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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
P
ROGRAMA DE
P
ÓS
-G
RADUAÇÃO EM
C
IÊNCIAS DA
R
ELIGIÃO
CARLOS GUILHERME FAGUNDES DA SILVA MAGAJEWSKI
“Quem é Este?”
Poder, Medo e Identidade Mítica na Narrativa de
Marcos 4. 35 – 41
São Bernardo do Campo
2010
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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO
P
ROGRAMA DE
P
ÓS
-G
RADUAÇÃO EM
C
IÊNCIAS DA
R
ELIGIÃO
“Quem é Este?”
Poder, Medo e Identidade Mítica na Narrativa de
Marcos 4. 35 – 41
por
Carlos Guilherme Fagundes da Silva Magajewski
Orientador: Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira
Dissertação de mestrado apresentada em cum-
primento parcial às exigências do Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião, para
obtenção do grau de Mestre.
São Bernardo do Campo, 04 de janeiro de 2010
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FICHA CATALOGRÁFICA
M27q
Magajewski, Carlos Guilherme Fagundes
“Quem é este” : poder, medo e identidade mítica na narrativa de
Marcos 4.35-41/ Carlos Guilherme Fagundes Magajewski.-- São
Bernardo do Campo, 2009.
138fl.
Dissertação (Mestrado) Universidade Metodista de São Paulo,
Faculdade de Humanidades e Direito, curso de s-Graduão em
Ciências da Religo.
Orientação de: Paulo Augusto de Souza Nogueira
1.Bíblia N.T. Evangelho de Marcos Crítica e interpretação
2. Bíblia N.T. Marcos – Exegese 3. História cultural I. Título
CDD 226.30663
4
Esta dissertação contou com o apoio do IEPG - 2º semestre de 2007
e também do CNPq - 1º semestre de 2008 até o final dosemestre de 2009
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente à minha família. Meus pais, Vânia Aliz e Homero Osvaldo,
bem como meu irmão João Affonso, minha avó Esther, tios, tias, primos, primas. Todos e
todas permaneceram na torcida durante a escrita desta dissertação, e, sem o apoio deles, não
teríamos logrado alcançar nosso objetivo.
Agradeço também ao meu orientador, Prof. Dr. Paulo Augusto de Souza Nogueira,
que me acompanhou durante o processo de pesquisa e escrita desta dissertação. Aprendi
muito com seu olhar afinado para as sutilezas exegéticas, bem como sua busca incessante
por novas metodologias que permitam uma aproximação criativa e renovada de objetos às
vezes tão repetitivos.
Agradeço aos colegas do Grupo de Pesquisa Oracula, pelo companheirismo e partilha
de inquietações metodológicas.
Minha gratio aos professores do curso de pós-graduação em Ciências da Religião,
especialmente àqueles que lecionaram alguma das disciplinas que cursei: Profs. Drs. Jung
Mo Sung, Archibald Mulford Woodruff, César Carbullanca Núñez, Paulo Roberto Garcia,
Paulo Augusto de Souza Nogueira.
Agradeço às secretárias da pós-graduação, que sempre estiveram prontas a ajudar no
atendimento e solução das questões burocráticas encontradas.
Agradeço também às bibliotecárias e funcionários e funcionárias da Biblioteca de Te-
ologia, da Biblioteca Central e da Biblioteca Ecumênica da UMESP.
Aos amigos e amigas, sejam os de longa data, sejam os conquistados durante o decor-
rer do curso, expresso também minha gratidão. Aos “legionários”, Alex, Samuel, Luís Feli-
6
pe, Daniel Souza, Paulo Roberto Júnior, Eduardo Júnior, André Mazini, Cleiton Moraes e a
mais nova legionária, Talita Costa. À Luciana Caetano, esposa de meu orientador, que me
estendeu a mão e a amizade em momento em que me encontrava vulnerável e desorientado.
É preciso mencionar meus colegas e ex-colegas da teologia, Prs. Tiago Valentin e Laura,
Pra. Rute e seu esposo Rubinho, Prs. Billy Fádel, Daniel Camuçatto (e esposa, Josi), Filipe
Maia (e esposa, Ju), Israel Saraiva, entre outros e outras, me acompanharam na torcida e
incentivos.
Finalmente, agradeço a Deus pela oportunidade de continuar na busca do saber e dos
meus sonhos, e de, nesta busca, sempre me surpreender com as pessoas, cheiros, cores, sa-
bores e sons que se me apresentam. Agradeço, pois, ao Deus que se me apresenta transfigu-
rado em todas estas realidades que mencionei.
7
RESUMO
Esta dissertação elabora uma exegese de Marcos 4. 35 41, “Jesus
Acalma uma Tempestade”. Para tanto, parte da revisão crítica da
pesquisa atual do Jesus Histórico em diálogo com a Hisria
Cultural, Micro-história e Psicologia Histórica, com o intuito de
levantar queses pertinentes às narrativas ticas e sua importância
para o saber histórico. Do mapeamento literário dos Papiros
Mágicos Gregos, bem como referência ao Hino de Auto-Exaltação
de Qumran, ao antigo testamento e a textos rabínicos posteriores ao
Novo Testamento, emergem paralelos que são fundamentais para a
compreensão da perícope analisada. Assim, a exegese do texto em
questão lança luz sobre os elementos de poder, medo e identidade
tica presentes na narrativa.
Palavras-chave: Evangelho de Marcos Papiros Mágicos Gregos
exegese bíblica – História cultural narrativas míticas
8
ABSTRACT
This dissertation offers an exegesis of Mark 4. 35 41, Jesus Stills
a Storm”. Towards that goal, it starts with a critical survey of the
current Quest for the Historical Jesus” in dialogue with Cultural
History, Microhistory and Historical Psychology, with the aim of
raising relevant issues pertaining mythical narratives as well as their
inherent value for our historical knowledge. From the literary
mapping of the Greek Magical Papyri, and from evidence stemming
from Qumran’s “Self Glorification Hymn”, as well as the Old
Testament and the later rabbinical texts arise fundamental parallels
that are critical for our understanding of said narrative. Thus, the
exegesis of our pericope sheds light on the elements of power, fear
and mythical identity present in the narrative.
Keywords: Mark’s Gospel Greek Magical Papyri biblical
exegesisCultural history – mythical narratives
9
Sumário
Agradecimentos ___________________________________________________________ 5
Resumo _________________________________________________________________ 7
Abstract _________________________________________________________________ 8
Introdução ______________________________________________________________ 11
I – Quem é Este? A Pesquisa Recente do Jesus Histórico em Perspectiva _____________ 15
1.
Uma breve história da pesquisa do Jesus Hisrico ________________________ 16
2.
Jesus, mago Galileu. Morton Smith e sua obra polêmica. ___________________ 20
3.
Jesus entre os Hassidim. Geza Vermes e os rabinos caristicos. _____________ 24
4.
Jesus entre Bandidos, Profetas e Messias. Richard Horsley e os movimentos
populares galilaicos. ____________________________________________________ 28
5.
Jesus, mago e comensal. John Dominic Crossan e o binômio “magia” e “refeição”.34
6.
John Meier. “Um Judeu Marginal” e com poucos contatos. _________________ 37
7.
Gerd Theissen e o Jesus profeta-milagreiro ______________________________ 42
10
8.
Pesquisa brasileira recente e suas novas perspectivas. ______________________ 44
9.
Novos Horizontes? Contribuições de outros saberes para a pesquisa do Jesus
Hisrico. _____________________________________________________________ 49
10.
Considerações Finais ______________________________________________ 57
II – Análise de Textos da Antiguidade ________________________________________ 58
1. Palavras de Poder nos Papiros Mágicos Gregos _____________________________ 58
2. Identidade tica e o caso do hino de auto-exaltação de Qumran _______________ 73
3. Textos relacionados ___________________________________________________ 85
4. Considerações Finais __________________________________________________ 92
III – Exegese de Marcos 4. 35 - 41 ___________________________________________ 93
1.
Texto Grego e Tradução Literal _______________________________________ 93
2.
Análise Literária ___________________________________________________ 94
3.
Análise de Redação ________________________________________________ 105
4.
Análise de Forma __________________________________________________ 108
5.
Análise de Conteúdo _______________________________________________ 116
Considerações Finais _____________________________________________________ 122
Referências Bibliográficas ________________________________________________ 127
11
INTRODUÇÃO
A hinódia protestante lança mão de diversos episódios blicos para seus propósitos.
Encontramos o seguinte hino, o de número 342, no Hinário Evangélico utilizados nos cultos
da Igreja Metodista:
Ó Mestre, o mar se revolta,
As ondas nos dão pavor,
O céu se reveste de trevas,
Não temos um salvador!
Não se te dá que morramos?
Podes assim dormir?
Pois a cada instante nos vemos
Já prestes a submergir!
À minha palavra obedecerão,
Sossegai!
O vento em fúria, o rijo mar,
Ou a ira dos homens, o gênio do mal,
Jamais poderão a nau tragar
Que leva o dono da terra e Céus!
Pois todos têm de obedecer,
Sossegai! Sossegai!
Por que haveríeis vós de temer?
Sossegai!
Mestre, mui grande tristeza
Me quer hoje consumir;
À dor que perturba a minha alma
Vem Mestre, vem acudir!
De ondas do mal tão medonhas
Como me livrarei?
Só tu podes salvar-me, ó Mestre;
Vem, pois, meu Senhor, meu Rei!
Mestre, chegou a bonança;
12
Em paz vejo o Céu e o mar;
O meu coração goza calma
Que não poderá findar.
Detém-te comigo, ó Mestre,
Excelso dom do Céu,
E assim chegarei bem seguro
Ao porto, destino meu.
1
Assim, o conhecido episódio narrado em Marcos 4. 35 41, “Jesus Acalma uma
Tempestade”, se torna inspiração para este hino. Mas é interessante notar que o episódio,
aqui, acaba se tornando uma analogia para as ondas que assolam a vida das pessoas, especi-
almente daquele que canta. O episódio em si aparece mais evidentemente na primeira estro-
fe. O refrão, inclusive, apresenta palavras colocadas na boca de Jesus. Além disso, é preciso
que Jesus “fique ao meu lado”, durante a “mui grande tristeza” que “me quer hoje consu-
mir”. As dores o, assim, dores da alma”. O episódio narrado em Marcos, portanto, se
torna uma grande alegoria da vida e suas angústias. A narrativa mítica se torna, pois, algo
existencial. Jesus é o bom amigo, o qual acalma os medos mais profundos do coração hu-
mano.
***
Outras leituras do texto de Marcos 4. 35 41 são possíveis. Klaus Berger nos apresen-
ta, como provocação, esta fascinante desconstrução” dos milagres bíblicos, pica especi-
almente da pesquisa bíblica do século XIX e icio do século XX:
Os anjos das histórias de Natal eram fogos-fátuos que não foram tidos como
tais. A tempestade passou assim que o barco buscou um abrigo do vento ao
circundar um promontório. No caso das bodas de Caná, Jesus tinha aparen-
temente trazido o vinho consigo, para fazer uma surpresa. O doente junto ao
lago de Betsaida era um simulador a quem Jesus fez de conta que dava per-
nas. Os cinco mil ficaram saciados porque aqueles dentre eles que estavam
bem abastecidos repartiram suas provisões assim que viram Jesus e os discí-
pulos fazer o mesmo com seus poucos bocados. A filhinha de Jairo apa-
rentemente estava morta, e o mesmo se deu com o próprio Jesus. Ele recupe-
rou os sentidos no fresco interior do sepulcro, se bem que enfraquecido, co-
mo quem está à beira da morte; depois se arrastou durante quarenta dias, en-
contrando-se ocasionalmente com os discípulos, os quais somente souberam
explicar a sua reanimação enquanto ressurreição; e por fim separou-se para
sempre deles, utilizando-se de uma nuvem baixa com o fim de poupar-lhes a
visão do seu definhamento.
2
Aqui, não temos representada uma experiência pessoal com Jesus”. Temos, isso sim,
uma leitura de cunho racionalista de várias narrativas neotestamentárias, entre elas “Jesus
Acalma uma Tempestade”. Em suma, esse parágrafo é representativo da tendência de expli-
1
HINÁRIO EVANGÉLICO. Hino 342. A letra em português é da autoria do Rev. William E. Entzminger.
2
BERGER, Klaus. É Possível Acreditar em Milagres? P. 31.
13
cação dos milagres em termos de conhecimentos limitados, erros de percepção, etc., daque-
les que supostamente os teriam observado. Pode-se ver nessas linhas o olhar condescenden-
te, quase paternal, dirigido ao passado e suas pessoas que, afinal de contas, não haviam sido
esclarecidas pela ratio moderna.
***
Marcos 4. 35 41 é o objeto de nossa pesquisa nesta dissertação de mestrado. Como
ficou evidente nos textos vistos acima, a pluralidade de leituras de um simples relato bíblico
é assombrosa. O que se quer, aqui, pois, é propor mais uma leitura deste texto. Se, por um
lado, o intentamos uma leitura existencial do mesmo, por outro tampouco desejamos uma
leitura racionalizante desta narrativa. Antes, interessa-nos situá-lo no seu contexto cultural,
colocando-o em diálogo com outras vozes que possibilitem uma melhor compreeno do
mesmo. Entendemos que a exegese tradicional se beneficia de aportes de outros saberes, e é
nesta perspectiva que intentamos trabalhar nossa perícope.
Neste sentido, percorreremos o seguinte trajeto:
No primeiro capítulo, abordaremos a literatura recente sobre a assim-chamada Tercei-
ra Busca pelo Jesus Histórico (a “Third Quest”). Passaremos em revisão os autores mais
influentes desta área do saber acadêmico, buscando entender suas ênfases e metodologias
particulares. Também procuraremos destacar suas contribuições mais importantes para esta
pesquisa, bem como apontar-lhes limites. Assim, autores dos Estados Unidos, Inglaterra,
Alemanha e Brasil serão perscrutados com o propósito de estabelecer um status quaestionis.
Finalmente, partindo de provocações de Klaus Berger estudioso alemão do Novo Testa-
mento, bem como das novas perspectivas históricas oferecidas pela história cultural e pela
microhistória, buscaremos um diálogo criativo com a referida pesquisa sobre a vida de Je-
sus. Espera-se, assim, proporcionar caminhos para que se superem alguns limites que se
observam nesta construção acadêmica moderna, muitas vezes ainda eivada de positivismo.
No segundo catulo, intentamos construir um panorama cultural que seja pertinente à
leitura exegética que nos propusemos de Marcos 4. 35 41. Assim, abordaremos intencio-
nalmente com bastantes detalhes os Papiros Mágicos Gregos como fonte fundamental para
nossa pesquisa. Além destes documentos, analisaremos a fundo um texto enigmático encon-
trado nos Manuscritos do Mar Morto, o Hino de Auto-Exaltação”. Fazemos esta análise
para, entre outras coisas, estabelecer que o judaísmo da época de Jesus era extremamente
plural e capaz de expressões bastante ousadas como pois eu sou contado entre os deuses”.
Neste recorte bastante estreito de Qumran, encontramos um texto que desafia leituras racio-
nalistas modernas e poderá soar esdrúxulo para muitos ouvidos. Analisaremos, então, para-
14
lelos do Antigo Testamento a narrativa de Jonas é o principal exemplo bem como textos
rabínicos posteriores que giram em torno de aplicações desta narrativa. Finalmente, enfoca-
remos as figuras de Hanina ben Dosa e Honi, o traçador de círculos” como possíveis para-
lelos para a figura do Jesus Histórico.
No terceiro e último catulo, faremos a exegese propriamente dita de Marcos 4. 35
41. A metodologia adotada é, em última análise, a exegese tradicional. Todavia, à luz das
discussões tanto do primeiro quanto do segundo capítulo, pretendemos que a leitura exegé-
tica possibilite uma nova aproximação de uma narrativa que é considerada como de “segun-
da linhapara a construção do saber histórico, por ser evidentemente mítica. Esperamos
que, na análise de conteúdo da narrativa, suas queses fundamentais sejam elucidadas em
relação com a cultura da época.
15
I – QUEM É ESTE? A PESQUISA RECENTE DO JE-
SUS HISTÓRICO EM PERSPECTIVA
Neste capítulo, intentamos delinear o panorama da pesquisa recente do Jesus Históri-
co. Queremos, através disso, ressaltar opções metodológicas que marcam determinados au-
tores, na tentativa de perceber suas possibilidades e limitações. Finalmente, pretendemos
colocá-las em diálogo com a hisria cultural e a micro-história. Tentaremos, assim, perce-
ber novas possibilidades para a pesquisa do tema.
Tal perspectiva de abordagem, portanto, ocasiona dois cortes importantes: primeiro, a
própria seleção de autores ligados à busca” pelo Jesus Hisrico está atrelada aos nossos
interesses de pesquisa. Dialogaremos com autores que entendemos que mais contribuições
apresentem à nossa temática. Segundo, a própria seleção de material e as ênfases procuradas
neste ou naquele autor são tributárias do nosso objetivo principal. Assim, as tônicas que
destacaremos em cada autor visam atender, também, às necessidades que se apresentam em
nossa pesquisa.
Finalmente, ao final da discussão da obra dos autores analisados, entabularemos diá-
logos interdisciplinares com a hisria cultural, a micro-história, a antropologia e a psicolo-
gia hisrica. O objetivo desta abordagem é, simultaneamente, mantermo-nos dentro da ca-
racterística interdisciplinar da pesquisa do Jesus Histórico bem como apresentar, em muitos
casos, contrapontos oriundos de outros saberes acadêmicos a algumas tenncias que se
observam.
16
1. Uma breve história da pesquisa do Jesus Histórico
É importante dedicarmos a atenção devida à advertência que nos faz John P. Meier:
Talvez seja melhor começarmos enfatizando que uma imensa armadilha que
contamina não apenas a questão de Jesus e a Lei, mas toda a busca pelo Je-
sus histórico em geral: muito comumente somos confrontados por um empe-
nho teológico mascarado como um empenho histórico.
3
Toda pesquisa acerca de Jesus, neste sentido, está sob a suspeita de não ser um empre-
endimento legítimo. Sobre as intenções dos que se aventuram neste campo pesará sempre a
dúvida de que, ao fim e ao cabo, pretendam apenas defender esta ou aquela opino teológi-
ca. Não que tal suspeita sobre empreendimentos históricos pese somente sobre o campo da
busca pelo Jesus Histórico. Pelo contrário, a própria disciplina da história tem enfrentado,
neste tocante, a crítica s-moderna de que não um grama de objetividade sequer no re-
sultado produzido.
4
Neste sentido, vale ouvirmos a refleo cida de Carlo Ginzburg sobre
as dificuldades enfrentadas pela constatação cada vez mais evidente da clara dimensão nar-
rativa do saber histórico:
Hoje, a insistência na dimensão narrativa da historiografia (de qualquer his-
toriografia, ainda que em diferente medida) se faz acompanhar, como se viu,
de atitudes relativistas que tendem a anular de fato qualquer distinção entre
ficção e história, entre narrações fantásticas e narrações com pretensão de
verdade. Contra essas tendências, ressalte-se, ao contrário, que uma maior
consciência da dimensão narrativa não implica uma acentuação das possibi-
lidades cognoscitivas da historiografia, mas, ao contrário, sua intensifica-
ção.
5
Mais adiante, Ginzburg insistirá em um elemento fundamental para toda a pesquisa
histórica:
Termos como “ficção” ou “possibilidade” não devem induzir a erro. A ques-
tão da prova permanece mais que nunca no cerne da pesquisa histórica, mas
seu estatuto é inevitavelmente modificado no momento em que são enfrenta-
dos temas diferentes em relação ao passado, com a ajuda de uma documen-
tação que também é diferente.
6
Três elementos devem se destacar aqui, que nos servirão de horizonte no que se segui-
rá: primeiramente, a história propriamente dita o abre mão da prova. Isso significa que o
3
MEIER, John P. “O Jesus Histórico e a Lei Histórica: Alguns problemas dentro do problema”. In. CHEVITA-
RESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História.
p. 229.
4
Ginzburg chega a utilizar a expressão “nível fabulatório identificável nas narrações com pretensões científicas”.
Cf. GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros. p. 326.
5
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros. p. 329.
6
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros. p. 334.
17
empreendimento historiográfico precisa de documentação para embasar suas asserções. Em
segundo lugar, é preciso atenção aos temas tratados como sendo capazes de modificar o
próprio estatuto da pesquisa. Em outras palavras, temas diferenciados requerem metodolo-
gias diferenciadas. Finalmente, a própria documentação precisa ser diferenciada para lidar-
se com temas diferentes. Assim, nossa leitura da história da pesquisa recente do Jesus histó-
rico procurará contemplar estes elementos: que temas são pesquisados? Para este fim, que
tipo de documentação - as fontes são privilegiadas? Finalmente, quais seus pressupostos
metodológicos para uso das fontes?
A pesquisa do Jesus Histórico é,
7
fundamentalmente, oriunda do período do iluminis-
mo e triburia da modernidade.
8
Gerd Theissen conta, a partir daí, cinco “fasesda pesqui-
sa sobre a vida de Jesus. A primeira vida do Jesus Histórico” foi produzida por Hermann
Samuel Reimarus (1694-1768) mas publicada apenas após sua morte em sete fragmentos,
datados entre os anos de 1774 e 1778. É importante percebermos que tal pesquisa se deu em
um ambiente da “religião da rao”, e que “com Reimarus se inicia o tratamento da vida de
Jesus em perspectiva puramente histórica. A na ressurreição é oriunda de uma fraude
objetiva”.
9
Seu sucessor, David Friedrich Strauss (1808 1874), foi o primeiro a defender a apli-
cação do conceito de mito corrente na pesquisa vétero-testamentária da época à formação da
tradição de Jesus. A tradição de milagres de Jesus, neste caso, o seria oriunda da “fraude
objetiva” defendida por Reimarus, mas sim por um “processo inconsciente de imaginação
tica”.
10
Segue-se então a produção das assim-chamadas “vidas liberais de Jesusaté o
início do século XX a segunda “fase” da pesquisa esboçada por Theissen.
11
A esta segunda fase segue-se o colapso” da pesquisa, ocasionado primeiramente por
Albert Schweitzer ao afirmar que as “vidas liberais de Jesus” eram projeções dos ideais dos
7
Cf. um esboço da pesquisa em THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 19 33. CORNELLI,
Gabriele. “Introdução: Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. In. CHEVITARE-
SE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Naza: Uma Outra História.
pp. 17 22. Cf. tb. GARCIA, Paulo Roberto. “Jesus, um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar Histórico
Sobre Jesus e os Judaísmos de seu Tempo” In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele;
SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. pp. 263 - 278.
8
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. p. 25. “Since such research arose only with
the Enlightenment in the 18
th
century (Hermann Reimarus [1694 1768] being the first famous example of a
“quester”), the quest for the historical Jesus is a peculiarly modern endeavor and has its own tangled history,
from Reimarus to E.P. Sanders and lesser lights”.
9
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. p. 21. Itálico consta na obra consultada.
10
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. p. 22.
11
Theissen chama estas “vidas liberais” de Jesus de “segunda fase da pesquisa”, posterior à primeira que foi
representada por Reimarus e Strauss. THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 21 – 24.
18
seus próprios autores. Deve-se acrescentar que Wrede afirmava que o próprio evangelho de
Marcos considerado desde a ascensão da teoria das duas fontes como o documento mais
“confiável” para a reconstrução da vida de Jesus, posto que o mais antigo era fortemente
tendencioso na sua apresentação de Jesus. Além disso, Schmidt demonstrou que a tradição
de Jesus era originária de “pequenos fragmentos”, que foram então reorganizados por Mar-
cos. Assim, nem mesmo a ordem das perícopes neste evangelho poderia servir de referência
histórica precisa. Mas foi Bultmann quem definitivamente colocou a “busca pelo Jesus His-
rico” em um impasse
12
com seu programa de “desmitologização”.
Dispulo de Bultmann, Ernest Käsemann, propõe em 1953 a “nova pergunta” pelo
Jesus Histórico. Nomes como Bornkamm,
13
Fuchs e Ebeling abraçam esta “nova busca”.
Nesta fase da pesquisa, busca-se superar a dicotomia bultmanniana radical entre “o Cristo
da Fé” e o “Jesus Histórico”, na tentativa de perceber-se no kerygma neotestamentário um
nimo que pudesse ser remetido ao próprio Jesus. O cririo seria o da diferença isto é,
Jesus deveria ser visto contra o pano de fundo do judaísmo de sua época para encontrar-se
tudo que fosse diferente deste cenário cultural. Estes elementos seriam oriundos de Jesus.
Tal postura, evidentemente, atraiu críticas legítimas de que visava separar” Jesus do juda-
ísmo e, conseqüentemente, a própria igreja cristã de seu legado judaico.
14
12
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 24 25. Cf. também GARCIA, Paulo Roberto. “Jesus,
um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar Histórico Sobre Jesus e os Judaísmos de seu Tempo” In. CHE-
VITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Outra
História. pp. 263 - 278.
13
Vermes diz que Bornkamm “ousou publicar um livro intitulado Jesus of Nazareth”. Cf. VERMES, Geza. A
Religião de Jesus, o Judeu. p. 10.
14
Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “O Judaísmo Antigo e o Cristianismo Primitivo em Nova Perspec-
tiva”. In. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; FUNARI, Pedro Paulo de Abreu; COLLINS, John Joseph
(orgs.). Identidade Fluídas Judaísmo Antigo e Cristianismo Primitivo. pp. 13 – 14. Diz o autor: “A relação de
Jesus de Nazaré - o fundador do cristianismo - com sua própria cultura transformou-se em um problema. Em
que medida ele era judeu? Ou o judaísmo era apenas um “contexto” para a sua atuação? Um dos critérios pa-
ra saber se uma tradição antiga dos evangelhos era originada no Jesus Histórico era perguntar pela sua possí-
vel origem judaica. Podemos ilustrar o problema citando a máxima de Ernst semann segundo a qual um
dito podia ser atribuído ao Jesus histórico se ele não tivesse origem em idéias religiosas judaicas e em en-
sinos da igreja primitiva. Se fosse judaico, não teria sido original. Jesus teria, desta forma, pronunciado ditos
(logia), desenvolvido crenças e promovido práticas que o seriam entendidas apenas no horizonte de sua
formação e tradição religiosa como judeu. Sua originalidade deveria ser supra-histórica. Trata-se do critério
de descontinuidade (Differentzkriterium) entre Jesus de Nazaré e o Judaísmo do seu tempo, que foi usado pa-
ra afirmar se uma expressão é original de Jesus ou criação das primeiras igrejas (igualmente de origem judai-
ca). Segundo ele, o que é característico judaico até pode ser de Jesus, mas não se distingue em sua pregação
como sendo de fundamental importância, como sendo genuinamente de Jesus. Creio que esta é uma conse-
qüência do uso do conceito de contexto ao tratar da história e cultura judaicas na relação com as origens do
cristianismo. Esta perspectiva imperou nos estudos bíblicos por pelo menos 30 anos, ainda que sob forte crí-
tica. Como conseqüência, o judeu mais famoso de toda a história se caracterizaria por não ter cultivado rela-
ções profundas com sua cultura. Pelo contrário, o fato de Jesus de Nazaré ser representante de idéias judaicas
seria um empecilho para o caráter especial da religião por ele fundada e para o seu significado histórico”.
19
Inicia-se então, por volta da década de setenta, a third quest(terceira busca) pelo
Jesus Histórico. Os elementos marcantes desta nova pesquisa são, segundo Theissen, a su-
peração da radical separação de Jesus do contexto do judaísmo de seu tempo
15
e a forte in-
fluência de autores de “fala inglesa” na sua construção em contraste com as fases anterio-
res, marcadas por escritores alemães. Metodologicamente, esta fase tem entabulado diálogos
cada vez mais freqüentes com disciplinas como a antropologia, bem como dado uma proje-
ção cada vez maior à Fonte Q e o evangelho de To, além de outras fontes não-
canônicas
16
e as polêmicas sobre a legitimidade ouo do uso destas fontes na pesquisa.
Como vimos, a fase atual da pesquisa é marcada, internamente, por divergências me-
todológicas e quanto a fontes, bem como com relação aos resultados.
17
Apenas a título de
exemplo, de um lado, a tendência de pensar-se em um Jesus não-escatológicoe alinha-
do ao cinismo.
18
Por outro, os que o colocam dentro de expectativas escatológicas de sua
época.
19
O próprio Theissen inclui-se no segundo grupo ao fazer um comenrio irônico a
este respeito: “o ‘Jesus não-escatogicoparece ter uma cor local mais californiana que
galilaica”.
20
Sublinhamos aqui, então, três elementos importantes que nos acompanharão como
preocupações norteadoras para a discussão dos autores que se seguirá. Talvez por conta des-
tas divergências internas, bem como da aguda consciência de que a projeção” faz parte do
métier do historiador, é notável o mero de páginas dedicadas à metodologia da pesquisa
em si. Isso é, evidentemente, a tentativa de garantir o status de objetividade acadêmica dese-
jada para os resultados destas empreitadas. Além disso, a problemática referente às fontes
para esta busca também estão marcadamente presentes nas obras recentes que se inscrevem
nesta pesquisa. Por fim, não podemos deixar de assinalar um tema que nos é fundamental:
15
Como indicam, por exemplo, as obras de Geza Vermes, que analisaremos adiante.
16
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 28 – 30.
17
CORNELLI, Gabriele. “Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. In. CHEVITARE-
SE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História.
pp. 17 – 25.
18
Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico; CROSSAN, John Dominic. O Nascimento do Cristianismo;
VAAGE, Leif. Q: The Ethos and Ethics of an Itinerant Intelligence.; VAAGE, Leif. Galilean Upstarts. Je-
sus´ First Followers According to Q.
19
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 300 305. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the
Historical Jesus. Vols. 1, 2 e 3. [especialmente o segundo volume, no qual trata do “mentor”, João Batista, e
da “mensagem”, o “reino vindouro de Deus”]; NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um
Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século
I”. in. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Na-
zaré: Uma outra história. pp. 293 – 300.
20
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. p. 29.
20
de formas variadas, a queso do milagroso nas fontes é pomo de disrdia desde seus pri-
rdios.
2. Jesus, mago Galileu. Morton Smith e sua obra polêmica.
Morton Smith é importante para nossa pesquisa por dois motivos.
Primeiramente, até hoje uma forte pomica em torno da suposta descoberta do “E-
vangelho Secreto de Marcos”, efetuada pelo próprio Smith. Os dois lados do argumento se
digladiam até hoje, sem que se logre alcançar um consenso sobre a legitimidade ou não des-
ta fonte. Crossan, por exemplo, recebe de bom grado esta contribuição de Smith,
21
bem co-
mo o faz Koester,
22
e o próprio Theissen.
23
John P. Meier, por sua vez, é muito reticente
com relação ao evangelho secreto: para ele, esta fonte não é importante para a pesquisa,
mesmo que seja autêntica.
24
Citamos este debate para ilustrar um problema ligado às fontes
que diz respeito a este autor. Ele depende fortemente de fontes extracanicas para seu es-
boço do Jesus hisrico.
Em segundo lugar, e mais importante para nossos propósitos, Morton Smith é o pri-
meiro autor a denominar Jesus como mago”. Em 1978, publicou uma obra destinada a ser
polêmica, intitulada Jesus The Magician. A frase em epígrafe, na capa do livro, é sintoti-
ca: “uma visão de Jesus que dois mil anos de supreso e polêmica não puderam apagar”.
Abaixo do título uma referência a ele como “autor do Evangelho Secreto”.
25
E é assim
que Smith produz sua obra: cavando” em busca de evidências de magia origirias em Je-
sus de Nazaré, que teriam sido progressivamente apagadas pela tradição em desenvolvimen-
to. Em outras palavras, Smith tenta “descascar a cebola” da tradição para chegar a um nú-
cleo considerado hisrico.
Smith também escreveu diversos artigos que tratam direta ou indiretamente da questão
dos milagres de Jesus. Smith foi um ardoroso defensor da necessidade de levar-se em consi-
21
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. pp. 366 – 367, 452 – 454.
22
KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Volume 2: História e Literatura do Cristianismo Primi-
tivo. pp. 183 – 184, 240 – 241, 249 – 250, 258.
23
THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 39 – 40, 46, 65 – 67.
24
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. pp. 120 – 123.
25
O editor, naturalmente sem querer, introduziu aqui uma ironia: tal frase pode ser lida ou como referindo-se à
obra de divulgação do Evangelho Secreto de Marcos ou a Smith como “autor” do próprio evangelho. John P.
Meier lista as “vidas de Jesus” produzidas recentemente, e uma das expressões que utiliza parece ser dirigida
a Smith (embora não haja nenhuma menção direta ao fato): ele menciona um “Jesus the gay magician” (Je-
sus, o mago gay), o que parece aludir às duas polêmicas maiores de Morton Smith. Isso parece se referir ao
título “Jesus the Magician” associado ao texto do suposto Evangelho Secreto de Marcos, que fala de “homem
nu com homem nu”. Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1. p. 3.
21
deração a forma literária aretalogia” na pesquisa neotestamentária.
26
Além disso, contribu-
iu para a discussão acerca do uso do termo “homem divino” com referência a Jesus de Na-
zae outras figuras da antiguidade.
27
Procurou, também, conceituar os tipos de “messia-
nismo” encontrados no contexto de Jesus, bem como a pertinência da queso para o estudo
desta figura hisrica.
28
Finalmente, realizou duas contribuições interessantes para a temáti-
ca envolvendo a questão da “ascensão aos céus” no cristianismo primitivo.
29
O que chama a atenção, porém, não é esta idéia de que “quanto mais antigo, mais
próximo do Jesus Histórico afinal, o Evangelho de Marcos no começo do século XX
gozava de primazia por ser considerado o mais antigo –, e sim o uso extensivo que Morton
Smith faz de fontes extracanônicas para embasar seus argumentos. Smith é claro em seu
prosito no prefácio à sua obra:
“Jesus, o mago” era a figura vista na antigüidade pela maioria dos oponentes
de Jesus; “Jesus, o Filho de Deus” era a figura vista por aquele grupo seus de
seguidores que eventualmente triunfou; o Jesus real foi o homem cujas pala-
vras e ações deram origem a estas interpretações contraditórias. [...] Portanto
os estudiosos modernos, tentando descobrir o Jesus Histórico por trás das
lendas dos evangelhos, de modo geral não prestaram atenção às evidências
para Jesus, o mago, e consideraram apenas os evangelhos como suas fontes
[...] Este livro é uma tentativa de corrigir esta compreensão tendenciosa [bi-
as, no original] através da reconstrução da figura perdida a partir dos frag-
mentos preservados e material relacionado, principalmente dos papiros má-
gicos [os Papiros Mágicos Gregos], que a pesquisa do Novo Testamento de
modo geral tem ignorado.
30
É preciso entender estas “lendas” às quais Smith se refere como parte de sua refinada
ironia. Afinal, o próprio Smith lança farpas em direção às “vidas liberais de Jesus”, que ten-
tavam explicar os milagres em termos puramente racionais, e também ao projeto de desmi-
tologização de Bultmann. Diz ele:
Quando este programa “crítico” foi concluído, quase tudo nos evangelhos re-
sultou como pertencendo ao “Cristo da Fé”; quase nada sobrara do “Jesus da
História”. Este resultado foi conveniente aos pregadores (ele minimizava os
obstáculos históricos aos desenvolvimentos homiléticos), mas é indefensável
como resultado de um estudo histórico de quatro documentos antigos. É ana-
26
SMITH, Morton. Prolegomena to a Discussion of Aretalogies, Divine Men, the Gospels and Jesus”. In.
SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh. Vol 2. pp. 3 – 27.
27
SMITH, Morton. “On the History of the ‘Divine Man’”. In. SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh.
Vol 2. pp. 28 – 38.
28
SMITH, Morton. “Messiahs: Robbers, Jurists, Prophets”. In. SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh.
Vol 2. pp. 39 – 46.
29
Cf. SMITH, Morton. “Ascent to the Heavens and the Beggining of Christianity”. In. In. SMITH, Morton.
Studies in the Cult of Yahweh. Vol 2. pp. 47 67; SMITH, Morton. “Two Ascended to Heaven Jesus and
the Author of 4Q491”.In. SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh. Vol 2. pp. 68 – 78.
30
SMITH, Morton. Jesus the Magician. p. vii. Tradução própria.
22
crônica sobretudo a antítese fundamental, aquela entre “o Cristo da Fé” co-
mo uma figura mitológica e o “Jesus da História” como um pregador livre de
pressupostos mitológicos. Onde na Palestina da Antigüidade alguém encon-
traria um homem cujo entendimento do mundo e de si próprio não fosse mi-
tológico?
31
Mais que isso: afirma corajosamente que
Tanto a probabilidade geral quanto a evidência específica requerem que re-
conheçamos a possibilidade de que “o Cristo da Fé” tenha se originado du-
rante a vida, senão na mente, do “Jesus da História” e que um dos primeiros
a crer em “Jesus, o Cristo” foi o próprio Jesus.
32
Em outras palavras, o que Smith está pleiteando são duas questões importantes: pri-
meiro, trata-se justamente da valorização da “dimensão tica” da realidade do século I
E.C. Segundo, trata-se da valorização de fontes extracanônicas para esta busca. O quadro
geral da vida de Jesus dependerá, na opino de Morton Smith, também de relatos similares
como os de Aponio de Tiana.
33
Para realçar os traços mágicos dos evangelhos, o autor rebate-os contra o pano de fun-
do da magia greco-romana e egípcia. Em uma de suas conclusões mais polêmicas,
34
Smith
chega a afirmar que a eucaristia é um rito mágico de um homem-deus” que se une a seus
discípulos através da alimentação com seu corpo e sangue. Acrescenta ainda que o paralelo
mais próximo a isso o é judaico, e sim egípcio. Além disso, afirma que é apenas em um
estágio posterior que o rito é progressivamente “judaizado” com a introdução do tema da
“nova aliança”.
35
Smith apela para uma leitura que perceba, no texto bíblico, vestígios de apologia.
Partindo do princípio de que se os evangelhos escritos a partir da década de 70 do culo I
E.C. tentam defender Jesus de acusações de magia,
36
afirma que a acusação deva ser pos-
terior à apologia. Assim sendo, muitas destas acusações podem ter vindo efetivamente do
período da vida do próprio Jesus, uma vez que o “cririo do constrangimentotorna impro-
31
SMITH, Morton. Jesus the Magician. p. 4. Itálico consta na obra consultada. Tradução própria.
32
SMITH, Morton. Jesus the Magician. p. 5. Tradução própria.
33
Os quais ele analisa no sexto capítulo de SMITH, Morton. Jesus the Magician. pp. 81 – 93.
34
E segundo o autor a marca mais evidente de magia oriunda de Jesus. Cf. SMITH, Morton. Jesus the Magician.
pp. 146 – 147.
35
SMITH, Morton. Jesus the Magician. pp. 122 – 126.
36
Um exemplo é a Controvérsia Sobre Beelzebul. Para uma exegese detalhada do texto, remetemos a COR-
NELLI, Gabriele. “É um Demônio!”: O Jesus histórico e a religião popular da Galiléia. Dissertação (Mestra-
do em Ciências da Religião) Curso de Pós-graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de
São Paulo, São Bernardo do Campo, 1998.
23
vável a invenção destas acusações pela igreja nascente.
37
Mas o autor procura o se fiar
simplesmente no que os “outrosdiziam acerca de Jesus, uma vez que acusação o é, via
de regra, expreso plena da verdade, e tenta passar dela para a realidade por trás da mesma:
“mesmo que a representação [de Jesus pelos seus adversários, os escribas e sumo-
sacerdotes] fosse uma caricatura, deveria ter semelhança em alguns pontos com o origi-
nal.”
38
É nos próprios evangelhos, comparados a paralelos do mundo Greco-romano, que o
autor se esforça por encontrar evidências que deem apoio a suas conclusões.
39
E é desta interação entre “os de forae a apologia intracanônica, somadas à percep-
ção de que a tradão suprime marcas de magia dos relatos evangélicos, que surge a contri-
buição mais interessante da obra de Morton Smith: coloca a magia na antiguidade dentro de
uma percepção de legitimidade. Mais que isso: mostra como os limites entre “religião” e
“magia” na antiguidade eram fluidos.
40
Afirma que “aquele clichê, que o homem religioso
pede aos deuses enquanto o mago tenta compeli-los é simplesmente falso”.
41
A questão da
legitimidade está latente no comentário irônico de Smith: “os amigos de um praticante [de
magia] de classe mais alta estariam inclinados a afirmar que ele o era um mago, mas sim
um ‘homem divino’”.
42
A tarefa histórica a que se proe Smith tem seus problemas característicos, bem co-
mo suas limitações. O autor recorre a uma analogia com a física quântica para ilustrar isso:
Tentar encontrar o Jesus verdadeiro é como tentar, na física atômica, locali-
zar uma partícula submicroscópica e determinar sua carga. A partícula não
pode ser observada diretamente, mas podemos ver em uma chapa fotográfica
as linhas deixadas pelas trajetórias das partículas maiores que ela s em
movimento. Pelo traçar destas trajetórias de volta à sua origem comum, e pe-
lo calcular da força necessária para fazer as partículas se movimentarem co-
mo se movimentaram, poderemos localizar e descrever esta causa invisível.
Admitidamente, história é mais complexa que a física; as linhas que conec-
tam a figura original às lendas desenvolvidas não podem ser traçadas com
precisão matemática; a intervenção de fatores desconhecidos deve ser levada
em conta. Conseqüentemente, os resultados nunca podem arrogar para si
mais do que probabilidade; mas “probabilidade”, como disse o Bispo Butler,
“é a própria condutora da vida”.
