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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS DO HOMEM
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA
RAFAEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO
A MISÉRIA DE TRAVESSÃO: EFEITOS DE LUGAR NO ATENDIMENTO ESCOLAR
DA POPULAÇÃO EM UM DISTRITO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES.
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ – 2009
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA
RAFAEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO
A MISÉRIA DE TRAVESSÃO: EFEITOS DE LUGAR NO ATENDIMENTO ESCOLAR
DA POPULAÇÃO EM UM DISTRITO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política, Linha de Pesquisa Cidadania, Instituições
Políticas e Gestão Urbano-metropolitana, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito
parcial para obtenção do Título de Mestre em Sociologia Política,
sob a orientação da Prof. Dr. Yolanda Lima Lôbo.
ORIENTADORA: PROF. DR. YOLANDA LIMA LÔBO
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ – 2009
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RAFAEL PINHEIRO CAETANO DAMASCENO
A MISÉRIA DE TRAVESSÃO: EFEITOS DE LUGAR NO ATENDIMENTO ESCOLAR
DA POPULAÇÃO EM UM DISTRITO DE CAMPOS DOS GOYTACAZES.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Sociologia Política, Linha de Pesquisa Cidadania, Instituições
Políticas e Gestão Urbano-metropolitana, da Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como requisito
parcial para obtenção do Título de Mestre em Sociologia Política,
sob a orientação da Prof. Dr. Yolanda Lima Lôbo.
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Yolanda Lima Lôbo – UENF
Prof. Dr. Sérgio de Azevedo – UENF
Prof. Dr. Wania Amélia Belchior Mesquita – UENF
Prof. Dr. Orlando Alves dos Santos Júnior – IPPUR/UFRJ
AGRADECIMENTOS
À força maior que move o universo, agradeço por se fazer presente em todos os momentos, e
por fazer com que as pessoas listadas abaixo cruzassem meu caminho, tornando esse trabalho
possível.
Aos meus pais, Jonas Caetano Damasceno e Rosangela Pinheiro, por toda a dedicação
ininterrupta, pelos valiosos ensinamentos, e por serem meus grandes amigos antes de qualquer
coisa.
À Tahiana Fernandes, pelo companheirismo, pelo amor incondicional, pelo apoio constante e
pelos sábios e valorosos debates que ajudaram a criar esse trabalho.
Ao meu irmão Daniel Pinheiro Caetano Damasceno. Irmão nos momentos de compreensão,
melhor amigo quando puxões de orelha eram necessários, colega de classe nos momentos de
troca intelectual. Agradeço por tudo, sem exceção.
À professora Yolanda Lima Lôbo, pela idéia do tema desta dissertação, por ter se ocupado de
mim desde a graduação, pela ajuda inestimável na minha formação intelectual, por acreditar
no meu potencial e me apontar os caminhos para a elaboração deste trabalho.
Ao professor Sérgio de Azevedo, pelas muitas aulas, pelos livros, conselhos e valiosos
ensinamentos.
Aos amigos, Carlos Valpassos e Paulo Sérgio, leitores vorazes desse trabalho.
Aos muitos amigos, em especial, Klênio, Sílvia, Thaís e Júlio, por me fazerem esquecer esse
trabalho, ainda que por poucos momentos.
Aos professores do Programa de pós-graduação em Sociologia Política da UENF, por toda a
troca de conhecimentos.
Resumo: Este estudo tem por objetivo investigar as condições de produção das desigualdades
e pobrezas no município de Campos dos Goytacazes, a partir do estudo das condições de
sobrevivência dos moradores do distrito de Travessão face à situação de expansão urbana,
focalizando de modo particular a relação entre desigualdades sociais e atendimento escolar. O
tema que nos propomos examinar traz subjacentemente como ponto central a questão política
do atendimento escolar, isto é, do direito à educação de um segmento da população brasileira
que reside em áreas periféricas no município de Campos de Goytacazes. Com a crescente
onda de urbanização, as pessoas se vêem obrigadas a se deslocarem para as cidades, buscando
melhores condições de vida, porém, ao não conseguirem se instalar na área central das
cidades resta às pessoas se estabelecerem na orla dos centros urbanos, onde os serviços
oferecidos pelo poder público municipal chegam com atraso. Juntamente com a precariedade
dos serviços oferecidos, a insegurança dos moradores dessas áreas marginais causa uma
erosão das normas de civilidade, ampliando ainda mais o espectro da segregação urbana.
Palavras-chave: Atendimento Escolar. Segregação urbana. Campos dos Goytacazes.
Abstract: This study focus on the production conditions of inequality and poverty in the
municipality of Campos dos Goytacazes from the study of the conditions of survival of the
residents of the district of Travessão face the situation of urban sprawl, focusing in particular
the relationship between inequality social and school attendance. The theme we propose to
examine how central point brings underlying the political question of school attendance, the
right to education for a segment of the population who live in remote areas in the municipality
of Campos de Goytacazes. With the increasing wave of urbanization, people are forced to
move to the cities, seeking better living conditions, however, unable to install it in the central
area of cities, there are people laying on the edge of urban centers, where the services offered
by municipal authorities to arrive late. Alongside with the lack of services, the uncertainty of
the residents of these areas causes a marginal erosion of standards of civility, further
broadening the spectrum of urban segregation.
Keywords: School Attendance. Urban segregation. Campos dos Goytacazes.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Mapa dos distritos de Campos dos Goytacazes......................................................34
Figura 2 – Alunos assistem aula no pátio da escola José Giró Faísca......................................47
Figura 3 – Secretaria da escola José Giró Faísca......................................................................48
Figura 4 – Mesa da diretora da escola Francisco Ricardo........................................................55
Figura 5 – Banheiros da escola Carlos Chagas.........................................................................59
Figura 6 – Entrada da escola Carlos Chagas.............................................................................60
LISTA DE SIGLAS E ABREVIAÇÕES
CBPE – Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais
CCH – Centro de Ciências do Homem
FMI – Fundo Monetário Internacional
HUD – Department of Housing and Urban Development
IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
INED – Instituto Nacional de Estudos Educacionais
MTO – Moving To Opportunity
OMC – Organização Mundial do Comércio
ONU – Organização das Nações Unidas
PEA – População Economicamente Ativa
PIB – Produto Interno Bruto
PNAD – Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PPGSP – Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política
SAEB – Sistema de Avaliação da Educação Básica
SMEC – Secretaria Municipal de Educação de Campos dos Goytacazes
UENF – Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura
SUMÁRIO
Capítulo 1
Introdução.................................................................................................................................10
Capítulo 2
Territorialiedade e isolamento social........................................................................................19
2.1-Escola e Desigualdade Social.................................................................................26
2.2-Democratização do ensino?....................................................................................27
Capítulo 3
A Miséria Abastada: Campos dos Goytacazes.........................................................................31
Capítulo 4
Efeitos de Lugar........................................................................................................................37
4.1-O distrito de Travessão...........................................................................................40
Capítulo 5
Ensaios Preliminares: Adentrando o Campo de Investigação..................................................44
5.1-Escola Municipal José Giró Faísca.........................................................................46
5.2-Escola Municipal Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos.........................52
5.3-Escola Municipal Carlos Chagas............................................................................58
Capítulo 6
O Olhar dos Moradores Sobre Suas Vidas................................................................................63
6.1-Pouco Tempo Para os Filhos ..................................................................................64
6.2-A Esperança na Escola............................................................................................69
6.3-Tão Longe de Tudo.................................................................................................75
6.4 Indiferença...............................................................................................................79
6.5 Entre o Trabalho ou a Escola..................................................................................81
Capítulo 7
O Lugar e a Pobreza..................................................................................................................87
Capítulo 8
Considerações Finais.................................................................................................................94
Referências Bibliográficas....................................................................................................100
Anexos....................................................................................................................................105
1 - INTRODUÇÃO
A pesquisa intitulada A miséria de Travessão: efeitos de lugar no atendimento escolar da
população em um distrito de Campos dos Goytacazes” compõe o conjunto de trabalhos
inseridos na proposta de temas estratégicos do curso de Pós-Graduação em Sociologia Política
do Centro de Ciências do Homem, da Universidade Estadual do Norte Fluminense “Darcy
Ribeiro” – PPGSP/CCH/UENF.
Este estudo tem por objetivo investigar as condições de produção das desigualdades e
pobrezas no município de Campos dos Goytacazes, a partir do estudo das condições de
sobrevivência dos moradores do distrito de Travessão face à situação de expansão urbana,
focalizando de modo particular a relação entre desigualdades sociais e atendimento escolar. O
tema que proponho examinar traz de forma subjacente como ponto central a questão política
do atendimento escolar, isto é, do direito à educação de um segmento da população brasileira
que reside em áreas periféricas no município de Campos de Goytacazes.
No âmbito das Ciências Sociais estudos empíricos sobre estratificação social tendem a
considerar elementos do poder político, sob uma perspectiva analítica que vincula a ordem
estamental e o acesso ao poder público. Segundo Neuma Aguiar (2007), estudos de
estratificação social m buscado explicar as desigualdades com base em perspectiva
comparada, contrastando países ou regiões, ou, de um ponto de vista histórico, articulando
distintos momentos em uma mesma sociedade. De acordo com a autora, os estudos sobre
desigualdade social no Brasil se distanciam da visão ligada aos clássicos das Ciências Sociais,
uma vez que, sociedades que não vivenciaram o feudalismo também se estratificam por
estamentos, ou em grupos de status. Nesse caso, estratificação social refere-se ao conjunto de
estratos compostos por indivíduos, ou por grupos de indivíduos, compondo uma hierarquia
social. Para Aguiar, cada estrato se caracteriza por “estilos de vida semelhantes, recebendo
seus componentes o mesmo grau de honrarias, de deferência social e de distinção” (p.31).
Portanto os estratos se caracterizam pelo compartilhamento de um mesmo modo de vida, com
valores comuns, comportamentos, atitudes, hábitos aproximados e acesso às oportunidades de
vida, ao mercado de trabalho e ao mesmo tempo de bens materiais ou simbólicos, sendo
ordenados como superiores ou inferiores de acordo com variadas dimensões, como a posse de
bens materiais, inclusive os utilizados na forma de apresentação social, e outras marcas de
posição social que possam ser monopolizadas. O lugar, no sistema de estratificação social,
determina as redes de relações sociais, as formas de interação, as trocas efetuadas, relações
entre os participantes nos sistemas de trocas, o acesso e a exclusão, inclusive a abertura ou o
bloqueio a recursos de poder político ou econômico.
A importância da inclusão da cobertura por serviços públicos básicos como dimensão da
estratificação social é defendida por Sorj (2000). Para o autor, o debate sociológico sobre a
estratificação social no Brasil contemporâneo é bastante limitado, com a desigualdade social
sendo medida geralmente em termos da diferença de renda entre indivíduos ou famílias. Essa
diferença, embora fundamental para o autor, não reflete o acesso diferenciado a bens e
serviços coletivos geralmente assegurados pelo Estado, como acesso à água corrente, esgoto,
saúde e educação, de forma que “(...) é infinita a distância no meio urbano moderno entre uma
pessoa alfabetizada e uma não alfabetizada, no sentido de que a instrução afeta todas as
possibilidades de orientação e a qualidade de vida e não é economicamente quantificável.
(p.21)
Alguns estudos recentes (Amaral, Figoli e Noronha, 2007) incluem a educação em suas
análises, seja adicionando novas questões de pesquisa, como a importância e complexidade do
acesso à educação e cultura, seja analisando o impacto da escolaridade no estudo das
desigualdades sociais.
De fato, a educação tem sido objeto de estudo de cientistas sociais no Brasil, desde os anos
cinqüenta do século passado, que privilegiam, sobretudo, estudos sobre a relação entre o
atendimento escolar e as desigualdades sociais. A Divisão de Pesquisas Sociais do Centro
Brasileiro de Pesquisas Educacionais, órgão do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do
Ministério da Educação e Cultura
1
realizou nas décadas de 1950 e 1960 programas de
pesquisas sócio-antropológicas que, além de proporcionarem o estabelecimento de bases
científicas para uma compreensão mais profunda dos problemas educacionais brasileiros,
possibilitaram o desenvolvimento das próprias Ciências Sociais no Brasil, estabelecendo,
então, um diálogo fecundo entre a Educação e as Ciências Sociais, visto que os resultados das
pesquisas oriundas deste campo constituíam-se base para o planejamento educacional
2
. Vale
salientar as pesquisas realizadas por José Roberto Moreira (1957) e Josildeth Gomes Consorte
1
O Instituto Nacional de Pedagogia, criado pela Lei 378/1937, passa a denominar-se Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos em 30 de julho de 1938 (Decreto-lei 580), com as seguintes atribuições: - organizar
documentação relativa à história e ao estudo das doutrinas e das técnicas pedagógicas; promover inquéritos e
pesquisas sobre todos os problemas atinentes à organização do ensino, bem como sobre os vários métodos e
processos pedagógicos; promover investigações no terreno da psicologia aplicada à educação, bem como
relativamente ao problema da orientação e seleção profissional; prestar assistência técnica aos serviços estaduais,
municipais e particulares de educação. (Cf. Lobo, Y. e Chaves, M. 2005).
2
Cf. Lobo & Chaves, 2005.
(1956)
3
, respectivamente, A escola primária brasileira e A criança favelada e a escola
pública, que retratam o atendimento escolar desigual proporcionado pela escola pública no
Brasil aos alunos de camadas sociais desfavorecidas economicamente, que traz como
conseqüência o fracasso escolar desses alunos. É oportuno, ainda, destacar as pesquisas
realizadas pelo sociólogo Oracy Nogueira,
4
coordenador do Programa das cidades-
laboratórios
5
desenvolvido pelo C.B.P.E.-RJ que compreendia o Projeto de Instituição de
uma Área-Laboratório para Pesquisas referentes à Educação, nos municípios de Leopoldina
e Cataguases. A primeira atividade da equipe foi levantar dados preliminares das condições
sócio-econômicas e culturais dessas cidades-laboratório ou áreas-laboratório, com a finalidade
de fornecer elementos para planejamento das inovações e/ou experimentos, em 1957. Essas
áreas-laboratório passaram a constituir-se campo permanente de experimentação para
iniciativas que visassem dar maior eficiência ao sistema educacional do Brasil.
A idéia de igualdade social está ausente nas políticas escolares até a segunda metade do
século passado, de um modo geral. No âmbito das políticas de educação, o problema da
democracia, de oportunidades de educação iguais para todos, vai ser colocado pelos
governantes mais em termos morais que sociais, e mais em nome da coesão nacional, da
solidariedade do que da justiça ou da igualdade perante a escola. Alguns esforços para
eliminar a oferta diferenciada de oportunidades e de qualidade do ensino de acordo com a
classe social do aluno foram perseguidos por educadores brasileiros que defendiam a escola
comum, única, igual para todos, oferecida a todos indistintamente pelo Poder Público como
base cultural e de conhecimentos instrumentais a que tem direito todo cidadão,
3
Estudo sôbre uma escola primária e suas relações com seu bairro e vizinhança – iniciado em fevereiro de 1956,
estava a cargo do Dr. Andrew Pearse, cientista social britânico, especialista visitante e integrante do quadro de
pesquisadores que, mediante convênio, a UNESCO mantinha no corpo técnico do C.B.P.E. Dr. Pearse dirigia
uma equipe de pesquisa, da qual fazia parte a cientista Josildeth Gomes, dedicada ao estudo das relações
existentes entre uma escola primária localizada num bairro residencial no Distrito Federal e o bairro a cuja
população infantil ela serve. Desde a distribuição especial das residências dos alunos, as relações entre êstes, os
professôres e as famílias dos alunos até a integração da escola na vida da comunidade vicinal e os valores,
atitudes e opiniões dos grupos envolvidos neste contexto, constituíam-se objeto de cuidadosa análise.
4
O sociólogo Oracy Nogueira notabilizou-se pelas pesquisas que realizou na década de 1940 sobre a temática
racial, como: Preconceito Racial de Marca e Preconceito Racial de Origem e o relatório sobre As Relações
raciais no município de Itapetininga”.
5
A concepção de um espaço social destinado ao estudo experimental ou à aplicação dos conhecimentos
científicos com objetivo prático aparece na década de cinqüenta, no programa das cidades-laboratório
desenvolvido pelo Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais do Rio de Janeiro. Entendia-se a cidade como
laboratório, isto é, campo permanente para pesquisas de interesse ao esclarecimento e solução de problemas
educacionais, de modo que os resultados das investigações sucessivas não apenas se somassem uns aos outros,
mas também fossem passíveis de constante revisão, reordenação e sistematização (cf. Nogueira, 1958;
Henriques, 1988; Xavier, 1999).
independentemente do nível de riqueza da região, do estado, da localidade e das condições
econômicas de sua família.
6
Nas décadas de sessenta e setenta, dois enfoques metodológicos surgem no cenário das
pesquisas que examinam a questão do desempenho escolar dos alunos de camadas sociais
populares: o da privação cultural (Patto, 1973) e o da marginalidade cultural (Poppovic,
1975) fundamentados na “teoria da deficiência cultural e lingüística” e na “teoria das
diferenças culturais e lingüísticas” que consideram a escola como instrumento de superação
da marginalidade social. Essas abordagens dão sustentação às políticas educacionais
implementadas pelo Governo Federal nos anos setenta, orientadas no sentido de compensar
carências culturais, deficiências lingüísticas ou defasagens afetivas. (Lobo, Rangel &
Damasceno, 2004)
De acordo com
Lobo, Rangel & Damasceno, a década de oitenta do século passado "é
marcada pela crítica aos programas compensatórios":
Inspirados da teoria da reprodução que aponta a violência simbólica exercida pela
escola, pesquisadores brasileiros realizam estudos que apontam a situação de
desigualdade no atendimento que a escola brasileira oferece às crianças de origem
sócio-econômica precária. Combater a desigualdade e reconhecer as diferenças
culturais e sociais dessas crianças era o desafio que esses estudiosos propunham às
autoridades educacionais do país
. (2004, p.2)
No Brasil, a utilização de metodologias quantitativas em pesquisas com temas vinculados à
educação cresceu bastante desde meados dos anos 90 (Alves & Soares, 2007). Segundo esses
autores, tais estudos vêm contribuindo para ampliar a compreensão sobre as desigualdades
educacionais brasileiras e suas conseqüências em termos de estratificação social dentro do
processo de expansão generalizada do ensino.
Pesquisas que investigam as desigualdades no acesso e nos resultados escolares sempre
estiveram como tema central no escopo das políticas de bem-estar social; as primeiras a
ocorrerem são caracterizadas como a “fase do empirismo metodológico” (Alves & Soares,
2004, p.439), o que produziria trabalhos futuramente criticados por serem considerados fracos
do ponto de vista teórico. Porém, inegavelmente, esses dados empíricos propiciaram avanços
teóricos e metodológicos consideráveis para as ciências sociais de uma forma geral, como os
estudos sobre estratificação e mobilidade social e outras áreas. Os sociólogos franceses
melhoraram bastante as suas possibilidades de análise sobre o tema com os dados do Instituto
6
Ver, a esse respeito, o conjunto da obra de Anísio Teixeira, especialmente Educação não é Privilégio e
Educação é um Direito, 2003, Editora UFRJ.
Nacional de Estudos Educacionais (INED), assim como o relatório Coleman
7
ajudou os
americanos. A constituição do paradigma da reprodução (Bourdieu & Passeron, 1975) seria
impensável sem os fatos estatísticos estabelecidos nesses anos. No entanto, esses resultados
alimentaram um forte pessimismo pedagógico, porque levaram a conclusão de que “escolas
não fazem a diferença, já que a explicação para os resultados educacionais deveria ser
procurada fora das escolas” (Alves & Soares, id.), na origem social dos alunos.
Com a finalidade de romper com essa idéia, as pesquisas educacionais se abriram para novas
perspectivas, incorporaram novos objetos, como estudos sobre escola e salas de aula, análise
sobre as representações sociais dos professores, estudos de trajetórias escolares, e renovaram
suas metodologias, passando a valorizar abordagens microssociais, retomando estudos
realizados por Consorte em 1956.
O pessimismo pedagógico começou a ser questionado com a publicação de alguns estudos
que disputavam as conclusões do relatório Coleman, afirmando que apesar da inquestionável
influência dos fatores sócio-econômicos sobre os resultados escolares, a variação entre as
escolas não poderia ser negligenciada, mesmo que pequena. A principal diferença desses
estudos em relação aos da geração anterior era o foco no contexto e nos processos escolares
que ocorriam “dentro da caixa preta da escola” (Alves & Soares, 2004, p.440).
Os estudos, no Brasil, sobre a eficiência das escolas ganharam forte impulso com a utilização
dos dados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). Entretanto, sendo
a base de dados do SAEB de amplitude nacional, seus questionários são algo sucintos nas
questões que apresentam e limitam a riqueza da análise (Souza, 2005). A avaliação das
escolas, que tinha como preocupação dominante verificar o grau de compreensão dos alunos
sobre uma disciplina e identificar as variáveis ligadas ao aluno, à sua família e à escola que
mais influenciam essa compreensão, retoma papel originalmente desempenhado nos trabalhos
da Divisão de Pesquisas Sociais do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais: o de
subsidiar as discussões sobre políticas educacionais que objetivam reformular as escolas.
Segundo os resultados da pesquisa de Alberto Mello e Souza (2005) sobre os determinantes
da aprendizagem nas escolas municipais, não há dúvidas de que a participação das Secretarias
Municipais de Educação, dos professores e diretores tem conseqüências benéficas para os
7
O relatório Coleman foi um documento publicado em 1966 que tinha como objetivo apresentar os resultados de
uma pesquisa que estudou a relação entre as entradas (recursos disponibilizados) e saídas (sucesso/insucesso)
dos alunos.
alunos. Fica a impressão de que a escola precisa de uma divisão do trabalho inteligente, com
espaço para a participação desses três diferentes níveis hierárquicos.
Para Albernaz, Franco e Lee (apud Ribeiro & Koslinski, 2008), as pesquisas sobre a eficácia
da escola tem considerado os seguintes fatores: (a) recursos escolares; (b) organização e
gestão da escola; (c) clima acadêmico; (d) formação e salário docente; (e) ênfase pedagógica.
No âmbito das Ciências Sociais a educação recebe grande destaque como objeto de estudo.
Nos resultados apresentados por Elisa Reis (2004), a educação é invocada pelas elites
brasileiras como elemento-chave na explicação dos altos níveis de desigualdades vigentes no
país e, com maior relevo ainda, na identificação de pontos de intervenção prioritários através
de políticas públicas. As elites apostam na educação como recurso privilegiado para se
assegurar igualdade de oportunidades, que é claramente a maneira como definem igualdade.
Segundo a autora, a ênfase conferida à educação como instrumento de correção de
desigualdades pode evidenciar que “[...] as elites consideram reformas redistributivas não
necessárias e não desejáveis” (Reis, 2004, p. 48). Conforme argumentam, bastaria elevar o
nível de educação da população em geral para que todos melhorassem. Em outras palavras, a
educação é entendida como uma estratégia que não implica redistribuição, isto é, não envolve
resultados de soma zero. Na visão das elites, se os pobres melhorarem seu vel educacional
conseguirão progredir individualmente, sem onerar os mais favorecidos.
Porém, na visão da população em geral, segundo os resultados apresentados pela mesma
pesquisa, 55% acreditam que a sorte e o imponderável são os responsáveis pela melhoria
individual. Cabe perguntar então, o que leva a essa descrença das camadas mais pobres da
população em relação à educação e ao sistema de ensino como um todo?
É inegável a riqueza e os avanços de investigações sobre o tema em foco. Não se pode
afirmar, contudo, que os poderes públicos - municipal, estadual e federal – priorizem em suas
políticas educacionais o atendimento escolar de qualidade para a população de baixa renda.
Apesar dos avanços no plano da legislação escolar - a Constituição de 1988 reconhece o
direito à educação de todas as crianças de zero a seis anos, torna obrigatório e gratuito o
Ensino Fundamental e o dever do Poder Público de oferecer creches, pré-escolas e ensino
fundamental para tornar fato este direito – não se pode afirmar que, vinte anos após a
promulgação da Carta Magna, tenha havido mudanças qualitativas e quantitativas
significativas no atendimento escolar à população de periferias dos centros urbanos, em
qualquer dos seus níveis, no Brasil. (Cf. Kramer et al. 2003, p. 281).
A esfera pública municipal passa, a partir de 1988, a ter a responsabilidade e a competência
legal para criar e manter um sistema de ensino para atender a Educação Infantil e o Ensino
Fundamental. Em Campos dos Goytacazes, um dos municípios beneficiados com os
royalties da produção de petróleo e, portanto, sem problemas de “caixa” de falta de
recursos - o atendimento à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental alcança prioridade na
definição e execução de políticas sociais?
Desde 2000, formou-se no Centro de Ciências do Homem um grupo de pesquisa para
investigar as formas de atendimento escolar oferecidas pelo poder público municipal em
Campos dos Goytacazes. Para iniciar o processo de conhecimento da rede pública desse
município foram realizadas pesquisas
8
com o objetivo de 1- Levantar o perfil sócio-cultural
do professor da pré-escola, em exercício no município de Campos dos Goytacazes (Lôbo e
Damasceno, 2004); 2 -Procurar saber o que pensa esse profissional sobre quais devem ser os
objetivos deste nível de ensino (Lôbo e Rangel, 2004); 3- Levantar o perfil sócio-cultural
do professor do primeiro segmento do Ensino Fundamental (Lôbo & Pereira, 2008); 4-
Procurar conhecer do professor que atua no primeiro segmento do Ensino Fundamental "O
que ensinar quer dizer?"
Em seus indicadores sociais o município de Campos dos Goytacazes apresenta rias
dificuldades. Seu desempenho na avaliação do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de
2000 - indicador desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) que considera indicadores como pobreza, alfabetização, emprego formal, violência e
desigualdade - fez com que a cidade ocupasse a posição de número 1.818 entre todos os
municípios brasileiros, sendo a 54ª colocada entre os 92 municípios que compõem o Estado
do Rio de Janeiro.
Num estudo socioeconômico do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro sobre
Campos dos Goytacazes, datado de 2003, tomando como referência o Censo Demográfico do
IBGE de 2000, observa-se que 27.750 mil trabalhadores encontravam-se desempregados no
8
O grupo iniciou uma linha de pesquisa de estudos sociológicos denominada “Estudos da Educação
Fluminense”, com a finalidade de realizar estudos e pesquisas que conduzam ao conhecimento da cultura e da
educação fluminenses e de seu desenvolvimento em todos os níveis e ramos de ensino, com o objetivo de
buscar uma compreensão profunda dos fatos educacionais em suas relações com a vida social e, ainda,
promover pesquisa diagnóstico sobre o estado atual da educação fluminense. Os primeiros estudos realizados
sob essa perspectiva foram realizados no município de Campos dos Goytacazes, dando continuidade à série de
estudos monográficos. Com o foco na educação escolar do município de Campos dos Goytacazes, foram
produzidos os seguintes trabalhos: “O Olhar do Professor sobre a Escola Atual: Educação Infantil no
Município de Campos dos Goytacazes, (cf. Lobo, Damasceno e Moço, 2005); Retratos Escolares: Estudo
Exploratório das práticas de Avaliação Escolar em uma escola de ensino fundamental da Rede estadual em
Campos dos Goytacazes” (cf. Lobo e Damasceno, 2005).
ano 2000. Em Campos dos Goytacazes, a População Economicamente Ativa
9
(PEA) está em
torno de 44%, sendo assim, aproximadamente 15% da população total, ou seja, cerca de
180.000 pessoas estavam desempregadas em 2000.
