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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: História e Historiografia da Educação
REPRESENTAÇOES DO ANALFABETO NO CINEMA BRASILEIRO
IVONIR RODRIGUES AYRES
MARINGÁ
2009
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2
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO: MESTRADO
Área de Concentração: História e Historiografia da Educação
REPRESENTAÇÕES DO ANALFABETO NO CINEMA BRASILEIRO
Dissertação apresentada por IVONIR
RODRIGUES AYRES ao Programa de Pós-
Graduação em Educação, Área de
Concentração: História e Historiografia da
Educação, da Universidade Estadual de
Maringá, como um dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora:
Prof
(
ª
)
. Dr
(
ª
)
. FÁTIMA MARIA NEVES
MARINGÁ
2009
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3
IVONIR RODRIGUES AYRES
REPRESENTAÇÕES DO ANALFABETO NO CINEMA BRASILEIRO
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Fátima Maria Neves (Orientadora) – UEM
Profª. Drª. Magda Madalena Tuma – UEL – Londrina
Profª. Drª. Eliane Cleide da Silva Czernisz – UEL – Londrina
Profª. Drª. Ednéia Regina Rossi – UEM
Profª. Drª. Elaine Rodrigues – UEM – Maringá
2009
4
Dedico este trabalho à memória de meus
pais Napoleão Dias Ayres e América
Rodrigues Ayres, que fundamentaram a
minha existência social, aos meus irmãos,
sempre amigos, e à minha esposa e
companheira Maria Aparecida Martinez
Ayres com amor e gratidão por compartilhar
de todos os momentos desta caminhada e
por me presentear com a Carolina e o
Antonio.
5
AGRADECIMENTOS
À professora Fátima Maria Neves pela orientação dedicada, cuidadosa e firme
durante todo o percurso.
Às professoras Ednéia Regina Rossi, Elaine Rodrigues, Magda Madalena Tuma e
Eliane Cleide da Silva Czernisz pelas importantes contribuições para a conclusão
desta dissertação.
Às professoras Maria Cristina Gomes Machado, Teresa Kasuko Teruya e
Terezinha de Oliveira pelo aprendizado proporcionado em suas aulas.
Aos colegas do programa de mestrado que compartilharam alegrias e
preocupações nesta trajetória, em especial ao amigo Luiz Antonio de Oliveira.
Ao Hugo Alex da Silva e à Márcia Galvão da Motta Lima da secretaria do
programa de mestrado, sempre atenciosos e prestativos.
Ao professor Marcos Hidemi por partilhar seus conhecimentos por meio de
produtivas discussões realizadas ao longo deste trabalho.
À professora Márcia de Fátima Martinez, diretora do CEEBJA Herbert de Souza,
pelo apoio e constante incentivo.
À Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico
pelo apoio financeiro.
6
Não há saber mais ou
saber menos: há saberes diferentes.
Paulo Freire
7
AYRES, Ivonir Rodrigues. REPRESENTAÇÕES DO ANALFABETO NO CINEMA
BRASILEIRO. 128 f.. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade
Estadual de Maringá. Orientadora: Drª. Fátima Maria Neves. Maringá, 2009.
RESUMO
Este trabalho teve como objetivo analisar as representações do analfabeto no
cinema brasileiro, particularmente, em duas obras cinematográficas: Jeca Tatu
(1959) e Narradores de Javé (2003). Buscou-se, também, estudar a legislação
referente à Educação de Jovens e Adultos, assim como investigar as concepções
mais significativas sobre o analfabeto e de seu oposto, o alfabetizado, construídas
historicamente, considerando que tais concepções fundamentam o planejamento
e o desenvolvimento de processos educacionais voltados à alfabetização e à
educação de jovens e adultos e, presentes na memória social, influenciam a
realização de práticas culturais, como a produção cinematográfica. O texto se
estruturou a partir da descrição e exame dos filmes selecionados, seguida pela
pesquisa na historiografia da educação brasileira de debates educacionais
realizados acerca da construção de concepções sobre o analfabetismo e a
alfabetização, assim como se recorreu à literatura da educação para analisar a
trajetória histórica de processos de alfabetização e de escolarização envolvendo
jovens e adultos no período compreendido entre a década de 1940 aos anos
iniciais do presente século. A pesquisa apontou que as representações
construídas sobre analfabeto são significativamente diferentes entre os dois filmes
e identificam-se com concepções sobre o analfabetismo e a alfabetização
presentes nos tempos e contextos históricos em que ambos foram produzidos.
Esta dissertação, inserida na área de História e Historiografia da Educação, com
especificação na linha da pesquisa de Fontes, Objetos, Métodos e Recursos
Midiáticos, foi dividida em três capítulos. O primeiro contém o estudo sobre as
fontes cinematográficas pesquisadas. O segundo trata da interface cinema e
educação com ênfase à temática do cinema como representação cultural. O
terceiro examina as diferentes concepções construídas em torno da relação
analfabetismo/alfabetização ao longo do tempo e ainda discorre sobre a trajetória
histórica da educação de jovens e adultos no Brasil e no exterior. Nas
considerações finais, são apresentados os resultados obtidos.
Palavras-chave: Analfabeto; Alfabetização; EJA; Educação de Jovens e Adultos;
Cinema e Educação; Cinema brasileiro.
8
AYRES, Ivonir Rodrigues. REPRESENTATIONS OF THE ILLITERARE IN THE
BRAZILIAN CINEMA. 128 p. Dissertação (Masters of Education) State
University of Maringa. Advisor: Dr. Fátima Maria Neves. Maringá, 2009.
ABSTRACT
This study aimed to examine the representations of the illiterate in brazilian
cinema, particularly in two films: Jeca Tatu (1959) and Narradores de Javé (2003).
It has also aimed study the legislation concerning education of adults and young
people education as well as investigate the most significant conceptions about the
illiterate, and its opposite, the literate, historically constructed, considering that
such concepts are basis of educational planning and development processes
focused on literacy and on so, when they are in the social memory, they influence
the conduct of cultural practices, such as film production. The text was structured
from the description and examination of selected films, followed by research in the
historiography from brazilian education of educational discussions, made about
the construction of conceptions of literacy and illiteracy, as well as it appealed to
the literature of education to examine the historical trajectory of literacy and
education processes involving youth and adults from the 1940s to the early years
of this century. The survey pointed out that illiterate built on representations are
significantly different between the two movies and identify yourself with views on
illiteracy and literacy in times and historical contexts in which both have been
produced. This paper, inserted in the History and Historiography of Education, with
specification in the search for Sources, Objects, Methods and Media Resources,
was divided into three chapters. The first contains the study on cinematographic
searched sources. The second is about the cinema and educational interface with
emphasis on the cinema theme as cultural representation. The third look over the
various concepts built around the relationship of illiteracy/literacy over time and
also discourse the historical trajectory of adults and young people education in
Brazil and abroad. In the final considerations are presented the results obtained.
Keywords: Illiterate; Literacy; EJA; Adults and Young people Education; Cinema
and Education; Brazilian Cinema.
9
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CEAA Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos
CEB mara de Educação Básica
CEE Conselho Estadual de Educação
CEEBJA Centro Estadual de Educação Básica para Jovens e Adultos
CNAIA Comissão Nacional do Ano Internacional da Alfabetização
CNE Conselho Nacional de Educação
CNEA Campanha Nacional de Erradicação de Analfabetismo
CNER Campanha Nacional de Educação Rural
CONFINTEA Conferência Internacional sobre Educação de Adultos
DEJA Departamento de Educação de Jovens e Adultos
DCE Diretrizes Curriculares Estaduais
DCN Diretrizes Curriculares Nacionais
DNE Departamento Nacional de Educação
EJA Educação de Jovens e Adultos
EMBRAFILME Empresa Brasileira de Filmes
ENEJA Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos
FNEP Fundo Nacional do Ensino Primário
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INAF Instituto Nacional de Alfabetização Funcional
LDBEN Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
MEB Movimento de Educação de Base
MOBRAL Movimento Brasileiro de Alfabetização
NRE Núcleo Regional de Educação
OEA Organização dos Estados Americanos
ONU Organização das Nações Unidas
PNAC Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania
SEA Serviço de Educação de Adultos
SEED Secretaria de Estado da Educação
SENAI Serviço Nacional da Indústria
SENAC Serviço Nacional do Comércio
UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
10
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO.................................................................................................. 12
2. DIFERENTES ANALFABETOS EM DIFERENTES CONTEXTOS.................. 23
2.1 O nascimento do Jeca.................................................................................... 27
2.2 O Jeca vai ao cinema..................................................................................... 33
2.3 Os narradores: entre a oralidade e a escrita.................................................. 49
3. CINEMA E A EDUCAÇÃO............................................................................... 66
3.1 O cinema como prática cultural de representação da vida............................ 68
4. ANALFABETISMO/ALFABETISMO E A EJA NO BRASIL............................. 76
4.1 Alfabetização: um debate historiográfico....................................................... 81
4.2 Breve histórico da EJA - Educação de Jovens e Adultos.............................. 89
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................ 105
FONTES.............................................................................................................. 112
REFERÊNCIAS................................................................................................... 114
ANEXOS.............................................................................................................. 121
11
1. INTRODUÇÃO
Os educadores atuantes na Educação de Jovens e Adultos (EJA)
encontram em suas salas de aulas homens e mulheres de diferentes idades,
religiosidades, pertencimentos étnicos, concepções de mundo e saberes
acumulados em suas trajetórias de vida. Na prática cotidiana destes educadores,
especialmente dos que lecionam nos níveis de Ensino Fundamental II
1
e Médio,
como é o caso do autor desta dissertação, constata-se que os educandos jovens
e adultos percorrem diferentes trajetórias de aprendizagem e que é fundamental
respeitar o ritmo próprio de cada um no seu processo de apropriação de saberes.
É possível observar, no dia-a-dia, que existe uma significativa disparidade de
estágios de aprendizado entre estes educandos, relacionada, entre outros fatores,
aos níveis muito diferenciados de alfabetização por eles apresentados. Em
algumas turmas do Ensino Fundamental II, poucos educandos lêem e escrevem
com fluência enquanto a maioria encontra dificuldades, às vezes extrema, para ler
um texto simples. No Ensino Médio, correspondente aos três anos do regular,
tamm se verifica a mesma realidade, embora em proporções menores.
Compreender estas desigualdades é importante para que sejam pensadas e
organizadas práticas pedagógicas não padronizadas e que na aplicação dos
conteúdos específicos das disciplinas curriculares tais práticas contribuam para
desenvolver nos educandos as habilidades da leitura e da escrita, buscando
sempre associá-las à práticas sociais como ler livros, jornais e revistas, redigir
formulários, requerimentos, declarações, escrever cartas, entre outras.
E para além da alfabetização no sentido do exercício de práticas sociais
que fazem uso da leitura e da escrita, torna-se premente na sociedade
contemporânea, permeada pelo audiovisual e crescentemente informatizada,
tamm a alfabetização ou educação para as mídias” que se constitui, de acordo
com Belloni (2001, p. 12) “em um novo campo de saber e de intervenção que vem
se desenvolvendo desde os anos de 1970 no mundo inteiro”. Afinal, a revolução
da informática propiciou a criação de novas tecnologias da informação e
1
O Ensino Fundamental II na EJA corresponde ao período da à séries da educação básica voltada às
crianças e adolescentes. A fase que o antecede, o Ensino Fundamental I, equivale ao ensino de à 4ª séries
do regular.
12
promoveu uma vertiginosa expansão dos meios de comunicação de massa,
incluindo as redes mundiais de computadores. Nos últimos anos, o acesso de
crianças, adolescentes, jovens e adultos à mídia, especialmente à internet e à
televisão, cresceu aceleradamente, exigindo a atenção de educadores e gestores
da educação para esta nova realidade histórica.
Neste contexto, intensificam-se debates e pesquisas acadêmicas que
tratam da interface educação e mídia, abordando entre outros temas a educação
para a comunicação” a partir de reflexões em torno da relação emissão e
recepção, visando à elaboração de programas de formação de espectadores
autônomos e críticos frente aos meios, assim como são realizados estudos acerca
de temas relacionados à “mediação tecnológica na educação”, compreendendo
os procedimentos e as reflexões em torno da presença e dos múltiplos usos das
tecnologias da informação em ambientes escolares. Estudos mais específicos
direcionam a atenção para a relação educação e cinema”, procurando discutir
tanto o uso de filmes em contextos escolares quanto à apropriação de temáticas
educacionais pela produção cinematográfica, como é o caso desta pesquisa
A opção pelo cinema brasileiro para estabelecer a interface com a
educação relaciona-se à atuação docente de seu autor que desenvolve práticas
pedagógicas nas aulas da disciplina de História que ministra envolvendo a
exibição e discussão de produções cinematográficas brasileiras. Tais experiências
têm demonstrado que o uso de filmes contribui sobremaneira para enriquecer o
processo ensino-aprendizagem. A linguagem cinematográfica constitui-se como
elemento mediador para o aprendizado dos educandos e auxilia a minimizar a
disparidade dos níveis de compreensão dos conteúdos históricos tratados. No
desenvolvimento destas práticas, foi possível observar que uma importante
parcela dos educandos identifica-se com personagens de filmes brasileiros com
pouca ou nenhuma escolarização e, ainda, com situações representativas de
movimentos de migração do campo para as cidades, pois, grande parte destes
educandos é formada por homens e mulheres do campo que povoaram as
periferias das áreas urbana em razão, dentre outros fatores, da mecanização da
produção agrícola, especialmente a partir dos anos de 1950.
Deste modo, inserido na temática da interface educação e mídia, mais
especificamente na relação educação e cinema, este trabalho analisa as
13
representações do analfabeto em produções cinematográficas brasileiras,
particularmente em duas obras cinematográficas: Jeca Tatu, produzido pela PAM
Filmes, em 1959, com direção e roteiro de Milton Amaral
2
(1934-1955) e
protagonizado por Amácio Mazzaropi
3
(1912-1981), e Narradores de Javé, de
2003, produzido pela Bananeira Filmes e dirigido por Eliane Caffé
4
, que ainda é
co-autora do roteiro juntamente com Luís Alberto de Abreu
5
. A escolha do filme
Jeca Tatu (1959) prende-se ao fato de que esta produção assume grande
significado para a discussão acerca da construção e consolidação na memória
social brasileira de uma representação esteriotipada dos homens e das mulheres
do campo, no caso do interior paulista, em sua imensa maioria analfabetos,
denominados de caipiras, que migraram para as médias e grandes cidades
brasileiras em grande número a partir década de 1950. Por sua vez, a opção por
Narradores de Javé (2003) levou em consideração a riqueza temática da obra que
apresenta personagens, homens e mulheres tamm analfabetos e interioranos,
desta vez, nordestinos, com características muito próximas dos homens e das
mulheres concretos, reais, muitos dos quais são os sujeitos sociais que
frequentam as salas de aulas das escolas que ofertam a EJA na atualidade.
Diversos outros filmes produzidos em tempos e contextos diferentes
poderiam ser elencados para servirem de fontes de pesquisa tomando como
critério a presença de analfabetos em seus enredos, sejam como protagonistas
ou ainda como coadjuvantes. Enorme seria a lista se fossem consideradas, para
esta seleção, desde as primeiras filmagens experimentais efetuadas no Brasil,
nos anos finais do culo XIX, passando pelos filmes mudos realizados até o final
da década de 1920, chegando aos musicais, chanchadas e outros neros
viabilizados, em grande parte, pela Cinédia Estúdios, inaugurada em 1930, ou
2
Milton Amaral nasceu em São Paulo, em 1934. Foi cineasta, roteirista e ator brasileiro. Dirigiu, entre outros
filmes: Tristeza do Jeca (1961), Casinha Pequenina (1963), O Corintiano (1967). Morreu em 1995.
(MAZZAROPI, 2008)
3
Sobre Mazzaropi, ver o capítulo II desta dissertação.
4
Eliane Caffé nasceu em 1961, em Santo André (SP). Cursou cinema em Cuba e na Espanha. Iniciou sua
carreira no cinema com três curtas: O Nariz (1987), Arabesco (1990) e Caligrama (1995). Seu primeiro
longa-metragem foi Kenoma (1997) seguido por Narradores de Javé (2003). (ABREU; CAFFÉ, 2004).
5
Luis Alberto de Abreu nasceu em São Bernardo do Campo (SP), em 1952. Destacou-se como dramaturgo
do grupo Mambembe de Teatro. Escreveu roteiros para os filmes Maria (1985), Lila Rapper (1997) e os
premiados Kenoma (1998) e Narradores de Javé (2003). Na TV, escreveu para as minisséries: Hoje é Dia de
Maria (2005) e A Pedra do Reino (2006). (ITAUCULTURAL, 2007).
14
pela Atlântida Cinematográfica, de 1941, empresas criadas no Brasil tendo como
modelo a indústria cinematográfica norte-americana de Hollywood.
Cabe frisar que o recorte temporal
6
estabelecido para este estudo tem
início na década de 1940 e finda nos anos iniciais da primeira década do presente
século. Contudo, a primeira fonte selecionada, o filme Jeca Tatu, é de 1959. Tal
opção justifica-se pelo fato de que o personagem cinematográfico Jeca resulta de
um processo de formatação realizado por Amácio Mazzaropi (1912-1981) ao
longo de sua carreira artística no circo e no rádio, que perpassa os anos de 1940
e de 1950. Nesta última década, caipiras mazzaropianos predecessores do Jeca
já aparecem no cinema em filmes como Candinho (1953), da Companhia
Cinematográfica Vera Cruz
7
, com roteiro e direção de Abílio Pereira de Almeida
8
(1906-1977), e Chico Fumaça (1958), produzido pela Cinelândia Filmes, do Rio
de Janeiro, em parceria com Cinedistri, de São Paulo, dirigido por Victor Lima
9
(1920-1981) que ainda escreveu o roteiro. Em ambos os filmes, Mazzaropi
representa personagens caipiras e analfabetos, porém com características
diferentes (o primeiro é ingênuo, enquanto o segundo é espertalhão), mas que
contribuíram para a composição de seu personagem mais famoso, o Jeca,
apresentado no filme Jeca Tatu (1959) e em produções subsequentes.
Tanto Candinho (1959) quanto Chico Fumaça (1958) são obras
cinematográficas que também poderiam ser selecionadas como fontes, pois
fecundas para o estudo sobre o analfabeto no cinema brasileiro, assim como O
Cangaceiro (1953), escrito e dirigido por Lima Barreto
10
(1905-1982) e produzido
pela Vera Cruz, que foi o primeiro filme brasileiro a conquistar as telas do mundo,
sendo premiado em festivais nacionais e internacionais, incluindo o Festival
6
O recorte temporal não seguiu uma rígida demarcação. Em alguns momentos, foi necessário recuar às
décadas de 1920 e 1930 para subsidiar temas específicos tratados no desenvolvimento desta dissertação.
7
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949-1954) foi a tentativa mais sistemática de implantar uma
indústria cinematográfica hollywoodiana no Brasil. Produziu 18 filmes de longa-metragem e vários
documentários. (LEITE, 2005, p. 75).
8
Abílio Pereira de Almeida nasceu em São Paulo, em 1906. Participou da criação da Cia. Cinematográfica
Vera Cruz, em 1949, onde trabalhou como ator, diretor e produtor. Em 1952, lançou Mazzaropi no cinema
com o filme Sai da Frente. Morreu na capital paulista em 1977. (ITAUCULTURAL, 2007).
9 Victor Lima nasceu em 1920, no Rio de Janeiro. Foi diretor, roteirista e produtor de vários filmes
destacando-se nas comédias, tendo trabalhado com Costinha, Renato Aragão e Ronald Golias entre outros
comediantes. Morreu em 1981. (BRASIL, 2009).
10
Vítor Lima Barreto nasceu em São Paulo (SP) em 1906. Escreveu contos, novelas e romances. Estreou em
cinema com documentários. Seu primeiro longa foi O cangaceiro e sua última realização foi o curta Arte
cabocla. Lecionou cinema em Campinas (SP), onde morreu em 1982. (BRASIL, 2009).
15
Internacional de Cannes, de 1953, quando ganhou o prêmio de Melhor Filme de
Aventura. O enredo, inspirado em Lampião, mostra os conflitos vividos por dois
cangaceiros por conta de uma professora de uma escola rural raptada, a quem
um deles pretendeu libertar por amor. Ainda na década de 1950, um filme
produzido por uma cooperativa de atores e técnicos de cinema, Rio 40 graus
(1955), escrito e dirigido por Nelson Pereira dos Santos
11
, tamm se constitui em
uma fonte rica para estudo. Em estilo de documentário, o filme mostra um dia na
vida de cinco garotos negros da favela do Morro do Cabuçu, que vendem
amendoim em Copacabana para poder comprar uma bola. Rio 40 graus (1955) foi
o precursor do movimento do Cinema Novo
12
, cujos filmes priorizaram abordar
temas nacionais buscando “reencontrar o homem brasileiro, notadamente o
‘homem do povo’, seu trabalho, sua visão de mundo, sua maneira de pensar, de
falar e de ser” (LEITE, 2005, p. 94). Um dos destaques da filmografia do
movimento do Cinema Novo é o filme Vidas Secas (1963), baseado na obra
homônima do escritor Graciliano Ramos (1892-1953). Produzido pela empresa
cinematográfica Herbert Richers S.A, com roteiro e direção de Nelson Pereira dos
Santos e premiado no Brasil e no exterior, o filme retrata a vida de uma família de
nordestinos miseráveis e analfabetos que lutam para sobreviver no sertão diante
do flagelo da seca. Outra obra emblemática do Cinema Novo e considerada um
marco da cinematografia latino-americana é Deus e o Diabo na Terra do Sol
(1964), da Copacabana Filmes com argumento, roteiro e direção de Glauber
Rocha
13
(1939-1981), cineasta símbolo do movimento cinemanovista. Mais uma
vez, o interior nordestino é o cenário onde se desenrola a história que mostra a
11
Nelson Pereira dos Santos nasceu em São Paulo, em 1928. Fez mais de 20 filmes em sua carreira. Foi
professor fundador do curso de cinema da Universidade de Brasília. É membro do Conselho Superior da
Escola de Cinema de Havana. Em 2006, aos 77 anos, tornou-se o primeiro cineasta a ocupar uma cadeira na
Academia Brasileira de Letras. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
12
O Cinema Novo foi um movimento artístico, estético e narrativo de cineastas brasileiros que fazia parte,
nos anos 60, “de uma corrente mais larga e profunda que se exprimia igualmente através da música, do
teatro, das ciências sociais e da literatura. Essa corrente, [...] foi por sua vez a expressão cultural mais
requintada de um amplíssimo fenômeno histórico nacional.” (GOMES, 1980, p. 94).
13
Glauber Rocha nasceu em Vitória da Conquista (BA) em 1939. Realizou vários curtas-metragens, ao
mesmo tempo em que se dedicava ao cineclubismo. Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), Terra em Transe
(1967) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969) são três filmes paradigmáticos, nos quais
uma crítica social feroz se alia a uma forma de filmar que pretendia cortar radicalmente com o estilo
importado dos Estados Unidos. Pretensão, essa, compartilhada por outros cineastas do Cinema Novo. Morreu
no Rio de Janeiro, em 1981. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
16
luta de sertanejos pobres para sobreviver em meio à miséria e a conflitos
envolvendo beatos, coronéis e cangaceiros.
No final de 1969, entrou em cena a Embrafilme Empresa Brasileira de
Filmes, criada para fomentar a produção e a distribuição de filmes nacionais. A
intervenção do Estado na produção cinematográfica não era novidade, pois já
havia ocorrido em 1930, e, em ambos os momentos, exerceram papel importante
na história do cinema brasileiro marcando-a “tão profundamente quanto a própria
presença do cinema estrangeiro, pois constituem as duas balizas entre as quais
se estruturou a produção cinematográfica”. (BERNARDET, 1979, p. 42).
Primeiramente como financiadora e depois como co-produtora, a Embrafilme
participou de produções significativas nas décadas de 1970-80, entre as quais,
que poderiam ser analisadas neste trabalho, encontra-se Bye Bye Brasil (1979),
dirigido por Cacá Diegues
14
, que ainda escreveu o roteiro em parceria com
Leopoldo Serran
15
(1942-2008). Premiado em festivais nacionais e internacionais,
o filme conta a história de uma trupe de artistas que viaja pelo Brasil em um
caminhão alegremente colorido, a “Caravana Rolidei”, fazendo espetáculos para
as populações do interior que ainda não tinham acesso à televisão. Outra obra
cinematográfica relevante para o estudo do analfabeto no cinema brasileiro é A
Hora da Estrela (1985), dirigido por Suzana Amaral
16
, produzido pela Raiz Filmes
e distribuído pela Embrafilme. Baseado no romance homônimo de Clarice
Lispector (1920-1977) o filme narra a história de Macabéa, uma imigrante
nordestina com nível rudimentar de alfabetização que trabalha como datilógrafa
numa pequena firma e que vive numa pensão miserável no Rio de Janeiro.
Conhece o também nordestino Olímpico, operário metalúrgico, e os dois
começam um desajeitado namoro. Ainda no mesmo ano é lançado A Marvada
Carne (1985), dirigido por André Klotzel
17
, produzido pela Tatu Filmes e
14
Carlos (Cacá) Diegues nasceu em Maceió, em 1940. Dirigiu, entre outros filmes Orfeu (1999), Tieta do
Agreste (1996), Quilombo (1984) e Xica da Silva (1976). (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
15
Leopoldo Serran nasceu no Rio de Janeiro, em 1942. Escreveu roteiros para Bruno Barreto, Arnaldo Jabor,
Fábio Barreto, Cacá Diegues e Murilo Salles, entre outros. Morreu em 2008. (BRASIL, 2009).
16
Suzana Amaral nasceu em São Paulo, em 1932. Começou a filmar na década de 70, dirigindo curtas e
documentários. Foi produtora e diretora da TV Cultura, onde realizou Minha Vida Nossa Luta (1979), sobre
as mulheres da periferia. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
17
André Klotzel nasceu em São Paulo, em 1954. Estudou cinema na Universidade de São Paulo e trabalhou
em mais de uma dezena curtas-metragens e vários longas como Capitalismo Selvagem (1994) e Memórias
Póstumas (2002). (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
17
distribuído tamm pela Embrafilme. Uma garota simples, caipira, do interior, tem
um grande sonho: se casar. Ela conhece Nhô Quim que tamm tem seu sonho:
comer carne de boi. Neste encontro, os sonhos se realizam.
Ainda que coproduzindo diversos filmes ao longo da década 1980, a
Embrafilme passou por um processo de esvaziamento no período, ao mesmo
tempo em que o regime militar foi dando lugar à Nova República. No início de
1990, a empresa estatal foi extinta. Com isso, a produção de novos filmes ficou
praticamente reduzida a zero. As salas de exibição espalhadas pelo país exibiam
praticamente somente filmes norte-americanos” (LEITE, 2005, p. 120). Porém,
com o próprio espólio da Embrafilme, distribuído por meio de premiações e, ainda,
com a criação de leis de incentivo, ocorreu, nos anos seguintes, uma retomada na
produção cinematográfica. As novas produções passaram a ser viabilizadas
financeiramente de diferentes modos e realizadas com grande variedade
temática. Neste processo, e afeto ao tema desta pesquisa, poderiam ser
selecionados para estudo, entre muitos: Guerra de Canudos (1997), produzido
por Morena Filmes e dirigido por Sergio Rezende
18
, que recria a fundação e a
destruição do Arraial de Canudos (1896-1897), no sertão da Bahia, cujos
acontecimentos o narrados por meio de uma família sertaneja e analfabeta que
acompanha Antonio Conselheiro (1830-1897), e, sem dúvida, Central do Brasil
(1998), dirigido por Walter Salles
19
e produzido pela Videofilmes em parceria com
a Riofilme e MACT Productions. Dora, uma ex-professora, escreve cartas para
analfabetos na estação de trens Central do Brasil (RJ), cobrando uma pequena
quantia de todos, mas nem sempre envia as mensagens. Ela acaba se
envolvendo com o drama de um menino que viu sua mãe ser atropelada logo
após ela ter se encontrado com Dora. Central do Brasil (1998) recebeu muitos
prêmios no Brasil e no exterior, incluindo o Urso de Ouro como Melhor Filme no
Festival de Berlim, em 1998.
18
Sérgio Rezende nasceu no Rio de Janeiro, em 1951. Dirigiu vários filmes biográficos como Lamarca
(1994), Mauá: o imperador e o rei (1999) e Zuzu Angel. (2006). (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
19
Walter Salles nasceu no Rio de Janeiro, em 1956. Cursou Economia na PUC (RJ) e fez mestrado em
Comunicação Audiovisual na Universidade da Califórnia. Diretor, roteirista e produtor obteve projeção
internacional pela indicação ao Oscar por Central do Brasil, em 1998. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
18
Por fim, neste início de novo século, uma gama considerável de filmes m
sendo realizados com os mais diversificados temas, entre os quais aqueles que
tratam de questões relacionadas à exclusão social e à criminalidade, propiciando
reflexões acerca da importância da contribuição da educação na resolução de
problemas sociais e, tamm, sobre a presença ou a ausência de processos
educacionais voltados ao atendimento das camadas mais carentes da população.
Carandiru (2002) e Cidade de Deus (2003) são dois exemplos destes filmes. O
primeiro, realizado pela Globo Filmes em parceria com a HB Filmes e Columbia
Tristar, tem direção de Hector Babenco
20
, que ainda escreveu o roteiro com base
em histórias reais e no livro escrito pelo médico Dráuzio Varella
21
. O filme mostra
o cotidiano da vida dos presidiários do Carandiru antes e durante o massacre
ocorrido em outubro de 1992, quando 111 presos foram mortos. Por sua vez,
Cidade de Deus (2003), foi produzido pela 02 Filmes e Vídeo Filmes, com direção
de Fernando Meireles
22
e roteiro de Bráulio Mantovani
23
, que adaptou para o
cinema o romance homônimo de Paulo Lins
24
. A história do filme se passa em um
bairro popular da cidade do Rio de Janeiro, Cidade de Deus, onde, em meio à
violência, um jovem pobre e negro luta para fugir da criminalidade, o que
consegue graças ao seu talento como fotógrafo.
Como visto, são muitas e ricas as alternativas para a escolha de filmes
brasileiros que poderiam constituir-se em fontes de pesquisa neste estudo.
Analisar todas as que foram mencionadas seria uma tarefa hercúlea que foge
totalmente aos limites desta dissertação. Desse modo, optou-se por apenas duas
obras cinematográficas: Jeca Tatu (1959) e Narradores de Javé (2003);
20
Hector Babenco, argentino naturalizado brasileiro, nasceu em 1948. Dirigiu, entre outros filmes: Lúcio
Flávio - Passageiro da Agonia (1977), Pixote - A Lei do Mais Fraco (1981), O Beijo da Mulher Aranha,
(1985) e Brincando nos Campos do Senhor (1997). (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
21
Drauzio Varella nasceu em São Paulo, em 1943. É médico e escritor. Realizou um trabalho de prevenção à
AIDS na extinta Casa de Detenção de o Paulo, conhecida como Carandiru por situar-se no bairro de
mesmo nome. (BRASIL, 2009).
22 Fernando Meirelles nasceu em São Paulo, 1955. Ganhou notoriedade internacional pela direção dos filmes
Cidade de Deus (2002), O jardineiro fiel (2005) e Ensaio sobre a cegueira (2008).
(MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
23
Bráulio Mantovani nasceu em São Paulo, em 1963. Formado em Literatura Portuguesa pela PUC (SP) e
pós-graduado em Roteiro Cinematográfico pela Universidade Autônoma de Madri. (BRASIL, 2009).
24
Paulo Lins nasceu no Rio de Janeiro, em 1958. Foi integrante do grupo Cooperativa de Poetas nos anos de
1980, tendo publicado um livro de poesia pela UFRJ, Sobre o sol (1986). Nos últimos anos se dedicou à
pesquisa antropológica e ao magistério. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
19
considerando ambas de grande significação para a compreensão sobre como o
analfabeto vem sendo representado no cinema brasileiro. Também foram
utilizados como fontes para esta pesquisa documentos que compõem a legislação
pertinente à EJA, como o Parecer CNE/CEB n. 11, de 10 de maio de 2000, que
dispõe sobre as diretrizes curriculares nacionais para educação de jovens e
adultos; o Ofício Circular n. 9, de 27 de maio de 2005, que trata da reorganização
da educação de jovens e adultos no Paraná e as Diretrizes Curriculares da
Educação de Jovens e Adultos do Paraná, de 2006, e mais, ainda, as Diretrizes
Curriculares de História para a Educação Básica do Paraná; a Lei n. 9394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional; o texto constitucional sobre a educação presente na Constituição da
República Federativa do Brasil, promulgada em 5 de outubro de 1988, e outros.
Metodologicamente este trabalho teve início com a seleção, descrição e
análise dos filmes Jeca Tatu (1959) e Narradores de Javé (2003), entendendo tais
obras como fontes de pesquisa que “representam e resultam do desejo de quem
as produziu, intencionalmente ou não, de construir uma determinada imagem de
si mesma ou de no máximo do seu grupo social.” (NEVES, 2009, p. 10). Em
seguida, buscou-se na legislação acima referida e na historiografia da educação
brasileira a compreensão do debate acerca da construção histórica de
concepções sobre o analfabetismo e a alfabetização, e tamm, recorreu-se à
literatura da História da Educação para estudar a trajetória histórica de processos
de alfabetização e de escolarização envolvendo jovens e adultos no Brasil.
A análise dos filmes Jeca Tatu (1959) e Narradores de Javé (2003) partiu
da premissa de que as representações dos personagens analfabetos presentes
nestas obras variam de acordo com as diferentes concepções sobre a relação
alfabetismo/alfabetização existentes nas sociedades nos tempos e contextos
históricos em que ambas foram produzidas. Nesta perspectiva residem as
questões principais que suscitaram a realização deste trabalho: _ Como os
analfabetos estão sendo representados nos filmes selecionados? _ O que se
pode entender por representação e como ela funciona em obras
cinematográficas? _ Que concepções de analfabetismo e do seu contrário, o
alfabetismo, fundamentam as representações de analfabetos nestes filmes?
20
A revisão bibliográfica efetuada no início deste estudo não localizou
produções acadêmicas com temática similar, embora tenha identificado outras
que trataram de vários temas diferentes relacionados à interface educação e
cinema, o que confere relativo ineditismo a esta pesquisa e a inscreve na
perspectiva de uma nova História da Educação que preconiza a ousadia para a
produção do conhecimento histórico no domínio educativo. Segundo Nóvoa
(1992, p. 210), não se escreve hoje a História da Educação como se escrevia
nas décadas anteriores. que dizê-lo. Mas não basta dizê-lo: que assumi-lo,
na prática. Temos que ser audaciosos.” Cabe ressaltar que este estudo insere-se
na área de História e Historiografia da Educação” e, mais especificamente, no
grupo de “Pesquisa em História dos Campos Disciplinares”, na linha da “Pesquisa
e o Ensino de História da Educação no Brasil: Fontes, Objetos, Métodos e
Recursos Midiáticos”, do programa de Mestrado MINTER/UEM.
Considerando o exposto e para efeitos didáticos, o presente trabalho foi
dividido em três capítulos. No primeiro, são descritos e analisados os filmes Jeca
Tatu (1959) e Narradores de Javé (2003). Precede, porém, o estudo da primeira
obra cinematográfica, a recuperação da origem do personagem Jeca, criado por
Monteiro Lobato (1882-1948) e popularizado pelos Almanaques Fontoura. Em
seguida, é examinado o Jeca que foi levado às telas do cinema por Amácio
Mazzaropi (1912-1981) e transformado numa figura mica para entreter e fazer
rir grandes platéias. Na sequência, procede-se a análise do filme Narradores de
Javé (2003), que trata da interação entre a oralidade e a escrita, possibilitando
discutir a relação analfabetismo/alfabetização a partir da identificação dos sujeitos
analfabetos presentes na obra, cuja riqueza temática permite, ainda, perpassar
por outros temas tamm pertinentes ao presente trabalho como memória social,
memória e história e a produção do conhecimento histórico. O segundo capítulo
investiga a relação entre a educação e o cinema, demonstrando que ambos os
campos de conhecimento dialogam há muito tempo. Após um brevíssimo histórico
sobre a arte e a indústria cinematográficas, são feitas considerações sobre o
cinema como prática cultural de representação da vida, proporcionando reflexões
acerca das noções sobre representações culturais e o uso do filme como
documento e fonte de pesquisa à luz da Nova História Cultural. O terceiro capítulo
apresenta as concepções sobre o analfabetismo e a alfabetização encontradas
21
em debates educacionais brasileiros realizados ao longo do tempo, revelando as
dificuldades em conceituar ambos os termos devido “à historicidade e às
mudanças de contexto onde a alfabetização tem sido empreendida, os seus
campos de estudo, como também os objetivos e perspectivas assumidas pelos
seus diversos estudiosos”. (FERNANDES, 2002, p. 31). Ainda neste capítulo, são
pesquisados processos de escolarização desenvolvidos historicamente em torno
da alfabetização no Brasil e também examinada a trajetória histórica da educação
voltada aos adultos, que hoje é desenvolvida pela modalidade de educação
básica da EJA - Educação de Jovens e Adultos. Por fim, nas considerações finais
são apresentados os resultados obtidos.
22
2. DIFERENTES ANALFABETOS EM DIFERENTES CONTEXTOS
Entre os anos de 1940 e 2000, segundo dados do IBGE Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (BRASIL, 2007a), a população brasileira
passou de 41,2 milhões de habitantes para 169,8 milhões. Neste período, a taxa
de urbanização saltou de 31,3% para 81,2%, revelando que o Brasil rural foi se
tornando urbano, contribuindo para este processo “o intenso êxodo rural e o
grande crescimento vegetativo da população”. (GIRARDI, 2008). A agricultura,
pecuária e silvicultura que, em 1940, representava 32,6% da população ocupada,
declinou para 17,9%, em 2000. No que se refere à educação, em 60 anos, a taxa
de escolarização, entre crianças de 7 e 14 anos, cresceu de 30,6% para 95,4%. A
partir de 1950, os Censos Demográficos passaram a investigar de forma mais
padronizada a relação analfabetismo/alfabetização e o primeiro censo realizado
neste formato, em 1950, apontou que 50,6% dos brasileiros, com 15 anos ou
mais, eram analfabetos. Desde então, este índice foi diminuindo, chegando em
2000 a uma taxa de 13,6% de analfabetos entre pessoas com 15 anos ou mais.
No campo político, nos anos iniciais da década de 1940, os brasileiros
ainda viviam sob a ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (1883-1954), que
terminou em 29 de outubro de 1945. No ano seguinte, em 18 de setembro de
1946, durante o governo do Marechal Eurico Gaspar Dutra (1883-1974), o Brasil
ganhou uma nova Constituição, de caráter liberal e que “regularizou a vida do
país procurando garantir o desenrolar das lutas políticas-partidárias dentro da
ordem” (GUIRALDELLI, 1990, p. 110). O texto constitucional previa que a União
deveria fixar as “diretrizes e bases da educação nacional”, o que somente foi
concretizado em 20 de dezembro de 1961, 15 anos depois, com a aprovação da
LDBEN n. 4024, após intensas disputas políticas travadas, principalmente, entre
os defensores da educação pública e os representantes das escolas privadas. Por
fim, a referida Lei garantiu igualdade de tratamento por parte do poder público
para os estabelecimentos oficiais e particulares. Esta luta política perpassou a
década de 1950, marcada, em seu início, pelo retorno de Vargas ao poder e a
consequente retomada de seu discurso nacionalista e trabalhista, que prometia o
desenvolvimento do capitalismo no Brasil aliado ao ‘bem-estar social’ da
23
população. Para tanto, o governo Vargas aumentou os investimentos públicos
com a educação. Contudo, segundo Ghiraldelli Jr. (1990, p. 130), “o ensino
superior foi mais contemplado que o ensino primário. Além do mais, não houve
grandes alterações no número de matrículas no ensino primário, e a alfabetização
cresceu apenas 1,79%.” Nos anos seguintes ao suicídio de Vargas, em 24 de
agosto de 1954, o Brasil passou a ser governado por Juscelino Kubtischeck
(1902-1976), que pretendia desenvolver o país rapidamente e lançou o seu
Programa de Metas, consistindo, efetivamente, na criação de uma infra-estrutura
básica para a industrialização visando atrair o capital estrangeiro. O último item
deste programa foi dedicado à educação e, de acordo com Ghiraldelli Jr. (1990, p.
131) “atrelava o problema do ensino às necessidades de institucionalização de
uma ‘educação para o desenvolvimento’, ou seja, o incentivo ao ensino técnico-
profissionalizante”. Dessa forma, os investimentos para a educação na era JK
atenderam prioritariamente o ensino industrial, de nível médio. No seu penúltimo
ano de governo, em 1960, o índice de analfabetismo da população era da ordem
de 39,6%, ou seja, de acordo com dados do IBGE (2007b), entre os 40.278.602
de brasileiros com 15 anos ou mais, 15.964.852 não sabiam ler e escrever. De
qualquer forma, entre 1950 e 1960 ocorreu uma queda em 11,2% da taxa de
analfabetismo no Brasil.
Contribuiu para esta redução a Campanha de Educação de Adolescentes e
Adultos (CEAA), instituída em 1947 e desenvolvida durante os governos de
Vargas e de JK, ao longo de toda a cada de 1950. O objetivo da campanha era
o de erradicar” o analfabetismo, considerado, no mínimo, como uma calamidade
pública, um mal que deveria ser combatido por todos os meios e modos. Como
afirma Paiva (1987, p. 179) “seu fundamento político, ligado à ampliação das
bases eleitorais, se acompanhava das idéias de ‘integração’ como justificação
social e de ‘incremento da produção’ como justificação econômica.” Era preciso
integrar a população analfabeta que estava à margem da sociedade. Nesta
perspectiva, o analfabeto era concebido como um marginal. “A educação de
adultos teria, portanto, objetivos de integração do homem marginal nos problemas
da vida cívica e de unificar a cultura brasileira.” (PAIVA, 1987, p. 184). Esta visão
sobre o analfabeto foi afirmada quando do lançamento da CEAA pelo seu diretor,
Lourenço Filho (1897-1970), como explica Paiva (1987):
24
A idéia central do diretor da Campanha é a de que o adulto
analfabeto é um ser marginal, ‘que não pode estar ao corrente da
vida nacional’ e a ela associa a crença de que o adulto analfabeto
é incapaz ou menos capaz que o indivíduo alfabetizado. O
analfabeto padeceria de uma ‘minoridade econômica, política e
jurídica: produz pouco e mal e é frequentemente explorado em
seu trabalho; não pode votar e ser votado; não pode praticar
muitos atos de direito. O analfabeto não possui, enfim, sequer os
elementos rudimentares da cultura do nosso tempo’. (PAIVA,
1987, p. 184).
Foi neste contexto político, econômico e social, quando o analfabeto era
considerado um ser marginal e incapaz, que Amácio Mazzaropi (1912-1981)
construiu seu personagem caipira e analfabeto consagrado no filme Jeca Tatu
(1959), mas que já vinha sendo formatado anteriormente e que aparece, embora
com características diferentes, em outras produções como Candinho (1953) e
Chico Fumaça (1958). Desse modo, para estudar a primeira fonte selecionada, a
obra cinematográfica Jeca Tatu (1959), é preciso levar em consideração esta
contextualização, assim como é importante compreender a gênese do
personagem Jeca, que nascido na literatura, nas obras de Monteiro Lobato (1882-
1948), sofreu transformações de personalidade para chegar às telas do cinema.
Por sua vez, o filme Narradores de Javé (2003), segunda fonte
selecionada, foi produzido no contexto político, econômico, social e cultural da
Nova República, iniciada com o fim da Ditadura Militar (1964-1985). Em meio ao
processo de redemocratização do país, significativos debates ocorreram em torno
de temas relacionados ao analfabetismo, incluindo discussões acerca do voto do
analfabeto, colocando de um lado aqueles que argumentavam, como relatam
Galvão e Di Pierro (2007, p. 50), que a pessoa que não sabe ler e escrever não
está apta a escolher seus dirigentes, constituindo-se em uma frágil massa de
manobra nas mãos dos mais letrados”, e, de outro, os que alegavam ser o
sufrágio um direito universal, portanto de todos, incluindo os analfabetos. O voto
do analfabeto foi instituído pela Lei 7.332 de de julho de 1985 e referendado
na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada 5 de outubro de
1988. Esta Constituição amparou legalmente importantes reivindicações de
movimentos educacionais e sociais brasileiros comprometidos com a EJA, como a
25
consagração do direito público subjetivo
25
dos jovens e adultos ao ensino
fundamental público e gratuito, além de assegurar verba para a alfabetização e de
responsabilizar judicialmente o poder executivo que não ofertar, ou fazê-lo de
forma irregular, o ensino obrigatório. Porém, as políticas públicas para a educação
empreendidas nos primeiros governos da Nova República, na década de 1990,
frustraram as expectativas geradas pelos avanços do texto constitucional de
1988. Somente no início dos anos 2000, por conta de novas mobilizações de
educadores e gestores da educação implementadas em fóruns de discussão e em
encontros estaduais e nacionais, a EJA voltou a conquistar espaço na agendas
governamentais. Embora em muitos discursos, oficiais e não-oficiais, ainda esteja
presente a idéia de que o analfabeto é um ser que precisa da ajuda” para ser
tirado das “trevas”, ganha cada vez mais corpo a concepção do analfabeto como
um cidadão que teve seu direito à educação negado em tempos passados e que
deve cobrar o seu direito de “fruir plenamente os bens culturais da sociedade
dentre os quais a alfabetização, uma das muitas portas que abrem horizontes de
aprendizagem ao longo da vida (GALVÃO; DI PIERRO, 2007, p. 100).
O objetivo deste capítulo é descrever e analisar as duas fontes de pesquisa
selecionadas, os filmes: Jeca Tatu (1959), precedido de um necessário histórico
da criação deste personagem na literatura; e Narradores de Javé (2003), tendo
como referência os diferentes contextos em que ambos foram produzidos.
25
Direito público subjetivo é aquele pelo qual o titular de um direito pode exigir imediatamente o
cumprimento de um dever e de uma obrigação. (SOARES, 2002).
26
2.1 O NASCIMENTO DO JECA
A nossa montanha é vitima de um parasita, um piolho da terra,
peculiar ao solo brasileiro como o “Argas” o é aos galinheiros ou o
“Sarcoptes mutans” à perna das aves domésticas. Poderíamos
analogicamente classificá-lo entre as variedades do “Porrigo
decalvans”, o parasita do couro cabeludo produtor da “pelada”
pois que onde ele assiste se vai despojando a terra de sua coma
vegetal até cair em morna decrepitude, nua e descalvada. Em
quatro anos, a mais ubertosa região se despe dos jequitibás
magníficos e das perobeiras milenares seu orgulho e grandeza,
para, em achincalhe crescente, cair em capoeira, passar desta à
humildade da vassourinha e, descendo sempre, encruar
definitivamente na desdita do sapezeiro sua tortura e vergonha.
Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem
baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à
beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o
progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a
valorização da propriedade, vai ele refugiando-se em silêncio, com
o seu cachorro, o seu pilão, a picapau e o isqueiro, de modo
sempre a conservar-se fronteiriço, mudo e sorna. Escorado numa
rotina de pedra, recua para não adaptar-se. (LOBATO, 1948, p.
235).
26
O texto acima faz parte da carta intitulada “Velha Praga”, publicada no
jornalO Estado de São Paulo”, em 11 de novembro de 1914, escrito por Monteiro
Lobato (1882-1948) como resultado de sua indignação frente à prática comum da
queimada do mato levada a efeito pelos trabalhadores do campo os caboclos
27
.
Com ferocidade, o fazendeiro Lobato se insurge contra estes caboclos, a quem
ele acusa de ser a praga da terra que “atrasa” o progresso do Brasil.A carta deu
notoriedade ao escritor, suscitando opiniões contra e favor, pois ao criticar não
apenas os seus agregados que insistiam na tradicional queimada da roça, ele
atacou a todos os caboclos de uma forma generalizada. Como conta Artur Neves
(apud LOBATO, 1948, p.17-18): “o país se dividiu em dois campos, os que
pensavam como Lobato e os ‘caboclistas’, que viam no caboclo a continuação
dos bons e comportados índios de Alencar, Gonçalves Dias e todos os românticos
26
As citações de Monteiro Lobato estão de acordo com o texto original.
27
No Dicionário Aulete Digital, o termo caboclo é associado ao mulato de pele acobreada e cabelos lisos
(caburé), ao mestiço de branco com índio (cariboca), à pessoa do campo, de modos simples e rústicos e à
pessoa desconfiada. Designa também descendentes de índios, por vezes miscigenados, e que vivem
relativamente isolados, de modo rústico, nem sempre com identidade étnica e é um nome genérico dos
espíritos de ancestrais indígenas brasileiros, nas religiões ou seitas afro-brasileiras. (AULETE, 2008)
27
do indianismo.” Lobato critica com veemência o modo de vida das populações
pobres do campo que tem por base a produção de subsistência.
É de -lo surgir a um sítio novo para nele armar a sua arapuca
de “agregado”; nomade por força de vagos atavismos, não se liga
à terra, como o camponio europeu: ‘agrega-se’, tal qual o
“sarcoptes”, pelo tempo necessário à completa sucção da seiva
convizinha; feito o que, salta para diante com a mesma bagagem
com que ali chegou.(LOBATO, 1948, p. 236).
Seguindo a mesma linha de raciocínio crítico, mas em outro trecho da
carta, ele apresenta o personagem Jeca Tatu, entre outros.
Quando se exaure a terra, ao agregado muda de sítio. No lugar
fica a tapera e o sapezeiro. Um ano que passe e este atestará
a sua estadia ali; o mais se apaga como por encanto. A terra
reabsorve os frágeis materiais da choça e, como nem sequer uma
laranjeira ele plantou, nada mais lembra a passagem por ali do
Manoel Peroba, do Chico Marimbondo, de Jéca Tatú ou outros
sons ignaros, de dolorosa memória para a natureza circunvizinha.
(LOBATO, 1948, p. 240).
Porém, o desenvolvimento do personagem Jeca Tatu, representando o
caboclo feio e grotesco, desprovido de força de vontade e senso estético, ocorre
no artigo “Urupês”, publicado logo em seguida, em 23 de dezembro de 1914,
tamm no jornal “O Estado de São Paulo”, no qual o autor destaca a ignorância
e a preguiça do habitante do interior. Para ele, Jeca Tatu é um “piraquara
28
do
Paraíba, maravilhoso epítome de carne onde se resumem todas as características
da espécie” (LOBATO, 1948, p. 244). E, ainda, é o “[...] sacerdote da Grande Lei
do Menor Esforço [...]” (LOBATO, 1948, p. 246), aquele que vive do que a
natureza dá, sem gastar energia para alcançar qualquer objetivo na vida. Nesta
primeira versão, Lobato compara o caboclo Jeca Tatu, a um urupê
29
.
No meio da natureza brasílica, tão rica de formas e côres, onde os
ipês floridos derramam feitiços no ambiente e a infolhescencia dos
cedros, às primeiras chuvas de setembro, abre a dansa dos
28
De acordo com o Dicionário Aulete Digital, Piraquara é o indivíduo que vive na roça ou no campo, o
caipira. O termo também designa os habitantes das margens do rio Paraíba do Sul, região de Lobato.
(AULETE, 2008).
29
Urupê, no Dicionário Aulete Digital, é um fungo que se desenvolve sobre troncos caídos e cujo corpo de
frutificação é semicircular, vermelho-alaranjado. (AULETE, 2008).
28
tangarás; onde ha abelhas de sol, esmeraldas vivas, cigarras,
sabiás, luz, côr, perfume, vida dionisica em escachôo permanente,
o caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso
no recesso das grotas (LOBATO, 1948, p. 256).
Em 1918, Monteiro Lobato lançou a primeira edição de uma coletânea de
14 contos, incluindo o famoso artigo “Urupês”, que empresta o nome ao livro.
Com a veiculação da obra, o personagem Jeca Tatu passou a se tornar mais
conhecido, mas veio a ganhar fama nacional especialmente a partir de um
discurso de Ruy Barbosa (1849-1923), proferido no Teatro Lírico do Rio de
Janeiro, em 20 de março de 1919, e publicado logo em seguida no jornal “O
Estado de São Paulo”. Ruy Barbosa (apud LOBATO, 1948, p. 22) elogiou o
escritor por revelar em sua obra “aquele tipo de uma raça, que ‘entre as
formadoras da nossa nacionalidade’ se perpetua a ‘vegetar’ de cócoras, incapaz
de evolução e impenetrável ao progresso”. Assim como tantos outros intelectuais
de sua época, de formação positivista
30
, Lobato criticava as práticas coronealistas
da Velha República que emperravam a modernização do Brasil. Em “Urupês”, o
criador do Jeca Tatu utilizou deste personagem para tamm atacar o processo
eleitoral do período.
O fato mais importante de sua vida [do Jeca] é sem dúvida votar
no governo. Tira nesse dia da arca a roupa preta do casamento,
sarjão furadinho de traça e todo vincado de dobras; entala os pés
num alentado sapatão de bezerro; ata no pescoço um colarinho
de bico e, sem gravata, ringindo e mancando, vai pegar o diploma
de eleitor às mãos do chefe Coisada, que lho retem para maior
garantia da fidelidade partidária. (LOBATO, 1948, p. 250).
Como na época da redação de “Urupês”, em 1914, o voto era proibido ao
analfabeto, é de se supor que o Jeca Tatu eleitor deveria ser alfabetizado. Mas,
Lobato logo põe por terra esta idéia ao relatar que Jeca “esfrega a pena no livro
eleitoral, arabescando o aranhol de gatafunhos e que chama ‘sua graça’”.
(LOBATO, 1948, p. 250). O autor confirma o analfabetismo de Jeca que, assim
como milhares de outros brasileiros, votavam nos candidatos dos coronéis,
bastando para tanto, rascunhar o próprio nome nos documentos eleitorais.
30
Elaborado por Auguste Comte (1798-1857), o positivismo propõe fazer das ciências experimentais o
modelo por excelência do conhecimento humano em substituição às especulações metafísicas ou teológicas.
29
No entanto, identificado com as campanhas sanitaristas que estavam em
curso na época, em particular após a publicação do livro Saneamento do Brasil
(1918), do médico sanitarista Belisário Penna (1868-1939), que preconizava
serem as doenças as causas da indolência, preguiça e baixa produtividade do
homem do campo, o criador do Jeca Tatu passou a defender a tese de que o
Brasil tinha um povo incapaz de trabalhar racionalmente por estar doente
biologicamente e, em decorrência, moralmente. Em sua obra “Problema Vital”
Lobato (1919) escreveu que tal condição atingia milhões de brasileiros e esta
doença deveria ser saneada por meio de recursos técnicos e científicos modernos
sob o comando de homens da ciência e da pesquisa. Assim, sem verminoses e
parasitoses, como relata Tolentino (2001, p. 98) “a nossa gente rural, meiga e
dócil por índole, seria disciplinada e trabalhadora tanto quanto os italianos,
espanhóis e portugueses que impunham um novo tempo ao trabalho no campo
brasileiro.” O caboclo necessitava ser curado para se tornar produtivo. Portanto,
“o Jeca não é assim, está assim”, afirmou Lobato (1919) e, para se redimir, pediu
perdão ao seu personagem no prefácio da 4º edição de “Urupês” (1919).
Eu ignorava que era assim, meu caro Jéca, por motivo de
doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas
tripas todo um jardim zoológico da peor espécie. É essa bicharia
cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso?
Claro que não. Assim, é com piedade infinita que te encara hoje o
ignorantão que outrora via em ti mamparra e ruindade.
(LOBATO apud LOBATO, 1948, p. 20).
Em 1920, o criador do Jeca Tatu ofereceu os direitos de seu personagem
ao amigo farmacêutico Cândido Fontoura (1885-1974) para a promoção dos
produtos do Laboratório Fontoura Serpe & Cia. No mesmo ano, foi publicada a
primeira edição do Almanaque Fontoura ou Almanaque Biotônico Fontoura,
contendo a história do Jeca Tatuzinho, escrita e ilustrada por Monteiro Lobato,
que fazia a propaganda do “Ankilostomina” Fontoura como um medicamente
eficaz no tratamento da ancilostomose, o popular amarelão, e ensinava noções de
higiene e saneamento às crianças. Vale destacar que os almanaques de farmácia
eram publicados pelos laboratórios farmacêuticos que os utilizavam como
propaganda para os seus fortificantes e medicamentos e os distribuíam
gratuitamente em larga escala por meio das farmácias de todo o país.
30
Em sua 4ª edição, o Almanaque Fontoura (1924), apresentava o Jeca
Tatuzinho como um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé.
“Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de
vários filhinhos, pálidos e tristes” (LOBATO, 1924). Jeca ficava o dia inteiro sem
fazer nada, a não ser fumar seu cigarro de palha e beber sua pinga. Onde ele
morava, havia algumas pequenas plantações que garantiam a subsistência da
família e um ribeirão próximo, onde podia pescar. Andava descalço e suas roupas
eram todas remendadas. Jeca o tinha o respeito de ninguém, sendo
considerado um bêbado e preguiçoso. Num belo dia, um médico apareceu em
sua morada. Assustado com tanta miséria e vendo que Jeca estava amarelado e
muito magro, resolveu examiná-lo e logo constatou que ele tinha amarelão.
O doutor receitou um vidro de ANKILOSTOMINA FONTOURA,
para tomar assim: seis comprimidos hoje pela manhã e outros seis
amanhã de manhã. - Faça isto duas vezes, com o espaço de uma
semana. E de cada vez tome também um purgante de sal amargo,
se duas horas depois de ter ingerido a ANKILOSTOMINA não tiver
evacuado. E trate de comprar um par de botinas e alguns vidros
de BIOTÔNICO e nunca mais me ande descalço e nem beba
pinga, ouviu? - Ouvi, sim, senhor! - Pois é isso, rematou o doutor,
tomando o chapéu. A chuva passou e vou-me embora. Faça o
que mandei, que ficará forte, rijo e rico como o italiano. (LOBATO,
1924).
Dito e feito. Seguindo a orientação médica e graças ao Ankilostomina e ao
Biotônico Fontoura, Jeca sarou, ficou saudável, forte, valente e trabalhador, assim
como tamm toda a sua família. Ele prosperou, ficou rico e passou a ser
respeitado por todos, servindo de exemplo para os caboclos ainda doentes. A
ampla distribuição do almanaque pelas farmácias de todo o país, contribuiu
decisivamente para incorporar o personagem Jeca Tatu à literatura e ao
imaginário nacional, especialmente no que se refere à cristalização da idéia de
que o homem do campo, o caboclo, é um analfabeto, ignorante, preguiçoso e
doente e que, nestas condições, se torna culpado pelo atraso do país. Mas,
aceitando ajuda, este caipira pode integrar-se ao mundo produtivo e transformar-
se num mbolo de modernidade. A história deste “caboclo”, de Monteiro Lobato,
é reveladora, como afirma Rossi (2003, p. 48), da imagem que se construiu e se
perpetuou do comportamento das populações mais pobres frente às investidas de
31
modernização da sociedade brasileira”. Este homem do campo passou a ser visto
como alguém que precisa de ajuda para romper com seu o atraso” e se tornar
“civilizado”. Para tanto, era preciso, entre outras ações, ofertar escolarização a
esta população. No Estado de São Paulo, de onde escreveu Lobato, a
prosperidade econômica promovida pela cafeicultura e, como explica Rossi (2003,
p. 16), “pelo surto industrial, principalmente a partir de 1918, permitiram ao Estado
organizar, sob bases mais largas e sólidas, o seu sistema de educação”. Neste
processo de implantação do sistema escolar paulista, muitos legisladores,
lideranças sindicais e educadores viam as populações mais pobres sob uma
perspectiva, segundo Rossi (2003, p. 54), não muito positiva. As populações
mais pobres foram representadas como sujeitos enfraquecidos, indiferentes e
encolhidos numa rotina, criando a imagem (que se perpetuou) de um povo alheio
ao seu mundo”. Neste contexto, o personagem Jeca Tatu, foi ganhando
popularidade e, em 1959, ele sai da literatura e vai para as telas do cinema numa
recriação do ator, produtor e diretor Amácio Mazzaropi.
32
2.2 O JECA VAI AO CINEMA
A recuperação das origens do personagem Jeca Tatu, como visto, é
importante para uma melhor compreensão do desenvolvimento do personagem
Jeca Tatu no cinema. Da mesma forma, precedendo a análise do filme, torna-se
apropriado conhecer um pouco da trajetória de vida de Mazzaropi.
Filho de pai italiano e de mãe portuguesa, Amácio Mazzaropi nasceu em
São Paulo, em 9 de abril de 1912, mas viveu sua infância no interior do Estado,
em Taubaté, até completar os seus 14 anos, quando então mudou com a família
para a capital paulista, onde começou sua carreira como artista de circo contando
anedotas e causos. Em 1929, retornou à Taubaté, iniciando no teatro que o levou
a participar de movimentos culturais realizados em torno da causa da Revolução
Constitucionalista de 1932. Nos anos seguintes, organizou a Troupe Mazzaropi,
convencendo sua família a trabalhar com ele como atores e na administração da
companhia. Como conta Souza (2000), “entre 1935/1942: a Troupe Companhia
Amácio Mazzaropi viajou pelo interior do Estado e as apresentações foram
largamente concorridas, mas faltou dinheiro para melhorar a companhia. Em
1943, Mazzaropi com 31 anos, recebeu uma herança de sua avó e pode realizar
seu sonho de colocar uma cobertura de zinco em seu pavilhão. No mesmo ano,
levou a Troupe para a capital paulista, conquistado sucesso de blico e, até
mesmo, de crítica, pois seu espetáculo foi elogiado no O Jornal de São Paulo. Em
1946, estreou na Rádio Tupi de São Paulo fazendo, ao vivo, o programa Rancho
Alegre, obtendo grande audiência. Souza (2000) explica que o programa era
simples, Mazzaropi contava umas piadas e, acompanhado de um sanfoneiro,
cantava uma canção.” Em 1947, as Emissoras Associadas criaram o show
Brigada da Alegria, com Mazzaropi, Linda Batista (1919-1988) e Hebe Camargo
entre outros artistas, e excursionam por vários estados brasileiros. No final do
referido ano, Mazzaropi assinou contrato com a Companhia Dercy Gonçalves e
atuou ao lado dela no Cine Theatro Odeon. Em 18 de setembro de 1950, ocorreu
a inauguração da primeira emissora de televisão brasileira, a TV Difusora de São
Paulo, canal 3, e Mazzaropi foi convidado para o show de estréia, tornando-se o
primeiro humorista na TV.
