Muitas perguntas insistiam por repostas.
Fiz contato e, finalmente, recebi um relatório do Conselho Tutelar de A. F.,
anexado no final do texto.
No relatório do Conselho Tutelar
28
de A. F. - MT, os conselheiros K.E. e
A.Q. registraram que Rubi e Diamante estavam matriculados na escola, porém
não estavam comparecendo às aulas. A escola havia feito encaminhamento por
meio do projeto FICA
29
para saber o motivo pelo qual os alunos não compareciam
às aulas. Os conselheiros afirmaram ter notificado a mãe várias vezes, mas ele
não compareceu à escola. Então, alguém da comunidade (não identificado no
relatório) avisou-os de que a mesma ficava em casa trancada, motivo pelo qual
não comparecia ao Conselho Tutelar.
Assustados com essa informação, os conselheiros deslocaram-se até a
casa da família para averiguar a denúncia. Quando chegaram, foram recebidos
pela avó paterna, a qual informou que realmente Maria vivia trancada em um
cômodo no fundo do quintal e cadeada porque era muito agressiva com todas as
pessoas da família. A velha senhora afirmou que o tratamento da mãe dos
meninos havia sido suspenso porque, no local em que era atendida, batia em
todas as pessoas que se aproximavam. Enquanto os conselheiros K.E. e A.Q.
conversavam com a avó, João chegou. Trazia diversos remédios para Maria.
Explicou aos visitantes que ela tomava-os sozinha e, às vezes, tomava uma
quantidade maior do que a receitada e passava mal.
Durante o tempo em que os conselheiros estiveram, Maria gritou o
tempo todo, e dizia palavrões. João e a adisseram que isso ocorria 24 horas
por dia, com pequenas pausas. Diante desse fato, eles registraram no relato de
visita que o ambiente era conflituoso para os meninos, uma vez que
presenciavam essas cenas lastimáveis.
28
Relatório enviado via fax pelo conselheiro tutelar A.Q., em 5 de novembro de 2007.
29
Ficha de Controle dos Alunos Ausentes
59
A avó e João também relataram aos conselheiros que Rubi também era
extremamente agressivo. Que, no dia anterior, havia agredido o filho do vizinho a
pedradas. O garoto foi levado ao Pronto Socorro e levou vários pontos na cabeça.
Os conselheiros K.E. e A.Q. retornaram ao Conselho Tutelar e entraram
em contato com o Programa Saúde da Família (PSF), e a coordenadora relatou
que Maria havia freqüentado aquele serviço em 2006 e havia sido desligada por
abandono. Desta forma, encaminharam o caso para a Promotoria Pública para
que fossem tomadas as devidas providências.
As providências foram tomadas. A assistente social A.O.I. também,
enviou-me o relatório social
30
, no qual consta que a família vem sendo
acompanhada pela Secretaria de A. F. MT desde 2006 e que Rubi e Diamante
foram inseridos no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI) em 2 de
maio de 2007, no qual participavam de atividades da Jornada Ampliada, como:
reforço escolar, natação e informática, porém haviam-se evadido no mês de
outubro do mesmo ano. Ao realizar visita à família, a assistente social constatou
que Rubi e Diamante também não estavam freqüentando a escola.
Ao visitar a família, a assistente social constatou que a família morava em
um barraco de madeira com dois cômodos no quintal da avó paterna. João
trabalhava em uma horta como diarista, enquanto Maria ficava trancada em casa
por sofrer transtorno mental e as crianças ficavam sozinhas. João relatou que não
conseguia cuidar dos filhos porque precisava trabalhar e que Rubi e Diamante já
haviam sumido por dois dias de casa.
Ao tomar conhecimento da situação da família, a assistente social A.O.I.
solicitou que os meninos voltassem a freqüentar o Programa de Erradicação do
Trabalho Infantil (PETI) e a escola, e os encaminhou também para atendimento
psicossocial. No entanto eles ainda estavam desaparecidos.
Após essa visita, a assistente social providenciou cesta básica para a
família e entrou com o pedido de interdição de Maria para concessão de Benefício
de Prestação Continuada a Pessoa Deficiente. Rubi e Maria foram encaminhados
para tratamento médico, o menino foi consultado por neurologista e estava
tomando remédio controlado. A evasão da escola e do Programa de Erradicação
30
Relatório enviado via fax pela assistente social A.O.I., em 5 de novembro de 2007.
60
do Trabalho Infantil (PETI) foi comunicada ao Conselho Tutelar de A. F. MT e
João comprometeu-se a encaminhar os filhos à escola e ao Programa em 2008.
A situação retratada nesses dois relatórios entristeceu-me: não eram as
notícias que eu gostaria de ter obtido. Todavia recebi tamm o Relatório
31
da
Escola M.E.F./ A. F. MT. A diretora L.V. coms o relatório juntamente com a
pedagoga I.S. e mais três professores, sendo F.H.; S.G. e C.L.; nele consta a
dificuldade encontrada no relacionamento com os colegas e que não respeitavam
as normas da escola.
A situação agravou-se no mês de março, em que os mesmos passaram a
agredir colegas e funcionários da escola fisicamente: “[...] batendo, chutando,
mordendo e atirando pau, pedras e outros objetos que encontravame também
verbalmente, apesar de não ser uma fala articulada.
Chamado pela escola, João relatou que os meninos eram desobedientes,
informou sobre o histórico da família na cidade de R. PR. e sobre o problema
psiquiátrico de Maria. Acrescentou que o filho mais velho, Rubi, apresentava
problemas mentais e tomava remédios controlados e que, por falta de
atendimento médico e dinheiro, não os estava tomando.
Após o relato do pai, a escola entrou em contato com a assistência social
e com o Programa de Saúde da Família (PSF) e comunicou o caso aos
profissionais de saúde, os quais afirmaram que tinham conhecimento da
doença da mãe. Desta forma, no dia 29 de março de 2006, a conselheira A.Q.
compareceu à escola para conversar com o pai que relatou o caso novamente. A
conselheira retornou no mês de abril acompanhada do pai para levar os meninos
a uma consulta com um especialista da APAE, mas Rubi fugiu e conseguiram
levar apenas Diamante.
Os dias passavam e nenhuma solução era proposta, então, a pedagoga
da escola foi ao Posto de Saúde e pegou um encaminhamento para consulta com
psicólogo e neurologista no Hospital Municipal de A. F. A consulta foi marcada
para o dia 8 de maio com o neurologista, João levou Rubi e o médico pediu
mapeamento cerebral. O resultado foi uma alteração no rebro, e Rubi passou a
tomar novos medicamentos e a freqüentar atendimento psicológico. Quanto a
31
Relatório enviado via fax em 5 de novembro de 2007.
61
Diamante, a conselheira A.Q. informa que o mesmo não foi encaminhado à
consulta médica, apenas solicitaram a João que o levasse.
A alternativa que a escola encontrou, frente a este desafio, foi realizar
testes pedagógicos para verificar o nível de aprendizagem dos meninos e,
posteriormente, eles foram inclusos em atividades específicas para crianças com
dificuldades de aprendizagem e indisciplina. Durante a manhã, realizariam
atividades esportivas, informática, capoeira e jogos com acompanhamento de
uma professora e, à tarde, freqüentariam as aulas do currículo normal de
alfabetização, além de contar com o auxílio da psicóloga neste período. No
entanto, o relatório reforça a impossibilidade da escola em recebê-los.
Mesmo diante de todas estas alternativas, os irmãos Rubi e
Diamante não estão respondendo positivamente às atividades, não
respeitam às regras e vêm causando prejuízos à escola em todos
os sentidos. As crianças têm medo deles, os professores e
funcionários não conseguem trabalhar, todos os dias pais vêm à
escola exigir que tome providências, perdemos alunos por causa
deles, os professores e funcionários não conseguem trabalhar
porque a todo momento têm que separar brigas ou ficar cuidando
para não depredarem os bens dos funcionários e da escola. A
escola não tem condições de continuar com estes meninos, pois
eles não obedecem ninguém. Pedimos com urgência que seja
dado encaminhamento para alguma instituição especializada, pois
os alunos e funcionários estão se sentindo ameaçados e não
estamos capacitados para lidar com estes comportamentos
psiquiátricos. Sabemos de nossa responsabilidade e compromisso
em oferecer segurança e ensino de qualidade para os demais
alunos que atendemos e também à comunidade escolar (Relatório
Escolar – A. F., 20/12/2007).
Foi assim, assim é, e assim será?
Nas sociedades primitivas, os loucos, os beis, viviam entre os outros
homens, tinham o seu lugar na ladeia, assumiam um papel, mesmo que fosse o
papel de louco, de débil, e eram respeitados como tal. na nossa sociedade
lugar para o ser humano incapaz de certo comportamento social ou escolar?
A corrida para alcançar rendimento escolar atinge muitas crianças que
são perseguidas pelos seus destinos e muito cedo, são excluídas de todo o
sistema escolar. São excluídas pela cor da pele, pela qualidade de sua
62
inteligência, pelos seus problemas físicos, pela diferença cultural para citar
alguns exemplos. Essa total impossibilidade aceitação de Rubi e Diamante pelos
que os cercam fixa-os, automaticamente, onde estão e como estão.
Serem rotulados como débeis, loucos, selvagens podem levá-los à
submissão a um estado de fato, ou à revolta. Não há possibilidade de se
assumirem como autônomos, ultrapassando uma fronteira traçada pelo Outro
32
.
Tal como se foi julgado, assim se deve permanecer. O drama desses meninos é
feito de desesperança. Como pode uma criança lutar se os seus pais,
resignadamente, os abandonaram, até porque se abandonaram também. Como
dar à vida sentido se os próprios adultos legaram-lhes a falta de sentido?
Porém não quero procurar responsáveis para justificar essa triste história,
porque, ao procurar responsáveis, fugiria do verdadeiro problema, que é o
questionamento de nós mesmos, de nossa sociedade, de nossas políticas
públicas, de nossa instituição escolar.
32
Na teoria lacaniana, é denominado Outro aquele que permite a relação simbólica entre os seres
humanos. É a troca de símbolos que situa os nossos eus, uns em relação aos outros. É a relação
simbólica que define a posição do sujeito como “aquele que vê”.
63
RAIZES DA VIDA
As relações entre os homens não são de
contigüidade, mas de intersubjetividade, de
engendramento, isto é, os homens não estão
simplesmente uns ao lado dos outros, mas são
feitos uns pelos outros (ARANHA; MARTINS,
1993, p. 302, grifo do autor).
Rubi e Diamante estavam acostumados a viver apenas na companhia da
cadela, uma vez que seus pais, as únicas pessoas com quem conviviam, não lhes
dedicavam atenção, cuidados e afeto. Tinham medo das pessoas que se
aproximavam da casa e se dirigiam a eles; quando isso ocorria, deixavam a mãe
sozinha e corriam para o mato, por trilhas e carreiros, sem que ninguém pudesse
encontrá-los. Em uma dessas fugas, as conselheiras J.I. e K.L. surpreenderam-se
ao ver Rubi correndo atrás de Diamante apoiado nos pés e nas mãos.
O mais velho andava de quatro, ahã, ele tinha um apelido até,
como é? Aquele povo do tempo da pedra, que se escondiam
quando viam as coisas? Essas crianças eram assim, pessoas que
não eram civilizadas. Eles nunca tinham saído no meio de gente
(Relato da conselheira J.I., em junho de 2006).
Rubi e Diamante conseguiram, por si sós, estruturar uma determinada
organização de vida que, aos olhos da sociedade, pode parecer “selvagem".
Contudo, possuir um corpo biológico humano não nos traz hominização. Esta se
concretiza conforme organizações sociais complexas (SCHIMIDT DIAS
33
, 2005).
O comportamento humano inicia-se com o convívio entre adultos e crianças.
Nossa taxa de crescimento é lenta nos primeiros anos de nossa vida, padrão este
característico apenas no nero homo
34
, e isto contribui para reforçar os laços
sociais por meio do aprendizado das regras de comportamento e do convívio
prolongado entre crianças e adultos.
33
Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Graduada em História, Mestre em Arqueologia, Doutora em Arqueologia.
34
Surgidos por volta de 2,5milhões de anos atrás, apresentam um tamanho e estrutura corporal
similar aos demais australoptecíneos, diferenciando-se destes, porém, por apresentar o dobro do
volume cerebral (650-850cm
3
) (SCHIMIDT DIAS, 2005, p. 75).
64
Em função do nosso volume cerebral, possuímos o período de
gestação mais longo, entre os primatas [...] Porém, os bebês
humanos nascem com 23% da capacidade cerebral que terão
quando adultos, atingindo um padrão compatível com o dos demais
primatas recém nascidos somente após o primeiro ano de vida
(50% da capacidade cerebral adulta). À primeira vista, a extrema
fragilidade de nossas crias neonatas poderia parecer uma grande
desvantagem adaptativa. No entanto, esta fragilidade e o alto grau
de dependência em relação às mães estimularam, ao longo de
nosso processo evolutivo, o desenvolvimento de uma estrutura
social altamente complexa e coesa, estreitando, entre machos e
fêmeas, os laços de cooperação social, reciprocidade e
redistribuição dos alimentos (JAY-GOULD, 1992; FOLEY, 1993;
LEAKEY, 1995, apud SCHIMIDT DIAS, 2005, p. 77).
Leroi-Gourhan (1911-1986), etnólogo e arqueólogo francês, deixou vastas
contribuições em diversas áreas do conhecimento, incluindo estudos referentes à
hominização, os quais, entre outros estudos, m subsidiando a investigação e
análise da vida de Rubi e Diamante. Esse autor também enfatiza que a libertação
da mão pelo emprego de instrumentos rudimentares propiciou o desenvolvimento
do crânio humano e, conseqüentemente, o posterior aumento da capacidade
craniana que corresponde às capacidades de simbolização do homem.
Esse novo cérebro, salienta Schimidt Dias (2005), oferece os
instrumentos cognitivos capazes de enfrentar os desafios da seleção natural aos
altos riscos adaptativos que sua manutenção impôs à história evolutiva do
homem. Com esta pequena revisão antropológica, o leitor já pode perceber como
as desvantagens físio-sócio-culturais apresentadas por Rubi e Diamante
perpassam pela história da humanidade. Acrescento, porém, mais um agravante.
Um cérebro grande é um órgão de alto custo energético, demandando uma dieta
altamente calórica. Portanto, a sua manutenção condiciona ao nero homo a
necessidade de incorporação à subsistência de recursos alimentares com alta
taxa de retorno energético, como a carne e a gordura animal, cuja obtenção
demanda o desenvolvimento de meios para obtê-los.