A situação do distrito de Travessão também é precária na questão dos indicadores sociais;
levantamento da Fundação Getúlio Vargas
10
sobre todos os distritos do Estado aponta que
Travessão figura entre os cinco piores distritos em vários indicadores, como anos de
escolaridade da população, por exemplo, apresentando 3,43 anos contra os 7,94 anos de
Niterói, primeiro colocado.
Para investigar o conjunto de circunstâncias que classificam esse distrito como um dos cinco
piores do Estado do Rio de Janeiro, organizo o estudo em cinco partes. Na primeira parte do
estudo discuto a questão da urbanização e seus efeitos nos dias atuais, destacando as
dificuldades enfrentadas pelos moradores recém-chegados à cidade no que diz respeito à
qualidade de vida, dando ênfase particular nos problemas relacionados ao oferecimento de
atendimento escolar.
A segunda parte do trabalho é reservada para um breve histórico do município de Campos dos
Goytacazes e seu desempenho em uma série de indicadores sociais que envolvem educação e
qualidade de vida em geral, além de dados sobre o orçamento do município.
No terceiro capítulo faço considerações metodológicas sobre a pesquisa, explicando como se
deu o trabalho de campo, baseado na metodologia utilizado por Pierre Bourdieu em “A
miséria do mundo” (2007).
No quarto capítulo descrevo o campo de estudo, traçando um breve perfil socioeconômico do
distrito de Travessão, e descrevendo as visitas realizadas às escolas; as entrevistas realizadas
com os moradores foram agrupadas por temas para melhor visualização da realidade que os
cerca.
No quinto capítulo procedo a uma análise das condições de vida da população de Travessão,
recolhidas em seu depoimento, tendo como pano de fundo os diversos estudos realizados no
Brasil sobre a pobreza urbana e como entendê-la melhor.
9
Segundo Almeida et al (2006, p. 159) “A PEA, contada a partir de 10 anos de idade, abarcaria todas as pessoas
que constituem oferta de mão de obra, incluindo empregados, trabalhadores autônomos, membros de família não
remunerados, empregadores, e outros que, embora aptos para o trabalho encontravam-se desempregados durante
o período de referência”.
10
http://www.fgv.br/cps/MapaFimFomeII/TABELAS/Ranking%20geral/ESM2RJ_Rankings_Distritos.pdf
acessado em 10/09/2008
2 – TERRITORIALIEDADE E ISOLAMENTO SOCIAL
O marco inicial deste trabalho dá-se a partir da leitura de um artigo de Mike Davis (2006) no
qual o autor trata da relação entre a involução urbana e o proletariado informal. Nessa
pesquisa, o autor afirma que o planeta se urbanizou ainda mais depressa do que previra o
Clube de Roma em seu relatório de 1972, de maneira que hoje, segundo dados da UN
Population Division (apud Davis, 2006), existem 400 cidades no mundo com mais de um
milhão de habitantes, número que chegará a 550, de acordo com prognósticos do mesmo
estudo.
Segundo os dados demográficos apresentados por Davis, a população urbana atual 3,2
bilhões de pessoas - é maior que a população total do planeta em 1960. Enquanto isso, os
dados referentes ao contingente de pessoas que habitam em áreas rurais - que atingiu seu pico
com 3,2 bilhões de pessoas começa a encolher a partir de 2020, de forma que as cidades,
segundo o autor, serão responsáveis por todo o crescimento populacional futuro do planeta.
Desse aumento mundial, 95% ocorrerá nas áreas urbanas de países em desenvolvimento, cuja
população dobrará para quase quatro bilhões de pessoas na próxima geração (Global Urban
Observatory apud Davis, 2006).
Davis considera que as políticas de desregulamentação agrícola impostas pelo Fundo
Monetário Internacional (FMI) e pela Organização Mundial do Comércio (OMC), além da
mecanização da produção rural, a adoção de uma política de importação de alimentos e a
consolidação das grandes propriedades rurais e do agronegócio em escala industrial são
grandes responsáveis por essa movimentação massiva em direção às cidades. Para o autor,
essas são “forças globais que empurram as pessoas para fora do campo” (p.196).
Paul Singer (1998, p.72), em seu estudo sobre a economia política da urbanização, examina
essas forças globais e considera que a migração rural no mundo se porque em muitos
lugares “não reservas de terra agriculturável, em outros ela se encontra monopolizada por
latifúndios”. Mais cedo ou mais tarde, diz Singer, acontecerá a saída do excedente de
população para a cidade, “cujo deslocamento é produzido por fatores de estagnação das
forças produtivas” (idem, ibidem, grifo do autor). A adoção do agronegócio também é
identificada pelo autor como um dos motivos responsáveis pelo êxodo da população rural.
Quando áreas em economia de subsistência são conectadas ao mercado, devido ao
crescimento da rede de transportes, fortes pressões acontecem no sentido da sua integração à
economia de mercado:
Tais pressões podem tanto levar a uma expropriação do solo por parte de
empresários capitalistas como dar lugar a um processo de diferenciação no seio da
própria comunidade, da qual acabam surgindo camponeses ricos e proprietários
médios, que se apossam por compra, arrendamento ou execução de dívidas de mais
e mais terras, cujos antigos donos são proletariados. (idem, ibidem)
O resultado desses processos, para Singer, é a liberação de um grande contingente de força de
trabalho, que não consegue se inserir no circuito produtivo do local, sendo obrigados então a
emigrar para as cidades que, segundo dados do Population Information Program (2002), desde
1950, vêm absorvendo quase dois terços da explosão populacional global. O destino desses
imigrantes, porém, não são as grandes cidades, como se poderia imaginar. De acordo com
dados do UN-Habitat, três quartos do crescimento populacional será suportado por cidades
pouco visíveis, dotadas de menor expressão e por áreas urbanas de tamanho reduzido, lugares
que, para os pesquisadores da Organização das Nações Unidas (ONU), “há pouco ou nenhum
planejamento para acomodar tais pessoas” (apud Davis, 2006, p. 192).
A urbanização nessas cidades menores, segundo Davis, é desatrelada da industrialização e até
do desenvolvimento propriamente dito, pois, segundo o autor, falta às cidades um “poderoso
motor industrial-exportador” (2006, p.194). Esse crescimento populacional, existente apesar
do desenvolvimento econômico zerado ou negativo é para o autor a face extrema do que se
pode chamar “superurbanização” (2006, p.195). Tal situação, para o autor, é herança de uma
conjuntura política global a crise da dívida externa no final da década de 1970 e a
subseqüente reestruturação das economias do Terceiro Mundo pelo FMI nos anos 1980 que
acometeu América Latina, Ásia e Oriente Médio.
Para Davis, os movimentos migratórios direcionados às cidades menores desafiam a visão da
“teoria social clássica, de Marx a Weber, que acreditava que as grandes cidades do futuro
seguiriam os passos industrializantes de Manchester, Berlim e Chicago” (p.195). Ao invés
disso, para Davis, o que se encontra nas cidades menores é um campo parcialmente
modernizado, uma paisagem híbrida, uma forma nem rural nem urbana, mas uma mistura dos
dois, na qual uma rede densa de transações liga grandes núcleos urbanos com suas regiões
circundantes.
Sem qualquer perspectiva de uma solução para a sua situação, os migrantes se instalam na
orla dessas explosões espaciais urbanas, ao contrário do conceito clássico de favela, ou
slums”, que se caracterizava “(...) pelo cortiço decadente no centro da cidade” (Davis, 2006,
p.200). Estas áreas, justamente por estarem localizadas nas pontas dos centros urbanos, como
já dito, instaladas na orla, à margem, são referidas como “áreas marginais”, valendo-se
justamente de sua localização espacial. Nas áreas marginais, o fornecimento de infra-estrutura
caminha de forma bem mais lenta do que o ritmo adotado pela urbanização, deixando esses
locais, em muitos casos, sem nenhuma espécie de serviço público, como saneamento básico,
por exemplo.
Os efeitos perversos causados por essa urbanização descontrolada também são destacados por
Singer (op.cit), quando trata especificamente da questão latino-americana. Para Singer a
população urbana apresenta um grande salto no crescimento e, com isso, os serviços urbanos
– principalmente os serviços referentes à habitação – atendem de forma cada vez mais
precária às necessidades dos habitantes.
Estudos realizados no Brasil apontam que o mesmo fenômeno da migração deslocada para as
cidades de pequeno e médio porte, e as dificuldades de infra-estrutura enfrentadas pelos
moradores desses lugares, ocorre em vários pontos do país. Aurílio Caiado (1997), em estudo
realizado sobre qualidade de vida em pequenos municípios do Estado de São Paulo, aponta
que, além da questão da renda e outros indicadores familiares, existem vários indicativos de
que a qualidade de vida possui também outros determinantes de corte mais geral, como o grau
de inserção da região no circuito produtivo, por exemplo.
A definição de qualidade de vida utilizada na pesquisa de Caiado diz respeito a um conjunto
de variáveis conceituadas a partir do habitat do agrupamento familiar sobre o tipo de
habitação, considerando inadequadas as moradias improvisadas, cuja construção seja de
zinco, aglomerado de madeira, papelão ou material misto. No quesito infra-estrutura básica
foram consideradas adequadas 1) as residências servidas por rede geral de água com
canalização interna, cujo esgoto sanitário seja ligado à rede geral ou fossa séptica, e cujo lixo
domiciliar seja coletado na porta; 2) a qualidade do entorno da habitação, terceiro quesito, foi
medido a partir da existência de algum tipo de pavimentação, guia de sarjeta e iluminação
pública; quanto ao último quesito avaliado, 3) equipamentos sociais, foram consideradas a
existência de escola de Ensino Fundamental, posto de saúde e praça, parque ou área de lazer
no bairro.
O primeiro dado importante da pesquisa de Caiado, diz respeito à composição da população
dos municípios: de acordo com os dados apresentados, os migrantes representam 29% do total
da população dos pequenos municípios e 22,3% das cidades médias, contra 21,72% das
regiões metropolitanas, o que corrobora as informações apresentadas por Davis sobre as
cidades de pequeno e médio porte se tornaram o destino dos migrantes nos últimos anos.
Caiado constata que quando os dados referentes à infra-estrutura das residências nos
municípios e regiões metropolitanas são analisados sem agrupamento, a extensão dos serviços
cobre quase cem por cento da demanda; porém, quando os dados são agrupados, o autor
aponta que o atendimento do poder público no tocante à infra-estrutura é mais concentrado
nas grandes regiões metropolitanas do que nos pequenos municípios.
Os dados aferidos pelo autor mostram que a qualidade de vida urbana cai vertiginosamente
nos pequenos municípios, apontando que os melhores indicadores estão nas áreas
metropolitanas. Enquanto no conjunto das três regiões metropolitanas do estado de São Paulo
(São Paulo, Campinas e Santos), 77,7% das moradias tem condições de vida urbana
totalmente adequadas, estes percentuais caem pra 33,46% nos pequenos municípios como
Dracena, Adamantina ou Assis.
Na questão educacional, o fenômeno se repete. Recentemente, Alves (2007) pesquisou a
eficácia escolar nas capitais brasileiras no período de 1996 a 2005. Dois tipos de fatores foram
especialmente tratados em seu estudo: os decorrentes das profundas alterações dos fluxos
escolares, que levou às escolas segmentos sociais tradicionalmente desfavorecidos, e os
relacionados com o processo de municipalização do ensino básico, o que ensejou a
diversificação prática das políticas educacionais nessa modalidade de ensino. Os resultados
gerais da pesquisa indicam que, enquanto no conjunto do Brasil ocorreu queda de 7,5 no
desempenho escolar no período 1995/2003 na escala do SAEB, nas capitais a qualidade da
escola manteve-se estável, o que evidencia novamente as dificuldades apresentadas pelos
pequenos municípios no tocante a serviços públicos.
As diferenças na qualidade dos serviços disponibilizados para os moradores de áreas mais
afastadas ou periféricas evidenciam um processo de segregação urbana, que vem se tornando
um fenômeno crescente no processo de urbanização dos dias atuais.
Luis César de Queiroz Ribeiro (2004)
11
, em artigo sobre a segregação urbana aponta a
existência de uma conexão estreita entre as características das nossas cidades e o padrão de
desigualdades prevalecentes na sociedade brasileira, que se dá na vigência dos clássicos
mecanismos da acumulação urbana, cujos fundamentos são as próprias desigualdades
cristalizadas na ocupação do solo. Para ele, grande parte da população, formada pelos
trabalhadores, é espoliada, por não terem reconhecidas socialmente suas necessidades de
consumo habitacional (moradia e serviços coletivos), inerentes ao modo urbano de vida. O
resultado disso é uma urbanização sem cidades.
A nossa urbanização, para Ribeiro, é caracterizada pelo permanente e crescente descompasso
entre o lento crescimento das cidades e a veloz expansão das suas margens. A urbanização
expressa, assim, mais fortemente o processo de desruralização da sociedade do que a
generalização da forma urbana de vida. Com efeito, se é verdade que as pessoas não estão
mais em casebres de zinco e madeira reutilizada, como nos primórdios das favelas, vilas,
barriadas etc., hoje elas moram em casas insalubres e totalmente inaptas à função de
sustentação de uma vida digna.
O autor afirma que começamos o novo milênio com crescentes evidências de que novos
mecanismos de espoliação urbana estão emergindo nas cidades, relacionados com o fato de
que a segregação e a exclusão habitacional produzem espaços nos quais se verifica a
acumulação de desvantagens sociais. São aglomerados urbanos de segmentos sociais vivendo
o processo de vulnerabilidade social decorrente da precariedade do emprego, do desemprego e
da perda da renda do trabalho, processo ao qual se somam os efeitos do empobrecimento
social, resultantes da desestruturação do universo familiar, do isolamento social, da
estigmatização e da desertificação cívica dos bairros em vias de guetificação.
11
Ver http://www.planum.net/topics/documents/Ribeiro.pdf acessado em 11/01/09
Para Ribeiro & Katzman (2008), o fenômeno da segregação urbana tem sido de grande
importância na explicação das novas modalidades de pobreza das sociedades latino-
americanas. Para os autores, tal fenômeno não é recente, pois desde a década de 40 do século
passado o crescimento das grandes cidades e o eventual surgimento de várias formas de
concentração territorial dos segmentos mais pobres, vem acontecendo, especialmente com os
migrantes vindos do campo:
Com efeito, um conjunto combinado de processos em curso vem transformando o
sentido e os efeitos da concentração territorial da pobreza, do qual podemos citar: a
segmentação do mercado de trabalho; o enfraquecimento dos regimes de bem estar
social, estruturados nos países da América Latina na fase anterior, como um misto
de direitos sociais seletivamente assegurados e a responsabilização do universo
familiar-comunitário pela proteção social; as transformações territoriais decorrentes
da liberalização do mercado imobiliário; o retraimento do papel regulador do Estado
sobre o solo e a ocupação do solo urbano, etc. (2008, p.16)
Esse conjunto de processos, segundo os autores, vai ter efeitos de cunho desestabilizadores,
especialmente nos bairros populares que concentram os segmentos mais vulnerabilizados pelo
“novo modelo de organização sócio-produtivo (Ribeiro & Katzman, 2008, p.24). A
manifestação mais evidente de tais efeitos é a tendência ao isolamento social desses
segmentos em relação aos circuitos sociais e econômicos principais da cidade. Para os
autores, na medida em que vem ocorrendo a privatização de serviços públicos, que em alguns
países da América Latina haviam alcançado um relativo grau de universalização, como na
educação e na saúde, esse isolamento social aumenta.
Em seus estudos sobre a dinâmica urbana e os espaços na América Latina, Bernardo Sorj e
Danilo Martucelli (2008, p.60), constatam que 70% da população do continente é urbana,
fragmentada residencialmente. Com os novos contextos que se apresentam, como a erosão das
formas de civilidades representadas pela desconfiança no outro, os modos de sociabilidades
apresentam significação diferentes
12
. De acordo com os autores, as novas modalidades do
capitalismo afetam os atributos das cidades como núcleos centrais da vida cidadã” causando
enormes impactos nas interações sociais nas cidades.
Esses autores acrescentam que a organização social do espaço das cidades acentuou a
crescente separação territorial entre os segmentos excluídos do mercado de trabalho dinâmico
e o resto da cidade, seja pelo deslocamento para a periferia das cidades, como assinalado
por Davis, seja pela deserção das camadas sociais privilegiadas através de diferentes formas
12
Segundo os autores, os avanços do processo de modernização/globalização na América Latina são vividos
com um mal-estar, onde os indivíduos se tornam mutuamente desconfiados, onde o “outro” representa uma
ameaça.
de isolamento social como os condomínios fechados, por exemplo. Essa organização social do
território das grandes cidades tem como conseqüência uma diminuição das oportunidades de
interação social entre os diferentes e os desiguais nas ruas e nas instituições que prestam
serviços coletivos com base territorial, como educação, lazer e saúde, por exemplo.
Esses serviços coletivos fracionam-se por meio de diversos mecanismos, através dos impactos
que os processos de segmentação residencial têm sobre a capacidade dos grupos sociais de
contribuir via tributos para o financiamento desses serviços. Para os autores, a reunião de uma
população pobre em territórios periféricos, ou áreas marginais segundo Davis, tende a gerar
serviços coletivos locais de baixa qualidade, utilizados unicamente por esses segmentos.
Já o isolamento pode ocorrer também em uma dimensão política, quando a segregação
residencial se associa à prática de patronagem local, através da qual os grupos vulneráveis
passam a ter acesso subalterno aos direitos de cidadania. Mesmo considerando formas mais
brandas, mais incompletas de encerramento, a concentração territorial dos grupos vulneráveis
pode desencadear mecanismos de reprodução da pobreza e das desigualdades sociais, de
forma a tornar mais difícil a “manutenção da sociedade como um coletivo de indivíduos
integrados sob os desejáveis princípios de equidade social” (Ribeiro & Katzman, 2008, p.17)
Aos efeitos gerados pelas novas modalidades de segregação urbana nos países da América
Latina, podemos adicionar também as desigualdades já decorrentes da manutenção pelas
elites do controle dos mecanismos de acesso à cultura letrada. Essa constatação pode ser
ilustrada com o caso das favelas no Rio de Janeiro:
[...] as favelas perdem sua capacidade de constituição de capital social e passam a
ser objeto de intensas práticas de violência simbólica traduzidas em processos de
estigmatização territorial [...] a conseqüência mostrada por vários estudos é o
isolamento sociocultural que atinge, sobretudo, as crianças e adolescentes. (id.
ibidem, p.31)
Por isso, para Katzman e Ribeiro, o maior desafio é o de evitar que o endurecimento da
pobreza e, portanto, da manutenção do círculo vicioso que rege as atuais modalidades de
produção e distribuição de riqueza, configure processo de reprodução e ampliação das
desigualdades sociais. Dentro desse contexto, a análise das oportunidades educacionais é de
grande importância, uma vez que o desenvolvimento de habilidades cognitivas é, nos dias
atuais, recurso-chave para a inserção das pessoas nas novas formas de produção de bens e
serviços. A promoção do acesso à educação de qualidade deve ser o motor das políticas
públicas, pela via de ações que desatrelem o desempenho escolar das desigualdades dos
contextos sócio-econômicos de origem, construídas nos âmbitos da família, da escola e dos
bairros em que essas crianças e adolescentes são socializados, visto que, em bairros pobres, os
contextos sociais são pouco incentivadores à realização de trajetórias convencionais de
ascensão social.
2.1 – ESCOLA E DESIGUALDADE SOCIAL
Por quase meio século, pesquisadores ao redor do mundo têm debatido os impactos do lugar
no emprego, educação e saúde física e mental. Em 1994 o Department of Housing and Urban
Development (HUD), do governo dos Estados Unidos lançou o programa Moving to
Opportunity (MTO) em cinco cidades americanas para tentar melhorar as oportunidades de
vida de famílias muito pobres, ajudando-os a sair de ambientes desvantajosos que
contribuiriam para resultados ruins nos quesitos educação e emprego. O programa tinha como
público-alvo famílias que viviam em algumas das comunidades mais pobres e com índice de
criminalidade mais alto do país, e utilizou subsídios de moradia para oferecer uma chance de
acesso a um bairro com taxas menores de pobreza. A expectativa era de que a mudança
poderia prover a essas famílias acesso a melhores escolas, saneamento básico e oportunidades
econômicas.
Em seus estudos sobre o MTO, os pesquisadores Briggs, Ferryman, Popkin e Rendón, (2008)
identificaram, entre o primeiro e terceiro ano de mudança em famílias de Boston e Baltimore,
melhoras significativas no desempenho educacional das crianças. Embora originalmente o
MTO não tivesse seu foco voltado especificamente para a melhoria nos níveis educacionais,
os elaboradores do programa acreditavam que se as famílias mudassem para bairros menos
pobres, as crianças poderiam ter acesso a escolas melhores.
A idéia de uma educação enquanto estratégia de diminuição das desigualdades sociais, que
levaria ao desenvolvimento do país, foi debatida com propriedade por Luiz Antônio Cunha
em seu estudo sobre educação e desenvolvimento social no Brasil (1975). Cunha analisa e
questiona a teoria do Capital Humano que atribui a educação variável política estratégica
capaz de intensificar o crescimento de renda, fato apontado a partir da observação dos
resultados da reconstrução das economias de Alemanha, Itália, França e Japão, em que se
concluiu a importância dos recursos humanos entre os fatores de produção, passando-se a
levar em conta, então, o nível educacional dos trabalhadores para explicar parte do
crescimento de renda. Além disso, sob a ótica do Capital Humano, a educação pode produzir
a modernização, seja a partir da qualificação profissional dos operários, ou através da
inculcação do espírito de empresa nas pessoas. Nessa perspectiva, a educação tem sido
julgada, também, como um instrumento privilegiado para a correção das desigualdades
existentes na sociedade contemporânea. Através das alterações produzidas nas pessoas à
época em que elas são suscetíveis de interiorização de hábitos duradouros, seria possível
alterar as relações sociais. A escola seria, então, o mecanismo que redistribui os indivíduos,
de forma a objetivar a construção de uma sociedade onde todas as posições da estrutura
ocupacional estão disponíveis para os indivíduos de quaisquer origens, desde que
adequadamente dotados e suficientemente motivados para competir por elas. Nesse caso, a
escola, preocupada com o homem, independente de sua origem, iria revelar e desenvolver, em
cada um, seus dotes inatos, donde se conclui que a ascensão ou descensão social do indivíduo
estaria condicionada à sua educação, ou ao seu nível de instrução, e não mais ao nascimento
ou fortuna que dispõe.
13
De acordo com Cunha, o exame do papel atribuído à educação revela fortes traços comuns e
algumas diferenças relevantes. Entre os pressupostos comuns está o de que a educação não
está, ou não pode estar ligada à ordem que produz as desigualdades. Porém, esse pressuposto
é falso, e desempenha um papel importante na legitimação da ordem econômica que produz as
injustiças criticadas. Para Cunha, as oportunidades de escolarização não são franqueadas a
todos, sendo extremamente desigual entre as diversas regiões do país, e entre as classes
sociais, e que mesmo onde maior atendimento, verifica-se uma grande desigualdade na
qualidade da educação. O que conta, em termos de qualificação, é o produto da educação, e se
esse é desigual, em termos de qualidade, não se pode dizer que igualdade de
oportunidades.
2.2 - DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO?
O Brasil vem passando por crescente processo de universalização do Ensino Fundamental.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) de 2007, 97,6% da
população com idade de 7 a 14 anos freqüentavam a escola. Este percentual não é
significativamente diferente nas regiões, pois alcança 98% nas regiões Sudeste, Sul e Centro-
Oeste; 97,1% no Nordeste e 96,2% no Norte. No entanto, como apontado por Cunha, os
13
Sobre a Teoria do Capital Humano, consultar sobretudo os trabalhos de Carlos Langoni (1978), no Brasil, a
quem Cunha se reporta, para contestá-lo.
dois grandes desafios enfrentados são os relacionados ao aumento da eficácia e da equidade
do sistema escolar.
Estudos apontam que a universalização do Ensino Fundamental e a existência de avaliações
sistemáticas SAEB, Prova Brasil, IDEB têm incentivado trabalhos sistemáticos sobre os
fatores que explicam a qualidade do ensino (Ribeiro & Koslinski, 2008). A constatação que
esses autores apresentam é a de que a garantia do acesso à educação básica não garante a
qualidade da educação que cada criança deveria receber.
O motivo para a impossibilidade de sucesso apenas com a entrada na escola, segundo Cunha,
é de que a educação está toda organizada para premiar as aptidões desenvolvidas nas classes
não trabalhadoras da sociedade, e os processos de avaliação voltados para destacar os
indivíduos que absorveram as aptidões dessas classes.
O crescimento dos efetivos escolares, para Bourdieu (2007), não representa necessariamente a
possibilidade de uma democratização do ensino. De fato o que ocorre é uma intensificação da
concorrência, devido à entrada no jogo escolar das categorias antes excluídas. Como o próprio
Bourdieu aponta:
[...] por um lado, as escolas precárias, que se multiplicaram apressadamente nos
subúrbios cada vez mais pobres, para acolher cada vez mais alunos, cada vez menos
preparados culturalmente, sem mais muito a ver com o curso escolar, como fora
idealizado nos anos 50; do outro, os colégios selecionados, onde alunos de famílias
mais abastadas podem ter uma vida escolar bastante parecida com aquela dos seus
pais e avós. (id, p.481)
Segundo Bourdieu, os novos beneficiados começaram a perceber que não era suficiente ter
acesso ao ensino secundário para ter sucesso nele, e que não era suficiente ter sucesso nele
para ter acesso às posições sociais vantajosas que o secundário abria, então, na França, para a
elite. Mesmo com todas as mudanças, a estrutura de distribuição diferenciada dos proveitos
escolares e dos benefícios sociais correlativos se manteve sem grande esforço.
Em seus estudos sobre as categorias do juízo professoral, Pierre Bourdieu (2001) afirma que
os adjetivos utilizados para classificar os alunos cumprem a função contraditória de permitir
uma operação de classificação social, de forma dissimulada. Para esse autor, a taxionomia da
percepção escolar nada mais é do que uma forma irreconhecível de taxionomia dominante,
que se organiza a partir da hierarquia das qualidades “inferiores”, “médias” e “superiores”,
cada qual relacionada a uma classe social, especificamente aos pobres, aos burgueses e aos
ricos, “(...) constituindo como excelentes as qualidades apropriadas por aqueles que são
socialmente dominantes, consagra sua maneira de ser e seu estado” (id, p.196).
Com efeito, a socialização pretendida pela escola como instituição pressupõe que as crianças
tenham adquirido previamente um conjunto de disposições necessárias à aquisição da cultura
letrada. Em outros termos, “(...) o universo social no qual a criança é socializada deve
transmitir vários elementos do capital cultural que são pressupostos da forma de capital
cultural que a escola tem como missão transmitir”. (Ribeiro & Katzman, 2008, p.31)
Com o aumento das vagas nos efetivos escolares, o processo de eliminação foi adiado e
diluído no tempo, ao invés de apenas privar o acesso das pessoas à educação, e isto faz com
que a instituição seja habitada em longo prazo por excluídos potenciais, vivendo as
contradições e os conflitos associados a uma escolaridade sem outra finalidade que ela
mesma. E essa afirmação se confirma nos relatos de alguns adolescentes moradores de
subúrbios franceses sobre a sua relação com a escola, recolhidos por Bourdieu. O autor
conclui que, em seus comportamentos e, sobretudo, em sua relação com o futuro, esses
adolescentes apresentam todas as características dos sub-proletários, além de serem afetados,
de maneira profunda e duradoura, pelos efeitos de uma estada prolongada na escola.