33
Inicialmente, à semelhança da rádio, apresenta-se sozinho, mas
em poucos dias, a direção resolve lançar o programa RANCHO
ALEGRE com Amácio e a atriz Geny Prado. Toda feira, às
21h00, sob a direção de Cassiano Gabus Mendes e patrocínio da
Philco, o primeiro patrocinador da TV brasileira. (SOUZA, 2000)
Em 20 de janeiro de 1951, Mazzaropi participou do programa de
inauguração da TV Tupi do Rio e, devido ao sucesso de sua apresentação,
passou a protagonizar um quadro semanal na TV Rio. Dessa forma, o
considerado “maior caipira brasileiro” trabalhou na Rádio e TV Tupi de São Paulo
e do Rio de Janeiro e continuou a fazer seus shows em diversos teatros
brasileiros. E, em 1951, como relata Souza (2000) os diretores Abílio Pereira de
Almeida e Tom Payne estavam no Nick Bar, em São Paulo, quando viram
Mazzaropi na TV e resolveram chamá-lo para um teste”. Assim, Mazzaropi iniciou
sua carreira no cinema, na Companhia Cinematográfica Vera Cruz
31
.
O primeiro filme estrelado por Mazzaropi: Sai da Frente, lançado em 1952,
obteve grande êxito de bilheteria e projetou ainda mais a sua carreira. Com isso, a
Vera Cruz, acelerou a produção de um novo filme com o astro: Nadando em
Dinheiro, que em outubro do mesmo ano estreou em 36 cinemas de São Paulo.
Em 1953, Mazzaropi fez Candinho, mas a Vera Cruz, por problemas financeiros,
atrasou a edição do filme, que somente chegou aos cinemas em 1954. Enquanto
a crise financeira da empresa se aprofundava, Mazzaropi, segundo Sousa (2000),
“se preocupa com o futuro no rádio e, para surpresa geral, anuncia sua saída das
Emissoras Associadas indo para a Rádio Nacional, de São Paulo.” O novo
programa era transmitido aos sábados, diretamente de clubes da capital paulista,
onde Mazzaropi contava piadas, cantava e fazia imitações. A partir de então,
passou a trabalhar com outras produtoras, atuando com a Fama Filmes em A
Carrocinha (1955); Brasil Filmes em O Gato da Madame (1956); Cinelândia
Filmes em O Fuzileiro do Amor (1956) e O Noivo da Girafa (1956) e com a
Cinedistri em Chico Fumaça (1958).
Em 1958, com 46 anos, Mazzaropi resolveu criar a sua própria produtora
cinematográfica: a PAM Produções Amácio Mazzaropi, e roda Chofer de
Praça. Para realizar este filme, como explica Souza (2000) “ele vende a casa,
31
A Companhia Cinematográfica Vera Cruz (1949-1954) foi a tentativa mais sistemática de implantar uma
indústria cinematogfica no Brasil, tendo como modelo os estúdios de Hollywood. Produziu 18 filmes de
longa-metragem e alguns documentários. (LEITE, 2005, p. 75).
34
carro e tudo que podia para alugar os estúdios e equipamentos da Vera Cruz.
Além disso, passa a cuidar do lançamento e distribuição de seus filmes por todo o
Brasil.” Em 1959, Mazzaropi aceitou o convite para fazer um programa de
variedades na TV Excelsior de São Paulo, e no mesmo ano, produziu o famoso
Jeca Tatu, que estreou nos cinemas paulistanos em 25 de janeiro de 1960, com
estrondoso sucesso de público, como ocorreu com a maioria de seus filmes.
O contingente de espectadores dos filmes de Mazzaropi, de acordo com
Leite (2005, p. 88), era composto, em grande medida, pelos milhares de
migrantes que se deslocavam do interior do país para as grandes e médias
cidades brasileiras ao longo das décadas de 1950 e 1960.” Nestas décadas,
ocorreu um acelerado processo de industrialização e urbanização no Brasil,
incentivado principalmente por políticas de Estado desenvolvidas no segundo
governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e ampliadas nos Anos JK (1956-1961),
com reflexos no meio rural. Tratores e outros equipamentos foram inseridos na
produção agrícola, tornando-a mais racional, organizada e com divisão de tarefas.
A mecanização do campo e o crescimento dos latifúndios por meio da
apropriação pelos grandes fazendeiros de terras de pequenos agricultores foram
fatores decisivos que levaram a população rural a migrar para as cidades.
O conjunto das obras de Mazzaropi, composta por 32 filmes, dos quais 21
foram escritos, produzidos e dirigidos por ele, “mostra considerável conhecimento
dos temas, problemas e ansiedades que os brasileiros haviam de enfrentar diante
do advento de uma agressiva cultura capitalista.” (BUENO, 1999, p. xi). Entre as
novas situações postas aos migrantes nas cidades encontrava-se a exigência da
alfabetização. Afinal, em sua imensa maioria, as populações oriundas do campo
eram analfabetas ou tinham pouca escolarização.
Em grande parte dos casos, a migração rural-urbana tem um
custo muito alto, pois ao sofrimento decorrente da perda de
referências familiares, culturais e socioambientais se soma a
necessidade imperiosa de aprendizagem de comportamentos que
permitem ao migrante adaptar-se de maneira menos dolorosa ao
novo contexto, tais como o manejo da linguagem, estilos de vida e
ocupações urbanas, o que implica reavaliação dos saberes e
modos de vida tradicionais e mudanças de identidade
sociocultural. (GALVÃO; DI PIERRO, 2007, p. 18)
35
Vale lembrar que, embora Mazzaropi fosse apreciado pelo grande blico
em todo o país, seus filmes com personagens caipiras referenciavam-se nos
migrantes do interior do Estado de São Paulo que passaram a morar, em geral,
nas periferias da capital paulista, formando o seu principal público-alvo. Como
explica Bueno (1999, p. xi) “seu personagem mais bem-sucedido, Jeca, pode ser
visto como uma representação de caipiras e constitui-se como o porta-voz para
muitos de seus traços culturais,” entre os quais, destaca-se o analfabetismo de
vários personagens de Mazzaropi, como o Jeca. Mas, Mazzaropi não produziu
filmes voltados apenas para os caipiras instalados nas cidades. Ele conseguiu
atrair diversos segmentos sociais com produções que levaram para as telas
personagens de grande apelo popular, como por exemplo: As aventuras de Pedro
Malazartes (1960), entre outros.
Ao rodar Meu Japão Brasileiro [1964], agregou a colônia nipônica,
com O Vendedor de Lingüiça [1961] retomou o público dos
imigrantes italianos, trabalhado anteriormente nos dois
primeiros feitos pela Vera Cruz; ampliou o público sertanejo com
dois filmes parafraseados de duas músicas muito populares,
Casinha Pequenina [1962] e Tristeza do Jeca [1961], os
imigrantes portugueses com Portugal, Minha saudade [1974],
com O Corinthiano [1966], arrebanhava a massa torcedora do
clube de futebol, e O Jeca e Seu Filho Preto, se aproximava de
grande parte da população brasileira. (FERREIRA, 2008, p. 2,
grifos do autor).
Além disso, é preciso considerar outros fatores que também contribuíram
para o sucesso do cinema de Mazzaropi.
Entre os quais, deve-se levar em conta o cuidado do produtor ao
usar sempre os equipamentos mais modernos, técnicos bem
preparados e capacitados e um eficiente sistema de distribuição e
exibição dos filmes. Por meio da PAM, investiu o que foi
necessário para enfrentar os desafios de um mercado
praticamente monopolizado pelo cinema norte-americano. (LEITE,
2005, p. 87).
Mazzaropi criou um sistema próprio de distribuição de filmes por todo o
país, mantendo contato direto com os proprietários de cinemas. Quando da
exibição de seus filmes, sempre havia um fiscal da PAM presente na portaria para
contar o público e recolher a parte que cabia à produtora.
36
A PAM controlava aproximadamente 20% da arrecadação de cada
película. Cabe destacar que muitas de suas produções tiveram
bilheteria superior a 3 milhões de espectadores, propiciando
dessa forma o lucro necessário para investir em novos filmes.
Assim, o produtor não precisava recorrer a subsídios ou
financiamentos estatais. (LEITE, 2005, p. 87).
Contudo, se Mazzaropi obtinha sucesso financeiro e de público, seus
filmes não eram bem vistos pela crítica cinematográfica que os tratavam, na maior
parte das vezes, com ironia e grande indiferença. Vale lembrar que ele é
contemporâneo do Cinema Novo, cujos filmes sempre receberam atenção
minuciosa de críticos de cinema. Com relação a esta situação, Mazzaropi assim
desabafou numa entrevista publicada na Revista Veja, em 28 de janeiro de 1970.
Conte minha verdadeira história, a história de um cara que sempre
acreditou no cinema nacional e que, mais cedo do que todos
pensam, pode construir a indústria do cinema no Brasil. A hisria
de um ator bom ou mau que sempre manteve cheios os cinemas.
Que nunca dependeu do INC [Instituto Nacional do Cinema] para
fazer um filme. Que nunca recebeu uma crítica construtiva da
crítica cinematográfica especializada crítica que se diz
intelectual. Crítica que aplaude um cinema cheio de símbolos,
enrolado, complicado, pretensioso, mas sem público. A história de
um cara que pensa em fazer cinema apenas para divertir o
público, por acreditar que cinema é diversão, e seus filmes nunca
pretenderam mais do que isso. Enfim, a história de um cara que
nunca deixou a peteca cair. (MAZZAROPI, 1970).
Nesta mesma entrevista, Mazzaropi revelou como se deu a construção de
seu personagem caipira, que é anterior à representação do Jeca Tatu lobatiano.
Na época em que comecei tinha uns quinze anos. Naquele tempo,
o gênero de peças que fazia sucesso no teatro era caipira. E,
como todo mundo, eu gostava de assisti-las. Dois atores, em
particular, me fascinavam. Genésio e Sebastião de Arruda.
Sebastião mais que Genésio, que era um pouco caricato demais
para meu gosto. Nem sei bem por que, de repente, lá tava eu
trabalhando no teatro. Mas não como ator - eu pintava cenários.
Aliás, eu amava a pintura, sempre amei a pintura. Pois bem, um
belo dia "perdi" o pincel e resolvi seguir a carreira de ator. No
começo procurei copiar a naturalidade do Sebastião, depois fui
para o interior criar meu próprio tipo: caboclão bastante natural (na
roupa, no andar, na fala). Um simples caboclo entre os milhões
que vivem no interior brasileiro. Saí pro interior um pouco
Sebastião, voltei Mazzaropi. (MAZZAROPI, 1970)
37
Em Candinho, realizado pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em
1953, Mazzaropi já representava o caipira. Dirigido por Abílio Pereira de Almeida
(1906-1977), o filme é uma versão para o cinema de Candido, de Voltaire, e nele
o personagem Candinho é o “protótipo do trabalhador rural carente de qualquer
escolaridade, o caipira” (BUENO, 1999, p. 15). Porém, este caipira “é delicado,
inocente e nobre, muito distante do Jeca Tatu (TOLENTINO, 2001, p. 120). Este
homem simplório, da roça, é expulso da fazenda onde foi criado, migrando,
primeiramente, para um vilarejo chamado Piracema onde se mete em confusão e
vai parar na cadeia. Segue então uma cena que denuncia o analfabetismo de
Candinho. O delegado pergunta a Candinho se ele sabia escrever e ele responde
que sim. O delegado, então, pede que ele escreva.
Candinho: _ Escrever o que?
Delegado: _ Qualquer coisa.
O caipira começa a riscar o papel com um lápis como se estivesse fazendo
um desenho por toda a folha de papel. O delegado, irritado, bate na mesa e grita.
Delegado: _ Chega! E ordena que ele leia.
Candinho: _ Eu não falei que sabia ler, falei que sabia escrever.
De Piracema, Candinho segue para São Paulo, onde tenta sobreviver
realizando diversas atividades informais que nunca dão certo. Em uma das cenas
finais, Candinho confirma o seu analfabetismo, quando, após a celebração de seu
casamento, o cartorário pede a sua assinatura e ele diz que não garante.
Candinho: _ Eu princípio aí, onde é que eu vou parar eu não sei.
Se em Candinho a participação de Mazzaropi foi apenas como ator, em
Jeca Tatu ele escreveu o argumento e produziu o filme, deixando a direção a
cargo de Milton Amaral. O personagem Jeca Tatu do cinema, baseado no Jeca
Tatuzinho do Almanaque Fontoura, é também preguiçoso, simplório e analfabeto,
mbolo do atraso” mental, econômico e político que se opunha ao modelo ideal
de trabalhador eficaz, produtivo e integrado ao mercado, preconizado
anteriormente por Lobato (1924) e reafirmado no processo de urbanização e
industrialização do Brasil, especialmente a partir dos anos de 1950. Contudo, o
Jeca de Mazzaropi não apresenta as enfermidades do Jeca de Lobato. O caboclo
analfabeto e adoentado lobatiano transformou-se num caipira também analfabeto,
mas divertido e espertalhão, tipicamente mazzaropiano.
38
O filme Jeca Tatu começa com uma longa sequência de créditos iniciada
com o nome de Mazzaropi em destaque, seguido pelo título: Jeca Tatu, e de um
subtítulo: “uma sincera homenagem ao saudoso Monteiro Lobato”. No final da
apresentação da ficha técnica, entra uma tela com o seguinte texto: “Esta história
é baseada no conto ‘Jeca Tatuzinho’, cujos direitos autorais foram cedidos
graciosamente pelo ‘Instituto de Medicamentos Fontoura S/A’. Expresso aqui,
meu agradecimento. Mazzaropi”. Segue outra tela: Este filme foi realizado em
Pindamonhangaba nas fazendas ‘Sapucaiae ‘Coruputuba’, gentilmente cedidas
pelo meu grande amigo Dr. Cícero da Silva prado. Pela sua valiosa colaboração e
de seus dignos auxiliares meu muito obrigado. Mazzaropi.”
Sequência 1: Abertura gradual para uma placa indicando a entrada da
Fazenda São Giovani de propriedade do italiano seo Giovani (Nicolau Guzzardi),
que é mostrado abrindo a porteira e em seguida cavalgando por suas terras onde,
em plano fechado, aparecem cortadores de cana e, numa panorâmica, dezenas
de outros trabalhadores rurais, além de quatro tratores rodando perfilados,
representando uma fazenda moderna e produtiva. Sequência 2: Plano geral de
outra área de terras mostrando ao fundo uma casinha de sapé, uma pequena
área coberta, um carro de boi descansando e, ainda, dois bois e um cavalo ao
lado. Entra em cena Jerônima (Geny Prado), mulher do Jeca, saindo do casebre
para cortar lenha. Ao voltar, encontra sua filha Marina (Marlene França) saindo
para buscar água. No interior, Jeca dorme ao lado de seu inseparável vira-lata
Brinquinho. Após acender o fogão à lenha, Jerônima, o acorda e ele inicia uma
longa sessão de espreguiçamento. Ela reclama que está fazendo o serviço dele e
diz: _ Ô bicho preguiça! Ainda deitado. Jeca espreguiça-se, coça um dos pés com
o outro que tamm é usado para mover a taramela que abre as portinholas de
madeira da janela. Pega um arranjo de flores pendurado em uma das portinholas
e o deposita sobre uma mesinha ao lado da cama. Senta-se à beira da cama e
acende o seu cachimbo, olha para a santinha posta sobre a mesinha, faz o sinal
da cruz, dá longas baforadas, cospe no chão e, finalmente, levanta-se. Ao sair do
casebre, volta a se espreguiçar desajeitadamente.
Nesta longa cena, Mazzaropi evidencia, com riqueza de interpretação, a
preguiça característica do Jeca lobatiano. Porém, o Jeca mazzaropiano é mais
preguiçoso ainda, pois o é, também, junto aos seus próprios familiares. Este Jeca,
39
como diz Tolentino (2001, p. 104) “é um sujeito ladino e, em certo sentido,
imbuído de uma ética da malandragem, que os seus familiares acabam
trabalhando para ele”. O caboclo de Monteiro Lobato, era preguiçoso por ser
considerado doente e por produzir apenas para a sua subsistência. Ele plantava e
colhia, porém o seu trabalho não era reconhecido pelo escritor, que tinha como
referência de modelo de produção aquele voltado para o mercado e praticado de
forma racional, em especial, pelos imigrantes italianos. Por sua vez, o Jeca de
Mazzaropi, como diz Tolentino (2001, p. 104) “é avesso a qualquer tipo de
atividade, como o protótipo da preguiça consciente que, por várias vezes, para
forçar a nota cômica, argumenta mentirosamente ter trabalhado das seis as seis.”
Na sequência seguinte, Jerônima tenta inutilmente tirar leite da vaca
Oposição. Jeca manda ela se afastar e a empurra. Em seguida, do seu jeito,
consegue ordenhar Oposição. Jerônima pede para ele ir socar o arroz. De uma
forma grosseira ele diz que vai “socar é a cara dela” e joga leite em Jerônima, que
cai. Nesta cena, Mazzaropi apresenta o Jeca como um indivíduo machista e
agressivo. Como mostra Tolentino (2001, p. 102) Jeca se come deste homem
preguiçoso, indelicado, que é capaz de desperdiçar o leite para fazer valer sua
opinião ou supremacia em relação à mulher”.
Além de Jerônima e Marina, a família de Jeca é constituída por mais dois
meninos (Humberto e Cláudio Barbosa). O enredo do filme se desenvolve em
torno da relação conflituosa entre o Jeca, mbolo do atraso, sob a ótica do
capital, e o seu vizinho, o italiano Giovani, que representa a modernidade.
Durante todo o filme, Giovani tenta se apossar das terras de Jeca para expandir a
sua propriedade, conseguindo, mais tarde, tal intento com a ajuda do português
da venda, para quem o caipira é devedor crônico. Outra trama do filme se passa
em torno da relação estabelecida entre Marina, filha do Jeca, e Vaca Brava
(Roberto Duval), que, como diz Tolentino (2001, p. 114), “mais parece um caubói
desembarcado de algum filme hollywoodiano em pleno Vale do Paraíba”. Ele quer
se casar com Marina que, por sua vez, gosta de Marcos (Francisco de Souza),
filho de Giovani. Num dos momentos românticos, o casal apaixonado, Marina e
Marcos, aparece sentado na cerca de um curral cheio de bois, onde também
entra em cena Agnaldo Rayol, ainda muito jovem, cantando Estrada do Sol,
justificando, assim, ser o filme uma “comédia musical”, como indicado na sua
40
ficha técnica original. Vaca Brava, enciumado, quer vingar-se de Jeca por ele o ter
refutado como pretendente a genro. O malfeitor rouba ovos e galinhas de Giovani
e os joga no quintal do caipira. O italiano chama o delegado que localiza as
‘provas’. Jeca é preso. Após oito dias de prisão e depois de muita insistência de
Jerônima e dos dois filhos pequenos de Jeca, o delegado resolve soltá-lo e pede
que ele assine um documento. Jeca pega a caneta tinteiro e a balança, jogando
tinta no delegado. Então diz:
Jeca: _ Eu vou assinar com uma cruz, porque eu não sei escrever.
O delegado borra o dedão de Jeca numa almofada tinteiro. Ele pergunta:
Jeca: _ Onde é que eu vou botar o dedo agora?
O delegado aperta o dedão de Jeca no documento e o manda embora.
Esta cena do filme, em que o personagem Jeca manifesta claramente o
seu analfabetismo, é hilária. Mas, cabe perguntar o que provocava o riso da
platéia, se grande parte dela, era composta por analfabetos? Estariam eles rindo
de si mesmos? Concordando com Bueno (1999, p. xi), é possível ponderar que os
filmes de Mazzaropi, são um espaço crítico para que os caipiras possam ou se
envolver num exercício de saudade do passado ou se distanciar daquele passado
para rirem das artimanhas de seus personagens”. Nesta perspectiva, e apenas
conjecturando, na medida em que este trabalho não trata da recepção
cinematográfica, ao rir desta cena, o espectador analfabeto poderia estar
dissimulando a sua própria condição, afinal, como explicam Galvão e Di Pierro
(2007, p. 20), “os constrangimentos e a vergonha fazem com que as pessoas com
pouca familiaridade com as letras ocultem a condição de analfabetos e recorram a
estratégias de dissimulação”, como o riso, por exemplo. Vale tamm ressaltar
que no contexto urbano letrado,
[...] a impressão digital se torna marca evidente do estigma de
inferioridade atribuído ao analfabeto e as situações de
identificação pública passam a ser vividas como humilhação. Por
esse motivo, a assinatura o desenho do nome é a primeira
aprendizagem aspirada por qualquer adulto em processo de
alfabetização. (GALVÃO; DI PIERRO, 2007, p. 21)
A cena em que Jeca enfatiza o seu analfabetismo se passa na delegacia
de polícia. Em Candinho (1953), por duas vezes o personagem revela que é
analfabeto, sendo uma delas tamm na delegacia. Em ambas as produções,
41
apenas a força policial aparece simbolizando a presença do poder público. Não
referência à existência de escolas nos dois filmes. Os filhos de Jeca, por
exemplo, tantos os pequenos quanto a mais velha, Marina, não encenam
situações que pudessem remeter a idéia de que estivessem envolvidos em algum
processo de escolarização. um garoto, filho de Giovani, aparece lendo uma
revista em uma única cena, na qual também o italiano folheia um caderno.
É oportuno aqui recuperar que enquanto Monteiro Lobato concebia o seu
personagem Jeca nas primeiras décadas do século XX, a educação no Brasil
passava por um processo de reformulação, como explica Rossi:
A Primeira República [1889-1930] é assinalada, também, pela
propagação do pensamento renovador da educação. Desde a
segunda metade do século XIX, mais especificamente 1870, as
finalidades educativas do ensino primário foram renovadas e se
revelavam por meio de diferentes correntes pedagógicas. Os
novos propósitos traçados para a (e pela) escola primária
alteravam significativamente sua função. Transformando-se a
escola de instruir em escola de educar, repensava-se com
profundidade a formação dada ao aluno. (ROSSI, 2009, p. 103)
Naquele momento, a escolarização primária era ofertada por “diferentes
instituições de ensino público: os grupos escolares, as escolas isoladas, as
escolas reunidas, as escolas particulares, subvencionadas ou não, escolas
estrangeiras, além de outras”. (ROSSI 2009, p. 104). Nas décadas seguintes,
especialmente, a partir da regulamentação do FNEP Fundo Nacional do Ensino
Primário
32
, em agosto de 1945, ocorreu uma expansão da rede elementar em
todo o país e a construção de novos prédios escolares. De acordo com Paiva
(1987, p. 146), o FNEP propiciou o efetivo crescimento do número de unidades
escolares e criou condições para que as matrículas primárias crescessem em
maior proporção que nos períodos anteriores.” Em 1946, havia 28 mil e 300
prédios construídos; em 1958, quando Mazzaropi protagonizou Chico Fumaça, o
número de escolas chegou a 77 mil e, em 1962, dois anos após a produção do
Jeca Tatu (1959), eram contadas 98 mil unidades, com predominância de escolas
rurais “embora o número de salas fosse maior na zona urbana, onde eram
construídos grupos escolares ao invés de escolas isoladas”. (PAIVA, 1987, p.
32
O FNEP foi criado em 1942 com o objetivo de manter e desenvolver os serviços do ensino primário. Sobre
o assunto, ver Educação Popular e Educação de Adultos, de Vanilda Pereira Paiva (1987).
42
149). Esta opção pode ser justificada pelo fato de que o grupo escolar, conforme
explica Rossi (2009, p. 104), “era a representação e a materialização do que
poderia se entender por modernização no campo educacional”.
Mas, este crescimento quantitativo de prédios escolares não se traduzia,
necessariamente, em aumento de número de matrículas. Segundo Paiva (1987):
Realmente, a aplicação dos recursos do FNEP a partir de 1946
parece ter contribuído para a diminuição do déficit de escolas,
embora não se tenha observado uma diminuição proporcional do
déficit de matrículas. Para tanto, concorreu não apenas o
crescimento demográfico, mas também a localização inadequada
dos prédios escolares como consequência da interferência do
poder político local na sua distribuição. Em muitos lugares, o
desperdício dos recursos chegou a ser total, com escolas
construídas em regiões de população rarefeita onde era
impossível o seu funcionamento por falta de professores e de
alunos, servindo a construção algumas vezes como estábulo.
(PAIVA, 1987, p. 149)
Tais fatores ajudam a entender tamm a histórica falta ou inadequada
oferta de escolarização, principalmente no meio rural, que até hoje, em certa
medida, ainda persiste, dificultando o acesso dos homens e das mulheres do
campo à educação. Talvez, esta contradição entre o proposto, a ampliação da
rede escolar, e o não executado, pelos motivos, entre outros, os expostos por
Paiva (1987), possa ter influenciado, de alguma forma, Mazzaropi a apenas
afirmar o analfabetismo de seus personagens no filme Jeca Tatu (1959) sem
apontar a possibilidade de sua superação por meio da escolarização. Em
contrapartida, um ano antes, a produtora cinematográfica Cinedistri havia lançado
Chico Fumaça (1958), com roteiro e direção de Victor Lima e com Mazzaropi
representando um caipira analfabeto que sonha em ser maquinista de trem e é
noivo de uma professora de escola primária. Nas sequencias iniciais do filme,
Chico Fumaça aparece em uma sala de aula repleta de crianças aprendendo
literalmente o “bê-á-bá”. O desenrolar do enredo não revela se Chico aprendeu a
ler e a escrever, mas a presença da escola e o processo de alfabetização das
crianças ficaram evidenciados na produção. Cabe destacar que, neste filme,
Mazzaropi apenas participou como ator, enquanto que em Jeca Tatu ele escreveu
o argumento, ou seja, teve liberdade de criação, mesmo sendo o enredo baseado
na história do Jeca lobatiano. Enfim, num intervalo de um ano, Mazzaropi
43
protagonizou duas produções nas quais os personagens principais são caipiras
analfabetos. Mas, apenas na primeira obra a alfabetização aparece, enquanto na
segunda, somente o analfabetismo é realçado e, ainda, de forma a alimentar o
preconceito contra o analfabeto, como na cena em que Jeca, ao discutir com
Jerônima, a chama de “analfabeta burra”.
O cinema, como um meio de comunicação de massa, atinge amplas
camadas da população. Por meio dos filmes, são veiculadas idéias, valores,
concepções que são apropriadas pelos espectadores de formas diferenciadas,
pois, de acordo com a noção de apropriação de Chartier (1990),
[...] ler, olhar ou escutar são, efectivamente, uma série de atitudes
intelectuais que longe de submeterem o consumidor à toda e
poderosa mensagem ideológica e/ou estética que supostamente o
deve modelar permitem na verdade a reapropriação, o desvio, a
desconfiança ou resistência. (CHARTIER, 1990, p. 59).
Nesta perspectiva, o espectador não é um mero consumidor passivo. Ele
articula as informações veiculadas com os seus próprios saberes e vivências,
compreendendo-as de acordo com o seu universo cultural. Contudo, o se deve
menosprezar o grande poder de influência na mídia, ou no caso aqui, do cinema,
neste processo de apropriação por parte do espectador. Assim, o uso recorrente
de metáforas, como a utilizada por Jeca “analfabeta burra” se referindo à
Jerônima, contribui sobremaneira para a construção do preconceito social contra
o analfabeto, que é visto como alguém desprovido de inteligência, ignorante,
estúpido, a quem falta algo, ou seja, “o analfabeto é alguém que não sabe ler e
escrever, é alguém que o é capaz, o é informado, não é humanizado, não
tem conhecimentos”. (GALVÃO; DI PIERRO, 2007, p. 10). Desse modo, pode-se
afirmar que Mazzaropi, com o seu Jeca Tatu e tamm com outras obras,
produziu, com competência, uma representação preconceituosa do sujeito
analfabeto que foi amplamente disseminada por meio de seus filmes,
principalmente nas décadas de 1950 e 1960 e, até mesmo, nos dias atuais.
Mas, voltando à descrição do filme, a saga de Jeca não acabou com a sua
soltura da cadeia pública. Sem alimentos em casa, ele troca o restante de sua
propriedade por mantimentos e pela quitação de sua dívida com o português da
venda, que está a serviço do fazendeiro Giovani. Na negociação, o intermediário
44
diz que ele poderia ficar morando no seu casebre. O italiano, imediatamente
ocupa as terras do caipira preguiçoso. Na sequência, Vaca Brava, inconformado
por não ter Marina, agride Marcos disfarçado de Jeca. Acreditando que o vizinho
é culpado pela agressão ao seu filho, Giovani põe fogo na casinha de sapé de
Jeca que fica sem ter mais onde morar. Ele resolve, então, ir embora com a
família para Brasília. No caminho, canta Fogo no Rancho, que relata sua tragédia.
A fala de Jeca sobre o seu destino revela a temporalidade da narrativa fílmica, ou
seja, o enredo se desenrola no período de construção da capital do Brasil, tema
em evidência quando Mazzaropi realiza Jeca Tatu (1959).
Entretanto, a viagem de Jeca é interrompida por outros caipiras que
aparecem no filme como figurantes ou atuando em papéis secundários. Vestem
roupas remendadas, calças curtas, muitos com camisas xadrez, lenços nos
pescoços e com chapéus de palha, típicos caipiras de festa junina. Contudo, em
cena, são eles que trabalham: plantando, cortando cana, conduzindo tratores,
construindo cercas. São mostrados tamm reunidos no armazém do português
conversando sobre as injustiças cometidas contra o Jeca, ajudando, com seus
diálogos, a narrar o filme. Estes caipiras tomam cachaça, o que Jeca não faz. O
Jeca mazzaropiano não bebe. São solidários, pois deixam o trabalho na fazenda
do italiano para ajudar Jeca e sua família. Falam com simplicidade, usando uma
linguagem distante da oficial, daquela aprendida na escola, demonstrando, assim,
distanciamento dela. Mesmo que, ainda, de certa forma, estejam folclorizados no
filme pelos seus trajes, a representação destes caipiras aproxima-os dos reais
trabalhadores rurais, muitos dos quais, no mesmo período do filme “ocupam no
cenário nacional espaços políticos importantes, produzindo uma nova forma de
reflexão sobre a questão agrária e camponesa no Brasil.” (TOLENTINO, 2001, p.
112). Eles aparecem como amigos do Jeca, mas são diferentes dele. Jeca é a
exceção. Jeca é o estereótipo do caipira. Criado pela imaginação de Monteiro
Lobato, transformado e popularizado por Mazzaropi, o Jeca passou a ser tomado
como o verdadeiro caipira, cristalizando-se na memória social com as
características de um roceiro analfabeto, de maus modos, preguiçoso e
espertalhão. No filme, os amigos de Jeca fazem o contraponto ao caipira
estereotipado, revelando-se como os caipiras que se aproximam da realidade,
45
daqueles que efetivamente migraram para as cidades e nelas buscaram a
alfabetização em escolas como as da Educação de Jovens e Adultos.
