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LUIZ JUSTINO DA SILVA JÚNIOR
A MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO
NA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS
RECIFE
2009
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA – PRAC
CORDENAÇÃO DE PESQUISA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
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LUIZ JUSTINO DA SILVA JÚNIOR
A MANIFESTAÇÃO DO SAGRADO
NA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS
Monografia apresentada como requisito parcial à obtenção
do título em Mestre em Ciências da Religião, pela
Universidade Católica de Pernambuco.
Orientador: Prof. Dr. Gilbraz Aragão
Co-orientadora: Profª Drª. Zuleica Dantas
RECIFE / 2009
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A todos aqueles que, de alguma forma, me ajudaram na consolidação deste
trabalho. São eles:
Ao Magnífico Reitor Pe. Pedro Rubens, SJ, da Universidade Católica de
Pernambuco, pelo apoio em mais uma etapa de meu desenvolvimento pessoal e
profissional;
A todos os professores do Programa de Mestrado em Ciências da Religião, porque
acreditaram e possibilitaram o desenvolvimento das pessoas que buscaram o
aperfeiçoamento profissional;
Aos funcionários do referido Curso de Mestrado, pela forma solícita de nos
orientar nos procedimentos fundamentais nesta caminhada acadêmica;
Aos companheiros de Curso pela maneira atenta e solidária expressa em diversos
momentos ao longo dos períodos do curso, em especial, Ijaciara Barros de Abreu, Maria
Jeane dos Santos Alves e Maria José Ferreira de Moraes, as quais despertaram em mim,
através das partilhas de vida, muita estima, consideração e amizade;
Às pessoas que ocupam um lugar muito especial em meu coração: Maria José
Freitas da Silva, Luiz Justino da Silva, Cícero Petrônio Santos Lima, ,meus irmãos e
sobrinhos;
Às pessoas que, de forma direta, contribuíram para que as primeiras idéias
delineadas no projeto de pesquisa se transformassem, até chegar a se constituir em um
conhecimento mais estruturado. São elas: Ana Paula Guedes, Profª Fátima Breckenfeld;
Renato Conserva, Betânia Cordeiro, Francis Adão, Maria das Dores; Prof. Jorge
Cândido, Prof. Marcos Almeida, Prof. Carlos (UPE), Profª. Graziela Brito, Prof.
Alcivam de Paula e a todos aqueles a quem esqueci de mencionar;
Em especial, gostaria de deixar registrado os meus agradecimentos especiais :
- ao meu orientador e a minha co-orientadora de pesquisa, Prof. Dr. Gilbraz
Aragão e Profª. Zuleica Dantas, respectivamente, do Curso de Mestrado em Ciências da
Religião, da Universidade Católica de Pernambuco, inicialmente pela atenção nas
primeiras inquietações investigativas, pela paciência e, posteriormente, pelas oportunas
indicações no desenvolvimento deste trabalho;
- a todos (as) os (as) depoentes que se dispuseram, de forma solícita e pertinente, a
participar, expondo vivências, idéias, concepções aos questionamentos deste trabalho.
Muito obrigado!
RESUMO
Qualquer experiência humana pode ser sacralizada, continuando na sua
superfície “profana”. O caráter sagrado lhe vem da atribuição do mistério que oculta. Este
mistério pode ser de beleza ou de feiúra, de bondade ou de maldade, de segurança ou de
pecado, de anjo ou de demônio, no templo ou na rua. O sagrado opera uma transformação nas
coisas do mundo tornando uma realidade inteiramente diferente das realidades naturais. O
presente trabalho se propõe analisar numa perspectiva antropológica a “hierofonia” construída
e reelaborada na Noite dos Tambores Silenciosos, numa tentativa de compreender o
desenvolver deste processo.
Palavras-chave: Sagrado;
Hierofania;
Ciências da religião.
ABSTRACT
Any human experience can become sacred and even go continuing going
externally continue in its profane expression. This sacred character comes out to it human
experience from the mystery touch that it the above mentioned human experience hides
within itself. This mystery can enclose beauty or ugliness, goodness or wickedness, safety or
sin, angles or devils, temples or street. The sacred one produces, accomplishes a certain
transformation in the worldly things, turning them into a reality wholly different from an
analyzing, departing from an anthropological perspective, the hidden hierophany, contacted
and reworked out from “Noite dos Tambores Silenciosos” i. e: Night of the Silent Drums in
great attempt of understanding and developing this process.
Key words: Sacred;
Hierophany;
Sciences of the religion.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………………. 08
1 A NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS: A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO........ 12
1.1 A experiência religiosa na Noite dos Tambores Silenciosos........................................... 18
1.2 Desenvolvimento cronológico da Noite dos Tambores Silenciosos................................ 23
1.3 Leitura cronológica da Noite dos Tambores Silenciosos ................................................ 25
1.4 Aspectos relevantes da história e seu contexto................................................................ 35
1.5 O Pátio do Terço.............................................................................................................. 38
2 O CERIMONIAL DA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS............................... 41
2.1 A participação no evento.................................................................................................. 41
2.2 Desenvolvimento das celebrações.................................................................................... 45
2.3 Leitura do desenvolvimento das celebrações................................................................... 46
2.4 Aspectos relevantes do ritual da Noite dos Tambores Silenciosos.................................. 56
3 A CONSTRUÇÃO DO SAGRADO NA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS.. 63
3.1 A cultura como uma realização contínua do homem....................................................... 63
3.2 A festa e os mitos............................................................................................................. 74
3.3 A representação do sagrado............................................................................................. 80
3.4 O ser humano e a sua relação de transcendência............................................................. 91
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................. 96
REFERÊNCIAS....................................................................................................................100
ANEXOS...............................................................................................................................103
8
INTRODUÇÃO
Um importante aspecto da socialização humana é a cultura, que surge como fruto
da mente e das mãos humanas. Porém, a cultura não é o resultado de apenas um homem, mas
de todo um grupo, e por isso, ela apresenta, como uma de suas características a de ser social.
A cultura é uma hereditariedade social que o homem recebe, transmite e a transforma.
Nesse processo de construção e reelaboração cultural, o Brasil e em especial, o
estado de Pernambuco, se destaca por sua riqueza e diversidade cultual, pois à tradição nativa
dos diversos povos indígenas que habitavam essas terras, somaram a cultura trazida pelos
portugueses, africanos, holandeses e todos os imigrantes que aqui chegaram. Nesse processo
de miscigenação cultural, a religião ocupa um lugar de destaque, acarretando uma influência
direta na cultura, dividindo-a em ciclos que possuem uma relação com o calendário litúrgico
católico, ou seja, as manifestações culturais acabam sendo vivenciadas pelos ciclos natalino,
carnavalesco, junino, afro-ameríndio, e cada uma delas com suas manifestações que lhes são
característicos.
São muitas e antigas as manifestações religiosas existentes dentro da cultura
popular, elas estão difundidas a ponto de não conseguirmos imaginar o homem sem religião,
devido à sua busca em representar um sistema normativo transcendente para sua conduta
social, pois “o homem profano, queira ou não, conserva ainda os vestígios do comportamento
do homem religioso, mas esvaziado dos significados religiosos. Faça o que fizer, é um
herdeiro. Não pode abolir definitivamente seu passado, porque ele próprio é produto desse
passado” (ELIADE, 2001, p. 166).
Às vezes, é a beleza de um pôr do sol ou o barulho do mar nos arrecifes. Outras
vezes o florescer da caatinga, após a primeira chuva. Às vezes, o sorriso da “dama do passo”,
ao carregar sua calunga com devoção e entusiasmo. Outras vezes, ao cuidado afetuoso com
um doente. Revoltamo-nos contra a injustiça flagrante, ao passearmos pelas ruas das grandes
cidades. Sonhamos com um mundo melhor. Cedo ou tarde, somos despertados pelo
sentimento morno de que a vida é mais do que nela percebemos. Sentimos e desejamos a
presença de um algo mais. É o sagrado no meio de nós, pois “em mim e no meu ambiente
mais restrito e mais amplo, eu experimento um grande anseio pela experiência do sagrado, e
estou convencido de que ontem como hoje nós homens somos capazes de deixar-nos tocar
pelo sagrado” (MÜLLER, 2004, p. 8).
9
Cada experiência religiosa apresenta-se como uma ligação profunda e
envolvente do homem com o sagrado, na qual se anula na sua individualidade. Sempre que o
homem entra em contato com o sagrado, estamos perante um tipo particular de experiência
religiosa.
As religiões buscam fundamentar suas existências em dois pressupostos básicos:
o sagrado e o profano. O primeiro define-se por oposição ao segundo, e corresponde a uma
realidade que é assumida como perfeita, divina e dotada de poderes superiores aos humanos,
suscitando no homem respeito, medo e reverência. a profana, identifica-se com o mundo
em que vivemos, sendo apontada como banal e vista inferior em relação à sagrada (ELIADE,
2001).
Em cada religião, como acontece, em cada cultura, o sagrado se expressa sob
diferentes formas e assume diversas figuras. Nessa perspectiva, buscamos compreender, num
viés antropológico, a manifestação do sagrado contida na Noite dos Tambores Silenciosos,
numa tentativa de iniciarmos um processo de melhor compreensão da existência ou não de
uma mística, em meio à folia de Momo. Esse esforço pretendeu realizar uma contextualização
sócio-cultural da realização do evento, através de pesquisa bibliográfica e entrevista com os
atuais organizadores do evento, bem como, sacerdotes e filhos de santo que participam do
evento em questão, buscando fazer um resgate transdisciplinar, identificando assim,
elementos que possam nos situar diante da problemática apresentada.
Neste sentido, entrevistamos, utilizando-se de um questionário semi-
estruturado, um grupo de dez pessoas que estiveram envolvidas na organização, na condução
e na participação do evento ocorrido em fevereiro de 2008. Conforme acordado no Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido em anexo, iremos preservar suas identidades, informando
apenas o grupo que se enquadram. Utilizaremos o termo “depoente” para identificá-los, bem
como o dia em que realizamos a entrevista.
Depoente 1 equipe de organização e filha de santo. Entrevistada no dia
16/05/2008;
Depoente 2 Ialorixá e Rainha de uma das Nações de Maracatu que
compareceram à celebração. Entrevistada no dia 17/05/2008;
Depoente 3 Babalorixá envolvido na organização da celebração. Entrevistado
no dia 19/05/2008;
Depoente 4 equipe de organização e filha de santo. Entrevistada em
20/05/2008;
10
Depoente 5 Ialorixá e Rainha de uma das Nações de Maracatu que
compareceram à celebração. Entrevistada no dia 20/05/2008;
Depoente 6Ialorixá e pesquisadora. Entrevistada em 20/05/2008;
Depoente 7 Babalorixá e mestre da batucada de uma das Nações de Maracatu
que compareceram à celebração. Entrevistado em 21/05/2008;
Depoente 8 Ialorixá envolvida na organização da celebração. Entrevistada em
24/05/2008;
Depoente 9 – filha de santo e pesquisadora. Entrevistada no dia 26/05/2008;
Depoente 10 filha de santo, pesquisadora e integrante do Movimento Negro
Unificado (MNU). Entrevistada no 26/05/2008.
Buscamos descrever o processo contínuo de elaboração da Noite dos Tambores
Silenciosos a partir de atividades presenciais, pesquisa bibliográfica e a partir de depoimentos
orais colhidos durante o processo de pesquisa. Para esse propósito, tomamos com principal
fundamentação as concepções do pensamento de M. Eliade, através do seu conceito de
hierofania
1
e, na medida do possível, com autores das Ciências da Religião que abordem
essa realidade dicotômica constituinte da existência humana ao longo da história.
Nosso intuito é apontar uma possível abordagem compreensiva de como se a
manifestação do sagrado na “Noite dos Tambores Silenciosos”. Não se tratando, contudo, de
uma reflexão a partir de uma ótica religiosa. Antes, pelo contrário, a manifestação do sagrado
será nosso objeto de estudo. A perspectiva de nossa análise é fornecida pelas ciências sociais,
em particular a Antropologia, ciência que estuda os costumes e formas de vida do homem em
diferentes tempos e lugares, desde seu aparecimento na terra até os dias atuais. Isso significa
que estamos interessados em compreendermos melhor o fenômeno religioso em termos da
dinâmica da realidade humana e da cultura, sem estabelecermos julgamentos ou comparações
religiosas.
Pois conforme afirma M. Eliade,
“No interior do recinto sagrado, o mundo profano é transcendido. Nos níveis mais
arcaicos da cultura, essa possibilidade de transcendência exprime-se pelas
diferentes imagens de uma abertura: lá, no recinto sagrado, torna-se possível a
comunicação com os deuses; consequentemente, deve existir uma “porta” para o
1
Hierofania é um conceito elaborado por Mircea Eliade para indicar as práticas de manifestação do sagrado
(ELIADE, 2001, p. 17). Segundo C. Rohden, M. Eliade retém a idéia de sagrado apresentada por R. Otto
enquanto algo totalmente outro, isto é, de uma ordem totalmente distinta da ordem natural. Entretanto, Eliade
busca apreender o sagrado o se concentrando na análise dos seus elementos irracionais [...] mas na idéia de
que o sagrado está intimamente ligado às idéias de significado, verdade, realidade, existência e sentido. [...]
através da experiência do sagrado opera-se uma separação entre real e irreal. Tudo o que é sagrado tem valor,
solidez e realidade (1998, pp. 38-40). A relação existente entre sagrado e profano apresentada por M. Eliade, não
se trata de duas realidades opostas, mas complementares.
11
alto, por onde os deuses podem descer à Terra e o homem pode subir
simbolicamente ao Céu” (ELIADE, 2001, p. 29).
Sendo assim, o presente trabalho teve como objetivo a análise, numa perspectiva
antropológica da “hierofonia” contida na Noite dos Tambores Silenciosos e está dividido em
três capítulos. No primeiro, buscaremos apresentar o processo de invenção dessa tradição,
hoje conhecida como sendo a “Noite dos Tambores Silenciosos”; No segundo capítulo, é
realizada uma descrição de como foi desenvolvido o cerimonial dessa celebração no ano de
2008; Por fim, no terceiro e último capítulo, desenvolveremos uma ponte interpretativa para a
compreensão da vivência de uma mística em meio ao profano.
O resultado desta pesquisa busca contribuir com as Ciências da Religião, no que
se refere ao discurso sobre a vivência mística, de um determinado grupo em meio a uma festa
profana onde detectamos uma “hierofania” e contribuir com a comunidade afro, no
fortalecimento de sua identidade religiosa; bem como, fornecer elementos para o diálogo no
processo de conhecimento da cultura pernambucana, pois em se tratando de um tema
complexo, é sempre oportuno lembrar que a análise realizada é um recorte possível, podendo
e devendo haver outras.
Por fim, salientamos que ao longo desta pesquisa, buscamos evidenciar que os
homens, ao se relacionarem com o “outro mundo”, estão de fato elaborando formas ricas e
significativas de se relacionarem neste mundo e ao mesmo tempo, encontrando um sentido
para a vida.
12
1 - A NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS: A INVENÇÃO DA TRADIÇÃO
O homem é um ser sociável, que por natureza depende de outros, não pode
crescer, não pode educar-se; sozinho não pode ao menos satisfazer suas necessidades mais
elementares nem realizar as suas aspirações mais elevadas. Ele pode obter tudo isso apenas
em companhia com os outros. Por isso, desde o seu primeiro aparecimento sobre a terra,
encontramos o homem sempre colocado em grupos sociais, inicialmente pequenos e, depois,
sempre maiores.
A sociedade é um fenômeno dialético por seu um produto humano, e nada mais que
um produto humano, que no entanto retroage continuamente sobre o seu produtor.
A sociedade é um produto do homem. Não tem outro ser exceto aquele que lhe é
conferido pela atividade e consciência humanas. Não pode haver realidade sociel
sem o homem. Pode-se também afirmar, no entanto, que o homem é um produto da
história da sociedade. Toda biografia individual é um episódio dentro da história da
sociedade, que a precede e lhe sobrevive. A sociedade existia antes que o indivíduo
nascesse, e continuará a existir após a sua morte. Mais ainda, é dentro da sociedade,
como resultado de processos sociais, que o indivíduo se torna uma pessoa, que ele
atinge uma personalidade e se aferra a ela, e que ele leva adiante os vários projetos
que constituem a sua vida. O homem não pode existir independentemente da
sociedade (BERGER, 1985, p. 15).
Como o homem é essencialmente um ser racional, de linguagem, ele é também,
necessariamente um ser social; ou melhor, é um ser social porque é, antes de tudo racional,
um ser de vontade, de linguagem. O conhecer, de fato coloca o homem em condição de
adquirir conhecimento dos outros, de apreciar a sua presença, de reconhecer a importância de
unir-se a eles. A linguagem, conseqüentemente consente-lhe entrar em comunicação com os
seus semelhantes; enfim, a vontade o incita a entrar em contato com os demais e trabalhar
junto a eles.
A linguagem é um veículo primário através do qual os seres humanos habitam seu
mundo. A linguagem nomeia o mundo, e o mundo consente, devolvendo-se a nós
através de nossas próprias nomeações. As línguas são, de fato, como habitat; cada
cultura constrói seus padrões valorativos segundo seu léxico. A percepção de
tempo, espaço, natureza e relações humanas estará intimamente conectada com a
terminologia de cada um. Mesmo dentro de uma cultura haverá diferentes tipos de
linguagens especializadas, como as da ciência, da religião e das artes todas elas
matrizes que dão forma ao mundo de modos muitos diferentes (PADEN, 2001, p.
25).
Como dissemos anteriormente, a cultura surge como fruto da socialização
humana, embora não seja resultado de apenas um homem, mas de todo o grupo, conferindo-
lhe um ciclo contínuo de uma hereditariedade social no qual o homem recebe, transforma e
transmite.
A cultura, como produto coletivo, é necessariamente ostensiva da natureza do “ser”
humano. [...] Geralmente, para determinar a natureza específica do ser humano, se
13
toma para exame à vontade, a liberdade, a linguagem, o trabalho; é raro o caso que
para tal fim se interrogue a cultura. Mas esse é um erro muito grave porque na
cultura confluem e se cristalizam todas as atividades humanas, tanto as
especulativas quanto as práticas, em todas as suas múltiplas manifestações: a
ciência, a filosofia, a técnica, a arte, a religião, a política, a sociologia, etc., portanto
a cultura é uma pista importantíssima para descobrir o ser do homem. [...] Pode-se
afirmar, sem dúvida, que através do exame das características principais da cultura
se adquirem também algumas importantes informações acerca da natureza do
homem. Assim, por exemplo, do fato de que a cultura assume necessariamente uma
forma sensível e, todavia, possui quase sempre um sentido espiritual, é legítimo
conhecer que também o ser humano tem uma tripla dimensão, uma física, uma
psíquica e uma espiritual. Além disso, das características do dinamismo da
historicidade, da sociedade, da criatividade, pode-se tirar validamente a conclusão
de que o homem é um ser dinâmico, histórico, social e criativo. A cultura
manifesta, além disso, que o homem é dotado de liberdade, de uma propensão para
progredir sempre mais, de uma capacidade constante de transcendimento de todas
as posições já alcançadas. (MONDIN, 1980, p.189).
O homem se encontra colocado no mundo, sobre esta terra, neste período
histórico, nesta sociedade, mas ao mesmo tempo é consciente de que não pode realizar-se
plenamente o seu ser e as suas aspirações no presente âmbito espaço-sócio-temporal. Por esse
motivo o seu olhar dirige-se além do que o mundo pode oferecer-lhe, o tempo e a sociedade
presente, e dirige-se para um horizonte onde espera entrever uma sociedade perfeita que
povoa um espaço imenso por uma eternidade.
Desta forma, uma manifestação tipicamente humana é a religião. Ela não está
presente nos outros seres vivos, mas somente no homem. É uma manifestação que assume
proporções notabilíssimas. Os estudiosos informam-nos que o homem desenvolveu uma
atividade religiosa desde a sua primeira aparição na cena da história e que todas as tribos e
todas as populações de qualquer nível cultural cultivaram alguma forma de religião. Ademais,
é coisa mais que sabida que todas as culturas são profundamente marcadas pela religião e
“entender as religiões como sistemas culturais permite relacioná-las com o contexto na qual
são formuladas, e compará-las umas às outras sem que se estabeleçam julgamentos” (CRUZ,
2004, p.57).
O Brasil é considerado como a grande nação católica” e consideramos
importante descrever a formação da matriz religiosa brasileira. Sabemos que nossa sociedade
é fruto de um processo de colonização portuguesa que estabeleceu, num território previamente
ocupado porrias nações indígenas, um padrão de desenvolvimento social em que se
impunha de fora a orientação para o país. A essa combinação do elemento europeu com o
indígena veio somar-se a escravidão do negro africano.
14
Com os colonizadores chegaram o catolicismo ibérico e a magia européia. Aqui se
encontraram com as religiões indígenas, cuja presença irá impor-se por meio da
mestiçagem. Posteriormente, a escravidão trouxe consigo as religiões africanas que,
sob determinadas circunstâncias, foram articuladas num vasto sincretismo. No
século XIX, dois novos elementos foram acrescentados: o espiritismo europeu e
alguns poucos fragmentos do catolicismo romanizado (FILHO, 2003, p. 41).
No transcorrer de nossa história, as manifestações religiosas de índios e negros
foram submetidas a um processo de dominação cultural em que se procurou desvalorizar suas
crenças, chegando-se, no limite, à perseguição de seus fiéis. Índios e negros, considerados
pagãos, foram submetidos a um processo de cristianização compulsória. É interessante
lembrar como os indígenas acabaram encontrando nas missões jesuíticas a única forma de
“escapar” à escravidão, mas isso representava, em contrapartida, a perda de seu universo de
crenças. S. Costa, ao falar sobre a escravidão indígena, vai dizer que ela “fracassou
totalmente. Primeiro, porque eles não eles não eram adaptados ao trabalho e, segundo, porque
os jesuítas se colocaram em sua defesa de modo muito decidido” (COSTA, 2001, p. 323). Os
negros, escravizados, tinham de se submeter às crenças de seus senhores, pois “da mesma
forma que foi trazido à força ao Brasil, também foi levado ao cristianismo” (COSTA, 2001, p.
337). A forma de resistência que encontraram foi “traduzir” seu culto aos orixás para a
linguagem dos santos católicos originando um sincretismo religioso ainda presente em nossa
atualidade. Sobre esse aspecto, S. Vasconcelos vai dizer que:
O sincretismo afro-católico, nesse contexto, representa um longo e criativo
processo de resposta pessoal e coletiva a um trauma cultural vivido pelos afro-
descendentes. A partir da perspectiva negra o sincretismo o é um problema, mas
sim uma solução que foi construída ao longo dos séculos na sociedade brasileira
como forma de reestruturação e construção de sentido pêra as suas vidas
(VASCONCELOS, 2004, p. 320).
No nordeste brasileiro, Salvador e Recife devido ao plantio de cana de açúcar, e
no Maranhão onde havia a cultura do algodão (COSTA, 2001, p. 326), concentraram um bom
contingente de africanos e esses também colaboraram na construção da cultural local,
contribuições que resistiram a todas as adversidades cometidas.
Do mesmo modo que na África Ocidental, a religião impregnou e marcou todas as
atividades do Nàgô brasileiro, estendendo-se, regulando e influenciando até suas
atividades as mais profanas. Foi através da prática contínua de sua religião que o
Nàgô conservou um sentido profundo de comunidade e preservou o mais específico
de suas raízes cultural. Assim, o século XIX viu transportar, implantar e reformular
no Brasil os elementos de um complexo cultural africano que se expressa
atualmente através de associações bem organizadas, eg onde se mantém e se
renova a adoração das entidades sobrenaturais, os òrisà, e a dos ancestrais ilustres,
os égun (SANTOS, 2008, p. 32).
15
No início do século passado, os cultos religiosos dos afro-descendentes ainda
eram legalmente proibidos e os terreiros vítimas freqüentes de invasões policiais. Sobre esse
período, I. Lima diz,
Para uma melhor compreensão do período Vargas em Pernambuco, é importante
distinguir os períodos em que estiveram à frente da interventoria, Carlos de Lima
Cavalcanti e Agamenon Magalhães. Enquanto no primeiro período houve uma certa
tolerância regulamenta pelo S.H.M, durante o Estado Novo, proibiu-se e perseguiu-
se indiscriminadamente as religiões afro-descendentes, uma vez que o governo de
Agamenon Magalhães era declaradamente de maioria católica e apontava na
perspectiva de que tudo o que não fosse cristão era digno de perseguição e combate
(2005, p. 110).
Sobre esse mesmo período, o mesmo autor, vai mostrar que as perseguições
ocorridas contra os terreiros não foi uma ação promovida apenas pelos católicos, mas também
pelos próprios adeptos dos xangôs pernambucanos que primavam pela preservação dos
fundamentos africanos e eram contra as casas de umbanda
2
ou “baixa-magia”.
Ulysses Pernambucano defendia a idéia de que apenas os terreiros de xangô
mereciam proteção e reconhecimento. Tal questão pode ser atestada na
regulamentação de alguns poucos terreiros, em detrimento do fechamento e
perseguição da imensa maioria destes durante o governo de Carlos de Lima
Cavalcanti. Quem não era “africano” estava sujeito à prisão e repressão, ao passo
que, nas casas de “seitas africanas”, local onde se fazia “religião”, as nçãos do
Serviço de Assistência aos Psicopatas caíam como milagres operados pelo axé dos
orixás. Na obra Xangôs do Nordeste investigações sobre os cultos negros-
fetichistas do Recife, Fernandes (1937) faz uma boa discussão sobre as visitas dos
assessores de Ulysses aos terreiros, e as constantes denúncias feitas pelos pais-de-
santo de que os seus rivais eram ligados à baixa-magia (LIMA, 2008, p. 253).
Nesse âmbito de repressão aos cultos africanos, encontramos registros dos bailes
que aconteciam no Recife, promovidos pelos terreiros de candomblé e que ganhavam o nome
de Baile Amarelo, Baile Azul, Baile Branco que nada mais eram de que estratégias para
driblar as perseguições. Abaixo dos tablados estavam os assentamentos dos orixás e os
bombos que davam ritmo as festas, pintados nas cores do santo (REAL, 2001, p. 23).
Esses esforços duraram até conseguirem a liberdade de culto e nos apontam à
necessidade constante dos adeptos do culto aos orixás ao buscarem camuflar suas expressões
religiosas. Em entrevista concedida à antropóloga K. Real em 1967, o então babalorixá, José
Eudes Chagas vai relatar como se deu a sua aproximação com o xangô dizendo o seguinte:
Foi minha tia quem me levou, afinal, à casa de Dona Santa, onde estava localizada
a sede do Maracatu Elefante. A casa estava fechada. Naquele tempo todos os cultos
eram ilegais. Voltei novamente para falar com Dona Santa. Assim que ela ficou
sabendo das minhas crises, ela me disse que, para resolver o problema, eu teria de
aguardar o dia em que o Maracatu tocasse porque todos os terreiros estavam
2
A umbanda é uma espécie de tradição brasileira, ao contrário do candomblé que se pensa como africano.
Concebemos a umbanda como modo brasileiro, devido seu culto englobar práticas de origem africanas,
kardecistas e indígenas. Ela surge no início do século XX e tem muito a ver com os processos de urbanização e
modernização que vão transformando a sociedade brasileira.
16
fechados e naquela ocasião, eu poderia me despistar. [...] A senhora sabe que foram
doze anos de perseguição pela polícia aos cultos africanos e espíritas. Mesmo com
os negros da Costa no Pátio do Terço era disfarçada a religião católica. Era preciso
despistar a polícia para praticar a seita naquele tempo (REAL, 2001, pp. 21-21).
Na fala do babalorixá encontramos elementos que são de grande valia para o
nosso estudo e que desenvolvermos mais adiante. No momento, ressaltamos a aproximação
realizada entre as manifestações culturais (festas, maracatus, confrarias
3
,...) e os cultos afro-
descendentes, na tentativa de velar a vivencia religiosa, um processo que influenciará bastante
a cultura pernambucana.
A pesquisadora Z. Campos ao estudar o combate aos xangôs pernambucanos
aponta para as estratégias praticadas pelos afro-descendentes. Nesse sentido, a referida autora
vai dizer que:
A resistência da religião afro-umbandista, numa sociedade que tentava apagá-la,
embora nenhuma tentativa de sublevação coletiva tenha ocorrido, demonstrando
que seus praticantes não só imprimiram sua marca na sociedade, mas também
transformaram relações. Desta forma, podemos afirmar que, entre práticas
autoritárias e repressivas dos Intelectuais, do Estado e da Igreja, nos anos trinta e
quarenta, e os afro-umbandistas, existiu um relacionamento circular feito de
influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para
baixo. [...] Essas práticas repressivas, principalmente as vivenciadas durante o
Estado Novo, deixaram marcas na memória dos participantes dessa religiosidade
(2001, p. 260).
Na atualidade, a influência africana no seu processo de reelaboração é bastante
perceptível e relativamente acolhida pelo povo recifense no período carnavalesco numa
cerimônia religiosa, amplamente conhecida e que citamos anteriormente como sendo a
“Noite dos Tambores Silenciosos”. Um evento, uma celebração muito divulgada pela mídia,
mas pouco conhecida em sua essência religiosa pela população, a não ser pelos fiéis de matriz
africana que são a minoria participante e que conseguem vivenciar a hierofania em meio à
multidão que assistem perdidos em meio à escuridão.
A Noite dos Tambores Silenciosos é uma manifestação religiosa reelaborada
pelos afro-descendentes do Recife, e que vem se transformando a cada ano em um dos
principais pontos da programação do carnaval recifense. Uma cerimônia ritualística que vem
adquirindo, cada vez mais, espaço na mídia e que atualmente acontece na frente da Igreja de
Nossa Senhora do Terço, situada no bairro de São José e, segundo os adeptos do candomblé
3
É sabido que as primeiras organizadoras da Noite dos Tambores Silenciosos faziam parte da Confraria de São
Bartolomeu que tinha como sede a Igreja do Terço. Embora seja uma confraria que continua possuindo um bom
número de adeptos do Candomblé, não encontramos nenhuma relação direta entre essa corporação religiosa e a
Noite dos Tambores Silenciosos, fato que encontrou consonância na fala de um dos depoentes e de uma
componente atual de tal confraria.
17
que estão envolvidos na organização da celebração, com a permissão de Oiá
4
, no intuito de
fazer memória dos africanos mortos em solo brasileiro e seus descendentes, membros
importantes dos terreiros pernambucanos. Para estes, um momento sagrado, transcendente,
em meio ao profano, no qual os fiéis participam com devoção de tal cerimônia religiosa, como
podemos compreender no trecho da reportagem de Marcelo Favalli:
Para o candomblé, segunda-feira de Carnaval é dia de homenagear as almas. O
ritual, que veio para o Brasil com os escravos africanos, resiste na tradicional Noite
dos Tambores Silenciosos. Em Recife, a cerimônia começou em 1968 e foi
incorporada aos dias de folia. Este ano, um dos pólos do Carnaval multicultural da
cidade foi instalado no largo da Igreja de Nossa Senhora do Terço palco das
festividades dos afrodescendentes recifenses – para prestigiar o desfile das 24
noções de maracatus de baque virado que entoam cânticos de xangô. A marcha dos
dançarinos é marcada pela batida de tambores. Estandartes trazem o nome dos
maracatus e são seguidos por uma corte vestida como reis e rainhas africanos. A
apoteose da cerimônia acontece pontualmente à meia-noite, quando todas as luzes
do bairro de São José são apagadas e os maracatus são liderados por tochas até a
porta da igreja da parca do Terço. O silêncio é quebrado pelo intermitente bater de
tambores. Ali, o babalorixá Raimundo de Oxossi, atual responsável pelo ritual,
alinha os batuqueiros e rege um coro de mães-de-santo que rezam com ele. O
babalorixá termina o culto abençoando os membros dos maracatus e o público.
