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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
EXPEDITO ELOÍSIO XIMENES
ESTUDO FILOLÓGICO E LINGUÍSTICO DAS UNIDADES
FRASEOLÓGICAS DA LINGUAGEM JURÍDICO-CRIMINAL DA
CAPITANIA DO CEARÁ NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Fortaleza
2009
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EXPEDITO ELOÍSIO XIMENES
ESTUDO FILOLÓGICO E LINGUÍSTICO DAS UNIDADES
FRASEOLÓGICAS DA LINGUAGEM JURÍDICO-CRIMINAL DA
CAPITANIA DO CEARÁ NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal do Ceará
como requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Linguística.
Área de concentração: Descrição e análise
linguística.
Orientador: Profa. Dra. Emilia Maria Peixoto
Farias.
Fortaleza
2009
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Ximenes, Expedito Eloísio
Estudo filológico e linguístico das unidades fraseológicas
da linguagem jurídico-criminal da Capitania do Ceará nos
séculos XVIII e XIX / Expedito Eloísio Ximenes. -- 2009.
405 f.: il. ; 31 cm.
Tese (Doutorado) Universidade Federal do Ceará.
Centro de Humanidades. Doutorado em Liguística, Fortaleza-
CE, 2009.
Orientação: Prof.
a
Dr.
a
Emilia Maria Peixoto Farias.
1. Edição semidiplomática. 2. Estudo filológico. 3.
Contexto histórico-social. 4. Unidades Fraseológicas. I.
Farias, Emilia Maria Peixoto (Orient.). II Universidade
Federal do Ceará. Doutorado em Liguística. III Título.
CDD (22 ed.):
EXPEDITO ELOÍSIO XIMENES
ESTUDO FILOLÓGICO E LINGUÍSTICO DAS UNIDADES
FRASEOLÓGICAS DA LINGUAGEM JURÍDICO-CRIMINAL DA
CAPITANIA DO CEARÁ NOS SÉCULOS XVIII E XIX
Tese submetida ao programa de Pós-Graduação em
Linguística da Universidade Federal do Ceará
como requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Linguística.
Aprovada _____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________
Profa. Dra. Emilia Maria Peixoto Farias (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________________
Profa. Dra. Cleci Regina Bevilacqua
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
__________________________________________________
Profa.Dra. Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).
__________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Luciano Pontes
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
__________________________________________________
Profa. Dra. Bernardete Biasi-Rodrigues
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________________
Profa. Dra. Maria Elias Soares (Suplente)
Universidade Federal do Ceará (UFC)
__________________________________________________
Prof. Dr. Marco Aurélio Ferreira da Silva (Suplente)
Universidade Estadual do Ceará (UECE)
Aos meus pais, Raimundo e Helena.
Especialmente aos padres Francisco Pinto, que
derramou seu sangue em terras cearenses, e Luis
Figueira, por nos deixar o primeiro registro da
história do Ceará.
AGRADECIMENTOS
A Deus, por sempre me conduzir em seus braços.
Aos meus pais e aos meus irmãos e todos os meus familiares.
Aos mestres do Programa de Pós-Graduação em Linguística da UFC.
Aos professores que passaram pela coordenação da Pós-Graduação, principalmente à
À Profa. Dra. Eulália Vera Lúcia Fraga Leurquin pela sua enorme disponibilidade em me
ajudar na minha viagem a Portugal.
Aos funcionários auxiliares da coordenação por seus serviços prestados a todos os alunos.
Aos bons amigos que sempre estão próximos, mesmo que morem distantes.
À FUNCAP pela concessão de dois anos de bolsa de estudos.
À CAPES pela bolsa de estágio de doutorado sanduíche no exterior.
À Profa. Dra. Rita Marquilhas pela coorientação na Universidade de Lisboa.
À minha sempre disponível e acolhedora Profa. Dra. Emília Maria Peixoto Farias, pela
orientação e convívio neste período.
Aos membros do grupo TRADICE (Tradições Discursivas do Ceará), pelas trocas de
conhecimento.
Aos funcionários e dirigentes do Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC), pela gentileza e
disponibilidade.
Aos colegas pesquisadores que muitas vezes fazem da sala de pesquisa do APEC uma sala de
aula em que aprendemos muito sobre diversos conhecimentos.
Aos funcionários da Torre do Tombo em Portugal, sempre gentis e amigos durante o período
em que lá estive.
Aos meus alunos da UECE FECLESC de Quixadá, razão de investimento nessa pesquisa.
À professora Lourdes Bernardes pela contribuição e acolhimento muitas vezes em seu gabinete.
À amiga Raíssa Emir Maia, pela criteriosa correção.
À Eliene Moura, pela revisão técnica.
Enfim, meus sinceros agradecimentos a todos que me ajudaram mesmo sem o saber para a
realização deste estudo.
Estreitas e múltiplas são as relações entre a ngua
e a cultura. Desde logo, a ngua é a primeira
manifestação da cultura de um grupo, tanto é
verdade que, a seu modo, lhe reflecte o nível
mental, as ocupações dominantes, o espírito, as
características psicológicas, os hábitos, o
temperamento. Produtos histórico-culturais, as
línguas documentam as vicissitudes da formação
de um povo, principalmente no que diz à
Semântica.
(MELO, 1974, p. 131)
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo o estudo filológico e linguístico das unidades fraseológicas
(UFs) da linguagem especializada do judiciário colonial brasileiro, referente aos culos XVIII
e XIX. O estudo consta da edição semidiplomática dos documentos que compõem o corpus de
análise, que é constituído por 133 Autos de Querela escritos entre 1779 e 1829. Consta,
também, da descrição estrutural dos documentos, da contextualização histórica do Ceará, da
análise e interpretação dos dados histórico-sociais relativos aos sujeitos citados e aos tipos de
crimes praticados. Inclui ainda o glossário das UFs usadas nos processos jurídicos. Para a
seleção das UFs utilizamos o programa WordSmith Tools, instrumento eletrônico da Linguística
de Corpus que nos possibilitou estabelecer as frequências de ocorrência para a classificação de
uma UF. A partir dos dados, organizamos o glossário seguindo os padrões estabelecidos para a
organização da microestrutura dos verbetes. Estes são constituídos de entradas, definições,
contextos de ocorrência e sistema de notas acompanhadas de rias explicações que ajudam a
compreender melhor o sentido e o uso das UFs. A pesquisa contribui para os estudos
filológicos cujo objeto é o texto escrito, analisado sob diferentes dimensões, tanto linguística
quanto extralinguística, quando consideramos as realidades sócio-históricas e culturais que
refletem as tradições de um povo.
Palavras-chave: Auto de querela. Edição semidiplomática. Estudo filológico. Contexto
histórico-social. Unidades Fraseológicas.
ABSTRACT
This research aims at a philological and linguistic study of the phraseologic units (PU’s) related
to the specialised language used in Brazilian colonial judicial system, relative to XVIII and
XIX centuries. The study comprises the semi-diplomatic edition of the documents that compose
the analysis corpus, composed of 133 Autos de Querela (registers of conflicts) written between
1779 and 1829. It also comprises the structural description of the documents, the historical
contextualization of the state of Ceara, the analysis and interpretation of social-historical data
related to parties served and to the types of crimes perpetrated. It also includes a glossary of the
PU’s used in law processes. For the selection of the PU’s we used the WordSmith Tools
software, an electronic tool of Corpus Linguistics, which enabled us to establish occurrence
frequencies for the classification of a PU. The research contributes to the philological studies,
in the interdisciplinary perspective, whose object is the written text, analysed under different
dimensions, be them linguistic or extralinguistic, by considering the cultural and socio-
historical realities which reflect the tradition of a people.
Keywords: Auto de querela. Semi-diplomatic edition. Philological study. Social-historical
context. Phraseologic Units.
LISTA DE FIGURAS
1- Estrutura dos Autos de Querela ............................................................................................................88
2- Distribuição das partes constituintes dos autos e seus conteúdos.........................................................89
3-Tradições discursivas, esquema apresentado por Kabatek (2006b, p. 508) ........................................122
4- Das evocações Kabatek (2006b, p. 511) .........................................................................................125
5- Foto 1 parte de um Auto de Querela ...............................................................................................193
6- Foto 2 Conclusão de um Auto de Querela e as custas ...................................................................194
7- Foto 3 Termo de abertura do códice 1461 ......................................................................................195
8- Foto 4 Termo de encerramento do códice 1461 ..............................................................................195
LISTA DE QUADROS
1- Quadro que mostra as estruturas fraseológicas apresentadas por Pavel......................................113
2- Índice dos documentos no APEC................................................................................................176
3- Ficha de identificação dos sujeitos Querelantes.......................................................................201
4- Ficha de Identificação dos sujeitos Querelados ......................................................................203
5- Ficha de Identificação dos sujeitos Testemunhas.....................................................................204
6- Ocorrências da palavra AUTO e a sua concordância ................................................................207
7- Frequência de palavras mais usadas no corpus ..........................................................................208
8- Ocorrências do Concordance da palavra Auto em 25 casos ....................................................209
9- Ocorrências do Concordance da palavra mercê e suas variantes ...............................................210
10- Síntese da estrutura dos autos ...................................................................................................222
11- Quadro que demonstra as macro e a microestuturas do glossário ...........................................226
12- Representação de todos os sujeitos relacionados nos autos .....................................................232
13- Sexo dos querelantes ................................................................................................................233
14- Idade dos querelantes ...............................................................................................................235
15- Ocupação dos querelantes .......................................................................................................236
16- Etnia ou cor da pele dos querelantes ........................................................................................239
17- Estado civil dos querelantes .....................................................................................................239
18- Localidades onde moravam os querelantes ..............................................................................242
19- Local de registro das denúncias .................................................................................................244
20- Grau de instrução dos querelantes...............................................................................................244
21- Sexo dos querelados .................................................................................................................246
22- Ocupação ou ofício dos querelados ..........................................................................................247
23- Etnia/cor da pele ou condição social dos querelados .............................................................248
24- Estado civil dos querelados ......................................................................................................250
25- Motivos de acusação dos crimes ..............................................................................................256
26- Instrumentos usados nos crimes ...............................................................................................259
27- Local de morada dos querelados ..............................................................................................260
28- Sexo das testemunhas ...............................................................................................................262
29- Idade das testemunhas ..............................................................................................................263
30- Ocupação/ofício ou de que vivem as testemunhas ...................................................................267
31- Etnia/cor da pele ou condição social das testemunhas ...............................................................268
32- Censo da população em 1804 ......................................................................................................270
33- Estado civil das testemunhas ......................................................................................................271
34- Grau de instrução das testemunhas ..........................................................................................271
35- Local de morada das testemunhas...............................................................................................272
36- Etnia ou cor da pele das parteiras ...............................................................................................275
37- Estado civil das parteiras.............................................................................................................275
38- Local de morada das parteiras ....................................................................................................276
39- Dos tipos de escrivães e tabeliães ...............................................................................................282
40- Os tipos de cirurgiões .................................................................................................................290
41- Local de residência dos cirurgiões .............................................................................................292
42- Tipos de juiz ...............................................................................................................................303
43- Censo da população do Ceará no século XIX Governador Barba Alado ................................307
44- Censo da população do Ceará no século XIX Governador Sampaio ......................................308
45- Síntese da microestrutura do glossário .......................................................................................315
LISTA DE SIGLAS USADAS NESTA OBRA
A- Auto
a.C - antes de Cristo
CDs Compacto Disc
ANTT- Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APEC Arquivo Público do Estado do Ceará
CiFeFiL- Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos
D - Dom/Dona
d.C- depois de Cristo
F- Fraseologia
FLC- Fraseologia da Língua Comum
FLE- Fraseologia da Língua de Especialidade
l- linha
L- Livro
LC- Língua Comum
LE- Língua de Especialidade
NE- Nota Etimológica
NEncl- Nota Enciclopédica
NH- Nota Histórica
NL- Nota Linguística
p - página
P- Pivô
PHPB- Para a História do Português Brasileiro
r- recto
SEF- Seminário de Estudos Filológicos
SNC- Sistema Neurológico Central
T- Termo
TD- Tradições Discursivas
Tít- Título
UCE- Unidade de Conhecimento especializado
UCEs- Unidades de Conhecimento Especializadas
UECE Universidade Estadual do Cea
UCSAL- Universidade Católica de Salvador
UEFS- Universidade Estadual de Feira de Santana
UERJ- Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UF Unidade Fraseológica
UFC Universidade Federal do Ceará
UFs- Unidades Fraseológicas
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFBA Universidade Federal da Bahia
UNEB- Universidade Estadual da Bahia
ULE- Unidade Lexical Especializada
UT- Unidade Terminológica
UTs- Unidades Terminológicas
v- verso
x - variáveis
y variáveis
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 18
2 FILOLOGIA: UMA CIÊNCIA ANTIGA E UMA POLÊMICA ETERNA ................................. 32
2.1 Introdução ........................................................................................................................................ 32
2.2 Alguns Conceitos de Filologia ........................................................................................................ 34
2.3 O Fazer Filológico ........................................................................................................................... 48
2.4 A Tradição Filológica no Brasil ..................................................................................................... 54
2.5 Os Estudos Filológicos e Linguísticos no Ceará ........................................................................... 62
2.6 As Perspectivas Atuais dos Estudos Filológicos no Brasil ........................................................... 68
2.7 Linguística Histórica/Filologia versus Linguística Moderna ...................................................... 73
2.8 Conclusão ......................................................................................................................................... 77
3 UNIDADES FRASEOLÓGICAS: CONCEITOS E HISTÓRICO ............................................... 79
3.1 Introdução ........................................................................................................................................ 79
3.2 O Texto e a Linguagem de Especialidades: Algumas Noções...................................................... 83
3.3 As Unidades Fraseologias da Língua Comum .............................................................................. 95
3.4 As Unidades Fraseológicas da Língua de Especialidade ........................................................... 106
3.5 O Contexto de Desenvolvimento das UFs nas Línguas de Especialidade ................................. 110
3.6 Alguns Conceitos de Unidades Fraseológicas Especializadas ................................................... 111
3.7 As Unidades Fraseológicas como Tradições Discursivas da Linguagem
Jurídica................................................................................................................................................. 120
3.8 O Acervo Lexical das Línguas e o Dicionário ............................................................................. 127
3.9 Abordagem Histórica do Dicionário ............................................................................................ 129
3.10 A Técnica da Confecção de Dicionários .................................................................................... 132
3.11 Conclusão ..................................................................................................................................... 135
4. O CONTEXTO HISTÓRICO LUSO-BRASILEIRO NOS SÉCULOS XVII A XIX: ALGUMAS
ANOTAÇÕES ..................................................................................................................................... 137
4.1 Introdução ...................................................................................................................................... 137
4.2 Panorama Geral da Administração Portuguesa do século XVI ao XIX .................................. 138
4.2.1 O contexto jurídico luso-brasileiro: As Ordenações Régias ................................................... 144
4.3 A Capitania do Ceará no contexto colonial brasileiro ............................................................... 148
4.3.1 Os primeiros habitantes da Capitania do Ceará .................................................................... 155
4.3.2 Os Holandeses no Nordeste e no Ceará .................................................................................... 159
4.3.3 Sobre a Economia do Ceará ...................................................................................................... 162
4.3.4 As Primeiras Vilas Criadas no Ceará ....................................................................................... 164
4.4 Quadro sinóptico dos principais acontecimento do Ceará ........................................................ 172
4.5 Conclusão ....................................................................................................................................... 173
5. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ................................................................................. 175
5.1 Introdução ...................................................................................................................................... 175
5.2 Da Constituição do Corpus ........................................................................................................... 175
5.2.1 Da Estrutura Formal dos Autos ................................................................................................ 177
5.2.2 Dos Aspectos Linguísticos dos Documentos ............................................................................. 187
5.2.3 Dos Aspectos Codicológicos ....................................................................................................... 190
5.2.4 Da Compilação dos Manuscritos .............................................................................................. 196
5.2.5 Das Normas de Edição dos Manuscritos .................................................................................. 197
5.2.6 Da Contextualização Histórica .................................................................................................. 199
5.3 Do Método de Análise ................................................................................................................... 205
5.3.1 Do Estudo Linguístico e Filológico ........................................................................................... 205
5.3.2 Da Ferramenta WordSmith Tools ............................................................................................. 206
5.3.3 Da Identificação do Processo e dos Seus Constituintes .......................................................... 210
5.3.3.1 Apresentação de um Auto de Querela .................................................................................... 213
5.3.3.2 Descrevendo as Partes Constituintes da Primeira Peça: O Auto de Querela ..................... 215
5.4 Da Organização das Categorias Lógicas e Morfossemânticas .................................................. 222
5.5 Da Organização do Glossário ....................................................................................................... 224
5.6 Conclusão ....................................................................................................................................... 226
6 AUTOS DE QUERELA: ANOTAÇÕES HISTÓRICO JURÍDICAS, SOCIAIS E
CULTURAIS DO CEARÁ NO PERÍODO COLONIAL ............................................................. 228
6.1 Introdução ...................................................................................................................................... 228
6.2 Leitura Interpretativa dos Dados Apresentados nos Autos ...................................................... 233
6.2.1 Dos Querelantes ........................................................................................................................... 233
6.2.2 Dos Querelados ............................................................................................................................ 245
6.2.3. Das Testemunhas ........................................................................................................................ 261
6.2.4 Das Parteiras ................................................................................................................................. 273
6.2.5 Dos Escrivães e Tabeliães ............................................................................................................ 277
6.2.6 Dos Cirurgiões ............................................................................................................................. 283
6.2.7 Dos Juízes ..................................................................................................................................... 292
6.3 Conclusão ....................................................................................................................................... 309
7 GLOSSÁRIO DAS UNIDADES FRASEOLÓGICAS .................................................................. 309
7.1 Introdução ...................................................................................................................................... 310
7.2 Glossário 316
7.2.1 Peça 1 apresentação/caput ......................................................................................................... 316
7.2.2 Peça 2 Remissão ao Livro de Sumário ...................................................................................... 318
7.2.3 Peça 3 Introdução da Querela .................................................................................................... 320
7.2.4 Peça 4 Petição ........................................................................................................................... 330
7.2.5 Peça 5 Relação das Testemunhas .............................................................................................. 347
7.2.6 Peça 6 Despacho........................................................................................................................ 373
7.2.7 Peça 7 Distribuição.................................................................................................................... 374
7.2.8 Peça 8 Exame de Vistoria .......................................................................................................... 375
7.2.9 Peça 9 Conclusão do Auto ........................................................................................................ 381
7.2.10 Peça 10 Custas ......................................................................................................................... 388
7.3 Conclusão ....................................................................................................................................... 390
8 CONCLUSÃO .................................................................................................................................. 392
REFERÊNCIAS ................................................................................................................................. 401
18
1 INTRODUÇÃO
Em cada período, ou época, ou momento da história de um povo existem certas
ideias, certos preconceitos, certos comportamentos, certa sensibilidade, certos
ideais dominantes [...] É a maneira de pensar, de sentir e de julgar, é,
principamente, a escala de valores estabelecida.
(MELO,1974, p.37-38).
O estudo da língua leva-nos, obrigatoriamente, ao universo cultural muito mais
amplo que envolve todas as manifestações sociais do ser humano e do mundo que o cerca. A
língua reflete as vivências, as ideologias, a cultura geral de uma época e de um povo, por isso
muitos aspectos devem ser levados em consideração, principalmente em se tratando de textos
produzidos em um tempo histórico pretérito. Neste estudo específico, os textos foram escritos
há mais de dois séculos, portanto, muitos fatores merecem ser explicitados para que tenhamos
o entendimento profundo do uso da língua.
Nossa análise e interpetação contempla a explicação dos elementos internos e
externos que envolvem os Autos de Querela. Os elementos internos são representados pelas
manifestações de uso linguístico refletidos no léxico e na estrutura sintática que já não são de
fácil compreensão aos leitores hodiernos. Os elementos externos compreendem todo o aparato
histórico, jurídico, criminal e administrativo do sistema colonial brasileiro. Ademais, partimos
da explicação do próprio gênero textual que não circula mais na sociedade moderna.
Descrevemos os aspectos codicológicos, o tipo de escrita e os elementos linguísticos, como as
formas gráficas das palavras, a estruturação sintática e a maneira de atribuir nomes às ações e
aos comportamentos. Outros aspectos que merecem atenção, por exemplo, a denominação dos
objetos e dos instrumentos, as ocupações ou atividades das pessoas, os topônimos e os
antropônimos cearenses que se destacam nos autos.
Vestígios da cultura de uma época saltam-nos aos olhos expressos por meio da
linguagem. Os fatos da vida política, da estrutura administrativa, dos órgãos públicos, dos
códigos de leis e dos administradores da justiça precisam ser explicitados, assim como as
ideologias que circulavam e, muitas vezes, manipulavam as camadas da população. As
manifestações religiosas, as crenças, o jeito de viver diante dos fatos em todos os sentidos,
tudo isso podemos ver e interpretar nas entrelinhas dos textos de que tratamos. Embora todas
essas informações não estejam explicitadas nos textos, estão ali subjacentes e ditas de forma
implícita, cabendo nossa interferência por meio da investigação e do senso crítico para torná-
las claras.
19
A leitura integral de um texto possibilita-nos transpor as barreiras das palavras e
adentrar no universo do contexto e na história social da comunidade. Os Autos de Querela nos
levam de volta aos séculos XVIII e XIX, período da colonização portuguesa, da formação dos
primeiros aglomerados cearenses e do surgimento das mais antigas vilas do Ceará que,
posteriormente, transformaram-se nas cidades atuais.
A Capitania Hereditária do Ceará, por muitos anos, ficou esquecida pelos
colonizadores. As tribos indígenas levavam sua vida conforme os seus costumes e viviam em
toda a extensão do território da Capitania sem o domínio europeu. A colonização dessa terra
se concretizou após várias tentativas com mais de cem anos de atraso em relação ao
período da chegada dos colonizadores ao Brasil.
A doação do Ceará ao donatário Antonio Cardoso de Barros não teve êxito. As
tentativas de colonização, primeiro por Pero Coelho, depois pelos jesuítas, também foram
infrutíferas. Finalmente, prosperaram as bases da administração portuguesa quando o valente
aventureiro, Martim Soares Moreno, impôs a força da presença lusitana e a capitania do Ceará
passou a ser comandada por gente da Coroa. Seu primeiro Capitão-mor governador foi aquele
a quem fora dado o título de conquistador, Martim Soares Moreno.
As terras do Ceará não eram boas para a exploração da cana-de-açúcar, por isso
não se desenvolveu os grandes engenhos, ademais, desprovida de grandes riquezas minerais,
a pobre capitania demorou a prosperar financeiramente. Constatou-se que a pecuária poderia
ser a atividade mais viável, pois os vastos campos e as poucas chuvas proporcionavam o
desenvolvimento do gado. Mais tarde as terras despovoadas foram distribuídas a sesmeiros.
Muitos colonizadores das capitanias vizinhas como Pernambuco, Paraíba e também da Bahia
para vieram e iniciaram a explorar seus extensos lotes de terra, implantando aqui a criação
de grandes rebanhos de gado, principalmente o gado vacum, que fez desenvolver a economia
das vilas.
Foi criada oficialmente a capitania do Siará Grande, em 1668. Primeiramente foi
subordinada ao Maranhão quando da divisão do Brasil em dois estados. Com as invasões
holandesas, a capitania do Ceará quase sucumbiu. Depois da expulsão dos estrangeiros, a
capitania passou a ser subalterna a Pernambuco.
A população estava dispersa e os administradores muito longe. Viu-se a
necessidade de se constituir uma vila, ocorrendo sua criação em 1700. Gerou conflito e muita
polêmica quanto ao local, até se estabelecer definitivamente no lugar certo. A sede da vila foi
transferida várias vezes, revesando sua localização entre Aquiraz e Fortaleza. Para resolver
o problema, criou-se outra. Assim, foram feitas as duas primeiras vilas do Ceará, a de São
20
José de Ribamar do Aquiraz e a de Fortaleza. Outras mais foram surgindo no século XVIII,
nas ribeiras dos rios, no sopé das serras, ao longo do litoral e também nos vastos sertões.
Judicialmente, a capitania era dependente da Paraíba. Nos conflitos, não tinha a
quem se recorrer, pois os meios de transporte e os recursos humanos eram escassos. Foi
constatada a carência e logo uma Ouvidoria foi criada com sede em Aquiraz. Instalou-se,
dessa forma, a primeira comarca no Ceará no século XVIII.
Os Capitães-mores governadores ainda eram subordinados ao Capitão General de
Pernambuco até o final do século XVIII. Os ouvidores passaram a ser nomeados para o Ceará
diretamente de Lisboa. O sistema de saúde e outros meios de desenvolvimento continuaram
lastimosos, pois não havia profissional para atender a população, apenas os barbeiros eram
responsáveis para prestar algum serviço na área, como extrair os dentes daqueles que se
aventurassem, obrigados pelas circunstâncias, a confiar-lhes a boca. Os cirurgiões licenciados
eram raros e espalhados em algumas vilas, faziam cirurgias a sangue frio e curavam as feridas
da população. Não havia nenhum físico, ou seja, médicos com formação acadêmica em
medicina.
No final do século XVIII, em janeiro de 1799, saiu o Ceará do domínio
pernambucano, tornando-se livre para negociar diretamente com Lisboa. Seu governador
passou a ter maior autonomia, as ordens régias eram mandadas diretamente de Portugal para o
Ceará. As carnes de charquedas produzidas na capitania passaram a ser exportadas pelo porto
da vila do Aracati. Essa passou a ser a mais importante das vilas do Ceará. Posteriormente, a
cultura do algodão foi introduzida e tornou-se um produto forte nas exportações e na
economia cearense.
No final do período colonial, eram duas comarcas no Ceará, uma com sede em
Fortaleza e a outra no Crato. Três juizados de fora estavam criados: em Fortaleza, Aracati e
Sobral. Começava ao poucos uma estrutura administrativa a se consolidar, porém, a justiça
ainda se arrastava nos passos lentos dos cavalos que conduziam os corregedores de norte a sul
da capitania para ouvir as queixas da população, outrossim, sob a ignorância dos juízes
ordinários das vilas, presidentes das câmeras que quase nada sabiam de justiça.
A leitura dos Autos de Querela nos transporta àquela época tão importante para a
história do Brasil, principalmente do Ceará, porque é naquele momento da história da colônia
que começa a se constituir a identidade nacional e, ainda hoje, alguns traços se conservam e
são marcantes na vida do povo brasileiro.
As penas dos tabeliães e dos escrivães narram os queixumes da população,
profundamente ofendida pelos diversos tipos de crimes. Tais narrativas assemelham-se, antes,
21
a uma tela pintada com sangue de vítimas feridas e lágrimas de pais envergonhados pela
desonra das filhas, de moças perdidas, frustradas por verem seus sonhos de um casamento
feliz desaparecerem nas asas do vento, assim como seus noivos, que sumiam nas estradas
irregulares do Ceará. Filhos reclamam a morte dos pais, viúvas desamparadas denunciam o
assassinato dos maridos. Outros crimes de furtos, agressões com palavras e instrumentos
matizam o cenário dos vastos sertões cearenses.
Os velhos códices de Autos de Querela conservados pelos corregedores das
comarcas com suas folhas amarrotadas e gastas pelo tempo e pela ação de insetos, com a
tinta desbotada e corroída pela ferrugem são celeiros de histórias dos primeiros habitantes do
Ceará. Ler esses códices é voltar no tempo e sentir um pouco do universo que, ainda em
muitos aspectos, teima em sobreviver na contemporaneidade.
As penas dos escrivães e tabeliães também registraram o jeito de falar da
população à época. Essa fala era transcrita pelos tabeliães para o discurso do judiciário,
adaptando-se ao modelo de linguagem. Os textos são extremamente formais e padronizados,
tanto do ponto de vista da estrutura física quanto dos padrões linguísticos. Contudo, não se
furtam a algumas manifestações da linguagem oral das vítimas. Tais textos são recheados de
dados que nos possibilitam análises diversas sob vários aspectos, tanto do ponto de vista da
história social quanto do linguístico e filológico.
Este estudo é de base filológica, embasamo-nos, pois, na concepção de Filologia
compreendida como uma leitura de amplas dimensões do texto, tanto dos aspectos
linguísticos como dos extralinguísticos. Assumimos o conceito de Filologia apresentado por
Lamas (2009), que será apresentado no capítulo segundo. O objeto de nosso estudo são as
expressões da linguagem jurídica que constituem unidades fraseológicas (UFs) dessa língua
de especialidade.
O Estudo das fraseologias (F) ou (UFs) da língua comum tempo vem sendo
realizado através da organização de glossários das expressões repetidas, oralmente ou escritas,
em obras de relevo da literatura de diversas épocas. Contudo, o estudo dessas unidades nas
línguas de especialidades recentemente começa a ganhar espaço, devido ao avanço das
ciências e à necessidade de se compreender as linguagens das áreas específicas que se
desenvolvem, tendo em vista as novas tecnologias e o espírito criador e renovador do homem.
As pesquisas no âmbito da linguagem especializada trazem uma grande
contribuição para os usuários não especializados, quando facilitam a compreensão dos
sentidos dos termos e das expressões que se desenvolvem e circulam em cada área específica
do conhecimento. Assim, as ciências relativas ao domínio das grandes áreas como a
22
informatização, as engenharias, o direito, a ecologia, a biodiversidade, enfim, de todos os
ramos de cada ciência apresentam linguagens específicas que necessitam de estudos paralelos
de base linguística para se acompanhar o entendimento dos sentidos que elas veiculam.
Porém, não o presente necessita ser entendido, é importante volvermos nosso
olhar para algumas linguagens do passado que veiculam informações específicas sobre temas
diversos. No momento presente, o entendimento dessas linguagens, muitas vezes, não é
compreendido por falta de estudos sistemáticos e concretos. A linguagem forense do período
colonial brasileiro, por exemplo, conduz consigo uma terminologia típica que adormeceu nos
códices dos arquivos. Já na atualidade, a linguagem jurídica vem sendo estudada com afinco
por vários estudiosos, no entanto, é necessário revitalizar muitas realidades do passado que
ainda sobrevivem no presente e, acima de tudo, é necessário compreender a linguagem
daquele momento histórico que circulou no ambiente de uma comunidade discursiva no uso
cotidiano para se fazer compreendida, para dar sentido ao pensamento e expressar os
sentimentos diante dos fatos do mundo.
Em nosso estudo consideramos as UFs de uso recorrente como expressões
significativas de sentidos que compõem as partes dos processos jurídicos, caracterizando cada
peça dos autos e que mantém a coesão e a coerência das informações. São também objeto de
estudo outras UFs localizadas em todo o corpo do texto que expressam o modo de pensar de
uma comunidade diante dos fatos da vida. Todas estas fraseologias refletem os sentimentos
dos sujeitos sociais imersos em sua realidade social e cultural de um determinado tempo
histórico.
A ngua revela o modo de ser e de pensar da comunidade discursiva em seu
momento de enunciação, portanto, é de grande relevância o mergulho na história social em
que se manifestam realizações linguísticas, não somente para registrar os fatos, mas também
para observar como essa língua conduz consigo a visão de mundo e o espírito do homem
diante dos fatos.
A linguagem específica do judiciário colonial não se restringe à exatidão formal,
formuláica e repetida, vai além de tudo isso. Ela não se exime da subjetividade, do
sentimento, da expressividade dos sujeitos falantes. Por isso, consideramos tanto os aspectos
formais, que mantêm as estruturas linguísticas, quanto os aspectos semânticos e pragmáticos,
que conduzem o entendimento do mundo e da realidade sócio-cultural e histórica do período
colonial brasileiro.
A meta primeira deste estudo é analisar os Autos de Querela do judiciário colonial
brasileiro quanto aos aspectos filológicos e histórico-sociais, quanto à estrutura linguística
23
organizacional das UFs usadas em toda a sua extensão e quanto à organização formal dos
documentos. Contemplamos, assim, a leitura e interpretação dos textos em sua integralidade.
Outra meta é a organização do glossário das UFs em que são dadas várias informações em
forma de notas a respeito dos elementos linguísticos e históricos.
A organização formal dos autos obedece a critérios diplomáticos. Levantamos
aqui as seguintes perguntas: as UFs ocorrem consoante às normas diplomáticas? UFs
específicas das partes constituintes dos Autos de Querela que constituem unidades discursivas
de abertura e de fechamentos partes? As respostas a estas perguntas serão dadas ao longo do
texto e nas conclusões deste trabalho.
As questões atinentes ao assunto UFs, desde muito tempo, têm despertado o
interesse de pesquisadores. Mencionamos aqui alguns trabalhos sobre o tema, que lançaram
luzes no direcionamento das pesquisas nesse âmbito. Tais estudos nos ajudam a compreender
o fenômeno e o tratamento que lhe são dados. Muito embora a maioria dos trabalhos seja
apenas levantamentos de fraseologias da língua comum, não podemos ignorar a sua
importância como uma herança cultural dos falantes de uma língua.
Dentre os trabalhos que se caracterizam por relacionar um conjunto de
fraseologias e atribuir-lhe um significado, está o de Mota (1987), com seu Adagiário
Brasileiro. Ali estão registradas expressões de uso cotidiano do português brasileiro e suas
equivalentes em inglês, espanhol e francês. Esse estudo abrange a língua comum e não está
organizado de forma sistemática como um dicionário, apenas relaciona em ordem alfabética
as UFs e as suas equivalentes nas línguas estrangeiras. Apesar deste trabalho não estar
relacionado diretamente com o nosso estudo, ele compõe o elenco dos que foram feitos
sobre a temática.
Outras pesquisas foram concluídas ou estão em desenvolvimento no Brasil,
embora cada autor siga um caminho metodológico e uma abordagem diferente. O conjunto de
trabalhos que conhecemos amplia nossos horizontes sobre a questão e deles podemos tirar
informações relevantes para compreendermos melhor o fenômeno. Relacionamos alguns aqui,
como os de Silva (2000a), publicado na Revista Philologus, que uma amostra de um
Dicionário Brasileiro de Fraseologia estando, à época, em elaboração. Trata-se de um projeto
de grande monta e valor para o falante do português, porque conta das manifestações
linguísticas do povo brasileiro, no âmbito da oralidade e da escrita.
Rodríguez (2000) organizou algumas frases feitas da língua galega fazendo a
interface entre essa língua e o português. Esse trabalho mostra as expressões da língua viva
galega oral e escrita, de caráter atemporal, com suas variantes.
24
Bragança Júnior (1999) apresenta-nos um estudo sobre a fraseologia na Idade
Média, ressaltando o uso de UFs como uma característica de todas as línguas e em todas as
épocas. O mesmo faz Silva (2000b) em relação aos adágios, provérbios e às máximas do
latim.
Em se tratando de língua latina, temos conhecimento, através da literatura, do uso
das expressões concisas e profundas de significados que circulavam na variedade clássica
daquela língua por autores renomados. Essas expressões são repassadas até hoje por meio de
dicionários, como é o caso do Dicionário de Sentenças Latinas e Gregas, de Tosi (1996), que
é um verdadeiro relicário das sentenças mais significativas dessas duas línguas clássicas. ,
também, o Dicionário Latim Forense, de Pessoa (2004), que faz um levantamento das
expressões latinas mais usadas no dia-a-dia forense.
Todos esses estudos abrangem a língua comum e registram expressões e máximas
da oralidade e da escrita. Sua importância está na preservação das fraseologias, como também
em oferecer um inventário do fenômeno linguístico que clareia os horizontes dos que se
propõem em aventurar suas pesquisas nessa área.
Benson, Benson e Ilson (1986) elaboraram uma importante obra da língua inglesa
em que as fórmulas fixas, colocações ou coligações, conforme terminologia adotada,
apresentam-se ordenadas a partir de critérios sintático e semântico, em forma de dicionário.
Esses autores fazem um estudo sobre a organização linguístico-estrutural das UFs, que muito
contribui para a compreensão do fenômeno.
Tagnin (2005) também investiga expressões fixas convencionais e idiomáticas do
inglês e as suas formas equivalentes no português que, com certeza, são um instrumento de
pesquisa para estudantes dessas línguas. Esses dois últimos trabalhos mencionados nos
norteiam em nossa pesquisa, especialmente no que diz respeito ao aspecto linguístico e, mais
especificamente, em relação à organização das estruturas morfossintáticas das UFs.
no âmbito da linguagem de especialidade, atualmente, no Brasil, é visível a
quantidade de pesquisas que se orientam para a organização de glossários de áreas específicas
do conhecimento, dada a diversidade de profissões e de profissionais que surgem no mercado
de trabalho, crescendo cada vez mais no cenário que compõe uma sociedade complexa como
a nossa. Torna-se, pois, necessária a sistematização léxica dessas línguas específicas, para
que haja eficiência comunicativa entre os participantes dos universos especializados. Citamos
aqui, a tulo de exemplo, a Terminologia do Caju, de Pontes (1997), o Glossário de Termos
Neológicos da Economia, de Alves (1998), o Glossário de Termos da Moda de Farias (2003),
25
o Glossário de Gestão Ambiental, de Finatto et al. (2006), dentre tantos outros que tentam dar
conta da multiplicidade dos diferentes discursos.
Como vemos, não é novidade a arte e a prática de arquivar o léxico, mas a
inclusão, nesse âmbito, das fraseologias da língua, tanto da modalidade comum quanto da de
especialidade, ainda é incipiente. A respeito da fraseologia do judiciário colonial no Estado
do Ceará, cremos que não haja nenhum trabalho sobre esse assunto. Faz-se necessário e
relevante, portanto, o nosso estudo sobre o tema, tendo em vista contribuir para o resgate de
aspectos sócio-culturais pouco investigados nesse Estado. Com esse estudo, queremos
despertar o interesse por parte dos estudantes para a realização de pesquisas na área,
outrossim, investir nela através de linha de investigação nos programas de graduação e de
pós-graduação nas universidades que abranjam os estudos filológicos e a história social da
língua portuguesa.
As UFs que investigamos constituem uma marca distintiva nos Autos de Querela
dos séculos XVIII e XIX, documentos do período colonial brasileiro escritos no Ceará que
compõem o nosso corpus de análise. Entender como são estruturadas e usadas essas
expressões do gênero jurídico da época pode revelar características do português do Brasil
ainda pouco investigadas e contribuir para a constituição da história de nossa língua.
Com este trabalho contribuímos para a consolidação dos estudos filológicos no
Estado do Ceará, integrando aos que existem em outros Estados brasileiros. O primeiro
passo da pesquisa é a edição semidiplomática dos documentos
1
para, posteriormente,
fazermos a interpretação mais ampla que engloba a história, a cultura e a análise linguística.
Além do caráter filológico, que se manifesta pela recuperação, transcrição e edição dos
manuscritos, fato esse muito necessário para se resgatar os textos, a pesquisa contempla,
ainda, o ordenamento das UFs em forma de glossário.
Comumente as UFs fazem parte dos dicionários da língua comum, daí a
relevância da elaboração de um glossário como forma de registro, recuperação e divulgação
das unidades que compõem o léxico específico jurídico-criminal do Brasil colonial no gênero
textual em foco.
Se é verdade que na ngua comum as fraseologias revelam aspectos culturais de
uma comunidade de falantes, cujo significado e compreensão integral são reservados aos
nativos daquela língua, não é menos correto afirmar que, na linguagem de especialidade,
1
Edição semidiplomática ou diplomático-interpretativa conforme Basseto (2001), é um modelo de edição que
facilita a leitura por meio de interferência do editor, como o desenvolvimento das abreviaturas. Será ampliado
esse conceito no capítulo segundo.
26
também marcas típicas de uso por parte da comunidade discursiva, em que estas fraseologias
circulam e, muitas vezes, não têm o mesmo nível de compreensão pelos usuários comuns. A
não-compreensão por parte dos falantes situados fora do ambiente discursivo específico é
frequente em muitos casos. Quando isso ocorre, a ngua deixa de cumprir seu papel de
comunicação e de interação social.
Nosso estudo pretende estabelecer a socialização do entendimento das UFs de
uma linguagem específica do judiciário, usadas em uma sincronia distante, revelando aos
falantes da língua portuguesa, na sincronia atual, as diversas compreensões que veiculam por
meio dos registros das UFs. Levando em consideração o estudo contextualizado, social e
historicamente, as UFs revelam aspectos que expressam as diversas nuances da vida da
sociedade colonial.
Este trabalho também nos possibilita fazer a interface do estudo da língua com
outras áreas afins do conhecimento, caracterizando-se, assim, a interdisciplinaridade tão
importante para as sociedades modernas. Esta interdisciplinaridade tem como partida o
aspecto filológico, identificado pela recuperação e edição semiplomática dos textos
manuscritos dos séculos XVIII e XIX. No segundo passo, contemplamos o estudo linguístico
com o levantamento das UFs, fazendo uso dos recursos da Linguística de Corpus, do
programa computacional WordSmith Tools, e da organização do glossário de base teórico-
metodológica nos princípios da terminologia para estes fins.
A interface adentra a história social e cultural da língua e da sociedade colonial
como um todo, à medida que estudamos as expressões linguísticas da época e os aspectos
semânticos e pragmáticos que as envolvem como, também, o contexto histórico, político e
cultural por meio da descrição e interpretação do perfil social dos sujeitos participantes dos
processos jurídicos. Pelo caráter dos documentos que pertencem a um grupo específico, o
judiciário, a interface se dá, ainda, com a linguagem jurídica do período colonial, que poderá
oferecer informações importantes para os estudiosos do Direito e áreas afins, no que diz
respeito às leis vigentes e aos processos criminais. São, portanto, esses os motivos que nos
levaram a investir nesta pesquisa.
No momento, no Ceará, há pouco estudo sobre a história colonial, quer por
historiadores que investigam e interpretam os fatos, quer por linguistas interessados no estudo
da ngua portuguesa em seu aspecto histórico. Quanto às práticas jurídicas, é nulo o seu
estudo por profissionais da área do Direito para se averiguar as leis, os crimes, a organização
dos processos e a linguagem do judiciário da época, embora em outros Estados brasileiros seja
uma prática as pesquisas sobre a fraseologia do judiciário por parte de linguistas, como é o
27
caso de Bevilacqua (1996), no Rio Grande do Sul, com seu estudo A Fraseologia Jurídico
Ambiental. Contudo, se considerarmos a recuperação de documentos históricos do Brasil
Colônia, cremos que não haja ainda trabalhos que deem conta do assunto relativo às UFs de
uso restrito no âmbito jurídico-criminal, como nos propomos a fazê-lo. Salientamos a
pesquisa de Assunção (2007), no Ceará, que aborda o estudo das UFs da linguagem forense,
todavia, a autora considera apenas a sincronia atual por meio de corpora informatizados. É
de grande importância esse estudo, porém não se caracteriza como uma pesquisa histórica
nem filológica.
Cremos que nossa contribuição seja também importante para a recuperação do
aspecto filológico, muito tempo esquecido nas universidades cearenses, embora bem
reestabelecido em outras regiões do país. O estudo de Filologia passa por uma reabilitação
após muitas décadas, reservado a poucos centros acadêmicos ou a pesquisadores isolados.
Graças à perseverança de filólogos dedicados e entusiasmados pela importância de se estudar
a língua através dos textos, entendida esta em sua ampla manifestação, a Filologia vem
ganhando novos tons e novos adeptos em todo o Brasil.
É por meio da edição dos textos, conservando a língua em seu estado de
manifestação, que se consolida e se diferencia o trabalho filológico. Através da recuperação e
edição de manuscritos é que muitas outras atividades poderão ser realizadas, tendo o texto
editado como ponto de partida. A crítica textual e os múltiplos estudos, propriamente no
âmbito da língua em suas realizações fonético-fonológicas, morfossintáticas, semânticas,
lexicais, fraseológicas, e a própria história interna e externa da língua são efetivadas quando
ancoradas nos textos que testemunham os múltiplos usos da língua pelos falantes.
Tradicionalmente, tanto em Portugal quanto no Brasil, as reflexões sobre a
história do idioma português eram restritas aos textos literários como os trabalhos de
Figueiredo (1909), Nunes (1970) e Pinto (1981), para citar apenas alguns nomes. Os textos
não-literários, como os documentos notariais, por exemplo, permaneciam guardados nos
arquivos e bibliotecas públicos por muito tempo, sendo procurados apenas por historiadores
motivados pelos fatos históricos. Esses documentos constituem, hoje, o objeto de estudo
também dos linguistas e, principalmente, dos filólogos interessados na reconstituição histórica
da língua portuguesa (cf. as teses de doutorado realizadas por Martins (1994), em Portugal,
Lobo (2003), na Bahia, Fonseca (2003), na Paraíba, dentre muitos outros em todo o Brasil).
No Ceará, conforme aludimos anteriormente, as pesquisas nesta área ainda estão
em fase inicial, não obstante a vasta documentação histórica existente relativa ao século XIX
que se encontra no Arquivo Público do Estado (APEC), sendo pouco consultada e quase
28
inexplorada por estudiosos da língua. Como fruto dessa fase inicial dos estudos históricos em
nosso Estado, citamos a tese de doutorado de Zavan (2009) que investiga jornais cearenses do
século XIX aos nossos dias. O objetivo desse trabalho é analisar a evolução do gênero
discursivo editorial/carta do leitor à luz das Tradições Discursivas com uma abordagem
histórico-social. Caracteriza-se como uma pesquisa diacrônica relativa ao gênero textual
acima aludido.
Em nosso estudo exploramos o corpus Autos de Querela, documentos de caráter
oficial da administração portuguesa no Brasil, pertencente ao fundo documental Governo da
Capitania, do acervo do APEC, especificamente da esfera do judiciário. Estes textos estão
redigidos conforme a norma culta, muito embora não se possa reconhecer uma norma
ortográfica fixa, pois a variação gráfica é muito recorrente, sendo vista como uma
característica da escrita do período.
A escolha dos documentos do poder judiciário, especificamente documentos
criminais, foi por acaso. Folheando os livros do APEC, percebemos que este gênero textual
nos favoreceria um bom material para concretização de nosso objetivo, pois são textos longos
em relação a outros gêneros da época, como cartas de nomeação e ofícios, por exemplo. Outro
motivo óbvio convincente para nossa escolha é que os textos são dos séculos XVIII e XIX,
principalmente escritos no Ceará, atendendo às nossas expectativas.
O interesse de formarmos o corpus da língua escrita deve-se à riqueza do material,
contemplando aspectos que servem a diferentes estudos no campo do léxico, da fonologia, da
morfossintaxe, da textualidade, enfim, de todas as áreas da língua. Além do estudo linguístico,
oferece informações preciosas concernentes à história, à cultura e à sociedade cearense em
tempos pretéritos.
O estudo da realidade histórica, social e cultural do Ceará torna-se necessário para
a nossa compreensão do fato linguístico. O contexto histórico e social se reflete nos usos de
expressãoes linguísticas, principalmente no léxico, marcando uma fase da língua ou
estabelecendo mudanças, pois a língua é a manifestação do espírito do homem e, como tal, o
reflete como ser político, social, religioso. Reflete o que o homem é e sente enquanto ser
dotado de historicidade.
Esta pesquisa, portanto, apresenta três campos que abarcamos como meta de
trabalho. O campo filológico, por meio da edição semidiplomática dos documentos
manuscritos que constituem o corpus de nossa análise. O campo histórico-social, com a
contextualização dos documentos que engloba uma longa viagem pelo período colonial
brasileiro, em especial do Ceará, em que identificamos os sujeitos envolvidos nos processos
29
judiciais e sua historicidade, isto é, o contexto da capitania. Por fim, o campo linguístico,
propriamente dito, concentrado na análise e organização do glossário das UFs usadas nos
documentos editados, em que consideramos a estrutura morfossintática e as formas variantes
dessas UFs como, também, fazemos considerações à etimologia das expressões, aos sentidos
ou valores semânticos que adquirem nos textos e aos usos diversos pelos sujeitos citados nos
documentos, ou seja, o aspecto pragmático. A essas informações denominaremos de notas
linguísticas, notas etimológicas, notas históricas e notas enciclopédicas, conforme
expressamos no capítulo quinto, em que expomos a metodologia.
Esta tese compõe-se de oito capítulos, distribuídos da seguinte forma: um
introdutório e um conclusivo, três teóricos, um medológico e dois de análise. No capítulo
introdutório, explanamos os objetivos do trabalho. No segundo capítulo, intitulado Filologia:
uma ciência antiga e uma polêmica eterna, apresentamos alguns conceitos de Filologia ao
longo da existência dessa ciência, vistos sob o ponto de vista de vários especialistas em
diferentes épocas. Muito embora o tema apresente uma discussão infinita sem consenso, no
entanto, algumas definições são importantes para compreendermos o assunto e adaptarmos ao
nosso objetivo. Apresentamos, ainda, o panorama dos estudos filológicos no Brasil e,
especificamente, no Ceará, desde os tempos iniciais da história cultural brasileira aos dias
atuais. Destacamos alguns momentos importantes e nomes relevantes que engrandeceram os
estudos filológicos no Brasil e no Ceará. No final, apresentamos algumas relações entre
Filologia e Linguística Histórica.
Unidades Fraseológicas: conceitos e histórico nomeia o capítulo terceiro, em que
tratamos do texto especializado e das UFs das línguas, tanto do uso comum quanto em sentido
específico de uma área do conhecimento especializado. Traçamos o histórico das UFs e
relacionamos alguns conceitos. A noção de UF merece ser vista como tradições de uso
repetido pelos falantes em seus discursos oral e escrito, por essa razão, acrescentamos
informações sobre a teoria das Tradições Discursivas, sobre de que trata o tema e de seu
surgimento. Encerrando o capítulo, damos algumas informações a respeito do léxico e a
metodologia do fazer dicionários amparados em ideias de autores que tratam do assunto de
forma teórica e prática.
No quarto capítulo, intitulado de Contexto histórico luso-brasileiro nos séculos
XVII a XIX: algumas anotações, fazemos uma viagem pelo antigo regime português,
abordando os principais fatos e momentos que marcaram a história de Portugal e do Brasil.
Abordamos o sistema judiciário e as leis que regiam a sociedade luso-brasileira. Tratamos do
processo de colonização do Ceará, de sua economia, de sua população e fundação das
30
primeiras vilas, porque é neste contexto que ocorreram os crimes e foram registrados os autos.
É também neste contexto que são usadas as UFs de que tratamos e que identificam a época e
as práticas linguísticas.
No capítulo quinto, relacionamos os Procedimentos Metodológicos. Dividimos
em várias seções, referentes desde a escolha, coleta e edição do corpus, à descrição da
estrutura formal dos autos, enquanto parte de um processo criminal, que se organiza e se
distribui em várias peças e segmentos. Explicitamos alguns elementos codicológicos e os
aspectos linguísticos mais pertinentes dos textos. Descrevemos o programa WordSmith Tools
da Linguística de Corpus utilizado para selecionar o fenômeno das UFs e, por fim, abordamos
a organização da macro e da microestrutura do glossário.
O capítulo sexto tem como tema Autos de Querela: anotações históricas,
jurídicas e culturais do Ceará no período colonial. Fazemos uma análise sócio-histórica dos
Autos de Querela em que interpretamos os dados referentes aos sujeitos participantes dos
processos criminais, conforme são apresentados nos autos. Todas as informações atinentes
foram levantadas com a ajuda de fichas de identificação que foram preenchidas, permitindo-
os traçar um perfil social dos sujeitos quanto à idade, seus ofícios, grau de instrução, onde
residiam e onde prestavam suas queixas à justiça.
Também foi possível mostrarmos a fotografia da sociedade cearense juntando
todas as informações fornecidas pelos textos. Dessa feita, visualizamos o funcionamento da
justiça e do sistema de saúde da Capitania do Ceará, que eram muito rudimentares e escassos
de profissionais. Conhecemos os aspectos geográficos do Ceará, as primeiras vilas, os sítios e
povoados, os rios e serras e os locais com maior concentração da população. Relacionamos os
tipos de crimes mais recorrentes, os instrumentos usados nas práticas criminosas e o
comportamento das pessoas perante a denúncia de uma agressão. Essa leitura é embasada na
literatura sobre a história social da colônia em seus vários aspectos. Os resultados são
apresentados em forma de quadros demonstrativos com suas interpretações.
Esta análise interpretativa fez com que o nosso estudo ultrapassasse os dados
puramente linguísticos e adentrasse nos fatores extralinguísticos, caracterizando, assim, a
interdisciplinaridade inerente aos estudos filológicos, abarcando nossa concepção de Filologia
como o estudo do texto em todas as suas dimensões, conforme defendemos no decorrer da
tese.
O sétimo capítulo traz a organização do Glossário das unidades fraseológicas,
consoante os critérios adotados. As entradas são organizadas conforme a ocorrência das UFs
31
na estrutura do corpus, obedecendo ao encadeamento de cada peça e de seus segmentos,
seguidas da definição, das abonações e das notas.
Por fim, o capítulo oitavo, no qual são retomados os principais pontos abordados e
apresentadas algumas conclusões.
No estudo da língua devemos considerar as imbricações dessa com a cultura e a
história social de um povo em todas as manifestações humanas em cada tempo de suas
vivências. Ao longo deste trabalho tentamos fazer uma ponte da linguagem com as realidades
sócio-históricas da comunidade colonial brasileira, em que como um espelho, a língua do
jurídico-criminal reflete a imagem das vivências e da cultura da população da então Capitania
do Ceará.
32
2 FILOLOGIA: UMA CIÊNCIA ANTIGA E UMA POLÊMICA ETERNA
A língua é de certo o maior de todos os bens que a tradição nos lega; mas nem é o
único, nem prescinde do auxílio dos demais; está ìntimamente entrosada com a
Sociedade, com o Folclore, com a Literatura, com a Ergologia e, em suma com tudo
aquilo que constitui a complexa teia da vida.
(SILVA NETO, 1960, p. 48)
2.1 Introdução
Neste capítulo, abordamos um tema que, apesar da sua antiguidade, ainda gera
conflitos quanto à sua definição, faltando-lhe consenso sobre seus limites de abrangência.
Trata-se da Filologia, essa ciência que apaixona aos que dela se aproximam por sua maneira
de abordar o objeto língua em suas várias dimensões.
O objetivo aqui é tão-somente fazermos algumas reflexões sobre o tema e sobre o
fazer filológico. Fazemos, também, um passeio panorâmico sobre o desenvolvimento da
Filologia no Brasil e, especificamente, no Ceará. Entendemos que tais reflexões e informações
fundamentam nosso trabalho que se enquadra no âmbito dos estudos filológicos.
Uma função básica da Filologia é a recuperação dos textos escritos em tempos
pretéritos. Por meio da edição conservadora e a explicação de fenômenos da história social e
da cultura de um povo, expressos por meio da linguagem registrada nos textos, podemos
conhecer uma época histórica desse povo que usou a língua para registrar os fatos vividos. Em
nossa pesquisa, por meio da transcrição dos documentos do período colonial brasileiro, foi-
nos possível resgatar parte da história do Ceará em todos os âmbitos. Essa história se faz
presente, principalmente, através dos registros de crimes anotados pelos tabeliães e escrivães
que serviam aos juízes e corregedores da Coroa portuguesa. Os textos revelam elementos
indispensáveis para compreendermos o comportamento, o modo de ser e a cultura geral da
sociedade cearense naquele momento.
A leitura cuidadosa, a recuperação, a edição semidiplomática e a interpretação dos
textos levaram-nos à necessidade de explicitar dados contidos nos autos que revelam aspectos
linguísticos, históricos, sociais e jurídicos referentes à administração do Antigo Regime
português no Brasil. Os fatos registrados giram em torno da ordem judicial, da estrutura
burocrática das instituições e das funções e cargos desenvolvidos pelos funcionários da
administração pública que influenciavam diretamente a vida cotidiana dos moradores das
33
antigas vilas da Capitania do Ceará, em todo o seu período enquanto colônia portuguesa,
especificamente nos séculos XVIII e XIX, para onde se volta nosso olhar nesta pesquisa.
Entendemos que conseguimos conhecer o passado dos povos por meio dos
registros deixados por eles, e uma das tarefas da Filologia, diríamos, o seu papel principal, é o
resgate da produção textual de uma época que possibilita conhecer a história da ngua, as
possíveis mudanças geradas pelas alterações sociais e, sobretudo, compreender todas as
manifestações vividas por uma comunidade, expressas nas entrelinhas dos textos. A Filologia
é a ciência que tem como objeto de trabalho a cultura dos povos através de seus textos e que
isto se pode fazer através do conhecimento mais amplo possível de todos os aspectos da
língua em que ele estiver.
Passa-nos longe qualquer pretensão de sanar querelas sobre o tema, porém,faz-se
justo trazermos alguns conceitos que, ao longo da história, perpetraram o pensamento dos
estudiosos que tentaram esclarecer o assunto. Logo, vale dizer que ainda não está de todo
resolvido o debate, pois, com o passar do tempo, as opiniões se modificaram, ampliaram-se os
conceitos, entrecruzaram-se com outras áreas afins, tornando-se complexo o seu entendimento
pleno. É o que tem ocorrido em relação à Filologia, principalmente quando do seu confronto
com a Linguística. Mesmo assim, é possível estabelecer os limites de cada uma e reconhecer
que a Filologia trata das manifestações da língua humana, específica e unicamente, em sua
forma escrita. Pelo menos é o que tem se afirmado ao longo do tempo. Aplicam-se, hoje, os
recursos tecnológicos avançados ou ainda se mantêm os recursos “antiquados” e, assim, os
estudos filológicos são muito amplos e responsáveis não pela análise puramente de uma
língua, mas por todo o contexto que envolve os textos. Portanto, o campo filológico é aberto
para uma interpretação linguística propriamente dita que envolve as várias dimensões
estruturais de uma língua como também leituras extralinguísticas, considerando as condições
externas e cronológicas em que o texto foi elaborado.
Ao longo desse capítulo, apresentamos alguns conceitos atribuídos a essa ciência,
abordando o seu método de estudo, de onde se destacam a edição dos textos e os modelos de
edição mais usados, conforme os fins. Apresentamos uma retrospectiva da história dos
estudos filológicos no Brasil, destacando os períodos dessa historiografia e alguns dos
principais nomes que desenvolveram e engrandeceram a Filologia, desde o princípio até a
introdução da Linguística Moderna, na década de 60 do século XX, quando houve uma
mudança nos rumos dos estudos da língua, ficando quase isolada a tradição filológica.
Anotamos, ainda, alguns nomes que se destacaram no Ceará por seus estudos e publicações
no âmbito linguístico-filológico. Apresentamos a retomada dos estudos filológicos que vêm se
34
desenvolvendo atualmente, em nosso país e, por fim, procuramos estabelecer a relação e os
limites entre Filologia e Linguística, que desde muito suscitam debates envolvendo essas
duas maneiras de estudar o mesmo objeto.
As discussões em torno do assunto ainda estão em aberto, porém consenso em
se estabelecer limites, embora haja controvérsia sobre o objeto e a metodologia de cada uma
dessas ciências. É importante ressaltar que o tratamento dado ao estudo da língua, seja por
qualquer viés, não se perde em importância e valor.
2.2 Alguns Conceitos de Filologia
Como dito, o conceito do termo Filologia é muito amplo e divergente,
principalmente, quando no confronto com a Linguística. Não obstante a milenar história do
desenvolvimento daquela ciência, ainda falta de concordância quanto ao seu objeto e ao
seu campo de atuação. Como bem ressalta Basseto (2001, p. 20), “o conceito de Filologia não
é unívoco; divergem muitos autores ao defini-la, ao determinar os limites de seu campo de
atuação e até seu objeto de estudo”. Por outro lado, Melo (1975) afirma que a Filologia é uma
ciência perfeitamente caracterizada com métodos e objeto atestados.
Cabe dizer que ela é uma ciência, perfeitamente caracterizada, com seu objeto
formal nitidamente estabelecido, com seus métodos próprios, seguros e apurados,
com suas conclusões definitivas. O objeto da Filologia é a forma de língua atestada
por documentos escritos. (MELO, 1975, p. 22).
Pelo exposto, vemos que a falta de consenso gira no próprio seio da Filologia,
muito embora já se tenha mais firmeza, hoje, sobre o seu papel e os seus métodos, mesmo que
a questão não esteja plenamente resolvida. É mister registrarmos outras acepções da Filologia
apresentadas por diferentes especialistas que nos ajudam a compreender quão magnitude e
complexidade toma conta desse tema.
A afirmação verdadeiramente correta que devemos ter em relação aos estudos de
Filologia é que esta não existe sem os textos escritos. É ela uma ciência essencialmente
ancorada na tradição escrita, tanto de índole literária nos quais se fundamenta o nascimento
dos estudos filológicos, sobretudo nas obras clássicas dos escritores gregos e romanos, como
afirma Righi (1967), quanto em textos não-literários de caráter notarial e oficial.
A filologia, em seu significado comum, surge naquela época da civilização grega a
qual se pode classificar de helenística ou alexandrina: do século III a.C em diante,
35
quando depois de morto Alexandre Magno, a civilização de língua grega passou ao
Egito, que se converteu no empório comercial e industrial, e também cultural mais
importante do mundo civilizado; isto é, como centro e capital do mundo ocidental
durante três séculos, até que Roma impôs sua hegemonia, quando da batalha de
Áccio (31 a.C) (RIGHI, 1967, p. 17).
2
Quanto aos textos de natureza notarial e oficial, tratam-se daqueles produzidos
pelos órgãos governamentais nas repartições públicas, pelas rias das igrejas, pelos cartórios
de registro civil e por outros segmentos da sociedade em períodos históricos diferentes. Tais
textos se definem pela função social que exercem em diferentes setores da vida pública e
privada, os quais se classificam em vários gêneros, como: testamentos, escrituras, inventários,
certidões variadas, registros de compra e venda, registro de nascimento e de óbitos, registros
de queixa-crime, autos de defloramento, autos de querela, autos de criação de vilas dentre
muitos outros registrados por meio da pena dos tabeliães e escribas que serviam aos órgãos da
administração pública. Esses documentos passam a ser objeto de estudo da Filologia,
principalmente nos tempos modernos.
A tradição escrita no Brasil é muito recente e remonta a pouco mais de 500 anos
com a chegada dos portugueses e suas primeiras ações na conquista do novo mundo; atesta
isso, por exemplo, a Carta de Pero Vaz de Caminha como primeiro texto escrito neste país. A
prática de escrever nos primeiros séculos de nossa história era totalmente manuscrita. Houve
tipografias criadas no Brasil anterior à chegada da Família Real em 1808, porém, não
lograram grandes êxitos,vindo se firmar a primeira tipografia a partir daquela data, isto é, no
princípio do século XIX, conforme informa Barbosa (2002). Os primeiros textos eram quase
totalmente de caráter oficial, escritos pelas instituições administrativas das esferas pública e
privada para os diversos fins. A tipologia textual produzida nesse período pertence àquelas
duas esferas administrativas e a elas são acrescentados os textos de caráter particular e
familiar. Apresenta Barbosa (2002) os tipos de textos produzidos na época colonial brasileira
nas seguintes modalidades:
a) Administração pública: requerimentos, representações, ofícios, alvarás, cartas (de leis,
régias etc.), devassas, relações de viagens, testamentos, certidões etc.
b) Administração privada: relatórios de finanças, mapas de produção (de fazenda, agrícolas,
de pecuária e do extrativismo), mapas de compra e venda, cartas de comércio, missivas de
2
La filología, en su significado ordinario, surge en aquella época de la civilización griega a la que se suele
calificar de helenística o alejandrina: del siglo III a.de J.C. en delante, cuando, después de muerto Alejandro
Magno, la civilización de lengua griega pasó a Egipto, que se convirtió en el emporio comercial e industrial, y
también cultural, más importante del mundo civilizado; esto es, en el centro y como la capital del mundo
occidental durante tres siglos, hasta que Roma impuso su hegemonía, hasta la batalla de Accio (31 a.de J.C.).
[Todas as traduções realizadas neste trabalho são de nossa responsabilidade].
36
controle interno do clero regular, deliberações capitulares etc.
c) Textos particulares: missivas (entre familiares, entre amigos, por interesses afetivos), diário
etc.
3
De um modo geral, todas as capitanias do Brasil produziram seu acervo
documental referente à administração pública e os textos versavam sobre assuntos diversos
em todos os setores administrativos. Todas elas estavam intimamente dependentes da Coroa,
tornando-as semelhantes no tocante a esse acervo, tanto em relação à comunicação recebida
quanto à massa documental produzida aqui, na colônia, com interesses diferentes. Podemos
acrescentar uma quantidade de textos que ora se perde nos arquivos, sem a oportunidade de
ser lida. Portanto, o papel da Filologia e do filólogo é de extrema necessidade em sua função
básica de resgatar, editar e salvaguardar evitando, assim, a destruição material dos textos.
O objeto básico da Filologia é o texto escrito, por conseguinte, faz parte também
da área de investigação filológica todas as formas de suportes, incluindo o material sobre o
qual as informações são registradas. Cambraia (2005) denomina de matéria subjetiva, tais
como: papiro, pergaminho e papel. Nos tempos modernos uma ampliação destes suportes,
como podemos constatar através do filme, disco ótico, disco magnético, fita magnética que
são mencionados por Bellotto (2007). No tocante ao papel, que é o material de amplo uso na
maioria dos documentos brasileiros, é importante reconhecer que tipo de material constitui a
sua composição, a textura, a cor, seu estado de conservação, enfim, todas as características
que envolvem os códices guardadores dos textos conhecidos na contemporaneidade.
, também, outras fontes de conservação da escrita manifestadas em materiais
duros, como mármore, metais, medalhas, moedas; outrossim, as paredes dos templos, das
casas, dos túmulos, das cavernas em forma de inscrições e datas, manifestações de cunho
pessoal em sociedades antigas como a romana, por exemplo. Assim, foram as ruínas parietais
da cidade de Pompéia que preservaram as marcas da língua latina falada e escrita pelo povo
inculto, por isso denominado de latim vulgar. Portanto, tudo o que possibilita o conhecimento
da língua e da sociedade que a utilizou passa a ser de interesse do filólogo, principalmente ao
considerarmos a Filologia numa visão clássica.
[...] filologia é esse interesse por conservar os textos, esse afã por fixar com exatidão
os documentos, por estabelecê-los e documentá-los para poder descrevê-los
3
Estes dados são de Barbosa (2002). Logicamente que muitos outros gêneros textuais encontrados nos velhos
livros da adminsitração portuguesa e guardados nos arquivos públicos podem ser acrescidos. Assim, temos
nomeações diversas, como: de professores, de diretores de índios, de várias patentes, provisões, bandos, cartas de
repreensão, de recomendações, avisos, de distribuição de patentes, dentre muitos.
37
fidedignamente e reproduzi-los de um modo sensível como depósitos de sabedoria
certa do passado. (RIGHI, 1967, p. 13).
4
Além dos suportes que detêm os textos, constitui interesse do filólogo os
instrumentais utilizados no ato de escrever. Berwanger e Leal (2008) apresentam os variados
instrumentos utilizados na escrita, quais sejam: estilete, cálamo, pincel, grafite, utilizados no
passado. Segundo Cambraia (2005), a partir do século XIX surgiram outros instrumentos mais
modernos, como: pena de aço, caneta-tinteiro, caneta esferográfica, lápis e muitos outros que
integram os materiais de fixação dos textos escritos. Há, ainda, a matéria aparente, que
conforme o autor, é a tinta, sua composição química com base em matéria vegetal, mineral, e
animal, que resulta em dois tipos de tintas: a de carbono e a ferro-gálica. Esta última muito
utilizada nos manuscritos ainda no século XIX, devido à possibilidade de maior fixação no
papel, não obstante o forte poder de corrosão causado pelo material usado em sua composição
à base de noz-de-galha
5
, vitríolo e goma. Cabe ainda observar o tipo de escrita desenvolvido
em cada época que atenda à sua evolução, do greco-românico ao romano, do gótico ao
humanístico. Conforme Spina (1977), esse último tipo começa a viger em Portugal no século
XVI. Nos últimos tempos, com o desenvolvimento dos recursos tecnológicos, passa a
predominar o uso da quina de datilografar e do computador, dispensando-se os estilos de
escrita manuais.
-se, portanto, que a concepção de Filologia vigente, pelo menos até o século
XIX, é de caráter globalizante, mantendo interrelações com várias outras ciências, pois a
compreensão ampla de um texto, seja qual for o seu suporte e o tempo de sua produção,
envolve conhecimentos linguísticos, literários, históricos, geográficos e sócio-culturais da
sociedade que produziu tais textos, além da necessidade de se fazer a interface com outras
ciências ancilares como a Paleografia, a Diplomática, a Codicologia, a Numismática, a
Ecdótica, a Heráldica, a Esfragística, a Exegese, a Hermenêutica ou mesmo a Sigilografia. A
compreensão ampla do conceito de Filologia não pode prescindir do texto escrito como base
fundamental e da transdisciplinaridade como marca característica.
Entretanto, há quem afirme que essa largueza dos estudos filológicos é uma
concepção do século XIX, pois a Filologia moderna culmina na crítica textual que, por sua
vez, aborda a reconstrução crítica do texto. Assim, podemos definir duas fases da Filologia: a
clássica e a moderna.
4
[...] filología es ese interés por conservar los textos, ese afán por fijar con exactitud los documentos, por
estabelecerlos y documentarlos para poderlos describir fidedignamente y reproducirlos de un modo sensible
como depósitos de la sabiduría cierta del pasado.
5
Ver maiores explicações sobre o tema no capítulo 5.2.3 desse trabalho.
38
O conceito apresentado por Marquilhas (2008) mostra bem essas duas fases,
muito embora tal conceito, a nosso ver, não se desprenda da concepção de Filologia no
sentido clássico, caracterizada pela ampla dimensão e amplitude que lhe é inerente, fazendo
imersões nas disciplinas auxiliares.
Estudo do texto escrito na perspectiva de sua produção material, da sua transmissão
através do tempo e da sua edição. O que é essencial no texto que constitui o objecto
da filologia é o seu registo em suporte material, ficando os textos orais excluídos das
preocupações desta disciplina. O termo evoluiu de uma acepção muito lata,
romântica sobretudo, que englobava estudos literários e linguísticos, para o conceito
estrito de disciplina concentrada na recriação das coordenadas materiais e culturais
que presidiram à fabricação e sobrevivência de um texto escrito. A orientação última
é a de preparar a edição do texto, daí que a filologia culmine na crítica textual. Tem
ainda, como disciplinas auxiliares, a codicologia, a bibliografia material, a
manuscriptologia e a paleografia, segundo as quais se descreve e interpreta a
dimensão material do texto: o livro, o documento e a letra que o enformam.
(MARQUILHAS, 2008).
Embora tenha minguado o campo da Filologia, como afirmado na definição
anterior, passando da amplitude para a restrição, concentrando-se nas coordenadas materiais e
culturais de um texto escrito, culminando na crítica textual, cremos que, nessa perspectiva,
torna-se também complexo o sentido de crítica textual. Como fazer crítica textual sem
estabelecer relações do texto com outras áreas do conhecimento ao qual ele se insere, sem
analisar o contexto e as implicações históricas e culturais que submergem nos textos de
qualquer época? Como fazer crítica textual sem a intertextualidade? Se o objetivo da crítica
textual é entender e explicar o texto, não pode prescindir de navegar nas plagas da história e
da cultura do povo que o escreveu. É fundamental, portanto, termos noções das diversas
circunstâncias que rodeiam o texto, tanto no âmbito linguístico quanto no contexto social,
histórico-cultural e antropológico. Assim, a nosso entender, uma transferência conceitual,
pois o que era entendido como Filologia passa a ser Crítica Textual com todas as suas
vicissitudes.
Seja como Crítica Textual ou como Filologia, as dimensões do conceito abrangem
certa amplitude. Não pretendemos atribuir um domínio universal e pansófico à Filologia,
conforme critica Melo (1975), porém acreditamos na abrangência e largueza desses estudos
que trazem, em si, a necessidade de transitar por muitos caminhos, necessidade esta
provocada pela criação do espírito humano ansioso e avassalador em busca de ultrapassar
limites, como bem afirma Silva Neto (1960, p. 47).
[...] os estudos lingüísticos encontravam seu verdadeiro e adequado lugar como parte
integrante da história cultural: da cultura como um todo que abrange desde as
39
manifestações transmitidas apenas oralmente, até as mais altas criações do gênio
humano.
Resiste também uma velha querela entre Linguística e Filologia, tendência natural
do ser humano em seccionar e separar as coisas, da mesma forma como é feito em relação ao
conhecimento, muito embora não seja possível ou, pelo menos, fácil de fazê-lo. Assim, essas
duas maneiras de estudar a língua, muitas vezes, se confundem, não raro causam atritos. De
fato, caminham pari passu, no entanto, se distanciam quanto ao método e às abordagens.
Cada uma se dedica do seu modo próprio, cultivando as manifestações da língua humana e
obtendo resultados satisfatórios a todos.
Melo (1975), em nota de pé de página, faz a distinção entre uma Filologia clássica
de larga abrangência e de vasta erudição e a Filologia das línguas modernas que se apóia,
fundamentalmente, na Linguística. Não podemos negar a amplitude que o estudo filológico
atinge ao ter como objeto o texto produzido em uma época passada distante, quando naquele
são retratados fatos históricos e culturais, crenças e valores de um povo, incluindo também as
marcas dos tipos de suporte que nos levam a decifrar e a entender determinado momento da
história de uma civilização. O estudo do texto não se restringe à análise de manifestação
linguística, muito embora seja um dado imprescindível a se observar com cuidado. Eis,
portanto, a magnitude da Filologia que, em nosso modo de ver, ainda persiste. A Linguística
está mais restrita à análise da ngua propriamente dita. Para Melo (1975, p. 31), “A palavra
Filologia goza de merecido prestígio decorrente inclusive de sua antigüidade muito maior. A
Lingüística nasceu da filologia e dela não pode prescindir”.
Carreter (1990) também estabelece as duas dimensões da Filologia: no sentido
clássico designa a ciência que se ocupava de fixar, restaurar e comentar os textos literários.
No sentido moderno, seu campo se ampliou convertendo-se na ciência que dá conta da
linguagem, da literatura e de todos os fenômenos da cultura de um povo ou de um grupo de
povos por meio de textos.
em relação ao embate com a Linguística, o autor diz que esta concentra seu
interesse exclusivamente na língua falada ou escrita, utilizando os textos somente como
modelos para conhecer melhor a língua, ou seja, não o entendimento amplo do texto.
Assim, o autor distingue o estudo filológico, aquele de melhor compreensão e fixação de um
texto, do estudo linguístico, o que concentra seu interesse na língua falada ou escrita, mesmo
que nessa última modalidade utilize os textos de forma secundária.
.
A preocupação pela língua falada, de um lado, e de outro, o comparatismo, que
opera muitas vezes sem poder apoiar-se em textos escritos, deram origem a uma
40
nova ciência, a Lingüística, que, com efeito, se confunde com a Filologia. Ambas as
ciências estudam a linguagem, porém de distintos modos. A Filologia a estuda com
vista a melhor compreensão ou fixação de um texto; a Lingüística, por sua vez,
centra exclusivamente seu interesse na língua falada ou escrita, utilizando os textos,
quando existem ou precisa, somente como modelo para conhecê-lo melhor.
(CARRETER, 1990, p. 187).
6
Houaiss (2001) apresenta quatro acepções de Filologia, as quais numeramos a
seguir:
1. estudo das sociedades e civilizações antigas através de documentos e textos
legados por elas, privilegiando a língua escrita e literária como fonte de estudos.
2. estudo rigoroso dos documentos escritos antigos e de sua transmissão, para
estabelecer, interpretar e editar esses textos.
3. o estudo científico do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas,
em especial a pesquisa de sua história morfológica e fonológica baseada em
documentos escritos e na crítica dos textos redigidos nessas línguas (p.ex.,
filologia latina, filologia germânica etc.); gramática histórica.
4. estudo científico de textos (não obrigatoriamente antigos) e estabelecimento de sua
autenticidade através da comparação de manuscritos e edições, utilizando-se de
técnicas auxiliares (paleografia, estatística para datação, história literária,
econômica etc.).
-se, portanto, que o autor define o objeto da Filologia fixando-o nos textos
antigos, ou não, tendo em vista a edição e o estudo concentrado nesses textos como alvo
principal. Os estudos de aspectos da língua referentes à morfossintaxe, à fonologia, ao léxico
também podem ser realizados, mas a saliência é o estudo do texto, que se concretiza na edição
e na crítica textual, principalmente. O texto editado fornece muitas informações linguísticas
fundamentais para se conhecer a história de uma língua, no entanto, ele não se presta somente
ao estudo da língua, de se dar bastante atenção a outros aspectos como as emoções que
despertam no leitor e os reflexos do pensamento de seu autor, quando se trata de textos
literários, especialmente.
Righi (1967) amplia a caracterização do estudo filológico, tendo o texto como o
pivô que move e estimula o pensamento, conduzindo-o para o passado da humanidade e da
identidade de um grupo. Além de sustentar o discurso e a estrutura de uma língua,
o estudo da filologia, a vocação filológica levou a fazer descobrimentos, produziu
benéficos resultados, fomentou os estudos e o amor à verdade e à beleza. Foi um
método e, por conseguinte, um meio para alcançar um fim. O fim (que nunca de
se esquecer) é o de promover a cultura mediante o melhor e mais genuíno
6
La preocupación por la lengua hablada, de un lado, y de outro, el comparatismo, que opera muchas veces sin
poderse aopyar em textos escritos, dieron origen uma nueva ciência, la Lingüística, con la que, de hecho,
frecuentemente, se confunde la Filologia. Ambas ciências estudiam el lenguaje, pero de distinto modo. La
Filologia lo estudia con vistas a la mejor omprensión o fijación de un texto; la Lingüística, en cambio, centra
exclusivamente su interés en la lengua, hablada o escrita, utilizando los textos, cuando existen y los precisa, solo
como modelo para conocerla mejor. (CARRETER, 1990, p. 187).
41
conhecimento dos textos que a conservam e lhe dão corpo com vistas às gerações
futuras, sendo seu veículo. Sem textos não há estímulo que nos mova a pensar nem a
elaborar sequer um pensamento nosso, pois não teríamos ocasião nem modo de
explicar-nos, de fazermos refletir sobre nós mesmos, de obrigar-nos a
reconhecermos o passado da humanidade, de darmos a sentir sua vinculação com o
presente. O texto é o instrumento que fixa materialmente o discurso escrito, e este
mesmo discurso escrito é englobado no material que o contém e o incorpora, o
certifica e o transmite com sua estrutura gramatical e sintática, com representação
orgânica e total: possivelmente, por decifrar, reintegrar, repolir e constituir. E, a
continuação, por interpretar. (RIGHI, 1967, p. 15).
7
Estende-se o estudo do texto ao seu contexto muito mais amplo que abrange
aspectos políticos, culturais, religiosos, econômicos, dentre outros expressos através da
linguagem que possibilita entender as vivências de grupos étnico-sociais e o funcionamento
da língua em épocas passadas nas quais os textos foram escritos. Por esta razão a Filologia é
essencialmente uma ciência interdisciplinar, fazendo-se necessária essa relação com as demais
ciências afins. Isso faz com que seja atribuído ao termo filólogo o caráter de refinamento
intelectual, como nos diz Basseto (2001, p. 23) Pode-se concluir que o termo filólogo‟
denota, quase sempre, uma idéia de refinamento intelectual, de amplos conhecimentos gerais
ou específicos, de cultura em geral e de domínio da linguagem em particular”.
A definição de Castro (1992 apud MEGALE; CAMBRAIA, 1999, p.1) vai ao
encontro da concepção anterior. O autor ressalta o texto, a sua manifestação em todos os
sentidos, o seu material, o modo de conservação, a escrita e a transmissão desse texto como
objeto de estudo da Filologia.
Ciência que estuda a gênese e a escrita dos textos, a sua difusão e a transformação
dos textos no decurso da sua transmissão, as características materiais e o modo de
conservação dos suportes textuais, o modo de editar os textos com respeito máximo
pela intenção manifesta do autor.
Reafirmamos que a tarefa da Filologia é o estudo dos textos através da sua
transcrição, edição e publicação para se conservar o material e a história da humanidade. Por
meio do trabalho de edição do material escrito, esse se presta a vários outros estudos como o
7
El estudio de la filología, la vocación filológica ha llevado a hacer descubrimientos, ha producido beneficiosos
resultados, ha fomentado los estudios y el amor a la verdad y a la belleza . Ha sido un método y, por consiguinte,
un medio para alcanzar un fin. El fin (que nunca ha de olvidarse) es el de promover la cultura mediante el mejor
y más genuíno conocimiento de los textos que la conservan y le dan cuerpo con miras a las generaciones futuras,
siendo su vehúculo. Sin textos no hay estímulo que nos mueva a pensar ni a elaborar siquira un pensamiento
nuestro, pues nos tendría ocasión ni modo de explicarse, de hacernos replegar sobre nosotros, de obligarnos a
reconocer el pasado de la humanidad, de darnos a sentir su vinculación con el presente. El texto es el
instrumento que fija materialmente el discurso escrito, es este mismo discurso escrito englobado en el material
que lo contiene e incorpora, lo certifica y lo transmite, con su estructura gramatical y sintáctica, con su
representación orgánica y total: posiblemente por descifrar, reintegrar, repulir y constituir. Y, a continuación, por
interpretar. (RIGHI, 1967, p. 15, grifo do autor).
42
da análise da língua e da sociedade como um todo. Conforme bem menciona Lausberg
(1963), ao filólogo compete três tarefas, quais sejam: 1) tarefa básica: salvar os textos da
destruição material; 2) tarefa central: conservar o sentido que se deve dar ao teor do texto e 3)
tarefa de integração e conexão com outros textos. Todas essas tarefas comprendem o teor
filológico que tem como seu principal papel o de restabelecer o texto jenuíno, editando-o
criticamente seguindo os métodos da crítica textual, como atesta Spina (1994).
A Filologia concentra-se no texto, para explicá-lo, restituí-lo à sua genuidade e
prepará-lo para ser publicado. [...] A explicação do texto, a sua restituição à forma
original através dos princípios da crítica textual, constituem aquilo que podemos
chamar de função subjetiva da Filologia; a Edótica compreende essa operação da
crítica textual e a organização material e formal o texto com vistas a
publicação.(SPINA, 1994, p.82, grifo do autor).
Righi (1967) apresenta uma longa discussão sobre o papel da Filologia e do
filólogo. Para ele o verdadeiro filólogo não se limita a reunir e conservar materiais, conhecer
os livros pelos lombos e pelas capas, mas sem saber dar uma informação a respeito do
conteúdo. O filólogo carece de zelo didático, de fervor de espírito, de conhecimentos de
literatura universal, de impulsos elevados inspirados na leitura prazerosa dos grandes poetas e
literatos. Deve ter interesse pelos temas que o cercam, como política, religião, justiça e moral,
ou seja, deve ter um conhecimento amplo de tudo que envolve a cultura humana. O autêntico
filólogo “nada diz às tontas e às loucas, nada que não possa reduzir-se à precisão textual e
mental, que é avidamente solícito.” (RIGHI, 1967, p. 41)
8
.
Para o autor a importância atribuída ao filólogo é extremamente relevante, não
pela leitura de um texto, que qualquer homem poderá fazer, mas pela capacidade de
reconhecimento de qualquer erro ou variação que porventura possa existir, através do seu
conhecimento de um texto e de toda a sua tradição.
A reconstrução cognoscitiva requer certamente, repetimos, intuição do autor
(entender um texto de Dante, uma tragédia de Shakespeare, um diálogo de Platão,
uma página do Evangelho em seu significado mais profundo, tal que pode e deve
despertar o interesse de qualquer homem). Porém, para levantar a hipótese de que no
texto há de fazer correção ou uma variação é preciso antes de tudo entender o texto e
conhecer toda a história de sua tradição manuscrita. Prova dele são as séries de
profundas reflexões que os filólogos costumam pôr no início de suas edições dos
textos clássicos o u do gênero que sejam. (RIGHI, 1967, p. 35).
9
8
[...] nada dice a tontas y a locas, nada que no pueda reducirse a precisión textual y mental, de las que es
ávidamente solícito.
9
La reconstrucción cognoscitiva requiere ciertamente, repetimos, intuición y sensibilidad adecuadas a la altura
de la inspiración o del contenido del autor (entender a canto de Dante, una tragedia de Shekespere, un diálogo de
Platón, una página del Evangelio el interés de cualquier hombre). Pero, para sentar la hipótesis de que en el
texto se ha de hacer una corrección o una variación es preciso ante todo entender el texto y conocer toda la
43
O mesmo aspecto amplo é designado à Filologia como inseparável do espírito
humanístico. O autor apresenta quatro propriedades e afinidades da Filologia, que são as
seguintes: 1) requer e atesta, suscita e mantém o espírito de finesse; 2) surge e se realiza em
presença de uma certeza textual; 3) educa o sentido positivo do concreto, evitando as
generalizações, a superficialidade, o diletantismo do que fala de ouvido, ou seja, sem
comprovação dos fatos; 4) o sentido filológico é condição necessária e o impulso para a exata
evocação e percepção de um feito, de uma ideia que eduque a mente e a habitui a gostar do
prazer que produz o aumento do próprio patrimônio espiritual.
A filologia se relaciona conceptualmente com a erudição, que é genérica e abarca
tudo sem limites determinados, sem figura precisa; com a história, que sem a
filologia não pode cumprir sua tarefa, porém não se reduz à filologia; com o
humanismo que é o espírito animador da filologia, no qual e, por sua vez, suas
raízes; no sentido estético, porque sem a precisão textual a beleza nem se percebe,
nem se gosta, nem se transmite, nem pode permanecer entre nós. (RIGHI, 1967, p.
45).
10
Outro autor que mencionamos aqui é Swiggers (1998), que avalia as difíceis
relações entre Linguística e Filologia, como também a atitude dos filólogos e dos linguistas.
Propõe o autor tomar o termo Filologia no sentido muito amplo que envolve três domínios de
estudo: 1) o linguístico; 2) o literário; e 3) a edição de textos. Nesse âmbito a Filologia
abrange o estudo de línguas, a arte de editar textos e o fazer crítica textual. No sentido estrito,
a Filologia restringe sua área de abrangência somente à crítica textual.
[...] não é pois senão um resumo da filologia total visto que ela implica um
comentário lingüístico e literário -, mas a sua especificidade parece residir na
aplicação feita a um tipo particular de objeto: textos que necessitam de uma
apresentação „crítica‟. (SWIGGERS, 1998, p. 5).
No século XIX e início do século XX o ideal da Filologia estava relacionado à
idéia de comparar, dado ao grande avanço dos estudos de várias línguas por meio da
historia de su tradición manuscrita. Prueba de ello son las series de agudas reflexiones que los filólogos suelen
poner al comienzo de sus ediciones de los textos clásicos o del género que sean. (RIGHI, 1967, p. 35).
10
La filología se relaciona conceptualmente con la erudición, que es genérica y lo abarca todo sin limites
determinados, sin figura precisa; con la historia, que sin la filología no puede cumplir su tarea, pero que no se
reduce a filología; con el humanismo que es el espíritu animador de la filología, en la que echa él, a su vez, sus
raíces; con el sentido estético, porque sin la precisión textual la belleza ni se percibe, ni se gusta, ni se transmite,
ni puede permanecer entre nosotros. (RIGHI, 1967, p. 45, grifos do autor).
44
comparação destas em busca da origem da língua-mãe. Neste sentido, compreende-se o papel
da Filologia no aspecto da comparação.
A filologia é a disciplina que, partindo dos textos quer se trate dos Vedas da
epopéia dos Mahrabhrrata, da Bíblia Gótica, da poesia dos trovadores provençais -,
estuda estratos de ngua, compara-os a outros estados da mesma língua ou a cortes
sincrônicos de outras línguas, a fim de reconstruir a história de uma língua ou de
uma família de línguas. (SWIGGERS, 1998, p. 7).
A concepção de Filologia no século XIX era a comparação de estados de língua
com a finalidade de estabelecer o parentesco linguístico, descobrir onde ocorriam as
mudanças e quais as forças que contribuíam para isso. É naquele século, com o
desenvolvimento do comparativismo linguístico, que teve início o ramo das filologias
particulares, como a filologia eslava, a germânica, a céltica, a românica. Dessa última,
destacamos a filologia portuguesa, a francesa, a espanhola, a romena e as demais do ramo das
línguas românicas. É também no final do século XIX que começa a crise de identidade da
Filologia, somando-se, a isso, a grande importância da Linguística Moderna e do
Estruturalismo que privilegia o estado sincrônico das línguas.
O papel específico da Filologia passa a se resumir em duas propriedades
essenciais e fundamentais, conforme Swiggers (1998): 1) o trabalho sobre textos escritos; 2) o
esforço descritivo voltado para os textos. Mesmo que o texto também favoreça à Linguística e
à gramática histórica, porém a Filologia “exige o retorno ao estabelecimento de um texto, com
vista a sua edição crítica e/ou a um comentário lingüístico”.
O autor estabelece uma relação intrínseca entre Filologia e Linguística muito
necessária para ambas. Para ele a Filologia engloba a Linguística, e toma como objeto o
discurso desta e sua terminologia. A filologia engloba a lingüística, na medida em que é
necessário fazer uma filologia da lingüística: a filologia toma, então, como objeto o discurso
dos lingüistas e, de modo bem particular, a sua terminologia descritiva. (SWIGGERS, 1998,
p. 14).
Conforme Swiggers, essa é uma Filologia metalinguística que se apresenta em
três níveis: 1) macroscópico por meio de dicionários de termos linguísticos estabelecidos a
partir de corpus linguísticos. 2) microscópico e 3) o que seria uma metafilologia, quando a
linguística examina e julga o corpus filológico e a prática que esse reflete.
A integração da Filologia e da Linguística é necessária no empreendimento de
lexicologia histórica e nos diversos estudos de história das línguas.
45
[...] é o trabalho filológico que nos ajuda a reconstruir a perspectiva temporal na
história das línguas. A descoberta da cronologia interna é o resultado de um trabalho
combinado de filologia e de lingüística histórica: é este trabalho que é o fundamento
da verdadeira lingüística histórica [...] (SWIGGERS, 1998, p.15).
É por meio da edição dos textos, conservando a língua em seu estado de
manifestação, portanto, que se consolida e se diferencia o trabalho filológico. Através da
recuperação e edição dos textos muitas outras atividades são realizadas, como a crítica textual
e os múltiplos estudos propriamente no âmbito da língua, em todas suas realizações: fonético-
-fonológicas, morfossintáticas, semânticas, lexicais, fraseológicas e, principalmente, em
relação à sua história.Tais estudos, geralmente, são embasados por teorias linguísticas
modernas aplicadas à descrição e ao uso de uma língua.
A simbiose é perfeita entre as duas ciências, porém, podemos perceber como
ambas abordam metodologias diferentes para o mesmo objeto de estudo, ou seja, a língua.
Ambas abrangem aspectos diferentes e demonstram importância social imprescindível que
devemos considerar sem menosprezo de nenhuma.
Vemos que o caráter abrangente da Filologia Clássica constitui sua base
definicional e metodológica, sobretudo fincada no tripé língua, literatura e cultura. O papel
atribuído ao filólogo beira ao exagero quando a este são dadas atribuições divinas, como se
refere Vasconcelos (1912, p.130) ao definir o filólogo e a filologia como “órgão da literatura
e instrumento de nós todos, mas principalmente e sublimadamente dos letrados que, apesar de
tudo quanto contra eles se tenha dito e se possa dizer, são poderosos obreiros de Deus”.
A Filologia Moderna não perdeu de todo o seu caráter globalizante, muito embora
seu foco não se restrinja mais ao texto literário, abarcando também outras modalidades
textuais de caráter diverso. na segunda metade do século XX, Silva Neto (1960) aponta
uma Filologia voltada para outras manifestações textuais além da literária, defendendo uma
concepção de língua como um organismo vivo em constante movimento de transformação
causado pelo espírito humano.
Daí que a Filologia Românica do século XX esteja voltada para os dois tipos de
expressão linguística: a dos grandes escritores, que procura interpretar, e a das
comunidades regionais, que procura recolher. Com ambas se faz a história da língua.
(SILVA NETO, 1960, p. 48).
Vemos nessa citação que a ênfase é dada a todas as modalidades textuais,
destacando-se duas tarefas importantes da Filologia: a edição de textos produzidos por
comunidades discursivas diversas e a interpretação dos textos para uma compreensão ampla
46
da língua, inclusive a sua história interna e externa. Ademais, o autor também destaca o papel
da crítica textual que consiste na interpretação dos textos dos grandes escritores. Portanto,
podemos ver a importância atribuída aos textos escritos de qualquer modalidade para compor
o campo de atuação dos estudos filológicos.
O pensamento de Lamas (2009) vem corroborar e ampliar a ideia posteriormente
apresentada quando propõe a unificação de todos os estudos da língua em uma grande
dimensão a qual denomina de Linguística do Texto Integral. A nova Filologia, digamos assim,
proposta por ele, leva a um redimensionamento do conceito de texto em três sentidos: 1) um
no sentido unitário, um dito oralmente ou um dito por escrito; 2) texto como atividade e como
produto; e 3) texto como totalidade do que é falado, muito além da finalidade literária, embora
o texto literário também seja incluído na proposta. Logo, a noção de Filologia modernamente
concebida, segundo esse autor, é um universo muito amplo que envolve todas as
manifestações linguísticas.
[...] esta noção de Filologia tem recuperado recentemente, sem nada a ver com o
“mercado”. E se tem recuperado para adaptá-la aos novos tempos e aos novos
objetivos. Por sua parte, se logrado que transcenda definitivamente ao âmbito do
literário para ocupar-se de todos os textos; se há intentado eliminar velhos resquícios
de subjetividade e impressionismo, prolongados, por exemplo, na Estilística e na
Crítica Textual; e se tem outorgado o papel de nível último e mais concreto de uma
Linguística integral que sentido a qualquer estudo sobre a linguagem, quer seja
teórico ou seja aplicado. Dito de outro modo, se se integra esta Filologia embasada
nos estudos acerca do texto (para o caso “discurso”) como unidade superior e básica
dos estudos [...]. (LAMAS, 2009, p.24).
11
A Filologia moderna não perde seu caráter multidemensional, pelo contrário,
parece mesmo ampliar suas dimensões quando sai do âmbito do texto literário para englobar
todos os gêneros textuais e todas as manifestações da língua, ou seja, uma Filologia de estudo
integral, conforme palavras do autor.
Trata-se, no fundo, de propor um modelo articulado em que se integrem o cultural,
o linguístico e o literário, porém em que também englobem as demais dimensões da
linguagem: a cognitiva, a gramatical e a semântica, a sociocomunicativa e a textual,
a variação, a aplicação do linguístico a qualquer das esferas da realidade prática, etc.
11
[...] esta noción de Filología se ha recuperado recientemente , sin que en ello tenga que ver “el mercado” . Y
se ha recuperado para adaptarla a los nuevos tiempos y a los nuevos objetivos. Por una parte, se ha logrado que
trascienda definitivamente el âmbito de lo literario para ocuparse de todos los textos; se ha intentado eliminar
viejos rescoldos de subjetividad e impresionismo, prolongados, por ejemplo, en la Estilística y en la Crítica
textual; y se le ha otorgado el papel de nivel último y más concreto de una Lingüística integral que dé sentido
a cualquier estudio sobre el lenguaje, ya sea teórico o ya sea aplicado. Dicho de otro modo, si se integra esta
Filología basada en los estudios acerca del texto (para el caso, “discurso”) como unidad superior y básica de
los estudios [...] (LAMAS, 2009, p.24).
47
E se trata, também, de um modelo comum para a lingüística sincrônica e para a
diacrônica. (LAMAS, 2009, p. 24)
12
.
Para Lamas os estudos de Filologia, ademais, devem abordar todas as dimensões
linguísticas, abarcando conhecimento cultural e conhecimento idiomático tanto no nível
sincrônico quanto no diacrônico.
[...] A meu juízo, a atitude filológica corresponde plenamente ao estudo da
Linguística do Texto, em qualquer de suas modalidades ou manifestações
particulares, atuais e pretéritas, enquanto ciência que se ocupa da técnica para a
explicação do sentido de cada discurso particular, ou o que é o mesmo, enquanto
hermenêutica do dito. Ocupa-se neste sentido de desenvolver uma técnica para a
interpretação sistemática e fundada, isto é, de uma heurística ou registro de feitos do
texto que permitem alcançar determinados sentidos: por exemplo, se ocupa de nos
ensinar a ver o sentido de passagens literárias, mas também em textos cotidianos,
publicitários, coloquiais, históricos, bíblicos ou jornalísticos, e inclusive os de
“descarte”. (LAMAS, 2009, p. 25-26, grifos do autor)
13
.
Percebemos que a proposta de Filologia apresentada por Lamas engloba todas as
correntes da Linguística Moderna, o que parece dissolver, assim, as barreiras entre Filologia e
Linguística. Dessa forma, temos uma ampliação do sentido clássico dos estudos filológicos
o texto, enquanto objeto de estudo , permanece no centro, porém pode ser de qualquer
natureza. Para a análise e interpretação dos textos é necessário penetrar profundamente em
todas as vertentes da Linguística, por meio de elementos do discurso, da pragmática e da
língua, enquanto sistema propriamente dito, visto tanto sincrônico quanto diacronicamente.
Ademais, o sentido do texto é integral quando se considera também o contexto
extralinguístico e as condições sócio-históricas, culturais, jurídicas, religiosas e ideológicas
em que o texto foi elaborado.
Seja no sentido clássico ou no sentido moderno, a Filologia tem como parâmetro
fundamental o estudo do texto em amplas dimensões. Para fazermos uma leitura, por
exemplo, dos Autos de Querela escritos no período colonial brasileiro, temos que buscar
12
Se trata, en el fondo, de proponer un modelo articulado en el que se integrem lo cultural, lo lingüístico y lo
literario, pero en el que tambiém quepan las demás dimensões del lenguaje: la cognitiva, la gramatical y la
semántica, la sociocomunicativa y la textual, la varición, la aplicación de lo lingüístico a cualquiera de las
esferas de la realidad práctica, etc. Y se trata, tambiém, de un modelo común para la lingüística sincrónica y para
la diacrônica (LAMAS, 2009, p.24).
13
A mi juicio, la actitud filológica corresponde plenamente al estudio de la Lingüística del Texto, en cualquiera
de sus modalidades o manifestaciones particulares, actuales y pretéritas, en tanto que ciencia que se ocupa de la
técnica para la explicitación del sentido de cada discurso particular, o lo que es lo mismo, en tanto que
hermenéutica de lo dicho. Se ocupa en este sentido de desarrollar una técnica para la interpretación sistemática y
fundada, esto es, de una heurística o registro de hechos del texto que permitem alcanzar determinados sentidos:
por ejemplo, se ocupa de enseñarnos a ver el sentido de pasajes literarios, pero también en los textos cotidianos,
publicitários, coloquiales, históricos, bíblicos o periodísticos, e incluso de los “de desecho”. (LAMAS, 2009, p.
25-26, grifos do autor).
48
informações da realidade que circunda esses textos, pois tais informações são de várias
esferas da vida do homem naquele momento. As relações sociais, como o trabalho e o modo
de ganhar a vida, o modo de pensar diante dos fatos, a moral reinante na época, todos os
instrumentos materiais usados nas práticas criminosas que denunciam o cotidiano, as funções
e os cargos da administração pública, as leis vigentes no mundo lusitano, os costumes e os
sentimentos religiosos, as práticas da medicina e da justiça, em suma, tudo é revelado por
meio da palavra. Tudo é expresso por meio do uso da língua escrita, que mantém uma rede de
combinações sintático-semântico-pragmáticas e discursivas que engloba o texto. Os
elementos da língua como o léxico, a sintaxe, a ortografia, com suas variações, as fraseologias
que constituem as tradições discursivas de uma área do saber específico da sociedade, a dizer,
o judiciário e a própria estrutura organizacional do gênero em questão, ou seja, a
macroestrutura dos processos criminais, tudo isso nos conduz a uma leitura integral do texto.
Portanto, ao fazermos a interpretação dos Autos de Querela, quer seja do ponto de vista sócio-
-histórico e cultural quer seja através de elementos da língua, adentramos no âmbito dos
estudos filológicos, considerando-se esses numa dimensão ampla e integral.
2.3 O Fazer Filológico
O primeiro passo, diríamos, do fazer filológico, caracteriza-se pela recuperação
dos textos manuscritos ou impressos, mediante o perigo de destruição material em que esses
se encontram. Por meio de transcrição conservadora, edição e publicação, esses documentos
passam a ter uma vida longa e a sua divulgação chega ao conhecimento do grande público,
que lhe dará destinos diversos. Cada área do conhecimento interpreta um texto conforme
finalidades específicas, pois os textos oferecem muitas informações e possibilidades de
leituras. Assim, um historiador direciona suas leituras para os fatos históricos, um linguista,
para manifestações da língua, um sociólogo ou um antropólogo, para dados relativos ao
comportamento humano e social. Outros profissionais também poderão encontrar seu objeto
de pesquisa nos textos editados.
Cabe ao filólogo escolher o modelo de edição mais conveniente, pois vários
tipos, variando conforme o objetivo de quem edita. Cambraia (2005) propõe os tipos
fundamentais de edição que são baseados em dois aspectos: o público-alvo e a existência de
edições anteriores. O segundo se propõe a não fazer uma edição repetida ou não atingir o
objetivo primordial que é o conhecimento do texto quando este não é adequado a quem se
destina, compreendendo o primeiro princípio.
49
Assim, necessário se faz pensar os tipos de edição mais apropriados e os seus
objetivos. Se quisermos fazer um estudo da língua, observando todos os seus aspectos em
uma determinada época ou em um gênero textual específico, devemos fazer uso de uma
edição conservadora que conta dos aspectos de interesse. Contudo, se o objetivo é facilitar
a leitura para um público maior que visa a perspectivas diversas, pode ser adotado outro
modelo de edição não tão conservador.
O autor classifica em duas as categorias de edição, conforme a existência de
cópias ou não do texto que se pretende editar. 1) edições monotestemunhais: quando
apenas um testemunhao ou cópia do texto a se editar; 2) edições politestemunhais: quando há
mais de uma cópia ou testemunho do texto que se pretende editar. São tipos de edições
monotestemunhais:
1) edição fac-similar: É uma edição mecânica e não apresenta nenhuma mediação no texto
pelo editor, já que é uma reprodução do original por meios de alguns recursos mecânico
como fotografia, xerografia ou escanerização. Tem a vantagem de ser o texto reproduzido
fielmente, porém, por outro lado, é necessário que o usuário ou o público a quem se destina
domine a leitura dos manuscritos.
Esse tipo de edição tem como vantagem permitir o acesso ao texto de forma
praticamente direta, o que confere ao consulente grande autonomia e liberdade na
interpretação do testemunho. Por outro lado, tem a desvantagem de poder ser
consultada apenas por especialistas, porque pressupõe a capacidade de se ler um
texto na escrita original [...], além disso, costuma ser muito cara. (CAMBRAIA,
2005, p. 91).
2) edição diplomática: A Diplomática tem sua origem na arte de ler os antigos diplomas, ou
seja, documentos oficiais nos quais se concediam alguma mercê, direito ou privilégio. É
entendida como a arte de avaliar e conhecer com exatidão esses antigos diplomas,
distinguindo os verdadeiros dos falsos e dos duvidosos. Para Bellotto (2007), a Diplomática
surgiu da necessidade de se averiguar a fidelidade dos diplomas medievais.
A diplomática como ciência documentária nasceu da reação do espírito crítico dos
homens do século XVII à fidedignidade de certos “diplomas” medievais. O início da
atividade diplomática liga-se à investigação sobre falsidade versus veracidade desses
papéis. Foram, portanto, os estudos de ordem filológica, histórica e teológica dos
séculos XVI e XVII que levaram o documento (diploma) a ser submetido a
determinado tipo de crítica, surgindo daí a diplomática. (BELLOTTO, 2007, p.47,
grifo da autora).
Vemos, portanto, que a edição filológica tem um papel importante de dar
veracidade aos documentos por meio de sua investigação. Assim, a edição diplomática
50
consiste numa reprodução fiel e altamente conservadora do documento original, preservando
todos os aspectos, erros e borrões do original. Conforme Cambraia (2005, p.93), [...] neste
tipo de edição, faz-se uma transcrição rigorosamente conservadora de todos os elementos
presentes no modelo, tais como sinais abreviativos, sinais de pontuação, paragrafação,
translineação, separação vocabular, etc.”.
Marquilhas (2008) apresenta o conceito de edição diplomática, acrescentando
ressalvas sobre a sobrevivência desse modelo que tende a não ser mais usado dado aos
recursos tecnológicos do presente que possibilitam uma cópia mais fiel por meio de fotografia
digital ou facsimilar. Afirma a autora que:
[...] apresentação fiel de todas as características gráficas de um manuscrito
substituindo apenas o texto desenhado por um texto tipografado, com renúncia,
portanto, a qualquer esforço interpretativo ou reconstrutivo. Justifica-se quando o
texto a editar tem um interesse eminentemente linguístico. Com as possibilidades
modernas da técnica fotográfica, a edição facsimilada está a substituir cada vez mais
a edição diplomática, sobretudo naqueles casos em que o texto editado tem um valor
documental. (MARQUILHAS, 2008).
3) edição paleográfica, semidiplomática ou diplomático-interpretativa: é a edição em que
interferência do editor. Apesar de manter-se conservadora, as abreviaturas são desenvolvidas
como sinal de intervenção, visando facilitar a leitura por outras pessoas não acostumadas aos
manuscritos. Segundo Cambraia (2005), esse tipo de edição é muito comum quando se tratam
de textos jurídicos.
Basseto (2001) classifica a edição diplomático-interpretativa ou semidiplomática
como a que “procura facilitar ainda mais a leitura pelo desdobramento das abreviaturas,
separação das palavras e colocação da pontuação”. E classifica a edição paleográfica como
outro modelo à parte. Para ele a edição paleográfica revela vários pormenores que um
perito pode perceber. Vejamos o que assevera o autor:
A edição paleográfica resulta da transcrição de um manuscrito antigo [...], mais
perfeita que a reprodução fac-similada, porque ressalta particularidades do texto e do
material que um perito pode descobrir. Assim, uma edição paleográfica identifica
a redação primitiva, vários tipos de pormenores caligráficos, como correções e
sinais apostos por revisores subseqüentes, as diversas tintas utilizadas, tipos de letras
e suas diversas configurações, casos de superposição de duas escritas, retoques,
correções e emendas de diferentes épocas. (BASSETO, 2001, p. 61).
4) edição interpretativa: ocorre quando há um alto grau de interferência do editor. Nesse tipo
de edição também são desenvolvidas as abreviaturas e outras operações de mediação.
51
Assim como na paleográfica, fazem-se operações como desenvolvimento de
abreviaturas e conjecturas, mas, além disso, o texto passa por um forte processo de
uniformização gráfica e as conjecturas vão além de falhas óbvias, compreendendo
intervenções que aproximem o texto do que teria sido sua forma genuína. Esses
procedimentos permitem, em primeiro lugar, apresentar o texto em uma forma
acessível a um público amplo (já que dificuldades gráficas desaparecem com a
uniformização); ademais, oferecem ao público um texto mais apurado, na medida
em que vêm claramente assinalados. (CAMBRAIA, 2005, p. 97).
Todos os tipos de edição apresentados anteriormente são caracterizados como
monotestemunhais, porque são realizados a partir de um único testemunho ou cópia do texto
ou de um códice. Ao contrário, as edições politestemunhais são as que se caracterizam por
vários testemunhos e são de dois tipos: 1) edição crítica e 2) edição genética.
1) edição crítica: É uma reprodução do texto criticamente definido pela operação constitutio
textus, que consiste em constituir o texto mais próximo possível do original (quando este não
mais existe). É realizada a partir do confronto de várias cópias existentes. Segundo Silva
(2005) a edição crítica é
[...] aquela que chegou adulterada e em que se procura manter o texto original [...] A
que é elaborada a partir da colocação de diversos testemunhos, e visa a estabelecer a
última vontade do autor, no que respeita à forma originária da mensagem
transmitida. (SILVA, 2005, p. 157).
Para Ceia e Marquilhas (2008) a edição crítica pode ser definida como a
publicação de um texto, de tradição ou génese complexas, segundo os métodos da crítica
textual. A edição crítica de uma obra exige-se, sobretudo, para os textos cuja autenticidade
seja discutível”.
Para esses autores, os motivos que obrigam a se recorrer ao modelo de edição
crítica, estão relacionados à busca de um modelo de edição que seja cientificamente correta, o
mais próxima possível do estado original dos autógrafos. Ademais, uma edição crítica
apresenta outras vantagens de corrigir erros causados por outros editores. Quando há muitas
cópias de um texto, há mais probabilidade de maiores erros e deturpações.
Uma edição crítica pode também ajudar a corrigir erros e deturpações introduzidos
pelos editores à revelia dos próprios autores, como aconteceu, por exemplo, com a
obra romanesca de Eça de Queirós. Nos textos antigos, as dificuldades aumentam
por não existirem edições diversas do mesmo texto revisto pelo autor, pois a maior
parte da bibliografia que constitui o legado clássico literário existe a partir de cópias
que se acreditam ser autênticas tanto quanto possível. Uma edição crítica de textos
antigos exige, naturalmente, apurados conhecimentos filológicos e históricos
para que seja possível uma aproximação à versão original. (CEIA;
MARQUILHAS, 2008, grifo dos autores).
52
A edição crítica é o principal objetivo da crítica textual, conforme Silva (2007).
Uma edição crítica se realiza em duas etapas: o estabelecimento do texto crítico e a
apresentação desse texto. Para o estabelecimento do texto crítico vários procedimentos que
relacionamos a seguir: 1) a recensio ou recensão, que consiste no levantamento e cotejo de
todas as fontes ou testemunhos já publicados; 2) collatio codicum ou colação, que é a
comparação dos diversos códices ou cópias de um texto. Caracteriza-se esta etapa pelo
“exame atento de parentesco entre as versões que sejam meramente cópias sem valor
autônomo” (TEIXEIRA, 2006, p. 99); 3) estemática é a fase que determina a interpretação e
classificação das variantes de um texto para a determinação genealógica entre os seus
testemunhos. “Consiste no estabelecimento da genealogia do códice, isto é, sua filiação e
modo de transmissão” (BASSETO, 2001, p. 46); 4) emendatio ou emenda é uma operação
que visa à correção do texto. É a parte mais importante do processo de constituição do texto
porque corrige os seus erros; 5) a apresentação do texto é a última etapa da edição crítica
realizada após todos os outros processos. A edição crítica apresenta um sumário, uma
introdução metodológica, o texto estabelecido criticamente, o glossário e as referências
bibliográficas.
2) edição genética: É uma edição que apresenta, sob forma impressa e na ordem cronológica
do processo de escrita, o conjunto dos documentos genéticos conservados de uma obra ou de
um projeto, anotados de modo a perceber-se o processo da sua escrita. Na realização de uma
edição genética, o editor faz o estudo da gênese de cada testemunho. Segundo Baldwin (2006,
p.117, grifo da autora), “para a edição genética, cada testemunho constitui uma
individualidade de espaço-tempo, que institui uma nova posição de autor e um agrupamento
de sentidos. A edição genética mostra a obra como a escrita de um discurso em processo”.
Cambraia (2005, p.105) apresenta também o conceito de edição genética
conforme o que se segue: “A edição genética é fruto do desenvolvimento de uma abordagem
de crítica do texto literário baseada no estudo da sua gênese”.
Os dois últimos tipos de edição são realizados a partir de rios testemunhos ou
códices, por isso são denominados de politestemunhais, em que se busca estabelecer o texto
genuíno, na edição crítica, ou todo o processo de criação seguido pelo autor, no caso da
edição genética.
Seja qual for o tipo de edição adotado, havemos de ressaltar as múltiplas
vantagens nessa tarefa, pois o texto editado cuidadosamente se presta a vários estudos da
língua em diferentes âmbitos e sobre vários olhares. Cada vez que entramos em contato com
os textos percebemos aspectos linguísticos para objeto de análise e interpretação. Atualmente,
53
com o desdobramento de várias teorias linguísticas, pode-se utilizar o texto de qualquer
sincronia para aplicação de métodos e teorias a gosto do pesquisador. O analista do discurso,
por exemplo, poderá analisar os documentos com o enfoque centrado no discurso da
autoridade governamental, no século XVIII, ou no discurso das minorias que também se
sobressaem em tais textos. O estudioso da linguística textual, ao seu turno, encontrará muitos
elementos para suas análises, como a tessitura que constitui os textos dos velhos códices, as
referenciações, a organização retórica, o nível de coerência estabelecido entre as partes, os
elos coesivos e muitos outros. Nesse sentido, podemos fazer estudo de linguística moderna
com textos editados de qualquer época. Assim, Filologia e Linguística se integram e cumprem
o papel de mútua ajuda tão importante para ambas.
No aspecto específicamente filológico engloba-se, ainda, o estudo de etimologia
por meio dos documentos que permitem a busca de informações sobre a significação de
muitas palavras em contextos diferentes. O estudo de onomástica referente à toponímia e à
antroponímia, o estudo de genealogia, o estudo do léxico em vários aspectos, da sintaxe, da
evolução histórica da língua, tanto interna quanto externa, dentre tantos que o texto oferece.
Não podemos nos esquecer da amplitude filológica que desperta o interesse pelo
pensamento filosófico e da sensibilidade que adentra no espírito humano construindo o
conhecimento íntegro e verdadeiro de que fala Righi (1967, p. 23, grifo do autor).
[...] para que a filologia cumpra como deve, de ser adequação da palavra ao
espírito, da forma sensível ao pensamento. Então os termos filologia e filológico
expressam um elemento fortalecedor, positivo, constituinte, fecundo e essencial do
conhecimento. A filologia é, assim, condição do conhecimento verdadeiro e íntegro.
Não é história, nem filosofia, nem erudição É percepção sensível de um conteúdo
sensibilizado em sua forma.
14
Além da área específica da linguagem, os textos se prestam como fontes para
outras ciências, como a história, a geografia, a arquitetura, a sociologia, o direito para se
avaliar as questões sociais, os conflitos, as manifestações religiosas, a situação das classes
(des)privilegiadas. Por tudo isso a edição dos textos é uma prática necessária, fazendo da
Filologia uma ciência inter e transdisciplinar, como sempre foi, e que se mantém fiel à sua
verdadeira função.
14
[...] para que la filologia cumpla como debe, ha de ser adecuación de la letra al espíritu, de la forma sensible al
pensamiento. Entonces los términos filología y filológico expresan un elemento fortalecedor, positivo,
constituyente, fecundo y esencial del conocimiento. La filología es, así, condición del conocemiento verdadero e
íntegro. No es historia, ni filosofia, ni erudición. Es percepción sensible de un contenido sensibilizado em su
forma. (RIGHI, 1967, p. 23, grifo do autor).
54
2.4 A Tradição Filológica no Brasil
Nesta seção refletiremos acerca dos estudos filológicos em nosso país,
destacando algumas fases de seu profíquo desenvolvimento e os principais expoentes que
contribuíram para sua divulgação.
Não sabemos ao certo quando teve início, no Brasil, a tradição filológica, pois
enquanto colônia portuguesa as ideias de língua e de ensino eram muito incipientes. Apenas
no século XIX houve uma conscientização mais segura a respeito da identidade brasileira,
mesmo assim, podemos vislumbrar um contínuo da tradição portuguesa.
Nascentes (2003) classifica os estudos filológicos brasileiros em quatro etapas ou
períodos: 1) Período embrionário, 2) Período empírico, 3) Período gramatical e 4) Período
científico. Passaremos a ver cada um com maiores detalhes.
O primeiro período, denominado embrionário, vai desde o princípio da cultura
brasileira até 1835, com a publicação do Compêndio da Gramática da Língua Nacional, de
Antonio Alves Pereira Coruja. Vemos que perdura por todo o período colonial, ultrapassando
a data da independência do Brasil. Caracteriza-se pela obediência às orientações portuguesas
que, por sua vez, estavam aquém das perspectivas filológicas divulgadas na Alemanha por
Diez, quando da aplicação do Método Histórico-Comparativo. Nascentes (2003), questiona
que tipo de cultura filológica teria o Brasil, se as ideias em pleno desenvolvimento em outros
países da Europa só foram divulgadas em Portugal 32 anos mais tarde?
O autor não especifica com precisão em que tempo começa essa cultura filológica
brasileira. Sabemos do desenvolvimento tardio em se firmar uma sólida cultura no Brasil, no
sentido de conhecimento acadêmico, polidez intelectual e sensibilidade de espírito
investigativo, visto que nossa sociedade era predominantemente rural e atrasada no domínio
das letras. As primeiras escolas implantadas na colônia foram conduzidas pelos missionários
jesuítas e se sustentavam, sobretudo, na doutrina da cristã e no ensino de primeiras letras,
com predominância da catequese e sistematização da língua tupi como fez José de Anchieta.
Quando pode ser definido o início de nossa cultura no sentido de refinamento
intelectual e de domínio das artes e das ciências, especificamente, das ciências da linguagem?
Que conhecimento filológico poderia existir no Brasil nos primórdios de nossa história?
Faz-se jus à pergunta de Nascentes e sua resposta é contundente.
Se em Portugal, situado no continente supercivilizado, as doutrinas pregadas por
Frederico Diez desde 1836 foram introduzidas em 1868, isto é, trinta e dois anos
depois, quando Adolfo Coelho publicou sua obra A Língua Portuguesa, como
55
poderíamos nós, do outro lado do Atlântico, a tantos dias de viagem e com escassos
meios de comunicação, ostentar pujante cultura em assuntos de filologia?
(NASCENTES, 2003, p. 187).
Esse período inicial da Filologia no Brasil se estende até 1835, quando se
firmavam opiniões e reivindicações para uma identidade linguística brasileira.