Assim, mais uma vez, esses pequenos heróis estão em desvantagem em
relação até mesmo ao Homo Habilis, que para caçar e pescar, esse ancestral
teve que lascar eixos de pedra para produzir instrumentos capazes de processar
carne, ossos, madeira e vegetais, ampliando sua capacidade de exploração de
65
novos nichos ecológicos. E com isso abriu caminho para que centenas de anos
mais tarde, o Homo erectus invertesse a ordem natural da cadeia alimentar,
“tornando-se, de potencial caça, um eficiente caçador” (SCHIMIDT DIAS, 2005, p.
76).
Rubi e Diamante se alimentavam apenas do que o pai lhes deixasse à
disposição (arroz) e o que a natureza lhes dispusesse (frutas folhas, raízes). Será
que os meninos produziram instrumentos que, de alguma forma, lhes fossem
úteis no dia-a-dia? Será que eles sentiam alguma necessidade consciente de
organização da vida?
A eficiência na exploração da caça, como um novo recurso alimentar,
estimulou novas tecnologias, como o controle do fogo e o aprimoramento da
tecnologia lítica
35
, que se converteram em um diferencial de vida para o Homo
erectus, cujo aumento populacional, em curto espaço de tempo, levou à
colonização do Continente Euro-Asiático (SCHIMIDT DIAS, 2005). No triste fado de
Rubi e Diamante, a alimentação era precária, como bem sabemos. A falta de
alimentação adequada, de modelos de convivência social e fraterna os impediram
de desenvolver uma vida mais hominizada.
No entanto, era preciso satisfazer rias funções vitais; assim, os
meninos encontraram na natureza provimentos para complementar a alimentação
por meio da experimentação de frutas, folhas, raízes, que lhes aplacassem a
fome. A experiência cotidiana, resultado da observação dos dados sensoriais
disponíveis, impulsionou-os para certa organização da vida.
Locke (1632-1704) afirma que o conhecimento decorre da experiência
empregada tanto nas impressões externas como nas internas, que o por cada
um percebidas. A observação pessoal supre o entendimento com todas as idéias
do pensamento. Por isso, toda idéia é uma cópia de alguma impressão.
A experiência, para Locke (1996), é vista como fonte e limite do intelecto,
caso uma pessoa que possui hábitos sociais, mais tarde, tivesse a pretensão de
tornar-se solitário, poderia mudar-se para uma caverna e utilizar-se dos
elementos que a natureza lhe oferecesse para organizar sua nova vida, todavia
aplicaria conhecimentos anteriores. Por exemplo, ao comer, utilizaria folhas para
35
Relativo à pedra.
66
substituir pratos, usaria troncos para sentar-se, baseado na experiência vivida
anteriormente.
O mesmo aconteceu com Rubi e Diamante, eles possuíam experiências
válidas para o dia-a-dia e, ao serem inseridos no contexto social, também
organizaram suas vidas de forma inversa à descrita, tinham pratos e talheres
disponíveis, mas comiam com a boca diretamente no prato, ou viravam a comida
na mesa; recebiam o suco em copos, todavia viravam-no ao chão e o lambiam.
A experiência, explica Hume (1711-1776), refere-se sempre ao passado,
porque, é o hábito entendido como repetição de qualquer ato que norteia toda a
vida cotidiana.
Em verdade, todos os argumentos derivados da experiência se
fundam na semelhança que constatamos entre outros objetos
naturais e que nos induz a esperar efeitos semelhantes àqueles
que temos visto resultar [...]. De causas que parecem semelhantes
esperamos efeitos semelhantes. É este o resultado de todas as
nossas conclusões experimentais (HUME, 1996, p. 56).
De início, acrescenta Hume (1996), não seria possível a um homem,
mediante nenhum raciocínio, chegar à idéia de causa e efeito. O costume é o
grande guia da vida humana. É o único princípio que torna útil a experiência do
homem e o faz esperar, no futuro, uma série de eventos semelhantes àqueles que
apareceram no passado. Sem a influência do hábito, ignoraria completamente
todas as questões de fato reais que estão fora do alcance dos dados da memória
e dos sentidos.
A conjunção de fatos vividos pelos irmãos levou-os a estruturar um modo
de vida distante daquele possibilitado às crianças que nascem em um meio onde
a cultura transmitida de pais para filhos determina o comportamento humano.
Contudo, tal experiência não produzia o mesmo efeito quando foram colocados
em sociedade. Que conflitos viveram Rubi e Diamante ao perceberem que suas
ações o produziam os mesmos efeitos que anteriormente? Seriam esses
conflitos a explicação das atitudes agressivas demonstradas pelos dois meninos?
O aprendizado adquirido por meio dos costumes organizados cotidianamente, de
repente, não foi suficiente para a nova situação enfrentada pelos meninos. O que
67
faltou a eles para perceberem a modificação do ambiente e suas influências sobre
o ser humano?
O hábito, salienta Hume (1996), como o instinto dos animais, é um guia
infalível para a vivência prática, porém o é um princípio de justificação racional
ou filosófico, que possibilitaria aos meninos a compreensão das produções
culturais e suas influências no comportamento de cada indivíduo que vive em
sociedade. Enfim, a cultura social se revela em termos de conhecimento e
comportamento, no entanto, estes são gerados, tamm em termos de
racionalidade e ação.
Outro fator importante na história da produção cultural é a linguagem, que
é produto humano, portanto, cultural. Foi com o desenvolvimento da linguagem
que nasceu o homem que sabe mais que todos os outros anteriores a ele. A
linguagem é o capital cultural das sociedades humanas modernas. No entanto,
em termos evolutivos, foi 150.000 anos que o Homo sapiens adquiriu um
aparelho vocal capaz de produzir uma fala articulada.
[...] somente a nossa espécie possui um crânio com base
arredondada, que posiciona a laringe na parte baixa da garganta e
a faringe acima das cordas vocais, criando uma caixa de
ressonância que amplia a capacidade vocal. Quando nascem
nossos bebês possuem um padrão semelhante aos demais
mamíferos, com a laringe na parte superior da garganta, limitando
a emissão de sons. Ao longo dos 24 meses de vida a laringe
desce progressivamente, desenvolvendo-se a capacidade de
fonação de forma paralela ao crescimento do cérebro, até atingir a
posição adulta por volta dos 12 anos de idade (LEAKEY; LEWIN.
1995, apud SCHIMIDT DIAS, 2005, p. 78-79).
De acordo com a Paleontologia Humana, a linguagem é um produto em
lenta evolução, que possui dois planos: o orgânico, que se refere ao físico,
descrito acima, e o cultural, que se adquire por meio da aprendizagem. A
linguagem não é inata, mas é passada por meio das gerações, ao longo do tempo
(BRAZ DIAS 2005)
36
.
Ao romper a barreira da fala, o Homo sapiens “[...] tornou-se capaz de
criar novos tipos de mundo na natureza: o mundo da consciência introspectiva e o
36
Professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Graduada em Ciências Sociais
(UNB). Mestre em Antropologia Social (UFRJ). Doutora em Desenvolvimento, Agricultura e
Sociedade (CPDA-UFRJ).
68
mundo que construímos e dividimos com os outros, o qual chamamos cultura. A
linguagem tornou-se nosso meio e a cultura nosso nicho(LEAKEY, 1995, apud
SCHIMIDT DIAS, 2005, p. 79).
Diferentemente dos animais, que têm formas de comunicação
transmitidas geneticamente, o homem elaborou códigos de comunicação oral. As
abelhas, exemplifica Braz Dias (2005), possuem um modo próprio de
comunicação, trazem consigo em sua carga genética, da mesma forma que os
outros animais. A naturalidade da linguagem é referente apenas à sociedade,
logo, o homem a produziu para suprir suas necessidades de expressão e
comunicação.
À primeira vista, o homem parece falar tal como o peixe nada e o
pássaro voa. Da constatação de que as palavras e as mensagens
não existem em estado natural, uma vez que são produzidas pelo
homem, conclui-se que elas também o produtos de trabalho. A
naturalidade do falar está na sociedade e é fruto de exercícios
realizados por um longo período de vivência social. Seu
aprendizado tem como objeto um patrimônio cultural de falantes já
construído e com regras para utilizá-lo (NEGRÃO, 2002, p. 32).
Para que Rubi e Diamante se apropriassem da linguagem oral, seria
necessária a vivência social que a autora ressalta; no entanto, o pai estava
constantemente ausente devido ao trabalho, e a mãe pouco falava. Em suas
vidas, a linguagem oral era quase inexistente.
Sintetizando, o amparo que recebemos na infância permite o aumento de
nossa capacidade cerebral e, historicamente, é possível porque foi sustentada por
uma estrutura social coesa, ordenada por laços de cooperação entre seus
membros, refletidos na redistribuição de alimentos e no cuidado com as crias. São
as múltiplas inter-relações, interferências, entre os fatores genéticos, ecológicos,
cerebrais, rotineiros, sociais e culturais que vão permitir o processo
multidimensional de nossa hominização.
Isto nos indica que a hominização não poderia ser concebida
somente como uma evolução biológica, nem como uma evolução
espiritual, nem como uma evolução sócio-cultural, mas sim como
uma morfogênese complexa e multidimensional resultante de
69
interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais
(MORIN, 1973, apud SCHIMIDT DIAS, 2005, p. 80).
Se assim não aconteceu com Rubi e Diamante, com base em que
princípios eles organizaram suas vidas?
Para responder a esta complexa questão, respaldo-me em Machado (2002,
p. 31), que me possibilita compreender que:
[...] cultura é um extenso processo de seleção e filtragem de
conhecimentos e experiências, não de um só indivíduo, mas,
sobretudo, por um determinado grupo social.
Cultura também é considerada por Fourquin (1993, p. 11), como:
[...] conjunto de traços caractesticos do modo de vida de uma
sociedade, de uma comunidade ou de um grupo,
compreendidos os aspectos que se podem considerar como os
mais cotidianos, os mais triviais ou os mais inconfessáveis.
Assim compreendido, a cultura é elaborada no dia-a-dia de um grupo.
Desta forma, tamm, foi a vida de Rubi e Diamante. O que me permite afirmar
que os dois meninos possuíam um processo cultural inerente às suas
experiências cotidianas, extremamente diferentes da cultura cristalizada em nossa
sociedade. Essa cultura estruturada no pequeno grupo familiar descaracterizou a
cultura que os pais haviam vivido, sem, no entanto, repassá-las aos filhos. Não
posso afirmar que o desligamento cultural de João e Maria tenha sido consciente,
mas o fato é que ambos abandonaram uma forma de vida, construíram e legaram
aos filhos uma vida despida dos fatores sociais.
Então, restou aos meninos uma elaboração própria de cultura? Sim, eles
tiveram de selecionar e filtrar, pela memória, os triviais aspectos cotidianos de
suas vidas. Como o comportamento dos pais não lhes permitia a elaboração
social, eles utilizaram-se da convivência com Rabugenta, de certo modo de
preenchimento do tempo, dos hábitos alimentares e de locomoção, entre outros.
Agora, necessito conceituar memória, que sua atuação é crucial para a
formação cultural. Para Leroi-Gourhan (1965), memória é entendida em sentido
lato, como suporte em que se inscrevem as cadeias de atos e não como uma
70
propriedade da inteligência. Desta forma, o autor pôde dividir a memória em três
tipos: memória específica, a qual define a fixação dos comportamentos de
espécies animais; memória étnica, responsável pela produção dos
comportamentos nas sociedades humanas, atividade de seleção; e, memória
artificial ou eletrônica, responsável pela reprodução de atos mecânicos sem que
seja necessário recorrer ao instinto ou à reflexão.
A memória específica do animal fundamenta-se no “aparelho
extremamente complexo” do instinto, enquanto a memória dos antropídeos
baseia-se no aparelho, tamm complexo, da linguagem. Rabugenta, sim, agia
instintivamente, mas de que forma baseava-se a memória dos meninos?
Eles usavam um assovio para se comunicarem [...] não falavam
nada, eles tinham aquele grito, era um grito que não tinha
comunicação de voz nenhuma, era assovio e grito, fala não
haviam desenvolvido [...] O som era assovio e uma língua assim,
tipo um resmungo, eu não sei dizer que forma ou se existe alguma
cultura que use isso, acho que nem tem, né? Porque era a
família isolada (Relato da conselheira R.P.M., em junho de 2006).
De acordo com o autor, diversos estudos voltaram-se para a questão do
instinto e da inteligência, trazendo preocupações antropocêntricas até início do
século XX. Para Leroi-Gourhan (1965), não há possibilidade de um instinto evoluir
partindo do menos complexo até aos animais superiores, ou seja, ao chegar ao
topo do processo transmutar-se em inteligência. Deste modo, o único fato
comprovado no âmbito da experiência do comportamento animal é a possível
mudança de comportamento do indivíduo face ao meio em que está inserido, o
que não se refere especificamente a uma libertação relativa ao instinto, mas trata-
se da convergência do meio biológico interno com o meio externo.
O instinto, atualmente, surge como um conceito muito vago, da mesma
forma, os comportamentos hereditários são bastante complexos, o que justifica a
existência de uma memória específica
37
, a qual dificilmente será contestada,
porque, pode transformar-se em cadeias de atos por meio do gradual
condicionamento do indivíduo às exigências que o meio externo lhe impõe.
37
De acordo com Leroi-Gourhan (1965), resultado das disposições hereditárias da aparelhagem
nervosa. Define a fixação dos comportamentos das espécies animais.
71
Os sistemas nervosos dos mamíferos e do homem enriquecem-se de
forma prodigiosa, contando com uma série de elementos conectivos prontos a
estabelecer conexões entre situações conhecidas e situações novas. Desta
maneira, “a memória do indivíduo, constituída no primeiro período da vida,
ultrapassa então a memória específica” (LEROI-GOURHAN, 1965).
Para Rubi e Diamante, até quando acompanhei suas histórias, faltaram-
lhes subsídios para ultrapassar a memória específica e, por isso, não
conseguiram constituir uma memória social.
Quando do seu nascimento, o indivíduo encontra-se em presença
de um corpo de tradições próprias à sua etnia, e, desde a infância
estabelecer-se-á um diálogo a diversos níveis entre ele e o
organismo social. A tradição é biologicamente o indispensável à
espécie humana quanto o condicionamento genético o é às
sociedades de insetos: a sobrevivência étnica baseia-se na rotina,
enquanto que o diálogo que vem a estabelecer-se suscita o
equilíbrio entre rotina e progresso, simbolizando a rotina o capital
necessário à sobrevivência do grupo, enquanto o progresso
representa a intervenção das inovações individuais tendo em vista
uma sobrevivência melhorada (LEROI-GOURHAN, 1965, p. 23).