43
37
SMITH, Morton. Jesus the Magician. pp. 43 – 44.
38
SMITH, Morton. Jesus the Magician. p. 142. Tradução e colchetes próprios.
39
Disso tratam os capítulos 7 e 8 de SMITH, Morton. Jesus the Magician. pp. 94 – 152.
40
O tema da fluidez de identidades aparecerá mais adiante.
41
SMITH, Morton. Jesus The Magician. p. 69. Tradução própria.
42
SMITH, Morton. Jesus The Magician. p. 74. Colchetes e tradução próprios.
43
SMITH, Morton. Jesus The Magician. p. 74. Tradução própria. Esta frase aparece como epígrafe em CROS-
SAN, John Dominic. O Jesus Histórico. p. 26.
24
Na sica qntica de Smith, a “força desconhecida o próprio Jesus verdadeiro”
pode ser inferido probabilisticamente pelas partículas que interagiram com ele. Traçando
ambos estes perfis, o “mago” visto pelos opositores e o “homem divino” visto pelos segui-
dores, buscando remontar ao próprio Jesus, é que se pode desvendar este complexo ema-
ranhado de acusações e apologias. A chapa fotográfica o os evangelhos canônicos e o-
canônicos, bem como os papirosgicos gregos.
3. Jesus entre os Hassidim. Geza Vermes e os rabinos ca-
rismáticos.
Geza Vermes é outro autor que traz sua contribuição para o tema que pesquisamos. Já
no início da década de 70, Vermes começa a aproximar Jesus de Nazaré dos hassidim ou
“homens piedosos” do judaísmo. Ganham destaques as figuras caristicas de Hanina Ben
Dosa e de Honi, o “traçador de círculos”. Apelo aqui para obras mais recentes do autor, am-
bas disponíveis em português. São elas A Religião de Jesus, o Judeu e As Várias Faces de
Jesus. Ambas exem as ideias que aparecem em obra datada de 1973, Jesus the Jew (2ª
edição em 1983).
44
Assim como Smith, Vermes parte do “mais recentepara o “mais antigo” em busca da
melhor aproximação possível de Jesus. A única “exceção” é Paulo, que aparece logo abaixo
de João em importância.
45
A organização da obra As rias Faces de Jesus é esclarecedora
disso: parte de João, passando por Paulo, depois Atos e, finalmente, os evangelhos sinóti-
cos. Nestes, Jesus aparece como “curandeiro e mestre carismático e entusiasta escatológi-
co”.
46
O último nível a ser explorado es“sob os evangelhos: o verdadeiro Jesus”.
47
Em A Religião de Jesus, o Judeu, o autor demonstra uma de suas marcas distintivas: o
domínio do material da mish, talmude, etc. Ora, o título mesmo da obra já é esclarecedor
das intenções do autor: entender Jesus de Nazaré contra este pano de fundo judaico. Por isso
mesmo, não devemos estranhar que em As Várias Faces de Jesus haja uma seção intitulada
“modelos de homens santos carismáticos na época de Jesus”.
48
É, pois, contra este pano de
44
VERMES, Geza. Jesus the Jew.
45
O motivo é a distância de Paulo do contexto original dos Evangelhos, embora, naturalmente, os escritos de
Paulo sejam anteriores aos evangelhos canônicos.
46
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 177 – 262.
47
Título do capítulo sete de VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 263 – 309.
48
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 280 291. Todavia, as comparações de Jesus com os Hassi-
dim vão até a página 299. Após isso, o autor passa a destacar o específico de Jesus.
25
fundo de um “judaísmo carismático popular”
49
que Vermes quer encontrar a especificidade
de Jesus de Nazaré.
... a religião judaica era praticada em dois níveis. A sua forma oficial estava
nas mãos dos sacerdotes que, além de conduzir a adoração sacrificial, atua-
vam como juízes e como professores. Paralelamente a isso, porém, e fre-
qüentemente à distância dos centros, existia uma versão popular de judaís-
mo. Não era presidida por uma casta estabelecida de líderes, mas por pessoas
que acreditavam ser escolhidas pelos céus. O “homem de Deus” (ish ha-
elohim na Bíblia) era o intermediário através do qual o israelita comum po-
dia entrar em contato com Deus. Como observou J.B. Segal, autor de um en-
saio esclarecedor sobre o assunto, os “homens de Deus” eram vistos como
pessoas dotadas do que em árabe é chamado de barakah, um dom místico
divino, que os possibilita falar e agir em nome de uma deidade. Profetas e
videntes pertencem a esta categoria, mas o campo de ação dos “homens de
Deus” se estendia muito além da comunicação verbal. Eles eram reverencia-
dos, especialmente os profetas Elias e Eliseu, como milagreiros.
50
Mesmo que esta expressão dois níveis” pareça pressupor um judaísmo menos plural
do que hoje se sue além de ser templocêntrica” ainda assim precisamos perceber que
o “judaísmo” galilaico, ao que parece, era muito mais plural do que se supôs nas pesquisas
blicas.
51
Afinal, o pprio judaísmo ligado ao templo era plural e não podemos supor
que a religião popular fosse menos plural que o judsmo do Templo. A despeito destas ob-
servações, a figura do homem de Deus que Vermes menciona merece nossa atenção neste
momento.
Vermes cita um bom número de figuras da tradição tero-testamentária que tiveram
uma valorização como “homens de Deus”. Elias, Eliseu, Davi, Abraão, Moisés, entre outras,
marcavam esta apropriação peculiar de tradições blicas. Vermes passa, então, a expor qua-
tro figuras características, todas do período de Jesus: Honi, o “Desenhador de Círculos”,
seus dois netos e também Hanina ben Dosa este último contemporâneo de Jesus. Com
relação a estas figuras,
52
Vermes as identifica e, inclusive, o próprio Jesus com os hassi-
dim.
Para o autor, a relação dos milagres de cura e dos exorcismos é umbilical:
49
VERMES, Geza. Jesus the Jew. pp. 18 – 82.
50
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 272 – 273.
51
Remeto ao excelente artigo de GARCIA, Paulo Robeto. “Jesus, um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar
Histórico sobre Jesus e os Judaísmos de seu Tempo”. In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI,
Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: uma Outra História. pp. 263 – 278.
52
Confira os relatos completos destas figuras em VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 280 – 294.
26
Enoc, Jubileus, Josefo e Qumrã expõem em substância o estreito vínculo e-
xistente na mente dos judeus do período intertestamental entre cura e exor-
cismo, vínculo que observamos em histórias relativas a Jesus.
53
Esta afirmação de Vermes parece ser reveladora para nossos propósitos.
... temos de confrontar a reação dos não crentes face ao fenômeno do exor-
cismo. Estariam vendo apenas os truques de um mágico? Nos Evangelhos,
oponentes de Jesus atribuíam a sua prática de exorcismo seja à sua possessão
por Belzebu ou ao fato de estar agindo por meio do poder do príncipe dos
demônios [...] Na verdade, como veremos no presente, os detratores de Jesus
no período pós-Novo Testamento, tanto pagãos como judeus, o estigmatiza-
vam uniformemente como feiticeiro.
54
Detratores chamando-no de mago? Estigma de feiticeiro? Aqui podemos ver quase
um eco de Morton Smith. Todavia, é preciso termos cautela com esta associação apressada,
uma vez que o autor não desenvolve o foco na magia, e nem chama Jesus de mago – embora
tal associação, evidentemente, esteja no horizonte de possibilidades. Prefere chamá-lo sem-
pre de carismático.
55
Em obra anterior, publicada em 1993, Vermes faz um comentário
maldoso acerca tanto de Crossan
56
quanto de Smith. Diz ele:
Embora útil e complementar de muitas maneiras, considero o capítulo de
J.D. Crossan sobre “Mago e Profeta” [capítulo 8], em seu recente livro [O
Jesus Histórico], desprovido de sensibilidade histórica que o título “Ma-
go” aplicado a Jesus (pace Morton Smith), é muito impróprio, bem como o
epíteto “camponês” no subtítulo do volume.
57
Devemos ainda observar que a esta citação de 1993 segue-se a obra de 2000, na qual a
ênfase de Vermes insiste na semelhança de atribuões que são feitas a Hanina, Honi e os
hassidim em geral. Claramente, portanto, é sob a ótica de “homem piedosoe o de “ma-
go” que Jesus deve ser compreendido. De fato, o autor chega a afirmar:
Não é preciso dizer, como curandeiro e exorcista Jesus está perfeitamente
em casa na companhia hassidiana. O seu modus operandi pode ter diferido
daquele de Hanina Jesus geralmente curava pelo toque, Hanina pela prece
milagrosamente eficaz mas os seus métodos de cura a distância coincidi-
53
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. p. 277.
54
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. p. 278. Itálicos nossos.
55
Nisto Vermes e Theissen se aproximam bastante. Cf. THEISSEN, Gerd. O Jesus Histórico: Um Manual. pp.
209 – 261. Especialmente pp. 305 – 340.
56
Apenas a título de esclarecimento, a obra O Jesus Histórico de Crossan é de 1991, e a obra de Smith, como
vimos, é de 1978. Crossan recebe em seu livro trabalhos anteriores de Vermes acerca do judaísmo carismáti-
co, bem como a terminologia mago” oriunda de Morton Smith. Crossan aplica a terminologia “mago” não
a Jesus, mas inclusive a Hanina ben Dosa e Honi. Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. pp.
173 – 202, 340 – 391.
57
VERMES, Geza. A Religião de Jesus, o Judeu. p. 13. Itálicos nossos.
27
am. Outra característica comum é o vínculo com Elias, modelo patente do
carismático milagreiro.
58
Os todos diferiam, mas não nenhuma palavra dita sobre uma possível associação
mágica efetiva.
Além de ajudar a perceber Jesus como um homem de carne e osso firme-
mente assentado no mundo judeu de sua era, a comparação entre ele e os an-
tigos Hassidim permite uma percepção do processo da sua ascensão na esca-
la teológica. Restrinjo a lista de exemplo aos três mais significativos. [...][1ª
semelhança: filiação divina] Se o hasside dirige suas preces a seu Pai no céu,
é normal esperar que Deus refira-se reciprocamente a ele como o seu filho.
[...] [2ª semelhança: conseqüências cósmicas] [...] estamos diante do teste-
munho de uma voz celestial, semelhante àquela ouvida no batismo e a Trans-
figuração de Jesus, ouvida não apenas uma vez, mas todos os dias: “O mun-
do todo é sustentado graças a Hanina, meu filho, mas Hanina, meu filho, fica
satisfeito com um kab de alfarroba de um sabá até o seguinte” [3ª semelhan-
ça: propósito da criação] o mais alto tributo a Hanina, quase comparável à
associação joanina de Jesus com o evento da criação, mas sem a menor iden-
tificação de deificação: ele é declarado propósito e meta da criação do mun-
do que virá.
59
Com relação a metodologia, Vermes é em geral desdenhoso. Quando comenta suas di-
retrizes pré-estabelecidas, afirma que “não seria apropriado atribuir a estas diretrizes o
grandiloqüente tulo de metodologia, tão em moda.
60
Afirma preferir começar “com a
fixação dos limites externos de um problema antes de tentar preencher, fragmento por frag-
mento, após muita tentativa e erro, as áreas vazias no interior destes limites”.
61
Manifesta
certo desprezo pela metodologia “cerceadora” da liberdade criativa.
62
Ainda alega que,
mesmo em meio aos pesquisadores que ele denomina de “pan-qumranistase a preferência
quase universal destes pelos Manuscritos do Mar Morto,
63
ainda assim é posvel recorrer a
material rabínico fixado posteriormente aos evangelhos para lançar luz nesta literatura cris-
tã. Isso se deve ao fato das tradições rabínicas serem mais antigas que sua fixão por escri-
58
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 297. Itálicos nossos
59
VERMES, Geza. As Várias Faces de Jesus. pp. 298 – 299. Colchetes explicativos nossos.
60
VERMES, Geza. A Religião de Jesus, o Judeu. p. 14. Itálicos constam na obra consultada.
61
VERMES, Geza. A Religião de Jesus, o Judeu. p. 14.
62
Pelo que Meier, com certa razão, criticaVermes. Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Histori-
cal Jesus. Vol. 2. pp. 6, 12. É importante notar que, no original em inglês de Vermes citado por Meier, a pa-
lavra traduzida por “preencheré “muddling through”, que pode ser associada à idéia de confusão. Segundo
Meier, é justamente a discussão da metodologia e o estabelecimento de critérios de autenticidade (como o
próprio Meier faz no volume 1 de sua obra) que permitem que a “busca” tenha legitimidade.
63
Um tanto irônico, haja vista que Vermes publicou várias versões dos Manuscritos do Mar Morto em inglês. Cf.
VERMES, Geza. The Dead Sea Scrolls in English.
28
to na Mishná, Tosefta, Talmude, etc.
64
Resume bem sua posição geral com relação às fontes
a seguinte afirmação:
Se, além disso, o Novo Testamento, particularmente o Evangelhos Sinóticos
e a literatura rabínica deixem de ser considerados como entidades auto-
suficientes e autônomas e passem a ser olhados como produtos de uma cria-
tividade judaica literária e religiosa em contínua evolução, então a mensa-
gem de Jesus e suas reverberações em solo da Palestina podem ser percebi-
das dinamicamente como um estágio, no primeiro século A.D., de um longo
processo de desenvolvimento em que a Bíblia, Apócrifos, Pseudo-epígrafos,
Pergaminhos do Mar Morto, Filo, Novo Testamento, Josefo, Mishná, Tosef-
ta, Targum, Midrash, Talmude, liturgia e misticismo judaico inicial se com-
pletam, corrigem, esclarecem e explicam mutuamente.
65
Jesus atuando junto aos caristicos galileus delineados no corpus judaico posterior,
entre hassidim, Hanina ben Dosa e Honi ha-Meaggel, contra o plano de fundo do judsmo
popular carismático. Não um Jesus mago, mas sim uma figura nos moldes de Elias, capaz de
controlar o clima e trazer chuvas. Tal é a reconstrução de Geza Vermes.
4. Jesus entre Bandidos, Profetas e Messias. Richard Hors-
ley e os movimentos populares galilaicos.
A obra de Horsley é fortemente marcada pela dinâmica do imperialismo romano.
66
O
autor se preocupa em delimitar como o domínio imperial chegou através da conquista da
Palestina por Pompeu ao espaço de vivência galilaica:
quando uma das duas facções dos asmoneus ofereceu resistência, porém, as
tropas romanas cercaram Jerusalém e seu templo-fortaleza. Depois da toma-
da da cidade, Pompeu em pessoa invadiu o santo dos santos do templo, local
onde ninguém além do sumo-sacerdote podia entrar.
67
A Galiia, neste processo, ficava no caminho da conquista.
68
Por sua vez, a conquista
da Palestina significava que os romanos haviam dominado enfim um dos “últimos cantos do
mundo”.
69
A dinâmica colonialista se dá inicialmente através de Herodes, o Grande. Por sua
posão de rei-vassalo do estado romano, segue as políticas destes. Horsley define a situação
na Palestina do século I nos seguintes termos:
64
VERMES, Geza. A Religião de Jesus, o Judeu. pp. 14 - 15
65
VERMES, Geza. A Religião de Jesus, o Judeu. p. 16.
66
O subtítulo de uma de suas obras é interessante: “O Reino de Deus e a Nova Desordem Mundial”. Cf. HORS-
LEY, Richard A. Jesus e o Império. Também publicou um livro do qual foi o organizador com título e temá-
tica semelhante: HORSLEY, Richard A. Paulo e o Império.
67
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. pp. 25 – 26.
68
HORSLEY, Richard A. Arqueologia, História e Sociedade na Galiléia. p. 34.
69
Assim se expressa, ironicamente, HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. p. 25.
29
Porque a sociedade judaica palestinense foi uma parte constituinte de impé-
rios sucessivos através do período do segundo templo, no entanto, estava en-
volvida em algo similar ao que em tempos modernos foi chamado de uma
“situação colonial”. A estrutura particular desta situação “colonial” ou “im-
perial” influencia a orientação e ação tanto de “colonizador” quanto do “co-
lonizado” e particularmente as relações entre estes. É importante reconhecer
que relações entre o império dominante e o povo sujeito são cheias de tensão
e conflito e não podem ser compreendidas simplesmente em termos de “con-
tato de culturas” ou “aculturação”.
70
Mais adiante, afirma que
O controle de uma sociedade sujeita foi freqüentemente exercido através de
uma classe governante local ou aristocracia dominante existentes. O regi-
me imperial comprometia membros de tais classes dando-lhes uma parcela
econômica importante no sistema imperial de dominação. Freqüentemente
tais sistemas de governo nominalmente ‘indiretos’ “envolviam tanto controle
sobre e manipulação das autoridades ‘tradicionais’ [...] como qualquer sis-
tema de governo direto’”. O governo indireto tinha outra vantagem. Forne-
cia uma ponte de legitimação que permitia a um império dividir e governar.
O ressentimento popular era desviado para os oficiais locais ou aristocracia,
enquanto os governantes imperiais permaneciam mais remotos, menos dire-
tamente evidentes e envolvidos. Quer o sistema de governo agisse através de
oficiais imperiais, quer através da aristocracia local, o efeito líquido sobre a
sociedade sujeita era a eliminação da participação política do povo. Tudo
dependia de controle poderoso pela elite. Neste e em outros respeitos, a po-
sição e função da aristocracia sacerdotal judaíta ou dos “reis”-clientes Hero-
dianos era típica de uma situação colonial.
71
Além disso, somos informados que os impostos, para Roma, eram fundamentais. De
fato, o não-pagamento destes era equivalente a rebelo.
72
Mas a potica romana ainda adi-
cionou mais uma camada de tributação às duas já existentes: a corte e projetos próprios de
construção de Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande”,
73
seu sucessor no governo da
Galiléia. Era a primeira vez na hisria que a administração e governos galilaicos ficavam
70
HORSLEY, Richard A. Jesus and the Spiral of Violence. p. 4. Tradução própria.
71
HORSLEY, Richard A. Jesus and the Spiral of Violence. p. 9. Tradução própria.
72
HORSLEY, Richard A. Jesus and the Spiral of Violence. P. 7.
73
Com a morte de Herodes, “o Grande”, em 4 a.E.C., o seu reino ficou assim dividido: Herodes Arquelau tor-
nou-se etnarca da Iduméia, Judéia e Samaria; Filipe, tetraca da decápole; e, finalmente, Herodes Antipas tor-
nou-se tetrarca da Galileia e da Pereia. Cf. OTZEN, Benedikt. O Judaísmo na Antigüidade. P. 55. Além dis-
so, após a “queda em desgraça” de Herodes Arquelau, a região que este governava passou a ser administrada
por um procurador romano. Cf. OTZEN, Benedikt. O Judaísmo na Antigüidade. Pp. 55 56. Cf. também
CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Excavating Jesus. Nesta obra, os autores oferecem um belo
panorama dos projetos “faraônicos” de construções de Herodes, o Grande incluindo uma cidade dedicada
ao imperador, chamada de Cesaréia Marítima. Neste mesmo caminho, também analisam como o filho de He-
rodes, Herodes Antipas, tenta seguir no caminho de seu pai e receber também o título de “rei” e portanto
constrói uma nova capital para a Galiléia, Tiberíades, cujo nome também prestava homenagem ao imperador
romano da época.
30
na própria região.
74
De fato, quando Antipas assume o governo, é preciso uma nova capital;
decide-se, então, por reformar foris. Não é qualquer reforma: deveria ser o “ornamento da
Galiléia”. Cerca de vinte anos depois, constrói a cidade de Tiberíades.
75
Assim principia a
romanização da Galiléia. E assim também é somada a terceira camada de tributação às duas
existentes.
76
A preso tributária sempre crescente gerava uma verdadeira espiral de endividamen-
to:
77
Sob tais pressões econômicas, com muito pouco produzido para atender às
demandas tanto da subsistência quanto do excedente, os camponeses eram
forçados a tomar empréstimos. Empréstimos continuados aumentariam o -
bito de uma família significativamente, com grande risco de perda completa
da terra.
78
Não parece ser acaso que, justamente neste período da história palestina, acontece um
número sem precedentes de revoltas
79
e movimentos populares. Horsley fala de uma verda-
deira “espiral da violência”. Utilizando um modelo tomado de empréstimo de Dom Hélder
Câmara,
80
modificado com a adição de mais um estágio na espiral, Horsley nos informa dos
quatro esgios desta assim-chamada “espiral da violência”: 1º., injustiça ou violência estru-
tural; 2º., protesto e resistência (não violenta, na maioria dos casos); 3º., repressão o poder
instituído reprime estes “protestos e manifestações”; e ., revolta.
81
A Galiléia do século I parece ter enfrentado um surto de banditismo social sem prece-
dentes. Somos informados de que “julgando pelos relatos de Josefo, e outro relatos, bandi-
dos eram um fator importante na sociedade judaica”.
82
Utilizando o modelo de banditismo
social tomado de Eric Hobsbawm, Horsley assim esclarece a relação entre contexto e a e-
cloo do banditismo:
O banditismo social eclode nas sociedades tradicionais agrárias nas quais os
camponeses são explorados por governantes e proprietários de terras, parti-
74
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. P. 39.
75
CROSSAN, John Dominic. “Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos Sobre o Jesus Histórico”. In.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: uma Ou-
tra História. pp. 178 – 179.
76
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. p. 38.
77
Esta expressão aparece em HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. p. 60.
78
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. p. 58. Tradução própria.
79
Uma dessas revoltas aconteceu após a morte de Herodes, o Grande, e precisou da intervenção das legiões
romanas vindas da Síria sob o comando de Varo uma das “intervenções” romanas acima citadas. Nessa o-
casião Séforis é queimada.
80
Fato que foi publicamente reconhecido na palestra proferida pelo Prof. Dr. Richard Horsley no II encontro da
ABIB, cujo título era “Jesus, as tradições messiânicas de Israel e o submundo da Galileia”.
81
HORSLEY, Richard A. Jesus and the Spiral of Violence. pp. 22 – 26.
82
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. p. 48. Tradução própria.
31
cularmente em situações nas quais muitos camponeses estão economicamen-
te vulneráveis e os governos são administrativamente ineficientes. Tal bandi-
tismo pode aumentar em tempos de crise econômica, causada por fome ou
impostos altos, por exemplo, bem como em tempos de desintegração social,
que resultam talvez da imposição de um novo sistema político ou sócio-
econômico.
83
Também neste contexto agem os “messias populares”. Tal messianismo, segundo
Horsley, se encontra radicado nas expectativas populares de um rei vindo do povo. É sobre
este pano de fundo que encontramos três Messias atuando no ano 4 a.E.C. o ano da morte
de Herodes, o Grande. Seus nomes são Judas, filho de Ezequias, Simão, e, por último, A-
tronges.
84
o parece ser acaso que Herodes tenha criado para si uma ideologia de realeza:
“Herodes, na tentativa de obscurecer sua ilegitimidade, criou sua própria ideologia real”.
85
O proceder destes “messias populares” é peculiar:
A principal meta destes movimentos era derrubar a dominação romana e he-
rodiana e restaurar os ideais tradicionais de uma sociedade livre e igualitária.
Assim, como Josefo parece indicar, eles invadiram os palácios reais em -
foris e Jericó não simplesmente por serem símbolos do odiado governo he-
rodiano ou para obterem armas, mas para recuperar propriedades que foram
confiscadas por oficiais herodianos e guardadas nos palácios. Além de ataca-
rem tanto as forças romanas quanto da realeza, eles tamm atacaram e des-
truíram as mansões dos proprietários juntamente com as da realeza.
86
As proporções de tais distúrbios devem ser calculadas pela força empregada para re-
primi-los repressão esta que consiste o terceiro estágio da espiral da vioncia, lançada
contra os protestos e revolta. Como a espiral havia escalado para o quarto nível, tal re-
pressão deve ter sido monstruosa. As medidas adotadas parecem indicar exatamente isto:
Além das legiões que já estavam na Judéia, ele [Varo, procurador romano da
Síria] reuniu as duas legiões remanescentes na província (cerca de 6.000
homens cada) e quatro regimentos de cavalaria (500 homens cada), bem co-
mo as tropas auxiliares fornecidas pelas cidades-estado e reis clientes na re-
gião. Varo mandou queimar Séforis (onde o movimento de Judas esteve ati-
vo) e reduziu seus habitantes à escravidão.
87
Somos, ainda, informados de que houve mais de duas mil crucificações no desenlace
desta revolta.
88
Tais movimentos messiânicos, no entanto, não se resumem ao ano 4 a.E.C.
83
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. Pp. 48 – 49. Tradução própria.
84
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. Pp. 260 – 261.
85
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 107. Tradução própria.
86
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 116. Tradução própria.
87
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 116. Tradução própria.
88
CORNELLI, Gabriele. “Jesus era Judeu? ou A Galiléia Esquecida”. In. CHEVITARESE, André Leonardo;
CORNELLI, Gabriele. Judaísmo, Cristianismo, Helenismo. P. 39.
32
Vamos encontrá-las em ebulição novamente na revolta de 66 E.C. e, posteriormente, na re-
volta de Bar Kókeba em 132 E.C.
Horsley faz uma distinção entre dois tipos de profeta: o “profeta oracular” e o “profeta
de ação”. A principal característica do primeiro era o proferir o anúncio de destruição ou
salvação iminente da parte de Deus. A característica marcante do segundo tipo era inspirar e
liderar um movimento popular a uma participação vigorosa em uma antecipação de uma
ação redentora de Deus.
89
No entanto,
As narrativas bíblicas sobre Elias e seu sucessor, Eliseu, indicam que os pro-
fetas tanto como mensageiros como quanto líderes de movimentos adentra-
ram bastante tempo durante o período monárquico em Israel, o reino do nor-
te, se não também no reino de Judá.
90
A ão destes últimos consistia em fortes críticas à monarquia de Israel de tal forma
que despertaram repressão na forma de perseguão por parte dos agentes da coroa. Em con-
junção a esta crítica se forma um movimento messiânico que leva à unção de Jeú como rei
de Israel.
91
Com relação a Elias,
... existem poucas evidências que as expectativas de um profeta escatológico
fossem muito proeminentes na sociedade judaica. Existem evidências apenas
de algum foco no Elias que retorna, talvez porque ele tenha sido trasladado
ao céu, e portanto poderia ser esperado para endireitar as coisas. [...] No en-
tanto, a expectativa do retorno de Elias não deve ter ganhado proeminência
nos círculos escribais. Na literatura apocalíptica datando do período da re-
volta macabéia, bem como na história da corte asmonéia, Elias é lembrado
simplesmente pelo seu grande zelo pela lei (juntamente com outros heróis) e
por sua trasladação aos céus sem nenhuma menção ao seu papel futuro na
redenção e restauração.
92
O universo da Apocalíptica, que se desenvolve no período tardio do segundo templo,
especialmente na dspora, se apropria da figura de Elias e de outras personagens blicas
Enoque, dos patriarcas, algum profeta, etc. de maneira criativa. Mais do que uma “nova”
tradição, uma “invenção”, a apocalíptica surge da apropriação de temas distintos e sua res-
significação em um novo contexto.
93
Paralelamente a isso, surge uma expressão religiosa
diferenciada, com suas ênfases particulares. Por isso não podemos esquecer que
89
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 135.
90
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 139. Tradução própria.
91
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 141.
92
HORSLEY, Richard A. Bandits, Prophets and Messiahs. P. 149. Tradução própria.
93
Poderíamos falar em termos de uma apropriação “seletiva” e “distorcida” de elementos da apocalíptica por
33
... os apocalipses não se referem apenas à história, à sua periodização, à crí-
tica de suas potências políticas dominantes, mas também a um mundo de es-
piritualidade e de contemplação de Deus e das estruturas de poder que o ser-
vem, ordens e seres angelicais. É dessa fonte inesgotável de poder do mundo
das estruturas celestiais e angélicas que os apocalípticos buscam energia para
desafiar os determinismos históricos e criar visões de um futuro de salva-
ção.
94
Tal forma de mística estava presente mesmo na Palestina do século I.
95
Horsley afirma
que Por várias fontes, temos motivos para acreditar que os galileus cultivavam lembranças
de heróis israelitas como Mois e Elias”.
96
Horsley, porém, pouco tem a dizer sobre os milagres de Jesus. À luz desta última a-
firmação deste autor, é de se estranhar: como imaginar memórias vivas de Elias e Moisés
sem levarmos em conta suas narrativas de milagres? Além disso, o conceito fortemente dua-
lista de “situação colonialou imperialismo” que Horsley adota é bastante questionável à
luz, por exemplo, da recente e brilhante análise das interações entre judeus e romanos em-
preendida por Martin Goodman em suas obras mais recentes.
97
Uma crítica ponderada sobre a obra de Horsley e o uso indistinto que faz do conceito
de violência foi efetuada por Bruce Malina:
Por exemplo, Richard Horsley (1987) escreveu um interessante volume so-
bre Jesus e a espiral da violência, junto com outros ensaios sobre o tópico.
Sua tentativa de descrever e/ou definir o conceito de violência permanece
obscura e desfocada em seus resultados. É difícil de se entender sobre o que
ele está falando, já que aplica o termo “violência” sempre que alguma pessoa
age em relação a outra; na visão de Horsley, tanto puxar uma criança de um
lugar de risco quanto lançar uma criança na frente de um carro seria violên-
cia. Com essas noções adesivas como a “violência espiritual” e essas catego-
rias imprecisas como a “violência psicológica”, dificilmente alguém se senti-
parte de Jesus de Nazaré e de seu movimento. Assim NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Naza-
ré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no
Século I”. In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Na-
zaré: Uma Outra História. pp. 293 – 300
94
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência Religiosa e Crítica Social no Cristianismo Primitivo. P.
29.
95
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. Experiência Religiosa e Crítica Social no Cristianismo Primitivo. P.
30.
96
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império. Pp. 68 – 69.
97
Por exemplo, é notável o uso de categorias como “identidades fluidas” por parte do referido autor. De fato, a
primeira parte da obra Rome & Jerusalem busca analisar por um lado como se deu a dominação imperial ro-
mana sobre a Palestina mas, por outro lado, analisar como dentro deste contexto identidades foram forjadas e
reforjadas. Cf. GOODMAN, Martin. Rome & Jerusalem: The Clash of Ancient Civilizations; GOODMAN,
Martin. “Identidade a Autoridade no Judaísmo Antigo”. In. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; FUNARI,
Pedro Paulo de Abreu; COLLINS, John Joseph (orgs.).Identidades Fluídas no Judaísmo Antigo e no Cristia-
nismo. pp. 41 – 53. No prelo.
34
ria mais esclarecido agora do que no início do livro. Como regra, força físi-
ca, ou simplesmente força, parece ser o que Horsley entende por violência.
98
Finalmente, é preciso superar a dicotomia simplista entre “pequena tradição(ligada
ao estrato popular e essencialmente analfabeto) e a grande tradição(ligada às elites e gru-
pos letrados). Não é possível falar mais em entidades culturais radicalmente distintas; é,
antes, correto contarmos com a interpenetração destes estratos, bem como com empréstimos
tuos e distorções por parte destes grupos.
99
5. Jesus, mago e comensal. John Dominic Crossan e o bi-
mio “magia” e “refeição”.
Posterior a estes três e muito mais célebre é John Dominic Crossan. Sua obra mais
importante ainda é O Jesus Histórico: a Vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo. Nes-
te livro, o autor esboça sua metodologia de trabalho que envolve a interação entre antropo-
logia transcultural, história greco-romana e a exegese bíblica. Posteriormente, dedicará mais
espaço as questões metodogicas: sua obra O Nascimento do Cristianismo dedica um espa-
ço maior ao assunto. Neste livro, os treze primeiros capítulos são dedicados direta ou indire-
tamente ao assunto.
100
Sua obra em parceria com Jonathan L. Reed, Excavating Jesus: Be-
neath the Stones, Behind the Texts (traduzido como A Procura de Jesus) também tece mais
considerações sobre a relação íntima entre arqueologia e exegese bíblica na pesquisa con-
temporânea do Jesus Histórico.
101
Mais recentemente, foi publicado em português um artigo
intitulado “Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos Sobre o Jesus Histórico”, no qual
apresenta um resumo de sua metodologia que agora integra a arqueologia, nos moldes de
Excavating Jesus.
102
98
MALINA, Bruce. O Evangelho Social de Jesus: o Reino de Deus em Perspectiva Mediterrânea. p. 45.
99
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos
na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século I”. In. CHEVITARESE, André Leonardo; COR-
NELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história. pp. 294. O autor obser-
va corretamente que Horsley hoje admite alguma relação entre a cultura das elites e a dos camponeses.
100
As partes IV e V da referida obra tratam especificamente do assunto. CROSSAN, John Dominic. The Birth of
Christianity: discovering what happened in the years immediately after the execution of Jesus. Pp. 137 – 235.
101
O prólogo da obra, a introdução tratam destas questões diretamente. O epílogo faz um “fechamento” das
questões levantadas tanto no prólogo quanto na introdução. CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L.
Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts. Pp. xv – xix, 1 – 14, 271 – 276.
102
CROSSAN, John Dominic. “Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos Sobre o Jesus Histórico”. In.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré:
Uma outra história. Pp. 165 – 192.
35
É fácil perceber a forte ênfase que Crossan à estratigrafia dos textos disponíveis
acerca de Jesus: em Excavating Jesus, toma-se a exegese como análoga ao trabalho arqueo-
gico. Enquanto o arqueólogo escava e data os estratos de um tio arqueológico, assim
tamm procede o exegeta e historiador ao classificar suas fontes literárias em “estratos”.
103
Além disso, O Jesus Histórico tem apêndice
104
com cronologia dos textos usados como fon-
tes e organizados em forma de complexos” isto é, agrupando textos simultaneamente de
acordo com o método da ltipla atestação e também da antiguidade na cadeia da tradição.
Mais uma vez, procura-se a “camada mais antiga da tradição de Jesus”.
Crossan já produzia este tipo de classificação antes de publicar O Jesus Histórico:
uma de suas obras anteriores lida diretamente com os Sayings Parallels,
105
isto é, paralelos
nos ditos de Jesus. Em outro livro,
106
Crossan debate as fontes para a busca do Jesus Histó-
rico, dando ênfase a material extracanônico como o Evangelho de Tomé, o Evangelho do
Fragmento Egerton, O Evangelho Secreto de Marcos e finalmente o suposto Evangelho da
Cruz, derivado do Evangelho de Pedro. Os três primeiros, e o Evangelho da Cruz como
fonte para o Evangelho de Pedro o considerados por Crossan como sendo tanto anteriores
aos evangelhos siticos quanto independente destes.
107
Crossan também adota
108
a estrati-
ficação tripla de Q de Kloppenborg.
O que também nos interessa é que Crossan recebe em sua obra tanto as contribuições
de Morton Smith quanto de Geza Vermes e Richard Horsley. O catulo oito de O Jesus
Hisrico, intitulado “Mago e Profeta” já é um clássico.
109
Nele, Crossan percebe assim
como Smith a magia como uma forma não-sancionada de prática religiosa. Recebe tam-
bém as figuras do judaísmo carismático: Honi e Hanina Ben Dosa. Submete-os, porém, dife-
rentemente de Vermes, a uma leitura estratigráfica das tradões a seu respeito,
110
que de-
monstra que os “magosforam, na verdade, rabinizados. Em outras palavras, aquele proces-
so que Smith detectara na tradição acerca de Jesus de Nazaré tamm era detectável na re-
103
CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts. Pp.
12 – 14.
104
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a Vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo. Pp. 465
486.
105
CROSSAN, John Dominic. Sayings Parellels.
106
CROSSAN, John Dominic. Four Other Gospels: Shadows on the Contours of Canon.
107
Algo que ele reafirma em CROSSAN, John Dominic. The Birth of Christianity. pp. 114 – 120.
108
Especialmente em The Birth of Christianity.
109
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a Vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo. Pp. 173
202.
110
É importante perceber que, neste caso, a estratigrafia não se prenda à cronologia, e sim aos estágios de rabi-
nização. Cf. CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a Vida de um Camponês Judeu do Mediterrâneo.
P. 185.
36
cepção rabínica acerca das tradições sobre Honi e Hanina. Crossan é taxativo: ... estão em
jogo duas grandes motivações ranicas. Primeiro, a magia deve se transformar em oração e,
depois, o mago tem que se tornar um rabino”.
111
Crossan assim define um mago:
A palavra mago não é empregada aqui como um termo pejorativo: ela serve
apenas para descrever alguém que pode fazer com que o poder divino se ma-
nifeste diretamente através do milagre pessoal, e o indiretamente através
do ritual comunitário.
112
O capítulo treze de O Jesus Histórico é, segundo o próprio autor, o mais importante da
obra. É intitulado Magia e Refeição, no qual Crossan retoma a discussão sobre magia apli-
cando-a agora ao Jesus Histórico.
113
Na trilha de Morton Smith e Hobsbawm (e portanto de
Richard Horsley), não usa meios-termos: chama a magia de “banditismo religioso”.
114
Faz
isso, aliás, no contexto de uma discussão acerca das “diferenças” entre magia e religião, no
qual o vetor de legitimidade de uma prática é que determina se ela é rotulada como gica
ou simplesmente religiosa. Sua conclusão é, uma vez mais, taxativa: “Em suma,o há uma
diferença substancial entre a religião e a magia, entre o milagre religioso e o efeito mági-
co”.
115
Além disso,
...é preciso desmascarar a distinção prescritiva segundo a qual nós pratica-
mos religião e eles praticam magia, revelando a sua verdadeira natureza: a de
uma validação política daquilo que é aprovado e oficial em oposição ao que
é extra-oficial e censurado.
116
As comparações de Crossan acerca da magia nos remetem, com as devidas modifica-
ções, a Bandidos, Profetas e Messias de Horsley. Crossan resume os efeitos do bandido na
sociedade agrária nas seguintes palavras: “O banditismo rural mostra ao império agrário o
seu próprio rosto descoberto,e a sua alma a nu”.
117
De fato, Crossan chega a afirmar que
... os bandidos questionavam implicitamente a legitimidade do poder políti-
co, os magos questionavam implicitamente a legitimidade do poder espiritu-
al. Se o poder de um mago pode trazer a chuva, de que serviria o poder dos
sacerdotes do Templo ou da academia rabínica?
118
111
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 184.
112
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 174.
113
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. Pp. 340 – 391.
114
Este é o título de uma das seções do referido capítulo.
115
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 347.
116
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 347.
117
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 209.
118
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. P. 193.
37
Assim, a posição de Crossan é uma interessante relação entre o que Vermes, Smith e
Horsley afirmam. O que a reforça, porém, é o maior cuidado que dedica aos levantamentos
cio-antropológicos que corroboram suas conclusões. Jesus é percebido contra o pano de
fundo da religiosidade gica tanto greco-romana (de modo amplo) quanto judaica (mais
especificamente), mas dentro de uma compreensão sócio-antropológica que enfatiza o vetor
de legitimidade na rotulação de uma prática como gica ou religiosa. Os milagres o vis-
tos como protestos de baixo para cima (“banditismo religioso”), dentro de um projeto que
articularia mesa e magia.
119
Um Jesus mago e comensal.
6. John Meier. “Um Judeu Marginal e com poucos contatos.
John P. Meier tem produzido bastante nos últimos anos. Sua obra sobre o Jesus Histó-
rico, Um Judeu Marginal, conta três volumes - um quarto foi recentemente publicado. Os
volumes são bastante extensos, especialmente o segundo; razão pela qual sua editora em
português resolveu dividir o segundo volume em três livros e o terceiro volume em dois
de forma que os três livros lançados, em português são seis.
120
Parte do motivo desta ex-
teno “exagerada” das obras é uma marca distintiva de Meier: sua pesquisa é, de longe, a
mais bem documentada. As notas de final de capítulo se constituem ferramentas importantes
para a pesquisa, motivo que já confere valor de “obra de referência” a seus livros.
A busca histórica de Meier é entendida através da analogia proposta pelo autor:
Para explicar aos meu colegas de academia o que me proponho a fazer neste
livro, utilizo freqüentemente a fantasia do “conclave sem papa”. Suponha-
mos que um católico, um protestante, um judeu e um agnóstico – todos estes
historiadores honestos, conhecedores dos movimentos religiosos do sécu-
lo fossem trancafiados nas entranhas da biblioteca da Harvard Divinity S-
chool, postos em uma dieta espartana e a eles não fosse permitido saírme até
que tivessem elaborado um documento de consenso sobre quem Jesus de
Nazaré foi e o que pretendia em seu próprio tempo e lugar. Seria um requisi-
to essencial deste documento que fosse baseado apenas em fontes e argu-
mentos históricos.
121
Metodologicamente, Meier elabora suas considerações ao longo das primeiras duzen-
tas páginas de seu corpus, nas quais discute as fontes para o Jesus Histórico e cririos para
119
O autor retoma estas ideias em CROSSAN, John Dominic. The Birth of Christianity: discovering what hap-
pened in the years immediately after the execution of Jesus. Cf. também a retomada desta tese com respeito
ao Jesus Histórico em CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Excavating Jesus: Beneath the Stones,
Behind the Texts.
120
Ainda não podemos saber como será a publicação do quarto volume em português.
121
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1. p. 1.
38
decidir “o que vem de Jesus”.
122
Enumera cinco critérios primários: o critério do constran-
gimento; o critério da descontinuidade; o critério da atestação ltipla; o critério da coerên-
cia; o critério da rejeição e execução.
123
Enumera a seguir mais cinco critérios secundários
ou “duvidosos”: o critério de traços de aramaico; o cririo do ambiente palestinense; o cri-
tério da vivacidade da narrativa; o critério das tendências no desenvolvimento da tradição
sinótica; o critério da presunção histórica.
