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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS (MESTRADO)
SANDRO ADRIANO DA SILVA
ACENOS E AFAGOS: O ROMANCE QUEER DE JOÃO GILBERTO
NOLL
MARINGÁ - PR
2010
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2
SANDRO ADRIANO DA SILVA
ACENOS E AFAGOS, O ROMANCE QUEER DE JOÃO GILBERTO
NOLL
Dissertação apresentada à Universidade
Estadual de Maringá, como requisito parcial
para a obtenção do grau de Mestre em Letras,
área de concentração: Estudos Literários.
Orientadora: Profª Drª Marisa Corrêa Silva.
MARINGÁ
2010
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Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca da UNIOESTE – Campus de Marechal Cândido Rondon – PR., Brasil)
Silva, Sandro Adriano da
S586a Acenos e afagos/ Sandro Adriano da Silva. – Maringá, 2010.
126p.
Orientador : Profª. Drª.Marisa Corrêa Silva
Dissertação (Mestrado) –Universidade Estadual de
Maringá,2010
1. Romance brasileiro contemporâneo-Teoria e crítica. 2.
Homomemória.3. Noll, João Gilberto. 4. Literatura brasileira
Romance.5.
homoerotismo.6. Teoria Queer I. Universidade
Estadual de Maringá.II.Título.
CDD 21.ed.B869.08
CIP-NBR 12899
Ficha catalográfica elaborada por Helena Soterio Bejio CRB-9/965
5
À minha mãe, arquétipo imemorial, amor que constrange porque épico.
E à memória inescrita de meu pai, cuja imagem, desde sempre ausente, permite-me
auscultá-la no devir.
6
AGRADECIMENTOS
À profª Drª Marisa Corrêa Silva, confiança depositada neste estrangeiro que fui, e neste
trabalho que, desde o início, se mostrou, tal como seu objeto, nômade e desejante. Paciência
em compreender que nunca é fácil encontrar um caminho, mesmo o da errância; e, pela
acuidade e rigor intelectivo com que conduziu essa escrita que se assume travessia.
Ao Prof. Dr. Adalberto de Oliveira Souza, aulas-líricas, que ecoam Baudelaire, Rimbaud,
Valéry, Paz, Eliot... Olhar que alia sensibilidade e precisão teórica.
Ao Prof. Dr. Vagner Camilo, pelo exame crítico e pelo olhar “dessublimicizante” de Noll.
Aprendizado.
À Profª Drª Lúcia Osana Zolin, cujas aulas ensinam as doze cores do vermelho.
Ao Prof. Dr. Thomas Bonnici, pelo desvelamento das dívidas que se inscrevem na história do
sujeito/Sujeito.
À Prof. Drª Alice A. P. Martha, pelo resgate do leitor, sem o qual, nenhuma exegese é
possível.
Ao Júlio, amigo, doutor em teoria literária, a quem retorno a dedicatória de um livro:
“intellectuel vivant et actif”. Idoneidade intelectual e apoio irrestrito, balizas para este ensaio
e para a vida.
Às amigas, e agora Mestres, Érica, Débora, Míriam, Márcia, Liliam, Alessandra, Melissa e
Ana. Risos e dramas partilhados. Carinho.
Ao amor provinciano de minha avó, D. Gertha Liegel, quase edipiano, e pelas xícaras de café,
“café preto que nem a preta velha, café gostoso, café bom”, drummondianamente.
Ao Michel, pelo amor que não ousa dizer seu nome.
E a João Gilberto Noll, enredos urgentes.
7
Réduire l’imagination à l’esclavage, quand bien même il y irait de ce qu’on appelle
grossièrement le bonheur, c’est se dérober à tout ce qu’on trouve, au fond de soi, de justice
suprême. La seule imagination me rend compte de ce qui peut être, et c’est assez pour lever
un peu le terrible interdit ; assez aussi pour que je m’abandonne à elle sans crainte de me
tromper...
André Breton, Manifeste du Surrealisme
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
1. TAL JOÃO, QUAL ROMANCE?
1.1 O romance e o romance de João Gilberto Noll..............................................................26
1.2 Mosaico de vidros: a narrativa emergente de Noll no contexto brasileiro..................32
1.3 Noll: o elogio da insuficiência ..........................................................................................37
1.4 As teias entrelaçadas: Mínimos, múltiplos, comuns e Acenos e afagos.........................41
2. LITERATURA E IDENTIDADE
2.1. Teoria Queer: poéticas identitárias ...............................................................................54
2.2 Literatura, crítica literária e homoerotismo: intersecções............................................64
3. ACENOS E AFAGOS
3.1 O enredo: “um épico escrito em transe”.........................................................................68
3.2 O romance queer: corpo, experiência e narrativa .........................................................83
3.3 Metamorfose e Homomemória.........................................................................................94
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS... .........................................................................................99
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...........................................................................105
9
RESUMO
A dissertação interpreta, no romance Acenos e afagos (2008), de João Gilberto Noll, a
simbólica do corpo e da metamorfose como elementos para a compreensão de uma
caracterização queer. Procura-se evidenciar essa construção por meio das articulações entre a
narrativa do corpo em transformação e da ideia de uma memória muito particular no romance,
a que chamaremos de homomemória, identificáveis no narrador-protagonista. Essas
articulações entram na dimensão estética da obra, como também a orientam para uma poética
queer de radicalização das questões pós-identitárias. O estudo lança, primeiramente, um olhar
sobre o romance como gênero e os matizes que assume na produção de Noll, a partir das
questões mais relevantes da teoria queer e das relações entre literatura e homoerotismo. Em
seguida, o romance Acenos e afagos é analisado, desenvolvendo-se aproximações entre as
questões investigadas e mostrando como essa obra aponta para a constituição de um corpo e
um romance queer.
PALAVRAS-CHAVE:
Literatura brasileira contemporânea, João Gilberto Noll, Teoria Queer, homomemória
homoerotismo.
10
RÉSUMÉ
Cette dissertation interprète, dans le roman Acenos e Afagos, de João Gilberto Noll, le
symbolique du corps et de la métamorphose comme des elements pour une compréhension
d’une caractérisation queer. On trouve présenter cette construction à travers des articulations
entre la narrative du corps en transformation et de l’idée d’un mémoire très particulier dans le
roman, ce que nous avons appélez homomémoire identifié sur le narrateur-protagoniste. Ces
articulations font partie de la dimension esthétique de l’oeuvre, en la charatérisant comme une
poétique queer de radicalisation des questions post-identitaire. L’étude jette, d’abord, un coup
d’oeil sur le genre romanesque et sa caractérisation de la litérature de Noll à partir des
catégories d’analyse de la Queer Theory et de la relation entre litérature et homoérotisme.
Après, le roman Acenos e Afagos est analisé, en se développemant des approximations entre
les questions recherchées et en aprésentant comme cet oeuvre remarque une constitution d’un
corps et d’un roman queer.
MOTS-CLÉS:
João Gilberto Noll, corps, métamorphose, homomémoire, Queer Theory, homoérotisme,
litérature brésilienne contemporaine.
11
ABSTRACT
The aim of the present dissertation is to interpret the symbology of the body and of
metamorphosis as elements which add to the comprehension of the characterization of the
queer in the novel Acenos e Afagos, by João Gilberto Noll. The interpretation is based on the
articulations between the narrative of the transforming body and the idea of a very particular
kind of memory identifiable in the novel’s narrator-protagoniste and which shall be called
homomemory in this study. The aforementioned articulations are present in the aesthetic
dimension of the novel and orient towards a queer poetics of the deepening of post-
identitarian matters. The work is structured as follows: firstly, attention is drawn to the novel
as a gender and to what aspects it takes up in the literary works by Noll, taking as starting
point the most relevant aspects of the Queer Theory and the relation between literature and
homoeroticism. Then, the novel Acenos e Afagos is analyzed, evidencing the aforementioned
questions and showing how this literary work is oriented towards the constitution of a queer
body and a queer novel.
KEYWORDS:
João Gilberto Noll, body, homomemory, Queer Theory, homoeroticism, contemporary
Brazilian literature.
12
INTRODUÇÃO
A literatura de João Gilberto Noll, desde sua estréia com o livro de contos O cego e a
dançarina, publicado em 1981, até Acenos de afagos (2008), traz as marcas da
contemporaneidade sobre diversos matizes, dentre os quais, o esfacelamento da experiência, o
mundo fagocitado pelo tempo e pela velocidade, o esvaziamento do ser ou o corpo como
lugar dessa experiência e da narrativa que deseja engendrar.
Em Acenos e afagos, Noll propõe uma simbólica desse corpo, levando-a ao limite de
sua metamorfose, tornando o romance, portanto, uma narrativa queer. O autor faz do
imaginário do corpo queer e da desnaturalização da identidade de gênero o núcleo do
romance. Para compreender essas relações, buscamos o embasamento na teoria queer, cujas
categorias de análise servem-nos como balizas para entendermos os conceitos de gênero,
identidade, homoafetividade e suas implicações na literatura, considerando a metamorfose
como um expediente estético.
Dessa forma, no tópico O romance e o romance de João Gilberto Noll, do primeiro
capítulo, Tal João, qual romance?, buscamos recuperar algumas questões em torno da
discussão do romance como gênero literário na pós-modernidade, suas implicações estéticas e
sociológicas e como a literatura de Noll dialoga com essas tendências aventadas ao romance
contemporâneo.
No tópico A narrativa emergente de Noll, buscamos contextualizar a produção de Noll
no cenário histórico brasileiro de seu surgimento, no período pós-64, e refletir sobre como sua
literatura envereda pela exploração da solidão do homem contemporâneo e pelo cotidiano e
sua experiência da perda, em uma época em que algumas linhas do romance ocupavam-se de
retratar a dinâmica da censura política do país.
No tópico Noll: o elogio da insuficiência, elencamos alguns trabalhos críticos sobre o
autor, que versam sobretudo sobre as questões da contemporaneidade. Propomos ampliar
13
essas discussões ao identificar como o autor elabora o espaço da narrativa em diálogo com o
espaço urbano e suas incidências nas construções identitárias.
No tópico As teias entrelaçadas: Mínimos, múltiplos, comuns e Acenos e afagos
lançamos um olhar sobre o que consideramos uma “erótica pictural” que une os dois textos. A
plasticidade como elemento que legisla sentidos em uma “odisseia” intuída da criação do
universo, em Mínimos múltiplos, comuns particulariza-se na “odisseia” de um corpo que,
também ele cíclico, narra uma trajetória, uma poética da transformação.
No tópico denominado Literatura e Identidade, apresentamos fundamentação teórica
que norteará nosso trabalho: uma revisitação história do surgimento da teoria queer, suas
principais categorias de análise, e como estas podem ser rentáveis na interpretação da
literatura e suas relações com as identidades na pós-modernidade. Intentamos, ainda neste
capítulo, estabelecer algumas relações entre literatura, crítica literária e homoerotismo para
compreensão do romance Acenos e afagos, de Noll.
No tópico O romance queer: corpo, experiência e narrativa, objetivamos interpretar a
relação do corpo e da experiência em Noll como agentes da narrativa. Em Metamorfose e
homomemória, analisaremos em que medida essa metamorfose, como recurso estético,
representa uma experiência simbólica para discutir a desnaturalização da identidade de gênero
a partir de uma memória corporal.
Ao propormos essas questões, aventamos chamar de romance queer o livro de Noll,
conquanto elabora uma radicalização na descentralização das identidades homoafetivas, em
sua dinâmica pós-identitária, a partir dessa homomemória e da metamorfose como exercício
radicalizado no devir e que incidem sobre a relação entre o conteúdo existencial e histórico da
obra e a sua dimensão estética.
Este trabalho se alia à fortuna crítica de Noll que reivindica uma articulação dessas
duas instâncias, desta vez a partir da rubrica de alguns postulados da teoria queer,
considerados no diálogo com algumas especificidades literárias, que em Acenos e afagos
garantem a elaboração de alguns sentidos, sejam eles históricos ou estéticos.
14
1. TAL JOÃO, QUAL ROMANCE?
1
1.1 O romance e o romance de João Gilberto Noll
Eu era Berkeley, o célebre filósofo sensualista que acreditava, dizem, que a
subsistência das coisas dependeria da qualidade da percepção e não da
feitiçaria da linguagem -, e qual percepção eu poderia ter de mim mesmo
naquele vão noturno que quase me engole num repente?
2
O romance é o gênero da desilusão, do dilaceramento, mas da aprendência. Nesse
élan, de um lado, a fórmula de Lukács (2000), segundo a qual o romance emergiria sob um
signo paradoxal: caquético de nascença, quando comparado à epopéia clássica, se define pela
fragmentariedade; de outro, a visão de Benjamin (1985), que contrasta o romancista com
aquele modelo ancestral de narrador, a fim de nuançar um estatuto das formas artísticas e a
relação entre narrativa, experiência e sabedoria (SANTIAGO, 1989, p. 44).
Na letra canhota (o primeiro sinal gauche?), nos pequenos cadernos em que costuma
dar a primeira versão de suas histórias, esse João, gaúcho, nascido no final da década de
quarenta, em Porto Alegre, licenciado em Letras, crítico de literatura; primeiro escritor
brasileiro convidado pelo King’s College de Londres para ocupar o cargo de writer in
residence na Inglaterra e em Berkeley, na Universidade da Califórnia, onde lecionou
Literatura Brasileira; ganhador de diversos prêmios literários, e tendo alguns de seus contos
publicados em antologias no Brasil e também na Argentina e na Itália, onde alguns de seus
romances foram traduzidos, fala de uma literatura que nasce porque “o mundo parece regido
por um distúrbio secreto”, que irrompe “o encontro cabal dessa espécie de veia túrgida e
insone da escrita com a suculenta vigília do leitor”.
3
Acrescentaríamos, uma vigília também
1
O título remete ao ensaio de Flora Süssekind, Tal Brasil, qual romance?, publicado em 1984.
2
NOLL. J. G. Berkeley em Bellagio. São Paulo: Francis, 2003.
3
______. O escritor por ele mesmo. João Gilberto Noll. Por que escrevo. 1. ed. São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2002. (Encarte do CD-ROM).
15
da crítica de literatura, que vem reconhecendo João Gilberto Noll como um dos escritores
mais prolíferos da contemporaneidade.
4
Tal a dimensão existencial com que se constitui a literatura de Noll (SCHNAIDER,
1997), e, em particular, o romance Acenos e afagos (2008), sobretudo no trato das questões da
alteridade, e da projeção dessas questões pelo e no leitor, que se define, ao lado do narrador,
espectador de uma “ação alheia” que catalisa, emociona, seduz, ilude e que, também ele
alcançado pelas questões complexas da pós-modernidade, não possui mais as certezas
homéricas de sua totalidade existencial. Ao contrário, o mundo narrado em Acenos e afagos,
sob esses inescapáveis matizes, é um mundo às avessas, metamorfoseado, contraditório,
reserva do que de mais demoníaco pode haver nessas ilusões perceptivas do corpo na
narrativa - e da narrativa de um corpo - que enceta a impossibilidade de visualizar sua
trajetória terrena, deambulação marcada pela solidão, pela errância, (BENJAMIN, 1982), pelo
devir.
Acenos e afagos traz certo acento esquizofrênico da prosa ficcional contemporânea,
como registro estético forjado por uma imposição representacional, narratológica, cujos topoi
de maior expansão no imaginário literário sangram na crosta de repertórios de enredos
desamparados, que refiguram ficcionalmente uma experiência de despejos e despojos
(SANTIAGO, 1989, p. 44), conquanto toca na imiscibilidade de vozes identitárias da pós-
modernidade e nos sulcos abertos por elas em narrativas elípticas e/ou caóticas.
Desde o início do século XX, diversas expressões artísticas têm sido associadas a
fenômenos como a reificação, o estreitamento ou a degradação das relações humanas na
sociedade moderna. Nas últimas décadas, no entanto, essa relação pelo menos como surgiu
nas análises de determinados teóricos da pós-modernidade tomou formas particularmente
4
Embora João Gilberto Noll publique seus primeiros dois contos, “A invenção” e “Matriarcanjo”, na antologia
Roda de fogo 12 gaúchos contam, publicado pela Movimento, em 1970, já dando mostras de sua verve literária e
da atmosfera de sua ficção, o reconhecimento da crítica veio uma década depois, com a publicação de O cego e a
dançarina (1979), obra que se tornou o marco de sua carreira. Em 1981, Noll é consagrado “Revelação do Ano”,
pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), e seus contos ganham o “Ficção do Ano”, pelo Instituto
Nacional do Livro, além do mais importante prêmio literário brasileiro, o Jabuti, pela Câmara Brasileira do
Livro. Premiação, aliás, que irá se repetir por quatro outras ocasiões: em 1994, quando publica Harmada (1993);
1997, pela publicação de A céu aberto (1996); em 2004, em duas categorias: o primeiro lugar para capa e o
segundo em ficção, pela obra Mínimos, múltiplos, comuns (2003); no ano seguinte, pelo romance Lorde (2004).
A APCA premia o escritor, mais uma vez, em 2007, pela publicação de Máquina de ser (2006), e o romance
Acenos e afagos ganha o segundo lugar no “Prêmio Portugal Telecom 2009e ao autor o “Fato Literário
2009”, na categoria Personalidade do Ano, promovido pelo Grupo RBS, BANESUL e Governo do Estado do
Rio Grande do Sul.
16
agudas, como que confirmando previsões apocalípticas (ECO, 1993), como as de Benjamin,
que preconizava uma “queda interminável” da experiência, e com ela a impossibilidade de a
arte exprimir de forma plena os anseios humanos.
Jean Baudrillard (1991), por sua vez, falou várias vezes no desaparecimento da arte e
na “indiferença profunda” (p. 24) que nos provocam os objetos artísticos, os quais também
coexistiriam entre si “numa total indiferença” (p. 26). Para o pensador francês, a arte não só
teria perdido a capacidade de representar as contradições da existência contemporânea, como
a própria contradição teria se tornado impossível em um universo onde tudo se resumiria à
contemplação.
A esses julgamentos corresponde uma visão de sociabilidade contemporânea, posto
que o sujeito mergulhado na “condição pós-moderna” (HARVEY, 1996) estaria totalmente
imerso no “fluxo total” (BAUDRILLARD, 1991, p.67) da existência, e como que não se
distinguiria dele; configurando, pois, um indivíduo esquizofrênico (JAMESON, 1996), cuja
identidade se dissolveu em meio à circulação incessante dos signos midiáticos e
informacionais. O esmaecimento de sua capacidade de assumir uma direção descortina a
imposição de linhas de força externas, anônimas, impessoais que agem sobre o sujeito
fabricado e mutilado em sua singularidade (CASTORIADIS, 1982).
Ao imaginar um narrador-protagonista submetido a um processo de metamorfose do
corpo no centro da narrativa, Noll metaforiza o desmoronamento de lógicas identitárias e
espaciais, em um foco narrativo cuja essência transgride os parâmetros do que comumente
ocupa-se a fenomenologia literária. Esse sujeito do texto leva ao limite a noção de
temporalização na economia da obra, ao narrar a partir de um tempo metafísico, não sendo,
portanto, circunscrito à reverberação do passado, como na clássica narrativa machadiana, da
excelência ilocucionária de um defunto-autor; ou do exame proustiano de suas memórias, a
fim de problematizar o tempo.
Acenos e afagos coloca a fluidez da realidade, esse expediente narrativo tipicamente
nolliano, em constante transformação, figurando um turbilhão impressionista cuja ausência de
contornos nítidos, a fusão de imagens sobrepostas do presente e do passado, inoculadas por
uma memória de corporeidade, de ludo libidinal, deformam o real, atribuindo ao tempo da
narrativa o próprio estofo dessa realidade ambígua, nomádica, devir do corpo, da identidade.
17
Noll cria uma cartografia dessa mobilidade da linguagem que reverbera o passado, em
cenas primárias da infância, que irrompe em discursos estriados sobre uma identidade que vai
se forjando criativamente, num choque frontal contra agenciamentos normalizadores, sejam
eles engendradores subjetividades sistematizadas, que refletem modelos de sociabilidades.
Conquanto seus personagens denotam fissuras em subjetividades, numa “dispersão fractal”
(POSSO, 2009)
5
às avessas, que ressignifica o volatismo do desejo homoerótico como
produto dialógico/ideológico, ao sugerir, tangencialmente, que as demandas da sexualidade
são derivadas e derivas de codificação social, embaçam fronteiras e indiciam um capital
libidinal complexo e insubmisso.
Assim como o modernismo significou um esforço de inserção na vida moderna, capaz
de exprimir seus conflitos e afãs, muitas expressões artísticas entre elas, inclusive, algumas
ditas “pós-modernas” – têm realizado o mesmo em relação à contemporaneidade. Desse
modo, os romances de João Gilberto Noll buscam preservar sua capacidade de abertura
dialética para a realidade, tanto naquele sentido apontado por Umberto Eco (1991), enquanto
apropriação formal de outras estruturas narracionais, em que pese a pluralidade constitutiva,
que marca uma “desordem fecunda” (p. 23) “em favor de uma maior plasticidade intelectual e
de comportamento” (p.19), voltada a um “projeto de educar o homem contemporâneo” (p.
18); quanto no indicado por Bakhtin (1998), enquanto acolhimento estético dos mais variados
aspectos da vida cotidiana e suas contradições.
Na economia interna das obras de Noll, esses dois sentidos guardam sua
especificidade, atravessada constantemente por efeitos e resultados de uma transformação
ampla e processual na experiência vivencial e estética contemporânea, sobretudo na
composição caótica de modelos narracionais que submetem a sequência dos episódios a uma
justaposição de pedaços móveis e iterativos.
Não nos cabe nos limites desse trabalho, um escaneamento estruturalista minucioso da
prosa de Noll, mas torna-se relevante ressaltar que, desde sua estreia com O cego e a
dançarina (1980), livro de contos, passando pelo complexo semiótico de Mínimos, múltiplos,
5
A expressão “dispersão fractal” é cunhada por Karl Posso para examinar as configurações múltiplas do desejo
homossexual masculino e sua projeção nas obras de Silviano Santiago e Caio Fernando Abreu. De acordo com
Posso, ao contextualizarem personagens homossexuais em exílio, os autores propõem um modo alternativo de
organização social homoerótica, posto que fraturam a opressão heterossexista brasileira. POSSO, K. Artimanhas
da sedução: homossexualidade e exílio. Trad. Marie-Anne Kremer. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
(Humanitas).
18
comuns (2003), cunhados de “instantes ficcionais”, e por sua volta à contística com Máquina
de ser (2007), até seu último Acenos e afagos, e, mais recentemente, em O nervo da noite e
Sou eu, ambos publicados em 2009, e denominados de literatura juvenil, o autor se credencia
como representativo exemplo de uma gleba fecunda de autores outros na prosa de ficção
brasileira que procuram estabelecer um dialogismo entre literatura e cultura midiática, em
uma lógica que orienta a constituição da sensibilidade e da subjetividade contemporâneas.
É sintomático, portanto, que alguns elementos estéticos perseguidos por Noll, quais
sejam, a simultaneidade, o multiperspectivismo e a descontinuidade narrativa, apontam para
uma prosa que adota em sua construção temática e formal algumas constituintes relacionadas
ao cinema, à tevê e, mais recentemente, à internet. Eles permitem, como alguns trabalhos
críticos apontam, uma problematização espacial, e, acrescentaríamos, uma representação da
desterritorialização das categorias de sujeito queer na literatura.
A simultaneidade, como descrição de dois pontos separados no espaço em um único
instante, relaciona-se, em Acenos e afagos, ao recurso narrativo que propõe uma visão
cambiante do narrador-protagonista. O multiperspectivismo coaduna a descrição de um único
evento a partir de condições radicalmente diferentes; ao passo que a descontinuidade
narrativa, inspirada no conceito de montagem cinematográfica e de zapping televisivo ou
surfing hipertextual provoca o rompimento da linearidade.
São estéticas de desequilíbrio que submetem a linguagem a um tratamento deformante,
por assim dizer, inoculado pelo desejo estruturado e estruturante em borrar convenções
retóricas, narratológicas, ao expor sua artificialidade, arbitrariedade, a noção tradicional de
sentido, de sujeito, de identidade, sobretudo em Acenos e afagos, quando a insubmissão
formal, sua estranheza e irreverência insólita gravitam em torno da desterritorialização-limite
do corpo denso e tenso, vital e letal, mutável, resistente e ao mesmo tempo frágil em termos
de comunicação de seu conteúdo social queer.
Leitura radicalizada nas lentes de Murilo Salles, Maurice Capovilla e, mais
recentemente, Suzana Amaral nos respectivos “Nunca fomos tão felizes”, “Harmada” e
“Hotel Atlântico”
6
- em que as relações agonísticas dos romances e contos de Noll são
6
Para uma filmografia das obras de Noll: NUNCA fomos tão felizes. Produção de Murilo Salles e José Joaquim
Salles. Direção de Murilo Salles. São Paulo: Morena Filmes, Salles & Salles, Produções Cinematográficas L. C.
Barreto, Movie & Art, Imacom Comunicação, Cinefilmes e Embrafilmes. 1983. 1 videocassete (96 min.), VHS,
19
traduzidas, não sem o esforço sísifo, em um “cinema das essências”,
7
uma linguagem
sensorial, que beira o impressionismo, o quase irrepresentável das sensações das personagens,
mas que adere, por outro lado, à urgência do imagético, à polifonia da fragmentação, próprios
ao registro cinematográfico, ou daquela “prisão definitiva”, de que fala Marguerite Duras, ao
se referir ao engendramento do olhar homogeneizante do cinema.
8
Em termos de abertura para as contradições da realidade, pode-se dizer que a
literatura produzida em um país periférico como o Brasil situa-se em uma posição
“privilegiada”, como demonstrou Roberto Schwarz (1997) em seus estudos sobre Machado de
Assis. Nessa direção, não dúvidas de que a ficção brasileira contemporânea contém em si
representações altamente problematizantes do mundo atual. Algumas dessas representações, e
as tensões em seu interior, constituem o objeto Acenos e afagos, na irrupção de um algo capaz
de “elevar o nível das ambições” dos “verdadeiros romances”, como aponta a crítica incisiva
ao gênero, feita por Berardinelli (2007, p. 178).
Esses ecos da modernidade que se afirmam pela imagem do progresso, da
transformação, daquilo que se rarefaz no ar, que põe na berlinda e a contrapelo a credulidade
de conceitos, dos fundamentos das metanarrativas que legislavam tão confortavelmente o
mundo da epopéia, forja outras propostas de um novo imaginário sobre o devir da existência,
da arte, da estética, da história da organização do gozo e seu ônus. Acenos e afagos é, pois, o
romance nolliano que mais guarda aquele tom de Pierre Menard dos gêneros (BORGES,
2001), conquanto opera um dispositivo narrativo que lembra o Aleph atualizado,
intertextualidade espraiada de Homero, Ovídio, Woolf, Kafka; e, no contexto brasileiro,
Mário de Andrade, Murilo Rubião, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Luís
Vilela, para se citar apenas alguns
9
. Esse imaginário sugere, pelo corpo em cena, pela
memória corporal, que colocam em xeque uma “ontologia” do sujeito pelo corpo redefinido,
uma dinâmica que organiza, na metáfora da metamorfose, um imaginário queer sobre o corpo
e sua subjetivação.
son., color.; HARMADA. Produção de Marília Alvim. Direção de Maurice Capovilla. São Paulo: Saturna
Produções Artísticas. 2003. 1 DVD (100 min.), son., color.; HOTEL Atlântico. Produção de Ary Pini. Direção de
Suzana Amaral. São Paulo: Planifilmes, Cinemalink, Espaço Filmes. 2009. 1 DVD (110 min.), son.. color.
7
PEIXOTO, Mariana. Cinema das essências. Estado de Minas. Belo Horizonte, ano 74, 16 jan. 2002. Cultura, p.
12.
8
DURAS, M. Deuxième projet. In: Camion. Paris, Minuit, 1977, p. 75-77.
9
Referimo-nos a um diálogo entre Noll e algumas obras que tratam do tema da metamorfose, ressaltando-se suas
diferentes figurações temáticas. Ampliaremos essa discussão no tópico Metamorfose e homomemória.
20
É o que também podemos depreender, por um outro viés, de Feher (1997), ao propor
que o romance tenta pôr em cheque a questão da própria ontologia, da relação do homem
consigo mesmo, refratário da velha antinomia da condição humana e sua tragicidade, sua dita
e sua desdita. Para além da concepção do romance como representativo de um determinado
vetor histórico-estético (LUKÁCS, 1999), o romance é uma epopéia existencial, e se
configura, na pós-modernidade, momento - ou nova sensibilidade (SONTAG, 1996 apud
BONNICI, 2007, p. 253) em que se colocam como incisivas as questões da forma, como
desterritorializado, marcado pela multiplicidade de temas, situações e ambivalências estéticas.