Todas as descrições apresentadas convergem para o que se encontra no âmago da experiência
desses adolescentes: o sentimento de estarem acorrentados pela falta de dinheiro e de meios
de transportes a um lugar degradante e voltado à degradação que pesa sobre eles como
maldição ou, muito simplesmente, um estigma, que impede o acesso ao trabalho, lazer, bens
de consumo, etc. E, mais profundamente, a experiência inexoravelmente repetida do fracasso,
antes de tudo na escola, e depois no mercado de trabalho que impede ou desencoraja qualquer
antecipação razoável do futuro.
Assim sendo, a instituição escolar passa a ter outro significado para os habitantes dos lugares
mais afastados, um significado bem distante daquele dividido pelos alunos das escolas mais
tradicionais, como os liceus parisienses estudados por Bourdieu. A instituição escolar,
constata o autor, é vista cada vez mais, tanto pelas famílias como pelos próprios alunos dos
subúrbios e áreas afastadas, como engodo e fonte de uma imensa decepção coletiva: uma
espécie de terra prometida, sempre igual no horizonte, que recua à medida que dela se
aproximam.
Diferentes estudos realizados no Brasil apontam para os diferenciais significativos entre
escolas públicas localizadas em áreas centrais e periféricas, constatando importantes
discrepâncias entre as escolas, sendo aquelas localizadas em bairros pobres as que apresentam
pior situação (Cunha, Jiménez & Jakob, 2005). Especificamente em grandes áreas urbanas, a
situação das escolas de periferia no Brasil representa um caso à parte. Estudos comprovam
que o indivíduo que mora na periferia tem menor probabilidade de concluir o Ensino Médio
que outros indivíduos igualmente pobres, porém moradores de áreas mais centrais (Torres,
Ferreira & Gomes, 2005). Em ambos os casos, o elemento espacial teria incidência sobre o
desempenho escolar dessas pessoas.
Cada sociedade escolhe um patamar possível para o aprendizado de seus estudantes, de
acordo com as opções históricas. Entretanto, em torno desta estrutura grande variação. Em
sociedades onde existem grandes desigualdades, como o Brasil, o nível esperado de
desempenho varia de forma acentuada com o nível socioeconômico, levando a questão para
além dos muros da escola, uma vez que “o sistema escolar sozinho não consegue mudar esta
determinação social, mas diferentes escolas têm sucesso na tarefa de fazer com que seus
alunos tenham aprendizado melhor do que o esperado pelas suas condições sociais”. (Alves &
Soares, 2007, p.458)
Para Bourdieu, este é um dos efeitos mais poderosos e mais escondidos da instituição escolar
e da relação com as posições sociais que em teoria deve oferecer: a escola está produzindo
cada vez mais indivíduos que padecem de uma espécie de mal-estar crônico, instituído pela
experiência, mais ou menos completamente reprimida, do fracasso escolar, absoluto ou
relativo, e obrigados a sustentar frente a si mesmos e aos outros com um blefe permanente,
uma imagem de si duramente arranhada ou mutilada.
Investigações realizadas por Damasceno e Rangel (2006) sobre as formas de atendimento
escolar dispensada às crianças de zero a cinco anos em Campos dos Goytacazes, constatam a
precariedade de parte da rede física escolar do município, especialmente na periferia. Para
observar melhor outros aspectos do atendimento escolar nesse município, como a percepção
que os pais têm da escola em que o filho está inserido, é importante traçar um breve panorama
de Campos dos Goytacazes.
3 – A MISÉRIA ABASTADA: CAMPOS DOS GOYTACAZES
Campos dos Goytacazes é um município localizado no norte do Estado do Rio de Janeiro,
com uma população de 426.154 habitantes dispersa em uma extensa área geográfica de
4.031,910 km²
14
. De acordo com os dados de prestação de contas apresentados pela prefeitura,
disponíveis para download em sua gina na internet, o orçamento anual referente ao ano de
2007 foi de R$ 1,165 bilhão. A principal receita, responsável por custear este orçamento,
cerca de R$ 775 milhões, provém de royalties da produção de petróleo. Desse orçamento, no
mesmo ano, pouco mais de 10% - cerca de R$ 125 milhões são gastos com a educação,
sendo que cerca de R$ 80 milhões são destinados à folha de pagamento, mas somente R$ 37
milhões são destinados ao pagamento dos funcionários concursados, estando o restante
dividido entre os funcionários contratados por tempo determinado e os serviços de terceiros
referentes à pessoa jurídica, o que deixa então R$ 43 milhões disponíveis para serem
divididos para o custeio de reformas e ampliações das unidades escolares (R$ 1,2 milhões),
construção de novas unidades escolares (R$ 1,6 milhões), construção de creches (R$ 1,4
milhões), apoio administrativo da Secretaria de Educação (R$ 2,5 milhões), merenda escolar
(R$ 7,2 milhões), bolsas para escolas particulares de Ensino Fundamental (R$ 5,8 milhões),
bolsas para o Ensino Superior (R$ 17 milhões), entre outros.
Em seu sítio na internet, a prefeitura municipal de Campos disponibiliza para download os
dados de prestação de contas do município, assim como o plano plurianual, que se divide em
seis documentos: “estruturação urbana”; “gestão dinâmica da educação”; “infra-estrutura”;
“planejamento urbano e rural”; “política social” e “qualificação dos profissionais da
educação”. Ao se observar de maneira mais atenta esses documentos, podemos identificar que
os mesmos não contemplam questões importantes para a mitigação da segregação urbana, ou
quando as considera, não cumpre as metas planejadas.
No que diz respeito ao documento, “gestão dinâmica da educação”, os projetos se resumiam a
dois: (a) compra de software educacional em 2007, a ser instalado em todas as escolas, cujo
objetivo é a formação de uma base de dados da educação municipal que possa ser acessada
em tempo real; (b) construção de uma sede própria para a Secretaria Municipal de Educação
também prevista para 2007, visto que a mesma funciona no prédio do “Palácio da Cultura”.
Nenhum dos dois objetivos foi alcançado, pois nas escolas José Giró Faísca e Carlos Chagas
as diretoras afirmaram não possuir qualquer software disponibilizado pela prefeitura, e na
14
Ver http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/contagem2007/contagem.pdf acessado em 04/09/2008
escola Francisco Ricardo Lopes Alves dos Santos o único computador está quebrado seis
meses. Além disso, a SMEC continua sem sede própria.
O segundo documento, o maior de todos com quatro páginas, sob o título “infra estrutura”,
aponta o objetivo principal a ser alcançado: - “Requalificar a infra-estrutura urbana,
melhorando sua mobilidade interna, integrando aos seus recursos naturais, gerando
competitividade e funcionalidade de seu território, coesão e redistribuição social”. Para tanto,
estabelece vinte projetos a serem desenvolvidos, englobando desde restauração de prédios
tombados e monumentos a construção de trevo na BR-101, passando por abertura,
conservação e manutenção de vias urbanas e rurais, com a meta de quatrocentas mil vias
abertas, conservadas e mantidas por ano até 2009.
15
No que diz respeito ao item
“Pavimentação Asfáltica”, cuja meta é de cento e cinqüenta mil vias pavimentadas por ano até
2009, pode-se afirmar que nenhuma rua nas cercanias das escolas pesquisadas neste trabalho
receberam este serviço até o momento, mantendo sua pavimentação de paralelepípedos.
No documento referente às políticas sociais da prefeitura, um capítulo inteiro reservado
para a questão da educação. Segundo o texto, as metas propostas têm por objetivo “Tornar o
município referência na prestação de serviços educacionais em todos os níveis, priorizando a
democratização do acesso à escola e ao conhecimento”. Para atingir esse objetivo, a prefeitura
discrimina os pontos de sua estratégia de implementação, a saber: Identificação das
demandas para implementação das ações”; “Informatização dos setores da SMEC e Unidades
Escolares”; “Acesso de alunos às Unidades Escolares”; “Implantação dos cadernos didáticos”;
“Autonomia financeira para as escolas”; “Reforma/ampliação das Unidades Escolares”;
“Construção de novas Unidades Escolares”.
Não poderia deixar de fazer algumas observações que considero importantes. No quesito
"priorizar a democratização do acesso à escola e ao conhecimento" uma indicação da
forma como a SMEC entendeu realizar esta meta: distribuindo verbas públicas para o setor
privado de ensino. Os valores distribuídos a tulo de bolsas para escolas particulares de
Ensino Fundamental (R$ 5,8 milhões) e de bolsas para o Ensino Superior particular (R$ 17
milhões) correspondem a mais da metade dos valores destinados ao pagamento dos
funcionários do quadro efetivo da prefeitura. Que critérios o poder público municipal adota
para fazer essa distribuição de recursos públicos? Que escolas recebem esses recursos? Como
são selecionados os alunos? Com relação às bolsas para o Ensino Superior, como são
15
Dificilmente esta meta poderá ser cumprida no prazo, visto que, até dezembro de 2008, era impossível
transitar nas vias de acesso ao Travessão, posto que a estrada que garante o acesso a esse distrito (principalmente
às escolas) estavam interditadas devido às fortes chuvas.
selecionadas as instituições superiores que recebem esses recursos? E, mais importante, a
quem o poder público municipal beneficia com bolsa para cursos superiores, se não mantém
um programa oficial de aperfeiçoamento do magistério? Certamente um estudo que se
proponha investigar essas questões, em um futuro próximo, poderá revelar os efeitos dessa
distribuição de recursos públicos para o setor privado, embora, no momento, este não seja o
objeto deste trabalho.
Mesmo dispondo de cifras tão altas em seu orçamento, o município de Campos apresenta
sérias dificuldades em seus indicadores sociais. Seu desempenho na avaliação do Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) de 2000, indicador desenvolvido pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) que considera indicadores como pobreza,
alfabetização, emprego formal, violência e desigualdade fez com que a cidade ocupasse a
posição de número 1.818 entre todos os municípios brasileiros, e a 54ª colocação entre os 92
municípios que compõem o Estado do Rio de Janeiro.
Nos resultados do IDEB
16
em 2005, Campos apresenta a pior média das redes municipais de
a série do estado do Rio de Janeiro: 2,9 na escala de 0 a 10. No ranking nacional, o
município ocupa a posição 1.297. No que diz respeito à segunda fase do Ensino Fundamental
(5ª a série) o desempenho de Campos cai para 2,7. Para efeito de comparação, o IDEB
referente ao ensino fundamental do município de Coronel Murta, localizado na mesorregião
do Vale do Jequitinhonha, amplamente conhecida por seus baixos indicadores sociais, foi de
3,8, mesmo o município possuindo um PIB per capita de R$ 1.948,67
17
, enquanto em
Campos, o mesmo indicador é no valor de R$ 37.813,00 para cada habitante.
16
O IDEB monitora o funcionamento dos sistemas de ensino municipais, estaduais e federal no país. Sua
importância em termos de diagnóstico e norteamento de ões políticas focalizadas na melhoria do sistema
educacional esem: a) detectar escolas e/ou redes de ensino cujos alunos apresentam baixa performance em
termos de rendimento e proficiência b) monitorar a evolução temporal do desempenho dos alunos dessas escolas
e/ou redes de ensino.
17
Ver http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/pibmunicipios/2005/tab01.pdf acessado em 23/09/2008
Figura 1 - Mapa dos distritos de Campos dos Goytacazes
nos resultados referentes a 2007, o município apresenta crescimento impressionante no
índice, obtendo média 4,3 referente ao Ensino Fundamental, valor que segundo as previsões
do próprio IDEB só deveria ser alcançado na avaliação do ano de 2015.
Esse aumento de quase 50% no índice do Ensino Fundamental do município representa o
segundo maior crescimento do Estado do Rio de Janeiro na avaliação do IDEB. Campos ficou
atrás apenas do município de Paty do Alferes, localizado na região sul do estado, com
população de 26.099
18
habitantes que, entre os anos de 2005 e 2007, apresentou um salto de
2,9 no índice, para 4,8.
Embora deva ser reconhecido o salto na média do município, é importante ressaltar que,
mesmo dispondo do décimo oitavo maior PIB do país, no que diz respeito à média no IDEB
2007, Campos ficou atrás de municípios como Betim, em Minas Gerais, vigésimo maior PIB
do país, que obteve 4,5 nas fases iniciais, e Cascavel no Estado do Paraná, centésimo maior
PIB do Brasil, mas que obteve média de 5,1 no mesmo indicador. Além disso, para se
18
Ver http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/estimativa2008/POP2008_DOU.pdf acessado em 25
de Novembro de 2008.
construir o indicador do município, apenas 35 das 144 escolas municipais foram avaliadas,
contra 53 escolas municipais avaliadas em Betim, por exemplo.
Segundo um levantamento realizado no ano de 2004, feito pelo Observatório Socioeconômico
da região norte fluminense, Campos possui oficialmente 15 distritos e 102 bairros, e sua
extensão territorial ocupa 58,3% da região norte fluminense. O município apresenta um
aceleramento na sua urbanização a partir da década de 1950 do século passado, não na
cidade, como também nas sedes distritais (Costa & Alves, 2004, p.4). No decorrer da década
seguinte, aumenta o processo de parcelamento da terra e a ocupação ultrapassa o leito das
ferrovias, expandindo-se em todas as direções nas formas de grandes loteamentos conhecidos
como “parques” ou “jardins”. Durante as décadas seguintes são mantidos, porém de forma
mais lenta, as tendências de crescimento ao longo do rio Paraíba, assim como a expansão no
sentido norte, acompanhando a estrada de ferro e a BR-101. No fim da década de 1990, pode-
se perceber um ritmo acelerado de crescimento rumo ao litoral, assim como a continuidade de
um forte crescimento urbano aos redores da BR-101 em direção à Vitória, de forma que
“seguindo a BR-101 em direção à Vitória, de Campos até Travessão também se percorre
grande parte do trajeto dentro de áreas urbanas” (idem, ibidem).
Segundo Vercezi (2001), quando a aglomeração urbana compreende uma vasta área urbana
que transcende os limites do município, pode ser qualificada como uma área metropolitana,
exercendo polarização direta sobre um espaço regional que transcende aquele nível de
comutação diária. A delimitação formal dessa região a adjetiva como metropolitana. Se a
aglomeração compreende cidades de menor porte, passa a polarizar uma unidade regional que
se ajusta perfeitamente ao conceito de microrregião. Se futuramente os distritos de Travessão
e Goytacazes se tornarem independentes, teríamos então o aparecimento de uma nova
microrregião no Estado do Rio de Janeiro.
Entretanto, conforme apontam Stellet & Borba
19
em seu estudo sobre a realidade sócio-
econômica de Campos dos Goytacazes (2008), o crescimento, mesmo que acelerado, não é
sinônimo de desenvolvimento, se ele não amplia o emprego e não atenua as desigualdades.
Em Campos, apesar do expressivo volume de recursos financeiros injetados, uma pesquisa de
José Luis Vianna da Cruz (2005) constata que “os empregos e renda gerados pela atividade
petrolífera não estão alterando qualitativamente o quadro de desigualdades, tanto sociais
quanto espaciais”. (p. 51)
19
Ver http://www.abep.nepo.unicamp.br/encontro2008/docspdf/ABEP2008_1330.pdf acessado em 11/01/09
Mesmo tendo um desempenho ruim em seus indicadores sociais, o município de Campos
dispõe de grandes recursos financeiros e apresenta um crescimento urbano que possibilitaria a
criação de uma nova microrregião no Estado. Dadas essas condições, e tendo em vista as
conseqüências provocadas por uma urbanização desatrelada de um desenvolvimento
econômico, como a segregação urbana, o isolamento social, o acesso precário a serviços
sociais como saúde e educação, é de suma importância investigar as condições de reprodução
da pobreza e desigualdade no município. Para realizar tal tarefa, a pesquisa se propõe a
analisar as condições de sobrevivência dos moradores do distrito de Travessão, face à situação
de expansão urbana que seus moradores têm enfrentado, e os eventuais desdobramentos desse
crescimento.
4 - EFEITOS DE LUGAR
Falar de subúrbios problemáticos ou de guetos, para Bourdieu, é evocar fantasmas
alimentados de experiências emocionais suscitadas por palavras ou imagens mais ou menos
não controladas, como as veiculadas pela imprensa sensacionalista, ou pela propaganda
política, ao invés da realidade amplamente desconhecida desses lugares. Para romper com as
imagens pré-concebidas sobre estes lugares, não basta ir ver o que existe, pois para o autor, a
ilusão empirista jamais se impõe tanto como no caso em que o confronto direto com a
realidade não ocorre sem algumas dificuldades, portanto sem alguns méritos.
É preciso, argumenta Bourdieu, mudar a forma de pensar esses lugares, a fim de proceder a
uma análise sobre as estruturas que os envolvem:
[...] praticar o pensamento para-doxal (grifo do autor) que, dirigido ao mesmo
tempo contra o bom senso e os bons sentimentos, se expõe a aparecer aos bem-
pensantes dos dois lados, seja como um preconceito, inspirado pelo desejo de
‘causar admiração ao burguês’, seja como uma forma de indiferença insuportável
relativamente à miséria dos mais carentes. Não se pode romper com as falsas
evidências e com os erros inscritos no pensamento substancialista dos lugares (grifo
do autor) a não ser com a condição de proceder a uma análise rigorosa das relações
entre as estruturas do espaço social e as estruturas do espaço físico. (2007, p.159)
Considerados como corpos, os seres humanos estão, do mesmo modo que as coisas, situados
em um lugar e eles ocupam um espaço. Bourdieu define o lugar como:
[...] o ponto do espaço físico (grifo do autor) onde o agente ou uma coisa se encontra
situado [...] seja como localização (grifo do autor), seja, sob um ponto de vista
relacional, como posição (grifo do autor), como graduação em uma ordem. O lugar
(grifo do autor) ocupado pode ser definido como a extensão, a superfície e o volume
que um indivíduo ou uma coisa ocupa no espaço físico, suas dimensões, ou melhor,
seu entulhamento. (idem, p.160)
Os agentes sociais são constituídos como tais pela relação com um espaço social, assim como
as coisas na medida em que elas são apropriadas pelos agentes, estão situadas em um lugar do
espaço social que se pode caracterizar por sua posição relativa pela relação com os outros
lugares e pela distância que o separa. Como o espaço físico é definido pela exterioridade
mútua das partes, o espaço social se define pela exclusão mútua das posições que o
constituem, ou como estrutura de justaposição de posições sociais, conforme aponta o autor.
Para Bourdieu, a estrutura do espaço social se manifesta nos contextos mais diversos, sob a
forma de oposições espaciais, onde o espaço habitado funcionaria como uma espécie de
simbolização espontânea do espaço social. Não há espaço, afirma o autor, em uma sociedade
hierarquizada, que não seja hierarquizado e que não exprima as hierarquias e as distâncias
sociais sob uma forma deformada e dissimulada pelo efeito da naturalização que a inscrição
durável das realidades sociais no mundo natural acarreta.
O espaço social se retraduz no espaço físico, mas sempre de maneira mais ou menos confusa,
com o poder sobre o espaço que a posse do capital proporciona, sob suas diferentes espécies,
se manifestando no espaço físico apropriado sob a forma de certa relação entre a estrutura
espacial da distribuição dos agentes e a estrutura espacial da distribuição dos bens ou dos
serviços, privados ou blicos. A posição de um agente no espaço social se exprime no lugar
do espaço físico em que está situado, e pela posição relativa que suas localizações temporárias
e, sobretudo, permanentes ocupam em relações às localizações de outros agentes.
Assim, o espaço social reificado se apresenta como a distribuição no espaço físico de
diferentes espécies de bens ou de serviços e também de agentes individuais e de grupos
fisicamente localizados e dotados de oportunidades de apropriação desses bens e desses
serviços mais ou menos importantes. O valor das diferentes regiões do espaço social reificado
se define na relação entre a distribuição dos agentes e a distribuição dos bens no espaço.
Os diferentes espaços sociais fisicamente objetivados tendem a se sobrepor, resultando
concentrações dos bens mais raros e de seus proprietários em certos lugares do espaço físico
que se opõe assim, em todos os aspectos, aos lugares que agrupam principalmente e, por
vezes, exclusivamente, os mais carentes.
Para Bourdieu, essas grandes oposições sociais objetivadas no espaço físico, como
centro/periferia, por exemplo, tendem a se reproduzir nos espíritos e na linguagem sob a
forma de oposições constitutivas de um princípio de visão e de divisão, isto é, enquanto
categorias de percepção e de apreciação ou de estruturas mentais. A incorporação insensível
das estruturas da ordem social se realiza através da experiência prolongada e indefinidamente
repetida das distâncias espaciais nas quais se afirmam distâncias sociais, e também mais
concretamente, os deslocamentos e movimentos do corpo que essas estruturas sociais
convertidas em estruturas espaciais e assim naturalizadas organizam e qualificam socialmente
como ascensão ou declínio, entrada ou saída, aproximação ou distanciamento em relação a um
lugar central e valorizado.
Como o espaço social encontra-se inscrito ao mesmo tempo nas estruturas espaciais e nas
estruturas mentais que são, por um lado, o produto da incorporação dessas estruturas, o espaço
é um dos lugares onde o poder se afirma e se exerce, e sem dúvida, sob a forma da violência
simbólica como violência desapercebida.
O espaço, ou mais precisamente, os lugares e os locais do espaço social reificado, e os
benefícios que eles proporcionam são resultados de lutas dentro dos diferentes campos. Os
ganhos do espaço, para o autor podem tomar a forma de ganhos de localização:
[...] eles mesmos suscetíveis de ser analisados em duas classes: as rendas (ditas de
situação) que são associadas ao fato de estarem situadas perto de agentes e de bens
raros e cobiçados (como os equipamentos educacionais, culturais ou de saúde); os
ganhos de posição ou de classe (como os que são assegurados por um endereço
prestigioso), caso particular dos ganhos simbólicos de distinção que estão ligados à
posse monopolística de uma propriedade distintiva. [...] Eles podem também tomar a
forma de ganhos de ocupação, a posse de um espaço físico podendo ser uma forma
de manter à distância ou de excluir toda espécie de intrusão indesejável. (Bordieu,
2007, p.163)
A capacidade de dominar o espaço, sobretudo apropriando-se de bens raros que se encontram
distribuídos, depende do capital que se possui. O capital, para Bourdieu, permite manter à
distância as pessoas e as coisas indesejáveis ao mesmo tempo aproximar-se de pessoas e
coisas desejáveis:
[...] a proximidade no espaço físico permite que a proximidade no espaço social
produza todos os seus efeitos, facilitando ou favorecendo a acumulação de capital
social e, mais precisamente, permitindo aproveitar continuamente encontros ao
mesmo tempo casuais e previsíveis que garante a freqüência a lugares bem
freqüentados (idem, ibidem, p.164).
Inversamente, os que não possuem capital são mantidos à distância, seja física, seja
simbolicamente, dos bens socialmente mais raros e condenados a estar ao lado das pessoas ou
dos bens mais indesejáveis e menos raros. Para o autor, a falta de capital intensifica a
experiência da finitude, prendendo a pessoa a um lugar.
As disputas para a apropriação do espaço podem tomar uma forma individual, onde a
mobilidade espacial os deslocamentos nos dois sentidos entre o centro e a periferia, por
exemplo é um bom indicador dos sucessos ou dos revezes alcançados nessas lutas e de toda
a trajetória social.
O sucesso nessas disputas, para Bourdieu, depende do capital acumulado em suas diferentes
espécies; pode-se ocupar fisicamente um habitat sem habitá-lo propriamente falando se não se
dispõe dos meios tacitamente exigidos, a começar por certo hábito. Se o habitat contribui para
fazer o hábito, o hábito contribui também para fazer o habitat através dos costumes sociais
mais ou menos adequados que ele estimula a fazer. Para o autor, isso é um indicativo de
dúvida sobre a crença da aproximação especial entre agentes muito distantes no espaço social
poder, por si mesma, ter um efeito de aproximação social.
Entre todas as propriedades que a ocupação legítima de um lugar supõe estão as que se
adquirem pela ocupação prolongada desse lugar e a freqüentação seguida de seus ocupantes
legítimos, caso do capital social de relações ou ligações ou de todos os aspectos mais sutis do
capital cultural e lingüístico, como os modos corporais e a pronúncia, por exemplo.
Sob pena de se sentirem deslocados, os que penetram em um espaço devem cumprir as
condições que ele exige tacitamente de seus ocupantes. Pode ser a posse de certo capital
cultural, cuja ausência pode impedir a apropriação real dos bens ditos públicos ou a própria
intenção de se apropriar deles. De fato, certos espaços, e em particular os mais seletos, os
mais fechados, exigem não somente capital econômico e capital cultural, como também
capital social.
O bairro chique consagra simbolicamente cada um de seus habitantes, permitindo-lhe
participar do capital acumulado pelo conjunto dos residentes. O bairro estigmatizado, para
Bourdieu, degrada simbolicamente os que o habitam, e que, em troca o degradam
simbolicamente; estando privados de todos os trunfos necessários para participar dos
diferentes jogos sociais, eles não têm em comum senão sua comum excomunhão. A reunião
num mesmo lugar de uma população homogênea em sua privação de bens, afirma o autor, tem
também como efeito, redobrar essa mesma privação, principalmente em matéria de cultura e
de prática cultural: as pressões exercidas, em escala da classe ou do estabelecimento escolar
ou em escala do conjunto habitacional pelos mais carentes ou os mais afastados das
exigências constitutivas da existência “normal”, produzem um efeito de atração, para baixo,
portanto de nivelamento, e não deixam outra saída que a fuga para outros lugares, muitas
vezes impedida pela falta de recursos.
4.1 - O DISTRITO DE TRAVESSÃO
O distrito escolhido para o desenvolvimento da pesquisa foi Travessão, atualmente sétimo
distrito de Campos dos Goytacazes, que em 2004 contava com uma população de 17.941
habitantes
20
. Hoje, segundo relatos de moradores e das diretoras das escolas, o distrito de
Travessão tem uma população de cerca de 40 mil habitantes. Tendo sido anexado ao
município no ano de 1892, esse distrito é cortado pela BR-101, rodovia que liga Campos à
cidade de Vitória, no Estado do Espírito Santo. Segundo levantamento da Fundação Getúlio
Vargas
21
sobre todos os distritos do Estado, Travessão figura entre os cinco piores distritos
em vários quesitos, como anos de estudo, por exemplo, apresentando 3,43 anos contra 7,94 de
Niterói, primeiro colocado, renda do trabalho, com R$ 348,26 contra R$ 1.425,31 de Itaipu, e
no índice de proporção de miseráveis na população, Travessão apresenta média 39,48 contra
8,75 de Nova Friburgo.
Um dos maiores distritos do município, Travessão apresenta várias das características
apontadas por Davis em seu estudo sobre a urbanização dos dias atuais, a começar pela
paisagem híbrida; ao longo da BR-101, que corta o distrito, casas sem acabamento,
construídas de maneira improvisada na beira da estrada dividem espaço com revendedoras
multinacionais de caminhões, motéis e ferros-velho. Nas partes mais centrais do distrito, a
mesma paisagem se apresenta, onde carros dividem espaço com carroças puxadas a cavalo.
Outra característica foi descoberta a partir do depoimento de vários moradores, que relataram
que o distrito sofreu um surto de crescimento grande nos últimos dez anos. As áreas do km13
e 14, segundo o relato de vários entrevistados, “era brejo, mato e canavial”. Hoje, essas áreas
se encontram ocupadas pelas mesmas casas sem acabamento que acompanham a rodovia. Ao
se adentrar nas ruas do km 13 e 14, áreas em visível expansão, pode-se observar que muitas
casas não possuem número, e que apenas parte das ruas têm calçamento, o que acarreta sérios
problemas durante o período de fortes chuvas que acometem o município durante o mês de
dezembro, provocando o alagamento das ruas, impedindo a passagem de pessoas ou de
qualquer veículo.