Tradicionalmente, a data da introdução do Período Romântico de nossa literatura é 1836,
quando a produção literária na ex-colônia decreta a independência cultural, arroga-se a
liberdade linguística e começa a se constituir as marcas do português do Brasil, sobretudo no
léxico, que se enriquece com a introdução de elementos da cultura indígena na escrita dos
poetas e prosadores. Até então, nossa produção literária seguia de perto os padrões
portugueses. Os historiadores da Literatura Brasileira não são unânimes em sua classificação,
dividem-na em uma fase colonial e outra nacional, passando por um período de transição,
período esse anterior ao século XIX, conforme comenta Elia (2003).
Em relação ao ensino da língua portuguesa no século XIX, havia se distanciado da
égide dos jesuítas, pois esses foram expulsos dos reinos de Portugal, em 1759, pelo primeiro
ministro de D. José I, o conhecido Marquês de Pombal. A língua portuguesa se oficializara e o
novo método de ensino havia sido implantado, mas ainda predominavam as parcas escolas de
ensino de gramática latina. Somente no século XIX, no reinado de D. João VI, foram criadas
algumas cátedras isoladas para a formação de profissionais, assim surgiram os cursos de
Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, 1808, e Engenharia também no Rio de Janeiro, sob o
comando da Academia Militar. No entanto, só em 1874 esse curso tornou-se independente dos
militares. As cátedras de Anatomia e Cirurgia foram reunidas a outras, dando origem às
academias de Medicina no Rio de Janeiro e na Bahia.
Em 1827, o imperador Pedro I acrescentou os cursos de Direito em Olinda e em
São Paulo, constituindo a elite dos cursos superiores brasileiros: Medicina, Engenharia e
Direito. Posteriormente estas faculdades, isoladas, tornaram-se universidades como
conhecemos hoje, mas essa história teve um longo percurso.
A educação brasileira é marcada pelo ensino dos jesuítas, asua expulsão em 1759
e o desmantelamento da estrutura educacional montada por esses padres da
Companhia de Jesus é prejudicial para o Brasil, pois não há, de imediato, a
substituição por outra organização do sistema de ensino da Colônia, que os padres
jesuítas praticamente monopolizavam, por meio de seus colégios e das aulas de ler,
escrever e contar. (ZANON; FACCINA, 2004, p. 80).
Bem ressalta Cunha (1994) que durante o período colonial, no Brasil, existiam
poucos estabelecimentos de ensino primário e médio, quando comparamos com a América
56
espanhola onde cedo foram criados colégios e universidades. Percebemos uma grande
diferença entre o Brasil e os países vizinhos de origem hispânica no quesito educação.
Enquanto nas colônias espanholas americanas existiam vinte e quatro universidades no
período colonial, no Brasil, o primeiro estabelecimento superior foi fundado no século
XIX, restrito a uma pequena parcela da população.
Bastos e Palma (2004) comentam essa ausência de estabelecimentos culturais nas
colônias portuguesas causada pela decadência cultural de Portugal face ao restante da Europa
por questões políticas e administrativas. Outra causa do desleixo pela educação nas colônias
diz respeito ao domínio do colonizador sobre um povo sem cultura.
O Brasil, por exemplo, não dispôs de cursos superiores até a sua independência
política, no século XIX. Para o colonizador, o domínio era mais pacificamente
imposto numa colônia onde a ignorância da maioria imperasse; sendo assim,
retardaram o quanto puderam a expansão cultural brasileira. [...] A educação dos
letrados era a meta daqueles que iam a Coimbra cursar uma faculdade, sem se
questionar sobre as necessidades da Colônia, suas exigências, enfim, sua realidade.
Voltava-se com pendor à defesa das questões metropolitanas. (BASTOS; PALMA,
2004, p. 54).
A formação acadêmica dos jovens brasileiros ocorria na Europa, especificamente
em Coimbra, por todo o período colonial sob o patrocínio do governo português que oferecia
uma espécie de bolsa de estudo para que os filhos dos ricos brasileiros se formassem. Foram
esses que fomentaram o desejo de liberdade e de abolição da escravatura, que se destacaram
na arte da palavra e que assumiram os comandos da nação após sua independência.
[...] no Brasil colonial existiram apenas uns poucos estabelecimentos de ensino
primário e médio, e isso quase por milagre de certas ordens religiosas, especialmente
a dos jesuítas. Os que pretendiam uma instrução superior deviam seguir para
Coimbra, onde estava sediada a universidade do império. (CUNHA, 1994, p. 19).
Conforme dados apresentados pelo autor, o auge da formação universitária dos
brasileiros em Portugal ocorrera no século XVIII, em que 1752 jovens se formaram. No
século XVI apenas 13 obtiveram formatura, no século XVII, 354 e no XIX, de 1801 a 1822,
foram formados 339 brasileiros.
Não é de se admirar a grande distância entre as classes sociais no Brasil que
intensificaram as diferenças no modo de falar dos brasileiros. Poucos tinham conhecimento da
norma padrão do português convivendo com a mistura de origem indígena e africana, e o
resultado seria um português estratificado. Ainda segundo Cunha (1994), o Brasil entrou o
século XIX com uma grande estratificação da língua e um vácuo enorme entre língua escrita e
57
língua falada. Por um lado, as normas inflexíveis da gramática dos letrados eram seguidas, por
outro, a língua adquirida se distanciava da transmitida.
A produção gramatical do século XIX, conforme estudos de Fávero e Molina
(2006), pode ser classificada em duas etapas: a primeira engloba as obras de orientação da
gramática da língua geral, as quais não tratam de conteúdo relativo à língua portuguesa.
Muito da produção gramatical com essa característica se enquadra nesse primeiro período
filológico, tais como: a Epítome da Grammatica Portugueza de Antonio de Moraes Silva,
1806; Breve Compêndio de Grammatica Portugueza de Frei Joaquim do Amor Divino
Caneca, de 1817, e a Gramática de Antonio Coruja que introduz o segundo momento
histórico.
Neste contexto de pouca escolaridade, de distanciamento dos grandes centros
desenvolvidos, de uma estrutura administrativa subordinada à boa vontade da metrópole, e
esta, vale ressaltar, também passou por turbulências e crises de autonomia política. Diante de
tudo isso, podemos perguntar que tradição nosso país pode nos legar dos seus primeiros anos
de história no que diz respeito ao desenvolvimento de uma cultura filológica fixada nos
modelos da milenar tradição desenvolvida pelos gregos? Vê-se, portanto, que não muito o
que falar, pelo menos nessa etapa inicial, da Filologia no Brasil.
O segundo período de nossa história filológica, denominado de empírico, inicia-se
em 1835 com a publicação do Compêndio de Gramática de Língua Nacional do brasileiro
Antonio Coruja e se estende até 1881. Esse período é marcado pelas grandes discussões em
torno da língua portuguesa, sendo uma delas a querela que se estabeleceu entre o cearense
José de Alencar e o português Pinheiro Chagas por conta da publicação do romance Iracema
em 1865, em que o patrício português faz severas críticas à linguagem alencarina e a de todos
os brasileiros, por pecados de erros gramaticais. No entanto, o propósito dos daqui é firmar
uma nova norma brasileira liberta dos padrões europeus. Essa polêmica, afirma Elia (2003),
foi denominada de questão da língua brasileira influenciada por dois importantes fatores: 1) a
independência do Brasil, que permitiu aos brasileiros a liberdade dos cânones portugueses; 2)
o movimento romântico, que fixava a cultura nacional na alma do povo.
O Romantismo teve uma grande importância na vida do homem e das nações
naquele momento do século XIX, por inflamar os sentimentos nacionalistas que formavam a
base na constituição das novas nações. A manifestação desses sentimentos nas artes reflete o
desejo de autonomia plena. A ngua é a mais forte herança patrimonial de uma nação que
fortifica a identidade de seu povo. O sentimento do Romantismo acendeu o anseio de
liberdade e afirmação em todos os sentidos, principalmente no linguístico.
58
Não se trata de simples querela entre literatos, mas de uma irrupção mais vasta,
surto impetuoso de sentimentos e atitudes, algo assim como o nascimento de uma
alma nova no velho corpo da civilização ocidental, que acendeu focos de outras
luzes nos diferentes recantos espirituais da humanidade, o religioso, o filosófico, o
científico, o literário, o político, o econômico, o social. (ELIA, 1963, p. 39).
A produção literária do Brasil atingiu grandes proporções e inaugurou-se a
narrativa de numerosos romances, exaltando-se o espírito nacionalista com a presença
marcante do indígena nas histórias romanescas, como também a paisagem rupestre do interior
do Brasil, originando-se o romance regional com o uso de formas linguísticas dos grupos
menos privilegiados.
Quanto à produção de obras sobre a língua, o período é fortemente marcado pela
edição de compêndios gramaticais, e de outras obras que abordam discussões vernaculares,
sobretudo em comparação com o português europeu. Surge a produção de dicionários e
gramáticas tais como o Dicionário Gramatical Português, de José Alexandre Passos, em
1865; a Gramática Portuguesa Filosófica, de Ernesto Carneiro Ribeiro, a Grammatica
Portugueza, de Augusto Freire da Silva, para citar somente alguns exemplos.
É conhecido dessa época a formação do grupo maranhense que, dentre outros,
compunha-se por Gonçalves Dias e Francisco Sotero dos Reis, este último é autor da
Grammatica Portugueza de 1866, Postilas de Gramática Geral Aplicada à Lingüística
Portuguesa pela Análise dos Clássicos, de 1862 e Curso de Literatura Portuguesa e
Brasileira em cinco volumes, de 1866 a 1868.
Neste período começam a ser criadas algumas instituições culturais no país, como
o Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1837, com padrão de ensino humanístico e reduto
da hierarquia intelectual brasileira. Funcionou como um espaço de produção e divulgação da
cultura nacional em todos os sentidos. Foi esse um grande centro para onde convergiam os
intelectuais do nosso país que escreviam suas teses sobre a língua, propiciando discussões em
torno de assuntos filológicos, linguísticos, literários e de todas as áreas do conhecimento. Foi
também no século XIX a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838 e
da Academia Brasileira de Letras, em 1897, instituições de alto padrão intelectual para o
desenvolvimento das artes, das letras e das ciências humanas em geral.
O terceiro período da filologia brasileira, denominado de período gramatical, tem
início em 1881 com a publicação da Grammmatica Portugueza, de Júlio Ribeiro, a qual
quebra a rotina da tradição, conforme Nascentes (2003), e instala uma nova orientação que
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servirá de norma para outras gramáticas de publicação posterior. Por isso o motivo de chamar-
-se esse período de gramatical.
A data de 1881 coincide com a introdução do Realismo/Naturalismo no Brasil e o
desenvolvimento de uma literatura suburbana em romance como O Cortiço e regionalista
como A Normalista, por exemplo. A língua ganha aspectos rústicos na boca dos personagens,
distanciando-se cada vez mais dos padrões europeus.
As gramáticas produzidas são de orientação das correntes científicas que têm
pretensão de rompimento da tradição greco-latina e seguem os pressupostos da Linguística
Histórica Comparativa, conforme a classificação de Fávero e Molina (2006). Destacam-se
desta época, além da Grammatica Portugueza de Júlio Ribeiro, de 1881, responsável pela
classificação do período, a Grammatica da Lingua Portugueza de Manuel Pacheco da Silva
Jr. e Boaventura Plácido Lameira de Andrade, 1894, a Grammatica Portugueza de Alfredo
Gomes, a Grammatica Portugueza de João Ribeiro, de 1887, a Grammatica Descriptiva de
Maximino Araújo Maciel, de 1887, e a Grammatica Portugueza Practica de Adélia Ennes
Bandeira.
A produção linguística da época é vasta, proliferam-se muitas outras gramáticas e
estudos filológicos. Destacamos os Estudos Filológicos de João Ribeiro e vários outros que
versam sobre a ngua escrita e surgem como resultados de teses para o Colégio Pedro II.
Introduz-se o estudo de Fraseologia com o Vocabulário e Locuções da Língua Portuguesa de
Guilherme de Alcântara Bellegarde, no ano de 1887. A Lexicografia se faz presente na obra
Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de Antonio Joaquim de Macedo Soares, 1888.
Ampliou-se o interesse pelas questões da língua, surgindo vários nomes de destaque, como
Heráclito Graça, que rebate o posicionamento conservadorista de Cândido de Figueiredo
sobre questões de normas gramaticais. Mário Barreto é outro expoente da época com sua
vasta obra discutindo várias questões linguísticas. É desse período a querela que se
estabeleceu entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro a despeito da redação do Código
Civil, em 1904, cujo foco girava em torno de pontos gramaticais. Surge o Vocabulário
Etimológico, Ortográfico e Prosódico das Palavras Portuguesas Derivadas da Língua Grega,
de Barão de Ramires, de 1907. Em 1908 saem as Dificuldades da Língua Portuguesa de
Manuel Said Ali, obra importante por discutir problemas de entendimento de várias questões
da ngua, dentre elas, o caso dos clíticos. O autor lucidamente apresenta soluções plausíveis
que ainda hoje são válidas e servem de referências sobre esse assunto.
São da mesma época os primeiros trabalhos de Linguística Histórica, como a
Gramática Histórica de Carlos Eduardo Pereira, de 1916. Introduz-se a Dialectologia com o
60
Dialeto Caipira de Amadeu Amaral. Circulam de 1921 a 1935 a Revista de Língua
Portuguesa, de 1924 a 1925 a Revista de Filologia Portuguesa e de 1931 a 1934 a Revista de
Filologia e História.
A fundação de universidades e cursos de Letras se encarrega do ensino e
divulgação da Filologia. Em 1934 ocorre a fundação da Universidade de São Paulo com a
Faculdade de Filosofia e Letras, e o ensino de Filologia Portuguesa e Filologia Clássica se
inicia no Brasil. A disciplina é ministrada por Rabelo Gonçalves, professor catedrático da
Universidade de Lisboa. Em 1937 foi fundada a Universidade do Distrito Federal e o ensino
de Filologia na Faculdade de Letras passa a ser ministrado por professores franceses.
As pesquisas filológicas ultrapassam a língua clássica e a língua portuguesa,
expandindo-se para as línguas indígenas com estudos sobre essas culturas. Vemos o grande
avanço e a consolidação da Filologia no Brasil com interesse em várias áreas da língua: no
léxico, na sintaxe, nas variações diatópicas, na história, enfim, constituem um todo as
pesquisas e as discussões tornam-se amadurecidas e concretas.
O quarto período é denominado de científico e tem início em 1939 com a
inauguração da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Nesse período a
Filologia se estrutura nas bases científicas e nos lega um grande acervo de obras e estudos
diversos sobre a língua e a literatura portuguesas que registram as várias manifestações da
língua em todo o Brasil, com suas idiossincrasias que nos possibilitam entender o fenômeno
tão complexo da linguagem humana.
Outro autor que traça o percurso da Filologia no Brasil é Elia (1963), e apresenta
uma classificação dos estudos filológicos um pouco diferenciada da de Nascentes, quando
divide a história filológica brasileira em apenas dois períodos e relaciona um número maior de
estudiosos e suas obras. Segundo ele, o primeiro período se denomina vernaculista e vai de
1820 a 1880, limitando-se aproximadamente por duas datas importantes: a Independência do
Brasil, em 1822, e a publicação da gramática de Júlio Ribeiro, em 1881. Esse período
coincide com o Romantismo e com as idéias autonomistas.
É, pois, uma fase de contradição entre as preocupações puristas e classicizantes de
alguns espíritos conservadores ou retardatários e as reivindicações reformistas,
senão mesmo revolucionárias, de representantes de uma geração ansiosa de
afirmações autonomistas e até separatistas. Nos dois campos, porém, predominavam
as intenções de vernaculidade, de não corrupção de linguagem, de legitimidade das
formas de dizer. (ELIA, 1963, p. 157).
61
O segundo período denominado de científico divide-se em três fases: a primeira
vai de 1880 a 1900, marcada pelas forças de renovação que prevalecem sobre as de
conservação. Ainda é um período de transição, por isso conflituoso, pois a renovação se
concentra na explanação gramatical, porém procura imprimir fundamentos dos estudos
linguísticos.
Aparece a corrente independente dos lexicógrafos, e as preocupações vernaculistas
renascem para o fim do século, ainda que para morrer com brilho e fosforência, na
mais famosa polêmica de nossa história cultural. Despontam por fim, de maneira
segura e auspiciosa, as primeiras manifestações da direção filológica a qual, daí por
diante, irá caracterizar os estudos lingüísticos no Brasil. (ELIA, 1963, p. 163).
O autor divide esse segundo período em três gerações, nas quais se destacam
conhecidos nomes até hoje citados e estudados nos cursos de letras das universidades
brasileiras e fora do Brasil.
A primeira geração é de 1900 a 1920. Destacam-se os nomes de João Ribeiro,
Pacheco Júnior, Manuel Said Ali, Otoniel Mota e Heráclito Graça. Colocamos em destaque,
sem menosprezar ninguém, a figura extraordinária de Said Ali para sustentação e maturidade
nas pesquisas filológicas brasileiras.
A segunda geração vai de 1920 a 1940. Os nomes mais salientes que destacamos
são de Mário Barreto, Augusto Magne, Sousa da Silveira, Antenor Nascentes, José Oiticica e
Clóvis Monteiro. Não podemos deixar de colocar em relevo o eminente estudioso Antenor
Nascentes por sua contribuição incalculável para as pesquisas da língua portuguesa sobre as
diversas nuances.
A terceira geração situa-se entre 1940 e 1960, nela estão cravados os nomes mais
próximos a nós cronologicamente, como: Ismael de Lima Coutinho, Cândido Jucá Filho,
Ernesto Farias, Matoso Câmara Jr., Serafim da Silva Neto, Celso Cunha, Gladstone Chaves de
Mello, Rocha Lima, Silva Elia, Leodegário Amarante de Azevedo Filho, Evanildo Bechara
dentre outros.
São eles estimados e competentes mestres que sistematizaram diversos estudos da
nossa ngua nas diferentes áreas, contribuindo enormemente para a consolidação do
conhecimento que temos hoje do português em todos seus aspectos. Deixaram-nos vultosos
estudos e uma grande bibliografia incluindo dicionários etimológicos, manuais de filologia,
gramáticas normativas e gramáticas históricas que nos orientam em nossas pesquisas recentes.
Não podemos deixar de enaltecer os trabalhos de alto gabarito dos autores citados
anteriormente, os quais são sempre relembrados pela grande contribuição aos estudos da
62
língua portuguesa. Esse grupo teve atuação na cidade do Rio de Janeiro, tradicional centro de
desenvolvimento e divulgação do conhecimento à época, principalmente em se tratando de
Filologia. Contudo, não podemos nos esquecer de tantos outros filólogos espalhados pelo
Brasil que também deram sua contribuição para o desenvolvimento das ciências da
linguagem, não obstante seus nomes não serem citados nos livros que abordam o tema.
Infelizmente muitos ficaram reservados aos seus estados menos visíveis, mas o papel que
desempenharam foi de grande relevância no ensino e na produção textual.
A partir da década de 1960 quando se introduz o ensino de Linguística Moderna
nas universidades brasileiras, o estudo da língua portuguesa se direciona por caminhos
diversos voltados para perspectivas diferentes, conforme a concepção de linguagem adotada
pelas correntes que se formaram. A tradição filológica se restringe a poucos estudiosos que a
mantêm. No momento atual, um renascer da Filologia no Brasil caminhando lado a lado
com diferentes tendências linguísticas.
2.5 Os Estudos Filológicos e Linguísticos no Ceará
Todos os estados brasileiros tiveram seus mestres iluminados e amantes das letras
e dos assuntos referentes à língua materna como verdadeiros filólogos no significado mais
etimológico da palavra. Não cabe aqui fazermos o arrolamento de todos os nomes que
cultuaram a Filologia em todo o país, contudo, não podemos deixar no silêncio total os nomes
de alguns cearenses dessa plêiade de intelectuais que contribuíram para o desenvolvimento
dos estudos da linguagem no estado do Ceará.
Dois nomes cearenses são citados por Elia (1963) por atuarem no estado do Rio
de Janeiro. Heráclito Graça, que travou uma discussão com Cândido de Figueiredo,
rebatendo os preceitos normativos do velho mestre lusitano, o que resultou em um livro
intitulado Fatos da Linguagem, publicado em 1904. O outro é Clóvis Monteiro, que
contribuiu com qualidade para enaltecer a Filologia, conforme palavras de Elia (1963, p. 199).
Não publicou muito, mas em tudo que escreveu há o sêlo de uma inteligência arguta
servida por bem sedimentada cultura. Foi dos nossos poucos filólogos que puderam
dedicar-se não à língua, mas também à literatura, e a esses estudos trouxe sempre
uma palavra de bom senso e de sábia moderação.
O final do século XIX foi despertado pelo conhecimento científico e pelas
divulgações dos ideais libertários. No Ceará não podia ser diferente, isto é, a libertação dos
63
escravos neste estado ocorreu quatro anos antes da assinatura da lei áurea e essa empolgação
se estendeu com o surgimento de agremiações de jovens intelectuais, como a que se chamou
de Padaria Espiritual, fundada no dia 30 de maio de 1892, instituição organizada por vários
poetas e romancistas cearenses marcada pelo espírito de humor e pela irreverência. A Padaria
foi fundamentada por um programa constituído de 40 artigos em que se destacavam a conduta
e o objetivo da agremiação. O primeiro artigo do programa de instalação diz respeito à
finalidade, o qual reproduzimos aqui da obra de Azevedo (1996).
[...] fica organisada, nesta cidade da Fortaleza, capital da Terra da Luz, antigo Siará
Grande, uma sociedade de rapazes de Lettras e Artes denominada Padaria
Espiritual, cujo fim é fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos
em geral. (AZEVEDO, 1996, p. 59).
O produto básico de uma padaria é o pão que alimenta logo cedo todo cidadão. A
Padaria Espiritual não poderia ser diferente, produzia o pão, ou seja, um jornal informativo e
literário que alimentava o espírito dos que desejassem o conhecimento. Vê-se o espírito
criativo e humorístico que tanto marca a personalidade do cearense. A Padaria Espiritual
deixou sua contribuição para a cultura do Ceará, influenciando ainda hoje os poetas e
intelectuais.
Outra agremiação fundada dois anos mais tarde foi a Academia Cearense de
Letras, no dia 15 de agosto de 1894, três anos antes da fundação da Academia Brasileira de
Letras. É essa instituição de grande relevância para agregar os artistas da palavra e divulgar a
arte literária na então província. Essa academia continua firme em seus propósitos,
congregando os artistas da palavra e divulgando a arte literária do Ceará.
No contexto de maior abrangência, pois não se restringe somente ao âmbito
literário, surge a fundação do Instituto do Ceará, no final da década de 80 do século XIX e a
edição de sua revista, na qual sobressaem vultosos nomes cearenses e suas ideias libertárias e
nativistas, conforme acentua Montenegro (2003, p. 34).
O momento fundador do Instituto do Ceará é acompanhado de um surto iluminista
que se poderia denominar transitório. É que ele se caracteriza por se encontrar
arrimado numa idéia libertária que germinou e durou com a campanha abolicionista
e o seu feliz desfecho, motivando uma série de artigos na revista da entidade.
A criação do Instituto do Ceará ocorreu no dia 10 de março de 1887, e foi de
grande relevância naquele momento. A finalidade dessa instituição era tornar conhecida a
64
história e a geografia da Província do Ceará e propagar as letras e as artes, como se na
sessão de inauguração que reproduzimos abaixo ipsis litteris:
Aos quatro dias o mez de março de mil oitocentos oitenta e septe, em um dos Salões
da Bibliotheca Publica d‟esta capital, presentes o Dr. Paulino Nogueira, Joakim
Catunda, João Perdigão, Dr. Guilherme Studart, Julio Cezar, Dr. Padre Frota, Dr.
Antonio Augusto, Antonio Bezerra, resolveram fundar uma sociedade sob o titulo
Instituto do Ceará com o fim de fazer conhecida a historia e a geographia da
Provincia e de concorrer para a propagação das lettras e sciencias na Provincia.
Declarando n‟esta occasião alguns dos socios presentes que adheriam ao
pensamento da sociedade e queriam tomar parte n‟ella o Dr. Sombra, Dr. Virgílio
deMoraes e Juvenal Galeno, foram estes considerados como socios effectivos Em
seguida foram aclamados e unanimente acceitos: presidente, Dr. Paulino Nogueira,
vice- presidente Dr. Frota, secretario J. Catunda, secretario João Perdigão,
thezoureiro Dr. Sombra, orador Julio Cezar Filho. O presidente encarregou de
organizar os Estatutos á uma commissão composta dos socios: J. Catunda, Dr.
Virgilio e Julio Cezar Filho. E nada mais havendo a tractar, designou o presidente a
proxima quinta-feira para a segunda reunião e levantou a sessão. ( FONSECA, 1887,
p. 6).
Com a fundação do Instituto surgia também a revista de tiragem trimestral que em
princípio, divulgava os estudos dos intelectuais cearenses, em alinhamento com o objetivo da
instituição, nas diversas áreas do conhecimento. Para isso foram criadas comissões
responsáveis, relativas aos assuntos que abordavam. Seis comissões foram instituídas: de
Estatutos, de Redação, de História, Geografia e Estatística, de Ciências e Letras, de Aquisição
de Documentos, de Admissão de Sócios.
Passaram a circular os variados assuntos na revista que são ainda hoje de grande
importância para o conhecimento da sociedade cearense. A Revista do Instituto, nesses 122
anos de sua existência, teve tiragem ininterrupta todos os anos, atravessou duas grandes
guerras mundiais, várias anos de secas no Ceará, mas continou firme com seu propósito. Em
2005, o então presidente da instituição, o Sr. Eduardo Campos, agilizou, através do Projeto de
Organização e Disponibilização do Acervo do Instituto do Ceará, com o apoio do Ministério
da Cultura e de algumas empresas particulares, uma versão eletrônica de todas as edições,
desde a primeira, em 1887, até a de 2005, encontrando-se estas, informatizadas e hospedadas
no site http://www.institutodoceara.org.br/ e em CDs, em formato PDF. Os tamanhos dos
arquivos oscilam em função do ARTIGO, porém variam de 100Kb a 3,5 Mb. Qualquer pessoa
poderá acessar e copiar os artigos desejados.
Insistimos na significância dessa revista por divulgar os mais variados temas
referentes ao Ceará no que diz respeito à formação histórica, à cultura, às estatísticas, à
geografia, à etimologia, à linguística, aos assuntos de ordem religiosa, história da imprensa
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cearense, aspectos étnicos e reprodução de documentos originais que favorecem o
conhecimento in loco dos fatos de nossa história.
Destacamos, aqui, alguns nomes de cearenses que nos legaram os resultados de
suas reflexões e pesquisas em formas de artigos divulgados na Revista do Instituto que muito
contribuem para a história do Ceará, para a constituição de sua identidade cultural e
linguística e para a memória dos seus antepassados. Nomes como os de Guilherme Studart,
Martinz Aguiar, Florival Alves Seraine, Paulino Nogueira e Carlos Studart Filho, para
citarmos alguns que devem ser conhecidos pelas novas gerações e jamais apagados de nossa
memória. A atitude do Barão de Studart é singular, apesar de sua formação e sua produção
científica não serem diretamente no âmbito linguístico, contudo, a sua contribuição para os
estudos filológicos da ngua portuguesa se destaca por meio da reprodução de alguns textos
históricos que são de acesso fácil, hoje, para qualquer filólogo ou linguista interessado. Dos
documentos adquiridos e publicados pelo Barão de Studart, citamos apenas dois que são
fontes preciosas para o conhecimento não só da língua, mas também da identidade cearense.
O primeiro documento intitula-se Relação do Maranhão, 1608, pelo jesuíta Padre
Luiz Figueira enviada a Cláudio Aquaviva. Trata-se de um relatório ou diário de viagem
dirigido ao superior dos jesuítas, em que é narrada a viagem dos padres Francisco Pinto e Luis
Figueira quando estes vieram ao Ceará para catequizar os índios na Serra da Ibiapaba e
negociar com os Tapuias do Maranhão. Esse documento pode ser considerado a certidão de
nascimento do Ceará. O documento é considerado pelo ilustre divulgador como o mais
antigo, até o presente conhecido, referente à história cearense”. (POMPEU SOBRINHO,
1967, p. 9).
Barão de Studart adquiriu o texto através do jesuíta P. J. B. van Meurs do
Limburgo Holandês, por Ordem do Superior Geral da Companhia de Jesus e o editou em
1903 por ocasião do tricentenário do Ceará, encontrando-se publicado no Tomo 17 da Revista
do Instituto. Em 1904 publicou o texto novamente na Coleção Studart intitulada Documentos
para a História do Brasil e Especificamente do Ceará (1904).
O outro documento intitulado Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, pelo
Padre Antonio Vieira da Companhia de Jesus está editado no Tomo 18 da revista e aborda a
vinda do referido padre à Missão dos índios na Serra Grande, no norte do Ceará. Muitos
outros textos são reproduzidos do original e, embora não se estabeleça nenhuma norma de
edição, podemos dizer que são textos fiéis e confiáveis para o estudo da língua portuguesa.
Guilherme de Castro Studart nasceu em Fortaleza, no dia 25 de janeiro de 1856,
sendo filho de John William Studart, vice-cônsul inglês no Ceará, e de Leonísia de Castro
66
Studart. O grande cearense, que se destacou mais tarde, estudou humanidades no Ateneu
Cearense e no Ginásio Baiano. Doutorou-se em Medicina na Faculdade de Medicina da
Bahia. Era historiador e jornalista, com conhecimentos amplos em várias ciências. Tinha
profundos domínios gramaticais em sintaxe, semântica e filologia inglesas. Fez pesquisas em
diversos arquivos estrangeiros para elucidar fatos históricos, contribuindo enormemente para
a historiografia brasileira e cearense, especificamente. Publicou várias obras no domínio
histórico, geográfico, estatístico, religioso e jornalístico. Contribuiu muito na área da
Medicina com seu trabalho infatigável para salvar vidas e com a fundação do Centro de
Medicina Cearense, de sua autoria. “A sua bagagem literária eleva-se a centenas de volumes,
todos eles sobre assuntos variados, desde o discurso até notas sobre linguagem e costumes do
nosso povo”, publica o jornal Correio do Ceará, em 26 de setembro de 1938.
Outro ilustre cearense estudioso da língua portuguesa é o filólogo Martinz de
Aguiar, nascido em Fortaleza, em 1894. Professor do Liceu do Ceará, de sólida cultura e
elevado destaque no conhecimento das letras, publicou o trabalho intitulado Repasse Crítico
da Grammática Portuguesa. Na Revista do Instituto publicou o artigo Fonética do Português
do Ceará, no Tomo 51 de 1937, em que apresenta algumas particularidades da pronúncia
cearense, esclarecendo que “a par do vocabulário, constitui a feição mais forte da nossa
dialetação” (AGUIAR, 1937, p. 271). É também obra de Aguiar o livro Notas de Português
de Filinto e Odorico, (195?), editado pela organização Simões.
Outro autor que destacamos é o médico Florival Alves Seraine que, embora tenha
nascido no estado do Pará, viveu em terras cearenses desde criança, onde estudou o curso
básico no Colégio Nogueira e no Colégio São Luis. O curso secundário fez no Liceu do Ceará
e no Liceu alagoano, em Maceió. Formou-se em Ciências Médico-Cirúrgicas na Faculdade de
Medina da Bahia, em 1930. Especializou-se em Medicina Interna e Gastroenterologia, na
Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Passou a exercer a profissão de médico em
Fortaleza, em 1936. É antropólogo especializado em estudos de pesquisa do Folclore e da
Linguística, com apresentação de trabalhos antropológicos no Brasil e no exterior. Foi
professor de Antropologia Cultural no ex-instituto de Antropologia e na Escola de Serviço
Social da UFC. Ministrou cursos de Folclore na antiga Faculdade Católica de Filosofia do
Ceará, e aulas de Linguística na Faculdade de Filosofia do Crato. Foi sócio de várias
instituições no Brasil e sócio correspondente de outras no exterior, dentre as quais o Instituto
do Ceará, da Associação Brasileira de Antropologia, da Associação Brasileira de Linguística e
da Sociedade Cearense de Geografia e História.
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A sua contribuição para os estudos da língua portuguesa e da cultura em geral, no
Ceará, é de relevo, principalmente, por ter sido um homem que não tivera formação numa
faculdade de letras. Formou-se no período em que a Linguística ainda não era matéria nos
currículos escolares das universidades brasileiras e os cursos de pós-graduação da área, no
Ceará, estavam longe de serem implantados. Esse estudioso dos fatos da linguagem se
adiantara ao tratar de assuntos tão pertinentes e em voga atualmente, pois aborda vários
aspectos linguísticos, desde a toponímia aos estudos das línguas indígenas, além de aspectos
históricos da língua no Ceará, filosofia da linguagem, assuntos relativos ao folclore e à
literatura, dentre outros. Destacamos aqui os seguintes artigos publicados na Revista do
Instituto do Ceará: Contribuição à toponímia cearense (1946), Aspectos históricos da ngua
nacional no Ceará (1949), Contribuição ao estudo da influência indígena no linguajar
cearense (1950), Contribuição ao estudo da formação-de-palavras na linguagem popular
cearense (1957), Relação entre os fatos históricos e a onomástica no Brasil (1964),
Topônimos de Portugal no Ceará (1971), Para o estudo da dinâmica da fala em uma capital
do Nordeste brasileiro (1974), Crítica de Fundamentos da Linguística Moderna (1979),
Processos de desempenho linguístico em um quadro social cultural (1978), Contribuição
metodológica aos estudos lexicais (1980), Marcas de ruralidade na fala urbana (1983), Um
pensador da linguagem: In memoriam de Eugenio Coseriu (1985), Importância de uma visão
diacrônica (1987) e Para a introdução da Filosofia da Linguagem (1989). Os artigos de
Seraine foram reunidos e publicados em formato de livro intitulado Linguagem e Cultura:
estudos e ensaio, 1985, pela Secretaria de Cultura e Deporto do Ceará.
Não podemos deixar de fora o nome do estudioso Paulino Nogueira, com sua
contribuição linguística filológica, embora sua atuação não seja especificamente no campo da
língua. Merece destaque por ter publicado em 1887, no Tomo I da Revista do Instituto do
Ceará, o importante trabalho intitulado Vocabulário Indígena em uso na Província do Ceará.
Podemos, certamente, integrá-lo à constelação de filólogos brasileiros elencada por Elia
(1963). Esses estudiosos cearenses fizeram sua parte no desenvolvimento científico e
intelectual do Ceará e do Brasil, especificamente na ciência filológica. Seus trabalhos têm
como perspectiva uma abordagem integral de todas as áreas da língua, pois demonstram
preocupação em recuperar textos manuscritos como fontes para investigações diversas como
também, habilidade em descrever e analisar aspectos linguísticos referentes à morfossintaxe, à
fonologia, à lexicografia, à dialectologia, à onomástica e à etimologia.
No tocante à especificidade da prática de edição de textos e da crítica textual, a
produção é restrita no Brasil, porém não esquecida totalmente. A maioria dos filólogos
68
relacionados por Elia não lida com edição de textos e, quando o fazem, dão preferência aos
textos clássicos da literatura, principalmente do período medieval português.Tal fato deixa a
desejar a edição de textos brasileiros, principalmente os não literários de caráter oficial da
administração pública e os notariais ou da esfera pessoal.
Contudo, a grande contribuição dada por aqueles profundos conhecedores da
língua não diminui face a este aspecto, pois o auge de nossa história filológica foi atingido por
eles ao deixarem o grande legado para as gerações que atualmente tentam reerguer a laboriosa
tarefa dos estudos de Filologia no Brasil. O que não foi feito por eles torna-se o grande
desafio das gerações do presente, pois muito o que se fazer em nosso país no quesito
edição de textos e crítica textual. Graças a muitos professores de rias universidades
brasileiras o trabalho filológico vem tendo continuidade hic hoc.
Na década de 1960, por motivo das reformas da educação, por força das Leis de
Diretrizes e Bases do Ministério da Educação e Cultura, houve mudanças no ensino de
Filologia. A partir dessa década houve a introdução da Linguística Moderna nos currículos
das universidades brasileiras, pois por um lado era necessária e urgente a divulgação dos
conhecimentos da nova ciência que se estruturava em sua amplitude, antes não contempladas.
Por outro lado, houve um esquecimento quase total da velha ciência filológica, que se
resignou discretamente para se reerguer em outro momento.
2.6 As Perspectivas Atuais dos Estudos Filológicos no Brasil
Desde o advento da Linguística Moderna no Brasil, no princípio da década de
1960, o desejo de novidades peculiares ao espírito humano e a atração do novo método de
fazer ciência, somando-se a isso as novas leis da educação, fizeram com que a Linguística
conquistasse os corações dos professores e dos alunos das universidades, destronando décadas
de predominância da Filologia. Esta sobreviveu silenciosamente e, na última década do século
XX, ressurge graças, mais uma vez, ao espírito humano apaixonado pelo passado das
sociedades e dos fatos revelados nos velhos códices empoeirados até então resguardados nos
acervos dos arquivos.
Poderíamos classificar o momento atual, para seguirmos Nascentes, de quinto
período filológico ou seria uma continuação do período denominado científico, classificado
por Sílvio Elia? Se optássemos pela última denominação, poderíamos chamar de geração
século XXI? Seja como for, as gerações atuais preenchem uma lacuna deixada pelos nossos
antepassados, quando se voltam para os arquivos brasileiros, em busca de textos escritos nas
69
antigas capitanias, nos quais são revelados dados mais longíquos de nossa história registrados
no período colonial. A tônica não tem sido mais os textos literários, mas os de cunho oficial
das várias instâncias da administração pública preservados nos arquivos públicos, nos
cartórios, nos arquivos particulares, nas rias das igrejas e nos jornais mais antigos
impressos em terras brasílicas.
Assim, a Filologia continua com o papel devotado ao objeto primeiro de seu
estudo que é o texto, a leitura e a edição desses textos como, também, os comentários e a
crítica textual. Com o advento da informática, o filólogo utiliza recursos sofisticados por
meios de programas de computadores e de outras tecnologias para facilitar a pesquisa,
melhorar as técnicas editoriais e ampliar a divulgação dos resultados por meios eletrônicos,
como os sítios na internet. Desse modo, a prática dos estudos filológicos mantém seu caráter
conservador, porém, mesclada com metodologias renovadoras, apresenta um novo matiz.
Como representante do atual momento filológico, convém citar o grupo Para a
História do Português Brasileiro (PHPB) que, desde 1996, quando foi fundado, reúne
pesquisadores de vários estados da federação, tendo em vista o levantamento e a edição
semidiplomática de textos produzidos no Brasil colônia, visando à análise dos diversos
aspectos da língua para estabelecer uma história, através dos textos, da língua portuguesa
escrita em solo brasileiro.
Ressalta Mattos e Silva (2001) o desejo do coordenador do grupo de elaborar um
projeto geral para a construção de uma história do português brasileiro.
Também indicou que cada grupo das áreas geográficas brasileiras em que já se está
pesquisando nessa direção se concentrasse na sua área e que identificasse um
momento histórico relevante para a pesquisa, tanto a referente à constituição de um
corpus diacrônico documental, como a referente à reconstrução de aspectos
significativos da história social. (MATTOS E SILVA, 2001, p. 275).
Como resultado da pesquisa no âmbito do PHPB, trabalhos de recuperação e
edição de textos, como Cartas Baianas Setecentistas, que compreendem textos escritos na
Bahia, organizados por Lobo (2001), da Universidade Federal da Bahia. A obra E os preços
eram cômodos... anúncios de jornais brasileiros do século XIX é uma publicação de
Marymarcia Guedes e Rosane de Andrade Berlinck e compreende um registro de mais de
quatrocentas ginas de anúncios de vários jornais brasileiros (GUEDES; BERLINK, 2000).
Do Projeto Temático Filologia Bandeirante, com sede no Estado de São Paulo, resultou a
edição de uma série de textos da língua da época das bandeiras, começando pelo século XVII.
Essa edição foi organizada pelos professores Heitor Megale e Sílvio de Almeida Toledo Neto
70
(2005). As três obras foram publicadas pela Série Diachronica da editora Humanitas, da
Universidade de São Paulo.
textos sobre correspondências e outros gêneros da administração colonial,
organizados por Barbosa (2003) e editados no Estado do Rio de Janeiro, que se encontram
disponíveis eletronicamente no site http://www.letras.ufrj.br/phpb-rj/, da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que ampliam o acervo de fontes para os estudos linguísticos e
filológicos. Não podemos deixar de fora a participação do Ceará nessa história com a edição
de documentos jurídicos do século XIX realizada por Ximenes (2006). Recentemente houve a
publicação da obra de Fachin (2008), que editou documentos do século XVIII referentes ao
estado de São Paulo; tais documentos compõem a coleção do Projeto Resgate. O autor faz
uma edição semidiplomática adotando as normas estabelecidas pelo PHPB. A obra se
enriquece com os comentários sobre os tipos de texto, as dificuldades de leitura e a
sistematização do alfabeto selecionado dos manuscritos.
Outros trabalhos recentes de edição de documentos da administração pública
colonial no Estado do Paraná foram organizados por Aguilera e Vasconcelos (2007),
referentes a manuscritos setecentistas da vila de Pernagoa, e por Aguilera e Baronas (2007),
que compreendem manuscritos setecentistas e oitocentistas das vilas Goaratuba e Antonina.
Os dois livros compõem-se, além da edição fac-similar acompanhada da edição
semidiplomática, de uma contextualização histórica do Estado do Paraná e das vilas onde os
documentos foram escritos e, por fim, de um glossário que define termos correntes nos textos
e que são desconhecidos do estado atual da língua portuguesa. É um trabalho de grande valia
para o resgate da história do Brasil e, principalmente, da língua portuguesa, que amplia as
pesquisas do grupo PHPB.
Fora o grupo do PHPB, destacam-se as pesquisas filológicas realizadas no Estado
da Bahia, tanto de edição de textos literários de autores baianos pouco conhecidos, dentre eles
os autores Artur de Sales e João Gumes, que tiveram parte de sua obra editada, quanto de
textos não literários. Nesse segundo grupo, destacam-se os trabalhos da professora Rita
Queiroz, da Universidade Estadual de Feira de Santana, e de seus alunos de iniciação
científica que realizam estudos nos arquivos e cartórios da região, recuperando textos
jurídicos, como autos de defloramento do Recôncovo Baiano. Relacionamos, ainda, duas
obras de edição de documentos na Bahia, ambas editadas por Queiroz (2006, 2007). Ainda
desse Estado, merecem destaque os textos teatrais escritos durante a ditadura militar
brasileira, que vêm sendo editados e estudados por Rosa Borges dos Santos, da Universidade
Federal da Bahia. ainda os trabalhos de recuperação e edição de textos pertencentes ao
71
acervo do Mosteiro de São Bento, coordenados pelas professoras Célia Teles e Alícia Duhá.
Isso que vem sendo feito em vários Estados brasileiros constitui apenas uma pequena
amostragem dos estudos realizados ou em andamento no Brasil, no tocante às pesquisas
filológicas. Muito outros estudos voltados para a análise linguística sobre vários olhares estão
sendo desenvolvidos em formas de dissertações e de teses de doutoramento por todo o Brasil,
que demonstram o amor à Filologia e confirmam seu retorno no cenário nacional.
É digno de se registrar, também, como prática filológica, os estudos da língua
realizados em suas diversas manifestações, principalmente no que diz respeito ao léxico, ao
discurso e ao texto de modo geral, o que passou a se denominar de Filologia Textual. Tais
estudos partem do conhecimento do texto, edição e análise e ganham fôlego sob as aplicações
teóricas das correntes da Linguística Moderna.
Uma das atividades do campo da filologia é a crítica textual, que vem sendo muito
praticada no Brasil, principalmente com textos literários. O conceito de crítica textual
apresentado no glossário de crítica textual é o seguinte:
[...]disciplina que tem por objectivo reproduzir o texto na forma do original ou
equivalente (constitutio textus), eliminando para isso as intervenções espúrias da
tradição (quando se trata de textos antigos), ou, nos casos em que existam autógrafos
e primeiras edições (textos modernos), na forma que é definida pelo editor crítico
como melhor correspondendo à vontade do autor. (GLOSSÁRIO..., 2007).
Para a realização da crítica textual requer-se um processo com rias etapas,
que se trata de confrontar todos os testemunhos existentes de um texto para a avaliação e
escolha da forma mais próxima do original. Passadas todas as etapas, publica-se o texto
crítico, conforme já apresentamos anteriormente.
Outra atividade muito recente, no Brasil, que vem sendo desenvolvida pelos
filólogos e estudiosos da literatura é a crítica genética, prática esta que se estende aos
estudiosos de literatura, já que está muito voltada para os textos literários e para os processos
de produção de uma obra literária através dos vestígios deixados pelo autor: os rascunhos, as
rasuras, anotações sobrepostas, riscos, substituição de palavras, enfim, tudo o que possibilita o
processo de criação da escrita para se conhecer à gênese da obra. Observemos o verbete
abaixo:
crítica textual aplicada a conjuntos complexos de manuscritos autógrafos (notas,
esboços, versões transitórias, pias a limpo e texto definitivo), com o objectivo de
estudar e determinar o processo de génese do texto neles escrito e reescrito, dando-
se especial atenção aos aspectos materiais que a documentam (marcas de
manipulação autógrafa). (GLOSSÁRIO..., 2007).
72
Para Brandão (2002) a crítica textual tradicional tinha como missão garantir a
forma e a mensagem originais dos textos manuscritos para preservar sua integridade, visto
que corria o risco de se perder por problemas naturais de conservação. A crítica genética
moderna busca o mapeamento do percurso dos textos com todas as marcas para se chegar à
sua gênese e ao processo criativo do escritor.
Se a crítica textual tradicional penso especialmente no conjunto composto pela
filologia e pela Edótica com suas ciências auxiliares: a Paleografia, a Diplomática, a
Codicologia, a Hermenêutica, etc. -, tinha por missão principal garantir ou restituir a
forma e a mensagem originais de um texto ou documento que, pelos naturais
problemas de conservação, reprodução e transmissão, corriam risco de não se
preservarem em sua integridade, a crítica genética moderna, embora não dispense
tais recursos nem objetivos, quer principalmente “mapear” o percurso da escritura,
com suas variantes, rasuras, emendas e toda sorte de modificações que configuram a
“gênese” do texto como espaço onde o escritor atesta as muitas alternativas que o
processo criativo, tanto como experiência pessoal quanto como prática histórica e
social da escritura, vai pondo diante de si. (BRANDÃO, 2002, p. 9).
É justo ressaltarmos, também, alguns centros de pesquisa de mais relevo na
prática da pesquisa filológica no Brasil, ainda que restritos em comparação ao que poderia ser
muito mais amplo. No Estado da Bahia se concentram vários pesquisadores e são oferecidos
cursos de mestrado e doutorado em Filologia Românica e Linguística Histórica, donde advém
muitos trabalhos publicados nessas áreas. Há publicação da revista Scripta Philologica
editada na cidade de Feira de Santana, na Bahia em suporte eletrônico, com trabalhos de
vários pesquisadores. Em 2009 saiu a edição de número cinco dessa revista. É ainda do
Estado da Bahia a organização dos Seminários de Estudos Filológicos (SEF), que vem
ocorrendo anualmente desde 2006. Cada ano o evento é realizado em uma universidade
diferente, e conta com a participação de um público cada vez mais interessado nos estudos de
Filologia. Os trabalhos apresentados durante o seminário são publicados em formas de anais
e versam sobre os diversos aspectos filológicos. O primeiro SEF de 2006, realizado na
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), gerou publicação de doze trabalhos em formato de
livro (c.f. TEIXEIRA; QUEIROZ; SANTOS, 2006). Este livro está dividido em três partes:
filologia e crítica textual, filologia e análise do discurso e filologia e estudo do léxico. nos
anais do II SEF, realizado no mês de setembro de 2007, na Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), foram publicados 53 trabalhos em forma de artigos, incluindo apresentação
de conferências, mesas-redondas e comunicações. (c.f. QUEIROZ, 2007). O terceiro
seminário ocorreu em 2008 na Universidade Federal da Bahia (UFBA), com uma expansão
significativa de trabalhos. O quarto SEF, que teve como tema a Filologia e Estudos da
Linguagem: O Léxico em Questão, ocorreu nos dias 05 a 07 de agosto de 2009 na
73
Universidade Católica de Salvador (UCSAL). O evento tornou-se de âmbito nacional com a
participação de pessoas de rias regiões do Brasil. Aconteceram 05 sessões de conferências,
04 de mesas-redondas, 24 sessões de comunicações e 10 minicursos. Tudo isso com muitas
discussões em torno do assunto central, que foi a Filologia.
Em São Paulo pesquisa de pós-graduação em Filologia e é de a Revista
Filologia e Lingustica Portuguesa, que conta com a VII edição. No Estado do Rio de
Janeiro, centro tradicional de Filologia no Brasil, permanece a tradição com o Centro
Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos (CiFeFiL), a publicação da Revista
Philologus, com seus vários números de edição, e a Academia Brasileira de Filologia, que
publica também uma revista. ainda o Congresso anual organizado pelo CiFeFil, realizado
sempre na última semana do mês de agosto na Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
UERJ, que conta com a XIII edição. São essas algumas notícias do desenvolvimento da
Filologia, atualmente, no Brasil, que perpassam o nosso conhecimento. Claro que não se
esgotam aqui os trabalhos individuais, as publicações, os eventos, os grupos de pesquisas
espalhados por nosso país. Não pretendemos apresen-los todos, somente situar nossa
matéria de estudo. De modo geral podemos dizer que estão muito bem consolidados os
estudos filológicos brasileiros.
2.7 Linguística Histórica/Filologia versus Linguística Moderna
Como dito anteriormente, no século XIX entra em cena o estudo histórico
comparativo com o objetivo de descobrir o parentesco das línguas e estabelecer o tronco
linguístico ou a proto-língua original. Segundo Leroy (1977, p. 31), [...] foi o conceito de
parentesco das línguas que racionalizou os estudos lingüísticos; o ponto de partida foi a
revelação do sânscrito aos sábios ocidentais”. O descobrimento dessa língua possibilitou a
análise dos elementos constituintes da palavra e deu acesso a obra de gramáticos hindus.
A partir desse período o estudo da linguagem se denominou de Linguística
Histórica e tem como meta o princípio da mudança das nguas. Isso pode ser observado
através da comparação de um sistema com outro. Afirma Faraco (1991, p. 9) que “a realidade
central da lingüística histórica é o fato de que as línguas humanas mudam com o passar do
tempo [...] E é essa dinâmica que constitui o objeto de estudo da lingüística histórica”.
Não é difícil encontrar o termo Filologia usado como sinônimo de Linguística
Histórica. Não podemos perder de vista o fato dessa última ter como meta a perspectiva da
mudança diacrônica, isto é, no eixo do tempo. Assim, faz parte do interesse da Linguística
74
Histórica a mudança de um sistema em outro e as transformações profundas dentro de um
mesmo sistema. Seu foco central é a transformação e a mudança das línguas no eixo do
tempo, é a diacronia. Nesse sentido confunde-se com a Filologia que também considera a
história, as mudanças, mas cujo campo de abrangência é muito mais amplo.
Segundo Câmara Jr. (1990), a Linguística era ligada à Filologia, que por sua vez,
era um ramo da história. Foi Schleicher, pesquisador alemão, que quis colocar a Linguística
no âmbito das ciências naturais para ter status de ciência, como as demais, de forma que a
linguagem era vista como algo da natureza semelhante a uma árvore que nasce e morre.
Dessa maneira, o desenvolvimento da linguagem não era por ele considerado como
desenvolvimento histórico, como de todos os outros traços da sociedade humana.
Comparava-se ao desenvolvimento de uma planta com suas leis fixas de crescimento
e morte. A linguagem era vista como algo da natureza, ou seja, um animal ou uma
planta. (CÂMARA JR., 1990, p. 51).
A concepção de ngua como organismo natural influenciou muitos estudiosos da
época que trataram de reconstruir as genealogias das línguas e os graus de parentescos entre
elas. Assim, todas as línguas que pertencem a um mesmo tronco são interligadas por laços
familiares. As línguas têm raízes, troncos, ramos, semelhantes a uma árvores, sendo assim, as
línguas nascem, desenvolvem e morrem. Morrendo deixam sementes, heranças que se
proliferam em outras nguas, brotam novos galhos com semelhanças genéticas. Foi o
pensamento das famílias linguísticas que levou à pesquisa das origens das línguas. O primeiro
a se aventurar na busca foi o dinamarquês Ramus Rask, que fez um trabalho investigativo
sobre a origem das línguas escandinavas, ganhando um prêmio em 1811, pelo livro intitulado
Origem do antigo nórdico ou irlandês. Escrito em dinamarquês, ngua pouco conhecida, o
autor não teve o privilégio de ser reconhecido como fundador da ciência histórico-
comparativa da linguagem. Coube a Franz Bopp, em 1816, tal título com seu trabalho
comparativo do sistema verbal do sânscrito, grego, latim, persa e das línguas germânicas que
lhe permitiu estabelecer a existência de uma grande família de línguas, abrangendo tanto a
Europa como a Ásia, a qual se chamou indo-europeu, indo-europeia, indo-germânica ou árica.
Bopp pode ser considerado o fundador da lingüística indo-européia. Embora seu
objetivo último fosse muito mais elevado e ilusório, teve a honra de, pelo menos,
provar a existência de uma grande família de línguas, à primeira vista muito
separadas, e de dar um vislumbre do método para descobrir o desenvolvimento
histórico delas. (CÂMARA JR., 1990, p. 40).
75
Foi, portanto, Bopp quem abriu o caminho para o desenvolvimento da Linguística
Histórica, caminho esse seguido por rios outros, dentre eles Jacob Grim, que fez o estudo
comparado das línguas germânicas dando atenção especial à língua gótica. “[...] com eles o
estudo da linguagem saiu da pré-lingüística e da paralingüística para tornar-se ciência da
linguagem autônoma, ou lingüística propriamente dita”. (CÂMARA JR., 1990, p. 44).
A dedicação ao estudo histórico-comparativo se estendeu aos vários ramos das
línguas indo-europeias e de outros troncos durante o século XIX. Houve interesse pelas
línguas vivas e seus dialetos, o que levou ao surgimento da Dialectologia. Cada vez mais se
desenvolveu o estudo geral da linguagem que veio a culminar com Ferdinand Saussure e sua
visão de língua como um sistema passível de descrição, sem necessariamente, conhecer sua
história.
A visão da língua, como um sistema, levou Saussure a focalizar o estudo do sistema
como tal, independentemente da sua mutação através do tempo. Dessa forma, o
estudo descritivo da língua foi incluído na lingüística, ao lado do estudo histórico
que fora, até então, o único interesse da lingüística. (CÂMARA JR., 1990, p.108).
Para Mattos e Silva (1999), a sedimentação da Linguística no século XIX criou a
adjetivação histórica para uma disciplina que, por si, era histórica. Assim, o seu conceito está
relacionado com o estudo das mudanças históricas.
toda uma tradição na história da Lingüística, sedimentada desde o século XIX,
quando a Lingüística não precisava ser adjetivada, que toda ela era histórica, que
identifica a Lingüística Histórica como aquela Lingüística que se ocupa do passado
das línguas e do seu processo de mudança ao longo do tempo, quer se trate de uma
única língua, quer se trate do estudo comparado entre línguas de uma mesma família
genética ou não. (MATTOS E SILVA, 1999, p. 149).
Propõe a autora que a Linguística Histórica pode ser vista em dois sentidos: No
sentido estrito, aquela que se sedimenta no século XIX, cuja concepção em dicionários e
manuais se mantém, atualmente, com uma concepção restrita ao passado e à mudança das
línguas. Já no sentido amplo a Linguística Histórica “será todo estudo linguístico que se funde
em base de dados necessariamente datados e localizados” (MATTOS E SILVA, 1999, p.149).
Como sabemos a Linguística Moderna, vinda à luz em 1916, revolucionou as
ciências da linguagem modificando a maneira de abordar o tema, privilegiando a descrição de
qualquer manifestação linguística em sua sincronia e deixando em segundo plano o aspecto
histórico-diacrônico.
As teorias advindas da Linguística Moderna espalharam-se e ganharam outras
interpretações, desenvolvendo várias tendências ou correntes como conhecemos ainda hoje.
76
São extraordinários os caminhos que a Linguística percorre nos tempos atuais quando se abre
para a interdisciplinaridade, fato esse também comum à Filologia, que extrapola o âmbito
puramente da língua para dominar o discurso com todos os seus reveses e, assim, cuidar das
manifestações do espírito humano.
Com razão expressa-se Melo (1975), ao qual mencionamos, sobre o surgimento e
o desenvolvimento da Linguística enquanto ciência que amadureceu seus métodos de
sistematização e seu desenvolvimento até nossos dias.
[...] relembramos que, com a publicação em 1816 da monografia de Franz Bopp, Do
Sistema de Conjugação do Sânscrito, se abriram novos horizontes à empírica ciência
da linguagem, que daí por diante vai ganhar foros de ciências experimental, com
seus princípios solidamente firmados, seu método claramente estabelecido e suas
conclusões definitivas. De Bopp aos nossos dias progrediu consideravelmente a
novel ciência, que conta hoje com uma soma imensa de materiais acumulados,
sistematizados e estudados, de tal arte que já se puderam levantar poderosas sínteses.
(MELO, 1975, p. 287).
Devido ao andamento dos estudos da Linguística Moderna no Brasil, a
abordagem histórica foi ficando quase esquecida, ganhando fôlego, porém, nas últimas
décadas do século XX, por influência das novas teorias veiculadas no seio dessa ciência. Kato
(1996), sobre o tema, expressa-se da seguinte maneira:
Desde a introdução do estudo da lingüística moderna no currículo dos cursos de
Letras das universidades brasileiras, os estudos diacrônicos foram relegados a um
segundo plano, ou mesmo ignorados, como conseqüência da ideologia rigidamente
ahistórica do início do estruturalismo. (KATO, 1996, p. 13).
Em 1963 dá-se a irrupção obrigatória, no Brasil, das disciplinas de Linguística nos
currículos acadêmicos dos Cursos de Letras, estabelecendo-se os modelos sincrônicos
estruturalistas e as suas diversas correntes, fazendo com que aquela década se tornasse o
marco divisor dos estudos linguísticos em nosso país, como salienta Mattos e Silva (1999).
Com a entrada das disciplinas de Linguística nos currículos das universidades
brasileiros, foram abafadas tanto a Filologia quanto a Linguística Histórica. Estas
sobreviveram isoladamente e com práticas inconciliáveis, como ressalta Altman (2004).
Com efeito, a institucionalização da disciplina Lingüística no Brasil no início dos
anos 60 coincidiu com a recepção quase simultânea do(s) estruturalismos da
chamada Escola de Praga, do Descritivismo americano e do gerativismo
chomsykyano em conseqüência, com um conjunto de procedimentos e valores
científicos por vezes conflitantes [...]. Até o final do XX, Filologia e Lingüística
coexistiram em várias universidades do país como disciplinas autônomas e como
duas práticas inconciliáveis. (ALTMAN, 2004, p. 162).
77
O retorno da Filologia como da Linguística Histórica, atualmente, em nosso país,
vem se reerguendo por meio de grupos de pesquisas ou de trabalhos individuais que se
caracterizam pela edição de textos e pela análise da ngua nos vários aspectos sob orientação
teórica diversificada.
A prática de editar textos produzidos no Brasil, durante o período da colonização
portuguesa, demarcadamente entre os séculos XVI e XIX, vem aumentando. Tais textos
constituem as fontes fidedignas da língua em uso; sua transcrição, edição semidiplomática e
análise de elementos da língua constituem uma das tarefas básicas da Filologia ou se
direcionam para a Linguística Histórica quando seguem o percurso de uma norma ou de uma
realidade da língua centrada na mudança.
Os textos editados se prestam para que sejam observados os diversos fenômenos
linguísticos. Muitos estudos foram feitos e se fazem sobre a perspectiva da morfossintaxe, da
fonologia e do léxico, principalmente. outros aspectos que envolvem a linguística textual,
a análise de gêneros ou a análise do discurso. Ainda na perspectiva do xico, pouco tem se
investido sobre as fraseologias nas tradições textuais de sincronias distantes. A fraseologia é
um dos temas que pode ser analisado a partir da coleta e edição de textos de uma determinada
época ou de uma especialidade da língua.
Não podemos negar a importância de nenhum desses aspectos do estudo da
linguagem, tanto do ponto de vista filológico quanto do linguístico, pois quer seja diacrônico
ou sincrônico, ambos se complementam para o entendimento e funcionalidade da língua.
Estudar a linguagem humana é descobrir um universo de possibilidades de pensamento e de
realizações do maravilhoso poder que só o homem tem de se expressar e, com justiça,
denominar-se homo loquens.
2.8 Conclusão
Abordamos neste capítulo questões atinentes aos conceitos e à delimitação da
Filologia com o intuito de situar nossa pesquisa no âmbito dos estudos filológicos. Aceitamos,
aqui, a concepção de Filologia como uma ciência de larga abrangência e de caráter
interdisciplinar, centrada prioritariamente no texto escrito que revela as tradições discursivas
da língua e tais tradições são condicionadas pelas vivências sócio-culturais de comunidades
que produzem os textos escritos.
Entendemos que a leitura e a compreensão de um texto ocorrem de forma integral
e, para que essa integralidade seja de fato efetivada, necessário é adentrarmos nas profundezas
78
do texto, através das pistas apresentadas que apontam os caminhos para se esclarecer os fatos,
desenvolver os dados apresentados e compreender o contexto em que o texto materializou-se.
Desta forma, o emprego de uma citação muito frequente nos Autos de Querela é atinente ao
Livro Quinto das Ordenações do Reino, levando-nos a questionar o sentido de tal Livro e de
tais Ordenações. Essa informação nos conduz à pesquisa sobre as leis vigentes em Portugal e
em suas colônias, para descobrirmos quem elaborou tais leis, de que tratam essas Ordenações
etc. Dessa forma temos que adentrar na história jurídica de Portugal e do Brasil para uma
explicação mais profunda do que foi apontado no texto. O mesmo ocorre com as demais
explicações que porventura ocorram em qualquer corpus de análise. Não prescindimos da
historicidade dos textos quando estudamos a língua em qualquer que seja o seu aspecto.
Apresentamos a delimitação dos estudos filológicos no Brasil, os nomes de alguns
devotados estudiosos da língua portuguesa na perspectiva filológica e, por fim, mostramos as
relações entre a Filologia e a Linguística Histórica, duas ciências que muitas vezes são
confundidas dadas as aproximações.
Julgamos muito pertinentes as reflexões sobre o tema, apresentadas aqui por
diversos pensadores, por situarmos teoricamente nossa pesquisa no âmbito da Filologia.
79
3 UNIDADES FRASEOLÓGICAS: CONCEITOS E HISTÓRICO
A evolução de uma língua é determinada não por factores estritamente
linguísticos mas também por mudanças históricas, económicas, sociais, culturais,
que se materializam em profundas transformações na mentalidade dos falantes.
( CARDEIRA,2006, p.82)
3.1 Introdução
Neste capítulo, tratamos, inicialmente, a respeito do texto especializado, para isso
nos atemos ao pensamento de Cabré e Estopà (2007), tendo em vista lidarmos com um texto
da linguagem especializada. Seguindo o percurso traçado no capítulo, abordamos o fenômeno
das unidades fraseológicas (UFs) ou fraseologias (Fs), conforme terminologia adotada, na
língua comum e na língua especializada. As UFs constituem o foco central de nossa pesquisa
enquanto objeto linguístico que nos propusemos a analisar. Devemos esclarecer que o estudo
destas, aqui, insere-se no contexto mais amplo da língua para que possamos fazer uma
interpretação integral dos textos quando os vinculamos ao contexto extralinguístico.
O desenvolvimento das unidades fraseológicas constitui uma prática recorrente
em todas as línguas vivas. Pertencem ao patrimônio da língua comum e das línguas de
especialidades. No âmbito da língua comum, falada pelos usuários no seu cotidiano, as UFs
transmitem experiências de vida e sabedoria do povo que as utiliza, sabedoria esta sintetizada
em fórmulas linguísticas. São exemplos disso os provérbios que, ao longo da história da
humanidade, foram usados por todas as pessoas e grupos de todas as classes sociais. Citamos
alguns desses provérbios usados cotidianamente como os que seguem: o que não tem
remédio, remediado está; mais vale um pássaro na mão do que dois voando, dentre muitos
que compõem o acervo popular. Os provérbios, a princípio, eram de uso da realeza e das
classes altas, como bem afirma Obelkevich (1997)
15
, porém, quando tomam o gosto popular,
passam a ser de uso exclusivo das classes economicamente subalternas. Além dos provérbios
ou ditos populares, outras fraseologias, como as sentenças e as máximas, são repassadas de
boca em boca por várias gerações, constituindo tradições discursivas com alto valor
comunicativo e enunciativo.
No âmbito da língua escrita formal, o fenômeno da fraseologia não se recusa em
estar presente também em todas as épocas, mantendo comunicação, criando elos discursivos
15
Este autor faz um estudo sobre o surgimento e uso dos provérbios na Inglaterra durante o século XVIII, os
quais tinham prestígio quando circulavam na corte. Ao passar para o domínio do povo, perderam a importância,
caíram na antipatia da elite e são ainda hoje ditos ou ditados populares.
80
entre os grupos sociais, estabelecendo hierarquias, exigindo obediência e respeito, impondo
ordem, em suma, fazendo com que a língua cumpra os desígnios daqueles que a usam. Dessa
forma, os documentos escritos na corte de um monarca, por exemplo, as resoluções, as
ordens, os alvarás, as cartas de nomeações e os ofícios de leis direcionados aos seus súditos,
são marcados por fraseologias que estabelecem uma comunicação eficiente no sentido de
cumprimento das ordens ou de imposição da autoridade. Da mesma forma, a produção escrita
pelos súditos em forma de relatórios, queixas, pedidos etc. são representadas pelas expressões
que denotam súplica, agradecimento, submissão, obediência, dentre outras marcas que
definem o grau de subserviência ou, até mesmo, de medo em relação ao seu soberano. Isso é
muito recorrente nos documentos escritos em qualquer época por qualquer que seja a
instituição. Recorremos aqui ao caso específico da administração portuguesa no Brasil e a sua
grande massa documental produzida em todas as esferas da organização burocrática. Cada
documento emitido apresenta expressões típicas que se caracterizam como abertura ou
introdução, da mesma forma caracterizam o fechamento ou conclusão desses documentos que
definem bem cada gênero textual em questão. Essas marcas típicas evidenciam as relações
hierárquicas entre duas classes: a dominante e a dominada.
Nos documentos que lemos da época colonial encontramos expressões repetidas
que se caracterizam como UFs com valores enunciativos diversos. Para confirmar o que
dizemos, reproduzimos aqui um ofício escrito pela Junta Administrativa do Ceará, em 1822.
Esse documento é emitido ao Ministro e Secretário de Negócios de Justiças de Sua Majestade,
o Rei D. João VI. No documento se destaca a atuação da Junta como intermediária entre o
soberano e seus súditos na colônia, especificamente no Ceará, agindo de forma conveniente
para que todas as ordens estabelecidas pelo rei fossem obedecidas pelos habitantes das vilas
cearenses.
No final do texto é bem marcante a UF Deos Guarde a VossaExcellencia por
muitos annos que, além de revelar a marca linguística temporal de uma época, expressa alto
grau de respeito e obediência. Destacam-se também os valores, como o sentimento religioso
que constituía o centro da vida da sociedade. Em vários outros gêneros textuais do mesmo
período era usada essa UF para concluir um documento.
Ponderando esta Junta, que as Instrucções de Policia dadas pelo Governador Manoel
Ignácio de Sampaio em 9 de Março d‟1818, aos Capitaes mores que intitulou
Commandantes Geraes e aos Commandantes de Destrictos, seus subalternos, quase
todos Officiaes de Ordenanças, e Milicias, não devião continuar a ter execução, por
estar legalmente separada a Jurisdição Civil da militar, e serem, em parte, menos
conformes com o systema adoptado, formalisamos outros, do modo, que nos pareceo
mais adequado as Leys da Policia, e ao estado da Provincia, as quaes, ora, enviamos
81
ao Soberano Congresso das Cortes pedindo a Sua Aprovação, e outras Providencias.
Acabamos de nomear commissões em todas as Vilas da Provincia, para informarem
a este Governo o estado das Cadeas, estradas, e pontes, lembrando os
melhoramentos mais necessarios, e menos dispendiozos, assim como, as obras
publicas, e estabelecimentos urgentes em cada Distrito. Aos Parochos insinuamos a
obrigação, que tem de persuadir, nas suas praticas dominicaes, aos povos rusticos, e
ignorantes, as vantagens, que devem esperar do Systema Constitucional, explicando-
lhe os principios Liberaes adoptados nas Bazes juradas. Aos Juizes Ordinarios
determinamos que, pela Secretaria deste Governo, dessem parte mensal do modo
com que os Parochos desempenhão aquelle seu importante dever, para ser tudo
prezente a Sua Magestade. Aos Ouvidores, e Juizes Ordinarios advertimos a
vigilancia, que devem ter sobre a conducta dos seus Escrivaens, advogados, e
Meirinhos, tornando-os responsaveis às Côrtes, e a Sua Magestade pela sua
ommissão, ou culposa condescendencia, a respeito dos erros, e prevaricações dos
ditos officiais, alem do procedimento, que esta Junta ha de ter contra elles, por tão
escandaloso abuso da sua Jurisdição. Nesta Provincia tranqüilidade geral,
submissão às Leys, respeito às Auctoridades Constituidas, e demonstrações
agradaveis de firme adherencia ao Systema Constitucional, o que tudo participamos
a Vossa Excelencia para que haja de o levar ao conhecimento e Sua Magestade, com
os protestos da nossa constante, e proffunda abediencia.
Deos Guarde a VossaExcellencia por muitos annos.
16
Palácio do Governo 15 de Abrail d‟1822∕. Illustrissimo e Excelentissimo. Senhor
Jozé da Silva de Carvalho Ministro, e Secretario. d‟Estado dos Negócios da Justiça
Jozé Raymundo dePaços dePorbem Barboza
Presidente
Francisco Gonçalves Ferreira Magalhães
Mariano Gomes daSilva
Joze de Agrella Jardim
Jozé deCastro Silva
Secretario
(ARQUIVO NACIONAL DA TORRE O TOMBO - ANTT)
17
Os Autos de Querela, documentos que compõem o foco de nosso estudo,
apresentam alto grau de fixidez quanto à organização estrutural e formal, pois, como textos de
caráter judicial, podem ser diplomaticamente classificados em categoria documental. As
categorias documentais são estabelecidas para os atos e pela Diplomática, conforme Bellotto
(2007). Dessa feita, essas categorias são estipuladas pela distribuição do conteúdo jurídico dos
documentos que nelas se enquadram. A autora, com base no manual de Documentação e
arquivos, apresenta a seguinte distribuição dos documentos:
1) Normativos: compostos por leis, decretos-leis, decretos, estatutos, regimentos,
regulamentos, resoluções, acórdãos, portarias, instruções normativas, despachos, ordem de
serviço.
2) Enunciativos: compõem-se de pareceres, informações, relatórios, votos, despachos.
3) De assentamento: atas, termos, apostilas, autos de infração.
16
O grifo é nosso com função de destacar a expressão.
17
A edição é conservadora, mantivemos todas as marcas linguísticas do original, porém desenvolvemos as
abreviaturas colocando em itálico as letras acrescidas.
82
4) Comprobatórios: certidões, traslados, atestados, cópias autenticadas.
5) De ajuste: tratados, convênios, contratos, ajustes e termos.
6) De correspondência: alvarás, circulares, avisos, cartas, memorandos, mensagens, editais,
imitações e exposições de motivos.
Classificamos os Autos de Querela na categoria de assentamento, pois são
configurados por registros que consubstanciam assentamentos sobre fatos ou ocorrências. Por
serem de natureza jurídica, que refletem relações políticas, legais, sociais e administrativas
entre o Estado e o cidadão, são documentos diplomáticos, conforme definição da autora.
Documentos diplomáticos são aqueles de natureza estritamente jurídica que
refletem, no ato escrito, as relações políticas, legais, sociais e administrativas entre o
Estado e os cidadãos. Abrangem, portanto, quase a totalidade dos chamados
documentos de arquivo [...] Trata-se documentos cujos elementos semânticos são
submetidos a formas preestabelecidas. O “discurso diplomático” é aplicado a um
quadro redacional no qual se insere o ato escrito. Esssa redação não pode ficar
submetida à fantasia de seu redator. Existem regras de composição codificada,
mesmo havendo pequenas modificações não-substantivas [...]. (BELLOTTO, 2007,
p.51-52).
Os estudos diplomáticos levam ao entendimento dos documentos desde o seu
nascedouro, e como eles são estruturados no momento de sua produção, pois a Diplomática se
ocupa da estrutura formal dos atos escritos que emanam do poder governamental e notarial.
Esses documentos são submetidos à validade e sistematização impostas pelo Direito, sua
estrutura e diagramação são indissociáveis do seu contexto jurídico-adminsitrativo. Portanto,
há uma estrutura estabelecida que não pode ser transgredida.
A Diplomática é entendida em dois sentidos, conforme Piqueras (2004, p. 193).
18
Em lato sensu, “alude a qualquer escritura de caráter legal, histórico e adminsitrativo
existentes nos arquivos e guarda relação com os documentos propriamente ditos”. Em stricto
sensu, restringe seu significado ao testemunho do texto jurídico.
[...] é todo testemunho escrito sobre um feito de natureza jurídica, realizado sob a
observância de certas e determinadas formalidades variáveis segundo as
circunstâncias de pessoa, lugar, tempo e matéria destinadas a conferir a tal
testemunho autoridade e fé, dando-lhe força de prova. (PIQUERAS, 2004, p.193).
19
18
alude a cualquier escritura de caráter legal, histórico y administrativo existente en los archivos y que guarda
relación con los documentos propiamente dichos
19
[...]es todo testimonio escrito sobre un hecho de natureza jurídica, realizado bajo la observancia de ciertas y
determinadas formalidades variables según las circunstancias de persona, lugar, tiempo y materia destinadas
a conferir a tal testemonio autoridad y fe, dándole fuerza de prueba.
83
Com base nas regras da Diplomática que norteiam a organização e estruturação
dos documentos, apresentamos, neste trabalho, a estrutura dos Autos de Querela por partes
separadas e, em cada parte que compõe o todo, organizam-se os conteúdos informativos e as
UFs.
Destacamos, aqui, o fato da Capitania do Ceará ter sido colonizada tardiamente,
estando por um longo período sob o comando de Pernambuco. Significa dizer que os sujeitos
que constituíam as camadas hierárquicas da administração pública, como os escrivães no uso
direto da língua, e os ouvidores e corregedores, que presidiam os processos judiciais, muito
raramente seriam nativos filhos das terras cearenses, pois a situação de analfabetismo era
muito significativa nessa capitania, o que nos leva a crer, muito embora não podemos
comprovar com exatidão aqui, que os escrivães, cuja função era de registrar as querelas,
provavelmente eram portugueses ou descendentes próximos. Significa dizer, também, que o
emprego de expressões consagradas do gênero textual em apreço era do domínio de um
pequeno grupo que detinha o poder da escrita e o conhecimento da lei. Por outro lado, não
podemos ignorar muitas expressões de uso popular que poderão ocorrer nos textos, pois a
visão de mundo e os sentimentos expressos diante dos fatos poderão constituir um modo
próprio de se consagrar como uma fraseologia registrada pela pena do escriba.
Ainda no decorrer desse capítulo apresentamos alguns conceitos de UFs na língua
comum e nas línguas de especialidades. Apresentamos, outrossim, as denominações
atribuídas ao fenômeno das fraseologias em seu percurso histórico e as pesquisas atuais nas
línguas de especialidades que visam sistematizar o fenômeno com maior rigor científico.
Apresentamos uma seção em que discutimos os conceitos de Tradição Discursiva, tendo em
vista que as UFs constituem tradições de uso dentro da língua por um setor específico da
sociedade, em uma época limitada cronologicamente. No final do capítulo acrescentamos uma
seção com reflexões sobre o fazer dicionarístico, pois nosso produto final é o glossário das
unidades fraseológicas, sistematicamente organizado.
3.2 O Texto e a Linguagem de Especialidades: Algumas Noções
É conveniente trazermos aqui algumas reflexões que nos orientam para
compreendermos o que é um texto e uma linguagem especializados, tendo em vista o caráter
dos textos que estudamos, os quais pertencem a um grupo específico de conhecimento, o
judiciário, em uma sincronia passada, o período colonial. Os documentos analisados foram
84
escritos no período que compreende o final do culo XVIII às primeiras décadas do século
XIX. Alguns elementos do texto, tais como a estrutura formal do gênero, a linguagem
revelada por meio do léxico e das expressões sintáticas convergem para ser considerado um
texto especializado, a saber, do domínio jurídico do antigo regime português, especificamente
do domínio do direito criminal, donde se destacam os tipos de crimes, os nomes dos
instrumentos, as leis, os cargos referentes à justiça etc. Tudo faz parte do universo de uma
comunidade discursiva restrita.
O texto especializado, conforme Krieger e Finatto (2004), é compreendido como
aquele que transmite conhecimentos especializados de uma área do saber humano por meio de
um léxico que expressa uma dimensão cognitiva do conhecimento especializado e de uma
dimensão linguística por meio desse componente lexical temático das línguas.
Por sua vez, o léxico temático que circula nos textos das linguagens de
especialidade tem a função de servir às comunicações especializadas ao transmitir
conhecimento específico de cada ciência ou de cada área do saber. Hodiernamente, essa
funcionalidade do léxico especializado faz com que as sociedades tenham um aparato mais
competente perante o desenvolvimento globalizante da economia e um domínio pleno das
ciências e tecnologias.
Para Cabré e Estopà (2007), o estudo da linguagem especializada deve considerar
os seguintes fatores de comunicação do texto especializado:
1) As condições dos emissores enquanto indivíduos detentores de conhecimento especializado
sobre um assunto específico, conhecimento esse adquirido em condições explícitas de
aprendizagem.
2) A situação dos receptores, embora não se possa precisar de maneira satisfatória quem são
eles. Em geral, pode-se dizer que são aqueles que têm expectativa de receberem informações
e de serem informados.
3) O desenvolvimento da temática: diz respeito ao conhecimento verdadeiramente
especializado e sua transmissão. Isso ocorre quando considerada a estrutura conceitual do
campo em apreço.
Podemos dizer que somente será especializado caso se represente e se transmita
respeitando escrupulosamente estrutura conceitual do campo em questão [...]. A
propriedade de precisão semântica dos termos pode ser respeitada na
comunicação se quem comunica controla bem a estrutura conceitual do âmbito
(CABRÉ; ESTOPÀ, 2007, p. 36).
Vemos, pois, que os limites conceituais não podem ultrapassar o campo específico
de cada matéria ou assunto estudado.
85
4) Afunção da linguagem: primordialmente, deve ser a função comunicativa competente para
transmitir um conhecimento especializado, muito embora haja outras funções.
5) A situação de produção: diz respeito à linguagem especializada produzida por uma
comunidade discursiva especialista em um determinado conhecimento. Essa linguagem é
transmitida a um público também especialista ou semiespecialista. Mesmo a comunicação
científica com o intuito de divulgação de conhecimentos ao público em geral, cumpre seu
caráter especializado porque visa aumentar a competência especializada do público leigo.
Conforme o exposto, vemos que um texto especializado apresenta vários
elementos a serem considerados, os quais se integram para firmar uma competência
comunicativa entre os sujeitos geradores e receptores dessa linguagem. Sobressai disso a
necessidade de se desvendar os segredos dos textos por meio de métodos de interpretação dos
usos da língua, muitas vezes obscuros para o público não especialista. Dessa forma, cremos
que a leitura não deve ficar na superficialidade, pois devemos adentrar também no ambiente
histórico-social, que condiciona a produção do texto, e na análise da estrutura formal de cada
texto que também contribui para o sentido especializado.
Dessa feita, o nível interpretativo dos textos se amplia para que tenhamos um
conhecimento integral, desde os aspectos linguísticos, como o léxico, as estruturas sintáticas e
as tradições discursivas, aos aspectos extralinguísticos inerentes ao campo social e histórico
das comunidades discursivas, responsáveis pela produção de linguagens especializadas em
suas áreas de domínio do conhecimento.
Retomando o pensamento de Cabré e Estopà (2007), as quais apresentam uma
estrutura organizacional dos textos especializados em três níveis:
1) O nível formal: é o que alude ao gênero ao qual pertencem os textos. Acrescentamos por
nossa conta alguns gêneros textuais que apresentam uma estrutura formal socialmente
reconhecida como, por exemplo, um ofício, um editorial de jornal, uma bula de medicamento,
um boletim de ocorrência etc. Esses modelos formais seguem padrões estabelecidos pelos
grupos sociais e não podem ser modificados aleatoriamente. A competência linguística de
quem os produz e de quem os recebe possibilita reconhecer cada gênero como tal.
2) O nível informativo ou cognitivo refere-se ao tipo de conhecimento transmitido pelo texto.
Nos exemplos aferidos acima podemos identificar cada informação transmitida por tais
gêneros, que diferem entre si, possibilitando o reconhecimento e classificação de cada um.
3) E, por último, o nível gramatical que diz respeito à organização e à inter-relação das
estruturas linguísticas. Esses níveis se encontram imbricados entre si. As Unidades de
86
Conhecimentos Especializados (UCEs)
20
e sua maior ou menor concentração dependem da
estrutura formal e da estrutura cognitiva dos textos. As Unidades Terminológicas (UTs)
21
ou
os Termos (T) se agrupam, conforme a informação cognitiva, em conjuntos sequenciais e não-
-sequenciais. A inter-relação entre forma e gramática condiciona o tipo de estruturas
sintáticas.
A estrutura formal se estabelece conforme o gênero textual ao qual pertence e
organiza o texto em partes relevantes que vão caracterizá-lo como pertencente a um
determinado gênero. As autoras apresentam um modelo de paper que tem uma organização
estrutural definida e convencionada socialmente. De maneira geral, cada texto apresenta sua
estrutura formal específica e cada parte componente do corpo dos diversos textos pode ser
representada por mapas de estruturas de núcleos e suas relações. Essas partes poderão
corresponder a fragmentos textuais, como parágrafos, orações, sintagmas, lexias ou
morfologias.
Os núcleos podem ter diferente alcance e, de acordo com esse critério, corresponder
lingüisticamente a fragmentos textuais (por exemplo, as partes de um texto
pertencente a um determinado gênero textual ou a um parágrafo), as unidades
lingüísticas oracionais, sintagmáticas, léxicas ou morfológicas [...] Em cada núcleo
mínimo figura, pois, uma UCE de caráter léxico. As relações estão expressas
lingüística ou topograficamente. (CABRÉ; ESTOPÀ, 2007, p. 37).
O modelo apresentado e analisado pelas autoras é um parágrafo de uma parte não
especificada de artigo científico na área da saúde, cujo conteúdo tratado gira em torno da
Esclerose Múltipla que forma um núcleo de conhecimento agrupado a outros núcleos de
conhecimento. Esses cleos são mapeados em forma de círculos e as demais informações
entre os núcleos são sublinhadas. Compõem os núcleos as seguintes expressões: esclerose
múltipla, enfermidade do sistema nervoso central, substancia branca, lesão característica,
desmielização segmentar da substancia branca do SNC, infiltrado inflamatório perivascular
nas fases ativas ou agudas da enfermidade, desconhecida, sistema imunológico desempenha
um papel importante.
20
As UCEs são unidades de diferente nível descritivo que constituem os núcleos de conhecimento de um texto
ou fazem parte deles. A condição essencial para considerar que uma unidade é uma UCE é o tipo de
conhecimento que transmite (condições cognitivas e semânticas) e seu uso em discurso (condições pragmático-
discursivas) (CABRÉ; ESTOPÀ, 2007, p. 43
21
UT é uma “unidade léxica cuja estrutura corresponde a uma unidade léxica de origem ou produto de
lexicalização de um sintagma”. Apresenta significado específico ao campo do qual está sendo empregada, sendo
necessária na estrutura conceitual do domínio. Cumpre três necessidades básicas: estrutura, especificidade
semântica e necessidade na estrutura conceitual (CABRÉ; ESTOPÀ, 2007, p. 43-44).
87
Em seguida, é separada cada estrutura mínima de conhecimento em que os
núcleos são ocupados pelas UCEs que são unidades do léxico. Esclerose Múltipla é o objeto
conceitual que constitui o eixo central do parágrafo, as demais unidades representam os
diferentes aspectos desse objeto e se organizam em seu entorno. Por último, as autoras
abstraem as informações sobre o assunto transmitido pelo texto. Constata que todas as
informações são organizadas em torno de diferentes classes e de diferentes aspectos do
mesmo objeto conceitual. Ao extrairem os conceitos essenciais do texto, observam que todos
os conceitos coincidem com unidades terminológicas, tais como: sistema nervoso central
(SNC), substancia branca, desmielinização segmentária etc. Dessa forma, cognitivamente
percebemos que as informações pertinentes ao conteúdo do texto caracterizam-no como
especializado na área da saúde. Apesar do exemplo apresentado para análise tratar-de de um
fragmento, entendemos que se refere ao resumo de um paper, no qual as estruturas
linguísticas se organizam de tal forma e se constituem unidades terminológicas especializadas
com núcleos centrais e complementos.
Tomando como base o modelo de um gênero textual apresentado por Cabré e
Estopà, ou seja, o esquema das partes constituintes de um paper, mostramos, a seguir, como
se estabelece a estrutura básica da organização das partes constituintes dos Autos de Querela
da seguinte maneira:
88
Figura 1- Estrutura dos Autos de Querela
Cada uma dessas peças ou segmentos delas que compõem o corpo do auto contêm
informações típicas e se organizam estrutural e linguisticamente, donde se destacam unidades
terminológicas e unidades fraseológicas. Reorganizamos, abaixo, a mesma macroestrutura,
distribuindo as informações contidas em cada uma das partes.
89
ESTRUTURA DO AUTO DE QUERELA E DENÚNCIA
Figura 2- Distribuição das partes constituintes dos autos e seus conteúdos
90
Em cada peça ou segmento do auto, informações pertinentes que se organizam
em função do conteúdo que ali consta. As unidades especializadas nomeiam os tipos de
crimes, as peças do auto, os procedimentos, as pessoas envolvidas. Outras unidades menos
especializadas também circulam nos textos com a finalidade de determinar o tempo, o espaço,
a qualificação das pessoas e indicar pedido, agradecimento, ação, pensamento etc.
Vemos abaixo a peça petição de um Auto de Querela. Destacamos em círculos as
unidades que se organizam em torno de um núcleo terminológico e que constituem
fraseologias. Sublinhamos as unidades terminológicas relacionadas à linguagem jurídica,
como os agentes, as leis e unidades que situam o tempo e o lugar, dentre outros elementos que
corroboram para a constituição do léxico especializado.
Os termos destacados da petição caracterizam uma linguagem restrita ao uso do
gênero jurídico em que se sublinham os crimes, os instrumentos usados, as pessoas
responsáveis pela administração da justiça e os procedimentos típicos do âmbito judicial.
Abaixo, agrupamos as unidades fraseológicas resultantes da organização estrutural de um
núcleo de significado.
1) Querella edenunçia perante as Justissas
2) earezaõ daSua querella Consiste
3) descarregaraõ tantas panCadas
4) Consta do auto deexame eVestoria
5) o Cazo he dequerella
6) offereçe astestemunhas
7) Seja Seruido mandar que destribuida
8) tome aSua querella
9) erecebida mercê
Querella | edenunçia perante as Justissas deSua Alteza Rial ePrin | cipalmente perante vossa merce
Senhor Juis ordena | rio Antonio Coelho deMoras õmen pardo Cazado mo | rador no Cumbe, termo
daVilla daFortaleza, earezaõ | daSua querella Consiste emque Sendo nanoite de | vinte equatro
domes deJulho deste prezente anno de | mil oito Centos edous, estando oSuplicante com sua | mulher
dormindo em Caza do Reverendo Padre Angelo | Gomes deJezus, cappellaõ daCapella doSuipe,
Seria | huma hora depois demeia noite ahy chegaraõ ar | mados com casetes, hum Cabra por nome
Estevaõ detal | eoutro por nome Felippe que por Sobre nome | naõ perca, mandados por Florencio
Gaspar deOliveira
| eSeo Irmaõ Francisco Gaspar deOliveira e Com os ditos | casetes descarregaraõ
tantas panCadas no queixozo que | omaltrataraõ detal Sorte que o deicharaõ por mor | to, oque aSim
Sucederia Senaõ aCodiçem varias pe | soas aos gritos domesmo Suplicante queixozo fazen | do varios
ferimentos Com noduas epizaduras em Seo || 4r <4 Pereira> em Seo Corpo Como milhor Consta do
auto deexame eVes | toria que Junto offereçe, eporque o Cazo he dequerella | adá o querellante dos
ditos feçinezoros, emandatarios | para exzemplo, deoutros, eSatisfaçaõ do queixozo o | fendido para
o que abaicho | nomiadas. por tanto Pede ao Senhor Juis ordinario | Seja Seruido mandar que
destribuida esta, ejurando | Selhe tome aSua querella | erecebida merce
91
As nove unidades fraseológicas retiradas do fragmento se formam em torno de um
núcleo e podem ser desmembradas e reorganizadas da seguinte maneira:
1) querelar e denunciar perante as justiças (...)
2) a razão consiste em (...)
3) consistir razão de querela
4) descarregar pancadas
5) constar Auto de exame e vistoria
6) ser caso de querela
7) oferecer testemunha
8) mandar distribuir
9) tomar querela
10) receber mercê
Observamos que em quase todas um verbo, mesmo que o núcleo não seja o
verbo. uma forma de abertura da peça querela e denuncia perante as justiças (...) e uma
forma de encerramento receber mercê com função discursiva definida. Outras ocorrem no
corpo do texto e muitas vezes sofrem variações gráficas ou sinonímias.
Outras expressões e lexias pertencentes ao mesmo conteúdo semântico são citadas
mantendo relações de sentido com o todo. Esse aspecto caracteriza a estrutura formal,
conceitual e cognitiva que nos possibilita identificar o gênero textual como pertencente à
esfera jurídica.
A linguagem especializada, conforme Cabré e Estopà (2007), apresenta uma
estrutura gramatical que se organiza em diferentes níveis linguísticos:
a) No nível textual diz respeito à totalidade do texto e a inter-relação das estruturas sintáticas
por meio de marcadores discursivos. Controle sistemático da distribuição da informação que
aparece concentrada em um tipo específico.
b) No nível sintagmático há as combinações das unidades léxicas e combinações
sintagmáticas discursivas.
c) No nível sintático aparece uma tendência a estruturas pouco complexas e orações de menor
extensão.
d) No nível lexical é o que caracteriza melhor o discurso especializado e a escolha do léxico
depende do domínio. É observado maior número de siglas e acrônimos e estruturas
morfológicas pouco naturais.
e) No nível semântico há a tendência a evitar a redundância dependendo do maior nível de
92
especialização, em casos redundantes, destaca-se o uso de repetições explicativas ou
perifrásticas seguidas de explicação.
f) No nível morfológico há o surgimento de morfemas específicos de um âmbito, tendência à
complexidade morfológica, tendência maior a nominalização dos verbos dando ao texto
caráter designativo.
g) No nível gráfico,
22
embora seja a mesma ortografia do texto da língua comum, ocorrem
algumas formas gráficas não correntes como a repetição e alternância de maiúsculas e
minúsculas nas siglas o uso de letras de outros alfabetos e a presença de letras e números.
O texto especializado apresenta como elementos básicos de conhecimento os
núcleos e suas relações. Ao estudarmos esse texto, pudemos perceber elementos de natureza
diversa como resultado das estruturas desses elementos de conhecimento. Assim, a autora
apresenta uma tipologia das unidades de conhecimento especializado, que sistematizamos da
seguinte forma:
As UCEs são as que caracterizam um texto especializado e apresentam diferentes
níveis descritivos. Conforme o esquema acima, podemos ver que são unidades básicas ou
genéricas, as demais unidades se classificam de acordo com a organização estrutural que
apresentam e são subdivisões das UCEs. Essas são consideradas a partir dos aspectos
cognitivos e semânticos, ou seja, pelo tipo de conhecimento que transmitem e pelos aspectos
pragmático-discursivos referentes ao uso.
Cabré apresenta seis critérios de classificação e tipologia das UCEs, os quais
apresentamos de forma sintética:
22
A autora não usa essa classificação, apenas observa que algumas marcas gráficas que são diferentes do
texto não-especializado. Para seguimos o padrão numérico, resolvemos acrescentar mais uma letra e o
denominamos de nível gráfico.
Unidades de
Conhecimento
Especializado (UCEs)
Unidades Terminológicas (unidade léxica)
Unidades Sintagmáticas
Unidade Léxica ou
Unidades Polilexicais
Unidade Fraseológica
Unidades Monoléxicas
Um lexema
93
1) Classificação pelo sistema ao qual pertencem: podem pertencer à linguagem natural ou ao
sistema de linguagens artificiais. São exemplos de linguagem artificial algumas siglas, alguns
sufixos de criação artificial e elementos híbidros formados com letras e números.
2) Classificação pela estrutura: morfemas, unidades léxicas e alguns sintagmas são elementos
que coincidem com as UCEs. A classe a qual pertencem as UCEs são as mesmas das unidades
linguísiticas. Assim, formam-se a partir de unidades morfológicas, unidades monoléxicas,
unidades sintagmáticas (unidades léxicas e unidades fraseológicas), unidades oracionais. Pode
ser melhor visualizado no esquema a seguir:
A maioria das unidades léxicas constitui sintagmas nominais, embora haja
também sintagmas verbais, adjetivais e adverbiais. Segundo a autora, a maioria dos sintagmas
verbais constitui unidades fraseológicas próprias da especialidade. As unidades sintagmáticas
nominais correspondem a três estruturas: a) núcleo: é formado por um nome + adjetivo ou
sintagma adjetival; b) núcleo nominal + sintagma preposicional; c) núcleo nominal +
sintagma nominal. Vejamos abaixo o esquema:
Estrutura
Unidades Fraseológicas
Unidades Sintagmáticas
Unidades Monoléxicas
Unidades
Morfológicas
Unidades Léxicas (poliléxicas)
Unidades Oracionais
Estruturas das UCEs
Sintagmáticas Nominais
Núcleo: Nome
Complemento: S. Adjetival
Núcleo: Nome
Complemento: S. Preposicional
Núcleo: Nome
Complemento: S. Nominal
94
3) Classificação pela categoria gramatical. As UCEs classificam-se em quatro categorias
gramaticais: nominal, (a mais produtiva), verbal, adjetival e adverbial, (apresenta pouca
frequência).
4) Classificação pela classe conceitual, do ponto de vista semântico, as UCEs podem ser
agrupadas em quatro categorias conceituais: entidades, eventos (ação ou processo),
propriedades e relações. Estas classes conceituais podem ser desdobradas em subclasses com
propriedade da classe superior.
5) Classificação pela coesão interna: esse item diz respeito às entidades especializadas que
constituem as UCEs, tais como as unidades terminológicas e as unidades fraseológicas que
apresentam estruturas coerentes com os princípios gramaticais e com sentido especializado
de um âmbito.
6) Classificação pelo papel linguístico conceitual.
Com base nos conceitos de texto especializado e na classificação das entidades
terminológicas apresentados por Cabré e Estopà (2007), entendemos que as unidades
fraseológicas da linguagem jurídico-criminal dos Autos de Querela são unidades de
conhecimento especializado que apresentam uma estrutura sintagmática complexa
Classe Semântica
Conceitual
Entidade
Evento (ação ou processo)
Propriedade
Relações
Categoria gramatical
Nominal
Adjetival
Verbal
Adverbial
95
desenvolvida a partir de um núcleo e suas relações. Essa estrutura sintagmática se desenvolve
em torno de um nome, de um verbo, de um adjetivo e de um advérbio. As categorias
semânticas conceituais podem ser as mesmas apresentadas.
Na seção seguinte desenvolveremos mais detalhadamente o conceito e a
classificação das unidades fraseológicas.
3.3 As Unidades Fraseológias da Língua Comum
Como mencionado anteriormente, as fraseologias ou unidades fraseológicas
sempre estiveram presentes no uso das línguas naturais, mesmo que não tenhamos muita
informação de quando surgiu seu estudo de forma sistemática
23
. Na Idade Média essas
fórmulas gozavam de grande prestígio, constituindo-se na base de exercícios gramaticais nas
escolas. A partir dessa época ganharam privilégios e foram transmitidas por autores ligados ao
campo religioso, chegando até nossos dias.
Quanto ao ponto de vista social e ao papel das UFs das línguas comuns, elas
transmitem às gerações um legado cultural de conselhos práticos baseados em experiências e
na sabedoria dos antigos. São os provérbios, as máximas e as sentenças que são repassados de
geração em geração através da oralidade como espécie de lições de vida recheadas de
conteúdos pragmáticos e morais que denotam experiências vividas ao longo do tempo.
Segundo Silva (2005), o estudo das UFs desenvolveu-se na França durante o
século XVIII, embora seja muito mais antigo na prática de uso. Contudo, em Portugal, no
século XVII, Antonio Delicado publicava o livro de Adágios portugueses reduzidos a
lugares-comuns, 1651. Porém, o conceito de fraselogia foi documentado em dicionário
português pela primeira vez em 1813 por Antonio de Morais Silva.
No Brasil, o mais antigo registro sobre o assunto é o livro de Perestrelo da
Câmara: Provérbios, adágios, rifões, anexins, sentenças morais e idiotismos da ngua
portuguesa, de 1848.
Atualmente, em nosso país inúmeros trabalhos que envolvem a língua comum
abrangendo todas as expressões em formas de adágios, provérbios, sentenças, máximas,
ditados etc. Destacam-se trabalhos de filólogos como Antenor Nascentes (Tesouro da
fraseologia brasileira, 1945), e folcloristas como Leonardo Mota, (Adagiário brasileiro,
23
Adotamos aqui a denominação unidade fraseológica (UF), mas sempre estaremos fazendo uso das formas
fraseologia ou fraseologismo quando nos referirmos ao pensamento de alguns autores citados.
96
1987), e Tomé Cabral (Dicionário de termos e expressões populares, 1982), para citar alguns
exemplos.
No âmbito das línguas de especialidades surgiram, mais recentemente, as
pesquisas e os resultados obtidos como frutos de trabalhos acadêmicos nas universidades
brasileiras realizados por linguístas, filólogos e terminólogos, em formas de dissertações ou
teses, e contemplam áreas específicas do conhecimento.
Cada vez mais o estudo desse campo da língua vem se firmando através de
levantamentos das ocorrências em autores específicos da literatura, no uso da língua falada ou
em áreas especializadas do conhecimento científico que são organizadas em forma de
dicionários ou glossários com definições criteriosas.
Os resultados dessas pesquisas constituem um excelente levantamento do uso das
expressões em épocas passadas ou atuais que ajudam a compreender, no presente, a
comunicação entre os grupos sociais e, com certeza, colaboram para a perpetuação do legado
linguístico e cultural para gerações futuras.
Quanto a área específica à qual pertencem os estudos das UFs, esta ainda não é
bem definida. Seria uma área de estudo independente ou estaria no campo da sintaxe, da
lexicologia ou da terminologia? No Brasil, parece não haver ainda um consenso quanto ao
campo que comporta o estudo dessas unidades. Krieger e Finatto (2004) apresentam a questão
e apontam que há tendência a se reivindicar uma autonomia para esse estudo.
Todos esses aspectos evidenciam as razões pelas quais a terminologia inclui as
estruturas fraseológicas dentro de seu campo de interesse. Ao mesmo tempo,
compreende-se a ampliação dos estudos de fraseologia a ponto de alguns
pesquisadores reivindicarem que esta matéria seja objeto específico de uma área
autônoma, também intitulada de Fraseologia, grafada com maiúscula. (KRIEGER;
FINATTO, 2004, p. 86).
Quanto ao conceito, também vários. Adapta-se de acordo com a orientação
teórica ou o objetivo do estudo. Quanto à sua especificidade, podemos afirmar que UFs
pertencentes à língua comum que recebem uma farta classificação, por exemplo: adágios,
aforismos, axiomas, ditames, máximas, refrões, sentenças, provérbios, rifões etc. também
UFs que pertencem a uma língua de uso mais restrito denominada de especialidade.
Bragança Júnior (1999) apresenta uma definição generalizante para fraseologia
entendida como a ciência que estuda o conjunto de frases ou locuções de uma língua, em
primeiro plano, ou de um autor isolado, num segundo momento.
97
Para esse autor, a fraseologia tem um aspecto histórico, social e cultural muito
importante na vida do homem e expressa conteúdos de ordem moral, filosófica e prática para
as gerações de todas as épocas.
Do ponto de vista social, a origem e o papel das expressões fraseológicas através de
gerações prendem-se à transmissão de um legado cultural de conselhos práticos de
vida baseados na experiência e na sabedoria dos antigos. Através de observações
feitas a partir da realidade circunjacente ao mundo de sua época, o homem
procurava, por meio de expressões fraseológicas, ter em mãos subsídios práticos
para sua própria orientação e das próximas gerações no que diz respeito às condutas
a serem seguidas ou refutadas (BRAGANÇA JÚNIOR,1999, p. 47).
Rodríguez (2000, p.127) atribui o conceito de fraseologia ao [...] discurso
repetido que inclui todos os tipos de expressões fixas, que são unidades linguísticas não
substituíveis ou recambiáveis pelas regras da língua atual.
Os discursos, como adágios, máximas, sentenças etc., foram produzidos em
épocas remotas da língua, principalmente na oralidade, porém se incorporam na modalidade
escrita dessa língua através dos séculos, refletindo a cultura e o período histórico do povo que
o produziu. “A temática da fraseologia de um povo retrata o homem, suas características,
conflitos, modo de vida, atividade” (RODRÍGUEZ, 2000, p. 127).
Bevilacqua (1996) também afirma que as fraseologias designam realidades
linguísticas muito antigas, apesar de ainda gerar conflitos quanto à sua conceituação e ao seu
reconhecimento enquanto expressões formadas por mais de uma palavra e apresentar sentido.
Para alguns autores, a fraseologia limita-se às expressões idiomáticas próprias de
uma ngua; outros consideram que ela inclui os provérbios, os ditos, as locuções e
as lexias compostas. ainda quem considere que tais unidades possuam tamanhos
extremamente variáveis, podendo incluir palavras, grupos de palavras, de termos,
locuções, expressões, orações, segmentos de frases, frases, conjunto de frases e
assim por diante. (BEVILACQUA, 1996, p. 9).
Algo muito relevante que destaca essa autora é a distinção entre as UFs da língua
comum em relação às nguas de especialidades, pois sabemos que estas criam expressões
típicas que não chegam a circular no léxico daquela. Concordamos com ela quando afirma
que a língua de especialidade tem um tratamento específico.
Língua de Especialidade (LE), considerada como tal por circunscrever um campo
conceptual específico e, conseqüentemente, por possuir uma terminologia e
fraseologia próprias, sendo utilizada, predominantemente, pelos especialistas de
determinada área do saber em situações específicas de comunicação, cuja função
principal é o intercâmbio de informações técnicas ou científicas. Difere, portanto, da
98
Língua Comum (LC) utilizada para a comunicação cotidiana entre os falantes de
determinada comunidade lingüística. (BEVILACQUA, 1996, p. 11).
Krieger e Finatto (2004) atribuem à definição de fraseologia uma estruturação
linguística estereotipada que conduz a uma interpretação semântica independente da
estruturação dos constituintes formais. Aqui são enquadradas as expressões idiomáticas, os
provérbios e as frases feitas utilizadas nas línguas comuns. Além de outras frases feitas
constituídas por locuções verbais e nominais, também as frases usadas como fórmulas que
fecham ou que abrem determinados gêneros textuais, como aberturas e fechamentos de cartas
formais. Incluímos aqui todos os gêneros textuais que fazem uso de fórmulas fixas com
valores sociais e pragmáticos convencionais muito típicos que não podem ser transgredidos.
Essas unidades têm função importante de integrar a comunicação humana ao
plano da interlocução de áreas temáticas, tanto no plano geral quanto no mais específico.
Tais unidades integram as comunicações humanas tanto no plano da interlocução
que envolve temáticas gerais, quanto no das temáticas especializadas. Dessa forma,
conforme o contexto comunicacional, fala-se em fraseologia da língua geral ou em
fraseologia especializada. (KRIEGER; FINATTO, 2004, p. 84).
Em qualquer sincronia da língua ocorrem modelos diversos de textos nos quais se
sobressaem UFs típicas que definem o gênero, além de apresentar outras finalidades, como
marcar o grau de formalidade do conteúdo transmitido. Citamos, a título de exemplo, o ofício,
documento muito usado emitido por instituições com finalidade de estabelecer comunicação
formal diversa interinstitucional. Na definição de Martins e Zilberknop (1999, p. 224, grifo
das autoras), [...] ofício é uma correspondência externa usada principalmente pelos órgãos de
governo e autarquias”. Esse documento apresenta uma estrutura formal fixa estabelecida pelas
convenções sociais que o define como tal. Sua estrutura contém os seguintes itens: o timbre e
o nome da instituição emissora, centralizados no alto da folha. O número do documento e a
data separados por uma barra transversal, situados no lado esquerdo do papel. O local e data
alinhados à direita e, abaixo, o vocativo. O texto com conteúdo formal escrito vem abaixo. No
fechamento, geralmente são usadas UFs típicas nessa parte do texto: retificamos nessa
oportunidade protestos de consideração e apreço. Segue-se uma forma de despedida
cordialmente, atenciosamente ou semelhantes, e a assinatura do emissor. Consta ainda no
lado esquerdo da folha o nome e endereço do receptor. Além da estrutura formal, as marcas
linguísticas dão um tom de formalidade ao documento, como as formas tradicionais de
fechamento que podem ser consideradas tradições discursivas. Dessa maneira as UFs se
99
constituem tradições discursivas mantidas pelo uso que evocam uma realidade, ou seja,
evento comunicativo que mantém o teor de seriedade da comunicação.
Essas tradições discursivas registradas nos documentos diversos vão além dos
gêneros textuais escritos, garantindo o uso pragmático também na oralidade, conforme a
convenção social da época em que circulam. Em uma conferência solene, o orador introduz
seu discurso de forma condizente com o evento, utilizando formas picas convencionais de
uso rotineiro consagradas pelo grupo social. Outras práticas da oralidade são a introdução e a
conclusão de uma missa, que sempre se inicia com a invocação da Santíssima Trindade e
encerra-se com a palavra do celebrante dirigida à assembléia invocando as bênçãos de Deus
sobre todos e desejando a paz a seu rebanho na forma de dizer: Ide em paz e que o senhor os
acompanhe.
Dessa maneira, as tradições discursivas fazem parte das práticas humanas
rotineiras no seu cotidiano, em qualquer manifestação da língua oral, ou escrita em qualquer
sincronia. O estudo de tais práticas constitui objeto importante para linguistas que se
encarregam de sistematizá-lo e estabelecer critério de classificação. Discutiremos mais
adiante o surgimento e os conceitos de tradições discursivas.
Uma autora que se detém ao estudo das fraseologias da língua comum é Corpas
Pastor (1996). Para ela a fraseologia é uma subdivisão da lexicologia e apresenta uma
estrutura formada por, pelo menos, duas palavras gráficas.
Embora haja controvérsia entre teóricos sobre o tema, pode-se considerar três
aspectos para se estabelecer o conceito de fraseologia, segundo ela.
1) Em sua acepção primeira e mais geral, designa as características específicas das
construções próprias de um determinado indivíduo ou de uma língua.
2) A segunda acepção se restringe ao âmbito da lexicologia e designa o “conjunto de usos
ou contextos em que normalmente aparece uma entrada léxica”.
3) A terceira acepção trata a fraseologia como um conjunto de frases feitas, locuções
figuradas, metáforas e comparações fixas, modismos e refrões existentes em uma língua, no
uso individual ou de algum grupo.
Segundo Corpas Pastor (1996) as características mais destacadas das UFs são as
seguintes: constam pelo menos de duas palavras ortográficas, apresentam certo grau de
lexicalização e, por último, caracterizam-se por uma alta frequência de aparecimentos na
língua.
Linguisticamente, as UFs caracterizam-se por tratar de uma expressão formada
por várias palavras; por estar institucionalizada, por ser estável em diversos graus, por
100
apresentar certa particularidade sintática ou semântica e pela possibilidade de variação de seus
elementos integrantes como variantes ocasionais no contexto. Por fim, a autora resume a
definição de fraseologia da seguinte forma:
São unidades xicas formadas por mais de duas palavras gráficas em seu limite
inferior, cujo limite superior se situa no nível da oração composta. Ditas unidades se
caracterizam por sua alta freqüência de uso, e de coaparição de seus elementos
integrantes; por sua institucionalização entendida nos termos de fixação e
especialização semântica; por sua idiomaticidade e variação potenciais; assim como
pelo grau no qual se dão todos estes aspectos nos diferentes tipos. (CORPAS
PASTOR, 1996, p. 20, grifo da autora)
24
Corpas Pastor apresenta uma classificação ampla das fraseologias da língua
comum, a qual apresenta-se subdividida em três esferas:
1) As colocações são UFs que, do ponto de vista do sistema da língua, se caracterizam como
sintagmas completamente livres gerados a partir de regras, porém apresentam grau de
restrição combinatória determinada pelo uso.
2) As locuções são UFs do sistema da língua que se caracterizam pelos traços de fixação
interna, unidade de significado, e fixação externa passemática. Não constituem enunciados
completos e funcionam como elementos oracionais. O traço de fixação interna distingue as
colocações das locuções.
3) Os Enunciados Fraseológicos são enunciados completos e se caracterizam por constituir
atos de fala e por apresentar fixação interna e externa, ou seja, são unidades de comunicação.
-se, portanto, o aspecto pragmático que sustenta o estudo das UFs.
Para cada classificação, a autora apresenta as várias subclassificações e seus
exemplos na língua espanhola. Adaptamos aqui, de forma resumida, essa classificação,
subtraindo os exemplos conforme se segue abaixo.
A) Esfera I Colocações e sua taxionomia:
1. Substantivo (sujeito) + verbo
2. Verbo + Substantivo (objeto)
3. Substantivo + Adjetivo
4. Substantivo + Preposição + Substantivo
5. Verbo + Advérbio
24
Son unidades léxicas formadas por más de dos palabras gráficas en su límite inferior, cuyo límite superior se
sitúa en el nivel de la oración compuesta. Dichas unidades se caracterizan por su alta frecuencia de uso, y de
coaparición de sus elementos integrantes; por su institucionalización, entendida en términos de fijación y
especialización semántica; por su idiomaticidad y variación potenciales; así como por el grado en el cual se dan
todos estos aspectos en los distintos tipos. (CORPAS PASTOR, 1996, p. 20, grifo da autora).
101
6. Adjetivo + Advérbio
B) Esfera II Locuções e sua taxionomia:
1. Locuções Nominais
2. Locuções Adjetivas
3. Locuções Adverbiais
4. Locuções Verbais
5. Locuções Prepositivas
6. Locuções Conjuntivas
7. Locuções Causais
C) Esfera III - Enunciados Fraseológicos.
102
2.3.6 Miscelâneas.
Ressaltamos que esta classificação é da língua comum e compreende os aspectos
morfossintáticos, semânticos e pragmáticos, ou seja, toda a realização de manifestações
discursivas de uma língua e de seus usuários. Alguns itens dessa classificação podem ser
atribuídos, também, às línguas de especialidades, quando entendemos as funções pragmáticas
dessa modalidade linguística e as fórmulas de abertura e fechamento usados nos gêneros
textuais que circulam nos setores de uso de comunidades discursivas, com objetivos
específicos. Outrossim, a organização linguística em torno de uma das classes gramaticais que
formam o núcleo da UF.
Outra investigadora do tema é Tagnin (2005), que define as UFs como o jeito de
se dizer as coisas ou o jeito que a gente diz. São convenções aceitas de comum acordo.
As convenções lingüísticas são “jeitos” aceitos pela comunidade que fala
determinada língua. Assim, podemos chamar de convencionalidade o aspecto que
caracteriza forma peculiar de expressão numa dada língua ou comunidade lingüística
(TAGNIN, 2005, p. 14).
A autora faz um estudo comparativo de tradução das expressões de uso da língua
comum, do inglês para o português, e considera dois níveis de realização.
1) O nível da convencionalidade, que é aceito de comum acordo pela comunidade que fala
determinada língua. É o aspecto que caracteriza a forma peculiar de expressão numa língua ou
comunidade linguística.
103
2) O nível da idiomaticidade, quando a convenção atinge significados que as partes isoladas
da expressão não conseguem representar. É idiomático quando esse significado não é
transparente, ou seja, a representação do sentido só é obtida pelo todo do enunciado.
A convencionalidade ocorre em vários níveis da língua:
1) No sintático, considerando a combinação dos elementos + ordem + gramaticalidade;
2) No semântico ocorre com a relação não motivada entre uma expressão e seu significado,
envolvendo também a relação entre uma imagem e seu significado;
3) No pragmático se no uso da língua em circunstância de interação entre os falantes,
situação e expressão verbal.
No nível sintático a combinação de uma base (palavra conhecida com maior
conteúdo semântico que determina a ocorrência de outra denominada de colocado, palavra
não conhecida, determinada pela base que forma um conjunto com ela; essa simbiose de base
+ colocado forma o fenômeno das coligações). O exemplo dado pela autora é cabelo
grisalho, em que cabelo é a base, ou seja, a palavra dada e conhecida, enquanto grisalho é o
colocado, o desconhecido acrescentado para formar uma coligação. O usuário da língua tem
uma grande possibilidade de acrescentar ao lado dessa base outros adjetivos para satisfazer as
suas necessidades comunicativas, como: preto, louro, curto, longo e muitos outros que
formariam outras coligações com a base cabelo.
Podemos enumerar infinitas ocorrências de coligações quando tomamos uma
palavra base e os seus colocados. Assim, ocorre com a palavra casa, que se configura como
base; a ela podemos acrescentar um adjetivo indicativo de cor, por exemplo, e teremos várias
coligações formais e semânticas diferenciadas. Desta feita, Casa Branca indica o símbolo do
poder do governo americano; Casa Rosada a sede do governo argentino; Casa Amarela é um
ambiente muito significativo no Ceará que remete à formação de profissionais no campo da
cinematografia e Casa Verde representa um bairro da cidade de São Paulo. Ao mudarmos o
adjetivo que se configura como colocado da mesma base, teremos ainda Casa Forte, que
nomeia um bairro na cidade do Recife, Casa Grande e Senzala, uma obra de Gilberto Freire, e
mais um número infinito de ocorrências. Demonstra isso que as coligações estão muito
presentes em uma língua e nomeiam vários objetos, locais, ações em um enunciado.
as colocações são combinações lexicais consagradas de duas ou mais palavras
de conteúdo. As colocações são coocorrências léxico-sintáticas de palavras que geralmente
andam juntas. vários tipos de colocações formadas por classes gramaticais regidas de
preposição ou conjunção: verbos, substantivos, adjetivos e advérbios + preposição constituem
as colocações. Recorrendo mais uma vez à citação da autora, temos a unidade fraseológica
104
cão e gato, muito frequente na língua e que designa um determinado comportamento entre
duas pessoas. No aspecto formal, muito raramente se inverte a ordem, o que lhe garante um
grau de fixidez estável. Acrescentamos por nossa conta outros exemplos em que uma base
regida de preposição constitui colocações na língua comum. Assim, temos Casa de pensão,
barriga de aluguel, programa de televisão, viver de rendas, viver de seu emprego etc.
No nível semântico, as expressões idiomáticas podem expressar maior ou menor
grau de idiomaticidade. Apresentam um sentido próprio não admitindo mudanças dos seus
constituintes. Apresentam alto grau de convencionalidade.
No nível pragmático, os diversos tipos de marcadores conversacionais que
constituem o repertório na comunicação dos interlocutores.
A autora apresenta o seguinte esquema dos níveis de convencionalidade que
reproduzimos abaixo:
Conforme dito anteriormente, Tagnin classifica as unidades em dois blocos: o das
chamadas coligações (combinação consagrada de elementos linguísticos em que o colocado é
uma palavra gramatical). As coligações podem ser de regência: (verbos, substantivos,
adjetivos, advérbios seguidos de preposição). E o das colocações (combinação lexical
consagrada de duas ou mais palavras de conteúdo), que se juntam numa ordem com alto grau
de fixidez. As colocações apresentam várias categorias:
1) Colocações adjetivas constituídas por um adjetivo + substantivo em que qualquer um dos
elementos pode ser convencionado. Nos exemplos: Feliz natal/Feliz ano novo, ou dedo
verde/dedo duro convencionou-se o adjetivo feliz para os dois casos e o substantivo dedo
para as duas ocorrências.
2) Colocações nominais constituídas por dois substantivos em que um é convencionado e o
Situação
Expressão verbal
Convencionalidade
Pragmático
Semântico
Sintático
Significado da forma
Significado da imagem
Gramaticalidade
Ordem
Combinabilidade
105
outro colocado.
3) Colocações verbais: às vezes, os verbos podem vir seguidos de preposição + N ou, então,
seguidos de adjetivo.
4) Colocações adverbiais: aquelas que podem ocorrer com o advérbio modificando o adjetivo
e modificando o verbo.
5) Expressões especificadoras de unidades que designam valores partitivos e se combinam
com os substantivos. É muito comum nos Autos de Querela a expressão levar de sua honra e
virgindade, aqui o verbo é o elemento convencionado e o colocado um substantivo com valor
partitivo regido por uma preposição.
