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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA
COORDENAÇÃO GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MARIA ISABEL DE BARROS BEZERRA ALVES MAIA
O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA E A PRÁTICA DA
RELIGIÃO EM ISRAEL
RECIFE/2008
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MARIA ISABEL DE BARROS BEZERRA ALVES MAIA
O EXERCÍCIO DA JUSTIÇA E A PRÁTICA DA
RELIGIÃO EM ISRAEL
Dissertação apresentada como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Ciências da
Religião, pela Universidade Católica de
Pernambuco.
Área de concentração: Ciências Humanas
Orientador: Prof. Dr. Paulo Ferreira Valério.
RECIFE/2008
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Quando a opressão tiver cessado, quando a
devastação tiver terminado e os que espezinham a
terra tiverem desaparecido, o trono se firmará sobre
a misericórdia e sobre ele, na tenda de Davi sentar-
se-á um juiz fiel, que buscará o direito e zelará pela
justiça
(Isaias 16,4d-5)
À meus queridos pais
Osvaldo de Azevedo Maia
(in memoriam)
Noemia Bezerra Maia
Ao Professor Paulo Valério,
O reconhecimento pela dedicação e
incentivo à pesquisa.
RESUMO
O Trabalho ora apresentado, analisa a relação entre o exercício da justiça e a prática da
religião em Israel, objetivando evidenciar o que existe de comum e de particular entre as duas
instituições. Examina a noção de justiça, pedra angular da vida pública e da teologia judaica, que é
expressa em todos os mandamentos, na literatura rabínica, no aspecto ontológico do “ser judeu”,
exigindo do homem um comportamento digno em todas as ações e circunstâncias da vida. Na história
da humanidade, o conceito de justiça antecede a idéia da ciência do direito. Toda a Bíblia é permeada
pela realidade da justiça colocada em prática pelo homem e por Deus: justiça humana, justiça divina.
A Bíblia ensina que é através da revelação da justiça que encontramos um dos aspectos essenciais da
relação entre Deus e o homem. A justiça de Israel se une à justiça de Deus na concretude da sua
história. Quer seja de Deus, quer seja de Israel, a justiça já não se identifica com um simples sistema
judiciário para regular e dirimir conflitos de interesses, pois, a realidade da aliança impõe o seu
próprio código de justiça a cada uma das partes envolvidas na questão. No contexto bíblico, a justiça
evoca a santidade, a adesão a Deus; o conceito de justiça é identificado com o conceito de perfeição,
santidade; por isto, o perfeito, o santo é justo. Iahweh, revela-se como rei-justo de Israel, como Deus-
justo. Por fim, este trabalho apresenta um conjunto das leis hebraicas, estabelecendo vinculação entre
o elemento sagrado e a justiça humana.
Palavras-chaves: justiça; religião; Israel; direito; lei
ABSTRACT
The Work, here presented analysises the relation between justice’s exercise and
Religion’s practice, in Israel, aiming at demonstrating which can be found out what there is in
common about and what is different between these two Institutions. It investigates, examines
the notion regarding to justice, Public life and Jewish theology cornerstone, which is
expressed, present in all commandments, in the rabbinical literature, in the “being Jewish”
ontological aspect, demanding from man a worthwhile behaviour in all whole life actions and
circumstances, situations. In Humanity’s History, Justice concept precedes Science of Law
idea. The whole Bible is pervaded by, through Justice’s reality, put into practice by man and
by God: human Justice, Divine justice. Bible teaches that it is, through the revelation
regarding to that one we find out one of the most essential aspects of the rapport between God
and man. justice in Israel – Israel’s justice – is bound up, tied to God’s justice, in its – Israel’s
– History concreteness. Either God’s One – justice – either Israel’s one, – justice – is no more
identified with a mere, simple Judiciary System in order to rule and to nullify conflict
regarding to interests, for Alliance reality inflict, imposes justice’s itself, own code to each
one of the parts, enveloped in the question, in the pledge. In the biblical context, justice
concept implies, evokes sanctity, holiness, adhesion to God; the concept regarding to justice is
identified with the perfection that one, Sanctity, holiness; therefore, the perfect one, the holly
one is just. Yahweh reveals Him self as Israel’s just-King, as just-God At last, finally, this
Work presents, points out a Jewish Laws body, assemblage and aims at enlightening the
vinculation, the bond between the sacred element and justice.
Key words: justice; religion; Israel; right; law
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9
1 O DIREITO E A PRÁTICA DA RELIGIÃO NO ORIENTE ANTIGO: O EGITO ...... 15
1.1 Evolução geral do direito egípcio................................................................................... 15
1.2 O direito do antigo império ............................................................................................ 20
1.3 Segundo e terceiro períodos da evolução do direito egípcio.......................................... 22
1.4 A religião........................................................................................................................ 24
2 O DIREITO E A PRÁTICA DA RELIGIÃO NO ORIENTE ANTIGO: A
MESOPOTÂMIA............................................................................................................ 27
2.1 As coleções jurídicas cuneiformes ................................................................................. 27
2.2 O direito babilônico: o código de Hammurabi............................................................... 31
2.3 Código de Hammurabi e as leis de Israel ....................................................................... 38
3 A LEGISLAÇÃO MOSAICA: FONTE DO DIREITO ................................................. 41
3.1 Conceitos de fonte do direito.......................................................................................... 41
3.2 Classificação das fontes do direito ................................................................................. 42
3.3 Conceitos de direito natural e positivo........................................................................... 43
3.4 Legislação mosaica: fonte do direito.............................................................................. 47
3.5 A influência das leis relevadas no direito ocidental....................................................... 53
4 DIREITO HEBRAICO................................................................................................... 66
4.1 Conceito e fontes ............................................................................................................. 66
4.2. A literatura rabínica........................................................................................................ 71
4.3 Características do direito hebraico ................................................................................. 74
4.4 Coletâneas de leis ........................................................................................................... 75
4.5 Sistema judiciário israelense ........................................................................................... 78
5 RELAÇÃO ENTRE JUSTIÇA E RELIGIÃO EM ISRAEL .......................................... 83
5.1 A idéia de justiça e religião no antigo Oriente ............................................................... 83
5.2 Evolução do conceito de justiça no Antigo Testamento ................................................ 91
5.3 A justiça e o direito......................................................................................................... 95
5.4 As instancias judiciais na Bíblia ................................................................................... 99
CONCLUSÃO....................................................................................................................... 107
REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 112
9
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa, na linha da atual atenção dedicada à abordagem crítica da
religião nas culturas que antecederam a Era Cristã, cuida em investigar e analisar a relação
entre o exercício da justiça e a prática religiosa em Israel. Pretende identificar os princípios da
religião judaica, notadamente os expressos no Antigo Testamento, que deram origem à
legislação em vigor em países do mundo ocidental moderno. A pesquisa intenta evidenciar,
também, a atualidade da concepção antigo-oriental e bíblica de justiça.
Como bem leciona France Farago (2004, p. 89), a justiça (tsédaqah) é uma
categoria fundamental da Bíblia hebraica e o direito (mishpat) um dos fundamentos da
concepção vetero-testamentária de Deus. É através da justiça e do direito que se pensam as
relações do homem com Deus e dos homens entre si, sendo o conceito de justiça ao mesmo
tempo moral, jurídico e religioso, sem que se possa separar um aspecto dos outros, pois, para
o povo hebraico, vive-se a vida inteira diante de Deus, numa relação de aliança com ele.
A fé judaico-cristã exerceu profunda influência na formação cultural do mundo
ocidental moderno. Suas concepções definidas pela decisiva ação dos Padres da Igreja
moldaram o estabelecimento da ordem estatal, oferecendo um contributo definitivo para o
exercício das modernas noções de justiça. É inegável que em sua base encontram-se dados de
algumas culturas já firmemente estabelecidas antes que a judaica se solidificasse. Tais pontos
foram absorvidos pelo povo da aliança, na sua busca incessante pela justiça, como afirma o
biblista Léon Epsztein: “o reino da justiça constitui um dos objetivos essenciais de todos os
sistemas morais que atingiram certo grau de evolução. Esta observação de ordem geral parece
aplicar-se muito especialmente ao judaísmo que, como se sabe, atribui importância primordial
à justiça social” (EPSZTEIN, 1990, p. 7).
Léon Epsztein salienta que (1990, p. 7-8), Simão Gamaliel um dos grandes
rabinos de outrora, defendeu o fato de que a justiça é o primeiro dos três grandes pilares –
justiça, verdade e paz -, para garantir a continuidade da sociedade humana. Lembra ainda o
citado autor, que segundo Albert Einstein, o desejo de dar a cada um a parte que lhe cabe - o
amor à justiça – no judaísmo chegava quase ao fanatismo; enquanto que, para o economista e
sociólogo norte-americano Louis Wallis, a história do povo judeu era, em grande escala, uma
série de reações contra a injustiça econômica.
Convém lembrar que o conceito de justiça na Bíblia não se resume à justiça social,
é bem mais amplo: a justiça é “sobretudo a qualidade que faz que um poder, um título, um
10
ato, um acontecimento, um objeto se conformem com o que o direito, os costumes ou a
essência dos seres exigem” (LIPINSKI, apud WÉNIN, 2006, p. 163).
O povo de Israel foi profundamente marcado pelas culturas egípcia e
mesopotâmica, cujo registro é conservado pela Bíblia, ainda que modificado.
Observa-se que, a partir da noção da deusa Maât, no Egito, até o Deuteronômio e
os Códigos dos Estados modernos, a presença contínua de valores religiosos a disciplinar o
proceder humano, estabeleceu uma estreita ligação entre a moral de origem religiosa e a
instituição de normas dirigidas à sociedade humana. Maât era considerada a personificação
de valores como ordem, justiça e verdade, representava papel preponderante e estava
intimamente ligada aos dois principais deuses, , o deus do sol, e Osíris, o deus da morte.
Pode-se afirmar, com razoável certeza, que da religião brotaram as principais instituições
sociais, políticas e econômicas a ponto de quase se poderem identificar estas com os
princípios religiosos. Não se pode esquecer que – à semelhança de outras culturas - a plêiade
de deuses reverenciados é representativa dos temores e desejos que acompanham o homem
em toda a sua existência.
Com referência, aos códigos de leis no Oriente Próximo antigo, Jean-Louis Ska -
nos traz a conclusão de E. Otto: “O berço da democracia moderna não se encontra somente
em Atenas (e em Roma), mas em Jerusalém. O futuro de nossa liberdade dependerá de nossa
vontade e de nossa capacidade de lembrarmos dessa origem”(MIES, 2006, p.18). Essa tese
também é defendida pelo próprio Ska, quando afirma:
Costuma-se fazer derivar o direito ocidental do direito romano. Alguns,
sobretudo no mundo anglo-saxão, acrescentam também a influência do
velho direito germânico. Mas muito poucos falam do direito bíblico. No
entanto, ele também teve sem dúvida de modo indireto, uma influência
decisiva na evolução do direito ocidental. Foi em parte pela vertente do
direito canônico que essa influência se fez sentir. Deste ponto de vista, a
reforma de Gregório VII (papa de 1073 a 1085) foi, de acordo com a opinião
de um especialista da questão como Harold J. Berman, um dos momentos
decisivos da historia do direito ocidental. O Dictatus Papae (1075) teve
repercussões sobre todas as constituições jurídicas da época. Um outro
especialista do Direito, François Ost, mostrou que é possível traçar uma
linha entre o monte Sinai onde Moisés transmite a Israel a lei de YHWH seu
Deus, a colina de Pnyx, em cuja encosta se organizou a democracia
ateniense, e o Campo de Marte, onde se elaborou o direito da revolução
francesa (MIES, 2006, p. 20).
Ska deixa bem claro no trabalho já citado, que é possível encontrar no Antigo
Testamento idéias modernas de um direito que se fundamenta sobre o consenso de todos os
membros que formam a comunidade jurídica, e, ao mesmo tempo, de uma comunidade que se
baseia no direito reconhecido por todos e não apenas no “poder” exercido pela autoridade,
11
assegurando o princípio jurídico instituído constitucionalmente, em virtude do qual todos são
iguais perante a lei.
O termo “justiça” tem uma forte conotação legal. De notar, que o conceito de
justiça na Bíblia extrapola os tribunais de justiça e alcança a vida cotidiana. A Bíblia se refere
a “fazer justiça”: “Protegei o fraco e o órfão, fazei justiça ao pobre e ao necessitado” (Sl
82,3); “praticar a justiça e o direito vale mais para Iahweh que os sacrifícios” (Pv 21,3).
Ressalte-se que reis e governantes devem ser instrumentos de justiça: “Ó Deus, concede ao rei
teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei” (Sl 72,1); “Davi reinou sobre todo o Israel,
exercendo o direito e fazendo justiça a todo o povo” (2Sm 8,15).
Como explica France Farago:
Contrariamente ao que ocorreu noutras partes do mundo antigo, a justiça
permaneceu, em Israel, eminentemente religiosa. Para os profetas, ela era o
atributo principal de Deus: eles só esperavam a justiça de Deus, cuja
natureza insondável não podia ser assimilada por alguma coisa friamente
racional. A Bíblia estabeleceu uma reaproximação entre o nabi, o profeta, e
o mechouga, o louco, ainda na época de Jeremias (século VII a. C.). Isso
porque os dois têm uma relação imediata no próprio fundo das coisas,
irredutível com a razão humana e com a racionalidade instrumental dos
poderosos. É a transcendência da justiça divina que pôde produzir esta
inversão dos valores mundanos ao ponto de fazer do pobre, o homem
despojado, nu, o homem sofredor, a figura do justo como é o caso de Isaías,
assim como, por outro lado, Israel acreditava em uma recompensa daqui de
baixo – em riqueza e em felicidade – àquele que observa os mandamentos
divinos (FARAGO, 2004, p. 85-86
).
A esse respeito, explicita ainda a Professora Farago:
Israel chamou de Reino de Deus o reino de justiça e de paz sobre a terra que
os profetas anunciavam com a condição de que a vontade dos homens fosse
direta e fiel à potência doadora de vida. O tempo hebraico é o cadinho onde,
pacientemente, se cria a humanidade, com o próprio preço dos velhos
hábitos que ela pode sempre endireitar pelo exercício do julgamento
(FARAGO, 2004, p. 87).
A forte interferência do fator religioso foi uma marca constante entre os povos
antigos, onde se confundia o poder político com o poder religioso. A lei era sagrada, ditada
pelos deuses. O governo teocrático considerava os governantes como representantes dos
deuses ou como os próprios deuses e o direito, uma das faces da religião. No dizer de Fustel
de Coulanges, o antigo direito não é resultante de uma única pessoa, pois impôs-se a qualquer
tipo de legislador. Nasceu espontânea e inteiramente nos antigos princípios que constituíram a
família, derivando “das crenças religiosas universalmente admitidas na idade primitiva desses
povos e exercendo domínio sobre as inteligências e as vontades” (COULANGES, 1975, p.
68). É sabido que, desde há um século, as descobertas arqueológicas realizadas no Médio
12
Oriente Antigo indicam a existência de um corpo legislativo muito anterior a Israel como
Estado e infinitamente mais abundante que o da Bíblia.
Um estudo comparativo entre esses códigos e a Bíblia demonstra que o direito
israelita, em boa parte, tem a sua fonte no conjunto dos costumes comuns a todos os povos do
Médio Oriente Antigo. O conhecimento de Israel se deu por meio dos cananeus e dos seus
laços originais com a Mesopotâmia.
Nossa pesquisa tem, essencialmente, um caráter bibliográfico em relação aos
textos antigo-orientais; no tocante aos textos bíblicos utilizamos os métodos de exegese e
hermenêutica, principalmente o histórico-crítico.
No primeiro capítulo deste trabalho, intitulado “o direito e a prática da religião no
Oriente Antigo: o Egito”, a nossa investigação priorizará o seu sistema jurídico, verificando-
se que a fonte costumeira parece ter sido suplantada pelo direito escrito, promulgado pelos
faraós, a quem cabia o papel principal na confecção das leis. Vale ressaltar que nenhum texto
legal do período antigo chegou até nós, no entanto, são inúmeros os excertos de contratos,
testamentos, decisões judiciais e atos administrativos encontrados, além da grande quantidade
de referências indiretas às normas jurídicas em textos sagrados, narrativas literárias e
inscrições funerárias. Analisaremos também o papel predominante que a religião
desempenhou em todos os atos da vida cotidiana dos egípcios, “os mais religiosos de todos os
homens”, segundo Heródoto.
No segundo capítulo, denominado “O direito e a prática da religião no Oriente
Antigo: a Mesopotâmia”, discorreremos sobre o conjunto de leis da região que nos legou os
mais antigos documentos legislativos escritos, onde a justiça identificava-se com o bom
funcionamento da administração, como entendia France Farago:
A justiça foi, em todos os lugares da antiguidade, uma conquista da razão.
Ela identificava-se, na Mesopotâmia, com o bom funcionamento da
administração. Era justo aquele que não contrariava nem os costumes locais,
nem as necessidades gerais. O ato de justiça era um ato de harmonização, de
sistematização, de repartição eqüitativa. Na verdade, a autoridade dos deuses
era evocada, mas a título muito secundário. Hammourabi recebeu o código
das mãos do deus Shamash, mas o espírito do código não deve nada à
divindade. Ele é inteiramente laico; é o soberano que legisla (FARAGO,
2004, p. 85).
Determinados artigos do Código de Hammurabi fazem indicação dos poderes do
rei, que como chefe, tem o dever de fazer com que reine na cidade a justiça, a ordem e a paz,
para proteção dos fracos e garantia de sua prosperidade. Através de Deus, o soberano declara
o direito como legislador ou juiz, anunciando a guerra ou concluindo tratados.
13
No terceiro capítulo, discorreremos sobre a Legislação Mosaica: fonte do
direito. Pela ordem das compilações legislativas antigas, entre o Código de Hammurabi
(aproximadamente 2.000 antes de Cristo), o Código de Manu (a data de promulgação de seu
código é aproximadamente 1000 anos antes de Cristo, entre o ano 1300 e 800 a.C.), o Direito
da Índia (mais ou menos 1000 anos antes de Cristo), situa-se a Lei de Moisés, o Pentateuco.
Analisaremos o grande contributo das leis reveladas que foram recepcionadas pelo direito
contemporâneo ocidental. Como muito bem ressalta Michel Villey,
Ora, não somente um grande número de nossas instituições (a sagração dos
reis, a proibição da usura, o regime do casamento) foi outrora emprestado
das fontes bíblicas, como também é provável que nossa atual idéia do
direito seja a herança do pensamento judaico-cristão mais do que do direito
romano (VILLEY, 1997, p. 86).
No quarto capítulo, apresentaremos o Direito Hebraico, por excelência um direito
religioso. Os judeus foram sempre um povo sumamente religioso, atribuindo suas leis a
Iahweh, o qual as revelou a Moisés, segunda a tradição. Em verdade, não se pode estudar os
hebreus, sem enfatizar a sua religião, a sua organização social, o seu patriarcado e o seu
direito, este sendo revelado por aspectos que se mesclam entre o jurídico e o religioso.
O direito hebraico, foi apresentado ao povo como um direito sagrado, veio de
Deus, foi revelado a Moisés. E como relata o Dt 34,10: “E em Israel nunca mais surgiu um
Profeta como Moisés – a quem Iahweh conhecia face a face”.
No quinto e último capítulo, apresentaremos a estreita relação entre justiça e
religião em Israel, analisando a evolução do conceito de justiça no Antigo Testamento. Para
que haja justiça, em primeiro lugar é necessário que exista alteridade, ser justo pressupõe
referir-se ao outro. Em segundo lugar, se caracteriza pela exigibilidade, é o que se pode exigir
por lei e por fim a última nota característica da justiça é a igualdade. Martin Buber, citando,
Agnes Heller, salienta que:
A criação do mundo é justiça, não uma justiça que recompensa ou
compensa, mas uma justiça distributiva, de doação. Deus, o Criador, confere
a cada um o que lhe pertence, cada coisa a um ser, quanto ao fato dele
próprio permitir que se torne inteiramente um ser... pela justiça divina...
dando a cada um o que ele é. Assim, justiça divina não é uma natureza que
pune ou recompensa, como tolamente as pessoas acreditam, uma tolice que
elas tomam por conhecimento. Que cada criatura se torne um “ser total”, é o
que estabelece a justiça divina (HELLER, apud BUBER, 1998, p. 97)
.
Ressaltamos, por fim, que de acordo com o contexto bíblico, o direito não
corresponde apenas à legislação, aos códigos jurídicos criados pela sociedade, mas determina
14
as relações interpessoais, de um direito, sobre o qual repousa acima de tudo a autoridade
divina.
15
1 O DIREITO E A PRÁTICA DA RELIGIÃO NO ORIENTE ANTIGO: O EGITO
1.1 Evolução geral do direito egípcio
A civilização do vale do Nilo tem uma longa história de cerca de quarenta
séculos, que se inicia há mais de 3000 anos a.C.: a evolução de seu direito passou por fases
ascendentes e fases descendentes, correspondendo em termos, às grandes mudanças do poder
dos faraós. Segundo Gilissen,
o nosso conhecimento do direito egípcio é baseado quase exclusivamente
nos atos da prática: contratos, testamentos, decisões judiciárias, atos
administrativos, etc... Os Egípcios quase nada escreveram de livros de
direito, nem deixaram compilações de leis ou de costumes. Mas não
deixaram de se referir frequentemente a “leis”; estas leis deviam ser escritas,
pois, em período de confusão, foram lançadas à rua, “espezinhadas” e
“laceradas”. Encontram-se, de resto, “Instruções” e “Sabedorias”, que
contêm os elementos da teoria jurídica tendentes a assegurar o respeito das
pessoas e dos bens (GILISSEN, 2001, p. 53).
O direito egípcio aparece desde o alvorecer das dinastias faraônicas, a partir do
período da unificação do Alto e Baixo Egito, sob o rei Menés, aproximadamente por volta de
3100. A começar do Antigo Império e principalmente após a organização da justiça sob a V
dinastia, o país já possuía tribunais, corte suprema formada por magistrados de carreira,
arquivos judiciários e instâncias. O trabalho legislativo surge com Bocáris (que reinou por
volta de 715 a.C. e constituiu a XXIV dinastia), em seguida, com o Código de Hermópolis,
datável paleograficamente do reinado de Ptolomeu II Filadelfo e com o edito de Horemheb,
que dificilmente pode ser comparado aos códigos mesopotâmicos, pois se tratava de
documento promulgado mais em vista de casos particulares. O Decreto promulgado pelo
célebre general Horemheb, já muito poderoso sob Tutancâmon e, em seguida sob Ai, a quem
sucedeu entre 1350 e 1340, procurava reorganizar o aparelho administrativo, criar tribunais
por todo o país e nomear juízes. O Decreto tinha também o objetivo de evitar a prática de
delitos e dirigia-se contra os administradores e depositários da força pública corrompidos,
culpados não só de desvio de bens, mas também de cobranças indevidas dos modestos
cidadãos.
Seguindo o argumento de Epsztein,
Foi dito no prólogo que “Maât veio, juntando-se” a Horemheb e que este
“gerou um plano em seu coração, para proteger o país”, para “combater o
mal e anular a mentira”. Em seguida, na primeira parte do Decreto, é
16
descrita toda uma série de injustiças e de medidas ordenadas pelo rei, a fim
de suprimi-las: medidas tomadas para impedir que se apossassem dos barcos
de transporte que serviam para a entrega de cargas devidas como impostos;
para vir em auxílio dos proprietários dos barcos dos quais haviam roubado
cargas destinadas ao rei; contra aqueles que impediam a entrega de cargas
devidas como impostos para o harém e para as ofertas divinas; para reprimir
as requisições das plantas Kt (provavelmente oleaginosas); para impedir a
extorsão das peles dos animais aos camponeses; contra a corrupção na
administração dos rendimentos; contra aqueles que se apropriaram
indevidamente dos cereais, dos legumes; para impedir que utilizassem de
maneira injusta o trabalho dos escravos (EPSZTEIN, 1990, p. 49-50).
O Decreto previa punições muito rigorosas para os culpados, especificando-se os
que estão ligados ao poder como os juízes prevaricadores, os soldados saqueadores, os
funcionários infiéis, que após a ablação do nariz, eram enviados para o exílio, na fortaleza de
Silé, onde a disciplina era férrea. Em se tratando de soldados que se apropriavam
indevidamente de peles de animais e não as tinham devolvido, aplicava-se ao culpado a lei, na
forma de cem lategadas e cinco ferimentos, submetendo-o ainda, ao confisco das peles.
O Egito não nos transmitiu até o momento nem códigos nem livros jurídicos; mas
foi sem dúvida, a primeira civilização na história da humanidade que aprimorou um sistema
jurídico que pode chamar-se individualista. O direito egípcio da época da III à V dinastia
(cerca de 3000 a 2600) e o da XVIII dinastia (1500-1300) parecem ter sido tão evoluídos e tão
individualistas como o direito romano clássico. Alguns pesquisadores atribuem a ausência de
códigos legais no Egito ao fato de que a ordem do soberano era considerada direito real e não
podia existir nenhuma lei escrita fora dele, hipótese ainda não comprovada.
Pondere-se que é constante a referência a Maât, que no entender de Gilissen,
aparece como uma noção supra-sensível, o modelo do direito não escrito,
que não se pode consultar e que também não é o produto de uma revelação
divina. Maât é o objetivo a prosseguir pelos reis ao sabor das circunstâncias.
Tem por essência ser o “equilíbrio”; o ideal, a esse respeito, é, por exemplo,
“fazer com que as duas partes saiam do tribunal satisfeitas. Como é neste
preceito que reside a “verdadeira justiça”, Maât tanto pode ser traduzida por
Verdade e Ordem como por Justiça propriamente dita (GILISSEN, 2001, p.
53).
Assim, o grande legado do Panteão egípcio, foi a deusa Maât, guardiã dos
tribunais, aparece como uma mulher que traz em sua cabeça a pluma de um avestruz. Esse
adorno representava para os egípcios o símbolo de justiça, de equidade, de verdade. Os
antigos viam a origem dessa significação no fato de que as plumas de avestruz seriam todas
do mesmo comprimento; esse, porém é um ponto de pouca importância, se ignorarmos o valor
do símbolo e sua função educativa na sociedade. A pluma de avestruz erguia-se sobre a
cabeça da deusa Maât, deusa da justiça e da verdade, a qual presidia a pesagem das almas; ela
17
servia igualmente de peso equilibrador da balança do julgamento. Tal como a deusa a que
serve de emblema, a pluma de avestruz significa a ordem universal fundada na justiça. As
plumas de avestruz, usadas na confecção dos espanta-moscas dos faraós e dos altos
dignatários, simbolizavam o poder tanto quanto a púrpura ou a toga em nossos dias,
representando e afirmando o alto grau de dignidade dos que podiam envergá-la, e o dever
essencial de suas funções que era o de observar a justiça.
Maât era considerada a personificação de valores como ordem, justiça e verdade.
Era o parâmetro da ordem do mundo instituída por Deus e era intimamente ligada aos dois
principais deuses, , o deus do sol, e Osíris, o deus da morte. Ela encontrava-se em relações
estreitas com o rei que tornava presente a ordem divina na terra, tendo como objetivo viver a
Maât em suas leis. Entendida como de importância análoga à “çedaqah” israelita e ao
logos” grego, esta idéia fundamental da sabedoria egípcia foi transmitida ao povo desde
meados do III milênio e até o fim da civilização egípcia. Segundo ensina Leon Epsztein,
Seu primeiro significado era de natureza cosmológica. Maât representava em
primeiro lugar, a ordem do mundo instituída por Deus. Tendo prevalecido no
Egito a idéia de equilibrio simbolizada pela balança, Maât significava a
regularidade, a relação harmoniosa dos diferentes elementos do universo,
sua necessária coesão, indispensável à defesa das formas criadas. Além do
mais, Maât determinava uma ética ‘que consiste em agir, seja qual for a
circunstância, de acordo com a consciência que se tem desta ordem
universal’ (EPSZTEIN, 1990, p. 29).
Ao tempo do Antigo Império, sob o reinado da monarquia absoluta, o faraó (casa
elevada: título que indica a sua função divina) considerava-se responsável pela ordem
cósmica e também pela ordem social. Mais que um simples rei, o faraó desempenhou no
Egito papel preponderante na evolução teológica da religião, em virtude de sua relação com
os deuses, em especial com o deus Sol, através de suas diferentes figurações: Ra, Horus,
Osiris. O faraó era também o administrador máximo, o chefe do exército, o primeiro
magistrado e o sacerdote supremo. No entanto, em determinados casos, era freqüente a
delegação da execução de suas decisões a uma corte constituída por: escribas, que registravam
os decretos, as transações comerciais e o resultado das colheitas; generais dos exércitos e
outros oficiais militares que organizavam as campanhas das guerras; Tjati (Vizir), primeiro
ministro que auxiliava o faraó nas mais diversas funções e os sacerdotes, encarregados de
prestar homenagem aos deuses. Na realidade, o faraó era considerado uma espécie de
“encarnação” do deus Horus.
Segundo Piazza,
18
já que o seu nascimento era milagroso, pois o faraó devia o corpo à sua mãe
natural, mas o espírito (Bha) a uma intervenção pessoal de Horus na sua
concepção, era tido como o chefe natural do culto e, por isso, a sua coroação
era precedida de uma “consagração” religiosa, como reconhecimento de sua
origem divina, o que se fazia de ordinário no templo do deus Ptah, em
Mênfis, pois este deus era reconhecido por todos como deus supremo
(PIAZZA, 1991, p. 71).
Após trinta anos de reinado do faraó era comum organizar-se uma festa, com a
finalidade ritual de restabelecer o seu vigor, de maneira a mostrar ao povo que o seu
governante ainda era capaz de manter-se à frente dos destinos da nação.
Maât era considerada o principal atributo do rei, encarregado por sua vez de
garantir o reino pela lei. Apesar de o rei ser o centro e a alma do estado, diante da extensão do
país e de novos encargos, passou ele a delegar parte dos seus poderes e respeitar determinadas
autonomias locais. É assim que a partir da III dinastia surge a função de vizir, chefe da
administração, com funções paralelas às do rei, que vive de Maât, pois tem de tentar realizá-la
na terra.
Ptahhotep, vizir sob Isesi, penúltimo rei da V dinastia (por volta de 2.450 a. C.),
mas, que na realidade parece datar da VI dinastia, redigiu as chamadas Máximas de
Ptahhotep, o mais antigo texto literário egípcio, onde são encontrados paralelos aos
Provérbios do Antigo Testamento, também apresenta de forma significativa o surgimento do
tema da justiça. Na busca da imortalidade, Ptahhotep volta-se para a retidão, para a equidade:
Se és orientador em via de transmitir diretrizes a elevado número de pessoas,
insiste em toda espécie de beneficência, até que estas diretrizes fiquem
isentas de todo mal. A justiça é útil, sua primazia perdura; não foi alterada
desde o tempo daquele que a criou e é castigado quem descuida das leis. O
que escapa ao ignorante é a baixeza nunca ter atingido o porto (se bem que)
o erro conquiste muitas vezes as riquezas. Segundo Ptahhotep, a única
virtude indestrutível, que não desaparece com a morte é a justiça: “O fim
chega, mas a justiça perdura”. A justiça que Ptahhotep apregoa deve
caminhar lado a lado com a imparcialidade: “Se és filho de membro do
corpo judiciário, encarregado de aplacar a multidão defende a
imparcialidade (?) da justiça (?). Quando falares, não propendas para um dos
lados...” (EPSZTEIN, 1990, p. 33).
Observe-se que é no Conto de Oasiano, o mais longo de todos os textos literários
egípcios do Médio Império, onde aparece da melhor forma a tomada de consciência em prol
da igualdade social e da exigência de realizar a Maât na terra, em favor do seu próximo, em
vez de fazê-lo em relação aos deuses. É muitas vezes citado entre as obras inspiradoras do
pensamento bíblico, e paralelos são estabelecidos entre este canto e os grandes profetas
israelitas, como Amós. O relato testemunha a solidariedade humana, diante do pobre e do
19
oprimido. Narra as desventuras de um pobre camponês Kunanup do oásis do Sal, que
transportando mercadorias para serem trocadas por víveres, foi espoliado por homem de
grande influência na corte, mas que apesar de todas as dificuldades encontradas procurou com
perseverança que a justiça lhe fosse feita. O conto finaliza com um julgamento muito
rigoroso: o agressor teria que prestar contas do que roubou, de todos os bens que possuía e
ainda ser entregue como escravo ao camponês.
Para Epsztein,
A moral que daí decorre é o direito do mais humilde de reclamar o que lhe é
devido, e que a verdadeira Maât exige aplicação efetiva da justiça. Este
longo relato mostra que “Maât-justiça não era uma sobrevivência formal da
ordem antiga”, mas a busca positiva de valor novo. O que, entretanto, parece
significativo para a evolução das idéias sobre a Justiça no Egito é o fato de
este conto ter logrado certa popularidade no Médio Império; caiu depois em
total esquecimento (EPSZTEIN, 1990, p. 43).
No período do novo Império, sob a XVIII dinastia, gerou-se o conceito de um deus
universal, o Sol, mas a idéia central da nova fé era representada por Maât, significando
“verdade”, que devia ser compreendida como adoração das forças da natureza e não como
atividade dos antigos deuses. Este período tinha seu Livro dos Mortos, chamado a Bíblia dos
antigos egípcios, o mais antigo livro ilustrado do mundo, escrito quase sempre em papiros,
trazia nome e títulos do morto, acompanhava-o no túmulo e tinha como finalidade
proporcionar-lhe a felicidade eterna.
Segundo Epsztein,
o 125º capítulo do Livro dos mortos, o mais importante, o mais conhecido e
interessante, comenta um desenho que representa a alma do defunto que
assiste ao ato de pesarem seu coração em uma balança, diante de Osíris. O
peso é Maât, ao mesmo tempo verdade, justiça, equilíbrio, eqüidade. A
vinheta contém uma declaração de inocência, uma especificação das faltas
que o defunto alega não ter cometido. Sendo muito longa a lista, citaremos
apenas uma parte, a que representa as faltas que nos parece mais
características
:
Não cometi iniqüidade contra os homens.
Não maltratei as pessoas.
Não cometi pecados no lugar da verdade
Não explorei o necessitado em seus bens.
Não prejudiquei nenhum escravo junto de seu senhor.
Não fraudei nas medidas de terrenos.
Nada acrescentei ao peso da balança
(EPSZTEIN, 1990, p. 54-55).
O texto do Livro dos Mortos foi excepcionalmente completado pelo Livro da
Sabedoria, de Amenemope, cujos preceitos são semelhantes aos evangélicos. O autor, escriba
20
que viveu por volta de 2000 antes de Cristo, dedicou o livro a seu filho caçula, expressando
preceitos úteis a uma boa convivência social, como também preciosas lições de moral para
ensiná-lo a viver de modo feliz neste mundo, fugindo sempre do mal.