A formação da memória social seria ponto crucial para que os meninos
fossem preparados para viver em sociedade. Para isso, seria necessário que Rubi
e Diamante tivessem experiências que os relacionassem às raízes e tradições de
seus familiares, mesmo distantes, no lugarejo em que moravam. Os meninos
tiveram apenas momentos de relação com as tradições dos pais, que não foram
apreendidos por suas memórias. Suas relações limitavam-se às possibilidades do
lugar e suas rotinas.
Para Leroi-Gourhan (1965), um grupo apenas sobrevive por meio de uma
“verdadeira memória”, na qual se inscrevem os comportamentos. Pude perceber
que os vestígios que organizaram a memória de Rubi e Diamante constituíram-se
de comportamentos vivenciados com Rabugenta, o único modelo de que
usufruíam em suas manhãs e tardes de aventuras, quer na mata, quer na estrada
de ferro em que arriscadamente brincavam. Ela era a companhia fiel, porém
andava apoiada nas quatro patas e comia com a boca diretamente no alimento,
72
mordia quando se sentia ameaçada e Rubi e Diamante tomaram para si tais
comportamentos:
[...] os modos deles eram estranhos, não sentavam em cadeiras,
sentavam no chão, fora eles morderem, porque crianças
normalmente não m morder, , uma pessoa? Ela pode vir e
dar uma tapa, fora morder, as mímicas e gestos bem diferentes,
uma cultura não vista ainda [...] colher e outras coisas assim, não
tinham o mínimo valor, muitas coisas, eles achavam engraçado
(Relato da conselheira K.L., em junho de 2006).
A conselheira K.L., afirma que os modos dos meninos eram estranhos
baseada em sua cultura, na qual a maioria das crianças cedo aprende as regras
aceitas pela sociedade, a função social de objetos, como a colher, a cadeira, mas
em momento algum faz a relação de que Rubi e Diamante possuem uma cultura
própria e por isso agiam de forma diferente.
A conselheira expressa a memória social e coletiva da sociedade. Para
desenvolver este tema, recorro a Jacques Le Goff
38
, que prioriza a memória
coletiva. Memória, para esse autor, é o que o indivíduo seleciona para ser
arquivado ao organizar os vestígios que produz história. A leitura de seus textos
possibilitou-me analisar a estrutura em que se organizaram os vestígios de
memória das pessoas que fizeram parte da história de Rubi e Diamante.
O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de
abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos
quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento (LE GOFF, 2003, p. 422).
Le Goff (2003) pontua que cada indivíduo seleciona o que deverá ser
arquivado, trazendo sua experiência e contribuindo com os vestígios que a
história lhe proporciona, porém cada qual seleciona vestígios muitas vezes
singulares. Ao escrever e analisar essa história limito-me ao que as fontes
puderam me informar.
38
Historiador da Escola dos Annales, especialista em temas da idade média, dedica-se à memória
pela perspectiva das Ciências Humanas, com ênfase na História e na Antropologia. Escreveu o
artigo “Nova História”, a partir do qual houve vários debates acadêmicos, surgindo,
posteriormente, a chamada Nova História.
73
No entanto, pude compreender o papel da memória coletiva nos
relatos que ouvi quando retomei sua história. Para esse resgate, pautei-me em
Leroi-Gourhan (1965) e Jacques Le Goff (2003).
Além dos estudos sobre a memória individual já citados, Leroi-Gourhan
(1965), ao considerar a evolução da coletividade humana, divide a memória
coletiva em cinco períodos, sendo eles: transmissão oral, da escrita em tábuas ou
índices, de fichas simples, da mecanografia e de seriação eletrônica.
Limito-me a falar da transmissão oral e da escrita. Na transmissão oral, o
conhecimento do grupo é a base subjetiva da unidade e personalidade deste, a
memória familiar é inscrita por meio de acontecimentos cotidianos na memória
pessoal do sujeito. Esse tipo de transmissão conta com o auxílio de pessoas
idosas, religiosos, chefes de família, que são incumbidos de manter a coesão do
grupo.
Foram muitos relatos orais que me subsidiaram a explorar a história de
Rubi e Diamante, porém a oralidade também faz parte dos registros do Conselho
Tutelar. Historicamente, a transmissão escrita surgiu com a necessidade de
registrar contas, oráculos, entre outros, conhecimentos esses que, segundo o
autor, já têm sua conservação assegurada pela memória oral. Leroi-Gourhan
(1965) salienta a riqueza das culturas dos povos mais antigos que se perdeu na
história por falta desse registro.
Nos primórdios da escrita, a memória coletiva não tem motivos
para interromper o seu movimento tradicional, salvo no respeitante
àquilo que excepcionalmente interessa fixar no quadro de um
sistema social nascente [...] À medida que se aperfeiçoa o
instrumento que permite projetar na memória das gerações as
palavras e as frases, o registro desenvolve-se, alargando-se a
níveis mais profundos do conhecimento (LEROI-GOURHAN,
1965, p. 61).
Cada época busca responder às necessidades que lhe surgem referentes
à memória e da melhor forma, cada uma com seus meios próprios de registro, de
acordo com o contexto em que se encontra.
Memória é ação de autorepresentação de uma sociedade, é como
um grupo se vê e se produz a partir do passado. Mas não é tudo
74
que toma corpo como memória. Muitas experiências permanecem
abstratas, outras permanecem como imagem e algumas, sim,
podem ser vivificadas enquanto memória. Isto ocorre porque a
memória precisa de um grupo de referência que lhe
consistência (BARRETO, 2007, 164).
Ao selecionar os vestígios arquivados em suas memórias, referentes ao
contato de Rubi e Diamante com novas pessoas em R. - PR, as conselheiras J.I.
e K.L. falaram sobre suas dificuldades de interação com os meninos, uma vez que
eles traziam consigo o entrelaçamento das experiências vividas pela sua cultura.
Os meninos se comunicavam com os gestos, geralmente eles
usavam assovio e gestos, as mãos, assim eles se comunicavam.
Acredito que era uma maneira de eles se comunicarem quando
estavam com fome, geralmente naqueles primeiros dias, a gente
viu que eles mostravam com o dedo e levavam o dedo na boca,
mas dizer que eles estavam com fome não diziam, não tinham a
fala (Conselheira K.L., 2007).
O mais elucidativo para mim na análise da organização da memória de
Rubi e Diamante, é que, de acordo com Le Goff (2003), toda memória é
constituída por meio de uma seleção cultural, considerando que a construção da
memória envolve relações de poder. O autor cita, como exemplo de relação de
poder, os textos chamados de clássicos, segundo ele, estes são o fortalecimento
de um tipo de memória que as relações de poder cristalizaram como mais
importantes.
Le Goff (2003) pontua que a memória não se reduz ao armazenamento
de vestígios, lembranças passadas, mas que tamm pode intervir em uma nova
leitura que pode ser feita a partir desses. No caso desta investigação, tento
passar ao leitor uma história e ao mesmo tempo memória de uma vivência que
me foi relatada nas vozes das conselheiras e demais pessoas que tiveram contato
com os irmãos. Ao ouvi-las, pude contar com o que a memória de cada uma
selecionou e arquivou, posteriormente, transformaram-se em fonte para esse
estudo, abrindo um leque de possibilidades de diálogo.
Vale ressaltar que, para Le Goff (2003), a memória coletiva parte do
social e é essencial na luta das forças sociais pelo poder, que, os membros da
75
hegemonia tornam-se donos da memória e do esquecimento por meio de
manipulações no fazer da história.
Tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das
grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos
que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os
esquecimentos e os silêncios da história são reveladores destes
mecanismos de manipulação da memória coletiva (LE GOFF,
2003, p. 413).
A sociedade instituída fez uso das relações de poder, expondo João a
uma vida de exclusão social. Saliento, porém, que a história da família de João e
de muitas outras que se encontram na mesma situação são interessantes para a
organização da sociedade capitalista, afinal, João saía de madrugada e passava
o dia todo trabalhando, resignado em sua função de trabalhador rural. Será que
João trabalhava por um salário fixo, ou todo seu esforço era em troca da
“manutenção” de sua família? Isso não me cabe dizer, mas acredito que, fosse o
valor que fosse, seria insuficiente para esse pai de família sustentar os filhos e a
esposa dignamente. O que me faz lembrar de outro João, criado simbolicamente
na crônica “O Arquivo”:
joão
39
afastou-se. O lábio murcho se estendeu. A pele enrijeceu,
ficou lisa. A estatura regrediu. A cabeça se fundiu ao corpo. As
formas desumanizaram-se, planas, compactas. Nos lados, havia
duas arestas. Tornou-se cinzento. joão transformou-se num
arquivo de metal (GIUDICE, 2000, p.?).
Dia após dia, João acordava de madrugada, preparava seu café preto,
deixava uma panela de arroz cozido para a família e se dirigia à luta diária
novamente. Estava sempre ali, pronto para fazer o que o patrão lhe ordenasse em
detrimento da vida pessoal e familiar.
Chauí (1986) aponta casos em que as relações de poder são visíveis em
nosso país e afirma que:
39
Grafado com letra minúscula pelo assujeitamento do trabalhador às explorações no mercado de
trabalho.
76
[...] freqüentemente encontramos no Brasil uma atitude
ambivalente e dicotômica diante do popular. Este é encarado ora
como ignorância, ora como saber autêntico; ora como atraso, ora
como fonte de emancipação. Talvez seja mais interessante
considerá-lo ambíguo, tecido de ignorância e de saber, de atraso
e de desejo de emancipação, capaz de conformismo ao resistir,
capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade que o
determina radicalmente como lógica e prática que se desenvolvem
sob a dominação (CHAUÍ, 1986, p. 124).
A autora mostra o entrelaçamento que em nosso país entre poder e
conformismo, entre resistência e ignorância e, nessa ambigüidade, encontram-se
pessoas que ora resistem, ora se curvam às regras impostas. O mesmo acontece
com as pessoas que fazem parte das instituições, as quais seguem regras e
determinações próprias, muitas vezes impregnadas em suas memórias. Dessa
forma, para as pessoas que tiveram contato com a família de João, era impossível
aceitá-los com seus costumes e atitudes, o desejo era sempre de agregá-los à
regra, à cultura aceita socialmente, jamais como diferentes.
Ao resgatar a história de Rubi e Diamante, entendo como relevante o
princípio: “Devemos trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a
libertação e o para a servio dos homens” (LE GOFF, 2003, p. 471), ou seja,
valorizar uma memória que o discurso oficial não reconhece como pertinente. No
entanto, a vida de Rubi e Diamante foi elaboração conseqüente da estrutura
social e familiar fragilizada em que foram personagens.
Como poderiam as referidas profissionais valorizarem uma memória que
denuncia que nem todos os homens da sociedade contemporânea estão na era
da globalização e que vivem de forma praticamente “selvagem em pleno século
XXI? Para elas, os meninos precisavam se adaptar à cultura social e escolar. Nas
falas das professoras, fica evidente o esforço das mesmas em ensinar-lhes o
conteúdo previsto na estrutura curricular, independente de seu histórico de vida;
tentam ensinar-lhes atitudes e comportamentos tidos como adequados pela
sociedade. A resistência de Rubi e Diamante evidencia que os meninos não se
apropriaram da nossa cultura.
Na Casa de Passagem, a atendente T.Z. selecionou vestígios, que me
possibilitaram imaginar a angústia de Rubi e Diamante, por meio de suas atitudes.
A atendente lembra-se de diversas vezes em que precisaram dar remédio aos
77
meninos e que eles mordiam a pessoa que estivesse auxiliando. Lembra tamm
da agressividade demonstrada ao quebrar os vidros do estabelecimento, atirando
pedras.
Creio que deixar o meio em que viviam foi conflituoso para esses
meninos, afinal, este foi o momento em que foram “arrancados” de sua cultura e
já se depararam com horários, normas, remédios. Que significado poderia ter
para eles tantas regras? O que imaginavam quando eram “forçados” a tomarem
remédio, banho, comerem com talheres? Como tudo havia se tornado complicado
para Rubi e Diamante! E como também deve ter sido complicado o atendimento a
eles pelos profissionais da Casa de Passagem.
Da mesma forma, o contato com a cultura escolar e as pessoas inerentes
a ela vieram como algo novo para Rubi e Diamante, como destacado
anteriormente no texto. “A memória costura, tece o passado no presente,
compondo tramas e enlaçando-se em novas possibilidades existenciais”
(BARRETO, 2007, p. 164) e, desta forma, os meninos foram tecendo seu
presente emaranhados do passado recente, ora cedendo à nova cultura em que
estavam inseridos, ora mostrando a força da identidade que traziam consigo.
[...] se ele vinha pro lado de uma criança, ele vinha gritando,
sem você identificar nada, sem saber se era dor, se era (...)
simplesmente ele queria dizer alguma coisa ou ele estava
usando daquele gesto pra se manifestar, pra dizer alguma
coisa para você (Conforme relato da Professora T.S., 2007).
A professora F.X., ao relembrar a experiência vivida, trouxe em sua fala o
efeito restaurador de que Barreto (2007) destaca. Segundo F.X., ao revivenciar o
passado, ela pôde enxergá-lo de outra forma, ressignificar a história e vê-la sob
uma ótica diferente. Afirma que, se fosse hoje, trabalharia de outra forma com os
irmãos, mas que fez o que acreditava ser correto.
A memória trabalha sobre o tempo, pontua Barreto (2007), mas aquele
tempo experenciado pela cultura. A partir da cultura é possível reconstruir e
revivenciar o tempo passado, ressignificando e reconstruindo as experncias, o
que produz um efeito restaurador.
A memória coletiva, de acordo com Le Goff (2003), está ora em
retraimento, ora em transbordamento, momento que me permitiu conhecer um
78
pouco mais da vida e cultura de Rubi e Diamante. Os esforços dessa professora e
das demais pessoas envolvidas foram na tentativa de fazer o possível para ajudar
as crianças, no entanto, sem identificar as reais necessidades e
encaminhamentos necessários para a socialização delas, de um ponto de vista
em que a melhor forma seria adaptá-las a uma cultura posta.
[...] a memória coletiva não é somente uma conquista, é também
um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja
memória social é, sobretudo, oral, ou que estão em vias de
constituir uma memória coletiva escrita, aquelas que melhor
permitem compreender esta luta pela dominação da recordação e
da tradição, esta manifestação da memória (LE GOFF, 2003, p.
470).