6) Os coletivos são convenções que expressam valores coletivos ou de conjunto.
no nível sintático os binômios, que são um tipo de convenção. Um binômio
pode ser formado por duas palavras da mesma categoria gramatical, ligadas por uma
conjunção ou preposição. O binômio é caracterizado pelos aspectos sintático e semântico.
Podem ser agrupados em binômios de elementos idênticos ou binômios de elementos
diferentes.
Ainda no nível sintático, as estruturas agramaticais consagradas, que são
aquelas em que não uma regra gramatical, portanto, não podem ser analisadas
gramaticalmente, mas são consagradas pelo uso. Dentre tais estruturas algumas podem ser
petrificadas, ou seja, em algum momento elas petrificaram-se de modo que não
correspondente na forma usual atual.
Ressaltamos também as expressões convencionais, que são as que se apresentam
mais longas, denominadas unidades estendidas de significado.
O nível semântico da convencionalidade, que atinge o significado, trata-se das
expressões idiomáticas. O significado da composição formal não corresponde ao sentido
geral. O estudo dessas expressões é mais relevante em relação às línguas estrangeiras,
portanto, não se faz necessário maiores comentários.
O nível pragmático da convencionalidade refere-se ao uso da língua na interação
social. Essa interação ocorre com mais eficiência na conversação, em que é importante manter
as convenções sociais e o contato no jogo da interação entre os falantes. São também
denominadas de marcadores conversacionais.
A autora apresenta quatro tipos de funções dos marcadores conversacionais:
função de estruturação semântica, de sinalização do contexto social, de sinalização da
disposição do entendimento e função de sinalização de controle de comunicação.
106
Além das três unidades que compreendem os três níveis (sintático, semântico e
pragmático), as fórmulas situacionais que se apresentam de diversas maneiras: fórmulas
sintáticas de polidez e de distanciamento; fórmulas fixas ( frases feitas, citações e provérbios);
e fórmulas de rotina (saudações, agradecimentos, desculpas, votos, situações à mesa etc.).
Todos esses padrões são estabelecidos por Tagnin (2005) como uma maneira de
se estruturar as UFs de determinada língua, os quais se aproximam dos estabelecidos por
Corpas Pastor (1996). Cremos que tais padrões podem ser adaptados tanto para a ngua
comum quanto para as línguas de especialidades. Portanto, adotaremos, na medida do
possível, esses critérios de classificação formal para as UFs do corpus em estudo. Nas notas
linguísticas do glossário serão observadas essa classificação na medida das ocorrências.
Benson, Benson e Ilson (1986) apresentam também uma caracterização da
estrutura organizacional das unidades fraseológicas em dois grupos da língua inglesa.
Primeiro, o grupo das colocações gramaticais, em que ocorrem nomes + combinação de
preposição; nome seguido de to be + infinitivo; nome + oração iniciada pelo que; preposição
+ combinação de nome; adjetivo + preposição; adjetivo + to infinitivo e outras possibilidades.
No segundo grupo, estão as colocações lexicais que abrangem verbo + nome/pronome ou
frase preposicionada; verbo + nome; adjetivo + nome; nome + verbo; unidade + nome;
advérbio e adjetivo; verbo e advérbio.
-se, portanto, que várias maneiras de estudar o fenômeno das UFs. os
que coletam da língua falada ou do uso de um autor e organizam em forma de glossário com
seus significados. os que analisam o fenômeno mais profundamente estabelecendo
critérios de sua classificação, apresentando uma longa classificação. Há, ainda, os que
investigam estas unidades na linguagem especializada de forma a constituir glossários com
padrão científico mais rígido. Seja qual for a maneira adotada, as pesquisas sobre o tema das
UFs na língua comum ou na língua de especialidade tornam-se instigantes porque refletem
dados da cultura dos grupos humanos e da história social da língua que vão muito além da
estrutura formal. Discutiremos, a seguir, o fenômeno na ngua de especialidade, conforme os
estudos realizados por alguns pesquisadores sobre a temática.
3.4 As Unidades Fraseológicas da Língua de Especialidade
Nesta seção apresentamos algumas discussões acerca da língua de especialidade e
das UFs que circulam no âmbito dessa linguagem, vistas por vários autores que discutem o
assunto, apesar de serem ainda muito recentes tais estudos no Brasil.
107
Segundo Bevilacqua (2007), o interesse pela fraseologia especializada surgiu a
partir da década de 90, do século XX. O campo de estudo sobre esse tema, hoje em dia,
concentra-se em questões referentes à sua caracterização e identificação, no seu
reconhecimento automático e na constituição de obras terminográficas.
As UFs do domínio de uso de uma língua de especialidade ou de grupos sócio-
profissionais específicos tornam-se cada vez mais recorrentes, sobretudo na modernidade em
que as especialidades profissionais ganham vulto.
O que vem a ser uma língua de especialidade e como ela se estrutura e se
identifica como tal? Essa pergunta pode ser feita por pessoas não inseridas no assunto, visto
que tais discussões são desconhecidas do grande público. Contudo, é real e concreto o fato da
apropriação do sentido restrito e específico da ngua, principalmente com a evolução e o
desenvolvimento das áreas especializadas do conhecimento.
Apresentamos uma definição de ngua de especialidade dada por Pavel (2003)
que contempla a sua estrutura interna, ou seja, seus componentes gramaticais e os elementos
externos, como variações geográficas, sociais e históricas.
A língua de especialidade é um subconjunto da língua geral que serve para
transmitir um saber atinente a um campo de experiência particular. Ela tem em
comum com a língua geral a gramática e uma parte de seu inventário léxico-
semântico (morfemas, palavras, sintagmas e regras combinatórias), mas faz deles
um uso seletivo e criativo que reflete as particularidades dos conceitos em jogo e
que apresenta variações sociais, geográficas e históricas. (PAVEL, 2003, p.100).
Diz a autora que o pensamento científico origem à criação temática, ao
conceito e ao uso dos temas. “É a partir da análise das características temáticas de um campo
do conhecimento que a pesquisa terminológica encontrará os elementos distintivos da
linguagem especializada” (PAVEL, 2003, p. 102).
A dinâmica das nguas humanas gera novos modos de transmissão do
conhecimento, provoca a interação de temas e conceitos. Desse modo vão surgindo novas
designações para os objetos, as ações, os processos etc., aparecendo outras formas de nomear
as designações existentes que podem ser apreendidas nas relações entre as unidades
linguísticas e seus conceitos. Nessa dinâmica das línguas, as transformações e renovações são
constantes, surgindo suas especificações. Entretanto, as causas que levam ao surgimento de
especificações não se restringem apenas a fatores internos do sistema linguístico, são muito
mais os fatores histórico-sociais e culturais que condicionam as línguas a se comportarem
108
como tal. Ademais, são os surgimentos de novas tecnologias e de novas práticas sociais das
sociedades modernas que levam à introdução de novas linguagens e suas especificidades.
Se atentarmos diacronicamente para a área do Direito Criminal, por exemplo, que
fazia uso de termos e expressões cujos sentidos ostentavam valores de uma determinada
época, veremos que na dinâmica das sociedades esses valores subjacentes à língua perderam
seu caráter. Caracteriza bem isso a virgindade feminina que, no século XIX, atentar contra a
honra de uma moça era um crime grave, cujo transgressor era levado à presença de um juiz e
se constituía uma querela para que houvesse apuração e punição. No momento atual das
sociedades modernas ocidentais a virgindade de uma mulher não tem mais tanta importância.
A linguagem daquele momento registra termos ou fraseologias típicas para abordar esse
assunto, mas com a mudança de comportamento social mudam ou desaparecem os termos
linguísticos que nomeavam determinadas atitudes ou forma de pensamento do passado. Dessa
maneira, a expressão crime de aleivosia, tão marcante nos processos criminais do Brasil
colonial, não tem uso nos processos que circulam hoje, tornando-se completamente
obsoleta na língua.
A complexidade das sociedades modernas leva também, cada vez mais, à
fragmentação do conhecimento e ao surgimento de novas áreas do saber especializado restrito
a grupos que utilizam uma linguagem específica. Tal linguagem reflete o domínio dos
profissionais participantes dessas comunidades discursivas, por outro lado, quem está fora
desse grupo pouco ou nada compreende os significados do léxico veiculado.
Assim, cada área das ciências produz manifestações linguísticas que constituem
um conjunto de termos ou expressões típicas de domínio próprio. Podemos relacionar aqui as
ciências da saúde, como a Medicina; as ciências tecnológicas, como a Informática; ou as
ciências humanas, como o Direito, que faz uso de léxico e de expressões muito específicas
ficando sob o domínio restrito da comunidade discursiva que partilha objetivos comuns. Os
especialistas em arquivos, por exemplo, fazem uso de palavras e expressões cujo significado,
muitas vezes, não é compreendido por aqueles não participantes do mesmo meio.
Para ilustrar nossa afirmação tomamos a palavra fundo, que pode ter vários
sentidos fora do âmbito especializado, a dizer, no uso da língua comum, que expressa o
conhecimento geral de todos os seus falantes. No ambiente da língua comum, fundo indica
lugar, final ou fundo de uma sala, indica também a base de um vasilhame, como o fundo de
uma panela, para citar duas ocorrências. Porém, no âmbito especializado da linguagem
econômica, tem sentido de aplicação financeira que visa a maiores rendimentos. Na
especificidade da linguagem arquivística a palavra apresenta uma restrição de significado cuja
109
compreensão do sentido pleno é de domínio dos profissionais em arquivo ou de pessoas que
lidam ou têm intimidade com as práticas arquivísticas. Fundo, nesse domínio, significa
“conjunto de documentos de uma mesma proveniência. Termo que equivale a arquivo”
(DICIONÁRIO..., 2005, p. 97). Para que um falante não especialista ou não inserido no
ambiente de arquivos entenda o significado dessa palavra é necessário recorrer ao dicionário
de terminologia arquivística ou consultar os especialistas.
A funcionalidade do léxico especializado permite ao homem denominar objetos,
processos e conceitos que as áreas técnicas, jurídicas, científicas, econômicas e demais criam
e delimitam os significados. Esse léxico está a serviço de comunicações especializadas, pois
transmitem conhecimento especializado pertencente a cada área, segundo Krieger; Finatto,
(2004). Ainda conforme as autoras, a funcionalidade do léxico especializado se faz presente
no processo de desenvolvimento tecnológico e econômico das sociedades.
A funcionalidade operada pelo léxico especializado na transmissão de
conhecimentos, na transferência de aparatos tecnológicos, bem como nas relações
contratuais faz com que, cada vez mais, a terminologia assuma relevância na e para
a sociedade atual, cujos paradigmas de desenvolvimento estão intimamente
relacionados ao processo de economia globalizada e ao acelerado desenvolvimento
científico e tecnológico. (KRIEGER; FINATTO, 2004, p. 18).
A unidade terminológica especializada (UT) ou o termo constitui o objeto de
investigação da Terminologia enquanto ciência que estuda essa língua de especialidade. “A
Terminologia é uma disciplina que possui seu objeto primordial definido: o termo técnico-
científico que marca a identidade da área[...], atestam Kreiger e Finatto (2004, p. 20). Ao
lado do termo surgem as fraseologias que apresentam valor especializado quando se
desenvolvem em áreas específicas, que passam a integrar-se ao campo de estudo da
Terminologia. Como afirmam as pesquisadoras, [...]a fraseologia especializada e a definição
terminológica também tenha passado a integrar seus horizontes de pesquisa” (KRIEGER;
FINATTO, 2004, p. 20).
O estudo das unidades fraseológicas da língua de especialidade se desenvolve e
ainda não há consenso quanto a que campo especificamente se situa, não obstante a afirmativa
acima. autores que a colocam entre a sintaxe e o léxico e outros que reivindicam uma
ciência independente denominada Fraseologia, grafada com F maiúsculo para tais estudos.
Quanto à definição várias, nem sempre consensuais, e o tratamento dado a esse tema
também é diversificado e atinge vários pontos de vista.
110
3.5 O Contexto de Desenvolvimento das UFs nas Línguas de Especialidade
Sabemos que a fraseologia da língua comum (LC) é atemporal e sua influência
atinge as línguas de especialidades. É sabido do surgimento no seio dessas linguagens
especializadas (LE) referentes às novas tecnologias, expressões com estruturas sintáticas
semelhantes às da LC, contudo atingem um significado específico. Ao desenvolvimento
técnico-científico das diversas áreas do saber humano, acompanham termos e unidades
fraseológicas para denominar as técnicas, os instrumentos, os processos, as atitudes dos
profissionais etc. Esse acervo linguístico de alta especificidade é de domínio de determinados
grupos específicos inseridos em comunidades discursivas e é usado para atender aos
propósitos comuns de tais grupos e manter uma interação mais eficiente entre seus
participantes. A captação do sentido de formas e expressões por parte dos não participantes
dessas comunidades, muitas vezes, é mínima, gerando a falta de comunicação que prejudica o
interesse público e restringe o saber, limitando-o a tais grupos. Com o desenvolvimento das
pesquisas por profissionais da linguagem na tentativa de organizar dicionários que dão conta
da sistematização e definição das expressões de uso restrito, uma aproximação do
entendimento que muito facilita a compreensão no campo das tecnologias e no domínio de
outras línguas.
Muitas vezes o uso restrito por grupos que partilhem de interesses em comum é
estratégico, pois visa manter a hegemonia hierárquica do conhecimento. Um profissional de
Direito poderá manipular seus clientes por meio da linguagem técnica que domina. Da mesma
forma um profissional de Medicina podedistanciar-se de seus pacientes e, por vezes, até
causar danos quando sua língua não é adaptada à comunicação eficiente entre os sujeitos.
Ainda citamos aqui os textos produzidos em épocas passadas referentes ao judiciário colonial,
em que muitas formas linguísticas caíram em desuso e a organização cio-jurídica mudou
sensivelmente. Essa linguagem é altamente especializada por duas razões óbvias: pelo tempo
em que foi usada e pela especificidade jurídica da época. Hemos de convir que é necessário
desvendar os segredos desses textos por meio de uma interpretação que possibilite o
entendimento integral de todas as nuances e os pormenores que ocorrem, visando à função
interativa da língua.
Desmet (1997) aponta a necessidade do saber especializado em virtude do
desenvolvimento no campo da aprendizagem das línguas estrangeiras e da produção do
discurso especializado dentro de outras áreas que requerem o conhecimento das línguas no
seu funcionamento.
111
A fraseologia especializada ganha relevo nas décadas de 1980/1990, tornando-se
necessário para seu estudo o retorno aos contextos, aos textos e aos discursos técnico-
científicos. Para isso faz-se necessária a utilização da Linguística de Corpus e dos seus
mecanismos eletrônicos que facilitam o estudo do léxico especializado.
Bevilacqua (2007) defende que os termos e seus coocorrentes constituintes da
fraseologia especializada transmitem saber de uma área do conhecimento e o seu modo de
dizer. A partir dos anos 90, do século XX, o interesse pela fraseologia especializada tem
aumentado e seu estudo tem se concentrado em torno da sua caracterização e identificação, no
reconhecimento automático e na constituição de obras terminográficas destinadas a tradutores
e redatores especializados. Observa-se, deste modo, a relação dos estudos fraseológicos,
incluídos no âmbito da terminologia, com outras áreas de conhecimento como a tradução, a
lingüística de corpus e a engenharia lingüística (BEVILACQUA, 2007, p. 210).
25
-se, portanto, a eficácia do desenvolvimento dos estudos de fraseologia
especializada que contribuem não para tornar acessível a linguagem das ciências como,
também, para a ampliação da competência comunicativa dos que lidam diretamente com a
linguagem como tradutores e professores de línguas estrangeiras.
Apesar da função social que os conhecimentos da fraseologia especializada
possibilitam aos falantes de uma língua, ainda não é bem clara a concepção de fraseologia
especializada e a sua organização estrutural. Encontramos muitas dificuldades para fazer uma
sistematização mais objetiva quando nos deparamos com o assunto dentro de uma língua de
especialidade em particular e, principalmente, em um corpus específico de análise. Com base
em conceitos e estudos realizados organizamos nossa pesquisa, mas cientes de que
precisamos adaptar nossos resultados às especificidades da língua em questão e à linguagem
jurídica contida no corpus com todas as suas idiossincrasias.
3.6 Alguns Conceitos de Unidades Fraseológicas Especializadas
A concepção de UF especializada e de seu estudo sistematizado varia muito entre
os autores. Geralmente a sistematização das UFs é feita a partir de corpora e atendem às
particularidades de cada um desses corpora, ou seja, do uso da língua pelos diversos setores
da sociedade, fazendo com que cada área do conhecimento organize estruturalmente uma
fraseologia de acordo com a necessidade do grupo e, dessa forma, aumente as variações, o
25
Se observa, de este modo, la relación de los estudios fraseológicos, incluidos en el ámbito de la terminología,
con otras áreas de conocimiento como la traducción, la lingüística de corpus y la ingeniería lingüística
112
que dificulta organizar um modelo único para tais ocorrências. Se na linguagem jurídico-
ambiental moderna Bevilacqua (1996) estabelece padrões de organização, tais padrões não
podem ser seguidos, pelo menos integralmente, quando nos deparamos com um corpus da
linguagem jurídica dos séculos XVIII e XIX. Assim, não há uma regularidade quanto ao uso e
quanto à organização estrutural relativa aos padrões morfossintáticos dessas UFs.
Quanto à denominação, também varia, conforme aludimos. Em relação à
definição, várias. Alguns autores consideram os fatores de organização estrutural, outros
acrescentam os aspectos semânticos e pragmáticos e o ambiente textual na integração com a
Linguística de Corpus.
Blais (1993, p. 52) adota o termo fraseologismo e o define como uma combinação
de elementos linguísticos de domínio especializado. Combinação de elementos linguísticos
próprios a um domínio de especialidade, donde um é termo novo, que são ligados semântica e
sintaticamente e por eles existe uma coação paradigmática.
26
Percebemos que o enfoque mais tradicional é o aspecto sintático-semântico da
combinação dos elementos e o grau de especialidade da língua, o que de fato caracteriza a
razão de ser uma fraseologia especializada.
Pavel (2003, p.101) apresenta a fraseologia especializada como resultado da
dinâmica das línguas e das inovações científicas. É neste âmbito linguístico e de
desenvolvimento científico que, segundo ela, a fraseologia é definida como [...] o conjunto
das combinações típicas baseadas nas suas próprias relações constitui a fraseologia LE do
domínio considerado”.
Ampliando o conceito, a autora relaciona as coocorências dos núcleos
terminológicos nos textos de uma especialidade. “Entende-se, por fraseologia LE, a
combinatória sintagmática das unidades terminológicas decorrentes de uma estrutura
conceitual coerente” (PAVEL, 2003, p. 106).
Pavel (2003) apresenta uma classificação das fraseologias considerando a
combinatória sintagmática com três tipos de bases terminológicas, como ela denomina. As
bases são: nominais, adjetivais e verbais, e designam entidades, propriedades, processos ou
relações entre conceitos.
Segue o esquema dado pela autora contemplando as combinações sintagmáticas
que cada base mantém.
26
Phraséologisme: Combinaison d‟élément linguistiques propre à un domaine de spécialité, dont l‟un est un
terme novau, qui sont liés sémantiquement et syntaxiquément et pour lesquels il existe une contrite
paradigmatique. (BLAIS, 1993, p. 52).
113
1. BASE NOMINAL: 2. BASE ADJETIVAL: 3. BASE VERBAL:
BASE + N/SN N/SN + BASE (+ADJ) BASE+N/SN
N/SN + BASE ADJ + BASE (+ADJ) N/SN+ BASE
BASE + ADJ BASE + V/SV BASE+ ADJ (+ADJ).
ADJ + BASE
BASE + V/SV
V/SV + BASE
Quadro 1 Quadro que mostra as estruturas fraseológicas apresentadas por Pavel
Vemos, portanto, que a estrutura formal das UFs na LE é semelhante a da língua
comum, constituindo-se em torno de uma base e de seus complementos.
Para Gouadec (1993) a fraseologia da língua de especialidade é composta por
cadeia de caracteres significativos de tratamento privilegiados. Essas cadeias de caracteres
podem ser contínuas e descontínuas e são formadas de várias formas, desde palavras a
parágrafo.
As cadeias de caracteres pré-terminológicos ou pré-fraseológicos podem ser
contínuas ou descontínuas. Elas podem corresponder a palavras, a grupos de
palavras, a segmentos de proposições ou a proposições inteiras, a segmentos de
frases ou a frases inteiras, a junção de frases, a frações de parágrafos ou a parágrafos
inteiros. (GOUADEC, 1993, p. 83).
27
O fraseologismo para Gouadec(1993) se constitui por uma relação de caracteres.
Um caractere ou uma relação são ancorados em um pivô invariável ou uma relação entre dois
ou vários elementos nocionais. A organização do fraseologismo, segundo o autor, se em
torno de um elemento matricial ou de um pivô, sendo que se forma em torno do pivô ou de
uma matriz permitindo uma ou mais variáveis.
Diremos então que o fraseologismo se compõe de um elemento matricial ou pivotal,
e somente um, em torno do qual se trata de um pivô ou da qual se trata de uma
matriz que permite uma ou mais variáveis significativas [...].
Do ponto de vista estrutural, o termo reflete uma organização “um plano” no qual
cada elemento reporta uma parte da especialização, então o fraseologismo apresenta
sempre uma estrutura hierarquizada combinando um pivô e uma variável ou uma
matriz e uma ou mais variáveis. (GOUADEC, 1993, p. 84).
28
27
Les chaine de caracteres pré-terminologiques ou pré-phraséologiques peuvent être continues ou discontinues.
Elles peuvent correspondre à des mots, à des groupes de mots, à des segments de propositions ou à propositions
entières, à des segments de phrases ou à des phrases entières, à des ensembles de phrases, à des fractions de
paragraphes ou á des paragrapfes entiers, etc
28
Nous dirons donc que le phraséologisme se compose d‟um élément matriciel ou pivotal, et um seul, autour
duquel [s‟il s1agit d‟um pivot] ou dans laquelle [s‟il s‟agit d‟une matrice] permutent une ou plusieurs variables
signifivatives. [...] D‟un point de vue structurel, le terme reflète une organisation “à plat”, dans laquelle chaque
élément apport une part de specification, alor que le phraséologisme présente toujours une structure hiérarchisée
combinant un pivot et une variable ou une matrice et une ou plusieurs variables. (GOUADEC, 1993, p. 84).
114
Bevilacqua (1996) define ngua de especialidade como aquela que circunscreve o
campo conceptual específico e, consequentemente, por possuir uma terminologia e uma
fraseologia próprias, são utilizadas predominantemente pelos especialistas de determinada
área do saber em situações específicas de comunicação, cuja função principal é o intercâmbio
de informações técnicas ou científicas. Por outro lado, a língua comum é utilizada na
comunicação cotidiana pelos falantes de uma determinada comunidade linguística.
Desmet (1997) aborda a temática das unidades especializadas em consonância
com a Linguística de Corpus e defende que as unidades terminológicas Unidades Lexicais
Especializadas (ULE) possuem uma complexidade semântica muito forte. Tal complexidade
advém das variedades dos elementos que se combinam com as unidades terminológicas nos
textos e nos discursos, constituindo as línguas especializadas.
Devido ao interesse pela fraseologia especializada nas últimas décadas do século
XX, é necessário estudá-la considerando os seus contextos, os textos, os diversos discursos
técnico-científicos. Faz-se muito evidente, neste tempo, o desenvolvimento da Linguística de
Corpus e os seus instrumentos que conduzem a uma verdadeira renovação nos estudos
fraseológicos.
Para a autora, as UFs constituem um estatuto situado entre o léxico e a sintaxe. A
fraseologia, principalmente da língua de especialidade, apresenta um campo de investigação
muito pertinente, fazendo-se necessário o estudo de vastos corpora textuais, como também
um estudo comparativo de fraseologismos de domínios científicos e técnicos variados e um
estudo comparativo da fraseologia de línguas diferentes.
A fraseologia de especialidade deve ser vista como uma zona fronteiriça entre o
léxico, sintaxe, semântica e pragmática. Deve ser estudada na dialética língua-usos,
integrando-se à partida no modelo de mecanismo de variação. (DESMET, 1997, p.
30).
A fraseologia especializada mantém laços com os textos; estes passam a constituir
um novo campo para os estudos terminológicos e começam a ser defendidos como um espaço
de análise dos termos no seu comportamento sintagmático e das possibilidades de combinação
com outras unidades do discurso técnico e científico. Considerando que o texto conduz à
revalorização do contexto, quem fala de texto fala de contexto e de co-texto, através da
Linguística de Corpus m-se renovado os estudos de fraseologia.
A tônica dada pela autora é o texto como o ponto chave para o estudo do léxico
especializado. As fraseologias surgem das combinações das unidades terminológicas com
115
outras unidades do discurso científico. Os estudos realizados através do texto contribuíram
para fazer da fraseologia um componente central das línguas de especialidades.
A concepção de fraseologia para Desmet envolve todo um conjunto de unidades
polilexicais, pois “o fenômeno fraseológico cobre as expressões feitas, as unidades lexicais
sintagmáticas, as locuções adverbiais, preposicionais, conjuncionais..., isto é, todo um
conjunto de unidades polilexicais. (DESMET, 1997, p. 33).
Destacamos do pensamento de Desmet a relação que ela faz dos estudos do léxico
especializado com o desenvolvimento da Linguística de Corpus e todo o aparato dos
programas de computação para reconhecimento e captação dos termos e das fraseologias
usados em corpora de análise. É saliente a necessidade de se fazer estudo linguístico com a
utilização dos recursos da informática para a facilitação e eficácia da pesquisa. O uso de
corpora para averiguação de fatos linguísticos é imprescindível na prática atual de qualquer
pesquisador, pois só através da prática de uso da língua podemos conhecer essa língua
funcionando com todos os seus recursos.
Outra contribuição importante para a compreensão do fato linguístico é uma
análise mais extensa nas várias dimensões da língua: na morfossintaxe, na semântica e na
pragmática. A proposta de Desmet (1997) abarca todas essas dimensões, o que concordamos e
ampliamos, pois não podemos deixar de fora o uso da língua em seu contexto histórico, social
e cultural. A ngua é o reflexo das atitudes e do pensamento do ser humano situado no seu
tempo, visto que representa as relações do homem com as coisas e com o mundo. Todos os
aspectos da cultura de uma determinada época são expressos por meio da linguagem, o que
vem a contribuir para usos de termos e expressões que denunciam flagrantes do pensamento e
da cultura daquele momento histórico.
Da mesma forma corrobora o pensamento de Lamas (2009), quando defende uma
Filologia embasada no texto em que operam todas as dimensões e teorias linguísticas para a
compreensão integral do texto. As unidades fraseológicas, enquanto entidades linguísticas,
estão inseridas no âmbito do sistema de uma língua, ao passo que expressam relações de
significado específico e suscitam dimensões argumentativas condicionadas e condicionantes
de ideologias e axiomas diversos que nos remetem a uma sincronia passada ou mesmo no
tempo presente, revelam um modo de ver e de pensar o mundo.
Um estudo abrangente das UFs de uma linguagem especializada produzida por
um segmento social em qualquer época histórica leva-nos a adentrar na realidade e nas
condições sócio-histórico e culturais dos textos para compreendermos esses textos em todas
as dimensões.
116
Para Bevilacqua (1996), a diferença entre a fraseologia da língua comum FLC e a
fraseologia da língua de especialidade FLE é o critério que se sobressai na FLE como um
constituinte básico, ou seja, o termo ou unidade terminológica UT que se configura como
núcleo da unidade fraseológica.
[...] constitui-se segundo regras morfológicas e sintáticas de uma língua além de
referir-se a um conceito que, no caso, é específico de um domínio, ou seja, ela
assume um novo significado ao passar a fazer parte de determinada área e, portanto,
de uma terminologia. (BEVILACQUA, 1996, p. 35).
Bevilacqua (2007) acrescenta que o termo é um elemento de especialidade da fala
de um grupo de falantes de uma determinada língua com valor especializado. Porém, o termo
não é uma unidade isolada, desta feita, relaciona-se com outras unidades em situação de
coocorrência com os elementos linguísticos que ocorrem juntos ao termo, o que pode se
denominar unidades fraseológicas especializadas.
Em conseqüência, se uma maior atenção ao funcionamento dos termos em seu
uso, o que implica, entre outros aspectos, ter em conta os coocorrentes dos mesmos,
ou seja, os elementos lingüísticos que aparecem junto ao termo. Esse conjunto
formado por um termo e um ou mais coocorrentes formam as unidades
especializadas que, tal como eles, representam e transmitem conhecimento
especializado de uma área e se constituem em formas do dizer desta área.
(BEVILACQUA, 2007, p. 209).
29
Percebemos, através das concepções apresentadas acerca das UFs especializadas,
que todos os autores são de acordo que elas se formam a partir de um núcleo terminológico
UT ou pivô que a caracterizam como pertencentes a uma língua de especialidade.
Podemos definir como pivô terminológico a unidade terminológica (UT) ou termo a
partir do qual as matrizes com pivô foram coletadas. Vale lembrar que o pivô ou UT
pertence a uma área específica do conhecimento, fazendo parte de sua terminologia.
(BEVILACQUA, 1996, p. 62, grifo da autora).
Cabré e Estopà (2007) não se referem a pivô terminológico, mas a núcleos
mínimos que constituem o centro das UFs que, nos casos dos núcleos verbais, têm função de
complementos.
29
En consecuencia, se da una mayor atención al funcionamiento de los términos en su uso, lo que implica, entre
otros aspectos, tener en cuenta los concurrentes de los mismos, o sea, los elementos lingüísticos que aparecen
junto al término. Ese conjunto formado por un término y uno o más concurrentes conforman las unidades
fraseológicas especializadas que, tal como ellos, representan e trasmiten conocimiento especializado de un área y
se constituyen en formas típicas del decir de esta área. (BEVILACQUA, 2007, p. 209).
117
Considerando fraseologia, e chamamos, portanto, a unidades fraseológicas, àquelas
unidades pertinentes a um âmbito especializado, de estrutura sintática (nominal,
verbal, adjetival ou adverbial), de combinação restrita, que representam expansões
dos núcleos mínimos. Entre elas, as mais estudadas são as estruturas
correspondentes a sintagmas verbais, nas quais as Uts exercem a função de
complemento interno na maioria dos casos, embora possam exercer também, mais
raramente, a de complemento externo. (CABRÉ; ESTOPÀ, 2007, p. 55).
Embora o pivô terminológico seja o elemento caracterizador de uma UFE,
também as UFs sem pivô terminológico. Tal fato levou Bevilacqua a dividir as UFs em dois
grupos, denominando-os de matrizes fraseológicas, sem pivô terminológico, e matrizes
fraseológicas, com pivô terminológico. Matriz terminológica é definida [...]como uma cadeia
de caracteres especializada e freqüente em determinado discurso, constituída por uma parte
variável, e outra invariável, representada através de formulações ou padrões do tipo [x]
constituir um compromisso entre [y] e [z]. (BEVILACQUA, 1996, p. 61, grifo da autora).
Nesse exemplo, constituir um compromisso é a parte considerada invariável, enquanto que os
espaços representados por [y] e [z], podem ser preenchidos por elementos variáveis.
A palavra matriz em seu sentido etimológico registrado em dicionário da língua
comum significa o útero onde o feto se desenvolve ou lugar onde alguma coisa se gera e se
cria. (AULETE, 1986). Nesse sentido entendemos que uma matriz fraseológica é aquela que
apresenta uma parte com certo grau de fixidez, embora com variações, e que a partir dela se
pode gerar mais de uma UF, tendo em vista que a parte invariável a caracteriza como uma
matriz e a parte variável permite que outros elementos sejam adicionados, constituindo outras
UFs a partir da base. A parte variável é a que se altera na unidade, já a parte invariável é a que
se mantém fixa na unidade. Vale lembrar, contudo, que essa parte, mesmo considerada
invariável, admite variação, e é comum que ocorra, por meio de “inserção de elementos
morfossintáticos, a retirada de um dos elementos ou ainda a mudança de ordem entre eles,
sem, contudo, sofrerem alteração de significado em relação a sua matriz principal”.
(BAVILACQUA, 1996, p. 63).
As formas das matrizes que apresentam variação são denominadas de variantes.
Nos Autos de Querela as matrizes freseológicas apresentam uma riqueza extraordinária de
variações, se não adotássemos esses conceitos, tornar-se-ia muito difícil tratarmos dessas
questões.
Na parte das matrizes em que se encaixa o pivô terminológico constantemente
modificações, pois cada pivô qualifica uma UF diferenciada da outra, ou seja, um pivô está
sempre mudando, o que possibilita gerar uma UF diferente. Exemplificamos com as seguintes
ocorrências: Auto de [querela e denúncia], Auto de [exame e vistoria], Auto de [], Auto de
118
[aclamação] etc., em todos esses casos o que gera outra UF é a capacidade de modificação do
pivô, permanecendo a base inalterada. Semanticamente, cada uma das UFs apresentadas
acima mantém sua especificidade quando muda o pivô, não podemos classificá-las como
formas variantes. O pivô terminológico é também denominado de núcleo, unidade
terminológica ou termo e permite identificar uma área específica do conhecimento.
ainda as possibilidades de ocorrência de formas sinonímicas quando
substituição de um elemento por outro de mesmo valor semântico. São aquelas UFs que
permitem a comutação ou troca dos elementos invariáveis por um sinônimo. Dessa forma,
conclui a autora:
[...] tais unidades se constituem de elementos invariáveis e variáveis, indicando
desse modo, a possibilidade de alterações no interior de uma unidade. Significa que
pode ocorrer a inserção e a supressão de um ou mais de um elemento ou a alteração
de sua ordem (BEVILACQUA, 2001, p.99).
Para nós é de grande relevância essa classificação das UFs adotada por
Bevilacqua (1996), com a qual concordamos por facilitar o trabalho de reconhecê-las e
organizá-las. Contudo, vale ressaltar que cada corpus de investigação apresenta características
próprias nem sempre hábeis a adaptações. Queremos dizer que a descrição das UFs em
corpora diversificados merece tratamento específico e critérios estabelecidos conforme a
especificidade desses corpora. Porém, em regra geral, adotamos os critérios da autora para a
classificação em nosso estudo, tendo em vista que a variação e a ordem dos elementos é uma
marca bastante significativa nos Autos de Querela.
Os textos que analisamos apresentam alguns obstáculos por se tratar de
manuscritos com sérios problemas gráficos e de pontuação, dificultando, por exemplo, o
reconhecimento dos limites de uma UF. uma ampla variação das UFs marcadas pelas
inserções e substituições de elementos, o mesmo ocorre em relação à substituição de partes,
entretanto, acreditamos ser possível adotar os critérios de Bevilacqua (1996). Assim,
consideramos as UFs com pivô terminológico aquelas em que o pivô é constituído por um
termo que identifica a linguagem jurídica ou criminal dos documentos. Dessa forma, a matriz
estando o [querelante] apresenta um pivô ou UT, termo específico, que caracteriza a
linguagem jurídico-criminal. Querelante nomeia ou qualifica uma pessoa que presta uma
queixa ou constitui uma querela sendo, portanto, especificamente, uma denominação do
âmbito especializado da linguagem aqui em apreço. Esse pivô pode ser substituído por
suplicante ou queixoso, o que marca uma forma sinonímica.
119
As UFs sem pivô são aquelas que, mesmo pertencendo à linguagem especializada,
não contêm um termo específico. Nessa ocorrência Querela e denuncia perante [vossa
mercê e mais justiças de sua Alteza Real], os verbos querelar e denunciar são de uso da
linguagem criminal, mas aqui constituem a base da UF e o que se coloca na segunda parte não
caracteriza a linguagem criminal, mas a linguagem comum usada no período estudado.
outras UFs que circulam nos documentos, mas a rigor não fazem parte exclusivamente da
linguagem especializada do judiciário colonial, muito embora seja indispensável sua
ocorrência nos autos. Assim, temos a UF Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo
que apresenta alta frequência nos textos, situando o tempo em que uma denúncia foi prestada,
embora não caracterize a linguagem especializada, pois poderá aparecer em qualquer
documento da época, no entanto, torna-se indispensável na abertura do segmento dos Autos
de Querela. Por tratarem-se de textos históricos, extremamente necessárias são as marcas
temporais, como a data em que o fato ocorreu, pois não fato histórico sem delimitação no
tempo e no espaço.
Nenhuma linguagem é especializada em sua totalidade. Maciel (2001) faz essa
ressalva e apresenta dois critérios importantes para a consideração de termos especializados:
a pertinência temática e a pertinência pragmática.
O critério de pertinência temática diz respeito aos termos vinculados à área
temática pelo significado. Refere-se a um ramo particular do conhecimento. “A pertinência
temática se expressa pela carga semântica do domínio”, conforme Maciel (2001). O critério
de pertinência pragmática se define quando os termos são relacionados à área pela
funcionalidade. Refere-se ao conjunto de características do processo de comunicação e
expressa-se pela função informativa que os termos desempenham no dinamismo da
comunicação.
Para a autora essa pertinência resulta de duas categorias: da informação nova,
presente no texto especializado, e da informação dada, que corresponde a conceitos fora da
área temática, mas a compreensão é necessária para o usuário. Dessa forma vemos a matriz
muito recorrente nos Autos de Querela em casa de aposentadoria de [x] aparece
circunstanciada pela pertinência pragmática e visa situar o local onde é registrada a ocorrência
do crime, mas não é específica da língua do judiciário, por conseguinte, não apresenta um
pivô terminológico.
Ressalta ainda Maciel (2001) que a pertinência pragmática é uma espécie de
interdisciplinaridade em que termos não específicos se entrecruzam com termos de uma
linguagem especializada, contribuindo para a compreensão mais ampla.
120
A pertinência pragmática se manifesta, portanto, numa espécie de
interdisciplinaridade. A definição de conceitos de campos que se entrelaçam e que se
associam ou rodeiam a área temática proporciona ao usuário uma compreensão mais
ampla e mais profunda. [...] Longe de ser mero instrumental na difusão de conceitos,
os termos admitidos por pertinência pragmática cobrem conceitos de áreas
especializadas que se entrecruzam no domínio focalizado, interceptado de alguma
maneira sua inteira compreensão. (MACIEL, 2001, p. 280).
Dessa forma, há muitas maneiras de dizer registradas nos Autos de Querela que se
caracterizam como UFs, muito embora não sejam especificamente da linguagem jurídica, mas
não podemos deixar de considerá-las tendo em vista o critério de pertinência pragmática.
A partir dos autores citados consideramos a definição de UF como uma cadeia
de caracteres linguísticos com estruturação sintática razoavelmente estável, marcada pelo uso
repetido e com função pragmático-discursiva, tanto para introduzir e/ou concluir um
segmento de peça dos autos, quanto para outras representações e qualificações no interior de
cada peça. Incluimos como UFs todas as ocorrências que se caracterizam por essa definição:
as colocações, as coligações, os enunciados fraseológicos com diversos fins, conforme Corpas
Pastor (1996) e Tagnin (2005). A partir daí, podem ser extraídos alguns critérios de seleção
das UFs neste trabalho:
1.Ter ou não pivô terminológico enquanto entidade que caracteriza uma linguagem
especializada. A estrutura do pivô pode ser constituída por um elemento ou por um termo ou
por vários elementos.
2. Ter pertinênia temática que identifica as UFs como pertencentes ao uso de uma linguagem
especializadas e ter pertinência pragmática que considera as UFs de uso corrente e frequente,
embora não especificamente do âmbito da linguagem específica.
3.Ter caráter fixo, apesar de admitirem variações por meio de permuta, substituição,
acréscimo ou supressão dos elementos ou partes deles que compõem as UFs.
4. Ter formas sinonímias quando substituição dos elementos das UFs por outro de sentido
semelhante.
3.7 As Unidades Fraseológicas como Tradições Discursivas da Linguagem Jurídica
As UFs são tradições discursivas da linguagem jurídica de uso frequente em uma
sincronia dessa linguagem que se desenvolveram dentro de outra tradição discursiva, ou seja,
o texto jurídico enquanto suporte tradicionalmente usado por uma comunidade específica.
121
Portanto, abarcamos aqui a noção de Tradição Discursiva (TD) como uso frequente e repetido
de entidades da língua, com função social e discursiva bem definidas.
O termo TD desenvolveu-se no âmbito da linguística alemã, especificamente
dentro da linguística românica. As TD estão vinculadas ao romanista Eugênio Coseriu e,
posteriormente, a Brigitte Schlieben-Lange, Peter Koch e Wulf Osteneicher. Atualmente, vem
sendo empregada com frequência em todo o mundo. Na América Latina, destacam-se como
base teórica em relação ao estudo do espanhol da América e ao Português do Brasil,
principalmente pelo grupo Para a História do Português Brasileiro PHPB, como ressalta
Kabatek (2006a).
As bases do termo TD são fincadas na teoria de Coseriu (1980). O autor
considera os três níveis da linguagem: o universal, o histórico e o individual.
a) O Nível Universal refere-se ao falar em geral, comum a todos os seres humanos em
qualquer época. Esse nível é o que caracteriza o ser humano como falante, não importa qual
língua. Em seu âmbito estão os princípios gerais do pensar e do conhecimento acerca das
coisas.
b) O Nível Histórico das nguas são sistemas de comunicação historicamente dados e
atualizados. Caracteriza-se por se referir a uma língua específica, como o alemão, o português
etc., em outras palavras, é o saber idiomático de uma língua histórica. Cada língua possui
estruturas gramaticais e lexicais que expressam conteúdo. Em cada língua particularidades
típicas cujo significado explícito ocorre no ato de fala. “Nas nguas costumam encontrar-se
procedimentos, como as numerações, certas referências anafóricas ou as citações, que não
podem explicar-se inteiramente do ponto de vista da oração” (LAMAS, 2006, p. 129)
30
c) O Nível Individual engloba os textos ou discursos concretos. Nesse nível situam-se o saber
expressivo, o ato linguístico de um indivíduo e o saber relativo à elaboração dos discursos.
Incorpora-se nesse nível da linguagem a liberdade do texto como produto final do falar.
Podemos resumir esses três níveis com as seguintes palavras de Coseriu.
No nível universal, a linguagem, considerada como atividade, é o falar (em geral),
não determinado historicamente; considerada do ângulo da técnica, é o “saber falar
em geral” [...]. No nível individual, a linguagem como atividade é o discurso, isto é,
o ato lingüístico (ou a série de atos lingüísticos conexos) de um determinado
indivíduo numa dada situação; como saber, é saber expressivo (saber relativo à
elaboração dos “discursos”); e como produto é um texto (falado ou escrito) [...] no
nível histórico, a linguagem como atividade é a língua concreta, tal qual se
manifesta no falar, como determinação histórica deste [...] e como “potencialidade”
30
En las lenguas suelen encontrase procedimientos, como las enumeraciones, ciertas referencias anafóricas o las
citas, que no pueden explicarse enteramente desde el punto de vista de la oración.
122
é a língua enquanto saber tradicional de uma comunidade (saber idiomático”)
(COSERIU, 1980, p. 93, grifos do autor).
Os três níveis são concomitantes quando se fala, mas podem ser separados quando
da investigação de uma questão linguística concreta.
Os três veis estão concomitantes quando se fala e unicamente se podem derivar a
partir de atos concretos, que não se pode falar “universalmente” sem falar uma
língua e sem produzir textos, e não se pode falar uma língua como sistema de
signos sem que seja mediante textos. Existe, porém, a possibilidade e até a
necessidade de separação desses níveis na investigação de uma questão lingüística
concreta. (KABATEK, 2006b, p. 506).
O conceito de TD nasceu dessa classificação coseriana e tem relação com a
Linguística Textual e a Pragmática, mas o termo veio firmar-se nos anos de 1990 e o seu
conceito vem sendo empregado a questões diversas de várias línguas, principalmente no nível
histórico em que se considera o sistema de uma língua em particular: o seu sistema gramatical
e lexical e as tradições discursivas. Para Kabatek (2006a), a atividade de falar com finalidade
comunicativa atravessaria dois filtros concomitantes até chegar ao ato comunicativo ou
enunciado. Um filtro é a língua e, o outro, as tradições discursivas, conforme esquema
apresentado pelo autor.
Figura 3 Tradições discursivas, esquema apresentado por Kabatek (2006b, p. 508).
123
As tradições discursivas compartilham a mesma historicidade que a ngua e estão
ligadas aos atos de fala fundamentais, como a saudação, por exemplo: um bom dia, o
agradecimento, a promessa, dentre outros atos comuns do cotidiano, como também as
finalidades mais complexas, exclusivas e determinadas pela cultura. Todas as TD escritas são
restritas às culturas com escrita como as variadas instituições, por exemplo, os gêneros
jurídicos.
Por essa razão podemos conceber que o Auto de Querela é uma tradição
discursiva restrita do gênero jurídico, predominante em um tempo específico limitado
cronologicamente, já que não sobreviveu até os dias atuais, pelo menos em toda a sua
totalidade. A estrutura formal de todas as partes componentes dos autos e o conteúdo
apresentado caracterizam-se por sua forma repetida e pelo uso tradicional de uma comunidade
discursiva específica. Além do gênero textual como um todo se configurar como uma TD, o
uso do léxico e de expressões ou fraseologias repetidas são estruturalmente organizados de
forma fixa, com finalidade de estabelecer elos discursivos na abertura e no fechamento de
cada parte ou de cada peça adicionada ao auto.Tais expressões constituem TD bem
caracterizadas que se situam no nível histórico da língua em sua estrutura gramatical, mas não
estão somente no nível individual, pois marcam um tipo de discurso interativo,
convencionado que estabelece uma integração com os usuários da língua, não transgredindo
as normas e os costumes de uma comunidade de falante dessa mesma língua.
As tradições discursivas, segundo Ciapuscio (2006), transcendem as comunidades
linguísticas, baseiando-se em normas e princípios de composição e de compreensão dos textos
elaborados por grupos culturais, como os grupos profissionais.
As tradições discursivas não se reduzem somente a uma comunidade linguística,
senão costumam transcendê-las; baseiam-se em determinadas normas e princípios
para a composição e compreensão de textos elaborados e sustentados por grupos
culturais de influência (correntes literárias, grupos profissionais, movimentos
políticos, etc) (CIAPUSCIO, 2006, p.13).
31
Dessa forma a linguagem dos Autos de Querela apresenta esta característica
elaborada e sustentada por um grupo de profissionais que compõe o sistema jurídico,
especificamente falando do período colonial brasileiro e do antigo regime administrativo
31
Las tradiciones discursivas no se reducen a una sola comunidad lingüística sino que suelen transcenderlas; se
basan en determinadas normas y principios para la composición y comprensión de textos, elaborados y
sostenidos por grupos culturales de influencia (corrientes literarias, grupos professionales, movimientos
políticos, etc.). (CIAPUSCIO, 2006, p.13).
124
português. Enquanto gênero, esquemas de convencionalidade e de normatividade
utilizados na transmissão de informações de caráter judicial que orientam padrões de
produção e de compreensão dos fatos.
Nesta perspectiva se encaixa a totalidade das tradições discursivas: função,
situação, temática e formulação linguística, conforme (HEINEMANN, 2000 apud
CIAPUSCIO, 2006).
Uma tradição discursiva em sua concepção mais simples, segundo Kabatek
(2006a , p.153) pode ser entendida “como formas tradicionais de dizer as coisas, formas que
podem ir desde uma fórmula simples até um gênero ou uma forma literária complexa”.
32
As TD referem-se a todos os tipos de tradições de textos e não somente às formas
complexas. Formas repetidas da linguagem oral, como bom dia e adeus não cnstituem um
gênero, no entanto, são caracterizadas como tradições discursivas. As tradições podem estar
dentro de um gênero (por exemplo, os parlamentares franceses que evocam uma forma
arcaica da língua), ou em cartas do século XIX que misturam diferentes formas de escrever,
criando tradições diferentes dentro de um mesmo gênero. “O traço definidor das TD é, então,
a relação de um texto em um momento determinado da história com outro texto anterior: uma
relação temporal com a repetição de algo” (KABATEK, 2006a, p.154, grifo do autor).
33
Para o autor, uma TD implica na repetição de algo no tempo, mas nem toda
repetição é uma TD. Assim, ele apresenta uma série de restrições para se conceber uma TD.
1) Uma TD deve ser discursiva (ficam excluídas todas as repetições não linguísticas), dessa
forma ficam excluídas as manifestações da natureza, por exemplo, o anoitecer, que é uma
repetição e uma tradição da natureza, mas não uma TD, mesmo que desperte uma outra
tradição, no caso, um poema de amor.
2) Mesmo no caso de repetição de elementos linguísticos, nem toda repetição forma uma TD:
“a”, “que” “é” não é uma TD, já a forma “oi” e “olá” constitui uma TD.
3) Uma TD refere-se ao conteúdo de um texto. Está ligada a uma “evocação” por meio de
uma situação concreta que se repete. Não basta se repetir uma forma linguística para se
classificá-la como TD, é necessário que evoque uma situação real. Assim, por exemplo, a
saudação bom dia evoca uma situação concreta, ou seja, um encontro entre as pessoas o qual
se repete e, ao se repetir, evoca outro encontro em que se emprega a mesma sequência
32
Como formas tradicionales de decir las cosas, formas que puedem ir desde una fórmula simples hasta un
género o una forma literaria compleja. (KABATEK, 2006a, p.153).
33
El rasgo que define las TD es, entonces, la relación de un texto en un momento determinado de la historia
con otro texto anterior: una relación temporal a través de la repetición de algo. (KABATEK, 2006a, p. 154, grifo
do autor).
125
linguística na comunicação para criar uma interação, uma manifestação interlocutória plena
de sentido.
O mesmo ocorre nas instituições; vale mencionar uma prática religiosa como a
missa, que apresenta sempre a mesma forma de introduzir esse ato religioso. O celebrante
saúda os fiéis com o sinal-da-cruz, proclamando as palavras Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, ato esse repetido em todas as celebrações, caso contrário, a comunidade não
aceitaria o comportamento de tal religioso. É evidente que essa TD evoca uma prática antiga
de uma comunidade adepta do catolicismo que se mantém tradicionalmente por séculos.
Diríamos o mesmo em relação à instituição jurídica. Dentre muitas de suas
práticas, uma delas, em algum momento da Historia de Portugal e do Brasil, por exemplo, era
a de anotar queixa contra alguém por motivo de alguma ação de violência. Para se registrar
uma denúncia, necessário era fazer-se um auto e a forma de introduzir o auto de querela e
denúncia era sempre a mesma expressão linguística Auto de Querela e denuncia que [...].
Tal estrutura linguística nunca era invertida nem substituída por outra similar. Esse uso evoca
uma realidade ou evento, um fato da vida real apresentado em um tribunal a um juiz, por meio
de forma fixa da língua, estabelecida pela Diplomática, portanto, constitui uma TD.
Nos casos acima, a saudação, a forma de introduzir uma missa e a forma de
registrar uma queixa, essa última até, pelo menos, nos anos 30 do século XIX, evocam uma
situação concreta que se repete e são ditas com formas linguísticas conhecidas pelos sujeitos,
estabelecendo uma interação social.
A relação das TD apresenta duas faces, conforme Kabatek (2006a): a TD
propriamente dita e a constelação discursiva que evoca. Dessa forma o texto evoca uma
situação e, por sua vez, a situação evoca o texto, baseados na repetição, conforme esquema
abaixo:
Figura 4 das evocações Kabatek (2006b, p. 511)
Dessa feita, o autor amplia o seu conceito de TD, que é o que se segue:
texto 1
situação 1
texto 2
situação 2
126
Entendemos por Tradição Discursiva (TD) a repetição de um texto ou de uma forma
textual ou de uma maneira particular de escrever ou falar que adquire valor de signo
próprio (portanto é significativo). Pode-se formar em relação a qualquer finalidade
de expressão ou qualquer elemento de conteúdo, cuja repetição estabelece uma
relação de união entre atualização e tradição; qualquer relação que se pode
estabelecer semioticamente entre dois elementos de tradição (atos de enunciação ou
elementos referenciais) que evocam uma determinada forma textual ou determinados
elementos lingüísticos empregados. (KABATEC, 2006a, p. 157).
34
Kabatek apresenta algumas questões advindas do conceito acima como, por
exemplo, a relação entre uma TD e sua referência. A saudação está relacionada a uma
situação clara, ou seja, uma constelação situacional associada a um texto, mas existem
textos que não apresentam referência situacional, textos escritos que criam sua própria
constelação discursiva. Apresentam também, algumas consequências, como o valor de signo
da TD que comunica mais que um texto sem tradição, transmitindo uma referência à tradição
concreta. Uma TD é mais do que um enunciado: é um ato linguístico que relaciona um texto a
uma realidade , a uma situação, relacionando esse texto a outros da mesma tradição. A TD
tem caráter composicional, é sempre um texto repetido da mesma maneira e pode ser uma
forma textual ou uma combinação particular de elementos.
A composicionalidade de um texto pode ser paradigmática e sintagmática, isso faz
com que, ao longo do tempo, ocorra mudança. Da composicionalidade paradigmática derivam
transformações de uma TD. Dessa forma, as TD se transformam ao longo do tempo chegando
mesmo a se converterem em algo muito diferente do inicial, conforme palavras do autor.
As TD se transformam ao longo do tempo, e podem mudar totalmente até se
converterem em outra realidade totalmente diferente da inicial. A variabilidade de
uma TD pode ser sancionada socialmente. Existem TD fortemente fixadas,
sobretudo em âmbito religioso ou rituais ou em instituições sociais com grande valor
de conservação, lugares do arquivo da memória cultural. Em outros casos, a
variabilidade forma parte da expressividade do falante, sobretudo em âmbitos orais,
por exemplo, na criatividade de inovação nos chats de Internet ou em outras
tradições expostas às tendências da moda. (KABATEK, 2006a, p.159, grifo do
autor).
35
34
Entendemos por Tradición Discursiva (TD) la repetición de un texto o de una forma textual o de una manera
particular de escribir o de hablar que adquiere valor de signo propio. Se puede formar en relación a cualquier
finalidad de expresión o a cualquier elemento de contenido cuya repetición establece un lazo entre actualización
y tradición; cualquier relación que se puede establecer semióticamente entre dos elementos de tradición (actos
de enunciación o elementos refereciales)que evocam una determinada forma textual o determinados elementos
lingüísticos empleados. (KABATEC, 2006a, p. 157.
35
Las TD se transforman a lo largo del tiempo, y pueden cambiar totalmente hasta convertirse en outra realidad
totalmente diferente de la inicial. La variabilidad de una TD puede ser sancionada socialmente. Existen TD
fuertemente fijadas, sobre todo en ámbitos religiosos o rituales o en instituciones sociales con gran valor de
conservación, lugares del archivo de la memoria cultural. En otros casos, la variabilidad forma parte de la
expresividad del habla, sobre todo en ámbitos orais, p. ej. en la creatividad de innovación en los chats de
127
Mesmo que haja transformações nas TD, conclui o autor que sempre haverá
interferência textual, pois algo do texto original vai permanecer no texto transformado. Aqui,
mais uma vez, recorremos ao exemplo jurídico, por mais que tenham mudado as formas de
registrar uma queixa. Embora o gênero Auto de Querela tenha desaparecido de todo das
práticas discursivas do judiciário atual, não podemos afirmar categoricamente que todas as
expressões linguísticas desapareceram por completo. Muitas marcas referentes ao léxico e à
estrutura de um processo jurídico podem sobreviver nas práticas discursivas das comunidades
pertencentes ao domínio jurídico moderno.
Não fazemos um estudo diacrônico do gênero nem da linguagem, selecionamos a
sincronia que compreende parte dos séculos XVIII e XIX da história brasileira administrada
pela tradição portuguesa em suas práticas judiciais que, por sua vez, traz as tradições do
direito romano reinante na Ibéria. As marcas dessa tradição são salientes nas formas
linguísticas, nomeadamente, nas unidades fraseológicas que pertencem ao plano estrutural de
uma ngua histórica que, por sua vez, são marcas discursivas de um gênero discursivo e
constituem TD de uma época e de uma comunidade.
Selecionar, agrupar em forma de glossário essas UFs que congregam em si uma
tradição discursiva, atribuir-lhes definições e informações diversas englobando o plano
linguístico e extralinguístico, é a tarefa fundamental deste estudo para que tenhamos um
entendimento completo de seu sentido e, assim, contemplarmos o objetivo de uma Filologia
ampla que tem como meta o estudo completo de um texto.
3.8 O Acervo Lexical das Línguas e o Dicionário
Achamos conveniente acrescentarmos, neste capítulo, esta seção sobre o fazer
dicionário, tendo em vista nosso propósito de organizar um glossário das UFs especializadas.
Portanto, apresentamos, ainda que de maneira muita sucinta, algumas orientações de ordem
teórico-metodológicas que norteiam a confecção de dicionários e fazemos, também, uma
reflexão acerca do léxico e do dicionário considerando o processo histórico e as ideologias
que envolvem a prática de fazer dicionários.
O léxico, sem dúvida, constitui o acervo fundamental de uma língua, é o primeiro
a se formar como uma maneira de nomeação das coisas em torno do ser humano e é marca
característica de uma língua ou variedade dela.
128
O léxico de uma ngua natural constitui uma forma de registrar o conhecimento do
universo. Ao dar nomes aos seres e objetos, o homem os classifica simultaneamente.
Assim, a nomeação da realidade pode ser considerada como etapa primeira no
percurso científico do espírito humano de conhecimento do universo. [...] Foi esse
processo de nomeação que gerou o léxico das línguas naturais. (BIDERMAN,
2001b, p. 13).
É também o léxico a parte mais sensível que está sempre em processo de
transformação e mudança por meio de vários recursos: pela recepção estrangeira, através da
criação interna do sistema, e pela renovação influenciada por questões culturais, como afirma
Faraco (1991, p. 25) [...] o léxico é um dos pontos em que mais claramente se percebe a
intimidade das relações entre língua e cultura”. Os processos de arcaização das palavras e o de
neologização refletem muito bem isso. Para dar conta do acervo lexical das línguas humanas o
dicionário surge como depositário da cultura de um povo. O dicionário exerce o papel de
registrar a linguagem aceita e valorizada de uma comunidade de falantes.
[...] o registro sistematizado do léxico confere ao dicionário o estatuto de instância
de legitimação das palavras de uma língua. Esta legitimação é também uma das
razões pelas quais o dicionário é considerado como paradigma lingüístico dos usos e
sentidos das palavras e expressões de um idioma. Nessa medida, a obra
dicionarística monolíngüe cumpre papel de código normativo de um sistema
lingüístico, funcionando como um dos instrumentos reguladores das regras do bem-
dizer das comunidades lingüísticas. Por tudo isso o dicionário goza de uma
autoridade que não é menor nas sociedades de cultura. (KRIEGER, 2006b, p. 165).
É o dicionário o instrumento de garantia de vida do xico de uma língua e das
expressões linguísticas que ganham prestígio à medida que vão sendo registradas e definidas,
ou seja, reconhecidas, oficial e legitimamente, como parte integrante do domínio cultural da
língua a qual pertencem. Para que uma palavra seja reconhecida na língua, precisa ter o aval
do dicionário. Uma gíria usada por estratos sociais pode ser considerada marginal à língua por
não desfrutar da oficialidade do dicionário. Assim também, um neologismo que, para ser
considerado como tal, necessita de um corpus de exclusão, ou seja, não ser registrado em
dicionário de uso. Porém, à medida que entra na lista do dicionário, já é léxico reconhecido da
língua e deixa de ser neologismo. Por outro lado, um termo considerado arcaico é aquele que
está fora da listagem dos dicionários porque não tem mais uso oficialmente, muito embora
esteja vivo na língua do povo. Ademais, é conferido ao dicionário o código normalizador do
léxico de uma língua para a consolidação e enriquecimento desta.
Dado o papel do dicionário em relação à norma social, por registrar a linguagem
aceita e valorizada na comunidade dos falantes e também por ser o depositário do
acervo lexical da cultura, ele é uma referência básica para a comunidade. Por isso o
129
dicionário é um instrumento indispensável e imprescindível na fixação do xico de
uma língua e ferramenta fundamental na consolidação de uma língua escrita e
literária. (BIDERMAN, 2002, p.75).
Caracteriza o dicionário a identidade nacional de um povo que fala uma língua ou
de grupos específicos de áreas determinadas do saber. Assim, surgem os dicionários da língua
que compreendem o léxico comum e os dicionários terminológicos de diferentes áreas do
conhecimento: ecologia, informática, direito, economia, moda, medicina etc.
Nas sociedades complexas atuais, incluindo nestas a sociedade brasileira, uma
grande diversidade de dicionários de domínio específico para dar conta da dinâmica das
línguas em uso restrito do conhecimento especializado, graças ao desenvolvimento das
ciências que trazem consigo um acervo lexical típico. Contudo, não o avanço científico e
tecnológico possibilita a criação e renovação do léxico, pois também outros meios que
possibilitam essa criação e renovação. Podemos citar, por exmplo, o surgimento de palavras e
expressões regionais, o processo de criação de gírias de determinados grupos sociais
específicos e, principalmente, a proliferação e divulgação de termos estrangeiros dado ao
aspecto globalizado do mundo moderno.
Por essa pluralidade linguística ser muita acentuada, surge a necessidade de
agrupar as palavras em forma de dicionários ou glossários e atribuir-lhes definições. Por esse
motivo aumenta a tipologia dos dicionários: monolíngues, bilíngues, trilíngues, plurilíngues.
Os monolíngues são dicionários da língua e podem ser, conforme Biderman (2001b, p.131):
[...]dicionários analógicos (ou ideológicos), os dicionários temáticos ou
especializados (de verbo e/ou regência verbal, de sinônimos e antônimos), os
dicionários termológicos, os dicionários históricos, os dicionários terminológicos
das diferentes áreas do conhecimento: astronomia, biologia, comunicações, direito
ecologia[...].
Esta lista, porém, não para por aqui, pois Welker (2004), embasado em vários
autores, apresenta uma longa tipologia de dicionários de diferentes línguas. Não é nosso
objetivo citar todos aqui, porém vale ressaltar que a lista se amplia mais quando englobamos
as línguas de especialidades donde surgem os diversos dicionários de termos e de fraseologias
específicos.
3.9 Abordagem Histórica do Dicionário
Relacionar o léxico de forma ordenada e lhe atribuir informação é uma prática
milenar. Os glossários surgem na Grécia Antiga com o objetivo de facilitar a leitura das obras
130
clássicas quando eram atribuídas definições às palavras para melhor compreensão do texto,
como bem afirma Krieger (2006, p. 164).
[...] a lexicografia se materializou sob a forma de xicos e glossários, elaborados
com funções bem específicas. Assim surgem os glossários na Grécia Antiga, com a
finalidade de definir o significado de palavras e expressões que tornavam difícil a
leitura dos textos homéricos. Origina-se daí a tradição de glossário como parte
integrante da obra.
Esta prática é transmitida para as demais sociedades ao passo que vai sendo
aperfeiçoada. Na fase de transição do latim vulgar para a formação das nguas românicas era
comum o uso das glosas ou glossários que constituem fontes importantes daquela modalidade
da língua latina. As glosas constituem uma espécie de léxico que dão formas vulgares ou
românicas e explicam palavras latinas. Conforme cita Elia (1979), as glosas usadas naquele
período são interlineares, trazendo esclarecimento entre as linhas e glosas marginais que
ficam ao lado das linhas. A definição de glossário, apresentada por Basseto (2001, p. 127),
complementa o já dito.
Glossários são elencos de palavras ao lado das quais é aposta outra, que a traduz ou
explica da ngua do leitor ao qual se destina. Originam-se das anotações marginais
ou interlineares em passagens menos claras; essas anotações foram depois reunidas e
ordenadas por critérios diversos.
O uso das glosas culminou com a organização destas em forma de coleção e deu
origem ao conjunto de glosas mais conhecido da Idade Média, em que se destacam as glosas
de Reichenau, do noroeste da Gália do século VIII, as glosas de Cassel, do final do século
VIII e princípio do IX, as glosas Emilianenses, dos séculos IX e X, e as glosas Silenses, da
segunda metade do século X.
Nos tempos mais recentes, surgem e se desenvolvem os dicionários por
determinações históricas e políticas, conforme Krieger (2006). À confecção de dicionários
subjazem algumas ideologias de cunho político concernentes à identidade e à autonomia de
uma língua de um povo ou de uma variedade de uma classe social.
Em países formados de ex-colônias, como no caso do Brasil, a elaboração de
dicionários é o reconhecimento de sua autonomia e essa prática produziu mudanças na
configuração linguageira, como afirma Nunes (2001, p.72).
Para compreender a constituição de um léxico brasileiro, é preciso levar em conta
esse movimento de produção de saber lingüístico. É preciso considerar o papel das
teorias, das instituições e dos acontecimentos que participaram da história da
lexicografia.
131
O autor apresenta quatro momentos da história do saber lexicográfico brasileiro
em relação à formação da língua. O primeiro momento marca o início da colonização do
Brasil em que estrangeiros portugueses, franceses, alemães e muitos outros registram seus
relatos de viagens e descrevem as coisas e os habitantes do país. Para Nunes (2001, p.72), os
relatos e as descrições reúnem o primeiro esboço de um trabalho sobre o léxico.
Eles contêm comentários sobre as coisas e os habitantes do país, inseridos no fio do
discurso, seja pontualmente nas narrações e descrições, seja sob a forma de listas
temáticas que recortam o real (plantas, animais, pássaros, aldeias e indígenas etc).
O segundo momento refere-se à elaboração de dicionários bilíngues como:
português-tupi e tupi-português pelos missionários jesuítas. Esses instrumentos são de grande
relevância para a consolidação da língua tupi. No século XVI surgem os primeiros dicionários
português-tupi, como também a ordenação do léxico vernacular português em 1562, por
Jerônimo Cardoso com seu dicionário português-latim.
Marca o terceiro momento o aparecimento do dicionário monolíngue do português
em 1789, elaborado por Antonio Moraes Silva.
A publicação do dicionário de Silva conjuga tradição brasileira e tradição
portuguesa. Ela torna visível as diferenças e semelhanças, as inclusões e exclusões.
Os efeitos especulares provocados pela inserção desse dicionário na conjuntura
brasileira desempenhará um papel decisivo na gramaticalização do português do
Brasil. (NUNES, 2001, p. 77).
O quarto momento da história dos estudos lexicais no Brasil, no século XIX,
compreende a produção de dicionários brasileiros desenvolvida paralelamente à produção
portuguesa. A identidade brasileira está definida política e culturalmente com a independência
em 1822 e o afã da literatura e dos escritores do período denominado de Romantismo. Emerge
o desejo de liberdade política e, com isso, o de consolidação da cultura e libertação da norma
linguística portuguesa. A polêmica discussão entre brasileiros e portugueses se acende neste
período por conta do desejo de independência da norma linguística.
O Brasil nasceu como estado independente em 1822. Com a independência criou-se
um ambiente favorável para o desenvolvimento de uma literatura verdadeiramente
brasileira. E foi essa literatura brasileira, sobretudo os escritores românticos,
marcados por um profundo nacionalismo, que levaram a cabo a codificação escrita
da norma brasileira, abandonando, pouco a pouco, a norma européia. (BIDERMAN,
2006, p.175).
132
Percebemos que a prática do fazer dicionários não se define somente por uma
simples relação do léxico com o intuito de lhe atribuir um significado para facilitar a
compreensão, é antes, contudo, uma forma de alteridade. Além do desejo de nomear as coisas
e defini-las, a ideologia do reconhecimento e a garantia da preservação da identidade da
língua e do povo que a fala e a utiliza nas suas muitas realizações para os diversos fins.
3.10 A Técnica da Confecção de Dicionários
A elaboração de dicionários requer cuidados estabelecidos pela ciência que cuida
dessa prática, ou seja, a Lexicografia, entendida consensualmente como a técnica de compor
dicionários.
Quanto à estrutura dos dicionários várias concepções. Damim (2005, apud
PONTES, 2009), por exemplo, fala da megaestrutura na qual estão inseridas a macro e a
microestruturas. A megaestrutura é definida como uma estrutura geral do dicionário que
envolve todas as partes principais, desde as páginas iniciais da obra, o corpo do dicionário,
incluindo a nomenclatura ou macroestrutura, até as páginas finais do dicionário. As partes
finais são de caráter opcional, pois compreendem materiais que não são adequadamente
postos na microestrutura do dicionário, formando uma espécie de apêndice ou anexo.
A macroestrutura ou nomenclatura, como aceitam alguns teóricos, é definida
como o conjunto de entradas organizadas verticalmente no corpo do dicionário.
Um dicionário é constituído de entradas lexicais, ou lemas que ora se reportam a um
termo da ngua, ora a um referente do universo extralingüístico. A lista total desses
lemas constitui a nomenclatura do dicionário, a sua macroestrutura. (BIRDERMAN,
2001a, p.18).
Outra autora que discute a organização do dicionário é Maciel (2001), que
apresenta um quadro mais amplo sobre a macro e a microestrutura de um dicionário de termos
especializados. A macroestrutura constitui a composição global do dicionário e comporta os
seguintes itens: a) as partes introdutórias, b) o corpo, propriamente dito, c) as partes
complementares.
Na parte introdutória devem constar: os dados de identificação do autor e da obra,
o sumário, o prefácio ou prólogo, a introdução, o guia do leitor e a lista de abreviaturas. O
corpo do dicionário constitui-se da nomenclatura, ou seja, do inventário de termos
especializados que compõem a obra da área especializada. As partes complementares são
133
compostas pela bibliografia utilizada, as fontes de coleta e referência às obras consultadas,
dos apêndices ou anexos e o índice.
A microestrutura, enquanto organização sistemática das informações relativas ao
termo entrada ou verbete, deve se organizar em diferentes campos, a saber: o termo entrada,
as informações linguísticas, a definição, as informações enciclopédicas, as observações, as
referências cruzadas internas e as referências cruzadas externas (MACIEL, 2001).
Para Pontes (2007), a microestrutura é o conjunto de paradigmas ordenados e
estruturados, dispostos linearmente após a entrada, dentro de cada verbete. “A microestrutura
comporta um certo número de paradigmas que nem sempre estão presentes em todas as
obras. Isso depende de sua natureza. Certos paradigmas possuem um caráter quase
obrigatório, e outros parecem mais facultativos” (PONTES, 2007, p. 71).
Welker (2004) destaca dois tipos de microestruturas: 1) concreta, que é a forma
concreta em que as informações sobre o lema são dadas e 2) abstrata, compreendendo o
conjunto de informações elaborado antes de confeccionar o dicionário que será preenchido
pelos dados concretos.
O autor apresenta os tipos de informações mais importantes que devem conter na
microestrutura:
1) A cabeça do verbete: “[...] compreende o lema e as informações anteriores à definição ou
às definições [...] a saber, variantes ortográficas, a pronúncia, a categoria gramatical,
informações flexionais e/ou sintáticas, a etimologia, marcas de uso”. (WELKER, 2004, p.
110).
2) A definição: pode ser lexicográfica, enciclopédica, terminológica e lógica. Para Krieger
e Finatto (2004), a definição terminológica é reconhecida como a que se ocupa de termos
técnico-científicos. A definição lexicográfica compreende a que se ocupa de palavras não
especializadas. A definição lógica estabelece um valor proposicional de verdade, as
definições explicativas ou enciclopédicas são as que contêm informações variadas sobre um
dado objeto da realidade.
3) Diferenciação e ordenação das acepções.
4) Marcas de uso.
5) Informações sintáticas.
6) Colocações.
7) Exemplos ou abonações. Para Birdeman (2001a), as abonações ou ilustrações contextuais
são essenciais para explicitar claramente o significado e/ou uso registrado na definição.
8) Fraseologismos idiomáticos.
134
9) Remissões e informações paradigmáticas.
Conforme Birderman, “[...] o verbete deve ser completado com informações sobre
o registro sociolinguístico do uso da palavra e remissões a outras unidades do léxico
associadas a este lema por meio de redes semântico-lexicais” (BIDERMAN, 2001a, p. 18).
Apresentamos, a seguir, um modelo de organização estrutural de dicionário
terminográfico realizado por Pontes (1997) que ilustra e orienta a nossa prática. O autor
apresenta alguns passos metodológicos para a organização de glossário da terminologia do
caju, os quais citamos abaixo. O glossário apresenta a seguinte organização:
1) A macroestrutura que representa o conjunto de entradas ordenadas no glossário no qual
os verbetes se distribuem em campos nocionais, apresentando-se internamente em ordem
alfabética. O autor classifica e subdivide os termos de entrada dando-lhe tratamento
específico.
Os termos classificados como monossêmicos m uma entrada, seguidos de seu
conceito. Os sinônimos m o seguinte tratamento: apenas uma dessas expressões,
com o respectivo conteúdo, foi registrada e, nos demais verbetes, encontra-se a
remissiva Ver, sem o seu conteúdo. Os termos parassinônimos ou quase-sinônimos
têm entrada independente. Reúnem-se, no mesmo verbete, as formas que apenas
divergem ortograficamente. As informações sintagmáticas constituem uma entrada,
sem permitir a seqüenciação de suas partes; O paradigma de entrada para os nomes é
sempre no masculino singular; para os verbos, no infinitivo. Os termos homônimos
têm tantas entradas quantos forem os significados diferentes. (PONTES, 1996, p.
13).
2) A microestrutura, que é constituída pelo conjunto de informações ordenadas que segue
a entrada. Constitui a microestrutura conforme o autor, a seguinte configuração. Verbete = +
termo-entrada + enunciado lexicográfico
Donde: Enunciado lexicográfico = + Paradigma informacional ( substantivo + sintagma) +
Paradigma definicional (significado do termo naquele discurso concreto + Paradigma lexical
(= remissivas).
No sistema de remissivas as relações semânticas entre as palavras podem ocorrer
por meio de: 1 sinonímia 2 antonímia 3 hiponímia 4 hiperonímia 5 termo
relacionado 6 parassinonímia.
Por fim, o tratamento dado pelo autor ao verbete obedece ao seguinte paradigma:
ENTRADA = categoria gramatical + gênero + definição ilustração remissivas.
A confecção de dicionários requer a observação de muitos critérios básicos para
que a obra atinja sua função social não somente como depositária da cultura de um povo, mas
também para proporcionar aos consulentes maiores informações ordenadas de forma
135
científica e didaticamente planejada, a fim de que a língua cumpra a sua função de interação
social.
Embora não tenhamos tratado, aqui, de modelos específicos de glossários
fraseológicos, as orientações teóricas expostas acima, em parte, serão adaptadas para o
tratamento metodológico de nosso glossário que será apresentado no capítulo de
procedimentos metodológicos.
3.11 Conclusão
Apresentamos neste capítulo a noção de texto especializado e sua estrutura, vimos
que a linguagem especializada é muito antiga nas línguas, mas seu desenvolvimento de forma
sistematizada é algo recente. Essa linguagem tem um maior avanço nos tempos modernos por
conta do surgimento de novas tecnologias. As nomeações dos processos, entidades,
propriedades, técnicas, objetos e outros elementos propiciam a criação de termos que se
desenvolvem no seio de comunidades discursivas e que partilham de vivências comuns.
As unidades fraseológicas são expressões cotidianas da ngua comum que têm
um surgimento muito antigo. As UFs pertencem também ao inventário das línguas de
especialidade e podem desenvolver-se em torno de um núcleo terminológico específico ou
não. Cada área do conhecimento tem seu acervo fraseológico especializado, mas faz uso de
outras UFs não especializadas que podem ser consideradas pelo critério pragmático.
Vimos os conceitos de UFs e as suas formas de estruturação, a relação do seu
estudo com a Linguística de Corpus. Vimos também que cada corpus tem sua especificidade.
Esse fator é relevante para a estrutura das fraseologias. No tratamento dado às UFs, deve-se
levar em conta os aspectos linguísticos, semânticos e pragmáticos.
As UFs podem ser inseridas no estudo das tradições discursivas como formas
repetidas tradicionalmente que evocam eventos. O estudo das UFs, abordando todas as
dimensões de sentido de um texto, contempla a noção de Filologia como ciência que estuda a
língua em todas as suas dimensões internas e externas, ou seja, o contexto.
Por fim, apresentamos algumas noções sobre o léxico como forma de identidade
de uma língua ou de uma variedade linguística. O léxico organizado em lista com sua
definção é o primeiro passo para a organização de glossários e dicionários. Para se fazer
dicionários é necessário cumprir um método, estabelecendo critérios de organização. Há
vários tipos de dicionários que, em sua estrutura, devem seguir uma macroestrutura que
caracteriza a nomenclatura ou a relação de palavras ou frases nas quais se adapta uma
136
microestrutura como a organização interna dos elementos, que vão tornando clara a definição
do léxico, do termo ou da fraseologia.
137
4 O CONTEXTO HISTÓRICO LUSO-BRASILEIRO DO SÉCULO XVII AO XIX:
ALGUMAS ANOTAÇÕES
[...] a árvore prospera, viça, deita flores e amadurece frutos, se tem raízes, se a
elas está ligada pelo tronco e delas se alimenta pela seiva. Assim, condição de
verdadeiro progresso das nações, de expansão em vergônteas, folhas, flores e
frutos autênticos, belos e nutrientes é estarem vitalmente ligadas com o passado.
(MELO,1974, p.225)
4.1 Introdução
Neste capítulo fazemos uma incursão no universo da história e da sociedade luso-
brasileira tão-somente com a finalidade de compreendermos o contexto histórico, político,
social, administrativo e linguístico do Brasil, especificamente, da Capitania do Ceará, no
período em que são escritos os documentos, que constituem o objeto desta tese. As questões
históricas não serão aprofundadas com o devido teor, mas somente apontadas, pois o objetivo
é apenas situar o objeto de investigação no universo da administração portuguesa.
Nas narrativas dos processos criminais registrados pelos tabeliães e escrivães se
destacam as UFs, cujo conteúdo semântico pode ser melhor compreendido se atentarmos
para o momento histórico no qual se inserem os autos.
Relacionamos alguns pontos da administração portuguesa referente ao período de
domínio no Brasil, à formação jurídica e aos códigos de leis. Adentramos com mais detalhes
no processo de colonização do Ceará e na formação das instituições que fortaleceram e
garantiram definitivamente o povoamento do Ceará. Primeiramente, foi uma Capitania
incorporada ao Estado do Maranhão e Pará, depois subalterna a Pernambuco, por último,
independente com decisões próprias e liberdade para negociar diretamente com a metrópole.
Tratamos da fundação das primeiras vilas e das primeiras comarcas da capitania que, aos
poucos, se consolidou com sua estrutura administrativa e formou o seu povo com identidade
própria, transformando-se em um estado moderno.
O retorno àquele universo do princípio do século XVII, percorrendo os caminhos
abertos ao longo dos anos setecentistas e oitocentistas, é de fundamental importância para a
nossa compreensão dos dados revelados nos documentos, principalmente no tocante aos usos
da linguagem e, muito especificamente, no emprego de UFs que caracterizam aquela
sincronia linguística.
As UFs, enquanto marcas de uma linguagem especializada, notadamente da
linguagem jurídico-criminal de uma época pretérita, são representações históricas que
138
refletem o modo de falar e de pensar da população. Essas unidades demonstram também os
costumes, as crenças e outras marcas culturais calcadas na realidade. Por fim, justificamos
ainda nosso passeio pela história para fazermos jus à noção do termo Filologia, que estamos
considerando em toda esta tese, como uma ciência que estuda os textos e tudo o que for
necessário para tornar esses textos acessíveis na língua utilizada e, em todo o universo cultural
que essa língua representa, o que implica o conhecimento de uma série considerável de outras
ciências auxiliares, como a história, a geografia, a paleografia, a codicologia, a hermenêutica,
a literatura. A explicitação dos dados históricos torna muito mais visível e compreensível o
conteúdo linguístico.
4.2 Panorama Geral da Administração Portuguesa do Século XVII ao XIX
A nossa viagem pelo mundo luso-brasileiro começa no final do século XVI,
período em que Portugal passa para o domínio da Espanha. Com a morte prematura do jovem
rei D. Sebastião, em 1578, sem deixar descendente, o trono português ficou ameaçado,
embora tenha assumido seu tio avô, o Cardeal D. Henrique que, por sua vez, ao morrer em
1580, não deixou sucessor. Felipe II da Espanha reivindicou a coroa portuguesa por ter
ascendência na Família Real lusitana, unificando, assim, as duas nações ibéricas.
Após 60 anos de comando da nação portuguesa pela dinastia filipina espanhola,
Portugal se reconstituiu política e administrativamente, em 1640, com a restauração do trono e
do controle de suas possessões, em que ascendeu a última Dinastia, a de Bragança, tendo
como chefe supremo D. João IV, que reinou de 1640 a 1656. Sucedido pelo filho D. Afonso
VI, 1656-1683, quando foi destituído do trono pelo irmão D. Pedro II, que governou de 1683
a 1706. D. João V sucedeu o pai, D. Pedro II, de 1706 a 1750. Com a morte de D. João V,
assumiu o reinado o filho primogênito, D. José I, governando de 1750 a 1777. No governo
deste monarca muitas medidas importantes tomadas modificaram a vida da nação portuguesa
tanto na Europa como em suas colônias. “Todo o seu reinado é caracterizado pela criação de
instituições, especialmente no campo económico e educativo, no sentido de adaptar às
grandes transformações que se tinham operado” (O PORTAL da História de Portugal, 2009).
Destacam-se, entre essas medidas, as reformas do ensino superior e a criação do
ensino secundário e do primário com os mestres régios. Foi nomeado como primeiro ministro
o conde de Oeiras, Sebastião José de Carvalho e Melo, conhecido como Marquês de Pombal,
que foi responsável pela implementação das reformas administrativas. “Este procurou
139
desenvolver um programa de reorganização econômica, social, administrativa, judicial e,
sobretudo, política de Portugal e suas conquistas”. (FLEXOR, 1997, p.97).
Uma medida radical do primeiro ministro que teve grandes consequências foi a
expulsão dos jesuítas dos reinos de Portugal em 1759. Outra ação importante para o Brasil foi
a criação do Diretório dos Índios, em 1755, que criava vilas de índios ficando estas sob a
custódia de um diretor nomeado. Nessas vilas foram abertas escolas para os meninos sob a
responsabilidade de um mestre e para as meninas com uma mestra em que esta ensinava às
discípulas não a ler e a escrever, mas também a coser e noções de civilidade e cultura em
geral e outras artes típicas do nero, além de todo o embasamento da religião católica que
constituíam as orientações das medidas educacionais da era pombalina. Flexor (1997)
reproduz algumas instruções do Diretório dos índios, que abordam a respeito da criação
dessas escolas no item 8, que aqui reproduzimos.
E como esta determinação a baze fundamental, haverâ em todas as Villas, ou
Lugares duas Escolas publicas, huá para Rapazes, e outra para Raparigas, nas quaes
se insignarâ a Douctrina Christaá, Ler, escrever,e Contar na forma que Sepratica em
todas as Naçoens Civilizadas ensignandosse nas Raparigas, aLem da Doutrina
cristaã, a Ler, escrever, fiar, fazer renda, costuras,e todos os mais menisterios
proprios daquelle Sexo (FLEXOR, 1997, p.102).
Essas medidas geraram profundas mudanças no campo da educação que teve
como ápice a obrigatoriedade do ensino da língua portuguesa nas escolas fundadas,
oficializando-a como língua de todos os nativos, proibindo, dessa forma, o uso da língua
geral
36
ou de qualquer manifestação linguística que não fosse em português. O item 7 do
Diretório determina o ensino da língua portuguesa, expurgando o uso da língua geral ensinada
pelos jesuítas que, na visão de Pombal, era uma invenção verdadeiramente diabólica para
que os índios permanecessem bárbaros e dominados.
Para desterrar este perniciozo abuzo, Serâ hum dos principaes cuidados dos
Directores estabelecer nas Suas Respectivas Vilas ou Lugares uso da Lingoa
portugueza, não consentindo de modo algum, que os meninos, e meninaz, que
36
Segundo Rodrigues (1994) a expressão língua geral foi usada pelos portugueses e pelos espanhóis para
qualificar línguas indígenas de grande difusão numa área. O Quêchua no século XVI foi chamada de língua
geral do Perú. No Brasil, a língua dos índios Tupinambá, falada ao longo da costa de litoral de São Paulo ao
Nordeste, no século XVI, não teve a consagração de Língua Geral nos dois primeiros séculos da colonização.
Durante o século XVII, foi denominada de Língua Brasílica, língua do mar ou língua da terra. Essa Língua
Brasílica, nome que se fixou, passou ser a língua falada por índios, portugueses e escravos e pelos miscigenados.
“A essa língua popular, geral índios missionados e aculturados e a não-índios, é que foi mais sistematicamente
aplicado o nome de Língua Geral.O uso desse nome começa já na segunda metade do século XVII”.
(RODRIGUES, 1994, p.101).
140
pertencerem as Escollas, e todos aquelles Indios, que forem capazes de instrucção
nesta materia, uzem da lingoa propria das Suas Naçoens, ou da chamada geral; mas
unicamente da portugueza na forma que S. Magestade tem recommendado em
Repetidas Ordens, que até agora se não observarão com total Ruyna espiritual e
temporal do Estado (FLEXOR, 1997, p.101).
Como vemos, a educação passou a ser secularizada, saindo da égide da Igreja para
o controle do Estado. Foi criado o Subsídio Literário, um tipo de imposto sobre as carnes que
se vendiam nas vilas para custear a educação. Foi elaborado um novo método de estudar,
trata-se de O Verdadeiro Método de Estudar, de autoria de Luis Antonio Verney, baseado no
Iluminismo italiano.Tal proposta era essencialmente progressista, reformista, nacionalista e
humanista.
As determinações do Diretório dos índios foram aprovadas em 1755 por D. José I,
antes restritas ao Pae Maranhão. Logo depois se estendeu a todo o Brasil, pelo Alvará de
17 de agosto de 1758, segundo Vainfas (2001). Os índios saíram da tutela dos religiosos e
passaram a ser regulados por diretores por serem os silvícolas rústicos e incapazes de se
governarem como determinava a lei. As povoações criadas teriam um diretor nomeado pelo
governador da capitania que seria o intermediário entre a comunidade e o governo. A
principal tarefa era a civilidade dos nativos.
No Ceará, encontramos muitos documentos dessa época, no APEC, que nos
mostram as políticas administrativas implementadas na colônia e como eram gerenciadas
essas resoluções. Os documentos relativos a esse período e ao tema são constituídos por
provisões de diretores de índios e nomeações de professores de primeiras letras para os filhos
dos nativos, além de cartas e bandos (esse último designa um documento enviado por uma
autoridade, em forma de anúncio. A população se reunia ao som de um tambor ou de uma
caixa, em um local público, para ouvir a leitura da mensagem).
O texto que transcrevemos é uma carta circular escrita em 1768 e enviada pelo
Capitão-mor governador do Ceará, o tenente coronel Antonio José Victoriano Borges da
Fonseca, dirigida aos diretores das vilas de índios. A carta tem o objetivo de obedecer as
orientações do Capitão-mor general governador de Pernambuco, a quem o Ceará era
subordinado, cujo conteúdo abordado discorre sobre o pagamento do salário aos mestres dos
filhos dos índios. O salário deveria ser efetivado com um alqueire de farinha por ano, por cada
menino ou menina, ou outro gênero alimentício que os pais tivessem, nunca em dinheiro.
Essa prática vinha sendo aplicada em outras capitanias como Piauí, Maranhão e Pará. O
documento recomenda, também, que o papel usado na escola seja providenciado pelos
diretores. Reproduzimos, a seguir, o documento:
141
Carta Sircular escrita aos Directores
Ilustrissimo eExelentissimo Senhor Conde noso General em Carta de13 deSetembro,
que lheparecejusto praticar-se com acontribuiçam dos Mestres das Escollas das
Novas Villas desta Capitania omesmo que seobserva nas do Piauy por ser também o
que seestabeleçeo no Grão Pará, eMaranhaõ, onde adita comtribuição daforma
seguinte. Aos Mestres das Escollas sedêo um alqueire de farinha por ano por cada
ûm dos rapazes, ou raparigas, que seinsinasem naditas Escollas;
37
porem com
alimitação deque nunca dariam mais dedois alqueires os Pays, que troxesem mais
dedois filhos nas referidas Escollas, edenunca seobrigar por modo algum aos
mesmos Pays, que contribuam com dinheiro: esô sepermite, quesatisfaçaõ o mesmo
pagamento com outros quaes quer gêneros comestiveis reduzidos à quantidade,
quepelo seocompetente preço corresponder as da porçam da farinha, em que fica
regulado odito pagamento porque averâ ocazioens, em que naõ tendo os Indios
umgenero, lhes seja mais facil fazerem aquella satisfaçaõ em outro.
O Papel que seprecizar para as Esllas
38
ofará vossamercê prevenir pelo produto do
negocio docomum desaVilla ficando juntamente ao cuidado de vossamercê
adeligencia defazer efectiva acontribuisaõ que fica expresada eavigilancia deque
por nem um modo sealtere, eparaque asim sefique executando mandarâ vossamercê
registar esta ordem. Deos guarde avossamercê
Vila daFortaleza deNosa Senhora da Asumpçaõ a21 deNovembro de1768// Antonio
JozêVictoriano Borges daFon
ceca//
O Secretario
Feliz ManueldeMatos
(ARQUIVO PÚPLICO DO ESTADO DO CEARÁ-APEC, 1780, Livro 85, fl. 28r)
O período em que se ambienta o documento coincide com o reinado de D. José I,
e as disposições citadas na carta estão conforme o exposto no pacote de medidas do Marquês
de Pombal. Vemos a preocupação com o ensino dos meninos e meninas, em relação aos
professores não intenção de recompensá-los bem pelo serviço prestado, pois o pagamento
deveria ser efetivado com mercadoria, e a moeda corrente era a farinha, além disso, apenas
um alqueire por ano por cada aluno. Cremos que não representava muito valor, se convertido
em dinheiro, muito embora o governo ressalte a importância dos mestres por exercerem uma
ocupação nobre e por prestarem valoroso serviço à Igreja e ao Estado, conforme reza as
instruções do Diretório transcritas por Flexor (1997, p. 8).
He innegavel, que Os Mestres das Eschólas exercitaó a occupaçaó mais Nobre, e
mais util ao Estado, e a Igreja; porque elles Saó quem nos infundem no espirito as
primeyras imagens, e os primeyros pensamentos, que devemos ter do Santo temor de
37
Como o original, falta a concordância.
38
Conforme o original, o escrivão esqueceu-se de uma sílaba de Escollas.
142
Deos, da Obediencia ao Rey,e aos Seus Ministros Respectivo; do amor, e Respeito
aos nossos mayores, ao affecto necessario à patria, e aos interesses da Monarquîa.
Em outra carta, situada cronologicamente anterior à primeira, o governador do
Ceará se dirige ao diretor dos índios, Alferes José Pereira da Costa, da vila de Soure, atual
cidade de Caucaia. A maior recomendação é sobre a frequência dos meninos à escola sob
pena de atemorizar os pais com o aguilhoamento, caso esses não mandassem seus filhos à sala
de aula. Vejamos o texto:
Registro
de hua Carta escripta ao Director
da villa deSoure
Nesta occasiaõ serâ vossamercê intregue das Ordens Circulares que julguey
Conveniente passar aos Directores das villas desta Capitania pella ordem
efaculdade, que para isso tenho do Senhor Conde General, daqual tem vossamercê
noticia posto que omesmo Senhor lheescreveo, eque serâ contente digo conveniente,
que vossamercê faça registar nolivro daCamara aque pertencer. E porque um dos
mayores cuidados, quedeve vm ter enaescola; porque ella dependem os aumentos
damayoridade faça vm toda adeligencia, paraque os meninos, nam faltem aella: Eu
gostey muito dever o aproveitamento dos dessa villa, mas como sey pella
experiencia, que tenho dos Indios, que os Pays saõ, os que mais os perventem, vm
os atemorize, senam mandarem os= filhos aescola, prendendo nagolillia
39
, por
alguns dias, os que nesta materia forem mais rebeldes, proCurando interesar nisso
aoCapitam Mor, eJuizes tenhavm tambem otrabalho demandar comprar tres,
ouquatro resmas depapel, repartindo prorata pellos Pays dos meninos aimportancia
das dittas resmas depapel, que vossamercê intregara ao Mestre, paraque odistribua
com igualdade; tudo isto emais mais, henecessario nestes principios, etodo
otrabalho, disvello, edligencia, devemos dar porbem empregado, por serem estes
novos extabelecimentos, tanto doagrado donosso Soberano, ede utilidade para
oestado: Deus guarde avossamercê muitos annos. Vila
deNossa Senhora
daAsumpÇam eSão Joze deRibamar da Fortalleza a 23 de Mayode1765= Antonio
JozeVictoriano Borges da Fonceca= Snehor Alferes Joze Pereyra daCosta Director
daVilla nova realdeSoure enam secontinha mais emditta Carta que bem efielmente
afiz tresladar dapropria dia era ut Supra
OSecretario
Felis Manoel deMatos
(APEC, 1780, Livro 85, f. 8v)
Em ambos os documentos sobressai a preocupação com a educação dos nativos,
por ser uma forma de domínio por meio do ensino da religião católica, da cultura lusitana e da
língua portuguesa.
As políticas implementadas por Pombal para o Diretório dos índios foram
condenadas ao fracasso. Vários fatores contribuíram para isso, como o fato das escolas não
39
Golilha a palavra correta.
143
funcionarem e os índios tornarem-se mão-de-obra escrava dos diretores. Muitos desses eram
donos de engenhos e remuneravam os trabalhadores com cachaça, ressalta Vainfas (2001).
Após a morte de D. José I, subiu ao trono a sua filha, D. Maria I, em 1777, cujo
reinado estendeu-se até 1816. Seu filho, D. João VI, governou de 1816 a 1826, muito embora
administrasse como regente de sua mãe, dado ao estado de demência em que a soberana se
encontrava. D. João VI muito se aproximou da vida da colônia por sua vinda para cá em 1808,
quando da instalação da corte no Rio de Janeiro.
O período que abrange as datas de escritura dos Autos de Querela é o do reinado
de D. Maria I e de seu filho, muito embora nunca seja feita referência à rainha. As expressões
linguísticas de tratamento são dirigidas ao príncipe regente. Após a independência do Brasil,
foi instalada a primeira fase do Império brasileiro sob o comando de D. Pedro I (IV de
Portugal). A data final dos autos é 1829, portanto, no Período Imperial. Cronologicamente
este é o contexto político e administrativo em que se situam os documentos de nosso estudo e
dele se revelam aspectos importantes da língua, principalmente nas formas de tratamento com
as autoridades. São recorrentes, nos autos, expressões como vossa mercê, quando dirigidas
aos juízes ordinários; vossa senhoria, para os juízes de fora e os corregedores. A forma de
tratamento para o príncipe D. João VI era vossa alteza. Quando assumiu o reinado, passou a
ser tratado por vossa majestade. Essas formas foram reguladas por Felipe II por meio de
Alvará de 1597, que estabelecia quais as formas de tratamento e para quem deveriam ser
usadas. (ALMEIDA, 2004).
Além das marcas linguísticas por meio das formas de tratamento que expressam
uso de uma época, outros traços do léxico que nomeiam os cargos, as funções, os ofícios
podem ser compreendidos, se condiderarmos o contexto histórico-social da ngua. Hemos de
ressaltar ainda outras UFs como Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, em que
se destaca o valor do religioso para demarcar o tempo; Pede a Vossa merce Senhor Juis
ordinario Seja Servido mandar que distribuída (...), em que se guarda bastante respeito à
autoridade; ou, ainda, passagens que demonstram o ponto de vista de quem esceve diante dos
fatos, conforme o texto que segue.
Se Utilizou, eSatisfez o Seo diabolico intento intento transversalmente, ebestial,
eSodomita [...]Cazo este omais | orrorozo, que tem a conteçido naõ obstante toda a
re | zistençia, egritos que amesma Suplicante daua | erogos Com que instaua ao
Suplicado denada lhe | valeo por ser aCaza daSuplicante em lugar dezer | to, eporque
Semilhante aContecimento naõ | pertence ao Santo Tribunal da Inquiziçaõ
(XIMENES, 2006, p. 50).
144
As expressões rotineiras de uso constante nas aberturas e encerramentos das peças
têm grande valor histórico e diplomático porque são usadas convenientemente mediante
regras, como salienta Bellotto.
O discurso diplomático é aplicado a um quadro redacional no qual se insere o ato
escrito. Essa redação não pode ficar submetida à fantasia de seu redator. Existem
regras de composição codificada, mesmo havendo pequenas modificações não-
substantivas[...] (BELLOTTO, 2007, p. 52).
Os textos jurídicos de que tratamos constituem o objeto de estudo da Diplomática
e a sua configuração valida a autenticidade dos documentos. Conforme Bellotto (2007, p. 52),
[...] o objeto da diplomática é a configuração interna do documento, o estado jurídico das
partes e dos seus caracteres para aquilatar sua autenticidade e fidedignidade[...]”.
4.2.1 O Contexto Jurídico Luso-Brasileiro: As Ordenações Régias
Retornemos ao final do século XVI, período em que Portugal passa para o
domínio dos Filipes da Espanha. É nesse tempo, precisamente em 1603, que foi editado o
Código Filipino, conjunto de leis que regeu Portugal e suas colônias durante muitos anos. As
leis atinentes ao Código Filipino são frequentemente citadas nos Autos de Querela, razão por
que tecemos comentários a seu respeito.
É importante explicitar o que havia de leis no período anterior aos códigos
elaborados no mundo luso. Thompson (1976) pontua os momentos mais importantes do
direito criminal na Península Ibérica, começando pelo período primitivo dos povos
denominados de pré-romanos, em que as práticas punitivas por crimes cometidos eram penas
cruéis sob a forma de decapitação, precipitamento em rochas, esmagamento sob pedras e
amputação das mãos dos prisioneiros de guerras. O segundo é o período romano e tem vigor o
Direito romano do século I a.C ao século IV d.C. A legislação penal era a Lei das XII Tábuas,
com as modificações introduzidas pelo Edito Perpétuo do tempo do Imperador Adriano e do
Código Gregoriano promulgado por Deocleciano. A matéria penal cabia, aos magistrados do
município ou à cúria, a aplicação de castigos aos escravos. Segue o Período Bárbaro regido
pelo Código Visigótico ou Fuero Juzgo. O próximo é o Período Muçulmano, permanência do
Direito visigótico nas Astúrias e entre os moçárabes. Sucede o período da monarquia
fortalecida e as compilações das primeiras ordenações régias ou códigos de leis que são
organizados para orientar a vida dos governantes.
145
A palavra ordenação vem da língua latina ordinatio e apresenta vários sentidos.
Quando no singular, significa lei, decreto, regra, mandato. É a ação de pôr em ordem, de
ordenar, de regular. No plural, a palavra ordenações, desde a Idade Média, designa uma
coleção ou compilação de leis emanadas do rei.
A primeira tentativa de organizar um código de leis em Portugal remonta ao
período régio de D. Duarte, em que foram publicadas as chamadas Ordenações de D. Duarte.
Conforme Thompson (1976, p. 80), trata-se de uma tradução em língua vulgar do Corpus
Juris, publicadas por João das Regras, que compreendiam os atos legislativos preparatórios
das Ordenações Afonsinas”.
É o filho de D. Duarte e seu sucessor, o rei D. Afonso V, que posteriormente
promulgou o primeiro código português ou as Ordenações Afonsinas. Trata-se de uma
coleção de leis do século XV, publicadas entre 1446 ou 1448. Essas leis foram organizadas,
compiladas e revistas por jurisconsultos e corregedores notáveis da Corte. Compunham-se de
cinco livros: o primeiro trata do direito administrativo; o segundo, do direito público,
legislação eclesiástica, direitos do rei, da nobreza e dos judeus e mouros; o terceiro, do
processo civil; o quarto, do direito civil e o quinto, do direito e processos penais.
Ainda segundo Thompson, esse código foi o primeiro de toda a Europa após a
Idade Média e toma como modelo um conjunto de doutrinas, tanto do âmbito civil quanto do
religioso.
Usando por padrão ou modelo a doutrina do Corpus Juris, seguiu, quanto ao método
e à disposição das matérias, as Decretais do Papa Gregório IX. Assim, têm largo
assento nele o Direito romano de Justiniano e o Direito Canônico, notando-se com
fontes principais: o Direito Civil de Justiniano, conhecido pelo nome de Leis
Imperiais; o Canônico, que se fez célebre na Europa logo depois do meio do século
XII, debaixo do nome de Direito Comum, com as doutrinas dos glosadores e
intérpretes; o Código Visigótico, na versão do Fuero Juzgo; as Leis das Setes
Partidas; as leis editadas pelos monarcas, desde Afonso II; as resoluções das cortes,
celebradas desde Afonso IV; as concordatas de D. Dinis, D. Pedro e D. João; alguns
costumes e forais. (THOMPSON, 1976, p. 83).
Passados os reinados de D. Afonso V e do seu filho D. João II, passa a governar
Portugal D. Manuel I, primo e filho adotivo do antecessor. Reinou por vinte e seis anos,
período em que Portugal alcançou elevada projeção com as grandes aventuras e descobertas,
por isso o rei foi cognominado de o Venturoso. O governo de D. Manuel I era forte e
centralizado, tendendo ao absolutismo. Segundo Thompson (1976), essa empolgação com as
façanhas marítimas não deixaram de influenciar ao monarca para que marcasse seu governo
um código de leis que lhe levasse o nome para as gerações futuras. Começada a obra em
146
1505, foram incumbidos da tarefa o chanceler-mor do reino Rui Boto, o licenciado Rui da
Grã, desembargador do paço, e o bacharel João Cotrim, corregedor do cível da corte. Em
1512 ou 1513 foi impressa a obra pela primeira vez, em Lisboa. Em 1514, foi tirada nova
edição corrigida e com acréscimos, mas não foi satisfatória a sua elaboração, sendo nova
equipe nomeada para a confecção. Em 11 de março de 1521, foi o código com suas alterações
impresso na versão definitiva.
Vale dizer que o período de sua elaboração e vigência corresponde ao surgimento
no Brasil das Capitanias Hereditárias, mas pouca importância teve o Código Manuelino nessa
fase da história do Brasil. O que prevaleciam eram as [...] determinações reais especialmente
decretadas para a nova colônia, as quais, aliadas às cartas de doação, com força semelhante à
dos forais, abacinavam as regras do código unitário”. (THOMPSON, 1976, p. 89).
Por fim, as Ordenações Filipinas ou Código Filipino de Filipe II, que constitui o
terceiro conjunto de leis portuguesas, sendo promulgadas em 1603. Incorporam os dois
códigos existentes, o que as tornam as menos originais. Conforme Vainfas (2001), essas
Ordenações foram uma reforma das anteriores.
A primeira versão do código foi elaborada por um grupo de pessoas nomeadas
para este fim. Estava a obra pronta em 1595, mas não entrou em vigor no tempo determinado
que deveria ter sido, no dia 5 de janeiro daquele ano. Após a morte de Filipe II, em 1598,
houve uma revisão do código, vindo a entrar em vigor no reinado de Filipe III, como informa
Thompson.
Parece que muitas modificações foram feitas, divergindo bastante o texto revisado
do texto-base. Somente no reinado de Filipe III (II de Portugal), em 1603, vieram à
luz as Ordenações Filipinas, consagradas como repositório do Direito oficialmente
em vigor por lei de 11 de janeiro do mesmo ano. (THOMPSON, 1976, p. 95).
O Código Filipino foi o mais duradouro, tendo vigência em Portugal até 1867,
quando da elaboração do Código Civil daquele país. No Brasil, teve vida mais longa, durando
até 1916, com a promulgação do Código Civil brasileiro.
O conjunto dos três Códigos de leis ou Ordenações constitui os documentos
fundamentais do direito no reino português que entraram em vigor no século XV, saindo de
cena definitivamente no início do XX, no Brasil. As Ordenações Filipinas são, como dito,
as menos originais, por incorporarem as anteriores, porém, demonstram respeito às tradições e
às leis portuguesas, uma vez que foram promulgadas pelo rei espanhol. Por esses motivos,
foram validadas por D. João IV após a Restauração da Coroa em 1640, pela lei de 29 de
147
janeiro de 1643. A estrutura das Ordenações Filipinas se mantém a mesma das anteriores,
compondo-se por cinco livros, a mesma distribuição das matérias e a mesma doutrina.
(VERBO, v.14).
Nos cinco livros que a compõem estão a regulamentação de todos os cargos com
suas funções e todas as matérias que orientam a vida do império português. O Livro I contém
o regimento dos Magistrados e Oficiais da justiça, definindo as respectivas atribuições. O
Livro II define as relações entre o Estado e a Igreja, trata de direitos e bens da Coroa,
privilégio do Fisco, da Igreja, dos Donatários e proprietários. O Livro III cuida do processo
civil e criminal. O Livro IV do direito das pessoas e das coisas código civil. O Livro V trata
da matéria penal e militar (AVELAR, 1976). Este último livro apresenta um conjunto de 143
títulos, divididos em vários parágrafos, abordando toda a tipologia de crimes e como devem
ser suas respectivas punições.
É o Código Filipino citado abundantemente nos Autos de Querela para justificar
os motivos e as matérias em que se deve dar denúncia. Esse livro estabelece como devem ser
os procedimentos dos escrivães e tabeliães no ato de registrarem uma queixa, determina a
necessidade de ouvir testemunhas, quantas devem ser, como essas devem ser apresentadas,
orienta como e por quem deve ser feito o exame de vistoria, enfim, é o Livro V que regulariza
todos os procedimentos criminais, no qual se embasam os juízes e corregedores para
procederem judicial e legalmente.
As marcas das leis filipinas revelam-se nos Autos de Querela em expressões
diversas, como vemos a seguir, extraídas e adaptadas da obra de Ximenes(2006), distribuídas
em muitos passagens dos autos.
1) Por que é o presente caso de querela digno de exemplar castigo pelas leis do reino;
2) Em desprezo das leis de sua magestade;
3) Tem feito réu de culpa quebrantador das leis de nosso augusto soberano;
4) Segundo as leis do nosso soberano, quer o querelante querelar do querelado para ser punido
pela justiça;
5) Semelhante caso é punível pelas leis do nosso reino;
6) Até é de querela conforme as nossas leis pátrias;
7) Semelhante caso é de querela na forma do parágrafo primeiro da ordenaçaõ do livro quinto
titulo cento e dezessete.
Estas formas e outras mais são constantemente citadas para se referir às leis
filipinas que regulam a vida da sociedade colonial.
148
4.3 A Capitania do Ceará no Contexto Colonial Brasileiro
A descoberta do Brasil, em 1500, não foi um passo incisivo para sua exploração
de imediato. Inicialmente a ilha de Vera Cruz não despertou o interesse de Portugal, que
concentrava suas atenções às rotas comerciais com o oriente, de onde tirava avultadas rendas.
Enquanto os olhares lusitanos se direcionavam para o oriente, os olhares estrangeiros, como
dos franceses e espanhóis, cobiçavam o território brasileiro, conforme afirma Cruz Filho
(1987) nas seguintes palavras:
O prestigio do commercio portuguez no oriente, que empolgou o povo lusitano,
arrastando milhares de aventureiros para aquellas regiões, determinou que ficasse o
Brasil quase em completo abandono. Aproveitando-se da incuria por parte da
metropole, impulsionados pelas noticias correntes do vantajoso commercio de pau-
brasil e da escravização dos selvagens do paiz, armadores francezes e espanhóes
equiparam navios e aqui vieram traficar com os indigenas do nosso littoral. (CRUZ
FILHO, 1987, p. 27).
Após a morte de D. Manuel I em 1521, seu filho D. João III ocupa o trono
português e passa a ter mais preocupação com o Brasil. As tentativas de ocupação das
possessões lusitanas na América por piratas europeus eram ameaças constantes. Para ocupar e
explorar a terra, D. João III, em 1535, dividiu o Brasil em capitanias hereditárias. Assinala
Galanti (1911) que as considerações que moveram o monarca a dividir a nova terra entre
alguns fidalgos foram as dificuldades de colonizá-la visto a preferência pela Índia, e a
ineficiência da guarda que protegia a costa para rechaçar os estrangeiros, além de gerar
enormes dispêndios.
Foram 15 as capitanias e 12 os donatários, pois a Martim Afonso coube dois
quinhões e a Pero Lopes, três. Interessa-nos aqui apenas a Capitania do Ceará, que fora doada
ao fidalgo Antonio Cardoso de Barros a 20 de dezembro de 1535. A extensão era de 40 léguas
de litoral, desde o rio Jaguaribe até o rio Mundaú, conforme descrição de Galanti. Por sua vez,
Cruz Filho (1987) estende esses limites até o Rio da Cruz em Camocim. Certamente os
limites não correspondem ao que é hoje o Estado do Ceará, nem à época se tinham limites
bem definidos, como bem atesta o próprio Galanti (1911, p.145). Os limites, entre as
diversas capitanias, foram fixados por meio de linhas imaginarias, traçadas de um ponto da
costa na direção do oéste até irem intestar com a fronteira dos domínios de castella, por
enquanto indeterminada e desconhecida.”
149
Um documento de apenas sete páginas, publicado por Studart (1909) na Revista
do Instituto do Ceará, intitula-se Foral de doação e mercês mandado passar em favor de
Antonio Cardoso de Barros é a certidão de nascimento da Capitania do Ceará. No documento
são estabelecidos todos os direitos e deveres do donatário. Abaixo transcrevemos apenas a
parte introdutória em que D. João III concede a posse da terra ao fidalgo de sua casa, Antonio
Cardoso de Barros.
Dom Johão etc. a quantos esta minha carta virem faço saber que eu fiz a doação e
merçe a Antonio Cardoso de barros fidalgo de minha casa pêra ele e todos seus
filhos netos erdeiros e soçeçores de Juro e erdade pêra sempre da capitanya de
coremta llegoas de terra na minha costa do brasyl segundo mais ynteiramente he
comtheudo e declarado na carta de doação que da dita terra lhe tenho pasada por ser
muito nesecaryo aver hy forall dos ditos foros e trebutos e cousas que se na dita terra
am de paguar asy do que a mym e a coroa de meus Reynos pertemçe como do que
pertemçe ao dito capitão per bem da dita sua doação eu avendo Respeito a calidade
da dita terra e a se ora nouamente hir morar pouoar e aproveytar e por que se ysto
milhor e mais çeedo faça semtindoo asy por seruiço de deus e meu e bem do dito
capitam e moradores da dita terra e por folguar de lhes fazer merçe ouue por bem
de mamdar ordenar e fazer o dito foral na forma seguinte [...] (STUDART, 1909, p.
10).
Os donatários tinham a obrigação de colonizar e defender sua capitania, podendo
ser chamados perpetuamente de capitão e governador dela, e defender a fé. Como direito
podiam cativar os gentios para seus serviços e de seus navios, dar sesmarias aos que pediam,
distribuir justiça, para citar somente alguns. Nas páginas seguintes do documento são
estabelecidos estes direitos e deveres. Encerra-se o Foral citando o local e data na seguinte
forma: “dada na cidade devora aos XX dias do mês de nouembro pero mesquyta a fez anno do
naçimento de nosso senhor Jhesu christo de mil e bc e XXX b não faça duuida omde diz da
dita porque se fez por verdade”. (STUDART,1909. p.16)
40
.
O sistema de capitanias não deu certo, pois apenas algumas prosperaram, como a
de São Vicente e Pernambuco. As outras não lograram êxito devido a vários fatores, como a
hostilidade dos selvagens e a insubordinação dos colonos. Outras não chegaram mesmo a ser
colonizadas, como é o caso do Ceará. Seu donatário Antonio Cardoso, a quem foi passado o
foral acima, aqui não pusera os pés, ficando seu lote abandonado até início do século XVII,
quando houve as primeiras expedições na tentativa de desenvolver o povoamento dessa terra.
Após a conquista das Capitanias da Paraíba, em 1584, e do Rio Grande do Norte,
em 1587, a faixa de terra situada entre esta última até o Maranhão encontrava-se habitada
somente por várias tribos indígenas.
40
mil e bc e XXX b: -se 1535. bc = 500, XXX-= 30, b= 5.
150
Em 1603, o fidalgo açoriano Pero Coelho de Sousa, cunhado do então capitão-
mor da Paraíba, Frutuoso Barbosa, ofereceu-se ao oitavo governador-geral do Brasil, Diogo
Botelho, para explorar o Ceará com o intento de evitar o comércio que os estrangeiros faziam,
principalmente os franceses com os nativos. Obtida a licença, partiu no mês de julho como
capitão-mor da expedição, trazendo consigo 65 soldados e 200 índios flecheiros, conforme
informa Studart (2001). Era intenção do expedicionário capturar índios do Ceará e levá-los
para o tráfico e, assim, ressarcir os prejuízos com a colonização da Paraíba.
Pero Coelho entrou no Ceará através do Rio Jaguaribe, passou pela barra do Rio
Ceará e prosseguiu para a Serra da Ibiapaba com intenção de chegar ao Maranhão. Naquela
serra defrontou-se com os Tabajaras, senhores daqueles campos, e com alguns franceses. Em
lutas com estes, conseguiu seu objetivo de escravizar vários índios, após ter dizimado os
nativos, conforme informações do Barão de Studart.
Destroçados os indios, tomadas suas tres cercas, prisioneiros dez Francezes dos
dezeseis que os auxiliavam, Pero Coelho situa seu arraial junto ao rio Arabé, donde
envia soldados a captivar indios, muitos dos quaes foram aprisionados e entre eles o
principal Ubaúna (STUDART, 2001, p.4).
Após as lutas, dirigiu-se ao destino final, mas teve que retroceder das margens do
Rio Parnaíba. No regresso, apossou-se das terras nas imediações do Rio Ceará e as
denominou de Nova Lusitânia. A povoação foi ali edificada em torno do forte de São Tiago.
Chamou-a de Nova Lisboa. Ao retornar à Paraíba, deixou 45 soldados sob os cuidados de
Simão Nunes.
Com promessas de ajuda do Governador Geral do Brasil para continuar a
expedição, Pero Coelho retornou ao Ceará em 1605, trazendo a esposa e os filhos, mas sua
viagem foi repleta de decepções e desgraças. O forte que havia fundado, que nada mais era do
que um fortin de taipa, estava em ruínas e os soldados haviam fugido para o Rio Grande do
Norte. Esse forte foi transferido para a foz do Rio Jaguaribe com a denominação de forte de
São Lourenço. As ajudas que lhe foram prometidas nunca chegaram e a família, sem recursos
e desamparada, teve que prosseguir viagem a pé, enfrentando o calor exorbitante, a fome, a
sede e tudo de ruim, como a morte do filho mais velho do Capitão-mor. Os historiadores
relatam a cena dantesca que esses malogrados aventureiros vivenciaram em seu regresso ao
Rio Grande do Norte e, depois, à Paraíba, como o que segue.
A travessia da infeliz caravana, de que fazia parte os cinco filhos do capitão mór,
dos quaes o mais velho tinha 18 annos, todos a morrerem de fome e de sede, sob um
151
céo ardentissimo, é um verdadeiro poema de dores. Depois de perderem vários
companheiros, entre os quaes o filho mais velho do capitão-mór [...] chegaram os
expedicionários esqueleticos, loucos de fome, sendo acolhido pelo vigario do Rio
Grande (STUDART, 2001, p. 5).
É ainda mais trágica a narrativa do historiador Cruz Filho a respeito dos
infortúnios de nosso primeiro colonizador no trajeto do Ceará a Natal, aonde chegou
esfarrapado e desconhecido. Assim chegou a Natal, no Rio Grande do Norte, o cortejo de
espectros escaveirados e desfeitos, que nem os amigos lograram reconhecer”. (CRUZ FILHO,
1987, p. 40).
Pero Coelho de Sousa retornou à Europa e morreu na Espanha, segundo Studart
(2001), sem nunca receber a paga pelos seus trabalhos, não obstante passar longos anos a
requerê-la.
Essa malograda tentativa de nada adiantou para se introduzir o processo
civilizatório nas terras cearenses. Houve um hiato de dois anos entre a partida de Pero Coelho
de 1605 a 1607, quando da segunda empreitada de povoar a Capitania do Ceará, dessa feita
conduzida pelo escudo da igreja católica.
Em 1607, os padres jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira adentraram o Ceará
através de sua porta principal, o Rio Jaguaribe, para dar continuidade à árdua tarefa de trazer a
civilização portuguesa e a cristã para os rincões cearenses. Em comum acordo com o
Governo, a Igreja foi a principal mediadora da coroa portuguesa para conquistar os índios da
Ibiapaba e chegar ao Maranhão, objetivo final da viagem em que se pretendia impor os limites
do reino aos invasores franceses que já estavam bem estabelecidos ali.
A viagem atendia a dois objetivos fundamentais: a evangelização dos silvícolas,
que cumpria missão da igreja, e o contato com os índios do Maranhão, denominados Tapuias,
amigos dos franceses que ocupavam aquela terra, atendendo aos interesses do Governo.
Conforme Pompeu Sobrinho (1967), a excursão foi planejada com o apoio do Governador
Geral do Brasil, Diogo Botelho, que ofereceu ajuda ao Pe. Fernão Cardin Provincial dos
inacianos.
O nosso ponto de vista é que a iniciativa partiu do Governador, que, ao comunicar
sua resolução ao Padre Provincial, ofereceu ajuda para o necessário
empreendimento. Imediatamente, pois isto vinha calhar com a vontade da
companhia, a proposta foi aceita pela autoridade religiosa que, desde logo, tratou de
dar as precisas providências para a composição e plano da nova expedição. O
interesse era de ambos O Governador, pelas razões políticas acima expostas e a
Companhia pelos seus anos de conversão ou proselitismo entre os índios.