Um destes caipiras propõe pedir terras para o Jeca e sua família a um
deputado, o Dr. Felisberto (Pirulito). Alguns deles vão com Jeca à casa do coronel
Florêncio, o chefe político local, para pedir que ele negocie com o deputado, que
mora em São Paulo, a troca de dois mil votos por terras para o Jeca. O coronel se
compromete a ir com Jeca para São Paulo conversar com o Dr. Felisberto, mas
fica doente e somente o caipira com o seu fiel cão Brinquinho, seguem viagem. A
visita à capital paulista é mostrada em duas sequências. Na primeira, Jeca sai da
Estação Júlio Prestes e, todo atrapalhado, tenta atravessar a rua de tráfego
intenso, o que consegue com a ajuda de um guarda, demonstrando que ele é
um estranho naquela movimentada urbe. Começa a chover e Jeca fica todo
molhado. Sua roupa e seu guarda-chuva encolhem, o deixando mais ridículo. A
outra sequência tem como cenário a casa do Dr. Felisberto. Jeca chega de táxi e
não paga o motorista, dizendo que na sua terra, quem convida é quem paga. Em
seguida, o caipira avista vários jovens em trajes de banho em torno de uma
piscina. Neste momento, Cely e Tony Campello cantam Tempo para Amar.
Algumas mulheres acham engraçada a figura do Jeca e o perseguem. Ele sobe
em uma árvore e usa uma atiradeira para espantá-las. Logo após, ele é pego
novamente e quando ameaçado de ser jogado na piscina, ocorre a intervenção do
Dr. Felisberto, salvando-o de um banho. Jeca entrega a lista com os nomes dos
eleitores que votarão nele e uma carta do coronel Florêncio explicando a
negociação da troca dos votos por terras. A compra de votos e outras fraudes
ocorriam com frequência nos processos eleitorais da Primeira República (1889-
1930). Mazzaropi, nos anos finais da década de 1950, por meio de seu filme,
aponta que tais práticas coronealistas ainda estavam presentes na sua época,
tanto no campo quanto na cidade.
O Dr. Felisberto é interpretado pelo artista de circo Pirulito (Antonio
Malhone) que desenvolveu um personagem caricato, representando o político
populista, discursivo e gesticulador. Seu porte físico, magérrimo e baixinho,
contribuiu para tornar o deputado uma figura engraçada. Como diz Tolentino
(2001, p. 109) “[...] rir-se do político arcaico pode parecer que rimos do
superado. Entretanto, essa insistência na presença de tal figura denota que este
46
sobrevive e é marca forte na política brasileira”. Mas, Mazzaropi não caracterizou
os outros caipiras do filme como pessoas ingênuas, como “pobres coitados” que
poderiam ser facilmente ludibriadas pelo político. São eles que propõem a troca
de votos, mostrando conhecimento acerca da corrupção do sistema eleitoral, que
historicamente excluiu a participação da maioria da população brasileira, e
resolvem utilizá-lo a favor do grupo, ou mais precisamente, em benefício da
família de um deles, do Jeca. Este, por sua vez, demonstra não ser também
ingênuo, pois diz ao deputado que as terras devem ser dadas antes da eleição.
Na sequência, o deputado está no povoado rural, discursando em praça
pública ao lado de Jeca em meio a gritos de “já ganhou”. Em nova sequência de
cenas aparecem os amigos caipiras realizando um mutirão para construir a casa
de Jeca, enquanto ele, satisfeito, apenas observa a todos, sem fazer
absolutamente nada. Neste momento, mais um mero musical é inserido, desta
vez com a interpretação de Lana Bittencourt que canta Ave Maria. Marina e
Marcos se reencontram e Vaca-Brava, com raiva, arma outra tentativa de
prejudicar o pai da moça. À noite, ele incendeia um paiol do fazendeiro Giovani
visando incriminar Jeca, mas é visto por Marcos e por Baratinha (Nena Viana),
uma nordestina que anda saltitando e é apaixonada por Jeca. Ao longo do
filme, ela insistentemente coloca flores na janela do casebre do caipira, o
persegue, mas é sempre ignorada por ele. Baratinha sabia de todas as armações
de Vaca Brava, mas ninguém a escutava. Porém, Marcos tamm testemunhou o
ato criminoso do malfeitor e ele é preso.
Na sequência final, Jeca aparece bem vestido, de terno de linho, lenço no
pescoço, barba feita, charuto na mão, representando que não é mais Jeca Tatu,
agora é um coronel, como enfatizado na letra da música Pra Mim o Azar é Festa,
que ele canta: “Deixei de ser um qualquer. não como mais angu. Hoje sou um
coroné. Não sou mais Jeca Tatu.” No decorrer da música, são mostrados os seus
dois filhos pequenos dançando, ambos de terninho; Brinquinho em sua nova
casinha, de dois andares; a vaca Oposição, ao lado de um bezerro, e uma galinha
com calça e botinas. Jerônima surge ao lado de Jeca, muito feliz, portando
tamm um charuto. Por fim, Marcos e Marina chegam de charrete, com uma
cesta de vime, onde estão três bebês, para a alegria de todos.
47
No final da estória do Jeca Tatuzinho, do Almanaque Fontoura (1924), o
caipira preguiçoso após seguir a orientação médica, que incluía tomar o Biotônico
Fontoura, transformou-se radicalmente.
Começou a ficar forte e passando a mão em um machado, cortava
lenha em abundância. Depois quando ia ao mato buscar lenha,
trazia um belo feixe na cabeça. Começou a tomar gosto pela coisa
e a sua plantação de milho, feijão e mandioca começou a
produzir. [...] Ficou gordo e bonitão. Fez uma casa maior e bem
feita, com varanda e tudo mais. Andava de chapelão e botas.
Teve filhos que ele também não deixava que andassem
descalços. Pois sabia agora quanto vale a saúde. Tão
compenetrado era, com respeito a isso, que até seus porcos e
galinhas, tinham botinas. Criava porcos em pocilgas bem
construídas e duas vezes por ano, levava-os em seu caminhão.
Para vendê-los no mercado da cidade. Comprou mais terras e
formou uma pequena fazenda a quem deu o nome de Fazenda
Feliz. (LOBATO, 1924).
Por sua vez, o Jeca Tatu de Mazzaropi, transformou-se num coronel e não
em um próspero fazendeiro como o da Fazenda Feliz ou como o seu vizinho
italiano. Tolentino (200, p. 116) argumenta que o Jeca mazzaropiano “recusa a
disciplina do trabalho moderno, mas não as possibilidades de consumo que ele
lhe traz”. Se Jeca tinha aspiração de ascensão social, esta revelou-se no final do
filme tendo como modelo o proprietário rural de velho estilo. Bueno (1999, p. 21)
considera a postura do Jeca mazzaropiano “como um forma de resistência à
aceleração no sistema produtivo, representado por Giovani.” Enfim, não é objetivo
aqui discutir a opção de Mazzaropi por este final, o que demandaria um estudo
mais aprofundado, pois seria necessário levar em consideração as ambiidades
de suas produções. Porém, vale destacar que, em entrevista à revista Veja, citada
anteriormente, Mazzaropi queria ser lembrado como “um cara que pensa em fazer
cinema apenas para divertir o público, por acreditar que cinema é diversão e que
seus filmes nunca pretenderam mais do que isso”. (MAZZAROPI, 1970).
48
2.3 OS NARRADORES: ENTRE A ORALIDADE E A ESCRITA
Sequência 1: Um rapaz, com uma grande bolsa a tiracolo, corre com
dificuldade por uma estrada. Sequência 2: rapaz chega correndo na beira do rio
onde avista uma pequena embarcação que se distancia. Ele agita os braços e
grita na esperança inútil de ainda embarcar. Inconformado, o rapaz caminha em
direção a um bar próximo. Sequência 3: no bar, em uma mesa, dois jovens jogam
baralho, noutra um homem bebe cachaça e logo atrás, em outra mesa, um casal
conversa. Zaqueu (Nelson Xavier), sentado num banco, escarafuncha a unha do
com uma faca enquanto conversa com Sousa (Matheus Nachtergaele) e é
observado por uma mulher ao seu lado. O rapaz, agora sentado, ouve música no
seu walkman. Atrás do balcão, uma senhora idosa sentada, balbucia baixinho ao
ler as páginas de um velho e o grosso livro já com as páginas soltas da costura. O
rapaz se levanta e caminha em direção ao balcão.
Rapaz: _ A senhora me vê uma água de coco, por favor?
Sousa se antecipa à senhora, que não desvia sua atenção do livro.
Sousa: _ Que cê quer moço?
Rapaz: _ Um água de coco.
Sousa: _ Ô, mãe, uma água-de-coco pro moço.
A senhora continua a prestar atenção somente ao livro.
Sousa: _ Fecha esse livro, mãe.
Sousa pega o livro e o fecha. Sua mãe reabre o livro e retoma a leitura.
O rapaz aproxima-se de Zaqueu que percebe a sua angustia.
Zaqueu: _ Não se abespinhe, não, moço! Às 5 horas tem outro barco.
Rapaz: _ Tô sabendo, só às 5 tem outro barco,não é?
Zaqueu: _ Em ponto, no relógio!
Sousa se aproxima e participa da conversa.
Sousa: _ Em ponto também não, né, Zaqueu. Que às vezes chega às 6, 7.
Às vezes não chega.
Senta-se à mesa onde um homem bebe cachaça e continua a falar.
Sousa: _ Mas não se avexe que o povo dorme num quarto que eu tenho ali
no fundo, quando a barca some. [...]
49
Sousa olha para o rapaz e lembra que ele havia pedido uma água-de-coco.
Vira-se para a sua mãe, que continua a ler.
Sousa: _ Ô, ô, mãe! O coco do moço, mãe!
Ela não interrompe a leitura e balbucia mais algumas palavras.
Sousa: Fecha esse livro mãe!
Irritado, olha para o rapaz e diz, ironicamente.
Sousa: Depois de velha, resolveu aprender a ler!
Estas são as sequências e diálogos
33
iniciais do filme Narradores de Javé
(2003), dirigido por Eliane Caffé e ganhador de mais vinte prêmios, entre os quais
o de Melhor Filme, em mostras e festivais de cinema realizados no Brasil e no
exterior. Bem recebido pela crítica cinematográfica, o filme tem sido objeto de
estudos por parte de pesquisadores de diferentes campos disciplinares por se
constituir numa obra rica em diversidade temática. Segundo Caffé (2004, p. 5)
“Narradores de Javé nasceu do desejo de expedicionar pelo interior mais distante
e conhecer melhor nossa gente, seus modos de vida e como se expressam”.
Além de dirigir o filme, Caffé redigiu o roteiro em parceira com Luís Alberto de
Abreu, com quem viajou por três vezes pelo interior de Minas e da Bahia para
colher histórias reais ou fabulosas contadas por pessoas comuns.
O humor era o que mais ressaltava em todos os relatos que
ouvíamos e mesmo presente nos lugares mais miseráveis que
visitávamos. A partir daí, trabalhamos com essa matéria prima
os fragmentos de histórias ouvidas no desenho das situações e
do roteiro como um todo. No filme, a idéia de termos no mesmo
contexto, os relatos épicos, pessoais, micos e escatológicos foi
algo inspirado no que apareceu naturalmente neste convívio com
a cultura dos ‘contadores de histórias’ e porque afinal a nossa
vida contém um pouco de cada coisa e tudo junto. (ABREU;
CAFFÉ, 2004, p. 6).
A diretora do filme relata que o seu objetivo era mostrar o choque de
versões entre contadores de histórias e trabalhar em cima da riqueza da narração
oral. Mas, reconhece que a obra cinematográfica pronta extrapola as intenções de
seu autor e abre-se a variadas interpretações. Narradores de Javé (2003),
33
A descrição das sequencias e os dos diálogos foram extraídos da decupagem do filme e do roteiro
publicado pelos seus autores Eliane Caffé e Luís Alberto de Abreu em 2004. Constataram-se diferenças em
algumas cenas e diálogos entre o roteirizado e o efetivamente produzido.
50
portanto, como qualquer outro artefato cultural, resulta de uma prática cultural
determinada e sua apropriação, na perspectiva de Chartier (1995), configura-se
como uma prática social de seus espectadores que o interpretarão de acordo com
os universos simbólicos em que se inserem, contribuindo com as suas análises
para a construção de uma história social de interpretações da referida obra.
Para Bergamaschi (2006), por exemplo, o filme presta uma homenagem
aos contadores de histórias, sejam as ocorridas ou inventadas, o que não importa,
pois todos os ‘causos’ seduzem os ouvintes”. Por sua vez, Kanashiro (2004)
afirma que Narradores de Javé (2003) reúne muitos temas relacionados com a
História: “a história oral, a oficial, sua cientificidade, o limiar com a literatura, o
vídeo e o próprio cinema, diferentes suportes para a História, diferentes olhares e
intercâmbios.” Werneck (2004) diz que este é um filme sobre muita coisa.
Sobre ser sobre muita coisa. Sobre o muito e sobre a multiplicidade de seres. É
quase uma taxonomia de verdades, das possibilidades de real de uma mesma
história.Teixeira e Prado (2006) afirmam que Narradores de Javé (2003) mostra
“diretamente ou através de simbolismos e metáforas, por vezes em tonalidade
trágico-cômica, problemas de pequenos povoados onde vivem grupos
historicamente desconsiderados.”
Este último enfoque assume papel significativo em todo o filme que, por
meio do humor e da ironia, denuncia a situação de abandono das populações
pobres do Brasil. Como relatam Teixeira e Prado (2006), em Narradores de Javé
(2003) “estão brasileiros e brasileiras destratados, ou melhor, mal tratados no
presente e no passado da história social e política do país. Neste aspecto, há
uma grande proximidade entre a ficção e realidade em torno da produção de
Narradores de Javé (2003), filmado na maior parte do tempo em Gameleira da
Lapa, um povoado pobre, com cerca de dois mil habitantes, situado do interior da
Bahia, às margens do Rio São Francisco. O roteirista Luís Aberto de Abreu (2004)
explica que “muitas falas e expressões e elementos e características incorporadas
aos personagens foram colhidas no próprio território de pesquisa (ABREU;
CAFFÉ, p. 8). Algumas destas falas aparecem de forma destacada no filme e se
referem a fatos reais vivenciados pelos moradores de Gameleira da Lapa, como é
o caso da inundação de parte das terras do lugarejo em razão da construção de
uma usina hidrelétrica nas proximidades, assim como ocorre no filme, na fictícia
51
Javé. Além disso, seus habitantes, assim como os de Bom Jesus da Lapa e de
Lençóis, ambos os locais situados na Bahia, onde também foram rodadas cenas,
participaram ativamente das filmagens, seja como figurantes ou mesmo como
atores coadjuvantes. De acordo com Caffé (2004), “havia uma preocupação com
as questões locais e eles se apropriaram do filme. Às vezes, as pessoas
entravam tanto nos papéis, com tanta verdade, que o Dumont
34
tinha que
puxar de novo o controle.”
Além desta integração entre o ficcional e o real, fatores externos
contribuíram para aproximar a equipe de produção e os moradores de Gameleira
da Lapa, entre os quais a questão da limpeza pública. Como relata Caffé (2004),
“quando chegamos, vimos que as casas eram limpíssimas, mas as ruas, imundas.
Não havia coleta, eles não tinham nem saco de lixo.” Por iniciativa da diretora de
arte do filme, Carla Caffé, irmã da diretora, foi realizado um mutirão envolvendo
principalmente as mulheres do local. Algumas delas vinham discutindo a
possibilidade de se trabalhar com a reciclagem do lixo. A produção do filme
distribuiu sacos de lixo e galões que foram instalados na cidade. Caffé (2004)
explica que “por três semanas a cidade inteira ficou limpa. E a gente ia
amontoando naqueles galões, que não havia coleta. a gente falou que
cobrar isso era uma questão política.” Outra interferência no cotidiano da cidade
ocorreu por conta da escolha das casas que serviram para as filmagens de
algumas cenas. Muitas tinham fossas abertas que tiveram que ser fechadas pela
equipe de produção. A substituição de psticos por telhas e outras pequenas
benfeitorias tamm foram feitas nas casas selecionadas, o que provocou uma
grande procura por parte dos moradores do povoado para que as suas moradias
fossem escolhidas. Caffé (2004), conta que “foi um trabalhão mostrar que nós
éramos artistas, que estávamos fazendo um filme e que eles tinham que
encaminhar essas questões aos representantes deles.A relação entre ficção e
realidade estreita-se ainda mais em Narradores de Javé (2003) com a
constatação de que a criação do personagem principal do filme, Antonio Biá (José
34
JoDumont nasceu em Bananeiras, na Paraíba, em de julho de 1950. De família pobre, aprendeu a ler
sozinho em livretos de Cordel. Um erro no registro de seu nascimento afrancesou o nome, pois seu pai se
chamava Severino do Monte. Trabalhou em mais de 30 filmes, recebendo vários prêmios em sua carreira. É
dele expressões cômicas usadas em Narradores de Javé como “pokémon de Jesus”, “manicure de lacraia”,
“Iemanjá de açude entre outras. (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
52
Dumont) foi inspirada na história real de Pedro Cordeiro Braga, ex-funcionário do
Correio de um povoado conhecido como Vau, distrito de Diamantina, em Minas
Gerais, que mantinha seu emprego escrevendo cartas em nome de outras
pessoas para garantir o fluxo de correspondência da agência. No filme, Biá é o
único alfabetizado capaz de escrever um “dossiê” que reconstrua os grandes
acontecimentos de Javé, como forma de tentar evitar a inundação do vilarejo. A
ação do personagem B conduz a narrativa fílmica, que abre um leque temático
amplo, especialmente por revelar o lugar simbólico ocupado pela escrita em uma
comunidade onde predomina a oralidade.
A inter-relação entre a oralidade e a escrita se apresenta no filme desde
o seu início, quando Sousa não se conforma com o fato de sua mãe, depois de
velha, querer aprender a ler. A personagem mãe de Sousa representa o sujeito
analfabeto. Entretanto, é o analfabeto que sempre viveu no mundo da oralidade,
mas que não desistiu de aprender a ler e que, no filme, demonstra não se
intimidar, mesmo quando o seu desejo de dominar a leitura é tratado com ironia
por seu filho. A crítica indireta de Sousa à sua mãe foi o mote que ensejou
Zaqueu a narrar os acontecimentos do vale de Javé. Zaqueu é ao mesmo tempo
narrador e morador do povoado e, durante todo o transcorrer do filme, ele o
estava presente em Javé, pois saía para mascatear. Supõe-se, então, que a sua
narração é uma versão de outras narrações. Ao comentar a fala de Sousa,
Zaqueu introduz o enredo do filme.
Zaqueu: _ Às vezes é bom [aprender a ler]!
Sousa: _ Bom prá que?
Zaqueu: _ A gente nunca sabe... Eu mesmo, que também o sei ler e
escrever, posso até contar o reboliço que uma escritura foi capaz de fazer! Ó, é o
caso mais incrível que eu.... mas acho que ocês não vão querer ouvir...
Homem: _ A gente pode querer, sim, Zaqueu!
Zaqueu: _ É história grande, engenhosa... Mas qualquer dia eu conto.
Sousa: _ Dia pode ser hoje.
O contador do causo fica silencioso, valorizando a sua história. Apanha
uma laranja e começa a descascá-la calmamente. Todos o observam e ele
espera mais um pouco, quer mais um pedido.
Homem: _ Vai! Desembucha logo, homem!
53
Satisfeito, Zaqueu sorri e devora um gomo da laranja.
Zaqueu: _ Então, vão escutando, pois o acontecido foi no Vale do Javé, no
povoado onde nasci e me criei. Foi quando caiu sobre ele a maior desgraça que
um povo pode viver pra ver...
A partir daí, entram em cena os narradores de Javé que contam a história
do acontecido em seu povoado. Tudo começou quando chegou a informação de
que uma hidrelétrica seria construída nas proximidades e que as águas do rio
represado inundariam o Vale do Javé. A notícia caiu como uma “bomba” na
cabeça de seus pacatos cidadãos, provocando a revolta de todos. Na busca de
uma solução para evitar esta tragédia, os moradores se reúnem na Igreja do
vilarejo. Vado (Rui Rezende) detalha a conversa que ele e Zaqueu, agora na
condição de habitante, tiveram com os engenheiros da construtora da barragem.
Em meio à discussão, Zaqueu lembra que no encontro com os engenheiros foi
dito que a única possibilidade de evitar a inundação do vilarejo seria provar que
Javé era um patrimônio histórico. Assim, tornava-se necessário preparar um
dossiê para comprovar a importância histórica do povoado. Era preciso, portanto,
escrever a gloriosa história do Vale do Javé. Mas, a escrita desta história deveria
ser científica ou, como explicou Zaqueu: _ Com sustança” de ciência! Porém,
todos se calaram, pois nenhum dos presentes seria capaz deste feito. Firmino
(Gero Camilo) propõe, então, chamar Antônio B. Sua idéia é imediatamente
rechaçada por todos, mas, após alguma discussão, acaba sendo aceita, pois,
somente Biá tinha condições de assumir a missão de produzir a tal “história
científica”. Biá era o carteiro de Javé de onde havia sido expulso depois da
descoberta de que ele escrevia cartas em nome dos moradores do lugar, sem
conhecimento deles e, ainda por cima, com conteúdos que os difamavam. Assim,
Biá movimentava a correspondência no posto dos Correios e mantinha o seu
emprego. Neste novo momento, diante da ameaça do povoado ficar submerso, a
solução foi apelar para o único que dominava, e muito bem, a leitura e a escrita.
Dessa forma, a escrita impõe-se aos moradores de Javé. Até então, a
escrita não fazia parte das necessidades da sossegada e rotineira vida de seus
moradores. A oralidade, predominante, passou a confrontar-se e, ao mesmo
tempo, encontrar-se, com as práticas da leitura e da escrita. O confronto se traduz
no fato de que a história apenas contada não servia para provar a importância de
54
Javé. Para ter validade, a história do povoado deveria estar escrita e, para
escrevê-la, seria preciso recorrer às memórias de seus moradores. Assim o filme
se desenvolve tendo como fio condutor a relação entre a escrita e a oralidade, ou
mais precisamente, entre o escriba oficial, Antonio Biá, e os narradores de Javé.
Diante da ameaça concreta de inundação de suas terras e sem
nenhuma documentação formal que comprove que elas lhes
pertencem, surge a necessidade de usar a escrita até então
rechaçada (rechaço evidenciado no filme pelo desprezo ao
morador que escrevia), a escrita, a ferramenta do Outro
revelador de uma outra cultura é requisitada como última chance
de manter suas as terras que foram ocupadas através de outras
migrações, em tempos ancestrais. (BERGAMASCHI, 2006).
Embora a narrativa fílmica evidencie que os habitantes de Javé são
analfabetos, três personagens encenam práticas da leitura no decorrer do filme:
além da mãe de Souza, um adulto que uma das cartas escritas por Biá quando
este ainda era funcionário do Correio e um garoto que faz a leitura de um bilhete
nas cenas finais. Desse modo, é possível afirmar que Javé não é formada apenas
por analfabetos absolutos, considerando como tais, segundo critérios
estabelecidos pelo IBGE (BRASIL, 2007c) “aqueles que declaram não saber ler e
escrever um bilhete simples no idioma que conhecem ou as que aprenderam a ler
e escrever, mas esqueceram ou as que apenas assinam o próprio nome.Pelo
menos três moradores de Javé são alfabetizados, mesmo apresentando
dificuldades em suas leituras. De qualquer forma, o filme enfatiza que somente
Antonio B domina plenamente a leitura e a escrita. Além de analfabetos, os
habitantes da fictícia Javé são representados como pessoas simples, que vivem
em casas humildes espalhadas por ruas empoeiradas. Estes cenários, salvo
algumas poucas modificações, são as próprias casas, ruas e praças do povoado
de Gameleira, cujos moradores participaram ativamente das filmagens. De fato,
eles se representam no filme. Assim, mais uma vez, esta produção
cinematográfica realizou uma simbiose entre a ficção e a realidade. Os figurantes
analfabetos de Gameleira representam os personagens analfabetos de Ja. E,
em ambos os casos, estes sujeitos situam-se socialmente como pertencentes às
camadas populares, que se configuram como “uma das categorizações existentes
ao nos referirmos à população pobre, aquela que vivencia o não-atendimento às
55
questões básicas de sobrevivência (saúde, trabalho, alimentação, educação)”
(GIOVANETTI, 2005, p. 244). Tanto os figurantes quanto os personagens estão
situados à margem das esferas socioeconômicas e educacionais. Galvão e Di
Pierro (2007, p. 16) afirmam que “a ampla maioria dos analfabetos é constituída
por pessoas oriundas do campo, de municípios de pequeno porte, nascidas em
famílias numerosas e muito pobres”. As autoras confirmam que, embora exista
uma rica diversidade cultural na sociedade brasileira, as trajetórias de vida entre
os analfabetos são relativamente homogêneas. No meio urbano, onde as
habilidades da leitura, escrita e cálculo passam a ser requeridas, estes sujeitos
que chegam do campo com nenhuma ou pouca escolarização se sentem, como
explicam Galvão e Di Pierro (2007, p. 20), “especialmente constrangidos com os
rótulos pejorativos e a desqualificação simbólica que a sociedade lhes impõe”. Em
ambientes onde predomina a cultura letrada, muitos introjetam sentimentos de
inferioridade e passam a viver com baixa auto-estima.
[Para muitos deles] o analfabetismo não é percebido como
expressão de processos de exclusão social ou como violação de
direitos coletivos, e sim como uma experiência individual de
desvio ou fracasso, que provoca repetidas situações de
discriminação e humilhação, vividas com grande sofrimento e, por
vezes, acompanhadas de culpa e de vergonha. (GALVÃO; DI
PIERRO, 2007, p. 15).
Os preconceitos difundidos por meio de diferentes discursos veiculados de
diversos modos, incluindo pelos meios de comunicação social e até mesmo
encontrados em ambientes escolares, relacionam o analfabetismo à ‘escuridão’
da ‘cegueira, o analfabeto ao ‘cego’, e a alfabetização à redentora ‘retirada da
venda dos olhos’ e saída das ‘trevas da ignorância’”. (GALVÃO; DI PIERRO,
2007, p. 24). Mas, nem todos os analfabetos internalizam preconceitos. No filme,
a mãe de Sousa, por exemplo, ignora a ironia do filho. Os demais personagens,
embora humilhados em algumas passagens pelo escriba” Antonio B,
aparentemente não se sentem diminuídos e alguns até o enfrentam verbalmente.
No decorrer do filme, cinco depoimentos o ouvidos por Biá. O primeiro
narrador, Vicentino (Nelson Dantas), introduz o mito fundador do povoado: a
história de Indalécio, o herói que conduziu seu povo ao Vale do Javé. Ele conta
que primeiros habitantes do local vieram de uma região onde havia ouro e de
56
foram expulsos pela Coroa portuguesa. Depois de muito caminharem sob a
corajosa liderança de Indalécio, encontraram as terras onde fundaram Javé. Para
Deodora (Luci Pereira) a grande heroína é Maria Dina, que assumiu o comando
da retirada, pois Indalécio havia morrido no caminho. Durante a sua narração, em
meio às rias interferências dos presentes, Vado toma a palavra explica a todos
que eles saíram em retirada, olhando o inimigo de frente, e não como fugitivos
derrotados. na versão de Pai Cariá (BeSilva), líder de uma comunidade
quilombola, o herói principal é negro, chama-se Indaléu e guiou seu povo até o
Vale do Javé, que ele entende ser uma porção da África. Nesta narração, feita em
iorubá, dialeto do povo Nagô, e que é traduzida para Biá por Samuel (Maurício
Tizumba) fica evidente, como explica Kanashiro (2004), “a oralidade da memória,
pois Pai Cariá canta a história em seu dialeto africano, quase num êxtase
profético, que nos remete tanto aos gregos como aos xamãs.”
Outro exemplo desta oralidade é forma como a posse da terra é legitimada,
ou seja, é pelo canto que se estabelecem as fronteiras do território ocupado. São
as “divisas cantadas” como fez Maria Dina, segundo o relato de Deodora:
apontando para o sul a heroína diz: _ Do rumo do cruzeiro do céu até onde a vista
alcança, de ser terra nossa. Voltando-se para o lado oposto canta: _ Neste
contrário de rumo, até onde um homem possa andar um dia inteiro de marcha,
de ser terra nossa. Tomando a direção leste, afirma: _ onde o sol nasce, a
terra vai ser defendida como nossa. E dirigindo-se para a direção contrária
conclui: _ Nesse rumo onde acaba o vale. Isso é Javé. Aqui fazemos parada, aqui
curamos nossos feridos. Aqui enterraremos nossos mortos! O canto, e não um
documento escrito, é que garante o direito da posse da terra.
Direito ancestral dos povos americanos, direito que é
continuamente usurpado por outra forma de relação com a terra
introduzida nesse continente pelos europeus desde os primórdios
da colonização. Desde então ocorrem contínuas migrações como
a mostrada pelo filme e forjam uma legião infinita de sem-terras. A
terra, cujos limites eram cantados, porque, como organismo vivo
escuta e sente, respondendo aos anseios da vida das pessoas
que a cultivam e que nela habitam com reverência. Transformada
em propriedade porque entra em cena outra concepção de mundo
e outra forma de ocupação: a exploração da terra, o lucro, o bem
da maioria em detrimento dos “tantos” que perdem a terra e
pedaços de vida. (BERGAMASCHI, 2006).
57
O direito de permanecer em suas terras, cujas divisas foram cantadas
pelos seus antepassados, dependia da elaboração de um dossiê que fosse capaz
de convencer as autoridades de que aquele lugarejo é um patrimônio. E para os
seus habitantes, em sua maioria, analfabetos, o patrimônio de Javé é a sua
história. Ao historiador” Antonio Biá foi delegado o poder de escrever
cientificamente a “verdadeira” história de Javé. E como afirma Le Goff (1984, p.
13) tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes
preocupações das classes, dos grupos ou dos indivíduos que dominaram e
dominam as sociedades históricas.” Biá tem o poder de decidir sobre quais fatos
narrados pelos moradores devem ser lembrados ou esquecidos. Neste processo,
ao recorrer às suas fontes históricas, revela-se a Biá a complexa construção da
memória coletiva, que o confunde. Biá ouve as histórias, mas não as transcreve.
Frente aos relatos ri, faz chacota, fica sério, pensa, reinterpreta, mas nada faz.
Quando questionado, já pelo primeiro narrador, do por queo escreve, B
justifica-se dizendo: _ Uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito.
A memória, matéria prima da história é, como esta, produzida num
campo de poder, evidenciados no filme por uma disputa para
registrar lembranças de pessoas e famílias de maior prestígio. [...]
História e memória são construções e ocorrem num campo de
disputas como bem mostra o filme, em que cada família, cada
morador tem a sua versão, constrói um passado para Javé, a
partir de seus interesses pessoais e familiares. Vemos também os
jogos de sedução de Biá, encarregado dos registros e que usa o
poder da escrita para “tirar vantagem” em relação as pessoas que
escolhe para registrar as narrativas. (BERGAMASCHI, 2006).
A missão atribuída a Biá o remete à historiografia que se autonomeia
científica, de caráter positivista. Mas, a sua prática contraria esta concepção e o
filme segundo Teixeira e Prado (2007), acaba por fazer “uma crítica fina e sutil à
ilusão cientificista de uma ciência livre de interesses, exata e verdadeira”.