20
Ver http://www.cefetcampos.br/observatorio-socioeconomico/nossas-publicacoes/Boletim11.pdf acessado no
dia 05/09/2008
21
http://www.fgv.br/cps/MapaFimFomeII/TABELAS/Ranking%20geral/ESM2RJ_Rankings_Distritos.pdf
acessado em 10/09/2008
O distrito possui apenas um hospital, motivo de reclamação de todos os moradores
entrevistados. Por mais que o assunto fosse a escola que seus filhos freqüentavam, todos, sem
exceção, fizeram questão de reclamar do hospital, que não oferece atendimento de qualidade
para os moradores, ou nas palavras deles mesmos “não funciona”, “é uma bagunça”.
No que diz respeito a transporte coletivo, apenas uma linha de ônibus faz o percurso saindo da
rodoviária localizada no centro de Campos com destino a Travessão, a cada 45 minutos, o que
obriga os moradores a recorrerem ao transporte alternativo – vans – que circulam com
periodicidade um pouco menor – 30 minutos.
Dentro do distrito de Travessão, na localidade de Jacarandá, a paisagem também apresenta
aspectos híbridos, e o acesso se por uma estrada que, embora pavimentada, apresenta
muitos buracos, e que ficou completamente alagada durante o mês de dezembro, impedindo o
acesso pelo centro de Travessão.
Em Travessão, após uma rodada prévia de visitas a várias escolas municipais, tive
oportunidade de conversar com algumas diretoras. A partir dessas conversas, optei por definir
três escolas como o objeto de minha pesquisa: a Escola Municipal José Giró Faísca,
localizada na Rua São José, sem número, no km 13 da BR-101; a Escola Municipal Francisco
Ricardo Lyzandro Alves Santos, localizada na Rua 1, sem número, no km 15 da BR-101 e a
Escola Municipal Carlos Chagas, cujo endereço na listagem fornecida pela Secretaria
Municipal de Educação de Campos consta apenas “Jacarandá–Travessão”, não especificando
se Jacarandá é o nome da rua, ou da estrada ou do bairro em que se localiza a escola. Ao
entrar em contato por telefone com a Superintendência Municipal de Educação, o funcionário
que me atendeu também não soube responder a dúvida, que foi sanada pela diretora da
escola, na segunda visita ao local, que me informou tratar-se de um bairro do distrito de
Travessão.
As escolas acima citadas foram escolhidas pela seguinte razão: as duas primeiras escolas se
localizam em lados opostos da rodovia, separadas entre si por uma curta distância e próximos
da área central de Travessão, sendo que a escola Giró Faísca, é mais nova, e está localizada
em uma parte do distrito que foi recém povoada. a terceira escola se localiza em uma área
afastada, de difícil acesso, no interior do distrito. Em comum, o fato de que todas as escolas
estão localizadas em áreas que se podem classificar como “áreas híbridas”, em que se percebe
com muita facilidade a mistura entre a paisagem urbana e a paisagem rural, e o fato de que as
três escolas são consideradas pela SMEC como escolas localizadas em áreas rurais. Sendo
assim, é possível estabelecer uma comparação entre o atendimento escolar nesses lugares e as
dificuldades causadas pelos efeitos de lugar sobre os alunos dessas três escolas.
A base empírica da pesquisa é constituída de registros escolares anuais de alunos 5ª série do
Ensino Fundamental. Foram analisadas as fichas de matrícula de todos os alunos atualmente
cursando a quinta série do Ensino Fundamental, do turno da manhã nas três escolas
pesquisadas, totalizando setenta e nove alunos. Além disso, a pesquisa entrevistou dez pais
de alunos de cada uma das turmas de quinta série, escolhidos pelas diretoras. Entrevistas
com professores e as diretoras de cada escola e documentos emitidos pela Secretaria
Municipal de Educação de Campos dos Goytacazes e a Prefeitura Municipal completam as
fontes de investigação.
5 - ENSAIOS PRELIMINARES: ADENTRANDO AO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO
A metodologia que norteia esse trabalho de investigação busca inspiração na pesquisa
coordenada por Pierre Bourdieu, sob o título “A Miséria no Mundo”. Durante três anos, sob a
direção do autor, uma equipe de sociólogos fez uso de entrevistas para compreender as
condições de produção da miséria social no mundo. No que se refere à metodologia utilizada,
Bourdieu faz algumas considerações. Para o autor, ainda que a relação de pesquisa se distinga
da maioria das trocas da existência cotidiana, que tem por fim o mero conhecimento, ela
continua sendo, apesar de tudo, uma relação social que exerce efeitos sobre os resultados
obtidos. A oposição tradicional entre os métodos ditos quantitativos, como a pesquisa por
questionário, e os métodos ditos qualitativos como a entrevista, mascaram o que eles têm em
comum: apoiarem-se nas interações sociais que ocorrem sob a pressão de estruturas sociais.
De acordo com Bourdieu, só a reflexividade, que é sinônimo de método, mas uma reflexidade
reflexa, baseada num trabalho, num olho sociológico, permite perceber e controlar no campo,
na própria condução da entrevista, os efeitos da estrutura social na qual ela se realiza. O uso
reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social é necessário para controlar os
efeitos da própria pesquisa e começar a interrogação já dominando os efeitos das perguntas.
Para compreender o que se passa em lugares que aproximam pessoas que tudo separa, como
os “conjuntos habitacionais” ou os “grandes conjuntos”, e também numerosos
estabelecimentos escolares, obrigando-as a coabitarem, seja na ignorância, seja no conflito,
latente ou declarado, com todos os sofrimentos que disso resultem, não basta dar razão a cada
um dos pontos de vista tomados separadamente. É necessário também confrontá-los, como
eles o são na realidade, para fazer aparecer pelo simples efeito da justaposição, o que resulta
do confronto de visões de mundo diferentes ou antagônicas, o que Bourdieu chama de
“trágico” (2007, p.11) que nasce do confronto sem concessão nem compromisso possível de
pontos de vista incompatíveis, porque são igualmente fundados em razão social.
As entrevistas realizadas durante o trabalho de investigação foram concebidas e construídas
como um conjunto auto-suficiente, suscetíveis de serem lidas isoladamente, e ao longo do
trabalho elas foram distribuídas de forma que as pessoas pertencentes a categorias que têm
possibilidade de ser aproximadas, ou até confrontadas no espaço físico, encontram-se
aproximadas também na leitura. Dessa forma, assim como Bourdieu, espero mostrar que os
lugares ditos “difíceis”, como o bairro problemático e a escola são, antes de mais nada,
difíceis de descrever e de pensar, e por isso é necessário substituir as imagens simplistas e
unilaterais por uma representação complexa e múltipla, fundada na expressão da mesma
realidade em discursos diferentes. Para Bourdieu, isso significa:
[...] abandonar o ponto de vista único, central, dominante, em suma, quase divino,
no qual se situa geralmente o observador e também seu leitor, em proveito da
pluralidade de suas perspectivas correspondendo à pluralidade dos pontos de vista
coexistentes e às vezes diretamente concorrentes. (2007, p.11-12)
Essa perspectiva, segundo o autor, está fundada na própria realidade do mundo social e
contribui para explicar grande parte do que acontece neste mundo, e em particular vários
sofrimentos oriundos do conflito de interesses, de disposições e estilos de vida diferentes que
a coabitação favorece, principalmente no local de residência ou no ambiente de trabalho, de
pessoas diferindo sob todos esses aspectos. É no interior de cada um dos grupos permanentes,
como a vizinhança, por exemplo, que são percebidas e vividas as oposições, sobretudo em
matéria de estilo de vida. Mesmo se encontramos pessoas cuja trajetória e posição inclinem-se
para uma visão fragmentada e dividida contra ela mesma, o confronto direto das diferenças
tem como efeito favorecer a lucidez interessada e parcial da polêmica.
Para Bourdieu, a experiência da posição ocupada no macrocosmo social é determinada, ou
pelo menos, alterada pelo efeito diretamente provado das interações sociais no interior desses
microcosmos sociais, como escritório, oficina, pequena empresa, vizinhança ou até mesmo
uma família extensa. Essa “miséria de posição” (2007, p.13), relativa ao ponto de vista
daquele que a experimenta fechando-se nos limites do microcosmo, está fadada a parecer
completamente irreal, se tomarmos o ponto de vista do macrocosmo, comparando-a com a
grande miséria de condição. O autor argumenta, entretanto, que estabelecer a grande miséria
como medida exclusiva de todas as misérias é proibir-se de perceber e compreender toda uma
parte de sofrimentos característicos de uma ordem social que tem, para Bourdieu, feito recuar
a grande miséria, mas que tem também multiplicado os espaços sociais que têm oferecido as
condições favoráveis a um desenvolvimento sem precedentes de todas as formas da pequena
miséria.
Em minha primeira visita às três escolas, as respectivas diretoras estavam presentes e me
atenderam com receptividade. O meu objetivo, neste primeiro contato, foi procurar conhecer
o prédio escolar e, também, iniciar uma conversa com cada diretora que me permitisse
explorar algumas questões, como: quais as principais dificuldades enfrentadas por elas? Como
se a relação da escola com a Secretaria Municipal de Educação? Além disso, solicitei às
diretoras permissão para consultar as fichas de matrículas dos alunos da quinta série do
Ensino Fundamental (as fichas me permitiriam estabelecer uma amostra da origem social dos
alunos da escola) e ainda que me indicassem dez pais de alunos dessa quinta série para serem
entrevistados. A escolha pela quinta série do Ensino Fundamental dá-se por ser a série
avaliada pelo IDEB. Como o indicador apresentou um grande salto no município, seria
interessante conversar com os pais desses alunos.
Uma questão que apareceu sorrateiramente nesse primeiro contato com as diretoras foi a
dificuldade de negociação da escola com a Secretaria Municipal de Educação de Campos dos
Goytacazes. As diretoras não fizeram críticas abertas à Secretaria de Educação, mas usavam
expressões como “dificuldades administrativas” para demonstrar insatisfação com o
relacionamento adotado pela Secretaria de Educação.
5.1 - ESCOLA MUNICIPAL JOSÉ GIRÓ FAÍSCA
Ao chegar à escola, pude observar que a construção do prédio escolar se assemelha a uma
construção residencial, dispondo somente de três salas de aula. Logo na entrada, uma turma
assistia aulas no pátio da escola. Sobre a mesa da professora havia um mimeógrafo e os
alunos estavam instalados em carteiras (Figura 2). A diretora conduziu-me para o interior do
prédio a fim de mostrar-me as demais instalações. Em sua exposição sobre cada recinto do
prédio, a diretora chamava a atenção para um de seus principais problemas: a falta de espaço
para abrigar a população escolar e a parte administrativa da escola. O pequeno número de
salas de aula a obriga a improvisar: dividir ao meio, utilizando armários de ferro, a área de
uma sala de aula em duas salas de aula e utilizar o pátio da escola para as aulas. No que se
refere ao espaço destinado à administração da escola (secretaria, sanitários, cozinha,
refeitório, despensa) um pequeno recinto reservado para a secretaria que abriga um
computador e divide espaço com vários papéis e uma geladeira, que não cabia na cozinha
(Figura 3).
Vale registrar que, no momento em que obtive a permissão da Secretaria Municipal de
Educação para realizar a pesquisa e retornei a escola, encontrei a diretora pouco receptiva. O
comportamento da diretora não era compreensivo e acolhedor como anteriormente, e fui
surpreendido com a condição que impôs para me conceder uma entrevista: a conversa não
poderia ser gravada. Além disso, não permitiu que novas fotos fossem tiradas do prédio
escolar.
O prédio da Escola Municipal José Giró Faísca foi construído pela prefeitura e inaugurado em
1992, para atender setenta alunos. Hoje, a escola tem cento e setenta e nove alunos
matriculados. A atual diretora assumiu seu cargo em 2004. Naturalmente, um prédio que foi
construído para atender a setenta alunos não tem espaço para abrigar cento e setenta e nove
alunos. Depois de inaugurado, em 1992, foram feitas pequenas reformas "de cunho
emergencial", realizadas, segundo a diretora, porque ela “mexeu os pauzinhos” para que
fossem feitas. A escola atende, em sua maioria, às crianças do bairro km 13 e, ainda, às
crianças do km 14 que se deslocam, a pé, de casa para a escola, pois não existe transporte.
Atualmente a escola possui dez turmas em curso, funcionando em dois turnos; G3, 2ª, e
série do Ensino Fundamental durante a manhã, e G1, 1ª, e no turno da tarde
22
. Na
22
A Lei 11.114 de 16 de maio de 2005 estabeleceu como obrigação dos pais ou responsáveis a matrícula das
crianças a partir dos seis anos de idade no Ensino Fundamental, aprovando a antecipação da escolaridade
obrigatória no Brasil, que passa de 8 para 9 anos, o que acompanha tendência mundial já concretizada em grande
parte dos países da Europa e da América do Sul, como Argentina e Chile. No referente à educação infantil, a
segunda semana de visitas, constatei que a turma que assiste aulas no pátio teve suas
atividades suspensas, pois o espaço seria utilizado para os ensaios do desfile cívico realizado
pela Prefeitura de Campos dos Goytacazes.
Figura 2 – Alunos assistem aulas no pátio da Escola José Giró Faísca
A diretora relata atos discriminativos praticados pela SMEC no atendimento às necessidades
das escolas. Segundo ela, embora tenha enviado vários ofícios a SMEC informando a situação
precária do atendimento escolar ocasionado pela falta de espaço na escola, nenhuma resposta
obteve da SMEC. Existe uma licitação aberta, desde o ano de 2004, para reformar a escola,
mas a administração pública não selecionou ainda nenhuma proposta. Enquanto isso, segundo
a diretora, outras escolas da região puderam realizar reformas ainda que, para isso, não
precisassem esperar o tempo que esta escola aguarda (o ato de licitação aberto pela prefeitura
para reformar essas outras escolas é posterior ao da escola em questão).
Sobre os problemas de infra-estrutura, a diretora comenta que no ano passado a escola
permaneceu durante três meses sem abastecimento de água encanada, e que nesse período a
SMEC disponibilizou, semanalmente, caminhão-pipa para resolver esse problema, enquanto
procedia a abertura de licitação para compra de uma bomba hidráulica.
nomenclatura atual diz respeito à idade que a criança deve ter para estar inserida naquela turma, indo de G1 até
G5, seguindo então para a primeira série do Ensino Fundamental.
Figura 3 – Secretaria da Escola José Giró Faísca
A SMEC, contudo, nunca comprou a bomba. Foi a diretora quem conseguiu uma bomba “de
presente” para a escola, recorrendo a terceiros para que a situação pudesse ser sanada. Quando
perguntei se a bomba não poderia ter sido comprada pela escola com a verba da prefeitura, ela
me disse que não recebe o repasse da prefeitura desde o ano de 2007, motivo pelo qual a conta
bancária da escola foi encerrada. Atualmente a escola recebe apenas a verba de R$1.800
anuais repassados diretamente pelo governo federal
23
. A diretora informou ainda que a última
movimentação que ocorreu na conta bancária da escola foi um depósito de R$ 3.900,00 que
surgiu repentinamente e que foi retirado com rapidez instantânea. Da mesma forma que
entrou na conta, o depósito saiu, sem explicação alguma. Um mistério, segundo ela.
Quando lhe perguntei sobre a participação da escola no IDEB, informou-me que a escola não
foi escolhida pela Secretaria de Educação para participar dessa avaliação, mesmo atendendo
ao critério de ter alunos matriculados na quinta série do Ensino Fundamental. Embora
23
O Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) consiste no repasse anual de recursos às escolas públicas do
ensino fundamental estaduais, municipais e do Distrito Federal e às do ensino especial mantidas por
organizações não-governamentais (ONGs), desde que registradas no Conselho Nacional de Assistência Social
(CNAS).
desejasse participar do IDEB para “colocar o trabalho realizado em prova”, seu desejo não se
concretizou. Ela disse que não concorda com a classificação dada à escola, pela Secretaria de
Educação, de escola situada em “zona rural”, classificação essa que impede a escola de
participar da avaliação. Sob sua ótica, Travessão é um distrito situado na área urbana.
Concebida e montada para ocupar uma área no distrito de Travessão, a escola ocupa um
determinado recinto, cujos diversos elementos ou dispositivos agem sobre o imaginário do
espectador. No imaginário da diretora Travessão é um lugar muito carente”, com “altos
índices de prostituição e tráfico de drogas”, inclusive com alguns alunos na faixa de dez anos
abandonando a escola para trabalhar em uma dessas atividades. Para ela, poucos pais
participam ativamente da vida escolar e a grande maioria a escola como uma maneira de
manter os filhos afastados do convívio do lar o máximo de tempo possível. Neste sentido,
fazem questão que os filhos participem de todas as atividades extraclasses promovidas pela
escola, notadamente as aulas de reforço.
O corpo docente é constituído por dez professores. Desses, apenas três residem no distrito de
Travessão. Os outros professores estão constantemente tentando transferência para escolas
mais próximas da suas residências. Segundo me relatou uma professora, moradora do distrito
de Campos, que está tentando a transferência seis meses, e que trabalha na escola desde
2006, ela gosta de trabalhar na Giró Faísca, mas “é muito complicado chegar aqui, tenho que
acordar muito cedo, porque tenho que acordar meus filhos pra irem pra escola e correr pra
chegar no ponto na hora de não perder o ônibus”.
No imaginário das professoras e diretora o papel da escola na comunidade do distrito de
Travessão é o de oferecer uma oportunidade aos alunos para sair de uma situação
desfavorável, mesmo que momentaneamente: são crianças muito sofridas, às vezes vem
pra escola sem nem comer, e você que eles ficam com o olhinho brilhando na hora da
merenda! Então, se ajuda nesse sentido, é muito bom.” A diretora crê que a educação
que a gente aqui é pra tentar tirar de um caminho ruim, dar alguma coisa pra eles
saírem daqui, em algum momento”, e relata que sempre que um aluno abandona a escola,
ela procura os pais da criança para saber os motivos, e tentar puxar esse aluno de volta”.
Subjaz as narrativas de professores e diretora uma matriz de oposição que organiza sua
visão do lugar, Travessão. A escola é identificada como o bem, que tira as crianças de um
caminho ruim, desfavorável, que as alimenta e as deixam com o olhinho brilhando na hora
da merenda. O valor atribuído à escola é determinado, portanto, por suas relações com o
lugar – Travessão- e com a comunidade. Quanto mais se distanciar dos valores atribuídos ao
lugar, a escola, na concepção desses professores, se torna melhor para os alunos. Mas, como
realizar esse trabalho se os alunos trazem para a escola comportamentos indesejáveis? De
acordo com uma professora, “é muito difícil fazer eles prestarem atenção, sabe? Não param
quieto um minuto, e ficam com umas brincadeiras de um agredir o outro”. Outra professora
relata que é comum ouvir em sala de aula os alunos trocarem ofensas do tipo “vou te
quebrar a cara”, ou “vou te dar um tiro”. Os professores expõem uma preferência sobre
determinadas características intelectuais e comportamentais dos alunos que se objetiva sob
a forma de adjetivos” (Bourdieu, 1986 p.195). Esses adjetivos, segundo Bourdieu, cumprem
a função contraditória de permitir uma operação de classificação social, de forma
dissimulada. Para esse autor, a taxionomia da percepção escolar nada mais é do que uma
forma irreconhecível de taxionomia dominante, que se organiza a partir da hierarquia das
qualidades “inferiores”, “médias” e “superiores”, cada qual relacionada a uma classe social,
especificamente, aos pobres, aos burgueses e aos ricos, “(...) constituindo como excelentes
as qualidades apropriadas por aqueles que são socialmente dominantes, consagra sua
maneira de ser e seu estado” (p. 196).
No que diz respeito à profissão dos pais dos alunos da turma da série, composta por vinte e
sete alunos, vinte e quatro mães constam como do lar
24
”, na ficha de matrícula, uma consta
como “doméstica”, e duas fichas não continham qualquer informação a respeito da profissão
da mãe. Já no caso dos pais, encontrei cinco “trabalhadores rurais”, oito “serventes”, um
“recepcionista”, dois “vaqueiros”, dois “carpinteiros” e um “balconista”. Em oito fichas de
matrícula não havia qualquer referência à profissão dos pais.
Em conversas que tive com pais de alunos, percebi que eles não demonstram insatisfação com
as condições físicas da escola. A percepção dos pais sobre a escola é expressa em adjetivos
como: A escola é boa!”; Gosto daqui”; O menino gosta muito de vir pra cá, isso é porque
a escola é boa, né?Quando lhes perguntei se gostariam de mudar alguma coisa na escola
alguns disseram que não, afirmaram que a escola estava bem, o que precisava melhorar era o
hospital de Travessão. Outros pais, porém, disseram que a escola poderia melhorar. “Em que
sentido?” perguntei. A mudança mais citada, por três pais, foi a necessidade de construção de
um laboratório de informática na escola, pois segundo eles é importante, ? Hoje em dia
tudo é computador”. Para esses pais, aprender a lidar com computadores “facilita bastante
pra arrumar um emprego, escritório, essas coisas”. Outras melhorias sugeridas foram a
construção de uma quadra de esportes e um pátio maior pra fazer as festas tudo certinho, a
24
“Do lar” significa dona de casa e “doméstica” significa empregada doméstica.
última que teve foi uma bagunça, ficou gente do lado de fora”. É oportuno ressaltar que
nenhum pai de aluno tocou no assunto da falta de espaço para as salas de aula.
Sobre a atuação da diretora, os pais fazem coro para exaltar suas qualidades, sendo muito
recorrente ouvi-los dizer: ela é ótima, dá muita festa pras crianças”; aperta bastante, não
deixa faltar, vai na casa”. Todos têm o mesmo sentimento ou a mesma opinião sobre o
excelente trabalho da diretora e fazem questão de ressaltar que ela corre atrás”, relembrando
o episódio da bomba hidráulica que a diretora conseguiu de presente para a escola.
De que maneiras foram construídas as percepções dos pais? Resultariam elas do confronto de
visões de mundo diferentes ou antagônicas nascidas sem concessão nem compromisso de
pontos de vista incompatíveis, entre lugares distintos? A escola é o lugar do bem, de festas, de
um mundo de possibilidades aberto para facilitar a vida das crianças em um futuro de
empregos em escritórios, em oposição ao lugar violento, sem atrativos, bagunçado, de
empregos pouco atraentes, do vaqueiro, do trabalhador rural, do balconista, do servente, do
carpinteiro, do Travessão.
5.2 - ESCOLA MUNICIPAL FRANCISCO RICARDO LYZANDRO ALVES DOS
SANTOS
O prédio da Escola Municipal Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos ocupa uma área
maior do que o da escola JoGiró Faísca. Foi construído em 1976. No ano seguinte, a atual
diretora assumiu a direção da escola. Nos primeiros anos de sua existência, a escola possuía
apenas duas salas de aula para atender cento e oitenta alunos matriculados em três turnos.
Hoje a escola dispõe de quatro salas de aula em bom estado de conservação após algumas
reformas, que abrigam duzentos e vinte e três alunos, em dois turnos. No primeiro turno a
escola atende turmas de G3, 1ª, e série, e, no segundo turno, turmas de G2, 2ª, e uma
segunda turma de 3ª série.
O fato do número de matrículas de alunos se manter em crescimento estável desde 1977, se
comparado à primeira escola, que quadruplicou o número de alunos em quatro anos, deve-se
em grande parte à diretora, que controla o ingresso dos alunos na escola. Sem nenhum pudor,
ela ressalta com firmeza e orgulho que, no primeiro dia de matrícula impediu a matrícula de
três crianças cujos pais eram recém-chegados ao distrito, alegando que “o espaço não é
cabível”. Ela também afirma que aos pais de alunos que moram no km13, e “atravessam a
pista” (palavras dela) para matricular seus filhos nessa escola, é-lhes prontamente negado o
ingresso na escola. Ela mesma pergunta aos pais, desdenhando deles, se não existe escola do
“lado de lá”.
É do conhecimento público que a escola brasileira utiliza instrumentos discriminatórios para
impedir o acesso e o desenvolvimento escolar de crianças de camadas menos favorecidas
economicamente. Consorte (1959), em A Criança Favelada e a Escola Pública, estuda o
desempenho escolar de crianças de camadas menos favorecidas, em uma escola pública do
Município do Rio de Janeiro, residentes em uma favela, e que constituíam o grupo que mais
se desviava dos ideais educacionais da escola(p.46). A autora constatou que o programa
(de ensino) está planejado para um certo tipo de aluno ao qual a criança das camadas menos
favorecidas em geral, e a criança favelada sobretudo, está longe de corresponder, por lhe
faltarem as condições de vida e as experiências comuns àquela (p.57). Para ela, as crianças
faveladas estão longe de poder corresponder aos ideais reinantes na escola pública primária
da capital do país”(p.59). Concluiu afirmando que a falta de maturidade, suas dificuldades
de comunicação, sua falta de familiaridade com o ambiente escolar, a distância social que os
separa da professora e o tratamento que a escola lhes dispensa representam difíceis
barreiras às suas tentativas de superar num ano as dificuldades de cada série”(.59).
A atitude da diretora da Escola Municipal Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos, que
nega às crianças "do lado de lá", recém chegadas ao distrito de Travessão, o direito à
educação parece confirmar os resultados da pesquisa de Consorte, cinqüenta anos depois de
sua realização. Seja como um preconceito, inspirado pelo desejo de causar admiração aos "do
lado de ", seja como uma forma de indiferença insuportável relativamente à miséria dos
desfavorecidos, a atitude da diretora parece exprimir certa arroncia. Ao perguntar aos pais
se não havia escolas "do lado de ", estaria ela dizendo de outra maneira "você não conhece
seu lugar"? Ponha-se no seu lugar!
Esse controle de matrícula também é evidenciado por Consorte em seu artigo, onde ela afirma
ter presenciado por diversas vezes crianças de condições sociais menos favorecidas serem
preteridas no ato da matrícula, sob a alegação de que não havia vagas. Segundo a autora:
“É do conhecimento de todos os problemas que as crianças faveladas
representam para a escola, os empecilhos que constituem à realização dos
ideais educacionais a que nos vimos referindo. Desta maneira, quanto menor
for o número de crianças faveladas na escola, tanto menores serão seus
problemas [...]” (id. 1956, p.50)
Ao contrário da primeira escola, aqui a diretora diz que a relação com os pais de alunos é
“muito boa”, haja vista a festa junina da escola, realizada em conjunto com os pais na semana
anterior. Segundo ela, é importante conscientizar os pais dos alunos sobre a importância de
sua participação, face às transformações sociais correntes:
[...] a gente vem trabalhando com as famílias; quando eu faço encontro de pais eu
procuro sempre estar alocando a Assistente Social junto com a reunião e a gente
percebe "entre aspas" que muitos deles transferem a responsabilidade familiar para
dentro da escola e cada um tem que cumprir seu papel. A gente trabalha com
direitos e deveres, ultimamente eu to trabalhando muito com o ECA
25
e a Assistente
Social também, que cada um tem suas atribuições, e enquanto que eu to percebendo
que fora o social sendo modificado precocemente a vida familiar ta perdendo
sua identidade, o que está acontecendo, os jovens estão pulando uma fase da vida
deles estão se tornando pais muito mais cedo embora com atribuições diferentes,
então aquela fase que ele deveria deixar para ser pais na fase dele para dar conta do
seu papel, ele cobra às vezes na hora errada, no lugar errado, no período errado,
porque precocemente ele não está preparado. Então aqui as alterações sociais são
muitas, é muito padrasto, madrasta, mãe solteira, pessoas que não convivem mais
com a família, as famílias na verdade perdem sua identidade, e a gente tem que
cobrir todo esse trabalho, fazer a parte da escola, é a educação dita de fora para
dentro, ela tem o papel de dar os passos dela de informação, o que não cabe a
família, e transformar o cidadão na medida do possível e chega aqui a gente prepara
para o futuro, até porque aqui é um segmento e aí chega fora ele vai encontrar
uma escola maior, uma outra visão, com novas metas, com camadas sociais bem
diferenciadas, que a nossa faixa etária aqui vai de 4 a 10, 12 anos, fora ele vai
pegar alunos adulto, adolescente, EJA, pessoas que já trabalham então a cabeça
também já é outra. Então a gente começa desde pequenininhos trabalhando eles para
que cheguem lá pelo menos com o inicio do período preparatório deles.