A história dessas crianças me foi passada pela ótica dos narradores e,
por intermédio dela, recorri aos estudos antropológicos da hominização e aos
estudos da constituição da memória, pelos quais se constituem a cultura e a
sociedade.
79
RUBI E DIAMANTE CHEGAM À ESCOLA, E AGORA? CONFRONTOS COM A
CULTURA ESCOLAR
Cada menino ou menina tinha um vidro e o
vidro não dependia do tamanho de cada um,
não! [...] Aliás, nunca ninguém se preocupou
em saber se a gente cabia nos vidros. E pra
falar a verdade, ninguém cabia direito
(ROCHA, 1986).
Rubi e Diamante são dois meninos perdidos na própria história de vida.
Viviam na mais extrema pobreza. Tudo neles é determinado pela pobreza e pela
exclusão social: a constituição familiar, o espaço, o tempo, a linguagem, os usos,
os costumes. Então, esclareço melhor o que estou afirmando: A mãe, portadora
de patologia psiquiátrica crônica e irreversível, vivia a maior parte do tempo alheia
a tudo e a todos. O pai fazia as coisas como era possível fazê-las, ou nem sequer
as fazia por falta de meios. Ausentava-se mesmo estando em casa. o
possuiam documentos. Sem registro de nascimento, Rubi e Diamante não eram
reconhecidos pela sociedade e mal existiam para si mesmos! O simples
acontecimento biológico não os promoveu à instituição do humano.
Mudavam-se de um lugar para outro. Em E.C., a casa resumia-se a um
rústico cômodo. Roupas velhas jogadas em um canto e um pedaço de espuma
constituía a cama onde pai, mãe e os dois irmãos dormiam. Não havia nenhum
móvel, apenas um pequeno fogão improvisado com tijolos. Os poucos utensílios
domésticos eram panelas velhas e latas. Poucas roupas rotas cobriam os quatro
corpos que, praticamente, não eram trocadas e lavadas.
80
A alimentação era arroz, frutas silvestres e raízes, devorados seguindo o
exemplo mais constante, a fiel companheira, a cadela. Alimentar-se é celebração
e sobrevivência, a comida está no cerne da vida.
Comiam frutas no mato, [...] viravam aquele lugar, [...] eles
catavam coisas do mato, raiz, assim, o que eles achassem
estavam comendo, igual bichinho mesmo. As coisas deles tudo no
chão, eles comiam fezes deles mesmos, tudo no mato. O suco
caía no chão, eles ficavam lambendo o chão (Conselheira J.I.,
2006).
Não havia limites com relação ao uso do tempo. Rubi e Diamante viviam
correndo livres pelos arvoredos, muitas vezes, apoiados nos pés e nas mãos,
sem que ninguém cuidasse, orientasse ou limitasse suas ações durante o dia ou
noite. Não tinham hora para acordar, comer, correr, brincar, descansar, gritar,
silenciar. Eles estavam acostumados a viverem apenas na companhia da cadela,
até algumas doenças adquiriram em contato com ela, apresentavam a mesma
escabiose que o animal tinha e tamm bernes e pulgas.
A autora Ruth Rocha (1986), na epígrafe desta parte do texto, faz uma
analogia aos ambientes escolares e sua cultura com “vidros”, retrata a falta de
mobilidade em tais ambientes no que diz respeito às culturas e tudo que advém
delas, ou seja, a falta de compreensão com a subjetividade dos alunos advindos
de outros meios. Outras culturas são enjeitadas na escola.
Ao chegarem à escola, Rubi e Diamante traziam consigo uma cultura que
não cabia nos “vidros” da cultura escolar, a forma como os colegas se
comportavam, as atitudes em sala de aula, os cuidados das professoras para com
eles, nada disso fazia sentido, pois não possuíam conhecimento, vivências, muito
menos observação dos costumes da vida social, como: civilidade, delicadeza,
polidez, cortesia, concebidos como inerentes ao ambiente escolar.
De acordo com Fourquin (1993), a palavra cultura foi difundida no século
XIX e, atualmente, encontra-se na centralidade de todos os discursos
“identitários”, afirma ainda que o pensamento pedagógico contemporâneo corre o
risco da superficialidade caso não a devida importância a reflexões sobre a
cultura e os elementos culturais dos diversos tipos de escolha educativa.
Considera a cultura como transmissão cultural
81
[...] um patrimônio de conhecimentos e de competências, de
instituições, de valores e de símbolos, constituído ao longo de
gerações e característico de uma comunidade humana particular,
definida de modo mais ou menos amplo e mais ou menos
exclusivo (FOURQUIN, 1993, p. 12).
Fourquin (1993) destaca que a cultura não deve ser vista apenas como
herança coletiva, mas que se faz necessário um espaço à “cultura humana” como
noção universalista e unitária. A cultura, então, é considerada uma memória e um
destino comum a toda humanidade, mais que um bem comum, um estado
exclusivamente humano, e que, segundo o autor, afasta o homem da natureza e o
diferencia do animal.
O contexto escolar tem um padrão definido e, para que o(a) aluno(a) seja
aceito(a), precisa encaixar-se nele. Neste sentido, autores que trabalham com a
cultura escolar enquanto categoria de análise afirmam que
[...] poder-se-ia descrever a cultura escolar como um conjunto de
normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a
inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a transmissão
desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos;
normas e práticas coordenadas a finalidades que podem variar
segundo as épocas (finalidades religiosas, sociopolíticas ou
simplesmente de socialização) [...] Enfim, por cultura escolar é
conveniente compreender também, quando é possível, as culturas
infantis (no sentido antropológico do termo), que se desenvolvem
nos pátios de recreio e o afastamento que apresentam em relação
às culturas familiares (JULIA, 2001, apud FARIA FILHO; VIDAL;
PAULILO, 2004, p. 143).
Rubi e Diamante, ao entrarem em contato com a cultura escolar,
depararam-se com regras, normas, comportamentos desconhecidos por eles. A
princípio, os dois foram para a sala do Jardim I e, posteriormente, cada um foi
posto em seu “vidro” de acordo com a idade, Diamante com quatro anos no
Jardim I e Rubi com sete anos no Jardim III. A professora do Jardim I conta que,
ao chegarem à escola, “Diamante já apresentava sinais de socialização, mas Rubi
era muito arredio e não falava nada, somente emitia sons como os que ouvia no
mato e o latido da cadela” (Conforme relato da professora F.X., 2007).
Os sinais de socialização de Diamante, aos quais a professora se refere,
82
em minha análise, justificar-se-iam porque o menino apresentaria maior
passividade diante das situações vividas no contexto escolar. As relações
mantidas com os professores e demais colegas seriam mais amenas.
Para essas crianças, poderia não haver sentido passar quatro horas no
mesmo espaço físico, com pessoas desconhecidas (as outras crianças e a
professora) que agiam estranhamente para eles. O contexto escolar apresentava-
se como um mundo novo e assustador.
[...] eu percebia o desespero estampado nos gritos, na fisionomia
dele (Rubi), nos gestos. O primeiro dia, a primeira semana
especificamente foi assim: gritos. Aí, eu, com toda a minha
inexperiência, todo o meu despreparo para a situação, levei ele pro
banheiro, no momento do lanche, vamos lavar a mãozinha
(Professora F.X., Jardim I).
A cultura imposta pela escola aos irmãos não levou em consideração a
história de vida dos mesmos, a tentativa foi de encaixá-los no cotidiano escolar, o
qual tem regras, normas e valores definidos à priori. Para eles, a reação foi de
exasperação: “[...] eles gritavam, como se fosse [...] era um som selvagem
mesmo, ficavam au, au, au assim tipo, num griteiro de desespero mesmo”
(Professora F.X.).
Esse ambiente desconhecido não fazia sentido para Rubi e Diamante, da
mesma forma que não deveria fazer sentido para as outras crianças o desespero
deles, bem como para a professora o estranho comportamento dos dois irmãos.
As atividades escolares desenvolvidas com os demais alunos não lhes chamavam
a atenção e nem lhes despertavam o interesse.
De acordo com Dayrell (2001), as crianças que freqüentam a escola logo
que nascem, o inseridas em uma sociedade estruturada e, em conformidade
com essa estrutura, surgirão algumas possibilidades entre as quais elas poderão
optar. Desta forma, o autor pontua que a educação deve ser vista além dos
“muros” escolares, considerando que cada aluno, como indivíduo concreto,
carrega em sua bagagem cultural experiências diversificadas no que se refere à
religião, costumes, relações familiares e culturais.
83
Os alunos que chegam à escola são sujeitos sócio-culturais, com
um saber, uma cultura, e também com um projeto, mais amplo ou
mais restrito, mais ou menos consciente, mas sempre existente
fruto das experiências vivenciadas dentro do campo de
possibilidades de cada um (DAYRELL, 2001, p. 144).
As possibilidades de Rubi e Diamante referiam-se ao lugarejo em que
viviam. Seus desejos, possivelmente, referiam-se à liberdade, à natureza e aos
“prazeres” que lá usufruíram. As reações que tiveram em sala de aula eram de
desespero, sentiam-se presos, tanto que, na primeira possibilidade de fuga, Rubi
subiu nas árvores existentes atrás da escola e certamente se sentiu em
segurança.
A professora F.X. lembra que, somente após dois meses conseguiu levá-
los para brincarem com as demais crianças no parquinho. O Rubi queria passar o
tempo todo pendurado na tela, em cima das árvores, “decerto aquele ambiente,
né, reportava ao ambiente de casa dele” (Professora F.X, 2007). Os meninos
eram tratados da mesma forma que os demais alunos, porém traziam traços
culturais totalmente diversos da turma.
[...] o essencial da cultura, isto é, a maneira de viver, não se
aprende na escola, mas no seio da família e não se deve
considerar a escolarização das massas como a panacéia social.
Atribuir um lugar exagerado à educação escolar em relação à
educação familiar pode conduzir, segundo ele, a uma
corrupção da cultura, do mesmo modo que a “super-
escolarização” de um indivíduo (em relação aos hábitos e aos
gostos característicos de seu meio) pode ser para ele uma
causa de infelicidade (ELIOT, 1947, apud FOURQUIN, 1993, p.
32).
O conceito de cultura, segundo Veiga-Neto (2003), muitas vezes tem sido
abordado como elemento de diferenciação por meio da educação, ou seja, a
“baixa cultura”, como citado acima é vista como inferior, como algo que precisa
ser mudado para que seja aceito no contexto social. Nesse sentido,
[...] a alta cultura passou a funcionar como um modelo como a
cultura daqueles homens cultivados que ‘já tinham chegado lá’, ao
contrário da ‘baixa cultura’ a cultura daqueles menos cultivados e
que, por isso, ‘ainda não tinham chegado lá’ [...] a educação foi e
ainda é – vista por muitos como o caminho natural para a ‘elevação
cultural’ de um povo (VEIGA-NETO, 2003, p.7).
84
O contexto escolar excluía a cultura trazida por Rubi e Diamante. A
coordenadora S.X. relembra que as crianças tinham medo de se relacionarem
com eles, alguns pais vieram reclamar da presença dos irmãos na mesma turma
de seus filhos, sobretudo por ser uma escola particular, eles pagavam pela
educação dos filhos e, por esse motivo, reivindicavam provincias da
coordenação.
Inclusive, em uma situação específica, a pedagoga S.X. relata que Rubi e
Diamante pegavam os es que os alunos levavam para o lanche, normalmente
pão “francês”, e isso gerou desconforto entre os pais. Estes foram à escola, ou
para reclamarem do ocorrido, pelo constrangimento de o filho procurar seu lanche
no horário do intervalo e perceber que a lancheira estava vazia, ou porque ficaram
penalizados com a situação e se propuseram a levar o lanche para os dois
irmãos.
Entre as diferenças culturais que marcam esses espaços, a relação com a
comida é das mais flagrantes. Vale analisá-la. no E. C., como disse, os
meninos tinham total liberdade para comer. Entretanto a comida, além de
minguada, restringia-se às opções de frutas, arroz e raízes. Mesmo assim, os
meninos eram perseguidos pela fome. E sempre tiveram toda disposição para
conseguir alimentos, buscá-los na natureza, conquistá-los, enfrentando os
cachorros andarilhos, dividi-los com a Rabugenta.
Se aquele lugar chamado escola tinha algo que agradava aos meninos,
certamente, seria a disposição de alimentos. Eles estavam em lancheirinhas
coloridas, cheirosas, com uma variedade de comida insuportável. Era pegar,
sem competição, porque os demais não queriam comer o tempo todo, era
engolir às pressas, para ingerir a maior quantidade possível e provar de tudo.
Não é de estranhar as atitudes agressivas dos dois meninos em razão da
proibição de usufruir de todo aquele alimento.
A professora F.X., do Jardim I, lembra que as dificuldades foram
inúmeras:
[...] no primeiro mês, era impossível aplicar a mesma atividade, até
porque o mais velho, o Rubi, ele pegava, ele comia a folha, ele
comia giz, ele comia massinha, ele tomava, ele pulava na mesa e
rasgava o trabalho das outras crianças (Professora F.X., Jardim I).
85
A professora T.S., ao lembrar cenas em que Rubi se alimentava junto à
turma do Jardim III, conta que, mesmo que o lanche fosse servido em pratos ou
potes, ele comia diretamente com a boca: “Ele sentava como índio, com as
pernas para trás, as mãozinhas ele punha no chão e daí ele ia com a cabeça
direto”; quando ficavam restos de comida no prato ele virava e comia na mesa
sem utilizar as mãos. Mas o desejo do alimento ia além; Rubi tentava e muitas
vezes comia objetos e materiais didáticos. Quando a professora propunha
atividades com massa de modelar, se descuidasse, ele comia o material; certa
vez, comeu metade da massa antes que a professora pudesse impedir. Da
mesma forma, em atividades com tintas coloridas, ele demonstrava preferência
pelo vermelho, preto, verde e azul, mas não realizava a atividade, apenas comia.
Entre as dificuldades encontradas, também destaco a linguagem. A
comunicação acontecia de forma intuitiva pelas professoras, visto que os meninos
não apresentavam uma linguagem verbal, apenas gritos, gemidos, gestos.
O mundo em que se vive está repleto de sons, formas, odores, texturas,
cores e materialidade, com Rubi e Diamante não seria diferente. Cresceram
lidando com estes elementos e desenvolveram a expressão e a comunicação
corporal, gestual e fisionômica inspirados na vida natural. Assim, algumas
perguntas pairam teimosas em meus pensamentos: Como os meninos poderiam
se comunicar sem a expressão do corpo, sem a possibilidade do sentir, ver,
ouvir? Como não perceber os cheiros e os sons da natureza, a textura e as cores
dos objetos? O que, de fato, significavam os elementos culturais apresentados a
eles no espaço escolar? Não estariam eles, em suas atitudes diferenciadas,
explorando o ambiente?