A sua abordagem historiográfica reconhece que os relatos tanto
do passado quanto do presente, tanto lembram quanto esquecem,
tanto desvelam e apuram, quanto velam e (re)inventam,
interpretam e reinterpretam. Um relato de um morador poderia,
portanto, coincidir com o de outro, descrevendo os mesmos fatos,
sendo-lhes fiel, como é dito geralmente, mas poderia, também,
não coincidir, sendo recriado, reinventado ou mesmo floreado,
como Biá dizia. [...] A construção da escrita da história de Javé vai
58
assim, interrogando e desmistificando a forma como são
construídas algumas ditas verdades históricas. (TEIXEIRA;
PRADO, 2007).
No filme, a memória se apresenta “não como algo guardado em uma ‘caixa
secreta’, em um baú, como costumamos dizer e que, em algum momento, é
resgatada” (BERGAMASCHI, 2006). Ela é um trabalho de criação realizado
socialmente no presente, de forma dinâmica. Segundo Halbwachs (1990, p. 85) “a
memória social é fundamental para a construção da identidade do grupo, mesmo
porque parte de experiências comuns, em um processo definido como adesão
afetiva”. Para este autor, existem três tipos de memória: a individual, mas em
estreita relação com o outro; a coletiva, construída por determinados grupos, e a
social, pertencente a toda sociedade e que sofre influência dos grupos. A
memória é um elemento essencial, de acordo com Le Goff (1984, p. 46) do que se
“costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das
atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na
angústia”. A disputa entre os narradores de Javé pela memória demonstra que:
[...] a memória coletiva é não somente uma conquista, é também
um instrumento e um objeto de poder. São as sociedades cuja
memória social é sobretudo oral ou que estão em vias de
constituir uma memória coletiva escrita, que melhor permitem
compreender esta luta pela dominação da recordação e da
tradição, esta manifestação da memória (LE GOFF, 1984, p. 46).
Na busca das origens de Javé, aparecem múltiplos elementos da memória
individual e coletiva, como por exemplo, a história dos gêmeos, presente nos
mitos de origem dos povos indígenas brasileiros. Como explica Bergamaschi
(2006, p. 1), no mito de origem do povo Guarani existem meos, que são
gerados cada um com um pai,” assim como os gêmeos do filme. Gêmeo (Orlando
Vieira) e O Outro (Roger Avanzi) não se entendem e a razão da discórdia
começou no dia do casamento de seus pais. A mãe de ambos, Margarida, havia
se casado com Cosme, que tinha um irmão meo, Damião. Na festa de
casamento, todos beberam muito e, na manhã seguinte à noite de núpcias,
Margarida acordou em meio à Cosme e Damião. Ela nunca soube de fato quem
era o pai de seus filhos. meo acredita que O Outro não é filho de Cosme e sim
de Damião e, sendo assim, não tem não tem direito à herança de Cosme, que
59
permaneceu casado com Margarida. O Outro refuta ser filho de Damião e
reivindica o direito às terras. Neste momento, em que está em pauta a elaboração
de dossiê, a disputa entre os meos fica mais acirrada, pois, segundo eles, são
nas terras da família que estão enterrados os restos mortais de Indalécio.
O único narrador que não faz referência ao mito fundador de Javé, ou seja,
à Indalécio, é Daniel (Alessandro Azevedo). Ele prefere que no dossiê sejam
escritas algumas linhas sobre seu pai, homem corajoso e respeitado no vilarejo,
mas que ficou ruim da cabeça quando Santinha, sua mulher, o abandonou. Daniel
mostra a Biá o quarto do pai, mantido intacto desde a sua morte. E como a
proteger este lugar da memória, seu pequeno museu, Daniel diz a B que sai
dali morto. E é ele quem enfrenta de revólver em punho Galdério (Altair Lima) o
“segurança” da equipe de agrimensores que chega ao povoado para iniciar as
medições do local. Durante à noite, na praça da cidade, os moradores, em
rodinhas de conversas, reclamam da situação por eles vivida. Um dos membros
da equipe da construtora começa a gravar com sua mera digital algumas falas
que vão se avolumando, tomando corpo de protesto. Em meio às gravações
ouve-se um tiro, disparado por Daniel que, imediatamente, é enfrentado por
Galdério, também armado. Alguns presentes intervêm e acalmam os ânimos de
ambos. Neste episódio, observa-se que Daniel optou pela via do enfrentamento
direto e violento para evitar a construção da represa, desacreditando, assim, da
escrita da história de Javé como caminho para salvar o povoado. Galdério
havia desdenhado do dossiê em encontro anterior, no armazém, quando, ao
exaltar a presença dos engenheiros como gente a serviço do progresso, disse à
Biá que prezava muito o seu trabalho, porque era para escrever a história de um
lugar que não iria existir mais.
No dia seguinte, o badalar dos sinos da igreja chama a atenção de todos,
que para lá correm e se deparam com Cirilo (Henrique Lisboa) manejando a corda
que movimenta os sinos. Firmino conta que Cirilo vivia com as pedras na gruta da
onça e é considerado louco. Ele se agita frente aos que o cercam e tenta dizer
algo, mas a voz não lhe sai. Biá o acalma e, mais uma vez, balbucia algumas
palavras até que, profeticamente, anuncia que as águas vão chegar e inundar
tudo, como um rio, como um mar. Os moradores ficam assustados, fazem sinal da
cruz e o chamam de herege. Em meio ao burburinho, Zaqueu aparece e tenta por
60
ordem no ambiente. Com a situação controlada, ele exige de Biá o livro da
salvação. Este pede para entregar o dossiê pronto mais tarde, no armazém.
Passado o tempo, um garoto, a pedido de Biá, entrega a Zaqueu o livro que, para
espanto de todos, estava em branco. Junto, havia um bilhete para Zaqueu que é
lido pelo garoto e pelo qual Biá justifica-se dizendo: _ Quanto às histórias tais,
melhor ficar na boca do povo, porque no papel não mão que lhe razão... Biá
não conseguiu escrever a “grandiosa” história de Javé.
Halbwachs (1990, p. 80) afirma que geralmente a história somente começa
quando se apaga ou se decompõe a memória social.
Quando a memória de uma sequência de acontecimentos não tem
mais por suporte um grupo, aquele mesmo em que esteve
engajada ou que dela suportou as consequências, que lhe assistiu
ou dela recebeu um relato vivo dos primeiros atores e
espectadores, quando ela se dispersa sobre alguns espíritos
individuais, perdidos em novas sociedades para as quais estes
fatos não interessam mais porque lhes são decididamente
exteriores, então o único meio de salvar tais lembranças, é fixá-las
por escrito em uma narrativa seguida uma vez que as palavras e
os pensamentos morrem, mas os escritos permanecem.
(HALBWACHS, 1990, p. 80)
Biá, confuso, em meio a relatos tão diversos e conflituosos, não produziu a
escrita da história que poderia eternizar as lembranças sobre as origens de Ja
extraídas da memória individual e coletiva de seus narradores. Diante do
fracasso, ele foge. É encontrado, insultado e, mais uma vez, condenado ao
ostracismo pela comunidade. Biá sai de costas, não como um fugitivo, mas como
um retirante, aquele que, segundo Vado: _Vai saindo de marcha ré, devagarinho,
mas com a cara voltada de frente pro inimigo. Kanashiro (2004) relaciona a
atitude de Biá ao "anjo da história" de Walter Benjamin
35
(1892-1940).
Existe um quadro de Klee que se chama Angelus Novus.
Representa um anjo que parece querer afastar-se do local em que
se mantém imóvel. Os seus olhos estão escancarados, a boca está
aberta, as asas desfraldadas. Tal é o aspecto que necessariamente
deve ter o anjo da história. O seu rosto es voltado para o
passado. Ali onde para nós parece haver uma cadeia de
acontecimentos, ele apenas uma única e catástrofe, que não
35
Crítico literário, filósofo e sociólogo, o judeu alemão Walter Benjamim escreveu, entre outras obras “A
obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica” (1936) e Teses Sobre o Conceito de História (1940).
61
para de amontoar ruínas sobre ruínas e as lança sobre seus pés.
Ele quereria ficar, despertar os mortos e reunir os vencidos. Mas,
do Paraíso sopra uma tempestade que se apodera de suas asas, e
é tão forte que o anjo não é capaz de voltar a fechá-las. Esta
tempestade impele-o incessantemente para o futuro ao qual volta
as costas, enquanto diante dele e até ao céu se acumulam ruínas.
Esta tempestade é aquilo a que nós chamamos o progresso.
(BENJAMIN, 1992, p. 162).
Biá, como um retirante, caminha para o futuro de costas, olhando para o
passado que será “destruído irremediavelmente pelo futuro, pelo progresso, pela
hidretrica. E esta, ‘responsável’ pela transformação do sertão em mar, afogará a
memória, a cultura local e os antepassados. (KANASHIRO, 2004). E as águas
chegaram! Como conta Zaqueu aos ouvintes do bar: _ As águas subiram ligeiro.
Mas teve gente que teimou até o fim. Espremidos no da represa, olhavam sem
crer no que os olhos iam vendo. Quando todos começavam a se preparar para a
nova retirada, sem esquecer o sino da Igreja, símbolo sempre presente nos
relatos das aventuras de Indalécio, eis que emerge a figura solitária de Antonio
Biá que, alheio a todos, chora. Enquanto o grupo começa a seguir viagem. B
senta-se em um bote ancorado, retira o livro em branco que a ele havia sido
devolvido e começa a escrever. Vado e Firmino se aproximam e questionam Biá,
que diz: _ Não esqueci de vocês, não. Vou escrever um ‘pouquitinho’ de vocês,
mas na primeira parte, pois agora vocês não estão fazendo nada! Vado fica
indignado e diz que ele, sozinho, pegou a sino da Igreja. Firmino contesta a
versão de Vado. Deodora e outros se aproximam e recomeçam as discussões.
Mais uma vez, tem início as disputas pela memória de Javé.
No processo de reformulações historiográficas promovido pela História
Cultural, nas décadas de 1960-70, o conceito de sujeito histórico foi ampliado. Se
antes eram considerados como sujeitos que faziam a História apenas os grandes
líderes políticos e estadistas heroicizados, neste novo contexto, a História passou
a ser construída tamm por anônimos homens e mulheres com suas atividades,
pensamentos e sentimentos cotidianos. Assim, todos agentes sociais, incluindo os
analfabetos, foram considerados como sujeitos da História. Biá demonstrou ao
longo do filme que escrever a história heróica de Indalécio o fazia sentido para
ele, tanto que não conseguiu produzir o dossiê. Porém, ao testemunhar o
envolvimento dos habitantes de Javé num movimento coletivo para salvar o
62
povoado, Biá começou a escrever. O movimento social realizado em torno da
elaboração do dossiê teve a participação ativa dos humildes moradores, os
sujeitos da História da resistência de Javé. Nesta perspectiva, a escrita da história
passou a ter sentido para Biá.
Como observado, Narradores de Javé (2003) abre um amplo leque de
possibilidades de interpretações e debates temáticos. Por isso, retomando o filme
no seu começo e dialogando mais uma vez com a personagem mãe de Sousa,
ainda é possível ponderar que esta senhora, além de representar a pessoa
analfabeta, é tamm representativa dos milhares de idosos que formam o
contingente de alfabetizandos das salas de aulas das escolas da EJA que ofertam
o ensino Fundamental, fase l, equivalente à educação básica de à séries do
ensino regular. Afinal, por estar praticando a leitura supõe-se que algum processo
de alfabetização esteja em curso e a tenha envolvido. Nesta mesma linha de
raciocínio e estabelecendo um paralelo comparativo entre os demais personagens
que não são analfabetos absolutos e os educandos da EJA, é factível afirmar que
os personagens da fictícia Javé, interpretados, em grande parte, por pessoas
reais de Gameleira da Lapa, representam, com muita propriedade, os sujeitos
sociais e culturais matriculados nas escolas de educação de jovens, adultos e
idosos, particularmente no nível de ensino Fundamental, fase II, correspondente
ao período de à séries, e tamm no ensino Médio, especialmente no que
se refere ao pertencimento social e trajetórias de vida. Ao observar os
personagens do filme e os sujeitos da EJA verificam-se semelhanças entre eles.
Se observarmos os tipos humanos que neles estão, no vilarejo de
Javé e nos tempos e espaços da EJA, vê-se que eles se
assemelham. Uns e outros, jovens e adultos, alunos da EJA e
moradores e moradoras de Javé são brasileiros e brasileiras, em
sua maior parte, de origem popular. Entre os moradores de Javé e
os educandos de EJA, não vamos encontrar as elites. A condição
social destes dois grupos é próxima ou semelhante. Neles estão
mulheres e homens, donas de casa, trabalhadoras e trabalhadores,
que não puderam freqüentar escolas quando garotos e garotas por
várias razões. Entre as quais, porque ainda crianças foram
obrigadas a trabalhar, assumindo responsabilidades de adultos.
Foram excluídos da escola, dos livros, das letras. (TEIXEIRA
PRADO, 2007).
63
Os resultados obtidos por meio de uma pesquisa
36
realizada em uma
escola da EJA, no CEEBJA/UEL Centro Estadual de Educação Básica para
Jovens e Adultos da Universidade Estadual de Londrina, que teve como objeto de
estudo textos produzidos por educandos jovens e adultos sobre as suas histórias
de vida, tanto do ensino Fundamental II quanto do Médio, revelou significativas
semelhanças em suas vivências. Os relatos mostraram que a imensa maioria
destes educandos foi inserida no mundo do trabalho desde criança e em alguma
atividade no campo, onde seus pais ou avós trabalhavam como assalariados ou
parceiros em sítios e fazendas ou ainda como pequenos proprietários. Mais tarde,
quando adolescentes, jovens e ou já como adultos, migraram com suas famílias
para as periferias das cidades, onde passaram a viver com dificuldade. Assim, as
narrativas expuseram experiências parecidas destes educandos no processo de
exclusão social, expressados pela ausência de acesso à moradia, às
oportunidades de trabalho, à educação e a outros bens culturais e sociais.
Estas falas são corroboradas em documentos oficiais produzidos no campo
das políticas públicas para a área educacional, como o Parecer CNE/CEB
11/2000 que, ao tratar do perfil dos educandos da EJA, afirma serem estes
“adultos ou jovens adultos, via de regra, mais pobres e com vida escolar mais
acidentada.” (BRASIL, 2000, p. 47). Assim também, o texto das Diretrizes
Curriculares para Educação de Jovens e Adultos do Estado do Paraná aponta
que para compreender o perfil do educando da EJA é preciso conhecer a sua
história, cultura e costumes, “entendendo-o como um sujeito com diferentes
experiências de vida e que em algum momento afastou-se da escola devido a
fatores sociais, econômicos, políticos e/ou culturais.” (PARANÁ, 2006b, p. 29).
Enfim, Narradores de Javé (2003), de forma criativa, engraçada e com
simplicidade apresenta uma considerável gama de questões que podem ser
analisadas de vários planos, incluindo, o que interessa neste trabalho, as
representações nele expressadas sobre o analfabeto. Neste ponto, o filme
aproxima-se das concepções mais atualizadas sobre o analfabeto encontradas
nos debates de movimentos educacionais, em documentos oficiais que definem
36
A pesquisa intitulada Sujeitos da EJA análise de histórias de vida de educandos de uma escola da
educação de jovens e adultos (2008) foi realizada pelo autor desta dissertação para obtenção de aprovação
parcial ao curso de especialização em EJA – Educação de Jovens e Adultos da UEL – Universidade Estadual
de Londrina, sob orientação da Profª. Ms. Maria das Graças Ferreira.
64
políticas públicas e nas falas de educadores da EJA. Mas que concepções são
estas que fundamentam tais discursos? Como elas foram construídas
historicamente? Para responder a estas questões é indispensável compreender o
debate historiográfico, pelo menos em parte, das concepções acerca do
analfabeto e de seu oposto, o alfabetizado, construídas historicamente, passando
pela compreensão da relação analfabetismo/alfabetismo, e ainda, pelo estudo da
trajetória histórica dos processos de escolarização de jovens e adultos no Brasil.
65
3. O CINEMA E A EDUCAÇÃO
Como foi possível observar na análise dos filmes Jeca Tatu (1959) e
Narradores de Javé (2003), a educação e o cinema podem manter estreitas
relações. Em várias partes do mundo, o cinema tem falado da educação por meio
de filmes que trazem para as telas problemas e dilemas escolares e educacionais.
Por sua vez, a educação utiliza-se de filmes em diferentes contextos escolares e
práticas pedagógicas. Variados aspectos da interface educação e cinema m se
constituído em objetos de estudo de pesquisadores tanto da educação quanto da
comunicação em todo o mundo. Em muitos destes estudos, como se pretendeu
aqui, o cinema ganha densidade como fonte de pesquisa, pois, “por estar
relacionado à vida das pessoas e por retratar a vida nos seus múltiplos aspectos,
é que o cinema se tornou fonte de inesgotáveis pesquisas e indicação para todas
as áreas de conhecimento, inclusive a educacional”. (NEVES, 1997, p. 224).
Nesta perspectiva, desenvolvem-se estudos que visam investigar o papel
social do cinema e que reconhecem os filmes como bens fundamentais para a
educação, equiparando-os aos livros no processo ensino/aprendizagem. Ver
filmes, como explica Duarte (2002, p. 17), “é uma prática social tão importante, do
ponto de vista da formação cultural e educacional das pessoas, quanto a leitura
de obras literárias, filosóficas, sociológicas e tantas mais”. O cinema, assim como
a educação, difunde padrões éticos e valores morais, produz conhecimentos e
constitui-se também em espaço de sociabilidade entre os espectadores. E aqui
podemos entender a socialização como um processo pelo qual o sujeito tem
participação ativa, interfere nas condições em que ela acontece e modifica o
mundo social, contrapondo-se à concepção positivista que entende socialização
como a aceitação pelo indivíduo de normas, valores e regras sempre
preexistentes a ele próprio. Em sociedades nas quais os audiovisuais estão cada
vez mais presentes, ir ao cinema, dominar a linguagem cinematográfica, tem se
tornado um requisito fundamental para a socialização enquanto processo em que
as pessoas são, ao mesmo tempo, sujeitos e produtos da interação social.
Contudo, apenas ver filmes não basta para que esta socialização seja
efetivada, pois como explica Duarte (2002):
66
[...] de acordo com o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1979), a
experiência das pessoas com o cinema contribui para desenvolver
o que se pode chamar de “competência para ver”, isto é, uma
certa disposição, valorizada socialmente, para analisar,
compreender e apreciar qualquer história contada em linguagem
cinematográfica. Entretanto, o autor assinala que essa
"competência" não é adquirida apenas vendo filmes; a atmosfera
cultural em que as pessoas estão imersas - que inclui, além da
experiência escolar, o grau de afinidade que elas mantêm com as
artes e a mídia - é o que lhes permite desenvolver determinadas
maneiras de lidar com os produtos culturais, incluindo o cinema.
(DUARTE, 2002, p.13).
Assistir filmes, portanto, desenvolve a competência para ver, mas a
atmosfera cultural em que as pessoas estão imersas influencia diferentes
perspectivas de olhares e interações com o cinema. Ao assistir um filme, o
espectador articula informações e saberes de sua experiência de vida, de sua
visão de mundo, com as informações e saberes contidos na obra cinematográfica.
E esta interação cultural contribui para a formação das mentalidades em
sociedades nas quais se produz e consome cinema.
Muito da percepção que temos da história da humanidade talvez
esteja irremediavelmente marcada pelo contato que
temos/tivemos com as imagens cinematográficas. [...] Se isso é
verdadeiro no que diz respeito à História, mais ainda no que se
refere aos aspectos mais subjetivos da vida social, esses muito
mais permeáveis ao contato com as diferentes formas de
expressão artística. Certamente muitas das concepções
veiculadas em nossa cultura acerca do amor romântico, da
fidelidade conjugal, da sexualidade ou do ideal de família têm
como referência significações que emergem das relações
construídas entre espectadores e filmes. (DUARTE, 2002, p. 19).
O cinema participa da história não como técnica, mas também como
arte e ideologia. “Ele cria ficção e realidades históricas e produz memória.”
(TEIXEIRA; LOPES, 2003, p. 10). Nesta perspectiva, o objetivo deste capítulo é
analisar o cinema como uma prática cultural de representação da vida, capaz de
recriar simbolicamente experiências de vida, como é o caso de Narradores de
Javé (2003), ou de contribuir, mesmo que não intencionalmente, para dissimular
realidades e consolidar na memória social estereótipos e preconceitos, como faz
Jeca Tatu (1959).
67
3.1 O CINEMA COMO PRÁTICA CULTURAL DE REPRESENTAÇÃO DA VIDA
Em muitos estudos sobre o cinema, é recorrente encontrar o registro do dia
28 de dezembro de 1895 como a data de nascimento
37
da arte cinematográfica.
Neste dia, os irmãos Auguste Lumière (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948)
projetaram no Salon Indien do Grand Café de Paris, uma coleção de filmes de
curtíssima duração, sem som, filmados com a câmera fixa e em preto e branco.
Um deles assustou o público: a chegada de um trem na estação. Na cena, a
locomotiva vinha de longe e enchia a tela, como se fosse projetar sobre a platéia.
O público levou um susto, de tão real que locomotiva parecia.
Todas essas pessoas tinham, com certeza, viajado ou visto um
trem, a novidade não consistia em ver um trem em movimento. [...]
A imagem na tela era em preto e branco e não fazia ruídos,
portanto não podia haver dúvida, não se tratava de um trem de
verdade. podia ser uma ilusão. É aí que residia a novidade: na
ilusão. Ver o trem na tela como se fosse verdadeiro. Parece tão
verdadeiro embora a gente saiba que é de mentira que dá
para fazer de conta, enquanto dura o filme, que é de verdade. Um
pouco como no sonho: o que a gente e faz num sonho não é
real, mas isso sabemos depois, quando acordamos. Enquanto
dura o sonho pensamos que é verdade. Essa ilusão de verdade,
que se chama impressão de realidade, foi provavelmente a base
do grande sucesso do cinema. (BERNARDET, 1980, p. 12).
No final da exibição, um homem de teatro que trabalhava com mágicas,
Georges Méliès (1861-1938), quis adquirir um aparelho como o usado na
projeção dos filmes, mas foi desencorajado pelos irmãos Lumière sob o
argumento de que, como relata Bernardet (1980, p. 11), “cinematógrapho não
tinha o menor futuro como espetáculo, era um instrumento científico para produzir
o movimento e poderia servir para a pesquisa”. Para ele, mesmo que o blico
se divertisse no início, logo se cansaria da invenção. A história do cinema não
corroborou com este pensamento e a “estranha máquina de austeros cientistas
virou uma máquina de contar estórias para enormes platéias, de geração em
geração” (BERNARDET, 1980, p. 11).
37
Esta data deve ser considerada como simbólica, pois estudiosos do cinema revelam a existência de
experiências anteriores à sessão dos Lumiére, como é o caso das projeções públicas realizadas pelos irmãos
Max e Emile Skladanowsky na Alemanha e por Jean Acme Le Roy nos Estados Unidos, conforme afirma
Arlindo Machado na apresentação do livro O Primeiro Cinema de Flávia Cesarino Costa (1995).
68
Nos seus primórdios, o cinema conquistou público em meio a outras formas
de diversão populares como o circo, os espetáculos de magia e de aberrações.
De 1895 a 1906-8 temos um cinema estruturado em um ou mais
planos autônomos, arranjados como números de variedades,
consumido em performances onde os exibidores têm grande
participação na ordenação dos filmes e no acompanhamento
sonoro, um cinema cujos eventuais atores utilizam uma
gestualidade afetada e exagerada (proveniente do melodrama),
muitas vezes se dirigindo ao espectador. É um cinema dominado
por uma forte tendência ao espetáculo e uma fraca tendência à
narração. O nosso primeiro cinema (COSTA, 1995, p. 67).
Embora a periodização deste “primeiro cinema” seja também objeto de
discussão, em geral, como explica Costa (1995, p. 66), três fases são apontadas
como marcos na formação do modo de representação fílmica. A primeira refere-
se ao tempo no qual o filme era realizado num único plano, era apenas filmagem.
A segunda foi quando a filmagem passou a ser feita em vários planos não
contínuos para depois ser montado, embora não fosse realizada pensando na
montagem. Por fim, a terceira fase, caracterizada pela realização da filmagem em
função da montagem.
A partir desta última fase do “primeiro cinema”, os filmes passaram a ser
estruturados para contar estórias e inserir o espectador num mundo imaginário,
utilizando, para tanto, encadeamentos de planos diferentes e variados recursos
de filmagens como panorâmicas, travelings, closes up e outros. O filme narrativo
passou a ser construído com tempos e espaços homogêneos, tornando invisível o
processo de sua própria produção, atendendo assim as exigências de um
mercado que começava a se formar em torno da atividade cinematográfica.
[Nesta fase,] uma pressão pela narrativização, provocada por
vários fatores, entre eles o aumento da lucratividade do cinema, a
organização da atividade cinematográfica (tanto de produção
quanto de exibição) em moldes industriais, a inclusão de novas
faixas de público, a tendência à moralização tanto dos temas
tratados pelos filmes quanto dos ambientes de exibão, e a
tentativa de adaptação de obras da cultura burguesa clássica e
respeitável à linguagem do cinema (COSTA, 1995, p.68).
69
O cinema narrativo, consolidado por volta de 1913, uniu a máquina, a
técnica e a arte para realizar o sonho de representar a realidade de uma forma
objetiva, aparentemente sem interferência humana.
Um poema, sabe-se que foi escrito por alguém, uma música,
composta, tocada por alguém. Até uma paisagem ou um retrato,
por mais “fiel” que seja ao modelo, a mão do pintor que coloca
seus gostos, sua preferência por certas cores, sua simpatia ou
antipatia pela pessoa que ele pinta. Agora, o “olho mecânico”,
como alguns chamaram o cinema, ele não. Ele não sofre a
intervenção da mão do pintor ou da palavra do poeta. A mecânica
elimina a intervenção e assegura a objetividade. Portanto, sem
intervenção, sem deformações, o cinema coloca na tela pedaços
de realidade, coloca na tela a própria realidade. É, pelo menos, a
interpretação do cinema que se tenta impor (BERNARDET, 1980,
p. 16).
Embora o cinema, ou mais especificamente, o filme, procure reproduzir o
movimento da vida, trata-se apenas de uma ilusão, uma impressão da realidade.
Afirmar que o cinema é a própria realidade na tela é dizer que a realidade se
expressa sozinha.
A história do cinema é em grande parte a luta constante para
manter ocultos os aspectos artificiais do cinema e para sustentar a
impressão da realidade. O cinema como toda área cultural, é um
campo de luta, e a história do cinema é também esforço constante
para denunciar este ocultamento e fazer aparecer quem fala.
(BERNARDET, 1980, p. 20).
Discussões sobre o cinema como expressão da realidade ocorrem desde
os momentos iniciais de sua história. Segundo Kornis (1992, p. 240), um
precursor desta idéia foi Boleslas Matuszewski que trabalhou com os irmãos
Lumière e para quem “o cinematógrafo o talvez a história integral, mas pelo
menos o que fornece é incontestável e de uma verdade absoluta”. Cabe ponderar
que o cinema nasceu no final do século XIX, quando muitos pensadores
postulavam a verdade histórica sob influência do positivismo e da História
metódica caracterizada, em linhas gerais, por uma racionalidade histórica
orientada pela linearidade dos fatos e pelo uso restrito dos documentos oficiais
como fonte. Embora o uso do filme como fonte de pesquisa histórica não fosse
sequer cogitado, é possível pensar que, neste contexto, a fala de Matuszewski e
outras cooperaram para atribuir valor de verdade às imagens cinematográficas.
70
Ao longo do século XX, com o advento das imagens televisivas, a valorização da
imagem como expressão do real ganhou força e está presente com vigor, ainda
hoje, na era das mídias digitais.
Entretanto, a partir das décadas de 1960-70, com o processo de renovação
historiográfica, já iniciado em 1929 quando Lucien Febvre (1878-1956) e Marc
Bloch (1886-1944) fundaram na França a revista Annales: économies, societés,
civilisations, foram reformulados conceitos e métodos da História e o ofício do
historiador passou a ser repensado diante de novos objetos, novas metodologias
e novas fontes à luz da Nova História Cultural ou, simplesmente, História Cultural.
Neste processo, o debate sobre a dimensão de realidade do filme ganhou novos
contornos e outros temas foram incorporados à discussão, entre os quais o valor
do filme como documento histórico.
As concepções sustentadas pela iias que atribuíam valor de realidade ao
filme foram dando lugar às que passaram a denotar a consciência da existência
de intencionalidades na criação e produção de obras cinematográficas. Nesta
perspectiva, o filme passou a ser valorizado para o conhecimento da sociedade
quando suas imagens o analisadas para além de sua intencionalidade. Marc
Ferro, um dos teóricos referenciais desta nova visão historiográfica e responsável
pela elevação do cinema à categoria de “novo objeto”, afirmava que “deve-se
partir da imagem, das imagens. Não buscar nelas somente ilustração,
confirmação ou desmentido do outro saber que é o da tradição escrita(FERRO,
1992, p. 86). Assim, é possível identificar nos filmes elementos que ajudam a
compreender a sociedade para além das representações operadas por aqueles
que os produziram. Neste debate historiográfico,
[...] os historiadores recolocaram em seu lugar legítimo as
fontes de origem popular, primeiro as escritas, depois as não-
escritas, o folclore, as artes e as tradições populares. Resta agora
estudar o filme, associá-lo com o mundo que o produz. Qual é a
hipótese? Que o filme, imagem ou não da realidade, documento
ou ficção, intriga autêntica ou pura invenção, é História. E qual o
postulado? Que aquilo que não aconteceu (e porque não aquilo
que aconteceu?), as crenças, as intenções, o imaginário do
homem, são tão História quanto a História. (FERRO, 1992, p. 86).
Segundo o autor, o filme não deve ser considerado em seu ponto de vista
sociológico, estético ou como obra de arte, “mas sim como um produto, uma
71
imagem-objeto, cujas significações não são somente cinematográficas” (FERRO,
1992, p.87). Um filme pode ser estudado tanto em sua totalidade quanto em
trechos, planos, temas, mas a sua análise deve abranger o mundo que rodeia a
sua produção e que com ela se comunica.
Nestas condições, não seria suficiente empreender a análise de
filmes, de trechos de filmes, de planos, de temas, levando em
conta, segundo a necessidade, o saber e a abordagem das
diferentes ciências humanas. É preciso aplicar esses métodos a
cada um dos substratos; analisar no filme tanto a narrativa quanto
o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é
filme: o autor, a produção o público, a crítica, o regime de
governo. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da
obra, mas também da realidade que ela representa. (FERRO,
1992, p. 87).
Marc Ferro (1992) discute o cinema e sua relação com a História,
procurando demonstrar que todo filme tem sua própria história e que todo o filme
com temática histórica é uma representação simbólica da História. Suas idéias
vão ao encontro das concepções de representação da História Cultural,
especificamente as formuladas por Roger Chartier, que propôs uma nova forma
interrogar a realidade, evidenciando o papel das representações, tomando por
base temas do domínio da cultura. Chartier se contrapôs aos historiadores que
buscavam uma forma de saber controlado, apoiado somente sobre técnicas de
investigação, medidas estatísticas, conceitos teóricos, entre outras. A História
Cultural passou a buscar novos objetos de estudo em práticas culturais que o
se organizam apenas segundo divisões de classes, mas em outros recortes
tamm sociais como os de gênero, de etnias, de idade e outros.