Quando perguntei sobre as dificuldades que ela encontra na escola, a diretora frisa a sua
filosofia de trabalho em equipe e diz que trabalha muito para que a escola tenha o “mesmo
nível de qualidade das escolas de Campos”. No que diz respeito a problemas de infra
estrutura, a diretora assinala que o espaço para realizar as tarefas da escola é restrito:
[...] a questão do espaço administrativo a gente que a demanda de funcionários
vai aumentando porque assim como a escola começou apenas com diretor, uma
auxiliar de secretaria, que naquela época era auxiliar de direção, pessoal de apoio,
dois, não existia inspetor de alunos, há muito tempo, não existia concurso para
auxiliar de secretaria, assim por sua vez para pedagogo, assistente social,
fonoaudiólogo. De certo tempo para cá, existe na demanda de profissionais vagas
para ingressarem no mercado a nível de Secretaria Municipal de Educação e vai
chegando, e a estrutura quase que a mesma, e a gente tem aquela situação, que o
dia da Orientadora Pedagógica não é todo dia da fonoaudióloga não é todo dia então,
para trabalhar, agora se fosse uma situação em que o diretor está presente todos
os dias o professor de educação física, o animador cultural, o pedagogo, o espaço
para trabalhar seria pequeno.
Ao chegar para a segunda visita, encontrei uma das turmas tendo aulas de educação física na
rua em frente à escola, sendo necessária a interrupção da atividade para que um veículo
pudesse passar. Além disso, a escola não possui sala de direção, o que faz a diretora e a
secretária desempenharem suas funções em duas mesas, postas na parte coberta do pátio, de
frente para a cozinha (figura 4).
25
Estatuto da Criança e do Adolescente.
Figura 4 – Mesa da diretora da Escola Francisco Ricardo
A diretora classifica sua relação com a SMEC como “ótima”, mas faz questão de dizer que
“também tem uma participação boa daqui pra lá”, frisando que os professores atendem a todos
os seminários e congressos oferecidos pela SMEC e a escola participa, todos os anos, do
desfile cívico da prefeitura. Ela atribui a dificuldade de relacionamento de outras escolas com
a Secretaria como uma questão de “perfil de direção”. Mesmo dispondo de ótima relação com
a SMEC, a diretora também não recebe a verba da prefeitura, e salienta o fato de que outras
escolas dentro do distrito recebem, mas não soube explicar o motivo.
Quanto ao IDEB, a diretora afirma que sua turma de quarta série possui trinta e quatro alunos
matriculados, o que a tornaria apta a participar da avaliação, mas não isso foi possível devido
a sua classificação de “escola rural”. Ela concorda com a classificação de escola rural, embora
afirme que considera o local como “periferia, mais do que qualquer outra coisa”, e gostaria
bastante de participar do IDEB, como forma de testar o conhecimento dos alunos e obter uma
resposta sobre o trabalho realizado.
É interessante observar como as oposições sociais objetivadas no espaço físico -
centro/periferia, urbano/rural, cidade de Campos/Travessão reproduzem-se na linguagem da
diretora sob a forma de oposições constitutivas de um princípio de visão e de divisão, isto é,
enquanto categorias de percepção e de apreciação: ela trabalha muito para que a escola tenha
o “mesmo nível de qualidade das escolas de Campos”; seu “perfil de direção” descreve uma
pessoa diferente (não somente de outras diretoras, mas sobretudo, dos membros da
comunidade); o local da escola é classificado como “periferia, mais do que qualquer outra
coisa”.
Sobre o bairro, a diretora, que é nascida no local, mas não se identifica, atualmente, com ele,
constrói uma visão do passado, maculado pelo êxodo, pelo loteamento:
[...]
sei bem que isso aqui, esse canto, era tudo formado por poucas casas, com
àquela vegetação baleeira, aonde as pessoas tinham criadouros de galinholas, de
peru, e se escondiam nesse canto aqui. Na verdade, isso aqui não era bem uma rua,
era um loteamento, um cantinho; e aí veio a urbanização, que eu chamei de êxodo; o
êxodo veio acontecendo porque as pessoas vieram de outros interiores para
Travessão em busca de trabalho, não aqui, como uma forma de rendimento
financeiro para crescimento. Mas a população pra ter acesso, para ir para outros
regiões e o gasto de passagem, aqui, seria mais barato, onde teriam acesso pra outras
regiões pra trabalhar em casa de família, em corte de cana, para deixar sua família
pra ir para Búzios, Cabo Frio, e diante do distrito, aqui, na região central, os
loteamentos foram surgindo.
A relação com os professores, para a diretora é:
[...] uma relação saudável porque dentro das nossas propostas, sempre que a gente
propõe, a gente propõe e faz tudo elaborando em conjunto, coletivamente, desde o
pessoal de apoio a nossa pedagoga que se faz presente, pessoal de secretaria, todo
mundo segura junto e vamos embora, a gente que faz com objetivo tudo que faz, faz
em planejamento comum. Hoje são oito turmas, oito professores embora por
afastamento de alguns por licença médica, a gente não deixa o aluno sem aula até a
gente conseguir uma pessoa especial para colocar no lugar a gente assume a turma
para que não dê possibilidade do aluno se manter fora do sistema.
Os professores, em sua grande maioria moradores de Travessão – somente dois de um total de
oito professores moram no distrito de Campos ressaltam o bom comportamento das
crianças, como aponta a professora moradora do primeiro distrito, que trabalha na escola
desde 2007: “são crianças quietas, às vezes entro aqui, nem parece escola! Aquela
gritaria?... não tem né?” Porém, esse bom comportamento para outra professora, que trabalha
na escola desde 2002, é visto como apatia perante as aulas, para ela, eles não mostram
interesse, tenho que ficar perguntando toda hora, mandando fazer, porque senão, se deixar
na mão deles, fica por isso mesmo!”
Com a finalidade de conhecer as condições sociais das famílias, procedi ao exame das fichas
de matrículas dos alunos dessa escola. Quanto à profissão dos pais, nas fichas de matrícula,
não havia qualquer menção à ocupação de onze mães; outras onze mães estavam classificadas
como ”do lar”; três “agentes comunitários”; seis “domésticas”; e três “trabalhadoras rurais”.
Também não havia qualquer menção à ocupação de dez pais de alunos; cinco estavam listados
como “trabalhadores rurais”; dois “balconistas”; um “aposentado”; três “serventes”; três
“ajudante”; um “mecânico”; dois “pedreiros”; três “frentistas”; três motoristas”; e um
“policial militar”.
Assim como no caso da escola anterior, todos os pais têm uma visão positiva da escola.
Alguns deles, inclusive, haviam estudado nessa escola, fator determinante na escolha dessa
instituição para matricular seus filhos. Uma mãe de aluno e ex-aluna da escola comentou: “ali
é muito bom, eu estudei ali, e faço questão que meu menino estude lá”. Outro pai de aluno
relata que tirou seu filho de uma escola da região central de Travessão, assim que foi
disponibilizada uma vaga na escola Francisco Ricardo, pois aqui a diretora presta atenção,
tá em cima, ele precisa de gente de olho nele”.
O que na escola não está funcionando bem, em sua opinião, e o que o senhor gostaria de
mudar nessa escola, perguntei aos pais. No quesito melhorias na escola, alguns pais apontam a
necessidade de ampliar as condições físicas da escola, e sugerem uma reforma para ampliar os
espaços: “é apertadinho ali né? As crianças não têm lugar pra correr no recreio...”. Uma das
mães ressalta que a cozinha da escola é pequena, e que não existem condições para a
funcionária trabalhar em um espaço tão reduzido como aquele. Um pai de aluno acha
importante a construção de um refeitório na escola, pois “sala de aula não é lugar de comer
comida, tinha que ter o refeitório certinho, pras crianças comerem sossegadas”.
A atuação da diretora, assim como na escola anterior, é motivo de aprovação para todos os
pais entrevistados. Um dos fatos ressaltados por quase todos eles é o largo período de gestão
da diretora. Ela ocupa essa função desde 1977, o que para eles significa qualidade de seu
trabalho. De acordo com um dos pais, que inclusive estudou na escola, “é muito tempo né?
Eu era molequinho e lembro dela lá, falando com a gente que nem hoje ela fala com minha
filha, ela é muito boa!”. Já uma mãe de aluno acredita que “ninguém fica tanto tempo
sendo ruim né? Ela pega firme mesmo, conhece as coisas, fala com todo mundo [...] é
importante!”.
Na fala da diretora da Francisco Ricardo, se evidenciam os traços da urbanização estudada por
Davis, onde Travessão começa a crescer com a chegada de pessoas vindas de “outros
interiores”, com o objetivo de se inserir no setor produtivo, ainda que na área do sub-
emprego, como corte de cana ou serviços domésticos, segundo a própria.
Embora fisicamente as escolas Francisco Ricardo e Giró Faísca estejam próximas, a distância
entre as realidades de cada uma é enorme, e muito interessante de se observar. Localizada em
uma área mais antiga de Travessão, a escola Francisco Ricardo possui melhores condições
físicas do que a escola Giró Faísca, mesmo que isso ocorra através de um controle rígido da
matrícula dos alunos por parte da diretora, que nega o acesso às crianças que moram do outro
lado da estrada. Além disso, dispõe de mais pessoal do que a escola Giró Faísca, como por
exemplo, a presença de fonoaudiólogos, orientadoras pedagógicas, animador cultural, entre
outros.
Conforme dito anteriormente, a reunião de uma população pobre em territórios periféricos
tende a gerar serviços coletivos locais de baixa qualidade, utilizados unicamente por esses
segmentos, o que parece ser o caso da população do km 13. Embora a escola Francisco
Ricardo também apresente precariedades em sua infra-estrutura, como a falta de uma sala
para a diretora, e de um espaço para as aulas de educação física, a escola Giró Faísca,
localizada em uma parte recém criada do distrito, caracterizada pelos índices de violência, se
encontra em uma situação ainda mais precária.
Tal situação nos remete à discussão de Luiz Antônio Cunha sobre a desigualdade na
qualidade do atendimento escolar. Para ele, se o produto da educação é desigual, não é
possível dizer que exista desigualdade de oportunidades. No caso em questão, além da
desigualdade na qualidade do serviço oferecido, existe também a desigualdade no acesso, aqui
evidenciado pelo controle da matrícula por parte da diretora.
5.3 - ESCOLA MUNICIPAL CARLOS CHAGAS
Essa escola fica na localidade de Jacarandá, perto da antiga Usina São João, dentro do distrito
de Travessão. É uma área afastada da região central de Travessão. O percurso do centro de
Travessão até Jacarandá, em viagem de automóvel, é de cerca de vinte minutos. O prédio é,
na verdade, a antiga casa do administrador da Usina que, com a desativação da mesma, foi
transformada pela prefeitura em escola no ano de 1958.
A diretora exerce o cargo desde 1999. Quando assumiu essa função, dez anos, a escola
tinha vinte e cinco alunos matriculados. Logo no início de sua gestão foi feita uma reforma na
escola e construídos novos banheiros (quando ela assumiu, a escola tinha apenas um
banheiro). Recentemente, os banheiros passaram por outra reforma, (figura 5) que foi paga
com a verba do PDDE. Atualmente a escola opera em três turnos e possui duzentos e noventa
alunos matriculados.
Durante o turno da manhã, a escola atende aos alunos de seis turmas (G1, G2, G3, 1ª, e
séries) e de oito turmas no turno da tarde (G1, G2, 1ª, 2ª, 3ª, 5ª, e 7ª séries), ficando o turno
da noite reservado para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). A escola atende em grande
maioria, às crianças dos quatro acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST) existentes nas cercanias da usina, além de outros bairros dentro de Travessão e,
até mesmo a crianças “da cidade”, segundo a diretora, referindo-se às crianças que vêm do
distrito de Campos, mais especificamente do bairro do Aeroporto.
Existe um sistema de transporte disponibilizado pela SMEC para as crianças do distrito de
Travessão que estudam nessa escola, mas esse serviço não atende aos alunos que moram fora
de Travessão. Segundo a diretora, no início do ano não houve transporte para as crianças
devido a problemas na licitação, o que ocasionou um baixo volume de presenças na escola.
Além disso, a diretora, assim como as demais diretoras entrevistadas, afirmou não receber a
verba da SMEC, utilizando apenas a verba do PDDE.
Figura 5 – Banheiros da Escola Carlos Chagas
A escola é vizinha de uma construção residencial, de propriedade da Pastoral da Terra, que foi
cedida à escola como forma de sanar a falta de salas de aula, muito embora o terreno no qual a
escola se localiza seja amplo (figura 6), o que permitiria a construção de um novo prédio com
muitas novas salas de aula. Sobre esse aspecto, a diretora afirma ter pedido à SMEC,
reiteradas vezes, empenho para construir outro prédio, mas não obteve êxito. No que se refere
à avaliação do IDEB, a diretora afirma possuir apenas dezoito alunos em sua turma de quarta
série e que, portanto, não alcança o índice estipulado pelo MEC. Ela concorda com a
classificação de escola rural atribuída a escola pela superintendência municipal de educação.
Recentemente, com a demissão dos funcionários não-concursados pela prefeitura de Campos,
a diretora sofreu uma diminuição no seu quadro administrativo, perdendo os inspetores
escolares, e foi necessário fazer uma realocação de funcionários, ficando a escola com um
funcionário por turno, além da diretora e professores.
Sobre o bairro, a diretora afirma ser um lugar “muito tranqüilo”, que tem como principais
problemas a questão dos transportes, que dificulta bastante o acesso ao local, e a questão das
chuvas, que prejudicam bastante a escola, uma vez que o pátio e a entrada da escola são de
terra batida, e o telhado tem vários buracos que ocasionam muitas goteiras, atrapalhando
bastante o andamento das aulas.
Figura 6 – Entrada da Escola Carlos Chagas
em relação à participação dos pais, a diretora diz procurar “manter sempre um canal de
comunicação aberto”, para que os responsáveis pelos alunos possam se sentir à vontade. Em
uma das minhas visitas, pude presenciar uma reunião entre a diretora, uma professora, e uma
mãe de aluno que tinha ido à escola para esclarecer os motivos que levaram sua filha a não
querer mais freqüentar as aulas. A mãe acreditava que o motivo alegado pela filha que a
professora brigava muito com ela - não era verdadeiro, porque conhecendo bem sua filha,
achava que ela estava fazendo “manha”. A professora disse à mãe que briga com todos os
alunos, apertando bastante os alunos preguiçosos”. A mãe ficou muito satisfeita com a
explicação e disse que a professora estava certa em seu julgamento, pois que sua filha andava
muito preguiçosa ultimamente, e que ia obrigá-la a voltar pra escola.
Os professores são todos moradores do primeiro distrito
26
, e reclamam bastante da dificuldade
de acesso ao local, uma vez que a única linha de ônibus que atende ao bairro transita de
hora em hora. Foi muito comum, durante o trajeto de ida e vinda à escola encontrar vários
alunos que realizavam o percurso de suas casas até a escola, a pé. Professores disseram que
algumas crianças têm que caminhar cerca de meia hora para chegar até à escola, dada a
precariedade no serviço do transporte público.
É importante registrar a dificuldade para realizar a pesquisa na escola Carlos Chagas. Mesmo
com a autorização da SMEC em mãos, a diretora não permitiu a gravação das entrevistas, bem
como fotografar o prédio escolar. Mostrou-se monossilábica em vários assuntos abordados. O
mesmo comportamento se reproduziu com os professores, como se houvesse um acordo tácito
entre eles. Tive que me identificar, várias vezes, às professoras. Havia um sentimento de
desconfiança tão grande a ponto de ter que mostrar minha carteira da biblioteca da UENF para
uma das professoras, mesmo depois de lhe ter entregado a autorização da SMEC para realizar
a pesquisa.
As fichas de matrícula dos alunos estavam incompletas. Não havia menção à profissão de
quatro mães. Cinco constavam como “do lar”, sete “trabalhadoras rurais”, uma “manicura” e
uma “balconista”. Apenas as profissões de dois pais não constavam nas fichas de matrícula da
escola. Oito eram “trabalhadores rurais”, três eram “pedreiros”, dois “motoristas”; um
“vendedor”; um “mecânico” e um “servente”.
Com os pais as conversas foram mais tranqüilas. Eles manifestaram opiniões positivas sobre a
escola: “Não tenho nada pra falar não”; “Aqui é muito bom!” Dois deles, no entanto,
reclamaram das condições físicas da escola, seja do estado de conservação do prédio, “muito
velho, tem que fazer um monte de reforma”, “dá das crianças tendo que usar banheiro
assim”, ou do terreno mal-aproveitado, que de acordo com os pais, esse terreno é muito
grande, dava pra fazer um monte de escola dessa aqui dentro”. Uma mãe de aluno avalia que
“dava pra calçar esse terreno aqui, fazer quadra pras crianças, dava até pra fazer uma
escola bonita, de dois andares aqui!”.
Essa questão foi novamente enfatizada quando perguntei o que se poderia melhorar na escola?
As respostas surpreendem. Mesmo aqueles que não tinham “nada para falar” sugeriram fazer
reformas no prédio. Um deles disse enfaticamente; tinha que botar no chão e começar de
novo”. Outros fizeram sugestões mais específicas, como reformar os banheiros da escola.
26
O primeiro distrito do município de Campos dos Goytacazes inclui Campos e Guarús.
quando se fala sobre a atuação da diretora, os pais reconhecem seu esforço, mas parecem
acreditar que existem certas questões que estão além de sua capacidade, como por exemplo, a
reforma da escola: “Coitada, né? Ela trabalha muito, faz o que pode, mas o pessoal de lá não
ta muito interessado em reformar aqui, é longe demais”. Outra mãe de aluno acha que a
diretora faz bem o seu trabalho, cobrando disciplina dos alunos, aperta muito, manda
sempre bilhete aqui pra casa, se fez coisa errada, ta certinha, tem que avisar a gente
sempre!”.
As respostas dos pais mostram que, para eles a dimensão dos problemas enfrentados pela
escola vão além da capacidade de atuação da diretora. O fato de a mãe de um aluno usar a
expressão “o pessoal de lá” em sua fala, denota uma clara oposição espacial entre os
moradores do local e o poder público.
Essa distância, antes de qualquer coisa, é social. Bourdieu aponta que a experiência da
posição ocupada no macrocosmo social é determinada pelo efeito das interações sociais no
interior dos microcosmos sociais. No caso da fala da mãe do aluno, existem dois mundos
diferentes. Enquanto um mundo tem a posição de mando, e o poder de solucionar as
necessidades do lugar, o outro mundo, no qual ela se insere, encontra-se muito distante do
campo de visão do outro mundo.
6 – O OLHAR DOS MORADORES SOBRE SUAS VIDAS
As entrevistas realizadas com os pais dos alunos tinham como objetivo conseguir
depoimentos dessas pessoas sobre as suas condições de vida. Queria saber como elas encaram
o crescimento de Travessão, sobre a relação deles com a escola de seus filhos, sobre suas
expectativas de vida, e principalmente, procurar saber dos pais de alunos que importância tem
a escola na formação de seus filhos. As entrevistas foram semi-estruturadas e realizadas com
o uso de um gravador.
Tentar saber o que se faz quando se inicia uma relação de entrevista, segundo Bourdieu
(2007), é em primeiro lugar tentar conhecer os efeitos que se podem produzir, sem saber, com
essa espécie de intrusão, sempre um pouco arbitrária que está no princípio da troca. É preciso
tentar esclarecer o sentido que o pesquisado faz da situação, da pesquisa em geral, da relação
particular na qual ela se estabelece, dos fins que ela busca e explicar as razões que o levam a
aceitar participar dessa troca.
O autor aponta que é o pesquisador que inicia o jogo e estabelece a regra do mesmo, sendo ele
quem geralmente atribui à entrevista, de maneira unilateral e sem negociação prévia, os
objetivos, às vezes, mal determinados, ao menos para o pesquisado. Para Bourdieu, essa
dissimetria é redobrada por uma dissimetria social todas as vezes que o pesquisador ocupa
uma posição superior ao pesquisado na hierarquia das diferentes espécies de capital,
especialmente do capital cultural”. (2007, p.695)
Levando em conta essas propriedades inerentes à relação de entrevista, este trabalho se
esforça para dominar tais efeitos, ou em nas palavras de Bourdieu, “[...] para reduzir no
máximo a violência simbólica que se pode exercer através dele” (2207, p.695). Procurou-se
então estabelecer uma relação de escuta ativa e metódica, tão afastada da pura não-
intervenção da entrevista não dirigida, quanto do dirigismo do questionário. Essa postura
associa a disponibilidade total em relação à pessoa interrogada, a submissão à singularidade
de sua história particular, que pode conduzir a adotar sua linguagem e a entrar em seus pontos
de vistas, em seus sentimentos, em seus pensamentos.
Depois de fazer a leitura individual de cada entrevista fiz a pré-decupagem com o objetivo de
levantar os temas abordados pelos entrevistados, que me permitiram esboçar perfis,
relacionando-os de modo a ver o que aproxima e separa essas pessoas.
6.1 - POUCO TEMPO PARA OS FILHOS
6.1.1 – Uma vida corrida
Meu primeiro contato com os pais de Jaime
27
se deu na saída da escola. Naquele dia, por
acaso, sua mãe foi buscá-lo na escola, pois estava de folga do serviço. Ela é agente
comunitária da prefeitura e tinha conseguido autorização da prefeitura para se ausentar do
trabalho naquele dia para ir ao médico. Após uma breve explicação do tema da pesquisa, ela
aceitou ser entrevistada, repassando seu endereço e marcando um horário para que eu pudesse
visitá-la.
Fui até a casa dos pais de Jaime no dia e hora combinados para a entrevista, em uma casa
localizada no km 14. Era uma casa simples, com quintal pequeno, que aparentava ser velha. A
rua, de muitas casas pequenas, a maioria sem acabamento, era calçada com paralelepípedos
misturados com areia. Não parecia haver ninguém em casa, e mesmo após chamar e esperar
por cerca de vinte minutos, ninguém apareceu. Uma vizinha me informou que a mãe de Jaime
havia saído desde cedo, e que o pai deveria chegar à casa, por volta do anoitecer, do posto de
gasolina onde trabalhava como frentista. Não podia esperar, pois estava com o carro da
universidade e por isso, tinha horário para retornar.
27
Os nomes dos alunos são fictícios.
Em uma das minhas visitas à escola Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos, conversei
com a diretora sobre a tentativa frustrada de entrevista com os pais de Jaime, ao que ela
respondeu dizendo que eu poderia encontrar o pai de Jaime no posto de gasolina que fica
próximo à escola, na beira da rodovia, sendo bem provável que ele estivesse trabalhando
naquele exato momento, pois o pai havia trazido Jaime para a escola naquela manhã.
A idéia de realizar uma entrevista com o pai de Jaime no seu local de trabalho me pareceu
uma oportunidade interessante, e me encaminhei até o posto de gasolina, onde perguntei a um
frentista pelo pai do aluno, que o chamou prontamente. Após me apresentar, e explicar o
motivo da entrevista, o pai de Jaime se prontificou a conversar, porém mostrou não estar
ciente da visita que eu havia marcado anteriormente à sua casa com sua esposa, para tratar do
mesmo assunto.
O pai de Jaime tem 28 anos, nasceu em Travessão, e nunca morou em outro lugar ao longo de
sua vida. Ele tem o ensino médio incompleto, pois parou de estudar quando Jaime nasceu:
“[...] eu estudava, mas era aquela bagunça, gostava de ficar no pátio; quando nasceu
Jaime, aí que eu resolvi correr atrás né? O tio da minha esposa me arrumou um bico,
e foi dando pra comprar as coisinhas aos pouquinhos[...] a mãe dele terminou, gosta
mais né? Tem mais saco (ri). Meu negócio é botar a mão na massa, que nem aqui
[...]”.
A mãe de Jaime terminou o ensino médio após o nascimento da criança e passou a cuidar da
casa desde então. Foi um amigo, também morador de Travessão, quem conseguiu o emprego
de agente comunitária da prefeitura para ela.
Embora tenha crescido "um bocado", Travessão continuava, para o pai de Jaime, uma "roça".
Nessa condição, não dispunha de assistência médica para atender aos seus munícipes: "minha
esposa teve que ir em Campos".
“[...] cresceu um bocado bom. Era tudo mato isso aqui, km 13, km 14, esse lado de
da pista, foi crescendo de uns dez anos pra cá. Se me dissessem que eu ia morar
ali onde eu moro, naquela época, eu ia falar ‘só se for em cima da árvore!’ (ri). [...]
mas ainda é roça, falta muita coisa, minha esposa tem que ir em Campos pra tudo,
esses dias teve que ir no médico, aí vai lá em Campos [...]”
Jaime mora com os pais na casa da avó materna que, segundo seu pai, “[...] precisa de gente
perto, idosa [...]”, e é ela quem acaba passando a maior parte do tempo com o menino,
pois a mãe trabalha de oito da manhã às dezoito horas, e o pai trabalha por escala no posto,
em turnos de oito horas, ás vezes durante a madrugada. Esse fato, segundo ele, “[...] dificulta
né? Às vezes até quero ver mais, levar pra jogar bola, soltar pipa, mas nem sempre dá, mas a
avó cuida muito bem dele, sempre em cima, junto, ele gosta [...]”. A avó é, portanto, a
responsável pela educação do menino:
“A gente vive na correria pra ele né? E ela os cadernos direitinhos, leva pro
reforço, ela paga o reforço, aula de reforço pra ele. Pra ela é bom também, ocupar a
cabeça né? Pega no pé dele, mostra os bilhetes pra gente, a gente vê, mas ela é quem
faz mais, é muita correria[...]”.
Em sua opinião sobre a escola, o pai de Jaime diz não ter qualquer tipo de restrição quanto à
qualidade do ensino ministrado pela instituição, e lembra que o filho "tá gostando muito de
lá":
“[...] ele gostando muito de lá, esses dias ficou doente, não podia ir, reclamou à
beça com a avó, ela disse [...] a mãe gosta muito de lá, o pessoal gosta bastante das
crianças lá, chama pelo nome, conhece todo mundo, a avó diz que os dever de casa
são todo dia, ajuda né? [...]”.
Perguntei-lhe sobre os motivos que o levaram a escolher aquela escola, ele não me soube
responder, com clareza: “[...] porque é bom né? A avó disse que é bom, é perto de casa, do
trabalho (longo silêncio), tem muita criança né? É bom pra ele brincar. A avó disse que ia
ser bom pro menino, ele gosta de lá.”
Explorando melhor o assunto, perguntei sobre se ele saberia me informar se a escola de seu
filho deixa de atender a alguma coisa que ele considera importante, ele me respondeu
prontamente: não tem quadra de futebol!
“Uma quadra de futebol né? Ele adora futebol, não tem, a gente joga no quintal,
na rua, ali em casa mesmo, e na escola podia ter, ia ser bom pra ele, esporte né? A
rua ali é apertadinha, nem passa carro direito, nem pode brincar muito ali, mas ia ser
legal uma quadra”.
