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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA – PRAC
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
VANIA MARIA FERREIRA SILVA
MORTE: CREPÚSCULO OU AMANHECER?
A CRISE ANTE A MORTE E A RECONFIGURAÇÃO DA IDENTIDADE
RELIGIOSA DO ADULTO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
RECIFE
2008
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO
PRÓ-REITORIA ACADÊMICA – PRAC
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MORTE: CREPÚSCULO OU AMANHECER?
A CRISE ANTE A MORTE E A RECONFIGURAÇÃO DA IDENTIDADE
RELIGIOSA DO ADULTO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Dissertação de mestrado apresentada
à Universidade Católica de
Pernambuco como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.
Linha de pesquisa: Campo Religioso
Brasileiro Cultura e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Alencar
Libório.
RECIFE
2008
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VANIA MARIA FERREIRA SILVA
MORTE: CREPÚSCULO OU AMANHECER?
A CRISE ANTE A MORTE E A RECONFIGURAÇÃO DA IDENTIDADE
RELIGIOSA DO ADULTO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Dissertação de mestrado apresentada à
Universidade Católica de Pernambuco
como parte dos requisitos para a
obtenção do título de Mestre em
Ciências da Religião.
Linha de pesquisa: Campo Religioso
Brasileiro Cultura e Sociedade.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Alencar
Libório.
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________________
Prof. Dr. Luiz Alencar Libório (Orientador)
_____________________________________________________
Prof. Dr. Gilbraz de Souza Aragão (UNICAP)
____________________________________________________
Prof. Dra. Giselda Brito Silva (UFRPE)
RECIFE
2008
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Glauber e Amanda,
verdadeiros cirineus nesta minha
caminhada.
Queridos, tenho consciência de que
se não fosse a contribuição de vocês, na
forma como puderam se doar, eu não
teria conseguido concluir esta tarefa, que
me pareceu tão rica, mas também tão
árdua.
Creio que este trabalho representa
uma semente que poderá germinar no
íntimo de vocês, ajudando-os nas suas
existências rumo à evolução.
AGRADECIMENTO
Ao professor Libório, meu
orientador: sou profundamente grata por
sua atitude de confiança e respeito ao
meu ritmo e estilo de caminhar, aspectos
fundamentais na realização deste
trabalho. Que Deus o abençôe, sempre!
A todos que estiveram comigo nesta
jornada, minha sincera gratidão.
Neste momento, visualizo as bênçãos
divinas envolvendo a todos vocês, de
modo geral e, a cada um em particular. É
o que posso lhes ofertar de mais precioso,
nesta ocasião.
A você, Lucy, um agradecimento todo
especial! Você, inúmeras vezes,
funcionou como um verdadeiro anjo,
iluminando meus caminhos, às vezes tão
tortuosos.
Agradeço a Deus por ter podido
contar com o apoio de cada um de vocês!
UM PEDIDO DE PERDÃO
À você, Ana Flávia, minha afilhada
querida, por ter me mantido tão distante
por tantos anos... Quando você ler a
introdução deste trabalho, compreenderá
o quanto a sua história reverberou em
mim. Talvez a sua dor e de toda a sua
família, tenha sido o estímulo maior para
a minha caminhada psico espiritual.
Que Ceomar e Zeca, sejam
abençoados, onde estiverem, neste
momento.
RESUMO
A presente dissertação tem como objetivo geral identificar pensamentos e
sentimentos das pessoas ante a morte, buscando compreender como esta crise
interfere na identidade religiosa do adulto. O trabalho visa identificar como a crise
ante a morte interfere na reconfiguração da identidade religiosa dos adultos
pesquisados bem como averiguar se dentre os sentimentos elencados surgem
medos relacionados à morte e a situação pós-morte. Esta pesquisa usa a
abordagem qualitativa dos dados, sobretudo por não se pretender generalizar
resultados. A partir desta perspectiva, utiliza-se o todo fenomenológico, com o
propósito de identificar os significados dos sentimentos vividos pelos adultos, diante
da crise ante a morte. Para alcançar os objetivos propostos, o instrumento da coleta
de dados é a entrevista semi-estruturada, baseando-se em duas perguntas
norteadoras. A amostra consta de doze sujeitos com idade entre cinqüenta e quatro
e noventa anos que se declaram pertencendo à religião católica, espírita,
evangélica, sem religião definida e alguns que se auto-atribuíram denominações
religiosas novas, criadas no momento da própria entrevista. Com os dados em
mãos, faz-se a análise qualitativa das vivências e representações, buscando
delimitar e descrever fenomenologicamente o conteúdo das entrevistas em unidades
de significados, confrontando-as com as teorias embasadoras. Os resultados das
análises demonstram que os adultos que vivenciam uma situação de crise ante a
morte, tendem a questionar os seus valores religiosos, desenvolvendo algumas
atitudes que se refletem em um movimento de reconfiguração de suas identidades
religiosas: uns retraindo-se, distanciando-se ou rompendo completamente com os
laços afetivos que os ligam as instituições religiosas de origem, outros, de modo
contrário, aproximam-se e intensificam as suas relações com suas instituições ou
grupos religiosos. E ainda outros, afastando-se fazem do seu lar, um lugar sagrado e
passam de um tipo de fé herdada, para um tipo de pessoal, íntima, que se reflete
no seu cotidiano, donde se pode concluir que o confronto com a morte, ocasiona
uma crise de natureza psicoespiritual.
Palavras-chave: morte, crise, identidade, identidade religiosa, envelhecimento,
visão psicoespiritual
ABSTRACT
The present report has the objective to identify thoughts and feelings of people
toward death, searching to understand how this crisis interferes in the adult religious
identity. The essay aims to identify how crisis facing death interferes in the religious
identity reconfiguration of researched adults, as well as, to find out if among those
feelings there is a fear related to death and the after death situation. This research
uses a qualitative approach of data, once, one does not intend to generalize results.
It is used the phenomenological method from this perspective, to identify the
meaning of feelings undergone by adults due to death crisis. We collect data from
semi-structured interviews with two main questions for the proposed objectives. The
sample is of twelve persons from 54 to 90 years old, that say to be Catholic Spirit,
Evangelic, no defined Religion and some self-defined with new religious
denominations, created at the moment of the interview. The qualitative analysis of
experiences and representations is carried out with the data seeking to delimitate
the interview content phenomenological description in meaning units, to confront
them with based upon theories. The results of the analysis show that adults go
through crisis situation when facing death, they tend to question their religious
values, developing attitudes that are reflected in their religious identity
reconfiguration: some of them withdrawing themselves or completely breaking the
affective ties that link them to their religious institutions, others, differently, get closer
and intensify ones relations with those institutions or religious groups. And others at
home have a holy place, going from the inherited faith to an inner faith, that it is
reflected in daily life, so, one can conclude that, an existential crisis happens, when
facing death.
Key Words: Death, Crisis, Identity, Religious Identity, Psycho-Spiritual View,
Existential Crisis.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................10
1 OBJETIVOS E METODOLOGIA ...................................................................18
2 VISÃO PSICOSSOCIAL DA MORTE............................................................24
3 O ENVELHECIMENTO: Oportunidade de Amadurecimento Integral.......31
4 DIMENSÃO PSICOESPIRITUAL DA MORTE...............................................41
4.1 A MORTE À LUZ DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL.........................41
4.2 A MORTE NA PERSPECTIVA DE ELIZABETH KÜBLER-ROSS..........62
5 RELAÇÃO ENTRE O MEDO DA MORTE E A ESCATOLOGIA...................76
5.1 O MEDO DA MORTE NA PERSPECTIVA DE RENOLD BLANK..........76
5.2 MEDO E CULPA: pilares a serem desconstruídos?..............................92
5.3 UM NOVO OLHAR SOBRE A ESCATOLOGIA.....................................96
5.4 A PERDA DO MEDO DA MORTE E SUA RELAÇÃO COM A EQM....102
6 REVISITANDO AS ENTREVISTAS - UM OLHAR METODOLÓGICO .......112
6.1 CASO LISETE......................................................................................112
6.2 CASO ALCIDES...................................................................................123
6.3 CASO DOLORES.................................................................................130
6.4 CASO LUZIA........................................................................................136
6.5 CASO EDITE........................................................................................144
6.6 CASO REBECA....................................................................................159
6.7 CASO AMON........................................................................................168
6.8 CASO LEÔNIA.....................................................................................177
6.9 CASO BELITA......................................................................................186
6.10 CASO ANA.........................................................................................194
6.11 CASO PAULO....................................................................................202
6.12 CASO RUTH......................................................................................202
7 ACERCA DA IDENTIDADE RELIGIOSA DOS ENTREVISTADOS............207
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................216
REFERÊNCIAS...............................................................................................220
APÊNDICE: QUESTÕES NORTEADORAS DA ENTREVISTA.....................228
10
INTRODUÇÃO
Exatamente nesse momento, em que nos dispomos a introduzir e justificar o
tema deste trabalho, chega-nos à mente lembranças muito antigas. Como parecem
se adequarem bem, vamos deixá-las emergir e torná-las parte deste texto. Aos
dezessete anos, nos identificávamos como sendo capazes de escutar, de modo
empático, as pessoas que tinham perdido seus entes queridos. Tanto é que
desistimos de ir a um passeio à Bahia, com nossa turma de colégio, um sonho
dourado de toda jovem adolescente em conclusão de curso, optando por ficar ao
lado de uma colega da turma, que havia perdido, apenas dois dias, num trágico
acidente, seu namorado que, justamente, antecipara sua vinda para poder despedir-
se dela, num gesto visível de carinho. Esta atitude surpreendeu a todos, pois não
éramos nem muito amigas, ela era apenas uma colega querida. Porém, no íntimo,
estávamos apreensivas imaginando a dor e solidão daquela colega, se ficasse,
naquele momento tão crítico, apenas com a sua mãe, (era filha única, de pai
falecido), que suas duas melhores amigas de turma estavam realmente decididas
a ir ao passeio.
O tempo passou e um outro acontecimento também nos marcou fortemente: o
falecimento de uma amiga, no momento em que trazia à luz seu bebê. O mais
trágico, porém, ainda estava por vir: alguns dias depois, o recém-nascido e seus dois
irmãos, ficaram órfãos, também do pai, que veio a falecer, em conseqüencia do
impacto da perda.
As crianças foram acolhidas amorosamente por uma tia recém-casada, que
veio também a falecer algum tempo depois, vítima de um choque elétrico, quando
fazia limpeza em sua geladeira. Essas crianças, que foram morar com os avós,
bem idosos, alguns anos depois vieram também a perdê-los, felizmente, não os dois
de uma vez, mas com intervalo mínimo suficiente para possibilitar uma razoável
elaboração do luto.
A história dessa família, apesar de um tanto incomum, fala das dores, da
angústia e do desespero que podem ser geradas num contexto de perdas,
principalmente se forem sucessivas. O que nos faz lembrar, por associação de
11
alguns trechos de um livro do rabino Harold Kushner (1988), que também, quase em
desespero por conta da morte de um filho, de apenas catorze anos, encontrou em
Deus forças suficientes para fazer do seu sofrimento lancinante, algo que pudesse
servir de incentivo para todas as pessoas que passaram ou que venham a passar
por situações extremamente dolorosas: escreveu o livro “Quando coisas ruins
acontecem às pessoas boas”.
Na sua referida obra, perguntas dilacerantes, que ele nos diz terem
emergido dos corações e mentes daqueles que sofreram um tipo de crise dessa
natureza. “Por que eu?” “Por que Deus foi deixar que isso acontecesse logo
comigo?” “Por que acontecem coisas ruins a pessoas boas?”
Enquanto as religiões buscam respostas e tentam apresentar explicações
cabíveis a partir dos princípios doutrinários que as norteiam, a nós, psicólogos, cabe-
nos o papel de acompanhar e dar suporte tanto àqueles que ficaram quase sem
energia, alienados do seu próprio potencial, quanto aos que emergiram da situação
de perda, desejosos de prosseguir em sua caminhada, mas carentes e em busca de
forças, incentivo e orientação para a jornada existencial que precisarão dar
continuidade. Provavelmente, indagações acerca do sentido da vida estarão
presentes no coração daqueles que percebem a morte como situações trágicas.
O morrer, como qualquer outro aspecto da vida, acontece num contexto social
e, portanto, está intimamente relacionado à dinâmica político-econômico-social de
um povo. No Brasil, por exemplo, até meados do século passado, a morte, mesmo
acontecendo a pessoas jovens, era, de modo geral, percebida com uma certa
reverência pela grande maioria das pessoas, como se estivesse ali implícita a
vontade do Pai, do Ser Criador e mantenedor do universo. Porém, com o processo
de dessacralização, nossa sociedade passou a ver, sentir e agir de modo bastante
diferente em relação a muitos aspectos, inclusive a morte. Esta perspectiva
psicossocial será abordada no segundo capítulo.
Nos tempos atuais, em que a desconstrução parece ser a característica
predominante da nossa cultura, o ser humano tem se mostrado mais sensível e mais
frágil, vivendo, talvez, o momento mais agudo do seu desamparo. Os valores éticos
em questionamento, os religiosos em franca “desconstrução” parecem marcar o fim
12
das certezas e a identidade, neste contexto, deixa de representar estabilidade e
passa a ser encarada por muitos, como metamorfose. O sétimo capítulo delineará,
mesmo que timidamente, essa nova tendência no sentido de apontar alguns
aspectos em comum entre os entrevistados, numa tentativa, inclusive, de identificar
algumas atitudes que nos sinalizam a presença de um movimento transformador em
suas identidades religiosas, a partir de suas vivências ante a morte. Estivemos
atentas para perceber como os sentimentos vividos por nossos entrevistados, ante a
morte, repercutiram em suas identidades religiosas, ou seja, uma reconfiguração no
modo de viverem a sua religiosidade.
Se “ficamos de olho” nesse aspecto, é porque supúnhamos que a morte,
apesar de um fenômeno natural, inevitável e inerente à condição humana, representa
um fator gerador de crise e, conseqüentemente, de desorganização na vida das
pessoas envolvidas, logo esperávamos que algumas transformações significativas
tivessem ocorrido também no sistema de crenças e religiosidade dos nossos
entrevistados, provocando reconfigurações em suas identidades.
Na verdade, todo aquele que está sensível para escutar em profundidade a
dor humana, pelo menos em nossa cultura, sabe o quanto parece tênue a linha de
demarcação entre a fé e a descrença em Deus, entre o amor e a revolta que
geralmente se mesclam e alternam num jogo ambivalente e perigoso que caracteriza
uma crise para a maioria daqueles que se confrontam com a situação de morte,
porém, para os mais preparados, um jogo em que, ao final, saem ganhando em
termos de experiência e amadurecimento. O terceiro capítulo desta dissertação,
tratará do tema morte relacionando-o às pessoas que se encontram no
“entardecer” de suas existências, no sentido de que a crise do envelhecimento pode
ser representada também como uma oportunidade de amadurecimento
psicoespiritual.
Todavia, não podemos esquecer que o processo de amadurecimento requer
tempo, e enquanto as feridas saram, é comum - em nossa cultura - que o homem
tome uma atitude de distanciamento ou de revolta, remoendo no seu íntimo goas
e ressentimentos. O que dizer, por exemplo, a uma criança prestes a morrer, ou aos
pais de uma outra que nasceu trazendo ao mundo uma bagagem genética repleta
de dificuldades, cujo prognóstico é o pior?
13
Certas questões são difíceis demais de serem enfrentadas e, por isso,
geralmente são reprimidas, a partir de um sistema de defesa do nosso próprio
psiquismo; pois, normalmente, perdas inesperadas, em nosso contexto cultural, por
serem sentidas como profundamente dolorosas, tendem a desorganizar o sistema de
crenças das pessoas envolvidas e, quase sempre, geram crises de proporções
inimagináveis. No sexto capítulo apresentaremos as reações das pessoas às suas
perdas, através da análise das entrevistas, que foram sistematizadas em categorias,
a partir dos significados pessoais expressos e captados por nós. Tivemos o intuito de
tornar evidente a magnitude e a peculiaridade dos sentimentos vivenciados pelas
pessoas envolvidas com situações relacionadas a perda por morte.
O método usado nesta pesquisa foi o fenomenológico, que buscou captar o
significado ou o sentido da experiência vivida pelos doze sujeitos entrevistados, que
nesta pesquisa estão na faixa etária entre cinqüenta e quatro (54) e noventa (90)
anos, sendo dez do sexo feminino e apenas dois do sexo masculino, que se
declaram pertencendo à religião católica, espírita, evangélica e sem religião definida,
cuja denominações foram construídas no momento da entrevista. Por exemplo, uma
delas se denominou como católica-espiritualista, outra cristã espiritualista e ainda
outra se assumiu como o pertencendo a nenhuma religião institucionalizada. Com
relação ao nível socioeconômico da amostra, seis pertencem a um patamar mais
elevado, cinco a um nível médio e apenas um está em um nível inferior aos demais.
Os níveis de instrução dos sujeitos entrevistados nesta pesquisa, se apresentaram
diretamente relacionados ao nível socioeconômico destes.
Nesta pesquisa o lidamos apenas com pessoas que se confrontaram com a
morte no plano real, tanto é que algumas delas afirmaram ter passado por uma
situação de morte, e dela retornaram, justificando que, clinicamente, foram
consideradas mortas pelos profissionais que as socorreram. Embora saibamos que
este tipo de experiência (hoje chamada de Experiência Quase Morte EQM) não é
ainda considerada cientificamente como uma experiência real, para efeito desta
pesquisa isso não teve relevância, pois se nosso objetivo geral foi identificar a partir
das vivências das pessoas, seus pensamentos e sentimentos ante a realidade da
morte, buscando compreender como este tipo de crise interfere na identidade
religiosa do adulto, no nosso entender, não diferença significativa se alguém
14
entrou em crise por conta de uma situação de morte real ou imaginária, o essencial é
que a pessoa identifique o que se passou com ela, em nível subjetivo, quando se
percebeu diante da morte. Supomos que, aquele que ler o primeiro capítulo deste
trabalho dissertativo, terá mais clareza acerca do que acabamos de expor, inclusive
dos critérios e princípios norteadores desta pesquisa (metodologia).
Mas voltemos a falar da nossa condição de humanos, da nossa finitude e da
nossa capacidade empática que não nos permite ficar incólumes ao drama que se
passa com aqueles que estão a nossa frente, desnudando suas almas, mostrando-
nos suas feridas abertas e tateando em busca de apoio e de sentido para sua
tragédia particular. Somos afetados sim, pela dor do outro. Como não lembrar do
desespero de uma mãe que, ao perder seu filho de dois anos de idade, depois de
uma luta desperadora na UTI, questionava-se ardentemente sobre o sentido da vida,
da morte e do sofrimento?
Como esquecer a dor de uma outra que, tendo perdido um filho, já adulto,
assassinado, dizia abertamente que não queria de forma alguma esquecer seu filho,
muito pelo contrário, fazia questão de guardar as lembranças dele, muito vivas
dentro de si mesma, como se fosse a única forma de mantê-lo presente?
Lembramos ainda, bem vivamente, das expressões de angústia e da absoluta
impotência que sentia uma mãe desesperada, tentando, a todo custo, encontrar
explicações para a perda trágica do seu filho, numa noite de revéillon. O seu
desespero parecia mesclar-se com decepção em relação a Deus, quando ela repetia
muitas e muitas vezes, um detalhe que para ela se tornou muito significativo: foi
exatamente naquela noite de revéillon, enquanto a maioria participava dos festejos
profanos, que ela ajoelhada, clamava aos céus proteção para o seu filho. Era visível
o seu olhar de tristeza e desencanto ao comentar: “como é difícil de entender que
justamente naquela noite, que eu implorava proteção, algumas horas depois, o meu
filho estaria assassinado.” A dor desta mãe e a decepção visível que se manifestava
é compreensível, se olharmos o seu contexto religioso: esta senhora pertence a um
segmento das igrejas evangélicas, cuja ideologia repassa a imagem de um Deus que
detém o poder, que é fiel e que livra os seus seguidores de todo o mal.