Relata-nos Aracy Kablin que o livro
Começa recomendando a modéstia e compaixão: estende a mão ao
desgraçado e alimenta-o com o teu pão; sê calmo na presença de teus
adversários e inclina-te diante de quem te ofende; não te vingues de quem te
odeia; apóia-te no braço de Deus e tua humildade e doçura abaterão teus
inimigos; não cobices o bem alheio; sê justo em tudo quanto fizeres; - Deus
concede o sentido de justiça àqueles a quem ama. [...] Sê bom quando
receberes os impostos e não empregues balanças falsificadas quando pesares
o trigo – assim poderás dormir em paz e sentir-te feliz no dia seguinte. Não
desloques nenhum marco ao medires um campo, nem toques nos marcos do
campo pertencente a uma viúva. O culpado desses atos é opressor dos fracos
(KABLIN, 2004, p. 37).
Prossegue Kablin com as recomendações do Livro da Sabedoria:
Um pouco de pão todos os dias e um coração contente valem mais que
riqueza com remorso; não procures portanto a fortuna nem te queixes da
pobreza; cumula teus semelhantes de atenções; não rias do cego nem do
anão; nem faças mal ao paralítico. O homem é feito de palha e argila e Deus
é seu arquiteto. Todos os dias Deus destrói e constrói – sê portanto humilde
[...] Não separes teu coração de tua língua e Deus proterger-te-á com sua
mão;Deus odeia o hipócrita – nada lhe desagrada mais do que o homem com
duas línguas (KABLIN, 2004, p. 37-38).
A religião dos egípcios durante o novo império (1570-950), da 18ª a 21ª dinastia,
democratizou a idéia de imortalidade pessoal e de igualdade perante Osíris, juiz dos mortos.
Os mortos eram conduzidos para o mundo do além pelo Deus Anúbis, que aparecia
representado com cabeça de chacal. Portanto, neste período, a sobrevivência depois da morte,
antes privilégio da aristocracia e naturalmente, do faraó, estende-se agora a todo e qualquer
homem justo e inocente.
1.2 Direito do antigo império
As fases do direito individualista são marcadas por um estado jurídico muito
próximo do conhecido pelos Romanos nos séculos II e III da nossa era e do existente hoje: um
indivíduo isolado diante do poder, sem grupos ou hierarquias intermediárias, possuidor de
uma liberdade real para dispor da sua pessoa e dos seus bens. Como exemplo, vamos citar o
21
direito na época que vai da III à V dinastia (séculos XXVIII-XXV), que forma o primeiro
sistema jurídico desenvolvido da história da humanidade.
O poder era concentrado no rei. A nobreza feudal desaparecera, propiciando que a
pequena se disseminasse pelos territórios egípcios. O rei governa com os seus funcionários.
Os chefes dos departamentos de administração formavam um verdadeiro Conselho de
Ministros, presidido pelo vizir, uma espécie de chanceler. Os funcionários eram agrupados em
departamentos próprios, como finanças, registros, domínios, obras públicas, irrigação, culto,
intendência militar etc. Todos os funcionários eram nomeados por um djet, uma “ordem real”,
e eram remunerados podendo ascender todos eles às mais altas funções, seguindo rigorosa
carreira administrativa.
O rei promulgava a lei que marcava o ritmo da vida no vale do Nilo, depois do
parecer de um “Conselho de legislação” e também organizava os tribunais. O processo era
escrito, pelo menos parcialmente; junto a cada tribunal, funcionava uma chancelaria,
encarregada da conservação dos atos judiciários e dos registros de estado civil. Paralelamente
a este direito público centralizador, existia um direito privado individualista. Não há sinais de
solidariedade clânica entre os egípcios, sendo todos os habitantes considerados iguais perante
o direito, sem privilégios.
A família era a célula social por excelência, em sentido restrito: pai, mãe e filhos
menores. Além de marido e mulher serem colocados em pé de igualdade, não havia
autoridade nem tutela da mulher. Casada ou solteira, a mulher podia contratar, estar em juízo
como autora ou ré, depor como testemunha; gozava, enfim, uma situação privilegiada em
relação às suas contemporâneas. O nome da mãe antepunha-se ao do pai, certamente porque a
filiação legítima determinava-se em linha feminina.
O casamento era em princípio monogâmico; a poligamia era privilégio do faraó,
que se encontrava no cume da pirâmide social do antigo Egito. A poligamia acabou também
sendo autorizada para outros homens e foi praticada nas classes ricas. A mulher que cometia
adultério era passível de morte. Todos os filhos, tanto filha como filho, eram considerados
iguais sem direito de primogenitura nem privilégio de masculinidade. O filho maior podia
possuir patrimônio próprio e dispor dele livremente.
O direito de contratos era muito desenvolvido. O testamento existia no Egito desde
a IV dinastia, e a liberdade de testar era total, salvo a reserva hereditária a favor dos filhos.
Todos os bens móveis e imóveis eram considerados alienáveis. A pequena propriedade
sobressaía e os grandes domínios eram muito raros.
22
Os documentos encontrados revelam, graças aos periódicos recenseamentos, que
havia enorme mobilidade de bens. Em relação ao direito penal, vê-se que não aparece de
modo algum severo, comparado aos outros períodos da Antiguidade, apesar de também prever
penas cruéis, como trabalhos forçados nas fronteiras do país, nas colônias ou nas pedreiras.
Eram aplicadas também, a multa, a bastonada, o abandono aos crocodilos, à mutilação
empregada em larga escala no nariz, nos olhos, nas mãos e na língua.
No antigo Império, as classes sociais eram em número de seis. A primeira se
constituía exclusivamente dos membros da família real. O Faraó, cultuado como Deus, só
podia se casar com parentes próximos, para evitar que houvesse contaminação do sangue
divino com raça inferior.
Em seguida, a classe dos sacerdotes, dos nobres, dos escribas e dos mercadores. A
sexta classe era a mais baixa e se constituía de artesãos, lavradores e servos. Apesar de a
escravidão não ter sido conhecida neste período, os prisioneiros de guerra eram encaminhados
para o duro trabalho nas minas de cobre no Sinai, também para as grandes construções e para
o cultivo das terras do Faraó. Vê-se que eram escravos de fato e não de direito.
No denominado Regime Senhorial, que surge a partir do fim da V dinastia, houve
mudanças no direito egípcio, acompanhadas de enorme retrocesso. No direito público passou
a haver ingerência completa de uma oligarquia baseada na nobreza sacerdotal, além de
hereditariedade dos cargos e diversas formas de imunidade.
No direito privado não foi diferente, com o reforço do poder paternal e marital,
desigualdade no domínio das sucessões, com privilégios para os primogênitos e para os
homens. Muitas das terras passaram a inalienáveis: os contratos tornaram-se escassos. Foi
nesse período que o Egito entrou no regime de economia fechada, enquanto as províncias se
separaram do poder central.
1.3 Segundo e terceiro períodos da evolução do direito egípcio
O ressurgimento da centralização do poder e do direito individualista inicia com a
XII dinastia (Médio Império). No século XVI, com a XVIII dinastia, reaparece um sistema
jurídico assemelhado ao do Antigo Império, tanto em relação ao direito público como em
relação ao direito privado: predomínio da lei, igualdade jurídica dos habitantes, fim da
escravidão, igualdade entre filhos e filhas, liberdade de testar.
23
A partir do séc. XII, este sistema jurídico individualista desaparece,
principalmente pela influência do clero e de novas invasões. Presencia-se o desenvolvimento
de um segundo período senhorial de caráter teocrático que se estenderá até cerca de 700. A
partir daí, tem início o terceiro período da evolução do direito egípcio e ocorre toda uma
renovação: a escravidão por dívidas é extinta, a mulher passa a ter plena capacidade jurídica,
em matéria de sucessão, fica assegurada a igualdade dos filhos e das filhas. Registre-se,
entretanto, que este sistema jurídico estava limitado a algumas cidades do Delta.
Com a chegada da XXVI dinastia, estabelece-se no Egito um novo tipo de direito
privado e individualista e de poder real forte e centralizado. Mas, foi na época dos Ptolomeus
(séculos IV-I antes de Cristo), que a organização administrativa e o sistema jurídico tornaram-
se cada vez mais conhecidos.
Nessa linha de entendimento, Leon Epsztein assim se expressa:
Logo reencontraremos no Egito antigo, vestígios de uma organização
jurídica, noções de direito e um sentido de eqüidade. Mas numa sociedade
tão fortemente hierarquizada, onde a pirâmide, além de sua forma
arquitetural, é também símbolo de certa estrutura social, o que se relaciona
com a justiça parece proceder, segundo as leis da dicotomia, em favor de
camadas sociais distintas superpostas. Houve a solução impregnada de
desejo de igualdade, de espírito comunitário, aquela que se manifestou
através do levante popular, no fim do antigo Império (EPSZTEIN, 1990, p.
55-56).
Destaca-se, neste período, como no antigo império, a instituição da família. Era
freqüente a união entre primos, e entre tio e sobrinha, como também entre irmãos. A
maioridade para os homens iniciava aos 20 anos e para as mulheres, aos 14 anos. A
constituição do vínculo conjugal dependia de acerto entre o futuro marido e o futuro sogro. A
partir da 25ª dinastia bastava o consentimento dos futuros cônjuges. Em torno de 55º antes de
Cristo, o divórcio poderia ser requerido por ambas as partes. A infidelidade do marido era
punida por castigos corporais e penas pecuniárias. Havendo um segundo casamento do pai, os
filhos do primeiro leito podiam reclamar dois terços do seu patrimônio. A mulher casada
conservava plena capacidade jurídica, podendo, quando viúva, tornar-se chefe de família,
possuindo bens próprios e podendo também participar de cerimônias religiosas. O culto nos
templos sempre foi aberto às mulheres.
24
1.4 A religião
A longa duração da história do Egito permitiu que seu povo desenvolvesse
costumes peculiares, resultantes de uma consistente religião que, permeando toda a sua vida,
oferecia respaldo à autoridade dos governantes, definia as relações de comércio. Tratava-se de
uma fé que cobrava sólidos fundamentos de justiça nas relações humanas e, ao mesmo tempo,
respondia às indagações sobre a existência de uma vida situada para além da morte.
Mário Curtis Giordani lembra um texto da época do Médio Império, denominado
Diálogo de um Homem Cansado, onde o personagem discute com a própria alma a
conveniência do suicídio para libertar-se de uma existência que lhe era amarga. Quando em
um povo se produz tal peça, já lida ele com bastante desenvoltura com a vida física e a noção
de uma alma, que por si já significa que existe uma visão voltada a um ponto além do homem.
Para o professor J. Pirenne,
o que faz a grandeza do povo egípcio, o que lhe permitiu conservar durante
quatro milênios sua civilização própria, foi o fato de haver conseguido
reunir, em um mesmo sistema, suas concepções religiosas, morais, políticas
e sociais, sistema que permanece, através de toda sua história, a fonte de sua
inspiração intelectual e artística. Constituiu-se todo inteiro em torno de
idéias filosóficas expressas sob a forma religiosa (PIRENNE, apud
GIORDANI, 1969, p. 95).
Hoje existe a certeza de que a religião estava presente em todos os atos do dia-a-
dia dos egípcios. Considerando-se a extensão territorial do Egito, é natural que os atos de
culto fossem proeminentes em relação à doutrina e que guardassem peculiaridades locais,
principalmente porque as divindades eram proprietárias do solo. Em razão da quase infindável
relação de deuses e da sua veneração depender basicamente da situação particular de cada
vila, família ou pessoa, tornava-se difícil o estabelecimento de reconhecimento uniforme
quanto à fundamentação e à capacidade de ação de cada um, exceção aberta a Maat, patrona
da justiça, e aos deuses representados pelo Sol e conhecido como , e ao que domina sobre a
escuridão da morte, Osíris. Os deuses do panteão egípcio conheciam o interior do homem e
interferiam nos acontecimentos humanos.
É interessante observar que alguns homens ascendiam a uma categoria especial,
tornando-se homens divinizados. Tal categoria era formada principalmente pelos faraós,
embora admitisse a inclusão de determinados homens que se notabilizaram em vida. Era tal a
vocação entre os egípcios para divinizar que até animais foram considerados sagrados.
Entretanto, com referência à zoolatria, os egípcios foram mais pragmáticos que outros povos.
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Apenas um animal recebia as honras destinadas aos seres superiores, enquanto os demais,
malgrado gozarem de um trato reverente, podiam ser mortos e consumidos quando necessário.
Homens práticos, os egípcios estavam voltados particularmente para as
ciências exatas como a matemática, a astronomia e até a arquitetura, na qual muitos se
notabilizaram. Em assim sendo, era de se esperar uma elaborada teologia entre eles. A origem
do universo foi descrita como o momento em que o sol saiu, por seu próprio poder, de uma
massa liquida inerte, verdadeiro oceano escuro, caótico. A presença do sol dá origem a dois
deuses - o ar e a umidade – que, por seu turno, geraram o céu e a terra. Só então surgem
Osíris (juiz dos mortos) e Ísis (deusa da fecundidade, dos astros, dos infernos, do mar, da
beleza, da maternidade, do castigo, da felicidade, da salvação, enfim a Mãe Universal –
Panthea). É possível encontrar uma correlação entre tal narrativa e as modernas concepções
do surgimento do universo.
Particular atenção deve ser dada à chamada doutrina de Hermópolis, desenvolvida
na denominada reforma de Aquenaton (esplendor de Áton), em 1375 a. C., em razão de que o
sol, cujo disco brilhante era denominado Áton, passa a ser o deus único e universal com
autoridade tal, que ele prescrevia até o culto devido às demais divindades. O mais importante
residia no fato de que Áton não figurava como mais um deus. Ele era o único, o deus supremo.
Áton era um espírito puro, o único criador. E seu culto consistia em um ato de fé, de esperança
e de amor, virtudes relembradas posteriormente por outro povo.
Mário Curtis Giordani nos traz o perfil de Aquenaton, o faraó reformador
religioso, traçado por Pirenne:
Espírito profundamente místico, imbuído de idéias humanitárias e
igualitárias, que se formaram na concepção religiosa da igualdade dos
homens diante de Deus, ele se destaca inteiramente do plano nacional. Ele
próprio, aliás egípcio por seus antepassados paternos, ariano pelo lado
materno, semita por parte da avó representa em sua pessoa todas as raças do
império. Concebe o mundo como uma entidade submetida a um só Deus,
que, sem dúvida, formou as raças e as nações, mas do qual todos os homens
são, sob o mesmo título, as criaturas. Libertando-se do simbolismo e dos
arcaísmos que embaraçavam a religião egípcia, proclama o monoteísmo
absoluto para o qual ela tendia. Realizando a maior revolução religiosa que
jamais foi tentada por um soberano, aboliu os cultos de todos os deuses, para
substituí-los unicamente pelo culto do deus Aton , criador do mundo, que ele
representa entre os homens ( PIRENNE, apud GIORDANI, 1969, p. 111).
Ressalte-se que estamos diante de um verdadeiro monoteísmo que, no entanto, não
conseguiu se impor no Egito, uma vez que, no país, não havia condições para o triunfo de
semelhante crença. Por fim, pondere-se que a consciência da igualdade religiosa produziu a
26
igualdade jurídica, com a lei sendo aplicada a todos, desaparecendo os privilégios da nobreza
e a quase servidão dos arrendatários de terras.
A busca pelo exercício da justiça que aparece em Israel apresenta analogias com o
que se manifestava entre povos vizinhos. Assim, a noção hebraica de justiça pode ser
comparada no Egito, com Maât, a deusa, filha do Sol, símbolo da justiça, da ordem e da
verdade. A autoridade do faraó era limitada pela lei: ele não estava acima da lei, mas sujeito a
ela. Não existia separação entre a vida política e a vida religiosa. Os principais subordinados
do faraó eram sacerdotes, que conseguiram monopolizar a justiça, sendo ele mesmo o sumo-
sacerdote. A prática da religião dos antigos egípcios passou por várias etapas, desde o
simples politeísmo, avançando para a mais recuada expressão de monoteísmo, ocorrendo,
contudo, um retorno à situação primitiva.
27
2 O DIREITO E A PRÁTICA DA RELIGIÃO NO ORIENTE ANTIGO: A
MESOPOTÂMIA
2.1 As coleções jurídicas cuneiformes
Os “códigos” dos direitos cuneiformes, apesar de não apresentarem uma exposição
geral, sistemática e completa do sistema jurídico, constituem na verdade, os primeiros
esforços da humanidade para enunciar regras de direito. Este sistema de escrita foi
desenvolvido antes de 3000 a.C., na Mesopotâmia, provavelmente pelos sumérios, adotado
que foi posteriormente e também modificado pelos acadianos, hurritas, heteus, elamitas,
persas e cananeus de Ugarite (um assentamento cananeu). É sabido que estes sinais eram
esculpidos em pedra e metal ou inscritos com um instrumento pontiagudo em placas de argila.
A Mesopotâmia oferece conjunto único de textos legislativos (3.000 a 20.000):
a) O Código de Ur-Nammu, (2.111- 2.094 a. C.), o mais antigo corpo de leis
atualmente conhecido, é atribuído ao fundador da terceira dinastia de Ur, Ur-
Nammu. A cidade natal de Abraão, no sul da Mesopotâmia, capital do império
sumeriano, era uma teocracia centralizada no deus da lua “Sin”, como era
chamado na Babilônia e na Assíria, “Nanna” na Suméria, e “Yarih”, em
Ugarite. Tendo como símbolo um disco em forma de crescente, era o regente
do calendário e o protetor dos juramentos. É o deus da noite, que rege os
movimentos da noite e do dia, além das fases da lua. Freqüentemente era
pintado com chifres e uma longa barba de lápis-Iazuli. Seu templo era chamado
Enushirgal onde Gilgamesh (o famoso rei de Uruk, na Mesopotâmia) orou para
ele. Segundo o Prof. Bouzon,
as leis de Ur-Nammu chegaram até nossos dias, basicamente, em dois
fragmentos de um tablete, medindo 20x10 cm, escrito dos dois lados e
divididos em oito colunas com cerca de 346 linhas, das quais apenas 96 são,
hoje, legíveis.Trata-se de um tablete de exercício de escribas, do tempo de
Hammurabi, encontrado em Nippur, que se conserva, hoje, no Museu de
Istambul com o número de inventário Ni 3191 (BOUZON, 2003, p. 22).
O “Código” trata de normas predominantemente ligadas ao direito penal e já se
percebe a importância concedida pelas cidades-estados da Mesopotâmia às penas pecuniárias
em detrimento da lei de talião. O item 8 do “Código de Ur-Nammu” exemplifica este
entendimento:
Um cidadão fraturou um pé ou uma mão a outro cidadão durante uma rixa
pelo que pagará 10 siclos de prata. Se um cidadão atingiu outro com uma
28
arma e lhe fraturou um osso, pagará uma ‘mina’ de prata. Se um cidadão
cortou o nariz a outro cidadão com um objeto pesado pagará dois terços de
‘mina’.
O “Código” de Ur-Nammu é considerado ponto de ligação entre as “reformas” de
Urukagina e Gudea, por um lado, e os “Códigos” de Eshnunna, de Lipit-Ishtar e de
Hammurabi, por outro. Tomou medidas efetivas para a proteção dos órfãos, das viúvas e dos
pobres; fixou relações estáveis entre diferentes unidades monetárias, afastou fraudulentos e
enganadores que se apropriavam dos animais pertencentes aos habitantes locais. Nele as
lesões corporais já eram sancionadas através da composição legal. Existem vestígios de textos
mais antigos, como o “código” de Urakagina de Lagas, dos meados do 3° milênio, ou ainda, o
de Sulgi, em Ur. Do mesmo período, preservam-se muitos atos da prática e atas de
julgamento.
b) O Código de Lipit-Ishtar, (1934-1924 a.C.) corpo de leis escritas em sumério e
atribuídas a Lipit-Ishtar, quinto rei da dinastia de Isin (perto do Eufrates, na
Suméria), que reinou na primeira metade do século XIX. O rei sucedeu a
Ismedagan, seu pai, representado, nas obras literárias da época, como defensor
ardoroso do direito e da justiça. Deste Código, foram encontrados o prólogo, o
epílogo e 37 artigos, conservados em grande parte, em tabletes no University
Museum da Philadelphia, e tinha a finalidade de estabelecer o direito nas
regiões da Suméria e da Acádia. Data aproximadamente de dois séculos depois
do Código de Ur-Nammu e cerca de cem anos antes de Hamurabi. Segundo
Epsztein,
na primeira parte do Código, uma importante seção é consagrada aos
escravos. Encontramos disposições concernentes: 1º) à fuga dos escravos;
2º) a contestações relativas ao estado de escravatura; 3º) ao casamento de
uma escrava; 4º) à emancipação dos filhos nascidos das relações entre o
senhor e sua concubina escrava... Entre outros ditames lemos que,
“considerando o escravo um bem patrimonial”, “é-lhe, entretanto,
reconhecida a faculdade de comparecer em juízo nos processos relativos á
sua liberdade” (EPSZTEIN, 1990, p. 16).
c) O Código de Eshnunna (1825-1787 a. C.), leis da cidade-reino de Eshnunna,
está fundamentado em duas tábuas cuneiformes - IM 51.059 e IM 52.614 -,
descobertas em 1945 e 1947, nas escavações de Tell Harmal (pequena
localidade ao sul de Bagdá, onde estava situada a antiga cidade Saduppum, que
pertencia ao reino de Eshnunna ). Este acervo encontra-se, hoje, no Iraq-
Museum. Contém cerca de 60 artigos, tratando de matéria penal e civil, e sua
29
promulgação deve ter acontecido ao tempo do reinado de Naramsin ou de seu
irmão Dadusha, escrito em língua acádica; é o texto de leis mais antigo até o
momento conhecido. O prof. Emanuel Bouzon esclarece que
muitos pontos da vida jurídica e social da cidade não são tratados nesta
coleção de leis. Faltam, por exemplo, prescrições que regulem o direito de
herança. Na parte do direito penal faltam às sanções aplicadas aos crimes de
morte, e roubo etc. Mesmo o direito de propriedade é tratado de uma
maneira bastante sucinta. Tudo isto leva-nos a concluir que os tribunais de
Esnunna conheciam, certamente, em seu funcionamento cotidiano, outras
leis e prescrições que não foram fixadas nas tábuas encontradas em Tell
Harmal. Aliás, a preocupação de reunir todas as leis vigentes em um código,
que realmente mereça esse nome, é relativamente moderna (BOUZON,
2001, p. 27).
O mencionado Código da cidade-reino de Eshnunna expressa normas
referentes ao direito de família e à responsabilidade civil:
§5 Se um barqueiro for negligente o afundou um barco: deverá restituir tudo que
afundou.
De acordo com o Prof. Bouzon, a intenção do legislador no §5 é bastante clara:
definir a responsabilidade do barqueiro em caso de naufrágio causado por
negligência do barqueiro. Este PARAGRAFO supõe, naturalmente, o
costume babilônico, vigente na época, segundo o qual o proprietário de um
barco o alugava a um barqueiro que contratava as cargas, combinava as
viagens e os preços. Esse barqueiro era responsável pelo barco diante de seu
proprietário e pela carga diante do cliente (BOUZON, 1981, p. 60).
§17 O filho de um awilum (que) levou a terhatum para a casa de seu sogro: Se um
dos dois morreu, a prata retornará a seu dono.
O Prof. Bouzon no seu trabalho As Leis de Eshnunna, comenta que este parágrafo,
determina a maneira de proceder em relação à terhatum no caso da morte de
um dos noivos antes da realização do casamento. O termo terhatum indicava
uma quantidade determinada de prata, que, em geral o pai do noivo pagava
ao pai da noiva. Em caso de morte da noiva, o noivo podia exigir do sogro a
quantia paga pela noiva. Se o morto fosse o noivo, então a família deste
podia exigir a devolução da terhatum (BOUZON, 1981, p. 78).
§27 Se um awilum tomou por esposa a filha de um awilum, sem perguntar a seu
pai ou à sua mãe, e não deu um banquete de núpcias nem um contrato a seu pai ou à sua mãe,
ainda que more um ano em sua casa, não é esposa.
Segundo o Prof. Bouzon, a intenção do legislador é, aqui, declarar as condições
essenciais para uma mulher tornar-se assatum = “esposa”.
30
No §27 é negado o status de assatum para uma mulher que é tomada em
casamento: 1) sem consentimento dos pais e 2) sem que o marido tenha
oferecido um kirrum e um riksatum aos pais da noiva. O fator tempo é
irrelevante para a validade do casamento. Ainda que a mulher coabite um
ano inteiro na casa do awilum, ela não é sua assatum se não forem
cumpridas as condições aqui exigidas. (BOUZON, 1981. p. 99).
§56 Se um cão é feroz, e o distrito informou o seu dono, mas ele não vigiou o seu
cão, e (este) mordeu um awilum e lhe causou a morte: o dono do cão pesará dois 2/3 de uma
mina de prata.
O Prof. Bouzon, em seus comentários, afirma que
o legislador aborda aqui uma outra possibilidade que não é tratada nem no
Código de Hammurabi nem na legislação bíblica. Trata-se de um kalbum:
“cão feroz”. O proprietário do animal já foi notificado pelas autoridades: “o
dsitrito informou o seu dono”. Mas o proprietário “não vigiou o seu cão”, i.é:
não prendeu nem amarrou o seu cão. Por isso, esse proprietário é responsável
pelos danos que seu cão possa causar. A pena imposta se a vítima for um
awilum é 2/3 de mina, i.é: 40 siclos (cerca de 320 g) de prata (BOUZON,
1981, p. 142-143).
O Código de Eshnunna salienta a existência de três classes sociais: os awilu,
patrícios que estavam no gozo de sua liberdade e de todos os direitos; os mushkenu, plebeus,
que, apesar de livres, estavam submetidos a determinadas limitações, recebiam proteção
particular do palácio; e por fim, os wardu, representados pelos escravos. Este Código fixa os
preços dos gêneros de primeira necessidade, o salário dos operários, os aluguéis dos barcos e
demais transportes; determina relação estável entre a moeda (dinheiro em peso) e a moeda
mercadoria (grãos).
À semelhança do Código de Ur-Nammu, o regime penal de suas leis está
fundamentado no princípio de composição legal; o autor do delito deve reparar o dano
causado à vítima ou a seus representantes por meio de indenização a ser fixada pelo
legislador, levando-se em consideração a função da infração e o estatuto jurídico e social da
vítima.
d) O Código de Hammurabi, sexto rei da primeira dinastia da Babilônia (1726 –
1686 a. C.), provavelmente redigido em torno de 1694 a. C. é, sem dúvida, o
monumento jurídico mais notável da antiguidade. O texto está gravado numa
estela (coluna ou placa de pedra em que os antigos faziam suas inscrições)
cônica, de diorito negro, medindo cerca de 2m 25 de altura e quase 2 metros de
circunferência na base. Foi descoberto pelo arqueólogo V. Scheil, nas ruínas de
Susa, para onde fora transportada como presa de guerra feita na Babilônia por
31
um rei Elamita, por volta de 1175, durante o inverno de 1901-1902 (dezembro-
janeiro). Atualmente esse bloco inestimável encontra-se em Paris, no Museu do
Louvre.
Os 282 artigos do “Código” em 3600 linhas de texto estão redigidos em acadiano,
língua oficial. É uma consolidação do direito sumeriano, ou dos sumérios, povo não semita
habitante do Sumer, território situado ao sul da Mesopotâmia. Na parte superior da estela, na
frente, vê-se, em relevo, Hammurabi, também chamado Khamu-Rabi (de origem árabe) , de
pé, recebendo um cetro e um anel, símbolo de justiça e ordem de “Shamash” (Samase), o deus
do sol, da justiça e legislador divino, “grande juiz dos céus e da terra”. Diante dele,
Hammurabi, em atitude de respeito, ouve-o ditar a lei.
No epílogo do “Código”, o rei declara: “Eu sou Hammurabi, o rei da justiça, a
quem “Shamash” deu a verdade”. Assim se estabelece a origem divina da lei, comunicada ao
povo através do rei. Juntamente com “Shamash”, os legisladores mesopotâmicos invocam os
grandes deuses.
Hammurabi promoveu enormemente a religião, principalmente o culto de
Marduc, o deus local da cidade da Babilônia, que se tornou o deus supremo e chefe do
panteão, sendo-lhe conferido os títulos e atributos dos outros deuses. O seu templo era
chamado Esagil ,“a casa da cabeça erguida”, e a grande zigurate era chamada Etemenanki, “a
casa da fundação do céu e da terra”. O “Código” de Hammurabi é lei religiosa; entretanto, as
prescrições morais, aparecem de modo menos freqüente do que nas leis de Israel, da Índia ou
do Islão, igualmente leis religiosas dadas por Deus, só que o “Código” de Hammurabi não é
senão inspirado por Deus.
O direito babilônico é especialmente, como também o declara o “Código” de Ur-
Nammu, um “regulamento de paz” para tornar exeqüível a fusão da Suméria com a Acádia e
continuar no aspecto jurídico a obra política e militar do fundador do império, estando assim,
o direito a serviço da unificação política.
2.2 O direito babilônico: o código de Hammurabi
As disposições jurídicas são antecedidas de um prólogo onde o rei exalta as suas
qualidades, as virtudes, o poder e a glória, suplica a autoridade dos deuses, pontuando suas
obrigações de justiceiro e também de protetor dos fracos: órfãos, viúvas, pobres, devendo
garantir a liberdade de cada um. Hammurabi afirma ter sido escolhido pelos grandes deuses
32
para “fazer brilhar o direito em Babilônia e nas regiões vassalas”, “afastar os maus e os
perversos”, “impedir que o poderoso arruíne o fraco”.
Como assinala Jayme de Altavila, toda essa exaltação foi uma constante em quase
todas as grandes codificações posteriores, como no prólogo das Ordenações do Reino, no das
Institutas, compilação determinada por Justiniano, no século IV, quando os soberanos
estavam impelidos não só pela vaidade, mas, principalmente pela estrutura teológica de suas
leis.
De conformidade com o Prof. Emmanuel Bouzon,
o epílogo continua a descrição das diversas atividades de Hammurabi em
prol da justiça e do bem-estar de seu povo, fala, também da finalidade de sua
obra seu povo e termina com o pedido de bênçãos para todos os que
respeitarem as prescrições da estela e de maldição dos deuses para quem
tentar aboli-las (BOUZON, 2003, p. 27).
O “Código” de Hammurabi e demais textos relacionados à prática jurídica que
datam da mesma época revelam a existência de um sistema jurídico amplamente
desenvolvido, principalmente em matéria de direito privado, e de modo particular quando se
refere aos contratos. Inúmeras modalidades de contratos e negócios jurídicos estão insertos no
Código”, o que se justifica, tendo em vista que os povos da Mesopotâmia praticavam em
grandes dimensões atos de comércio, sendo necessário regulamentar essas transações.
Da Babilônia esta técnica de contratos difundiu-se por toda a bacia do
Mediterrâneo até chegar aos Romanos que conseguiram sistematizá-la. Entre os contratos
celebrados, apontam-se alguns:
a) a venda, inclusive a venda a crédito;
b) o arrendamento de instalações agrícolas, de casas, arrendamento de serviços
etc.
c) o depósito;
d) o empréstimo a juros;
e) título de crédito à ordem, com a cláusula de reembolso ao portador. Prática
importante para garantir a atividade dos mercadores.
f) o contrato social
g) operações bancárias e financeiras em grande escala e tinham já comandita de
comerciantes.
Colocando-se de lado os funcionários do palácio e os sacerdotes, que gozavam de
certos privilégios e da mesma forma que o Código de Eshnunna, o de Hammurabi também
33
concebeu a sociedade dividida em três classes, a saber: os awilu, os mushkenu e os wardu
homens livres, estrangeiros e escravos.
A sociedade babilônica tem por base a desigualdade. A classe mais numerosa é a
primeira, a dos awilu, constituída por proprietários, camponeses, artesãos e comerciantes.
Participam da vida na cidade, fazem parte do colégio dos anciãos, têm função administrativa e
judiciária, cuidam das finanças da cidade e dirigem a política local.
A classe intermediária dos mushkenu (o termo origina, pelo árabe, o português
“mesquinho”) está situada entre livres e escravos. Foram qualificados como sendo semi-livres
ou como libertos, clientes, pobres, etc. Era formada por antigos escravos, homens livres
desclassificados (plebe), muitas vezes estrangeiros. Tudo indica, que se tratava de simples
habitantes, em oposição aos cidadãos, o que evidencia a inferioridade do seu estatuto, mas,
apesar de toa essa discriminação, eram sujeitos de direitos e deveres, podendo constituir
família legítima, bem como, construir patrimônio.
A classe dos escravos, wardu, resultava, sobretudo, da guerra, mas a escravidão
era também determinada pelo nascimento, em virtude de sua hereditariedade. Os filhos de
mulher livre e escravo do palácio ou de mushkenu são livres. Os de homem livre com escrava
concubina adquirem a liberdade quando da morte do pai. Os filhos de dois escravos são
naturalmente escravos. Verificava-se, também, que em conseqüência de infrações penais, os
pais poderiam vender os filhos infratores, o que também representava fonte de escravidão.
Na Babilônia era costume o pai dar os filhos em penhor, por espécie de venda a
prazo. Os babilônios reconheciam ao dono amplos direitos mas não recusavam capacidade
jurídica ao escravo, que podia ter família legítima, estar em juízo e praticar determinados atos
jurídicos.
A emancipação era concedida por lei em três hipóteses: os filhos de homem livre e
de uma de suas escravas ficam livres de pleno direito a partir da morte do pai; a mulher e os
filhos do devedor vendidos ou penhorados alcançavam a liberdade depois de três anos; e no
caso, de o escravo babilônico se encontrar em território estrangeiro e ser resgatado por
terceiro e trazido de volta à Babilônia, seria imediatamente emancipado. Ainda vale lembrar
que a emancipação também podia ser efetuada pelo dono, por benevolência ou devido ao
pagamento da libertação feito pelo próprio escravo.
O Código de Hammurabi aplica a lei de talião – do latimtalis” (igual,
semelhante, tal) ou “talio, onis” (pena igual à ofensa), que estabelecia limites aos excessos da
vingança, à medida que a reação não poderia ultrapassar a ação. Significa, portanto, a antiga
pena que consistia em aplicar ao delinqüente um castigo rigorosamente proporcional ao dano
34
causado. Expressava-se pela fórmula “olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura
por queimadura, ferida por ferida, golpe, por golpe” (Êx 21,24-25) e teve larga aplicação na
legislação mosaica e, posteriormente, na grega e romana, embora com menos rigor,
estendendo-se até a Idade Média. A civilização moderna, entretanto, a aboliu.
A influencia do Talião já começa no parágrafo 1º: “Se um awilum acusou um
(outro) awilum e lançou sobre ele (suspeita de) morte mas não pôde comprovar: o seu
acusador será morto.”
De acordo com comentários do Prof. Bouzon,
o crime caracterizado neste parágrafo é expresso pela forma verbal ú-ub-bi-
ir-ma= “acusou” e pela expressão ne-er-tam e-li- id-di-ma: “e lançou sobre
ele morte”. O verbo acádico ubburum, que significa “acusar”, parece usado,
aqui, como um termo técnico para significar “acusar oficialmente”, “mover
um processo” contra alguém”. O termo acádico nertun é, normalmente,
traduzido por “morte”, “homicídio. Trata-se, pois, neste parágrafo de uma
acusação de crime de homicídio feita contra um awilum por um outro
awilum.Se o awilum acusador não puder comprovar a sua acusação, ele
incorre em pena de morte. Aqui parece ser levada em conta a penas a falta de
prova
(BOUZON, 2003, p. 46).