124
A maior parte do segundo volume de sua obra é dedicada aos milagres de Jesus.
125
Apenas a título de comparação, esta parte do livro é do tamanho tanto de O Jesus Hisrico
de Crossan quanto do O Jesus Histórico: Um Manual de Theissen. O motivo disto é que
Meier trabalha com todas as hisrias de milagres, ao contrário de Crossan que analisa
histórias daquilo que considera o “primeiro estratoda tradição sobre Jesus, e de Theissen
que analisa as narrativas em contextos apropriados às temáticas e não o faz de forma e-
xaustiva. A análise de Meier é dividida em quatro grandes blocos temáticos, que delimitam
os “tipos” de milagres a serem considerados.
126
Após sua avaliação da tradição acerca de Apolônio de Tiana,
127
chega à seguinte con-
cluo:
As perguntas sérias que se levantam sobre as fontes e sua confiabilidade his-
tórica da Vida de Apolônio tornam difícil falar com qualquer tipo de detalhe
do Apolônio do século I como uma figura paralela a Jesus de Nazaré. As his-
tórias de milagres na Vida são de fato úteis para comparações sincrônicas,
a-históricas de padrões literários encontrados nas histórias de milagres de di-
ferentes épocas e lugares; porém como bases para julgamentos históricos so-
bre figuras do século 1 são bastante duvidosas.
128
Podemos ler isto quase como uma conceso magnânima de Meier aos pesquisadores
que sustentam a validade da comparação entre Jesus de Nazaré e Apolônio de Tiana.
129
Por
hora, é preciso destacar que em hipótese alguma uma seleção de material para análise sin-
122
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1. pp. 1 – 201.
123
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1. pp. 168 – 177.
124
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 1. pp. 178 – 183.
125
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. pp. 507 – 1038.
126
Assim, temos: exorcismos, pp. 646 677; curas: 678 727; ressurreições de mortos: 773 873; e “os assim
chamados milagres da natureza”: 874 – 1038. Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical
Jesus. Vol. 2.
127
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. pp. 576 – 581.
128
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. pp. 580 – 581. Tradução própria.
129
Como Gabriele Cornelli faz em sua tese de doutorado. Cf. CORNELLI, Gabriele. Sábios, Filósofos, Profetas
ou Magos? Equivocidade na recepção das figuras de thêioi ándres na literatura helenística: a magia incômo-
da de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001.
39
crônica é a-histórica”. Segundo Gerd Theissen,
130
a própria seleção de material a ser consi-
derado para tal empreitada sincrônica” em termos cronológicos e espaciais é um julga-
mento de caráter hisrico. Além disso, a sincronia também pode conter a diacronia ambas
se relacionam na medida em que a sincronia é uma “fotografiade um estágio da diacronia
e a diacronia, por sua vez, pode ser vista como uma “sucessão de sincronias” reveladas pe-
las fontes documentais.
131
Embora teça suas críticas a Vermes, Meier é também muito cuidadoso em manter Ha-
nina ben Dosa e Honi dentro dos limites do que denomina “homens santos”.
132
Ele afirma
categoricamente:
Se tivéssemos acesso confiável aos Hanina e Honi “históricos”, a tipologia
sugerida por Vermes de fato seria valiosa. No entanto, o que ocorre com A-
polônio também ocorre com Honi e Hanina o diabo está nos detalhes das
fontes. Não obstante as tentativas de Vermes e de outros de peneirar as fon-
tes cuidadosamente, ao fim e ao cabo deve-se admitir que todas as fontes es-
critas são mais tardias que Jesus, e quase todas elas são de séculos posterio-
res a ele. Me arriscaria a afirmar que, além do fato de por volta da virada da
era havia dois judeus na palestina cujos nomes eram Honi e Hanina, ambos
os quais eram famosos por terem suas orações respondidas de maneiras ex-
traordinárias, nada certo pode ser dito.
133
O que foi dito acerca da comparação com Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré logo
acima tamm se aplica neste caso. No caso de Honi e Hanina deve-se acrescentar, ainda,
que a maior proximidade de contexto entre estes e Jesus apenas reforça a necessidade de
uma consideração cuidadosa do material do corpus rabínico sobre estas figuras. Mesmo que
pouco possa ser dito de “confiávelsobre estes indiduos, ainda assim permanece digno de
nota que estas duas pessoas atraíram para si narrativas de milagres atípicas dentro do corpus
rabínico. Além disso, o próprio Meier aceita que Honi e Hanina históricos” fossem con-
temporâneos de Jesus. Certamente a “sincronia” para análise das histórias de milagres pode-
ria se beneficiar, afinal, da presença (ainda que fugidia) de figuras como estas, que têm ora-
ções poderosas o obstante sequer morassem na Galiléia.
134
Pelo menos haveria algum
termo de comparação mais imediato para Jesus!
Além de “desarmar” estas figuras controvertidas, também intenta desarmar a opinião
de Crossan, que sustenta que não há diferença substancial entre magia e religião:
130
Autor o qual analisaremos adiante.
131
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 1 – 40.
132
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. pp. 581 – 588.
133
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. p. 581. Tradução própria.
134
Hipótese que Meier aventa em virtude da referência a Galileia ser tardia na tradição acerca de Honi e Hanina.
Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. p. 588.
40
em minha opinião, a afirmação de que não exista uma diferença fenomeno-
lógica real entre as narrativas dos milagres de Jesus nos Evangelhos e o que
nós comumente encontramos, por exemplo, nos papiros mágicos do período
romano é questionável.
135
Apela então ao seguinte raciocínio:
Mais propriamente, na medida em que se lêem estas duas coleções [os Evan-
gelhos e os Papiros Mágicos] a imagem que vêm à mente naturalmente é a-
quela de uma escala deslizante, um espectro ou continuum de características.
Em um extremo do espectro está o “tipo ideal” do milagre, e no outro extre-
mo o tipo ideal” de mágica. Na realidade, casos individuais podem se colo-
car em pontos diferentes ao longo do espectro entre estes dois tipos ideais.
136
Destacamos duas questões que se podem levantar. Primeiramente, Meier havia criti-
cado os cientistas sociais na página anterior por o conseguirem definir mágica; agora,
existe um “tipo literário ideal de magia”. Definido por quem, afinal? Segundo, perceba-se a
expressão que ele utiliza: “a imagem que vem à mente naturalmente”. Pergunta-se: esta i-
magem vem mesmo às nossas mentes “naturalmente”, de nossas entranhas, por assim dizer?
Ou seria melhor considerá-las como mais uma das representações culturais socialmente de-
terminadas e apreendidas que fazem com que automaticamente diferenciemos “evangelho”
de “papiro mágico”, preferindo o primeiro corpus ao segundo? É evidente que os Papiros
Mágicos Gregos não são, em absoluto, iguais aos evangelhos. Mas é justamente a compara-
ção de semelhanças e diferenças entre ambos que permitirá lançar luz sobre as duas fontes e
sua especificidade histórica.
Parece-nos, ao fim e ao cabo, que Meier não leva suficientemente a rio a possibili-
dade de que fontes extracanônicas possam ser utilizadas como fontes importantes para a
pesquisa.
137
Os problemas específicos de cada uma destas fontes, uma vez devidamente
considerados, certamente nos permitirão um olhar mais rico e criativo sobre esta figura e-
nigmática que é Jesus de Nazaré. Afinal de contas, podemos questionar juntamente com
Paulo Nogueira a validade de alguns critérios empregados por Meier para desqualificar as
fontes extracanônicas: o fato de serem tardias e possuírem muitas “lendas”. Afinal, quanto
ao cânon e sua normatividade para a pesquisa histórica neotestamenria,
135
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. p. 540. Tradução própria.
136
MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Historical Jesus. Vol. 2. P. 541. Tradução e colchetes pró-
prios.
137
Esta é a impressão que se tem ao ler-se a longa discussão sobre “fontes para a pesquisa do Jesus Histórico
empreendida por Meier ao longo de X capítulos do primeiro volume de sua obra. A ordem dos capítulos pa-
rece mais uma hierarquia rígida e inquestionável do valor relativo das fontes. Cf. MEIER, John P. A Margi-
nal Jew: Rethinking the Historical Jesus. pp. 41 – 55 (os evangelhos canônicos), 56 – 88 (Flávio Josefo), 89
111(outras fontes pagãs e judaicas), 112 – 166 (os agrapha e evangelhos apócrifos).
41
O fato de lhes ter sido atribuído caráter canônico não lhes priva de originali-
dade e de importância documental incomparável. Mas aqui [a obra à qual es-
te texto introduz] eles são considerados num conjunto, como uma grandeza
literária que os diferencia de outros escritos. Seriam eles os escritos produzi-
dos em nome da tradição apostólica, ainda no primeiro século? Este argu-
mento que ainda se impõe na pesquisa pressupõe ingenuamente uma linha de
transmissão desde os apóstolos, mesmo que exclua uma quantidade conside-
rável de textos que também se atribuem a mesma origem (ficcional, em am-
bos os casos). Para ajudar no processo de definição do canônico e de sua
primazia como documentação histórica o critério canônico é auxiliado pelo
mito do ano 100. É como se existisse uma tênue, mas decisiva, diferença en-
tre o que se produz no primeiro século da Era Comum e o que se produz de-
pois. Como se magicamente os textos passassem a perder seu núcleo históri-
co e a lendária popular das comunidades gentílicas invadisse as narrativas a
ponto de desfigurá-las. Estas questões são de importância decisiva para per-
guntar pela forma em que os documentos do cristianismo primitivo se rela-
cionam com a história enquanto contexto. Se segmentarmos esta produção li-
terária pelo critério canônico, privilegiando os textos considerados mais an-
tigos (a despeito de textos fundamentais como o Evangelho de Tomé ou a
Ascensão de Isaías poderem ser datados no primeiro século mesmo não sen-
do canônicos), desconsiderando continuidades das problemáticas e tensões
deste incipiente grupo religioso no Mediterrâneo, no segundo século adentro,
que tipo de relação esperamos criar com o seu contexto?
138
Nem mesmo a imagem fantasiosa do “conclave sem papa” escapou de críticas:
O que me incomoda são os lugares que Meier reserva, com uma ingênua na-
turalidade, para as quatro personagens designadas para saírem de com
uma fórmula de “consenso” universal sobre a figura do Jesus histórico: um
católico, um protestante, um judeu e um agnóstico. Cabe, de fato, frente a es-
ta imagem, uma pergunta: a partir de que visão histórica e religiosa Meier é
levado a reservar os quatro lugares? Isto é: o que qualificaria os quatro, e
somente eles, para responderem à pergunta: “Quem foi Jesus de Nazaré?” A
quem pertencem os “direitos autorais” da imagem histórica de Jesus? Qual
sua real representatividade para a elaboração de um documento como esse?
[o autor então propõe um “assembléia alternativa” composta por uma mãe de
santo do Jabaquara, um rezador de Itapira, um pa açu de Jaguaripe, uma
rezadora da CEB Antônio Conselheiro, um pastor da Igreja da Graça do a-
campamento Nova Canudos do MST, e Mano Brown dos Racionais MC´s,
todos estes doutorados em história antiga ou ciências da religião] Muito
bem, esta “assembléia alternativa”, interessada em desenhar uma imagem
histórica comum de Jesus de Nazaré, que se encontraria talvez não em Har-
vard, mas em São Bernardo do Campo, chegaria com toda a probabilidade a
conclusões diferentes da primeira. Pois é de pontos de vista, de hermenêuti-
cas, que estamos falando. O que quero dizer é que, se a busca do Jesus His-
tórico, em sua versão mais contemporânea, pauta-se por uma declarada in-
dependência com relação aos dogmas e às proposições da teologia cristã, is-
so não significa automaticamente sua independência em relação à visão de
mundo que a esta corresponde social e historicamente. A idéia de que a figu-
138
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “O Judaísmo Antigo e o Cristianismo Primitivo em Nova Perspecti-
va”. In. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; FUNARI, Pedro Paulo de Abreu; COLLINS, John Joseph
(orgs.).Identidades Fluídas no Judaísmo Antigo e no Cristianismo. p. 9. No prelo.
42
ra histórica de Jesus deveria sair de um conclave sem papa, a ser realizado
em Harvard e com as cadeiras acima designadas, é talvez a imagem mais
clara desta dependência dos estudos bíblicos de um ponto de vista elitista e
racionalista. E permitam-me ocidental”, com a carga de imperialismo
cultural que este termo foi assumindo historicamente.
139
Qual o tipo de relação que o Jesus de Meier parece criar com seu contexto? Aparen-
temente muito poucas, como um legítimo “judeu marginal”.
7. Gerd Theissen e o Jesus profeta-milagreiro
Gerd Theissen é um autor com contribuições importantes para nossa temática. Primei-
ramente, difundiu a idéia de “carismatismo itinerante” como um modelo para o cristianismo
primitivo.
140
Isto é importante, porque coloca os milagres e seus praticantes, os carismáticos
itinerantes, no arcabouço de uma teoria sociológica da origem do cristianismo. Além disso,
estas obras estão traduzidas em português há bastante tempo, motivo de sua difusão por
aqui.
Interessa-nos também a discussão do autor acerca das histórias de milagres propria-
mente ditas. em 1973 Theissen publica seu livro Urchristliche Wundergeschichten, tra-
duzido em 1983 para o inglês como The Miracle Stories of the Early Christian Tradition.
Pensamos ser esta uma obra interessante para quem quiser aprofundar-se no assunto dos
milagres, uma vez que discute extensivamente a forma literária história de milagre, abrindo
possibilidades interessantes ao se trabalhar com este tipo de texto. As três grandes partes da
obra tratam sucessivamente das histórias de milagres como formas estruturadas uma
perspectiva sincrônica, portanto –,
141
como narrativas reproduzidas isto é, a perspectiva
diacrônica, da tradição –,
142
e finalmente como ões simbólicas uma perspectiva funcio-
nalista.
143
Importante também é esta advertência de Theissen no final da obra:
... exegetas modernos ao invés disso dão a impressão de que o milagre é a
criança ilegítima da fé, cuja existência tentam, por vergonha, oferecer des-
culpas. O orgulho da Igreja Antiga com relação aos milagres tornou-se seu
oposto. Um ‘protestantismo cultural filológicoos acha primitivos demais; a
139
CORNELLI, Gabriele. “Introdução: Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. In.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Ou-
tra História. pp. 23 – 24.
140
THEISSEN, Gerd. Sociologia da Cristandade Primitiva. Cf. também THEISSEN, Gerd. Sociologia do Mo-
vimento de Jesus.
141
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. Pp. 43 – 121.
142
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. Pp. 125 – 228.
143
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. Pp. 231 – 302.
43
profundidade hermenêutica os suspende, os ‘explica’ e os enterra com louvo-
res.
144
Conclui dizendo que
O importante das histórias de milagres é a revelação do sagrado nos mila-
gres, em milagres de salvação tangíveis, materiais. O respeito pelos homens
e mulheres do cristianismo primitivo, que contavam-nas e se vinculavam a
elas, nos obriga a admitir isso e nem todas as perplexidades modernas sobre
estes textos justificam modificá-los.
145
Este respeito para com as histórias de milagres, bem como os resultados obtidos por
esta obra com relação à forma literária aparecem novamente no posterior O Jesus Histórico:
Um Manual. Também retorna a percepção sociológica apurada com relação aos primórdios
do cristianismo. Isso possibilita que o capítulo dez desta obra, intitulado “Jesus Como A-
quele que Cura: os milagres de Jesus”
146
logre ser uma discussão muito ponderada e interes-
sante sobre todos os autores que discutimos aaqui. Isso se , também, devido a ser o
mais recente dos textos aqui considerados: é uma obra de 1996, traduzida para o português
em 2002. Theissen acaba por ser um mediador entre as posições de Crossan e de Meier.
Trata ainda dos tipos ideais”, e traça dois perfis paralelos de operadores de milagres: os
“milagres mágicos” e osmilagres carismáticos”, não muito diferente do de Meier. Todavia,
ainda preserva o jogo social amguo de rotulação, uma vez que pode-se acusar taumatur-
gos carismáticos de magos e, inversamente, reconhecer-se em um mago um taumaturgo ca-
ristico um eco da ironia de Morton Smith sobre os “homens divinos” e o jogo de rotu-
lação social desenvolvido por Crossan.
147
Afirma Theissen: “Deste modo, Jesus foi, em par-
te, admirado como taumaturgo profético e, em parte, atacado como aliado do demônio”.
148
Ainda assim, Theissen não chama Jesus de mago. É enfático: “A autocompreensão de
Jesus era profética, não mágica”.
149
O distintivo nos milagres de Jesus, segundo Theissen,
Como taumaturgo carismático apocalíptico, Jesus ocupa uma posição singu-
lar na história das religiões. Ele une dois mundos conceituais que nunca ha-
viam sido unidos dessa maneira: a expectativa apocalíptica da salvação uni-
versal no futuro e a realização episódica da salvação no presente por meio de
milagres (G. Theissen, Wundergeschichten*, 274). Em nenhuma outra parte
encontramos um carismático taumaturgo cujos milagres deveriam ser o fim
144
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. Pp. 299.
145
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. P. 300. Tradução própria.
146
THESSEIN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. Pp. 305 – 340. Tradução própria.
147
Cf. o breve excurso sobre o tema, com tabela comparativa, em THESSEIN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus
Histórico: Um Manual. Pp. 331 332. Perceba-se que as duas notas de rodapé são, justamente, sobre a obra
de Crossan e Meier.
148
THESSEIN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. p. 332.
149
THESSEIN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. p. 330.
44
de um mundo velho e o começo do novo, o que põe um acento extraordiná-
rio sobre os milagres a-histórico relativizar sua significância para o Jesus
Histórico).
150
Assim, na obra de Gerd Theissen encontramos uma atenção bastante grande voltada às
narrativas de milagres e seus aspectos formais, bem como a percepção de que a atividade
curandeira e exorcista de Jesus é fundamental para a sua adequada compreensão.
8. Pesquisa brasileira recente e suas novas perspectivas.
Até aqui discutimos obras consagradas. Agora, voltaremos nossa atenção para algu-
mas prodões recentes que podem apontar caminhos interessantes. Vamos ci-las apenas,
apontando contribuições que nos ofereçam eixos de pesquisa que podem elucidar a temática
controversa da magia e do milagre.
O Prof. Dr. Gabriele Cornelli, hoje na UnB, desenvolveu seu mestrado (concluído em
1998) e seu doutorado (concldo em 2001) na UMESP. Na sua dissertação de mestrado,
constrói a figura de Jesus de Nazacomo um mago galileu.
151
Já em seu doutorado faz jus-
tamente aquilo que Meier abominaria: aproxima Jesus de Nazade Apolônio de Tiana.
152
Esta perspectiva de convergência de figuras que muitos gostariam de separar é, pensamos, a
contribuão fundamental de seu trabalho.
Também foi publicado em 2006 o livro intitulado Jesus de Naza: Uma Outra Histó-
ria, organizado por André Leonardo Chevitarese, Gabriele Cornelli e Monica Selvatici.
Questões metodogicas são abordadas em diversos textos, direta ou indiretamente.
153
Des-
tacamos aqui apenas duas questões que nos parecem mais pertinentes para nossas reflexões.
150
THESSEIN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. pp. 333 – 334.
151
Cf. CORNELLI, Gabriele. É um Demônio! O Jesus Histórico e a Religião Popular da Galiléia. Dissertação
de Mestrado. São Bernardo do Campo: UMESP, 1998.
152
CORNELLI, Gabriele. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção das figuras de thêioi
ándres na literatura helenística: a magia incômoda de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Douto-
rado. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001.
153
CORNELLI, Gabriele. “Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. pp. 17 25;
CROSSAN, John Dominic. “Texto e Contexto na Metodologia dos Estudos sobre o Jesus Histórico”. Pp. 165
192; SCHIAVO, Luigi. “A Fonte dos Ditos de Jesus e as Raízes da Cristologia”. Pp. 193 216; FUNARI,
Pedro Paulo A. “O Jesus Histórico e a Contribuição da Arqueologia”. Pp. 217 – 228; MEIER, John P. “O Je-
sus Histórico e a Lei Histórica: Alguns Problemas Dentro do Problema”. Pp. 229262; GARCIA, Paulo Ro-
berto. “Jesus, um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar Histórico Sobre Jesus e os Judaísmos de seu
Tempo”. Pp. 263 278; LEITE, Edgard. “Yeshu Ha Notzri e sua Viagem ao Egito: uma Parábola Talmúdi-
ca”. Pp. 279 292; NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Im-
passes Metodológicos na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século I”. Pp. 293 300. Todos
eles in. CHEVITARESE, AndLeonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de
Nazaré: Uma outra história.
45
Primeiramente, o texto de Gabriele Cornelli, que serve de introdão à coletânea de
artigos, discute de modo bastante apropriado as diferenças metodológicas entre Crossan e
Meier no que tange à elaboração de uma figura hisrica de Jesus de Nazaré. Cornelli é cla-
ramente favorável à metodologia de Crossan.
154
De fato, percebemos que um dos calcanha-
res de aquiles das reconstruções hisricas de Jesus é a falta de interdisciplinaridade. Neste
sentido a proposta de Crossan é mais adequada que a de Meier. Sintomático das abordagens
distintas é o fato de Meier não ter, efetivamente, um setor em sua obra no qual discuta estas
questões sócio-antropológicas, como o fazem Crossan e Theissen. Além disso, conm a-
tentarmos a uma advertência oferecida por Gabriele Cornelli:
Considero esta combinação dos dados da crítica literária com dados que vêm
dos estudos de antropologia e sociologia comparadas da religião uma das
grandes vantagens metodológicas da Terceira Busca, que, desta forma, abre-
se para a uma interlocução mais ampla e corajosa com o mundo dos estudos
clássicos em geral. Vantagem ainda maior quando consegue superar um tra-
tamento das fontes sinóticas para o estudo do Jesus histórico que constrói um
castelo teórico de índices, testemunhos, estágios de estratificação e classifi-
cações quantitativas de atestações que, se por um lado permite a elaboração
de um “esquema teórico-metodológico funcional”, arrisca, por outro lado,
perder o horizonte maior das categorias hermenêuticas da antropologia e da
sociologia comparadas que, como acenamos acima, podem “dar voz” ao da-
do histórico-filológico.
155
Este tratamento que Cornelli define como “castelo trico de índices, testemunhos
(etc.)” e “classificações quantitativas” ecoam palavras de Roger Chartier:
A história tal como se escreve hoje não é aquela, ou melhor, não é uni-
camente aquela com que Foucault queria articular o seu projecto de análise
dos discursos. No centro das revisões contemporâneas está a própria noção
de série, considerada fulcral na caracterização de uma história desembaraça-
da da referência hegeliana. Menos seduzida agora pelos registros de preços
ou pelos arquivos portuários, a história pôde interrogar-se sobre a validade
das delimitações e dos procedimentos que implica o tratamento serial do ma-
terial histórico. A crítica foi dupla. Por um lado, denunciou as ilusões ani-
madas pelo projecto de uma história serial (isto é, quantitativa, na tradição
historiográfica francesa) dos factos de mentalidade ou das formas de pensa-
mento. Um tal projecto, com efeito, só pode ser redutor e produzir objectiva-
ções, uma vez que supõe que os facto culturais e intelectuais se manifestam
de imediato em objectos passíveis de serem contados, ou devem ser captados
nas suas expressões mais repetitivas e menos individualizadas, ou seja, re-
conduzidos a um conjunto fechado de fórmulas de que há apenas que estudar
154
CORNELLI, Gabriele. “Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. In. CHEVITARE-
SE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra his-
tória. pp. 17 – 25.
155
CORNELLI, Gabriele. “Metodologia e Resultados Atuais da Busca pelo Jesus Histórico”. In. CHEVITARE-
SE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra his-
tória. pp. 21 – 22.
46
a freqüência desigual consoante os locais e os meios. É contra uma tal redu-
ção, que estabelece correlações demasiado simples entre níveis sociais e in-
dicadores culturais, que foi proposta a perspectiva de uma história cultural
diferente, centrada mais nas práticas do que nas distribuições, mais nas pro-
duções de significações do que nas repetições de objetos. A noção de série
não é necessariamente expulsa de uma tal história – por exemplo, no sentido
em que Foucault falava de “séries de discursos”, tendo cada uma os seus
princípios de regularidade e os seus sistemas de condicionamentos – mas en-
contra-se aí infalivelmente emancipada da definição imposta pela construção
das séries econômicas, demográficas ou sociais, necessariamente baseada no
tratamento estatístico de dados homogêneos e repetidos.
156
É quase forçoso vermos aqui um reflexo da busca pelo Jesus Histórico da qual viemos
falando. O importante é “estratificar e contar textos”, muitas vezes “mutilando” as fontes
efetivas que temos os documentos canônicos e extracanônicos na busca da narrativa
mais primitiva. Um exemplo claro desta tendência é a tripla estratificação de Q um docu-
mento que sequer existe como tal.
157
Embora, naturalmente, estejamos entre os que defen-
dem a existência de Q e seu uso por parte de Mateus e Lucas, não podemos concordar ime-
diatamente com a tentativa de encontrar tradições na forma de camadas depositadas uma
sobre a outra nesta fonte. Outra conseqüência da advertência de Peter Burke é a clara ten-
dência homogeneizante subjacente a este modelo de pesquisa. As narrativas de milagre,
dentro da tradão sinótica (e além dela) caem justamente neste vácuo “da não homogenei-
dade”. Como tratá-las vis-à-vis às tradições mais bem estabelecidas dos ditos aunticos de
Jesus”?
É sintomático deste tipo de abordagem a efetuada por Joachim Jeremias - bastante an-
terior a Third Quest de buscar encontrar a “ipsissima vox Iesu”, a “verdadeira voz de Je-
sus”. De fato, parece pesar sobre a pesquisa atual uma desconfiança sobre os “verdadeiros
atos de Jesus”, no sentido de que o máximo que se pode dizer é que “seus contemporâneos
acreditavam que ele fazia milagres”. Isso é agravado pela facilidade que alguns, como Mei-
er, separam Jesus de milagreiros e magos de sua época, os quais poderiam facilitar a plausi-
156
CHARTIER, Roger. A História Cultural: Entre Práticas e Representações. pp. 76 – 77.
157
Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodoló-
gicos na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século I”. In. CHEVITARESE, André Leonardo;
CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história. pp. 299 300.
Diz o autor: “Ao segmentar esta fonte em três estratos (Q1, Q2 e Q3), ao antepor um [estrato] sapiencial a um
apocalíptico e sendo este o critério de separação entre as fontes a pesquisa mostra lidar apenas com o sujeito
religioso “ideal” e, portanto, estanque. Sapiência e apocalíptica são aspectos complementares da atuação pro-
fética e messiânica de um grupo e não estágios sucessivos de sua configuração religiosa. Ninguém é apoca-
líptico por 24 horas ao dia! A adesão a crenças apocalípticas sobre a urgência do eschatón não dispensa ins-
truções sobre como sobreviver numa sociedade violenta e opressora. A pergunta pela sapiência que permite
sobreviver não desaparece no âmbito das expectativas escatológicas. Não se trata de alternativas exclu-
dentes.”
47
bilidade histórica de se falar nos milagres de Jesus sob ótica histórica. Não se trata de dizer
aos moldes do positivismo “este milagre aconteceuou “este não aconteceu”, mas sim de
colocar as narrativas neotestamentárias sob ótica da história comparada das religiões, da
antropologia transcultural, etc.
É, portanto, importante perceber como a aproximação de Jesus do seu contexto judai-
co imediato pode influenciar o surgimento da cristologia e recolocar a queso por Jesus e
seus milagres. Na sua análise da Fonte Q e a origem da cristologia, Luigi Schiavo coloca
definitivamente o surgimento das primeiras afirmações cristológicas no bojo do judaísmo de
seu templo, especialmente através da associação de Jesus ao angelomorfismo que marca o
período tardio do segundo templo.
158
A ão milagrosa de Jesus influenciou, segundo Schi-
avo, a associação de Jesus a figuras angélicas:
Na segunda etapa [do desenvolvimento da cristologia] colocamos a experi-
ência histórica de Jesus de Nazaré (até 30 d.C.), que foi, nas palavras dos
seus primeiros discípulos, “profeta poderoso em palavra e obras” (Lc 24.
19). Sua pessoa deve ter impressionado seus contemporâneos, assim como
sua interpretação radical da lei: por causa disso, viram nele o profeta escato-
lógico. Mas foram sobretudo os milagres e exorcismos que levaram o povo a
acreditar que nele havia um poder extraordinário, divino. A comparação com
a figura do anjo messiânico, de quem Jesus podia ser a encarnação terrena,
foi inevitável.
159
Em outras palavras, as palavras e ação milagrosa/exorcista
160
de Jesus vistas dentro
dos contornos do judaísmo do segundo templo são um nexo fundamental para que se pos-
sam compreender os desenvolvimentos cristológicos posteriores. Esta noção é uma contri-
buição fundamental para nossa exposição: as assim-chamadas fábulas’ sobre Jesus estão,
indelevelmente, dentro da história do judaísmo antigo e não são, portanto, criações exclusi-
vas das imaginações “hiperativasdos primeiros cristãos.
Neste sentido, tomamos aqui como importante o que Paulo Nogueira discute em seu
“Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos na Compreensão de
Práticas Religiosas Judaicas do culo I”:
161
158
Cf. tb. FLETCHER-LOUIS, Crispin H. T. All the Glory of Adam. Liturgical Anthropology in the Dead Sea
Scrolls.
159
SCHIAVO, Luigi. “A Fonte dos Ditos de Jesus e as Raízes da Cristologia”. In. CHEVITARESE, André Leo-
nardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história. p. 212.
160
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole: Exegese, História, Conflitos e Interpretações de Mc 5. 1
20. Dissertação de Mestrado. São Bernardo do Campo: UMESP, 1999. 240 p; SCHIAVO, Luís; SILVA,
Valmor da. Jesus: milagreiro e exorcista. São Paulo: Paulinas, 2000. 128 p.
161
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos
na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século I”. In. CHEVITARESE, André Leonardo; COR-
NELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história. pp. 293 – 300.
48
Citamos estas duas cenas [o exorcismo e os ditos de Lc 11. 14, 20 e Lc 10.
17 - 20] e outras mais poderiam ser mencionadas apenas no âmbito dos
exorcismos para mostrar como Jesus combina dois elementos aparente-
mente distintos, mas que em sua atuação de profeta são perfeitamente com-
binados: a atuação mágica, curandeira e exorcista com a expectativa da che-
gada do eschatón e do Reino. Temos aqui, portanto, a combinação do binô-
mio magia e milênio a que se referia J. D. Crossan em seu O Jesus Histórico,
citando Bryan Wilson. Esta combinação de religião popular com adaptação
de elementos da tradição erudita é que caracteriza a apocalíptica de Jesus.
162
Esta “combinação de religião popular com adaptação de elementos da tradição erudi-
ta” é outra importante contribuição deste texto de Paulo Nogueira. Como vimos acima, é
preciso questionar o pressuposto de que existiria uma separação radical entre os estratos
letrados e iletrados da sociedade judaica.
163
Numa linha parecida, embora enfocando mais a Galileia do que propriamente a ques-
tão “oralidade” e “literatura”, é que Paulo Garcia constroi sua contribuição à obra.
164
Preo-
cupa-lhe a construção hisrica da Galileia como uma fortaleza cultural inexpugnável. Con-
tra esta construção, o autor em questão afirma que
Deste modo, o ministério de Jesus se desenvolve em um espaço geográfico,
histórico e culturalmente determinado a Galiléia uma encruzilhada em
que o helenismo e o poder greco-romano, as influências teológicas e políti-
cas da Judéia, e as tradições de Israel, preservadas pelos camponeses “histó-
ricos”, se encontravam e se confrontavam. Esse é o marco histórico para
compreender Jesus e suas relações com os diversos movimentos judaicos.
165
A compreensão da Galileia como espaço de pluralidade, encontros e conflitos permite
uma leitura bastante matizada das tradições sobre Jesus de Nazaré. Ajuda-nos, por exemplo,
a superar a “marginalidade contextual” do Jesus de Meier, hermeticamente selado dentro
dos contornos do cânon neotestamentário. Também permite que recoloquemos as queses
relativas às relações dos galileus para com o poder romano, ou o poder do templo bem
como as consequências disto para o movimento de Jesus.
Fica claro que uma marca da atual pesquisa é a interdisciplinaridade, que se deve abrir
a novos horizontes. Sintotico disso é a publicação recente de Crossan em parceria com
162
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Jesus de Nazaré: um Profeta Apocalíptico? Impasses Metodológicos
na Compreensão de Práticas Religiosas Judaicas no Século I”. In. CHEVITARESE, André Leonardo; COR-
NELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história. pp. 298 – 299.
163
Cf. a discussão sobre a obra de Richard Horsley, acima.
164
GARCIA, Paulo Roberto. “Jesus, um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar Histórico Sobre Jesus e os
Judaísmos de seu Tempo” In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Mo-
nica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. pp. 263 - 278.
165
GARCIA, Paulo Roberto. “Jesus, um Galileu em Frente à Jerusalém: um Olhar Histórico Sobre Jesus e os
Judaísmos de seu Tempo” In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Mo-
nica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. p. 276. Itálicos nossos.
49
um arqueólogo, Jonathan L. Reed, intitulada Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind
the Texts.
166
Em Jesus de Nazaré: Uma Outra História tal honra pertence a Pedro Paulo A.
Funari, com seu “O Jesus Histórico e a Contribuição da Arqueologia”.
167
9. Novos Horizontes? Contribuições de outros saberes para
a pesquisa do Jesus Hisrico.
Um autor o qual nos interessa discutir neste momento é Klaus Berger.
168
Não tratamos
dele nas seções anteriores por pensarmos que ele representa uma tendência sui generis nas
pesquisas bíblicas contemporâneas. Por isso, começamos esta última parte do capítulo jus-
tamente através da apreciação de sua obra que nos parece servir muito bem de “ponte” entre
os estudos bíblico-históricos estabelecidos e a assim chamada História Cultural (ou “nova
história) e a Micro-História. Para tanto, partiremos daquilo da disciplina que Berger aplica à
leitura do Novo Testamento, a saber, a psicologia histórica. O autor a define assim:
A psicologia é a investigação disciplinada da vida interior do ser humano
da psique e suas delimitações, interações, e manifestações externas. A psico-
logia é uma ciência distintivamente moderna. Ao aplicar uma perspectiva
psicológica aos textos do Novo Testamento, então, eu levantarei perguntas
que estes textos não respondem diretamente. A adição do qualificativo his-
tórica” ao termo básico “psicologia” chama a atenção ao nosso pressuposto
que tanto a vida interna dos seres humanos quanto as maneiras pelas quais
ela foi compreendida sofreram mudanças bastante amplas através do curso
dos tempos.
169
Para Berger, é de fundamental importância considerarmos o elemento mítico presente
na cultura e nas narrativas neotestamenrias. Vamos, desde , esclarecer o que vem a ser o
tico.
A seguir, falar-se-á do “mítico” no sentido de uma soma de características de
uma determinada perspectiva e visão de mundo, enquanto que com mito”
designamos uma narrativa avulsa e com “mitologia” algumas características
do conteúdo dessas narrativas ficcionais.
170
166
Já comentado acima na seção de Crossan.
167
167
FUNARI, Pedro Paulo A. “O Jesus Histórico e a Contribuição da Arqueologia”. In. CHEVITARESE,
André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré: Uma outra história.
pp. 217 228. O autor logra produzir uma consideração útil e ponderada das dificuldades e possibilidades da
interação entre “fontes materiais” (i.e., arqueologia) e “fontes escritas” (i.e., exegese).
168
Mais conhecido em nossas terras por sua obra traduzida para o português sobre a formgeschichte. Cf.
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento.
169
BERGER, Klaus. Identity and Experience in the New Testament. p. 1.
170
BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. P. 314.
50
Assim, o mítico vem a ser uma forma de perceber a realidade, que se expressa em
narrativas específicas no nosso caso, Marcos 4. 35 41 –, narrativas que por sua vez são
uma soma de temas e motivos literários diversos.
171
aqui uma analogia entre o que con-
sideramos anteriormente sobre a forma literária história de milagre. O mítico, por assim
dizer, não existe como um “tratado sistemático”. Antes, é uma construção indiciária a partir
de narrativas dispersas.
172
Estas narrativas, por sua vez, são compostas de elementos mito-
gicos, ou seja, fragmentos desta apreensão tica da realidade, que formam uma historieta
mais ou menos coerente. Lembremos, por hora, que o assim chamado Mito dos Vigilantes, e
tamm, por exemplo, o Mito Gnóstico, o construídos a partir de uma série de narrativas
com elementos, por vezes, díspares. Tem o status, portanto, de meta-narrativas. Mas isso
não faz destes mitos, em absoluto, elementos a-hisricos muitas vezes se alteram, ou
simplesmente são esquecidos.
173
Lembremos da pertinente observação de Marshall Sahlins:
“o que os antrologos chamam de “estrutura” as relações simbólicas de ordem cultural
é um objeto histórico”.
174
Observa ainda que “deveríamos incorporar a diacronia interna às
nossas noções de “estrutura”, evitando assim certas dificuldades da visão saussuriana ou, ao
menos, da maneira que é comumente adaptada para os estudos antropológicos”.
175
A irrupção do mítico no mundo é dramática. Segundo Berger,
O elemento dramático é, a meu ver, tão decisivo que, a partir dele, resulta
uma definição diferente de mítico, claramente orientada por seu efeito. De
acordo com isso, o mítico se refere a uma experiência em que o poder está
repartido e é usado de modo diferente do que nos acontecimentos cotidianos.
Por isso, trata-se primeiramente de uma determinada experiência de poder e
de influência. Porque é possível demonstrar também a dimensão da substân-
cia mítica, apresentada com razão por Hübner, é interessante sob o aspec-
to da influência especial que emana, por exemplo, da presença do divino
num talismã, quer seja salvamento, quer seja perigo.
176
Ainda:
Designo de mítica uma experiência da realidade, em particular de força, que
não é regrada segundo as leis naturais. A regra fundamental do mítico cha-
ma-se concentração; trata-se de uma realidade, poder ou tempo concentra-
dos, semelhante àquilo que conhecemos como presença do espírito. Esta rea-
171
Pensemos aqui nos “motivos” dos quais Theissen nos fala em The Miracle Stories of the Early Christian
Tradition.
172
Pensando aqui juntamente com Carlo Ginzburg. Cf. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfolo-
gia e História. p. 143 - 179.
173
Cf. BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. Pp. 319 – 320.
174
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. pp. 7 – 8.
175
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. p. 17.
176
BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. P. 321.
51
lidade não atua de forma surpreendente e irresistível somente no caso dos
milagres, mas freqüentemente pode mover e agitar o coração.
177
Por fim:
Os milagres são míticos porque, na constelação tríplice que engloba o tau-
maturgo, o destinatário dos milagres e Deus, chega-se a uma experiência de
poder verdadeiramente digna de assombro.
178
Poder e assombro. Rudolf Otto, em sua clássica obra do icio do culo XX, O Sa-
grado (ou O Santo do alemão Das Heilige) elabora uma terminologia que se consagrou. O
sagrado é apreendido simultaneamente como um mysterium tremendum isto é, uma expe-
riência aterradora e mysterium fascinosum uma experiência fascinante. Um poder expe-
rimentado como externo ao indivíduo que o invade, fascinando-o e / ou o aterrando. Apenas
depois é que esta experiência é categorizada. Esta percepção moderna do fenômeno religio-
so, sob ótica fenomenológica, pode nos auxiliar a reconstruir a experiência do sagrado como
possivelmente geradora de novos arranjos. Um sagrado selvagem,
179
por assim dizer.
A experiênciatica, segundo Berger, tem um elemento em comum:
A todas estas formas é comum o fato de que nelas se interrompe o fluxo
normal do acontecer. não ocorre que todo o existente esteja, por isso
mesmo, a uma grande distância de Deus; uma realidade (pessoas ou coi-
sas) que lhe é próxima e outra que está a uma enorme distância dele. Dife-
renças espaciais e temporais o anuladas, e chega-se a um espessamento,
uma concentração da realidade que a Bíblia chama de santidade. Na fala mí-
tica, revela-se a força acumulada da palavra criadora, como, por exemplo,
nas palavras poderosas de Jesus que operam milagres. Na bênção, a diferen-
ça entre o mero opinar (pensamento) e o próprio fato é suplantada. Na expe-
riência mítica do tempo durante a festa, a diferença entre o acontecimento
primordial e a comemoração é anulada espacial e temporalmente; ambos são
reunidos em um só. Na personalidade mítica, pessoas diferentes tornam-se
presentes em uma única pessoa. Na experiência mítica do espaço, um lugar
(ou objeto) torna-se sagrado por meio da personificação de alguém ou algo
que antes estava ausente. Finalmente, na experiência mítica da ordem, as di-
ferentes regras que presidem as estações particulares do ciclo são experimen-
tadas como uma unidade complementar que se suplementa dentro de si.
180
Neste sentido, Berger está vinculado às investigações históricas mais recentes, que re-
jeitam categorias universalmente válidas. Está na companhia, por exemplo, de Carlo Ginz-
burg. Ginzburg, a propósito da explicação correta do caso analisado por Sigmund Freud do
“homem dos lobospropõe uma explicação radicalmente diferente à do pai da psicanálise.
177
BERGER, Klaus. É Possível Acreditar em Milagres? P. 82.
178
BERGER, Klaus. É Possível Acreditar em Milagres? P. 82.
179
Cf. BASTIDE, Roger. O Sagrado Selvagem e Outros Ensaios.