(POMPEU SOBRINHO, 1967, p. 15).
152
Os religiosos entraram no Ceará, na foz do Rio Jaguaribe, na altura de onde se
situa hoje o município de Aracati e, após meses de árdua viagem, alcançaram a Serra da
Ibiapaba, ao norte do Estado, na zona limítrofe com o atual Estado do Piauí. Além dos padres,
compunha-se a expedição de cerca de 60 nativos escravizados por Pero Coelho que eram
devolvidos às florestas.
Os padres receberam a ordem do provincial para a viagem no dia 26 de janeiro de
1607, mas chegaram ao Ceará no dia 02 de fevereiro, dia de Nossa Senhora das Candeias.
Desembarcaram na foz do Rio Jaguaribe em um pequeno barco e seguiram a pelo litoral
até o lugar denominado Pará ou Parazinho,
41
aonde chegaram no dia 02 de março, um mês
após a entrada em plagas cearenses. A partir daquele ponto, embrenharam-se pelo sertão e
enfrentaram o relevo acidentado, durando dias a transposição da Serra dos Corvos,
42
conforme o relato do missionário:
[...] as difficuldades do caminho q‟ ao principio se mostrou facil e isso nos
emganou gastamos 12 ou 13 dias sem sabermos bem quãdo menham nem noite
os espessos e altissimos matos p.
r
baixo dos quaes hiamos rompendo a força de
braço e ferro sobindo e decendo mõtes e rochedos q‟ excedem toda a exageração
saltãdo de pedra em pedra hora para as nuvens hora p.
a
os abismos, nem conto aquy
as quedas e cousas q‟ se quebrarão [...]
Nesta triste serra dos corvos parece q‟ se juntarão todas as pragas do brasil,
innumeraveis cobras e aranhas a q‟ chamão caranguejeiras, peçonhetissimas de cuja
mordedura se diz q‟ morrem os homens, carrapatos sem conta, mosquitos e moscas
q‟ magoão estranham.
te
e ferem como lancetas fazendo logo saltar o sangue fora e
assy parecião os indios leprosos das mordeduras [...] (FIGUEIRA,1887, p. 102).
Após a descida da Serra, transpuseram os rios cheios, enfrentaram a lama, os
insetos, a fome e a inanição dos corpos combalidos pela fadiga. O espírito, porém, continuava
firme na crença em Deus e no propósito da missão. Chegando à Ibiapaba, foram recebidos
calorosamente pelos Tabajaras, índios amigos que habitavam as encostas da Serra. Ali passam
alguns dias em uma pequena e pobre aldeia; depois passam para outra maior e com mais
recursos, situada mais ao cume da serra, onde conviveram por 4 ou 5 meses. Com o intento de
manter contato com os nativos do Maranhão, enviaram mensageiros por três vezes, porém
esses eram queimados vivos por aqueles perversos, que não respondiam as mensagens. A
única resposta que deram foi um ataque mortal no qual o Pe. Francisco Pinto foi cruelmente
41
Segundo Pompeu Sobrinho, Pará é o atual Rio Curu, que corta vários municípios do Ceará até desaguar no
Atlântico. A povoação do Pará ou Parazinho, posteriormente edificada nas imediações, deu origem à cidade de
Paracuru.
42
Serra dos Corvos fica na região norte do Ceará, sendo conhecida hoje como Serra da Uruburetama.
153
trucidado, na manhã de 11 de janeiro de 1608, como informa Galanti (1911). Após o episódio,
foi abandonado o propósito de seguir para o Maranhão. Luiz Figueira se retirou para o litoral
norte, permanecendo por quatro meses na tribo do chefe Cobra Azul, mantendo relações
pouco amistosas com aquele selvagem, como vemos nas próprias palavras de Figueira (1887,
p. 28): “neste tempo q‟ gastei em casa do cobra azul não me faltarão purgas e tragos bem
amargosos q‟ o s.
or
foy servido de me exercitar em penitencia de meus pecados, alguns
referirei p.
a
gloria do S.
or
e salvação de meus p.
os
e irmãos”.
Ao regressar daquela aldeia, o religioso chegou à barra do Rio Ceará, vindo
acompanhado por rios indígenas e ali permaneceu por alguns dias realizando a missão
apostólica e organizando os índios em pequenas aldeias. Ao receber um comunicado de
Jerônimo de Albuquerque, avisando que um barco o iria buscar, preparou-se para a viagem,
partindo no dia 19 de agosto de 1608. Teve, porém, que permanecer por 17 ou 18 dias em um
porto, a meia légua de distância do Rio Ceará, porque a embarcação encalhara e não podia
sair por causa dos ventos contrários. Embarcaram, enfim, o padre Figueira e cerca de 160
nativos para o Rio Grande do Norte, sendo ali recebidos, com contentamento pelo então
capitão-mor daquela capitania Jerônimo de Albuquerque e pelo tenente Antonio Ferreira.
Decorridos alguns dias, regressou a Pernambuco. No ano seguinte, conforme datação de 26 de
março de 1608, data, presumivelmente, incorreta, o próprio Figueira escreveu a Relação do
Maranhão para o superior da Congregação Pe. Cláudio Aquaviva.
O documento intitulado Relação do Maranhão é considerado o primeiro
documento sobre a história do Ceará. Sua leitura revela muito sobre os primeiros habitantes
de nossa terra, seus costumes, suas crenças, as condições sociais etc. Os aspectos da
toponímia cearense como as serras, os rios, as manifestações metereológicas são descritos
com detalhes, pelo menos por onde passou a comitiva. Tudo isso nos mostra o panorama do
espaço geográfico do século XVII que, posteriormente, seria o atual Estado do Ceará.
Foi frustrada a tentativa de fixar as bases da colonização portuguesa no Ceará
pelos jesuítas, mas de todo não perdidos o esforço e a bravura dos missionários que, movidos
pela paixão evangélica e pelos ardores da missão, enfrentaram o desconhecido sertão e as
tribos rebeldes sem armamento ou aparato militar. Conforme Leite (1940), a expedição não
fracassou de todo, pois apesar da frustrada chegada ao Maranhão, ficou o conhecimento e a
experiência que influenciaram outras tentativas.
Mas se fracassaram todas no seu efeito imediato, de chegar ao Maranhão, não
fracassaram na experiência que ficou: o conhecimento das terras e dos povos, as
dificuldades e possibilidades da emprêsa. Dêsses sacrifícios fica sempre uma
154
experiência positiva que é, depois, factor decisivo para novas expedições. (LEITE,
1940, p.26).
É importante, pois, a todo cearense conhecer e respeitar os nomes de Francisco
Pinto e de Luiz Figueira. O primeiro deixou seu sangue embebido na terra e seu corpo
sepultado na Serra da Ibiapaba. O segundo deixou-nos a memória viva de uma longa viagem
atormentada pelas intempéries naturais, pelas fadigas de uma terra inóspita e pelo medo da
violência e intolerância dos silvícolas inimigos. Seguindo o pensamento de Araripe (2002),
repetimos aqui suas palavras amáveis em relação ao Pe. Francisco Pinto.
[...] o evangélico missionário Francisco Pinto, benemérito sacerdote, a quem
devemos máxima estima e veneração, como aquele que deixou impressa na memória
dos selvagens íncolas do nosso solo a idéia consoladora da religião, e santificou com
o sacrifício do seu sangue o intróito da civilização em nossas brenhas. A recordação
suave do apóstolo da palavra permaneceu na mente dos midos e suspeitosos
aborígenes como imagem de candura e amizade. (ARARIPE, 2002, p.167).
Ao padre Luiz Figueira devemos o relato genuinamente introdutório da
historiografia cearense com sua Relação do Maranhão, de 1608 ou 1609. Além de Cartas e
Memórias, há a sua obra de maior e justa nomeada, como diz o padre Serafim Leite, que é a
Arte da Língua Brasílica, uma gramática da língua tupi-guarani escrita em 1619 ou 1620.
O vasto território que separava o Maranhão de Pernambuco e de suas duas
capitanias subalternas, Paraíba e Rio Grande do Norte, ficava mais uma vez sem a presença
lusitana, visto que seus únicos ocupantes eram as dispersas tribos nativas. Após quatro anos
de missão religiosa, nova empreitada teve início, desta vez, gerenciada pelo 9
o
Governador
Geral do Brasil, Diogo de Menezes e capitaneada pelo jovem português Martim Soares
Moreno.
Coube definitivamente a Soares Moreno o tulo de conquistador do Ceará, em
1612. Mais de um século passado da chegada ao Brasil dos descobridores, mais de um século
de história e de desenvolvimento de outras capitanias, o Ceará, enfim, começou a dar os
primeiros passos rumo ao desenvolvimento.
Soares Moreno chegou em 1612 acompanhado de um clérigo e de seis soldados,
como informa Cruz Filho (1987). Fundou um forte na Barra do Rio Ceará com o nome de
São Sebastião e uma ermida dedicada à Nossa Senhora do Amparo. As três tentativas de
colonização dessa capitania tiveram como ponto de chegada a barra do Rio Ceará. Martim
Soares Moreno havia passado por aqui na expedição de Pero Coelho de Sousa em 1603,
155
com 17 anos de idade. Para Galanti (1911), a vinda de Soares Moreno naquela expedição era
para aprender a língua dos nativos e estudar os seus costumes.
Afim de apprender a lingua e estudar os costumes dos naturaes, acompanhára
Martim Soares Moreno a expedição de Pero Coelho, mas longe de tomar parte nas
vexações feitas aos indios, grangeára de tal modo a estima e amor geral, que
Jacaúna, o tratava de filho. (GALANTI, 1911, p.389).
Esse conhecimento dos costumes, dos usos e da língua dos índios possibilitaram,
de fato, uma boa aceitação do colonizador português entre os nativos, que ultrapassou os
limites da história real e adentrou as ginas da literatura romântica. Lembremos, por
exemplo, o romance Iracema, em que José de Alencar cria a imagem do guerreiro branco
conquistador do Ceará lutando ao lado dos potiguaras para expulsar os inimigos destas terras.
Tornou-se a paixão de uma nativa e desse idílio gerou Moacir, o primeiro habitante branco do
Ceará, conforme a lenda.
4.3.1 Os Primeiros Habitantes da Capitania do Ceará
Conforme já dito, o primeiro documento que trata da história do Ceará é o valioso
diário de viagem do padre Luiz Figueira, que relata o seu traslado. No documento, o religioso
algumas informações sobre as tribos que viviam por aqui. Além dos 60 índios vindos na
expedição, outros andavam espalhados pelo litoral e sertão do Ceará, por onde a comitiva
passou. Ao entrarem os missionários nessa Capitania, já encontraram alguns nativos dispersos
nas várzeas do Jaguaribe se refugiando dos portugueses para não se deixarem escravizar.
Chegando às margens do Rio Curu, foram os viajantes muito bem acolhidos por cerca dos 50
ou 60 indígenas que encontraram aposentados sob a chefia de Acajuy, conforme palavra do
próprio Figueira: “Os Indios q‟ aquy achamos serião p. todos 50 ou 60 almas ficarão
intento de ajuntarem alguas reliquias dos seus q‟ ãdaõ espalhados p. esses matos”
(FIGUEIRA, 2008, p. 101).
No intervalo entre o rio Curu e a chapada da Ibiapaba, Figueira não dá notícia de
nenhuma tribo. Na Ibiapaba, relata apenas sobre duas aldeotas que permaneciam ali em
estado de bastante pobreza. As mais de setenta aldeias que existiam anteriormente haviam
fugido para o Maranhão por causa da expedição de Pero Coelho. A primeira aldeia aonde
chegaram, contava somente com vinte casais. A outra, mais acima da serra, para onde se
mudaram, tinha cinquenta ou sessenta casais e era chefiada por Diabo Grande. Permaneceram
156
nela por quatro ou cinco meses realizando a missão catequética. Prosseguindo um pouco mais
os padres se instalaram mais acima, em um terreno onde prepararam roças e casas quando
foram atacados pelos Tapuias, índios não Tupis, amigos dos franceses do Maranhão. Nesse
embate, padre Francisco Pinto morreu a pauladas, tendo o crânio quebrado, e com ele
morreram também dois índios amigos. Luis Figueira fez o sepultamento dos corpos próximo
ao local da tragédia, onde provavelmente se situa hoje a cidade de Ubajara.
isto fui e me deci da serra trazendo diãte de my o corpo do p
e
., e ao pe da serra o
enterrey, fazendolhe hu moimento de pedras sobre a sepultura pera sinal della,
pondolhe tãbem hua cruz á cabeceira, mandei logo buscar os dous indios, hu delles
estava morto, o outro morreo ao dia seg
te
. ambos os fiz enterrar junto do p
e
. p.
cuja defensaõ morreraõ, hu d ehua parte outro da outra ficando elle no mei.
(FIGUEIRA, 1887, p. 125).
Após os funerais, Figueira deixou a serra e dirigiu-se para o litoral, desistindo da
viagem ao Maranhão. Por quatro meses viveu em uma aldeia próxima ao mar chefiada por
Cobra Azul. O tempo que passou ali viveu sobressaltado com medo de uma reação inesperada
daquele chefe que não merecia sua confiança. Fala várias vezes do índio com sentimento
negativo, como nessa passagem: “Este negro cobra azul he grãde feiticeiro e valentão dõde
lhe nace ser soberbss
o
. e falar sempre cõ grãde arrogãcia” (FIGUEIRA, 1887, p. 128).
O missionário não muitos detalhes da tribo do Cobra Azul nem fala de outras
do litoral norte. Quando regressou para a barra do Rio Ceará, enviou recados para alguns
índios que habitavam naquelas várzeas com o intuito de buscá-lo. Chegando à aldeia foi
recebido com grande alegria, pois os nativos o esperavam com ansiedade. Tratou Figueira de
agrupá-los, pois viviam escondidos nas brenhas com medo dos Tapuias e dos brancos.
Chegamos a outra aldea qesta junto do rio chamado Ceara vinte e cinquo legoas
alem de jagoaribe, receberaõ nos com festas, caminhos feitos, emboscadas, tamboris
ec. [...] e hu velho me veio visitar e me disse quãdo oje vinhas não te pude yr fallar
p. qestava chorãdo de alegria de ver agora juntos por amor de ty a estes meus
parentes q‟ ate agora ãdavão pellas covas e brenhas escondidos mas agora so nos
ficão as saudades q temos de nossos f
os
. e filhas q‟ os brãcos nos levarão
pedindome cõ isto lhos fizesse ir de ca. (FIGUEIRA, 1887, p. 135).
Ficando na barra por algum tempo, Pe. Figueira reuniu vários índios de outras
tribos que, segundo ele, dos muitos que viviam no sertão do Jaguaribe, agora restavam
oitocentas almas em sete ou oito aldeotas. Organizou esses índios em uma aldeia e a
denominou de São Lourenço, levantou uma formosa cruz de cedro e ali os deixou em
segurança.
157
Essa foi a intenção do padre ao cumprir seu papel nas terras cearenses, catequizar
os nativos e cumprir as orientações da Companhia de Jesus. Até quando, porém, ficaram
aqueles remanescentes em segurança na aldeia de São Lourenço? Sabemos que muitas lutas
se travaram, posteriormente, e muito sangue dos nativos foi derramado nas pugnas contra os
colonizadores na ocupação dos vastos campos cearenses, para se introduzir neles as grandes
fazendas de criação de gado.
Vemos no relato do sacerdote referências a poucas tribos. Bem sabemos que seu
percurso pelo Ceará aconteceu na transposição do Rio Jaguaribe, entrada e caminhada pelo
litoral até mais ou menos ao que corresponde hoje ao município de Paracuru, depois seguiu
viagem pelo interior, transpondo a serra de Uruburetama, o Rio Aracatiaçu e, por fim, a
Ibiapaba. Depois desceu para o litoral, provavelmente para a região de Camocim. Nesse longo
trajeto ele fala de poucas aldeias e alguns índios perdidos, escondidos nas matas. Fala também
dos Tocarijus, grupo dos Tapuias, ou seja, índios de língua travada que não pertenciam à
nação Tupi. Aqueles eram inimigos e se encontravam em algumas regiões do Ceará e
Maranhão.
No interior cearense habitavam vários outros grupos. Araripe (2002) apresenta um
quadro das tribos que aqui viviam: os Anassés, os Tremembés, os Areriús, os Tabajaras, os
Caratiús, os Inhamuns, os Quixarás ou Quixadás, os Jucás, os Quixelôs, os Calabaças, os
Canindés, os Genipapos, os Cariris, os Icós e os Cariús. Sua ocupação compreendia a
extensão geográfica do atual Estado do Ceará, desde a Ibiapaba, na zona norte, passando pelo
litoral, Vale do Jaguaribe, Sertão dos Inhamuns até o Cariri, no sul do Estado.
Cruz Filho (1987) ressalta que as tribos indígenas encontradas pelos portugueses
no Brasil são agrupadas em oito grandes grupos: Tupi-Guarani, Gaycuru, Maipures ou Nu-
aruaks, Cariris, Gés, Carabibas, Panos e Betoyas. Desses, apenas dois grupos ocupavam o
território do Ceará, segundo o autor: os Tupis e os Cariris. Os Tupis se concentravam no
litoral cearense e as zonas mais férteis do interior. Vários povos que pertenciam a esse grupo
tinham algo em comum, pois se caracterizavam pela unidade da língua, pelos costumes e pelo
ânimo belicoso. Praticavam a agricultura de forma incipiente, plantando mandioca, milho e
algodão. Os Tupis falavam a língua geral e o grupo Cariri a língua travada.
Os Cariris habitavam primitivamente o litoral cearense, mas na época da
colonização portuguesa viviam espalhados em várias tribos pelo interior, principalmente na
Chapada do Araripe. Esses dois povos ocupavam o território cearense do litoral ao sertão e se
subdividiam em mais de sessenta tribos, consoante o historiador. Os Tabajaras habitavam a
Ibiapaba e regiões vizinhas; os Potiguaras concentravam-se no litoral e eram tribo guerreira
158
e valente, os Tocarijus também ocupavam faixas da serra da Ibiapaba; os Tremembés, na
ribeira do Acaraú.Vale ressaltar que ainda existe esse povo no litoral de Itarema, precisamente
na praia de Almofala e outros municípios vizinhos. Os Anacés e Jaguaribaras, ocupavam a
região norte do vale do Jaguaribe, serra de Baturité e Mundaú; os Paiacus ou Pacajus, no
baixo Jaguaribe; os Quixelôs, na vizinhança da atual cidade de Iguatu; os Canindés e
Genipapos ocupavam os sertões de Quixeramobim, Banabuiú e Vale do Curu; os Carius
vagavam pelo riacho desse mesmo nome, na região centro sul do Estado; os Icós nas margens
dos Rios Salgado e Jaguaribe, no centro sul; os Jucás nos sertões dos Inhamuns; os Calabaças
também às margens do Rio Salgado; e os Cariris, na Chapada do Araripe, extremo sul do
Estado.
O historiador Aragão (1994) apresenta-nos um quadro mais amplo das tribos
cearenses com cerca de cinquenta e seis grupos incluindo os apresentados por Araripe (2002)
e outros que tiveram pouca expressividade. Apresenta a etimologia dos seus nomes, a história
e o local onde viviam. Relacionamos aqui os nomes dos povos citados ainda não mencionados
anteriormente e, conforme o historiador, são esses: Acamanhaçus, Acoançus, Anaperus,
Apanajes, Apuiarés, Aquijiros, Arerius, Baiquis, Cabindas, Candandus, Caratius,Guaiús,
Guariús, Hunons, Icozinhos, Irapuás, Jaburus, Jaguaruanas, Jaibaras, Janduís, Janipabucus,
Javamambés, Javés, Jenipaboaçus, Juremas, Juritis, Jururus, Mandiavés, Naporás, Paliés,
Panatiquaremas, Parnamirins, Pergas, Pimpão, Quipapaus, Quixarás, Quixariús, Quixelôs,
Quixerés, Xirós e Xocós.
Como vemos muitas tribos que não são mencionados por alguns historiadores,
provavelmente por terem se perdido no tempo as informações referentes a elas e,
principalmente, os seus vestígios. Quase todas foram dizimadas no processo de ocupação das
terras cearenses. no século XIX, em 1863, um presidente de província deu por extinta a
presença indígena no Ceará, contudo, alguns grupos sobreviveram e, atualmente, se
reestruturam e constroem suas identidades.
A partir de 1992, conforme Silva (2003), um novo capítulo da história indígena
começou a ser escrito no Ceará, quando os povos remanescentes se organizaram em busca de
reestabelecer sua identidade e suas terras. Hoje alguns grupos lutam pela sobrevivência, pelo
reconhecimento e pela preservação da cultura. Ainda não são todos reconhecidos oficialmente
pela FUNAI os índios que habitam o Estado do Ceará no presente momento e que lutam por
isso. Podemos relacionar as seguintes nações: Anacé, nos municípios de São Gonçalo do
Amarante e Caucaia, região metropolitana de Fortaleza; Gavião, em Monsenhor Tabosa, na
região dos Inhamuns; Jenipapo-Canindé, em Aquiraz, próximo a Fortaleza; Kalabaça, em
159
Cratéus e Poranga, no sertão de Crateús; Kanindé, em Aratuba e Canindé, que compreende
sertão central e maciço de Baturité; Pitaguary no município de Maracanaú e Pacatuba, na
região metropolitana; Potyguara nos municípios de Monsenhor Tabosa, Novo Oriente e
Tamboril; Tabajaras em Crateús, Monsenhor Tabosa, Poranga, Quiterianópolis e Tamboril;
Tapeba em Caucaia; Tremembé em Itarema, Acaraú e Itapipoca, no litoral oeste; Tubiba-
Tapuia em Monsenhor Tabosa
43
.
A luta dos povos indígenas do presente segue o percurso histórico de garantir
espaço físico de sobrevivência e conservação da memória dos antepassados. Essa luta são
capítulos de história a se constituir.
4.3.2 Os Holandeses no Nordeste e no Ceará
Voltemos, pois, ao passado, ao princípio de nossa colonização, quando Martim
Soares Moreno, em 1612, é nomeado Capitão-mor da Capitania do Ceará e definitivamente é
considerado o seu fundador. Em 1613 foi combater os franceses no Maranhão, deixando o
forte de São Sebastião sob os cuidados de Estevão de Campos. Dessa viagem funda em
Jericoacara o fortim de Nossa Senhora do Rosário. Depois, perdeu-se da expedição, sendo
capturados pelos franceses, permaneceu preso por vários anos, na França. Após conseguir se
livrar da morte, retorna ao Ceará, pobre e individado. No regresso ao Brasil, em 1621, deu
início ao desenvolvimento da terra por meio da criação de gado e da cultura do açúcar,
conforme palavras de Cruz Filho:
Aportado Soares Moreno, em 1621, ao Ceará, teve jubilosa recepção por parte dos
indígenas e deu princípio à criação de gado vaccum e cavallar, bem assim à cultura
da canna de assucar e outros producto agrícolas. Com Moreno vieram diversos
parentes e famílias conhecidas, que constituíram o nucleo primitivo do povoamento
das margens do rio Ceará (CRUZ FILHO, 1987, p. 48).
No governo de Felipe III de Portugal (IV da Espanha), os holandeses fizeram sua
primeira incursão no Brasil. Chegando à Bahia em 1624, dominaram a pouca resistência e se
apoderaram de algumas capitanias da colônia. Naquele mesmo ano, ocorreu a instalação do
43
Esta relação de povos indígenas que vivem atualmente no Ceará está em um livreto publicado em novembro
de 2000 intitulado Povos Indígenas do Ceará: Organização, memória e luta. Foi a publicação organizada por
um grupo de estudiosos da questão indígena no Ceará. Os grupos apresentados estão em várias regiões do Estado
e alguns esperam ser reconhecidos, outros, como Tremembés, já têm suas terras demarcadas.
160
Estado do Maranhão, formado pelas capitanias do Pará, Maranhão e Ceará, por meio da Carta
Régia de 1621, desmembrando-se, assim, o Estado do Brasil, que ficou dividido em dois.
Em 1625, foram rechaçados os holandeses da Bahia para a Europa de maneira
decepcionante. Em 1630, nova invasão ocorreu na costa do Nordeste, desta feita em Olinda e
Recife. Soares Moreno foi convocado para o combate no qual obteve grande reputação. Sua
ausência no Ceará levou a população ainda incipiente, a desarmonizar-se, chegando quase a
dissolução. Essa Capitania era apenas um pequeno forte com algumas casas de portugueses e
de nativos, conforme descreve Oliveira (1995, p. 25) com as seguintes palavras:
A Capitania do Siará, como então se chamava, não passava de um fortim erguido
por Martim Soares Moreno na barra do rio Ceará, no local onde outrora existira o
frágil reduto de São Tiago, fortificação de madeira construída à época de Pero
Coelho de Sousa. [...] Ao lado do forte havia uma pequena ermida, sob a invocação
de Nossa Senhora do Amparo, e, ao redor, espalhava-se a pequena colônia nascente,
simples aldeamento constituído por choças e pequenos quintais, à margem direita do
rio Ceará, perto de sua foz [...].
O perigo de sucumbir às frágeis colunas da então fundada Capitania era iminente,
pois vários fatores contribuíam para o seu estado de ruína, como as condições de comunicação
com o Maranhão que dificultavam os socorros. O Cea perdeu seu pouco valor com a
ocupação do norte do Brasil e a criação do Estado do Maranhão, conforme palavras de Abreu
(1899, p. 25):
Com a ocupação do Amazonas, perdeu o Ceará o pouco valor que lhe reconheciam.
Não era mais base de operação; convinha apenas conservar alguns fortins por causa
da navegação perigosa daquelle trecho do litoral; houve aa Idea de evacual-o;
annexo ao estado do Maranhão, logo que este foi creado, não podia communicar-se
com elle durante parte do anno, por causa dos ventos que sopram numa só direcção;
pelo mesmo motivo não podia communicar-se com Pernambuco, noutra temporada.
Além do fator importante da falta de auxílio das capitanias vizinhas, havia
antipatia e intolerância dos nativos com os lusos. Este último motivo levou o chefe indígena
Amanaí (Algodão) a propor uma aliança com os holandeses para expulsar os portugueses do
Ceará. Aceita a proposta, os invasores estrangeiros direcionaram as embarcações rumo ao
Ceará.
Em 1637, os holandeses chegam à enseada do Mucuripe e marcham para o forte
de São Sebastião na foz do rio Ceará. Atraídos pela promessa de encontrar salinas e minas de
prata, os flamengos venceram com facilidade a ocupação do forte e passaram a ser senhores
dessas terras. Essa primeira fase da ocupação neerlandesa na costa cearense durou de 1637 a
1644, quando os indígenas atacaram e destruíram as guarnições holandesas.
161
Após um período de relativa calma, nova expedição de holandeses chegou ao
Ceará em 1649, sob o comando de Mathias Beck. Apoderaram-se da colônia e construiram o
forte de Shoonenborch, à margem esquerda do riacho Pajeú que, posteriormente, com a
reconquista portuguesa, passou a se chamar forte de Nossa Senhora da Assunção. Está
localizado à frente da catedral metropolitana de Fortaleza.
Com a expulsão dos holandeses de Pernambuco, em 1654, fica livre também o
Ceará do julgo flamengo. Essa capitania passou a ser subalterna à de Pernambuco, sendo
nomeado capitão-mor do Ceará Álvaro de Azevedo Barreto.
Após o longo período conflituoso de invasões, o povoamento do Ceará teve início
de forma mais eficaz, como vemos, na segunda metade do século XVII. Segundo Cruz Filho
(1987), o primeiro branco que se instalou depois do período de conflitos foi a família do
capitão-mor João de Melo de Gusmão, em 1663. A ocupação ocorreu aos poucos pelo litoral e
margens dos rios, por meio de cartas de concessões das terras dadas pelo governo ou o
sistema de sesmarias, uma forma de incentivo para que nos vastos territórios fossem
instaladas as fazendas para o desenvolvimento da criação de gado.
Araripe (2002) informa que a primeira data de sesmaria do Ceará é de 1663; nesse
ano foi concedida carta de sesmaria a Felipe Coelho. Na parte litorânea foi logo distribuída as
terras aos sesmeiros, no interior, o processo foi mais demorado. A extensão doada comumente
compreendia três léguas de comprimento com uma légua de largura, mas algumas poderiam
chegar até dez léguas de extensão.
Duas correntes de ocupação adentraram o Ceará. Uma vinda da Bahia e Sergipe,
pelo sul, seguiu o percurso do rio Jaguaribe e chapada do Araripe. A outra veio de
Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte pelo leste, entrando no litoral e chapada do
Apodi. As ribeiras dos rios e as encostas das montanhas são as áreas de maior concentração de
pessoas. As primeiras vilas a se constituírem mapeiam o percurso das entradas dos
colonizadores. Estão no litoral, Aquiraz, Fortaleza e Aracati, e, às margens dos rios, onde se
situam Icó, Russas, Sobral e Granja. Nos sopés das serras foram fundadas Crato, Baturité,
Viçosa e Guaraciaba do Norte. No sertão também se desenvolveram Quixeramobim e Tauá,
que ainda mantêm a tradição de grandes bacias leiteiras do Estado. Não é à toa que na leitura
dos autos a maior concentração de crimes estão nas vilas do litoral como Fortaleza, Aquiraz e
Aracati ou na região jaguaribana, no caso do Icó.
Durante o longo período de ocupação do território cearense, muitos conflitos
ocorreram entre brancos e índios para se impor a cultura branca e os primeiros passos da
economia do Ceará que, aos poucos, foi se implantando com base na criação de gado. Para se
162
concretizar esta conquista muito sangue foi derramado e muitos nativos extintos do caminho
que impedia o pleno controle da terra, principalmente no interior, como ressalta Cruz Filho.
Difficultava o avanço do povoamento do interior a continua hostilidade das tribos
selvagens que senhoreavam o território, oppondo-se, tenazmente, à invasão dos
exploradores. Para reagir contra taes entraves, foram organizadas diversas bandeiras,
compostas de homens armados, que fizeram grande morticínio entre os indigenas.
(CRUZ FILHO, 1987, p. 53).
Durante os séculos XVII e XVIII, foi o território do Ceará um grande campo de
guerra entre os brancos e nativos para se impor o processo definitivo de seu povoamento. Na
luta, os índios que não morreram tornaram-se escravos dos fazendeiros e foram obrigados ao
trabalho forçado nas fazendas. Várias vezes se refugiavam nas matas e atacavam os rebanhos,
matando-lhes muitas reses e invadindo as vilas, o que causavam grandes danos. Abreu (1899,
p. 29) resume a real situação com as seguintes palavras:
Findo o seculo XVII, estava todo Ceará devassado, os índios uns reduzidos a
aldeias, outros vivendo em paz, ao lado dos colonos. A criação de gados era a
principal occupação dos habitantes; a agricultura rudimentar reduzia-se a producção
dos gêneros de consumo local, pois outros não pagariam as despezas de transporte.
Sob o combate violento que extinguiu grande quantidade de índios constituiu-se
a identidade do Brasil e, no Ceará, não podia ser diferente. Dos olhares modernos estas
práticas não escapam da condenação, visto, porém, pela óptica da época, era um processo
muito normal, pois a terra precisava ser explorada para gerar rendimentos à Coroa e demarcar
o território que pertencia aos seus donos, ou seja, aos portugueses, que foram os primeiros
aventureiros a aportarem aqui. Era necessário deixar isso claro para outras nações que
cobiçavam a posse do Brasil, pois através do domínio pela força foi possível marcar
presença definitivamente e garantir aos lusos o pleno domínio.
4.3.3 Sobre a Economia do Ceará
As terras cearenses não eram apropriadas para o cultivo da cana-de-açúcar, a
exemplo de outras capitanias vizinhas. Necessário era investir em outros recursos e o gado foi
o elemento mais apropriado para fazer florescer as bases econômicas do Ceará.
Todas as espécies de gado foram trazidas para o Brasil pelos primeiros
colonizadores, assim como o cultivo da cana-de-açúcar e de outros cereais. No Ceará, com a
distribuição das terras entre os sesmeiros, o gado ocupou o primeiro lugar nos indicadores
163
econômicos. Os vastos campos tornaram-se celeiros de gados vacuns, cavalares, muares,
ovinos etc. No início do século XVIII grandes rebanhos se esparramavam pelo sertão,
principalmente nas margens do Jaguaribe em que havia fazendas com até 14.000 cabeças de
gado.
A criação de gado constituía uma indústria lucrativa e suas carnes alimentavam os
senhores de engenhos do litoral. As indústrias de charquedas se intensificaram para que a
carne salgada fosse enviada à metrópole. Dessa indústria fez-se desenvolver a vila de Aracati,
que era a mais rica e opulenta do Ceará. Studart (2004) apresenta um relatório do Governador
Bernardo Manuel de Vasconcelos, logo após a independência do Ceará, em que ressalta a vila
de Aracati como a que ocupa o primeiro lugar, conforme as palavras seguintes:
Das vilas e povoações da Capitania estabelecidas pelos europeus e seus
descendentes a que tem primeira preferência é a vila de S. Cruz de Aracati, situada
nas margens do rio Jaguaribe, aonde a oportunidade da barra estabelece a principal
feitoria das carnes-secas e morrem todos os anos para cima de cinqüenta mil reses,
se embarcam mais de vinte mil arrobas de algodão. (STUDART, 2004, p. 494).
Outros produtos do gado mereciam ser industrializados para aumentar os lucros,
como é o caso do couro. O comércio de couro na colônia, principalmente no Ceará, teve tanta
importância que o governador dessa Capitania, Luiz da Mota Feo e Torres, em 1794, ordena
por meio de uma carta ao senado da câmara da Vila do Io cultivo de couros de animais
pequenos para um novo comércio que se abria na colônia. Essa era uma preocupação régia
que resolvia problemas econômicos do reino. Vejamos o documento que segue:
O Principe Nosso Senhor querendo promover por todos os modos a felicidade dos
seos Pouos naõ deixa delembrarse dos meyos que podem conduzir a esse fim
animando eextendendo oComercio deste estado; edeque pode ser domesmo
comercio hum novo ramo aexportaçaõ para o Reino athe agora desprezada dos
couros miudos, assim como de Antas garrotes mamoens Bizerros, depouca idade
emesmo daqueles que ja emcabelados setiraõ do ventre das vacas efinalmente todo
o genero de Pelles miudas que podem servir aos mesmos uzos havendo a prevençaõ
deos salgar damesma forma que nas offecinas dascarnes sesalgaõ os de Boy pois
desse modopodem servir para sefabricarem nos cortumes do Reino, em cujo
consumo sefazem avultadas dispesas em beneficio dos estrangeiros podendo
facilmente vir a recahir esta utilidade nos vassalos Portugeuzes por estes motivos
pois e em consequencia da Real Ordem que Sua Alteza Real acaba de derigirme
Ordeno e recomendo muito vossas merces que nesse destrito animem com todo o
disvello o beneficio dos indicados couros recomendando expecialmente atodos os
senhores deFazendas degado egeralmente atodas as pessoas do mesmo destricto por
cartas Sirculares, ou Editais que poderfazer publicar que naõ desprezem antes
com omayor cuidado aproveitem os tais couros dando lhes o necessario beneficio
do mesmo modo que secostuma dar aos deBoy salgados na certeza deque no
Aracaty terâ oMestre de campo Pedro Joze daCosta Barros dinheiros pronptos para
os pagar pello seo justo presso para serem depois transportados para o Reino sendo
deesperar que estabelecido este comercio venhaaumentarse oseo primeiro valor ou
presso//// Deos guarde aVossas merces Villa daFortaleza deNossa Senhora da
Assumpçaõ emvinte esinco deOitubro demil cette centos enoventa equatro annos//
164
Luis da Motta Fêo eTorres// Senhor Juis Ordinario emais officiais daCamera daVilla
doIcô.
(APEC, 1780, Livro 85, fl. 244v a fl. 245r).
Vale ressaltar que os ofícios ou meios de vida de muitos moradores das vilas
cearenses relacionados nos Autos de Querela são as fontes de recursos geradas pela criação de
gado. Os ofícios de seleiro, de curtidor de couro e, principalmente, de vaqueiro são fontes de
renda para a população, além, é óbvio, dos rebanhos que muitos mantinham de gados grossos
e miúdos. Abrimos aqui um parêntese para fazermos uma correlação do nosso estudo da
língua com esta viagem na História e para dizer que a prática de registrar os ofícios
constituem várias unidades fraseológicas nos autos de que nos ocupamos. Portanto, a leitura
histórica se torna imprescindível para a leitura linguística. Voltemos, pois, à nossa viagem no
passado cearense.
A lavoura também foi fonte de nossa economia, mas no princípio não era meio de
fazer fortuna, como registra Araripe (2002, p.138), pois era a criação de gado que dava
recompensa ao trabalho porque gerava lucros. “Eis o motivo porque a indústria pastoril
progrediu, a capitania cobriu-se de gados e a indústria agrícola foi minguada e estacionária”.
A cultura da cana-de-açúcar não teve êxito nas terras cearenses; como dito antes,
o gado tomou conta dos campos. Mais tarde, a cultura do algodão foi introduzida, a qual deu
ânimo por algum tempo à economia, que quase sucumbira de todo. Neste cenário camponês e
de pouco desenvolvimento começaram a florescer agrupamentos de pessoas, sendo necessário
tolher as liberdades abusivas, implementando-se as instituições com regimentos e poderes
para administrar a ordem e os ensinamentos. Surge, portanto, a necessidade de criação das
primeiras vilas com suas respectivas câmeras, tendo autoridade para punir crimes, aplicar a
justiça e tomar algumas decisões em nome do Rei.
4.3.4 As Primeiras Vilas Criadas no Ceará
Após a expulsão dos holandeses do Nordeste, a Capitania do Ceará foi
desmembrada do Maranhão e passou a ser subalterna à de Pernambuco por um longo período,
de 1656 a 1799.
Até o último ano do século XVII, não havia nenhuma vila no Ceará. A população
era ainda muito insignificante e vivia desagregada, sem uma instituição organizada. Segundo
Abreu (1899), no ano de 1696 o capitão-mor Pedro Lelou dá notícias dos números dos
habitantes, que antes eram só os gentios domesticados, mas naquela data, já havia mais de 200
165
moradores não índios, sendo necessários oficiais e ministros que decidissem as dúvidas e
sentenciassem as causas.
A Ordem Régia que determina a criação de uma vila no Ceará é de 13 de fevereiro
de 1699, ficando sob sua jurisdição todo o termo da capitania, isto é, toda a extensão
geográfica do Ceará, correspondendo a um único município, no sentido atual. Esta Ordem
está publicada na coleção do Barão de Studart e na obra que aqui nos servimos. Abaixo
reproduzimos o documento.
Governador da Cap
a
. de Pernambuco. Havendo visto o que informaste (como se vos
tinha ordenado) sobre a formaque ha de governo no Ceará, representando-me ser
conveniente e acertado mandar se elejão officiaes da câmera, juizes ordinarios,
como ha no Rio Grande para assim se atalharem parte das insolencias, q
costumam cometter os capitaes mores, e se administrar melhor a justiça, dando-se-
lhe tambem o nome de villa ou cidade àquella povoação por o não ser ainda, e
consideradas as vossas rasões e que será muito conveniente o q‟ nellas apontaes
Fui servido resolver q‟ se crie em villao Ceará e que tenha officiaes de camara e
juiz ordinario na forma q‟ até mandei praticar com muitos prejuisos q‟ até agora se
experimentavam por falta de terem em seu governo aquelles mordores do Ceará
modo de justiça; do que vos aviso par q‟ nesta conformidade ponhaes em execução
o que por esta ordeno. Scripta em Lisboa a 13 de Fevereiro de 1699. Rei.
(STUDART, 2001, p.111).
No dia 25 de janeiro de 1700, no Iguape, foi eleita a primeira câmera do Ceará,
fundando-se, assim, a vila de São José de Ribamar. Foram escolhidos dois juízes ordinários,
Manuel da Costa Barros e Cristovam Soares de Carvalho; três vereadores e um procurador.
Em 20 de abril de 1701 a vila foi transferida para a barra do rio Ceará. Em outubro de 1708
foi transferida da barra do Ceará para o forte, por decisão da câmera, local onde está situada
hoje a cidade de Fortaleza. Em 30 de janeiro de 1711, uma Carta régia mandou transferir a
vila de São José de Ribamar que estava junto à Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção,
para Aquiraz. Em 27 de junho de 1713 a vila foi transferida. O povo do forte, não satisfeito
com a resolução, reivindicou a sede da vila. Para atender aos reclames da população, foi
instalada a vila da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção em 13 de abril de 1726, por
Ordem gia. Foram eleitos juízes ordinários e vereadores. Era governador da Capitania
Manoel Francez e foi ele o primeiro a desenhar o mapa da incipiente vila. A ata de fundação
da nova vila é reproduzida em Studart (2001, p. 174), da qual apresentamos aqui apenas uma
parte.
Por quanto S. Magestade que Deus Guarde me manda por sua real ordem que haja
uma nova villa n‟esta Fortaleza de N. Senhora d‟Assumpção do Ceará Grande para
augmento d‟esta capitania e defensa da dita real ordem, fundo e creio esta villa em
nome d‟El- Rei Nosso Senhor, para que nomeio Vossas Mercês por juiz e mais
officiaes do Senado da Camara, para que como bons e fieis vassalos administrem
166
justiça aos moradores d‟esta villa e cuidem em augmento e do bem comum,
guardando em tudo as ordens e fiel vassalagem do dito Senhor [...]
Fundadas, pois, as duas primeiras vilas no Ceará, iniciou-se o processo de
povoamento urbano, apesar de que as condições e a realidade de urbanismo não condizem
com os conceitos modernos, é obvio. O vasto território no interior da capitania ainda
continuou deserto por mais tempo. Era preocupação das autoridades agregar as pessoas em
vilas, pois o isolamento expunha a população ao perigo de aventureiros e bandidos que
vagabundeavam e assaltavam a população, aumentando o número dos crimes.
Em tempos anteriores, houve o aldeamento dos indígenas como forma de
arrebanhar os nativos dispersos incutindo neles a catequese dos jesuítas. Cruz Filho (1987)
notícia da chegada dos jesuítas, em 1721, para o início da catequese. Assim se formaram as
primeiras aldeias, como Arronches (Parangaba), Paupina, Messejana, Soure (Caucaia),
Aracati e Viçosa. Fundaram os hospícios da Ibiapaba e de Aquiraz. Depois fundaram outros
aldeamentos indígenas, como o de São Antonio de Pitaguari, Pajuçara, Paiacu, Almofala,
Monte-mor o velho (Pacajus), Quixelô e Crato. A missão jesuítica foi importante para o
povoamento do Ceará e para o conhecimento dos índios, desde as práticas agrícolas, até a
religião e a língua, ressalta o historiador.
Os catechistas, em todos os pontos em que aldearam os silvicolas e estabeleceram
missões, prestaram elevantes serviços à causa da civilização, ministrando aos pobres
íncolas conhecimentos práticos de lavoura, ensinando-lhe as artes mecânicas e
iniciando-os nos rudimentos de leitura e da escrita. (CRUZ FILHO, 1987, p.56).
Com a expulsão dos jesuítas do Brasil em 1759, como alhures tratamos, as
aldeias passaram a vilas e freguesias, e outras foram criadas.
O Capitão-mor Antonio José Vitoriano Borges da Fonseca foi nomeado para
chefiar a Capitania do Ceará em 26 de março de 1765 com bom ânimo de administrar a ordem
e organizar os povos dispersos que viviam a praticar pequenos crimes pelo sertão adentro. Por
força da Ordem Régia de 22 de julho de 1766 e pela disposição do governador, que gostava
de percorrer a Capitania, foram criadas vilas e freguesias, como informa Studart (2004). Em
1766 deu-se a criação da freguesia de Almofala e, em 1767, foi elevada à categoria de vila a
aldeia de Jucás, que passou a chamar-se Arneirós. Esta denominação ocorreu por força de
Ordem Régia, que mandou substituir os nomes bárbaros por nomes de vilas do reino. O
documento que mudou o nome da aldeia de Jucás para Arneirós é um bando de 28 de
setembro de 1767, do governador Borges da Fonseca, obedecendo às disposições superiores.
167
Em 5 de julho de 1773 foi criada a vila Distinta e Real de Sobral e, em 1776, a vila de Granja.
A vila de Monte-mor, o novo da América, atual Baturité, foi criada em 1764, e Crato, em
1762.
O governador Borges da Fonseca, por meio de um bando lançado em 1767,
publica uma Ordem Régia de 22 de julho de 1766 enviada pelo Governador de Pernambuco,
em que Sua Majestade , o rei D. José I, manda criar vilas no Ceará para agregar os vadios. O
documento é o que segue.
fl. 19v
Registo doBando eordem Regia para sefazerem villas
agregando se aelas os vadios, evagabundos
O Tenente Coronel do Regimento de Infantaria pagada Goarnisaõ daPrasa do
Recife dePernambuco aCujo Cargo seacha oGoverno desta Capitania
do
Cearagrande por ElRey Nosso Senhor Faço saber atodos os moradores desta
Capitania que o Illustrissimo eExelentissimo Senhor Conde noso General em Carta
de 14 de Janeirodeste anno meordenou fizese publicar aCarta Regia de 21 de Julho
doanno pasado aqual foi SuaMagestade servido aCodir com as suas Paternais
Providencias aosimsultos que afalta de policia tem [tem] oCazionado nestes certões
como seve nas Copias das mesmas cartas cujo teor heo seguinte Conde deVilaFlor
Govenador eCapitam
General
da Capitania dePernambuco e Par
a
Amigo Eu El Rey
vos emvio muito saudar como aquele
que amo Sendome prezente
em minhas em
repetidas queixas osCrueis, etrozes insultos que nos certões desa Capitania tem
Cometido os vadios, e facinorozos que nelesvivem, como feras separados
daSociedade
Civil eComersio ûmano: Sou servido ordenar que todos os omens que
nosditos Certões seacharem vagamundos, ouem vicios volantes sejam todos
obrigados aescolherem lugares acomodados para viverem juntos em Povoacoes
Civis, que pelo menos tenhaõ desincoenta fogos para sima, com Juis Ordinario
vereadores, eProcurado doConselho, repartindose entre eles com justa proporsaõ
asterras adjacentes. Isto debacho dapena dequeaqueles que notermo Competente,
que se lhes asignar nos Editais que sefixarem para este efeito, naõ aparecerem,
ereduzirem aSociedade Civil nas Povoações asima declaradas, serão tratados como
salteadores decaminhos inimigos comuns, ecomo taes punidos com a severidade das
leys, exceptuando comtudo primeiramente os Roceyros, que com Criados, escravos,
efabricas delavouras vivem nas suas Fazendas sugeitos aserem infestados daqueles
imfames epermisiozos vadios: Em segundo lugar os rancheyros que nas estradas
publicas seachaõ extabelecidos com os seos ranchos para ospitalidade, e utilidade
dos viandantes em beneficio do Comersio eda comunicasaõ das gentes: Em
terseyrolugar, as bandeyras, outropas, que em Corpo
fl.20r
emcorpo esociedade
util e louvável, vaõ aos Certões congregados em boa uniam
para rancheyros, eTropas de Bandeyras tenhaõ toda a necesaria autoridade
paraprenderem eremeterem as Cadeyas publicas das comarcas, que estiverem mais
vezinhas todos os omens que acharem dispostos, ou sejaõ nos ditos
chamados sitios
volantes sem extabelecimento permanente, esolido, ou seja nos caminhos, ematos,
remetendo com eles autoados os lugares, estados ecircunstancias emque estiverem
ao tempo emque os incontrarem com as Justificações feitas com as pesoas que as
taes prizões asistirem, posto que naõ sejoficiais de Justiça, porque para estes
cazos lhes consedo autoridade publica em beneficio da tranquilidade dos meos fieis
vasalos para melhor excecusaõ, eescramento de omens tam infames
etampermisiozoz; [Recomnedo?]que nas comarcas dese Governo se observem
imviolavelmente os decretos eleys daPolicia que tem extabelicidoneste Reyno o
sucego publico digo omesmo socego publico servindo de intendentes de Policia
nessa Capital oOuvidor Geral dela enas outras Comarcas os seos respectivos
ouvidores geraes. Paraque asim seobserve inviolavelmente vos mando remeter as
168
sobreditas leys eDecretos; as quaes fareis dar asuavida execusam depois
depublicados, semduvida ou embargo algum qualquer que este seja; o que tudo
fareis executar comaquele zelo, eactividade quedevos confio: Escrito no Palacio
deNossa Senhora daAjuda a 22 deJulho de1766 = Rey = Para o Condede Vila Flor =
primeyra via = Cumprase como Sua Magestade manda, eregistada no livro da
Secretaria deste Governo Sepasem as ordens necesarias. Recife 23 de Janeyro
de1767= Conde Copeiro mor = Registada afolha vinte esinco do livro septimo de
Ordens Reaes que servem na Secretaria deste Governo dePernambuco Recife 13 de
Janeiro de1767= Joze Gonsalves daFonseca =
Incluza eremeto avossamercê exemplar da Carta Regia de11 de Julho de1766
asignada pela
Real maõ daSuaMagestade
para que fazendoa Registar nos livros
daSecretaria dese Governo, epublicar atoque de caxa emtodos os territórios emais
publicos dasua Jurisdição, sem duvida ou embargo algum qualquer que seja temha
aduvida observancia naquele queavossamerce toca oque domesmo soberano Senhor
ordena acujo fim fará vossamerce outro sim declarar nos Editaes otempo certo
quelhepareser proporcionado, emque os comprihendidos devemter prevenido
aexecusaõ que os absolvera das penas imposta;Tudo espero devossamerce menistre,
execute com acerto que faço desua Capacidade. Deos guarde
avossamerce Recife
dePernambuco 14 de Janeiro de1767 = Conde Copeiro mor = Senhor Antonio Joze
Victoriano Borges daFonseca= Em Cuja Obeservancia declaro que athe o ultimo
diadeste anno seandem achar juntos em Povoações Civis todos
aquelesqueComprihende asobredita Carta Regia debacho das penas que
nestaseempoem aos transgresores; epara que asim se executena forma das mais
instruçoes, queaeste respeito ouverem, eseposam formar as mesmas Povoaçoes,
serão osditos compriendidos obrigados aaparecerem perante os capitães mores
oucomandantes das suas respectivas freguezias notermo peremptório detres mezes
que se contaram do dia que este sepublicar, eparaisoosditos capitães mores,
ecomandantes as freguezias declararão ao pe dele otal dia dapublicação para que
osmesmos capetães mores ecomandantes emediatamente quesecompletar odito
termo meposaõ emviar relações muito exactas detodos osque nas suas freguezias
tiverem aparecido, para secongregarem, ereduzirem aSociedade Civil nas
Povoacoens queSua Magestade manda estabeleser
fl.20v
E paraque chegue anoticia detodo eanenhum tempo seposaalegar Ignorancia
sepublicará este asom decaixas sefixara nos lugares mais publicos desta Capitania
depois de registado naSecretaria deste Governo, emais partes aque tocar. Dado nesta
vila da Fortaleza deNosa Senhora daAsumpcam debacho
demeo signal, esinete das minhas armas aos 9 do mez de Mayo de1767 = EuFelis
Manoel deMatos Secretario deste Governo ofis escrever. Estava oselo Antonio Jose
Victoriano BorgesdaFonseca = enaõ se continha mais emdito Bando que fielmente
fis registar do proprio diaeraut supra
OSecretario
Feliz ManueldeMatos
(APEC, 1780, Livro 85, fl. 19v a fl.20v).
Conforme vimos no documento anterior, era necessário que os governantes
reunissem o povo sob a chefia de representantes da coroa para garantir a ordem e o respeito,
mantendo a presença real até nos locais mais inóspitos dos confins do reino. Os documentos
enviados aos capitães-mores governadores das capitanias informam de como a vida na colônia
estava submetida aos olhares do monarca. Todos os lares deviam honrar a memória dos
soberanos, fossem nos momentos tristes ou nos momentos festivos. A população das
169
longínquas vilas era orientada a prestar homenagem e comemorar, por exemplo, o nascimento
de um príncipe ou de uma princesa. Embora a notícia chegasse após vários meses do
acontecimento, os governadores emitiam cartas, bandos ou outros documentos para seus
subalternos por intermédio dos presidentes das câmeras que, por sua vez, anunciavam à
comunidade as disposições contidas e que eram cumpridas conforme a ordem.
No documento abaixo apresentamos uma carta dirigida ao juiz ordinário
presidente da câmera e aos demais oficiais da Vila do Icó. O remetente é o Doutor Ouvidor
Geral e Corregedor do Ceará Manoel de Magalhães Pinto e Avelar de Barbedo, anunciando o
nascimento da princesa dona Maria Tereza e recomendando três dias de luminárias na vila.
fl. 240v
Registo daCarta que escreueo o Senhor Doutor Ouvidor Geral eCorregedor desta
Comarca Manoel de Magalhaens Pinto eAvelar deBarbedo aoJuis Ordinario
Prezidente e mais officiaes do Senado da Camera desta Villa deNossa Senhora
daExpectaçaõ do Icô.
Participo avossas merces afausta e felis noticia do Nascimento daSerenissima
Senhora Donna Maria Thereza Princeza daBeira filha dos Serenissimos Principes do
Brazil vossos senhores Deos todo poderozo propicio aos votos dos fieis Vassalos
Portuguezes sedignou felicitalos com o Nascimento daditta Serenissima Princeza
em odia vinte, enoue deAbril do corrente anno = Sua Magestade manda publicar esta
alegre efausta noticia atodos os seos liais vassalos desse continente para que
completos os seos ardentes e fervorozos votos pella concervaçaõ daReal
Descendencia possaõ dar aoAltissimo eternas grassas eregozijarse com afelicidade
que nos promete este venturozo susseço Por isso devem vossas merces alegrasse e
fazer Praticar todas as demostraçoens dejubilo e degosto que forem decentes eque
aseo reconhecimento egeral Contentamento lhes ditar e fazendo tambem
fl.241r
Barboza
Tambem praticar tres dias luminárias nesta Villa eseo termo immediatamente que
receberem este avizo Deos goarde avossas merces por muitos annos Villa da
Fortaleza sette deNovembro demil cette centos enoventa etres O Doutor Manoel
de Magalhaens Pinto eAvellar deBarbedo// Senhor Juis Ordinario Prezidente
emais officiais daCamera daVilla doIcó. Ehe oque se continha emditta Carta que
eu Joaõ Antonio Gonçalves Escrivaõ daComera eOrffaos nesta Villa deNossa
Senhora da Expectação doIco eseo termo Comarca doSiarâ grande por sua
Magestade Fedelissima que Deos goarde fis tresladar bem efielmente da propria
aoque aella me reporto vay naverdade sem Couza que duvida fassa por que com a
propria acomfery subscrevy easigney nesta sobre ditta Villa doIcó aos vinte etres
dias domes deDezembro demil cette centos enoventa etres Sobscrevy easigney
Em fe deverdade Concertado com o proprio Escrivam
Joaõ Antonio Gonçalves.
(APEC, 1780, Livro 85, fl. 240v a fl.241r).
Como vemos a carta é datada de 23 de dezembro de 1793, traz a boa nova do
nascimento da princesa Maria Tereza, a primeira filha de D. João VI e Dona Carlota Joaquina,
ocorrido no dia 29 de abril, ou seja, a carta chega oito meses depois. A comunidade do Icó
170
deveria comemorar acendendo todas as luzes de suas casas por três noites seguidas para que
todos soubessem da boa nova. Isso demonstra a presença espiritual da autoridade suprema nos
lares brasileiros, não importando a distância física em que se encontravam.
No último ano do século XVIII, o Ceará passou a ser independente de
Pernambuco em virtude de uma Carta Régia de 17 de janeiro de 1799, assinada por D. Maria
I. Após a independência, o primeiro governador do Ceará foi Bernardo Manoel de
Vasconcelos. As vantagens advindas com a independência são significativas para o Ceará,
que passou a negociar diretamente com Portugal, havendo maior desenvolvimento das vilas.
Nos documentos que Barão de Studart publicou encontra-se a Carta Régia de D. Maria I
dando a independência ao Ceará, como se segue.
Reverendo Bispo de Pernambuco, do meu Conselho e mais Governadores Interinos
da Capitania de Pernambuco: Eu a Rainha vos envio muito saudar. Sendo-nos
presente os inconvenientes que se seguem tanto ao meu Real serviço como ao bem
dos povos da inteira dependência e subordinação em que os Governadores das
Capitanias, do Ceará e Paraíba se acham do Governador da Capitania de
Pernambuco que pela distância em que reside não pode dar com a devida prontidão
as providências necessárias para a melhor economia interior daquelas Capitanias
principalmente depois que elas têm aumentado a povoação, cultura, e comércio: Sou
servida separar as ditas Capitanias o Ceará e Paraíba da subordinação imediata do
Governo geral de Pernambuco em tudo que diz respeito a proposta de Oficiais
Militares, nomeações interinas de ofícios e outros atos de Governo; ficando porém
os governadores das ditas Capitanias obrigados a executar as ordens dos
Governadores de Pernambuco no que for necessário para a defesa interior das
mesmas Capitanias e para polícia e segurança interior das mesmas: Igualmente
determino que do Ceará e Paraíba se possa fazer um comércio direto com o Reino
para o que se estabelecerão em tempo e lugar conveniente as casas de arrecadação
que forem precisas e se darão as outras providências que a experiência mostrar
serem mais úteis e adequadas para facilitar e aumentar a comunicação imediata e o
comércio das ditas duas Capitanias com este Reino, o que vos participo para que
assim o fiqueis entendendo. Escrita no Palácio de Queluz aos dezasete de janeiro de
mil setecentos e noventa e nove. O Príncipe. Para o Bispo de Pernambuco e mais
governadores interinos da mesma Capitania (STUDART, 2004, p. 485).
Governaram o Ceará, desde os seus primórdios até a data de sua autonomia em
relação à Capitania de Pernambuco, 50 capitães-mores. Após a independência, cinco
governadores chefiaram o governo do Ceará. Além do mencionado Bernardo Manoel de
Vasconcelos, que tomou posse em 29 de outubro de 1799, seguiram-no: João Carlos Augusto
de Oeynhausen e Grewenburgo (1803); Luiz Barba Alardo de Menezes (1808); Manoel
Ignácio de Sampaio (1812) e Francisco Alberto Rubim (1820). Após o governo de Rubim, o
Ceará passou a ser governado por uma junta temporária, em 1820. Esta junta era formada por
8 pessoas. Até 1822, uma segunda junta provisória, formada por 5 pessoas, governou o Ceará.
Em 1823, teve dois governos temporários formados por duas juntas. No mesmo ano, foi
171
empossado o Presidente da Província, o Tenente-coronel Pedro José da Costa Barros, o
primeiro após a independência do Brasil.
A história jurídica do Ceará também esteve atrelada a Pernambuco e, depois, à
Paraíba, quando foi criada a primeira ouvidoria do Ceará. Em 31 de outubro de 1721, D. João
V aprovou uma Resolução criando uma Ouvidoria própria no Ceará, pois as necessidades da
Justiça nesta Capitania não eram atendidas a contento. A Carta Régia criando de fato a
Ouvidoria foi assinada em 08 de janeiro de 1723. A princípio a Ouvidoria teve sede na Vila
de Aquiraz. Daremos maiores informações desse tema no capítulo sexto, quando tratamos da
estrutura jurídica do Ceará.
De um modo geral, a situação de atraso sócio-econômico e cultural do Ceará era
sensivelmente percebida pelos próprios administradores, no referente a todas as circunstâncias
da vida. No tocante à saúde era lastimável o quadro por falta de profissionais, uma vez que
apenas alguns cirurgiões licenciados atuavam em algumas vilas. A educação não tem muito a
falar devido às precariedades estruturais e históricas, ressaltando que até nos idos do Império
se encontravam cartas de professores reclamando dos baixos salários e falta de recursos
físicos, como casa para funcionar as escolas; isso em uma das vilas mais importantes,
nomeadamente, a de Aracati. Fora isso os grupos de famílias importantes do interior que
concentravam grandes propriedades rurais, ostentosos rebanhos de gado, e grande força
política viviam a se degladiar pelo poder. Eram esses chefes muitas vezes os administradores
da lei nas vilas de suas jurisdições. Esse cenário do sertão cearense atacado por brigas
familiares para se medir as forças de cada grupo é descrito por Vieira Jr. (2004). Um exemplo
célebre disso são dos Montes e Feitosas, famílias ricas e poderosas que, por longo tempo,
causaram grandes convulsões à região do alto e baixo sertão do Jaguaribe. As façanhas desses
dois núcleos familiares não narradas por vários historiadores cearenses pelo impacto que
tiveram na história do Ceará. Além da concentração da terra e do poder político e judicial,
detinham avultados meros de capangas, seus comandados, que viviam a espalhar a
violência e o medo no interior. Essa violência era institucionalizada pela concorrência da
força e pelo domínio da propriedade, em que um grupo atacava o outro matando membros e
agregados das famílias.
Outra tipologia de crimes ocorria constantemente pelo sertão, serras e litoral.
Eram furtos, agressões, espancamentos, raptos de moças, defloramentos e estupros. A
violência parece ser uma dimensão do ser humano, não importa em que tempo.
172
É nesse cenário que os crimes ocorrem e se tornam evidentes e, quando há
oportunidade da frágil justiça tomar conhecimento, são narrados pelas vítimas, ouvidos pelos
juízes ordinários e escritos em autos pelos tabeliães e escrivães.
4.4 Quadro Sinóptico dos Principais Acontecimentos do Ceará
Esta síntese, adaptada da Enciclopédia Delta Larouse (1972), não conta de
todos os fatos, mas representa os principais acontecimentos que marcaram o nosso período de
estudo e alguns dados ultrapassam o que foi apresentado neste capítulo.
1535 Doação da capitania a Antonio Cardoso de Barros.
1603 O açoriano Pero Coelho de Sousa obtém permissão para exploração e colonização da
capitania; primeira expedição é confiada a Martins Soares Moreno.
1607 Os jesuítas Francisco Pinto e Luiz Figueira tentam a catequese do gentio.
1608 11 de janeiro: morte do padre Francisco Pinto.
1612 Martins Soares Moreno retorna a posse da barra do Ceará, ali erigindo fortificação.
1619 Carta Régia concede a Martins Soares Moreno o cargo de senhor da capitania do
Ceará.
1631 Martins Soares Moreno retira-se do Ceará, por haver terminado a provisão régia que
lhe dava exercício no cargo de capitão-mor.
1634 Os holandeses tomam o fortim construído sob o comando de Martins Soares Moreno.
1644 Os índios expulsam os holandeses destruindo o forte construído antes pelos
portugueses.
1649 10 de abril: em sua segunda investida, comandados por Matias Beck, os holandeses
erigem o forte de Shoonenborch, na emborcadura do ribeirão Pajeú.
1654 O representante do governo flamengo e da Companhia das Índias Ocidentais, como
consequência da capitulação geral do Recife, entrega a fortaleza ao representante do rei de
Portugal, Álvaro de Azevedo Barreto. O forte passa a denominar-se Fortaleza de Nossa
Senhora da Assunção e se transforma em sede da capitania.
1726 A sede da capitania é elevada à categoria de vila.
1799 Carta Régia separa a capitania do Ceará da de Pernambuco, dando-lhe governo próprio
e liberdade de comércio. Bernardo Manuel de Vasconcelos é nomeado seu primeiro
governador.
1810 Fortaleza passa a capital.
173
1817 4 de maio: a república é proclamada na cidade do Crato, durante a revolução nativa.
1821 14 de abril: revolta popular contra o governador Francisco Alberto Rubim.
3 de novembro: o Ceará adere à revolução constitucional do Porto.
1823 O comandante de armas é deposto por José Pereira Filgueiras, em Fortaleza.
1824 9 de janeiro: na cidade de Quixeramobim, em protesto contra a dissolução da
constituinte, a câmara local declara desconhecer a autoridade de D. Pedro I, convidando José
Pereira Filgueiras para organizar um governo republicano.
1
o
de abril: surge o primeiro jornal provinciano, o Diário do governo do Ceará,
redigido pelo Pe. Mororó.
17 de abril: Pedro José da Costa Barros assume o governo da Província.
26 de abril; o presidente Costa Barros é deposto por José Pereira Filgueiras,
assumindo o confederado Tristão Gonçalves de Alencar Araripe.
26 de outubro: Tristão Gonçalves Alencar Araripe morre no combate em Santa Rosa.
4 de dezembro: é jurada a constituição do Império.
1825 13 de janeiro: José Felix de Azevedo e Sá assume a presidência da Província.
30 de abril: em Fortaleza são executados os confederados coronel João de Andrade
Pessoa Anta e Pe. Mororó.
7 de maio: execução do confederado Francisco Miguel Pereira Ibiapina.
1826 4 de fevereiro: Antonio Sales Nunes Belfor assume a presidência da Província.
1829 6 de abril: Manuel Joaquim Pereira da Silva assume a presidência da província.
Vemos que muitas informações se referem ao período imperial e outras aboardam
os movimentos revolucionários nos quais houve ativa participação do Ceará, como a
Revolução Pernambucana, de 1817, e a Confederação do Equador, de 1824, em que grupos
revolucionários de grande consciência política agiam em prol da liberdade. Era uma etapa
bem avançada de nossa história que merece os devidos valores, contudo não é pretensão nossa
apronfundar este conteúdo aqui.
4.5 Conclusão
Neste capítulo, adentramos no passado do mundo luso-brasileiro para situarmos
o ambiente histórico, econômico, cultural e jurídico luso-brasileiro nos séculos XVII ao XIX.
Como aludido, a língua é uma manifestação do seu ambiente que traz os reflexos da
realidade dos falantes. Partindo desse princípio, impossível se torna estudar as manifestações
174
linguísticas de uma comunidade em uma sincronia, sem explicar os elementos de natureza
sócio-cultural que emergem dos textos escritos.
No caso específico da linguagem jurídico-criminal do Brasil colônia, o fato que
mais se manisfesta é a violência. Os textos, porém, são repletos de informações que nos
conduzem ao passado e podemos compreender integralmente os significados dos textos
quando mergulhamos na realidade da época, nas leis e nos fatos que marcaram a sociedade.
Para alcançarmos a visão ampla que defendemos, necessário é investigar todos os
aspectos que se encadeiam. Portanto, não podemos negligenciar na observação da estrutura
administrativa do antigo regime português, que incluía o Brasil e, na instância menor, o
Ceará. Abordamos as primeiras tentativas de exploração do espaço geográfico da Capitania do
Ceará, as tribos primitivas que viviam aí, a ocupação definitiva pelos portugueses, as
ocupações estrangeiras, a fundação das primeiras vilas, a estrutura jurídica, os recursos
econômicas que prosperaram e proporcionaram o desenvolvimento, enfim, as informações
necessárias que trazem à tona o conhecimento da realidade, de onde proviemos e o que
identificou e faz ser, nos dias de hoje, o povo cearense.
Nosso intento neste capítulo não foi fazer uma História do Ceará, mas somente
trazer informações já relatadas por vários historiadores, embora ditas aqui com estilo diferente
e com o auxílio de fontes documentais que ampliam e esclarecem dados importantes para
situar o contexto de nossa história, principalmente no percurso das fontes que ora analisamos.
Os textos da esfera jurídico-criminal foram produzidos nesse ambiente e refletem
em suas páginas os dados concretos vivenciados pela população cearense. A nossa leitura,
para ser eficaz, tem que passar pelo fio condutor da história. Acreditamos que, dessa forma,
nosso trabalho atinge aquele aspecto que defendemos desde o princípio, que é o conteúdo
filológico, e este se baseia no estudo do texto escrito e das demais informações dos diversos
teores que cercam esse texto, possibilitando-nos uma leitura integral.
Assim, estamos fazendo jus à epígrafe desse capítulo, pois os frutos de uma
árvore podem prosperar se estiverem ligados ao tronco, fonte de seiva que os nutre. Do
mesmo modo a humanidade está inevitavelmente embaraçada no seu passado, que clareia as
ações do presente, fortalece a sua identidade e orienta as decisões para o futuro.
175
5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A língua não é o único objeto da Filologia, que quer, antes de tudo, fixar,
interpretar, comentar os textos; êsse primeiro estudo a leva a se ocupar também da
história literária, dos costumes, das instituiçõe, etc.; em tôda parte ela usa seu
método próprio, que é a crítica. Se aborda as questões lingüísticas, -lo sobretudo
para comparar textos de diferentes épocas, determinar a língua peculiar de cada
autor, decifrar e explicar inscrições redigidas numa língua arcaica ou obscura.
( SAUSSURE, 1995, p.7-8)
5.1 Introdução
Relacionamos, neste capítulo, todos os procedimentos adotados para a realização
desta pesquisa, os quais organizamos em duas etapas: na primeira etapa tratamos da escolha
dos textos que constituem o corpus de análise, sua edição semidiplomática e a descrição de
sua estrutura formal, enquanto partes de processos criminais. Na segunda, discorremos sobre a
análise dos elementos oferecidos pelos textos, tanto dos dados histórico-sociais, que foram
levantados e interpretados, quanto dos elementos linguísticos. Para o estudo desses elementos
aplicamos as ferramentas da Linguística de Corpus, do programa WordSmith Tools, para a
seleção do fenômeno em estudo, que constitui o resultado final da pesquisa.
Dessa forma, foi possível fazer uma leitura integral dos textos por meio da análise
da contextualização histórica, social e cultural do Ceará, no período que compreende a
ambientação dos documentos estudados. Por fim, fizemos o estudo filológico e linguístico que
consiste na estruturação do glossário com micro e macroestruturas, estabelecidas para a
organização e definição das unidades fraseológicas que compõem o produto final do trabalho.
Passamos a descrever os procedimentos de cada etapa.
5.2 Da Constituição do Corpus
O primeiro passo de nosso estudo diz respeito à coleta dos documentos que
constiuem o corpus de nossa análise, o qual foi selecionado no acervo do Arquivo Público do
Estado do Ceará (APEC). Os textos são documentos oficiais do judiciário colonial brasileiro,
dos séculos XVIII e XIX, denominados Autos de Querela e Denúncia. O recorte temporal
feito compreende os autos escritos entre 1779 e 1829, perfazendo um período de 50 anos de
história de crimes no Ceará e de uso da língua portuguesa no Brasil.
176
Os documentos estão organizados no Fundo Ouvidoria Geral e Corregedoria da
Comarca do Ceará, qualificados e distribuídos no índice do APEC, em que se descreve o
local de armazenamento por meio dos seguintes itens: ala, estante, caixa, livro, série,
localidades e datas, como segue abaixo.
Ala
Estante
Caixa
Livro
Série
Localidades onde foram realizadas
as audiências
Datas
20
421
01
1460
Autos de
Querella
Aquiraz, Aracati, Crato, Fortaleza,
Monte-Mor o Novo da América
(atual Baturité), Quixeramobim,
Sobral,Viçosa Real (atual Viçosa do
Ceará)
1779 1785
20
421
01
1461
Autos de
Querella
Fortaleza
1780-1793
20
421
01
39
Autos de
Querela
Fortaleza e Santa Cruz da Serra da
Uruburetama (atual Uruburetama)
1802- 1806
20
421
02
33
Autos de
Querella
Aracati, Arronches, (atual
Parangaba), Crato, Icó, Fortaleza,
São Bernardo (atual Russas), São
João do Príncipe (atual Tauá) e
Sobral.
1807-1813
20
421
02
64
Autos de
Querella
Fortaleza
1810-1813
20
421
03
1097
Autos de
Querella
Fortaleza, Granja, São José da
Uruburetama (atual Arapari, Distrito
de Itapipoca) e Sobral.
1824-1829
Quadro 2 Índice dos documentos no APEC
O quadro acima contempla apenas os seis códices editados e analisados. Vale
dizer que existem outros códices catalogados e muitos outros conjuntos de autos poderão ser
encontrados dentro de caixas, em meio a pacotes das comarcas, ainda não indexados e
catalogados pelo APEC.
Constitui-se o corpus de 133 documentos, sendo 66 do século XVIII e 67 do
século XIX. Foram transcritos e editados os códices 1460, com 16 autos, e o 1461 com 50
autos, ambos do século XVIII; e os códices 33, 39, 64 e 1097 do século XIX, contendo 19,
18, 17 e 13 autos, respectivamente. O modelo de edição adotado para os documentos é o
semidiplomático ou diplomático-interpretativo usado para estudos da língua portuguesa pelo
177
Projeto Para a História do Português Brasileiro (PHPB), cujas normas foram elaboradas por
um grupo de pesquisadores que integram o projeto e publicadas em Mattos e Silva (2001)
44
.
5.2.1 Da Estrutura Formal dos Autos
O documento intitulado Auto de Querela é resultado de uma denúncia apresentada
ao juiz ordinário de uma vila ou ao corregedor da comarca por um ou mais querelantes,
vítimas de uma ação criminosa. A nosso entender, esse documento constitui apenas a primeira
peça de um processo criminal que poderia ser mais longo e complexo. No entanto, por
precariedade dos recursos do sistema judicial e de pessoas habilitadas com conhecimentos
jurídicos naquele período da história colonial brasileira, não continuidade dos processos.
Contudo, não fica de toda excluída a possibilidade de encontrarmos alguns processos
completos, mas, no geral, pelo que foi encontrado até o presente momento, podemos dizer
que a denúncia apresentada esbarra na formação e escritura do Auto de Querela, do sumário
de testemunhas, etapa em que estas falam dando seus depoimentos contra os acusados e, por
fim, do rol de culpados, em que o juiz faz a pronúncia do querelado, anotando seu nome no
livro indicado para esse fim, conforme veremos adiante.
O sumário de testemunhas e o rol de culpados constituem, com o Auto de
Querela, três etapas dos processos que chegaram ao nosso conhecimento, mas estão escritos
em livros distintos, não configurando uma sequência lógica no mesmo livro dos autos.
Esclarecemos que apenas a primeira etapa, ou seja, o auto, é objeto de nosso estudo, pois as
outras duas apenas esclarecem e complementam alguns dados.
No acervo do APEC, encontram-se indexados quatro livros de sumários e um de
rol de culpados, com isso, dizemos que não encontramos informações referentes a todos os
crimes aqui estudados. Somente para todos os autos contidos no códice 39 foram encontradas
informações no sumário de testemunha, assim como no rol de culpados.
O sumário traz como conteúdo o depoimento das três testemunhas arroladas nos
autos. O documento é registrado em um livro intitulado Sumário de Querela, que se encontra
no Fundo Ouvidoria Geral e Corregedoria da Comarca do Ceará. A estrutura do texto
constitui-se de uma introdução e remissão ao livro de Autos de Querelas, uma assentada
referente às informações da denúncia e identificação do querelante. Segue o depoimento com
44
Estas normas foram decididas durante o II Seminário para A História do Português Brasileiro, realizado em
Campos do Jordão em maio de 1998 por um grupo de pesquisadores de vários estados brasileiros que, após
apresentação e discussão dos grupos individuais, foram submetidas à ampla discussão em plenário e aprovadas.
178
a caracterização e os ditos ou falas das três testemunhas, a conclusão, termo de data e a
contabilidade das custas, como vemos abaixo, na transcrição de um sumário relativo ao auto 3
do Livro 39, de um crime de estupro praticado contra Thomazia Francisca de Souza por seu
genro Pedro Antonio da Silveira.
fl. 6r
Pereira
(1) Sumario de querella, eDenunçia que dá Thoma
45
zia Francisca deSouza, mulher parda Viuva
moradora naSerrada Uruburitama, termo
desta Villa daFortaleza, dePedroAntonio da
Silveira, õmem Pardo emorador na mesmaSe
rra:
Tem o Auto no Livro delles afolha4 Verco
fl. 6v
Asentada
Aos treze dias domes deNovembrodemil oito Centos edous
annos nesta Villa da Fortaleza deNossa Senhora da
Asumpçaõ Capitania do Siará grande, em cazas de
Morada do Juis ordenario o Alferes Ignacio Pereira
deMello aonde eû Escrivaõ do seo cargo fui vindo
esendo ahy, pello dito Juis foraõ inqueridas eprogun
tadas neste Sumario estas testemunhas, que por parte
daJustificante, digo da Querellante Thomazia
Francisca deSouza foraõ apresentadas, Cujos nomes
coalidades, estados emoradias, ditos costumes saõ osque
adiante seçeguem, de que fis este termo, eeû Jozé de
Barros Correa Escrivaõ que o escrevy
Testemunha 1
Manoel Pedro deAzevedo, õmem pardo cazado mo
rador naSerra daUruburitama, termo daVilla da
Fortaleza deNossa Senhora daAsumpçaõ capitania
do Siará grande, que vive desuas lavouras, deIdade
que diçe ser deVinte, enove annos, testemunhaju
rada aosSantos Evangelhos, emlivro delles emque pós
sua maõ direita eprometeo dizer verdade, edo cós
tume diçe nada:
Eproguntado ahelle testemunha
pello contheudo, [[pello contheudo]] napetiçaõ da
querelante que toda lhefoi lida, edeclarada pello
dito Juis: Diçe elle testemunha, que hé serto Dito
que aquerelante lhediçera que oseo genro Pe
dro Antonio da Silveira, a tinha forsado para
ter com [ela] tractos dezonestros, eque lhe tinha
fl.7r
45
Para a edição dos dois tipos de documentos que utilizamos aqui, Sumário de Testemenhas e Rol de Culpados,
não seguimos as mesmas normas de edição dos Autos de Querela, mas é conservadora, inclusive na forma como
se organiza no papel. Desenvolvemos apenas as abreviaturas e, algumas palavras repetidas no original são
colocadas entre colchetes. O que aparece fora da mancha de texto também conservamos.
179
Pereira
lhetinha feito as feridas, eesfoladuras, que mostraua ato
dos queixandoçe do referido genro, emais naõ diçe ea
signou oseo juramento com o dito Juis, eeû Jo
deBarros Corrêa Escrivaõ que o escrevy
Mello
Manoel Pedro
Testemunha 2
Gonsallo Ferreira deAzevedo õmem cabra morador
naSerra daUruburetama, termo daVilla deFortale
za deNossa Senhora daAsumpçaõ capitania do
Siará grande, que vive desuas lavouras deIdadeque
diçe ser devinte annos testemunha jurada aos san
tos Evangelhos em o livro delles em que pós sua maõ
direita, eprometeo dizer verdade, e do costume diçe
nada:
Eproguntado ahelle testemunha pe
llo contheudo, na petiçaõ da Querelante Thomazia
Francisca deSouza que toda lhefoi lida edeclara
da, pello dito Juis: Diçe que sabe por lhedizer a Dito
mesma querelante queixandoçe do seo genro Pe
dro Antonio daSilveira, perante varias pesoas
que o dito seo genro lhe tinha feito varias Fe
ridas noseo Corpo eque aforsara, para com
ella ter tractos eliçitos, eque com effeito tiuera
emais naõ diçe easignou oseo juramento com
o dito Juis : epor naõ saber escrever o fes dehuma
crus eeû Jozé deBarros Corrêa Escrivaõ que
o escrevy
Mello
Crus† de Goncalo Ferreira de Azevedo
fl. 7v
Testemunha 3
Vicente Ferreira deCastro õmem branco com casta da
terra cazado emorador nesta Villa daFortaleza de
Nossa Senhora daAsumpçaõ capitania do Siará gr
ande que viue deseo offiçio deser guarda da Espe
çaõ deIdade que diçe ser deVinte edous annos teste
munha jurada aos Santos Evangelhos emolivro de
lles emque pós sua maõ direita,e prometeo dizer
verdade e do costume diçe nada:
Eproguntado ahelle testemunha
pello contheudo napetiçaõ da Querelante que toda
lhefoi lida edeclarada, pello dito juis: Diçe que Dito
sabe por lhedizerem varias pesoas de credito que o
genro da Querelante Pedro Antonio daSilveira forsa
ra adita sua Sogra para com ella ter tratos i
lliçito dando-lhe Varias pancadas para apuder
vençer emais naõ diçe eaSignou oseo juramen
to com o dito Juis, eeû Jozé deBarros Corrêa Escri
vaõ que o escrevy
Mello
Vicente Ferreira deCastro
180
Termo deConcluzaõ
Aos treze dias domes deNovembro demil oito centos edo
us annos nesta Villa daFortaleza deNossa Senhora
daAsumpçaõ capitania do Siará grande emeu
Escriptorio fasso estes digo este Sumario concluzo
aoJuis ordenario o Alferes, Ignaçio Ferreira deMe
llo para pronunçiar como for deJustissa deque
fis este [termo] eeû Jozé deBarros Corrêa Escrivaõ
fl. 8r
Pereira
Escrivaõ que o escrevy
Conclozos
Obrigam as ditas testemunhas deste Sumario
aprizaõ elivramento ao Querellado, o Escriuaõ olan=
çe no rol de culpados, epase mandado para ser em
bargado nacadea, eq‟ esteia com sigurança com
venia dos Illustrissimos Senhores Governadores Vila da Fortaleza 15
de novembro de1802
Ignacio Ferreira de Mello
Como Accessor
Domingos Hermogenes da Silva Santos
Termo deData
Aos quinze dias domes deNovembro do dito, digo demil
oito centos edous annos nesta Villa daFortaleza de
Nossa Senhora daAsumpçaõ Capitania do Siara
grande, em cazas de rezidençia do Juis ordenario o
Alferes Ignaçio Ferreira deMello comigo Escri
vaõ do Seo cargo ao diante nomiado fui vindo a
sendo ahy, pello dito Juis mefoi dado este Suma
rio com sua Sentenssa Supra que mandou secom
priçe egoadaçe como nella se contem, edeclara de
que fis este termo, eeû Jozé deBarros Corrêa Escri
vaõ que o escrevy
Custas Para o Juis
Distribuiçam eConta..................................$ 160
Asentada ....................................................$ 040 $440
Inqueritos...................................................$ 240
fl. 8v
Para o Escrivaõ
Autoamento ................................................$ 040
Asentada......................................................$ 040 $ 910
Certidam .....................................................$200
Raza..............................................................$ 630
1$ 350
Mello
(APEC, 1810, Livro 13, fl. 6r a fl. 8v).
181
O outro documento que complementa o processo é o rol de culpados. A palavra
rol remete ao latim rotulus e siginifica um rolo ou cilindro, empregado aqui na significação de
lista ou relação. Rol de culpados significa, portanto, “a relação dos culpados registrados em
determinado juízo, depois que sejam condenados” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 1240).
O Rol de Culpados é um códice em que são anotadas as decisões dos juízes em
forma de pronúncia, determinando a prisão e o livramento do acusado. Em alguns casos, esse
já se encontra preso ou já em liberdade por meio de alvará de soltura ou por perdão. Apesar da
definição acima apontar para uma resolução após a condenação, cremos que na prática essa
atitude não é ou não deveria ser o procedimento final das querelas, pois a pronúncia constituia
apenas uma etapa para que corresse o processo. Se isso não se efetivava, repetimos, era por
conta do sistema incompetente reinante na colônia.
Reforça a nossa tese a definição da palavra pronúncia no dicionário jurídico, que
significa, na linguagem criminal, um ato de um juiz, diante dos fatos, proclamar um réu
suspeito de um crime face às provas que lhes foram apresentadas, mas não em caráter
definitivo.
[...]entende-se, na linguagem do Direito Processual Penal, o ato pelo qual o juiz-
presidente de um processo-crime, no Tribunal do júri, em face das provas colhidas
no sumário de culpa, reconhece ou declara (proclama) o réu suspeito do crime que
faz objeto da denúncia [...] Assim, a pronúncia exprime a proclamação da autoria do
crime, embora sem caráter definitivo, em virtude da evidência dele. (DE PLÁCIDO
E SILVA, 2006, p.1113, grifos do autor).
Apresentamos, a seguir, a pronúncia de um réu que tem seu nome lançado no rol
dos culpados pelo juiz ordinário. Trata-se daquele querelado, Pedro Antonio da Silveira,
acusado de estupro contra sua sogra. O texto é curto e de forma sintética identifica e
caracteriza o querelado, deixando claras todas as informações necessárias. Encontrava-se
preso o réu, quando faleceu, conforme o texto atesta. Observemos que fora pronunciado no
dia 15 de novembro de 1802 e, em 2 de abril de 1803, havia falecido na cadeia.
(2) Pedro Antonio da Silveira õmem pardo ca
zado emorador naSerra daUruburitama
culpado naquerella que dellê deo sua
sogra Thomazia Francisca deSouza epro
nunciado aprizaõ a livramento pelo Juis orde
nario o Alferes Ignaçio Ferreira deMello
em 15 de novembro de1802
182
Prezo naCadeia desta Vila
46
faleçeo davida prezente
em 2 deAbril de 1803
Corréa
(APEC, 1793, Livro 9, fl. 43r).
Vemos que o querelado é apenas pronunciado à prisão e livramento e o
condenado, como também não uma sentença estabelecida. Pronunciado significa, portanto,
indicado como réu ou culpado de um ato criminoso, o que levaria a um possível julgamento e
à condenação. O rol de culpados traz a resolução do juiz que reconhecia o réu culpado e o
pronunciava para que fosse preso, mas esse estava sujeito a livramento, ou seja, poderia
ganhar a liberdade a qualquer momento ou, até mesmo, ser perdoado. Livramento é a volta da
liberdade física de que tinha sido privado. É restrita somente à liberdade física, à liberdade de
locomoção tolhida pela prisão, diferente de libertação que se refere a qualquer liberdade,
física, jurídica ou moral, ressalva De Plácido e Silva (2006).
No rol de culpados, casos em que o indiciado fora perdoado, como o que
ocorre com o denunciado Manoel Martins Garrido, que aparece em dois autos como agressor
de Josefa Maria, no auto 16, e de Antonio Pinto de Souza, no auto 17 do códice 39, fatos
esses ocorridos na Prainha, Vila de Fortaleza, em 1806. O réu, relacionado no livro dos
culpados e preso na cadeia de Fortaleza, logo fora solto e perdoado pelo crime praticado
contra a querelante Josefa Maria, conforme se segue.
(3) Manoel Martins Garrido branco sol
teiro morador nesta Villa culpado na
Querela que dellê deo por ferimentos
Josefa Maria epronunciado aprizaõ
elivramento pello Juis ordinario o capi
taõ Jozé Ignaçio deoliveira Mello
em 7 deFeveiro de1806
Prezo na cadeia desta
47
vila
Solto com per-
dão
(APEC, 1793, Livro 9, fl. 39v).
46
Esta informação encontra-se à margem direita da mancha de texto.
47
A informação acima vale também aqui.
183
em relação ao delito praticado contra Antonio Pinto de Sousa, comandante de
um navio português e morador na cidade do Porto, que se encontrava em Fortaleza, o réu não
teve a mesma sorte, pois foi pronunciado e permaneceu preso, como vemos no texto a seguir.
(4) Manoel Martins Garrido branco solteiro
morador na Prainha desta Villa culpado
naquerela que dellê deo o Capit
do Nauio Felicidade Antonio Pinto
deSouza pellos ferimentos feito a
mesmo Capitaõ epronunciado a
prizaõ e livramento pello Juis orde
nario o capitaõ Jozé Ignacio de
oliueira deMello em to digo em 10 de
Feuereiro de1806
(APEC, 1793, Livro 9, fl. 45r).
Reafirmamos que, mesmo com estas resoluções dos juízes, o rol de culpados não
caracterizava a conclusão do processo, apenas pronunciava o réu para que o processo tivesse
continuidade, em que seriam incluídas várias peças apresentadas pelos advogados, como
ocorre naqueles que continuavam. Ilustra isso um processo que encontramos no Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, em Portugal.
O documento inicia-se com o Auto de Querela seguido do depoimento das
testemunhas e da pronúncia do juiz. Em seguida, várias peças são adicionadas pelos
advogados das partes, formando um todo, culminando com um libelo e, por fim, a sentença,
em que o acusado foi condenado a cinco anos de exílio na Ilha de Cabo Verde.
Libelo, no sistema penal, é uma exposição de razões que sintetiza uma ação
delituosa e conduz à condenação de um réu.
[...] a exposição articulada do fato ou dos fatos criminosos, narrados
circunstanciadamente, para que se evidenciem os elementos especiais da
composição da figura delituosa, com a indicação do agente ou agentes a quem são
imputados e o pedido, afinal, de sua condenação, na forma da regra instituída na lei.
Diz-se, propriamente, libelo crime acusatório. É correspondente a uma ratificação
da denúncia, desde que é promovida depois que o u ou réus são pronunciados.
(DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 842, grifos do autor).
Em outro caso, também do acervo da Torre do Tombo, a querelante pede ao juiz
que pronuncie o querelado para que haja continuidade do processo, porque sem esse ato da
autoridade judicial, não poderia encaminhar a sua denúncia para uma resolução definitiva. Por
tais razões, reforçamos ainda mais que os Autos de Querela tratados aqui constituem apenas a
peça inicial de um processo que deveria tramitar na justiça.
184
O Auto de Querela é a primeira peça do processo que, por sua vez, compõe-se de
várias partes e de outras pequenas peças que lhe são agregadas com características próprias,
mantendo uma estrutura razoavelmente fixa. Geralmente, constitui-se de um resumo no auto
do fólio, apresentando as pessoas envolvidas: os querelantes e os querelados com suas
identidades e condição social, como a cor da pele, estado civil, local de residência. Logo
abaixo do resumo, geralmente destacado, uma remissão para o Livro de Sumários. Esse
livro contém a síntese da querela e o depoimento das testemunhas, como já dito
48
.
Abaixo segue, a título de ilustração, a abertura de um auto com a indicação ao
livro de sumário da edição de Ximenes (2006, p. 46).
(5) Auto deQuerella edenuncia que Thomazia | Francisca deSouza, mulher
parda Viuva mora | doura naSerra daUruburitama, termo daVilla da | Fortaleza
deSeo Genrro Pedro Antonio da Silveira | õmem Pardo emorador namesma Serra
daUrubu | ritama : |
Tem o Sumario no Livro a folha 6 |
(XIMENES, 2006, p.46).
Uma vez qualificados querelantes e querelados, segue uma introdução em que se
situam os fatos no tempo e no espaço. Essa parte do processo inicia sempre com a expressão
Annodo Nascimento deNososenhor Jezus Cristo[...]. Aqui se menciona o dia, o mês, o ano e
o local, ou seja, a vila da Capitania em que se encontra o corregedor da comarca fazendo a
visita de correição para administrar a lei, ou o próprio juiz ordinário da vila com o seu
escrivão encarregado de registrar as queixas que são apresentadas pelos querelantes e, às
vezes, um cirurgião para realizar o exame de corpo de delito. Essa parte do auto é denominada
de petição e termina com a relação de três testemunhas, não muito raro, quatro, com suas
características bem definidas. Em seguida, o juiz faz o despacho e a distribuição para o
escrivão. O texto se encaminha para o desfecho, em que o querelante promete dizer a verdade
sobre a denúncia e se compromete em apresentar as testemunhas arroladas anteriormente em
um prazo de 20 dias, caso contrário, a denúncia ficará sem validade. Vejamos o desfecho da
narrativa do auto de número 3.
(6) [...] emandou que eu Escrivaõ notificaçe | a querellante para no termo deVinte
dias dar Suas tes | temunhas, eque estas hauiaõ ser as que deClaraua em |
Suapetiçaõ, eque as naõ dando no referido termo as | naõ poderia mais dar, eficaria
48
Sumário é de origem latina e significa resumo. Indica o processo ou rito que tem forma abreviada. No conceito
criminal, como afirma De Plácido e Silva (2006, p. 1346), “sumário exprime a soma de atos e de medidas
necessárias à formação de culpa, isto é, para apuração da culpabilidade da pessoa, que se denunciou como autora
de um crime, ou de um delito”.
185
adita querella por | dizerta enaõ Seguida eSetomaria por parte daJustissa | passado o
termo daley o que aSim Satisfis de que dou | epara Constar mandou o dito Juis
fazer este auto | emque aSignou de nome inteiro pella querellante | naõ Saber ler
enem escrever eeû Jozéde Barros Correa | Escrivaõ que o escrevj |
Ignacio Ferreira de Mello
(XIMENES, 2006, p.51).
No final do processo, constam as assinaturas do juiz e do querelante. Quando esse
é analfabeto, o juiz ou escrivão assina por ele, ou, às vezes, é feita uma cruz indicando que o
queixoso não sabe assinar. Essa estrutura é básica e fixa na maioria dos autos. Vejamos o
encerramento de um auto retirado do códice 33.
(7) para Constar mandou dito | Ministro fazer este auto; emque a | Signou deNome
inteiro por naõ Sa | ber aQuerelante escrever; eoQue | relante Padrasto ofes decruz,
por | taõ bem naõ Saber escreuer; eeu | Joze deCastro Silua Escriuaõ oes | crevj |
Francisco Affonço Ferreira
Crus de
Antonio † Borges
(XIMENES, 2006, p.104).
Quando o crime era de morte ou de espancamento com lesões, havia um auto de
exame de corpo de delito. Esse auto era escrito por outro escrivão que acompanhava o
cirurgião. O exame de corpo de delito era realizado por um cirurgião aprovado e, na falta
deste, um barbeiro, ou seja, um cidadão comum não qualificado para a arte da medicina. No
interior das vilas cearenses havia muitos deles em substituição aos cirurgiões aprovados e
licenciados. Nos casos de estupro, a vistoria era realizada por duas parteiras profissionais.
Caso não houvesse parteiras na comunidade onde ocorria o crime, duas mulheres que
entendiam do assunto eram chamadas e examinavam a vítima, dando o veredicto, que era
aceito pelo juiz como verdadeiro. Em todos os registros estudados não parteiras de
profissão no Ceará, apenas mulheres inteligentes, como dizem as narrativas que entendiam do
assunto.
Em alguns livros, no final dos autos, consta toda a prestação de contas das
despesas, como as folhas de papel, o pagamento do escrivão, o preço do auto, do juramento e
da rasa
49
com a soma total ao lado e a assinatura do juiz. Essa contabilidade nem sempre vem
em todos os livros. Observemos a prestação de conta anotada no final do auto10 do códice 33.
49
Na definição de Aulete (1986, p. 1624), rasa significa certa quantidade de linhas contidas numa página de
escrita em processos e outros autos, as quais devem também conter certa quantidade de letras segundo a tabela
respectiva. De Palácio e Silva (2006, p. 1151) acrescenta que “a rasa revela-se a contribuição que corresponde ao
trabalho executado pelo escrivão, oficial ou escrevente, na trasladação da escritura ou da certidão, computada
186
(8) Custas para oMinistro
Auto Destribuição. eConta............... .............240
Juramentos.......................................................720 960
Escrivam
Auto................................................................. 40 1280
raza............................................................... 1240 2240
Selo.............................................................................. 160
2.400
Deve pagar o competente Sello de | Sette meias folhas de papel que || 47v que
contem este auto. Villa do | I15 de Dezembro de1810 | OPrimeiro
Escrivaõ no
impedi = | mento doSegundo da Correiçam |
Joaõ Rodriguiz Chavez
Pagou de Selo de Sete meias folhas | 140 reis Icó 24 de Dezembro de 1810٪
Paz Roiz Baptista
(XIMENES, 2006, p. 122).
No geral, a estrutura dos autos obedece à descrição apresentada. Mantém-se fixa,
apesar da inserção de pequenos textos, que surgem em alguns processos como uma certidão,
uma licença, uma devassa, dentre outros, por exemplo, a observação que segue após essa
prestação de contas mostrada acima.
A linguagem, apesar de formal, muitas vezes revela reflexos da oralidade, em que
podemos observar traços da fala das pessoas, expressando o modo de pensar e de viver no
período.
Os Autos de Querela trazem apenas as denúncias dos crimes. Conforme dito
anteriormente, as peças complementares vêm em livros separados, e muitos deles perdidos,
dadas as circunstâncias, impossibilitando, dessa maneira, o conhecimento integral dos fatos.
No entanto, são de grande relevância as informações contidas nos autos porque possibilitam o
conhecimento dos tipos de crimes mais comuns, de que maneira eram praticados, os
instrumentos que eram utilizados e como as pessoas reagiam diante da situação, que
algumas manifestações axiológicas a respeito da violência praticada contra os denunciantes. É
por essa grande importância que tais documentos apresentam, que investimos nesta pesquisa
de resgate de nossa história social e do uso da língua portuguesa, com enfoque nas unidades
fraseológicas que se sobressaem durante toda a narrativa.
pelo número de linhas ou de palavras, com que é elaborada”.
187
5.2.2 Dos Aspectos Linguísticos dos Documentos
Destacamos algumas características linguísticas mais importantes atinentes à
escrita do período. O uso de abreviaturas é muito recorrente, caracterizando esse dado a
escrita da época. Aquelas podem aparecer no corpo do texto ou à margem da mancha. Quando
se introduz a petição, a forma P
am.
de petiçam, e quando se registram o despacho e a
distribuição do juiz, as formas Desp.
o
e Destr.
am
aparecem fora da mancha de texto, à margem
direita do papel, geralmente. Muitas outras formas abreviadas são usadas, as quais
desenvolvemos colocando em itálico a parte acrescentada, conforme a nota número 2 da
edição (cf. 3.1.5, item. 2).
Há uma grande variação gráfica com predomínio muito forte da escrita fonética. É
evidente a marca da liberdade de escrever sem obediência à normas gramaticais quanto à
grafia, apesar de uma sintaxe rebuscada. Em relação às normas ortográficas, quase não
sinais de pontuação. Muito raramente aparecem vírgulas ou um ponto para marcar o final das
sentenças. É mais comum o uso de dois traços semelhantes ao sinal de igualdade (=), no lugar
de dois pontos, e barras duplas para fechar a frase (//), com função de ponto. A acentuação
gráfica também é muito escassa, sendo comum o apóstrofe sobre o o nas terminações aỏ, e um
circunflexo substituindo um acento agudo. Os limites de palavras muitas vezes não são
considerados, como também a translineação, que é determinada pelo espaço da mancha do
texto. Dessa forma se verifica o registro de consoante isolada no final de uma linha ou de
consoantes dobradas translineadas juntas.
Cronologicamente, a grafia dos Autos de Querela se situa no período ortográfico
da língua portuguesa denominado de pseudo-etimológico que, conforme Nunes (1989),
começa a ser usado no início do século XVII e se estende até o início do século XX, quando
em 1904 Gonçalves Viana elabora a obra Ortografia Nacional, dando início ao período
simplificado ou reformado que entra em vigor em 1911, estendendo-se até os nossos dias.
Para Coutinho (1976), o período pseudo-etimológico caracteriza-se pela
conservação das letras originais da palavra sem valor fonético. Além dos novos vocábulos
assumirem a forma alatinada, as formas vulgares também sofrem influência da etimologia.
Além da dificuldade que acarreta na prática, por exigir do escritor o conhecimento de vários
idiomas, é este sistema por natureza anacrônico, assinalando divórcio total entre a língua
falada e a escrita.” (COUTINHO, 1976, p. 76).
Contudo, não há nos documentos aqui estudados predominância da grafia pseudo-
-etimológica, sobressaem os muitos aspectos da ortografia fonética, predominando as marcas
188
da fase mais arcaica da língua. O que caracteriza essa grafia são as representações dos
fonemas registrados como grafemas.
O período fonético começa nos primórdios da formação da língua e se estende até
o século XVI, coincidindo com o seu período arcaico. Nesta etapa da ortografia portuguesa
sobressaem-se os sons representados por meio de letras que elas realmente representam.
Caracteriza este período a representação, pelas letras, dos sons que elas realmente
representam, consoante a evolução por eles sofrida, e a ausência, em geral, de
caracteres não proferidos.Verdade seja que essa representação nem sempre
acompanhou pari passu as alterações que se foram dando e por vezes conservou-se
antiquada em relação ao desenvolvimento da língua. (NUNES, 1989, p. 193).
Segundo Pereira (1932), o sistema fonético consiste em se escrever como se
pronuncia, fazendo com que a palavra escrita seja imagem da palavra falada. Contudo, como
existe uma grande variação na maneira de falar de cada indivíduo, como poderia haver uma
uniformidade na ortografia, que esta pretende representar os sons da fala? O resultado é um
sincretismo na escrita, como se refere o autor:
Este systema, tão preconizado pelos phoneticistas, não offerece, comtudo, base
uniforme para uma reforma ortographica, vista a grande variedade da pronuncia, de
região para região e de século para século. Sendo nelle a palavra escripta a imagem
exacta da palavra fallada, a mudança constante da pronuncia determinaria a
constante mudança de sua representação. (PEREIRA, 1932, p.102).
Algumas ocorrências nos autos mostram a representação fonética empregada
como grafema: caza em vez de casa, Jozé por José; uma grande confusão relativa a alguns
fonemas que são grafados de diferentes maneiras: o fonema /s/ que se realiza na forma dos
grafemas: ss, ç, s, c, em justissas, justisa, devaca, devaça, devassa; pasifica, oitoçentos,
merce, mersse, merçe, fassa, faça, terça, terssa; o fonema /z/ é registrado com s em juis, fes,
crus; acréscimos de fonemas em moradoura; permuta em estrupo, crasto por castro. Além
disso, irregularidades no uso de maiúsculas por minúsculas e vice-versa, dentre muitos outros
casos.
Quanto aos aspectos sintáticos, um fato muito relevante é a ordem dos elementos
nas sentenças. Em muitos casos, no que se refere à posição do sujeito e dos complementos
verbais, há uma variação muito recorrente, com bastante uso da inversão da ordem de
colocação: verbo + SN (sujeito); complementos + V(verbo), o que difere em relação ao uso
atual da língua. A inversão do sujeito e dos complementos é visível, apesar de não dominante.
O caso da colocação dos pronomes átonos também é um fenômeno considerável,
o qual descrevemos anteriormente, e os resultados podem ser sucintamente assinalados:
189
ocorre a predominância quase absoluta da próclise em todos os contextos em comparação à
ênclise. Esta predomina com gerúndio. Não registramos nenhum caso de mesóclise e
destacam-se os usos de interpolação ou apossínclese muito recorrentes. (XIMENES, 2004).
Alguns aspectos textuais merecem ser destacados. Não há rasuras ou borrões, mas
frequentemente erros do escrivão que são corrigidos com a expressão digo, conforme o
exposto abaixo:
(9) no | Supra dito, dia, mes, eanno deSeo moto proprio | toCou fogo em hum rosado,
que o Suplicante tinha | plantado de algudoins desde o anno atrazado, do qu | al
estaua apanhado,os seos algudoiñs, desde o anno | atrazado, digo queimando lhe a
Cerca igualmente os mes | mos algudueiros cauzando aoSuplicante hum graui | çimo
prejuizo[...] (XIMENES, 2006, p. 46)
Há repetições de palavras ou expressões:
(10) dito Querelante o di | to juramento deClarou que bem everdadeiramente Sem | dollo
tençaõ daua aprezente Querella taõ Somen | te pello Cazo reContado
[[reContado]] emSua petiçaõ para | Imenda deoutros que o quizerem Imitar[...]
(XIMENES, 2006, p.72).
Há muita repetição dos elementos o dito, a dita como forma referencial:
(11) epara Constar | mandou o dito Juis fazer este aucto emque aSignou deNome | inteiro
pello dito Querelante naõ Saber ler nem esCrever | JozédeBarros Corrêa
EsCrivaõ queo esCrevi | (XIMENES, 2006, p.82).
Em relação ao uso de expressões linguísticas, encontramos algumas construções
sintáticas da língua comum empregadas frequentemente pelos escrivães, tais como: Ano da
Era Cristã, Irmão inteiro,vive de portas a dentro, uzeiro e vezeiro, pouco mais ou menos, dentre
outras que constituem o acervo da língua em uso na época.
As unidades fraseológicas específicas, características do gênero em apreço Auto
de Querela e, particularmente, da linguagem jurídica constituem-se em torno das partes
constitutivas dos processos criminais, principalmente na abertura e fechamento de cada peça
do processo com finalidade discursiva específica. Este objeto será desenvolvido com maior
destaque, já que é o foco principal de nossa pesquisa.
São essas algumas marcas linguísticas que caracterizam os documentos e
constituem uma marca da escrita do Brasil colonial, ou seja, da língua portuguesa dos anos
setecentistas e oitocentistas.
190
5.2.3 Dos Aspectos Codicológicos
O estado físico dos seis códices que editamos é praticamente o mesmo de
qualquer documento da época. Em geral apresentam folhas amareladas e desgastadas pela
ação do tempo e pelas condições de acondicionamento não muito bem apropriadas de nossos
arquivos públicos. Digo de nossos porque temos informações de outros arquivos brasileiros
que dão as mesmas condições de tratamento ao seu acervo.
Passamos a descrever os códices no conjunto, destacando os aspectos mais
relevantes, como as suas dimensões, a cor da tinta, o traçado das letras, o tipo de papel usado
e o estado de conservação, dentre outros. Algumas particularidades reservadas a cada um dos
códices serão destacadas em particular. O objetivo é mostrar o perfil do suporte que retém os
textos como complemento integrante muito relevante para os estudos em Filologia, que
essa ciência apresenta uma forte relação com áreas afins, como a Paleografia e a
Codicologia
50
.
Os seis códices apresentam as mesmas dimensões, medindo 300mm de altura com
210mm de largura, exceção do códice 1097, que passou por processo de reforma, quando a
guilhotina cortou as laterais e a parte inferior, cortando também linhas do texto, causando-lhe
prejuízo quanto aos seu conteúdo. Por esta razão, este códice apresenta 290mm de altura e
190mm de largura. Em todos eles margens nas laterais da mancha de texto e os fólios não
são pautados. Todos têm uma capa de couro ou de tecido, protegidas por uma sobrecapa de
papel branco com brasão do governo do Estado do Ceará, sendo que esta sobrecapa é algo
muito recente.
Nenhum códice apresenta marca d‟água
51
ou outras marcas especiais. Apenas o
carimbo do arquivo público em todos os fólios. Como aspecto da escrita, em todos há o uso
de reclamos
52
. Em crimes de furtos de animais como vacas, bois e cavalos, vem, no corpo ou
fora da mancha do texto, a reprodução da marca do animal, ou seja, o sinal do ferro que o
50
Codicologia é definida por Aulete (1996, p. 399) como o estudo dos manuscritos, como objetos culturais, para
fins históricos. Para Cambraia (2005) a Codicologia consiste no estudo da técnica do livro manuscrito, ou seja, o
códice. A codicologia é importante para se estudar a história dos manuscritos, para investigar a sua localização,
os problemas de catalogação e de comércio dos mesmos. Para a crítica textual a Codicologia é relevante, pois
fornece dados para compreender as transformações que ocorrem em um texto no processo de transmissão, além
de permitir a descrição dos códices a qual deve constar na edição dos textos preservados nos manuscritos.
51
Marca d‟água eram figuras que se colocavam no entrelaçamento dos fios de tecidos para a fabricação do
papel. Tais figuras como mão, estrela, âncora deixavam marcas sobre a lâmina de papel, que eram perceptíveis
contra a luz e se denomina marca d‟agua ou filigrana, conforme Cambraia (2005).
52
Reclamo ou chamadeira era um recurso de repetir a última palavra da página, no início da seguinte. “A escrita
era feita dos dois lados da página Opistografia. Quando eram usadas várias folhas, no momento de encaderná-
las, utilizava-se o recurso do reclamo”. (ACIOLI, 2003, p. 9).
191
dono dos animais utilizava para marcá-los ou ferrá-los, estabelecendo-os como sua
propriedade. No ato de registrar a denúncia do furto, o escrivão desenha esses sinais que se
configuram como elementos constituintes dos processos.
Os aspectos físicos comuns a todos os códices é o tipo de escrita humanística
cursiva usada nesta etapa histórica dos manuscritos desde o século XVI , quando essa passa
a substituir a escrita gótica, muito usada na Idade Média. O traçado da letra apresenta variação
de cheia e arredondada para inclinada e delgada. Não há regularidade no formato e varia de
acordo com cada escrivão. É tipicamente esse modelo de escrita que sobressai nos
documentos coloniais pós-letra gótica, o que torna muito difícil a sua leitura por falta da
regularidade do traçado.
A cor da tinta varia muito de tonalidade, às vezes marrom, às vezes amarelada, em
outras passagens, preta. A tinta a ser usada nos princípios da escrita era negra, feita de sulfato
de ferro adicionado à gordura dissolvida, passando à tonalidade castanha com o tempo. A
mesma mudança de cor pode ser observada na etapa da história que tratamos aqui. Trata-se
da tinta ferro-gálica usada nos documentos colôniais que, devido ao elemento de sua
composição, corroía imensamente o papel.
Segundo Cambraia (2005), havia dois tipos de tinta no passado: a de carbono, que
era de base orgânica, por isso não sofria oxidação, mas borrava com facilidade por não
penetrar no suporte material. E a tinta ferro-gálica, predominante na Europa na Idade Média.
Essa tinta era composta por elementos como noz-de-galha, (espécie de resina liberada por
certas árvores), ventríolo (sulfato de cobre ou ferro) e goma. Devido à sua composição
química, o suporte material, ou seja, o papel sofria bastante oxidação
53
.
Sabemos que uma quantidade considerável da documentação presente nas
coleções sob os cuidados dos arquivos brasileiros foi escrita com a tinta ferro-gálica,
compreendendo o período entre os séculos XVII e XIX, tanto em suporte de papel de trapo
como em papel moderno. Sabemos, também, que essa documentação sofre os mecanismos da
degradação inerentes à formulação da tinta e que esses mecanismos são acelerados pelas
condições ambientais típicas de países de clima tropical.
O suporte material usado para registro dos Autos de Querela é do tipo papel trapo,
que se caracteriza por uma textura grossa e resistente ao tempo pelo fato de apresentar trapos
53
Gálico refere-se à noz de galha, ou seja, um ácido que se desenvolve numa infusão de noz de galha exposta ao
ar: o ácido gálico provém de decomposição de tanino em contato com o ar. O ácido gálico encontra-se em
diferentes produtos vegetais devido geralmente, à picada de um inseto que ali deposita os ovos. As folhas são
usadas em medicina, pelas propriedades adstringentes e na insdústria para tinturaria ou para o curtimento de
pele. (LELLO; LELLO, [s.d.], p.1088-1089).
192
em sua composição. A confecção de papel com trapos foi uma prática muito comum a partir
do século X. Mesmo que tenha sido reduzido com a invenção da máquina de fazer papel de
celulose, não se extinguira de todo tal prática. Até o século XIX ainda se confeccionavam
livros com esse tipo de material.
Todos os códices de nosso estudo apresentam ainda como características comuns
os termos de abertura e de encerramento e a numeração dos fólios. No termo de abertura o
juiz apresenta o livro informando a sua função e, em seguida, assina, numera e rubrica todos
os fólios. Apresentamos abaixo o termo de abertura do códice 64.
(12) Este livro ha de servir para Autos de | querelas que passo a rubricar por Comis | saõ
verbal do Illustrissimo Senhor Dezemrgador Ouvidor Geral | e Corregedor Antonio
Manuel Galvaõ. Vila da Fortaleza | 28 de Dezembro de 1810٪
Joaquim Lopes d‟Abreu
(XIMENES, 2006, p.151).
No recto de cada fólio, na parte superior, fora da mancha de texto, há o número do
fólio e a rubrica do juiz. O termo de encerramento encontra-se no último fólio do códice.
Nesse termo, o juiz indica a quantidade de folhas contidas e assina, conforme vemos abaixo.
(13) Tem este livro quarenta eseis folhas | que numerei e rubriquei com aminha ru | brica=
Abreu = doque fiz este termo٪ For | taleza 28 do Dezembro do 181
Joaquim Lopes d‟ Abreu |
(XIMENES, 2006, p. 192).
Cada códice possui suas particularidades inerentes, as quais passamos a descrever.
O códice 1460 é do século XVIII e constam nele 50 autos escritos entre 1779 e 1785, com os
termos de abertura e de encerramento. Há 117 fólios, todos preenchidos no recto e no verso. A
capa é de couro curtido avermelhado e está bastante gasta. Em todos os fólios, sem exceção,
um carimbo do arquivo. algumas manchas causadas por derrama de líquido,
provavelmente água, nas extremidades superiores e laterais do lado direito dos 11 primeiros
fólios. vários furos causados por fungos nas bordas e no dorso. Todos os fólios estão
descolados da capa. No interior do livro vários fólios corroídos pela ferrugem da tinta. A
fotografia abaixo mostra o estado de conservação do livro.
193
Figura 5 Foto 1 parte de um Auto de Querela
Fonte: APEC (1785, Livro 1460).
Esta fotografia do fólio 7r, do Livro 1460, demonstra alguns furos na mancha de
texto causados pela oxidação da tinta e, nas margens, danos feitos por insetos.
No ângulo esquerdo superior o carimbo do arquivo, que é uma intervenção
posterior à escrita do texto. Na margem inferior, um risco feito pelo próprio escrivão, abaixo
da última linha. No ângulo direito superior, fora da mancha de texto, aparece a numeração do
fólio e a rubrica Barros do corregedor José da Costa Dias e Barros. Na parte inferior, a forma
abreviada P.
am
de petição.
O corpo do texto traz a apresentação ou caput, a remissão ao livro dos sumários, a
introdução da querela e o início da petição. O auto é escrito nos fólios 7r ao 8v, portanto
ocupando dois fólios recto e verso. Segue a conclusão do auto com as assinaturas e a
prestação de conta.
194
Figura 6 Foto 2 Conclusão de um Auto de Querela e as custas.
Fonte: APEC (1785, Livro 1460).
O códice 1461 é também do século XVIII. Tem apenas 28 fólios escritos nos dois
lados, com exceção do fólio 27v e do 28r. Há, neste códice, o termo de abertura no fólio 1r,
16 autos escritos, datados de 1780 a 1793. No fólio 28v está o termo de encerramento. Não há
carimbo do arquivo em nenhum fólio. No seu interior há vários furos arredondados na mancha
de texto semelhantes a queimaduras, como marca de oxidação da tinta. A foto seguinte é do
termo de abertura do códice.
195
Figura 7 Foto 3 Termo de abertura do códice 1461
Fonte: APEC (1785, Livro 1460).
A fotografia do fólio 1r registra o termo de abertura e a assinatura do corregedor.
A foto abaixo é o termo de encerramento. O material está bem conservado, não apresenta
manchas ou furos, apesar do tempo, pois legivelmente lê-se a data de 14 de junho de 1780, ou
seja, uma longa vida de 229 anos.
Figura 8 Foto 4 - Termo de encerramento do livro 1461
Fonte: APEC (1785, Livro 1460).
O códice 33 é do século XIX e apresenta 98 fólios, mas está incompleto, faltando-
-lhe o termo de encerramento. São registrados 19 autos e o termo de abertura. Neste códice, os
autos são datados de 1807 a 1813. Os fólios estão muito gastos, principalmente os últimos e a
196
capa. muitos furos causados por traças na mancha de texto, nas margens, no local da
rubrica e numeração. Apresentam também manchas de líquido que foi derramado e o carimbo
do arquivo em todos os fólios.
Ocorre também, ao longo de todos os fólios do códice 33, ora no recto ora no
verso, na parte superior centralizado, um carimbo no qual está representado o brasão das
quinas
54
encimado por uma coroa que, por sua vez, é aureolada por uma faixa contendo a
inscrição cauza publica. Sob o brasão lê-se: 10 Reis. O brasão é, ademais, ladeado por dois
ramos que ascendem em forma de hera.
O códice 39 traz registrados 18 autos de 1802 a 1806 e contém 30 fólios. No
fólio 1r o termo de abertura e, no fólio 30v, o termo de encerramento. A capa é de tecido
de linho branco tingido de marrom e parece encerada. o carimbo do arquivo em todos os
fólios. Em geral está muito bem preservado e de fácil leitura.
O códice 64 contém 47 fólios com 17 autos datados de 1811 a 1813. O termo de
abertura se acha no fólio 1r e o de encerramento no verso. No fólio 47r apenas uma
pequena operação matemática. Do do fólio 40v ao 46r está em branco, apenas com o carimbo
do arquivo. Este códice é bem conservado e apresenta um só tipo de letra, pois há somente um
escrivão.
Por último, o códice 1097, que consta de 99 fólios datados de 1824 a 1829,
contendo 13 autos registrados. O primeiro fólio está em branco e não rubrica. No segundo
consta o termo de abertura. Do fólio 77v ao 99v não nada escrito e não termo de
encerramento. O livro é bem encadernado, com uma capa de papel grosso marrom e o
carimbo do arquivo público em todos os fólios. As características comuns aos demais também
se encontram aqui: a letra é bem variada e fólios desgastados e corroídos pela oxidação da
tinta.
5.2.4 Da Compilação dos Manuscritos
54
Quinas refere-se a cada um dos cinco escudos, que fazem parte das armas de Portugal. (LELLO; LELLO, s.d.
p. 681). De acordo com Lopes (s.d), na Batalha de Ourique D. Afonso Henriques vence os mouros, em 25 de
junho de 1139. Após essa vitória o rei mandou pintar no escudo da bandeira nacional cinco pequenos escudos
azuis (quinas) para se lembrar da vitória, sobre os cinco reis mouros. Em cada um dos escudos, mandou pintar
cinco pontos brancos que representam as cinco chagas de Cristo.
197
Os documentos encontram-se no Arquivo Público do Ceará, conforme citado
anteriormente. No livro de índice, encontram-se as informações relativas aos documentos que
possibilitam o acesso a eles.
Localizado o códice, a etapa seguinte foi a trasladação do manuscrito, numa
tentativa de sermos conservador o máximo possível, atendendo ao modelo de transcrição que
adotamos para editar os textos.