O romance, tal como o sujeito que nele representado, está em permanente diáspora, é
um gênero insubmisso, capaz de gerar um complexo de estratégias, em uma “relação
homóloga” (GOLDMAN,1976) aos fluxos aparentemente informes e menos tangíveis de
nossa experiência existencial (porque histórica), capazes de redefinir e de estetizar essa
existência. Em João Gilberto Noll, por exemplo, a matéria elaborada do fluxo movimentado e
incerto da vida contemporânea, o narrador rompe com qualquer possível abordagem
essencialista e autenticadora da questão identitária, conquanto sua cartografia não registra
uma personagem centrada, seja no plano do discurso narrativo, seja no nível diegético ou na
dimensão de sua individuação.
Como de fato pode-se depreender de Hall (2004), as identidades somente podem ser
historicizadas nas condições materiais de suas experiências, e Acenos e afagos, ao construir
um personagem-narrador anônimo, embora em certo ponto da narrativa se autodenonime,
ironicamente, de “João Imaculado” (p. 154), cujo erotismo na “dispensão erógena da
infância” (p. 10) é marcado homoeroticamente orientado na “sagração da inconveniência”
(p.10), não autoriza uma leitura homomilitante de defesa de uma forma de significação social,
nem de demandas de sigilo, interdição ou glamourização.
Daí o teor queer desse romance: a narrativa gravita em torno de seu processo, em seu
constante devir; como movimento, portanto, nem o nível narracional é estanque, porque fluxo
de uma prosa poética, nem o plano do conteúdo, pois, com efeito, o corpo e seus
investimentos não estão abaixo dos acontecimentos ordinários da vida, não figuram um exílio
confortável. Em Noll, o corpo não é antropologicamente seguro, porque emblema de
disformismos de todas as ordens; e, em Acenos e afagos, cria um território de ressonâncias
sinestésicas: “Perguntei-me se a pele não vinha justamente dos poros do amigo que planejava
21
na infância ser um engenheiro, próximo e distante. Aquele corpo entregue às minhas mãos
lembrava a prosa intestina do corredor escuro” (p.11).
Esse sujeito é textual e formalmente marcado por novas figurações filosóficas que se
afirmam pela indeterminação e descentramento (ROSENFELD, 1976) porque sua vida e sua
representação não encerram a proposta de dar conta da existência, nem mesmo de oferecer
uma visada panorâmica ou sumariada, em narrativa anticlímax, texto de impasse, que
radicaliza uma ironia autorreflexiva, uma percepção difusa, segmentada e histriônica do real,
como na passagem em que a personagem, após uma conversa com um colega no seminário,
por quem nutre um desejo inconfesso: “Ao fechar a porta o quarto faltou luz. Tomei um copo
d’água no escuro. E depois sorri. Esse sorriso eu destilava vísceras e dedicava ao zero a partir
do qual minha vida vingara e florescera” (NOLL, 2008, p.15).
O arquétipo social que forja essa identidade múltipla responde pela sua fragilização e
impotência diante da antiga narrativa teleológica de mundo. Destarte, esse sujeito histórico e
esse “sujeito literário” (ECO, 2003) veem-se diante da vida como um projeto inconcluso,
aberto, não-linear, por vezes, esquizofrênico, queer. Daí as marcas, os registros e as
disposições formais
10
que se aventam na ficção de Noll, e que dão conta de redefinir seus
romances (e contos) pulverizados pela fragmentação das coordenadas espaço-temporais,
como inovações estéticas que se afirmam pela relação entre o ficcional e o real, bem como nas
questões de identidade que impedem territorializá-la em guetos de significações:
Vinha-me então esse gosto condenado na boca, gerando mais e mais
excitação, o transe até. Preferia estar ali, com o cu do menino na cara, a estar
com minha fuça esterilizada pelos cadernos do dever diário. Juramos não
contar essa tarde a ninguém. Nunca. Nós a enterraríamos um pouco em cada
um e, quando estivéssemos crescidos, a imagem da luta no chão frio já
estaria esfarelada, sem que soubéssemos reaver os fragmentos. E nos
fizemos de túmulo, para enterrar de vez o brinquedo que cada um criara no
corpo do colega. [...] Tudo poderia estar imerso em seu silêncio, tudo, até
alguma pane em sua identidade. [...] Naquele tempo, desconfiava de que
10
Bakhtin já aventava a concepção de forma como expressão, em sua estética do romance, nos anos 1920, em
um texto clássico, como o “O Problema da forma”, que resulta em uma defesa do que o teórico russo
denominava “conteúdo axiológico” para a forma, referindo-se a uma estética capaz de provocar uma reflexão
cognitiva. Acenos e afagos,como “forma”, na interpretação bakhtiniana, se realiza no material de que se vale,
daí o valor “axiológicoque dele se depreende e que aqui corresponde ao recorte estético da metamorfose. (Cf.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fortoni Bernardini. 4. ed.
São Paulo: Hucitec, 1998.).
22
seria um adulto famélico por sexo. Sentava no chão da casinha de bonecas, a
priminha de levantava a saia, afastava a calcinha, eu passava o dedo por
aqueles laivos de delícia. Metia o dedo um pouquinho mais. Ela gemia então,
fremia, e encharcava meu dedo em riste em seus precoces fluidos vaginais.
[...] Eu levantava e botava a mão dela em meu pau em flor. Preferia o pau do
Raul. (NOLL, 2008, p.10-13).
Em outras palavras, a indeterminação identitária não se limita a figurações do sujeito, mas se
espraia, igualmente, pelas relações entre as imagens do eu e as do espaço dissolutos,
performáticos:
Eu queria ser Deus, isso estava claro, e desconfiava de que, para seguir a
carreira divina, seria preciso uma imaginação teológica com outra face.
Como por exemplo sair do seminário, do armário, me entregar ao roubo, ao
crime, às ofensas carnais, ao vício e daí não mais retornar. O diabo era doce.
No ermo da figura peçonhenta quero ir como mulher. Pois faço idéia das
artes demoníacas do amor na modalidade feminina (NOLL, 2008, p. 16).
A fragmentação temporal que entremeia os processos de representação e que
correspondem, segundo Rosenfeld (1976), à maneira nova do sujeito de posicionar-se em
relação ao mundo não sugere, contudo, o esmaecimento do romance como representação de
uma experiência, dos conflitos humanos e da procura de uma totalidade perdida. O clássico
proustiano, À la recherche du temps perdu (1913-1927), como exemplo, apesar de se
sedimentar na estrutura mental do narrador-protagonista, sustenta-se em uma busca
materializada na tentativa de reconstruir o passado (CARVALHO, 1981). Ainda que o
romance Acenos e afagos se elabore a partir do fluxo de ressonâncias, como estratégia
narrativa, e, destarte, não representar as experiências do narrador como uma totalidade linear,
cronológica, ainda assim o protagonista reanima essa busca, presentifica essa trajetória,
reverberação assinalada por uma corporalidade inteligível, contudo, desejável:
Eu crescera e era um homem homem apaixonado pelo corpo que eu ainda
não tinha acolhido. Agora, a pele seria a de um colega de seminário que não
me dava a mínima. Ou dava? [...] Fui para ao quarto sentindo meu coração
bater calado: independente do que fizesse da vida, a máquina dentro de mim
não falharia antes do tempo. Foi pensando nisso, por aquele corredor gélido ,
23
que cheguei a meu quarto sem mais acreditar em Deus. A engrenagem do
meu corpo cairia em desuso quando tivesse de ser. [...] A partir dali,
abriria a boca com repugnância para receber a comunhão. Mastigaria aquela
casquinha anêmica triturando todas as crenças d’além corpo (NOLL, 2008,
p.14-15).
11
O elemento fundante de todo processo ficcional, como indica o excerto acima, a dobra
mesma que o atravessa e que se lhe impõem incisivamente como tutela é, pois, um desejo de
representação de uma experiência positiva ou negativa, de redenção ou danação
12
e que,
imaginário do romance, esboça-se uma dramatização identitária que leva à abdicação de uma
visão totalizante. O mesmo princípio evocado à diluição da linearidade narrativa e de outras
categorias estéticas, como o espaço (NEVES, 1990), corresponde à fragmentação da
consciência, da identidade, e, no limite, do próprio corpo como unidade material, como ficará
mais explícito no tópico O romance queer: corpo, experiência e narrativa.
Nesses apocalipses individuais e coletivos, o problema da alteridade se coloca na
ordem do dia, a constituição desse sujeito e sua representação se dão pela e na condição de
simulacro (BAUDRILLARD, 1991), da supervalorização da aparência (MAFFESOLI, 1996)
e constitui o imaginário social dos imperativos e espetáculos (DÉBORD, 1997) forjando um
sujeito narcísico, que abdica de valores coletivos e que se promove pela “predação do corpo
do outro, por meio da qual, “o sujeito empreende também a estetização de seu eu [...] como
técnica de existência para a individualidade [...]” (BIRMAN, 1999, p. 167).
Nessa clave intelectiva, avaliando-se a contemporaneidade, sentimos as marcas de
uma desilusão em relação à redenção a um paraíso telúrico; a experiência em relação ao
tempo, portanto, é, pois, uma experiência temporal que não se articula em uma concepção
linear e ascendente, como no legado da história positivista, em que as relações entre passado,
presente e futuro se dão por contigüidade (LE GOFF, 1994), mas o presente se materializa
pelos infinitos instantes desconexos que expressam o inconcluso, o exercício superficial da
11
Uma importante crítica aponta a literatura de Noll como desconstrutora do discurso religioso cristão, que
estabelecer uma tensão antitética entre o sagrado e profano. (Cf. FAZIONI, M. C. dos S. As tensões narrativa em
A fúria do corpo, de João Gilberto Noll. 2008. Dissertação (Mestrado em Letras)-Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, Três Lagoas, 2008.
12
Remetemo-nos àquele tom melancólico que nutre o pensamento e a escrita benjaminiana ao considerar a
literatura como reserva de um conteúdo existencial que, legitimado pela humanização que forja, prepara para a
morte. (Cf. BENJAMIN, W. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In:______. Magia e
técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história. São Paulo: Brasiliense, 1985.).
24
percepção difusa no momento, da inarticulação, do nonsense (MAFFESOLI, 2003), como na
passagem em que o personagem reencontra fortuitamente o amigo da infância, agora já
maduros, e decidem ir ao cinema:
Fomos ao cinema. E durante o desenrolar do filme nos olhamos no escuro
cara a cara, e cada um viu no outro, tenho certeza, a substância que faltava.
isso? Sim, nada mais que isso. [...] A partir daquela tarde eu queria
escrever uma outra história. [...] Foi ali que me dei conta de que eu tinha
passado do filme para mim mesmo naturalmente, como se entre o espetáculo
e minha vida bruta não houvesse um hiato. Eu atravessara do cinema para os
corredores do shopping sem notar qualquer fronteira entre os dois pólos
(NOLL, 2008, p. 17).
Nômades, romance, personagem e destinos têm uma única aposta possível no devir, de
ironizar a agonística do presente. Na literatura que não faz concessões, que não se pauta por
assédios textuais e mercantis fáceis, que não tenta captar o leitor com “chantagem estilística”
(CANDIDO, 1971, p. 97), estão os romances que nos dão o ceticismo necessário para
compreendermos a frase valeryana segundo a qual “deux dangers ne cessent de menacer le
monde: l’órdre et le désordre”(VALÉRY, 2000, p.14).
Na contemporaneidade, em sua cartografia literária, o presente é tão grande”, para
lembrar Drummond
13
, mas não pressupõe o “vamos de mãos dadas”, porque é abandono.
Perpétuo, o tempo presente é o instante, devoluto das horas, que prevê despojamentos de
projetos, de uma concepção líquida do tempo e dos valores (BAUMAN, 2001), de apostas no
imediato, no já. E como se coloca, nesse quadro baudelaireano, a questão da experiência? Um
“não-acontecer”? O sujeito tende a não acumular a experiência no sentido benjaminiano. Se a
questão da experiência sub judice, sob suspeita de extinção, relaciona-se com o romance,
então este também estaria sob o vaticínio da morte.
Mas Bakhtin (1998) desautoriza antecipada e preventivamente toda e qualquer
forma de especulação que se oriente em torno do esmaecimento e morte do gênero; pois que o
romance, na visão do teórico russo, mostra-se inacabado quanto às configurações sociais e
historicamente delimitadas que forja e representa. O romance é, paradoxalmente, canônico e
13
ANDRADE, C. D. de. Mãos dadas. In:______. Antologia poética. São Paulo: Record, 2005, p. 45.
25
acanônico daí a sua infidelidade. Ele é antiaristotélico. Don Juan (invulgar) dos gêneros, o
romance, flerta com todas as formas poéticas, de suas ruínas se nutre, e, autofágico, à medida
que se reinventa pela força das contingências históricas que registram imaginários, sonhos,
desejos, inquietações, ideologias, utopias, cinismos em tempos diferentes, também ele as sofre
e escamoteia, ordena e reordena por instinto de sobrevivência sua própria “estrutura de
sentimento”
14
. O romance é a prosa do mundo
15
redigida em uma edição nunca
suficientemente convincente.
Redimensionamos esse lugar do romance contemporâneo, de uma dimensão mais
genérica - lugar de entrevero, enfrentamento entre ordens e desordens, de distintos ritmos,
dissonantes, dissolutos, que se impõem -, para um contorno mais tido dessas questões na
prosa de ficção brasileira contemporânea, e, em especial, no entre-lugar da escrita de João
Gilberto Noll, considerando-se o que a crítica tem requerido como marcas ficcionais dessa
literatura, insistimos, sem espaço para conformismos formais, e cujos destinos demasiado
humanos (por isso mesmo irrealizáveis) que traça ou simplesmente esboça como uma
cômoda e impotente “fotografia na parede. Mas como dói”.
16
14
Termo cunhado por Raymond Williams para definir, em uma perspectiva materialista cultural as articulações
entre formas e convenções estéticas como “elementos inalienáveis do processo material social. [...] As estruturas
de sentimento podem ser definidas como experiências sociais em solução [...]. (Cf. WILLIAMS, R. Marxismo e
literatura. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 136, grifo do autor).
15
Referência ao título da obra de Merleau-Ponty. Lefort, ao prefaciar o livro, afirma: “Um escritor é ultrapassado
quando não é mais capaz de fundar assim uma universalidade nova e comunicar no risco” (Cf. LEFORT, C.
Advertência. In: MERLEAU-PONTY, M. O homem e a comunicação. A prosa do mundo. Trad. Celina Luz. Rio
de Janeiro: Bloch Editores, 1974.
16
DRUMMOND, C. D. de. Confidência do itabirano. In:______. Poesia completa: conforme as disposições do
autor. 1. ed. 3. impr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 68.
26
1.2 Mosaico de vidros: a narrativa emergente de Noll no contexto brasileiro
“E sobretudo quando escrevo e a língua permanece em seu natural repouso, sinto que dedilho na
máquina não as teclas, mas as palavras insuspeitadas até ali, coisa que se parece mais com a música
do que com a comunicação verbal, e tanto isso é verdade que muitas vezes tenho a sensação nítida de
estar dizendo em andantino, em presto, em adágio”.
17
Em um esforço de síntese, consideremos o surgimento da literatura de Noll no
contexto brasileiro, com O cego e a dançarina, em 1979, marco, portanto, dos primeiros
sinais de esmaecimento do regime militar, com a anistia política e a revogação dos atos
institucionais. As marcas indeléveis em grande parte da produção cultural-literária pós-64
indicam um “fenômeno cujas repercussões estilísticas e temáticas seriam profundas”
(SILVERMAN, 1995, p. 21), ao rasurar os inextrincáveis fios do regime ditatorial brasileiro.
Ao observar no conjunto a literatura produzida no período dos chamados “anos de
chumbo”, a crítica reconhece como mais incisiva, uma escrita política de oposição ao regime,
cujos matizes delineavam narratividades de resistência à militarização, ainda que protéicas na
forma e nos temas, caracterizadas por “certa fisionomia comum” (CANDIDO, 2003, p 201).
Compreender e interpretar esse contexto exige que se considerem as produções artísticas e
intelectuais inclusive a crítica literária - sob as imposições e cerceamentos decretados pelo
Ato Institucional nº5, em dezembro de 1968, a partir do qual o controle sobre os meios de
comunicação e sobre as manifestações artísticas em geral passou a ser extremamente severo,
silenciando e exilando literária e geograficamente muitos artistas. Com efeito, a repressão e a
censura sobre a produção artística e sobre a liberdade de expressão foram sentidas de maneira
acentuada no período de maior fechamento político, entre 1969 e 1974.
As discussões em torno das relações entre as circunstâncias históricas adversas,
caracterizadas pela ditadura militar e seus supostos efeitos orientam-se por vias diferentes e
que revelam uma contradição: de um lado, os que afirmam que a censura teve um absoluto
efeito castrador sobre a expressão artística; de outro, os que interpretam o argumento censório
como pretexto para a falta de criatividade (PELLEGRINI, 1996, p. 10-11).
17
NOLL, J. G. O cego e a dançarina. In: ______. O cego e a dançarina. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.
27
De acordo com Franco (1998), por volta de 1975 é fértil na narrativa brasileira, e
sobretudo no romance, o desejo de adesão à experiência imediata, muitas vezes com os
escritores assumindo posição abertamente engajada em uma literatura com vistas à denúncia
da realidade, com o deliberado intuito de expor a verdade mascarada pelo discurso oficial
sobre a repressão e os descaminhos da modernização tão propagada pelo regime militar.
Por seu turno, a crítica literária seria em parte animada por essa atmosfera política,
privilegiando abordagens que intentavam estudar as relações entre a literatura e os aspectos
sociais em torno dos quais gravitam seus temas e estéticas. A aposta na intersecção entre o
estético e o político fundamenta-se em diferentes protocolos de interpretação: uma literatura
que se filiava ao realismo mágico-alegórico, construída sob um discurso altamente
metafórico; o romance-reportagem, que desficcionalizava o texto literário, sendo, figurando-
se, pois, mais contundente na denúncia do real (SANTIAGO, 1982, p. 52); e o
autobiografismo dos ex-exilados, cuja literatura apostava em uma maior proximidade da
experiência do narrador e do caráter factual do mote narrativo, através de uma reflexão mais
aguda e distanciada do contexto histórico individual e coletivo. (SANTIAGO, 1989, p. 24).
Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo, Em liberdade (1981), de Silviano Santiago,
Zero (1975), de Ignácio de Loyola Brandão e O que é isso, companheiro? (1979),
exemplificam, respectivamente, essas orientações estéticas, que expuseram as complexas
linhas de força e as fronteiras entre o discurso histórico e o discurso ficcional, suas
convergências e divergências (SÜSSEKIND, 1985; MIRANDA, 1992).
Além do aspecto propriamente político, as transformações econômicas ocorridas no
período militar tiveram repercussão significativa na produção cultural. Como lembra Renato
Ortiz (1989), ao mesmo tempo em que a repressão e a censura atingiram obras e textos
específicos, impedindo sua circulação, a ampliação da indústria da cultura promovia grande
produção e difusão de bens culturais, em escala muito maior do que em épocas precedentes.
O “milagre econômico”, que intencionava uma aceleração no processo de
modernização e progresso, culminou em um grande paradoxo, que na verdade não possuía
teor progressista. Tratava-se de uma modernização conservadora, apoiada em acentuada
concentração de renda, que excluía a maior parte da população do acesso aos benefícios que
permaneciam restritos à minoria, uma vez que, com o crescimento econômico acelerado,
28
houve intensificação das desigualdades econômicas e sociais, aumentando ainda mais a
distância entre as classes (SILVERMAN, 1995, p. 11).
O mapeamento da produção literária brasileira contemporânea também registra
inapelavelmente o problema da indústria cultural, pois a questão referente ao caráter de
mercadoria da obra não mais pôde ser facilmente contornada, passando a ter maior
visibilidade no âmbito das considerações da crítica (SÜSSEKIND, 1985, p. 88), uma vez que
esse quadro tenha resultado no estabelecimento de novas relações entre escritor, público, e
mercado (SÜSSEKIND, 1993, p. 210).
A ampliação da indústria editorial, fonográfica e publicitária, bem como dos meios de
comunicação de massa, em particular a televisão brasileira (SÜSSEKIND, 1985, p. 14), são
apontados como alguns elementos que se relacionam, por vetores de diferentes naturezas, à
dicção literária de alguns autores, entre eles, Silviano Santiago, Rubem Fonseca, Zulmira
Riberio Tavares, Valêncio Xavier e João Gilberto Noll (SÜSSEKIND, 1993).
Aqui, estão em jogo as complexas relações entre os diversos campos da cultura e os
modos de representação, que se mostram incisivas para a literatura, cujas fontes, estímulos e
diálogos retratam uma intersemioticidade que pode provir da cultura popular tradicional, da
cultura letrada institucional e das imposições do mercado anônimo, amalgamados por sua
própria experiência como texto (CHIAMPI, 1996; GALVÃO, 2005).
Revisão também efetuada por Candido (2003, p. 209), ao propor que, no âmbito
estético, “o timbre dos anos 60 e sobretudo 70 foram as contribuições de linha experimental e
renovadora”. Nesse período, a narrativa passa a ser mais influenciada por linguagens ligadas à
indústria cultural, como a do jornalismo, da propaganda e da televisão, e também pelas
vanguardas poéticas dos anos 50 - o concretismo está na crista da onda, apoiado em parte pela
voga do estruturalismo na crítica literária, e em parte pela revisão do movimento modernista
efetuada na época o cinquentenário da Semana de Arte Moderna foi comemorado em 1972,
quando os fatores de inovação do início do século XX foram definitivamente consagrados e
institucionalizados.
Com efeito, a tendência à experimentação não se restringia ao Brasil, sendo fato
comum a vários países ocidentais, devido a configurações históricas e artísticas (CANDIDO,
1975). Por outro lado, “esse ânimo de experimentar e renovar talvez enfraqueça a ambição
29
criadora, porque se concentra no pequeno fazer de cada texto” (CANDIDO, 2003, p. 213).
Assim, parte das buscas de novos caminhos assumiria um aspecto de “provisoriedade do
estético”, para lembrar a expressão de Haroldo de Campos, (1969), renunciando aos grandes
projetos e efetuando “pactos” entre diferentes registros artísticos, bem como o fomento de
gêneros “menores”, como o romance policial, sua reconfiguração estético e seus escolhos.
Exemplo radical é do hiper-realista, Rubem Fonseca, que, mesclando suspense,
violência, e inúmeros elementos extraídos da cultura pop, reconfigura o romance policial, ao
intitular seu mais expressivo livro do período de A grande arte (1984). O autor dessacraliza
do conceito clássico de arte, seja por lançar mão de um gênero desprestigiado pela academia –
mas consagrado pelo público -, seja por colocar em evidência o universo precário de seus
personagens, no ritmo brutalista que imprime à narrativa, em uma clara postura de ceticismo e
ironia aguda, tão reconhecidamente tipificadas pela pós-modernidade (KHÉDE, 1987).
O esforço de renovar as formas literárias encontrou seu laboratório ideal na contística,
que, por ser uma forma curta, está integrada ao espírito moderno ligado à rapidez, além de
favorecer a experimentação que seria mais difícil de ser sustentada em textos muito longos.
Isso envolve a ampliação ou mesmo a dissolução de certo conjunto de convenções associadas
à narrativa curta tradicional. Assim, Candido acentua que “o conto tem uma grande virtude:
ele é, pela sua própria natureza e origens, tudo o que o autor quiser. Hoje em dia chama-se
conto aquilo que antigamente se denominava crônica, impressão, flagrante do cotidiano,
história, novela” (CANDIDO, 1975, p. 46).
Galvão (1983) reafirma sua impressão de que o experimento formal está ausente da
prosa de ficção contemporânea, da qual destaca o predomínio da violência, que se aproxima
do roman noir norteamericano, e o memorialismo ligado à experiência política do final dos
anos 60, que ganharia força com a abertura política. Acresce a isso a supremacia do mercado
e a tendência para o best-seller descartável nos anos 80. segundo Walnice, enquanto a
“produção artística pequena porém de boa qualidade” não desponta, predominam o “mal-
estar”, a confusão de projetos e a falta de perspectivas” (GALVÃO, 1998, p. 45).
As considerações críticas aqui enfaixadas apresentam diferenças, mas alguns pontos
comuns podem ser observados. Nas visões da crítica resumidas acima, predomina a ideia de
que, tanto no conto quanto no romance, ocorria alguma espécie de experimentação, visível
30
sobretudo na incorporação de linguagens provenientes de outros registros e de outros gêneros
de prosa. A vanguarda histórica definia-se por oposição à sociedade imobilista. A inovação
formal, além de possuir valor significativo no domínio propriamente estético, simbolizava o
desejo de transformação da sociedade, num momento em que a revolução social parecia
constituir possibilidade real e iminente (MACHADO, 1981).
A experimentação vanguardista intentava reintegrar arte e vida, contestando a arte
como instituição, combatendo o esteticismo e promovendo uma ruptura com a tradição. No
entanto, a noção de vanguarda mudou de significado na medida em que a inovação técnica foi
sendo transformada em imperativo da arte, tornando-se marca da própria “artisticidade”, isto
é, na medida em que os procedimentos de ruptura e choque foram sendo institucionalizados.
Ao repetir o gesto vanguardista, o artista atual não pretende atacar a instituição artística
dominante, mas integrar-se a ela desse modo, no entanto, a intenção vanguardista
transformou-se em seu contrário (MACHADO, 1981).
Tudo isso desafia o trabalho do escritor que, doravante, precisa encontrar meios de
inovar sem cair na armadilha do “vanguardismo fácil” da inovação pela inovação movida pela
moda. Nesse sentido, é possível falar em dois tipos de experimentação, (CANDIDO, 2003): o
experimentalismo banalizado, que se restringe à inovação superficial, quando as conquistas do
modernismo foram assimiladas, diluídas e convencionalizadas, de modo que não mais
provocam choque nem oferecem dificuldades de decifração; e a experimentação mais
profunda, que procura encontrar formas narrativas capazes de abarcar e expressar
adequadamente a experiência contemporânea, seus recortes e matizes.
O mesmo “decênio, politicamente tortuoso e torturoso” (NUNES, 1983, p. 63),
manifesta uma forte convicção no endosso ideológico da arte, proporcionando configurações
específicas para o panorama literário de Noll, que se viu atravessado pelas injunções políticas
e estéticas (VASCONCELOS, 1985). O “melhor” dessa literatura, afirma Bosi (1994),
“bateria, portanto, a rota da contra-ideologia, que arma o indivíduo em face do Estado
autoritário e da mídia mentirosa” (p. 436), ou, em outra direção e nesse ponto depreende-se
o entre-lugar de Noll -, “dissipa as ilusões de onisciência e onipotência do eu burguês, pondo
a nu os seus limites e opondo-lhe a realidade e a diferença” (BOSI, 1994, p. 436).
31
“Alguma coisa urgentemente” e “Duelo antes da noite”, contos que compõem O cego
e a dançariana, são os primeiros exemplos significativos do não-escamoteamento das
variáveis históricas do contexto brasileiro ditatorial, mas cujo tratamento estético, optando por
uma desreferencialização imediata da realidade, numa forma muito particular de subordinar
todas as “tendências desintegradoras e [a] virulência genérica de uma maneira não menos
chocante e alienada” (SILVERMAN, 1995, 143)
18
a esse espraiamento da linguagem que não
forja experimentalismos fáceis, porque “nunca [é] um esforço de síntese: a sua literatura é de
um natural” (CARELLI, 2003, p. 19, grifo do autor).
O exercício radical da prosa de Noll, anunciada em “Alguma coisa urgentemente”, no
narrar sinuoso e no tom agônico das personagens, revela uma escrita que convida o leitor e
esse leitor bem pode ser o perseguido, o torturado, o anistiado ou mesmo o alienado a
provar-se sozinho, no silêncio, como posse transitória de algum significado que possa,
transgressor, irromper a experiência. Uma revisão de outros olhares críticos sobre esse caráter
de ruptura da literatura de João Gilberto Noll pode ser producente para se compreender como
o autor elabora uma sintonia com as demandas da contemporaneidade em uma dimensão mais
universal.
18
As considerações de Silverman sobre a produção de Noll partem da análise do primeiro romance do autor, A
fúria do corpo, no qual o crítico reconhece uma recriação do Brasil urbano e moderno, podem ser extensivas,
com efeito, ao livro de estréia, O cego e a dançarina.