Acrescenta o já citado Prof. Bouzon, que a legislação bíblica no livro do
Deuteronômio 19,16-19, oferece um interessante paralelo a este parágrafo das leis de
Hammurabi:
quando uma falsa testemunha se levantar contra alguém, acusando-o de
alguma rebelião, as duas partes em litígio se apresentarão diante de Iahweh,
diante dos sacerdotes e dos juízes que estiverem em função naqueles dias.
Os juízes investigarão cuidadosamente. Se a testemunha for uma testemunha
falsa, e tiver caluniado seu irmão, então vós a tratareis conforme ela própria
maquinava tratar o seu próximo.
Em Hamurabi, o parágrafo 2° é um desdobramento do 1°:
Se um awilum lançou contra um (outro) awilum (uma acusação de) feitiçaria
mas não pôde comprovar: aquele contra quem foi lançada (a acusação de)
feitiçaria irá ao rio e mergulhará no rio. Se o rio o dominar, seu acusador
tomará para si sua casa. Se o rio purificar aquele awilum e ele sair ileso:
aquele que lançou sobre ele (a acusação de) feitiçaria será morto e o que
mergulhou no rio tomará para si a casa do seu acusador.
Conforme o Prof. Bouzon,
o termo Kispu significa “feitiçaria”, “bruxaria”. Trata-se, pois, de uma
acusação de prática de magia negra contra um cidadão. A obrigação de
comprovar o delito acusado cabe ao acusador. Se a acusação não pôde ser
comprovada o acusado deverá submeter-se, ainda, a um rito religioso, o
“ordálio”: “irá ao rio e mergulhará no rio”. O rio é considerado como uma
divindade, que deve decidir a questão. A aplicação do ordálio é unilateral,
pois somente o acusado deverá submeter-se a ele. [...] Se o deus rio dominar
35
o acusado, e este morrer afogado está provada a sua culpa. Neste caso o
acusador receberá o patrimônio do acusado. [...] Mas, se o rio “o purificar e
ele sair ileso”, o acusador será condenado à morte e sua família perderá o
seu patrimônio, que passará àquele que se submete ao ordálio (BOUZON,
2003, p. 47-48).
Os parágrafos 3º e 4º tratam do falso testemunho:
Se um awilum apresentou-se em um processo com um testemunho falso e
não pode comprovar o que disse: se esse processo é um processo capital esse
awilum será morto. Se se apresentou com um testemunho (falso em causa)
de cevada ou de prata: ele carregará a pena desse processo
.
De acordo com o comentário abalizado do Prof. Bouzon:
Indica, sem dúvida, um processo em que o acusado poderá incorrer em pena
de morte. O parágrafo 4º apresenta uma outra alternativa: ‘Se se apresentou
com um testemunho de cevada ou de prata”. A lei prevê, aqui, certamente,
um processo de compensação de danos por meio de cevada ou de prata. [..]
“ele carregará a pena desse processo”, o que significa, sem dúvida, que o
autor do falso testemunho devia arcar com a pena que teria sido imposta ao
acusado ( BOUZON, 2003, p. 48-49).
O parágrafo 5° pune a prevaricação do juiz com a destituição do seu cargo:
Se um juiz fez um julgamento, tomou uma decisão, fez exarar um
documento selado e depois alterou o seu julgamento: comprovarão contra
esse juiz a alteração do julgamento que fez; ele pagará, então, doze vezes a
quantia reclamada nesse processo e, na assembléia, fá-lo-ão levantar-se de
seu trono de juiz... Ele não voltará a sentar-se com os juízes em um
processo.
Segundo o Prof. Bouzon, o parágrafo em questão trata, sem dúvida, de um caso de
venalidade judicial. Depois das três etapas do processo – o processo propriamente dito, a
sentença e o documento selado – o juiz altera o julgamento. [...] “a sanção prevista para o
delito, aqui, caracterizado é dupla. Uma de caráter pecuniário: “ele dará até 12 vezes a
quantia que está em questão nesse processo”. A segunda pena é de caráter profissional: a
perda, em cárater irrevogável, do direito de ser juiz”. Isto nos faz lembrar, que também as leis
persas, por exemplo, eram excessivamente severas e torturantes, mas em geral o rei, segundo
Heródoto, era tolerante e atento à justiça, somente aplicando-as quando formalmente estava
provado o delito.
A História registra, sobre esse aspecto, dois fatos significativos. O primeiro,
envolve Creso, rei da Lídia, que até hoje vem à memória por sua incorrigível auricídia, feito
prisioneiro, e que, pela sua exoração final, antes da execução capital, em autodefesa, não só
livrou-se da morte, como também, conseguiu ser convocado por Ciro para atuar como seu
Conselheiro. O segundo, relaciona-se com um juiz venal, que Cambises, sucessor de Ciro,
36
mandou esfolar vivo para, com sua pele, forrar a cadeira de juiz, designando para ocupá-la o
próprio filho do prevaricador.
Como propõe o Prof. Bouzon, a parte legal da estela de Hammurabi pode ser
estruturada do seguinte modo:
Parágrafos 1-5: Determinam as penas a ser impostas em alguns delitos
praticados durante um processo judicial;
Parágrafos 6-126: Regulam o direito patrimonial;
Parágrafos127-195: Regulam o direito de família, filiação e heranças;
Parágrafos196- 214: Determinam as penas para lesões corporais;
Parágrafos 215-240: Regulam os direitos e obrigações de algumas classes de
profissionais;
Parágrafos 241-277: Regulam preços e salários;
Parágrafos 278-282: Contêm leis adicionais sobre a propriedade de escravos.
As determinações legais da estela de Hammurabi começam com cinco
parágrafos que determinam as penas a ser impostas em casos de falsa
acusação (parágrafos 1º e 2º) falso testemunho (parágrafos 3º e 4º) e de
venalidade de um juiz ( parágrafo 5º) (BOUZON, 2003, p. 29).
Observe-se que os babilônios possuíam um conceito muito elevado de “lei e de
ordem”. O Código de Hammurabi determinava medidas para garantir a boa justiça. O
estabelecimento da justiça não era uma prerrogativa exclusiva dos juízes, homens letrados. As
mais diversas categorias profissionais integravam esse sistema, incluindo o chefe de famíla,
que apesar de não dispor de direito de vida e de morte, tinha autoridade para julgar seus
dependentes não só em questões de direito civil, mas também, de direito penal. Os juízes eram
nomeados pelo rei, exerciam função delegada e possivelmente caráter itinerante.
Os magistrados independentemente de suas qualificações profissionais, não
recebiam remuneração pelo exercício de suas funções judiciárias. Coexistiam os juízes do
templo e os juízes leigos. Deve-se, ainda, salientar a figura do rei, a quem cabia a decisão
suprema, que poderia intervir, ex-officio, em todos os processos, mas sua competência
originária dizia respeito prioritariamente ao direito administrativo, aos crimes de sangue e aos
dossiês políticos.
A acessibilidade da organização judiciária tornava naturalmente sem dificuldade
as demandas, e consequentemente os babilônios eram litigantes em alta escala, principalmente
em relação às questões fundiárias, em atos redigidos dentro do que determinava a lei, o que
era confirmado através da prova testemunhal. Os instrumentos eram lavrados na forma da lei,
em tabuinhas de argila, através dos caracteres da época, as letras em forma de cunha.
No que concerne à matéria do Direito Civil, Hammurabi revela-se inovador:
37
O Código de Hammurabi e os numerosos atos da prática do mesmo período dão-
nos a conhecer um sistema jurídico muito desenvolvido, sobretudo no domínio do direito
privado, principalmente os contratos.
Interessante observar, que alguns institutos de ordem legal, de grande importância
do direito contemporâneo, encontram as suas raízes no Código de Hammurabi, como por
exemplo, a instituição do bem e família e a proibição de compra e venda entre cônjuges e
filhos.
Para a primeira hipótese, temos:
§36 - o campo, o horto e a casa de um oficial, gregário ou vassalo, não podem ser
vendidos.
Para a segunda hipótese:
§38 - Um oficial, gregário ou vassalo não pode obrigar por escrito nem dar em
pagamento de obrigação à própria mulher ou à filha o campo, o horto e a
casa do seu benefício.
O bem de familia – (na locução, é bem usado no sentido de propriedade,
expressão que, também, se lhe empresta na terminologia jurídica) foi adotado, na legislação
civil dos Estados Unidos, somente no ano de 1839, e é considerado criação do direito
americano, passando daí para outros ordenamentos. O instituto foi também adotado no Brasil
no Código Civil (arts. 70 a 73), embora com regulamentação um pouco diferente.
Com relação ao direito de família o Código de Hammurabi apresenta ditames
surpreendentes para a sua época:
1- a mulher, dotada de personalidade jurídica, mantém-se proprietária de seu dote
mesmo após o casamento, e tem liberdade na gestão de seus bens;
2- é prevista a possibilidade de repúdio da mulher pelo marido, mas a recíproca é
igualmente verdadeira. Caso a mulher alegue má conduta do marido, pode
propor ação para retornar a sua família originária, levando de volta o seu
patrimônio;
3- o casamento: a família babilônica repousa no casamento, em princípio
monogâmico; a união deve garantir a continuidade da família e a perpetuidade
do culto. O Código, entretanto, autoriza esposas secundárias, que se distinguem
da simples escrava amtum, a qual, segundo costume semítico atestado por
exemplos da Biblia, pode ser dada pela esposa estéril ao marido. A lei afirma a
38
inferioridade dessas esposas, relativamente à primeira mulher, mas os filhos são
legítimos, ao menos faltando filhos desta última.
Quanto à adoção: Trata-se de uma Instituição muito difundida entre babilônios e
assírios. O Código de Hammurabi previa, com detalhes, o instituto da adoção, estipulando as
conseqüências jurídicas da ruptura do vínculo entre adotando e adotado. A adoção exigia a
redação de escrito e a efetiva entrega do filho. A adoção plena assimila totalmente o filho
adotivo à situação de filho legítimo do adotante.
No que dizia respeito à sucessão, já existiam limitações ao poder de dispor sobre o
patrimônio, principalmente se tal fato ocorresse em detrimento de algum dos filhos
sobreviventes. O costume e a lei atribuem a sucessão aos filhos continuadores, continuadores
da pessoa do pai, obrigados ao culto dos ancestrais.
2.3 O código de Hammurabi e as leis de Israel
É sabido que as descobertas arqueológicas feitas no Médio Oriente Antigo
apontam para a existência de um corpo legislativo muito anterior a Israel como Estado. Um
estudo comparativo entre estes códigos e a Bíblia indica que o direito hebraico, em boa parte,
tem a sua fonte no conjunto dos costumes comuns a todos os povos do Médio Oriente Antigo.
Israel tomou conhecimento desses costumes por meio dos cananeus, também pelos seus
possíveis laços originais com a Mesopotâmia (Abraão é originário de Ur), mas sobretudo
durante sua permanência ali como povo exilado (período que durou cerca de meio século ou
mais – de 586 – 532).
Atualmente são conhecidos documentos que vão do 21º ao 12º século antes de
Cristo: as leis de Ur-Nammou (2111-2094), fundador da 3ª dinastia de Ur; as leis de Lipit-
Ishtar 1934-1924), da dinastia de Isin; as leis da cidade de Esnunna, que floresceu no início do
2º milênio até a época de Hammurabi; o édito de Ami-Saduca, décimo rei da dinastia de
Hammurabi, que reinou de 1646 a 1626; as leis de Hammurabi, que reinou na Babilônia, de
792 a 1750; as leis assírias, uma compilação do reinado de Tiglat-Falasar (1115-1070),
descobertas em Assur, antiga capital da Assíria. É interessante observar como todos esses
textos antigos apresentam inúmeros pontos em comum com as Leis do Pentateuco. A título
de exemplo, indicam-se algumas comparações:
O édito de Ami-Saduca apresenta-se como o único exemplar completo da
proclamação realizada pelos reis da época, no início de seu reinado e a intervalos regulares,
39
ou seja, a cada sete anos. Tratavam principalmente da remissão das dívidas e da devolução
das terras aos proprietários que as haviam entregue aos credores para o pagamento de suas
dívidas. Verifica-se, sem dúvidas, que a “lei do jubileu” de Lv 25 inspirou-se nesse costume.
- A libertação dos escravos
O Código da Aliança: “Quando comprares um escravo hebreu, seis anos ele
servirá; mas no sétimo sairá livre, sem nada pagar” (Êx 21,2); “Quando um dos teus irmãos,
hebreu ou hebréia, for vendido a ti, ele te servirá por seis anos. No sétimo ano tu o deixarás ir
em liberdade” (Dt 15,12).
Hammurabi: “Se uma dívida pesa sobre um awilum e ele vendeu sua esposa, seu
filho ou sua filha ou (os) entregou em serviço pela dívida, durante três anos trabalharão na
casa de seu comprador ou daquele que os tem em sujeição, no quarto ano será concedida a sua
libertação” (§117).
Se compararmos o número de anos de escravidão, verificaremos que a lei
babilônica é menos rigorosa do que a lei israelita, que funciona ao ritmo de sete, do Shabat ou
do ano Sabático, no entanto, o princípio fundamental é igual: a libertação do escravo.
- O castigo do ladrão
O Código da Aliança: “Se um ladrão for surpreendido arrombando um muro, e
sendo ferido morrer, quem o feriu não será culpado do sangue. Se, porém, fizer isso depois de
ter nascido o sol, quem o ferir será culpado de sangue; neste caso, o ladrão fará restituição
total. Se não tiver com o que pagar, será vendido por seu furto” (Êx 22,1-2).
Hammurabi: “Se um awilum abriu uma brecha em uma casa: matá-lo-ão diante
dessa brecha e o suspenderão” (§21). “Se o assaltante não foi preso, o awilum assaltado
declarará diante de deus todos os seus objetos perdidos; a cidade e o rabiãnum, em cuja terra
e distrito foi cometido o assalto, o indenizarão por todos os objetos perdidos” (§23).
Na hipótese em comento, as duas legislações se aproximam muito e, ao mesmo
tempo, são também categóricas em relação ao ladrão.
No Egito, não sendo possível acabar com o furto foi elaborada a curiosa “Lei dos
Ladrões”. Os delinqüentes reuniam-se numa espécie de sindicato e a vítima para recuperar o
objeto furtado deveria dirigir-se ao Chefe da corporação e realizar o pagamento de um quarto
do seu valor.
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- A guarda de objetos ou de dinheiro
O Código da Aliança: “Se alguém der ao seu próximo dinheiro ou objetos para
guardar, e isso for furtado daquilo que o recebeu, se for achado o ladrão, este pagará em
dobro. Se o ladrão não for achado, então o dono da casa será levado diante de Deus para
testemunhar que não se apossou do bem alheio. Em toda causa litigiosa relativa a um boi, a
um jumento, a uma ovelha, a uma vestimenta ou a qualquer objeto perdido do qual se diz:
‘Esta é a coisa’ a causa será levada diante de Deus. O que Deus declarar culpado restituirá o
dobro ao outro” (Êx 22, 6-8).
Hammurabi: “Se um awilum deu em custódia a um (outro) awilum, diante de
testemunhas, prata, ouro ou qualquer outro bem e este o contestou, comprovarão (isto) contra
esse awilum e ele dará o dobro de tudo que contestou”.
Neste caso, é surpreendente a semelhança da regulamentação do assunto. Cada um
dos dois códigos possui as suas particularidades. Ao agregar elementos do direito babilônico
ou cananeu, Israel não fez apenas uma simples transposição: as analogias são desiguais sob o
ponto de vista literário. Elas atestam mais que uma mentalidade jurídica comum às sociedades
do Médio Oriente Antigo dos tempos bíblicos.
Vê-se que os códigos legislativos da Bíblia não são profundamente diferentes.
Apesar de diversos quanto à origem e quanto ao conteúdo, na realidade convergem em
direção à formação da mesma sociedade, o povo de Israel. Fazem parte de um conjunto: a Lei.
A justiça era, na realidade, expressão da norma que regia a administração. Tão mais justa
quanto à observação fiel da lei.
41
3 A LEGISLAÇÃO MOSAICA: FONTE DO DIREITO
3. 1 Conceito de fonte do direito
A palavra fonte deriva do latim “fons”, “fontis” (nascente, manancial) e entende-
se em sentido lato, como o local em que nascem ou brotam as águas, é empregada para indicar
o lugar, de onde procede alguma coisa, onde ela se funda e de onde tira sua razão de ser, ou
todo fato que dá origem a outro. Com este sentido, o texto original é chamado fonte.
Também se chama fonte o costume ou o uso que faz gerar a regra jurídica. Significa, portanto,
origem, princípio, causa.
Origem da norma de direito, ou princípios no qual esta se inspira: fonte do direito.
Aquilo que dá origem a uma relação jurídica. As fontes do direito representam os elementos
que servem de inspiração ao legislador e que entram na formação da norma jurídica,
indicando assim, as formas pelos quais o Direito se manifesta.
Como ressalta Tércio Sampaio Ferraz Júnior (1994, p. 224), a “expressão fonte do
direito é uma metáfora cheia de ambigüidades. O uso da palavra está transposto e pretende
significar origem, gênese”. Modernamente a teoria das fontes reporta-se à tomada de
consciência de que o direito é uma construção da cultura humana e não um dado da natureza.
Contudo, o reconhecimento do direito como uma construção não exclui seu aspecto como
dado, reflexão que já aparece no início do século XIX em Savigny, que estabelece a distinção
entre a lei promulgada pelo Estado e o seu sentido, ou seja, o seu espírito, que segundo ele
repousa nas convicções comuns de um povo, o chamado “espírito do povo”. Tércio Sampaio
Ferraz Júnior nos traz a lição de François Geny:
reafirmando esta dicotomia, o jurista francês François Geny (1925), um
século depois, passa a falar em dois tipos básicos de fontes, conforme se
encare o direito no seu aspecto dado ou no seu aspecto construído. De um
lado temos, assim, as fontes substanciais, que são dados, como é o caso dos
elementos materiais (biológicos, psicológicos, fisiológicos) que não são
prescrições, mas que contribuem para a formação do direito, dos elementos
históricos (representados pela conduta humana no tempo, ao produzir certas
habitualidades que vão, aos poucos, sedimentando-se), ou dos elementos
racionais (representados pela elaboração da razão humana sobre apropria
experiência da vida, formulando princípios universais para a melhor
correlação entre meios e fins) e dos elementos ideais (representados pelas
diferentes aspirações do ser humano, formuláveis em postulados valorativos
dos seus interesses). De outro lado, fala ele em fontes formais,
correspondendo ao construído, significando a elaboração técnica do material
(fontes substanciais) por meio de formas solenes que se expressam em leis,
-
42
normas consuetudinárias, decretos regulamentadores etc (FERRAZ JR.
1994, p. 223).
3.2 Classificação das fontes do direito
Não há uniformidade na doutrina jurídica quanto ao estudo das fontes do Direito,
há uma grande diversidade de opiniões, principalmente em relação ao elenco das fontes. Para
Paulo Nader, distinguem-se três espécies de fontes no direito: históricas, materiais e formais.
As fontes históricas, segundo ele, indicam a gênese das modernas instituições jurídicas, como,
a época, o local, as razões que determinaram a sua formação. São fontes históricas os
documentos (inscrições, papiros, livros, coleções legislativas etc.), que contém o texto de uma
lei ou conjunto de leis. As Institutas, o Digesto, por exemplo, são fontes de conhecimento do
direito romano. Afirma aquele mestre, que como causa produtora do Direito, as fontes
materiais são constituídas pelos fatos sociais, pelos problemas emergentes na sociedade e que
são condicionados pelos chamados fatores do Direito, como a Moral, Economia, Geografia
etc.
É sabido que na Religião encontra-se uma fonte destacada do Direito, haja vista
que na Antiguidade Oriental e Clássica, Direito e religião se confundiam. Assim, a pena
imposta ao faltoso tinha caráter de expiação, uma vez que o crime, antes de ser um ilícito, era
um pecado, motivo pelo qual no antigo Egito, aquele que atentava contra lei do Faraó cometia
não apenas crime, mas também sacrilégio.
Por fim, afirma o autor que as fontes formais são os meios de expressão do
direito, as formas pelas quais as normas jurídicas se exteriorizam, se tornam conhecidas. O
elenco das fontes formais sofre variações de acordo com os sistemas jurídicos, como também
em razão das diferentes fases históricas.
No nosso ordenamento jurídico, que segue a tradição romano-germânica, a
principal forma de expressão é o Direito escrito, que se manifesta através de leis e códigos,
figurando o costume como fonte complementar. Enquanto isto, a Jurisprudência, formada
pelo conjunto uniforme de decisões judiciais a respeito de determinada indagação jurídica,
não constitui uma fonte formal, uma vez que a sua função não é a de criar normas jurídicas,
mas de interpretar o Direito à luz dos casos concretos.
Para Miguel Reale, o termo fonte do direito indica apenas os processos de
produção de normas jurídicas, que pressupõem sempre uma estrutura de poder. Esclarece o
mestre que:
43
Quatro são as fontes de direito, porque quatro são as formas de poder: o
processo legislativo, expressão do Poder Legislativo; a jurisdição, que
corresponde ao Poder Judiciário; os usos e costumes jurídicos, que
exprimem poder social, ou seja, o poder decisória anônimo do povo; e,
finalmente, a fonte negocial, expressão do poder negocial ou da autonomia
da vontade (REALE, 1993, p. 141).
A professora Maria Helena Diniz, na linha da Teoria Egológica (concepção
culturalista do Direito) defendida por Carlos Cossio, entende que o jurista deve ater-se tanto
às fontes materiais quanto às formais, preconizando a supressão da distinção, preferindo a
expressão fonte formal-material, já que toda fonte formal contém, de modo implícito, uma
valoração que só pode ser compreendida como fonte do direito no sentido de fonte material.
Além disso, a fonte material ou real indica a origem do direito, configurando a sua
gênese, daí ser fonte de produção envolvendo fatores éticos, sociológicos, históricos, políticos
etc., que produzem o direito, condicionam o seu desenvolvimento e determinam o conteúdo
das normas. Conforme esta autora:
A fonte material ou real aponta a origem do direito, configurando a sua
gênese, daí ser fonte de produção, aludindo a fatores éticos, sociológicos,
históricos, políticos etc., que produzem o direito, condicionam o seu
desenvolvimento e determinam o conteúdo das normas. A fonte formal lhe
dá forma, fazendo referência aos modos de manifestação das normas
jurídicas, demonstrando quais os meios empregados pelo jurista para
conhecer o direito, ao indicar os documentos que revelam o direito vigente,
possibilitando sua aplicação a casos concretos, apresentando-se, portanto,
como fonte de cognição. As fontes formais são os modos de manifestação do
direito mediante os quais o jurista conhece e descreve o fenômeno jurídico.
Logo, quem quiser conhecer o direito, deverá buscar a informação desejada
nas suas fontes formais, ou seja, na lei, nos arquivos de jurisprudência, nos
tratados doutrinários. O órgão aplicador, por sua vez, também recorre a elas,
invocando-as como justificação da sua norma individual (DINIZ, 2003, p.
282).
3.3 Conceitos de direito natural e positivo
Denomina-se jusnaturalismo a corrente de pensamento que defende a existência de
um “direito natural” (ius naturale), isto é, um sistema de normas de conduta intersubjetiva
diverso do sistema constituído pelas normas que são fixadas pelo Estado, que é o direito
positivo. A doutrina jusnaturalista, no curso da história, não se apresenta com uniformidade
de pensamento.
Há diversos matizes que implicam na existência de correntes distintas. Observe-se
que a divergência maior na conceituação do Direito Natural está centrada na origem e
44
fundamentação desse Direito. De acordo com o estoicismo helênico, o Direito Natural
originava-se da natureza cósmica e se identificava com a justiça e a justiça com a razão. Para
o pensamento teológico medieval, o Direito Natural representaria a expressão da vontade
divina.
As diversas correntes do direito natural guardam entre si um denominador comum:
este direito tem validade em si mesmo, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de
conflito deve prevalecer. Assim, além do Direito escrito, há uma outra ordem, superior àquela
e que é a expressão do Direito justo. Surge a idéia do Direito perfeito e por isso deve se
constituir em modelo para o legislador. O jusnaturalismo apresenta-se como uma doutrina
antitética à do positivismo jurídico, de acordo com a qual, só há um direito, o determinado
pelo Estado, cuja validade não depende de qualquer referência a valores éticos.
Abbagnano conduz-nos à noção de Direito natural como fundamento ou princípio
de todo Direito positivo, isto é, como condição de sua validade. Segundo ele:
O Direito natural é a norma constante e invariável que garante
infalivelmente a realização da melhor ordenação da sociedade humana: o
Direito positivo ajusta-se em maior ou menor grau, mas nunca
completamente, ao Direito natural porque contém elementos variáveis e
acidentais que não são redutíveis a este. O Direito natural é a perfeita
racionalidade da norma, a perfeita adequação da norma ao seu fim de
garantir a possibilidade da coexistência. Os Direitos positivos são
realizações imperfeitas ou aproximativas dessa normatividade perfeita. Esse
pensamento regeu, por mais de dois mil anos, a história da noção de Direito
(ABBAGNANO, 1999, p. 278).
Na antiga Grécia, aparecem as primeiras manifestações do jusnaturalismo através
da figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles (494-406 a. C.), quando a heroína
se insurge contra um decreto de Creonte, rei de Tebas, que proibiu o sepultamento do seu
irmão; ela se recusa a obedecer às ordens do rei que não podem sobrepor-se às ordens dos
deuses. Creonte havia determinado que Polinices, morto em uma batalha, não fosse sepultado.
Toda a obra é riquíssima em alusões ao tema, principalmente o Segundo Episódio,
o mais célebre de toda a peça, quando Antígona é encontrada tratando de sepultar o irmão,
lançando sobre o cadáver um punhado de terra, gesto ritual que representava o bastante para o
cumprimento da cerimônia de sepultamento, e logo em seguida, ela foi conduzida a presença
do déspota. Eis o diálogo:
Creonte
Falo agora para ti, que estás de olhos postos no chão: confirmas ou negas
tudo o que ele acaba de contar?
Antígona
Confirmo inteiramente; não nego nada, de facto.
Creonte
45
[...] E tu responde com brevidade e sem mais conversas: conhecias as
proibições constantes do meu édito?
Antígona
Conhecia, sim! Toda a gente as conhecia.
Creonte
E tiveste o atrevimento de violar as leis?
Antígona
Com certeza, porque Zeus não pretendeu impor-me proibições nem Dike, a
deusa que está com os númenes subterrâneos, jamais fixou os homens
normas parecidas. Além disso, eu não acreditava que os éditos humanos
tivessem força suficiente para conferirem a um mortal a faculdade de violar
as leis divinas, que nunca foram escritas mas são imutáveis. Não é de hoje
nem de ontem que elas vivem: são eternas e ninguém sabe determinar o
tempo que foram promulgadas. Em face destas leis que, não cedem,
timoratas, à vontade humana, não sou realmente culpada de coisa nenhuma.
Criatura efêmera, eu bem sabia que, antes ou depois, com o teu édito ou sem
ele, haveria de morrer. Se tal vier a acontecer antes de tempo, será de minha
total e exclusiva vantagem. Quem, como eu, está condenado a viver para
sempre na voragem de males sem conta, considera a morte um grande alívio.
Por isso, pouco importa o destino que me reservas. Se ao contrário, eu
tivesse deixado o filho da minha própria mãe morto e sem sepultura, ah!,
isso sim, é que me faria sofrer terrivelmente! Posso parecer-te louca, mas
tem cuidado, não seja ainda mais insano aquele que assim me considera
(SÓFOCLES, 1992, p. 34 - 36).
No pensamento grego, Sócrates, pressupondo a correlação dialética entre Direito
Positivo e Direito Natural, equiparou a lei ao justo, recusando-se a fugir da prisão, para não
descumprir a lei da polis e, desta forma, não praticar injustiça. Distinguiu as leis escritas, ou
direito humano, das leis não-escritas ou imutáveis, estabelecidas pela divindade.
O jusnaturalismo presente em Platão e Aristóteles foi produzido principalmente
pelos estóicos, que acreditavam que toda a natureza era governada por uma lei universal
racional e imanente. Os filósofos gregos defendiam a existência de um Direito Natural
inerente à natureza humana. A esse direito, invariável, constante e aplicável a todos os povos,
Aristóteles chamou de “justo por natureza”, em oposição ao “justo legal”, criado pelos
homens.
Na Idade Média, Tomás de Aquino distinguia três espécies de leis; a lex aeterna
ou razão divina, que governa o mundo; a lex naturalis, colocada por Deus no coração do
homem e a lex humana, criada pelo homem conforme os preceitos da lei natural. O conceito
de Direito Natural tem variado através dos tempos. Segundo Náufel:
Na acepção do Direito Romano, o jus naturale era “quod natura omnia
animalia doenit” - aquilo que a natureza ensinava a todos os seres, em
oposição ao jus gentium, que era o Direito Comum a todos os homens. Na
Idade Média passou a confundir-se, sob forte influência teológica, com a
moral, cuja origem era a lei divina: “jus naturale est jus commune
omnium nationem”, segundo a definição de Agostinho. No século XVII
46
Grócio elaborou a doutrina filosófica do Direito Natural, concebendo-o
como um direito absoluto, imutável e substancial, em contraposição com o
direito mutável, perecível, imperfeito e violável, dos homens (NÁUFEL,
1959, p. 235).
Os estudiosos definem o Direito Natural como sendo aquele direito não escrito,
fundado na providência divina, fruto da natureza ou da razão, que tem validade para todos,
pois é universal, imutável e permanente, isto porque, sendo a natureza humana a maior fonte
desses direitos, ela é, fundamentalmente, a mesma em todos os tempos e lugares. Existe,
assim, uma natureza humana, um fundo de humanidade comum a todos os seres humanos, que
os leva a adotar formas idênticas de conduta diante da vida.
Segundo Prosper Weil:
O fundamento dessa teoria é particularmente significativo: sem dúvida o
Talmud diz que essas sete regras foram “prescritas aos filhos de Noé”, mas
quem não vê que elas se aproximam daquelas normas das quais se diz,
noutra parte, que se elas não tivessem sido reveladas, o homem as
encontraria por si mesmo...”? Maimonides, aliás, não hesita em salientar que
“a razão inclina-se a favor delas”. Existe aí uma concepção que, se não é
idêntica à do jus natura et gentium, pelo menos fica bastante próxima dele.
Foi nessa fonte, aliás, que se abeberaram abundantemente, depois dos Padres
da Igreja, os Grotius e os Selden, tendo-se visto nela até mesmo uma das
origens das declarações dos direitos humanos americana e francesa - e além
delas, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (WEIL, 1985, p. 41-
42).
Acima do direito criado pelos homens (nomos) existe um Direito Natural, inerente
à natureza humana (physis), direito que é o reflexo, a expressão daquele fundo de
humanidade, comum a todos os homens. Bobbio também nos traz a distinção entre Direito
Natural e Direito Positivo, e esclarece bem os dois conceitos:
Para dar um último exemplo da distinção entre direito natural e direito
positivo, iremos escolhê-lo no limiar da época em que nasce o positivismo
jurídico, isto é, aos fins do século XVIII, e, Glück, que em seu Commentario
alle Pandette (Milão, 1888, vol. 1, p.61-62) diz: O direito se distingue,
segundo o modo pelo qual advém à nossa consciência, em natural e positivo.
Chama-se direito natural o conjunto de todas as leis, que por meio da razão
fizeram-se conhecer tanto pela natureza, quanto por aquelas coisas que a
natureza humana requerer como condições e meios de consecução dos
próprios objetivos... Chama-se direito positivo, ao contrário, o conjunto
daquelas leis que se fundam apenas na vontade declarada de um legislador e
que, por aquela declaração, vêm a ser conhecidas (BOBBIO, 1996, p. 21).
Chega-se à conclusão de que os direitos outorgados por Deus ao Povo de Israel,
através de um documento escrito, foram recepcionados pelo cristianismo e reconhecidos
como princípios de Direito Natural. Os mandamentos foram inspirados por Deus e escritos
por Moisés. É interessante lembrar que, mesmo antes de Moisés receber as leis reveladas, os
47
imperativos essenciais da moral e da religião, Noé recebeu de Deus mandamentos que
deveriam ser respeitados por toda a humanidade e que igualmente são reconhecidos como
princípios de Direito Natural. Conforme ressalta Perelman
O direito natural, a que Santo Tomás alude, é preexistente ao direito
positivo. Mas nem sempre sucede assim.
Em certas sociedades teocráticas,
os mandamentos divinos não preexistem ao direito positivo, mas o
constituem verdadeiramente. Depois de haver proclamado o Decálogo,
Moisés ordena a seu povo observá-lo por amor e por temor de Javé:
“Guardai os mandamentos de Jávé, vosso Deus, as instruções e as leis que
ele vos prescreveu, e fazei o que é justo e bom aos olhos de Javé”.
(Deuteronômio, VI, 17-18). As prescrições religiosas, morais e jurídicas, não
são distinguidas umas das outras ou, quando o são, é por meio de regras de
competência e de procedimento de importância secundária. Trata-se aqui de
uma concepção não filosófica, mas profética da justiça, da qual trataremos
posteriormente; voltemos aos pontos de vista filosóficos (PERELMAN,
1996 p. 74-75).
3.4 Legislação mosaica: fonte do direito
O livro do Êxodo, no seu início, narra o nascimento de Moisés (Êx 2- 1-10), de
pais que pertenciam à tribo de Levi. O livro também descreve a experiência de liberdade e
emancipação do povo hebreu. Anota Schökel:
Nasce o libertador: tarde demais? Quando já está em curso a opressão;
quanto tempo se deve ainda esperar até que cresça e amadureça? Fica
adscrito à tribo de Levi, talvez porque assim o exige seu irmão Aarão. A
mãe confia no Nilo mais do que nos homens, e o rio tutelar dos egípcios se
faz cúmplice seu para salvar o menino, conduzindo-o até o remanso exato do
encontro. A irmã cumpre uma função narrativa: vigia, serve de enlace. O
autor parece não pensar na Maria de relatos posteriores. A cesta calafetada é
uma como arca que navega com carga leve, mas carregada de futuro. A
palavra “menino” se repete sete vezes (SCHOKEL, 2002, p. 108).
O texto conclui: Quando o menino cresceu, ela o entregou à filha do Faraó, a qual
o adotou e lhe pôs o nome de Moisés, dizendo: “Eu o tirei das águas” (Êx 2,10). Foi
encontrado pela princesa Termutis e criado na Corte, cuidando aquela princesa para que ele
fosse alimentado por sua verdadeira mãe.
