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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA
PATRÍCIA LANA PINHEIRO
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE ALUNAS DO PROJETO SESC LER DE
FORTALEZA SOBRE SEU PROCESSO DE APRENDIZAGEM INICIAL E FORMAL
DA LECTOESCRITA: UMA ANÁLISE INTERTEXTUAL E INTERDISCURSIVA
FORTALEZA
2010
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1
PATRÍCIA LANA PINHEIRO
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE ALUNAS DO PROJETO SESC LER DE
FORTALEZA SOBRE SEU PROCESSO DE APRENDIZAGEM INICIAL E FORMAL
DA LECTOESCRITA: UMA ANÁLISE INTERTEXTUAL E INTERDISCURSIVA
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de
Pós-Graduação em Linguística, da Universidade Federal
do Ceará, como requisito parcial para a obtenção do
título de Mestre em Linguística.
Área de Concentração: Práticas Discursivas e Estratégias
de Textualização.
Orientadora: Profa. Dra. Sandra Maia Farias
Vasconcelos
FORTALEZA
2010
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P721r Pinheiro, Patrícia Lana.
Representações sociais de alunas do Projeto SESC Ler de
Fortaleza sobre seu processo de aprendizagem inicial e formal da
lectoescrita: uma análise intertextual e interdiscursiva./ Sandra
Maia Farias Vasconcelos. – Fortaleza, 2010.
110f.:il.31 cm.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Ceará.
Programa de Pós-Graduação em Linguística, Fortaleza (Ce),
2010.
Orientação: Profa. Dra. Sandra Maia Farias Vasconcelos.
1- REPRESENTAÇÃO SOCIAL. 2- ANÁLISE DO DISCURSO. 3-
INTERTEXTUALIDADE. 4- LETRAMENTO. 5- ENSINO DA LEITURA .
6- ENSINO DA ESCRITA. I- Vasconcelos, Sandra Maia Farias (Orient.). II-
Universidade Federal do Ceará. Programa de Pós-Graduação em Lingüística.
III- Título.
CDD: 372.4
2
PATRÍCIA LANA PINHEIRO
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE ALUNAS DO PROJETO SESC LER DE
FORTALEZA SOBRE SEU PROCESSO DE APRENDIZAGEM INICIAL E FORMAL
DA LECTOESCRITA: UMA ANÁLISE INTERTEXTUAL E INTERDISCURSIVA
Esta dissertação foi submetida ao Programa de Pós-Graduação em Linguística como parte dos
requisitos necessários para a obtenção do grau de Mestre em Linguística, outorgado pela
Universidade Federal do Ceará, e encontra-se à disposição dos interessados na Biblioteca de
Humanidades da referida Universidade.
Dissertação defendida e aprovada em 12/ 02 /2010.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Sandra Maia Farias Vasconcelos (UFC)
(Orientadora)
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Lia Matos Brito de Albuquerque (UECE)
(1ª Examinadora)
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)
(2ª Examinadora)
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Margarete Fernandes Sousa – (UFC)
(Suplente)
3
À memória de minha avó Rita Silva Lana.
4
AGRADECIMENTOS
“A gratidão é a memória do coração”. Nele vocês habitam e, com ele, penso,
carinhosamente, em cada um. Muito obrigada por tudo!
A meus pais, Nelson e Andréa, devo tudo - a vida, a minha alegria de existir, a minha
construção. Vocês são muito mais do que base. Vocês são o amor mais bonito e pleno, o que
move e acompanha todos os meus passos;
Ao Cado, presente do acaso que ganhei para preencher minha vida de luz, e torná-la
muito melhor, e à Rê, que, com seu sorriso sempre aberto, chegou também como presente
tornando-se parte de nossa família;
A todos os meus familiares, que são refúgio, aconchego e muita alegria;
Ao Argus, sinônimo de companheirismo, de carinho e de apoio. Você foi
fundamental para eu ter conseguido continuar;
A meus amigos-irmãos Kennedy, Neto, Flávia, Suele e Paloma, minha família de
Fortaleza, de quem tenho a certeza da mais sincera amizade, e com quem pude contar
inúmeras vezes. Vocês são sol e braços abertos e, por isso, essenciais;
Aos demais colegas do mestrado, uns mais próximos, outros mais distantes, mas
sempre solidários e dispostos a ajudar no que fosse preciso;
A meus amigos “paperstreetianos” e à família Batista, pela companhia constante,
pela amizade e pelos ótimos momentos vividos juntos;
À família Nojosa, pela calorosa acolhida em Fortaleza;
À professora Bernardete, ao Vandi, à Desi, ao Igor e ao Evilásio, à Vivi e à Elaine,
amigos tão queridos e especiais;
Aos alunos e colegas da Casa de Cultura Britânica da UFC, por tanto terem me
ensinado e me brindado com um trabalho sério e competente que mais me parecia lazer, de
tão bom;
À professora Sandra, pela orientação e dedicação a mim ao longo desses meses de
pesquisa;
À professora Mônica, que, ao me estender sua mão, retirou todas as pedras do
caminho, presenteando-me com sua amizade;
À professora Lia, por tão gentilmente ter aceitado o convite de participar da banca de
minha defesa;
5
À professora Eulália, pelo tempo de orientação a mim dedicado e pelas contribuições
na banca de qualificação;
Ao GELDA, em especial à Glenda e à Camila, que me ajudaram nas transcrições dos
dados;
Ao Eduardo, nosso funcionário no PPGL, por ser sempre tão disposto, competente e
prestativo;
A todos os que, de uma forma ou de outra, fazem parte de minha vida e me
acompanharam neste processo;
À FUNCAP e à CAPES, pelo apoio financeiro, fundamental para a dedicação a esta
pesquisa.
6
RESUMO
Em nosso trabalho, investigamos as representações sociais construídas por cinco alunas da
educação de jovens e adultos do Projeto SESC Ler de Fortaleza acerca de seu processo de
aprendizagem formal e inicial da leitura e da escrita, bem como de aspectos que tal processo
envolve, como, por exemplo, a vida sem saber ler e escrever. Com o intuito de aproximar
campos teóricos diferentes - a teoria das representações sociais de Serge Moscovici (2007), a
Análise do Discurso de linha francesa e os pressupostos da intertextualidade de Genette
(1982), revistos por Piègay-Gros (1996) - tomamos as representações sociais como práticas
discursivas, na medida em que ambas orientam as ações dos sujeitos, ancorando-se na
memória discursiva e na memória coletiva para se constituírem através de um constante
dialogismo entre os diversos textos e discursos já existentes. Para analisá-las, delimitamos os
espaços discursivos que nos foram relevantes por meio da seleção de trechos dos relatos das
alunas e verificamos as posições discursivas assumidas em suas enunciações. A partir daí,
recorremos às relações de copresença de alusão e de citação, para, através delas, em uma
análise qualitativa intertextual e interdiscursiva, identificarmos as representações sociais
formadas. Ao todo, foram encontrados onze aspectos que caracterizam as representações
sociais, sendo três representações como núcleo central e oito características embasadoras,
organizadas conforme as noções de sistema central e periférico (ABRIC, 1994). As alunas
discorrem sobre o que as levaram a voltar para a escola, sobre as motivações para aprender a
ler e a escrever, sobre o que a aquisição da leitura e da escrita promove, sobre como é a vida
sem saber ler e escrever, dentre outras representações construídas.
Palavras-chave: Educação de Jovens e Adultos; Representações Sociais; Memória Discursiva;
Memória Coletiva; Alusão; Citação.
7
ABSTRACT
In our research we investigate the social representations built by five students of a project
called SESC Ler, in Fortaleza, about their initial and formal process of learning how to read
and write, as well as about some aspects that this process involves, as living without knowing
how to read and write. Aiming the approximation of different theoretical fields - Serge
Moscovici’s (2007) theory of Social Representations, the Discourse Analysis of French
orientation, and Genette’s (1982) intertextuality purposes, reviewed by Piègay-Gros (1996) -
we consider the social representations as discursive practices, because both orientate the
action of the persons and both lean on the discursive and collective memories to be built
through a constant dialogism among the several texts and discourses which already exist. To
analyze them, we delimited the relevant discursive spaces of the students’ narratives and we
verified the discursive positions they assumed in their enunciations. Then, through a
qualitative intertextual and interdiscursive analysis using the copresence relations of allusion
and quotation, we identified eleven different aspects which characterize the social
representations; from them we identified three social representations and eight characteristics
that support them, which were organized according to the notions of central and peripheral
systems (ABRIC, 1994), and which verse about the initial and formal process of learning how
to read and write as a whole. The students relate about what made them come back to the
school, about the motivations of learning how to read and write, about what the acquisition
that reading and writing promote, as well as about life without knowing how to read and write
and other social representations which were built.
Keywords: Education for Young and Adult Students; Social Representations; Discursive
Memory; Collective Memory; Allusion; Quotation.
8
SUMÁRIO
RESUMO....................................................................................................................
06
ABSTRACT................................................................................................................
07
INTRODUÇÃO...........................................................................................................
09
1 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS DE SERGE MOSCOVICI 22
1.1 Pensamento, linguagem, língua e sociedade.......................................... 22
1.2 A herança da Sociologia de Durkheim................................................... 25
1.3 A Psicologia Social de Moscovici.......................................................... 28
1.3.1 Universo consensual e universo reificado............................... 32
1.3.2
A natureza convencional e prescritiva das representações
sociais......................................................................................
34
1.3.3 As faces icônica e simbólica das representações sociais......... 35
1.3.4 Os processos de ancoragem e de objetivação.......................... 38
2 A ANÁLISE DO DISCURSO E A INTERTEXTUALIDADE...................... 41
2.1 Formações Discursivas........................................................................... 44
2.2 Genette e sua Transtextualidade............................................................. 48
2.2.1 Transtextualidade por intertextualidade restrita...................... 49
2.2.2 Os demais tipos de transtextualidade...................................... 53
2.3 O primado do interdiscurso.................................................................... 56
3 METODOLOGIA.............................................................................................. 60
4 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS IDENTIFICADAS................................ 67
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 100
REFERÊNCIAS.......................................................................................................... 103
9
INTRODUÇÃO
Em nossa investigação, temos o intuito de pesquisar as representações sociais
(MOSCOVICI, 2007), objeto de estudo da Psicologia Social, que cinco alunas
1
da Educação
de Jovens e Adultos (EJA) do Projeto SESC Ler de Fortaleza constroem acerca do processo
de aprendizagem formal e inicial da leitura e da escrita, o que implica criar, também,
representações sociais sobre o que esse processo envolve, como a vida sem saber ler nem
escrever, bem como sobre os diversos sentimentos provocados pela exclusão social advinda
do analfabetismo (FERRARO, 2002). Entretanto, por se tratar de uma pesquisa do âmbito da
Linguística, tomamos as representações sociais como práticas discursivas (MAINGUENEAU,
2007), em que as formações discursivas são inseparáveis das comunidades discursivas que as
produzem.
Várias representações sociais podem surgir de um mesmo grupo. Em se tratando
de alunos de EJA, em específico dessas cinco alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza, isso
não ocorre de maneira diferente. Diversas representações sociais são construídas por elas,
como, por exemplo, o fato de serem concebidas como indivíduos que são excluídos da
sociedade em que vivem.
O pensamento inicial, pois, para a realização deste estudo, foi um desejo de se
trabalhar com jovens e adultos em fase de alfabetização, devido aos índices alarmantes de
analfabetismo ainda hoje presentes em nosso país. Segundo Ferraro (2002, p. 32), o
analfabetismo se configura como “[...] uma forma extrema de exclusão educacional,
geralmente secundada por outras formas de exclusão social”. Esses índices parecem
contraditórios quando se voltam os olhos para Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, que garante o direito à educação básica para todos os cidadãos, bem como para a
Nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, criada em 1996 (LDB número
9394/96) e vigente até hoje, a qual confirma o direito de educação a jovens e adultos,
tornando a EJA uma modalidade da Educação Básica, cuja premissa é ser adequada às
condições e às necessidades particulares dos indivíduos que a compõem (UNESCO, 2008).
1
Não houve preferência pelo sexo feminino em nossa análise. A turma de alunos que pesquisamos era mista,
mas somente indivíduos do sexo feminino não eram fluentes na leitura e na escrita, o que formou o universo de
pesquisa de nossa análise.
10
Porém, de acordo com a Síntese de Indicadores Sociais de 2008 do IBGE
2
, ainda
existem 14,1 milhões de analfabetos com idade acima de quinze anos no Brasil, número este
que já foi reduzido de 14,7% para 10%. Percebe-se, portanto, que o problema do
analfabetismo continua presente, o que faz com que políticas e programas de inclusão social
na educação estejam sempre atuais. A partir dessas constatações, começamos uma vasta
revisão de literatura sobre estudos realizados sobre o assunto, em uma perspectiva de
letramento, a fim de delimitarmos nosso tema de pesquisa.
Encontramos diversos trabalhos, sobre a EJA, que dizem respeito ao âmbito da
educação (COSTA, 2006; MOURA; RIBEIRO; VÓVIO, 2002; OLIVEIRA, 1999; XAVIER,
s/d), do ensino (KLEIMAN, 2007), e da formação de professores (ANTUNES; KLINKE,
2005; BRASILEIRO, 2005; FREITAS, 2007; LIMA, 2001; MAGALHÃES, 2008), o que nos
fez notar que o aluno era pouco valorizado. Quando nos deparamos com essa constatação,
decidimos trabalhar com representações sociais, abordando a perspectiva do aluno de EJA.
Todavia, com o objetivo de confirmarmos a existência da lacuna que pretendemos preencher
com nossa investigação, continuamos em nossa busca de outros trabalhos já realizados e
perpassamos algumas pesquisas recentes sobre o estudo das representações no ensino.
Sobre elas, encontramos trabalhos em EJA que abordam imagens de si e
expectativas dos alunos (BARBOSA, 2005; GARCIA, 2004), representações dos professores
e de alunos, inclusive de professores de EJA (BECEVELLI; REIS, 2007; CABANELAS;
CÂMARA; CAPANEMA; LIMA, 2007), e representações de professores de língua
estrangeira (NASCIMENTO, 2008), mas nada sobre como representações sociais de alunos
de EJA acerca do processo de aprendizagem formal e inicial da lectoescrita são analisadas.
Ademais, não encontramos pesquisas realizadas na área sob o viés teórico de que lançamos
mão, que são a teoria das representações sociais de Moscovici (2007), a Análise do Discurso
de orientação francesa, e os pressupostos da intertextualidade de Genette (1982), revistos por
Piègay-Gros (1996).
De todos os estudos consultados em nossa revisão, centramo-nos, aqui, naqueles
sobre representações de alunos e professores acerca de questões relativas à educação, os quais
possuem, efetivamente, ligação maior com nossa pesquisa, e nos quais, especificamente,
2
Fonte:
<http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1233&id_pagina=>.
Acesso em 21.12.2009.
11
identificamos a lacuna que pretendemos preencher com nosso estudo, a partir da delimitação
de nosso tema.
Garcia (2004), em sua dissertação, baseando-se em concepções dialógicas
bakhtinianas e no paradigma indiciário de Ginzburg (1991), na tentativa de compreender o
outro a partir do que ele diz, pesquisa nove alunos jovens e adultos, estudando suas vozes,
vida, expectativas, e as motivações que os levaram para a sala de aula, quer seja retornando à
escola, ou iniciando, seus estudos. Os dados foram coletados por meio de narrativas,
questionários e conversas através de grupos focais, cuja análise se centra sobre a linguagem
no processo de constituição dos sujeitos.
Os resultados revelam a necessidade dos alunos de terem o ensino voltado para as
suas vivências, a consciência de que a escola não é uma fórmula mágica que solucionará
todos os seus problemas, e também a importância que dão às suas experiências de vida. Os
resultados mostram, ainda, que os alunos buscam o ensino formal por considerarem a
alfabetização como uma valorização da imagem social, além de procurarem o prazer de
aprender e de obterem maior convivência social na medida em que frequentariam uma sala de
aula.
Finalizando, a autora enfatiza as dificuldades, alegrias, angústias e esperanças que
esses alunos possuem, denotando que querem muito mais do que decodificar: eles gostariam
de se alfabetizar letrando, ou seja, de aprender “a ler e a escrever no contexto das práticas
sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo,
alfabetizado e letrado” (SOARES, 2006, p. 47, grifos da autora). Esse trabalho nos mostra a
relevância de se considerarem as histórias de vida de alunos da educação de jovens e adultos
em seu processo de aprendizagem formal da leitura e da escrita, e como suas expectativas
podem influenciar no sucesso desse processo.
Em uma perspectiva semelhante, mas pautando-se por teorias de base linguística,
Barbosa (2005) analisa a autoimagem de alunos alfabetizandos jovens e adultos a partir de
seus discursos, baseando-se nas noções de face e de polidez de Goffman (1967) e de Brown e
Levinson (1987), com o intuito de examinar como eles relacionam a imagem que possuem de
si com a condição de serem aprendizes da escrita, bem como as identidades que são
permeadas por tais faces. Para tal, a autora observa em que medida esses alunos relacionam o
12
aprendizado da escrita a expectativas criadas ligadas à imagem que têm de si, à imagem que
desejam para si e à imagem que outros indivíduos já alfabetizados fazem deles.
O foco do estudo consiste nas avaliações que esses sujeitos fazem da experiência
vivida como alunos de um curso de alfabetização de jovens e adultos de uma escola de Recife,
Pernambuco, como também de suas experiências anteriores enquanto sujeitos ainda não
alfabetizados. Como a sociedade letrada
3
em que vivemos supervaloriza a escrita, gera-se
preconceito em relação aos não-alfabetizados
4
, que, por sua vez, criam expectativas ligadas à
imagem que têm de si bem como à imagem que é feita sobre eles, as quais resultam de fatores
sociais e pessoais, na medida em que a escrita revela expectativas que englobam práticas
sociais maiores do que a comunicação por meio da oralidade.
O corpus é formado por entrevistas audiogravadas, cujas perguntas versavam
sobre a importância da leitura e da escrita na vida dos alunos, sobre suas sensações antes e
depois de terem contato com a escrita, sobre como é a convivência com pessoas que sabem ler
e escrever, e como se comportam quando requisitados para utilizarem a escrita, como, por
exemplo, ao preencherem algum formulário.
Os resultados mostram que esses alunos da educação de jovens e adultos são
envolvidos por ambas as faces, positiva e negativa, que se relacionam diretamente com sua
identidade. Para eles, a escrita constitui um bem que representa uma imagem favorável de si,
despertando também autoconfiança perante os outros, além de possibilitar autonomia em
relação a práticas sociais da vida privada e pública.
3
De acordo com Tfouni (2005, p. 24), “o iletramento não existe, enquanto ausência total, nas sociedades
industrializadas modernas”.
4
Preferimos não utilizar a palavra “analfabeto” ao nos referimos àqueles indivíduos que ainda não aprenderam a
ler e a escrever, devido à carga negativa que tal palavra traz consigo. Chamamos a atenção para a observação de
Soares (2006) ao apontar que, no dicionário, temos a palavra “alfabetização”, que é a ação de alfabetizar, ou seja,
de tornar o indivíduo “alfabeto”, sendo que esta última palavra não é dicionarizada como adjetivo, em contraste
com seu antônimo, “analfabeto”. Segundo a autora, “temos a palavra negativa, mas não temos a positiva” (p. 31).
Tal palavra, a negativa, significa “aquele que não conhece o alfabeto, que não sabe ler e escrever”, sendo que
analfabetismo seria “um estado, uma condição, o modo de proceder daquele que é analfabeto” (SOARES, 2006,
p. 30, grifos da autora). No entanto, será que o analfabeto realmente procede como se não soubesse nada sobre
leitura e escrita? De acordo com Soares (2006), isso não acontece, porque ler consiste, antes de tudo, em uma
situação discursiva. Assim, folhear um livro, mesmo que não se entenda uma palavra do que ele traz, já faz parte
do ato de ler. Portanto, saber o que é um livro, ou uma bula, ou uma placa informativa, já faz parte de uma
prática social de leitura e de escrita. Sob essa perspectiva, não é possível haver iletramento nas sociedades
modernas, como postula Tfouni (2005), porque, a todo momento, temos contato com letras, palavras e com os
suportes em que aparecem. Devido a isso, preferimos denominar de “não-alfabetizados” aqueles sujeitos que
ainda não dominaram a tecnologia da leitura e da escrita, inferindo que eles entendem o que é o ato de ler e de
escrever, em vez de denominá-los de “analfabetos”, o que denota a grande exclusão social sofrida por eles, qual
seja a de não pertencer à sociedade letrada em que vivem.
13
Por meio dos relatos, percebe-se que a necessidade desses estudantes de
aprenderem a ler e a escrever volta-se para sua autoimagem no que concerne à expectativa de
construção de uma identidade que lhes garanta autonomia e aprovação social em se tratando
de práticas de leitura e de escrita. Os sujeitos reclamam da ausência dessa autonomia,
sentindo-se humilhados e tentando mascarar tal humilhação por não saberem ler e escrever.
A autora conclui sua pesquisa corroborando o quão importante é a forma como
alfabetizandos jovens e adultos se veem no processo do ensino e da aprendizagem da escrita,
constatando que aprender a ler e a escrever realmente proporciona autonomia para que
alcancem suas expectativas pessoais e sociais. Ademais, a autora discorre sobre como o
conceito de imagem se imbrica com o conceito de identidade, e que a autoimagem positiva é
condição para um processo de leitura e de escrita que assuma a identidade desses alunos,
dependendo das oportunidades que lhes são dadas de se sentirem capazes de aprender a ler e a
escrever.
Consideramos esse trabalho o que mais se assemelha ao que pretendemos realizar,
por se tratar de representação, no caso imagem de si, por parte dos alunos, a despeito de o viés
linguístico ser outro. A autora afirma que o fato de poderem ver a si mesmos possui bastante
relevância ao longo do processo de aprendizagem da escrita, e que as práticas em que se
inserem devem promover sua autonomia para que, assim, possam realizar expectativas
pessoais e profissionais.
Os dois trabalhos até então mencionados revelam a necessidade de se conhecer o
aluno para que o processo de ensino e de aprendizagem se consolide de maneira mais efetiva.
No caso de alunos jovens e adultos, que lidam com a exclusão social e com a marginalização
por serem sujeitos não-alfabetizados, e por fazerem parte de uma minoria na sociedade,
conhecê-los melhor é fundamental para que se percebam frente a esse processo e para que
vivenciem todos os benefícios que o acesso à leitura e à escrita pode promover.
Portanto, a partir da leitura de todos os estudos que pesquisamos, em especial
desses dois últimos, conseguimos delimitar o tema de nossa pesquisa. Trabalhamos em uma
perspectiva semelhante à deles, porém com uma base teórico-metodológica diversa. Dessa
maneira, pretendemos analisar como os alunos de EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza
representam socialmente seu processo de aprendizagem formal e inicial da leitura e da escrita,
ou seja, nosso intuito é investigar como eles veem esse processo, como se veem diante desse
14
processo, e como veem os demais aspectos relacionados a esse processo, por exemplo, a vida
sem saber ler e escrever
5
.
Recorremos, então, a uma tentativa de associação da teoria das representações
sociais de Serge Moscovici (2007) com os pressupostos da Análise do Discurso de orientação
francesa (AD), principalmente acerca das questões sobre o Primado do Interdiscurso
(MAINGUENEAU, 2007). Recorremos, ainda, para a análise de nossos dados, aos
pressupostos teóricos da intertextualidade de Genette (1982), revistos por Piègay-Gros (1996),
quais sejam as relações de copresença de alusão e de citação. Por fim, organizamos as
representações sociais e os aspectos que elas envolvem consoante as noções de sistema central
e periférico, de Abric (1994).
O objetivo geral de nossa investigação consiste em analisar as representações
sociais que alunas de EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza constroem sobre o processo
inicial de aprendizagem formal e inicial da lectoescrita e sobre os aspectos que ele envolve.
Os objetivos específicos são analisar, nos relatos selecionados dessas alunas, que são os
espaços discursivos delimitados para nossa investigação, as posições discursivas assumidas
quando de suas enunciações; confirmar que as relações de copresença de citação e de alusão
(GENETTE, 1982; PIÈGAY-GROS, 1996) se configuram em formas de ancoragem na
memória coletiva e na memória discursiva, processo essencial na formação das representações
sociais, explicitando o dialogismo; e identificar as representações sociais construídas e os
aspectos que as embasam por meio dessas relações de copresença.
A hipótese básica é a de esses alunos se sentirem marginalizados na sociedade em
que vivem por não saberem ler nem escrever, o que os levaria a procurar a escola numa
tentativa de inclusão social. As demais hipóteses seriam as seguintes:
a) as posições discursivas assumidas por esses alunos, nos relatos selecionados,
são as de sujeito não-alfabetizado e de sujeito aprendiz iniciante formal da lectoescrita;
5
Ressaltamos que nossa perspectiva teórica não se confunde com estudos relacionados ao ethos. As
representações sociais, além de simbólicas, são icônicas, ou seja, a construção de representações sociais pode ser
a construção de imagens por um grupo. Contudo, essas imagens podem ser construídas sobre qualquer aspecto
do mundo e da realidade, e não necessariamente à imagem do enunciador efetivo, denominada fiador, construída
pelo coenunciador a partir do tom do discurso de quem enuncia (MAINGUENEAU, 2007).
15
b) a alusão e a citação são formas de ancoragem na memória discursiva e na
memória coletiva, corroborando o dialogismo existente entre os textos e discursos produzidos
em sociedade;
c) são objetivadas, a partir da ancoragem nas memórias discursiva e coletiva,
representações sociais diversas acerca do processo de aprendizagem da lectoescrita,
embasadas por aspectos que ele envolve, no caso, representações sociais de que, para essas
alunas adultas, é vergonhoso não saber ler e escrever nessa idade, o que as faz sentir
incapazes para tal.
Todavia, essas hipóteses foram insuficientes perante a quantidade de posições
discursivas assumidas pelos sujeitos de nossa pesquisa em seus discursos e perante a
quantidade de representações sociais identificadas.
Em se tratando da relevância de nossa pesquisa, uma das contribuições teóricas é
tentar relacionar a teoria da Análise do Discurso de linha francesa com uma teoria de bases
sociológicas, antropológicas e psicológicas. Para a Psicologia Social de Moscovici (2007),
impera a primazia do social sobre o individual, ou seja, sobre o sujeito uno e consciente
6
. Por
isso, o que une esses campos do conhecimento são dois diferentes aspectos. O primeiro é a
questão do sujeito como sendo primordialmente social, porque as representações sociais são
construídas em consenso, por uma determinada comunidade, e porque os sujeitos, na AD, são
atravessados pelos discursos de outros sujeitos a eles preexistentes. Portanto, nós, sujeitos,
não temos consciência da produção de sentidos de nossos discursos, tampouco da formação
de nossas representações e, por conseguinte, dos sentidos que elas podem acarretar.