A professora do Jardim I explicita a forma de comunicação com que Rubi
e Diamante chegaram à escola, era uma forma bastante particular, mas a
realidade é que a cultura escolar era capaz de receber crianças com outro modelo
de linguagem que não o instituído socialmente. A professora, então, em sua
angústia ao trabalhar com o diferente”, passa a auxiliar os meninos,
especialmente Rubi, a realizar exercícios na tentativa de que o mesmo
conseguisse segurar o queixo e passasse a desenvolver a “linguagem aceitano
86
contexto social. E, ao falar sobre a linguagem de Rubi, afirma que
A linguagem, somente gritos! Eu acredito que esses gritos, pelo o
que eu me lembro, duraram três meses, foi realmente assim, sem
tentativa de fala, de uma expressão oral verdadeira [...] ele latia,
uivava e andava como a cadela toda vez que eu me aproximava
ou entrava outra pessoa na sala e gritava e se colocava de quatro
AU,AU,AU,UUUUUU, IEIEIEIEIEIEIE, IIIIIIIII, e sons dos pássaros
(Professora F.X., 2007).
Quando os coleguinhas tentavam conversar com os meninos logo que
chegaram à escola, a professora afirma que eles tentavam responder, mas
apenas balbuciavam como bebês: “ahlelala” ou, então, “ahblablablablablãblãblã”.
Obrigo-me a pausar este relato para refletir sobre a dificuldade da
linguagem verbal dos dois irmãos, seguindo as afirmações de Schimidt Dias
(2005), em citação ressaltada neste texto. Será que, em virtude da ausência de
estimulação para o desenvolvimento da linguagem verbal, os meninos se
desenvolveram fisicamente para a impostação fonética que nossa língua exige?
que os bebês possuem a laringe na parte superior da garganta, o que limita a
emissão de sons, e, ao longo dos vinte e quatro meses de vida, a laringe desce
progressivamente, possibilitando maior capacidade de fonação, que será atingida
pela posição adulta por volta dos doze anos de idade. Quando os bebês são
expostos às exigências sociais da fala, esforçam-se na imitação da oralidade dos
adultos e, assim, colaboram com o desenvolvimento do aparelho fonador.
Diamante demonstrou maior interação com a exposição à linguagem oral
do que Rubi. A professora F.X. relata que, apenas com um mês em que estava na
escola, conseguia repetir diversas palavras e demonstrava estar mais
familiarizado com o ambiente. Ao chegar, dizia óóói”, além de pronunciar
pequenas palavras, como: tia, dia, meu, dá, xixi, bola. São palavras de
impostação fonética simples, possíveis a uma criança de dois anos de idade
exposta aos estímulos sociais da linguagem verbal. Acredito que esse
desempenho de Diamante lhe foi possível por apresentar maior sensibilidade de
observação e audição do ambiente social.
Rubi, por sua vez, além de o ter aproximação com a linguagem, estava
apavorado diante das novas situações enfrentadas, o que o impossibilitava de
87
tentar a menor interação que fosse. Segundo relato da professora F.X., também
apresentava dificuldades para a articulação de fonemas.
[...] ele não tinha domínio de segurar o queixo, a língua, então eu
tirava a língua, repetindo palavras mais curtas, mais fáceis pra ele.
Depois de uns quatro meses ele começou a tentar repetir alguma
coisa, mas, ainda assim, de uma forma muito precária, muito mais
lenta do que foi o irmão dele (Professora F.X., 2007).
A professora T.S. do Jardim III compartilha a situação aflitiva que foi
trabalhar com as dificuldades de Rubi, tentou da forma que acreditou ser a mais
sensata naquele momento. De acordo com ela, Rubi
[...] não tinha noção, ficava assim: hãmmmãhmmm, por
exemplo, caderno: lalalano, então era a última sílaba. no
final, alguma coisa ele dizia, o seu nome que terminava em “o”,
acho que de tanto ouvir, não como nós dizemos, mas ele dizia:
lalalalalo (Professora T.S., 2007).
A professora lembra que, muitas vezes, Rubi a puxava pelo jaleco para
que olhasse para ele, queria que ela entendesse seus gestos. Essa era a
linguagem que ele mais empregava na tentativa de comunicação.
De acordo com NEGRÃO, (2002), a comunidade lingüística constitui-se
como um poderoso mercado lingüístico, no qual as palavras circulam como
mercadorias, logo, o valor da linguagem na sociedade é de mais valia. Rubi e
Diamante, porém, não possuíam capital lingüístico e, por isso, eram vistos como
“diferentes” tamm no que diz respeito à linguagem, o que explica a tentativa
das professoras em encaixá-los no padrão lingüístico posto.
A ele [o falante] se impõe que gaste a sua força de trabalho
lingüístico, não lhe sobrando outra alternativa a não ser a de
aprender as modalidades de gasto que lhes são ensinadas. Se
não aprender a falar, ou se falar uma língua com desvios
pessoais, ele, sem dúvida, não será entendido, nem conseguirá
fazer-se entender. Tais dificuldades resultarão na expulsão ou
marginalização do falante do seio da sociedade lingüística
(NEGRÃO, 2002, p. 33).
Compactuo com as professoras que concentraram seus esforços em
88
tentar aproximar os meninos ao ambiente social com tudo o que lhe é inerente: a
convivência social, as regras, a organização do tempo e espaço, a linguagem tida
como apropriada ao ambiente escolar. No entanto, o que elas fizeram foi atender
a uma cultura escolar hegemônica.
A igualdade no contexto escolar está focada no sentido da uniformização,
já que, ao chegarem à escola, todos realmente o tratados da mesma forma.
Aquele que não se encaixa nos padrões impostos por essa “igualdade” sai
prejudicado, considerando que existe a cultura tida como hegemônica, as vozes
que devem ser ouvidas, a linguagem aceita, etc. Tal procedimento não foi
diferente na história escolar de Rubi e Diamante. Pois,
[Durante décadas] A escola não se preocupava se em suas
carteiras sentavam-se descendentes de iorubás ou de italianos,
se os alunos viviam em uma comunidade de pescadores ou em
grandes centros urbanos. Com isso, as características singulares
de cada grupo ficaram excluídas ou escondidas
(GENTILE,2005, p.2).
As culturas “minoritárias” são deixadas de lado, tendo em vista que as
características culturais e a linguagem aceitas no contexto escolar é a culta,
sendo assim, normalmente, as crianças desta origem é que m direito à voz.
Vale salientar que o paradoxo da igualdade/diversidade será superado quando
entendermos que
[...] tratamento igual não significa tratamento uniformizante, que
desrespeita, padroniza e apaga as diferenças. O que se quer é
uma igualdade que se constitua num diálogo entre os diferentes,
capaz de explorar a riqueza que vem da pluralidade de tradições
e de culturas. Enquanto a diversidade cultural for um obstáculo
para o êxito escolar, não haverá respeito às diferenças, mas
produção e reprodução das desigualdades (CANDAU, 2002, p.
71).
Existe uma íntima relação entre escola e cultura, porém é preciso haver
clareza sobre o tipo de cultura que se preconiza. Candau e Moreira (2003)
afirmam que a escola é vista como veículo de transmissão dos conhecimentos
elaborados pela humanidade, o que levanta questões intrigantes:
Que entendemos por produções culturais significativas? Quem
define os aspectos da cultura, das diferentes culturas que devem
89
fazer parte dos conteúdos escolares? Como se têm dado as
mudanças e transformações nessas relações? Quais os aspectos
que têm exercido maior influência nesses processos? Como se
configuram em cada contexto concreto? (CANDAU; MOREIRA,
2003, p. 23).
Como reflexão a respeito da primeira questão, remeto-me ao texto de
Abramowicz e Levcovitz (2005), que discutem a identidade de povo, e afirmam
que a mesma exige uma construção complexa, em que a escola tem
desempenhado papel importante. A idéia de povo está ligada à constituição do
Estado, Estado-Nação, Estado-Centralizado, que, por sua vez, remete a um
território, à língua hegemônica, à raça, etc. A pedagogia centrada nos currículos
nacionais unificados tem feito sua parte na construção desse povo, assim, as
produções educacionais significativas são aquelas que exigem uma língua única,
uma gramaticalidade na valorização de uma determinada estética e padrões
homogêneos na adoção de idéias.
Na educação escolar de crianças, a produção significativa está em
prescrever
[...] o sentar, calar e copiar para aprender, a valorização de
determinado jeito de ser, falar e de pensar [...] brincar, sua
sociabilidade, sua estética, sua higiene, seus bitos e enfatiza o
caráter normalizador e disciplinar do que é ser criança
(ABRAMOWICZ; LEVICOVITZ, 2005, p. 74 e 83).
Para isso, a “maquinaria escolar” na produção de um povo indica
processos de subjetivação da escola, que pressupõem a necessidade de uma
concepção de criança que deve ter determinada infância para desabrochar no
adulto que foi educado para um lugar definido na sociedade (ABRAMOWICZ;
LEVICOVITZ, 2005). A diferença existe, está na escola, mas
[...] precisa ser retirada da cena onde foi satanizada para ser
recolocada na multidão
40
, onde a paisagem é indefinida, onde não
se sabe exatamente quem é quem e o que é o quê mesmo
porque ela é nômade: quem estava ali não está mais; quem
chegou saiu [...] como criar e produzir um espaço fora das
amarras de sentido? Da idéia de infância/povo, uma espécie de
40
O conceito pós-moderno de “multidão” possui um potencial de engajamento e mudança em suas
formas plurais, baseadas na diferença, uma multiplicidade; por isso “toda nação precisa fazer da
multidão um povo” (HARDT; NEGRI, 2001, p. 120), que a multidão tudo faz vazar”
(ABRAMOWICZ; LEVICOVITZ, 2005, p.75).
90
espaço fora-da-infância, [...] uma margem maior, que nunca se
sabe exatamente onde vai chegar, em que as crianças possam
ficar sós, pensar, grunhir, falar etc.? (ABRAMOWICZ;
LEVICOVITZ, 2005, p. 83-84).
Rubi e Diamante foram expostos a diversos aspectos do contexto social,
com costumes e tradições que nem mesmo foi-lhes possível elaborar e
compreender, entretanto, para a maioria das pessoas que conviviam com eles,
tais fatos eram-lhes corriqueiros. Acredito que eles estavam no grupo, mas não
com o grupo no contexto escolar. Por destoarem, foram desvalorizados em suas
expressões comunicativas.
Minha concordância com as autoras leva-me a pensar que a escola não é
simples agente de transmissão de conhecimentos elaborados fora dela
(CHERVEL, apud FARIA FILHO; VIDAL; PAULILO, 2004), nem tampouco, lócus
reservado à rotina ou a atitudes conservadoras, pois, a instituição escolar tem
capacidade para produzir saberes específicos, os quais se estendem para a
sociedade e a cultura.
[...] o sistema escolar é detentor de um poder criativo
insuficientemente valorizado até aqui, é que ele desempenha na
sociedade um papel que não se percebeu que era duplo: de fato
ele forma não somente os indivíduos, mas também uma cultura
que vem por sua vez penetrar, moldar, modificar a cultura da
sociedade global (CHERVEL, apud FARIA FILHO; VIDAL;
PAULILO, 2004, p. 146).
De acordo com o autor, a escola, am de formar os indivíduos é
produtora de cultura que não é decorrente da cultura social, mas produz uma
cultura que interfere na cultura social global. Vale salientar que, muitas vezes, o
trabalho da escola não é reconhecido pela sociedade, o que a desvaloriza.
Com relação à segunda questão: “Quem define os aspectos da cultura,
das diferentes culturas que devem fazer parte dos conteúdos escolares?”
A definição dos aspectos culturais na escola originam-se do modelo
cultural construído historicamente no contexto da modernidade, que este
seleciona saberes, valores, práticas e outros referentes que considera válido a
uma sociedade disciplinar”, que objetiva [...] uma identidade do povo que se
91
transforma em algo quase natural e original para disciplinar o cidadão”(
ABRAMOWICZ; LEVICOVITZ, 2005, p. 74).
Essa perspectiva assenta-se sobre a idéia de igualdade, da visão
monocultural da educação, pois a presença de outras culturas desestabilizariam a
gica e poderiam instaurar outra realidade sócio-cultural indesejada. O que fazer
quando aparece alguém na escola com atitudes que destoam da maioria?
Quando dois alunos se expressam de forma que provoca mal estar no grupo,
antes aparentemente homogêneo?
Com o propósito de promover desenvolvimento e socialização, as
iniciativas pedagógicas das professoras foram tornar Rubi e Diamante seres
sociais, para dar-lhes o formato de cidadãos, “[...] trazendo de roldão uma
concepção de criança para um povo, para uma nação”, a escola acolhe e ampara
“na mesma medida que corrige e molda” (ABRAMOWICZ; LEVICOVITZ, 2005, p. 77).
A próxima e terceira questão, “Como se m dado as mudanças e
transformações nessas relações?”.
Concebe-se a existência de uma correlação de outras culturas no
contexto escolar:
[...] neste espaço que constitue uma rica e espessa teia de
significados e de expectativas por onde transita cada sujeito em
formação, precisamente no período mais ativo [...] ante aos
imperceptíveis elementos que constituem a vida cotidiana da
escola. Os ritos, os costumes, as formas de organizar o espaço e
o tempo, os consensos não discutidos, as idéias onipresentes, as
expectativas não questionadas, os interesses inconfessáveis [...]
os roteiros subentendidos são todos elementos fundamentais de
cada cultura e da rede específica que se articula no cruzamento
delas, cujo influxo real no inter-relacionamento e na construção de
significados é mais poderoso quanto mais imperceptível (PÉREZ
GÓMES, 2001, p. 18).
Com Rubi e Diamante não foi possível a correlação preconizada pelo
autor, considerando que os meninos eram vistos com uma diferença o evidente
que impossibilitava as trocas de uma interrelação cultural. Como afirma o autor,
quanto mais imperceptível os elementos culturais, mais poderosos para a
articulação do entrelaçamento cultural.
A quarta questão: “Quais os aspectos que têm exercido maior influência
92
nesses processos?”
Para enfrentar esse grande desafio posto à escola, Moreira e Candau
(2003) preconizam que é necessário que haja o reconhecimento da diversidade,
além da elaboração de novas estratégias pedagógicas que dêem conta de
compreender e tornar compreensível aos educandos às questões culturais que
perpassam o currículo, por meio de um trabalho docente coletivo.