5
A Noite dos Tambores Silenciosos é veiculada como um grande ritual público
promovido pela comunidade afro e uma referência para os principais integrantes dos
Maracatus de Nação existentes no Recife. Segundo outra fonte pesquisada,
A Noite dos Tambores Silenciosos, evento que ocorre na segunda-feira de carnaval
no Pátio do Terço, e que ao longo dos anos tem sido assumido pelos movimentos
políticos e culturais de grupos de afro-descendentes como um grande ritual de
congraçamento e celebração da cultura afro no Recife. É marcadamente um evento
de cunho religioso e não haveria exagero se o apontássemos como o ritual de maior
visibilidade que as religiões consideradas de matriz africana conseguem lançar para
a sociedade. A Noite dos Tambores Silenciosos, por si , mereceriam uma
discussão aprofundada, mas não é este objetivo no momento. Vale salientar que o
evento assumiu essas características ao longo dos anos, e não tinha esse caráter na
ocasião em que foi instituído, em torno do início dos anos 1960, apesar de
apresentar o caráter de rememoração da escravidão (GUILLEN in LIMA, 2007,
p.185-186).
Para a maioria prevalece apenas como um evento multicultural assumido pela
Prefeitura da Cidade do Recife e pelos movimentos culturais; para alguns, porem, um
momento de resgate coletivo da identidade
6
; para outros, um momento “nostálgico e
comovente”. É diante dessa diversidade de perspectiva que brota o nosso interesse na
4
Oiá ou Iansã é um orixá feminino que representa a força da tempestade, dos raios e também lhe é atribuída o
controle dos mortos ou dos eguns.
5
FAVALLI, M. Noite dos Tambores Silenciosos mistura tradição afro com folia em Recife. Disponível em
site http://noticias.uol.com.br/carnaval/2006/ultnot/recife/2006/02/28/ult348u16.jhtm. Acesso em 01/07/2008.
6
Vale ressaltar que a nossa compreensão de identidade está embasado na definição apresentada por Manuela
Carneiro da Cunha ou dizer que a construção da identidade é extraída da tradição e dos elementos culturais e que
a identidade étnica de um grupo se dá em função da auto-identificação e da identificação pela sociedade
envolvente (CUNHA, 1986, pp. 97 - 108).
18
aproximação da Noite dos Tambores Silenciosos, para compreendermos melhor como
acontece à construção dessa experiência religiosa vivenciada em pleno carnaval recifense.
1.1 – A experiência religiosa na Noite dos Tambores Silenciosos
Sabemos que o fator religioso encontra suas raízes no campo da sociedade e da
cultura. Segundo P. Berger, “toda sociedade humana é um empreendimento de construção do
mundo, no qual a religião ocupará um lugar de destaque nesse empreendimento” (1985, p.
15). Se na atualidade liberdade de culto para o “povo do santo”, diferentemente de outras
épocas, é porque nos encontramos vivendo numa sociedade mais tolerante e relativamente
aberta ao diálogo no campo da religiosidade. De fato, longos foram os tempos em que não
professar a fé católica era motivo de abusos exacerbados e que feriam diretamente a dignidade
do ser humano tanto enquanto pessoa, quanto de criatura.
As perseguições sofridas pelos adeptos do candomblé no passado nunca foi
motivo de desânimo ou descrença por parte dos afro-descendentes; pelo contrário, eles sempre
se faziam valer das grandes festas católicas para manter viva a de um povo marginalizado
através do sincretismo.
Segundo P. Berger, a religião faz parte do sistema de vida de um povo. Enquanto
cultura consiste na totalidade do processo de construção de um povo (1985, p. 19). Isso
porque a noção de cultura diz respeito ao conjunto das práticas sociais, o que inclui o
reconhecimento da dimensão simbólica. A cultura nunca foi e nunca será uma forma
estagnada de um saber especializado, que irá classificar ou doutos dos ignorantes; pelo
contrário ela deve ser compreendida como uma dimensão inerente ao ser humano. Todo
comportamento humano irá envolver representações simbólicas e devido ao homem estar
situado no mundo e em sociedade, sempre iremos encontrar sistemas explicativos que servirão
como elementos norteadores para uma vida em sociedade. Assim, em todas as sociedades, os
homens irão elaborar formas variadas de compreender e explicar sua vida e nenhum ser
humano deixará de agir em função desses sistemas. E a religião é uma das formas de
procedimento humano.
A religião é parte fundamental do sistema de vida de um povo, exatamente
porque fornece o quadro de representações que funda ou sobre o qual se assenta a noção
fundante desse sistema. Ela fornece uma explicação última para o fato de a vida humana ser
como é. Ao mesmo tempo, fornece aos homens uma perspectiva de como o mundo deveria
19
ser. Dessa maneira, a religião faz parecerem verdadeiras e corretas as concepções que moldam
o modo de ser coletivo, porque estas são vistas como algo que emana de uma ordem
sobrenatural.
Não pelo que descrevemos até aqui, mas levando em consideração todo o
arcabouço simbólico para os adeptos das religiões afro-descendentes, todo material veiculado
pela mídia e até mesmo por ser considerado um dos principais eventos da programação do
carnaval recifense, não resta dúvida de que a Noite dos Tambores Silenciosos atualmente é
uma referência religiosa e cultural para todos nós e, ao mesmo tempo, uma incógnita diante
do mistério religioso que a envolve.
Sendo o material encontrado sobre a Noite dos Tambores Silenciosos muito
escasso, nos propusemos colher depoimentos de algumas pessoas envolvidas com o evento.
Para nossa surpresa não encontramos qualquer tipo de barreira ou resistência, mas adeptos do
Candomblé dispostos, na medida do possível, a esclarecer possíveis dúvidas e contribuir com
os elementos necessários para nossa pesquisa. Desta forma, iremos transcrever literalmente o
que escutamos sobre a Noite dos Tambores, com apenas alguns ajustes de edição e tornando
possível um diálogo entre os próprios entrevistados atuais protagonistas do evento e
alguns autores das Ciências da Religião, cabendo a nós a mediação desse diálogo.
Na medida em que nos aproximamos das pessoas envolvidas diretamente com o
evento, seja pela organização, participação e pesquisa, ao serem interpeladas sobre a
celebração obtivemos as seguintes respostas sobre a Noite dos Tambores Silenciosos:
A Noite dos Tambores Silenciosos é uma manifestação religiosa, onde a gente vai tratar
das questões que acontecem dentro do candomblé, na rua, para louvação do povo que
morreu, que chegaram ao Pátio do Terço e que morreram, chegaram e que morreram e
que hoje são tratados como eguns
7
. Na religião afro-descendente, os nossos ancestrais, o
povo negro que ali chegou, são cultuados como eguns. Eguns, na religião, são pessoas que
morreram, e aí, a Noite dos Tambores Silenciosos, ela trata exatamente disso, né? Da
louvação àqueles que se foram. […] A Noite dos Tambores Silenciosos, pra muita
gente, iniciou em 1968, e que não é verdade, né? Que foi, como todo mundo conta, que foi
com o sociólogo Paulo Viana e que não é verdade. Ela se iniciou com as tias, as sinhás, as
iás do próprio Pátio do Terço e com a Mãe Badia
8
, a casa hoje existente e quando os
maracatus se aproximam e louvam a casa dela é porque sabe que ali existe uma Ialorixá
9
,
filha de Oxum, que iniciou com as primas, com as irmãs de santo a Noite dos Tambores
Silenciosos, de uma forma muito é... calma, não escondida, mas a poucas pessoas, porque
a muitos não interessavam saber o que estava se passando com relação à louvação, aos
eguns, ao seu povo que morreu, então, foi iniciado com elas, né?
(Depoente 1).
É uma noite muito sagrada e que possui uma importância muito grande, pois ali são
evocados os eguns e para isso, foi escolhida uma pessoa muito especial, como Raminho,
7
Egum Ancestral, antepassado, “espírito, o mesmo que alma” (GUILHERMINO, 2007, p. 113).
8
Embora a depoente tenha se referido a Badia como sendo esta uma ialorixá, a própria Badia não se reconhece
como uma sacerdotisa do candomblé, e sim uma “zeladora de santo”, pois a mesma não passou pela cerimônia
que lhe atribuísse título ialorixá (cf. MENEZES, 2005, p. 44).
9
Ialorixás Autoridade máxima de um terreiro (quando se trata de uma mulher) e dirigente do culto no
candomblé. Também chamada de Mãe-de-Santo (BERKENBROCK, 1999, p. 442).
20
para presidir a Noite dos Tambores. Você tem que estar preparado para aquela Noite dos
Tambores, você tem que estar resguardado, todos os maracatus com certeza fazem isso,
porque ali esta se invocando todos os eguns e inquice
10
, entendeu? Então, tem que ter uma
preparação muito grande. É de uma importância muito grande a Noite dos Tambores,
religiosamente. As pessoas que estão de fora vêem só como carnaval, mas nós que
participamos não é o carnaval […] pediram pra mudar em reunião, eu participo de
todas reuniões, e não querem mudar porque Badia foi uma Ialorixá muito respeitada do
nagô [...] e que morava naquela rua e o histórico ficou sendo feito ali (Depoente 2).
Aquilo ali começou... Eu fui criado por duas velhas que moravam ali no Pátio do Terço e
elas, quando eu era pequeno, eu via elas fazerem os Tambores Silenciosos. Elas desciam,
saíam da casa delas, juntavam três, quatro, cinco velhas e faziam aquilo. Era um negócio
pequeno. Elas faziam aquela louvação e faziam aquele, como é que chama? Aquela oração
aos antepassados. […] Era Na, Iaiá, Tia Eugênia, Dudu Baitó, Ginininha,... tinha umas dez
velhas. Porque ali quando eu era pequeno, ali não tinha comércio não, só morava africano.
[…] Eu vi aquilo, comecei a ver acompanhando aquilo ali com elas, eu era pequeno, pela
mão elas me levavam. Depois começou, foi aumentando, foi aumentando, foi aumentando
e a uns vinte, vinte e cinco anos a trinta sou eu quem faço. Porque ali foi passado de
família a família. […] Ali era o lugar onde os vapores ficavam e os negros vinha pra li. Ali
eles eram vendidos, ali eram... eram... ficavam ali, naquele Pátio, os portugueses olhando
eles, via..., se via..., se os dentes eram bons, se ele já era forte pra comprar, pra ser
empregado. […] Era ali onde eles morriam, ali onde eles chegavam, ficavam sofrendo, ali
eles morriam, acontecia a morte deles ali, é por isso que se faz ali. Agora o maracatu se
começa de... das sedes pra e se reúnem, porque como maracatu é festa de negro, vai
pra li festejar as..., as..., fazer aquela cerimônia. Inclusive aquele ali..., é aquele pessoal
que faz não tem mas nem nada com o assunto, porque não tem mais, mais africano ali,
eles fazem pros antepassados. […] Paulo Viana aumentou a história. Porque quando eu
era menino Paulo Viana também, acho que era garoto ou nem era nascido, porque eu não
sei com quantos anos ele morreu. Era um grupo de africanos que fazia aquilo. Agora
Paulo Viana aumentou, porque quando chega na parte do jornal, a coisa aumenta né?
Ele aumentou. Porque aquilo ali eu me lembro, elas, elas desciam, saíam, me lembro que
naquela época morava africano, elas saíam com aquela turma todinha, aquelas
velhinhas aí cantavam:
“Banzo è, banzo á
Kerè nu panzuelè
Kerè no seduwá”.
Saudando os mortos!!! Aquilo ali era tão rápido, fazia aquilo, e cantava duas toadinhas
para egum, invocava os tios, acabou, terminava. Agora Paulo Viana pegou aquilo ali e
levantou, né? Jornalista, sabe como é que é? Quando Paulo morreu ficou em cima de mim.
Findou dando trabalho a mim, mas é isso né. Paulo não fez, Paulo levantou e
divulgou.(…) Coisas que não tinha (sorrisos) sabe?. Eu me lembro que ia dar meia-noite,
fazia assim “vai dar meia-noite, vamos embora”. Pegava a gente pela mão. A gente
saia. Chegava na frente da igreja. Ficava aquele grupinho de velhas, de menino, era eu,
Badia, uns quatro ou cinco meninos pra ver aquilo ali. Era rápido. […] Agora Paulo Viana
entrou em casa e começou a se dar, chamando de mãe, pa pa pá, vira e mexe, ele
pegou aquilo ali, tudo ele levantava, né? levantou aquilo ali. […] Ali morreu negro de
Angola, Ketu, Gege, de... e os negros que foram morrendo, aí todos os maracatus, cada um
festeja uma parte, né? Tudo é negro”! (Depoente 3).
A Noite dos Tambores Silenciosos é um..., é um ritual, uma cerimônia ritualística,
religiosa e é uma cerimônia religiosa de reverência aos antepassados, aos nossos
antepassados negros que por ali passaram e que celebraram esse momento durante vários
anos, né? Várias décadas, na verdade, e que se tornou uma tradição e uma tradição de
reverência à essas pessoas que se foram. […] Eu não consigo precisar qual o... período
inicial que o ritual começou. Agora como e com o nome Noite dos Tambores Silenciosos
ela começa a partir de 64, que é uma criação, que eles chamam assim, né?, do jornalista
Edvaldo Viana, que junto com um grupo de pessoas, criou a Noite com esse nome,
também... deu uma... deu um nome... nomeou a cerimônia que já existia e que é..., secular.
Bom esse é o início da Noite. Mas como cerimônia religiosa ela..., ela existia assim...,
10
Inquice – Nome geral para divindades no candomblé de nação angola (OLIVEIRA, 2003, p. 78).
21
muito antes. […] Praticada pelos maracatus e pelos..., pelos povos negros que foram
escravizados na..., no..., no período..., no período da escravidão que iam lá porque...,
segundo contam, né? Naquele espaço, era um espaço de reunião de..., de escravizados
como..., assim..., um espaço permitido à manifestação dessas pessoas, né? E eles iam
se reunir e se reuniam através e..., se reunir para louvar aos seus é..., Orixás, aos seus
deuses e se reuniam através da..., do..., do maracatu, né? Do..., dos..., dos tambores do
maracatu. […] Então, porque..., como eu dizia, no Pátio do Terço era secularmente esse
espaço de encontro e de permissão, não é? Porque aquela igreja, a igreja de..., de..., do...,
do..., do Terço era a igreja onde eles se reuniam pra fazer essa..., esse encontro. E em
função dos que se foram, o que ficaram continuaram a fazer essa reverência naquele
espaço que é também um espaço, como você sabe, o tio de São de José sempre foi um
reduto negro, né? [...] nasceu no Pátio de São Pedro..., no Pátio de São Pedro, nasceu no
bairro de São José. [...] O Babalorixá Luiz de França morou no Pátio do Terço. Então, é
um espaço que tem um significado muito grande pra essa população que migrou para a
cidade. Que termina se confundindo a história da cidade com a história do povo (Depoente
4).
A Noite é pra celebrar aqueles que foram. Pelos escravos que morreram, aqui dentro
do Recife, né? Que vieram, alguns conseguiram né? Sobreviver e outros foram mortos.
[…] Desde pequenininha que eu escuto né? […] 100 anos atrás, na época da finada Badia,
Sinhá, Iaiá, é da época delas e quando eu cresci, desde que eu me entendi por gente que
existia e eu queria saber o que era. Noite dos Tambores, o que é isso? Será que é um
bocado de tambores tocando? Eu, na minha concepção, e pra mim era na Igreja do Rosário
dos Pretos, […] não sei se era ali. Aí depois que eu me envolvi com o maracatu foi que eu
vim saber, mas era no Pátio do Terço, não era na Igreja do Rosário dos Pretos como eu
idealizei ser na Igreja do Rosário dos Pretos. Já era ali (Depoente 5).
A Noite dos Tambores Silenciosos pra gente que faz maracatu nação de baque virado é o
ponto culminante do carnaval para os maracatus, ta certo? Porque o correto dela, ela foi
feita com a finalidade de…, é…, louvarmos nossos ancestrais, ta certo? Então acho que na
época que foi feita…, era feita é…, era feita para aqueles maracatus mesmo, de nação,
de tradição fosse pra fazer aquilo na frente da igreja, que era pra ser feita em frente a
Igreja do Rosário dos Homens Pretos, mas acho que ali não tem espaço, então passou a ser
ali, porque ali residia Badia, que era da religião, viveu toda a vida dela ali, então a…,
era…, aquilo ali foi feito com essa finalidade e os grupos levam o principal que são as
calungas, serem levadas pra li porque elas representam nossos ancestrais, e dali era
oficializada aquela cerimônia, onde se cantava, invocavam os eguns na língua yorubá, ta
certo? E depois dali era que saia mesmo para a carnaval propriamente dito, né? Que era
na…, o carnaval forte era na terça-feira, era o último dia. A finalidade dali era totalmente
isso, um ato religioso, aonde se era feita a oficialização daquela cerimônia para os nossos
ancestrais. […] É por isso que eu digo a você, quem fez aquilo ali, naquele intuito de
louvar, depois alguém se apoderou do evento e lançou como se fosse ele que tivesse
jogado, mais eu creio que tenha partido mesmo do pessoal da religião (Depoente 7).
Pra mim é..., é uma coisa que..., é..., como é que se diz..., reafirma, né? Reafirma a nossa
religião ao sagrado, do que sentido? Dos nossos ancestrais, ali, né? Você que é um
momento que a gente saúda, vixe Maria, ó pra e ó! (a entrevistada aponta para seu braço,
mostrando-o arrepiado). A nossa ancestralidade, né? Através Oiá e através do maracatu,
porque por baixo daquelas saias, daqueles tambores, tem todo um sacrifício, todo um...,
um..., uma..., um culto, pra no..., tanto pros nossos ancestrais quanto pra Orixás. E ali é
um momento mágico aonde é..., a (...) do terço, né? Afirmou, pra mostrar pro mundo, né?
E pra sociedade que a religião ela é uma cultura também, ela é uma tradição, ela é um
força..., um fortalecimento, eu vejo por esse lado (Depoente 8).
De antemão, é bom deixarmos claro que a Noite dos Tambores Silenciosos não
se trata do mesmo culto aos eguns que são realizados dentro dos terreiros de candomblé, pois
tal ritual é realizado em local específico, culto que Juana Elbein (2008) apresenta
detalhadamente em sua obra intitulada Os nàgô e a morte”. O que nos é apresentado através
22
da fala dos envolvidos, que são adeptos do Candomblé, é que a Noite dos Tambores
Silenciosos é uma manifestação religiosa pública, de uma comunidade, através de uma
louvação, uma reverência aos antepassados e, como relata uma das entrevistadas, não se trata
de mais uma atração do carnaval do Recife. Aqui ressaltamos que no decorrer das entrevistas
era perceptível o cuidado com as palavras, o zelo pelo como cada um, ao seu jeito e ao seu
modo, abordava o assunto e eram temerosos ao pronunciarem a palavra egumrealizando
gestos e solicitando bênçãos.
Se por um lado encontramos certa unanimidade ao afirmarem que a Noite dos
Tambores Silenciosos trata-se de uma reverência coletiva das diversas nações de candomblés
do Recife representados pelas diversas Embaixadas de Maracatu. Um momento particular no
qual cada Nação de Maracatu faz sua reverência aos antepassados através de sua dança e de
suas loas
11
, um momento coletivo para juntos fazerem memória aos antepassados de suas
famílias, de suas linhagens. Por outro lado, encontramos uma contradição ao afirmarem que
no momento da celebração após a louvação de Oyá, os egunssão evocados a participarem
da celebração, como veremos mais adiante.
Também encontramos nas falas acima, ao darem ênfase à existência das Tias do
Terço
12
, algumas descrições com riquezas de detalhes, o que nos faz detectar uma busca, por
parte dos depoentes, pelo protagonismo da Noite dos Tambores Silenciosos, revelando-nos
acontecimentos que antecederam a época em que a Noite dos Tambores inicia seu processo de
visibilidade na imprensa com o jornalista Paulo Viana, tema esse que iremos desenvolver
mais a diante. Tal busca pode ser compreendida pelo fato de que os movimentos negros nunca
terem aceitado a participação ou se quisermos a integração do grupo de teatro utilizado por
Paulo Viana ao assumir a organização da Noite dos Tambores Silenciosos. O que acabamos
de falar pode ser claramente percebido na seguinte fala:
Na cidade do Recife tem negro. Não tem que ficar pintando ninguém para fazer o
teatro (Depoente 10).
Essa é uma alocução facilmente encontrada nos integrantes dos movimentos
negros. Um discurso que vai ganhando espaço, que vai sendo apropriado pelos mais novos e
que está provavelmente embasado na ideologia da reafricanização dos terreiros, na qual toda e
11
Loas – termo atribuído às músicas entoadas no maracatu.
12
A expressão Tias do Terço é atribuída a Tia Eugênia, Sinhá, Iaiá e Badia. Mulheres negras que através de seus
trabalhos e princípios morais conquistaram sua dignidade, respeito e espaço na sociedade. A casa onde moravam
no Pátio do Terço sempre estava de portas abertas para receber os amigos, dar conselhos a quem necessitasse e
acolher os grupos carnavalescos, principalmente os seus preferidos, ou seja, Estudantes de São José, Madeira do
Rosarinho e Vassourinhas. “Mulheres negras que terão os seus nomes presentes na história de resistência do
povo recifense. História construída com sangue, suor, lágrimas, mas também, ou principalmente, com muita
coragem, ousadia, astúcia” (MONTEIRO; FEITOSA, 2004, p. 15).
23
qualquer influência sincrética, ou até mesmo, qualquer influência cultural que não seja afro-
descendente deve ser rejeitada.
Iremos retomar mais adiante esse aspecto do protagonismo da Noite dos
Tambores Silenciosos, mas antes de fazê-lo, gostaríamos de desenvolver o que chamamos de
“linha de tempo” para a Noite dos Tambores Silenciosos. Com isso não pretendemos buscar a
origem do evento, pois comungamos com a idéia apresentada por I. Lima de que
a origem de uma prática ou costume é impossível de ser localizada no tempo e no
espaço, e que as tradições são constantemente atualizadas por seus mantenedores,
sob a forma das permanências ressignificadas. A busca pela origem de
determinadas práticas ou costumes, longe de esclarecer, constitui artifício que leva
à construção de uma homogeneização daquilo que é diverso, múltiplo ou que
simplesmente não existiu como foi descrito (2008, p. 157).
O que buscamos é apenas demonstrar todo o processo de atualização ou de
reconstrução periódica da Noite dos Tambores Silenciosos a partir das bibliografias
encontradas e nas informações colhidas durante o processo das entrevistas, que nos ajudará a
compreender as possíveis fases pelas quais passou o evento em estudo. Num primeiro
momento, de forma bastante objetiva e esquemática e depois numa leitura dos dados
apresentados na tabela a seguir que servirão para nossa análise do fenômeno religioso.
1.2 - Desenvolvimento cronológico da Noite dos Tambores Silenciosos
O objetivo principal da tabela abaixo é demonstrar o desenvolvimento da Noite
dos Tambores Silenciosos do período em que era realizada por Dona Santa, até os dias atuais
com o Babalorixá Raminho de Oxossi. O que s identificamos com “fase” servirá como um
instrumento pedagógico para uma melhor compreensão do processo de tal celebração.
As informações contidas na tabela, a seguir, foram recolhidas de referências
bibliográficas, dos depoimentos recolhidos ao longo das entrevistas e nos depoimentos orais
encontrados no acervo da Fundação de Cultura da Cidade do Recife - Casa do Carnaval,
através do projeto “Assumindo nossa história”. A análise dos dados nela contidos será
realizada no tópico seguinte.
24
Fases
1ª Fase
2ª Fase
3ª Fase
4ª Fase
Cronologia
• Anterior a 1962
13
• De 1963 a 1967
• A partir de 1968
• Após 1987.
Local
• Em frete a Igreja de N. S.
do Rosário dos Homens
Pretos.
• Em frete a Igreja de N. S.
do Rosário dos Homens
Pretos
• Pátio do Terço
• Pátio do Terço
Protagonistas
(Principais)
• Dona Santa e o seu
“brinquedo”, o Maracatu
Nação Elefante, dançavam
com a calunga “Dona
Emília” na porta da Igreja.
• As próprias Tias do
Terço, alguns amigos e
poucas crianças.
• Paulo Viana, Edvaldo
Ramos e Badia.
• Raminho de Oxossi.
Ênfase
• Religiosa
• Religiosa
• Sócio-religiosa
• Religiosa e cultural
Dimensão
• Sem informações
• Pequeno grupo
• Centenas de pessoas
• Milhares de pessoas
Apoio /
Realização
• Maracatu Nação Elefante
• Grupo de fiéis
• De um pequeno grupo
dirigido pelo sociólogo e
africanista Paulo Viana.
• Período de transição
e que vai ser assumido
pela Prefeitura da
Cidade do Recife a
partir do ano 2000
com a criação do Pólo
Afro.
Características
• Aparentemente um cortejo
de Maracatu.
Celebração realizada de
forma muito calma e a poucas
pessoas;
O objetivo principal era
realizar uma louvação, uma
oração aos eguns;
•Ausência dos maracatus;
• Início da estruturação do
evento;
• Conquista do espaço na
imprensa;
• Presença dos maracatus;
• Participação do Grupo de
Teatro Equipe;
• Utilização de sistema de
som;
Surgimento do
Movimento Negro
Unificado e sua
reivindicação na
participação do evento,
bem como a participação de
brancos que representavam
os negros.
• Evento atualmente
altamente estruturado
com palco, jogo de luz,
gelo seco, som;
• Apresentado com um
evento cultural e
turístico;
• Presença da maioria
dos Maracatus de Nação;
• Evento
demasiadamente
prolongado, embora a
celebração aos eguns
seja muito breve;
• Multidão de pessoas
que lotam o Pátio do
Terço e as ruas
adjacentes.
13
O ano de falecimento de Dona Santa é 1962, sendo assim, definimos tal dada apenas como um marco
referencial para nossa pesquisa.
25
Descrição
• Sem informações
• Elas desciam, saíam da
casa delas, juntavam três,
quatro, cinco velhas e
faziam aquilo. Era um
negócio pequeno. Elas
faziam aquela louvação e
faziam aquele, como é que
chama? Aquela oração aos
antepassados. Eu vi aquilo,
comecei a ver
acompanhando aquilo ali
com elas, eu era pequeno,
pela mão elas me levavam
(Depoente 3).
Ali Paulo contava uma
história sobre os negros,
sobre a participação
deles, como viviam. Ele
fazia aquele lamento, os
artistas do Teatro Equipe
cantando... Era muito
bonito! E depois, depois
disso tudo, é que os
maracatus iam saudar a
igreja, e começavam o
batuque (VIANA,G,
2003, p. 4).
Por algum tempo a
cerimônia realizada na
porta da igreja um auto
de louvor como uma
encenação teatral,
porque a pesada nuvem
fria da ditadura militar
tratava as manifestações
afro-brasileiras com a
sua volta. Assim, a Noite
dos Tambores
Silenciosos ficou
assimilada ao folclore
popular por algum
tempo não oferecendo
perigo à lei e a ordem do
catolicismo conservador,
voltando a ter o mesmo
caráter mítico na década
de 80, período de maior
abertura política
(MENEZES, 2005,
p.44).
A cerimônia
acontece desde o
primeiro momento em
que o primeiro
maracatu chega, às
oito horas da noite,
[...] a reverência e a
cerimônia é... o
maracatu entra, ele vai
fazer a sua cerimônia,
a sua reverência na
frente da igreja e ele
volta. A reverência é
essa. A cerimônia é
um ritual, [...] é uma
seqüência de
louvações, de
cânticos, de músicas
de candomblés para os
eguns, isso, nada
mais (Depoente 4).
• O início da Noite dos
Tambores Silenciosos
ele invoca o Orixá
Penha, que é Iansã,
que é o Orixá que
permeia todos os
espaços, em todos os
tempos, e depois ele
canta propriamente
para eguns, em yorubá
[...] e que no final da
louvação ele fecha
com músicas voltadas
para outros Orixás,
que é no caso...
Orixalá [...] ele fecha
todo o contexto de...
de que Oiá, egum e
Orixalá (Depoente 1).
1.3 – Leitura da cronologia da Noite dos Tambores Silenciosos
O cortejo realizado pelo Maracatu Nação Elefante em frente à Igreja de Nossa do
Rosário dos Homens Pretos nos apresenta a estreita relação entre o Maracatu e a celebração
realizada por Dona Santa em reverência aos eguns. Guerra-Peixe (1980) nos traz a informação
de que o Maracatu Nação Elefante possuía uma calunga, a Dona Emília, a qual era a principal
calunga levada por Dona Santa à porta da igreja supracitada. A essa boneca de cera eram
26
também oferecidas danças e toques especiais. Os Maracatus por sua vez, executavam o baque
de “Luanda”, toque utilizado para reverenciar os mortos.
Nessa breve descrição de G. Peixe, não encontramos referências à dimensão e da
discrição desse momento, mas suponhamos que o aspecto religioso vivenciado pelo Maracatu
Nação Elefante não era captado pelos observadores externos ao Maracatu. Acreditamos que a
escassez de registro dessa época seja por conta da forte repressão policial ocorrida nessa
época conta o povo do santo.
O que denominamos de segunda fase tem um cunho exclusivamente religioso.
As Tias do Terço herdam da amiga Dona Santa a responsabilidade pela continuidade da
celebração. De acordo com os depoimentos recolhidos identificamos a ausência do Maracatu
Elefante, pois é sabido que Dona Santa deixou registrado o seu desejo de que após a sua
morte o seu “brinquedo” deveria ser recolhido ao museu. Talvez por isso, as informações
recolhidas apontam para a descrição de um momento muito calmo, simples e para poucas
pessoas. Um momento devocional, velado, pois não interessava aos outros a vivência religiosa
das mesmas. Uma religiosidade devocional conhecida pelos mais íntimos e freqüentadores da
casa das Tias. Raminho de Oxossi ao trazer a memória de sua infância vai dizer:
Quando Iaiá cantava, eu dizia, “Iaiá, por que essa música?”, e ela: “essa música
[…] que morreram meu filho, e passaram por aqui” […] Iansã, fazia aquela
evocaçãozinha a egum, e aquilo era rápido, era pequeno. Faziam dez minutos de
silêncio, era uma coisa rápida. Depois, o jornalista Paulo Viana aumentou a história
(OXOSSI, 2003, p. 3).
A fala do Babalorixá Raminho de Oxossi recolhida por Carmem Lélis, no ano de
2003 e repetida para nós em 2008, corroborando a idéia da simplicidade original do evento.
Fato que não acontece na celebração atual, devido a produção realizada e veiculada na mídia.