Há, na organização da visão do pai de Jaime sobre educação uma clara divisão que opera as
escolhas pessoais de cada membro da família. Gostar ou não gostar da escola (e isso não
significa gostar de estudar). A "mãe dele terminou, gosta mais, né? tem mais saco. Meu
negócio é botar a mão na massa". Gostar da escola está relacionado com brincar, jogar
futebol, e ser reconhecido pelo nome (chama pelo nome, conhece todo mundo). Não ficou
claro, porém, se o futebol é uma simples brincadeira ou se é uma preparação para garantir
alguma forma de ascensão social, no futuro.
Outro aspecto que chama a atenção nesse perfil é o fato da mãe de Jaime ir ao primeiro
distrito quando precisa de atendimento médico, ao invés de utilizar o hospital de Travessão,
alvo de críticas por parte dos moradores. De acordo com Bourdieu, a posição de um agente no
espaço social se exprime no lugar do espaço físico em que está situado, e pela posição relativa
que suas localizações permanentes e temporárias ocupam em relação às posições dos outros
agentes. A possibilidade de conseguir atendimento médico de melhor qualidade em outro
lugar que não Travessão é um indicativo de uma posição privilegiada dos pais de Jaime em
relação aos moradores do distrito que precisam recorrer aos serviços médicos precários do
distrito.
6.1.2 – Cadê a minha mãe?
A casa onde Jéssica mora com a mãe e a avó fica na rua atrás da escola José Giró Faísca, no
km 13. É uma casa que se destaca na rua, embora simples como a grande maioria, pelo bom
estado de conservação e limpeza. Também é uma das poucas casas de entrevistados que
possui campainha.
O interior da casa onde foi realizada a entrevista é muito bem cuidado, com vasos de plantas
decorando a varanda, e muitas fotos de Jéssica espalhadas pela sala. Fui recebido pela avó de
Jéssica, que me informou sobre a ausência da mãe. Apesar de constar como “Do lar” na ficha
de matrícula, a mãe de Jéssica trabalha como empregada doméstica em casa de uma família
que reside no distrito de Campos, durante o dia. À noite, trabalha em uma lanchonete na área
central de Travessão.
Jéssica nasceu quando sua mãe tinha 18 anos, logo após ela ter concluído o ensino médio. O
pai de Jéssica separou-se de sua mãe quando ela ainda era bem pequena, e segundo a avó:
“[...] aparece muito pouco”.
A avó parece conhecer bem alguns problemas enfrentados pela escola onde sua neta estuda.
Em sua opinião sobre a escola disse que: “[...] podia ser muito melhor, mais espaço pras
crianças não ficarem no pátio, [...] mas ninguém liga pra Travessão não, só aparecem aqui pra
fazer campanha, sabe?” Para ela, as mazelas enfrentadas pela escola dificultam o aprendizado
das crianças, pois que: “[...] nunca vi disso, ter aula no pátio [...] o que pra aprender?
fica sem saber nada, vai pra escola, mas não sabe nada, que nem essas crianças aqui da rua”.
A avó faz questão de dizer que ela toma todos os cuidados para vigiar de perto a vida escolar
de Jéssica, ocupando-se em fazer os deveres de casa com a neta, e revisando os conteúdos das
aulas, com o objetivo de:
[...] saber se pegou direitinho né? A gente tem um trato: se tirar dez, ganha um
brinde! ela estuda bem, e dou umas besteirinhas, pra animar ela pro estudo! A
mãe também, quando ta em casa, pergunta sempre [...] quer saber dos coleguinhas,
do que aprendeu, se tem dificuldade [...].
Ainda sobre sua preocupação com a vida escolar da neta, a avó afirma:
[...] é botar na cabeça dela que a escola vai ajudar né? Pra não repetir a mãe [...]
agora tem que ralar que nem uma doida, terminou na flauta, como dizem [...] agora
trabalha que nem uma condenada pra poder pagar as coisinhas de Jéssica [...] então
eu falo sempre, estudar pra poder ganhar bem né?
Quando pergunto sobre a presença da mãe, a avó diz que a mãe passa pouco tempo em casa,
mas faz questão de dizer que quando está presente, se interessa muito por Jéssica: [...] o
pouquinho que fica aqui, pega pra brincar, leva pra tomar sorvete [...] eu falo sempre ‘sua mãe
ta trabalhando pra você poder estudar!’
Quando retorna do trabalho diurno, a mãe tem tempo apenas para tomar banho, comer alguma
coisa, e correr para a lanchonete, onde trabalha até meia-noite. A avó relata que é muito
comum Jéssica passar um dia inteiro sem ver a mãe: “[...] às vezes vai na casa de uma
amiguinha, ver DVD, não encontra com a mãe, e quando a outra chega, Jéssica dormiu,
porque dorme no meu colo até hoje, vendo novela [...] aí só vê no outro dia”.
O depoimento da avó traz elementos importantes para compreender como ela percebe a
importância dos estudos da neta. Ela demonstra com clareza que o sucesso nos estudos é o
único caminho para não ter "que ralar que nem uma doida". A falta de estudos sentencia a
pessoa a trabalhar como "uma condenada". A avó de Jéssica tem uma percepção muito aguda
sobre a qualidade de ensino da escola: "nunca vi disso, ter aula no pátio [...] o que pra
aprender? Aí, fica sem saber nada, vai pra escola, mas não sabe nada, que nem essas crianças
aqui da rua”. Essa afirmação remete diretamente a Bourdieu quando aponta que o simples
acesso à escola não é suficiente para ter sucesso nela. Segundo a avó, é preciso que existam
condições adequadas para que o processo de aprendizagem possa ocorrer plenamente. Ela
entende que a escola oferece um ensino de má qualidade porque "ninguém liga pra Travessão,
não, [os políticos] só aparecem aqui pra fazer campanha, sabe?"
As questões referentes à política aparecem em ambos os perfis analisados até o momento. A
avó de Jéssica quando acusa os políticos de só aparecerem em Travessão para fazer campanha
remete ao caráter político do isolamento social, que de acordo com Sorj e Martucelli, ocorre
quando a segregação residencial se associa à prática da patronagem local, gerando acesso
subalterno aos direitos de cidadania. Esse aspecto parece se apresentar no primeiro caso,
quando o pai de Jaime afirma que sua esposa conseguiu o trabalho de agente comunitária
através de um “amigo”, o que sem dúvida, acabou gerando a sua facilidade de conseguir
atendimento médico no primeiro distrito.
6.1.3 - A mais velha e a mais nova
Minhas tentativas de entrevistar a mãe de Deise foram frustradas. No primeiro encontro, em
uma casa pequena distante cerca de um quilômetro da escola Carlos Chagas em Jacarandá,
não havia ninguém em casa. Quando retornei para uma segunda visita, na parte da tarde,
Deise estava em casa com a irmã mais velha de dezesseis anos.
Quando perguntei as meninas pela mãe, soube, pela mais velha, que a mãe estava trabalhando
no centro de Travessão. Desde o ano passado, a mãe trabalha como atendente em uma
padaria, de oito da manhã às dezoito horas (dez horas de trabalho diário).
As meninas são nascidas e criadas em Travessão, sempre morando na mesma casa, construída
pelo pai, que “morreu do coração”, segundo a mais velha, cinco anos. A filha mais velha
relata que é ela quem toma conta da casa até a hora em que a mãe chega do trabalho, saindo
para a escola logo após. Ela cursa o primeiro ano do Ensino Médio em uma escola no centro
de Travessão, à noite. De acordo com ela:
[...] eu faço tudo aqui, mamãe sai de manhã e eu faço faxina, arrumo a casa, faço
meu almoço [...] Deise chega da escola, ela toma banho, e vai pra rua brincar [...]
quando minha mãe chega, ela quer tudo prontinho!
Como não fui convidado a entrar, a entrevista aconteceu no portão da casa, uma construção de
tamanho médio, com a pintura descascando e quintal de terra batida. A irmã de Deise, quando
perguntei sobre a escola em que a irmã estuda, não soube responder: “[...] nem sei, nunca fui
lá! [...] eu acho que é bom né? Minha mãe que botou ela [...] tenho nada pra falar de
não!”
Durante a conversa, Deise passa correndo pelo portão entrando na casa. A irmã mais velha
grita com ela perguntando onde ela estava, ao que Deise responde dizendo que estava na casa
de uma amiga, “[...] vim pegar um negócio rapidinho!”. E sai correndo em direção ao final da
rua sem falar mais nada com a irmã.
Um aspecto forte dessa entrevista e que também permeia de forma menos evidente as outras
entrevistas desses perfis é a questão da desestruturação familiar. Em todos os casos, os filhos
passam pouco tempo com os pais, de forma que a preocupação com a educação fica a cargo
das avós nos dois primeiros perfis, e nesse terceiro, a aluna não parece ter qualquer espécie de
acompanhamento em casa. Esse processo de desestruturação do universo familiar é apontado
por Luís César de Queiroz Ribeiro como um dos efeitos do empobrecimento social causado
pelos novos mecanismos de espoliação urbana.
6.2 - A ESPERANÇA NA ESCOLA
6.2.1 - A aposta da mãe
Quando pedi à diretora da escola Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos que me
indicasse dez pais para realizar as minhas entrevistas, o primeiro endereço que ela me deu foi
o da mãe de César, dizendo que se tratava de um dos melhores alunos da escola, e que a mãe
participa ativamente na vida escolar da criança e, certamente ela gostaria muito de conversar
comigo.
A mãe de César mora em uma rua atrás da escola, em uma casa de dois andares, de tamanho
médio, e quintal pequeno, com um muro com cerca de um metro e oitenta de altura. No
quintal, dois cães de guarda anunciaram a minha chegada.
Ao me apresentar, a mãe de César se mostrou muito solícita e disse que teria muito prazer em
me auxiliar em minha pesquisa. Após prender os cachorros, subimos para o segundo
pavimento da casa, onde ela mora com o filho. Na parte de baixo, moram os pais dela, avós de
César.
A mãe de César disse ter 31 anos, e que está desempregada, embora tenha trabalhado
anteriormente em cargos administrativos, como secretária, auxiliar de escritório, todos eles
"na cidade de Campos". Ela cursou o Ensino Fundamental e Médio completo e chegou a
começar a graduação em Letras, porém, não concluiu porque “não era bem o que eu queria”,
mas pretende em algum momento retomar os estudos, pois na opinião dela: “[...] não se pode
parar de aprender nunca! A gente tem sempre uma coisa nova pra aprender, e eu sempre quis
fazer Direito [...] entender melhor os mecanismos né? Esse sistema que tá aí...”.
Ela é divorciada, e está em Travessão três anos. Mora com os pais, e vive com a pensão
disponibilizada pelo pai de César, que mora em Macaé, e “raramente aparece para vê-lo”. Ela
nasceu em Travessão, mas fez o ensino médio no Liceu de Humanidades Campista, sendo
que, quando terminou, passou a morar com uma tia em Campos, pois havia arrumado um
emprego, mas visitava os pais periodicamente.
Sobre a mudança na paisagem de Travessão, a mãe de César prefere apontar a questão
estética: “[...] é desordenado, feio. As casas, sem acabamento, dão uma impressão de pobreza
muito grande, é muita gente sofrida né? [...] cresceu, mas tem isso com essas casas, é muita
pobreza”.
Quando perguntei sobre o que ela acha da escola que seu filho freqüenta, a mãe de César
hesita por alguns segundos, mas responde:
[...] eu acho (pausa) acho que eles são muito esforçados né? Trabalham muito duro!
A diretora é muito batalhadora (pausa) assim, tem problema né? Nenhum lugar é
perfeito, mas até agora to satisfeita com o que ta acontecendo.
Ela aproveita para falar sobre sua preocupação constante com a educação de seu filho, que ela
procura acompanhar nos mínimos detalhes:
Lá tem sempre dever de casa, e quando ele chega é banho, almoço e dever! Eu sento
com ele, a gente faz junto, eu depois pergunto tudo, to nas reuniões, sabe? Acho que
tem que acompanhar sempre, é o futuro dele, e ele ainda não se dá conta disso, então
eu preciso cuidar por ele. [...] ele até reclama, fala que quer ir brincar, não quer fazer
dever, mas eu puxo a orelha mesmo, falo que é importante!
Para ela, a preocupação com o desempenho de César nas fases iniciais de sua educação é o
que vai garantir um bom desempenho em estágios futuros:
Precisa ficar perto, precisa acompanhar, ensinar direitinho, faço sempre ditado, boto
ele pra escrever as palavras que erra, to sempre corrigindo a fala, o português, é
necessário saber se expressar, até pra poder ir bem num vestibular no futuro, subir
na vida, sair de Travessão. [...] de vez em quando eu pergunto ‘quer ficar em
Travessão pra sempre?’ Então vamos estudar!
De acordo com ela, seu filho está na Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos pela
tradição da diretora no local, e pondera: “ninguém fica tanto tempo se não for bom né? Então,
tem, o trabalho rende”. Para ela, uma questão a ser sanada com urgência na escola é a falta
de um refeitório, pois não acha certo que as crianças comam na própria sala de aula. Ela
afirma que “[...] cada lugar é um lugar, e comer merenda na sala de aula não é legal, mistura
as coisas”.
Ao final da entrevista, a mãe de César me fez várias perguntas sobre o trabalho, e me pediu
que quando o mesmo estivesse pronto, que levasse uma cópia para ela.
Da conversa com a mãe de César pude fazer algumas inferências. Para subir na vida e sair de
Travessão ela investe na educação do filho. O tipo de investimento possível para ela é
acompanhar e ensinar direitinho, principalmente "o português, é necessário saber se expressar,
até pra poder ir bem num vestibular no futuro". Nesse caso, o domínio do idioma funcionaria
como uma categoria de distinção em relação aos outros moradores do distrito, uma clara
demonstração de que César não é igual a todos os outros alunos de Travessão.
O relato da entrevistada sobre o distrito de Travessão (“desordenado, feio, dão uma impressão
de pobreza muito grande”), indica que ela tem dificuldades de se enquadrar na estética do
lugar. Outro indicador do seu sentimento de deslocamento são os muros altos de sua casa,
além dos dois cães de guarda que possui. Nesse caso, os vizinhos são vistos como uma
ameaça constante, da qual ela precisa se proteger. Esse deslocamento é um reflexo do não-
cumprimento das condições que o espaço exige de seus ocupantes, assim como apontado por
Bourdieu.
6.2.2 - À espera do melhor
A casa dos pais de Márcia fica no bairro do Aeroporto, no distrito de Campos. Como o
próprio nome já diz, o bairro cresceu ao redor do aeroporto Bartolomeu Lyzandro, que
atualmente recebe os particulares, que a única linha comercial do estabelecimento
vôo saindo do Rio de Janeiro com destino a Campos – não mais existe.
Como o distrito de Travessão, o bairro do Aeroporto se formou na beira da BR-101, e em seu
interior, podemos constatar uma paisagem que parece crescer constantemente. De acordo com
a mãe de Márcia, o bairro “[...] teve uma explosão né? Assim, sempre tem uma casinha nova,
agora fizeram aquela escola ali”.
A mãe de Márcia mora em uma rua sem calçamento, de terra batida, em uma casa simples,
sem acabamento, com a filha Márcia, o marido e um filho de dois anos de idade. Convidou-
me para entrar, e fizemos a entrevista na sala da casa, com a televisão ligada, enquanto o filho
pequeno assistia a um DVD infantil. A sala é pequena, com um sofá de três lugares, uma
estante com bibelôs diversos e uma bíblia aberta em cima da televisão.
Ela tem 28 anos de idade e cuida da casa. O marido tem 29 anos e trabalha como servente em
um edifício comercial no distrito de Campos. Há cerca de dois anos, vieram juntos para morar
no bairro, sendo que antes eram moradores do bairro da Penha, no lado oposto do primeiro
distrito. A mãe de Márcia explica que ela e o marido compraram o terreno em que a casa está
construída, e resolveram se mudar pra cá, pois, “[...] é nosso né? Tem aluguel não, com a
graça de Deus a gente conseguiu a nossa casinha”.
Márcia estuda na escola Carlos Chagas desde que os pais se mudaram para o bairro do
aeroporto. A mãe traça algumas comparações com a escola na qual Márcia estudava no bairro
da Penha:
[...] é boazinha! Mas é longe demais! Pra ir lá é difícil né? A outra era quase do lado,
então levava todo dia, ia em tudo, era melhor [...] mais arrumadinho, o banheiro
direitinho né? Ali nem gosto de ir muito, que eu fico meio revoltada de ver [...]
agora que reformou o banheiro, antes era uma sujeira, uma imundície, ui [...]
Perguntei, então, porque razão escolheu a escola Carlos Chagas para educar sua filha. Ela me
respondeu sem rodeios:
[...] não tinha outra! A daqui do bairro era numa casinha apertadinha, cansei de ir
pedir vaga, chegava tinha um montoeiro de mãe sentada querendo vaga também,
tudo moradora [...] botaram até uma placa, de tanto que a gente perturbava [...] a
placa era pra não pedir mais vaga, que a escola já tava cheia, mas também né? Era
muito pequenininha, a outra era essa né? Vai ficar sem estudar? Deus me livre
filho meu na rua!
Nesse ponto da entrevista, a mãe de Márcia falou que estava contando os dias para o início da
matrícula na rede pública, para poder inscrever sua filha na nova escola construída no bairro:
Tem agora, a escola nova, ali perto, abriu esse ano né? fui lá, saber direitinho,
conversei com a diretora, agora tem vaga à vontade! [...] dois andares menino! A
diretora mandou juntar os pais do bairro, sentou a gente lá, conversou bonitinho,
direitinho, mandou voltar na matrícula que vai ter vaga! [...] o filho da menina aqui
do lado já ta lá, ela fala todo dia! Tem isso, tem aquilo, tem mais não sei o que, disse
que a escola é um mundo de grande!
Para ela, a nova escola representa uma oportunidade para sua filha ter um ensino de
qualidade, empreendimento que a escola atual não oferece.
[...] o computador né? Disse que tem uma sala, a diretora disse que tem uma sala
com um monte de computador pras crianças usarem [...] meu marido até queria
comprar um aqui pra casa, pra ir aprendendo, usa na escola e usa aqui também.
Sala de balé menino! Mostrou pra gente a diretora, aquela sala com aquele espelho,
é bom né? A outra nem tem nada direito, aquele espação todo [...]
A mãe de Márcia reconhece a importância da instituição escolar, quando eu pergunto se a
mudança de escola pode ajudar sua filha nos estudos: “Escola boa ajuda muito, pra aprender a
se virar, ser alguém; eu vivo falando pro meu marido, ‘vamos terminar, fazer também’,
pra tentar um concurso né?”.
No final da entrevista, pergunto-lhe o que ela melhoraria na escola em que sua filha está
matriculada atualmente e ela responde dizendo que: “[...] podia fazer outra né? Fez outra aqui,
faz uma lá também, que nem essa aqui, com computador pras crianças”.
6.2.3 – Como na televisão
Gustavo me foi indicado pela diretora da José Giró Faísca como filho de pais muito
interessados na vida escolar do menino. A casa dos pais de Gustavo é no km 13, três quadras
distância da escola. É uma casa de tamanho médio, que se destaca em meio às casas pequenas
sem acabamento. Toco a campainha e a mãe de Gustavo atende. Muito solícita, me convida
para entrar e pergunta se eu gostaria de fazer a entrevista com o marido também, pois ele
estava nos fundos, onde funciona a sua oficina de carpintaria.
Faço a entrevista com ambos os pais, na mesa da cozinha, onde a mãe de Gustavo me oferece
um café. A cozinha é pequena, porém muito limpa, com eletrodomésticos de aparência nova
e, na parede, um relógio com o rosto de Jesus Cristo em seu interior.
Ambos têm 43 anos; ele nasceu em Travessão, trabalhou e morou durante dezoito anos no
primeiro distrito, onde Gustavo nasceu. A mãe nasceu e morou "em Campos", tendo se
mudado para com o marido cerca de cinco anos atrás. O casal explica que o retorno à
Travessão se deu como forma de ocupar a casa do avô paterno de Gustavo, que havia falecido
na época, de acordo com a mãe do menino:
[...] a gente veio, meu marido ficou com a casa [...] eu não queria muito vir não,
aqui é meio isolado né? Tudo tem que ir à Campos [...] mas meu marido gosta muito
daqui, diz que é bem sossegado, é bom pra Gustavo crescer [...] ele corre isso tudo
aqui [...].
O pai de Gustavo faz comparações entre a sua infância e a de Gustavo, para explicar sua
escolha por Travessão, e acaba por falar sobre a evolução urbana do distrito, afirmando: “[...]
sempre foi sossegado, cresci aqui [...] agora tem mais coisa, pra ficar mais por aqui né?
Na minha época tinha que ir à Campos pra tudo [...] não tinha diversão, nada [...]”.
Os pais gostam da escola em que Gustavo estuda e não parecem se importar com os
problemas de infra-estrutura que por lá existem e, segundo a mãe, gostam de participar
ativamente dos encontros promovidos pela escola:
[...] ele gosta de ir, a gente faz questão de aparecer sempre né? [...] tem que
participar, acho que a diretora gosta quando [...] ajudamos na festa junina, o pai
fez umas barraquinhas [...] eu fiquei , ajudando, foi divertido [...] o pessoal
trabalha muito lá, s professoras sempre falando com a gente [...] eu gosto bastante
[...].
O pai, ao falar da escola, explicita a vontade de futuramente sair de Travessão, dizendo que:
Eu gosto muito da diretora [...] ela fala mesmo, mas sabe falar [...] tem gente que
não sabe falar direito, ela não. Ela diz que serve pros meninos melhorarem de vida
[...] eu acho também [...] tem que estudar pra sair daqui, ir fazer faculdade em
Campos [...] senão vai ficar correndo risco de perder dedo na serra, que nem eu (ri)
[...] eu falo com ele ‘vai fazer outra coisa com a mão, vai escrever!’.
Para a mãe de Gustavo, a escola representa uma oportunidade de ascensão social para o filho,
pois:
Canso de ver na TV né? As crianças inteligentes é que vão lá soletrar as palavras [...]
esses dias passou a história de um rapaz [...] era pobrezinho, mas hoje é médico! Por
que? Por conta do estudo, de estudar muito! Eu faço questão [...] ta passando na TV
eu chamo Gustavo, mostro, digo ‘é assim que tem que ser’. Precisa estudar mesmo.
Ao terminar a entrevista, a mãe de Gustavo me acompanhou até a saída e fez questão de me
dizer que luta muito pela educação do filho, para que ele possa, “[...] sair daqui, ir fazer um
Cefet, uma faculdade [...] Travessão não é lugar pra ficar não, então falo com ele todo dia
‘tem que crescer, tirar bastante dez’”. A mãe também me diz que tem tentado convencer o
marido a vender a casa para que eles possam se mudar "de volta para Campos" e que no início
ele apresentou grande resistência, mas que já começa a se acostumar com a idéia.
Os pais de Gustavo têm objetivos muito bem definidos para suas vidas. Para concretizá-los a
educação escolar é condição sine qua non. Eles querem melhorar de vida e isso significa sair
de Travessão. Para tanto, "eu acho também [...] tem que estudar pra sair daqui, ir fazer
faculdade em Campos [...] senão vai ficar correndo risco de perder dedo na serra, que nem eu
[...] eu falo com ele ‘vai fazer outra coisa com a mão, vai escrever!’.
Em todos os perfis fica evidente a preocupação com a educação dos filhos, e a crença no
poder da escola como uma forma de ascensão social. Além disso, fica evidente que para os
três pais entrevistados, Travessão não é um lugar para se estar no futuro. Todo o investimento
realizado na educação dos filhos tem como objetivo principal, dotar as crianças das
qualidades que as permitam irem para outro lugar mais adequado para seu desenvolvimento
profissional.
Bourdieu aponta que as disputas para a apropriação do espaço podem tomar uma forma
individual, onde os deslocamentos nos dois sentidos – centro e periferia – é um bom indicador
dos sucessos ou dos revezes alcançados nessas lutas e de toda a trajetória social. Nas duas
últimas entrevistas, os pais saíram de lugares com melhor localização espacial, o que
evidencia um revés de acordo com a afirmação de Bourdieu.
6.3 - TÃO LONGE DE TUDO
6.3.1 – As oportunidades perdidas
Madalena mora com os pais e mais duas irmãs no segundo andar da casa dos avós maternos
em Jacarandá. A irmã mais velha tem dezoito anos e está atualmente desempregada. A mais
nova tem cinco anos e estuda no período da tarde na escola Carlos Chagas. Madalena vai a
para a escola, pois mora na mesma rua da escola, cerca de dez minutos de caminhada. Sua
irmã mais nova vai com a mãe de uma vizinha, que todos os dias leva sua filha para a escola.
O pai, de 45 anos, é nascido no primeiro distrito do município, e se mudou para Travessão
sete anos. Atualmente ele está desempregado. A mãe de Madalena tem 42 anos e trabalha
como manicura. Ela nasceu em Travessão e se mudou com o marido para esse distrito depois
que ele perdeu o emprego de balconista em uma loja do primeiro distrito:
[...] a gente no aluguel lá, e sem trabalho [...] as unhas pra fazer não davam muita
coisa [...] viemos pra [...] meus pais foram ajudando, meu marido arrumou
serviço, a gente foi construindo aqui em cima [...] agora desempregado de novo
[...] mas a gente vai se virando.
No momento da entrevista, o pai de Madalena não se encontrava em casa, havia saído com
um amigo para responder a um possível emprego, no primeiro distrito. Ao que parece, mesmo
tendo construído uma casa em Jacarandá, e morar a sete anos nesse lugar, a “cidade de
Campos”, (referem-se ao primeiro distrito do município), é parâmetro de comparação na fala
da mãe de Madalena, inclusive quando lhe perguntei sobre o que acha da escola Carlos
Chagas:
[...] é boa, mas não é nível de Campos não né? [...] a gente pela mais velha [...]
estudou quase tudo [...] é mais solta né? Pega mais rápido. [...] a escola é muito
pobre, tadinha, um quintalzão, cachorro passando, nem tem cara de escola!
Em certo ponto, a mãe de Madalena deixa escapar que seu grande objetivo é voltar a morar no
primeiro distrito:
[...] fico doida pra voltar pra lá! [...] quando vou no centro, sinto muita falta do
movimento, das lojas, das coisas [...] aqui é muito longe! Até pra ir no centro de
Travessão é longe! A mais velha acostumou, tem amigo aqui já, namorado, [...] eu e
meu marido somos doidos pra voltar!
O maior problema apontado pela mãe de Madalena é a precariedade do serviço de transporte
na localidade de Jacarandá, relatando inclusive que a sua filha mais velha perdeu dois
empregos no primeiro distrito, justamente pela dificuldade de locomoção:
[...] perdeu dois serviços bons! [...] o ônibus atrasava, ela atrasava também, se
chove, alaga tudo, falta o serviço [...] o patrão não gosta né? [...] ela fica triste
tadinha, quer trabalhar em Campos, o namorado trabalha lá também [...] por isso que
a gente tinha que voltar pra lá né?
Para ela, o crescimento de Travessão e de Jacarandá é incontestável, mas apenas no que diz
respeito ao aumento da população, pois:
[...] emprego que é bom nada hein? Tem mais gente, tem mais casa, mas emprego é
uma luta meu filho [...] meu marido aí, pelejando três meses sem arrumar nada! A
mais velha doida pra trabalhar, ter as coisinhas dela [...] é mais gente, mas é mais
gente assim que nem a gente né? Desempregada, querendo serviço [...].
Quando volto a perguntar sobre a escola da filha, a mãe de Madalena responde rápido: “[...]
eu queria era levar ela pra estudar em Campos, sabe? Deixa essa do jeito que e vamos
embora! [...] escola com banheiro certinho, refeitório, tudo calçado bonitinho, que nem tinha
lá no bairro em que a gente morava”.