15
Cremos que estas e outras situações foram reverberando em nós, dando-nos
a nítida impressão de que quanto maior era a dor e o desespero, mais estavam
subjacentes questionamentos íntimos acerca da proteção divina. Todas essas
situações somadas às muitas que aqui não foram relatadas, iam como que tecendo,
naturalmente, o pano de fundo onde mais adiante se delinearia o tema desta
pesquisa.
Dentro desse contexto, houve uma outra situação em nossa caminhada
profissional que consideramos mais determinante na configuração dos temas morte e
religiosidade: no ano de 2000, fomos trabalhar com um grupo de idosos em uma
comunidade carente, e o que nos chamou a atenção foi o quanto aquelas pessoas
traziam com freqüência, ora de forma velada e ora claramente, os seus receios em
relação à morte.
Também o falecimento de um dos participantes mais queridos, teve a sua
quota de influência, quando mobilizando muito aquele grupo, levou-nos a
redirecionar nossas atividades, no sentido de incentivá-los a expressar mais
claramente seus sentimentos relacionados às perdas vividas ao longo de suas
vidas. Nesses encontros, muitas vezes, vinham à tona questões em relação ao
sentido da vida e ao destino inevitável de todos nós, a morte. Esta fase do grupo
representou um período de aprendizagem profunda para todos, inclusive para nós,
enquanto profissionais. Alguns estudiosos, entre eles, particularmente Carl Gustav
Jung, contribuiram com algumas reflexões acerca da crise da meia idade e da
velhice enfatizando a importância de acolher e refletir sobre as questões em torno do
sentido da existência, aspecto esse que procuramos contemplar no terceiro capítulo.
Com relação ainda ao grupo de idosos, a partir das atividades planejadas e
das que emergiram naturalmente, fomos identificando que, para eles, o medo da
morte tinha, entre outras causas, as crenças ou dúvidas relacionadas ao que
imaginavam encontrar após a morte. Esses medos de natureza escatológica
pareciam os mais instigantes e eram os que mais surgiam nas conversas que
aconteciam naturalmente entre eles, em meio às atividades que eram desenvolvidas.
Percebemos, também, que pessoas com idade mais avançada, numa faixa
etária em torno dos oitenta anos, viviam seus medos em relação à morte
16
(provavelmente iminente) de um modo disfarçado, brincando sempre uns com os
outros de um jogo criado por eles mesmos, onde o tema principal era o “julgamento”
e a “punição” e onde as palavras “condenado” e “salvo” emergiam freqüentemente
naquele contexto, cujo conteúdo manifesto era de natureza lúdica, porém apontando
para sentimentos fortes e enraizados de medo e culpa, tão antigos quanto as suas
próprias idades, já que não é mais estranho para nós, o quanto a socialização se fez
- desde a mais tenra idade - a partir de valores sociais tecidos em uma cultura
repressora e dominadora.
As coisas se passavam de tal modo que, quem estivesse de fora,
possivelmente não perceberia o sentido mais profundo de tudo que, naquele grupo,
estava sendo falado de forma velada, disfarçada em “brincadeiras”. O que nos
permitiu supor que o medo da morte, entre as pessoas mais idosas estivesse mais
relacionado com o medo das situações de “julgamento” e “punição”, tão propaladas
pelos ministros das mais diversas religiões, ao incutirem o medo do pós-morte,
tentando enfatizar a necessidade de salvação. Este tema será abordado no quinto
capítulo, onde serão expressas as idéias do doutor em teologia e filosofia, Renold
Blank, que faz uma análise da pesquisa realizada na cidade de São Paulo, no ano de
1995, sobre o medo religioso dos cristãos, identificando sua relação com a
escatologia e sugerindo um novo olhar que possibilite a troca de uma pedagogia
baseada no medo, por uma perspectiva de esperança.
Toda essa situação acentuou o desejo de compreendermos mais sobre o
processo de morte e sobre as questões relacionadas ao medo e à culpa em pessoas
já mais amadurecidas em idade.
Também serviu de incentivo para a concretização desta pesquisa, o fato de
termos confirmado algumas das nossas suposições, ao depararmo-nos com relatos
de médicos e tanatólogos, os quais expressaram o quanto é comum que pessoas
idosas e, principalmente, pacientes terminais, em nossa cultura ocidental e aqui no
Brasil especificamente, sofram tremendamente pelo medo causado por suas
fantasias e expectativas sobre a situação pós-morte. Tais temas serão aprofundados
no quarto capítulo, onde psicólogos transpessoais refletem, entre outros aspectos,
sobre a necessidade de que as pessoas, especialmente as bem idosas, possam ter a
17
sua disposição profissionais devidamente treinados para identificarem os seus
medos e os trabalharem numa perspectiva psicoespiritual.
Esperamos, a partir desta pesquisa, contribuir para que as pessoas - sejam
elas profissionais da área de saúde, ministros religiosos ou “cuidadores” -
sensibilizem-se no sentido de tomarem conciência de que aqueles que estão
próximos à morte necessitam ser escutados e compreendidos em profundidade, em
relação as suas ansiedades e medos acerca de suas expectativas sobre o momento
da morte e do pós-morte.
Que este trabalho também estimule os “cuidadores” psicoespirituais a
buscarem outras fontes de conhecimento e treinamento, que os preparem mais
profunda e efetivamente para suas funções.
Desejamos que a leitura desta pesquisa gere novas reflexões acerca do tema
escatologia, enfatizando a influência cultural na construção do medo. A escatologia
cristã, a partir da perspectiva que enfocamos, precisa ser revisitada e seus princípios
básicos analisados à luz das novas perspectivas científicas. Esperamos que os
dados aqui apresentados e analisados sirvam de estímulo para que outros trabalhos
de pesquisa venham contribuir de um modo mais abrangente e profundo para a
compreensão deste tema.
18
1 OBJETIVOS E METODOLOGIA
Esta pesquisa teve como objetivo geral identificar pensamentos e sentimentos
(representações) das pessoas ante a morte, buscando compreender como essa crise
interferiu na identidade religiosa do adulto. Baseamo-nos no paradigma de pesquisa
qualitativa onde o objetivo é considerado como produto da subjetividade humana e,
portanto, perpassado de valores e emoções.
Nesta pesquisa adotou-se o método fenomenológico por considerá-lo mais
apropriado para a investigação dos fenômenos ligados ao humano, visto que este
método tem como propósito apreender os significados das experiências humanas.
De acordo com as idéias de Amatuzzi, os estudos que se interessam pela
compreensão do “vivido” e de seus significados correspondem à pesquisa
fenomenológica. Para ele, este tipo de pesquisa designa “o estudo do vivido, ou da
experiência imediata pré-reflexiva, visando descrever (ou explicitar) seu significado;
ou qualquer outro estudo que tome o vivido como pista ou método” (AMATUZZI,
1996, p. 05)
Para Forghieri, as pesquisas fenomenológicas que se utilizam de dados
empíricos e que buscam captar o significado ou o sentido da experiência da pessoa,
se constituem a partir de dois momentos interrelacionados: o envolvimento
existencial, no qual o pesquisador procura sair de uma posição intelectualizada a
respeito dos dados e deixa fluir espontânea e intuitivamente sua própria vivência
acerca destes, no sentido de compreendê-los de uma maneira global, pré-reflexiva; e
o distanciamento reflexivo, no qual o pesquisador, após desenvolver uma
compreensão pré-reflexiva, reflete sobre esta compreensão e descreve o sentido
produzido por ela em sua vivência. Porém, diz Forghieri: “o distanciamento não
chega a ser completo; ele deve sempre manter um elo de ligação com a vivência, a
ela voltando a cada instante, para que a enunciação descritiva da mesma seja a mais
próxima possível da própria vivência” (FORGHIERI, 1993, p. 60)
Atualmente, dentro do contexto histórico social em que vivemos, não se pode
manter a ilusão de que é possível, ao investigar o humano, apreender a realidade
como tal ou a verdade das situações. O ser humano possui uma rie de
19
características, em um grau de complexidade que está muito além dos fenômenos
naturais, o que dificulta uma compreensão mais global do homem a partir dos
parâmetros das ciências naturais, principalmente se for levado em consideração a
natureza do tema desta investigação.
Diante da necessidade urgente de mudanças no âmbito das ciências
humanas, Martínez acredita que os termos “leis”, “medidas”, “variáveis”, deverão
passar por redefinições; que as explicações causais, as análises deverão
complementar-se com explicações motivacionais, funcionais e intencionais e, “com
explicações que se relacionem com o ‘significado’ que têm as coisas e as ações para
o ser humano” (MARTíNEZ apud CHAVES, 1998, p.39)
Considerando as dificuldades no emprego dos parâmetros da ciência clássica
para a investigação do humano, Martínez (apud CHAVES, 1998, p.37) propõe um
resgate da filosofia humanista como base para construção de uma metodologia
científica adequada aos interesses daqueles preocupados com o estudo dos
aspectos que são próprios do humano: sentimentos, desejos, aspirações,
subjetividade etc.
De acordo com acima exposto, nesta pesquisa que empreendemos para efeito
da coleta dos dados desta dissertação de mestrado, o referencial metodológico foi o
fenomenológico, pois o consideramos mais apropriado para investigação do estudo
sobre o fenômeno morte, relacionando-o à questão da configuração e reconfiguração
da identidade religiosa das pessoas cronologicamente maduras, ou seja aquelas que
já ultrapassaram os 45 anos.
a) Amostra
A amostra constou de doze (12) sujeitos com idade entre cinqüenta e quatro
(54) e noventa anos (90), que se declararam pertencendo a religião católica, espírita,
evangélica e sem religião definida, sendo dez do sexo feminino e dois do sexo
masculino. Nesta pesquisa, os sujeitos da amostra, não foram selecionados
considerando as variáveis: sexo, nível de instrução, nível sócioeconômico ou religião,
pois já no projeto foi considerado como fundamental apenas que as pessoas a serem
20
entrevistadas estivessem motivadas, ou seja, dispostas para falar de modo pessoal
e subjetivo sobre o tema morte e religiosidade.
b) Instrumento de Pesquisa
Entrevista semi-estruturada de natureza fenomenológica.
c) Material utilizado
Gravador e fita K7.
d) Procedimento
1)Acerca dos sujeitos
Foram entrevistados doze (12) sujeitos, em horário e ambiente escolhidos por
eles próprios, que apresentaram as condições mínimas necessárias para que a
entrevista acontecesse de um modo adequado e que na medida do possível não
houvesse interrupções ou presença de terceiros, objetivando facilitar o processo de
rapport e um estabelecimento de um certo nível de confiança. Houve apenas um
caso em que a entrevista surgiu naturalmente a partir de uma situação inesperada
(ver caso Paulo e Ruth), onde fugindo ao previsto, o primeiro momento da entrevista,
aconteceu com um casal e o segundo momento, apenas com a esposa.
Na ocasião foi solicitado que os sujeitos lessem e assinassem o termo de
consentimento, bem como, se pediu permissão para que as entrevistas fossem
gravadas, com a garantia previa do nosso sigilo profissional.
2)Acerca da coleta dos dados
21
A coleta dos dados foi feita através de entrevistas, com tempo livre, mas que
geralmente se previa de antemão, aconteceria em torno dos 60 minutos. A entrevista
foi gravada num ambiente de privacidade, depois transcrita, digitada e,
posteriormente, lida várias vezes, antes do início da análise dos dados. Visando
alcançar os objetivos propostos, utilizou-se, como dissemos, uma entrevista do
tipo semi-estruturada, iniciando-se com a primeira das duas perguntas disparadoras:
Como você percebe a morte?”. Num momento, quando se fez necessário, foi
introduzida a segunda questão, que supomos estar intimamente ligada a primeira:
Como a sua vivência relacionada a morte interferiu ou vem interferindo na sua
identidade religiosa?
Ao opção de usar a entrevista do tipo semi-estruturada, não foi escolhida por
mero acaso. Ela, no nosso entendimento, adequou-se muito bem a natureza do
objeto pesquisado e, segundo Haguette, nos possibilitou o uso de outras “fontes e
vieses, tanto por parte do entrevistador e do entrevistado, como da própria situação
interativa entre os dois” (HAGUETTE, 1999, p. 89). Foi escolhida também porque,
segundo ele, poderia possibilitar a nós, como entrevistadores, estar atentos, tanto às
opiniões, como as atitudes e valores pessoais dos entrevistandos, do mesmo modo
que, ao seu estado emocional e as suas expressões não-verbais. Esse tipo de
pesquisa nos favoreceu bastante no sentido de que possibilitou uma ampla liberdade
tanto para os entrevistandos, como para nós, como entrevistadora. Liberdade esta
que gerou uma atmosfera de espontaneidade, confiança e profundidade. Aqueles
que se interessarem em ler as entrevistas na íntegra (ver apêndice), provavelmente
poderão constatar como as perguntas desencadearam reflexões, discussões sobre
vários aspectos e temas que nem supúnhamos viriam à tona, gerando uma
conversação rica e fecunda, que afetou e mobilizou não apenas o entrevistando, mas
também a mim como pesquisadora.
Com relação às contradições se surgiram nos depoimentos, veio a
confirmar os posicionamentos de Haguette (1999), quando afirma que as
contradições não invalidariam os depoimentos, muito pelo contrário, poderiam ser
consideradas como importantes pontos ou “pistas” a serem pontuadas pelo
entrevistador, no sentido de possibilitar a obtenção de material mais profundo ou
significativo.
22
Consideramos, também, muito interessante constatar o quanto as orientações
e experiências de Haguette, foram confirmadas à medida que íamos realizando as
entrevistas. As contradições, realmente, ajudaram a pontuar a refletir junto com os
entrevistados, levando-os, muitas vezes, a identificaram aspectos não reconhecidos,
até aquele momento, como fazendo parte de sua própria subjetividade.
Certo tempo depois, encontros ocorreram, de modo informal, com alguns dos
entrevistados ou parentes, os quais nos sinalizaram o quanto as entrevistas os
tinham mobilizado e os transformado em alguns aspectos. Realmente as omissões,
os lapsos de memória e as contradições, funcionaram quase sempre, no momento
das entrevistas, como verdadeiros catalizadores de emoções, possibilitando
“insights”, descobertas preciosas tanto para o entrevistado, quanto para o
entrevistador, o que supomos representar algo construtivo como objeto de estudo e
intervenção psicossocial.
3)Revisitando e analisando os dados
Foi realizada a transcrição integral das entrevistas, tentando-se delimitar e
descrever fenomenologicamente o conteúdo das entrevistas em unidades de
significados e foi produzida uma síntese final do sentido de cada entrevista, como um
todo.
Os dados da entrevista foram submetidos a uma sistematização de análise
dentro da perspectiva fenomenológica de depoimentos de acordo com a proposta de
Mauro Amatuzzi (1996), pesquisador do Departamento de Psicologia da UNICAMP,
que segue os seguintes passos:
a) Sentido do todo, que consiste em uma compreensão global, por parte do
pesquisador, do conjunto do depoimento. Fizemos uma primeira apreensão
do sentido mais global dos significados pessoais, íntimos vividos e
demonstrados na entrevista, referentes ao tema central da pesquisa.
23
b) Divisão da entrevista em Unidades de Significado, ou seja, consideramos
separadamente trechos das entrevistas que revelaram cada um dos diferentes
momentos ou temas da experiência em questão.
c) Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado, onde
procuramos apreender aspectos da experiência vivida, no momento da
entrevista pelos participantes (sujeitos): seus sentimentos, atitudes e
expectativas, presentes em cada unidade de significado. (Para facilitar a
apresentação da análise dos dados, estes dois pontos b) e c) – foram
descritos conjuntamente, de tal modo que cada unidade de significiado,
devidamente ilustrada com a fala do participante, encontra-se acompanhada
de sua respectiva descrição fenomenológica).
d) Síntese Específica de Cada Entrevista sintetizando os significados
apreendidos através da referida experiência de entrevista, para cada
participante entrevistado, procurando responder as questões norteadoras
desta pesquisa: Qual é a percepção, ou significado da morte para você? E, de
que modo, a crise ante a morte interferiu ou vem interferindo na
reconfiguração da sua identidade religiosa?
24
2 VISÃO PSICOSSOCIAL DA MORTE
Conta-nos o historiador João José Reis (1998) que aqui no Brasil, a imperatriz
Leopoldina, esposa de D. Pedro I, morreu cercada de gente. A agonizante” reuniu
todos os seus criados e numa cena comovente, como era de costume, segundo o
relato, indagava “a cada um deles se os havia ofendido, ao que eles respondiam
negativamente derramando lágrimas sinceras” (p.92).
Era bastante comum, entre os que estavam preparando sua alma para a
“última viagem” reconhecerem publicamente, através dos testamentos, os seus
pecados e tentarem por meio de “bens materiais” atenuarem suas culpas. Muitos
foram os senhores, donos de fazendas ou de engenho do interior do Nordeste
brasileiro, que nos últimos dias de suas vidas, reconheceram filhos ilegítimos que
tinham gerado com suas escravas. Conta-se que um poderoso e temido coronel,
Garcia d’Ávila Pereira do Aragão, conhecido como um dos mais temíveis
torturadores de escravos que apesar de casado não teve filhos legítimos, e cinco
meses antes de sua morte, ao elaborar seu testamento, reconheceu sete filhos,
naquela época considerados “bastardos” (ilegítimos), tido com duas de suas
escravas.
Uma outra situação de pecado bastante comum e para a qual se buscava
estar “limpo” na hora da morte era o “amancebamento” como era chamado naquela
época, no interior também do Nordeste brasileiro e para o qual sempre se tentava
dar um jeito para legitimar. Por exemplo: consta em documentos da época (1812),
que Francisco de Meira casou-se com Cecília Maria do Sacramento, sua ex-escrava,
depois de terem vividos juntos por dezesseis anos. Tão forte era o preconceito da
época, que este cidadão sentiu necessidade de deixar explícito em seu testamento,
que se assumia aquela escrava, como esposa legítima, era por desencargo de
consciência.
Como se vê, é possível se constatar, a partir desses dados históricos, que no
contexto social daquela época, era o próprio indivíduo que administrava o seu fim, ou
seja, tudo que se relacionava às questões que giravam em torno da sua morte
iminente. A tradição popular considerava esse tipo de morte, quando o indivíduo era
25
senhor de seus últimos desejos, como uma “morte bonita”. Mas, diz-nos João José
Reis (1998), que morrer desse modo implicava um esforço de toda comunidade; a
morte não podia ser vivida na solidão. A solidariedade era considerada um dever
cristão, naquela época, tanto em algumas regiões brasileiras quanto também
européias, como em Portugal, por exemplo, de onde recebíamos influência cultural
direta.
Em muitas regiões do Brasil, até as primeiras décadas do século passado, era
importante, mais que isso, fundamental se morrer acompanhado. Sempre se podia
contar com pessoas dispostas a cuidar do moribundo enquanto que outros, às
pressas, iam em busca do pároco (sacerdote católico) para receber a “extrema
unção”. Sempre havia aqueles que cuidavam de, às pressas, elaborar um testamento
onde o moribundo, entre um suspiro e outro, ditava seus últimos desejos. Isso era o
mínimo esperado que acontecesse para que a morte fosse considerada “digna”.
Porém, o comum e o ideal era o moribundo morrer em meio a um verdadeiro
“cortejo” de pessoas ansiosas e solidárias.
O historiador Hildegardes Viana (apud REIS, 1998, p.101), nos diz, por
exemplo, que ao primeiro sinal de que alguém estava “se ultimando”, os vizinhos
vinham reunir-se ao agonizante e sua família. As mulheres se lançavam a muitas
tarefas, cozinhando, lavando, fervendo e passando roupa para o doente, costurando
sua mortalha. Ajudavam também no tradicional banho de água misturada à cachaça
e álcool, também ajudavam no abanar (não havia ventiladores nem muito menos luz
elétrica) e a mover o enfermo na cama. Em meio à fumaça de incenso, os homens se
reuniam na sala e a conversação, geralmente, girava em torno dos assuntos
relacionados à doença e morte.