A história cultural, tal como a entendemos, tem por principal
objecto identificar o modo como em diferentes lugares e
momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler. Uma tarefa desse tipo supõe vários
caminhos. O primeiro diz respeito às classificações, divisões e
delimitações que organizam a apreensão do mundo social como
categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real.
Variáveis consoante as classes sociais ou os meios intelectuais,
são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas, próprias
do grupo. (CHARTIER, 1990, p. 16-17)
72
A pesquisa na perspectiva da História Cultural deve ser entendida como o
estudo dos processos com os quais se constrói um sentido, uma vez que as
representações podem ser pensadas como esquemas intelectuais, que criam as
figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se
inteligível e o espaço ser decifrado” (CHARTIER, 1990, p. 17). Dessa forma, a
compreensão do passado é possível por meio das suas representações, visando
entender quais eram as intenções daqueles que construíram as significações por
meio das quais expressavam a si próprios e o mundo.
Contribuíram para a elaboração da concepção de representação proposta
por Chartier vários teóricos da História Cultural e de outros campos de
conhecimento, entre os quais Pierre Bordieu (1989), cujos estudos sobre as
relações de poder e de dominação foram importantes para a fundamentação da
noção de que as representações do mundo social, embora aspirem à
universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas
pelos interesses dos grupos que os forjam” (CHARTIER, 1990, p. 17). Portanto,
as representações não se constituem em discursos neutros, pois estão situadas
em campos de conflitos, de lutas, que têm tanta importância como as lutas
econômicas para compreender “os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou
tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o
seu domínio” (CHARTIER, 1990, p. 17).
O autor entende a cultura como um conjunto de significados partilhados e
construídos pelos homens para explicar o mundo. A cultura é uma construção
social que sentido à realidade de determinados grupos sociais localizados no
espaço e no tempo na História. A investigação das práticas culturais destes
grupamentos humanos leva à compreensão da suas realidades por meio do
entendimento das formas simlicas que dão sentido às suas palavras, coisas e
ações. As representações, nas suas mais variadas formas, sejam elas literárias,
musicais, imagéticas e outras constituem os objetos de estudo da História
Cultural. Desse modo, a atenção do pesquisador volta-se às condições e aos
processos que determinam as operações de construção de sentido destas
representações. Assim, também, a apropriação destas representações,
materializadas em artefatos culturais, como o filme, por exemplo, também objeto
de investigação que “tem por objectivo uma história social das interpretações,
73
remetidas às suas determinações fundamentais (que são sociais, institucionais,
culturais) e inscritas nas práticas específicas que as produzem. (CHARTIER,
1990, p. 27).
Nesta perspectiva, o estudo de qualquer produção cinematográfica,
independente de ter conteúdo histórico ou ficcional ou, ainda, ser de caráter
documental, pede uma análise histórica e social mais criteriosa que passa pelo
exame de vários elementos presentes na obra, como os seus significados e
significantes, o veiculo e mensagem, assim como a produção da mensagem e a
sua apropriação. Portanto, o estudo de uma obra cinematográfica implica em
desvelar o processo de sua construção fílmica, por meio da análise de dados que
vão desde a sua produção industrial até a compreensão de como a enredo é
construído no interior da narrativa fílmica, buscando ressaltar o caráter da criação
e da construção de significados pelos sujeitos que o produziram.
Conforme esquema de investigação proposto por Nova (1996, p. 5), e que
aqui se buscou utilizar na análise dos filmes Jeca Tatu (1959) e Narradores de
Javé (2003), primeiramente é preciso realizar a crítica externa do filme, ou seja,
identificar a cronologia da obra (período de produção e de lançamento); verificar
se a obra foi baseada diretamente na literatura, histórias em quadrinhos, teatro ou
outra expressão artística; descrever a biografia dos produtores, diretores e
roteiristas; analisar os elementos estéticos, entre outros. Numa segunda etapa,
faz-se a crítica interna do filme analisando inicialmente o seu conteúdo objetivo,
ou seja, o sentido mais geral ou o que é percebido de forma mais direta: diálogos,
indumentária, gestos, enredo, estrutura arquitetônica e de cenários. Segundo a
autora, a análise do roteiro original pode ser um excelente documento, além das
críticas cinematográficas. Em seguida, examina-se o conteúdo implícito: o que
está presente de maneira implícita ou seja “tudo aquilo que os produtores queriam
que chegasse ao espectador, mas o o fizeram, por algum motivo particular,
direta e claramente.” (NOVA, 1996, p. 5). A terceira etapa da análise diz respeito
à descoberta dos elementos inconscientes existentes no filme, ou seja, a tudo o
que existe na película que escapou à atenção ou ultrapassou as intenções de
quem a produziu. Por fim, deve-se partir para a comparação do conteúdo
apreendido do filme com os conhecimentos histórico-sociológicos acerca da
74
sociedade que produziu o filme e com outros tipos de produções
cinematográficas.
Este roteiro de pesquisa contribui para o desvelamento do filme enquanto
objeto de estudo, considerando que ele pode ser analisado “fracionando-se suas
diferentes estruturas de significação e reorganizando-as novamente segundo
critérios previamente delimitados, de acordo com os objetivos que se quer atingir.”
(DUARTE, 2002, p. 99). Assim tamm, o roteiro auxilia a análise do filme
enquanto fonte de pesquisa utilizada para a compreensão de determinadas
representações que se quer examinar como objeto de estudo e que estão
presentes na estrutura de significação do texto fílmico. Seja como objeto
específico de estudo ou como fonte de pesquisa de outro objeto, o filme é um
documento ou, como diz Nova (1996, p. 3) fundamentada em Ferro (1992), “todo
filme é passível de ser utilizado enquanto documento. [...] O valor documental de
cada filme está relacionado diretamente com o olhar e a perspectiva do ‘analista’.”
Neste trabalho, os filmes Jeca Tatu (1959) e Narradores de Ja (2003),
foram tomados como fontes de pesquisa visando à compreensão de como o
analfabeto, objeto de estudo, estão neles representados. E, conforme já exposto,
não basta apenas analisar as fontes em si, é preciso conhecer os contextos
históricos nos quais estas fontes estão inseridas, além de compreender como o
objeto, no caso desta pesquisa: o analfabeto; vem sendo concebido ao longo da
história, em particular, a da EJA, como será visto nos próximos capítulos.
75
4. ANALFABETISMO/ALFABETISMO E A EJA NO BRASIL
Em várias passagens do filme Narradores de Javé (2003), além dos três
personagens citados como leitores: a mãe de Sousa, o homem que a carta de
Biá e o garoto leitor de bilhete, outros personagens demonstraram ter noção da
escrita, o que pode ser explicado por Soares (2001) da seguinte forma:
um adulto pode ser analfabeto, porque marginalizado social e
economicamente, mas, se vive em um meio em que a leitura e a
escrita têm presença forte, se se interessa em ouvir a leitura de
jornais feita por um alfabetizado, se recebe cartas que outros lêem
para ele, se dita cartas para que um alfabetizado as escreva, se
pede a alguém que lhe leia avisos ou indicações afixados em
algum lugar, esse analfabeto é, de certa forma, letrado, porque faz
uso da escrita, envolve-se em práticas sociais de leitura e de
escrita. (SOARES, 2001, p. 24)
Quando a escrita se impôs aos moradores de Javé, os narradores das
histórias contadas à Bia mostraram, de certo modo, ter conhecimento de como se
faz a escrita, pois com ela se envolveram. Esta é uma dimensão do letramento,
que focaliza os aspectos sócio-históricos da aquisição da escrita e que, entre
outros casos, segundo Tfouni (2005, p. 9-10), “procura estudar e descrever o que
ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira
restrita ou generalizada”. Mas, afinal, quais as diferenças entre alfabetização e
letramento? E, antes, ainda, o que é ser alfabetizado?
Pode-se dizer que a diferença entre o analfabeto e o alfabetizado reside no
fato de que o primeiro não sabe ler e escrever enquanto o segundo sabe. Ou seja,
diferentemente do analfabeto, o alfabetizado domina uma técnica de
decodificação oral (para escrever) e de uma decodificação escrita (para ler)”
(MOURA, 1999, p. 33). Esta concepção permeou as metodologias de ensino
durante muito tempo em todo o mundo. Mas, ao aprofundar o estudo sobre a
relação analfabetismo/alfabetismo passamos a compreender que é uma tarefa
complexa definir uma concepção clara sobre o que é ser analfabeto e mais ainda
sobre o que é ser alfabetizado.
76
Esta dificuldade de definição conceitual está presente tamm nos
métodos desenvolvidos ao longo da história de mensuração do analfabetismo e
de seu contrário, o alfabetismo. No Brasil, o interesse por medir as condições de
analfabetismo/alfabetismo da população havia despontado no final do culo
XIX, quando durante o reinado de D. Pedro II (1825-1891), no ano de 1872, foi
realizado o primeiro censo oficial estimando haver no Brasil uma população de
“quase 10 miles de habitantes, sendo 8,4 livres e 1,5 escravos.” (BRASIL,
2007). Neste contexto,ao final do Império, 82% da população com idade superior
a cinco anos era analfabeta.” (HADDAD; DI PIERRO, 2000). Com a promulgação
da primeira Constituição republicana, em 1891, ocorreu a extinção do voto
censitário e oficialização da proibição do voto do analfabeto. Assim, o eleitor era o
alfabetizado e por alfabetizado entendia-se a pessoa que sabia assinar o nome.
A Constituição Republicana eliminou a seleção pela renda; mas
manteve a seleção pela instrução: ampliou a consulta eleitoral
favorecendo aqueles setores médios, pois contávamos então com
cerca de 80% de analfabetos distribuídos principalmente entre as
classes populares. (PAIVA, 1987, p. 83)
Até os anos de 1940, os questionários do censo no Brasil apenas
perguntavam se a pessoa sabia ler e escrever. Desde que a Comissão da
População das Nações Unidas, em 1948, passou a considerar como alfabetizado,
como explica Fernandes (2002, p. 37), “aquele que tem capacidade de ler e
escrever um texto em alguma língua,” os critérios adotados para a realização de
recenseamentos no Brasil sofreram modificações, influenciando, por sua vez, a
organização das diversas campanhas de alfabetização de massa realizadas pelo
Estado brasileiro entre os anos de 1940 ao início da década de 1960.
Atualmente, o IBGE apura o índice de analfabetismo/alfabetismo por meio
do procedimento da auto-avaliação, ou seja, o recenseado declara se ele sabe ler
e escrever um bilhete simples ou se aprendeu a ler e escrever, mas esqueceu, ou
se apenas assina o próprio nome. Este mesmo cririo é adotado para a
realização da PNAD Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, efetivada
tamm pelo IBGE, que, em 2007, indicou haver “14 milhões de analfabetos no
Brasil, o que corresponde a 10% (dez por cento) da população com mais de 15
anos de idade. (BRASIL, 2007c). Porém, na medida em que novas teorias são
77
debatidas sobre os processos de aquisição e de uso efetivo da leitura e da escrita
nas diversas esferas sociais, este método de mensuração do
analfabetismo/alfabetismo vem sendo questionado. Como afirma Ribeiro (2007):
Cada vez mais, é preciso compreender a leitura e a escrita como
práticas culturais e como competências multidimensionais, que
abarcam diversos tipos eveis de habilidades.Entre conhecer
algumas letras, assinar o próprio nome, reconhecer palavras,
retirar uma informação num pequeno aviso, copiar uma receita, ler
uma passagem em voz alta com pouquíssima ou com razoável
fluência, analisar o editorial de um jornal ou redigir uma carta
comercial, onde caberia a linha divisória que divide os
alfabetizados dos analfabetos? (RIBEIRO, 2007)
A única pesquisa realizada no Brasil com medição direta de habilidades por
meio de testes, além de coleta de informações detalhadas sobre práticas de
leitura, escrita e cálculo matemático na vida diária da população é a do INAF
Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, órgão mantido por duas
organizações não governamentais brasileiras: a Ação Educativa
38
e o Instituto
Paulo Montenegro
39
. O objetivo destas organizações é oferecer à sociedade,
segundo Ribeiro (2007) “informações sobre as condições de alfabetismo da
população adulta brasileira, de modo a fomentar o debate blico sobre o tema e
subsidiar a formulação de políticas de educação e cultura.”
O INAF Brasil realiza pesquisas anuais, por amostragem, envolvendo um
universo de duas mil pessoas representativas da população brasileira com idades
entre 15 e 64 anos, residentes em zonas urbanas e rurais de todas as regiões do
país. Em 2001, 2003 e 2004, o levantamento abordou a leitura e escrita, em 2002
e 2005, as habilidades matemáticas. Todos os instrumentos de coleta de dados
das pesquisas do INAF visam medir os níveis de alfabetismo funcionais – ou seja,
úteis para enfrentar pelo menos algumas das demandas do cotidiano. O termo
analfabeto funcional, segundo Ribeiro (2007), não foi usado nestes instrumentos.
38
A Ação Educativa tem como missão a defesa de direitos educacionais, atua na área de pesquisa e
informação, desenvolvimento de programas de educação de adultos, mobilização social e advocacy.
(RIBEIRO, 2007).
39
O Instituto Paulo Montenegro é ligado a uma grande empresa de pesquisa que atua em toda a América
Latina o IBOPE e tem como objetivo canalizar recursos financeiros e técnicos da empresa e de terceiros
para iniciativas de interesse social sem finalidade lucrativa. (RIBEIRO, 2007).
78
O termo analfabeto funcional – ainda que de uso corrente na
dia não foi utilizado, pois, a rigor, mesmo habilidades muito
limitadas têm funcionalidade em certos contextos. A manutenção
do termo analfabeto, por outro lado, visou chamar a atenção para
uma situação que ainda é significativa em países como o Brasil,
nos quais significativas parcelas da população têm baixa renda e
baixa escolaridade, e nos quais a problemática do analfabetismo é
pauta das políticas sociais e educacionais (RIBEIRO, 2007)
De acordo com Ribeiro (2007), os parâmetros da pesquisa são os
seguintes: é considerado Analfabeto o entrevistado que não domina as
habilidades medidas para a leitura, assim como não domina as habilidades
matemáticas medidas. Se o entrevistado localiza uma informação simples em
enunciados muito curtos, um anúncio ou chamada de capa de revista e ainda e
anota números de uso freqüente (preços, horários, número de telefones),
consegue medir um comprimento de fita métrica, localizar uma data num
calendário, então esta pessoa enquadra-se no Nível Rudimentar de Alfabetização.
Aquele que consegue localizar uma informação em textos curtos ou médios
(notícia ou manual de instrução, por exemplo), mesmo que seja necessário
realizar inferências simples. Ler números naturais, independente da ordem de
grandeza; ler e comparar números decimais que se referem a preços; contar
dinheiro e fazer troco; resolver situações envolvendo operações usuais de adição
e subtração ou mesmo multiplicação, quando não conjugada a outras operações
está classificado no Nível Básico de Alfabetismo. Por fim, o entrevistado que tem
êxito em localizar mais de um item de informação em textos mais longos,
comparar informação contida em diferentes textos, estabelecer relações entre as
informações (causa/efeito, regra geral/caso, opinião/fonte), ater-se à informação
textual quando contrária ao senso comum. Adotar e controlar uma estratégia na
resolução de problemas que demandam a execução de uma rie de operações,
por exemplo, tarefas envolvendo cálculo proporcional e porcentagens; interpretar
gráficos e mapas, então este entrevistado é um Alfabetizado em Nível Pleno.
Os resultados das pesquisas realizadas pelo INAF, de 2001 a 2005,
mostraram pequenos avanços no Brasil no que se refere à ampliação das
capacidades de leitura, escrita e cálculo da população. Ribeiro (2007) explica que:
Na faixa etária investigada, o INAF identificou, em 2005, 7% de
pessoas na condição de analfabetismo absoluto. No terreno das
79
habilidades matemáticas, esse percentual é menor apenas 2%
em 2004. Em ambos os domínios, entretanto,
aproximadamente 30% de pessoas que demonstram um domínio
muito rudimentar das habilidades, sabem ler os números e
realizar operações muito simples, ler textos muito breves e
localizar informações muito evidentes. 26% para a leitura e
23% para a matemática mostram que têm donio pleno das
habilidades (RIBEIRO, 2007).
Estas pesquisas revelam que o Brasil é um país onde a cultura letrada está
amplamente disseminada, mas de forma muito desigual e demonstra “como os
déficits educacionais se traduzem em desigualdades quanto ao acesso a vários
bens culturais, oportunidades de trabalho e desenvolvimento pessoal que
caracterizam as sociedades letradas” (RIBEIRO, 2007).
Mas, afinal, que concepções de alfabetização subsidiaram a definição dos
critérios adotados pelos institutos de pesquisa referenciados? Que outras
concepções sobre o tema m sendo elaboradas ao longo a história? O objetivo
deste capítulo é conhecer, pelo menos em parte, o debate historiográfico de
concepções sobre a relação alfabetização/alfabetismo, o que leva à necessária
compreensão da trajetória histórica de processos de alfabetização e de
escolarização voltadas para educação de jovens e adultos.
80
4.1 ALFABETIZAÇÃO: UM DEBATE HISTORIOGRÁFICO
Entre os filmes Jeca Tatu (1959) e Narradores de Javé (2003), um
intervalo de tempo de 44 anos entre um e outro, ou seja, as duas produções estão
situadas em contextos históricos diferentes, nos quais predominavam
determinadas concepções sobre a alfabetização próprias de seus tempos. Como
explica Fernandes (2002, p. 35), o debate conceitual sobre alfabetização, muda
de enfoque e abrangência de acordo com as funções que lhe o atribuídas por
seus promotores e pensadores, dentro de uma determinada abordagem sobre
educação e sociedade”. Na história das concepções sobre alfabetização,
particularmente, a de adultos, quatro tipos de abordagens podem ser elencadas,
conforme resume Fernandes (2002).
Na abordagem da “modernização-capital humano”, segundo
Torres (1992) a alfabetização de adultos contribui para o
desenvolvimento econômico, enquanto mecanismo privilegiado
para aumentar os contatos com as sociedades modernas,
“desorganizar as culturas tradicionais consideradas elementos de
atraso, e permitir o desenvolvimento da heterogeneidade social
com a adoção de inovações”. [...] Na abordagem do “idealismo
pragmático”, tomando a alfabetização como parte da educação
permanente, esta se propõe a explorar o potencial humano em
benefício do indivíduo e da sociedade, e é considerada
basicamente “educação moral na criação de uma sociedade futura
alicerçada no desenvolvimento individual dentro do quadro de
uma democracia liberal”. Já na abordagem “engenharia social”
(corporativismo), elaborada numa perspectiva de sociedade pós-
industrial, a alfabetização [...] “seria um instrumento de
qualificações médias aos que irão constituir a base da mão-de-
obra” (FERNANDES, 2002, p.36-41).
Outra abordagem é a da educação popular e da pedagogia do oprimido, de
Paulo Freire (1921-1997), que concebe a alfabetização como ação cultural para o
desenvolvimento da conscncia crítica dos setores populares subalternos. Os
programas de alfabetização de adultos desenvolvidos pelos movimentos de
educação popular, apoiados principalmente nos postulados de Freire (1982, 1996,
2000, 2005), entendem a alfabetização como instrumento de conscientização
política do povo para a transformação social. A alfabetização passa a ser
considerada como um processo que não se restringe ao aprendizado das
81
habilidades de leitura, escrita e aritmética, mas que deve contribuir para a
liberação do ser humano e seu pleno desenvolvimento.
A alfabetização deve proporcionar ao analfabeto o acesso ao mundo da
leitura e da escrita por meio da utilização das técnicas de aprendizado que
envolve letras, meros, sons, desenvolvimento de coordenação motora e outros.
Pretende-se que, ao aprender a ler e escrever, o alfabetizando passe a dominar
signos, simples ou complexos, organizados de tal forma que possibilitem a ele a
construção e transmissão de mensagens. Mas, de acordo com esta concepção,
não adianta aprender uma técnica e o saber usá-la. A técnica precisa estar
associada ao seu uso na prática social.
A alfabetização é mais do que o simples domínio psicológico e
mecânico das técnicas de escrever e de ler. É o domínio dessas
técnicas, em termos conscientes. É entender o que se e
escrever o que se entende. É comunicar-se graficamente. É uma
incorporação. Implica não uma memorização visual e mecânica de
sentenças, de palavras, de sílabas desgarradas de universo
existencial coisas mortas ou semimortas mas numa atitude de
criação e recriação (FREIRE, 2000, p. 18-19).
Este educador entende a alfabetização como um processo fundamental
para que homens e mulheres possam emancipar-se da opressão da sociedade
capitalista, acrescentando ao conceito de alfabetização o seu conteúdo político. A
sua obra mostra que há uma relação indissociável entre educação e política e que
a ação educativa é sempre um ato político. Desse modo, a alfabetização não se
restringe ao ensino da leitura e escrita de letras e números, independente das
técnicas utilizadas. A alfabetização deve estar voltada à emancipação humana,
levando homens e mulheres ao pleno domínio da linguagem necessária ao
exercício da prática social transformadora. Como afirma Moura (1999, p. 44), é
por meio das formulações de Freire “que as reflexões e práticas na área passam
a dispor de um referencial próprio, contrapondo-se à concepção ‘ingênua’ e
‘astuta’ de alfabetização e às práticas mecanicistas e alienantes.”
Quanto ao analfabeto, Freire (1982), o caracteriza como o sujeito que
domina o repertório da oralidade com o qual transita dentro de seu mundo e o
apreende em suas significações. Agindo como ser cultural, o ressignifica, na
medida em que não dispõe do instrumento da palavra escrita, considerado este
82
saber cristalizado na sociedade como elemento que dissemina a cultura. E é
neste elo rompido entre a palavra escrita e a palavra falada que está situado o
analfabeto. Perspectivado pelo olhar de Freire (1982), o filme Narradores de Javé
(2003), apresenta os analfabetos do povoado como sujeitos que, não dispondo do
domínio da escrita deram novo significado a ela naquele momento em que era
preciso produzir o dossiê salvador, passando, então, por necessidade, a valorizá-
la. Para resolver o problema de forma imediata, recorreram ao único letrado da
cidade que poderia realizar tal tarefa, porém o fizeram não de uma forma passiva,
pois sabiam, conscientemente ou não, que a escrita da história de Javé dependia
da leitura que pudessem fazer de suas próprias memórias e da forma como
poderiam transmiti-la por meio da oralidade. Por sua vez, o filme Jeca Tatu (1959)
contribui para que o analfabeto seja visto de maneira preconceituosa, como um
homem perdido “a quem é necessário ‘salvar’ e a sua ‘salvação’ está em que
consinta em ir sendo ‘enchido’ por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe
são presenteadas ou impostas pelo alfabetizador” (FREIRE, 1982, p. 14). Dessa
forma, revela-se a idéia pré-concebida de que o analfabeto é um não ser,
enquanto homem inserido nas instâncias do oral. Para que o analfabeto seja
integrado à sociedade, faz-se imprescindível dominar escrita, mesmo que ela não
represente sua realidade, seu espaço existencial. Assim, a alfabetização transfere
a palavra escrita ao sujeito vinculado ao âmbito da oralidade, nos termos de um
aparente bom propósito, mas que oculta uma prática de dominação, pois os
valores do mundo da palavra escrita tendem a obscurecer as supostas
concretizações que o sujeito alfabetizado conquistaria dominando a escrita. Ou
seja, nesse processo, não há ingenuidade ou neutralidade, nem tampouco é
possível crer que o analfabetismo resume-se a um problema de ordem lingüística,
em que a palavra é negada ao analfabeto. Esta negação da palavra “implica em
negar o direito de ‘pronunciar o mundo’. Por isso, ‘dizer a palavra’ o é repetir
uma palavra qualquer. Nisto consiste um dos sofismas da prática reacionária da
alfabetização”. (FREIRE, 1982, p. 16).
Consciente de que, muitas vezes, o educador está impregnado por um
ponto de vista sociocultural tradicional, mesmo assim, é possível posicionar-se
criticamente e ter consciência de que ninguém, como argumenta Freire (1982, p.
19), “é analfabeto por eleição, mas como consequência das condições objetivas
83
em que se encontra. Em certas circunstâncias, ‘o analfabeto é o homem que não
necessita ler’, em outras, é aquela ou aquela a quem foi negado o direito de ler.”
Em ambos os casos, existe a idéia da existência de uma cultura letrada cuja
acessibilidade faz-se necessária ou não ou então é de acesso restrito.
O primeiro vive numa cultura cuja comunicação e cuja memória são
auditivas, se não em termos totais, em termos preponderantes.
Neste caso, a palavra escrita não tem significação. Para que se
introduzisse a palavra escrita e, com ela, a alfabetização, em uma
realidade como esta, com êxito, seria necessário que,
concomitantemente, se operasse uma transformação capaz de
mudar qualitativamente a situação. Muitos casos de analfabetismo
regressivo terão aí sua explicação. São o resultado de campanhas
de alfabetização messiânica ou ingenuamente concebidas para
áreas cuja memória é preponderantemente ou totalmente oral
(FREIRE, 1982, p. 19).
Paulo Freire contribuiu de modo expressivo para a educação brasileira e,
em particular, para a alfabetização de adultos, influenciando de forma
contundente a ação educativa de movimentos sociais e a elaboração de políticas
públicas levadas a efeito por governos democráticos. Segundo Altran (2004, p. 1)
“seu pensamento, que ganhou o mundo, foi tomado e continua sendo retomado
com o objetivo de buscar caminhos para os problemas educacionais
encontrados”. Por sua vez, Moura (1999, p. 44) reafirma que “a importância
atribuída, universalmente, às formulações de Freire torna qualquer tentativa de
síntese de suas idéias e contribuições seja para a alfabetização de adultos ou
para outra área de estudo, uma tarefa árdua e difícil”.
Na segunda metade dos anos de 1980, um novo termo: letramento”, foi
adicionado ao vocaburio da Educação e das Ciências Lingüísticas.
Conceitualmente, o termo letramento também se opõe ao analfabetismo, assim
como alfabetismo que, por sua vez, é um termo muito pouco utilizado. “É um
fenômeno interessante: usamos, séculos, o substantivo que nega
[analfabetismo] [...] e não sentíamos necessidade do substantivo que afirmasse:
alfabetismo ou letramento” (SOARES, 2001, p. 45). A explicação mais comum
apresentada por especialistas da educação que defendem o uso do termo
letramento, como Soares (2001), é a de que palavras novas aparecem quando
novas idéias ou novos fenômenos surgem. Na sociedade contemporânea,
84
convivem lado a lado pessoas que não sabem ler e escrever com um mero
crescente de alfabetizados. Quanto mais a sociedade centra-se na escrita, um
novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever, é
preciso praticar a leitura e a escrita, envolvendo-se com práticas sociais da escrita
como ler livros, jornais e revistas, redigir formulários, requerimentos, declarações
e cartas, encontrar informações em um catálogo telefônico, contrato de trabalho,
conta de luz. Para Soares (2001):
Esse novo fenômeno ganha visibilidade depois que é
minimamente resolvido o problema do analfabetismo e que o
desenvolvimento social, cultural, econômico e político traz novas,
intensas e variadas práticas de leitura e de escrita, fazendo
emergirem novas alternativas de lazer. Aflorando o novo
fenômeno, foi preciso dar um nome a ele: quando uma nova
palavra surge na língua, é que o novo fenômeno surgiu e teve que
ser nomeado. Por isso, e para nomear esse novo fenômeno,
surgiu a palavra letramento (SOARES, 2001, p. 46, grifo da
autora).
Nesta linha de raciocínio, por alfabetização entende-se o processo de
ensinar/aprender a ler e escrever. Por letramento: estado ou condição de quem
não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que
usam a escrita. Para Soares (2001, p. 47):
[...] precisaríamos de um verbo ‘letrar’ para nomear a ação de
levar os indivíduos ao letramento... Assim, teríamos alfabetizar e
letrar como duas ações distintas, mas não inseparáveis, ao
contrário: o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e
a escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita,
de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo,
alfabetizado e letrado. (grifos da autora).
Outra questão levantada refere-se ao fato de que letramento envolve dois
processos diferentes: ler e escrever, geralmente vistos como reflexos sob ângulos
opostos de um mesmo fenômeno: a comunicação através da língua escrita. No
entanto, existem diferenças entre ambos os processos.
A leitura, [...] é um conjunto de habilidades lingüísticas e
psicológicas, que se estendem desde a habilidade de decodificar
palavras escritas a a capacidade de compreender textos
escritos. Essas categorias não se opõem, complementam-se; a
leitura é um processo de relacionar símbolos escritos a unidade
85
de som e é também o processo de construir uma interpretação de
textos escritos. [...] Assim como a leitura, a escrita, na perspectiva
da dimensão individual do letramento (a escrita como uma
“tecnologia”), é também um conjunto de habilidades lingüísticas e
psicológicas, mas habilidades fundamentalmente diferentes
daquelas exigidas pela leitura. Enquanto as habilidades de leitura
estendem-se das habilidades de decodificar palavras escritas à
capacidade de integrar informações provenientes de diferentes
textos, as habilidades de escrita estendem-se da habilidade de
registrar unidades de som a a capacidade de transmitir
significado de forma adequada a um leitor potencial (SOARES,
2001, p. 68-70, grifos da autora).
Quanto à dimensão social de letramento, suas práticas sociais, diferentes
interpretações podem ser encontradas. Numa visão liberal das relações entre
letramento e sociedade, as habilidades de leitura e de escrita são vinculadas aos
seus usos na vida social. O letramento é definido em termos de habilidades
necessárias para que o indivíduo funcione adequadamente em um contexto
social, “vem daí o termo letramento funcional (ou alfabetização funcional)”
(SOARES, 2001, p. 72). Por outro lado, afirma-se também que o letramento não é
um instrumento neutro a ser usado nas práticas sociais quando exigido.
É, essencialmente, um conjunto de práticas socialmente
construídas que envolvem a leitura e a escrita, geradas por
processos sociais mais amplos, e responsáveis por reforçar ou
questionar valores, tradições e formas de distribuição de poder
presentes nos contextos sociais (SOARES, 2001, p. 74-75).
Aqui, ao termo letramento é acrescido o conteúdo político e, neste aspecto,
as concepções sobre “letramento” o criticadas por estudiosos freireanos e
tamm de tendências marxistas, defensores de que o conceito de alfabetização
de Freire (1982, 1996, 2000, 2005) tem um significado mais abrangente, na
medida em que vai além do domínio do código escrito, pois, enquanto prática
discursiva possibilita uma leitura crítica da realidade.
Ele [Paulo Freire] defendia a idéia de que a leitura do mundo
precede a leitura da palavra, fundamentando-se na antropologia: o
ser humano, muito antes de inventar códigos lingüísticos, lia o
seu mundo. [...] Os defensores do termo ‘letramento’ insistem que
ele é mais amplo do que a alfabetização ou que eles são
equivalentes. Emília Ferreiro nega-se a aceitar esse ‘retrocesso
conceitual’. Em vez de se curvar a esse novo anglicismo, ela
traduz literacy por ‘cultura escrita’, e não por letramento. Mas não
86
se trata de um retrocesso conceitual. Trata-se,
lamentavelmente, de uma tentativa de esvaziar o caráter político
da educação e da alfabetização, uma armadilha na qual muitos
educadores e educadoras hoje estão caindo, atraídos e atraídas
por uma argumentação que, à primeira vista, parece consistente.