Muitos documentos encontram-se deteriorados pela ação do tempo, pela corrosão
da ferrugem da tinta ou, até mesmo, pelos poucos cuidados de alguns consulentes. Em alguns
livros folhas inteiras cujos textos são recuperados com muito esforço e paciência. Quando
nos deparávamos com letras ou passagens estropiadas, travávamos uma luta constante para
recuperarmos a letra ou a palavra registrada. Nesta peleja, gastávamos um bom tempo sem,
muitas vezes, conseguirmos o objetivo, pois em muitos casos a luta foi infrutífera, que a
palavra está completamente ilegível. Nos casos em que ainda há possibilidade de recuperação,
com cuidado, foi possível reconstituir o sentido ou, pelo menos, quase tudo.
No processo de cópia dos manuscritos, seguimos várias etapas. Fizemos uma
primeira leitura e trasladamos os textos para um caderno, pois nossa ão ainda era
desprovida de recursos tecnológicos. Quando o texto original era de fácil compreensão, o
processo acelerava, porém, quando havia borrões, palavras ou passagens de leitura dificultosa,
trechos de difícil compreensão ou folhas corroídas, deixávamos os espaços equivalentes no
caderno ao número de palavras não legíveis que, numa segunda, terceira, quarta ou mais
leituras que fizemos, às vezes, conseguíamos recuperar o sentido e preenchíamos as lacunas.
Em caso de não recuperarmos, indicamos no espaço entre colchetes simples a palavra
[ilegível] e indicamos a quantidade exata ou aproximada de palavras. Após a transcrição do
códice, fizemos a digitalização e mais uma revisão cotejando com o texto original, donde
fizemos várias correções. O texto final da edição foi concluído após outra revisão
confrontada com o original.
Em casos de erros do escrivão, como permuta ou ausência de letras, colocamos
uma nota de de página esclarecendo o erro. Nosso objetivo é a fidelidade máxima ao texto
original. Todas as formas gráficas e os demais sinais que este traz, transcrevemos como tais,
seguindo os parâmetros das normas adotadas, os quais serão esclarecidos no item que segue.
5.2.5 Das Normas de Edição dos Manuscritos
198
Após a coleta do corpus fizemos a edição semidiplomática dos documentos
seguindo a orientação das normas adotadas pelo grupo Para a História do Português
Brasileiro (PHPB), publicadas em Mattos e Silva (2001), as quais transcrevemos a seguir.
Da natureza da edição: as normas para a transcrição dos documentos:
1. A transcrição será conservadora.
2. As abreviaturas, alfabéticas ou não, serão desenvolvidas, marcando-se, em itálico, as
letras omitidas na abreviatura, obedecendo aos seguintes critérios:
a) respeitar, sempre que possível, a grafia do manuscrito, ainda que manifeste
idiossincrasias ortográficas do escriba, como no caso da ocorrência
“munto”, que leva a abreviatura: m.
to
a ser transcrita “munto”;
b) no caso de variação no próprio manuscrito ou em coetâneos, a opção será
para a forma atual ou mais próximas da atual, como no caso de ocorrências
“Deos” e “Deus”, que levam a abreviatura: D.
s
a ser transcrita “Deus”
3. Não será estabelecida fronteira de palavras que venham escritas juntas, nem se
introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver. Exemplos: epor ser; aellas;
daPiedade; ominino; dosertão; mostrandoselhe; achandose; sesegue.
4. A pontuação original será rigorosamente mantida. No caso de espaço maior
intervalar deixado pelo escriba, será marcado: [espaço]. Exemplo: que podem
perjudicar. [espaço] Osdias passaõ eninguem comparece.
5. A acentuação original será rigorosamente mantida, não se permitindo qualquer
alteração. Exemplos: aRepublica; decommercio; edemarcando também lugar; Rey
D. Jose; oRio Pirahý; oexercicio; hé m.
to
convenientes.
6. Será respeitado o emprego de maiúsculas e minúsculas como se apresentam no
original. No caso de alguma variação física dos sinais gráficos resultar de fatores
cursivos, não será considerada relevante. Assim, a comparação do traçado da mesma
letra deve propiciar a melhor solução.
7. Eventuais erros do escriba ou do copista serão remetidos para nota de rodapé, onde
se deixará registrada a lição por sua respectiva correção. Exemplo: nota 1.
Pirassocunda por Pirassonunga; nota 2. deligoncia por deligencia; nota 3.
adverdinto por advertindo.
8. Inserções do escriba ou do copista na entrelinha ou nas margens superior, laterais ou
inferior entram na edição entre os sinais < >, na localização indicada. Exemplo:
<fica definido que olugar convencionado é acasa dePedro nolargo damatriz>.
199
9. Supressões feitas pelo escriba ou pelo copista no original serão tachadas. Exemplo:
todos ninguém dos presentes assignarom; sahiram saiharam aspressas para oadro.
No caso de repetição que o escriba ou o copista não suprimiu, passa a ser suprimida
pelo editor que a coloca entre colchetes duplos. Exemplo: fugi[[gi]]ram correndo
[[correndo]] emdiração opaco.
10. Intervenções de terceiros no documento original devem aparecer no final do
documento, informando-se a localização.
11. Intervenções do editor hão de ser raríssimas, permitindo-se apenas em caso de
extrema necessidade, desde que elucidativas a ponto de não deixarem margem a
dúvida. Quando ocorrerem, devem vir entre colchetes. Exemplo: naõ deixe passar
[registro] de Áreas.
12. Letra ou palavra não legível por deterioração justificam intervenção do editor na
forma do item anterior, com a indicação entre colchetes: [ilegível].
13. Trecho de maior extensão não legível por deterioração receberá a indicação [corridas
+ ou 5 linhas]. Se for caso de trecho riscado ou inteiramente anulado por borrão ou
papel colado em cima, será registrada a informação pertinente entre colchetes e
sublinhada.
14. A divisão das linhas do documento original será preservada, ao longo do texto, na
edição, pela marca de uma barra vertical; | entre as linhas. A mudança de fólio
receberá a marcação com o respectivo número na seqüência de duas barras verticais:
|| 1v. || 2r. || 2v. ||3r.
15. Na edição, as linhas serão numeradas de cinco em cinco a partir da quinta. Essa
numeração será encontrada à margem direita da mancha, à esquerda do leitor. Será
feita de maneira contínua por documento.
16. As assinaturas simples ou as rubricas do punho de quem assina serão sublinhadas.
Os sinais públicos serão indicados entre colchetes. Exemplos: assinatura simples:
Bernardo Jose de Lorena; sinal público: [Bernardo Jose de Lorena].
5.2.6 Da Contextualização Histórica
Para complementar a etapa de edição, fizemos a contextualização do período
histórico-social e do espaço geopolítico e linguístico em que os documentos foram escritos,
destacando os sujeitos envolvidos nos processos jurídicos. Para a caracterização das pessoas
citadas nos autos, elaboramos uma ficha que nos permitiu, através da descrição feita nos
200
próprios documentos, identificar estas pessoas pelo seu perfil social como profissão ou ofício,
cor da pele/etnia ou condição social, grau de instrução, idade, o local de residência, o local da
denúncia, o motivo da denúncia e o instrumento usado para os crimes, enfim, tudo o que é
fornecido pela narrativa dos autos, dos sumários e do rol de culpados. Vale ressaltar que nem
sempre foi possível encontrar todas essas informações, pois algumas foram esquecidas pelos
escrivães, quando registravam as petições de queixas, e muitos sumários de testemunhas
foram perdidos, o que impossibilitou a apresentação de um quadro completo.
As pessoas mencionadas nos Autos de Querela eram as vítimas das violências ou
autores dos delitos, como os querelantes e os querelados, figuras fundamentais no
desenvolvimento dos processos. Eram arroladas três testemunhas em cada auto, duas parteiras
nos casos de estupro ou defloramento, os cirurgiões responsáveis pelos exames de delito, os
juízes e os escrivães que representavam as autoridades encarregadas pela administração da
justiça.Todos esses sujeitos históricos participam dos processos criminias e, por conseguinte,
contribuem para a história social do Ceará no período que se situam os textos.
Para cada uma dessas categorias foi elaborada uma ficha, sendo preenchida de
acordo com os dados fornecidos. A ficha que apresentamos a seguir como ilustração refere-se
aos querelantes do códice 39.
201
Quadro 3 Ficha de identificação dos sujeitos Querelantes
Fonte: APEC, Códice 39
202
Vejamos que espaços em branco por não haver informação nesses itens. Para
caracterizarmos a categoria de escolarizado em oposição a não escolarizado, utilizamos o
critério citado no texto. Quando um querelante não sabe escrever, o juiz assina de cruz e há
uma cruz desenhada no final do auto. Quando o querelante sabe assinar, diz o texto que ele
assinou com o juiz e aparece a assinatura. os querelados nunca assinam nada nem
qualquer informação sobre isso. As parteiras e todas as mulheres citadas são analfabetas,
conforme as narrativas dos textos. Os demais, como escrivães, juízes e cirurgiões são
escolarizados, pelo menos é o que se espera.
A ficha seguinte refere-se aos querelados do códice 39. Nela foram acrescentados
dois itens para determinar o motivo da acusação e o instrumento utilizado no crime, quando
foi possível enumerá-lo. Vemos que há autos em que aparece mais de um querelado. Não é
possível revelar todos os instrumentos, dependendo da natureza do crime. A ocupação, a
idade e o grau de instrução dos querelados nunca são revelados, porém, conservamos estas
colunas na ficha para mantermos a coerência.
203
Quadro 4 Ficha de Identificação dos sujeitos Querelados
Fonte: APEC, Códice 39
Na próxima ficha demonstramos o perfil das testemunhas arroladas nos autos do
códice 39.Tendo em vista a extensão da ficha por causa de vários nome citados, apresentamos
apenas um fragmento.
204
Quadro 5 Ficha de Identificação dos sujeitos Testemunhas
Fonte: APEC, Códice 39
Ao todo são sete tipos de fichas para contemplar as sete categorias citadas:
querelantes, querelados, testemunhas, parteiras, escrivães, cirurgiões e juízes. Para as três
primeiras categorias, por contabilizar uma quantidade maior de pessoas, foram
confeccionadas 18 fichas, sendo uma para cada códice, individualmente. Nas quatro últimas,
205
por compreender um menor número, há apenas uma ficha para os 6 códices. Todo esse
contingente de pessoas contracena no palco da história colonial, atuando ora como sujeitos
das ações, causadores de violência, ora como vítimas dela. , ainda, os que ajudam na
administração, que são os funcionários da justiça. As narrativas os mencionam e nos dão
informações importantes para se conhecer o perfil social do Brasil, especialmente da
Capitania do Ceará.
Através do conhecimento do contexto da escrita, poderemos tirar algumas
conclusões a respeito da influência ou não da história sócio-cultural no âmbito da língua
portuguesa, que caracterizam aspectos da identidade do português brasileiro.
5.3 Do Método de Análise
Nesta pesquisa, adotamos o método de abordagem hipotético-dedutivo por
percebermos a existência de uma lacuna na literatura em filologia no que diz respeito à
organização das UFs. Por meio dos processos de inferência dedutiva será testada a predição
das ocorrências do fenômeno por nós hipotetizado. O método de procedimento é histórico-
tipológico, que aborda o texto de uma área empírica do saber com marcas de uma sincronia
passada referente ao português brasileiro.
5.3.1 Do Estudo Linguístico e Filológico
Geralmente a metodologia empregada em Linguística de Corpus utiliza um
corpus de referência da língua comum para comparar com a linguagem de especialidade. O
intuito é certificar se o fenômeno estudado pertence realmente àquela língua de especialidade
que se deseja estudar. Todavia, em nossa pesquisa não utilizaremos o corpus de referência
dada a dificuldade de encontrarmos corpora informatizados que atendam às mesmas
especificidades do corpus de análise no que diz respeito ao tempo em que foi produzido, ao
modelo de edição adotado e, principalmente, ao tamanho, que o corpus de referência, para
ser eficiente, deve ser duas a cinco vezes maior que o de análise, conforme Sardinha (2004).
Outro motivo ratifica nossa decisão de não usarmos uma referência dada as
características do corpus de estudo. Além de ter sido escrito há mais de duzentos anos,
pertence a uma área do conhecimento específico, o judiciário colonial, e apresenta muitos
aspectos em desuso na linguagem hodierna, visto que o gênero que o caracteriza não circula
mais na sociedade brasileira.
206
5.3.2 Da Ferramenta WordSmith Tools
Para a identificação e seleção das unidades fraseológicas utilizamos algumas
ferramentas do programa computacional da Linguística de Corpus WordSmith Tools versão
demos 4.0 restrita, baixado do sítio www.lixically.net, de autoria de Mike Scott e publicado
pela Oxford University Press. Este programa oferece vários recursos ao usuário para a análise
da linguagem, como determina Sardinha (2004, p.86).
O programa coloca à disposição do analista uma série de recursos que, bem usados,
são extremamente úteis e poderosos na análise de vários aspectos da linguagem,
como a composição lexical, a temática de textos selecionados e a organização
retórica e composicional de gêneros discursivos.
O programa compõe-se de ferramentas, utilitários, instrumentos e funções. As três
ferramentas são: WordList, KeyWords e o Concord.
A WordList apresenta os seguintes componentes de análise: lista de palavras, lista
de multipalavras, lista de palavras de consistência individuais, lista de multipalavras de
consistência e lista de dimensões e densidade lexical.
A WordList nos a frequência e a estatística das ocorrências para analisarmos e
aceitarmos como um termo ou candidato a termo especializado.
O Concord apresenta a concordância, lista de colocados, lista de agrupamentos
lexicais, lista de padrões de colocado, gráfico de distribuição de palavra de busca. É o
Concord que nos dá as expressões de busca mostrando as collocate.
Essa ferramenta produz concordâncias ou listagens das ocorrências de um item
específico (chamado palavra de busca ou nódulo, que pode ser formado por uma ou
mais palavras) acompanhado do texto ao seu redor (o cotexto). (SARDINHA, 2004,
p. 105).
A KeyWord apresenta lista de palavra-chave, banco de dados de listas de
palavras-chave, lista de palavras-chave associadas, lista de agrupamentos textuais, gráfico de
distribuição de palavras-chaves e listagem de elos entre palavras-chave. É a Keywords que
extrai as palavras-chave comparando com o corpus de referência.
Como não utilizamos corpus de referência, não foi necessário utilizarmos a
ferramenta KeyWord. Para nossa pesquisa, foram utilizadas somente a WordList e o Concord.
207
A eficiência do programa WordSmith Tools nos garante o levantamento das
ocorrências para o próximo passo, que foi a análise e a organização do glossário,
considerando dois princípios básicos para o modelo de glossários: a macro e a microestrutura,
que serão descritas posteriormente.
Através da utilização da ferramenta WordList temos os termos de maior
recorrência no corpus e sua estatística, conforme a listagem a seguir. A lista traz somente as
25 primeiras ocorrências, pois utilizamos apenas a versão demo. Palavras como querela, auto
e ano apresentam grande frequência, podendo ser possíveis candidatos a termos,
principalmente quando estabelecem relações de concordância.
Vemos que as ocorrências da palavra AUTO, concordando com querela e
denúncia, geram a UF Auto de Querela e denúncia, com frequência maior como se a
seguir. AUTO ainda faz concordância com outras palavras como vistoria e exame, sendo mais
frequente com querela e denúncia, o que vai gerar uma UF discursiva encarregada pela
abertura do processo e pela apresentação e contextualização dos sujeitos envolvidos nos
crimes apresentados à autoridade judiciária representante do rei na colônia.
N
L1
Centre
R1
R2
R3
R4
R5
1
DO
AUTO DE
QUERELLA
EDENUNCIA
QUE
NESTE
2
VESTORIA
E
DENUNCIA
QUE
3
QUERELA
EDENUIA
DA
4
EXAME
Quadro 6 Ocorrências da palavra AUTO e a sua concordância
A seguir temos o resultado da ferramenta WordList das 25 ocorrências de palavras
que aparecem com maior frequência no corpus. Estas podem ser candidatas a termo,
combinando-se com outras para formar uma unidade fraseológica.
208
N
Word
Freq.
%
1
QUE
2.879
2,28
2
DE
2.445
1,93
3
DO
2.208
1,75
4
#
1.870
1,48
5
O
1.474
1,17
6
E
1.386
1,10
7
POR
1.189
0,94
8
DA
989
0,78
9
COM
918
0,73
10
PARA
869
0,69
11
DITO
776
0,61
12
EM
760
0,60
13
A
698
0,55
14
NO
619
0,49
15
MORADOR
612
0,48
16
SUA
578
0,46
17
TERMO
525
0,42
18
AS
516
0,41
19
QUERELLA
508
0,40
20
SE
487
0,38
21
ANNO
481
0,38
22
AUTO
460
0,36
23
DOS
453
0,36
24
ESCRIVAÕ
443
0,35
25
MAIS
422
0,33
Quadro 7 Frequência de palavras mais usadas no corpus
Registramos na próxima listagem as 25 primeiras ocorrências extraídas através da
ferramenta Concordance, em que a palavra AUTO estabelece relações com outras, formando
a unidade AUTO DE QUERELA E DENÚNCIA. Esta unidade, como dito, constitui a
abertura do processo e caracteriza o gênero jurídico.
209
N
Concordance
1
|| 72v
Auto de Que | rella, e denuncia que | dá
2
Jozé daCosta Dias eBarros || 1v || 2r
Auto dequerela que o Sargento mor |
3
Barros
Auto dequerela que Maria Correa
4
Almeida Guimaraes. Jr.
Auto dequerella queda Manoel da |
5
= Elogo eu escriv ajuntei | neste
auto dequerela a petis eauto deexame
6
Lage | elogo eu escrivaõ ajuntei aeste
auto dequerela apetis | em
7
Manoel Pinto Cavaleiro || 7v
Auto dequerela eDenuncia que
8
Adr. de Mag.es 3 ||12r
Auto dequerella e Denuncia que
9
3 Marreiros || 9v
Auto dequarela que Joze Vieira de
10
Fortaleza Em 18 de Agosto de 1787.
Auto dequerella e Denuncia que
11
Vila do Forte Em 26 de Março de 1789.
Auto de Quarella e Denunsia que
12
| 01 de Março de 1792 || 17r
Auto de Quarella e Denuncia que
13
Antonio Mendes de Carvalho ||19r
Auto dequarella e Denuncia que o
14
Simaõ Barboza Cordeiro
Auto de Quarella e Denuncia que
15
|| 22r
Auto dequerella e Denuncia de Felis
16
Ignacio Barrozo desouza
Auto dequerella eDenuncia que
17
Felis Pio Fernandez
Auto de querela edenuncia que o
18
de Março de 1793 Pedro de Magalhães
Auto de Querelaedenuncia que
19
Jozé daCosta Dias eBarros 1r
Auto daquerela edenuncia que daõ An |
20
630 Barros || 5r
Auto dequerela edenuncia que | o
21
arros 1 [assinatura]
Auto dequerela edenuncia queda | Joaõ
22
580 4 || 8v
Auto dequerelaedenuncia quedaõ
23
760 3 || 12r
Auto de querela edenuncia quedaõ Ama
24
240 750 Barros
Auto daquerela edenuncia que daõ |
25
Barros || 19r
Auto de querella e denuncia que da Joaõ
Quadro 8 Ocorrências do Concordance da palavra Auto em 25 casos
A palavra Auto aparece sempre no início da linha, pois é a primeira a se
configurar no documento, eis porque à sua esquerda não há concordância, apenas nomes de
pessoas e números de páginas. À direita aparecem as concordâncias das cinco primeiras
palavras que o programa fornece.
Na próxima lista do Concordance, a palavra mercê apresenta frequência alta,
concordando com o verbo receber, constituindo a expressão Receberá Mercê. Esta UF é
recorrente no fechamento da narrativa de petição como forma discursiva de fechamento.
Através dela, o querelante se dirige diretamente à autoridade governamental em forma de
pedio de deferimento.
Apresentamos três listas em que variação gráfica tanto da base verbal, no caso,
o verbo receber, que é grafado no futuro ora do presente ora do pretérito, embora com menos
frequência e, ainda, na forma perifrástica: Receberá/receberia ou variando para um
210
modalizador espera receber mercê, como se observa. O componente da concordância também
sofre variações gráficas de merce/mersse/Merce, como se observa.
N
Concordance
1
pesoas abacho | declaradas eRecebe
merce// Joam Joze | Pacheco Omem
2
Senaõ | duas testimunhas = Receberá
merce = Mano | el dos Santos
3
pe | soas abaixo declaradas, recebera
merce// | Joze Pereira daCunha omem
4
e oitenta eSinco | erecebe
merce// Francisco Franco | deLima
5
| Seguintes = Erecebera
merce = Joze | daCosta homem pardo
6
| dade doque souberem E recebera
merce Tes || 89v Testemunhas = Manoel
7
naformado | estillo = Erecebera
merce = Testemunhas = Vi- | cente
8
| para Ser punido = E recebera
merce = | Joze Nunes cazado morador
9
vaõ a baixo declaradas | = E Recebe
merce = Testemunhas = Andre Coe | lho
10
astestemunhas amargem E | recebera
merce = testemunhas = Jo Gomes
11
eo mais que aSima pede | eRecebera
merce = testemunhas = Jo deMatos
12
contraa querelada e recebera |
merce = Testemunhas Pedro deGois
13
prezo o mesmo culpado | E Recebera
Merce testemunhas Ignacio
14
Dereito, eJusta do | que recebera
Merce = Des | pacho = Destribuida |
15
acim; deque || 56v Deque recebera
Merce = Dispa | cho = Como requer =
16
entregue aoSuplicante | Ereceberá
Merce = Proceda-se | oExame requerido
17
| Contra osuplicado = recebe | ra
Merce = Testemunha pri | meira =
18
Contra | osdelinquentes erecebera
Merce = | Como pede Fortaleza vente
19
seguin- | tes = Espera receber
merce = Testemu | nha primeira = Luis
20
ao Rol | dos Culpados = E Recebera |
Merce = Jose Ribeiro Car | neiro homen
21
| Auto de Vestoria = E Recebera |
Merce = Passe doque Constar | Forta2
22
abaixo | declaradas = E Recebera
Merce = | Testemunhas = Joze
23
reque | rer Seo Dereito = E Rece | bera
Merce = Proceda [corroído 1 linha] || 12v
24
do | Cerurgiaõ da Terra = eRe | cebera
Merce = Sim Villa | da Granja vente hum
25
testemunhas a margem = | E Recebera
Merce = oCapitam | Mor Jose daCosta
Quadro 9 Ocorrências do Concordance da palavra mercê e suas variantes
As ocorrências apresentadas são apenas algumas para ilustração do fenômeno.
Essas UFs foram selecionadas conforme as localizações no texto, como abordaremos a seguir.
5.3.3 Da Identificação do Processo e dos seus Constituintes
O termo processo exprime a ideia de prosseguimento. Na linguagem jurídica
expressa a ordem ou sequência das coisas para que cada uma delas venha a seu tempo. O
termo assume, conforme De Plácido e Silva (2006), um sentido amplo, significando um
conjunto de princípios e de regras jurídicas instituído para aplicação da justiça, e, num sentido
211
estrito, é empregado para designar um conjunto de atos que deve ser executado na ordem
preestabelecida para a investigação e solução de pretensão submetida à tutela jurídica.
Processo é entendido também como conjunto de preceitos legais para movimentar
uma ação ou um conjunto de peças com fins de efetivar um direito.
Conjunto coordenado de preceitos legais normativos, que imprimem forma e
movimento à ação. Complexo de peças, termos e atos, com os quais a causa é
lançada, instruída, disciplinada e promovida em juízo, a fim de tornar efetivo um
direito [...] (NUNES, 1995, p. 407).
Como já aludimos antes, os Autos de Querela constituem uma das peças do
processo criminal. Infelizmente, não encontramos, no Ceará, o prosseguimento desses
processos, ou porque os órgãos judiciais eram insuficientes para encaminhá-los ou porque se
perderam ao longo do tempo. A hipótese primeira é mais razoável, visto que, como veremos,
a justiça e os órgãos governamentais do Ceará, na época em que se situam os textos, eram
ineficientes para encaminhar todos os processos, pois faltava pessoal preparado, como juízes
letrados, advogados e corregedores, além de tribunais. Mesmo em Portugal, onde há uma
estrutura administrativa mais organizada, nos inúmeros autos que tivemos acesso, quase todos
terminam na apresentação de queixa.
Contudo, dois dos autos escritos em Lisboa pertencentes ao acervo do Arquivo
Nacional da Torre do Tombo (ANTT), que chegaram às nossas mãos, apresentam-se integrais,
formando processos completos. Destacamos aqui um crime de estupro pertencente ao fundo
Feitos Findos Processos Crime Letra J, Mc. 235, N°. 34, Cx. 613.
O documento contém um Auto de Querela escrito em um caderno com 18 folhas,
contendo a petição, o sumário de testemunhas e a pronúncia. Tudo isso constitui apenas a
primeira etapa. O caderno é anexado ao restante do processo, compondo o todo em que são
inseridas várias peças, concluindo com a condenação do réu. Trata-se de um caso de estupro
cometido aleivosamente contra a filha de um proprietário rural. O querelado é um empregado
da fazenda, casado e com vários filhos. A vítima encontra-se grávida de vários meses, quando
o pai soube do fato e procura a justiça. Apresenta as testemunhas que narram tudo que o
sabem a respeito do acontecimento e o queixoso é pronunciado à prisão e livramento. se
encontra preso enquanto o processo corre na justiça. É acusado de traição e aleivosia por viver
dentro da casa do patrão e trair-lhe a confiança. Além do estupro e gravidez de uma moça
honesta, o querelado, de condição social inferior, é servo da casa do pai da moça.
212
Este processo é longo, constam mais de 118 folhas. Várias peças são anexadas
pelos advogados de ambas as partes. depoimento de testemunhas, um libelo, ou seja, um
longo texto em que a justiça expõe as razões que justificam o crime. Por fim, o réu foi
sentenciado a cinco anos de degredo na Ilha de Cabo Verde, a pagar uma quantia à moça
ofendida, além de pagar as despesas do processo.
Concluimos, portanto, que o Auto de Querela é apenas uma peça que, por sua vez,
é constituída por várias outras, como: a petição, a relação das testemunhas, o despacho, a
distribuição, o exame de vistoria etc. Essa primeira parte é fundamental para haver
continuidade na justiça, mas nem todos tiveram a sorte de prosseguir enquanto processo
criminal.
Conforme De Plácido e Silva (2006), processo criminal tem a seguinte definição:
[...] é o conjunto de atos, indicados na lei processual penal, que se fazem necessários
para o cumprimento e efetividade de todo procedimento penal, pelo qual se
movimenta a ação da justiça pública para punição ou castigo dos crimes e delitos
cometidos. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 1102, grifo do autor).
Os Autos de Querela são peças de um processo criminal e apresentam uma
estrutura razoavelmente fixa em que os elementos são destacados como essenciais na sua
confecção. Chamaremos esse documento, daqui por diante, de peça 1, a qual se somam outras
em sua composição que denominaremos de peças 2, 3 etc.
55
Entendemos por peça o conceito
atribuído por De Plácido e Silva que a define como documentos integrantes de um processo.
Na terminologia forense, é o documento ou qualquer escrito que se integra ou faça
parte dos autos ou processo. Designa, pois qualquer parte elementar ou componente
do processo: petição, contestação, laudo, documentos probatórios, depoimentos, etc.
(DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 1017, grifo do autor).
Na peça 1, destaca-se, em primeiro lugar, o segmento de apresentação ou caput,
em que são citados e qualificados os sujeitos envolvidos. No segmento seguinte, faz-se a
remissão ao livro de sumário. Logo abaixo, outro segmento com a introdução e
contextualização da querela e a junção de outras peças que compõem o todo: a petição, a
relação das testemunhas, o despacho, a distribuição, um auto de exame e vistoria que, por sua
55
Poderíamos classificar os processos criminais como vários gêneros textuais acoplados em cuja estrutura
organizacional se destacam alguns moves, conforme teoria de Swales (1990), no entanto, preferimos não
utilizar essa teoria e sua terminologia por entendermos que sua aplicação não caracterizará as idiossincrasias
desses documentos.
213
vez, apresenta mais de um segmento; a conclusão do auto e, por fim, uma peça tratando da
prestação de contas ou custas.
No auto que transcrevemos a seguir podemos visualizar de forma mais concreta
todos os segmentos que o compõem. Lembramos que, de modo geral, apresenta a estrutura
organizacional descrita acima, mas autos em que aparecem outros segmentos em sua
organização. Em seguida, descrevemos todas as peças mais detalhadamente com seus
segmentos, quando houver, destacando as formas discursivas comumente empregadas como
forma de abertura e de fechamento e as unidades fraseológicas que se evidenciam nesses
segmentos.
5.3.3.1 Apresentação de um Auto de Querela
(14) Auto dequerela eDenuncia que dá | Thereza Maria deJezus, eSeo Padrasto | Antonio Borges moradora na
Boa | uista; de Pedro Malheiros deAlbu | querque branco Solteiro filho de | Joaõ Alues Malheiros |
Tem Seo Sumario no Livro deles afolha |
Anno doNascimento deNoso Senhor | Jezu Cristo demil oito centos eoito annos | aos quatro dias domes
deJunho do di | to anno nesta Vila de Sobral Capita | nia do Siara grande, emCazas de | aposentadoria do Doutor
Dezembar | gador Ouuidor Geral, eCorregedor | daComarca Francisco Afonço | Ferreira onde uim euEscriuaõ de
| Seo Cargo adiante nomiado, eSendo | ahi os querelantes Thereza Maria | deJezus, eSeo Padrasto Antonio
Borges || 23r <f23 FAFerreira> Por eles mefoi entregue huma Sua piti | çaõ dequeixa despaxada pelo di | to
Ministro, eamim Destribuida | cujo Theor deuerbo aduerbum | oSeguinte = <Petiçam> Illustrissimo Senhor
Dou | tor Dezembargador Ouuidor Geral, eCorre | gedor daComarca = Querelaõ, edenunçia | perante uosa
Senhoria; easmais Justicias | deSua Alteza Real Thereza Maria deJezus | mulher mamaluca menor dequinze |
annos filha Ligitima de Filipe Pereira | Gomes ja defunto, eSua molher Ma | ria Rodrigues deAraujo; Antonio
Bor | ges como Administrador deSua molher | Maria Rodrogues de Araujo Viuua que | ficou dodito Filipe
Gomes Pereira, mora | dores noSitio xamado Boa uista da | Serra Beruoca termo desta Vila, eju | risdicaõ deuosa
Senhoria: de Pedro Ma | lheiros deAlbuquerque branco Solteiro | filho Ligitimo deJoaõ Alues Malheiro | eSua
mulher Maria de tal morador | nomesmo Lugar da Boa uista termo | desta mesma Vila deSobral, ejurisdicaõ |
deuosa Senhoria; ea razaõ deSua quere | lapor que estando aprimeira quere | lante uiuendo honestamente
enCa | za doSegundo querelante Seo Padras | to, que aCriaua com todo recato hon | rra , ehonestidade para lhedar
o Estado || 23v Oestado deCazada com pessoa Conceinhavel, | o querelado aentrou aSolicitar dea | mores, ecom
promesas deCazamento a | Levou deSua honrra, euirgindade na | noite dodia uinte dito deJunho | demil oito
centos eSete uespera deS. | Pedro asdes horas danoite, mais ou me | nos tendo aprimeira querelante hido | com
Sua i conuidada pela Mãi | doquerelado apasar naCaza dela | eaSistir acerto pasatempos, efolias, | atoque
deinstrumentos, eMuzicas em | rebecas, eViolas que Seestauaõ fazendo | na dita noite efoi continuando n‟ ami |
zade ilicita; emprincipios deDezembro | dodito anno demil oito centos eSete raptou | aquerelante daCaza
doSegundo Querelan | te, eafoi por, edepositar emCaza de | Joaõ Alues, irmaõ dele Querelado, ra | ptor, morador
noSitio xamado Santa | Thereza demesma serra Beruoca | termo desta Vila, ejurisdiçaõ de Vosa | Senhoria,
eLafoi continciando names | ma amizade ilícita, aSegurando Sem | pre aprimeira querelante que Caza | ua com
ela, eaodepois atirou da Ca | za dodito Irmaõ Joaõ Alues, eafoi | por, edepozitar emCaza daparda Lucia | na
Cazada com opreto Antonio onde | ateue por uarios meses, eamulher doSe | gundo Querelante afoi buscar, epor |
que os referidos Cazos deStupro, erapto || 24r <f24 FAFerreira> E rapto saõ deQuerela naforma | das
ordenaçoens do Reino, edos pa | ragrafos oitauo, e nono da Lei | deSeis deOitubro de mil Sete centos | eoitenta
equatro, ealeiuozia pela grande | amizade que oquerelado tinha naCa | za dos querelantes; como estaõ dentro |
doanno, edia, tanto doStupro, como | do rapto, eaprimeira Querelante me | nor dedezaSete annos, eambas as
que | relantes pessoas rusticas pobres, emizeraueis que deuem ter restituiçaõ | quando dela neçessitem oqual im |
ploraõ para naõ perderem o Seo | Direito; defacto querelaõ do Que | relado aprimeira Querelante pelo | Stupro,
eoSegundo pelo rapto, aleiuo | zia para emmenda do Querelado | exemplo deoutros, Satisfaçaõ dos Que |
214
relantes, eda Republica ofendida, por | tanto = Pedem auosa Senhoria SejaSer | uido mandar que destribuida
esta | ejurando os Querelantes aSua Quere | la Seproceda oexame, euestoria na | Querelante Strupada por
Parteiras, ou | molheres honestas, eintiligentes, eaode | pois aSomario, eprouada aque baste | obrigue aprizaõ,
eLivramento man | dando passar mandado, ePrecatorias | com o Theor dapronuncia, todas as || 24v Asmais
Ordens necessarias para Ser | prezo oQuerelado como todo oSegredo da | Justica; eoferecerem por testemunhas |
as pessoas abaixo declaradas = erecebera | merce= <Testemunhas> Manoel Joze homem branco | Cazado
morador noSitio xamado | Canto daSerra da Beruoca termo | desta Vila deSobral, uiue deagre | cultura = Joaõ
Gonçalues homem | mamaluco Cazado morador na Ca | pela daBeruoca termo desta mesma | Vila uiue
deagricultura = o Capitaõ | Comandante Joze Vicente Alves Mon | teiro branco Cazado, morador no Sitio
xamado Pedra furada daSerra da Be | ruoca termo desta Vila, e uiue deagricul | tura, egados = Joze Ribeiro
homem | pardo Cazado, emorador noSitio dos | Lagos termo destaVila de Sobral na | mesma Serra Beruoca, uiue
taõ | bem deagricultura = Antonio Fran | cisco pardo Cazado morador no | Sitio xamado Saõ Joaõ termodes | ta
mesma Vila da Serra da Beru | oca, uiue taõ bem deagricultura = | <Dispaxo> Destribuida ejurando Selhetome
Sua | querela, eSeproceda oexame = <Destribuiçam> A | fonço Ferreira = Destribuida | aCastro = Afonço
Ferreira = <Vestoria> Auto | deexame, euestoria feita na Don | zela Thereza Maria de Jezus = Anno || 25r <f25
FAFerreira> Anno doNacimento deNoso Senhor | Jezu Cristo demil oito centos eoito aos trez | dias domez
deJunho dodito anno nes | ta Vila deSobral Capitania doSiara gran | de emCazas deapozentadoria do Dou | tor
Dezembargador Ouuidor Geral | eCorregedor daComarca Francisco | Afonço Ferreira ondeuimeu Escri | uaõ
deSeo cargo adiante nomiado, e | Sendo ahi aquerelante Thereza Ma | ria deJezus mandou dito Ministro uir |
aSua prezença a Elena Maria, eQui | teria Maria Ferreira pardas Cazadas | moradoras nesta Vila, mulheres que |
bem inteligencias de Parteiras tem; | eaelas defirio ojuramento dos Santos | Euangelhos emhum Liuro deles elhes
| encarregou que bem, euerdadeiramen | te, eixaminasem, euisem Sea Donze | la dita Thereza Maria deJezus filha
| Ligitima de Filipe Pereira Goncalues | digo Gomes ja defunto, eSua mulher | Maria Rodrigues deAraujo quere |
lantes de Pedro Malheiros deAlbu | querque, estaua ou naõ honrrada, | eSem uirgindade fazendo para | isso as
deligencias necessarias com | toda ahonestidade, emodestia: e | ricibido por elas dito juramento || 25v Assim
oprometeraõ fazer como | lhes era encarregado; edebaixo dele | Se retiraraõ para hum Coarto | com a refirida
Donzela, eexami | nando ambas com hum Ouo, oupor | outro modo mais pociuel diceraõ | que aindicada Donzela
ja naõ ti | nha mais honrra emsi, enem | uirgindade, eque ja tinha experi | mentado Varaõ Elogo odito Mi | nistro
mandou amim Escriuaõ por | tase por edou minha deterem | ditas molheres, eParteiras declara | do; ede
terem dito que adita Donzela | Thereza Maria ja naõ tinha mais | uirgindade, oque certamente ti | nha
experimentado Varaõ; epara | Constar mandou o dito Ministro | fazer este auto emque aSignou | deNome inteiro
por as mulheres | naõ Saberem escreuer, eu Joze | deCastro Silua Escriuaõ oescre | vj = Francisco Afonço Fe |
rreira = Segundo Senaõ continha | emdito despaxo, destribuiçaõ pe | tiçaõ, euestoria, emuirtude doqual | deo dito
Ministro ojuramento dos | Santos Euangelhos aos querelantes | elhes encarregou debaixo dele | que bem,
euerdadeiramente de || 26r < f26 FAFerreira> Declarasem Sedauaõ aprezente que | rela com Odio malicia, ou
ten | çaõ, ou Sepelo direito que lheasiste | erecibidos por ele dito juramento de | baixo dele dicerque dauaõ
apre | zente querela doquerelado Sem Odio | malicia, ou tençaõ, eSim pelo | direito que lhes aSistia: Elogo
dito | Ministro mandou amim Escriuaõ | notificase aos querelantes parapro | duzirem Suas testimunhas dentro |
deuinte dias primeiros Seguintes, | com pena deSetomar ofeito por | parte da Justiça; eeu emobervan | cia do dito
mandado notifiquei | aos querelantes para oque dito | fica, que Sederaõ por intendidos | deque para Constar
mandou dito | Ministro fazer este auto; emque a | Signou deNome inteiro por naõ Sa | ber aQuerelante escrever;
eoQue | relante Padrasto ofes decruz, por | taõ bem naõ Saber escreuer; eeu | Joze deCastro Silua Escriuaõ oes |
crevj |
Francisco Affonço Ferreira
Crus de
Antonio † Borges
Francisco Affonço Ferreira
Crus de
Antonio † Borges
60
55
40
215
|| 26v Custas para oMinistro
Auto Destribuiçam
................................................160
Juramentos 4....................................................... 320 560
Conta.......................................................................80
Escrivam
Auto...................................................................40 720
raza.................................................................680
1280
FAFerreira
(XIMENES, 2006, p.101-104)
5.3.3.2 Descrevendo as Partes Constituintes da Primeira Peça: O Auto de Querela
Segmento 1 da Peça 1 Apresentação ou Caput
Neste segmento da peça o escrivão apresenta os sujeitos envolvidos: querelantes e
querelados, caracterizando-os de acordo com a cor da pele, estado civil, local de morada e o
tipo de crime cometido, sendo que essa última informação não é muito frequente.
O caput vem sempre destacado no fólio, separado do restante da peça. Vejamos
abaixo a introdução do caput na narrativa dos Autos de Querela.
(15) Auto dequerela eDenuncia que | Thereza Maria deJezus, eSeo Padrasto | Antonio Borges moradora na
Boa | uista; de Pedro Malheiros deAlbu | querque branco Solteiro filho de | Joaõ Alues Malheiros (XIMENES,
2006, p. 101).
Inicia-se o segmento com a forma discursiva rotineira
56
Auto de querela e
denuncia, repetida em todos os autos. Consideramos sua recorrência, sua funcionalidade e
classificamos como uma unidade fraseológica encarregada pela abertura do documento.
Segmento 2 da Peça 1 Remissão ao Livro dos Sumários
Em todos os autos a referência ao sumário das querelas que integra outro livro
em que é apresentado, de forma resumida, o conteúdo dos autos e as testemunhas. Essa parte
56
Esta é a denominação usada por Corpas Pastor (1996) em sua descrição das unidades fraseológicas (UFs). As
formas discursivas são formas rotineiras de abertura e de fechamento dos textos formais.
216
vem em destaque no fólio, separada do texto. Citam-se geralmente o número do livro e a
folha, conforme se segue.
(16) Tem Seo Sumario no Livro deles afolha | (XIMENES, 2006, p. 101).
A recorrência e a funcionalidade da expressão tem seu sumário leva-nos a
considerá-la como uma UF que mantém a integração com o todo.
Segmento 3 da Peça 1 Introdução do Contexto da Querela
Nesta parte o escrivão inicia a descrição do contexto da querela, situando-a no
tempo e no espaço. Faz referência aos sujeitos envolvidos e ao representante da justiça, o juiz,
atribuindo sua titulação e o local onde ele se encontra para receber a queixa. Situa o dia, o
mês e o ano do registro da queixa. O escrivão faz referência a si mesmo, dizendo que foi
nomeado para a função de escrever a denúncia.
(16) Anno doNascimento deNoso Senhor | Jezu Cristo demil oito centos eoito annos | aos quatro dias domes
deJunho do di | to anno nesta Vila de Sobral Capita | nia do Siara grande, emCazas de | aposentadoria do Doutor
Dezembar | gador Ouuidor Geral, eCorregedor | daComarca Francisco Afonço | Ferreira onde uim euEscriuaõ de
| Seo Cargo adiante nomiado, eSendo | ahi os querelantes Thereza Maria | deJezus, eSeo Padrasto Antonio
Borges || 23r <f23 FAFerreira> Por eles mefoi entregue huma Sua piti | çaõ dequeixa despaxada pelo di | to
Ministro, eamim Destribuida | cujo Theor deuerbo aduerbum hé | oSeguinte = (XIMENES, 2006, p. 101).
Anno do Nascimento do Nosso senhor Jesus Cristo é a forma discursiva de
abertura deste segmento. Encerra-se com a função discursiva Cujo theor de verbo adverbum
he o seguinte, mas algumas variações morfossintáticas. Ressaltamos, porém, que várias
outras UFs com bastante recorrência no interior do segmento que se caracterizam pela
funcionalidade as quais iremos considerar.
No final desse segmento, o escrivão remete para a segunda peça inserida que é a
petição, propriamente dita, em que se apresenta o motivo da queixa.
Segmento 4 da Peça 1 Peça 2 Petição da Querela
Parte em que o escrivão introduz a queixa apresentada pelos querelantes. Faz
referência novamente aos sujeitos envolvidos denunciantes e denunciados, caracterizando-os.
Apresenta o motivo da queixa, como ocorreu o crime, que instrumentos foram usados, cita as
leis que comprovam o crime e estabelece a punição. Por fim, pede ao juiz a mercê de receber
217
a queixa por ser justo o motivo e digno de querela, conforme segue. Esta parte é introduzida
com a forma Petiçam, escrita fora da mancha de texto.
(17) <Petiçam> Illustrissimo Senhor Dou | tor Dezembargador Ouuidor Geral, eCorre | gedor daComarca =
Querelaõ, edenunçia | perante uosa Senhoria; easmais Justicias | deSua Alteza Real Thereza Maria deJezus |
mulher mamaluca menor dequinze | annos filha Ligitima de Filipe Pereira | Gomes ja defunto, eSua molher Ma |
ria Rodrigues deAraujo; Antonio Bor | ges como Administrador deSua molher | Maria Rodrigues de Araujo
Viuua que | ficou dodito Filipe Gomes Pereira, mora | dores noSitio xamado Boa uista da | Serra Beruoca termo
desta Vila, eju | risdicaõ deuosa Senhoria: de Pedro Ma | lheiros deAlbuquerque branco Solteiro | filho Ligitimo
deJoaõ Alues Malheiro | eSua mulher Maria de tal morador | nomesmo Lugar da Boa uista termo | desta mesma
Vila deSobral, ejurisdicaõ | deuosa Senhoria; ea razaõ deSua quere | lahé por que estando aprimeira quere | lante
uiuendo honestamente enCa | za doSegundo querelante Seo Padras | to, que Sem temor deDeos, eda Justissa |
deSua Alteza Real entrou aIliçiar eSeduzir Com | promessas de Cazamentos || 23v Oestado deCazada com
pessoa Conceinhavel, | o querelado aentrou aSolicitar dea | mores, ecom promesas deCazamento a | Levou deSua
honrra, euirgindade na | noite dodia uinte dito deJunho | demil oito centos eSete uespera deS. | Pedro asdes horas
danoite, mais ou me | nos tendo aprimeira querelante hido | com Sua Mãi conuidada pela Mãi | doquerelado
apasar naCaza dela | eaSistir acerto pasatempos, efolias, | atoque deinstrumentos, eMuzicas em | rebecas,
eViolas que Seestauaõ fazendo | na dita noite efoi continuando n‟ ami | zade ilicita; emprincipios deDezembro |
dodito anno demil oito centos eSete raptou | aquerelante daCaza doSegundo Querelan | te, eafoi por, edepositar
emCaza de | Joaõ Alues, irmaõ dele Querelado, ra | ptor, morador noSitio xamado Santa | Thereza demesma
serra Beruoca | termo desta Vila, ejurisdiçaõ de Vosa | Senhoria, eLafoi continciando names | ma amizade ilícita,
aSegurando Sem | pre aprimeira querelante que Caza | ua com ela, eaodepois atirou da Ca | za dodito Irmaõ Joaõ
Alues, eafoi | por, edepozitar emCaza daparda Lucia | na Cazada com opreto Antonio onde | ateue por uarios
meses, eamulher doSe | gundo Querelante afoi buscar, epor | que os referidos Cazos deStupro, erapto || 24r <f24
FAFerreira> E rapto saõ deQuerela naforma | das ordenaçoens do Reino, edos pa | ragrafos oitauo, e nono da Lei
| deSeis deOitubro de mil Sete centos | eoitenta equatro, ealeiuozia pela grande | amizade que oquerelado tinha
naCa | za dos querelantes; como estaõ dentro | doanno, edia, tanto doStupro, como | do rapto, eaprimeira
Querelante me | nor dedezaSete annos, eambas as que | relantes pessoas rusticas pobres, emizeraueis que
deuem ter restituiçaõ | quando dela neçessitem oqual im | ploraõ para naõ perderem o Seo | Direito; defacto
querelaõ do Que | relado aprimeira Querelante pelo | Stupro, eoSegundo pelo rapto, aleiuo | zia para emmenda
do Querelado | exemplo deoutros, Satisfaçaõ dos Que | relantes, eda Republica ofendida, por | tanto = Pedem
auosa Senhoria SejaSer | uido mandar que destribuida esta | ejurando os Querelantes aSua Quere | la Seproceda
oexame, euestoria na | Querelante Strupada por Parteiras, ou | molheres honestas, eintiligentes, eaode | pois
aSomario, eprouada aque baste | obrigue aprizaõ, eLivramento man | dando passar mandado, ePrecatorias | com
o Theor dapronuncia, todas as || 24v Asmais Ordens necessarias para Ser | prezo oQuerelado como todo
oSegredo da | Justica; eoferecerem por testemunhas | as pessoas abaixo declaradas = erecebera | merce=
(XIMENES, 2006, p. 101-102).
Na fórmula discursiva Querela, e Denuncia perante as justiças de sua Alteza Real
ou querela edenuncia perante as justiças de vossa mercê e mais Justiças de Sua Majestade
Fidelíssima [...] ou outras formas de dizer, podemos ver que querela e denuncia perante
constitui uma UF. Esta é a forma de abertura mais regular para iniciar uma petição, embora
sofra algumas variações. Para concluir, nessa parte é usada a forma de fechamento usual em
que se sobressai a UF receberá mercê. No interior da narrativa várias outras UFs de uso
repetido com função específica que serão selecionadas.
Segmento 5 da Peça 1 Peça 3 Apresentação e Caracterização das Testemunhas
218
Neste segmento, o querelante apresenta geralmente três testemunhas que são bem
identificadas pelo nome, cor da pele, local de residência, ocupação ou ofício (de que vive) e,
algumas vezes, a idade.
(18) <Testemunhas> Manoel Joze homem branco | Cazado morador noSitio xamado | Canto daSerra da Beruoca
termo | desta Vila deSobral, uiue deagre | cultura = JoGonçalues homem | mamaluco Cazado morador na Ca |
pela daBeruoca termo desta mesma | Vila uiue deagricultura = o Capitaõ | Comandante Joze Vicente Alves Mon |
teiro branco Cazado, morador no Sitio xamado Pedra furada daSerra da Be | ruoca termo desta Vila, e uiue
deagricul | tura, egados = Joze Ribeiro homem | pardo Cazado, emorador noSitio dos | Lagos termo destaVila de
Sobral na | mesma Serra Beruoca, uiue taõ | bem deagricultura = Antonio Fran | cisco pardo Cazado morador no |
Sitio xamado Saõ Joaõ termodes | ta mesma Vila da Serra da Beru | oca, uiue taõ bem deagricultura =
(XIMENES, 2006, p. 103).
Apesar de não aparecer neste auto, a forma discursiva que abre essa parte é a
seguinte: enomea para tes | temunhas as que abaixo aviaõ declara | das ereceberemercê.
Logo em seguida, apresenta a relação e caracterização das pessoas indicadas para
testemunhar.
Não forma de fechamento, que apenas relaciona os nomes das pessoas, mas
várias maneiras de identificar e descrever os sujeitos que se constituem como UFs típicas
dessa peça do processo devido ao uso repetido de expressões.
Segmento 6 da Peça 1 Peça 4 Despacho
Nessa sequência do processo, o juiz recebe a queixa e faz despacho para o
escrivão.
(19) <Dispaxo> Destribuida ejurando Selhetome Sua | querela, eSeproceda oexame = A | fonço Ferreira =
(XIMENES, 2006, p. 103).
Neste segmento podemos destacar a unidade fraseológica tomar querela, muito
recorrente.
Segmento 7 da Peça 1 Peça 5 Distribuição
Seguindo o despacho do juiz, é feita a distribuição do processo com as seguintes
palavras:
(20) <Destribuiçam> = Destribuida | aCastro = Afonço Ferreira = (XIMENES, 2006, p. 103).
219
Neste segmento podemos considerar UF a forma distribuir a (...) representada
sempre com o verbo no particípio. A pessoa a quem se distribui varia conforme quem seja o
escrivão do auto.
Em seguida, constam as assinaturas do juiz e do escrivão, encerrando-se a peça
conforme o exposto anteriormente.
Após a inserção do despacho do juiz, em alguns processos vem um auto de exame
de vistoria ou corpo de delito nos casos dos crimes mais graves, como os de estupro,
espancamento e ferimentos. Esse documento constitui outra peça, de acordo com a
classificação da linguagem forense. “Assim se entende a peça do processo criminal, que se
mostra fundamental, em virtude da qual se põe em evidência a natureza e a existência do
crime praticado” (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 173).
Esse exame é feito antes do registro da querela, conforme estabelecido no Código
Filipino ( 2004, p. 1274), que esclarece como se receber querela de pessoas feridas quando
estas mostram as feridas abertas ou um ato feito por tabelião, com autoridade de juiz que
comprove que viu os ferimentos.
E bem assi se póde e deve receber querela a pessoa, que for ferida, se mostrar feridas
abertas e sanguentas, ou pisaduras e nodoas inchadas e negras, quer diga que foi de
proposito, quer em rixa; e não as mostrando, não lhe será recebida: salvo se mostrar
acto, deito per Tabellião com auctoridade de juiz, em que der fé, que lhe vio as
feridas na fórma sobredita, e que protestou querelar [...].
O auto de exame e vistoria consta de um laudo em que são descritas as nódoas,
pisaduras, feridas abertas ou marcas delas e o estado da vítima ou do cadáver, conforme o
caso. Sua estrutura se organiza pela contextualização, em que se indica o dia e o local da
vistoria, caracterizando-se a pessoa vistoriada e a que faz o exame. Em seguida, a descrição
dos dados observados com a assinatura do responsável pelo laudo e do escrivão que o
registrou.
Segmento 8 da Peça 1 Peça 6 Auto de Exame e Vistoria
Esta peça constitui-se de dois segmentos: o caput, em que se situa o tempo e o
espaço da vistoria, e a descrição dos fatos pela pessoa responsável.
Segmento 1 Peça 6 Caput e Contextualização
220
Parte em que se situa o tempo e o lugar e caracteriza os responsáveis de fazer o
exame: o cirurgião ou as parteiras e também a vítima. o juramento em que as pessoas
comprometem-se a dizer a verdade com a mão direita sobre os Evangelhos.
(21) <Vestoria> Auto | deexame, euestoria feita na Don | zela Thereza Maria de Jezus = Anno || 25r <f25
FAFerreira> Anno doNacimento deNoso Senhor | Jezu Cristo demil oito centos eoito aos trez | dias domez
deJunho dodito anno nes | ta Vila deSobral Capitania doSiara gran | de emCazas deapozentadoria do Dou | tor
Dezembargador Ouuidor Geral | eCorregedor daComarca Francisco | Afonço Ferreira ondeuimeu Escri | uaõ
deSeo cargo adiante nomiado, e | Sendo ahi aquerelante Thereza Ma | ria deJezus mandou dito Ministro uir |
aSua prezença a Elena Maria, eQui | teria Maria Ferreira pardas Cazadas | moradoras nesta Vila, mulheres que |
bem inteligencias de Parteiras tem; | eaelas defirio ojuramento dos Santos | Euangelhos emhum Liuro deles elhes
| encarregou que bem, euerdadeiramen | te, eixaminasem, euisem Sea Donze | la dita Thereza Maria deJezus filha
| Ligitima de Filipe Pereira Goncalues | digo Gomes ja defunto, eSua mulher | Maria Rodrigues deAraujo quere |
lantes de Pedro Malheiros deAlbu | querque, estaua ou naõ honrrada, | eSem uirgindade fazendo para | isso as
deligencias necessarias com | toda ahonestidade, emodestia: e | ricibido por elas dito juramento || 25v Assim
oprometeraõ fazer como | lhes era encarregado; [...] (XIMENES, 2006, p. 103).
A forma discursiva de abertura é a mesma do Auto de Querela, isto é, Ano do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo[...] que constitui, também, uma UF do auto de
corpo de delito.
Segmento 2 da Peça 6 Descrição dos Fatos
Parte em que são narrados os fatos e o estado da pessoa vítima do crime. No caso
de feridas são descritos o tamanho, a profundidade, a largura e outros dados. Nos crimes de
estupro, a confirmação de que a mulher não se encontra mais virgem. Encerra-se esta parte
com a assinatura do examinador, do juiz e do escrivão. Quando o examinador é analfabeto, no
caso das parteiras, por exemplo, o juiz assina por elas.
(22) edebaixo dele | Se retiraraõ para hum Coarto | com a refirida Donzela, eexami | nando ambas com hum
Ouo, oupor | outro modo mais pociuel diceraõ | que aindicada Donzela ja naõ ti | nha mais honrra emsi, enem |
uirgindade, eque ja tinha experi | mentado Varaõ Elogo odito Mi | nistro mandou amim Escriuaõ por | tase por fé
edou minha deterem | ditas molheres, eParteiras declara | do; ede terem dito que adita Donzela | Thereza
Maria ja naõ tinha mais | uirgindade, oque certamente ti | nha experimentado Varaõ; epara | Constar mandou o
dito Ministro | fazer este auto emque aSignou | deNome inteiro por as mulheres | naõ Saberem escreuer, eu Joze |
deCastro Silua Escriuaõ oescre | vj = Francisco Afonço Fe | rreira = (XIMENES, 2006, p. 103-104).
várias expressões de uso repetido no interior do texto que se caracterizam
como fraseologias típicas dessa parte.
Segmento 9 da Peça 1 Conclusão do Auto
221
Nesta parte os querelantes juram perante o Livro dos Evanhelhos que irão dizer a
verdade a respeito da denúncia que presta, afirmando que é justo o motivo de sua queixa e
não intenção nem malícia no ato de denunciar, pois é somente para emenda dos
querelados e satisfação da justiça. Em seguida, o queixoso compromete-se a apresentar as
testemunhas dentro do prazo da lei. Termina a peça com as assinaturas do querelante, do juiz
e do escrivão e, às vezes, são apresentadas as contas das despesas do auto.
(23) Segundo Senaõ continha | emdito despaxo, destribuiçaõ pe | tiçaõ, euestoria, emuirtude doqual | deo dito
Ministro ojuramento dos | Santos Euangelhos aos querelantes | elhes encarregou debaixo dele | que bem,
euerdadeiramente de || 26r < f26 FAFerreira> Declarasem Sedauaõ aprezente que | rela com Odio malicia, ou
ten | çaõ, ou Sepelo direito que lheasiste | erecibidos por ele dito juramento de | baixo dele dicerque dauaõ
apre | zente querela doquerelado Sem Odio | malicia, ou tençaõ, eSim pelo | direito que lhes aSistia: Elogo
dito | Ministro mandou amim Escriuaõ | notificase aos querelantes parapro | duzirem Suas testimunhas dentro |
deuinte dias primeiros Seguintes, | com pena deSetomar ofeito por | parte da Justiça; eeu emobervan | cia do dito
mandado notifiquei | aos querelantes para oque dito | fica, que Sederaõ por intendidos | deque para Constar
mandou dito | Ministro fazer este auto; emque a | Signou deNome inteiro por naõ Sa | ber aQuerelante escrever;
eoQue | relante Padrasto ofes decruz, por | taõ bem naõ Saber escreuer; eeu | Joze deCastro Silua Escriuaõ oes |
crevj |
Francisco Affonço Ferreira
Crus de
Antonio † Borges
(XIMENES, 2006, p. 104).
Destacam-se, nessa peça, várias formas que se repetem em todos os autos, o que
constituirão UFs não como marcas de abertura e fechamento, mas como maneiras de dizer
em todo o texto.
Segmento 10 da Peça 1 Peça 7 As Custas do Processo
Nesta parte são apresentadas as contas. O seu conteúdo é a descrição dos gastos
do auto e a quem se destina o pagamento, ou seja, o juiz e o escrivão. Encerra-se com a
assinatura do juiz. A nosso entender, ocorrem duas UFs: custas para o ministro e custas para o
escrivão.
(24) || 26v Custas para oMinist ro
Auto Destribuiçam
...................................................160
Juramentos 4....................................................... .. .320 560
Conta.........................................................................80
222
Escrivam
Auto........................................................................40 720
raza........................................................................680
1280
FAFerreira
(XIMENES, 2006, p. 104).
Esta é uma visão geral da macroestrutura do Auto de Querela. Poderão ocorrer
outros fragmentos de textos, mas essa organização apresenta alto grau de fixidez.
Além das UFs que veiculam como formas discursivas de abertura e de fechamento
das partes, outras que transitam no corpo do texto, sendo mais frequente sua ocorrência na
tipologia de crime registrado. Assim, para o crime de furto há UFs usadas melhor dentro desse
tipo de narrativa, o mesmo ocorre com o crime de estupro. Na conclusão da narrativa também
podemos destacar várias UFs de uso somente ali como marca característica daquele segmento.
O quadro abaixo sintetiza a estrutura organizacional dos Autos de Querela.
Auto de Querela Peça 1
Segmento 1
Peça 1
Apresentação ou Caput
Segmento 2
Peça 1
Remissão ao Sumário
Segmento 3
Peça 1
Introdução do contexto da
querela
Segmento 4
Peça 1
Peça 2
Petição
Segmento 5
Peça 1
Peça 3
Relação de Testemunhas
Segmento 6
Peça 1
Peça 4
Despacho
Segmento 7
Peça 1
Peça 5
Distribuição
Segmento 8
Peça 1
Peça 6
Auto de Vistoria
Segmento 1
Peça 6
Caput
Segmento 2
Peça 6
Descrição dos Fatos
Segmento 9
Peça 1
Conclusão do Auto
Segmento 10
Peça 1
Custas do Auto
Quadro 10 Síntese da estrutura dos autos.
5.4 Da Organização das Categorias Lógicas e Morfossemânticas
Para darmos conta dos conceitos que constituem os núcleos das UFs
consideramos as categorias lógicas e linguísticas. As categorias lógicas, que foram
223
estabelecidas na filosofia aristotélica, mantêm relação com a linguagem. Essas categorias são
apresentadas na obra de Masip (2003) quando faz um apanhado geral e as apresenta de forma
sintética, relacionando-as com as manifestações da língua através das classes de palavras.
As 10 categorias gicas, o que elas exprimem e quais as suas relações com a
linguagem e como se manifestam são as seguintes:
1) Ação Reflete a passagem substancial do repouso ao movimento. Dinamismo. Processo.
Realiza-se em alguns verbos;
2) Hábito Costume, ação repetida. Manifesta-se em alguns verbos;
3) Lugar Situação, colocação. Está presente nos advérbios;
4) Paixão Passividade, ausência de ação. Realiza-se em alguns verbos ou perífrases verbais;
5) Posição Existência situada, vinculada ou partilhada. Estada. Manifesta-se em alguns
verbos de ligação;
6) Qualidade Aquilo que é virtude do qual se diz algo que é tal e qual. Acidente que
modifica o sujeito. Está presente nos adjetivos qualificativos;
7) Quantidade Aquilo que é divisível ou mensurável. Aplica-se a alguns verbos, e advérbios
determinativos;
8) Relação Nexo, vínculo, enlace, dependência. Manifesta-se nos verbos de ligação, nas
preposições e nas conjunções;
9) Substância Essência que detém a existência em si e por si mesma. Conteúdo cognitivo.
Núcleo de qualquer sujeito. Manifesta-se unicamente nos substantivos;
10) Tempo Presente, passado, futuro, anterioridade e posterioridade. Verifica-se nos verbos
e locuções adverbiais determinativas.
Cabré e Estopà (2007), por sua vez, apresentando a classificação ou tipologia das
Unidades de Conhecimentos Especializados, estabelecem quatro classes semânticas ou
conceituais: entidades, eventos (ação ou processo), propriedades e relações. Compreendem
entidades materiais: pessoas, animais, organismos; classificadores: elementos simples,
elementos complexos, conceitos separados, partes de um termo; abstratos: estrutura de
conhecimento (geral, específico, linguístico, matemático), entidades abstratas, entidades
subjetivas; representações: entidade de documentação (tipos, papéis). Nas atividades ou
eventos estão as unidades de atividades: ação, processo, transferência, mudança de estado.
Nas relações podem ser destacados os valores de relações: físico (espaciais, temporais,
funcionais), não físico: modo de relação, comparação, situação relativa. Por fim, as
propriedades etiquetas do tipo de qualidade valores de qualidade: físico (espaciais, temporais,
224
funcionais, de atuação, de forma, de cor, quantitiva, de escala), não físicos: (gerais, espaciais,
naturais, ratificáveis, simples, complexos, negativos etc.)
Dessa forma, determinamos quatro dessas categorias semânticas: substância ou
entidade; qualidade ou propridade; processo (ação) ou evento e circunstância (lugar e tempo)
ou relações as quais estabelecem relação com as seguintes categorias gramaticais, segundo
Cabré (2007): nominal, adjetiva, verbal e adverbial. Desta feita, cada categoria semântica
descrita servirá como paradigma definicional das UFs, conforme a sua estruturação se
organize em torno de uma das classes gramaticais e a função desempemhada.
5.5 Da Organização do Glossário
Quanto à organização das entradas do glossário e das definições, nos apoiamos
nos fundamentos teóricos básicos que tratam da confecção de glossários defendidos por
autores que trabalham com o léxico especializado, considerando as macro e microestruturas
descritas a seguir.
A macroestrutura ou nomenclatura diz respeito às entradas do verbete como um
todo. Neste trabalho a macroestrutura é organizada conforme a estutura segmental dos Autos
de Querela. Já a microestrutura refere-se à organização e estruturação interna das entradas em
ordem alfabética, as informações gramaticais e as definições. Comporta, ainda, todas as
informações detalhadas que circundam o verbete, como notas enciclopédicas, históricas,
etimológicas, formas remissivas, sinonímias. (Esse tema foi mais desenvolvido no capítulo 3,
item 3.9)
Considerando os critérios de organização de dicionário ou glossário, estruturamos
o nosso aqui, mas ressaltando que cada corpus que serve de base para a coleta dos termos ou
das unidades fraseológicas apresenta suas particularidades, muitas vezes, levando-nos a uma
difícil resolução de como seguir fielmente os modelos existentes, principalmente em se
tratando de fontes manuscritas com mais de 200 anos de existência, em que não
regularidade na escrita, dificultando, desse modo, seguirmos um modelo antes estabelecido
por outrem. Portanto, foi necessários fazermos algumas adaptações para sermos coerentes às
características do nosso corpus.
Como assinalado anteriormente, as categorias ontológicas e as morfossemânticas
estabelecidas nos possibilitaram a organizar as definições das UFs de acordo com a sua
ocorrência. Na organização da macroestrutura, serão consideradas as entradas das UFs de
acordo com a ordem de ocorrência em cada segmento ou peças dos autos, conforme a
225
descrição apresentada antes. Não será considerada a ordem alfabética, mas a ordem de
ocorrência nas peças e seus segmentos para mantermos a coerência das informações.
A microestrutura comporta as seguintes etapas: os critérios de pertinência
temática e/ou pragmática; registro da parte invariável da matriz; registro da UF com ortografia
atualizada e o pivô em itálico e destacado abaixo. As formas variantes e sinonímias tiveram
entrada abaixo, em seguida, apresentamos o conceito, os contextos com as referências e as
notas. Essas notas abrangem vários aspectos: o caráter linguístico, em forma de nota
linguística cuja sigla é (NL), em que analisamos a estrutura morfossintática da UF; o caráter
etimológico ou nota etimológica (NE) em que, na medida do possível, damos informações
sobre a origem do étimo dos elementos que compõem a UF; o caráter histórico ou nota
histórica (NH), em que apresentamos dados da história colonial nos diversos âmbitos.
Apresentamos outras informações e/ou comentários em forma de nota enciclopédica (NEncl.),
em que acrescentamos qualquer conteúdo da história social, cultural, jurídica, religiosa,
política salientes nos documentos referentes ao período e ao gênero dos textos que contribuem
para o esclarecimento dos fatos narrados e dos conceitos apresentados.
Dessa forma, contemplamos os aspectos linguísticos, semânticos e pragmáticos
das UFs, como bem aborda Desmet (1997). Da mesma forma, estamos fazendo uma leitura
integral do texto que caracteriza o estudo filológico na concepção de Lamas (2009).
Essas observações poderão contemplar informações pertinentes tanto do ponto de
vista linguístico quanto do sócio-cultural em geral, atendendo a reclamações e critérios dos
dicionários fraseológicos reivindicados por Roncalatto (2004, p. 50).
Vemos como um dos critérios mais importantes na elaboração de dicionários
fraseológicos a inclusão de observações que orientem o leitor quanto às regiões ou
estados onde as expressões são empregadas ou se são usadas de modo geral em todo
país. Se a perspectiva do autor for oferecer um conjunto amplo de unidades
existentes na língua, que em algum momento histórico chegaram a ser usadas,
deverá informar ao leitor em que época houve o registro de tal uso.
Sinteticamente, demostramos no gráfico abaixo, a organização da microestrutura
do glossário
57
.
57
Na introdução do capítulo 7, os passos metodológicos são mais detalhados.
226
1. Organização por peças ou segmentos de peças dos autos;
2. Classificação das UFs quanto aos critérios de pertinência temática/pragmática;
3. Classificação das UFs quanto ao critério de conter ou não um pivô;
4. Registro da UF com ortografia atualizada e o pivô em itálico;
5. Registro do pivô destacado;
6. Registro das variações;
7. Registro das sinonímias;
8. Definição da UF;
9. Registro dos contextos e das referências;
10. Sistema de Notas: Notas Linguísticas (NL), Notas Etimológicas (NE) + ou - Notas Históricas (NH) + ou -
notas - (NENC) de caráter social, cultural, judicial, religiosas etc. A indicação das notas será em forma de siglas
e em negrito.
Quadro 11 Quadro que demonstra a microestutura do glossário
O glossário tem a finalidade de resgatar expressões linguísticas de uso frequente
no período colonial pelos setores da adminsitração pública, principalmente, no âmbito
jurídico-criminal. Com o resgate dessas formas, podemos compreender a linguagem da época
e avaliar o que se preserva no momento atual dessa linguagem especializada. Dessa forma, o
público usuário deste glossário, além dos filólogos e linguistas, é também historiadores,
sociólogos, juristas e outros profissionais interessados nas relações sócio-históricas e culturais
do mundo luso-brasileiro.
Seguindo as orientações descritas neste capítulo, esperamos atingir ao nosso
propósito de estudar as UFs nos vários âmbitos, contribuindo, dessa forma, para o seu
entendimento amplo, tanto no aspecto linguístico como no extralinguístico.
5.6 Conclusão
Partimos da coleta dos dados e da constituição de um corpus, abordamos os
aspectos codicológicos e linguísticos que caracterizam esses documentos e apresentamos sua
descrição estrutural enquanto gênero jurídico. Tratamos do método de abordagem, das
ferramentas eletrônicas através do programa da Linguística de Corpus WordSmith Tools, que
possibilitou selecionar o objeto de estudo. Por fim, descrevemos os passos metodológicos
que figuram na organização do glossário constituindo a macroestrutra, por meio do registro
das entradas das UFs, e a microestrutura, composta pelas definições e as demais informações
que cercam e complementam as entradas.
Acreditamos que não existe uma metodologia ideal adaptável a qualquer tipo de
dicionário ou de glossário, principalmente quando se lida com corpus, especificamente de
227
uma área especializada do conhecimento que apresenta características muito sui generis de
escrita de período pretérito da ngua. Qualquer metodologia previamente estabelecida sem o
conhecimento do corpus poderá chegar ao fracasso, pois o corpus fala por si e, muitas
vezes, dita as normas a serem seguidas. O pesquisador deve explorar seu corpus e adaptar o
método conforme as representações deles.
Portanto, ao descrevermos nossa metodologia, apresentamos uma adaptação mais
viável e didática suficientemente para obtermos os resultados esperados. O intento primeiro
de nossa pesquisa foi um estudo mais amplo dos textos envolvendo todos os elementos
filológicos, linguísticos, históricos e culturais que complementam o uso da língua.
228
6 AUTOS DE QUERELA: ANOTAÇÕES HISTÓRICAS, JURÍDICAS, SOCIAIS E
CULTURAIS DO CEARÁ NO PERÍODO COLONIAL
O homem é escravo da sua época.
Mais do que ele pode a influência das idéias dominantes, dos preconceitos, das
correntes da opinião. O que hoje se nos afigura uma monstruosidade, um atentado à
consciência humana, um crime perante a moral era um ato muito bem aceito pelos
nossos antepassados, uma ação que escapava a qualquer crítica. E o mal que
dizemos dirão de nós as vindouras gerações, quando estudarem algumas de nossas
usanças.
(STUDART, 2004, p.489)
.
6.1 Introdução
Neste capítulo, apresentamos a descrição e a análise dos dados encontrados no
corpus de nossa pesquisa referentes à caracterização dos participantes dos processos criminais
e do cenário histórico, social, cultural e jurídico da Capitania do Ceará, nos séculos XVIII e
XIX. Ao longo do texto, fazemos incursões na história jurídica do Antigo Regime português e
mostramos suas manifestações na vida política e social do Brasil, especificamente do Ceará.
Nosso objetivo aqui é entender todo o cenário histórico-social do Ceará e do
Brasil por meio de uma leitura profunda das fontes documentais que nos possibilitam,
também, investigarmos se influências do meio social no uso da língua, principalmente no
tocante às unidades fraseológicas. Será que as formas de descrever ou caracterizar as pessoas,
de relatar os motivos dos crimes, de citar as leis, de estabelecer a comunicação com as
autoridades geram UFs que refletem cada um desses aspectos?
Podemos responder que várias UFs que são geradas a partir da caracterização
dos sujeitos participantes dos processos, como a identificação desses sujeitos pela cor da pele
e pela profissão que exercem. De igual modo, quando da citação das leis, dos motivos dos
crimes, da referência às autoridades, são produzidas formas fixas de dizer ou UFs de grande
relevância para o nosso estudo.
Graças ao registro da língua escrita usada pelos tabeliães do judiciário e pelos
escrivães das diversas repartições administrativas da Capitania do Ceará, conhecemos a
história da população e seu jeito de viver. Por meio da sobrevivência da língua preservada nos
documentos, enquanto instrumento que identifica um povo e uma época, e que nomeia as
ações, os atos e comportamentos,transportamo-nos para a época passada e pudemos
vislumbrar o cotidiano de uma sociedade. A leitura dos Autos de Querela, considerando todos
229
os aspectos internos, como os elementos linguísticos, e os externos, como os dados da
sociedade e da cultura, forneceu-nos uma ampla compreensão do todo.
Entendemos o texto aqui como uma rede de informações entrelaçadas que nos
possibilita reportarmo-nos para o passado histórico de uma comunidade que o produziu e para
a interdisciplinaridade, donde advêm informações de todas as esferas da vida. Dessa forma,
podemos falar de uma interpretação filológica no mais largo sentido que lhe é atribuído,
compreendendo a ampla dimensão do texto, todas as suas marcas e informações contidas que
enriquecem o nosso entendimento.
Os velhos códices de Autos de Querela preservados nas prateleiras do Arquivo
Público do Estado do Ceará, por muito deteriorados pelo tempo e pela ação de fungos e
insetos, são ricas fontes de informações sobre as diversas manifestações da vida cotidiana da
população cearense. Ademais, transparecem as relações entre as autoridades políticas e
jurídicas que exerceram o poder administrativo em todas as esferas.
Por meio de uma linguagem formal e respeitosa que revela traços de autoridade e
de obediência à Sua Majestade, o rei de Portugal, e aos seus auxiliares, como os ouvidores, os
corregedores, os juízes de fora, os juízes ordinários etc., os textos são constituídos por mãos
habilidosas na arte da escrita. No entanto, em algumas passagens deixam claras manifestações
linguísticas das classes menos favorecidas. Os representantes dessas classes são pessoas de
diversas idades e etnias e exercem ofícios ou atividades com fins de sobrevivência. São
indivíduos vulneráveis a sofrer as infaustas e desagradáveis ofensas que inquietaram a sua
rude maneira de viver, desarticulando, muitas vezes, os laços familiares, abalando os valores
morais, sofrendo os prejuízos com a perda de objetos roubados e, até mesmo, a dor da morte e
ausência de um membro importante do seio familiar. Não muito raro um pai de família era
assassinado, deixando a viúva com seus muitos filhos para criar. São as pessoas de locais
mais remotos do Reino de Portugal, que viviam nos lugarejos pertencentes aos termos das
vilas da Capitania do Ceará Grande, esperando a mercê de Sua Majestade Fidelíssima que
Deus guarde, através de seus ministros e desembargadores, para a tomada de providências
contra a desobediência da ordem pública e aguardavam a aplicação da justiça como
determinavam as leis do Reino, tão bem guardadas e preservadas nos Livros, Títulos e
Parágrafos do Código Filipino.
Os crimes aqui abordados foram praticados por gente comum, e as suas vítimas,
também, na maioria dos casos, são cidadãos ou cidadãs pacatos, habitantes das vilas do Ceará,
que levavam sua vida ordinariamente. Não se trata de famílias ou grupos rivais que,
sistematicamente, mantinham um estado de revolta e ataques no sertão cearense. O estudo da
230
violência sistematizada pelos grupos familiares que mantinham a autoridade no sertão do
Ceará é feito detalhadamente por Vieira Jr.(2004).
Os crimes estudados aqui são ocorrências esporádicas e remetem-nos aos motivos
mais banais, como: furto de um cavalo, de uma vaca, de uma quantidade de sal,
espancamento, roubo de objetos, defloramentos, injúrias. também relatos de crimes de
homicídio e atentado violento ao pudor, dentre outros, como veremos. Os instrumentos
utilizados nos atos delituosos pertencem à faina da vida cotidiana das pessoas, que vão desde
um rude tição de fogo, um cacete, uma vara de ferrão ao bacamarte, à pistola ou a facas de
várias denominações: parnaíbas, catanas, flamengas.
Quem eram e qual era o modo de sobrevivência das pessoas citadas nos autos, a
caracterização étnica e condição social? Em que locais habitavam e onde prestavam suas
queixas à justiça? As informações são apresentadas, muitas vezes, de forma incerta pela pena
dos escrivães que serviam ao judiciário. Estes também nos legaram inúmeras e valiosas
informações sobre o modo de caracterizar as pessoas, além do tributo à língua portuguesa, que
nos revela formas de grafar as palavras e de construção das frases. Ao ler os documentos,
podemos explorar tudo o que eles nos oferecem e, assim, podemos apresentar uma fotografia
da sociedade situada no tempo da escritura desses documentos.
Interessa-nos, também, saber sobre as autoridades atuantes na colônia e quais as
suas funções e competências. Eram elas presentes na vida do povo e suficientemente capazes
de resolver as questões jurídicas? Como a justiça era administrada no espaço geográfico do
atual Estado do Ceará?
Estas interrogações são respondidas por Vieira Jr. (2004), que nos apresenta o
cenário do Ceará tendo como base os relatos de viagem de alguns aventureiros estrangeiros
que, à época, passaram por essa terra e narraram, de forma estarrecida, o estado de
impunidade em que se encontrava a Capitania diante da ineficiência do poder. Eles [...]
representaram um Ceará onde a violência era vulgarizada, matizada sob o pincel da
inoperância e manipulação do poder instituído”. (VIEIRA JR., 2004, p. 168).
Os aspectos geográficos e climáticos, a distância da autoridade e das instituições,
o despreparo dos agentes administrativos, tudo isso fazia com que a justiça fosse falha e
inoperante contribuindo para o aumento da impunidade e da desordem.
A fragilidade da presença do poder instituído e, em especial, a fraca imposição da
justiça pública e seu comprometimento com interesses dos grandes fazendeiros do
Sertão contribuía na vulgarização da violência enquanto instrumento para resolução
de conflitos cotidianos. (VIEIRA JR., 2004, p. 162).
231
Os Autos de Querela apresentam-nos um panorama da sociedade cearense nos
séculos XVIII e XIX. Por meio da narrativa dos tabeliães e escrivães, passamos a mostrar a
fisionomia do Ceará naquele tempo, pintado com insultos, mágoas, grimas, dores e sangue
das vítimas dos crimes que se lamentavam aos senhores juízes ordinários, aos corregedores,
aos ouvidores e desembargadores do reino. Era um cenário matizado pela mestiçagem, pela
pobreza e pelo analfabetismo da escassa população das vilas e, ainda, pela irreverência de
alguns diante da lei e pelo distanciamento do poder constituído.
Concordamos com Ferreira Neto (2003) quando este afirma que a leitura dos
textos dos livros de Autos mantidos pelos ouvidores mostra-nos bem esta realidade do
cotidiano da sociedade colonial, principalmente do interior das vilas.
A leitura de trechos dos velhos livros de Autos de querelas e denúncias mantidos
pelos ouvidores da capitania do Ceará visualiza o cotidiano da sociedade colonial e
expõe, para o presente, detalhes curiosos da realidade dos moradores. [...] São
momentos de isolamento das populações do sertão, sendo a justiça acionada apenas
pelos mais abandonados. A grande maioria das pessoas, incluindo os vaqueiros,
agregados das fazendas, artífices das vilas e vagabundos que perambulavam pelas
diversas regiões, desconheciam os serviços dos advogados (raros na capitania) e dos
tribunais. O sertanejo, desde o início, passou a conviver ao largo da lei,
acostumando-se às relações de compadrio com os seus senhores imediatos,
recorrendo à proteção por eles oferecida, sujeitando-se, interminavelmente, aos
desígnios das autoridades (padre, juiz, coronel, vereador). Ademais, o crime
despontou como resposta para muitos habitantes do sertão, terra inóspita, sem
oportunidades, sem escolas, sem leis, onde a vindita soava natural para as vítimas de
assassinatos e atentados contra a honra. (FERREIRA NETO, 2003, p. 158).
Os 133 processos jurídicos estudados em nossa pesquisa revelam dados
importantes a respeito da violência na Capitania do Ceará, no período de 50 anos,
compreendendo as datas limítrofes do primeiro e do último documento, respectivamente os
anos de 1779 e 1829. Portanto, esse contexto se estende aproximadamente da última metade
do século XVIII à primeira do século XIX, período que ultrapassa a data da independência do
Brasil, adentrando a fase inicial da administração do Império brasileiro.
O fato do Brasil deixar de ser colônia portuguesa, firmando-se como uma nova
nação, e de mudar o regime político-administrativo, não levou a nenhuma mudança em
relação às vivências sociais e aos hábitos da população. Outrossim, também nada mudou na
prática da justiça e na forma de registrar as denúncias criminais, pois tudo permaneceu da
mesma maneira até que se estabelecessem as novas leis e formas de ação judicial. O código
de leis do Império foi promulgado em 1831, certamente a partir daí houve alteração nas
formas de registro de crimes.
232
Para obtermos a fotografia de todos os sujeitos e das práticas sociais reveladas,
elaboramos fichas de identidade que foram preenchidas com as informações fornecidas nos
documentos, possibilitando-nos estabelecer o perfil dessa parcela da população citada.
Nos seis códices em estudo, são arroladas várias pessoas que participaram de
formas diferentes dos processos judiciais. Os querelantes e os querelados são personagens
principais das tramas e intrigas que atuam diretamente no grande palco do cenário cearense.
As testemunhas são os coadjuvantes que atuam de forma indireta. As demais pessoas são
agentes encarregados pelas resoluções dos problemas, como as parteiras ou funcionários da
administração pública, escrivães, cirurgiões, juízes e corregedores. Para cada tipo de sujeito
citado foram preenchidas fichas com dados de suas identidades que revelam um pouco dessas
pessoas. Ao todo são 22 fichas, compreendendo as 7 categorias, a saber: querelantes,
querelados, testemunhas, parteiras, escrivães/tabeliães, cirurgiões e juízes.
Os itens relacionados nos autos que traçam o perfil dos sujeitos são os seguintes:
nome, idade, ocupação/ofício, etnia/cor da pele, local da morada, local da denúncia, grau de
instrução, motivo da acusação, instrumento do crime. Acrescentamos às fichas informações
atinentes ao número do códice, do auto e ao ano do registro da queixa e um item com
observações diversas. Para a nossa análise, levamos em conta apenas os seguintes itens: sexo,
idade, ocupação, etnia/cor da pele, local da denúncia, grau de instrução, motivo da acusação,
instrumento do crime.
Passamos a avaliar cada uma das sete categorias relacionadas nos autos levando
em conta as informações fornecidas neles. Aqui fazemos a contabilidade dessas pessoas, a
análise dos aspectos sociais que as qualificam, do local onde ocorreram os crimes etc. Os
resultados são apresentados em tabelas com os respectivos valores percentuais. Apresentamos
também análises e comentários que julgamos relevantes para a compreensão do contexto
histórico da administração colonial e da organização social da Capitania do Ceará como um
todo. No quadro abaixo, apresentamos as sete categorias, a quantidade correspondente a cada
uma e os seus valores percentuais. Em seguida, analisamo-as mais detalhadamente em
separado.
Dos sujeitos
Quantidade
%
1. Querelantes
154
16,5
2. Querelados
204
21,8
3. Testemunhas
456
48,7
4. Parteiras
32
3,4
5. Escrivães /Tabeliães
39
4,1
6.Cirurgiões
13
1,4
7. Juízes
39
4,1
Total
937
100
Quadro 12 Representação de todos os sujeitos relacionados nos autos
233
6.2 Leitura Interpretativa dos Dados Apresentados nos Autos
6.2.1 Dos Querelantes
Os 133 processos trazem arrolados 154 querelantes que, em alguns autos,
mais de um denunciante. São habitantes de várias vilas da Capitania, oriundos de diferentes
classes sociais, com modos de vida diversos e etnia, cor da pele ou posição social variada.
Dessas 154 vítimas dos delitos, 107 são do sexo masculino e 47 do sexo feminino.
Compreendem pessoas de várias idades, incluindo crianças, velhos e moças donzelas,
conforme registro da pena dos escribas quando da identificação dessa gente.
Sexo
Quantidade
%
Masculino
107
69,5
Feminino
47
30,5
Total
154
100
Quadro 13 Sexo dos querelantes
Compreendemos que o número de mulheres relacionadas como denunciantes é
alto em relação, por exemplo, ao número de mulheres indicadas para testemunhar, conforme
veremos adiante. Isso se explica pelo fato das mulheres serem alvo da agressão masculina,
tornando-se vítimas, principalmente, de desejos sexuais, quando muitas delas são enganadas
pelos namorados com promessas de casamento e, depois do ato consumado, o pretendido
esposo desaparece, deixando a moça desonrada, e perdida, conforme os desígnios e a
mentalidade da sociedade da época, como se registra abaixo na queixa de uma mãe.
(22) Tendo | aquerelante aquela suafilha Clara | Maria emSeo poder, administraçaõ |
ecompanhia, etratando dedar-lhe | aboa educaçaõ, euiuendo dita sua | filha com
honrra, honestidade, e | bom comportamento, Sem nota | alg encontrario,
epertendendo | a querelante cazala com pessoa | deseo gosto, eque ameresese, acon |
tece que o querelado Joze Ri || 48v Ribeiro Sulicitando, aLiciando, eSe | duzindo
adita filha daquerelan | te com promessas deCazamen | to, conSeguio Leuala desua
honrra | euirgindade Stuprando-a emdias | domes de Dezembro doanno proxi | me
pasado demil oito centos edes | huã Semana antes dadeNatal | eLogo queapanhou
afilha daquere | lante Stuprada deixoa, enaõ cui | dou emcoprir apromesa debaixo |
daqual conSeguio cometer aquele | Crime [...] (XIMENES, 2006, p. 123).
Não muito raro, encontramos registros de denúncias em que os pais reclamavam o
estado de prenhez de suas filhas. Em outros, a moça se achava foragida com o amante sem
nenhuma informação do seu roteiro. Além de crimes de ordem sexual, vários de
espancamento e agressão física contra as mulheres que se mostravam completamente
234
indefesas diante do agressor. Porém, como vemos, o número de ações criminosas contra os
homens é bem superior, muito embora contra o gênero feminino a gravidade da violência seja
mais profunda, pois não fere somente o físico, mas a honra, a dignidade e os sonhos de
construir um lar e uma família decente, por meio de um casamento lícito com pessoa digna.
A violência contra a honra feminina não era restrita apenas às donzelas, com
promessas falsas de casamento, mas poderia acontecer pela força com qualquer outra pessoa,
como é o caso da viúva Thomazia Francisca de Souza, que morava com seu genro e compadre
Pedro Antonio da Silveira, na Serra da Uruburetama. Em uma noite, o genro atacou a sogra
com uma faca na mão e, com violência, a jogou no chão e a estuprou, conforme o relato de
sua petição no auto três do códice 39, do fólio 4v ao 6v. A petição é narrada com um tom de
espanto, sobressaindo o julgamento de quem escreve o texto, diante de tamanha violência do
acontecido, como segue.
(23) Querella, eDenunçia perante as Justissas | deSua Alteza Real, principalmente
perante vossa m | erçe senhor Juis ordinario desta Villa daFortaleza, Tho | mazia
Francisca deSouza mulher parda Viuvaque | ficou deManoel Pereira do Reis
moradora naSerra | daUruburitama deste termo ea rezaõ da Sua queixa | eDenunçia
Consiste em que sendo em hum dos dias do | mes deSetembro deste prezente anno
demil oito Centos | edous em huma quarta feira que seContaraõ quin | ze dodito mes
aoras demeia noite pouco mais | menos, estando aSuplicante recolhida en |
trou pella Caza dentro Seu genro eCompadre Pe | dro Antonio daSilveira õmem
pardo oqual aSis | tia Com Sua mulher filha daSuplicante napro | pria Casa desta
eSem temor deDeos edas Justissas de | Sua Alteza Real pegando lhe pello brasso
direito | eCom huma faCa deponta que tirou do Cóz das Si | louras, arastou
aSuplicante Sua Sogra, eComa | dre para fora da Casa Com forssa, eViolencia do |
que rezultou aContuzaõ que Consta do auto de | vestoria, eoutras mais pizaduras,
enodoas que tem | emSeo Corpo Cauzados deater arastado pello xaõ | obrando
Semilhante, e orrorozo delicto Só afim |
deter acçesso Carnal Com aSuplicante o
qual | veio aConseguir por violencia por mais que a | Suplicante fez por Sedefender
do Suplica | do este Com a mesma faCa deponta namaõ | Se Utilizou, eSatisfez o
Seo dia bolico intento || 5v intento transversalmente, ebestial, eSodomita Uzou | da
Suplicante Sua Sógra e comadre, Cazo este omais | orrorozo, que tem a conteçido
naõ obstante toda a re | zistençia, egritos que amesma Suplicante daua | erogos Com
que instaua ao Suplicado denada lhe | valeo por ser aCaza daSuplicante em lugar
dezer | to, eporque Semilhante aContecimento naõ | pertence ao Santo Tribunal
da Inquiziçaõ Como | athé he de querela Conforme as nossas Leis Patrias | por
forsar eviolentar aSuplicante emlugar Ermo | aqual querella aSuplicante
domesmo Agg | ressor bem, eVerdaddeira mente para exzemplo detal | asaçino
satisfaçaõ daSuplicante, eda Republica offen | dida [...] (XIMENES, 2006, p. 50).
O resultado dessa denúncia levou o agressor a ser pronunciado pelo juiz ordinário
da Vila de Fortaleza, em novembro de 1802; foi preso e morreu na cadeia em abril do ano
seguinte.
O fator faixa etária dos querelantes não tem muita relevância para a sua
qualificação, que dos 154 sujeitos citados apenas em 33 a idade é revelada, mesmo assim
235
de forma aproximada ou incerta. Provavelmente essas pessoas não sabiam a própria idade ou
o escriba não a considerou. Podemos perceber pelo pouco revelado que muitas crianças,
sobretudo meninas, eram vítimas dos desejos sexuais, quando os pais procuravam a justiça
para denunciar os casos de defloramentos praticados por parentes ou pessoas amigas da
família, o que caracterizava crimes de aleivosia na antiga lei filipina.
O quadro abaixo demonstra a faixa etária das vítimas. Preferimos conservar a
forma de dizer como está no original, ou seja, a idade muitas vezes não é dita de forma exata,
apenas aproximada, assim a conservamos.
Idade
Quantidade
%
Menos de 10 anos
1
0,65
13 ou 14 anos
1
0,65
14 anos
2
1,30
Menos de 15 anos
1
0,65
16 anos ou menos
1
0,65
Menos de 17 anos
2
1,30
18 anos
1
0,65
Mais de 25 anos
18
11,68
Menos de 25 anos
4
2,60
Menos de 26 anos
1
0,65
Velho
1
0,65
Não revelado
121
78,57
Total
154
100
Quadro 14 Idade dos querelantes
O item que aborda o ofício ou ocupação dos querelantes não teve muita
importância para a lei ou esses não tinham um ofício certo. Um mero reduzido de
querelantes apresenta uma profissão que lhe garante o sustento, os demais vivem de pequenas
plantações ou criações de animais. Embora não mencionado explicitamente nos textos,
sabemos que no período colonial a grande maioria da população do Ceará vivia no interior
das vilas e, muito raramente, sobrava outra atividade senão a da lida na terra, cultivando-a e
tirando dela o sustento. Ao lado dessa atividade, a criação de pequenos rebanhos para o
complemento da renda familiar é algo muito corriqueiro nas famílias do sertão.
Os dados abaixo revelam pouco quanto ao ofício das 154 pessoas querelantes
relacionadas nos processos.
236
Ocupação
Quantidade
%
Vive de seus negócios
3
1.95
Cozinheiro (do navio)
1
0,65
Escrivão do Alcaide
1
0,65
Capitão de navio
1
0,65
Advogado
1
0,65
Vive de lícitas agências
1
0,65
Vive de suas plantações
1
0,65
Vive de sua loja
1
0,65
Vive de agricultura
1
0,65
Vive de suas lavouras e negócios
1
0,65
Vive de ser oficial de carapina
1
0,65
Vive de vendas de secos e molhados
1
0,65
Não revelado
140
90,9
Total
154
100
Quadro 15 Ocupação dos querelantes
Não é clara a forma de dizer do ofício: viver de seus negócios, pois uma
variedade grande de negócios dos quais um sujeito poderia fazer. Provavelmente esses
negócios incluíam compra e venda de gêneros alimentícios, de animais ou outros trastes, fato
comum no período que garantia alguma renda. Assim, também é obscuro o ofício viver de
lícitas agências. A palavra agência remete-nos ao latim agěre no seu sentido mais próximo de
agir ou fazer. A expressão aparece muitas vezes no texto no quadro das testemunhas, que será
apresentado mais adiante. No glossário, capítulo 6, tem entrada como uma UF.
A palavra agência em tempos modernos significa “estabelecimento fundado para
prestar serviço, geralmente servindo como intermediário em negócios alheios, mediante
remuneração” (FREIRE, 1957, p. 309). A palavra vem seguramente do verbo latino agěre que
significa fazer, agir, portanto ligada à prática de alguma ação ou na ação de alguma coisa.
Aulete (1986, p. 58) define agência como atividade, diligência, indústria, emprego. Viver de
sua agência aparece no verbete agência constituindo uma fraseologia, cujo significado refere-
-se à “pessoa que, não tendo profissão ou ofício certo e permanente, nem rendimentos
próprios, ganha a vida em diferentes trabalhos e serviço que as circunstâncias lhe deparam”.
A respeito dos demais ofícios ou formas de viver da população, vale comentar o
termo oficial de carapina. Nos documentos antigos os termos mestre e oficial são muito
usados para caracterizar o profissional que exerce determinada profissão. O ofício de carapina
é o mesmo que de carpinteiro, ou seja, designa a pessoa que trabalha com madeira. Para
Houaiss (2001), versão eletrônica, carapina designa “no Brasil colônia, carpinteiro de obras de
madeira em geral, que não as construções e reparações navais”.
São anotadas as formas viver de agricultura e viver de suas plantas embora
nomeiem a mesma prática, são duas formas de escrever que achamos por bem conservá-las.
237
Para a prática do comércio também variadas maneiras de dizer: vive de sua loja, vive de
vendas de secos e molhados e vive de suas lavouras e negócios. Observamos ainda quatro
ofícios não muito comuns nesses textos: escrivão do alcaide, cozinheiro, advogado e piloto de
um navio.
O alcaide era um funcionário da antiga administração colonial. O termo é de
origem árabe, al-qāid, significando o [...] que conduz, guia, condutor, capitão, chefe,
comandante” (MACHADO, 1977, p. 178). Também significa o comandante de um castelo,
capitão de navio, almirante de esquadra. O termo hodiernamente é usado em língua espanhola
para designar o prefeito de uma cidade. A esse funcionário servia um escrivão nomeado para
o cargo de registrar todos os atos realizados por aquele, como era comum ocorrer em todos os
cargos da administração pública.
Quanto ao piloto do navio, trata-se de um comandante do Navio Felicidade,
oriundo de Portugal, que se encontrava ancorado no porto de Fortaleza. Esse senhor é
residente na cidade do Porto e foi agredido enquanto conversava com uma mulher,
aparentemente sem razão alguma. O mesmo agressor também espancou aquela mulher da
mesma maneira sem motivo, sendo matéria de dois autos e não revelando que razões levaram
a isso. O que nos leva a entender tal motivo é a provável cena de ciúme, muito embora não
dito no texto.
A profissão do advogado é pouco citada nos autos, apesar de se tratar de
documentos jurídicos, provavelmente devido à escassez de pessoas formadas em Direito no
Ceará. Apenas um é anotado aqui, que agia como curador dos filhos de uma viúva cujo
marido fora assassinado. Ao lado da mãe viúva e dos sete filhos estava o advogado
querelando contra os criminosos.
Quanto às informações da cor da pele ou etnia, como classificamos aqui, quase
todos os sujeitos são identificados, contudo características étnicas de algumas pessoas de
difícil compreensão. Quanto à etnia branca, não há problema, esta é representada pelos
portugueses e seus descendentes e forma a maioria dos sujeitos citados. Assim também, os
classificados como pardos apresentam um número razoável e é fácil entender a sua origem,
pois caracteriza o filho da mãe negra com o branco português que começava a formar-se no
século XVI, como diz Leite (1964).
Contudo, no tocante à caracterização de uma pessoa com casta da terra, não
compreendemos se se refere à terra brasileira, portanto, com casta dos nativos, isto é,
apresentaria traços indígenas. Talvez seja a explicação mais correta. Conforme o dicionário de
Aulete (1986, 347), casta significa [...]uma geração, povo ou família, considerada nos
238
caracteres hereditários, físicos e morais, que a distinguem das outras”. Neste sentido,
entendemos que uma pessoa com casta da terra seja o nativo não puro, ou seja, com traços de
branco e de índio, muito embora esta seja a composição étnica do mameluco, mas não é ainda
este, já que aparecem lado a lado as duas classificações.
Ainda semelhante é a denominação de branco com casta da terra, o que parece
ser de fato o branco com traços de índio nativo. Outras duas categorizações denominadas de
preto forro e de crioulo forro não significam a mesma coisa, conforme informa Barbosa
(2005, p. 87, grifos do autor), quando afirma que “Socialmente, os negros estavam divididos,
sendo ou não escravos, entre negros crioulos, aqueles que tinham a possibilidade de juntar
dinheiro e de ascensão na sociedade, e negros africanos”. Aparece ainda o índio, embora
tenha pouca participação nos processos, e o cabra, este último de difícil definição. Conforme
o dicionário Houaiss eletrônico, significa o “[...] mestiço indefinido, de negro, índio ou
branco, de pele morena clara”. Barbosa acrescenta que nas listas da população da época,
usavam-se a denominação de pardo para resolver as dificuldades de determinar a
miscigenação. o termo cabra definia o cafuzo resultado da mistura do negro com o índio.
“Podia designar mulatos (branco e negro), mamelucos (branco e índio) e cafuzos (negros e
índios) também chamados de cabras”. (BARBOSA, 2005, p. 85, grifos do autor).
Vemos, pois, uma rica categorização no quesito etnia/cor da pele ou o que
também chamamos de condição social, visto que a denominação de cabra, apesar de designar
mestiçagem, como o filho de mulato e de negra ou vice-versa (AULETE, 1986), era um
elemento caracterizador de muitos brasileiros no período da colonização. O referido léxico
nomeia também uma condição social atribuída a um grupo de indivíduos armados que
auxilivam um chefe político a manter suas conquistas e seu poder. Vieira Jr. (2004) assim se
refere aos régulos do sertão que mantinham sua força política e sua autoridade, auxiliados por
grupos de homens armados ou cabra também denominados de capangas.
Muitas das denominações que relacionamos no quadro seguinte, acreditamos que
sejam apenas impressões pessoais de quem escreve os textos, sem nenhuma norma ou critério
estabelecido, pois não encontramos referência em fontes bibliográficas a respeito do assunto.
Vale dizer que, atualmente, no Brasil, são definidas oficialmente cinco categorias étnicas:
branca, preta, parda, amarela e indígena.
239
Etnia/cor da pele/condição social
Quantidade
%
Branco
65
42,21
Pardo
20
12,99
Preto forro
2
1,30
Crioulo forro
1
0,65
Branco com casta da terra
2
1,29
Com casta da terra
3
1,95
Índio
3
1,95
Cabra
1
0,65
Escravo cativo
1
0,65
Mameluco
3
1,95
Não identificado
53
34,41
Total
154
100
Quadro 16 Etnia ou cor da pele dos querelantes
A seguir apresentamos o estado civil dos querelantes, muito embora essa
informação não tenha importância do ponto de vista filológico e linguístico, mas na
perspectiva sociológica revela dados importantes sobre a população cearense de alhures.
Percebemos a maior frequência de pessoas casadas e significativo número de pessoas viúvas,
tanto homens quanto mulheres. Os não revelados também são expressivos e,
presumivelmente, essa lacuna deva ser atribuída a descuidos dos escribas.
Uma denominação se destaca por não referir a um estado civil, no caso de
donzela, porém aparece registrada nos documentos. A palavra donzela refere-se a um título
dado durante a Idade Média às filhas de reis e fidalgos, antes de contraírem matrimônio.
Passou, posteriormente, a designar as servidoras domésticas nos palácios reais e senhoriais,
conforme a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s.d.). O sentido empregado nos
textos aqui analisados designa uma jovem em puberdade, quase menina e ainda em estado de
virgindade. Vale ressaltar que no momento atual, embora dicionarizada, a palavra é pouco
evocada na língua, passando por um período de arcaização.
Estado civil dos querelantes
Quantidade
%
Casado
60
38,97
Solteiro
31
20,12
Viúvo
16
10,39
Donzela
1
0,65
Não revelado
46
29,88
Total
154
100
Quadro 17 Estado civil dos querelantes
No tocante ao local de residência dos querelantes alguns comentários merecem ser
feitos. Nos séculos XVIII e XIX, existiam poucas vilas no Ceará e estas situavam-se muito
distantes umas das outras. A ocupação da capitania do Ceará ocorreu tardiamente e a criação
240
das primeiras vilas por ordem régia ocorreu somente no final do século XVII, como informa
Studart (2001). De acordo com o autor, foi por meio da Ordem Régia de 13 de fevereiro de
1699 que o rei de Portugal, à época, D. Pedro II, mandou criar uma vila no Ceará, elegendo
oficiais da câmara e juízes ordinários para assim se atalharem partes das insolências que
cometiam os capitães-mores e se administrar melhor a justiça. Vale dizer que as primeiras
vilas situavam-se no litoral, ficando o interior desocupado por muito mais tempo.
As querelas eram tornadas públicas durante as visitas de correição dos
corregedores às sedes das vilas. Muitas pessoas residiam em fazendas, sítios ou logradouros
dos termos dessas vilas
58
Não citamos aqui todas as localidades, porque muitas são
desconhecidas, preferimos, então, mencionar as vilas e as suas localidades para englobar a
sede e o seu termo. No entanto, mantivemos os nomes de alguns desses logradouros por
tornarem-se conhecidos, atualmente, como cidades, mesmo com outra denominação; outros
são bairros de Fortaleza.
É notável a maior concentração de muitas pessoas residindo nas ribeiras dos rios
ou próximo às serras, como apresentamos no quadro seguinte. Mantivemos esses registros
topográficos que ainda dão nomes aos rios e serras situados no Ceará. Hemos de salientar a
relevância quantitativa nos documentos e a importância econômica e demográfica que os rios
e as serras exerceram no processos de povoamento do Ceará. As margens dos rios e sopés das
serras geralmente são locais mais agradáveis e de condições melhores para sobrevivência, por
isso os primeiros núcleos populacionais sempre surgem à margem de um rio quando não, no
litoral. Os caminhos que conduziam os primeiros migrantes em um território sempre foram os
cursos das águas, o mar ou os rios. No início da História do Ceará, o Rio Jaguaribe foi a porta
de entrada para a ocupação do interior. A serra da Ibiapaba foi o local para onde se dirigiam
os colonizadores, no princípio da ocupação do Ceará. Primeiramente, Pero Coelho em sua
expedição dirigiu-se para a Ibiapaba, em 1603. Logo depois, em 1607, os jesuítas Francisco
Pinto e Luís Figueira chegaram ali, onde habitavam os índios tabajaras. Foi nas imediações
da Ibiapaba que surgiu a vila de Viçosa Real e, posteriormente, vila Nova d‟El Rei. Descendo
para o litoral, fundou-se a vila de Granja.
Foi também nas encostas da chapada do Araripe que se criou a vila do Crato. No
Maciço de Baturité, a vila de Monte-mor o Novo da América. Ainda no interior, nas margens
58
A palavra termo era utilizada para designar o espaço geográfico de uma vila. Equivale ao que conhecemos
hoje como município. Havia a sede da vila e o seu termo. Atualmente conhecemos a cidade, sede do município, e
a extensão territorial que pertence ao município.
241
do Rio Acaraú, criaram a vila de Sobral e nas ribeiras do Jaguaribe a vila do Icó. Outras
surgiram no alto sertão como Quixeramobim e São João do Príncipe, por razões relacionadas
à ocupação do sertão, para a criação de gado. No litoral, além das conhecidas Fortaleza e
Aquiraz, um pouco mais afastada, fundaram os portugueses a vila de Aracati.
Além dos fatores geográficos estratégicos, como a aproximação do litoral e as
margens dos rios que favorecem a locomoção por meio do percurso natural das águas,
também as conveniências para o desenvolvimento econômico, conforme aludido.
Logicamente que foi nas ribeiras de nossos rios que a população encontrou pastos e águas
favoráveis para a criação dos rebanhos de gado e terras mais produtivas para o cultivo da
lavoura. Anota Nobre (1974, p. 15) que foram as serras e colinas os locais para onde
convergiram os habitantes das capitanias vizinhas no processo de ocupação do Ceará. “[...] o
Ceará permaneceu, durante mais de um século, abandonado, o que fez convergir para suas
serras e planícies os habitantes primitivos das Capitanias vizinhas, do leste e do sul,
perseguidos pelos colonizadores”.
A vila de Fortaleza e a do Aquiraz, por serem as duas primeiras a se estabelecer,
apresentam uma população maior em relação às demais. Muitas pessoas citadas moram no
entorno dessas vilas, em pequenas comunidades cujos nomes não existem mais, por isso não
as citamos. A vila do Icó, apesar de distante da capital, apresenta um contingente maior de
pessoas citadas nos crimes, sobretudo morando nas várzeas do Rio Jaguaribe, já que tal vila se
situa às margens daquele principal rio do Ceará.
Algumas localidades citadas mudaram o nome, como Catinga do Góes, hoje a
cidade de Jaguaruana, no Vale do Jaguaribe. Arronches, que perdeu a categoria de vila, é
atualmente o bairro da Parangaba, em Fortaleza. Campo Maior é hoje Quixeramobim, no
sertão central. Monte Mor o Novo da América passou a ser Baturité, e São Bernardo é a
cidade de Russas. Várias localidades como Cocó, Jacarecanga e Cambeba são bairros de
Fortaleza que já existiam na época como sítios distantes da sede da vila.
Vários rios são citados como o Curu, que corta alguns municípios cearenses
como Pentecoste, São Luís do Curu, Paraipaba e Paracuru. Esse rio é de grande importância
econômica para o Estado. O Caxitoré corta os municípios de Irauçuba e Tejucuoca, formando
um afluente do Curu. O Figueiredo, situado no alto Jaguaribe, corta os municípios de Iracema,
Alto Santo e Potiretama, desaguando no Rio Jaguaribe. O Siupé deságua no Atlântico, no
município de São Gonçalo do Amarante. O Cauipe corta o município de Caucaia. No quadro a
seguir demonstramos a população dessas localidades.
242
Local de residência
Quantidade
%
Vila da Fortaleza e suas localidades
39
25,32
Vila do Aquiraz e localidades
12
7,79
Vila do Icó e localidades
13
8,44
Vila de Sobral e localidades
7
4.54
Vila de Granja e localidades
9
5.84
Vila do Aracati e localidades
7
4,54
Vila de Monte Mor o Novo da América
2
1,30
Vila de São João do Príncipe
2
1,30
Vila de São Bernardo e localidades
1
0,65
Quixeramobim
1
0,65
Vila de Campo Maior
1
0,65
Serra da Meruoca
3
1,95
Santa Quitéria
2
1,30
Vila de Mecejana
1
0,65
Vila de Arronches
1
0,65
Maranguape
1
0,65
Cambeba
1
0,65
Jacarecanga
1
0,65
Cocó
4
2.60
Lavras da Mangabeira
1
0,65
Catinga do Góes
1
0,65
Missão Velha
2
1,30
Ribeira do Cauipe
2
1,30
Barra do Rio Ceará
1
0,65
Ribeira do Curu
5
3,25
Ribeira do Siupé
5
3,25
Ribeira do Jaguaribe
8
5,19
Ribeira do Aracatiaçu
2
1,30
Ribeira do Figueiredo
1
0,65
Ribeira do Caxitoré
1
0,65
Mossoró (RN)
1
0,65
Praça de Pernambuco
1
0,65
Cidade do Porto (Portugal)
1
0,65
Serra da Uruburetama
11
7.14
Não identificado
3
1,95
Total
154
100
Quadro 18 Localidades onde moravam os querelantes
Desde a fundação da primeira vila no Ceará, no final do século XVII, até o fim do
período colonial havia ainda poucas vilas nessa Capitania. A administração judiciária teve
início aqui a partir da criação da primeira vila. A estrutura administrativa dessas vilas se
constituía a partir da formação da câmara, órgão maior da administração local, que estava sob
a presidência de um juiz ordinário. Esse juiz era escolhido pelos moradores locais para
exercer a função judiciária e administrativa. Eram eles os responsáveis pela aplicação da
justiça, muito embora não tivessem formação jurídica e, nem mesmo, a formação escolar
básica. As queixas de crimes na maioria dos autos que analisamos eram dirigidas aos juízes
das câmaras ou juízes ordinários.
243
Em 1723 foi criada a Ouvidoria do Ceará, com sede na vila de Aquiraz. O
ouvidor e corregedor da comarca dirigia-se às demais vilas para administrar a justiça nas
chamadas visitas de correição. Esse se estabelecia em uma casa, talvez a sede da câmara da
vila, e levava consigo um escrivão para anotar as denúncias trazidas pela população vitimada.
Muitos crimes ocorriam, às vezes, no termo de uma vila, mas era denunciado quando o
corregedor se encontrava em outra, por ocasião da correição. Encontramos crimes praticados
no termo de Granja, mas registrados em Viçosa, outros ocorriam no termo de Sobral, sendo
registrados em Fortaleza e assim por diante.
As dificuldades de o ouvidor atender a contento as reivindicações da população
vitimada pela violência eram muitas, fazendo com que os juízes ordinários fossem
responsáveis pelos inquéritos, não obstante a falta de competência para o exercício do cargo.
As deficiências eram mais sensíveis ainda no tocante aos juizes de primeira
instância, geralmente leigos, sem capacidade, por conseguinte, para solucionar as
pendências, situação esta agravada pela impossibilidade de o Ouvidor atender às
necessidades da justiça em uma Capitania tão vasta e onde, quando os invernos
rigorosos não lhe impediam o deslocamento às Vilas do interior, as secas
devastadoras tudo desorganizavam. (NOBRE, 1974, p. 48).
Nas vilas de maior importância havia um juiz de fora formado em Direito, que
realizava as diligências pertinentes ao cargo. Receber querela, por exemplo, era uma de suas
atribuições. A criação do juizado de fora em Fortaleza ocorreu em virtude do Alvará de 24 de
junho de 1810, emitido por Sua Majestade o Rei D. João VI. O primeiro despacho da função
foi do bacharel José da Cruz Ferreira. posteriormente foram criados mais juizados de fora
no Ceará, como veremos adiante.
Pelo exposto percebemos as dificuldades do sistema judiciário em ser eficiente,
pois que estava à mercê da fragilidade do sistema, das condições climáticas e geográficas e da
mão-de -obra despreparada. Entendemos que os processos criminais não tinham continuidade
e a lei, seguramente, não era aplicada.
Fortaleza, por ser a sede da comarca, é o local com maior ocorrência de registros,
seguido de Aracati e Sobral. Algumas vilas apresentam ocorrência baixa ou não são sequer
mencionadas, o que nos leva a crer que muitos crimes não chegaram ao conhecimento da
justiça.
Destacamos as duas formas de registro: vila e cidade de Fortaleza, que o
registradas nos autos e as mantivemos assim porque em 1823 o Governo Imperial conferiu a
todas as capitais das Províncias os foros de cidade, “foi a Vila de Fortaleza, pelo Imperial
244
Decreto de 18 de março daquele ano, elevada à categoria de cidade, com a denominação de
Cidade de Fortaleza de Nova Bragança”. (MACEDO, 1990, p. 32, grifo do autor). Nos
autos, a partir dessa data aparece a denominação cidade de Fortaleza.
Local da denúncia
Quantidade
%
Vila/cidade da Fortaleza
70
52,63
Vila de Aracati
17
12,78
Vila de Sobral
16
12,03
Vila de São José do Ribamar do Aquiraz
12
9,02
Vila do Crato
4
3,00
Vila Viçosa Real
3
2,25
Vila do Icó
3
3,00
Vila da Granja
1
0,75
Vila de Arronches
1
0,75
Vila de São Bernardo
1
0,75
Vila de São João do Príncipe
1
0,75
Vila Monte Mor o Novo da América
1
0,75
Povoação de Quixeramobim
1
0,75
Povoação do Siupé
1
0,75
Povoação de Santa Cruz da Uruburetama
1
0,75
Total
133
100
Quadro 19 Local de registro das denúncias
No item que denominamos grau de instrução, não muita informação sobre isso
em relação aos querelantes, contudo, através do contexto podemos deduzir que algumas
pessoas eram escolarizadas porque o escrivão afirmava que o querelante assinou com o juiz e
a assinatura no final do auto. Sendo assim, classificamos essa pessoa de escolarizada. Em
outros casos, pelo fato do querelante não saber ler nem escrever, o juiz assinou por ele ou
aquele assinou de cruz, havendo o desenho de uma cruz. Por esta informação classificamos a
pessoa de analfabeta. São essas duas categorias que apresentamos quanto ao grau de
instrução. Apesar do estado de atraso da Capitania do Ceará e da colônia como um todo, no
tocante à escolaridade, um número maior de denunciantes escolarizados, como se observa
no quadro seguinte.
Grau de instrução
Quantidade
%
Escolarizado
87
56,49
Analfabeto
64
41,56
Não revelado
3
1,95
Total
154
100
Quadro 20 Grau de instrução do querelante
245
Na próxima seção, passaremos à identificação dos sujeitos envolvidos nos crimes
como autores de delitos, denominados de querelados ou denunciados. Essa identificação pode
ser definida conforme a narrativa das queixas anotadas pelos tabeliães ou escrivães. O perfil
social dos querelados é apresentado de maneira incompleta, contudo, apossando-nos das
informações dadas, construímos um quadro que nos possibilitou tecer o perfil social da
História do Brasil colônia.
6.2.2 Dos Querelados
Nos 133 autos são citados 205 sujeitos envolvidos como autores de delitos. Desse
total, 184 são do sexo masculino e 21 do sexo feminino. Esses dados são reveladores sobre o
comportamento da mulher na sociedade colonial, que apesar de recolhida ao nicho dos seus
afazeres domésticos ou nas lidas no campo, como auxiliares dos maridos, essas aparecem
envolvidas no mundo do crime, mesmo que só em alguns casos, como no momento da
necessidade, que obriga a praticar pequenos furtos para sobrevivência. Em outros casos, os
envolvimentos são por rixas entre vizinhas ou outros motivos banais. Há, no entanto, crime de
participação efetiva da mulher como incentivadora dos homens, como demonstra a narrativa
do auto 1 do códice 33, em que a índia Maria Manoela, envolvida num crime de assassinato,
incentivara o marido e o irmão a matarem o coronel Luiz Marreiros de Melo, como
demonstra a passagem abaixo:
Que odito marido da Querelan | te; nodito dia quatro deAbril | docorrente anno
demil oito | centos eSete Seavia aranjado em | Caza dodito Sargemto mor Pedro |
deAbreu Pereira atoda apressa | foraõ armados defacas grandes | xamadas neste
contenente Par | nahibas, ede Catanas, eadita Ma | ria Manoela mulher dodito Pe |
dro Munis eque fora que oexcita | ra, emovera para hir fazer aquele | homocidio
armada dehuma uara | deferaõ os Seguira dizendo aomarido, | e aoIrmaõ que
osacompanhaua por | que eles Sem ela nada faziaõ | porque eraõ mofinos[...]ficando
| aQuerelada Maria Manoela mu | lher dodito Pedro Munis, eirman | doCaboclo
Thomas naporta com | auara deferraõ defendendo aporta | para ninguem entrar
aacudir, e | gritando aomarido, eirmaõ que pi | casem bem aodito marido da Que |
relante, eonaõ deixasem uiuo | porque homem morto naõ falaua [...] (XIMENES,
2006, p.84-85).
Vieira Jr. (2004) analisa os vários casos de participação feminina nos atos de
violência registrados nos Autos de Querela em que muitas delas são vítimas, sobretudo de
defloramentos, no entanto, elas ultrapassam essa condição de vítimas e passam a ser
agressoras, o que caracteriza um amálgama de comportamento e significados.
246
[...] a mulher não se consagrava passivamente diante da linguagem da violência.
Saltavam dos lugares de vítimas para os lugares de agressoras. Não eram apenas
protegidas ou agredidas por seus parentes masculinos, elas poderiam ser suas aliadas
nas situações de conflitos que envolviam a família. (VIEIRA JR., 2004, p. 284).
O quadro seguinte mostra o número de mulheres citadas como agressoras em
diversas situações em nosso conjunto de documentos.
Sexo dos querelados
Quantidade
%
Masculino
183
89,70
Feminino
21
10,30
Total
204
100
Quadro 21 Sexo dos querelados
Por se tratar de sujeitos delituosos, alguns foragidos da justiça e outros até
desconhecidos da população denunciante, não há registro de faixa etária. Apenas de uma
pessoa é revelada a idade de forma incerta, como tendo mais de 25 anos. Outro dado não
informado é o grau de instrução. que essas pessoas estão ausentes no momento de registrar
a queixa e não precisam assinar documentos, não informação se alguém sabe escrever o
nome nem tampouco podemos deduzir isso por meio do texto. Por essas razões não
apresentamos tabelas demonstrativas referentes aos dois itens.