32
1.3 Noll: o elogio da insuficiência
“Para que mais e mais maneiras de externar a mesma merda se o mundo carece não de uma
linguagem mas de um fato tão ostensivo na sua crueza que nos cegue nos silencie e que nos liberte da
tortura da expressão, é isso, pronto!”
19
Essas questões que vimos pontuando, a um tempo estéticas e sociais, mantêm
estreitas relações e justificativas no contexto brasileiro, mas não podem ser desvencilhadas de
um quadro de referências mais amplo, de alcance internacional (XAVIER, 1993, p. 25). Elas
estão no lastro de um conjunto de condições materiais, simbólicas, histórias, sociais, estéticas,
enfim, subsumidas pelo famigerado termo pós-modernidade.
20
É nessa “zona crítica” que se
o “drama humano e artístico da ficção de Noll” (TREECE, 1997, p. 7), sua recepção e
crítica.
Ferigolo (2006) elenca um conjunto de críticos que se detiveram no estudo da prosa de
ficção de João Gilberto Noll, e que o tornam, segundo a pesquisadora, “um divisor de
posicionamentos críticos; alguns deles divididos entre os que compreendem a obra de Noll
dentro de um projeto ficcional coerente e singular no âmbito da prosa brasileira e universal
à medida que o escritor incorpora em seu universo romanesco, segundo Ferigolo, um conjunto
de problemáticas existenciais que fogem ao circunscrito contexto brasileiro, seus aspectos
mais social e prementemente identificáveis. Essa visão nolliana traduzida em ficções que
temos chamado de “transe” (SILVA, 2005, p. 221) estaria direcionada a uma condição
humana contemporânea, concebida por uma dimensão mais global; ainda que as narrativas
tragam ecos de geografias brasileiras, a poética de Noll não está cerceada por localismos
fáceis.
Uma das críticas mais contundentes nesse sentido vem de Avelar (2003), segundo o
qual, a literatura de Noll apresenta singularidade e “estranheza” quando considerada no
19
NOLL, J. G. A céu aberto. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
20
Vimos utilizando, e, acreditamos, sem prejuízo, categorias de análise advindas de concepções diferentes sobre
a pós-modernidade e suas marcas na literatura, como, por exemplo, as de Baudrillard e Jameson, bem como
referências à Teoria Crítica, embora saibamos haver divergências nas formulações dos conceitos, sobretudo
acerca da noção de arte e seu substrato social.
33
contexto da produção de 1970, nomeadamente engajada com as questões de cerceamento
político.
Nesse cenário, a prosa de Noll nasce sob o signo de uma recusa ao documentalismo
cuja insígnia foi o comprometimento social. A escrita desse gaúcho sem gauchismos se revela
“sociologicamente” universal na exata medida em que sua “matéria vertente” é nossa própria
“experiência de modernidade”. Tornando seus personagens textual e inescapavelmente
anônimos, Noll consegue inserir o caos dessa experiência individual não sistematizada nem
escamoteada, em um quadro de mendicância e teatralização coletivas (TREECE, 1997, p. 10).
Avelar propõe ao que a narrativa de Noll se configura ao entorno de uma nova ordem
econômico-social, marcada pelo capitalismo nos países latino-americanos, caracterizada pelo
consumismo. O crítico localiza no autor um conjunto de elementos estéticos e sociais que se
relacionam com esse novo contexto que se forjou no período pós-ditadura e que a tornam
“narrativas de decomposição” (CARREIRA, 2005). Podemos relacionar essa decomposição
com alguns expedientes estéticos das obras de Noll, como, por exemplo, a predileção por
narradores-protagonistas envoltos em uma atmosfera niilista, sem projetos, sem destinos,
ainda que sempre itinerantes.
Carreira (2005) foca no romance A céu aberto (2003) a impossibilidade de uma
identidade fixa, sequer mais ou menos estabelecida, capaz de definir, direcionar e mesmo de
significar as escolhas das personagens. Podemos ampliar essa proposição, considerando-a o
grande paradoxo da modernidade retratada na narrativa nolliana, e sobre as quais insurgem,
metaforicamente, tais contradições: embora reclamem sempre um narrador viajante, eles estão
alijados de sabedoria, conquanto não acumulam experiência; de certa forma, negam a
memória na medida mesma em que o passado é fagocitado sem registros, e o futuro não é
uma eleição. Em Noll, tudo é presente. Tudo está ali, à espreita. Leitura-tocaia.
Narrativa, aliás, nunca teleológica, e personagens que, subsumidos pelo imediato, não
elaboram uma reflexão sobre a experiência interna do tempo. Daí, a imprevisibilidade da
narrativa, sua tendência à suspeição diante da impossibilidade de prever o futuro, e uma
consciência reflexiva obliterada revelarem personagens presas num palco trágico - e onde não
podem contar com um deus ex machina.
34
Em Hotel Atlântico, por exemplo, não se tem uma representação da experiência, o que
a leva a afirmar que a narrativa modifica as novas modulações que o romance, como gênero,
registra – e exige – para representar as experiências dos sujeitos que não almejam transcender,
nem desvendar sua totalidade existencial, posto que, céticos quanto ao futuro e sua
impossibilidade de redenção (FERIGOLO, 2006, p. 122).
Acrescentaríamos tratar-se de uma redenção nunca perseguida, nem mesmo em
Berkeley em Bellagio (2003), livro em que alguns estudos (MARTINS, 2007) visualizam um
retorno feliz. Embora acertem em propor certa ética da deriva” nas narrativas de Noll e se
apóiem a antropologia de Marc Augé
21
, da qual também partilhamos, não atentam para o fato
de que no romance em questão, mesmo que haja um “retorno” à terra de origem da
personagem, ele não se constitui teluricamente, nem é “reavaliado” sob os matizes da
experiência necessária para contemplá-lo como signo de pertencimento.
Como em todas as obras de Noll o enfraquecimento de marcas usuais que dariam o
tônus de uma “historicidade”, isto é, de referencialidade em relação ao espaço, é uma
constante, como demonstraram Magalhães (1993) e Dusi (2004). Em Acenos e
Afagos,
22
acreditamos que ela atinja o paroxismo ao projetar na metamorfose do corpo do
personagem-narrador essa perda -, a equação romance-experiência seja reconsiderada.
Se a questão da experiência do narrar e do narrar uma experiência for considerada
apenas no complexo conceito de memória social, discursiva e sua tônica existencial, como um
repertório de experiências capazes de estabelecer um jogo de forças simbólicas (como
propunham Lukács e Benjamin no romance), então, de fato, as personagens nollianas “falam”
a partir de um grau zero de memória. Entretanto, ao considerar a relação entre o romance
contemporâneo e a questão da experiência, e, atendo-se ao fato de, no mais das vezes, os
personagens nolliana serem, na verdade, um personagem, “multiplicadores de seus
próprios selfs”, (MARTINS, 2007), a experiência não pode ser entendida nos limites de uma
psicologia da memória individual das personagens. Exploraremos o tema da memória e sua
emblematicidade em Acenos e afagos ao relacioná-la com as questões que gravitam em torno
21
O antropólogo opõe os não lugares aos lugares antropológicos, por constituírem situações de fluxo e não
estabelecerem aspectos relacionais e de identificação. (Cf. AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma
antropologia da supermodernidade. 5. ed.Trad. Maria Lúcia Pereira. Campinas: Papirus, 1994, p.95.).
22
NOLL, J. G. Acenos e afagos. São Paulo: Record, 2008.
35
de uma escrita que acena para um exercício muito particular do tratamento das questões do
homoerotismo e da corporeidade.
O que não se tem em Noll, são biografias autorizadas:
O meu nome não. Vivo nas ruas de um tempo onde dar o nome e fornecer
suspeita. A quem? Não me queira ingênuo: nome de ninguém não. Me
chame como quiser, fui consagrado a João Evangelista, não que o meu nome
seja João, absolutamente, não sei de quando nasci, nada, mas se quiser o meu
nome busque na lembrança o que de mais instável lhe ocorrer [...]. Não me
pergunte pois idade, estado civil, local de nascimento, filiação, pegadas do
passado, nada, passado não, nome também: não (NOLL, 1997, p. 25).
Sintomático que, na primeira linha, do primeiro parágrafo, da primeira parte, do
primeiro romance, Noll apresenta aquilo que será elemento fundante de seu itinerário poético:
uma literatura como metáfora de um vir-a-ser ininterrupto: “Os primeiros anos de vida
suscitaram em mim o gosto da aventura” (NOLL, 1991, p. 11). Vale dizer em relação a essa
epopéia de Noll o que Jean Ricardou (1972 apud BOURNEUF; OUELLET, 1976) disse sobre
o romance como gênero: “assim, um romance é para nós menos a escrita duma aventura do
que a aventura duma escrita” (p. 290). Dessa forma, uma descrença na capacidade de
domesticar esse mundo alijado de profundidade e em dar uma explicação funcional para o
mundo, sob pena de não conseguirmos perceber direito qual poderia ser o poder de descoberta
ou de invenção que teriam.
Como experiência-limite, toda forma de arte, e por extensão o romance, edifica-se ao
mesmo tempo sobre e contra o que o precede: rejeita-o ou integra-o, e, quando o faz, alcança
aquele elogio à insuficiência, que caracteriza o artístico, e que é capaz de acrescer uma
percepção do latente, daquilo que nos debilita, e que, talvez em Noll, em suas personagens, só
possa ser inscrito como antinomia. Antinomia que alcança efeito significativo de elaboração
estética, posto que “a aridez e o laconismo da linguagem ajustam-se à aridez das relações
humanas e o vazio do mundo desertificado que tematiza” (OTSUOKA, 2001, p. 103).
Nessa “estiva”, como afirmou o autor sobre o romance (NOLL, 2006, p. 5),
experiência se na rarefação dos limites entre o temor, a suspeita e a aceitação, como é o
caso de Mínimos, múltiplos, comuns (2003), obra sobre a qual talvez seja pertinente lançar um
36
olhar um pouco mais detalhado, a fim de se realçar o argumento de que o tratamento com a
linguagem tem sido uma das perseguições de Noll, acentuada sobretudo em suas últimas
produções.
37
1.4 As teias entrelaçadas: Mínimos, múltiplos, comuns e Acenos e afagos
“Ele aspirava a rever aquela imagem líquida, à primeira vista avermelhada, movida por uma força
que vinha das vísceras do mundo e que lhe encharcara não só os pés, mas mais – do corpo todo
escorria a súbita cor de tijolo. Lama sem o poder de o enriquecer ou agigantar. Ele estava ali,
querendo reavivar a memória desse fato ou, mais que isso, o próprio fato, sim!, pois que este
ressurgia agora como um verdadeiro touro. Cobria-o inteiro com o líquido que dessa vez parecia
dissolvê-lo no barro da fronteira”.
23
Sob o signo da pluralidade estético-formal, Mínimos, múltiplos, comuns (2003) realiza
uma engenharia narrativa de matizes formais mais complexa e desterritorializada, em relação
aos romances e contos do autor. A obra compõe-se de trezentos e trinta e oito relatos que se
reduzem a cento e trinta palavras, em uma síntese poética, estrutural, arquitetônica que
complexifica qualquer tentativa de equacionar o problema da forma de maneira pacífica. Sua
configuração, de fato, não remeteria a do conto, ainda que nas mais criativas ou experimentais
expressões do gênero, d serem denominadas, inclusive pelo próprio autor, de “instantes
ficcionais” - o que assegura uma visível correspondência com sua sintaxe narrativa, posto que
uma inter-relação entre todos os relatos, que se evidencia em seu conjunto ordenado,
conferindo-lhe, pois, unidade e força narratológica.
Essa questão incisiva da forma é acompanha por uma “lógica” essencial da edição -
cada um dos capítulos das narrativas-fragmentos vem acompanhado por ilustrações internas,
formando um todo sígnico. O aspecto iconográfico empresta-lhes uma certa “visibilidade”,
um inventário imagético, que serve como vias de acesso ao contexto, como testemunhos
extraliterários, não em uma relação meramente ilustrativa entre texto e imagem, pois o acervo
iconográfico não se estabelece à guisa de suplemento, mas é parte integrante do registro
narrativo, inscrição de seu aspecto pictural e, em suma, pós-moderno (RAFFA, 2007). Nessa
elaboração, reserva de possibilidades semânticas, um diálogo e uma interação entre
imagem e narratividade:
23
NOLL, J. G. Mínimos, múltiplos, comuns. São Paulo: Francis, 2003.
38
Era imenso, avesso aos movimentos. A perspectiva de suspender a mão na
luz com a intenção de avaliar a miríade de sinais a se adensar, até um fiapo
assim lhe pesava. Aliás, para ele essa carga vinha de uma espécie de fonte
invisível, que o queria desqualificado para o convívio sensato das formas.
Uma idéia descamada como sua pele. Sozinho, ele a chamava no seu
vozeirão de teologia da aberração. O toque num motor anterior, desregulado
em sua demasia. E encarnado na sua pobre imagem gigantesca. Corpanzil
sem ânimo de sair e se adaptar às mesquinhas dimensões do dia, ali, com as
mãos debaixo do minguado fio d’água da torneira matutina (NOLL, 2003, p.
157).
Relação conflituosa e de complementaridade entre imagem e palavra, entre enunciados
e visibilidades, procurando um certo “reencontro”, sem, contudo, cair em um reducionismo,
em um pragmatismo de relações diretas entre objeto e coisa mimetizada. Esta micronarrativa,
que compõe o capítulo “O corpo”, figura como representativo exemplo de uma forma
particular de agenciamento do visível, do efêmero, do disponível, de algo que gera, a um
momento um claro-enigma. Daí seu aspecto neobarroco, sua erótica pictural, esse jogo de
cores-de-almodóvar, sempre extático, sempre movente, desorientador e esquizóide, como
nesse excerto de Acenos e afagos:
Preciso fechar os olhos para poder baixar a carne diáfana, mental, que me
salvará da solidez na cama diária. Quem sabe que está para baixar? A face
ainda aguada a se aproximar parece por enquanto indecifrável. Antes de
receber as linhas dos contornos desse visitante, me adianto mergulhando de
vez a aparição na retaguarda das retinas. Assim eu a projeto sobretudo sobre
mim mesmo. Não mal em tentar incubá-la atrás da pálpebra. Aqui dentro
ela evolui e me concebe seu encanto obsceno e singularíssimo. É quando
compreendo que, sem me dar conta, gozei com a aparição da imagem
fugidia. [...] essa imagem à meia-luz diluiu-se para nunca mais voltar. Era de
alguém preciso? Em princípio era. No entanto, ao final, já se via uma
segunda imagem a encobrir a outra, e mais para o final ainda, uma terceira, e
haveria quem sabe uma quarta [...]. (NOLL, 2008, p. 40).
Esta, a plasticidade do texto nolliano: palavra poética e imagem legislam os sentidos,
os afetos, aquele poder que a imagem assume sobre a representação, a interpretação e a
subjetivação. Os aspectos descritivos nas narrativas de Noll, como no exemplo acima,
39
rompem, por assim dizer, com a ideia monocular de percepção realista, e nisso residem os
aspectos minimalistas de sua criação, que se organizam em torno de imagens-instantes-
ficcionais, como prefacia Careli (2003) capazes de estetizar “toda uma realidade que
transcende a própria imagem sua debuxada no rosto do mistério, nos abismos”, para
evocarmos a máquina drummondiana (DRUMMOND, 2007, p. 301).
David Treece (1997), ao finalizar o seu lírico prefácio às obras reunidas de Noll,
afirma haver nelas uma densidade estilística” constituída “por meio de um jogo improvisado
naquela mesma tensão entre descontrole e contenção, repetição e secura em que circulam os
personagens” (p. 16). Acrescentaríamos que esse aspecto do “disponível” endossa a “rapidez”
no sentido que Calvino (1999) a entendeu na pós-modernidade -, que torna, a narrativa de
Noll imagética, porque trabalha, no limite, com o residual e o precário, como apontou Santos
(1998), conquanto elabora esteticamente, uma teatralização do cotidiano e de seu imaginário.
Esse “mundo imaginal”
24
mostra-se dialetizado por uma forma de carnavalização do tempo
agostiniano
25
, na medida em que essa “eternidade” diz respeito à errática da narrativa e à
perda de referencialidades:
Tecido Penumbroso
Como posso sofrer porque todas as coisas pararam? Elas andavam tão
estouvadas! Por que não deixá-las dormir agora um pouco? Tudo se
aquietou, é noite, o mundo vive pra dentro, cegando-se ao sol do sonho.
Preciso um pouco desse conteúdo inóspito, ermo como um quase-nada. Não,
não é morte, é uma espécie de lacuna essencial, sem a aparência eterna do
mármore ou, por outro lado, sem as inscrições carcomidas. Pode-se respirar
também na contravida. Depois então a gente volta para o velho ritmo; já
não nos reconheceremos ao espelho explícito, tamanha a qualidade desse
tecido penumbroso que provamos (NOLL, 2003, p. 29)
24
Termo cunhado por Michel Maffesoli para referir-se a todo um conjunto feito de imagens, imaginários,
símbolos que constroem a vida social. (Cf. MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Trad. Bertha Halpern
Gurovitz. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1996, PP. 125-184.).
25
De acordo com S. Agostinho, o passado é constituído dos “três momento no espírito que os realiza:
expectativa, atenção e lembrança” (Cf. AGOSTINHO, S. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São
Paulo: Paulus, 1984. (Coleção espiritualidade), p.332; ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. 4. ed. Trad.
Alfredo Bosi e Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
40
Dessa forma particular de experimentar o significante linguístico e pictural nasce uma
mitopoética narrativa, “uma história intuída do universo” (CARELI, 2003), uma odisséia
rumo à origem das coisas, à arquitetônica da Criação. Trajetória também é metaforizado na
forma de narrar em Acenos e afagos, em uma odisséia íntima, igualmente metamorfoseada e
processual do corpo, do erotismo e da subjetivação:
Os corpos a que eu estaria renunciando não pesariam. Fecharia os olhos
sobre o corpo de minha fêmea e imaginaria estar fodendo com a carne do
mundo inteiro. Eu fora feito para essa epopéia libidinal. Copularia com todos
os meus parceiros em um corpo e em uma vez e eventualmente com
parceiras e tantos outros bichos mais. (NOLL, 2008, p. 48).
Nessa abertura ao sentido, fascínio pelo impreciso, é possível uma leitura sobre o motivo
da metamorfose, já suscitada em Mínimos, múltiplos, comuns e que, em Acenos e afagos pode
ser tomada como escopo e metáfora das identidades deslizantes, simbólica e historicamente
registradas, que reclamam um arsenal teórico capaz efetuar um diálogo entre esse regime
simbólico que se instituiu sobre o corpo e sua escrita. Para uma leitura desse corpo-signo,
direcionamos a argumentação com base nas proposições da teoria queer, que, ao investir
sobre as questões da identidade e do desejo, tomado como significantes, alçando-os à ordem
da ficção, resulta em uma epistemologia, e, em parte, em uma poética.
41
2 LITERATURA E IDENTIDADE
2.1 Teoria Queer: poéticas identitárias
“Ficara no espelho apenas aquele ambiente de barbearia em pleno prédio do hospital. Eu
partira dali, mas a minha atenção continuava posta no reflexo de cada coisa que compunha
aquela constelação no espelho, com se eu permanecesse ali, e isso me fazia acreditar,
modestamente, que eu no duro era eterno e que estava tudo muito bom tudo muito bem mas
que eu ia começar a me reter, criando em mim uma outra condição: menor, enfim, fugaz.”
26
No início dos anos 1990, em um artigo intitulado Queer theory: lesbian and gay
sexualities, Tereza de Lauretis, uma das maiores expoentes feministas, emprega pela primeira
vez o termo queer para designar um campo epistemológico dotado de aparato teórico-
metodológico e rigor científico de análise de fenômenos em torno das questões das
sexualidades não-heterossexuais.
27
Jackson e Scott (1996, p. 167 apud BONNICI, 2007, p.
224), referem-se à teoria queer como
um desenvolvimento da crítica do gênero e, mais especificamente, da crítica
lésbica e gay. Abrange várias posições políticas, opondo-se a discursos e
práticas heterossexuais e ao período inicial das políticas de identidade
lésbica e gay que incentivavam os indivíduos a assumir sua orientação
sexual.
Dessa forma, ao questionar os essencialismos que constituem os binômios de
identidade e o suposto caráter unitário da subjetividade (BUTLER, 2003), a teoria queer
sintoniza-se ao pensamento pós-estruturalista, pós-moderno e pós-feminista, conquanto, no
26
NOLL, J. G. Canoas e marolas. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.
27
Contudo, três anos depois a feminista renunciou ao termo, por julgá-lo desprovido de rigor conceitual. Em
artigo publicado na revista Difference, intitulado “Habit Changes”, afirmou: “Quanto à ‘teoria queer’, a minha
insistente especificação lésbica pode ser encarada como um distanciamento daquilo que, desde que a sugeri
como hipótese de trabalho para os estudos gays e lésbicos nesta mesma revista (Differance 3, 2), cedo se
transformou em uma caricatura conceitualmente vazia da indústria editorial (1994, p. 297).
42
lastro dessas teorias, desmistifica e desnaturaliza as relações hierarquizantes e hegemônicas
da visão heterocentrada da sexualidade.
Grant (1996, apud BONNICI, 2007), ao indicar as influências do pensamento pós-
estruturalista na construção de um aparato conceitual que problematizasse as questões de
sujeito e sexualidade, propõe que o queer refira-se
a aplicação de idéias pós-estruturalistas e pós-modernas aos estudos
interdisciplinares das formações históricas do lesbianismo e da
homossexualidade, e das relações entre essas formações e as da
heterossexualidade. Implica também uma maneira diferente de considerar o
lesbianismo e a homossexualidade como identidades discretas e partir para
considerar os mesmos como tipos de construto discursivo (p.166-171).
É exatamente nessa base discursiva, ou de um discurso invertido, parodiado
28
,
portanto, que o próprio adjetivo queer intenta um reinvestimento semântico e “adquire todo
o seu poder precisamente através da invocação reiterada que o relaciona com acusações,
patologias e insultos” (BUTLER, 2003, p. 58).
O termo também assume um caráter questionador dentro dos estudos homoeróticos ao
romper os espaços fixos e adstritos de identidade homoerótica, partindo do princípio de que
a sexualidade não possui significado a priori, mas significados de ordem relacional,
construídos ininterruptamente (TALBURT, 2005, p. 25). Ao propor desafiadoramente,
portanto, o significado pejorativo da palavra queer, invertendo-o e convertendo-o em
conceito e signo de ativismo, a teoria queer contribui para afirmar os direitos das diferentes
orientações sexuais e mina “de dentro, um pensamento que encerra o outro em uma etiqueta,
pretendendo-se a si mesma invisível” (ALCOBA, 2005, p. 9).
28
Nos termos em que a paródia implica uma “forma [...] assumida pela heterogeneidade e pela diferença [...] e
constitui uma transgressão autorizada, pois sua irônica diferença se estabelece no próprio âmago da semelhança
(HUTCHEON, 1991, p. 95). Na teoria queer, a paródia implica um tropos que indica movimento de
transformação, assinalando que algo muda após o ato performático de transformar a abjeção em possibilidade de
uma nova perspectivação, neste caso, uma atitude responsiva de caráter eminentemente político (Cf. PEREIRA,
P. P. G. Corpo, sexo e subversão: reflexões sobre duas teóricas queer. Interface – Comunicação, Saúde,
Educação. Botucatu, v. 12, n. 26, julho/setembro, 2008. Disponível em:
www.scielo.br/scielohttp://www.scielo.brscript=sciarttext&pi.
Acesso em 20 ago 2009).
43
Nesse sentido, a ressignificação da palavra queer realiza-se com e pelos próprios
sujeitos dessa designação-ação, sem que ela se repita e faça de novo apelo à autoridade nela
existente, que dissimula a sua historicidade, ou seja, sem que se contextualize a sua força
performativa, com a qual desestabiliza as habituais políticas de representação, conforme
demonstrou Butler (2003).
Queer também denota uma metáfora política sem referencial fixo
29
, como aponta Eve
Sedgwick (1993 apud O’ROURK, 2005), ao propor que queer é um contínuo momento,
um movimento, um recorrente motivo, turbilhão, troublant. A palavra “queer” em si
significa “atravésprovém do étimo indo-europeu twerk, que também o alemão quer
(transversal), o latino torquere, o inglês athwart (p. 12).
Ao discutir de forma mais incisiva esse aspecto sempre em construção, um vir-a-ser
constante, O’Rourke recorda que Butler sublinha que o uso substantivado do queer poderá,
em um futuro imprevisível, ser ressignificado ou mesmo abandonado. De fato, Butler
afirma-o em Cuerpos que importan (2002), obra em que propõe que o queer permite que as
críticas lhe norteiem seu futuro teórico, metodológico e político:
Se é para ser lugar de contestação coletiva, ponto de partida de uma série de
reflexões históricas e de um imaginar futuro, o termo queer terá de continuar
a ser aquilo, que, presentemente, não é nunca plenamente assumido, mas
antes sempre e apenas realinhado, distorcido, “queerado” a partir de um uso
anterior e apontando a um objetivo político premente e em expansão
(BUTLER, 2002, p. 2, grifos da autora).
Lauretis, ainda no início da germinação do pensamento queer, apontava para o fato
de que a teoria queer ou uma interpretação queer das representações, não propunham a
dissolução de identidades, mas sim um revisionismo crítico e constante a todas as
identidades hegemônicas e monolíticas, essencialistas ou naturalizantes. A teoria queer,
dessa forma, instala-se nos entre-lugares das especificidades identitárias silenciadas nos
discursos gay e lésbico, nomeadamente as especificidades dos gays e lésbicas não brancos,
e, mais tarde, dos transgêneros. Tratar-se-ia, pois, de propor uma intersecção, subversão e
29
A concepção queer compreende um “enfrentamento e crítica da normatividade, recursos calibrados,
precisamente, na medida em que o ‘queer’ se apresenta como catacrese, como metáfora sem referente adequado”
(Cf. VILLAREJO, 2005, p. 69-79 apud O’ROURKE, 2005, p. 12, grifos do autor).
44
emancipação de identidades no contexto dessas “sexualidades dissidentes” (RUBIN, 1998,
apud BARCELLOS, 2006), resultantes de uma insatisfação em relação a categorias
identitárias demasiado rígidas.
Ao constitui-se uma crítica epistêmica da produção e regulação disciplinar dos gêneros
no regime heterossexual, a teoria queer enceta uma relação que remonta incontornavelmente
à teoria feminista e aos estudos gays e lésbicos, o que torna pertinente uma revisitação de
alguns pressupostos que delimitam essa ligação, como forma de contextualização da
emergência dos estudos queer.
30
A aproximação entre os estudos gays e lésbicos e a teoria feminista se realiza por
diversos matizes, dentre os quais a própria proximidade temática, conquanto ambos
problematizam as relações de poder baseadas em categorias estritas de gênero e sexualidade:
o que os estudos gays e lésbicos fazem ao sexo e à sexualidade é muito
semelhante ao que os estudos feministas fazem ao gênero. [...] Por essa
razão, o grau de sobreposição ou distinção entre os campos dos estudos gays
e lésbicos e dos estudos feministas é matéria para um debate aceso e uma
negociação constante (ABELOVE et al, 1993, p. 15-16).
O contexto histórico de emergência dos movimentos feministas, em particular a
segunda onda do feminismo, situada entre a década de 1960 e 1990 (SHOWALTER, 1994),
coincide com o surgimento dos estudos gays e lésbicos que, por seu turno, se afirmaram
contra o essencialismo dos estudos sociológicos sobre a homossexualidade.
31
Nessa direção,
cabe ressaltar também uma forma de sobreposição de autores sobre o feminismo lésbico,
cujas propostas também são frequentemente foram apropriadas pelos estudos gays e pela
teoria queer, sobretudo Judith Butler. São as proposições de Butler sobre as questões de
gênero, que irão conduzir os pressupostos dos estudos gays e queer, sobretudo quando a
autora conduz suas discussões em relação ao gênero, afirmando que
30
Não cabe aqui um levantamento exaustivo dos estudos feministas nem dos estudos gays e lésbicos,
considerando que isso já se encontra amplamente discutido nas obras citadas nas referências bibliográficas.