180
BERGER, Klaus. É Possível Acreditar em Milagres? pp. 97 – 98.
52
Enquanto Freud apelava para categorias psíquicas universais, Ginzburg afirmará que o so-
nho do rapaz é “um sonho de caráter iniciático, induzido pelo ambiente cultural circundan-
te.
181
Ao final do ensaio, sintetiza:
De maneiras evidentemente diversas, esse conteúdo mítico [o do sonho do
rapaz] se impôs por outros meios a Freud primeiro em 1897 e depois, sem se
dar conta, em 1914 e a este que escreve. Não se trata do arquétipo no sen-
tido de Jung: a herança filogenética não entra aí. Os meios são históricos, i-
dentificáveis ou conjeturáveis de modo plausível: homens, mulheres, livros e
documentos de arquivo que falam de homens e de mulheres. As mães dos
andarilhos do bem friulanos; a njanja do homem dos lobos; Charcot e seus
discípulos, ocupados em decifrar as contorções das histéricas de Salpêtirère
através das descrições das endemoninhadas (e vice-versa); o processo contra
o boiadero andarilho do bem Menichino de Latisana, encontrado por acaso
no Arquivo do Estado de Veneza.
182
Sonhos culturalmente determinados? Esta é uma preocupação recente da História Cul-
tural. No ade superar a assim-chamada histoire événementielle (“história fatual”) é que se
desenvolve o esforço da Nova História.
183
Neste âmbito do saber, novos objetos também são
legítimos e anecesrios: imaginário,
184
a memória social,
185
o gesto,
186
o humor,
187
rela-
tos de viajantes ingleses a Mio do século XVII.
188
Os sonhos são, também, uma frente de
pesquisa histórica legítima:
Devemos perguntar se ela [a pessoa que sonha] está ou o consciente do
mito. Uma das objeções possíveis é que as variações no conteúdo manifesto
dos sonhos não é importante; a sociologia dos sonhos fica superficial se le-
var apenas à conclusão de que os mesmos temas ou problemas básicos são
simbolizados de diferentes modos em diferentes sociedades. Essa questão da
importância relativa do conteúdo manifesto dos sonhos é uma das questões
polêmicas entre psicólogos, e na qual os historiadores não devem se introme-
ter. Contudo, permite observar que, se as pessoas de uma determinada cultu-
ra sonham os mitos dessa cultura, seus sonhos por isso autenticam os mitos,
sobretudo em culturas em que o sonhar é interpretado como “ver” outro
mundo. Os mitos modelam os sonhos, mas os sonhos, por sua vez, autenti-
cam os mitos, em um círculo que facilita a reprodução ou continuidade cul-
tural.
189
181
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História. p. 210. Ênfase nossa.
182
GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais. Morfologia e História. p. 217. Ênfase nossa.
183
Cf. LE GOFF, Jacques (org.). A História Nova. pp. 1 – 84.
184
Cf. PATLAGEAN, Evelyne. “A História do Imaginário”, In. LE GOFF, Jacques (org.). A História Nova. pp.
391 427. Neste ensaio, a autora também chama a atenção a estes novos objetos incluindo contos e len-
das.
185
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. pp. 69 – 89.
186
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. pp. 93 – 112.
187
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. pp. 114 – 135.
188
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. pp. 139 – 158.
189
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. p. 46. Colchetes nossos.
53
Mais que isso: os significados culturais dos sonhos devem ser devidamente contem-
plados por uma pesquisa histórica. Aproximaremo-nos da exegese ao considerarmos a se-
guinte afirmação de Burke:
Se, como afirmamos acima, os sonhos têm uma camada de significado cultu-
ral, além de uma pessoal e uma universal, abrem-se possibilidades ainda
mais estimulantes para os historiadores. Primeiro, o estudo de mudanças no
conteúdo manifesto deve revelar mudanças nos mitos e imagens psicologi-
camente reais na época (em oposição aos mitos apenas em circulação). Se-
gundo, os sonhos, como os chistes (Capítulo 5), tratam de maneira oblíqua o
que é inibido ou reprimido, e isso varia de período para período. É muito
mais provável que os desejos reprimidos, as ansiedades e os conflitos encon-
trem expressão no conteúdo latente dos sonhos, que por isso têm de mudar
ao longo do tempo, e talvez ajudem os historiadores a reconstruir a história
da repressão.
190
A diacronia (a mudança dos sonhos”) é parte importante deste processo, como o é a
sincronia (o aspecto do “significado cultural” dos sonhos). Esta terminologia permite uma
convergência clara de perspectivas entre o estudo dos sonhos e a exegese blica.
191
Uma
última observação de Burke se faz importante neste sentido:
... existe uma dicotomia aberta à crítica. A suposição é de que um determi-
nado texto deve ser ou uma transcrição correta de um sonho ou uma efusão
literária acomodada em forma de sonho. No entanto, a descoberta do sonho
padrão da cultura indica que essa dicotomia é falsa.
192
Esta verdadeira “puxada de orelha” serve de correção à tendência observada nos estu-
dos bíblicos de insistir na distinção entre “forma literáriae “conteúdo real” dos relatos. Até
hoje marcam as discussões do saber blico por exemplo, no campo da apocaptica de
discernir se uma fonte relata uma “experiência real” ou se é uma “efusão literária”. Tal
observação pode ser estendida aos “tipos” ideais de figuras históricas da antiguidade,
193
e,
pensamos, para as próprias narrativas de milagres na medida em que refletem pressupostos
da cultura mesmo as mais bizarras” e “mitológicas”. Em outras palavras, todas as narra-
tivas de milagres são “reaisno sentido cultural, e, portanto, objetos dignos de um estudo
histórico.
190
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. p. 48.
191
Cf. a discussão efetuada acima sobre a obra de Gerd Theissen, especificamente THEISSEN, Gerd. The Mi-
racle Stories of the Early Christian Tradition.
192
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. p. 60.
193
Caso da “aretalogia” e sua controvertida aplicação. Cf. CORNELLI, Gabriele. Sábios, Filósofos, Profetas ou
Magos? Equivocidade na recepção das figuras de thêioi ándres na literatura helenística: a magia incômoda de
Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado. São Bernardo do Campo: UMESP, 2001; COR-
NELLI, Gabriele. “Jesus ‘Homem Divino’: para uma história comparada do termo no mundo antigo”. in.
CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele; SELVATICI, Monica (orgs.). Jesus de Nazaré:
Uma outra história. pp. 61 – 100.
54
Como bem observou Mircea Eliade:
Não existe nenhum motivo mítico e de cenário iniciático que não seja, de
uma forma ou de outra, uma presença tanto dos sonhos como das efabula-
ções do imaginário. Nos universos oníricos, reencontram-se os símbolos, as
imagens, as figuras e os eventos que compõem as mitologias.
194
Neste sentido, apelamos a Mircea Eliade para mais esclarecimentos oriundos da histó-
ria comparada das religiões e da fenomenologia da religião. De acordo com ele, “a mani-
festação do sagrado funda ontologicamente o mundo”.
195
Isto é, em meio ao espaço indife-
renciado que nos circunda, a revelação (“hierofania”) do sagrado estabelece um ponto fixo,
um centro, com referência ao qual se pode articular e organizar o espaço. Assim sendo, o
sagrado, destarte, delimita espaços. Permite orientação.
Tal diferença ontogica, isto é, qualitativa, se expressa de maneira simbólica. A sim-
bologia do limiar, da porta, é um exemplo de grande valia: “a porta mostra a solução de
continuidade no espaço imediata e concretamente”.
196
Desta ruptura de nível derivam as
concepções de espaço sagrado por exemplo, um templo. Esta diferença ontogica se ob-
serva, também, na perceão do tempo: nem todos os momentos são de igual importância.
Assim sendo, além do espaço sagrado, temos também o calendário sagrado. Este organiza
o tempo; aquele, o espaço.
Mas esta diferenciação de tempos e espaços tem o apoio simbólico de e se apóia
simbolicamente em - um rito. Tal rito, em geral, relaciona-se à cosmogonia à própria cria-
ção efetuada pelos deuses em sua forma e encenação. Refere-se, pois, a um modelo para-
digmático. A criação de um espaço sagrado remete-se, então, à criação do próprio universo.
Assim transcorre com a delimitação de uma extensão de tempo sagrado. Tais modelos são
transmitidos por processos de tradição – ou, ainda melhor, através dos mitos.
Por isso, não devemos estranhar a grande importância da qual os mitos se revestem
nas sociedades tradicionais. Eles servem de modelos para as mais diversas ações desde
formas de cultivo amesmo o ritual empregado na consagração de um templo, por exem-
plo, ou ainda o calendário dos festivais religiosos fundamentais. Uma vez que o ato criador
revelado pelos mitos serve de modelo, também podemos interpretá-lo como uma forma
de compreender o mundo. É, ao mesmo tempo, instrumento de criação da ordem e chave de
leitura da mesma ordem. O mito explica a origem das realidades que marcam concretamente
194
ELIADE, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. p. 8.
195
ELIADE, Mircea. The Sacred and the Profane. p. 21. Tradução própria.
196
ELIADE, Mircea. The Sacred and the Profane. p. 25. Tradução própria. Itálico consta na obra consultada.
55
a vida social dos indivíduos nela envolvidos. Por que as coisas são assim? Porque assim os
deuses criaram, in illo tempore, e assim fazemos nós.
Mas, conforme vimos, o próprio mito o é, em absoluto, uma entidade imóvel, estáti-
ca. Sofre modificações. É produzido e reproduzido historicamente. Cada encenação tem o
potencial de atualizá-lo. Mas também o mito produz o próprio mundo ao qual se refere. É
isto que permite ao sagrado, como Eliade afirma, fundar um cosmos no caso, um cosmos
mítico por referir-se ao divino revelado no mito.
Esta vivência mítica e ritual forma a base do sistema religioso das sociedades tradi-
cionais. Tanto o templo refere-se a um modelo mítico, celestial, quanto os próprios atos
cúlticos encontram expreses nos atos tidos como divinamente revelados. Mas este mesmo
pano-de-fundo ritual e tico serve como base para outras práticas, aquelas que alguns de-
nominam magia. “O fato importante a ser notado em conexão com estes cantos curativos
mágicos é que o mito da origem dos remédios empregados é sempre incorporado ao mito
cosmogônico”.
197
Isto é, nesta cosmovisão que remete as realidades aos atos criadores divi-
nos, também as práticas curandeiras fazem uso destes mitos para sua eficácia.
Podemos, pois, recolocar a questão da diferença que se poderia estabelecer entre mi-
lagres” e “magia” sob nova perspectiva a perspectiva de um sincretismo mediterrâneo
198
interno a esta “vivência tica” da realidade. Do mesmo modo podemos reintroduzir a ques-
tão da forma literária narrativa de milagre, perguntando-nos se é possível considerá-la à
parte da literatura chamada mágica e da percepção tica da realidade.
199
O próprio Eliade é claro com relação à metodologia e aqui poderemos escutar como
que um “eco” do que Klaus Berger nos dizia acima:
O método mais seguro, no que diz respeito à história das religiões, como ali-
ás a tudo, acaba por sempre estudar um fenômeno no seu plano de referência
particular, com o objetivo de integrar os resultados dessa actividade numa
perspectiva mais alargada.
200
Marshall Sahlins, antropólogo norte-americano, analisa muito apropriadamente a rela-
ção entre as viagens do capitão Cook e os nativos havaianos. É evidente, portanto, que sua
obra é marcada pela dinâmica do contato cultural entre o estrangeiro e os nativos uma boa
197
ELIADE, Mircea. The Sacred and the Profane. Pp. 83 - 84. Tradução própria. Itálicos constam na obra con-
sultada.
198
Neste sentido, é proveitosa uma consulta à obra de Marshall Sahlins. SAHLINS, Marshall. Ilhas de História.
199
Ao contrário do que parece sugerir John Meier. Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew: Rethinking the Histori-
cal Jesus. Vol 2.
200
ELIADE, Mircea. Mitos, Sonhos e Mistérios. pp. 7 – 8.
56
analogia do encontro entre o antropólogo e o povo a ser analisado etnograficamente. Algu-
mas considerações feitas pelo autor, de caráter mais genérico, parecem-nos apropriadíssi-
mas:
Estou me referindo aos radicais contrastes binários pelos quais geralmente se
pensa a cultura e a história: passado e presente, estático e dinâmico, sistema
e evento, infraestrutura e superestrutura, e outros deste gênero intelectual di-
cotômico. Concluo que estas suposições não são apenas fenomenologica-
mente enganadoras, mas que também são analiticamente debilitantes.
201
Poderíamos acrescentar à lista de Sahlins a dicotomia “magia-religião”. É evidente
que uma “narrativa de milagre” difere substancialmente de um “papiro mágico grego”, por
exemplo, na queso da forma. Os papiros, afinal, nem sempre são “narrativas”, e sim espé-
cies de “receitas”. Naturalmente, não podemos encontrar, nas narrativas de milagres neotes-
tamentárias, algo parecido a esta idéia de “receita”. Por outro lado, não podemos pensar no
“milagroso” em termos do Novo Testamento canônico apenas como “narrativas”: ditos
sobre milagres, sumários de milagres em todos os evangelhos, há milagres aposlicos
sem falar, naturalmente, da profusão de narrativas milagrosas/ lendárias sobre Jesus e os
apóstolos nos assim-chamados evangelhos apócrifos.
Talvez não cause surpresa, eno, encontrarmos em um período posterior Salomão e
um texto atribuído a ele, o Exorcismo de Salomão, vis-à-vis Jesus de Nazaré e seu Pai Nos-
so. Um papiro, datado do quinto ou sexto século, encontrado dobrado e provavelmente utili-
zado como amuleto de proteção contra doenças e demônios, testifica uma bricolagem feita a
partir da oração do pai-nosso e do Exorcismo de Salomão, bem como uma citação do Salmo
91. Contra as forças do mal, ainda invocavam-se figuras capazes de proporcionar o acesso
ao poder necessário para resistir às investidas demoníacas. Não o citamos por limites de
espaço, mas remetemos à Ancient Christian Magic, de Marvin Meyer e Richard Smith, para
consulta. Destacamos o caráter direto das citações, e também a sua bricolagem. Parece que,
muito depois de sua vida, Jesus e Saloo são ainda utilizados como proporcionadores de
proteção. Jesus é mais um, portanto, nesta ampla constelação de homens cheios de poderes
stico-mágicos, capazes de curar, amaldiçoar, exorcizar, entre outros progios seu a-
calmar tempestadesé mais uma pedra neste mosaico da cultura mediterrânea do século I
E.C.
202
201
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. pp. 18 – 19.
202
Sem falar nas amplas referências a viajantes celestiais, profetas escatológicos, enviados de Deus, etc.
57
10. Considerações Finais
Conforme vimos, a pergunta pelo Jesus Histórico e pelo tema de seus milagres / magia
levou-nos a uma discussão das obras que participam da assim chamada “terceira busca
(Third Quest) pelo Jesus Histórico. Abordamos, eno, as metodologias de trabalho de cada
um dos autores analisados, bem como buscamos oferecer críticas aos modelos adotados.
Dentro desta discussão, destacamos a questão das fontes para esta busca, que são nossos
indícios
203
para a construção deste objeto. Resulta disso, ao fim e ao cabo, a constatação de
que as histórias de milagres não podem ser desprezadas para a reconstrução desta figura
histórica, uma vez que são testemunhas de um “mundo mítico” que precisa ser reconstruído
para que possamos acessar esta figura histórica em seus termos. Finalmente, entabulamos
uma conversa interdisciplinar com a psicologia histórica aplicada à exegese blica, a histó-
ria cultural, a micro-história e a antropologia na busca de superarmos as dificuldades apon-
tadas no tratamento da temática do milagroso nas narrativas sobre a vida de Jesus de Naza-
ré. Na trilha do que afirma Jacques Le Goff, antevemos “a possibilidade, doravante, de fazer
do acontecimento a ponta do iceberg e estudá-lo como cristalizador e revelador das estrutu-
ras”.
204
Por isso, optamos por fazer do acontecimento míticona narrativa de milagre de
Marcos 4. 35 – 41 elemento fundamental de nossa análise exegética (capítulo 3) em paralelo
com narrativas afins (capítulo 2).
203
Cf. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais.
204
LE GOFF, Jacques. A História Nova. pp. 9 – 10.
58
II – ANÁLISE DE TEXTOS DA ANTIGUIDADE
Neste capítulo, intentamos mapear paralelos ao nosso texto em questão. Partiremos
das evidências oferecidas pelos Papiros Mágicos Gregos, passando por alguns textos sele-
cionados de Qumran, sem nos esquecermos nem de narrativas tero-testamentárias nem do
corpus ranico posterior, que preservou as figuras de Hanina ben Dosa e Honi, o traçador
de círculos.
1. Palavras de Poder nos Papiros Mágicos Gregos
A antiguidade é testemunha de um sem-número de amuletos e textos mágicos que
possibilitavam às pessoas negociar as agruras e alegrias do cotidiano. O interesse sobre o
tema tem crescido desde o final do século XX, gerando novas abordagens e uma crescente
publicação de fontes primárias para o estudo do tema. Faraone e Obbink sintetizam a ques-
tão da seguinte maneira:
Em qualquer campo de pesquisa, o progresso é atingido por dois aconteci-
mentos: ou a quantidade de dados é aumentada significativamente ou melho-
rada de alguma outra maneira, de forma que provocam novas investigações
de acordo com as aproximações existentes; ou os refinamentos e
(r)evoluções na metodologia provocam os pesquisadores a olharem os dados
existentes “através de lentes de cores diferentes”. No estudo da religião e
magia gregas antigas ocorreram ambos os acontecimentos.
205
205
FARAONE, Christopher A; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. p. vi.
59
De fato, a lista de aplicações mágicas” é vasta. Numa listagem feita a esmo, poderí-
amos observar apenas levando em conta a coleção dos Papiros gicos Gregos
206
Feiti-
ços como PMG I. 232 247, “feitiço para memória”, PMG V. 447 458, sem título, mas
são instruções acerca de um anel mágico”, PMG VII. 211 212, “para febre com tremo-
res”, PMG XXXVI. 69 101, “feito do amor para atração”, PMG XII 365 375, encan-
tamento para causar separação”, PMD xiv. 428 450, “duas poções do amor”, PMD xiv.
985 992, “gota (receita)”. Um exemplo bastapara ilustrar a extensão das preocupações
refletidas nos PMG/ PMD:
PMD lxi. 58 – 62 [PMG LXI. vi.x (não está na Preisendanz)]
Para ter uma ereção: A planta pastel cresce no oásis em abundância; é tanto
feminina quanto [masculina]. Ferva estas em uma panela e as macere [em
vinho com] pimenta; / passe a mistura nos [seus] genitais. [Se desejar] rela-
xar novamente, [forneça] a decocção. ...
207
Talvez por isso ainda se insista, vez ou outra, na distinção entre magia e religião, se-
gundo a qual a primeira compeliria os deuses e a segunda suplicaria humildemente.
208
Mas
tamm não é posvel negar que, diante de um texto como o que veremos a seguir, tal dico-
tomia religião-magia parece fazer pouco sentido:
A reclamação de uma mulher sobre negligência
É Esrmpe (filha) de Kllaouj quem reclama <sobre> Hor (filho) de Tanesne-
ou. Meu Senhor Osíris, (senhor) de Hasro, a ti apelo, faça justiça a mim e a
Hor (filho) de Tanesneou pelas coisas que fiz a ele e as coisas que fez a mim.
Ele não <me> considera (?), eu não tendo poder, eu não tendo um filho de-
fensor. Não pode ser diferente; sou uma mulher estéril. Não quem apele
<em> meu favor <perante> ele, por causa de Hor ..., eu apelo a [você ...] ó
grande (?), Osíris, ouça meu clamor ... muitas são as coisas que ele fez para
mim. Abra caminho para sua [...]s, [... O]siris, (senhor) de Abydos, Osír[is
...] Ìsis ... Wepawet, Hathor, a ama-seca [de] Anúbis filho de Osíris, o va-
queiro de ..., faça-me justiça.
209
O apelo é, essencialmente, por justiça. A mulher se apresenta como vulnerável e esté-
ril, sem ninguém por ela. É evidente que não é posvel entrar no mérito da veracidade de
tais afirmações. Porém não podemos deixar de observar uma linguagem que, em alguns as-
206
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. Referir-nos-emos a esta coleção como PMG.
É importante observar que ela também contém os Papiros Mágicos Demóticos, os PMD.
207
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. pp. 287 – 288.
208
Como vimos, por exemplo, na obra de John Meier, analisada no primeiro capítulo.
209
MEYER, Marvin. Ancient Christian Magic. p. 21.
60
pectos, poderia se confundir com as invectivas dos profetas do antigo testamento em prol
das viúvas, dos órfãos, etc.
Faraone e Obbink, neste sentido, apresentam uma postura semelhante à de John Do-
minic Crossan
210
quanto à dicotomia magia-religião:
Os trabalhos mais recentes (particularmente, apesar de não exclusivamente,
influenciados pelos desenvolvimentos na sociologia e antropologia) lança-
ram desafios incisivos contra estas distinções. Muitos agora percebem a ma-
gia como um tipo de desvio religioso, e tratam as práticas mágicas como va-
riações não-dicotômicas no procedimento ritual, argumentando que a antíte-
se entre magia e religião separa arbitrariamente um spectrum contínuo de fe-
nômenos religiosos inter-relacionados.
211
De fato, nos textos citados começamos a encontrar dois elementos inter-
relacionados que são constantes ao longo do corpus dos PMG. Trata-se, em primeiro lugar,
do uso de invocações aos deuses de diversas culturas e, em segundo lugar, do uso de plan-
tas, raízes, etc., nos rituais e feitiços. Passemos, pois, a mapear estes dois elementos.
Vejamos este texto:
Invocação de divindades egípcias e judaicas para revelação
SAPHPHAIOR
BAELKOTA KIKATOUTARA EKENNK LIX,
O grande daimon e o inexorável,
... IPSENTANCHOUCHEOCH
-----------------------------------------------------------
DOOU SHAMAI ARABENNAK ANTRAPHEU BALE
SITENGI ARTEN BENTEN AKRAB ENTH OUANTH
BALA SHOUPLA SRAHENNE DEHENNE KALASHOU
CHATEMMOK BASHNE BALA SHAMAI,
No dia de Zeus, na primeira hora,
Mas no (dia) da libertação, na quinta hora,
Um gato;
No oitavo, um gato.
Salve, Osíris, rei do submundo,
Senhor do embalsamamento,
Que está ao sul de Thinis,
Que dá resposta em Abydos
Que está sob a noubs tree em Meroe,
Cuja glória está em Pashalom.
Salve, Althabot;
Traga Sabaoth até mim.
Salve, Althonai, grande Eou, muito valente;
Traga Miguel até mim,
O poderoso anjo que está com Deus.
Salve, Anúbis, do distrito de Hansiese,
Você que está sobre sua montanha.
Salve, deusas,
Thoth a grande, a grande, a sábia.
210
Cf. a discussão de sua obra no capítulo um deste nosso estudo.
211
FARAONE, Christopher A; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. p. vi.
61
Salve, deuses,
Achnoui Acham Abra Abra Sabaoth
Porque Akshha Shha é meu nome,
Sabashha meu nome verdadeiro,
Shlot Shlot muito valente meu nome.
Então que aquele que está no submundo
una-se àquele que está nos ares
Que se ergam, entrem, e me dêem resposta
Com respeito à questão que lhes faço
O usual.
212
É evidente que um texto como este dificilmente se encaixará em classificações dico-
micas como as que as vezes se aventam. Isso é magia ou religião? Até que ponto tenta-
tiva de compelir os deuses, ou ainda, até que ponto submiso e humildade diante dos
deuses? Ou ainda, até que ponto este texto representa uma cultura tipicamente egípcia, ou
tipicamente judaica? Afinal, o autor invoca, lado a lado, divindades egípcias como Anúbis,
Osíris e Thoth e o deus judaico, designado como “Althonai”, Sabaoth, Eou, etc. Aliás, se-
quer podemos ter a certeza de que o deus dos judeus seja considerado como um só; é possí-
vel que cada pseunimo, na percepção do autor desta invocação, seja referente a uma di-
vindade diferente.
Hans Dieter Betz coloca a problemática questão cultural muito apropriadamente:
Nesse sincretismo, a religião egípcia antiga autóctone em parte sobreviveu,
em parte foi profundamente helenizada. Em sua transformação helenística, a
religião egípcia da era pré-helenística parece ter se reduzido e simplificado,
sem dúvidas para facilitar sua assimilação à religião helenística como refe-
rência cultural predominante. Está bastante claro que os magos que escreve-
ram e utilizaram os papiros gregos tinham tendências helenísticas.
A helenização, no entanto, também inclui a egiptianização das tradições reli-
giosas gregas. Os papiros mágicos gregos contém várias instâncias de tais
transformações egiptianizantes, que assumem formas bastante diferentes em
textos diferentes ou camadas distintas da tradição. Novamente, elucidar a na-
tureza mais exata desta interação cultural e religiosa permanece uma tarefa
para pesquisas ulteriores.
213
De fato, a lista de nomes e características dos deuses de diversas culturas é própria dos
PMG. Curioso é perceber, no entanto, que o nome do “deus dos hebreus” seja considerado
secreto. Vejamos um trecho do PMG XXIIb. 1 – 26.
Oração de Jacó
[...]
212
MEYER, Marvin W.; SMITH, Richard. Ancient Christian Magic: Coptic Texts of Ritual Power. Pp. 22 – 23.
213
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. xlvi.
62
“Eu te invoco, ó tu que dás poder [sobre] o Abismo [àqueles] acima, àqueles
abaixo, e àqueles sob a terra; ouça aquele que tem [esta] oração, Ó Senhor
Deus dos Hebreus, EPAGAĒL ALAMN, a quem pertence [o] poder eterno,
ELŌĒL SOUĒL. Sustente aquele que possui esta oração, que é da linhagem
de Israel e daqueles / que foram favorecidos por ti, Ó Deus dos deuses, tu
que tens o nome secreto SABAŌTH ... I ... CH, Ó Deus dos deuses, amém,
amém. [...] Me fortaleça, Mestre; encha meu coração de bem, Mestre, como
um anjo terrestre, como alguém que se tornou imortal, como alguém que re-
cebeu este dom de ti, Amém, amém”.
214
Além disso, encontramos aqui exemplos do que se denominam voces magicae, pala-
vras mágicas”, que devem ser proferidas durante a execução do ritual associado ao feitiço.
Além disso, trata-se de uma “oração possuída isto é, provavelmente algo que se utilizava
como um talismã ou amuleto. Voltaremos adiante, tamm, a expressão enigmática “anjo
terrestre” quando discutirmos a identidade mítica.
Além do uso de nomes de divindades de diversas culturas entre as quais está a di-
vindade judaica , observamos que vários rituais e feitiços do PMG são acompanhados pelo
uso de ingredientes diversos: plantas, ervas, raízes, etc. De fato, um exemplo de feitiço
que desdenha o uso de outros ingredientes além das palavras na execução dos feitiços. Ve-
jamos
PMG XXXVI. 161 – 177
Encantamento para atar a ira e encantamento para o sucesso. (Nenhum en-
cantamento é maior, e deve ser executado apenas por meio de palavras): Er-
ga seus polegares e repita o feitiço sete vezes: “ERMALLŌTH ARCHI-
MALLŌTH detenha as bocas / que falam contra mim, porque eu glorifico
teus nomes sagrados e honrados que estão no céu”.
Para melhorar as palavras: Pegue um papiro e escreva isto: “Eu sou / CH-
PHYRIS. Devo ter sucesso. MICHAĒL RAPHAĒL ROUBĒL NARIĒL
KATTIĒL ROUMBOUTHIĒL AZARIĒL IOĒL IOUĒL EZRIĒL SOU-
RIĒL NARIĒL METMOURIĒL AZAĒL AZIĒL SAOUMIĒL / ROUBOU-
THIĒL RABIĒĒL RABIĒĒL RABCHLOU ENAEZRAĒL, anjos, protejam-
me de toda a situação ruim que me sobrevier”.
215
Encontramos aqui, novamente, o padrão de “nomes sagrados e honrados”, que detêm
poderes sobrenaturais, e a profusão de voces magicae associadas ao ritual. Mais uma vez
encontramos o curioso “eu sou”, provavelmente se referindo ao praticante do ritual. Apesar
da preferência por uma execução apenas por meio de palavras”, o podemos deixar de
214
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 261.
215
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 273.
63
observar que há gestos associados: erguer os polegares, bem como a própria escrita no papi-
ro, com o propósito declarado de “melhorar as palavras”, isto é, conferir-lhes mais poder.
Também encontramos variantes cristãs que apontam para o uso apenas de palavras.
Vejamos o exemplo abaixo:
Feitiço para proteção e cura, utilizando citações bíblicas.
Este texto se descreve como um amuleto vestido por uma pessoa que deve
ser ajudada e protegida (e, presumivelmente, curada; compare as linhas 17
20) pelo poder invocado através do texto citado (Salmo 91. 1; João 1. 1
2; Mateus 1. 1; Marcos 1. 1; Lucas 1. 1; Salmo 118. 6 – 7; Salmo 18. 2; Ma-
teus 4. 23).
TEXTO
+ Em nome do pai e do filho e do espírito santo.
Aquele que reside no socorro do altíssimo <vai> habitar no abrigo do senhor
do céu.
+ No começo era a palavra, e a palavra estava com <deus>, e a palavra era
deus. Ela estava no começo com deus.
+ Livro da geração de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.
+ Princípio do evangelho de Jesus Cristo, filho de Deus.
+ Uma vez que muitos empreenderam compilar uma narrativa.
+ O senhor é meu ajudador, não temerei. Que pode me fazer o homem?
+ O senhor é meu ajudador, e eu vou encarar meus inimigos.
+ O senhor é minha rocha, e meu refúgio, e meu libertador.
+ O senhor Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando nas suas sinagogas e
pregando o evangelho do reino e curando todas as doenças e todas as enfer-
midades.
+ O corpo e sangue de Cristo te protejam, servo que veste este amuleto.
Amém, Aleluia + A + O +
216
É curioso observar este uso das “palavrasdo textoblico. Chama a atenção a citação
do primeiro versículo dos quatro evangelhos canônicos, bem como os salmos (que são, afi-
nal de contas, orações) e, por fim, de um sumário de cura mateano. O texto, por sua vez, é
“emolduradopela menção ao “pai, filho e espírito santo” no início e a referência ao “corpo
e sangue de Cristo” no final além do Alfa e Ômega, que parecem estar associados a pala-
vras mágicas. Aqui, o texto bíblico não deve ser “lido” ou “meditado”, e sim vestido. Isto
apresenta uma variante interessante do motivo das palavras mágicas, ao tornarem-se efica-
zes “por si só”, sem sequer serem pronunciadas. As palavras bíblicas sagradas conferem
proteção ao “servo que veste este amuleto”.
Apesar disso, observa-se o farto uso de ingredientes nas mais variadas aplicações. A-
qui, encontramos o nome de Salomão associado ao procedimento necessário para obter um
transe de uma pessoaum homem adulto ou um menino.
PMG IV. 850 – 855, 916 – 923
216
MEYER, Marvin. Ancient Christian Magic. pp. 34 – 35. O cabeçalho em itálico consta na obra consultada.
64
Encantamento de Salomão que produz um transe (funciona tanto em meni-
nos quanto em adultos): Eu juro a ti pelos santos deuses e pelos deuses celes-
tiais não partilhar o procedimento de Salomão com ninguém, e certamente
não o utilizarei por razões triviais / exceto se uma questão premente te for-
çar, pois talvez a ira seja preservada para ti. [...]
Dispensa do senhor: na orelha de NN: “ANANAK ARBEOUĒRI AEĒI-
OYŌ.” Se demorar, sacrifique sobre carvão de vinhas uma semente de ger-
gelim [e] cominho preto enquanto diz: “ANANAK ŌRBEOUSIRI AEĒI-
OYŌ, embora, senhor, para teus próprios tronos e proteja NN de todo o
mal”. Você aprendeu rigorosamente; mantenha o segredo.
217
O tema do segredo das práticas e ingredientes empregados é bastante marcante neste
texto. Há a jura de não partilhar o procedimento de Salomão com ninguémlogo no icio,
e ao final uma advertência: “mantenha o segredo”. Além disso, encontramos ingredientes
como sementes de gergelim, cominho preto e carvão de vinhas como componentes associa-
dos a um ritual que também inclui voces magicae.
Não é, pois, surpreendente encontrarmos uma variante cris que aponta elementos
semelhantes aos que viemos mapeando até aqui.
Feitiços e lendas de cura para problemas
Oxyrynchus 1384 é um texto que consiste de três receitas médicas (para um
purgativo, uma bebida medicinal para alguém que está com dificuldades pa-
ra urinar, e um cataplasma para ferimentos) e duas lendas de cura. No pri-
meiro relato lendário, a ordem pouco usual dos membros da trindade cristã
(“em [nome do] pai e do santo [espírito e do] filho”, 20 22) pode possi-
velmente sugerir que o espírito santo era considerado a mãe divina (compa-
re com Oxyrynchus 924 [texto 15]).
TEXTO
Ingredientes para um laxante: [lista de ingredientes]
+ [três homens] nos encontraram no deserto [e disseram ao senhor] Je-
sus, “que tratamento é possível para os doentes?” E ele diz a eles, “[eu] dei
óleo de oliva e derramei mirra [para aqueles] que crêem no [nome do] pai e
do santo [espírito e do] filho”.
+ Os anjos do senhor subiram até o [meio] dos céus, sofrendo de pro-
blemas nos olhos e segurando uma esponja. O filho do senhor diz a eles,
“porque subiram, ó santos e totalmente puros?”
“subimos para receber cura, Ó Yao Sabaoth, porque és poderoso e for-
te.”
+ Para dificuldade em urinar, ... [lista de ingredientes]
+ Para o tratamento de feridas ... [lista de ingredientes]
218
Encontramos aqui uma variante do tema das palavras mágicas, a saber, as historiolas
que narram a origem dos medicamentos e procedimentos adotados. Percebe-se, portanto, a
íntima relação entre a narrativa da origem “sagrada” dos medicamentos prescritos e a sua
217
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 56.
218
MEYER, Marvin W.; SMITH, Richard. Ancient Christian Magic: Coptic Texts of Ritual Power. P. 31. O
cabeçalho em itálico consta na obra consultada.
65
eficácia. Seria o mesmo que exigir que, a cada aplicação de penicilina, fosse narrada a des-
coberta da mesma por Alexander Fleming. Jesus é lembrado, também, como ensinador de
mistérios farmacológicos. um exemplo claro da associação entre palavras mágicas e in-
gredientes para rituais no PMG IV. 286 295.
Feitiço para colher uma planta: utilize antes do nascer do sol. O feitiço a
ser falado: “Estou te colhendo, tal e tal planta, com minha mão de cinco de-
dos, eu, NN, estou te levando para casa de forma que operes em meu favor
determinado propósito. Eu te adjuro pelo nome não-profanado / de deus: se
não deres atenção a mim, a terra que te produziu não mais será regada até
onde isso te diz respeito por toda a vida, se eu falhar nesta operação,
MOUTHABAR NACH BARNACHŌCHA BRAEŌ MENDA LAUBRA-
ASSE PHASPHA BENDEŌ; cumpra por mim o encantamento perfeito.
219
Este texto deixa muito claro que o problema ligado às ervas o é, pois, puramente
farmacogico. toda uma concepção de que estas ervas estão associadas ao poder dos
deuses. John Scarborough argumenta que
As percepções gregas e romanas das causas básicas das propriedades farma-
cêuticas em particular aquelas das plantas fundiam continuamente dados
religiosos e empíricos; e o padrão de pensamento em seus múltiplos níveis
sobre a ação das drogas, primeiramente enunciado por Homero, permaneceu
bastante consistente através dos séculos da farmacologia grega, romana e bi-
zantina. Este padrão combinava a convicção no poder divino das drogas
fossem estes benéficos ou deletérios com observações profundas reunidas
por fazendeiros no decorrer de centenas de gerações; e as propriedades (dy-
nameis) atribuídas às variadas farmaka eram, freqüentemente, amálgamas de
rituais venerados fundidos aos efeitos farmacêuticos cuidadosamente dedu-
zidos, por exemplo, a associação da cila com as cerimônias de purificação e
seu tratamento na Materia Medica de Dioscorides. As dynameis das ervas e
drogas poderiam ser vistas “racionalmente” através de meios mágico-
religiosos, por alguém que também assumia a divindade básica do mundo
como um todo (e portanto dos homens e das plantas que viviam neste mun-
do) ou pelas explicações aceitas da astrologia botânica.
220
Tendo levado em conta estas características sicas dos Papiros gicos Gregos, a
saber, os nomes divinos de diversas culturas, o segredo que por vezes é associado à prática,
as listas de palavras mágicas, as listas de medicamentos, agora abordaremos dois tipos de
feitiços bastante comuns e que o relevantes para nossa pesquisa. Trata-se, primeiramente,
do que se convencionou chamar de katadesmoi ou defixiones e, em segundo lugar, de feiti-
ços relacionados a exorcismos.
Um exemplo de feitiço para atar é encontrado aqui:
219
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. pp. 43 – 44.
220
SCARBOROUGH, John. “The Pharmacology of Sacred Plants, Herbs and Roots”. In. FARAONE, Christo-
pher A.; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. pp. 138 – 174. A citação é da página 162.
66
PMG VII. 396 – 404
Um excelente feitiço para silenciar, sujeitar e atar: Pegue chumbo de um
cano de água fria e faça uma lamella e inscreva, com um stylus de bronze,
conforme mostrado abaixo, e a coloque com uma pessoa que morreu prema-
turamente. [símbolos] / BACHYCH [mais símbolos e voces magicae]. Ate.”
(acrescente o usual, conforme desejar).
221
Encontramos aqui o padrão usual de ritualização, uso de objetos especiais e as voces
magicae. O imperativo “ate” é o elemento distintivo das katadesmoi. Tais feitiços buscam,
de alguma maneira, impedir e / ou atrapalhar as ações de um inimigo percebido pelo execu-
tante do feito. Segundo Faraone, “as defixiones, portanto, oferecem um meio de atar ou
restringir os inimigos sem os matar”.
222
Encontramos um caso curioso de feitiço para atar que visa provocar o silêncio das
pessoas as quais se dirigia:
PMG VII. 940 – 968
Um encantamento para atar a ira e um encantamento para sujeitar: Em um
papiro limpo escreva com tinta de mirra pura estes nomes juntamente com a
“estela”:
[DESENHO]
“Venha até mim, tu que habitas nos ares eternos, tu que és invisível, todo-
poderoso, criador dos deuses. Venha até mim, tu que és o daimon invencível.
Venha até mim, tu que nunca lamentas pelo teu próprio irmão, Seth. Venha
até mim, espírito incandescente como fogo. Venha até mim, tu ó Deus que
não deve ser desprezado, tu daimon, e silencie, subordine, escravize ele, NN,
a este, NN, e faça com que ele esteja sob meus pés”.
223
A divindade invocada aqui é Osíris, morto por seu irmão Seth. O interessante é que,
neste caso, o daimon é identificado com o deus invocado, e de maneira claramente benéfica.
Este daimon deveria produzir o efeito desejado pela pessoa que empregava este feitiço. Não
que daimons benéficos sejam novidades: o PMG I. 1 42 trata-se, justamente, de um ritual
para conseguir um daimon para auxiliar o mágico. O cabeçalho do referido texto informa
que “Um [daimon vêm] como um assistente que revelatudo a ti, claramente, e será teu
[companheiro e] comerá e dormirá contigo”.
224
221
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 128.
222
FARAONE, Christopher A. “The Agonistic Context of Early Greek Binding Spells”. In. FARAONE, Chris-
topher A.; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. p. 10.
223
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 143.
224
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 3.
67
É curioso percebermos, porém, que até mesmo a divindade judaica podia ser associada
a um ritual para atar e silenciar adversários:
PMG IX. 1 – 14
“Te darei descanso da ira e acalmarei tua raiva. Venha, senhor BAINCHŌ-
ŌŌCH, com teu pai ANIBAINCHŌŌŌCH, com tua mão CHECHPHIŌ,
com teus dois guarda-costas [série de voces magicae]. Sujeite, silencie e es-
cravize toda raça de pessoas, tanto homens quanto mulheres, com seus aces-
sos de ira, e aqueles que estão sob a terra debaixo dos s dele, NN, especi-
almente assim e assim (acrescente o usual, conforme desejar), porque puses-
te sob meus pés, como meu manto, o coração de SABAŌTH.”
No verso da lamella: “EULAMŌ SISIRBBAIĒRSESI PHERMOU CH-
NOUŌR ABRASAX. Sujeite, escravize, e silencie a alma, a ira [dele, NN],
porque eu te adjuro pela necessidade premente [voces magicae]”. Na frente,
escreva o nome da pessoa.
A introdução ao rito: “Eu te darei descanso da ira / e acalmarei tua raiva /
venha silenciosamente e traga / silêncio e o mantenha. / Faça cessar toda ira
nas almas / e derreta toda a raiva / daqueles irritados / porque eu te invoco no
teu nome autêntico, BAINCHŌŌŌCH”. Diga este nome, [escrito] no topo
da folha de metal: “IAŌMORMOROTOKONBAI”.
225
De fato, dado o sincretismo testemunhado nos Papiros Mágicos Gregos, não causa es-
tranheza encontrarmos, quase que “por acidente”, a expressão coração de SABAŌTH” em
um rito para atar e silenciar adversários. E, claro, temos aqui o padrão já conhecido de obje-
tos ritaulísticos, voces magicae, etc.