Ele, assim como a maioria dos depoimentos por nós recolhido, não faz menção à reverência
realizada por Dona Santa e o Maracatu Nação Elefante. Detectamos, apenas, dois
depoimentos que ventilam a possibilidade de tal celebração ser realizada na Igreja de Nossa
Senhora do Rosário dos Homens Pretos, mas também não mencionam o protagonismo de
Dona Santa. São eles:
Desde pequenininha que eu escuto né? […] a 100 anos atrás, na época da finada
Badia, Sinhá, Iaiá. Já é da época delas. E quando eu cresci, desde que eu me entendi
por gente que existia. Eu queria saber o que era a Noite dos Tambores. O que é
isso? Será que é um bocado de tambores tocando? Eu, na minha concepção, e pra
mim era na Igreja do Rosário dos Pretos, […] não sei se era ali. depois que eu
me envolvi com o maracatu foi que eu vim saber, mas já era no Pátio do Terço, não
era na Igreja do Rosário dos Pretos como eu idealizei ser na Igreja do Rosário dos
Pretos. Já era ali (Depoente 5).
[...] era feita para aqueles Maracatus mesmo, de Nação, de tradição, que fossem
para lá, fazer aquilo na frente da igreja, que era pra ser feita em frente a igreja do
27
Rosário dos Homens Pretos, mas acho que ali não tem espaço, então passou a ser
ali, porque ali residia Badia, que era da religião, viveu toda a vida dela ali
(Depoente 7).
Quem irá elucidar definitivamente esse aspecto da localização e mudança de
local da celebração será a pesquisadora L. Menezes ao dizer que:
A Badia e às tias, Dona Santa confiou a continuidade da cerimônia de homenagem
e louvor às forças encantadas (Orixá) e aos espíritos dos ancestrais (Eguns), que era
feita na porta da Igreja do Rosário dos Homens Pretos.
Seis anos após a partida de Dona Santa
14
, essa cerimônia passou a ser chamada a
“Noite dos Tambores Silenciosos” e migrou para a frente da Igreja do Pátio do
Terço. Badia com a ajuda de Edvaldo Ramos e do jornalista Paulo Viana,
mobilizava os meios rituais e os recursos para realizá-la. Por algum tempo a
cerimônia a cerimônia parecia um auto de louvor como uma encenação teatral,
porque a pesada nuvem fria da ditadura militar travava as manifestações afro-
brasileiras com a sua volta. Assim, A Noite dos Tambores Silenciosos ficou
assimilada ao folclore popular por algum tempo não oferecendo perigo à lei e à
ordem do catolicismo conservador, voltando a ter o mesmo caráter mítico na
década de 80, período de maior abertura política (2005, p. 44).
O trabalho da pesquisadora nos apresenta o período de transição do
protagonismo de Dona Santa a Paulo Viana, apontando um posicionamento diferenciado tanto
no que foi apresentado pelos depoentes, quanto das descrições que encontramos na pouca
literatura existente que versam sobre a Noite dos Tambores Silenciosos. Esse fato provoca-
nos a imaginar de quem Dona Santa herdou essa cerimônia e o fato de que não podemos
afirmar categoricamente a idealização desse evento a uma pessoa específica, pois “a
necessidade de afirmar uma origem para os populares não tem relação com uma suposta
verdade do começo dos tempos, mas o fato de que essa origem ressignificada é essencial para
a elaboração das identidades” (LIMA, 2008, p. 160).
A descrição apresentada por L. Menezes, ajuda-nos a tentar compreender o
processo e reelaboração da Noite dos Tambores Silenciosos, pois não se trata de uma
celebração cristalizada e nem é imutável durante a sua existência. Não podemos atribuir com
tanto afinco a idealização da Noite dos Tambores Silenciosos a um indivíduo particular, mas
apenas constatar algumas transformações ocorridas no evento, tanto em sua localização, como
na sua apresentação, permanecendo em sua essência, ou seja, homenagem e reverência aos
antepassados. Trata-se de um evento no qual a medida em que surge um novo protagonista,
entendido aqui como aquele que assume a organização ou a direção da celebração, vai sendo
adaptado mediante as necessidades sociais de cada época.
Dizemos isso devido ao fato de alguns pesquisadores afirmam que A Noite dos
Tambores Silenciosos” foi um evento idealizado pelo jornalista, sociólogo e africanista Paulo
14
Dona Santa morreu em 1962, aos 85 anos de idade. Essa informação nos leva a datar de 1968 o deslocamento
da Noite dos Tambores Silenciosos para o Pátio do Terço.
28
Nunes Viana
15
, na década de sessenta como podemos observar nos escritos da renomada
antropóloga K. Real:
Paulo Viana foi um africanista dedicadíssimo, sempre muito ligado aos maracatus e
aos descendentes dos “negros da Costa” do Pátio do Terço. Ele se orgulhava de ser
um dos poucos jornalistas de cor da imprensa pernambucana naquela época. Foi o
fundador e grande incentivador da emocionante cerimônia ritualística A Noite dos
Tambores Silenciosos naquele Pátio e que ainda se realiza hoje em dia (2001, p.
29).
Outros dois importantes pesquisadores também atribuem a Paulo Viana a
idealização do evento, afirmando:
Paulo Viana, jornalista negro que atuou durante muitos anos no Diário da Noite, no
início dos anos 1960, foi o grande responsável pela organização da Noite dos
Tambores Silenciosos, evento hoje de considerável importância para os
maracatuzeiros. Na atualidade, o evento congrega os maracatus da cidade numa
cerimônia religiosa em que se homenageiam os antepassados, em frente à igreja de
Nossa Senhora do Terço. No Pátio do Terço localizava-se a casa das tias Sinhá e
Yayá, famosas yalorixás e conhecidas carnavalescas, ícones da cultura afro-
descendente no Recife. No início dos anos de 1960 Paulo Viana promoveu uma
série de eventos no Pátio do Terço, e que dariam origem à Noite dos Tambores
Silenciosos, iniciando esses eventos com o encontro entre as yalorixás com Dona
Santa, rainha do maracatu Elefante, “únicas descendentes diretas de africanos ainda
existentes no Recife”. O jornalista, nos anos de 1950, tinha publicado uma série
de matérias sobre os maracatus em que lhes atribui uma série de características que
afirma serem africanas, mas que não se preocupa em comprovar. Paulo Viana fazia
questão de afirmar que confiava mais na tradição oral das comunidades de afro-
descendentes do Recife do que em estudos de intelectuais. Foi nesse sentido que
organizou a Noite dos Tambores Silenciosos. Para lembrar dos ancestrais
escravizados, promoveu espetáculo teatral e convidou maracatus e caboclinhos que
existiam na cidade para participar do evento. Ao longo dos anos, a Noite dos
Tambores Silenciosos se confirmou como um acontecimento central da cultura
afro-descendente, como se fosse da tradição cultural dos maracatus ir ao Pátio do
Terço e prestar homenagens aos eguns, lembrar o tempo da escravidão, como nos
referimos acima (GUILLEN; LIMA, 2007, pp. 42-43).
É fato que Paulo Viana muito contribuiu para a realização do evento, inclusive
denominando-a de “Noite dos Tambores Silenciosos”. Ele, assim como os demais
protagonistas em suas respectivas fases, vai reelaborar a celebração, mas isso não justifica a
atribuição de sê-lo fundador, idealizador da celebração.
15
Paulo Nenês Viana (1922 1987) nasceu no Recife, Pernambuco. Fez o curso primário no Instituto São José,
o ginasial no Colégio Salesiano e concluiu o curso de Sociologia na Universidade Federal de Pernambuco.
Jornalista desde 1939, colaborou nos jornais e revistas recifenses e do sul do país, ganhou vários prêmios de
reportagem. Foi fundador do Sindicato dos Jornalistas, dirigente sindical, presidente da Associação de Cronistas
Carnavalescos, assessor de imprensa, editor de Economia do Jornal do Comércio, redator-econômico do Diário
de Pernambuco, tendo também, participado de vários congressos e recebido a Medalha de Mérito do Recife e a
Medalha Guerrilheiros do Nordeste. Além de numerosos trabalhos publicados em revistas e jornais, Paulo Viana
deixou, inéditos, os livros Subsídios para a História do Carnaval do Recife; Origem, Fausto e Decadência dos
Maracatus e Tradição Oral das Seitas Africanas e as Naturais Distorções do Ritual (MAIOR; SILVA, 1991, p.
303).
29
Mesmo encontrando referências que atribuem ao africanista à idealização do
evento, não podemos descartar que a reverência, o culto aos eguns é um dos elementos
fundamentais e constitutivos do candomblé.
Segundo a tradição iorubá, como parte da vida que transcorre no presente, e numa
dimensão diferente daquela do passado mítico, existe um passado próximo formado
pelos eventos que compõem a vivência particular do indivíduo e que depende de
sua memória pessoal. Os mortos, por exemplo, enquanto são lembrados pelos
parentes vivos, fazem parte desse passado recente que se confunde com o presente
e, assim, participam da experiência presente dos vivos enquanto estiverem vivos na
lembrança dos vivos. Continuam a fazer parte da família, sendo por ela louvados e
alimentados até que um dia possam retornar reencarnados (PRANDI, 2005, p. 34).
Em algumas casas de Candomblés do Recife, ainda são encontrados pequenos
aposentos destinados especificamente ao culto dos ancestrais, denominado de Ilé-ìgbàlè, mais
conhecido como “casa de Balé”. Trata-se de um espaço muito restrito, onde são venerados e
estão assentados alguns eguns, não sendo permitida a entrada de mulheres não é permitido,
devido ao culto aos eguns ser reservado apenas aos sacerdotes masculinos. “Alguns desses
ancestrais representam linhagens, quer que seja da família quer que seja de dinastias reais;
outros são protetores de certas cidades e regiões e alguns, preenchendo funções particulares,
representam diversos aspectos da morte” (SANTOS, 2008, p.118). A forma de culto aos
eguns é bastante diferenciada dos cultos aos orixás, tendo cada um deles rituais e preceitos
que lhe são próprios, não podendo, assim, encontrarmos no mesmo dia um culto aos eguns e
aos orixás no mesmo terreiro. O único orixá que possui uma relação direta com os eguns é
Oyá, por ser considerada a guardiã do mundo dos mortos.
O povo africano tem uma relação tão vital com a morte que, através do culto aos
eguns, o povo de matriz africana “minimiza a existência da morte: faz dela um imaginário que
interrompe provisoriamente a existência da singularidade do ser; ele a transforma em acidente
que só atinge provisoriamente a existência individual, poupando a espécie social” (PRIORE in
ISAIA, 2006, p.34).
O que dissemos até aqui é apenas para demonstrar que o relacionando do afro-
descendente através do culto, da reverência aos ancestrais precede a idealização do evento em
questão, tratando-se de um dos elementos fundantes do candomblé, pois a reverência aos
eguns é que promove a unidade e identidade do clã. É essa unidade reverencial que vai
subsidiar o processo de desenvolvimento e reelaboração da “cerimônia ritualística religiosa”
Noite dos Tambores Silenciosos.
Retomando a leitura cronológica, passemos para o terceiro momento. Quando o
evento começa a ter visibilidade na mídia e a entrar no formato mais social, pois acreditamos
que essa foi a forma encontrada por Paulo Viana para driblar as perseguições, mantendo viva
30
a essência da celebração assumindo um formato mais folclórico e artístico. Durante a
celebração haviam atores brancos que se pintavam, para assim representar os negros e encenar
o poema da autoria do próprio Paulo Viana intitulado Lamento Negro. O referido poema diz:
Há mil anos nasci
Liberto vivia
Nas selvas de lá
Num porão de navio
Me trouxeram pra cá
Seguindo os caminhos
Da onda do mar.
Banzo ê, banzo á
Ele no banzo … lê
Ele no banzo … deá (
16
)
Meu grito de horror
Renovou na floresta
No mundo ecoou
Mas ninguém ouviu
Somente o mar
Quebrando na areia
Comigo chorou
Banzo ê, banzo á
Ele no banzo … lê
Ele no banzo … deá.
Minha vida tão boa
Livre e à toa
O pena transformou
Fui levado de tanga
Pro tronco e pro eito
Deixando escapar
A dor do peito.
Banzo ê, banzo á
Ele no banzo … lê
Ele no banzo … deá.
Muito tempo passou
A senzala acabou
Meu lamento, senhor
Não cessou jamais
16
Acreditamos que esse refrão possa ter sido transcrito erroneamente, pois é clara a semelhança encontrada com
o canto em yorubá apresentado pelo Depoente 3 durante a concessão da entrevista. O que foi cantado e transcrito
para nós por um conhecedor do dialeto yoru, que até afirmou que a raiz da maioria das palavras transcritas
vem do dialeto fon, diz o seguinte: “Banzo è, banzo á, Kerè nu panzuelè, Kerè no seduwá”. Segundo o
conhecedor a tradução mais aproximada do que foi cantado é a seguinte: Banzo ê, banzo á, de doença não se
fala, a doença se cura.
31
Meu peito ainda sangra
Meu pranto se ouve
Nos canaviais.
Banzo ê, banzo á
Ele no banzo … lê
Ele no banzo … deá.
Os maracatus são inseridos no ritual nessa fase, bem como o sistema de som para
amplificação da voz dos envolvidos. Na entrevista concedida à pesquisadora Carmem Lélis e
a Euclides Costa
17
, o babalorixá Monoel Papai
18
, além de informar que a idéia para o
primeiro nome a ser dado ao evento seria “Noite dos Maracatus”, mas como sabemos o
evento irá receber o nome de Noite dos Tambores Silenciosos, denominação que se aproxima
mais de uma perspectiva jornalística, pois de convirmos tratar-se de um título enigmático,
misterioso e ao mesmo tempo intrigante pela possível contradição entre tambores e silêncio.
Mas o babalorixá em questão ao resgatar sua memória vai dizer:
E eu me lembro que Paulo disse a meu pai: “seu Romão, eu queria prestar uma
homenagem também a seu Adão”. Meu pai então disse a ele: “Não. Faça os seus
negócios, mas não envolva o nome do meu pai”. Minha família não aceitava. Paulo
insistiu, voltou a explicar o porquê daquilo dizendo: “olhe, a mãe de Sinhá e de
Iaiá, que era Tia Eugênia, morreu lutando pela cultura, e os delas também
morreram. Então, Pai Adão, Dona Emília, Dona Fulana, Dona Cicrana,...” – eu digo
assim porque não lembro de todos os nomes agora “merecem ser homenageados.
Um minuto de silêncio à meia-noite, com o rufar dos tambores”. (PAPAI, 2003, p.
3).
Dois pontos nos chamam a atenção no relato acima. O primeiro é o
reconhecimento à luta das Tias em preservar a cultura afro na cidade do Recife. O segundo é
o que nós interpretamos como sendo o posicionamento ortodoxo do sacerdote em permanecer
firme junto ao fundamento religioso de que não se pode realizar qualquer reverência aos
eguns na rua ou até mesmo, a negativa para a invocação do egum de seu pai na rua, o que
seria um desrespeito à tradição.
Em outro trecho do depoimento de Manoel Papai, vamos encontrar detalhes
importantes sobre a Noite dos Tambores Silenciosos, quando ele diz:
O Pátio do Terço que era Sinhá e Iaiá (casa das Tias), a Rua das Águas Verdes, que
era Tia Bernardina e o Sítio eram as três casas nagô de Pernambuco. [...] O Pátio do
Terço fazia, a casa de Tia Bernardina fazia... E às vezes se juntavam e faziam no
Sítio. Como determinados clubes carnavalescos faziam, e que eu não vou citar...
17
Conforme material de pesquisa datilografado e base para elaboração dos encartes distribuídos durante a Noite
dos Tambores Silenciosos. O referido material pode ser encontrado na Casa do Carnaval e está a disposição para
pesquisa.
18
Manoel do Nascimento Costa, babalorixá do terreiro Obá Ogunté ou Sítio do Pai Adão como é mais
conhecido por ser um dos terreiros mais antigo em funcionamento na cidade do Recife. Remonta aos finais do
século XIX. Para maiores informações vide Pereira Campos (1994).
32
Então eles faziam suas obrigações para os negros que morreram, especialmente
para os grandes religiosos, e de noite faziam uma festa. Era como se eles fizessem
uma obrigação de manhã e de noite fizessem um toque. De noite era a Noite dos
Tambores Silenciosos. Você saia do terreiro com toda energia dos eguns e levava
tudo isso para uma praça, e aí você não pode deixar de cantar para egum. Não pode
deixar de cantar para os mortos, são toadas diferentes, mas que se cantam nos
terreiros naturalmente. E Paulo, então começou a cantar, ou mandar cantar, e
entraram outras músicas, que não eram toadas. Era muito simples, o cruzamento
das espadas, o toque na porta da igreja... Eu não sei se ele via isso como um sinal
de respeito à igreja ou eles batiam para cortar os mortos, porque muito estavam os
ossos ou foram enterrados... ou a família, seja quem for, estavam ali. (PAPAI,
3003, pp 4-5).
Aqui encontramos mais uma vez o poder religioso atribuído ao Pátio do Terço,
tornando-o o “centro do mundo” para os fiéis do candomblé, pois não se trata apenas de um
espaço físico e geográfico, ele possui um poder altamente simbólico, mítico por excelência e
de referência para todos os terreiros Nagôs do Recife. Detectamos também a primeira
referência à existência dos ritos privados que precedem à celebração pública. Temos a
referência da casas nagô em Recife, das quais duas ficavam no centro da cidade e na mesma
região, pois a Rua das Águas Verdes é uma das ruas que origem ao largo da igreja que até
então nos referimos como Pátio do Terço. As espadas a que o depoente se refere, são as
espadas carregadas pelo rei e pela rainha dos Maracatus de Nação, são referências indiretas da
participação de tais grupos. Um outro ponto a ser destacado, é a introdução de músicas que
estão fora do repertório executado dentro do candomblé; não se trata de um culto religioso,
embora possua a evocação dos eguns, mas uma festa, uma catarse coletiva realizada na rua
com o intuito de extravasar o peso dos ritos privados, embora também seja pesada a evocação
dos eguns na Noite dos Tambores Silenciosos, como vamos detectar mais adiante no
depoimento de “R” ao falar sobre a celebração.
Quando afirmamos que na terceira fase a Noite dos Tambores Silenciosos inicia
seu processo de visibilidade é porque dessa época encontramos registro da quantidade de
pessoas que participavam da celebração, como podemos constatar no seguinte relato:
Na segunda-feira, tive a honra de assistir à dramática Noite dos Tambores
Silenciosos”, em companhia do meu amigo Paulo Viana, fundador daquela
solenidade tradicional no Pátio do Terço. Paulo me levou para saborear o famoso
manguzá de Dona Badia, sobrinha das veneradas “Tias da Costa”, Sine Yayá, e
conhecida “zeladora de santo” no velho casarão da Confraria de São Benedito. Foi
uma visita bem feliz para mim, porque eu recebi ali os abraços de tantos queridos
amigos e diretores das agremiações carnavalescas, inclusive do meu velho
compadre, o Mestre Luiz de França. Ao deixar a festa, reparei que havia tanta gente
no Pátio que eu nem pude chegar perto do Porto Rico do Oriente, mas fiquei muito
emocionada ao escutar de longe, mais uma vez, a bela voz de barítono de Eudes,
cantando a belíssima louvação para Nossa Senhora do Rosário, no adro da Igreja do
Terço (REAL, 2001, p. 128).
33
Esse relato da antropóloga relata sua vivência em poder “assistir a dramática”
celebração em fevereiro de 1977. A celebração havia acontecido e os amigos partilhavam à
mesa na casa de Badia. Detectamos também um outro atributo às Tias, “Tias da Costa”,
revelando a possível origem de Tia Eugênia, a quem acredita ser africana. O mais importe é a
referência à quantidade de pessoas que impediram K. Real de aproximar-se do Maracatu
Porto Rico do Oriente. A Noite dos Tambores começa a ter visibilidade suficiente para atrair a
população recifense.
Não podemos deixar de mencionar o surgimento do Movimento Negro
Unificado em 1978, com seu trabalho de resgate do orgulho e cultura negra e que não aceitava
os atores brancos pintados de negros, acarretando uma certa animosidade entre os
coordenadores do evento e o Movimento Negro e Paulo Viana.
Por fim, o quarto momento Quando o Babalorixá Raminho de Oxossi, por
ocasião do falecimento de Paulo Viana em 1987, assume o evento, sendo o babalori que
assumirá a presidência da celebração em louvor aos ancestrais até nossos dias. Nessa fase as
políticas públicas começam a integrar a organização do evento, apoio que é consolidado no
ano de 2000, ano em que o Pátio do Terço é escolhido para sediar o que será chamado de
“Pólo Afro” na programação do carnaval, pela Prefeitura da Cidade do Recife. Nesse
momento começam as divulgações pela mídia, embora, no terceiro momento também
houvesse, mas nessa fase a divulgação realizada é de cunho exclusivamente cultural e
turístico. Podemos também perceber que hoje, a Noite dos Tambores Silenciosos, é veiculada
como um produto do carnaval multicultural do Recife
19
.
Como iremos realizar uma descrição mais detalhada desta fase no próximo
capítulo, aproveitaremos para tratar de alguns aspectos que são relevantes nesse processo de
construção e reelaboração da Noite dos Tambores Silenciosos.
Uma delas é a ênfase que damos a uma origem religiosa que precede a década de
sessenta e até mesmo às Tias do Terço, não é, em hipótese alguma, desmerecendo a rica
contribuição e formatação dada por Paulo Viana
20
à Noite dos Tambores Silenciosos, a qual
19
Não iremos tratar desse aspecto, embora seja um elemento importante para uma compreensão macro da Noite
dos Tambores Silenciosos e como tal, mereça uma análise aprofundada de todos os seus aspectos. Detectamos
uma certa tensão entre os fiéis entrevistados e a concepção da celebração como espetáculo cultural a ser vendido
pela mídia no intuito de atrair turistas durante o período carnavalesco e que de certa forma recebe apoio de
órgãos públicos aos divulgarem a celebração incorporada a programação carnavalescas ao lado de grandes
espetáculos oferecidos a população recifense.
20
Embora tenhamos encontrado críticas a Paulo Viana, cabe ressaltar que este era também um sociólogo e como
tal soube compreender, através de sua vivência, as relações e as necessidades da comunidade afro-descendente
de seu tempo, buscando dar respostas e principalmente valorizar a cultura afro e sua contribuição para o
comportamento, a crença, as manifestações artísticas, intelectual, econômica e social da história de Pernambuco.
34
atualmente se encontra num outro formato. Efetivamente acreditamos que, como toda
manifestação cultural, a Noite dos Tambores Silenciosos é viva, dinâmica, sujeita a
adaptações e resignificações em suas relações sociais. Inclusive os próprios familiares de
Paulo Viana (esposa e filha) apontam alterações realizadas na Noite dos Tambores
Silenciosos idealizada pelo africanista, como podemos perceber nas transcrições abaixo da
filha e da esposa respectivamente:
O que eu vejo da Noite dos Tambores Silenciosos é totalmente diferente do que era
antes. Eu me lembro que antes como eu já falei, e agora é uma barulhada, uma
reunião de maracatus. Chamam uns trezentos maracatus pra fazer barulho,
misturam com afoxé e dizem que é a Noite dos Tambores Silenciosos, quando na
verdade não é. […] Ali Paulo contava uma história sobre os negros, sobre a
participação deles, como viviam. Ele fazia aquele lamento, os artistas do Teatro
Equipe cantando... Era muito bonito! E depois, depois disso tudo, é que os
maracatus iam saudar a igreja, e começavam o batuque (VIANA, Gercina; VIANA,
Ana Paula, 2003).
Esse momento também passa por modificações em sua estrutura, mas conserva
elementos das fases anteriores. Um exemplo de tal afirmação é a continuidade da reverência
aos eguns pelas Nações de Maracatus, assim como fazia Dona Santa com o Maracatu
Elefante. Diferentemente da celebração que acontece na cidade de Olinda
21
, o evento
realizado no Recife participam do evento apenas os Maracatus vinculados aos terreiros de
candomblé.
No caso mais específico do Maracatu, o próprio Paulo Viana afirma que se trata
de uma das agremiações mais tradicionais do carnaval pernambucano, definindo-o como:
Ritmo negro, trazido da África nos porões dos navios negreiros pelos escravos, que
surgiram nas senzalas, em pleno regime do cativeiro em decorrência da necessidade
dos negros prestarem homenagem a seus antigos soberanos (sobas ou chefes tribais)
reduzidos, como eles, à condição de escravos. Assim, aos domingos e dias
santificados de guarda, aproveitando as horas de lazer, e, de maneira que os feitores
não desconfiassem, entronizavam seus “reis” e passavam a cantar e a dançar ao
redor do “trono”, na mais respeitosa manifestação e apreço, obediência e submissão
aos antigos soberanos (VIANA, 1991, p.312).
Na década de noventa Katarina Real também vai ressaltar a ligação profunda das
Nações de Maracatus com o terreiros de Candomblé, pois “a vida social nas sedes das nações
é quase exclusivamente ligadas aos “santos” (orixás) quer dizer, atividades mais de cunho
religioso do que profano” (1990, p.68). Não podemos esquecer que na formação de todo
21
quatro anos teve início na cidade de Olinda uma reelaboração da Noite dos Tambores Silenciosos. A
celebração acontece, não no mesmo dia, mas também numa segunda-feira. Diferentemente da celebração do
Recife, dela participam os maracatus da cidade, tendo estes, nculo religioso ou não. Um exemplo disso é a
participação do Grupo Carnavalesco Maracatu Nação Pernambuco.
35
cortejo real de uma Nação de Maracatu existe a figura mística da dama do passo que conduz a
calunga e essa traz consigo um ancestral
22
, que recebe oferendas da mesma forma dos orixás.
Porque aquela calunga come como africano, aquela calunga tem nome áfrico,
aquela calunga come como Orixá. Ai, aquela calunga tem mais dentro daquilo ali
do que a rainha. Ali se invoca um morto em cima daquilo ali (Depoente 3).
O valor simbólico da calunga faz com que as Nações de Maracatus sejam
consideradas como elementos de tamanha importância na Noite dos Tambores Silenciosos,
pois trazem consigo alguns dos principais elementos que serão reverenciados na celebração e
que, por sua vez, tem mais importância do que os outros elementos que estão no palco no
momento da celebração, ou seja, o rei, a rainha e o estandarte. A calunga assume, assim, o seu
lugar de honra como elemento profundamente simbólico e que assume a materialização da
ancestralidade de cada Nação de Maracatu.
Nessa perspectiva a Noite dos Tambores Silenciosos nos é apresentada como
uma manifestação “eminentemente coletiva”, geradora de fortes sentimentos de identidade
entre os seus membros que se juntam não apenas para manifestarem sua , mas para criarem
os meios de perpetuar e recriar sua cultura. O que nos leva a defender a idéia de que apesar da
crescente dessacralização da sociedade moderna, a influência social da religião continua a ser
enorme e os acontecimentos religiosos são freqüentemente assumidos como acontecimentos
sociais.
1.4 - Aspectos relevantes da história e seu contexto
Ainda no século passado, a perseguição existia e os cultos afro eram acusados de
charlatanismo e perturbadores da ordem social, sendo vítimas freqüentes de invasões
políticas, ocorrendo até prisões de muitos pais e mães-de-santo. Estamos nas décadas de trinta
e quarenta, especificamente nos governos de Carlos de Lima Cavalcante (1930 1937) e de
Agamenon Magalhães (1937 1945), período em que os terreiros de Candomblé foram
fortemente perseguidos
(GUILLEN; LIMA, 2006, p. 186).
A implantação da ditadura do Estado Novo estabeleceu em 1937, uma rigorosa
repressão policial ao chamado “baixo espiritismo” e, de modo particular, às seitas
africanas. Os “terreiros de Xangô”, a exemplo do que ocorreu com as Lojas
Maçônicas, foram cercados, invadidos e saqueados, altas horas da noite, por grupos
policiais truculentos e os objetos do culto, que não possuíam valor venal, destruídos
22
No Maracatu Nação Estrela Brilhante do Alto José do Pinho existem duas calungas cujos nomes foram
popularizados através das loas que são cantadas pelos “maracatuzeiros” recifenses, são elas: Dona Joventina e
Dona Erundina.
36
ou quando nada entulhados no “tintureiro” (carro transporte da Polícia) e levados
para o prédio do Brasil Novo, antigo Senado do Estado, em meio a zombaria e
galhofas. Móveis e utensílios, inclusive obras-de-arte raras, como ocorreu no
Templo da ´Conciliação`, foram destruídos pelas hordas policiais, não escapando
sequer modestos vasos e apetrechos do Culto africano (REAL, 2001, p. 32)
23
.
Mais uma vez a comunidade afro mostra a sua resistência e criatividade a fim de
ludibriar as autoridades locais. Utilizando-se dos meios culturais, encontrou uma forma de
camuflar seu culto ao invisível. A própria fundação do “brinquedo”
24
Rei dos Ciganos
25
, a
pedido de Dona Santa, foi mais uma forma de culto aos Orixás.
Para ludibriar a perseguição policial do Estado Novo, um grupo de foliões
vinculados às seitas africanas (Xangô), viu-se forçado, em 1938, a fundar uma troça
carnavalesca com o objetivo de, camufladamente, cultuar as divindades negras sem
despertar nenhuma suspeita pois, ao tempo, até os maracatus estavam sendo
observados e farejados pelos agentes do Dops Essa troça, que teve entre os seus
fundadores a figura de Dona Santa do Maracatu “Elefante”, ainda subsiste, com
sede no Pina, e denomina-se “Rei dos Ciganos” (REAL, 2001, p. 31-32).
Essa crônica foi elabora por Paulo Viana e publicada no Jornal do Comércio de
24 de fevereiro de 1968 e vem nos mostrar a habilidade do povo pertencente aos terreiros de
Xangô que, em meio às perseguições sempre encontravam uma saída. A própria antropóloga,
ao transcrever suas detalhadas anotações informa-nos o porquê do nome e os procedimentos
adotados para a festa.
Fundamos o brinquedo em 5 de outubro de 1938 num mocambo em Beberibe.
Naquele tempo, o filme Rei dos Ciganos com o ator José Mojica, um padre
mexicano, passava no cinema, o pessoal gostou muito e decidimos dar esse nome à
Troça com espada de Ogum. Mesmo com a polícia vigiando a gente, tivemos que
fazer as obrigações para os ´santos`. Assim, combinamos um meio de improvisar o
nosso peji. na sede da Troça em Beberibe (que era nosso terreiro), fizemos um
coreto de madeira com uma entrada em baixo para colocar as coisas dos ´santos`.
No dia em que íamos fazer uma obrigação, anunciávamos um baile e convidávamos
os participantes (os colegas da seita) e o público e, às vezes, até a própria polícia.
O povo dançava em cima do tablado, debaixo do qual o peji estava escondido.
Anunciávamos um ´Baile Azul` em dezembro para homenagear Iemanjá e um
´Baile Branco` na Noite de Ano para Orixalá. Fizemos também um ´Baile Rosa`
para Iansã no dia 4 de dezembro. No São João, convidamos o público para dançar o
coco, os bombos ficavam pintados de encarnado e branco para homenagear Xangô.
Em agosto, fizemos outro ´Baile Branco`dedicado a Orixalá para acalmar o Exu.
Também fizemos a Festa de Inhame em outubro em homenagem ao Ifá (REAL,
2001, p. 23).