(GADOTTI, 2005, grifo do autor).
Assim, em meio a este embate, em muitos debates, como os travados no II
ENEJA Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos, realizado em
2000, na Paraíba, alfabetismo e letramento passaram a ser conceituados de uma
mesma forma, tanto em sua dimensão individual, compreendendo os aspectos
relativos ao processo de apropriação da base alfabética da ngua escrita, quanto
na sua dimensão sociocultural, referindo-se às possibilidades e variedades de uso
da leitura e da escrita na vida social. Os estudos discutidos no Encontro
mostraram ainda a necessidade de um tempo relativamente longo, de
aproximadamente quatro anos de escolaridade, para que os sujeitos se apropriem
efetivamente da leitura e da escrita e delas façam uso social. Pesquisas
realizadas que procuraram avaliar o nível de letramento de jovens e adultos,
segundo Soares (2001, p. 57), confirmam a tendência em considerar como
alfabetizado, o indivíduo que tenha pelo menos completado a série do ensino
fundamental, com base no pressuposto de que são necessários no mínimo quatro
anos de escolaridade para a apropriação da leitura e da escrita e de seus usos
sociais. Se relacionada esta discussão com o filme Narradores de Javé (2003), é
possível pensar que os seus criadores e/ou produtores pudessem ter noções, ou
mesmo conhecimento mais aprofundado, sobre a ocorrência deste debate
conceitual na medida em que os habitantes da fictícia Javé se assemelham muito
aos sujeitos focados nestas discussões, além do que, os poucos personagens
alfabetizados da obra demarcam bem os seus níveis de alfabetização: Antonio
Biá representa o alfabetizado em nível pleno, o letrado; enquanto a mãe de
Sousa, o homem que lê a carta de Biá e o garoto leitor de bilhete, apresentam
estar em processo de alfabetização. Cabe ressaltar, ainda, que o filme começou a
ser rodado no interior do Nordeste, em 2001.
Pesquisas como as do INAF, apontam tamm a importância da
valorização do papel do educador na promoção do letramento dos seus
87
educandos e alerta que a leitura e a escrita não podem ser objeto de atenção
apenas dos professores alfabetizadores e de Língua Portuguesa.
Como ferramenta essencial para se aprender grande parte dos
conteúdos escolares e para continuar aprendendo ao longo da
vida, a linguagem escrita pode ser tomada como um eixo
articulador de todo o currículo da educação básica. As leituras de
professores e estudantes não devem se limitar ao livro didático.
Uma infinidade de suportes de escrita, como jornais, revistas ou
computadores, e ainda uma variedade enorme de tipos de fazem
parte da cultura letrada na qual os estudantes precisarão
participar com autonomia e flexibilidade (RIBEIRO, 2007).
A alfabetização é parte constituinte da educação de jovens e adultos, que
por sua vez, tem suas problemáticas específicas, “complexificando ainda mais
seu campo de conceituação, pois a educação de adultos trata-se, tamm, de um
objeto com carência de definição conceitual precisa(FERNANDES, 2002, p. 32).
Dessa forma, é importante conhecer um pouco da construção histórica da EJA,
que se deu em meio a muitos embates políticos e ideológicos, buscando
compreender, neste processo, algumas das concepções historicamente
construídas que fundamentam esta modalidade de ensino, hoje entendida,
[...] não mais como uma parte complementar, extraordinária do
esfoo que a sociedade aplica em educação (supondo-se que o
dever próprio da sociedade é educar a infância). É parte
integrante desse esforço, parte essencial, que tem
obrigatoriamente que ser executada paralelamente com a outra,
pois do contrário, esta última não terá o rendimento que dela se
espera. (PINTO, 2000, p. 81).
Assim, a EJA não deve ser entendida como um esforço secundário,
marginal da educação, mas um setor necessário do desempenho pedagógico da
educação em geral.
88
4.2 BREVE HISTÓRICO DA EJA - EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
Enquanto o ator, produtor e diretor cinematográfico Amácio Mazzaropi
(1912-1981) percorria o interior paulista com a Troupe Mazzaropi, divertindo
platéias com seus personagens cômicos, incluindo os que representavam caipiras
analfabetos, o Estado brasileiro, sob o comando de Getúlio Vargas (1882-1954),
desde a década de 1930, incrementava algumas políticas voltadas à educação de
adultos no contexto, como explicam Haddad e Di Pierro (2000, p. 111) “da
expansão dos direitos sociais de cidadania, em resposta à presença de amplas
massas populares que se urbanizavam e pressionavam por mais e melhores
condições de vida”, servindo ainda como um mecanismo para aliviar as tensões
sociais. O investimento em educação atendia a necessidade de qualificação dos
trabalhadores para garantir a concretização dos projetos nacionalistas de Vargas
e a educação de adultos passou a vista como condição necessária para o
desenvolvimento do Brasil.
No decorrer da década de 1940, quando Mazzaropi passou a contar piadas
e cantar em programas de rádio ao lado de outros artistas famosos, pela primeira
vez, discutiu-se uma política nacional de educação de adultos com financiamento
público para atuação em todo o território brasileiro. Em 1942, foi criado o FNEP
Fundo Nacional do Ensino Primário, três anos depois, em 1945, o Fundo foi
regulamentado destinando 25% dos recursos à educação de adolescentes e
adultos. No ano seguinte, decretou-se a Lei Orgânica do Ensino Primário que
previu a oferta do Curso Primário Supletivo. Estavam constituídas as bases para a
criação, em 1947, do SEA Serviço de Educação de Adulto do DNE -
Departamento Nacional de Educação, com o objetivo de desenvolver o ensino
supletivo para adolescentes e adultos. Neste mesmo ano, Mazzaropi fez sua
estréia no show Brigada da Alegria, nas Emissoras Associadas.
A movimentação na área educacional brasileira acompanhava as
discussões internacionais impulsionadas pela criação da UNESCO Organização
das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura, em novembro de 1945,
logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. neste momento, a UNESCO
denunciava ao mundo, como explica Haddad e Di Pierro (2000, p. 111) “as
89
profundas desigualdades entre os países e alertava para o papel que deveria ter a
educação, em especial a educação de adultos, no processo de desenvolvimento
das nações categorizadas como atrasadas”. Cabe ressaltar que os termos
educação de adultos, educação popular, educação não-formal e educação
comunitária são usados muitas vezes como sinônimos, mas não devem ser
entendidos dessa forma.
Os termos “educação de adultos” e “educação não-formal”
referem-se à mesma área disciplinar, teórica e prática da
educação. No entanto, o termo educação de adultos tem sido
popularizado especialmente por organizações internacionais como
a UNESCO, para referir-se a uma área especializada da
educação. A educação não-formal tem sido utilizada,
especialmente nos Estados Unidos, para referir-se à educação de
adultos que se desenvolve nos países do Terceiro Mundo,
geralmente vinculada a projetos de educação comunitária. Nos
Estados Unidos, no entanto, internamente, reserva-se o termo
“educação de adultos” para a educação não-formal aplicada ou
administrada ao nível local no seu país. (GADOTTI, 1998).
A partir da intervenção da UNESCO, as muitas concepções sobre
educação de adultos passaram a ser debatidas com mais profundidade e, em
particular, a questão da alfabetização começou a fazer parte da agenda de
preocupações de educadores e gestores educacionais, organizações não
governamentais e governos de vários países, como visto no capítulo anterior.
No Brasil, desde então e até os anos finais da década de 1950, foram
realizadas grandes campanhas nacionais de iniciativa oficial, chamadas de
cruzadas, que pretendiam erradicar o analfabetismo, entendido como uma
‘chaga’, uma doença como a malária. Por isso se falava em ‘zonas negras de
analfabetismo’” (GADOTTI, 1998). A educação de adultos, portanto, não era
entendida como parte integrante da estrutura de ensino, mas sim como objeto de
ações paralelas por parte do Estado. A primeira grande cruzada”, denominada
CEAA Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, desenvolvida entre
os anos de 1947 e 1963, foi lançada no I Congresso de Educação de Adultos,
realizado no Rio de Janeiro, em fevereiro de 1947.
As manifestações dos participantes do Congresso apontavam o analfabeto
como marginal e o analfabetismo como um obstáculo ao desenvolvimento do
país. O termo erradicação adequava-se à concepção de que o analfabetismo
90
poderia ser comparado a uma erva daninha que precisava ser extirpada, retirando
“a responsabilidade do processo seletivo e discriminatório da sociedade burguesa
que se consolidava no país, debitando, pelo contrário, na conta dos próprios
analfabetos, o atraso brasileiro” (ROMÃO, 2006, p. 36). Tais discursos estavam
em consonância com o que pensava Monteiro Lobato (1882-1948) ao criar e
recriar o seu personagem Jeca Tatu em décadas anteriores. Vale observar que,
no ano seguinte à realização do Congresso, em 1948, foi lançada uma coleção
com 30 obras de Monteiro Lobato, entre as quais o livro “Urupês”, contendo o
artigo de mesmo nome, publicado pela primeira vez em 1914, no qual o escritor
apresentou o seu personagem Jeca”, um habitante do interior preguiçoso,
ignorante e culpado pelo atraso do país. Dessa forma, passados mais de trinta
anos entre a publicação do artigo e a realização do Congresso, muitas das
características imputadas àquele habitante “ignorante”, termo este obviamente
relacionado por Lobato ao analfabeto, continuava presente dos discursos dos
envolvidos com a CEAA, como mostra Paiva (1987) ao comentar a fala da
professora Noemy Rudolfer (1902-1988), durante um curso de formação de
quadros da campanha.
Segundo a professora, o analfabeto se “sentia rejeitado por um
grupo que é socialmente superior o dos que lêem”, pois ele
conhece sua situação de marginalismo e sabe que “socialmente
conta pouco”, que é uma espécie de zero cujo valor só se revela à
direita dos que sabem ler”. Para esta professora, nenhum grupo
social deseja analfabetos, “mas tem que suportá-los se eles
existem”: a arma de defesa contra os párias será, então, o
desprestígio daqueles que se é obrigado a tolerar e que se
submetem dependentes [...].” A campanha seria um meio de
oferecer oportunidade aos analfabetos para saírem do
marginalismo, seria também um meio de livrar os alfabetizados de
terem que suportar esses “párias” dependentes. É a sociedade
alfabetizada que, valorizando a educação em si mesma e
envergonhando-se de seus índices de analfabetismo, quer livrar-
se de seus analfabetos. (PAIVA, 1987, p. 185).
Neste contexto, no qual se constata a presença em discursos oficiais de
visões, perspectivadas no presente, claramente preconceituosas contra o
analfabeto, é possível ponderar que tais concepções estivessem arraigadas na
memória social dos brasileiros, ou de parte deles, incluindo Mazzaropi.
91
Em nível internacional, a UNESCO assumiu a coordenação dos debates
sobre a educação de adultos e, para tanto, organizou a I CONFINTEA
Conferência Internacional de Educação de Adultos, realizada em Elsinore, na
Dinamarca, em 1949. A cada dez ou doze anos foram convocadas novas
conferências, sendo que a II CONFINTEA ocorreu em 1960, na cidade de
Montreal, no Canadá; a III, no ano de 1972, em Tóquio, no Japão; a IV em 1985,
em Paris, na França; e a V, em 1997, em Hamburgo, na Alemanha. A realização
da VI CONFINTEA estava prevista para acontecer no Brasil, em 2009.
Na I CONFINTEA, de 1949, participaram 79 representantes de 33 países,
em sua imensa maioria, da Europa. Dessa forma, as discussões giraram em torno
dos problemas da educação de adultos nos países desenvolvidos e revelaram “o
pessimismo que o pós-guerra gerou nesses países” (ROMÃO, 2006, p. 31). Neste
contexto, a educação de adultos passou a ser concebida como uma educação
paralela, “fora da escola, cujo objetivo seria contribuir para o respeito aos direitos
humanos e a construção de uma paz duradoura, uma educação continuada para
jovens e adultos, mesmo depois da escola”. (GADOTTI, 1998, p. 4).
O Brasil insere-se nas discussões sobre educação de adultos em âmbito
internacional com a realização, tamm em 1949, do Seminário Interamericano
de Educação de Adultos, sediado em Petrópolis, do qual participaram
representantes da UNESCO e da OEA Organização dos Estados Americanos.
As discussões do evento caminharam no sentido de incorporar o homem do
campo ao processo de educação de base, afim de que ele pudesse participar do
desenvolvimento da nação. Desta preocupação, surgiu a CNER – Campanha
Nacional de Educação Rural, entre os anos de 1952 e 1963. Caminhava-se em
direção ao que preconizava as resoluções da I CONFINTEA fortalecendo a
concepção de que os trabalhadores adultos deveriam estar minimamente
capacitados para fazer parte do processo de desenvolvimento econômico e social
de seus países e de suas comunidades.
Em 1958, durante o governo de Juscelino Kubitscheck (1902-1976), foi
lançada a CNEA Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo, que
procurou descentralizar as ações contando com a participação mais efetiva de
estados e municípios. Esta campanha reconhecia as causas econômicas e
sociais que geravam o analfabetismo e apoiou-se em dados mais realistas e
92
procedimentos mais científicos para o desenvolvimento das ações. É oportuno
salientar que neste mesmo ano de 1958, foi lançado o filme Chico Fumaça no
qual Mazzaropi representa um caipira que, nas cenas iniciais, vivencia um
processo de alfabetização em uma sala de aula repleta de crianças.
Ainda no ano de 1958, o Rio de Janeiro sediou o II Congresso Nacional de
Educação de Adultos, do qual participou Paulo Freire (1921-1997), que fomentou
o debate acerca da necessidade da elaboração de um programa permanente de
enfrentamento do problema da alfabetização. As discussões resultaram no Plano
Nacional de Alfabetização de Adultos. Este II Congresso representou um bom
momento para a discussão sobre a EJA, confrontando novos e velhos conceitos.
Como mostra Paiva (1987, p. 213), “à imagem do adulto de ‘cultura deficiente’ que
‘se sabe inculto’ já se opunham os novos conceitos antropológicos [...] e se fala
em educação permanente.” O Congresso marcou o início de um período da
educação de adultos no Brasil que, segundo Paiva (1987),
[...] se caracterizou pela intensa busca de maior eficiência
metodológica e por inovações importantes neste terreno, pela
reintrodução da reflexão sobre o social no pensamento
pedagógico brasileiro e pelos esfoos realizados pelos mais
diversos grupos em favor da educação da população adulta para a
participação na vida política da Nação. (PAIVA, 1987, p. 213).
A educação de adultos começou a romper seus limites, indo além das
preocupações existentes com a prática pedagógica, elevando-se, como afirmam
Haddad e Di Pierro (2000, p. 113), “à condição de educação política”, passando a
ser entendida como educação de base e articulada a diversas propostas
ideológicas, como as do pensamento renovador cristão e do Partido Comunista,
além das ações oficiais estabelecidas no apogeu do nacional-desenvolvimentismo
de Juscelino Kubitscheck.
O filme Jeca Tatu, foi produzido no final de 1959, mas estreou nos cinemas
somente em janeiro de 1960, no mesmo ano que o Brasil enviou representantes
para participar da II CONFINTEA, realizada no Canadá, que teve como tema
principal a educação de adultos em um mundo em mudança. No total estiveram
presentes 112 representantes de 51 países. Nos debates, segundo Gadotti
(1998), surgiram dois enfoques distintos: a educação de adultos concebida como
93
uma continuação da educação formal e como educação permanente e, de outro
lado, a educação de base ou comunitária. A Carta de Montreal, aprovada no
encontro, enfatizou a educação de adultos concebida como educação
permanente. O evento serviu também para cobrar contribuições dos países ricos,
por meio de financiamentos, para a alfabetização nos países pobres.
Neste período, várias campanhas e programas de educação de adultos
foram desenvolvidos no Brasil, destacando-se o MEB Movimento de Educação
de Base, organizado pela CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
com patrocínio do governo federal; os CPC Centros Populares de Cultura da
UNE – Uno Nacional de Estudantes; o Movimento de Cultura Popular do Recife,
entre outros, além do Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da
Educação e Cultura, dirigido por Paulo Freire. Começaram, assim, a ser
reconhecidas as características próprias da educação de adultos, passando a
exigir tratamento específico nos planos pedagógico e didático.
À medida que a tradicional relevância do exercício do direito de
todo cidadão de ter acesso aos conhecimentos universais uniu-se
à ação conscientizadora e organizativa de grupos e atores sociais,
a educação de adultos passou a ser reconhecida também como
um poderoso instrumento de ação política. Finalmente, foi-lhe
atribuída uma forte missão de resgate e valorização do saber
popular, tornando a educação de adultos o motor de movimento
amplo de valorização da cultura popular (HADDAD; DI PIERRO,
2000, p.113).
Durante o curto mandato de nio Quadros (1917-1992), em 1961, teve
início uma nova ação governamental, denominada Mobilização Nacional contra o
Analfabetismo, envolvendo instâncias do governo e da sociedade civil organizada
que utilizaram a radiodifusão para promover mobilizações em torno do tema.
Tanto esta Mobilização, assim como a CNEA Campanha Nacional pela
Erradicação do Analfabetismo, criada em 1958, e outros movimentos existentes
de alfabetização desenvolvidos pelo Estado foram extintos em março de 1963, no
governo de João Goulart (1919-1976), sob o argumento de que a
descentralização das ações voltadas a erradicar o analfabetismo estava
consolidada, não se justificando mais investimentos em atividades concorrentes.
94
Todas estas mobilizações e campanhas em torno do tema da educação de
adultos, promovidas por ações governamentais ou pela sociedade civil
organizada, revelavam que, tradicionalmente,
a educação de jovens e adultos às vezes denominada
simplesmente de “educação de adultos” e, o que é pior, quase
sempre reduzida à expressão “alfabetização de adultos” – desde a
conquista de sua identidade no espaço do Sistema Educacional
Brasileiro, tem sido tratada como campanha ou movimento, com
conotações amadorísticas e voluntaristas, ainda que sua
formulação e implementação tenha sido oficial e tenha se voltado
para objetivos populistas (ROMÃO, 2006, p. 38).
Estes debates e a intensa mobilização em torno da educação de adultos
que ocorriam no início da década de 1960 e que, muito provavelmente, não
exerceram influência sobre Mazzaropi, pois ele continuou a desenvolver
personagens com características de seu Jeca em novas produções, foram
bruscamente interrompidos pelo golpe militar de 1964. A partir de então, os
governos militares reprimiram os movimentos de educação e cultura populares e
perseguiram seus dirigentes. O Estado autoritário pretendeu normalizar” as
relações sociais e assumiu o controle sobre a escolarização de jovens e adultos.
Em nível internacional, na cidade de Teerã, no Irã, ocorreu a realização,
em 1965, do Congresso Mundial de Ministros de Educação, voltado para discutir a
erradicação do analfabetismo no mundo. Esta reunião teve como inovação o
reconhecimento do princípio de que a educação de jovens e adultos deveria ser
considerada como parte integrante do sistema de ensino e incluída nos planos de
desenvolvimento dos Estados.
Dois anos após, em 1967, o governo brasileiro criou o MOBRAL
Movimento Brasileiro de Alfabetização, que
[...] chegava com a promessa de acabar em dez anos com o
analfabetismo, classificado como ‘vergonha nacional’ nas palavras
do presidente militar Médici. Chegou imposto, sem a participação
dos educadores e de grande parte da sociedade. As
argumentações de caráter pedagógico não se faziam necessárias.
Havia dinheiro, controle dos meios de comunicação, silêncio nas
oposições, intensa campanha na dia (HADDAD; DI PIERRO,
2000, p. 113).
95
Outra medida dos militares no campo da educação de adultos foi a criação
do Ensino Supletivo no contexto da elaboração da LDBEN Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, de número 5692, de 11 de agosto de 1971. O
Ensino Supletivo foi elaborado para funcionar como um sistema paralelo ao
ensino regular com funções de suplência, qualificação, aprendizagem e
suprimento. A suplência foi concebida como escolarização compensatória para os
ensinos de e graus, realizada através de cursos e exames; a qualificação
consistiu na preparação de mão-de-obra para o trabalho; a aprendizagem voltou-
se à formação no trabalho ofertada basicamente pelo SENAI Serviço Nacional
da Indústria, e pelo SENAC Serviço Nacional do Comércio; e o suprimento
correspondia à oferta de estudos de aperfeiçoamento e atualização de
conhecimentos. Destes quatro componentes do Ensino Supletivo, a suplência
predominou, “regularizando” a vida escolar dos que, por motivos diferentes,
deixaram de freqüentar o ensino regular em tempos passados. Portanto, o Ensino
Supletivo tinha por objetivos “recuperar o atraso”, reciclar o presente, formando
uma mão-de-obra que contribuísse no esforço para o desenvolvimento nacional,
através de um novo modelo de escola.
Por sua vez, a III CONFINTEA, realizada em Tóquio, em 1972, que reuniu
85 países com mais de 300 representantes, teve como tema: a educação de
adultos no contexto da aprendizagem contínua. Neste encontro, a educação de
adultos (popular) voltou a ser entendida como supncia da educação
fundamental (escola formal)” (GADOTTI, 1998). Assim, o objetivo da educação de
adultos era o de reintroduzir jovens e adultos, especialmente os analfabetos, no
sistema formal de educação. Tamm, nesta conferência, consolidou-se a
concepção de educação permanente, não como paralela à educação de crianças
e jovens, mas como complemento para toda a vida.
A IV CONFINTEA, de 1985, realizada em Paris, foi caracterizada pela
pluralidade de temas ligados à educação de adultos, tais como: alfabetização de
adultos, pós-alfabetização, educação rural, educação familiar, educação da
mulher, educação em saúde e nutrição, educação cooperativa, educação
vocacional e educação técnica. Os conferencistas destacaram como
preocupações centrais o combate ao analfabetismo sob novas alianças entre
instituições governamentais e organizações não-governamentais; a prioridade à
96
educação da mulher; o estabelecimento de vínculos entre a educação formal e a
não formal, na perspectiva da aprendizagem; o impacto decisivo da mass media
na aprendizagem; a necessidade de criatividade e inovação na aprendizagem de
adultos e, finalmente, o analfabetismo funcional nos países industrializados.
No Brasil, no ano de 1985, instalava-se a Nova República representando
um período de democratização das relações sociais e das instituições políticas
brasileiras. No campo da educação, uma das medidas adotadas pelo novo
governo, de José Sarney, foi extinguir o MOBRAL, cujos programas, como explica
Rodrigues (2009, p. 148) “apresentavam-se insuficientes e inadequados para
reduzir os altos índices de analfabetismo registrados no país”. Os conteúdos dos
programas eram padronizados e utilizados em larga escala, provocando
questionamentos porque eles não correspondiam à necessidade pedagógica e
ao direito social de participação no processo educativo.” (RODRIGUES, 2009, p.
148). O MOBRAL foi substituído pela Fundação Educar, que assumiu a
responsabilidade de “articular, em conjunto, o subsistema de ensino supletivo, a
política nacional de educação de jovens e adultos, cabendo-lhes fomentar as
séries iniciais do ensino do 1º grau.” (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 120).
Também em 1985, a UNESCO realizou a sua 23ª Conferência Geral,
abordando como um dos temas centrais o analfabetismo mundial e, em 1987, na
42ª sessão da ONU Organização das Nações Unidas, foi proclamado 1990
como o Ano Internacional da Alfabetização, gerando no Brasil a constituição, em
fins de 1988, da CNAIA Comissão Nacional do Ano Internacional da
Alfabetização, composta por representantes de instituições governamentais e não
governamentais, coordenada inicialmente por Paulo Freire, com o objetivo de
elaborar diretrizes para a formulação de políticas de alfabetização a longo prazo.
O ano de 1990 chegou com um o mero de analfabetos no mundo na
ordem de 962,6 milhões de pessoas (um em cada três adultos).
Mantidas as tendências chegaríamos ao ano 2000 com 942
milhões de analfabetos maiores de 15 anos de idade (cerca de
22% da população mundial). Para este contingente, a América
Latina contribuía com 43,5 milhões de analfabetos (17,6% do total
de analfabetos no mundo). (ROMÃO, 2006, p. 31).
97
Os dados indicavam um índice ainda elevado de analfabetismo, afinal,
aproximadamente, um quinto da população mundial era formada por analfabetos
absolutos, o que exigia uma intensificação de esforços para mudar este quadro.
Neste sentido, no Ano Internacional da Alfabetização, em 1990, realizou-se a
Conferência Mundial sobre Educação para Todos, em Jomtien, na Tailândia, onde
ficou definido que a alfabetização de jovens e adultos deveria ser uma primeira
etapa da educação básica. De acordo com Gadotti (1998, p. 4), consagrou-se a
idéia de que a alfabetização não pode ser separada da pós-alfabetização, isto é,
separada das necessidades básicas de aprendizagem.
Como preparação para esta Conferência, em 1989, ocorreu uma reunião
com representantes de países da América Latina e do Caribe, em Quito, no
Equador, na qual os delegados brasileiros apresentaram uma proposição, a ser
levada à Jomtien, de reconversão da dívida externa em recursos para a educação
de jovens e adultos, que foi aprovada por todos os presentes, mesmo com a
oposição dos representantes do Banco Mundial. Porém, no ano seguinte, a
delegação brasileira indicada para participar da Conferência Mundial recebeu
orientações de membros do governo de Fernando Collor de Melo para não
abordar a questão da dívida externa. Mesmo assim, o Brasil tornou signatário do
documento final aprovado na Conferência, a Declaração Mundial de Educação
para Todos. Para dar conta dos compromissos assumidos em Jomtien, o governo
Collor criou o PNAC Plano Nacional de Alfabetização e Cidadania, apresentado
“com grande pompa publicitária em 1990 e extinta no ano seguinte, sem qualquer
explicação para a Sociedade Civil que o havia apoiado”. (GADOTTI, 1998).
com Itamar Franco no poder, em 1993, após o impeachment de Collor,
representantes brasileiros participaram das reuniões entre os nove países mais
populosos e com maior número de analfabetos, assinando compromissos, junto a
órgãos e agências de financiamento internacionais, de universalização da
Educação Básica de Jovens e Adultos. No mesmo ano, o governo promoveu
consulta a diversos segmentos ligados à educação, resultando na elaboração do
Plano Decenal, que “fixou metas de prover oportunidades de acesso e progressão
no ensino fundamental a 3,7 milhões de analfabetos e 4,6 milhões de jovens e
adultos pouco escolarizados”. (HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 121),
98
Em setembro de 1994, Brasília sediou a Conferência Nacional de
Educação para Todos. Deste encontro, foram aprovados o Acordo Nacional e o
Pacto pela Valorização do Magistério e Qualidade da Educação Básica. Estes
documentos tornaram-se referência para a formulação de programas ou projetos
de educação básica governamentais.
Com Fernando Henrique Cardoso no poder, eleito em 1994, o Plano
Decenal foi abandonado e, em 1996, ocorreu a criação do FUNDEF Fundo de
Manutenção e Desenvolvimento da Educação Fundamental e Valorização do
Magistério.
[...] através da criação do FUNDEF, deu um duro golpe na
educação de jovens e de adultos, vetando o inciso II do artigo
que permitia a Estados e Municípios a inclusão dos alunos
matriculados no ensino supletivo como alunos regulares do ensino
fundamental para efeito da distribuição dos recursos do referido
Fundo. Estados e Municípios foram assim desestimulados a
abrirem vagas para a educação de jovens e de adultos.
(GADOTTI, 1998).
A criação do FUNDEF e outras medidas do governo de Cardoso, ocorriam
simultaneamente aos debates que envolveram a elaboração da nova LDBN Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada pelo Congresso Nacional
no final de 1996. Embora estes debates tenham ganhado impulso no Brasil, nos
primeiros anos da cada de 1990, seus resultados foram pouco considerados no
processo de elaboração da LDBEN, de 9.394, relatada pelo senador Darcy
Ribeiro (1922-1997) que não “tomou por base o projeto que fora objeto de
negociações ao longo dos oito anos de tramitação da matéria e, portanto,
desprezou parcela dos acordos e consensos estabelecidos anteriormente”
(HADDAD; DI PIERRO, 2000, p. 121). Apenas dois artigos na LDBEN foram
dedicados à educação de jovens e adultos, com a seguinte redação:
Art. 37 A educação de jovens e adultos será destinada àqueles
que não tiveram acesso ou continuidade de estudos no ensino
fundamental e médio na idade própria.
§ Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens
e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade
regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as
características do alunado, seus interesses, condições de vida e
trabalho, mediante cursos e exames.
99
§ O Poder Público viabilizará e estimulará o acesso e a
permanência do trabalhador na escola, mediante ações integradas
e complementares entre si.
Art. 38 Os sistemas de ensino manterão cursos e exames
supletivos, que compreenderão a base nacional comum do
currículo, habilitando ao prosseguimento de estudos em caráter
regular.
§ 1º Os exames a que se refere este artigo realizar-se-ão:
I. no nível de conclusão do ensino fundamental, para os maiores
de quinze anos;
II. no nível de conclusão do ensino médio, para os maiores de
dezoito anos.
§ Os conhecimentos e habilidades adquiridos pelos educandos
por meios informais serão aferidos e reconhecidos mediante
exames. (BRASIL, 1996)
Ainda que a Lei tenha dedicado pouca atenção à EJA, ela incorporou uma
mudança conceitual de ensino supletivo para EJA, como explica Soares (2002):
[...] a mudança de “ensino supletivo” para “educação de jovens e
adultos” não é uma mera atualização vocabular. Houve um
alargamento do conceito ao mudar a expressão de ensino para
educação. Enquanto o termo “ensino” se restringe à mera
instrução, o termo “educação” é muito mais amplo,
compreendendo os diversos processos de formação. (SOARES,
2002, p. 12),
No ano seguinte à aprovação a LDBEN 9394/96, em 1997, Hamburgo, na
Alemanha, sediou a V CONFINTEA com a participação de mais de 1500
representantes de 170 países. Pela primeira vez, o evento contou com presença
destacada de organizações não-governamentais que, mesmo não tendo direito a
voto, exerceram grande influência nos debates e na preparação nos documentos
finais aprovados na conferência, entre os quais a Agenda para o Futuro, que
incluiu a Década da Alfabetização Paulo Freire, e a Declaração de Hamburgo.
A Declaração de Hamburgo sobre Educação de Adultos
estabelece a educação de adultos como um direito de todos,
destacando a necessidade de diferenciar as necessidades
específicas das mulheres, das comunidades indígenas e dos
grupos minoritários. A Declaração realçou a importância da
diversidade cultural e da equidade e dos temas da cultura da paz
e da educação para a cidadania e para a democracia, o
desenvolvimento sustentável e a transformação da economia.
Discutiu-se muito: educação de gênero, indígena, das minorias, a
incorporação da temática dos jovens (principalmente em situação
de risco) e a terceira idade, a educação para o trabalho e para a
100
cidadania, o papel dos meios de comunicação e a parceria entre
Estado e Sociedade Civil (GADOTTI, 1998).