A Bíblia nos apresenta Moisés como sendo o fundador da fé de Israel. Para os
judeus continua sendo o eterno Moshe Rabenu – “Moisés, nosso Mestre”. De acordo com
Bright, a figura de Moisés domina todos os eventos a partir do Êxodo até a chegada junto à
fronteira da terra prometida. Chega a admitir que a respeito de Moisés conhece-se apenas o
que a Bíblia diz e que é impossível verificar-se a veracidade dos detalhes. Contudo, afirma
que:
48
não pode haver nenhuma dúvida de que ele, como a Bíblia o retrata, foi o
grande fundador da religião de Israel. As tentativas de alguns para diminuí-
lo não convencem absolutamente. Os acontecimentos do Êxodo e do Sinai
exigem uma grande personalidade à sua frente. E uma religião tão peculiar
como a de Israel exige um fundador como o exige o Cristianismo ou o
Islamismo. Negar esse papel a Moisés seria forçar-nos a colocar outra
pessoa do mesmo nome no mesmo papel (BRIGHT, 2003 p. 162).
Moisés recebeu uma dupla missão junto ao seu povo e junto aos egípcios. Parece
ter realizado sua missão junto a Israel foi aceito pelo povo: “O povo creu e ouviu que Iahweh
tinha visitado os israelitas e visto sua miséria. Ajoelharam-se e se prostraram” (Êx 4,31),
como Iahweh havia predito: "E ouvirão a tua voz; e irás com os anciãos de Israel ao rei do
Egito, e lhe dirás: ‘Iahweh, o Deus dos hebreus, veio ao nosso encontro. Agora, pois, deixa-
nos ir pelo caminho de três dias de marcha no deserto para sacrificar a Iahweh nosso Deus (Êx
3,18). Ficou a missão junto ao Faraó, para a qual Iahweh predisse grandes dificuldades: "Eu
sei, no entanto, que o rei do Egito não vos deixará ir, se não for obrigado por mão forte” (Êx
3,19).
Iahweh encarregou Moisés de falar ao Faraó e para o seu convencimento usar
sinais: Depois Moisés e Aarão foram e disseram a Faraó: “Assim falou Iahweh, o Deus de
Israel: Deixa o meu povo partir, para que me façam uma festa no deserto” (Êx 5, 1). A palavra
não foi suficiente. Moisés recorreu aos sinais, igualmente sem êxito. Diante da recusa do
Faraó em permitir a saída dos hebreus, lançou dez pragas sobre o Egito, uma após outra, até
que com a última, a mais terrível de todas - a morte dos primogênitos – obteve a tão esperada
permissão para conduzir o povo para fora do Egito através da passagem do Mar Vermelho (Êx
14,15). Tem início, então, a liderança de Moisés na condução dos israelitas durante quarenta
anos através do deserto (Êx 16).
O próprio Deus se revelou a Moisés no Monte Sinai, entregando-lhe as Tábuas da
Lei (Êx 19,24). Ali é firmada uma aliança com o povo consubstanciada com as normas de sua
conduta. É significativo o fato de Moisés não entrar em Canaã, a terra prometida por Deus ao
seu povo. Sua vida na terra foi um caminhar, permanecendo os louros reservados para o
retorno.
Após a morte de Moisés, sucedido por Josué, o seu povo entrou num período de
decadência. Apenas mais tarde com Neemias, auxiliado pelo rei Artaxerxes, e com o apoio de
vários sábios da época, entre os quais desponta o nome de Esdras, foi toda a obra de Moisés
reorganizada. Todos os seus textos escritos e falados, sobre o tema foram reunidos em cinco
livros, a saber:
1. Gênesis – Gn (grego) = vir a ser, surgir, “criação”, na esfera judaica Berexit
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(no princípio): trata da gênese ou origem do mundo, da humanidade, do pecado,
do povo de Deus.
2. Êxodo Êx (grego/latim) = saída, Weelleh Xemot (Eis os nomes): trata do
Êxodo, ou seja, da saída do povo eleito do Egito.
3. Levítico – Lv (grego/latim) = “livro levítico”, Wayyigrá (E chamou): expõe o
ritual e as leis dos sacerdotes da tribo de Levi.
4. Números – Nm (latim) = Números, Wayyedabber (E falou): devem seu nome
aos recenseamentos.
5. Deuteronômio – Dt (grego/latim) = segunda lei, Elleh haddebarim (Eis as
palavras) dá uma “segunda Lei” (de acordo com a interpretação grega de Dt
17,18: as prescrições dadas por Moisés no deserto do Sinai teriam sido
completadas nas planícies de Moab.
De notar que os nomes que derivam do grego estão relacionados com o conteúdo,
enquanto as denominações hebraicas estão relacionadas com a primeira ou principal palavra
do início de cada um dos livros do Pentateuco, que contém a história do homem, a origem do
povo hebreu e toda sua legislação civil e religiosa, finalizando com a morte de Moisés.
Moisés, o grande profeta e o maior legislador do povo hebreu, no último cântico
do Deuteronômio chegou a profetizar a influência e perenidade de sua obra, quando afirmou:
Desça como chuva minha doutrina,
minha palavra se espalhe como orvalho,
como chuvisco sobre a relva que viceja
e aguaceiro sobre a grama verdejante (Dt 32,2).
E, como está expresso no Dt 34,10-12: “E em Israel nunca mais surgiu um profeta
como Moisés - a quem lahweh conhecia face a face -, seja por todos os sinais e prodígios que
Iahweh o mandou realizar na terra do Egito, contra Faraó, contra todos os seus servidores e
toda a sua terra, seja pela mão forte e por todos os feitos grandiosos e terríveis que Moisés
realizou aos olhos de todo Israel!” Ressalte-se que a partir de Moisés o pacto se renova com
uma tríplice condição: terra-povo-lei. No capítulo 1 de Josué encontramos esta passagem:
Depois da morte de Moisés, servo de Iahweh, Iahweh falou a Josué, filho de
Num, ou auxiliar de Moisés, e lhe disse: "Moisés, meu servo, morreu; agora,
levanta-te! Atravessa este Jordão, tu e todo este povo, para a terra que dou
aos israelitas. (...) Sê firme e corajoso, porque farás este povo herdar a terra
que a seus pais jurei dar-lhes. Tão somente sê de fato firme e corajoso, para
teres o cuidado de agir segundo toda a Lei que te ordenou Moisés, meu
servo. Não te apartes dela, nem para a direita nem para a esquerda para que
triunfes em todas as tuas realizações. Que o livro desta Lei esteja sempre nos
teus lábios: medita nele dia e noite, para que tenhas o cuidado de agir de
50
acordo com tudo que está escrito nele. Assim serás bem sucedido nas tuas
realizações e alcançarás êxito (Js 1, 1, 2, 6, 7 e 8).
As leis que foram reveladas a Moisés constituem uma fonte material de direito,
uma vez que seus princípios e suas normas foram positivados ao longo do tempo, por
inúmeros ordenamentos, seja pela constatação de que o direito natural foi reconhecido por
filósofos e juristas como sendo uma revelação de Deus, ou porque, diversos mandamentos
contidos no Pentateuco se expressam no nosso atual ordenamento jurídico.
Perelman sublinha que Deus para o judaísmo é o legislador, o paradigma do bom
e do justo, fonte da moral e do direito. Ele sustenta que o direito tem como fonte a inspiração
divina e expõe que,
segundo o direito judaico, tal como é conhecido pelo Pentateuco e pelo
Talmude, foi Deus, encarnação da justiça e da misericórdia, que revelou a
Tora, a lei, a Moisés no monte Sinai. Deus aparece como a única fonte do
direito e Moisés é o único profeta legislador, se tomarmos ao pé da letra os
dois primeiros versículos do capítulo IV do Deuteronômio: “E agora, Israel,
ouvi os preceitos e as sentenças que eu vos ensino, para pô-los em prática, a
fim de que vivais e entrais, para possuí-lo, no país que vos dá Javé, o Deus
de vossos pais. Nada acrescentareis às palavras que eu vos digo e nada delas
tirareis, observando os mandamentos de Javé, vosso Deus, que eu vos
ordeno”. Daí resulta que os profetas e os sábios, segundo Moisés, podem
apenas comentar os textos, exortar à obediência, mas não podem modificar a
legislação divina revelada a Moisés (PERELMAN, 1996, p. 439).
Ressalte-se que em Israel muitas normas tinham fins higiênicos. Com a finalidade
de melhor serem compreendidas e obedecidas eram ensinadas como preceito religioso de
pureza ou impureza. O termo kosher (em hebraico significa “apropriado”) era utilizado para
qualificar o alimento permitido. Assim, todo alimento que não era considerado terefá (em
hebraico significa “dilacerado”) era kosher. Por exemplo, era proibido comer carne de porco
(em hebraico “chazir”) porque era tida como responsável pelo mal de Hansen (lepra) que se
propagava naquela época. O porco é um animal impuro, proibido pelas leis Dietéticas
judaicas: “tereis como impuro o porco porque, apesar de ter o casco fendido, partido em duas
unhas, não rumina” (Lv 11, 7); “Quanto ao porco, que tem o casco fendido mas não rumina,
vós o considerareis impuro. Não comereis de sua carne e nem tocareis em seus cadáveres”
(Dt,14,8).
O chefe de família era portador de um poder absoluto sobre as pessoas que viviam
sob sua autoridade e assim ficou estabelecido o castigo que um filho rebelde era merecedor
em caso de desobediência:
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Se alguém tiver um filho rebelde e indócil, que não obedece ao pai e à mãe e
não os ouve e mesmo quando o corrigem, o pai e a mãe o pegarão e levarão
aos anciãos da cidade, à porta do lugar e dirão aos anciãos da cidade: “Este
nosso filho é rebelde e indócil, não nos obedece, é devasso e beberrão. E
todos os homens da cidade o apedrejarão até que morra. Deste modo
extirparás o mal do teu meio, e todo Israel ouvirá e ficará com medo” (Dt 21,
18-21).
A legislação mosaica conheceu a antiga pena do Talião, que consistia em infligir a
alguém castigo perfeitamente equivalente ao mal que fizera a outrem. Determinava que o
dano causado ao próximo fosse reparado pela imposição de semelhante prejuízo ao
delinqüente, visando instaurar a justiça, tendo em vista, como todo processo judiciário, o
restabelecimento da ordem violada. Esta maneira de punir era de uso mais ou menos geral
entre os povos do antigo Oriente. Assim o Código de Hamurabi (depois de 1700 a. C.),
anterior à Lei mosaica (1240 a. C.) prescrevia no art. 196: “Olho vazado por olho vazado”; no
art. 197: “Membro quebrado por membro quebrado”. Expressava-se pela fórmula: “olho por
olho, dente por dente” e teve também larga aplicação na legislação grega, romana,
estendendo-se até a Idade Média, sendo abolida pela civilização moderna. A Bíblia proclama
o preceito taliônico: “olho por olho, dente por dente, pé por pé, queimadura por queimadura,
ferida por ferida, golpe por golpe” (Êx 21,24 e 25).
Encontramos na legislação mosaica abrandamento da pena de Talião, na hipótese
de homicídio culposo, caso em que o agente era apenas desterrado. A legítima defesa já era
prevista nessa legislação, que assim dispunha: “Quando houver querela entre dois homens e
vierem à justiça, eles serão julgados, absolvendo-se o inocente e condenando-se o culpado”
(Dt 25,1).
Existia também naquela legislação o princípio de que o depoimento de uma única
testemunha não era suficiente para se dar como provado o fato. “Testis unus, testis nullus”,
“Uma testemunha, testemunha nenhuma”. Vê-se que a Bíblia não confere valor ao julgamento
fundamentado na inquirição de uma só testemunha: “Uma única testemunha não é suficiente
contra alguém, em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado que haja cometido. A causa será
estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas” (Dt 19,15).
Neste mesmo diapasão, o art. 26 da Magna Carta da Inglaterra (1215) dispõe:
“Não se imporá nenhuma multa, se o delito não estiver comprovado com prévio juramento de
doze vizinhos honrados e cuja boa reputação seja notória”.
O princípio constitucional da inviolabilidade do domicílio, que considera a casa o
asilo inviolável do indivíduo, também já era consagrado entre os hebreus. Também, a
recepção da penhora pelo credor não autorizava a invasão do domicílio do devedor. O
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Deuteronômio registra estes dois versículos proibitivos: “Quando fizeres algum empréstimo
ao teu próximo, não entrarás em sua casa para lhe tirar o penhor. Ficarás do lado de fora, e o
homem a quem fizeste o empréstimo virá para fora trazer-te o penhor” (Dt 24,10c-11).
Quanto aos dispositivos de Direito Internacional, a legislação mosaica insere
diversos incisos sobre a situação do estrangeiro, sobre a paz e a guerra, estabelecendo
igualdade de tratamento, tanto para os nacionais quanto para os estrangeiros: “Não abomines
o edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque foste um estrangeiro em sua
terra” (Dt 23,8). “Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiros na terra do
Egito” (Dt 10,19). “Quando tiveres que sitiar uma cidade durante muito tempo antes de atacá-
la e tomá-la, não deves abater suas árvores a golpes de machado; alimentar-te-ás delas, sem
cortá-las: uma árvore do campo é por acaso um homem, para que a trates como um sitiado?”
(Dt 20, 19). Segundo Weil:
A igualdade de tratamento não pareceu suficiente. Os judeus foram
surpreendidos pela ordem de amar os estrangeiros. O motivo é simples: os
judeus sabem por experiência própria como é amarga a condição de
estrangeiro: “Tu o amarás como a ti mesmo, pois fostes estrangeiro na terra
do Egito”; “Deus ama o estrangeiro” e o “protege”. Assim, o Talmud não
hesita em escrever que “fazer o mal a um estrangeiro é como fazer mal ao
próprio Deus” (WEILL, 1985 p. 61).
O espírito de solidariedade humana está presente em toda legislação mosaica,
como assinala Altavila. Alguns dispositivos demonstram esta assertiva:
Quanto ao levita que mora nas tuas cidades, não o abandonarás, pois ele não
tem parte nem herança contigo” (Dt 14,27). “A cada três anos tomarás o
dizimo da tua colheita no terceiro ano e o colocarás em tuas portas” (Dt
14,28). “Virá então o levita (pois ele não tem parte nem herança contigo), o
estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem nas tuas cidades, e eles comerão e
se saciarão. Deste modo Iahweh teu Deus te abençoará em todo trabalho que
a tua mão realizar” (Dt 14,29). “Quando houver um pobre em teu meio, que
seja um só dos teus irmãos numa só das tuas cidades, na terra que Iahweh
teu Deus te dará, não endurecerás teu coração, nem fecharás a mão para com
este teu irmão pobre” (Dt 15,7). Pelo contrário: abre-lhe a mão, emprestando
o que lhe falta, na medida de sua necessidade (Dt 15,8).
Com efeito, a Lei Mosaica vai muito além da observância religiosa no sentido
restrito, tratando de assuntos políticos, sociais e de família com um espírito bastante avançado
para sua época, o que explica a sua influência nas legislações de outros povos. Encontram-se
no seu Código disposições hoje defendidas a respeito da justiça, que deve ser administrada de
forma imparcial, igualmente para ricos e pobres:
“Estabelecerás juizes e escribas em cada uma das cidades que lahweh teu
Deus vai dar para as tuas tribos. Eles julgarão o povo com sentenças justas”.
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(Dt 16,18). “Não perverterás o direito, não farás acepção de pessoas e nem
aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos do sábio e falseia a causa
dos justos” (Dt 16,19).
Segundo Altavila, nenhum outro povo encontrou um condutor de destino que se
igualasse a Moisés:
Precavido e forte, quando admoestou o povo incrédulo que o seguia sobre
saibros, sem perceber que era conduzido como o elemento essencial de uma
nação destinada a ser estado; legislador, quando, desprezando os textos
papíricos do seminário teológico de Heliópolis, redigiu uma nova lei,
compatível com a raça em cuja consciência trabalhou para incutir os
fundamentos de um direito; estadista, quando proveu o seu povo, reprimiu os
descontentamentos, edificou os tabernáculos, sagrou os sacerdotes,
estabeleceu regras legais para o culto, para a economia e para a higiene;
grandioso e resignado quando expirou no monte Nebo, com os grandes olhos
arregalados para a Terra Prometida, bebendo pelo cálice ardente das pupilas
os últimos clarões do seu último sol na terra (ALTAVILA, 1997, p. 19).
3.5 Influência das leis reveladas no direito ocidental
O direito de Israel repousa sobre a autoridade divina. Foi proclamado pelo próprio
Deus no monte Sinai e transmitido por um mediador, Moisés, encarregado também de redigir
a lei do Antigo Testamento nos dois relatos do Pentateuco, Êx 24,4 e Dt 31,9-24. O
Pentateuco define Moisés como um “profeta” (Êx 3,1-4,20).
Segundo Dom João Evangelista M. Terra, “na revelação do Antigo Testamento,
Deus se apresenta como o princípio de todos os direitos e privilégios do seu povo” (TERRA,
1991, p. 46). Lembra o autor, que todo israelita devia rezar na festa das primícias o credo
histórico, que recordava a vocação histórico-salvífica de Israel, que teve início com o
chamado de Abraão para ser o pai de uma grande nação até a introdução na terra prometida.
“E, tomando a palavra, tu dirás diante de Iahweh teu Deus:
Meu pai era um arameu errante:
ele desceu ao Egito e ali residiu com poucas pessoas;
depois tornou-se uma nação grande,
forte e numerosa.
Os egípcios, porém, nos maltrataram e nos humilharam,
impondo-nos uma dura escravidão.
Gritamos então a Iahweh, Deus dos nossos pais,
e Iahweh ouviu a nossa voz:
viu nossa miséria,
nosso sofrimento e nossa opressão.
E Iahweh nos fez sair do Egito
com mão forte e braço estendido,
em meio a grande terror, com
sinais e prodígios,
54
e nos trouxe a este lugar, dando-nos esta terra,
uma terra onde mana leite e mel.
E agora, eis que trago as primícias
dos frutos do solo que tu me deste, Iahweh”( Dt 26,5-10).
O israelita, na verdade, reza todos os dias com as palavras do Livro do
Deuteronômio, porque sabe que ali está contido o centro de toda a sua existência: ‘Ouve, ó
Israel: Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto amarás a Iahweh teu Deus com todo o
teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6, 4-5).
No direito dos israelitas, a organização da justiça e a sua realização estavam
prescritas nos capítulos 16 e 17 do Deuteronômio. Na perspectiva hebraica, a justiça é
entendida como um atributo inerente à própria divindade.
Busca somente a justiça, para que vivas e possuas a terra que Iahweh teu
Deus te dará” (Dt 16,20); [...] e “quando tiveres que julgar uma causa que te
pareça demasiado difícil – causas duvidosas de homicídio, de pleito, de
lesões mortais, ou causas controvertidas em tua cidade, - levantar-te-ás e
subirás ao lugar que Iahweh teu Deus houver escolhido. Irás então até aos
sacerdotes levitas e ao juiz que estiver em função naqueles dias. Eles
investigarão e te anunciarão a sentença. Agirás em conformidade com a
palavra que eles te anunciarem deste lugar que Iahweh houver escolhido.
Cuidarás de agir conforme todas as suas instruções. Agirás segundo a
instrução que te derem, e de acordo com a sentença que te anunciarem, sem
te desviares para a direita ou para a esquerda da palavra que eles te
houverem anunciado. O homem que agir com presunção, não obedecendo ao
sacerdote, que está ali para servir a Iahweh teu Deus, nem ao juiz, tal homem
deverá ser morto” (Dt 17, 8-12).
Os judeus da antiguidade formaram seu corpo de normas ético-religiosas e ético-
sociais sob a compreensão de que o Direito Natural e o Direito Positivo emanam diretamente
de Deus, ambos são perfeitamente justos, absolutos, sagrados e eternos.
Elaboraram um direito relativamente avançado para sua época, o que se evidencia
pela preocupação com a eqüidade, revelando um povo determinado para a crença e sobretudo
para o estudo (povo do Livro), venerando a verdade divinamente revelada. Afinal, o estudo,
refere Falk ,“é o mandamento mais importante na vida judaica. Somos sempre estudantes e,
quando concluímos o estudo de um certo texto, imediatamente iniciamos outro. Se a pessoa
estudou na sua juventude, deverá continuar até a velhice” (FALK, 1988, p. 11).
O direito hebraico é um direito religioso. As normas morais, religiosas e jurídicas
se confundem e fazem parte da experiência jurídico-constitucional ocidental. Acreditavam em
certos conceitos éticos fundamentais como a justiça, a igualdade, o decoro, a benevolência, e
a integridade, entre outros. Viviam numa atmosfera absolutamente igualitária: todos se faziam
representar no conselho do clã ou tribo. Apesar de a escravidão ser tolerada, de certa forma, as
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relações senhor-escravo eram abrandadas, a Lei protegia o fugitivo: “Quando um escravo
fugir do seu amo e se refugiar em tua casa, não o entregues ao seu amo; ele permanecerá
contigo, entre os teus, no lugar que escolher, numa das tuas cidades, onde lhe pareça melhor.
Não o maltrates” (Dt 23, 16-17).
Aquele direito também considerava que a instituição da propriedade privada estava
sujeita ao controle social; a sociedade é que poderia determinar quanto um homem podia
possuir, quanto de sua renda poderia ser retida em proveito próprio, por quanto tempo podia
dispor do título de propriedade. Existiam leis contra o furto e o dano. Assim, estava
determinado: “Quando entrares na vinha do teu próximo poderás comer à vontade, até ficar
saciado, mas nada carregues em teu cesto. Quando entrares na plantação do teu próximo
poderás colher as espigas com a mão, mas não passes a foice na plantação do teu próximo”
(Dt 23, 25-26).
No Deuteronômio, vamos encontrar as primeiras leis de proteção ao trabalhador. O
descanso semanal, o sábado (Shabat) foi criado como uma instituição social: “O sétimo dia,
porém, é o sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum trabalho, nem tu, nem teu filho,
nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer
dos teus animais, nem o estrangeiro que está em tuas portas. Deste modo o teu escravo e a tua
escrava poderão repousar como tu” (Dt 5,14).
Os salários deviam ser pagos com pontualidade: “Não oprimirás um assalariado
pobre, necessitado, seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em
tua cidade. Pagar-lhe-ás o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e
disso depende a sua vida. Deste modo, ele não clamará a Iahweh contra ti, e em ti, não haverá
pecado” (Dt 24, 14-15).
O Decálogo - contém as “dez palavras”- foi ditado a Moisés no Monte Sinai por
Iahweh; é um conjunto delimitado de dez prescrições, tem universalidade única, e é
considerado mais um código moral do que jurídico, visando antes à conduta do individuo do
que à organização da sociedade e das relações sociais. Encontra-se em duas formulações: no
Êxodo 20,2-7 e no Deuteronômio 5,6-8. Quando Moisés sobe o Sinai para encontrar Deus,
Iahweh inicia assim sua fala: “Vós mesmos vistes o que eu fiz aos egípcios, e como vos
carreguei sobre asas de águia e vos trouxe a mim. Agora, se ouvirdes a minha voz e
guardardes a minha aliança, sereis para mim uma propriedade peculiar entre todos os povos,
porque toda a terra é minha. Vós sereis para mim um reino de sacerdotes, uma nação santa”
(Ex 19,4-6). E o Salmista ora:
56
Abre meus olhos para eu contemplar
As maravilhas que vêm de tua lei.
Eu sou um estrangeiro na terra,
Não escondas de mim teus mandamentos (Sl 119 , 18-20).
Podemos apontar ainda vários exemplos que elucidam a contribuição judaica ao
direito contemporâneo. Nas leis encontradas no Pentateuco e que foram acolhidas pelo direito
contemporâneo ocidental:
1. O Direito à Educação: o estudo e o ensino da Torá sempre formaram uma das
pedras angulares do judaísmo, do povo do Livro, por isso também chamado, “o
povo cuja pátria é um livro”. A respeito Prosper Weil, nos traz a citação de
Cohen: “Tu as repetirás a teus filhos e tu di-las-á quando ficares em casa e
quando te puseres a caminho, quando estiveres deitado e quando estiveres de
pé”; “Sem discípulos, não haverá sábios”; “o mundo não subsiste a não ser pelo
sopro dos estudantes” (COHEN, apud WEIL, 1985, p.59).
2. O Direito a um Processo Justo: o direito fundamental à ordem jurídica justa, foi
objeto de atenção especial por parte da Bíblia, como também os magistrados,
designados muitas vezes pela mesma palavra “Elohim”, Deus e os juízes. A
constituição de uma organização judiciária apropriada representou uma das
primeiras preocupações de Moisés após a saída do Egito: Êx, 12-27.
3. Leis Ambientais: “Se pelo caminho encontras um ninho de pássaros – numa
árvore ou no chão – com filhotes ou ovos e a mãe sobre os filhotes ou sobre os
ovos, não tomarás a mãe que está sobre os filhotes; deves primeiro deixar a mãe
partir em liberdade, depois pegarás os filhotes, para que tudo corra bem a ti e
prolongues os teus dias” (Dt 22,6-7).
“Iahweh falou a Moisés no Monte Sinai; disse-lhe: “Fala aos israelitas e dize-
lhes: Quando entrardes na terra que eu vos dou, a terra guardará um sábado para
Iahweh. Durante seis anos semearás o teu campo; durante seis anos podarás a
tua vinha e recolherás os produtos dela. Mas no sétimo ano a terra terá o seu
repouso sabático, um sábado para Iahweh: não semearás o teu campo e não
podarás a tua vinha, não ceifarás as tuas espigas, que não serão reunidas em
feixes, e não vindimarás as tuas uvas das vinhas, que não serão podadas. Será
para a terra um ano de repouso. O próprio sábado da terra vos nutrirá, a ti, ao teu
servo, à tua serva, ao teu empregado, ao teu hóspede, enfim a todos aqueles que
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residem contigo. Também ao teu gado e aos animais da tua terra, todos os seus
produtos servirão de alimento (Lv 25, 1-7).
4. Direito à Indenização por Danos: “Se alguém pedir emprestado a seu próximo
um animal, e este ficar aleijado ou morrer, não estando presente o dono, deverá
pagá-lo. Mas se o dono estiver presente, não o pagará; se foi alugado, o valor
do aluguel será o pagamento” (Êx 22,13-14).
5. Indenização por Lucros Cessantes: “Se alguns discutirem entre si e um ferir o
outro com uma pedra ou com o punho, e ele não morrer, mas for para o leito,
se ele se levantar e andar, ainda que apoiado no seu bordão, então será
absolvido aquele que o feriu; somente lhe pagará o tempo que perdeu e o fará
curar-se totalmente” (Êx 21, 18-19).
6. Indenização por Danos Morais: “Se um homem se casa com uma mulher e,
após coabitar com ela, começa a detestá-la, imputando-lhe atos vergonhosos e
difamando-a publicamente, dizendo: “Casei-me com esta mulher, mas, quando
me aproximei dela, não encontrei os sinais da sua virgindade”, o pai e a mãe da
jovem tomarão as provas da sua virgindade e as levarão aos anciãos da cidade,
na porta. Então o pai da jovem dirá aos anciãos: “Dei a minha filha como
esposa a este homem, mas ele a detesta, e eis que está lhe imputando atos
vergonhosos, dizendo: ‘Não encontrei os sinais da virgindade em tua filha!’
Mas eis aqui as provas da virgindade da minha filha!”, e estenderão o lençol
diante dos anciãos da cidade. Os anciãos da cidade tomarão o homem, castigá-
lo-ão e lhe infligirão a multa de cem ciclos de prata, que serão dados ao pai da
jovem, por uma virgem de Israel ter sido difamada publicamente. Além disso,
ela continuará sendo sua mulher e ele não poderá mandá-la embora durante
toda a sua vida. Contudo, se a denúncia for verdadeira, se não acharem as
provas da virgindade da jovem, levarão a jovem até à porta da casa do seu pai e
os homens da cidade a apedrejarão até que morra, pois ela cometeu uma
infâmia em Israel, desonrando a casa do seu pai. Deste modo extirparás o mal
do teu meio” (Dt 22 13-20).
7. Responsabilidade Civil: “Quando constróis uma casa nova, deves fazer um
parapeito no terraço; deste modo evitarás que a tua casa seja responsável pela
vingança do sangue, caso alguém dela caia” (Dt 22,8).
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8. Descanso Semanal: “Guardarás o dia de sábado para santificá-lo, conforme
ordenou Iahweh teu Deus. Trabalharás durante seis dias e farás toda a tua obra;
o sétimo dia, porém, é o sábado de Iahweh teu Deus. Não farás nenhum
trabalho, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua
escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem qualquer dos teus animais, nem o
estrangeiro que está em tuas portas. Deste modo o teu escravo e a tua escrava
poderão repousar como tu. Recorda que foste escravo na terra do Egito, e que
Yahweh teu Deus te fez sair dela com mão forte e braço estendido. É por isso
que Iahweh teu Deus te ordenou guardar o dia de sábado” (Dt 5, 12-15).
“Durante seis dias farás os teus trabalhos e no sétimo descansarás, para que
descanse o teu boi e o teu jumento, e tome alento o filho da tua serva e o
estrangeiro” (Êx 23,12).
“Seis dias trabalharás; mas no sétimo descansarás, quer na aradura, quer na
colheita” (Êx 34,21).
9. Responsabilidade pelos animais e direito à indenização: “Se o boi de alguém
ferir o boi de outro, e o boi ferido morrer, venderão o boi vivo e repartirão o
seu valor; e dividirão entre si o boi morto. Se, porém, o dono sabia que o boi
marrava já há algum tempo e não o guardou, pagará boi por boi; mas o boi
morto será seu”. (Êx 21, 35-36).
“Se algum boi chifrar homem ou mulher e causar a sua morte, o boi será
apedrejado e não comerão a sua carne; mas o dono do boi será absolvido. Se o
boi, porém, já antes marrava e o dono foi avisado, e não o guardou, o boi será
apedrejado e o seu dono será morto. Se lhe for exigido resgate, dará então
como resgate da sua vida tudo o que lhe for exigido. Que tenha chifrado um
filho, que tenha chifrado uma filha, esse julgamento lhe será aplicado. Se o boi
ferir um escravo ou uma serva, dar-se-ão trinta siclos de prata ao senhor
destes, e o boi será apedrejado” (Êx 21, 28-32).
10. Repressão ao charlatanismo: “Que em teu meio não se encontre em alguém
que queime seu filho ou sua filha, nem que faça presságio, oráculo,
adivinhação ou magia, ou que pratique encantamentos, que interrogue
espíritos ou adivinhos, ou ainda que invoque os mortos; pois quem pratica
essas coisas é abominável a Iahweh, e é por causa dessas abominações que
Iahweh teu Deus as desalojará em teu favor” (Dt 18,10-12).
“Não deixarás viver a feiticeira” (Êx 22,17).
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11. Proibição ao falso testemunho – Perjúrio: “Se alguém pecar em um dos casos
seguintes: Após ter ouvido a fórmula de imprecação tinha o dever de dar
testemunho, pois que viu ou soube, mas nada declarou e leva o peso da sua
falta” (Lv 5,1).
“Não espalharás noticias falsas, nem darás a mão ao ímpio para seres
testemunha de injustiça” (Êx 23,1).
“Não apresentarás um testemunho mentiroso contra o teu próximo” (Êx
20,16).
12. Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa: Iahweh disse a Caim: “Onde
está teu irmão Abel?” Ele respondeu: “Não sei. Acaso sou guarda de meu
irmão?” (Ex 4,9).
13. Tratamento Igualitário: “Não afligirás o estrangeiro nem o oprimido, pois vós
mesmos fostes estrangeiros no país do Egito” (Êx 22,20).
“Não façais acepção de pessoas no julgamento: ouvireis de igual modo o
pequeno e o grande. A ninguém temais, porque a sentença é de Deus. Se a
causa for muito difícil para vós, dirigi-la-eis para mim, para que eu a ouça.
Naquela ocasião eu vos ordenei tudo aquilo que deveríeis fazer” (Dt 1,17).
“Não cometereis injustiça no julgamento. Não farás acepção de pessoas com
relação ao pobre, nem te deixarás levar pela preferência ao grande: segundo a
justiça julgarás o teu compatriota” (Lv 19,15).
“A sentença será entre vós a mesma, quer se trate de um natural ou de
estrangeiro, pois eu sou Iahweh vosso Deus” (Lv 24,22).
14. Direito de Vizinhança – Indenização: “Se um fogo, alastrando-se, encontrar
espinheiros e atingir as medas, ou a messe, ou o campo, aquele que ateou o
fogo pagará totalmente o que tiver queimado” (Êx 22,5).
15. Direito de Família: Casamento e Divórcio: O casamento era regido por um tipo
de contrato denominado Ketubá“ (em hebraico significa documento), escrito
em aramaico, entregue pelo noivo a sua noiva na cerimônia do casamento . Ao
casal não era permitido viver juntos como marido e mulher sem dispor de sua
Ketubá, que estabelecia as responsabilidades do marido e garantia o sustento da
mulher com os bens do marido caso ele viesse a falecer antes dela, ou uma
indenização monetária em caso de divórcio. Em relação ao divórcio, a Lei de
Moisés, era extremamente permissiva, entretanto, o ato de requerê-lo era
60
exclusividade do marido: “Quando um homem tiver tomado uma mulher e
consumado o matrimonio, mas esta, logo depois, não encontra mais graça a
seus olhos, porque viu nela algo de inconveniente, ele lhe escreverá então uma
ata de divórcio e a entregará, deixando-a sair de sua casa em liberdade” (Dt
24,1).
16. Adoção: “Depois desses acontecimentos, a palavra de Iahweh foi dirigida a
Abrão, numa visão: “Não temas, Abrão! Eu sou o teu escudo, tua recompensa
será muito grande.” Abrão respondeu: “Meu Senhor Iahweh, que me darás?
Continuo sem filho...” Abrão disse: “Eis que não me deste descendência e um
dos servos de minha casa será meu herdeiro.” Então foi –lhe dirigida esta
palavra de Iahweh: “Não será esse o teu herdeiro, mas alguém saído do teu
sangue.”Ele o conduziu para fora e disse: “Ergue os olhos para o céu e conta as
estrelas, se as podes contar”, e acrescentou: “Assim será a tua posteridade.”
Abrão creu em Iahweh, e lhe foi tido em conta de justiça” (Gn 15, 1-6).
17. Adultério: “Se um homem for pego em flagrante deitado com uma mulher
casada, ambos serão mortos, o homem que se deitou com a mulher e a mulher.
Deste modo extirparás o mal de Israel” (Dt 22, 22).
“Se houver uma jovem virgem prometida a um homem, e um homem a
encontra na cidade e se deita com ela, trareis ambos à porta da cidade e os
apedrejareis até que morram: a jovem por não ter gritado por socorro na cidade,
e o homem por ter abusado da mulher do seu próximo. Deste modo extirparás o
mal do teu meio”(Dt 22, 23-24).
“Não cometerás adultério” (Dt 5, 18).
“Fala aos israelitas; tu lhes dirás: Se há alguém cuja mulher se desviou e se
tornou infiel, visto que, às escondidas do seu marido, esta mulher dormiu
maritalmente com um homem, e tornou-se impura secretamente, sem que haja
testemunhas contra ela e sem que tenha sido surpreendida no ato” (Nm 5, 12-
13).