Com o fim da ditadura do Estado Novo, os terreiros de xangô voltam a abrir suas
portas publicamente, pois a redemocratização do país garantia a liberdade de culto, embora
não os reconhecesse como religião. Não podemos perder de vista que a Era Vargas foi
23
Muitos dos artefatos recolhidos nessa época se encontram em exposição no Museu do Estado de Pernambuco.
24
“Brinquedoé uma expressão utilizada por Dona Santa para denominar seu maracatu, o qual diz que foi
fundado em 15 de novembro de 1800, na senzala de antigo engenho existente no estão Beco do Ferreiro, na Boa
Vista, artéria que hoje se denomina Sete de Setembro. (
VIANA, 1991, p.312).
25
A troça carnavalesca Rei dos Ciganos no ano de 1967 foi transformada no Maracatu Porto Rico do Oriente e
sendo o seu diretor, José Eudes Chagas, corado rei em dezembro do mesmo ano.
37
marcada por um forte catolicismo militante, e que muitos católicos convictos ocupavam
postos públicos importantes.
Um outro aspecto interessante e que, direta ou indiretamente pode ter
influenciado na idealização da Noite dos Tambores Silenciosos, foi o grande movimento de
incentivo cultural na cidade do Recife a partir de 1960, com a realização da I Semana
Universitária de Cultura Popular quando são lançadas as bases do Movimento de Cultura
Popular (MCP) e no estado de Pernambuco, em 1962, com a vitória do candidato a
governador, Miguel Arraes, acarretando a ampliação e o fortalecimento do MCP. Deixamos
claro que não encontramos nenhum indício
de que Paulo Viana fez ou tenha tido algum
contato com esse movimento.
No final de mês de maio de 1960, encontramos um projeto da administração
política municipal que possui cinco objetivos principais para alcançar suas metas de governo
para a educação, são eles:
1) promover e incentivar a educação de jovens e adultos; 2) buscar desenvolver
plenamente as virtudes do ser humano; 3) proporcionar a elevação do nível cultural
do povo; 4) colaborar para melhoria do nível material do povo; 5) capacitar pessoal
para interpretar, sistematizar e transmitir os múltiplos aspectos da cultura popular
(NETO, 1987, p. 240).
Com o MCP houve um aumento qualitativo e quantitativo da educação nas
escolas de Pernambuco, bem como gerou uma oferta bastante significativa de eventos
culturais realizados, pois os trabalhos eram realizados em praças públicas (exposições,
edições de livros, dança, teatro, música), oficinas e cursos de artes que eram ministrados nas
próprias escolas do MCP, sendo o trabalho coordenado por intelectuais e artistas que aderiram
ao movimento.
Na década de sessenta é realizado um levantamento da situação dos maracatus
pernambucanos e o resultado não foi animador, pois foi constatado um declínio de tais
agremiações. Em 1967 havia na cidade do Recife três maracatus, são eles: Cambinda
Estrelada, o Indiano e o Leão Coroado. Por outro lado, se constatava o grande crescimento
das escolas de samba, influenciadas pelo carnaval existente do Rio de Janeiro e que a cada
ano suplantava as manifestações locais (REAL, 2001, p. 19). Sendo assim, percebemos
principalmente na capital pernambucana um incentivo de valorização cultural propiciado
tanto pelos órgãos públicos, como por intelectuais.
38
1.5 - O Pátio do Terço
A Noite dos Tambores Silenciosos hoje é considerado um dos momentos mais
significativos da programação carnavalesca da cidade do Recife. Quem vem participar da
folia na cidade, não pode deixar de testemunhar a esta celebração que ganhou mais
visibilidade com a descentralização do carnaval recifense e o surgimento do “Pólo Afro” no
ano de 2000, na primeira gestão do Prefeito João Paulo. Foi uma política pública criada
apenas para consolidar o que estava consolidado muito tempo por todos os adeptos e
admiradores da cultura afro.
Visão do Pátio do Terço durante a reverência de um maracatu
mirim. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
O Pátio do Terço além de simbólico, ele também é referência na distribuição do
axé pernambucano, já que:
O Pátio do Terço, onde estava situada a Casa das Tias, das quais Badia foi
sucessora, fica numa das partes mais antigas do Recife, o bairro de São José, que
divide com o Bairro de Santo Antônio a ilha de Antônio Vaz, [...] em São José que
se localizavam as casas de santo da segunda metade do século XIX, de cuja
existência tem-se conhecimento por meio de tradições orais. Assim, pode-se supor
que a Casa das Tias, ou a Casa do Pátio do Terço muito freqüentada por nosso
grupo de pesquisadores nas décadas de 1970 e de 80 correspondesse ao modelo
39
mais antigo, para não dizer arcaico, do xangô de Pernambuco (BRANDÃO;
MOTTA, 2002, p. 63).
Apesar do pouco material existente sobre o Pátio do Terço, ele sempre é
lembrado como um espaço em que o sagrado vive intima e veladamente ligado ao profano.
Um local em que, até os dias atuais, vivem em plena harmonia uma igreja do século XVIII,
um antigo terreiro de candomblé, as lembranças das irmandades, o comércio, os saudosos
intelectuais, pesquisadores, foliões e curiosos.
Um ambiente carregado de sentido religioso, conviviam uma igreja a de Nossa
Senhora do Terço e um terreiro. A casa onde viveram as Tias do Terço não era
apenas um lugar acolhedor, onde se bebia, conversava brincava, era também lugar
em que o sagrado e o profano conviviam lado a lado. O espaço se integrava às
pessoas. Estas se integravam às outras. [...] Espaço de festa, espaço da religião, o
Pátio e a casa das Tias contam muito da história da cidade, do cotidiano das pessoas
que ali protagonizaram momentos de suas vidas, momentos importantes com
testemunhos importantes: de um lado os que ali habitavam, o outro, os que
trabalhavam, a igreja que abençoava (e abençoa) suas vidas e o lar das Tias que
proporcionava tanto o conforto religioso, como o espiritual e, através destes, o
ombro amigo para momentos difíceis companheirismo para a celebração do
espetáculo da vida em sua plenitude (MONTEIRO; FEITOSA, 2004, p. 10-11).
Na casa da própria Badia
26
também funcionava a Sociedade de São Bartolomeu,
uma sociedade bastante sincrética pois no sincretismo religioso existente nas figuras
totêmicas de Exu e São Bartolomeu, ambos exercem a mesma função de abrirem os caminhos
e que os pesquisadores não conseguiram definir o que seria essa “sociedade”. Se num
primeiro momento estavam na Igreja do Terço realizando com toda a pompa a missa e a
ladainha em homenagem ao santo seguido de um banquete, em outro também estavam dentro
do peji realizando as obrigações de costume de um terreiro e como é sabido, as obrigações da
casa de Badia eram sempre grandiosas.
Gente de toda classe social se fazia presente, porém todos apresentavam seu melhor
vestuário. Às 21h 15 foi iniciada a ladainha, ora em latim. Ora em grego [“Kyrie
eleison, Christe eleison”], ora em português. Um órgão e um organizado coro
acompanham todo cerimonial. Após a ladainha houve um pequenos discursos
tipicamente político. Por meio deles ficamos sabendo que estava ali presente a Juíza
Perpétua da associação, Dona C. B., residente no Rio de Janeiro e que ofereceu o
banquete, do qual fomos convidados a participar. Tudo muito organizado, com
cozinheiro, garçons, mesa arrumada etc. a diretoria nos disse que recebe
subvenções municipais, possui estatuto e é registrada em cartório. Em teoria
reuniões no dia 24 de cada mês. [...] Badia conversava com o chefe da escola de
26
Badia, em entrevista formal concedida a Maria do Carmo Brandão em 15 de outubro de 1975, declarou que
seu nome de registro era Maria de Lourdes da Silva. Nasceu, sempre segundo suas declarações, em 1915. Casada
sem filhos. Disse com toda ênfase que nasceu, cresceu e morrerá no Bairro de São José. De ocupação, declarou-
se costureira, inclusive do grupo carnavalesco Estudantes de São José. Declarou-se também católica, graças a
Deus. Tem inclusive a devoção do mês de maio. Antigamente tinha muita festa de igreja. Hoje, até os santos se
tiram das igrejas. Nasceu, cresceu e morrerá no santo, isto é, na religião dos orixás (BRANDÃO; MOTTA, In:
SILVA, 2002, p. 63).
40
samba Batutas de São José. O povo comia e bebia. Aproxima-se a meia-noite,
resolvermos ir embora. Falo com boa parte do pessoal, inclusive com Wanda e
Neta, únicas pessoas conhecidas que mantêm uma relação aberta com o xangô. Os
demais são xangozeiros disfarçados. Indiferentes a nossa saída, a festa continua
(BRANDÃO; MOTTA. 2002, p. 68 - 69).
Também foi no Pátio do Terço que temos registrado a coroação de Reis e
Rainhas de Maracatu, na casa de 41, realizada por Dom Isaac Minervino Marbosa Bispo
da Ordem de São Cristovão
27
no dia nove de dezembro de 1967. Os reis e rainhas que
participaram foram do Maracatu Leão Coroado e do Maracatu Porto Rico do Oriente (REAL,
2001, p. 79).
Podemos inferir que o Pátio do Terço não é apenas um espaço marcado por uma
obra de drenagem no período dos holandeses e que depois, tornando-se a entrada para o
Recife para quem vinha do continente; temos que compreendê-lo além de histórico, como um
palco artístico e cultural onde grandes matriarcas do candomblé ajudaram a compor a história
de suas raízes africanas, colaboraram na produção da cultura pernambucana através dos
serviços prestados às agremiações carnavalescas, incentivaram o desenvolvimento da dos
irmãos católicos através de suas liturgias, ladainhas e novenas marianas. Mulheres de fibra,
caráter, coragem e que souberam em meio à escuridão encontrar a luz para vivenciar a sua fé.
Por fim, um elemento que ainda não mencionamos e que é de grande
importância em nossa pesquisa, é o elemento festivo da Noite dos Tambores Silêncios, pois é
um momento de contato, de complemento entre o sagrado e o profano, um momento em que
essas realidades se interpenetram, satisfazendo as necessidades humanas e divinas. Um evento
coletivo que concede e corrobora uma identidade social.
27
Ordem de São Cristóvão, também conhecida como a Igreja Católica Brasileira.
41
2 – O CERIMONIAL DA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS
As religiões procuram organizar suas experiências religiosas e, para isso, criam
ritos, mitos, cerimônias, vestes, utensílios, ambientes que possibilitem aos seus membros
vivenciarem o mistério e, nessa tentativa, acabam por muitas vezes racionalizar
demasiadamente a experiência do sagrado, diminuindo-lhe o seu significado.
Na cultura pernambucana existem muitas manifestações culturais nas quais o
sagrado e o profano coabitam no mesmo espaço. Por serem consideradas em sua maioria
manifestações profanas, velam a dimensão religiosa. No entanto, a maneira como elas são
conduzidas, desvelam essa dimensão da fascinação, do encantamento, de surpresa, do mistério
que apontam para uma realidade maior, específica do sagrado.
No fundo, qualquer experiência humana pode ser sacralizada, continuada na sua
superfície profana, já o caráter sagrado lhe vem do toque de mistério que lhe é atribuído.
Sendo assim, passaremos para a segunda parte de nosso trabalho, descrevendo o
que presenciamos no dia quatro de fevereiro de dois mil e oito na cidade do Recife, dia no
qual aconteceu mais uma celebração anual da Noite dos Tambores Silenciosos e, quando
pertinente, desenvolveremos alguns comentários que venham elucidar o tema abordado.
2.1 – A participação no evento
A programação do Pólo Afro Palco Luís de França situado no Pátio do Terço,
teve início no domingo, dia 03 de fevereiro com o Encontro de Blocos Afro a partir das 17h e
seguido do Encontro de Afoxé. Mas, o momento de grande relevância cultural e foco da nossa
pesquisa, acontece no dia seguinte, sempre às segundas-feiras de carnaval, a partir das 20h, a
Noite dos Tambores Silenciosos.
Embora o nosso foco de pesquisa seja a Noite dos Tambores Silenciosos, nos
deparamos com uma celebração que tem início às 17h e que resolvemos considerá-la, pois
tem o mesmo objetivo da celebração subseqüente e por ter sido mencionada nas entrevistas.
Trata-se de uma celebração que poucos anos foi acrescida à programação da Noite dos
Tambores Silenciosos que é “Programação Infantil Tambores Mirins: rufar dos tambores das
Nações Mirins”. Embora exista certa resistência por alguns integrantes da comunidade afro,
por não verem sentido no envolvimento dos maracatus mirins com a celebração para os eguns.
Não é nosso interesse realizarmos qualquer julgamento a respeito, mas apenas apontar, para
42
sinalizar a falta de unanimidade na programação e concepção do evento em questão, como
podemos perceber na fala do depoente abaixo:
[...] aquilo é um negócio que é feito pelos órgãos que regem o carnaval e que fazem
aquilo que eu acho, podem até me chamar de ignorante, mas eu acho aquilo uma
ignorância […] Tá certo? Porque você não deve de jeito nenhum envolver as
crianças com aquela coisa […] Não existe reinado que tenha uma corte mirim.
Bem, mas criaram né? O pessoal gosta, o pessoal quer fazer. É uma pena porque até
hoje os mirins já estão estilizado, então daqui a alguns anos você não vai ter
maracatus tradicionais, vai ter só mirim, o que eu não apoio (Depoente 7).
Podemos encontrar na fala do babalorixá um certo descontentamento com a atual
organização do evento, como também não uma abertura para o processo de re-elaboração
da celebração no decorrer da história, pois em sua visão não existe uma “corte mirim” que
seja real.
A reverência realizada por um maracatu mirim em frente à Igreja de N. Srª do Terço. Foto de Luiz
Justino, em 04/02/2008
43
Momento em que os estandartes, reis, rainhas e damas do passo de uma corte mirim descem do
palco, após o término da celebração com as crianças. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
Um outro elemento que ressaltamos na fala do depoente é quando ele afirma que
as crianças não devem ser envolvidas com aquela coisa”, existe algo que ainda não é do
domínio das crianças, ou seja, a louvação aos eguns é algo muito sério e pode, segundo as
informações obtidas, ter suas conseqüências como veremos mais adiante.
Conforme a programação estabelecida pela coordenadora do pólo e divulgada
oficialmente pela Prefeitura da Cidade do Recife nos diversos meios de comunicações
existentes. Ela não é menos importante do que a celebração ocorrida posteriormente, pois
encontramos na fala das Ialorixás Maria Helena e Lúcia dos Prazeres, que são as que
presidem a celebração, uma preocupação em seguir o mesmo ritual destinado aos adultos e ao
mesmo tempo a sutileza pedagógica em explicar passo a passo toda a liturgia. Embora haja
uma preocupação das yalorixás responsáveis pela presidência da celebração em seguir o
mesmo ritual litúrgico que será desenvolvido com os adultos a meia-noite, elas ampliam o
ritual ao evocar os orixás mais significativos e conhecidos pelo público presente.
44
As yalorixás Lúcia dos Prazeres (em primeiro plano) e Maria Helena (ao fundo) durante a
celebração. Podemos detectar os ilús utilizados na celebração durante a evocação aos orixás e a
reverência aos eguns. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
45
2.2 Desenvolvimento das celebrações
Tambores Mirins Noite dos Tambores Silenciosos
Horário previsto Início às 17h Início às 20h
Local
Pátio do Terço
Pátio do Terço
Demanda
Grupos mirins de maracatus;
As Nações de Maracatu de baque
virado;
Infra-estrutura
Rua;
Palco;
Sistema de som;
Cerca de metal para delimitar o
espaço entre o público e os
maracatus mirins.
Rua;
Palco;
Sistema de som;
Jogo de luz;
Cerca de metal para delimitar o
espaço entre o público e as
Nações de Maracatu.
Participação do público
Aproximadamente 300 pessoas;
Devido ao caráter altamente
pedagógico da celebração, o
público acompanha toda a
celebração atentamente.
Milhares de pessoas;
Percebemos uma falta de
sintonia entre a maior parte do
público presente ao decorrer da
celebração. Acreditamos que seja
pela falta de conhecimento do
que está sendo celebrado.
Presidentes principais
Duas yalorixás:
o Mãe Maria Helena
o Mãe Lúcia dos Prazeres
Um babalorixá
o Tata Raminho de Oxossi,
auxiliados por outros
babalorixás e yalorixás.
Participação dos maracatus
Breve;
Reverência realizada antes e
após a evocação;
Participação de 13 grupos;
Mais prolongada;
Reverência realizada antes e
após a evocação;
Participação de 23 Nações
Evocações realizadas
Exu;
Ogum;
Oxossi;
Omulu;
Ibeji;
Oxum;
Oiá;
Egum;
Oxalá.
Oiá (ou Ian);
Eguns;
Oxalá;
Execução dos Cantos
Todos em yorubá.
Todos em yorubá.
Rito
Reverência dos grupos de
maracatu mirins;
Suspensão das reverências às
18h;
Evocação aos orixás;
Preces;
Soltura dos pombos;
Continuação das evocações;
Exortação religiosa;
Resgate da memória das rainhas
de algumas Nações, já falecidas;
Canta-se uma loa;
Benção para o público presente.
Reverência das Nações de
Maracatus;
Suspensão das reverências a
meia-noite.
Evocação de Oiá;
Evocação dos Eguns;
Soltura dos pombos;
Exortação religiosa;
Evocação de Oxalá;
Continuidade das reverências das
Nações de Maracatu
Encerramento do evento
As 18h40min
Aproximadamente às 4h do dia
05/02/2008
46
2.3 Leitura do desenvolvimento das celebrações
A partir das 17h os maracatus mirins iniciaram, um após outro, seu cortejo e
reverência diante da Igreja de Nossa Senhora do Terço. Nações pequenas em comparação aos
maracatus que irão realizar seus cortejos durante a noite, mas não menos empolgados e
envolvidos com a celebração.
Os maracatus mirins que se apresentaram naquele final de tarde foram:
Maracatu Nação de Oxalá,
Maracatu Nação Erê,
Maracatu Semente da Nação,
Maracatu Nação Novo Pina,
Maracatu Nação Peixinhos,
Maracatu Cambinda Africana Mirim,
Maracatu Nação Estrelar,
Maracatu Nação dos Vunginhos,
Maracatu Filhos de Olorum,
Maracatu Nação Cambinda do Amanhã,
Maracatu Nação Estrela do Mar,
Maracatu Mirim Encanto da Alegria,
Maracatu Nação Porto Rico Mirim.
Nos intervalos entre uma reverência e outra, sempre se ouvia falar pelos alto-
falantes frases do tipo a partir daqui os maracatus não vão parar”. Ao referirem-se aos
grupos, diziam que se tratava da preservação e continuidade da tradição
28
. Era visível a
importância daquele primeiro momento para os organizadores do evento e de alguns
Babalorixás e Ialorixás que acompanhavam os seus grupos mirins, ou melhor, seus
protegidos, pois era a esperança da continuidade de sua Nação e alguns deles viriam a se
juntar aos grupos adultos na apresentação no que designamos “segundo momento”.
Às 18h interrompeu-se a seqüência das apresentações dos grupos para dar início à
celebração com as crianças e o público presente. As ialorixás serviam-se de técnicas
rememorativas para apresentar cada Orixá que era invocado numa linguagem simples e de
fácil compreensão por parte não só das crianças, mas por todos os presentes.
Conforme o ritual afro realizado, o primeiro a ser invocado foi Exu por se tratar do
mensageiro dos orixás, aquele que abre os caminhos e foi responsável pela transmissão das
28
Frases proferidas por Amauri Cunha que estava como apresentador da noite mirim no dia do evento.
47
músicas dos orixás os homens”; Logo em seguida houve a sudação a Ogum o “orixá do metal,
metal esse que compõem a música dos orixás”; Chegou a vez de Oxossio orixás da
prosperidade, da fartura, da comida, que não falte comida para todas as crianças, para todos
nós”; Omulú orixá da curafoi outro invocado naquele momento, o qual foi pedido um
rufar dos tambores especial em sua homenagem sinalizando respeito e admiração; Chegou o
momento dos Ibej, uma qualidade infantil do orixá que “foi convidado a conviver conosco em
meio às crianças”, enquanto se cantava aos Ibejis foram entregues as Ialorixás o casal de
pombos brancos e as mesmas convidaram a todos a fazerem seus pedidos de bênçãos para
nossas crianças, para que tenham saúde, forças para dar continuidade à cultura. Que
Olorum receba os pedidos!” Nesse momento foram soltos os pombos e escutamos o rufar dos
tambores; Saúdam Oxum, aquela que acolheu todas as crianças”; Convidam Iansã, ela que
espalhou as folhas de Ossaim enquanto ele dormia, pois achava que todos os orixás deveriam
ter conhecimento das folhas e cada orixá pegou um pouquinho”, daí o sentido de que cada
orixá tem suas folhas”; Por fim, foi convidado Oxalá aquele que traz a paz, a alegria e sem
alegria não há Candomblé. Que essas crianças compreendam a caminho que devem seguir”.
Para finalizar a celebração, a Mãe Lúcia dos Prazeres diz: é chegado o momento
de guardarmos no coração esse momento de itan
29
, um momento de muita felicidade”. a
Mãe Maria Helena faz memória de algumas rainhas dos maracatus e pede que os maracatus
mirins que estão presentes se unam numa única “loa” para homenagear essas famosas rainhas.
A loa que foi entoada diz:
Nagô, Nagô, nossa rainha já se coroou (bis)
Nagô, Nagô, Nagô, nossa rainha já se coroou.
Nagô, Nagô, Nagô a nossa rainha já se coroou.
Muito axé para todos!” Este foi o pedido do apresentador do evento que nesse
momento retoma sua participação e aproveita para dizer: Tamborzinho Mirim, apoio da
Prefeitura da Cidade do Recife, pois a grande obra é cuidar das pessoas”. Em seguida ele
convida os grupos que ainda não se apresentaram para subirem ao palco, o que acontece até às
19h e 10 min, quando se por encerrado esse primeiro momento, pois o Maracatu Nação
Leão Coroado estava no espaço reservado à concentração das nações que iriam participar
da celebração.
Até então, o público era pequeno e ainda se dava para transitar com tranqüilidade
pelas ruas estreitas que circundam o local da celebração no bairro de São José. Pouco a pouco
as pessoas iam chegando timidamente para não apenas assistir a celebração, mas pelo que
29
Itan – história ou lenda que conta a origem de alguma coisa (BERKENBROCK, 1999, p. 443).
48
podemos constatar, a maioria dos presentes participa, interagem com esse momento místico e,
para isso, era necessário conseguir um local, o mais próximo possível da estrutura montada
para dar suporte e uma maior visibilidade à celebração. As 20h não se encontrar um bom
local para se posicionar e às 23h era praticamente impossível qualquer locomoção. Nesse
momento, os organizadores anunciavam a situação ao redor do palco Luís de França e pediam
para que as pessoas não se aproximassem, podendo elas “participarem” através dos telões
colocados nas proximidades. Mas esse aviso não era respeitado pelo público que desejava
receber as bênçãos, o axé distribuído.
Conforme a programação da Prefeitura da Cidade do Recife em anexo, as Nações
de Maracatus de Baque Virado que iriam participar naquela noite seriam:
Maracatu Nação de Luanda,
Nação do Maracatu Elefante,
Nação do Maracatu Encanto do Dendê,
Maracatu Encanto da Alegria,
Nação do Maracatu Estrela Dalva,
Maracatu Axé da Lua,
Maracatu Nação Sol Nascente,
Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu,
Maracatu Almirante do Forte,
Nação do Maracatu Porto Rico,
Maracatu Cambinda Estrela,
Maracatu Nação Gato Preto,
Maracatu Nação Leão Coroado,
Maracatu Linda Flor,
Nação do Maracatu Estrela Brilhante do Recife,
Maracatu Leão da Campina,
Maracatu Nação Raízes Pai de Adão,
30
Maracatu Encanto do Pina,
Maracatu Nação Oxum Mirim,
Maracatu Nação Aurora Africano,
Maracatu de Baque Virado Campina Africano,
Maracatu de Baque Virado Nação Tupi Nambá,
Maracatu Nação Estrela de Olinda.
30
Esse grupo não compareceu ao evento.
49
As apresentações têm início com um pequeno atraso e a ordem das apresentações,
assim como as Nações Mirins, era a ordem de chegada na concentração
31
. O Maracatu Nação
Leão Coroado foi o primeiro a se dirigir ao palco colocado estrategicamente no ádrio da Igreja
de Nossa Senhora do Terço com toda sua corte imponente e colorida.
Todas as nações queriam fazer uma bela apresentação e os que não
“conseguiam”
32
fazê-la, pediam desculpas ao público presente. Em todos os grupos havia a
participação de crianças algumas delas tinham se apresentado anteriormente com os grupos
mirins e em alguns maracatus havia a participação de deficientes físicos. Era perceptível em
todos os grupos o sentimento de pertença a uma comunidade, a uma Nação, de uma cultura
arraigada ao ser de cada componente e isso era comprovado em cada gesto, em cada toque,
em cada atitude, em cada loa.
Aproximava-se das 24h, e o Maracatu Estrela Brilhante havia iniciado sua
reverência. Após alguns minutos, o “mestre de cerimônia” solicita que a Nação interrompa
sua reverência, pois é chegado o momento esperado por todos. O Babalorixá Raminho de
Oxossi é convidado oficialmente a se fazer presente no palco, bem como todos os reis,
rainhas, estandartes e calungas das Nações de Maracatu que estão presentes
33
.
Os componentes da Nação do Maracatu Estrela Brilhante do Recife permaneceram
no apertado espaço reservado para a celebração, o que fazia que o local se tornasse menor do
que é na verdade. Com muita dificuldade os personagens régios se posicionaram para dar
início à celebração.
As luzes se apagam e o colorido das Nações lugar à penumbra da Noite. Nesse
momento não se percebe quem é branco, negro, amarelo. A partir de então, todos são um, uma
mesma Nação, um mesmo povo, uma mesma comunidade que se reúne para reverenciar seus
antepassados e receber o axé através da imposição das mãos dos babalorixás. O público que
se manifestava apenas pelos contidos aplausos, transformam-se em fieis eufóricos
expressando-se através de uma mistura de aplausos, braços estendidos, gritos e flashes
fotográficos intensos, pois interessa não apenas receber o axé, mas eternizar esse momento.
Diferentemente da celebração com as crianças, Raminho de Oxossi inicia a
celebração evocando em yorubá a Orixá Oiá, considerada a deusa dos mortos. Com a
31
A 1h40min do dia 05/02 ainda havia grupo chegando para participar apenas da apresentação ao público ainda
presente, pois a celebração já havia terminado.
32
Durante a apresentação algumas batucadas desafinavam ou os mestres por terem pouco tempo de integração
com o grupo que regia, fazia menção ao grupo que participava anteriormente, criando assim reclamações em
público e animosidade dentro do grupo.
33
Da lista apresentada anteriormente nem todas as Nações de Maracatus participam da celebração. Algumas
delas por não terem chegado, pois estão desfilando em algum outro lo carnavalesco ou por não concordarem
com os procedimentos dos organizadores, embora elas realizem a reverência aos eguns, mas não participam da
celebração.
50
presença espiritual de Oiá, são reverenciados os eguns. Em seguida é entregue ao Babalorixá,
que preside a celebração, um casal de pombos brancos que, após um breve momento de
silêncio, são elevados acima da cabeça e soltos. Os fiéis aplaudem, gritam, manifestando sua
comunhão naquele momento. Por fim, são cantadas músicas para Oxalá. Aqui ressaltamos a
participação do público que está mais próximo ao palco, pois em sua maioria chegaram por
volta das 20h, garantindo um bom lugar para participação da celebração. Conforme podemos
verificar na foto abaixo, o público é bastante diversificado e em sua maioria são religiosos.
Essa religiosidade é expressada através de gestos corporais, comportamento, na concentração
no decorrer da celebração e esse público que mencionamos se difere das pessoas que estão
mais afastados do palco.
Participação efetiva do público na celebração da Noite dos Tambores Silenciosos. Foto de Luiz
Justino em 04/02/2008.
51
Momento em que o Babalorixá Raminho de Oxossi canta em yorubá evocando Oiá e logo em
seguida reverencia os ancestrais. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
O Babalorixá Raminho de Oxossi (ao centro) cercado de outros babalorixás que se fazem
presente a celebração. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
52
Ao contrário do que presenciamos no momento com as crianças, nada é explicado
e em meio à escuridão todos os ali presentes e atônitos são orientados apenas pelos cantos, os
sons produzidos pelos ilús, e pelas poucas palavras pronunciadas pelo Babalori Raminho de
Oxossi durante a celebração. Para nossa surpresa, as alfaias dos Maracatus são tocadas apenas
no final da celebração, com um rufar majestoso produzido por centenas de alfaias, pois
durante as duas celebrações que presenciamos, são utilizados os ilús provenientes dos
terreiros de candomblé, instrumentos estes utilizados nos cultos religiosos.
Os ogans e os ilús durante a celebração. Foto de Luiz Justino em
04/02/2008
53
A soltura do casal de pombos durante a celebração. Momento muito aplaudido pelos participantes da
celebração. Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
Visão mais ampla do palco onde acontece a celebração. O babalorixá Raminho de Oxossi cercado
por outros babalorixá e integrantes do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife. Foto de Luiz
Justino em 04/02/2008.
54
A Yalorixá e Rainha do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife D. Marivalda.
Foto de Luiz Justino em 04/02/2008
Fim da celebração e saída do Pátio do Terço do Maracatu Nação Estrela Brilhante de Recife. Foto
Luiz Justino em 04/02/2008.
55
A celebração termina, as luzes são acesas e os fiéis fervorosos em meio à
penumbra dão lugar ao curioso participante. O Babalorixá Raminho de Oxossi ainda
permanece no palco com outros babalorixás, yalorixás e os ogans
34
que foram responsáveis
pela percussão que acompanhavam todos os cânticos entoados. Eles se cumprimentam, posam
para fotos e aos poucos vão se retirando do palco. Enquanto isso, os componentes da Nação
que havia iniciado sua apresentação um pouco antes da celebração, retoma sua reverência.
Presidente da celebração o Babalorixá Raminho de Oxossi.
Foto de Luiz Justino em 04/02/2008.
34
Função atribuída apenas aos fiéis do sexo masculino que são responsáveis pela percussão durante as
celebrações religiosas.
56
Lentamente o público, que estava completamente aglomerado, vai se dispersando e
pouco a pouco podemos encontrar mais facilidade para transitar pelo local. Muitas pessoas
permanecem até a apresentação da última Nação, por volta das 4h da manhã e o profano
“retoma” o espaço que lhe é característico e que, por alguns momentos, foi palco reservado
apenas à manifestação do Sagrado.
2.4 Aspectos relevantes do ritual da Noite dos Tambores Silenciosos
A Noite dos Tambores Silenciosos aparenta-se como um ritual muito simples, mas,
aos poucos, vamos identificando a sua complexidade, tanto no que visível e, principalmente,
nos aspectos que são velados, mas discutidos por e entre os envolvidos na organização da
Noite.
Embora não tivéssemos encontrado nenhuma resistência durante o processo das
entrevistas, percebemos um certo receio, ou melhor, um certo cuidado nas palavras. Era
visível o zelo pela religião, bem como a preocupação para não haver interpretação por
nossa parte. Esclarecimentos preciosos dados pelos sacerdotes e fiéis sobre o ritual que
transcreveremos a seguir.