Outro aspecto relevante do qual nos fala Viana (apud REIS, 1998, p.101) é
que havia um tipo de “reza” (oração) chamada “ofício da agonia” que era uma forma
clara e direta de “encomendar” aquela alma hesitante e temerosa, ajudando-a no
seu desligamento com as coisas deste mundo. Testemunhamos certas práticas do
cotidiano em torno da morte, bem semelhantes às descritas pelos historiadores
acima citados. Lembramos que, nos anos sessenta do século passado, ao contrário
de hoje, não se tentava ocultar do doente que o seu fim estava próximo, pelo
contrário, a cada sinal que o enfermo emitia, quando interpretado pelos que
26
cuidavam dele, como sinal do seu momento final, chamava-se imediatamente o
pároco para a extra-unção. Conta-se até histórias engraçadas em torno de
sacerdotes, que por terem ido algumas outras vezes atender moribundos
“resistentes”, já iam pela estrada cheios de má vontade para com os agonizantes que
resistiam ferrenhamente a se entregar “aos braços da morte”, e então os parentes,
sem combinação prévia consciente, se reuniam e passavam a orar, em um tom
mais elevado, as preces destinadas exclusivamente para o momento da morte.
Talvez funcionasse como aquele “empurrãozinho” necessário que a mãe imprime
ao filho, no primeiro dia de aula de sua vida, quando a criança hesita em separar-se
dela.
A extrema-unção era um sacramento da Igreja Católica destinado aos
enfermos para ser aplicado no momento de sua morte. A igreja assim explicava a
sua função: “auxílio na hora da morte, em que as tentações do inimigo costumam ser
mais fortes e perigosos, sabendo que tem pouco tempo para nos tentar”. (REIS,
1998, p. 103). O sacramento perdoava os pecados pendentes, culpas esquecidas
durante a confissão. Mas não eram todos os padres que estavam autorizados a
administrá-lo, o pároco e alguns ajudantes devidamente treinados poderiam
deixar a igreja e sair rumo à casa do enfermo. Assim preparado, num estilo de
procissão o grupo religioso levava a comunhão eucarística “como previsão espiritual
e mística da viagem para eternidade”. (REIS, 1998, p. 104)
Nos anos sessenta do culo passado, tempo em que era costume que o
pároco, acompanhado de dois coroinhas (garotos que ajudavam, devidamente
paramentados, os padres) e mais um cortejo de pessoas pertencentes àquelas
irmandades da Igreja, passassem pelas ruas da cidade, a pé, no estilo de procissão,
cantando hinos e se dirigindo à casa dos doentes, levando até eles a Comunhão e
dando a Extrema-Unção àqueles agonizantes. Nos anos setenta, apesar de
estarmos na mesma cidade, já não percebíamos mais a mesma cena. Havia
mudado a igreja? Ou estavam mudados os enfermos? Certamente o contexto sócio-
cultural era outro. Hoje, passamos a refletir o quanto as crenças de um povo estão
perpassadas de valores socioeconômico-culturais, e como a forma de se perceber a
morte e o morrer refletem também o sentimento religioso de um povo que, por sua
vez, espelha o seu momento histórico-político-social prenhe de valores culturais.
27
De acordo com os textos de Reis (1998), aconteceram no período de 1836
drásticas mudanças na legislação que ditava as regras que norteavam o estilo de
cultuar os mortos, tanto na França, como na Inglaterra e em outras regiões da
Europa. As mudanças nas leis acabaram por influenciar também o nosso estilo aqui
no Brasil.
É Phillipe Ariès (1982), quem mostra com minúcias, em sua obra o Homem
Diante da Morte, inúmeros dados acerca do tema morte, dados estes estudados e
comentados por outros historiadores, inclusive por Reis (1998). Tais dados nos
interessam diretamente por se tratarem de aspectos relacionados à cultura da Bahia,
estado com costumes muitos semelhantes aos de Pernambuco.
Diz-nos Reis (1998, p.106) que os padres baianos, ao assistirem os seus
moribundos, se orientavam por manuais vendidos pelos livreiros da Bahia. Tais
manuais provinham da Europa, principalmente de Portugal. um deles, em
particular, o de autoria do Pe. Bernando José Pinto Queiroz, publicado em Lisboa
(1805), em que a hora da morte é explicada, ora com a imagem da Guerra, ora com
a imagem de um tribunal; e os padres são vistos como militares com o papel de
instruir e treinar a alma do moribundo para enfrentar um “combate” contra as forças
malignas. Ao bom combatente caberia estar munido das armas, que seriam os
“sacramentos”. Receber a “extrema-unção”, como dissemos, era de fundamental
importância, tratava-se de um ritual absolutamente necessário para se ter garantida a
possibilidade de se chegar até Deus. Morrer sem a extrema-unção era arriscar ser
condenado, mesmo sem ser julgado. Estes aspectos deixam evidentes o quanto os
nossos medos o construídos a partir de orientações e práticas reproduzidas pelo
sistema social, através das instituições, principalmente a família, igreja e escola.
Segundo Ariès (1982), houve uma época em que uma verdadeira
“manifestação social” acontecia já no quarto daquele que agonizava. Foi assim
durante culos. Uma atitude familiar e íntima com a morte por isso denominada de
“morte domada”, pois a morte era esperada no leito, numa espécie de “cerimônia
pública”, em que se reuniam parentes, amigos, vizinhos e até “curiosos”, pois a todos
era dado o direito de entrar no quarto. Lembramos, inclusive, de algumas cenas do
tempo da nossa infância: enquanto os adultos oravam, as crianças passavam
correndo em suas brincadeiras de esconde-esconde, evidenciando que os rituais de
28
morte aconteciam em meio a manifestações de tristeza e dor, mas sobretudo, num
clima de naturalidade. Era o destino que se cumpria, a morte era a única coisa de
certo que se tinha na vida.
O local da sepultura, na época Medieval, era nas igrejas, perto dos santos, o
que possivelmente alimentava no íntimo, tanto daqueles que partiam, como dos que
ficavam, sentimentos de calma e proteção. Supomos que isso não acontecia por
acaso, a igreja, através dos seus representantes, possivelmente desejava perpetuar
essa idéia de proteção, pois disso resultava muito lucro material. Era também
costume que os fiéis doassem, através dos testamentos, seus bens para sua
paróquia. E a igreja se comprometia a usá-los em benefício da alma do seu próprio
doador, celebrando missas para sua alma e fazendo doações em forma de caridade.
Estes aspectos descritos por Ariès, aconteciam aqui, no Brasil, até nos anos
sessenta do culo passado, pelo menos nas cidades interioranas. Porém, segundo
ele, assim aconteceu por muitos séculos até aproximadamente meados do século
XVIII, em todo o ocidente católico. Era “uma sociedade em que coabitavam os vivos
e os mortos, em que o cemitério se confunde com a igreja no coração da cidade”
(VOVELLE apud ARIÈS, 1977).
Foi na França do culo XVIII, justamente no “rastro do Iluminismo”, com o
avanço da idealização do racional, da laicização das relações sociais e da
secularização da vida cotidiana que uma nova atitude diante da morte e dos mortos
começou a se delinear. Ainda segundo Vovelle (apud ARIÈS, 1976), a partir do
século dezoito, teve início o processo de dessacralização, visivelmente perceptível
por conta da diminuição evidente do número de solicitações de missas, invocações
de santos, instruções para pompa funerária, etc. Afirma ele que o ritmo das
mudanças variou de região para região. Provavelmente ocorreu primeiro na França
(em Paris), espalhando-se por outras partes da Europa, chegando ao Brasil.
Segundo Reis (1998), foi na Inglaterra que a Reforma protestante interferiu
decisivamente no declínio da pomposidade dos funerais, do cuidado ritualístico com
os cadáveres, das preces que encomendavam as almas;, enfim, foi por conta do
movimento protestante que os rituais fúnebres - herdados da tradição católica -
tenderam a declinar a partir do século XVI. Para tanto, foi de fundamental
importância a doutrina reformista da predestinação que percebe Deus como Aquele
29
que decide sozinho quem são os seus eleitos. A partir desta nova visão, foi abolida a
idéia do Purgatório como estágio temporário da alma e, conseqüentemente, houve
um declínio considerável das solicitações de missas, bem como, da procura pelos
santos como intercessores. De fato a reforma protestante foi um movimento
altamente revolucionário, que provocou mudanças drásticas nos costumes religiosos
da época. Calvino criticava duramente a doutrina do purgatório, porque segundo ele,
servia para enriquecer os padres e a igreja e orientava os seus seguidores a lidar
com a morte e o morrer de um modo completamente diferente da igreja católica.
Nada de pompas, nada de orações desnecessárias e nada de extrema-unção. Todos
esses aspectos, até então considerados sagrados, passaram a ser vistos como
meras superstições. (p. 79)
A leitura e as reflexões acerca dos temas acima expostos, fez-nos perceber o
quanto as idéias reformistas parecem ter tido uma enorme influência também no
mundo católico, inclusive, influenciando a mentalidade popular.
O tempo foi passando, novos ventos, novos conflitos, novas idéias, dúvidas,
incertezas, resistências. Diferente dos tempos medievais e dos costumes típicos
predominantes até meados do século XX, a morte foi se tornando um assunto tabu,
algo vergonhoso, algo que precisa ser, a todo custo, evitado ou escondido. Diz Júlia
Kovács, em seus escritos sobre a morte e o morrer, que em nossa cultura a
sociedade atual tem banido a morte com a intenção de proteger a vida:
o grande valor do século XX é o dar a impressão de que nada
mudou”, a morte não deve ser percebida [...] A morte não é mais
considerada um fenômeno natural, e sim fracasso, impotência ou
imperícia por isso deve ser ocultada. O triunfo da medicalização está,
justamente, em manter a doença e a morte na ignorância e no
silêncio. (KOVÁCS, 1992, p. 38)
O desenvolvimento técnico-científico se impôs na vida moderna e a morte
passou a ser menos considerada. Possivelmente, isso não ocorra longe das grandes
cidades, onde se tem pouco acesso à cultura científica. Mas é fato que, cada vez
mais estamos nos distanciando dos rituais que, perdendo a sua força, apontam para
uma banalização da morte. não se morre mais como antigamente; não temos
30
tempo para a morte ou para morrer. Hoje em dia, por exemplo, existem sites de
morte online, onde se pode preparar todas as questões referentes ao próprio
funeral. Nesses sites pode-se deixar fotos, músicas de fundo, mensagens de
despedida e, inclusive, pagando-se uma taxa, ter o seu funeral exibido online. Quem
acompanhar o enterro poderá mandar suas condolências e receber imediatamente
um sinal do(a) finado(a), agradecendo o tempo despendido para o último adeus.
A desvalorização do mito da morte, fruto de uma cultura voltada muito mais
para a exterioridade e, sobretudo, baseada na razão e na tecnologia, deixa o homem
atual distanciado do que provavelmente Carl Jung chamaria de “movimentos
arquetípicos” da transformação. Se bem que a liberdade de costumes tenha nos
livrado, em grande medida, do peso opressivo das tradições, ao menos o
consenso de que nada tem sentido para que se repita, apenas porque assim era feito
no passado. Mas não vamos entrar no âmbito de dogmas e crenças religiosas, no
entanto, admitiremos que a ciência esclareceu-nos a respeito de diversos aspectos
antes à margem da realidade. algo que para muitos filósofos e psicólogos
contemporâneos parece grave: a ausência de questionamentos acerca do sentido
da existência humana e do nosso destino.
Se para muitos de nós, o homem não passa de uma criatura à imagem de
Deus e radicalmente diversa dos demais seres vivos, para outros, porém, no ser
humano uma dimensão espiritual a ser considerada. Ao longo deste trabalho,
abordaremos, predominantemente a morte dentro da perspectiva psicoespiritual, por
estar dentro do âmbito do Mestrado em Ciências da Religião.
31
3 O ENVELHECIMENTO: oportunidade de amadurecimento integral
Muitos estudos e pesquisas levam a crer que a maioria dos ocidentais prefere
pensar que o aparente caos que, geralmente, advém a partir da meia-idade, como
algo que só acontece com as outras pessoas ou apenas com personagens de filmes,
nunca conosco. Pórem, é na meia-idade e durante o processo de envelhecimento
que os problemas psicológicos subjacentes - muitas vezes inconscientes - “a busca
da inteireza” e a constatação da própria finitude são fatores muito fortes que, neste
momento de vida, quando também já se tornam visíveis em nossos corpos, os
primeiros ou muitos sinais do nosso próprio envelhecimento, tendem a nos inquietar
e nos levar a fazer indagações existenciais muito difíceis de serem respondidas. Por
isso, em nossa cultura ocidental, a transição da meia-idade e o início da velhice o,
geralmente, experiências humanas profundamente delicadas e inquietantes.
Com relação à meia-idade, Brehony nos diz que:
A maioria das pessoas sente alguma mudança física, de
relacionamento, ou profissional, durante os anos da meia-idade,
muitas das vezes sob a forma de um casamento infeliz, de casos
amorosos ou de divórcio; ansiedade que pode não ter uma fonte nítida;
depressão; insatisfação na carreira ou no trabalho; desilusão; ou
desespero. quem sinta esses sintomas em um nível muito intenso,
como uma verdadeira crise da meia-idade; outros evitam uma crise
plenamente desenvolvida, mas ainda assim notarão uma diferença
sutil de atitudes, sentimento e comportamentos. E ainda outros que
simplesmente se referem a um vazio que é ao mesmo tempo profundo
e inexplicável. (BREHONY
apud JUNG, 1981, p.81)
A partir das entrevistas aqui analisadas, da nossa experiência profissional,
bem como dos nossos relacionamentos de amizade e parentesco, evidenciamos que
questões de identidade pessoal são comuns surgirem, desde os primeiros sinais do
envelhecimento, entre homens e mulheres. Valores e metas que nunca foram
questionados tornam-se assunto de debate interior e, às vezes, em conversas
informais. É nessa fase que questões existenciais e, muitas vezes de natureza
psicoespiritual, que foram deixadas de lado por muito tempo, despontam na
consciência, gerando ansiedade e dor.
32
É, de modo geral, no início do processo de envelhecimento que o ser humano
começa a refletir mais profundamente sobre o sentido do viver e do morrer. Como
conseqüência, para muitos, este período parece estar sempre perpassado por
medos, dúvidas e inquietação de natureza existencial.
O que nos importa destacar nesse período inicial de envelhecimento, é que os
primeiros sinais de uma crise tendem a surgir como fruto do que denominamos de
processo de amadurecimento psicoespiritual. Tal processo, supomos acontecer em
outras fases do desenvolvimento do ser humano, alguns podem sentir essas
mudanças na adolescência ou aos vinte e poucos anos, outros podem não passar
por elas antes dos 60, 70, ou até mais. Mas, comumente acontece a partir da meia
idade, por uma série de fatores que tendem, nessa fase, a gerar reflexões acerca do
sentido da existência como um todo.
Lisete, por exemplo, confirmando nossas expectativas, aos setenta e cinco
anos, passa a viver de forma acentuada, uma crise existencial relacionada ao tema
morte. Foi por este motivo que nos foi trazida por uma de suas filhas que se
encontrava muito preocupada por ela não estar conseguindo conciliar o sono e
apresentar outros sinais de extrema sensibilidade, como por exemplo, chorando com
muita facilidade. Entre os seus sintomas, havia um outro que nos chamou mais
atenção, ela imaginava que não chegaria aos setenta e cinco anos, e quando isso
não aconteceu, ao invés de sentir alegre, passou a dizer que não chegaria aos
setenta e seis, sinalizando que possivelmente estaria vivendo uma crise relacionada
ao medo da morte. Na maioria de suas falas, ela demonstra um apego excessivo aos
filhos e netos, tanto é que, para ela, talvez o purgatório represente justamente a
possibilidade de ser impedida por Deus, por conta de seus pecados, de ter direito de
ir ao encontro dos seus entes queridos:
[...] Estou tremendo de tanto chorar porque tenho receio de ser, por
conta das minhas faltas, impedida de me encontrar com os meus pais
ou de nunca puder ver os meus filhos e netos aqui na terra. Isso me
causa tanto sofrimento que eu nem sei como vou suportar... Deus
mesmo, com sua graça... pode tornar isso suportável... (e o choro
aumentou). (Entrevista Lisete)
33
Do mesmo modo que Lisete, Alcides, aposentado, aos seus oitenta e oito
anos, sentindo-se fraco, inclusive fisicamente, relata: “Dra., com minhas pernas se
‘afracando’. Qualquer dia desses acho que vou morrer é de uma queda”, também
resiste ferrenhamente à idéia de morrer e sofre profunda e antecipadamente por
conta da possibilidade de se defrontar na situação pós-morte, com uma tremenda
solidão:
“Lá” (no além) ninguém se encontra com ninguém... ninguém se
encontra com pai, mãe, com filho, não essas amizade os filhos
não abraçam os pais não... Eles dizem que não se encontram não ...
(Entrevista 2, F. 22) o vou encontrar com meus filhos nem com
minha mãe... porque hoje sou homem mas com a reencarnação
posso nascer feminino... pode ser tudo trocado, ai no mundo
espiritual tudo é diferente a gente renasce diferente... e por isso
não para se encontrar... é tudo bem diferente... nem vai se
reconhecer... (Entrevista Alcides)
Lisete e Alcides pertencem à mesma religião, sendo ela católica praticante e
ele “católico-espírita” (não assume o seu lado espírita, mas o é de fato). Os dois
sofrem do mesmo medo (sofrem tremendamente por medo de não se reencontrarem
com seus entes queridos). Sentimentos de culpa e medo da solidão aparecem nas
falas de Lisete e de Alcides.
Como dissemos, crises existenciais podem ocorrer em qualquer fase do
desenvolvimento humano, porém, segundo o psicólogo Carl Gustav Jung, a grande
maioria das pessoas tende a experimentar essas mudanças e sintomas no período
da meia-idade, porque é neste período que o ser humano parece ir despertando,
pelo menos em nossa cultura ocidental, para a realidade de que talvez tenha
ultrapassado a metade da sua existência. Parece também ser a época em que a
circunstâncias do nosso viver nos pressionam mais fortemente, direcionando-nos a
um inevitável confronto com as múltiplas, conflituosas e cada vez mais complexas
exigências da vida, despertando e gerando, dessa forma, forças internas, tensões
psicológicas que nos impulsionam para amadurecermos e nos transformarmos.
É ainda Jung, que em um de seus artigos nos diz que o fato de sabermos que
um dia, com certeza morreremos, pode ser, e geralmente o é, entre nós ocidentais,
34
uma das descobertas mais desagradáveis e pode acontecer na infância, através
das perdas inevitáveis que qualquer criança tende a passar. Jung lembra-nos que é
nesta fase que:
[...] temos à nossa disposição inúmeros mecanismos de defesa do ego
para tirar a ardência da assustadora verdade... e durante
aproximadamente os primeiro 40 anos vivemos reconfortados pelo
pensamento de que a velhice está longe e a morte está distante
demais para merecer que nos preocupemos com ela. E então, de
repente, surge a percepção de que, afinal, não está tão longe assim
na verdade, está correndo na nossa direção. Esta tomada de
consciência da morte na meia-idade inclui a nossa própria morte
inevitável, ou a morte de alguém querido, mas não se restringe a ela.
Às vezes, a tomada de consciência da morte ou da perda é um
aspecto importante do Si-mesmo: a perda da juventude, a perda das
capacidades físicas, a perda de sonhos e ideais. No centro da crise, a
perda de quem pensávamos que fôssemos. (JUNG,
1981, p. 85)
Na perspectiva de Jung, momentos em que todos nós, seres em
desenvolvimento, sentimos a necessidade interior de “inteireza”. Como ao longo do
processo de socialização, com o intuito de nos tornarmos membros aceitáveis da
nossa cultura, bem depressa fomos desconsiderando partes do nosso eu, reprimindo
aspectos da nossa humanidade, que eram considerados inaceitáveis, lançando-os
para o nosso inconsciente pessoal, um lugar que Jung denominou de sombra”, se
justamente na fase da meia-idade denominada por Jung de “jornada rumo à
inteireza”, que somos convidados a abraçar aquelas partes de nós mesmos, há muito
tempo esquecidas. É, segundo ele, na meia-idade, por conta do nosso maior nível de
consciência em relação aos limites da vida, que somos a cada momento existencial,
de certo modo, pressionados a nos questionar sobre quem somos e para onde
vamos.