18. Repressão à Prostituição: “Não profanes a tua filha, fazendo-a prostituir-se;
para que a terra não se prostitua e não se torne incestuosa” (Lv 19,29).
19. Homicídio Doloso: “Contudo, se alguém é inimigo do seu próximo e lhe arma
uma cilada, levantando-se e ferindo-o mortalmente, e a seguir refugia-se numa
daquelas cidades, os anciãos da sua cidade enviarão pessoas para tirá-lo de lá e
entregá-lo ao vingador do sangue, para que seja morto. Que teu olho não tenha
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piedade dele. Deste modo extirparás de Israel o derramamento de sangue
inocente, e serás feliz” (Dt 19, 11-13).
“Se alguém matar outro por astúcia, tu o arrancarás até mesmo do meu altar,
para que morra” (Êx 21,14).
“Não matarás” (Dt 5,17).
20. Homicídio Culposo e Cidades Asilo: “Quem ferir a outro e causar a sua morte,
será morto. Se não lhe armou cilada, mas Deus lhe permitiu que caísse em suas
mãos, eu te designarei um lugar no qual possa se refugiar” (Êx 21, 12-13).
“Este é o caso do homicida que poderá se refugiar lá para se manter vivo:
aquele que matar seu próximo involuntariamente, sem tê-lo odiado antes (por
exemplo: alguém vai com seu próximo ao bosque para cortar lenha; impelindo
com força o machado para cortar a árvore, o ferro escapa do cabo, atinge o
companheiro e o mata): ele poderá então refugiar-se numa daquelas cidades,
ficando com a vida salva; para que o vingador do sangue, enfurecido, não
persiga o homicida e o alcance, porque o caminho é longo, - tirando-lhe a vida
sem motivo suficiente, pois antes ele não era inimigo do outro. É por isso que
eu te ordeno: Separa três cidades” (Dt 19,4-7).
21. Assistência Social: “Quando houver um pobre em teu meio, que seja um
dos teus irmãos numa só das tuas cidades, na terra que Iahweh teu Deus te
dará, não endurecerás teu coração, nem fecharás a mão para com este teu irmão
pobre; pelo contrário: abre-lhe a mão, emprestando o que lhe falta, na medida
da sua necessidade” (Dt 15, 7-8).
“Se tomares o manto do teu próximo em penhor, tu lho restituirás antes do
pôr–do- sol. Porque é com ele que se cobre, é a veste do seu corpo: em que se
deitaria? Se clamar a mim, eu o ouvirei, porque sou compassivo” (Êx 22, 25-
26).
“Todos os anos separarás o dízimo de todo o produto da tua semeadura que o
campo produzir, e diante de Iahweh teu Deus, no lugar que ele houver
escolhido para aí fazer habitar o seu nome, comerás o dízimo do teu trigo, do
teu vinho novo e do teu óleo, como também os primogênitos das tuas vacas e
das tuas ovelhas, para que aprendas contínuamente a temer a Iahweh teu Deus”
(Dt 14, 22-23).
22. Repressão aos fraudadores: “Não cometereis injustiça no julgamento, quer se
trate de medidas de comprimento, quer de peso ou de capacidade. Tereis
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balanças justas, pesos justos, medida justa e quartilho justo. Eu sou Iahweh
vosso Deus que vos fez sair da terra do Egito” (Lv 19,35-36).
23. Direito Internacional: “Quando tiveres que sitiar uma cidade durante muito
tempo antes de atacá-la e tomá-la, não deves abater sua árvores a golpes de
machado; alimentar-te-às delas, sem cortá-las: uma árvore do campo é por
acaso um homem, para que a trates como um sitiado?” (Dt 20,19).
“Não perverterás o direito do estrangeiro e do órfão, nem tomarás como penhor
a roupa da viúva” (Dt 24,17).
“Portanto, amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiro na terra do Egito”
(Dt 10,19)
24. Gradação das Penas: “Quando houver querela entre dois homens e vierem à
justiça, ele serão julgados, absolvendo-se o inocente e condenando-se o
culpado. Se o culpado merecer açoites, o juiz o fará deitar-se e mandará açoitá-
lo em sua presença, com um número de açoites proporcional à sua culpa” (Dt
25, 1-2).
“Os pais não serão mortos em lugar dos filhos, nem os filhos em lugar dos pais.
Cada um será executado por seu próprio crime” (Dt 24,16).
“Que teu olho não tenha piedade. O talião-vida por vida, olho por olho, dente
por dente, mão por mão, pé por pé” (Dt 19,21).
“Quem matar um animal deverá dar compensação por ele, e quem matar um
homem deverá morrer” (Lv 24,21).
25. Corrupção: “Não perverterás o direito, não farás acepção de pessoas e nem
aceitarás suborno, pois o suborno cega os olhos do sábio e falseia a causa dos
justos” (Dt 16,19).
“Maldito seja aquele que aceita suborno para matar uma pessoa inocente! E
todo o povo dirá: Amém!” (Dt 16,19).
26. Prova Testemunhal: “Uma única testemunha não é suficiente contra alguém,
em qualquer caso de iniqüidade ou de pecado que haja cometido. A causa será
estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três testemunhas. Quando
uma falsa testemunha se levantar contra alguém, acusando-o de alguma
rebelião, as duas partes em litígio se apresentarão diante de Iahweh, diante dos
sacerdotes e dos juizes que estiverem em função daqueles dias. Os juizes
investigarão cuidadosamente. Se a testemunha for uma testemunha falsa, e
tiver caluniado seu irmão, então vós a tratareis conforme ela própria
63
maquinava tratar o seu próximo. Deste modo extirparás o mal do teu meio,
para que os outros ouçam, fiquem com medo, e nunca mais tornem a praticar
semelhante mal no meio de ti” (Dt 19, 15-20).
27. Usura: “Não emprestes ao teu irmão com juros, quer se trate de empréstimo de
dinheiro, quer de víveres ou de qualquer outra coisa sobre a qual é costume
exigir um juro. Poderás fazer um empréstimo com juros ao estrangeiro;
contudo, emprestarás sem juros ao teu irmão para que Iahweh teu Deus
abençoe todo empreendimento da tua mão na terra em que estás entrando, a
fim de tomares posse dela” (Dt 23, 20-21).
“Não trarás à casa de Iahweh teu Deus o salário de uma prostituta, nem o
pagamento de um “cão” por algum voto, porque ambos são abomináveis à
Iahweh teu Deus” (Dt 23,19).
28. Limite de respeito a propriedade privada: “Não deslocarás as fronteiras do teu
vizinho, colocadas pelos antepassados no patrimônio que irás herdar, na terra
cuja posse Iahweh teu Deus te dará” (Dt 19,14).
“Maldito seja aquele que desloca a fronteira do seu vizinho! E todo o povo
dirá: Amém!” (Dt 27,17).
29. Direito do trabalho: “Quando um dos teus irmãos, hebreu ou hebréia, for
vendido a ti, ele ti servirá por seis anos. No sétimo ano tu o deixarás ir em
liberdade. Mas, quando o deixares ir em liberdade, não o despeças de mãos
vazias” (Dt 12,13).
“Não oprimirás um assalariado pobre, necessitado, seja ele um dos teus irmãos
ou um estrangeiro que more em tua terra, em tua cidade” (Dt 24,14).
30. Devido processo legal: “Agirás em conformidade com a palavra que eles te
anunciarem deste lugar que Iahweh houver escolhido. Cuidarás de agir
conforme todas as suas instruções. Agirás segundo a instrução que te derem, e
de acordo com a sentença que te anunciarem, sem te desviares para a direita ou
para a esquerda da palavra que eles te houverem anunciado” (Dt 17,10).
“Deverás investigar, fazendo uma pesquisaa e interrogando cuidadosamente.
Caso seja verdade, se o fato for constatado, se esta abominação foi praticada em
teu meio” (Dt 13,15).
“Em todo caso de homicídio, o homicida será morto mediante o depoimento de
testemunhas; mas uma única testemunha não levará alguém à pena de morte”
(Nm 35,30).
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31. Bens impenhoráveis: “Não tomarás como penhor as duas mós, nem mesmo a
mó de cima, pois assim estarias penhorando uma vida” (Dt 24,6).
32. Princípios de direito constitucional: “Deverás estabelecer sobre ti um rei que
tenha sido escolhido por Iahweh teu Deus; é um dos teus irmãos que
estabelecerás como rei sobre ti. Não poderás nomear um estrangeiro que não
seja teu irmão. Ele, porém, não multiplicará cavalos para si, nem fará com que
o povo volte ao Egito para aumentar a sua cavalaria, pois, Iahweh vos disse:
“Nunca mais voltareis por este caminnho!”. Que ele não multiplique o número
de suas mulheres para que seu coração não se desvie. E que não multiplique
excessivamente sua prata e seu ouro. Quando subir ao trono real, ele deverá
escrever num livro, para seu uso. Uma cópia desta Lei, ditada pelos sacerdotes
levitas” (Dt 17,15-18).
33. Inviolabilidade do domicílio: “Quando fizeres algum empréstimo ao teu
próximo, não entrarás em sua casa para lhe tirar o penhor. Ficarás do lado de
fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo virá para fora trazer-te o penhor”
(Dt 24, 10-11).
34. Repressão ao estupro: “Contudo, se o homem encontrou a jovem prometida no
campo, violentou-a e deitou-se com ela, morrerá somente o homem que se
deitou com ela; nada farás à jovem porque ela não tem um pecado que mereça
a morte. Com efeito, este caso é semelhante ao do homem que ataca seu
próximo e lhe tira a vida: ele a encontrou no campo e a jovem prometida pode
ter gritado sem que houvesse quem a salvasse” (Dt 22,25-27).
Como assinala Jayme Altavilla, citando Will Durant, “a Grécia teve cultura, mas
não revelou coração; até seus filósofos defendiam a escravidão. Se os gregos produziram arte
e ciência, dos judeus saiu a idéia de justiça social e dos direitos do homem” (Durant, apud
ALTAVILLA, 2001, p. 31).
Com o objetivo de comparar os sistemas judiciários do Brasil e de Israel, em maio
deste ano, a Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região (Emarf) promoveu no
Centro Cultural Justiça Federal (CCJF), no Rio de Janeiro, o Seminário Colóquio Jurídico
Brasil-Israel: os 60 anos da fundação do Estado de Israel. O evento contou com a
participação, entre outras palestrantes, do único brasileiro a exercer a magistratura em Israel,
65
Dr. Mário Klein, nascido no Rio de Janeiro e residente em Tel-Aviv, desde 1982, onde é Juiz
do Tribunal Geral e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Bar-Ilan.
O Professor Jacob Dollinger (Faculdade de Direito da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro), no referido Seminário, lembrou o trecho que conta o episódio do sogro de
Moisés, Jetro. Ao encontrar seu genro julgando os problemas do povo, Jetro sugeriu que ele
escolhesse alguns juízes que pudessem representá-lo. Apenas as causas mais difíceis ficariam
para Moisés apreciar. Criou-se a primeira e a segunda instâncias e o sistema judiciário no
deserto há milhares de anos.
Além de comparar os sistemas judiciários dos dois países, os especialistas
discutiram a influência das milenares leis judaicas na sociedade moderna, concluindo que: O
Direito de hoje já estava na Bíblia. Vê-se, portanto, que malgrado o longo hiato da história,
capaz de alterar substancialmente os dados sociais e econômicos, foram poucas as mudanças
levadas a cabo no conceito de justiça. A validade das normas reveladas por Moisés continua,
em termos, inalterada.
66
4 DIREITO HEBRAICO
4.1 Conceito e fontes
O povo de Israel, nas diversas etapas de sua evolução social sob a monarquia,
construiu uma legislação e uma jurisprudência com o propósito de regulamentar a vida das
pessoas e dos grupos sociais. A existência de tal legislação chega a ser mencionada, por
exemplo, em 2 Rs 17,8: “ e seguiram os costumes das nações que Iahweh havia expulsado de
diante deles, e os costumes estabelecidos pelos reis de Israel”.
O Direito Hebraico (“Mischpat Ibri”) é um conjunto de leis e preceitos religiosos
de caráter monoteísta, que pode ser sistematizado, doutrinariamente, de acordo com coleções
específicas de leis incluídas na Torah (= doutrina, instrução e também lei). O termo “Mishpat
Ibri”, cuja tradução literal é “lei hebraica”, provém da raiz shaphat, que significa “impor
uma decisão, uma vontade” e é traduzido quer por “governar” quer por “julgar”, mas na
maioria das vezes traduz-se por “direito”. De acordo com as circunstâncias pode designar: a
decisão arbitral, a sentença; o caso em litígio, o assunto a ser julgado; o pedido ou a
reclamação, ou seja, o que é devido em direito.
Observe-se que no contexto bíblico, o direito (mishpat) não diz respeito apenas à
legislação, aos códigos jurídicos estabelecidos pela sociedade, mas determina a cada um o seu
direito, que deve ser respeitado conforme o seu lugar e a sua função na sociedade.
Comumente o vocábulo “Mishpat Ivri”, é empregado para indicar as matérias da
halachá” (lei) que versam sobre os preceitos que regulam as relações entre os homens e que
são equivalentes às normas de natureza civil e penal, excluindo-se de seu campo de trabalho
as normas rituais, que tratam das relações entre o homem e Deus. Entendida neste sentido, a
mishpat ivri” está de conformidade com as matérias tratadas pelos ordenamentos jurídicos
dos diversos países.
Como salienta Sinaida de Gregório Leão,
deve-se ressaltar que originalmente o termo “Mishpat Ivri” se referia não só
às relações entre os homens (ius humanun), mas também às relações do
homem com D’us (ius divinun), abrangendo assim toda a “halachá”, o que
pode ser comprovado pelo emprego in Êxodo 21:1 da seguinte expressão
“ve-elleh hamishpatim asher tashim lifneihem”, traduzida pelo Rabino Meir
Matzliah Melamed como “e estas são as leis que porás diante deles (povo)”,
que introduz a apresentação dos mandamentos (caps.21,22 e 23), referentes
não só à matéria civil e criminal, como também às normas rituais (ex.: ano
sabático, shabat, etc...) (LEÃO, 1998, p. 6-7).
67
Na realidade, nas fontes hebraicas, verifica-se a ausência nas fontes hebraicas de
um termo que se aplique exclusivamente aos princípios norteadores das relações
interpessoais, uma vez que as fontes da Lei Escrita (Pentateuco) e da Lei Oral (literatura
rabínica), analisam ao mesmo tempo as normas legais e as religiosas. Em Israel, todos os
crimes eram crimes contra Deus (1Sm 12, 9-10). Como Juiz supremo, ele disciplinava os que
violavam sua lei (Êx 22, 21-24). A Nação ou mesmo a comunidade eram responsáveis pela
manutenção da lei, assegurando a aplicação da justiça (Dt 13, 6-10; 17,7; Nm 15, 32-36).
Leve-se em consideração que, mesmo existindo termos comoissua” e
“mamona”, que significam, respectivamente, normas rituais e legais, não havia uma divisão
entre estas duas espécies de preceitos; eram utilizados apenas para estabelecer uma
diferenciação no conteúdo das normas para possibilitar a aplicação dos princípios gerais de
direito no caso em apreço.
Cita-se, como exemplo, o fato do indivíduo celebrar um contrato civil em pleno
shabat”. O contrato será considerado válido, pois em matéria civil o que prevalece é a
vontade das partes (ius dispositivum) e a norma religiosa não pode ser intepretada como um
(ius cogens), exceto se houver interesse público ou dano à liberdade individual.
Esta prática legislativa provém de duas fontes: em primeiro lugar, o direito
israelita está inserido no conjunto do direito oriental: o direito das civilizações babilônicas,
assírias, hititas, cananéias ou fenícias. Em segundo lugar, os reis de Israel fizeram uma
adaptação destas leis às suas próprias condições geográficas, econômicas, políticas e
religiosas.
A fonte por excelência do Direito Israelita é o Pentateuco. Dividido em cinco
livros. Os Cinco Livros de Moisés; é chamado, em hebraico, “Chumash”, abreviação de
chamishá chumshei Torá”, “os cinco quintos da TORÁ. Esses “quintos” são:
Bereshit (Gênesis), é o livro das origens, da história patriarcal, e se ocupa da pré-
história do povo de Deus, que vai do século 19 ao século 13 a.C., desde Abraão até o limiar
da época Mosaica. Compreende cinqüenta capítulos. O livro narra a origem do universo, a
criação do mundo e do homem, a queda original e suas conseqüências, como também, a
perversidade crescente, castigada pelo dilúvio. Desenvolve três temas: o princípio do mundo
e da humanidade, a vida patriarcal e a história de José, constituindo a seguinte divisão: I-
Origens; II – Histórias de Abraão, o homem da fé; III - Histórias de Isaac e Jacó; IV – José e
seus irmãos.
O Gênesis narra a história de uma família ao longo de três gerações tendo como
pano de fundo um horizonte muito restrito, que segundo Herbert Donner, era quase sem
68
efeitos para fora e a partir de fora. A narrativa introduz o que será a história da formação do
Povo de Israel, a Aliança estabelecida entre Deus e o povo, bem como, a idéia monoteísta de
Deus. Conta a aliança entre Deus e o povo escolhido, bem como, a promessa de uma terra.
Atualmente não faz sentido a tese de que a existência dos patriarcas teria sido fictícia ou
ilusória na memória coletiva. “Hoje quase não há mais expoentes de tais concepções, pois
existem razões positivas consideráveis para a historicidade dos patriarcas. Seus nomes são
antropônimos semítico-ocidentais correntes” (DONNER, 2004, p. 89).
O livro finaliza com o estabelecimento no Egito dos doze filhos de Jacó,
fundadores das doze tribos de Israel. Os hebreus eram mencionados coletivamente como a
Casa de Jacó ou os Filhos de Israel. O nome do reino bíblico de Israel foi adotado quando da
proclamação do Estado de Israel em 1948. Uma cena, sem dúvida, muito marcante para a vida
do povo judeu é descrita quando Jacó, em seu leito de morte recebe seus filhos, que professam
sua crença na existência de um único Deus e recitam juntos a mais importante prece judaica:
“Shemá Israel Adonai Eloheinu Adonai Echad”, “Ouve Israel, o eterno é nosso Deus, o
eterno é um”.
Shemôt (Êxodo), O Êxodo é o livro da constituição da própria história do Povo de
Deus, é também conhecido como o Livro da Aliança. Contém partes narrativas e legislativas e
compreende quarenta capítulos. O livro desenvolve dois temas principais: a libertação de
Israel do Cativeiro do Egito (1,1 – 15,21) e a regulamentação do uso dessa liberdade com o
Decálogo, as dez palavras da Aliança do Sinai (19,1 – 40,38), pela qual Israel é tomado por
Deus como o seu povo, que se compromete a ter Iahweh como o seu único Deus: “Não terás
outros deuses diante de mim” (Êx 20,3). Esses temas são interligados pelo tema da caminhada
no deserto (15,22 – 18,27). Moisés, que recebeu a revelação do nome de Iahweh no Sinai, é o
condutor dos israelitas livres da escravidão. Na teofania do Sinai, Deus faz aliança com o
povo e lhe dita suas leis. Concluído o pacto ocorre a sua violação com a adoração do bezerro
de ouro, mas, com o perdão, Deus renova a Aliança : “Vai, pois, agora, e conduze o povo para
onde eu te disse. Eis que o meu Anjo irá adiante de ti. Mas, no dia da minha visita, eu punirei
o pecado deles” (Êx 32,34). O conjunto dos capítulos 25-31 e 35-40 narra a construção da
tenda, lugar de culto na época do deserto. No concernente a finalidade do livro, colhe-se em
Monloubou e Du Buit a seguinte argumentação:
Não se pode compreender esta obra sem levar em conta a importância da
memória da saída do Egito na consciência de Israel. Evento criador, o Êxodo
marca o nascimento deste povo, o momento privilegiado de seu encontro
com Deus (Os 2,11; Jr 2,6; 23,7 etc.). Israel sempre teve necessidade de
lembrar-se desse tempo primordial, a fim de encontrar respostas às questões
69
que uma atualidade às vezes difícil lhe impunha. Estas interrogações
ressoam neste livro, principalmente aquela que os fiéis da fé bíblica,
frequentemente desconcertados pela atualidade, não cansam de fazer-se:
“Será que Javé está ou não está no meio de nós?” (17,7). Cabe à liturgia
lembrar aos fiéis a fonte de sua fé. Esta fonte é a experiência do Êxodo
(MONLOUBOU, 2003, p. 276)
.
Vaikrá (Levítico), terceiro livro do Pentateuco, de cárater quase exclusivamente
legislativo, na verdade, interrompeu a narração dos acontecimentos. Recebeu este nome da
Septuaginta, devido ao interesse dedicado a classe sacerdotal e às funções que lhe eram
atribuídas. Em tal contexto, ressalte-se as ponderações de R. de Vaux:
É exatamente assim que a Bíblia apresenta, em sua última redação, o
sacerdócio israelita. Os descendentes de Levi, o filho de Jacó, foram
separados para exercer as funções sagradas, por uma iniciativa positiva de
Deus, Nm 1.50; 3.6s. Eles foram tomados por Deus, ou dados a Deus, em
lugar dos primogênitos de Israel, Nm 3.12; 8.16. Segundo Nm 3.6, eles estão
a serviço de Arão mas segundo Ex 32.25-29, eles foram estabelecidos contra
Arão que tinha encorajado a idolatria do povo; por fim, segundo o texto
atual de Dt 10.6-9, foi após a morte de Arão que eles foram escolhidos por
Moisés (de VAUX, 2003, p. 398)
.
No Levítico, encontra-se substancialmente o repertório de tudo que se relaciona
com o culto, seus sacrifícios e seu sacerdócio, presente também o espírito de respeito e amor a
Deus e ao próximo: “ Não te vingarás e não guardarás rancor contra os filhos do teu povo.
Amarás o teu próximo com a ti mesmo. Eu sou Iahweh”(Lv 19,18). Compreende vinte e sete
capítulos, que podem ser divididos em cinco partes:
1. Leis sobre os diversos tipos de sacrifícios e sobre os sacerdotes (Lv 1-10).
2. Normas sobre puro e impuro (Lv 11-15).
3. Ritos de expiação, relações sexuais e leis rituais, morais e penais (Lv 16-20).
4. Normas para os sacerdotes, calendário litúrgico e leis sobre a terra e sobre os
escravos (Lv 21-25).
5. Bênçãos e maldições; votos e dízimos (Lv 26-27). Redação final: séc.V a.C.
Bemidbar (Números), título do quarto livro do Pentateuco, o nome se deve às
diversas listas de recenseamentos contidas nos primeiros capítulos. O texto hebraico o designa
por estas palavras: “No deserto...” (1,1). Registra acontecimentos ocorridos na vida dos
israelitas durante o longo período de peregrinação pelo deserto. Na verdade, o livro dos
Números, é uma continuação do livro do Êxodo, que acompanha a caminhada do povo hebreu
a partir da libertação do cativeiro no Egito, passando pela travessia do deserto, até a chegada a
Montanha do Sinai onde recebem os Dez Mandamentos. O livro narra a peregrinação do povo
70
judeu pelo deserto do Sinai, durante 40 anos, até a chegada à Moab, a leste do Rio Jordão,
quando estão prontos para ocupar a terra de Canaã. O livro compreende trinta e seis capítulos,
que podem ser divididos em três partes principais.
Na primeira parte, encontram-se os censos e as disposições das tribos, bem como,
a consagração dos levitas para o serviço do Tabernáculo. A segunda parte narra as
dificuldades enfrentadas na caminhada do povo pelo deserto rumo à Terra Prometida. O
conjunto se encerra com os preparativos que antecedem a entrada em Canaã.
Com relação ao objetivo, ponderam Monloubou e Du Buit,
O Livro dos Números reflete o ensinamento religioso do Judaísmo pós-
exílico. Privado da independência política, Israel tornou-se de novo a
comunidade religiosa que era antigamente. Mas ainda é o herdeiro das
Promessas. O estado atual não vai durar para todo o sempre. Israel continua
a caminho. Sua organização, as etapas que percorre sob a direção de Moisés,
fazem deste povo, povo de Deus, um modelo para o Israel de todas as
épocas, até para a Igreja, que aprende como se deve perseguir
obstinadamente o objeto de sua esperança (MONLOUBOU ; DU BUIT,
2003, p. 564)
.
Debarin (Deuteronômio) é o livro de Moisés por excelência, o quinto livro da
Bíblia e o último do Pentateuco, conhecido como “livro da Lei”, precisamente “livro da
Torá”, compreende trinta e quatro capítulos, contemplando a legislação civil, criminal,
comercial e ritualística. O título do livro, da palavra grega Deuteronomion, significa “segunda
lei” e tem origem no texto da Septuaginta de Deuteronômio 17,18 (“uma cópia dessa lei”). O
livro se divide em quatro partes, que são indicadas pela própria estrutura literária, com as
frases que iniciam com as palavras: “Estas são”, “esta é” (“elêh, zôth”).
1.1: Estas são as palavras que Moisés dirigiu a todo o povo de Israel.
4.44: Esta é a lei que Moisés promulgou aos israelitas.
28,69: Estas são as palavras sobre a Aliança que Iahweh ordenou a Moisés
celebrar com os filhos de Israel, no país de Moab.
33,1: Esta é a benção com a qual Moisés abençoou os israelitas.
Sobre o Deuteronômio ensinou Jean-Marie Carrière:
Primeiramente, contemplemos o livro numa visão de conjunto. O
Deuteronômio começa “além do Jordão” (1,1), no momento em que o povo
completa o tempo do deserto e vai logo mais entrar na terra prometida.
Moisés dá início a um conjunto de discursos (1,6). E o livro termina no
mesmo local, uma vez que “Moisés acabou de dirigir todas essas palavras a
Israel” (32,45). Pouco depois, o capítulo 34 relata a morte de Moisés.
Unidade de lugar, unidade de tempo: o Deuteronômio dura o tempo de um
discurso de Moisés (CARRIÈRE, 2005, p. 19).
71
Monloubou e Du Buit estabeleceram os pontos mais importantes da doutrina do
Deuteronômio: no início, Deus fala, por intermédio de Moisés a um povo que ele escolheu
(32,8-9), para confiar-lhe uma missão (7,13-15), ou seja, para representá-lo no mundo e
responder ao seu gesto preferencial pelo amor (6,5). Este povo vive numa terra (7,13-15).É
chamado por Deus, para formar uma comunidade fraterna, organizada e estruturada como
Deus quis (16,18-18,22). A Lei representa o seu princípio de vida, dirige toda a atividade do
homem e atinge o seu coração (30,11-14). Vale ainda anotar, que é da maior importância para
o povo “lembrar-se” do que Deus fez por ele na ocasião da saída do Egito (5,15 etc.), no
período da escravidão. A liturgia deve reavivar essa lembrança (16,3.12), para que o passado
se faça presente numa perspectiva de futuro.
Ainda, acrescentam-se como fontes – os Ketubin (Escritos) e os Nebiin (Profetas),
além, naturalmente, dos costumes que se arraigaram profundamente na comunidade israelita
no período pós-exílico, após o cativeiro babilônico, iniciando a sedimentação da “Torah
Oral”.
De acordo com Crüsemann,
a palavra torah, designa, em linguagem coloquial da época do Antigo
Testamento, o ensinamento da mãe (Pr 1,8; 6,20; cf. 31,26) e do pai (4,Is)
para introduzir seus filhos nos caminhos da vida e adverti-los diante das
ciladas da morte. Nisso, como em todos os demais usos, a palavra abrange
informação e orientação, instrução e estabelecimento de normas, e, com isso,
também promessa e desafio. Expressa igualmente o mandamento e a história
da instrução, da qual emerge (CRÜSEMANN, 2002, p. 12).
4.2 A literatura rabínica
A lei hebraica, de acordo com as fontes de onde provém, pode ser dividida em Lei
Escrita, isto é, o Pentateuco, e Lei Oral, ou seja, todas as interpretações da Lei Escrita
realizadas por sábios e rabinos, e que constitui a chamada literatura rabínica, que por sua vez,
pode ser classificada, de acordo com o objeto estudado em seu texto, em
halachá” e “agadá”.
A palavra “halachá”, em hebraico, significa “caminho” ou “trilha” e pode ser
traduzida como “lei”, compreendendo todas as normas imperativas de caráter obrigatório ou
não e contendo as normas legais e também as de caráter religioso. Na realidade, esse termo é
empregado de dois modos, significando ou uma decisão legal específica, ou a totalidade da
72
lei. É também entendida como o modo de vida formulado pela Torá para a orientação da
humanidade e de Israel.
A “halachá” da Torá escrita tem como fonte primária e fundamental o Pentateuco,
com leis sobre o Tabernáculo – Êxodo 29 a 40; regras sobre as oferendas no Templo, a
manutenção dos sacerdotes e a pureza do Templo no Levítico; temas diversos e problemas
especiais em Números; e levantamento das leis sociais do Israel santificado no Deuteronômio.
A base do sistema “haláchico” é constituída por essas leis, que posteriormente são submetidas
à interpretação e à ampliação pelos rabinos eruditos.
A “halachá” da Torá oral, tem como fonte a “Mishná” (vem do verbo shanah que
significa repetir) que, embora não constitua um código de lei - pois expressa opiniões
diferentes em vários assuntos - tornou-se a base de toda a tradição “haláchica”. A “Mishná” é
um Código de leis civis e religiosas; é o primeiro e o mais importante documento da
halachá” após a Escritura, estabelecendo categorias sob as quais a lei foi ordenada, e
produzindo princípios coerentes que transformaram determinados casos em leis e estas em
jurisprudência. Nos anos 200 a 220 d. C., o Rabi Yehudáh Há-Nassi redigiu a Mishná, obra
clássica da literatura judaica, que reúne cinco séculos de tradição (300 a. C. a 200 d. C.).
A “Mishná” divide-se em seis partes:
Primeira Ordem - “Zeraim” (grão) refere-se ao homem e a terra. Esta ordem foi
introduzida através de um tratado sobre a oração diária; em virtude da importância da oração
cotidiana para o judeu. Trata essencialmente das leis agrícolas, a exemplo da regra que ordena
ao agricultor não ceifar os 04 cantos do campo, para que assim os pobres possam retirar daí os
seus alimentos. Essa lei é restrita à terra de Israel.
Segunda Ordem - “Moed” (festas). Esta ordem cuida do calendário sagrado,
determinando a data, os rituais e demais disposições a respeito das festividades religiosas. As
festas de Israel eram cerimônias comunitárias; assim, o pobre, a viúva, o órfão, o levita e o
estrangeiro eram convidados para a maioria das festividades. Sabe-se que o ano judaico
contém cinco grandes festivais de origem bíblica: as três festas de Peregrinação, cujo objetivo
era reunir o povo que durante o ano esteve disperso, cerimônia nacional e religiosa, e as festas
penitenciais de “Ros há-Shaná” (“cabeça do ano”, ou seja, a festa do Ano-novo) simbolizam o
começo da criação, e “Iom Kipur” (“Dia de Expiação”), o dia mais santo para a religião de
Israel, como também o ponto mais alto do ano judaico.
Terceira Ordem - “Nashim” (família), unidade básica da vida ritual e cerimonial.
Um dos segredos da sobrevivência do judaísmo reside na importância da convivência
73
familiar. Esta ordem cuida das normas matrimoniais, referentes ao noivado, casamento,
divórcio e levirato.
Quarta Ordem - “Nezikin” (relação entre os homens). Esta ordem discute as
normas que se referem ao direito civil e criminal, contém um tratado chamado “Avot”
(Antepassados), conhecido como “Ética dos Pais”, que encerra vários conceitos éticos,
indicando a cadeia de tradição oral desde “Moshe Rabenu” (“Moisés, nosso Mestre”) até
Hillel ( Hillel, o Velho, sábio do início do período rabínico).
Quinta Ordem - “Kodashim” (cerimônias religiosas). Esta ordem trata das normas
de culto, principalmente as que dizem respeito ao Templo e aos sacrifícios, sobre alimentos
permitidos e o abate ritual de animais.
Sexta Ordem -“Tohorot” (leis e proibições). Esta ordem trata das normas que se
referem à pureza e impureza rituais - de importância para os sacerdotes. São as leis dietéticas
Kashrut”. Animais, por exemplo, são “kosher” quando têm o casco fendido e são
ruminantes, poucas aves são “kosher” e um peixe é “kosher” se tiver barbatanas e escamas.
Um indivíduo “kosher’, pode ser aquele que cumpre as leis dietéticas ou o que segue
estritamente as normas da “halachá.
A base do Talmude é constituída pela “Mishná,” um informe de sentenças
proferidas por uma linha de analistas e juízes. Foi compilada pelo Rabbi Judah, o Príncipe, da
Palestina.
O primeiro documento após a “Mishná” foi uma compilação complementar da
halachá” a “Tosefta” (“Suplementos”) que, posteriormente, levou à criação dos dois
Talmudes ou comentários sobre a “Mishná”: o Talmude da terra de Israel, completado no
final do século IV d. C., o mais antigo, e o Talmude da Babilônia, completado por volta do
ano 500 d. C. O Talmude é o comentário e discussões dos rabinos sobre a Mishná. Os
comentários aos textos da Mishná são vários e muitas vezes contraditórios. Para um mesmo
assunto existem várias opiniões e todas elas são respeitadas. É um modo diferente de se
posicionar diante de determinados fatos. Todas as opiniões são tidas como importantes. Veja-
se, por exemplo, o comentário talmúdico de Jebamot 61b-64a (ordem das mulheres, na
Mishná) sobre a importância de cumprir o dever sagrado da procriação: “Um homem não
deve abster-se de procriar, a não ser que já tenha tido filhos. A escola de Shammai diz: dois
meninos; a escola de Hillel disse: um menino e uma menina; na verdade se diz: Homem e
mulher ele os criou, abençoou-os e lhes deu o nome de “Homem”, no dia em que foram
criados” (Gn 5,2). Logo adiante, a discussão continua: “Uma outra doutrina diz que Rabi Natã
74
disse: a escola de Shammai disse: um menino e uma menina. A escola de Hillel disse: um
menino ou uma menina. Disse Rabi Raba: qual motivo dá Rabi Nata para a escola de Hillel?”.
Segundo o magistério de Alan Unterman,
decisões haláchicas determinam a prática normativa, e onde há divergência,
tais decisões, ao menos em teoria, seguem a opinião da MAIORIA dos
rabinos, como ilustrado na disputa entre ELIEZER BEM HYRCANUS e
seus colegas. A instância de uma tomada de decisão haláchica é complicada
porque a visão expressa na literatura da Cabala, em geral mais rigorosa do o
ponto de vista legal, é preferida por alguns grupos, em lugar dos precedentes
talmúdicos e pós-talmúdicos (UNTERMAN,1992, p. 112).
A “agadá”, do aramaico “estória”, representa o acervo de conhecimentos e
tradições rabínicas sobre ética, teologia, história, folclore, lendas e parábolas. Imaginação e
humor não faltam nessas estórias. A “agadá” preocupa-se também com o fim dos tempos,
anjos, demônios, messias etc. Enquanto a “halachá” é prescritiva (lei) a “agadá” apresenta-se
como descritiva. Toda a literatura “agádica” originou-se de sermões e do “Midrash
(hebraico, significa “busca”, “procura”), havendo trinta e duas regras de interpretação agádica
na Bíblia.