O início da Noite dos Tambores Silenciosos ele invoca o Orixá Penha, que é Iansã,
que é o Orixá que permeia todos os espaços, em todos os tempos, e depois ele canta
propriamente para eguns, em yorubá […] E que no momento em que ele está
falando em yorubá, ele está invocando os eguns que estão por perto no momento,
que estão sendo abalados no momento, né? Para que protejam o acontecimento da
festa, uma festa que é em relação, é..., que as festividades é em relação a eles e que
no final da... da louvação ele fecha com músicas voltadas para outros Orixás, que é
no caso... ah!... Orixalá, que é o último da... da corrente, né? De Orixás e que é
Orixá pai de todos os Orixás e ele fecha todo o contexto de... de que Oiá, egum e
Orixalá. Ele não trata de todos os Orixás no momento, porque nem todos Orixás
têm proximidades com os eguns, com Oiá, os próprios eguns, que estão a partir
do Orixá e Orixalá que é o Orixá pai. Então, com esse Orixá, como não pode
acontecer nada, então ele fecha com o Orixá (Depoente 1).
Olhe, o problema pra egum é guardado, agora ali a gente ali só, faz a parte do
guerê. Convidar eles porque lembrou aquela época que a gente ta lembrando,
aquela segunda-feira que eles sofriam ali. Que era uma segunda-feira e que eles iam
pra li e morriam, ali eles festejavam, passavam fome, ali eram vendidos.
aproveita tudo. A gente também, não, não a gente convida o egum, mas o principal
do egum a gente não faz não. […] Invocar o egum, isso é normal. É, invocar os
eguns e agradecer a eles porque estarmos vivos, né? Somos descendentes de eguns
ainda e Iansã afastar os mortos para que nada aconteça no carnaval, o carnaval seja
bom (Depoente 3).
Então, a cerimônia acontece desde o primeiro momento em que o primeiro
maracatu chega, às oito horas da noite, a partir das oito horas começa o desfile para
os eguns, mas eu diria a reverência. A reverência e a cerimônia é... o maracatu
entra, ele vai fazer a sua cerimônia, a sua reverência na frente da igreja e ele volta.
57
A reverência é essa. A cerimônia é um ritual, né? É uma seqüência de louvações, de
cânticos, de músicas de candomblés para os eguns, só isso, nada mais (Depoente 4).
Na rua tem aquele momento ali. Então vonão poderia chegar ali, como a
oficialização das coisas é em frente, entorno dos ancestrais, então você não poderia
chegar ali e cantar toadas dos Orixás. Ta certo? O único Orixá que se permite que
se cante ali é Iansã, porque é quem toma conta dos eguns e do carnaval como um
todo. Então é o único Orixá que se canta na hora é Iansã e o resto são recados dos
eguns (Depoente 7).
Nós podemos encontrar na fala desses quatro adeptos do candomblé um
pleno conhecimento da celebração em seu todo. Alguns, por terem mais idade, remontam às
lembranças distantes factuais ou não mas todos são unânimes na corroboração da
simplicidade do ritual e, ao mesmo tempo, eles revelam a existência da realização de ritos
privados, praticados pelos fiéis em momentos que antecedem a Noite dos Tambores.
Identificamos também a importância da participação de Oiá durante a cerimônia, Orixá que
recebe, dentre outras, a função de conduzir os mortos, como podemos encontrar na narração
de alguns mitos encontrados sobre essa relação de Oiá e os mortos. Detectamos também que a
cerimônia trata-se de um pedido de proteção, paz aos antepassados, petição que chega ao
cume com a soltura dos pombos e os cânticos dirigidos a Oxalá.
Sobre a existência e significação dos pombos durante a cerimônia, um dos
depoentes vai informar:
Aqueles pombos são a evolução do tempo. Porque os bombos pertencem a Deus, os
pombos pertencem a Oxalá. Oxalá é o deus da verdade. a gente pega aqueles
pombos pra Oxalá levar tudo em paz e o carnaval ser bom, não é? Não pra mim,
mas pro povo que está brincando. (Depoente 3).
Então poderíamos conceber o rito da Noite dos Tambores Silenciosos como
um momento bastante compacto, mas de grande valor simbólico no qual o egum é trazido por
Oiá para receberem, coletivamente, a reverência das Nações, os agradecimentos dos fiéis e ao
mesmo tempo, abençoarem cada participante, através do axé emanado pelo presidente da
celebração. Mas, ao mesmo tempo, é pontuado na fala dos depoentes que existe um ritual que
precede a celebração blica, ou seja, existem os ritos privados que são realizados pelos
babalorixás e yalorixás responsáveis pela direção espiritual de cada Maracatu Nação.
Ao abordarmos sobre a existência dos rituais privados ou preceitos fechados,
nos deparamos com a seguinte realidade:
Os eguns eles não são cultuados em rua. Para que o Babalorixá ao palco fazer
aquela louvação para os eguns é porque na casa de candomblé ele fez todas as
obrigações fechadas, se chama preceitos fechados, com todas as pessoas que vão
estar participando do ritual. Então, à casa de candomblé é chamado as pessoas mais
antigas, onde é feito todas as obrigações para egum, porque nem todas as casas elas
cultuam eguns, elas fazem obrigações pra os eguns por conta dos Orixás e por conta
de pessoas que já morreram, mas é tudo fechado nas casas de candomblé e quando
eles vão ao palco, eles vão ao palco, eles vão paramentados, que isso os protege pro
que possa acontecer e o que eles fazem é fazer a louvação, cantam pra eguns em
58
yorubá, onde muita gente conhece, mas muita gente também não conhece, ele
que sabe o que está dizendo e o que está falando. Canta pra Oiá, porque Oiá é o
Orixá onde entra em todos os lugares, cemitérios, né? Então ele trata de todos os
eguns, então eles cantam pra Oiá que é o Orixá fêmea, que é Iansã e aí passam falar
em yorubá, tratando das questões dos eguns no palco, mas, obrigatoriamente, não se
trata abertamente, em rua dos eguns. [...] mas antes de acontecer a louvação
propriamente dita, fazem obrigações fechadas, até chegar ao palco, onde não se faz
nada mais em despachos ou coisas parecidas, porque existe pessoas que não são do
santo, né? (Depoente 1).
Olhe, todos os grupos, eu acredito que todos, que todos eles têm os seus dias de
rituais, e passa uma semana resguardando, os cabeças do grupo, não é o maracatu
todo. Os cabeças principais têm o resguardo, têm a obrigação, entendeu? Te..., m
as oferendas e no dia dos Tambores os cabeças que participa de obrigação com
certeza eles tão resguardados, tanto sexualmente como de bebida, pra poder
pertencer à Noite dos Tambores, que na medida que você é da religião e é invocado
os eguns, entendeu? Ali pode haver tudo. Então tem, que ta todo mundo preparado,
eu digo que o maracatu inteiro, até porque o maracatu não é povo da religião,
existem as pessoas que não é da religião e que m direito a participar. [...] Na rua
eu..., eu pelo menos eu costumo fazer o seguinte: quando saio da minha casa no dia
dos Tambores, que saio, faço a preparação no meu barracão antes, faço a invocação
antes, entendeu? Com os meus ogans que participam (Depoente 4).
Não, eu não faço antes da Noite não. Eu faço na sexta-feira da carnaval, antes do
carnaval, tudo né? Então ali eu saio domingo, segunda e terça, eu estou 3 dias na
rua, então eu trabalho numa sexta-feira pra guardar todo aquele povo durante os três
dias. (…) É um ritual que a gente faz de preparação, entendeu? De pedido, de
coisas boas, que os Orixás tomam conta, dêem conta, que a gente não passe nada de
mau, (…). Talvez eu tenha preparado o meu maracatu e tal maracatu, “que nada,
não vou fazer nada”, então eu estou preparada e eles não. Então a gente não pode se
misturar (Depoente 5).
A preparação ela não é feita especificamente para você ir para a Noite dos
Tambores, mas no…, eu não sei os outros, certo? Eu mesmo a partir do dia dois de
novembro, que é o dia consagrado aos ancestrais né? Dia de finados. Então eu faço
as minhas oferendas às calungas no dia de finados, que elas representam um egum e
tal, alguns dizem que representam um Orixá e tal, mas não é não, ela para ser um
Orixá ela não tinha um nome íntimo à pessoa e a coisa, a matéria. Então, a…, a
coisa e feita por aí, porque a…, as oferendas são feitas assim, não é especificamente
para Noite dos Tambores e assim, é uma preparação para o carnaval como um todo.
A que é feita para os Tambores é aquela que é no dia de finados, porque é
diretamente para os eguns. . (Depoente 7).
Porque pra gente os eguns é ele que..., que..., que faz a ligação com Orum, né? Ele
que abre o caminho pra coisas boas. Então, é..., todo..., tem anualmente uma
obrigação pra egum do terreiro, que é o egum da casa, a ancestralidade que toma
conta do..., do culto daquela casa, mas todas as vezes que a gente vai fazer oferenda
pra Orixá, a gente primeiramente aos eguns porque ele que faz a ligação com
Orum. (Depoente 8).
Realmente não existe um culto aos eguns na rua, pois o que observamos se
diferencia do que é apresentado na obra de J. Elbein, Os Nagô e a Morte, como citamos
anteriormente, que apresenta detalhadamente a forma do culto aos eguns, com seus
sacerdotes, locais, indumentárias, templos específicos. Embora o objetivo da Noite dos
Tambores Silenciosos nos aponte para um desejo humano de unir o mundo dos vivos e o
mundo dos mortos, pois
59
O africano, pro sua vez, minimiza a existência da morte: faz dela um imaginário
que interrompe provisoriamente a existência da singularidade do ser; ela a
transforma em acidente que atinge provisoriamente a existência individual,
poupando a espécie social. Daí a crença na onipresença dos ancestrais, na
manutenção do fhylum clânico graças à reencarnação etc. O procedimento lhe
permite não apenas aceitar e assumir a morte, mas também ordená-la melhor,
integrando-a ao seu sistema cultural. (PRIORI in ISAIA, 2006, p.34).
O que encontramos no ritual realizado é justamente essa integração entre o orum e
o aiyé
35
uma integração entre os vivos e aqueles que fizeram sua história, uma demonstração
de que aqueles ancestrais permanecem vivos no meio social e a comunidade se une para
fortalecer esse vínculo, numa noite de alegria verdadeira que unifica a existência da vida aqui
e no além, onde os eguns também brincam, pois os escravos negros e seus ascendentes
souberam, em meio ao sofrimento, manter viva a sua alegria através de suas festas. Essa união
a qual nos referimos na Noite dos Tambores Silenciosos, como podemos observar na própria
celebração e nos depoimentos transcritos acima, termina com a benção, a evocação de Oxalá
o “que simboliza um elemento fundamental do começo dos começos, massa de ar e massa de
água; um dos elementos que deram origem a novas formas de existência à protoforma e à
formação de todos os tipos de criaturas – no àiyé ou no órum” (SANTOS, 2008, p.75).
Talvez seja por isso que um dos depoentes compreenda que as crianças ou as
Nações Mirins não deveriam participar desse momento que também passa despercebidos para
todos que compreendem a Noite dos Tambores Silenciosos como um momento da cultura
afro-brasileira em Pernambuco. Talvez não haja a compreensão de que a presença das Nações
Mirins seja realmente uma estratégia da continuidade, como falava o apresentador do evento,
e o relato de uma das depoentes envolvida na organização do evento:
O objetivo da Noite dos Tambores Mirins é dar continuidade à Noite dos Tambores
Silenciosos, né? A Noite com os Tambores Mirins foi idealizada, criada em 2002,
na perspectiva de..., existiam vários grupos de escolas e também de maracatus que
tinham é..., é esse mirim e juntar essas crianças num ritual que elas começassem...,
começassem a entender o que era a cerimônia da Noite. E aquilo vem crescendo,
né? A cada ano, então, é nessa perspectiva (Depoente 4).
Sendo assim, deparamo-nos com uma preparação, uma espécie de técnica
rememorativa para as crianças, como também dos adultos que se fazem presentes e não
imaginam que desse momento emana o axé. Embora exista essa preocupação, que é louvável,
ela não é compatível com a ênfase dada pelo depoente ao defender que as crianças não
poderiam participar desse momento. Será apenas por não existir uma corte mirim ou teriam
algo que não é revelado durante o evento, mas captado durante as entrevistas.
35
Termo em yorubá que significa a existência nos dois planos da existência humana o mundo do além e o
mundo material (Cf. SANTOS, 2008, p. 72).
60
Aqueles que vão com o intuito de fazer as coisas desejada, certo? E que se
preparam e que vão, é uma coisa; e por outro lado fica muito ruim porque muita
gente que não entende, nem o que é aquilo, não sabem o que é, vão por livre e
espontânea vontade, porque o negócio e meio sério e a gente fica com medo do que
pode vir de revolta dos eguns e complica tudo. [...] É sustentar aquilo dali, viu?
Um Babalorixá cantar pra Egum... pessoas bebendo, fumando e segurar pra num dá
uma briga... (Depoente 7).
Eu vi, quando eu tava em cima, eu fui uma das que cheguei primeiro e eu vi uma
pessoa passar mal, que foi no microfone que o... que o rapaz chamou, que foi até o
marido de Rose que tava no microfone que chamou o... pra eles é... atenderem a
moça que tava passando mal desse lado e eu vi em cima. Ali não é o lado
passar mal pela quantidade de gente também porque depois eu... eu vi que ela ficou
bem. eu olhei, me levantei da cadeira que eu tava sentada, pedi que se fosse
algum deles que tivesse perto que se afastasse um pouco pra eu não pensar que tava
passando mal, entendeu? E... eles... atenderam ela, depois eles... ela voltou,
entendeu? (Depoente 2).
Rapaz, eu acho que a manifestação do pessoal ali e que não estão bastante
concentrado nas coisas. Começam a beber, começam a fumar, começas alguma
coisa..., o pensamento fraco, o egum que vai passando encosta na pessoa
(Depoente 3).
Na perspectiva apresentada pelos depoentes podemos buscar compreender, não a
resistência à participação das crianças, mas o instinto paternal de proteger aqueles que irão
presidir futuramente o ritual público que busca unir o àiyé e o órum.
Também é identificado que embora não se trate propriamente de um rito privado
para os eguns, um elemento indispensável é a preparação que cada um dos participantes deve
fazer para participar desse momento. Isso é enfatizado na fala dos depoentes ao comentarem
sobre as pessoas que beberam, fumaram ou tiveram relação sexual. Fica claro que mesmo
numa celebração pública, como é o caso, é necessário que se esteja preparado, purificado, ou
utilizando à mesma expressão dos adeptos do candomblé, é necessário que as pessoas
“estejam de resguardo”, pois ali pode haver tudo.
Então tem, que ta todo mundo preparado
”.
Por outro lado, encontramos alguns casos em que as Ialorixás e os Babalorixás não fazem
uma preparação específica para a participação na Noite dos Tambores Silenciosos, mas uma
preparação para o período do carnaval como um todo para que nada aconteça aos integrantes
dos maracatus ou até mesmo para a casa de candomblé como um todo, aproveitando dos
momentos específicos existentes na programação do terreiro. O que não pode é deixar de
oferecer as devidas oferendas aos eguns, essa “figura” ancestral o forte dentro do
candomblé. Sendo assim, esse “resguardo” corrobora a nossa fundamentação de que mesmo
em meio à folia de momo existe uma hierofania, uma manifestação sagrada, matéria a ser
debatida pelas Ciências da Religião.
Se tudo o que debatemos até aqui nos conduz a uma celebração que faz
“reverência” aos eguns, rogando suas bênçãos e proteções, uma das principais autoridades da
61
celebração ao ser argüido sobre a existência de um momento específico que fosse mais
significativo durante a celebração, ele vai responder afirmativamente em meio a uma
autoridade descontraída:
Tem. A hora que começa e na hora que termina (risos). Porque na hora eu estou
chamando o egum, é pesado, e na hora que mando ele embora, pra mandar ele
embora, também é pesado. Porque você trazer um morto na terra e depois mandar
ele embora, da trabalho. A gente tem que estar bem concentrado, tem que estar
muito concentrado pra não acontecer nada de ruim (Depoente 3).
Nesse momento, o que ainda estava sendo velado no depoimento vem a tona de
maneira muito natural, revelado o contato que se estabelece com o mundo do sagrado. Algo
que também não explicitado durante a celebração é o quanto é penoso esse processo,
necessitando de concentração e de uma preparação ritualística para participação da
celebração, pois quem são esses eguns? A resposta a essa pergunta está contida nos relatos
dos depoentes quando falam abertamente que não sabem o que vão encontrar na rua e durante
a celebração, daí a necessidade da preparação que antecede aos cortejos. Esse é o ponto
central das críticas realizadas ao babalorixá Raminho de Oxossi, pois segundo a concepção
dos babalorixás e das ialorixás mais tradicionais não se pode invocar os eguns fora do seu
local de culto.
Esclarecemos, também, que o nosso intuito em registrar esses relatos não tem
como objetivo incitar uma aversão ao fato, mas ressaltar a visão de que estamos tratando de
um evento religioso e como tal, possuidor de ritos e interditos. Temos que ter clareza de que
não estamos investigando, simplesmente, um evento multicultural do carnaval do Recife, mas
uma manifestação religiosa que vem sendo reinventada de geração a geração e que
infelizmente muitos dos que ali estão não conseguem fazer essa leitura, ficando apenas com o
aparente e esquecendo que o principal objetivo do que está sendo vivenciado é invisível aos
olhos e necessita de uma preparação para receber o axé repartido, pois se estamos buscando
interpretar a Noite dos Tambores Silenciosos também por uma perspectiva antropológica, não
podemos esquecer que “toda antropologia da morte é, pois, uma antropologia de vida – de sua
perpetuação, transmissão e renovação” (PRIORE, 2006 p.34). Estamos diante do mistério e é
preciso lembrar, antes de mais nada, que o que ocorre não é simplesmente a apresentação de
uma nação por ser nação, da cultura como cultura, da morte como fim último. A celebração é
considerada por seus integrantes como sagrada, porque aponta para algo que transcende o rito,
a vida. Há, portanto, uma alteração de significado, uma re-elaboração do sentido da ordem
que compõe o mundo, que passam a ser encarada numa outra perspectiva.
Poderíamos sintetizar o que apresentamos nesse capítulo ressaltando que a
cultura pernambucana se destaca por sua diversidade de manifestações e ritmos, uma cultura
62
que acompanha muito de perto o calendário religioso determinado pelo catolicismo ainda
predominante em nossas terras. Essa aproximação faz com que o sagrado e o profano andem
juntos em alguns momentos, noutros existe até a sobreposição do profano pelo sagrado ou se
quisermos, o sagrado acolhe em seu seio o profano.
No dia em que acontece a mencionada celebração, o Pátio do Terço, o local
simbólico por sua natureza histórica, deixa de ser lembrado como centro comercial popular da
cidade do Recife, recebendo por uma noite o status de um grande templo onde os
antepassados serão lembrados através do silêncio, dos cantos, das breves palavras, das
orações, dos toques dos ilús trazidos em especial dos terreiros e, principalmente, através do
rufar dos tambores das Nações de Maracatus que estão presentes e que nesse momento
deixam de ser nações isoladas para tornarem-se uma única Nação, louvando suas raízes
comum e portadora do axé.
Sendo assim, deparamo-nos com um momento que interrompe, suspende o
tempo ordinário, do dia-a-dia, para transformá-lo num momento de alegria verdadeira nos
quais os figurantes do cotidiano assumem o papel principal e coletivamente reafirmam seus
princípios doutrinários fundamentais da vida à morte, de morte à vida.
63
3 - A CONSTRUÇÃO DO SAGRADO NA NOITE DOS TAMBORES SILENCIOSOS
Como a reflexão é fruto de uma relação dialética do homem com o meio em que
vive, este estudo sobre a Noite dos Tambores Silenciosos não pode ser diferente. Ele parte do
fenômeno fundamental da experiência humana, que é a inserção deste homem no meio de
uma realidade altamente complexa, pois não podemos, em hipótese alguma, esquecer que o
homem é um “ser-no-mundo” (VAZ, 1992, pp. 33-34).
O homem não é, originalmente, um sujeito puro, a-histórico, a-mundano, não se
encontra numa consciência fechada de si, mas nós nos encontramos sempre numa rede
ilimitada de relações e estruturas que nos situa aqui e agora e que nos determina, mas também
nos permite compreendermo-nos e realizarmo-nos. Assim, nós nos encontramos sempre numa
realidade efetiva (feita, construída e reconstruída) e estruturada na qual estamos inseridos e
com a qual nos confrontamos constantemente, pois o homem encontra-se no meio de uma
realidade complexa, formada por coisas e por homens, com a qual se confronta e da qual faz
parte.
Esta é a perspectiva antropológica que se utiliza para a compreensão do processo
de desenvolvimento da Noite dos Tambores Silenciosos.
3.1 A cultura como uma realização contínua do homem
A “relação” faz parte constitutiva e fundamental do ser humano. Essa relação do
homem com o mundo em que vive é uma relação dialética, ou seja, por um lado, o homem é
determinado pelo mundo; está imerso na exterioridade do mundo e é determinado pela
natureza em sua vida corporal e biológica, pelas leis físicas. Ele também é determinado pelo
mundo dos homens através da língua, costumes, condições históricas e culturais. Somos
determinados pelo mundo nas coisas e objetos. a nossa vida corporal e biológica está
inserida num mundo vivo e está submetida às suas leis físicas e químicas. Estamos referidos
ao mundo que nos oferece alimentação, abrigo, proteção e que nós usamos e trabalhamos para
poder viver como seres humanos. O homem é, sobretudo, determinado pelo mundo dos
homens. O indivíduo procede de uma comunidade concreta, nela cresce e se desenvolve,
64
aprende uma língua, seus costumes e participa de seu espírito e de sua cultura. O ser pessoa
36
está determinado pelo mundo cultural em que vive; ela é formada pela condição de sujeito,
pela sociedade e suas condições históricas, materiais, culturais e institucionais.
Estas condições determinam a forma de vida, os seus costumes, o seu
conhecimento, o seu querer, sua práxis, o sentido de sua vida, a sua cultura. Tudo isso marca,
de modo decisivo, a sua experiência humana individual. O homem está, pois, referido e é
determinado pelo mundo em que vive.
Por outro lado, o ser humano não é meramente passivo e determinado pelo
mundo em que vive. Ele é também interioridade, ou seja, também é sujeito ativo, determina o
mundo com o qual se relaciona através do conhecimento e de sua ação. Ele não está
simplesmente imerso na exterioridade do mundo. O homem também é sujeito ativo do mundo
na medida em que o consegue e o realiza. Seu conhecimento não é receptivo, mas exige
atuação e engajamento, conforto e tomada de posição julgadora (tomada de juízos). O homem
realiza e objetiva seus próprios planos e idéias, metas e projetos e através da ação e da obra se
introduz no mundo, na expressão corporal, na obra objetiva. O mundo das coisas torna-se,
assim, um mundo humano configurado pelo homem, pela ação humana e por um novo
sentido. O ser humano está livre das determinações da natureza. A natureza torna-se então
cultura e no ser pessoa está imbuída a essência de um ser cultural. Pois, na cultura,
encontramos tudo o que o homem produziu, a partir de um dado original oferecido pela
natureza e que ao longo dos séculos essa relação do homem com a natureza vem sendo
elaborada e re-elaborada constantemente
(MONDIN, 1980, p.172).
É nessa perspectiva que compreendemos a fala de um Babalorixá ao dizer que:
Paulo Viana aumentou a história. [...] Era um grupo só de africanos que fazia
aquilo. Agora Paulo Viana aumentou, porque quando chega na parte do jornal, a
coisa aumenta né? [...] Ele pegou aquilo ali levantou e divulgou. [...] Coisas que
não tinha (sorrisos) sabe? (Depoente 3)
O renomado babalorixá, por sua vez, também modifica a celebração e que,
diferentemente de seu antecedente, vem ganhando apoio não da mídia, mas principalmente
dos órgãos públicos que atualmente financiam o evento. Com isso, não queremos realizar
acusações contra Paulo Viana ou Raminho de Oxossi, mas apenas ressaltar o aspecto sensível,
dinâmico, múltiplo da cultura em que estão inseridos. A cultura está num processo contínuo
de transformação e, como tal, vai buscando responder aos anseios do grupo cultural que a
rodeia, grupo esse que também está em movimento.
36
A categoria de PESSOA é a expressão, segundo o Filósofo Henrique Vaz, para expressar o dinamismo do
sujeito ao concluir sua investigação filosófica sobre o homem. (VAZ, 1992, p.235).
65
Nesse sentido, esse indivíduo é um ser em relação constante com o mundo ou, se
quisermos, podemos também dizer que o homem é um “ser-com-o-outro” (VAZ, 1992, p. 74).
Aqui deparamo-nos com o conceito de sociabilidade, que segundo B. Mondin, seria a
inclinação humana para a vivência e comunicação com os outros, tornando-os participantes
das próprias experiências e dos próprios desejos, convivendo com eles as mesmas emoções e
os mesmos bens. (1980, p. 154). Ao confrontarmos-nos com a Noite dos Tambores
Silenciosos encontramos esse ciclo, fruto da realidade humana e de seu processo de
reelaboração, de reinterpretação da cultura e significação do objeto e da experiência. Essa
perspectiva de re-elaboração, de re-leitura, de re-significação encontra suporte na fala de
nossos depoentes, pois vamos encontrar várias interpretações, diferentes construções para a
origem da celebração, como havíamos apresentado anteriormente, mas voltamos a destacar
em pequenos fragmentos.
Era um negócio pequeno. Elas faziam aquela louvação e faziam aquele, como é que
chama? Aquela oração aos antepassados (Depoente 3).
É por isso que eu digo a você, quem fez aquilo ali, naquele intuito de louvar, depois
alguém se apoderou do evento e lançou como se fosse ele que tivesse jogado, mas
eu creio que tenha partido mesmo do pessoal da religião (Depoente 7).
A Noite dos Tambores Silenciosos, pra muita gente, iniciou em 1968, e que não é
verdade, né? Que foi, como todo mundo conta, que foi com o sociólogo Paulo
Viana e que não é verdade. Ela se iniciou com as Tias, as sinhás, as iás do próprio
Pátio do Terço e com a Mãe Badia (Depoente 1).
Com tais depoimentos, o que podemos inferir é que a Noite dos Tambores
Silenciosos é uma realidade construída e re-elaborada por intermédio da memória, de
narrativas que por muitas vezes contraditórias e até mesmo criadas, pois a busca desta origem,
devido à visibilidade atual do evento, é um fato histórico recente. Inicialmente, o que fora um
ato devocional sincrético, no qual acreditamos que seja resultado de uma re-leitura
realizada por Dona Santa, herdado por um pequeno grupo de senhoras (as Tias do Terço) e
que na sucessão dessa história foi sendo, a cada ano, modificado, acrescentado, transformado
de acordo com seus protagonistas, até chegar à atualidade.
A idéia de tradição defendida por I. Lima, ao explicar o desenvolvimento
histórico dos maracatus, também pode ser aplicada à Noite dos Tambores Silenciosos. Pois,
como o próprio autor afirma, “a tradição não pode ser vista como distante de que a faz,
imutável e cristalizada para servir de guia aos homens e mulheres que fazem e refazem os
seus costumes e adaptando-os em meio às dificuldades” (LIMA, 2008, p.164).
Nesta perspectiva, não estamos afirmando que a Noite dos Tambores Silenciosos
não contenha uma natureza religiosa, não se trate de um evento religioso e como tal, cultural,
mas como um fato que, de acordo com as afirmações dos depoentes e no que encontramos na
66
pouca literatura sobre o assunto, sofreu modificações, releituras foram realizadas ao longo do
tempo e, por conseguinte, torna-se favorável a várias inferências por parte da comunidade
local, mas nem por isso, deixa de ter sua importância cultural fazendo com que o sagrado
esteja camuflado durante o evento. Na atualidade muitas são as experiências religiosas
realizadas naquele momento, muitos são os fiéis que gritam, silenciam, estendem seus braços
na tentativa de chegar mais perto do sagrado, de “tocá-lo” de alguma forma e, como tal, essas
experiências são vivenciadas de acordo com a perspectiva de cada indivíduo, como podemos
constatar na fala dos depoentes.
Ela chegou a sentir a reação todinha, entendeu? De quase ter a incorporação. [...]
Por que realmente é uma energia muito grande, você sente as entidades (Depoente
2).
Uns calafrios, umas coisas é… por que ali está chamando Sinhá, Iaiá, está
chamando Badia e os demais, Mãe Sã…, todos aqueles que passaram ali, todos
estão ali ao lado da gente, entendeu? (Depoente 5).
No processo de análise da Noite dos Tambores Silenciosos, um elemento que
chamou nossa atenção foi a falta de consonância entre os entrevistados, sejam eles
babalorixás ou yalorixás responsáveis pelas Nações de Maracatus, ou os que presidem e
auxiliam na celebração, bem como os filhos de santo, quanto à permanência da celebração no
Pátio do Terço, tanto na realização do “culto” aos eguns na rua. No tocante ao primeiro ponto,
se levantou a possibilidade de mudança da celebração para um local mais amplo, como
afirma a depoente:
pediram pra mudar em reunião, eu participo de todas as reuniões, e não querem
mudar porque Badia foi uma Yalorixá muito respeitada do nagô que era do Sítio e
que morava naquela rua e o histórico ficou sendo feito ali (Depoente 2).
Conversamos algumas vezes que a Noite dos Tambores Silenciosos teria que sair
daquele espaço por que estava se tornando muito pequeno para a quantidade de
pessoas que estava acompanhando (Depoente 1).
Essa possibilidade mudança de local vai encontrar resistência entre o “povo do
santo” que vai apresentar e, algumas vezes, até mesmo, criar fundamentos para a permanência
do evento no Pátio do Terço. A maior parte dos fundamentos apresentados estão baseados no
campo do simbolismo sentimental, como podemos constatar nas seguintes falas:
Ali erra o lugar onde os vapores ficavam e os negros vinha pra li. Ali eles eram
vendidos, ali eram... ficavam ali, naquele Pátio, os portugueses olhando eles, via se
os dentes eram bons, se ele já era forte pra comprar, pra ser empregado (Depoente
3).
Chegamos à conclusão de que, se iniciou a Noite dos Tambores ali, não foi
simplesmente para receber pessoas que quisessem assistir, mas tinha uma coisa
mais importante por trás que era exatamente invocar os eguns, fazer a louvação
para eles. Então, minha perspectiva, que espero que não mude, é que permaneça
naquele mesmo espaço, que possamos receber pessoas que tenham realmente a
67
concepção do que é a Noite dos Tambores Silenciosos [...] A casa hoje existente
(referindo-se a casa de Badia) e quando os maracatus se aproximam e louvam a
casa dela é porque sabe que ali existe uma Yalorixá, filha de Oxum, que iniciou
com as primas, com as irmãs de santo a Noite dos Tambores Silenciosos (Depoente
1).
O Pátio do Terço era secularmente esse espaço de encontro e de permissão, não é?
Porque a igreja do Terço era a igreja onde eles se reuniam para fazer esse encontro.