O segundo é a memória como um alicerce comum entre esses campos teóricos,
dividindo-se em quatro: a memória discursiva, para a Análise do Discurso; as memórias
individual
7
(HALBWACHS, 1990) e coletiva (HALBWACHS, 1990; MOSCOVICI, 2007),
para as representações sociais; e a memória autobiográfica
8
(HALBWACHS, 1990). Esta
6
Entretanto, discordamos desse aspecto determinista da teoria moscoviciana. Os sujeitos constroem as
representações sociais do grupo de que fazem parte. Assim, elas não podem ser meramente impostas, tampouco a
participação dos sujeitos nesse processo pode ser ignorada.
7
Segundo Halbwachs (1990), a memória individual existe a partir da memória coletiva, já que o que temos de
lembrança só ocorre porque estas não são construídas individualmente, e sim por um grupo, o que se assemelha
ao posicionamento de Moscovici (2007) em relação às representações sociais, que dependem da memória do
grupo, ou seja, coletiva, para que possam existir.
8
Uma memória pessoal, construída desde a infância por meio da vivência com diversos grupos ao longo da vida.
16
última é a base de nosso corpus, composto por histórias de vida relatadas pelas estudantes que
participaram de nossa pesquisa.
Tais memórias relacionam-se da seguinte maneira: as palavras dentro dos
discursos encontram-se na memória discursiva, assim como as representações sociais se
encontram na memória coletiva e dependem da memória individual, devido aos processos
cognitivos, para sua formação. Contudo, a memória autobiográfica influi tanto na memória
discursiva como na memória coletiva, porque, como sujeitos que vivem dentro de uma
sociedade, somos sócio-historicamente construídos, assim como os discursos e as
representações sociais o são.
Na Análise do Discurso, a memória é igualmente importante. No caso, trata-se de
uma memória discursiva, em que se encontram vários discursos produzidos sócio-
historicamente, ou seja, os já-ditos que se atualizam em cada enunciação dos sujeitos.
Discurso e sujeito são, então, heterogêneos: cada discurso é permeado por outros, assim como
cada sujeito é atravessado por vários discursos, colocando em prática enunciados que os
precedem.
Essas quatro memórias, juntas, são simbólicas, ou seja, produzem sentidos,
embora não possamos controlá-los, porque permanecemos inconscientes de como são
formados e de como significam. Portanto, a partir da ancoragem nessas memórias, os
enunciados proferidos pelos sujeitos de nosso estudo produzem sentidos, e, por meio das
relações intertextuais de copresença de alusão e de citação, é possível identificar as relações
dialógicas intertextuais e interdiscursivas presentes nos relatos, bem como o que existe de
comum entre eles. Assim, o que é comum é aquilo aceito por um determinado grupo, em
consenso, tornando-se, então, representação social.
Tomamos as representações sociais como práticas discursivas porque produzem
sentidos e orientam as ações dos sujeitos, da mesma forma que os discursos se encontram
tanto na memória discursiva quanto na memória coletiva. Por isso, as representações socais
são consideradas práticas discursivas em nossa pesquisa, sendo simbólicas, assim como os
discursos o são. Dessa maneira, temos uma pesquisa que não foge do âmbito da Linguística, e
17
que trabalha, trandisciplinarmente, com um conceito pertencente a outra área do saber - a
Psicologia Social
9
.
As demais contribuições de nosso estudo, além da tentativa de união dos campos
teóricos que propomos, apresentando um aparato teórico-metodológico de análise de
representações sociais enquanto práticas discursivas, consistem em abordar a aprendizagem
da leitura e da escrita como um problema linguístico, e não apenas educacional, e em focar o
aluno e as representações sociais que constroem ao longo de sua vida e de sua trajetória
escolar a fim de conhecê-los melhor e de saber como eles se posicionam ao aprender a ler e a
escrever.
Existem várias publicações sobre letramento, alfabetização e seus conceitos, bem
como sobre as implicações do letramento para o ensino, como fez Kleiman (2007), alegando
que o ato de letrar-se perdura por toda a vida, ocorrendo com todos aqueles que possuem
contato com a língua, sejam eles escolarizados ou não. Ora, se tal ato é passível de acontecer
com todos os indivíduos, justamente porque possuem contato com a língua, por que não ser
abordado em uma perspectiva linguística? Estudos sobre alfabetização e letramento,
exatamente por lidarem diretamente com a língua e com práticas sociais de linguagem, podem
ser abordados por diferentes perspectivas linguísticas, como pela Aquisição da Linguagem,
pela Linguística Aplicada, ou por alguns desses estudos em interface, conforme fazemos aqui.
É importante dizer ainda da escola do SESC, onde funciona o Projeto SESC Ler,
em Fortaleza, estado do Ceará, como local de coleta de nossos dados, através de encontros
com seus alunos. Tal projeto visa a alfabetizar jovens e adultos até a última série do primeiro
segmento do Ensino Fundamental (EF). A prioridade é atuar em regiões onde se observam
baixos índices de alfabetização no país, funcionando em 69 municípios de 17 estados
brasileiros.
9
Normalmente, trabalha-se com a Psicologia Social em estudos na área da saúde e da própria Psicologia.
Apresentamos, aqui, dois exemplos de estudos. A pesquisa de Gomes, Marques e Oliveira (2004) discorre sobre
as representações sociais do trabalho do enfermeiro na programação em saúde, utilizando Moscovici e Jodelet
(2001) como referencial teórico-metodológico. Os dados mostram a tensão que existe entre ações prescritivas e
liberdade de ação nessa profissão, apontando que o enfermeiro assume importante papel no trabalho
programático dentro de sua área. E o trabalho de Menin e Shimizu (2004), por um viés psicológico, analisa
representações sociais sobre lei, justiça e injustiça por jovens argentinos e brasileiros. Os resultados demonstram
que existem variações importantes em relação à nacionalidade desses jovens.
18
O grande diferencial do projeto é o trabalho educativo realizado em centros
educacionais de caráter interdisciplinar e participativo, ou seja, prima-se pela conjugação de
atividades educacionais com outras de natureza diversa, como de cultura, lazer e saúde. Os
alunos, ademais, têm acesso a atividades promovidas pelo SESC, como o Trabalho Social
com o Idoso (TSI), bem como a salas de leitura e a todo um suporte que lhes possa garantir
uma educação de maior qualidade.
Devido a isso, surgiu a motivação de investigarmos como esses alunos encaram o
processo de aprendizagem inicial e formal da lectoescrita por meio do estudo de suas
representações sociais enquanto práticas discursivas. O estudo das representações sociais
enquanto práticas discursivas de um determinado grupo permite, então, que se conheçam
representações sociais de outros grupos que sejam semelhantes ao analisado, porque elas são
formadas através da ancoragem nas memórias coletiva e discursiva. Portanto, há uma visita ao
que outros grupos anteriores pensam e consolidam. Assim, nosso estudo pode contribuir para
uma visão panorâmica do aluno de EJA, não apenas dos(as) alunos(as) do Projeto SESC Ler,
o que pode abrir portas para que outras pesquisas sobre o assunto sejam realizadas.
Como trabalhamos com a junção das memórias discursiva e coletiva para
estudarmos as representações sociais enquanto práticas discursivas, consideramos relevante
mencionar, aqui, alguns discursos que foram recuperados, interdiscursiva e intertextualmente,
nos relatos das alunas, embora não houvesse consciência por parte delas quanto a essa
recuperação, pois elas permanecem inconscientes sobre o processo de formação das
representações sociais assim como sobre a produção de sentidos dos seus discursos.
As alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza aludem, em vários momentos, ao
discurso acadêmico acerca do letramento (SOARES, 2006; TFOUNI, 2005), o qual baliza as
dificuldades enfrentadas por aqueles que não sabem ler nem escrever, bem como os
preconceitos e a exclusão sofridos por eles, além de diferenciar o que é letramento de
alfabetização. Por isso, destacamos, em seguida, pontos de vista acerca desses dois conceitos.
De acordo com Soares (2006), para se viver bem na sociedade letrada de que
fazemos parte (TFOUNI, 2005), o mais importante é saber fazer uso da leitura e da escrita, o
que é diferente de ser alfabetizado. Devido a isso, buscou-se uma palavra na língua inglesa,
posteriormente traduzida para o português, que contemplasse essa nova significação de saber
19
ler e escrever: letramento, do inglês literacy (SOARES, 2006), que quer dizer “condição de
ser letrado”, ou seja, de saber ler e escrever.
Definir exatamente o que é “letramento” não é uma tarefa simples, quiçá inviável.
Atualmente, alguns autores preferem dizer “letramentos”, por haver finalidades diferentes no
ensino e na aprendizagem da leitura e da escrita (SOARES, 2006). Já a palavra
“alfabetização” parece se restringir à decodificação de letras em palavras e de palavras em
frases, por conseguinte em textos.
Logo, percebe-se a diferença entre ser alfabetizado e letrado: no primeiro caso,
temos a decodificação; no segundo, a capacidade de fazer uso da leitura e da escrita, ou seja,
apropriando-se do lado social das mesmas (SOARES, 2006). Letramento, em linhas gerais,
poderia ser definido como
[...] o que as pessoas fazem com a leitura e com as habilidades de leitura e escrita,
em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as
necessidades, valores e práticas sociais. Em outras palavras, letramento não é pura e
simplesmente um conjunto de habilidades individuais; é o conjunto de práticas
sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu
contexto social (SOARES, 2006, p. 72, grifos da autora).
A problemática da alfabetização, como semelhante ao conceito de letramento, já
vinha sendo discutida por Freire (2006; 2008), sustentando que ela
10
possui,
fundamentalmente, natureza política e de libertação do homem, cujo objetivo é o de promover
mudança social. Para ele (2008), a alfabetização, além de ter por essência a consciência
política, deve ser contextualizada, não fazendo sentido aprender pela “memorização mecânica
dos ba-be-bi-bo-bu, dos la-le-li-lo-lu” (FREIRE, 2008, p. 19).
A leitura do mundo, então, sempre vem antes da leitura de qualquer palavra. Pela
observação do céu em dia de nuvens carregadas, por exemplo, é possível “ler” que a chuva
está chegando. E, no momento em que o sujeito aprender a ler a palavra “chuva”, esta será
contextualizada. Assim, a aprendizagem da leitura e da escrita pode fluir, pode acontecer, sem
que ocorra por um processo desinteressante e, muitas vezes, traumático. Portanto, “a leitura
do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da
leitura daquele. [...] este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre
presente” (FREIRE, 2008, p. 20).
10
Freire (2006; 2008) não fala de letramento.
20
Vale ressaltar que o problema do analfabetismo é presente, com maior
intensidade, em países emergentes, nos quais impera um grande contraste social devido à
desigualdade entre as classes. Para tentar amenizar os índices de analfabetismo, várias
campanhas educacionais foram lançadas no Brasil, principalmente a partir dos anos 60, com a
popularidade do educador Paulo Freire. Dentre vários exemplos que podem ser citados, um
dos movimentos que merece destaque é o Movimento Brasileiro de Alfabetização, conhecido
por Mobral, o qual surgiu nos anos 70 e que não conseguiu atingir a meta de erradicar a
alfabetização no país. Assim, houve recuperação do discurso da inclusão social por meio do
que era proferido pelas campanhas de erradicação do analfabetismo no país (UNESCO,
2008), bem como por meio da escola, por ser o maior agente de promoção da alfabetização
(SOARES, 2006), fazendo com que indivíduos não-alfabetizados a procurassem para que se
incluíssem socialmente na sociedade em que vivem.
Em 1988, com a elaboração da nova Constituição Federal, surgiram novidades
que trariam benefícios no que concerne ao ensino e aos direitos daqueles que não sabiam ler
nem escrever. Foi concedido o direito de voto aos analfabetos, em caráter facultativo, e aos
jovens e adultos, o direito ao Ensino Fundamental (EF) público e gratuito. Dessa maneira,
firmou-se um compromisso com os governos para se vencer o analfabetismo e para se garantir
o EF para todos (UNESCO, 2008). Todavia, essas metas também não foram cumpridas. Nos
anos 90, priorizou-se o acesso ao EF para crianças e adolescentes, o que acarretou em mais
exclusão em relação às demais modalidades de ensino, inserindo-se, aí, a EJA, que passou a
ser responsabilidade dos municípios e de organizações sociais, como o Programa
Alfabetização Solidária (PAS). Segundo Soares (2006), como já foi mencionado, a escola é o
maior agente de promoção da alfabetização existente. Assim, não é à toa que a EJA, por
exemplo, foi regularizada como pertencente à educação básica a partir da LDB 9394/96.
Percebe-se, ainda, nos relatos das alunas, uma recuperação do discurso do ensino
tradicional (HERNÁNDEZ, 1998) e do ensino infantil (MAGALHÃES et al, 2003). O
primeiro se refere a um ensino em que o poder se centra sobre o professor, detentor do saber e
responsável por transmitir conhecimento aos alunos, que deveriam memorizá-lo, em vez de
construí-lo com fins de se chegar a uma aprendizagem significativa (ROGERS, 1977), e o
segundo, principalmente, no que tange aos movimentos necessários para a realização de
tarefas que exigem maior destreza manual, e que, geralmente, são trabalhadas na educação
21
infantil, por se tratar de uma etapa do desenvolvimento da criança por meio do estímulo da
coordenação motora fina.
Nossa dissertação, portanto, está dividida em quatro diferentes capítulos, além
desta introdução e das considerações finais. No primeiro capítulo, apresentamos a teoria das
representações sociais de Serge Moscovici (2007). No segundo capítulo, discorremos sobre os
pressupostos da Análise do Discurso de orientação francesa que nos dão suporte a nossa
pesquisa, em especial no que se refere ao conceito de Formações Discursivas e ao Primado do
Interdiscurso (MAINGUENEAU, 2007), bem como sobre a transtextualidade de Genette
(1982), revista por Piègay-Gros (1996), com destaque para os processos de intertextualidade,
em particular no que concerne às relações de copresença de alusão e de referência. No terceiro
capítulo, encontra-se a metodologia empregada em nossa pesquisa e, no quarto, as análises de
nossos dados. Por fim, tecemos as nossas considerações finais sobre este estudo.
22
1 A TEORIA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, DE SERGE
MOSCOVICI
Esta teoria, um dos pilares teórico-metodoógicos de nosso estudo, surgiu com a
publicação de La psychalalise, son image et son public, em 1961, e exige de nós discutirmos,
antes, suas bases, o que inclui falar de pensamento, linguagem, língua e sociedade, além da
influência recebida da sociologia de Durkheim (1982). Depois desses tópicos, entraremos na
questão das representações em si e dos seus processos cognitivos e sociais de constituição, até
que se tornem assimiladas por algum grupo ou comunidade.
1.1 Pensamento, linguagem, língua e sociedade
A linguagem dá ao homem uma possibilidade de criar mundos, de criar realidades,
de evocar realidades não presentes. E a língua é uma forma particular dessa faculdade de
criar mundos”
José Luiz Fiorin (2005)
Falar da teoria das representações sociais implica falar, antes, de pensamento, de
língua, de linguagem e, por conseguinte, de sociedade. Para isso, buscamos explicações em
outros teóricos, numa tentativa de inter-relacionar seus pensamentos e, posteriormente, estes
com os pressupostos de Moscovici (2007).
Para começar, colocamos uma frase que o próprio Moscovici cita em seu livro:
“Nós pensamos através de nossas bocas”, de Tristan Tzara (MOSCOVICI, 2007, p. 42), numa
alusão a que, se não houvesse alguma maneira de nos comunicarmos, não haveria
pensamento, nem as grandes descobertas, tampouco as pequenas. Em suma, sem a
comunicação, outras coisas não poderiam ser criadas, como bem aponta Bakhtin ao dizer que
“a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema
lingüístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes
(BAKHTIN, 1988, p. 124, grifos do autor).
Sendo assim, é como se de nada valesse um sistema linguístico de signos, a
língua, se a comunicação não fosse possível. Esta última tem como condição sine qua non a
23
interação, e a língua, apesar de ser também um sistema, só passa a existir quando usada nessa
interação. Melhor dizendo, a língua é criada na e pela comunicação, que se dá,
fundamentalmente, entre indivíduos. Dessa maneira, podemos afirmar que a língua é um
construto social.
Todavia, para que haja comunicação, não basta apenas a língua, mas também algo
numa dimensão mais complexa e mais ampla, a linguagem, “todo meio de expressão do ser
humano através de símbolos. E a sociedade nessa relação é essencial. Sem sociedade, não há
língua. A língua se configura através das práticas sociais de uma comunidade” (KOCH, 2005,
p. 124).
Consideramos, portanto, que linguagem é, grosso modo, um instrumento
(BAKHTIN, 1988) e uma capacidade para se comunicar, necessariamente efetivada na
interação, cuja natureza é social, e por cujo intermédio se forma a sociedade. Se a língua
existe na e pela interação, logo ela só pode existir na sociedade. Nesse caso, “a língua é uma
maneira particular pela qual a linguagem se apresenta. [...] é a concretização de uma
experiência histórica. Ela está radicalmente presa à sociedade” (FIORIN, 2005, p. 72).
Além dessa tríade interdependente entre linguagem, língua e sociedade,
remetemo-nos também à fala, cuja função primordial é a comunicação e o intercâmbio social,
nas palavras de Vygotsky (2008). Podemos, então, voltar para a frase de Tristan Tzara, e
percebermos a importância da fala na medida em que aquilo que pensamos só pode ser
descoberto quando falamos, ou quando nos comunicamos
11
. Assim, podemos seguir o
pensamento de Vygotsky quando este afirma que pensamento e linguagem existem
concomitantemente.
Contudo, vale salientar que, sem linguagem, não haveria nem língua, nem fala.
Devido a isso, concordamos com a posição de Bakhtin (1988), ao dizer que a linguagem não
serve apenas para exprimir pensamentos, assertiva por muito tempo sustentada por correntes
vinculadas à Psicologia.
Corroboramos também as ideias de Vygotsky (2008) ao afirmar que, se não
houver um sistema de signos, sejam eles linguísticos ou não, verifica-se uma maneira muito
11
Não que a comunicação se dê estritamente pela fala. Os símbolos, incluindo os gestos e a linguagem pictórica,
são também comunicação quando empregados na interação para a transmissão e construção de algum sentido ou
significado.
24
primitiva e limitada de comunicação, como a observada entre os animais, consistindo mais em
uma manifestação de algum sentimento, como, por exemplo, um barulho emitido em caso de
alerta, a fim de contagiar todo o grupo quando alguma ameaça se aproxima, em vez de ser
uma informação propriamente dita, transmitida aos demais membros do grupo.
Continuando na linha de raciocínio de Vygotsky (2008), não bastam apenas o
pensamento, a linguagem, a língua e a sociedade, existindo na e pela comunicação. Esta
última, para se efetivar, exige um significado, que é uma atitude de generalização, um
“estágio avançado do desenvolvimento do significado da palavra” (p. 7). Parafraseando o
linguista e antropólogo Edward Sapir, Vygotsky (2008, p. 7) diz que
[...] o mundo da experiência precisa ser extremamente simplificado e generalizado
antes que possa ser traduzido em símbolos. Somente assim a comunicação torna-se,
de fato, possível, pois a experiência do indivíduo encontra-se apenas em sua própria
consciência e é, estritamente falando, não comunicável. Para se tornar comunicável,
deve ser incluída numa determinada categoria que, por convenção
12
tácita, a
sociedade humana considera uma unidade.
Esse significado, porém, não se reduz a uma atitude de generalização e nem ao
sistema linguístico. Pelo fato de a comunicação estar intrinsecamente ligada à sociedade, são
construídos sentidos sobre os quais não exercemos controle. Além disso, como nossa
sociedade é balizada em hierarquias, a comunicação, por meio dos discursos, denuncia
relações de poder, um poder simbólico que, embora silencioso, é coercitivo (BOURDIEU,
2007).
Mencionamos todos esses conceitos para adentrarmos na teoria das representações
sociais de Moscovici (2007) porque nada existe sem comunicação, inclusive as
representações, que ocorrem e são construídas na e pela interação entre indivíduos, em uma
sociedade, conjugando pensamento, língua, linguagem e produção de sentidos. A
comunicação é, portanto, “berço desaguadouro das representações” (ARRUDA, 2002. p.
134).
As representações sociais, as quais a sociedade humana considera como unidade,
funcionam também como convenções incluídas numa determinada categoria, , da mesma
maneira como os signos linguísticos são convencionados. Salientamos, novamente, que tanto
12
Conceitos são formados em um sistema, que é a língua, por convenções, que se tornam realidade no uso e pelo
uso, na sociedade, na comunicação. Para um maior aprofundamento, ver a questão da arbitrariedade do signo
linguístico, em Saussure (2006).
25
os signos quanto as representações sociais são simbólicos. E, para conhecermos melhor a
teoria das representações sociais, é preciso fazer menção também à Sociologia de Durkheim
(1982).
1.2 A herança da Sociologia de Durkheim
É notável a influência do sociólogo Émile Durkheim (1982) na teoria das
representações sociais de Moscovici (2007). Durkheim é conhecido por ser quem legitimou a
Sociologia como ciência, na França do século XIX. Para ele, os fatos sociais deveriam ser
explicados a partir da própria sociedade, e não com base em outras áreas, como a Filosofia ou
a Psicologia, nem com base no senso comum. Devido a isso, rompeu com os demais campos
para criar uma ciência de cunho estritamente social, mas de cunho empirista e semelhante às
ciências da natureza, com o intuito de tornar objetiva a sua ciência social, ou seja, passível de
cientificidade.
Visando à criação de uma ciência de base empírica, o autor estabeleceu, a priori,
discussões com áreas afins que buscavam formas de compreensão a partir da consideração do
homem, para aplicá-la ao conhecimento da esfera social a posteriori. Costumava-se buscar a
parte para se entender o todo, caminhando do particular rumo ao universal. Durkheim (1982),
entretanto, pretendia ultrapassar esse tipo de pensamento. Em sua ciência, até então distinta de
qualquer outra, os fenômenos sociais deveriam originar-se na realidade social, uma realidade
sui generis, isto é, com vida e características singulares.
Sendo estudados de forma objetiva e independente, Durkheim (1982) postula que
os fatos sociais devem superar as deficiências encontradas no senso comum. Percebe-se,
portanto, a supremacia do social sobre o individual, o que leva à afirmação de que os fatos
sociais são exteriores e anteriores à consciência individual. Dessa maneira, tem-se a sociedade
como ponto de partida, e não o homem, pelo fato de ela ser superior e anterior ao indivíduo,
ou seja, determinista.
A sociedade, então, exerce forças sobre os indivíduos, e a garantia de que seja
harmônica consiste na existência de fatores comuns a todos os que a ela pertencem, como, por
exemplo, a linguagem, as crenças, as leis, dentre outros. O indivíduo começa a depender da
26
sociedade, absorvendo valores morais que conduzem sua convivência nesse meio social, e
contra a qual não tem poder de agir, porque ela se impõe com uma força também sui generis.
Na Sociologia, na visão durkheimiana, o homem, como ser unicamente individual,
não é considerado, porque este, por ser uma abstração, deveria ser analisado pela Psicologia.
Em contrapartida, para a ciência de Durkheim, esse mesmo homem é caracterizado por
possuir uma dualidade: ele é um ser tanto individual como coletivo, o que gera os conceitos
de consciência individual e de consciência coletiva (DURKHEIM, 1982).
A consciência individual volta-se para o que é particular de cada um, mas não se
constitui condição suficiente para que a sociedade exista. A consciência individual de um
deve se associar à de outros, e elas, combinadas, resultam na vida social. Daí emerge a
consciência coletiva, em que se concentram os hábitos, os sentimentos e as ideias que existem
em nós:
Por consciência coletiva entende-se a soma de crenças e sentimentos comuns à
média dos membros da comunidade, formando um sistema autônomo, isto é, uma
realidade distinta que persiste no tempo e une as gerações. A consciência coletiva
envolve quase que completamente a mentalidade e a moralidade do indivíduo: o
“homem primitivo” pensa, sente e age conforme determina ou prescreve o grupo a
que pertence (LAKATOS, 1985, p. 47).
Destarte, a sociedade necessita de ambas as consciências para que possa se tornar
concreta. E é a partir de tais consciências que surgem os conceitos de representação individual
e de representação coletiva, tão essenciais para a Sociologia durkheimiana, levando-se sempre
em conta o fato de o coletivo se impor sobre o individual, fazendo com que cada um se
posicione de acordo com algo que já foi imposto pela comunidade a que pertence.
As representações coletivas na teoria de Durkheim se estabelecem como trama da
vida social, tornando-se seu principal objeto de estudo, e cuja origem se dá pelo resultado da
união das consciências individuais, que só pode ocorrer pela interação entre indivíduos.
Devido a isso, as representações são exteriores aos indivíduos, pois pertencem a todo um
grupo com base naquilo de comum que o mantém coeso.
Segundo Durkheim (1982), o fenômeno social não depende do indivíduo, porque
as consciências individuais, ao se associarem, perdem suas características particulares e
passam a constituir uma consciência coletiva por meio de uma força sui generis que essa
associação desenvolve, e que é responsável pela criação das representações. Isso quer dizer
27
que, embora tenhamos nossas características individuais, nossa consciência individual, somos
colocados como reflexo de uma série de ideias e de ações advindas dos mais variados
desdobramentos sociais. Antes de qualquer coisa, somos, pois, seres sociais e, portanto, nossa
individualidade é também socialmente construída.
Para Durkheim (1982), o objeto de estudo da Sociologia são as representações
coletivas, porque constroem tanto a vida social quanto o modo particular de vermos e de
percebermos o mundo, ao longo da história e em relação específica com os processos
históricos de construção da sociedade. Da mesma maneira, é pela sociedade que classificamos
e ordenamos as coisas, a partir dos modelos que ela nos fornece, os quais, logicamente, são
também socialmente construídos. A sociedade é a grande base da construção da vida social,
sendo que as representações são seu centro por constituírem a sua trama, o que só é possível
pela interação entre os indivíduos e pela combinação de suas consciências individuais.
Durkheim (1982), então, rompe com a Psicologia, afirmando que ela é
responsável pelo indivíduo e suas leis, cabendo à Sociologia o estudo dos fenômenos sociais e
das representações coletivas. Durkheim (1982) faz essa distinção, na tentativa de afastar, dos
estudos sociais, explicações com base em processos psíquicos, e também por apontar a
diferença entre indivíduos e sociedade, dizendo que pertencem a universos distintos. Por isso,
os primeiros devem ser objeto de estudo da Psicologia, e os segundos, da Sociologia, cujo
propósito é estudar seres que convivem em uma sociedade mantida coesa e estável devido à
força sui generis que ela lhes impõe.
Contestando essa ideia, surge Moscovici (2007), alegando que as sociedades, em
vez de serem estáveis, estão em constante mudança, e como as representações são fruto da
sociedade, elas, por conseguinte, também mudam, possuindo caráter dinâmico
13
. Moscovici
(2007) acrescenta, ainda, que é possível associar individual e coletivo, abrindo novos
caminhos para que o sujeito se afirme participante na construção das representações do grupo
ou da sociedade a que pertence. Daí a sua proposta de uma Psicologia Social, que é o que
veremos a seguir, teoria fundamental para a análise de nossos dados.