4.3 Características do direito hebraico
O Direito hebraico é um direito religioso. Religião que, através do cristianismo
que dela deriva, exerceu uma profunda influência no Ocidente. Vincula-se à idéia de uma lei
eterna e imutável revelada por Deus a Moisés. É um direito sagrado, suas regras derivam da
revelação. Chaim Perelman já advertia: “Se uma religião, tal como o judaísmo, se dota de um
Deus legislador, paradigma do justo e do bem, esse Deus será a fonte tanto da moral, quanto
do direito. Mas como, nessa perspectiva, distinguir o aspecto moral ou jurídico do ponto de
vista religioso?” (PERELMAN, 1996, p. 112).
O direito é “dado” por Deus a seu povo. A partir daí se estabelece uma Aliança
entre Deus e o povo escolhido; o Decálogo ditado a Moisés é a Aliança do Sinai, o Código da
Aliança de Jeová; o Deuteronômio é também uma forma de aliança. Jean-Marie Carrière,
assinala de modo enfático que,
do ponto de vista da Lei, pode-se dizer que a Lei foi dada no momento do
Sinai (Êx 19-24), pouco depois da saída da servidão, para apoiar a liberdade
recentemente obtida pelo povo. Depois, ela foi exposta (cf. Dt 1,5), no
momento do Deuteronômio, nas planícies de Moab, para estruturar a
liberdade do povo, agora rico com as experiências do deserto, antes de entrar
na terra prometida, para lá viver como um povo em meio a outros povos:
esta exposição da Lei é, na verdade, uma segunda enunciação. Mas o tempo
75
da terra surge assim também como um tempo de esquecimento da Lei, de
infidelidade, a Lei está “perdida”. A Lei, então, é “reencontrada”, um pouco
antes do exílio, no décimo oitavo ano do rei Josias, como uma última
oportunidade (CARRIÉRE, 2005, p. 22-23).
O direito tem também a característica da imutabilidade: só Deus o pode modificar,
idéia reencontrada no direito canônico e no direito muçulmano. Na verdade, os intérpretes,
mais especificamente os rabinos, podem interpretá-lo para as devidas adaptações à evolução
social, mas nunca poderão modificá-lo. Desta forma, inúmeras instituições hebraicas
sobreviveram no direito medieval e mesmo no direito moderno, principalmente pelo canal do
direito canônico, que tem a mesma fonte que o direito hebraico, a Bíblia.
Segundo Gilissen,
entre as sobrevivências, citam-se nomeadamente a dízima e a sagração. A
dízima praticada em Israel, foi retomada no Ocidente desde a alta idade
média para dar ao clero o direito de se apropriar de uma parte (então um
décimo) dos rendimentos dos fiéis. A sagração, que subsiste ainda em certos
países (nomeadamente em Inglaterra) é um rito de entronização do rei, que
consiste sobretudo na coroação que opera “o investimento do rei pelo
espírito de Jeová”; o rei torna-se assim o representante de Deus no Estado;
tendo o povo ratificado a escolha divina, um pacto de aliança é estabelecido
entre o rei e seu povo (GILISSEN, 2001, p. 67).
O direito hebraico exerceu também uma grande influencia sobre o direito
muçulmano, sobretudo em relação ao direito de família, as formas e à organização do
casamento.
A gênese do Direito Israelita encontra-se na Antiguidade Oriental. É sabido que
muitas codificações apareceram em períodos anteriores às leis da Torah, como o Código de
Ur-Nammu, as Leis de Eshnunna, o Código de Lipit-Ishtar, as “Tabuinhas de Nuzi”, as Leis
Assírias etc. Entretanto, deve se salientar que o caráter distintivo do Direito Hebraico
encontra-se no fato de que suas leis foram erigidas com base na existência de um Deus único.
Religião monoteísta, muito diferente dos politeísmos que a circundavam na antiguidade.
4.4 Coletâneas de leis
Todos os textos legislativos do Antigo Testamento estão concentrados no
Pentateuco. A única exceção é Is 20, 1-6, que se relaciona, aliás, aos outros textos do
Pentateuco. No tempo da monarquia aparecem algumas disposições de Davi (1Sm 30,25) ou
de Salomão (1Rs 5,7s), mas não são ordens que fixam regras precisas. A estrutura legislativa
tem a seguinte disposição:
76
a) Decálogo – imperativos essenciais da moral e da religião - Êxodo 20,2-17 e
Deuteronômio 5,6-21. Leis apodíticas (Debarin). Finalidade social: religião,
vida, propriedade, família.
b) Código da Aliança (Êx 20,22 - 23,19), provavelmente a coletânea mais antiga.
É um conjunto complexo de prescrições jurídicas, contendo também algumas
normas não jurídicas. Esse código determina as relações sociais, numa
sociedade ainda não organizada onde as tradições religiosas são mais fortes do
que a autoridade política.
c) Código Deuteronômico (Dt 12-26), nova compilação de normas do Código da
Aliança e do Decálogo com muitos acréscimos, dentro de um novo contexto
social (monarquia: sociedade muito bem organizada) e espiritual (estilo
parenético). A reforma deuteronômica é, ao mesmo tempo, uma reforma
política.
Como acentua Carrière,
será na vertente social das leis que o legislador deuteronômico irá fazer
justiça aos apelos dos profetas de Israel, à sua crítica social, à seu senso
agudo de direito e de justiça, especialmente o dos profetas do século VIII a.
C. (Amós, Oséias, Isaías, Miquéias). A originalidade e a força de sua
reflexão não se devem somente ao fato de assumir as exigências proféticas,
mas sobretudo ao fato de tê-las relacionado com uma teologia pertinente a
esse tema: a memória da libertação da servidão no Egito. Esse traço faz parte
da “invenção” do Deuteronômio (CARRIÈRE, 2005, p. 53).
d) Código de Santidade (Lv 16-26), compilação de coleções particulares de
normas. Preocupação com os ritos, o sacerdócio, o apelo constante à santidade
de Iahweh e do povo.
e) Código Sacerdotal (Priesterkodex, Lv 1-16. Lv 1-7: lei dos sacrifícios Lv 8-10:
ritual da instalação dos sacerdotes; Lv 11-16: lei da pureza (mais alguns textos
de Êx e Nm).
f) Decálogo Ritual Êx 34,11-26. Prescrições rituais sobre festas e sacrifícios.
Contexto socioeconômico: agrícola. Tradição javista. De acordo com a
percepção dogmática de Israel, estas leis resultaram de uma revelação divina, no
Monte Sinai, a Moisés.
A magistratura, entre os hebreus, era considerada uma dignidade suprema, que
exigia do juiz não apenas conhecimentos específicos sobre a lei, mas também conhecimentos
gerais sobre todos os assuntos que poderiam ser trazidos a sua presença. É interessante
77
observar que o cargo de juiz era honorífico e gratuito. Os juizes eram considerados como
pertencentes à mais alta hierarquia social, além do que desempenhavam suas ocupações
habituais, reservando apenas dois dias por semana para a atividade forense, salvo em casos
excepcionais, quando atendiam a uma convocação. No início, havia juízes com título,
chamados “rabi” (mestre) que, por reunirem condições ímpares de moral e saber possuíam
competência para julgar os processos; tornaram-se cada vez mais raros após a destruição do
Templo; e juizes sem título, doutores ilustres que, em caso de erro judicial, tinham a
obrigação de indenizar o prejudicado.
O princípio da igualdade de tratamento das partes pelo juiz já estava, àquela época,
assegurado, e de tal forma, que as duas partes litigantes deveriam sentar-se ao mesmo tempo,
considerando-se infração deixar uma em pé e outra sentada. Ainda, era lícito aos juizes
absterem-se de julgar, na hipótese de não serem capazes de formar um convencimento
próprio, ocasião em que, era chamado um substituto para o julgamento da causa. Da mesma
maneira, tinham liberdade para mudar de opinião se suas consciências assim o
determinassem, pois a justiça do julgamento era o fim maior alcançado.
É importante salientar que os judeus não consideravam a atividade jurisdicional
como uma órbita de atribuições emanadas da legislação. A ação judicial era o fundamento de
toda a vida social, pois, para eles julgar, governar ou administrar tinha o significado de manter
entre os cidadãos as relações gerais estabelecidas pela lei fundamental, ou seja, pela “Torá”.
Os tribunais ordinários resolviam os casos mais simples tendo também jurisdição
sobre certas questões religiosas, assuntos civis de pouco valor, delitos leves e crimes contra os
costumes, podendo ser comparados aos nossos Juizados Especiais Cíveis e Criminais de hoje
em dia. Estes tribunais estavam situados nas portas das cidades ou nos caminhos mais
freqüentados. Cada litigante falava por si ou através de um defensor oficioso (“baal rib”). As
decisões eram tomadas por maioria de votos (o que acontecia em todas as instâncias), pois de
acordo com a tradição, o homem não devia julgar sozinho, porque ninguém pode fazê–lo, a
não ser UM, ou seja, Deus.
Para a resolução de casos mais difíceis, havia Os Pequenos Conselhos de Anciãos
(“Sanhedrin kettanah”), que também recebiam apelações dos tribunais ordinários, além da
função interpretativa da lei. Só poderiam se estabelecer nas cidades com mais de 120 mil
habitantes e eram compostos por 23 juizes, que pertenciam as mais diferentes profissões, a
fim de opinar sobre os mais variados assuntos trazidos ao conselho, uma vez que nesta época
não existiam peritos. Deve-se salientar ainda que em Roma, onde os juízes eram singulares,
somente se passou a aceitar a interposição do recurso de apelação da decisão de primeira
78
instância, com a conseqüente organização de um sistema hierarquizado de jurisdição, a partir
do século I da Era Comum, na época do Principado.
4.5 Sistema judiciário israelense
Desde o estabelecimento do Estado de Israel, em 8 de maio de 1948, a proteção
dos direitos humanos ficou a cargo do poder judiciário, visto Israel não possuir uma
Constituição Escrita ou Declaração de Direitos.Uma semana depois da fundação de Israel, foi
promulgada uma Lei Básica para suprir o vácuo jurídico. Em 1949 foi eleito o primeiro
parlamento israelense, que se encarregaria de elaborar uma Constituição, não promulgada até
o momento. Até o ano de 1980, quando se encontrava uma lacuna no sistema israelense,
buscava-se a resposta para o caso concreto na jurisprudência inglesa. Na década de 80, foi
promulgada outra Lei Básica, que passou a estabelecer que, caso não se encontre a solução da
questão na lei, a decisão será fundamentada por princípios como, por exemplo, o de liberdade
e das tradições judaicas.
Inicialmente, foi nomeada uma Assembléia Constituinte, o “Knesset”, um
Parlamento, para elaborar uma Constituição. Contudo, ante os problemas políticos internos e
externos do Estado recém-criado, foi adotada uma Lei de Transição. Desta forma, a
Constituição seria preparada pelo Knesset – o Parlamento israelense – capítulo por capítulo,
mediante uma série de “Leis Básicas”, que seriam reunidas formando a Constituição. Assim,
muitos capítulos da futura Constituição de Israel já foram escritos e adotados como Leis
Básicas. Elas indicam os contornos básicos das principais instituições do regime: o
Presidente, o Knesset (o legislativo de Israel), o Governo, o Poder Judiciário, as Forças de
Defesa de Israel e o Controlador do Estado.
O sistema constitucional de Israel baseia-se em dois princípios fundamentais: o
Estado é democrático e também é judeu. Estes princípios estão ancorados na Declaração do
Estabelecimento do Estado de Israel, de 1948, não obstante o compromisso de garantir
igualdade de direitos sociais e políticos a todos os seus cidadãos, sem diferença de religião,
raça ou origem étnica.
O sistema judicial de Israel é dividido em duas categorias principais: a primeira,
constituída pelos tribunais gerais, conhecidos como tribunais civis ou regulares; a segunda, da
qual fazem parte tribunais e outras autoridades com poderes judiciais específicos. A diferença
entre os dois tipos de instituições reside, entre outros, na extensão de sua jurisdição: enquanto
a jurisdição dos primeiros tribunais é geral, a jurisdição dos outros tribunais é limitada em
79
termos de pessoas ou assuntos. Israel é um estado unitário com um só sistema de tribunais
gerais. Com a Lei Básica de 1984, a organização do sistema judiciário israelense foi
constituída com uma Suprema Corte, cinco tribunais regionais, 18 tribunais gerais, e varas
especializadas de instância inicial. O Judiciário estabelece três níveis de tribunais: o Supremo
Tribunal, os tribunais distritais e os tribunais de magistrados. Os dois últimos são tribunais de
julgamento, enquanto que o Supremo Tribunal é essencialmente um tribunal de apelações,
que igualmente atua como Suprema Corte de Justiça.
A Suprema Corte de Israel, identificada como a primeira instância, conta com 12
juízes, além de dois ou três juízes convocados. Ela julga apenas os processos de maior
relevância, ou seja, aplica o princípio da repercussão geral, que só agora começa a ser
empregado pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro. A regra da repercussão implica admitir
no Supremo apenas casos em que haja relevância econômica, política, social ou jurídica que
ultrapasse o interesse do caso individual. A segunda instância é formada por cinco tribunais
localizados nas maiores cidades do país. No total, são 128 juízes. Esses tribunais são
responsáveis por processos penais e civis considerados grandes, que envolvem penas de mais
de 7 anos de prisão ou causas de mais de 1 milhão de dólares. Também há 18 tribunais gerais,
que julgam causas consideradas médias e cujos valores ficam entre 5 mil a 1 milhão de
dólares e a pena não ultrapassa 4 anos. Além dos tribunais, há varas que tratam das seguintes
matérias específicas: Família, Pequenas Causas, Prefeitura, Administrativo, Tráfego,
Trabalho, Religião, Militar, Contratos Reguladores, Monopólio e Juizado de Menores. No
total, o sistema jurídico israelense conta com cerca de 700 juízes. O Código Penal é aplicado a
menores, com idades de 14 a18 anos, apenas o tratamento dado aos menores é diferenciado.
A Suprema Corte tem competência originária para julgar as ações contra o
governo, seus ministros e todas as autoridades e agentes públicos, e para conceder habeas-
corpus contra atos manifestamente ilegais ou com abuso de poder por parte destas
autoridades. Tem também o poder de fiscalizar o nível jurisdicional e julgar os recursos das
decisões das outras cortes, sendo a mais alta corte na hierarquia do judiciário. Tem jurisdição
em todo país e está localizada em Jerusalém, que é não só a capital de Israel, mas também o
lugar de todos os judeus do mundo: “Se eu me esquecer de ti, Jerusalém, que me seque a mão
direita!” (Sl 137,5). Também cada serviço da Páscoa Seder termina com a advertência de não
esquecer Jerusalém. Os judeus devem rezar voltados para Jerusalém e têm a obrigação de
peregrinar à cidade, especialmente nas festas dos Tabernáculos, de Pentecostes e da Páscoa. O
dia nono do mês hebreu Ab é dia de luto e jejum pela destruição do templo.
80
A Suprema Corte pode ainda indicar mudanças legislativas e é competente para
solucionar os casos de confronto entre leis menores e as Leis Básicas do Estado (legislação
maior). Desempenha também um importante papel na proteção dos direitos individuais e na
preservação da autoridade da lei, ao exercer a função de Supremo Tribunal de Justiça. Nesta
capacidade, a Suprema Corte ouve petições apresentadas contra qualquer organismo ou
agente governamental. Nestes assuntos, a Suprema Corte se reúne como tribunal de primeira e
última instância. Esta função singular da Suprema Corte permite o acesso direto ao mais alto
tribunal da nação. Os honorários são bastante baixos. Pessoas que acreditam que o governo
violou seus direitos, ou infringiu a autoridade da lei, têm o direito de ser ouvidas pela
Suprema Corte. Em muitos casos, inclusive os que envolvem conseqüências constitucionais e
políticas fundamentais, ou os altos escalões do governo, as petições são ouvidas muito
rapidamente, às vezes dentro de poucas horas. O que a Suprema Corte decidir tem de ser
seguido pelos juízes.
Os Tribunais Distritais são os tribunais de nível intermediário do judiciário
israelense. Eles têm jurisdição em qualquer questão que não seja de jurisdição exclusiva de
um outro tribunal. Em questões criminais, os Tribunais Distritais tratam de casos nos quais o
réu está sujeito a uma pena de mais de sete anos de prisão. Cabe às Cortes Distritais a
apreciação das apelações das decisões proferidas pelos juízes de direito, e o julgamento, em
primeira instância, dos casos civis e criminais mais importantes.
Os Tribunais de Magistrados são os tribunais de julgamento básico de Israel. Eles
têm jurisdição sobre assuntos criminais nos quais o réu é passível de punição potencial de até
sete anos de prisão. Os Tribunais de Magistrados atuam também como tribunais de trânsito,
ou em assuntos municipais, de vara de família e para pequenas reclamações. Em geral, um
único juiz preside a audiência em cada caso.
Juízes de Direito – Em Israel todos os juízes são profissionais e não existe a figura
do juiz leigo. A exceção encontra-se na Justiça Trabalhista, que conta com um juiz e
representantes dos sindicatos dos empregadores e dos empregados. Cabe ao juiz examinar os
casos de violações civis e criminais menores. Os juízes gozam de independência substantiva
e pessoal. A independência substantiva é definida na Lei Básica: o Judiciário: “Uma pessoa
investida com o poder judicial não estará sujeita, em questões judiciais, a nenhuma
autoridade, exceto à autoridade da lei”. Além da independência substantiva, os juizes têm
ampla independência pessoal, que se inicia com os procedimentos para sua eleição e
prossegue durante o seu mandato. O processo de seleção para juiz é bastante singular. O
candidato a juiz entra com um pedido junto à comissão encarregada de nomear juízes. Quando
81
abre uma vaga para juiz, é feita uma votação entre os candidatos que se inscreveram na
comissão. Os juízes são escolhidos pelo Comitê de Seleção Judicial, composto de nove
membros: o Ministro da Justiça (Presidente da comissão), outro Ministro do Gabinete, o
Presidente do Supremo Tribunal, outros dois juízes do Supremo Tribunal, dois Deputados do
Knesset, - em geral um da situação e o outro da oposição - e dois representantes da
Associação de Advogados de Israel. Todos os três poderes – o executivo, o legislativo e o
judiciário – assim como juristas profissionais, estão representados no citado comitê. Um
candidato pode ser proposto pelo presidente da comissão, pelo presidente do Supremo
Tribunal ou por três membros quaisquer do comitê. É necessária maioria de votos para
nomear um candidato. As nomeações de juízes são apolíticas, a escolha se baseia em suas
qualificações profissionais legais, sendo o único a decidir no processo judicial. A
independência judicial continua durante todo o período do cumprimento da função, a
nomeação de um juiz é permanente e expira com a aposentadoria obrigatória aos 70 anos.
O Dr. Mário Klein, único brasileiro a atuar em um tribunal israelense, contou em
um recente Seminário, que o seu processo de seleção incluiu uma semana internado em um
Hotel, participando de diversas atividades: ministrou e assistiu aulas e conversou com os
membros da comissão. Esperou quatro anos para ser nomeado.
Tribunais de Jurisdição Limitada - O sistema legal israelense compreende vários
tipos de tribunais, dentre os quais os mais importantes são os tribunais militares, os de
trabalho e os religiosos. Estes na verdade, se distinguem da maioria dos outros tribunais em
termos de jurisdição pessoal e do tipo de questões julgadas. Cada tribunal é composto por um
sistema judicial de administração independente e seu próprio sistema de apelações, que inclui
juízes com formação legal.
Tribunais Militares – Foram estabelecidos pela Lei da Justiça Militar (1955). Eles
têm competência para julgar soldados acusados de infrações militares e civis. Como a lei
determina que o termo ‘soldado’ inclui todos os que se encontram nas forças militares
regulares – tanto em serviço compulsório como de carreira, assim como os reservistas durante
seu serviço ativo, o número de pessoas sujeitas à jurisdição dos tribunais militares em Israel é
relativamente grande. Civis empregados pelas forças armada e prisioneiros de guerra estão
também sob sua jurisdição.
Tribunais de Trabalho – O knesset estabeleceu as varas de trabalho em 1969,
reconhecendo que as leis trabalhistas necessitam de seu próprio sistema judicial, a fim de
facilitar a consolidação da experiência acumulada, dos costumes e regulamentações do
assunto e para a interpretação das leis trabalhistas.
82
Tribunais Religiosos – Os tribunais militares e do trabalho não são exclusivos do
sistema israelense; os tribunais religiosos o são. O sistema jurídico israelense é singular entre
os sistemas judiciários modernos, no que se refere à aplicação das várias leis sobre status
pessoal na área das leis de família, aplicadas pelos tribunais religiosos. Este fenômeno tem
raízes históricas e políticas: ele existia sob o domínio otomano e foi mantido pelos britânicos,
quando da conquista do país. A fonte básica para a aplicação das leis de caráter pessoal e
sobre a jurisdição dos vários tribunais religiosos se encontra no Decreto-Lei do governo
britânico sobre a Palestina (1922). Este Decreto prevê que a “jurisdição em questões de
cárater pessoal será exercida... pelos tribunais das comunidades religiosas”.
As Cortes Religiosas, compostas por 01 ou 03 juízes, têm competência para
solucionar as controvérsias referentes ao “status” pessoal, como o casamento, o divórcio, a
guarda, a adoção, etc. Existem várias cortes religiosas, cada uma das quais tem jurisdição
sobre os membros da respectiva comunidade religiosa. Assim, há cortes rabínicas,
muçulmanas, drusas e cristãs. Em Israel não existe casamento civil. Os casais que não se
adaptam aos parâmetros do Rabinato, não podem se casar no país.
O Decreto-Lei garante também aos Tribunais Distritais a jurisdição em questões
de caráter pessoal no caso de estrangeiros não-muçulmanos, declarando que “deverão aplicar
as leis pessoais das partes concernentes”. No que diz respeito aos estrangeiros, isto foi
definido como a “lei de sua nacionalidade”. Foi determinado pelo Decreto, no que diz respeito
a não estrangeiros, o “tribunal... deve... aplicar a lei religiosa ou comum das partes”.
O Decreto-Lei sobre a Palestina reconhecia onze comunidades religiosas: a
judaica, a muçulmana e nove denominações cristãs. O governo israelense acrescentou a esta
relação a Igreja Evangélica Presbiteriana e a Bahai. O knesset também aprovou uma lei
investindo jurisdição aos tribunais religiosos drusos.
Em suma, pode-se constatar que o sistema legal de Israel se encontra em plena
caminhada para o encontro de uma fórmula própria, condizente com a sua realidade social,
cultural, econômica e política, sem abrir mão dos princípios vigentes a época do Antigo
Testamento.
83
5 RELAÇÃO ENTRE JUSTIÇA E RELIGIÃO NO ANTIGO ISRAEL
5.1 A idéia de justiça e religião no antigo Oriente
Somos naturalmente compelidos a uma rápida observação sobre a percepção grega
quanto às leis que regem o comportamento humano em sociedade, considerando-se que foram
os que por primeiro estabeleceram critérios lógicos para a origem e justificação das normas de
conduta. Sólon mostrou-se convicto de que o direito ocupa um lugar único na ordem divina
do mundo, alertando que se o homem ultrapassar o limite definido por tal direito incorrerá
fatalmente no castigo e conseqüente compensação. Sólon explicava que o castigo divino não
se faria por intermédio de más colheitas ou ocorrência de doenças por desígnio direto dos
deuses, e sim seria executado de modo imanente pela desordem que toda violação do direito
gera no organismo social ou até na natureza.
A idéia de imanência – aquilo a que um ser tende, ainda que por intervenção de
outro ser – é importante para nós, pois como recorda Jaeger:
Sólon concebe claramente a idéia duma íntima legalidade da vida social. (...)
Filósofos da natureza milesianos encetavam por essa altura as primeiras
passadas na ousada senda do conhecimento duma lei estável no devir eterno
da natureza. Trata-se do mesmo impulso para uma concepção intuitiva de
uma ordem imanente no curso da natureza e da vida humana e, portanto,
dum sentido e duma norma interna da realidade (JAEGER, 1979, p. 167).
Pode-se admitir, como McKenzie o fez, a existência de uma lei geral que se
revelou ao homem, independentemente do local por ele habitado. A natureza, como dizia
Galileu, é inexorável e imutável e nunca transgride os termos das leis que lhe foram impostas.
Ainda que de origem cultural diversa, as estruturas sociais adotadas entre os povos
gregos, guardaram vívidas semelhanças com as experimentadas pelos antigos egípcios ou
judeus. A autoridade do patriarca, líder do grupo que constituía a família, se fazia sentir sobre
todos os seus integrantes. Isso incluía as decisões sobre as atividades de pastoreio ou
puramente agrícolas, as determinações sobre a solução dos conflitos interpessoais e as ações e
relações entre o que se poderia chamar de sua tribo e as demais, quer se tratasse de festas,
quer de comemorações religiosas ou bélicas. As últimas eram muito freqüentes, resultado das
pilhagens de gado ou de furtos praticados, o que contribuiu para o estabelecimento de uma
série de procedimentos esperados por cada família, ainda que na qualidade de retaliação. A
história nos conta que todos os membros do grupo ofendido podiam a qualquer tempo vingar-
se contra os membros do grupo ofensor. Essa atitude podia praticamente aniquilar todos os
integrantes da tribo havida como agressora ou limitar-se ao autor da ação. Veja-se o caso
84
conhecido como “o crime dos gabonitas”, segundo a narrativa da Bíblia, no Livro dos Juízes:
um levita em viagem com sua mulher pernoitaram em Gabaã, sendo acolhido por um ancião
que, respeitando os costumes, os acolheu em sua casa, ofertando-lhes alimentos e as
comodidades necessárias. Eis o relato:
Enquanto se reconfortavam, alguns homens da cidade, de costumes
depravados, cercaram a casa, bateram na porta e gritaram para o ancião,
dono da casa: “Faze sair o homem que entrou em tua casa! Queremos
abusar dele!” O dono da casa saiu e lhes disse: “Não, irmãos! não façais
essa maldade! Depois que esse homem entrou em minha casa não
cometais tal infâmia. Vou trazer-vos minha filha moça e a concubina
dele; podeis abusar delas e fazer-lhes o que melhor vos parecer. Mas a
esse homem não façais tamanha infâmia!” Mas os homens não quiseram
escutá-lo. Então o levita pegou sua concubina e lhes trouxe para fora.
Eles a violentaram e abusaram dela a noite inteira, até de madrugada.
Abandonaram-na ao amanhecer. Ao romper da aurora a mulher voltou e
caiu à entrada da casa onde estava o marido, e ali ficou até o clarear do
dia. De manhã, ao se levantar, o marido abriu a porta da casa e saía para
seguir viagem, viu sua concubina caída na entrada da casa, com as mãos
na soleira. Ele lhe disse: “Levanta-te! Vamos embora!” Mas não teve
resposta. Então a recolheu, carregou sobre o burro e partiu de volta para
casa. Chegando à casa, pegou uma faca, segurou o cadáver da concubina
e o esquartejou em doze pedaços, que enviou por todo o território de
Israel. Todos quantos viam comentavam: “Jamais aconteceu, jamais se
viu uma coisa assim desde que os israelitas saíram do Egito até o dia de
hoje. Refleti sobre isso, tomai uma decisão e pronunciai-vos!” (Jz 19, 22-
30).
Todas as tribos, considerando muito grave a ofensa, após consulta a Deus (Jz
20,18) iniciaram a expedição punitiva: “Com efeito, os da emboscada subitamente se
lançaram contra Gabaá, invadiram-na e passaram toda a cidade à espada” (Jz 20, 37).
É verdade que o sangue derramado exigia mais sangue para aplacá-lo.
Contudo, o rigor foi sendo abrandado com o correr dos tempos; e hábitos gregos, entre os
judeus foram tomando corpo para se tornar possível a reconciliação por meio da
compaixão, ou acordo matrimonial. Tornou-se comum o pagamento do resgate do sangue
ou a prática de solenes cerimônias propiciatórias à divindade, em nome do interesse geral
de paz, sem se esquecer da possibilidade de sanções, quando violada. Tomar o Deus como
testemunha significava expor-se à vingança divina se violados os compromissos assumidos
e os direitos definidos pelo costume. O temor dos deuses, como visto por Glotz “era, no
fundo, o temor de uma força social que cada dia alcançava mais poder. Temia-se o demos
(...) o conjunto de todos os agrupados sobre o mesmo cetro, quer se tratasse da região quer
dos habitantes” (GLOTZ, 1980, p. 7).
85
Nas antigas celebrações civis ou religiosas, buscava-se a realização da justiça,
tendo como referência o entendimento que existia sobre a natureza do homem na visão da
Aliança. O certo, o justo, se manifestavam na natureza como obra divina, ou como atributo
daquele que é mais forte ou do que goza do reconhecimento de possuir autoridade para
gerar uma ação ou impor a lei como o caminho legítimo.
A percepção de que existe um poder exercido por uma autoridade em nome de
um Deus, confirma o entendimento de que a vontade divina se manifesta inclusive nos
fenômenos naturais, como as secas, as pragas ou as tempestades. A saúde e a doença, o
nascimento e a morte, o bem e o mal são admitidos como instantes de aprovação ou
reprovação divina, em razão da obediência ou não aos ditames da divindade.
Muitos encontraram no apelo ao sagrado um instrumento habilmente esgrimido
pelos monarcas do passado. A força da religião, como recurso controlador das ações dos
homens, teria sido explorada com maestria pelo Faraó ou por Hammurabi. Vê-se que no
código deste último, assim como no de Manu, consta a declaração da vontade expressa de
seus deuses como origem legitimadora do poder do governante. Muitas delas atravessaram
centenas de anos da história e renasceram em outros territórios.
Não se deve esperar que os povos da antiguidade possuíssem preocupações
semelhantes às manifestadas hoje quanto à justiça, ou quanto a sua formação e exercício de
conformidade com a natureza do homem ou até do mundo que o cerca. Exceção notória a
esta omissão surge com os filósofos gregos, notadamente Platão. A questão é amplamente
discutida no primeiro livro da República, local onde o justo por natureza equivale ao
direito do mais forte. Entendia Platão que “o mais forte” não era apenas o que possuía
maior força física ou que possuía condições de subjugar, por qualquer meio, os demais.
Admitia o filósofo que a força maior poderia significar a força da maioria ou a força dos
que possuíam suficiente poder para gerar um consenso e o impor como último critério para
definir uma ação.
É verdade que a percepção do “justo por natureza,” como o direito do mais forte,
foi posteriormente abandonada, e o próprio Platão apresenta outra compreensão de que o justo
por natureza é o “racional”. Agora o mais conforme com a natureza, e o ser humano, consiste
em dizer: o que realmente queremos de verdade, uma vez que somos essencialmente seres
racionais, não é impor o nosso desejo e sim regular nossas relações com os demais de
conformidade com justificativas que podemos compartilhar sem violência. Vale lembrar que
no período áureo da filosofia grega a justiça política não era formada unicamente pela justiça
legal, já que se lembrava da existência concomitante da justiça natural.
86
A estreita relação entre as normas religiosas e as determinadas para regência do
poder civil, já percebida por Fustel de Coulanges, permitiu a formulação de idéias que
estabeleciam uma estreita e intencional ligação entre a religião e o exercício do poder terreno.
Nicola Abbagnano esclarece:
A doutrina da origem política reduz a religião a um estratagema político:
portanto anula seu valor intrínseco. O primeiro a defender essa teoria foi
Crítias, um dos trinta tiranos de Atenas. Segundo ele, “os antigos
legisladores inventaram a divindade como uma espécie de inspetor das ações
humanas, boas ou más, a fim de que ninguém ofendesse ou traísse seu
próximo, por medo da vingança dos deuses”. Esse estratagema foi necessário
porque “as leis realmente dissuadiam os homens de praticar violência às
claras, mas eles as cometiam às escondidas”, de tal maneira que “algum
homem talentoso e experiente inventou o temor dos deuses para que os
malvados se sentissem amedrontados mesmo no que fizessem, dissessem ou
pensassem às escondidas (ABBAGNANO, 1999, p. 847-848).
As leis aplicadas por Hammurabi ou ainda no Código de Manu lembram a
doutrina da origem política quanto à manifestação da vontade de seus deuses, como fonte das
normas jurídicas. Diplomas legais como o Código de Lipit-Ishtar, Eshnunna e Hammurabi,
antecederam às leis judaicas e traziam muitos preceitos que foram adotados pelos
descendentes de Abraão. John McKenzie observa que
Estas coleções, quando comparadas com as coleções israelitas e quando
confrontadas entre si, levam os exegetas a concluir em favor da existência de
uma lei geral amplamente difundida no antigo Oriente Médio, que variava em
detalhes, porém não em princípios, de uma coleção para outra. Pela
comparação, evidencia-se que a lei israelita civil e criminal é um produto
desta lei geral. A comparação não é possível em todos os detalhes; nenhuma
das coleções (elas não são verdadeiros códigos) está completa, e todas, com
exceção da peça danificada de Hammurabi, foram conservadas apenas em
fragmentos (McKENZIE, 2005, p. 537).
Hammurabi, que precedeu o Código de Manu em aproximadamente 1.500 anos,
continha um detalhado preâmbulo, assim como uma parte final, voltada à apresentação de
uma série de anátemas lançados sobre quem ousasse efetuar mudanças no seu texto. Ele era
imutável, pois o rei recebera por parte da divindade a ordem de redigir a lei com o objetivo de
proteger o fraco e bem administrar as relações entre os habitantes daquele território. Porém
não se vê um sentido especificamente religioso na legislação, embora, como já foi afirmado, o
preâmbulo esclareça ter sido a lei ordenada por manifestação divina direta. Já o final do texto
está mais voltado ao louvor e glória do monarca. Eis a parte final do código:
(Estas são) as sentenças de justiça, que Hammurabi, o rei forte, estabeleceu e
que fez o país tomar um caminho seguro e uma direção boa. Eu (sou)
Hammurabi, o rei perfeito. [...] Os grandes deuses chamaram-me, eu sou o
pastor salvador, cujo cetro é reto, minha sombra benéfica está estendida
87
sobre minha cidade. Eu encerrei em meu seio os povos do país de Sumer e
Acade, sob minha divindade protetora eles prosperaram, eu sempre os
governei em paz, em minha sabedoria eu os abriguei. Para que o forte não
oprima o fraco, para fazer justiça ao órfão e a viúva, para proclamar o direito
[...] Que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha
diante da minha estátua de rei da justiça, leia, atentamente, minha estela
escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que minha estela resolva sua
questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate! “Hammurabi é o
senhor, que é como um pai carnal para os povos, ele preocupou-se
intensamente com a palavra de Marduk, seu senhor, e consegiu o triunfo e
Marduk em cima e em baixo, e assim assegurou para sempre a felicidade do
povo e obteve justiça no país” (BOUZON, 2003, p. 222 - 223).