31
Os primeiros estudos sociológicos conhecidos sobre a homossexualidade foram conduzidos por M. Lesnoff e
W. A. Westley (1956), A. Reiss Jr (1961) e E. Newton (1972). Esses estudos centraram-se sobretudo na etiologia
da homossexualidade, visando identificar as suas causas e explicar as suas regularidades, caracterizando-se pela
influência de argumentos essencialistas e biológicos. (Cf. MISKOLCI, R. A teoria Queer e a sociologia: o
desafio de uma analítica da normalização. In: Sociologias. Porto Alegre, ano 11, n. 21, p. 150-182, jan/jun 2009).
45
Por outras palavras, atos e gestos, desejos falados e praticados, criam a
ilusão de um núcleo duro de gênero, interior e organizador, uma ilusão
perpetuada discursivamente com o propósito da regulação da sexualidade
dentro do quadro obrigatório da heterossexualidade reprodutiva. [...] Tal
como nos outros rituais, a ação do gênero requer uma performance que é
repetida. [...] Existem dimensões temporais e coletivas nessas ações, e o seu
caráter público não é irrelevante; com efeito, a performance é efetivada com
o objetivo estratégico de manter o gênero dentro da moldura binária. [...]
Esta formulação afasta a concepção de gênero de um modelo de identidade
substancial, levando-a para outro que exige uma concepção de gênero
enquanto temporalidade social construída (BUTLER, 2002, p. 136, 140-
141).
Dessa convergência em torno de saberes centrados nas relações de gênero e
sexualidades, marcadas por injunções históricas e ideológicas que incidem sobre o conceito de
identidade, e, mais especificamente de identidade de gênero, emergiu, nos anos 1990, a teoria
queer, sem, entretanto, desconsiderar como antecedentes legítimos, os estudos gays e
lésbicos.
Rubin (1998, apud BARCELLOS, 2006), ao relacionar os estudos gays e lésbicos e a
teoria queer, afirma que “a sexualidade humana não é compreensível em termos puramente
biológicos [no sentido em que] nunca encontramos um corpo que não seja mediado pelos
significados que as culturas lhe atribuem (p. 106). No seio desse debate entre a visão
biologizante e o construtivismo social em torno das questões identitárias e sexuais que surgem
os estudos gays e lésbicos, na década de 1970, os designados estudos gays e lésbicos
enquanto campo marcadamente heterogêneo.
Esta heterogeneidade resulta, de resto, das diferentes (e por vezes antagônicas)
perspectivas teóricas utilizadas, bem como áreas do conhecimento que contribuem para este
campo em particular, enquanto “simultaneamente ambiciona e repudia, investe na aprovação
acadêmica, ainda que tal corrompa os critérios de pertença, [...] química instável de força e
vulnerabilidade (MEDHURST; MUNT, 1997, p. 14).
Considerando essa especificidade, os estudos gays e lésbicos definem-se “visando
estabelecer uma centralidade analítica do sexo e da sexualidade dentro de diversas áreas do
46
conhecimento, expressar e promover os interesses de gays, lésbicas e bissexuais, [seja]
cultural ou intelectualmente [...] (ABELOVE et al., 1993, p. 16).
Giffney (2004) afirma que o conceito de queer recebe um investimento conceitual que
serve para designar pessoas e temas gays e lésbicos, bissexuais e transgêneros (GLBT).
Contudo, se a história dos estudos gays e lésbicos mostra-se indispensável para a emergência
dos estudos queer, esse passo dar-se-ia mais por resistência do que por contigüidade. Com
efeito, o autor ainda lembra que, contrariamente ao que no mais das vezes é disseminado, os
estudos queer não equivalem teórica e metodologicamente aos gays and lesbians studies,
embora seja possível analisar a temática GLBT da perspectiva da teoria queer.
Queer é de fato, uma “zona de potencialidades” (EDELMAN, 2004, apud
MISKOLCI, 2009), cuja “tarefa consiste em tornar visível, criticar e distinguir o normal
(estatisticamente determinado) do normativo (moralmente determinado)” (GIFFNEY, 2004,
p. 75). Essa proeminência discursiva que engendra um paroxismo mesmo dentro dos estudos
gays, garante ao queer essa qualidade subversiva o que torna a sua própria definição
destituída – senão impossibilitada – de um consenso:
Parte da sua eficácia política depende da sua resistência à definição e da
forma como rejeita formular os seus objetivos, uma vez que quanto mais se
aproxima de tornar-se uma disciplina acadêmica, menos queer pode a teoria
queer ambicionar a ser (JAGOSE, 1996, p. 1, grifo nosso).
Entretanto, considerando-se o rigor e necessidade epistemológicos exigidos pela
natureza de todo trabalho acadêmico, partimos de um conceito, formulado pelo próprio
Jagose, ao definir genericamente o queer como um conceito que
descreve as atitudes ou modelos analíticos que ilustram as incoerências das
relações alegadamente estáveis entre sexo biológico, gênero e desejo sexual.
Resistindo a esse modelo de estabilidade que reivindica a sua origem na
heterosexualidade, quando é na realidade resultado desta o queer centra-se
nas descoincidências entre sexo, gênero e desejo. [...] Quer seja uma
performance travesti ou uma desconstrução teórica, o queer localiza e
explora as incoerências destas três concepções que estabilizam a
heterossexualidade. Demonstrando a impossibilidade de qualquer
sexualidade “natural”, coloca em questão até mesmo categorias
47
aparentemente não problemáticas de homeme “mulher” (JAGOSE, 1996,
p. 3).
Santos (2005b) aposta em sete ideias norteadoras que sintetizariam os estudos queer.
A primeira delas remete ao caráter múltiplo e deslocável dos elementos que compõem as
identidades, como classe, orientação sexual, gênero, idade, nacionalidade, etnia, etc., que
também apresentam variáveis que se articulam.
A reboque disso, a segunda ideia refere-se ao caráter arbitrário, instável e excludente
da identidade, considerando-se que, ao forjar-se, não impede o apagamento de outras tantas
experiências, também elas atreladas ao performático e à sua representação. A essa concepção
pode-se, com efeito, acrescer que os liames desse aspecto de representação social identitária
figuram-se também esteticamente, no sentido de presentificarem-se em várias obras literárias
e cinematográficas.
Em uma perspectiva queer, Lopes (2004) aponta que essas representações têm o
“mérito de iniciar um diálogo que pode dissolver o próprio estereótipo pela dinâmica dos
conflitos sociais” Na verdade, a afirmação de uma identidade, em vez de representar um
processo de libertação, obedece a imperativos estruturais de disciplina e regulação que visam
confinar comportamentos individuais, marginalizando outras formas de apresentar o sujeito, o
corpo, as ações, e as relações entre as pessoas.
32
Seidman endossa esse pressuposto quando
afirma que as identidades são, em parte, “formas de controle social, uma vez que distinguem
populações normais e desviantes, reprimem a diferença e impõem avaliações normalizantes
relativamente aos desejos (SEIDMAN, 2002, p. 20, apud BARCELLOS, 2006, p. 46).
A terceira ideia, ao invés de defender o abandono total da identidade enquanto
categoria política, a teoria queer propõe que reconheçamos o seu significado
permanentemente aberto, fluido, e passível de contestação, visando encorajar o surgimento de
diferenças e a construção de uma cultura da diversidade. Portanto, o papel individual, como
32
Nas palavras de Foucault: “As pessoas são convidadas a considerar que o desejo sexual é um índice de sua
identidade profunda. A sexualidade não é mais o grande segredo, mas ela é ainda um sintoma, uma manifestação
disso que de mais secreto em nossa individualidade” (FOUCAULT, M. Silêncio, sexo e verdade. In: ______.
Ditos e escritos, vol. IV: estratégia, poder-saber. Trad. Vera L. A. Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.
363. (Coleção Ditos e escritos).
48
forma de capacitação, e coletivo, em termos políticos, jurídicos e de legitimação social, que a
identidade pode reivindicar não é desconsiderado.
A quarta ideia-chave aposta que, para os estudos queer, a teoria ou política da
homossexualidade centrada em uma essência homossexual reforça a dicotomia
hetero/homossexualidade, enrijecendo o atual regime sexual que estrutura e condiciona as
relações sociais no ocidente. Nessa direção, a teoria queer intenta desafiar esse regime sexual
como conjunto de saberes que coloca as categorias hetero e homossexual como estruturantes
das identidades sexuais. Com efeito, a teoria queer aposta na hetero/homossexualidade como
“categorias de conhecimento, uma linguagem que estrutura aquilo que conhecemos sobre
corpos, desejos, sexualidade e identidades” (SEIDMAN, 2002, p. 12-13).
Por último, a quinta ideia diz respeito à teoria queer enquanto proposta de teorização
geral sobre “a sexualização dos corpos, desejos, ações, identidades, relações sociais,
conhecimentos, cultura e instituições sociais” (SEIDMAN, 2002, p. 13), em um cruzamento
multidisciplinar.
33
Nesse diálogo, como aponta Altman (1996), um número significativo de pesquisas
começou a ligar o debate sobre a homossexualidade com outros temas
contemporâneos: representação, autenticidade, posicionamento, o corpo etc.
Este movimento teve a vantagem de retirar do gueto os estudos gays e
lésbicos, de modo a que os temas e questões homossexuais começassem a
ser discutidos em contextos mais amplos (p. 5).
Dessa forma, essa relação dialógica e multidisciplinar é extremamente rentável aos estudos
queer uma vez que
os imaginários futuros da teoria queer residem [...] no uso que delas fizeram
os teóricos no questionar de todos os atos, identidades, desejos, percepções e
possibilidades, normativos e não-normativos, incluindo aqueles que nem
estão (diretamente) relacionados com gênero e sexualidade (GIFFNEY,
2004, p. 74).
33
Santos (2005) lembra que mais recentemente surgiu uma nova proposta que visa expandir o conceito de queer,
de modo a incluir os chamados heteroqueers. Tal conceito revelaria o potencial hermenêutico da teoria queer,
integrando novos desafios contemporâneos – mais do que presa à especificidade do conceito nomeadamente o de
orientação sexual.
49
Destarte, o campo de investigações afirma-se complexo e reivindica uma ampla e
permanente refiguração. Aqui é pertinente um adendo para se situar a questão de uma das
primeiras problemáticas nos estudos gays e queer: a utilização da designação “homossexual”
34
. Santos (2005) propõe que, por influência dos estudos queer, o termo “homossexual” venha
sendo gradualmente substituído pela sigla GLBT, e, ainda mais recentemente, pela sigla
igualmente internacional LGBT, cuja justificativa se encontraria no fato de a expressão
“homossexual” estar vinculada à uma carga semântica de patologização de comportamento
sexual, conquanto advinda da medicina.
A sigla GLBT, representaria uma expressão identitária na medida em que se afastaria
dessa herança simbólica do discurso médico. Santos (2005) lembra ainda que, para as
gerações mais próximas às contribuições teóricas e políticas queer, a sigla GLBT levanta um
problema de representatividade ao colocar o “L” posposto ao “G”, o que empurraria as
mulheres lésbicas para um segundo lugar. Daí a sigla LGBT que, como indica a autora, longe
de terminada e totalmente satisfatória, é majoritariamente aceita e utilizada, ainda que aberta a
críticas e transformações conceituais, como todo conceito queer. Como aponta Santos (2005):
Esta sigla continua a não ser pacífica, traduzindo algumas tensões dentro do
próprio activismo LGBT, nomeadamente entre as quatro categorias
identitárias contempladas e aquelas que permanecem excluídas. Por essa
razão, há ainda quem utilize a sigla LGBTI, incluindo, desta feita, as pessoas
que se identificam como intersexuais, ou ainda LGBTQ, incluindo a
categoria queer. Em Espanha, utiliza-se LGBT, por se considerar a
bissexualidade como a identidade com menos expressividade dentro do
movimento. Acresce que muitos/as ativistas e teóricos/as utilizam de forma
indiferenciada, desconhecendo, subvertendo ou recusando as diferenças
simbólicas que estão subjacentes à sua constituição (p. 235).
Considerando a teoria queer como uma analítica que sublinha os mecanismos sociais
grendrados em torno do binômio heterossexual/homossexual, Seidman (1996) afirma que o
queer pode ser compreendido como o estudo “daqueles conhecimentos e daquelas práticas
sociais que organizam a ‘sociedade’ como um todo, sexualizando heterossexualizando ou
34
Jagose (1996, p. 72), lembra que o termo “homossexual” foi cunhado pelo jornalista e escritor húngaro Karl-
Maria Kertbeny, em 1869, sendo posteriormente difundido na medicina e na psiquiatria por Richard Von Krafft-
Ebing.
50
homossexualizando corpo, desejos, atos, identidades, relações sociais, conhecimentos,
cultura e instituições sociais” (p. 13).
Como também aponta Miskolci (2009), a teoria queer forjou-se no referencial teórico
de Michel Foucault, sobretudo em obras voltadas para os estudos da sexualidade, como
História da sexualidade I: a vontade do saber (1988), e na obra de Jacques Derrida, como em
Gramatologia (1973). Partindo da proposta de Foucault (1988) de que a escolha do objeto
(sexual) nem sempre se constitui como base para uma identidade, assim como não parece ser
questão crucial na percepção de toda e qualquer pessoa sobre sua sexualidade, a
desnaturalização das sexualidades e dos corpos marcados biologicamente se faz a partir da
própria noção de prática discursiva, que criou uma verdade sobre a identidade humana,
cristalizada na divisão sexual e binária da sociedade.
Dessa forma, a teoria queer abstraiu a ideia seminal de Foucault segundo a qual a
sexualidade configuraria um dispositivo histórico de poderes que teria tido lugar nas
sociedades modernas no século XVIII, sendo, portando, reguladas pelo discurso jurídico e
médico, configurando o que Foucault chamará de sciencia sexualis (FOUCAULT, 1988,
p.51).
As análises mais incisivas da teoria queer encontram suas bases em teóricos
35
como
Judith Butler, Michel Warner, Gayle Rubin, David M. Halperin e Eve M. Sedgwick, cujos
trabalhos, como aponta Miskolci (2009), “sublinham a centralidade dos mecanismos sociais
relacionados à operação do binarismo hetero/homossexual para a organização da vida social
contemporânea” (p. 154). Mais recentemente, as obras de Beatriz Preciado e Marie-Helène
Bourcier, ainda pouco conhecidas no Brasil, têm trazido importantes contribuições aos
estudos queer, sobretudo acerca das relações entre o corpo e as tecnologias de sexo.
36
Inspirada nos estudos foucaultianos sobre a sexualidade, Sedgwick (2007) aposta em
uma homologia no cenário social contemporâneo, que levou a ordem sexual a constituir-se a
35
Miskolci afirma a dificuldade de situar harmonicamente alguns teóricos queer devido a diferenças, no mais
das vezes, minuciosas, em torno de alguns conceitos (MISKOLCI, 2009, p. 154).
36
O termo é cunhado por Bourcier (2006) para defender uma sexualização radical do corpo, o que justificaria a
busca contínua por práticas sexuais que desviariam de modelos heterocentrados.
51
partir do binarismo hetero/homossexual, de forma a priorizar a heterossexualidade por meio
de um dispositivo que a naturaliza e, ao mesmo tempo, a torna compulsória
37
e normativa.
De acordo com Miskolci (2009), Sedgwick aponta que em vez de priorizar
investigações sobre a construção social das identidades, estudos empíricos sobre
comportamentos sexuais que levem a classificá-los ou compreendê-los, os empreendimentos
queer partiram de uma desconfiança com relação a sujeitos sexuais como estáveis para focar
nos processos sociais classificatórios, hierarquizantes, nas estratégias sociais normalizadoras
dos comportamentos.
Nesse ponto é que, de acordo com Louro (2004), a teoria queer e seu posicionamento
político radical se diferenciam dos estudos gays e lésbicos, ao colocar-se contra a visão de
cunho integracionista que estes vinham reivindicando e assumindo na sociedade
estadunidense.
38
O termo queer inclui simpatizantes e é paralelo ao interesse pelo
transgênero, pela bissexualidade, e outras situações pós-identitárias como os
pomossexuais (fusão da palavra pós-modernidade com homossexualidade) e
o pós-gay (p. 2).
Se o conceito de gay e o projeto político e cultural que ele expressa com ênfase na
primazia do sujeito, na integração social e na confiança na razão ainda se inscrevem com
clareza no âmbito da modernidade,o conceito de queer, ao questionar aqueles pressupostos,
37
A heterossexualidade compulsória foi primeiramente teorizada por Adrienne Rich, nos anos oitenta, no artigo
“Compulsory Heterosexuality and Lesbian Existence”, no qual a autora aponta que a heterosexualidade foi
tomada como modelo compulsório e prescritivo a partir do qual as práticas sociais normalizadoras
empreenderam discursos e saberes (Cf. MISKOLCI, 2009).
38
Os teóricos queer reafirmam que, mesmo que muitas das condições históricas norte-americanas que
permitiram a emergência dos queer sejam partilhadas por outros países, cada país traz suas especificidades e
contingências sociais, e isso implica uma refiguração para cada realidade. Entretanto, no Brasil, são prementes as
reivindicações dos movimentos gays que buscam a igualdade de direitos, como a união civil gay, em uma
sociedade como a brasileira, marcada historicamente pelo patriarcalismo que engendrou valores hegemônicos e
heterocentrados. Essas demandas apontam para a centralidade das discussões sobre a possibilidade de
redefinição das formas de organização social de parentalidade e conjugalidade LGBT. (Cf. MELLO, L. Novas
famílias: conjugalidade homossexual no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.; UZIEL, A. P.
Família e homossexualidade: velhas questões, novos problemas. 2002. Tese (Doutorado em Ciências Sociais)-
UNICAMP, Campinas, 2002.; ______. Homossexualidade e parentalidade: ecos de uma conjugação. In:
HEILBORN, M. L. (Org.). Família e sexualidade. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2004, p. 87-117 (Coleção
Família, Geração e Cultura); TREVISAN, J. S. Devassos no paraíso. São Paulo: Record, 2000.).
52
revela-se em sua inequívoca pós-modernidade. A relevância dos estudos queer, entre outras, é
o de submeter a uma crítica profunda a noção de “orientação sexual”, que está na base do
conceito de homossexualidade, mostrando sua fragilidade como instrumento analítico
(SEDGWICK, 2007, p. 112).
No entanto, a esse respeito, não estamos diante de uma novidade absoluta da teoria
queer, pois outros pesquisadores haviam questionado, mais tempo e a partir de outros
marcos teóricos, não apenas a fixidez do conceito de homossexualidade, mas ainda sua
aplicabilidade a muitos contextos específicos, como lembra Weeks (1990). O autor enfatiza a
necessidade de se distinguir com clareza comportamentos, papéis e identidades no estudo do
homoerotismo, pois “um comportamento homossexual não gera automaticamente nem mesmo
necessariamente uma identidade homossexual” ( p. 196).
Outro conceito importante, e do qual nos valeremos, e que, apesar de não provir
diretamente da teoria queer, é passível de receber um novo investimento semântico o camp.
De acordo com Mira (1999), o camp é um dos conceitos centrais da cultura gay e ao mesmo
tempo um dos mais difíceis de definir (p. 147). Camp designa ao mesmo tempo uma atitude,
uma cultura e um “olhar” paroxista sobre as questões de gênero, poder, corpo e, por extensão,
sexualidade. Trata-se de um conceito atravessado por uma aporia, mas que, no limite, pode se
tomado como uma mimese-limite, paródica e carnavalizadora, que desnaturaliza, desconstrói
hierarquias, estereótipos, assumindo uma postura antiassimilacionista, e rentável do ponto de
vista retórico.
Para Denilson Lopes (1997), “o camp se situa num espaço de deriva entre categorias”
e, como tal, pode ser “um instrumento precioso para a intervenção dos homossexuais, dos
estudos gays e lésbicos na delimitação de subjetividades contemporâneas (p. 97). Em termos
de crítica literária, o conceito de camp pode converter-se em um operador de leitura eficiente
para a análise de determinados romances, como Diário de um ladrão, um clássico da
literatura homoerótica, de Jean Genet, publicado em 1949 e El lugar sin limites, do chileno
José Donoso, de 2003 e, em certo sentido, Acenos e afagos, de João Gilberto Noll.
Nessa radicalização encontra-se o pensamento queer, avesso a um modelo de
sistematização fácil, o queer inscreve-se no devir, como força subversiva, como potencial
criativo, que gera divergências mesmo dentro do próprio pensamento queer:
53
Tratar as posições políticas queer de forma unificada, por exemplo,
desconsiderando a especificidade de cada pensamento, retira a força das
propostas e das ideias. Distante do contexto de enunciação e sem a atenção
devida à singularidade de cada corpus teórico, corremos sempre o risco de
nublar a densidade das proposições queer que necessitam de um
movimento auto-reflexivo intenso e contínuo o que conduziria à repetição
pura e simples de teorias sem que haja a resistência das realidades
analisadas. A teoria se torna, nesse caso, dissociada das realidades empíricas
e, sem confronto, acabamos por entrar num círculo que induz à eterna
repetição (periférica) de teorias (centrais). Terminamos, por fim, observando
aquilo que a teoria nos faz ver, e toda possibilidade de distorcermos,
transgredirmos, estranharmos, - ideais eminentemente queer fica
embotada (PEREIRA, 2008, p. 470, grifos do autor).
39
Para os contornos de nossa análise, interessa-nos esse caráter de crítica ao
heterocentrismo e sua inscrição no corpo, tomado como espaço dessa enunciação queer que se
assume práxis das tecnologias do sexo, como aponta Bourcier, ao indicar que o gênero é uma
prótese manifestada na materialidade dos corpos e sua dimensão biopolítica
40
. Essa
importante concepção de Bourcier (2006 apud PEREIRA, 2008) nos conduzirá, mais adiante
a refletirmos sobre a questão do corpo queer, e, em especial como esse corpo é estetizado na
literatura, e, especificamente, no romance Acenos e afagos, de Noll.
O queer permite explorar outras formas de perspectivação do literário, conquanto
possa ser tomado no sentido de estranhamento
41
, uma vez que, em Noll, ao afastar a escrita
confessional linear da narrativa, Acenos e afagos questiona a noção tradicional de sentido: a
narrativa é expressão máxima desse eros que engendra, portanto, caótica; nada a obriga a
progredir, a amadurecer. O móvel dessa fragmentação e que o tônus dessa experiência a
um tempo estética e política pode ter no corpo sua chancela, e que constituem variáveis de
uma dicotomia incontornável.
Todavia, antes de lançarmos uma análise dessas questões, é pertinente resgatarmos
algumas relações entre literatura e homoerotismo e suas implicações na crítica literária,
sobretudo a partir de um olhar queer, que aventamos sobre a prosa de Noll.
39
Resenha de A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual, de Berenice Bento,
publicada nos Cadernos Pagu, n. 27, julho-dezembro de 2006, p. 469-477.
40
Depreende-se a partir dessa concepção, a inequívoca releitura crítica de Foucault sobre as análises das
identidades sexuais e uma crítica à concepção dualista de Pierre Bourdieu, realizada em A dominação masculina.
41
O conceito de estranhamento será retomado adiante, quando relacionado aos aspectos estéticos do romance.
54
2.2 Literatura, crítica literária e homoerotismo: intersecções
“E cada encontro nos lembrava que o único roteiro é o corpo. O corpo”.
42
Na agenda da pós-modernidade, sobretudo acerca de sua “sensibilidade” para com as
questões do outro, os estudos voltados para a construção de perspectivas teóricas e práticas
críticas em torno das complexas temáticas da homoafetividade e sua expressão nas artes e, em
particular, na literatura, têm sido instigados e promovidos num amplo e complexo debate que
se orienta por epistemologias, políticas e estéticas que urgem, impondo-se como
incontornáveis em sua interdependência, como propõe Souza Júnior (2007).
Essas três questões em diálogo, por vezes conciliatório, por vezes mutuamente
excludente, em tudo, conflituoso e producente, desestabilizam, conforme Compagnon (2006),
por um lado, o conceito sedimentado e legitimado de literatura mediante aquela
perplexidade inerente ao literário e sua “dobra crítica” (p. 262); de outro, a teoria literária
como lugar de entrevero, posto que “a teoria é feita para ser atravessada, para que se saia dela,
para se fazer recuo, não para recuar” (p. 260). No trato dos posicionamentos políticos, e, no
caso de obras que expressam a homoafetividade, isso implicaria a elaboração discursiva e
enunciativa de proposições identitárias, como exemplo da condição ideológica de que se
reveste a literatura como refratária de injunções sociais.
Nesse conflito, ficam cada vez mais evidentes as contraposições entre estudos
literários e estudos culturais, a partir, por exemplo, de uma negação, por parte desses últimos,
de critérios estéticos que garantiriam uma especificidade e autonomia orientadas a aventar
uma diferença entre literatura e não-literatura, a partir do conceito de literariedade e da
possibilidade de hierarquização dos mesmos em termos de valor intrínseco (EASTHOPE,
1996, p.3). Se, por um lado, os estudos culturais têm fomentado perspectivas de abordagem
42
NOLL. J. G. A fúria do corpo. In: ______. Romances e contos reunidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1997.
55
muito pertinentes no âmbito das humanidades, por outro, essas contribuições vêm sendo
relativizadas por críticas, como pondera Souza Júnior (2007):
É muito comum se ouvir dizer que os Estudos Culturais são responsáveis
por uma nova onda de politização das Humanidades, o que pode tudo e,
portanto, nada. Em qualquer dos casos, essa crítica se baseia na displicência
ao se atentar para a preservação de determinados valores originalmente
estéticos, valores esses que podem ser tomados como uma espécie de base
para a possibilidade de auto-reproduzir o papel desempenhado pelo
intelectual humanista desde o Romantismo (p. 124).
Parece-nos rentável, antes de empreendermos uma interpretação da literatura de João
Gilberto Noll, focalizando Acenos e afagos, revisitar alguns conceitos teóricos que orientam
tanto a crítica cultural quanto a teoria literária, nessa intersecção entre homoerotismo e
literatura, e, assumindo uma postura dialógica, considerar sua representação e estetização,
conquanto seja possível “surpreender o social na imanência mesma do valor literário”
(MERQUIOR, 1979, p. 123).
Destarte, o homoerotismo perpassa a crítica literária quando
pensado como realidade discursiva, de acordo com Barcellos (2006), problematizando as
noções identitárias homoeróticas e seu ônus.
A escolha por um diálogo entre perspectivas teórico-metodológicas diferentes também
se revela judicativa, pois que cria lugares de fala e escuta, de práticas críticas que
ressemantizam toda uma tradição literária, canônica, de “altas literaturas”, no sentido de
Perrone-Moisés (1998). Por outro lado, essa revisão também se encaminha para a constituição
de um sistema literário nutrido por antologias que o endossam, conforme afirma Belinato
(2009, p. 64), ao tratar do lugar de determinados autores brasileiros em um “cânone de
literatura queer” (p. 70).
Nesse debate, é pertinente considerar que o homoerotismo, segundo Woods (1998),
apresenta-se amplamente representado na literatura canônica, razão pela qual optamos por
rastrear suas figurações e estetizações em João Gilberto Noll, sem considerá-lo elemento
determinante de um conceito substancializador e “guetificador” de literatura no caso, uma
literatura “gay”. Sem desmerecer, em absoluto, as hermenêuticas em torno da politização do
texto, que nasce também dessa anagnorisis contemporânea do desejo homoerótico em toda
56
sua inscrição trágica e antinômica, propomos, a partir desses enfoques de que se expressa
tributária nossa análise, empreender uma leitura que localize as linhas de força, ou a “zona
ambígua”, de que fala Souza Júnior (2007, p. 121) e que constituem o caráter queer de Acenos
e afagos.
Nas relações entre literatura e homoerotismo estão em jogo muitas questões ainda
apenas esboçadas, sobretudo entorno da problemática das reivindicações radicais que tentam
formular os termos dessas mesmas reivindicações, principalmente a da construção de
identidades homoeróticas em termos políticos, mormente associadas à espetacularização da
experiência homoerótica. Nesse ponto nevrálgico é que se localiza o pathos de Acenos e
Afagos, naquela sensação lispectoriana do inefável, num átimo de tempo anterior ao ato
epifânico, na suspeição e no estranhamento, que, ademais, tornam inapeláveis sua tessitura,
avessa a filialismos fáceis, objetando toda autocomplacência e tentativa de reconciliação
ilusória, conquanto exercício de linguagem:
[...] quando escrevo, a palavra tem aos meus ouvidos uma vibração mais
musical que semântica. Uma coisa prestes a materializar uma ideia mas que
por enquanto ainda lampeja tão a sua verve física como se fosse pura
melodia, para num segundo momento então se inserir numa ordem narrativa
podendo sim irromper o encontro cabal dessa espécie de veia túrgida e
insone da escrita com a suculenta vigília do leitor. [...] literatura na minha
mente é isso: lugar, digamos, do não-saber, da fúria, do debater-se em vão,
em vão se arremessar em mais esta manhã – e, claro, com a baba desrítmica
sujando o fio e o brio inerme das horas.