13
Paradoxalmente, embora as sociedades mudem sempre e embora as representações sociais sejam flexíveis,
elas também podem apresentar caráter estável, sendo “tanto a expressão de permanências culturais como o locus
da multiplicidade, da diversidade e da contradição” (SPINK, 1993, p. 305, grifo da autora).
28
1.3 A Psicologia Social de Moscovici
“Nós não sabemos quase nada dessa alquimia que transforma a base metálica de nossas
idéias no ouro de nossa realidade”
Serge Moscovici (2007)
Para se compreender a Psicologia Social de Moscovici (2007), é preciso retomar a
questão do pensamento, da linguagem, da língua e da sociedade, que se ligam e se
complementam. Como já foi mencionado, o que nos rodeia só passa a existir a partir do
momento em que há interação, pois, com ela, surge a comunicação, responsável por
possibilitar a língua e a linguagem.
A partir daí, os pensamentos podem tomar concretude, bem como a sociedade
passa a se constituir e as representações sociais a emergir. Mas, antes de antes de abordarmos
a questão das representações em si, falaremos sobre o pensamento, que é o primeiro ponto
contemplado pelo autor, e peça chave na construção das representações.
Moscovici (2007) divide o pensamento em pensamento primitivo e pensamento
científico. O primeiro volta-se para o senso comum, acreditando-se que a mente pode
transformar a realidade. Já o último ocorre de maneira exatamente oposta, com a crença de
que os objetos podem nortear o pensamento, de que eles podem transformar os nossos
desejos. Percebe-se, então, que em ambas as formas há um aspecto de representação real
sobre a relação existente entre nossos mundos internos e externos.
É preciso falar nesses dois tipos de pensamento porque a Psicologia Social,
enquanto ciência, encontra-se em consonância com o pensamento científico, apesar de estudar
as representações sociais, que fazem parte do senso comum, ou seja, do pensamento
primitivo. Tal área do conhecimento contempla tanto o lado social como o individual, pois
nós somos seres sociais. Ao mesmo tempo, contudo, processamos as informações que nos
chegam ao reagirmos a fenômenos, pessoas e acontecimentos. Sendo assim, somos, também,
seres psicológicos
14
.
14
O psicológico, então, aparece como uma maneira de se processarem informações. Todavia, isso não exclui
nossa falta de controle sobre os sentidos produzidos pelos discursos. Devido a isso, embora sendo também
sujeitos psicológicos, permanecemos sujeitos inconscientes, tanto porque não podemos controlar as múltiplas
29
Todavia, o que conseguimos apreender não é exatamente aquilo que está diante
dos nossos olhos. Às vezes, iludimo-nos com o que realmente nos parece ser verdadeiro,
como o caso de o sol nascer e se pôr. As nossas reações aos acontecimentos são como
respostas aos estímulos que recebemos, só que elas se relacionam “a determinada definição,
comum a todos os membros de uma comunidade à qual pertencemos” (MOSCOVICI, 2007,
p. 31, grifo do autor). Nossas reações, então, não são apenas individuais
15
. Ao contrário, elas
são embasadas naquilo que já é aceito por uma comunidade e que se tornou para ela comum,
ou seja, nas representações, que são sociais.
Portanto, em cada reação nossa, seja a fenômenos, pessoas ou acontecimentos, as
representações sociais intervêm de alguma maneira: ou nos orientando em direção àquilo que
é visível, ou àquilo que temos de responder, ou relacionando aparência à realidade, ou, ainda,
relacionando aparência àquilo que define a realidade. Temos, então, acesso às representações
da realidade, e não à realidade em si, como postula Moscovici (2007, p. 32, grifos nossos):
Eu não quero dizer que tais representações não correspondem a algo que nós
chamamos o mundo externo. Eu simplesmente percebo que, no que se refere à
realidade, essas representações são tudo o que nós temos, aquilo a que nossos
sistemas perceptivos, como cognitivos, estão ajustados.
Com base nessa afirmação, percebemos a tentativa de Moscovici (2007) de unir
os lados social e individual. O cognitivo é essencial e não é descartado, mas ajusta-se ao que
já é determinado pelo social. Portanto, a primazia do social é clara. Assim, tudo o que
vivenciamos será, de alguma maneira, distorcido pelas representações sociais. Isso acontece
porque elas nos são impostas, pela mesma força sui generis vista em Durkheim (1982), pois
fazemos parte da sociedade e somos construídos por ela. Elas dão forma à consciência
coletiva, além de orientarem suas ações, tornando os objetos e acontecimentos acessíveis a
qualquer indivíduo, porque
Nenhuma mente está livre dos efeitos de condicionamentos anteriores que lhe são
impostos por suas representações, linguagem ou cultura. Nós pensamos através de
uma linguagem, nós organizamos nossos pensamentos, de acordo com um sistema
interpretações que podem surgir de um determinado enunciado, como não temos consciência dos processos
cognitivos inerentes à formação das representações sociais.
15
Ou seja, elas ocorrem individualmente e em grupo. Assim, o sujeito participa do processo de construção das
representações sociais, não podendo ser ignorado, apesar de não ter consciência de como ocorre esse processo,
porque “o sujeito do conhecimento é um sujeito ativo e criativo, e não uma tabula rasa que recebe passivamente
o que o mundo lhe oferece” (ARRUDA, 2002, p. 134, grifos da autora).
30
que está condicionado, tanto por nossas representações, como por nossa cultura
(MOSCOVICI, 2007, p. 35).
Todavia, as representações sociais não devem ser encaradas como meramente
impostas aos sujeitos das sociedades ou grupos em que são construídas, porque eles é quem
são os responsáveis por essa construção, levando-se em conta o contexto sócio-histórico e
cultural em que estão inseridos. Isso quer dizer que
[...] a representação é uma construção do sujeito enquanto sujeito social. Sujeito que
não é apenas produto de determinações sociais nem produtor independente, pois que
as representações são sempre construções contextualizadas, resultados das condições
em que surgem e circulam (SPINK, 1993, p. 303).
Mas o que são, de fato, as representações? Em linhas gerais, são o produto de uma
familiarização daquilo que não é familiar. Essa familiarização, que pode ser de algum
conceito, objeto, fenômeno, pessoa, dá-se em nível de grupo, de consenso - por isso, elas se
encontram no senso comum.
Segundo Jodelet (1985), as representações sociais constituem formas de
conhecimento, que se manifestam também como elementos cognitivos, mas que são
elaboradas e compartilhadas socialmente, levando à construção de um consenso por um
determinado grupo, possibilitando, por conseguinte, a comunicação. Assim, elas são
“modalidades de conhecimento prático orientadas para a comunicação e para a compreensão
do contexto social, material e ideativo em que vivemos” (SPINK, 1993, p. 300).
Por se relacionar com fenômenos tanto de ordem individual como coletiva, o
conceito de representações sociais torna-se bastante abrangente, atravessando diversas
correntes das ciências humanas, o que faz com que seja, por essência, transdisciplinar. Ainda
de acordo com Jodelet (2001), as representações sociais podem ser divididas em dois eixos,
conforme mostra a figura abaixo, adaptada por Spink (1993):
31
Figura 1: O campo de estudos da representação social. Fonte: SPINK, 1993, p. 301.
Os dois eixos, juntos, deixam claro que as representações sociais são, ao mesmo
tempo, formas de conhecimento e formas de ação. O segundo eixo, porém, enfatiza a
participação do sujeito em sua construção, sem que haja predominância do lado social sobre o
individual, quebrando o caráter determinista que Moscovici herdou das influências
durkheimianas.
Spink (1993, p. 304), corroborando a afirmação acima, salienta dois aspectos
importantes do segundo eixo:
Em primeiro lugar, o posicionamento sobre a relação indivíduo-sociedade [...] foge
tanto ao determinismo social - onde o homem é produto da sociedade - quanto ao
voluntarismo puro, que vê o sujeito como livre agente. Busca um posicionamento
mais integrador que, embora situando o homem no processo histórico, abre lugar
para as forças criativas da subjetividade.
Concordamos, pois, com os posicionamentos de Jodelet e Spink em acréscimo às
teorias moscovicianas: de que as representações sociais são construídas num intercâmbio
necessário e equilibrado entre indivíduo e sociedade, em que nem um nem outro deve possuir
primazia.
32
Como já vimos, as representações são construídas por nós, sujeitos sócio-
históricos, em determinados contextos, e são dinâmicas do mesmo modo que a sociedade
também o é. Devido a isso, Moscovici (2007) prefere, então, utilizar o termo representações
sociais em vez de coletivas, salientando, porém, que não existem diferenças substanciais entre
elas. Ambas têm como característica específica o fato de “corporificarem” ideias em
experiências coletivas, mas, para Durkheim (1982), a sociedade se mantém estática, enquanto
que, para Moscovici (2007), ela é dinâmica.
Notamos aqui, novamente, a questão das ideias tomando espaço na sociedade
através da língua, da linguagem e da interação. Quando elas fazem parte de um coletivo em
comum, tornam-se representações. E para entendê-las de maneira ainda mais efetiva, vejamos
o que Moscovici (2007) diz sobre universo consensual e reificado.
1.3.1 Universo consensual e Universo reificado
Segundo Moscovici (2007), do mesmo modo que ocorrem diferenças entre
pensamento primitivo e pensamento científico, isso também se dá entre universo consensual e
universo reificado, sendo que o primeiro está para o pensamento primitivo e o segundo para o
pensamento científico. Deve-se conhecer esses universos porque, num primeiro momento, as
representações sociais se efetivam no universo consensual. Por outro lado, para que sejam
estudadas, é necessário um distanciamento e um consequente deslocamento para o universo
reificado, onde impera o pensamento científico.
No universo consensual (MOSCOVICI, 2007), os indivíduos são vistos como um
conjunto de pessoas livres e iguais, onde não há quem detenha competência exclusiva sobre
determinado assunto. A comunicação é concebida como a arte da conversação, promovendo
um alicerce comum e compartilhado de significação entre seus participantes. Ademais, o
pensamento possui função de atender às necessidades de comunicação
16
, realizando-se, de
preferência, em voz alta, cujo propósito principal é o de manter e tornar o grupo mais
16
Não concordamos com essa posição observada no universo consensual de que pensamento, língua e linguagem
servem apenas para atender a propósitos comunicativos. A própria comunicação, por se dar entre indivíduos que
vivem e que são compostos dentro de uma sociedade hierarquizada, denotam relações de poder por meio dos
enunciados, um poder que é invisível e simbólico (BOURDIEU, 2007).
33
consistente, ao mesmo tempo em que transmite as características que cada participante exige
daquele a que pertence.
No universo reificado (MOSCOVICI, 2007), a sociedade agrega indivíduos
considerados desiguais, consistindo em um sistema organizado em diferentes papéis e classes.
O mérito de cada um é determinado pelas competências adquiridas, o que pode acontecer a
partir das trocas de papéis dentro desse sistema. Todavia, ele não é harmônico: há confrontos
entre os seus membros e também em relação às suas regras preestabelecidas, pois esses
confrontos não podem ser modificados por nós próprios, justamente pelo fato de a sociedade
ser maior do que nós, de acordo com o pensamento de Moscovici (2007). Dessa maneira, tudo
aquilo que é responsável pelo sistema é também responsável pelo estabelecimento de papéis e
de classes dentro da sociedade.
Podemos perceber que esses universos parecem caminhar em direções opostas.
Porém, para que os acontecimentos e fatos sejam compreendidos, é preciso que passem pelo
comum. Moscovici (2007) aponta que, no ser humano, existe um medo profundo daquilo que
lhe é estranho. Assim, a “ameaça de perder os marcos referenciais, de perder contato com o
que propicia um sentido de continuidade, de compreensão mútua, é uma ameaça insuportável”
(MOSCOVICI, 2007, p. 56).
Para que essa ameaça seja superada, é necessário voltar, então, ao senso comum,
ou seja, ao universo consensual, que “são locais onde todos querem sentir-se em casa, a salvo
de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou feito ali apenas confirma as crenças
adquiridas, corrobora, mais do que contradiz, a tradição” (MOSCOVICI, 2007, p. 54).
Por ocorrerem no consenso e por corroborarem, mais do que contradizerem,
aquilo já “enraizado” em uma determinada sociedade, como o que acontece com as tradições,
nota-se, mais uma vez, que as representações sociais construídas pelos sujeitos “devem ser
vistas como uma ‘atmosfera’, em relação ao indivíduo ou ao grupo” (MOSCOVICI, 2007, p.
53).
As representações são, então, um ato de “re-apresentar”, ou seja, “um meio de
transferir o que nos perturba, o que ameaça nosso universo, do exterior para o interior, do
longínquo para o próximo” (MOSCOVICI, 2007, p. 57). São, pois, a familiarização do não
familiar.
34
É preciso ressaltar, no entanto, que as representações não são meras imposições
sociais. Elas são criadas, passando por processos cognitivos, que são a ancoragem e a
objetivação - apesar de não possuirmos consciência desses processos -, e são também
sistematizadas, tendo como maiores características sua natureza consensual e prescritiva, além
de serem, essencialmente, icônicas e simbólicas. Entretanto, o fato de serem cognitivas não as
torna menos impositivas, segundo esse raciocínio moscoviciano.
1.3.2 A natureza convencional e prescritiva das representações sociais
As representações são de natureza convencional porque dão forma definitiva
àquilo que se encontra em nosso entorno. Assim, afirmamos, por exemplo, que a Terra é
redonda (MOSCOVICI, 2007) - algo já comprovado cientificamente, mas que também é
aceito no senso comum -, ou então que o sol nasce e se põe, tornando-se sujeito de sua ação,
apesar de ser também comprovado cientificamente que, neste caso, o fenômeno é a Terra girar
ao redor de seu próprio eixo. Mas como o movimento que vemos é, de fato, o sol se mover, é
também aceito pelo senso comum que ele nasce e se põe, o que não deixa de ser uma
convenção.
Vemos convenções em tudo, inclusive e, principalmente, nas línguas, criações
nossas e tão fundamentais para nossa comunicação. As convenções nos deixam conhecer o
que representa cada coisa: seja o signo “cadeira” representando algo em que possamos nos
sentar sobre, ou a cor verde dizendo que o sinal de trânsito está aberto e que podemos seguir
em frente.
Contudo, essas questões, para que se tornem representações sociais, devem ser
aceitas pelo grupo de que o indivíduo faz parte e serem compreendidas, além de
convencionalizadas, passando pelo processo de familiarização. Moscovici (2007, p. 35)
aponta ainda que “nós vemos apenas o que as convenções subjacentes nos permitem ver e nós
permanecemos inconscientes
17
dessas condições”. Permanecemos inconscientes porque as
representações nos parecem ser impostas, sem que mesmo o percebamos. Aparece aí a
segunda característica das representações sociais: sua natureza prescritiva.
17
Confirmamos, aqui, a nossa afirmação de que o sujeito, para Moscovici (2007), é inconsciente do processo de
formação das representações sociais.
35
A prescrição das representações, para Moscovici (2007), consiste no fato de elas
nos serem impostas
18
com uma força irresistível - mais uma vez, a mesma força sui generis
que mantém a sociedade coesa em Durkheim (1982), justificada pelo processo histórico que
mantém os seres tais como seres, em um ciclo vital de buscas sociais de convergência. De
acordo com Moscovici (2007, p. 36), “as representações constituem, para nós, um tipo de
realidade”.
Constituindo um tipo de realidade, ou os vários tipos que nos apresentam e se
colocam diante de nossos olhos, podemos concluir que as representações parecem nos ser
impostas por meio de uma força tal que é resultante da “combinação de uma estrutura que está
presente antes mesmo que nós comecemos a pensar e de uma tradição que decreta o que deve
ser pensado” (MOSCOVICI, 2007, p. 36, grifos em itálico do autor; grifo em negrito nosso).
Mas as representações sociais possuem, ainda, duas outras características essenciais: suas
faces icônica e simbólica.
Vale ressaltar que é a face simbólica que permite que os pensamentos,
materializados em enunciados através da linguagem e da língua, não assumam, simplesmente,
a forma de “decreto”. Mesmo sendo anteriores a nós e apesar de nos utilizarmos deles com a
ilusão de sermos seus donos, vários sentidos, sobre os quais não exercemos controle, podem
ser construídos a partir do momento de sua enunciação. Se isso não acontecesse, as
representações sociais, bem como os discursos, permaneceriam estáticos, além de que não
haveria razões para que existissem. Tudo isso, portanto, converge para uma inter-relação da
teoria das representações sociais com a AD francesa. Representações sociais e práticas
discursivas andam lado a lado, por se realizarem na e pela comunicação.
1.3.3 As faces icônica e simbólica das representações sociais
Para Durkheim, de acordo com Moscovici (2007), as representações abrangiam
tudo, desde as crenças à ciência, à religião, ou mesmo qualquer tipo de ideia. Segundo
Moscovici (2007), abranger tudo é o mesmo que abranger nada. As representações existiam,
mas não havia uma preocupação com sua dinâmica interna, tarefa que foi delegada à
18
Entretanto, preferimos não aderir a esse posicionamento de que as representações sociais são impostas aos
indivíduos de algum grupo ou sociedade, para não cairmos na visão determinista que recusamos.
36
Psicologia Social. Portanto, analisando suas dinâmicas internas, descobriu-se que as
representações possuem duas faces interdependentes, que são a icônica e a simbólica.
As representações produzem significação: em consenso, algo novo é transformado
em familiar, que é constituído por pensamentos e ideias, os quais só são descobertos quando
transmitidos através da linguagem e da língua na interação e na comunicação, em sociedade.
O que é familiar gera uma produção de sentidos, mas também não podemos nos esquecer das
imagens. Na realidade, o que chega a nós são convenções, quer por imagens ou símbolos.
Portanto, “representação = imagem/significação; em outras palavras, a
representação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma imagem” (MOSCOVICI,
2007, p. 48), consistindo numa maneira de se entender e de se comunicar aquilo de que já
temos conhecimento. Ou seja, a representação social “não é uma cópia nem um reflexo, uma
imagem fotográfica da realidade: é uma tradução, uma visão desta” (ARRUDA, 2002, p.
134), realidade tal que é socialmente construída .
As representações, como já foi dito, são convencionadas, e essas convenções se
dão tanto por signos, quanto por imagens. Surge, então, sua face icônica. Porém, quando
falamos de sua significação, entramos em sua face simbólica. Tal significação não precisa ser
igual de uma sociedade a outra. Contudo, para que exista, é necessário que seja compartilhada
e aceita por todos os indivíduos daquele grupo. Como sugere Moscovici (2007, p. 178),
É verdade que toda pessoa, ao adorar uma planta ou um animal, parece ser a vítima
de uma ilusão. Mas se todas juntas reconhecem seu grupo dessa maneira, então
estamos lidando com uma realidade social. Elas representam, então, não apenas
seres ou coisas, mas os símbolos dos seres e das coisas. É sobre estes símbolos que
as pessoas se orientam, como nós fazemos quando diante da bandeira ou da chama
no Arco do Triunfo (grifos nossos).
As representações sociais são, então, produto da memória coletiva, e não de
raciocínio. Elas são formas de conhecimento prático que orientam as ações dos sujeitos.
Ademais, as representações, por estarem “em transformação como o objeto que tenta[m]
elaborar” (ARRUDA, 2002, p. 134), são criadas, “re-criadas” (MOSCOVICI, 2007), podendo
ser perenizadas ou mesmo passíveis de extinção. Sendo assim, além de serem coletivas e
compartilhadas pelos membros de um determinado grupo, elas são também transmitidas de
uma geração a outra. Portanto, as representações sociais são dinâmicas, e essa dinâmica
consiste no próprio processo de familiarização, em que “os objetos, pessoas e acontecimentos
37
são percebidos e compreendidos em relação a prévios encontros e paradigmas”
(MOSCOVICI, 2007, p. 55), que se encontram na memória
19
. Segundo Cambi (1999, p. 35),
A memória não é absolutamente o exercício de uma fuga do presente nem uma
justificação genealógica daquilo que é, e tampouco o inventário mais ou menos
sistemático dos monumentos de um passado encerrado e definitivo que se pretende
reativar por intermédio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez do tempo e o
traçado de seus múltiplos - e também interrompidos - itinerários, a recomposição de
um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje projetando-o para o futuro,
através da indicação de um sentido, de uma ordem ou desordem, de uma execução
possível ou não.
Para que as representações se construam, é preciso que passem, obrigatoriamente,
por memórias: a individual, onde se encontram os processos cognitivos, e a coletiva, onde se
situam as representações sociais já aceitas pela sociedade. Elas se formam em um movimento
que parte do social, vai para o individual e volta para o social, como um ciclo, de maneira
inconsciente, nem sempre penetrando e influenciando a vida de cada membro pertencente a
uma determinada sociedade. É assim que ocorre o processo de familiarização daquilo que é
incomum, até que seja transformado em representação social.
Se esse processo se pauta principalmente pela memória, podemos inferir que o
novo é “comparado” àquilo que já conhecemos, até o momento em que passa a ser aceito por
todos, tornando-se também comum. Dessa maneira, Moscovici (2007, p. 37),
Todos os sistemas de classificação, todas as imagens e todas as descrições que
circulam dentro de uma sociedade, mesmo as descrições científicas, implicam um
elo de prévios sistemas e imagens, uma estratificação na memória coletiva e uma
reprodução na linguagem que, invariavelmente, reflete um conhecimento anterior e
que quebra as amarras da informação presente.
Esse comum, que é o próprio senso comum, possui uma permanente necessidade
de ser reconstruído. Daí o caráter de mudança das representações. Embora elas forneçam uma
forma “definitiva” àquilo que se encontra ao nosso redor, novas representações sociais
surgem, assim como outras podem se perenizar ou desaparecer. Elas “adquirem vida própria,
19
Daí também nossa escolha por tal teoria, porque as representações sociais são construídas ao longo da história,
transmitidas de geração em geração. Consideramos os pressupostos de Moscovici (2007) um casamento perfeito
com as teorias utilizadas em nossa pesquisa, tanto na metodologia de coleta de dados, já que trabalharemos com
autorrelatos orais, em que os alunos falam sobre suas histórias de vida, como na associação desses pressupostos
com a AD, porque, da mesma maneira que as representações se encontram na memória coletiva, as palavras, que
se materializam em discursos, se encontram na memória discursiva, ou no interdiscurso.
38
circulam, se encontram, se atraem e se repelem e dão oportunidade ao nascimento de novas
representações, enquanto velhas representações morrem” (MOSCOVICI, 2007, p. 41).
Para serem criadas, pautam-se por memórias e passam por dois processos também
interdependentes, constituindo o processo de familiarização. Num primeiro momento, as
representações sociais precisam ser ancoradas na memória coletiva, e, depois, passando pelos
processos cognitivos da memória individual, são objetivadas, para que se tornem parte do
senso comum, retornando para a memória coletiva.
1.3.4 Os processos de ancoragem e de objetivação
A ancoragem é a comparação daquilo que é estranho, incomum, com algo de
qualquer categoria que nos seja familiar. Ocorre, de fato, uma ancoragem, um apoio do
estranho no que já existe para que, posteriormente, seja familiarizado. Como se trata de uma
comparação com algo que já temos guardado em nossa memória, é um processo que parte do
exterior para o interior, ou seja, do social para o cognitivo, sendo que permanecemos
inconscientes dessa atividade.
Entretanto, de acordo com essa teoria, não basta apenas comparar, localizar o
novo, o estranho, em uma determinada categoria que já nos é comum. Imaginemos um tipo de
calçado não conhecido: reconhecemo-lo como calçado pela semelhança com os protótipos
20
dessa categoria, mas ainda não sabemos de que calçado se trata, porque ele ainda não foi
nomeado. Pode-se tratar de um sapato ou de uma sandália, por exemplo. Representar é,
portanto, “fundamentalmente um sistema de classificação e de denotação, de alocação de
categorias e nomes” (MOSCOVICI, 2007, p. 62).
O ato de dar nome torna a coisa conhecida, mas esta, antes, é comparada a algo já
existente. Porém, para esse novo ser conhecido, é necessário que seja compartilhado, a fim de
se tornar familiar. A transformação desse estranho em familiar depois de ser ancorado nas
categorias que possuímos em nossa memória é o que Moscovici (2007) chama de objetivação.
20
Para um maior aprofundamento, ver Lakoff (1993).
39
Tal processo parte do interior para o exterior, isto é, do cognitivo para o social.
Então, temos que o estranho tem origem no social, passa pelo cognitivo para se ancorar em
algo já conhecido coletivamente, torna-se familiar, e volta, novamente, para o social. Assim,
percebemos a interdependência entre esses dois processos, a ancoragem e a objetivação, a
despeito de serem diferentes:
é impossível classificar sem, ao mesmo tempo, dar nomes. Na verdade, essas são
duas atividades distintas. Em nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma
coisa ou em alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao nomear
algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador
21
[...], para localizá-lo, de fato,
na matriz de identidade de nossa cultura (MOSCOVICI, 2007, p. 66).
A familiarização acontece quando o novo, que recebeu um nome, é compartilhado
socialmente, dando vida a uma nova representação social. Dar nome vai além de atribuir
identidade a alguém ou a alguma coisa, é conceder-lhes existência, pois “o que é anônimo, o
que não pode ser nomeado, não se pode tornar uma imagem comunicável ou ser facilmente
ligado a outras imagens. É relegado ao mundo da confusão, incerteza e inarticulação”
(MOSCOVICI, 2007, p. 66).
Além disso, dar nome é também um processo convencional, concedendo “uma
realidade social ao que não estava identificado” (MOSCOVICI, 2007, p. 68). Isso atribui
sentido, significação, àquilo que antes não tinha, tudo em um compartilhamento com o grupo,
dentro de um consenso, ou seja, no universo consensual, no senso comum. Por serem
compartilhadas e aceitas em um consenso, as representações nos parecem ser impostas.
Assim, verificamos, mais uma vez, a natureza convencional e prescritiva das representações.
Quando ocorre a objetivação, a familiarização do não-familiar, as imagens e os signos passam
a ser elementos da realidade, e não mais do pensamento, porque são compartilhados. Dessa
maneira, temos acesso às representações da realidade, e não à realidade em si.
Em nossa pesquisa, como já defendemos anteriormente, procuramos nos situar do
mesmo modo como se situam as representações sociais, ou seja, na interface entre o social e o
individual. Enfatizamos, ainda, que, em nosso estudo, consideramos a teoria das
representações sociais de Moscovici (2007) adequada ao nosso propósito porque elas são
produto da memória e são construídas por sujeitos existentes e ativos na sociedade, na e pela
comunicação, por meio da língua e da linguagem.
21
Temos, novamente, a questão da ameaça insuportável do medo daquilo que é desconhecido (MOSCOVICI,
2007).
40
Trabalhamos diretamente com as memórias de sujeitos - individual, coletiva,
discursiva e autobiográfica -, de cinco alunas de EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza,
através de seus autorrelatos orais, para verificarmos como constroem representações sociais
acerca do processo de aprendizagem formal da leitura e da escrita e daquilo que ele envolve,
como a vida sem saber ler e escrever, bem como acerca dos diversos sentimentos que a
exclusão social provoca pela ausência da lectoescrita (FERRARO, 2002). Temos, portanto, a
união de quatro memórias que são fundamentais para o estudo como um todo: a memória
coletiva, porque dela dependem as representações sociais; a memória individual, porque os
processos cognitivos de formação das representações sociais passam por ela; a memória
autobiográfica, por constituir nosso corpus, formado por histórias de vida; e a memória
discursiva, onde se encontram todos os discursos formulados antes e depois que outros
sujeitos se “apropriem” deles em suas enunciações.