Se, por um lado, encontramos um uso positivo da terminologia daimon, os PMG tam-
bém testemunham rias fórmulas e rituais destinados contra os demônios. O primeiro texto
que veremos é paradigmático de uma forte valorizão do deus judaico como capaz de ex-
pulsar daimons indesejáveis:
PMG IV. 1227 – 1264
Rito excelente para expulsar daimons: Fórmula para ser dita sobre sua cabe-
ça: Coloque ramos de oliveira perante ele / e fique em pé atrás dele e diga:
“Salve, Deus de Abraão; salve, Deus de Isaque; salve, Deus de Jacó; Jesus
Chrestos, o Espírito Santo, o Filho do Pai, que está acima dos Sete / que está
dentro dos Sete. Traga Iao Sabaoth; que teu poder seja emitido a partir dele,
NN, até que tu expulses este daimon impuro, Satã, que está dentro dele. Eu
te conjuro, daimon, / quem quer que sejas, por este deus, SABARBARBA-
THIŌTH SABARBARBATHIOUTH SABARBARBATHIŌNĒTH SA-
BARBARBAPHAI. Saia, daimon, quem quer que sejas, e fique longe dele,
NN, / agora, agora; imediatamente, imediatamente. Saia, daimon, porque eu
225
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 148.
68
te ato com grilhões inquebráveis de adamantina, e eu te entrego ao caos es-
curo em perdição.”
Preparação: pegue sete ramos de oliveira; para seis deles, / amarre as duas
extremidades de cada par, mas o que restar utilize como um chicote enquan-
to profere a conjuração. Mantenha segredo; está comprovada.
Após expulsar o daimon, pendure ao redor dele, NN, um filactério, que o pa-
ciente veste após a expulsão do daimon um filactério com estas coisas [es-
critas] em / uma folha de estanho: “[série de voces magicae], protejam-no,
NN.”
226
De novo há a ordem de se manter segredo do ritual, encontrada anteriormente. Uti-
liza-se ramos de oliveira, como se fosse uma verdadeira benzedura, para efetuar gestos du-
rante a conjuração. Além disso, uma ordem ao demônio de que não volte, que lembra
palavras atribuídas a Jesus sobre a sda e volta de um espírito imundo (Q 11. 24 26 // Mt
12. 43 45). A esta ordem para não voltar, porém, esassociado o filactério no qual se
encontram escritas voces magicae, para garantir que o demônio não mais voltará a atormen-
tar a pessoa liberta. A própria conjuração, porém, já apresenta o nome de Jesus Chrestos,
227
e uma aparente confusão trinitária”, pela citação, após Jesus, do Espírito Santo e do Filho
do Pai.
Encontramos, enfim, o padrão observado aqui de maneira mais completa no
PMG IV. 3007 – 3086
Um encantamento de Pibechis testado para aqueles possuídos por de-
mônios
Tome óleo de azeitonas imaturas com a erva mastigia e a polpa do fruto do
lótus, e os afervente com manjericão incolor enquanto diz “[Voces Magicae],
saia de NN” (acrescente o usual). O Filactério: em uma lamella de estanho,
escreva “[Voces Magicae]”, e a pendure no paciente. É aterrorizante para to-
dos os daimon, algo que ele teme. Após colocar [o paciente] próximo [a vo-
cê], conjure. Esta é a conjuração: “Eu te conjuro pelo deus dos hebreus, Je-
sus, [Voces Magicae], que aparece em fogo, que está no meio da terra, neve
e névoa, TANNĒTIS; que teu anjo, o implacável, desça e deixe-o designar o
o daimon que voa ao redor desta forma, que deus formou em seu santo paraí-
so, porque eu oro ao santo deus, [invocando] [Voces Magicae]. Eu te conju-
ro, [Voces Magicae]. Eu te conjuro por aquele que apareceu a Osrael em
uma coluna brilhante e uma nuvem de dia, que salvou seu povo de Faraó e
fez vir sobre Faraó as dez pragas por causa de sua desobediência. Eu os con-
juro, todos os espíritos demoníacos, a dizerem de qual tipo são, porque eu os
conjuro pelo selo que Salomão pôs na língua de Jeremias, e ele lhe contou.
Vocês também digam de qual tipo são, celestiais ou aéreos, ou terrestres ou
226
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 62.
227
O que recorda o erro do historiador romano Tácito.
69
subterrâneos, ou do mundo dos mortos ou Ebousaeus ou Cherseus ou Phari-
saeus, digam de que tipo são, porque eu os conjuro pelo deus, portador de
luz, invencível, que sabe o que no coração de todos os seres vivos, aquele
que formou do a raça dos humanos, aquele que, após os retirar da obscu-
ridade, reúne as nuvens, rega a terra com chuvas e abençoa seus frutos, [a-
quele] ao qual todos os poderes celestiais dos anjos e dos arcanjos louvam.
Eu te conjuro pelo grande deus SABAŌTH, por causa do qual o rio Jordão
recuou e o mar Vermelho, o qual Israel cruzou, se tornou intransponível,
porque eu te conjuro por aquele que introduziu as cento e quarenta línguas e
as distribuiu por sua própria vontade. Eu te conjuro por aquele que queimou
os gigantes teimosos com raios, ao qual o céu dos céus louva, o qual as asas
dos querubins louvam. Eu te conjuro por aquele que pôs as montanhas ao re-
dor do mar [ou] um muro de areia e ordenou ao mar que não transbordasse.
O abismo obedeceu; e vocês obedecem, todos os espíritos demoníacos, por-
que eu lhes conjuro por aquele que faz os quatro ventos se moverem junta-
mente com os santos aions, [o] semelhante ao céu, semelhante ao mar, seme-
lhante às nuvens, doador de luz, [o] invencível. Eu [lhes] conjuro por aquele
na santa Jerusalém, perante o qual o fogo inextinguível queima eternamente,
com seu santo nome, [Vox Magica], aquele perante o qual a ardente Gehenna
treme, as chamas circundam, os ferros se arrebentam e todas as montanhas
temem desde suas fundações. Eu lhes conjuro, todos os espíritos demonía-
cos, por aquele que supervisiona a terra e faz suas fundações tremerem, [a-
quele] que tornou todas as coisas que não eram naquelas que são.”
E eu te adjuro, aquele que receber esta conjuração, a não comer carne de
porco, e todo espírito e daimon, de qualquer tipo que seja, será sujeitado a ti.
E enquanto conjurar, assopre uma vez, assoprando ar das pontas dos s até
o rosto, e será designado. Mantenha-se puro, porque este encantamento é he-
braico e é preservado entre homens puros.
228
Neste texto, encontramos toda a farmacopéia associada aos rituais mágicos logo no i-
cio. Diferentemente do texto anterior, neste caso a lamella é utilizada para a própria ex-
pulo do demônio e não para mantê-lo fora da pessoa exorcizada. As voces magicae apa-
recem em rios pontos do texto, e o próprio nome de Deus aparece como SABAŌTH, o
que indica que, ele próprio, é considerado uma vox magica. ainda a confusão evidente de
Jesus com o “deus dos hebreus”, o que trai o (des)conhecimento do autor do mesmo sobre
as tradições hebraicas. O que é curioso, porque o autor age como se conhecesse diversos
epidios da narrativa bíblica, citados como forma de conjurar os demônios. Até encontra-
mos, na seção final do texto, a advertência a o comer carne de porco associada a idéia
de que o encantamento é “hebraico e é preservado entre homens puros”. Em outras palavras,
fica bastante evidente que o autor do texto conhece muito superficialmente alguns episódios
blicos e alguma coisa sobre as restrições alimentares judaicas, mas não mais que isso. E,
228
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. pp. 96 – 97.
70
ainda assim, tais elementos estão subordinados à necessidade de aumentar a eficácia do ri-
tual.
229
Do ponto de vista da “técnica gicaempregada, devemos destacar a pergunta sobre
o tipo de denio envolvido no exorcismo. Isso pode ser observado em Mc 5. 9, onde Jesus
pergunta pelo nome do demônio, e então consegue expulsá-lo do endemoninhado gerase-
no. Mas há uma menção que poderia passar despercebida, mas que é reveladora: o autor
conjura o denio pelo selo de Salomão. De fato, Flávio Josefo observa, em relato bastante
conhecido, como Salomão era considerado um exorcista de primeira linha na Antiguidade:
Deus também lhe permitiu aprender a técnica que expele demônios, que é
uma ciência útil e benéfica aos homens. Ele também compôs tais encanta-
mentos pelos quais tais males são aliviados. E ele legou o modo de utilizar
os exorcismos, pelo qual se expulsam demônios, de forma que não retornem
mais; e este método de cura é de grande uso até hoje; porque eu vi um certo
homem, de minha própria nação, cujo nome era Eleazar, libertar pessoas en-
demoninhadas na presença de Vespasiano, e de seus filhos, e de seus capi-
tães, e de toda a multidão de seus soldados. O modo da cura era esse: ele co-
locava um anel, que tinha uma raiz de um dos tipos mencionados por Salo-
mão, sob o nariz do endemoninhado, após o que ele retirava o demônio pelas
narinas da pessoa; e quando, imediatamente, o homem caía, ele lhe advertia
a não regressar mais, ainda fazendo menção de Salomão, e recitando os en-
cantamentos que ele compusera. E quanto Eleazar queria persuadir e de-
monstrar aos espectadores que ele tinha tal poder, ele colocava nas proximi-
dades uma taça ou bacia cheia de água, e ordenava ao demônio, enquanto sa-
ía do homem, a virá-la, e assim fazia os espectadores saberem que ele havia
deixado o homem; e quando isso era realizado, a habilidade e sabedoria de
Salomão foram cabalmente demonstradas: por este motivo, que todos os
homens saibam da vastidão das habilidades de Salomão, e como ele era a-
mado por Deus, e que as extraordinárias virtudes de toda sorte as quais este
rei possuía não sejam desconhecidas por nenhum povo sob o sol por este
motivo, afirmo, é que falamos tanto destas questões.
230
Encontramos aqui, em forma narrativa, quase exatamente o que vimos no caso acima.
Ao invés de “Jesus, deus dos hebreus”, temos o nome de Salomão na berlinda. Porém ali
estão as raízes, as técnicas, a ordem para não voltar, o uso de um objeto mágico o anel,
bem como uma menção aos “encantamentos” que devem ser recitados. Não podemos ter
certeza de que se tratariam de voces magicae, mas isso é bastante possível.
Não podemos esquecer um texto sobre Apolônio de Tiana, também conhecido como
exorcista.
231
229
LUCK, George. Arcana Mundi. p. 190.
230
JOSEFO, Flávio. Antigüidades Judaicas. VIII. 45 - 49
231
Para maiores informações sobre esta figura da Antiguidade, remetemos à tese de doutorado de CORENLLI,
Gabriele. Sábios, Filósofos, Profetas ou Magos? Equivocidade na recepção das figuras de thêioi ándres na li-
teratura helenística: a magia incômoda de Apolônio de Tiana e Jesus de Nazaré. Tese de Doutorado. São
71
Apolônio discutia o problema das libações, e um jovem almofadinha estava
presente em sua prédica. O jovem tinha uma reputação terrível, a ponto de
ter sido certa vez alvo de canções do “cabaré sobre rodas”. Ele era de Corc-
yra e traçava seu pedigree até Alcino o Fenício, o anfitrião de Odisseu. Apo-
lônio discorria sobre as libações e instava sua audiência a não beber de uma
taça específica, mas guardá-la para os deuses sem tocá-la ou beber dela. Em
certo momento, ele instava com eles para que colocassem alças na taça e que
derramassem a libação sobre a alça, sendo esta a parte da qual os homens
praticamente nunca bebem. O jovem explodiu em um riso alto e vulgar. A-
polônio olhou para ele e disse: “Não és tu que te portas desta maneira insul-
tuosa, mas o demônio que te leva a fazer isso, e tu não o sabes”. O jovem
não tinha idéia alguma de que estava possuído. Ele costumava rir de coisas
que ninguém ria, e então caía aos prantos sem qualquer motivo, e ele costu-
mava falar e cantar consigo mesmo. Ora, a maioria das pessoas achava que
era a exuberância da juventude que o punha em tais humores, mas ele era na
verdade o bocal do demônio, e ele parecia estar embriagado quando não es-
tava [texto incerto]. Quando Apolônio lhe olhou, o fantasma [nele] começou
a chorar de medo e raiva soava como pessoas sendo queimadas e tortura-
das e jurou deixar o jovem em paz e nunca mais possuir qualquer pessoa
novamente. Apolônio falou-lhe rudemente, da maneira como um mestre fala
a um escravo furtivo, malandro, desavergonhado, e lhe ordenou a deixar o
jovem em paz e dar um sinal de que o havia feito. O demônio disse: “Sim,
vou derrubar aquela estátua ali”, e ele apontou para uma das estátuas no pór-
tico do rei, porque foi lá que tudo isso aconteceu. Ora, seria impossível des-
crever a comoção da multidão e a maneira que bateram suas palmas, maravi-
lhadas quando a estátua inicialmente balançou suavemente e depois desabou!
O jovem esfregou seus olhos, como se recém tivesse acordado, e olhou para
o sol radiante. Ele estava muito envergonhado porque todo mundo lhe olha-
va fixamente. Ele não mais parecia dissoluto, nem tinha mais aquela aparên-
cia amalucada: ele havia retornado para seu “eu” verdadeiro, como se tivesse
sido curado por uma droga. Ele abandonou suas roupas chiques e vestimen-
tas elegantes e todos os outros requisitos de sua vida de sibarita e se enamo-
rou da austeridade [filosófica], pôs o manto [do filósofo] e moldou seu cará-
ter no de Apolônio.
232
Uma vez mais encontramos o padrão de ordenar o denio a não voltar mais. Temos
aqui, tamm, uma demonstração da eficácia do exorcismo por algum sinal visível, confor-
me o caso do exorcismo de Eleazar. Apolônio, porém, é mais direto na sua maneira de exor-
cizar: a ele bastam um olhar e uma repreensão severa. Perceba-se, porém, as palavras duras
que ele precisa empregar cognatas do verbo frequente nos exorcismos neotestamentários,
“repreender” (evpitima,w). Apolônio se apresenta como um “mestre” perante seus escravos.
um desnível de poder que propicia o exorcismo. É porque Apolônio é mais forte que o
demônio que este deve lhe obedecer.
Um último texto nos parece relevante neste mapeamento:
Bernardo do Campo: UMESP, 2001.
232
FILOSTRATO, Vida de Apolônio de Tiana 4. 20. Apud. LUCK, George. Arcana Mundi. pp. 217 – 218.
72
PMG III. 218 – 232.
[...]
[218] “Todo-poderoso é o deus, mas tu és o maior,
Ó imortal; Eu te rogo, resplandeça agora,
Senhor do mundo, SABAŌTH, que vela o pôr do sol
Desde a alvorada, ADŌNAI, que, sendo um mundo,
Sozinho entre os imortais viaja o mundo, autodidata,
Não-ensinado, viajando em meio ao mundo,
Àqueles que com um clamor te despertam à noite.
AKRAMMACH[ARI], KA ... K ...
Que se regozijam nas oferendas de louros, nos portões
Do indômito Estígio e Morte, a Árbitra,
A ti adjuro, selo de deus, diante do qual todos os imortais
Deuses do Olimpo tremem e daimons que
Permanecem preeminentes, diante do qual o mar
É ordenado a ficar em silêncio quando ouve.
Te adjuro pelo poderoso deus Apolo.
AEĒIOYŌ
Também diga isso: “Envie até mim o daimon que me darespostas sobre
tudo a respeito do que eu lhe comandar a falar”. E ele fará isso acontecer.
[232]
233
Neste caso, o daimon no final do trecho citado é benéfico: ele quem traas respostas
pedidas por aquele que faz o ritual. No trecho citado, também aparece com proeminência o
deus judaico na forma de voces magicae , mas também o deus Apolo. É, pois, mais um
caso do sincretismo observado nos Papiros Mágicos Gregos. É curioso, pois, observarmos a
expressão “diante do qual o mar é ordenado a ficar em sincio quando ouve”. Aquilo que se
observou na esfera dos katadesmoi comandos para atar pessoas, silenciá-las, etc. e nos
exorcismos, ordens para o demônio sair, etc. agora é aplicado ao próprio mar, na forma
narrativa. Pode-se, pois, vislumbrar o próprio deus ordenando silêncio!” ao mar. O que,
evidentemente, nos lembra aão de Jesus na perícope de Marcos 4. 35 – 41.
Por isso convém observarmos, conforme nos lembra Faraone, um dos tipos de kata-
desmoi / defixiones que mais nos interessa aqui. Segundo Faraone, trata-se da
1. Fórmula de atamento direto. O defigens (lit., “aquele que ata”) emprega
um verbo na primeira pessoa do singular que age diretamente sobre as
vítimas ou partes especificadas de seus corpos, por exemplo, katadô ton
deina (“Eu ato NN”). [...] A fórmula de atamento direto (no. 1) é melhor
descrita como uma forma de locução performativa que é acompanhada
por um ato ritualmente significativo, seja a distorção e perfuração de
uma tabuinha de chumbo ou (mais raramente) o atamento das mãos e
pernas de uma pequena efígie.
234
Adiante no seu texto ele repete a definição:
233
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. pp. 24 – 25.
234
FARAONE, Christopher A. “The Agonistic Contexto f Early Greek Binding Spells”. In. FARAONE, Chris-
topher A.; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. p. 5.
73
1. A fórmula de atamento direto, que é uma locução performativa, isso é,
uma forma de encantamento pela qual o defigens almeja manipular a sua
vítima de modo automático.
235
Para deixar clara a conexão de katadesmoi e exorcismo nos evangelhos, bastará citar-
mos Marcos 5. 3: “o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia
prendê-loleia-se “atá-lo”, pois o verbo grego é de,w. Outro exemplo: em Marcos 3. 22
30, a controvérsia de Jesus com os escribas sobre sua autoridade para exorcizar, encontra-
mos a seguinte menção: “Ninguém pode entrar na casa do valente para roubar-lhe os bens,
sem primeiro amarrá-lo; e então lhe saqueará a casa.” É o mesmo verbo, o mesmo de,w.
Parece, então, que em Marcos se fundem a linguagem dos katadesmoi dirigidos na maioria
das vezes contra outras pessoas à linguagem e técnicas exorcísticas testemunhadas em
ambiente judaico e dos Papiros Mágicos Gregos.
2. Identidade tica e o caso do hino de auto-exaltação de
Qumran
A descoberta dos Manuscritos do Mar Morto
236
revolucionou os estudos hisricos e
blicos, desde as concepções sobre o judaísmo do período do segundo templo até o emer-
gente movimento de Jesus e o cristianismo primitivo.
237
Seria posvel, agora, uma recons-
trução acadêmica mais rica do que teria sido a matriz judaica por volta da virada da era,
somando-se à documentação da blia Hebraica, do Novo Testamento cristão e dos assim-
chamados livros “apócrifosou, preferencialmente, “pseudepígrafos”. Após um momento
inicial de ceticismo quanto à autenticidade e relevância desse achado arqueogico, a resis-
tência ao seu estudo foi evidentemente vencida.
235
FARAONE, Christopher A. “The Agonistic Contexto f Early Greek Binding Spells”. In. FARAONE, Chris-
topher A.; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. p. 10.
236
Detalhes sobre a descoberta podem ser encontrados em FITZMYER, Joseph A. 101 Perguntas Sobre os Ma-
nuscritos do Mar Morto. pp. 19 25; GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Textos de Qumran. pp. 15 29;
GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. “The Dead Sea Scrolls”. In. GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino; TRE-
BOLLE BARRERA, Julio. The People of the Dead Sea Scrolls. pp. 3 16; VERMES, Geza. The Dead Sea
Scrolls in English. pp. xiii xiv. SHANKS, Hershel (org.). Para Compreender os Manuscritos do Mar Mor-
to: uma coletânea de ensaios da Biblical Archeological Review. pp. xiii – xxxvii, 3 20; SHANKS, Hershel.
The Mystery and Meaning of the Dead Sea Scrolls. pp. 4 – 60.
237
VERMES, Geza. The Dead Sea Scrolls in English. pp. xxvi xxxv. VERMES, Geza. “Significance of the
Scrolls for Understanding Christianity”. In. The Journal of Religious History. Vol. 26, no. 2 (Junho de 2002).
pp. 210 219; VANDERKAM, James C. “Os Manuscritos do Mar Morto e o Cristianismo”. SHANKS, Her-
shel (org.). Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto: uma coletânea de ensaios da Biblical Archeo-
logical Review. pp. 190 – 211.
74
De fato, os MMM têm uma história de pesquisa longa e complexa.
238
Vale lembrar
que, desde a descoberta em 1948, os textos foram sendo paulatinamente publicados, com
uma exploo no volume de manuscritos liberados aos pesquisadores a partir do início da
década de 90. Era queixa comum o acesso restrito aos documentos, ciumentamente guarda-
dos por seus responsáveis que, vez ou outra, forneciam acesso aos mesmos a seus próprios
estudantes.
239
Para possibilitar uma melhor compreensão deste achado, os manuscritos e o próprio
tio arqueológico de Khirbet Qumran têm sido submetidos a uma série de análises em labo-
ratórios ao redor do mundo. Resumidamente,
240
temos a datação dos manuscritos por radio-
carbono (método do Carbono-14),
241
sendo que a metodologia atual requer apenas alguns
miligramas de material como amostra para testes (a nova Espectrometria de Acelerador de
Massa EAM); a tentativa de identificar espécies de plantas do sítio e datá-las; análises de
DNA para determinar de que escie animal vieram este ou aquele pergaminho, sendo que
uma questão importante é se, por exemplo, eram parte do mesmo rebanho (o que permitiria
aproximar famílias de manuscritos). A análise dos objetos de vidro ainda é recente, mas o
parece produzir resultados interessantes. Além desses métodos, é preciso citar a busca por
cavernas e túmulos por radar, o uso de técnicas modernas de imagem para leitura dos tex-
tos,
242
considerações sobre as tintas usadas uma preta, a outra vermelha -, a análise dos
esqueletos
243
, a análise do próprio gesso utilizado nas paredes,
244
entre outros. Parece, por
238
HARDING, Mark. “Introduction II: Recent History of Dead Sea Scrolls Scholarship”. In. The Journal of
Religious History. Vol. 26, no. 2. pp. 145 156. TROMPF, Garry W. “Introduction I: The Long History of
Dead Sea Scrolls Scholarship”. In. The Journal of Religious History. Vol. 26, no. 2 (Junho de 2002). pp. 123
– 144. VERMES, Geza. The Dead Sea Scrolls in English. pp. xiv – xxxv.
239
VERMES, Geza. The Dead Sea Scrolls in English. pp. ix xii. Comparar as introduções à 3ª. edição e à 4ª.:
Vermes vocifera, com certa razão, contra o “gueto” formado pelos acadêmicos responsáveis pela publicação
dos MMM. Chama-os de “reacionários” na 4ª. edição, e na 3ª. de “preguiçosos”. Alhures (p. xxi) os chamará
de “procrastinadores” e “egoístas”. Bem mais sensacionalista é a teoria exposta por BAIGENT, Michael;
LEIGH, Richard. As Intrigas em Torno dos Manuscritos do Mar Morto, segundo a qual os MMM não eram
publicados por uma conspiração do Vaticano! Contra esta interpretação, vide FITZMYER, Joseph A. 101
Perguntas Sobre os Manuscritos do Mar Morto. pp. 179 182. Ver também SHANKS, Hershel. “Estaria o
Vaticano Impedindo a Publicação dos Manuscritos do Mar Morto?”. In. SHANKS, Hershel (org.). Para
Compreender os Manuscritos do Mar Morto. pp. 291 306; TREBOLLE BARRERA, Julio. “The Qumran
Finds Without a Hint of Scandal”. In. GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino; TREBOLLE BARRERA, Julio.
The People of the Dead Sea Scrolls. pp. 17 – 29.
240
Neste parágrafo, resumimos idéias de MAGEN, Broshi. “The Dead Sea Scrolls, the Sciences and New Tech-
nologies”. In. DSD 11, 2. pp. 133 – 144.
241
Uma descrição dos pressupostos por detrás desta técnica pode ser encontrada em FITZMYER, Joseph A. 101
Perguntas Sobre os Manuscritos do Mar Morto. pp. 34 – 35.
242
O maior beneficiário desta técnica, segundo o artigo que ora resumimos, é o Gênesis Apócrifo.
243
Difícil devido às leis do Estado de Israel. Análises preliminares, porém, parecem apontar para uma expectati-
va de vida menor em Qumran do que, por exemplo, no cemitério de Jericó.
244
O gesso de Qumran parece demonstrar que o uso do sítio definitivamente não era nem militar, nem industrial.
75
fim, que Khirbet Qumran era um sítio autônomo na produção de cerâmica,
245
sendo que a
argila utilizada na sua confecção parece ter vindo das cercanias de Jerusalém. Além disso,
os próprios remanescentes têxteis o analisados. Sem falar, naturalmente, no jogo de que-
bra-cabeças
246
envolvido em muitos casos.
247
Esta introdução serve, apenas, para sublinhar as inúmeras dificuldades materiais com
as quais nos deparamos ao nos voltarmos para os restos de documentos encontrados nas
cavernas de Khirbet Qumran. Muitas questões que seriam relevantes para a análise deste ou
daquele fragmento são, portanto, desconhecidas. Devemos, então, pisar com tato nesse ter-
reno movedo, uma vez que a própria análise da cultura material não oferece, de mais a
mais, toda a guarida que gostaríamos de ter para a análise dos textos propriamente ditos.
Não como ter certeza, por exemplo, se este ou aquele manuscrito eram uma obra só, ou
textos separados. o certeza quanto a datas embora, neste sentido, haja em geral uma
“faixa” de plausibilidade neste quesito, verificada por diversos métodos independentes.
248
Eis, pois, o texto de 4Q491c
249
8 [...] fez maravilhosamente coisas terríveis [...]
9 [... na for]ça de sua potência exaltam os justos e se alegram os santos
[...] em justiça
10 [...] estabeleceu Israel desde sempre; sua fidelidade e os mistérios de
sua prudência em [...] valor
11 [...] e o conselho dos pobres para uma congregação eterna. [...] os per-
feitos
250
12 [... et]erno; um trono de força na congregação dos deuses sobre o qual
não se assentará nenhum dos reis do Leste, e seus nobres não [...] silêncio
(?)
251
13 [...] minha glória incomparável}
252
e fora de mim ninguém é exal-
tado. E não
253
vem a mim,
254
porque eu moro em [...], nos céus, e não há
255
245
O artigo em pauta sugere que isso tem a ver com as regras de pureza da comunidade.
246
Cf. a analogia de ABBEG JR., Martin G. “Who Ascended to Heaven? 4Q491, 4Q427, and the Teacher of
Righteousness”. In. EVANS, Craig A; FLINT, Peter W (eds.). Eschatology, Messianism, and the Dead Sea
Scrolls. Grand Rapids / Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company. pp. 61 – 62.
247
STEGEMANN, Hartmut. Como Juntar os Fragmentos dos Manuscritos do Mar Morto?”. In. SHANKS,
Hershel (org.). Para Compreender os Manuscritos do Mar Morto: uma coletânea de ensaios da Biblical Ar-
cheological Review. pp. 259 – 269.
248
FITZMYER, Joseph A. 101 Perguntas Sobre os Manuscritos do Mar Morto. pp. 35 38. GARCÍA MARTÍ-
NEZ, Florentino. Os Textos de Qumran. pp. 30 – 34.
249
Os números em negrito, nas margens esquerdas, indicam as linhas do fragmento. Aqui seguimos a tradução
para o português disponível em GARCÍA MARTÍNEZ, Florentino. Os Textos de Qumran. p. 162. Nas notas
de rodapé que se seguem estão aportes de outras traduções, que sugerem alternativas aos vocábulos e expres-
sões. As fontes utilizadas para comparação são SMITH, Morton. “Two Ascended to Heaven Jesus and the
Author of 4Q491 11. i”. In. SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh. Vol. 2. pp. 74 75. VERMES,
Geza. The Dead Sea Scrolls in English. p. 147. A edição crítica dos Manuscritos do Mar Morto BAILLET,
Maurice (ed.). Discoveries in the Judaean Desert. Vol. VII: “Qumrân Grotte 4 – III (4Q482 – 4Q520). pp. 26
– 29.
250
Smith = [El Elyon me deu um assento entre] aqueles perfeitos para sempre.
251
Smith = ... seus nobres não [se aproximarão dele].
76
14 [...] ... Eu sou contado entre os deuses e minha morada está na congre-
gação santa; [ ... meu de]sejo não é segundo a carne [e] tudo o que me é pre-
cioso está na glória
256
15 [... o lu]gar santo. Quem foi considerado desprezível por minha causa?
E quem é comprável a mim em minha glória? Quem, como os marinheiros,
voltará para contar?
257
16 [...] Quem [...]
258
as penas como eu? E quem [...]
259
angústia que se
pareça a mim? Não ninguém. Fui instruído, porém não ensinamento
comparável.
260
17 [...] E quem me atacará quando eu abrir [minha boca]? E quem pode
suportar o fluxo de meus lábios? E quem me enfrentará e manterá a compa-
ração com meu juízo?
261
262
18 [...] Pois eu sou contado entre os deuses, e minha glória está com os fi-
lhos do rei. A mim o ouro puro e a mim o ouro de Ofir
263
19 [...] Vacat [...] Vacat [...]
20 [...] os justos no Deus de [...] na morada santa, entoai [...]
21 [...] proclamai na meditação o gozo [...] na alegria eterna; e não ...
[...]
22 [...] para estabelecer o chifre de ... [...]
23 [...] para dar a conhecer o seu poder com força [...]
24 [...] ... [...]
É evidentemente difícil trabalhar com um texto fragmenrio.
264
Als, a designação de
“4Q491, fragmento 11, coluna 1” é enganosa trata-se, na verdade, de um texto composto
de nove fragmentos.
Esse caráter fragmentário, evidentemente, gera controvérsias. A edição crítica original
desse texto saiu em DJD 7, pelas mãos de M. Baillet. o foi, porém, uma reconstrução
literária que ficou sem críticas.
Um julgamento mordaz, repleto de alternativas de leitura, veio pela pena de Morton
Smith.
265
Segundo ele, a atribuição de Baillet de 4Q491c ao Rolo da Guerra, e sua própria
252
Smith = Nenhum Edomita será como eu em glória
253
Vermes = Ninguém
254
Smith = Não vem contra mim
255
Smith = porque eu me assentei na [congregação] dos céus e ninguém [acha defeito em mim.]
256
Smith = Eu não desejo [ouro], como o faria um homem carnal; tudo o que me é precioso é a glória do [meu
Deus]
257
Smith = [do meu equivalente?]
258
Smith = ri das penas
259
Smith = é como eu em carregar o mal?
260
Smith = Além disso, se eu exponho a lei em uma palestra [minha instrução] é incomparável [com a de qual-
quer homem]
261
Vermes = Quem me convocará para ser destruído pelo meu julgamento?
262
Smith = E quem me chamará a juízo e será meu igual? Em meu julgamento legal [ninguém se erguerá contra]
mim
263
Smith = Nem o ouro refinado, nem ouro de Ofir [podem se igualar a minha sabedoria]
264
Vide fotos dos fragmentos em BAILLET, Maurice (ed.). Discoveries in the Judaean Desert. Vol. VII: “Qu-
mrân Grotte 4 – III (4Q482 – 4Q520). Anexos ao final, planche VII.
265
A partir de agora, dialogamos com o artigo SMITH, Morton. “Two Ascended to Heaven Jesus and the Au-
77
intitulação deste fragmento como o “Cântico de Miguel o inadequadas. Smith aponta
para a possibilidade de haver conexão deste texto com os Hodayot, os hinos de ações de
graçasde Qumran. Expressões como a insistência no sofrimento, a liberdade dos desejos
da carne, o orgulho pelo ensinamento incomparável, a admissão na companhia dos anjos,
glória como a de Deus, etc., teriam paralelos nestes hinos. Segundo Smith, o “euque tanto
aparece em 4Q491c é uma pessoa que arroga para si o status divino:
... os fragmentos de Qumran forneceram um pequeno poema por algum e-
gomaníaco que alegava ter feito justamente aquilo que eu conjeturei que Je-
sus fizera, isto é, ter entrado no reino celestial e garantido uma cadeira vitalí-
cia, enquanto ainda fazia baldeações para a terra e ministrando seu ensina-
mento aqui.
266
Para Smith, o importante é que, neste fragmento, diferentemente dos textos pseude-
pigráficos, a alegação de ter-se assentado com os ʼelîm seria feita por uma pessoa que estava
viva, e não por um herói morto do passado como o Mois entronizado de Ezequiel, o
Tragicista.
Ezequiel Tragicista é uma obra redigida por volta do século II a.E.C. Todavia, é co-
nhecida apenas em fragmentos citados por Eusébio, Clemente de Alexandria, e um “pseudo-
Eustathius”. É uma obra escrita numa métrica típica grega, o trímetro iâmbico. Deve provir
de Alexandria, mesmo que tal atribuição geográfica não seja certeza.
267
É importante desta-
car que este texto, segundo Jonas Machado, faz parte da corrente de tradão que postula um
Moisés angelomórfico, entronizado e com um quê de divino
268
exatamente como o Cristo
do apocalipse. O paralelo se estende desde o versículo 67b até 89a.
E Ezequiel também fala sobre estas coisas na Exagogê, incluindo, além dis-
so, o sonho que foi visto por Moisés e interpretado pelo seu sogro. O próprio
Moisés fala com seu sogro em diálogo: No pico do Sinai eu vi o que parecia
ser um trono tão grande que tocava as nuvens do céu. Sobre ele se assentava
um homem de aparência nobre, coroado, e com um cetro em uma mão en-
quanto com a outra ele me compelia. Me aproximei e fiquei em diante do
trono. Ele me alcançou o cetro e me pediu subisse no trono, e deu a mim a
coroa; Então ele próprio se retirou do trono. Observei toda a extensão da ter-
ra ao meu redor; Coisas sob ela, e muito acima dos céus. Então aos meus pés
uma multidão de estrelas se precipitaram, e eu sabia o seu número. Elas pas-
thor of 4Q491. 11 – i”. In. SMITH, Morton. Studies in the Cult of Yahweh. Vol. 2. pp. 68 – 78.
266
SMITH, Morton. “Two Ascended to Heaven Jesus and the Author of 4Q491. 11 i”. In. SMITH, Morton.
Studies in the Cult of Yahweh. Vol. 2. p. 73.
267
A discussão completa está em CHARLESWORTH, James H (ed.). The Old Testament Pseudepigrapha. Vo-
lume 2: Expansions of the “Old Testament” and Legends, Wisdom and Philosophical Literature, Prayers,
Psalms, and Odes, Fragments of Lost Judeo-Hellenistic Works. Pp 803 - 807. A obra está nas páginas 808
819.
268
MACHADO, Jonas. “O Mito de Moisés Divino Entronizado nos Céus: Leituras Míticas da Figura de Moisés
na Literatura Judaica e sua Recepção no Cristianismo Primitivo”. In. Revista Oracula, v. 1. n.2. 2005.
78
saram por mim como fileiras de homens armados. Então, apavorado, acordei
do sonho. E seu sogro interpreta o sonho como se segue: Meu amigo, Deus
te deu este como um sinal para algo bom. Gostaria de poder viver para ver
estas coisas acontecerem. Porque você causará o erguimento de um poderoso
trono, e você próprio regerá e governará os homens. Quanto a contemplar
toda a terra povoada, todas as coisas abaixo e acima do céu de Deus: coisas
do presente, do passado e do futuro verás.
Com sua mordacidade usual, Smith ainda afirma que é melhor supormos que o gru-
po do Mar Morto ou outros grupos produziram mais que um poeta arrogante com uma no-
ção exagerada da própria santidade”.
269
Isso significaria, evidentemente, que pelo menos
sessenta anos antes da crucifixão de Jesus havia pessoas fazendo alegações semelhantes
às que encontramos no Evangelho de João.
Quem também discutiu este texto foi John Collins.
270
Aliás, sua discussão parte, jus-
tamente, da ctica de Smith à atribuição do texto por Baillet ao anjo Miguel. Embora ele
não concorde completamente com a opinião de Smith, concorda que a pessoa é provavel-
mente humana, uma vez que veio a ser reconhecido entre os deuses” e ensina ambos e-
lementos que indicariam uma origem terrena. Contra a identificação do falante com Miguel,
aponta para o fato de que Miguel nunca fala no Rolo da Guerra. Collins pensa, então, que
se 4Q491c está associado ao Rolo da Guerra, então poderia ser um sacerdote entoando o
cântico. Porém Collins parece concordar com Smith ao achar improvável a atribuição de
4Q491c ao Rolo da Guerra, pensando, juntamente com ele, na associação aos Hodayot.
Em um excurso intitulado “paralelos nos Hodayot”, Collins cita a associação de
4Q491c a fragmentos do Hodayot 4Q427 7 e 4Q471b - o que confirmaria a tese de Smith.
Sobre 4Q427 7, Collins afirma que é clara sua conexão aos Hodayot das cavernas 1 e 4,
uma vez que sobreposição de conteúdos. O importante, porém, é que no caso de 4Q427
7, o início do fragmento parece se sobrepor a 4Q491c. Já 4Q471b se sobrepõe tanto a
4Q491c quanto a 4Q427 7. Embora Strugnell tenha atribuído este fragmento ao Rolo da
Guerra, Collins segue o editor atual, Esti Eshel, e considera que este fragmento é indepen-
dente. Segundo Collins, “as correspondências verbais entre 4Q491 e 4Q471b são muito pró-
ximas para serem meramente variantes sobre um mesmo tema”.
271
269
SMITH, Morton. “Two Ascended to Heaven Jesus and the Author of 4Q491. 11 i”. In. SMITH, Morton.
Studies in the Cult of Yahweh. Vol. 2. p. 77.
270
A partir de agora, discutimos COLLINS, John J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea
Scrolls and Other Ancient Literature. pp. 136 – 153.
271
COLLINS, John J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Litera-
ture. p. 138.
79
Todos os fragmentos têm em comum a noção de comunhão com os anjos, familiar
dos Hodayot. Porém o “trono de poder na congregação dos deuses” e a alegação de ter-se
“assentado” nos us não teria paralelos nem em 4Q471b nem em 4Q427 7. Por isso, a o-
missão da alegação de 4Q471b, “quem é como eu entre os deuses? provavelmente mais
fácil de adicionar do que omitir pode indicar que 4Q491 preservaria a versão mais antiga
do texto testemunhado também por 4Q427 7 e 4Q471b.
O tema da subida aos céus, segundo Collins, é testemunhado especialmente a partir do
período helenístico. Collins observa que Gershom Scholem havia apontado para o fenô-
meno da “ascenção aos céus”, em seu As Grandes Correntes da stica Judaica.
272
O pri-
meiro relato do tipo estaria no Livro dos Vigilantes, parte de 1Enoque. O único outro relato
do tipo seria sobre a subida de Levi, no Acrifo Aramaico de Levi de Qumran. Este texto
tem uma forma posterior no Testamento dos Doze Patriarcas.
Já o tema da entronização teria paralelos em 3Enoque, que narra a subida de Rabi I-
shmael e sua conversa com Metatron (que também era Enoque) que tinha um trono nos
céus. A data, porém, é tardia e o é o rabi que é entronizado. Collins cita
11QMelquisedec, mas lembra que o menção ao Salmo 110 e, portanto, não é provável
que neste caso seja um “messias davídico” entronizado nos us. Talvez Daniel 7 pressupo-
nha entronização no céu. Porém nas Similitudes a figura do “filho do homem”, oriunda de
Daniel 7, senta-se no trono da glória e é chamado de messias. Mas neste caso, o é um
ser que tenha “subido aos usjá estava lá. 4Q521 frag. 2 promete que os justos recebe-
rão tronos no reino eterno. Assim também se promete em 1Enoque 108. A Ascenção de Isa-
ías também faz promessas deste tipo. Mas todos estes casos são escatológicos.
Collins, então, se volta, como Smith, para o texto de Ezequiel, o Tragicista, que cita-
mos e comentamos acima. Collins, porém, sublinha que o relato de subida aos us
propriamente dita, aliás, nem de céu o texto fala portanto, não é subida. Mas Collins, ain-
da assim, chama este texto de “apoteose de Moisés”.
273
Collins aponta, ainda, para a obra de
Wayne Meeks, que parte da Vida de Moisés de Fílon: “Porque ele foi nomeado deus e rei de
toda a nação”. Mesmo que os paralelos mais próximos sejam da diáspora egípcia, ainda as-
272
SCHOLEM, Gershom. As Grandes Correntes da Mística Judaica.
273
COLLINS, John J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Litera-
ture. p. 145.
80
sim Collins afirma que sua posterior emergência nos Midrashim sugere que ela teve sua
fonte na exposição do livro do Êxodo na terra de Israel”.
274
Voltando a 4Q491, Collins argumenta que provavelmente se trataria de uma virtual
apoteose. Todavia, não geografia celeste, nem subida propriamente dita (ao contrário do
que Smith afirmava). Collins, como Smith, aponta para a semelhança de 4Q491 aos Hoda-
yot, hinos nos quais teríamos um tipo de “escatologia realizadaem meio a assembléia an-
gélica junto à comunidade que celebrava. Ainda assim, 4Q491 contrasta com os Hodayot
por suas afirmações ousadas de “quem é como eu em minha glória?A menção a ensina-
mento, segundo Collins, pareceria apontar para uma analogia mais pxima com Mois do
que com Davi em termos de “entronização celestial”. Porém, o autor em questão o pensa
que se deva identificar o “eu” de 4Q491 com o Mestre de Justiça. Talvez, segundo ele, seja
mais apropriado associar esta figura misteriosa ao sacerdote/mestre escatogico do final
dos tempos, caso a associação de 4Q491 com o Rolo da Guerra seja correta.