Apenas no livro do Êxodo, já transcorrido um largo passo na história do homem, é
que voltamos a ver ser atribuído a um deus, o Senhor dos judeus, a origem da lei,
assegurando-lhe uma legitimidade absoluta, por ser divina. Moisés, que a recebeu
desempenha o simples papel de interlocutor, o intermediário a quem coube receber, conduzir
e ler o seu texto para conhecimento do povo. Na realidade, Moisés não exerceu uma
autoridade como Hammurabi o fez, pois sua tarefa administrativa foi apenas a de exigir o
respeito às normas divinas em nome da Aliança entre Deus e o povo escolhido.
Um ponto comum na aplicação da lei em todos esses códigos era de que cabia ao
Rei a responsabilidade de dirimir os conflitos, ou seja, cabia-lhe atuar como Juiz. Entendia-se
à época, que a distribuição da justiça e a solução das pendências entre os homens era atividade
própria do governante e não de um órgão especializado na solução de litígios. Por sinal,
Crüsemann chama a atenção ao fato de que o termo “julgar” não era entendido apenas como
“administração da justiça”. O termo era empregado principalmente com o sentido de
“governar”, o que nos é de muita valia para um melhor entendimento sobre o que se esperava
do exercício do poder à época. Governar, portanto, constituía-se em atividade exaustiva em
razão da necessidade de atender as crescentes demandas, cada dia mais numerosas e
complexas em razão do aumento da população. A solução, posta em prática por Moisés, foi
semelhante à que ele vivenciara no Egito, sua terra natal:
Respondeu Moisés ao sogro: “É porque o povo vem a mim para consultar a
Deus. Quando têm uma questão, vêm a mim. Julgo entre um e outro e lhes
faço conhecer os decretos de Deus e as suas leis” (Êx 18,15-16). [...]. Moisés
seguiu o conselho de seu sogro, fez tudo o que ele havia dito. Moisés escolheu
em todo Israel homens capazes, e estabeleceu-os como chefes do povo: como
chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinqüenta e chefes de dez. Eles
julgavam o povo em todo tempo. Toda causa importante, eles a levavam a
Moisés, e toda causa menor eles mesmos a julgavam (Êx 18 ,24-26).
A personalidade de Moisés está delineada como o líder que ouve conselhos e sabe
partilhar a autoridade, o que o torna radicalmente diferente dos que o antecederam, sempre
88
autocráticos. A constituição das cortes de justiça estabelece na prática, pela primeira vez a
compreensão da administração por órgãos independentes da pessoa física do rei, até então,
único detentor da autoridade absoluta. Agora firma-se a unidade de mando por intermédio de
juízes exercendo atividades delegadas nas importantes tarefas administrativas e judicantes:
Observemos a instituição dos Juízes:
Josafá, rei de Judá, depois de uma permanência em Jerusalém, saiu de novo
em viagem através do seu povo, desde Bersabéia até a montanha de Efraim, a
fim de conduzi-lo a Iahweh, o Deus de seus pais. Estabeleceu juízes na terra
para todas as cidades fortificadas de Judá, em cada cidade. Disse a esses
juízes: “Vede bem o que fazeis, porque não administrais a justiça em nome
dos homens, mas no nome de Iahweh, que está convosco quando pronunciais
uma sentença. Que o temor de Iahweh agora esteja sobre vós! Cuidado com o
que fazeis, pois Iahweh, nosso Deus, não consente nem nas fraudes, nem nos
privilégios, nem aceita suborno” (2Cr 19, 4-7) [...]. “Seja qual for o processo
que introduzirem diante de vós vossos irmãos residentes em suas cidades:
questões de assassínio, de contestação sobre a Lei, sobre um mandamento,
sobre estatutos ou normas, vós as resolvereis para que eles não se tornem
culpados diante de Iahweh e sua ira não se inflame contra vós e contra vossos
irmãos; agindo assim não sereis culpados. Tereis Amarias, sacerdote-chefe,
para vos controlar no tocante a todos os assuntos de Iahweh, e Zabadias, filho
de Ismael, chefe da casa de Judá, para todo assunto do rei. Os levitas vos
servirão de escribas. Sede firmes, ponde isso em prática e Iahweh estará
com a felicidade” (2Cr 19, 10-11).
No judaísmo os homens devem agir de conformidade com a vontade do Senhor.
Deus é a origem da lei, não é possível uma separação rígida entre a teologia e as regras legais
que versam sobre a conduta entre os homens, pois cada ação do homem deve corresponder à
realização do desejo de Deus. Os códigos antigos, ao disciplinar a vida nas cidades não
estabeleciam distinções entre os princípios que regiam o culto, a religião ou os
comportamentos próprios da vida civil. Normas do direito confundiam-se com normas
religiosas e, freqüentemente o desenrolar dos processos legais estavam permeados por
manifestações religiosas. Uma questão angustiante como a referente à herança estava
estritamente ligada à questão da morte e a uma esperada sobrevida posterior ao lado dos
deuses. As regras que regiam a sucessão dos bens estavam contidas entre as normas
concernentes à sepultura e ao culto dos espíritos dos mortos. Uma detalhada percepção sobre
a formação da lei na Antigüidade e a sua correlação com a religião deve-se a Fustel de
Coulanges:
O homem não esteve estudando a sua consciência dizendo: Isso é justo, aquilo
não. Não foi da interrogação da consciência do homem que nasceu o Direito
Antigo. Mas o homem acreditava que o lar sagrado, em virtude da lei
religiosa, devia passar de pai para filho: dessa crença resultou a propriedade
hereditária de sua casa. O homem que havia sepultado o pai em seu campo
julgava que o espírito do morto tomava, para sempre, posse desse terreno
89
reclamando da posteridade um culto perpétuo: daí resultou que o campo,
domínio do morto e local dos sacrifícios, se tornasse propriedade inalienável
da família. A religião dizia: o filho continua o culto e não a filha; e a lei
repetiu com a religião: o filho herda, a filha não; o sobrinho por linha
masculina herda, mas o sobrinho por linha feminina já não é mais herdeiro. A
lei surgiu desse modo, apresentando-se a si própria e sem o homem necessitar
ir ao seu encontro. Brotou como conseqüência direta e necessária da crença;
era a própria religião, aplicada às relações dos homens entre si. Os antigos
afirmavam que suas leis tinham-lhes vindo dos deuses (COULANGES, 1996,
p. 151).
Foi entre os judeus que se cristalizou o entendimento de que existe um aspecto
social gravitando sobre os bens terrenos. Marciano Vidal no seu livro Moral de Atitudes diz
que a narrativa do Antigo Testamento afirmando que Deus criou e organizou a terra está no
âmago da fé judaica.
Nos tempos de Abraão vigorava o princípio de que não era lícito ao homem
desejar possuir a terra com título definitivo, pois ele apenas a habitava e ela pertencia ao
Senhor. As determinações divinas, contidas no Levítico, esclareciam a relação definida por
Deus entre os judeus e a propriedade da terra: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a
terra me pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes” (Lv 25,23). A terra não pode
ser apropriada com ânimo definitivo por um homem, pois ela, por pertencer ao Senhor, possui
uma função social ao ser posta ao atendimento das necessidades do estrangeiro e do hóspede,
duas figuras que merecem cuidados e respeito. Não se vê em outros povos do passado uma
religião que considere o aspecto social dos bens terrenos. Já os deuses que teriam inspirado o
Código de Hammurabi e outras leis que chegaram até nós ignoram tal questão, que foi
fundamental para o povo da Aliança. Em Hammurabi, o art. 40 determina que “a sacerdotisa,
o mercador ou outro feudatário poderá vender o seu campo, pomar e casa desde que o
comprador assuma o serviço ligado ao campo, ao pomar e à casa.” A preocupação legal, como
registram os artigos seguintes consiste em garantir a produção de alimentos e ao pagamento
das taxas então cobradas aos proprietários.
No Código de Manu fica bem claro que a lei tem origem nos costumes
observados pelo povo, sendo tais hábitos confirmados pelo rei, se eles não se opuserem aos
preceitos revelados. É o que está previsto no seu art. 41:
Um rei virtuoso, depois de haver estudado as leis particulares das classes e
das províncias, os regulamentos das companhias de mercadores e os
costumes das famílias, deve dar-lhes a força de lei, quando essas leis, esses
regulamentos e esses costumes não são contrários aos preceitos dos livros
revelados.
90
Pode-se observar que ainda nos tempos de Abraão vigorava o princípio de que
não era lícito desejar possuir a terra com título definitivo, pois o homem apenas habitava a
terra do Senhor. As determinações divinas à época quanto a tal assunto estão contidas em Lv
25, 23, esclarecendo para os judeus a relação definida por Deus entre eles e a propriedade da
terra: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me pertence e vós sois para mim
estrangeiros e hóspedes”.
A Torá, como lembra Michel Villey em sua Filosofia do Direito, contém um
conjunto de instruções morais e não normas legais que possam ser compiladas como um
Código pronto para reger a vida de um povo, disciplinando seus direitos e solucionando seus
conflitos terrenos. Ela formula uma legislação moral, um sistema de regras de conduta. O
êxodo rumo à terra prometida é uma metáfora da vida do judeu representando sua caminhada
rumo à terra prometida que é o paraíso, à qual sua Lei o conduz. Essas leis morais trazem o
anúncio de aplicação de sanções claras ou difusas, como “Honrarás pai e mãe afim de que
teus dias se prolonguem” ou “Apedrejarás a mulher adúltera”.
A Torá traz conceitos que se assemelham a um Direito e que facilmente são
ligados ao Direito Penal. Trata-se, contudo de um Direito Penal diferente do nosso, como diz
o Rabino Nilton Bonder, em seu livro Código Penal Celeste. Os delitos ali são pecados, e não
crimes, ofensas a Deus, quebra do dever de fidelidade para com os princípios da Aliança.
Ainda que se trate de um homicídio, o tratamento dado ao ato pela Torá não é o mesmo do
Código Penal. No primeiro é uma injúria que, feita a outro homem, ofende a Deus e este se
compraz com arrependimento em consciência, com os atos de expiação ou purificação. Já
para o Código Penal, o dano é permanente e deve ser resolvido através de penas de reclusão,
indenização e registro da prática do crime para definir pelo tempo que a lei julga necessário a
questão da periculosidade social. O Juiz na sociedade civil é aquele que obedece e faz cumprir
a lei. O juiz do povo escolhido, tomando Samuel como modelo, não é aquele que assegura a
cada um a sua parte, mas o que conduz o povo de maneira reta. Justiça, para Deus, não
consiste em atribuir benesses a cada homem segundo os seus possíveis méritos pessoais, atos
de bondade ou sacrifícios praticados. A Lei que rege a Aliança não se consubstancia em
regras que esclarecem quem pode vender uma propriedade ou definem o preço a ser cobrado
pela prestação de um serviço. Deus não manifesta preocupação com os bens terrenos. A sua
Lei está a serviço do projeto de criação para tornar real a promessa de salvação. Por isso a
justiça divina vê o interior, o campo subjetivo.
Isso torna lógico o fato do operário da última hora vir a receber de forma justa
tanto quanto aquele que mourejou por todo o dia. A indagação de Jesus “Quem me
91
estabeleceu juiz ou árbitro da vossa partilha?” contida em Lc 12,14 deixa claro que não existe
um direito voltado à solução das questões meramente humanas no corpo da Lei. Ela não cuida
em apenas regulamentar os atos da vida civil. Ela procura trazer um sentido à vida.
Como disse Alain Supiot:
Conferir um sentido ao nascimento, o nosso e o de nossos filhos, é
compreender que nos inserimos numa corrente de geração, que somos
devedores da vida e, com isso, compreender a idéia de causalidade. Admitir
a nossa natureza sexuada é compreender que encarnamos apenas metade da
humanidade, que temos necessidade da outra e, com isso, compreender a
idéia de diferenciação e aprender a reportar a parte ao todo. Fazer o
aprendizado de nossa morte é admitir que o mundo sobreviverá a nós e que
nossa vida é submetida a uma coerção que nos supera, e é, com isso,
compreender a idéia de ‘norma’. No sentido amplo o sentimento religioso,
que é uma marca distintiva da humanidade, e consiste em inserir na vida de
cada homem um significado que o ultrapassa (SUPIOT, 2007, p. 9).
Foi esse significado que manteve o povo unido em torno de um projeto que
transcende qualquer promessa humana, pois visa a atingir uma nova vida, conforme a
promessa do seu Deus, em outro patamar de existência que o homem só poderá transpor se
acatar a Lei. Bem observado, o fenômeno da persistência da lei entre os judeus, e mais
notavelmente, o sentimento de unidade que os acompanhou no decorrer de tantos séculos,
constitui um caso singular.
Nenhuma outra nação preservou a mesma unidade, observou os mesmos princípios
morais, obedeceu às mesmas leis que teriam uma origem não humana, malgrado todas as
transformações pelas quais a cultura universal atravessou, possuindo como elo uma fé
religiosa que sempre se declarou obediente a um “reino que não é deste mundo” e que, como
foi dito acima, não deseja regular as partilhas humanas.
5.2 Evolução do conceito de justiça no Antigo Testamento
Ressalte-se que o conceito de justiça antecede a idéia da ciência do direito na
história de toda a humanidade. De início, convém considerar a abordagem de Fucek, (no
verbete Justiça, Dicionário de Teologia Fundamental) para quem a semântica do conceito de
justiça (sedaqah, dikaiosyne, iustitia, Gerechtigkeit, justice, fairness, pravednost) é
polivalente: possui um significado bíblico, teológico, filosófico, jurídico, social, político,
ético, religioso e laico. Portanto, é um conceito análogo: nem unívoco nem equívoco. O autor
pondera que apesar da diversidade de significado, verifica-se a existência de uma
continuidade fundamental entre a noção dos gregos (sistema racional de justiça comutativa) e
92
a dos israelitas (“tem cuidado com teu próximo”), lembrando ainda que o conceito de
“justiça” é herança sagrada de cada cultura e de cada religião.
Estabelece as fases da evolução desse conceito:
a) o Código de Hammurabi (1717 e 1665 a. C.), escrito em caracteres
cuneiformes, num obelisco, continha 282 artigos. Hammurabi, relata-nos a
história, foi designado pelos deuses para administrar a justiça no país, para “dar
justiça ao povo”, para fazer justiça ao órfão e à viúva, para fazer com que o
forte não oprima o fraco, como estabelece o Epílogo do seu Código. Essa
legislação inspirou o conceito originário de justiça em Israel: o monarca deve
ser justo, daí, a proteção aos mais necessitados é uma das funções essenciais do
rei.
Como bem aclara Fucek,
o conceito de justiça não raro é ideologizado de acordo com os sistemas
sociais, econômicos, políticos e as tradições culturais. Na cultura ocidental,
ela de fato recolhe a síntese de três dimensões; a judaico-cristã, a greco-
romana, a germânico-eslava. Isto faz com que hoje, no Ocidente, o conceito
de “justiça” tenha matizes diferentes de país para país, de um círculo cultural
para outro. Mas não somente no Ocidente; este “pluralismo” da noção
“justiça” é uma realidade mundial. Com efeito, ao longo da história, o
conceito de “justiça” e o comportamento “justo” foram enriquecidos, mas
também ofuscados por elementos filosóficos, jurídicos, políticos e
ideológicos, provenientes de diversas teorias e ideologias (FUCEK, 1994, p.
519).
b) com a revelação bíblica, abandona-se o conceito profano e chega-se ao conceito
religioso de justiça. O rei justo é o Deus de Israel (...). A justiça de Iahwh-justo:
Anunciai, trazei vossas provas,
- sim, tomem conselho entre si!
Quem proclamou isto desde os tempos antigos?
Quem o anunciou desde há muito tempo?
Não fui eu, Iahweh?
Não há outro Deus fora de mim,
Deus justo e salvador não existe, a não ser eu (Is 45,21).
Breve chegará minha justiça, surgirá minha salvação.
Meu braço executará o julgamento sobre os povos.
Em mim as ilhas esperarão.
Na proteção do meu braço porão a sua confiança (Is 51,5).
Assim diz Iahweh:
Observai o direito e praticai a justiça,
Porque minha salvação está prestes a chegar
E minha justiça, a se revelar (Is 56,1).
93
Por amor de Sião não me calarei,
por amor de Jerusalém não descansarei,
até que sua justiça raie como clarão
e a sua salvação arda como tocha (Is 62,1).
Cada membro da comunidade de Israel é chamado a participar da justiça de Deus:
“Ele obterá de Iahweh a bênção, e do seu Deus salvador a justiça” (Sl 24,5), principalmente a
seguir Iahweh em seu cuidado pelos pobres e pequenos. Segundo expõe Fucek, não só a
origem mas também o modelo de “justiça” em Israel são profanos. Israel, ao tempo do
nomadismo, compartilhava o mesmo conceito com os povos do antigo Oriente Médio: a
atividade do monarca na administração da justiça, com enfoque especial aos pobres e
oprimidos, era a sua proteção no dizer de Hammurabi. O monarca deveria ser justo, como
conseqüência, passaria a ser uma de suas funções precípuas, a proteção do pobre, do
oprimido, do miserável, do pequeno e do fraco, estes é que são o objeto do seu amor: “Ó céus,
dai gritos de alegria, ó terra, regozija-te, os montes rompam em alegres cantos, pois Iahwweh
consolou o seu povo, ele se compadece dos seus aflitos” (Is 49,13); “Tudo isto foi a minha
mão que fez, tudo isto me pertence, oráculo de Iahweh! Eis para que estão voltados meus
olhos, para o pobre e para o abatido, para aquele que treme diante da minha palavra (Is 66,2).
Já vimos que a partir da revelação, o conceito profano de justiça foi substituído
pelo conceito religioso. Assim, a justiça no Antigo Testamento apresenta-se como relacional
(Iahweh-Israel), incluído aí cada membro da comunidade; mas este caráter comunitário da
justiça, não quer dizer “social” como na “polis” grega ou mesmo uma noção moderna de
justiça social, e sim, essencialmente um sentido de relação pessoal. Fundamenta-se entre os
parceiros da Aliança: do “eu” de Iahweh e do “tu” de Israel, e reflete a justiça de Iahweh-
justo. Iahweh revela-se como Deus-justo: “Ele é a Rocha, e sua obra é perfeita, pois toda a sua
conduta é o Direito. É Deus verdadeiro e sem injustiça, ele é a Justiça, e a Retidão” (Dt 32,4).
O que se observa é que Israel, como comunidade e cada um de seus membros, são
chamados a participar da justiça de Deus: “Ele obterá de Iahweh a bênção, e do seu Deus
salvador a justiça” (Sl 24,5). A justiça de Iahweh para com Israel fundamenta e torna possível
a justiça de Israel, o que significa que cada um dos membros da comunidade deve observar os
mandamentos sociais para que reinem a concórdia e a fraternidade entre todos. “Ai dos que
promulgam leis iníquas, os que elaboram rescritos de opressão para desapossarem os fracos
do seu direito e privar da sua justiça os pobres do meu povo, para despojar as viúvas e saquear
os órfãos” (Is 10, 1-2). De outra parte, Isaías louva a justiça dos justos: “Aquele que pratica a
justiça e fala o que é reto, que despreza o ganho explorador, que se recusa a aceitar o suborno,
que tapa os ouvidos para não ouvir falar em crimes de sangue, que fecha os olhos para não ver
94
o mal, este habitará nas alturas, os rochedos inacessíveis serão seu refúgio. O pão de que
necessita lhe será dado, e a água para sua subsistência lhe será assegurada” (Is 33, 15-16);
Se um homem é justo e pratica o direito e a justiça, não come sobre os
montes e não eleva os seus olhos para os ídolos imundos da casa de Israel,
nem desonra a mulher do seu próximo, nem se une com uma mulher durante
a sua impureza, nem explora a ninguém, se devolve o penhor de uma dívida,
não comete furto, dá o seu pão ao faminto e veste ao que está nu, não
empresta com usura, não aceita juros, abstém-se do mal, julga com verdade
entre homens e homens; se age de acordo com os meus estatutos e observa
as minhas normas, praticando fielmente a verdade: este homem será justo e
viverá, oráculo do Senhor Iahweh (Ez 18, 5-9).
De conformidade com o entendimento de Fucek, o conceito de justiça no Antigo
Testamento salienta quatro aspectos:
a) No antigo Testamento a pobreza é, na realidade, um fato social, que está
associado a condições religiosas, econômicas, políticas e sociais. Na qualidade
nômade, o povo inteiro era pobre. Com a Aliança surge pouca diferença social.
Com o advento da monarquia, nasce a classe dos pobres. É a partir daí que os
profetas condenam a pobreza-escândalo, e enfatizam a pobreza como ideal (de
descoberta de valores espirituais);
b) A justiça de Iahweh está fundamentada sobre um fato da história da salvação: a
Aliança. Deus fez-se parceiro do homem com o fim de criar uma comunidade,
não só fiel a sua palavra mas, sobretudo, solidária, onde os beneficiários da
Aliança são irmãos entre si, no plano religioso e moral. Seguindo este
raciocínio, se Iahweh é parceiro do homem (pela Aliança), o conceito de justiça
adquire a acepção de solidariedade, de amor, de caridade, de bondade,
especialmente se o povo escolhido se conservar fiel à Aliança;
c) A justiça do Antigo Testamento está em conformidade com a natureza de
Iahweh, que está sempre voltada para os pobres, os oprimidos e os necessitados,
o que introduz o pensamento teológico de que a natureza de Deus é o amor.
Desta forma, registre-se, que o fundamento da justiça do Antigo Testamento é o
amor de Iahweh, para como seu povo, gerando a obrigação de imitar o amor
participativo de Deus para com todo o seu povo. Cada homem, em particular,
tem a sua dignidade pessoal, que do ponto de vista teológico deve ser procurada
na unidade com Deus; ou seja, no amor, na participação do amor divino para
com cada homem; o imperativo moral não está nas regras externas, mas no ser
do homem, criado à imagem e semelhança de Deus: Deus disse: “Façamos o
95
homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os
peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os
répteis que rastejam sobre a terra”. Deus criou o homem à sua imagem, à
imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou (Gn 1, 26-27).
d) A analogia da fé, segundo o já citado autor, se expressa na seguinte equação:
Iahweh fiel= Israel fiel, Iahweh justo = Israel justo, Iahweh amor= Israel amor.
A dimensão da justiça do Antigo Testamento é pessoal, religioso-teológica em
relação a Iahweh e religioso-social em relação ao próximo.Qualquer justiça ou
injustiça humana, representa ao mesmo tempo, o cumprimento ou a
transgressão da fidelidade para com Iahweh – rei- parente-justo –fiel e Senhor
absoluto.
Segundo ensina o professor Paulo F. Valério
o relacionamento entre a justiça e a misericórdia de Deus no AT tem várias
nuanças. Por exemplo, Deus se compadece depois de ter julgado (cf. Gn 6,5-
8); Deus se compadece enquanto julga (cf. Os 11, 8-11) etc. É importante
perceber a profunda unidade que existe nesses dois modos de ser de Deus,
unidade que não nega a diferença entre justiça e misericórdia, mas dá conta
da tensa integração na experiência de que Deus julga e salva, ou, como no
caso do texto analisado, Deus salva enquanto julga (VALÉRIO, 2007, p.
124).
5.3 A justiça e o direito
Os termos “justiça” (çedeq) e “direito” (mishpat) aparecem por diversas vezes
associados, principalmente nos Profetas e nos Salmos. Indicam as qualidades fundamentais de
um rei: “Davi reinou sobre todo o Israel, exercendo o direito e fazendo justiça a todo o povo”
(2Sm 8, 15). Jeremias disse do rei Josias: “Pensas reinar só porque competes pelo cedro? Teu
pai, porventura, não comeu e bebeu? Mas ele praticou o direito e a justiça! E corria tudo bem
para ele! (Jr 22,15). Aparecem igualmente como simples sinônimos, quando por exemplo o
Profeta Amós acusa Israel: “Eles que transformaram o direito em veneno e lançam por terra a
justiça” (Am 5,7); ou quando exorta: “Que o direito corra como a água e a justiça como um
rio caudaloso” (Am 5,24).
É sabido que as palavras hebraicas bíblicas que significam justiça (tzedek, tzedaká,
mishpat) apresentam diversos significados – justiça, retidão, bom comportamento, lealdade,
integridade, caridade. Há inúmeras referências às leis de caridade na Bíblia, o que pode ser
observado desde as leis agrícolas de Leket, Shikchá e Peá (em hebraico significam “respiga”,
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“esquecimento”, “extremidade” ou “canto”) até o cuidado com viúvas, órfãos, estrangeiros e
indigentes. As leis agrícolas permitiam aos indigentes e estrangeiros participar da colheita.
Leket refere-se aos feixes de espigas que caíam, um ou dois de cada vez, durante a ceifa, e
que eram apanhados pelos pobres que seguiam atrás dos segadores. Shikchá refere-se aos
feixes individuais de espigas que ficavam esquecidos no campo quando eram trazidos para os
celeiros. Peá refere-se à exigência de que o dono da terra deixasse um canto de cada campo
para os pobres sem ceifar. A tocante história de Rute esclarece como os pobres se
sustentavam com fundamento nessas leis.
Aristóteles já ensinava que o justo é o igual, um meio termo. A partir daí, pode-se
afirmar que o direito é a ciência que busca preservar a igualdade, tendo como aspiração a
justiça, ou seja, que o sistema jurídico visa a atender aos ideais de justiça, naturais da
humanidade.
Entretanto, não é sempre assim que o direito trata a idéia de justiça:
a) pode-se afirmar, por exemplo, que a objetivo do direito é o de criar e fazer
cumprir normas que atendam ao interesse de segurança da sociedade;
b) pode-se afirmar que a finalidade do direito é a de estabelecer uma estrutura
orgânica para a pacificação e parificação da sociedade;
c) pode-se afirmar, que todo o mecanismo das normas jurídicas, coercitivamente
impostas, tem por objetivo impor e regulamentar a dominação do mais fraco
pelo mais forte;
d) pode-se afirmar, também, que a ciência do direito é a ciência da proporção, que
tem como objetivo conter os excessos possíveis da atuação do sujeito no
convívio social, impedindo o desrespeito ou a violação da lei.
De acordo com Johnson,
O código mosaico é um código não apenas de obrigações e proibições, mas
também, de forma embriônica, de direitos. É mais do que isso: é uma
declaração primitiva de igualdade. Não apenas o homem, como uma
categoria, é criado à semelhança de Deus; todos os homens individuais, são
também criados à semelhança de Deus. Nesse sentido, eles são todos iguais.
Nem é essa igualdade ideal; ela é real no sentido de toda importância. Todos
os israelitas são iguais diante de Deus; e, portanto, iguais diante de sua Lei.
A justiça é para todos independentemente de outras desigualdades que
possam existir. Todas as espécies de privilégios são implícitas e explícitas
no código mosaico, mas, em coisas essenciais, ele não estabelece distinção
entre variedade de fieis. Todos, além disso, partilharam a aceitação do pacto;
foi uma decisão popular, mesmo democrática (JONHSON, 1995, p. 51)
97
Ainda podemos, agregar a tudo isso outro fator: a justiça, uma das aspirações
eternas da humanidade, é também procurada pela ciência do direito, como forma de tornar
possível a convivência social. Atente-se para o fato de que, o sistema normativo não conduz,
necessariamente à justiça individual, isto porque esse mesmo sistema pode conter regras
injustas ou regras que possam provocar conseqüências injustas, e é nesta ocasião que é
necessário ir além das normas, das regras, em busca da justiça. Por isso, afirma a doutrina,
que a eqüidade não é um poder de corrigir a regra injusta, mas de evitar as conseqüências
injustas da regra.
Cícero também já havia apontado a idéia de que da norma podem advir injustiças,
quando preconizava que, em havendo conflito entre norma e direito, este deve sempre
prevalecer. Idêntica observação surge da Segunda Carta de Paulo aos Coríntios: “Foi ele
quem nos tornou aptos para sermos ministros de uma Aliança nova, não da letra, e sim do
Espírito, pois a letra mata, mas o Espírito comunica a vida” (2Cor 3,6).
Por isso, a necessidade de pontuar o fato de que a definição do direito como
ciência pura de regras de conduta coercitivamente impostas é conseqüência direta de um
pensamento jurídico que é balizado apenas pela lei (proposição jurídica), ou pelos casos já
solucionados (jurisprudência em sentido estrito), mas não conduz necessariamente a um
compromisso com o ideal de justiça. A respeito desse tema a Professora Rosa Maria de
Andrade Nery nos diz:
Parece-nos que o problema da justiça ultrapassa a mera indagação sobre
haver normas justas e injustas, porque esse aspecto respeita apenas à
correspondência que se espera que haja entre as normas e os valores que
inspiram determinado ordenamento jurídico, o que não necessariamente
encerra a discussão em torno do direito e da justiça, mormente se a questão
for vista sob a ótica da equidade, ou seja, dessa necessidade que se impõe ao
cientista do direito de, ao interpretar o ordenamento, evitar as conseqüências
injustas da norma (NERY, 2008, p. 18).
E prossegue a Professora, trazendo-nos a lição de Carmen Horacio: assim devemos
compreender o direito: “como a esperança dos homens, que renasce como o sol, todos os dias,
sempre outro e, todavia igual” (NERY, 2008, p. 18).
A história latino-americana registra, através da pena do Professor Damásio de
Jesus, em recente publicação intitulada Justiça: Valor Absoluto, um episódio que, pelo seu
alto valor humano, demonstra até que ponto pode chegar o clamor pela justiça:
Roma. Ano de 1805. Uma ensolarada tarde de outubro. Dois homens galgam
lentamente a colina do Monte Sagrado. Um deles é jovem, esguio, e o cenho
carregado não esconde a beleza dos traços de origem crioula. O outro, menos
jovem, menos alto, ombros curvados e cabelos grisalhos ao vento.
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Caminham em silencio. Dir-se-ia que há dentro deles um vulcão prestes a
explodir. Chegam ao cimo. Ambos contemplam a cidade dos Césares e dos
deuses. Há, no olhar do jovem, um misto de mágoa e de desafio. Seus olhos
procuram algo, pousam demoradamente no Ocidente e, súbito, cai de joelhos
e brada solenemente:
“Juro pelo Deus dos meus antepassados; juro pelos meus antepassados; juro
pelo meu país natal, que não permitirei que minhas mãos permaneçam
ociosas, nem minha mente em repouso, enquanto não livrar minha pátria das
algemas que a escravizam à Espanha!”
Esse jovem era Simón Antonio José de La Santíssima Trinidad Bolívar y
Palácios, o libertador de seis nações americanas. Tinha, então, 21 anos de
idade. O outro, seu mestre, Simón Rodrigues. Somente o mestre e o céu da
Itália testemunharam essa promessa.
Um jovem recorre aos céus e à força de uma promessa para proporcionar
justiça a um povo. A consciência da lesão sofrida como individuo e como
membro de uma comunidade, e a certeza de que não há um poder
constituído para distribuir a justiça (ao contrário, a lesão parte justamente
daquele poder cuja autoridade não pode ser reconhecida, porque foi imposta
pela força, sendo espoliadora dos bens materiais e espirituais de sua gente,
por mais de 300 anos) fundamentam o clamor. Clamor transformado na
promessa que o mundo assombrado viu cumprir-se vinte anos depois
(JESUS, 2008, p. 1).
Como refere Damásio de Jesus,
a consciência da lesão é inata, como inato é o senso de justiça. Assim, lutar
pelos direitos é um dever do interessado para consigo mesmo, seja uma lesão
que fere um bem particular, individual, seja uma lesão que fere um bem
coletivo. Abdicar dos seus direitos por ignorância e desesperança é aceitar ao
nível do animal. Adentrar no campo da consciência do homem, em sua
capacidade de apreensão do ideal supremo, que é a Justiça (valor absoluto), é
mover-se no campo do imponderável. A justiça se sobrepõe a todos os
valores visados por qualquer das regras do Direito (JESUS, 2008, p. 02)
A percepção de que ocorreu um dano, uma lesão, é seguida pelo anseio de que
ocorra uma reparação, realizando assim a idéia de justiça. O ser humano tem a consciência de
que necessita agir para obter a correção da ação danosa, restaurando a situação anterior. Tal
retomada é importante para fazer cessar a sensação de prejuízo e restabelecer a paz, quer o
dano seja individual ou coletivo. É impossível não reagir, a menos que o prejudicado não
disponha da consciência de possuir direitos. E não se pode olvidar que, a realização da justiça
é mais importante do que a luta pelos direitos. Como afirmou Reale:
Ela é a condição primeira de todos eles (valores), a condição transcendental
de sua possibilidade como atualização histórica. Ela vale para que todos os
valores valham. Não é uma realidade acabada, nem um bem gratuito, mas é,
antes, uma intenção radical vinculada às raízes do ser do homem, o único
ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser (REALE, 1987, p. 371).
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Como ressalta ainda Damásio de Jesus, a justiça pode ser também chamada valor-
fonte por qualquer sociedade, em qualquer época; na perspectiva hebraica, é um atributo
inerente à própria divindade; durante a Idade Média, a justiça era uma virtude; atualmente é
considerada uma exigência da própria sociedade.
5.4 As instâncias judiciais na Bíblia
Na Bíblia, com efeito, não encontramos referência a instituições judiciais, mas
manifestações sobre as pessoas que detêm funções no exercício da Justiça:
- os anciãos: com a chegada da Monarquia, a vida social de Israel estruturou-se em
torno das cidades. Os assuntos municipais estavam nas mãos dos anciãos, considerados os
notáveis da localidade, que formavam um corpo social com responsabilidades políticas e
religiosas. São mencionados em todos os livros do Pentateuco, como também em todos os
livros históricos do Antigo Testamento, com exceção do livro de Neemias; nos profetas o
termo é encontrado em Isaías, Jeremias, Ezequiel e Joel; aparece ainda nas Lamentações, nos
Salmos, em Jó, como também nos Provérbios.
Como bem explica McKenzie, os anciãos representavam todo o povo nas
atividades políticas e religiosas. É assim que Moisés reúne os anciãos e se dirige ao povo (Êx
3,16); 4,19); em outras passagens do Pentateuco, os anciãos devem servir de intermediários
(Êx 17, 5-6; 18,12). São eles que pedem um rei a Samuel (1Sm 8,4). Davi busca o apoio dos
anciãos de Judá (1Sm 30,26), e Abner se dirige aos de Israel com a finalidade de confiar a
Davi a realeza sobre estas tribos (2Sm 3,17). Esses anciãos firmaram um pacto com Davi em
Hebron (2Sm 5,3), ouviram a leitura do livro da Lei descoberto sob o reinado de Josias (2Rs
23,1). Eles, com Moisés e em nome de Israel, ratificaram a aliança concluída na montanha
(Êx 24,1-9). Acompanharam o chefe no exercício do poder (Êx 3,18; Dt 27,1; Js 8,10).
Faziam parte das autoridades (Jz 8, 8-10). Eram chefes de tribos (Dt 5,23; 29,9). Exerciam
colegialmente as suas funções (Js 9,11; Jz 8,5; 11,5); eram membros do conselho real (2Sm
7,14-150), administravam a justiça (Dt 19,12; 21,3-19); 22,15). Em cada uma das
cidades eles formavam um conselho e a sua função manteve-se ao longo de toda a história de
Israel.