O estudo das representações sociais de um determinado grupo torna-se
fundamental quando a intenção é conhecê-lo de forma mais aprofundada. Segundo Moscovici
(2007, p. 78),
É dessa soma de experiências e memórias comuns que nós extraímos as imagens,
linguagens e gestos necessários para superar o não-familiar [...]. As experiências e
memórias não são nem inertes, nem mortas. Elas são dinâmicas e imortais.
Ancoragem e objetivação são, pois, maneiras de lidar com a memória. A primeira
mantém a memória em movimento e a memória é dirigida para dentro, está sempre
tirando e colocando objetos, pessoas e acontecimentos, que ela classifica de acordo
com um tipo e rotula com um nome. A segunda, sendo mais ou menos direcionada
para fora (para outros), tira daí conceitos e imagens para juntá-los e reproduzi-los no
mundo exterior, para fazer as coisas conhecidas a partir do que já é conhecido.
Para conhecermos, pois, aquilo que é compartilhado pelas alunas de EJA que
pesquisamos, ou seja, as representações sociais que aqui investigamos, recorremos, de
maneira transdisciplinar, à Análise do Discurso de linha francesa, porque consideramos as
representações sociais práticas discursivas, e à intertextualidade de Genette (1982), revista por
Piègay-Gros (1996), especificamente no que tange às relações de copresença de alusão e de
citação, as quais consideramos formas de ancoragem na memória coletiva e na memória
discursiva, evidenciando as representações sociais construídas a partir dos processos de
ancoragem e de objetivação vinculados a essas memórias. Destarte, nossa pesquisa se
encontra no âmbito da Linguística, e não da Educação ou da Psicologia. Depois de feitas as
análises, organizamos as representações sociais identificadas e os aspectos que elas envolvem
baseando-nos nas noções de sistema central e periférico de Abric (1994).
41
2 A ANÁLISE DO DISCURSO E A INTERTEXTUALIDADE
“Para que minhas palavras façam sentido é preciso que elas já façam sentido”
Eni Puccinelli Orlandi (2007)
Embora sejam diferentes, é possível encontrar diversas semelhanças entre a
Análise do Discurso e a teoria das Representações Sociais de Moscovici (2007), sobretudo
pela questão do social: da mesma maneira que as representações sociais não possuem um
dono específico, pertencendo a uma coletividade e significando em determinadas
circunstâncias, o mesmo acontece com o dizer.
O discurso, então, também não tem dono, pertencendo a todos. Muito já foi dito
antes de alguém conseguir pronunciar suas primeiras palavras. Aliás, é esse alguém, esse
indivíduo, quem deve fazer parte do mundo repleto de enunciados que lhe é apresentado, e
não o contrário. Assim, podemos perceber que as representações sociais, do mesmo modo que
as palavras, não se situam no indivíduo. As representações sociais estão na memória coletiva,
e as palavras, na memória discursiva. Devido a essas semelhanças e pelo fato de tudo se
realizar pela língua, tomamos, em nosso trabalho, as representações sociais como práticas
discursivas em nosso trabalho, e que só podem ser analisadas por meio de textos
(MAINGUENEAU, 2007), o que nos faz recorrer aos pressupostos teóricos da
intertextualidade de Genette (1982), reconsiderados por Piégay-Gros (1996), para a análise de
nossos dados.
Portanto, não é o indivíduo que se coloca como fonte de todo enunciado. O sujeito
tem apenas a ilusão de pensar saber o que diz, de controlar o que diz, de ser fonte daquilo que
diz, e de achar que o que enuncia só o pode ser de uma única maneira. Isso acontece por
intermédio do inconsciente, que provoca essa dupla ilusão no sujeito ao enunciar, e também
por meio da ideologia, cuja função é produzir evidências em cima do que é dito. Essas
evidências dão a entender que o sentido esteve sempre lá, do jeitinho que o imaginamos
quando dizemos, como se ele fosse claro, transparente, sem possuir qualquer outra
interpretação. Inconsciente e ideologia andam sempre juntos e são constitutivos do sujeito,
tornando-o clivado, dividido.
42
As evidências, produzidas pela ideologia, funcionam pelos chamados
esquecimento número 1 e esquecimento número 2, de Pêcheux (1988). O esquecimento
número 1 ocorre em nível de ideologia, pertencendo à ordem do inconsciente. É resultado da
maneira como somos afetados pela ideologia, porque, quando interpelados por ela, passamos
de indivíduos a sujeitos. Assim, ao enunciarmos, temos a ilusão de que somos a origem do
que dizemos. Porém, o que fazemos é retomar sentidos que já existem, que já foram ditos e
que se encontram no interdiscurso. Apagamos os “donos” desses discursos, enviando-os ao
“anonimato” (ORLANDI, 2007), para que nos tornemos ilusórios proprietários do que
dizemos.
O esquecimento número dois acontece na ordem da enunciação, o que significa
que, ao falarmos, fazemo-lo de uma forma e não de outra. Isso lembra o eixo paradigmático,
das substituições, de Saussure (2006). Da mesma maneira que o enunciado “Eu tenho um
relógio” não nos deixa dizer “Eu tenho um sapato”, quando enunciamos “Estou com fome”,
não podemos dizer “Estou com a barriga vazia”, o que não impede que sentidos diversos
sejam construídos, apesar de parecer que se está dizendo a mesma coisa, apenas com o uso de
palavras diferentes. Assim, quando dizemos “Estou com fome”, outras famílias parafrásticas
se formam, como, por exemplo, o enunciado “Estou com a barriga vazia”, e essas famílias
mostram que aquilo que enunciamos poderia ser dito de outra maneira, o que pode levar a
interpretações também diversas.
Destarte, temos a impressão de que aquilo que dizemos é a realidade do
pensamento, pois acreditamos que existe uma via direta de transmissão entre pensamento,
linguagem e mundo, o que é chamado de ilusão referencial (ORLANDI, 2007). Temos, então,
a ilusão de que não há outras interpretações para os enunciados produzidos. Porém, não é isso
o que se verifica, porque o discurso é muito mais do que uma materialização do pensamento,
já que envolve as condições sócio-históricas em que são produzidos. O que é dito só pode
significar a partir daquilo que já foi dito anteriormente.
O discurso que é produzido por um sujeito dialoga, o tempo todo, com outros
discursos já existentes (BAKHTIN, 1988), os quais se encontram na memória discursiva, para
que possam fazer sentido. Segundo Pêcheux (1988), a memória discursiva não se reduz a um
espaço de armazenamento, pois ela
não poderia ser concebida como uma esfera plena, cujas bordas seriam
transcendentais históricas e cujo conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado
43
ao modo de um reservatório: é um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos, de regularizações [...]. Um espaço de
desdobramentos (PÊCHEUX, 1999, p. 56).
Esses demais discursos estão fora do enunciado. Por isso é que “os sentidos não
estão só nas palavras, nos textos, mas na relação com a exterioridade, nas condições em que
eles são produzidos e que não dependem das intenções do sujeito” (ORLANDI, 2007, p. 30).
Dessa maneira, qualquer produção é atravessada por outras precedentes, o que nos leva à
afirmação de que nenhum dizer é neutro, por mais que o pareça.
Todo dizer produz uma variedade de sentidos sobre a qual não temos controle. É
essa variedade de sentidos, construídos também em determinadas condições, as condições de
produção
22
(CP), que quebram com a neutralidade do enunciado. Assim, cada enunciado
carrega consigo uma carga de ideologia quando é dito por um indivíduo, ou melhor, por um
sujeito, que é o indivíduo interpelado pela ideologia, o qual acredita ser a origem daquilo que
diz e responsável pelo que produz. É somente por essa carga de ideologia e pelo fato de o
sujeito ser interpelado por ela que a língua, através de uma linguagem que não é transparente,
pode fazer sentido (PÊCHEUX, 1988).
A ideologia presente na linguagem também quebra a neutralidade do enunciado ao
denotar relações de poder. Sendo assim, os discursos não assumem uma mera função de
comunicação, porque:
as relações de comunicação são, de modo inseparável, sempre, relações de poder que
dependem, na forma e no conteúdo, do poder material ou simbólico acumulado
pelos agentes (ou pelas instituições) envolvidos nessas relações e que [...] podem
permitir acumular poder simbólico
23
(BOURDIEU, 2007, p. 11).
Para a AD, a linguagem é uma mediação necessária entre o homem e a realidade,
o que se dá através da língua. Vale ressaltar que os enunciados, apesar de servirem para a
comunicação, são projetados para mais além, porque lidam diretamente com a ideologia,
tornando o sujeito dividido, clivado e descentrado, porque vários outros discursos
22
As CP são a soma do sujeito discursivo, interpelado pela ideologia, e da situação sócio-histórica em que ele se
encontra para formular seu enunciado. Para que sejam acionadas, é preciso recorrer ao interdiscurso. Elas se
encontram sempre em uma perspectiva intra e interdiscursiva, isto é, encontram-se tanto na perspectiva do
interdiscurso, da enunciação, como na do intradiscurso, do enunciado, da materialidade discursiva.
23
Segundo Bourdieu (2007), o poder simbólico é capaz de “produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de
energia” (p. 15). É um poder silencioso, “subordinado, é uma forma transformada, quer dizer, irreconhecível,
transfigurada e legítima das outras formas de poder” (idem, p. 15). É o tipo de poder, por exemplo, observado
nas relações entre as classes, assegurando a dominação de uma sobre outra.
44
complementam e entrecruzam o que é produzido por ele. Essa multiplicidade de vozes é
constitutiva do discurso e também do sujeito, fazendo com que ambos sejam heterogêneos.
No entanto, o discurso, para que produza sentido, não precisa apenas das
condições de produção, do interdiscurso e da memória discursiva. Os lugares que os sujeitos
ocupam ao enunciar também são necessários, e os sentidos produzidos não podem ser
formados aleatoriamente. Eles seguem diretrizes estabelecidas pelas Formações Discursivas
(FD) de que fazem parte, as quais determinam o que pode e o que não pode ser dito, a partir
de determinados lugares, ou posições discursivas, que o sujeito ocupa.
2.1 Formações Discursivas
Segundo Orlandi (2007), o conceito de Formação Discursiva (FD), elaborado por
Foucault (2000), é fundamental na Análise do Discurso. Para entendermos como as FD
funcionam, precisamos compreender, a princípio, que o texto consiste em uma relação de
vários discursos. Esses discursos, contudo, nem sempre estão em consonância o tempo todo.
Ao contrário, observam-se embates, um conjunto de forças, ou mesmo relações de aliança ou
de dominação, conhecidas por Formações Ideológicas (FI), que acontecem em um
determinado momento histórico (MUSSALIM, 2006).
Como o conceito de FD é utilizado pela AD para apontar onde se articulam
discurso e ideologia, podemos dizer que cada FD é governada por uma FI. E, sabendo que a
FI suscita sempre mais de uma força ideológica, a FD suscita, também, sempre mais de um
discurso, que possuem pontos de intersecção comuns, delineando-se por meio da relação com
os demais enunciados. Portanto, as FD funcionam como uma “regionalização” do
interdiscurso, direcionando os sentidos, que delas dependem.
Mas os sentidos de uma FD não se constituem por si sós. Eles dependem da
relação que se estabelece com outras FD no interior do interdiscurso (MUSSALIM, 2006).
Assim, percebemos que as palavras, por si mesmas, também não possuem sentido, porque,
quando o sujeito enuncia, ele se inscreve dentro de uma formação discursiva, e não de outra,
para que se produza um determinado sentido, e não outro.
45
As formações discursivas, em poucas palavras, podem ser definidas como “aquilo
que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma
conjuntura sócio-histórica dada - determina o que pode e deve ser dito” (ORLANDI, 2007, p.
43). Elas, além de representarem as formações ideológicas por meio dos discursos, permitem
que neles se formem regularidades:
Uma formação discursiva, apesar de heterogênea, sofre as coerções da formação
ideológica em que está inserida. Sendo assim, as seqüências lingüísticas possíveis de
serem enunciadas por um sujeito já estão previstas, porque o espaço discursivo se
caracteriza pela defasagem entre uma e outra formação discursiva. Explicando
melhor: as seqüências lingüísticas possíveis de serem enunciadas por um sujeito
circulam entre esta ou aquela formação discursiva que compõem o interdiscurso
(MUSSALIM, 2006, p. 131).
Sabemos que as FD determinam o que pode e o que não pode ser dito. Apesar
disso, os sentidos que nela se encontram, embora demarcados, não existem antes do discurso,
pois
O sentido vai se constituindo à medida que se constitui o próprio discurso. Não
existe, portanto, o sentido em si, ele vai sendo determinado simultaneamente às
posições ideológicas que vão sendo colocadas em jogo na relação entre as formações
discursivas que compõem o interdiscurso (MUSSALIM, 2006, p. 132).
Como dissemos, as FD auxiliam na formação de regularidades no funcionamento
do discurso. Para isso, ele obedece a determinados mecanismos, que repousam em Formações
Imaginárias - projeções ou imagens dos sujeitos físicos e dos lugares empíricos.
Depois de projetados, eles podem ser descritos sociologicamente no discurso,
permitindo uma análise das posições do sujeito (ORLANDI, 2007). Portanto, o que significa
no discurso são as projeções do real
24
, responsáveis por produzir sentido em relação ao
contexto sócio-histórico e à memória. Isso quer dizer que, para a AD, “o que está em questão
não é o sujeito em si; o que importa é o lugar ideológico de onde enunciam os sujeitos”
(MUSSALIM, 2006, p. 131).
Esses mecanismos do discurso funcionam de acordo com as condições de
produção que, por sua vez, subordinam-se às formações imaginárias, lugar onde se encontram
24
Mais uma semelhança dos discursos com as representações sociais, porque, nelas, não se tem a realidade em
si, e sim suas imagens e ideias, ou seja, projeções, ou versões (ARRUDA, 2002). Devido a isso, por ambas
ocorrerem na comunicação, consideramos as representações sociais como práticas discursivas.
46
as projeções. São estabelecidos três diferentes mecanismos: relações de sentido, relações de
forças e de antecipação (ORLANDI, 2007).
As relações de sentido estão na perspectiva do interdiscurso, porque todo discurso
dialoga com outros presentes na memória discursiva. Ademais, os enunciados, além de se
sustentarem naqueles já existentes, apontam para discursos futuros a partir das relações que
mantêm com os demais que se encontram no interdiscurso. Desse embate entre antigo e novo
surge a tensa relação entre paráfrase e polissemia
25
, fundamental para a produção de sentidos
(ORLANDI, 2007).
Já o mecanismo da antecipação mostra um lado semiconsciente
26
do sujeito, a
partir do momento em que ele consegue antecipar efeitos de sentidos que podem ser causados
em seu interlocutor, o que dá base para a argumentação. Podendo antecipar como os sentidos
agirão em seu interlocutor, o sujeito pode transformar seu discurso em um instrumento de
persuasão, por exemplo. Por isso, por toda essa negociação, é que o determinismo de
Moscovici (2007), herdado de Durkheim, tem que ser flexibilizado.
E as relações de força pregam que o lugar de onde o sujeito fala é constitutivo de
seu discurso, porque, como já foi mencionado, o que importa para a AD é o lugar ideológico
de onde os sujeitos enunciam. Assim, a projeção de seu lugar torna-se a posição assumida
pelo sujeito em seu discurso, sendo que esta última é determinante na formação dos discursos.
O sujeito, então, pode interpretar vários papéis no espaço interdiscursivo, tornando-se
disperso (FOUCAULT, 2000). Por exemplo, temos as posições discursivas de “mãe”, de
“filho” e, aqui, em nossa investigação, dentre outras, as de “sujeito não-alfabetizado” e de
“sujeito aprendiz iniciante formal da leitura e da escrita”:
o sujeito do discurso ocupa um lugar de onde enuncia, e é este lugar, entendido
como a representação de traços de determinado lugar social (o lugar do professor, do
político, do publicitário, por exemplo), que determina o que ele pode ou não dizer a
partir dali. Ou seja, este sujeito, ocupando o lugar que ocupa no interior de uma
formação social, é dominado por uma determinada formação ideológica que
preestabelece as possibilidades de sentido de seu discurso (MUSSALIM, 2006, p.
133).
25
O dizer o mesmo de outra maneira invoca novas produções de sentido. Assim, o mesmo passa a ser o novo.
26
Isso significa que o sujeito não é completamente inconsciente da formação de sentidos que pode ser construída
a partir de seus enunciados, embora ele não consiga exercer controle sobre todos esses sentidos que podem ser
produzidos.
47
Falamos de posições e de relações de força porque a nossa sociedade é
hierarquizada. Assim, todos os discursos produzem, de alguma forma, relações de força que
são sustentadas no poder advindo dessas diferentes posições. Tais relações de poder são
explicitadas na própria materialidade do discurso, que é atravessado por ideologias
(BAKHTIN, 1988; ORLANDI, 2007).
Segundo Bourdieu (2007), as ideologias se formam em oposição ao mito e são
produto da classe dominante que, por meio delas, mantém seus membros integrados,
“assegurando uma comunicação imediata entre todos os seus membros e distinguindo-os das
outras classes” (p. 10). Entretanto, a manutenção da classe dominante por si mesma gera um
efeito de “integração fictícia da sociedade no seu conjunto” (BOURDIEU, 2007, p. 10).
Os membros das demais classes, ou seja, das dominadas, são “desmobilizados”,
isto é, desperta-se neles uma falsa consciência de que há uma igualdade entre todas as classes.
Contudo, esse efeito ideológico de igualdade legitima a distinção entre elas,
dissimulando a função de divisão na comunicação: a cultura que une (intermediário
de comunicação) é também a cultura que separa (instrumento de distinção) e que
legitima as distinções compelindo todas as culturas (designadas como subculturas) a
definirem-se pela sua distância em relação à cultura dominante (BOURDIEU, 2007,
p. 11).
Todavia, para que o discurso e todas as relações inerentes a ele possam acontecer,
é preciso que o sujeito apague o que existe no interdiscurso, o que o deixa com a impressão de
ser dono do que enuncia, e de que seu enunciado só poderia ser realizado daquela maneira.
Essa dupla ilusão é fundamental para que o discurso exista. A língua em uso, porém, não
consiste, simplesmente, em um sistema de signos concretizado por falantes. Ela se revela um
sistema constitutivamente heterogêneo (AUTHIER-REVUZ, 1998), permeado por vozes
outras, anteriores e posteriores, diluídas no fio do discurso. É essa heterogeneidade, intrínseca
à língua, a responsável por possibilitar o dialogismo entre tantos discursos e outros textos
existentes, os quais se encontram no interdiscurso e na memória discursiva. A partir desse
constante diálogo efetiva-se a comunicação, trazendo consigo todos os sentidos carregados de
ideologia e passíveis de serem construídos ao longo de seus enunciados, textos e discursos.
Alguns autores dedicam-se ao estudo das relações entre textos e discursos. Como
em nossa pesquisa trabalhamos com as representações sociais de alunas do SESC Ler de
Fortaleza acerca do seu processo de aprendizagem inicial e formal da lectoescrita - o que
48
implica aspectos também sobre o que esse processo envolve, como a vida sem saber ler e
escrever, bem como sobre os diversos sentimentos que a exclusão social provoca pelo
analfabetismo (FERRARO, 2002) -, apoiamo-nos, para tal, nos pressupostos teóricos sobre
parâmetros intertextuais de análise de Gérard Genette (1982), complementados pelas ideias de
Natalie Piègay-Gros (1996), bem como nas contribuições da Análise do Discurso de Linha
Francesa, em especial nas de Dominique Maingueneau (2007) e de seu Primado do
Interdiscurso.
Relacionamos essas diferentes áreas de forma complementar. Tanto as
representações sociais como os discursos dependem, fundamentalmente, da comunicação para
existirem, ocorrendo na língua e na linguagem e se ancorando nas memórias coletiva e
discursiva para que sejam construídos. Destarte, numa perspectiva transdisciplinar, tomamos
as representações sociais como práticas discursivas, as quais podem ser, em nossa pesquisa,
identificadas nos textos - ou seja, nos relatos das alunas -, local onde essas práticas se
materializam. Então, analisamos como as representações sociais, que são aqui práticas
discursivas, ancoram-se simultaneamente na memória coletiva e na memória discursiva para
serem construídas, o que pôde ser feito de maneira qualitativa por meio das relações
intertextuais de copresença de alusão e de citação genettianas. Essas relações nos fornecem
uma análise ao mesmo tempo intertextual e interdiscursiva, porque mostram como as
representações sociais e as práticas discursivas se ancoram nas memórias coletiva e
discursiva.
2.2 Genette e sua Transtextualidade
O termo transtextualidade foi cunhado por Genette em seu Palimpsestes (1982),
referindo-se aos vários diálogos existentes entre textos, ou seja, tudo aquilo que põe um texto
em relação, implícita ou não, com outro(s), além de incluir “qualquer relação que vá além da
unidade textual de análise” (BENTES; CAVALCANTE; KOCH, 2008, p. 119). As relações
por transtextualidade dividem-se em cinco diferentes tipos que veremos a seguir. Dessa
tipologia de Genette (1982), interessa-nos, particularmente, o primeiro – a intertextualidade,
razão por que trataremos dele de maneira mais detalhada, quando abordamos as relações de
copresença de citação e de alusão em nossa análise de dados.
49
2.2.1 Transtextualidade por interxtextualidade restrita
A transtextualidade por intertextualidade restrita caracteriza-se pela presença
efetiva de um texto em outro, isto é, por relações de copresença. Tais relações se apresentam
de maneira mais implícita ou mais explícita. De acordo com a classificação de Genette
(1982), a intertextualidade se manifesta por meio da citação, da alusão e do plágio.
Complementando seus pensamentos, Piègay-Gros (1996) acrescenta às relações de
copresença o fenômeno da referência.
Segundo Genette (1982), a citação é uma relação explicitamente marcada por
aspas e, mais modernamente, por negrito e/ou itálico (BENTES; CAVALCANTE; KOCH,
2008), que levam o leitor a perceber uma mescla de vozes e de alteridades, ou seja, a presença
de um texto em outro, constituindo o intertexto, independente de haver referência à autoria ou
não. Piègay-Gros (1996) complementa a definição de Genette atribuindo funções às citações,
como, por exemplo, no fato de elas poderem autenticar o discurso, conferindo-lhe estatuto de
verdade (BENTES; CAVALCANTE; KOCH, 2008), como ocorre em textos e discursos
científicos, o que podemos verificar no excerto abaixo:
(1)
Partirei, em direção a esse objetivo, da concepção de letramento proposta por Kleiman
(1995:19). A autora define letramento como “um conjunto de práticas sociais que
usam a escrita, enquanto sistema simlico e enquanto tecnologia, em contextos
específicos, para objetivos específicos”.
27
A citação de Kleiman, apropriada pelo autor do artigo no corpo do período sob a
forma de discurso direto, aparecendo entre aspas, sugere uma autenticação do discurso,
afirmando, no caso, ser verdade o conceito de letramento apresentado, como aponta Piègay-
Gros (1996) acerca de uma das funções das citações.
A alusão caracteriza-se por uma ausência de marcações explícitas e por uma não-
referência ao autor do texto-fonte, o qual frequentemente é, devido a isso, atribuído a um
enunciador genérico. Sendo assim, o intertexto só pode ser recuperado por meio da memória
discursiva do leitor e do conhecimento compartilhado que ele possui:
27
Fonte: BUZATO, M. E. K. Letramento e inclusão: do estado-nação à era das TIC. DELTA [online]. 2009,
vol.25, n.1 [citado 2009-12-17], pp. 01-38 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-44502009000100001&lng=pt&nrm=iso>. ISSN
0102-4450. doi: 10.1590/S0102-44502009000100001. Acesso em 17.12.2009.
50
(2)
Quando Boileau disse de Homero que “tudo quanto tocou se transformou em ouro”,
compreendemos a alusão à lenda de Midas, rei da antiga Frígia, que terá recebido de
Diónisos esse dom que o Autor da Arte Poética atribuiu metaforicamente a Homero
28
.
O exemplo acima ilustra como nos utilizamos da alusão na análise de nossos
dados, funcionando como ancoragem nos textos e discursos existentes na memória discursiva,
como também na memória coletiva, explicitando o dialogismo que ocorre entre eles. Contudo,
aqui, o próprio excerto utilizado como exemplo explica como a alusão ocorre - que ela só
pode ser recuperada pela memória discursiva do leitor. Se nesse excerto não houvesse a
explicação sobre a lenda do Rei Midas e se o leitor também não possuísse conhecimento sobre
tal lenda, o processo de alusão intertextual não seria realizado.
Portanto, só se pode perceber, no texto, uma alusão a outro, quando se tem
informação sobre o intertexto, ou seja, os casos de intertextualidade dependem da memória
discursiva, que inclui as informações culturais e enciclopédicas lá encontradas, como apontam
Bentes, Cavalcante e Koch (2008), remontando a Sant’Anna (1985), o que quer dizer que só
um leitor mais informado perceberia esses casos. Vale ressaltar, contudo, que a compreensão
dos textos não depende exclusivamente da recuperação do intertexto pelos processos
intertextuais, e sim do coenunciador, que pode compreender um texto independentemente
desses processos.
Cavalcante (2006, p. 5) aponta a alusão como “uma espécie de referenciação
indireta, como uma retomada implícita, como uma sinalização para o co-enunciador de que,
pelas orientações deixadas no texto, ele deve apelar à memória para encontrar o referente não-
dito”. Se não houver informação sobre esse referente na memória do coenunciador, o texto,
embora apresente sinalizações (ou seja, marcações, apesar de implícitas), não será recuperado
e, assim, não se concretizará tal fenômeno, no caso desse coenunciador específico. Devido a
isso, consideramos que a alusão funciona como um fenômeno intertextual aparentemente
implícito, pois se encontra na iminência de se explicitar quando do momento da recuperação
do intertexto pelo leitor, porque a marcação aparece, mesmo que nas entrelinhas.
Em nossa investigação, através da análise de nossos dados, mostramos que a
marcação intertextual existe, o que denota uma ancoragem na memória coletiva e na memória
28
Fonte: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/alusao.htm>. Acesso em 17.12.2009.
51
discursiva, construindo representações sociais das práticas discursivas dos sujeitos que
participaram de nossa pesquisa.
Voltando para as relações de copresença, vejamos, agora, o plágio, que é uma
cópia não declarada de um determinado texto. Trata-se, portanto, de um roubo intelectual
(BENTES; CAVALCANTE; KOCH, 2008), por meio de uma omissão desonesta e proposital
da autoria do texto em questão. Para que ele seja identificado, é preciso, também, que se tenha
conhecimento sobre ele e, para isso, recorre-se, do mesmo modo, à memória discursiva. Vale
ressaltar que o plágio é crime e pode levar a repercussões jurídicas.