Ao terminar a entrevista, a mãe de Madalena me confidenciou que tem muita de que o
marido irá voltar para casa hoje "com o emprego em Campos" que eles tanto querem e que,
inclusive havia sonhado com isso naquela noite. Quando pergunto o que eles fariam com a
casa em que moravam, ela responde dizendo que combinaram tudo com os pais dela. A
casa seria alugada, e o dinheiro seria dividido entre os avós de Madalena e os pais da menina.
Para a mãe de Madalena, o primeiro distrito do município garante todas as oportunidades que
não existe no distrito de Travessão, oferecendo serviços de melhor qualidade, que não podem
ser desfrutados pelos moradores do distrito (“já perdeu dois serviços bons!”). Na questão
educacional, “a cidade de Campos” parece representar um nível superior tanto em termos de
infra-estrutura das escolas (“escola com banheiro certinho, tudo calçado bonitinho”), quanto
em termos da qualidade do ensino, fato apontado pela mãe ao fazer a comparação entre a filha
mais velha, que estudou no primeiro distrito (“é mais solta né? Pega mais rápido”), e
Madalena, que estuda em Travessão.
6.3.2 – Os recém-chegados
A família de Nélson está morando em Travessão faz um ano. O pai e a mãe, ambos de 31
anos, são naturais do município de Prado, no estado da Bahia. Vieram para o município
porque o pai recebeu uma proposta de emprego para trabalhar como motorista em uma
fazenda, responsável pelo transporte dos trabalhadores rurais para o local de trabalho e deixá-
los de volta em casa. A mãe de Nélson diz que a vaga na qual o pai do menino trabalha
atualmente foi conseguida por meio de um amigo que já estava trabalhando na mesma
fazenda, e que o indicou para o serviço.
Eles moram em uma casa muito simples, com apenas um quarto, sala cozinha e banheiro, sem
acabamento nas paredes, no km 13. A entrevista foi realizada numa sala com poucos móveis,
com uma pequena televisão e um sofá de dois lugares de aparência muito velha, que a mãe de
Nélson limpa com um pano seco antes que eu me acomode.
Nélson estuda na escola Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos e vai com a mãe todos
os dias, porque segundo ela: “[...] tenho muito medo dele atravessando essa pista sozinho [...]
tem mãe que deixa os filhos irem [...] aquelas criançadas tudo atravessando a pista sozinha
[...] meu filho não faz isso não, é perigoso demais, tem muito caminhão passando ali”.
Sobre suas impressões a respeito de Travessão, a mãe de Nélson faz muitas comparações com
Prado: [...] é parecido, tem mais coisa ? [...] aqui, o pessoal é um pouco fechado [...] a
gente tem dificuldade de conversar com as pessoas, no início, olhavam a gente assim sabe?
Meio de lado [...] lá o pessoal era mais chegado.
As relações com os seus vizinhos, segundo a mãe de Nélson, não é muito próxima. De acordo
com ela, raramente se cumprimentam, e ela afirma não saber o nome das pessoas, e nunca ter
conversado longamente com seus vizinhos. Ela exprime seu sentir desconforto com o modo
como os vizinhos a olham: “[...] eles gostam de encarar o sujeito [...] ui, me até nervoso!
Parece até que a gente é bandido!”
Afirma ainda não saber exatamente como se locomover no distrito:
[...] sei levar na escola só. Tem uma padaria aqui na frente [...] esses dias aprendi
que tem um mercadinho ali pra dentro, [...] eu não gosto de sair de casa, gosto da
minha novela, assisto tudo, até a da tarde! Eu e Nélson! Meu marido sabe andar
isso aqui tudo né? Motorista! Tem que saber direitinho!
Quando perguntei se eles haviam ido ao primeiro distrito, ela responde que sim e afirma:
“[...] grande né? Meu marido levou a gente. Muito carro, fui ao centro, muita loja, muita
roupa [...] é bom pra passear, tirar a tarde, levar Nélson no shopping, tomar picolé [...] a
gente volta”.
Para a mãe de Nélson a escola é:
[...] ótima, ele ta gostando muito [...] no início teve dificuldade com os coleguinhas,
ele é tímido [...] mas agora ta melhor que a gente [...] teve dificuldade na matéria
também [...] ficou pra trás, tirou nota vermelha, a diretora me chamou , conversei
com a professora, ela passou reforço pra ele [...] gosta um bocado de lá, até brinca
comigo, dizendo que a merenda é melhor que a minha comida, que ele quer ir morar
na escola por conta disso.
Quando pergunto se ela mudaria alguma coisa na escola em que seu filho estuda, disse-me
que não tem nenhuma sugestão, e que para ela “[...] se melhorar ali estraga né?
Ao final da entrevista, na entrada da casa, pergunto se ela pode me orientar em como
chegar até a casa onde faria a próxima visita, que o endereço também era no bairro do km
13. A mãe de Nelson não soube me ajudar, e afirmou não saber o nome de nenhuma rua do
bairro, “[...] só sei a minha, muito mal!”
A dificuldade enfrentada pela família de Nélson em se relacionar com os vizinhos reflete a
questão da erosão das formas de civilidade desenvolvida por Sorj e Martucelli. Nesse cenário,
os pais de Nélson, recém-chegados ao local, enfrentam a desconfiança dos antigos moradores,
gerando uma dificuldade no relacionamento (“o pessoal é um pouco fechado”), pois os
vizinhos tendem a olhar os moradores novos como uma ameaça de alguma espécie (“Parece
até que é bandido!”). Essa relação também é dificultada pelo medo constante da mãe de
Nélson, chegando inclusive ao ponto de não gostar de sair de casa, por se sentir incomodada
com os olhares dos vizinhos. Em ambos os casos, fica evidente a situação de isolamento
social em que se encontram as famílias.
6.4. INDIFERENÇA
6.4.1 – Dona de si
A mãe de Fabiana, assim como ocorreu em outras famílias, me recebeu na entrada de sua
casa, (não me convidou para entrar), de forma que a entrevista se deu no portão da casa onde
mora com a filha e o marido. Várias vezes ao longo da entrevista a mãe de Fabiana repetiu a
pergunta: “mas isso é pra quê, hein?”
Ela tem 27 anos de idade e o marido tem 35 anos. Atualmente ele está desempregado,
realizando trabalhos informais para garantir o sustento da casa. No momento da entrevista ele
não estava em casa, pois estava limpando a caixa de gordura de uma casa na vizinhança. Vista
de fora, a casa parecia muito pobre, sem calçada, acabamento e com quintal de terra batida.
A mãe e o pai de Fabiana nasceram em Travessão, e moraram em vários pontos do distrito,
porém nunca fora dele. Para ela, o local tem apresentado um crescimento urbano grande, pois:
[...] tudo isso aqui era roça brava, tinha nada, meus irmãos vinha pra pra caçar
preá [...] agora que veio crescendo muito né? Um monte de casa, muita gente nova,
que eu nunca vi antes [...] a gente se conhece né? O pessoal daqui se conhece já
desde antes, de pequeno [...] agora tem muita gente que eu olho e não conheço,
povo de fora.
Fabiana estuda na escola Francisco Ricardo Lyzandro Alves dos Santos cerca de um ano.
Segundo a e, desde que a família se mudou para a residência atual. A mãe não fala muito
quando perguntei sobre a sua opinião em relação à escola da filha: “[...] ah, é boa?
(suspiros) Tá lá, tá comendo, fica ali direitinha, sei lá [...] tenho nada pra dizer da escola não”.
Durante o processo de entrevista, Fabiana veio até o portão para falar com a mãe que já havia
terminado de limpar a cozinha. Como a entrevista se realizou na parte da manhã, horário em
que a menina freqüenta as aulas na escola, perguntei o porque ela não estava na escola. A mãe
respondeu que a filha não quis ir à escola naquele dia, então por isso ela não foi. Surpreso,
perguntei se ela tinha o costume de fazer isso, ao que ela me respondeu:
[...] ó, quer ir vai, num quer ir num vai! Eu na idade dela já fazia faxina com a minha
mãe [...] cuidava dos meus irmãos tudo, ia me virando [...] ta grandinha já, tem dez
anos [...] agora, é aquele negócio né? Vai ficar em casa à toa não, boto pra ralar [...]
limpa cozinha, lava banheiro [...] tem que ir aprendendo a se virar, quase moça já!
Quando pergunto se ela não acha que isso pode prejudicar a vida escolar de sua filha, a mãe
volta a dizer que a decisão é de Fabiana: “[...] ela é quem sabe, a escola ta ali, ela sabe chegar
[...] eu não tranco em casa, não proíbo de ir [...] mas se ela quer ficar, fica, problema é
dela!”
Nesse ponto a mãe de Fabiana disse que precisava fazer o almoço, e que por isso não poderia
mais conversar comigo, encerrando a entrevista.
Chama a atenção nessa entrevista para a indiferença da mãe de Fabiana quanto à educação de
sua filha, pouco se importando se a menina tem freqüentado a escola ou não (“ela é quem
sabe”, “eu não tranco em casa”). Para ela, o indicador de qualidade da escola em que a filha
está matriculada é o fato de que a menina tem uma refeição diária quando vai à escola (“tá
ta comendo”).
Sobre o crescimento do distrito, a mãe de Fabiana aponta o grande número de migrantes que
têm se estabelecido no distrito (“agora tem muita gente que eu olho e não conheço”), mas a
situação de desemprego em que seu marido se encontra, que faz trabalhos informais para
garantir alguma renda, indica que não houve crescimento do número de empregos no local.
O que chama a atenção nesse perfil são as muitas oposições feitas pela mãe de Fabiana. A
primeira oposição se quando ela fala sobre o crescimento de Travessão. Para ela, existem
dois grupos claramente identificados: os moradores mais antigos, (“o pessoal daqui”) nascidos
no distrito e as pessoas recém chegadas ao local, (“gente nova”) que Fabiana não conhece, e
por isso, não identifica como moradores de Travessão (“povo de fora”).
A segunda oposição surge quando ela fala sobre a educação da filha. Em sua opinião, se
Fabiana não está estudando, deve trabalhar (“vai ficar em casa à toa não”), ajudando a mãe
nas tarefas de casa (“boto pra ralar”). Nesse momento surge a terceira oposição, quando ela
compara a sua situação quando tinha a mesma idade da filha (“na idade dela eu fazia
faxina”).
6.5 – ENTRE O TRABALHO OU A ESCOLA
6.5.1 – Contagem Regressiva
Foi a diretora da escola José Giró Faísca quem me indicou a mãe de Rogério para ser
entrevistado por mim quando lhe pedi indicações de pais de alunos para realizar entrevistas. A
diretora usou como critério de escolha desses pais “aqueles que permanecessem mais tempo
em casa”.
Rogério e a mãe moram na mesma rua da escola, em uma das últimas residências da rua. A
casa é simples, sem acabamento, não calçada, apenas terra batida que com as chuvas de
Dezembro haviam se tornado um lamaçal difícil de transpor. Também não havia muros,
apenas o que parecia ser restos de uma cerca de madeira, provavelmente derrubada pelas
chuvas.
Fui recebido na entrada da casa, e ao explicar o motivo de minha visita, a mãe de Rogério me
convidou para entrar, o sem antes me pedir para “não reparar na bagunça”. No interior da
casa de quatro cômodos (sala, cozinha, banheiro e quarto) rios baldes, bacias e panelas
espalhadas pela sala recolhiam as gotas de chuva provenientes do teto. A mãe de Rogério
explicava visivelmente constrangida, que o telhado estava “todo estropiado” por causa da
chuva, e me ofereceu uma cadeira de metal para sentar na cozinha, onde ela terminava de
fazer o almoço.
A mãe de Rogério, que também tem mais um filho de quinze anos, disse-me ter 35 anos, e
mora em Travessão dezesseis anos. Inicialmente ela morou com sua irmã. Um ano após o
nascimento de Rogério mudou-se para a residência em que mora atualmente. O pai do
menino, de quem se separou logo depois da mudança, ela diz que “[...] botei pra correr! Não
me dava nada, era cachaça o dia inteiro, ah, faça-me o favor, mandei linha na pipa seu
menino?”.
Os filhos têm pais diferentes. Sobre os pais de seus filhos, ela disse que não mantém qualquer
contato, depois que saíram de casa: “[...] é até melhor assim! Fica longe e não azucrina a vida,
deve tá perturbando outra, aqui é difícil já, não preciso de mais problema não”.
Atualmente ela trabalha ajudando a irmã que é doceira e mora no centro de Travessão: “[...]
ajudo ela, faço salgadinho, enrolo doce, quando tem festa grande assim, ela me chama, não é
muito não, mas vai dando pra viver, comida não falta, de fome não morre sabe? Tem o mais
velho também, ajuda, recebe direitinho.”
O irmão mais velho de Rogério tem quinze anos e trabalha vendendo balas nos ônibus que
circulam no primeiro distrito de nove da manhã às cinco da tarde. A própria mãe dos meninos
foi quem arrumou esse trabalho para o filho, que parou de estudar aos treze anos para ajudar
no sustento da casa, fato justificado pela mãe:
Ia pra escola, voltava, ficava de tarde vendo televisão, sentado na calçada, fazia
nada, não lavava uma louça! Cabeça vazia é oficina do capeta né seu menino? Ai um
conhecido tava juntando uns meninos pra vender bala pra ele, um dinheiro que
ajudava no fubá, eu empurrei ele pra lá, melhor que ficar andando com quem não
presta, ui, deus me livre!
Sobre o fato do irmão mais velho de Rogério ter interrompido sua trajetória escolar para poder
ajudar no sustento familiar, a mãe não parece se importar muito, pois para ela:
[...] ta trabalhando! Ia levar quanto tempo pra formar? Até porque também ele
andava molenga com a escola, faltava aula pra ficar de zona na rua, que eu fiquei
sabendo! Assim ajuda em casa, fazendo coisa boa, ta trazendo dinheiro, e ainda
sobra um dinheirinho pra ele fazer as coisinhas dele! Esses dias apareceu aqui com
um boné que comprou no centro, todo bobo!
Ao longo da entrevista, a mãe de Rogério diz que tem para ele os mesmos planos reservados
ao irmão mais velho: assim que ele completar treze anos de idade, ele vai abandonar a escola
para trabalhar no mesmo ofício do irmão, fato do qual Rogério já está ciente, segundo a mãe:
falei pra ele! Vai aproveitando a moleza da escola! deixei tudo certinho com o
patrão do mais velho, ele não vai agora porque ele mexe com treze anos pra
cima! Mas levei ele lá, mostrei ele pro patrão, tudo certinho! [...] Ele fica todo
animado né? Viu o irmão chegando de roupa nova, quer também!
Suas opiniões sobre a escola são curiosas:
[...] é perto, aqui perto, vendo, bem! Vai lá, come direitinho, tem merenda
certinha, chega de barriga cheia em casa [...] tem de tarde, vai de tarde também! Eu
vou lá, rodo a baiana, se tem eu quero! Bota ele lá que ta bem, em casa fica
azucrinando, a casa é pequena (ri) né seu menino?
E o que está faltando, para tornar a escola melhor? “[...] aumentar o tamanho da escola,
porque a atual ta muito pequena! Faz uma grandona e me bota pra morar nessa que eu fico
feliz!”.
No mundo da mãe de Rogério, “cabeça vazia é oficina do capeta” e a “moleza da escola” tem
o potencial de contribuir para a criação desta “oficina”. Isso pode ser identificado em sua fala
sobre a situação do irmão mais velho de Rogério, que não ia mais à escola “pra ficar de zona
na rua”. Para ela, ir à escola é gastar tempo (“quanto tempo ia levar pra formar?”). A escola,
nessa situação tem outras funções, como a de manter Rogério afastado de casa, para que não
fique “azucrinando” a mãe. De acordo com Bourdieu, a escola para os habitantes da periferia
tem um significado diferente, sendo vista como uma fonte de decepção.
Todos na casa têm que trabalhar, para “trazer o dinheiro do fubá”, “ajudar em casa”, caso
contrário, ela “bota pra correr”.
6.5.2 – O Aprendiz
Não foi tarefa das mais fáceis encontrar a casa onde Paulo mora com seus pais em Jacarandá,
uma vez que as ruas que cortam a localidade não dispõem de placas indicando nomes. Mesmo
portando o endereço por escrito, perambulei por cerca de trinta minutos até perguntar direções
mais precisas em uma padaria das imediações.
A casa de aparência antiga, com quintal amplo, de terra batida, em que galinhas dividiam
espaço com um cachorro que dormia apresenta ares na paisagem rural da localidade de
Jacarandá.
Fomos recebidos pelos pais de Paulo, que me perguntaram várias vezes se eu era funcionário
da prefeitura de Campos, antes de me atender. Dentro da casa, móveis antigos e muitas fotos
amareladas decoravam a parede, assim como diversas imagens católicas. A casa possui dois
quartos, sala, cozinha e banheiro. Nos fundos outra casa, onde mora o tio paterno de Paulo
com a mulher, sem filhos.
Sentei-me no sofá da sala, em frente aos pais de Paulo, e iniciamos a conversa. O pai de Paulo
tem 40 anos, nasceu em Travessão. Em 1989 mudou-se para o município de Macaé em 1989,
onde passou a residir na casa de um primo e tentar arrumar um emprego. Em Macaé, arrumou
trabalho como garçom, em vários estabelecimentos comerciais. A mãe de Paulo tem 32 anos,
nasceu em Macaé, e trabalhava como cozinheira no restaurante em que o pai de Paulo então
trabalhava. A família mudou-se para Travessão em 2002, porque o restaurante onde ambos
trabalhavam fechou. Desempregado, aceitou o convite de seu irmão, para trabalhar como
pedreiro em Travessão.
A paisagem de Travessão mudou bastante, diz ele: “[...] no caminho mudou tudo né? Km 13,
14 um montoeiro de casas, era tudo mato ali! Brejo mesmo! Até aqui, tem muita casa nova”.
O que acham da escola? É a mãe de Paulo quem me responde: “[...] é boazinha, mas ta muito
maltratada né? Tem nem placa avisando direito, fica feio né? Mas a diretora, tadinha, trabalha
muito, as professoras também”.
Eles escolheram matricular o menino na Carlos Chagas pelas seguintes razões: “[...] é a mais
perto aqui de casa! As crianças aqui da rua estão tudo lá, vai junto né?A mãe completa a
resposta dizendo: “[...] vai a mesmo, tem dia que o ônibus não vem, o da prefeitura, vai
com as crianças da rua. No início nem teve ônibus, era a todo dia, ele reclamava à beça,
mas é aqui perto, ele acostumou, eu não gosto que ele falte”.
Em determinado momento da entrevista, o pai fala sobre o seu costume de levar o filho com
ele para fazer pequenas tarefas no seu trabalho:
Ela nem gosta quando eu levo ele comigo pros serviços sabe? [...] de vez em quando
aparecem uns servicinhos, umas bobeirinhas, terreno pra capinar, e eu levo ele
comigo, pra carregar uns baldes, ir aprendendo como que faz, pra ir ficando mais
esperto né? Aí ela briga comigo, porque ele ta faltando aula, mas ele tem que
aprender o trabalho, é bom pra ele, bom pra crescer.
A mãe retruca, ressaltando a importância que ela vê na educação do filho:
Não gosto que ele falte aula, perde matéria, isso é ruim, se falta tem que ficar
pegando caderno do coleguinha depois, copiar tudo, [...] se eu sei, eu ensino, mas
tem que ir pra escola, lá que aprende, mas eu não posso falar, ele fica dizendo que eu
sou chata, que o menino gosta de ir, ele aprende também.[...] vira e mexe agora o
menino pede, ‘deixa eu ir com o pai?’, aí eu falo que não, tem que ir pra escola, fica
botando o menino pra parar de estudar!
Quando o assunto volta para a escola Carlos Chagas, ambos concordam com a necessidade de
realizar reformas no prédio escolar. O pai de Paulo diz: “[...] tem muita coisa pra fazer
naquele prédio, eu trabalho nisso, sou pedreiro, eu sei, aquele terreno é grande, pode fazer
uma escola direitinha pras crianças ali”. A mãe confirma: “[...] é muito espaço né? É um
mundão de terra, podia fazer uma escolinha melhorzinha! Até pras crianças ir mais
empolgadas pra escola!”.
Nesse caso, o que chama a atenção é que a oposição está presente dentro da casa de Paulo.
Existe um conflito familiar presente na forma da condução do projeto de vida do filho. O pai
“carrega” o filho para o trabalho pra “ir aprendendo como que se faz, pra ir ficando mais
esperto”. a mãe, que não aprova essa atitude do marido, entende que o menino “tem que ir
pra escola”, pois ela acredita na escola como algo importante para o filho, (“tem que ir pra
escola, lá que aprende”).
6.5.3 – O encantador de cavalos
Marcelo mora com os pais em um sítio logo na entrada do km 13 onde o pai trabalha como
vaqueiro. O acesso ao lugar se dá por meio de uma pequena estrada de terra que termina em
uma grande porteira de madeira com um sino. Para chegar à casa, tive que tocar várias vezes o
sino para ser atendido pela mãe de Marcelo.
Apresentei-me e disse-lhe que a diretora da escola José Giró Faísca havia me dado seu
endereço. Como filho o tinha ido à escola no dia anterior apressou-se em justificar a falta
do filho por motivo de doença. Expliquei-lhe então que não era funcionário da escola, e o
motivo da minha visita, era conversar com ela sobre a educação escolar de Marcelo. Ela então
me convidou a entrar em sua casa.
A mãe de Marcelo tem 40 anos, cursou o ensino fundamental completo. Interrompeu os
estudos quando cursava o ensino médio porque teve que ajudar a mãe. Mora com o marido o
filho em uma casa de sala, quarto, cozinha e banheiro, nos fundos da casa principal do sítio. A
entrevista se realiza na pequena varanda da casa, sentados em cadeiras que a mãe de Marcelo
foi buscar na cozinha. O pai de Marcelo, que estava trabalhando no momento da entrevista,
tem 42 anos e também só possui o ensino fundamental completo.
Ambos são nascidos em Travessão, e nunca saíram de lá. A mãe sempre trabalhou em casa,
primeiro ajudando a mãe nos serviços domésticos, depois cuidando de sua própria casa. O pai
é vaqueiro e trabalha nesse sítio há seis anos. De acordo com a mãe de Marcelo:
[...] fala que é vaqueiro, mas faz de tudo um pouco sabe? tem nós aqui [...]
cuido das galinha, faxina, tem uns cavalos, meu marido cuida, os porcos, o dono
aparece em feriado, sábado e domingo, aí traz os amigos, faço comida pra eles [...] a
gente vai morando aqui, tomando conta pra ele.
A mãe de Marcelo observou o crescimento de Travessão:
[...] cresceu tudo, eu ando tudo isso aqui e vejo né? Minha mãe ali em Jacarandá, já
tem bem mais casa lá, gente nova, os parentes do meu marido na Braúna, vai no
caminho, vai vendo o tanto de casa que tem nova [...] aqui do lado né? É olhar
aqui do lado e ver, era tudo matagal [...].
A escola José Giró Faísca, é muito boa, para ela:
[...] é bom, ali é bom sim, a diretora pega firme, com as crianças [...] com a gente
também, na reunião de pais, ela chama a atenção, se falta muito, quer saber,
pergunta na frente de todo mundo [...] esses dias me chamou lá, disse que Marcelo
tava faltando muito, queria saber por que, que não pode faltar, [...] que ia aparecer
gente da secretaria aqui pra saber [...] às vezes é até meio brava, mas trabalhando
bem.
A mãe revela que o motivo das muitas faltas de Marcelo é devido a sua paixão pelo trabalho
do pai. Incentivado pelos pais, o menino prefere ficar em casa, durante vários dias da semana
ajudando-o a cuidar dos três cavalos do sítio. De acordo com a mãe, Marcelo: “[...] só fala em
cavalo, o dia todo, é cavalo isso, cavalo aquilo, nem pega nos cadernos!
Ela diz que o pai:
[...] fala muito que tava que nem ele nessa idade, aí leva junto, mostra as coisas, fica
todo bobo né? Aí antes de dormir fica aqui falando [...] disse que vai levar o menino
pra cavalhada lá em Santo Amaro! Aí tem dia que acorda e fala que vai levar pra dar
banho nos cavalos, [...] não tem escola, Marcelo esperneia, diz que não vai, quer os
cavalos, cavalo isso, cavalo aquilo [...].
O pai de Marcelo chega pouco antes do final da entrevista. Cumprimenta-me e senta nos
degraus da varanda para participar da conversa. Explica-me a esperteza do menino com os
cavalos: “[...] espertinho demais o menino! Quando eu era que nem ele, não tinha essa
esperteza toda não! Pega rapidinho, aí fica todo prosa!”
Em determinado momento da conversa, o pai de Marcelo diz que nessa esperteza uma
possibilidade de vida melhor para o filho: “Eu até falei com ela né? Ele gosta muito, se
continuar aprendendo rápido assim, arruma um emprego bom, numa fazenda boa, um lugar
grande né? É muito esperto, gente inteligente assim fica muito tempo aqui não, logo vai né?”
Quando o assunto é escola, o pai de Marcelo se retira, dizendo que vai “cuidar das coisas”.
Para a mãe, a escola é tão boa que:“[...] mexer no que ta bom pra que né?”
Para os pais, a possibilidade real de ascensão social do filho é representada no aprendizado de
seu trabalho, desconsiderando a instituição escolar, fazendo questão inclusive de incentivar
Marcelo (“gente inteligente assim fica muito tempo aqui não”).
7 - O LUGAR E A POBREZA
O primeiro passo para podermos estudar a reprodução das desigualdades sociais é modificar a
maneira como entendemos a pobreza. Esta não deve ser compreendida apenas em função das
carências materiais, mas também em relação à posse – ou não posse – de recursos que
permitam aos lugares e/ou seus membros saírem de determinadas situações de desvantagem.
Nesse sentido, procura-se “superar uma visão estática, taxativa e dicotômica (pobre/não
pobre) da pobreza, para assumir uma mais dinâmica e processual que foque na acumulação de
vantagens e/ou desvantagens” (SARAVÍ, 2004, p. 01).
Esses recursos, que quando presentes permitem o acúmulo de vantagens, e quando ausentes
geram desvantagens, são chamados por Kaztman (1999), de “ativos”, sendo “todos os bens
que um lugar possui, tangíveis ou intangíveis, cuja mobilização permite o aproveitamento das
estruturas de oportunidades presentes no momento, seja para elevar o nível de bem-estar ou
para mantê-lo diante de situações que o ameacem” (1999, p.19). No caso de Travessão, é
possível afirmar que tais recursos são de natureza precária em diversos pontos do distrito,
especialmente no que diz respeito à infra-estrutura do atendimento escolar oferecido pelo
Poder Público municipal.
Bourdieu por sua vez denomina esses recursos de “capitais”, que podem ser econômicos,
culturais, ou sociais. Os primeiros se referem aos recursos físicos e financeiros, e
normalmente são indicados pela renda, bens materiais e etc. Dois exemplos diametralmente
opostos desse tipo de capital são os casos dos pais de Márcia, que possuem imóvel próprio, e
dos pais de Madalena, onde ambos estão desempregados, e por isso acabam indo morar na
casa dos avós da menina.
O segundo tipo de capital diz respeito ao conjunto de conhecimentos de um indivíduo, grupo
ou família, tendo como principal indicador os anos de estudo. No caso deste estudo, foi muito
comum encontrar pais que não haviam concluído o Ensino Médio, sendo a mãe de César, com
Superior incompleto quem apresentou o maior número de anos de estudo. Por fim, o terceiro
tipo de capital é aquele que existe na relação entre pessoas, referindo-se aos recursos que
estão contidos nas relações entre atores sociais, os quais permitem ou facilitam determinados
resultados sociais (Parcel e Dufur, 2001). Um bom exemplo desse capital é a facilidade que a
mãe de Jaime tem em conseguir atendimento médico no primeiro distrito, para não ter que
recorrer ao precário hospital do distrito.