Fundamental, para nossa discussão, é o comentário final de Collins:
O interesse primário neste fragmento não está na identificação específica do
falante, que nunca poderá ser certa, mas na noção de uma figura humana en-
tronizada nos céus, em um contexto judaico. [...] Em nenhum caso esta “di-
vinização” depõe contra a supremacia do Altíssimo, o Deus de Israel. Mas
claramente envolve a exaltação de algumas figuras humanas a um status que
é imaginado como divino e celestial ao invés de humano e mortal. A distin-
ção aguda entre céus e terra da tradição deuteronomista e de muito da Bíblia
Hebraica não era tão fortemente mantida na época helenística, mesmo no ju-
daísmo falante de aramaico e hebraico representado pelos Manuscritos do
Mar Morto.
275
Em texto posterior,
276
Collins tenta mapear o que os qumranitas entendiam pelo
“mundo celestial”. Embora o material sobre 4Q491 seja quase igual ao que encontramos em
sua obra anterior, interessa-nos aqui a tulo de ilustração seu diálogo com Carol New-
som, responsável por obra de referência sobre os Shirot (os Cantos do Sacrifício Sabático).
A opinião original de Newsom, que uma origem sectária é a hipótese mais
econômica para explicar a origem dos Cânticos, tem muito para recomendá-
la. [...] A seita do Mar Morto fornece um contexto excepcionalmente ilumi-
nador para uma composição deste tipo. A construção imaginativa de um cul-
to celestial elaborado é mais prontamente inteligível como sendo feita por
uma comunidade que havia rejeitado o culto terreno em Jerusalém. Além
disso, seu interesse nos anjos, e uma aspiração para ser contado entre eles no
274
COLLINS, John J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Litera-
ture. p. 145.
275
COLLINS, John J. The Scepter and the Star: The Messiahs of the Dead Sea Scrolls and Other Ancient Litera-
ture. p. 149.
276
COLLINS, John J. Apocalypticism in the Dead Sea Scrolls. pp. 130 – 149.
81
culto, refletem o mesmo universo espiritual que encontramos nos Hodayot.
[...] Eles até tornam possível a participação imaginativa naquele mundo
mesmo antes da morte, pela sua vívida representação da liturgia angelical e
do trono divino.
Esta aproximação de um contexto cúltico, como veremos posteriormente, torna-se
chave hermenêutica interessante para a interpretação do nosso texto em questão, 4Q491.
Martin Abegg Jr. afirma explicitamente trabalhar com base nas hipóteses de Smith e
Collins.
277
Sem nos determos nas diversas questões sobre reconstrução do texto das quais
trata o autor, interessa-nos a sua leitura de 4Q491. Igualmente aos dois autores tratados,
Abegg separa 4Q491 do Rolo da Guerra e, mais que isso, também o associa mais intima-
mente aos Hodayot. Para ele, 4Q427 é claramente ligado a 4Q491 pelas seguintes expres-
es: “ninguém se compara a minha glória. Porque quanto a mim, [meu] ocio é entre os
deuses, [...] Nem ouro puro ou metal precioso [...]”, claros paralelos verbais entre os textos
estudados. “O que temos diante de s em 4Q427, então, é mais uma proclamação de nossa
ousada e misteriosa figura que alega ser contado entre os deuses. De novo, porém, esta figu-
ra não é nomeada”.
278
Segundo Abegg Jr.,
O que quer que concluamos sobre o contexto original das afirmações no ma-
nuscrito III de 4Q491, parece claro que a resposta a nossa busca pela identi-
dade do falante implicado neste texto e em 4Q427 se mantém ou cai de a-
cordo com o nosso julgamento a respeito do autor dos Hinos de Ações de
Graças. Apesar de não podermos ter certeza absoluta quanto à identidade do
falante, o Mestre de Justiça, o reconhecido fundador da comunidade de Qu-
mran, é um forte candidato.
Tal identificação do falante implicado não significa necessariamente que o
Mestre de Justiça histórico tenha de fato alegado ter ascendido aos céus e
tomado seu lugar entre os deuses. O Mestre de Justiça pode ter feito tal ale-
gação, mas também é possível que tal alegação tenha sido feita em prol do
Mestre de Justiça pelo(s) autor(es) dos textos que examinamos.
279
Em outras palavras, ainda estamos dentro do paradigma que tanto Smith quanto Col-
lins, em linhas gerais, esboçaram: o falante do texto é um ser humano, longe, portanto, do
arcanjo Miguel. Mais que isso: tanto Abegg quanto especialmente Collins parecem abrir
277
ABBEG JR., Martin G. “Who Ascended to Heaven? 4Q491, 4Q427, and the Teacher of Righteousness”. In.
EVANS, Craig A; FLINT, Peter W (eds.). Eschatology, Messianism, and the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids
/ Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company. pp. 61 – 73.
278
ABBEG JR., Martin G. “Who Ascended to Heaven? 4Q491, 4Q427, and the Teacher of Righteousness”. In.
EVANS, Craig A; FLINT, Peter W (eds.). Eschatology, Messianism, and the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids
/ Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company. pp. 70 – 71.
279
ABBEG JR., Martin G. “Who Ascended to Heaven? 4Q491, 4Q427, and the Teacher of Righteousness”. In.
EVANS, Craig A; FLINT, Peter W (eds.). Eschatology, Messianism, and the Dead Sea Scrolls. Grand Rapids
/ Cambridge: William B. Eerdmans Publishing Company. p. 72.
82
espaço para uma interpretação que valorize o contexto cúltico, ambiente no qual, dentro do
imaginário da comunidade, os anjos se faziam presentes.
Outro autor que discute o tema em questão é Crispin H.T. Fletcher-Louis.
280
Ninguém pensa que a voz da primeira pessoa do singular dos hodayot está
reservada para o futuro escatológico. É incerto qual papel os hodayot de-
sempenhavam na vida litúrgica e pedagógica da comunidade, mas é certo
que eles eram usados para articular as realidades presentes da comunidade.
De fato, a própria forma “eu” do Hino de Glorificação depõe contra uma lei-
tura escatológica.
281
Para ele, igualmente o Hino de Auto-Exaltação deve ser situado no ambiente litúrgi-
co da comunidade.
Existe, então, um mero de indicações de que Smith estava correto sobre o
Hino de Glorificação registrar uma experiência mística genuína, apesar de
ser no contexto do culto da comunidade. No entanto, de novo, existem sinais
de que não se deva impor ao texto uma aguda divisão entre o formalmente li-
túrgico e o genuinamente experiencial: aqui a liturgia e o misticismo trans-
formacional são inseparáveis.
282
Paulo Nogueira recebe este ambiente cúltico como desafio para a interpretação de
4Q491 e sua posvel coneo com as práticas cúlticas do cristianismo primitivo.
283
Parte,
justamente, da leitura dos Cânticos para situar na comunidade de Qumran o imaginário de
que o culto terreno era paralelo ao celestial, dando-se na companhia de anjos. Passa então a
analisar as recenes A (4Q427 7 I, 4Q471b e 1H
a
) e B do hino de auto-exaltação (nosso
4Q491c). Este autor destaca três campos semânticos de interesse: o primeiro, presente nas
duas recensões, é o que se refere à comunhão com os anjos e a proximidade a Deus. O se-
gundo é o discurso diferenciado, o ensino e a instrução superior. O terceiro são as expres-
es de sofrimento. Para Nogueira, a identificação com o Mestre de Justa, ou com uma
figura escatogica é inadequada. O contexto cúltico parece mais provável:
Mas o contexto específico onde estes elementos que definem a identidade do
grupo são afirmados no Hino de Auto-Exaltação é o culto comunitário. Isto
fica evidente na consideração das expressões de louvor que acompanham as
duas recensões. [...] Estas expressões indicam que o Hino de Auto-Exaltação
estava inserido numa convocação de louvor dirigida à comunidade. As pes-
soas conclamadas não deveriam ser apenas expectadoras da exaltação aos
céus do salmista, mas elas mesmas devem juntar-se a ele [...] Resumindo
280
FLETCHER-LOUIS, Crispin H. T. All the Glory of Adam. pp. 199 – 216.
281
FLETCHER-LOUIS, Crispin H. T. All the Glory of Adam. p. 209.
282
FLETCHER-LOUIS, Crispin H. T. All the Glory of Adam. p. 215.
283
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza. “Culto Extático no Hino de Auto-Exaltação (4Q 471b, 4Q427,
4Q491c): Implicações para a Compreensão de um Fenômeno Cristão Primitivo”. In. Estudos de Religião 22.
pp. 72 – 84.
83
nossa hipótese: o Hino de Auto-Exaltação representa uma experiência de
culto comunitário que abrange toda a comunidade.
É curioso, pois, encontrar no judaísmo da época de Jesus uma expressão cúltica tão
“ousada”. Na formulação das identidades dos indivíduos, encontramos o recurso ao tico.
Isto é, a verdadeira identidade do falante não é a imediatamente tangível na experiência co-
tidiana, mas sim aquela que se revela durante o êxtase cúltico.
Já vimos elementos parecidos a estes nos Papiros gicos Gregos. É freente a as-
similação da pessoa que executa o ritual aos deuses. Já vimos este texto acima, uma invoca-
ção para revelação, na qual o chamados a atender os deuses egípcios e o deus israelita.
Vejamos:
Porque Akshha Shha é meu nome,
Sabashha meu nome verdadeiro,
Shlot Shlot muito valente meu nome.
Então que aquele que está no submundo
una-se àquele que está nos ares
Que se ergam, entrem, e me dêem resposta
Com respeito à questão que lhes faço
O usual.
284
Ao citar três vezes seu nome com variações e como se fossem voces magicae, o
autor do texto es se situando como parte deste mundo de poderes os quais ele invoca. Pode
não ter a dignidade de Sabaoth, Thoth ou Osíris, mas tem a ousadia de se situar como ele-
mento constitutivo deste campo de poder. Pode ser um poder de menor importância, mas
ainda assim sabe jogar com os nomes e divindades envolvidas na busca da revelação.
Já vimos também este texto que recai na classificação ampla dos katadesmoi. Agora
retornamos a ele para elucidarmos esta questão específica da identidade mítica.
PMG XXXVI. 161 – 177
...porque eu glorifico teus nomes sagrados e honrados que estão no céu”.
Para melhorar as palavras: Pegue um papiro e escreva isto: “Eu sou / CH-
PHYRIS. Devo ter sucesso. MICHAĒL RAPHAĒL [Voces Magicae com
nomes de anjos], anjos, protejam-me de toda a situação ruim que me sobre-
vier”.
285
Neste caso, encontramos uma invocação prolongada de anjos. Curiosa, porém, é a jus-
taposição entre os “nomes sagrados e honrados que eso no céu”, os nomes angélicos na
284
MEYER, Marvin W.; SMITH, Richard. Ancient Christian Magic: Coptic Texts of Ritual Power. Pp. 22 – 23.
285
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 273.
84
forma de voces magicae e o do próprio mago: CHPHYRIS. Encontramos, aqui, outro caso
de uso na primeira pessoa do singular de uma vox magica, ou seja: testemunhamos aqui uma
“auto-atribuiçãode identidade mítica em curso. Embora o autor não tenha a ousadia de
dizer que está “assentado entre os ´elim”, ele, de certa forma, se situa em um contexto angé-
lico ainda que de maneira subalterna aos anjos que invoca como seus protetores. Uma vez
mais, apresenta como credenciais o “conhecer” os nomes celestiais, através da expressão “...
porque eu glorifico teus nomes sagrados e honrados que estão nos céus”. o está entre os
´elim, mas participa e conhece os mistérios celestiais.
Outro caso ao qual devemos retornar é o do PMG XXIIb. 1 26.
Oração de Jacó
[...]
“Eu te invoco, ó tu que dás poder [sobre] o Abismo [àqueles] acima, àqueles
abaixo, e àqueles sob a terra; ouça aquele que tem [esta] oração, Ó Senhor
Deus dos Hebreus, EPAGAĒL ALAMN, a quem pertence [o] poder eterno,
ELŌĒL SOUĒL. Sustente aquele que possui esta oração, que é da linhagem
de Israel e daqueles / que foram favorecidos por ti, Ó Deus dos deuses, tu
que tens o nome secreto SABAŌTH ... I ... CH, Ó Deus dos deuses, amém,
amém. [...] Me fortaleça, Mestre; encha meu coração de bem, Mestre, como
um anjo terrestre, como alguém que se tornou imortal, como alguém que re-
cebeu este dom de ti, Amém, amém”.
286
Aqui se expressa, mais propriamente, o desejo de uma pessoa que “possuiesta ora-
ção. E este desejo não é apenas ser fortalecido, mas também ser como um anjo terrestre,
alguém que se tornou imortal. Os motivos para chamar a atenção do deus invocado o “Se-
nhor Deus dos hebreuso dois: primeiro, a pertença à linhagem de Israel, e segundo, o
nome secreto deste deus, SABAŌTHuma palavra hebraica utilizada como vox magica.
Assim, conseguimos fechar este ciclo voltando para de onde partimos: os Papiros
Mágicos Gregos. Não se quis, aqui, postular alguma dependência direta, por exemplo, dos
textos de Qumran para com este corpus literário. O que se quis demonstrar, por outro lado, é
como temas bastante semelhantes embora sempre guardando suas particularidades apa-
recem em materiais o distintos como os que analisamos. Isso deve, afinal, refutar a tese de
John Meier de que os PMG o eso o relacionados aos evangelhos. Se, por um lado,
neste caso uma “relação genética” é insustentável, uma relação cultural ficou bastante evi-
dente inclusive para o evangelho de Marcos e nossa perícope, 4. 3541.
286
BETZ, Hans Dieter. The Greek Magical Papyri in Translation. p. 261.
85
Antes, porém, de analisarmos a influência destes textos a aqui estudados para a
compreensão da nossa perícope, conm examinarmos alguns documentos que (estes sim)
têm relações genéticas maisfortes” com nossa perícope de Marcos.
3. Textos relacionados
O texto que subjaz à nossa perícope de Marcos 4. 35 41 é, sem dúvidas, Jonas 1. 3
17, que, por sua importância, citamos aqui por extenso.
Jonas se dispôs, mas para fugir da presença do SENHOR, para Társis; e,
tendo descido a Jope, achou um navio que ia para Társis; pagou, pois, a sua
passagem e embarcou nele, para ir com eles para Társis, para longe da pre-
sença do SENHOR. Mas o SENHOR lançou sobre o mar um forte vento, e
fez-se no mar uma grande tempestade, e o navio estava a ponto de se despe-
daçar. Então, os marinheiros, cheios de medo, clamavam cada um ao seu
deus e lançavam ao mar a carga que estava no navio, para o aliviarem do pe-
so dela. Jonas, porém, havia descido ao porão e se deitado; e dormia profun-
damente. Chegou-se a ele o mestre do navio e lhe disse: Que se passa conti-
go? Agarrado no sono? Levanta-te, invoca o teu deus; talvez, assim, esse
deus se lembre de nós, para que não pereçamos. E diziam uns aos outros:
Vinde, e lancemos sortes, para que saibamos por causa de quem nos sobre-
veio este mal. E lançaram sortes, e a sorte caiu sobre Jonas. Então, lhe disse-
ram: Declara-nos, agora, por causa de quem nos sobreveio este mal. Que o-
cupação é a tua? Donde vens? Qual a tua terra? E de que povo és tu? Ele lhes
respondeu: Sou hebreu e temo ao SENHOR, o Deus do céu, que fez o mar e
a terra. Então, os homens ficaram possuídos de grande temor e lhe disseram:
Que é isto que fizeste! Pois sabiam os homens que ele fugia da presença do
SENHOR, porque lho havia declarado. Disseram-lhe: Que te faremos, para
que o mar se nos acalme? Porque o mar se ia tornando cada vez mais tem-
pestuoso. Respondeu-lhes: Tomai-me e lançai-me ao mar, e o mar se aquie-
tará, porque eu sei que, por minha causa, vos sobreveio esta grande tempes-
tade. Entretanto, os homens remavam, esforçando-se por alcançar a terra,
mas não podiam, porquanto o mar se ia tornando cada vez mais tempestuoso
contra eles. Então, clamaram ao SENHOR e disseram: Ah! SENHOR! Ro-
gamos-te que não pereçamos por causa da vida deste homem, e não faças ca-
ir sobre nós este sangue, quanto a nós, inocente; porque tu, SENHOR, fizeste
como te aprouve. E levantaram a Jonas e o lançaram ao mar; e cessou o mar
da sua fúria. Temeram, pois, estes homens em extremo ao SENHOR; e ofe-
receram sacrifícios ao SENHOR e fizeram votos. Deparou o SENHOR um
grande peixe, para que tragasse a Jonas; e esteve Jonas três dias e três noites
no ventre do peixe.
As semelhanças o imensas. Primeiro, há uma grande tempestade que ocorre no mar.
A palavra utilizada na LXX para “tempestade” (klu,dwn) aqui difere da de Marcos (lai/lay).
Mas a adjetivação é a mesma, “grande(Jonas: me,gaj Marcos: mega,lh). Uma diferença fun-
damental é o fato de que, em Jonas, o tempo todo esclaro que a tempestade vem da parte
de Deus, mas em Marcos o há menção da origem deste femeno meteorológico.
86
É curioso perceber que o “medo” dos marinheiros começa durante a tempestade, e não
após seu cessar, como é o caso de Marcos. A forma verbal utilizada no verso 5 é a mesma
de Marcos 4 evfobh,qhsan. No mesmo verso, aliás, Jonas é descrito como “dormindo que
ronca” (numa tradução livre de evka,qeuden kai. e;rregcen). A descrição de Jonas coaduna com a
de Jesus, que dormia (kaqeu,dwn).
O despertar também guarda semelhanças: o mestre do navio lhe desperta com uma
pergunta, ti, su. r`e,gceij, “porqtu roncas?”, que é comparável ao dida,skale( ouv me,lei soi
o[ti avpollu,meqa de Marcos (trad. mestre, não te importa que morramos?”). A ação, porém,
de Jonas e Jesus é díspar. Jesus resolve o problema sozinho e rapidamente. Jonas é o pro-
blema.
No verso dez temos uma convergência novel de terminologia. Ao saberem da culpa
de Jonas, somos informados que kai. evfobh,qhsan oi` a;ndrej fo,bon me,gan “e temeram os
homens com temor grande”. São as mesmíssimas formas utilizadas para descrever o medo
dos discípulos em Marcos 4. 41 - kai. evfobh,qhsan fo,bon me,gan “e temeram com temor
grande”. A diferença, porém, é que o temor dos marinheiros os leva a falar para Jonas (kai.
ei=pan pro.j auvto,n), enquanto no caso dos discípulos eles falam entre si (kai. e;legon pro.j
avllh,louj). O verbo empregado é o mesmo, le,gw , mas em Jonas es no aoristo e em Mar-
cos no imperfeito.
Ao final da narrativa de Jonas, no verso 13, temos uma conclusão que não espresen-
te em Marcos cujo texto termina em uma pergunta sem resposta. Trata-se da reação dos
marinheiros após jogarem Jonas ao mar, vendo que o mar se acalmara. A expressão é kai.
evfobh,qhsan oi` a;ndrej fo,bw| mega,lw| to.n ku,rion (“e temeram os homens com grande temor
ao Senhor”). O objeto definitivo de temor e respeito, ao final da narrativa, é o próprio Senhor
que trouxera a tempestade. Tal temor é acompanhado de culto de devoção, como podemos
observar: kai. e;qusan qusi,an tw/| kuri,w| kai. eu;xanto euvca,j (“e sacrificaram sacrifícios ao Se-
nhor e oraram orações/votos”).
Por isso tudo, fica evidente que a narrativa de Jonas é geneticamente” vinculada à nar-
rativa de Marcos, pois seus temas literários são muito assemelhados e há, inclusive, concor-
dâncias literais de terminologia.
Mas esta narrativa de Jonas não gerou apenas a nossa narrativa de Marcos. outros
textos que dependem dela para sua formulação. O primeiro deles é a oração do Rabi Gamaliel
para acalmar uma tempestade no mar. Vem de b. B. Mes. 59b.
Um Tanna ensinou: que grande calamidade sobreveio naquele dia, porque
tudo sobre o que R. Eliezer pôs os olhos foi queimado. R. Gamaliel também
87
viajava em um navio quando uma onda se ergueu para afogá-lo. Ele disse:
parece-me que isso é por conta de ninguém mais que R. Eliezer b Hircanus.
Ele se ergueu e disse: Soberano do Universo, é sabido por ti que eu não agi
por minha própria honra, nem pela honra da casa do meu pai, mas por tua
honra, para que a contenda não se multiplique em Israel. Com isso, o mar se
acalmou.
287
Esta primeira narrativa é menos claramente ligada a Jonas. O problema não é comuni-
tário, é individualizado, uma vez que a onda afeta somente a ele. Nem mesmo tempestade
há. Mas, ainda assim, uma figura piedosa tem suas orações atendidas imediatamente. O mar
se acalma porque ele pediu. Há, também, um causador indireto pra condão de perigo: R.
Eliezer b Hircanus. Embora o seja explícita qualquer associação gica, ainda assim a
menção ao olhar incandescente do mesmo ecoa, vagamente, temas já encontrados nos Papi-
ros Mágicos Gregos. E o próprio Gamaliel, por sua vez, sabe o que se passa, e age de acor-
do com este conhecimento imediato. Não se trata, é claro, exatamente do conhecimento
stico-cósmico dos magos, mas certa semelhança. No caso dos katadesmoi, conhecer a
origem da amarração é começar a solucionar o problema.
288
um relato rabínico que se parece muito com o de Jonas. Vejamos.
R Tanuma disse: uma história sobre um navio de gentios que se singra-
va o grande mar, e havia a bordo um menino judeu. E se ergueu uma grande
tempestade no mar, e cada um deles se ergueu e orava, pegando seu deus nas
suas mãos e os invocando; mas isso não teve nenhum efeito. Quando ele
perceberam que não obtinham sucesso, eles disseram ao judeu: meu garoto,
erga-te, invoque teu Deus porque ouvimos dizer que ele responde a ti quando
clamas a ele, e ele é poderoso. Imediatamente o garoto se pôs em e cla-
mou de todo o coração; e o Santo, bendito seja, aceitou sua oração, e o mar
se acalmou.
Quando alcançaram a terra, todos desceram para comprar aquilo que necessi-
tavam.
Eles disseram ao garoto: Não queres negociar [e obter] algo para si? Ele lhes
disse: o que vocês querem deste pobre estrangeiro?
Eles lhe disseram: tu, um pobre estrangeiro? Eles são os pobres estrangeiros:
eles estão aqui e seus ídolos estão na Babilônia, eles estão aqui e seus ídolos
estão em Roma, eles estão aqui e seus ídolos estão com eles, e eles não ga-
nham nada com isso. Mas tu, onde quer que vás, teu Deus está contigo, co-
mo está escrito [Deut 4. 7]: “[Pois que grande nação há que tenha deuses tão
chegados a si] como o SENHOR, nosso Deus, todas as vezes que o invoca-
mos?”.
Neste caso a dependência de Jonas é evidente. A tempestade vem, os marinheiros in-
vocam seus deuses mas não obtêm resultado algum. Então lhes resta acordar o judeu que
dormia, o garoto. É pela intercessão deste que o mar se acalma. A conclusão é semelhante
287
B. B. Mes.59b. apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. p. 110.
288
Por isso eram muitas vezes enterradas, etc. Cf. FARAONE, Christopher A. “The Agonistic Context of Early
Greek Binding Spells”. In. FARAONE, Christopher A.; OBBINK, Dirk (eds.). Magika Hiera. pp. 9 – 20.
88
tamm a de Jonas: os pagãos reconhecem a superioridade do deus dos judeus, mas ao invés
de sacrificarem e orarem, citam um versículo de Deuteromio. No caso de Jonas, o passa-
geiro era “maldito”, era o problema. No caso do piedoso garoto judeu, ele é a solução.
Isso demonstra que, na tradição judaica, a situação de Jonas no mar havia se tornado
paradigmática. Nosso texto de Marcos, pois, esinserido dentro desta tradição.
um segundo grupo de textos que devemos analisar ainda. Trata-se das tradições ra-
nicas sobre Hanina ben Dosa e Honi -meaggel (“o trador de círculos”). Ambos pare-
cem ser, de certa maneira, baseados na figura de Elias. Que Elias era protótipo de uma pes-
soa que obtinha prodígios climáticos por suas orações é atestado, por exemplo, na Epístola
de Tiago 5. 17 - 18: “Elias era homem semelhante a s, sujeito aos mesmos sentimentos, e
orou, com instância, para que não chovesse sobre a terra, e, por ts anos e seis meses, não
choveu. E orou, de novo, e o céu deu chuva, e a terra fez germinar seus frutos”. Gabriele
Cornelli já fez uma exegese interessante deste texto, na qual destaca as técnicas mágicas que
podem ser vistas nas entrelinhas do mesmo.
Primeiramente, temos a oração de um hassid não identificado.
Aconteceu com um certo hassid que lhe disseram: ore para que a chuva caia.
Ele orou e a chuva caiu. Eles lhe disseram: assim como oraste e a chuva ca-
iu, ore e ela cessará.
Então ele lhes disse: vão lá fora e vejam. Se houver um homem em pé no ke-
ren ophel e balançando seus pés no ribeiro do Cedrom, oraremos que a chu-
va não caia. No entanto, estamos confiantes de que Deus não está destruindo
o mundo.
289
Neste texto, a identificação com Elias ainda não é evidente, mas serve como testemu-
nha do poder da orão no controle do clima. O homem piedoso tem o poder de abrir e fe-
char os céus com sua oração. até a ameaça de um dilúvio para uma oração particular-
mente bem-sucedida, que provocaria chuva em excesso.
Agora passamos à tradição sobre Honi ha-Meaggel.
Aconteceu: eles disseram para Honi, o traçador de círculos: ore para que a
chuva caia.
Ele lhes disse: vão e guardem os fornos da páscoa para que não se dissol-
vam. Ele orou, mas a chuva não caiu; ele desenhou um círculo, se pôs no seu
centro, e disse perante Deus: Mestre do mundo, teus filhos olham para mim
porque eu sou como uma criança da tua casa perante ti. Eu juro pelo teu
grande nome que eu não sairei daqui até que tenhas misericórdia dos teus fi-
lhos. A chuva começou a gotejar.
289
T. Ta ‘an. 3. 8. Apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. p. 89.
89
Ele disse: não foi isso que pedi, mas sim uma chuva para encher as cisternas,
fossos e cavernas. Começou a chover forte.
Ele disse: Não foi isso que pedi; mas sim uma chuva de benevolência, bên-
ção e graça. Ela caiu como devia até que os israelitas subiram ao monte do
templo por conta da chuva. Eles disseram a ele: assim como oraste para que
chovesse, ore para que pare. Ele lhes disse: vão ver se a pedra dos perdidos e
dos achados foi levada.
Simeon b Sheah lhe comunicou: mereces ser excomungado. Mas que posso
fazer, uma vez que és petulante perante Deus como um filho é petulante pe-
rante seu pai, e ainda assim o pai lhe atende às vontades. Este texto é a teu
respeito: “Alegrem-se teu pai e tua mãe, e regozije-se a que te deu à luz”
[Prov. 23. 25].
290
Aqui seguiremos a opinião de Crossan
291
e Gabriele Cornelli,
292
segundo a qual o que
se observa nas tradições acerca de Honi é uma progressiva rabinização desta figura. Um
mago que traça círculos é inaceitável da forma com que se apresenta, então é preciso “de-
sarmar a bomba” e convertê-lo em um rabino. Percebam-se as vozes dissonantes no texto
acima: a oração o funciona. O que funciona, porém, é desenhar um rculo e se portar
com petulância diante de Deus. A expressão “orar” ou “oraçãonunca está na boca de Honi,
e sim do narrador e dos que se dirigem a Honi. De fato, a própria repreensão de Simeon b
Sheah ao final sequer menciona oração pelo contrário, é um tácito reconhecimento de
que, afinal de contas, o petulante Honi é aprovado por Deus em sua ação. O próprio Honi se
coloca como uma pessoa especial na casa do próprio Deus.
A rabinização continua no texto que se segue:
Nossos rabinos ensinaram: certa feita, a maior parte do mês de Adar havia
passado e ainda não chovera. Eles enviaram [uma mensagem] a Honi, o tra-
çador de círculos: ore para que a chuva caia.
Ele orou, mas a chuva não caiu; ele desenhou um rculo e se pôs no seu
centro, assim como Habacuque, o profeta, fez como se diz: “pôr-me-ei na
minha torre de vigia” [2. 1]. Ele disse perante Deus: Mestre do mundo, teus
filhos olham para mim porque eu sou como uma criança da tua casa perante
ti. Eu juro pelo teu grande nome que eu não sairei daqui até que tenhas mise-
ricórdia dos teus filhos. A chuva começou a gotejar. Seus discípulos lhe dis-
seram: Rabbi, nós te vemos, e não morreremos; mas nos parece que esta
chuva só cai para te livrar do teu juramento.
Ele disse: não foi isso que pedi, mas sim uma chuva para encher as cisternas,
fossos e cavernas. Começou a chover forte, cada gota grande como a abertu-
290
M. Ta ‘an. 3. 8. Apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. pp. 90 – 93.
291
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. pp. 178 – 183.
292
CORNELLI, Gabriele. É um Demônio! pp. 123 – 132.
90
ra de um barril, e os sábios estimaram que nenhuma das gotas era menor que
um log. Seus discípulos lhe disseram: Rabbi, nós te vemos, e o morrere-
mos; mas nos parece que esta chuva só cai para destruir o mundo.
Ele disse: Não foi isso que pedi; mas sim uma chuva de benevolência, bên-
ção e graça. Ela caiu como devia aque o povo subiu ao monte do templo
por conta da chuva. Eles disseram a ele: Rabbi, assim como oraste para que
chovesse, ore para que pare.
Ele lhes disse: isso é o que me foi passado, que não se deveria orar, sobre um
bem excessivo. No entanto,tragam-me um novilho de ações de graças [ofer-
ta]. Eles lhe trouxeram o novilho de ações de graças [oferta]; ele pôs ambas
as mãos sobre ele e disse: Mestre do mundo, teu povo, Israel, o qual tiraste
do Egito não são capazes de suportar um bem excessivo ou uma punição ex-
cessiva. Quando te enraiveceste com eles, não puderam agüentar; quando fi-
zeste chover sobre eles bem em excesso, eles não puderam agüentar; que se-
ja do teu beneplácito que haja descanso no mundo. Imediatamente, o vento
soprou, as nuvens se dispersaram e o sol brilhou. O povo saiu aos campos e
trouxeram cogumelos e trufas.
Simeon b Sheah lhe comunicou: se não fosses Honi, eu decretaria tua ex-
comunhão; se estes anos fossem como os anos de Elias, não seria o nome de
Deus profanado por tua causa? Mas que posso fazer, uma vez que és petu-
lante perante Deus como um filho é petulante perante seu pai, e ainda assim
o pai lhe atende às vontades. Se ele lhe diz Abba, me banhe em água morna,
ele o banha; lave-me com água fria, ele o lava; dê-me nozes, pêssegos, a-
mêndoas e romãs, ele lhas dá. Este texto é a teu respeito: “Alegrem-se teu
pai e tua mãe, e regozije-se a que te deu à luz”.
293
Agora, Honi é até chamado de rabino várias vezes. Pede-se por carta que ele ore, e ao
traçar o círculo, acrescenta-se uma menção blica (bastante fora de contexto!) de Habacu-
que. Assim, o ato de se r no centro do círculo perde boa parte de seu poder de chocar os
leitores do texto. Honi é até representado como um devoto, fazendo uma oferta de ação de
graças e recitando a história do povo de Israel. Ainda assim, na intervenção de Simeon b
Sheah permanece a inquietação com a petulância infantil de Honi. Temos aqui, als, uma
das duas menções possíveis a Deus como Abba na literatura rabínica.
294
Mas Honi não era o único que tinha poderes sobre o clima. Vejamos o caso de Hanina
ben Dosa.
R anina ben Dosa estava viajando pela estrada quando começou a chover.
Ele disse: Mestre do universo, todo o mundo estranqüilo, mas anina es
em apuros; a chuva então cessou.
293
B. Ta ‘an. 23a. Apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. pp. 90 – 93.
294
Assim observa MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. p. 93.
91
Quando ele regressou ao lar, ele disse: Mestre do universo, todo o mundo es-
tá em apuros, mas anina está tranqüilo. Então a chuva caiu.
295
Uma vez mais, temos um exemplo de uma pessoa que, por si , é capaz de mover a
vontade de Deus na dirão aquilo que deseja. Seus apuros e sua tranquilidade o motivos
suficientes para fazer com que Deus faça chover ou faça a chuva parar. A contraposão
entre Hanina e o mundoé bastante forte. Nessa balança, os pratos pendem claramente
para o lado de Hanina.
Mas Hanina também causava medo nos demônios, mesmo os mais perigosos:
Não se deve sair sozinho à noite, nem na noite do quarto dia, nem na noite
do Sábado, porque Agrat bat Malat sai com dezoito miríades de anjos des-
truidores, cada um dos quais possui, sozinho, o poder para destruir. Origi-
nalmente eles eram encontrados diariamente. Mas certa vez ela encontrou R
anina ben Dosa.
Ela disse a ele: Se alguém não tivesse clamado aos céus a teu respeito, “cui-
dado com anina ben Dosa e seu ensinamento”, eu teria tentado te fazer al-
gum mal.
Ele disse a ela: se eu gozo de tal estima no céu, então eu declaro que tu nun-
ca mais vagarás sobre a terra habitada!
Ela disse a ele: Eu te rogo, conceda-me algum espaço! Por isso ele concedeu
a ela as noites do Sábado e do quarto dia.
296
O nome de Hanina ben Dosa é tão exaltado que é conhecido no céu e temido pelos
demônios. Isso lhe o poder de limitar a ação de Agrat bat Malat um demônio femini-
no, deve-se dizer. Perceba-se a convergência entre a permissão de Hanina para ação demo-
aca em dois dias da semana e a permissão que Jesus concede à Legião para que entre nos
porcos em Marcos 5. 10 - 13. As palavras de Hanina são capazes de limitar fortemente a
ação demoníaca o que guarda uma convergência, ainda que muito limitada, com as kata-
desmoi que visavamatare “limitaras ões dos adversários do mago. Ele diz as palavras
na primeira pessoa, “eu declaro”, apesar de se basear em seus méritos nos céus.
Assim, percebemos que a própria tradão judaica posterior à redão do Evangelho
de Marcos desenvolveu o tema de Jonas, através de narrativas assemelhadas ao relato te-
ro-testamentário, bem como tinha figuras que tinham controle sobre o clima e sobre demô-
nios, nos moldes de Elias e dos exorcistas judeus como Eleazar. Não o figuras idênticas, é
evidente; mas não se pode deixar de perceber as convergências que assinalamos que, pen-
295
B. Ta ‘an. 24b. Apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. p. 98.
296
B. Pesah. 112b. Apud. MARTIN, Francis (ed.). Narrative Parallels to the New Testament. pp. 101 – 102.
92
samos, nos ajudarão a compreender melhor o universo cultural da narrativa de Marcos 4. 35
– 41, que analisaremos no próximo capítulo.
4. Considerões Finais
O universo cultural no qual o evangelho de Marcos foi escrito guarda, portanto, con-
vergências significativas com a narrativa que analisaremos. Observamos, inicialmente, as
evidências dos Papiros Mágicos Gregos e percebemos neles rios elementos relativos às
voces magicae, aos rituais associados às katadesmoi e aos exorcismos, bem como a profu-
são de ingredientes e técnicas apropriadas para estes fins. Encontraremos isso, em certa me-
dida, na narrativa da Marcos 4. 3541.
Também observamos que um paradigma de identidade mítica se apresentava tanto nos
Papiros Mágicos como amesmo em Qumran, segundo o qual um ser humano poderia, em
certa medida, se igualar ou ao menos participar da esfera de ação divina. Tal paradigma se
observa, de maneira mais clara, no Evangelho de Marcos como um todo e, de maneira parti-
cular, na nossa narrativa de Marcos 4. 35 – 41.
No pximo capítulo, faremos uma exegese do texto para percebermos como se o
estas relações culturais complexas que viemos observando.
93
III – EXEGESE DE MARCOS 4. 35 - 41
Neste capítulo, apresentaremos uma exegese da perícope Jesus Acalma uma Tempes-
tade, situada em Marcos 4. 35 41. Começaremos oferecendo uma tradução literal do mes-
mo, que nos norteará através das demais etapas do trabalho exegético. Ao final, analisare-
mos o conteúdo da perícope e relacioná-lo-emos com o corpo de literatura analisado no ca-
tulo dois.
1. Texto Grego e Tradão Literal
Jesus Acalma uma Tempestade (Mc 4. 3541)
A. Texto Grego
35 Kai. le,gei auvtoi/j evn evkei,nh| th/| h`me,ra| ovyi,aj genome,nhj\ die,lqwmen eivj to. pe,ranÅ
36 kai. avfe,ntej to.n o;clon paralamba,nousin auvto.n w`j h=n evn tw/| ploi,w|( kai. a;lla ploi/a
h=n metV auvtou/Å
37 kai. gi,netai lai/lay mega,lh avne,mou kai. ta. ku,mata evpe,ballen eivj to. ploi/on( w[ste h;dh
gemi,zesqai to. ploi/onÅ
38 kai. auvto.j h=n evn th/| pru,mnh| evpi. to. proskefa,laion kaqeu,dwnÅ kai. evgei,rousin auvto.n
kai. le,gousin auvtw/|\ dida,skale( ouv me,lei soi o[ti avpollu,meq
39
kai. diegerqei.j evpeti,mhsen tw/| avne,mw| kai. ei=pen th/| qala,ssh|\ siw,pa( pefi,mwsoÅ kai.
evko,pasen o` a;nemoj kai. evge,neto galh,nh mega,l
94
40 kai. ei=pen auvtoi/j\ ti, deiloi, evsteÈ ou;pw e;cete pi,stinÈ
41 kai. evfobh,qhsan fo,bon me,gan kai. e;legon pro.j avllh,louj\ ti,j a;ra ou-to,j evstin o[ti kai.
o` a;nemoj kai. h` qa,lassa u`pakou,ei auvtw/|È
B. Tradução literal
35 E disse a eles naquele dia tarde sendo: vamos para a outra margem.
36 E deixando a multidão, levaram-no como estava no barco. E outros barcos estavam com
ele.
37 E aconteceu tempestade grande de vento e as ondas se lançavam contra o barco, de modo
que já era enchido o barco.
38 E ele estava na popa, sobre a almofada dormindo. E despertaram-no e disseram-lhe: mes-
tre, não te importa que morramos?
39 E levantando-se repreendeu o vento e disse ao mar: cala-te, seja amordaçado. E cessou o
vento e aconteceu calmaria grande.
40 E disse-lhes: por que covardes sois? Ainda não tendes fé?
41 E temeram com medo grande e diziam uns aos outros: quem, portanto, este é que ao
vento e o mar obedece
297
-lhe?
2. Alise Literária
2.1. Delimitão
Nosso texto não é de difícil delimitação. A expressão “e disse a eles naquele dia tarde
sendo: vamos para a outra margem.” (Kai. le,gei auvtoi/j evn evkei,nh| th/| h`me,ra| ovyi,aj geno-
me,nhj\ die,lqwmen eivj to. pe,ranÅ) serve como transição para a nova perícope. Através deste
comentário de Jesus, estabelece-se que a continuidade do grupo de dispulos ao redor
dele (“a eles”), bem como a conclusão do dia (“tarde sendo”) no qual as parábolas foram
proferidas (4. 1 4. 34). O pprio tema do “particular” fora avançado no versículo 34 (“E
297
O verbo u`pakou,ei está na forma do presente do indicativo ativo, 3ª pessoa do singular.
95
sem parábolas o lhes falava; tudo, porém, explicava em particular aos seus próprios dis-
pulos”), que serve de conclusão ao bloco das parábolas. Assim, fica claro que nossa períco-
pe principia no verso 35, quando Jesus solicita aos dispulos que fossem todos à outra mar-
gem.
O final também não é difícil de ser detectado. O versículo 41 termina com a pergunta
apavorada dos discípulos, que encerra o epidio com um certo tom de mistério (ti,j a;ra ou-
to,j evstin o[ti kai. o` a;nemoj kai. h` qa,lassa u`pakou,ei auvtw/“quem, portanto, este é que até
o vento e o mar obedece -lhe?). Já em 5. 1, somos informados da chegada à “outra mar-
gem” do mar, à terra dos gerasenos”. Assim, estamos lidando aqui com a próxima perí-
cope, que trata do endemoninhado geraseno.
298
Nossa perícope, então, é conclda naquela
interrogação por parte dos discípulos.
2.2. Análise de Vocabulário e Palavras-Chave
A introdão à perícope, que começa com a iniciativa de Jesus em passar “para a outra
margem” já apresenta um problema literário o qual devemos rastrear. o há, ao longo do
texto, quaisquer menções diretas seja a Jesus, seja aos discípulos. Antes, o que encontramos
é a primeira característica literária marcante do texto: a forte profusão de “a eles”, com
ele”, etc. Os pronomes (especialmente os pessoais) abundam ao longo do texto.