Não encontramos exemplos de plágio em nossos dados porque todos eles foram
coletados por meio da técnica da entrevista clínica (MAIA-VASCONCELOS, 2005), em que
se obtêm formulações espontâneas, nas quais os sujeitos discorrem sobre suas histórias de
vida. Talvez o plágio pudesse aparecer caso algum trecho de texto fosse reproduzido sem que
se mencionasse o autor, como se algum poema fosse recitado e não pertencesse a alguma das
alunas de nossa pesquisa, o que não se verifica no corpus analisado.
A referência, que é a contribuição de Piégay-Gros (1996) às relações de
copresença genettianas a partir da releitura de sua obra, assemelha-se à alusão na medida em
que remete o leitor a uma obra x, em um determinado texto, porém por meio de uma remissão
direta a seus personagens ou a entidades outras, como se pode ver no exemplo abaixo:
(3)
Futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola, sou eu assim sem você
29
.
Piu-Piu e Frajola são personagens de histórias infantis e, por meio da referência ao
nome deles, somos levados, automaticamente, a um processo de alusão, pois pensamos logo
na série de que fazem parte com os demais personagens, ou seja, as histórias da Looney
Tunes, distribuídas pela Warner Bros, apesar de o nome da série não estar mencionado no
verso da canção. Se essa informação não estiver em nossa memória discursiva, a remissão a
tal série não seria recuperada, mesmo se os personagens fossem conhecidos do leitor -
29
Canção: Fico assim sem você, de Abdullah e Cacá Moraes. Fonte: <http://letras.terra.com.br/adriana-
calcanhotto/84687/>. Acesso em 17.12.2009.
52
conhecer os personagens não quer dizer, necessariamente, a série ou obra de que fazem
parte
30
. Vejamos, agora, um outro exemplo extraído da mesma canção:
(4)
Amor sem beijinho, Buchecha sem Claudinho, sou seu assim sem você.
31
Parece se tratar do mesmo caso, mas, aqui, não há fenômeno de referência
intertextual, porque Claudinho e Buchecha, apesar de serem pessoas conhecidas da mídia
brasileira, não são personagens de histórias. Portanto, não há uma relação estabelecida entre
textos diferentes.
Piégay-Gros (1996), então, baseando-se em Genette (1982), sintetiza as relações
de copresença da seguinte maneira:
Relações de Copresença
Explícitas Implícitas
Citação
Referência
Alusão
Plágio
Discordamos, entretanto, dessa divisão elaborada por Piègay-Gros (1996), e
concordamos com Bentes, Cavalcante e Koch (2008) ao apontarem que a autora incorre no
mesmo erro de Authier-Revuz (1998) ao distinguir as heterogeneidades mostradas em
marcadas e não-marcadas. Se a língua é constitutivamente heterogênea, marcação sempre
haverá, em maior ou menor medida; do contrário, como o interlocutor reconheceria tais
fenômenos? No intertexto, a presença do outro é também constante, sendo, do mesmo modo,
percebida em maior ou menor medida. Se, no texto, não houvesse marcação, de maneira
alguma, como poderia o leitor recuperar o intertexto? Destarte, seria “mais apropriado falar
em diferentes espécies de marca, em vez de não-marcação” (BENTES; CAVALCANTE;
KOCH, 2008, p. 131). Assim, poderiam ser considerados diferentes graus de explicitude no
intertexto, no lugar de se elaborar uma classificação estanque sobre o que é implícito ou
explícito em casos de intertextualidade por relações de copresença. Contudo, não entraremos
nesses meandros teóricos sobre a classificação do que é mais ou menos implícito.
30
A referência, portanto, pode remeter a casos de alusão. Porém, trata-se de duas relações intertextuais de
copresença distintas.
31
Canção: Fico assim sem você, de Abdullah e Cacá Moraes. Fonte: <http://letras.terra.com.br/adriana-
calcanhotto/84687/>. Acesso em 17.12.2009.
53
Por não interessarem à nossa pesquisa, dado que em nosso corpus realizamos uma
análise intertextual e interdiscursiva das representações sociais por meio das relações de
copresença de alusão e de citação, apenas mencionaremos os demais tipos de
transtextualidade propostos por Genette (1982), sem neles nos aprofundarmos.
2.2.2 Os demais tipos de transtextualidade
Apresentamos, aqui, os outros quatro tipos de transtextualidade de Genette
(1982): por paratextualidade, por arquitextualidade, por metatextualidade e por
hipertextualidade. Neste último, encontram-se as relações de derivação.
a) Transtextualidade por paratextualidade
Este fenômeno, que se afasta da intertextualidade, dá conta de todos os sinais que
circundam o texto, tais como, título, subtítulo, prefácio, posfácio, epígrafes, ilustrações e
notas, como as de rodapé. Todas essas evidências que constituem o paratexto traduzem
tentativas de ação do autor sobre o leitor. Devido a isso, Genette (1982) o considera um
espaço rico da esfera pragmática da obra, no caso, literária, que é seu objeto de estudo.
Vale ressaltar que alguns elementos paratextuais podem se caracterizar como
pertencentes, também, ao fenômeno da intertextualidade, como prefácios, posfácios e
epígrafes que, muitas vezes, são realizados por meio de citações a outras textos.
b) Transtextualidade por arquitextualidade
Como sugere o próprio nome, este fenômeno trata de categorias, “formas”, em
que o texto se insere. A arquitextualidade é um “processo de enquadramento de um texto em
outras instâncias de categorias maiores, como o gênero ou o discurso” (BENTES;
54
CAVALCANTE; KOCH, 2008, p. 132). Da mesma maneira que a paratextualidade, a
arquitextualidade se afasta da intertextualidade restrita. Todavia, aprofundar-se em seus
estudos pode contribuir para trabalhos acerca da intertextualidade intergenérica (BENTES;
CAVALCANTE; KOCH, 2008).
Segundo Genette (1982), este é o fenômeno mais implícito da transtextualidade,
deixando, no máximo, algumas pistas, algumas marcas paratextuais, como em alguns
documentos - “Declaração”, “Procuração”, “Certidão”, ou mesmo em algumas obras, como,
por exemplo, o “Soneto de Fidelidade”, de Vinícius de Morais, cujo título indica que o poema
a ser lido é um soneto. Esse fenômeno, justamente por ser tão “disfarçado”, exige do
coenunciador uma competência metatextual para que reconheça, a contento, as qualidades
genéricas que se apresentarem em determinado texto.
c) Transtextualidade por metatextualidade
Este fenômeno é o que desempenha a função crítica por excelência (GENETTE,
1982). Volta-se para o texto, estabelecendo-se uma relação de comentário ligando o texto-
fonte ao outro que sobre ele discorre. Não se pode confundi-lo com a intertextualidade,
porque, muitas vezes, a relação metatextual aparece sob a forma de alusão.
d) Transtextualidade por hipertextualidade - relações de derivação
Este tipo de transtextualidade diferencia-se dos demais por constituir relações de
derivação de um texto em outro, e não de copresença. Sendo assim, todos os textos em que se
percebem relações de derivação originam-se de textos já existentes: os originais denominam-
se hipotextos, e os derivados, hipertextos
32
.
32
É preciso tomar cuidado com as terminologias, já que existe o homônimo hipertexto, o qual é um gênero do
discurso (BENTES; CAVALCANTE; KOCH, 2008).
55
Os textos derivados, na classificação de Genette (1982), são distribuídos em
paródia, pastiche e travestismo burlesco. Na paródia
33
, conserva-se o estilo, modificando-se
o conteúdo. É uma prática bastante vista em programas humorísticos e em charges. O
pastiche, usado com frequência para fins satíricos, consiste na imitação de um estilo, sem
intenção de modificar o conteúdo do texto. Nesse caso, o hipotexto serve como base para a
criação de um hipertexto novo, original, e que imita o estilo do texto-fonte. Não se trata de
paródia porque a intenção não é modificar o conteúdo, e nem de plágio porque não se copia o
hipotexto omitindo-se a autoria. Por fim, o travestismo burlesco consiste na reescritura de
uma obra da qual se preserva o conteúdo. Normalmente também apresenta caráter satírico, ao
se travestir os personagens com características contrárias, como, por exemplo, ao transformar
em mendigo um personagem culturalmente conhecido como rei (BENTES; CAVALCANTE;
KOCH, 2008).
Piégay-Gros (1996), em sua releitura da obra de Genette (1982), faz uma nova
descrição das relações de derivação, além de redimensionar os fenômenos, restringindo-se
àquilo que, para ela, poderia se encaixar no conceito de intertextualidade, dividindo-o, então,
em relações de copresença e de derivação (BENTES; CAVALCANTE; KOCH, 2008):
Intertextualidade
Relações de Copresença Relações de Derivação
Citação
Plágio
Referência
Alusão
Paródia e Travestismo burlesco
Pastiche
Segundo a autora, paródia e travestismo burlesco são rigorosamente
diferenciados, sendo o último uma variante do primeiro, na medida em que consiste na
reescritura de um texto cujo estilo é alterado e cujo conteúdo permanece intacto. Ademais, a
paródia engloba o pastiche, cujo objetivo é imitar um texto e/ou o estilo de um determinado
autor ou época.
33
É importante, também, não confundir a paródia com outro fenômeno, conhecido por dètournement. Nele, há
modificação de textos de provérbios e ditos populares, como, por exemplo, “Penso, logo desisto” (título de uma
comunidade da rede de relacionamentos virtual Orkut), derivação de “Penso, logo existo” (célebre frase de René
Descartes).
56
Em nossa pesquisa, contudo, centramo-nos nas relações de copresença,
especificamente nos casos de citação e de alusão, para analisarmos como se constroem as
representações sociais de alunas de EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza, sobre seu
processo inicial de aprendizagem da leitura e da escrita, por meio de uma análise intertextual
e interdiscursiva. Não nos interessa trabalhar com as relações de derivação porque o próprio
corpus não nos permite, na medida em que é formado por relatos orais dessas alunas, e não
por textos que sejam derivados de outros. Vejamos, agora, os pressupostos de Maingueneau
(2007) que alicerçam nosso estudo.
2.3 O primado do interdiscurso
A ideia do “primado do interdiscurso” vem de Dominique Maingueneau (2007).
Sua proposta é sugerida como uma esfera de aplicação empírica de grupos de conceitos
teóricos. Assim, o autor ultrapassa procedimentos de análise que consistem em classificar e
descrever discursos de forma exaustiva a partir de um determinado modelo, ou seja, o foco
não incide sobre uma análise discursiva a partir de uma estrutura de classificações.
O autor, então, recorre a três bases teóricas diferentes para constituir seu primado,
que são as heterogeneidades enunciativas de Authier-Revuz (1998), o dialogismo de Bakhtin
(1988), e a intertextualidade de Piégay-Gros (1996), com base em Genette (1982). Como se
trata de uma aplicação empírica de conceitos teóricos, tem-se o texto como o local dessa
aplicação, através do qual os discursos podem ser analisados.
Os discursos, como já foi mencionado, são dialógicos em sua essência. Isso quer
dizer que seus sentidos são produzidos a partir da falha constitutiva da língua (AUTHIER-
REVUZ, 1998), ou seja, à sua incompletude, responsável pela produção dos sentidos. Porém,
para que haja uma análise interdiscursiva, de forma empírica, é preciso recorrer a categorias
da intertextualidade, já que os discursos são enunciados que se concretizam em materialidade
discursiva, assumindo uma certa regularidade, uma mesma condição de existência, porque
algo, para existir, não pode se transformar o tempo todo (MAINGUENEAU, 2007).
Sendo assim, os enunciados fazem sentido na medida em que se relacionam,
interagindo com outros em uma cadeia enunciativa. Vários enunciados interligados mostram o
57
que atribui sentido a um determinado enunciado e, consequentemente, a um discurso. Para tal,
existem várias estratégias, como as relações de copresença, que possibilitam a retomada do
enunciado em diversos textos diferentes, revelando a interligação entre eles.
Essas estratégias fazem com que os enunciados transponham as barreiras fechadas
da noção de texto enquanto autossuficiente, em que a coesão e a coerência dão conta daquilo
que faz sua unidade (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008), porque um mesmo
enunciado pode aparecer em diferentes textos, mudando, por conseguinte, de contexto e de
sentido. Destarte, o primado do interdiscurso critica a primeira fase da AD, em que os
discursos apareciam fechados sobre si mesmos, como se houvesse uma homogeneidade que
desse a eles uma identidade fixa (MAINGUENEAU, 2007).
Reconhecer essa proposta é “incitar a construir um sistema no qual a definição da
rede semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição
das relações desse discurso com seu Outro” (POSSENTI, 2003, p. 264, grifos do autor). Ou
seja, os sentidos, a rede semântica, são formulados a partir da relação com outros discursos,
em uma regularidade, e a partir de algo empírico, que são os textos, onde os discursos se
manifestam por meio da língua. Ressaltamos que só percebemos os sentidos gerados pelos
discursos por causa da ideologia, que interpela os indivíduos em sujeitos e todos os
enunciados proferidos em discursos. Ressaltamos que só percebemos os sentidos gerados
pelos discursos por causa da ideologia, que interpela os indivíduos em sujeitos e todos os
enunciados proferidos em discursos.
Além disso, o primado do interdiscurso surge de um questionamento sobre a
articulação dos conceitos de condições de produção e de Formações Discursivas,
reaproveitados, respectivamente, do Marxismo e de Foucault, para o escopo teórico da AD.
Maingueneau (1997), contudo, prefere falar de prática discursiva e de comunidade discursiva.
O primeiro conceito engloba a noção de Formação Discursiva de Foucault e está
diretamente ligado ao fato de que o discurso age ao mesmo tempo em que se refere a algo.
Não existe uma referência para além do mundo discursivo. O discurso, então, é uma forma de
ação do mundo e no mundo - o discurso está no mundo ao mesmo tempo em que o cria.
Assim, não há separação entre mundo e discurso. Isso nos mostra que o mundo chega a nós
58
pelos discursos
34
, que, por sua vez, só podem ser compreendidos através da interpelação
ideológica dos sujeitos pelos próprios discursos. Portanto, falar de discursos é também falar
de suas práticas.
Entretanto, as práticas discursivas apreendem formações discursivas que são
inseparáveis das comunidades discursivas responsáveis por produzi-las e por difundi-las.
Assim, “a formação discursiva é então pensada ao mesmo tempo como conteúdo, como modo
de organização dos homens e como rede específica de circulação dos enunciados”
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2008, p. 396). As práticas discursivas são, então, uma
produção simultânea de textos e de determinadas comunidades que sustentam esses textos.
Essas comunidades, solidárias às formações discursivas, são as comunidades
discursivas, denominadas por Maingueneau como tanto o grupo ou a organização de grupos
nos quais os textos que dependem da formação discursiva são produzidos e gerados, bem
como tudo o que esses grupos implicam no plano da organização material e modos de vida.
(MAINGUENEAU, 1997).
Tais comunidades são aquelas que, de certa forma gerem, administram e
difundem o discurso através da produção de textos predominantemente atravessados por
determinadas formas discursivas, que podem, por exemplo, ser predominantemente
econômicas, como no caso de empresas, organizações; predominantemente ideológicas, como
ocorre com partidos políticos e associações; predominantemente científicas e técnicas, como
no que tange aos meios acadêmicos e universitários; e ainda predominantemente de espaço
midiático. Em nossa pesquisa, a comunidade discursiva que investigamos são as cinco alunas
do Projeto SESC Ler de Fortaleza.
A partir desses conceitos, abrem-se dois caminhos de investigação. Um que
prima pela pesquisa de como se dá a imbricação entre o texto e seu processo de produção, e
outro que analisa a organização social das comunidades discursivas, verificando as produções
simbólicas de uma sociedade e como os grupos envolvidos com o discurso interagem entre si,
sendo que a prática discursiva integra esse modo de organização.
Mas, para sustentar a proposta de seu primado, Maingueneau (2007) “afunila” o
conceito de interdiscurso em três outros: universo discursivo, campo discursivo e espaço
34
Da mesma maneira que o mundo e a realidade chegam a nós pelas representações sociais.
59
discursivo. O primeiro assemelha-se à noção de interdiscurso de Pêcheux (1988). Trata-se de
um conjunto de formações discursivas de todos os tipos que se relacionam em uma
determinada conjuntura. É um conjunto finito, e que não pode ser apreendido em sua
totalidade. Por isso, não é de muita utilidade para o analista. O universo discursivo define uma
extensão máxima, “o horizonte a partir do qual serão construídos domínios susceptíveis de ser
estudados, os ‘campos discursivos’” (MAINGUENEAU, 2007, p. 35).
Os campos discursivos são um conjunto de formações discursivas que se
encontram em concorrência, isto é, que se delimitam em uma região qualquer do universo
discursivo, reciprocamente, por meio de diversas formas, como de aliança, de confronto
aberto ou de aparente neutralidade. As formações discursivas pertencentes a um mesmo
campo discursivo também se delimitam entre discursos que possuem a mesma função social.
Existem vários campos discursivos, como político, filosófico, gramatical, dentre outros.
Tais campos não possuem delimitações evidentes. São uma abstração necessária
que deve abrir espaço para variadas redes de trocas. Nesse espaço, que é o espaço discursivo,
constitui-se um discurso, e essa constituição consiste em operações regulares sobre formações
discursivas que já existem. Porém, isso não quer dizer que todos os discursos em um espaço
discursivo de um determinado campo se constituam da mesma forma. Os espaços discursivos,
então, funcionam como “subconjuntos de formações discursivas que o analista julga relevante
para o seu propósito colocar em relação” (MAINGUENEAU, 2007, p. 37), ou seja, que
considera necessários para realizar seu estudo.
De acordo com Maingueneau (1997), o que vale para a análise do discurso são as
relações entre as formações discursivas. Daí o privilégio do primado do interdiscurso, pois
toda formação discursiva é heterogênea a ela mesma, por ser um espaço instável atravessado
por outros discursos. Assim, todo enunciado que pertence a uma formação discursiva
encontra-se na intersecção de dois diferentes eixos: o da memória discursiva e o da
linearidade do discurso. O objeto de estudo da AD, então, seria a interação entre as diversas
formações discursivas no espaço em que suas identidades são construídas, o que pode ser
percebido por meio de uma análise das relações de copresença, no caso de nossa pesquisa as
de citação e de alusão, entre textos presentes nos espaços discursivos delimitados para tal.
60
3 METODOLOGIA
A pesquisa que desenvolvemos é do tipo exploratória, porque buscamos
compreender o problema levantado, construindo, para isso, hipóteses. Nossa investigação
também assume caráter de pesquisa participante, devido ao fato de os dados de nosso corpus
serem formados por autorrelatos orais dos alunos através de sua interação com a
entrevistadora, por meio da técnica da “entrevista clínica” (MAIA-VASCONCELOS, 2005).
Foram ouvidas cinco alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza, com faixa etária
entre 44 e 73 anos, que ainda não são fluentes na leitura e na escrita. Não foi aplicado teste
para verificar a fluência dessas alunas na leitura e na escrita. A professora, cuja identificação
se realiza pelas iniciais IR, nos indicou os alunos que não eram proficientes e, por meio das
conversas durante os relatos, confirmamos essa condição. As identidades das alunas foram
preservadas por meio de suas iniciais: ME (44 anos), FS (51 anos), SO (61 anos), FC (62
anos) e RO (73 anos). As identidades de todos os indivíduos mencionados nos relatos também
foram preservadas através das iniciais de seus nomes.
Vale ressaltar que as turmas de Fortaleza, diferentemente das do interior do estado
do Ceará, são mescladas, não sendo divididas por níveis. Assim, existem alunos que ainda não
sabem ler e nem escrever, que estão “engatinhando” nesse processo, como também alunos que
leem e que escrevem bem. Alguns deles, inclusive, já concluíram o Ensino Médio, mas, por
motivos diversos, resolveram voltar à escola, apesar de ser para uma turma com fins de
alfabetizar jovens e adultos.
Justificamos a escolha por um universo de pesquisa pequeno devido à abordagem
de análise de dados por nós empregada. Normalmente, pesquisas cujo suporte teórico são
representações sociais, trabalham com métodos quantitativos estatísticos por se tratar de um
universo bastante extenso de pessoas. Como nossa análise é absolutamente qualitativa, por
meio de relações de copresença intertextuais de alusão e de citação (GENETTE, 1982), seria
inviável realizá-la com um universo abrangente.
Depois de identificados os aspectos que formam as representações sociais
construídas pelas alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza sobre seu processo de
61
aprendizagem inicial e formal da lectoescrita, nós as organizamos conforme as noções de
sistema central e periférico de Abric (1994).
No sistema central, também conhecido por núcleo central ou figurativo,
encontram-se os elementos que mais se sobressaem na realização de uma ação, bem como
suas dimensões sócio-afetivas, ideológicas ou sociais (ABRIC, 1994). No sistema central, em
suma, localizam-se os elementos que possuem papel mais determinante na representação
social. Ele consiste na “base comum, propriamente social e coletiva, que define a
homogeneidade de um grupo através de comportamentos individualizados que podem
aparecer como contradições” (ABRIC, 1994, p. 28).
Esse sistema, portanto, assegura o que é consensual entre um grupo,
homogeneizando-o e tornando a representação construída mais estável e duradoura. Todavia,
esse sistema só pode ser estabelecido e construído por meio de uma relação interdependente
com o sistema periférico, em que se encontram todos os outros aspectos, mais flexíveis e
permeados por diferenças, em que as representações se ancoram para que sejam formadas.
Esses sistemas surgem como um princípio organizador da representação, sendo o
núcleo central “aquele que apresenta maior resistência e durabilidade (ARRUDA, 2002, p.
140, 141), e os elementos periféricos, “aqueles que fazem a interface com as circunstâncias
em que a representação se elabora e os estilos individuais de conhecer, podendo apresentar
maior grau de variação e menor resistência” (ARRUDA, 2002, p. 141). Assim, consideramos
ter identificado três representações sociais interdependentes entre si, que constituem os
núcleos centrais, rodeadas por oito elementos periféricos que as embasam, conforme mostra a
figura a seguir:
62
Figura 2: Sistemas central e periférico das representações sociais construídas pelas alunas do Projeto SESC Ler
de Fortaleza.
Ademais, a própria abrangência do termo “representações sociais” torna difícil a
escolha de qual metodologia ser aplicada, o que a deixa suscetível a sofrer críticas de diversas
ordens. Contudo, Moscovici considera essa abrangência proposital, que “visa permitir
desenvolver a teoria e a criatividade dos pesquisadores, na medida em que o interesse maior
seria a descoberta, e não a verificação, a comprovação [das representações sociais]”
(ARRUDA, 2002, p. 138). Inserimo-nos nesse pensamento de Moscovici em defesa da
plasticidade do conceito de representações sociais, que nos permitiu realizar nossa
investigação, podendo, ao mesmo tempo, ousar em uma proposta teórico-metodológica
consistente.
Quanto aos procedimentos de coleta de dados, para investigarmos as
representações sociais das alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza, pautamo-nos por seus
autorrelatos. Eles foram coletados através de encontros individuais, e também de discussões
promovidas em grupos focais. Os encontros individuais foram realizados por meio da técnica
da entrevista clínica (MAIA-VASCONCELOS, 2005), e os grupos, por meio dos círculos de
cultura propostos por Freire (2006). Foi realizado um grupo focal entre as cinco alunas
escolhidas e um encontro individual com cada aluna. Para uma maior fidedignidade, o corpus
Não é bom haver
turmas mescladas
Ler e escrever
promove
independência
A professora é a
motivação para se
continuar na escola
Cartas e orações:
o grande motivo
Ler e escrever é útil em
atividades cotidianas
básicas
O essencial era
trabalhar, em vez de
estudar (falta apoio
da família)
Volta-se para a
escola para se
aprender a ler e a
escrever
corretamente
É vergonhoso não
saber ler nem
escrever
A vida sem a leitura e a escrita
é como viver no escuro, ou
como portar alguma deficiência
física ou mental
Passar da idade é
um problema
O primeiro dia
de aula é
desconfortável
63
foi transcrito de acordo com as normas de transcrição do Projeto de Estudo da Norma
Linguística Urbana Culta de São Paulo (NURC/SP), vinculado à Universidade de São Paulo
(USP), com base nas seguintes instruções
35
:
A priori, para trabalharmos com jovens e adultos que estão em fase inicial da
aprendizagem formal da lectoescrita, é fundamental que utilizemos da oralidade como nossa
fonte maior (THOMPSON, 2002). É através de autorrelatos que teremos acesso às
representações sociais (MOSCOVICI, 2007), experiências de mundo e de vida que esses
35
Tabela adaptada de Preti (1999).
OCORRÊNCIA SINAIS EXEMPLIFICAÇÃO
Incompreensão de palavras ou
segmentos
( )
do nível de compreensão...( )
nível de compreensão leitora...
Hipótese do que se ouviu (hipótese) (estou) meio desconfiado
Truncamento (havendo homografia,
usa-se acento indicativo da tônica e/ou
timbre)
/ e comé/ e reinicia
Entoação enfática maiúscula porque as pessoas TÊM que aprender
Prolongamento de vogal e consoante
(como s, r)
:: podendo aumentar para :::: ou mais ao fazerem os... éh::: ... o exercício
Silabação - por motivo de lei-tu-ra
Interrogação ? e a professora?
Qualquer pausa ...
são três motivos... ou três razões... que
fazem com que os alunos tenham
dificuldade...
Comentários descritivos do transcritor ((minúsculas)) ((espirrou))
Comentários que quebram a seqüência
temática da exposição; desvio temático
-- --
... a demanda de exercícios -- vamos dar
essa notação -- demanda de exercícios
por motivo
Superposição, simultaneidade de vozes { ligando as linhas
A. na { escola
B. sexta-feira?
A. fizeram { lá...
B. esturaram lá?
Indicação de que a fala foi tomada ou
interrompida em determinado ponto.
Não no seu início, por exemplo.
(...) (...) nós vimos que existem...
Citações literais ou leituras de textos,
durante a gravação
" "
João diz... "É preciso saber ler e escrever
para se viver melhor"...
64
alunos já possuem. Esses relatos foram gravados por meio de áudio e vídeo durante os meses
de fevereiro e março de 2009 em uma sala de aula da Escola SESC de Fortaleza.
Através dos relatos, também, é possível apreender detalhes que fogem à escrita, o
que caracteriza a história oral como extremamente rica, por captar registros que o papel não
consegue (THOMPSON, 2002). Por meio deles, ainda, obtém-se contato mais direto com
aquele que conta a sua história. Sendo assim, “a evidência oral, transformando os ‘objetos’ de
estudo em ‘sujeitos’, contribui para uma história que não é só mais rica, mais viva e mais
comovente, mas também mais verdadeira” (THOMPSON, 2002, p. 137, grifos do autor),
porque, além de a história oral ser uma forma imediata de registro,
todas as palavras empregadas estão ali exatamente como foram faladas; e a elas se
somam pistas sociais, as nuances da incerteza, do humor ou do fingimento, bem
como a textura do dialeto. Ela transmite todas as qualidades distintivas da
comunicação oral, em vez da escrita - sua empatia ou combatividade humana, sua
natureza essencialmente tentativa, inacabada (THOMPSON, 2002, p. 146-147).