Finalizando, a quinta questão é: Como esses aspectos se configuram em
cada contexto concreto?
Os preconceitos e discriminações aparecem no ambiente escolar e afetam
distintas dimensões:
[...] [Por meio] do projeto político-pedagógico [de cada escola], o
currículo explícito e o oculto, a dinâmica relacional, as atividades
em sala de aula, o material didático, as comemorações e festas, a
avaliação, a forma de se lidar com as questões de disciplina, a
linguagem oral e escrita (as piadas, os apelidos, os provérbios
populares, etc.), os comportamentos não verbais (olhares, gestos,
etc.) e os jogos e as brincadeiras. É necessário ressaltar que
expressões fortemente arraigadas no sentido comum que
expressam juízos de valor sobre determinados grupos sociais e/ou
culturais, assim como as brincadeiras, são âmbitos especialmente
sensíveis às manifestações de discriminação no cotidiano escolar
(MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 164).
Os autores constituíram um grupo focal
41
com professores que possuíam
uma trajetória de trabalho na perspectiva multicultural, não-discriminatória, para
refletirem juntos sobre as manifestações de discriminação no ambiente escolar.
Após as discussões concluem que:
[...] a partir de diversas dimensões uma “releitura da própria visão
de educação, é indispensável desenvolver um novo olhar, uma
nova ótica, uma sensibilidade diferente. O caráter monocultural
está muito arraigado na educação escolar, parecendo ser inerente
a ela. Assim, questionar, desnaturalizar e desestabilizar essa
41
“O grupo focal é um tipo especial de grupo em termos de finalidade, mero de participantes,
composição e procedimentos. O objetivo de um grupo focal é ouvir e coletar informação. Trata-se
de um modo de se compreender melhor como as pessoas pensam ou se sentem em relação a um
tema, produto ou serviço. Os participantes são selecionados por terem algumas características em
comum relacionadas com a temática do grupo focal” (KRUEGER; CASEY, 2000, p. 4, apud
MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 164).
93
realidade constitui um ponto fundamental. Contudo, favorecer o
processo de reinventar a cultura escolar não é tarefa fácil [...]
exige persistência, vontade política, assim como aposta no
horizonte de sentido: a construção de uma sociedade e uma
educação verdadeiramente democráticas, construídas na
articulação entre igualdade e diferença [...] para que se possa
avançar nesse processo, o papel dos professores é fundamental
(MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 166).
esforços das teorias multi/interculturalistas no sentido de estabelecer
relações entre as diferentes culturas no ambiente escolar. estudos e
pesquisas referentes às dimensões da realidade educacional brasileira às quais
os pesquisadores têm buscado entender com o concurso da noção de cultura
escolar. Há lutas sociais em prol de culturas minoritárias. grupos que viram no
estudo e na interpretação da inclusão em educação um desafio. No entanto,
concretamente, as questões teórico-metodológicas que esses movimentos nos
trazem ainda não foram efetivadas. O que há são experiências alternativas aqui e
ali que tentam romper com o que está posto na educação brasileira.
Rubi e Diamante evadiram-se
42
do contexto escolar, vale novamente
ressaltar as últimas informações que tivemos, por meio de relatório escolar, de
A.F. – MT. Destaca que a escola fez o possível para atendê-los, mas
Mesmo, diante de todas estas tentativas os irmãos Rubi e
Diamante não estão respondendo positivamente às atividades,
não respeitam as regras e m causando prejuízos à escola em
todos os sentidos. As crianças têm medo deles, todos os dias pais
vêm à escola exigir que tome providências, perdemos alunos
por causa deles, os professores e funcionários não conseguem
trabalhar porque a todo momento, têm que separar brigas ou ficar
cuidando para não depredarem os bens dos funcionários e da
escola. A escola não tem condições de continuar com estes
meninos, pois eles não obedecem ninguém. Pedimos com
urgência que seja dado encaminhamento para alguma instituição
especializada, pois os alunos e funcionários estão sentindo
ameaçados e não estamos capacitados para lidar com estes
comportamentos psiquiátricos. Sabemos de nossa
responsabilidade e compromisso em oferecer segurança e ensino
de qualidade para os demais alunos que atendemos e também a
comunidade escolar para o caso (Relatório escolar, em novembro
de 2007).
42
A evasão escolar no Brasil é um fenômeno resultante das determinações sócio-políticas-
econômicas e culturais.
94
A história registra muitos casos de crianças consideradas “selvagens”
(Kaspar Hauser, Victor de Aveyron, Amala e Kamala, os casos mais conhecidos),
“[...] tidas como inadmissíveis para os padrões impostos, a voz das culturas tidas
como ‘minoritárias’ têm sido caladas pela sociedade” (NEGRÃO; MASHIBA, 2007,
p. 170). Assim como as pessoas de cultura negra, indígena, de classe social
menos favorecida, com necessidades educacionais especiais são apenas
exemplos da segregação na sociedade atual.
O motivo é único: há a imposição de uma cultura “única” em detrimento
das outras, os diferentes precisam se encaixar como se a escola fosse uma
forma. Todos são alunos, porém todos são crianças que advém de rios pontos
da sociedade. É preciso ressaltar que as diferenças estão aí e a cultura da escola
precisa ser escrita no plural.
95
DIÁLOGOS DE EXCLUSÃO E INCLUSÃO
Pares adversos estruturam a história da educação inclusiva no Brasil,
refiro-me à: igualdade e desigualdade, exclusão e inclusão, inclusão e integração
escolar e ao Ensino Regular e Ensino Especial.
Iniciarei minhas reflexões com o par igualdade e desigualdade. A
igualdade corresponde a um princípio universal e abstrato, relativo ao ser
humano, portador do mesmo direito fundamental que promove humanidade e
define a dignidade da pessoa humana. A desigualdade é marcada por diferenças
de classe social e de poder econômico e político. Associa-se, numa visão
ingênua, às diversidades no aspecto físico, psicológico e cultural, levando à
quebra do princípio universal da igualdade entre os humanos.
Foi criado, assim, ao longo da história, o mito de que todos são iguais em
direitos e oportunidades.
Um mito dos mais perigosos é o das oportunidades iguais, que
afirma que o sistema educacional é o glorioso fator gerador de
igualdade da nossa sociedade livre. O sucesso pode ser
alcançado pela inteligência, trabalho árduo e criatividade. Como
muitos outros mitos, este faz parte da nossa vida diária, mesmo
que sua falsidade tenha sido continuamente comprovada [...] o
mito da oportunidade igual para todos mascara uma triste
verdade: o sistema educacional é, na realidade, uma loteria social
predeterminada, onde cada estudante tem tantas chances quanto
seus pais têm dólares (McLAREN, 1997, p. 245-246).
96
O paradoxo da igualdade/desigualdade será superado quando for
entendida uma igualdade que se constitua num diálogo entre os diferentes, capaz
de explorar a riqueza que vem da pluralidade de tradições e de culturas.
Enquanto a diversidade cultural for um obstáculo, não haverá respeito às
diferenças, mas produção e reprodução das desigualdades.
Considerando que a cultura aceita na escola ainda é hegemônica, a
igualdade está focada no sentido de uniformização, porque, ao chegarem à
escola, todos realmente são tratados da mesma forma, porém aqueles ou aquelas
que não se encaixam nos padrões impostos por essa “igualdade” são deixados de
lado: “[...] a cultura escolar está impregnada pela perspectiva do comum, do aluno
padrão, do ‘aqui todos são iguais’“ CANDAU (2002, p. 14), Todos são “iguais”?
Logo, a escola não contempla as singularidades dos educandos, realidade esta
ainda comum no âmbito escolar.
Como seres sociais, os indivíduos estão incluídos na sociedade por uma
relação de pertencimento, baseada no princípio da igualdade e da identidade,
mas podemos ser excluídos pelo princípio da diversidade. Preciso falar em
inclusão porque uma sociedade excludente que dicotomiza identidade e
diversidade.
Ao longo do tempo, o fator exclusão esteve presente no desenvolvimento
de toda civilização de forma a assegurar a identidade cultural das sociedades. “se
suas características eram de povos fortes, os ditos fracos e/ou inaptos seriam
banidos, expulsos ou eliminados da classe, clã e do contexto de personalidade do
povo” (SANTOS, 2006, p. 17).
O processo de exclusão associa-se inversamente ao da inclusão pelo
caráter de dimensões como desigualdade, inadaptação, injustiça social,
exploração social e a não-necessidade de precisão de conceitos entre um e outro,
já que tais fatores apresentados possibilitam a identificar um e propor o outro.
Seus reflexos perante a sociedade remetem à visualização de um grande
movimento social.
A proposta de inclusão de todos como participantes da produção social,
cultural e econômica enfatiza a igualdade concreta entre os sujeitos, com o
reconhecimento das diferenças no aspecto físico, psicológico e cultural. Entendida
97
dessa forma, a diversidade não se opõe à igualdade. A desigualdade socialmente
construída é que se opõe à igualdade, por supor que uns valem menos do que os
outros.
O enfrentamento e a superação dessa contradição são tarefas cotidianas
em uma proposta de Educação Inclusiva. A inclusão educacional significa, em um
sentido mais amplo, o direito à educação e ao exercício da cidadania. Assim,
tanto a inclusão quanto a integração são formas de inserção social. Mas,
enquanto a integração “[...] trata as diferenças como problema pessoal dos
sujeitos e visa à manutenção das estruturas institucionais” (LIMA, 2006, p. 24),
isto é, insere o aluno na escola esperando uma adaptação deste ao ambiente
escolar estruturado, a inclusão [...] considera as necessidades educacionais
dos sujeitos como problema social e institucional, procurando transformar as
instituições” (LIMA, 2006, p. 24) implica redimensionamento das estruturas físicas
da escola, de atitudes e percepções dos educadores, adaptações curriculares,
entre outros cuidados.
É normal ouvir a afirmação “não fui preparado para lidar com
deficiências!(LIMA, 2002b, p. 40). Este é um dos problemas encontrados pelos
professores de turmas regulares com alunos integrados ao contexto escolar, pois,
os cursos de formação de professores não têm subsidiado, de maneira
satisfatória, às complexas exigências da inclusão escolar. Os professores em
formação normalmente visitam escolas especiais para observarem como é o
trabalho junto a alunos com necessidades educacionais especiais, realizam
estudos referentes a essa questão, analisam documentos e Leis. Contudo, ainda
dificuldade em estabelecerem-se ligações entre o que está previsto em Lei, a
realidade escolar em termos de recursos materiais e humanos que atendam a
essas necessidades e o aluno concreto nas situações mais diversas,
necessidades educacionais especiais, diferenças culturais, entre outras.
A escola trabalha com uma estrutura homogênea (que é falsa) e
não consegue aceitar a diversidade (que é real) [...] sob este
ponto de vista, qualquer um pode ser marginalizado na e da
escola. E prefiro mesmo dizer marginalizado, pois, permanecem
“na” escola, porém não estão “com” a escola; podem até
permanecer “na” sala de aula, mas não estão “com” a turma;
estão à margem da turma, à margem da escola, à margem da
98
educação e, conseqüentemente, à margem da sociedade
(CELEDÓN, 2008, p. 6).
Muitas crianças têm chegado à escola e se deparado com uma cultura
escolar que não conta de suas necessidades, que trata todos de modo igual
como se todos realmente fossem iguais. Os espaços reservados a crianças tão
diferentes entre si têm a mesma espessura no contexto escolar, não importando o
tamanho de suas necessidades, bagagem cultural, ansiedades e desejos. Tudo
isso é colocado em um espaço que algumas vezes é pequeno, e outras, grande
demais.
As crianças estão integradas ao ambiente escolar, porém não estão
inclusas, haja visto os conceitos de integração e inclusão escolar. mencionei
neste texto, porém reforço aqui, a analogia que Ruth Rocha faz aos ambientes
escolares com vidros, onde cada aluno é posto em seu vidro, independente de
diferenças que possa apresentar. “Tinha menino que tinha até que sair da escola
porque não havia jeito de se acomodar nos vidros” (ROCHA, 1986).
Frente a esse desafio, é urgente a necessidade de estudos que não
somente enfatizem, mas apresentem propostas viáveis a essa questão, às
vezes, percebemos que atrás de uma pergunta há uma resposta pronta, uma
resistência, uma pré-disposição. Nesse caso, falta disposição. Então, é preciso
estimu-la” (LIMA, 2006, p.120). As dificuldades vão muito am da formação de
professores, mas este é um ponto crucial e que cabe aos educadores discuti-lo e
buscarem soluções.
[...] a inclusão educacional é um processo ainda a ser construído,
visto que as práticas exercidas na maioria das escolas não
contemplam um processo fidedigno que visa à aprendizagem e o
desenvolvimento das potencialidades dos alunos. É certo que
necessidade de formulação e execução de políticas públicas
inclusivas que envolvam principalmente o apoio à família e ao
professor, desde sua formação (SANTOS; PAULINO, 2006, p.
41).
Para que o aluno seja incluso no contexto escolar, não basta que ele esteja
matriculado e freqüentando a classe regular, é preciso haver condições de
trabalho aos profissionais e compromisso por parte destes com a aprendizagem
dos alunos.
99
[...] a inclusão escolar se concilia com uma educação para todos e
com um ensino especializado no aluno, mas não se consegue
implantar uma opção de inseão tão revolucionária sem enfrentar
um desafio ainda maior: o que recai sobre o fator humano [...] a
formação do pessoal envolvido com a educação é de fundamental
importância, assim como a assistência às famílias, enfim, uma
sustentação aos que estarão diretamente implicados com as
mudanças é condição necessária para que estas não sejam
impostas, mas imponham-se como resultado de uma consciência
cada vez mais evoluída de educação e de desenvolvimento
humano (MANTOAN, 2OO8, p. 4).
Dessa forma, as escolas devem reconhecer e satisfazer as necessidades
diversas dos seus alunos, adaptando-se às diferentes formas e ritmos de
aprendizagem para garantir educação para todos.
A concepção da educação especial como serviço que segrega e cria dois
sistemas separados de educação: o regular e o especial, cujo objetivo era a
educação de pessoas portadoras de deficiência, realizado em ambientes
especializados e com características de tratamento, a princípio, está superada.
A opção pela escola inclusiva é assumida na “Declaração de Salamanca”,
resultado da Conferência Mundial de Educação Especial de 1994, que defende
que o princípio norteador da escola deve ser o de propiciar a mesma educação a
todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais,
sociais, emocionais, lingüísticas e outras.
Com esse princípio, a educação especial tem concentrado esforços no
sentido de incluir pessoas com deficiências no sistema de ensino regular.