43
“Estranhamento”, aqui, pode ser tomado como uma categoria de análise presente no
campo de investigação do Formalismo Russo sobre a linguagem: um efeito de distanciamento
(ou estranhar) em relação ao modo comum como apreendemos o mundo, o que nos permitiria
entrar em uma dimensão nova, só visível ao olhar estético ou artístico, como propõe
Chklovski (1976, p. 45):
43
“Por que escrevo”, depoimento de João Gilberto Noll à coleção O escritor por ele mesmo, no encarte do CD-
ROM, produzido pelo Instituto Moreira Salles em 2002. (Grifos nossos).
57
E eis que para desenvolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para
provar que pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar
a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o
procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o
procedimento que consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e
a duração da percepção; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto,
o que já “passado” não importa para a arte.
Localizado, portanto, na distinção entre o reconhecimento e percepção
desautomatizada, o estranhamento (ostraniene) singulariza o objeto artístico, por meio de
procedimentos estéticos que operam deslocamentos e imprevisibilidades, comenta Franco
Junior (2007, p. 95).
O estranhamento sempre esteve em uma relação com o incognoscível, com o fascínio
e a sedução; deita suas raízes no platonismo, atravessa a modernidade na crise de suas
metanarrativas e na angústia que persegue o belo, o estranho, o insólito:
Esta junção de incompreensibilidade e de fascinação pode ser chamada de
dissonância, pois gera uma tensão que tende mais à inquietude que à
serenidade. [...] Por toda parte, observamos nela a tendência de manter-se
afastada o tanto quanto possível da mediação de conteúdos inequívocos
(FRIEDRICH, 1978, p. 15-16).
Também no discurso psicanalítico, o estranhamento (Das Unheimlich) freudiano
remete à sensação do desamparo, do inapreensível:
[...] com aquela capacidade de a obra de arte causar em nós a sensação de
uma desconfortável inquietude” (Das Unheimlich), experiência essa
relativo àquilo que seduz, e ao mesmo tempo aterroriza. [...] A adaptação do
termo para o nosso idioma acrescenta à sua dimensão original um novo
significado: o de estrangeiro (questão de alteridade) [...] aquela própria ao
Inconsciente (SOUZA, 2007, p. 19-20; 115-117).
Em Acenos e afagos, esse estranhamento no mais das vezes é sugerido pela
imprecisão, em quadros narrativos que descrevem a proximidade do erótico com o demencial
na tessitura do discurso do narrador-protagonista:
58
Entre o meu mundo de fora e o de dentro surgia aos poucos uma dolorosa
rarefação. Precisava, no entanto, me manter nesse centro hoje diluído,
indefinido, impreciso, misturado, para não me bandear definitivamente ou
para fora, ou para o dentro. A expansão desordenada do dentro poderia
virar metástase, criando o império da deformidade, da loucura pura e
simples. Ia então me apegando a pequenas coisas do lado de fora para não
me afogar em minhas próprias águas. Às vezes eu me aproximava dos
elementos de fora tentando captar alguma nitidez. [...] Mas é certo que o
mundo de fora não precisava de mim. Hoje quem sabe eu extraísse daqui de
dentro certas ondas cerebrais para dividi-las com o sol, tentando assim
formular outros mundos possíveis, com novos ritmos, prelúdios, novas
seqüências e ocorrências, novos desfechos e armadilhas. (NOLL, 2008, p.
169-170).
Para relacionar essainquietude” à noção de homoerotismo no romance de João
Gilberto Noll, é preciso que enunciemos alguns pressupostos que estamos ora recuperando,
ora assumindo. Em primeiro lugar, o de que estamos considerando homoerotismo como um
elemento que forja e articula semiótica, estética discursiva e eticamente uma “positividade”
(FOUCAULT, 1988), a partir de um conjunto complexo de práticas sociais e experiências
individuais. Em Acenos e afagos, sua natureza protéica, sua diversidade e irredutibilidade
constitutivas elevam o erótico à excelência da letra, da prosa poética como inscrição dessa
demanda do desejo. De sorte que em Noll, é no plano dessa poética que o homoerotismo
conjuga algo de transcendental, superando as relações causais, sejam elas diegéticas tempo,
espaço -, sejam elas representação de ideologias e interditos.
O conceito de homoerotismo a que estamos aludindo se refere àquele proposto por
Jurandir Freire Costa (1992, p. 21), para o qual, o termo indica uma natureza semântica
ampla, mas que, no limite, refere-se a diferentes formas de relacionamento erótico entre
homens (e entre mulheres), independentemente das configurações histórico-culturais que
assumem e das percepções pessoais e sociais que geram, bem como da presença ou ausência
de elementos genitais, emocionais ou identitários específicos.
Trata-se, pois, de um conceito capaz de abarcar tanto a pederastia grega quanto as
identidades gays contemporâneas, ou ainda tanto relações fortemente sublimadas quanto
aquelas baseadas na conjugalidade ou na prostituição, por exemplo. O conceito de
homoerotismo é muito útil, por diversos motivos em termos de história e crítica literária, pois
59
apresenta a vantagem de não impor nenhum modelo pré-determinado, permitindo assim que
se respeite a acomodação que as relações entre homens assumem em cada contexto cultural,
social ou individual (BARCELLOS, 2006, p. 47).
44
O próprio fato de a palavra existir na forma de substantivo abstrato (homoerotismo)
ou de adjetivo (homoerótico/a) impede a atribuição arbitrária de uma identidade ou de uma
tipologia previamente construída à personagem de ficção. Assim, o conceito de homoerotismo
presta-se bem melhor à crítica literária que o de homossexualidade, como postula Dennis
Allen (1994)
Creio que o exame da relação entre literatura e homossexualidade e
escritura não deve incidir sobre as modalidades de codificação ou de
incorporação de uma homossexualidade pré-existente. Será preciso, pelo
contrário, verificar como o texto define e descreve (e, portanto, cria’) a
homossexualidade da qual ele fala. O procedimento de interpretação literária
sugerido aqui [...] é menos direto do que parece. Pois a própria escritura
desempenha um papel na economia discursiva de que falei (p. 20).
Para alguns pesquisadores (ERIBON, 1997; ALLEN, 1994; SEDGWICK, 1990;
WEEKS, 1990) guardadas as precisas diferenças conceituais -, o uso do termo
“homoerotismo” em substituição à “homossexualidade”, conquanto denote uma perda
semântica e política, abarcaria a sensibilidade imprescindível para qualquer trabalho que não
se atenha exclusivamente a uma forma específica e bem delineada de relação ou identidade
homoerótica. A suposta perda resultaria de uma subestimação de um termo que, rentável do
ponto de vista discursivo, matizado por um por trágico social, denotaria formas mais
incisivamente concretas de resistência e militância.
Um outro aporte teórico importante diz respeito à homossociabilidade conceito
advindo das ciências sociais e avaliado por Sedgwick (1990) e que nomeia e articula
discursivamente uma extensa rede de solidariedade e de pertença sujeitos homoeroticamente
orientados.
45
Como “estética de vida”, digamos, essa práxis não é tão facilmente
44
Pensemos, pois, em Quintanilha e Gonçalves, em “Pílades e Orestes”, de Machado de Assis ou em Amaro, de
Bom crioulo, de Adolfo Caminha.
45
Este é um ponto polêmico dentro dos estudos queer, uma vez que Sedgwick admite que a homossociabilidade
entendida como sociabilidade estabelecida entre homens, pode figurar como importante aspecto na
60
categorizável; ao contrário, radicada historicamente, ela se particulariza nas demandas dos
diferentes contextos sociais que as reivindicam:
Homosocial is a Word occasionally used in history and in the social
sciences, where it describes social bonds between persons of de the same
sex; it is neologism, obviously formed by analogy with ‘homosexual’, and
Just as obviously to be distinguished from ‘homosexual’(SEDGWICK,
1990, p. 1-2).
46
Foucault, por outras perspectivas metodológicas, já havia apontado algumas marcas da
sociedade antiga, no que concerne à relação entre o homoerotismo nos campos do saber, do
poder e da ética, sobretudo em relação a uma história dos corpos, uma estrutura patriarcal de
dominação, ao passo que, na modernidade, homoafetividade e falocracia formariam
antinomias irreconciliáveis, para lembrar Sedgwick (1990).
Para Dollimore (1996), uma análise de textos literários do século XVIII até as
primeiras décadas do século XX, mostra que a ruptura entre homossociabilidade e
patriarcalismo se expressa de forma mais amena; e, na verdade, haveria uma continuidade
básica entre a homossociabilidade masculina e o homoerotismo também no mundo moderno,
a ponto de se poder falar coerentemente em “desejo homossocial”, incisivamente estruturante,
como propõe Sedgwick (1990, p. 57. Sua história deita raízes no período de meados do século
XIX, aventado pela psiquiatria, até a explosão dos movimentos de liberação homossexual e do
caso de Stonewall, entre anos 1960 e 1970 do século XX (FERNANDEZ, 1992, p. 232 apud
BARCELLOS, 2006, p. 45).
Esse período, determinou o surgimento, nas principais metrópoles do ocidente, de uma
identidade gay, entendida como uma nova estética da existência homoerótica. Na mira de
estratégias mercantilizantes, o homoerotismo se abre para os imperativos de consumo, e,
manutenção de uma ideologia patriarcal, implicando, não raras vezes, uma misoginia. Outra direção de se pensar
essa condição ‘homosocial” é a aventada por Foucault, como uma estética da existência”, visão pela qual
trilhamos nosso argumento.
46
‘Homosocial’ é um termo ocasionalmente utilizado na história e nas ciências sociais para descrever laços
sociais entre pessoas do mesmo sexo; é um neologismo obviamente formado por analogia com "homossexual" e,
de forma igualmente óbvia, para diferenciar-se de "homossexual". (Tradução minha).
61
paradoxalmente, também se torna politizado, entrando para a agenda dos debates político-
culturais, sob diferentes matizes.
Nesse ponto, parece delinear-se uma prosa ficcional que autentica algumas dessas
marcas identitárias e homoafetivas como lugar de enunciação de um olhar homoerótico
articulador de socialidades na pós-modernidade, como indica Belinato (2009), em relação a
autores como Caio Fernando Abreu, que testemunham e estetizam “uma lucidez
autobiográfica da homossexualidade” (p.114), que, “embora sirva de ponto de confronto pelo
preconceito social que recebe, transforma-se em local para a reflexão dos indivíduos que por
ela opta” (p.115).
Nesse sentido, os topoi homoeróticos são imprescindíveis como operadores de leitura,
como elementos estéticos atravessados discursivamente porque rubricas identitárias,
certamente voláteis, autofágicas, mas que acenam um sentimento de referencialidade.
Outra questão que nos interessa em termos mais ou menos revisionistas, diz respeito
aos termos, gay e “homossexual”, no mais das vezes contrapostos pela crítica cultural.
Entretanto, não pretendemos tornar rígida essa oposição, o que não faria sentido até porque as
realidades culturais são sempre extremamente dinâmicas e permeiam-se mutuamente.
Distinção producente que entraria na própria definição e inserção de determinados
autores em uma “literatura gay”, a exemplo de Caio Fernando Abreu ou Silviano Santiago,
nos quais se veem claros indícios do deslizamento da ideia de “condição” homossexual para a
de “estilo de vida” gay, no cerne da problemática identitária. Passa-se, assim, de uma postura
de autodefesa à autoafirmação inequívoca da existência e sua fragilidade deflagradas na
emergência confessional em tempos de AIDS, como aponta Belinato (2009, p. 15).
Para Woods (1998), uma literatura de dicção gay propriamente dita coincidiria com a
disseminação de modelos identitários gays surgidos a partir da década de 1960 do século
passado. No entanto, ele mesmo argumenta que desde o final do séc. XIX, sobretudo através
da compilação de antologias, procedeu-se à construção de uma tradição literária que não
apenas remontaria aos primórdios da literatura ocidental como ainda reivindicaria para si
obras e autores de outras literaturas, constituindo-se uma galeria de obras literárias que, em
sua diversidade estética e temática forjariam uma historiografia gay ou homoerótica (p. 24).
Woods afirma que, se é fácil dizer onde ela começa a saber, quando autores abertamente
62
gays falam de suas experiências de vida como gays -, não é possível dizer onde acaba, pois
inúmeras configurações entre autor, leitor, temática e perspectiva são sempre possíveis (p.
12).
Se o conceito de “gay” e o projeto político e cultural que ele expressa – com ênfase na
primazia do sujeito, na integração social e na confiança na razão ainda se inscrevem com
clareza no âmbito da modernidade, o conceito de queer, ao questionar aqueles pressupostos,
revela sua inequívoca inserção na pós-modernidade. A relevância dos estudos queer, entre
outras, é o de submeter a uma crítica profunda a noção de “orientação sexual”, que está na
base do conceito de homossexualidade, mostrando sua fragilidade como instrumento analítico
(SEDGWICK, 2007).
No entanto, a esse respeito, não estamos diante de uma novidade absoluta da teoria
queer, pois outros pesquisadores haviam questionado, mais tempo e a partir de outros
marcos teóricos, não apenas a fixidez do conceito de homossexualidade, mas ainda sua
aplicabilidade a muitos contextos específicos, como lembra Weeks (1990). O autor enfatiza a
necessidade de se distinguir com clareza comportamentos, papéis e identidades no estudo do
homoerotismo, pois “um comportamento homossexual não gera automaticamente nem mesmo
necessariamente uma identidade homossexual” (WEEKS, 1990, p. 196).
Para os limites de nosso trabalho, importante ressaltar que os conceitos de
homoerotismo e homossociabilidade operam fissuras decisivas para a ideia de
homossexualidade, porque a amplia, e, em outra dimensão, também corrobora a construção de
uma homotextualidade. Tomado como um elemento retórico complexo, o homoerotismo em
João Gilberto Noll, ao integrar emoções, sensações, experiências de trânsito entre a vida e a
morte, está inextricavelmente ligado a um regime de violência que se opera em diferentes
níveis de expressão, da ascese ao escatológico, culminando na decomposição do corpo na
narrativa e da narrativa do corpo, em seu gozo absoluto e seu ônus irrevogável.
Este olhar nos fornece referências para adentrarmos a dimensão produtiva do
homoerotismo em Acenos e afagos, possibilitando que ele seja lançado para além de uma
trangressão contextual de posicionamentos de sujeitos enformados e subjetificados o que
não seria demérito porque, como vimos ponderando, a literatura, como “erótica verbal” (PAZ,
1994, p. 12), é lugar de auscultamento de experiências interditas, de desejos inteligíveis, de
63
corporeidades infames, capaz de indicar, não o real, mas um lugar de falta e sublimação: “A
ficção das coisas me enredava a ponto de não poder dela me desvencilhar. E o que restava do
que chamavam realidade se asilava incomunicável no consulado de todas as bandeiras”
(NOLL, 2008, p. 56).
64
3 ACENOS E AFAGOS
3.1. O enredo: “um épico escrito em transe
47
Acenos e afagos é a narrativa intrincada de João Imaculado (p. 154) e sua paixão pelo
engenheiro, amigo da infância, espraiada pela vida e pela morte. Nos primeiros quadros
narrativos, os dois personagens, ainda crianças, lutam entre si, no corredor de um consultório
odontológico, num erotismo iniciático, “no avesso, para que as verdadeiras intenções não
fossem nem sequer sugeridas” (p. 7). Ludo sexual cuja “impossibilidade de uma intenção
aberta produzia essa luta ardendo em vácuo” (p. 7), e sobre o qual “a luxúria adulta estava
então lançada” (p.8) por essa “matéria tão improvável” (p.9). Reverberações também da
adolescência, tempo em que “já desconfiava de que seria um adulto famélico por sexo” (p. 13)
e “apaixonado pelo corpo” (p. 14), e quando, em função da situação econômica do pai, vai
para um seminário, onde “agora, a pele seria a de um colega” (p.14), no “esconderijo da
noite”, tendo as trevas como a matéria envolvente ao meu pobrinho gozo” (p. 14), confessa o
narrador.
Torna-se cético, “triturando todas as crenças d’além corpo” (p. 15) porque “não fazia
mais parte de um plano cósmico regido por um déspota” (p.15), “sem mais acreditar em
Deus” (p. 14-15). A “engrenagem do corpo” (p. 15) leva-o a ter “uma consciência abalada”
[...] “infestada de abutres inequívocos” (p. 15), “como por exemplo, sair do seminário, do
armário, [se] entregar ao roubo, ao crime, às ofensas carnais, ao vício e daí não retornar mais”
(p. 16). Anos mais tarde, em uma sessão de cinema, “cada um viu no outro [...] a substância
que faltava”: “escrever uma outra história(p. 17), marcada, como afirma o narrador, pela
“força do meu distúrbio em face dessas presenças, eu destilaria para elas a gana das
fabulações” (p. 18).
Um desses motes é o convite do engenheiro para juntos visitarem um navio atracado,
e “lá ia eu de novo arrastado por seu avassalador magnetismo” (p. 19). No cais, um submarino
alemão e “deleites carnais inventivos” (p. 21), em um passeio marítimo sem destino, junto
àquela “confraria, que tinha como objetivo o de experimentar os turbilhões da libido” (p.27).
47
(NOLL, 2008, p. 190).
65
De volta, separa-se do engenheiro, que seguiu viagem, porque “agora estava ali,
completamente entregue àquelas manhas masculinas em dimensões marítimas” (p. 30).
Errático, antes de retornar a Porto Alegre, hospeda-se em um hotel, e, em uma fantasia com a
mulher do dono, confessa: “não me bastava, eu precisava de outro -, na imagem, claro, e
que comigo formasse um pacto de tesão inabalável [...] um terceiro corpo, um corpo de
formosura sem par, sim, um corpo imaginário [...] uma terceira pele” (p. 32), porque “um ato
de foder resultava em um rito” (p. 33).
Assim se dava também com Clara, sua mulher, com “sua voz bendita cantando
canções francesas dos séculos XV e XVI” [...] cujo “timbre particularíssimo de soprano tinha
o poder de [lhe] inspirar”, (p. 38) e com quem partilhava a cumplicidade dos desejos sobre os
quais “o corpo se encarregava de dizer” (p. 38) [...], de classificar como “encontros
emergenciais” [...] - o que “de mais imediato a vida poderia proporcionar” (p. 39). Ou
ilustrado no encontro com o pai do amigo de seu filho adolescente, “amigos ou amantes?(p.
42). No retorno à sua rotina, a notícia do naufrágio de um submarino alemão na costa da
Angola e a percepção da nudez do filho, num misto de censura, incomunicabilidade ou
impossibilidade do amor, ao ponderar: “ele é um homem, e eu devo tirar os olhos do seu
corpo e lhe falar com voz de pai. No entanto, ele é tão belo que nem ouso acreditar. [...]
Pensei em lhe fazer um agrado, até mais que um agrado, um afago destemido embora sempre
sóbrio. Ou um aceno...Mas não havia mais como. Isso deveria ter sido feito na infância
dele” (p. 57).
Entre tantas relações líquidas, a com Bernardo, um massagista, com quem, “ao foder
nas trevas, justamente num mundo sem figuras, poderia convocar, com melhores resultados, o
fantasma do terceiro homem” (p. 66). Ou no sadismo agônico com o garoto de programa,
“nos ritos próprios àquele trabalho, noite afora”, (p. 69), com quem “[...] não deu pra sentir de
fato dor”[...], mas que o leva a confessar: “o que sei é que, ao levar o pontapé, gozei enfim,
tão fundo que parecia o ato de morrer” (p. 71). Acordado no hospital, a visita do
engenheiro é descrita num quadro de confusão mental: “não era um espectro emanado de meu
pensamento? [...] “Foi quando acordei. E estava deitado num leito branco, bem no meio de
um salão. O salão, vazio. Capela de velório? (p. 78). Insolitamente, “com ele, [o engenheiro],
a vida retornava, a vida e suas funções” (p. 79). Fogem para Cuiabá, onde, enfim, o narrador
projeta um desejo: “ele seria meu homem” [...]. “Eu de tradutor da mulher que jamais serei”
(p. 80-81).
66
Durante a convivência, o engenheiro confessa-lhe ter violado sua sepultura, através de
um “segredo de espantar as trevas de um corpo inerte” (p. 88). “A vida que gritava agora
iniciava a partir da ressurreição” (p. 88) [...], “como um rito masculino de passagem, para se
atingir a verve do sêmem universal” (p. 91), e, paradoxalmente, “continuaria no gozo dessa
abstração feminina” (p. 93), que passa a delinear-se na psique e que culmina no corpo,
“revolucionando a minha anatomia” (p. 125), como confessa o narrador ao se referir à
metamorfose que o transforma em mulher.
Encontrado morto, supostamente envenenado por um de seus seguranças, o
engenheiro, “com uma suave ereção” (p. 171) e “com lábios obscenos para um morto” (p.
173), é enterrado pelo segurança e pelo narrador, em um clima de erotismo necrófilo. Ambos
partem mata a dentro até encontrar o vilarejo, “Nova Amizade”, de onde o narrador “fugia,
fugia de qualquer história que quisesse me escravizar a meu passado remoto ou recente” (p.
197). Deixando para trás o segurança, retorna a casa em Cuiabá porque “vinha à procura de
proteção, não importava que ele [o engenheiro] já estivesse morto” (p. 197). Nesse retorno, as
crises de vômito e uma necrose em um dos pés feridos na fuga, levam o narrador a sentir uma
“sensação omissa”, e a concluir: “eu me sentia morrer” (p. 198).
Em meio à floresta, inadvertidamente, é atingido por um tiro disparado pelo
segurança. Num rir incontido, sente esvaírem-lhe as forças no seu “corpo infinito” (p. 199) e
sua desintegração, uma “única dramaturgia possível” (p. 200). Nesse momento, passa a narrar
a própria morte, num “devaneio dolorido” (p. 201), um estado de latência emana “naquela
marcha em direção ao pó” (p. 202). A percepção corporal no momento da morte é narrada em
“uma lassidão absurda” [...], de “semitons candentes da hora” (p. 204), e “então, de um golpe,
me coagulei. E antes que eu não pudesse mais formular, percebi que agora, enfim...eu
começaria a viver...” (p. 206).
Acenos e afagos, como mostra esse enredo tocado de estranheza e pelo maravilhoso, é
exemplo de que na prosa de Noll, o “o que é narrado” e “o como é narrado” gozam da mesma
chancela das melhores literaturas. A história de João Imaculado pode desestabilizar certos
horizontes de leitura pelo tema de um “corpo estranho” levado ao seu paroxismo, e, ao mesmo
tempo, impingir os desconfortos de uma escrita nevrálgica de um autor que confessa: Eu
escrevo com o corpo”.
48
48
NOLL, J. G. No compasso da linguagem. Revista Agulha. [São Paulo], 2008. Entrevista concedida a Kátia
Borges. Disponível em: www.revista.agulha.com.br/katb3.html
. Acesso em 15 jan. 2009.
67
Em Acenos e afagos, narrar o corpo é também narrar o transitório, o degenerativo, o
ambíguo que se instaura nos liames entre a atração e a repulsa, o desejo e a interdição, o gozo
e a dor. É narrar, a partir de um elemento tangível, a história das representações e dos
discursos, e, a partir deles, nomear a realidade e seus escombros.
68
3.2. Romance queer: corpo, experiência e narrativa
Vimos tomando Acenos e afagos como romance de derivas, de esvaziamentos dos
sentidos, que cultural e discricionariamente, se forjam sobre o corpo como ponto de partida
para uma narrativa da identidade ou, no caso de João Imaculado, de uma pós-identidade.
Sendo, pois, nômade e desterritorializada, essa narrativa reverbera a infância, marco zero das
experiências de edipianização e de fantasmas, de onde ressoa a crise producente do desejo
homoerótico. Espíndola (1989), ao tratar do tema em A fúria do corpo, apostava no corpo
como signo de uma denúncia de sujeitos à margem; em Acenos e afagos, propomos que o
corpo, borrado em suas margens identitárias, mostra-se avesso a qualquer significação
despótica, descoberta-ascese, num clima belicoso, que permeará a narrativa, sua
homotextualidade, através de uma grelha semântica que remete ao ludo:
Lutávamos no chão frio do corredor” [...] E nós dois a lutar deitados, às
vezes rolado pela escada abaixo” [...], “essa luta ardendo em vácuo” [...] Seu
corpo em cima do meu parecia tão forte que eu teria de me render [...] O que
sentiriam os rendidos? (p. 7). [...] Parecíamos mais uma vez dispostos par a
briga. Naquele ponto eu sabia: a animosidade seria abastecida de novo
pela atração (NOLL, 2008, p. 10).
O corpo como o leitmotiv da experiência, no mais das vezes homoerótica,
singularizada no embate, no tom agônico: “E nós dois aqui no chão do corredor, jurávamos,
calado, inimizade sem fim” (p. 8), onde o “roído aflitivo da broca não cessava” (p. 8), como
metonímia daquele estado de aprendizagem do eu, mediante o qual, também uma censura da
ordem, das teias familistas e masculinizantes surge como fantasma:
A possibilidade de sermos pilhados pelo dentista mais dramatizava o
sentimento meio fosco entre o gozo e sua imediata negação” (p. 8). Nesse
ludo, um forma criativa de resistência e simulação de uma ordem subjetiva e
corporal emerge como linha de fuga, tão caracteristicamente queer: “Para
fugirmos do dilema, lutávamos, lutávamos sempre mais, rolávamos. Fomos
abaixando nossas calças curtas e ficamos de joelhos, um de costa para o
outro. Essa posição, talvez, servisse para nos camuflar um pouco diante de
algum brusco olho com bom trânsito no prédio. Foi assim que lançávamos
nossos ferrões de forma branca, para amaldiçoar aquelas sensações que não
teríamos mais como revalidar pelo resto de nossas biografias (p. 9) [...]
Contávamos com a ameça de o dentista abrir a porta a qualquer momento e
69
nos flagrar no árduo impasse carnal. O perigo constituía-se num ingrediente
tentador a mais para um novo arranque de erotismo, naquela dispersão
erógena da infância (NOLL, 2008, p. 10).
Nesse embate sobre o corpo como significante unitário, psicologizado na tensão dessa
partilha arbitrária a que tacitamente o narrador parece aludir; e na própria configuração dessa
“matéria tão improvável(p. 9), a memória se instaura como dimensão ética e estética, que
coloca o corpo queer, obsceno, fora de cena, portanto, em núcleo de um saber sobre o corpo e
suas injunções estigmatizadoras e excludentes:
Mesmo sem ter condições de ejacular, em razão do organismo ainda verde,
dessa tarde restou um deleite naufragado, deleite que nunca deveria mais
conseguir atiçar. [...] Desconhecíamos a aparência do líquido que nos
acompanharia pela vida toda. Sabíamos que o sexo deveria ser feito entre um
homem e uma mulher e que dessa luta em meio aos lençóis se gestaria a
criança, essas crianças correndo por tudo como nós. [...] Éramos moleques
que se reinventavam a cada sinal de puberdade (NOLL, 2008, p.9).
Estruturada pela técnica do monólogo interior, a narrativa sintoniza-se com os
meandros e complicações decorrentes de uma consciência aguda sobre a reinvenção da
subjetividade/masculinidade, parodiada, invertida, investida contra o despotismo, o Nome-do-
Pai
49
- figura de tensão fundadora do eu, da censura, do interdito -, sobre o qual ressoa a crise
de modelos identitários masculinos e femininos, e a proliferação de discursos e de regimes de
saber/poder que operam políticas de representação, conforme vimos em Butler (2003). Nos
primeiros momentos da narrativa, a metáfora paterna insurge como signo de regulação
disciplinar do corpo por um “dispositivo de sexualidade”, para lembrar Foucault,
pedagogizante, mas que encontra na invisibilidade do revide sua maior resistência:
Meu pai me dera um livro sobre as coisas do sexo, cujo autor, João Mohana,
pontificava como padreco que era. Nunca punhetei tanto quanto durante a
leitura desse manual. Várias páginas manchadas pelos jatos de minha grande
novidade da época -, sim, o sêmem (p. 9).
Na poética do corpo, o atravessamento de uma ética das legitimações dos regimes de
verdade, aventados pelos estudos queer sepela perseguição dessa figura do pai, que recebe
49
Lacan cunhou o termo em francês, Non-du-Père, para indicar a ideia/metáfora do pai como estruturante da
economia psíquica do homem, figurando-se um mito organizador de suas paixões. (Cf. ROUDINESCO, E.
Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1997, p. 235).
70
investimentos semânticos de diferentes naturezas. Genette (1972) propõe que a figura
preencha um vazio existente entre significante e significado, ou, como ele afirma, uma
“relação que faz vínculo entre significante e significado” (p. 32). Nesse sentido, podemos
situar a figura nos limites da linguagem, em que perfaz um movimento pulsativo entre o que é
possível e impossível de ser dito, entre o representável e o irrepresentável. Em outras
palavras, no nível da linguagem, a figura caracteriza-se por um desvio, por uma quebra de
expectativa em relação a um significante normalmente utilizado para suscitar um significado.
Assim, em torno do significante pai instaura-se o desvio, as linhas de fuga que
rompem com a radicalidade do patriarcal, contraposto a um ímpeto que ameaça a ordem, pela
desordem do desejo. Pai, portanto, como topos, inscrição no simbólico, que não se
circunscreve ao biológico, ao social, enquanto reapropriação, portanto, queer, mas também
estético, porque norteia o princípio deflagrador da narrativa confessional em Acenos e afagos.
Nesta diffèrance, a metáfora paterna, como valor absoluto de articulação entre verdade e
saber/poder, coloca-se também como marco zero do complexo jogo das metamorfoses que
figuram na narrativa, e cujos aspectos abordaremos no tópico Metamorfose e Homomemória.
A metáfora paterna, pois, é um elemento recorrente na produção de João Gilberto Noll, e que
suscita e instiga. O primeiro conto do autor, problematiza a incomunicabilidade entre pai e
filho, seus escolhos e suas dívidas colocadas sob a rubrica de “Alguma coisa urgentemente”:
No Rio fomos para um apartamento na Avenida Atlântica. De amigos, ele
comentou. Mas embora o apartamento fosse bem mobiliado, ele vivia vazio.
- Eu quero saber – eu disse para o meu pai.
- Pode ser perigoso – ele respondeu.
E desliguei a televisão como se pronto para ouvir. Ele disse não. Ainda é
cedo. E eu já tinha perdido a capacidade de chorar (NOLL, 1991, p. 14).
Ou no embotamento da retórica do pai em “O filho do homem”:
[...] meu pai não propunha me assustar, dizia que não é preciso temer o
nosso destino, que a dor e o prazer são coisas imponderáveis mas que
chegam na hora certa e saem na hora justa. O meu pai está morto (NOLL,
1991, p. 83).
71
Em Canoa e marolas, reverbera a angústia que a rasura de uma identidade paterna, o
não-do-pai, provoca no personagem-narrador, que sai em busca de sua filha, fruto de um
amor fugidio. Sintomático que o romance componha a coleção Plenos Pecados, e que explore
uma certa culpa e inescapabilidade do alheamento nos limites do pecado da Preguiça, como
metáfora da letargia das relações entre pai e filha.
Mas agora querida dar uma imagem precisa à minha filha, Marta, um gesto
claro, retilíneo, aberto, sedutor. Queria atrair minha filha, vê-la orgulhosa do
homem que a gerara, vê-la contente por conhecer uma corrente de sua
origem, eu, um homem de meia-idade, a sós com ela para protegê-la das
últimas vicissitudes antes que entre na madureza, numa possivelmente
confiável autonomia. Talvez eu preferisse não precisar de mais nada, nem da
existência e minha filha, não, era tarde para não querer, eu tinha sim
gerado uma filha com uma mulher de nome Marta, e eu precisaria refazê-la
dentro de mim e com ela todo um passado ainda latejante quando viesse a
tocar nas suas mãos desconhecidas, nas próximas horas, aqui nessa ilha,
para onde eu acorrera cheio de uma urgência tosca e desajeitada (NOLL,
1999, 17).
Em Mínimos, múltiplos, comuns, a imagem do pai em “Parque da Redenção”, figura-se
anêmica, imprecisa, irreferencial, sem, no entanto, deixar um ponto aguda de inquietação e
perplexidade:
Os jacarandás em flor. Isso lhe dava certa segurança. Dali a um ano seria a
mesma luz de outubro, o mesmo roxo nas copas. O gosto de retorno
perecível lhe umedeceu o lábio. Ela não sabe como preencher o domingo,
agora que todos os dias passaram a ser domingo. Desde a súbita herança de
um pai desconhecido, misterioso. Sentou-se no recanto chinês. Mirou firme
o olho furado do dragão. no fundo, bem remota, ressurgia certa figura
rala, sem recursos. Fechou os olhos, enterrou as unhas na saia. Uma fisgada
cortou-a inteira. Pensou no pai (NOLL, 2003, p. 213).
Também no romance A céu aberto, o pai é figura difusa, em meio a uma batalha por
razões e espaços indefinidos, aos quais se laçam dois irmãos que buscam romper com o
distanciamento que se engendra nos afetos entre pai e filhos:
Eu era mais velho, eu precisava fazer alguma coisa pela saúde do meu irmão.
Pensei logo no nosso pai. A gente não tinha mais ninguém.
72
que o nosso pai estava na guerra, lutando do lado dos homens de farda
roxa, uma guerra que eu não sabia para que servia não chegara ao
entendimento de que lado havia a melhor causa, se os outros homens, os de
farda castanha, viviam nos tempos de paz perto ou longe da gente, se eram
filhos da encosta do monte lá embaixo ou se, quem sabe, de outro mundo, de
uma esfera perdida no espaço (NOLL, 1996, p. 10).
“Em nome do filho”, conto de Máquina de ser, a perda diante da morte do filho revela
no narrador um pai que tende a confundir o vazio das coisas irreconciliáveis com
complacência e altruísmo:
O médico saiu da sala de cirurgia e me olhou como se adivinhando nos meus
olhos o endereço da notícia que deveria dar: “O seu filho entrou em óbito”,
ele contou. Claro, ao dizer “entrou em óbito”, ele pretendia suavizar o fato
de que meu filho tinha morrido de uma vez por todas -, para que eu mesmo,
como de fato acabou ocorrendo, não me desse conta assim de chofre de que
o meu filho tinha chegado a um estado que o apartava de mim para nunca
mais. Por enquanto eu não poderia sequer imaginar que a partir dali eu iria
me referir a ele definitivamente no passado. Que eu continuasse nem que por
alguns segundos usando o infatigável presente do meu filho em sua ação no
mundo a meu redor. Ou nem tão ao redor assim, já que meu filho sofria de
ausências (NOLL, 2006, p. 15).
Em outras palavras, os excertos anteriores ilustram como a figura do pai espraia no
texto o tom da inscrição do simbólico e sua subversão, assumindo matizes diferentes: o pai
reverbera em Noll como “ausência espectral”, é subsumido pela inescapabilidade dessa figura
produtora de subjetividade, mas, paradoxalmente, a eleva à condição de impossibilidade. A
dimensão de pai “biológico” mostra sua máscara social, ao qual o narrador se refere diversas
vezes, tanto em relação a seu próprio pai, quanto em sua própria condição de pai; na
dimensão do pai “teológico”, vemos uma insolúvel relação com o Deus, o Pai, como em
“Meus oito anos”, que compõe Mínimos, múltiplos, comuns:
Agora vocês viram o suficiente”, disse o padre na Sexta da Paixão.
desceu um pano preto, tapando o altar. Seus olhos se amancebavam com a
abóbada, onde se debatia um pardal intruso. “Sem a ressurreição, em vão
seria nossa fé” Pensei na chaga que, minutos antes, eu não conseguira beijar.
Após cada beijo, um guri passava álcool na imagem. Era meu aniversário,
mas nem o pudim de praxe compareceu. Fingi um luto maior do que a data
dos meus oitos anos, fui deitar. Sob o lençol tateei o meu corpo, devagar,
como se o estivesse conhecendo ali (NOLL, 2003, p. 475).
73
Essas relações com o simbólico inscrevem-se, no âmbito da cultura, das relações com
a ordem, com o interdito, e que, nas cenas em que são evocados no romance, e pela forma
como o são, evidenciam um atravessamento dessa metáfora paterna. Como significante
central de toda encarnação histórico-esquizo das masculinidades e feminilidades, a imagem
do pai aponta o caráter discricionário dos jogos de relação que reverberam na trajetória dessas
identidades bio-grafadas do e no personagem-narrador:
Seu corpo em cima do meu parecia tão forte que eu teria de me render. O
que sentiriam os rendidos? [...] Os mistérios devem gostar de não serem
nomeados. [...] Clamo por um amor sem nome, posto que ainda oculto a meu
faro, quando por fim gozo litros no interior dessa mulher astuta, a engolir
entre as pernas o meu sumo. [...] É necessário que depois de morto eu
reinterprete o papel de pai, infelizmente, ainda com palavras pré-moldadas.
[...] Sou um homem usual, aquele que não atira à queima-roupa nem é capaz
de aliviar a carga de ninguém. Um homem que não deixa marcas. Eu, um
homem usual como tantos, não trarei paraísos nem pesares. Sou anônimo,
alguém que pode desaparecer sem deixar lembranças (NOLL, 2008, p. 7, 29,
50, 56, 59-60).
O narrador apresenta a rarefação dos papéis sociais em torno do que comumente se
configura a ordem familista e masculinizante da figura paterna como fundadora do eu, como
na cena da piscina, um quadro narrativo-descritivo como em um travelling:
Meu filho nada borboleta. Sim, nunca o vi nu. Ele nada borboleta com seu
belo físico, de verdadeira fibra atlética. À noite vou bater no quarto dele,
pedir que me conte o que anda lendo. Por enquanto ele nada borboleta com
seu tórax de cinema. Quando volta ao vestiário, vou atrás. Ele se seca, nu.
Olho a sua nudez e penso que eu sou um dos responsáveis por ela. Ele é um
homem, e eu devo tirar os olhos do seu corpo e lhe falar com voz de pai.
Cheio de disfarces encosto meu olhar em seu tronco, ando por sua barriga,
desço mais, o pau circuncidado, encosto agora o olhar em suas pernas
musculosas, em seus s de dedos meio murchos devido à água da piscina.
Volto a subir pelo mesmo corpo, subo mais, mais, quando ouço a sua voz
exclamar “pai”!? Parece ter perguntado algo que prefiro não entender
(NOLL, 2008, p. 57, grifos nossos).
74
A crise que ressoa da figura androcêntrica vai borrando os limites da interdição que
essa imagem carrega na história dos afetos. O signo patriarcal fragmentado é subsumido por
uma ordem subjetiva nutrida, desejada, ameaçada e ameaçadora do corpo, também ele signo
deslizante. Na economia da narrativa, o corpo vai se afigurando metonimicamente, como na
sequência do excerto, em que, o narrador inscreve, em uma abrupta mudança de foco
narrativo, a relação com o filho num misto de inescapabilidade e temor:
Em dois homens no vestiário, um de cada lado, e, à revelia de tudo, um deles
era o pai, o outro, filho. Eram dois homens que poderiam ter formulado em
conjunto projetos os mais espertos. Mas o, os dois preferiram se afastar.
Eram dois homens que pareciam habitar a mesma solidão e que, no entanto,
se afastavam um do outro, que previam grave tumulto se ambos
confluíssem para o mesmo ponto (NOLL, 2008, p. 58).
A narrativa dessa poética corporal continua deslizando metonimicamente nos quadros
que se seguem, como a associar o tácito, o interdito, a uma tentativa de sublimação, como se
evidencia no fato de o narrador, após esse quadro prosaico no vestiário, deambular em busca
de um garoto de programa:
[...] e saí andando para uma casa onde garotos de programa simulavam
massagens na penumbra” [...]. O garoto que eu encontraria agora na casa de
massagens parecia mais de um, pois era todos mesmo, cada um com seus
dons inconfessáveis. Seus traços se movimentavam com uma incongruente
fluidez (NOLL, 2008, p. 59, grifos nossos).
Além do recurso metonímico, o romance também apresenta outra estratégia narrativa
extremamente producente em termos de configuração de sentidos, qual seja, uma alternância
de foco narrativo, que passa de autodiegético para heterodiegético e novamente para
autodiegético, como indicam os três excertos anteriores. Essa recursividade garante à
temática do corpo e o desejo o lugar de elementos nucleares no processo de reavaliação da
metáfora paterna, borrando para as fronteiras que atestam a travessia da natureza à cultura,
seus interditos, sublimações, ônus:
Eu forçava, forçava a memória para além ou aquém do garoto de programa,
mas o trabalho de lembrar também doía. Relembrar seria pedir o impossível
75
de minhas ruínas. O vácuo da consciência era colossal. [...] Em meio a essas
considerações, começou a me inspirar a imagem de dois homens a foder no
escuro. Ainda havia zonas erógenas a explorar neles ou em mim mesmo?
Tão sombria a cena desses homens, que de fato não se via vulto -, de
presença, só os sons e gemidos do contato. [...] Os dois homens no escuro. A
minha mulher e o meu rapaz continuam intactos no caroço da memória, mas
eles não me traziam nada além de serem meu garoto e minha mulher, mãe
dele. [...] Por enquanto era aquilo, a insistente imagem dos dois que fodem
num breu de fazer gosto, transmitindo fragmentos de palavras rubras,
gemidos, a glória dos gozosos. Sentia nas mãos uma gororoba um tanto
espessa e melada feito açúcar derretido. Eu sofrera uma polução. Meu filho
dorminhoco talvez sentisse o seu jorro escrotal nesse exato instante. Aliás,
ele estava na fase de poluções. Durante o sono, uma peça de seu corpo
avolumava-se ao máximo e à revelia dele (NOLL, 2008, p. 73-74).
Na economia da linguagem, as narrativas truncadas e rizomáticas, figuram a angústia
de dizer a verdade desse desejo que não pode ser dito com o regime de “verdade” que rege a
consciência, dada a sua parcialidade, seu aspecto censório, instituído pelas linhas de forças
discursivas que regulam o normal e o patológico, para recuperar Seidman (2002), como nas
fantasias incestuosas do narrador:
Senti saudade de minha mulher e de meu filho em Porto Alegre. Fiquei de
bruços flexionando os meus quadris contra a cama. Vinham à minha mente a
bunda de meu filho, a xota mais que úmida de minha mulher naquelas noites
quentes, e, para coroar, o cu do engenheiro esfomeado pelo meu cacete. [...]
Começava a plantar na lembrança de meu filho a imagem do jovem ideal
[...], Via meu filho agora em tons esverdeados, e isso parecia ser o sinal de
que ele se curvava a essa mais que longíqua noite da selva, onde os
mosquitos esfolavam a pele fraca dos urbanos. O meu rapaz saía do banho e
me olhava tentando decifrar a ambição do meu desejo. Debaixo do corpo
inerte do engenheiro eu ia sentindo que vinha vindo o gozo, mesmo que não
soubesse ainda exatamente de que localidade irromperia o êxtase. O meu
filho me beijava fundo mas tranqüilo. As línguas nossas tocavam-se
discretas, às vezes flutuavam pelo céu da boca. [...] Quem estava ali em cima
de minha carcaça não era mais o engenheiro, mas meu próprio filho que, por
fim, me visitava e gemia e parecia me entranhar. Adoraria se conseguisse me
emprenhar. Por enquanto seu pau rijo queria entrar em mim com boas
estocadas. Abri as pernas e as enlacei em sua região lombar. [...] Seu tônus
juvenil dava a impressão de um guerreiro -, claro, para meu prejuízo. Ele me
machucava feio. Tinha a impressão de que o seu cacete não tinha na
minha fenda aquosa. [...] De onde eu tiraria a força para o restante de uma
epopéia tão depravada quanto aquela? Meu filho me tolhia como eu nunca
consegui tolhê-lo em sua infância. Esmagava-me com seu gogó entrando em
minha boca. Adolescente, enfim, com pouca experiência, se é que havia
alguma. [...] minha pélvis acolhia francamente o cacete monumental de
minha própria descendência. Inigualável, eu diria (NOLL, 2008, p.110; 146-
148).
76
Esse longo mas contundente excerto ilustra como o romance explora a metonímia
como recurso para estetização do desejo, que, sabemos, é sempre da ordem do devir, não
cumulativo, irrealizável. Assim, a narrativa vai como que rizomaticamente se espiralando até
culminar no limite da ideação desse desejo:a experiência da morte, que, ironicamente, em
Acenos e afagos não é o fim do desejo, mas, como nas teias de Sherazade, condição de sua
permanência, como podemos depreender dos últimos quadros narrativos:
Eu não precisava ter medo. Que abrisse então a boca e os deixasse voar a céu
aberto. Chovia. Dava para sentir a terra se impregnando de umidade, muito
lentamente...Começava a estação das chuvas? Mas as chuvas não vinham
para me banhar. Então, de um golpe, me coagulei. E antes que eu não
pudesse mais formular, percebi que agora, enfim..., eu começaria a viver...
A segunda dimensão da imagem paterna colocada sub judice, e que propomos
“teológica”, é expressa na relação agônica do narrador com a ideia de Deus, como se
depreende do encontro marcadamente homoerótico entre o narrador e um colega de
seminário, que lhe narra sua infância:
Agora, a pele seria a de um colega de seminário que não me dava a mínima.
Ou dava? [...] Quando ele falava, como agora, eu sentia a minha boca
salivar, se inundar de saliva, a ponto de um pouquinho do cálido líquido
espumoso transbordar pelos cantos dos meus bios feito convulsão. Dessa
vez o seminarista contava de sua infância em Tapes. Da vida no campo com
as ovelhas, de seu romântico pastoreio em tantas invernadas. [...] Confessava
preferir fazer os deveres da escola junto às ovelhas. Tocava flauta doce em
meio aos bichos, às vezes com uma capa de grossa pra se proteger do
Minuano (NOLL, 2008, p. 14).
O tom bucólico da narrativa bem pode remeter ao pastoreio ancestral, numa espécie de
teopoética bíblica da figura dos jovens pastores, metonímia, portanto, de um discurso
teológico que o narrador reverbera e desconstrói, e que é subsumido pelo desejo homoerótico,
fantasista e sublimatório, quando direcionado ao filho adolescente e aos garotos de programa
com quem mantém relações fugazes:
77
Ia contando e eu admirando seu peito apenas entrevisto entre as águas do
casaco de pijama. Ia contando e eu sentindo meu pau se intumescer por
baixo de tudo. Ele ia contando sempre, e eu me distanciando para o
esconderijo da noite, entre mim e mim próprio, tendo as trevas como a
matéria envolvente ao meu pobrinho gozo (NOLL, 2008, p. 14).
Novamente, as narrativas que se encadeiam centralizam a poética do corpo em múltiplas
direções e sentidos, à medida que o corpo vai sendo colocado como letra poética, e, como
poiésis, lugar de criação:
A partir dali, abriria a boca com repugnância para receber a comunhão.
Mastigaria aquela casquinha anêmica triturando todas as crenças d’além
corpo. Se a hóstia sangrasse me fecharia no banheiro. Cuspiria no vaso parte
da hemorragia. Viriam coágulos até (NOLL, 2008, p. 39).
As possibilidades de ser e de transcender, quebrando dicotomias entre o sagrado e o
profano, expondo o corpo de deus, “o verbo que se fez carne” às contingências e ignomínias
dessa mesma carne:
Eu queria ser Deus, isso estava claro, e desconfiava de que, para seguir a
carreira divina, seria preciso uma imaginação teológica com outra face.
Como por exemplo sair do seminário, do armário, me entregar ao roubo, ao
crime, às ofensas carnais, ao vício e daí não mais retornar. [...] Quando
intrépido abro a camisa do estranho, ato contínuo começo a dar vazão às
varias constelações de carícias. A mão nos botões não é um gesto menos
nobre do que o da mão sobre a Bíblia. Ambas tocam num fetiche, seja o
homem, seja a Bíblia, para dar início aos trabalhos de realizar nossa fome
infinita (NOLL, 2008, p. 15-16; 39).
O narrador acrescenta um tom epifânico a partir do qual decreta a falência da imago de
Deus, por extensão, do pai, do falo, do discurso, portanto. Potencial criativo, de embate e
estranhamento, de novas variáveis e chancelas sobre a experiência de si:
Fui para o quarto sentindo meu coração bater calado: independente do que
fizesse da vida, a máquina dentro de mim não falharia antes do tempo. Foi
pensando nisso, por aquele corredor gélido, que chegue a meu quarto sem
78
mais acreditar em Deus. [...] E, enfim, eu era ateu. Não fazia mais parte de
um plano cósmico regido por um spota. [...] Ao fechar a porta do quarto
faltou luz. Tomei um copo d´água no escuro. E depois sorri. Esse sorriso eu
destilava das vísceras e dedicava ao zero a partir do qual minha vida vingara
e florescera (NOLL, 2008, p. 15).
Nesse momento da narrativa, a ambientação assume contornos neobarrocos, contrastando, no
mais das vezes, os jogos de claro-escuro, enfatizando o lúgubre, a escuridão, o claustrofóbico,
realçando o gesto epifânico que parece delinear-se. Nele, atentamos pelos aspectos simbólicos
que inscrevem este gesto na ordem do “claro-enigma”, em diálogo com o trágico edipiano,
que tem na cegueira compulsória de Tirésias, a condição única de interpretar as insígnias do
destino e sua hybris.
Nessa condição da personagem, o “João Imaculado” também não é forçoso reconhecer
aquele aceno de Lamartine, sobre a tragicidade do desejo:
Borné dans sas nature, infini dans
ses voeux – L’homme est un dieu
tombé qui se souvient des cieux.
50
Esse desejo também surge no episódio do encontro do narrador com um garoto que entoa uma
canção religiosa, no vilarejo de Nova Amizade, por onde passa durante uma das fugas:
A criança animava seus passos cantarolando algum hino evangélico ou coisa
assim. Falava de Cristo sobre as águas. Quando criança sentia uma atração
maior por essa cena. Era um verdadeiro espetáculo circense. Ficava
imaginando que sensação estonteante viria de um trajeto na superfície das
águas. Eu também queria, pensava olhando para a gravura antes de dormir.
Por que não coube a mim ser Deus? (NOLL, 2008, p. 192).
50
“Curta por natureza, extensa em votos
É dos mortaes a condição terrena.
É numen desthronado o homem no mundo,
Qu’inda do Ceo mantêm n’alma a memória”.
LAMARTINE, A. Meditação de D’Alphonse de Lamartine.In: Obras poéticas de D. Leonor D’Almeida
Portugal Lorena e Lencastre, marqueza d’Alorna, Condessa d”Assumar e D’Oeyhausen, conhecida entre os
poetas portugueses pelo nome de Alcipe. Tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844. Disponível em :
http://purl.pt/172/1/l-6609-v/l-6609-v_item1/P517.html. Acesso em 31 jan. 2010.
79
Assim, o romance, ao reivindicar o espraiamento do valor simbólico de um corpo que,
de significante unitário regido pela ordem patriarcal, falocêntrica assume-se “sintoma”
plasmado pela cultura, ironiza e revela a constante permuta entre ordens e a desordens
valeryanas, à luz de uma resistência a modelos de subjetividades e identidade. Porque inscrita
na ordem do devir, do desejo, seu aspecto queer, no mais das vezes, assenta-se, pois, nessa
linha de força criadora do erotismo, contra a falência da experiência de um eu tencionado,
obrado entre a recorrência a modelos identitários carcomidos e a busca, nômade,
desterritorializada, de corpos que importam”. Uma aprendência sobre as dissemetrias que
atravessam o demasiado humano em sua maior (in) glória: uma capacidade de criação em
devir:
Eu estava cada dia mais demente. Entre o meu mundo de fora e o de dentro
surgia aos poucos uma dolorosa rarefação. Precisa, no entanto, me manter
nesse centro hoje diluído, indefinido, misturado, para não me bandear
definitivamente ou para o fora, ou para o dentro. [...]. Aquilo que se
extinguia em mim era tudo. Agora eu mergulhava em certas alvuras,
acompanhando alguns cardumes azulados que eu conhecia de vista, não
lembrava de onde. Esses cardumes, exalando um aroma desmaiado, surgiam
muito próximos de mim. Certas nuances da vista perduram no coma. [...] O
devaneio colorido, ou nem tanto, só cessaria quando aparecesse a lua. [...] Eu
era, sim, o meu próprio exemplo naquela marcha cadenciada em direção ao
pó (NOLL, 2008, p. 169; 201, 202).
O corpo e sua narrativa surgem como possibilidade, talvez a única, de gozo entre o eu
e o mundo, ainda que ambos em derisão. A “matéria vertente” em Acenos e afagos, - o corpo
queer, insubmisso, é também degenerativo, quase não referencial, na medida em que se
apresenta em um movimento esquizofrênico, alçado no encontro do sujeito com a linguagem.
Uma das questões mais incisivas para o queer é a defesa do corpo como signo de
enfrentamento, de investimento criativo, lugar ficcional por excelência, e, no registro da
experiência, da errância, das corporalidades e subjetividades, ele imprime aquele risco com
estilete, de que fala Bosi ao comentar as obras de Noll (1994, p. 436), capaz de deslocar
estéticas do abjeto ao sublime -, instituindo-o figura, núcleo irradiador de significados, de
arquétipos. Corpo como lugar solene do desejo criativo, que inventa modos de ser, cuidados-
de-si, estéticas-de-existência, saber-gozar-sofrer, em vez de próteses identitárias, como
80
significantes recalcados. O corpo, enfim, não apenas como “dado sensório para garantir um
mínimo de certeza material para o indivíduo”, como apostou Farinaccio (2004), ao interpretar
A fúria do corpo, ainda que com acuidade. Acenos e afagos não se configura um dejà-lu
nolliano, pois que, no limite, para retomarmos um pensamento foucaultiano, o sexo não
aparece como fatalismo, mas como ato criativo, diríamos, como poiésis.
Seu caráter queer está em colocar o corpo no centro da narrativa e na aposta do sujeito
reformular sua própria linguagem, densa, agônica o que poderia ser levado em conta ao se
considerar que o romance todo apresenta um único parágrafo. Há uma inflação do comunicar,
que não dá conta do devir, preferindo, pois, o indeterminado, a abertura, a suspeição.
Acenos e afagos, guarda na (im) precisão semântica no título, uma economia do
próprio devir, do próprio movimento que intenta. Acenos significa apelo, deriva do latim,
51
nutus/nuere que significa movimento, queda, peso, assentimento; e, no sentido figurativo,
desejo, arbítrio, sinal, vontade, ordem, tendência natural. Sua raiz etimológica está no
sânscrito, naiti, como sentido de ele se volta”. Alguns dicionários de língua portuguesa
52
trazem o verbete acenar significando apelo, gesto de cabeça, de mãos, de olhos, ameaçar,
instigar, convidar, apelar, tentar, provocar; sinal, senha, meneio, negaço, aprovar, anuir,
açular e, um dos sentidos mais interessantes: seduzir.
Em relação a afago, sua origem também é latina, e carrega os sentidos de carícia,
meiguice, agasalho, desvelo.
53
Essa trajetória etimológica em busca de um sentido inaugural para o título, levou-nos a
um universo semântico que reforça bem certos tons do romance. Chaves (1991), em seu
Tratado de direito civil: direito da família, aponta que, no direito, desde a Roma antiga, uma
criança adotada passava a ser considerada descendente da família antes ou depois da morte do
pater famílias (pai de família). O direito romano, nascido em contexto de práticas sacerdotais,
usava muito a mão nos ritos, dando a ideia de que se punha a mão sobre algo. Na adoção,
semelhante à benção, a criança recebia um afago. O gesto dava-se como elemento iniciático
nos segredos do culto, por meio do qual o filho adotivo renunciava ao culto de sua linhagem.
51
LEITE, J. F. M.; JORDÃO, A. J. N. Dicionário latino-vernáculo: etimologia, literatura, história, mitologia,
geografia. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Lux, 1956.
52
HOUAISS, A. (Org.). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Objetiva,
2004.; FERREIRA, A. B. de H. Dicionário da Língua Portuguesa. 5. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.; LAROUSSE Cultural. Dicionário da ngua Portuguesa. São Paulo: Nova Cultural, 1992.;
FERNANDES, F. Dicionário de sinônimos e antônimos da Língua Portuguesa. 29. ed. rev. e ampl. Rio de
Janeiro: Globo, 1989.
53
Idem, ibidem.