Contudo, alguns quesitos devem ser respeitados. Apesar de o relato oral
proporcionar uma “cooperação em base muito mais igualitária” (THOMPSON, 2002, p. 217)
e poder se realizar em qualquer lugar, é preciso dosar distância e proximidade em certa
medida, além de demonstrar “interesse e respeito pelos outros como pessoas e flexibilidade
nas reações em relação a eles; capacidade de demonstrar compreensão e simpatia pela opinião
deles; e, acima de tudo, disposição para ficar calado e escutar” (THOMPSON, 2002, p. 254).
O interessado pelas respostas deve se manter em segundo plano, e há diferentes técnicas para
se conseguirem essas respostas, sendo que a entrevista clínica é uma delas.
Tal técnica é uma técnica de escuta. Consiste em uma metáfora do “inclinar-se” -
do grego klinikos, que significa aquele que visita o paciente no leito - sobre quem vai contar
sua história, dando-lhe atenção, da mesma maneira como o médico se inclina sobre o paciente
para examiná-lo ou como o professor se inclina sobre seu aluno para ajudar-lhe no que
apresenta dificuldade (MAIA-VASCONCELOS, 2005).
De acordo com Thompson (2002, p. 197), “toda fonte histórica derivada da
percepção humana é subjetiva, mas apenas a fonte oral permite-nos desafiar essa
subjetividade”. O autor sugere que deveríamos fazer “nossos informantes se acomodarem
relaxados sobre o divã, e, como psicanalistas, sorver em seus inconscientes, extrair o mais
profundo de seus segredos” (THOMPSON, 2002, p. 197). Assim funciona a entrevista clínica,
65
mas é preciso enfatizar que ela não se pretende psicanalítica, porque não tem como interesse
fazer uma análise psíquica dos sujeitos.
A clínica do discurso, embora tenha por objetivo extrair o máximo de informações
de quem relata, havendo sempre muita atenção por parte de quem ouve, é um movimento em
mão dupla, pois permite conhecimentos de ambas as partes: quem relata se autoconhece mais,
e quem escuta aprende com o que foi relatado (MAIA-VASCONCELOS, 2005). É preciso
trabalhar com sujeitos reais, e não com sujeitos epistêmicos, para que se tenha, de fato, o mais
fiel à realidade vivida por eles. A entrevista clínica, então, é
a interação entre o sujeito e a situação refletida diante de um outro sujeito, o
pesquisador, e que implica uma dinâmica ao mesmo tempo psicológica e social.
Essa interação constrói um saber, muitas vezes desconhecido pelo sujeito,
provavelmente também novo para o pesquisador, fazendo nascer uma relação de
diálogo intenso e profundo (MAIA-VASCONCELOS, 2005, p. 17).
Com relação aos grupos focais, levamos uma figura de uma classe de jovens e
adultos a fim de levantarmos uma discussão sobre como enxergam a sala de aula, comparando
as semelhanças e as diferenças com aquela a que pertencem. Além disso, levamos algumas
questões, visando a descobrir suas opiniões sobre a função da escola e o que ela representa
enquanto instituição; sobre as funções da leitura e da escrita em sua vida, e qual delas
consideram ser mais difícil; e também sobre como julgam a posição do professor e como se
sentem na posição de alunos, comparando-se tanto com o docente, quanto com as colegas.
Para os encontros individuais, elaboramos, também, perguntas-chave que foram
utilizadas como um ponto de partida para a técnica da entrevista clínica:
1) Com que idade você foi para a escola pela primeira vez?
2) Como foi o primeiro dia de aula?
3) Como é a vida sem saber ler nem escrever?
4) O que te trouxe para o Projeto SESC Ler?
5) Como as aulas são para você?
6) Como você se sente em relação à professora?
Quanto aos procedimentos de análise dos dados, nossa pesquisa consiste nos
seguintes pontos:
66
a) Na análise qualitativa das representações sociais, enquanto práticas
discursivas, de alunos de EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza acerca do seu
processo de aprendizagem inicial e formal da lectoescrita - o que implica
aspectos também sobre o que esse processo envolve, como a vida sem saber ler
e escrever, e os diversos sentimentos que a exclusão social causada pela
ausência da lectoescrita;
b) Para isso, verificamos as posições discursivas assumidas pelos sujeitos nos
relatos selecionados, que são os espaços discursivos que consideramos
relevantes para nossa análise;
c) A partir dessas posições, analisamos como os discursos produzidos nos
enunciados dos alunos se ancoram em sua memória coletiva e em sua memória
discursiva, através das relações intertextuais de copresença de alusão e de
citação
36
(GENETTE, 1982; PIÈGAY-GROS, 1996), possibilitando, então, a
identificação das representações sociais que investigamos em nosso estudo;
d) Organização das representações sociais de acordo com as noções de sistema
central e periférico (ABRIC, 1994).
Além de verificarmos como o texto se relaciona com o intertexto por meio das
relações de copresença de alusão e de citação em nossa pesquisa, examinamos se essa relação
ocorre em concordância com o que o enunciador quis argumentar no texto fonte, ou seja, se
há captação, ou se ocorre em discordância, havendo, então, subversão. De acordo com
Charaudeau e Maingueneau (2008, p. 94), “um texto ou um gênero, uma vez inscritos na
memória, são portadores de um capital variável de autoridade, avaliado positiva ou
negativamente”. Se a avaliação for positiva, há captação ao que o enunciador quis mostrar no
texto fonte; se for negativa, há, pois, subversão.
36
Não foram encontradas outras relações de copresença nos relatos de nosso corpus selecionados para a análise
dos dados. Por isso prevalecem apenas a alusão e a citação como categorias de análise.
67
4 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS IDENTIFICADAS
Trabalhamos em uma perspectiva transdisciplinar, isto é, fundimos campos
teóricos, em vez de apenas elencarmos um ou outro posicionamento, acrescentando os
pressupostos teóricos principais de suporte da pesquisa. Assim, consideramos as
representações sociais, objeto de estudo da teoria de Moscovici (2007), como práticas
discursivas, termo proveniente da Análise do Discurso de linha francesa (MAINGUENEAU,
2007). As primeiras orientam as ações dos sujeitos, na medida em que o que chega até nós são
as próprias representações, em vez da realidade, e também porque elas são construídas em
sociedade, em consenso. Destarte, os sujeitos, por fazerem parte da sociedade, são guiados
por elas.
Com os discursos, o processo é semelhante. Por meio da materialidade discursiva,
eles chegam até nós, trazendo representações do mundo, e não o mundo em si, ao mesmo
tempo em que nós também interferimos nessas representações. Os discursos, então, ocorrem
por meio de práticas discursivas, ou seja, produzir um discurso é, ao mesmo tempo, agir. O
discurso, portanto, é a própria ação do sujeito. Assim, tanto as representações sociais como os
discursos são projeções do mundo e da realidade, exercendo influência nas ações dos sujeitos.
Em nossa análise de dados, a princípio, selecionamos os trechos mais recorrentes
dos relatos, isto é, delimitamos os espaços discursivos (MAINGUENEAU, 2007) que são
relevantes para nossa investigação. Feito isso, partimos para uma análise qualitativa dos
excertos escolhidos, por meio das categorias intertextuais de citação e de alusão (GENETTE,
1982; PIÈGAY-GROS, 1996), as quais consideramos formas de ancoragem. A citação e a
alusão ancoram-se no interdiscurso e na memória discursiva, assim como as representações
sociais se ancoram na memória coletiva, que consideramos ser, por isso, também discursiva.
Pela experiência que tivemos com os dados, percebemos uma maior recorrência de alusões;
por isso exploramos mais essa categoria, que se configura em uma referência indireta
(GENETTE, 1982; PIÉGAY-GROS, 1996).
Apresentamos trechos dos relatos de cinco alunas que não são fluentes na leitura e
na escrita e cujas identidades foram preservadas por meio das iniciais FC, FS e ME, RO e SO.
Analisamos as posições discursivas assumidas pelos sujeitos em seus enunciados e
68
verificamos as relações intertextuais neles presentes
37
, com o intuito de descobrir em quais
textos e em quais discursos os enunciados se ancoram. A partir daí, investigamos o que foi
mais recorrente, tornando-se representação social por ser algo existente no grupo, e não
apenas em um único sujeito. Os relatos aparecem em itálico e, abaixo deles, segue a análise,
tecida por considerações. Como se trata de um estudo de representações sociais, é obrigatória
a existência de pontos em comum entre os relatos. Assim, percebe-se, também,
intertextualidade entre os enunciados das alunas.
Feitas as análises, organizamos as representações sociais e seus aspectos
fundadores e formadores conforme as noções de sistema central e periférico, de Abric (1994).
Delimitamos três representações como sendo o núcleo central, e onze aspectos periféricos,
conforme a Figura 2, esquematizada da seguinte maneira:
Núcleo central:
a) A vida sem a leitura e a escrita é como viver no escuro, ou como portar alguma
deficiência física ou mental;
b) É vergonhoso não saber ler nem escrever;
c) Passar da idade é um problema.
Sistema periférico:
a) Ler e escrever é útil em atividades cotidianas básicas;
b) O essencial era trabalhar, em vez de estudar (falta apoio da família);
c) O primeiro dia de aula é desconfortável;
d) Volta-se para a escola para se aprender a ler e a escrever corretamente;
e) Não é bom haver turmas mescladas;
f) Cartas e orações: o grande motivo para se adquirir a lectoescrita;
g) Ler e escrever promove independência;
h) A professora é a motivação para se continuar na escola.
Apresentamos, detalhadamente, a seguir, a análise de todas as representações e de
seus aspectos, ou seja, dos sistemas central e periférico.
37
O que leva também a uma análise discursiva simultânea, já que o texto é o lugar empírico onde se encontra o
discurso.
69
Núcleo central
a) A vida sem a leitura e a escrita é como viver no escuro, ou como portar alguma deficiência
física ou mental
A falta da leitura e da escrita é tida como sendo tão ruim quanto a falta de algum
órgão do corpo, como uma deficiência física ou mental, ou então como uma vida sem luz, em
que nada se enxerga.
(5) FC:
É horrível... É você ser uma cega, de você ir passando pelo um buraco, e se tiver perigo você
cai, devido não saber que tem um perigo ali.
(6) SO:
E quem não sabe ler É cego. Quem não sabe ler nem escrever é cego. Eu combato isso muito
lá em casa, que quem não sabe ler nem escrever é um cego.
(7) FS:
Num vou dizer... muita, já ouvi muita gente falar que é como fosse cega. Em parte sim, né?
(...) Porque se eu tô vendo um nome ali e eu não sei é o mesmo que, ( ) assim, que tem a coisa
ali ( ) mas eu não vou conseguir decifrar aquele nome, né. Acho que geralmente é uma coisa
muito repetida, que eu já vi entrevista sobre isso, mas é tipo mesmo que não sabe, que tá
cego. A gente que não sabe ler nem escrever é cego e sem coordenação motora. Cumé que vai
coordenar coisa que a gente num sabe, né?
(8) FS:
Porque podem tirar tudo da gente, a gente pode ter um rim amputado, mas quem sabe ler e
escrever jamais, a não ser que tenha um acidente, né... que tenha que voltar a aprender até a
escrever, né... Tem muito acidente que traz sequelas forte, né?
70
(9) ME:
Ai, é horrível. Que eu tenho uma filha que ela terminou os estudos e, sempre quando eu quero
pedir alguma coisa a ela, ela bota dificuldade: “Ah, mãe, vá aprender a ler!”. Eu digo: “Eu
tô tentando!”.
(10) RO:
Ave Maria... num sei não... é ruim... certo que tem muita gente que não sabe ler e não sabe
escrever... mas se dirige melhor do que quem saber ler e escrever... Mas eu acho que seja
ruim porque às vezes a pessoa vê uma pessoa escrevendo... como eu vejo uma pessoa
escrevendo assim rapidamente olho ali pra lousa... ( ) tudo direitinho... Meu Deus, como é
lindo uma pessoa saber escrever... eu não tenho inveja... eu fico assim dentro de mim: “Dai-
me uma luz pra que eu faça do jeito que fulano faz”, ou qualquer um, né... É escrever...
Em seus relatos, as alunas assumem a posição de sujeito não-alfabetizado por
falarem de como é a vida sem saber ler nem escrever. Todas elas têm como consenso que,
assim, a vida é ruim ou horrível. Em (10), RO diz do quão ruim é a vida sem ler e escrever,
admirando quem o sabe, o que percebemos por meio da citação “Dai-me uma luz pra que eu
faça do jeito que fulano faz”. O intertexto mostra, então, como ela desejaria se igualar a quem
sabe ler e escrever. Já em (5), (6) e (7), quando as alunas se utilizam da metáfora da cegueira
para explicar como é a vida sem saber ler e escrever, os relatos podem fazer alusão, por
captação, ao mito da caverna de Platão. A leitura e a escrita seriam como a saída da caverna, o
encontro com a luz que possibilita a visão do mundo e dos caminhos a serem seguidos.
FS, em (7), ainda acrescenta que quem não sabe ler e nem escrever, além de cego,
é “sem coordenação motora”. Ao dizer de coordenação motora, ela deve se referir ao próprio
ato de escrever, de pegar o lápis, apoiá-lo sobre um papel e “desenhar” as letras em palavras,
as palavras em frases e, por conseguinte, em textos. Tal discurso também pode fazer alusão ao
que se observa no discurso acerca da educação infantil, percebida por meio da fala de
professores ao trabalharem a coordenação motora fina
38
das crianças para que aprendam a
escrever, e sobre o qual ela deve ter ouvido falar por meio da convivência com outras pessoas.
38
Segundo Magalhães et al. (2003), a coordenação motora fina lida com movimentos que exigem maior destreza
manual. Aprender a pegar num lápis para escrever é um deles. Por isso, é importante que ela seja trabalhada na
educação infantil, por ser importante aperfeiçoá-la no desenvolvimento da criança.
71
Portanto, os atos de não saber ler nem escrever, apesar de todos os órgãos do
sentido poderem estar em perfeito funcionamento e de a comunicação acontecer sem maiores
problemas, constituem-se um grande entrave, porque não se pode exercer a cidadania de
forma digna. Não ler e escrever, então, está no mesmo patamar de se ter alguma deficiência
física, como não poder enxergar. Ou mesmo de alguma deficiência causada por algum
acidente, como se percebe no relato de FS, em (8). Vale lembrar que pessoas portadoras de
qualquer tipo de deficiência sofrem preconceito de maneira semelhante, por serem também
consideradas uma minoria e por conviverem em uma sociedade não adaptada às suas
condições, o que pode aludir ao discurso visto em campanhas de inclusão social, como se nota
na campanha intitulada “Iguais na diferença”
39
, lançada pelo governo Lula em fevereiro de
2009, que cita alguns versos da canção “Condição”, de autoria de Lulu Santos:
Eu não sou diferente de ninguém
Quase todo mundo faz assim
Eu me viro bem melhor
Quando tá mais pra bom que pra ruim.
Não quero causar impacto
Nem tampouco sensação
O que eu digo é muito exato
É o que cabe na canção
Eu não sei viver triste, sozinho: É a minha condição".
Em ambos os casos, existe exclusão social. Ademais, “é horrível” não ler e não
escrever, como também deve ser não enxergar, apesar de ser possível viver sob essas
condições de exclusão em se enfrentando todas as dificuldades que se apresentam. Portanto,
casos de exclusão podem ser percebidos em diferentes situações por meio de diferentes textos
- aqui mencionamos a exclusão por meio do analfabetismo e por meio de discursos de
campanhas de inclusão de pessoas portadoras de deficiência. A surpresa foi ver que as alunas
comparam a falta da leitura e da escrita com alguma deficiência física ou mental. Portanto,
fica nítido o apoio na memória coletiva para a formação das representações sociais
(MOSCOVICI, 2007), bem como o apoio na memória discursiva, que consideramos ser
coletiva, para a produção de práticas discursivas (MAINGUENEAU, 2007), as quais, por
39
Fonte: < http://portalimprensa.tempsite.ws/cadernodemidia/noticias/2009/02/16/imprensa26183.shtml>.
Acesso em 03.01.2010.
72
conseguinte, orientam as ações do sujeitos, bem como as representações sociais o fazem. Essa
relação entre textos e discursos para a formação dessa representação social só pôde ser
percebida por meio das relações de copresença de Genette (1982), revistas por Piègay-Gros
(1996).
Já em (9), no relato de ME, percebe-se o quão “horrível” é não saber ler e escrever
também pelo preconceito existente dentro da própria casa, nas relações familiares. Nem
sempre há disposição de outras pessoas no auxílio da leitura e da escrita de algum documento.
No caso, a falta de auxílio parte da própria filha, o que causa decepção na mãe.
Pelos relatos das alunas, percebe-se que a falta da leitura e da escrita na vida
cotidiana pode ser comparada à cegueira ou a alguma outra deficiência física ou mental, além
de essa falta excluí-las da vida em sociedade, o que acaba por gerar um sentimento ruim.
Tudo isso se apresenta como consenso entre elas, o que torna as análises dos relatos
representações sociais, porque há ancoragem nas memórias coletiva e discursiva para que
sejam construídas.
b) É vergonhoso não saber ler nem escrever
Não poder executar uma atividade básica como a leitura e a escrita gera vergonha,
porque muitos preconceitos são sofridos pelos não-alfabetizados (FERRARO, 2002).
(11) FC:
Conversando com todos, não dou transparência que não sei ler, eu mesmo me admiro, eu
mesma... (...) Eu digo assim: “Será que fui eu mesmo, meu Deus?”, ou então quando eu falo,
às vezes sai coisa que eu digo: “O quê que eu falei, será que tava certo?”.
(12) FC:
Eu pedia pra minha filha botar num papel o nome da rua e eu ia, procurava o que tava ali, eu
não sabia ler, eu tinha só conhecimento que aquele nome que tava lá era o nome do papel, aí
eu me dirigia desse jeito, sempre fiz algo... eu tentava, é::: de alguma maneira resolver
sempre, e não dar a entender que eu não sabia ler.
73
(13) FC:
Eu não tenho vergonha de falar em canto nenhum nem com ninguém, mesmo falando errado.
Eu falo... (...) Aí ela [uma vizinha que fez até a oitava série] chega: “Cumade, eu não
acredito”. Hoje mesmo fui falar com o prefeito lá em Caucaia pra ela. Sorte que não falei
com o prefeito, falei com o sucessor dele. Aí falei pra ela, e ela fica escondida, com vergonha.
Não era ela que era pra ter vergonha, era eu... porque alguma coisa que ela não souber, ela
olha pro papel e ela vai saber que tá lá.
(14) ME:
Hoje, né, fui na C&A (...) trocar uma roupa da... da minha bebê (...). Aí ela ((atendente))
pediu, aí eu escrevi meu nome. Aí ela pediu pra eu escrever o endereço, eu disse que não
sabia. Quer dizer que aí eu fiquei assim... Antigamente eu tinha vergonha de dizer, né... Eu
até inventava que num enxergava, num ( ) assim, num ia escrever porque num enxergava.
Mas hoje eu já caí na real, né. (...) Hoje eu já assim, né... “Eu não sei bem escrever o
endereço, mas dá pra senhora escrever pra mim?” Pronto.
(15) FS:
É muito triste alguém perguntar alguma coisa e você num... (...) Aí foi difícil, ó, fiquei toda
assim... E ela ((advogada)): “FS, você quer ler isso daqui?”, que era o processo, né. “Não,
precisa não, eu confio em você”.
(16) FS:
Mas dói, mas dói... Quando eu vou falar essa palavra aí ((analfabeto))... sou capaz de fazer
( ) no máximo pra evitar de falar. Pode ser uma grande falha minha, mas eu sou capaz de...
de dizer que perdi até os óculos... Quando eu tô no banco e me mandam uma cópia pra
assinar de todo jeito: “Tô sem óculos”, mas abrir a boca e dizer que não sei ler ainda, tá
entendendo, isso me custa muito.
(17) RO:
(...) mas uma cidadã é porque a pessoa não é analfabeta, né?
As alunas assumem a posição de sujeito não-alfabetizado, na medida em que
relatam situações em que foram requeridas para ler ou escrever algo e não o conseguiram,
camuflando-se por trás de alguma desculpa, ou então parecendo não acreditar serem capazes
74
de produzir alguma frase escrita ou de ler alguma coisa, por menor que fosse. Destarte, seus
relatos revelam alusões, por captação, ao discurso da exclusão social pelo analfabetismo
(FERRARO, 2002), que geram vergonha, provocada pela marginalização, bem como alusão
ao discurso acadêmico acerca do letramento e da alfabetização funcionais (SOARES, 2006),
porque as alunas mencionam que utilizam a leitura e a escrita para fins de sobrevivência em
suas atividades.
A sensação de vergonha é percebida em vários relatos. FC, em (11), ao mesmo
tempo em que esconde sua condição de analfabeta, orgulha-se de escondê-la. Isso fica claro
quando diz “Conversando com todos, não dou transparência que não sei ler, eu mesmo me
admiro, eu mesma...”. A sensação de exclusão pode provocar as dúvidas levantadas nas
citações que também aparecem em seus enunciados. Na primeira citação, ela dialoga com
Deus, parecendo não acreditar na ação que executou e, na segunda, ela mostra insegurança
quanto ao que tinha falado.
FS, em (15), mostra que ficou “toda assim” por não conseguir ler um processo
judicial em que estava envolvida, escondendo-se por trás da confiança em que depositava em
sua advogada. Em (16), essa sensação se evidencia, quando ela diz que lhe “custa muito”
dizer que não sabe ler ainda. Em (12), (14) e (16), FC, ME e FS mostram como se sentem
envergonhadas em situações que exigem o uso da leitura e da escrita para fins de
sobrevivência - em (12) na procura de um endereço; em (14), no preenchimento de um
formulário em uma loja; e, em (16), na assinatura de algum documento bancário. FC afirmava
que não poderia “dar a entender que eu não sabia ler”. Já ME dizia que, antes, mentia que não
enxergava e que, hoje, pediria a alguém para escrever o endereço em seu lugar, o que não
anula a sensação de vergonha por ela não poder resolver tal atividade por si própria. E FS
dizia que tinha perdido os óculos.
FC deixa claro que tenta se esconder por trás de uma falsa autonomia, ou de uma
autonomia insuficiente, verificada quando diz “sempre fiz algo... eu tentava, é::: de alguma
maneira resolver sempre”. Essa postura de independência mais parece uma defesa do que de
fato uma autonomia. Ela pode ter aprendido a resolver diversos problemas cotidianos à sua
maneira sem saber ler nem escrever, mas quando a leitura e a escrita são requisitadas, o que
lhe resta é parecer saber que as domina. Porém, o que se verifica é que não saber ler e
escrever, de fato, faz falta, e que ela se sente envergonhada por isso. Essa autonomia pode ser
75
comprovada como falsa quando retornamos ao questionamento visto em (19), em que ela
duvida de sua própria capacidade.
Em (13), a postura de falsa autonomia de FC aparece novamente, ao afirmar,
veementemente, que não tem vergonha de falar com qualquer pessoa, “mesmo falando
errado”, a qual é quebrada pela palavra “sorte”, no enunciado “Sorte que não falei com o
prefeito, falei com o sucessor dele”. Destacamos a palavra “sorte” para demonstrar o alívio
sentido por ela ter falado com alguém de nível inferior ao do prefeito, o que diminui a
distância social entre eles e, consequentemente, o desconforto ao conversar. Interessante notar
que a aluna não assume essa vergonha sentida, atribuindo-a à sua vizinha, dizendo que “ela
fica escondida, com vergonha”, e que “Não era ela que era pra ter vergonha, era eu...”, porque
sua vizinha tinha condição de ler algo se fosse necessário. Aqui, a coragem parece surgir não
como um ato de bravura, mas como uma defesa, um esconderijo para toda a sensação de
impotência, marginalização e inferioridade que a provocada pelo não domínio da lectoescrita
(FERRARO, 2002).
O relato de RO, em (17), pode aludir, por captação, ao Artigo 205 da Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988
40
, o qual postula que “a educação, direito de todos
e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade,
visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho”. Ora, se não houver educação, então não há preparo para o
exercício da cidadania. Logo, quem não é alfabetizado, não recebeu educação e, portanto, não
é cidadão.
Acreditamos que possa se tratar de um caso de alusão porque o enunciado da
aluna remete ao enunciado da Constituição, embora se trate de um direito que a aluna não
pôde usufruir. Se é um direito, ele é imposto, ele existe, e podemos não contestá-lo. Porém,
apoiamo-nos no texto desse direito para legitimarmos o caso de alusão que encontramos em
nossa análise.
Todas as alunas, em ditos e não-ditos, demonstram sentir vergonha de sua
condição de analfabetismo, contornando a situação por meio de diversas maneiras, a fim de
não demonstrarem que não sabem ler nem escrever. Essa sensação é comum e aceita por elas.
40
Fonte: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em
03.01.2010.
76
Portanto, elas se ancoram nessas experiências de vida, que, por serem comuns em um grupo,
encontram-se na memória coletiva (MOSCOVICI, 2007), para produzirem seus discursos, que
dialogam com outros na memória discursiva. Devido a isso, consideramos a memória coletiva
como memória discursiva - o que se configura como uma de nossas contribuições nessa
pesquisa.
As alunas, por não dominarem a leitura e a escrita, sentem-se excluídas da
sociedade, até porque não conseguem realizar atividades do cotidiano, como preencher um
formulário ou ler aquilo que lhes é de interesse. Tanto os discursos da exclusão social pelo
analfabetismo (FERRARO, 2002) como o do letramento e da alfabetização funcionais são
predominantes. O primeiro porque marginaliza quem é analfabeto, e o segundo porque, para
elas, realmente é necessário saber ler e escrever para se executarem atividades de leitura e de
escrita com caráter de sobrevivência.
c) Passar da idade é um problema
Essa representação se apresenta como diferente das outras, porque as demais
estão, de alguma maneira, ligadas à prática ou ao não domínio da lectoescrita, seja em sala de
aula ou fora dela. Nesse caso, temos a idade avançada como uma barreira na
aquisição/aprendizagem da leitura e da escrita por essas alunas de EJA.
(18) SO:
(...) aí eu me sinto tão assim... que às vezes eu digo: “Eu não vou mais pra canto nenhum. Lá
no céu não precisa de diploma”. (...) Aí eu acho... me digo: “Pra que é que eu vou mais
aprender a ler?” (...) Eu acho que eu não aprendo mais, mas eu venho... (...) Porque eu já tô
cansada ((risos)). Assim... eu acho assim... que eu acho que num vai mais... sei lá.
(19) FC:
Por exemplo, com a professora, pra lidar com nós, nós não sabemos e... é a mesma coisa de
ensinar papagaio velho a falar ((risos))... porque diz... olhe... diz, mas olha a gente... eu tô
olhando no quadro, eu tô vendo... quando eu vou botar no caderno eu não sei mais.