Indagações acerca do sentido da vida, da dor e do sofrimento são bastante
comuns nesta fase da existência; questões estas que tendem a se avolumar e se
aprofundar à medida que avançamos em idade. Belita, professora universitária
aposentada, aos seus setenta e cinco anos, exemplifica bem quando diz:
35
De início eu me censurei um pouco por ter sido radical, porém logo
percebi que com o passar da idade é que começamos a
questionar com mais profundidade o sentido da vida, do sofrimento e
da morte. Antes, a gente se rebela. A razão nos mostra que a
maioria dos ensinamentos religiosos são formas de manipulação,
porém com a consciência maior da nossa finitude, de quanto aqui é
transitório, a gente tende a se questionar sobre o sentido mais
profundo de se viver num mundo aparentemente tão caótico e
felizmente, como adoro ler, participar de debates etc., não fiquei no
lamento apenas e nem na antiga e legítima revolta, do meu tempo de
jovem. Hoje, felizmente, estou alcançando um nível maior de
sabedoria, e isso como é bom! Como me faz bem! (Entrevista Belita)
Leônia, psicóloga, cristã-espiritualista, cinqüenta e sete anos, assim como
Belita, acrescenta a esta pesquisa quando diz:
Lembro que estava próxima a fazer quarenta anos, quando passei a
questionar o sentido do sofrimento, o sentido de se morrer e o sentido
de se viver, e a partir destes questionamentos e das pesquisas que
fiz para compreender os próprios fenômenos especiais que estavam
acontecendo comigo, eu passei a ser uma pessoa de profunda
religiosidade aplicada ao meu cotidiano. (Entrevista Leônia)
Se na meia-idade, ainda repletos de forças e esperança em relação a alguns
sonhos ainda não realizados, alguns insistem em retardar o seu processo de
amadurecimento pessoal, permanecendo na superfície dos acontecimentos da sua
vida, seno período atualmente denominado, em nossa cultura, de “terceira idade”,
que estes forçosamente terão que se defrontar com a possibilidade da morte como
destino inevitável.
De acordo com a filosofia básica que permeia o pensamento de alguns
psicanalistas Junguianos, é a partir da meia-idade que as pessoas vão percebendo a
importância de ir promovendo mudanças no seu modo de viver que, certamente, as
tornarão, aos poucos, mais próximas daquilo que realmente desejam, no mais
profundo do seu ser. Leônia e Belita, por exemplo, estão em pleno processo de
transformação provocadas por suas próprias reflexões acerca da vida, da
espiritualidade e da morte. Leônia, em sua entrevista, nos diz que experiências
marcantes a mobilizaram antes dos trinta anos, mas que só quase dez anos depois é
que ela teve consciência de que “teria que ir além dos preconceitos e precisava
36
desvendar os mistérios que a vida [...] aponta”, como um convite a desvendar os
véus. (Entrevista Leônia) Do mesmo modo, Belita, que era evangélica e na juventude
tornou-se completamente descrente em relação ao divino; na maturidade, beirando
os cinqüenta anos, repassa a sua vida, ressignificando seus valores e se religando
ao divino, através de uma atitude profunda de confiança. Hoje, ela sente que é parte
integrante de uma rede invisível de natureza divina. Percebe-se como uma pessoa
profundamente religiosa, mesmo sem pertencer a nenhuma religião
institucionalizada.
Então, hoje eu ainda vivo entrando em contato com tudo o que me
chega, através de leituras, palestras, conversações, etc. Tentando
“depurar” e tirar dali o que eu, através das minhas reflexões e
intuições, percebo como mais importantes... Eu me “abri” a outras
realidades e, com isso, alarguei meus horizontes. (Entrevista Belita)
Ampliando a consciência, mudei conseqüentemente, a minha forma
de ver e sentir a vida e conseqüentemente a morte. (Entrevista Belita)
A tarefa de transformação não é algo linear e vai se processando, às vezes,
de um modo tão sutil e gradual que o idoso se surpreende ao perceber o quanto sua
vida tomou um rumo tão diferente do que havia imaginado. Outras vezes, porém, as
mudanças se impõem, exigindo uma reorganização interna e externa bem acima do
habitual. É que a crise irrompe e se faz necessário um apoio, uma mediação para
que, desse momento crítico, surja um ser mais amadurecido. Amadurecimento
implica desapego de muitas coisas que acabarão por definir, superficialmente, quem
somos. Tarefa árdua, essa do “desapego”, pois nosso ego tem grande dificuldade em
se desapegar de qualquer coisa, por isso, muitas vezes nos defendemos de ter de
perder esse senso de quem somos, com grande intensidade. Freqüentemente nos
recusamos a abrir mão da visão de que sempre tivemos de nós mesmos e do
mundo, apesar do fato de que muitos dos valores, ideais e auto-definições que nos
sustentaram, durante a primeira metade da vida, tornaram-se obsoletos e, muitas
vezes, antagonistas das realidades do resto da nossa existência.
Por isso, os dolorosos e assustadores sintomas que tendem, em nosso
contexto social, a ocorrer a partir da meia-idade são necessários ao crescimento do
indivíduo: pertencem ao desenvolvimento, estão latentes e são elementos
37
constituintes da personalidade e do Si-mesmo. As lutas internas mais profundas da
alma (do nosso Ser) pedem expressão urgente, ainda que essa expressão ameace o
nosso mundo e o nosso senso de identidade, geralmente bem estruturado. Daí que a
fase da meia-idade - com a consciência gradual da velhice - é considerada pela
psicologia junguiana, como a porta de entrada para as camadas mais profundas do
nosso ser, ou do nosso eu mais profundo. Amon, uma das nossas entrevistadas, de
nível socioeconômico elevado, com cinqüenta e cinco anos, professora e tradutora
de inglês, de origem católica, hoje, apesar de não pertencer a nehuma religião
institucionalizada, se autodenominando católica-espiritualista, vem ilustrar estas
considerações da psicologia junguiana, quando nos revela que, com o passar dos
anos, tornou-se uma verdadeira “andarilha”, transitando em vários lugares e
religiões, em busca de alargar seu horizontes e compreender as sua experiências
“especiais”, bem como as múltiplas dimensões da existência. Diz-nos ela,
textualmente:
Se fosse 35 anos eu acho que teria tremido dos pés à cabeça de
pavor!... ou talvez nem tivesse chegado a ver nada... mas, naquele
dia, eu, mesmo sabendo que era algo da outra dimensão, voltei com
toda naturalidade para o computador... fico sorrindo com estas
situações inusitadas. O tempo é o melhor dos mestres. Antes eu vivia
as experiências, mas não as processava... Hoje, amadurecida pelo
tempo e pela vida, assimilo tudo e vou, aos poucos, bebendo da água
da sabedoria. (Entrevista Amon)
Em nossa cultura ocidental, a grande maioria de nós tende a não reservar um
tempo livre para exercitar a introspecção ou algum outro tipo de vivência que nos
leve a algum modo de reflexão acerca do significado ou da falta de significado das
nossas vidas. Pouco ou quase nada sabemos sobre quem realmente somos,
estamos apegados demais aos papéis que desempenhamos na vida. Os sintomas da
meia-idade quase sempre representam um alerta, mas, no ritmo e movimento
frenético atual de nossa sociedade, com as constantes mudanças e descobertas
fantásticas da medicina, cada vez mais as pessoas de meia-idade tendem a não
perceber o alerta existencial que os seus sintomas representam e passam a buscar
avidamente os mais recentes produtos e recursos de rejuvenescimento, o que pode
ser bastante válido, esquecidos porém, de que tais recursos apenas efetivarão
38
mudanças em níveis mais superficiais, menos profundos de si mesmo, ficando
portanto aspectos muito mais essenciais do Ser a serem percebidos e trabalhados
de modo mais profundo. Tal tarefa parece ser algo mais desafiador e, por isso
mesmo, assustador. É preciso ter a coragem de ser, como nos dizia Paul Tillich
(1976), pois o processo de viver supõe dificuldades de nível cada vez mais elevado,
exigindo de nós coragem para nos abrirmos sem reservas ao fluxo da vida.
Carl Gustav Jung pode ser considerado um ser humano notável, por sua
invejável coragem e disponibilidade em sintonizar-se com os aspectos novos e
difíceis da vida. Foi na fase de meia-idade, que vivenciou uma profunda crise
existencial. Esta repercutiu profundamente em suas crenças e, sobretudo, na sua
produção literária, de natureza cientifica. As suas inúmeras obras representam mais
que um nível surpreendente de conhecimento, refletem também uma profunda
sabedoria, típica daquelas pessoas que tiveram a ousadia de mergulhar nas
profundezas de sua interioridade e fazer a si mesmas as indagações mais dolorosas
e difíceis a serem feitas em suas existências.
Foi em torno dos 40 anos de idade, que Jung passou por um período de
grande turbulência, denominado por ele de “uma experiência com o inconsciente”.
Na época, ele era muito bem-sucedido profissionalmente. O interessante é que,
aquilo que parecia “caótico”, ou até “psicótico”, depois representou um verdadeiro
ganho, uma autentica preciosidade na dimensão pessoal e profissional. A crise da
meia-idade de Jung afetou todos os setores da sua vida
Estava vivendo num constante estado de tensão. Muitas vezes me
sentia como se gigantescos blocos estivessem desmoronando sobre
mim. Um temporal seguia o outro. (JUNG, 1978, p. 38)
O que era previsto por Jung e faz parte dos seus escritos é a idéia de que
quase sempre nos encontramos inteiramente despreparados, quando “embarcamos
na segunda metade da vida”. Geralmente damos este passo com a falsa suposição
de que nossas verdades e ideais continuarão a representar “referências”, modelos
norteadores em nossas vidas. Mero engano, quase sempre ilusão! “Não podemos
viver ‘a tarde da vida’ de acordo com o mesmo programa da sua ‘manhã’, pois o que
39
foi grandioso pela manhã, será pouco à tarde, e aquilo que pela manhã era verdade,
à tarde se tornará mentira”. (JUNG, 1978, p. 42)
Pesquisadores junguianos vêem a fase da meia-idade como contendo um
potencial em ebulição, quase pronto para explodir. Mesmo que o controle da situação
crítica esteja sendo mantido, alguns sinais surgem e geram, pelo menos na maioria
das pessoas, em nossa cultura, ansiedades e medos, tanto na pessoa que vivencia a
crise, quanto naqueles que fazem parte do seu mundo pessoal. Felizmente, porém,
na atualidade, os profissionais de saúde esclarecem que na crise reside o
potencial do crescimento. “Crise” é palavra derivada do grego krinein, que significa
“discernimento”, “decisão”, ou “momento decisivo”, portanto, a vida nos ensina que
uma situação de crise plenamente vivida pode nos trazer elementos preciosos que
fomentarão uma possível e significativa mudança. Diz-nos também a cultura chinesa
que crise representa, em uma linguagem simbólica, as palavras “perigo” e
“oportunidade”; felizmente estes símbolos significam a verdadeira natureza da
transformação psicológica e, para muitos, também espiritual.
Na visão de Jung, bem como numa perspectiva antropológica e social, a crise
de meia-idade é uma espécie de “iniciação”, inevitável e fundamental no processo de
desenvolvimento, uma parte necessária da jornada rumo ao crescimento e ao auto
conhecimento do ser humano. Quando o nível de compreensão evolui e a tomada de
consciência se amplia naqueles que se encontram na fase de meia-idade e velhice,
podemos estar seguros de que neles, um ser humano emergirá realmente
transformado. Esta passagem pode levar a uma apreciação e expressão muito
maiores da nossa individualidade, a um enriquecimento do nosso eu psíquico e
espiritual e a um maior nível do sentimento de compaixão que gera,
necessariamente, uma maior conexão com a vida como um todo.
A maneira como cada pessoa emerge individual e coletivamente da crise da
meia-idade e da velhice, poderá produzir conseqüências a curto e longo alcance
sobre o futuro de cada um, no aspecto individual e social. Leônia, Amon, Belita,
Luzia, Ana, Edite, por exemplo, apesar de todo o sofrimento que tiveram que
enfrentar em suas vidas, estão hoje mais serenas, elas crêem que um sentido
construtivo subjacente à crise que viveram, e se sentem mais confortáveis com o
40
jeito mais pessoal de se posicionarem na vida, principalmente no que se refere à
dimensão religiosa.
41
4 DIMENSÃO PSICOESPIRITUAL DA MORTE
Este capítulo se divide em dois itens. No primeiro, poderão ser encontradas as
idéias essenciais de alguns psicólogos e tanatólogos em relação a questões ligadas
ao Sagrado, ao processo de morrer e a representações acerca da “jornada da alma”,
após o seu desenlace final. O segundo item relaciona-se à perspectiva da médica
psiquiatra, Elizabeth K-Ross, em relação à morte e ao morrer.
4.1 A MORTE À LUZ DA PSICOLOGIA TRANSPESSOAL
Desde a década de 60 do século XX, que a Psicologia vem recebendo uma
forte influência das disciplinas e práticas orientais; sabe-se que, desde esse tempo a
cultura oriental foi, não por acaso, contagiada pelas filosofias asiáticas. Coincide com
a época em que as técnicas corporais começaram a ser largamente utilizadas em
psicoterapia, na busca do relaxamento e, sobretudo, na liberação do prazer
sensorial. Esse passo foi de fundamental importância para que o ser humano fosse
valorizado, também no contexto de psicologia, em uma dimensão física; até então
havia uma supervalorização dos processos mentais (estudos, experiências,
conferências, sempre e apenas versavam sobre a psique, como dimensão
essencialmente mental).
Porém, nesse período dominava ainda a visão dicotômica, em que a
perspectiva cartesiana separava os processos mentais dos processos corporais. E,
assim, continuamos, por longo tempo, fazendo uma psicologia dualista, pouco
integradora. Era a época em que a maioria dos profissionais apenas trabalhava com
a psiquê no nível consciente e inconsciente, a partir do modelo psicanalítico clássico
e só alguns poucos - enfrentando as maiores dificuldades para serem valorizados em
seus posicionamentos e práticas profissionais, lidavam predominantemente com o
corpo numa tentativa corajosa de integração.
42
A psicóloga Eliana Bertolucci, PhD, que desenvolve atividades acadêmicas na
PUC-SP (1991), nos diz que uma grande parte das pesquisas sobre o humano
refletem uma perspectiva por demais “estreita”, no sentido reducionista, pois nelas o
homem é reduzido a condicionamentos, sua psique reduzida apenas a conteúdos
reprimidos, as relações interpessoais reduzidas à luta e conflitos e suas experiências
de transcendência o distorcidas, ou seja, são freqüentemente interpretadas como
produtos de níveis inferiores de consciência. Segundo ela, a racionalidade científica
tem empobrecido muito a “árvore da sabedoria”, à medida que “desenraiza” o
homem de características que ela considera essenciais.
Bertolucci nos convoca a “ressuscitar e validar as formas de conhecimento
reprimidos pela ciência atual, marcadamente materialistas. Apesar dos avanços,
apesar das transformações, o paradigma da racionalidade mecanicista domina
principalmente a nossa cultura ocidental. Esta visão de homem e de mundo
mecanicista perpassa, sem sombra de vida, todos os aspectos da nossa cultura,
inclusive a nossa forma de fazer ciência: tendemos a dar valor excessivo a atividades
classificatórias, racionalistas em excesso, rotulando abusivamente os fatos, numa
ânsia desenfreada de apontar causas e apresentar razões plausíveis. E nessa
supervalorização do “racional” terminamos por desprezar os aspectos não racionais
das nossas experiências de vida, e assim não conseguimos mais distinguir emoções
de sentimentos e deixamos de enxergar o crescimento e expansão da intuição como
algo de fundamental importância para o profundo desenvolvimento do ser humano.
Dentro deste clima de descaso pelos aspectos intuitivos do homem, acabamos por
nos embrutecer e nos “entrincheirar” num estilo de vida em que tendemos a julgar e
criticar tudo o que contrarie os nossos próprios pontos de vista, bem como nossas
arraigadas convicções filosóficas ou acadêmicas. No plano intelectivo, tais princípios
de vida nos levam a um apego excessivo aos modelos explicativos dos
fenômenos, como se o modelo fosse o fenômeno em si.
Concordamos com o posicionamento de Bertolucci, visto que a consciência é
o princípio fundamental, capaz de produzir o significado do mundo, pois ela se
apresenta de várias formas e aponta para a existência de um eu que transcende a
noção de eu estudado e aceito pela psicologia tradicional.
43
muitas formas de perceber, pensar, sentir. E a diversidade dessas formas
manifestam os diferentes níveis de consciência que podem ser reconhecidos,
estudados, ordenados e hierarquizados, para que não fiquem apenas no estágio de
“vivência subjetiva”. “Se ficarmos apenas ‘no interior’ da vivência, cairemos em um
excesso de relativismo e na ausência de um ponto de vista crítico que permita uma
correta avaliação das diversas formas de consciência...” (BERTOLUCCI, 1991, p.
20).
Ainda segundo o pensamento bertoluciano, existe uma hierarquização de
níveis de consciência. Os níveis superiores de consciência suplantariam os
inferiores, no sentido de incluí-los e transformá-los. Os níveis superiores de
consciência certamente teriam a ver com a idéia de sistemas mais abertos, mais
complexos e com uma perspectiva de completude. “Não dúvidas de que todas as
vivências e todos os atos da consciência são ‘verdadeiros’ e correspondem a
diversas realidades nos planos espiritual, mental e material. [...] A humanidade tem
um caminho de aperfeiçoamento a percorrer.” (BERTOLUCCI, 1991, p. 21) E a cada
grau que galgamos no desenvolvimento da consciência, mais amplo é o território
dentro do qual o sujeito podeir escolhendo sua forma de estar no mundo. A autora
também enfatiza a existência de uma consciência transcendental que enquanto
[...] experiência, é inalterável, ‘está sempre ali’, no eterno, agora com
dimensões infinitas... Ocupa uma posição superior entre as outras
modalidades da consciência, pois trata-se da experiência dentro de si
mesmo (Self), ao mesmo tempo que centro e fonte de toda a vida.
Nessa dimensão, todas as divisões são abolidas, não mais
separação entre sujeito e objeto, eu e o outro, tudo se apresenta
unido e a ausência de conflito e divisão aumenta muito a força
potencial do individuo. A vivencia desse nível superior de
consciência, mesmo por breves momentos, pode ser altamente
curativa, ampliando a capacidade de realização do sujeito em todos
os sentidos. (BERTOLUCCI, 1991, p.22)
Bertolucci nos chama a atenção para o fato de que estamos quase sempre
nos movimentando dentro dos limites estreitos dos automatismo. Mas, nós
poderemos, muito pelo contrário, expandir nossa criatividade a ponto de nos
44
tornarmos capazes de transcender as nossas limitações através de vivências
profundas, de vivências que se caracterizem por uma consciência mais expandida.
Segundo Bertolucci, somos seres carentes, angustiados pelo vazio de nossa
experiência, buscando alívio para a dor. Projetamos essa carência existencial, essa
falta ontológica, nas pessoas com quem nos relacionamos, bem como no trabalho. E
em relação aos nossos ideais, quase sempre sentimo-nos fragmentados e vazios. E
estamos buscando sempre a completude.
Na realidade o que estamos buscando é a profundidade de nós
mesmos. [...] é possível realmente a diminuição das carências
humanas se o homem elevar seu nível de consciência e
complementar-se com sua própria natureza divina. Do contrário será
eternamente perseguido pelo medo da perda, mesmo que tenha sido
bem sucedido em obter posições e objetos do mundo material e
esteja cercado de relacionamentos afetuosos. (BERTOLUCCI, 1991p.
37)
Bertolucci reconhece que a psicologia ocidental trabalha predominantemente
com o nível do ego, pois é algo extremamente necessário,
que se investiga e ajuda o outro a identificar a raiz e o
funcionamento dos seus sofrimentos e dos seus apegos. Não é
possível transcender determinado estado de consciência se esse
estado está, em parte, inconsciente para a pessoa que o vive [...] Por
outro lado, uma outra dimensão a ser considerada, trata-se da
perspectiva transpessoal que [...] vai além dos condicionamentos
sociais e da história pessoal de cada um. (BERTOLUCCI, 1991, p.37)
Assim, a dimensão espiritual precisa ser buscada à maneira de cada um e,
nesta perpectiva, o conceito de Deus não poderá ser impingido. Cada ser poderá ver,
sentir e vivenciar a divindade de uma forma muito particular, pois cada pessoa é
única e o divino está em todo o cosmo.