De fato, a lista é grande:
299
no verso 35, temos a forma “disse-lhes [Jesus aos discípu-
los]” (le,gei auvtoi/j - pronome pessoal dativo masculino plural). No verso 36, encontramos a
expressão “levaram-no [os discípulos a Jesus](paralamba,nousin auvto.n pronome pessoal
acusativo masculino singular), bem como “com ele(metV auvtou/ - pronome pessoal genitivo
masculino singular). Este “com ele”, aliás, é interessante, porque faz a ênfase do “acompa-
nhamentodos “outros barcos(a;lla ploi/a) recair sobre o (não-nomeado) Jesus, e não com
o barco no qual estava.
300
No verso 38, encontramos a expressão “e ele [Jesus] estava” (kai.
auvto.j h=n pronome intensivo nominativo masculino singular), despertaram-no [os discípu-
los a Jesus](evgei,rousin auvto.n pronome pessoal acusativo masculino singular), “disse-
ram-lhe [os dispulos a Jesus](le,gousin auvtw/| - pronome pessoal dativo masculino singu-
298
O termo que designa a localidade em questão tem problemas de crítica textual. Cf. MEIER, John P. A Margi-
nal Jew. Vol. 2. p. 651. O autor opta, seguindo Bruce Metzger, pela leitura “região dos Gerasenos”. Cf. tb.
SCHIAVO, Luigi. 2000 Demônios na Decápole. XXX.
299
Aqui não listamos todos os tipos de pronomes do texto, apenas os mais relevantes para nossa análise.
300
Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 925.
96
lar) e não te importa [Jesus com os discípulos](ouv me,lei soi pronome pessoal dativo
singular). No verso 40, temos “disse-lhes [Jesus aos discípulos](ei=pen auvtoi/j pronome
pessoal dativo masculino plural). No verso 41, encontramos “diziam uns aos outros [os dis-
cípulos aos discípulos](e;legon pro.j avllh,louj - pronome recíproco acusativo masculino
plural), “este é [sobre Jesus](ou-to,j evstin pronome demonstrativo nominativo masculino
singular) e “obedece -lhe? [a Jesus](u`pakou,ei auvtw/| - pronome pessoal dativo masculino
singular).
301
Já por estas observações sobre o forte uso de pronomes no texto, sem que haja sequer
uma menção aos discípulos ou a Jesus o mais próximo que se chega disso é o “mestre
(dida,skale) do verso 38 , podemos levantar uma questão a ser posteriormente resolvida.
Vejamos: o contexto no qual a perícope es situada pode (ou não) lhe completar o sentido,
uma vez que só podemos saber que trata de Jesus e dos discípulos apelando para ele. Assim,
qual a importância do contexto para a economia do texto?
É importante, porém, observarmos que a ênfase nos pronomes não nos ajuda, ainda, a
estruturarmos o texto. Devemos prosseguir nossa busca por outro caminho. É importante,
tamm, observarmos que o texto tem várias perguntas. Estas podem se revelar, afinal, co-
mo elementos de estruturação do mesmo. No verso 38, encontramos a pergunta “mestre,o
te importa que morramos”. Já no verso 40, encontramos uma dupla pergunta da parte de
Jesus: “porque covardes sois? Ainda o tendes fé?Finalmente, em 41 temos a pergunta
conclusiva da narrativa: “quem, portanto, este é que até o vento e o mar obedece -lhe?Mas
estas perguntas não são os únicos diálogos da perícope: há também a própria solicitação de
Jesus aos discípulos, que abre a dinâmica narrativa, no verso 35: “vamos para a outra mar-
gem”. Além disso, no verculo 39, Jesus se dirige ao próprio vento e ao mar: “cala-te, seja
amordaçado”.
Logo, podemos perceber que estas perguntas e intervenções por parte de Jesus servem
como elementos que avançam a narrativa: aquele que dispara o curso de ações, Jesus, com
sua fala em 35 é o mesmo sobre o qual paira a pergunta final do verso 41 – “quem, portanto,
este é que até o vento e o mar obedece -lhe?”. Além disso, esta ppria pergunta final está
vinculada ao verso 39, no qual Jesus repreende o vento e fala ao mar, ordenando-lhes que se
acalmem. Isso tudo contribui para dar um sentido de unidade à narrativa como um todo,
301
Uma discussão mais completa se encontra em MEIER, John P. A Marginal Jew. pp. 1004 – 1005.
97
mostrando que a introdução (v. 35) esligada ao final (v. 41) que, por sua vez, remete à
intervenção que resolve a teno narrativa principal da tempestade no v. 39.
Mas a este esquema também pertencem as perguntas retóricas dos versos 38 e 40. À
pergunta rude dos discípulos ainda que retórica corresponde a pergunta dupla de Jesus
em 40. Meier observa que a pergunta dos discípulos é formulada com o uso da partícula ouv,
que indica que a pergunta espera uma resposta afirmativa ao contrário do que indicaria o
uso da partícula mē.
302
Já no v. 40, a resposta de Jesus corresponde tanto em conteúdo como
em forma à pergunta anterior dos discípulos.
303
Essas perguntas retóricas o mais um elemento que vincula a narrativa ao contexto
maior de Marcos. A invectiva de Jesus, por que covardes sois?aponta, primeiramente,
para a situação vivenciada imediatamente, a saber, a tempestade calamitosa. Mas também
aponta para o contexto de Marcos ao perguntar na sequência “ainda não tendes fé?”, como
que a dizer: e tudo que vivenciaram aaqui, de que serviu? Claro, tal pergunta, por outro
lado, também aponta “para a frente”, na medida em que aventa a possibilidade de que os
discípulos, afinal, tenham essa desejada.
Mas essas perguntas e frases de Jesus, conquanto auxiliem na estruturação geral do
texto, não são ainda os elementos estruturais mais determinantes. Estes encontramos na ad-
jetivação tripla “grande”, a saber: no verso 37, temos uma “tempestade grande” (lai/lay
mega,lh). No versículo 39, uma calmaria grande” (galh,nh mega,lh). Por fim, no verso 41,
temos um “grande medo(fo,bon me,gan). Esta divisão tripla do texto, em torno do adjetivo
“grande”, tem a vantagem de realçar os elementos picos de uma narrativa de milagres, os
quais veremos mais adiante quando analisarmos as formas literárias do texto.
304
2.3. Estruturação do Texto e Explicação
Com base nas observações acima, podemos dividir o texto da seguinte maneira:
305
I. Grande tempestade (35 – 38)
a. Transição e preparação para a cena (3536)
b. Descrição da calamidade (37 – 38a)
302
MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 926.
303
Assim MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 927.
304
E esta é a divisão sugerida por MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 929.
305
A divisão em “sete elementos” que propusemos lembra, embora não seja igual, à proposta de SOARES, Se-
bastião Armando Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. p. 212.
98
c. Pergunta dos discípulos (38b)
II. Grande calmaria (39)
a. Intervenção de Jesus (39a)
b. Constatação da mudança da situação (39b)
III. Grande medo (40 - 41)
a. Dupla pergunta de Jesus (40)
b. Grande medo / pergunta conclusiva dos dispulos (41)
É preciso observar que, na estrutura proposta, a primeira parte é a maior de todas. A
descrição introdutória, que intenta preparar a nova cena na narrativa é bastante extensa. Há
uma tensão entre a menção aos “outros barcosno v. 36 e sua ausência no restante da narra-
tiva. Afinal, a partir do verso 37 a preocupação é apenas com “o barco”, e não há qualquer
informação sobre os outros barcos” que seguiam a Jesus. A culminância da situação de
calamidade ocorre quando os dispulos se dirigem a Jesus (que até então dormia em meio à
ela) com uma pergunta retórica rude, à qual Jesus reage levantando-se e repreendendo o
vento e falando ao mar.
Já a parte que trata da intervenção milagrosa de Jesus propriamente dita é bastante e-
conômica. Contrastando, porém, com esta economia, a menção ao conteúdo do que foi
dito, o que torna esta intervenção particularmente interessante. É evidente que, para Marcos,
as poucas palavras proferidas por Jesus se revestem de poder e se revelam imediatamente
eficazes para produzir a “grande calmaria”. Não há, bem dizer, nenhum lapso de tempo en-
tre a vox magicae de Jesus e a constatação da mudança da situação. Isso, é claro, também
estabelece um contraste entre a gravidade da situação, que fora descrita com vivacidade, e a
aparente simplicidade com a qual Jesus lida com ela.
Apenas após essa intervenção milagrosa de Jesus é que ele dirige a palavra aos discí-
pulos, e aí o problema está resolvido (fato devidamente constatado) e, portanto, estamos
nos aproximando do final da narrativa. A resposta de Jesus à pergunta anterior dos discípu-
los (no v. 38) é uma dupla pergunta retórica, censurando-os pela covardia e perguntando por
sua falta de fé. Após estas perguntas de Jesus, a perícope se encerra com mais uma pergun-
ta, desta vez pela identidade deste que comandara com autoridade sobre os ventos e o mar.
Curiosamente, nesta seção de conclusão, portanto, não temos nenhuma aclamação propria-
mente dita (algo que se esperaria numa narrativa de milagre). De fato, Meier observa até
mesmo que a resposta dupla de Jesus é intrusiva e atrapalha um pouco o fluxo normal da
99
narrativa.
306
Voltaremos a essas questões suscitadas pela estrutura do texto quando o anali-
sarmos quanto à sua forma literária.
Antes, porém, devemos analisar o contexto literário de Marcos para situarmos esta pe-
rícope no seu contexto imediato e mais amplo da obra marcana.
2.4. Contexto Literário de Marcos
O evangelho de Marcos, como um todo, tem sido tradicionalmente dividido em duas
grandes partes, cujo ponto de inflexão se dá na narrativa da confissão de Pedro (8. 27 30)
e tamm da transfiguração (9. 2 8). O ponto de virada é a expressãoEntão, começou ele
a ensinar-lhes que era necessário que o Filho do Homem sofresse muitas coisas...” (8. 31).
Tal padrão pode ser observado até mesmo na divio em dois volumes de alguns comentá-
rios sobre Marcos,
307
e é bastante aceita de modo geral.
308
Isso não é uma divisão unâni-
me,
309
mas podemos considerá-la como fundamental ao observarmos o que Theissen tem a
nos dizer sobre um dispositivo literário que coesão à obra como um todo.
306
MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. p. 927.
307
Assim, por ex., GNILKA, Joachin. El Evangelio Segun San Marcos. Vol. 1. SCHNACKENBURG, Rudolf. O
Evangelho Segundo Marcos. Vol. 1.; SOARES, Sebastião Armando Gameleira; NIOR, João Luiz Correia.
Evangelho de Marcos. Vol. 1. Cf. tb. DELORME, Jean. Leitura do Evangelho de Marcos. O autor divide o
evangelho em seis “etapas”, sendo que as três primeiras etapas correspondem à esta divisão dupla e, natu-
ralmente, as três últimas correspondem igualmente à segunda parte da divisão tradicional do evangelho.
308
Aqui nos referimos aos comentários em um volume e também à introdução ao Novo Testamento de Helmut
Koester. BORTOLINI, José. O Evangelho de Marcos. Este autor divide-o também em duas partes, que coin-
cidem em linhas gerais com a representação que viemos adotando. A primeira parte, que vai até 8. 26, é de-
nominada “subindo a montanha” (óbvia referência à transfiguração) e a segunda “descendo a montanha”. As-
sim, a transfiguração aparece como ponto culminante na opinião deste autor. Cf. MYERS, Ched. O Evange-
lho de São Marcos. O autor faz uma divisão parecida com as já analisadas acima, antecipando um pouco, po-
rém, o final da primeira parte. Para ele, a segunda parte começa em 8. 22, com um “novo chamado ao disci-
pulado”, na cura do surdo e cego. KOESTER, Helmut. Introdução ao Novo Testamento. Vol. 2. O autor ade-
re à divisão em duas grandes partes, a primeira terminando na confissão de Pedro em Cesaréia de Filipe (8.
27 30). A segunda começa com o primeiro anúncio da paixão (8. 31). VAN IERSEL, Bas M. F. Mark: A
Reader-Response Commentary. WHITERINGTON III, Ben. The Gospel of Mark. Especialmente pp. 36 – 39.
O autor também vê uma mudança de unidade entre 8. 38 e 9 .1
309
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. O autor sugere uma divisão em cinco partes
mais uma introdução: introdução (1. 45 5. 43) parte: Jesus na Galileia (1. 14 5. 43); 2ª parte: Ativi-
dade de Jesus dentro e fora da Galileia (6. 1 – 9. 50); parte: Última subida à Jerusalém (10. 1 – 52); par-
te: o ministério de Jesus em Jerusalém (11. 1 13. 37); parte: a paixão e ressurreição de Jesus (14. 1 16.
8). Convém observar que tal divisão, ainda que diferente, mesmo assim tem um ponto importante que ocorre
ao longo do capítulo nove (o final da segunda parte). HOOKER, Morna D. The Gospel According to Saint
Mark. A autora divide seu comentário nas seguintes partes: prólogo (1. 1 – 13); Autoridade em funcionamen-
to (1. 14 3.6); Verdade Escondida e Revelada (3. 7 6. 6); Corações duros e falta de (6. 6b 8. 21); O
caminho da cruz (8. 27 10. 52); O rei vem a Jerusalém (11. 1 13. 37); A história da paixão (14. 1 15.
47); Epílogo (16. 1 8). Vê-se, mais uma vez, que a narrativa da cura do cego desempenha papel de separa-
ção de partes na opinião desta autora.
100
O autor argumenta longamente e com bastante propriedade sobre a “composição areta-
gicaem Marcos.
310
Esta composão é constituída por “três arcos” que “unemas narra-
tivas e conferem coesão e sentido ao evangelho como um todo. O primeiro é o arco areta-
gico” propriamente dito.
Os elementos mais importantes desta estrutura composicional principal são,
por um lado, as aclamações proferidas (1. 28; 2. 12; 4. 41; 7. 37; 15. 39) e,
por outro lado, os títulos aclamatórios agora empregados na exposição (6. 2;
6. 14; 8. 28). O que nas unidades menores finaliza as histórias de milagres,
agora no esquema principal forma a exposição de unidades narrativas. E vice
versa: enquanto os títulos aclamatórios podem ocorrer na exposição, no con-
texto geral as aclamações cuja posição está na conclusão de uma história de
milagre também têm força expositiva. Elas transcendem o “presente narrati-
vo” da unidade pequena e apontam para além de si próprias.
311
O segundo arco é a “progressãotica”. Theissen destaca que
Por causa da posição dominante da aclamação no final do Evangelho de
Marcos, preferimos considerar o evangelho não tanto como uma conquista
progressiva da dignidade de Jesus, mas como a revelação sucessiva e reco-
nhecimento de tal dignidade. No batismo, Jesus se torna o Filho de Deus que
tem poder para dominar todos os poderes hostis (adoção). Deus o revela aos
discípulos na transfiguração (apresentação). A cruz é o local onde Jesus faz
uma aparição pública perante o mundo, para ser rejeitado e reconhecido (a-
clamação). Tal reconhecimento que ainda está incompleto é a meta da
pregação através de todo o mundo. Tal reconhecimento de sua majestade por
todo o mundo não acontecerá antes da Parousia (14. 62).
312
Finalmente, temos um “arco biográficosubjacente ao Evangelho de Marcos. Theis-
sem, porém, observa que
O arco erguido pelas lendas biográficas está incompleto em Marcos. A nar-
rativa da paixão não tem a narrativa da infância correspondente: nem mesmo
nos externos temos uma Vita. Não podemos falar em composição biográfica
de evangelho antes de Mateus e Lucas. Em Marcos, instâncias ocasio-
nais de composição legendária ou biográfica. Não é o princípio da vida de
Jesus que lhe interessa, mas o “princípio do Evangelho” (1. 1.), não a unida-
de da Bios, mas a unidade de uma história miraculosa que reclama aclama-
ção. Mesmo se lançou mão da inspiração das vidas do qeiojÄavnh,r populares,
elas não são o modelo para sua obra.
313
310
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 211 – 221.
311
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of The Early Christian Tradition. p. 214.
312
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of The Early Christian Tradition. p. 216.
313
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of The Early Christian Tradition. p. 220.
101
É importante observar, ainda, um detalhe fundamental: segundo Theissen, os três ar-
cos confluem na confissão do centurião ao lado da cruz,
314
em Marcos 15. 39: “Verdadeira-
mente, este homem era o Filho de Deus.”
De fato, parece haver esta progressão da qual fala Theissen. Em Marcos 1. 11, a voz
do u diz a Jesus “tu és o meu Filho amado, em ti me comprazo.” Já na narrativa da trans-
figuração que, como vimos, abre uma nova seção do Evangelho de Marcos há uma fala
sobre Jesus, posta na boca de Deus, que se dirige aos discípulos (9. 7): “Este é o meu Filho
amado.Finalmente, em 15. 39 o centurião fala novamente que este homem era o Filho de
Deus”. É a primeira vez que tal afirmativa aparece na boca de um ser humano até então,
apenas os demônios e seres sobrenaturais a proferiam. E este homem é estrangeiro, por si-
nal.
Não é por acaso, então, que nossa perícope se ligue diretamente ao exorcismo inaugu-
ral de Jesus na sinagoga de Cafarnaum.
Não tardou que aparecesse na sinagoga um homem possesso de espírito i-
mundo, o qual bradou: Que temos nós contigo, Jesus Nazareno? Vieste para
perder-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus! Mas Jesus o repreendeu, di-
zendo: Cala-te e sai desse homem. Então, o espírito imundo, agitando-o vio-
lentamente e bradando em alta voz, saiu dele. Todos se admiraram, a ponto
de perguntarem entre si: Que vem a ser isto? Uma nova doutrina! Com auto-
ridade ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem!
315
É importante perceber que, neste caso, o demônio afirma conhecer Jesus de Nazaré.
Afirma que ele é o “santo de Deus(a[gioj tou/ qeou/), que aqui faz as vezes de “filho de
Deus”. Mais que isso: a ão de Jesus é imediata: ele o repreende para que saia do homem.
A palavra grega utilizada neste caso é evpeti,mhsen, do verbo evpitima,w. É o mesmo verbo que
encontramos em nossa perícope, no verso 39. Jesus repreende o vento e fala ao mar. Tal asso-
ciação léxica não parece ser casual. É muito provável que Marcos pense, no caso da nossa
perícope, que os ventos e o mar sejam forças demoníacas, cuja fúria só pode ser revertida com
uma ação que em muito lembra um exorcismo.
Ched Myers chama atenção à outra semelhança entre nossa perícope e o exorcismo i-
naugural na sinagoga de Cafarnaum:
316
314
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of The Early Christian Tradition. p. 220.
315
Marcos 1. 23 – 27.
316
uma dissertação de mestrado produzida aqui na UMESP que trata especificamente desta perícope. NETO,
Antonio Lazarini. Messias Exorcista: Combate aos Espíritos Imundos e a Estrutura do Evangelho de Marcos
(Exegese de Mc 1. 21 – 28). São Bernardo do Campo: UMESP, 2006. 184 p. Dissertação de Mestrado.
102
O espanto dos discípulos lembra o da multidão na sinagoga, antes em 1, 27,
e como duplo modo de entender é impressionante. Pois, como o espírito im-
puro lá, os elementos aqui são “silenciados” (phimousthai: 1. 25; 4. 39); eles
“escutam” (hupakouein, 4. 41) a Jesus; mas os discípulos, que também rece-
beram a mesma ordem, ouvirão (4. 3, 9, 20)?
317
Mais que isso: Gabriele Cornelli é mais enfático ao afirmar que o ensinamento de Je-
sus é intimamente ligado à magia:
Num estudo da didach, de Jesus na literatura sinótica, de maneira especial, o
que mais chama a atenção é sua estreita relação com a magia, especialmente
a cura. Desde o começo de sua vida pública Jesus é comparado com os ou-
tros dida,skaloi. A multidão reage à sua primeira atividade pública, um exor-
cismo na sinagoga de Cafarnaum, com a seguinte expressão: “Que é isto?
Um ensinamento novo, cheio de autoridade?” (didach. kainh. katV evxousi,an).
Aqui, a didach, de Jesus é dita, literalmente, com evxousi,a. [...] A expressão
toi/j pneu,masi toi/j avkaqa,rtoij evpita,ssei( kai. u`pakou,ousin auvtw/| indica
claramente que tipo de evxousi,a está relacionada com a didach, de Jesus: um
poder mágico.
318
Neste ponto, começa a aparecer uma ligação da nossa perícope com o discurso por pa-
rábolas, que perfaz a maior parte do capítulo 4 (versos 1 a 34). São ditas, aqui, aliás, algu-
mas das poucas palavras de Jesus em todo o Evangelho.
319
Mas há outro elo de ligação entre
o discurso de parábolas por Jesus e nossa perícope. Ele esem 4. 1: “Voltou Jesus a ensinar
à beira-mar. E reuniu-se numerosa multidão a ele, de modo que entrou num barco, e se as-
sentou no mar, e toda a multio estava diante do mar sobre a terra.”
320
Aqui temos, em um
verculo apenas, a menção ao barco (ploi/on) e três menções ao mar (qa,lassa).
321
Isso não
parece, evidentemente, casual. Há ainda outra menção, claramente proléptica, a um “barqui-
nho(ploia,rion) em 3. 9.
322
Isso se , aliás, em um contexto no qual a fama de Jesus lhe
provoca problemas: por um lado as multidões que o cercam (3. 7), por outro os fariseus e
herodianos que conspiram para lhe tirar a vida (3. 6). Ele se retira para o mar (3. 7), e em
um sumário de curas (3. 11) temos o fascinante relato: “Também os espíritos imundos,
quando o viam, prostravam-se diante dele e exclamavam: Tu és o Filho de Deus!” o po-
317
MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. pp. 243 - 244.
318
CORNELLI, Gabriele. ‘A Magia de Jesus’. In. CHEVITARESE, André Leonardo; CORNELLI, Gabriele;
SELVATICI, Monica. Jesus de Nazaré: Uma Outra História. p. 90.
319
Diferente de Mateus e seus cinco grandes discursos (Mt 5 – 7, 10, 13, 18 , 24 – 25), de Lucas e seu sermão da
planície e dos longos monólogos joaninos.
320
Não menção que Jesus tenha se sentado no barco. No grego original, ele se senta sobre o mar. Esta citação
se baseia na tradução do Almeida, mas foi modificada em alguns pontos para explicitar o que queremos aqui.
321
Isso nos lembra, entre outros: SOARES, Sebastião Armando Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia. Evan-
gelho de Marcos. p. 211.
322
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 227.
103
demos, ainda, esquecer da menção a Jesus como mestre (dida,skale) dentro do barco, em 4.
38.
Então, parece que Meier tem razão ao afirmar categoricamente que
no princípio do Evangelho, no seu relato do primeiro dia do ministério de
Jesus em Cafarnaum (1. 21 28), Marcos enfatizou a conexão entre a auto-
ridade da palavra de ensinamento de Jesus e a autoridade de sua palavra ope-
radora de milagres (1. 27). Marcos, agora, um longo exemplo do mesmo
nexo pela justaposição do discurso por parábolas (4. 1 – 34) aos milagres re-
alizados no e ao redor do Mar da Galiléia (4. 35 – 5. 43).
323
De fato, já Martin Dibelius chamava a atenção para a unidade representada pelo ciclo
iniciado pelo acalmar da tempestade:
Antes de podermos examinar o trabalho do evangelista como colecionador e
editor, devemos considerar a questão até que ponto as peças originalmente
separadas estavam unidas como complexos, como os que Marcos empre-
ga. Que narrativas estavam unidas mesmo na tradição antiga, é visto mais
claramente no entremeamento da história de Jairo com a cura da mulher com
fluxo. Aqui, a união é tão próxima que não a podemos considerar como se
originando no evangelista como editor. A maneira de combinar de Marcos é
vista nos versos, Marcos vi 45s, com o qual ele junta a narrativa da cami-
nhada sobre o mar com a da alimentação dos 5000. Provavelmente o ciclo
completo, Marcos iv. 35 v. 43 surgiu antes mesmo de Marcos. Aqui, é a
topografia que mantém unidas pelo menos as primeiras histórias, porque a
cura do endemoninhado deveria acontecer em uma região gentia, e portanto
deveria haver uma travessia do mar.
324
De fato, houve quem visse nesta unidade uma fonte pré-marcana. Paul Achtemeier
publicou um artigo intitulado “Towards the Isolation of Pre-Marcan Miracle Catenae no
Journal of Biblical Literature de 1970,
325
no qual ele argumenta que uma fonte pré-
marcana para o ciclo duplo de milagres que ocorre nos capítulos 4 8. Tal artigo é citado,
inclusive, por Crossan, embora ele lhe faça reparos:
Cada seqüência começa com um milagre no mar, seguido de três curas (sen-
do que uma delas é sempre ligada a um exorcismo), e se encerra com um mi-
lagre que envolve alimentos. Trata-se de uma teoria bastante convincente,
ainda mais se pensarmos no primeiro e último milagre de cada grupo dentro
da tradição de Moisés, e nos milagres intermediários numa ligação com Elias
e Eliseu. Há, no entanto, um grande problema. É bem mais provável que a
dupla seqüência de milagres em Marcos 4. 35 – 8 seja fruto de uma repetição
deliberada e tardia: o milagre de Marcos 6. 33 44, do complexo Pão e Pei-
xe [1/2], teria sido repetido em 8. 1 – 10 e o milagre de Marcos 6. 45 – 52, de
128 Andando sobre a água [1/2], teria sido repetido em Marcos 4. 35-4. [...]
No nível composicional e teológico, essas duas passagens e os dois milagres
323
MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. p. 924.
324
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 219.
325
ACHTEMEIER, Paul. Towards the Isolation of Pre-Marcan Miracle Catenae.
104
com alimentos levam ao auge a incapacidade dos apóstolos compreenderem
as palavras de Jesus (8. 14 – 21) e, na verdade, dobram a sua culpa.
326
De fato, é curioso perceber que, ao final da narrativa de Jesus andando por sobre as
águas, encontramos a seguinte informação (Mc 6. 51 52): “E subiu para o barco para estar
com eles, e o vento cessou. Ficaram entre si atônitos, porque não haviam compreendido o
milagre dos pães; antes, o seu coração estava endurecido.Isso é um elo aparentemente re-
dacional entre a primeira multiplicação dos pães (Mc 6. 30 44), na qual a menção ao
barco (ploi/on) no v. 32, e, mesmo não havendo uma menção direta ao mar, ele está suben-
tendido. Aqui também se repete o tema que vimos, de Jesus querer se separar um pouco
da multidão (v. 31) tema também presente na narrativa do acalmar a tempestade.
O tema do “mar” e dos “pães”, associado à incompreensão dos discípulos, volta a apa-
recer no capítulo oito. Os versos 13 e 14 relatam que “deixando-os, tornou a embarcar e foi
para o outro lado. Ora, aconteceu que eles se esqueceram de levar pães e, no barco, o ti-
nham consigo senão um só.” Perceba-se de novo a menção ao outro lado” (o mesmíssimo
eivj to. pe,ran de 4. 35). A cena toda, aliás, acontece num barco, e o drama se intensifica até
que Jesus, aparentemente, perde a paciência com os discípulos (vv. 17 21): “Jesus, perce-
bendo-o, lhes perguntou: Por que discorreis sobre o não terdes pão? Ainda não consideras-
tes, nem compreendestes? Tendes o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo
ouvidos, não ouvis? Não vos lembrais de quando parti os cinco pães para os cinco mil,
quantos cestos cheios de pedaços recolhestes? Responderam eles: Doze! E de quando parti
os sete pães para os quatro mil, quantos cestos cheios de pedaços recolhestes? Responde-
ram: Sete! Ao que lhes disse Jesus: Não compreendeis ainda?O tema da incompreensão é
bastante enfatizado nesta seção. Além disso, ela serve de verdadeiro sumário, ao lembrar as
duas multiplicações de es. O próprio fato de ocorrer em um barco (o mar não é mencio-
nado, mas evidentemente es subentendido, vide o outro lado”) recorda-nos de 4. 35 51
e 6. 45 53. A narrativa é seguida pela cura de um cego (8. 22 26). Não podemos, pois,
deixar de lembrar-nos do discurso por parábolas (4. 1 34), no qual incompreensão e ce-
gueira são temas importantes.
Agora, pois, temos material suficiente para considerarmos Marcos em sua atividade
redacional com mais propriedade.
326
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. pp. 349 – 350.
105
3. Alise de Redação
De tudo que vimos acima, fica muito claro que a perícope que analisamos é importan-
te na economia narrativa de Marcos. Mesmo que Crossan tenha razão ao considerá-la uma
duplicação,
327
ela não é de forma alguma secundária. Ela é rememorada no fechamento da
primeira grande seção do evangelho. Além disso, ela é icio de uma grande sequência de
milagres, que somente se encerrará no capítulo oito.
O verso 35 é candidato para uma análise de redação. Segundo Bultmann,
uma vez que o sono de Jesus no v. 38 pertence à base essencial da história, a
menção da hora tardia deveria ser uma parte original da introdução. Por ou-
tro lado, evn evkei,nh| th/| h`me,ra| é editorial, ...
328
De fato, Bultmann parece ter razão. A expressão “naquele diavincula a narrativa às
parábolas anteriormente proferidas. Vale lembrar que o esquema temporal em Marcos é
altamente artificial, como o demonstra o “primeiro dia” do ministério de Jesus.
329
Além disso, devemos contar com uma mão redacional na questão da “desaparição dos
barcos”. É mais provável que eles sejam parte de uma eventual fonte, uma vez que não faria
sentido introduzi-los desnecessariamente, e não menção alguma (por exemplo) de um
eventual naufrágio. Assim, Bultmann afirma
Como o é [editorial] w`j h=n (evn tw/| ploi,w|), que está vinculado com vv. Iss.,
enquanto a menção aos a;lla ploi/a é antiga, e foi tornada ininteligível pela
edição.
330
Embora seja possível, como vimos, que Marcos tenha lançado o de fontes literárias
pré-existentes na confecção desta seção, sendo possível até mesmo que nossa narrativa fi-
zesse parte desta coleção,
331
é evidente que a organização do material é fortemente influen-
ciada pelo interesse teológico-literário do autor.
Como observa Kümmel,
Se é permitido concluir que foi o próprio Marcos quem criou o itinerário de
Jesus, então é preciso também admitir que a grande concentração da ativida-
de de Jesus na Galiléia teve origem em algum motivo de ordem teológica.
327
CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. pp. 349 – 350.
328
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 215.
329
SOARES, Sebastião Armando Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia. Evangelho de Marcos. Vol. 1. p. 95.
O autor afirma “O primeiro dia é paradigmático. Jesus atua em favor de enfermos e endemoninhados”. Ênfa-
se nossa.
330
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 215. Cf. tb. DIBELIUS, Martin. From Tradi-
tion to Gospel. p. 74.
331
Assim ACHTEMEIER, Paul. Towards the Isolation of Pre-Marcan Miracle Catenae. XXX
106
[...] A estrutura de Marcos está, pois, de acordo com determinados cenários
geográficos.
332
É evidente, pois, que a localização geográfica do mar não é casual.
333
O mar é, para
Marcos, um lugar revestido de significados teológicos. Fatos importantes de seu evangelho,
como vimos, se dão ou em um barco, ou em torno do mar. É evidente, também, que ao fazer
do mar um componente geográfico importante nesta seção de seu evangelho, Marcos es
lançando mão de maneira criativa de um tema que já analisamos no capítulo anterior,
relativo ao mar como local de forças demoníacas e caóticas.
Outro tema que é enfatizado nesta seção e, portanto, é fruto de atividade redacional
– é a tensão entre “fé” e “falta de”.
O segundo grupo de milagres consiste de 4. 35 6. 6. É mantido junto pelas
palavras-chave () e (), isto é, por um motivo literário característico dos mila-
gres (4. 41; 5. 34, 36; 6. 6). O início e o final desta seção ligam a crença nos
milagres com a questão da identidade de Jesus: ‘Quem é esse?’ (4. 41) e ‘não
é esse ... ?’ (6. 3).
334
Assim sendo, nossa perícope começa a articular um tema que será desenvolvido ao
longo de toda uma seção do evangelho. Ela não apenas começa um ciclo de milagres que
terminará no capítulo oito, mas passa a expor um tema fundamental para Marcos.
Aqui reencontramos uma tensão que já havíamos detectado. O verso 40, que consiste
na dupla pergunta retórica de Jesus, é claramente intrusivo na forma literária. Porém é jus-
tamente nele que se avança o tema da fé”/ “falta de fé”. Em outras palavras, ele é um can-
didato fortíssimo a ser fruto da mão redacional de Marcos. Assim, Meier afirma que:
Até onde diz respeito à mão editorial de Marcos, os melhores candidatos pa-
ra a intervenção redacional são as questões retóricas correlacionadas que já
percebemos. Os comentários rudes, não-edificantes dos discípulos para Jesus
são típicos do Evangelho de Marcos, assim como o são as repreensões seve-
ras de Jesus, que por vezes representam os discípulos como sem ou nem
um pouco melhores que os cegos de fora do grupo. Como a maioria dos co-
mentaristas observa, o duplo ataque verbal de Jesus aos discípulos como co-
vardes e mais significativamente como ainda sem se encaixa perfei-
tamente com a representação de Marcos dos discípulos bem como seu tema
do “segredo messiânico”.
335
332
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. pp. 102 103. Cf. tb. SOARES, Sebastião Ar-
mando Gameleira; JÚNIOR, João Luiz Correia. O Evangelho de Marcos. Vol. 1. p. 33.
333
Vide também MARXEN, Willi. El Evangelista Marcos. pp. 49 109. Este autor discute longamente o “es-
quema geográfico” do Evangelho de Marcos.
334
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 208.
335
MEIER, John P. A Marginal Jew. pp. 929 – 930.
107
Como vimos, tal invectiva de Jesus contra os discípulos o é “casual”: ela correspon-
de formalmente à primeira intervenção rude dos discípulos, tamm retórica. Meier chega a
argumentar que é posvel que mesmo esta pergunta por parte dos discípulos seja redacio-
nal:
Agora, se a pergunta retórica de Jesus mais a repreensão em 4. 40 o adi-
ções de Marcos à história, assim, também, mais provavelmente, é a pergunta
retórica mais repreensão correlacionada proferida pelos discípulos no v.
38.
336
Ele vai além disso. Meier chega a postular a possibilidade da própria “pseudo-
aclamação” no final da hisria tamm ser fruto da pena de Marcos:
Uma vez que as contribuições de Marcos à esta história aparentemente toma-
ram a forma de perguntas retóricas – primeiro pelos discípulos, então por Je-
sus pode-se perguntar se a quase-aclamação dos discípulos ao final da his-
tória também seja formulação de Marcos, uma vez que ela também assume a
forma de uma pergunta retórica que os próprios discípulos elucubram. Ade-
quadamente, esta pergunta retórica final enfatiza a tensão entre a experiência
dos discípulos de Jesus como o operador de milagres (“até mesmo o vento e
o mar lhe obedecem”) e sua falta de compreensão de quem ele realmente é
(“Quem é esse?”). A tensão entre a experiência íntima do poder de Jesus e a
falta de compreensão de sua natureza verdadeira é o grande tema da repre-
sentação dos discípulos por Marcos. Portanto, conquanto a história primitiva
pudesse ter tido algum tipo de aclamação coral conclusiva, a formulação
presente bem pode vir da mão de Marcos.
337
O Segredo Messiânico é outro tema que nos interessa neste momento. Já vimos que a
divisão do evangelho em duas partes se na transição do capítulo oito para o nove. Esta
transição, porém, esligada ao tema que Marcos articula em torno deste segredo. Segundo
Joachim Gnilka, o primeiro a propor tal conceito para a compreensão de Marcos foi Wrede:
O descobrimento do segredo messiânico no Evangelho de Marcos (em cone-
xão com 4. 11) se deveu ao trabalho inovador de W. Wrede. Para Wrede, es-
te segredo não está baseado na vida do Jesus histórico, mas sim é uma cons-
trução dogmática. É constituído por três elementos: as ordens para guardar
silêncio dadas aos curados, aos demônios e aos discípulos, cujo cumprimen-
to resulta freqüentemente impossível; das repetidas observações sobre a in-
compreensão e a incredulidade dos discípulos bem como do doutrinamento
por parábolas como uma forma de doutrinamento pensada para o povo. Os
três elementos constituem um conceito unitário e fechado. Não obstante,
Wrede opina que a teoria do segredo, por causa dos diversos momentos em
que aparece em Marcos, não foi obra do evangelista, mas já existia anterior-
336
MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 930.
337
MEIER, John P. A Marginal Jew. p. 930.
108
mente a ele. A Marcos corresponde apenas uma participação importante em
sua apresentação.
338
Em outras palavras, mesmo que Marcos tenha herdado o esquema básico do segredo
messiânico, ainda assim lhe deu forma e expressão particulares isto é, o segredo messiâni-
co no Evangelho de Marcos tem um aspecto redacional. Na lista que Wrede sugere consta,
justamente, a questão da fé e falta de fé dos discípulos. Assim, nossa perícope adquire um
significado dentro deste contexto. Theissen já observara
339
que a seção 4. 35 6. 6 era arti-
culada em torno deste tema, e Meier comentara que isto era vinculado ao segredo messiâ-
nico.
340
Tal vinculação se dá, como vimos, através da forte possibilidade que as perguntas
retóricas tanto dos discípulos quanto de Jesus sejam frutos da atividade redacional de Mar-
cos. Ao intervir na forma literária da história de milagre, Marcos o faz deliberadamente e
através disso vincula a perícope não apenas a uma seção imediata do evangelho, mas ao seu
esquema maior para a obra.
Após considerarmos a “mão editorialde Marcos, podemos passar, pois, a analisar a
forma literária da narrativa como a temos agora.
4. Alise de Forma
Formalmente, nossa estruturação do texto aponta para uma estrutura geral tripartite
pica das narrativas de milagres em geral (segundo John P. Meier) e especificamente da
natureza: a preparação para a narrativa, o pprio milagre e finalmente a reação e aclama-
ção.
341
(1) A exposição ou preparação, i.e., as circunstâncias que levam até o mila-
gre (por ex., a descrição da situação desesperada ou necessidade premente, o
pedido por ajuda ou cura, a aproximação de Jesus ou daquele que faz a peti-
ção, a audiência); (2) a intervenção do operador de milagres (usualmente
uma palavra, as vezes um toque ou outro gesto), junto com a atestação e con-
firmação do milagre; (3) o resultado do milagre, freqüentemente expresso
em termos da impressão causada sobre os observadores (por ex., maravilha-
mento, confusão mental, uma “conclusão coral” de louvor) e/ ou o espalhar
do relato do milagre e da fama de Jesus. Em algumas histórias, a confirma-
ção do milagre parece pertencer a esta parte.
342
338
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos. Vol. 1. p. 195.
339
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 208.
340
MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. pp. 929 – 930.
341
Cf. MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. pp. 875 – 876.
342
MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. pp. 638 - 639.
109
Agora é preciso analisar o que a literatura a este respeito tem a nos dizer. Faremos isso
em ordem cronogica de publicação.
Dibelius classifica nossa narrativa no gênero “contos” ou “novelas” (“tales”, “novel-
le”), encontrado principalmente no Evangelho de Marcos.
343
Ele é taxativo: os contos li-
dam com Jesus o taumaturgo”.
344
A diferença essencial entre os paradigmas e os contos é a
seguinte:
Agora nos preocupamos com um número de narrativas que excluí da obser-
vação no capítulo precedente [sobre paradigmas]. Sua formulação demonstra
claramente que elas não foram criadas com o objetivo da pregação, e que e-
las não eram repetidas como exemplos quando as oportunidades surgiam no
decurso da pregação. Aqui se encontram exatamente aqueles elementos des-
critivos que faltavam aos paradigmas; a amplitude, que uma aplicação para-
digmática torna impossível; aquela técnica, que revela algum prazer na pró-
pria narrativa; e o caráter tópico, que aproxima mais estas narrativas às cate-
gorias correspondentes como eram encontradas no mundo fora do cristia-
nismo.
345
Além disso, os “elementos seculares” são mais presentes nos contos que nos paradig-
mas. Dibelius afirma:
Se alcançamos alguma compreensão sobre este caráter realista e portanto
relativamente secular dos Contos, então a falta de motivos literários devo-
cionais e o gradual recuo de quaisquer palavras de Jesus de valor geral,
não são mais surpreendentes. As aplicações didáticas falham completamente.
[...] Como palavras de Jesus, podemos apenas considerar os ditos reconheci-
dos sobre a fé [...] Mas estas palavras não significam a que os missioná-
rios pregam às igrejas, mas a crença no poder do operador de milagres, exal-
tado mais que todos os demais taumaturgos.
346
Segundo Dibelius, é próprio dos contos, por exemplo, a descrição da cnica do mila-
gre.
347
É claro que isto é algo que es posto em nossa perícope, no verso 39. É importante
tamm o estabelecimento do sucesso do ato milagroso.
348
Tal elemento, em nossa narrati-
va, é claramente atestado no verso 39, quando as ondas e o vento cessam e acontece a
“grande calmaria”. Quanto às conclusões, Dibelius ressalta que mesmo a pergunta sobre a
identidade de Jesus não é “de forma alguma paradigmática, Quem é esse que o vento e o
mar lhe obedecem?Vemos que o interesse esfixado em Sua identidade como Taumatur-
343
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 71.
344
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 80. Ênfase do autor.
345
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 70.
346
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 79.
347
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 81.
348
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 87.
110
go”.
349
Dibelius dá azo à opino de que as palavras de Jesus ao vento o atos mágicos:
“No acalmar da tempestade, uma fórmula é utilizada. Com as palavras “ele repreendeu o
ventoum ato definido é representado.