E aí, em função dos que se foram, os que ficaram continuaram a fazer essa
reverência naquele espaço, que é também um espaço..., sempre foi um reduto
negro, né? [...] O Babalorixá Luiz de França morou no Pátio do Terço. Então, é um
espaço que tem um significado muito grande para essa população que migrou para
a cidade. Que termina se confundindo, a história da cidade com a história do povo
(Depoente 4).
Esses relatos começam a se repetir e aos poucos começam a serem resgatados,
organizados, reorganizados, sistematizados e até mesmo, absorvidos de acordo com a
oralidade, originando o que a próxima depoente irá chamar de uma “relação criada”, uma
memória embasada em outros instrumentos.
(O Pátio do Terço) era um pedaço de aterro, uma passagem muito curta, (no qual
havia) um nicho iniciado em 1710 no qual havia uma relação de religiosidade de
alguns viajantes que passavam por ali.
Mas aí se coloca também a chegada dos navios num determinado período de
outubro, [...]. Esses navios que aportavam ali, “os tumbeiros”, isso ainda no período
da escravidão. Então segundo alguns pais de santo, eles colocam que muitos
(negros) vinham, muitos negros fugiam, outros que viviam pelo centro da cidade
vivendo de ganho vinham para esse entrono por que, primeiro tinha a questão do
jogo, nos búzios eles identificavam que vinha gente da família e então eles
tentavam se aproximar pra ver se isso realmente acontecia, segundo diziam. Os
búzios avisavam que tinha chegado mais gente e o que acontece? Eles vinham e
ficavam nesse entorno na espera, mas numa situação de dificuldade muito grande.
Escondidos na maior parte das vezes, fisicamente mau e quando esses navios
portavam e muito deles que vinham doentes demais, eles nem conseguiam, não
eram vendidos, nem conseguiam se localizar em outras áreas, [...], ficavam detidos
muito pela doença, pela impossibilidade física nessa área. Daí fala-se sobre muitos
mortos que ficaram, nesse local, de muitos negros que morreram e que foram
enterrados inclusive nessas áreas, por esse entorno. A gente não tem nenhum
trabalho arqueológico que comprove. Isso está na memória dessas pessoas.
Isso vai criando uma situação de um local sagrado para os negros, mas no sentido
de sempre ter que lembrar aquilo ali, como uma forma de resistência àquele sistema
que eles viviam. Então seria um local de ressignificação.
Um local de referência e um local de resistência, não é?
o que a gente vai ter no entorno também disso aí é que o carnaval, quando vai
tomando forma formato na cidade do Recife, quando essa área vai ficando ocupada,
a gente vai ver que o bairro de S. José é um centro efervescente, não é? E a gente
vai ter também que algumas situações, por exemplo: (no bairro de S. José e Sto.
Antônio os negros e negras da após abolição [...] vão desenvolver algumas
profissões. Então você vai ter muitos vendedores, você vai ter muita lavadeira, você
vai ter passadeira, engomadeira, você vai ter muitas mulheres que faziam marmita –
não como marmitas de hoje mas que faziam comidas, que forneciam comidas,
não é? Que faziam doces pra vender ou para levar para os meninos venderem nas
ruas ou para elas venderem em suas próprias casas e também costureiras, alfaiates.
Essas costureiras, elas vão começar a trabalhar para o carnaval. [...] Era a casa de
Sinhá e Iaiá. Badia não era uma pessoa da casa, não era responsável pela casa,
depois ela passou a ser zeladora de santo, mas na verdade ela nunca foi uma .
Essa relação foi uma relação criada também. Essa memória é uma outra
memória, muito mais recente e diante das circunstâncias, das necessidades,
inclusive esses grupos promovem Badia a esse baluarte. Esse baluarte porque
68
vai fazer parte de uma memória com base nessa necessidade de manutenção ou de
revalorização, de revitalização de uma coisa que estava se sentindo perdida, então
não é uma mentira, mas é uma memória, mas uma memória com base em outros
instrumentos (Depoente 9).
Se por um lado existe a possibilidade da mudança do local da celebração, ela
logo encontra resistência numa memória embasada na necessidade de manutenção e de
revalorização de um evento que, como falamos anteriormente, vem ganhando mais
visibilidade na mídia e nas políticas públicas que tentam fomentar o turismo. Não que essas
memórias, esses relatos sejam inverdades, mas são re-leituras elaboradas numa tentativa de
significar a permanência da Noite dos Tambores Silenciosos no Pátio do Terço.
Um fato curioso, e que já mencionamos no primeiro capítulo, é que não
existe nenhuma menção à localização da celebração quando esta era realizada em frente à
Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, descrito por L. Menezes. A referida
pesquisadora, ao realizar a biografia de Dona Santa, também vai dizer que “Dona Santa, junto
com as amigas Iaiá, Sinhá e Badia, conseguiu sacramentar a Noite dos Tambores Silenciosos,
como um ritual à memória dos antepassados. Realizada na Igreja Rosário dos Homens Pretos,
depois de sua morte foi transferida para o Pátio do Terço” (2005, p. 43).
Diante do que afirmam os depoentes, a única informação que coincide em
todos os relatos e que ganha unanimidade no que se pode falar ou afirmar dessa celebração
ritualística, é a idéia de que a Noite dos Tambores Silenciosos tem origem na casa das Tias do
Terço. Essa unidade do discurso nos é apresentada como sendo um dos grandes fundamentos
para a sacralização do Pátio do Terço, bem como a sua permanência no local.
Relatamos no primeiro capítulo que, de acordo com os depoentes, a Noite
dos Tambores Silenciosos não se trata propriamente de um culto público aos eguns nas ruas
do Recife, pois tal culto é realizado no “quarto de Balé”, recinto que R. Ribeiro descreve
brevemente como um aposento reservado ao culto dos antepassados, no qual possui dois
buracos no chão, destinados à deposição de alimentos e sacrifícios, e excepcionalmente é
franqueado a estranhos (1952, p. 40). Toda literatura que versa sobre o culto aos eguns
apresenta a idéia de que podem ser realizados nesse recinto e a poucas pessoas, os próprios
depoentes comungam dessa idéia, mas ao mesmo tempo, nos apresentam uma outra realidade.
Os eguns eles não são cultuados em rua. Para que o Babalorixá ao palco fazer
aquela louvação para os eguns é porque na casa de candomblé ele fez todas as
obrigações fechadas, se chama preceitos fechados, com todas as pessoas que vão
estar participando do ritual. Então, à casa de candomblé é chamado as pessoas mais
antigas, onde é feito todas as obrigações para egum, porque nem todas as casas elas
cultuam eguns, elas fazem obrigações pra os eguns por conta dos Orixás e por conta
de pessoas que já morreram, mas é tudo fechado nas casas de candomblé e quando
eles vão ao palco, eles vão ao palco, eles vão paramentados, que isso os protege pro
que possa acontecer e o que eles fazem é fazer a louvação, cantam para os eguns
em yorubá, onde muita gente conhece, mas muita gente também não conhece,
69
ele que sabe o que está dizendo e o que está falando. Canta pra Oiá, porque Oiá é o
Orixá onde entra em todos os lugares, cemitérios, né? Então ele trata de todos os
eguns, então eles cantam pra Oiá que é o Orixá fêmea, que é Iansã e aí passam falar
em yorubá, tratando das questões dos eguns no palco, mas, obrigatoriamente, não
se trata abertamente, em rua dos eguns (Depoente 1).
O sacerdote que vai fazer essa cerimônia tem que se preparar no terreiro. Fazer as
oferendas aos eguns, aí depende de cada casa como é que se faz esse ritual. A gente
saúda mesmo, as todas que cantam, é pra egum, e pra Oiá, porque Oiá ela é a
condutora dos eguns, a senhora dos eguns. Então canta pra Iansã (Oiá) e pra
egum (Depoente 8).
O próprio Raminho de Oxossi vai afirmar que os “fundamentos” do culto aos
eguns é reservado, ou seja, trata-se de um culto restrito. Mas o próprio babalorixá vai dizer
que os eguns são evocados na rua durante a celebração.
Olhe, o problema pra egum é guardado, agora ali a gente ali só, faz a parte do
guerê. [...] A gente também convida o egum, mas o principal do egum a gente não
faz lá não. [...] Invocar o egum, isso é normal. É invocar os eguns e agradecer a eles
porque estamos vivos, né? Somos descendentes de eguns, ainda e Iansã para afastar
os mortos, para que nada aconteça no carnaval, para que o carnaval seja bom. [...]
Por que na hora eu estou chamando o egum, é pesado, e na hora que mando ele
embora, pra mandar ele embora, também é pesado. Porque você trazer um morto na
terra e depois mandar ele embora, aí dar trabalho. A gente tem que estar bem
concentrado, tem que estar muito concentrado para não acontecer nada de ruim
(Depoente 3).
Ao que nos parece, esse é o principal ponto de tensão entre os adeptos do
candomblé, ou seja, a realização de “preceitos fechados” e a reverência, a evocação dos eguns
em meio à rua.
O confronto com essa realidade contraditória apresentada pelos depoentes,
leva-nos a inferir que a Noite dos Tambores Silenciosos, atualmente não se apresenta como
apenas uma reverência aos eguns, como as orações realizadas pelas Tias do Terço ou como o
“lamento negro” realizado por Paulo Viana, mas é vivenciada como um momento em que os
eguns são evocados durante a celebração. Esse elemento leva-nos a refletir que tal celebração
trata-se de uma releitura dos cultos aos antepassados e que vai de encontro ao pensamento da
comunidade mais ortodoxa do Candomblé. Com isso não estamos querendo afirmar tratar-se
de uma adaptação dos cultos privados realizados nos terreiros, mas, quem sabe, uma re-leitura
ou uma forma de enfatizar toda a simbologia religiosa encontrada nas Nações de Maracatus e,
principalmente, em suas respectivas calungas.
Entre as acepções publicadas sobre a calunga, é conhecida a explicada por Mário de
Andrade, revelando os significados de “senhor”, “chefe”, “grande”. Engana-se
porém, quando afirma que “a calunga dos Maracatus nunca é um boneco de
qualquer sexuação, mas fixamente do sexo feminino”. Contradiz, dessa forma, o
que escreve Ascendo Ferreira, que assinala, sem mencionar os nomes dos
Maracatus, uma calunga “do sexo feminino” Dona Clara – e outra “do sexo
masculino” – Dom Henrique. Esse apontamento levou Roger Bastide a supor serem
do Maracatu Elefante as referidas calungas, bem como a boneca Dona Amélia,
70
também mencionada por Ascenso Ferreira. Nada podemos adiantar sobre Dom
Henrique e Dona Amélia, mas asseguramos que Dona Clara pertence ao Maracatu
Cambinda Velha e hoje se encontra no Leão Coroado.
As calungas podem ser de um e de outro sexo. A referência na voz popular, porém,
é mais comum no feminino: “a calunga Dom Luís”, expressão tantas vezes por nós
ouvida. [...] Das bonecas do Elefante, Dona Emília parece ser a que recebe maiores
atenções. Dedicada a ela ocasiões para a dança especial quando passa pelas
mãos de todas as baianas do cortejo; a ela são consagrados os cânticos mais
“fortes”; é essa a principal boneca levada à porta da Igreja de N. S. do Rosário;
com ela o Maracatu Elefante dança diante dos terreiros visitados. E é nas canções
oferecidas à Dona Emília que os músicos executam o ritmo “de Luanda” o toque
“para salvar os mortos”, os eguns”, como diz. [...] Aliás, José Osório de Oliveira,
que recentemente esteve em Angola, acentua que ali “O fetiche não é propriamente
um ídolo, nem tem poder sobrenatural, por si próprio. Em geral, as estatuetas
representam figuras de antepassados” [...] O certo, porém, é que as calungas,
quaisquer delas, como bonecas que “representam” os ancestrais africanos, é um
registro repetido em diversos Maracatus tradicionais (GUERRA-PEIXE, 1980, pp.
38-39).
Achamos por bem transcrever esse trecho escrito por Guerra-Peixe, porque
além da síntese que o mesmo realiza das obras de renomados pesquisadores sobre a “boneca
de cera”, ele apresenta-nos o dado de que o Maracatu Elefante dançava com Dona Emília, sua
principal calunga, na porta da Igreja de Nossa Senhora do Rosário
37
. Fato, ou melhor, dança
que ainda podemos presenciar na celebração que observamos. Obviamente não da mesma
forma, nem na porta da mesma igreja, mas com o mesmo objetivo de reverenciar seus
ancestrais. Hoje, não Dona Emília se faz presente na celebração, existem outras, pois cada
Nação de Maracatu levam as suas calungas, as quais na hora exata da cerimônia são levadas
pelas Damas do Passo
38
ao palco. A tais “bonecas” acompanha o casal real e o porta-
estandarte empunhando o estandarte, a bandeira de cada Nação de Maracatu.
O que era feito por Dona Santa em meados do século XX, continua sendo
realizado pelas tradicionais Nações de Maracatus antes e após a celebração da Noite dos
Tambores Silenciosos, quando cada Nação, por ordem de chegada no Pátio do Terço, fazem
suas reverências.
A Noite dos Tambores Silenciosos para a gente que faz maracatu Nação de baque
virado é o ponto culminante do carnaval para os Maracatus. [...] Ela foi feita com a
finalidade, de louvarmos nossos ancestrais. [...] os grupos levam o principal que são
as calungas, [...] porque elas representam nossos ancestrais, e dali era oficializada
aquela cerimônia, onde se cantava, evocava os eguns na língua yorubá e depois
dali, era que saia para o carnaval propriamente dito. [...] o carnaval forte era na
terça-feira, era o último dia. A finalidade dali era totalmente essa, um ato religioso,
37
Aqui rememoramos o fato de que a rainha do Maracatu Elefante era Dona Santa (1877 a 1962), yalorixá que
além de conquistar vários títulos para seu “brinquedo”, vai obter a simpatia e o respeito de muitos
pernambucanos. Será dela, como vimos anteriormente, que as Tias irão herdar a continuidade da celebração aos
eguns.
38
A Dama do Passo trata-se de uma personagem de grande importância nas Nações de Maracatus, pois além da
técnica no bailado e da vestimenta luxuosa, ela carrega a calunga durante todo o cortejo. (ANDRADE, 1998, p.
39).
71
aonde era feito à oficialização daquela cerimônia para os nossos ancestrais
(Depoente 7).
O que apresenta o depoente acima encontra total consonância com o pensamento
de I. Lima e I. Guillen, ao afirmarem que a Noite dos Tambores Silenciosos é uma referência
obrigatória, e qualquer maracatu-nação que preze “as tradições africanas” tem o dever de nela
participar (2007, p. 35-36). Embora em outra obra, o autor supracitado afirme que,
a relação dos maracatus-nação com as religiões afro não deve ser vista como algo
natural, mas como fruto de uma processo que a nosso ver foi permeado de idas e
vindas, diretamente associadas ao contexto político das diferentes épocas que foram
vividas pela sociedade brasileira. o sabemos ao certo o período em que essa
relação tornou-se mais evidente, mas fortes indícios de que os anos trinta
contribuíram sobremaneira para que tal ligação e estreitasse ainda mais, devido ao
fato de que nesse período houve o recrudescimento da perseguição às religiões afro
e aos Catimbós em particular (LIMA, 2005, p. 111).
A identificação de contradições ao longo de nossa pesquisa de forma alguma
inviabiliza a hierofania encontrada na Noite dos Tambores Silenciosos, ao contrário apenas
reforça a hipótese da existência de uma manifestação de algo que se opõe ao profano, não
como contradição, mas como complemento de uma mesma realidade que aponta para algo
além do visível, ou seja, “uma hierofania pressupõe uma escolha, uma nítida separação do
objeto hierofônico relativamente ao mundo restante que o rodeia” (ELIADE, 2002, p. 19).
Isso só pode ser possível devido ao confronto existente entre o homem e o
mundo que o rodeia e o influencia profundamente, gerando assim seus conhecimentos, seus
costumes, sua tradição cultural. “Em seu cotidiano”, diz I. Lima, “as tradições são feitas e
refeitas, modificando práticas e costumes que longe de serem puras ou ingênuas, refletem os
interesses de indivíduos que possuem escolhas e as fazem, dentro de suas possibilidades”
(LIMA, 2008, p. 56). O que o homem experimenta e compreende de si é o resultado de uma
relação dialética entre ele e o mundo construído, re-elaborado, entre interioridade e
exterioridade, entre o pessoal e o social. A unidade e a totalidade dessa relação dialética do
homem e do mundo devem permanecer sempre presentes se quisermos interpretá-la nos
diversos aspectos e nas suas estruturas fundamentais.
No interior dessa relação dialética do homem com o mundo está um fator que
desempenha uma função primordial, a religião, compreendida aqui como:
um sistema solidário de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, proibidas,
crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja
39
,
todos aqueles que a elas aderem. O segundo elementos que participa assim de
nossa definição não é menos essencial que o primeiro, pois, ao mostrar que a idéia
39
E. Durkheim compreende igreja como “uma sociedade cujos membros estão unidos por se representarem da
mesma maneira o mundo sagrado e por traduzirem essa representação comum em práticas idênticas” (2003, p.
28).
72
de religião é inseparável da idéia de igreja, ele faz pressentir que a religião deve ser
uma coisa eminentemente coletiva (DURKHEIM, 2003, p. 32).
O aspecto religioso é uma influência constante no desenvolvimento da Noite dos
Tambores Silenciosos ao longo do tempo, de forma mais sincrética com Dona Santa, mais
explícita nas orações das “Tias” conforme nos foi apresentada, mais folclórica na reverência
dos maracatus reintroduzidos por Paulo Viana e na atualidade com o Babalorixá Raminho de
Oxossi. O que na época das Tias era velado e para poucos, hoje, diante da liberdade de
expressão e credo, diante da mídia, de toda multidão é claramente identificado e assumido
pela comunidade como sagrado, devido a seus cantos, ritos, significados e indumentárias dos
sacerdotes e sacerdotisas que conduzem e auxiliam na celebração.
Como tal, todas as religiões buscam prover seus fiéis de experiências que arrancam
do ordinário da vida, os transportam para uma situação extraordinária na qual o sagrado se
manifesta. os fiéis se defrontam com uma realidade transcendente que R. Otto chama de
numinoso (19.., p. 14). Uma experiência religiosa por excelência. Nela predomina o
elemento não-racional, que escapa à compreensão conceitual, algo inefável, algo diferente que
surpreende, que espanta, que sai do ordinário, que distancia e que, portanto, revela “poder”.
Há discussões sobre o caráter pessoal ou não dessa força (ELIADE, 2002, pp. 21-24), mas não
nos adentraremos nessa discussão.
A experiência religiosa faz com que o homem encontre sentido para sua vida, ao
dar valor, solidez e realidade ao sagrado. Ela responde ao ser humano que, por natureza, cria
sentido para tudo que está a sua volta. Toda a experiência sagrada realizada e que confere
sentido as coisas é parte constitutiva do ser humano que está constantemente significando e
ressignificando os acontecimentos de sua vida e o mundo em que vive.
O sagrado é um elemento na estrutura da consciência humana, é uma parte do modo
humano de ser no mundo. [...] Significa que o homem simplesmente se descobre no
mundo, que a estrutura de sua consciência é tal que em algum lugar em sua
experiência existe alguma coisa absolutamente real e significativa, alguma coisa
que é fonte de valor para ele. No meu entendimento a estrutura da consciência
humana é tal que o homem não pode viver sem procurar pelo sentido e significado.
Se o sagrado significa o real e o significativo, como eu sustento, então o sagrado é
parte da estrutura da consciência humana (ELIADE apud ROHDEN, 1998, p.43).
Se por um lado, nessa busca de sentido, as religiões, cada uma a seu modo,
procuram organizar as suas experiências religiosas através dos seus ritos, mitos, cerimônias,
vestes, utensílios, festas, no intuito de propiciarem aos seus fiéis o contato, a vivência do
sagrado. Por outro, as realizações humanas podem ser sacralizadas, permanecendo em sua
visibilidade profana. O que irá caracterizá-las como um evento religioso, e como tal sagrado,
é toda inferência simbólica e religiosa atribuído pelos fiéis que ali se encontram.
73
Quem nos proporciona uma melhor compreensão desse aspecto da vida humana é
a transdisciplinaridade, ao buscar a realidade que está entre e além das disciplinas científicas,
podendo gerar uma atitude transreligiosa, que parte da experiência do sagrado ou divino e por
isso não contradiz nenhuma tradição religiosa envolvendo até as correntes atéias. Os aportes
dessa lógica transdisciplinar podem ajudar a compreender melhor o paradoxo do sagrado que
transparece na Noite dos Tambores Silenciosos: em meio ao profano, provocando um êxtase
hierofânico que une, silenciosamente, não apenas os seguidores da religiosidade afro-negro-
brasileira, mas “turistas” de todas as crenças e “não-crenças”.
Para Basarab Nicolescu, principal articulador dessa lógica da complexidade:
A transdisciplinaridade não é religiosa nem não religiosa, ela é transreligiosa. É a
atitude transreligiosa que emerge da transdisciplinaridade vivida que nos permite
aprender a conhecer e apreciar as especificidades das tradições religiosas e não
religiosas que nos são estranhas, para melhor perceber as estruturas comuns nas
quais elas estão fundamentadas e, assim, chegar a uma visão transreligiosa do
mundo (NICOLESCU, 2000, p. 148).
O modelo transdisciplinar da realidade lança uma nova luz, então, sobre o sentido
do sagrado. Uma zona de absoluta resistência liga o sujeito e o objeto, os níveis de realidade e
os níveis de percepção. Para o pensamento transdisciplinar, um movimento de travessia
simultânea dos níveis de realidade e dos níveis de percepção. Este movimento segue em
sentido ascendente e também descendente pelos níveis de realidade e de percepção. A zona de
resistência absoluta, o ponto X de Interação, é o espaço de coexistência da transascendência e
da transdescendência, ou de transcendência e imanência. Em outras palavras, é ao mesmo
tempo transcendência imanente e imanência transcendente.
A palavra sagrado, pois, para Basarab Nicolescu, é a que designa essa zona de
absoluta resistência, como um terceiro incluído que reconcilia esses movimentos em tensão.
Esse “terceiro” é o espaço de unidade entre o tempo e o não-tempo, o causal e o a-causal. É a
origem última dos nossos valores humanos, que está entre e para além das religiões. Quando
essa experiência do sagrado é corrompida, a história se perverte. Quando reencontramos
tempos-espaços de vivência do autêntico sagrado, as contradições aparentes são ultrapassadas.
Nessa perspectiva, um fiel pode reconhecer nas outras religiões caminhos da busca
do sagrado pelo ser humano, que se questiona e procura. Em conseqüência, através dessa
visão da realidade, o vortex sagrado-profano é encarado não como contradição dualista de
dimensões opostas, mas como dualidade complementar e intercambiável. O pensamento
transdisciplinar e transreligioso considera a complexidade da realidade e da verdade,
exorcizando o princípio soberano da identidade vitoriosa sobre toda diferença, acolhendo o
74
paradoxo para além do princípio de não-contradição e, sobretudo, servindo o “outro” como
morada.
“O outro”, não mais como o “terceiro excluído” da velha lógica filosófica,
incrustada nas muitas teologias das várias religiões, mas enquanto poder criador do universo a
quem se deve respeitar, enquanto revelador grito do irmão necessitado que inspira a
criatividade amorosa, do irmão em êxtase que deve ser acolhido em respeito e devoção, esse
deve ser o princípio originante de uma nova razão. Ele é o “terceiro” que, incluído, pode
permitir que percebamos sons diferentes para sonhos iguais, para além da exclusão e da
violência imperantes nas relações entre culturas e religiões.
A Noite dos Tambores Silenciosos é uma manifestação inconsciente, como sói
acontecer, de um sagrado cuja sua essência nos escapa, de um mistério que desperta
reverência em todos os crentes e descrentes que são atraídos por aquele momento, de foliões
carnavalescos que se em tomados por um culto aos mortos de uma religião, na porta da
igreja de outra religião. A lógica transdisciplinar nos faz pensar e tomar consciência de que,
quando se está diante de uma pequena contradição, pode-se estar perante um erro, mas
quando se está frente a uma contradição profunda, é possível que se tenha atingido um outro
nível de verdade e realidade.
O fenômeno da Noite dos Tambores Silenciosos é um túnel de passagem pelo
tempo-espaço, para um nível de experiência, entre e para além de nós, onde o que parece
contraditório se revela unido e reunido: cristãos e xangozeiros, mortos e vivos, festa e
religião, sagrado e profano.
Essa é a realidade da Noite dos Tambores Silenciosos, uma celebração ritualística
incorporada a um período festivo de significativa importância simbólica e social e
caracterizada como uma festa profana. Busquemos compreender como se essa relação
entre uma celebração religiosa em meio a uma festa concebida como profana.
3.2 A festa e os mitos
A natureza que qualquer comemoração religiosa é trazer ao presente um fato
mítico ou fundante, pois nessa comemoração está imbuída uma rememoração. Ao
participarmos de qualquer ato religioso festivo, estamos estabelecendo contato com uma
dimensão que se diferencia do tempo ordinário, cotidiano, levando-nos a realizar uma
reatualização de nossas próprias vidas.
75
Toda festa religiosa, todo tempo litúrgico, representa a reatualização de um evento
sagrado que teve lugar num passado mítico, “nos primórdios”. Participar
religiosamente de uma festa implica a saída da duração temporal “ordinária” e a
reintegração no tempo mítico reatualizado pela própria festa (ELIADE, 2001, p. 63-
64).
As festas religiosas o vivenciadas de forma encíclica, favorecendo um
contínuo retorno as origens mitológicas e sagradas dos fiéis que a celebram. No tocante a
Noite dos Tambores Silenciosos essa reencontro com elementos constituídos como sagrados,
a saber, os eguns e os ancestrais, proporciona uma maior unidade espiritual aos adeptos dos
candomblé e ao mesmo tempo reforça o ideal pela busca de maior espaço na sociedade. Isso
só é possível devido a essa ruptura do cotidiano vivenciada durante essa celebração espiritual.
A festa aparece como uma necessidade do homem de apropriar-se do tempo no
espaço, mas se transforma também num fato político, como criação retórica e
legítima do homem. Em suas características, é retórica porque se insere como uma
profanação do tempo do trabalho e da instituição social. Como celebração é
sobretudo uma subversão do tempo do cotidiano, como se este fosse substituído por
um momento alegórico. Propicia o rompimento com o tempo do cotidiano, ao
possibilitar a passagem do universo da monotonia da vida ordinária para o do
simbólico (ITANI, 2003, p.37).
Ao participar de uma celebração religiosa um fiel não relembra apenas o passado
mítico, nem apenas rompe com o cotidiano, ele também renova suas perspectivas de futuro,
ao revigorar suas esperanças e reiniciar sua caminhada. Nesse processo os mitos exercem uma
grande uma função impulsionadora, pois relatam uma história sagrada ao relatar a história de
um ancestral, de um santo, da manifestação de Deus. No tocante a Noite dos Tambores
Silenciosos, o que se comemora, o que se louva, o que se reverencia é exatamente o aspecto
da ancestralidade e toda mitologia elaborada e atribuída aos ancestrais das diversas casas do
xangô pernambucano. Ao celebrarem a história mítica de seus ancestrais, os adeptos do
candomblé acabam elaborando verdades que vão sendo consolidadas e apropriadas como
absolutas. Essas verdades míticas, na medida que vão sendo assimiladas e internalizadas, vão
sendo transmitidas e eternizadas pelos povos através de suas religiões e culturas.
Em virtude dos mitos, o homem se reconhece verdadeiramente homem, na
medida em que busca imitar os deuses, os heróis civilizadores ou os antepassados míticos. O
homem religioso é alguém que se faz a si próprio, na medida em que procura imitar os deuses
ou a orientação que deles provém (ELIADE, 2001, p.88).
Sendo assim, dentre muitas versões, apresentaremos dois mitos africanos, sendo
um na tentativa de explicar o título atribuído à Oyá como sendo a “deusa dos mortos” e o
outro é uma das versões apresentadas sobre origem da separação do céu e da terra. O nosso
intuito é apresentar mais uma possível hermenêutica para o fenômeno estudado, oferecendo-
76
nos elementos para uma melhor compreensão da Noite dos Tambores Silenciosos, embora o
segundo mito não seja mencionado em nenhum momento da celebração em estudo.
A nossa intenção maior com a transcrição do mito abaixo é buscar a origem do
título de “deusa dos mortos” atribuído a Oyá, pois foi com muita freqüência que durante o
processo das entrevistas, direta ou indiretamente, sempre encontrávamos menção a ele quando
os entrevistados se referiam ao respectivo orixá. Desta forma decidimos apresentá-lo.
Em certa época, as mulheres eram relegadas a um segundo plano em suas relações
com os homens. Então elas resolveram punir seus maridos, mas sem nenhum
critérios ou limite, abusando desta decisão, humilhando-os em demasia. Oyá era a
líder das mulheres, e elas se reuniram na floresta. Oyá havia domado e treinado um
macaco marrom chamado ijimerê (na Nigéria). Utilizara para isso um galho de atori
(ixã) e o vestia com uma roupa feita com várias tiras de pano coloridas, de modo
que ninguém via o macaco sob os panos.
Seguindo um ritual, conforme Oyá brandia o ixã no solo o macaco pulava de uma
árvore e aparecia de forma alucinante, movimentando-se com fora treinado a fazer.
Deste modo, durante a noite, quando os homens por passavam, as mulheres (que
estavam escondidas) faziam o macaco aparecer e eles fugiam totalmente
apavorados.
Cansados de tanta humilhação, os homens foram ter com o babalaô para tentar
descobrir o que estava acontecendo. Através do jogo de Ifá, e para punir as
mulheres, o babalaô lhes conta a verdade. Ele os ensina como vencer as mulheres
através de sacrifícios e astúcias.
Ogum foi ao local das aparições antes das mulheres. Vestiu-se com vários panos,
ficando totalmente encoberto, e se escondeu. Quando as mulheres chegaram, ele
apareceu subitamente, correndo, berrando e brandindo sua espada pelos ares. Todas
fugiram apavoradas, inclusive Oyá.
Desde então os homens dominam as mulheres e as expulsaram para sempre do
culto de Egum; hoje, eles são os únicos a invocá-lo e cultuá-lo. Mas mesmo assim,
eles rendem homenagem a Oyá, na qualidade de Igbalé, como criadora do culto de
Egum.
Convém notar que, no culto, Egum nasce no bosque da floresta (igbo Igbalé). No
Brasil, no ilê awo, ele nasce no quarto de balé, onde são colocadas oferendas de
comidas e realizadas cerimônias aos Eguns. Oé também cultuada como mãe e
rainha de Egum, como Oyá Igbalé. E, como nos explica a lenda, Oyá, a floresta e o
macacão estão intimamente ligados ao culto, inclusive em relação à voz do macaco
como modo de o Egum fala (BARRETTI FILHO, 1986, p.49).
Nesse segundo mito, referente à explicação da separação do céu e da terra, o
relator vai dizer que o pivô da tragédia é uma criança e, como toda criança, tinha muitas
perguntas a fazer aos pais. Num certo dia ao se dirigir a sua mãe, pergunta:
- Mamãe, o que há para além da terra?
Sua mãe, porém, desconversa.
- Existe um chinelo cem vezes maior que este! diz ela, mostrando o seu, cem
vezes menor, mas nem por isto menos temível.