Esta é a perspectiva da psicologia transpessoal, que respeita e acolhe em
profundidade todas as formas de vivência do Sagrado, convidando a todos,
principalmente os profissionais da área de saúde, a inteirar-se das outras posturas
45
que configuram a dimensão espiritual da vida, acreditando que essa procura possa
abrir-lhes novos horizontes e, conseqüentemente, expandirem seus níveis de
consciência, considerando que a vida é um grande mistério e que sabemos muito
pouco a respeito, apesar do esforço e dos avanços que são marcas visíveis do nosso
tempo.
Carl Gustav Jung e Abraham Maslow comungavam dessas idéias no início
do século passado, e, por isso, são considerados personalidades que lançaram as
primeiras sementes de uma nova forma de fazer psicologia. Hoje, a psicologia
transpessoal é, felizmente, respeitada nos meios acadêmicos, apesar do
desconhecimento dos seus princípios, pela maioria.
Jung (1991) apesar de considerar a teologia uma tentativa de descrever uma
realidade transcendente, que também poderia estar aberta à discussão científica,
alertava-nos que devíamos estar atentos para o materialismo da ciência e o
dogmatismo religioso, como duas formas perigosas de limitar o homem na busca
necessária e profunda de compreender os fenômenos relacionados a sua existência,
como um ser de múltiplas dimensões.
Frankl (1989), assim como Jung (1991) e como Assagioli (1982), ao afirmarem
que o inconsciente não se compõe unicamente de elementos instintivos, culturais,
mas também espirituais, lançaram as bases de uma psicologia que enfatizava o
humano em toda sua complexidade.
Atualmente, com os estudos mais aprofundados, outros nomes surgem nesse
novo cenário, Pierre Weil (1989), D’Assumpção (1987), Tabone (1988), Capra
(1988), Stanislav Grof (1990), Wilber (1999), Wolger (1987), entre outros, que vêm
contribuindo de forma efetiva, através de estudos, pesquisas, palestras e obras para
que esse novo enfoque de abordagem da consciência contribua de modo mais
consistente para responder às indagações mais antigas e fundamentais do ser
humano, que giram em torno do sentido da vida e da morte.
Para Assagioli (1982), uma forma de entrarmos em contato com nossa
essência maior é nos indagarmos sobre quem somos nós. Pois, em sua opinião, foi
justamente por conta do desconhecimento de saber quem somos e qual nossa
verdadeira natureza, que se gerou esse medo da morte que faz parte estruturante da
46
nossa vida, pelo menos na nossa cultura ocidental.
Segundo D’Assumpção (1987), o lidar consciente com a morte conduz a um
questionamento a respeito do sentido ou significado da própria vida, um sentido mais
profundo relacionado à própria existência do homem. Mas a própria psicologia,
enquanto ciência e produtora de conhecimentos, tem falhado neste sentido, quando
tem considerada a dimensão espiritual apenas como uma mera sublimação da
sexualidade ou como um reflexo do desamparo do próprio ser humano. É inegável
que questões fundamentais venham sendo relegadas a um segundo plano e,
conseqüentemente, estão sendo deixadas de ser consideradas e devidamente
pesquisadas.
Maslow afirmava, mais de meio século, que a vida espiritual é parte da
essência humana e Jung, seu contemporâneo, dizia que o papel da dimensão
religiosa é dar significado à vida.
O fenômeno místico não tem pátria nem religião. É um fenômeno de
todas as culturas que tem como mestres espirituais, aqueles que
fizeram a grande viagem e tiveram experiências radicais, das quais
nasceram expressões religiosas, vigorosas até hoje. (MASLOW apud
JUNG, 1978, p.99)
Parece evidente que Jung não falava de religiões especificamente, mas de
religiosidade. A palavra religião tem sua origem no latim e significa “religar”, isto é,
indica-nos um movimento de ligação com o divino, do qual o ser humano se
distanciou. De acordo com algumas tradições religiosas, como o judaísmo, o
cristianismo e o islamismo, o homem ao se separar de Deus, sua alma teria se
desprendido da alma universal, mas, embora tenha se transformado num ser
dependente das paixões e dos desejos, esquecido de sua origem, ele continua a
trazer, em seu íntimo, o desejo de perfeição. O estado paradisíaco em que ele se
encontrava o está irremediavelmente perdido; subsiste nele a intuição da unidade
divina, que pode e deve ser recuperada. De acordo com a doutrina do sufismo, por
exemplo, o ser humano teria que despertar sua verdadeira natureza, possibilitando a
transcendência de um mundo finito para o infinito.
Porém, através dos tempos, as religiões vêm perdendo o sentido mais
47
profundo da verdadeira religiosidade ou espiritualidade, preocupando-se muito mais
com os aspectos externos, não essenciais, e esquecendo-se de se ligar com a
essência, com o sentido autêntico da verdadeira comunhão com a divindade.
Possivelmente, a nossa tarefa hoje seja tentar discernir os princípios norteadores
cristãos.
Tais distorções geraram superficialidades, sectarismos e animosidades tais
que, possivelmente, representem a causa da atitude de descrença que tomou conta
de muitos e que culminou na visão de mundo que caracteriza a ciência ocidental, na
qual a noção de espiritualidade é percebida como totalmente incompatível com os
princípios básicos da ciência, em que só o palpável e o mensurável são reais e todas
as formas de fenômenos místicos e religiosos parecem produtos de superstição,
irracionalidade e tendência ao pensamento mágico primitivo e onde as percepções,
vivências e experiências de contatos com a realidade espiritual são interpretadas
como manifestação de doenças mentais - pela psiquiatria e psicologia tradicionais -
por não saberem distinguir o verdadeiro misticismo da psicopatologia.
Felizmente, na atualidade, um número significativo de profissionais da saúde e
de outras áreas, através da visão transdisciplinar, vêm se esmerando no estudo e na
pesquisa, buscando justamente diminuir esse hiato e essas distorções que se
tornaram tão comuns e aceitas em nossa sociedade. Reconhecidamente, o físico
Fritjof Capra é um deles, pois vem contribuindo, surpreendentemente, para a
emergência de um novo paradigma em relação ao tema espiritualidade e religião, o
mesmo acontecendo com Stanislav Grof, o psiquiatra e pesquisador da consciência
humana. Ele oferece, através de suas pesquisas acerca dos diversos níveis da
consciência, uma nova cartografia da consciência, contribuindo para uma maior
consistência desse corpo sistemático de conhecimentos que hoje denominamos de
psicologia transpessoal.
Para Capra (1982), religiosidade é o encontro com o mistério da vida em um
contexto de ligação profunda com o universo, no sentido de pertencer, de estar
intimamente envolvido com uma realidade maior. Para Stanislav Grof (1990), a
religião é uma atividade grupal organizada que, necessariamente, não necessita
buscar a verdade sobre a espiritualidade, dependendo do grau em que ela
proporciona um contexto para descoberta interior da dimensão espiritual da
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realidade. Nesta circunstância, a espiritualidade pode ser definida como a atuação
dessa religião na vida diária, como um modo de ser que flui a partir da experiência
religiosa. Nessa perspectiva, a espiritualidade não requer necessariamente uma
estrutura formal, um ritual coletivo ou a mediação de um ministro.
Atualmente, como dissemos, contamos com outros cientistas, em sua
maioria estudiosos da física, que, tratando de assuntos tão complexos quanto
“consciência”, “vida” e “morte vêm realmente, ampliando nossos horizontes,
mudando concepções entender, parecia viver um quase completo e absurdo caos.
arraigadas e reacendendo uma centelha de esperança para um mundo que, no
nosso
Amit Goswami é um deles, e ao surgir como físico, emergiu também como um
ser realmente espiritualizado, renovando as esperanças e possibilitando a expansão
das consciências. Autor das obras: A Janela Visionária: um guia de iluminação por
um físico quântico (2003), Universo Autoconsciente (1997) e A Física da Alma
(2005), Goswami apresenta aspectos tão revolucionários que podem estremecer
alguns dos pilares das religiões tradicionais do ocidente, quando traz conceitos e
hipóteses pertinentes, a partir das pesquisas e premissas da física quântica.
Na obra A Física da Alma (2005), Goswami analisa o modelo de consciência
que inclui o que ele chama de “mônada quântica” e que pode agir como mediador da
“reencarnação”. Também responde afirmativamente à questão: é possível
desenvolver uma física da imortalidade? Além de responder a outras indagações
bem mais comuns, como: a morte representa o fim da vida? O que sobrevive? O que
acontecerá comigo, quando me for? Tentando responder a questões desta ordem,
com base na física quântica, Goswami nos envolve com um nível de conhecimentos
absolutamente novos e desafiadores que exigem estudo, reflexão e partilha de
natureza inter e transdisciplinar, porém um mínimo dos conhecimentos nesta obra
contida, nos revela que a “posição quântica” deste pesquisador nos abre para um
mundo de múltiplas possibilidades, algumas delas, até então inimagináveis, pela
maioria de nós, ocidentais. Reconhecemos que não temos condições de expressar
de forma “fisicamente” adequada as hipóteses e as afirmações desse eminente
físico, porém, o que percebemos como bastante significativo, é que ele faz
referências a muitos posicionamentos de vários yogues e filósofos orientais,
49
parecendo concordar com a maioria de seus posicionamentos em relação à morte e
ao pós-morte, inclusive nos alertando para a importância de começarmos, o quanto
mais cedo melhor, a prática da “yoga da morte”, pois “é preciso tomar cuidado ao
morrer. As possibilidades que irão aflorar em seus corpos sutis, quando você estiver
morto e inconsciente, vão depender do estado de sua consciência agonizante”
(GOSWAMI, 2005, p.233).
As idéias de Goswami reforçam a concepção de que precisamos revisitar e
refletir sobre as idealizações e expectativas em relação à morte e ao pós-morte e,
mais que isso, a dimensão espiritual do ser humano.
A dimensão espiritual, ainda tão pouco compreendida em nossa cultura
ocidental, precisa ser levada em consideração não pelas instituições religiosas,
mas sobretudo pelas instituições educativas e politico-sociais. Para Leloup, o ser
humano na perpectiva transpessoal é bem mais que um corpo. O ser humano
não é somente uma matéria ou uma mecânica, mas é também uma
alma e, cuidar dele, não é apenas cuidar do seu corpo, é também
respeitar sua alma. Nesta antropologia o homem é também um espírito,
existe nele uma dimensão que escapa ao espaço e ao tempo. Apenas o
que morre está no espaço e no tempo (LELOUP, 2001, p. 15)
Partindo da perspectiva transpessoal, mais uma vez referendada por Leloup
(2001), o trabalho do psicoterapeuta transpessoal não é apenas o de curar a
enfermidade, mas também e, essencialmente, o de capacitar o paciente a descobrir
e utilizar seus próprios recursos interiores, visando a um processo de cura ou de
amadurecimento espiritual. Dentro desta perspectiva, a morte não é encarada
como uma inimiga a ser vencida, pois durante o processo de cura do medo da morte,
o indivíduo é capaz de reconhecer a sua verdadeira natureza espiritual e, com isso,
vivenciar a morte como um processo “curativo”, ou seja, de profundo sentido. Assim,
diz-nos Leloup, é possível encontrar vida na morte, como um autêntico parto de luz,
um retorno do filho pródigo que, amadurecendo com a crise, transformou-se e
aprendeu a amar a si mesmo, à vida e ao outro.
50
Leloup (2001) nos diz que, na Europa, quando uma pessoa se encontra em
fase terminal, a tendência é acolher e satisfazer o desejo do paciente, que
geralmente dispensa os medicamentos fortes que teriam apenas o objetivo de curá-
los, passando-se a utilizar remédios simplesmente para aliviar as dores, sem
comprometer demasiadamente o nível de consciência. Portanto, existe uma
cultura que se preocupa em preservar os últimos instantes da pessoa, no sentido de
cuidar para mantê-la viva, com o máximo de lucidez possível.
A partir da perspectiva antropológica cristã, trazida por Leloup, é possível
identificar essencialmente uma preocupação, um cuidado em se possibilitar “o
despertar da pessoa para a vida eterna”, e com tal atitude, ajuda-se o paciente a
encontrar o que para ele é “o objeto de sua esperança, a luz que o guiou durante
toda sua vida”. Daí a importância fundamental do acompanhante, que na perspectiva
de Leloup, deve lembrar-lhe a presença dessa luz.
A partir do que se sabe a respeito do Bardo, o papel do acompanhante ou
cuidador é o de ajudar a pessoa a se desapegar, a caminhar em direção à
verdadeira natureza de seu espírito, que se chama Clara Luz. Neste contexto, então,
o momento da morte parece ser semelhante ao momento do nascimento, quando o
ser humano sente a necessidade de um pai e de uma mãe, de uma presença
masculina e de uma presença feminina; a feminina trazendo a dimensão do toque,
na maneira de envolver a pessoa com sua presença, afeição e delicadeza. Só
aqueles que viveram a experiência de serem realmente cuidados, e aqueles
que desempenham a função de autênticos cuidadores, sabem perceber a sutileza da
diferença entre os cuidados quando partem de um acompanhante que percebe e
respeita a dignidade do ser humano, por isso Leloup considera essencial que a
pessoa seja percebida
não como um quase-cadáver, mas como um corpo habitado por uma
alma, um corpo habitado por um espírito. Considerar o doente como seu
próprio filho e ajudá-lo a viver esta passagem. A presença masculina,
paterna, também é necessária, trazendo a palavra, uma palavra
profética que oriente sua consciência. Isto porque o momento da morte
é de muita confusão, uma subida do inconsciente pessoal, familiar,
coletivo e, às vezes, mesmo do inconsciente cósmico. (LELOUP, 2001,
p.20)
51
O momento da morte, portanto, pode ser para Leloup um momento de
profunda crise e amadurecimento psicoespiritual. Do mesmo modo pensam os
terapeutas transpessoais, que vêem este momento final como uma situação em que
o agonizante além de entrar na profundidade e complexidade do seu psiquismo,
viajando nas camadas do seu inconsciente pessoal e coletivo, podepenetrar “no
segredo de sua matéria, de suas células e átomos” (LELOUP, 2001, p. 22).
Ainda dentro da perspectiva da luz, que de formas diferentes tem surgido tanto
nas obras escritas pelos ocidentais, como também nos textos advindos da tradição
mística oriental, fica claro que se torna necessário, mais que isso, fundamental, que
ao lado daquele que agoniza, possamos contar com a presença de um cuidador
sensível e treinado para ajudar ao Ser na sua passagem, possibilitando o máximo
possível o processo de “desapego” e, consequentemente, estimulando a “entrega”.
Leloup, filósofo e teólogo francês, demonstra isso enfaticamente, reforçando as
idéias e recomendações dos mais antigos religiosos do mundo oriental.
Aconselha-nos Leloup: uma palavra fundamental a ser dita pelo cuidador
àquele que está vivendo o seu momento de passagem: “vá, vá para a luz; você tem o
direito de morrer, você tem o direito de partir” (LELOUP, 2001, p.21).
Do mesmo modo que Leloup, Gimenez (2001), tanatóloga e PhD em
psicologia, vem se dedicando incansavelmente aos pacientes terminais, dentro da
perspectiva transpessoal.
Segundo o pensamento de Gimenez, o conforto nos momentos finais do
paciente agonizante vem do auxílio espiritual prestado por seres de luz disponíveis,
representantes do Criador.
A Providência tudo prevê e crê na potencialidade infinita do ser
passante de se abrir a Sua Luz, ao seu Amor, mesmo quando em
agonia física. Somente a agonia emocional é que poderá dificultar a
viabilidade da entrada da Luz e conforto espiritual, o que por sua vez
maximizará o desenrolar da exacerbação do desconforto espiritual,
fruto da descrença e do desespero. (GIMENEZ, 2001, p. 42-43)
52
Enquanto que à medicina, com seu desenvolvimento farmacológico, cabe
aliviar o desconforto físico do “ser em passagem”, ou agonizante; a psicologia, em
suas diversas abordagens, busca aliviar a dor emocional do seu cliente terminal,
fechando laços ou contextos malresolvidos, trabalhando situações inacabadas que
causam muita inquietação e culpa, em relação a parentes amigos e até inimigos.
“Afetos e desafetos precisam ser, competentemente, trabalhados e carinhosamente
abordados pelos psicoterapeutas ou qualquer pessoa que esteja auxiliando o ser
passante” (GIMENEZ, 2001, p. 43).
Para a referida autora, a competência requerida do cuidador do ser agonizante
é fruto não apenas do conhecimento teórico e técnico, mas também advém de uma
sensibilidade e amadurecimento interior, resultantes do desenvolvimento
psicoespiritual:
a civilização antiga abrigava o ser enfermo, acolhendo tanto suas
enfermidades físicas quanto suas necessidades emocionais e
espirituais, tratando-o como um ser uno, que era visto por um
sacerdote, médico, psicólogo, no qual deveríamos lhe fortalecer
mediante condutas que facilitassem sua integração psico-espiritual.
(GIMENEZ, 2001, p.47)
Muitas pessoas que passaram a vida crendo apenas no próprio controle e
poder sobre as contingências de seu dia-a-dia, ao se depararem com a sua própria
impotência frente à deterioração física, e conseqüente iminência da morte, tornam-se
enfurecidos, sentindo-se completamente inseguros e desamparados. Nesse
momento, o ego, antes onipotente, passa a se perceber como insignificante frente ao
mistério da vida e da morte. Por isso, o momento de passagem pode ser
considerado, seguramente,
uma etapa bastante significativa quando a força do espírito ou da
alma, como queiram denominar, está mais livre das rédeas da
existência. Trata-se, portanto, da fase em que o ser passante
descrente pode ser convidado a ousar experimentar a presença do
divino. Ao auxiliar de passagem, cabe não se intimidar [...] cabe,
portanto, de forma delicada, habilidosa e gentil, usar de estratégias
terapêuticas que ajudem o ser em passagem a lembrar-se de quem
53
ele é, para tomar contato com sua essência, [...] é preciso respeitar a
essência e não confundi-la com as máscaras sociais ou emocionais
que falsamente parecem proteger o ser de sua dor frente a sua
fragilidade e impotência [...] contribuir para integração desse ser,
significa restaurar sua identidade consagradando com a luz, ou seja,
com sua essência. (GIMENEZ, 2001, p.125)
Refletindo sobre a obra de Gimenez, bem como a dos autores transpessoais -
aqui já citados - no nosso entender, há um ponto em comum, que trata da percepção
do quanto é importante e fundamental o cuidado em se possibilitar consciência ao
ser agonizante, ou ser “passante”, no sentido de facilitar a sua jornada, após a morte,
rumo aos planos superiores da existência.
Não seria justamente por conta do desconhecimento de saber quem somos,
qual nossa verdadeira natureza, qual o sentido de nossa existência, que se gerou
esse medo extremo em relação à morte? A ansiedade e o medo sentidos ante a
morte parecem fazer parte estruturante de nossa cultura que, por sua vez, reproduz
e reforça a visão reducionista do ser humano.
Por isso se faz fundamental que “cuidemos” do ser que agoniza. A partir da
consciência que temos desse preparo nos momentos que antecedem a partida do
ser, é que decidimos dedicar um lugar de destaque para as idéias de Earlyne
Chaney, neste capítulo, pois de todas as obras que lemos sobre este tema, foi a de
Chaney que nos pareceu mais esclarecedora.
Percebemos, na obra de Earlyne Chaney (1988), muita relação com o
pensamento dos que integram a psicologia transpessoal. Sua obra descreve com
detalhes - numa linguagem que nos pareceu compreensível para nós, ocidentais - as
situações em que o ser “passante” vive, desde os momentos que antecedem a sua
“passagem”, até as etapas últimas de sua peregrinação na situação pós-morte.