A V CONFINTEA revelou as muitas concepções diferenciadas que ainda
existem sobre educação de adultos, porém a concepção aprovada está
explicitada no item III da Declaração de Hamburgo que diz:
A educação de adultos pode modelar a identidade do cidadão e
dar um significado à sua vida. A educação ao longo da vida
implica repensar o conteúdo que reflita certos fatores, como idade,
igualdade entre sexos, necessidades especiais, idioma, cultura e
disparidades econômicas. Engloba todo o processo de
aprendizagem, formal ou informal, onde pessoas consideradas
“adultas” pela sociedade desenvolvem suas habilidades,
enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações
técnicas e profissionais, direcionando-as para a satisfação de
suas necessidades e as de sua sociedade. A educação de adultos
inclui a educação formal, a educação não-formal e o espectro da
aprendizagem informal e incidental disponível numa sociedade
multicultural, onde os estudos baseados na teoria e na prática
devem ser reconhecidos (UNESCO, 1999, p. 17)
Nesta V CONFINTEA, os participantes assumiram o compromisso de
garantir o direito aos cidadãos de todo o planeta à aprendizagem ao longo da
vida, concebida para além da educação e da escolarização formal, incluindo as
“situações informais de aprendizagem presentes nas sociedades
contemporâneas, marcadas pela forte presença da escrita, dos meios de
informação e comunicação” (DI PIERRO, 2005, p. 16).
O Brasil ratificou os acordos estabelecidos na V CONFINTEA e assumiu
novos compromissos com a educação de jovens e adultos. Afinal, embora o país
figurasse entre os dez maiores PIB Produto Interno Bruto, do mundo
apresentava desconfortáveis índices de analfabetismo e de pessoas com baixa
escolaridade. A participação na Conferência de Hamburgo foi importante por
impulsionar a articulação dos diversos segmentos ligados à EJA no Brasil. no
ano anterior à sua realização, em 1996, foram realizadas várias reuniões
regionais e estaduais visando mapear e debater ações governamentais ou de
iniciativa de entidades não governamentais, que estavam sendo desenvolvidas
pelo país no campo da educação de jovens e adultos, culminando na realização
de um grande Encontro Nacional, em Natal, no Rio Grande do Norte. No evento,
foi produzido um documento que retratou a realidade desta modalidade de ensino
101
no que diz respeito ao atendimento aos educandos, dos segmentos envolvidos e
das metas a serem alcançadas.
Em meio ao debate nacional, quando também se discutiu a participação
brasileira na V CONFINTEA, surgiram propostas no sentido de que os encontros
estaduais fossem mantidos com regularidade. Nesta perspectiva, no Rio de
Janeiro foi organizado o primeiro Fórum de Educação de Jovens e Adultos,
exemplo que passou a ser seguido por outros estados da federação, incluindo o
Paraná. Os fóruns constituem-se de espaços plurais de debates sobre o que
acontece na educação de jovens e adultos em níveis estaduais e suas resoluções
são levadas para discussão nos encontros nacionais. Em 1999, o Rio de Janeiro
tornou-se sede do I ENEJA – Encontro Nacional de Educação de Jovens e
Adultos. Outros encontros nacionais vêm ocorrendo, sempre organizados no mês
de setembro, tendo como referência o dia 8, quando se comemora o Dia
Internacional da Alfabetização. No II ENEJA, realizado em 2000, na cidade de
Campina Grande, na Paraíba, o debate girou em torno da definição conceitual de
alfabetização, conforme visto anteriormente.
Também em 2000, ocorreu a regulamentação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a EJA pelo Parecer da CEB mara de Educação Básica do
CNE Conselho Nacional de Educação. Entre os vários temas tratados pelo
Parecer, de número 11, constam a três as funções estabelecidas para a EJA.
A função reparadora, que se refere ao ingresso no circuito dos
direitos civis, pela restauração de um direto negado; a função
equalizadora, que propõe garantir uma redistribuição e alocação
em vista de mais igualdade de modo a proporcionar maiores
oportunidades de acesso e permanência na escola aos que até
então foram mais desfavorecidos; por último, a função, por
excelência da EJA, permanente, descrita no documento como
função qualificadora. É a função que corresponde às
necessidades de atualização e de aprendizagem contínuas,
própria da era em que nos encontramos. Diz respeito ao processo
permanente de “educação ao longo da vida” para citar o Relatório
da Unesco (United Nations Educational, Scientific and Cultural
Organization) para o culo XXI (SOARES, 2002, p. 13, grifos do
autor).
O Parecer da CEB 11/2000, definiu que valem para a EJA as mesmas
diretrizes do ensino regular. De acordo com o relator do Parecer, Carlos Roberto
Jamil Cury:
102
Ora, sendo a EJA uma modalidade da educação básica no interior
das etapas fundamental e média, é lógico que se deve pautar
pelos mesmos princípios postos na LDB. E no que se refere aos
componentes curriculares de seus cursos, ela toma para si as
diretrizes curriculares nacionais destas mesmas etapas exaradas
pela CBE/CNE. Valem, pois, para a EJA as diretrizes do ensino
fundamental e médio. A elaboração de outras diretrizes poderia se
configurar na criação de uma nova dualidade (apud BRASIL,
2000, p. 98).
Contudo, esta sujeição não significa uma reprodução descontextualizada,
como consta no item IX do Parecer, relatado por Cury:
Os princípios da contextualização e do reconhecimento de
identidades pessoais e das diversidades coletivas constituem-se
em diretrizes nacionais dos conteúdos curriculares. Muitos alunos
de EJA têm origens em quadros de desfavorecimento social e
suas experiências familiares e sociais divergem, por vezes, das
expectativas, conhecimentos e aptidões que muitos docentes
possuem com relação a estes estudantes. Identificar, conhecer,
distinguir e valorizar tal quadro é princípio metodológico a fim de
se produzir uma atuação pedagógica capaz de produzir soluções
justas, equânimes e eficazes. A contextualização se refere aos
modos como estes estudantes podem dispor de seu tempo e de
seu espaço. Por isso a heterogeneidade do público da EJA
merece consideração cuidadosa. [...] Diante dos ditames dos
pareceres considerados a regra metodológica é: descontextualizá-
los da idade escolar própria da infância e adolescência para,
aprendendo e mantendo seus significados básicos,
recontextualizá-los na EJA (apud BRASIL, 2000, p. 99)
Para conseguir atender a essas necessidades e interesses, torna-se
necessário implantar e desenvolver projetos pedagógicos que levem em conta a
flexibilidade curricular, com a oferta de ensino em horários e tempos que possam
contemplar as diversas realidades dos educandos. No tratamento dos conteúdos
escolares, o trabalho deve ter tratamento especial, pois, os educandos jovens e
adultos vivem no mundo do trabalho e é através dele que se busca a melhoria das
condições de vida. Segundo Cury “esta premissa é o contexto no qual se deve
pensar e repensar o liame entre qualificação para o trabalho, educação escolar e
os diferentes componentes curriculares” (apud BRASIL, 2000, p. 99). Outra
premissa básica é a necessária capacitação docente da EJA, que deve
contemplar, além das exincias formativas para todo e qualquer professor,
aquelas relativas à complexidade diferencial desta modalidade de ensino.
103
O Parecer da CEB e o Plano Nacional de Educação foram temas de
debates o III ENEJA, realizado em Campinas, no Estado de São Paulo, em 2001.
no IV ENEJA, que ocorreu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 2002, as
discussões tiveram como foco principal a construção de diretrizes e bases da EJA
e a sua inserção nos planos estaduais e municipais de educação. O V ENEJA,
viabilizado em Cuiabá, no Mato Grosso, em 2003, posicionou-se frente à política
do governo Lula referente à alfabetização de jovens e adultos no país. Como
observado, amplos debates foram ocorrendo nos finais do século XX e nos anos
inauguradores do presente século. Muitos do temas discutidos também foram
tratados pela mídia e extrapolaram os círculos especificamente educacionais. E
foi neste contexto, que o filme Narradores de Javé, lançado em 2003, foi sendo
construído. de se pensar que os produtores da obra cinematográfica tiveram
conhecimento, pelo menos em parte, de tais discussões envolvendo a
alfabetização e a educação de jovens e adultos no Brasil e no exterior, na medida
em que os fatos ocorridos em torno da produção do filme, relatados
anteriormente, bem como o próprio enredo, revelaram significativas semelhanças
entre a ficção e a realidade.
Assim, as práticas desenvolvidas nos fóruns estaduais e encontros
nacionais, movimentos sociais e organizações não-governamentais foram dando
novos significados à Educação de Jovens e Adultos. Das concepções e ações
delas derivadas com características preconceituosas das décadas de 1940 e
1950, da época de Mazzaropi e do seu Jeca, às atuais, que buscam garantir aos
homens e às mulheres analfabetas, como os moradores de Javé, o direito
subjetivo que eles têm à educação pública de qualidade.
104
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a educação e o cinema dialoguem muito tempo e a discussão
desta interface tenha conquistado espaço nos meios acadêmicos nos últimos
anos, particularmente no Brasil a educação sempre falou mais do cinema do que
o cinema tratou da educação. O cinema norte-americano, de Hollywood, por
exemplo, desde o final da Segunda Guerra Mundial aborda temas relacionados à
educação, produzindo, em particular, ‘filmes de escola’ que, como explica Duarte
(2002, p. 85), “trazem para as telas problemas e dilemas escolares e tentam fazer
valer sua versão do que acontece do lado de dentro dos muros da escola”. no
Brasil, poucas obras cinematográficas tematizam a escola e quando o fazem, os
assuntos escolares não o centrais no enredo, como por exemplo: Das Tripas
Coração (1982), produzido pela Crystal Cinematográfica e Embrafilme, com
roteiro e direção de Ana Carolina
40
, cuja história se desenvolve em torno de um
sonho que teve um interventor escolar designado para encerrar as atividades de
um internato feminino com as alunas, professoras e funcionárias da instituição; e
Anjos do Arrabalde: as Professoras (1987), produzido por Cinematográficas
Galante e Transvídeo, com roteiro e direção de Carlos Reichenbach
41
, que conta
os dramas pessoais vividos por três professoras que atuam na periferia de São
Paulo, convivendo com a pobreza e a violência do local. Por outro lado, podem
ser encontradas muitas produções realizadas em diferentes épocas que
apresentam, em segundo plano, situações relacionadas a processos de
escolarização ou que, de forma superficial, denotam a ausência da educação para
as camadas mais pobres da população ou, ainda, as que, em algum momento, no
transcorrer do enredo, fazem referência ao analfabetismo e/ou ao analfabeto,
como é o caso de alguns filmes de Amácio Mazzaropi (1912-1981). Seu
personagem mais bem sucedido, o caipira Jeca é declaradamente analfabeto. Em
tempos mais recentes, com a chamada Retomada do Cinema Nacional, novos
40
Ana Carolina Teixeira Soares nasceu em São Paulo, em 1949. Realizou, entre outros filmes, Mar de Rosas
(1977) e os curtas Nelson Pereira dos Santos (1970) e Guerra do Paraguai (1970).
(MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
41
Carlos Reichenbach nasceu em Porto Alegre, em 1945. Realizou, entre outros filmes, Falsa Loura (2007),
Bens confiscados (2005) e Garotas do ABC (2004). (MEUCINEMABRASILEIRO, 2009).
105
filmes m discutindo importantes temas sociais, entre os quais os que
perpassam por questões educacionais. Nesta linha, situa-se Narradores de Javé
(2003), cujos personagens, em sua imensa maioria, são analfabetos e
pertencentes às camadas menos favorecidas da população.
Selecionar como fontes de pesquisa estes dois filmes: Jeca Tatu (1959) e
Narradores de Javé (2003) e reunir documentos da legislação da educação
básica e da EJA, constituíram a primeira tarefa deste estudo. Em seguida,
procedeu-se a descrição e análise de ambas as produções, o que exigiu examinar
obras de historiadores do cinema, de críticos cinematográficos e de educadores
que trabalham com a interface cinema e educação. Para se compreender como
os analfabetos são representados em ambos os filmes, buscou-se subsídios em
teóricos que tratam de temas como noções de representação, apropriação e de
práticas culturais, situados no campo da Nova História Cultural, assim como foi
indispensável pesquisar obras de autores que produzem conhecimento na área
da alfabetização e da educação de jovens e adultos. Da mesma forma,
investigou-se na historiografia da educação a trajetória histórica de processos de
escolarização voltados à educação de jovens e adultos no Brasil, estabelecendo
relação com fatos correlatos no exterior.
Todo este percurso objetivou encontrar respostas para as indagações
formuladas no início desta dissertação, entre as quais, a que busca entender
como os analfabetos estão sendo representados nos filmes selecionados, que
concepções de analfabetismo e do seu contrário, o alfabetismo, fundamentam as
representações de analfabetos encenadas nestes filmes e se tais concepções
podem ter subsidiado discursos de movimentos sociais e/ou de órgãos públicos
ligados a processos educacionais, como os da EJA.
No que se refere ao filme Jeca Tatu (1959), observou-se que o
personagem central Jeca diferencia-se, em rios aspectos, do personagem
original criado por Monteiro Lobato (1882-1948) na literatura. O Jeca lobatiano é
apresentado como um caboclo feio e grotesco, desprovido de força de vontade e
de senso estético, bêbado, ignorante e preguiçoso, que vive do que a natureza
dá, sem gastar energia para alcançar qualquer objetivo na vida, um urupê, ou
seja, um fungo que se desenvolve sobre troncos caídos e apodrecidos. Para
Lobato (1948, p. 235) o Jeca é “um funesto parasita da terra, [...] espécie de
106
homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela
na penumbra das zonas fronteiriças.” O escritor responsabiliza Jeca pelo que ele
entende como atraso do país e contrapõe ao caipira o imigrante italiano como
mbolo do progresso que chega ao Brasil junto com a via férrea, o arado e a
valorização da propriedade. Passados alguns anos, o criador do Jeca pede
desculpas à sua criação, pois ele não sabia que a indolência do caboclo era fruto
de doenças como, por exemplo, do amarelão. Monteiro Lobato, ao criar o
personagem Jeca Tatu, tinha como referência o trabalhador do campo brasileiro
que, de acordo com a sua visão, era incapaz de trabalhar racionalmente por estar
doente biologicamente e, em decorrência, moralmente. O escritor falava de um
lugar, do Vale da Ribeira, no estado do São Paulo, onde ele morava e onde se
localizava, como explica Cândido (1982, p. 79) “um lençol de cultura caipira.
Cultura ligada a formas de sociabilidade e de subsistência que se apoiavam em
soluções mínimas, apenas o suficiente para manter a vida dos indivíduos.” Com
variações locais, esta população caipira espalhava-se por regiões que abrangia
parte de Minas Gerais, Goiás e até mesmo Mato Grosso. Um grande contingente
destes caipiras, analfabetos em sua imensa maioria, migrou para as cidades,
passando a interagir social e culturalmente com a população urbana. Uma das
formas desta interação ocorreu por meio das artes, como a música, a moda de
viola, apresentada e veiculada em programas de rádio e de auditórios e em outros
espaços, como o circo, por exemplo. Nestes meios, apareceram também os
contadores de causos, os comediantes, como Mazzaropi (1981), que, por sua
vez, concebia o caipira como “um homem comum, inteligente, sem preparo.
Alguém muito vivo, bom chefe de família. A única coisa diferente é que ele não
teve escola, mas, no fundo, ele pode dar muita lição a muita gente da cidade”.
A visão do caipira em Mazzaropi difere, em muitos aspectos, à de Lobato,
especialmente no que se refere à sua vivacidade e à inteligência preconizada pelo
comediante e negada pelo escritor. Contudo, ambos afirmavam o seu despreraro,
em outras palavras, à falta de escolarização do caipira, o que faz dele alguém
ignorante, bronco”, que situa-se à margem da sociedade. Esta visão coincide
com os discursos de educadores e gestores da educação como os responsáveis
pela organização da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos, lançada
em 1947 e levada a efeito ao longo de toda a década de 1950, que concebiam o
107
seu público alvo, o analfabeto, em grande parte, o migrante alocado na periferia
das médias e grandes cidades, como alguém que, sem preparo adequado para
“as atividades convenientes à vida adulta e, incapaz de integrar-se nos padrões
culturais, é colocado à margem como elemento sem significação nos
empreendimentos comuns”. (PAIVA, 1987, p. 186). Tais discursos revelam
concepções sobre a alfabetização que a entendem como ação educacional
imprescindível para a integração do indivíduo à sociedade, visando o
desenvolvimento e a modernização do país, o que exige “desorganizar as culturas
tradicionais consideradas elementos de atraso” (FERNANDES, 2002, p. 36).
Este conflito entre o “modernoe o “atrasado” está evidente no filme Jeca
Tatu, que mostra o convívio nada harmonioso entre dois vizinhos de cerca: de um
lado, o imigrante italiano Giovani, que vive com sua família letrada em uma
mecanizada e produtiva fazenda, e de outro, o analfabeto Jeca e seus familiares
que sobrevivem em terras inadequadamente aproveitas. No final do filme, Jeca
supera a sua condição miserável e se torna um rico fazendeiro, porém ao estilo
dos coronéis. Neste aspecto, permanece a relação dicotômica entre a
modernidade, representada pelo italiano, e o atraso, simbolizado pelo Jeca
travestido de coronel que, ao não se espelhar no imigrante, recusa-se ao trabalho
disciplinado e mantém a sua condição de preguiçoso e vivaldino.
Contudo, a superação da condição social do personagem Jeca ocorreu por
conta da ação dos caipiras do povoado, os trabalhadores do campo, que o
ajudaram a obter terras e que, em mutirão, construíram a sua nova moradia. Mas,
o personagem Jeca não é um deles. Jeca é incomum. Tendo que aproximar o
personagem do cinema ao da literatura, Mazzaropi criou um estereótipo do caipira
misturando vários elementos, tanto do personagem de Lobato quanto da sua
própria idéia de caipira e, tamm, é de se supor, das concepções sobre o
analfabeto presentes nos debates educacionais e que permeavam a memória
social no período em Mazzaropi foi concebendo o seu personagem
cinematográfico. O Jeca mazzaropiano é desajeitado, grotesco, machista e
preguiçoso, porém, inteligente, esperto e bom pai de família. Um caipira criado
para divertir platéias e que é substancialmente diferente daqueles que aparecem
em segundo plano no filme, definidos pelo próprio Mazzaropi (1981) como
homens comuns, analfabetos, mas capazes de dar lição de vida a muita gente.
108
São estes caipiras coadjuvantes que, de fato, representam, de uma forma
muita próxima da realidade, os homens e as mulheres do campo daquela época
e, a mesmo, os dos dias atuais. Contudo, é notório que a idéia de caipira
presente com vigor na memória social dos brasileiros é aquela associada à figura
do Jeca. Na prática cotidiana dos educadores da EJA, por exemplo, como é o
caso deste mestrando, o é difícil presenciar, em momentos de descontração,
educandos chamarem de Jeca os seus colegas de sala com histórico de origem
rural. Dessa forma, Mazzaropi com o seu Jeca, embora seja plausível afirmar que
não intencionalmente, contribuiu significativamente para a construção do
preconceito social contra o analfabeto. Afinal, como mostram Galvão e Di Pierro
(2007), a disseminação deste preconceito ocorre, em grande parte, pela mídia, o
que inclui o cinema, como o de Mazzaropi, que ao longo do tempo ajudou a
propagar concepções preconceituosas como as que associam o analfabeto ao
ignorante, no sentido da ausência total de saber; ao grosseiro; ao homem rude,
de maus modos. Segundo as autoras, ainda nos dias atuais a mídia veicula
expressões que auxiliam a cristalizar certos sentidos atribuídos ao analfabetismo
como, por exemplo, as que o associam à cegueira, ou então, as que o concebem
como praga, chaga, doença, passível de erradicação ou as que o declaram como
inimigo do desenvolvimento e que, como tal, deve ser combatido, vencido,
derrotado. Tais expressões também podem ser facilmente encontradas em muitos
discursos políticos e, não raro, nos meios educacionais.
Outra questão a observar é que nos debates sobre a educação ocorridos,
principalmente, a partir da realização do II Congresso Nacional de Educação de
Adultos, no Rio de Janeiro, em 1958, antes mesmo da produção do filme Jeca
Tatu (1959), começaram a despontar novas concepções sobre o sujeito
analfabeto como as preconizadas por Paulo Freire (1982), que o entende como
aquele que domina o repertório da oralidade com o qual transita dentro de seu
mundo e o apreende em suas significações e que, agindo como ser cultural, o
ressignifica, não necessitando, neste seu mundo, do instrumento da escrita.
Porém, quando a escrita se impõe a este sujeito, como é o caso do caipira
analfabeto que migra para a cidade, este passa a ser visto, dentre outras
maneiras preconceituosas, como um homem perdido a quem é necessário salvar
e a sua salvação está em que consinta em ser alfabetizado, ou seja, ir sendo
109
‘enchido’ por estas palavras, meros sons milagrosos, que lhe o presenteadas
ou impostas pelo alfabetizador” (FREIRE, 1982, p. 14). Ao longo do tempo, a
partir do aprofundamento de estudos acadêmicos sobre a alfabetização e a
escolarização de jovens e adultos, do incremento de debates envolvendo
educadores, gestores da educação, representantes de órgãos governamentais e
de outros segmentos sociais em encontros, fóruns e em tantos outros eventos
educacionais, conquistou cada vez mais espaço a compreensão de que ninguém,
como ensina Freire (1982, p. 19), “é analfabeto por eleição, mas como
consequência das condições objetivas em que se encontra”. Ou seja, em certas
circunstâncias, o analfabeto é o homem ou a mulher que não tinha necessidade
da leitura, em outras, é aquela ou aquela a quem foi negado o direito de ler. No
filme Narradores de Javé (2003), os habitantes do lugarejo, em sua maioria
analfabetos, viviam o seu cotidiano tranquilamente aa chegada da notícia da
construção da represa. A partir de então, a escrita se impôs a estas pessoas, pois
passou a ser requerida para a redação do dossiê “salvador”, que acabou não
sendo produzido. Quando o domínio da escrita se tornou imprescindível naquele
lugarejo, onde predominava a oralidade, a solução foi recorrer ao seu único
morador que fazia uso das práticas sociais da leitura e da escrita, Antonio Biá.
Diante deste quadro, constata-se, então, que entre os habitantes de Javé
existia um único letrado ou, em outros termos, alfabetizado em nível pleno, o que
leva à supor, para muito além das intenções dos realizadores do filme, que a
quase totalidade dos demais moradores não tiveram acesso à processos de
alfabetização, fato revelador da ausência da oferta de escolarização no local,
implicando afirmar que a estes sujeitos sociais foi negado o direito à educação.
Esta questão do direito à educação tem sido central nas discussões que
fundamentam novas concepções acerca do analfabeto na contemporaneidade e
que embasam a elaboração de políticas públicas voltadas à oferta de
oportunidades educacionais para os jovens e adultos na atualidade,
especialmente a partir da promulgação da Constituição de 1988. No capítulo
referente à educação, o texto constitucional passou a garantir às pessoas de
qualquer idade o direito público subjetivo ao ensino fundamental público e
gratuito, extensivo ao ensino médio, direito este entendido como “aquele pelo qual
o titular de um direito pode exigir imediatamente o cumprimento de um dever e de
110
uma obrigação.” (SOARES, 2002). Além disso, os debates educacionais mais
atualizados têm enfatizado o direito de todos à educação ao longo da vida. É
neste contexto que o filme Narradores de Ja (2003) foi produzido e,
independentemente das preocupações de seus produtores com temas
educacionais, a produção finalizada constituiu-se em uma obra cinematográfica
de grande valor para a educação, especialmente para este trabalho, que analisou
as representações do analfabeto presentes no filme, constatando importantes
semelhanças entre os personagens fictícios e os sujeitos sociais que frequentam
as salas de aula da EJA – Educação de Jovens e Adultos.
Enfim, Jeca Tatu (1959) e Narradores de Ja (2003) apresentam
diferentes representações do analfabeto, tanto entre os dois filmes quanto neles
mesmos, revelando diferenciadas concepções sobre o analfabetismo e a
alfabetização que, por estarem presentes na memória social, na legislação
educacional e em discursos políticos e educacionais nos tempos e contextos
históricos em que as obras cinematográficas foram realizadas, subsidiaram, com
grande possibilidade, o processo de criação e produção da ambos os filmes.
Concluindo, é pertinente destacar que a produção desta dissertação se
constituiu em um grande desafio para o seu autor, que procurou transitar por dois
amplos campos de conhecimento: a educação e o cinema, buscando estabelecer
uma interface entre ambos a partir de uma relação específica que se traduziu na
análise da representação do analfabeto nos filmes selecionados, fundamentando-
se na legislação educacional e na historiografia do cinema, da educação e,
especificamente, da EJA. O autor tem plena consciência do muito que poderia ter
sido aprofundado tanto na análise dos filmes quanto no exame das relações
possíveis de serem estabelecidas entre as fontes cinematográficas e legislativas.
Desse modo, considera que esta pesquisa não está esgotada e que muito ainda
pode ser feito. Contudo, espera que o aqui realizado, dentro das suas limitações,
possa ter contribuído para a história e a historiografia da educação assim como
para o estudo da modalidade da educação de jovens e adultos.
111
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120
ANEXOS
121
122
JECA TATU – FICHA TÉCNICA
Categoria
Longa-metragem / Sonoro / Ficção
Material original: 35mm, BP, 90min, 2.550m, 24q, Eastman
Data e local de produção: Ano: 1959
País: BR
Cidade: São Paulo
Estado: SP
Certificados
Certificado de Censura Federal n. 49.920, de 15.01.1960. Recensurado em
26.05.1965, 4 cópias, 100m, trailer.
Sinopse
Jeca Tatu perde seus bens por conta de intrigas armadas pelo capataz de uma
fazenda vizinha, cujo filho do proprietário namora a filha do caipira. Auxiliado por
um político demagogo da cidade, o caipira recupera seus bens, desmascara o
capataz e enriquece.
Gênero: Comédia
Termos descritores: Literatura; Fazenda; Política
Descritores secundários: Adaptação para cinema; Lobato, Monteiro
Termos geográficos: Pindamonhangaba - SP
Produção: Direção de produção: Aidar, Felix
Argumento/roteiro: Argumento: Mazzaropi, Amacio
Roteiro: Amaral, Milton
Estória: Baseada no conto <Jeca Tatuzinho> de <Lobato, Monteiro>
Direção: Amaral, Milton
Continuidade: Soares, José
Direção de fotografia: Icsey, Rodolfo
mera: Pfister, George
Assistência de câmera: Alfonso, Marcial; Fermenia, Hector
123
Fotografia de cena: Amaral, José
Foco: Alfonso, Marcial
Som: Engenharia de som: Hack, Ernest; Varnowski, Constantino
Montagem
Edição: Alice, Mauro
Editor musical: Soares, José
Dados adicionais de direção de arte
Maquiagem: Viveiros, Maury
Música
Direção musical: Fietta, Hector Lagna
Canção
Título: Estrada do sol;
Autor da canção: Jobim, Antonio;
Intérprete: Rayol, Agnaldo;
Título: Tempo para amar;
Autor da canção: Jorge, Fred;
Intérprete: Campello, Tony;
Título: Ave Maria;
Autor da canção: Paiva, Vicente;
Intérprete: Bittencourt, Lana;
Título: Fogo no rancho;
Autor da canção: Santos, Elpidio dos;
Intérprete: Mazzaropi, Amacio;
Título: Pra mim o azar é festa
Autor da canção: Pereira, João Izidoro
Intérprete: Mazzaropi, Amacio
Locação: Sapucaia, Pindamonhangaba - SP; Coruputuba, Pindamonhangaba -
SP
Identidades/elenco:
Mazzaropi, Amacio
Prado, Geny
Duval, Roberto
124
Guzzardi, Nicolau
Viana, Nena
França, Marlene
Souza, Francisco de
Rony, Miriam
Rocha, Marlene
Pirolito
Mathias, Marthus
Saraiva, Hamilton
Soares, Jo
Almeida, Hernani
Campos, Homero Souza
Wardi, Eliana
Marilú
Calampito
Ribeiro, Augusto Cezar
Ferrari, Argeu
Barboza, Claudio
Barboza, Humberto
Amadei, Newton Jaime S.
Conteúdo examinado: S
Fontes utilizadas:
CB/Transcrição de letreiros
Observações:
Os letreiros informam: "Uma sincera homenagem ao saudoso <Lobato,
Monteiro>."
Fonte:
BRASIL. Ministério da Cultura. Cinemateca Brasileira. Filmografia Brasileira.
São Paulo, 2009. Disponível em: <www.cinemateca.org.br>. Acesso em: mar.
2009.
125
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NARRADORES DEJAVÉ – FICHA TÉCNICA
Título Original: Narradores de Javé
Gênero: Drama
Tempo de Duração: 100 minutos
Ano de Lançamento (Brasil): 2003
Estúdio: Bananeira Filmes / Gullane Filmes / Laterit Productions
Distribuição: Riofilme
Direção: Eliane Caffé
Roteiro: Luiz Alberto de Abreu e Eliane Caffé
Produção: Vânia Catani
Música: DJ Dolores e Orquestra Santa Massa
Fotografia: Hugo Kovensky
Direção de Arte: Carla Caffé
Edição: Daniel Rezende
Elenco
José Dumont (Antônio Biá)
Matheus Nachtergaele
Gero Camilo
Nélson Dantas
Rui Resende
Nélson Xavier
Luci Pereira
Jorge Humberto e Santos
Sinopse
Somente uma ameaça à própria existência pode mudar a rotina dos habitantes do
pequeno vilarejo de Javé. É aí que eles se deparam com o anúncio de que a
cidade pode desaparecer sob as águas de uma enorme usina hidrelétrica. Em
resposta à notícia devastadora, a comunidade adota uma ousada estratégia:
decide preparar um documento contando todos os grandes acontecimentos
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heróicos de sua história, para que Javé possa escapar da destruição. Como a
maioria dos moradores são analfabetos, a primeira tarefa é encontrar alguém que
possa escrever as histórias.
Premiações
Ganhou 2 prêmios no Grande Prêmio Cinema Brasil, nas seguintes categorias:
Melhor Ator Coadjuvante (Gero Camilo) e Melhor Roteiro Original. Recebeu ainda
outras 9 indicações, nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Diretor,
Melhor Ator (José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Nélson Xavier), Melhor
Figurino, Melhor Trilha Sonora, Melhor Direção de Arte, Melhor Edição e Melhor
Fotografia.
Ganhou 3 prêmios no Festival do Rio, nas seguintes categorias: Melhor Filme -
Júri Oficial, Melhor Filme - Júri Popular e Melhor Ator (José Dumont).
Recebeu o Prêmio da Crítica no Festival Internacional de Friburgo, realizado na
Suíça.
Ganhou 7 Troféus Calunga e ainda recebeu o prêmio da crítica e o Prêmio
Gilberto Freyre no Cine PE - Festival do Audiovisual 2003. Os troféus foram nas
seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Direção, Melhor Edição, Melhor Ator
(José Dumont), Melhor Ator Coadjuvante (Gero Camilo), Melhor Edição de Som e
Melhor Atriz Coadjuvante (Luci Pereira).
Curiosidades
Recebeu financiamento do Hubert Bals Fund, fundo ligado ao Festival de Roterdã,
para o desenvolvimento do roteiro do filme.
Foi rodado entre junho e setembro de 2001 em Gameleira da Lapa, cidade do
interior da Bahia.
Teve sua première mundial no Tiger Competition do Festival Internacional de
Cinema de Roterdã.
Fonte:
BRASIL. Ministério da Cultura. Cinemateca Brasileira. Filmografia Brasileira.
São Paulo, 2009. Disponível em: <www.cinemateca.org.br>. Acesso em: mar.
2009.
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