A verdade é que a pobre mãe não é má nem impaciente. Apenas chegou a um ponto
em que a ameaça tornou-se o único meio de impedir que o moleque que insista
nesta que é a mais fatal de todas as indagações.
Sim, ela bem sabe o que existe para além da terra, pois tanto ela quanto o marido
gozam ainda da liberdade de transitar livremente entra a terra e o céu. Somente o
menino curioso está impedido de fazê-lo, e de sequer saber que existe um céu.
* * *
77
Alguns anos antes, os pais deste garoto estavam muito tristes, pois não podiam ter
um filho.
- Desse jeito, não deixariam semente! – dizia a mulher, todo santo dia ao esposo.
Acontece que ambos eram tão velhos que já não podiam mais gerar criança alguma.
- Que quer que eu faça? – dizia o marido, um velhote cabisbaixo.
- Faça qualquer coisa, menos ficar aí de cabeça caída! – esbravejava a esposa.
Então, desesperada do socorro terreno, ela resolveu arriscar o remédio celestial.
- Vamos procurar Oxalá! – disse ela, resoluta, tomando nas mãos o seu rijo bordão.
Mas o marido, um tanto assustado, vacilou:
-Não sei não, mulher... melhor não perturbarmos o deus!
- Toleirão! E deuses existem para quê? – gritou ela, dando em seguida um golpe na
cabeça baixa do marido com seu vigoroso bordão.
- Vamos, parvajola! Erga esta cabeça ao menos uma vez na vida!
O velho seguiu a esposa e ambos entraram nos domínios do céu também dito
Orum -, pois, como já se disse, naqueles dias o trânsito entra a terra e o céu era
totalmente livre.
A cabeça do velho, porém, continua tristemente pendida.
* * *
Depois de aguardar um dia inteiro, o casal fora finalmente recebido por Oxalá.
Ao ver-se, entretanto, diante do majestoso deus, o velho ficou tão pálido quanto o
manto branco de Oxalá. Sua esposa, ao contrário, abismou para o enorme opaxorô
que o deus segurava (o báculo do deus).
- Você aqui! – disse Oxalá, não menos espantado. – O que desejam, ainda, da vida?
Pressentindo o mau-humor, a mulher decidiu recorrer logo ao drama.
- queremos um filho, deus todo-poderoso, para que nossa semente também
frutifique!
- Oh, querem um filhinho! – disse Oxalá, azedo. – Deveriam pedir um neto!
A mulher riu, espinoteada, mostrando todas as gengivas da boca.
- U-há-há! Muito bem dito, grande deus! U-há-há!
O velho arregalou também as grandes gengivas, ornadas, ainda, de uma glorioso
dente.
- Mas veja, grande deus prosseguiu a velha. Se não temos, ainda, um filho,
como teremos um neto?
Oxalá ficou sério como a morte.
-Muito inteligente a sua observação – disse ele. – Muito inteligente a senhora.
Um breve e opressivo instante de silêncio precedeu a sua resposta.
- Nada feito disse, afinal. Os seres humanos que estou fabricando ainda não
estão prontos.
Inconformada, a velha atirou-se aos pés de Oxalá.
- -nos um filho, pelo amor de si! disse ela, a melar de lágrimas o manto
sagrado.
O velho, por sua vez, curvou ainda mais a cabeça, pois era a única coisa que sabia
fazer.
Ao fim e ao cabo, foi tanta a cachoeira que o deus finalmente concordou.
- Mas não quero saber deste fedelho transitando aqui pelo céu, entenderam?
Tão gratos ficaram os dois que aceitaram imediatamente a condição, sem nem
mesmo indagar o motivo da ressalva (razão pela qual ficamos, também nós,
impossibilitados de sabê-lo para todo sempre).
O casal retornou rapidamente para a terra pelo mesmo caminho pelo qual haviam
passado ao céu. A velha, arregalando outra vez as gengivas, não cabia em si de
contente, enquanto o velho, pela primeira vez nos últimos trinta anos, trazia a
cabeça perfeitamente ereta sobre os ombros.
* * *
E, agora, passados alguns anos, ali estava, cheio de dúvidas, o petimetre
perguntador:
- Mamãe, o que há para além da terra?
78
- A sua língua, que não cabe na boca! diziam a pobre mão, atormentada. Então,
farto de respostas malcriadas, o moleque decidiu passar ao plano B.
“Papai deve saber!”, passou ele e, assim, grudou-se no velhote quando ele rumou,
na manhã seguinte, para a sua lavoura. Acontece que esta lavoura era tão grande
que seus limites invadiam o próprio céu, razão pela qual o velho levou o filho só até
um pedaço do terreno.
- Agora você fica aqui, enquanto eu vou adiante completar a semeadura disse
ele, arrastando um enorme saco de sementes.
- Por que não posso ir lá, também? – disse o garoto, frustrado.
- Porque existe um ogro que se alimenta de crianças perguntadoras disse o
velho, sentencioso.
A mentira quase teria dado certo, não fosse aquele toque final moralista. O petiz
sabia muito bem que os ogros se alimentam de qualquer tipo de crianças,
perguntadoras ou não.
Assim, o velho se foi, de fato, sozinho, mas atrás dele foi ficando um rastro de
sementes, já que o moleque furara o saco com um graveto pontudo.
- Vamos ver agora o tal ogro! –disse ele, seguindo, muito atrás, os passos do velho
pai.
* * *
Assim que entrou no céu, porém, o moleque ficou boquiaberto.
- É a terra sem calor! – disse ele, esquecendo-se imediatamente do ogro comedor de
crianças perguntadoras, e pondo-se a andar por tudo, com a boca sempre aberta.
Mas tanto andou, afinal, que acabou descoberto por um dos guardas carrancudos do
céu.
- Fedelho mijão! – disse o beleguim celestial. – O que está fazendo aqui?
- Q-que lugar é este?
- disse ele receoso de já de ter topado com o tal ogro.
- Idiotinha! Aqui é o céu, a morada de Oxalá e de todos os deuses!
- Que legal! disse ele, candidamente. Então, você também é um deus? No
mesmo instante, o guri teve sua orelha capturada por dedos nada celestiais
instante em que sofreu, também, a sua primeira desilusão sobrenatural.
“Quê! Puxões de orelha também no céu? Pensou ele, enquanto era arrastado ao
palácio de Oxalá.
Entretanto, se o garoto esperava uma recepção calorosa, acertou na mosca.
- Maldição! O que está fazendo aqui este moleque irritante? Bradou o deus,
colérico.
Ao ver-se tratado no céu da mesma maneira que na terra, o garoto sentiu sua
atenção dispersar-se, pondo-se a percorrer com os olhos o grandioso salão. Após
ver um monte de gente desocupada, deitada sobre divãs e coxins e a comer sem
parar, disse, muito convictamente, para o deus do lençol branco:
- Muito bonita a sua casa! Quero morar aqui também!
Ao ver o deus apanhar, num gesto velocíssimo, o seu báculo enorme, o garoto
sentiu seus ombros vergarem instintivamente. Mas, ao invés de bater em sua
cabeça, o deus saiu para fora do palácio e vibrou o seu báculo, com toda força,
sobre o solo do céu.
Tão forte foi o impacto que o opaxorô atravessou as nove moradas do Orum e
deixou entre o céu e a terra uma enorme rachadura, que recebeu o nome de
firmamento.
Desde então, a Terra passou a ser morada exclusiva dos homens e o u, morada
exclusiva dos deuses.
- A partir de agora, os homens entrarão no céu depois de mortos! – rugiu o deus,
ainda irado.
Quanto ao moleque, conseguiu fugir a tempo para a terra antes de ver surgir o tal
chinelo gigante de que falara a sua mãe (FRANCHINI; SEGANFREDO 2008, p.
90-94).
Embora longo, como havíamos advertido, essa versão mítica da separação do
aiyé e do orum, ou se quisermos, do céu e da terra, nos aponta para um possível fundamento
79
da razão da celebração ritualística Noite dos Tambores Silenciosos, numa tentativa de buscar
esse elo perdido dos dois mundos separados por Oxalá e manter viva na memória coletiva a
importância da comunicação do homem com o céu, a sua realidade última, pois como afirma
M. Eliade, “não se pode viver sem uma abertura para o transcendente; em outras palavras, não
se pode viver no “Caos”, uma vez perdido o contato com o transcendente, a existência no
mundo já não é possível” (2001, p. 36).
Aqui podemos nos colocar diante do mistério e conjuntamente com Eliade
afirmar: “Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de algo de ordem
diferente - de uma realidade que não pertence ao nosso mundo em objetos que fazem parte
integrante do nosso mundo natural, profano” (ELIADE, 2001, p.17).
Pois sabemos que a experiência religiosa ancora-se na condição humana. Ela
vem responder aos anseios humanos mais profundos, pois esse mesmo ser humano percebe a
existência de uma referência, de uma abertura para um horizonte último, para um mistério, a
um absoluto e ao deparar-se com alguma manifestação dessa realidade, assusta-se ou deixa-se
seduzir. Portanto, na experiência com o sagrado, torna-se presente à consciência da pessoa
uma realidade extraordinária que vai produzir um sentimento de comunhão com o divino.
Em nossa sociedade, a religião continua a influenciar a vida de homens e
mulheres, e os acontecimentos religiosos são freqüentemente assumidos como acontecimentos
sociais. Essa também é uma das características da Noite dos Tambores Silenciosos, pois na
maioria das vezes ela é internalizada pelo público como mais uma estratégia para ampliação
do turismo na capital pernambucana e, devido ao seu caráter de espetáculo é vista, pela
maioria dos pernambucanos, como uma demonstração folclórica de um passado distante da
história dos negros ou dos afro-descendentes. Não iremos nos ater ao processo de
mercantilização no qual a Noite dos Tambores Silenciosos que vem passando, embora
reconhecemos que se desejarmos obter uma compreensão maior do evento, essa reflexão se
faz necessária
Na Noite dos Tambores Silenciosos deparamo-nos com uma manifestação
consolidada e eminentemente coletiva, pois “pelo simples fato de serem coletivas, elas elevam
a energia vital” (DURKHEIM, 2003, p. 448), geradora de fortes sentimentos de identidade
entre os adeptos do candomblé, que se juntam não apenas para manifestarem sua fé, mas para
criarem os meios culturais de perpetuar e difundirem sua identidade, sua cultura e sua fé.
Em se tratando dos costumes africanos, R. Jaulin vai dizer que
Ao integrarem a morte ao seu sistema cultural não só por meio de conceitos,
valores, ritos e crenças, mas também graças ao fato de colocá-la em toda parte, os
africanos terminam por transcendê-la graças a um jogo pertinente e complexo de
80
símbolos. Não ignoram a morte; ao contrário, afirmam-na desmesuradamente.
Entre eles e para eles a morte é vida, domada não ao nível biológico, mas, social
(JAULIN apud PRIORE, 2008, p. 35).
Ao trazerem a morte para dentro de suas casas, de seus cultos, de suas festas os
adeptos do candomblé conseguem reforçar a idéia da unidade do clã, do contato entre os vivos
e seus antepassados. Para eles, uma vida que não é interrompida biologicamente e nem acaba
após o axexê
40
, pelo contrário, a partir dos ritos fúnebres é que se começa a verdadeira vida,
pois é nesse momento em que surge o resgate antropológico tão valorizado nos cultos e festas
dedicados à reverência aos eguns, aos ancestrais, pois nessa memória se garante a
perpetuidade da vida do grupo e a unidade antropológica africana, da qual os mortos são
elementos fundamentais. Segundo R. Oliveira “A morte não é o fim, por que fica o egum.
Todo aquele que vive no candomblé está no meio de uma força comum: o axé. Ao morrerem,
as pessoas continuam a fazer parte dessa força comum, não deixam de ser presença e estão em
continuidade” (2003, p. 29). Nesse sentido
A melhor forma de tentarmos compreender a Noite dos Tambores Silenciosos é
realmente como uma festa, uma celebração, na qual os convidados especiais são os espíritos
dos ancestrais africanos, como também dos afro-descendentes e, como toda festa, proporciona
um momento de sociabilidade no qual são suspensas as atividades do cotidiano. O caráter
distintivo dos dias de festa, em todas as religiões conhecidas, é a paralisação do trabalho, a
suspensão da vida pública e privada, de uma certa rivalidade entre as casas e os grupos de
maracatus, na medida em que esta não tem objetivo religioso (DURKHEIM, 2003, p. 325).
Nesse processo de relacionamento religioso do homem com o “outro mundo” é
que se dão, de fato, as elaborações das formas ricas e significativas de relacionamento e, ao
mesmo tempo, os homens vão encontrando sentido para vida, para uma vida que transcende
seus próprios limites e que através das representações simbólicas busca representar sua
experiência com o sagrado.
3.3 A representação do sagrado
O homem se encontra colocado no mundo, sobre esta terra, neste período
histórico, nesta sociedade e é consciente de que não pode realizar plenamente o seu ser e as
suas aspirações mais profundas no presente âmbito espaço-sócio-temporal. Por esse motivo, o
40
Ritual fúnebre realizado nos terreiros de candomblé após a morte de um de seus integrantes.
81
seu olhar dirige-se para um horizonte no qual espera entrever uma sociedade perfeita que
povoa um espaço imenso por uma eternidade.
Será o caso da Noite dos Tambores Silenciosos? É fato que, como falamos
anteriormente, tal celebração pode ter originado a partir de um pequeno grupo de fieis que
bailavam com um objeto mítico, a calunga, em frente a Igreja de Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos e que posteriormente vai ser herdado por um pequeno grupo de mulheres
que, aproveitando-se da agitação carnavalesca para driblar os perseguidores, se reuniam na
porta da Igreja de Nossa Senhora do Terço para cantar, orar e lembrar de seus antepassados.
Mas que essa devoção ao longo dos anos foi assumindo de forma crescente o cunho artístico-
cultural, do qual temos conhecimento na atualidade, embora carregado de significado
religioso.
De fato, as manifestações religiosas e culturais estão presentes em todas as
sociedades. Trata-se de uma manifestação tipicamente humana, que vai sofrendo
modificações de sociedade para sociedade, de tempo a tempo, de significados a
ressignificações, pois no longo processo da civilização humana as manifestações religiosas
vão se alterando no transcorrer da história.
Identificamos esse processo na Noite dos Tambores Silenciosos e, deduzimos ser
por isso, o empenho dos organizadores do evento em manter o público informado da trajetória
da celebração através de panfletos preparados e distribuídos pela Prefeitura da Cidade do
Recife, conforme podemos constatar na ilustração abaixo.
Foto n° 1
Material de divulgação da Prefeitura da Cidade do Recife no ano de 2006.
82
Foto n° 2
Material de divulgação da Prefeitura da Cidade do Recife no ano de 2007.
Foto n° 3
Material de divulgação da Prefeitura da Cidade do Recife no ano de 2008.
83
Elegemos o material distribuído nos últimos três anos da realização da Noite dos
Tambores Silenciosos por conseguirem captar, nas fotografias, elementos simbólicos bastante
expressivos e significativos para o ritual. Na foto 1, temos uma Dama do Passo e sua
calunga que representa o ancestral que a Nação de Maracatu carrega; na foto 2. temos o
casal real (rei e rainha) de uma Nação de Maracatu, em primeiro plano temos a yalorixá (Mãe
Nádja de Angola) que acompanha espiritualmente toda Nação; e a foto de n° 3 contém
imagens do atual presidente da celebração, o Babalorixá Raminho de Oxossi.
No avesso do panfleto encontramos o seguinte texto:
Tambores invadem a noite, ecoam entre as estreitas ruas do Bairro de o José.
Nações seculares seguidas de outras fundadas mais recentemente surgem como por
encantamento e solenemente se juntam ao adro da Igreja de Nossa Senhora do
Terço.
Tambores de baque virado dobram na noite, sons que entram pelos ouvidos, tomam
o corpo e envolvem a todos num misto de magia e emoção. São elas, as nações
renascidas do povo que nestas terras plantou tão fundas raízes!
Empunham seus estandartes e guardam, com a mesma força dos seus antepassados,
os segredos da Calunga erguida entre as mãos da Dama-do-Paço.
O Largo na frente da Igreja do Terço, no Bairro de São José, é cenário ideal para a
cerimônia que acontece às segundas-feiras de carnaval, no Recife.
Pátio de Sinhá, Iaiá, Badia e Tia Bernardina, todas descendentes das tradicionais
casas nagôs de Pernambuco; Pátio que serviu aos trabalhos de drenagem dos
terrenos alagados, no tempo dos holandeses, e ficou conhecido depois como a
“estrada da cidadepara quem viesse do lado do continente; local “onde os negros
ficavam, quando vinham de fora (...) e onde muitos foram morrendo”, segundo
Raminho de Oxossi, babalorixá do terreiro de Oxum Opará e atual responsável
pelo ritual.
41
“Ali também eram vendidos os negros ou enterrados após a morte” comenta
Manoel Papai, babalorixá do terreiro de Pai Adão.
Palco de tantos acontecimentos e nascedouro de algumas das mais tradicionais
agremiações carnavalescas do Recife, no Pátio do Terço tudo começou... Com as
tias, ligadas ao candomblé e envolvidas com o carnaval. “Eu era menino, com 6
anos de idade já estou com 64 anos e quando cheguei ali a celebração era feita
pelas tias com um grupo de negros”. Raminho de Oxossi.
Uma reverência discreta, uma homenagem prestada aos mortos, os eguns, com a
presença de maracatus tradicionais como o Leão Coroado e o Elefante de D. Santa.
Alguns cânticos e o silêncio à meia-noite.
É assim que, em 1968, o jornalista e sociólogo Paulo Viana, envolvido em razão de
seus estudos com as questões negras, conhecedor do universo dos Xangôs do
Recife e sensível à importância da cultura popular, cria a Noite dos Tambores
Silenciosos. Divulga a cerimônia ritualística, traz para o tio do Terço o grupo de
teatro Equipe, apresenta danças afro-brasileiras, encena textos e, com o poema
41
Embora essa informação de que o Pátio do Terço fora local onde eram enterrados os negros apareceram por
duas vezes durante o processo das entrevistas, mas não existe nenhuma literatura que mencione tal informação.
84
Lamento Negro, de sua autoria, denuncia o processo desumano da escravidão,
presta homenagem aos escravos mortos e reverencia os orixás.
42
A Noite dos Tambores Silenciosos e suas histórias. Histórias de quem faz, de quem
vê, de quem vive.
Evocar, como faziam o nosso Nelson Ferreira, é trazer para perto de nós aqueles
que sentimos ser imprescindíveis. Essa evocação se revitaliza a cada ano e encanta
a todos com a sua beleza.
O registro vivo e a apropriação justa da comunidade que reverencia, homenageia,
festeja e acima de tudo compreende que somos os legítimos herdeiros dos eternos
tambores que ecoam dentro de cada um de nós
43
.
A informação partilhada por Carmem Lélis no material distribuído na medida em
que o grande público começa a chegar para a celebração não tem a mesma importância do axé
transmitido e do se fazer presente na celebração da Noite dos Tambores Silenciosos, pois “a
participação no sagrado, permite aos homens viver periodicamente na presença dos deuses”
(ELIADE, 2001 p. 93).
Segundo o pensamento de E. Durkheim,
A coisa sagrada é, por excelência, aquela que o profano não deve e não pode
impunemente tocar. Claro que essa interdição não poderia chegar ao ponto de
tornar impossível toda comunicação entre os dois mundos, pois, se o profano não
pudesse de maneira nenhuma entrar em relação com o sagrado, este de nada
serviria (DURKHEIM, 2003, pp. 23-24).
O sagrado é uma dimensão da vida humana que se manifesta em circunstâncias
especiais, fora da rotina e do cotidiano, do domínio da vida profana. O sagrado é da ordem do
maravilhoso, do que não se inscreve nas agruras do dia-a-dia. O homem toma conhecimento
do sagrado porque este se manifesta, se mostra como qualquer coisa absolutamente diferente
do profano e juntamente com o profano, constituem duas modalidades de ser no mundo, duas
situações existenciais assumida pelo homem ao longo da história (ELIADE, 2001, p. 20).
Essa dimensão na Noite dos Tambores Silenciosos é apresentada da seguinte
forma pelos depoentes:
Ela (a Noite dos Tambores Silenciosos) se manifesta como o próprio sagrado,
quando você, exemplificando, quando você está numa casa de candomblé, que
você está se preparando para uma festa, você não pode ter nenhuma relação sexual,
você não pode ter nenhum vínculo com bebidas, você não pode ter nada, você está
se preparando para o sagrado. O seu corpo está livre de qualquer coisa que possa
acontecer naquele momento. Muitas pessoas que se encontram no Pátio de São
Pedro (Pátio do Terço), como filhos de santo, como você coloca, especificamente,
estão preparados para isso. Então, naquele momento, eu estou me preparando para
receber o axé que muitas pessoas perdem no momento. Eu estou preparada para
receber o axé que o Tata Raminho de Oxossi está fazendo enquanto louvação para
42
Não encontramos unanimidade entre os entrevistados sobre a informação de que teria sido Paulo Viana o
idealizador da Noite dos Tambores Silenciosos.
43
O texto foi elaborado pela historiadora Carmem Lélis, pertencente a Secretaria de Cultura do Recife e se
fundamenta na pesquisa realizada pela própria autora e por Euclides Costa, citados em nossa referência.
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eguns e o que ele está deixando para as pessoas que ali estão assistindo, mesmo não
sabendo o que é que está se passando (Depoente 1).
Olhe, durante a cerimônia, você num queira nem saber o quanto é uma energia forte
e a aproximação... Eu mesmo sinto a minha mãe (Iansã), entendeu? É... Você tem
que ter um controle muito grande, vo tem que ser uma pessoa realmente
preparada porque o rei (o rei da Nação do Maracatu cujo a depoente participa) ele
tem deká, é pronto, mas é novo. Como eu sou muito mais velha, ele já passou
mal junto de mim; e uma dama do passo. Teve uma dama do passo, minha, que
quando terminou a cerimônia ela desceu chorando, passando mal e eu... Eu disse...
Eu fiz dizer: se controle que eu aqui. Porque ela não tava ainda feita
(iniciada), ela já tinha bori
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, mas não tinha feito à obrigação maior, e a (dama do
passo) principal teve que faltar nesse dia por que adoeceu mesmo por causa do
desfile, que é um dia antes. E ela chegou a sentir a reação todinha, entendeu? De
quase ter a incorporação, eu controlei com a minha mente, pra não haver, mas
assim mesmo, quando eu terminei, ela tava descontroladíssima. eu fiz o preparo
dela logo em seguida pra poder ela ser a substituta, entendeu? Porque realmente é
uma energia muito grande, você sente as entidades presentes, por que ali não vai
os eguns, é... como inquise, como Tatas que já foram, como as mãezinhas e
como Badia, entendeu? Vão também os escravos, entendeu? em você ensaiar,
você sente uma energia. Se ali naquele momento não tiver bebida, que eu não
costumo deixar, nos ensaio, ensaio sério, não, depois, se eles quiserem guardar às
alfaias, cada um pegue o seu destino, entendeu? Você já sente a energia quando
começa a cantar e chamar, vosente até luz do [...]. Quanto mais no Pátio do
Terço, nos Tambores Silenciosos, é uma energia muito grande. É por isso que eu
digo as pessoas que têm que ir pra li, isso eu digo na reunião, como eu disse a
Claudilene, e ela concorda com a minha visão, tem que estar todas preparadas para
isso, saber se estar preparado, por que senão se torna uma confusão, um
desentendimento, por que tem muitos ali presente, a rua já é aberta pra isso,
entendeu? E se você invoca, ainda mais (Depoente 2).
Olhe, pra mim o sagrado se manifesta da hora que a gente chega pra limpar o
espaço, né? Que eu chego cedo. [...] Mas da hora que a gente chega para aquele
espaço todo. Sem ninguém na rua, a não ser a igreja, né? E para mim, a igreja com
a presença de todas as pessoas que vieram antes de mim, até o último maracatu que
sai às cinco e meia da manhã. Então não tem um momento, embora a cerimônia
seja um momento de auge, né? De auge da noite, mas não é quando o sagrado se
manifesta, entende? Eu acho que a idéia, o ideário, o que está por trás do que é a
Noite, que é na verdade a nosso sentimento de ancestralidade, é isso o sagrado para
mim naquele espaço, naquela cerimônia. Que é a nossa reverência, nosso
agradecimento por tudo que as pessoas que ali passaram, sofreram... (Depoente 4).
Uns calafrios, umas coisas é… Por que ali está chamando, está chamando Sinhá,
Iaiá, está chamando Badia e os demais, Mãe Sã…, todos aqueles que passaram ali,
todos estão ali ao lado da gente, entendeu? (Depoente 5).
É quando eu estou cantando, quando os meninos estão tocando, né? Ele se
manifesta através de tudo isso. Quando eu estou passando aquela energia e
recebendo também. Então, ele está ali presente, né? Por que o Orixá é isso, é uma
articulação, é uma troca de energia. Os tambores eles não falam em letras, mas
falam em batidas, então, estão invocando. Então, ele se manifesta nisso, quando eu
tenho aquele retorno das pessoas (Depoente 8).
A manifestação do sagrado é identificada diferentemente para cada um dos
depoentes, mas, por sua vez, possibilita a identificação mais abrangente de alguns elementos
da hierofania contida na Noite dos Tambores Silenciosos. São eles:
44
Bori Segundo V. Berkenbrock, é o segundo rito no processo de iniciação no Candomblé e tem por objetivo
fortalecer a cabeça do iniciado para receber o Orixá. (1999, p . 440).
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a) a preparação realizada anteriormente pelos fiéis que vão à celebração, numa
manifestação de que o corpo tem que estar receptivo ao sagrado, daí a necessidade dos ritos
fechados para os eguns e também o processo de purificação do próprio corpo, através de
limpezas específicas, bem como uma preparação espiritual. É todo um processo pessoal que
antecede ao momento propriamente celebrativo que é coletivo;
b) a liturgia é formada por um conjunto de sinais visíveis e significativos do fato
valorizado que é celebrado. Estes sinais visíveis (o rito, a igreja, o Pátio, a casa das Tias, as
calungas, os pombos, os maracatus) e significativos dos mistérios ou dos fatos valorizados
constituem a expressão significativa dos fatos valorizados e celebrados. A liturgia é preparada
por um pequeno grupo, mas será vivenciada por toda comunidade. Se a preparação é pessoal,
a liturgia é um momento coletivo. No caso da Noite dos Tambores Silenciosos, a liturgia terá
como objetivo principal a celebração através da memória aos principais ancestrais da história
negra na cidade do Recife, bem como a sua evocação para se fazerem presentes naquele
momento. É durante esse ato litúrgico que acontece o reencontro, a ligação dos dois mundos,
o orum e o aiye, ou seja, o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, daí ser um momento de
muito axé;
c) a energia disseminada é bastante enfatizada no relato das yalorixás, como a
troca de energia existente durante a celebração e que motiva a preparação pessoal, pois as
mesmas sabem da importância em receber e principalmente em evitar qualquer energia
negativa que possa se apresentar no momento. Uma das depoentes chega até a relatar o que
acabamos de falar;
d) o espaço litúrgico está carregado de atributos histórico, religioso e afetivo,
tornando o Pátio do Terço o Centro do Mundo por estar repleto de significado, tornando o
local perfeito para o encontro dos dois mundos. Sobre esse elemento nos deteremos mais
adiante;
e) quem celebra esse momento remonta à memória dos antepassados, das
pessoas que se tornaram referência na história da luta pela permanência e resistência da
cultura e pela religião africana;
f) a unidade estabelecida pela celebração ritualística, ou seja, a comunhão que
acontece através da fé, da esperança, dos princípios fundantes do candomblé. A esse momento
também poderíamos denominá-lo de mistério. Mistério, não simplesmente porque a Noite dos
Tambores Silenciosos lida com o que é oculto, incompreensível ou secreto, mas por
manifestar uma realidade que está por trás dos sinais sensíveis e significativos, aquilo que é
contido, está oculto e ao mesmo tempo sendo revelado e comunicado através do rito;
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g) o canto, que revela o caráter festivo, alegre do ritual;
h) o momento de silêncio para introspecção, oração e pedido de bênçãos;
i) o rufar dos tambores das Nações de Maracatu como sinal de respeito e
louvação à ancestralidade, pelos eguns que, quando em vida, ajudaram a construir essa
história que se celebra. É nesse único momento que os tambores das Nações se manifestam
durante a celebração, pois até o presente momento estão em profundo silêncio. Os tambores
que são utilizados no decorrer da celebração são especiais e tocados pelos ogans provenientes
dos terreiros de candomblé, conforme pode ser constatado na foto da página XX.
Se por um lado nos deparamos com elementos que, a seu modo e em
determinado momento, demonstrarão a sacralidade, a hierofania da Noite dos Tambores
Silenciosos. Por outro, eles desvelam a existência de uma estrutura litúrgica contendo todos os
seus ritos simbólicos e, ao que nos parece, possibilitando aos depoentes representarem o que
M. Eliade vai identificar como uma “reatualização de um evento sagrado que teve lugar num
passado mítico, nos primórdios” (2001, p. 63). Mesmo não se tratando dos cultos aos eguns
realizados dentro dos terreiros, mas não deixa de ser uma releitura desses, realizados por este
“homem religioso”, em uma festa de tão rico significado cultural e social. Nesse sentido, o
mesmo autor vai definir o homem religioso como sendo aquele que vive
em duas espécies de Tempo, das quais a mais importante, o Tempo sagrado, se
apresenta sob o aspecto paradoxal de uma Tempo circular, reversível e recuperável,
espécie de eterno presente mítico que o homem reintegra periodicamente pela
linguagem dos ritos (ELIADE, 2001, p. 64).
Um olhar mais atento poderia encontrar outros elementos simbólicos que
também integram a “cerimônia ritualística” da Noite dos Tambores Silenciosos manifestando
a sacralidade existente no ritual. Assim, esses elementos simbólicos ao manifestarem o
sagrado recebem outro significado, pois a hierofania tem a capacidade de torná-los outra
coisa,
contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do seu meio
cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra;
aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada mais a
distingue de todas as demais pedras. Para aquele a cujos olhos uma pedra se revela
sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural. Em
outras palavras, para aqueles que m uma experiência religiosa, toda a Natureza é
suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica. O Cosmos, na sua totalidade,
pode tornar-se uma hierofania (ELIADE, 2001, p. 18).
Nessa perspectiva, não os elementos identificados sofrem essa variação de
significado, o local da hierofania, no caso, o Pátio do Terço também é afetado. Conforme o
pensamento de M. Eliade, o sagrado opera uma transformação nas coisas do mundo, em toda
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natureza. Sendo assim, ele propicia uma oposição entre o espaço sagrado – o único que é real,
que existe de fato – o todo o resto, a extensão informe que o cerca (2001, p. 25).
O pensamento de M. Eliade nos propicia uma melhor compreensão do ponto de
vista dos depoentes ao apresentarem o Pátio do Terço como sendo um espaço sagrado.
Segundo o autor, a terra habitada por um povo é sempre santificada: ocorre a demarcação de
um território que se opõe ao resto do universo. Assim, é possível dizer que a experiência
religiosa de não-homogeneidade do espaço, que permite demarcá-lo, constitui uma
experiência primordial, comparável a uma “fundação do mundo”, pois
a revelação de um espaço sagrado permite que se obtenha uma ponto fixo,
possibilitando, portanto, a orientação na homogeneidade caótica, a fundação do
mundo, o viver real. A experiência profana, ao contrário, mantém a homogeneidade
e portanto a relatividade do espaço (2001, p.27).