Passamos para o item ocupação, ofício ou profissão, ou mais precisamente como
diz o texto, de que vivem esses sujeitos. Também pouco se sabe sobre esse aspecto, pois
apenas de 11 dos delituosos são mencionados os seus ofícios. Dois dos quais não
desenvolvem nenhuma atividade, portanto, caracterizando-se um como vagabundo e outro
sem ocupação. Os 11 informados sobre seus meios de vida, assim se distribuem: oficial de
carapina, oficial de sapateiro, oficial de ferreiro, oficial de serralheiro, comerciante, caixeiro,
piloto de navio, capitão de navio, contratador de carnes, soldado de infantaria paga e outro
vive de suas próprias agências. Na grande maioria, ou seja, em 193 dos envolvidos não são
feitas referências quanto às suas ocupações. Alguns são escravos, vivendo do trabalho árduo,
outros são filhos de proprietários de terra e de gado, estando relacionados a atividades
agrícolas. as mulheres, provavelmente viviam da lida doméstica e das pequenas roças de
milho, feijão e mandioca, assim como a maioria dos homens deviam viver de agricultura ou
de trabalho alugado. A maioria parece viver sem ocupação remunerada, apenas dos parcos
recursos da roça. Muitos se envolviam em crimes de furtos de gados alheios para saciar a
fome da família, outros pegavam os cavalos no campo e os vendiam para adquirir dinheiro.
um crime de homicídio em que os autores são dois filhos de um capitão fazendeiro, por
247
rixas velhas entre os envolvidos. Os motivos são variados, alguns, torpes e elementares,
porém, suficientes para se estabelecer um conflito e gerar um crime.
O quadro abaixo sintetiza o perfil ocupacional revelado dos sujeitos querelados.
Ocupação/de que vivem
Quantidade
%
Oficial de carapina
1
0,49
Oficial de sapateiro
1
0,49
Oficial de ferreiro
1
0,49
Oficial de serralheiro
1
0,49
Comerciante
1
0,49
Caixeiro
1
0,49
Piloto de navio
1
0,49
Capitão de navio
1
0,49
Soldado de infantaria paga
1
0,49
Vive de suas próprias agências
1
0,49
Contratador de carnes
1
0,49
Vagabundo
1
0,49
Sem ocupação
1
0,49
Não revelado
191
93,63
Total
204
100
Quadro 22 Ocupação ou ofício dos querelados
Vemos que alguns ofícios foram mencionados anteriormente. Vale comentar o
termo oficial que é muito recorrente como derivado de ofício, ou seja, profissão. Assim, o
termo oficial de serralheiro designa aquele que trabalha com material metálico, o indivíduo
especializado em fabricar ou consertar fechaduras ou construções metálicas. O oficial de
sapateiro é o que conserta ou faz sapatos, quase extinta atualmente essa profissão. Contratador
de carnes significa aquele que tem negócios, no caso específico, que paga uma certa quantia
relativa a impostos para negociar com as carnes dos animais vacuns no açougue.
O soldado de infantaria é um membro da administração que nos remete à
organização militar da colônia. É justo apresentarmos aqui a composição do sistema militar
colonial, como nos descreve Prado Jr. (1999). Essas forças armadas eram compostas por três
setores.
1) A tropa de linha ou primeira linha que representa a tropa regular e profissional, composta
quase sempre por portugueses. Em princípio os bancos eram aceitos, mas dado ao caráter
misto da população brasileira, havia tolerância à cor, porém os pretos e os mulatos muitos
escuros eram excluídos. Vale lembrar que era o único segmento remunerado.
2) As milícias: eram tropas auxiliares organizadas em regimentos que serviam sem
remuneração e eram recrutadas por serviço obrigatório.
248
3) As ordenanças: eram formadas pelo restante do contingente masculino da colônia entre 18
e 60 anos ainda não alistado nas duas categorias anteriores. “A organização das ordenanças
conservava em toda a colônia, e conservará até sua extinção em pleno Império (1831), os
antigos terços divididos em companhias”. (PRADO JR., 1999, p. 312).
Provavelmente o soldado de infantaria citado pertencia à tropa de primeira linha.
Pelos critérios regimentais, ele era um cidadão branco, senão um português.
O item que denominamos etnia ou cor da pele diz respeito à caracterização
apresentada nos autos, a qual mantivemos. Conforme essa caracterização várias
categorias: brancos, cabras, pardos, mamelucos, índios, crioulos, brancos com casta da terra.
Em alguns casos mencionam-se as seguintes formas: tem casta, parece branco, com casta da
terra, branco da terra, tem casta de índio e de cabra. São citadas ainda as denominações
escravos, pretos, pretos forros e mestiços. Muitas pessoas não foram identificadas. O quadro
representa de forma quantitativa essa categorização.
Etnia/cor da pele/condição social
Quantidade
%
Branco
45
22,1
Cabra
28
13,7
Pardo
24
11,76
Mameluco
19
9,31
Índio
11
5,39
Crioulo
2
0,98
Branco com casta da terra
2
0,98
Com casta
2
0,98
Parece branco
3
1,47
Com casta da terra
4
1,96
Branco da terra
2
0,98
Com casta de índio e de cabra
1
0,49
Escravo
3
1,47
Preto
2
0,98
Preto forro
2
0,98
Mestiço
1
0,47
Crioulo forro
1
0,47
Pardo forro
1
0,47
Branco ou parece ser
1
0,47
Não identificado
50
24,5
Total
204
100
Quadro 23 Etnia/cor da pele ou condição social dos querelados
-se mais uma vez a predominância do branco sobre os demais, apesar dos
pardos, dos cabras e, até mesmo dos índios, se apresentarem de forma significativa.
Embora tenhamos discutido um pouco sobre o quadro étnico na avaliação dos
querelantes, ampliamos aqui as denominações, como: mameluco, mestiço, escravo, preto,
preto forro, crioulo, crioulo forro, branco da terra, parece branco. Tudo leva a crer que não
249
há critérios para a identificação das etnias dos querelados, parece-nos que vale a impressão de
quem escreveu os textos. Cabe, então, questionar: como identificar uma pessoa que parece
branca? Seria desconhecida aquela pessoa da qual se ouviu falar por acaso, com informações
vagas? Da mesma forma, quem é um branco da terra? É um português ou um brasileiro?
Provavelmente brasileiro branco, mas com aspectos de mestiço. Quem tem casta? Não
sabemos a qual casta se refere. E o que tem casta de índio e de cabra, que denominação
daríamos para a sua etnia?
Constitui um problema complicado de se resolver e de se esclarecer todas as
denominações, que não informação em nenhuma fonte bibliográfica. Partimos de
conjecturas e avaliações, a nosso ver, preconceituosas, pois são estabelecidas pelos tabeliães
ou pelos próprios denunciantes, no ato de caracterizar essas pessoas.
Este problema provavelmente é mais evidente no Brasil devido à miscigenação
ser deveras uma característica sui generis de nosso país. Lendo alguns Autos de Querela da
cidade de Lisboa, escritos no século XIX, observamos que é muito simples a caracterização
das pessoas sobre o aspecto da cor da pele e, geralmente, não nenhuma informação étnica
para os sujeitos citados. Provavelmente sejam todos brancos e não necessidade de
mencionar.
Padre Serafim Leite (1964), ao falar das raças do Brasil perante as ordens
teológica, moral e jurídica, admite que é diante desta última que a questão se torna um tema
grave e complexo.
É o item mais grave de todo o tema, longo e complexo, por versar sobre a
administração da justiça no esforço de coordenar o estado inculto, primitivo, em que
os Portugueses acharam as raças do Brasil, com os interesses locais dos moradores
das cidades, vilas e fazendas, que se iam organizando por toda a costa. Os
moradores inicialmente brancos, no século XVI começaram a ser também
mestiços pelo lado da mãe índia (mamaluco) e pouco depois pelo lado da mãe negra
(moços pardos). Todos em geral brancos, mamalucos, moços pardos se chamam
Portugueses. (LEITE, 1964, p. 13).
Vemos, pois, pela reflexão do historiador, que a raça branca era a dominante no
início da colonização, logicamente que ele fala da sociedade dos colonizadores, excluindo os
nativos. Aos poucos, ainda no século XVI, a mestiçagem começa a se proliferar surgindo,
então, o pardo e o mameluco. Nos séculos XVIII e XIX, em que os documentos foram
escritos, parece não haver possibilidade de controlar somente essas variáveis pelo fato de os
escrivães pintarem um quadro muito complexo quanto às etnias brasileiras.
250
Quanto ao estado civil dos denunciados, embora este dado não seja relevante para
se estabelecer alguma conclusão a respeito do estado de língua, poderá ser para a história
social. As informações contidas nos autos favorecem o seguinte quadro:
Estado civil
Quantidade
%
Casado
71
34,80
Solteiro
50
24,51
Viúvo
5
2,45
Não revelado
78
38,24
Total
204
100
Quadro 24 Estado civil dos querelados
O grau de instrução é um fator revelador da cultura das pessoas, mas aqui não é
mencionada qualquer informação. Não podemos estabelecer, portanto, um parâmetro quanto a
esse item.
Quanto aos motivos da acusação dos crimes, encontramos algumas causas
bastante relevantes e outras nem tanto. O motivo é obrigatoriamente expressado em todos os
autos. A noção de crime aqui é estabelecida e confirmada pelo Código Filipino, no Livro V
que versa sobre o tema. As Ordenações Filipinas são o código de leis portuguesas que regeu
o Brasil até 1916, quando do advento do Código Civil. Portanto, todos os atos considerados
crimes têm como parâmetro o Livro V das Ordenações.
autos em que o infrator pode ser enquadrado em mais de um crime. Assim, o
rapto de uma moça, seguido de defloramento ou estupro, praticado aleivosamente, são três
crimes diferentes, conforme a lei, e são registrados nos autos como tais.
Um crime cometido aleivosamente é estabelecido no Livro V, Título XXXVII e
definido no caput como uma maldade cometida por traição quando se tem amizade entre as
partes.
Aleivosia he huma maldade commettida atraiçoeiramente sob mostrança de amisade,
ecommette-se, quando alguma pessoa sob mostrança de amizade mata, ou fere, ou
faz alguma offensa ao seu amigo, sem com elle ter rixa, nem contenda, como se lhe
dormisse com a mulher, filha, ou irmã, ou lhe fizesse roubo, ou força [...] (CÓDIGO
PHILIPPINO, 2004, p. 1187).
A descrição prossegue dos parágrafos primeiro ao terceiro e estabelece o tipo de
pena que se deve aplicar para tal crime, como vemos no parágrafo terceiro.
E o homem, que induzir alguma mulher virgem, ou honesta, que não seja casada, per
dadivas, afagos, ou promettimentos, e a tirar e levar fóra da caza de seu pai, mãi,
Tutor, Curador, senhor, ou outra pessoa, sob cuja governança, ou guarda stiver, ou
251
de qualquer outro lugar, onde andar, ou stiver per licença, mandado, ou
consentimento de cada hum dos sobreditos, ou ella assi enganada, e induzida se fòr
a certo lugar, donde a assi levar, e fugir com ella, sem fazer outra verdadeira força a
ella, ou aos sobreditos, e o levador fòr Fidalgo, ou pessoa posta em Dignidade, ou
Honra grande, e o pai da moça fòr pessoa peblea, e de maneira, ou Official, assi
como Alfaiate, Çapateiro, ou outro semelhante, não igual em condição, nem stado,
nem limhagem ao levador, o levador será riscado de nossos livros, eperderá qualquer
tença graciosa, ou em sua vida, que de Nós tiver, e será degradado para África até
nossa mercê.
E qualquer outro de menor condição, que o sobredito fizer, morra por ello.
E bem assi, haverá lugar a dita pena de morte nas outras pessoas, onde houver
igualdade de linhagem. (CÓDIGO ..., 2004, p.1168).
Não sabemos se na prática a lei é severamente aplicada no Brasil, pois o temos
o prosseguimento dos processos. Contudo, ao encontrarmos um caso de estupro e aleivosia
ocorrido em Portugal, em 1830, o querelado foi condenado a cinco anos de exílio nas Ilhas de
Cabo Verde e a pagar uma quantia para a vítima, além das despesas do processo. Nesse caso
o querelado era de classe inferior à da querelante, o que levaria à pena de morte, no entanto,
não ocorreu.
É muito comum nos Autos de Querela a ocorrência de crimes aleivosos,
principalmente contra a honra feminina. Geralmente os pais reclamam de ter uma filha em
casa e um parente ou namorado com garantias de casar-se com ela levar de sua honra e
virgindade não cumprir com a promessa de casamento que havia feito para conseguir o seu
intento.
O crime de defloramento se caracteriza pela primeira conjugação carnal de uma
mulher virgem e materializa-se por lesões no órgão genital feminino, advindas do órgão
genital masculino. A palavra tem origem no verbo latino deflorāre que significa arrancar ou
colher a flor. Numa acepção metafórica, é empregado para designar a ruptura do hímen das
moças virgens.
O defloramento não ocorre necessariamente com violência e sem a vontade da
mulher. Difere, pois, do estupro que, além da força, não voluntariedade da vítima e pode
ser com ou sem defloramento, desde que se caracterize pela violência empregada para a posse
da mulher virgem ou honesta.
[...] he crime, pelo qual se rouba a huma donzela a sua virgindade. Póde ser
commettida, ou por violencia, ou por seducção, ou a huma mulher feita, ou a
huma inubil. Devem considerar-se estas circunstancias para se qualificar a gravidade
do crime. (SOUSA, 1825).
252
Já o estupro é caracterizado pela força violenta, sem consentimento da vítima, seja
ela virgem ou não, casada ou solteira, honesta ou desonesta, como denotamos abaixo, nas leis
atuais, conforme comenta Nunes (1995, p.217).
Crime que consiste na posse sexual da mulher, mediante violência física ou grave
ameaça, ou violência psicológica, pelo emprego de drogas, e em casos raros, até a
hipnose (violência psíquica). A vítima pode ser virgem, ou não, maior ou menor,
solteira, casada, viúva, honesta ou desonesta. Para que se caracteriza o estupro, é
mister que haja oposição ou tenaz resistência da vítima à ação do ofensor. Violação
da mulher.
Outro tipo de crime saliente é o de roubo, que ocorre quando a ação é feita com
violência, força ou grave ameaça.
Crime complexo, que consiste na subtração, para si ou para outrem, de coisa móvel
alheia, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de a ter, por
qualquer meio colocado na impossibilidade de resistir. (NUNES, 1995, p.217).
Enquanto furtar é tirar o alheio sem que o dono saiba, é a subtração fraudulenta de
uma coisa. “Crime que consiste na subtração de coisa móvel, para si ou para terceiros, sem o
consentimento do seu legítimo dono. Tirada, apropriação ilícita da coisa móvel
alheia(NUNES, 1995, p.243).
Nos autos, os crimes de furtos e de roubos parecem ter a mesma significação. São
furtados, sobretudo animais, gados, cavalos e coisas como dinheiro, gêneros alimentícios,
telhas e, até mesmo, escravos. Por várias vezes a reclamação de que alguém furtou e matou
uma vaca ou um boi, usando o produto em seu uso, como bem diz a narrativa.
Querella pe | rante asJustissas deSua Alteza Real principalmente pe | rante Vossa
merçe Senhor Juis ordenario desta villa da | Fortaleza o Capitaõ Jozé daSilva Alves,
morador names | ma villa, ea Rezaõ deSua queixa Consiste em que sen | do emhum
dos dias, que Se Contaraõ Seis do Corrente mes de | Novembro dopresente anno,
demil oito Çentos edous, Domin | gos Tavares daLux, morador no Coco, Sem
authoridade e | consentimento doSuplicante lhepegou hum Boy de | carro, do ferro
domesmo que andaua Solto nas vargens | doRio CoCo eo matou Convertendo
emSeo Ûzo oprodu | to domesmo Boy, Sendo outro Sim o dito Suplicado Uzei | ro
eVizeiro afurtar gados alheios, e Cometer outros mais | delictos;[...] (XIMENES,
2006, p. 52).
O roubo de gado nos campos da capitania do Ceará era uma prática que
preocupava as autoridades. Em relatório do governador Luís da Mota Féo e Torres que
governou o Ceará de 1789 a 1799, é citada a situação dos moradores e a prática do roubo
muito recorrente e outros crimes.
253
O mal hábito da plebe deste continente, a sua situação acomodada para insultos e
furtos de gado sempre dispersos nestes vastos sertões fazem que esta Capitania seja
de longos tempos uns viveiros e receptáculos de ladrões e facinorosos: o excessivo
uso das armas, e a fome que geralmente se experimenta no presente ano teve
princípio no passado, unido tudo à preguiça que domina estes povos m
aumentado grandemente aquele número e excitado o meu cuidado a providenciar
e obviar todas as desordens, que de semelhantes princípios dimanam; e para de
algum modo o conseguir, tenho sido obrigado a usar de alguns castigos arbitrários e
também pelos contínuos rogos dos prejudicados, visto que não cadeias seguras
para tantos ladrões e malfeitores e nem se poderiam, ainda que as houvesse,
conservar com vida tantos indivíduos em prisão sem terem sustentos. (STUDART,
2004, p. 421- 422).
59
Vieira Jr. (2004) afirma que o roubo era uma das práticas mais comuns no período
e atribui como fatores determinantes a fragilidade das instituições, a belicosidade dos grupos
que reivindicavam domínio e o quadro de pobreza gerado pelas secas e pela fome, conforme
as palavras do autor.
Uma das práticas mais comuns, que emergem nas linhas dos diversos processos
analisados, era o roubo. Isso pode ser explicado justamente pela fragilidade dos
poderes instituídos no Ceará, que não eram capazes de asseverar a legitimidade da
propriedade privada. A garantia das posses materiais, embora pudessem contar com
o aval da legislação e dos magistrados, passava também pela belicosidade dos
grupos que reivindicavam os domínios. A prática era ainda incentivada diante do
quadro geral de pobreza, agravada pela baixa produtividade agrícola e pelas
constantes secas. Ter seus bens roubados não era apenas indício de burlo da lei, mas,
também poderia significar debilidade de forças das vítimas furtadas. (VIEIRA JR.,
2004, p. 260).
Os delitos classificados como agressão física e espancamento são situações
bastante semelhantes, mas mantivemos em itens separados como se encontram nos registros
dos autos. Geralmente a pessoa é agredida com instrumentos cortantes como navalhas,
canivetes e facas, ou outros objetos como paus, bordões, chinelas ou chicotes e peias usadas
no trato com os animais ou ainda bofetes, punhadas e pisaduras dados com as mãos e os pés.
os casos de agressão moral com palavras injuriosas que ofendem a honra, como é dito no
teor da denúncia.
earazaõ dasua quei- | xa, edenuncia Conciste, que es | tando o querellante manço epa
| cifico emsua Caza, o querellado || 17v O querelladode propozito, eCazo pen- | çado
fora aportado querellante em | huadas noites do Corrente mes deSe | tenbrodeste
anno demil oito Centos, | eonze, eodesacatara Com palavras | Injuriozas, eoffencivas
aseo Credi- | to, eonra, as quais amodestia Calla, | enaõ só isto, Como Juntamente | o
aCometera Com Armas proibidas | pellas leis doReino[...] (XIMENES, 2006, p.
167).
59
A reprodução desse documento teve grafia atualizada na edição do Senado Federal, a qual estamos utilizando
aqui.
254
Infâmia e injúria são relacionadas como causas criminosas. Infâmia no sentido
amplo significa a perda da fama ou da honra, ou lesão da honra e reputação, “he a perda, ou
lezão da honra, e da reputação”. (SOUSA, 1825). A injúria no sentido geral é todo ato que se
faz ou se pratica contrariamente ao direito e à equidade.
em huma significação extensa se toma por tudo aquillo que he feito para prejudicar a
terceiro contra o direito, e a equidade[...] A injuria em mais estreita significação he
tudo o que se faz em desprezo de alguém para o offender, ou na sua pessoa, ou na de
sua mulher, de seus filhos, ou criados, ou daquelles que lhe pertencem, seja a titulo
de parentesco, ou de outro modo. (SOUZA, 1825).
um registro de queixa em que um senhor, sendo cristão velho, denuncia o
querelado pela injúria de o ter chamado de judeu, o que caracteriza uma infâmia por ferir a
fama do querelante.
o denunciante omembran | co e Cristaõ velho odenunciado por | malevolo efalador
otem defamado | por todas equais quer partes por onde | seacha com o injuriozo
epiteto deJu | deo (APEC, 1785, Livro 1460, fl. 5r a 6r)
60
O crime de indução se caracteriza pela instigação, sedução ou engano. Geralmente
um rapaz seduzia uma moça com promessas de casamento e, após o ato sexual, desaparecia
ou não falava mais na promessa, o que levava o pai ou a própria moça a procurar a justiça
para que obrigasse o denunciado a cumprir tal promessa de casamento, limpando a honra da
moça e da família. Não sabemos se em algum dos casos registrados a justiça fez cumprir a
realização do matrimônio, o que sabemos é que muitas donzelas conseguiram apenas a perda
da honra e do valor perante a sociedade, ganhando como prêmio uma prenhez indesejada para
o desgosto dos pais e de toda a comunidade.
[...] tendo elle | queixozo emsua Caza ecompanhia aque | relante Sua filha mosa
donzela com toda || 9r <9 Barros> Comtoda a onestidade erecolhimento | paralhedar
oestado decazada odenunciado | Sendo amigo dellequerelante pelo que en | trava
esahia emsua Caza com muita Con | fiansa Comendo ebebendo, euzando mal |
dostermos quedevia uzar qualquer ho | mem onrado edebaixo demonstransade |
amizade entrouasolecitar deamores | comadita Sua filha compromesas de |
Comellacazar debaixo daqual adesflo | rara emhumdos dias domes deJunho | doanno
pasado tempo daverdade exis | tindo nomesmo excesso epromessa | theomes
deoitubro passado doprezen | teanno demilsete Centos e setenta | enove tempo
emque seafastouda | dita querelante paranaõ Cumprir | apromessa decomellaCazar;
eelle de | nunciante Sabedor dareferida trai | Saõ ealeivozia; (APEC, 1785, Livro
1460, fl. 8v a 10v).
60
O livro 1460 compõe o corpus da pesquisa, mas não foi ainda publicado.
255
Vemos pelas palavras do texto o ressentimento de um pai por confiar no amigo
que tinha livre acesso à sua casa e o traiu de duas formas. Primeiro, por deflorar a filha,
caracterizando-se também uma aleivosia e, segundo, porque fugiu para não cumprir a
promessa de casamento. O valor atribuído à honra e à moral da família era algo muito sério,
expresso por meio do cuidado dos pais em proteger, principalmente, suas filhas, criando-as
com recolhimento e honestidade para entregar-lhes aos maridos em perfeito estado de casada.
O casamento era o único fim na vida de uma mulher. No período colonial brasileiro, as
mulheres que manchassem sua honra estavam expostas às misérias do mundo. Atesta Faria
(1998, p. 61) que a [...] pretensa fragilidade do sexo feminino faria com que necessitassem da
proteção masculina, alcançada através do casamento com aquele que lhe havia tirado a
honra”.
O casamento formal diante de uma instituição eclesiástica, além de ser garantia de
sobrevivência em áreas agrárias, era garantia de aceitação de um migrante forasteiro na
comunidade e aquisição dos bens adquiridos pelo cônjuge, para as mulheres o casamento
assegurava-lhes o respeito e a divisão do trabalho.Para a mulher, representava
respeitabilidade e, mais do que tudo, dividir o trabalho, o cotidiano e, mesmo, amor e sexo
com um companheiro que era obrigado, pelas diretrizes eclesiásticas, a com ela coabitar.
(FARIA, 1998, p. 64).
Não importava a classe social, a mulher era preparada para o casamento como
garantia de vida, de conservação da honra e aceitação social. Na sociedade cearense, no
interior das pequenas vilas, muitas donzelas tiveram o triste desengano de seus “príncipes
encantados”, que desapareceram após a consumação do ato sexual. Algumas seguiram seus
amados, perdendo-se da família na imensidão da caatinga e não se sabendo mais notícias
delas. Outras, após percorrerem estrada, bolando de casa em casa, retornaram para os pais
com a desilusão do matrimônio, como temos registro.
Muitos outros crimes são arrolados como o de pôr fogo em um roçado de algodão
de um querelante, destruindo todo o cultivo e causando-lhe grande prejuízo. Casos de
adultérios, tentativas de assassinato, arrombamento de casa, porte de armas curtas, ou seja,
quando são manejadas corpo a corpo, não permitindo ataque à distância; arrancar marco de
uma propriedade alheia e outros aparentemente banais, mas que diante daquela realidade,
apresentavam consequências graves. Não devemos nos esquecer de que perante a lei eram
casos de verdadeiros motivos de queixa e garantiam o recebimento da querela pela autoridade
competente por estarem previstos no código penal reinante. O crime de arrancar marco de
256
uma propriedade, para citar um exemplo, é contemplado no Livro V, Título LXVII do Código
Filipino com pena severa, citada abaixo.
Qualquer pessoa, que sem auctoridade de Justiça, ou sem consentimento das partes,
a que pertencer, arrancar marco, posto em alguma herança por demarcação, se for
peão, seja açoutado publicamente pela Villa, ou lugar, e degradado dous annos para
África.
E se for Scudeiro, e dahi para cima, seja sómente degradado os ditos dous annos.
(CODIGO..., 2004, p. 1216).
Todos os crimes são previstos na lei e constituem casos dignos de querela e de
exemplar castigo aos criminosos, para emenda destes e satisfação da república, como
escrevem os tabeliães. Para todos esses crimes são estabelecidas as penas, embora quase
sempre não sejam aplicadas, pois são raríssimos os casos em que se encontram presos alguns
delituosos. O resultado final dos processos com suas devidas resoluções e sentenças não
constam nos livros dos autos. Não sabemos se realmente a justiça era aplicada e se a lei era
cumprida.
Relacionamos e contabilizamos os crimes no quadro abaixo na forma como estão
registrados na narrativa. Assim, a quantidade dos delitos ultrapassa a quantidade de Autos de
Querela porque em um auto o indivíduo pode ser enquadrado em mais de um crime, conforme
determinação dos capítulos da lei e complexidade da ação desse indivíduo.
Motivo da Acusação/Crime
Quantidade
%
Roubo/furto
40
24,40
Espancamento
22
13,42
Agressão física
18
10,98
Estupro
17
10,36
Rapto de moça
16
9.76
Defloramento
14
8.54
Aleivosia
13
7.93
Ameaça ou tentativa de morte
6
3,66
Assassinato
3
1,82
Infâmia
2
1,21
Porte de arma curta
2
1,21
Indução
2
1,21
Adultério
2
1,21
Tentativa de assassinato
1
0,60
Injúria
1
0,60
Rapto de escravo
1
0,60
r fogo em roçado
1
0,60
Arrombamento de casa
1
0,60
Arrancar marco de terra
1
0,60
Tentativa de estupro
1
0,60
Total
164
100
Quadro 25 Motivos de acusação dos crimes
257
Elementos muito particulares que chamam a atenção nos autos são os
instrumentos ou armas utilizados para a prática dos crimes; são diversos e não deixam de
revelar manifestações da cultura da população. As armas faziam parte da vida cotidiana da
população sertaneja, eram utilizadas como instrumentos de trabalho e, a qualquer momento,
tinham outra função muito específica: ferir ou matar alguém.
Nas vestes dos sertanejos, além dos obrigatórios acessórios de couro, as armas
integravam o traje do dia-a-dia. Facas como “parnaíbas” e “catanas”, ou armas de
pólvora como bacamartes e pistolas eram signos da sua belicosidade. (VIEIRA
JR., 2004, p. 172).
Relacionamos o arsenal bélico utilizado nas contendas pela gente simples do
sertão, destacando armas brancas e de fogo. Em casos de furtos e estupros não há instrumento
ou material usado que possamos contabilizar. em algumas atividades delituosas mais de
um instrumento anotado. Nos casos de agressão moral podemos considerar como instrumento
as palavras insidiosas e difamadoras, que muitas vezes prejudicam e maculam a honra mais
que os próprios objetos cortantes ou contundentes.
Nas agressões físicas são utilizados não somente vários tipos de armas brancas,
tais como facas ou facões denominados parnaíbas, catanas, terçados, faca de rastro e faca
flamenga, mas também armas de fogo como bacamartes, espingardas, pistolas, carabinas ou
outros instrumentos diversos que faziam parte do cotidiano da época. Transformados em
armas nos conflitos interpessoais, como paus, cacetes, chuços, bordões, tições de fogo, peias
de cavalo, chicotes, relhos, pedras, garrafas de vidro, vara de ferrão, tudo isso é anotado nos
códices. Quando não nenhum objeto ao alcance da mão dos envolvidos, esses utilizam-se
dos próprios membros do corpo, como os pés e as mãos, citados em forma de coices e
punhadas que, usados com violência, poderiam causar grandes danos às pessoas agredidas.
Muitos desses instrumentos são desconhecidos das gerações modernas, no entanto, eles
pertencem ao patrimônio cultural de uma comunidade fazendo parte da vida das pessoas.
No âmbito das armas brancas ou armas curtas destacam-se diversos tipos de facas:
a faca de ponta, qualquer faca com lâmina e ponta. A faca denominada de parnaíba é um tipo
de faca longa e estreita. A faca catana é uma espécie de espada pequena reta ou curva, cuja
lâmina corta de um único lado. O terçado caracteriza-se como uma espada curta e larga. A
faca de rastro é um instrumento armado de dentes. A faca flamenga é um tipo de facão de
ponta. Os usos de todos esses instrumentos eram proibidos por lei. “O uso de facas de ponta
he punido com penas pecuniárias, e de degredo. Lei de 20 de Janeiro de 1634 [...] (SOUZA,
1825).
258
Das armas de fogo citam-se a pistola, arma curta que se dispara com uma das
mãos. A espingarda, arma de cano comprido de 1 metro a 1,50m e de uso portátil. A clavina
ou carabina, espingarda curta usada por caçadores. O bacamarte, que é uma arma de cano
curto e largo, reparado em coronha. [...] os bacamartes eram proibidos. Decreto de 29 de
Maio de 1659. Contra o uso delles se promulgou o Alvará de 10 de Abril de 1660 lavrado em
virtude do Decreto de 29 de Maio de 1659[...]. (SOUZA, 1825).
O chuço é um instrumento de madeira ou haste de pau armada com um aguilhão
ou ponta comprida de ferro. A vara de ferrão é um bastão também com um aguilhão na ponta
usada para tanger os animais. O bordão é um tipo de pau grosso ou bastão.
Aparecem outras peças utilizadas na lida com os animais, como peias, espécie de
algemas de couro de boi usadas para prender os equinos, e outras espécies em que se amarram
em suas patas quando estão a pastar. O chicote é uma correia comprida de couro entrelaçado,
preso à extremidade de um pequeno pau. O relho é uma correia de couro cru, torcida ou
trançada, usada para amarrar ou açoitar os animais, sobretudo, os de carga.
Abaixo mostramos a denominação e a quantidade de cada um dos instrumentos
usados nas contendas. A forma de escrever os nomes de tais instrumentos sofrem variações,
conforme constam nas fichas anexas.
259
Instrumentos ou armas do crime
Quantidade
%
Pau
13
15,7
Espingarda
9
10,85
Faca de ponta
6
7, 23
Faca Parnaíba
6
7,23
Pistola
5
6,02
Pés e mãos
5
6,02
Cacete
4
4,81
Faca catana
3
3,61
Faca
3
3,61
Bacamarte
3
3,61
Palavras petulantes e injuriosas
3
3,61
Navalha
2
2,40
Garrafa de vidro
2
2,40
Tição de fogo
2
2,40
Peia de cavalo
2
2,40
Clavina
1
1,20
Faca de rastro
1
1,20
Faca flamenga de ponta
1
1,20
Fogo
1
1,20
Chinela
1
1,20
Pedra
1
1,20
Vara de ferrão
1
1,20
Chuço
1
1,20
Chicote
1
1,20
Relho
1
1,20
Terçado
1
1,20
Canivete grande de estalo
1
1,20
Armas proibidas
1
1,20
Bordão
1
1,20
Total
83
100
Quadro 26 Instrumentos usados nos crimes
Geralmente o crime é denunciado na sede de uma das vilas da Capitania que, nos
séculos XVIII e XIX, eram poucas. Os crimes ocorriam na seda das vilas e, principalmente,
nos termos delas, nos pequenos aglomeradas de pessoas ou nos locais ermos nos cimos das
serras, nos sertões isolados, nas fazendas e sítios. Quando da visita dos corregedores às vilas,
eram apresentados pelas vítimas e anotados pelos escrivães responsáveis. Muitas vezes
ocorriam nos termos de outras vilas e eram registrados naquela em que o juiz se encontrava. O
quadro demonstrativo do local das denúncias foi apresentado anteriormente, quando
descrevemos os dados relativos aos querelantes.
Os agressores muitas vezes eram vizinhos dos seus agredidos, viviam na mesma
comunidade ou até moravam juntos como membros da família. Outros, no entanto, eram
forasteiros, sem destino, muitas vezes vindos de fora. No demonstrativo abaixo apresentamos
os locais de residência dessas pessoas, destacando a vila de Fortaleza e as suas localidades
com maior destaque. Vemos que são citadas as ribeiras dos rios e os sopés das serras, locais
onde se formava uma maior densidade demográfica da população.
260
Local de morada dos querelados
Quantidade
%
Vila/Cidade da Fortaleza e localidades
39
19,11
Vila de Arronches e localidades
2
0,98
Vila da Granja e localidades
16
7.84
Vila do Aquiraz e localidades
15
7.35
Vila do Aracati e localidades
09
4.41
Vila de Sobral e localidades
10
4.90
Vila de Monte Mor o Novo da América
2
0,98
Vila de Mecejana e localidades
3
1,47
Vila de Campo Maior
3
1,47
Vila Nova d‟el Rei
2
0,98
Vila de São Bernardo e localidades (Quixoso)
1
0,49
Vila do Icó e localidades
16
7, 84
Vila de São João do Príncipe
1
0,49
VilaViçosa Real
1
0,49
Vila do Crato e localidades
3
1,47
Serra da Uruburetama
7
3,43
Serra da Meruoca
2
0,98
Ribeira do Figueiredo
1
0,49
Ribeira do Acarau
1
0,49
Ribeira do Aracatiaçu
1
0,49
Ribeira do Curu
5
2,45
Ribeira do Cauipe
1
0,49
Ribeira do Canindé
1
0,49
Ribeira do Jaguaribe
7
3,43
Ribeira do Pirangi
1
0,49
Ribeira do Siupé
8
3,92
Cocó
7
3,43
Maranguape
5
2,45
Siqueira
1
0,49
Porangabussu
1
0,49
Jaguaribe Mirim
3
1,47
Missão Velha
6
2,94
Cambeba
1
0,49
Agoa Nambi
1
0,49
Lavras da Mangabeira
1
0,49
Catinga do Goes
1
0,49
Povoação de Quixeramobim
1
0,49
Sem morada/habitação/ubi certa
4
1,96
Não revelados
14
6,86
Total
204
100
Quadro 27 Local de morada dos querelados
Muitas das localidades citadas são hoje bairros da cidade de Fortaleza, como
salientamos antes. Acrescentamos aqui as localidades de Siqueira e Porangabussu, que são
bairros de Fortaleza. Aguanambi nomeia, atualmente, uma avenida movimentada, situada às
margens do rio do mesmo nome. A localidade Jaguaribe-mirim é hoje a cidade de Jaguaribe.
A localidade de Quixozo citada nos autos talvez seja corruptela de Quixoxó que,
segundo Bezerra (1918), era Quixoá-Assú, pelo tempo e por corrupção Quixoaço, depois
Quixoxó e ultimamente Caixa-Só. É hoje a cidade de Iracema, à margem direita do Rio
261
Figueiredo, na região do Vale do Jaguaribe. Tem esse nome em homenagem à índia Iracema,
personagem do romancista José de Alencar.
Os vários rios citados compõem nossas bacias hidrográficas, locais onde se
desenvolveram as atividades agropecuárias. O Rio Jaguaribe é o maior do Ceará e, desde o
início da nossa colonização, ele serviu de porta de entrada, acolhendo a população em suas
margens, onde se desenvolveu a atividade de criação de gado e o cultivo da agricultura. O
Rio Aracatiaçu corre na região norte por entre alguns municípios como Sobral, Miraíma e
Amontada, quando deságua no oceano. O Rio Acaraú, após banhar vários municípios do norte
do Ceará, passa por Sobral, Santana, Morrinho, Marco, Bela Cruz, até sua foz no município
de Acaraú. O Rio Pirangi deságua no município de Beberibe e o Rio Canindé passa pelos
municípios de Canindé, Paramoti e Pentecoste, formando um afluente do Rio Curu. As serras
citadas são Meruoca e Uruburetama, situadas ambas no norte do Estado e, são ainda locais de
clima ameno onde se situam pequenas cidades.
6.2.3 Das Testemunhas
As testemunhas nomeadas nos autos são previstas no Livro V, Título CXVII, § VI
da lei filipina que determina a identificação desses sujeitos pelos nomes completos, alcunhas
ou apelidos, de que vivem, isto é, seus ofícios ou profissões e o local onde moram.
E quando se houve de receber querela, se dará juramento ao quereloso aos Santos
Evangelhos, em que porá a mão, se o bem e verdadeiramente; e jurando-o assi, e
nomeando testemunhas para a dita querela, pondo-lhes seus proprios nomes e sobre
nomes, alcunhas e mistéres, de que usão, e onde são moradores, de maneira, que
claramente se possa saber quem são as testemunhas, e não se possão ao diante tomar
outras em seu lugar, lhe será recebida. (CÓDIGO..., 2004, p. 1275).
Em cada auto são arrolados os nomes de três testemunhas, como determina a lei,
embora algumas vezes apareçam relacionados quatro ou cinco nomes. Quando exame de
vistoria são nomeadas mais duas testemunhas para o dito exame. Nos 133 processos aqui
analisados, foram citados 456 sujeitos designados para testemunhar os delitos. Assim,
podemos ter o perfil dessas pessoas e traçar um quadro mais amplo dos habitantes da
Capitania do Ceará.
Das 456 testemunhas arroladas nos autos, 445 são do sexo masculino e apenas 11
do sexo feminino. Esses dados nos revelam o pouco valor dado às mulheres, que são privadas,
por alguma razão qualquer, de participar da vida social da comunidade como um todo.
262
Relacionando estes dados aos encontrados nos autos escritos em Lisboa, nesses há mais
participação feminina quando muitas delas são nomeadas para depor nos processos.
Sexo das testemunhas
Quantidade
%
Masculino
445
97,59
Feminino
11
2,41
Total
456
100
Quadro 28 Sexo das testemunhas
Embora a lei não exija o registro das idades das testemunhas, podemos encontrar
algumas reveladas, sendo a maioria omitida como se vê no quadro. Parece que as pessoas não
sabiam bem a própria idade ou os escrivães apenas deduziam, pois em várias circunstâncias
apenas uma aproximação. Conservamos as formas de registros dos documentos, assim,
podemos vislumbrar as várias maneiras de dizer as coisas, que muito nos interessa. Em alguns
casos as idades são expressas por números exatos, em outros são indicadas por aproximação
com a expressão mais ou menos e, ainda, pela forma mais de, como se no quadro
seguinte.
263
Idade
Quantidade
%
17 anos
1
0,22
18 anos
2
0,44
Mais ou menos 18 anos
1
0,22
Mais de 20 anos
3
0,65
21 anos
2
0,44
22 anos
2
0,44
23 anos
2
0,44
24 anos
1
0,22
25 anos
3
0,65
26 anos
3
0,65
27 anos
1
0,22
27 anos pouco mais ou menos
1
0,22
28 anos
2
0,44
Mais ou menos 28 anos
3
0,65
29 anos
2
0,44
30 anos
8
1,76
30 anos pouco mais ou menos
1
0,22
Mais ou menos 31 anos
1
0,22
32 anos
1
0,22
33 anos
1
0,22
Mais ou menos 33
1
0,22
35 anos
2
0,44
Mais ou menos 37 anos
1
0,22
38 anos
2
0,44
39 anos
1
0,22
40 anos
6
1,32
40 anos pouco mais ou menos
3
0,65
Mais de 40 anos
1
0,22
42 anos
1
0,22
45 anos
1
0,22
48 anos
1
0,22
49 anos
1
0,22
50 anos
3
0,65
Mais ou menos 50 anos
2
0,44
51 anos
1
0,22
52 anos
2
0,44
53 anos
1
0,22
60 anos
1
0,22
63 anos
2
0,44
70 anos
1
0,22
71 anos
1
0,22
73 anos
1
0,22
Não revelado
379
83,11
Total
456
100
Quadro 29 Idade das testemunhas
A seguir relacionamos os ofícios ou profissões das testemunhas, moradoras das
vilas do Ceará. uma diversidade de formas de trabalho que lhes garantia a sobrevivência.
Algumas dessas profissões, seguramente, desapareceram do cenário dos tempos modernos.
Outras permanecem e ainda são meios de vida de muitos cearenses, como a agricultura e a
criação de gado. Apesar de um grande número não ser revelado, temos informações que nos
possibilitam conhecer as atividades econômicas e o padrão social do Ceará. Os dados citados
264
demonstram que a maioria da população vivia de pequenas lavouras ou de plantações de
diversas culturas. Há várias formas de dizer isso nos documentos: vive de suas plantas ou vive
de plantações ou ainda vive de plantar. A criação de gado e de outros animais, atividade
muito comum no sertão que garantia a sustentabilidade dos moradores, é uma prática vigente
ainda hoje.
A pena dos escribas registra duas formas semelhantes sobre a prática de
exploração dos recursos da pecuária: vive de seus gados e vive da criação de gado.
Entendemos tratar-se de coisas distintas, apesar da maneira de dizer ser muito semelhante.
Viver de seus gados nos remete ao entendimento de que a pessoa pode apenas negociar com
gados, comprando de outrem e revendendo ou realizando qualquer outro tipo de transação
comercial que lhe garanta lucros. Viver de criar gados necessariamente, a pessoa mantém
uma porção de terra em sítio ou fazenda reservada ao cultivo e preservação dos animais que
lhe rendem o sustento de carne, de leite e de seus derivados.
Um número significativo de pessoas vivia do ofício de vaqueiro, essa atividade
ainda é comum no nordeste, atualmente, imaginemos naquela sociedade totalmente rural. A
pecuária foi a base da economia no princípio da colonização do Ceará e o vaqueiro era a peça
fundamental para conduzir os rebanhos de gado, cuidar da saúde dos animais, campear as
reses quando essas se perdiam na caatinga, produzir os alimentos derivados do gado, como a
carne de charqueada, o leite, o queijo, os objetos feitos do couro e outros e, assim, conduzir a
economia gerada pela pecuária.
Uma das vias de ocupação do Ceará ocorreu pelo sertão. Grupos migratórios
vindos da Bahia e de Pernambuco, seguindo o caminho do gado, fizeram com que a economia
do Ceará estivesse ligada à atividade agropastoril, suprindo os engenhos do litoral de carne de
charqueada, de couros e animais de transporte, ressalta Ferreira (2008, p. 163). “Nos
caminhos do gado, encontram-se as primeiras vilas do sertão cearense. Mesmo as do litoral,
como Aracati e Acaraú, estavam solidamente vinculadas à pecuária e à indústria da
charqueada”.
As grandes porções de terra e a adaptação do gado à caatinga foi ingrediente
suficiente para desenvolver, mais tarde, no sertão, as grandes fazendas. O vaqueiro é a
personagem fundamental com sua mão-de-obra não remunerada em dinheiro, mas com
cabeças de gado ou sistema de quartiação. Isto significa que a cada quatro bezerros nascidos,
um pertencia ao vaqueiro como forma de pagamento pelo seu trabalho de pastorear o gado.
Esta figura exótica do sertão tinha um jeito especial de trabalho que ainda hoje é reverenciado
por aquele que reconhece o seu valor.
265
Os vaqueiros, vestindo roupa de couro e montados em cavalos escolhidos,
pastoravam o gado. Símbolo mais fiel do Nordeste, era merecedor de respeito e
admiração, em razão da superioridade que lhe conferia o conhecimento da terra, do
rebanho, dos métodos de criação etc. Poderia, com o tempo, devido ao sistema
“quartiação”, tornar-se dono de fazenda. (FARIAS, 1997, p. 21).
Conforme Farias (1997), muitos proprietários das fazendas viviam em áreas
litorâneas cultivando a cana-de-açúcar, enquanto a fazenda era entregue ao vaqueiro. A casa
da fazenda era um casarão sombrio, baixo, de vastos alpendres e, ao longo do terreno,
existiam miseráveis casebres dos moradores da fazenda, mestiços, negros forros, índios
mansos.
Próximos a esses casebres normalmente de taipa, de chão batido, com tetos baixos
e de palha encontravam-se pequenos roçados de subsistência, trabalhados por
mulheres, crianças (os homens estavam no pastoreio), que cultivam milho, feijão,
mandioca e até um pouco de algodão para fiação doméstica. (FARIAS, 1997, p. 22).
Outras pessoas arroladas nos autos desenvolviam atividades diversas. São citados
vários ofícios, como de ferreiro, de sapateiro, de serralheiro, de carpinteiro ou carapina,
conforme aludimos anteriormente. É dito isso nas formas oficial de/ou vive de seu ofício de,
conservamos os dois registros, pois mantivemos tudo conforme fora escrito pelos escribas
para mantermos a coerência do texto e montarmos o quadro completo da realidade e das
manifestações linguísticas usadas para expressar a realidade social.
A profissão ou ofício de alfaiate, tal como era alhures, praticamente desapareceu.
As atividades do funileiro e do latoeiro são basicamente as mesmas, pois esses são
especializados em trabalhos com folha-de-flandres, especialmente em serviços de
complementação do telhado (feitura de calhas, condutores, rufos etc.). Ourives designa,
modernamente, a pessoa que conserta e ou vende artigos trabalhados em ouro, prata etc.
Provavelmente, faria a mesma coisa naqueles anos setecentistas e oitocentistas.
Outras atividades, como curtir couros de animais e fazer selas para arreio dos
cavalos, estão ligadas à lida da pecuária. Assim como o carniceiro, aquele que mata as reses
para vender em retalho, e o açougueiro ou magarefe, ambos comercializam o produto, mas a
origem é o campo.
muitos que vivem de suas plantações, de criar seus gados e de algum tipo de
negócio. Outras vivem da pesca e alguns de se alugar, ou seja, prestam serviços aqui e ali
ganhando a diária, alugados por dia.
Algumas profissões do âmbito mais intelectual são desempenhadas por pessoas
que detêm algum saber, tais como o ofício dos escrivães dos vários setores burocráticos, o
266
ofício de professor de gramática e do cirurgião. Outras estão ligadas à vida militar e
administrativa da colônia, como o alferes, o alcaide, o furriel de infantaria paga, o soldado, o
cabo de esquadra, o oficial de justiça, o carcereiro.
O termo alferes é de origem árabe al-fárs, cavaleiro, escudeiro, o militar que leva
a bandeira. Na definição de Sousa (1825), “he palavra Arábica derivada do verbo fereze, que
vale o mesmo que cavalleiro. He Official Militar que leva a bandeira quando a não tem os
Porta-bandeira”. O uso do termo neste contexto parece não estar evocando o sentido original,
muito embora ainda pertença ao campo semântico militar. Na carreira de oficial do exército o
alferes está imediatamente inferior ao tenente.
O furriel é de origem francesa: fourrier designa um posto militar inferior ao
sargento. “Oficial inferior, a cuja função era „auxiliar o primeiro sargento no serviço da
escrituração, no de polícia e regime de companhia ou bateria‟”. (GRANDE ENCICLOPÉDIA
PORTUGUESA E BRASILEIRA, [s.d.], p. 998). No contexto colonial brasileiro, a infantaria
paga pertencia ao primeiro componente ou tropa de linha da organização militar, único que
recebia soldos pelos serviços prestados.
Os demais cargos militares citados pertencem à hierarquia estrutural das forças
armadas do Brasil colônia, cujos postos muitas vezes são de difícil compreensão.
Muitos ofícios não foram revelados, o que é lamentável, pois nos priva sabermos
as práticas de nossos antepassados e termos um quadro mais completo. Talvez o desleixo e a
falta de atenção dos escribas seja a hipótese mais firme para que não sejam citados os ofícios
de todas as pessoas.
A longa lista que segue mostra as ocupações dos habitantes nas terras da antiga
Capitania do Ceará.
Ocupação/oficio/ de que vive
Quantidade
%
Vive de suas lavouras
76
16,6
Vive de agricultura
16
3,50
Vive de plantar/de plantações
23
5,04
Vive de seus gados
10
2,19
Vive de criar gados
4
0,87
Vive de suas lavouras/agriculturas e gados
11
2,41
Vive da criação de gados
10
2,19
Vive de agricultura e gados grossos
2
0,43
Vive de criar e de plantar
1
0,21
Vive de plantar lavouras
2
0,43
Vive de andar alugado e de lavouras
1
0,21
Vive de criar
3
0,65
Vive de seus negócios de lavoura
1
0,21
Vive de seu trabalho
5
1,09
Vive de sua fazenda
1
0,21
267
Vive de ser vaqueiro
19
4,16
Vive de lucros de sua fazenda
1
0,21
Vive de plantas e pescados
1
0,21
Vive de seu negócio e de fazenda
1
0,21
Vive de seu trabalho e agência
1
0,21
Vive de se alugar
2
0,43
Vive de seu negócio e de curtir couro
2
0,43
Vive de fazer sela/oficial de seleiro
4
0.87
Vive de suas agências
42
9,21
Vive de seu negócio
24
5,26
Trata de negócio
1
0,21
Oficial de carapina
7
1,53
Oficial de/oficio de carpinteiro
3
0,65
Oficial de/ofício de ferreiro
6
1,31
Oficial de/ oficio de latoeiro
2
0,43
Vive do seu oficio de sapateiro/ oficial de sapateiro
11
2,41
Mestre de sapateiro
1
0,21
Vive de ser carniceiro/do oficio de carniceiro
2
0,43
Contratador de carnes
1
0,21
Vive do ofício de alfaiate/oficial de alfaiate
4
0,87
Vive de seu ofício de seleiro e agências
1
0,21
Vive de seus bens
1
0,21
Vive da arte de cirurgia
1
0,21
Vive de seus negócios de fazendas e secos
2
0,43
Vive de suas fazendas de secos e molhados
2
0,43
Vive do oficio de ourives/Oficial de ourives
4
0,87
Oficial de justiça
4
0,87
Vive de seus soldos
2
0,43
Vive do ofício de guarda da inspeção
1
0,21
Vive de pescarias
2
0,43
Vive de mercadorias
3
0,65
Vive de suas costuras
2
0,43
Negociante
1
0,21
Oficial de pedreiro
1
0,21
Vive de sua taverna
1
0,21
Carcereiro da cadeia
1
0,21
Soldado de infantaria paga
3
0,65
Furriel de infantaria paga
1
0,21
Cabo de esquadra de infantaria
1
0,21
Escrivão da descarga da alfândega
1
0,21
Escrivão do alcaide
1
0,21
Escrivão do juiz eclesiástico
1
0,21
Meirinho da vigararia geral
1
0,21
Professor Régio de Gramática Latina
1
0,21
Não revelado
115
25,21
Total
456
100
Quadro 30 Ocupação/ofício ou de que vivem as testemunhas
Como aludimos anteriormente, a identificação relativa à etnia ou cor da pele
dos habitantes do Brasil colônia é muito confusa. O quadro abaixo referente às testemunhas é
matizado com diversas cores, mostrando a miscigenação brasileira.
268
Etnia/cor da pele/condição social
Quantidade
%
Branco
169
37,06
Pardo
103
22,58
Com casta da terra
16
3,50
Mameluco
12
2,63
Índio
7
1,53
Com casta de pardo
5
1,09
Cabra
4
0,87
Branco com casta
3
0,65
Crioulo forro (preto)
2
0,43
Branco da terra
2
0,43
Mulato
2
0,43
Pardo bem trigueiro
1
0,22
Pardo (cabra)
1
0,22
Crioulo
1
0,22
Parece branco
1
0,22
Pardo disfarçado
1
0,22
Preto
1
0,22
Preto forro
1
0,22
Com casta
1
0,22
Branco com casta da terra
4
0,87
Não revelado
119
26,09
Total
456
100
Quadro 31 Etnia/cor da pele ou condição social das testemunhas
Além das etnias citadas nos quadros anteriores, aqui aparece o pardo bem
trigueiro, que caracteriza uma pessoa de pele escura, quase preta, pois trigueiro define-se por
uma cor escura, da cor do trigo maduro. O pardo disfarçado é provavelmente mais próximo
do branco, ou quase branco, por isso disfarçado. Essa é uma conjectura de quem escreveu o
texto naquele momento, acreditamos que ninguém se identificava como pardo disfarçado.
também o que parece branco. Vemos isso mais como ponto de vista, a nosso ver,
preconceituoso, dos tabeliães e escrivães autores dos textos.
Mais uma vez os brancos relacionados nos processos formam a maioria, seguidos
dos pardos e das outras misturas étnicas que constituem a base da sociedade brasileira. A
composição étnica do brasileiro tem em sua gênese a miscigenação típica constituída pelos
três grupos definidos: branco, índio e negro.
O branco é quase de origem portuguesa até o princípio do século XIX, como
destaca Prado Jr. (1999). Nos dois primeiros séculos da colonização, a política de entrada de
colonos brancos era muito liberal. Com o domínio espanhol até 1640, houve critérios mais
rígidos, mas depois da restauração da monarquia portuguesa passou a ter novamente mais
abertura para estrangeiros. Depois da descoberta e exploração do ouro, houve grande restrição
à entrada de estrangeiros no Brasil. Até o fim do período colonial é praticamente nula a
presença branca não portuguesa. “No conjunto, portanto, é praticamente nula a participação
269
não lusitana no Brasil dos primeiros anos do séc. XIX, anterior à abertura dos portos”
(PRADO JR., 1999, p. 87).
O maior fluxo migratório de portugueses para o Brasil ocorreu após a restauração,
em que a Espanha havia levado Portugal ao declínio econômico com a perda do comércio
com o oriente. A população depauperada migrou para a colônia em busca de melhores
condições de vida.
Encontramos desde os fidalgos e letrados, que m sobretudo ocupar os cargos da
administração e que em muitos casos se fixam definitivamente com sua
descendência na colônia, até indivíduos das classes mais humildes.[...]o que a
respeito sabemos é que quando não se dirigem para os postos da administração ou
profissões liberais, e quando não podia o recém-vindo, por falta de recursos, tornar-
se desde logo proprietário ou fazendeiro, são em regra as ocupações comerciais que
procuram.(PRADO JR., 1999, p. 88).
A etnia indígena, a princípio sob a tutela dos jesuítas, recebeu um tratamento de
proteção. Após as medidas pombalinas no século XVIII, as populações nativas foram
submetidas a um administrador que dizia cuidar de sua educação e proteção contra os colonos,
pois esses já haviam dizimado muitos daqueles povos.
A miscigenação foi inevitável até mesmo para a solução do problema indígena e
da colonização portuguesa.
Amalgamados com a massa geral da população e confundidos nela, ou sobrando
apenas em pequenos núcleos que definhavam a olhos vistos, os restos da raça
indígena que dantes habitava o país, com exceção de parte ainda internada nas
selvas, já estavam de fato incorporados à colonização. (PRADO JR., 1999, p. 100).
os negros estavam mais próximos dos brancos, convivendo nas cozinhas e
alcovas em números elevados. Afirma o autor que os africanos constituíam um terço da
população total do Brasil, nos primeiros anos do século XIX.
O contato do branco com as índias e depois com as negras proliferou a
mestiçagem no Brasil, sendo este caráter o mais saliente da nossa formação étnica.
A impetuosidade característica do português e a ausência total de freios morais
completam o quadro: as uniões mistas se tornaram regra. E embora quase à margem
do casamento contra as uniões legais com pretas ou índias, sobretudo com as
primeiras, havia fortes preconceitos tais uniões irregulares, de tão freqüentes que
eram, passaram à categoria de situações perfeitamente admitidas e aprovadas sem
restrições pela moral dominante. (PRADO JR., 1999, p. 109).
Das três etnias que formam a sociedade brasileira, como afirma Prado Jr.,
predomina a mestiçagem, sobretudo do branco com o negro, apesar da sobrevivência de
pequenos grupos puros dos três povos.
270
Sobre este fundo dispõem-se grupos puros das três raças, alimentados
continuamente pelo influxo de novos contingentes. Estes são pequenos no caso dos
índios, e por isso o seu grupo se reduz e vai desaparecendo; consideráveis no do
negro [...]. A afluência de brancos se avoluma depois da abertura dos portos em
1808, quando, a par dos portugueses, começam a chegar outras nacionalidades. Mas
ficará, até a extinção do tráfico africano em 1850, sempre muito aquém da de
negros. Compensa-se a deficiência, em parte, com a multiplicação mais rápida do
elemento branco, graças às condições de sua migração, mais regular do ponto de
vista da organização familiar, e em que as mulheres são proporcionalmente mais
numerosas. (PRADO JR., 1999, p. 111).
Justificamos, portanto, a predominância do branco relacionado nos Autos de
Querela, a participação tímida do negro e do índio e a mestiçagem referida de várias maneiras
como marcas características reinantes da população do Brasil, desde a sua formação até os
dias hodiernos.
Os dados de um censo da população da Capitania do Ceará, de 1804, apresentado
a Sua Alteza Real, o Príncipe regente, pelo Governador João Carlos Augusto de Oeynhausen,
distribui a população em três categorias étnicas: brancos, pretos e pardos livres, pretos e
pardos cativos, sendo apresentadas por cada vila. Esses dados foram publicados pelo Barão de
Studart na Revista do Instituto do Ceará ( STUDART, 1925). Vejamos os números na tabela
abaixo.
Brancos
Pretos e pardos
livres
Pretos e pardos
cativos
Total da população
de cada vila
Vila da Fortaleza
-
-
-
-
V. do Aquiraz
2.679
2.145
702
5.526
V. de Aracati
2.339
1.490
1.102
4.931
V. de S. Bernardo
3.753
2.769
943
7.465
V. do Icó
3.822
3.522
1.507
8.851
V. do Crato
6.797
12.793
1.091
20.681
V. de S. J. do Príncipe
5.361
3.231
1.856
10.448
V. Viçosa Real
-
-
-
1.336
V. Nova d‟ElRey
-
-
-
7.021
V. da Granja
1.047
1.656
799
3.502
V. de Sobral
2.781
4.193
2.978
9.952
V. de Campo Maior
1.757
2.986
1.270
6.013
Total
85.726
Quadro 32 Censo da população em 1804
Os dados são incompletos, pois, como vemos, faltam os números e algumas vilas,
além de não contemplar a população indígena, mas nos favorece uma visão parcial sobre os
moradores das vilas cearenses, assim como as suas características étnicas. Vemos que, em
separado, os brancos formam a maioria, com exceção de três vilas: Crato, Sobral e Campo
Maior. Na soma total os resultados de pardos e pretos livres e cativos são superiores,
271
constituindo um grande volume populacional ao lado dos brancos. É importante ressaltar que
as diversas denominações que aparecem nos autos não são mencionadas nos dados oficiais do
governo, o que reforça nossa hipótese de que sejam atribuições preconceituosas dadas pelos
tabeliães.
no censo de 1808 apresentado pelo Governador Barba Alado de Menezes, que
inclui outras vilas e a população indígena, os resultados totais são: brancos 43.457, índios
12.383, pretos 23.444, mulatos 46.594. Houve o acréscimo dessa última categoria como
resultado de miscigenação bem desenvolvida que supera os brancos, mas estes ainda formam
um número elevado.
O registro da contagem populacional nos ajuda a compreender o cenário do Ceará,
muito embora seja uma visão parcial e, por que não dizer, visto que não havia métodos muito
seguros de recenseamento no período.
O estado civil das testemunhas revela a maioria de pessoas casadas, um número
significativo de solteiros, razoável de viúvos e muitos não foram informados.
Estado civil
Quantidade
%
Casado
228
50,00
Solteiro
85
18,65
Viúvo
13
2,85
Não revelado
130
28,50
Total
456
100
Quadro 33 Estado civil das testemunhas
Quanto ao grau de instrução das testemunhas, não informação concreta.
Deduzimos pelo contexto que os escolarizados são aqueles que assinam como afirmado no
texto. os analfabetos não assinam por não saberem escrever. Apenas em uma testemunha é
revelado que tem escola de primeiras letras, mas a grande maioria não informa nem podemos
concluir nada sobre este item.
Grau de instrução
Quantidade
%
Escolarizado
55
12,0
Analfabeto
30
6,58
Com escola de primeiras letras
1
0,22
Não revelado
370
82,14
Total
456
100
Quadro 34 Grau de instrução das testemunhas
Quanto ao local de morada das testemunhas, geralmente residem nas mesmas
localidades dos querelantes, pois são pessoas conhecidas na comunidade e são indicadas por
272
esses em seus processos. Vivem nas sedes das vilas ou nos termos destas, nas fazendas e
sítios.
Local de morada (sítios, fazendas, serras, ribeiras e
sedes das vilas)
Quantidade
%
Vila /cidade de Fortaleza e localidades
115
25,21
Vila de Campo Maior e localidades
6
1,31
Vila de São João do Príncipe e localidades
4
0,87
Vila do Icó e localidades
14
3.070
Vila de Sobral e localidades
23
5,04
Vila Nova d‟el Rei
5
1,09
Vila de São Bernardo e localidades
3
0,65
Vila do Aracati e localidades
43
9,42
Vila de Aquiraz e localidades
41
8,99
Vila Viçosa Real e localidades
4
0,87
Vila e Granja e localidades
13
2,85
Vila de Monte Mor o Novo da América
7
1,53
Vila do Crato e localidades
6
1,31
Serra da Uruburetama
31
6,78
Serra/Riacho do Caxito
2
0,43
Serra da Meruoca
5
1,09
Ribeira do Curu
9
1,97
Ribeira do Siupé
12
2,63
Ribeira do Canindé
5
1,09
Ribeira do Caxitoré
2
0,43
Ribeira do Cauipe
3
0,65
Ribeira do Ceará
1
0,21
Ribeira do Figueiredo
2
0,43
Ribeira do Aracatiaçu
1
0,21
Cocó
13
2,85
Soure
3
0,65
Maracanaú
3
0,65
Cambeba
1
0,21
Siqueira
3
0,65
Maranguape
2
0,43
Jacarecanga
3
0,65
Taperi
1
0,21
Mecejana
3
0,65
Pecém
1
0,21
Jaguaribe Mirim
2
0,43
Santa Quitéria
3
0,65
Missão Velha
4
0,87
Lavras da Mangabeira
3
0,65
Quixeramobim
2
0,43
Riacho do Sangue
1
0,21
Catinga do Góis
1
0,21
Mossoró
5
1,09
Não revelado
45
9,86
Total
456
100
Quadro 35 Local de morada das testemunhas
São citadas várias outras localidades que mais tarde tornaram-se bairros de
Fortaleza, como Itaperi, Jacarecanga, Genibau e Maracanaú, que passou a município, como é
273
hoje. A antiga Vila de Soure passou a chamar-se Caucaia. Vila Nova d‟El Rei é a
denominação antiga da atual cidade de Guaraciaba do Norte. Riacho do Sangue passou a
chamar-se Jaguaretama. Assim, as denominações dos locais compreendem todas as regiões do
atual Estado do Ceará e até de Estados vizinhos. Os registros demonstram o percurso dos
órgãos da justiça que estavam presentes em todas as vilas da Capitania. Se eram eficientes em
aplicar as leis e manter a paz nas comunidades é outra questão a ser vista.
6.2.4 Das Parteiras
Outras pessoas citadas nos autos que auxiliam a justiça no ato dos exames de
vistoria são as parteiras. São mulheres simples e humildes, todas analfabetas e, a maioria,
viúvas. Essas senhoras estão disponíveis para atenderem ao chamado dos juízes ou
corregedores, quando esses as solicitam para vistoriar as donzelas vitimadas de estupros ou
defloramentos. O veredicto dessas mulheres é tomado pela autoridade judicial e aceito como
verdadeiro, confirmando a consumação dos crimes e encerrando o processo criminal.
A função básica ou fundamental das parteiras é assistir aos partos, ajudando as
parturientes no momento de parir seus filhos. O significado dicionarizado para a palavra
parteira restringe-se a essa função primeira. Para Houaiss, versão on line, a parteira é [...]
mulher que não é médica, mas assiste e auxilia as parturientes”. Aulete (1986, p.1432) assim
define parteira: [...] mulher cuja profissão é assistir aos partos e ministrar às parturientes os
socorros necessários”. A mesma concepção é dada por De Plácido e Silva (2006). Esse autor
define o parteiro como aquele formado em parto, é a denominação que se dá ao médico que se
especializa em partejar. Ressalva ainda que a profissão de parteiro não é livre, sendo
necessária a prova de habilitação profissional, expedida por estabelecimento oficial ou
oficializado.
Vemos que o profissional com formação oficial cuja função é realizar partos é o
parteiro. Já a parteira é uma profissional leiga que aparece na História como uma mulher com
conhecimentos pragmáticos adquiridos pelas experiências da vida, como conhecemos ainda
hoje no interior do Brasil.
Na história ocidental, as parteiras tiveram participação efetiva na arte de partejar.
Ao discutir o tema, Martins (2004) faz um longo e interessante histórico da obstetrícia, em
que a ação das parteiras era muito importante, até a chegada da ação do médico obstetra. O
parto, que era um assunto de mulheres, com a ação do médico, passou a ser um campo de
atuação deste.
274
As parteiras não atuavam no momento do parto, mas providenciavam os
preparativos, organizavam o local, cuidavam da alimentação e do vestuário da
parturiente, participavam, junto com outras mulheres, dos preparativos ritualistas
com seus amuletos, ervas, encantamentos, preces, enfim, todos os recursos mágico-
religiosos que pudessem auxiliar o parto e afastar os malefícios. Após o parto, as
parteiras continuavam prestando seus serviços até que a mulher estivesse em
condições de retomar suas atividades cotidianas. Portanto, o papel das parteiras era
muito mais complexo do que simplesmente aparar os recém-nascidos e cortar o
cordão umbilical, abrangendo uma série de práticas culturais relativas à saúde, ao
casamento, à maternidade e o cuidado dos filhos, uma disponibilidade impensável
para os médicos. (MARTINS, 2004, p. 69).
Apesar dessa prática abrangente descrita pela autora ser muito anterior ao período
de nosso estudo, parece que o papel das parteiras no Brasil é mais abrangente, agregando-se
ainda a função jurídica, o que é atribuído hoje ao papel do médico legista.
Até o século XIX, a arte de partejar era atribuída somente às mulheres, quando os
homens começaram a participar. Segundo Martins (2004), alguns homens tinham contato com
as parturientes, primeiramente os maridos que auxiliavam as esposas em algumas situações.
Também os castradores de animais, muitas vezes, socorriam as mulheres agonizantes. E,
finalmente, os cirurgiões chamados nos momentos em que o parto exigia uma intervenção. A
obstetrícia, enquanto prática de especialidade médica, não firmou antes do século XVIII,
portanto eram somente as mulheres a darem conta dessa prática. No Brasil, ainda sobrevive a
ação das parteiras, fato que era muito mais intenso no período colonial, principalmente nas
pequenas vilas. O ambiente colonial era desprovido da presença de cirurgiões e,
principalmente, de físicos, como eram denominados os médicos formados, o que deixava o
campo aberto apenas para a ação das parteiras ditas comadres, que atendiam às mulheres
parturientes pelas experiências adquiridas ao longo da vida. Como vimos, o papel legal das
parteiras ia muito além de partejar.
Nos Autos de Querela das parteiras citadas, nenhuma é profissional, como ressalta
a pena dos escrivães, são apenas mulheres experientes e inteligentes que atuam como tal por
não terem profissão, como vemos na seguinte passagem.
[...] dito Mi | nistro mandou uir asua prezenca | aInocencia Bartholeza daSilua |
branca Cazada, eaIzabel Soares | deOLiueira parda, Viuua dofalicido | Francisco
Bernardes, moradoras | nesta Vila; mulheres honestas, por | naõ auerem Parteiras
aprouadas | nesta mesma Vila, eseo termo | eserem experientes paraodito | efeito [...]
(XIMENES, 2006, p. 124).
Mesmo não sendo profissionais aprovadas, e vale ressaltar que jamais naqueles
tempos da colônia haveria parteiras profissionais no sentido de formação acadêmica, essas
275
mulheres atuavam nas diligências às parturientes e auxiliavam a justiça na comprovação dos
crimes. Elas são atuantes nessa função de confirmar os casos de estupros e defloramentos ou
outros crimes contra a honra feminina, que esses são praticados com muita frequência na
colônia.
Em cada caso de estupro ou de defloramento são chamadas duas mulheres para
vistoriar a vítima. Nos 133 processos são arrolados 32 nomes de parteiras compreendendo
várias etnias e todas sendo analfabetas.
No quadro a seguir apresentamos a etnia ou cor da pele.
Etnia/cor da pele/condição social
Quantidade
%
Parda
9
28,12
Branca
9
28,12
Mameluca
3
9,37
Índia
1
3,13
Preta
1
3,13
Cabra
1
3,13
Parda disfarçada
1
3,13
Não revelado
7
21,87
Total
32
100
Quadro 36 Etnia ou cor da pele das parteiras
Geralmente as parteiras são senhoras de meia idade, embora não sejam revelados
os seus anos de vida. A maioria delas é viúva, uma boa representação de casadas e, apenas
uma, é solteira, como se vê abaixo.
Estado civil
Quantidade
%
Viúva
17
53,13
Casada
11
34,37
Solteira
1
3,13
Não revelado
3
9,37
Total
32
100
Quadro 37 Estado civil das parteiras
O local de residência apresentado nos autos são as pequenas localidades situadas
nos termos das vilas ou na sede dessas. Elas são chamadas à presença de um juiz ordinário da
vila ou do corregedor quando esse sai em visita, portanto são moradoras das localidades dos
termos das vilas, conhecidas pela população local.
276
Local de morada
Quantidade
%
Vila da Fortaleza
10
31,25
Vila de Aracati
8
25,00
Vila de Aquiraz
6
18,75
Vila de Sobral
2
6,25
Vila de Monte Mor
2
6,25
Vila de Viçosa
2
6,25
Vila de Icó
2
6,25
Total
32
100
Quadro 38 Local de morada das parteiras
A presença das parteiras é solicitada nos crimes contra a honra feminina e,
como são relevantes tais crimes, pois dos 133 autos somam-se 31 casos de estupro e
defloramento, o trabalho dessas senhoras é bastante requerido, muito embora elas não sejam
reconhecidas nas listas dos funcionários da administração pública nem sejam citadas nos
códigos de leis do reino. Outrossim, não encontramos nenhuma informação sobre qualquer
remuneração pelo seu trabalho prestado.
É notável como estas mulheres estavam sempre à disposição dos juízes quando
estes as inquiriam para prestarem seu serviço. Jurando com a mão direita sobre o Livro dos
Evangelhos, prometiam dizer somente a verdade, como era de praxe em tal juramento. Então,
elas, prontamente atendiam ao chamado da autoridade e davam a sua contribuição no
desenrolar dos processos criminais.
O procedimento de suas vistorias consistia em, após jurarem dizer a verdade,
recolherem-se com a vítima para um quarto reservado da casa em que se encontravam o juiz e
o escrivão; daí a pouco saíam e confirmavam se a queixosa estava realmente desonrada e
exvirginada, como aparece registrado. Não sabemos em que consistia tal exame nem qual
método era utilizado para se confirmar o veredicto. O que se passava naquele quarto é um
segredo reservado somente a elas três, as duas parteiras e a vítima. Contudo, um
documento em que se diz abreviadamente, talvez por um descuido do escrivão, algo sobre tal
exame, o qual transcrevemos abaixo.
[...] mandou dito Ministro uir | aSua prezença a Elena Maria, eQui | teria Maria
Ferreira pardas Cazadas | moradoras nesta Vila, mulheres que | bem inteligencias de
Parteiras tem; | eaelas defirio ojuramento dos Santos | Euangelhos emhum Liuro
deles elhes | encarregou que bem, euerdadeiramen | te, eixaminasem, euisem Sea
Donze | la dita Thereza Maria deJezus [...], estaua ou naõ honrrada, | eSem
uirgindade fazendo para | isso as deligencias necessarias com | toda ahonestidade,
emodestia: e | ricibido por elas dito juramento || 25v Assim oprometeraõ fazer como |
lhes era encarregado; edebaixo dele | Se retiraraõ para hum Coarto | com a refirida
Donzela, eexami | nando ambas com hum Ouo, oupor | outro modo mais pociuel
diceraõ | que aindicada Donzela ja naõ ti | nha mais honrra emsi, enem | uirgindade,
277
eque ja tinha experi | mentado Varaõ Elogo odito Mi | nistro mandou amim Escriuaõ
por | tase por edou minha deterem | ditas molheres, eParteiras declara | do; ede
terem dito que adita Donzela | Thereza Maria ja naõ tinha mais | uirgindade, oque
certamente ti | nha experimentado Varaõ; epara | Constar mandou o dito Ministro |
fazer este auto emque aSignou | deNome inteiro por as mulheres | naõ Saberem
escreuer [...] (XIMENES, 2006, p. 103).
Como podemos ver no texto, as duas parteiras atenderam ao chamado do juiz
comparecendo à sua presença. Em seguida cumpriram todo o ritual de juramento e o
afastamento para um quarto com a examinada. Após a conclusão do exame, elas saíram
relatando verbalmente o resultado de sua perícia, donde é mencionado que utilizaram um ovo
para comprovar o estado de virgindade ou não da querelante, o que o escrivão registrou e o
juiz acatou como verdade, dando o caso por encerrado.
Mesmo sem estudo e formação profissional, apenas experiências, a palavra
dessas mulheres tinha um peso significativo na confirmação de uma perícia com base na qual,
em tese, se poderia justificar um crime e condenar um réu.
6.2.5 Dos Escrivães e Tabeliães
As informações abaixo referem-se aos profissionais responsáveis pela redação dos
textos, os poucos que tinham o privilégio de saber ler e escrever em tempos remotos da
história colonial brasileira. Os escrivães e os tabeliães têm a função de redigir os atos
jurídicos ou judiciais. As definições para os dois profissionais são quase a mesma, ambos são
encarregados de reduzir a escrito todos os atos de um processo. Porém, na hierarquia forense,
o escrivão é submetido ao mando de um juiz enquanto o tabelião tem mais autonomia, como
se refere De Plácido e Silva (2006).
Originariamente, escrivães e tabeliães entendiam-se como designando funções
idênticas. As expressões passaram a indicar ofícios diferentes. Os tabeliães são
serventuários públicos, que exercem atividades com uma certa autonomia, enquanto
os escrivães, em regra, agem sob o mando direto de um juiz, ou de uma autoridade,
que lhes superintende os serviços. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 1357, grifo do
autor).
O vocábulo tabelião não designava entre os romanos cargo público, mas o modo
de ganhar a vida redigindo transações de quem não podia fazer por si mesmo. O termo, com a
função peculiar de registrar documentos públicos, aparece em Portugal a partir do século
XIII, principalmente na segunda metade desse século, quando existia alguma organização
278
legal do tabeliado. Com o sinal de tabelião autenticavam, também, algumas vezes, as classes
mais elevadas os seus contratos.
As antigas Ordenações portuguesas distinguem dois tipos de tabeliães:
1) Os tabeliães das notas, que eram encarregados de redigir os instrumentos jurídicos que
carecessem de pública, como testamentos, inventários, contratos, procurações, cartas de
dívida e de quitação, renúncias, desistências e composições, instituições de morgados e de
capelas.
2) Os tabeliães judiciais, por sua vez, escreviam, em geral, nos processos judiciais, elaborando
todas as peças processuais (querelas, depoimentos de testemunhas, traslados, procurações,
sentenças, instrumentos de apelação e agravo, execuções e penhoras). Apesar dos dois cargos
serem distintos, conforme estabelecido na lei, afirma Hespanha (1982, p. 174) que [...] na
prática, os cargos de tabelião do judicial e das notas são frequentemente exercidos pela
mesma pessoa, em acumulação, sobretudo, nas terras pequenas”.
As Ordenações Afonsinas, a mais antiga compilação oficial de leis portuguesas,
publicadas na menoridade de D. Afonso V, em 1446 ou 1447, distinguem também as
diferenças salariais do tabelião e do escrivão, no seu Livro I, Tít. XXXV.
Primeiramente em todalas Escripturas, que se ham de contar per regras, assy como
inquiriçooês, apellaçooês, trelados, termos de processos, em estes aja defferença
antre o Taballiam, e Escripvam; a saber, que o Taballiam leve de nove regras huum
real branco, e o Escripvam leve de dez regras huû branco, e esta maioria aja o
Taballiam do Escripvam per bem da pensom, que pagua a Nós em cada huû anno.
(ORDENAÇÕES AFONSINAS, [s.d], p. 215).
As Ordenações Manuelinas tratam dos dois tipos de tabeliães em títulos
separados, especificando como devem proceder. No Livro I, Tít. LIX, dos parágrafos primeiro
ao trinta e seis, discorrem sobre o tabelião das notas e do que a seus ofícios pertence.
Primeiramente os Tabaliães das Notas escreueram todas as Notas dos contractos que
fizerem em seu livro de Notas, que cada huû ha de teer, e como forem escriptas,
loguo as leam presente as partes, e testemunhas, as quaes ao menos seram duas,
tanto que as partes outorguarem, assinaram as ditas partes, etestemunhas [...]
(ORDENAÇÕES MANUELINAS, [s.d], p. 400).
No Título LX do mesmo livro estão dispostas do parágrafo primeiro ao setenta e
três as funções dos tabeliães judiciais e das funções dos seus ofícios. Transcrevemos abaixo
apenas o caput do título.
279
Mandamos aos Tabaliães Judiciaes, tanto que o Juiz entrar por Juiz, loguo nesse mes
lhe dem as querelas que teuerem de quaesquer pessoas, e assi lhes mostrem as
inquirições em que teuerem alguûs culpados, sob pena de priuaçam dos officios, e
assi di em diante em cada huû mes lhe dem todas as mais querelas, que no dito mes
receberem, ou culpas que mais ouuerem, sob a dita pena de priuaçam dos officios; e
pera certidam de como lhas amostraram, faram huû rol de todas as ditas querelas e
inquirições que lhes mostrarem, do qual ficará o trestado na maõ do Juiz, e outro na
maõ do Tabaliam assinado pelo Juiz: o que isso mesmo Queremos que aja luguar
nos Escriuães, que perante alguûs Julgadores escreuerem, que querelas ou
inquirições teuerem, em que alguûs sejam culpados, se as nom mostrarem aos
Julgadores, a que tal conhecimento pertencer. (ORDENAÇÕES MANUELINAS,
[s.d], p. 419).
No sistema administrativo do Antigo Regime português, o cargo de tabelião do
público judicial e notas era de nomeação régia e tinha duração vitalícia. As rendas cobradas
garantiam ao seu ocupante uma posição de destaque na sociedade local, pois são os oficiais
que têm maiores rendimentos.
Os ofícios de tabelião e escrivão do judicial e notas são característicos do modelo de
provimento e de retribuição do oficialato do antigo regime, servindo de padrão para
muitos outros ofícios. Trata-se, na verdade, de lugares em princípio de nomeação
régia, mas em que a autoridade da entidade nomeante praticamente se esgotava no
acto de nomeação. Na verdade, uma vez concedido a alguém, o cargo de tabelião
incorporava-se no patrimônio do nomeado, não podendo a entidade nomeante fazer
mais do que supervisionar o cumprimento do seu estatuto ou regimento. Mesmo no
plano da retribuição, o nomeado torna-se de todo independente do nomeante, pois as
suas rendas são directamente cobradas das partes, de acordo com tabelas fixadas na
lei. (HESPANHA, 1982, p. 176).
A importância dos cargos dos escrivães e dos tabeliães, na vida local das pequenas
terras portuguesas, era de grande relevância, informa-nos Hespanha (1982, p. 276), pois eram
os únicos a ter conhecimentos linguísticos e jurídicos, sobrepondo-se aos juízes ordinários
que muitas vezes eram analfabetos. O papel de destaque garantia-lhes também melhores
rendimentos. “Também os rendimentos desses eram infinitamente superiores aos dos juizes,
constituindo mesmo os mais importantes de todos os funcionários locais”.
Se a informação é válida para Portugal imaginemos para o Brasil colonial,
principalmente para as capitanias menores e atrasadas, distantes uma das outras, quase sem
meios de divulgação da cultura e do conhecimento. Os juízes ordinários viviam nas pequenas
vilas de onde eram naturais, sem conhecimentos das leis e das letras. Eram os escrivães e
tabeliães que na prática tinham status.
Os escrivães deviam desempenhar, na vida jurídica local, um papel muito mais
importante do que aquilo que a leitura da historiografia corrente deixa supor.
Sabendo ler e escrever e dominando a praxe judicial e a arte notarial, os escrivães e
tabeliães terão sido, durante muito tempo, os únicos técnicos de direito escrito e
erudito a nível local. Com a expansão do processo de autos, o seu domínio dos
280
juízes e da vida local deve ter-se intensificado. A literatura da época dá-os como
controlando totalmente os juízes, analfabetos e deles totalmente dependentes para o
conhecimento das peças forenses escritas, e fazendo grossos proventos com as peitas
das partes. (HESPANHA, 1994, p. 276).
As vantagens advindas do cargo não deixavam de despertar intrigas entre as partes
interessadas e apadrinhamento político àqueles que alcançavam o bom conceito perante um
governador de capitania. Podemos comprovar isso por meio de um documento da Junta
Administrativa do Ceará, de 28 de agosto de 1822, em que é citado que o governador Manuel
Inácio de Sampaio não acatou a resolução de Sua Majestade expressa pelo Alvará de 12 de
junho de 1817, em dar posse a João José da Costa por esse receber a mercê de tabelião do
público judicial e notas da vila da Fortaleza, conforme dispunha aquele alvará.
O governador apresentou um candidato de sua confiança ao cargo, o serventuário
Antonio de Oliveira Castro, fazendo reservas àquele agraciado pelo Alvará de Sua Majestade,
o senhor João José da Costa.
Senhor
Por Alvará de 12 de Junho de 1817 Houve Vossa Magestade por bem fazer Mercê a
Joaõ Joze daCosta da serventia vitalicia doofficio d‟Escrivaõ do Crime, Civel, e
Tabelliaõ desta Villa da Fortaleza, co-como se mostra da copia N°. 1. Naõ foi
cumprido o dito Alvará pelo entaõ Governo desta Provincia Manoel Ignacio de
Sampaio pelos motivos que levou ao conhecimento de Vossa Magestade no seu
officio de 6 de Fevereiro de 1818/copia N°. 2/ que nunca teve decizaõ. O dito
Governador tinha o maior empenho em que o serventuario, que entaõ se acha neste
officio Antonio de Oliveira Castro ficasse exercendo, e esta foi certamente a cauza
daquella oppoziçaõ, fundada em erros d‟officio, dos quais nunca foi judicilmente
acusado [...] (ANTT, 1822, Mç. 115. N
o
. 4.).
O documento prossegue mostrando o jogo político das partes, que queriam o
tabelião João José da Costa no cargo e da parte do Governador Sampaio, que faz sérias
acusações a respeito da moral e da vida privada do tabelião João José da Costa, incluindo os
detalhes do comportamento de toda a sua família.
Joaõ Joze daCosta naõ he mulato, mas a sua conducta, e da sua familia, fazem que
seja de todos olhados com o maior desprezo, suas filhas saõ prostitutas publicas.
Em vida de sua primeira mulher andou sempre amancebado com outra prostituta
com quem seus filhos tambem tinham tratos, apesar do que apenas a primeira
mulher morreo logo com ella se casou, tendo com gravissimo escandalo publico
obtido dispença dos proclames do estilo. Tanto esta como aquellas prostitutas suas
filhas estaõ continuamente dando ocasiaõ as desordens do costume. Pense Vossa
Excellencia como este homem será olhado do Publico. O Jogo eos praseres de
Venus e de Bacho sempre otem sobrecarregado de dividas e de molestias a ponto
tal, que ja ha annos se acha quasi tolhido de hûa perna cuja molestia de dia em dia se
lhe tem augmentado, e prezentemente naõ so a sua letra he quasi inintelligivel, mas a
sua caducidade o torna taõ confuso, que mesmo no pequeno officio que actuamente
281
serve de Escrivaõ de Ausentes desta Villa es continuamente dando occasiaõ a
prejuisos das partes, e da Real Fazenda [...] (ANTT, 1822, Mç. 115. N
o
. 4.)
No mesmo texto são apresentadas várias razões para que o cargo não seja dado ao
tabelião João José da Costa, mas ao da preferência do governador Sampaio que era Antonio
Oliveira de Castro. O resultado foi que João José da Costa desistiu da mercê que lhe fora
concedida. Em um documento da Junta Administrativa de 1822, aparece o pedido de
desistência de todos os ofícios.
Na acta do primeiro de Junho do corrente anno de mil oito centos, evinte dois, a
folhas dezessete verso, apareceo Jo Jozé daCosta, e disse, que desistia da
representaçaõ, que a Junta Provisoria do Governo desta Provincia do Ceará, tinha de
fazer sobre o encartamento dos officios do geral, e Órfãos desta Villa da Fortaleza,
que lhe foi concedida por Sua Magestade, e que desistia de tudo, requerendo se não
fizesse esta reprezentaçaõ, e que se lhe mandasse entregar seus documentos, que por
confidencia os entregara neste Governo. (ANTT, 1822, Mç. 115. N
o
. 4.).
Nos Autos de Querela do Ceará aparecem 39 escrivães e tabeliães distribuídos em
várias categorias, como demonstramos no quadro seguinte. Os dois escrivães mencionados no
documento acima configuram no elenco de nossos textos.
O escrivão estava em todos os órgãos públicos registrando os atos das
autoridades. Em um dos órgãos da estrutura administrativa das vilas, o senado da câmara, era
o escrivão tão importante quanto o juiz presidente. Para cada setor administrativo havia um
escrivão responsável para anotar as ocorrências servindo a um tipo de juiz como o de vintena,
para citar um exemplo. Tudo era registrado pela mão do escrivão, mesmo as ações do menor
cargo.
Cada um desses funcionários dispunha de uma série de oficiais menores, que os
auxiliavam no exercício de suas funções, tais como ESCRIVÃES (para escrever os
autos dos processos), TABELIÃES (para garantir a validade dos documentos) e
MEIRINHO (para fazer diligências e prender os suspeitos). (SALGADO, 1985, p.
76).
Os corregedores das comarcas em sua função de administrar a justiça levavam
consigo um escrivão com a missão de anotar as queixas. Graças a esse, temos o conhecimento
dos fatos ocorridos e a oportunidade de analisarmos a língua com todas as suas vicissitudes,
usada formalmente, muito embora apresentando grandes variações e erros gráficos
divergentes da norma corrente. Apesar de tudo, são os escrivães as poucas mãos habilidosas
na prática de redigir os documentos em tempos de pouca preocupação com o saber ler e
escrever dos habitantes das longínquas e despovoadas vilas da Capitania do Ceará. É graças a
282
eles que os textos chegaram até nossos dias e podemos conhecer a realidade histórica e
linguística do Brasil colonial, especialmente.
Tipo de escrivão/tabelião
Quantidade
%
Escrivão (juiz ordinário)
19
48,71
Segundo escrivão da correição
1
2,56
Escrivão do juiz de fora
1
2,56
Escrivão da câmara
1
2,56
Escrivão do juiz de paz
1
2,56
Escrivão da vara
1
2,56
Primeiro escrivão da correição
1
2,56
Escrivão do crime cível
1
2,56
Escrivão tabelião do público
1
2,56
Escrivão da vintena
2
5.12
Segundo escrivão interino do Ouvidor Geral da
correição da comarca do Ceará
1
2,56
Escrivão dos ausentes por impedimento do da
correição
1
2,56
Escrivão do crime cível tabelião do público judicial
e notas
2
5,12
Tabelião do judicial escrivão do crime e cível e
notas escrivão do selo do papel
1
2,56
Tabelião público judicial e notas escrivão do crime
e cível da comarca órfãos e almotecaria
1
2,56
Tabelião público, escrivão do crime e mais anexos
1
2,56
Escrivão do crime e cível tabelião do público
judicial e notas, escrivão da câmara órfãos e mais
anexos da vila de Granja.
1
2,56
Tabelião público judicial e notas
1
2,56
Escrivão tabelião do judicial
1
2,56
Total
39
100
Quadro 39 Dos tipos de escrivães e tabeliães
Do exposto no quadro percebemos a complexa estrutura burocrática da sociedade
colonial quanto às várias funções e cargos de escrivão. O escrivão do juiz ordinário é o
mesmo escrivão da câmara, que era um funcionário da câmara da vila. As duas denominações
citadas são sinônimas e, as mantivemos por motivos já explicados anteriormente.
O escrivão da vintena é o que acompanhava o juiz vinteneiro, ou seja, aquele
responsável pelas povoações mais afastadas, com população entre vinte e cinquenta
habitantes. O escrivão do juiz de paz é o que está a serviço daquele juiz também chamado de
juiz distrital.
Aparece também o escrivão dos órfãos ou dos ausentes que tinham como função
manter o registro dos órfãos, escrever nos inventários, nos assentos das tutorias, nos contratos
sobre bens dos órfãos até certa valia. Eram esses escrivães os auxiliares dos juízes dos órfãos,
estes eram eleitos e competia-lhes organizar o cadastro dos órfãos e vigiar a administração
dos seus bens pelos respectivos tutores, organizar os inventários de menores, prover quanto à
283
criação, educação e casamento dos órfãos, dentre outras responsabilidades (HESPANHA,
1994).
Em muitos casos um aglomerado de funções para um escrivão, talvez pela
falta de pessoas hábeis à escrita. Assim, o tabelião do público judicial e notas é também
escrivão dos órfãos e da almotacaria. Os almotacés eram funcionários da administração
pública responsáveis pela fiscalização do abastecimento dos gêneros, examinavam a exatidão
dos pesos e medidas e a taxação dos preços estabelecidos.
O termo almotacé ou almotacel vem do árabe al-muhtasib do verbo haçada que
significa calcular, contar. Já a almotaçaria no Antigo Regime era a instituição constituída por
uma “[...] autoridade ou grupo de autoridades com poder de estabelecer ou fixar preços para a
venda de mercadorias de consumo necessário ou gêneros de primeira necessidade” (DE
PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 97).
O escrivão da almotaçaria era, portanto, o funcionário que estava a serviço
daquele órgão e dos seus administradores.
Observamos as diversas especificidades de cargos e funções que demonstram,
no sistema colonial, uma engrenagem burocrática que estava submetida à administração das
capitanias e de suas vilas e revelando, também, o acúmulo de cargos exercidos por uma
pessoa. Isso está relacionado à falta de pessoas preparadas como, também, à concentração de
recursos salariais nas mãos de poucos.
6.2.6 Dos Cirurgiões
Os profissionais de saúde citados nos autos responsáveis pelos exames de vistoria
são denominados de cirurgiões e, em muitos casos, na ausência destes, são substituídos por
barbeiros. O sentido da palavra cirurgião no período estudado não tem a mesma significação
dos dias atuais. É compreendido como cirurgião aqueles profissionais [...] que seguiram um
curso teórico-prático em hospitais, submeteram-se a exame e receberam „carta‟ que lhes
outorgava o direito de executarem os atos cirúrgicos da época”, assim é dito por Grossi (2004,
p. 255).
Conforme Vainfas (2001), no Brasil, o termo cirurgião designava comumente os
médicos, no período colonial. Também eram chamados de cirurgiões-barbeiros ou somente
barbeiros. Estes eram os que realizavam sangrias, por isso também conhecidos por
sangradores. Os médicos profissionais de formação eram poucos e nem tão bem preparados,
diz o autor. A medicina ainda começava a se desenvolver na Europa, mas se conferia grau
284
de físico, havendo literatura especializada, desenvolvendo-se entre os séculos XVI e XVIII. O
cirurgião-barbeiro estava abaixo do físico, isto é, do formado em Medicina. Aqueles estavam
habilitados apenas para realizar sangrias, mas na prática atuavam como médicos.
Na hierarquia profissional diferem-se os físicos ou médicos dos cirurgiões, dos
boticários e dos barbeiros, dentre outros. Os físicos eram licenciados nas universidades ou
outras escolas da Ibéria, recebiam títulos de doutores e defendiam teses. No Brasil, segundo
Santos Filho (1977), houve um ou outro no século XVI. No século seguinte, chegaram outros.
Eram poucos e os que para aqui vieram, não tinham muito saber. Ficaram nas principais
vilas e nas sedes das capitanias. Os ilustrados ficaram na Europa.
Os cirurgiões aprovados fazem parte de uma das categorias que seguiram um
curso teórico-prático em hospitais e receberam carta de aprovação aos submetidos a exame de
aprovação. Apareceram no Brasil a partir do culo XVII. Eram cristãos-novos, na maioria
oriundos de Portugal e de outros locais da Península Ibérica, outros eram brasileiros.
“Incultos, de humilde condição social, residiram nas povoações do imenso território,
locomovendo-se continuamente de uma para outra e ocupando cargos especializados na tropa,
no Senado da Câmara e em outros da administração” (SANTOS FILHO, 1977, p. 304).
Os cirurgiões sofriam preconceito por suas atividades manuais, visto que a
cirurgia era vista como uma parte menos nobre da ciência médica por sua natureza manual e
seu aspecto sangrento, ocupando, o responsável por ela, lugar inferior ao do físico. um
distanciamento hierárquico entre esses profissionais na escala social, como bem salienta
Grossi.
Sobre os cirurgiões recaía o preconceito em relação às atividades manuais, próprias
da arte cirúrgica, não que os médicos não se aventurassem pelo universo cirúrgico
quando necessário, todavia, o diferencial era o status do médico, formado numa
universidade e teoricamente distante da prática cirúrgica, que o afastava do estigma de
inferioridade profissional que perseguia os cirurgiões. Os cirurgiões eram considerados
menos preparados que os médicos para tratar de diversas questões relativas à cura [...]
(GROSSI, 2004, p. 275).
Os barbeiros, por sua vez, estavam na escala social mais baixa e realizavam as
funções mais simples, como sangrias, aplicações de ventosas e sanguessugas, extração de
dentes, além de cortar cabelos e barbear. Santos Filho (1977) ressalta que os barbeiros, em
sua maioria negros e mulatos, eram leigos e não possuíam diplomas, apesar de que era
necessário carta de aprovação. Eram indivíduos que, além de cortar o cabelo e de fazer a
barba, faziam outras atividades.
285
[...] praticou a pequena cirurgia da época, isto é, sangrou e então foi chamado de
“barbeiro-sangrador”, ou simplesmente “sangrador” , escarifou, aplicou ventosas,
sanguessugas e clisteres, lancetou abscessos, fez curativos, excisou prepúcios, tratou
as mordeduras de cobras, arrancou dentes, etc. Para exercer, legalmente o seu ofício,
deveria exibir a “carta de examinação” como prova de que fora examinado por
cirurgiões e julgado apto. (SANTOS FILHO, 1967, p.340).
Conforme o autor, nos primeiros anos da história do Brasil, os cirurgiões-
barbeiros eram portugueses e castelhanos, cristãos-novos ou meio-cristãos-novos. A partir
dos século XVIII, os negros e mestiços começaram a praticar a arte.
Para Barros Leal, em sua História da Medicina no Ceará, os barbeiros eram a
última classe de uma hierarquia formada por físicos, cirurgiões, boticários.
Os „barbeiros‟ formavam a última escala dessa grei de indivíduos dedicados aos
misteres de curar. Sangravam e praticavam a arte dentária, isto é, tiravam os dentes
imprestáveis com seus boticões e „chumbavam‟ aqueles que consideravam ainda
aproveitáveis. Isto, sem qualquer cuidado de limpeza ou de preparo do dente.
(LEAL, 1979, p.92).
A presença de físicos com formação acadêmica para exercer as funções do ofício
não era frequente no Brasil colonial. Em Portugal, as notícias das práticas desses profissionais
remontam à Idade Média, muito antes da descoberta do Brasil, portanto. Em 1338, D. Afonso
IV ordenou a submissão de exame aos profissionais da saúde físicos, cirurgiões e boticários
, para que se evitassem os danos causados por aqueles que não tinham os conhecimentos
necessários, como informa Gonçalves (2009). A ordenação do monarca durou até o fim de seu
reinado, caindo em desuso após sua morte, e a arte da medicina e cirurgia passou a ser
exercida sem que nada a impedisse.
No reinado de D. João I, foi determinado que ninguém exerceria a profissão sem
antes ser examinado e aprovado. D. Duarte e seus sucessores parecem ter conservado as
medidas até o século XVI.
A formação dos físicos e cirurgiões era obtida por meio de conhecimentos pela
prática com um mestre, durante um período variável de tempo. Em certos casos, a formação
inicial ocorria pela assistência às leituras feitas por bacharéis na universidade. Em certos
casos era feita com membros da família, especificamente o pai. Era um ensino individual, em
grande parte dos casos de tendência prática. Na universidade, o ensino era ministrado por
meio do estudo exclusivamente teórico, feito na base de comentários aos textos de medicina
greco-árabe. Os bacharéis adquiriam a prática fora da universidade, muitas vezes
acompanhando os seus mestres nas visitas aos doentes, informa Gonçalves (2009).
286
Após o período de formação e adquirida certa prática, o formando pedia que o
examinassem. O dito exame constituía-se de leitura de textos, de interrogatório sobre o
assunto da leitura e fora dele, além de uma prova prática. Quando aprovados, os candidatos
recebiam uma carta e com ela poderiam exercer a profissão.
Segundo Gonçalves(2009), as cartas de licença concedidas em Portugal aos
cirurgiões nos anos quatrocentistas eram 62,5% superiores em relação aos físicos, fazendo
com que fosse muito maior o número de cirurgiões, visto que sua profissão não exigia uma
aprendizagem muito morosa. O desenvolvimento da prática cirúrgica tinha caráter
principalmente manual e seu domínio não ia além de curativo de feridas, fraturas, luxações,
extração de tumores e abertura de abscessos superficiais.
No período colonial brasileiro a presença de profissionais da saúde com formação
específica era escassa e a população vivia à mercê dos curandeiros com suas mesinhas e
barbeiros que apenas tinham aptidão para o ofício. Na Capitania do Ceará, a realidade era
muito mais periclitante, como é revelado nos relatórios da época. Até o final do século XVIII,
a presença de cirurgiões é praticamente nula nas vilas.
Leal (1979) apresenta-nos uma radiografia da realidade cearense que ficava à
margem da história no tocante à assistência médica. Segundo o autor, em 1691, o primeiro
licenciado que oficialmente atuou no Ceará foi o cirurgião Francisco Coelho Lemos, que veio
do Recife para o Ceará, ficando por cinco anos em Fortaleza na cura dos soldados do presídio,
além de atender os militares, atendia, também, os seus familiares, índios e colonos. Este teve
seus soldos atrasados, mesmo assim permaneceu até o fim do período quando veio a recebê-
los.
No século XVIII outros aqui vieram, como o cirurgião Jorge da Silva, com as
mesmas atribuições de cuidar dos soldados feridos, colonos e índios. Em 1731, um cirurgião
alemão, Pedro Frings. Depois, outro estrangeiro, um inglês que fora abandonado junto com
outros marinheiros na costa cearense. Esse permaneceu na vila do Forte por alguns meses. Em
Aracati, o italiano José Baltazar Augeri ali radicou-se e por muitos anos e exerceu a profissão.
Seu nome é fartamente citado nos Autos de Querela.
No final do século XVIII, em 1791, quando no norte da Capitania do Ceará a
população fora acometida de uma epidemia de febre, havia um cirurgião aprovado na Vila de
Sobral, José Gomes Coelho. Em Granja não havia nenhum e por muito tempo continuou
assim. Esse fato levou a constantes reclamações do médico João Lopes Cardoso Machado,
que fora enviado do Recife pelo Governador de Pernambuco, atendendo ao pedido do capitão
mor do Ceará, Luis da Mota Féo e Torres. A função do médico e de sua comitiva era resolver
287
a epidemia que assolava a região norte, principalmente a Barra do Acaracu, (denominação à
época do Rio Acaraú), Sobral e Granja, que tiveram altos índices de mortandade.
Studart (2004) reproduz abundantes e valorosos documentos sobre esta realidade.
Tais textos são cartas e relatórios produzidos pela pena de João Lopes, dico formado pela
Universidade de Coimbra,Vresidente no Recife e chefe de uma comissão formada por dois
cirurgiões, um boticário e dois sangradores, que havia sido enviada pelo governo de
Pernambuco. A vinda da comitiva ao Ceará ocorreu em outubro de 1791, permanecendo aqui
até dezembro, período mais quente do ano. A comissão veio de barco do Recife para
Fortaleza, depois para Acaracu. Terminando o trajeto para Sobral a cavalo. O regresso se deu
a cavalo, seguindo o roteiro de Sobral a Uruburetama, Fortaleza e, por último, Recife,
durando longos e sofridos dias de viagem.
Nos relatórios do médico são narrados com detalhes os resultados dessa expedição
humanitária e todos os infortúnios sofridos no caminho como, também, o estado de pobreza
em que se encontravam as vilas do Norte do Ceará, deterioradas pelas secas, fome, doenças,
morte e, principalmente, pela ausência de políticas públicas, falta de médicos e de orientação
para a população.
Não há naquele sertão uma só botica; na vila do Sobral apenas existe um cirurgião, o
qual nenhum remédio tinha para aplicar aos enfermos ou porque se tivessem
acabado ou poucos, que costumam ter os cirurgiões, que circulam os sertões e o
mato, ou porque aqueles povos têm horror aos medicamentos a que chamam botica,
vivendo satisfeitos com uns remédios chamados caseiros [...] (STUDART, 2004, p.
446).
Pelo exposto, vemos que era quase nula a presença de profissionais da saúde nas
plagas cearenses. Apesar de não termos notícias detalhadas das demais vilas da capitania,
cremos que não muita alteração no quadro. O médico João Lopes sugere veementemente
ao capitão general de Pernambuco que envie cirurgiões de Recife para as vilas do Ceará [...]
e para a Granja, pode V. S
a
. mandar do Recife um dos muitos que [...]” (STUDART,
2004, p. 437). Em outra passagem ele apela para as câmaras ou para o rei de Portugal
enquanto durar a epidemia que tome alguma providência.
[...] cada vila precisa de um cirurgião de partido, pois me não parece justo que
podendo elas fazê-lo, como cousa a mais necessária, Sua Majestade faça a despesa
de 1500 por dia a dois cirurgiões os anos que durar a alteração e constituição
morbosa do ar; pelo que devo informar a Vossa Excelência
o plano, que me parece
necessário, ponderadas todas as circunstâncias, que tenho calculado. (STUDART,
2004, p. 436).
288
Após passado o período colonial e decorridos alguns anos do império, a
situação continuava a mesma no Ceará, pois o atraso na medicina permanecia, continuavam as
mesmas práticas antiquadas dos velhos cirurgiões despreparados, não obstante os avanços que
ocorriam na Europa com as descobertas de práticas mais avançadas. Com a vinda da família
Real para o Brasil, em 1808, e a fundação das escolas de medicinas no Rio de Janeiro e Bahia,
novo rumo tomou esta arte em que muitos jovens brasileiros começaram seu processo de
formação mais atualizada. No Ceará o primeiro médico que recebeu o diploma pela Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro foi o Dr. José Lourenço de Castro e Silva, em 1837. Este fora
convidado pelo então governador da Província do Ceará, José Martiniano de Alencar, com
um ordenado de um conto e duzentos mil réis por ano.
A situação não foi resolvida de imediato e no final da primeira metade do século
XIX o quadro médico do Ceará era muito deficiente, como informa Leal (1979). Havia em
Fortaleza, em 1848, uma população de 8.896 habitantes, acrescida dos moradores das vilas
vizinhas e, para esse contingente populacional, havia somente seis profissionais da medicina e
dois boticários. Imaginemos a realidade das demais vilas do interior.
Nos documentos que analisamos, os cirurgiões representam um número muito
insignificante, não por que os tipos de crime os dispensassem, mas por serem poucos os que
existiam no Ceará, pois casos em que os barbeiros, os escrivães e os juízes de vintena dos
pequenos vilarejos assumem a tarefa designada àqueles, sobretudo nos autos do século XVIII.
A falta de médicos, assumiam a função os que mais conhecimentos ou experiências tinham,
embora sem conhecimentos específicos de medicina.
Os cirurgiões citados nos autos tinham a função de auxiliar na administração da
Justiça e sua tarefa consistia em examinar as pessoas lesionadas e descrever os ferimentos
feitos, esclarecer com quais instrumentos foram acometidas durante os atos violentos e
especificar o estado da vítima. Realizavam também a necropsia nos corpos sem vida nos casos
de homicídios e relatavam todos os dados em forma de um auto de exame e vistoria ou corpo
de delito.
Nesse exame são descritas as feridas e as contusões especificando os seus
comprimentos, larguras, profundidades, se eram feridas abertas e sangrentas ou apenas
manchas, com que instrumentos haviam sido feitas, se eram mortais ou o. Tudo isso devia
constar no auto de vistoria que é escrito por um escrivão nomeado.
Diante de um juiz, com a mão direita sobre os Santos Evangelhos, o cirurgião
prestava juramento e prometia dizer a verdade seguindo as orientações e um ritual
estabelecido, conforme a citação que segue.
289
Prezente oCerurgiaõ aprovado | Domingos deSouza Louredo da | Fonceca aquem
odito Menis- | tro Ordenou que baixodo | juramento doSeo emprego | vice,
eexaminace, asferidas | emais Contuzôns, que tivesse | OCorpo do ofendido o Alffe |
ris Manuel Ferreira daSilva | declarando expecificadamente | todas ellas, eosSeos
tamanhos, | eprofundidades erecebido | porelleadita determinaçaõ | entrou
areveroCorpo do Ofen | dido, eachou ter este na arti | culaçaõ dojoelho do lado
dereito | huma Contuzaõ Com duas fe | ridas Com acutis dilacerada, | ambos
emSanguentados, eou | tras no Cubito do braço exquer | do Com acuticula
deslacerada | eno humeros do braco direito | huma Contuzaõ Com alguma |
emtumicencia, enada mais | achou degrande atençaõ, e | exame dequetudo dou a |
minhafé [...] (XIMENES, 2006, p. 233).
Conforme aludido, a realidade do Ceará, no final do século XVIII e início do
XIX era muito rudimentar e a atuação de um cirurgião aprovado ou licenciado era restrita à
algumas vilas, por isso a função que deveria ser exercida por esses cidadãos estava na
responsabilidade de uma pessoa de conhecimentos pragmáticos, ou seja, os barbeiros.
Nos Autos de Querela informações que justificam nossa afirmação sobre a
ausência de cirurgiões formados. O campo está livre para atuação dos leigos que muitas vezes
não entendiam do assunto, conforme o que segue:
ellogo pelo | dito Juis foi mandado Vir | aSua prezença JoFelis | Ferreira Loubo
que | nesta Villa Cura de, Ceri | giaõ por nella naõ os | haver deProfiçaõ enem |
barbeiro ou Sangrador | deofficio. (XIMENES, 2006, p. 195).
Além dos barbeiros e sangradores que agiam como cirurgiões, há casos em que a
vistoria era feita por um escrivão do juiz de vintena. Esse, por não entender do tema e não
saber especificar as circunstâncias em seu relato, escreveu uma palavra errada, gerando
confusão no andamento do processo, sendo necessária a anulação do exame e a realização de
outro que fora feito por um cirurgião aprovado.
[...] hum oficial deJustica que he | oEscrivaõ daVentena da Serra Uru | buretama
com este, tres testimu | nhas Sefes oauto deexame, euestoria || 13v Euestoria junto
doqual consta o | firimento feito nobraço doSuplican | te porem o Oficial por
entender | pouco doSeo Oficio naõ declarou | asmais circunstancias que eraõ |
percizas, eenlugar deescreuer instru | mento cortante, escreueo Contunden | te,
ecomo oSuplicante Seaxa nesta | Vila para tratar doSeo Direito, e | uzar do remedio
daLei quer anul | lar aquela uestoria [...] (XIMENES, 2006, p. 93).
A vítima do processo havia sido agredida por instrumento cortante,
nomeadamente, uma faca parnaíba que o agressor portava na mão. No entanto, no laudo, pela
falta de habilidade e de profissionalismo daquele oficial despreparado para a função, estava
escrito como instrumento contundente, fazendo grande diferença para a veracidade do laudo.
Um instrumento contundente significa o que produz uma contusão, ou seja, causa uma lesão
290
produzida por golpe ou impacto, sem produzir dilaceração ou ruptura da pele. O instrumento
contundente pode ser um pau, uma barra de ferro ou qualquer outro não caracterizado como
cortante. o instrumento cortante é o que se caracteriza por armas brancas como facas,
facões, foices, cutelos etc. A denúncia era de que o querelado trazia na mão uma faca,
portanto, um elemento cortante. O erro teve de ser corrigido por meio da realização de outro
exame para que a justiça recebesse a denúncia.
Nos Autos de Querela são citados 19 cidadãos que desempenham a função de
examinadores, embora muitos deles não sejam cirurgiões aprovados, como veremos. São
todos do sexo masculino e, cremos, todos escolarizados, condição fundamental para tal cargo
ou profissão. Não informação sobre o estado civil nem etnia ou cor da pele, de forma que
não apresentamos um quadro demonstrativo com essas informações. Certamente a maioria era
composta por portugueses vindos do reino, alguns estrangeiros, como aludimos
anteriormente, um alemão e outro italiano. Outros vindos de Pernambuco, mas de origem
portuguesa.
A classificação que consta nos documentos e que preservamos aqui obedece a
várias denominações, demonstradas na tabela abaixo.
Tipos de cirurgião
Quantidade
%
Cirurgião aprovado e licenciado
7
36,84
Cirurgião mor
1
5,26
Juiz de vintena de (Serra da Uruburetama e Missão
Velha)
2
10,53
Cura de cirurgião por não haver de profissão
1
5,26
Cirurgião encarregado do Hospital Militar do Batalhão da
Província
1
5,25
Cirurgião mor do Hospital Militar de Fortaleza
1
5,26
Cirurgião ex professo engenheiro de profissão
1
5,26
Escrivão da correição
3
15,79
Escrivão da provedoria dos defuntos e ausentes
1
5,26
Alcaide
1
5,26
Total
19
100
Quadro 40 Os tipos de cirurgiões
Notamos no quadro que dois juízes de vintena aparecem relacionados, mesmo
sem a habilidade para exercerem a função na área de medicina, mas agem por falta de
profissionais habilitados na arte cirúrgica. outro que cura de cirurgião por não haver de
profissão”, ou seja, supre mais uma falta de alguém especializado. Um terceiro é cirurgião ex
professo, ou seja, atua magistralmente, com perfeição, mas não é formado no assunto, é
engenheiro de profissão. ainda um alcaide e quatro escrivães que foram designados para
fazer exame de vistoria nos querelantes. Apenas dez parecem ter alguma formação na área, o
291
que lhes garante o título de cirurgião. Todos são aprovados e licenciados, isto é, fizeram
exame e receberam cartas de licença para atuarem como profissionais. Dois dos relacionados
servem ao corpo militar e são encarregados pelo hospital militar de Fortaleza.
Informa-nos Grossi (2004) que nos exércitos lusos não havia corpo de saúde até
1808, alguns cirurgiões eram agregados às tropas servindo com os físicos nos hospitais e
enfermarias militares. A eles competia-lhes o tratamento dos soldados feridos internados nos
hospitais militares que foram instalados no Brasil em meados do século XVIII. Nos presídios
localizados em algumas capitanias também havia um cirurgião residente, anota o autor. Pela
análise do quadro acima, vemos, pois, que na sede do governo da Capitania do Ceará havia
hospital militar no século XIX e cirurgiões-mores que ali serviam. As condições desse
hospital, logicamente, não tinham a estrutura dos de hoje, era antes um pequeno espaço em
que se curavam os ferimentos dos soldados machucados nas lutas contra os invasores e índios.
Os hospitais militares surgiram, no Brasil, no século XVIII, eram destinados à
tropa e sustentados pela Fazenda Real. Em Portugal, antes da construção das Santas Casas, no
século XVI, os soldados e marinheiros eram medicados nas residências dos povoadores e,
depois da fundação daquelas casas, passaram a ser os soldados cuidados pelos físicos e
cirurgiões. Devido às péssimas condições das Santas Casas, foram instaladas pequenas
enfermarias nos alojamentos das tropas, e os casos mais graves eram tratados pelos cirurgiões.
Em várias capitanias brasileiras começaram a funcionar estes hospitais no século XVIII. No
Ceará, no século XIX, é citado nos documentos um hospital militar, o qual dispunha de um
cirurgião.
Chamamos a atenção para o fato de não ser citado nenhum físico ou médico nos
documentos, demonstrando que do alto escalão dos profissionais de saúde, nenhum atuava no
Ceará pelo menos, até aquele momento, é o que as informações da época demonstram e as
fontes documentais confirmam.
Parece que as determinações impostas por Portugal para a colônia com relação ao
universo da saúde não tiveram sucesso. As hierarquias foram desfeitas pelas demandas
típicas, abrindo-se espaço para barbeiros e leigos exercerem as funções médicas, ressalta
Grossi (2004, p. 282) [...] barbeiros e leigos poderiam exercer as funções dos tão escassos
médicos e cirurgiões”.
No Ceará não poderia ser diferente, pois uma capitania subalterna e atrasada em
relação a muitas outras, não é de se estranhar que no âmbito da medicina estivesse muito
aquém, com o campo aberto para qualquer um que se aventurasse a exercer função
semelhante. Dos 133 crimes estudados, 43 são de agressão física, espancamento e assassinatos
292
os quais requerem a presença de um cirurgião e apenas 19 profissionais são citados,
ressaltando que nem todos são habilitados e aprovados.
Quanto ao local de residência, os autos não mencionam, mas sabemos que em
Sobral residia o cirurgião José Gomes Coelho e, em Aracati, o doutor José Baltazar Augeri.
Os demais residiam na capital e iam a chamado para as demais vilas. Muitas vezes não iam,
pois pelo menos em dois autos de crimes de assassinato, ocorridos no interior da capitania, os
exames de vistoria são realizados de forma indireta, ou seja, são as três testemunhas que
descrevem o estado em que se encontra o cadáver, pois não há cirurgião para fazer tal exame.
Abaixo relacionamos algumas vilas em que os cirurgiões ou barbeiros realizam
suas perícias.
Local onde se encontravam os cirurgiões
Quantidade
%
Vila de Fortaleza
4
30,77
Vila de Sobral
1
7.69
Vila de Mecejana
1
7.69
Vila de Granja
1
7,69
São José da Uruburetama
1
7,69
Vila de Aracati
1
7,69
Não revelado
4
30,77
Total
13
100
Quadro 41 Local de residência dos cirurgiões
O exposto no quadro mostra a concentração dos cirurgiões na capital e, em apenas
algumas vilas, distribuíam-se os demais. Essa realidade perdura ainda por muito tempo,
mesmo no período imperial, em que os governadores passaram a ter mais autonomia e eram
sensíveis à cruel realidade, visando a um maior desenvolvimento da província.
6.2.7 Dos Juízes
Para falarmos deste item e, mais especificamente, das questões de justiça no
Brasil colônia e dos cargos que submergem nos documentos de nossa pesquisa, necessário é
situarmo-nos um pouco no tempo e voltarmos à história administrativa de Portugal, embora
que de maneira muito sucinta.
Hespanha (1982) mostra-nos os primeiros núcleos de organização portuguesa
através dos concelhos a partir do século X, que permitiam reconhecer uma certa
organização das populações, aos poucos ganhando aspectos estruturais com órgãos próprios
da administração e aplicação da justiça. Surgiram os primeiros cargos, como juízes
(ordinários), almotacés, merinhos e sesmeiros, cada um com suas atribuições.
293
O concelho era a estrutura básica da administração portuguesa, reforça Schwartz
(1979, p. 4). Os concelhos mantinham um número de funcionários com funções
administrativas e judiciárias. “Essas funções incluíam o almotacel, o alcaide, o meirinho e o
tabelião”. O oficial de justiça mais importante era o juiz ordinário que, posteriormente, foi
substituído pelos juízes de fora, dados aos inconvenientes provocados pelas adversidades do
cargo daqueles.
Na sua condição de oficial de justiça e membro da comunidade, o juiz ordinário e
sua família sofriam ameaças e pressões por parte dos fidalgos e de outros grupos ou
indivíduos poderosos. Por outro lado, o juiz ordinário podia abusar de sua autoridade
para favorecer amigos e parentes. (SCHWARTZ, 1979, p. 5).
Ainda no século XIV, com a expansão dos concelhos colidindo uns com os
outros, modificou-se a administração, aparecendo outros oficiais estranhos, como os
corregedores e juízes de fora. Esses últimos foram fortemente contestados pelas populações
locais, dificultando, dessa forma, o seu progresso até o século XVIII.
Assim, constituída a organização social, também se formou uma estrutura
administrativa e judiciária cujos cargos e funções eram diversificados e interdependentes
quanto mais complexa se tornava a conjuntura do Antigo Regime português.
A mais antiga compilação oficial que merece o nome de código geral foram as
Ordenações Afonsinas, primeiro código de leis de Portugal, que veio à tona em 1446 no
reinado de Afonso V. Em seu Livro I, estabelecem a criação dos cargos e as atribuições dos
oficiais a desempenhá-las. Desse modo, são firmados vários postos que configuram no
processo de desenvolvimento jurídico das terras portuguesas da Europa e das colônias d‟além
mar que, mais tarde, foram conquistadas. Nomeadamente, encontramos os cargos
enumerados: provedor, desembargador, ouvidor, corregedor de comarca, alcaide, almotacé,
meirinho, tabelião, escrivão, juízes e muitos outros.