350
Mais que isso: nesta expressão está subentendido
que a história, como um todo, é um tipo de epifania:
Assim, o milagre do acalmar a tempestade termina com a exclamação,
“quem é esse que o vento e o mar lhe obedecem?” e, portanto, pressupõe que
os próprios ouvintes ou leitores dêem a resposta que aquele que comanda as
ondas é a epifania visível de Deus.
351
Bultmann dedica uma seção inteira de sua obra aos milagres dentro do gênero narrati-
vo.
352
Sua separação é entre milagres de cura (que incluem exorcismos e ressurreições, por
exemplo) e milagres de natureza.
353
Posteriormente, quando fala de paralelos às histórias
sinóticas, Bultmann subdivide estes milagres em quatro tipos: exorcismos, outras curas,
ressurreição de mortos e milagres da natureza.
354
É próprio dos milagres, segundo Bultmann
(de modo semelhante a Dibelius) que
admitidamente, não é necessário dizer que é uma condição da cura dos doen-
tes que aqueles que pedem pela cura tenham
pi,stij. Mas esta
pi,stij não é
uma atitude crente diante da pregação de Jesus ou de sua Pessoa no sentido
moderno da palavra, mas uma confiança no operador de milagres que lhe ca-
be.
355
Além disso, é próprio da exposição das histórias de milagres o caráter assustador ou
perigoso da doença que podemos entender, certamente, no nosso caso, como o caráter
assustador das ondas, vivamente descritos como grande tempestade”.
356
Na parte do pró-
prio milagre, um elemento fundamental, segundo Bultmann, é a palavra que opera mila-
gres.
357
o dúvidas que o caso do verso 39 seja exatamente esse. Há, inclusive, uma
tendência que a ameaça (o nosso epitimao) pela palavra que opera milagres seja dirigida a
demônios, e também “é empregada nos milagres onde é impossível dizer se a idéia antiga de
349
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 81.
350
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 90. Numa nota de rodapé a esta afirmação, Dibelius cita
que o grego pefi,mwso é uma fórmula para atar o espírito, como na mágica.
351
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. pp. 94 – 95.
352
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. pp. 209 – 243.
353
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. pp. 209 215 (curas), 215 218 (milagres de
natureza).
354
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. pp. 231 – 243. Cf. MEIER, John P. A Marginal
Jew. Vol. 2. p. 638. O autor, em uma de suas “notas de fim” afirma que adota esta última divisão de Bult-
mann para estruturar seus capítulos.
355
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 219.
356
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 221.
357
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 222.
111
ameaçar o demônio ainda está viva ou não: Mc 4. 39 (ameaçar o vento)”.
358
Embora tal vin-
culação não seja explícita em nossa narrativa, é um elemento que confere peso à tese de que
os ventos e as ondas são vistos como demoníacos na perícope que analisamos. Outro ele-
mentopico é o cumprimento bem-sucedido do milagre.
359
É evidente que é o caso de nosso
verso 39, no qual imediatamente temos a “grande calmaria”. Finalmente, um elemento im-
portante é a impressão que o milagre cria sobre a multidão.
360
É, ainda que com suas parti-
cularidades, o caso do verso 41, que conclui nossa perícope com a pergunta admirada dos
discípulos.
É preciso agora nos voltarmos para a brilhante obra de Gerd Theissen, The Miracle
Stories of the Early Christian Tradition. O autor oferece uma tipologia sêxtupla de termas
de narrativas de milagre. Ele distingue entre exorcismos,
361
curas,
362
epifanias,
363
milagres
de resgate,
364
milagres de dádivas,
365
e milagres de normas.
366
Além disso, ele oferece o
seguinte esquema para os milagres: quanto às personagens, é possível dividí-los em seis
temas principais,
367
quanto ao campo de objetos,
368
quanto às perspectivas,
369
e finalmente
quanto ao cruzamento de fronteiras.
370
358
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 223.
359
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 224.
360
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 225.
361
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 85 – 90.
362
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 91 – 94.
363
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 94 – 99.
364
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 99 – 103.
365
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 103 – 106.
366
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 106 – 112.
367
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 114 115. Os temas são dividi-
dos de acordo com as personagens que são “alvos” do milagre em questão. Assim, no exorcismo o alvo é o
demônio, nas curas a pessoa doente, nas epifanias o próprio operador do milagre, nos milagres de resgate (no
mar) os discípulos, nos milagres de dádivas a multidão e nos milagres de normas os oponentes. No caso da
sétima personagem, o “companheiro”, tal personagem recai ou nos exorcismos ou nas curas. É possível ainda
uma divisão quanto aos autores principais e secundários. No caso de demônios, da pessoa doente e do opera-
dor de milagres, estes funcionam normalmente como atores principais. Já os discípulos, a multidão e os opo-
nentes via de regra são atores secundários.
368
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 115 116. Esta divisão consiste
em perceber quais narrativas são orientadas para as pessoas (exorcismos, curas e epifanias) e quais para “coi-
sas” (resgates, dádivas e milagres de normas).
369
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 116. Três perspectivas existem: a
divina, a demoníaca e a humana. Nos exorcismos predomina a perspectiva demoníaca, nas epifanias a pers-
pectiva divina, e as curas a esfera humana. Os resgates m perspectiva demoníaca (ainda que não explicita-
mente nomeada), os milagres de normas têm perspectiva divina (algo é revelado) e as divas têm perspecti-
va humana.
370
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 116 – 117. Nos exorcismos e nos
milagres de resgate, a fronteira é imposta por poderes hostis que podem levar à morte. Nas curas e dádivas, a
fronteira é estabelecida pela “falta” de poder que concede vida e cura. nas epifanias e milagres de normas,
a fronteira está no mistério da natureza e vontade divinas.
112
Theissen oferece este esquema bastante prático para divisão das narrativas em seus ti-
pos, que sumariza o que é discutido acima:
371
Orientadas para
pessoas
Orientadas para
coisas
Perspectiva de-
moníaca
Exorcismos
Demônio
Mil. de Resgate
Dispulos
Ameaças/ subju-
gação
Perspectiva divi-
na
Curas
Pessoa Doente
Mil. de Dádivas
Multidão
Falta/ concessão
de poder/ dádivas
Perspectiva hu-
mana
Epifanias
Op. do Milagre
Mil. de Normas
Oponentes
Ser fechado/ re-
velação
Atores principais Atores secundários
Quanto ao catálogo de motivos literários que Theissen elabora e descreve,
372
vejamos
quais se aplicam à nossa narrativa.
O item 1, A Vinda do Taumaturgo,
373
ocorre logo no versículo 35. É importante ob-
servarmos que tal função é cumprida pela menção ao “vamos para a outra margem”, na boca
de Jesus.
O item 8, Caracterização da Aflão, pode ser encontrado no verso 37, que é todo ele
dedicado à esta descrição. Theissen observa que “hisrias de resgates no mar, em particu-
lar, podem fornecer ilustrações vívidas da tendência para um final infeliz”.
374
O item 12, Súplicas e Expreses de Confiança, encontra-se no verso 38, na pergunta
retórica dos discípulos a Jesus.
375
O item 18, Promessa, é encontrado no verso 40, mas na forma da repreensão pela falta
de dos discípulos.
376
O item 20, Retirada (ou Recolhimento do Taumaturgo) ocorre no verso 38, na menção
ao sono de Jesus. Segundo Theissen, “a posão composicional deste motivo literário é a
371
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 117.
372
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 47 74. Disponível em portu-
guês, em forma condensada e sem maiores discussões, em THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus His-
tórico. pp. 308 – 309.
373
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 48.
374
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 51 – 52.
375
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 54 – 55.
376
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 58 – 59.
113
exposição, na qual ela contrasta com a aflição [item 8] e súplica [item 12] dos que so-
frem”.
377
Já o item 21, Preparação nica, encontra-se no verso 35, na ordem de passar para o
outro lado do mar. Segundo Theissen, “Todas estas instruções dizem respeito às pessoas
sobre as quais se efetua o milagre.
378
O item 24, Palavra que Opera Milagres, é encontrado no verso 39. É importante ob-
servarmos, juntamente com Theissen, que “a palavra de poder é particularmente apropriada
quando um poder demoaco hostil esenvolvido.
379
O denio é frequentemente repre-
endido ou ameaçado (o nosso epitimao). Além disso, nuances sempre são associadas parti-
cularmente com certos temas: palavras de poder e ameaças com exorcismos [...]”.
380
O item 26, Constatão do Milagre,
381
ocorre no verso 39, imediatamente após a Pa-
lavra que Opera Milagres. É importante observarmos que o “milagre pode ser constatado
sem qualquer ênfase em seu caráter miraculoso,”
382
como temos em nossa perícope.
O item 30, Admiração, ocorre no verso 41.
383
Segundo Theissen, há duas maneiras de
se expressar esta admiração, seja por um verbo, seja por um substantivo. Em nossa períco-
pe, encontramos as duas coisas eles “temeram com medo grande.” Ele nos lembra que
“Estas nuances lingüísticas refletem duas variações do motivo literário, admiração como um
estado e admiração como uma reação”.
384
O item 31, Aclamação, é o último elemento do catálogo presente em nossa períco-
pe.
385
Segundo Theissen, esta Aclamação difere da Admiração porque na primeira sem-
pre um comentário verbal sobre o milagre ou o operador do milagre. Encontramos este item
claramente no verso 41, na pergunta por parte dos discípulos que fecha a narrativa: “quem,
portanto, este é que até o vento e o mar obedece -lhe?
Agora passamos a analisar as contribuições de Klaus Berger para a nossa discussão
sobre a forma literária de nossa pecope. Primeiramente, devemos observar com ele que os
verculos 38 40 apresentam uma repreensão típica. Segundo Berger,
377
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 60.
378
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 60 – 61.
379
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 63 – 65.
380
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 64.
381
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 65 – 66.
382
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 65.
383
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 69 – 71.
384
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. p. 69.
385
THEISSEN, Gerd. The Miracle Stories of the Early Christian Tradition. pp. 71 – 72.
114
Com L. Markert, entendo por “repreensão” a crítica de ações passadas.
Quanto à forma, a repreensão consiste na apóstrofe dirigida à segunda pes-
soa do plural (geralmente o sujeito da ação) e na censura (apresentação nega-
tiva da ação, cujos autores foram os apostrofados). Não se trata, pois, de de-
sejos, ordens ou intenções, e sim de constatações, embora essas possam tam-
bém ser formuladas como perguntas retóricas ou enfáticas.
386
De fato, havíamos constatado que a pergunta de Jesus aos discípulos, “por que co-
vardes sois? Ainda o tendes fé?é retórica e se liga ao despertar rude de Jesus por parte
dos que com ele estavam. Isso nos aponta um nexo textual importante, ao ser considerado
quando passarmos à análise do conteúdo da perícope. Além disso, a pergunta de Jesus cor-
responde, formalmente, aos elementos apontados por Berger: é formulada na pessoa do
plural, e dirigida aos autores da ação censurada.
Porém a discussão mais importante apresentada por Klaus Berger vem a ser justamen-
te sobre a existência ou não de um gênero literário denominado “narrativas de milagres”.
387
O referido autor não poupa palavras fortes:
O conceito de milagre/ narrativa de milagre não indica um gênero literário; é
antes uma descrição moderna de uma maneira antiga de entender a realidade.
[...] Via de regra, os textos narrativos descrevem Jesus e os apóstolos como
carismáticos. O fenômeno religioso chamado “milagre” poderia, pois, ser
descrito como uma prova assombrosa do poder carismático, numa história
contada. Mas isso não é uma descrição do ponto de vista da história da for-
ma. As diversas narrativas de milagres do NT pertencem antes a toda uma
série de gêneros narrativos do NT, orientados para a descrição de determina-
das pessoas.
388
Assim, Berger questiona fortemente a própria existência de um gênero “narrativa de
milagres”. E sua polêmica é dirigida, inclusive, contra Gerd Theissen e a obra que vimos
logo acima. Diz Berger:
G. Theissen (Urchristiliche Wundergeschichten, 1974), baseando-se em R.
Bultmann (que se orientou pelo folclore antigo), reuniu todo um arsenal de
temas supostamente constitutivos do gênero “relatos de milagres”. Tudo is-
so, pelo que foi dito, precisa ser reexaminado. Pois a cerca que deveria sepa-
rar os relatos de milagres de outros relatos tem brechas demais, de sorte que
a delimitação descrita em 1 continua bastante vaga. [...] Além disso, o con-
ceito de “relato de milagre” foi pressuposto, sem ser questionado.
389
386
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 178.
387
Cf. a discussão complete em BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. pp. 276 – 280.
388
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 276.
389
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 277.
115
Berger continua na linha do que já havíamos comentado no primeiro capítulo desta
dissertação, ao falarmos sobre a percepção mítica de realidade como um elemento funda-
mental à compreeno do Jesus Histórico. Assim Berger diz que
Portanto: essa eficácia de atos e palavras não constitui um “relato de mila-
gre”. Toda e qualquer palavra do mensageiro de Deus é uma ação e cria rea-
lidade. Não se trata, pois, de um gênero literário, mas de uma maneira de en-
tender a realidade. Assim, a questão é: “em que tipo de narração está entre-
meado o fato de alguém possuir o poder para semelhantes atos?” [novo pa-
rágrafo do autor] Se as narrativas caracterizadas por esse entendimento da
realidade pudessem ser consideradas isoladamente, elas poderiam, talvez,
quanto à história de sua forma, ser englobadas numa categoria que chamarí-
amos de “narrativas sobre atos/palavras de justos ou de mensageiros de Deus
e suas conseqüências”.
390
Para Berger, o importante é perceber que na nossa narrativa encontramos um caso tí-
pico de que os dispulos continuam a obra de Jesus” e que “estas experiências [entre elas
o acalmar da tempestade] envolvem exclusivamente os dispulos”.
391
Mas então, para Klaus Berger, qual é o gênero literário de nossa narrativa? Segundo
ele, tal gênero é a epidéixis/demonstratio. As características constitutivas do gênero seriam
Neste gênero literário incluímos todos os textos em que um acontecimento é
narrado de tal maneira que no fim as testemunhas (oculares ou auriculares)
reagem com admiração, espanto ou perguntas. O autor reflete duas maneiras
de encarar o fato: a sua, isto é, a maneira “objetiva”, e a “subjetiva”, a recep-
ção do acontecido pelas testemunhas do momento. A última é importante pa-
ra os leitores abordados pelo autor, pois a reação das testemunhas representa
de antemão a dos leitores e convida-os a se identificar com ela (ou a se defi-
nir, no caso de uma reação negativa ou duvidosa). [...] Desse modo, pelo
conceito de demonstratio, conseguimos introduzir no gênero literário, como
elemento constitutivo, também a relação da narrativa com o leitor. Narra-se
o ponto de vista do leitor, que não é, por exemplo, o da hagiografia, a qual só
visa a glorificação do herói. pica deste gênero literário é, como reação, a
pergunta: “Quem é este...?”, ou a reação: “Tu és + título”. Assim fica estabe-
lecida, particularmente, a relação deste gênero com a biografia.
392
Também podemos encontrar isso claramente na nossa narrativa. Conforme vimos, esta
narrativa pertence a um esquema narrativo marcano, na qual inicia uma série de milagres e
tamm se vincula, de modo mais amplo, ao arco aretagicoque estrutura este evange-
lho. Ao fazer isso, Marcos está fazendo justamente aquilo que Berger descreve: a pergunta
“Quem é este ...?estabelece a relação deste gênero (a epidéixis/demonstratio) com a bio-
grafia de Jesus. Além disso, encontramos a narrativa da admiração das testemunhas do mi-
390
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 279.
391
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 280. Colchetes nossos.
392
BERGER, Klaus. As Formas Literárias do Novo Testamento. p. 281.
116
lagre (os discípulos) que é um convite ao envolvimento do leitor para com a mesma. A ad-
miração dos discípulos encontra seu correspondente necesrio no leitor do texto.
As consequências desta longa discuso sobre a forma literária de nossa narrativa e a
controvérsia entre grandes autores, Gerd Theissen (na trilha de Dibelius e Bultmann) e
Klaus Berger, poderá ser resolvida em nossa análise do conteúdo desta perícope. Todavi-
a, veremos que tal discussão também se relaciona intimamente com os caminhos adotados
pela pesquisa do Jesus Hisrico, apontados no primeiro capítulo.
5. Alise de Conteúdo
Passamos agora à análise do conteúdo de nossa perícope. Por assim dizer, todos os fi-
os que viemos tecendo até aqui confluem para este prosito. Neste caso, é importante ob-
servarmos juntamente com Klaus Berger que
As dificuldades com respeito à historicidade dos milagres do Novo Testa-
mento avultam especialmente nos casos onde relatos do Antigo Testamento
parecem ter servido como protótipos do Novo Testamento, [...] A idéia de
que Jesus era capaz de operar milagres, no entanto, não é por si uma de-
dução, uma vez que tem um ponto de origem distinto. Se embasa em um tipo
complexo de experiência, uma que incorpora os seguintes elementos: (1) O
operador do milagre é experimentado como alguém dotado de um carisma
inquietante [...] As maravilhas atribuídas ao operador de milagres ocorrem
porque elas são apenas “sinais” daquilo que está dentro dele, daquilo que “e-
le é feito”. De acordo com o modo de pensamento dominante no milieu neo-
testamentário, o que alguém é de fato apenas se revela através de suas o-
bras.
393
Encontramos nesta citação que fizemos elementos para começarmos a resolver a ques-
tão da forma literária do texto e, com isso, nos aproximarmos de seu significado. Klaus
Berger tem rao ao afirmar que os atos, de certa maneira, revelam quem são as pessoas. Os
exemplos documentados no segundo capítulo bastarão para ilustrar este ponto. Além disso,
em certa medida esta percepção nos ajudará, num sentido estrito, a superarmos a discussão
se este texto é ou não uma epifania. Gerd Theissen tem razão ao afirmar que, strictu sensu,
não estamos diante de uma manifestação epifânica como, por exemplo, a narrativa análoga
de Jesus Caminha por Sobre as Águas. Mas, por outro lado, todo milagre experimentado,
num sentido mais amplo, é uma manifestação daquilo que o operador de milagres é de fato.
Há, pois, um aspecto epifânico na narrativa, embora ela não seja, repetimos, uma epifania
strictu sensu. Nela, Jesus se revela como um ser capaz de dominar sobre as ondas do mar e
393
BERGER, Klaus. Identity and Experience in the New Testament. pp. 85 – 86.
117
os ventos, repetindo atos primordiais de Deus no Antigo Testamento, em uma narrativa que
lembra fortemente a que encontramos em Jonas.
Donde o medo se torna mais compreenvel. Fica claro, no texto, que não o as ondas
que dão pavor, e sim que o medo está intimamente ligado à manifestação de poder de Jesus:
“E temeram com medo grande e diziam uns aos outros: quem, portanto, este é que até o
vento e o mar obedece -lhe?É esta manifestação de poder gico, nos moldes do que ob-
servamos de palavras poderosas nos PMG, que dispara esta reação dos discípulos. Os discí-
pulos, bem dizer, sequer são repreendidos pelo medo: antes, é-lhes repreendida a covardia.
As palavras gregas são diferenciadas, e portanto estamos lidando com campos de significa-
do distintos. Além disso, as perguntas retóricas de Jesus correspondem à primeira pergunta
retórica dos discípulos, e o à pergunta conclusiva da narrativa. E mais que isso: ao men-
cionar o “ainda não tendes ”, vincula-se à narrativa ao que já passara no relato do Evange-
lho e, ao mesmo tempo, lança-se um olhar sobre o futuro.
Joachim Gnilka comenta que, do ponto de vista da forma,
Marcos rompeu a forma e converteu a narrativa em um relato de discípulos.
A epifania do taumaturgo passa a um segundo plano. O milagre azo a
uma discussão sobre a incredulidade, da qual os discípulos são exemplo.
394
Tendo em vista o que já expusemos, não é possível concordar completamente com es-
ta afirmação. Que Marcos toma liberdades com a forma literária foi observado, como por
exemplo a pergunta intrusiva da parte de Jesus que frustra o fluir normal da narrativa. To-
davia, o relato, por sua aplicação ao contexto na qual está situada cujo tema cairá posteri-
ormente justamente na queso da e da falta de fé avança justamente uma epifania bas-
tante mais desenvolvida, que se consti durante a primeira metade do Evangelho de Marcos
e que culminará na transfiguração de Jesus no capítulo nove. Se, por um lado, o milagre em
si é pouco descrito, por outro lado a narrativa é concluída com a inquietante pergunta o
respondida sobre “quem é este”. O leitor, aliás, sabe dissopois conhece a voz celestial
do batismo, por exemplo. Mas do ponto de vista da narrativa, os dispulos ainda não têm
total conhecimento de quem é, afinal de contas, este Jesus de Nazaré.
Parece-nos, pois, bem mais adequada a avaliação de Rudolf Bultmann:
Por um lado, a vida de Jesus é representada como uma rie de revelações.
Batismo e Transfiguração são semelhantes a epifanias na visão de Marcos:
as histórias do acalmar a tempestade e do caminhar sobre a água relatam epi-
fanias na mesma medida que as histórias de alimentação. Assim também o
394
GNILKA, Joachim. El Evangelio Segun San Marcos. p. 226.
118
fazem as curas feitas pelo Filho de Deus, especialmente os exorcismos de
demônios que, por seus poderes sobrenaturais, reconhecem o Filho de
Deus.
395
É justamente com esta tensão entre o sabidoe o “desconhecido” que o autor joga na
narrativa que analisamos. Nas palavras de Robert Fowler,
...a implicação da última questão no episódio (4. 41) é de importância capital
como um comentário disfarçado, implícito, do narrador. Ela implica que as
pessoas que conhecem Jesus, mesmo pessoas que se tornaram seus discípu-
los, podem acabar percebendo que, na realidade, não sabem quem ele é.
“Quem então é este?” é, de certo modo, a pergunta que energiza todo o e-
vangelho, tanto a história quanto o discurso. Tão frequentemente quanto esta
questão é respondida clara e corretamente na história (p. ex., pela voz celes-
tial ou pelos demônios), mesmo estas respostas nunca são completamente
adequadas. Algo sempre parece estar faltando. “Quem então é este?” é uma
pergunta que permanece aberta tanto para o leitor quanto para os discípulos
no curso da narração da história (p. ex. em 4. 41), e ainda pode estar em a-
berto ao final da história. O Evangelho de Marcos é planejado para levantar
e manter em aberto esta pergunta de fundamental importância; ele resiste à
tentação de responder a pergunta de uma vez por todas. O Evangelho parece
planejado para apresentar Jesus com pontos de interrogação ao invés de pon-
tos finais ou pontos de exclamação.
396
Aqui somos recordados, em certa medida, do que Dibelius afirmara sobre as lendas
como forma literária, as quais citaremos novamente:
Agora nos preocupamos com um número de narrativas que excluí da obser-
vação no capítulo precedente [sobre paradigmas]. Sua formulação demonstra
claramente que elas não foram criadas com o objetivo da pregação, e que e-
las não eram repetidas como exemplos quando as oportunidades surgiam no
decurso da pregação. Aqui se encontram exatamente aqueles elementos des-
critivos que faltavam aos paradigmas; a amplitude, que uma aplicação para-
digmática torna impossível; aquela técnica, que revela algum prazer na pró-
pria narrativa; e o caráter tópico, que aproxima mais estas narrativas às cate-
gorias correspondentes como eram encontradas no mundo fora do cristia-
nismo.
397
E também
Mas estas palavras não significam a que os missionários pregam às igre-
jas, mas a crença no poder do operador de milagres, exaltado mais que todos
os demais taumaturgos.
398
Estas observações devem inviabilizar qualquer leitura moralizante do texto em ques-
tão. o se propõe, nele, uma relação amigável ou isenta de tenes com Jesus. Antes, pelo
395
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition. p. 346.
396
FOWLER, Robert M. Let The Reader Understand. pp. 133 – 134.
397
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 70.
398
DIBELIUS, Martin. From Tradition to Gospel. p. 79.
119
contrário, ele é apresentado como um taumaturgo com poderes maravilhosos e assustadores.
Não é o “bondoso amigo”, e não parece preocupado em acudir “à dor que perturba a alma”.
O prazer que se tem é “na narrativa”, nas palavras de Dibelius. E é isto, aliás, que segundo
este autor aproxima nossa narrativa às categorias correspondentes como eram encontradas
no mundo fora do cristianismo”. De fato, o segundo capítulo forneceu diversos elementos
de contatos diretos e indiretos com o mundo além do cânon bíblico e além do cristianismo
que venceu. o estes contatos que, por fim, nos interessam. Como pensar este Jesus, poten-
cialmente tão pouco cristão?
O milagre propriamente dito é bastante econômico. De fato, como observamos, basta
apenas um versículo para que ele seja realizado e constatado. Porém esta rapidez narrativa
indica um contato cultural muito interessante. Por um lado, somos informados pelo narrador
que a ão de Jesus é uma repreensão, isto é, sua ação se situa nos moldes do que se obser-
va nos exorcistas judaicos e cristãos da época. Por outro lado, porém, sua ação é posta de
maneira detalhada, com verbos imperativos: as palavras de Jesus o relatadas “cala-te,
seja amordaçado”. Este campo semântico encontramos nos Papiros Mágicos Gregos, espe-
cialmente nos katadesmoi, os feitiços de amarração. A narrativa, pois, oferece elementos
para ilustrar a complexidade de relações entre culturas na Antiguidade, entre o supostamen-
te “pagão” e o putativamente “cristão”.
A própria narrativa, como sabemos, também é fruto de uma releitura do Antigo Tes-
tamento. Todavia, as modificações que lhe são feitas, bem como a comparação com textos
rabínicos posteriores faz emergir a especificidade que é fundamental para a economia narra-
tiva de Marcos: Jesus é diferente de Jonas, porque é a solução do problema, e não sua cau-
sa. Nele operam poderes de outra categoria. Poderes, em certa medida, que se estendem até
mesmo sobre o clima, de maneira imediata, com palavras e atos poderosos, como Hanina
ben Dosa e Honi, o “traçador de círculos”. E, diferente do garoto judeu e as modificações
rabínicas às tradições de Hanina e Honi, Jesus sequer recorre à oração. Jesus de Nazaré,
neste sentido, integra claramente a corrente de pensamento mágico de matriz judaica, mas
uma corrente de pensamento que está mais vinculada aos estratos populares do que às elites.
A narrativa, pois, também oferece elementos que sublinham as tensões e relações de Jesus e
seus seguidores com os judaísmos de sua época, bem como das relações sociais que se de-
senvolveram neste panorama variegado.
A própria associação de um campo semântico ligado ao exorcismo a uma situação en-
frentada na “natureza” deve ressaltar as peculiaridades de nossa narrativa. Os ventos e o mar
são tratados e referidos como se fossem pessoas. Embora não possamos dizer com certeza
120
absoluta, é bem provável que Marcos pense nestes elementos como representantes de forças
demoníacas. Que o mar é símbolo do caos e morada de demônios é fato bem estabelecido.
Mas, por outro lado, “exorcizarestas forças da natureza é bastante inusitado. Mas tal idéia
não é tão estranha. Os Papiros gicos Gregos falam de repreensão ao mar, em uma justa-
posão a daimons e nomes gicos do deus judaico, SABAŌTH e ADŌNAI. Além disso,
o próprio Marcos estabelece uma relação literária entre o exorcismo inaugural na sinagoga
de Cafarnaum com nosso texto, ao fazer destas duas narrativas as únicas ocasiões em que
epitimao se associa ao verbo phimousthai. Além disso, a narrativa seguinte expõe um exor-
cismo no qual os demônios expulsos se lançam ao mar. Assim, devemos considerar nossa
narrativa como representativa de um emaranhado de experiências da realidade que revelam
outras insncias da existência. Se algo a revelar sobre Jesus, também a natureza tratada
como personificada revela algo sobre seus inimigos demoníacos.
Aqui, pois, regressamos às queses que nortearam boa parte da nossa pesquisa. Esta
narrativa, evidentemente tica, fala de revelações tanto de Jesus quanto de seus inimigos
que serão vencidos e, portanto, se situa como um horizonte de experiências privilegiado
para nossa reconstrução histórica. Já vimos diversos elementos que confluem para este “a-
densamento” da realidade. Mas este adensamento da realidade põe em questão a própria
relação da pesquisa blica com a historiografia contemporânea e, também, com as culturas
da Antiguidade.
Meier exe o problema de maneira aguda:
Nosso exame da teologia redacional de Marcos no texto, a considerável pre-
sença de temas e frases do Antigo Testamento dando azo a uma cristologia
da igreja surpreendentemente alta, a similaridade que tudo isso guarda com a
caminhada sobre a água, a falta de múltipla atestação do milagre, e a conti-
nuidade do milagre com a tradição de milagres da igreja primitiva ao invés
da tradição de milagres que tem possibilidades de remontar ao ministério
público de Jesus nos obrigam a concluir que a opinião mais provável - embo-
ra uma que não seja absolutamente assegurada – é que o acalmar da tempes-
tade seja um produto da teologia cristã primitiva.
399
Meier lista aqui todos os elementos que nos poderiam deixar perplexos diante de uma
narrativa do tipo que temos em os. Ela provoca calafrios em nossa percepção positivista.
Que o grau de imaginação presente em tal narrativa é bastante elevado não há vidas. Mas
que tal imaginário seja uma degradação histórica, ou de menor importância para nossa pes-
quisa não podemos concordar. Não se pode separar, afinal de contas, o imaginário de seu
399
MEIER, John P. A Marginal Jew. Vol. 2. p. 933.
121
contexto cultural. Sequer podemos desprezar o texto por seu caráter pouco atestado, por ser
uma “voz única” em meio, por exemplo, à tradição de ditos de Jesus bem melhor atestada.
Porque este texto, em seu caráter exntrico e curioso se revelou, em nossa análise ao longo
desta pesquisa, como rico de relações culturais e cristalizador de uma percepção da realida-
de tica, na qual certos indivíduos têm o poder de ordenar com palavras poderosas e ob-
servar os resultados imediatamente eficazes das mesmas. Indivíduos dotados de um carisma
inquietante, diante do qual o temor é uma reação que não soa estranha. Para quem se preo-
cupa em ler esta narrativa apenas no molde canônico e cristão, certamente ela é menos im-
portante. Para aqueles que se preocupam em estabelecer “o que realmente aconteceu”, é tão-
somente uma fábula, fruto de imaginações férteis e facilmente impressionáveis. Porém para
a busca de um olhar cultural mais amplo, ela se revela fruto de trocas culturais intensas,
como parte de um processo fundamental para a compreensão desta figura enigmática que foi
Jesus de Nazaré.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Começo estas considerações finais com um dado biográfico. Durante a adolescência,
fui leitor assíduo, compulsivo e genético da ficção cienfica produzida por Isaac Asimov.
Por influência da coleção de meu pai, facilmente acessível nas estantes de minha casa, e
pela sua própria recomendação de que efetuasse a leitura de tal autor, acabei tornando-me
fascinado pela sua obra. Assim, minha adolescência de nerd latinoamericano foi, entre ou-
tras grandezas, influenciada diretamente por livros como os de Asimov.
Um de seus contos curtos, quase uma anedota, me chama a atenção ahoje. Asimov,
de origem judaica e ateu, imagina como teria ocorrido a escrita do Livro de Gênesis. Na sua
ficção, representa uma conversa entre Moisés e Arão. Os dois discutem sobre o Big Bang, a
expano do universo, enfim, teorias modernas sobre a origem das coisas. Arão porém inter-
rompe o inspirado Moisés: “já viste o preço do papiro? Está pela hora da morte! Vamos ter
que abreviar...” Ao que Moisés responde: “No prinpio, criou Deus os céus e a terra...
Salto biográfico intencional. Da década de 90, saltamos sem escalas ao ano de 2004.
Eu, então jovem seminarista, iniciando o segundo ano da faculdade de teologia, tive um
“choque de realidade” ao adentrar a comunidade de periferia à qual tive a honra de auxiliar
em sua caminhada. O culto iniciou com uma oração de guerra, na qual invocava-se uma
“redoma de fogo” para proteger o local do culto contra as investidas demoníacas, bem como
eram conclamados “o anjo da palavra”, “o anjo da cura”, entre outros, a se fazerem presen-
tes no decorrer da celebração.
Para um rapaz criado em meio a Asimovs e computadores, isso fazia muito pouco sen-
tido. Oriundo de uma igreja de Porto Alegre dita “tradicional”, tal prática litúrgica se dis-
123
tanciava e muito da minha própria maneira de entender meu cotidiano vis-à-vis o Deus que
eu creio. Ainda assim, penso que por um providencial lampejo de lucidez, não permiti que a
repulsa inicial a tal manifestação me impedisse de ouvir as vozes diferentes que se me apre-
sentavam.
Ao cabo da convivência, aprendi com eles inúmeras coisas. E descobri, acima de tudo,
que é preciso ouvir os outros, mesmo em seus relatos que podem nos parecem os mais ab-
surdos e fantásticos. Se para um deles uma melancia virou Deus, não caberia a mim o papel
de anular e negar sua experncia do sagrado. Para um jovem que sempre acreditou num
mundo relativamente desencantado, tal experiência e convivência se revelaram esclarecedo-
raso da ignorância alheia, e sim do meu próprio olhar muitas vezes preconceituoso.
Disso também surgiu meu interesse pelo milagroso, especificamente os relatos bíbli-
cos. Afinal de contas, detectara um claro descompasso entre meu mundo e o dos membros
os quais deveria auxiliar no pastoreio. Assim, me aproximei com avidez das obras de John
Dominic Crossan, entre outras, na busca de aprofundar esta reflexão eno incipiente.
Salto para dois mil e dez. Observo que a narrativa que nos propusemos a analisar,
Marcos 4. 35 41, “Jesus Acalma uma Tempestade”, nunca ocupou lugar de destaque na
pesquisa blica. De fato, o referido Crossan dedica-lhe uma pequena porção do catulo 14
de sua obra O Jesus Histórico, intitulado “Ressurreição e Autoridade”, para analisá-la sob a
ótica dos problemas de autoridade da igreja nascente. Isso é o mesmo que relegá-la, por as-
sim dizer, à lata de lixo hisrica, uma vez que sua associação à ressurreição esvazia boa
parte de sua reserva de sentido histórico. É apenas uma maneira de resolver um problema da
igreja com uma historinha bonitinha sobre um homem que já sofre os primeiros processos
de divinização.
Mas seria esta narrativa inteiramente destituída de um cleo hisrico plausível? o
se trata de estabelecer se “a blia tinha razão ou não”, ou de simplesmente buscar esclare-
cer a mentalidade primitiva” através das luzes do Aufklarung. Afinal, no decorrer da pes-
quisa, me deparei com historiadores como Carlo Ginzburg, Peter Burke e o próprio exegeta
Klaus Berger que deram azo às minhas inquietações metodológicas. Neles, encontrei aca-
dêmicos profundamente coerentes em sua construção do saber histórico, lidando com do-
cumentação e não abrindo jamaiso da noção de “prova histórica”.
Neles também encontrei profunda valorização da documentação do tipo fantástico. Se-
jam na análise dos benandanti ou das idéias de Menocchio esmiuçadas por Ginzburg, ou no
desafio da história cultural de sonhos de Burke, e no uso do conceito de “psicologia hisri-
ca” aplicado aos estudos bíblicos empreendido por Klaus Berger, emerge um padrão que
124
nos ajudou a perceber que é deletério ao conhecimento histórico relegar ao “buraco da me-
ria”, a “lata do lixo histórica”, documentações que revelam mais do universo muitas ve-
zes fantástico testemunhado pelas mais diversas culturas.
Assim, a pesquisa por documentação me levou aos Papiros gicos Gregos. Neste
corpus, encontramos um verdadeiro receitrio para os mais diversos problemas do cotidia-
no, desde a cura da gota à obtenção de sucesso no amor. Mais esclarecedor foi perceber o
rico processo de trocas culturais das quais estes documentos são testemunhas. Temos o deus
judaico, SABAOTH, sendo invocado juntamente com Oris e Zeus. O nome de Cristo, nu-
ma corruptela, como Chrestos, aparece mencionado como “O Deus dos Hebreus”.
Nesta grande mistura das divindades de diversas culturas, observa-se padrões comuns,
os quais intentamos rastrear. A preocupação com os daimons, sejam eles benéficos ou malé-
ficos, é uma constante. Neste sentido, invocações a divindades e palavras mágicas revesti-
das de poder e mistério ressoam como ferramentas que possibilitam uma negociação com
estes poderes superiores à esfera do comum. Um grupo específico de feitiços, os katadesmoi
ou feitos de amarração, mereceram nossa atenção mais detida. Nele, seres humanos adver-
sários são mandados se calar. O que garante a eficácia destas palavras é, primeiramente, seu
poder numinoso, bem como o receituário de ervas e procedimentos a serem utilizados no
ritual.
Também encontramos uma voz bastante curiosa nos Manuscritos do Mar Morto. Ne-
les, uma voz proclama com altivez “sentar-se entre os deuses”, ou seja: sente-se confortável
na corte celestial. É evidente que isso tudo é parte do filão explorado especialmente pela
apocalíptica de ascensões celestiais e comunhão angélica testemunhado por muitos docu-
mentos da Antigüidade. Curioso é, porém, detectar nesta voz aparentemente isolada ecos da
noção encontrada nos Papiros Mágicos Gregos de que, afinal de contas, algumas pessoas
poderiam se revestir de dignidade e status angélico/divino através de um uso ritual. Partici-
par da esfera do sagrado, que era obtido por receituários e gestos, aqui se experimenta no
contexto lirgico de uma comunidade.
Por semelhante modo, observamos que nossa narrativa de Marcos se encaixa num
conjunto de textos que se origina na narrativa do naufrágio do livro de Jonas, cap. 1. Que as
releituras de textos vétero-testamentários são comuns no universo do judaísmo do tempo de
Jesus não é novidade alguma. Todavia, é interessante perceber como a tradição acerca de
Jonas se desenvolve também de maneira independente do cristianismo, com suas caracterís-
ticas pprias, quais sejam, por exemplo, o valor dado à piedade do indiduo bem como à
sua oração eficaz. Nossa narrativa é, portanto, parte deste mosaico de leituras e releituras.
125
Também observamos figuras como Honi e Hanina ben Dosa, muito provavelmente o-
riundas dos estratos inferiores da sociedade e muito provavelmente da própria Galileia de
Jesus. Percebemos a dificuldade que o corpus rabínico demonstra na aceitação destas figu-
ras, impingindo-lhes muitas vezes o rótulo de rabino e transformando seus gestos mágicos
em orações, com comprovação através de citações do Antigo Testmento. Práticas mágicas
no judaísmo? É evidente que para certos ouvidos isso soará blasfemo.
Adentramos, pois, nosso texto propriamente dito.
A narrativa como tal inúmeras demonstrações de ser, em grande parte, fruto da o
redacional de Marcos. Desde a ausência do nome de Jesus e dos discípulos no máximo ele
é referido como “mestre” à sua clara conexão com o contexto imediato ligado ao mar e ao
contexto amplo ligado ao segredo messiânico e o que Theissen denomina de “arco aretaló-
gicona composão de Marcos, tudo aponta para um caráter artificial da mesma narrativa.
Some-se a isso sua possível derivação da narrativa de Marcos 6, na qual “Jesus Anda por
Sobre as Águas”, e seu caráter hisrico parece se esvair rapidamente.
Ainda assim, é notável observarmos alguns detalhes importantes. A ação de Jesus, de
repreender o vento e falar ao mar, com explícita referência às palavras que ele utiliza, nos
recorda o apenas do campo semântico dos exorcismos judaicos e suas repreensões, mas
ao próprio grupo de katadesmoi que observamos. Portanto, numa ação aparentemente artifi-
cial, que visa resolver a teno da narrativa de moldes míticos, aparece todo um conjunto de
associações culturais mais profundas.
Se for verdade que Jesus era uma espécie de mago caristico da Galileia, o que nos
parece bastante provável, sua ação se deu justamente imerso neste contexto cultural que
nesta narrativa se apresenta. Não se poderá entender sua prática exorcística sem a referência
à necessidade de saber nomes de demônios. Isso nos remete ao universo da palavra eficaz,
da palavra gica, testemunhada tanto no universo judaico como no universo Greco-
romano mais amplo.
Também não se poderá entender a referência ao vento e ao mar como elementos de
representação do caos sem apelarmos a esta documentação. A ação de Jesus, nestes moldes,
se reveste da linguagem simbólica do exorcismo, embora nem o vento nem o mar sejam
explicitamente associados ao demoníaco. Ao apresentar Jesus como um ser mitologicamente
poderoso, capaz de dominar poderes superiores ao da esfera do comum, o texto nos apresen-
ta um núcleo histórico, a saber, que a ão carismática deste mago Galileu pode ser com-
preendida contra o pano de fundo da religiosidade Greco-romano-judaica.
126
Assim, podemos recolocar a pergunta histórica em outros moldes, a saber: não se tra-
ta, em absoluto, de defender a ocorrência ou não deste ou daquele evento descrito nos evan-
gelhos. Antes, trata-se de compreender o universo simbólico expressado nestas narrativas,
procurando apreender sua especificidade. Trata-se também de situar Jesus de Nazaré num
contexto outro, distinto do nosso. Não podemos exigir nem das pessoas da Antigüidade nem
das fontes que dispomos o mesmo olhar exegético que lhes voltamos. Pode-se, porém, pro-
curar captar estas sutilezas.
Ao fazê-lo, o processo histórico de trocas culturais acaba por, afinal de contas, escla-
recer o rico contexto no qual nasceu, viveu e morreu esta enigmática figura hisrica, Jesus
de Nazaré.
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