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janela, cosendo, no momento em que Deolindo ia passando. Ele conheceu-a e parou; ela, vendo o vulto de um
homem, levantou os olhos e deu com o marujo.
- Que é isso? exclamou espantada. Quando chegou? Entre, seu Deolindo.
E, levantando-se, abriu a rótula e fê-lo entrar. Qualquer outro homem ficaria alvoroçado de esperanças,
tão francas eram as maneiras da rapariga; podia ser que a velha se enganasse ou mentisse; podia ser mesmo que a
cantiga do mascate estivesse acabada. Tudo isso lhe passou pela cabeça, sem a forma precisa do raciocínio ou da
reflexão, mas em tumulto e rápido. Genoveva deixou a porta aberta, fê-lo sentar-se, pediu-lhe notícias da viagem
e achou-o mais gordo; nenhuma comoção nem intimidade. Deolindo perdeu a última esperança. Em falta de faca,
bastavam-lhe as mãos para estrangular Genoveva, que era um pedacinho de gente, e durante os primeiros
minutos não pensou em outra coisa.
- Sei tudo, disse ele.
- Quem lhe contou?
Deolindo levantou os ombros.
- Fosse quem fosse, tornou ela, disseram-lhe que eu gostava muito de um moço?
- Disseram.
- Disseram a verdade.
Deolindo chegou a ter um ímpeto; ela fê-lo parar só com a ação dos olhos. Em seguida disse que, se lhe
abrira a porta, é porque contava que era homem de juízo. Contou-lhe então tudo, as saudades que curtira, as
propostas do mascate, as suas recusas, até que um dia, sem saber como, amanhecera gostando dele.
- Pode crer que pensei muito e muito em você. Sinhá Inácia que lhe diga se não chorei muito... Mas o
coração mudou... Mudou... Conto-lhe tudo isto, como se estivesse diante do padre, concluiu sorrindo.
Não sorria de escárnio. A expressão das palavras é que era uma mescla de candura e cinismo, de
insolência e simplicidade, que desisto de definir melhor. Creio até que insolência e cinismo são mal aplicados.
Genoveva não se defendia de um erro ou de um perjúrio; não se defendia de nada; faltava-lhe o padrão moral das
ações. O que dizia, em resumo, é que era melhor não ter mudado, dava-se bem com a afeição do Deolindo, a
prova é que quis fugir com ele; mas, uma vez que o mascate venceu o marujo, a razão era do mascate, e cumpria
declará-lo. Que vos parece? O pobre marujo citava o juramento de despedida, como uma obrigação eterna, diante
da qual consentira em não fugir e embarcar: "Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte". Se
embarcou, foi porque ela lhe jurou isso. Com essas palavras é que andou, viajou, esperou e tornou; foram elas
que lhe deram a força de viver. Juro por Deus que está no céu; a luz me falte na hora da morte...
- Pois, sim, Deolindo, era verdade. Quando jurei, era verdade. Tanto era verdade que eu queria fugir com
você para o sertão. Só Deus sabe se era verdade! Mas vieram outras coisas... Veio este moço e eu comecei a
gostar dele...
- Mas a gente jura é para isso mesmo; é para não gostar de mais ninguém...
- Deixa disso, Deolindo. Então você só se lembrou de mim? Deixa de partes...
- A que horas volta José Diogo?
- Não volta hoje.
- Não?
- Não volta; está lá para os lados de Guaratiba com a caixa; deve voltar sexta-feira ou sábado... E por que
é que você quer saber? Que mal lhe fez ele?
Pode ser que qualquer outra mulher tivesse igual palavra; poucas lhe dariam uma expressão tão cândida,
não de propósito, mas involuntariamente. Vede que estamos aqui muito próximos da natureza. Que mal lhe fez
ele? Que mal lhe fez esta pedra que caiu de cima? Qualquer mestre de física lhe explicaria a queda das pedras.
Deolindo declarou, com um gesto de desespero, que queria matá-lo. Genoveva olhou para ele com desprezo,
sorriu de leve e deu um muxoxo; e, como ele lhe falasse de ingratidão e perjúrio, não pôde disfarçar o pasmo.
Que perjúrio? que ingratidão? Já lhe tinha dito e repetia que quando jurou era verdade. Nossa Senhora, que ali
estava, em cima da cômoda, sabia se era verdade ou não. Era assim que lhe pagava o que padeceu? E ele que
tanto enchia a boca de fidelidade, tinha-se lembrado dela por onde andou?
A resposta dele foi meter a mão no bolso e tirar o pacote que lhe trazia. Ela abriu-o, aventou as
bugigangas, uma por uma, e por fim deu com os brincos. Não eram nem poderiam ser ricos; eram mesmo de mau
gosto, mas faziam uma vista de todos os diabos. Genoveva pegou deles, contente, deslumbrada, mirou-os por um
lado e outro, perto e longe dos olhos, e afinal enfiou-os nas orelhas; depois foi ao espelho de pataca, suspenso na
parede, entre a janela e a rótula, para ver o efeito que lhe faziam. Recuou, aproximou-se, voltou a cabeça da
direita para a esquerda e da esquerda para a direita.
- Sim, senhor, muito bonitos, disse ela, fazendo uma grande mesura de agradecimento. Onde é que
comprou?
Creio que ele não respondeu nada, não teria tempo para isso, porque ela disparou mais duas ou três
perguntas, uma atrás da outra, tão confusa estava de receber um mimo a troco de um esquecimento. Confusão de
cinco ou quatro minutos; pode ser que dois. Não tardou que tirasse os brincos, e os contemplasse e pusesse na
caixinha em cima da mesa redonda que estava no meio da sala. Ele pela sua parte começou a crer que, assim