Verifica-se que no início da Monarquia, no fim do reinado de Saul, David
consegue o apoio do povo de Judá. Para tal, encaminha mensageiros com presentes aos
anciãos das diferentes cidades: “Chegando a Siceleg, David enviou partes de despojo aos
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anciãos de Judá, seus próximos, com esta mensagem: ‘Aqui vai um presente para vós do que
foi tomado dos inimigos de Iahweh’, aos de Betul, aos de Ramá do Negueb, aos de Jatir, aos
de Aroer, aos de Sefamot, aos de Estemo, aos de Racal, aos das cidades e Jerameel, aos das
cidades dos quenitas, aos de Horma, aos de Bor-Asã, aos de Atar, aos de Hebron, e a todos os
lugares onde tinham passado David e seus homens” (1Sm 30,26-31). Ao fim da Monarquia
judaica, os anciãos de Judá e de Jerusalém são convocados por Josias para ouvir a leitura da
Torá, que seria comunicada ao povo: “Então o Rei mandou reunir junto de si todos os anciãos
de Judá e de Jerusalém” (2Rs 23,1).
Toda esta estrutura está profundamente enraizada na sociedade israelita e foi
mantida durante e após o Exílio. O profeta Ezequiel menciona diversas vezes os anciãos que
vem visitá-lo: “Sucedeu no ano sexto, no quinto dia do sexto mês, que eu estava sentado em
minha casa e os anciãos de Judá estavam sentados na minha presença, quando ali mesmo veio
sobre mim a mão do Senhor” (Ez 8,1). “Alguns anciãos de Israel vieram ter comigo e
puseram-se sentados na minha presença” (Ez 14,1).
Constata-se que por motivo do regresso à Judéia, o sacerdote Esdras apóia-se nos
anciãos para resolver a questão dos casamentos dos judeus com mulheres estrangeiras. “Que
nossos chefes representem a Assembléia inteira: todos os que, em nossas cidades, desposaram
mulheres estrangeiras virão aqui em datas marcadas, acompanhados dos anciãos e dos juizes
da respectiva cidade, até que tenhamos afastado de nós a grande ira do Deus acesa por causa
disso” (Esd 10,14).
Naquela hipótese, a justiça não recorria a juizes de carreira, nem tampouco a um
tribunal permanente; o assunto pertencia à cidade. Quando aparecia qualquer conflito ou
litígio, a queixa era apresentada aos anciãos que se reuniam, no mínimo em número de dez, a
fim de constituir um Tribunal, o julgamento era público, “à porta da cidade”.
O episódio de Rute relata este costume:
Booz subiu à porta da cidade e sentou-se ali; e eis que passou o parente do
qual tinha falado. Disse-lhe Booz: “Olá, fulano, chega aqui e assenta-te”. O
homem se aproximou e sentou-se. Booz convidou dez homens dentre os
anciãos da cidade e disse-lhes: “Sentai-vos aqui”. E eles se sentaram. Então
disse ao homem que tinha o direito de resgate: “Noemi, aquela que voltou
dos Campos de Moab quer vender a parte do terreno que pertencia a nosso
irmão Elimelec. Resolvi informar-te disso, dizendo-te: ‘Adquire-a diante dos
que aqui estão sentados e diante dos anciãos do meu povo. Se queres exercer
teu direito de resgate, exerce-o; mas se não o queres, declara-mo, para eu
tomar conhecimento. Pois ninguém mais tem o direito de resgate a não ser
tu, e depois de ti, eu”. O outro respondeu: “Sim, eu quero exercer meu
direito”. Mas Booz disse: “No dia em que adquirires este campo da mão de
Noemi estarás adquirindo também Rute, a moabita, a mulher daquele que
101
morreu, para perpetuar o nome do morto sobre seu patrimônio”. Então
respondeu o que tinha direito de resgate: “Assim não posso exercer meu
direito, pois não quero prejudicar o meu patrimônio. Podes exercer o meu
direito de resgate, pois eu não posso fazê-lo”. Ora, antigamente era costume
em Israel em caso de resgate ou de herança para validar o negócio, um tirar a
sandália e entregá-la ao outro; era esse o modo de testemunhar em Israel.
Disse então a Booz aquele que tinha o direito de resgate: “Adquire-a para ti”,
e tirou a sandália. Booz disse aos anciãos e a todo povo: “Sois testemunhas
hoje de que comprei da mão de Noemi tudo o que pertencia a Elimelec e
tudo o que pertencia a Maalon e a Quelion; ao mesmo tempo adquiro por
mulher Rute, a moabita, viúva de Maalon, para perpetuar o nome do falecido
sob sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de
seus irmãos, nem da porta de sua cidade. Disso sois testemunhas hoje”. E
todo o povo que se achava junto à porta, bem como os anciãos,
responderam: “Nós somos testemunhas! Que Iahweh torne essa mulher que
entra em tua casa semelhante à Raquel e a Lia, que formaram a casa de
Israel. Torna-te poderoso em Efrata adquire um nome em Belém. E que
graças à posteridade que Iahweh te vai dar desta jovem, tua casa seja
semelhante à de Farés, que Tamar deu à luz para Judá (Rt 4,1-12).
- A jurisdição do Rei – A origem da realeza israelita está relatada em 1Sm 1-12. O
rei era uma pessoa sagrada, segundo McKenzie, “a base teórica do poder real em Israel difere
de maneira notável e evidente da base teórica da realeza em outros povos” (McKENZIE,
2005, p. 782). Veja-se que, muito antes de os israelitas escolherem Saul para ser seu primeiro
rei, Israel era uma comunidade religiosa, sendo Deus o seu próprio soberano. Havia uma
promessa de Deus a Abraão que reis procederiam dele: “Eu te tornarei extremamente fecundo,
de ti farei nações, e reis sairão de ti (Gn 17,6). Idêntica promessa foi feita a Jacó: “Deus lhe
disse: “Eu sou El Shaddai. Sê fecundo e multiplica-te. Uma nação, uma assembléia de nações
nascerá de ti e reis sairão de teus rins” (Gn 35,11). Muitos anos depois, durante o Êxodo do
Egito e a conquista de Canaã, Moisés e Josué exerceram autoridade “real”, mas tão somente
como representantes de Deus. Note-se que a Bíblia aplica o título de rei não só aos
governantes humanos mas também a Deus, como o supremo Soberano do mundo: “Iahweh é
grande e muito louvável na cidade do nosso Deus, a montanha sagrada, bela em altura, alegria
da terra toda; o monte Sião, no longínquo Norte, cidade do grande rei” (Sl 47,2). Os reis
terrenos estão todos sujeitos ao seu domínio: “Pois Iahweh vosso Deus é o Deus dos deuses e
o Senhor dos Senhores, o Deus grande, o valente, o terrível, que não faz acepção de pessoas e
não aceita suborno” (Dt 10,17); “Esta árvore que viste, grande e vigorosa, cuja altura chegava
até o céu e cuja vista abrangia a terra inteira, com uma bela folhagem e frutos abundantes, e
com alimento para todos, sob a qual se acolhiam os animais do campo e em cujos ramos se
aninhavam as aves do céu, esta árvore és tu ó rei, que te tornaste grande e poderoso, e cuja
102
grandeza cresceu até chegar ao céu, estendendo-se teu império até os confins da terra” (Dn 4,
17-19).
Com a instituição da Monarquia, Israel adota para a função real a ideologia até
então comum a todo Médio Oriente Antigo, reconhecendo ao rei a primazia da autoridade
judicial, tornando-se sua responsabilidade precípua a garantia da justiça. A justiça denota a
qualidade real que garante a segurança, a paz e a prosperidade de seu povo. A exigência de
respeitar o direito e praticar a justiça representa o próprio fundamento da Monarquia. A
tradição de Israel fez de Davi fundador da Monarquia, o rei ideal: “Davi reinou sobre todo o
Israel, exercendo o direito e fazendo justiça a todo o povo” (2Sm 8,15). No exercício do
direito e da justiça, a firmeza e a lealdade revigoraram a sua dinastia. É por conta delas que o
Senhor concede o poder real a Salomão: “Salomão respondeu: Tu demonstraste uma grande
benevolência para com teu servo Davi, meu pai, porque ele caminhou diante de ti na
fidelidade, justiça e retidão de coração para contigo; tu lhe guardaste esta grande
benevolência, e permitiste que um filho dele esteja sentado hoje em seu trono” (1Rs 3,6).
A estabilidade da realeza está relacionada com a prática da justiça. As máximas
dos Sábios dizem isso: “Abominação para os reis é praticar o mal, porque sobre a justiça o
trono se firma” (Pr 16,12). “O rei que julga os fracos com verdade firmará o seu trono para
sempre” (Pr 29,14).
Para o profeta Isaías representa uma esperança e uma necessidade: “Para que se
multiplique o poder, assegurando o estabelecimento de uma paz sem fim sobre o trono de
Davi e sobre o seu reino, firmando-o, consolidando-o sobre o direito e sobre a justiça. Desde
agora e para sempre, o amor ciumento de Iahweh dos Exércitos fará isto (Is 9,6) Jeremias, por
sua vez, espera o rei para aplicar a justiça do Senhor: “Eis que dias virão – oráculo de Iahweh
– em que suscitarei a David um germe justo, um rei reinará e agirá com inteligência e
exercerá na terra o direito e a justiça. Em seus dias, Judá será salvo e Israel habitará em
segurança. Este é o nome com o que o chamarão: Iahweh, nossa justiça” (Jr 23,5-6).
Para o rei, o exercício da justiça não se restringe apenas ao poder judicial. Em
Israel ou em Judá, como em todas as monarquias orientais, não existe separação entre poder
legislativo, executivo e judicial. O rei governa e julga indistintamente. Governar significava
construir uma sociedade segundo a justiça, garantindo a plenitude da vida ao seu povo: “É por
mim que reinam os reis, e que os príncipes decretam a justiça; por mim governam os
governadores, e os nobres dão sentenças justas” (Pr 8, 15-16): “O oráculo pelas sortes está nos
lábios do rei; num julgamento, sua boca não falha. A balança e os pratos justos são de Iahweh,
todos os pesos da bolsa são sua obra. Abominação para os reis é praticar o mal, porque sobre
103
a justiça o trono se firma” (Pr 16, 10-120. Isaías elenca os títulos do rei “ ... Conselheiro-
maravilhoso, Deus-forte, Pai-eterno, Príncipe-da-paz” (Is 9,5).
As qualidades do “rei de justiça” estão alinhadas em Is 11, 2-5: “Sobre ele
repousará o espírito de Iahweh, espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e
de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Iahweh: no temor de Iahweh estará a sua
inspiração. Ele não julgará segundo a aparência. Ele não dará sentença apenas por ouvir dizer.
Antes, julgará os fracos com justiça, com equidade pronunciará sentença em favor dos pobres
da terra. Ele ferirá a terra com o bastão da sua boca, e com o sopro dos seus lábios matará o
ímpio. A justiça será o cinto dos seus lombos e a fidelidade, o cinto dos seus rins”. Este rei
protege os humildes e ajuda os necessitados: “Que ele governe teu povo com justiça, e teus
pobres conforme o direito. Montanhas e colinas, trazei a paz ao povo. Com justiça ele julgue
os pobres do povo, salve os filhos do indigente e esmague seus opressores” (Sl 72,2-4).
Depreende-se, a partir desta análise, que o exercício da justiça pelo rei não retrata apenas o
aspecto humano e político, mas atualiza a justiça de Deus na vida do povo de Israel: “Ó Deus,
concede ao rei teu julgamento e a tua justiça ao filho do rei” (Sl 72,1). Assim, a justiça
exercida conforme a sabedoria de Deus reside na aplicação da lei.
- Os juízes: O livro dos Juízes cobre o período da história israelita que vai do
estabelecimento de Israel em Canaã até o surgimento da monarquia. Como explica McKenzie:
A função do juiz no pensamento hebraico não é tanto a de determinar a
justiça segundo a Lei, mas sim a de restaurar a justiça; assim, sua função é a
de defender o direito da parte ofendida e vingá-lo. Neste sentido, o juiz é um
libertador. É concebido como um líder carismático (Max Weber). O carisma
está explícito em 6,34; 11,29; 14,6.19; 15,14: é o espírito de Iahweh,
concebido como espírito sobrenatural, que leva a fazer ou dizer coisas que
estão além da capacidade humana comum ( McKENZIE, 2005, p. 519-520)
.
O termo “Juiz” designa homens que Deus fazia surgir para salvar Israel: “Então
Iahweh lhes suscitou juízes que os livrassem das mãos dos que os pilhavam” (Jz 2,16). A
única mulher entre eles, Débora, regulava os conflitos: “Ela tinha a sua sede à sombra da
palmeira de Débora, entre Ramá e Betel, na montanha de Efraim, e os israelitas vinham a ela
para obter justiça” (Jz 4,5).
O rei representava a instância judicial superior, entretanto, na prática, não era o
único juiz sobre todo o Israel: o poder judicial foi delegado aos juízes. Considere-se que a
partilha do poder com outros podia gerar, de certa forma, um risco de desestabilização. Era
preciso legalizar a instituição de juizes com referência as ocorrências que estavam na base da
fundação de Israel: o governo dos filhos de Israel por Moisés, no tempo do deserto. Algumas
104
passagens narram como Moisés delegou aos anciãos do povo o seu poder de governar e de
aplicar justiça. De acordo com Êx 18, 13-26, Moisés detém o posto de juiz e mais
particularmente o de rei na sua função de julgar. É que o povo manteve-se de pé na frente dele
(v.13). As questões levantadas por Jetro (v.14) referem-se à posição do rei que é absoluto
perante o seu povo. A grande característica institucional do monarca é que ele é o único a
governar o seu povo, mas, fica aberto o caminho da delegação de poderes, que não significa
perda ou diminuição de função. O princípio da delegação de poderes é assim aceitável à
medida que esta função for plenamente exercida junto ao povo. No Dt aparece esta delegação
do poder judicial de uma forma imperativa: ‘Estabelecerás juízes e escribas em cada uma das
cidades que Iahweh teu Deus vai dar para as tuas tribos. Eles julgarão o povo com sentenças
justas. “Não perverterás o direito, não farás acepção de pessoas e nem aceitarás suborno, pois
o suborno cega os olhos do sábio e falseia a causa dos justos”.
Na passagem do Êx 18, 21 são enunciadas as qualidades esperadas de um Juiz:
“Mas escolhe do meio do povo homens capazes, tementes a Deus, seguros, incorruptíveis, e
estabelece-os como chefes de mil, chefes de cem, chefes de cinqüenta e chefes de dez”. Em
Dt 1,13, encontramos: “Elegei homens sábios, inteligentes e competentes para cada uma das
vossas tribos e eu os constituirei vossos chefes”. Pergunta-se: quem seriam estes homens que
temem a Deus, dignos de confiança, fiéis, íntegros, incorruptos que exerciam a função judicial
permanentemente? A resposta é encontrada em 2Cr 19,8: “Além disso, Josafá estabeleceu em
Jerusalém sacerdotes, levitas e chefes de famílias israelitas, para promulgar as sentenças de
Iahweh e julgar os processos. Moravam em Jerusalém”.
Segundo Unterman,
Um juiz justo é, assim, um parceiro de Deus e deve sentir-se temeroso ante a
responsabilidade de seu cargo... Os juízes são constantemente advertidos
contra a corrupção, favorecer alguém no tribunal ou julgar injustamente. O
daian é proibido de aceitar gratificação, mesmo acreditando que isso não
mudará seu julgamento, e já que o suborno causa cegueira psicológica, o juiz
que o aceita será depois castigado com a perda física da visão
(UNTERMAN,1991, p. 75).
- Os Sacerdotes (em hebraico, “Kohen”). Na época do Templo, os sacerdotes
oficiavam nas oferendas de sacrifícios, na identificação da lepra e em algumas funções rituais
e sociais. O seu sustento era obtido através de doações e dízimos provenientes da agricultura.
Atualmente exercem as suas funções no ritual da sinagoga. Não havia nenhuma ordenação
para instituir o sacerdote em sua função, sendo afirmado somente que se lhe “encheu a mão”
(Jz 17, 5-12). Segundo nos ensina McKenzie,
105
O sumo sacerdote era a pessoa mais importante na comunidade judaica
palestinense do período pós-exílico. Ele não era apenas o chefe do culto,
mas também o presidente do Sinédrio e o chefe representante do povo diante
dos funcionários governamentais dos poders estrangeiros que dominaram a
Palestina durante esses séculos. A eminência do sumo sacerdote aparece
claramente no excessivo louvor de Onias em Eclo 50... As funções do
sacerdote israelita eram diversificadas, embora não possamos estar certos de
nenhuma grande especialização como a que apareceu no Egito e na
Mesopotâmia; a analogia sugere que especializações semelhantes existiam
também em Israel (McKENZIE, 2005, p. 817).
De acordo com a apresentação da reforma judicial de Josafá pelo cronista no
século quarto, o rei tinha nomeado dois responsáveis, um sacerdote e o outro oficial do rei:
“Tereis Amarias, sacerdote-chefe, para vos controlar no tocante a todos os assuntos de
Iahweh, e Zabadias filho de Ismael, chefe da casa de Judá, para todo assunto do rei. Os levitas
vos servirão de escribas. Sede firmes, ponde isso em prática e Iahweh estará lá com a
felicidade” (2Cr 19,11).
No século oitavo, o profeta Oséias já censurava os sacerdotes e reis de Israel que
esqueciam a Torá e não cumpriam a lei: “Meu povo será destruído por falta de conhecimento.
Porque tu rejeitaste o conhecimento, eu te rejeitarei do meu sacerdócio; porque esqueceste o
ensinamento de teu Deus, eu também me esquecerei dos teus filhos” (Os 4,6). “Ouvi isto,
sacerdotes, atende, casa de Israel, escuta, casa do rei, pois o direito é para todos vós. Fostes
um laço para Masfa e uma rede estendida sobre o Tabor” (Os 5,1).
Não é de se estranhar que os sacerdotes participassem da função judicial uma vez
que esta sociedade não conhecia uma distinção rigorosa entre o laico e o religioso. Durante a
Monarquia, antes da reforma de Josias que impusera um único templo e único clero em
Jerusalém (em 622), todas as cidades de Israel ou de Judá tinham o seu templo ou o seu clero
local. A partir do momento em que uma questão não podia ser resolvida perante o tribunal dos
anciãos, essa questão era levada ao templo, ao sacerdote que desempenhava a função de juiz,
ou que era assessorado por um juiz na condução do processo. “Quando tiveres que julgar uma
causa que te pareça demasiado difícil – causas duvidosas de homicídio, de pleito, de lesões
mortais, ou causas controvertidas em tua cidade, – levantar-te-ás e subirás ao lugar que
Iahweh teu Deus houver escolhido. Irá então até aos sacerdotes levitas e ao juiz que estiver
em função naqueles dias. Eles investigarão e te anunciarão a sentença. Agirás em
conformidade com a palavra que eles te anunciarem deste lugar que Iahweh houver escolhido.
Cuidarás de agir conforme todas as suas instruções. Agirás segundo a instrução que te derem,
e de acordo com a sentença que te anunciarem, sem ti desviares para a direita ou para a
esquerda da palavra que eles te houverem anunciado. O homem que agir com presunção, não
106
obedecendo ao sacerdote, que está ali para servir a Iahweh teu Deus, nem ao juiz, tal homem
deverá ser morto. Deste modo extirparás o mal de Israel” (Dt 17,8-12).
De fato, segundo Dt 33,10; os sacerdotes descendentes de Levi tomavam decisões
e faziam leis em nome de Deus: “Contudo, no dia em que aparecer nele uma úlcera, ficará
impuro. Após o exame da úlcera, o sacerdote o declarará impuro: a úlcera é coisa impura, é
proveniente da lepra. Mas se a úlcera se tornar branca, o homem procurará o sacerdote, este o
examinará e se verificar que a enfermidade se tornou branca, declarará puro o enfermo: Está
puro” (Lv 13, 14-16).
Observe-se que o ensinamento dos sacerdotes diz respeito essencialmente aos
limites estabelecidos entre o sagrado, a justiça que vem dos desígnios divinos e o profano,
parte que cuida da administração da cidade; no entanto, a sua competência estende-se a toda
lei: “E isto sempre que tiverdes de separar o sagrado e o profano; o impuro e o puro e quando
ensinardes aos israelitas todos os preceitos que Iahweh estabeleceu para vós, por intermédio
de Moisés” (Lv 10, 10-11). Segundo Dt 21,5: “Depois aproximar-se-ão os sacerdotes levitas,
pois foram eles que Iahweh teu Deus escolheu para o seu serviço e para que abençoem em
nome de Iahweh, cabendo-lhes também resolver qualquer litígio ou crime”.
107
CONCLUSÃO GERAL
Na verdade, o povo de Israel trouxe consigo muito dos costumes e normas que
vigoravam no Egito, além de resguardar hábitos que se fixaram em outros corpos legais como
o de Hammurabi, por exemplo. Como já observamos, é provável que tenha existido uma lei
consuetudinária que guardou princípios semelhantes difundidos no antigo Oriente Médio.
Como vimos em Hammurabi, o rei estabelecia as normas que seriam obedecidas por todos em
nome do modelo da paz determinado. Assim ocorre uma simples imposição da vontade do rei
sobre os habitantes daquele território, o que não era questionado na época. Com efeito
constituía motivo de orgulho e sensação de segurança o estar submetido a um governante que
dirimisse os conflitos ou aplicasse as sanções devidas no caso de violação de direitos ou
ofensa aos deuses.
A legislação israelita distinguia-se dos outros códigos orientais, pela humanidade
de suas sanções. Uma mutilação corporal era exigida em casos especiais, Dt 25, 11-12; a
flagelação era limitada a quarenta açoites, “Fa-lo-á açoitar quarenta vezes, não mais; não
aconteça que, caso seja açoitado mais vezes, a ferida se torne grave e o teu irmão fique
aviltado a teus olhos” (Dt 25,3). Algumas disposições protegiam o estrangeiro, o pobre, o
oprimido, a viúva, o órfão e até o inimigo pessoal, Ex 22, 20-26; 23, 4-9; Dt 23, 16-20.
Também eram generosas as isenções do serviço militar, Dt 20, 5-8. A pena de talião era
estritamente aplicada em um único caso: o homicida culpado deve morrer e não pode ser
resgatado, o que é plenamente justificado por uma razão de ordem religiosa:
Não aceitareis resgate pela vida de um homicida condenado à morte, pois ele
deverá morrer; também não aceitareis resgate por alguém que, tendo se
refugiado na sua cidade de refúgio, quer voltar a habitar a sua terra antes da
morte do sumo sacerdote. Não profanareis a terra onde estais. O sangue
profana a terra, e não há para a terra outra expiação do sangue derramado
senão a do sangue daquele que o derramou. Não tornarás impura a terra onde
habitais e no meio da qual eu habito. Pois eu, Iahweh, habito no meio dos
israelitas” (Dt 35, 31-34)
.
Esta relação da lei com a religião, destinava-se a proteger a Aliança, castigava de
forma muito severa as faltas contra Deus, idolatria e blasfêmias e as que maculavam a
santidade do povo escolhido, por exemplo, bestialidade, sodomia, incesto. Na Aliança, temos
uma série de preceitos que foram outorgados por Deus e apresentados por Moisés à
obediência do povo. Se o alcance do Decálogo é bem mais amplo, isso não invalida o fato de
ter sido instituído de conformidade com o projeto de Deus e sujeitado o povo as suas regras.
108
Analisando as características da lei israelita, Roland de Vaux em sua obra
Instituições de Israel no Antigo Testamento, observa que existem semelhanças entre as
coleções legislativas do Antigo Testamento e os tratados orientais, que costumam começar
com uma exposição histórica, às vezes bastante longa, que recorda os antecedentes da
Aliança. Vê-se em Dt 5, 1-6 a promulgação do Decálogo apresentar-se no mesmo estilo do
preâmbulo do Código de Hammurabi, já anotado anteriormente:
Moisés convocou todo Israel e disse: Ouve, ó Israel, os estatutos e as
normas que hoje proclamo aos vossos ouvidos. Vós os aprendereis e
cuidareis de pô-los em prática.
Iahweh nosso Deus concluiu conosco uma Aliança no Horeb. Iahweh não
concluiu esta Aliança com nossos pais, mas conosco, conosco que
estamos hoje aqui, todos vivos. Iahweh falou convosco face a face, do
meio do fogo, sobre a montanha. Eu estava então entre Iahweh e vós,
para vos anunciar a palavra de Iahweh, pois ficaste com medo do fogo e
não subistes à montanha. Ele disse:
Eu sou Iahweh teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa
da escravidão.
Ao final encontramos as maldições lançadas sobre aquele que não respeitar a Lei:
Se não cuidares de pôr em prática todas as palavras desta Lei, escritas neste
livro, temendo este nome glorioso e terrível – “Iahweh teu Deus” -, Iahweh
ferirá a ti e à tua descendência com pragas espantosas, pragas tremendas e
persistentes, doenças graves e incuráveis. Voltará contra ti as pragas do
Egito, que te horrorizavam, e elas se apegarão a ti. E ainda mais: Iahweh
lançará contra ti todas as doenças e pragas que não estão escritas neste livro
da Lei, até que sejas exterminado (Dt 28, 58 – 61).
No Código de Manu vemos algo semelhante:
Art. 736. Se um Ksatriya se entrega a excessos de insolência para com
Brâmanes, em toda a ocasião que um Brâmane o castigue, pronunciando
contra ele uma maldição ou uma conjuração mágica: porque o Ksatriya tira
sua origem do Brâmane.
É ainda Roland de Vaux, quem, no livro já citado, lembra que as normas hititas
determinam a leitura periódica do texto legal na presença do rei e de todo o povo. Do mesmo
modo, o Deuteronômio prescreve uma leitura pública a cada sete anos:
E Moisés ordenou-lhes: No fim de cada sete anos, precisamente no ano da
Remissão, durante a festa das Tendas, quando todo Israel vier apresentar-se
diante de Iahweh teu Deus no lugar que ele tiver escolhido, tu proclamarás
esta Lei aos ouvidos de todo Israel. Reúne o povo, os homens e as mulheres,
as crianças e o estrangeiro que está em tuas cidades, para que ouçam e
aprendam a temer a Iahweh vosso Deus, e cuidem de pôr em prática todas as
palavras desta Lei. E seus filhos que ainda não sabem ouvirão e aprenderão a
temer a Iahweh vosso Deus, todos os dias em que viverdes sobre o solo do
qual ides tomar posse ao atravessardes o Jordão (Dt 31, 10-130).
109
A constante leitura das leis era uma importante ação à época. Como os textos eram
praticamente inacessíveis à grande maioria da população a leitura pública reavivava a
memória e equivalia quase a uma nova promulgação – ou reafirmação – do corpo legal. É o
que se vê em Ne 8,1-3:
- Ora, quando chegou o sétimo mês – os filhos de Israel estavam assim
instalados em suas cidades-, todo o povo se reuniu como um só homem na
praça situada defronte da porta das Águas. Disseram ao escriba Esdras que
trouxesse o livro da Lei de Moisés, que Iahweh havia prescrito para Israel.
Então o sacerdote Esdras trouxe a Lei diante da assembléia, que se
compunha de homens, mulheres e de todos os que tinham o uso da razão.
Era o primeiro dia do sétimo mês. Na praça situada diante da porta das
Águas, ele leu o livro desde a aurora até o meio-dia, na presença dos
homens, das mulheres e dos que tinham o uso da razão: todo o povo ouvia
atentamente a leitura do livro da Lei (Ne, 8, 1-3).
O Livro da Lei, diz o texto, foi prescrito pelo Senhor a Israel. No anúncio das
penas encontramos duas tendências na aplicação das sanções: os crimes que representam uma
afronta ao Senhor são castigados de forma muito mais severa que as ofensas praticadas contra
os homens. Apenas em caso de homicídio premeditado se vê a possibilidade de aplicação da
pena de morte, uma vez que nos demais casos pode haver uma garantia de intocabilidade do
agente ativo se este buscar abrigo nas chamadas “cidades de refúgio”. Ali o “vingador do
sangue” nada poderá fazer contra ele. Crimes que não chegam a perturbar claramente a vida
do povo, como a idolatria, blasfêmias, ou atos que agridem a santidade do povo tornam-se
particularmente merecedores de severas punições por contrariar os desígnios da natureza. Na
realidade as leis da Aliança colocavam em questão a adesão do homem ao projeto de Deus.
Isso fica evidente, e contribui para a compreensão do erro cometido por parte do homem que
violou a norma, no fato de que a Lei ao justificar no seu corpo a razão da prescrição, mostra
quão desviante foi a conduta. Em suma, a Lei confrontava a ação humana com o querer de
Deus.
O rei não possuía qualquer autoridade para mudar a Lei. Na realidade os textos
não revelam qualquer intenção de legislar. Sempre se vê a afirmativa de que a “Lei do
Senhor” deve ser obedecida. Salomão e Davi pautavam suas decisões pelas normas divinas,
assim como os anciões nas portas das cidades decidiam as questões sempre levando em
consideração nos seus julgamentos os mesmos princípios que vinham sendo transmitidos
geração após geração, na fidelidade da palavra.
Verifica-se que para o povo da Bíblia, a Lei é recebida no conjunto do dom da
Aliança que une o Senhor ao seu povo. Nesta percepção, ela torna-se a Torá, aliás, o termo
mais comum para designar a Lei no judaísmo, onde estão incluídos todos os códigos que
110
Israel herdou de sua história. A partir daí as leis definem quer as relações entre israelitas, quer
a relação com Deus (Dt 4, 1-2.8.10-14). A Lei é dada representando a atualização da Aliança.
Veja-se a passagem da descoberta do livro no templo de Jerusalém, na época do rei Josias,
manifestando este laço entre a Torá -Lei e a Torá-Aliança. O livro encontrado não é apenas o
Livro da Lei (2Rs 23, 25), mas também o Livro da Aliança (2Rs 22, 8-13). Ainda, uma
observação: o que é lido no Livro da Lei não é somente um texto legislativo ou jurídico, mas,
sobretudo, a narrativa dos atos do Senhor em favor do povo eleito, pois a Lei fora da Aliança
seria puro legalismo.
A Lei da Aliança reveste-se de especial significado para àquele povo. Como
afirmou Fustel de Coulanges em sua obra A Cidade Antiga, direito e religião se confundiam
formando um todo, a lei surgiu desse modo apresentando-se por si própria, brotou como
conseqüência direta e necessária da crença professada pelos homens: era a representação da
própria religião, aplicada às relações dos homens entre si. Afirmava ainda, o já citado autor,
que o autêntico legislador, entre os antigos, nunca foi o homem, mas a crença religiosa de que
o homem era portador.
A religião profética de Israel é uma religião fundada, não uma religião de cultura
nobilitada pela inteligência e pelo sentimento religioso. Começa com uma personalidade
histórica, Moisés, cuja importância é reconhecida por todos os estudiosos das religiões. É da
religião, portanto, a base do processo de desenvolvimento do povo, mola do aprimoramento
de seus valores. Parte dela a estrutura das suas instituições e criações. A religião não foi a
justificativa específicamente utilizada para validar a autoridade do rei ou a legitimidade das
suas leis, como um estratagema político. Tal concepção que teve sua origem na Grécia e que
chegou aos nossos dias não se aplica a história do povo escolhido. É lógico que a fé no Senhor
foi decisiva, porém como construção e reforço das concepções morais e legais no povo de
Israel. Isso porque sua cultura, moldada por rígidas exigências de comportamento, firmou as
condições fundamentais para que ela não fosse efêmera e mudasse em pouco tempo, como
ocorreu com outros povos, que perderam os traços marcantes de sua personalidade e foram
absorvidos por outros graças à adoção de costumes estrangeiros.
Sob uma liderança forte, o trabalho de efetivação da nova sociedade que se
instalava em uma terra designada pelo próprio Deus, foi realizado de forma coletiva, capaz de
envolver definitivamente o espírito de fraternidade que os irmanava. Difícil imaginar desvios
comprometedores quando os homens estão unidos e regulados em torno de uma religião que
para eles é o único caminho que os conduz ao encontro das benesses prometidas. Como
salienta Peter Berger em O Dossel Sagrado, uma vez que haja ocorrido a construção do
111
universo de um povo, ajudando a fixar uma cultura, os institutos, e as relações interpessoais,
os valores assentes assumem uma existência que ultrapassa o poder dos seus criadores. Os que
lhes deram vida não mais podem simplesmente retirá-la, o mundo instituído passa a exercer a
sua força dentro dos seus limites.
Na verdade, os homens submetidos às estruturas que criou, tornam-se dependentes
e sentem-se culpados em caso de transgressão às normas que ele fixou. Isso significa que as
leis que o homem acatou e que regem a sua vida e a sociedade na qual está inserido impõem-
se a todos. No caso específico do povo judeu a religião professada foi o grande suporte de
uma força sagrada existente fora do homem e que se ligando a ele, na promessa da Aliança,
coloca a vida em uma ordem política que possui significado próprio.
O mundo sagrado, tornado próximo no Sinai, ligou-se no compromisso declarado
por Deus de conduzir o povo, se lhe fosse fiel, a terra prometida, cujo último patamar era a
perfeição celestial. Comprometendo e obrigando o povo a manter a fidelidade a religião ela
foi condução indispensável para a construção de sua cultura, seu mundo e leis que o rege.
Visto por outro lado, a religião professada pelo povo judeu foi ponto máximo do
desenvolvimento da sociedade do direito em Israel.
Na realidade, houve uma grande influência do judaísmo para a sociedade
moderna, não apenas por alguns princípios do Direito Natural, que foram recepcionados pelo
Cristianismo, mas principalmente por toda a sua ideologia no que diz respeito ao conceito de
direito, de justiça, à noção de ética, conseqüência de seus grandes ideais, relativos ao direito
de família, ao direito civil, ao direito penal, ao direito do trabalho, ao direito ambiental e
tantos outros institutos presentes no ordenamento jurídico do Estado Contemporâneo. Não
obstante, todos esses preceitos elevados, subestima-se a contribuição do Direito Judaico na
evolução da sociedade. Costuma-se fazer derivar o direito ocidental do direito romano,
acrescentando-se a influencia do velho direito germânico, mas poucos falam do direito
bíblico, que teve sem dúvida, uma influência decisiva na evolução de todo o direito ocidental.
À vista do exposto, pode-se concluir, que apesar do caráter inorgânico da legislação de Israel,
que apresentou variações de acordo com o ambiente e o tempo, as suas relações são muito
mais estreitas com a vida religiosa do que com a vida civil. A lei israelita, em que pese, todas
as semelhanças de forma e de conteúdo, difere radicalmente dos artigos e das cláusulas dos
“Códigos” orientais; ela é uma lei religiosa, que faz com que os israelitas proclamem com
orgulho as palavras do Deuteronômio: “E qual a grande nação que tenha estatutos e normas
tão justas como toda esta Lei que eu vos proponho hoje?” (Dt 4,8).
112
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