Os juízes, por estarem mais presentes na vida da população, merecem aqui maior
atenção. O título XXVI do Livro primeiro das Ordenações Afonsinas, do parágrafo primeiro
ao 42, define os ofícios que pertencem aos juízes ordinários. Não referência aos juízes de
fora.
as Ordenações Manuelinas, de 1512, no seu Livro I, Título XLIIII discorrem
sobre os juízes ordinários e quaisquer outros de fora que mandados fossem. Aparece aqui uma
referência ao juiz de fora. Nas últimas Ordenações, ou seja, no Código Filipino de 1603,
Livro I, Título LXV, são mencionadas as duas categorias de juízes no mesmo título com
294
funções atributivas para cada uma. Citamos a seguir o caput do título XXVI e o parágrafo
primeiro do código de Afonso I que fala Dos Juizes Hordenairos, e cousas que a seus Officios
pertêcem.
Os Juizes devem seer cuidosos, e trabalhar, que na Cidade, ou Villa, honde for Juiz,
e em seos termos se nom façom malleficios, nem malfeitorias, e se forem feitas, ou
outros alguûs dãonos, tornarem aos que os fazem com grande diligencias, e sem
tardança.
E porem Mandamos aos Juizes, que som, e pelo tempo forem, que em cada huû anno
hûa vez vaa huû delles por termos da Cidade, ou Villa saber, e enquerer, efazer
geeral Correiçom sobre estas cousas. (ORDENAÇÕES AFFONSINAS, [s.d], p.
164).
Como explicitado no texto, as funções dos juízes ordinários eram as correições ou
visitas feitas aos termos das vilas para observar a situação da ordem pública, receber as
queixas ou querelas da população e aplicar a lei, muito embora com a criação do cargo de
corregedor, essa função tenha passado à responsabilidade deste.
A palavra correição vem do antigo verbo correger, que significa corrigir,
concertar ou reparar. Logo, correição, em sentido amplo, indica o poder de julgar e de
castigar. No sentido restrito “he a jurisdicção, e poder dado aos Corregedores das Comarcas”.
(SOUSA, 1825).
Em tempos do Brasil colônia a prática de fazer visitação ou correição, como se
refere Prado Jr. (1999), eram acontecimentos excepcionais, o que deveria ser algo permanente
e eficaz para o bom andamento da justiça.
Obviou-se em parte ao mal de jurisdições em territórios imensos com práticas de
correições e visitações, isto é, espécie de excursões administrativas em que, dado
aquele sistema de concentração deveria ser qualquer coisa de permanente, constituía
acontecimento excepcional, e as autoridades mais dirigentes o praticavam com
alguma assiduidade. (PRADO JR., 1999, p. 303, grifo do autor).
Hespanha (1994) caracteriza as duas categorias de juízes:
1) Os juízes ordinários eram oficiais honorários, não letrados, eventuais, eleitos pelo povo de
acordo com o processo previsto nas Ordenações, e não remunerados.
2) Os juízes de fora: oficiais de carreira, letrados de nomeação régia.
Os juízes exerciam funções além da administração da justiça. Tinham atribuições
no domínio da manutenção da ordem pública, na defesa da jurisdição real, da contensão dos
abusos dos poderosos, da polícia, além de assistir aos vereadores e almotacés no exercício da
jurisdição, como informa Hespanha.
295
Os juízes costumeiros, juízes da terra ou ordinários eram cidadãos sem formação
jurídica que acumulavam poderes administrativos e jurídicos, escolhidos entre os cidadãos
comuns para presidirem as câmaras das vilas, quando da constituição destas. Muitas vezes
esses cidadãos eram analfabetos e ignorantes da função para a qual foram designados.
Perante a situação de ignorância e analfabetismo dos juízes ordinários, sem
conhecimento algum e dependentes dos escrivães e tabeliães para que fossem lidos os
processos, era operacionalizada a administração da justiça no início da história de Portugal e,
depois, no Brasil. Os juízes eram inteiramente dependentes dos povos que os elegiam e seus
julgamentos não poderiam deixar de ser imparciais. Como poderia a Justiça ser realmente
justa e atender a contento aos vitimados, cumprindo os princípios para os quais fora
designada? Parece que sua aplicação não contribuía muito para a resolução das contendas ou,
talvez, até gerassem mais intrigas, como o que leva Serrão (1981) a afirmar que a ação desses
juízes muitas vezes prejudicava as partes.
A esfera do judicial público chegou a várias terras onde pertencia aos juizes
ordinários, muitos deles sem qualquer preparação, a tarefa de julgar os delitos. Mas
por serem dali naturais, alguns eram malquistos dos habitantes, pois davam-se „as
paixões do odio e da affeição‟ e não raro prejudicavam as partes. Tal circunstância
levou a coroa a nomear juizes de fora para vilas (SERRÃO, 1981, p. 1807).
Diante do precário desempenho dos juízes leigos, são nomeados os homens
letrados e conhecedores do direito romano. Segundo Hespanha (1982), a nomeação dos juízes
de fora trouxe impacto na vida judiciária local porque eles tinham intervenção direta na vida
jurídica, uma vez que, à semelhança dos juízes da terra, julgavam, eles próprios, os feitos. A
sua presença na comunidade, por deter conhecimentos da língua e da lei, gera poder e
autoridade, podemos deduzir. Assim, inibe a ação daqueles juízes ignorantes e gera o
desconforto à população habituada ao direito costumeiro administrado pelo vizinho e amigo.
No governo de D. Afonso IV, em virtude da lei de 21 de maio de 1349, que
nomeou para os concelhos juízes régios ou juízes de fora, com a atribuição principal de tomar
notas dos testamentos, em substituição dos vigários episcopais. Essa inovação foi mal
recebida pelos povos porque seriam os concelhos que pagariam as suas obrigações. Mesmo
assim, os reis não deixaram de nomeá-los sob vários pretextos, tais como: poderiam julgar as
questões em relação aos poderosos com mais liberdade, visto serem forasteiros; devido à
complexidade da justiça que exigia dos julgadores maior capacidade que a dos juízes
ordinários, leigos, eleitos pelos vizinhos; e ainda porque as eleição desses juízes eram motivos
de discórdias e de formação de bandos, conforme Hespanha (1982).
296
Como visto, foi D. Afonso IV quem ordenou a criação dos juízes de fora,
cidadãos que não conheciam a terra onde faziam os julgamentos. Eram magistrados impostos
pelo rei a qualquer lugar, sob o pretexto de que administravam melhor a justiça aos povos que
os juízes ordinários. Na verdade, afirma Almeida (2004), que a finalidade principal da criação
desse cargo foi a usurpação da jurisdição dos juízes territoriais para o poder régio. Assim, se
restringiu o poder dos juízes ordinários e houve mais controle sobre a administração da
justiça.
Eram os juízes de fora letrados ou nutridos no Direito Romano, legislação
patrocinada pelos príncipes, pelo predomínio que lhes assegurava no Estado. Esses juízes
eram delegados e nomeados por triênios e presidiam as câmaras das vilas onde atuavam.
Conduziam uma vara branca como insígnia para que não sofressem resistências em suas
ordens.
Quanto à concretização real da presença desses magistrados nos concelhos ou
vilas, parece que demorou a se efetivar. Em Portugal, desde o século XIV, como vimos, eles
já existiam de direito e faziam parte da administração. No entanto, Hespanha (1982) diz que o
processo para sua proliferação foi demorado. Em 1368, um doutor em Direito, como juiz
de fora em Coimbra. Em 1375, no Porto; no reinado de D. Fernando, o rei nomeia os juízes de
Lisboa. Só com D. João II, os juízes de fora constituíram magistratura de carreira. No reinado
de D. Manuel, generalizou-se a nomeação daqueles para mais terras do reino. Entretanto, foi
na época de D. João III que se estabeleceu o princípio de que apenas os letrados poderiam ser
providos nesses lugares. A partir de então, os juízes de fora passaram a distinguir-se dos
juízes da terra ou ordinários pelas características de serem nomeados pelo rei por um período
de três anos e serem peritos em Direito.
Embora haja essa disposição gia para nomear peritos com formação em Direito,
o número deles ainda era pequeno na administração da justiça. No século XVI havia cerca de
quatro dezenas para mais de 800 concelhos ou julgados. Em meados do século XVII, menos
de 10% dos concelhos tinham juiz de fora, sendo quase a mesma situação no início do século
XVIII. com o estado pombalino, a situação mudou sensivelmente. Nos fins do Antigo
Regime havia cerca de 200 juízes de fora, como complementa Hespanha (1982).
Se em Portugal a proliferação desses magistrados foi de forma lenta, pensemos
então na situação da colônia. A chegada de juízes de fora no Brasil ocorreu em 1696, afirma
Salgado (1985, p. 80), marcando, assim, o processo de centralização. “A medida significou a
mais direta interferência metropolitana na instância judicial menor da colônia”.
Provavelmente essa novidade causou grande impacto às populações das vilas.
297
Segundo Schwartz (1979), no Brasil, a ideia de mandar um juiz de fora surgiu nos
anos de 1670, e um dos intuitos era o de melhorar a administração da justiça. O
relacionamento das câmaras mudou inteiramente quando da entrada de um juiz togado como
seu membro permanente e dela presidente.
Em agosto de 1677, a Relação sugeriu à Coroa que a presença de um magistrado
profissional na câmara seria não capaz de melhorar a administração da justiça
eliminando a parcialidade e favoritismo demonstrados pelos juízes ordinários como
também poderia evitar a apropriação indébita de fundos por parte da câmara. A
Coroa não agiu imediatamente baseada nesta recomendação mas em 1696 [...].
(SCHWARTZ, 1979, p. 214-215).
Não sabemos quantos juízes nomeados existiam no Brasil durante o período
colonial, mas sabemos que no Ceará, às vésperas da independência do Brasil, havia apenas
três lugares de juízes de fora, nomeadamente nas vilas de Fortaleza, Aracati e Sobral, sendo
que nesta última somente havia a criação do lugar de juizado de fora, mas faltava o
profissional magistrado.
Em um relatório do presidente da Junta Administrativa da Província do Ceará, o
senhor José Raimundo de Passos de Porbem Barboza, enviado ao Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios da Justiça, José da Silva de Carvalho, em 28 de junho de 1822, o
secretário apresenta a situação administrativa judiciária dessa Província, destacando a situação
precária das duas comarcas e dos três juizados, conforme o documento abaixo.
Tem esta Provincia duas Ouvidorias a do Ceará, eCrato; e trez Lugares deJuiz de
Fora Fortaleza, Aracati, e Sobral. O Ouvidor do Crato tomou posse em 20 de
dezembro de 1820, e ainda que por moléstia d‟olhos não tenha corrigido todas as
Villas da sua Comarca, tem-se conhecido a sua inteireza Aptidão, e limpeza de
mãos. A Comarca do Ceará está sem Ouvidor desde o anno de 1817, e serve
interinamente o Juiz deFora da Fortaleza Adriano Joze Leal, Ministro que pela sua
probidade, desinteresse, e bom agrado as Partes merece a estima geral, acaba o seu
triennio em 26 de Novembro deste anno. O Dezembargador Juiz de Fora do Aracati
Francisco Rodrigues Cardeira he Magistrado habil, mas subirão a esta Junta
reprezentaçoens assignadas que o arguião de notaveis abuzos de Jurisdição
praticados antes da Instalação desta Junta dos quaes ora mandamos conhecer, e a V.
Ex
a
. daremos parte do rezultado: acabou o seu triennio em 24 de Outubro de 1821, e
continua a servir por falta de Sucessor. O Lugar do Sobral foi creado pelo Alvará de
27 de Junho de 1816, e ainda não teve Juiz de Fora, sendo alias muito necessario
naquella Villa hum Juiz Lettrado. Digne-se V. Ex.a de levar todo o exposto ao
Conhecim
to
. de Sua Magestade p
a
. mostrar o nosso prompto cumprimento a Sua
Regia Determinação. (ANTT, 1822, Mç. 115, N°. 4 ).
61
61
Este documento foi transcrito do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, datado de 1822, Brasil-Ceará.
298
Pelo exposto no texto do secretário da Junta do Ceará, vemos a ineficiência do
sistema judiciário e o menosprezo das autoridades competentes em atender a contento as
necessidades da população. Vemos como as capitanias eram mal assistidas pelo poder real,
principalmente a do Ceará, que por muito tempo foi subalterna a Pernambuco, fato que travou
ainda mais seu desenvolvimento, tornando-a uma das menos importantes em
desenvolvimento.
É nesse contexto judiciário ineficiente que a maioria dos documentos que
estudamos são registrados. Podemos compreender que as queixas apresentadas nos Autos de
Querela muito provavelmente estagnavam ali na primeira instância, na responsabilidade do
juiz ordinário sem competência para encaminhar os processos criminais. Tais queixas não
passavam da primeira peça de um processo que não prosseguia.
A justiça em terras cearenses era marcadamente administrada pelos juízes
ordinários das vilas. Apesar de tudo são eles os intermediários entre a população da colônia e
as demais autoridades superiores, a serviço de Sua Majestade, o rei de Portugal.
Em novembro de 1821, o juiz de fora Manuel Caetano Soares, natural da cidade
de Coimbra, foi nomeado para servir ao juizado de fora da Vila de Fortaleza, no entanto, não
assumira seu posto até novembro de 1822, alegando estar molestado e também devido à
situação em que se encontrava o Brasil, conforme vemos abaixo.
Passada ao Juis de Fora que com abrevidade possivel,
vá tomar posse do Lugar, quando esteja próximo a findar o tempo do seu
Antecessor
Por Passado em 12 de Novembro
de 1822
Tendo lido no Diario do Governo n°. 256 = Expediente da Semana=
mandar-se por Concurso Lugar de Juis de Fora da Fortaleza,
sou obrigado alevar ao conhecimento deVossa Excelencia que por Decreto
e 25 de setembro de 1821 foi Sua Magestade servido Honrar me Nomeando=
me para oditto lugar.
As circunstancias, ecritico estado em que por hora
se acha o Brasil, molestias deque me acho a convalecer, emuito
principalmente o saber ainda naõ he findo otempo do meo
antecessor eis os motivos de naõ haver partido atomar posse do dito
lugar como pertendo
Espero Vossa Excelência attender =
do ao expendido se digne fazer com que se suspenda o concurso
quanto aditto lugar dando para meo governo as providen=
cias, que julgar necessarias. Deos guarde aVossa Excelência
Coimbra 9 de novembro de 1822.
Illustrissimo e Excelentissimo Senhor Jozé da Silva Carvalho
Ministro e Secretario dos Negocios da Justiça
Do Juis de Fora da Villa da Fortaleza
299
Manoel Caetano Soares
(ANTT, 1822, Mç. 115, N°. 4).
Nos autos, os querelantes se dirigem ao juiz para receber sua querela e que
distribua para que a justiça seja feita. “Pede aVo | ssa merçe Senhor Juiz ordinario Seja
Servido man | dar que destribuida esta eJurando, Selhe | tomeaSua querella, por Ser cazo
disso. E recebe | rá mercê” (XIMENES, 2006, p. 46).
Encontramos relacionados nos 133 autos nomes de vinte e três juízes ordinários,
enquanto apenas dois doutores juízes de fora, específicos da vila de Fortaleza. De qualquer
forma a autoridade mais próxima da população eram aqueles, na ausência de um juiz togado,
que deveriam encaminhar as denúncias dos crimes. Isso demonstra que a justiça era entregue
às mãos de pessoas sem conhecimento da lei.
Além dos juízes, outras autoridades da administração judiciária do Antigo Regime
do Reino se destacam no cenário brasileiro e nas ginas dos autos. São os corregedores de
comarca, magistrados que tinham jurisdição em toda uma comarca sobre os juízes dela, os
demais juízes lhe deviam dar parte dos casos mais graves que aconteciam, recorrendo-se a ele
quando agravados.
Todas as Ordenações dispõem sobre os corregedores. O Livro I do Código
Filipino, no Título LVIII estão arrolados 57 parágrafos sobre o cargo de Corregedor de
comarca, em que se destaca a sua função.
Barros (s.d) apresenta-nos de forma sintética as disposições dos corregedores
destacando as rias funções a eles atribuídas: apresentação pelos tabeliães dos estados de
delitos das terras que fazia a correição para exame dos corregedores; atribuições propriamente
de segurança pública; funções de superintendência sobre todos os que exerciam funções
públicas; funções de fiscalização relativa à defesa do país e em geral ao serviço militar;
funções fiscais, função de fiscalização sobre gerência das vereações; funções policiais
relativas à situação econômica da terra.
Consoante ao mesmo autor, a palavra corregedor já se usava em 1278 com
aplicação de magistrados de última instância, mas é no fim do reinado de D. Diniz que
aparecem magistrados assim designados com funções territoriais definidas, embora sem
caráter permanente. O primeiro diploma encontrado com referência ao cargo de corregedor é
um ato de D. Diniz, por provisão régia de 16 de janeiro de 1323.
Hespanha (1982) diz-nos que até o reinado de D. Afonso IV, a nomeação de
corregedor era de natureza extraordinária, justificada pelo desejo real de pôr cobro a situações
300
anormais de negligências ou abusos dos juízes, de usurpação da justiça ou de alastramento da
criminalidade. Vemos logo que a criação do cargo tem um caráter de controle das autoridades
menores, a saber, os juízes costumeiros.
[...] a partir de D. Afonso IV, o cargo de corregedor adquire o carácter de
magistratura ordinária, encarregada, no domínio jurisdicional, de inspeccionar e
instruir os juízes locais. A intervenção dos corregedores na aplicação prática do
direito era, no entanto, excepcional, que o seu regimento não os autorizava a
avocar as causas da competência dos juízes locais, a não ser que as circunstâncias da
causa (nomeadamente, a qualidade social dos réus) fizessem temer que o juiz se
sentisse coacto para decidir (HESPANHA, 1982, p. 429).
Na Capitania do Ceará, com a criação da primeira comarca, são nomeados
corregedores que passam a configurar na vida de nossa administração pública, na primeira
metade do século XVIII.
Comarca é um território ou circunscrição territorial político-administrativa
compreendida pelos limites em que se encerra a jurisdição de um juiz de direito. Nas
capitanias do Brasil, no período colonial, em cada comarca havia uma vila principal escolhida
como sede ou cabeça de comarca onde eram instalados os órgãos públicos e as autoridades
coloniais.
Até 1721 não havia no Ceará órgãos da justiça, apenas as câmaras das vilas e seus
juízes ordinários, quando D. João V aprovou a Resolução criando uma Ouvidoria para o
Ceará. Em 7 de janeiro de 1723 foi criada essa Ouvidoria, tornando o Ceará independente
judicialmente da Paraíba. O documento que a criou se encontra publicado por Barão de
Studart (1922) na Revista do Instituto do Ceará, Tomo XXXVI, conforme segue.
Dom João por graça de Deos Rey de Portugal etc. Faço saber a vós Dom Manoel
Rolim de Moura Governador e CAPITÃO General da Capitania de Pernambuco que
por ser conveniente a meu serviço e a boa administração da justiça dos meus
vassalos conviventes na capitania do Ceará e se atalharem os insultos que erão
freqüentes nas terras della Houve por bem crear o lugar de Ouvidor Geral para a dita
capitania, mandando unir ao seu logar o de Provedor da Fazenda Real e separando o
do da Provedoria da Fazenda da capitania do Rio Grande a que andava anhexo
attendendo a que por este meio não so seaugmentarão mays as minhas rendas mas
q‟ com os emolumentos dados adita occupação se ajudará mais o dito Ministro para
supportar os encargos do seu ministério do que Me pareceo avisarvos para que
tenhaes entendido a resolução que fui servido tomar neste particular. El Rey Nosso
Senhor o mandou por João Telles da Silva e Antonio Roiz da Costa Conselheiros do
seu Conselho Ultramarino, e se fez por duas vias, Miguel de Macedo Ribeiro a fez
em Lisboa Occidental a sete de Janeiro de mil setecentos e vinte e três. (BARÃO DE
STUDART, 1922, p. 60).
62
62
Este documento encontra-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mç. 115, N°. 4, 1822, Brasil-Ceará.
301
Devido à dificuldade de administrar a justiça na Capitania, por causa da distância
das vilas e o aumento populacional, foi necessário dividir o Ceará em duas comarcas, criando-
-se, assim, a da vila do Crato pelo Alvará do Governo Central, de 27 de junho de 1816.
Ficaram pertencendo à Comarca do Ceará Grande as Vilas de Arronches, Messejana, Soure e
Aquiraz, além do julgado de Sobral, as vilas de Granja, Vila Nova dEl Rei e Vila Viçosa.
Ainda pertenciam à Comarca de Fortaleza o julgado de Aracati e a Vila de São Bernardo das
Russas
63
.
Além dos juízes e corregedores, também os ouvidores gerais, uma autoridade
subordinada ao Governador Geral que centralizava a justiça e limitava os poderes dos
capitães-mores governadores das Capitanias, como informam Reis e Botelho (1998). O cargo
foi criado com a instituição do Governo Geral em 1548 e o primeiro Ouvidor Geral do Brasil
foi o desembargador Pero Borges, afirma Salgado (1985).
O Governador Geral tinha autoridade máxima da Justiça e o ouvidor geral era
subordinado apenas a este, tendo autoridade sobre os juízes ordinários e outros agentes
administrativos. Era função do ouvidor geral julgar os recursos vindos dos ouvidores das
capitanias e dispunha, também, de poderes para investigar a aplicação da legislação em todas
as localidades.
O ouvidor geral citado nos Autos de Querela não é o mesmo ouvidor geral do
Brasil, mas o ouvidor geral da Capitania que, sem dúvida, exercia outro cargo.
Para o termo meirinho de campo citado nos autos não encontramos referência nas
Ordenações. De Plácido e Silva (2006) define o meirinho como o oficial de justiça que, no
Direito Judiciário antigo, se cometia o encargo de prender, citar, promover penhoras e
executar ou cumprir quaisquer mandados judiciais.
O Livro I, Título XVII do Código Filipino fala do Meirinho Mor que, deve ser
homem de nobre sangue que possa fazer as coisas importantes, mandadas fazer pelo rei.
Quanto ao seu ofício, define-se no parágrafo primeiro da seguinte forma.
E seu Officio pertence prender pessoas de estado, e grandes Fidalgos e Senhores de
terras, e taes, que as outras Justiças não possam bem prender. Assi levantar forças,
que per as taes pessoas sejam feitas, quando per Nós lhe for mandado. (CÓDIGO...,
2004, p. 46).
63
Julgado ou termo de Sobral é o mesmo no Antigo Regime, é usado com o mesmo sentido de termo ou
circunscrição. Assim, julgado ou município.
302
A lei se refere aos dois outros tipos de meirinhos. No Título XXI reza sobre o
meirinho que anda na corte, nomeado pelo Meirinho Mor, para cumprir a função de observar
as forças rebeldes e prender os malfeitores. E o Título XXII fala do meirinho das cadeias que
estará na Relação todos os dias para fazer cumprir o seu ofício e o que lhe mandarem:
prender, trazer presos e qualquer outra coisa que a bem da justiça cumprir.
Embora aludido anteriormente sobre esse outro oficial, o alcaide, este em sentido
amplo, é uma autoridade que governa uma praça ou um castelo, uma fortaleza ou uma
província. O termo árabe sobreviveu na Península Ibérica e ainda hoje nomeia em língua
espanhola o prefeito da cidade.
Era antigo Officio, introduzido em Portugal desde o tempo em que foi conquistado
aos Mouros, de quem receberão a denominação. O termo Alcaide compõe-se do
artigo al o, e de caydun, derivado do verbo cadê, que significa capitanear.
(ALMEIDA, 2004, p. 168).
No sistema colonial havia vários tipos de alcaides, como alcaide-mor, alcaide das
sacas, alcaide dos donzéis e simplesmente alcaide, como informa De Plácido e Silva (2006).
A concepção simples de alcaide designa o oficial de justiça a quem se atribuía a
função de executar as diligências necessárias em justiça, defender a autoridade judicial e
rebater a violência de alguém nos atos de penhora, embargos e prisões.
O Livro I das Ordenações Filipinas estabelece dois tipos de alcaide: os alcaides
mores, citados no Título LXXIV onde consta da sua regulamentação, atribuição, função e
direitos. E os alcaides pequenos das cidades e vilas, como reza no caput, com suas
atribuições. Está disposto no Título LXXV.
Juiz de paz era aquele que se elegia em um município para funcionar como
magistrado em um determinado distrito, por isso também é denominado de juiz distrital.
Correspondia ao juiz ordinário, porque era eleito e possuía atribuições para conhecer e julgar
pequenas demandas, que subiam em grau de recurso aos juízes de direito, e não era formado
em Direito, assim informa De Plácido e Silva (2006).
É citado nos autos um juiz companheiro, entendemos ser um juiz substituto ou
auxiliar que, no impedimento do titular, assumia as responsabilidades, que não esse
cargo nos meandros da justiça.
O juiz de vintena era também denominado de pedâneo, tinha jurisdição muito
pequena nas aldeias e julgados dos termos de até vinte fogos, ou seja, vinte vizinhos ou
casais.Também se diz que a vigésima parte dos indivíduos era sujeita a ele, daí a denominação
303
vintena, ou seja, vem da denominação vinte e era a ínfima divisão administrativa. Eram
assistidos por um escrivão e enviavam os relatos dos inquéritos por eles presididos ao juiz
ordinário ou de fora da vila.
No Livro I, Título LXV § 73 encontra-se a regulamentação do juiz de vintena,
como se lê a seguir.
Mandamos, que em qualquer aldêa, em que houver vinte visinhos, e d‟ahi para cima
até cincoenta, e for uma legoa afastada, ou mais da cidade, ou vila, de cujo termo
for, os Juizes da dita cidade, ou villa, com os Vereadores e procurador, escolham em
cada hum anno hum homem ao qual darão juramento em Câmera, que bem e
verdadeiramente conheça e determine verbalmente as contendas , que forem entre os
moradores da dita aldêa, de quantia até cem réis. (CÓDIGO..., 2004, p. 144).
Todos esses eram integrantes do sistema judiciário colonial, eram funcionários da
administração pública que, embora exercessem cargos diferentes definidos por lei, muitos
concentravam em si várias funções, como se observa nas denominações da tabela abaixo.
Desde as Ordenações Afonsinas foram estabelecidos tais cargos para todos os
reinos de Portugal, no entanto, na prática, a depender da realidade de cada vila, poderia ser
bem diferente o seu funcionamento, principalmente no tocante à quantidade da população e da
estrutura da vila.
A distribuição na tabela demonstra que os juízes ordinários formavam a maioria,
que em toda vila deveria haver dois que se alternavam na presidência da câmara
mensalmente. Era a autoridade maior da vila e açulavam funções judiciárias e administrativas.
Os desembargadores e corregedores gerais apresentam um número menor, assim como os
juízes de fora, como já aludimos.
Tipos de juiz
Quantidade
%
Juiz ordinário
23
59,00
Doutor Desembargador Ouvidor Geral e Corregedor da
Comarca
6
15,39
Doutor Desembargador Ouvidor Geral e Corregedor da
Comarca e juiz ordinário
1
2,56
Doutor juiz de fora
2
5,13
Meirinho de Campo
1
2,56
Juiz de vintena
1
2,56
Juiz companheiro
1
2,56
Juiz de paz
1
2,56
Alcaide
1
2,56
Ouvidor interino e corregedor da comarca
1
2,56
Ouvidor Geral interino Corregedor da Comarca
1
2,56
Total
39
100
Quadro 42 Tipos de juiz
304
As demais informações sobre idade, etnia ou cor da pele e estado civil não
aparecem nos documentos, nem eram necessárias. Quanto ao grau de instrução, com exceção
de alguns juízes ordinários, os juízes de fora e corregedores tinham formação escolar. Quanto
à residência, não se informa o local certo. Sabemos que o juiz ordinário tinha residência fixa
na sede da vila onde ele atuava, mas os juízes de fora eram itinerantes e todos vinham de
Portugal. Assim também eram os ouvidores e corregedores. Provavelmente, na sede das
comarcas, havia casas de aposentadoria para eles, no caso do Ceará, a vila de Fortaleza ou a
sede do juizado de fora.
As denúncias eram recebidas por motivo das visitas de correição do corregedor da
Comarca. Como a primeira comarca do Ceará estava situada na vila de Fortaleza, significa
que o corregedor ali residia. Quando nas visitas às demais vilas, ele se hospedava em uma
casa, talvez a sede da câmara municipal para ouvir e receber as querelas da população que o
procurava. Na abertura dos autos sempre uma referência a uma casa de residência ou de
aposentadoria onde se encontrava o juiz.
No esboço histórico da estrutura judiciária desenhado neste capítulo, podemos
conhecer um pouco da engrenagem burocrática da administração pública do Antigo Regime
português que chegou até nós e, por muitos anos, por que não dizer séculos, foi essa estrutura
que sobreviveu, apesar de ser ineficiente. Mesmo em Portugal, a implementação dos cargos
de forma concreta, desde muito estabelecidos nas leis, foi um processo demorado para a
sua adaptação. Como no Brasil, uma colônia distante da metrópole, poderia o sistema ter tanta
presteza em atender a contento ao que poderia ser de sua competência?
Imaginemos a Capitania do Ceará, colonizada efetivamente a partir de 1612,
com mais de um século de atraso em relação à chegada dos portugueses. Muito lentamente
foram se constituindo os primeiros agrupamentos e, por muito tempo, sobreviveu na categoria
de capitania subalterna a Pernambuco até a virada do século XVIII, quando passou a ter maior
autonomia.
Por muitos anos viveram espalhados pela Capitania alguns brancos portugueses,
como informa Nobre (1974), pouco mais de duzentos habitantes, quando foi instalada a
primeira vila no lugar denominado de Iguape e foram eleitos os primeiros comandantes em 25
de janeiro de 1700: dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador.
Criada a vila, inicia-se a implementação da estrutura administrativa, fazendo parte
dela os oficiais que conhecemos descritos anteriormente. Não é caso de admiração, embora
seja de atraso conjuntural e de incompetência da administração geral o despreparo dos
gerenciadores e aplicadores da justiça.
305
O Ceará iniciou, desse modo, uma história administrativa e, também, judiciária,
devendo notar-se que o funcionamento da mara dependia, no entanto, da
expedição das cartas de usança, da competência de um magistrado efetivo, no caso
o Ouvidor e Corregedor de Pernambuco. (NOBRE, 1974, p. 19).
Até o final do período colonial, outras vilas foram fundadas como, também, duas
comarcas e três juizados de fora, mas a justiça ainda funcionava de forma incipiente, tendo em
vista as distâncias e as péssimas condições dos meios de transportes e todas as demais
dificuldades enfrentadas pelos corregedores que se tornavam empecilhos no atendimento à
população e, juntando-se a isso, não nos esquecendo, a falta de mão- de-obra especializada em
conhecimentos jurídicos.
Mais uma vez recorremos às informações do pesquisador Geraldo Nobre sobre o
quadro da situação jurídico-administrativa do Ceará no fim do período colonial, que apesar de
ter evoluído em relação ao marco inicial, o estado era periclitante.
Até o fim da fase colonial, a organização judiciária da Capitania e, depois, Província
do Ceará-Grande evoluiu de conformidade com os fatos mencionados, constatando-
se que, por ocasião da Independência, existiam, ainda, quinze Vilas, do total de
dezoito, onde a administração da justiça estava a cargo dos juízes leigos, portanto
dos presidentes das Câmaras. Era uma situação da qual decorria um quadro de
abusos e desordens, pois embora a existência, também, de dois Ouvidores e
Corregedores, cada um em sua Comarca, não podiam eles arcar com a grande
responsabilidade de solucionar os litígios e demais pendências de tão dilatadas áreas
de atribuições. (NOBRE, 1974, p. 55).
Os textos estudados ultrapassam a fase do Brasil colônia, adentrando o Império.
No entanto, não se mostravam sinais de alteração da realidade. Através da narrativa dos autos,
conhecemos um pouco da vida real da população do Ceará durante os 50 anos de história que
os documentos registram. Vemos, por um lado, a lentidão da justiça em atender com
habilidade às necessidades de segurança do povo, por outro, não podemos deixar de perceber
algum esforço por parte dos corregedores em se locomoverem por toda a Capitania nas visitas
de correição, apesar das dificuldades. Mostramos aqui o que nos foi revelado nos registros dos
documentos como, também, nas leituras dos textos sobre o contexto. Percebemos que
confrontos e assimetrias entre o que estabelecia a lei e o que de fato ocorria na realidade, fato
esse ainda de todo não ultrapassado no Brasil.
Os documentos que aqui nos propomos a estudar trazem uma amostragem da
população cearense e do seu modo de comportamento social. Muito embora seja uma pequena
parcela dos habitantes do Ceará, podemos ver dados revelados que, sem o contato com os
textos escritos, não conheceríamos. Nos seis códices são citadas 936 pessoas, dentre elas,
alguns seguramente não nascidos em terras cearenses, como juízes de fora e corregedores. A
306
maioria compõe a população das vilas da Capitania, vive nas pequenas localidades, sobrevive
de várias formas, vive, pensa e se comporta de maneira diversificada.
Não sabemos ao certo qual a população da Capitania do Ceará ao final do período
colonial, pois os estudos demográficos eram relegados para segundo plano. Os poucos
arrolamentos existentes eram feitos sob as informações dos párocos ou dos agentes policiais.
A única contagem da população existente e de forma imperfeita é a de 1872, informa Pompeu
Sobrinho (1889).
Os poderes publicos, auctorisados por lei geral, embora compenetrados da
necessidade de procederem ao arrolamento periódico da população, de darem
balanço na fortuna publica, fizeram apenas a tentativa de 1872, cujos resultados
correspondem, até certo ponto, aos sacrificios do Thesouro. Por imperfeito que seja
o censo desse anno é o unico que existe. (POMPEU SOBRINHO, 1889, p. 78).
No século XVIII, precisamente em 1767, informações do pároco da freguesia
de Nossa Senhora da Conceição de Sobral, que constava de 21.000 as pessoas de confissão e
de 30.000 os habitantes da ribeira do Acaraú. Para Pompeu Sobrinho, a população da
capitania atingia nessa época mais de 100.000 habitantes.
Os números, porém, são bem inferiores na distribuição populacional do Brasil
apresentada por Aden (1963, apud BARBOSA 2005). O número dos habitantes do Ceará é
de 61.408, o que corresponde a 3,9% do total da população brasileira. Esses dados são
referentes aos anos de 1772 e 1782. nos dados referentes ao final do período colonial,
apresentados pelo mesmo autor, nos relatos de 1808, o Ceará apresenta 125.764 habitantes,
atingindo 6,1% do total do Brasil.
No século XIX, o governador Luiz Barba Alardo de Menezes, com base nas
informações dos vigários e dos capitães-mores, apresentou à metrópole os números
populacionais do Ceará, no total de 125.878, distribuindo-os por vila, da seguinte maneira.
307
Nome da vila
Número de habitantes
Fortaleza
9.624
Aquiraz
9.527
Aracaty
5.333
São Bernardo (Russas)
10.787
Icó
17.698
Crato
11.735
Campo Maior (Quixeramobim)
6.515
Granja
4.924
São João do Príncipe (Tauá)
7.560
Sobral
14.629
Villa Nova (Guaraciaba)
7.623
Arronches (Parangaba)
1.415
Mecejana
1.570
Soure (Caucaia)
767
Monte-Mor (Baturité)
2.745
Vila Viçosa (Viçosa do Ceará)
7.934
Monte (Pacajus)
311
Almofala
1.011
Ibiapina
4.170
Total
125.878
Quadro 43 Censo da população do Ceará no século XIX Governador Barba Alado
Vemos que os resultados numéricos dados por Aden e os do governador Barba
Alardo apresentam coerência.
Ainda no século XIX, em 1813, o Governador Manuel Ignácio de Sampaio exigiu
dos capitães-mores e vigários das freguesias o censo da população e organizou-o em mapas
estatísticos divididos por comarcas, juizados de fora e vilas, como exposto abaixo, adaptado
de Pompeu Sobrinho (1889, p. 82).
308
Nome da vila
Número de habitantes
Comarca do Crato
Vila de S. João do Príncipe
7.021
Vila do Crato
Vila do Jardim
32.822
Vila de Lavras
Vila do Icó
18.216
Vila de Quixeramobim
6.462
Comarca do Ceará
Juiz de fora de Aracaty
Vila de S. Bernardo
11.363
Vila de Aracaty
6.033
Total
17.396
Juiz de Fora da Fortaleza
Vila do Aquiraz
10.701
Vila de Mecejana
1.729
Vila de Arronches
1.445
Vila de Soure
1.134
Vila da Fortaleza
12.810
Vila de Baturité
4.737
Total
32.647
Juiz de Fora de Sobral
Vila de Sobral
15.218
Vila de Granja
3. 730
Vila Viçosa
9. 520
Vila Nova
3.263
Total
30.731
Total Geral
145.285 habitantes
Quadro 44 Censo da população do Ceará no século XIX Governador Sampaio
Os dois quadros apresentados são tentativas dos governadores de controlarem os
números da população, mas nem sempre era possível, tendo em vista os métodos de
contagem. Os padres tinham interesse de esconder os números reais com medo de divisão das
freguesias, e os capitães-mores também não apresentavam os registros completos por conta
das dificuldades de chegar aos rincões do sertão. Portugal (s.d apud POMPEU SOBRINHO,
1889, p 82), assim se expressa sobre o assunto.
Differem entre si as cifras dos ditos mappas, como era bem de suppor, à vista do
interesse que teem os vigarios de occultar a verdadeira população das suas
respectivas freguezias com receio de alguma futura divisão; persuado-me, porem,
que a verdadeira população excede ainda muito a que dão os capitães-móres pela
difficuldade que há de tomar a rol aquelles que moram no interior dos vastos mattos
da capitania, assim como aquelles que, não tendo domicilio certo, vagueam de uns
para outros districtos. (PORTUGAL [s.d], apud POMPEU SOBRINHO, 1889, p.
82)
A discussão em torno da questão é algo não findado e a quantidade exata da
população do Ceará parece uma incógnita, pois retornar ao passado sem registros concretos
309
exatos é impossível. Temos um esboço e, assim, podemos nos valer dos relatos para termos
uma ideia. Nosso objetivo aqui não é apresentar dados exatos, mas tão-somente situarmo-nos
no tempo de forma aproximada. Assim, podemos avaliar a participação e a quantidade de
pessoas que são envolvidas nos crimes no recorte narrado durante o período de 50 anos, o
qual investigamos.
6.3 Conclusão
Por intermédio das informações contidas nos documentos, podemos identificar
satisfatoriamente os sujeitos históricos citados nos autos em todos os itens analisados e
apresentados em forma de tabelas quantitativas, no corpo do presente capítulo.
O cenário do Brasil e, especificamente, do Ceará colonial foi pintado por meio da
pena dos tabeliães e escrivães que registraram as querelas e muito mais além delas.
Apresentamos esta fotografia do palco onde contracenaram diversas personagens da vida real,
em que se evidencia vestígios do cotidiano dos pequenos lugarejos e das vilas da Capitania do
Ceará. Tais vestígios referem-se ao modo de viver, de se comportar, de usar os recursos
materiais nas lutas e nas ações criminosas.
A estrutura administrativa da colônia com sua burocracia e a distribuição dos
cargos e funções são muito evidenciadas nos textos que servem de corpus de nossa pesquisa.
A forma de dizer as coisas por meio da palavra escrita revela-nos a identidade de um povo em
todo seu comportamento. Linguisticamente falando, podemos vislumbrar alguns dados que
marcam a língua portuguesa naquele momento por meio das tradições discursivas expressas
de várias formas, sobretudo, nas unidades fraseológicas que servem para nomear e identificar
muitas realidades.
A leitura interpretativa dos textos levou-nos a mergulhar no universo do Antigo
Regime português e em todas as esferas da vida para compreendermos o contexto real da
sociedade em várias dimensões. Desta forma, entendemos estar contribuindo para uma leitura
integral dos textos, que compreende a noção de Filologia, razão fundamental pela qual nos
aventuramos a investir nesta pesquisa. Esta ciência, desde seu princípio, visa à
interdisciplinaridade como marca de sua existência. Mergulhar no universo histórico e
jurídico do período colonial é também adentrar na história da cultura do povo brasileiro,
cultura essa que se manifesta em várias dimensões, tendo a língua como âncora de sua
divulgação. O objetivo final é esse: o estudo da língua em todas as suas manifestações.
310
7 GLOSSÁRIO DAS UNIDADES FRASEOLÓGICAS
A linguagem é, inegavelmente, a herança social, cuja história se estende por
séculos. Uma visão completa, um conhecimento detalhado de seu mecanismo, de
sua estrutura, de sua semântica e ade sua ortografia pode ser obtidos através
da pesquisa diacrônica.
(BASSETO,2001, p.85)
7.1 Introdução
A organização do glossário das UFs selecionadas no corpus de nosso estudo
forma o conteúdo deste capítulo. Embora já descrito nos procedimentos metodológicos, faz-se
necessário explicar mais detalhadamente a composição da macroestrutura e da microestrutura
do glossário.
As UFs estão relacionadas conforme a ordem de ocorrência nas peças ou
segmentos que compõem os Autos de Querela, portanto, a tradicional ordem alfabética não foi
critério de organização das entradas. Para a inclusão das UFs no glossário consideramos a
frequência e o segmento no qual elas estão inseridas. A estrutura organizacional dos autos
apresenta a seguinte sequência:
1. Apresentação do auto ou caput
2. Remissão ao sumário
3. Introdução da querela
4. Petição
5. Relação das testemunhas
6. Despacho
7. Distribuição
8. Auto de exame e vistoria
9. Conclusão do auto
10. Custas
Em cada uma dessas partes ou segmentos, UFs que se caracterizam como
fórmulas rotineiras de abertura e de encerramento, as quais prestam-se à função de situar os
fatos, em uma perspectiva de tempo e de espaço, por exemplo. No entanto, outras
fraseologias usadas no corpo dos textos para atenderem às funções diversas, como:
caracterização dos tipos de crimes, qualificação das pessoas envolvidas nos atos delituosos,
311
nomeação de ofícios ou profissões, citação de leis e registros de procedimentos ou maneiras
de conduzir as narrativas e o modo de registrar uma queixa.
A tarefa de selecionar e sistematizar estas UFs não é das mais fáceis visto que o
corpus não apresenta regularidade na grafia e devemos ressaltar que as variações são as
marcas da linguagem jurídico-criminal dos Autos de Querela. Relacionamos alguns dos
principais obstáculos com os quais nos deparamos que dificultaram a leitura dos autos e, por
conseguinte, a segmentação das UFs.
a) A grafia característica dos manuscritos;
b) A maneira de qualificar os participantes dos processos criminais;
c) As formas de narrar os motivos dos crimes;
d) As formas de qualificar as autoridades;
e) As referências aos fatos e sua contextualização no tempo e no espaço.
Em todas as etapas dos autos, uma rica manifestação linguística com múltiplos
modos de dizer as coisas, consequentemente, geram estruturas fraseológicas diversificadas em
cujas entradas do glossário causam dificuldades de organização.
Não nos esqueçamos de que fazer um glossário de qualquer período histórico ou
mesmo, em qualquer especialidade linguística, a nosso ver, vai muito mais além do que
elencar uma lista de palavras ou de frases e atribuir-lhes seus significados. Em nosso caso
específico, faz-se necessário ampliar o universo informativo e penetrar na história e na cultura
dos usuários da língua em uma sincronia distante para revelarmos as informações contidas nas
páginas dos documentos manuscritos que refletem os costumes, as crenças, as ideologias
manifestadas nas palavras, nas frases, nos parágrafos e nas páginas dos textos.
Nossa intenção aqui é também fazer a arqueologia da escrita, mergulhar no
obscuro das entrelinhas e garimpar o conteúdo das unidades fraseológicas investigadas.
Tornar explícito, por mais que seja difícil, as maneiras de ver o mundo e de viver da
comunidade cearense nos séculos setecentista e oitocentista inserida no contexto brasileiro
interligado à sociedade portuguesa e aos padrões dominantes da monarquia lusitana.
O conjunto das fraseologias da linguagem jurídico-criminal constitui a
macroestrutura do nosso glossário. A sua definição e todas as demais anotações explicativas
contribuem para a estruturação de sua microestrutura.Todos os demais esclarecimentos em
forma de notas corroboram para a compreensão ampla dos significados das UFs, em que se
312
entrelaçam informações linguísticas, semânticas e pragmáticas visando à leitura integral dos
sentidos do texto.
Para definirmos a estrutura do glossário, primeiramente estabelecemos dois
critérios fundamentais na classificação das UFs. Esses critérios foram propostos por Maciel
(2001) e apresentados no capítulo 5 deste trabalho. O primeiro critério diz respeito à
pertinência temática, que leva em conta a caracterização das UFs como pertencentes à
linguagem especializada do jurídico-criminal. O segundo critério é o da pertinência
pragmática, que reconhece a unidade relevante nos documentos, embora não seja
especificamente da linguagem do universo especializado. A situação espacial ou temporal dos
fatos nos Autos de Querela, por exemplo, é fundamentalmente necessária, contudo, as UFs
advindas desses aspectos não são exclusivamente da linguagem jurídico-criminal.
Outro critério adotado para a classificação das UFs é de presença ou de ausência
de um pivô terminológico. O pivô (P) ou unidade terminológica (UT) é um termo que
caracteriza a linguagem especializada. No caso em estudo, qualquer unidade léxica ou
polilexical que esteja inserida na linguagem jurídico-criminal constituirá um pivô.
Adotamos também o conceito de matriz fraseológica que se constitui por uma
parte mais ou menos estável e uma parte variável nas UFs. O pivô terminológico se encaixa
como elemento variável na segunda parte da matriz, mas nem todo elemento variável é
classificado como um pivô terminológico. Dessa forma, UFs que atendem ao critério de
pertinência temática com pivô terminológico, mas também as que atendem ao mesmo
critério, porém não comportam um pivô. Já as UFs consideradas pelo critério pragmático não
apresentam pivô.
Na sistematização do nosso glossário, o elemento variável componente da matriz
que constitui o pivô terminológico é representado por letras entre colchetes, sendo preenchido
de acordo com os registros. Assim, temos a matriz: Por ele foi entregue [x]. O primeiro
constituinte dessa matriz tem recorrência relativamente estável, embora ocorram variações.
No espaço representado por [x] se encaixa o segundo constituinte e, nesse caso, constitui um
pivô: [uma sua petição de querela despachada].Configura-se, dessa maneira, a seguinte UF:
Por ele foi entregue [uma sua petição de querela despachada]. Vemos que o elemento que
constitui o (P) é uma unidade polilexical e identifica a linguagem especializada.
Seguindo esse parâmetro, organizamos todas as entradas do glossário, destacando
o pivô logo abaixo da entrada da UF.
Também será representado entre colchetes o elemento variável integrante da
matriz que não constitui pivô, como por exemplo: Viver de [x] que, por sua vez, apresenta as
313
variações viver de ser[x], viver do ofício de [x]. O espaço de [x] é preenchido conforme os
dados que identificam a profissão desenvolvida pelos sujeitos, gerando várias UFs, como:
Viver de [suas agências], viver de [vaqueiro], viver de ser [mestre de gramática latina],
viver do ofício de [ferreiro]. Todas essas ocorrências, conforme os resultados do programa
WordSmith Tool, apresentam frequência no corpus e, apesar de não caracterizar a linguagem
especializada, são consideradas pelo critério de pertinência pragmática, que indicam
características dos sujeitos arrolados nos autos como testemunhas dos crimes. Uma das
disposições do Código Filipino é que as testemunhas nomeadas para deporem nos inquéritos
criminais sejam bem caracterizadas pelo nome, local de residência, idade, cor da pele e ofício.
Quando o elemento componente da UF se referir a nomes de pessoas ou a
números de livros, de folhas ou a datas é representado por reticências entre parênteses (...) e
não é preenchido. De igual modo, quando este apresenta muitas variações não caracterizando
necessariamente parte da UF. Ilustramos com seguinte exemplo: Em casas de [x] do (y), onde
[x] complementa a base da matriz e, nos Autos de Querela, pode ser preenchido por três
formas. Já o espaço de (y), a depender da autoridade a quem se referira, poderá ocorrer
muitas formas, resolvemos não considerar. Em casas de [morada] do (juiz ordinário), Em
casas de [residência] do (Doutor Desembargador), Em casas de [aposentadoria] do
(Corregedor Geral...). Em todas essas ocorrências o que consideramos uma UF é Em casas de
[morada] e as suas formas sinonímias [residência] e [aposentadoria].
Quando um termo que deveria ocorrer na constituição da UF tiver sido suprimido
do texto original pelo próprio escrivão, essa ausência é preenchida pelo sinal de vazio [Ø].
Por exemplo: Ter sumário [no livro deles] a folha [Ø] e Ter sumário [Ø] a folha [Ø].
São consideradas formas variantes aquelas que apresentam supressão, inserção,
permuta de elementos e a ordem sintática dos elementos da UF diferenciada em qualquer uma
das partes da matriz. Em Auto de [querela e denúncia], Auto de [denuncia] e Auto de
[querela], a primeira forma apresenta maior frequência, na segunda e na terceira
ocorrências foi suprimido um elemento, mas não alterou o significado nem a configuração.
Essas duas últimas formas são variantes da primeira e têm entrada própria no glossário, logo
abaixo da forma dominante. Não consideramos as variantes gráficas por sua imensa
ocorrência, pois uma das caraterísticas mais marcantes dos Autos de Querela é a variação
gráfica, o que dificulta contemplar todas as ocorrências. Não utilizamos o sistema de
remissivas. Esse critério foi obedecido em todos os casos análogos.
As sinonímias ocorrem quando substituição de elementos da matriz ou parte
dela por outro de sentido equivalente, conforme a exemplificação: A causa de sua [querela]
314
consiste em que (sendo na noite do dia...) e O motivo de sua [queixa] consiste em que (tendo
o suplicante uma...). Nas duas UFs permuta das duas partes da matriz: causa por motivo e
querela por queixa são palavras semanticamente equivalentes, portanto consideradas
sinonímias.
A UF mais recorrente ocupa a primeira entrada, as formas variantes dessa têm
entrada em seguida e são enumeradas de acordo com a frequência. Na sequência
relacionamos as formas sinonímias que, por sua vez, podem apresentar variações. Essas
também são registradas e enumeradas conforme o número de ocorrência. Em seguida
apresentamos a definição, os contextos com suas referências e as notas.
Os primeiros elementos das matrizes são destacados em negrito e o pivô em
itálico. Na linha abaixo o pivô é registrado em destaque em itálico. São registradas em
seguida todas as demais formas de ocorrência.
Como já dito, a entrada das UFs segue a sequência dos segmentos dos autos e não
incluímos nenhuma referência gramatical. As definições foram elaboradas com base em
dicionários da língua comum, dicionários etimológicos, dicionários da língua de especialidade
do Direito e ainda com base nos próprios documentos, ou seja, os Autos de Querela, de onde
fizemos inferências pelo ambiente de ocorrência das UFs
64
. A definição é seguida pelos
contextos que se destinam à apresentação da UF em funcionamento no documento. Foram
incluídos contextos para todas as entradas e são enumerados e seguidos pelas indicações das
fontes bibliográficas. Esses contextos foram extraídos da obra de Ximenes (2006), referida da
seguinte maneira: Livro (L), Auto (A), l (linha), página (p). Nos contextos extraídos dos dois
códices não publicados ainda, a saber, os códices 1460 e o 1461, são referidos somente o livro
e o auto: L (livro), A (auto). Essas referências são colocadas entre colchetes unciados
(< >). Os contextos são estendidos para se ter uma noção mais compreensível do ambiente
onde ocorre a UF. As partes suprimidas são representadas por reticências entre colchetes.
O sistema de notas é representado pelas quatro categorias seguintes: notas
linguísticas (NL), em que destacamos a configuração organizacional da estrutura da UF; notas
64
As definições têm como base vários dicionários da língua comum, como: AULETE, Francisco Júlio Caldas,
Dicionário contemporâneo da língua portuguesa. 5. ed. Rio de Janeiro: Delta,1986. Vols. I a IV. Houassis
eletrônico. Dicionários etimológicos: MACHADO, José Pedro. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
3. ed. Lisboa: Livros Horizonte, 1977. CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira
da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Foram consultados os seguintes dicionários
da linguagem jurídica: DE PLÁCIDO E SILVA, Oscar José. Vocabulário jurídico, 27. Rio de Janeiro: Editora
Forense, 2006. FREITAS, Teixeira. Vocabulário jurídico. São Paulo: Ed. Saraiva, 1983, Tomo I. NUNES,
Rodrigues. Grande dicionário jurídico RG-Fenix. São Paulo: RG Editores, 1995. Os próprios Auto de
Querela, o Código Filipino, dentre outras fontes.
315
etimológicas (NE), em que, na medida do possível, acrescentamos informações sobre o étimo
dos elementos que compõem a UF; notas históricas (NH), compreendendo informações de
conteúdo mais amplo que contribuem para a compreensão do fenômeno linguístico e notas
enciclopédias (NEncl), em que acrescentamos informações diversas relativas aos vários
âmbitos do conhecimento: religioso, jurídico, moral etc. A ordem elencada dessas notas é a
seguinte: 1) nota linguística; 2) nota etimológica, 3) nota histórica; 4) nota enciclopédica.
Ressaltamos que não ocorrem obrigatoriamente todas as notas para todas as entradas. Quando
não houver a primeira da sequência, a próxima ocupa a posição dessa. No corpo das notas
fazemos citações a autores e a obras que nos ajudaram a compreender ou a alargar as
informações. Há também reprodução de fontes primárias que se referem a assuntos dos quais
tratamos. Essas fontes possibilitam o esclarecimento de dados e enriquecem o texto.
Para tornar mais claro como os elementos microestruturais estão organizados,
apresentamos, a seguir, a microestrutura dos verbetes:
Matriz:
UF:
Pivô:
UF variante 1:
UF variante 2:
UF variante
n
UF sinonímia 1:
UF sinonímia 2:
UF sinonímia
n
UF Variante 1:
Variante
n
Definição:
Contexto 1:
Contexto 2:
Contexto
n
(para todas as entradas)
Notas: (+ ou )
NL:
NE:
NH:
NEncl:
Quadro 45 Síntese da microestrutura do glossário
Optamos por este programa de informações por entender ser a maneira mais
didática e prática que encontramos para a organização deste glossário, tendo em vista as
particularidades analisadas.
316
Passamos, então, ao glossário das unidades fraseológicas de uso muito recorrente
nos Autos de Querela, que caracterizam a linguagem jurídico-criminal do sistema judiciário
da administração luso-brasileira no período de nossa história colonial.
7.2 Glossário
7.2.1 Peça 1 Apresentação/Caput
Matriz: Auto de [x] que dá (...)
UF: Auto de [querela e denúncia] que dá (...)
Pivô: [querela e denuncia]
UF variante 1: Auto de [denuncia] que dá (...)
Pivô: denúncia
UF variante 2: Auto de [querella] que dá (...)
Pivô: querela
Definição: Conjunto de peças judiciais componentes de um processo de queixa ou acusação
apresentada em juízo contra alguém, no qual se pede reparação de agravo e imposição de
pena.
Contexto 1: Auto de[Querella edenuncia] que (...), mulher parda Viuva mora | doura
naSerra daUruburitama, termo daVilla da | Fortaleza...) [...] <L.39, A.3, L. 1-3, p.49>
Contexto 2: Auto de [Querella eDenunçia] que ( ...), õmem branco Com Casta da terra |
Cazado emo | rador no Siupê termo daVilla daFortaleza ...) <L.39, A.6, L.1-2, p.55>
Contexto 3: Autto de[Denuncia] que dá (...) | morador noCitio do Cajueiro) <L.1460, A.33>
Contexto 4: Auto de[Querella], queneste Juizo | (oAlferis (...) bran | co Solteiro,
emoradornesta cidade) <L.1097, A.10, L.1-2, p.232>
NL: Esta UF constitui uma fórmula rotineira discursiva de abertura do auto. Todo Auto de
Querela é iniciado com esta fórmula e seus elementos são dispostos sempre na mesma ordem
sintática. O pivô terminológico que identifica a linguagem especializada do jurídico-criminal
é constituído por duas palavras lexicais ligadas pelo elemento gramatical, ou seja, a conjunção
aditiva que constitui uma coligação. Pragmaticamente, a UF apresenta uma função muito
importante, pois nomeia e caracteriza o próprio gênero textual em questão e informa
sinteticamente o assunto tratado no texto.
317
NE: O termo auto é vocábulo que provém do grego autos, que significa próprio, por si
mesmo, autônomo. Na acepção forense e em sentido genérico auto significa qualquer
solenidade ou ação pública executada ou promovida com finalidade de se cumprir um
imperativo legal ou ordem emanada de autoridade constituída. Tanto assim que se dizia auto--
de-fé, para a solenidade da sentença do tribunal da Inquisição e sua execução; auto de
aclamação dos Reis, para a solenidade que os reconhecia como soberanos legítimos. Todavia,
em sentido mais restrito, notadamente na linguagem forense, auto indica todo termo ou toda
narração circunstanciada de qualquer diligência judicial ou administrativa, escrita por tabelião
ou escrivão, e por estes autenticadas, mostrando-se, assim, as várias peças ou assentos de um
processo, lavrados para prova, registro ou evidência de uma ocorrência escrita e autenticada
pelo respectivo escrivão e testemunhas, e que começava pela fórmula Ano do nascimento de
Nosso Senhor Jesus Cristo. No plural, autos significa todas as peças pertencentes ao
processo judicial ou administrativo, tendo o mesmo sentido que processo, constituindo-se de
petição, documentos, articulados, termos de diligências, de audiências, certidões, sentenças
etc”. (DE PALÁCIDO E SILVA, 1963, p.172).
Querela é termo que provém do latim querela, de queri (queixar-se a alguém), e possui o
mesmo sentido de queixa ou de acusação. Querela é, pois, acusação ou denúncia de alguma
coisa apresentada em juízo e na qual se pede reparação de agravo e imposição de pena. Na
terminologia corrente, é tida no sentido de queixa-crime ou denúncia. Do vocábulo querela
forma-se querelante e querelado. Querelante, queixoso ou denunciante é “a pessoa que
oferece a queixa ou faz a denúncia, acusando outrem de haver praticado crime ou ato ilícito
punível”. Querelado, por seu turno, “é o denunciado ou pessoas contra quem se ofereceu a
queixa ou a denúncia”.
Denúncia, do latim, denuntiatio, que significa anúncio, declaração, advertência, aviso “é
vocábulo que possui aplicação no Direito, quer Civil, quer Penal ou Tributário com o
significado genérico de declaração, que se faz em juízo, ou notícia que ao mesmo se leva de
fato que deva ser comunicado”. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 430, grifos do autor).
NH: No período que corresponde aos documentos estudados, a saber, o período da
administração portuguesa, a querela era dada ou formada na sede da vila, diante de um juiz
ordinário presidente da câmera ou de um juiz de fora quando havia um juizado de fora na vila,
ou ainda, perante o Ouvidor e Corregedor da comarca por ocasião das visitas de correição que
esse fazia em todo o território de sua jurisdição. No Ceará havia uma comarca até 1816,
318
quando foi criada a do Crato. Até então era o ouvidor e corregedor da comarca do Ceará com
sede em Aquiraz e, depois, em Fortaleza, que percorria todo o território da Capitania para
aplicar as leis e administrar a justiça. Muitas querelas são apresentadas ao juiz ordinário,
presidente da câmera da vila, mas, quando o corregedor e ouvidor geral da comarca do Ceará
fazia a correição, era este que recebia, registrava e encaminhava as petições de queixa, mas
estas não se constituiam em processos, pois não foram encontrados até o momento processos
advindos das querelas aqui estudadas. As condições da administração na Capitania do Ceará
eram muito rudimentares, pois até o final do período colonial havia apenas três juizados de
fora presididos por conhecedores do Direito, e apenas duas comarcas com ouvidores e
corregedores. Significa dizer que a administração judicial estava a cargo dos juízes ordinários,
cidadãos leigos sem conhecimento da lei. Além do Auto de Querela com o registro da
queixa, o sumário de testemunhas, que apresenta o depoimento, e o rol de culpados com
uma pronúncia do juiz reconhecendo o querelado culpado. No entanto, isso não basta para
constituir o processo, o que nos levar a afirmar que estes documentos estão incompletos.
NEncl.: A denúncia de um fato delituoso pode ser de iniciativa de qualquer pessoa a quem o
fato tenha prejudicado ou de quem a toma em defesa da sociedade com intenção de se fazer
justiça, provocando a punição dos infratores.
7.2.2 Peça 2 Remissão ao Livro de Sumário
Matriz: Ter o seu sumário no livro [x] a folha (...)
UF: Tem o seu sumário no livro [deles] a folha (...)
UF variante 1: Tem seu sumário no livro [...] a folha (...)
UF variante 2: Tem o Sumario no Livro [deles] afolha (...)
UF variante 3: Tem o sumario no Livro [Ø] a folha (...)
Definição: Parte do Auto de Querela que remete para uma peça do processo criminal, na qual
são registrados os depoimentos das testemunhas arroladas no auto, e tem por objetivo
encaminhar a apuração dos fatos para culpabilidade ou inocência das pessoas denunciadas nos
delitos criminosos e o encaminhamento para a pronúncia dos culpados.
Contexto 1: Tem o seu Sumario noLivro [delles] afolha (71 usq folha 73) <L. 1461, A.8>
Contexto 2: Tem oseo Sumario noLivro [3°.] Afolha (28 Verso) <L. 1460, A. 1>
319
Contexto 3: Tem o Sumario no Livro [deles] afolha (61 Verso) <L. 1461, A. 5, >
Contexto 4: Tem oSeo Sumario noLivro [Ø] afolha (Ø) <L. 33, A. 3, p.157, l. 5>
NL: A UF em estudo constitui dentro dos Autos de Querela um segmento, conforme a
descrição apresentada anteriormente. O uso repetido tem o grande valor informativo, pois nos
remete para o documento intitulado Sumário de Testemunhas, uma peça fundamental que
complementa os autos por registrar os depoimentos das testemunhas que levarão o juiz a
pronunciar ou não o acusado.
NE: A palavra sumário vem do latim summarium e significa resumo. Do verbo sumariar,
tratar com brevidade. O sumário de testemunhas traz a súmula do fato ocorrido, narrada
através do depoimento das testemunhas.
NH: O Sumário de Testemunhas ou Sumário de Querela ou, ainda, Sumário de Culpa, como
se denomina, é registrado em um códice separado do Auto de Querela e se organiza
estruturalmente sob vários segmentos: apresentação, remissão ao livro dos Autos de Querela,
introdução, depoimento das três testemunhas indicadas na querela, termo de conclusão, termo
de data e custas. O Livro dos sumários de testemunhas reúne os depoimentos de vários Autos
de Querela que para lá são remetidos, indicando-se o número da folha.
NEncl.: No sentido criminal, o sumário tem o sentido de soma. Trata-se de uma peça que se
junta ou se soma a um processo e contribui para o julgamento dos citados em uma denúncia.
Sumário, conforme De Plácido e Silva (2006), indica também a fase da causa criminal em
andamento e investigação por meio de provas, “até que, concluídas as diligências necessárias
a essa investigação, seja conclusa ao juiz para aplicação da pena, ou remessa do processo a
julgamento do júri”. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 1346).
No Arquivo Público do Estado do Ceará encontramos quatro Livros de Sumários, mas apenas
um corresponde aos autos desta pesquisa. É o livro 13, compreendendo os anos de 1778 a
1810, que apresenta todos os sumários relacionados ao códice 39 das querelas que compõem
nosso corpus. Este livro pertence ao fundo da Ouvidoria Geral com a seguinte descrição:
Fundo: Ouvidoria Geral e Corregedoria da Comarca do Ceará. Série: Sumário de Querela,
data crônica: 1778 a 1810, Livro: 13, caixa: 04. Na abertura do Livro dos Sumários de
Querela explica-se para que serve o livro e determina a data e o local, como segue abaixo.
320
Dou Comisaõ ao AdvogadoAntonio Pereira
de Avila para em meo impedimento numerar, erubri-
car este Livro, que ha de servir para Sumarios de
Querelas, elavrar lhe o competente termo de encer-
ramento
Forte 15 deAgosto de1802
Doutor Gregorio Joze daSilva Coutinho
(APEC, 1810, Livro 13, fl. 1r)
A introdução de um sumário de querela é muito semelhante a do auto, como vemos, em que
se caracterizam as pessoas e se remete ao livro dos autos, conforme segue abaixo:
Sumario de Querella, eDenuncia que dá Manoel Gaspar
deOliveira õmem branco cazado morador nesta Villa do
Indio Andre daSilva, cazado, emorador na Villa deAr
ronches:
Tem o auto no livro delles a folha 14. Verco
(APEC, 1810, Livro 13, fl. 19v a 21v).
Após a apresentação e a qualificação dos querelantes, arrolam-se os depoimentos das
testemunhas que são bem identificadas. No final apresentam-se todas as despesas. O sumário
de querela é uma excelente fonte para conhecermos todas as pessoas citadas, pois essas são
bem identificadas pela condição social ou cor da pele, estado civil, o grau de instrução e o
ofício ou profissão, que nos permitem traçarmos um perfil completo dos sujeitos.
7.2.3 Peça 3 Introdução da Querela
Matriz: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de (...)
UF: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de (...)
UF variante 1: Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de (...) Terceiro da
Independência e primeiro da liberdade, e Confederação do Equador (...)
Definição: Data em que uma queixa é apresentada ao juiz ordinário ou ao ouvidor e
corregedor da comarca ou a outro representante da justiça, lavrada pelo escrivão ou tabelião,
para que seja constituído um auto, levando, de maneira, o fato acontecido ao conhecimento da
justiça.
Contexto 1: Anno do Nasçimento de Nosso Senhor Jezus Chris | to de(mil, eoito Centos
edous, aos vinte Sinco dias do | mes deAgosto) <L. 39, A.1, p. 46, l. 5-6>
321
Contexto 2: Anno do Nascimento de Nosso Senhor JESUS christo | (demil sete Centos
enoventa etres aos vinte aos vinte ehumdias do | mez demarco dodito anno) <L.1461, A. 16>
Contexto 3: Anno do Nascimento deNosso Senhor Je | zusChristo de mil oito centos, evente |
quatro annos Terceiro daIndependência | ePremeiro daliberdade, e Confedera | ç do
Equador <L.1097, A.5, p.212, l. 7-9>
NL: Essa UF é uma fórmula rotineira de abertura do segmento de peça que denominamos de
introdução. É nesse segmento que se apresenta a petição de queixa. Tem a função pragmática
de situar os fatos no tempo e no espaço, pois é seguida pelo dia, mês e ano que nos permite
saber com exatidão quando ocorreu o crime e o registro da queixa. A UF não se caracteriza
por pertencer à linguagem especializada do jurídico-criminal, mas por ser necessária pelo
critério de pertinência pragmática na classificação de Maciel (2001), que adotamos. É
fundamental seu uso no gênero documental para contextualizar os fatos historicamente, pois
não há fato histórico sem data e sem local.
NH: O tempo é demarcado pelo aspecto sagrado, demonstrando o quanto o teocentrismo
ainda reinava na sociedade dos setecentos e oitocentos. A religião era um componente muito
forte até recentemente na cultura das sociedades portuguesa e brasileira. Em qualquer aspecto
da vida das pessoas, até mesmo nos documentos jurídicos e criminais como vemos, o nome de
Deus está presente. É a data do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo que situa os fatos
ocorridos no tempo como marco delimitador e norteador da conduta humana. Vemos, pois,
como a influência do sagrado se faz presente em todos as dimensões da vida das pessoas.
As referências às datas da Independência do Brasil e a da Confederação do Equador marcam
também a UF como forma de registro desses acontecimentos.
NEncl.: Essa UF é uma marca dos autos que os caracteriza enquanto tal. Conforme Aulete
(1986, p. 216). Em todo auto registrado e autenticado pelo escrivão e pelas testemunhas, faz-
se necessário iniciar sempre com a fórmula Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo.
Matriz: Em casas de [x] do (y)
UF: Em casas de [aposentadoria] do (Doutor desembargador ouvidor geral...)
UF sinonímia 1: Em casas de [morada ] do (Doutor Juiz de fora)
UF sinonímia 2: Em casa de [residência] do (juiz ordinário)
322
Definição: Local da vila onde se encontravam as autoridades judiciais, o escrivão ou tabelião
e os querelantes para apresentarem suas queixas ou querelas a fim de que formassem os
autos.
Contexto 1: em Cazas de [Apozentadoria] | do (Ouvidor Geral Interi | no eCorregedor
daComarca) [...] <L. 1097, A.4, p. 208, l.8-9>
Contexto 2: em Cazas de[morada] do (Juis ordenario oAlferes) [...] <L. 39, A. 4, p.52,
l. 8-9>
Contexto 3: emCazas de[rezidencia] do (Juis ordinario oSargento mor) [...] <L.1461, A. 1>
NL: A parte inicial dessa matriz se organiza sintaticamente em torno de uma base ou palavra
dada, casa, à qual se liga outra denominada de colocado, por meio de um elemento gramatical
formando uma coligação, segundo Tagnin (2006). As formas sinonímias apresentam essa
mesma estrutura. Observamos que a parte variável [x] foi preenchida por três formas
diferentes: em casas de [morada], [residência] e [aposentadoria], que as consideramos
sinônimas, embora designe pequena diferença semântica. A UF é construída apenas com a
variável [x]. A segunda parte representada por (y) determina as autoridades representantes da
justiça, mas não é necessariamente conteúdo integrante da UF. Pragmaticamente a UF tem
valor de informar o local onde a lei estava sendo posta em prática ou pelo menos indica o
caminho para que os cidadãos que a procurassem e pudessem proceder legalmente diante das
ameaças a que estavam submetidos.
NE: Conforme Aulete (1986), a palavra morada significa domicílio, casa em que
ordinariamente se habita, pousada ou habitação. Residência refere-se à permanência mais ou
menos prolongada no lugar onde se habita. Significa também casa de habitação dada pelo
governo, pelas autoridades locais ou por alguma corporação ou indivíduo particular e a um
funcionário enquanto reside ou exerce o seu emprego na localidade. E aposentadoria está
relacionada à hospedagem, gasalhado, lugar onde se aposenta ou à pousada. Designa,
portanto, pouca permanência no local. No contexto que apresentamos consideramos, porém,
todas sinonímias.
NH: Das três formas, a mais usada nos documentos é casa de aposentadoria, principalmente
quando se refere ao Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca. Este cargo é estabelecido no
323
Código Filipino de 1603, no Livro I, Título LVIII, cuja função é fazer a correição
(CÓDIGO..., 2004, p. 103). As correições ou visitações eram espécies de excursões
administrativas em que as autoridades percorriam as suas jurisdições, conforme Prado Jr.
(1999). O corregedor é um magistrado a quem eram confiadas as atribuições de fiscalizar
todos os juizados sob sua jurisdição. É ele quem ordena todas as medidas necessárias para o
bom andamento da administração da justiça. Os Autos de Querela eram escritos por ocasião
das visitas de correição do corregedor. Na maioria dos autos essa autoridade é citada, mas não
tinha residência fixa nas vilas, por isso acreditamos ser esse o motivo da expressão em casa de
aposentadoria, quando se refere ao corregedor.
NEncl.: Além do corregedor, outra autoridade menos privilegiada na administração colonial é
o juiz ordinário. No Livro I, Título LXV do digo Filipino faz-se referência a ele e a sua
atribuição que deve trabalhar nos termos para onde for mandado e não deve fazer malfeitoria.
No Brasil colonial os juízes ordinários eram cidadãos leigos, moradores das vilas onde
exerciam a presidência através da escolha dos cidadãos que os elegiam. Esses juízes tinham
domicílio onde atuavam. Eram também denominados juízes da terra em oposição aos juízes
de fora. As expressões em casa de morada ou casa de residência são mais usadas quando a
autoridade citada no auto é um juiz ordinário, significando que ele é residente na vila. Outro
tipo de juiz citado é o Juiz de Fora ou juiz lerado, aquele que vem de fora por nomeação régia
para exercer funções atribuídas. Geralmente era um magistrado em Direito Romano em
oposição aos juízes ordinários que aplicavam o direito costumeiro ou consuetudinário.
Conforme Lopes (2005), foi D. Afonso IV durante seu governo de 1325 a 1357, quem
ordenou que os juízes de fora não deveriam pertencer à terra onde faziam os julgamentos, pois
poderiam comprometer-se, como faziam os juízes da terra, que conheciam as pessoas em seus
julgamentos e não podiam ser imparciais, comprometendo, assim, a justiça. Justifica-se,
portanto, o uso de três formas para designar a mesma coisa, ou seja, o local específico de uma
vila onde se registrava a querela e se constituía o auto.
Matriz: Eu escrivão de seu cargo ao diante nomeado [x]
UF: eu escrivão de seu cargo ao diante nomeado [fui vindo]
UF variante 1: eu escrivão do seu cargo ao diante nomeado [me achava]
Definição: Funcionário da administração pública colonial que tinha a função de servir às
autoridades judiciais no ato de registrar as denúncias de crimes apresentadas pelos
324
querelantes. A queixa era apresentada ao juiz e anotada pelo escrivão nomeado para essa
finalidade.
Contexto 1: Escrivaõ doSeo Cargo [fui vindo] eSendo ahy prezente o Alferes (...) <L.39,
A. 5, p.53, l. 8-9>
Contexto 2: euescrivaõ aodiante nomia | do[meachava] esen do ahy perante elle | emim
escrivão apareseo ocapitaõ <L.1460, A.8>
NL: Consideramos a UF pelo critério de pertinência temática, embora não apresente pivô
terminológico em sua constituição. No contexto da linguagem jurídico-criminal dos Autos de
Querela o escrivão é o sujeito responsável pelo registro das queixas. Sem esse funcionário
público não haveria documentos, pois no universo colonial eles eram os poucos que sabiam
ler e escrever.
NH: Os escrivães ou tabeliães estavam em todos os setores da administração pública colonial.
Em cada compartimento da administração havia um escrivão como funcionário menor para
servir às câmeras das vilas, aos diversos tipos de juízes, aos ouvidores e corregedores, ao
governador. Por isso recebiam denominações diferentes, a depender do cargo exercido.
NEncl.: Além dos escrivães havia os tabeliães que se classificavam em dois setores: o
tabelião do público judicial e o tabelião das notas. Os tabeliães tinham mais independência e
status do que o simples escrivão. Muitos deles acumulavam vários cargos como tabelião do
público judicial e notas adquiridos mediante pagamento de taxa para exercício da profissão.
O documento que segue abaixo é uma provisão passada a Manuel Ferreira Calassa para o
cargo de escrivão da Vila de São João do Príncipe, atual cidade de Tauá. Vemos que ele
cumula as várias funções. O tempo de serventia é de um ano e foi pago um valor ao governo.
A provisão ilustra como era conseguido o cargo.
Registro da Provizaõ dos Orfaõs deTabelliaõ do Publico do Judicial e Nottas, e
Escrivaõ do Crime Civil, Camara, Orfaõs, e Almotaceria da Villa de São Joaõ do
Principe Passada a Manuel Ferreira Calassa
A Junta Provizional do Governo da Provincia do Ceará etecetera Fazemos saber aos
que esta Provizaõ virem que attendendo a Manoel Ferreira Callassa haver entrado
para o Thezoureiro Nacional com o donactivo de oito mil e duzentos reis pela
serventia por tempo de hum anno dos Officios de TabelliPublico do Judicial e
Nottas e Escrivaõ do Crime e Civil Camera, órfãos, e Almotaceria da Vila de São
325
Joaõ do Principe e assim mais quatro mil otocentos e trinta da terça parte
correspondente aos ditos Officios, e mil quatrocentos e cincoenta denovos Direitos,
que ficaõ carregados ao Thezoureiro delles afolha
65
do Livro 21 de sua receita
requerendo-nos que para continuar na Serventia dos ditos Officios
lhe mandássemos
Passar Provisaõ, e visto o seu requerimento naõ haver quem maior donativo
offrecesse, e achar-se competentemente habellidado. Havemos por bem na
conformidade da Carta Regia de 17 de janeiro de 1799 prover o dito Manoel
Ferreira
Callassa na serventia dos mencionados Officios por tempo de mais
humanno que correrá do dia seis de Setembro de 1820 endiante e com elles haverá
os emolumentos proês e preclaços que direitamente lhe pretencerem. Pelo que
mandamos a todas as Justiças e pessoas a quem o cohecimento desta Pertençer a
cumpraõ eo deixem servir debaixo da posse e juramento em que se acha. E por
firmeza de tudo lhe mandarem passar a prezente por nos assignada, e sellada com o
sello das Armas Reaes que se registara nos Livros da Secretaria deste Governos,
Contadoria da Fazenda Nacional eonde mais tocar. Dada nesta Vila da Fortaleza do
Cearáaos 15 dias do mez de Janeiro de 1822 O Secretario da Junta Provizional
desteGoverno Henriques Joze Leal a fez escrever = Francisco Henriques
Torres =
Adriano Jozé Leal = Mariano Gomes da Silva = Jozé Antonio Maxado = Marcos
Antonio Bricio = Henrique Jozé Leal = Estava o Sello das Armas Armas Reaes =
Provizaõ por que Vossas Senhorias haõ por bem prover a Manuel Ferreira Callassa
na serventia de mais hum anno dos Officiosde Tabeliaõ do Publico do Judicial,e
Nottas e Escrivaõ do Crime Civel, Camera Orfaõs e Almotaceria da Vila de São
Joaõ do Principe como nella se declaraõ=Para Vossas Senhorias verem = Por
Despacho do Governo desta Provincia de 9 de 8bro de 1821 = Francisco Estevaõ
de Almada
a fez. (APEC, 1780, Livro 84, fl. 32r a 33r).
Matriz: Ser aí presente (...) com [x] pelo (y)
UF: E sendo aí presente (...) com [sua petição por escrito e despachada] pelo (dito juiz)
Pivô: petição por escrito e despachada
UF sinonímia 1: E sendo apareceu (...) com [sua petição por escrito e despachada] pelo
(dito ministro)
Pivô: petição por escrito e despachada
UF sinonímia 2: E sendo os/as querelantes (...) por eles/elas me foi entregue uma [sua
petição de queixa despachada] pelo (dito ministro)
Pivô: sua petição de queixa despachada
Definição: Ato em que um querelante procura a justiça apresentando sua denúncia para ser
registrada pelo escrivão ou tabelião e formar o Auto de Querela.
Contexto 1: e | sendo ahy prezente (...) com | [sua petiçaõ por escripto despachada] pello
dito Ju | is, a quem pello mesmo (...) foi di | to <L.39, A. 1, l. 11-12, p. 46>
Contexto 2: eSendo ahj | apariceo (...) com [hua Petiçaõ de querella Despacha da] pelo dito
Menistro ea | mim Destribuida <L.1097, A. 3, l.10-12, p.205>
326
Contexto 3: esendo ahi as querelantes ( ...) por eles mefoi en | tregue huã sua [pitiçaõ
dequeixadespaxada] pelo dito Ministro <L.33, A. 11, l.10-12>
NL: Conforme dito anteriormente, o espaço entre parênteses (...) é preenchido pelo nome do
querelante que compõe a parte inicial da UF. O espaço de (y) refere-se à autoridade judicial,
que complementa a informação, mas não é parte integrante da UF.
Matriz: Pessoa que reconheço pela própria de que [x]
UF: Pessoa que reconheço pela própria de que [se trata]
UF sinonímia 1: Pessoa que reconheço pela própria de que [dou fé]
UF sinonímia 2: Pessoa que reconheço pela própria de que [se trata e faço menção]
Definição: Maneira como o escrivão ou tabelião identifica os querelantes enquanto pessoas
conhecidas que merecem credibilidade por ele mesmo reconhecê-las ou serem reconhecidas
por pessoas confiáveis, evitando-se que seja uma denúncia falsa.
Contexto1: pesoa | que reconheso pela propria deque [Setrata,] mayor de | vinte eSinco
annos deque dou fê <L. 1461, A. 3>.
Contexto 2: pessoa que reconhe | sopella propria deque [setrata efaso | mensão] dequedou
minha fe <L. 1460, A.8>.
Contexto 3: pessoaque reconheço | pela propria que tracto, [edoufé], epor | elle foi dito, que
elle vinha, querellar, | edenunciar perante elle dito Menistro <L.1097, A.7, l. 13-15, p.221>
NL: Esta UF não pertence especificamente à linguagem jurídico-criminal, portanto a
consideramos por sua importância pragmática e sua recorrência. A parte variável integra e
complementa o sentido da matriz.
NH: Esta UF não ocorre em todos os autos, apesar de ter alta frequência. Sua importancia
pragmática nessa parte do processo é certificar se o querelante é uma pessoa falsa ou
verdadeira. Tal fato resultará em uma querela também verdadeira, pois uma falsa querela é
um crime. É importante notar que quando o escrivão ou tabelião não conhece o querelante, há
a necessidade do seu reconhecimento por uma pessoa de credibilidade que afirma conhecê-
lo e o indica como a pessoa verdadeira, conforme se observa nos contextos seguintes:
327
Contexto 1: pessoa que reconhe | sso pellapropria deque setrata por reconhe |
cementoquedellamedeo ocapitaõ mor <L. 1460, A.20>.
Contexto 2: apares | seo (...) pessoa que | reconhesso pela propria deque fasso mensaõ | por
reconhecimento que delle medeu oAju | dante (...) deque dou | minha fê < L. 1460, A. 23>
Matriz: Por ele/ela me foi entregue [x] pelo (y)
UF: Por ele/ela foi entregue [uma sua petição de queixa despachada] pelo (dito ministro)
Pivô: uma sua petição de queixa despachada
UF sinonímia 1: Por ele/ela foi dada [uma sua petição de querela e denúncia despachada]
pelo (dito juiz)
Pivô: sua petição de querella, e denúncia
UF sinonímia 2: Por ele/ela foi entregue [uma sua petição de querela despachada]
pelo (dito juiz) e a mim distribuída
Pivô: uma sua petição de querela
Definição: Ato em que um querelante apresenta sua denúncia despachada pelo juiz para ser
registrada pelo escrivão ou tabelião.
Contexto 1: por elles me foi entregue [hua sua petiçaõ de queixa despaxada] | pello dito
Ministro, e amim distri- | buida <L. 33, A.13, l. 10-11, p. 130>
Contexto 2: epor ellemefoi dadahua | [suapetiçaõ dequerella, edenuncia] despaxadapellodito
Juis <L.64, A. 4, l. 14-15, p.159>
Contexto 3: por | elle me foi entregue | [huma sua petiçaõ de queixa despaxada] pello so- |
bredito Ministro eamim | destribuida <L.33, A. 14, l.10-11, p.134>
NL: O sujeito da construção varia de acordo com o sujeito histórico que apresenta sua petição
de queixa. Além da variação do sujeito, variam os verbos entregar e dar, da mesma forma
varia a segunda parte da UF.
NE: A palavra petição é de origem latina, petitio, derivada do verbo petĕre e significa dirigir-
se, reclamar, solicitar. Portanto, indica reclamação, pedido ou requerimento formulado
perante autoridade. Na linguagem forense designa a formulação escrita de um pedido feito
perante um juiz. A petição é esse pedido escrito solicitado a um juiz para que se cumpra uma
regra processual ou se promova um ato forense. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006).
328
NEncl.: Esta UF é recorrente em todos os autos, o que indica um procedimento comum o
fato do querelante se dirigir ao escrivão ou tabelião com sua petição escrita e despachada pelo
juiz. Sendo assim, o autor do texto da denúncia é, presumivelmente, o juiz, limitando-se ao
escrivão a incumbência de fazer a cópia, transcrevendo-a em livro indicado. Não podemos
afirmar se o autor do texto da denúncia sempre era o juiz.
Matriz: Dizer ao (y) vinha [x] de (...)
UF: E por ele foi dito ao (mesmo ministro) vinha [querelar e denunciar ] de (...)
Pivô: querelar e denunciar
UF variante 1: E por ela foi dito (Ø) que vinha [querelar e denunciar] perante (as justiças
de sua alteza real)
Pivô: querelar e denunciar
UF variante 2: Pelo mesmo foi dito(Ø) que ele [querelava e denunciava] perante (ele dito
ministro e as mais justiças de sua alteza real)
Pivô: querelava e denunciava
Definição: Ato em que um querelante se apresenta diante da autoridade judicial e do
escrivão, justificando o motivo pelo qual apresenta sua denúncia contra alguém.
Contexto 1: epor elle foi dito aomes| mo Menistro naprezensademim es | crivaõ queella
vinha [querelar edenunciar] de (...) morador noengenho da Ita | ponga <L. 1460, A.3>
Contexto 2: epor ella foi ditto ao | (mesmo Menistro) que ellauinha [querelar edenunciar]
de (...) morador nas Lavras da Man-| Gabeira <L. 1460, A. 15>
Contexto 3: aquem pello mesmo foi dito, que ellê [querelaua, eDenunciaua ] perante (ellê
dito Juis eas mais Justisas | deSua Alteza Real) <L. 39, A. 4, l.11-13, p.52>
NL:uma grande variação na forma de dizer esta informação sobressaindo, também, muita
irregularidade na UF em que são inseridos, suprimidos e permutados elementos linguísticos.
Em todas as ocorrências mantém-se o pivô terminológico representado pelos verbo querelar
e denunciar nas formas finitas ou infinitas, constituindo uma colocação.
Pela leitura completa do contexto fraseológico podemos ver que se estabelece uma relação
comunicativa entre a pessoa simples que vem trazer sua queixa para a autoridade judicial, e
329
um juiz ou ministro representante da monarquia portuguesa. Esta mensagem comunicativa é
também, ao mesmo tempo, direcionada ao soberano por intermédio dos órgãos das suas
justiças que o representam na colônia.
Matriz: Cuja petição o seu teor [ x] é o seguinte
UF: Cuja petição o seu teor [verbo adverbum] é o seguinte
UF variante 1: Da qual petição o seu teor [verbo adverbum] é o seguinte
UF sinonímia 1: Cuja petição o seu teor [Ø] é o seguinte
UF sinonímia 2: Cuja petição o seu teor é na [forma e maneira] seguinte
Definição: Maneira como o escrivão ou tabelião introduz o conteúdo apresentado na petição
de queixa narrado pelos querelantes com as mesmas palavras que foram ditas por eles.
Contexto 1: da qual petiçaõ oseotheor, [ver- | bo, ad’ verbum ] heo seguinte [...] <L.64, A.
13, l.14, p.179>
Contexto 2: deCuja petiçaõ oseo Theor, |[verbo, ad’ verbum] he oseguin | te [...] <L.64, A.
3l.17-18, p.157>
Contexto 3: cuja petesaõ oseo theo [Ø] he oseguinte [...] <L. 1460. A. 1>
Contexto 4: cujo | [Theor deuerbo aduerbum], hé oSeguinte [...] <L.33, A. 6, l.12,13, l.105>
Contexto 5: Cuja petisaõ | oseo theor he [daforma emaneira] seguin | te [...] <L.1460, A.22>
NL: Esta UF encerra a parte reconhecida como introdução do contexto da querela e remete
para a peça seguinte que constitui a petição, parte fundamental dos autos que traz a narrativa
detalhada do conteúdo da queixa. Esta UF é reconhecida linguisticamente como uma forma
discursiva de encerramento, conforme Corpas Pastor (1996).
NE: A palavra teor deriva do latim, tenor, que é uma disposição ou termo da lei.
Tecnicamente significa o texto ou conteúdo de um escrito. (DE PLÁCIDO E SILVA, 2006).
O teor ou conteúdo da queixa deve ser registrado pelos escrivães ou tabeliães verbum
adverbum, ou seja, palavra por palavra ou, literalmente, da mesma forma como os queixosos
narram e conforme é defendido na lei.
330
NH: O Código Filipino claramente adverte como os escrivães e tabeliães devem proceder no
momento de escrever uma querela, justificando, portanto, a expressão verbum adverbum, ou
seja, com as mesmas palavras, consoante ao que segue.
E defendemos aos Tabelliães e Scrivães, que nas querelas, que tomarem, não
screvão outras razões, nem accrescentem mais palavras, que as que as partes
disserem, nem diminuão cousa alguma, e screvão o caso pela maneira, que a parte o
contar, e mais não. E fazendo o contrario, perção logo os Officios, e sejão presos,
para lhes mandarmos dar a pena de falsarios, ou outra, que houveram por bem.
(CÓDIGO..., 2004, p.1276).
Entendemos pelo disposto na lei que o conteúdo da petição de querela é uma narrativa oral
dos querelantes aos juízes, que é retextualizada por meio de uma linguagem formal pelos
escrivães ou tabeliães. Muitas variações de uma mesma palavra ou de frases podem ser
resultado de como a linguagem é recebida pelos escribas quando a ouvem diretamente de
pessoas pouco instruídas, muitas vezes impactadas por fortes emoções.
7.2.4 Peça 4 Petição
Matriz: Querelar e denunciar perante [x] (y)
UF: Querela e denuncia perante [vossa mercê e mais justiças de sua Alteza Real] (...)
UF variante 1: Querela e denuncia perante [as justiças de sua Majestade fidelíssima] (...)
UF variante 2: Querela e denuncia perante [vossa mercê senhor juiz ordinário] (...)
UF variante 3: Querela perante [as justiças de Sua Alteza Real principalmente perante
Vossa mercê Senhor Juiz ordinário] (...)
UF variante 4: Querela e denuncia perante [vossa mercê mai justiças] do (...)
UF varinte 5: Querela e denuncia perante [vossa senhoria e mais justiças de Sua Alteza
Real] (...)
UF variante 6: Querella e denuncia perante [Vossa Senhoria eas mais Justiças deSua
Magestade Imperial eConstitucional] (...)
UF variante 7: Querella e denuncia perante [as Justiças de Sua Alteza Real, principalmente
perante vossa Mercé Senhor Doutor Juis de fora desta villada Fortaleza] (...)
Definição: Ato de formalizar e apresentar uma denúncia contra um querelado perante as
autoridades judiciais, um juiz ordinário, um juiz de fora, um ouvidor e corregedor geral da
comarca ou outros representantes da justiça, resultando dessa denúncia uma petição de
queixa.
331
Contexto 1: Querella, eDenuncia | perante| [Vossa merçe eas Justissas deSua Alteza Real] o
Alferes ( ...) mora | dor no CoCo do termo desta Villa <L.39, A. 5, l. 16-18, p. 53-54>
Contexto 2: Querella, eDenunçia perante [as Justissas | deSua Alteza Real], principalmente
perante vossa m | erçe senhor Juis ordinario desta Villa daFortaleza, (...) mulher parda <L. 39,
A.3, l. 18- 21, p. 49>
Contexto 3: Quarella e denuncia perante [Vosa merse e as mais Justisas de sua Magestade
Fidelisima] (...) <L.1461, A. 3>
Contexto 4: Querella pe | rante asJustissas deSua Alteza Real principalmente pe | rante
Vossa merçe Senhor Juis ordenario desta villa da | Fortaleza o Capitaõ Jozé daSilva
Alves<L.39. A. 4, l. 16-18, p. 52>
Contexto 5: querella, edenunçia | perante [vossa merçe emais Justissas] do mamaluco (...)
õmem Cazado <L. 39, A. 6, l.17-19, p.55>
Contexto 6: Querela | edenuncia perante [uosa Senhoria emais Justiças deSua Alteza Real]
(...) viuua doCapitaõ (...) moradora notermo da Vila <L. 33. A. 1, l.15-18, p.84>
Contexto 7: Querella e | Denuncia perante [Vossa Senhoria eas mais Justiças deSua
Magestade Imperial eConstitucional] (...) ho | Mem branco Cazado mora | dor nasPraias <L.
1097, A. 2, l.15-19, p.198>
Contexto 8: querella, | edenuncia perante [as Justiças de Sua Alteza Real, principalmente
perante vossa Mercé Senhor Doutor Juis de fora desta villada Fortaleza], (...) Como Ad‟me |
nistrador desuamolher (...) <L. 64, A.17, l.18>
NL: Esta rmula rotineira introduz a peça denominada de petição de querela. Não é usada
na totalidade dos autos aqui estudados, mas apresenta frequência muito alta. Os dois verbos,
querelar e denunciar, ocorrem sempre juntos e na mesma disposição, nunca na ordem
inversa. A posição do sujeito é posterior ao verbo e representa uma inversão da canônica S+V
para V+S. Intercala a construção o elemento a quem se dirige a queixa, ou seja, a referência à
autoridade judicial. Tal estrutura é convencionada, atingindo um alto grau de fixidez nos
documentos. Querela e denuncia são verbos da linguagem jurídico-criminal, porém, na
construção analisada não constitui pivô terminológico por se configurar na primeira parte da
matriz. O elemento destacado entre os colchetes e a parte variante que complementa a matriz
e os espaços entre parênteses representam os nomes dos sujeitos querelantes.
332
NE: Destacamos algumas formas de tratamento convencionadas pelo uso na época que se
revelam nos textos. Vossa mercê é uma forma muito usada nos autos, principalmente no
século XVIII. Refere-se tanto ao juiz ordinário de uma vila quanto ao ouvidor geral e
corregedor da comarca. Observamos, porém, que nos autos do século XIX houve uma
mudança, em que a mesma forma passou a referir-se restritamente ao juiz ordinário. Para o
ouvidor e corregedor da comarca passou a ser usada a forma vossa senhoria.
Conforme Said Ali (2006), o tratamento dado primeiro aos reis de Portugal era vós, juntando-
se a isso o tratamento vossa mercê, empregado pelos súditos que sabiamente pediam um favor
ou uma mercê ao monarca, usando frequentemente vossa mercê por vós, referindo-se à graça
ou favor do soberano. No século XIV vossa mercê ainda não era expressão consagrada de
tratamento. Mais tarde passou a ser título honorífico. Quando os fidalgos começaram a exigir
dos seus criados o tratamento de vossa mercê, esse tratamento baixou da Coroa e, em seu
lugar, apareceu vossa senhoria. Para Cintra (1972 apud LOPES, 2005), é por volta de 1460
que vossa mercê aparece como tratamento para o rei, deixando de sê-lo em 1490, quando
passa a referir-se a duques, depois a infantes, a fidalgos. Vossa senhoria é o tratamento que o
substitui, mas da mesma forma passa a ser empregado para fidalgos da nobreza e se
estabelece como nível superior a vossa mercê. No século XV introduz-se alteza, que foi
decidido pela monarquia e perdurou até 1581, quando Felipe II introduziu e oficializou o
tratamento majestade. Vossa mercê caiu no gosto das pessoas comuns e o uso resultou na
mudança de vossa mercê para vossancê, vossemercê, vossecê e, finalmente, você. A forma
Vossa Senhoria cabia no período de D. Manuel I ao vice-rei da Índia como representante do
monarca. Posteriormente, estendeu-se senhoria a desembargadores e ministros, depois passou
a ser usado para qualquer burguês. Nos textos aqui estudados as formas são bem definidas:
vossa mercê é usada para o juiz ordinário, embora também para o corregedor, e vossa
Senhoria para o corregedor e juiz de fora. Quando se refere aos membros da Família Real,
usa-se Vossa Majestade para a rainha D. Maria I e Vossa Alteza real para o Príncipe D. João
VI. Quando este assume o trono, passa a ser tratado apenas por Vossa Majestade.
NH: O período em que os autos foram escritos corresponde ao governo de D. Maria I, que se
situa entre 1777 e 1792, quando a rainha se afasta do comando por motivo de sua doença
mental. O filho mais velho, D. João VI, assumiu o reinado em nome da rainha mãe em 1792.
Em 1799 passou a governar em nome próprio com o título de Príncipe Regente. Em 1816,
após o falecimento de D. Maria I, passou a ser D. João VI o monarca do reino de Portugal até
1826, quando morreu. As formas de tratamento usadas nos autos do século XVIII, anotadas
333
nos códices 1460 e 1461, são Vossa Majestade Fidelíssima ou somente Vossa Majestade,
muito embora nunca seja citado o nome da rainha. Nos autos anotados nos códices 33, 39 e
64, que correspondem ao princípio do século XIX, a forma de tratamento usada é Vossa
Alteza Real ou Vossa Alteza Real o Príncipe Regente, referente ao período da regência de D.
João VI. No códice 1097, os autos são datados de 1824 a 1829 e a forma de tratamento usada
passou a ser Vossa Majestade Imperial. O período coincide à primeira fase imperial brasileira,
em que D. Pedro I reinou no Brasil de 1822 a 1831.
NEncl.: De maneira geral, as formas de tratamento revelam um alto grau de subserviência
aos superiores, principalmente entre os vassalos e a monarquia. Muitas expressões derivadas
dessas formas funcionam também como fórmulas de encerramento dos vários gêneros de
textos produzidos naquele período. Fraseologias como por Sua Majestade Fidelíssima que
Deus guarde, ou Deus guarde Vossa Majestade muitos anos, ou aos pés de Vossa Majestade
o mais humilde dos servos delimitam o lugar de cada um na hierarquia, em que o rei ocupa o
lugar mais alto e sua feição se estende por todo o território de seu reino.
Matriz: E a razão da [x] consiste em que (y)
UF: E a razão de [sua querela e denúncia] consiste em que (estando ela querelante...)
Pivô: sua querela e denúncia
UF variante 1: E a razão de [sua querela] consiste em que (sendo na noite de vinte...)
Pivô: sua querela
UF variante 2: E a razão de [sua querela e denunciação] consiste em que (sendo na noite do
dia...)
Pivô: sua querela e denunciação
UF sinonímia 1: E a razão de [sua queixa e denúncia] consiste em que (sendo em um dos
dias...)
Pivô: sua queixa e denúncia
UF variante 1: E a razão de [sua queixa] consiste em que (sendo na manhã do dia...)
Pivô: sua queixa
UF variante 2: E a razão de [sua denúncia] consiste em que (sendo o denunciante...)
Pivô: sua denúncia
UF sinonímia 2: E a causa de sua [querela] consiste em que (sendo na noite do dia....)
Pivô: querela
UF sinonímia 3: E o motivo de sua [queixa] consiste em que (tendo o suplicante uma....)
334
Pivô: queixa
Definição: Motivo do crime praticado contra o querelante que justifica sua denúncia.
Contexto 1: ea rezaõ da[Sua Querella, eDenúncia] por que vindo oSuplicado para a |
caza deSua Madrasta, moradoura no Cambeba | junto deMeçejana dotermo desta Villa
nanoite do | dia primeiro deJaneiro do prezente anno demil | oito Centos, etres <L.39, A. 5, l.
1923, p.54>
Contexto 2: earazaõ da[sua queixa, edenuncia] Conciste, que es | tando o querellante manço
epa | cifico emsua Caza, o querellado || 17v O querelladode propozito, eCazo pen- | çado fora
aportado querellante em | huadas noites do Corrente mes deSe | tenbrodeste anno <L. 64, A.8,
l.16-19, p.167>
Contexto 3: earezaõ | da[Sua querella]Consiste emque Sendo nanoite de | vinte equatro
domes deJulho deste prezente anno de | mil oito Centos edous, estando oSuplicante com sua |
mulher dormindo em Caza do Reverendo Padre (...) <L. 39, A. 2 , l. 22-25, p.48>
Contexto 4: e arazaõ de [sua queixa], e | denuncia consiste que ten- | do debaixo de seu patrio
poder a | sua filha de nome Maria menor | de dezacete annos, e criando-a com | todo o recato
para acazar segundo | seu Estado econdicçaõ <L. 33, A. 13, l.17-20, p.130>
Contexto 5: eacauza | de[sua querela] aSeguinte = Tendo | aquerelante aquela suafilha
(...) emSeo poder, administraçaõ | ecompanhia, etratando dedar-lhe | aboa educaçaõ, euiuendo
dita sua | filha com honrra, honestidade <L.33, A. 11, 19-21, p.123>
NL: O pivô da UF e de suas formas variantes constitui-se pela unidade terminológica (UT)
ou pelas colocações, combinações de duas palavras lexicais de conteúdo. Nas ocorrências
destacadas dois substantivos de valor semântico equivalente ou sinonímico. Na segunda parte
das UFs se coloca o motivo da queixa, que constitui uma narrativa extensa, dependendo de
cada crime. O verbo introdutório é quase sempre empregado no gerúndio, o que caracteriza o
aspecto inconcluso, conforme Rocha (1998). Para Longo e Campos (2002), o gerúndio
também expressa valor permansivo, habitual e progressivo.
NH: Em cada petição é anotado um crime diferente que revela o quadro de violência da então
Capitania do Ceará. Conforme o quarto capítulo deste trabalho, apresentamos esse quadro em
que são anotados e contabilizados todos os 133 crimes anotados.
335
Matriz: Por cabeça de [x]
UF: Por cabeça de [sua mulher]
UF variante 1: Como cabeça de [sua mulher]
UF sinonímia 1: Como administrador de [sua mulher]
Definição: Ser representante ou procurador de uma mulher.
Contexto 1: homempar | do, Cazado, morador noTapebades | te termo, por Cabeça
de[suamolher] (...) <L.64, A17, l.1-2, p.189>
Contexto 2: aquem pello mesmo (...) foi dito que ellê Como Cabessa de[Sua mulher] |
Querelaua, eDenunçiaua perante ellê dito Juis <L.39, A. 18, l.14-16, p.80>
Contexto 3: (...) Como Ad‟me | nistrador de[suamolher] (...), moradores noTapeba, ter |
modestavilla <L.64, A.17, l.18-19, p.189>
NE: A palavra cabeça em uso na UF tem seu significado etimológico de chefe, dirigente
ou administrador. O marido fala pela esposa como seu representante, como chefe da família.
NH: Dos crimes arrolados nos Autos de Querela a maioria é praticada por homens, ou seja,
183 casos que correspondem a 89,7% . Entretanto, as mulheres também têm participação em
atos criminosos, em 21 ocorrências ou 10,3%. na posição de querelantes ou vítimas,
uma frequência maior do sexo feminino, pois em 47 casos de denúncias as mulheres sofrem
ação violenta, correspondendo a 30, 5%. Pelos dados apresentados nos processos criminais,
vemos que as mulheres, no período de 50 anos de história colonial que compreende a nossa
investigação, estavam muito expostas aos perigos de atentado, principalmente aqueles
caracterizados como crimes de estupros, com o registro de 17 casos, e defloramentos, com
14 ocorrências. também casos de crianças e de senhoras vítimas da sanha sexual de
parentes.
NEncl.: Pela situação histórica e criminal, vemos que os maridos estão preocupados com a
situação de suas mulheres, representando-lhas perante a justiça. Por outro lado, a UF desperta
um conteúdo deveras machista, considerando uma leitura ambientada na sociedade hodierna.
Como cabeça de sua mulher ou como administrador de sua mulher pode significar que a
mulher não pensava ou não tinha nenhuma ação diante dos fatos e estava inteiramente à mercê
do marido que, como seu administrador, a conduzia e tomava as decisões por ela. Porém, não
336
podemos prescindir do momento histórico e linguístico em que a UF é enunciada, pois na
sociedade patriarcal o chefe da família era o homem e todas as decisões lhe competiam. O
marido era o cabeça da casa e da família, então, nada mais natural do que tomar a decisão de
defender sua esposa quando essa era vítima de um crime, representando-a perante os órgãos
judiciais para que a integridade da família fosse assegurada.
Segundo Martins (2004), até meados do século XVIII, nas classes elevadas e cultas da
sociedade burguesa europeia, a mulher tinha mais participação nas decisões sobre a vida
doméstica e cultural. Com o desenvolvimento industrial e mercantil, a mulher passou a um
papel de guardiã moral da família,
[...] pois seguindo a ordem natural das coisas, sendo o homem mais forte, ágil e
inteligente, estava voltado para o mundo da política e de negócios, enquanto a
mulher, seu complemento natural, por ser mais fraca, passiva e emocional, deveria
devotar-se ao espaço regenerador da alma masculina, o lar. (MARTINS, 2004,
p.41).
A UF que ora tratamos tem todo o sentido de existir e circular nos documentos que
estudamos.
Matriz: cabeça da [x] do (y)
UF: Cabeça da [comarca] do (Ceará grande)
UF variante 1: Cabeça da [comarca e província] do (Ceará)
UF variante 2: Cabeça da [comarca] da (Capitania do Ceará grande)
Definição: Local principal e centro de uma circunscrição, no caso específico, a sede da
comarca do Ceará e para a capital do Ceará, ou seja, a cidade Aquiraz, depois Fortaleza.
Contexto 1: aosdez | dias domez de Fevereiro dodito anno nesta Villa | deSaõ JozedeRiba
Mar do Aquiras Cabeça da | [Comarca doSeara Grande] em Cazasde mo- | rada <L.1460,
A.38>
Contexto 2: AosVente oito | dias domez deSetembro | demiloito centos evente | sete annos,
nesta Cida | deda Fortaleza Cabeça | da[Comarca, eProvincia | doCearaGrande], em Cazas de
Rezidencia do Ouvidor <L.1097, A.11, l.84-86, p.238>
Contexto 3: nesta Villa deSaõ Joze de | Ribamar do Aquiras Cabeça daComarca daCapitania |
do Seara Grande em cazas demorada doDou- | tor Dezembargador <L. 1461, A.32>
337
NL: A UF cabeça de comarca é dicionarizada em Aulete (1986) no verbete comarca com a
definição “sede da administração da comarca”, em oposição aos confins ou pontos
confinantes de povos limítrofes.
NE: A palavra capital vem do étimo latino caput capitis cabeça, donde se originou cidade
cabeça ou capital que designa a cidade mais importante que funciona como cabeça de um
estado ou de um país. É na capital que se concentram todos os poderes administrativos, onde
são tomadas as decisões e de onde emanam as resoluções para o corpo ou as demais partes do
país ou estado.
A palavra comarca designa a circunscrição territorial da ordem judicial sob a
responsabilidade de um juiz de direito.
NH: Até a primeira metade do século XVIII não havia no Ceará uma comarca. Todos os
negócios de justiça estavam a cargo dos ouvidores de Pernambuco e da Paraíba. O Conselho
Ultramarino, ouvindo as queixas do povo cearense, apresentou ao rei D. João V as
conveniências de se criar uma ouvidoria no Ceará. O rei acatou a proposta e, através de uma
Provisão Régia de 8 de janeiro de 1723, o Ceará passou a ter sua própria ouvidoria. Foi
nomeado para primeiro ouvidor do Ceará José Mendes Machado, no dia 3 de abril de 1723.
Essa ouvidoria teve sede na vila de Aquiraz, conforme Macedo (1990). Até 1816 havia apenas
um ouvidor no Ceará, quando foi criada a comarca do Crato pelo Alvará de 27 de junho
daquele ano. O último ouvidor do Ceará com jurisdição sobre toda a Capitania foi João
Antonio Rodrigues de Carvalho, informa Sturdart (1922). O primeiro ouvidor do Crato foi
José Raimundo do Paço de Porbem Barbosa, empossado em 17 de dezembro de 1817.
Matriz: [x] Ser useiro e vezeiro a [y]
UF: O (mesmo querelante) é useiro e vezeiro a [furtar cavalos e gados]
UF sinonímia 1: O (suplicado) é useiro e vezeiro a [pegar gados]
UF sinonímia 2: (Ele) é useiro e vezeiro a [cometer furtos]
Definição: Ser praticante contumaz dos mesmos crimes.
Contexto1: [...] eos fora ma | tar naditta serra, onde oscomera ea | lem destas duas rezes tem
noutros annos | pegado eComido outras delle (mesmo Que || 56v Querelante) ohé uzeiro
evizeiro em [pegar gados alheios eComellos] [...] <L.1460, A.26>
338
Contexto 2: [Sendo outro Sim (o dito Suplicado) Uzei | ro eVizeiro a[furtar gados alheios, e
Cometer outros mais delictos]; <L39, A.4, L.25, p.52>
Contexto 3: o (que- | relado) acomeu oqual he uzei- | ro e Vizeiro etem por [custume |
cometter semelhantes roubos] [...] <L.33, A 17, L.24, p.144>
NL: A expressão useiro e vezeiro pertence ao acervo da língua comum e é atribuída a alguém
que tem a prática de fazer uma coisa repetidamente. Conforme definição de (AULETE, 1986,
p.1973) “Ser useiro e vezeiro nalguma coisa, ter por hábito de fazê-la, costumar fazê-la
repetidas vezes”. Os dois adjetivos ocorrem sempre juntos, ligados pelo conectivo aditivo,
mas nunca em posição inversa por ser uma fraseologia com alto grau de idiomaticidade e de
ser de uso frequente da língua comum da época.
NE: Useiro vem do étimo latino usus, uso, hábito, daí o verbo usar e o adjetivo useiro através
do sufixo eiro com a ideia de intensidade, significando o que tem vezo ou costume de fazer
algo muitas vezes. Ser useiro e vezeiro a furtar, a matar, a estuprar ou fazer outros crimes.
Caracteriza alguém que cometeu tais crimes muitas vezes.
Matriz: Ser caso de querela na forma das [x]
UF: E por que é o presente caso de querela pelas [Leis do Reino]
Pivô: Leis do Reino
UF variante 1: Por que o referido caso é de querela na forma da [Lei do Reino]
Pivô: Lei do Reino
UF sinonímia 1: E por que o caso é de querela na forma das [Leis pátrias incorporadas e
extravagantes]
Pivô: Leis pátrias incorporadas e extravagantes
UF sinonímia 2: E por que o referido caso é de querela na forma da [ordenação Título
Cento, e dezessete, parágrafo primeiro]
Pivô: ordenação Título Cento, e dezessete, parágrafo primeiro
UF sinonímia 3: Tudo é o presente caso de denúncia, digno de exemplar Castigo pelas
[Ordenações do Reino, e mais Leis Extravagantes]
Pivô: Ordenações do Reino, e mais Leis Extravagantes
UF variante 4: E por que semelhante caso é de querela na forma da [ordenação Livro
quinto, Titulo cento, e dezessete e parágrafo primeiro]
Pivô: ordenação Livro quinto, Titulo cento, e dezessete e parágrafo primeiro
339
Definição: Ato de caracterização do crime como querela por estar previsto nas Ordenações
Filipinas no Livro V, que trata das causas penais.
Contexto 1: eporque oreferido | Cazo hedequerella naformada | [ordenaçaõ, Titullo Cento,
edesace- | te, paragrafo primeiro], o Supli- | cante querellados ditos delinque | ntes
paraemmendadelles, Ex- | emplosdeoutros, Satisfaçaõ delle | querellante, eda Republica |
offendida <L. 64, A.7, l.32-3, p.165>
Contexto 2: eporque heoprezente Cazo dequerela pe | las [Leis do Reino] eestá dentro doanno
para | ter aaSaõ deoproduzir nestes termos <L.1460, A. 35>
Contexto 3: eporque ocazo he dequerella nafor | ma das[Leys Patrias incorporadas,
eextravagantes] quer osuplicante dar verdadeira Quere | la dos ditos raptantes para emenda
delles, | exemplo deoutros, satisfaçaõ doSuplican | te, edaRepublica offendida <L.1460, A.43>
Contexto 4: eporque semelhante cazo he | dequerella naforma da | [ordenaçaõ Livro quinto,
Titullo cento, edezacete parragrafo primeiro], querella, edá ver | dadeira denuncia dosu |
plicado <L.1097, A. 10, l.29-31>
NL: O pivô terminológico em todos os casos se refere às leis, quer seja o Código Filipino ou
outras leis complementares denominadas de extravagantes, portanto referem-se à linguagem
jurídica.
NH: Todas as leis mencionadas nas UFs anteriores destacadas. Trata-se das Ordenações
Filipinas, código de leis elaborado por Felipe I de Portugal e publicado em 1603, que rege a
vida dos cidadãos de todos os reinos de Portugal. Especialmente o Livro V, que trata das
questões criminais, define e justifica um crime, estabelece o que constitui caso de querela,
determina os procedimentos para se querelar e quais as penas impultadas para cada tipo de
criminalidade. As leis extravagantes de que falam os documentos são todas as leis
complementares publicadas após as Ordenações ou Código Filipino. Conforme De Plácido e
Silva (2006), extravagantes são todas as leis que não estão incorporadas às codificações.
Matriz: Pedir a [x] (y)
UF: Pede a [vossa mercê senhor Juiz ordinário] (seja servido mandar que distribuída...)
UF variante 1: Pede a [vossa mercê senhor juiz] (lhe faça mercê mandar que distribuída...)
UF variante 2: Pede ao [Senhor Juiz ordinário] (Seja Servido mandar que distribuída...)
340
UF variante 3: Pede a [vossa senhoria] (seja servido mandar que distribuída...)
UF variante 4: Pede a [vossa senhoria ilustríssimo senhor Doutor Desembargador Ouvidor
Geral, e Corregedor da Comarca] (mande que distribuída...)
UF variante 5: Pede a [vossa mercê Senhor Doutor Juiz de fora] (seja servido mandar que
distribuída...)
UF variante 6: Pede a [vossa senhoria ilustríssimo Senhor Doutor Ouvidor Geral pela Lei]
(seja servido mandar que distribuída...)
UF variante 7: Pede a [vossa mercê ] (lhe faça mercê mandar que distribuir...)
Definição: Ato de pedir deferimento por parte do querelante à autoridade judicial para
aceitar sua denúncia prestada e distribuí-la às justiças, com o intuito de que haja apuração
dos fatos e reparação do crime.
Contexto 1: Pede a[Vossa merçe Senhor Juiz ordinario] (Seja Servido man | dar que
destribuida ) esta eJurando, [[jurando]] Selhe | tomeaSua querella, por Ser cazo disso[...] <L.
39, A. 1, l.33-35, p. 46>
Contexto 2: Pede a[Vossa merçe Senhor Juis ordinario] (Seja Servido mandar que
distribuída) | esta, jurando se lhe tome sua querella <L. 39, A .3, l. 47-49, p.50>
Contexto 3: Pede a [uosa Senhoria Illustrissimo Senhor Doutor Dezembargador Ouuidor
Geral, eCorregedor daComarca] (SeSirva | mandar que destribuida esta) | ejurando as
querelante Selhe | tome sua querela <.33, A. 11, l.35,38, p.123>
Contexto 4: Pede a | [vossa mercê] (lhe fasa merce mandar que destribuida,) ejurando | Selhe
tome Sua querela <L.1461, A. 1>
Contexto 5: Pede a[uosa Senhoria Illustrissimo Senhor Doutor Dezembargador Ouuidor
Geral, eCorregedor da Comarca], mande que destribuida esta, eju | rando aquerelante
Selhetome Sua que | rela, <L. 33, A.4 l. 63-65, p.98>
NL: As formas de tratamento variam conforme a quem se dirija o pedido. Assim, vossa
mercê é geralmente direcionada ao juiz ordinário, vossa senhoria, ao ouvidor e corregedor.
Há também formas diferentes de fazer os pedidos, como: tomar ou aceitar a denúncia,
distribuir a querela e, por fim, fazer mercê, isto é, fazer o favor de aceitar a querela. Todas
essas estruturas são de polidez e, como afirma Tagnin (2005), geralmente a parte inicial é fixa
e o restante varia de acordo com a situação. É justo enfatizar a informação, pois, como
vemos, a base da matriz apresenta fixidez. São expressões de uso dos escrivães e tabeliães
341
e não dos querelantes, e expressam alto grau de respeito para com as autoridades. Neste
momento do texto o contato direto com a autoridade a quem é dirigida, em forma de
súplica para que aceite a denúncia. O verbo em terceira pessoa o tom mais formal e
caracteriza a linguagem dos requerimentos modernos. A UF se classifica com fórmulas
rotineiras apresentadas por Corpas Pastor (1996) e exprime uma exortação. Na classificação
dessa autora, as fórmulas rotineiras diretivas de exortação são caracterizadas por uma
projeção no futuro e na responsabilidade do receptor. Constitui um ato de fala, cuja força
ilocucionária é persuadir e exortar e tem o objetivo de que o receptor faça algo. Faz jus a essa
taxionomia, pois os emissores aqui, os querelantes, são pessoas vitimadas pela violência que
dirigem-se respeitosamente às autoridades máximas das vilas ou da Capitania do Ceará, como
representantes da Coroa portuguesa na colônia, em forma de exortação, para que atendam ao
seu pedido de justiça. Pragmaticamente essa UF tem uma forte força, não de persuadir, mas
de suplicar humildemente pela aplicação da lei.
NE: A palavra mercê apresenta aqui o sentido pleno e original de favor e graça que alguém
suplica receber de seus superiores.
Matriz: Mandar passar ao [x] para [y]
UF: mande passar ao [rol dos culpados]
Pivô: rol de culpados
UF sinonímia: Mande lançar ao [rol dos culpados]
Pivô: rol de culpados
UF varainte: Mande lançar seus nomes ao [rol de culpado]
Pivô: rol de culpado
Definição: Ato de pedir do querelante às autoridades judiciais para que o querelado seja
pronunciado e tenha seu nome relacionado no livro dos culpados, a fim de que seja preso e
os processos possam prosseguir até a fase final, culminando com a sentença.
Contexto 1: e o mande passar ao [rol deCulpados], e | as ordens nesesarias para Ser prezo
com | todo oSegredo deJustissa <L. 1461, A. 48>
Contexto 2: mande lançar no [Rol dos Culpados], passando-se as ordens | necessarias para
serem prezos com | todo oSegredo deJustiça <L. 33, A. 16, l. 59-60, p. 141>
342
Contexto 3: eomande lansar [noroldos Culpados] epasar asordens necesarias comtodo
osegredo deJustissa <L.1460, A.46>
Contexto 4: eprovado | quanto baste, mande Lançar | seosnomes [aoRol dos Culpados], epa |
ssarasOrdens necessarias para se | remprezos <1097, A. 9, l. 55-57, p.230>
NL: A estrutura linguística do pivô se constitui por uma colocação. Esta UF tem pouca
recorrência nos autos, entretanto tem função informativa relevante, pois nos remete ao Livro
de Rol de Culpados que constitui uma fonte importantíssima, complementar aos autos.