77
(20) RO:
(...) ah, meu Deus, ah que eu tivesse... encontrado essa facilidade... que nós temos agora...
porque isso aí foi uma facilidade muito grande... porque pra nossa idade, minha filha,
hu::m... tem mais não... (...) mas os meus filho... tudo foi... direitinho... teve seus estudo. Se::
não sabe mais é porque não quiseram... mas não tem nenhum analfabeto. To::dos sabem ler,
to::dos sabem escrever... Aí quando eles souberam ler e escrever eu digo assim: “Agora eu
vou cair... no colégio...”. “Mãe, quem já viu papagaio velho aprender?”. Eu disse: “Pois,
meu filho... o po:::ucoque eu souber pra mim é tudo... ou muito ou pouco, pra mim tudo
vale”.
Todas as alunas assumem a posição discursiva de sujeito incapacitado de aprender
a ler e a escrever. Isso se percebe em (18), na citação de SO “Eu não vou mais pra canto
nenhum. Lá no céu não precisa de diploma”, que denota o que se percebe no discurso do
senso comum acerca da aquisição e da aprendizagem em idade mais avançada, de que se está
“enferrujado”, não se podendo aprender mais. Isso também fica evidente quando RO, em (20),
diz “porque pra nossa idade, minha filha, hu::m... tem mais não”. Voltar a estudar nessa idade
seria como “dar murro em ponta de faca”, ou seja, a probabilidade de frustração seria maior
do que a de se obter sucesso. Essa sensação de incapacidade pode ser vista na outra citação do
excerto, em que a aluna se pergunta “Pra que é que vou aprender a ler?”. Ellis (1994), em
estudos sobre aquisição de segunda língua, comprova que aprender uma língua estrangeira em
idade adulta tem seus benefícios devido à maturidade do estudante. Assim, acreditamos que
aprender a ler e a escrever em idade adulta é, também, possível.
Isso se repete em (20), com RO, na citação “Mãe, quem já viu papagaio velho
aprender?”, que traz em seu conteúdo o dito popular de que “papagaio velho não aprende”, o
qual contraria os estudos científicos acerca da aquisição da aprendizagem. A diferença do
exemplo (19) é que a citação parte do filho de RO, e não dela própria, como ocorreu com em
FC, o que reforça a opinião do senso comum de que quem é mais velho é incapacitado,
afirmação que pode ser proferida por qualquer indivíduo, independente de saber ler e escrever
ou não.
Em (18), além de SO assumir a posição discursiva de sujeito incapaz para
aprender a ler e a escrever, ela também pode assumir a posição discursiva de sujeito que quer
descansar depois de tanto trabalhar, como poderia se posicionar um aposentado, aludindo, por
78
captação, ao discurso percebido em propagandas e campanhas sobre a terceira idade, tratando-
a como “melhor idade”.
Muito pode ser encontrado a esse respeito, como, por exemplo: o Programa Viaja
Mais Melhor Idade
41
, promovido pelo Ministério do Turismo, visando a estimular o turismo
entre a população de mais de sessenta anos a viajar pelo país; uma homepage destinada
somente ao assunto, chamada “Melhor Idade - O Site dos Idosos”
42
; e uma edição especial da
Revista Veja, intitulada “A melhor idade”
43
, sobre a vida depois dos cinquenta anos, de agosto
de 2005.
Entretanto, embora a aluna se encontre na “melhor idade”, prevalece a sensação
de cansaço e de incapacidade, confirmada quando diz que “eu acho que num vai mais, sei lá”,
justamente por considerar que já passou da idade de aprender, apesar de estar na escola para
isso.
Os enunciados das alunas, ademais, podem aludir, por captação - porque, afinal,
elas fazem parte de um projeto voltado para a alfabetização de jovens e adultos, ao jingle da
campanha de alfabetização, de 2005, do Programa Brasil Alfabetizado
44
, vinculado ao
governo Lula, que diz:
Pra aprender a ler
Pra isso não tem hora
Pode ser de dia
Pode ser de noite
Pode ser agora
Pode ser jovem
Pode ser adulto
Ou aposentado
Pra aprender a ler
Só não pode ficar parado!
41
Fonte: <http://www.viajamais.com.br/viajamais/>. Acesso em 03.01.2010.
42
Fonte: <http://www.melhoridade.com/>. Acesso em 03.01.2010.
43
Fonte: <http://veja.abril.com.br/especiais/melhor_idade_2005/index.html>. Acesso em 03.01.2010.
44
Fonte: < http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=268818>. Acesso em 03.01.2010.
79
E a citação de RO, em (20), “Agora eu vou cair... no colégio”, mostra o discurso
da inclusão social através da escola, como mostra Soares (2006), ao dizer que a escola ainda é
o maior agente de promoção da alfabetização.
Os relatos das alunas apontam para uma representação social (MOSCOVICI,
2007) já enraizada no senso comum, a qual é bem explicitada por meio do dito popular de que
“papagaio velho não aprende”. Tal dito mostra, também, a exclusão social sofrida por essas
alunas por terem sido banidas da escolarização regular, o que gera diversos sentimentos, como
o de marginalização e o de incapacidade, e que pode ser potencializado quando do convívio
com pessoas de idades diferentes e de níveis culturais diferentes, como, por exemplo, com
aquelas alunas que já terminaram o Ensino Médio.
Sistema periférico
a) Ler e escrever é útil em atividades cotidianas básicas
As alunas demonstram que a leitura e a escrita servem para a realização de
atividades cotidianas básicas, como, por exemplo, preencher algum formulário ou ficha, ir ao
banco, pegar ônibus ou assinar o próprio nome.
(21) FS:
(...) até hoje eu consegui ler alguma coisa em casa, e até essas coisinha que bota na caixinha
do correio que ((faz sinal escrevendo com a mão))... Mercantil... eu fico pra juntar as letra na
mesa de vidro.
(22) ME:
Todas as duas servem, né... tanto a leitura como a escrita. Você vai trabalhar... tem que
saber, é... ler e escrever... porque se você não souber ler e escrever você é igual, não faz nada
na vida... Como é que você vai preencher uma ficha quando você vai pegar um ônibus, um
transporte, sem saber ler o que é que tem no ônibus?
80
(23) FC:
Aí eu... o que é mais difícil... eu achava assim mexer com banco... porque banco vêm os
cheques, cheque precisa assinar, muitas vezes...
(24) RO:
Já sei assinar meu nome, quando qualquer coisa chega já sei assinar... eu leio aquele papel
quando chega... quando as pessoas: “Assina aqui”, é comigo mesmo pra saber se aquele
papel é pra assinar... ou senão eu não assino.
(25) SO:
Foi quando eu cheguei aqui ((a Fortaleza)) com mais ou menos dez anos... foi que eu vim
aprender a fazer meu nome... Essas coisas, né... importante, que sei assim pegar qualquer
ônibus que eu quiser eu pego (...). Eu não sei ler muito, mas aí eu fico “platinando”,
“platinando”, até acertar o nome do ônibus.
Em seus relatos, as alunas assumem a posição discursiva de sujeito não-
alfabetizado, porque narram em que atividades a leitura e a escrita lhes são úteis. Todos os
relatos podem, então, fazer alusão, por captação, ao discurso acadêmico acerca da
diferenciação entre alfabetização e letramento (SOARES, 2006), sendo que a primeira está
para a decodificação e o segundo, para o uso da leitura e da escrita nas mais diversas práticas
sociais. Podemos citar como exemplos de alusão, por captação, ao discurso acerca da
alfabetização e do letramento funcionais, os enunciados de ME, em (22), quando diz “Como é
que você vai preencher uma ficha quando você vai pegar um ônibus, um transporte, sem saber
ler o que é que tem no ônibus?”; de FC, em (23), quando diz “porque banco vêm os cheques,
cheque precisa assinar, muitas vezes...”; de RO, em (24), quando diz “Já sei assinar meu
nome, quando qualquer coisa chega já sei assinar...”; e de SO, em (25), quando diz que com
cerca de dez anos de idade aprendeu a assinar o nome, e também quando diz “que sei assim
pegar qualquer ônibus que eu quiser eu pego”, e que esse tipo de coisa que é importante.
Pelo enunciado de FS, em (21), quando ela diz que “fica pra juntar as letra na
mesa de vidro”, nota-se que a etapa de decodificação parece ser necessária ao se aprender a
ler, o que pode aludir, também, por captação, ao que Soares (2006) apresenta como
“alfabetizar letrando”.
81
Já ME, em (22), alega que, “se você não souber ler e escrever você é igual, não
faz nada na vida...”. A palavra “igual” pode ter sido empregada no sentido de ela não receber
educação, tornando-se, então, desqualificada para exercer sua cidadania de forma digna, o que
pode aludir ao relato (17), de RO, em que questiona se a pessoa é cidadã quando não é
analfabeta.
Os enunciados de todas as alunas, por meio de citação ou de alusão, apontam que
a leitura e a escrita em suas vidas assumem caráter de uma prática social de sobrevivência, o
que nos remete ao que diz o discurso acadêmico acerca do letramento e da alfabetização
funcionais (SOARES, 2006).
b) O essencial era trabalhar, em vez de estudar (falta apoio da família)
Os estudos deram lugar ao trabalho por necessidade e, como os filhos ajudavam
no sustento da família, esta não lhes dava incentivo para frequentarem ou continuarem na
escola.
(26) FC:
Aí lá o pai dele ((de seu marido)) tentou me ensinar, só que queria me ensinar daquele ensino
do outro tempo, aí que num entrava mesmo na minha cabeça... E não tinha ninguém assim
pra me dizer: “Estude que é bom...”. Sempre eu escutava: “A:::h, não, estudar não precisa,
tem é que trabalhar” (...). Aí eu pensava: “Ai, meu Deus, eu devia era estudar, tão bom se eu
aprendesse”.
(27) RO:
(...) antes de meu pai morrer... ele dizia pra mim... me alertava muito... que já estava no fim
da vida... entonce eu ia fi/ ( ) não tinha mãe... e ele não podia me manter... que ele não
trabalhava a não ser na roça... aí como era que comprava comida pra comer roupa pa/ pra
mim... e estudo... entonce ele me colocou nas casa... pa mim... me vestir... me calçar... e ele
me dar o saber... mas saber que é bom... (...) Eu nunca tive... estudo... eu nunca tive...
brinquedo... meu brinquedo foi trabalho...
82
(28) ME:
Também eu, eu não aprendi a estudar desde cedo porque eu sempre fui, ah, tive que
trabalhar pra me manter, papai nunca deu nada pra gente ( ), eu venho de uma família pobre,
então eu tinha mais é que trabalhar pra poder manter minhas coisas, né.
(29) SO:
(...) eu tive que trabalhar no interior pra ajudar minha mã/mãe... que ela morreu muito
cedo... pra dar de comer pra nós não passar fome, né... Aí pronto... eu cheguei aqui ainda... e
ainda estudei, né... fiz até o terceiro ano... Aí pronto... desapareceu... não estudei mais...
(30) FS:
Eu lembro que eu me matriculei mesmo e usei farda foi com nove anos da primeira vez. (...)
No máximo acho que... ( ) direto uns três anos, estourando três anos. (...) Aí minha mãe
((contratou)) umas professora particular, mas eu noto também, professora, teve alguma coisa
sobre mim, algum desvio meu mesmo, porque meus irmãos todos sabem ler.
As alunas assumem a posição discursiva de sujeito banido da escolarização
regular. Em todos os relatos, exceto no de FS, em (30), pode haver alusão ao discurso
geralmente proferido pelas populações de baixa renda, que abrem mão dos estudos para
exercerem atividades remuneradas, por necessidade. Assim, para elas, bem como para suas
famílias, estudar se configura em uma perda de tempo, não trazendo progressos para a vida
profissional. Ou seja, o tempo que se gasta na escola pode ser todo destinado ao trabalho e,
por isso, as famílias não incentivam os filhos a estudarem. Os relatos, então, ancoram-se na
memória coletiva (MOSCOVICI, 2007), por apoiarem-se em experiências de vida aceitas por
um grupo, no caso, o de populações de baixa renda.
Quando FC, em (26), diz do “ensino do outro tempo”, faz referência ao ensino
tradicional (HERNÁNDEZ, 1998), provavelmente da época da palmatória, bastante rígido,
em que o professor se portava como sendo detentor do poder. A aluna menciona citações que
parecem vir de familiares, nas quais se percebe, pelo intertexto, que a prioridade de vida é o
trabalho, deixando a escola em último plano. Parece, também, que a aluna retira sua
responsabilidade de ter parado de estudar, colocando-a sobre quem disse que ela deveria
trabalhar. A escola, assim, possui, realmente, um papel secundário, e o ensino, um papel
83
desinteressante e tradicional, um “ensino do outro tempo”. O mesmo se percebe com ME, em
(28), e com SO, em (29), quando diz “e ainda estudei, né... fiz até o terceiro ano... Aí pronto...
desapareceu... não estudei mais”, tendo que abandonar a escola para trabalhar a fim de “dar de
comer pra nós não passar fome, né...”. A única diferença é que ME parece ter deixado a
escola por uma decisão própria, e não imposta por alguém de sua família.
Entretanto, quando FC diz que deveria estudar, e que seria bom que aprendesse,
nota-se, contraditoriamente, uma valorização da escola, provavelmente percebida pela falta da
leitura e da escrita ao longo da vida. Seu enunciado, assim, pode fazer alusão, por captação,
ao discurso das campanhas educacionais brasileiras (UNESCO, 2008), as quais, por meio de
políticas de inclusão social, tentam, através da escola, erradicar o analfabetismo.
Com RO, em (27), percebe-se também a falta de incentivo da família nos estudos
porque seu pai não tinha como sustentá-la, colocando-a, então, em casas de família para
trabalhar, mas com a promessa de que lhe daria o saber, que nunca veio. Quando a aluna diz
“Eu nunca tive estudo... eu nunca tive... brinquedo... meu brinquedo foi trabalho...”, seu
enunciado mostra que ela não teve a infância aproveitada, bem como suas colegas não a
tiveram, o que fica claro em seus relatos, porque o trabalho, por necessidade, foi superior ao
saber. Assim, todos os relatos podem aludir, por subversão, ao enunciado presente no Artigo
53 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)
45
, segundo o qual “a criança e o
adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo
para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho”. Ademais, os enunciados das
alunas podem aludir, ainda, também por subversão, ao Artigo 60 do mesmo Estatuto, em que
consta que “é proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade, salvo na
condição de aprendiz”. Do mesmo modo, podem fazer alusão, por subversão, à canção de
Arnaldo Antunes e Paulo Tatit, intitulada “Criança não trabalha”
46
, que diz, em seus versos,
que “criança não trabalha / criança dá trabalho”, discorrendo, ao longo da canção, por várias
brincadeiras de criança, o que alude, por captação, aos artigos de que nos utilizamos do ECA:
Lápis, caderno, chiclete, peão
Sol, bicicleta, skate, calção
Esconderijo, avião, correria,
Tambor, gritaria, jardim, confusão
45
Fonte: <www. planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069Compilado.htm>. Acesso em 03.01.2010.
46
Fonte: <www.vagalume.uol.com.br/palavra-cantada/criança-não-trabalha.html>. Acesso em 03.01.2010.
84
Bola, pelúcia, merenda, crayon
Banho de rio, banho de mar,
Pula sela, bombom
Tanque de areia, gnomo, sereia,
Pirata, baleia, manteiga no pão
Giz, merthiolate, band aid, sabão
Tênis, cadarço, almofada, colchão
Quebra-cabeça, boneca, peteca,
Botão. pega-pega, papel papelão
Criança não trabalha
Criança dá trabalho
Criança não trabalha
1, 2 feijão com arroz
3, 4 feijão no prato
5, 6 tudo outra vez
Como foi mencionado, a única exceção é a aluna FS, que teve apoio da família,
possuindo, inclusive, professora particular em sua infância. Ela foi banida da escolarização,
não aprendendo a ler e a escrever, não por falta de apoio da família e por ter que deixar a
escola em favor do trabalho, e sim porque parece apresentar algum distúrbio de
aprendizagem, como demonstra em seu relato.
Pelos enunciados das alunas, tem-se, claramente, que a escola foi deixada de lado
devido ao trabalho, o qual era prioridade em suas vidas. Independentemente de terem deixado
de ir à escola por ordem de terceiros ou por decisão própria, tal atitude foi tomada devido ao
fato de trabalhar ter sido mais importante do que estudar, porque elas precisavam de um meio
de subsistência.
c) O primeiro dia de aula é desconfortável
As alunas demonstram que o primeiro dia de aula causa estranhamento, o que, por
conseguinte, provoca-lhes a sensação de desconforto.
(31) ME:
Fiquei meio encabulada por acolá... mas a minha professora, ela é muito boa.
85
(32) FS:
Vixe, o primeiro foi difícil, sabe... Pra ter uma ideia, o primeiro trabalho que eu fiz foi assim,
ó, de cabeça para baixo.
(33) FC:
(...) e já meus pais também não sabiam pra poder pra passar pra gente, né... (...) Mas eu
lembro que da primeira vez que eu vim eu sorria sozinha. (...) Quando eu cheguei... claro que
a pessoa fica um pouco tímida, mas eu gosto muito de me comunicar com as pessoas, eu m
chamo, inté assim metida...
(34) SO:
Pra mim foi bom porque é:::... eu já tinha amizade, mas arranjei mais amizade”
(35) RO:
Ô, filha... você num queira saber a minha alegria... o meu prazer de quando::... IR andava
lá... na minha rua procurando aluno... Eu nunca estudei na minha vida... {PA: Nunca foi pra
escola?} Nunca, nunca... Eu tinha inveja quando eu via aquelas aluna passada... e:: passava
com aquelas farda vermelha que é até da ESCOLA NORMAL (...) O primeiro contato com a
escola... aqui com a IR... ave Maria, foi uma coisa pra mim quando eu entrei na classe que eu
me sentei... ah... minha filha, eu disse assim: “Ah, meu Deus... que coisa louca”.
Em todos os relatos, nos quais as alunas assumem a posição discursiva de sujeito
que se inicia na escola, é possível perceber a sensação de desconforto causada pelo
estranhamento ocorrido no primeiro dia de aula, o que pode fazer alusão, por captação, aos
ditos populares de “sentir-se um peixe fora d’água”, ou de “sentir-se um estranho no ninho”.
O próprio fato de serem ditos populares aponta uma ancoragem na memória coletiva
(MOSCOVICI, 2007), porque, provavelmente, eles foram elaborados a partir de experiências
de vida que são comuns e aceitas por um ou mais grupos na sociedade. No caso, esses ditos
denotam exclusão social, porque, na sala de aula dessas alunas, encontram-se estudantes que
já terminaram o Ensino Fundamental e, inclusive, o Ensino Médio, o que pode fazer com que
se sintam diminuídas.
86
Contudo, em (31), quando ME diz “mas a minha professora, ela é muito boa”,
nota-se que essa sensação de deslocamento é amenizada, o que também pode também remeter
ao provérbio “tudo é questão de costume”. A aluna, então, parece se acostumar com a turma,
principalmente com a ajuda da professora, de quem gosta muito.
Já em (32), quando FS diz “pra ter uma ideia”, ela o faz antecipando que a
informação que virá é algo incomum, inusitado, que, no caso, foge aos padrões de ser
realizado dentro de uma sala de aula. O incomum foi ela ter feito o trabalho de cabeça para
baixo, o que pode ter acontecido por se sentir insegura nesse ambiente estranho e composto
por pessoas que já sabem ler e escrever com fluência.
FC, em (33), discorre sobre a falta de competência, de educação e de informação
dos pais para auxiliarem na educação formal dos filhos, o que pode ser uma das causas para
que não frequentassem a escola, na medida em que, por exemplo, eles não conseguissem
auxiliar nas tarefas de casa dos filhos. Ademais, em seu relato, percebemos uma sensação de
estranhamento quando ela diz “que da primeira vez que eu vim eu sorria sozinha”. Em
momento algum, a aluna sugere que sorria porque se sentia feliz. Pelo contrário, o sorriso
parecia uma reação por se sentir encabulada, o que se confirma quando diz que “claro que a
pessoa fica um pouco tímida”.
Já SO, em (34) ao contrário de suas colegas, aponta que o primeiro dia de aula foi
bom. Contudo, percebe-se que ele foi bom somente pelo fato de que, na sala de aula em que
se encontrava, já possuía algumas amizades.
RO, também diferentemente de suas colegas, nunca havia frequentado a escola.
Suas colegas, quando novas, obtiveram contato, mesmo que mínimo, com a sala de aula. Para
RO, ter sido procurado pela professora IR para estudar foi motivo de extrema alegria e
satisfação, embora não se anule a sensação de estranhamento vivida por ela, percebida na
citação, em (35), “Ah, meu Deus... que coisa louca”. Nessa citação, que se constitui um
momento de reflexão consigo mesma, a aluna menciona a sensação de “loucura”, o denota
que passou por uma experiência bastante diferente das que tinha vivido até então, que lhe
gerou estranhamento.
87
Todas as alunas, então, em maior ou menor medida, demonstraram se sentir como
“peixes fora d’água” no ambiente de sala de aula em seu primeiro contato, o que é
absolutamente normal. Considerar tal fato normal é assumir que ele se encontra arraigado na
memória coletiva, ou seja, que é aceito por diversos grupos na sociedade. De fato, não se
espera outra reação quando se vai para um lugar onde não se conheça alguém e onde tudo
parece ser diferente. Além disso, essa sensação de estranheza acaba por afetar suas ações em
sala de aula, como aconteceu com FS ao realizar sua atividade.
d) Volta-se para a escola para se aprender a ler e a escrever corretamente
O importante, para essas alunas, é voltar para a escola para aprenderem a ler e a
escrever de acordo com o que a gramática normativa postula, porque, só assim, elas se sentem
incluídas na sociedade em que vivem.
(36) FC:
Mais para aprender alguma coisa, aprender a ler...
(37) ME:
Porque eu quero aprender mais, quero aprender a ler direito, que eu não sei muito, escrever
as palavras que eu sei, mas é muito pouco...
(38) FS:
Foi só isso, pra aprender a falar correto... (...) E sempre o pouco que a gente aprende, nem
que seja uma palavra, uma coisa... falar correto... é muito bonito... porque é muito bonito
alguém saber falar... é muito triste alguém não saber falar, num saber ler correto e falar
bastante errado é muito triste, né...
(39) SO:
O Sesc dá óculos à gente, nós temos lanche... aqui, quando termina essa aula, temos a
carteirinha, mas eu não venho pela carteira, nem pelo lanche, nem pelos óculos... Eu venho,
venho... venho fazer, ver se eu aprendo alguma coisa, LER. (...) Pra ver se eu aprendo:: a
escrever alguma coisa...”
88
As alunas assumem a posição discursiva de sujeito não-alfabetizado em seu
enunciado, que é marginalizado na sociedade (FERRARO, 2002), ancorando-se na memória
coletiva (MOSCOVICI, 2007) pelas experiências de vida de não saber ler e escrever e de
conviver com outros sujeitos em situação semelhante. Elas também assumem a posição de
sujeito que se inicia da aprendizagem da leitura e da escrita, na medida em que encontram na
escola uma tentativa de se sentirem incluídas socialmente. Seus enunciados fazem alusão, ou
seja, referência indireta, por captação, aos discursos presentes nas políticas educacionais
brasileiras no que concerne à tentativa de erradicação do analfabetismo.
Em (36), percebe-se que a expressão “alguma coisa” pode denotar descrédito
nesse processo de aprendizagem, como se não fosse possível aprender a ler e a escrever para
se usufruir de tudo a que se tem acesso com a aquisição da lectoescrita. Isso também ocorre
em (39), em que, do mesmo modo, SO diz de aprender “alguma coisa”, denotando haver
descrédito de que seja possível aprender a ler e a escrever com direito a seu pleno exercício,
restringindo-se somente a necessidades mais básicas de leitura e de escrita. Isso pode fazer
alusão, por captação, ao discurso acadêmico acerca da alfabetização e do letramento
funcionais (SOARES, 2006), ou seja, em que a leitura e a escrita são diretamente voltadas
para seus usos, para que o indivíduo “funcione adequadamente em um contexto social”
(SOARES, 2006, p. 72, grifo da autora). Assim, ler e escrever possuem caráter de
sobrevivência, isto é, é importante ler e escrever para a realização de práticas cotidianas mais
essenciais, como o ato de se preencherem formulários ou de ler para poder se locomover a
determinado lugar. A aluna, em (39), ademais, quando diz “venho fazer, ver se eu aprendo
alguma coisa, LER. (...) Pra ver se eu aprendo:: a escrever alguma coisa...”, parece priorizar a
leitura em detrimento da escrita em seu enunciado, por enfatizar a palavra “ler”.
Em (37), quando ME diz “que eu não sei muito, escrever as palavras que eu sei,
mas é muito pouco...”, ela parece se inferiorizar, colocando seu conhecimento como sendo
insuficiente, ancorando-se na memória coletiva (MOSCOVICI, 2007), porque age de maneira
semelhante ao que é típico de estudantes iniciantes em algum ramo do saber, podendo fazer
alusão, por captação, ao discurso que geralmente proferem, porque, normalmente, mostram
bastante insegurança em relação aos conteúdos aprendidos. Como ela própria diz, “eu quero
aprender mais”, ou seja, mais do que já aprendeu até então. O fato de querer “aprender mais”
pode revelar não só a insatisfação com o que aprendeu até agora, inferiorizando-se, como
89
também uma vontade de continuar em seus estudos, o que vai contra a grande evasão escolar
percebida em alunos de EJA.
Por outro lado, a aluna menciona que quer “aprender a ler direito”. Seu enunciado
também pode fazer alusão às políticas de erradicação do analfabetismo (UNESCO, 2008),
porém, principalmente, por captação, ao discurso do ensino tradicional, no que diz respeito a
aprender a ler “direito”, de forma correta. O que importa para ser incluído na sociedade não é
apenas o fato de se aprender a ler e a escrever e de fazer uso de ambas as habilidades, em
quaisquer práticas sociais cotidianas, como aponta o discurso acadêmico acerca do letramento
(SOARES, 2006), e sim de aprender a ler da maneira mais correta, como se espera que a elite
o faça, ou seja, de acordo com o que a norma gramatical culta prega. Portanto, há subversão
ao discurso acadêmico acerca do letramento.
Outro fator importante é o de que, apesar de a aluna ser iniciante na escola e de se
tratar de uma cidadã que ainda não lê e nem escreve de maneira satisfatória, ela demonstra
conhecimento de que o ensino tradicional preza pelo ensino da língua portuguesa, tal qual se
encontra na gramática normativa. Isso vai de encontro ao que se percebe no discurso acerca
do ensino tradicional (HERNÁNDEZ, 1998), porque há transmissão de saber por parte do
professor. Assim, pode haver transmissão de saber do conteúdo das gramáticas normativas
nas aulas de português, o que condena como errado o uso coloquial da língua portuguesa.
O relato presente em (38) assemelha-se significativamente ao (37) com relação ao
ensino tradicional, mas não no que tange a aprender a ler correto, e sim a falar correto.
Portanto, seu discurso, também, pode fazer alusão, por captação, ao discurso da inclusão
social que o falar de acordo com a norma culta promove (BAGNO, 2002), embora saibamos
que diversos registros existem e que não devem ser observados como sendo inferiores a
outros. Assim, o que é relevante é a maneira culta de se falar, em vez de ser o respeito aos
diversos registros existentes e próprios de cada situação e de cada região, porque, se não se
falar como a norma culta exige, permanece-se em situação de marginalização - e isso, no
ensino tradicional, normalmente não é trabalhado em sala de aula. Ademais, a expressão “foi
só isso” pode sugerir uma banalização do ensino, uma perspectiva reducionista do que a
escola tem a oferecer.