Decidimos, também, trazer à luz, alguns aspectos que consideramos
relevantes do pensamento religioso oriental, acerca da morte e do processo de
morrer, porque nos chamou atenção o fato de que 25% das pessoas da nossa
amostra, quando indagadas acerca de sua religião, denominaram-se “espiritualistas”,
esclarecendo nas entrevistas que, apesar de acreditarem na reencarnação, não se
percebem como espiritas por discordarem de alguns aspectos fundamentais da
54
referida doutrina, e também por se considerarem ecumênicas, no sentido de
valorizarem os princípios espirituais dos orientais, bem como por reconhecerem o
Cristo como modelo maior de amor.
Como foi dito, Chaney acolhe as idéias dos orientais, no sentido de que
também percebe a morte como um momento de “iniciação espiritual”, portanto, parte
inerente da própria existência. Porém, mesmo sendo algo natural, como qualquer
“iniciação”, requer preparo e consciência para que as pessoas envolvidas vivam o
que precisa ser vivido, numa atmosfera de harmonia e sintonia com o divino.
Dentro dos princípios espirituais dos místicos orientais, a morte como fim não
existe, podendo apenas ser encarada como um momento necessário e sagrado – um
momento de iniciação – e que toda pessoa, preparada ou não, terá que enfrentar. Tal
momento é visto apenas como uma “situação de transição”.
Do mesmo modo que no imaginário oriental, a “Clara Luz” representa, para os
orientais, a abertura para a salvação, a iniciação e a libertação, a oportunidade para
a salvação nos últimos momentos de vida. A partir dos estudos realizados por
Chaney (1988), o surgimento da Clara Luz é percebido como um “momento glorioso”,
um momento de “decisiva oportunidade”. (CHANEY, 1988, p. 55)
Segundo Chaney, “pouco antes do momento da morte, os ‘iniciados’
*
verão
diante de si a maravilhosa e ofuscante Clara Luz do Vazio”. Se a luz interior do
iniciado estiver harmonizada com a alta voltagem da Clara Luz, “estas almas
acabarão por fundir-se a ela. Serão salvas, serão libertadas [...] e nunca mais
precisarão reencarnar de novo uma forma física mortal. Tornar-se-ão imortais ou
deixarão de estar sujeitas à mortalidade [...]” (CHANEY, 1988, p. 77 e 79).
O fracasso em reconhecer a Clara Luz, por causa dos condicionamentos
religiosos ou por conta de um medo inerente, significaria, para muitas das almas dos
que faleceram, uma oportunidade perdida de conseguir elevar-se espiritualmente.
Ainda na perspectiva oriental, o desprendimento da forma física, é tão natural
quanto é para nós, a imagem de um pintinho rompendo a casca de ovo. Lembra-nos
Chaney (1988), em um trecho bíblico que diz: “Aquilo que um homem pensa em seu
*
Para os ocidentais: “recém-falecidos”, “agonizantes” ou “moribundos”
55
coração, assim ele é.” (Pr 23,7) E ela associa tal referência à imagem do pinto que,
rompendo a casca do ovo, se abre para a vida, como acontece com o átomo
primordial do coração, que contendo marcos importantes de toda a encarnação,
solta, na “hora marcada”, partículas atômicas ou imagens mentais da chegada da
morte na corrente sanguínea. Essas imagens mentais penetram nas glândulas, que
recebendo a mensagem de morte, começam a fabricar uma misteriosa substância,
conhecida com hormônio letal... sinalizando, assim, o início do processo do
desenlace do espírito do corpo físico. “Quando a ampulheta espiritual estiver
concluído seu processo”, é sinal que chegou o momento da alma partir, “voltar para
as feras de onde veio”. (CHANEY, 1988, p. 61)
É nesse momento, segundo Chaney (1988), que se faz necessário que o ser em
“passagem” seja envolvido numa atmosfera previamente preparada para a ocasião
do desenlace. A música e/ou palavras cuidadosamente escolhidas para afastar o
medo são pronunciadas com objetivo de conduzir a consciência do moribundo à
plena percepção da Clara Luz que se aproxima, ajudando assim, a alcançar a
libertação. Não são recomendáveis lamentações em alta voz, para evitar qualquer
tipo de perturbação ao “peregrino”, no seu momento supremo, ou seja, no momento
do seu “transitório nascimento espiritual”.
É exatamente nesse contexto, delicado e profundo de “nascimento”, que “o
‘peregrino’ estará entrando num estado ampliado de consciência e poderá ouvir as
palavras do ritual de morte”. Ele estaria no primeiro estágio do “Bardo”, que
corresponde à caminhada da alma de volta ao lar nas esferas superiores, após a
morte e antes do ser despertar realmente no além. (CHANEY, 1988, p. 64)
Para os ocidentais, o Bardo corresponde a situação processual de “julgamento”,
onde será definida a situação da alma. “Ela encontrará resistência no plano superior
ou inferior, dependendo de como reagirá aos testes de iniciação na jornada de
julgamento do Bardo”. (CHANEY, 1988, p. 77)
Como dissemos, nesse momento, a “força vital” do ser “passante”, também
chamado de ser “peregrino” estaria movimentando-se de forma ascendente e ao
invés de perder a memória, nos primeiros momentos em que é considerado morto
clinicamente, ele tende a se tornar cada vez mais perceptívo, tomando consciência
56
de que não mais está morrendo, pelo contrário, sente-se mais vivo, sentindo também
sua percepção se expandindo. É precisamente neste momento que se configura a
primeira fase do Bardo que corresponde ao momento, pouco antes da verdadeira
morte, e é exatamente neste instante “supremo” que surge a “Clara Luz do Vazio”, e
a partir daí, poderá ocorrer uma ou todas as seguintes experiências:
O moribundo ou peregrino poderá sair do estado aparente de inconsciência
para despedir-se das pessoas queridas que o circundam;
Poderá ver os espiritos das pessoas queridas, falecidas, que estão a seu
lado para lhe dar as boas vindas;
Poderá ver passagens magnificas, tão maravilhosas quanto indescritíveis e
ouvir uma música também tão especialmente bela e deslumbrante;
Poderá se sentir inundado por emoções tão sublimes que podem ser
expressadas pela palavra êxtase.
A partir dai, o ser que está dando os últimos passos na atmosfera terrestre,
poderá vivenciar um estado de consciência especial, recebendo tudo de modo muito
mais nítido e mais belo.
Nessa fase, numa situação hipotética, se um médico procurar identificar se o
individuo já está realmente morto, sendo incapaz de ouvir as batidas do seu coração,
não sentindo a sua pulsação, dirá que o paciente está morto. Isto é o que ocorre
comumente aqui no ocidente. Todavia, para os orientais, o átomo primordial do
coração ainda não se libertou, e portanto ele ainda não pode ser considerado morto;
ele poderá persistir por um breve período de tempo, algumas horas, até que
aconteça o despredimento dos átomos primordiais mentais e emocionais.
De acordo com essa forma de pensar, o processo de desprendimento
continuaria, e os conteúdos mentais e emocionais do ser iriam influenciar o plasmar
do novo corpo, o “corpo astral”, que é o invólucro do espírito.
depois da nova forma espiritual - recém-nascida - ficar totalmente plasmada,
é que o átomo primordial do coração escapará. Assim como os átomos do bebê, ou
seja, do ser físico que se desenvolve no interior do útero da mãe, leva nove meses
57
para estrem concluidos, esta nova forma espiritual, também chamada de “corpo
astral” leva de uma a quinze horas para ser totalmente construída, e assim como
nas dores do parto, “o nascimento espiritual” acontecerá. O átomo primordial do
coração é, portanto, o último a partir levando consigo o registro, o “filme” de toda a
vida do ser. (CHANEY, 1988, p.73)
Em geral, porém, considerando a falta de preparo espiritual para a situação de
desenlace, o nascimento espiritual requer, em média, três dias durante os quais o
corpo deverá permanecer numa atmosfera de profunda tranqüilidade para que a
alma, ao iniciar sua jornada no “Bardo”, possa aproveitar toda oportunidade de se
confrontar “com os ocupantes do umbral, reconhecê-los como formas mentais e
prosseguir viagem para alcançar o mais elevado plano de luz possível nas esferas
celestiais”. (CHANEY, 1988, p. 75)
Esses últimos posicionamentos de Chaney (1988) nos fazem lembrar algumas
falas de Leônia, uma das entrevistadas. Ela nos assegura ter vivido experiências do
tipo CAM
*
, ou seja, recebe espontaneamente comunicações de pessoas falecidas,
apesar de não se considerar pertencendo à religião espírita. Ela nos diz que viver tal
experiência a mobilizou muito, e “mesmo sendo passados vários anos, ainda me
emociona, como se fosse ainda uma novidade” (Entrevista Leônia). De início pensou
que se tratasse de projeções suas ou “projeções de outras mentes do umbral”
*2
(Entrevista Leônia), mas hoje, a partir dos estudos que vem fazendo, da teoria
kardecista, da parapsicologia, da física quântica e das EQM’s, ela não tem dúvida de
que as experiências que viveu e que ainda vivencia até o momento da entrevista
conosco, essas comunicações são, realmente, de natureza espiritual e têm a ver
com realidades de outras dimensões.
Um outro aspecto significativo para Chaney (1988) e que encontramos
ressonância na entrevista de Leônia, é com relação ao momento em que surge a
Clara Luz. Para Chaney, é no momento do desprendimento da alma, que surge a
“indescritível luminosidade”, como assim é chamada pelos ocidentais. Na perspectiva
oriental, segundo Chaney, a Clara Luz “vem para todos sem exceção, pouco antes
*
Comunicação Após a Morte
*2
Local fora da Terra, onde as almas dos falecidos que ainda não ascenderam, tendem a permanecer, na visão
espírita kardecista e espiritualista em geral.
58
do momento da morte — não como um perdão “através da Igreja” nessa hora
extrema conforme nos quer fazer crer os sacerdotes ou ministros religiosos
ocidentais —, mas como uma oportunidade decisiva de salvação para todos os fiIhos
de Deus, independentemente de sua religião. (CHANEY, 1988, p. 88)
Consideramos interessante perceber o quanto de semelhante entre a
perspectiva oriental trazida por Chaney (1988) e os posicionamentos de Leônia,
entevistada a que nos referimos. Leônia crê que todos os humanos, independente
de suas falhas, “terão a oportunidade de salvação, ou seja, de serem envolvidos pelo
amor e proteção de um Deus misericordioso” (Entrevista Leônia), possivelmente por
ter entrado em contato, através de leituras, com os relatos acerca da Experiência
Quase Morte, supõe que, justamente, é no momento do encontro com o “ser
luminoso” que o espírito daquele que está no ponto limite - entre a vida e a morte -
terá a “divina oportunidade” de rever a sua vida, envolvido pela atmosfera amorosa
do Cristo e assim se reposicionar em relação ao sagrado.
Dentro da perspectiva oriental descrita por Chaney, tanto os budistas,
muçulmanos, hindus, cristãos, judeus, santos e pecadores, quanto pobres e ricos,
bons e maus, terão a dádiva de receber a graça divina através da Clara Luz, na hora
da morte, e é esse Deus uno que se oferece a todos sob a forma de Luz Branca.
A partir das reflexões da obra de Chaney, identificamos como sendo o perdão a
parte mais importante de toda a jornada do Bardo. Na perspectiva oriental, à
medida em que o ser tiver perdoado àqueles que o prejudicaram, na mesma medida
ele verá brilhar então, dentro de si mesmo, uma luz interior. E a intensidade dessa
luz interior determinará se sua alma poderá ou não fundir-se permanentemente na
pura e deslumbrante Clara Luz, e assim, salvar-se de imediato. Essa salvação supõe
que o ser não precisará migrar temporariamente para nenhum plano inferior, significa
também que foi rompido em definitivo o esquema mental do karma que o mantinha
preso à roda de nascimentos e mortes no campo da matéria. O Ser se tornou imortal,
graças à vivência do perdão.
A segunda fase caracteriza-se pela presença da Luz Secundária, que surge para
todos aqueles que não conseguiram, na primeira fase, fundir-se na Clara Luz. É a
segunda chance que é dada, pela “graça divina”, para que o ser peregrino consiga a
59
sua iluminação.
Os peregrinos, no estágio da Luz Secundária, têm consciência de que não
atingiram ainda a libertação total e acreditam que, na viagem pelo Bardo, irão
experimentar sensações estranhas no corpo astral. Segundo os escritos de Chaney
(1988), aquele que está nesta fase, “vai perceber [...] o poder eletromagnético dos
chakras que reagem à recém-liberada força psíquica”. Nesta fase, é comum que
Sons e visões insólitos começam também a surgir. É possível que se
ouça uma música incrivelmente bela ou que se comece a presenciar
visões de figuras cheias de esplendor, de rostos e cenas
bruxuleantes... (CHANEY, 1988, p. 92)
Por isso, os mestres ou os “cuidadores” orientais tendem a aconselhar àqueles
que estão vivendo seus últimos momentos na Terra, para não caírem na cilada de
pensarem que todas as cenas e figuras que lhe surgirem são reais: “não são mais
reais do que as figuras que numa tela de televisão. Lembre-se de que elas vieram
de dentro de você e refletem seus próprios processos mentais”. (CHANEY, 1988,
p.93)
Os mestres têm todo o cuidado em lembrar que essas visões são criadas pelos
reflexos kármicos de boas ou más ações praticadas por nós mesmos, quando
estávamos no corpo físico. Para eles, durante a segunda fase do Bardo, todo
pensamento bom, todo ato generoso, toda prece se transforma numa espécie de
grandiosa forma mental que flui e se incorpora a nós... E os mestres nos dão um
exemplo,
se você meditou constantemente sobre um determinado mantra, será
agora envolvido pela vibração do som repetido. A forma mental que
visualizou constantemente durante a meditação e a prece terá criado
raízes, chegando à plena floração. É indescritível o poder desses
cânticos e orações místicos, e esse grande poder o fará subir cada
vez mais alto. As formas do cântico surgirão à sua frente até
mesmo as palavras do cântico ou das orações continuarão
reaparecendo. Poderão assumir contornos e dimensões variadas,
mas transcorrerão numa perspectiva agradável e contínua.
(CHANEY, 1988, p. 93 e 95)
60
Tais visões, inclusive, poderão surgir sob formas de divindades supremas,
mestres ou anjos, e, ao aceitar “uma delas como o seu Salvador”, o ser - em sua
jornada espiritual - estará passando da segunda fase do Bardo para dimensões mais
elevadas, livrando-se de ter que entrar e vivenciar a terceira fase. Chaney (1988),
tentando esclarecer melhor esta situação para nós ocidentais um tanto estranha -
nos traz uma situação hipotética, pois nos manda imaginar que, um cristão que
meditou freqüentemente sobre Jesus Cristo, verá uma imagem d’Ele surgir
constantemente à sua frente, uma imagem mental que lhe oferece a salvação. Se
tentar fundir-se com essa forma, ou tocar na mão que ela lhe estende, a luz da
própria forma o levará do estágio hipnótico do Bardo para esferas superiores, ou até
para a mais elevada, o paraíso. O importante para Chaney, é que o ser peregrino,
ou o ser em trânsito pelo Bardo, tenha “aceito Jesus como seu Salvador num sentido
cósmico, muito além da compreensão dos fundamentalistas, que tanto uso fazem do
termo”. (CHANEY, 1988, p. 95) Do contrário, a alma tenderá a entrar na terceira fase
do Bardo, que é a do “vale julgamento”, criado pela própria mente, enquanto uma
revisão da vida acontecerá nos moldes de um “filme da memória” passando diante
das nossas consciências. Nós não apenas estaremos vendo as cenas do passado,
mas também participando dele.
Cada pessoa é o seu próprio juiz. É você quem conhece sua própria
vida interior melhor do que ninguém e quem está melhor qualificado
para julgar não aquilo que faz, mas aquilo que é. Dentro de sua
própria consciência pessoal o juiz instala seu tribunal. Foi-nos dada a
condição de nos julgarmos e esse julgamento se expressa através da
consciência. É este juiz íntimo, insistente e implacável, que o empurra
para um período de busca e auto-realização. O julgamento, pois, é o
estágio... final do Bardo, sendo experimentado apenas pela alma que
não buscou a luz. Este Bardo, portanto, não é um lugar ou um
período de punição arbitrado por algum juiz cósmico; é tão somente a
compreensão, imposta à força, do significado dos delitos praticados
pela pessoa, e é a alma que de carregar o fardo do remorso e da
vergonha. (CHANEY, 1988, p. 99)
O grande perigo, na visão dos mestres orientais, é que o ser em passagem não
esteja preparado para o confronto na fase do julgamento, pois se ele não tiver
assimilado as orientações acerca do Bardo, quando as imagens refletidas do centro
dele mesmo vierem à tona, por não compreender o sentido delas, tenderá a fugir
61
aterrorizado, procurando escapar dessas formas, por não saber que elas
personificam apenas projeções mentais dele mesmo, ou de seres inimigos.
Refletindo sobre os aspectos escatológicos da obra de Earlyne Chaney (1988),
percebemos que existem aspectos que se assemelham à escatologia na perspectiva
católica, mas também diferem em muitos aspectos, na forma de perceber a morte
nas religiões ocidentais, inclusive na Católica Romana.
Enquanto que para os religiosos ocidentais o purgatório e o inferno eram
intencionalmente representados por figuras escabrosas e assustadoras, tidas como
reais; na perspectiva oriental, as imagens surgidas durante a viagem que a alma
percorre após a morte, no Bardo, não passam de meras construções mentais
baseadas nos condicionamentos ou desejos daqueles que, ao falecerem, não
morreram, apenas transpuseram os limites desta, para outra dimensão,
permanecendo no umbral
*
. Essas imagens seriam reais apenas na medida em que
lhes conferimos força e poder.
Esse assunto se configurou para nós, no momento da pesquisa, um ponto de
relevância, estimulando-nos a posteriormente estudá-lo em profundidade,
considerando que, no contexto de pós-modernidade, a escatologia tem sido um tema
bastante controvertido e polêmico para alguns segmentos da Igreja Católica,
enquanto que, para outros, parece completamente “esquecido”. Mas,o consideramos
sobretudo importante porque gerações e gerações vêm sofrendo a partir dessas
projeções.
A visão oriental do s-morte, no nosso entender, remete às figuras do
imaginário medieval, ainda hoje presentes em nossa cultura ocidental, acerca do
purgatório e do inferno, na perspectiva da religião Católica Romana, a hegemônica
em nossa sociedade...
*
Local fora da Terra, onde as almas dos falecidos que não ascenderam, tendem a permanecer até o momento de
se decidirem ir ao além (visão espírita ou espiritualista)
62
4.2 A MORTE NA PERSPECTIVA DE ELIZABETH KÜBLER-ROSS
Em 1969, com o impacto de sua obra Sobre a Morte e o Morrer, a Dra.
Elisabeth Kübler-Ross passou a ser reconhecida internacionalmente como a “Dra. da
Morte”. Ela é, ainda hoje, uma das personalidades mais conhecidas e respeitadas do
mundo, no campo da psicologia da morte e do morrer. Nascida na Suíça, aos dezoito
anos participou, pessoalmente, do pesadelo da Segunda Guerra Mundial,
contribuindo com seu trabalho na reconstrução das vidas humanas destruídas por
esse episódio. Depois de se formar em medicina, foi aos Estados Unidos para se
especializar em psiquiatria, e logo se sentiu atraída pelos problemas enfrentados por
pacientes moribundos.
A Dra. Kübler-Ross nos lembra, em seus escritos e palestras, que a morte tem
sido progressivamente esvaziada de sua essência espiritual pela mecanização
consciente da sociedade e, hoje em dia, é raro um paciente voltar e morrer em sua
própria casa. As pessoas, quase sempre, morrem no recinto do hospital, muitas
vezes inconscientes e ligadas a vários sistemas de manutenção da vida. Entretanto,
felizmente, ela se recusa a apoiar essa abordagem impessoal, considerando a
maneira padrão de tratar com a morte, principalmente nas instituições, como uma
total e absoluta falta de consideração pela pessoa que está vivendo o seu processo
de morrer. Muito ao contrário da maioria dos seus colegas profissionais, ela
aconselha àqueles que a procuram, quando se descobrem gravemente doentes, a
permanecerem onde se sentem muito mais à vontade, incentivando-os a não se
deixarem ser pressionados pela máquina institucional.