Obrigando-se a uma redefinição de seu papel.
No entanto as denúncia da existência de alunos
segregados em salas de aula supostamente inclusivas é muito
freqüente. Entendemos que uma classe inclusiva é aquela que
promove o desenvolvimento do seu aluno, e não apenas oferece
a oportunidade da convivência social. Para algumas instituições,
o fato de receber o aluno especial e matriculá-lo representa uma
forma de inclusão, quando de fato não é assim que pode ser
denominada. Para haver inclusão, é necessário que haja
aprendizagem e participação social, e isso traz a necessidade de
rever os nossos conceitos sobre currículo. Este não pode se
100
resumir às experiências acadêmicas, mas deve ser ampliado
para todas as experiências que favoreçam o desenvolvimento
dos alunos normais e especiais. Assim, as atividades de vida
diária podem se constituir em currículo e, em alguns casos, talvez
sejam os “conteúdos” que serão ensinados (SERRA, 2006, p.
33-34).
Com esse entendimento, um questionamento assalta-me: A escola
representou para Rubi e Diamante um espaço significativo de aprendizagem?
Porque uma resposta positiva afirmaria que houve práticas educacionais
inclusivas.
A história de Rubi e Diamante poderia ser aproximada a história de Vitor,
conhecido como o selvagem de Aveyron”, sem deixar de considerar seus
aspectos diferenciais, como contexto sóciocultural da época, fundamentação
teórica disponível para intervenção, presença e ausência de adultos durante o
crescimento, para citar alguns fatores. Narrarei rapidamente sua história,
seguindo o texto de Banks-Leite e Galvão (2000).
Em 1798, na virada do culo XVIII para o XIX, uma camponesa
encontrou, em uma floresta francesa, o que à primeira vista pareceu-lhe um
estranho animal que, quando ouviu barulho, fugiu. Ao ver que se tratava de um
menino, a camponesa pediu ajuda a três caçadores que o perseguiram com cães
e espingardas. Ao fugir dos cães, o menino se pendurou em uma árvore e caiu,
foi mordido por um deles, mesmo assim defendeu-se, apertando o pescoço do
cão até matá-lo. Após exaustiva perseguição, os caçadores conseguiram detê-lo
e o entregaram a um aldeão que o protegeu da curiosidade dos camponeses.
O menino, com idade entre 12 e 15 anos, andava como quadrúpede, com
a proximidade do galope, um olhar vago, emitia grunhidos, cheirava tudo e se
alimentava de coisas que encontrava na mata.
Em um primeiro momento, o menino foi levado ao asilo de Saint Affrique,
uma instituição próxima ao local em que fora encontrado, destinada a doentes e
indigentes, permanecendo por um mês. Posteriormente, foi transferido para a
Escola Central de Rodez, onde foi avaliado por um renomado professor de
história natural, Bonnaterre, que se responsabilizou pelo menino por alguns
meses e escreveu um relatório, comparando-o a outros casos semelhantes.
101
Em agosto de 1800, Bonaterre levou o menino a Paris, por ordem do
Ministro do Interior, que o encaminhou ao Instituto Nacional de Surdos-Mudos,
dirigido por Sicard (1742-1822), o qual fazia parte do grupo a Societé des
Observateurs de l’Homme. Nesta sociedade, reuniam-se profissionais das
diversas áreas do saber, médicos, fisofos, naturalistas, com o objetivo de [...]
coletar uma grande quantidade de fatos, multiplicar as observações, deixando de
lado toda teoria, toda especulação arriscada que serve para trazer novas
trevas a um estudo obscuro por si mesmo” (MONTANARI, 1978, apud BANKS-
LEITE; GALVÃO, 2000, p. 14).
Foi constatado que o menino de Aveyron teria sido abandonado por ser um
retardado irrecuperável, diagnóstico este, contestado em diversos pontos pelo
médico Jean Marc Gaspard Itard (1774-1838), aluno de Pinel.
[...] como se a sociedade tivesse o direito de arrancar uma criança
a uma vida livre e inocente, para enviá-la morrer de tédio num
hospício, e ali expiar a infelicidade de ter enganado a curiosidade
publica. Julguei que existia uma solução mais simples e sobretudo
mais humana, era a de usar para com ela bons tratos e muita
condescendência com seus gostos e suas inclinações (Relatório I
de Jean Itard, apud BANKS-LEITE; GALVÃO, 2000).
Itard interessou-se pelo caso e propôs recuperá-lo, porque acreditava que
seu problema era de total isolamento, por ter vivido em ambiente adverso, sem
contato humano. Itard pediu sua tutela e passou a chamá-lo de Victor. Observou
algumas características em Victor: insensibilidade ao fumo do tabaco, nunca o viu
chorar, suportava o calor do fogo, pegava brasas com as mãos, [...] ouve sem
escutar, tal como olha sem ver” (GONÇALVES; PEIXOTO, 2000, p. 12). Itard
constatou que seria necessário ensiná-lo em tudo, desde andar como homem, até
escutar e ver.
Victor passou a ser estimulado por meio de exercícios e, no decorrer do
processo, responde a alguns estímulos. Certo dia, Victor fugiu e passou uma noite
na floresta, mas não conseguiu mais viver lá. Voltou para casa de Itard e fez com
que a governanta passasse a mão em seu rosto. Ao assistir tal cena, Itard afirma
“já não és um selvagem, embora não sejas ainda um homem(GONÇALVES e
PEIXOTO, 2000, p. 24).
102
As experiências de Itard com Vitor é ilustrativa do que aconteceu com Rubi
e Diamante e os profissionais que se envolveram com a tentativa de integração
social e cultural dos dois irmãos.
Ao analisar a história do selvagem de Aveyron, Mannoni
43
(1980) ressalta:
A experiência do selvagem de Aveyron é a cada instante tão
pungente justamente porque Itard impõe ao débil sua própria
concepção de mundo, [...] o principal cuidado de Itard é fa-lo
entrar no universo da palavra. Mas suas concepções a priori no
que concerne à natureza da linguagem fazem que na realidade
tenha barrado o caminho de possibilidades que podia ter ainda o
seu aluno. Essa falha salta aos olhos de todo psicanalista que
sua notável observação, mas os pedagogos não a observam e
ficam como que fascinados pela engenhosidade de que prova
nesse caminho errado. (MANNONI, 1980, p. 202-203).
O mérito de Itard, segundo Mannoni, é que o se recusa a aventurar-se
ao desconhecido, porém não pôde, naquela época, livrar-se de seus próprios
preconceitos. A autora sustenta que a experiência de Itard está ai para mostrar
aos pedagogos, médicos, para-médicos, analistas que toda pesquisa nesse
domínio não pode começar sem antes o profissional passar por uma démarche”
referente a si próprio.
Mas qual é a armadilha que a Mannoni parece que Itard caiu? Itard
imaginava que Vítor vivia no mundo da necessidade pura e é sobre essa base
que pôde construir sua reeducação. Não é por acaso, comenta Mannoni, que Itard
pensou que o menino tinha retardo mental profundo.
Vítor o está ainda em estado de articular um pedido. [...] Que
vemos ao nível da estreita observação? Um adulto desarvorado
diante de uma criança que não articula nenhum pedido. O adulto
quereria a partir dessa ausência de pedido encontrar na criança
um desejo. Mas parece que não lugar para o reconhecimento
do desejo num adulto que se refere sem cessar à necessidade.
Para o médico, as palavras traduzem a expressão de uma
necessidade. [...] Ao longo do relato, Itard nos mostra, sem
compreendê-lo, que a criança tende a usar da linguagem a seu
gosto, sem fazer dela um pedido. Mas é um pedido que ele
43
Maud Mannoni (1923-1998), analista francesa, cuja ação teórica e prática desenvolveu em torno
dos grandes temas psicológicos, reformulados à luz das exigências conceituais e clínicas. Sua
orientação freudiana se prendeu, sem prejuízo, às amplas linhas analíticas de Lacan, um dos
focos da renovação psicológica na França em termos de pensamento psicanalítico.
103
continua a exigir. É isso o que inclina a reeducação para o
adestramento (MANNONI, 1980, p. 204).
Ao longo da experiência de Itard, há, no cerne do problema, o malogro na
comunicação com o outro. O que Itard fez foi um enorme progresso para sua
época, mas se soube combater antigos preceitos, já que havia vinte anos que
Rousseau morrera, e suas idéias estimulavam o médico, que esperava do
selvagem a revelação filosófica do homem natural em estado puro e pensava que
nesse domínio aprenderia tudo dele.
Mannoni reconhece que há influência das idéias de Itard na situação
atual. Seus métodos são, ainda hoje, reconhecíveis na base de processos de
educação mais empregados.
Os progressos técnicos seguros realizados sob impulso no
domínio da reeducação deixam, entretanto, aberta outra questão:
a experiência nos ensina que uma reeducação não se revela
eficaz senão nos casos em que, para lá do sintoma a reeducar,
uma mensagem é inicialmente ouvida. Não teria também um
tema a aprofundar? (MANNONI, 1980, p. 204).
Outra reflexão que penso ser importante trazer para o contexto de
inclusão escolar, que antevi no texto de Mannoni, devido seu aborrecimento tanto
em pedagogia como em psicanálise, é a predominância das teorias de
desenvolvimento humano.
Estas não levam em conta a história do sujeito senão enquanto
favorece ou impede uma “maturação” Um paralelo é estabelecido
entre o desenvolvimento do corpo e o desenvolvimento mental,
paralelo dos mais discutíveis, pois a psicanálise nos mostra mais
e mais a que o que importa num indivíduo não é o que lhe é dado
ao nível das necessidades, mais a linguagem oral ou a sua
ausência, mas o dado, de sentido é introduzindo com a relação
estabelecida com o Outro sem o qual todo estudo [...] se reduz a
uma descrição numa perspectiva puramente estática,
desencorajando de antemão qualquer idéia de progresso
(MANNONI, 1980, p. 2002).
A criança em situação adversa tem necessidade de aprender a se ver de
uma forma não-mutilante, para situar-se corporalmente no espaço e no tempo, e
por ele ser reconhecida, assim amadurecida por um saber, que sofrerá sempre
104
distorções graves se a aprendizagem indispensável a esse conhecimento escolar
não foi efetuada e particularmente se a criança o pôde sozinha situar-se em
relação a si mesma e ao outro. Tal afirmação inviabiliza a ação pedagógica
baseada em critérios de adaptação como um fim em si. No caso de Rubi e
Diamante, no contexto social mais amplo e mesmo na escola, foi o que mais
causou obstáculo para sua inclusão.
Diante das dificuldades encontradas com os meninos, as professoras
envolvidas com eles verificaram a inconsistência de suas teorias e ações
pedagógicas.
Pra mim, foi muito difícil com o Rubi, acho que se a gente tivesse
uma preparação melhor, trabalharia mais, ele aproveitaria mais,
porque de repente você saberia como aplicar determinados
testes, se fossem menos alunos... por que eu estava com uma
sala de quarenta alunos [...]. De repente cai um apresentando
uma deficiência, você não sabe no que e tem que se adaptar a
ele. [...] Em se tratando de material, não tinha material, porque
você não tem uma apostila, conseguir livros ou até cnicas que
você possa aplicar com eles em sala de aula junto com alunos
“normais” (De acordo com relato da professora T.S., em agosto
de 2007).
se vai muito longe o tempo da pesquisa de Itard, no entanto sua
frustração, suas técnicas e ações interventivas, pelo mesmo sentimento de
frustração, são desejadas diante de um quadro aparentemente sem solução.
Encerro estas reflexões pelo desejo de saber mais da professora T.S.
Mas saber o quê? Essa é a pergunta que me faço. Rubi e Diamante
equacionavam problemas relativos à vida, à saúde mental, à política educacional
em dimensão realmente diferente a que as professoras haviam conhecido até
então. Mas assim agindo, os meninos falavam da própria insatisfação escolar das
professoras, e aí também me abrigo. Desvendavam aquilo que nós, muitas vezes,
apenas vislumbramos sincreticamente ou procuramos censurar. Não temos todos
contestações e problemas idênticos? Não estamos limitados, politicamente para
formular nossas interrogações? E, dessa forma o perpetuamos a dicotomia
entre a técnica supostamente “neutra” e os compromissos “políticos” que pouco
modificam nossa prática pedagógica?
105
O PROFESSOR NÃO DUVIDA! DUVIDA?
44
Durante a investigação, quatro professoras regentes de classe e duas
professoras pedagogas dividiram suas experiências e enriqueceram o trabalho
enquanto fontes orais. Nas conversas em relação à cultura escolar e sua práxis
frente à diversidade, essas professoras relataram suas angústias e dúvidas, além
do desconhecimento de como trabalhar em uma situação específica como a de
Rubi e Diamante.
Na Escola P.V., contei com a participação das professoras F.X., T.S. e da
pedagoga S.X., cujas formações foram constituídas no Curso de Formação
Docente em Nível Médio (professoras) e no Curso Superior de Licenciatura em
Pedagogia (professora pedagoga).
Ao conversar com a professora F.X. sobre sua formação, ela afirma
[...] uma coisa é a gente ouvir falar nos livros e outra de repente,
pá, caiu na tua sala, chegou à tua sala e agora você tem que dar
conta, é muito diferente de você ouvir [...] foi trabalhado no
magistério a diversidade cultural, mas também, meu magistério
está com, né, quase 14 anos, então não era assim uma coisa [...]
eu não estava preparada (Professora F.X.).
Para F.X., aí começava o caminho para o aprendizado sobre o outro, visto
que foi na práxis docente diária que se deu o convívio com o “diferente” e foi
nesse embate que as idéias passaram a se misturar e surgiram as tentativas de
acerto baseadas no bom senso, considerando que ao ser questionada sobre sua
formação, afirma que, por melhor que fosse, não havia recebido subsídios
teóricos capazes de resolver tal situação.
Ao relembrar situações em que foi trabalhado o tema cultura durante o
curso do Magistério, a professora diz que se lembra de ter lido sobre Amala e
44
Alusivo ao título do livro “Professor não Duvida! Duvida?” de Fanny Abramovich, São Paulo:
Gente, 1998.
106
Kamala, a situação em que foram encontradas, e que relacionava a história aos
irmãos que chegaram à sua turma, mas o trabalho havia sido “pincelado” e o que
a auxiliou, realmente, foram as conversas com a pedagoga F.X. e outros colegas
de trabalho “tudo, as poucas coisas que utilizamos, hoje analisando, foi muito
precário mesmo. Foi prática, mais prática”, desabafa a professora. Sobre a
formação de professores da Educação Infantil e séries iniciais, Japiassu (2004),
explica
Entendemos que o professor da Educação Infantil e das séries
iniciais é essencialmente polivalente, ou seja, é aquele profissional
‘licenciado’ para realizar a transposição didática do conhecimento
das diferentes áreas do saber (JAPIASSU, 2004, p. 67).