Segundo M. Eliade (2001) na extensão homogênea e infinita não é possível
nenhum ponto de referência e, portanto, nenhuma orientação pode ocorrer. Um determinado
povo se constitui como tal e encontra sua unidade ao se pensar como povo de um determinado
deus ou pertencente a uma linhagem de um determinado ancestral. Para existir, ele precisa
encontrar sua terra, e esta pode ser a terra prometida, a que desde sempre lhe estava
designada pelo poder sagrado. O autor afirma que “todo espaço sagrado implica uma
hierofania, uma irrupção do sagrado que tem como resultado destacar um território do meio
cósmico que o envolve e o torna qualitativamente diferente” (2001, p. 30).
Desta forma podemos compreender a construção simbólica do Pátio do Terço,
por parte dos depoentes, como sendo esse lugar mítico e para eles repleto de significado
“hierofônico”, pois “a instalação num território equivale à fundação de um mundo” (ELIADE,
p. 46).
A hierofania revela, portanto, um ponto fixo, um centro. Nada se pode fazer sem
uma orientação prévia e toda orientação implica a aquisição de um ponto fixo. Por essa razão,
M Eliade (2001) defende a idéia de que o homem religioso, em todas as sociedades, se
esforçou por colocar-se no centro do mundo e que “para viver no mundo é preciso fundá-lo
e nenhum mundo pode nascer no caos da homogeneidade e da relatividade do espaço
profano” (2001, p. 26). Para viver no mundo é preciso marcá-lo, demarcá-lo e, num certo
sentido, ele tem mesmo de ser criado, definindo-se sua extensão e seus limites. Fora desse
mundo demarcado reina o caos. Por isso todos os povos marcam suas fronteiras e consideram
seu território como algo sagrado.
A experiência do sagrado torna possível a “fundação do mundo”: lá onde o sagrado
se manifesta no espaço, o real se revela, o mundo vem à existência. Mas a irrupção
do sagrado não somente projeta um ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço
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profano, um centro, no caos; produz também uma rotura de nível, quer dizer, abre a
comunicação entre os níveis smicos (entre a terra e o céu) e possibilita a
passagem, de ordem ontológica, de um modo de ser a outro. É uma tal rotura na
heterogeneidade do espaço profano que cria o centro por onde se pode comunicar
com o transcendente, que, por conseguinte, funda o mundo, pois o centro torna
possível a orientatio (ELIADE, 2001, p. 59).
Segundo M. Eliade (2001), a experiência religiosa é, assim, desde o início uma
experiência de construção do mundo. O sagrado constitui, para o homem religioso, o real por
excelência, ao mesmo tempo poder, eficiência, fonte de vida e fecundidade. É interessante
observar que, a esse respeito, as sociedades modernas não se diferenciam substancialmente
das sociedades tradicionais, o homem moderno também está constantemente realizando um
esforço de constituição de seu universo, que envolve o mesmo trabalho básico de distinção, de
separação de um “nós” em relação aos “outros”.
Ainda temos de organizar nossos limites, embora os limites do mundo tenham se
ampliado muito, pois fora deles reina o desconhecido e igual temor diante do caos. Mesmo
para aqueles que acreditam que não há hoje nem pequenas distinções e que o universo
conhecido envolve o planeta como um todo, resta o temor do que se passa fora da própria
terra, pois o que é desconhecido sempre é angustiante para o ser humano, sempre é uma
manifestação do caos. O medo do desconhecido, que surge como ameaça, parece estar
presente em todos os povos e a via religiosa é, portanto, uma forma de lidar com o
desconhecido, enfrentando o medo e o que ele desperta à medida que organiza um mundo
mais seguro para se viver.
Outro ponto importante apontado por M. Eliade ao lembrar que, historicamente e
de acordo com a crença religiosa, o cosmo se constitui como tal porque foi previamente
instituído pelos deuses, é obra deles ou está em comunicação com eles. Essa é a crença
presente em toda a sociedade, por mais que variem os conteúdos das histórias que cada povo
conta (2001, pp. 59– 60).
Da perspectiva das sociedades arcaicas e defendidas por M. Eliade, “tudo o que
não é o nosso mundo não é ainda um mundo. Não se faz nosso um território senão criando-o
de novo, quer dizer consagrando-o” (2001, p. 34). Isso pode ser detectado tanto na história das
civilizações foi assim, por exemplo, que os conquistadores espanhóis e portugueses
tomaram posse, em nome de Jesus Cristo, dos territórios que haviam descoberto e conquistado
é nessa perspectiva que também compreendemos a Noite dos Tambores Silenciosos.
Podemos dizer que os “participantes esclarecidos” desta celebração ritualística tomam posse
publicamente, de um espaço que lhe foi negado, enquanto negro, enquanto integrante do
90
candomblé, enquanto perseguido, excluído e marginalizado pela sociedade. Tudo o que foi
negado no passado é hoje re-elaborado na tomada de posse simbólica do Pátio do Terço.
Nessa perspectiva, podemos compreender um pouco mais o arcabouço simbólico
atribuído pelos depoentes ao Pátio do Terço, seja pela presença histórica das Tias, por
qualquer criação mítica elaborada e tantas outras fronteiras estipuladas pelos fiéis para
garantir seu espaço, concebendo-o como sagrado ao longo dos anos e, ao mesmo tempo,
reforçando coletivamente o seu significado simbólico. Ressaltamos, aqui, que não buscamos
encontrar as fundamentações históricas para as atribuições dadas pelos depoentes ao Pátio do
Terço, mas sim o simbolismo que elas envolvem, as quais buscamos demonstrar ao longo do
texto.
Se, por um lado, temos a elaboração coletiva de um ritual que, a cada ano, vai
renovando, vai sendo re-elaborado e reforçando sua simbologia de espaço sagrado com o
ritual da Noite dos Tambores Silenciosos; por outro lado, a mesma preparação que é realizada
na vivência religiosa nos terreiros, a encontramos parcialmente para Noite dos Tambores
Silenciosos ao se resguardarem ou se absterem das bebidas alcoólicas, das relações sexuais e
tantas outras, para que possam participar plenamente da celebração sem que possam sofrer
qualquer tipo de conseqüência ou castigo por parte dos eguns.
Quando você está numa casa de candomblé, que você está se preparando para uma
festa, você não pode ter nenhuma relação sexual, você não pode ter nenhum vínculo
com bebidas, você não pode ter nada, você está se preparando para o sagrado. O
seu corpo está livre de qualquer coisa que possa acontecer naquele momento
(Depoente 1).
Os cabeças principais têm o resguardo, têm a obrigação, entendeu? [...] m as
oferendas e no dia dos Tambores, os cabeças que participam de obrigação com
certeza eles tão resguardados, tanto sexualmente como de bebida, pra poder
pertencer à Noite dos Tambores, que na medida que você é da religião e é invocado
os eguns, entendeu? Ali pode haver tudo (Depoente 5).
Se você não estiver preparado, o que pode acontecer ali, pode acontecer um encosto
de um egum e você não sabe a avaria ou que pode, o transtorno que pode causar.
[...] É tanto que, você veja, aquela quantidade de pessoa exigida era por conta disso,
porque os que iam pra li, iam todos preparados, de corpo limpo, tal, tal... e hoje o
risco que corre é isso, você ir pra li, você não sabe a mulher que está mestruada,
que é um perigo, você não sabe qual a que foi,... que deu uma voltinha no motel,
você não sabe qual foi a que acendeu um cigarro de maconha e fumou ali, que
cheirou um pó (Depoente 7).
Aqui nos deparamos com a preparação e vivência do sagrado de nossos
entrevistados, pois se existe a preocupação de cada um deles em estarem aptos a receberem o
axé disseminado no ritual, existe também o interesse que o grande público também assim o
fizesse e o vivenciasse. Se falamos do rito, dos mitos, então, aqui nós encontramos os
interditos que permeiam a vivência dos fiéis que participam da Noite dos Tambores
91
Silenciosos. Esses interditos são praticados com regularidade dentro dos terreiros de
candomblé na preparação de qualquer ritual religioso e não poderia ser diferente na
preparação para a Noite dos Tambores Silenciosos, que na cerimônia serão evocados os
orixás e os eguns e, como tal, os interditos também estão presentes em todas as manifestações
religiosas, como fruto do esforço humano ao se relacionarem com o sagrado no processo de
transcendência em busca do sentido último da vida humana.
Todo esse conjunto vasto de crenças e práticas religiosas e gicas, ritos, mitos
e interditos é de crucial importância para a vivência dos homens no mundo, pois fornece um
quadro explicativo sobre a natureza do universo e o sentido da vida.
O homem religioso só pode viver num mundo sagrado porque somente um tal
mundo participa do ser, existe realmente. Essa necessidade religiosa exprime uma
inextinguível sede ontológica. O homem religioso é sedento do ser. O terror diante
do caos que envolve seu mundo habitado corresponde ao seu terror diante do nada
(ELIADE, 2001, p. 60).
É sobre essa sede ontológica que nós iremos nos deter agora. Na tentativa de
demonstrar o que origina esse esforço do homem religioso a criar, transmitir e re-elaborar
suas experiências.
3.4 O ser humano e a sua relação de transcendência
Segundo H. Vaz, o corpo próprio e o psiquismo não são horizontes últimos do
homem. uma insaciabilidade do desejo e uma inesgotabilidade do imaginário que nos
fazem reconhecer uma superabundância ontológica do sujeito. Esta superabundância remete-
nos para além do horizonte finito do mundo. Ela nos remete a um horizonte infinito, ou seja,
nos remete à Metafísica. A Metafísica surge, portanto, da insaciabilidade do desejo e da
inesgotabilidade do imaginário do ser humano. A categoria estrutural de “espírito” se
constitui, deste modo, como o fundamento último que atravessa e é imanente ao corpo e ao
psiquismo. O Espírito é, portanto, o núcleo mais interno e fundamental da estrutura do ser
humano. O ser-espírito estabelece o vínculo entre a Antropologia Filosófica e a Metafísica. A
concepção de ser humano da Antropologia Filosófica é solidária com a concepção metafísica.
O Ser é o fundamento absoluto do outro e do mundo.
A dialética do espírito mostra, pois, que a unidade estrutural corpo-psicquismo-
espírito é uma unidade segundo a forma (correspondendo à forma aristotélica,
psyché ou anima), que deve realizar-se na relação dinâmica e ativa do homem com
a universalidade do ser. Em outras palavras: a abertura transcendental ao horizonte
universal do ser (como Verdade e Bem) impõe ao homem a tarefa de sua auto-
realização segundo as normas dessas universalidade (VAZ, 1991, p. 223).
92
Ao tentarmos realizar um paralelo entre o discurso de H. Vaz e a Noite dos
Tambores Silenciosos, podemos inferir que o evento e seus aspectos econômico, estrutural,
social, psicológico, histórico, geográfico não esgotariam o “fundamento último” da existência
de tal cerimônia ritualística, pois a busca desse fundamento no discurso vaziano está no
núcleo ontológico do qual se originará a inextinguível sede humana pelo “ser”.
Para H. Vaz, o espírito é a estrutura mais íntima do ser humano. Segundo o
autor, o homem é um ser encarnado (corpo), como os outros (psiquismo) cujo núcleo
ontológico último é de natureza espiritual, ou seja, o homem é “espírito-no-mundo” (1991, p.
224).
O Espírito por ser encarnado, ou seja, espírito-no-mundo, se liga às
particularidades do mundo, sendo, portanto, finito. Mas, por outro lado, por ser espírito, o ser
humano possui uma abertura à universalidade.
No plano filosófico, a experiência do espírito é correlata à consciência racional.
A experiência espiritual se manifesta através da razão, da inteligência que se orienta em
direção à verdade, e através da vontade, da liberdade que se orienta em direção ao bem. Por se
manifestar através da inteligência e da vontade que são atividades que tendem aos objetos
verdade e bem, o espírito é homólogo ao Ser. Verdade e Bem se remetem um ao outro e são
atributos “transcendentais” do Ser. Deste modo, podemos afirmar que há uma marca na raiz
do espírito-no-mundo de algo que está para além do mundo. No discurso metafísico este algo
é o Ser, para os depoentes que mantivemos contatos, são seus Antepassados que dão unidade
ao grupo.
É uma noite muito sagrada e que tem uma importância muito grande, pois ali é
invocado os eguns. [...] As pessoa que tão de fora vêem só como carnaval, mas nós
que participamos não é só o carnaval (Depoente 2).
A Noite dos Tambores Silenciosos é um ritual, é uma cerimônia ritualística, é uma
cerimônia religiosa de reverência aos antepassados (Depoente 4).
A Noite é para celebrar aqueles que já foram (Depoente 5).
Se, por um lado, a estrutura psicossomática determina o espírito; por outro,
existe na natureza da inteligência e da vontade uma tendência à universalidade que está no
Ser. Deste modo, o espírito humano caracteriza-se por uma abertura ao nível de
universalidade. Todo o conjunto da Noite dos Tambores Silenciosos abre uma porta rumo ao
infinito, à transcendência.
O homem se move num horizonte finito. Este horizonte é o mundo. Contudo, é
na medida em que o ser humano percebe a pobreza e a finitude da inteligência e da vontade é
que irá reconhecer a existência do infinito. Entretanto, ele reconhece a sua finitude na
93
medida em que ele pode se comparar a algo infinito. Isso se devido ao fato de que na raiz
da inteligência e da vontade encontra-se uma abertura à Verdade e ao Bem. A Verdade e o
Bem remetem um ao outro e são atributos “transcendentais” do ser humano.
O Ser é na via da essência (inteligibilidade) e na via da existência (amabilidade).
O Ser por existir é objeto do amor, do desejo humano. O Ser na via da essência e na vida da
existência é o fundamento de tudo o que é. Na raiz do espírito humano deve haver uma
motivação para a busca do fundamento último. Este, por sua vez, deve estar presente de
alguma forma na raiz do espírito.
Algo defendido por M. Eliade e que pode ser atribuído à Noite dos Tambores
Silenciosos é que:
Essa sede ontológica manifesta-se de múltiplas maneiras. A mais evidente, no caso
específico do espaço sagrado, é a vontade do homem religioso de situar-se no
próprio coração do real, no Centro do Mundo: quer dizer, lá onde o Cosmos veio à
existência e começou a estender-se para os quatro horizontes, lá onde também
existe a possibilidade de comunicação com os deuses; numa palavra,onde se está
mais próximo dos deuses. [...] cada homem religioso situa-se ao mesmo tempo no
Centro do Mundo e na origem mesma da realidade absoluta, muito perto da
“abertura” que lhe assegura a comunicação com os deuses (ELIADE, 2001, p. 60).
uma marca na raiz do espírito-no-mundo de algo que está para além do
mundo. Este algo é o Ser. O que possibilita a pergunta: “O que é isso?” ou, se quisermos
relembrar a pergunta que o menino fez a sua mãe no mito da separação do céu e da terra
apresentado anteriormente “Mamãe, o que para além da terra?é o fato de a coisa ser
(existir), e ser algo (essência). O limite que determina a forma de ser é a essência.
A inteligência é um dos atos do espírito. Ela pressupõe o núcleo do espírito e sua
conexão com o Ser. A inteligência, por meio do espírito, possui uma abertura ao Ser. Em cada
ato da inteligência está pressuposta a afirmação do Ser.
O Ser, por ser uno, verdadeiro e bom, está fora do limite do mundo, pois esta é
região da finitude e da mutabilidade.
O ser humano é relativo, contingente e particular. O Ser é absoluto, necessário e
universal. A abertura humana ao Ser deve-se, portanto, a uma abertura ao universal. O
absoluto, o necessário e o universal não nos são dado imediatamente, ou se quisermos aplicar
a Noite dos Tambores Silenciosos, o sagrado não se apresenta claramente, ele está camuflado
no profano em todas as suas fases.
Entretanto, se a nossa inteligência busca o Ser, de alguma forma ele deve estar
enraizado no nosso espírito. Há, portanto, algo na nossa inteligência que é absoluto,
necessário e universal.
Sendo assim, a relação de transcendência seria
94
o itinerário dialético do sujeito ao buscar novas formas do seu auto-exprimir-se e da
sua autocompreensão na saída de si mesmo, no êxodo que o leva além das
fronteiras da sua finitude e do seu ser situado e o conduz a afirmar seu ser como
ser-no-mundo e ser-com-o-outro. Ora, é justamente no encaminhar-se para a
transcendência que o itinerário perfaz a reflexão total do espírito sobre si mesmo e
o sujeito pode reencontrar-se no nível mais profundo do seu ser, onde, enquanto
espírito, acolhe o Absoluto presente como Verdade (medida), como Bem (norma) e
o Ser (fim) a todo ato de inteligência e liberdade (VAZ, 1992, p. 96).
A relação natural da transcendência do espírito humano tende ao absoluto, ao
infinito, porque há uma marca imanente do infinito no espírito finito humano. no ser que é
finito, mas que tem em si a marca do absoluto, é que se torna possível a projeção a esse
infinito. A transcendência se fundamenta por meio de uma finitude que possui a marca do
infinito. Este, por sua vez, está referido ao finito. A cultura é atestado da transcendência do
homem e podemos concluir que o que presenciamos na Noite dos Tambores Silenciosos é um
exemplo dessa transcendência imanente ao ser humano, em busca de uma resposta ao caos
diante da realidade factual da morte.
A relação de transcendência resulta, na verdade, do excesso ontológico pelo qual o
sujeito se sobrepõe ao Mundo e à História e avança além do ser-no-mundo e do ser-
com-o-outro na busca do fundamento último para o Eu sou primordial que o
constitui e do termo último ao qual referir o dinamismo dessa afirmação primeira. É
desse excesso ou dessa superabundância ontológica do sujeito, expressos
estruturalmente na categoria do espírito que procede, de resto, o dinamismo mais
profundo da História e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do
Absoluto que acompanha o curso histórico e que é a atestação mais evidente da
presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito (VAZ,
1992, pp. 93-94).
A transcendência é, portanto, o movimento do próprio espírito, através da
reflexividade que torna possível ir além do mundo, levando-nos a constatar que cada
embaixada de Maracatu que se dirige à porta da Igreja do Terço para fazer a sua reverência
está levando consigo os representantes de um povo numa viagem simbólica de retorno à sua
origem ancestral, possibilitando assim a unidade do clã e ao mesmo tempo fortalecendo a
identidade de um povo. A nós, cientistas da religião, não importa quem elaborou ou re-
elaborou a Noite dos Tambores Silenciosos, o nosso esforço e tentar compreender o fenômeno
religioso que se faz presente na vida do homem e que, embora as expressões técnico-
científicas e racionalistas da sociedade empurram o sagrado para fora de muitos âmbitos, estas
não o suprimem. Fenômeno não menos importante e detectado por M. Eliade ao afirmar que
mesmo o homem a-religoso “o homem moderno que se sente e se pretende a - religioso
carrega ainda toda uma mitologia camuflada e numerosos ritualismos degradados” (2001, p.
166). Essa camuflagem esconde expressões seculares que procuram tocar todas as zonas de
interrogação e espanto do homem e do mundo.
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Nesse sentido, um tipo de secularização que corrói a experiência religiosa de
qualquer natureza que seja, mas o sagrado conserva sempre algo de arcaico, de fora do
cotidiano, nas suas formas.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história do Brasil foi marcada por um processo de opressão e violência que
deu à religião um lugar de destaque na sociedade, pois permitia a seus fiéis, ou melhor, aos
grupos dominantes, garantirem seu poder, racionalizando-o e atribuindo, muitas vezes, a
ordem social à “vontade divina”. Inicia-se assim um longo processo de desrespeito a todas as
nações indígenas que já habitavam a Terra da Santa Cruz e posteriormente a outras religiões
que aqui chegaram, dentre elas, a religião de matriz africana.
O Candomblé durante muito tempo foi rechaçado, sendo imposto aos seus fiéis a
conversão ao catolicismo. A maneira que encontraram para manter viva a religião arrancada
da África junto com suas vidas originou o que hoje conhecemos como sincretismo religioso.
Ainda encontramos na cidade do Recife Yalorixás e Babalorixás que se afirmam católicos,
mas não deixam de cultuar as forças da natureza e os seus antepassados tanto na forma dos
orixás, quanto na dos eguns. Nem mesmo as chicotadas, as perseguições, as prisões, os
preconceitos e todas as injúrias fizeram com que o “povo do santo” abandonasse suas práticas
religiosas.
Durante o período de repressão da era Vargas, na cidade do Recife personificado
em Agamenon Magalhães, o Candomblé vai camuflar-se nos bailes, nos ensaios e cortejos de
maracatus, nas confrarias e tantas outras formas. Isso foi possível graças ao aspecto da
socialização humana através da cultura que propicia ao ser humano a transmissão e a
reelaboração de seus costumes e de suas práticas. Esse foi um elemento que podemos
constatar no estudo realizado e estamos fadados ao erro se pensarmos a Noite dos Tambores
Silenciosos como um evento estático.
Ao longo de nossa pesquisa, detectamos elementos que nos apontam para uma
outra realidade, mais dinâmica, múltipla e criativa. A Noite dos Tambores Silencioso é um
evento dinâmico por estar num processo contínuo de transformação, de reelaboração; É
múltiplo devido à dinamicidade assumida pela cultura ao longo do tempo, como conseqüência
da natureza humana; Por fim, é criativo por ser produto humano, e segundo a linha de
pensamento de M. Eliade (2001), o homem buscará qualquer meio para se restabelecer na
fonte da realidade primordial, ou seja, é o eterno presente do acontecimento mítico que
tornará possível a duração profana dos acontecimentos históricos.
O que presenciamos na celebração ocorrida no dia quatro de fevereiro de dois
mil e oito e a qual buscamos transcrever no segundo capítulo, embora tenhamos consciência
que muitas coisas escaparam aos nossos olhos, é a existência de duas realidades distintas, a
97
sagrada e a profana, que não se excluem, mas que se completam numa realidade, ou seja,
imbuída na Noite dos Tambores Silenciosos existe uma síntese mítica de unidade que
ultrapassa o dualismo ocidental, ao qual estamos acostumados.
Essa realidade aparentemente dicotômica é encontrada ao longo da linha do
tempo por nós realizada. O que Dona Santa celebrava no adro da Igreja de Nossa Senhora do
Rosário dos Homens Pretos, camuflado pelo colorido e batuques do seu Maracatu, foi
realizado discretamente pelas Tias, divulgado por Paulo Viana e intensificado por Raminho de
Oxossi. Retomamos a idéia de que a Noite dos Tambores Silenciosos não é estática, ela passa
por momentos de ressignificações, sofre influências, pois é dinâmica, e como tal trata-se de
um processo histórico que vale a pena ser pesquisado.
Segundo o pensamento de M. Eliade (2001), a manifestação do sagrado só
acontece numa realidade concreta, situada na história. Essa é a forma como buscamos
compreender o processo histórico e cultual pelo qual passou a Noite dos Tambores
Silenciosos. Seja Dona Santa, as Tias do Terço, Badia, Paulo Viana, Raminho de Oxossi ou
quem vier a assumir posteriormente o protagonismo da celebração, fizeram, fazem e farão o
que for necessário para responder às necessidades sociais impostas por seu tempo, mas a
“reverência” aos ancestrais, supomos, que continuará a ser realizada. Pois, como vimos, o
sagrado conservará algo que lhe é peculiar e que possui sua raiz na sede ontológica do homem
que deseja estar situado no “Centro do Mundo”. É o posicionamento nesse local que
possibilita ao indivíduo a comunicação com o transcendente.
De acordo com os depoimentos orais que recolhemos, as experiências religiosas
vividas durante a celebração são diversas e vão do simples fato rememorativo, passando pelo
simbólico, até sentirem a presença dos eguns. A religiosidade encontrada na Noite dos
Tambores Silenciosos é profundamente marcada por um conjunto de práticas também
encontradas nos terreiros, indicativas de uma espécie de contato que se procura ter
diretamente com as divindades e rogando para que elas sejam propícias e respondam às suas
preces. A legitimidade da religiosidade apóia-se na idéia de que os deuses, os ancestrais,
concedem graças aos fiéis que os agradam através de sacrifícios, oferendas ou pelo
comportamento, estabelecendo uma negociação dos homens com os deuses, com os
ancestrais.
Não podemos, também, perder de vista a significação dos elementos que
integram a Noite dos Tambores Silenciosos, pois foi através deles que as crenças na
ancestralidade puderam ser reafirmadas e reelaboradas, uma vez que constituem elementos
visíveis daquilo que se quer fazer crer.
98
Diferentemente das fases anteriores, atualmente, sem sombra de dúvida uma
forte mercantilização da Noite dos Tambores Silenciosos, tanto por parte dos órgãos públicos,
quanto pela indústria do turismo. Essa é uma lacuna que se junta a outras em nossa análise.
Embora tenhamos consciência de que nosso estudo tenha tido como foco a
complementaridade do elemento sagrado e profano que envolve a celebração. Como
afirmamos no início deste trabalho, diante da complexidade do tema é sempre oportuno
lembrar que se trata, aqui, de um recorte possível, podendo e devendo haver outros, pois
assim se faz ciência.
A nossa intenção não é de forma alguma buscar a origem da Noite dos Tambores
Silenciosos ou esgotar o assunto, trata-se apenas do início de uma longa caminhada de
pesquisa, diálogo e reelaboração no intuito de lançar luzes, apontar possíveis caminhos para a
Ciências da Religião na compreensão de uma celebração carregada de significados e
possuidora de uma espiritualidade profunda e provida de luz e sombra, melancolia e alegria,
na busca de unidade e na qual as Nações de Maracatus, como embaixadas reais, realizam seu
cortejo rumo ao transcendente.
Diante do atual contexto religioso brasileiro, caracterizado pelo pluralismo
religioso, e enquanto cientistas da religião, temos a especial responsabilidade na promoção do
diálogo inter-religioso. Não importa se a religião cristã ainda possua maior número de adeptos
em nossa sociedade ou se encontramos religiões de outras matrizes conquistando seu espaço,
essa é mais uma realidade que nos interpela enquanto cientistas na busca da compreensão do
fenômeno religioso em nossa sociedade, bem como a superar os possíveis preconceitos ainda
existentes. Devemos estar dispostos a aprender a dialogar e colaborar com todos aqueles que
compartem conosco suas experiências religiosas e abertos aos valores universais.
Motivados pelo diálogo inter-religioso devemos nos esforçar junto com outros,
para que as religiões sejam verdadeiramente fatores unificadores e libertadores, o que nem
sempre aconteceu no passado. Enquanto cientistas da religião, devemos fomentar o diálogo
entre as religiões, tornando-o um diálogo de vida, em que pessoas se esforçam por viver num
espírito de abertura, compartilhando suas alegrias e tristezas, seus problemas e soluções, tudo
aquilo que é constituinte da condição de ser humano. Um diálogo em que todos colaboram
tendo em vista o desenvolvimento integral e a libertação social das pessoas. Um diálogo da
experiência religiosa, em que as pessoas radicadas nas próprias tradições religiosas
compartilhem suas riquezas espirituais.
Para isso, o evento da Noite dos Tambores Silenciosos aporta vários elementos
que fazem pensar sobre uma unidade gerada silenciosamente entre e para além das diversas
99
tradições religiosas: quando se atinge o clímax e se toca, em silêncio, no sagrado do fenômeno
estudado, as pessoas que estão no Pátio do Terço sentem-se religadas por um misterioso liame
espiritual, que ultrapassa as formas religiosas, do mesmo modo que as dicotomias entre
profano e sagrado.
100
Referências
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de Cultura da Cidade do Recife, Departamento de Documentação e Formação Cultural,
Divisão Casa do Carnaval, Núcleo da Cultura Afro-brasileira, 2003.
103
ANEXO A – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
O(A) senhor(a) está sendo convidado(a) a participar, como voluntário(a), na
pesquisa intitulada A manifestação do sagrado na Noite dos Tambores Silenciosos, cujo o
principal objetivo é investigar e analisar, enquanto fenômeno religioso.
O presente estudo é orientado pelo professor Dr. Gilbraz de Souza Aragão,
coordenador do curso de Teologia e membro do colegiado do mestrado em Ciências da
Religião, da Universidade Católica de Pernambuco (rua do Príncipe, 526, Boa Vista CEP
50050-900 Recife PE Brasil; telefones: 081 2119-4000 e 081 2119 4169) e levado a
cabo pelo aluno do mestrado, Luiz Justino da Silva Júnior.
A metodologia para obtenção de dados para a pesquisa consistirá em ouvir, gravar e
transcrever fielmente, para posterior análise de discurso, os relatos dos voluntários sobre os
seguintes temas:
a) O que é a Noite dos Tambores Silenciosos (NTS)?
b) Qual a sua origem e como foi o seu desenvolvimento até os dias atuais?
c) Quem são os protagonistas da NTS?
d) Qual o significado da Noite dos Tambores Mirim?
e) Qual o sentido da participação dos Maracatus?
f) Como se desenvolve o ritual? Quem é invocado e por que?
g) A NTS corre algum risco de se transformar apenas num evento cultural,
fugindo assim de sua origem religiosa? Por que?
h) Quais são os principais desafios da NTS
i) Quais as perspectivas para o NTS?
Os pesquisadores garantem que os riscos são apenas de desconforto subjetivo para
os participantes da pesquisa assim como pretendem com a mesma, apenas e tão somente,
obter subsídios acadêmicos, os quais poderão servir de apoio para pesquisas na área das
ciências da religião ou alguma área afim.
Cada depoente tem a garantia de que, em qualquer etapa do estudo, terá acesso aos
pesquisadores responsáveis para esclarecimento de eventuais dúvidas, tanto diretamente
quanto através do Mestrado em Ciências da Religião, e/ou da Coordenação de Pesquisas, e/ou
do Comitê de Ética e/ou da Pró-reitoria Acadêmica PRAC, da Universidade Católica de
Pernambuco, podendo apresentar recursos ou reclamações através do telefone (081) 2119-
104
4369 (Secretaria dos Mestrados). As instâncias acima citadas encaminharão quaisquer
procedimentos julgados necessários.
É garantida, a qualquer momento, a liberdade da retirada do presente
consentimento e a conseqüente exclusão do estudo. As informações obtidas serão analisadas
em conjunto com as dos demais participantes, não podendo ser divulgada a identificação dos
mesmos. Não há nenhum tipo de compensação financeira relacionada à participação dos
depoentes. Estes últimos são convidados a comparecer no dia da defesa da dissertação.
Assim, sendo, declaro que obtive todas as informações necessárias para poder
decidir, de forma livre e esclarecida, sobre a minha participação na referida pesquisa.
Recife, ___ de_________ 2008.
____________________________
Assinatura do Participante
RG:
____________________________
Assinatura do Pesquisador
RG:
105
ANEXO B – PROGRAMAÇÃO DO CARNAVAL DE 2008 – p. 1
106
ANEXO B – PROGRAMAÇÃO DO CARNAVAL DE 2008 – p. 2
107
ANEXO B – PROGRAMAÇÃO DO CARNAVAL DE 2008 – p. 3
108
ANEXO B – PROGRAMAÇÃO DO CARNAVAL DE 2008 – p. 4
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