Ela expressa, claramente, que encontrou nos primeiros anos de sua atuação,
muitas dificuldades e resistências por parte das instituições hospitalares e das
equipes médicas e para-médicas em aceitarem o seu estilo peculiar de trabalhar e
conviver com os pacientes. Pórem, passados alguns anos, a referida médica
terminou por ser reconhecida em seu meio, por sua competência e sensibilidade,
conseguindo redescobrir, no mundo psiquico das crianças moribundas, bem como no
dos adultos, aspectos ou dimensões nunca antes imaginadas e, muito menos,
trabalhadas pela ciência.
63
Iniciou seu trabalho conversando com seus pacientes num nível de
profundidade ímpar, enquanto lentamente mapeava os “estágios” do processo da
morte para exasperação da maioria dos seus colegas médicos, em Chicago, que
se opuseram ao seu trabalho. Mas, o fato é que os pacientes gostavam de falar
sobre a morte e sobre as respostas emocionais à sua condição terminal. Depois de
trabalhar com cerca de duzentos pacientes, a Dra. Kübler-Ross decidiu publicar suas
descobertas mais significativas. Hoje existe uma rie de livros traduzidos em
vários idiomas, inclusive o nosso.
O seu livro “Sobre a morte o morrer” (1969) tornou-se um best seller em
todos os quadrantes do mundo, na área da psicologia e da saúde mental. Sua
primeira descoberta foi sistematizada e publicada e nos revela que as pessoas
vivem quatro estágios de reações, ao enfrentarem a iminência de sua própria morte.
Normalmente, elas primeiramente negam o fato; depois, num segundo momento,
passam a expressar raiva pelo seu destino; na terceira fase, tentam barganhar com
Deus para ganhar mais tempo, é a fase das orações; por fim, entram num profundo
estado de depressão. Segundo ela, assim que ultrapassam essa fase, surge um
período também chamado de “noite escura da alma”, onde essas pessoas, em sua
maioria, tendem - após um longo e profundo sofrimento - emergir, preparadas para
enfrentar a viagem final da vida, concretizando assim, a fase de aceitação. Conforme
explica a Dra. Kübler-Ross, estas fases, necessariamente não seguiriam a ordem
apresentada neste parágrafo; o ser humano é muito complexo e peculiar na forma de
viver as suas dificuldades, portanto, essas fases podem se mesclar, inclusive os
pacientes podem falecer antes mesmo de terem alcançado a fase de “aceitação”.
Ao trazer suas experiências, partilhá-las e debatê-las com alguns profissionais
da área e o público em geral, a Dra. Kübler-Ross possibilitou à sociedade
contemporânea uma nova visão acerca das complexidades da morte, trazendo à
tona o tema morte e morrer sob uma ótica que não estávamos habituados.
A atuação dessa eminente psiquiatra, pioneira no trabalho com a morte numa
perspectiva psico-espiritual, prosseguiu de um modo surpreendente através de
algumas dezenas de anos, em que foram produzidos inúmeros livros e pesquisas,
bem como um incomensurável número de palestras por todo o mundo. Em um
primeiro momento, suas produções literárias giravam em torna da morte enquanto
64
processo psico-biológico e enfatizava a dimensão humana. O paciente teria que ser
considerado como um ser humano em crise, carente de apoio e de intervenções que
priorizassem a sua sensibilidade, os seus sentimentos e, sobretudo, a capacidade de
decisão e livre expressão; mesmo nos últimos instantes de sua existência, seria
imprescindível ser reconhecido o seu imenso potencial, capaz de ser acessado se
lhe são dadas as condições necessárias. Seus últimos livros porém, refletem, no
nosso entendimento, uma segunda fase em que a referida médica desponta mais
amadurecida no sentido mais integral do ser, ou seja, disposta a ousar, arriscar-se,
trazendo à luz, suas experiências mais íntimas, mesmo sabendo que poderia
enfrentar duras críticas do mundo acadêmico-científico. Inegavelmente este foi um
risco assumido por ela de um modo bem consciente, posto que contava, como
pesquisadora, com mais de vinte mil casos em seus arquivos. Todavia, por obra do
destino, viu toda essa imensidão de material transformar-se, literalmente, em cinzas.
Desnecessário, talvez, entrarmos em detalhes sobre essa situação extremamente
dolorosa, apenas a registramos com intuito de ilustrar o que dissemos inicialmente a
respeito do profundo amadurecimento que resultou desse imenso sofrimento
vivenciado por ela.
Como acredita K-Ross (1998), “nada é por acaso, tudo acontece por uma
razão positiva.” [...] “Experiências amargas podem resultar em um bem: os vendavais
da vida são verdadeiras bênçãos para o nosso crescimento.” E todos nós estamos
ganhando com isso, pois do “vendaval”, K-Ross saiu mais profunda, mais consciente
e mais comprometida, tanto é que enfrentando todos os riscos, publicou suas três
últimas obras trazendo à tona ainda o tema morte, mas sob uma perspectiva
totalmente inovadora, pelo menos para nós, psicólogos ocidentais.
Foi através dos livros “O túnel e a luz” (2003) e “Roda da vida” (1998), este
último sua autobiografia, que nos deparamos com inúmero casos, relatados pela
Dra. K-Ross, que representam, no nosso entender, um belo desafio a todos que
fazem ciência dentro de um modelo paradigmático clássico. São destes livros que
traremos alguns casos, alguns comentários que servirão como “amostra” do muito
que ainda temos a aprender com a experiência desta mulher, médica e profissional,
que sempre esteve muito à frente do seu tempo.
65
Nas referidas obras, a sua contribuição é essencialmente de natureza psico-
espiritual, um verdadeiro marco para os profissionais de saúde mental, de nossa
época, pois certos fenômenos nos surpreendem por extrapolarem os conhecimentos
que não nos são oferecidos ao longo dos nossos cursos de graduação e pós-
graduação por, simplesmente, não poderem ser explicados racionalmente. Segundo
os físicos quânticos e os estudiosos dos fenômenos da consciência, certos eventos,
acontecimentos e percepções vão muito além do que pode ser percebido e explicado
pelos modelos das ciências naturais e exatas, e são comumente denominadas de
experiências “extra-sensoriais”, “paranormais” ou “supranormais”. Estes são temas
que nos interessam, particularmente nesta pesquisa, pois cinco das doze entrevistas
que realizamos, com a intenção de trabalhá-las nesta dissertação, em cinco
surgiram fenômenos deste tipo que consideramos especiais ou extra-sensoriais,
como por exemplo, a experiência de quase morte (EQM), a experiência fora do corpo
(EFC), bem como certos tipos de “vidências” (que provavelmente não se trata de
alucinações), premonições e CAM (comunicações após a morte) e outras.
No seu livro Sobre as crianças e a morte, a Dra. Kübler-Ross nos fala
abertamente sobre o mundo interior, as vivências subjetivas dos seus pacientes, em
toda sua complexidade e com muitas nuances ainda não percebidas pelos
profissionais da saúde. Por exemplo, a partir de suas experiências ao lado das
crianças, no leito de morte destas, ela afirma e reafirma, através de depoimentos
escritos e em palestras para grande publico, que as crianças parecem ter uma
“consciência intuitiva” da morte e sentem sua “presença”, mesmo que esta morte
venha através de uma doença ou de um acidente súbito.
Ela cita muitas situações em que as crianças começaram de repente a falar
sobre morte, o pós-morte e outros assuntos espirituais, justamente antes de
acidentes fatais. Esses casos, na opinião dela, não representariam apenas simples
intuições acerca da morte, pois às vezes, segundo ela, as crianças, de fato, haviam
recebido algum tipo de revelação espiritual referente ao seu futuro. O relato mais
impressionante da Dra. Kübler Ross veio de uma mãe, e se encaixa exatamente
nessa categoria.
A referida mãe relatou à Dra. K-Ross que sua filha acordara cedo, numa certa
manhã, num estado de extrema euforia e excitação. Ela dormira na cama da mãe à
66
noite e a acordara sacudindo-a e a abraçando espontaneamente, dizendo: “Mãe,
mãe!... Jesus me disse que estou indo para o céu! Gosto de ir para o céu (sic) mãe,
lá é tudo lindo, dourado e prateado e brilhante, e Jesus e Deus estão lá.”
Segundo o relato da mãe da garota, ela falava tão depressa e com tanta
excitação que a mãe nem conseguia lembrar tudo o que dissera. “Aquilo que ela
dizia, estava tão afetado pela excitação”, referiu-se aquela mãe à Dra. bler-Ross,
acrescentando que sua filha era de natureza calma,
bastante inteligente, não muito inclinada à agitação, à correria e aos
saltos, como muitas crianças de 4 anos, e além disso era
verbalmente desenvolvida e muito precisa naquilo que dizia. Era
difícil encontrá-la excitada a ponto de gaguejar e tropeçar nas
palavras. De fato, não me lembro de tê-la visto nunca nesse estado,
nem no Natal, nem nos aniversários ou mesmo no circo. (KÜBLER-
ROSS, 2003, p.38)
A mãe nos disse, relata-nos a Dra. Kübler-Ross, que tentou acalmar a criança,
mas o entusiasmo da menina não diminuía. Ela continuava a falar dos anjos [...] e
dos seres que encontraria lá. Por fim, e quase em desespero, a mãe da criança
argumentou o melhor que pôde contra a conversa dela, dizendo: “Se você for para o
céu, sentirei sua falta”[...] “Estou feliz pelo belo sonho, mas devagar e relaxe um
pouco, ok?” A menina ignorou-a e continuou a falar sobre sua experiência. “Não foi
um sonho”, insistiu ela, “foi real”, enfatizando a afirmação com aquele jeito
desapontado que as crianças pequenas às vezes usam quando não estão sendo
entendidas por seus pais. Segundo o relato da Dra. Kübler-Ross, a conversa
continuou por vários minutos antes que a criança finalmente se acalmasse e fosse
brincar. Algum tempo depois, à tarde, aquela criança foi encontrada assassinada.
Sua vida chegara a esse trágico final, após sete horas depois de ter recebido a
suposta revelação e depois de ter conversado com a sua mãe sobre o que a
esperava “do outro lado da vida”.
Este e outros casos relatados pela Dra. Kübler-Ross parecem ser indícios que
algum poder, alguma força, em um outro nível, prepara muitas de suas crianças para
enfrentarem as suas próprias mortes e, talvez, seja interessante relermos este e
outros relatos à nossa disposição nos inúmeros livros da referida médica e de outros
67
pesquisadores, para que percebamos o quanto as crianças acompanhadas pela Dra.
Kübler-Ross e por sua equipe pareciam empenhadas em compartilhar suas
informações com seus pais.
Segundo a Dra. Kübler-Ross e outros pesquisadores interessados no assunto,
como o Dr. Melvin Morse, por exemplo, que trabalhou com dezenas de casos e
também os relatou em seus livros, o processo psicológico do morrer pode ser um
momento espiritualmente edificante, inclusive tanto a psiquiatra quanto os seus
colegas da área afirmam que muito têm aprendido com seus pacientes,
principalmente com as crianças, em fase terminal.
A Dra. Kübler-Ross (2003), a partir de sua experiência clínica, alerta-nos para
o fato de que as crianças, muitas vezes, sabem intuitivamente quando estão
morrendo, e não precisam ser protegidas contra esta realidade, cabendo aos pais ou
aos cuidadores ficarem atentos para não aumentarem o sofrimento de suas crianças,
enganando-as com falsas esperanças e, impossibilitando, com sua atitude de
resistência e negação da realidade, permitir que estes seres, que estão em algum
nível, bem conscientes do que vai lhes acontecer, não aproveitem a oportunidade
para expressar o que sentem, promovendo, como seria o ideal, uma situação
bastante saudável, onde a dor seria amenizada pelo carinho, aconchego e
esperança real que permearia toda a situação que antecede a partida.
A referida psiquiatra, que tem estado - em quase todos os seus momentos -
junto ao leito desses jovens pacientes, diz que, no final de suas curtas vidas, “pouco
antes do momento de sua morte, há quase sempre um momento de lucidez”. E que é
justamente, nesse momento, que as crianças - mesmo aquelas que permaneceram
em coma desde o acidente ou a cirurgia - abrem os olhos e dizem coisas bastante
coerentes. Aqueles que passaram por muitas dores e desconforto tendem a ficar
muito quietos e em paz, e é justamente nesse momento que a Dra. Kübler-Ross lhes
pergunta se estão querendo partilhar com ela o que estão sentindo.
Refletir sobre o depoimento dessas crianças, faz-nos compreender o quanto o
confronto com a situação de morte pode provocar mudanças radicais na percepção
e, conseqüentemente, no comportamento das pessoas envolvidas. A própria médica
K-Ross é um exemplo disso, pois de profissional cética, transformou-se em alguém
68
que acredita firmemente na continuidade da existência humana, a partir de uma
perspectiva psicoespiritual. Ross entre muitos dos seus relatos, traz-nos o caso de
uma garota que, no retorno de um passeio com sua família, no final de semana,
sofreu um grave acidente. Nos seus momentosfinais, a menina percebendo a
aproximação da Dra.K-Ross, diz-lhe suavemente: “Tudo está bem agora... A mamãe
e Peter estão me esperando.” O que, no nosso entender, é interessante destacar,
é o fato de que a Dra. K-Ross sabia do falecimento da mãe da garota e supunha,
que o seu irmão, Peter, passava relativamente bem, no setor de queimados, para
onde fora levado após o acidente. Qual não foi sua surpresa, quando ao deixar a
UTI, passando pelo posto de enfermagem, recebeu um telefonema do hospital onde
Peter estava. A enfermeira do outro lado da linha disse: “Dra. Ross, nós
queríamos lhe avisar que Peter morreu dez minutos atrás”. (KÜBLER-ROSS, 2003,
p.115) Confirmava-se assim, o que a psiquiatra estava sabendo, através da
comunicação da própria menina, quando ela lhe disse: “...Mamãe e Peter já estão me
esperando”... Claro que a nossa pesquisadora, de início, ouvia atentamente o que os
seus pacientes, à beira da morte diziam, mas não entendia, com muita clareza, o que
lhe era dito... porém com o tempo, e a experiência concreta, ela foi podendo
interpretar melhor os conteúdos trazidos pelos seus pacientes.
A segunda situação, dentre as inúmeras relatadas pela psiquiatra, trata de um
homem que perdeu toda sua família dentro de um carro, onde todos morreram
queimados. Devido a essa perda terrível, ele se transformou de marido e pai de
classe média, bom provedor e decente, em um vagabundo completo, que ficava
bêbado de manhã à noite, todos os dias, e usava todas as drogas imagináveis para
cometer suicídio, mas nunca conseguia atingir seu objetivo.
Sua última lembrança era de estar deitado à beira de uma floresta, em uma
estrada suja, bêbado e “petrificado”, como ele descreveu, querendo se reunir à
família, sem vontade de viver e sem energia sequer para sair do lugar, quando viu
um grande caminhão descendo a estrada e literalmente avançando em sua direção.
De repente, ele percebeu que se encontrava a alguns metros de altura, observando,
de cima, a cena do acidente, e, em meio dela, estava ele gravemente ferido.
Naquele mesmo momento, viu surgir, junto ao seu próprio corpo, na cena do
acidente, os seus familiares queridos (já mortos), sorrindo felizes e o envolvendo
69
com uma luz incrivelmente brilhante e amorosa. Eles não se comunicavam
verbalmente, mas na forma de uma transmissão de pensamento, como que
querendo compartilhar com ele, a alegria que experimentavam em sua nova
existência.
Esse homem não conseguiu nos dizer quanto tempo durou o
encontro, mas ficou tão admirado com a saúde deles, com a beleza e
felicidade, com sua total aceitação da situação em que ele se
encontrava atualmente, com o amor incondicional que eles
demonstravam, que jurou não tocá-los, não se unir a eles, mas
reentrar em seu corpo físico e prometer que compartilharia com o
mundo o que havia experimentado como uma redenção pelos dois
anos que passara tentando jogar fora sua vida física. Foi depois
desse juramento que ele observou como o motorista do caminhão
carregou seu corpo ferido para dentro do veículo, como uma
ambulância chegou voando ao local do acidente, como ele foi levado
para o pronto-socorro do hospital e amarrado em uma maca. E foi
que, finalmente, reencontrou seu corpo físico, livrou-se das correias
que o amarravam e saiu do pronto-socorro sem nenhum delirium
tremens ou qualquer seqüela do seu pesado abuso de drogas e
álcool. Sentiu-se curado e firmou um compromisso de que não
morreria até ter tido a oportunidade de relatar a experiência da
existência da vida após a morte com o maior número de pessoas que
estivessem dispostos a ouvi-lo. (KÜBLER-ROSS, 2003, p.119)
K-Ross, não conseguiu identificar o que veio a acontecer com este homem
desde então, porém diz que jamais esquecerá “o brilho dos seus olhos, a alegria e a
profunda gratidão que experimentou quando lhe foi permitido subir ao palco” em um
dos seus workshops, quando pode compartilhar, com um grupo de centenas de
funcionários de um abrigo de doentes terminais, “o total conhecimento e consciência
de que o nosso corpo físico é apenas uma casca que envolve o nosso ser imortal.”
(KÜBLER-ROSS, 2003, p.119)
A Dra. Kübler-Ross não hesita em recolher e publicar casos significativos de
crianças que retornavam da morte para confortar seus pais inconsoláveis. No livro
citado anteriormente, fala a respeito de uma mãe que voltou para casa um dia, num
desespero total. Sua filha pequena fora estuprada e assassinada pouco antes, o que
espalhou o medo na pequena comunidade em que vivia. Esta mãe estava deitada na
cama quando, de repente, uma luz brilhante entrou pela janela de seu quarto, e no
meio dessa luz a figura de sua filha de 6 anos de idade, sorrindo radiante. Em alguns
70
segundos a figura desapareceu, mas esse contato trouxe um conforto significativo à
mãe. “A visão impregnou-a com tanta paz e tanto amor”, que “que ela ficou numa
condição mental bem melhor que o resto da comunidade, ainda apavorada”, afirma
a Dra. Kübler-Ross. Tanto é que se integrou à comunidade de um modo bastante
construtivo, dedicando parte do seu tempo a ajudar crianças nos seus últimos
momentos, com a supervisão da própria médica (K-Ross).
Refletir sobre esses casos representa uma oportunidade de ampliarmos nossa
consciência para entender o fato de que, muito temos ainda a aprender com as
pessoas com que lidamos na vida, no campo profissional, ou familiar. A consciência
das nossas limitações deve nos estimular a um aperfeiçoamento cognitivo sempre
crescente, sempre nos abrindo ao novo, ao inesperado. A Dra. K-Ross, por exemplo,
nos surpreendeu quando declarou sobre si mesma:
Eu era uma daquelas médicas cientistas que nunca questionaram as
questões relacionadas à morte, a não ser nos aspectos ligados a
medicina [...] Mesmo sendo uma pessoa não muito crente e céptica, e
não interessada nas questões da vida após a morte, não pude evitar
de ficar impressionada com algumas observações que ocorriam
freqüentemente ... Daí comecei a ponderar por que ninguém jamais
havia estudado as verdadeiras questões acerca da morte e um dia
me peguei dizendo a um ministro religioso que trabalhava comigo e
fazia parte da equipe hospitalar (falei em tom de desafio): ‘Vou
prometer a Deus viver o bastante para encontrar uma definição da
morte [...] Vocês que estão sempre em cima do púlpito pregando
peçam e receberão, ‘Vou lhe pedir agora: ajude-me a pesquisar sobre
a morte’. (KÜBLER-ROSS, 1998, p. 43)
Em sua autobiografia (1998), Elisabeth Kübler-Ross nos presenteia com várias
reflexões e comentários em torno do sentido da vida, do sentido da morte, do sentido
do sofrimento e de outros aspectos essenciais da existência humana.