NE: Rol é uma palavra que deriva da ngua latina rotulus e designa rolo. Aqui é empregada
no sentido de relação ou lista dos nomes das pessoas culpadas em atos delituosos. Quando os
nomes eram lançados no rol de culpados, indicava que o juiz reconhecia os denunciados
como culpados nas ações contra eles apresentadas e o processo poderia correr até a resolução
final.
NEncl.: O Rol de Culpados é uma peça do processo criminal escrita em separado dos Autos
de Querela, constituindo um códice à parte. Esse documento trata da pronúncia dos
denunciados pelo juiz, os quais podem ser presos e libertos mediante um alvará de soltura.
No entanto, é necessária a pronúncia do querelado porque garante o reconhecimento do crime
por parte da justiça. Lançar o nome de um criminoso no rol de culpados é o caminho tomado
para que o processo tenha prosseguimento até sua resolução, que culmina com a condenação
ou perdão da pessoa indiciada. Se os processos aqui estudados seguem até a sua resolução é
uma dúvida que não conseguimos resolver, pois não encontramos, no Ceará, processos
terminados, apenas as três etapas, o Auto de Querela, o Sumário de Testemunhas e o Rol de
Culpados, que se complementam, constituindo a etapa primeira dos processos que deveriam
existir. Dos autos investigados aqui, apenas parte apresenta os três documentos, visto que na
maioria não sumário de testemunha nem rol de culpados. Tudo acaba onde começa, ou
seja, no auto. No Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC) há somente um livro de Rol de
Culpados indexado, significa dizer que não temos informações completas de todos os
denunciados nos autos que analisamos. Daqueles que foram pronunciados, alguns foram
soltos por intermédio de alvarás, um querelado morreu na cadeia e outros continuaram presos.
Os termos de abertura e de encerramento do livro de Rol de Culpados, que transcrevemos
abaixo, servem para ilustrar e explica para que serve o livro, informando sobre o local, a data
e o escrivão.
343
[Termo de abertura]
Este livro hede servir para rol de culpados para
oEscrivaõ docrime da Vila da Fortaleza. Vila doAkiras
12 deFevereiro de 1794
JozeVitorino daSilveira
[Termo de encerramento]
Contem este Livro sincoenta ehuma folhas, que vaõ
rubricadas por mim com a rubrica do que
uso Silveira epara que conste fis este termo que
asignei Vila do Akiras 12 de [de] Fevereiro
de1794
Jozé Victorino daSilveira
(APEC, 1793, Livro 9, fl. 1r).
Matriz: Mandar passar [x] contra (y)
UF: Mande passar [mandado de prisão] contra o (querelado)
Pivô: mandado de prisão
UF sinonímia 1: Mande passar [mandado de captura] contra o (querelado)
Pivô: mandado de captura
UF sinonímia 2: Mande passar [mandado para ser embargado] contra a (querelada)
Pivô: mandado para ser embargado
UF variante 1: Mande passar [mandado] para ser preso
Pivô: mandado
UF sinonímia 3: Mande passar [as ordens de prisão] contra o (...)
Pivô: as ordens de prisão
UF sinonímia 4: Mande passar [as ordens necessárias] para ser preso o(suplicado)
Pivô: as ordens necessárias
Definição: Ato de pedir de um querelante a uma autoridade judicial para que determine a
prisão de um querelado por meio de um mandado de prisão, ou seja, de um ato escrito para
que seja cumprida a diligência ali ordenada.
Contexto 1: eprovado que bas | te passar-sse [mandado deprisaõ] Contra o (delinquente) | e
recebera mercê <L. 39, A.11, l. 38-39, p.66>
344
Contexto 2: equeprovada | mande passar [ mandado para ser embargado] o Suplicado |
naprizaõ, visto ser prezo pella | ronda pello mesmo Cazo <L, 64, A, 2, l. 43-45, p.155>
Contexto 3: eProvada mandar | passar [as ordens deprizaõ] contra (o | Querelado) eRecebera
Mercé <L.33, A, 18, l. 41-42, p.147>
Contexto 4: eprovado mande passar [as | ordens necessárias] para (ser pre | zo o suplicado)
<L. 64, A 9, l.29-30, p.169>
contexto 5: eprovado quanto baste | lhe mande paçar [man | dado] Contra (os querella | dos )
para Serem prezos e | Sequestrados Seos bens | para pagamento das Cus | tas <L. 1097, A. 1,
l.31-33, p.194>
NL: Os termos mandado de prisão, mandado de captura e mandado de embargo, nestes
documentos, têm a mesma relação de significado e são usados como sinônimos. Sua
organização linguística constitui uma coligação, na classificação de Tagnin (2005).
Pragmaticamente, a UF estabelece a comunicação direta entre um querelante e a autoridade
judicial, cujo conteúdo é o pedido para uma ação que só pode ser emanada daquela autoridade
pelos poderes a ela investidos.
NE: Mandado tem origem latina, mandatum, do verbo mandare, que significa ordenar. Na
linguagem jurídica vários tipos de mandados: mandado de penhora, de busca e apreensão,
de citação etc. No Direito moderno esta ordem é dada por escrito de um juiz para um oficial
de justiça, a fim de que este pratique o ato determinado.
NH: Não em muitos autos há informação de que o denunciado já se encontre preso, e pede-se
para que seja conservado na cadeia. Em algumas ocasiões, estão foragidos, então é pedido o
mandado de prisão. Não sabemos que resoluções são dadas, se são julgados e punidos, pois
não encontramos a conclusão dos processos nem sabemos se existiram.
Matriz: Proceder [x] contra o (y)
UF: Proceda a [sumário e captura] contra (o suplicado)
Pivô: sumário e captura
UF variante 1: Proceda o [sumário] contra (os querelados)
Pivô: sumário
UF sinonímia 1: Proceda [a captura] contra (o suplicado)
Pivô: captura
345
Definição: Ato de pedir de um querelante à autoridade judicial para que determine a prisão
de um querelado.
Contexto 1: eprouado oquebaste Seproseda [a sumario eacaptura] contra (o suplicado) |
paraoque já oferesse as testemunhas <L. 1460, A.17>
Contexto 2: eprouadoquan | to baste Seproceda [aSumario eCaptura] contra (osuplicado) <L.
1460, A. 20>
Contexto 3: eprouado oquebaste Seproseda [oSumario] contra (osquerelados) <L.1460, A.
28>
Contexto 4: eprovado quebaste pello Sumario de | testemunhas oferecidos amargem Sepro |
ceda [aCaptura] Contra (osuplicado) <L.1460, A.36>
NL: Esta UF revela a fala direta do querelante com a autoridade por meio do verbo principal
da frase que expressa súplica. Os dois elementos que compõem o pivô terminológico têm
valor semântico equivalente, sendo desmembrados sem alteração de significado.
Matriz: Mandar passar [x] para a justiça
UF: Mande passar [cartas precatórias] para a justiça
Pivô: cartas precatórias
UF variante 1: Mande passar [precatórias] para a justiça
Pivô: precatórias
Definição: Ato de pedir de um querelante à autoridade judicial de sua jurisdição para
solicitar ao juiz de outra jurisdição o recolhimento de um denunciado que se encontra
foragido, com a finalidade de que este seja preso.
Contexto 1: eprovado que | seja lhemande passar [Precatoria] para as Justiça davillade |
Sobral para ser prezo, eremetido para | aCadeia desta Fortaleza paraser | Castigado <L. 64, A,
5, l. 37- 39, p.161>
Contexto 2: eprovada quanto baste | eJurando o querellante selheto | me sua querella sepasse
[precatória] para o indicado fim [...] <L, 64, A, 8, l. 26-28, p.168>
346
NL: O pivô se altera por meio de supressão de um dos seus elementos, não alterando o
significado.
NE: Precatório deriva de precatorius, de precari (rogar ou pedir), conforme De Plácido e
Silva (2006). Expressa um pedido por meio de carta ou outro documento pelo qual um
órgão judicial solicita a outro a prática de ato processual que precise ser realizado nos limites
de sua competência territorial (GRANDE ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE).
NH: A carta precatória é passada nos casos em que o denunciado se encontra em outra
jurisdição ou em outra Capitania. No período colonial cada vila tinha seu juiz ordinário,
portanto, formava uma jurisdição diferente, sendo necessárias precatórias para transferir um
acusado que se encontrava em outra vila fora da que praticou um crime.
Matriz: Receber mercê
UF: receberá mercê
UF variante 1: E receberia mercê
UF variante 2: E recebida mercê
UF variante 3: E espera receber mercê
Definição: Ato de pedir deferimento de um querelante dirigido à uma autoridade judicial
para que aceite tudo o que foi apresenatdo em sua petição de querela.
Contexto 1: [...] para maior prova daprezente quarela em | que naõ pode oSuplicante conduzir
Senaõ | duas testimunhas = Receberá merce [...] <L. 1460, A. 49>
Contexto 2: [...] seja servido mandar que | destribuida esta petiçaõ ejuran- | do o Querelante
se lhe tome sua | Querela eDenuncia para effeito | deser punido o Querelado e para o | que
offerece as testemunhas amar- | gem desta doque Recebera Mercê [...] L.33. A.17, L.29-32,
p.144>
Contexto 3: [...] seja Embargado naprizaõ emque | Seacha, eofferece astestemunhas seguin- |
tes = Espera receber mercê [...] <L.1097, A.6. L.56-57, p.218>
Contexto 4: [...] eofferece | para testemunhas as pessoas abai | xo deClaradas, Receberia
Merce = [...] <L.64, A.7, L.46-47, p.165>
[contexto 5: ...] ePedevossa | mersse lhefassamersse assim o mandar E | recebera mersse [...]
<L.1460, A. 24>
347
NL: Esta é uma fórmula discursiva rotineira de encerramento da peça petição, na
classificação de Corpas Pastor (1986). Conforme Benson, Benson e Ilson (1986), sua
estrutura é constituída de um verbo + nome/pronome formando uma colocação. Encerra-se
o registro da petição de querela e encaminha para a peça seguinte, que é a relação das
testemunhas.
NE: Mercê deriva do latim, merces, significa paga, soldo, salário, prêmio, recompensa, mas
também favor, graça, benevolência. Era comum os súditos de um rei pedir-lhe mercê. Said Ali
(2006, p. 108) diz que mercê denota ora ato de bem fazer, ora a vontade de quem pratica”.
Na linguagem forense, afirma De Plácido e Silva (2006), a expressão espera receber mercê é
usada no sentido de deferimento, aplicado o fecho dos requerimentos. É esse sentido que é
aplicado no final da petição como uma forma de fechamento, cuja função discursiva é pedir o
favor de atender o que é pedido. Na linguagem hodierna, corresponde a pedir deferimento.
7.2.5 Peça 5 Relação das Testemunhas
Matriz: [x] com casta [y]
UF: [homem] com casta [da terra]
UF variante 1: (...) com casta [da terra]
Definição: Qualidade de ser de uma pessoa quanto à cor da pele ou origem étnica, que a
identifica como pertencente à raça nativa do Brasil.
Contexto 1: testemunhas primeira (...) Cazado Com Casta [daterra] <L.39, A.3, l.51-52,
p.50>
Contexto 2: Segunda (...) Solteiro Com Casta [daterra] < L. 39, A. 3, l.52-53, p.50>
NE: Casta, no seu sentido amplo, significa raça, grupo, uma geração, povo ou família
considerada em seus caracteres hereditários. Classe que forma uma das partes da sociedade
hierarquicamente organizada. (ENCICLOPÉDIA DELTA LAROUSSE). Indica também
classificação social ou um conjunto de pessoas com características ou ocupações semelhantes,
conforme Aulete (1986). Casta, usada nos Autos de Querela, tem sentido mais restrito, através
da designação com casta da terra, muito usada para qualificar algumas pessoas citadas.
348
Refere-se, provavelmente, a casta dos nativos brasileiros, ou seja, ao grupo ou raça indígena.
Portanto, a denominação com casta da terra designa uma pessoa com ascendência em nativos
brasileiros.
Matriz: [x] branco com casta [y]
UF: [homem] branco com casta [da terra]
UF variante: (...) branco [da terra]
Definição: Qualidade de ser de uma pessoa quanto à cor da pele ou origem étnica, a qual se
caracteriza pela miscigenação, ou seja, é uma pessoa branca, mas misturada com o nativo
brasileiro.
Contexto 1: (...) branco com | Casta [da terra] morador || Em Maranguape taõ | bem Cazado
<L. 33. A.14, l.37-39, p.135>
Contexto 2: Testemunha | primeira (...) branco | [daterra] <L. 64. A. 17, l.37-38, p.190>
NL: Aqui a qualificação é especificada, ou seja, branca, mas com casta da terra. Podemos
entender, pela denominação, que se trata de um indivíduo de descendência europeia, mas
com ascendência brasileira?
Matriz: [x] com casta de [y]
UF: [homem] com casta de [pardo]
Definição: Qualidade de ser de uma pessoa quanto à cor da pele ou origem étnica, que a
identifica como pertence à casta ou ao grupo de pardos do território brasileiro.
Contexto 1: (...) ho | mem [comcasta depardo] morador | nafazenda do Papucû deste termo
<L.1460, A.3>
Contexto 2: (...) mulher Sol | teira moradora nestavila [com Castadeparda] <L.1460, A.8>
NH: Os pardos não constituíram a maioria das pessoas citadas no autos, embora o povo
brasileiro, na atualidade, seja predominantemente pardo.
349
Matriz: [x] com casta de [y]
UF: [homem] com casta de [cabra e de índio]
Definição: Qualidade de ser de uma pessoa quanto à cor da pele ou origem étnica, cuja
etnia resulta da mistura de cabra com índio, característico da miscigenação brasileira.
Contexto: (...) Omem Com Casta de[CabraedeIndio], aSisten | tes ou moradores na
Cabeseiras damesma | Rebeira doFigueredo <L.1461, A. 49>
NH: Cabra é definido por Houssais como um mestiço indefinido de negro, índio ou branco, o
de pele morena. Cabra é também uma posição social que caracteriza aquele que se coloca a
serviço de alguém como pistoleiro, capanga ou matador de aluguel, que não é o caso tratado
nos autos.
Matriz: [x] com casta de [y
UF: (...) com casta de [índio]
Definição: Qualidade de uma pessoa quanto à cor da pele ou origem étnica, caracterizada
como nativa brasileira.
Contexto 1: (...) homem Cabra e | (...) com Casta de [Indio] aSistentes ou morado | res nas
Cabeseiras damesma Ribeira <L.1460, A.49>
NH: A participação de índios nos Autos de Querela é insignificante em relação ao que
poderia ocorrer.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [sua agência]
UF variante 1: vive de [suas agências]
UF variante 2: vive de [suas lícitas agências]
Definição: Ter como meio de vida diversos trabalhos temporários e incertos, sujeitos às
circunstâncias.
350
Contexto 1: (...) pardo Solteiro morador nesta vila quevivede[Sua agencia] dedezoito annos
pouco mais ou menos <L. 1461, A.3>
Contexto 2: (...) ho |membranco cazadomorador nodito | Lugar uiue de[suas agencias] <L.
1460, A.19>
Contexto 3: > (...) pardo cazado | morador em Santa Quiteria no lu | gar chamado Calabaças
que vive de | [suas licitas agencias] <L.33, A,12, l.i5-17, p.126>
NL: Constitui esta UF uma colocação formada do verbo mais preposição. A expressão é
registrada por Aulete (1986) no verbete agência. É uma UF de uso na língua comum no
período em que os autos foram escritos, mas parece ter se tornado um arcaísmo no português
atual
NE: O termo agência tem origem no verbo latino agĕre, que significa agir ou fazer. Viver de
sua agência indica, também, fazer por si mesmo para conseguir o seu sustento. Indica uma
pessoa sem ocupação certa que trabalha aqui e ali em qualquer atividade. O termo, atualmente
no português brasileiro, pode corresponder a “viver de bicos”.
NH: Nos Autos de Querela há muitas pessoas citadas cuja forma de ganhar a vida é incerta ou
de suas próprias agências, ou seja, pelo esforço de conseguir qualquer espécie de serviço,
quando houvesse. Demonstra isso uma realidade social bastante complicada, em que uma
grande parcela da população das vilas do Ceará não tinha profissão definida, não apresentava
qualquer especialidade de serviço e provavelmente era mal remunerada, contribuindo com
isso, para a manutenção da pobreza.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seu negócio]
UF variante 1: vive de [seus negócios]
Definição: Ter como meio de vida o próprio negócio através da compra e venda de algum
tipo de mercadoria.
Contexto 1: (...) homem branco emorador no | mesmo sitiodaBarra declarado que | [vive
deseos negócios ] <L.1460, A.1>
351
Contexto 2: (...) Cazado morador no mes | mo lugar Com Casta depardo queuiuede | [Seu
negocio] <L.1460, A15>
NEncl.: o é explicitado que tipo de negócio a pessoa indicada no documento desenvolve.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seu negócio de fazendas secas]
Definição: Ter como meio de vida o seu próprio negócio de compra e venda de vários
gêneros secos e utensílios.
Contexto 1: (...) branco, Soltei | ro morador nestaVilla, vive de[Seunegocio de Fazendas
Secas] <L.1460, A.29>
NE: Secos, no plural, indica mantimentos sólidos ou secos, por oposição a molhados
(líquidos). Assim, armazéns ou fazenda de secos representa um comércio de produtos
variados.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seus negócios de fazendas secas e molhadas]
Definição: Ter como meio de vida o próprio negócio de compra e vendas de produtos
variados, como gêneros alimentícios, utensílios e bebidas ou outros líquidos.
Contexto 1: (...) branco Solteiro viue de | [Seus negocios defazendas Secas molhados] nesta |
Villa <L. 1460, A.30>
NEncl.: Em oposição a secos, os produtos molhados incluem bebidas e outros líquidos.
Produtos secos e molhados equivalem ao conjunto de vários gêneros alimentícios, utensílios e
bebidas em geral.
Matriz: Viver de [x]
UF: vive de [seus gados]
UF variante 1: vive de criar [seus gados]
352
UF variante 2: vive de criar [gados]
Definição: Ter como meio de vida a criação de gados, usufruindo dos seus produtos
derivados.
Contexto 1: (...) branco Cazado | morador na Ribeirado Curú, | vivede [seus gados] <L.64,
A. 12, l. 49-50, p.177.>
Contexto 2: homem | branco morador nafazenda doSaco que | Vive deCriar [gados] <L.1460,
A. 24>
Contexto 3: (...) pardo disfarça- | do morador no mesmo lugar que uive de | criar [gados].
<L.33, A. 12, l.36-37, p.126>
Contexto 4: (...) pardo ca | zado morador naVila de Saõ Joaõ | do Principe vive de Criar
[seus gados] de idade desecenta e tres an | nos <L.33, A.13, l.35-36, p. 131>
NH: Pelo contexto histórico do Ceará em sua fase de ocupação, o gado foi a base de da
economia, quer de grandes rebanhos quer de poucas cabeças.
Matriz: vive de [x]
UF: vive de [seus gados e plantas]
UF variante 1: vive de [seus gados e agricultura]
UF variante 2: Vive de [seus gados vacuns e agricultura]
Definição: Ter como meio de vida a plantação de culturas diversas e a criação de gados,
principalmente de vacas e bois.
Contexto 1: (...) Cazado que[viue deSeos gados ePlantas] morador nos lagos <L.39, A.18,
l49-50, p.81>
Contexto 2: o Ca | pitaõ (...) | branco Cazado, morador noSpirito Santo termo desta Vila
[uiue de | seos gados] <L. 33, A. 1, l.70-71, p.85>
Contexto 3: (...) branco Ca | zado morador nas Arueiras [uiue deCriar gados] <L. 33, A. 3,
l.52-53, p.93>
Contexto 4: (...) branco Cazado morador pouco distan | te daSerra emCaxitorê (...) na mesma
serra vive | de[seus gados vacuns eagricultura] <L. 1460, A.46>
353
Contexto 5: (...) branco Cazado morador | noPilar uiue de[Criar gados[ = <L. 33, A. 6, l. 52-
53, p.106>
NL: Apesar de ter algumas diferenças quanto à forma, estas UFs apresentam a mesma relação
semântica, pois todas as atividades estão relacionadas ao cultivo da terra, e à criação de
rebanho de gados variados. Por essa razão, agrupamos-as em uma mesma entrada.
NH: No processo de colonização da Capitania do Ceará, foi introduzida a criação de gado
como principal meio de desenvolvimento econômico. Grandes porções de terras foram
distribuídas aos sesmeiros para o desenvolvimento da pecuária e esta passou ser a principal
fonte de nossa economia. Muitas outras atividades relacionadas à criação de gados são citadas
nos Autos de Querela como meio de vida das pessoas, como: vaqueiros, seleiros, curtidores
de couro, açougueiros etc.
Matriz: viver de [x]
UF: Vive de [seus gados grossos]
UF variante 1: Vive de criar seus [gados grossos]
Definição: Ter como meio de vida a criação de vários tipos de animais graúdos, como os
gados bovinos, cavalares, muares.
Contexto 1: (...) branco sol- | teiromorador no Salgado termo | da Villa deSobral vive deCriar
[seus gados grossos] <L.33, A.19, l.77-78, p.150>
Contexto 2: (...) homem branco Cazado morador | no Musquito termo desta Villa | uiue
deagricultura, edeSeos gados | grossos <L.33, A.1, l. 73-75, p.85-86>
Notas: NE: Segundo De Plácido e Silva (2006), os latinos denominavam de armantum os
gados grossos representados por animais graúdos como bois, cavalos e muares, e de pecus os
animais miúdos como os carneiros, os porcos, as cabras etc.
NH: A criação de animais gerou muitos conflitos entre os moradores do Ceará, pois os
crimes de roubos e furtos de gados que ocorriam no sertão eram motivo de muitas querelas,
denunciadas nos autos que estudamos. O roubo de gado das fazendas do Ceará era tanto que
levou o governador da Capitania, Antonio José Victoriano Borges da Fonseca, a lançar um
bando a respeito do assunto, como reproduzimos abaixo:
354
Registo do Bando que mandou lansar o
Senhor Tenente Coronel Governador a respeito
dos ladrões degados
Antonio Jozé Victoriano Borges daFonseca Tenente Coronel de Infantariacom o
Governo daCapitania do Ceará grande por Sua MagestadeFidelíssima etecetera
Porquanto me constante por requerimento que mefizeraõ os Senhores defazendas
daRibeira do Aracatiasû deque exprimentaõ grande prejuizo nos Seos gados com
diminuisaõ nos Dizimos Reaes pelas muitas vacas, Bois, garrotes, ecavalos que se
mataõ e dispoem contra a vontade de seos donos pegando-se absolutamente no
Campo sem serem pedidos como sefosem Senhores delecom o frivolo pretexto de
darem outros de cujo delicto procede faltarem aos pagamentos daFazenda Real. E
porque é daminha obrigam
com Governador desta Capitania
dar providencia a
este prejuizo inconsideravel para sucego da Republica. Ordeno aoComandante
daquela Ribeira que tendo noticia de quaes quer gados, Vacuns, ecavalares que se
pegarem sem ordem expresa deseos donos, fasa prender, e remeter prezos para
acadeia desta Fortaleza
a todos que seacharem culpados nestes absurdos, efurtos
para dela serem entregues a Justa e punidos conformes o que dispoem as Leys do
Reino, e o naõ da zendo por sua omisaõ ficar responsavel como consentidor dos
referidos furtos. E os comandantes
das Companhas deAuxiliares eCavalaria dem
tudo auxilio daMaõ Militar que lhefor requerido pelo mesmo Comandante da
Ribeira para inteira execusaõ deste Edital. E para que posa vir a noticia de todos os
moradores daFreguesia mandei pasar o prezente que sepublicará atoque deCaixa,
esefixará naMatriz damesma Freguesia Dado nesta Vila daFortalezadeNossa
Senhora daAsumpsaõ atrinta eum deMaio demil setecentos setenta enove sob meo
sinal e sinete de minhas Armas.// O Secretario digo do Governo osuscrevi Antonio
deCastro Viana// Antonio Jozé Victoriano Borges daFonseca // Estava oSelo// Enaõ
se continha mais nem menos em dito Bando que bem efielmente o fiz registar no
mesmo dia, eera ut supra (APEC, 1780, fl. 59v-60r).
NEncl.: A palavra gado designa, genericamente, todos os tipos de animais domésticos, como:
vacas, bois, carneiros, ovelhas, cabras etc. É mais empregado entre os criadores para designar
apenas gado vacum, ou seja, os bovinos. O gado cavalar corresponde aos cavalos, o gado
ovino refere-se aos carneiros e ovelhas, o gado caprino corresponde aos bodes e cabras, o
gado muar, aos burros.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [suas criações]
Definição: Ter como meio de vida a criação de várias espécies de animais domésticos.
Contexto 1: (...) branco Cazado mora | dor em Serafim Dias deste ter | mo que uiue de [Suas
Criaçoens] deidade que dise Ser de quarenta | eoito annos <L. 33, A.1, l.120-122, p.87>
NEncl.: Não se especifica o tipo de criação, mas provavelmente eram as mesmas que se
costumavam criar, como vacas, ovelhas, porcos e galinhas.
355
Matriz: viver de [x]
UF: Vive de [agricultura e gados grossos]
Definição: Ter como meio de vida o cultivo da terra para dela tirar o sustento e a criação de
animais graúdos, como bois, vacas, cavalos e outros.
Contexto 1: (...) homem branco Cazado morador | no Musquito termo desta Villa | uiue
de[agricultura, edeSeos gados grossos] <L.33, A. 1, l.73-75, p.85-86>
NH: A agricultura é uma atividade das mais citadas nos autos, assim como a criação de gado.
Os pequenos proprietários, além de trabalharem na terra, explorando-a através da lavoura,
criavam seus rebanhos, grandes ou pequenos, que, na verdade, era de onde vinha o sustento de
toda família. Ainda reina essa herança cultural no interior do Ceará, que gera a fonte principal
da economia nos pequenos municípios.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [suas plantas]
UF variante 1: vive de [ suas plantações]
UF variante 2: vive de [plantações]
UF variante 3: vive de [plantar suas lavouras]
UF variante 4: vive de [plantar]
UF sinonímia 1: vive de [suas lavouras]
UF variante 1: vive de [sua lavoura]
UF sinonímia 2: vive de [agricultura]
Definição:Ter como meio de vida a prática de lidar com a terra e dela tirar os gêneros
alimentícios, como feijão, milho, arroz, mandioca, dentre outros que garantem a alimentação
de toda família e algum dinheiro advindo da venda desses produtos.
Contexto 1: Testemunhas (...) Cazado que viue de[Plantar] emorador na | Serra deSanta
Anna <l. 39, A.18, l48-49, p.81>
Contexto 2: (...) Cazado que viue de[Plantas] emorador noslagos <L.39, A.18, l. 50-51,
p.81>
356
Contexto 3: (...) cazadomorador nafazenda das lon | tras quevive de[suaslavoiras] <L.1460,
A.4>
Contexto 4: (...) branco Cazado morador no Can | gati termo daVila deCampo maior | uiue
de[agricultura] <L.33, A. 1, l.71-73, p.85>
Contexto 5: (...) branco Cazado morador | no Quixoso, uiue de[lauouras] <L.33, A. 6, l.55-
56, p.106>
Contexto 6: (...) pardo Cazado mora | dor na Beruoca, uiue de[plantar] <L.33, A.2, l.49,50,
p.90>
Contexto 7: o Capitaõ | Comandante (...) branco Cazado, morador no Sitio xamado Pedra
furada daSerra da Be | ruoca termo desta Vila, e uiue de[agricultura, egados] <L. 33, A.5,
l.65-68, p.103>
Contexto 8: (...) com casta da ter | ra cazado, morador no muriti apu que vive
de[lavouras] | deidade devinte eoito annos pouco mais ou menos <L.1461, A. 3>
Contexto 9: Segunda (...), mamaluco Cazado morador | noCoCo uiue de[Suas lauouras]
<L.39, A. 8, l.42-43, p.60>
Contexto 10: (...) Cazado morador no Co- | co vivede suas [plantaçoens] <L.64, A.14, l.39-
40, p.182>
NH: A maioria da população cearense, no princípio da ocupação da Capitania do Ceará e no
período aqui estudado, vivia das atividades do campo, cultivando a agricultura de
subsistência. Essa prática ainda é comum no interior do Ceará nos tempos modernos, em que
grande parte das famílias sobrevive de pequenas roças, plantando os gêneros básicos da
alimentação que lhe garante, em anos de chuvas, o sustento no período de um ano até a
chegada da próxima safra. Na linguagem hodierna, esta prática vem sendo denominada de
agricultura familiar.
Matriz: viver da [x]
UF: vive da [arte de cirurgia]
Definição: Exercer a profissão de cirurgião.
Contexto 1: o Doutor (...) branco, uiuuo morador nesta | uilla vive da[arte deCerurgia] <L.
1460, A.22>
357
NH: Os cirurgiões eram os profissionais que cuidavam das pequenas cirurgias e estavam
numa escala inferior aos físicos, por sua vez, superior aos barbeiros, que eram leigos de
conhecimentos científicos, mas na prática atendiam a população na extração de dentes e de
outros serviços. Martins (2004) apresenta uma trilogia hierárquica de profissionais da saúde
em que ocupa o primeiro lugar o físico, depois o cirurgião e, por fim, o boticário. Vale dizer
que esse último era responsável pela fabricação dos remédios nos tempos coloniais
brasileiros. A autora chama cirurgião barbeiro os que tinham a prática de lidar com o corpo.
“Geralmente, as práticas que requeriam contato com o corpo eram atribuições dos cirurgiões
barbeiros, vistos com desprezo pela elite médica dos físicos”. (MARTINS, 2004, p.71). Nas
pequenas vilas do Ceará no período atinente aos séculos XVIII e XIX, o campo de atuação
estava aberto para os barbeiros, que atendiam a população fazendo pequenas cirurgias,
extraindo dentes e fazendo a barba. Os cirurgiões eram raríssimos naquele momento histórico
da Capitania do Ceará, mas no final do século XVIII sabemos da existência de um na Vila de
Sobral, que é muito citado nos autos. Barão de Studart (2004), em seus documentos,
notícia de outro cirurgião atendendo na Vila de Quixeramobim. Na Vila de Aracati vivia o
piemontês Jose Baltazar Augeri, cujo nome aparece várias vezes nos Autos de Querela como
testemunha. Esse cirurgião também é citado nos autos dos exames de vistoria.
A carência de médicos (físicos) ou de cirurgiões aprovados era tanta que, para sanar os efeitos
de uma epidemia de febre no final do século XVIII, no norte do Ceará, veio do Recife uma
comissão chefiada pelo médico João Lopes Cardoso. No relatório apresentado ao Capitão-mor
general governador de Pernambuco, o médico fez severas críticas à falta de atendimento à
população, reclamando da falta de cirurgiões aprovados nessa Capitania.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seus soldos]
Definição: Exercer a profissão de militar prestando serviços ao Estado. O salário pago por
esse serviço denomina-se soldo.
Contexto 1: (...) sol | dadopago deste prezidio solteyro que vive de[seos soldos] <L. 1461,
A. 16>
NE: A palavra soldo vem do étimo latino solidus, que significa aquilo que tem resistência,
que é firme, concreto e real. Em sentido amplo designa o pagamento de remuneração por
358
qualquer serviço. No sentido restrito, ao qual a UF se refere, designa o pagamento dos
militares. Os soldos eram pagamentos dos soldados e, em geral, de todos os militares.
NH: É importante anotar que no período colonial a organização militar era constituída pela
primeira linha ou tropa regular e dela fazia parte a maioria de regimentos de Portugal. Eram
os únicos oficiais que recebiam soldos ou paga de salários. Em segundo lugar estavam as
tropas auxiliares ou milícias e, por fim, os corpos das ordenanças.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [se alugar]
Definição: Ter como meio de vida o trabalho alugado em diversos serviços temporários.
Contexto 1: (...) pardo | solteiro morador noLugar da | Uruburatama que vive de [se Alugar]
<L. 33, . 15, l.28-29, p.137>
Contexto 2 : Manoel detal mamaluco, que | vive de[sealugar] <L.64, A.4, l.32, p.159>
Nota: NEncl: Viver de se alugar correspondia ao que trabalhava por diária, principalmente
na agricultura e em outros serviços, quando havia.
Critério: pertinência pragmática
Matriz: sem pivô terminológico
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [andar alugado e de lavouras]
Definição: Ter como meio de vida o trabalho alugado a outrem em diversos serviços que
garantem algum dinheiro, e a atividade de lavoura na terra, de onde se tira os gêneros
alimentícios básicos.
Contexto 1: (...) morador | em Villa Vissoza pardo Cazado vive | de [andar alugado, ede suas
Lavouras] <L.1097, A. 5, l. 68-69, p.213]
359
NEncl.: É muito comum ainda hoje os pequenos proprietários alugarem o trabalho de outros
homens que não têm um emprego certo para ajudarem na lida do campo e no cultivo da terra,
pagando por diárias os serviços pretados.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [suas pescarias]
UF variante 1: vive de [pescarias]
UF variante 2: vive de [ser pescador]
Definição: Ter como meio de vida a prática de pescar em rios, lagos, açudes ou no mar.
Contexto 1: (...) homem preto cazado mo | rador naBarra Grande | termo daVilla daGran | ja
Vive de[suas pescarias] | idade que deve ter Qua | renta annos <L. 1097, A.2, l.116-119,
p.201>
Contexto 2: (...) pardo sol | teiro morador noCa | jueiro termo daVilla | daGranja Vive de[ser
pescador] de idade que | dice ter Vinte hum An | nos <L.1097, A.2, l.136-138, p.201>
Contexto 3: (...) Soltei | ro morador na mesma | Praia e termo da Villa | da Granja que vive
de | [pescarias] <L.1097, A.2, .49-50, p.199>
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [sua fazenda]
Definição: Ter como meio de vida o cultivo de sua fazenda, ou seja, da criação de gados e
outros animais, e da prática de agricultura.
Contexto 1: (...) brancoCazado, vive de[sua fazenda] <L.64, A. 3, l.38-39, p.158>
NEnc.: Muitos pequenos fazendeiros viviam cultivando suas terras para dela tirarem os
produtos básicas e algum lucro, principalmente pelo cultivo do algodão, que durante muito
tempo foi o ouro branco do sertão cearense que impulsionou nossa economia. Na fazenda se
criam os animais que trazem grandes vantagens para os seus donos por fornecerem carne, leite
e seus derivados.
360
Matriz: Viver de [x]
UF: vive de [mercadorias]
Definição: Ter como meio de vida a compra e venda de mercadorias diversificadas.
Contexto 1: (...) homem branco Cazado morador | nesta Vila que vive de [mercadorias]
<L.33, A.16, l.68-69, p.141>
Contexto 2: (...) branco solteiro, morador naMe- | cejana, evivede [Mercadorias] <L.64, A. 7,
l.47-48, p.165>
NEncl.: Não há nos textos referência aos tipos de mercadorias, mas provavelmente são
produtos alimentícios.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seus bens]
Definição: Ter como meio de vida o uso de bens que lhes garantem o suficiente necessário
para a sustentação.
Contexto 1: (...) | omen branco Cazado uiue de[seos bens] | oque visto eouuido [...] <L.1461,
A.18>
NEncl.: Não há nos documentos referências aos tipos de bens. Pelo contexto histórico,
provavelmente são terras, gados e produtos agrícolas.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seu trabalho]
Definição: Ter como meio de vida o seu trabalho lícito em qualquer atividade que lhe
assegure o necessário para a sobrevivência.
Contexto 1: (...) homem Mulato Vive | de[seo trabalho] <L.1097, A. l. 36-37, p.209>
Contexto 2: (...) Cabra Solteiro morador na | fazenda doPilar damesma Ribeira do Figue |
redo, Vive de[Seu trabalho] <L.1460, A.49>
361
NEncl.: Não há referência nos documentos ao tipo de trabalho exercido. Parece-nos ser a
agricultura de subsistência que fornece alimento e renda ao sustento da família.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [seu trabalho e agência]
Definição: Ter como meio de vida o trabalho lícito em qualquer atividade e outros trabalhos
temporários que assegurem alguma remuneração.
Contexto 1: (...) branco Cazado morador | nesta Vila uiue de[Seo trabalho eagenCia] <L.
33, A.4, l.73-74, p.98>
NEncl.: Viver de trabalho e agência nos reporta a uma atividade autônoma no campo da
agricultura de subsistência e, também, em serviço prestado a outros de maneira incerta e
irregular, mediante uma remuneração, o que caracteriza a expressão viver de sua agência.
Matriz: viver de [x]
UF: Vive de [seu emprego]
Definição: Ter como meio de vida um trabalho estável e receber remuneração.
Contexto 1: (...) branco Cazado mora | dor nesta Cidade que Vive | de[Seo Emprego
deEscrivaõ da Descarga da Alfandega] <L.1097, A. 3, l.53-54, p.206>
NEncl.: O emprego é garantia de um trabalho estável e seguro com salários pagos
mensalmente conforme sistema adotado pela empresa ou pessoa empregadora. Na definição
de Ferreira (1999, p.741), o emprego é uma “maneira de prover a subsistência mediante
ordenado, salário ou outra remuneração a que se faz jus pelo trabalho regular em determinado
serviço, ofício, função ou cargo”.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [sua loja]
362
Definição: Ter como meio de vida um estabelecimento comercial com vendas de produtos
diversificados.
Contexto 1: (...) branco solteiro morador nes- | ta Vila daFortaleza que vive | de [sua Loja]
<L.33, A.15, l.12-13, p.137>
NEncl.: Não há nos autos referência aos tipos de produtos vendidos na loja. Em outros casos
são mencionados produtos secos e molhados, o que caracterizaria um armazém que vende
tudo.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [sua taverna]
Definição: Ter como meio de vida um estabelecimento comercial de venda a retalho de
bebidas de todos os gêneros, principalmente alcoólicas.
Contexto 1: Testi | munhas (...) branco Ca | zado, emorador nesta Vila, uiue de | [sua
Tauerna] <L.33, A. 7, l.5-36, p.108>
NE: A palavra taberna ou taverna tem origem no latim e designa uma casa feita de tábuas ou
toscamente. Representa um botequim ou uma bodega em que se concentram várias pessoas
para compra de bebidas a retalho.
NEncl.: Não temos muitos registros de taverna ou bodegas nos documentos, mas existiam e,
provavelmente, eram locais onde se reuniam os que gostavam de bebidas alcoólicas.
Matriz: viver de [x]
UF: vive de [suas costuras]
Definição: Ter como meio de vida a confecção de roupas diversas.
Contexto1: Testemu | nha terceira (...) branCa Cazada || 25r <25 Pereira> que viue de[suas
Costuras] <L.39, A. 16, l.41-43, p.76>
363
NEncl.: Poucas são as mulheres citadas nos autos como testemunhas e menos ainda é
revelado sobre seus trabalhos ou ofícios.
Matriz: Viver de [x]
UF: vive de [curtir seus couros]
UF variante 1: Vive de [seu negócio de curtir couros]
Definição: Ter como meio de vida a prática de curtir couros de animais.
Contexto 1: (...) omempardo Solteiro naIlha do Poró termo doAquiras uiue de | [Cortir seos
Coiros] <L.1461, A.19>.
Contexto 2: (...) homempardo cazadomorador na | Timbauba termodavila do Aqui | ras vive
de[seo negocio decortir coiros] <L.1461, A.7>
NH: No cenário colonial brasileiro, o Ceará se destacou na criação de gado e de outros
animais. O comércio de carne de gado foi elevado na economia cearense e os subprodutos do
gado também tiveram em evidência com a curtição do couro para se fabricar diversos objetos,
como selas, relhos, peias de animais, roupas para os vaqueiros, calçados, utensílios
domésticos e outros. Em muitas queixas prestadas os instrumentos usados em várias práticas
criminais eram objetos de couro.
Matriz: viver de ser [x]
UF: vive de ser [vaqueiro]
UF variante 1: vive de [vaqueiro]
UF variante 2: Vive do oficio de [vaqueiro]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de lidar com gados e outros animais nas
grandes fazendas do sertão.
Contexto 1: (...) com Casta morador no Pau do lho | vive de ser [vaqueiro] <L.1461, A. 16>
Contexto 2: (...) pardo Viuvo morador nas Al | mas que vive de [Vaqueiro] = <L.33, A. 18,
l.43-44, p.147>
364
Contexto 3: (...) pardo Solteiro mo | rador nadita Ribeira vivedeser [vaqueiro] nafazendade
Poço frio <L64, A. 12, l.52-53, p.177>
Contexto 4: (...) morador no mesmo Cocô que | Vive do oficio de [Vaqueiro] <L.1461,
A. 7>
Contexto 5: (...) que Vive ou mora no mesmo lugar que Vive domes | mo officio de
[Vaqueiro] <L.1461, A.7>
NH: O ofício de vaqueiro aparece com muita frequência nos Autos de Querela. O vaqueiro
foi uma personagem significativa na nossa História e ainda continua a ser em todo o Nordeste.
A criação de gado foi o principal fator do desenvolvimento econômico da Capitania do Ceará,
nos séculos XVIII e XIX. Em qualquer livro de história cearense encontramos a figura do
vaqueiro com sua habilidade de lidar com os animais, ajudando a desenvolver a pecuária com
seu trabalho e seu amor aos animais.
Matriz: Viver de ser [x]
UF: Vive de ser [oficial de justiça]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de prestar serviços à justiça, em cuja atividade
compete efetuar as citações, intimações e outras diligências.
Contexto 1: (...) par | do Cazado, que vivedeser [offecial de Justiça] <L.64, A. 1,
l.45-46, p.153>
Contexto 2: (...) pardo Cazado | morador nesta Vila, uiue deser [oficial de Justiça] <L.33, A.
11,l. 42-44, p.123>
Contexto 3: (...) branco Cazado morador nesta Vila | uiue taõ bem deser [Oficial deJustica]
<L.33, A. 11, l. 44-45, p.123-124>
NH: O oficial de justiça no Direito Judiciário antigo correspondia ao Meirinho (cf. DE
PLÁCIDO E SIVA, 2006). A esse funcionário competia prender, promover penhoras e
executar ou cumprir quaisquer mandatos judiciais.
Matriz: viver de ser [x]
UF: vive de ser [mestre de gramática]
365
Definição: Ter como meio de vida a profissão de ensinar gramática latina nas escolas
públicas de qualquer vila.
Contexto 1: Seachauaõ deClarados os nomes dastestemunhas da | formaSeguinte = Primeira
(...) bran | co Cazado que viue deSer [Mestre deGramatica] <L39, A.17, l.45-46, p.78>
NH: Nos códices do APEC encontram-se muitas provisões passadas a professores para o
exercício do magistério, principalmente de primeiras letras e de gramática latina. O ensino
dessa língua era obrigatório nas escolas, assim como o de língua francesa, razão por que
encontramos nomeação para essas duas línguas. Pela leitura do documento transcrito abaixo,
encontramos as informações sobre os procedimentos da nomeação, como o processo ocorria,
quanto recebia o professor pelo exercício da profissão e como era feito o pagamento.
Geralmente o valor do salário era estabelecido pelo período de um ano e pago aos quartéis, ou
seja, os salários eram pagos de quatro em quatro meses. No caso aqui específico, o professor
receberia três mil réis anuais, conforme se lê.
Registro da Provisam de Proffessor de grammatica Latina na Vila do Aracati,
passada ao Padre Joaõ Dias
A Junta Provisoria etecetera Faz saber aos que esta Provisam
virem, que tendo
consideraçaõ aos merecimentos, e mais partes, que correm na pessôa do Pe. Joaõ
Dias, para exercer as funcçoes de Proffessor de Grammatica Latina na Vila do
Aracati: porbem, na conformidade das Reaes Ordens, nomiar, como por esta
nomia o dito P
e
. JoDia, para o referido Emprego de Proffessor de grammatica
Latina da Vila do Aracati, como qual vencerá o ordenado de 300$000 reis fl. 60v
de 300 $000 reis annuaes, pagos aos quarteis, e sera obrigado a prestar juramento
perante a mera respectiva, de bem cumprir, como deve as obrigações do seu
Emprego, de que se fará assento nas costas desta, e oreferido ordenado se assentará
nos Livros o que tocar, para lhe ser pago em seus devidos tempos na forma referida
Pelo que ordena a camara da Vila do Aracati, e mais Authoridades aquem o
conhecimento desta pertencer, a cumpraõ, eguardem, como nella se contem. Em
firmeza doque manda passar a presente por nós abaixo assignada, e Sellada com o
Sello das Armas Reaes, registando-se nos Livros da Secretaria deste governo,
contadoria da Fazenda Nacional, e onde mais tocar. [...]
(APEC, 1804, Livro 84, fl. 60r-61v).
Matriz: viver de ser [x]
UF: vive de ser [criador de gados]
Definição: Ter como meio de vida a criação de gados.
366
Contexto 1: (...) branco Cazado morador | no Camoropim deBaxo ter | mo daVilla da
Granja | que vive deser [criador deGados] idade que dice | ter Secenta Annos <L.1097, A. 2,
l.100-102, p.200-201>
NL: Muitas ocorrências semelhantes são citadas nos documentos. Registramos, porém, todas
aquelas em que um elemento diferenciador. Viver de ser criador de gados implica ter
muitos gados, ser fazendeiro, o que era fácil naquela época da história cearense em que o
gado foi o grande propulsor da economia do Ceará no princípio de sua colonização.
Matriz: Viver de ser [x]
UF: Vive de ser [carniceiro]
Definição: Ter como meio de vida a prática de matar gados e vender as carnes a retalho.
Contexto 1: Tes | temunha Segunda (...), pardo Cazado, que veve deser | [Carniceiro] <L.
1097, A. 7, l.68-69, p. 222>
NL: Embora o carniceiro tenha uma atividade semelhante ao contratador de carnes, as
denominações são diferentes e registramos as duas porque nossa intenção é destacar as
diversas marcas linguísticas que caracterizam os textos investigados.
NEncl.: Com o desenvolvimento dos grandes frigoríficos, não se fala mais em carniceiro,
machante ou magarefe. A palavra açougueiro ainda tem uso corrente, principalmente nas
pequenas cidades do Ceará, mas o vocábulo tende a desaparecer com a inserção de pessoas
mais preparadas no mercado, em que se desenvolverão outros tipos de profissionais e outras
formas de nomeá-los.
Matriz: viver de ser [x]
UF: vive de ser [contratador das carnes]
Definição: Ter como meio de vida o trabalho de comprar e vender carnes.
367
Contexto 1: (...) branco Cazado, morador nesta | Vila vive deSer [Contratador das Carnes]
<L.33, A. 2, l. 48-49, p.90>
NH: A pecuária foi o carro-chefe da economia cearense, logo era natural que nas vilas
houvesse o serviço de açougueiros ou carniceiros, que eram designados para a venda de
carnes frescas à população. Entretanto, no final do século XVIII, o bacharel em medicina
João Lopes Cardoso Machado, vindo em comissão ao Ceará para cuidar de uma epidemia que
assolava o norte do Estado, reclamou da falta de açougues para vender carnes frescas, pois
naquele momento havia apenas açougues nas vilas de Sobral e de Granja, o que levava a
população comer carne seca que, segundo ele, era nociva à saúde. Reproduzimos abaixo a
parte do texto que é rica em informações sobre a realidade cearense no tocante ao assunto.
[...] e já de agora preciso lembrar a Vossa Excelência que aqui açougue na
Vila do Sobral e Granja; que á muitas povoações distantes destas vilas vinte e mais
léguas, onde por falta de carne fresca se come carne do Ceará, principalmente os
pobres que faz o maior número dos seus habitantes; que pelas muitas enfermidades e
preguiça do povo muito poucas galinhas; que nestes termos os que adoecem, se
vêem obrigados a comer a dita carne a qual é nociva nas enfermidades agudas, e
ainda nas crônicas, que por isso estão muitos de sezão sem poderem Omar
vomitórios, por ao terem galinha, nem carne moqueada; que esta desordem merece
uma pronta e eficaz providência, mando-se estabelecer açougues nas povoações
mais populosas ao menos duas vezes na semana, o que é fácil em um país onde
tanto gado que a matança carregar os barcos; se não puder estabelecer isto para
todo o ano, seja de maio até novembro. (STUDART, 2004, p. 434).
Nos Autos de Querela a maioria das pessoas citadas vive de atividades relacionadas ao
campo, como agricultura e criação de gado; apenas dois vivem do ofício de negociar as
carnes. Parece que a venda de carnes frescas não era um bom negócio ou a população não
tinha esse alimento como hábito em sua dieta alimentar.
Matriz: viver de [x]
UF: Vive de [seu negócio e lavoura]
Definição: Ter como meio de vida os lucros advindos do cultivo da terra e dos negócios que
rendem algum dinheiro.
Contexto 1: (...) omembranco cazado que vive de[Seos negocios e lavoras] morador naSerra
da uruburetama <L.1461, A.1>
368
NEncl.: Os documentos não esclarecem que tipo de negócio a pessoa citada realiza para
complementar sua renda.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive de seu ofício de [ferreiro]
UF variante 1: vive do ofício de [ferreiro]
UF variante 2: vive de ser oficial de [ferreiro]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de fabricar, consertar e fazer a manutenção de
instrumentos de ferro, em oficinas ou estabelecimentos típicos.
Contexto 1: (...) ma | maluco uiuuo morador n‟alagoa domeio | uiue doOficio de[ferreiro]
<L.33, A.2, l. 47-48, p.90>
Contexto 2: (...) bran- | co Viuvo morador em Santa Quiteria | que vive do seu Officio de
[Ferreiro] <L.33, A. 12, l.35-36, p.126>
Contexto 3: (...) omem pardo Cazado | [official deferreiro] do que Vive morador nesta
Villada | Fortaleza <L.1461, A.9>
NEncl: A profissão de ferreiro é das mais antigas da história da humanidade e ainda hoje
mantém-se. No interior do Nordeste brasileiro, principalmente nas pequenas cidades, os
ferreiros trabalham em pequenas oficinas na fabricação de instrumentos rústicos como facas,
facões, espetos, picaretas, foices, machados, enxadas e outros mais que servem na lida diária
dos agricultores, no cultivo das suas roças. No município de Potengi, no sul do Ceará, a
profissão de ferreiro contribui para a geração de empregos e manutenção da arte, além da
função de atender a uma grande quantidade de agricultores que necessitam dos instrumentos.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive de seu ofício de [sapateiro]
UF variante 1: vive de ser oficial de [sapateiro]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de fabricar e consertar sapatos ou outros
calçados em pequenas fábricas.
369
Contexto1: (...) branco Cazado digo Solteiro mo | rador naVila noua d‟El Rei uiue de | Seo
Oficio de[Sapateiro] <L.33, A.4, l. 70-71,p.98>
Contexto 2: (...) pardo Cazado [official de sapateiro] | do que Vive e morador nestamesma
Villa <L.1461, A. 9>
Contexto 3: (...) Cazado homem bran | co quevivede seo officio de[Sapateiro], morador nesta
villa <L.64, A. 4, l.34-35, p.163>
Contexto 4: Contexto 4: Manoel Pereira branco | Cazado morador em dito lugar que | vive de
seu Officio de [Sapateiro] <L. 33,A. 12, l.38-39, p.126>
NEncl.: O sapateiro, atualmente, é aquele que faz consertos em sapatos em pequenas oficinas,
em feiras ou até nas praças e ruas. É também considerado um artesão cuja metéria é o couro.
Os grandes produtores de calçados e os donos de sapatarias não são reconhecidos no mercado
com a profissão de sapateiro, mas de empresários no ramo de calçados. Isso indica que houve
uma redução semântica do termo, restringindo a denominação para os pequenos artesãos. A
língua muda conforme as transformações sociais, históricas e econômicas.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive de seu oficio de [seleiro]
UF variante 1: vive de [fazer suas selas]
Definição: Ter como meio de vida a confecção de selas para arreios de cavalos ou outros
animais.
Contexto 1: (...) branco com | Casta da terra morador (...) Em Maranguape taõ | bem Cazado
vive de | seo Officio de [Selleiro] <L.33, A. 14, l.37-39, p.135>
Contexto 2: (...) homem bran | Co morador nosobredito sitio quevi | vedeseoofficio de
[Seleiro] <L.1460, A.1>
Contexto 3: (...) branco Cazado morador noPoso da | Onsa desima vive de[fazer suas Selas]
<L.1461, A.7>
NEncl.: A criação de gado e a prática da pecuária em geral faziam desenvolver outras
atividades relacionadas a partir de um subproduto como o couro, por exemplo, que gerava
empregos e renda à população. Ademais, outras atividades, como a de vaqueiro, necessitavam
de produtos como roupas e calçados de couros para enfrentar os espinhos na caatinga, além da
370
sela que compunha a indumentária dos cavalos, não só dos vaqueiros mas de toda a parcela da
população que usava o cavalo arreado com sela como o meio de transporte mais comum à
época.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive do oficio de [seleiro e agência]
Definição: Ter como meio de vida a prática de fazer selas, além de prestar quaisquer serviços
temporários a outrem de forma autônoma, mediante remuneração.
Contexto: (...) branco Cazado morador em | Benta Pereira viue deSeu officio de[Seleiro
eagencias] <L.1460, A.23>
NH: A profissão de seleiro foi citada em outro contexto, mas aqui ela vem seguida de outra
atividade, ou seja, viver de agências, um trabalho incerto que, sem dúvida, complementava a
renda quando a confecção de selas era escassa.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive de seu oficio de [carapina]
UF variante 1: Vive de [carapina]
UF variante 2: vive de oficial de [carapina]
UF sinonímia 1: vive de ser oficial de [carpinteiro]
UF variante 1: vive de seu oficio de [carpinteiro]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de lidar com instrumentos de madeira.
Contexto 1: Testemunha Terceira (...) viuuo offiçial de [Carapina] <L39, A. 8, l.44, p.60>
Contexto 2: (...) pardo Cazado official || official de [Carpina] morador nestamesma Villa
<L.1461, A.9>
Contexto 3: (...) pardo Solteiro | morador na Serra da Uruburetama no Lugar Xamado Sam
| Martins de Idade de Vinte enove annos Vivede seu oficio | de [Carpinteiro] <L. 1461, A.5>
Contexto 4: (...) branco Soltei | ro morador nesta Vila, uiue de | [Carapina] <L.33, A. 3, l.55-
56, l.93>
371
Contexto 5: (...) branco com casta que | vive deseu officio de [Carapina] | t bem solteiro
emorador nesta | Vila <L.33, A. 14, l.35-36 p.135>
NL: Carapina ou carpina é dicionarizado em Houssais, versão eletrônica, como um
diacronismo antigo, que denominava no Brasil Colônia o carpinteiro de obras de madeira em
geral ou em construções rurais, que não as de construções ou operações navais.
Matriz: viver de seu oficio de [x]
UF: vive de seu ofício de [latoeiro]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de fabricar instrumentos de latão ou flandres.
Contexto 1: (...) Solteiro que viue deSeo offiçio de[latoeiro] <L.39, A. 6, l. 42-43,
p. 56>
Contexto 2: (...) com casta da terra vive deseu | Officio de[Latoeiro], morador na Vila |
deSaõ Joaõ do Principe deidade | de vinte equatro annos <L.33, A. 13, l.32-34, p.131>
NH: O latoeiro ainda exerce a profissão em oficinas fazendo seus produtos artesanais para
vender nas feiras das pequenas cidades ou nas periferias das capitais.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive de seu ofício de [alfaiate]
UF variante 1: vive de ser oficial de [alfaiate]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de confeccionar vestuário para homens.
Contexto 1: (...) branco | cazado morador nesta Vila, uiue de | Seo Oficio de[alfaiate] <L.33,
A.4, l. 69-70, p.98>
Contexto 2: O Furriel (...) branco, Solteiro Official de[alfaiate] morador nesta Villa <L.1460,
A.29>
NL: A profissão de alfaiate ainda sobrevive na modernidade, mas cada vez mais é reduzido os
homens que se dedicam ao ofício, dado ao avanço das grandes indústrias de confecção em que
o trabalhador apenas opera as máquinas na produção de grande escala para exportação do
372
produto. Não medidas individuais nem corte personalizado, o que é uma forma de
produção coletiva para um mercado consumidor.
Matriz: viver de seu ofício de [x]
UF: vive do seu ofício de [ourives]
Definição: Ter como meio de vida a profissão de fazer, consertar e vender objetos de ouro.
Contexto 1: (...) branco Sol | teiro morador nesta Cidade | que Veve deSeu officio de
[ourives] <L.1097, A.3, l.50-51, p. 206>
NH: O Ceará não teve solo rico em minas de ouro como tantas outras capitanias brasileiras
onde prosperou o ciclo da mineração, contribuindo para o grande desenvolvimento econômico
do Brasil Colônia. No entanto, a influência do ouro se fez sentir em toda colônia, tanto que o
governador Antonio José Victoriano Borges da Fonseca, em 1768, lançou um bando por
recomendação do Capitão General Governador de Pernambuco para tornar pública uma Carta
Régia expedida por D. José I, que expressava as preocupações do monarca com o contrabando
de ouro no Brasil. Um dos trechos da Carta Régia aborda o aumento de ourives nas cidades
brasileiras como se lê:
[...] pela devassa que mandei proceder com estes justos eindispençaveis motivos
seprovou plenisimamente que acauza maior daquelles roubos feitos aminha Real
Fazenda eaos meos sobreditos vassalos comsiste no grande numero de ourives que
setem multiplicado emtodas as cidades do estado do Brazil, emais lugares das suas
respetivas Capitanias recolhendo asy o ouro em folhetos, umas vezes o reduzem
abarras falças sem averem pagos os direitos dos Quintos outras o comvertem nas
obras [[nas obras ]]deImagens torpez eindesendentes deRozarios eoutras obras
douzo das gentes para comestes artifícios cobrirem os referidos roubos eos passarem
aeste Reyno debaixo daespecie das referidas obras. (APEC, 1780, Livro 85, fl. 21v-
22v).
Em outra passagem manda fechar as lojas e destruir as oficinas e as forjas, e punir os
infratores com o degredo na África.
Que depois deouveres asim executado fasaes feixar todas asloges dos Referidos
Mestres dos ofícios demolindo=se todas as forjas deles e sequestrando selhes todos
os instrumentos quecustumaõ servir para as fundiçoens oupara as obras deouro ede
prata pagando selhe pello justo valor que tiverem aotempo dos sequestros
eremetendose para as cazas daMoeda eFundiçaõ daCidade
daBaia. Que cada um
dos referidos Mestres fasaõ termo judicial perante oOuvidor geral dessa capitania
373
pelo qual termo seobrigue anaõ Exercitar mais o referido officio sem especial
ordem desse Governo nos cazos adiantes declarados debaixo das penas estabelecidas
contra os falcificadores deMoeda. Que os Aprendizes ou Artifises Escravos sejaõ
logo mandados para as cazas de seos senhores obrigando-se estes por outro termo
aseseruirem deles para outros deferentes exercicios sem lhes permitirem trabalhar
deourives nem conservar algum instrumento dareferida arte debaixo das penas de
perdimento dos escravos, ede degredo para Angolla com inhibisaõ devoltarem
aoEstado do Brasil. (APEC, 1780, Livro 85, fl. 21v-22v).
Matriz: viver debaixo de [x] de (y)
UF: vive debaixo do [pátrio poder de seu pai]
UF sinonímia 1: vive debaixo da [administração de seu pai]
Definição: Estar o menor sob a responsabilidade do pai por não ter alcançado a maior idade e
não ser responsável pelos próprios atos.
Contexto 1: (...) branco Solteiro viue debaixo do[patrio puder deSeu Pai] oDoutor (...)
nestaVilla <L.1460, A.30>
Contexto 2: (...) Solteiro homem com casta daTerra mora- | dor na mesma ribeira deSiope
que vive | debaixo da[administraçaõ deseu Pay] <L.1460, A.40
NL: Esta UF aparece na peça Relação das Testemunhas e não caracteriza um ofício ou
profissão, mas um estado ainda pueril de uma pessoa que está sob a administração do pai.
NEncl.: O conteúdo semântico da UF leva-nos a conhecer o momento histórico da produção
do texto, principalmente os valores e costumes expressos na linguagem. O poder ou
autoridade do pai exerce uma força muito forte sobre os filhos e impõe respeito e obediência.
Viver debaixo do poder e da administração pátria significa, portanto, ter a casa paterna, o
porto seguro, ter a garantia de proteção necessária e os cuidados de uma família. É ter também
um ambiente saudável onde se possa crescer e se formar enquanto ser social. Contudo, da
parte do filho deve haver a obrigação de respeitar os limites estabelecidos pelo pai, saber
honrar o poder daquele que o protege. O valor moral, espiritual e social que subjaz no uso da
língua é fundamental para se conhecer a cultura de uma comunidade, as vivências humanas e
suas crenças.
374
7.2.6 Peça 6 Despacho
Matriz: Jurar se lhe tome [x]
UF: Jurando se lhe tome [sua querela]
Pivô: sua querela
UF variante 1: Jurando se lhe tome [Ø]
UF variante 2: Jurando se lhe tome [na forma requerida]
Definição: Ato de alguém pedir a um juiz ou a uma outra autoridade judicial para aceitar e
despachar o requerimento dos querelantes para a justiça.
Contexto 1: Jurando se | lhe tome [asua querella]. <L.1097, A.7>
Contexto 2: Jurando se lhe tome [Ø] <L.33, A. 16, l. 70, p.141>
Contexto 3: jurando selhetome [naforma requerida] < L. 33, A. 18, l. 48-49, p.147>
Contexto 4: Juran | do tomeselhe [Ø] <L.39, A. 13, l.37, p.70>
NL: O despacho constitui um pequeno enxerto de texto, mas pode ser caracterizado como um
gênero específico de conteúdo importante para o processo por trazer a decisão do juiz. Nos
Autos de Querela ocupa o lugar imediato à relação das testemunhas e consta apenas da
fraseologia acima citada.
NE: O verbo despachar apresenta várias acepções nos dicionários da língua comum como:
resolver, incumbir de serviço, atender, expedir, deferir, dentre outros. Despacho, por sua vez,
também atende a sentidos diversos, mas na técnica forense exprime a decisão proferida pela
autoridade judicial nas petições, memórias ou papéis submetidos, conforme De Plácido e
Silva (2006).
7.2.7 Peça 7 Distribuição
Matriz: Distribuir a (...) a folha (...)
UF: Distribuída ao (...) a folha (...)
UF variante 1: Distribuída jurando tome a querela.
UF variante 2: Distribuída a (...)
375
Definição: Ato de repassar a queixa ou querela apresentada ao juiz para o escrivão ou tabelião
e para as demais justiças.
Contexto 1: Distribuída a (Corrêa) a folhas (trinta ehuma | Versso) [...] <L.39, A.4, l. 35,
p.52>
Contexto 2: Destribuida | a (Castro) <L.33, A. 5, l.74, p.103>
Contexto 3: Destribuida eJuran | do tome aquerella <L.1097, A. 1, l.38, p.195>
NL: A distribuição se caracteriza por apenas uma frase, mas tem significação e função
importante no contexto.
NE: Distribuir é do latim distribuĕre (repartir, dividir), daí distributio, distribuição. Na
linguagem forense, significa os negócios judiciais que o distribuidor faz aos tabeliães de
cada lugar para que haja igualdade nos serviços e nos lucros, como salienta Freitas (1983). É
também na técnica forense o ato de promover o registro e regular repartição das causas
ajuizadas entre os juízes de igual jurisdição e competência, conforme De Plácido e Silva
(2006).
NEncl.: Nos Autos de Querela a distribuição parece ter um significado mais restrito. No final
da relação das testemunhas é inserido o termo Distribuição agregado ao Despacho. Há apenas
uma UF distribuída ao escrivão e especifica a folha. O juiz distribui para o tabelião e esse
anota nos autos. Como havia uma comarca no Ceaaté 1816, cremos que não havia como
fazer a distribuição ou repartição do processo para outro corregedor.
7.2.8 Peça 8 Exame de Vistoria
Matriz: Auto de [x] feito em (y)
UF: Auto de [exame e vistoria] feito na (...)
Pivô: exame e vistoria
UF variante 1: Auto de [exame e corpo de delito] que se fez em (...)
Pivô: exame e corpo de delito
UF variante 2: Auto de [vistoria e exame] feito na (...)
Pivô: vistoria e exame
UF variante 3: Auto de [vistoria] feito no (...)
376
Pivô: vistoria
UF variante 4: Auto de [vistoria e exame] feito no (...)
Pivô: vistoria e exame
UF variante 5: Auto de [exame vistoria e fé] feito em (...)
Pivô: exame vistoria e fé
UF variante 6: Auto de [vistoria exame e corpo de delito] que mandou fazer
Pivô: vistoria exame e corpo de delito
UF sinonímia 1: Auto de [corpo de delito] feito no (...)
Pivô: corpo de delito
Definição: Peça do processo criminal que consta da descrição detalhada da pessoa ou objeto
examinado pelo cirurgião ou pelas parteiras responsáveis. Essa peça é de fundamental
importância porque põe em evidência a veracidade, a natureza e a gravidade de um crime
praticado.
Contexto 1: Auto de[Vestoria, eexzame ] feito em (...) mulher [...] <L.39, A. 3, l. 53-54, p.
50>
Contexto 2: O Auto de [corpo de delicto] feito pelo (Si | rurgiaõ aprovado o Licenciado (...)
das feridas nodoas e pi | zaduras que tinha [...] <L. 33, A.12, l.100-102, p. 128>
Contexto 3: Auto de[exame, euestoria] feito pelo (Ci- | rurgiaõ aprouado eLicenciado) (...)
nas Sicatrizes que tem | emSeo corpo (...) [...] <L.33, A. 3, l.86-87, p.94>
Contexto 4: Auto de[exzame evestoria] feito (no Corpo (...) mulher Cazada) <L. 39, A. 15,
l. 44, p.74>
Contexto 5: Auto de[vestoria eExzame] | feito na ofendida (...) Como abaixo Se | declara <L,
39, A.16,l. 45-46, p.76>
Contexto 6: Auto de[Vestoria eExzame] feito na(ofendida (...) mulher (...) Como abaixo
SedeClara = <L.39, A. 18, L.55-55, P.81>
Contexto 7: Auto de[Vestoria] que | mandou fazer (o Juis or | denario (...)) por lhesser |
requerido (...) pelas Contuzoins que em | ella se acharem <L. 1097, A. 1. 61-63, p.195>
Contexto 8: Auto de[Vestoria eexzame] que mandou fazer | o Juis ordenario oAlferes Joaõ
daRocha Motta no Cor | po do offendido <L.39, A.7, l. 50-51, p.58>
NL: Nos Autos de Querela há uma farta denominação para o documento, conforme as
registradas acima. Em todas as formas registradas a UF apresenta pivô terminológico, embora
377
com variações, por meio de inserção, permuta ou redução dos elementos linguísticos, no
entanto, todas as formas definem a linguagem criminal.
NE: A palavra delito vem do latim delictum, que indica falta ou culpa, por sua vez, o verbo
delinquěre significa deixar, omitir, faltar, deixar de comparecer, cometer uma falta, pecar.
Em sentido geral, o delito se aplica a todo ato ilícito que possa resultar numa reparação em
que, quem o cometeu, está sujeito às penas da lei. O corpo de delito é o “conjunto de provas
materiais ou vestígios da existência do fato criminoso, obtido pelo exame da pessoa, ou coisa
sobre que ele incidiu” (NUNES, 1995, p.160).
NH: O auto de exame e vistoria era uma exigência da lei para se receber uma denúncia
criminal. Primeiramente, o querelante deveria apresentar o auto de exame e vistoria realizado
na vítima por um cirurgião aprovado e licenciado ou por parteiras aptas para isso. Escrito por
um escrivão, o exame era apresentado às autoridades da justiça para que aceitasse e recebesse
a querela.
NEncl.: O auto de vistoria pode ser direto ou indireto, conforme classificação de (DE
PLÁCIDO E SILVA, 2006, p. 387).
É direto quando promovido sobre o próprio objeto ou pessoa que incidiu a ão ou
omissão criminosa (...). É indireto, quando, na impossibilidade do exame ou vistoria,
por terem desaparecido os sinais do crime, é constituído por informações de
testemunhas.
Nos Autos de Querela um exame de vistoria é direto quando feito de forma ocular e
presencial pela pessoa apropriada para isso. É indireto quando feito a partir de relatos das
testemunhas, mesmo sem presenciar o crime, muitas vezes, por ouvir falar, conforme se
registra em alguns depoimentos. Em ambos os casos o escrivão ou tabelião relata todas as
circunstâncias que conduzem as provas contra o delituoso. O auto de exame e vistoria
apresenta uma estrutura formal fixa que se inicia com a situação temporal e espacial, em que
se encontram as pessoas para a realização do exame, o juramento do examinador, a descrição
dos fatos e a conclusão com as assinaturas do examinador, do escrivão e do juiz. Esta peça
dos processos é aclopada ao Auto de Querela após o despacho e a distribuição. O exame de
vistoria e, consequentemente, o exame pode ser relizado em pessoas, animais ou objetos.
Encontramos, por exemplo, no Livro 1097, auto 6, o exame de vistoria feito em uma mala que
fora furtada, como se na introdução do auto Aucto deExame | eVestoria por inspeçaõ
378
occular em huma | malla de Felicia detal mulher soltei= | ra, moradora nesta Cidade na rua | da
palha que mandou fazer o Juis de | Fora pela Lei oCapitaõ Joaquim Antunes de Oliveira [...]
(XIMENES, 2006, p. 219).
Matriz: Para efeito de fazer [x] em (y)
UF: Para efeito de se fazer [exame, vistoria e corpo de delito] em uma (...)
Pivô: exame, vistoria e corpo de delito
UF variante 1: Para efeito de fazer [vistoria] no corpo de (...)
Pivô: vistoria
UF variante 2: Para efeito de fazer [exame e vistoria] nas feridas (...)
Pivô: exame e vistoria
UF variante 3: Para efeito de fazer [vistoria e exame] em umas feridas(...)
Pivô: vistoria e exame
UF variante 4 : Para efeito de fazer [exame nas nódoas e pisaduras] que lhe fizera (...)
Pivô: exame nas nódoas e pisaduras
UF sinonímia 1: Para efeito de proceder [exame e vistoria]
Pivô: exame e vistoria
Definição: Finalidade para a qual o cirurgião ou as parteiras eram indicados a fazer o exame
de corpo de delito em uma vítima de crimes com lesão física ou em casos de estupros ou
defloramento.
Contexto 1: onde Escrivaõ ao diante nomiado fui vindo e o | Cururgiaõ mor (...) para
effe | ito de [Sefazer exzame evestoria] nas feridas, enoduas | que tinha no Corpo (...) <L.39,
A.7, l.60-61, p.58>
Contexto 2: aquem logo odito Juis deferio ojuramento dos | Santos Evangelhos emolivro
delles ao dito Cururgiaõ | mor para effeito de[Sefazer o dito exzame] a | Sima deClarado
<L.39, A. 7, l. 59-61, p.58>
Contexto 3: eSendo ahy pre | zente oSururgiaõ mor (...) pa | ra effeito deSe fazer [exzame nas
noduas epizaduras] | que lhefizera Maria do O‟ mulher branca Com Casta | Cazada Com Joaõ
Baptista, ehuma filha <L.39, A. 15, l. 49-51, p.74>
Contexto 4: epor ele mefoi aprezenta | do orequirimento retro despaxado | pelo Meritissimo
Senhor Doutor Ou | uidor Geral, eCorregedor daComarca (...) para e | feito deproceder
[exame, euestoria] | com oCirurgiaõ aprouado eLicen | ciado (...) que pre | zente estaua nas
379
Sicatrizes que ti | nha impresas emSeo corpo que po | tentes mostraua.<L.33, A.3, l. 92-96,
p.94>
Contexto 5: esendo ahj prezente o In | dio (...) para | efeitode selhefazer [vestoria, eexame]
emhuas feridas que | tem emseo Corpo, procedidas | dehuas borduadas quelhedeo o- |
Cabra[...] <L.64 A. 7, l. 59-61, p.166>
NEncl.: A vistoria realizada por pessoa especializada é uma prática extremamnte necessária
para dar efeito ao processo. O querelante poderia querelar mediante a apresentação desse
exame.
Matriz: Entrar a fazer [x] na (...)
UF: Entrou a fazer [vistoria e exame] na (queixosa)
Pivô: vistoria e exame
UF variante 1: Entrou logo a fazer [vistoria]
Pivô: vistoria
UF variante 2: Entrando logo no [exame evistoria]
Pivô: exame evistoria
Definição: Ato em que os peritos iniciam o exame em uma vítima, no momento determinado.
Contexto 1: esendo obdecido pello di- | to cirurgiaõ entrou logo | na dita [Vestoria] edeclarou
| ser aprimeira na parte su- | perior do osso coronal dapar- | te direita aqual ferida ti- | nha de
comprimento pol- | gada emeia[...] < L 33, A.15, l.57-60, p138>
Contexto 2: erecebido odito Juramento | aSim oprometeo Comprir | como lhefoi Encarregado
| e Entrando no [Exame eVestoria] nocorpo dodito pre | to ofendido
<L.1097, A.4, l.56-58, p.209-210>
Contexto 3: por elle recebido o dito ju- | ramento entrou a fazer [exame e vestoria] na dita
queixoza (...) com todas as cerimonias neces- | sarias de sua arte <L.33, A.12,l. 124-125,
p.128>
NL: A perífrase formada por entrar a + infinitivo do verbo principal tem grande recorrência
nos documentos que aqui nos ocupamos e expressa aspecto inceptivo que caracteriza o início
de uma ação.
380
NH: O exame de vistoria era feito geralmente na casa em que se encontrava o juiz,
provavelmente a casa da câmera de uma vila. O juiz deferia o juramento dos Santos
Evangelhos aos examinadores e iniciava a vistoria. No caso das parteiras, essas se retiravam
para um quarto reservado com a vítima e quando saiam afirmavam o que tinham visto. Tudo
era registrado pelo escrivão e dado por fé por parte da justiça.
Matriz: Para constar fiz este [x]
UF: Para constar fiz este [auto de vistoria]
Pivô: auto de vistoria
Definição: Ato em que o escrivão conclui o auto de exame e vistoria confirmando os fatos
narrados e dando veracidade ao documento.
Contexto 1: dequepara Constar fis este[auto de vestoria] | emque comas testemunhas
nomeadas asignei e eu (...) Tabeliaõ <L.1461, A. 12>
NL: Esta UF é uma fórmula de encerramento da peça auto de exame e vistoria. A UF
constitui um ato de fala que confere veracidade ao documento, cuja eficácia é notória;
juntando-se ao processo, a peça resultada do exame de vistoria e ao querelante o direito de
prosseguir com sua denúncia, que poderia lavrar o registro de uma queixa mediante a
apresentação de um exame de vistoria.
Matriz: para constar mandou (...) fazer este [x]
UF: Para constar mandou (...) fazer este [auto]
Pivô: auto
UF sinonímia 1: Para constar mandou (...) fazer este [auto de corpo de delito indireto]
Pivô: auto de corpo de delito indireto
Definiçaõ: Ato em que o juiz manda o escrivõ registrar o resultado do exame de corpo de
delito, constituindo o auto.
Contexto 1: ede | tudo para Constar mandou (odito Juiz Ordinario) fazer este [auto de corpo
dedilicto indirecto] emque com | eles aSignou <L.33, A. 4, l.129-131, p.100>
381
Contexto 2: edetudo para Cons | tar mandou (ditto Juis) fazer este [autto] que | aSignou Com
oditto Medico <L.1460, A. 30
Matriz: Assinar de nome inteiro por [x] não saber escrever.
UF: Assinou de nome inteiro por [as mulheres] não saberem escrever.
Definição: Ato de o juiz assinar no final de um exame de vistoria realizado pelas parteiras por
essas serem analfabetas.
Contexto 1: emque aSignou | deNome inteiro por [as mulheres] | nSaberem escreuer, eu
(...) Escriuaõ oescre | vj <L.33, A. 5, l.99-100, p.104>
NEncl.: Todas as mulheres citadas nos autos são analfabetas, logo nenhuma assina o nome,
sendo necessário o juiz assinar por elas.
Matriz: Assinar com o dito [x]
UF: Em que assinou com [o dito cirurgião]
UF variante 1: Em que assinou com [o dito cirurgião mor]
Definição: Ato do juiz e o cirurgião assinarem o laudo resultante do exame de vistoria feito
nos querelantes.
Contexto 1: emque aSignou Com [odito Cerurgiaõ MorInterino], e Comoqueixozo asignou |
deCrus pornaõ saberler, enem escre | ver <L.1097, A. 8, l.86-88, p. 227>
Contexto 2: enque aSignou Com o [referido Sururgiaõ mor] eeû (...) Escrivaõ que | oescrevj
=| <L.39, A. 17, l.73-75, p.79>
Contexto 3: emque aSignou Com [odito Cerurgiaõ MorInterino], e Comoqueixozo asignou |
deCrus pornaõ saberler, enem escre | ver e | Escrivaõ que oescrevi <L.1097, A. 8, l.86-88,
p.227>
NEncl.: A assinatura do cirurgião, do juiz e do escrivão no final do auto de vistoria é
obrigatoriamente necessária para dar validade ao documento.
382
7.2.9 Peça 9 Conclusão do Auto
Matriz: Deferir o juramento dos Santos Evangelhos ao dito [x].
UF: Logo o (dito ministro) deferiu o juramento dos Santos Evangelhos ao dito [querelante]
Pivô: querelante
UF variante 1: Logo o (mesmo ministro) deferiu o juramento dos Santos Evangelhos ao dito
[querelante]
Pivô: querelante
UF variante 2: Logo pelo dito (ministro) foi deferido o juramento dos Santos Evangelhos ao
dito [queixoso]
Pivô: queixoso
UF variante 3: Logo o dito (juiz) deu o juramento dos santos Evangelhos ao [querelante]
Pivô: querelante
UF variante 4: Logo o dito (ministro) deferiu o juramentos dos Santos evangelhos
a[queixosa]
Pivô: queixosa
UF variante 5: Depois do que o dito (ministro) deferiu o juramento dos Santos Evangelhos
ao [querelante]
Pivô: querelante
Definição: Ato de o juiz ou outra autoridade judicial outorgar o juramento ao querelante, em
que esse põe a mão direita sobre o Livro dos Evangelhos, prometendo dizer a verdade sobre o
verdadeiro motivo da querela que apresentou.
Contexto 1: elogo o[dito Juis] deo o Juramento dos Santos Evange | lhos [aquerelante] em
ûmlivro deles emquepoz sua maõ di | reita debaixo doqual lheencarregou que bem
everdadeira | mente declarase sedava adita querela sem odio tensaõ ouvingan | as, Sim pelo
Cazo recontado em Sua petisaõ[...] <L.1461, A.2>
Contexto 2: Elogo o[dito Ministro] deferio ojuramento dos San | tos Euangelhos emhum
Liuro deles | [aoqueixozo] emque pos Sua maõ | direita debaixo doqual lheencarre | gou
declarase Sedaua bem, euerda | deiramente aprezente querela Sem | Odio, malicia, ou
tenção <L.33, A. 3,l.145-149, p.95>
383
Contexto 3: di- | pois do que pellodito (Ministro) foi de | ferido o Juramento dos Santos E- |
vangelhos ao[dito queixozo], e as | duastestemunhas que prezen | cearão o fato [...] <L. 64, A.
13, l.37-40, p.180>
Contexto 4: E Logo o dito (Juis) deo o juramento dos Santos Evangelhos [ao quarelante]
(...) de baixo do qual lhe incar | regou se bem e verdadeiramente Com boa esan Conci | encia
dava aprezente querela do querelado <L.1461, A. 13>
Contexto 5: logo oditto (Menistro) deferio o- | juramento dos Santos Euangelhos emhum Li |
vro deles [aqueixoza] debaxo doquallheemcarregou jurasse[...] <L.1460, A. 15>
Contexto 6: depois do | que odito (Menistro) de | ferio o Juramento dos San | tos Evangelhos
[ao querelante] em hum Livro delles | em que pois Sua maõ di | reita e sobre cargo do qu | al
lhe enCarregou [...] <L.1097, A.4, l.74-77, p.210>
NL: Esta UF introduz o segmento conclusivo do auto, em que o querelante faz o juramento
de dizer a verdade sobre os motivos de sua queixa e justifica que assim o faz para a
reparação dos danos e punição dos culpados.
NH: Vem de longe a prática de jurar algo perante alguma coisa sagrada. Diz-nos De Plácido e
Silva (2006), que era costume entre os romanos affirmatio religiosa, invocando-se os deuses
para prestar juramento. O jurando ficaria obrigado também por sua consciência. O juramento
servia tanto como um meio de prova como para firmar uma convenção. No âmbito do Direito
Romano o juramento imprimia um caráter sagrado às promessas e às obrigações. Não mudou
de todo o sentido que tem hoje, tanto no ambiente jurídico como no religioso.
NEncl.: A prática do juramento sobre os Evangelhos é mais um aspecto da cultura e da
religião da sociedade oitocentista que se revela nos documentos. Expresso linguisticamente
por meio de uma tradição discursiva, o juramento evoca uma prática da realidade ainda hoje
vigente na sociedade brasileira, conservando seus traços e as práticas religiosas e jurídicas.
Segundo De Plácido e Silva (2006, p.798), o juramento exprime uma “promessa ou afirmação
feita sob invocação de alguma coisa, que se respeita, ou que se teme”.
Matriz: E receber por [x] o dito juramento
UF: E recebido pelo dito [querelante] o dito juramento
Pivô: querelante
UF sinonímia 1: E recebido pelo dito [denunciante] o dito juramento
384
Pivô: denunciante
UF variante 2: E recebido por [ele] o dito juramento
Pivô: Ø
Definição: Ato de um querelante aceitar o juramento proferido pelo juiz ou outra autoridade
judicial por confirmar a veracidade da querela apresentada e por ser o motivo real e justo.
Contexto 1: e recibido pelo dito[querellante] o | dito juramento deClarou, que bem,
eVerdadeira | mente, sem dollo | tençaõ daua aprezente | querella etaõ Somentes pello
Cazo reContado | emSua pitiçaõ <L39, A.1, l.45-48, l.47>
Contexto 2: ericebio pelo dito[denunciante] o referido juramento | declarou dizendo quedava
adita denuncia do dito denunciado | Sem odio tensaõ ou vingansa, So Sim pelo Cazo
recontado emSua | petisaõ <L. 1461, A.4>
Contexto 3: erecebido por[elle] ditto juramento de | clarou debaxo delle queaprezentede |
nuncia que daua dodenunciado afazia | Sem dollo oumalicia alguma emenos | por rixa
ouvinganssa <L. 1460, A. 2>
Contexto 4: e recebido por [ellas] | odito juramento asim oprometeraõ fazer | cumprir
eguardar, como lhes era encarregado <L.1460, A. 40>
NEncl.: duas ações referentes ao juramento: primeira é do juiz que exige do querelante,
e a segunda é do queixoso, que aceita e faz o juramento.
Matriz: Ficar a mesma [x] deserta e não seguida passado ano e dia se tomar (y) por parte da
justiça.
UF: E ficar a mesma [querela] deserta e não seguida passado ano e dia se tomar (a acusazão)
por parte da justiça.
Pivô: querela
UF variante 1: E ficar a mesma [querela] deserta e não seguida passado ano e dia se tomar
(Ø) por parte da justiça.
Pivô: [ querela]
UF variante 2: E ficar a mesma [querela] deserta e não seguida passado ano e dia se tomar
(o feito e a acusazão) por parte da justiça.
Pivô: [querela]
385
UF variante 3: E julgar a [querela] deserta e não seguida e passado ano e dia ficaria
(o fato) tomado pela justiça.
Pivô: [querela]
Definição: Estado de abandono e sem validade que ficava a acusação quando os querelantes
não apresentavam as testemunhas no prazo estabelecido pela justiça.
Contexto 1: | eficar amesma [querela] dezerta enaõ Segui- | da epassado annoedia Setomar
(aCuzaçaõ ) por partedaJustissa <L.1460, A. 43>
Contexto 2: eficar amesma querela | dezerta enaõ Seguida epassado an | no edia Setomar (Ø)
porparte daJusti | sa aoque euescriuaõ Logo Satis <L.1460, A. 19>
Contexto 3: e ficar amesma querella dezerta | enaõ Seguida e pasado anno, e dia Se tomar (o
feito eaCuzaçaõ) por parte da Justisa o que euescrivaõ logo | Satisfis <L.1460. A. 13>
Contexto 4: edejulgar aque | rella pordizerta, enaõ seguida, eque | passado oanno edia ficaria
(o fato) to | mado porparte daJustica <L.1097 A. 10>
NL: Ficar deserta é o mesmo que abandonada e sem validade quando não havia testemunhas.
“Diz-se da apelação ou outro recurso que o recorrente não prepara para seguir seus termos no
prazo legal” (AULETE, 1986, p.555, verbete deserto). A querela ficaria deserta quando não
apresentadas as três testemunhas citadas no auto para se tomar seus depoimentos através do
sumário de testemunhas e, posteriormente, pronunciar do acusado no livro de rol dos
culpados.
NH: O Código Filipino determina que até 20 dias após a apresentação da querela os
denunciantes apresentem suas testemunhas.
[...] se os querelosos quizerem logo, tanto que dão as querélas, e lhes forem
recebidas, ou até vinte dias contados, do dia, que a queréla for recebida, dar ao
Julgador, que lha recebeo, trez, ou quatro testemunhas, perguntar-lhas-ha
secretamente com o Tabellião, que o escreveo, pólo conteúdo nella, sem a parte ser
para isso citada. (CODIGO..., 2004, p.1276).
Matriz: Para constar mandou o dito (...) fazer este [x]
UF: Para constar mandou o dito (ministro) fazer este [auto]
Pivô: auto
386
UF variante 1: Para constar mandou o (mesmo ministro) fazer este [auto]
Pivô: auto
UF variante 2: E de tudo mandou o dito (ministro) fazer este [auto]
Pivô: auto
UF sinonímia 1: Para constar mandou o dito (juiz) fazer este [auto]
Pivô: auto
UF sinonímia 2: Para constar mandou o (dito juiz) fazer este [termo]
Pivô: termo
Definição: Ato de confirmar a autenticidade e veracidade da denúncia apresentada no auto.
Contexto 1: edetudo para Cons | tar mandou odito (Menistro) fazer este | [auto] emque
asignou comoqueixozo <L.1460, A.46>
Contexto 2: eque pa | ra Constar, mandou odito (Juis) | fazer este [Auto] em que Com elle |
querellante assinou |<L.64, A.6, l.59-61>
Contexto 3: dequede tudo mandou o (dito Juis) fazer este [termo] emque aSinouCom o que
| relante <L.1461. A.3>
Contexto 4: edetudo mandou o (mesmo Ministro) fazer este [autto] em que asinou com o seu
| nome inteiro por naõ saber aqueixoza escrever <L. 1460, A.39>
Contexto 5: edetudo mandouodito (Ministro) fazer | este [autho] emoqual asignou comodito
Qua | relante <L. 1460, A. 50>
NL: Esta UF constitui uma fórmula de encerramento do auto, o qual é concluído com as
assinaturas do juiz e dos querelantes. Pragmaticamente, esta construção constitui um ato de
fala por meio da força ilocucionária do verbo mandar fazer proferido pelo representante da
justiça, que confere veracidade aos fatos narrados. A ordem da autoridade judicial se
expressa de forma explícita dirigida ao escrivão ou tabelião para esse fazer o documento no
qual se toma por verdadeiros os fatos denunciados, conforme todos os trâmites da lei.
Matriz: Assinar com o dito [x]
UF: Em que assinou com o dito [denunciante]
UF sinonímia 1: Em que assinou com o [queixoso]
UF sinonímia 2: Em que assinou com o [querelante]
387
Definição: Ato de o juiz ou corregedor assinar com o querelante no final do auto de querela
no fechamento do documento.
Contexto 1: emoqual aSignou com odito |[denunciante], eeu (...) Escrivaõ daCorreisaõ
oescrevy <L.1460, A. 47>
Contexto 2: emque aSignou Com | [odenunciante], eu (...)| esCrivaõ daCorreisam oesCrevy
<L.1460, A. 33>
Contexto 3: em que assignou o [queixozo] com o Ministro eeu (...)| Escrivaõ que o escrevi|
<L.33, A. 17, l.58-59, p.145>
Contexto 4: em que asignou [o quarellante Com o dito Juis] | eu (...) EsCrivaõ que o
esCrevj <L.1460, A. 11>
NL: Esta UF encerra o documento e certifica seu valor quando juiz e querelantes assinam e o
escrivão confirma ter escrito o documento. Constitui uma fórmula discursiva rotineira de
fechamento repetida em todos os autos.
NEncl.: É importante notar que todos os códices aqui estudados são originais e constam das
assinaturas verdadeiras, inclusive borrões ou traçados mal elaborados das letras de mãos
pouco hábeis ao trato da pena, revelando o grau de domínio linguístico dos querelantes.
Matriz: Assinar com [x] por não saber escrever.
UF: Em que assinou com o [queixoso] por não saber escrever.
Pivô: queixoso
UF variante 1: Em que assinou de nome inteiro pelas [queixosas e parteiras] não saberem
escrever.
UF sinonímia 1: Em que com [os querelantes] assinou por não saberem escrever.
Pivô: os querelantes
Definição: Ato de o juiz ou do corregedor assinar pelos querelantes no final do auto de
querela por esses serem analfabetos.
Contexto 1: emque | aSignou Com [oqueixozo] que por naõ saberes | crever aSignou dehuma
Crus, (...) esCrivam daCorreisam oescrevy. <L.1460, A. 14>
388
Contexto 2: emque asignou Somente pelas | ditas [queixoza eParteiras] naõ Saberem es |
crever <L.1460, A. 36>
Contexto 3: em que com o [querelante Pai] assignou e amulher por naõ | saber escreuer
assignou o Ministro de | Nome inteiro <L.33, A. 12, l.154-156, p.129>
Contexto 4: emque asignou | deNome inteiro por naõ Sabe | rem [asqueixozas, e as Parteiras]
| escreuerem <L.33. A.1, 1. 85-87, p.122>
Contexto 5: emque com [os querelantes] asignou, easmulheres por | naõ saberem escreuer
asignou o | mesmo Ministro deNome inteiro| <L.33, A. 10, l.192-194, p.121>
Contexto 6: emque aSignou denome | Inteiro pela [querelante] naõ | Saber Escrever
<L.1097, A. 3, l. 132-133, p.208>
Contexto 7: emquepella[dita queixoza] naõ saber Escrever assinou | denome Inteiro
<L. 64, A. 2, l.103-104, p. 157>
NEncl.: A assinatura do querelante e do juiz é o último passo do auto e é o que dá
autenticidade e veracidade ao documento. Quando os querelantes não sabem assinar, fazem de
cruz e o juiz assina por eles. Assim, não há texto sem assinatura.
7.2.10 Peça 10 Custas
Matriz: Custas para o [x]
UF: Custas para o [ministro]
UF variante 1: Custas deste auto para o [ministro]
UF Sinonímia 1: Custas para o [Doutor Ouvidor]
Definição: Pagamento relativo ao trabalho da autoridade judicial por todos os serviços
prestados.
Contexto 1: Custas para o Menistro
Destribuiçam eConta......................160
Auto................................................080 390
Juramento..................................... 150
<L. 1097, A. 12, l.120-123, p.245>
Contexto 2: Custas deste auto
389
Para oMenistro do Auto eDestribuisaõ ___160
Conta _________________________ 080
240
<L.1460, A.7>
NEncl.: A contabilidade do ministro não é dissociada da do escrivão e, para efeito de
exemplificação aqui tivemos que fragmentá-la.
Matriz: (Custas) para o [x]
UF: (Custas) para o [escrivão]
Definição: Pagamento dos valores relativos ao trabalho do escrivão por todos os serviços
prestados à justiça.
Contexto 1:
Escrivam
Auto............................................ 040
Juramento.....................................150
Selo e Raza ..................................140 1260
Selo eVestoria ............................. 080
Raza e Papel................................ 650
Certidam ...................................... 200 1650
<L.1097, A.12, l.125-130, p.247>
Contexto 2:
Escrivam
Auto_____________________________ 040
Raza___________________________ 470
510
240
750
Barros <L.1460, A.7>
390
NE: A palavra rasa significa, segundo De Plácido e Silva (2006), o pagamento total de
linhas manuscritas de uma escritura, que deve ser pago conforme os cálculos pela taxa
estabelecida para cada linha ou por um número certo de palavras. A rasa é, portanto, a
contribuição que corresponde ao trabalho do escrivão. Aulete (1986, p.1624, verbete rasa)
registra a expressão escrever à rasa que significa “escrever nos processos e autos por forma
que preencham um certo número de linhas com um certo número de letras em cada linha”.
NEncl.: A prestação de conta discrimina todos os valores para cada tipo de documento
escrito e o total das despesas do auto. Essa contabilidade pode ser diferente a depender do
conteúdo do auto. No primeiro contexto acima, são discriminados vários itens, mas no
segundo é bem mais simples. Vale dizer que nem todos os livros trazem essa prestação de
contas.
7. 3 Conclusão
A feitura deste glossário levou-nos a um profundo mergulho na história da
cultura e da sociedade colonial brasileira, especificamente, do Ceará. Ademais, por meio das
UFs, podemos vislumbrar o uso da língua portuguesa nos séculos XVIII e XIX, na
especificidade da linguagem jurídico-criminal.
Essa especificidade linguística era de domínio de um grupo muito restrito que
fazia parte da administração pública e seguia os rigores das normas estabelecidas. Escrivães,
tabeliães, juízes e ouvidores conduziam os processos criminais obedecendo aos cânones da
língua culta e aos rigores da Diplomática.
Nos dez temas que dividimos o glossário, correspondentes às dez partes dos Autos
de Querela, são manifestadas formas razoavelmente fixas de dizer as coisas que estabelecem
atos de fala de uma comunidade discursiva ou refletem o modo de organização diplomática
dos documentos analisado.
As UFs se distribuem em cada uma das partes dos autos e têm funções discursivas
relevantes para introduzir e encerrar uma peça, estabelecer um contato em forma de pedido,
estabelecer o tempo e o lugar da ação, identificar um sujeito participante e certificar a
validade do próprio documento.
Apesar da linguagem se caracterizar pelas rmulas fixas em cada etapa do texto,
destacamos a contradição que caracteriza essa linguagem, que é a falta de regularidade da
escrita. Há bastante variação nas estruturas das UFs por meio de supressão, inserção e
391
permuta dos seus elementos constituintes e pelo emprego de sinonímias, embora, lógico, não
altere a relação semântica.
As muitas formas de dizer e nomear as coisas nos documentos são reflexos do
saber de um povo que viveu em uma época do passado, embora não muito distante do
presente momento em que ora vivemos. através da leitura dos textos produzidos e da
interpretação linguística e filológica, torna-se possível adentrar nos meandros da cultura
daquela época e no espírito criador daquele povo. Por meio da linguagem em suas múltiplas
manifestações, podemos resgatar a herança social que essa linguagem representa, como é
retratado na epígrafe deste capítulo.
392
8 CONCLUSÃO
Não nenhum critério linguístico que estabeleça que um grupo esteja “errado”,
ainda que um grupo temporariamente dominante possa impor seus próprios usos
como “corretos”. O que na realidade ocorre mediante esses encontros críticos, que
podem ser muito conscientes ou percebidos apenas com certa estranheza e
desconforto, é um processo bastante central no desenvolvimento de uma língua
quando, em certas palavras, tons e ritmos, há significados que se propõem, se
buscam, se submetem a prova, se confirmam, se afirmam, se qualificam e se
modificam. Em algumas situações, esse é um processo realmente muito lento; é
preciso que transcorram séculos para que ele se mostre ativamente, por resultados,
com todo o seu peso. Em outras situações, o processo pode ser rápido,
principalmente em certas áreas fundamentais [...].
(WILLIAMS,2007, p.28)
Quando decidimos fazer uma viagem ao passado de uma sociedade, arriscamo-
-nos a encontrar muitos vestígios que revelam marcas de nossa identidade no momento
presente. A viagem pelos caminhos da história do Ceará, registrada nos textos judiciais,
revelou-nos o cotidiano cearense marcado pela violência denunciada e registrada nos vários
Autos de Querela. Quando olhamos para o momento histórico atual, vemos que não mudamos
muito no que diz respeito à criminalidade. Pari pasu com esse fato, sentimos também que a
ação pouco eficiente dos órgãos judiciais e políticos ainda é um traço de nossa história
passada, presente em tempos atuais.
A história provou que as vivências sociais mudaram. O jeito de pensar e de ver o
mundo é diferente, pois nada é estável, porém, constatamos que muitas coisas ainda se
conservam até nossos dias.
Viajar na história de um povo é também viajar na história de uma língua. Ou,
antes, seria viajar na história da ngua para se conhecer a história de um povo? Língua e
sociedade caminham juntas, pois uma é reflexo da outra, portanto, não podemos estudar a
língua e desprezar o meio social em que ela se desenvolve. A história registrada na escrita e
nos mais variados gêneros textuais de uma sociedade são documentos ricos das marcas
culturais características de diferentes momentos.
Os textos da esfera pública ou privada oferecem critérios de organização que se
firmam como modelos de escrita que a sociedade produziu e produz em suas práticas
culturais. Tais modelos são estabelecidos pela Diplomática, ciência desenvolvida no século
XVII, cuja finalidade é a averiguação da veracidade dos documentos emitidos pelas
autoridades.
393
É também por intermédio da Ciência Diplomática que são definidos os modelos
dos documentos. Por sua determinação são estabelecidos os padrões linguísticos a serem
usados nos vários gêneros textuais, como as expressões linguísticas, o xico e as múltiplas
formas de tratamento adequadas e muitos outros fatos.
São também os documentos fontes fidedignas que conferem o conhecimento das
manifestações sociais e culturais de um povo, expressas por meio de práticas sociais
colaborativas e interativas que integram a vida de uma dada comunidade.
No caso específico dos documentos produzidos no Ceará, podemos nos aproximar
de muitos fatos e dados que nos ajudam a construir nossa história. Embora essa história não
esteja muito distante e as fontes que a narram sejam escassas, não devemos descartá-las, pois
são fontes reveladoras de uma riqueza grande que possibilita a expansão do conhecimento em
diferentes aspectos. Em nossa pesquisa contemplamos os aspectos histórico-sociais retratados
nos Autos das Querelas praticadas no território da Capitania do Ceará, que nos revelaram
dados importantes da sociedade cearense referentes à criminalidade e a outras manifestações
da vida. Os aspectos filológicos foram caracterizados por meio da edição semidiplomática dos
documentos e pela interpretação dos textos de forma integral, considerando todos os aspectos
do contexto. Por sua vez, os aspectos linguísticos foram contemplados por meio da
organização do glossário das unidades fraseológicas, suas definições, seu sistema de notas e
muitos outros elementos que se enquadram no âmbito linguístico.
Os Autos de Querela aqui estudados abriram-nos as portas para o nosso passado e
nos mostraram um universo de pessoas, coisas, acontecimentos e atitudes. Mostraram-nos,
por meio das narrativas, o uso da língua portuguesa e as suas marcas de realização naquele
universo colonial brasileiro.
Os textos revelaram o cenário da Capitania do Ceará nos séculos XVIII e XIX,
com sua população distribuída pelas serras, pelos sertões, nas ribeiras dos rios e no litoral.
Essa população tinha seu jeito de ganhar a vida trabalhando em diversas atividades, sendo a
maioria constituída por agricultores e criadores de pequenos rebanhos de gados: vacum e
cavalar, conforme pudemos apurar nos dados fornecidos pelos escrivães e tabeliães. Era uma
população sem instrução e sem escola, em que a maioria das pessoas era analfabeta,
principalmente as mulheres. Nas vilas ou em seus termos (municípios), não havia atendimento
médico, sendo raro o cuidado com a saúde da população. Quem atuava nesse campo eram os
cirurgiões-barbeiros, que tinham apenas conhecimentos práticos e limitados para o exercício
da medicina, cuja função consistia em cuidar dos ferimentos da população. Outra categoria
leiga que atuava era a das parteiras (as comadres), figuras necessárias ao atendimento das
394
mulheres parturientes naquele momento. Elas agiam na hora mais crítica das mulheres,
ajudando-as a dar à luz, além de servirem também nas vistorias de moças defloradas,
auxiliando a justiça na apuração e certificação dos fatos denunciados.
No período colonial, o povo cearense vivia longe das autoridades responsáveis
pela administração e, consequentemente, longe de ser atendido por elas em suas necessidades
básicas. Mesmo assim, guardava a obediência à Vossa Majestade Fidelíssima, o Rei nosso
Senhor que Deus guarde e aos seus ministros. Acima do rei, a fé católica era a salvaguarda de
todos.
Contudo, nas ações delituosas desse povo, pudemos perceber a desobediência a
Deus e à autoridade. Os delitos constituíam-se de roubos de vacas e de outros animais, furto
de feijão e milho dos roçados e roubos de outros objetos. Sem temor de Deus e das justiças
de sua alteza real, havia delitos graves como: o assassinato violento de um coronel
fazendeiro, por exemplo, por motivo fútil ou por rixas velhas; sem temor a Deus e à religião,
um homem enganava uma moça, prometia-lhe casamento e depois que lhe “tirava a honra e
virgindade”, desaparecia sem cumprir a promessa. Tudo é relatado pela pena dos escrivães e
tabeliães.
Nas práticas delituosas, os criminosos se utilizavam de vários recursos, como de
palavras injuriosas e difamadoras, ou de instrumentos, dentre eles as armas de fogo, como
bacamarte, pistola, espingardas, ou armas brancas, facas, facões e instrumentos da lida diária,
como peias de animais, chicotes, cacetes, relhos etc.
Pelos quadros demonstrados ao longo deste trabalho, foi-nos possível fazer a
análise da realidade social cearense. A violência é uma marca desse passado. Outra marca é a
pobreza da população, cuja vida limita-se à lida do campo, pois era uma sociedade
exclusivamente agrária, vivendo dos recursos da agricultura e da pecuária. As poucas vilas
existentes, no Ceará, eram pequenos aglomerados distantes e sem estrutura urbana.
A Capitania do Ceará se desenvolveu no meio rural, longe da civilização. A
população estava sujeita a ataques de bandidos e vagabundos que perambulavam pelas
estradas. A fundação de vilas era uma forma de organizar o povo e dar-lhe mais proteção,
como também submetê-lo aos códigos sociais e jurídicos. Assim, foram se criando as vilas no
Ceará. No final do período colonial havia 18 vilas, duas comarcas e três juizados de fora.
A Capitania do Ceará se estruturou e se transformou em um Estado que conta hoje
com mais de oito milhões de habitantes, 184 municípios e sua capital ocupa o quinto lugar das
mais populosas do país, contando com mais de dois milhões e meio de moradores. Este é o
395
esboço muito sintético do cenário histórico-social do Ceará, do princípio de sua ocupação aos
dias atuais.
A edição de textos manuscritos é, sem dúvida, um grande serviço prestado.
Primeiramente aos próprios manuscritos, que passarão a ter vida mais longa, pois o texto
editado passa a ser consultado, poupando-se, assim, o manuseio dos originais. Em segundo
lugar, à comunidade acadêmica, que passará a ter acesso mais fácil à leitura dos textos, que
os originais são de difícil leitura para muita gente. Assim, a Filologia está cumprindo sua
tarefa principal de preservar os textos da destruição material, como lembra Lausberg (1963).
Editar textos fidedignos é preciso, diz-nos Cambraia (1999), para resolver
problemas de acesso ao manuscrito, pois editado em forma de livro pode-se conduzir para
outros lugares, aproximando-os dos interessados, que os manuscritos muitas vezes são
guardados em arquivos distantes. Estaria se resolvendo, também, o problema da preservação,
pois quanto mais o original é consultado, mais se desgasta. Por fim, estaria sendo resolvida a
questão do conhecimento técnico para a leitura de um manuscrito, pois muitos estudiosos não
têm interesse ou tempo de se debruçar sobre um texto antigo com sérios problemas, para fazer
a leitura dos manuscritos.
O estudo diacrônico de uma língua pode ser viabilizado por meio de edição
rigorosamente conservadora dos textos, mediante o máximo de informações sobre o texto,
reproduzindo, na medida do possível, todas as características do original.
É de grande importância a atividade filológica de edição dos manuscritos que
estão se extraviando em nossos arquivos. O texto transcrito oferece aos pesquisadores muitas
informações para estudos diversos em diferentes áreas do conhecimento, principalmente no
tocante ao estudo da língua.
A edição semidiplomática que fizemos dos 133 autos de querela registrados nos
seis códices selecionados, escritos entre 1779 a 1829, contribuiu imensamente para a
conservação desses códices que se encontram bastante gastos. O estudo desses documentos
por meio da descrição, análise e interpretação, fez reviver o passado guardado nas páginas
corroídas dos códices. Outra vantagem foi divulgar o conteúdo para o conhecimento público.
Esse conteúdo oferece dados para se analisar a história do Ceará sobre vários aspectos.
Em nosso estudo, descrevemos os elementos codicológicos, como o tipo de papel,
que é composto à base de trapos, a letra cursiva e a tinta ferro-gálica, que provoca
queimaduras por causa da ferrugem de sua composição, contribuindo, assim, para deteriorar
o papel. Anotamos o estado de conservação dos códices e suas dimensões, as manchas nas
396
folhas causadas pelo líquido derramado, enfim, todo o estado em que se encontram os códices
e os componentes que dificultam a sua leitura.
Quanto à ortografia dos autos, constatamos que uma forte tendência da grafia
fonética, em que os grafemas são tentativas de representações dos fonemas, conforme a
seguinte amostragem: Jezus, Rozario, axara, fis, Sinco, vingansa, fizece, Asumpçam,
exzemplos, Sirurgiaõ, õmem, abrasso. Os textos estão repletos desses tipos de ocorrências que
caracterizam o predomínio do aspecto fonético na escrita e a falta de regularidade, por não
haver uma norma fixa estabelecida. Há, também, realizações da ortografia etimológica ou
pseudo-etimológica pelo uso de consoante geminadas, emprego do grafema (y) por (i) ou por
(j), pelo (h) sem valor fonético, grupos consonânticos gregos e latinos, dentre outras
ocorrências: Cauallo, Villa, pellas, Aggressor, Querella, ahy, Boy, Theor, escripta, annos,
Motta, huma, Christo, delicto, offendido, Illustricimo, Thereza.
Os espaços entre as palavras quase não são respeitados e a traslineação é regrada
pelo espaço do papel, donde ocorre a separação silábica de forma estranha em alguns casos,
conforme os exemplos: Pede avo | ssa merç; eSendo a | hy prezente; o Alferes Ig | naçio
Ferreira deMell; principalmente perante vossa m | erçe senhor Juis ordinario;
aSuplicante domesmo Agg | ressor bem eVerdaddeira mente.
65
Em relação ao léxico, chamamos a atenção para as denominações referentes aos
diversos cargos da administração que, com as mudanças políticas e jurídicas, não existem
mais nos tempos modernos, por conseguinte, esse vocabulário caiu em desuso no estado atual
da língua. Conforme os seguintes registros: alcaide, almotacel, vintena, meirinho, juiz dos
órfãos, juiz ordinário. Arcaizaram-se também, nomes relativos a crimes, como aleivosia e
ratou; instrumentos: faca catana, parnaíba, flamenga, terçado, bacamarte, clavina; e
expressões do tipo: viver de suas agências, assistir na mesma casa, morar de portas a dentro,
levou da honra e virgindade, receberá mercê.
Na morfologia, destaca-se o uso da voz passiva analítica: epor ele foi dito que em
observancia do despaxo, aparece [x] com sua petição por escrita e despachada pelo dito juiz,
pella mesma foi dito que ella querellaua eDenunçiaua; uso do gerúndio: Escrivaõ doseo
Cargo fui vindo eSendo a | hy prezente o Capitaõ Jozé daSilva Alves.
Na sintaxe, muitos casos de inversão da ordem do sujeito em relação ao estado
atual da língua, conforme se observa nas seguintes ocorrências: Thomazia Francisca deSouza
mulher parda Viuvaque ficou deManoel Pereira do Reis, eSendo ahi presente odito Juis
65
A barra na vertical indica o final da linha, portanto, vemos alguns casos de translineação.
397
apareceo prezente Ignacio de Brito de Figueredo, ea rezaõ daSua Querella, eDenunçia
por que vindo oSuplicado para a caza deSua Madrasta.
Vemos, também, dados referentes à história da língua e, especificamente, à
história dos pronomes de tratamento, que pode ser elaborada a partir da leitura dos textos
escritos. Forma como vossa mercê, que teve o privilégio de ser atribuída ao rei, passou pelo
processo de mudança e aparece nos Autos de Querela empregada para os juízes ordinários.
a forma vossa senhoria, que substituiu vossa mercê no tratamento dos reis,
passou ao trato de juízes de fora e de corregedores de comarcas. Vossa alteza é sempre
direcionada ao príncipe regente nos registros dos autos porque corresponde ao período da
regência de D. João VI, durante o reinado de sua mãe, a rainha D. Maria I. Vossa Majestade
Imperial é a forma usada para D. Pedro I, após a Independência do Brasil e a implementação
do Império. Esses dados são importantes porque registram fatos de mudanças na história
política e, consequentemente, na história da língua, que são registrados nos documentos.
muitos outros elementos da história social do povo, expressos por meio da
língua que revelam o retrato da comunidade brasileira e cearense naquele período. Através da
leitura, edição e interpretação dos documentos, podemos adentrar nesta história e conhecer o
modo de pensar e de viver das famílias e suas maneiras de se relacionar com o mundo e com o
sagrado. Podemos conhecer, também, os tipos de atividades, os nomes das pessoas e das
localidades, a posição social etc. Tudo isso pode ser posto à luz por meio da edição filológica
dos textos que têm sua importância ímpar para a história de uma língua. Convém repetir que é
papel da Filologia resgatar e editar os textos, trazendo-os ao conhecimento de todos para os
diversos tipos de análise sob os múltiplos olhares e interesses
Linguisticamente, os Autos de Querela apresentam características importantes a
serem ressaltadas. A estrutura organizacional do gênero textual em apreço é bem estabelecida,
conforme critérios diplomáticos por seu aspecto jurídico. OAuto de Querela é uma peça de
um processo criminal composta por vários segmentos e outras pequenas peças. Ao todo,
foram divididos os autos em dez segmentos. Cada peça ou segmento caracteriza-se pelas
informações ali contidas, com funções bem específicas. Em cada um desses segmentos,
sobressaem-se unidades fraseológicas cuja função introduz ou encerra o conteúdo da peça. O
uso dessas UFs também segue padrões históricos e diplomáticos de organização textual.
Dessa forma respondemos às perguntas elaboradas no início deste trabalho. As
UFs foram estabelecidas formalmente conforme regras diplomáticas, com a finalidade de
manter um padrão organizacional típico que identifica o texto jurídico. Em outras palavras,
seguem modelos preestabelecidos de uniformização dos textos. Além de exercerem função
398
específica nas etapas dos processos, há algumas usadas no corpo dos documentos que mantêm
a coerência formal padronizada pelo modelo de texto.
A variação é uma marca forte das UFs, sobretudo no aspecto gráfico e na ordem
sintática. Esse último aspecto caracteriza-se por meio de inserção, de supressão e de permuta
de elementos linguísticos na composição estrutural das UFs. É, portanto, a variação a
principal marca a ser observada nos documentos, apesar dos parâmetros impostos pela
linguagem formal da instituição jurídica.
Talvez sejam explicadas as marcas variacionais pelo estilo de cada escrivão ou
mesmo pelo grau de competência e domínio linguístico desses profissionais da administração
pública colonial. A nosso ver, outros fatores que poderiam contribuir para que a linguagem
não se apresentasse rigorosamente, apesar dos padrões diplomáticos, seriam o distanciamento
em relação à metrópole e a ausência dos órgãos da chancelaria régia em primeiro lugar.
Precisamos também considerar que a justiça estava mais a cargo dos juízes ordinários das
vilas, que pouco conhecimento tinham do Direito e da linguagem jurídica. Os juízes de fora,
nutridos no Direito Romano, eram poucos até o final do período colonial no Ceará, apenas
três. Os corregedores das comarcas eram somente dois. Significa dizer que a administração da
justiça estava sob a responsabilidade dos juízes ordinários, geralmente leigos, e dos escrivães
e tabeliães que manipulavam a escrita. Estas razões de ordem estrutural do sistema colonial,
provavelmente, interferiam nos usos da língua.
A linguagem aqui estudada é duplamente especializada por pertencer ao sistema
jurídico colonial brasileiro, sendo de domínio de uma comunidade específica, constituída por
poucos que detinham o conhecimento da língua e das leis. Outros aspectos que a torna
específica é o fator cronológico, ambientado nos séculos XVIII e XIX, com as marcas
próprias da época.
O emprego de UFs é bastante recorrente e funcional. Como dito antes, as UFs são
formas estabelecidas pela Diplomática e são encarregadas pela composição coerente do
modelo de documento. Caracterizam-se como formas discursivas rotineiras de aberturas e de
fechamento dos segmentos das peças que mantêm o fluxo informativo, situando os fatos no
tempo e no espaço. Expressam, também, elos comunicativos com as autoridades a quem se
destinam os textos. Referem-se às leis, justificam os motivos das queixas apresentadas,
caracterizam as pessoas envolvidas, expressam, enfim, muitas outras funções que as tornam
pragmaticamente necessárias.
Muitas UFs são especificamente da linguagem jurídico-criminal, o que garante o
seu grau de pertinência temática. Outras, porém, não são de uso restrito da linguagem jurídica,
399
pois têm emprego frequente em diversos documentos da época. No entanto, seu uso no texto
especializado dos Autos de Querela tem caráter pragmático de extrema importância por
contextualizar os acontecimentos e caracterizar os fatos.
Foram consideradas UFs neste tarbalho, todas as realizações linguísticas
razoavelmente fixas e de frequência mais ou menos alta e, principalmente, pela função
desempenhada nas determinações diplomáticas e nos aspectos sócio-históricos e culturais que
revelam realidades extralinguísticas, permitindo-nos conhecer as vivências e o mundo naquele
espaço geolinguístico e político do Ceará e da sociedade colonial brasileira.
Quanto à classificação, as UFs se distribuem em colocações, coligações e
enunciados fraseológicos, conforme classificação de Corpora Pastor (1994) e Tagnin (2005).
Preferimos considerar todas estas formas de realização do fenômeno.
Segmentamos os autos em partes, conforme descrito. Dessa forma, podemos
estabelecer qual o segmento apresenta maior recorrência de UFs e qual a estrutura
organizacional é mais frequente.
Destacamos aqui a peça número 5 Relação das Testemunhas em que se
caracterizam os sujeitos arrolados nos autos, principalmente quanto ao ofício ou profissão. A
estrutura organizacional das UFs se configura pelos colocados, formados a partir de quatro
modelos estruturais que têm como base o verbo viver. Dessa forma temos:
1) viver + preposição + verbo ser + adjetivo ou substantivo: vive de ser criador de gados.
2) viver + preposição + substantivo: vive de mercadorias; vive de suas agências.
3) viver + locução prepositiva + locução prepositiva: vive do ofício de ferreiro.
4) viver + preposição + verbo ser + adjetivo + preposição + adjetivo: vive de ser oficial de
ferreiro.
Estas UFs não atingem o critério de pertinência temática em relação à linguagem
especializada, por conseguinte, não apresentam pivô terminológico. Porém, as testemunhas
são de grande importância jurídica para o andamento dos processos. A identidade dessas
pessoas deveria ser bem especificada, conforme determinam as Ordenações Filipinas, para
que não houvesse engano quanto à verdadeira pessoa apresentada para testemunhar, evitando-
-se, assim, falsidade de identificação.
As demais peças e segmentos apresentam UFs com estruturas diferenciadas,
constituindo colocações, coligações e enunciados fraseológicos. No segmento 3 da peça 1,
400
quando é introduzido o contexto da querela, a fórmula rotineira que situa o tempo e o espaço
do registro da queixa Ano do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de (...), apresenta alta
frequência, aparece na totalidade dos autos e obedece sempre a mesma estrutura
organizacional.
No encerramento da peça 2, que se caracteriza pelo registro da petição, a fórmula
rotineira discursiva receberá mercê estabelece um elo comunicativo muito direto com a
autoridade a quem se destina o conteúdo da querela e de quem se espera receber um favor, ou
seja, de que a justiça seja feita.
Retomamos aqui o conceito de tradições dicursivas apresentadas neste trabalho
como algo que se repete e evoca uma situação enunciativa cheia de significado. Por esse
motivo, consideramos as UFs do jurídico-criminal usadas nos Autos de Querela tradições
discursivas de uma época e, especificamente, de um grupo restrito no uso de suas práticas
judiciárias.
Este trabalho não teve a pretensão de ser completo, pois sabemos que jamais
faremos uma pesquisa sem deixarmos lacunas e, neste, muitas. Uma delas diz respeito às
unidades simples que serão objeto de trabalhos posteriores. Muitas outras questões que não
foram abordadas ou aprofundadas aqui, serão desenvolvidas em outros momentos como
projetos de iniciação científica ou artigos diversos.
Contudo, entendemos que com este trabalho de resgate dos textos e de sua edição,
que nos posibilitou a interpretação e a análise ampla tanto linguística como extralinguística,
incluindo o dados históricos, sociais e culturais de um povo e de uma época, tenhamos
corroborado para a confirmação dos estudos filológicos no Estado do Ceará e contribuído para
a consolidação desses estudos no Brasil.
401
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