81
O título, portanto, abarca, melhor diríamos, espraia “com o mesmo peso de uma
borboleta no dorso do nada” (NOLL, 2008, p. 90), o valor da transitoriedade e do deslimite, já
evocado em outros títulos como “No dorso das horas”, “Frágeis afetos”, “Cor de nada”, “Na
divisa”, Limiar” e Na correnteza”, “Cenas imprecisas”, “Bodas de Narciso”, para citar os
contos; além de vagueza de A céu aberto e da instantaneidade de Mínimos, múltiplos, comuns,
cuja capa, exercício semiótico dessa transitoriedade, apresenta a imagem de uma mariposa
diante de uma luminária tímida.
54
Também no trabalho de designer despendido à capa de Aceno e afagos a ideia do
efêmero é expressa pela imagem de um corpo masculino nu apresentado em poses capturadas
em movimentos coreográficos livres, contra um fundo branco, indicando uma fluência que
apresenta demarcações ou limites, sejam espaciais ou temporais. Segmentada, a imagem
indica dois momentos de corpo nômade, cujo torso, no ritmo que promove o relaxamento, na
abertura dos braços, que vai do centro e se expande para o devir, figura uma autorrealização,
metáfora de uma perda de si. Já o ritmo da contração, pode ser lido como um dobrar sobre si,
um retraimento, posição fetal que indica um retorno entrópico, recalque ou anulação. Em
tudo, a ideia de corporeidade fundamentada num devir, num ritmo que também é criação,
poiésis corporal, apresentando, portanto o movimento como poética, como experiência de
dizer o indizível sobre si, mas de capaz de “comunicar antes de ser compreendida”, como
escreveu T. S. Eliot sobre a poesia (FRIEDRICH, 1978).
Na imagem do corpo, em dois movimentos díspares, um outro sentido flutua: e
instaura uma obliquidade: a segmentação do corpo na altura em que se localiza sua identidade
sexual biológica, que se imagina masculina, bem pode remeter à performatividade de gênero,
portanto, a um corpo queer. Corpo em constante transformação, como agenciamento estético
e político que entra, em Acenos e afagos, em consonância com o incognoscível, afinal, “os
mistérios não gostam de ser nomeados” (NOLL, 2008, p. 29).
54
Projetada por Vera Rosenthal em parceira com a Getty Image e a Editora W11, a capa traz uma foto intitulada
“Mariposa Cósmica” – estabelecendo um diálogo simbólico com os enredos da obra.
82
Foto: Capa do romance Acenos e afagos, publicado pela Editora Record.
83
3.3 Metamorfose e Homomemória
Vimos reiterando a ideia de um devir e um movimento constantes no romance Acenos
e afagos, considerando o corpo como figura agenciadora desse processo metafórico, a partir
da metamorfose por que passa o narrador-personagem. Como vimos no enredo, ele morre,
passa por uma “ressurreição”, e, após a fuga com o engenheiro, com quem passa a dividir uma
rotina “no gozo dessa abstração feminina” (NOLL, 2008, p. 93), sofre uma metamorfose
corporal, de gênero, de identidade, de desejo, reforçando, pois, o que reivindicamos como
característica queer no romance, qual seja, uma aposta nas possibilidades subversivas desses
“corpos que importam”, na inviabilidade de modelos identitários preestabelecidos, em uma
poética corporal, enfim, que incide sobre os efeitos estéticos da obra.
Um desses expedientes estéticos é a articulação do registro de uma memória muito
particular, que propomos denominar homomemória, agenciada, como se verá, a partir das
percepções corpóreas da personagem em contextos específicos nos quais afloram os desejos
homoafetivos. Acenos e afagos figura-se também como marco na literatura de Noll, no que
tange ao tratamento dados às reminiscências, que, no mais das vezes, estão subsumidas pela
rarefação e desreferencialidade, como apontam alguns trabalhos que versam sobre a relação
entre memória e experiência em João Gilberto Noll. Idelber Avelar,
55
ancorado no ponto
pacífico em torno da rasura da experiência nas narrativas da pós-modernidade, afirma que
Noll “toma, então, essa sequência banal de acontecimentos e a converte numa reflexão sobre a
crise da narrabilidade da experiência”.
À guisa de uma provocação em torno dessa temática tão complexa sobre a experiência
em Noll, a qual, como também afirma Avelar, “nunca se converte em um saber narrável”
56
,
aventamos que tais proposições são inequívocas e resultam de um exercício de acuidade
crítica, acerca dos romances anteriores a Acenos e afagos. Obras que, no mais das vezes, a
experiência, no sentido benjaminiano a Erfahrung não reinvindicam a sabedoria ou a
edificação pelo produto da memória.
55
AVELAR, I. João Gilberto Noll e o fim da viagem. Disponível em: www.joaogilbertonoll.com.br/estudos.html.
Acesso em 10 dez. 2009.
56
Idem, ibidem.
84
Para propormos no romance em questão, que a memória se constitui um agenciamento
especial de registro de percepções, temos de considerar que Acenos e afagos, ainda que reitere
a predileção de Noll por um narrador autodiegético, como em obras anteriores, o ponto de
vista assume contornos mais complexos, a julgar pela escolha de um defunto-narrador, como
nos moldes e prerrogativas do machadiano. Um narrador capaz de retratar as percepções de
um corpo levado ao limite de sua condição categorizável, de determinar ontológica, estética e
politicamente seu morfismo.
Dessa forma, Acenos e afagos é um romance sobre a memória corporal. Embora a
literatura de Noll seja tributária às imagens fantasmáticas do desejo e ao exercício de
radicalização da libido, em Acenos e afagos temos o corpo como roteiro dos imperativos de
gozo levados a uma dimensão nunca narrada nos outros romances. Neles, o tom agônico do
erotismo/homoerotismo compulsórios figuram-se em um presente perpétuo; ao passo que em
Acenos e afagos constatamos um erotismo reverberado ao longo da narrativa. Essa
reverberação vai constituindo uma aprendência sobre múltiplos aspectos, dentre os quais,
poderíamos destacar, ainda em uma perspectiva queer, a quebra de alguma noções acerca da
orientação sexual, sua dessubstancialização.
A despeito da postura que vimos assumindo, em que pese a não vinculação do
romance de Noll a uma “literatura gay”, acreditamos que o conceito de homomemória possa
ser producente, considerando-se que o homoerotismo se expressa como uma das constituintes
que orientam a narrativa na experiência da transformação.
Como se verá adiante, em parte dos exemplos elencados, é sintomático que as imagens
reverberadas apresentem tons e matizes diferentes dessa homoafetividade. Mesmo nos
quadros narrativos em que as relações eróticas se estabelecem em moldes não-homoeróticos,
as cenas invocadas relacionam-se diametralmente por recursos da própria narrativa
(prolepses, analepses) – com outras imagens que recuperam o homoerotismo.
Essa memória de um corpo que não se reconhece inteligível e com isso propomos
que o objeto de desejo em Acenos e afagos não é fixo ou coerente -, também rasura as
relações miméticas entre gênero e sexo, na concepção de Butler (2003). Essa inteligibilidade,
por seu turno, é condicionada um processo de transfiguração que apostamos na metáfora da
metamorfose.
Antes de precisarmos os pontos da narrativa em que a metamorfose se apresenta, e os
sentidos que dela se depreendem, convém atentar para uma certa recorrência dessa temática
85
na literatura de Noll, pois ela entra na dimensão ficcional de outras obras, como, por exemplo,
em A céu aberto e Mínimos múltiplos comuns.
Em A céu aberto, o narrador-protagonista tem um irmão cujo corpo se transforma em
mulher com quem se casa, e a narrativa imprecisa e insólita caminha para uma um clima de
incesto e androgenia:
Quando voltei o meu irmão estava diante do fogão aguardando a subida do
leite que fervia. Ele vestia uma camisola azulada que lhe vinha até os pés
descalços. Transparente a camisola, e do outro lado do tecido fino havia o
corpo de uma mulher. Precisarei romper com esse negócio de pensar nessa
figura aí como meu irmão, falei dentro de mim. [...] Dentro daquele corpo de
mulher deveria existir a lembrança do que ele fora de homem, e boliná-lo
como eu fazia naquele instante deixava em mim a agradável sensação de
estar tentando seduzir a minha própria casa, onde eu encontraria o meu
irmão quem sabe em outro momento. Não, o meu irmão não morrera naquele
corpo de mulher, ele permanecia dentro esperando a sua vez de voltar, e
eu beijava um pedaço de seio à mostra e desamarrei a camisola e disse que
queria um filho dela [...] (NOLL, 1996, p. 76-77).
Em Mínimos, múltiplos, comuns, o instante ficcional denominado “Fusão”, inserido no
subcapítulo “Os mimetizados”, do capítulo “Fusões e Metamorfoses”, que, por sua vez,
compõe um conjunto maior chamado “Gênese”, caracteriza-se por uma narrativa alegórica
sobre a Criação, ou como prefaciou Vagner Careli (2003, p. 22), “uma história intuída do
universo”, em a metamorfose remete a um trabalho de criação, em um tempo imemorial:
Ele estava ali, querendo reconstituir o dia em que o jato irrompera do solo,
molhando seus pés com um conteúdo escuro que não era da cor do petróleo
que vira jorrar no filme “Assim caminha a Humanidade”, ainda criança,
sentada na ponta da cadeira, em quase exultação. Ele aspirava a rever aquela
imagem quida, à primeira vista avermelhada, movida por uma força que
vinha das vísceras do mundo e que lhe encharcara não só os pés, mas mais
do corpo todo escorria a súbita cor de tijolo. Lama sem o poder de o
enriquecer ou agigantar. Ele estava ali, querendo reavivar a memória desse
fato ou, mais que isso, o próprio fato, sim!, pois que este ressurgia agora
como um verdadeiro touro. Cobria-o inteiro com o líquido que dessa vez
parecia dissolvê-lo no barro da fronteira (NOLL, 2003, p. 59).
A esses dois textos, Acenos e afagos vem corroborar certo diálogo de Noll com toda uma
tradição de escritores e escritoras que fez da metamorfose um arquétipo literário. Como
afirmamos no tópico Tal João, qual romance?, o tema da metamorfose assume conotações
86
muito particulares nas obras em que aparece como elemento delineador de significados. Não
caberia aqui uma análise detalhada dos textos citados como significativos da reiteração desse
arquétipo, mas torna-se imprescindível, por outro lado, delimitarmos algumas questões em
torno do tema e sua recorrência na literatura contemporânea para uma interpretação da
releitura da metamorfose na prosa de ficção de João Gilberto Noll, em, em particular, em
Acenos e afagos.
A definição dicionarizada de metamorfose
57
aponta para "mudança de forma", vem do
verbo µεταµορφω, metamórphosis, "eu transformo", na etimologia grega e marca o
sobrenatural, o maravilhoso e o fantástico, figurando-se um arquétipo literário de recorrência
tal que alguns críticos apostam em uma “mitologização do romance do século XX”
(MIELIETINSKI, 1987, p. 351), como extensão de toda uma antropologia do imaginário em
torno do tema.
Esse imaginário figura a metamorfose como metáfora ou alegoria de temas que variam
entre obras, contextos e interpretações. Em Acenos e afagos, apostamos em um impulso vital
que em termos gerais rege todo processo metamórfico: a ideia de uma transformação
dinâmica que altera uma forma original.
Em Figurativização e metamorfose: o mito de Narciso (1995), Assis Silva aponta que
a metamorfose apresenta uma “figuratividade plena”, referindo-se a seu conteúdo imediato, na
superfície do texto o que equivaleria à imagem do objeto/ser metamorfoseados; e uma
“figuratividade profunda”, cujo sentido se localiza em “um vel mítico do discurso, cujas
estruturas são comparáveis às que regem os discursos poéticos e oníricos” (p. 56). Esse
conceito pode ser muito producente no olhar que vimos lançando sobre a metamorfose em
Acenos e afagos, uma vez que ela pode ser lida como um elemento de quebras e rupturas de
dimensões diferentes no romance.
Na dimensão da linguagem, por exemplo, a dinâmica da narrativa, sua estrutura
sintática fragmentada, as imagens justapostas das reminiscências, provocando um
adensamento da própria linguagem, dão o tônus lírico do romance, que, radical em muitos
momentos em Acenos e afagos, e recorrente em outros romances do autor, bem pode ser
considerado uma passagem do prosaico ao poético, um rompimento, portanto, de limites
rígidos entre os gêneros:
57
NEVES, M. H. de M.; DEZOTTI, M. C. C.; MALHADAS, D. Dicionário Grego-Português. 1. ed. São Paulo:
Ateliê Editorial, 2007. 5. v.
87
Escuta-se um rumor dos que gozam e recuperam sem parar a força entre um
pau trevoso e outro, uma boca delirante e outra, uma cápsula carnal e outra.
Tudo mais me parecia frio. Frio eu me sentia, e as idéias me escorriam
apenas em esboço -, eu as acomodava sobre o travesseiro e adormecia com
elas. [...] Entre o meu mundo de fora e o de dentro surgia aos poucos uma
dolorosa rarefação. Precisava, no entanto, me manter nesse centro hoje
diluído, indefinido, impreciso, misturado, para não me bandear
definitivamente ou para o fora, ou para o dentro (NOLL 2008, p. 72,
75).
Também aqui a homomemória figura um trabalho de e sobre a linguagem, uma vez
que, como afirma o narrador, “eu renascia a cada surto da libido” (NOLL, 1975), o tom das
reverberações é tocado pela imagética do corpo e pela homoafetividade. A linguagem aparece
como um exercício de intensidade:
Lembrei que ele tinha uma abelha tatuada no prepúcio. [...] A nossa amizade
acabava ficando restrita a alguns repertórios inofensivos. O engenheiro
deveria ver em mim tão-só uma ameaça incestuosa, continuamente recusada,
com vistas a preservar nosso passado comum e remoto, anterior à servidão
da carne. Que um avivasse no outro certo mormaço por onde vagávamos da
infância para a adolescência, escutando o vendedor junto à sua carrocinha de
sorvete tocar uma corneta para atrair a criançada. [...] Talvez o engenheiro
persista me vendo nesse prisma (NOLL, 2008, p. 81).
Embora a liricidade permeie todo o romance, tocando os primeiros momentos do
texto “no avesso” dos laivos de uma memória narrada tal como a experiência de uma
linguagem “luta ardendo em vácuo”, ela é intensificada nas últimas páginas, nas quais, ao
narrar a própria desintegração da morte, sua intermitência de sentidos e a percepção corporal,
a linguagem aparece como “devaneio colorido”[...] naquela marcha cadenciada em direção ao
pó”, como expressa o narrador:
Via, numa lassidão absurda, as bolhas a que assistimos, desde sempre,
quando de olhos cerrado. De olhos mais cerrados ainda, eu as via agora
inseridas nos matizes dramáticos do crepúsculo, prontos para desmaiar.
Tantas pálpebras me cobriam...Elas filtravam os semitons candentes da hora.
[...]. Um laivo lunar umedecia os lábios, sim. O sabor parecia irromper da
essência do branco, como todo o resto. [...] A tensão entre um certo sorriso
de superfície e o breu submerso no organismo parecia por momentos relaxar.
[...] O meu céu da boca dava a idéia agora de uma abóbada, em cujo bojo
88
pássaros errantes circulavam. Em vôos lentos, talvez solenes (NOLL, 2008,
p. 204-206).
Homomemória e metamorfose, portanto, ligadas a uma experiência de transformação
da linguagem, que, assim como o corpo em seu trágico retorno ao inorgânico, vai como que
sofrendo uma rarefação, que, no limite, se torna residual, a linguagem é marcada pela
suspeição, por uma sensação de inscrição no infinito sem conseguir nomeá-lo: “Então, de um
golpe, me coagulei. E antes que eu não pudesse mais formular, percebi que agora, enfim..., eu
começaria a viver...” (NOLL, 2008, p. 206). A rememoração que norteia a narrativa pode ser
lida como necessária para que, no limite mesmo da vida e da morte, o personagem possa
“viver”, no sentido de experienciar e – por que não – narrar.
Essa impossibilidade de nomear, que se instaura no limite da linguagem conceitual é
também o que de mais incisivo se projeta sobre o corpo metamorfoseado, quando as fronteiras
de representação entre os gêneros masculino e feminino são atravessadas pelo insólito, pelo
estranho. No corpo queer, lugar de inscrição discursiva, ética e estética, a metamorfose
irrompe como condição de reinvenção, de mimese criativa.
Em Acenos e afagos, apostamos que essa transformação corporal, que redunda na
“figuratividade plena”, para lembrar Assis Silva, ou seja, na imagem resultante da
metamorfose da personagem, seja antecedida por uma ruptura, por uma transformação
primeiramente discursiva da personagem, que, alhures, relacionamos a um momento
“epifânico”, que convém recuperar:
Ao fechar a porta do quarto faltou luz. Tomei um copo d’água no escuro. E
depois sorri. Esse sorriso eu destilava das vísceras e dedicava ao zero a partir
do qual minha vida vingaria e florescera (NOLL, 2008, p. 15).
De fato, embora os primeiros enleios homoafetivos narrados já expressem que “a
luxúria adulta estava então lançada”, justificando a “impossibilidade de intenção” (p. 7), um
pacto de censura no avesso” (p. 7) é feito entre ele e o amigo, para que “as verdadeiras
intenções não fossem nem sequer sugeridas” (p. 7). Depreende-se, pois, como o narrador vai
agenciando, via fluxo de consciência, essa censura que “dramatizava o sentimento meio fosco
entre o gozo e sua imediata negação” (p.8) em relação a uma subjetividade forjada no
interdito:
89
Nós a enterraríamos um pouco em cada um e, quando estivéssemos
crescidos, a imagem da luta no chão frio já estaria esfarelada, sem que
soubéssemos reaver os fragmentos. E nos fizemos de túmulo, para enterrar
de vez o brinquedo que cada um criara no corpo do colega (NOLL, 2008, p.
10, grifos nossos).
Sintomática a presença de duas palavras que guardam, nesse contexto confessional,
uma relação antitética: brinquedo e túmulo, como metonímias para vida e morte, eros e
tanatos, liberdade e cerceamento, enfim, que fluem na transformação da linguagem,
sim, porque o caso de Noll é o de uma Palavra única, inicial, que tem
origem, como em outros grandes mestres, naquela zona de sombra entre o
inconsciente e o consciente. Palavra que dificilmente pode ser explicada por
outro código que não ela mesma (SANT’ANNA, 2008).
A partir dessa linguagem inaugural, o narrador vê-se diante de uma tensão que se
descortina no confronto com todo um saber sobre o corpo, o desejo, e a identidade, no qual
uma mudança torna-se incontornável: “a partir daquela tarde eu queria escrever uma outra
história” (p. 17). História, na verdade, por vezes reiterada pela imagem do submarino, como
nessa confissão em que a homomemória, por mais uma vez, faz-se em um jogo de
reverberações:
Eu sentia a memória recentíssima como se raspada até seu fundo mais fundo,
fundo mais fundo onde se percebia com dificuldade a presença evanescente
do submarino. Mas a bunda que comi agora lembro, sim: tinha a alvura da
pele de um alemão. Eu estaria na ocasião desmaiado por algum conteúdo
clandestino [...]. Ah, as banais inconstâncias do percurso imaginário lúbrico.
O toque primeiro de tesão viria da presença fulminante desse sedutor em
paisagem aleatória. Sim, um contato presto, sem mediação de nada nem
ninguém. Sem mediação da linguagem (NOLL, 2008, p. 38, 42).
Dessa forma, a metamorfose vai delineando uma problematização dos limites da
representação identitária do masculino e do feminino, promovendo linhas de fuga para as
noções de sujeitos sexuais estáveis a partir do corpo. A expressão desse desejo de
transfiguração espraia-se nos exercícios de dessublimização dessa “epopéia libidinal”, em que
o hilário e o grotesco ilustram as relações zoofílicas que o narrador mantém com uma cabra:
“Para preservar seu amor seria capaz de virar bicho, de renunciar à feição humana em troca de
sua solicitude para com o meu desejo” (p. 31).
90
Assim, os primeiros ecos de uma metamorfose que se faz materializar no desejo pelo
engenheiro vão antecipando as quebras identitárias e sociais no narrador, como nas
conjecturas de “um autêntico imaginador de lavras eróticas” (p. 66) durante o tempo em que
ficaram separados:
Se o engenheiro viesse me procurar nessa fase dramática, eu deixaria tudo
para segui-lo, mesmo com ele assim, enfermo, praticamente sem autonomia
física. Eu seria seu enfermeiro, seu único par. Deixaria alguns bens para meu
filho e mulher. Ele poderia me querer como homem, como mulher, os dois
ao mesmo tempo. [...] Minha esposa ficou grávida de novo. Perdeu a criança.
Ela quase foi junto com o feto de oito meses. E não posso deixar de sentir
certo alívio, embora também desejasse esse filho (NOLL, 2008, p. 56).
Nas divagações em torno da ressurreição que pode muito bem ser lida como
transfiguração de um corpo ignominioso para em um corpo etéreo, o narrador alça a
metamorfose ao nível do maravilhoso:
Você me ressuscitou!, bradei como se fosse um evangélico em surto de
louvores. E me desceu uma sensação ridícula por estar ali diante de um
homem que literalmente instituía o impossível. Veio-me a idéia de que o ato
de me ressuscitar visava apenas à minha participação na fabulosa hecatombe
final. Ou seja, um gesto megageneroso do engenheiro, de fazer com que eu
também assistisse ao cósmico espetáculo de destruição infinita. Seria essa
ameça monumental a fonte de todo o mal? Participar desse dia junto do
engenheiro me deixaria a salvo do apocalipse? Vagaríamos então nos braços
das quimeras? (NOLL, 2008, p. 83.).
Esse processo de transformação e questionamentos de estatutos é simbolizado também
em um jogo intertextual com o discurso religioso, assumido pelo narrador:
Depois de minha temporada no hospital, sentia-me às vezes um bebê, à
espera da urdidura secreta que me distinguiria entre os demais. Ter sido
ressuscitado já era uma distinção e tanto. Eu me revelava um Lázaro, que
ninguém deveria saber. A vida que gritava agora iniciava a partir da
ressurreição. Portanto, não devia nada a ninguém que por mim passara
antes de eu falecer. O engenheiro chegou feito aparição no poço do túmulo e
fez o que Deus nunca fizera por mim (NOLL, 2008, 88).
91
O discurso do interdito vai gradativamente abrindo-se para uma nova cartografia
identitária, performática, a partir da qual o narrador aventa a possibilidade de quebra dos
papéis sociais, em direção a uma identidade de gênero mais fluida:
Bastaria-me o simples cheiro de seu denso suor em minha rotina. Meu filho
provavelmente assumiria os magros negócios da família, a minha mulher
estaria para casar com um homem mais jovem que eu, meu filho jogaria
peladas com o padrasto. Mas eu estava ali, pronto para servir de mulher para
o engenheiro, se o destino assim me ordenasse. [...] E para o resto dos meus
dias, continuaria no gozo dessa abstração feminina que começava a tomar
conta de mim (NOLL, 2008, p. 90, 93).
O caráter camp com o qual se reveste a relação entre o narrador e o engenheiro,
promove a insolvência das fronteiras dos papéis sexuais, mesmo dentro de uma dinâmica a
princípio homoeroticamente orientada pelo binarismo passivo/ativo:
Uma culpa vaga me fazia caminhar a esmo dentro de casa, sem conseguir
sossegar. Mas quem eu era afinal? Um homem que funcionaria como esposa
dentro de casa. Um cara fodão à noite, varando o engenheiro até o seu
caroço. [...] Aliás, eu gerenciaria outras retaguardas dele, claro. O
engenheiro tinha uma mulher que à noite lhe introduziria um cacete doído de
bom. Pois essa mulher era eu. [...] Eu, que havia pouco acreditava ter
morrido, estava agora ali naquela casa vivendo para o marido, como ainda
tantas outras mulheres. [...] Faria a imagem de um transviado que à casa viril
regressa, como um bom filho da espécie. Muitos me comparariam agora com
a mulher barbada. Dessa vez, no entanto, a mulher não foi acometida de
barba, mas se converteu a um homem integral, de cima até embaixo. E não
importava se eu enlouquecesse nessa transmutação ao reverso, transmutação
que faria de mim novamente o homem de quem eu vim (NOLL, 2008, p. 95,
96-97).
Também na androginia pode-se visualizar o camp como sentido do inatural que vai
forjando essa metamorfose na consciência do narrador:
Mesmo que conservasse inalterada essa incipiente forma feminina, caso ela
estacionasse, enfim, fixando-me no grau híbrido do percurso homem-mulher,
mesmo nessas condições jamais teria um acesso nítido às mulheres da
localidade. Talvez até voltasse a expor meus atributos masculinos
acintosamente -, se bem que aqui no Mato Grosso não saberia mais o que
fazer com eles. A minha virilidade – embora ainda um tanto expressiva
debaixo da roupa -, não teria mais como transparecer naturalmente. Eu tinha
92
me desgarrado da horda varonil que me dera uma mulher e um filho (NOLL,
2008, p. 97).
O processo de metamorfose vai operando, portanto, uma desterriorialização radical
dos papéis de gênero, e o camp, como estratégia de visibilidade, passa a integrar a própria
economia linguística, no nível mesmo textual, que demarca a oscilação das marcas
morfológicas de gênero:
Vivia, por enquanto, expatriado de meus papéis masculinos. [...] De fato, eu
não era mais a mesma pessoa. Encontrava-me a meio caminho entre o pai e
marido e a amante do engenheiro. [...] Ele se mantinha em contato com
esferas inabordáveis e eu deveria permanecer calado no meu canto, sem nada
questionar. [...] Ali, eu às vezes era mais mulher que muitas outras. De
repente poderia acordar me sentindo mais homem que nunca. No meio da
noite fui despertada por uma luz estranha batendo na sala. [...] Ele me olhou
e eu cumprimentei cheia de recato. [...] Serei sempre grato ao engenheiro.
Grato também pela autêntica mulherzinha que haveria de ser, seguindo o
marido com devoção e obediência. [...] Ao sair do campo da libido,
regressava ao tempo lento, dormindo ou acordada. [...] Botava a mão
fechada sobre o sexo, tapava-o para me imaginar mulher (NOLL, 2008, p.
97, 103, 104).
O abjeto, portanto, entra na definição de camp, na medida mesma em que, como
sinônimo de estranho, é elaborado esteticamente. Assim, as experiências resgatadas por uma
homomemória, são narradas por tons que oscilam entre “alguma instância aflitiva” e “preferia
estar ali, com o cu do menino na cara” (NOLL, 2008, p. 10, 11).
Nesses efeitos de linguagem e corporeidades, o narrador leva a termo o desejo de
duplicação identitária, arriscaríamos dizer pós-identitária, na tentativa de reconhecimento pelo
outro:
Nos dias posteriores corri por terras mais ou menos áridas, atrás da carne de
um matadouro que vendia partes do gado diretamente do abate. O rapaz
bigodudo de avental de couro trazia uma boa lasca de alcatra. Tinha jeito de
gaúcho, índio nascido na fronteira com a Argentina. Cabelo negro, bem liso.
Quero fazer para meu marido que viaja na segunda, falei imbuída desse
comentário a bem dizer sacro. O rapaz me olhava meio malicioso, sem que
pudesse depreender se me via como mulher ou homem. Nesses momentos de
dúvida popular, digamos, eu olhava para baixo como quem procurasse
alguma coisa perdida. Uma parte de mim gostava de ser vista como mulher,
de ganhar olhares de desejo que um homem pode empreender diante de
93
uma fêmea. Mas muito do meu desejo gostava mesmo era de ser cobiçado
por outro macho. [...] Eu era uma senhora quase sem atributos para o papel.
Caminhava de volta para casa pelos campos, cheia de recato, embora não
soubesse com quem mesmo eu parecia, se com uma mulher ou com um
homem (NOLL, 2008, p. 105-
106).
Como indício da precariedade dos sentidos que, a essa altura da narrativa, parece
coadunar a ideia de uma transgressão, o camp vai atravessando a constituição da alteridade
para, num jogo de gradações, encaminhar-se a uma desfiguração da anatomia e ao
travestismo:
Em certos instantes me mostrava tão feminina agora, que me apaixonava,
sim, pelo homem que fui. Em mim coabitavam os dois amantes. No entanto,
não alimentava anseios mórbidos por épocas finadas. Ao contrário, me
agarrava ao amor daquele homem que tinha me dado uma outra vida, a
melhor, talvez, aquela que produzia em mim um oceano de vozes para um só
coração. Ao caminhar me sentia uma mulher meio recuada como tantas do
interior, mulher que não olhava para homem algum, fazendo-se invisível
para todos os machos, com exceção do marido, claro. Às vezes sentia que
me brotavam seios e eu nem olhava para conferir. Eram sensações vagas,
fluidas. [...] Naqueles dias levava um leve casaco feminino nos ombros, sem
vesti-lo, e esse parco figurino também me ajudava a compor a mulher que
nem o próprio engenheiro me pedira para ser. Esse casaco eu tinha
encontrado no armário do quarto. Propriedade certamente de uma outra
fêmea, moradora anterior da casa. [...] Talvez à revelia dela própria, legava à
outra mulher, por meio do casaco, não uma carta, mas um sentido em
gestação, irrequieto, pouco explorável através de meros esclarecimentos
(NOLL, 2008, p. 106-107).