As práticas discursivas (MAINGUENEAU, 2007) dessas alunas mostram que o
peso da exclusão social está presente na condição de ser um sujeito não-alfabetizado
90
(FERRARO, 2002), e que a escola se configura em um espaço de inclusão, mas que deve
ocorrer por meio da aprendizagem da leitura, da escrita e dos registros de fala voltados para a
norma culta da língua portuguesa. A escola, portanto, continua sendo o maior agente de
promoção da alfabetização, como apontam as teorias sobre o letramento (SOARES, 2006),
apesar de as alunas terem em suas concepções que a escola deve ensinar o que a gramática
normativa traz, mostrando que possuem concepções sobre o ensino tradicional
(HERNÁNDEZ, 1998) arraigadas em sua memória coletiva.
O que vale, portanto, é dominar as regras de um português culto, como trabalha o
ensino tradicional, e não aprender a fazer uso social da leitura e da escrita, como aplicam,
também, os pressupostos do letramento (SOARES, 2006; TFOUNI, 2005). Provavelmente
isso se deve à grande marginalização e aos preconceitos sofridos por esses alunos, que
buscam na escola uma maneira de se adequar ao que a sociedade considera “correto”, ou seja,
falar “bonito”, como os doutores, ou como os detentores do saber.
Outro fator é que, embora a escola seja a porta de entrada para a inclusão social,
suas atividades parecem ter sua importância reduzida a algo que somente “remendará” uma
falha no ensino e na aprendizagem daqueles que não seguiram a escolarização regular. A
escola possibilita a inclusão social, apesar de parecer propiciar apenas o ensino de “alguma
coisa”, ou de servir apenas para certas atividades, como aprender a falar correto. Isso pode
acontecer porque esses alunos aprenderam a sobreviver sem aprender a ler e a escrever,
tentando levar uma vida normal, dentro do que lhes era possível.
e) Não é bom haver turmas mescladas
As turmas do SESC Ler possuem alunos que ainda não são alfabetizados
mesclados com alunos que, inclusive, já terminaram o Ensino Médio. Isso não é bom,
segundo as alunas que pesquisamos, porque elas se sentem inibidas, o que interfere no
processo de aprendizagem.
91
(40) FS:
É porque se uma tentar fazer, aí eu vou fazer como a outra, já dou a resposta na hora...
“Minha filha, isso daqui... em primeiro lugar... nós, como diz o projeto, é o quê? SESC Ler...
Vocês já tão aqui de metida, cume... porque tão gostando, e a gente porque realmente...”
(41) SO:
(...) é porque o projeto não é pra quem num sabe ler nem escrever? É só de a gente aprender
a ler... sem ter gente que já sabe...
(42) FC:
Às vezes eu inté penso assim: “Será se nós fosse nós só do mesmo nível nós tivesse... um bom
aproveitamento, por ser só nós?”
Todas as alunas assumem a posição discursiva de sujeito que frequenta a escola.
Em todos eles, também se percebe o incômodo com relação às turmas mescladas, em que se
encontram alunos com uma disparidade de conhecimentos muito grande, o que torna a turma
bastante heterogênea. Não é fácil lidar com turmas assim, problema bastante enfrentado, por
exemplo, por professores de língua estrangeira, em específico de língua inglesa, de cursos de
graduação em Letras.
Um estudo que realizamos (PINHEIRO; MELLO, 2008), sobre uma turma de
primeiro semestre de língua inglesa de um curso de graduação em Letras de uma universidade
brasileira, mostra que é possível lidar com turmas heterogêneas, na medida em que, numa
perspectiva vigotskiana, o aluno mais proficiente, doravante par mais desenvolvido, possa
auxiliar aquele menos proficiente.
Todavia, não é o que se observa nos enunciados das alunas com relação a suas
colegas de sala mais proficientes. A citação de FS, em (40), “Minha filha, isso daqui... em
primeiro lugar... nós, como diz o projeto, é o quê? SESC Ler... Vocês já tão aqui de metida,
cume... porque tão gostando, e a gente porque realmente...”, e o enunciado de SO, em (41),
“sem ter gente que já sabe”, podem aludir, então, por subversão, a esse estudo que realizamos
(PINHEIRO; MELLO, 2008), explicitando que, no caso das salas de aula do Projeto SESC
Ler de Fortaleza, o mais adequado seria a realização de um trabalho voltado para pessoas que
estejam no mesmo nível de aprendizagem.
92
A aluna parece também desprezar o fato de suas colegas mais proficientes
frequentarem uma sala de aula para não-alfabetizados, estando lá para passar seu tempo, de
“metida”, como consta em (40), sendo que ela e as demais não-alfabetizadas estão ali por
necessidade. Esta é outra problemática: elas se sentem humilhadas com a presença de quem já
domina a lectoescrita. Isso pode fazer alusão ao discurso da inclusão social através da escola,
como aponta Soares (2006), ao dizer que a escola é o principal agente de promoção do
letramento. Deixamos alguns questionamentos. Por que as alunas mais proficientes, que já são
alfabetizadas, deveriam estar ali, se elas já estão inclusas na sociedade letrada a que
pertencem? Elas não podem estar tomando o lugar de outros não-alfabetizados que intentam
se incluir na sociedade por meio da escola, podendo aprender a ler e a escrever? Se o SESC
Ler é dedicado a alunos de EJA que, por motivos diversos, não aprenderam a ler e a escrever,
por que há espaço para aqueles que já o conseguem? Talvez o projeto deveria ser repensado
para que houvesse um ensino mais efetivo, igualado e justo voltado aos que realmente dele
precisam.
FC, em (42), levanta um questionamento acerca do aproveitamento das aulas, caso
a turma fosse homogênea. Isso realmente leva à constatação de que as alunas mais
proficientes parecem interferir, de forma negativa, na aprendizagem das menos proficientes,
no caso as não-alfabetizadas, a quem o projeto realmente se destina. As não-alfabetizadas se
sentem inferiores, inibidas e envergonhadas quando da intervenção das colegas proficientes, o
que pode levá-las a não participarem das atividades propostas em sala de aula. O relato da
aluna, portanto, também vai contra o estudo que realizamos (PINHEIRO; MELLO, 2008), de
que o par mais desenvolvido possa auxiliar na aprendizagem do menos desenvolvido.
Os relatos das alunas mostram, em consenso, que o ideal para as situações de
aprendizagem da lectoescrita seria haver turmas homogêneas, destinadas, literalmente, à
alfabetização de jovens e adultos, em vez de mesclá-las com estudantes que, inclusive, já
terminaram o Ensino Médio. Existem níveis de estudo no Projeto SESC Ler, cujo objetivo é
alfabetizar e escolarizar seus alunos ao longo de três anos, até completarem o primeiro
segmento do Ensino Fundamental. Em Fortaleza, porém, não é isso o que se verifica. São
aceitos alunos que já concluíram o segundo segmento do Ensino Fundamental ou mesmo o
Ensino Médio. Muitos desses alunos são mães que possuem filhos matriculados na escola do
SESC. Ademais, há alunos no SESC Ler que estão lá há mais de quatro anos, porque não
deixam a escola alegando que precisam de alguma ocupação, já que o SESC lhes proporciona
93
outras atividades, ou porque os filhos lá também estudam e, assim, eles lhes fazem
companhia.
Pelo que foi relatado, é preciso repensar se as turmas devem ser destinadas
somente a indivíduos não-alfabetizados que foram banidos da escolarização regular, ou se é
possível realizar um trabalho de colaboração entre alunos mais proficientes e menos
proficientes, com o intuito de se promover uma aprendizagem significativa (ROGERS, 1977),
como o estudo que realizamos com alunos de língua inglesa do primeiro semestre de
graduação em Letras de uma universidade brasileira (PINHEIRO; MELLO, 2008)
demonstrou ser possível. Entretanto, acreditamos que tal estudo não se aplica à realidade de
alunos de EJA porque eles carregam consigo toda uma carga negativa de baixa estima
advinda de todos os preconceitos sofridos ao longo da vida devido à marginalização causada
por não saberem ler nem escrever (FERRARO, 2002). Conviver com alunos proficientes,
nesse caso, poderia prejudicar mais do que ajudar os alunos de EJA, até porque eles se
consideram indivíduos incapazes de aprender devido à idade avançada e, sentindo-se
envergonhados e humilhados, dificilmente atingirão uma aprendizagem significativa.
Ademais, destinando-se a turmas mescladas, aceitando alunos que já concluíram o Ensino
Médio por problemas diversos, como perda de memória ou por acompanhamento dos filhos,
como vimos nos relatos das outras alunas que não participaram de nossa pesquisa, o projeto
realmente perde seu propósito inicial.
f) Cartas e orações: o grande motivo para se adquirir a lectoescrita
As alunas demonstram vontade de aprender a ler e a escrever para escreverem
cartas a seus entes queridos e para lerem suas orações e a Bíblia.
(43) FC:
Cê sabe o que eu queria ler? {PA: O quê?} Pra mim ler o Evangelho. {FS: Eu também.} Pra
pegar assim... e ler. Eu acho que... eu tenho medo. Medo assim... deu, deu ler, é::... Por
exemplo, eu pego uma Bíblia e leio o Evangelho do dia... Mulher... eu quase desisti de tanta
alegria!
94
(44) SO:
(...) é... você quer escrever uma coisa... às vezes eu, eu, eu... fico assim: “Meu Deus... tanta
vontade de ler minhas orações...”. Às vezes eu fico com raiva das minhas filhas porque eu
digo assim: “Vocês sabem ler..., A gente tá precisando de oração... Vocês não pegam num
livro, numa reza”. Ó, meu Deus, porque eu queria saber ler porque eu tava rezando... lendo...
fazendo tudo que eu tinha direito pra eu saber, mas eu não sei...
(45) ME:
É... fazer uma carta... pra qualquer pessoa. Eu não sei fazer, né! E isso faz muita falta, né...
porque é muito ruim você querer fazer e num poder.
(46) RO:
Bem... eu às vezes até digo pra IR: “Ô, IR, tenho tanta vontade de saber escrever... pra mim
mandar uma carta pra minha filha, um bilhete pra um filho...”, porque... a nossa leitura é um
saber pra gente escrever... saber falar... expressar o quê, né? A nossa educação, né...
As alunas assumem a posição discursiva de sujeito não-alfabetizado por dizerem
de atividades que gostariam de realizar se soubessem ler e escrever. A grande motivação para
tal é para escreverem cartas para entes queridos, como diz RO, em (46), na citação “Ô, IR,
tenho tanta vontade de saber escrever... pra mim mandar uma carta pra minha filha, um
bilhete pra um filho...”, e quando ME, em (45), diz “É... fazer uma carta... para qualquer
pessoa”. O outro grande motivo é a leitura da Bíblia e de orações, o que pode ser percebido
quando FC, em (43), diz que queria aprender a ler para ler o Evangelho, afirmação com a qual
FS concorda, e na citação de SO, em (44), “Meu Deus... tanta vontade de ler minhas
orações...”.
O exemplo (43) pode fazer alusão, por captação, ao discurso acadêmico acerca do
letramento (SOARES, 2006), já que a leitura da Bíblia e do Evangelho é uma prática social
ligada à lectoescrita, mesmo que seja transmitida oralmente, porque tem seu conteúdo,
normalmente, lido. Tal prática merece destaque em nossas análises porque se trata da primeira
ocorrência em que as alunas mencionam a leitura e a escrita para fins que não sejam de
sobrevivência.
95
Ler a Bíblia, para essas alunas, pode se configurar, ainda, em uma forma de
comunicação com Deus, o que pode aludir, por captação, ao discurso religioso acerca das
orações, um momento de reflexão e de introspecção para se ter contato com o divino, para
poder se “falar com Deus”; pode aludir, também, à canção de Gilberto Gil intitulada “Se eu
quiser falar com Deus”
47
, em que parece descrever um momento de oração, como percebemos
pelos versos da primeira estrofe:
Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus
Já com relação à escritura e leitura de cartas, ME, em (45), enuncia que “é muito
ruim você querer fazer e num poder”, além de que “isso faz muita falta”. Seu enunciado pode
aludir, por captação, aos enunciados de suas colegas no que concerne à dependência dos
outros para tal atividade, como se percebe nos exemplos (47), (48), (49), (50) e (51), no item
seguinte, bem como pode aludir, por captação, ao discurso acadêmico acerca do letramento
(SOARES, 2006), porque escrever uma carta, assim como ler a Bíblia, consiste em uma
prática social que exige o domínio da lectoescrita. Portanto, nessa representação social é que
percebemos a leitura e a escrita com caráter de não-sobrevivência, e sim de uma satisfação
pessoal, daquilo que as motiva a querer aprender a ler e a escrever.
Pelos relatos das alunas percebe-se que a grande motivação para se aprender a ler
e a escrever não é para se informarem das notícias que correm pela comunidade em que
vivem e pelo mundo, nem para a realização de se ler um livro de literatura, didático, ficcional
47
Fonte: <http://letras.terra.com.br/pedro-mariano/105592/>. Acesso em 03.01.2010.
96
ou científico, tampouco para a execução de atividades básicas que exigem o domínio da
lectoescrita. É consenso entre elas que a força motriz para se aprender a ler e a escrever é a
vontade que possuem de conseguirem ler suas orações, bem como de conseguirem escrever
uma carta, principalmente a um ente querido, o que lhes proporcionaria os sentimentos de
independência, autonomia e privacidade.
g) Ler e escrever promove independência
Esse é um dos aspectos de maior importância. Ler e escrever promove
independência e autonomia nas alunas, além de poderem ter sua privacidade mais preservada
na medida em que não precisariam recorrer a outrem para a leitura de seus documentos e
correspondências.
(47) SO:
(...) você... se você não souber ler nem escrever você vai depender dos outros... e nem todo
mundo... Às vezes minha filha que mora comigo... eu fiquei: “Vem, MI, vem cá, diz aqui pra
mim...”, e ela: “Ah”, e fica assim lendo por cima, num sabe...
(48) FC:
(...) eu queria tanto, tanto, tanto poder... Por exemplo, chega uma carta dum filho... quem
sabe primeiro é os outro, se os meus filhos, se as minhas filhas não estiverem em casa.
(49) FS:
Era horrível, era horrível mesmo. Pra anotar número de telefone, a minha agenda todinha
quem fazia era a EL ou a FR, que era a gerente de onde eu trabalhei, que organizava a
minha agenda todinha, né.
(50) ME:
(...) eu tive uma amiga que sempre ela... ela lia as receita da minha menina pra mim. Então,
na, ela ficou de mal de mim e eu não sei qual o motivo, né. Então aí fica mais difícil, porque
tudo eu corria na casa dela: “DU, lê isso aqui pra mim?”. (...) Hoje eu tô sentindo na pele
como é ruim a gente ficar sem estudar e depender dos outros pra tudo, né?
97
(51) SO:
(...) eu, eu... doida pra escrever... pro, pro... Caldeirão ((programa Caldeirão do Huck, da
Rede Globo, para o quadro Lar, doce lar)). As meninas que fez uma vez... aí às vezes eu:
“Oh, MA, faz outra carta pra mim, porque eu tô vendo a hora da minha casa sair...”. Aí ficou
naquilo, né... Aí eu tenho uma netinha que diz assim: “Pois tá, vovó, que eu vou na internet”.
Mas aí... num sabe... na internet... não pode fazer pela internet... que eu dizia assim: “Se eu
soubesse, não pediria a ninguém, né...”. (...) É, pois é... é essa vontade de não depender dos
outros... É essa grande vontade de você ter vontade de escrever e aí num sabe e aí fica:
“Fulano, faça isso...”, “Fulano...”. Isso é chato.
As alunas assumem a posição discursiva de sujeito não-alfabetizado por dizerem
de situações em que recorrem a outras pessoas já alfabetizadas para lerem suas
correspondências ou documentos. Todos os relatos, então, podem fazer alusão, por captação,
ao artigo 205 da Constituição de 1988, na medida em que tiveram sua independência tirada
porque foram privadas da educação, a qual é condição básica para o exercício da cidadania
digna. Assim, pode haver alusão à análise feita em (17).
Em todos os relatos as alunas mencionam situações em que se sentem
desconfortáveis por terem que depender dos outros para atividades de lectoescrita que não
conseguem executar - isso mostra claramente a exclusão que o analfabetismo provoca
(FERRARO, 2002), como se vê em (47), quando SO diz que “se você não souber ler nem
escrever você vai depender dos outros...”, e que “nem todo mundo” está disposto a ajudar; em
(49), quando FS diz que “era horrível, era horrível mesmo” depender das colegas para
organizarem sua agenda de telefone no trabalho; em (50), quando ME diz “tô sentindo na pele
como é ruim a gente ficar sem estudar e depender dos outros pra tudo, né?”; e pela citação de
SO, em (51), que diz “Se eu soubesse, não pediria a ninguém, né”.
Em (47), a citação “Ah”, da filha de SO, como resposta ao pedido de que lesse
algo para ela, denota descaso e falta de paciência. Isso pode aludir, por captação, ao relato (9),
de ME, em que parece se sentir decepcionada com a falta de ajuda da filha. Além disso,
quando FC, em (48), diz que “quem sabe primeiro é os outro”, ela tem sua privacidade
violada, o que pode aludir, por subversão, ao Artigo 5º, Inciso X
48
, da Constituição brasileira
de 1988, que diz que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
48
Fonte: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em
03.01.2010.
98
pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”
49
. Isso quer dizer que a vida privada é direito de todo cidadão e que deve ser
respeitada. Podemos concluir, a partir disso, que a leitura e a escrita asseguram a privacidade,
na medida em que podem não permitir que outras pessoas tenham acesso a algum documento
confidencial, que deve ser lido apenas por seu destinatário. A falta de privacidade e a
dependência também são percebidas em (50), na citação do relato de ME, “DU, lê isso aqui
pra mim?”, e em (51), na citação de SO, “Oh, MA, faz outra carta pra mim, porque eu tô
vendo a hora da minha casa sair...”, em que recorrem a outras pessoas por necessidade,
porque, por vontade delas, isso não ocorreria.
Nos relatos das alunas, é consenso a ideia de que não ler e não escrever as deixa à
margem da sociedade, porque dependem dos outros para a realização de tarefas básicas, além
de terem sua privacidade violada, porque outras pessoas sabem de informações que
interessariam, em primeiro lugar, a essas alunas. Ancorando-se na memória discursiva e na
memória coletiva (MOSCOVICI, 2007), fica claro que ler e escrever, além de incluir
socialmente, promove independência, o que seria uma das manifestações dessa inclusão
social.
h) A professora é a motivação para se continuar na escola
A grande razão para as alunas não desistirem das aulas é por causa da professora,
de quem gostam tanto.
(52) SO:
(...) como tem pouco aluno, e a gente gosta MUITO da professora, e a professora da gente
depende desse emprego...
(53) FC:
A IR... se ela pudesse, ela abriria a cabeça da gente e colocava o livro dentro, porque ela se
esforça... ( ) o esforço que ela faz... a atenção que ela nos dá.
49
Como se trata de um direito, procedemos como na análise do excerto (17).
99
(54) ME:
(...) aqui tudo é bom... agora pra mim se a IR sair e entrar outra eu saio.
Por falarem de uma experiência em sala de aula, as alunas assumem a posição de
sujeito que frequenta a escola. Todas as alunas enxergam a professora como uma profissional
competente e como uma pessoa querida e amiga, o que contribui para o processo de
aprendizagem. O enunciado de SO, em (52), quando diz “a gente gosta MUITO da
professora”, pode fazer alusão, por captação, ao discurso educacional do professor enquanto
um mediador do ensino, um facilitador da aprendizagem, como postula Rogers (1977. Isso
ainda pode ser percebido em FC, em (53), quando diz de todo o esforço e atenção dedicados
aos alunos para que possa ocorrer uma aprendizagem significativa, que, para Rogers (1977, p.
258), é “uma aprendizagem que é mais do que uma acumulação de fatos [...]. É uma
aprendizagem penetrante, que não se limita a um aumento de conhecimentos, mas que penetra
profundamente todas as parcelas de sua [do indivíduo] existência”. A postura do professor
enquanto mediador é vista também no enunciado de ME, em (54), quando afirma que tudo é
bom no SESC e que, se a professora sair, ela também sai da escola.
SO ainda menciona que a professora precisa de seu emprego, e que esta é uma
das causas para que os alunos todos não desistam das aulas, o que remete ao fato de os
professores, em geral, serem muito desvalorizados no Brasil, aludindo, por captação, ao
discurso proferido tanto por eles próprios a respeito quanto por sindicatos que defendem sua
causa, reivindicando por condições de trabalho e salário melhores. Este problema social
apareceu pela primeira vez aqui. De fato, no Brasil, professores recebem uma remuneração
muito baixa em relação à quantidade de trabalho, além de trabalharem sob condições não
adequadas. Assim, eles podem se desestimular e não exercer suas atividades de maneira
satisfatória e, num círculo vicioso, prejudicarem a si mesmos e aos alunos. Os relatos das
alunas mostram, então, a importância de se ter um professor que caminhe ao lado de seu
aluno, possibilitando-lhe acessos a uma aprendizagem mais efetiva, ou significativa
(ROGERS, 1977), além de despertar neles o gosto por aprender.
100
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com nosso trabalho, almejamos identificar as representações sociais de alunos de
EJA do Projeto SESC Ler de Fortaleza acerca do seu processo de aprendizagem inicial e
formal da lectoescrita, o que implica criar representações sociais também sobre o que esse
processo envolve, como a vida sem saber ler e escrever, bem como os diversos sentimentos
que a exclusão social provocada pela ausência da lectoescrita (FERRARO, 2002).
A análise que realizamos das representações sociais dessas cinco alunas foi por
meio das relações intertextuais de copresença de alusão e de referência (GENETTE, 1982;
PIÉGAY-GROS, 1996), as quais são formas de ancoragem ocorrendo, simultaneamente, nas
memórias coletiva e discursiva. A memória coletiva está para as representações sociais assim
como a memória discursiva, para as palavras, textos e discursos, isto é, para as práticas
discursivas. Vale ressaltar que as representações sociais, como as práticas discursivas,
orientam as ações dos sujeitos, e não se separam, na verdade.
Essa análise também é interdiscursiva na medida em que tomamos o texto como o
local empírico de realização dos discursos (MAINGUENEAU, 2007). Sob nossa perspectiva,
então, consideramos as representações sociais enquanto práticas discursivas, já que a língua
possibilita a realização de tudo aquilo que existe no mundo (BAKHTIN, 1988). Isso inclui a
criação das representações sociais, que são o que chega até nós no lugar da própria realidade e
do mundo, algo que só pode ser realizado, primordialmente, através da língua, porque nem a
natureza icônica das representações sociais produziriam sentidos se não houvesse a língua e a
comunicação para fazê-las, de fato, existir.
Portanto, uma das contribuições teóricas de nossa pesquisa consiste em apresentar
a fusão de duas distintas áreas do saber - as representações sociais, objetos de estudo da
Psicologia Social, e as práticas discursivas, objeto de estudo da Análise do Discurso, subárea
da Linguística - sugerindo um aparato teórico-metodológico de análise. Nele, as
representações sociais não são analisadas por métodos quantitativos, como se percebe em
muitos estudos sobre o assunto, e nem por meio dos discursos. Tomamos as representações
como as próprias práticas discursivas, porque, além de acreditarmos que elas se realizam por
101
meio da língua, igualamos as memórias coletiva e discursiva, tornando-as uma só, já que as
representações sociais são anteriores aos sujeitos assim como os discursos o são.
Ademais, consideramos importante, em se tratando do alcance de uma
aprendizagem significativa, por meio de um ensino que tenha como foco os alunos, dar
ouvidos ao que eles têm a dizer, para conhecê-los melhor, descobrindo as ideias que
constroem em grupo, e poder trabalhar com eles de maneira mais efetiva. O estudo das
representações sociais enquanto práticas discursivas é um dos caminhos de se chegar a isso.
As representações que cada grupo constrói só são possíveis porque outras
representações já foram construídas por outros grupos. Cada grupo pode construir
representações sociais distintas. Porém, como é necessário passar por um processo de
ancoragem nas já existentes para uma posterior objetivação, o estudo das representações
sociais revela uma visão abrangente não só de um grupo com ideias em comum, mas de toda
uma trama social que o envolve. Assim, nossa pesquisa pode fornecer uma ideia do universo
das representações sociais não apenas dessas alunas do Projeto SESC Ler de Fortaleza, como
também mostrar o que pensam alunos de EJA que estão em processo de aprendizagem da
leitura e da escrita como um todo, apesar de termos selecionado relatos de apenas cinco
alunas de uma única turma para a composição de nosso corpus.
Esses relatos comprovaram ser consenso o sentimento de marginalização,
incapacidade e vergonha que a exclusão social pela falta da aquisição da lectoescrita acarreta
(FERRARO, 2002). É possível notar, através da análise dos dados, que uma representação
está ligada a outra: o sentimento de dependência denota insatisfação, que, por sua vez, denota
vergonha de ter que pedir auxílio aos outros e da condição de não saber ler e escrever, que,
ainda, as inibe em atividades a serem realizadas com alunas mais proficientes em sala de aula,
dentre outros exemplos. O sentimento de exclusão é tão forte que as alunas comparam a falta
da leitura e da escrita como viver no escuro, ou como ser portador de alguma deficiência
física ou mental.
Constatamos, também, que a motivação para se aprender a ler e a escrever
consiste na escrita de cartas para entes queridos e na leitura de orações e da Bíblia. Essas
atividades recaem sobre o sentimento de independência e autonomia que a leitura e a escrita
provocam, o que possibilita, também, que tenham sua privacidade preservada, porque a leitura
de muitos documentos que lhes podem ser confidenciais seria realizada por elas próprias.
102
As atividades de leitura e de escrita, para essas alunas, são úteis não para a
realização de quaisquer práticas sociais, como aponta o discurso acadêmico acerca do
letramento (SOARES, 2006). Para elas, ler e escrever, além de servir para escrever cartas e ler
a Bíblia ou orações, serve para atividades com caráter de sobrevivência, como assinar
cheques, preencher formulários, pegar ônibus e encontrar endereços. Ler e escrever
“funcionalmente” é o que lhes parece ser importante. Não foi, em momento algum,
mencionada a leitura por prazer, ou para fins informativos ou de estudos.
Outro fator importante a ser considerado é a importância do papel do professor em
sala de aula como um professor que auxilie no crescimento de seu aluno, tornando-se um
facilitador de sua aprendizagem. Para isso, é necessário que, além de ser competente, trate seu
aluno bem e com respeito, por que isso lhe dá gosto pela escola e motivação para continuar.
Esperamos, portanto, contribuir, com nossa pesquisa, não só teoricamente, apresentando a
fusão desses dois campos teóricos distintos que sugerimos, como para trabalhos futuros a
serem realizados com alunos de EJA.
103
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