O professor dos anos iniciais, formado normalmente em cursos de nível
médio ou em Pedagogia, leciona todas as disciplinas do currículo, enquanto os
professores formados em outras licenciaturas lecionam a disciplina para a qual
foram habilitados, normalmente no Ensino Fundamental de 5ª. à 8ª. séries ou no
Ensino Médio. Dificilmente se um professor de outra área lecionando nas
séries iniciais.
Se é assim, os cursos de Pedagogia precisam, do nosso ponto
de vista, assumir a especificidade da formação profissional que
se propõem a oferecer, criando condições de igualdade no
oferecimento das diretrizes metodológicas para o trabalho
pedagógico com todas as áreas de conhecimento. Afinal, a
licença para o exercício do magistério na educação infantil e
séries iniciais do ensino fundamental é prerrogativa do pedagogo
(JAPIASSU, 2004, p. 67).
Na verdade, as professoras que trabalharam com Rubi e Diamante foram
literalmente polivalentes, considerando que além da reflexão feita por Japiassu
(2004) sobre a formação docente, atuavam em salas lotadas e com mais dois
alunos que o se encaixavam nos padrões escolares. A professora T.S. que
trabalhou com Rubi e Diamante na turma de Jardim III da Escola P.V., menciona
as dificuldades em trabalhar com uma turma de quarenta e dois alunos, tendo que
realizar um trabalho com a turma e outro à parte com os irmãos. Quanto à sua
formação reflete
107
[...] foi muito supérfluo, o que mesmo a gente conseguiu trabalhar
com eles foi vivenciando e experienciando juntos, porque o
professor, ele recebe muita bagagem, que muitas vezes é
teoria, teoria, teoria e essa teoria fica só (...) falta de prática, falta
de material, falta de (...) digamos de compor o profissional
naquilo que ele vai exercer (Professora L.S.).
Dessa forma, os professores aceitam passivamente o treinamento no
conhecimento gerado pelo especialista, adquirindo pouca experiência de
pensamento interpretativo contextualizado sobre os objetivos do ensino em uma
sociedade, tornam-se pessoas que executam planos administrativos. Além de que
as dimensões morais e éticas não fazem parte dos aspectos cognitivos do ato de
ensinar; elas são submergidas em um conjunto de padronizações e
convencionalismos.
Existe uma mensagem implícita na educação tecnicista do professor, na
pesquisa positivista que a sustenta e nos movimentos de reformas
governamentais que é a de que os professores devem fazer o que se determina
para fazerem, devendo ser cuidadosos sobre o pensar por eles mesmos. Tal
cautela, pode tornar apáticos os professores que perdem o interesse pelos
aspectos criativos do ensino.
Kincheloe (1997) sustenta que, para ir além das estáticas visões
modernistas da cognição e do conhecimento prático, os estudantes de cursos de
formação de professores devem tornar-se pesquisadores dos contextos
educacionais. Como futuros professores, eles precisam estudar a interação entre
contexto e cognição dos professores e empregar ferramentas da pesquisa
qualitativa. O estudo dos eventos, tal como eles surgem de seus meios
(Etnografia), torna-se também importante para a formação de professores, assim
como o estudo dos códigos e sinais que permitem aos humanos tirar sentido dos
contextos (Semiótica).
A aprendizagem de tais procedimentos de pesquisa na preparação de
educadores permite aos futuros professores tomar isto como uma meta-análise do
conhecimento e do pensamento do professor. Isto significa que eles são
estimulados a revelar estruturas profundas que determinam as atividades
profissionais de professores.
108
Esta consciência reflexiva, a análise de um mundo como nós professores
estamos acostumados a ver, requer que os futuros professores construam suas
concepções de mundo de forma renovada.
Nesse processo, eles desenvolvem uma consciência reflexiva que lhes
permite discernir as formas nas quais a percepção do professor é moldada pelo
contexto sócio-cultural, acompanhado por seus códigos lingüísticos, sinais
culturais e visões tácitas do mundo.
Tal reconstrução não deve ser conduzida de forma aleatória, mas de uma
maneira que solaparia as formas de pensamento do professor, que aparecem
como naturais, substituídas por ações refletidas que questionam aspectos do
conhecimento especializado que tem sido oficialmente verificado.
Reflexivamente conscientes no processo de esclarecer seu próprio
sistema crítico de sentido, os professores perguntam-se de onde vem suas
próprias formas cognitivas.
Vê-se a prática diária das professoras do país ser acachapada,
minimizada a relação professor/aluno no afã sôfrego de torná-las
inseguras, sublinhando suas incompetências, ridicularizando seus
conhecimentos e demonstrando – cabalmente – que o discurso do
poder é onipotente, onisciente e onipresente! Conseguido o
estraçalhamento da cabeça dos professores, aguardar um
tempinho para que eles próprios se incubam de decapitar as dos
seus alunos. Sem erros... Então, atentar sempre e
cuidadosamente – para que a formação das futuras gerações siga
os mesmos passos e padrões (ABRAMOVICH, 1998, p. 115-116).
Estamos (nós, formadores de professores do Ensino Básico) preparados
para superar a tendência modernista que nos faz desacreditar em nossa
integridade como profissional reflexivo e consciente?
E o pobre professor do alto de sua mesa tremelicante, gasta e
provavelmente quebrada – repete essas concepções do poder
aprendido. Só a voz do pretenso-dono-do-poder [...] Repetindo
relações de autoritarismo, de mandonice, de controle pela ameaça
(da nota, do castigo, de ficar para recuperação, etc.) e pela
determinação do tipo de saber que pretende passar e cobrar pelo
livro didático adotado, pelo programa seguido segundo a
exigência de que está no departamento devido da Secretaria de
Educação no momento), que – mui provavelmente – nunca seria o
109
seu e muito menos o que considera relevante (ABRAMOVICH,
1998, p. 116).
Realmente, existe mais para ensinar do que o olho modernista encontra,
mais do que o incluído nos programas de educação tecnicista do professor, mas
esse parece ser o desafio na formação de professores no século XXI.
110
CONSIDERAÇÕES POSSÍVEIS
Ao concluir a narrativa e a análise da história de Rubi e Diamante,
procurei manter um fio condutor na linha de pensamento que a constituiu,
perpassando o momento em que os meninos foram encontrados pelo Conselho
Tutelar, após denúncia, o primeiro contato social, sua estadia na Casa de
Passagem e integração no contexto escolar, permitindo ao leitor uma visão geral
de como a sociedade reage ao “diferente”.
No primeiro momento, apresentei o referencial teórico inicial, em que foi
proposta a investigação, a teoria multicultural, que, de acordo com McLaren
(1997), surgiu a partir de minorias étnico raciais, reivindicando seus direitos,
portanto, fora do contexto escolar. No contexto escolar, contei com as reflexões
de Candau (2002a), Fleuri (2000), entre outros, que me permitiram analisar as
posturas dos professores em relação ao diferente e entender que a postura
intercultural é um passo importante no fazer pedagógico. Entendi que a
interculturalidade vai além do respeito ao diferente, porque, supõe a troca de
experiências entre as diversas culturas, a relação é dinâmica. Dessa forma, não
existe uma cultura a ser aceita ou imposta, as culturas abrem-se ao diálogo e ao
confronto na busca por seu espaço.
No segundo momento, ao reordenar meu trajeto de pesquisa, narrei
brevemente a história de Rubi e Diamante, conforme as fontes orais e
documentais me relataram, evidenciando as condições e a estrutura familiar dos
meninos.
Posteriormente, busquei analisar brevemente como ocorre o
desenvolvimento humano, na tentativa de elucidar alguns comportamentos
apresentados pelos irmãos sem o convívio social, por meio dos estudos filosóficos
e antropológicos da hominização.
Agora faço as considerações que me foram possíveis após o
desenvolvimento deste estudo respondendo as questões que rondaram minhas
111
reflexões no tempo destinado à investigação: como Rubi e Diamante organizaram
a vida no isolamento social em que viviam?
Possuir um corpo biológico humano não nos traz hominização. O
comportamento humano inicia-se com os cuidados que os adultos dedicam às
crianças, os quais reforçam os laços sociais por meio do aprendizado das regras
de comportamento e do convívio prolongado entre crianças e adultos. Rubi e
Diamante conseguiram estruturar a vida sem modelos de convivência social e
fraterna que lhes proporcionassem uma vida mais hominizada, contudo eles
desenvolveram experiências lidas para a construção do dia-a-dia na chácara
onde viveram praticamente isolados da sociedade. Tal fato impossibilitou-lhes o
desenvolvimento da linguagem oral e um comportamento mais característico à
vida em sociedade.
Elaboraram eles uma cultura? Minha resposta é afirmativa, uma vez que
tiveram de selecionar e filtrar, pela memória, os triviais aspectos cotidianos de
suas vidas, extremamente diferentes da cultura cristalizada pela sociedade
porque despida dos fatores sociais. Foi cultura estruturada a partir das cadeias de
atos que a memória garantia-lhes. Evidentemente, sem condições de estruturação
da memória social. Suas ações e aprendizagens cotidianas limitavam-se às
possibilidades do lugar e suas rotinas. Como evidenciei, essa cultura foi renegada
pela sociedade e pela escola, o que impediu a aproximação e o entendimento do
mundo constituído pelos dois irmãos.
Será que os meninos sentiam alguma necessidade consciente de
organização da vida? Certamente não. Foi a rotina memorizada que lhes
proporcionou a organização possível da vida.
Por que a aproximação tão íntima com a cadela, a ponto de fazer dela um
modelo de comportamento? É na memória que se inscrevem os comportamentos
e foi na companhia de Rabugenta que os meninos passaram a maior parte do
tempo, quer em casa, na mata, na estrada de ferro, com ela estavam os meninos.
Portanto, é fácil aceitar o fato de que eles corressem apoiados nos pés e nas nas
mãos, apanhassem o alimento do chão com a boca e vivessem outras situações
que os afastavam do comportamento humano e os aproximavam do mundo
animal. Mas, na chácara, a liberdade era total, não havia ninguém para orientá-
112
los, cuidá-los ou limitar suas ações. Dessa forma, a vida deveria transcorrer em
consonância com a organização por eles criada.
Que conflitos viveram ao perceberem que suas ações não produziam os
mesmos efeitos no novo ambiente em que foram colocados?
Não mais que de repente Rubi e Diamante estavam cravejados em
contexto bastante diverso, muito estranho para eles, assim como foram
classificados como estranhos por onde passaram. O medo deve tê-los tomado
inteiramente, uma vez que foram despojados de todas as referências
organizacionais de vida.
O que faltou a eles para perceberem a modificação do ambiente e suas
exigências? Como mencionei anteriormente, a criança em situação adversa tem
necessidade de aprender a se ver de uma forma não-mutilante, para situar-se
corporalmente no espaço e no tempo, e por ele ser reconhecida, assim
amadurecida por um saber, que sofrerá sempre distorções graves se a
aprendizagem indispensável a esse conhecimento não foi efetuada e sobretudo
se a criança não pôde sozinha situar-se em relação a si mesma e ao outro e ao
ambiente. Tal afirmação inviabiliza a ação pedagógica baseada em cririos de
adaptação como um fim em si. No caso de Rubi e Diamante, no contexto social
mais amplo e mesmo na escola, foi o que mais causou obstáculo para sua
inclusão.
Que significado poderia ter para eles as regras do mundo social em que
foram inseridos? Estavam em um mundo com exigências novas que os irmãos
não entendiam bem. Na memória, o passado recente, no presente, viviam dramas
que se entrelaçavam com novas experiências. Dessa forma, foram tecendo o
presente emaranhados, ora cedendo às novas exigências, ora mostrando a força
da identidade que traziam consigo.
O que imaginavam quando forçados a tomarem banho, remédio,
comerem com talheres? Rubi e Diamante se depararam com regras, normas,
horários, muitas exigências. Sentiam-se agredidos, rodeados por inimigos, logo,
agiam com atitudes agressivas que nada mais eram senão tentativas de proteção.
A escola representou para Rubi e Diamante um lugar significativo de
aprendizagem? Não, eles estiveram segregados. Entendo que a sala de aula
113
inclusiva é aquela que promove o desenvolvimento da criança e o apenas
oferece a oportunidade da convivência social. Para eles, as atividades de vida
social diária deveriam se constituir em conteúdos destinados à aprendizagem dos
irmãos.
Estaria a escola preparada para receber alunos com diferenças culturais
tão acentuadas em seu contexto? Não. Como Celedón (2008) afirma, a escola
trabalha com uma estrutura homogênea (que é falsa) e não consegue aceitar a
diversidade (que é real), sob este ponto de vista, qualquer um pode ser
marginalizado na e da escola, uma vez que permanecem na escola, porém não
estão com a escola; podem até permanecer na sala de aula, mas não estão com
a turma; estão à margem da turma, à margem da escola, à margem da educação
e, conseqüentemente, à margem da sociedade. É preciso haver condições de
trabalho aos profissionais e compromisso por parte destes com a aprendizagem e
desenvolvimento dos alunos. Só assim haveria práticas educacionais inclusivas.
Rubi e Diamante, após passarem por quatro escolas, evadiram-se!
Porque “[...] não tinha um vidro pra botar esse (s) menino (s)” (ROCHA, 1986,
p.16).
A imposição de uma cultura única” em detrimento das outras, porque os
diferentes precisam se encaixar, como se a escola fosse uma forma. Todos o
alunos, porém todos são crianças que advém de vários pontos da sociedade. É
preciso ressaltar que as diferenças estão e a cultura da escola precisa ser
escrita no plural.
E quebramos um vidro, depois quebramos outro e outro mais e
dona Demência estava na janela gritando SOCORRO!
VÂNDALOS! RBAROS! (Pra ela rbaro era xingação)”
(ROCHA, 1986, p.16).
Frente a esse desafio, é urgente a necessidade de estudos que não somente
enfatizem, mas apresentem propostas viáveis a essa questão, “às vezes, percebemos
que atrás de uma pergunta há uma resposta pronta, uma resistência, uma pré-
disposição. Nesse caso, falta disposição. Então, é preciso estimulá-la” (LIMA, 2006, p.
120). As dificuldades vão muito além da formação de professores, mas este é um ponto
crucial e que cabe a nós como educadores discuti-lo e buscarmos soluções.
114
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