As sinuosidades que marcam a projeção da alteridade, aqui pensadas num limite de
desfiguração do sujeito, apontam como o narrador vai compondo e explorando outras formas
de perspectivação e exploração do eu, no impasse e na ambiguidade:
Eu era uma mulher? Não sei, simplesmente me adiantava para decifrar o
que por natureza se encolhia nas tramas grosseiras de um tecido barato. [...]
Mas de que valia a minha pretensa compreensão, se eu era uma mulher
sozinha na manhã, farejando a selva brasileira sem poder tocá-la ainda? [...]
Tudo me confundia, mas sei que essa confusão fazia parte do jogo, para que
em casa eu não me apegasse demais a nenhum papel. [...] Temia que minha
vida pudesse desandar. Ia me constituindo em mulher no conteúdo de um
homem. Aos poucos faria vingar a mulher até em minha superfície. Por
enquanto não me constituía numa coisa nem noutra [...]. Chega um momento
como agora, em que tanto faz estar aqui como lá, que é tudo a mesma
94
diluição. [...] Fiquei um pouco desacostumado com o mundo dos sentidos
(NOLL, 2008, p. 107, 108-109).
O processo metamórfico avança também na explicitação da paródia de gênero, e o
camp se intensifica pela evocação do abjeto, como na cena em que o narrador recebe a visita
de uma vizinha:
fora a minha vizinha mulata batia palmas de novo. Fui atender. [...] A
vizinha pergunta se tenho álcool para ela passar no seio. [...] Cida sentou na
tampa do vaso; eu, na borda da banheira. E comecei a passar um algodão
embebido em álcool nos bicos sobre pequenas, naturais fissuras. Pedia aos
santos para eu não entrar em excitação diante daquelas tetas intumescidas.
Quando ela gemia fininho, me sentia inteiro uma boca se aproximando da
transparência da fonte. Como seria possível uma mulher ficar excitada diante
dos seios de outra? E ainda por cima sem ser uma mulher qualquer e sim eu
aqui, com braguilha quase rasgando pelo volume indômito de um pau
pegando fogo...hein? [...] Ali naquele banheiro me sentia trêmulo, louco de
tesão sem poder oficiar o meu desejo. [...] E eu deveria naquela situação
responder pelo meu nexo feminino, afinal, eu era a dona que esperava o
marido vindo de não-sei-onde. Ser lésbica com os seios daquela mulher com
certeza não traria dividendos à minha discreta ação de esposa [...] e eu sigo
encarnando sua dama [...] Sei que verá ser eu uma mulher com pau e que
nada farei para que se transforme em vulva. Vejo que agora o garanhão
chupa o meu cacete, fazendo o papel de uma mulher famélica (NOLL, 2008,
p. 112,113,115, 117).
A dimensão queer da metamorfose reescreve esse corpo espectral e ao mesmo tempo
físico em um corpo fora-da-ordem, minando, portanto, a ideia de uma corporalidade como
exercício estanque de uma analítica da normalização. No limite, a (re) figuração anatômica
através da metáfora da metamorfose, aponta para um corpo queer que denota tanto uma
prática performática – o narrador-personagem expressa seus desejo homoeróticos em um
corpo marcadamente masculino -, quanto em reiterações de normas heterossexuais
polarizadas de gênero que incidem sobre os papéis de gênero ensaiados pelo narrador antes
e depois da metamorfose:
Toquei novamente no meu púbis e constatei o pior: parecia que eu perdera os
pontos cardeais da genitália. Em lugar deles verificava que onde eu
costumava encontrar meu pau e saco, percebia agora um terreno pantanoso
aqui, alagado ali, um campo sem terra firme ou saliências, sem vestígios do
que outrora compunha a minha zona mais erógena. [...] Abri as pernas como
uma mulher, cruzei os pés na área lombar dele, e comecei a estudar o que eu
realmente sentia com suas investidas. O engenheiro procurava perfurar e
95
logo mergulhar no meu âmago sempre resistente. Às vezes parecia o ter
mais pau de tão imerso em mim. Parecia até um embrião dentro de mim. Ao
mesmo tempo eu tinha a sensação de estar já formando um hímen a partir de
uma base genital ainda incipiente. Esse hímen duraria até o primeiro cacete
que me comesse (NOLL, 2008, p. 143).
Esse corpo queer (re) (des) figurado vai sendo reconhecido pelo personagem em sua
dimensão abjeta, marcada pelo dilaceramento entre a dor e o prazer na fantasia. O abjeto,
entretanto, reveste-se de investimentos da ordem do simbólico o personagem reitera
modelos identitários femininos próprios ao cânone heteropatriarcal, como quando narra as
primeiras sensações erógenas depois que a metamorfose começa a se materializar:
Era como tocar numa ferida que acaba de perder a proteção da casca. A
fricção inflamada faz limite com a dor. O que seria dor virava um limiar de
gozo, tão insustentável que até pode te induzir ao grito -, eu mesma gritei. E
me envergonhei. Ao atingir no entanto essa fronteira avançada do gozo
feminino, percebia que o transe era pouco. Naquele embate carnal, eu
fechava um ciclo e iniciava outro, o de passivo? Bye, bye para o meu pau?
Mas não me sentia ainda preparada para ser fêmea de vez. [...] Acabar assim,
tudo bem, mas com os signos de homem em minha superfície, não com os de
mulher. [...] Não que já tivesse uma vagina, mas na região pélvica um certo
rumor côncavo e fazia ouvir, lembrava uma caldeira preparando a solução
para ao meu novo foco de deleite, alguma coisa como um chamamento
noturno, subterrâneo, embora ainda até certo ponto indeciso. Me sentia em
transição. Não era mais homem sem me encarnar no papel de mulher. Eu
flutuava, sem o peso das determinações. [...] Por enquanto eu tentava fazer
de tudo para gozar com o meu gozo inédito, mesmo que atrasada. E eu
gozaria por onde? (NOLL, 2008, p. 145).
Essa narrativa libidinal e delirante comporta também uma nuance provocativa em
torno do abjeto: os investimentos fantasistas em torno da imagem do filho adolescente que
passam a ser recorrentes e que entram na economia do próprio desejo homoerótico:
Debaixo do corpo inerte do engenheiro eu ia sentindo que vinha vindo o
gozo, mesmo que o soubesse ainda exatamente de que localidade
irromperia o êxtase. O meu filho me beijava fundo mas tranqüilo. As línguas
nossas tocavam-se discretas, às vezes flutuavam pelo céu da boca. Aos
poucos, porém, essa garimpagem entre as arcadas dentárias de ambos nos
lembrava que o natural era o adeus. [...] Quem estava ali em cima de minha
carcaça não era mais o engenheiro, mas meu próprio filho que, por fim, me
visitava e gemia e parecia me entranhar. Adoraria que conseguisse me
emprenhar. Por enquanto seu pau rijo queria entrar em mim com boas
96
estocadas. Abri as pernas e as enlacei em sua região lombar -, sim, de novo
como uma mulher. Seu tônus juvenil dava a impressão de um guerreiro -,
claro, para meu prejuízo. Ele me machucava feio. Tinha a impressão de que
o seu cacete não tinha pé na minha fenda aquosa, pois o órgão voltava à tona
cansado,mantendo-se alguns segundos inerte, tomando fôlego, resolvendo o
que fazer. [...] Meu filho me tolhia como eu nunca consegui tolhê-lo em sua
infância. [...] Minha pélvis acolhia francamente o cacete monumental de
minha própria descendência. Inigualável, eu diria. [...] Senti em minha
vagina tardia os lábios de meu filho. Não, não eram os lábios. Tratava-se da
mão. E algo mais: o cacetão de novo. Ele vinha vindo para matar minha
sede, pois eu tinha sede, sim. Ele vinha vindo até que veio mesmo e me
inundou com porra e mijo -, o que me fez expelir baixinho o mesmo cavo
rugido de um bicho que ouvi tão logo cheguei aqui (NOLL, 2008, p. 147-
148).
O tom agônico das narrativas que se seguem à metamorfose, explicitam como o abjeto
vai borrando os limites corporais e passando de uma substância fantasmática a um elemento
sensível, ainda que informe, diluído em seus próprios contornos, em uma alusão ao caráter
instável das “várias urgências que, entretanto, ali sabiam rondar medrosas” (NOLL, p.
172), como o narrador propõe na percepção desse corpo/gozo em devir:
Pela ordem gradativa das coisas, tinha me vindo enfim um grelo um pouco
acima da zona alagada, por onde todos me comeriam. E comecei a alisar o
grelo para cima e para baixo, para o leste e para o oeste. Chamava o prazer
em surdina, mas cada vez mais rápido. [...] Esse lugar que se fazia forma,
com vista à vagina, vulva, esse lugar estremeceu com seus dedos afiados.[...]
Realmente era um gozo diferente do que eu estava acostumada a perceber na
inteireza do meu pau. Um gozo mais intimista, rumo ao meu interior, mas
vívido em um regime de constelações, nada linear [...]. O gozo do meu púbis
novo abrangia mais gradações cíclicas do que epílogos transbordantes. [...]
Eu já estava na iminência de berrar. A coisa se movimentava rude na tal
vagina, sim. [...] Não sabia ainda controlar aquele sexo inabordável que, por
sinal, já era meu. Comecei a gargalhar saudando os meus umbrais no prazer
feminino. Aliás, já sou uma mulher, eu repetia e repetia, atuando como uma
desatinada perante a suntuosa novidade. [...] Agora que, como mulher
completa, eu até menstruava e tudo, agora então que eu podia dar um filho
ao engenheiro. [...] E, como mulher, precisaria dar conta da materialidade
feminina, conhecê-la mais a cada dia semitom entre o clitóris e a vulva.
podia passar como mulher por qualquer triagem de gênero (NOLL, 2008, p.
172,174, 176, 179, 187).
97
O corpo queer da/do personagem é um corpo inescrito, contraprodutivo, “corpo-
falante”, para usar uma expressão de Bourcier, porque se configura como lugar de enunciação
de uma liberdade radical, contra-anatômica, signo de uma ambiguidade insolúvel, que não se
equaciona no processo entre o delírio fantasista, a androgenia como paródia de gênero e a
metamorfose encerrada na transgenitalização. Essa insolvência, que bem pode ser “a única
dramaturgia possível” (NOLL, 2008, p. 200), de um “corpo infinito” (p.1999), é posta em
relevo em dois momentos incisivos do final da narrativa. O primeiro refere-se a um delírio da
personagem no momento em que, junto ao segurança, providencia a sepultura do engenheiro:
O velho surto ininterrupto rolava até no cemitério improvisado. À beira da
indigente sepultura do engenheiro. Os dois teriam sido amantes? E o
segurança namorava o meu filho que andou rondando por aqui? Senti ciúmes
de cada um e de ninguém. Por momentos as imagens do engenheiro e do
segurança se embolavam no avesso de minhas retinas. Quem era um e quem
era o outro mesmo? Com qual dos dois eu compartilharia a fuga? Desconfiei
de que ninguém morrera, quem sabe eu mesmo. Lembrava muito
vagamente de um desapego súbito do corpo, como se eu não tivesse um
tempo para agonizar. Justamente nessa passagem, gozei. Com o meu sexo de
homem. E nessa onda eu fui. E percebi que não dói (NOLL, 2008, p. 186).
No outro momento, a identidade de gênero irresoluta impõem à personagem uma
questão de fundo ontológico:
Eu precisava aprender a empunhar uma arma. Os homens da Polícia Federal
deveriam estar apertando o cerco. Mas para pegar em armas se fazia
necessário estar com meu sexo concluído, estabelecido e confirmado de uma
vez por todas. Como poderia um ser de sexo inconcluso usar a arma com
lógica? Afinal, o cara de sexo impreciso tende a ser confuso, inoperante,
com uma rarefação mental digna de sua indeterminação genital (NOLL,
2008, p. 197, grifos nossos).
Dessa forma, a metamorfose em Acenos e afagos alça o corpo a um destino impreciso
da anatomia, sobre o qual seria mais producente falar de um devir de corporeidades,
conquanto isso implique um processo de inscrição do corpo queer em uma “fome
absoluta”/“ilusão de outro ser”, para lembrar a metafísica drummondiana
.
58
58
ANDRADE, C. D. de. As contradições do corpo. In: Poesia completa: conforme as disposições do autor. 1. ed.
3. reimpr. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007, p. 1231-32.
98
Metamorfose, enfim, como metáfora desse corpo indócil, corpo que se desrealiza por
completo, partindo de uma permanente recusa à fetichização de formas identitárias. Uma
poética queer sobre o corpo que, nômade em suas experiências e cuidados-de-si, se radicalize
na rarefação de códigos, de siglas, de performatividades, de homossocialidades para aceder à
vida criativa, como exercícios de liberdade. Nela, caberia uma apropriação da ideia de Max
Ernst (1982, p. 26 apud MORAES, 2002), segundo a qual, “a identidade será convulsiva ou
não será”.
Em Aceno e afagos, essa convulsão que nunca é pretensiosa, não apresenta uma
utopia teleológica, digamos -, mostra-se um exercício radical de linguagem, que desconcerta
pelo estranhamento, por seu inventário camp e incide sobre a homomemória. Corpo e escrita
tocados pela metáfora da metamorfose - não pela via do experimentalismo fácil -, mas daquilo
que não se pode descrever ou nomear, o Das Unnembare, como no título do soneto de Antero
de Quental. Homomemória e metamorfose como elementos que asseguram, como apostamos
na epígrafe deste trabalho, um imaginário funda o reconhecimento à fantasia e à criação de
possibilidades de atenuar o interdito.
Esse devir criativo que se inscreve no contexto das relações homoafetivas, que
incidem sobre esses “corpos que importam” como marcas de alteridades construídas na
experiência, é a um tempo ético, político, poético. Sua semântica da diferença pode ser
rentável nos exercícios de exegese literária, como condição para elaboração de “operadores”
que em Noll, e em particular, Acenos e afagos, vislumbrem um mais-além nesse “épico
escrito em transe” (NOLL, 2008, p. 190), num diálogo com tradições estéticas que
inventariaram o corpo como uma aporia socialmente simbólica (MORAES, 2007).
Nos termos de um exercício dialógico que vimos atentando na interpretação de Acenos
e afagos, procurando reconciliar seus aspectos estéticos a um mapeamento de injunções que
se inserem na agenda da teoria queer, nos deparamos com o corpo como um paradigma de
ordens e desordens. A partir dele, é possível pensar a radicalização de um projeto poético que
Noll vem empreendendo desde sua estreia, por uma dicção que, atenta à carga concreta,
material da expressão, é tocada por aquele belo rilkeano, da dimensão do espanto, da
insuportável serenidade que “deixa de nos destruir”
.
59
59
RILKE, R. M. Quem das legiões de anjos? (Primeira Elegia). In: ______. Sonetos a Orfeu e Elegias de Duíno.
Edição Bilíngue. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1989.
99
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Fechar o texto com um fragmento de Rilke sobre o belo pode soar como uma
provocação – ou como um aceno. Afinal, que belo é este que em Noll se constitui no espanto?
De certa forma, procuramos em Acenos e afagos a irrupção dessa estranheza, desse
dilaceramento, nos quais ousamos reconhecer uma “aprendência”. Tentamos inserir essas
questões, tão caras aos estudos queer e à crítica literária, num diálogo que considere, de um
lado, as legitimações históricas sobre o sujeito e, de outro, a literatura como um registro que
guarda especificidades estéticas.
Figuradas na elaboração formal do romance e em um conteúdo sobre o qual
aventamos estabelecer um olhar a partir da teoria queer, ambas, dimensão estética e matéria
narrada são entrecruzadas por exercícios de linguagem e articulação de signos culturais
entre eles o corpo e o homoerotismo. Propondo tal olhar, a teoria queer, como campo
epistemológico de investigação sobre a construção histórica e discursiva sobre as figurações
do homoerotismo, surge como possibilidade de uma leitura producente e dialógica.
Nessa direção é que procuramos estabelecer uma relação entre as principais questões
estéticas e sociais que inserem a literatura de João Gilberto Noll, e em especial, Acenos e
afagos, em amplo e complexo debate na pós-modernidade e no contexto da literatura
brasileira.
Uma dessas questões foi aventar que condições estéticas e históricas Noll tangencia
em suas obras e que dimensões existenciais elas implicam. Ainda que partilhando da gama
fecunda de críticos especializados em Noll, de cujas vozes nos apropriamos acerca da
rarefação da experiência na pós-modernidade, propomos que o acento esquizóide de sua prosa
irrompe uma forma particular de experiência no devir. Esse exercício de liberdade se dá no
próprio forjamento do sujeito textual, sobre o qual incidem as figurações estéticas e históricas
que se afirmam pela indeterminação e descentramento.
Os romances nollianos, como reivindicam certas correntes de crítica literária, figuram-
se nômades, elaborados e refratários de algumas variáveis que determinam sua economia
interna como metáforas da contemporaneidade. Assim, as categorias estruturais da obra, como
100
tempo, espaço, diegese, narrador e personagem guardam relações extraliterárias com os
paradigmas da pós-modernidade, no mais das vezes relacionados à desterritorialização,
fragmentação, perda de referencialidade e nonsense.
No contexto brasileiro, quando do surgimento da obra de Noll, uma forte crença no
poder ideológico da arte, proporcionando figurações muito específicas para o panorama
artístico que se viu atravessado por injunções políticas. As obras de estreia do autor, não
escamoteiam essas questões, mas sua qualidade estética, o trabalho com a linguagem as eleva
para além de uma mimese superficial da realidade. O arquétipo social que sua literatura forja
responde por uma fragilização e impotência diante de uma visão teleológica de mundo. No
caso brasileiro, de panorama ditatorial, vimos como a literatura de João Gilberto Noll foi um
elogio à insuficiência, avessa ao denuncismo e ao experimentalismo fácil.
Uma prosa que traz as marcas do residual, do imagético, num ritmo que aproxima
literatura e cinema. Literatura, aliás, “traduzida” para o cinema em um esforço de estilização e
transcriação. Um dos momentos mais radicais dessa fragmentação e busca pelo diálogo entre
imagem e palavra, reside na produção de “instantes ficcionais”, que, trabalho poético, resultou
em Mínimos, múltiplos, comuns.
Em todo esse inventário, aparecem os tema do corpo, do homoerotismo, da metáfora
paterna, da metamorfose e da homomemória como que a compor uma mitologia pessoal que
vai se encaminhando para pôr em xeque as fronteiras do real.
O corpo, sempre perseguido em Noll, é levado ao limite de sua possibilidade, ao
deflagrar uma metamorfose, uma transfiguração que marca a trajetória de uma identidade
masculina à uma androginia que problematiza as concepções de gênero e identidade sexual.
Nesse ponto, alguns conceitos teóricos advindos da teoria queer corroboram o argumento
segundo o qual a tônica do romance é um homoerotismo que não se circunscreve a uma
identidade calcada em modelos identitários únicos, mas os coloca na berlinda das concepções
engessadas. Ao sofrer uma metamorfose, entendida como arquétipo literário que, guardadas
as diferenças, remete sempre a uma transformação, no âmbito literário, a personagem, o João
Imaculado, mina as concepções identitárias, sendo, portanto, mais correto pensar em uma pós-
identidade.
101
Desconstrução, portanto, em diálogo com os estudos queer, conquanto estes não
comportam um referencial fixo, mas adotam a perspectiva foucaultina-deleuzeana do devir,
do vir-a-ser, no trato do cuidado de si, do reconhecimento e das práticas de modos de
subjetividades criativas.
A homomemória como recurso estético e também social do processo de metamorfose,
torna-se registro das percepções sobre o corpo em transformação e dos desejos por ele
cartografados como rubricas de um passado que vai sendo presentificado em experiência e
aprendência, deflagrando a transitoriedade identitária, inscrita no devir. Acionada e
agenciada, pois, pelo desejo, no mais das vezes homoafetivo, a memória em Acenos e afagos
abre um promissor debate em torno da experiência em João Gilberto Noll, apontada pela
crítica como adstrita à impossibilidade de figurar um enredo, e, por conseguinte, assumindo o
ônus de uma crise da narrabilidade da experiência.
Nos limites desse trabalho, aventamos pontuar essa experiência como ato socialmente
simbólico, considerando que o trabalho com a linguagem e o tratamento dado ao tema da
metamorfose provocam o estranhamento, a derisão, a aprendência. Assim se com Acenos e
afagos: a cada página, há um precipitar de imagens justapostas do passado e do presente que
se vão configurando pela intuição que leva o narrador-personagem conduz a estalar os limites
do real, trazendo ao plano da linguagem a imagem do desejo.
Exercício de poética verbal/corporal, desvela a carga elaborada na e pela dimensão
dos afetos; ela se assume, assim, uma metáfora do desejo, na medida em que este está
fundamentalmente ligado às representações e às articulações dos significantes que conduzem
ao sentido – quase sempre interdito, o não-do-pai.
Destituída de gauchismos, mas repleta de gauchismes baudelaireanos -, seja pela
leitura catalítica, que dilacera nossas perplexidades mais íntimas, tocando-nos,
desestabilizando-nos, por sua escrita emergencial, cujo lirismo sinestésico traduz uma certa
dose de apelo, de danação, de errância.
A linguagem é nevrálgica, labiríntica, cúmplice absoluta do eros. Na prosa nolleana,
visualizamos as marcas de pluralidade constituída no signo da transgressão homotextual e do
estranhamento, da sintaxe narrativa assimétrica, convulsa, esquizóide, que podem ser tomados
como elementos de operacionalização de sua leitura. Assim, gozo, transformação ou
102
revelação é metáfora de sua própria elaboração textual. Em seu texto, opera-se uma espécie de
desterritorialização da narrativa, transformando em conteúdo latente o trânsito entre
experiência ficcional e a experiência urbana da contemporaneidade, na perspectiva de uma
homossocialidade queer. Nela, o corpo, um autêntico leitmotiv, é explorado como categoria
social e pré-discursiva, propondo uma ressignificação das identidades, naquilo que têm de
transitórias, errantes, e, talvez, por isso mesmo, verossímeis.
Às vezes, esse sujeito aparece sob um olhar convulsionado, próprio de uma
experiência neobarroca que engendra o fragmentarismo atribuído à pós-modernidade,
evidenciando, assim, a tensão gerada entre a fenomenologia da obra e esse “gozo da
enunciação”. O tecido da estrutura social sempre se viu retesado por essas contradições, e
aqui, alegoricamente, ele se insinua, se desenvolve, se concretiza em consonância com a
arquitetura narrativa.
uma desestabilização das noções de identidade, de homossocialidade e memória,
em virtude de uma lógica do movimento, da dispersão, do descontínuo, que nos remete, por
contigüidade, a toda uma reordenação espacial híbrida que marca outros livros do autor.
Acenos e afagos retoma, nessa economia do espaço, a preferência de Noll pelos não-lugares;
neles, as noções identitárias, relacionais, históricas são desfeitas, em uma clara-escura relação
com o processo de indeterminação da identidade sexual do narrador-personagem, em seu
remapeamento dos limites do corpo, do discurso, da consciência, por uma dialética das
margens, do inescrito.
Assim como Baudelaire tropeçava em palavras nas calçadas, Noll tropeça na libido -
libido da escrita, nesse delírio desejante, instância fundante do ficcional. Talvez seja
exatamente nesse traço inequívoco de modernidade a flânerie baudelaireana -, o que em
Noll reconhecemos como uma espécie de diáspora errante, da escrita, do desejo, da interdição,
da palavra como lugar de fala e de escuta. Nesse romance, Noll nos mostra, e parece
escamotear, pela performatividade dos personagens pelo agenciamento das questões relativas
aos papéis sexuais, o corpo como lugar em que se instalam coerções e as incontornáveis
práticas de subordinação e assujeitamento, uma espécie de “gozo trágico”. Nessa psicanálise
da escrita do corpo - e do corpo da escrita -, o autor nos apresenta o que se poderia considerar
uma epopéia do desejo e sua inscrição no trágico.
103
Nesse desejo, um verdadeiro projeto poético em Acenos e Afagos, na medida em que
ele se expressa como núcleo irradiador de significado, ao reinventar uma masculinidade, ao
reconfigurá-la a partir do corpo. No drama existencial que avulta da metamorfose pela qual
passa o narrador-personagem, é possível ler uma estética da identidade; nela, o sujeito é a
marca de um interesse socialmente construído e inserido no corpo pela economia de um
desejo administrado, como instância material que, sabemos, possibilita um conjunto de
práticas, de ações simbólicas de dominação em um contexto social mais amplo, multissexual,
e erotismos emancipados.
De todos os romances de João Gilberto Noll, Acenos e Afagos é o que mais
incisivamente nos propõe uma textualidade como lugar de encenação de uma ficção política
que questiona os regimes sexuais heteronormativos baseada no corpo e no prazer - uma
metáfora da falência de uma sociabilidade corporal de fronteiras visíveis, de natureza binária
masculino/feminino. Texto-sintoma para uma psicanálise de vínculo social, tanto quanto para
os estudos gays e lésbicos, como a teoria queer ou aos estudos pós-coloniais em literatura,
que articulam, com critérios epistemológicos diferentes – mas que dialogam entre si no
tratamento das questões da construção dos sujeitos -, as estratégicas textuais que põe em
relevo o caráter provisório das noções de identidade.
A questão condutória e incisiva desses trabalhos remete à pertinência de uma crítica
cultural, e em particular, literária cujo centro seja um olhar homoafetivo e a representação da
homossexualidade como elementos de imbricação estético-político, a partir dos quais, entre
outras questões, é possível determinar que a homosexualidade entra na definição do texto,
essa é a mais didática concepção de homotextualidade, e não por aspectos ideológicos ou
biográficos, bem como para além da determinação dos topoi eróticos, ou camp, para utilizar
uma terminologia da Teoria Queer.
Toda leitura e toda interpretação sempre partem de um lugar e de um sujeito: o da
enunciação. Todos somos herdeiros de uma memória social, histórica, literária
latinoamericana, que traz as marcas violentas dos regimes ditatoriais que impingiram por
décadas um silenciamento dessas vozes plurais e uma subordinação.
Nesse momento tão oportuno que marca as discussões sobre gênero, cânone,
paradigmas, a construção dessa historiografia pode partir, por exemplo, de eleger como
104
elemento norteador um levantamento de como a problemática das relações homoafetivas
emerge através de personagens, comportamentos, temas. Isso é importante, em um primeiro
momento: não descartar nesse corpus literário verdadeiros traços, ruínas de uma história
sufocada, residual. Urge desnaturalizar os substancialismos, que também nutriram a crítica
literária ao longo do século XX. Evidentemente, isso não é suficiente; é necessário pôr a nu o
solo que possibilitou a emergência decisiva de uma crítica literária que se institucionalize seu
objeto – a homotextualidade.
Acenos e afagos pode ser lido como metáfora de nossa capacidade de sermos
fantasistas, uma condição humana universal, mas que, com tal, é particularizada numa história
concreta e, como o sujeito se realiza em uma circunstância particular, os fantasmas são
subjetivados. Daí o sentimento contraditório de pertença com que o narrador-protagonista
organiza o simbólico mediante a metamorfose do corpo. Fantasma histórico e, ao mesmo
tempo, criador de afetos, de fascinação, um delírio interpretante.
Dilema da identidade, da libido, do mito, da arte, da literatura, por um princípio de
multiplicidade, ressignificação e dinamismo trágico, sem, contudo, cercear a especificidade
do efeito estético, sua pluralidade, uma vez que o literário configura-se um tecido de
significantes, em que gira um querer-saber diverso. O romance de Noll, em sua insistente
linha de força metafórica do corpo em metamorfose de gênero, alude à predileção pelo
fragmento com que o universo ficcional de Noll configura o desbiografismo das personagens,
cuja representação gravita em torno da problemática identitária. O erotismo, em Acenos e
Afagos, como questão incisiva do ser, implode a noção de identidade, agora no limite do
pertencimento – o corpo semioticizado pela desconstrução do binarismo masculino/feminino -
, tal como a crise de balizas identitárias e narratológicas se impõe na agenda das socialidades
e literatura pós-modernas
.
105
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