Assim, esse capital funciona como uma espécie de filtro que pode ser positivo ou negativo -
pelo qual os outros capitais passam. Indicadores típicos de capital social são: número de
membros de uma família, tipo de família, número de associações dentro de uma localidade e
etc.
Outro fator central para entender a reprodução das desigualdades sociais é o aspecto de
acumulação de riscos. A idéia é que a não absorção de ativos em uma determinada etapa do
ciclo de vida de um indivíduo acarretará em uma maior dificuldade de acumular outros ativos
futuramente, e assim sucessivamente. Por exemplo, um menino nascido em uma família de
clima cultural baixo terá maiores dificuldades em seu desempenho escolar, assim, repetindo
séries e abandonando a escola antes de completar o segundo grau esse jovem terá de enfrentar
sérios obstáculos para entrar no mercado de trabalho em função de sua baixa qualificação. Tal
situação mostrou-se presente na grande maioria dos perfis analisados neste trabalho. Mesmo
aqueles que estão em vias de abandonar a escola para trabalhar, o estão fazendo em
subempregos, como ajudante de pedreiro e afins. Forma-se então um ciclo que engendra a
reprodução das desigualdades sociais. Em outras palavras, o desejo dos pais, de que os filhos
saiam de Travessão para conseguir algo melhor, dificilmente se concretizará em face desse
ciclo.
Carlos Hasenbalg (2003) demonstra com clareza como a ocupação do pai pode, por exemplo,
influenciar na idade em que o indivíduo começa a trabalhar. Filhos de profissionais liberais
(no Brasil, em 1996) começam a trabalhar em média com 18,6 anos de idade, e 10,3 anos de
estudo; já os filhos de trabalhadores da indústria moderna entram no mercado de trabalho, em
média, com 14,94 anos de idade e 5,90 anos de estudo. A idade em que o indivíduo inicia o
primeiro emprego, assim como seus anos de estudo, são ótimos indicadores da qualidade do
trabalho; quanto maiores forem esses valores, melhor deve ser a qualidade, e quanto mais
baixos forem estes números, mais precário tende a ser o emprego. Nesse exemplo vemos
claramente a formação de um ciclo de reprodução das desigualdades sociais, onde indivíduos
de origem social mais elevada tendem a garantir melhor acesso ao mercado de trabalho,
enquanto filhos de profissionais menos qualificados têm uma maior probabilidade de se
inserir de forma mais precária.
Neste trabalho de pesquisa, a grande maioria dos pais dos alunos das escolas não tem
qualificação profissional de qualquer espécie, muitas vezes trabalhando no mercado informal
ou em atividades rurais,o que pode ser um determinante na questão da vida escolar das
crianças. Além disso, como mostra o perfil “Entre a escola e o ofício”, parece ser comum
entre algumas famílias o fato de crianças abandonarem os estudos, muitas vezes encorajados
pelos próprios pais, para começar a trabalhar, seja por descrença na instituição escolar, seja
como forma de criar mais uma fonte geradora de renda para a família.
É necessário saber então, a fim de compreender a formação deste ciclo, quais são os ativos
mais importantes e os riscos mais ameaçadores nas diferentes etapas de vida de um indivíduo.
Para tanto se considera quatro etapas diferentes: primeira infância, infância, adolescência e
idade adulta.
Kaztman e Filgueira, (2002) deixam bem claro que o bairro (lugar) tem
uma influência
significante na capacidade de acumulação de ativos em todas as etapas da vida. Nos primeiros
anos de vida a família exerce quase que o monopólio sobre a formação das crianças, pois além
de transmitir os próprios ativos, é também responsável por filtrar aqueles provenientes das
outras esferas. Os serviços do Estado, apesar de presente desde os primeiros anos, também se
tornam mais influentes a partir da infância. O mercado de trabalho, por sua vez, começa a agir
ainda na adolescência, mas torna-se realmente relevante na vida adulta.
Ellen e Turner (1997) fazem um resumo da influência do bairro sobre o ciclo de vida. Em
primeiro lugar, o lugar de moradia seria importante em razão da qualidade dos serviços locais
oferecidos. Como principal exemplo tem-se a escola: nos primeiros anos de estudo as crianças
tendem a se instalar nas escolas mais próximas de suas casas embora em muitos casos o
problema seja exatamente a ausência de escolas ou vagas no bairro. Caso estas não sejam de
boa qualidade, com professores e diretores qualificados e boa infra-estrutura, esses alunos
poderão sofrer déficits de aprendizado que poderão comprometer seu desempenho escolar
posterior. Mais do que a qualidade da escola, afirma Kaztman e Filgueira (2001), a
heterogeneidade quanto a posição dentro da estrutura social - do público atendido pela
escola é um fator essencial para aumentar a qualidade do serviço oferecido. Em Travessão, a
questão da heterogeneidade é precária, uma vez que a origem social dos alunos é muito
parecida, a começar pela ocupação dos pais, o que pode prejudicar inclusive o desempenho
escolar dos alunos. Assim como parece existir homogeneidade em escolas que atendem a
alunos de origem social privilegiada, ela está presente, também, em escolas que atendem a
crianças desfavorecidas economicamente.
O mesmo deve se aplicar para outros serviços oferecidos no bairro, como assistência médica,
que incomoda os moradores de Travessão. Como dito anteriormente, reclamações sobre o
hospital foram feitas em todas as entrevistas realizadas, o que mostra a preocupação dos
moradores com a precariedade desse serviço– essencial para evitar que pequenos problemas
de saúde resultem em longas jornadas sem estudar ou trabalhar.
O segundo ponto através do qual o bairro, segundo Ellen e Turner (1997), exerceria forte
impacto na vida de seus moradores é na socialização. Os adultos locais são responsáveis em
grande parte pela educação das crianças, pois são eles que lhes ensinam e mais do que isso,
lhes mostram quais comportamentos são aceitáveis ou não. Eles são verdadeiros modelos
que “devem” ser seguidos pelos mais jovens. Assim, a presença de muitos adultos
empregados transmite valores sobre a importância da educação e a ética do trabalho como
meio de alcançar seus objetivos. Por outro lado, bairros que contam com boa parte de sua
população desempregada, ou subempregada, trabalhando muitas vezes em troca de salários
ignóbeis, acabam passando a idéia de que estudo e trabalho pouco podem fazer para garantir
um futuro decente. Além disso, a falta de convivência com os pais, como mostrado no perfil
“Pouco tempo para os filhos”, pode gerar situações em que a criança fica exposta a
comportamentos e valores sob os quais exercem pouco ou nenhum controle. Esses valores, ao
serem internalizados pelas crianças, e constituírem aquilo que Bourdieu (1971), denominou
“habitus”, um “[...] conjunto comum de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a
partir dos quais se articula, segundo uma ‘arte da invenção’, uma infinidade de esquemas
particulares diretamente aplicados a situações particulares [...]” (id, p.208-209), que passam a
influenciar seus comportamentos e escolhas para o resto de suas vidas, o que pode ter
conseqüências ótimas ou deletérias, dependendo do ambiente de socialização do local. Este
seria o caso do bairro km 13, descrito como problemático pela diretora e professores, que
enfrenta casos de tráfico de drogas e prostituição infantil. Nesse tipo de ambiente de
socialização, onde os alunos apresentam comportamento agressivo, a relação das crianças
com a escola pode ser prejudicada, sendo vista mais como um engodo do que um instrumento
que pode proporcionar uma oportunidade de ascensão social.
Seguindo o esquema dos mesmos autores, na adolescência a principal influência do bairro
se faz pelos “pares”. Como nessa fase os indivíduos começam a passar muito mais tempo fora
de casa, longe da guarda de seus pais, seus “colegas de rua” se tornam fundamentais em seu
desenvolvimento. A pressão exercida pelos pares pode ter forte impacto sobre as atitudes dos
jovens, levando-os, por um lado, ao exercício de práticas perigosas e/ou criminosas, ou por
outro lado a obterem melhor desempenho escolar ou atlético. Se muitos adolescentes na
comunidade praticarem crimes e ganharem prestígio com isso, ou muitas meninas ficarem
grávidas precocemente, uma boa chance de que esses comportamentos passem a ser vistos
como normais e sejam seguidos por outros indivíduos.
Saraví aponta a possibilidade de privatização do espaço do bairro, acarretando em uma
“cultura de rua” cujos valores e normas podem contrastar com o restante da sociedade. Nesses
locais, os jovens são constantemente coagidos por seus pares a agirem de acordo com esta
cultura, a ponto que aqueles que se recusam a assumir tais comportamentos são muitas vezes
excluídos da vida social da rua, o que pode trazer efeitos perversos à comunidade local:
Entre as principais conseqüências dessa estratégia de isolamento se encontram: por
um lado, uma maior presença dos integrados no espaço público bairral, de modo que
sua normas, valores e práticas tendem a se consolidar ainda mais como dominantes;
por outro, uma perda de capital social comunitário, pois se debilitam as relações
entre vizinhos, diminui a interação entre grupos diferentes, os modelos alternativos
aos da cultura de rua se fazem menos visíveis, e o temor, a insegurança e a
desconfiança se estendem na comunidade. Desta maneira, a comunidade não se
isola da sociedade global, como começa a padecer de uma crescente fragmentação
interna. (2004, p.45)
Isso nos leva ao terceiro ponto de influência do bairro apontado por Ellen e Turner, que são as
redes sociais. Localidades que contam com densas redes sociais tendem a reforçar o controle
dos moradores um sobre o outro, preservando a coesão interna necessária à inibição de
comportamentos criminosos. Além disso, seus habitantes ajudam-se mutuamente em
momentos de dificuldades, e trocam informações valiosas sobre oportunidades de emprego.
Muito importante, também, é a composição interna dessa rede. Quanto mais heterogênea ela
for, melhor. Redes que ficam restritas à própria localidade tendem a ser menos eficazes em
relação àquelas que se estendem por diversos bairros, pois estas podem gerar oportunidades
que os lugares mais pobres jamais teriam em contextos de segregação. A questão da
heterogeneidade também se estende ao âmbito escolar, com pesquisas apontando que
determinadas formas de interação e socialização produzidas na e pela escola favorecem o
processo de aprendizagem, na medida em que escolas que apresentavam maior
heterogeneidade na origem social dos alunos obtiveram os melhores resultados (Christovão,
Cid, Soares, 2007).
Do ponto de vistas interno, redes constituídas apenas por subempregados ou desempregados e
com pouco estudo, serão incapazes de trazer melhoras significativas ao local; mas quando os
contatos incluem moradores com emprego fixo, qualificados, com muitos anos de estudo
concluídos, novas e boas oportunidades podem surgir para aqueles que estão desempregados.
Um dos fatores que mais prejudicam a constituição dessas redes sociais é a criminalidade
violenta. Bairros que apresentam altos índices de violência física tendem a espantar seus
moradores da rua, que com medo se trancam dentro de suas casas e evitam ao máximo se
expor ao risco de se tornar mais uma vítima de assaltos, seqüestros, homicídios e etc. Ao se
isolarem em sua vida privada esses indivíduos acabam por enfraquecer os laços comunitários
e conseqüentemente destruir as redes locais. Dessa forma, o crime faz com que os moradores
deixem de ser informados sobre oportunidades econômicas, enfraquece a ajuda mútua entre
vizinhos e diminui a coesão social.
Crianças educadas em bairros violentos podem entender esse tipo de comportamento como
“normal” e mais tarde, já na adolescência, sob a influência de seus pares, seguir na carreira do
crime. Soma-se a isso o fato de os moradores destas áreas estarem expostos aos riscos mais
altos de se tornar vítimas, o que por sua vez pode acarretar em sérios traumas psicológicos
tanto em crianças como em jovens e adultos.
Por fim os autores citam a questão da distância física. Bairros isolados e distantes dos centros,
como Travessão, dificultam o acesso a oportunidades econômicas por parte de seus
moradores. Mesmo que estejam qualificados para ocupar cargos em aberto esses indivíduos,
em razão da distância física que exige altos gastos em transporte diário quando este está
disponível -, podem ser preteridos pelos empregadores. Este último tópico tem maior impacto
sobre a vida dos adultos, mas também influencia os mais jovens no que se refere ao acesso a
serviços, como escola, assistência médica, etc.
Para Bourdieu (2007), mais importante que a distância física é a distância social que separa os
lugares. O sociólogo francês afirma que o espaço físico seria uma espécie de simbolização do
espaço social; as oposições da estrutura social estariam reproduzidas na segregação espacial.
A configuração espacial, por sua vez, seria progressivamente convertida – por parte dos
moradores de diferentes locais – em estruturas mentais fundamentais, ou seja, em habitus:
[...] as estruturas sociais se convertem progressivamente em estruturas mentais e em
sistemas de preferências. Mais precisamente, a incorporação insensível das
estruturas da ordem social realiza-se, sem dúvida, para uma parte importante, através
da experiência prolongada e indefinidamente repetida das distâncias espaciais nas
quais se afirmam distâncias sociais. Como o espaço social encontra-se inscrito ao
mesmo tempo nas estruturas espaciais e nas estruturas mentais que são, por um lado,
o produto da incorporação dessas estruturas, o espaço é um dos lugares onde o poder
se afirma e se exerce, e, sem dúvida, sob a forma mais sutil, a da violência simbólica
como violência desapercebida. (id, p. 163).
Sendo o espaço um campo de lutas sociais, sua dominação depende dos diversos tipos de
capital acumulado, não apenas do capital econômico, mas também do capital cultural e social.
Os lugares, para serem apropriados, exigem a acumulação prévia de determinados recursos
que não se restringem a recursos monetários, e que podem ser absorvidos com a ocupação
prolongada da localidade; não basta poder estar presente fisicamente em um bairro de elite,
para efetivamente habitá-lo é necessário saber falar de determinada maneira, andar de um
jeito específico, portar certo tipo de capital cultural, conhecer pessoas do local e etc. Portanto,
para Bourdieu, dois bairros podem estar próximos em termos espaciais e mesmo assim os
moradores do primeiro não pisarem no território dos habitantes do segundo, isto porque mais
do que a simples distância física, ele incorpora em sua analise a distância simbólica que
separa os lugares.
8 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Travessão é um distrito que, apesar de seu crescimento, mostra mais traços de uma
desruralização de seu território do que de uma urbanização. Esse fenômeno se por uma
série de fatores, entre eles: a existência de um processo de crescimento territorial desatrelado
de desenvolvimento econômico e o grande número de pessoas que ainda desenvolvem
atividades ligadas ao setor rural (ver anexo 1) no distrito, e que lhe confere um caráter
híbrido. De acordo com Mike Davis (2006), as áreas urbanas de tamanho reduzido, como
Travessão, estão suportando o movimento migratório, o que gera um descompasso entre o
crescimento populacional e a capacidade do Poder Público em proporcionar a infra-estrutura
necessária, como saneamento básico e educação, por exemplo.
Em estudo realizado na França sobre desigualdades sociais e atendimento escolar, Bourdieu
constatou que as escolas que surgem nos subúrbios mais pobres são precárias, montadas às
pressas, feitas para acolher um número de alunos que cresce cada vez mais. No caso das
escolas municipais públicas de Travessão pode-se verificar que a realidade escolar não difere
muito daquela encontrada por Bourdieu. Em Travessão, as escolas apresentam estrutura física
precária para atender os alunos, funcionando em prédios residenciais, como no caso da Escola
Giró Faísca, ou em prédios antigos que não sofreram reformas significativas, caso da Escola
Carlos Chagas, cujo prédio data do ano de 1958. Apesar da estrutura física inalterada, o a
matrícula foi consideravelmente alterada. O número de alunos matriculados nos últimos dez
anos, em alguns casos aumentou em mais de dez vezes conforme a tabela abaixo.
Escola Ano de
Fundação
Matrícula
Inicial
Matrícula
Atual
Turnos Crescimento
Giró Faísca 1992 70 179 2 155%
Francisco
Ricardo
1976 180 223 2 24%
Carlos
Chagas
1958 25 290 3 1150%
Visto dessa perspectiva é correto dizer que o atendimento escolar para alunos do primeiro
segmento do Ensino Fundamental oferecido pelo poder público municipal em Travessão é
extremamente precário. O crescente processo de universalização desse nível de ensino na
região mostra que, a garantia do acesso ao Ensino Fundamental não garante a qualidade da
educação que cada criança deveria receber.
O aumento das vagas nos efetivos escolares em Campos dos Goytacazes não alcançou
desempenho satisfatório, conforme atestam os resultados do IDEB. Como não tive acesso aos
dados do desempenho escolar de todos os alunos que estudam em escolas dessa rede escolar,
nesse nível de ensino, não posso afirmar se o processo de eliminação desses alunos foi adiado
ou diluído no tempo como afirma Bourdieu. Entretanto, dados estatísticos
28
apontam o
crescimento da matrícula de jovens e adultos que retornaram a escola para iniciar ou
completar o ensino fundamental nesse município. Esse crescimento indica que os excluídos
28
Cf. PNAD 2007
potenciais vivem a contradição de entrar e sair da escola, dilatando o prazo para concluir este
grau de ensino.
Bourdieu afirma que este parece ser o destino de alunos de escolas localizadas na periferia
urbana de grandes centros. Para esses alunos pesquisados por Bourdieu, a instituição escolar é
vista cada vez mais, tanto pelas famílias como por eles próprios como engodo e fonte de uma
imensa decepção coletiva: uma espécie de terra prometida, sempre igual no horizonte, que
recua à medida que dela se aproximam. Contrariando essa perspectiva, os pais dos alunos
entrevistados nesse trabalho têm uma visão positiva da escola, inclusive ressaltando suas
qualidades. Para alguns, como os pais de Gustavo e a mãe de César, a escola é encarada como
um bilhete de saída de Travessão, conquistado através de uma possível aprovação no
vestibular. Para outros, como a mãe de Nélson, acredita que a escola é tão boa que “se
melhorar estraga”. Mesmo quando alguns pais têm uma visão mais crítica da escola, ainda
assim, a escola é considerada boa (a avó de Jéssica, que deixa bem clara a sua insatisfação
com o fato de aulas serem dadas no pátio por falta de salas e a mãe de Márcia, que espera uma
oportunidade de matricular sua filha em uma escola melhor, mais próxima de casa).
No Brasil, estudos referentes aos diferenciais entre escolas localizadas em áreas periféricas e
em áreas mais centrais apontam importantes discrepâncias entre elas. Nas grandes áreas
urbanas, a situação das escolas de periferia representa um caso à parte: os alunos dessas
escolas têm menor probabilidade de concluir o Ensino Médio do que moradores de áreas mais
centrais, com as mesmas condições econômicas. É o elemento espacial que incide sobre o
desempenho escolar dessas pessoas.
Para Bourdieu, essas grandes oposições sociais objetivadas no espaço físico, como
centro/periferia, por exemplo, tendem a se reproduzir nos espíritos e na linguagem sob a
forma de oposições constitutivas de um princípio de visão e de divisão, isto é, enquanto
categorias de percepção e de apreciação ou de estruturas mentais. Esta é, por exemplo, a
percepção de uma das mães que entrevistei, quando fala sobre o desinteresse do “pessoal de
lá” em reformar a escola, referindo-se ao poder público. Ou a apreciação da e de
Madalena, que “é doida pra voltar pra cidade de Campos”, fazendo uma clara divisão entre o
primeiro distrito e o segundo. Divisão essa, que é muito comum entre os moradores de
Travessão - a diretora da Escola Francisco Ricardo projeta para seus alunos uma educação
“do nível de Campos”, evidenciando uma clara distinção na qualidade da educação oferecida
entre os distritos.
As disputas para a apropriação do espaço podem tomar uma forma individual, onde a
mobilidade espacial os deslocamentos nos dois sentidos entre o centro e a periferia é um
bom indicador dos sucessos ou dos revezes alcançados nessas lutas. Além disso, a posição de
um agente no espaço social se exprime no lugar do espaço físico em que está situado, e pela
posição relativa que suas localizações temporárias e permanentes ocupam em relações às
localizações de outros agentes. Este é o caso do pai de Paulo, que após perder o emprego na
cidade de Macaé, retorna a Travessão, para trabalhar informalmente como pedreiro, uma vez
que suas tentativas de conseguir outro emprego a própria cidade de Macaé foram frustradas.
O sucesso nessas disputas, para Bourdieu, depende do capital acumulado em suas diferentes
espécies. Pode-se ocupar fisicamente um habitat sem habitá-lo propriamente falando, se não
se dispõe dos meios tacitamente exigidos, a começar por certo hábito. Essa afirmação se
confirma no perfil da e de César, que ao falar de Travessão, mostra um distanciamento do
local, como se não pertencesse a ele.
Entre todas as propriedades que a ocupação legítima de um lugar supõe estão as que se
adquirem pela ocupação prolongada desse lugar e a freqüência seguida de seus ocupantes
legítimos, caso do capital social de relações ou ligações ou de todos os aspectos mais sutis do
capital cultural e lingüístico, como os modos corporais e a pronúncia.
Sob pena de se sentirem deslocados, os que penetram em um espaço devem cumprir as
condições que ele exige tacitamente de seus ocupantes. A e de César, que se isola em uma
casa de muros altos com dois es de guarda, é um claro exemplo desse sentimento de não
pertencimento ao lugar. Para ela, Travessão é um lugar “desordenado” e “feio”, um lugar do
qual o seu filho deve sair através do estudo, mais especificamente através da aquisição de
conhecimentos da língua portuguesa, aqui dotada de um caráter distintivo em relação ao resto
dos moradores.
Um fator central para entender a reprodução das desigualdades sociais é o aspecto de
acumulação de riscos. A idéia é que a não absorção de ativos em uma determinada etapa do
ciclo de vida de um indivíduo acarretará em uma maior dificuldade de acumular outros ativos
futuramente, e assim sucessivamente. Essa acumulação de desvantagens sociais é
visivelmente perceptível em Travessão, que se mostra um aglomerado urbano de segmentos
sociais vivendo o processo de vulnerabilidade social decorrente da precariedade do emprego,
do desemprego e da perda da renda do trabalho, processo ao qual se somam os efeitos do
empobrecimento social, resultantes da desestruturação do universo familiar, como no caso de
Fabiana, do isolamento social, como enfrentado pela família de imigrantes baianos, da
estigmatização e da desertificação cívica dos bairros em vias de guetificação.
Outro fator determinante nas desigualdades sociais é a idade em que o indivíduo inicia o
primeiro emprego, assim como seus anos de estudo. Nos casos relatados no capítulo “Entre o
Trabalho e a Escola” pode-se identificar o abandono precoce da escola por vários motivos.
Conforme revelam os estudos citados no corpo desse trabalho, o bairro tem
uma influência
significante na capacidade de acumulação de ativos em todas as etapas da vida. Em primeiro
lugar, o lugar de moradia seria importante em razão da qualidade dos serviços locais
oferecidos, como a escola. Lugares atendidos por serviços precários, como o bairro do km 13
tendem a deixar a sua marca na socialização e nos resultados futuros das crianças. O segundo
ponto através do qual o bairro, segundo Ellen e Turner, exerceria forte impacto na vida de
seus moradores é a socialização. O terceiro ponto são as redes sociais. Por fim, a distância
física.
A questão posta aqui está relacionada às dificuldades de acesso dos pobres urbanos aos
benefícios que devem ser oferecidos pelo poder público. Como já dito anteriormente, a
reunião de uma população pobre em territórios periféricos tende a gerar serviços coletivos de
baixa qualidade, utilizados unicamente por esses segmentos, configurando um acesso
subalterno aos direitos de cidadania. Essas dificuldades nos levam a considerar a questão do
isolamento e da segregação, tendo a educação como um fator amplificador dessas questões.
Mesmo assim, a educação é vista por alguns desses moradores, como o veículo que pode
conduzir para um lugar diferente, como é o caso dos perfis de Jéssica, que diz que a escola
pode ajudar a filha a não repetir a rotina da mãe, que trabalha em dois empregos para
sustentar a casa. Ou como a mãe de César que sustenta “nunca deve se parar de aprender” e o
pai de Gustavo que acredita que a educação do filho pode levar o menino a “fazer faculdade
em Campos”.
Uma rede pública de ensino engloba inúmeras escolas localizadas em bairros diversos.
Entretanto, mesmo pensando em rede de ensino e delimitação territorial, é notável que exista
uma variação de qualidade de ensino entre as escolas, de acordo com o lugar, o que me leva a
pensar sobre o papel do poder público em proporcionar serviços de qualidade para os
moradores das áreas menos favorecidas, para dessa forma, trabalhar no sentido da mitigação
das desigualdades sociais.
Não se pode afirmar que as ações do poder público municipal em Campos dos Goytacazes
para proporcionar acesso e educação de qualidade aos alunos do primeiro segmento do Ensino
Fundamental de sua rede favoreçam o bom desempenho desses alunos e contribuam para
diminuir as desigualdades sociais. De uma forma surpreendente, autoridades da SMEC sequer
sabem localizar com precisão onde determinada escola de Travessão está situada. A
precariedade dos prédios escolares, a falta de espaço físico para atender a demanda escolar, a
falta de transporte são indicadores que apontam o não comprometimento do poder público
municipal com o atendimento escolar das crianças de Travessão.
Desde o início dessa pesquisa até o seu término, não foi possível constatar nenhuma melhoria
na infra-estrutura das escolas pesquisadas. Ao contrário, durante o mês de dezembro, com as
fortes chuvas que se abateram sobre o município inteiro, não foi possível fazer nenhuma visita
à escola Carlos Chagas, porque a estrada de acesso à escola estava interditada. Uma turma da
escola José Giró Faísca, cujas aulas eram ministradas no pátio, teve as aulas canceladas, pela
falta de salas de aula para acomodar os alunos. A escola Francisco Ricardo Lyzandro Alves
dos Santos enfrentou problemas ocasionados pelas chuvas: goteiras nas telhas jorravam água
nas salas de aula, a entrada da escola ficou tomada pelas águas, obrigando a diretora a
improvisar uma tábua de madeira como ponte para permitir a passagem dos alunos às salas de
aula disponíveis.
Professores e diretoras das escolas relatam as frustrações com o exercício das suas funções,
face às condições oferecidas pelo poder público. Esses funcionários refletem as contradições
do poder público, vividas no mais profundo deles mesmos, como se fossem dramas pessoais.
Não podem realizar as missões, com objetivos quase sempre desmedidos, que lhes foram
confiadas, porque os meios, normalmente irrisórios, que lhes são disponibilizados são
insuficientes para suprir as necessidades da escola.
As situações enfrentadas pelas diretoras das escolas Giró Faísca e Francisco Ricardo, embora
diametralmente opostas enquanto uma superlota as salas, a outra veta a matrícula de novos
alunos, justamente para não exceder o efetivo de alunos – remetem à idéia da “escolha
trágica” (Calabresi & Bobbitt, 1968), isto é, opção entre alternativas igualmente relevantes.
De um lado, uma professora que não nega as matrículas, mas que por isso enfrenta problemas
de superlotação, de outro uma professora que não enfrenta problemas de superlotação, mas
para isso nega o acesso das crianças àquela escola.
Não posso deixar de registrar um contraste ao examinar as ações do poder público municipal,
que esclarece e define as prioridades que se propôs cumprir nos últimos quatro anos. A falta
de recursos para reformar as escolas de Travessão e, consequentemente, ampliar e melhorar o
espaço físico dessas escolas contrasta com os fartos recursos distribuídos para a iniciativa
privada em forma de bolsas de estudos para o Ensino Superior.
Através da adoção de uma política de erosão sistemática da instituição escolar, o poder
público municipal abandona às forças do mercado e à lógica do “cada um por si” camadas
inteiras da sociedade, em especial aquelas que, privadas de todos os recursos, econômico,
cultural ou político, dependem completamente dele para chegar ao exercício efetivo da
cidadania.
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