Surpreendeu-nos também, a sua coragem, a sua sagrada ousadia em
desnudar-se perante os seus leitores, trazendo reflexões de natureza extremamente
íntimas do seu ser, inclusive relatando uma “viagem” muito especial, tipo E.Q.M., que
teve repercussões muito profundas. Consideramos significativo transcrevê-la
literalmente:
71
Quando uma pessoa faz a transição, no momento da morte, ou tem
uma experiência de quase-morte, ela viaja para o Outro Lado,
passando através do que descrevem como um túnel ou um portão,
uma ponte, uma campina, e o que elas contam parece ter ligação
com a cultura em que vivem. Em minhas experiências de quase-
morte, como sou uma montanhesa suíça, passei através do que
parecia um lindo desfiladeiro ladeado por belas flores campestres.
Feita a travessia, uma Luz, como uma estrela brilhante aparece na
distância. A pessoa anda na direção dessa Luz. Para mim, esse foi
um momento muito emocionante, um dos pontos mais altos de toda
minha vida. Corri para a Luz e atirei-me no meio dela. Literalmente
me fundi com ela, e foi como ser envolvida por uma onde amor. De
súbito, tomei consciência de que estava em Casa, que fazia parte da
Luz, que aquela era minha origem. Meu único desejo era ficar no
amor daquela Luz, mas não era minha hora de fazer a transição,
então tive de voltar.Essa experiência me fez compreender que todas
as coisas estão ligadas. Somos todos filhos de um Pai, nosso
Criador. (KÜBLER-ROSS, 1998, p.29 e 30)
Esta vivência de “quase-morte” experenciada pela Dra. K-Ross (1999), se
enquadra no modelo típico de “experiência quase morte” (E.Q.M), fenômeno que
vem sendo estudado por inúmeros pesquisadores norte-americanos e europeus.
Porém, a Dra. K-Ross declara que viveu algumas outras experiências “extra-
sensoriais” do tipo, por exemplo, “experiência-fora-do-corpo” (E.F.C), esta inclusive,
desejada e procurada por ela conscientemente. Ela foi monitorada
experimentalmente por cientistas pesquisadores do Instituto Monroe. Conta-nos ela
(1999), que ficou muito satisfeita com a estrutura física do Centro de Pesquisa
Monroe, seu laboratório era ultramoderno, com equipamentos eletrônicos e
monitores, “um tipo de coisa que me deu uma impressão de credibilidade” (KÜBLER-
ROSS, 1998, p.241).
Foi muito interessante entrar em contato com os diversos relatos e
experiências da Dra. K-Ross. Porém, o que consideramos mais importante, foram as
experiências que constam na obra citada. Conta-nos K-Ross que estava em sua
cama, “quase completamente acordada”, quando percebeu que era noite, respirou
fundo, olhou o tempo, olhou mais uma vez “para a noite escura” e percebeu que seu
abdome começava a “vibrar numa rapidez crescente”, pouco depois se via “de
fora”, a se observar, foi quando tomou consciência de que havia,
involuntariamente, “deixado” seu “corpo físico” e se “transformado em energia”.
72
E, diante de mim, vi muitas flores de lótus incrivelmente belas. Essas
flores abriram-se bem devagar e tornaram-se mais luminosas, mais
coloridas e perfeitas, transformando-se pouco a pouco em uma única,
enorme e deslumbrante flor de lótus. Por trás da flor, vi uma luz - de
um fulgor indizível e totalmente etérea, a mesma luz que todos os
meus pacientes contavam ter visto. Sabia que teria de atravessar a
flor gigantesca e integrar-me à luz.
(KÜBLER-ROSS, 1998, p.242)
A Dra. K-Ross relata que não sentia nenhuma pressa, e graças a sua peculiar
curiosidade em relação ao desconhecido, permitiu-se, sem resistência, entregar-se
completamente àquela atmosfera de paz, beleza e serenidade indescritíveis que a
envolvia. Ainda segundo seu relato, ela se percebia observando tudo que se passava
“com uma grande admiração e respeito”, pois intuia que tudo ali “tinha uma vida
própria e uma natureza divina”.
Durante todo o tempo, continuei a avançar lentamente através da flor
de lótus em direção à luz. Por fim, fundi-me com a luz, fui uma com o
amor, com o calor. Um milhão de orgasmos incessantes não podem
reproduzir a sensação de amor, calor e boas-vindas que
experimentei. Então, ouvi duas vozes. A primeira era a minha própria,
dizendo: ‘sou aceita por Ele’. A segunda, que vinha de algum outro
lugar e era um mistério para mim, dizia: ‘Shanti Nilaya’. (KÜBLER-
ROSS, 1998, p.242)
No dia seguinte, segundo ela, as experiências “extra-sensoriais” continuaram.
Ela nos diz que continuava com uma sensibilidade especial, vendo:
cada folha, cada borboleta e cada pedra vibrando em sua estrutura
molecular. Foi a maior sensação de êxtase que uma pessoa poderia
experimentar. Estava tão cheia de admiração reverente por tudo o
que me cercava, tão cheia de amor por tudo o que havia na vida, que,
como Jesus, que andou sobre as águas, senti como se passasse por
cima das pedras e pedregulhos do caminho num intenso estado de
beatitude [...] Gradualmente, ao longo de vários dias, esse estado de
graça foi diminuindo. Foi muito difícil voltar às tarefas domésticas
rotineiras e dirigir um carro, coisas que me pareceram então
demasiado banais. (KÜBLER-ROSS, 1998,p.242)
Este depoimento da Dra. K-Ross remete-nos para várias leituras que fizemos
sobre algumas pesquisas realizadas por médicos e psicólogos que estão trabalhando
73
um tipo de experiência que já vem sendo reconhecida pela comunidade científica, a
EQM Experiência de Quase Morte
*
. Assim como a Dra. K-Ross, os pesquisadores
Raymond Moody, Kennet Ring, Margot Grey, Paul Perry e Melvin Morse, entre
outros, identificaram nos casos analisados por eles, que as pessoas ao retornarem
ao seu estado de consciência habitual, quase sempre sentiam-se desconfortáveis e
inconformadas, a partir de um nítido sentimento de insatisfação, quase “choque”, em
relação ao contraste percebido entre a magnitude de tudo o que vivenciaram na nova
experiência e as limitações concretas da sua vida pessoal. É como se muitas delas
precisassem de um tempo de adaptação para se reintegrarem a sua realidade
familiar e social.
Entre os sujeitos pesquisados, supomos que Edite exemplifica muito bem
alguns aspectos das situações relatadas pelos pesquisadores acima citados, e
especificamente, dois aspectos da situação vivida pela Dra. K-Ross, quando nos
revelou que “um milhão de orgasmos incessantes o podem reproduzir a sensação
de amor, calor e boas vindas”, que experimentou. Bem como que “o estado de graça
foi diminuindo... e foi muito difícil voltar às tarefas rotineiras”. Vejamos textualmente o
que nos disse Edite, uma senhora de sessenta e sete anos, católica, viúva, de nível
cultural e social elevado, poliglota e cuja formação acadêmica superior aconteceu
nos EUA, mais de quatro décadas, motivada pela qualidade que seus pais
desejavam imprimir a sua educação:
eu sentia tudo com todo o meu ser e também visceralmente, era uma
alegria tão imensa que se tornava quase insuportável, bem como,
uma dor dilacerante, a maior que já senti em toda minha vida, quando
percebi que como não havia morrido, teria que voltar e me separar
daquela felicidade indescritível, incomensurável. Eu não queria de
modo algum retornar à vida aqui na Terra. [...] o mundo parecia-me
limitado demais, empobrecido... tudo brilhava, tudo era luminoso!
O amor e a beleza pareciam envolver todas as coisas... as plantas, as
pedras, o ar... tudo era fantástico demais e incompreensível para
quem não viveu. (Entrevista Edite)
*
Mais sobre esse assunto no item 4.3
74
Nos depoimentos da Dra. K-Ross e de Edite, uma das nossas entrevistadas,
nos chama a atenção, a qualidade de inefabilidade e sutileza das imagens descritas
por ambas: seus relatos, dão-nos a impressão de que as experiências vividas por
elas são de natureza extra-sensorial ou paranormal como costumamos classificar em
nossa cultura.
Entrar em contato com os relatos das experiências dos psicólogos
transpessoais, assim como as experiências da Dra. K-Ross, faz-nos supor que eles
são reveladores de realidades alternativas, “estranhas” e excluídas do nosso
contexto científico clássico, onde certos níveis de realidade, como estes, foram
descartados sobre o pretexto de que não podiam ser apreendidos pela razão e pelos
sentidos “passaram a ser consideradas as únicas faculdades cognitivas capazes
de permitir o acesso a um conhecimento verdadeiro, toda ou quase toda a atenção
da pesquisa humana passou a ser dirigida para um único nível de realidade, o nível
sensível, que, evidentemente, foi imensamente enriquecido”. (SOMMERMAN, 2006,
p.19)
Porém, dentro da perspectiva trazida por Américo Sommerman quando o
homem se utiliza apenas da sua faculdade discursiva analítica, termina por
fragmentar “cada vez mais esse nível do real, pensando com isso poder
compreender o todo a partir da decomposição das partes...” (SOMMERMAN, 2006,
p. 20)
Nossa esperança é dentro em breve nos tornarmos competentes o suficiente
para analisarmos os fenômenos mais complexos da nossa existência, a partir,
possivelmente, de uma posição epistemológica pluralista, como é o caso da
abordagem transdisciplinar, que nos parece uma visão profundamente inclusiva, por
acolher e tentar encontrar sentidos nas contradições dos fenômenos complexos da
existência. Trabalhar com fenômeno morte implica em disposição interna e coragem
para nos defrontarmos com realidades complexas que exigem um múltiplo olhar e
abertura a um contexto extremamente complexo de realidades muitiplas. Segundo
Sommerman:
o pensamento transdisciplinar possibilita uma dança entre as
diferentes posições epistemológicas. É uma dança que não se dar
75
sem atrito. Ao contrario, faz com que as contradições apareçam a
todo momento, mas, em vez de descartá-las busca tratá-las com
uma metodologia que se apóia em três pilares que respeitam os
contraditórios e, ao mesmo tempo, permitem o surgimento de um
novo olhar que integrem as contradições num nível superior...
(SOMMERMAN , 2006,p. 21)
Optamos por colocar, nesta dissertação, esses relatos da Dra. K-Ross, por
representarem uma oportunidade de, como psicóloga e pesquisadora, podermos
compreender não intuitivamente, mas também de modo cognitivo, as vivências
consideradas “incomuns” relatadas pelos nossos entrevistados.
76
5 RELAÇÃO ENTRE O MEDO DA MORTE E A ESCATOLOGIA
Este capítulo se divide em quatro itens. No primeiro, apresentamos parte de
uma pesquisa realizada pelo teólogo Renold Blank acerca do medo da morte; no
segundo item, encontram-se essencialmente as idéias de Comblin analisando a
repercussão de uma teologia baseada na culpa e no medo; no terceiro item,
contamos com a contribuição de alguns teólogos cristãos apontam para a
necessidade de um novo olhar sobre a teologia, principalmente no que concerne a
sua dimensão escatológica; no quarto item, apresentamos alguns resultados de um
médico pesquisador que em sua prática clínica, obteve dados que podem nos ajudar
nessa quebra de paradigma, reforçando a imagem de um Deus misericordioso.
5.1 O MEDO DA MORTE NA PERSPECTIVA DE RENOLD BLANK
Muitas pesquisas vêm sendo realizadas nas últimas décadas, com o objetivo de
estudar acerca da sobrevivência após a morte, bem como sobre a crença ou
desinteresse do ser humano, da atualidade, sobre este tema. Pretendemos - ao
longo deste trabalho - trazer à tona os resultados de algumas pesquisas relacionadas
com a questão da morte e o pós-morte, realizadas por médicos, psicólogos e
teólogos.
Renold Blank, como professor e doutor em teologia, tinha como uma de suas
maiores preocupações o desejo de saber o nível de “aceitação ou de rejeição do
homem contemporâneo em relação ao que se diz sobre o destino humano depois da
vida” (BLANK, 1995, p.07).
Em sua obra já referida, ele deixa muito claro que deseja ardentemente
transmitir aos homens, dessa época, uma mensagem de esperança sobre a morte.
Surgiram, no entanto, na sua mente e talvez no seu coração de educador,
indagações que consideramos bastante significativas:
77
Como transmitir a dinâmica de esperança do discurso escatológico
cristão, se nem se conhece, com certeza, os verdadeiros anseios
desses homens em face da questão? Como acentuar a dimensão
libertadora dessa esperança se não se sabe sequer, o grau de medo,
de rejeição ou de individualização que o discurso escatológico atingiu
nas diversas camadas da população? (BLANK, 1995, p.08)
Ao longo de sua obra, ele se mostra preocupado com o homem atual, no
sentido de que um desconhecimento de como o homem religioso na atualidade
“está reagindo a um discurso que muitas vezes no passado e ainda no presente
dava e dá mais ênfase às ameaças pedagógicas de punição do que a uma
mensagem de esperança”. (BLANK, 1995, p.08)
Belita, por exemplo, uma de nossas entrevistadas, com setenta e cinco anos, é
a mostra da situação de repressão e dominação pelo medo vivida desde a década de
quarenta, do século passado, quando, tanto na escola dominical de sua igreja
evangélica tradicional, quanto nas instituições religiosas de ensino que freqüentou,
recebeu maciçamente a influência de uma pedagogia baseada quase que
completamente no medo. Como profissional aposentada, dedica seu tempo a ler e
debater, entre amigos, os livros mais recentes que versam sobre a questão religiosa
no mundo. Percebe-se como uma pessoa verdadeiramente ecumênica, por achar
que toda e qualquer religião pode representar um caminho de religação do ser
humano com Deus. Quando indagada a respeito de sua religião, insistiu em que
colocássemos que ela não tinha religião definida, pelo simples fato de não desejar
ficar limitada pelos dogmas ou expectativas de qualquer credo religioso. Ela afirma
que, hoje, o que mais quer é poder exercer a:
liberdade de questionar, de alterar; hoje eu vivo e quero continuar
vivendo dentro de uma atmosfera de relativa certeza... quero hoje
pensar de um jeito e amanhã me dar o direito de questionar... de
mudar aquela mesma certeza... por estar imbuída de que se trata de
uma certeza aparente e provisória... [...] hoje, agora, nesse
momento... pensando melhor neste passado fico admirada de como
eu agüentei até uma idade bem amadurecida estar bitolada aos
valores da minha religião, pois eram rígidos demais, muito
semelhante às regras de um quartel, ou pior, de um campo de
78
concentração... [...] Olhe, lembrei de uma musiquinha que a gente na
escola dominical cantava: “cuidado mãozinha no que pega... cuidado
boquinha no que fala... cuidado olhinho no que vê... cuidado pezinho
onde pisa... o Salvador do Céu esta olhando pra você...” Você
imagina [...] o que é uma criança sensível, como eu era, ser criada
num clima de repressão desse, onde eu sentia medo de tudo e de
todos... ao invés de me passarem um Deus de amor, me passavam
um Deus “terror”, que vigiava e estava pronto a punir mesmo pelas
pequenas faltas... foi até bom eu lembrar dessas coisas agora,
porque eu entendo melhor porque passei tantos anos afastada de
Deus e da religião... (Entrevista Belita)
Diante desse depoimento, fica confirmado a importância da preocupação de
Blank com as mensagens escatológicas que estão sendo repassadas, ainda hoje,
pelas religiões. Segundo ele, faz-se necessário que tais mensagens sejam
transmitidas numa linguagem
que possa ser compreendida pelo homem desta época pós-industrial
[...] É preciso que nossa fé muitas vezes ingênua e ligada a símbolos
passados e tradicionais, se atualize constantemente para poder
sobreviver em um mundo altamente técnico [...] constata-se cada vez
mais uma cisão acentuada entre o discursso dogmático da fé e a
aceitação deste discursso por parte dos próprios fiéis. (BLANK, 1995,
p.08 e 09)
pesquisas realizadas na Alemanha, através do Instituto de Demoscopia, e
na Suíça, que revelam: parcelas significativas da população, 48% e 36%,
respectivamente, acreditavam, na época da pesquisa, numa vida após a morte. No
Brasil, este índice subiu consideravelmente para 74%. A partir deste contexto, Blank
refletindo sobre esses resultados, decidiu desenvolver uma pesquisa de campo no
período de 1989 a 1992, no decorrer do qual foram entrevistadas 823 pessoas de
todos os estratos sociais, na cidade de São Paulo. Façamos algumas considerações
a respeito de algumas constatações de Blank em sua pesquisa.
Em comparação com as pessoas que não praticam a religião, os praticantes
têm significativamente mais medo da morte.
79
Existe uma correlação entre as ameaças religiosas da doutrina sobre a vida
depois da morte e o medo desta.
Tais resultados causaram estranheza ao referido pesquisador, pois vão de
encontro à “mensagem teológica de esperança” que, na opinião dele, deveria ser
considerada a mensagem central das religiões. Blank também questiona se uma fé,
baseada na confiança em um Deus que quer a salvação dos seres humanos, não
deveria também diminuir aquele medo que todo homem sente diante da morte.
Os resultados também contrariam Kastenbaum e Aisenberg, tanatólogos e
psicólogos, que afirmam “a crença em Deus e os rituais de suporte têm a função
primária de reduzir a apreensão em face da morte”. (KASTENBAUM E AISENBERG,
1983, p.31)
Refletindo acerca desses comentários e resultados aqui descritos, vem à nossa
mente, Lisete, a nossa entrevistada, católica fervorosa, de comunhão dominical e
vida cotidiana perpassada completamente por atitudes religiosas, foi a que mais
demonstrou medo em relação à morte, além de um profundo sentimento de culpa e
pavor em relação à punição que certamente virá para ela, pois, além de não se achar
“merecedora de ir, quando morrer, direto para junto de Deus”, também percebe Deus
como um ser “misericordioso., mas [...] é muito exigente também [...], quer que a
gente ponha Ele em primeiro lugar em tudo!” (Entrevista Lisete)
Voltando a refletir sobre a inquietação de Blank quando constatou que a grande
maioria das pessoas religiosas “praticantes” não espelharam a “esperança vitoriosa”
que supunha, ele volta a indagar se os motivos não estariam ligados às imagens
apocalípticas repassadas pela doutrina cristã, citando, inclusive, o estudo clássico
sobre a morte, de Herbert Vorgrimler, que afirma de maneira bem clara o seguinte:
As imagens espantosas da literatura apocalíptica do Juízo Final e da
punição cruel dos pecadores [...] não alcançaram o objetivo
pedagógico para o qual eram compostas [...] Elas eram, porém, o
motivo principal que faz com que, sob o efeito do pensamento
moderno emancipatório, a morte se torne tabu também para os
cristãos. (HEBERT VORGRIMLER apud BLANK, 1995, p. 35)
80
Portanto, na perspectiva de Blank, a mensagem da esperança cristã de que a
morte possibilita um encontro com Jesus e, posteriormente, sua permanência com
Ele, nunca era percebida pela maioria dos cristãos, que apenas registravam as
espantosas imagens apocalípticas.
O que nos faz deduzir que, quanto menos impregnada de medo for a
representação dos conceitos escatológicos, mais eles serão capazes de agir como
impulsos vitais de esperança, conclui Blank reafirmando sua posição ao trazer uma
citação de Walbert Buehlmann : “Uma religião que abandona aquele que deve morrer
e não o ajuda a vencer a morte em vez de deixar-se subjugar por ela, uma tal religião
liquidou-se a si mesma”.(BUEHLMANN apud BLANK, 1995, p.50)
Em suas pesquisas, Blank foi além, pesquisando mais que o medo da morte,
desbruçando-se também nos conceitos escatológicos de “céu”, “inferno” e
“purgatório”. E constatou que a crença na continuidade da vida após a morte, ao
invés de ser fator de libertação do medo, ou pelo menos trazer alívio diante dele,
acrescentou-lhe novas dimensões, o que vem a ser indício de que o conteúdo das
noções escatológicas são elementos que podem despertar antigos focos de medos
latentes, recalcados no inconciente, com suas raízes “numa história de séculos, na
qual, de fato, (...) provocaram angústias profundas diante da questão do destino
último do homem”. (BLANK, 1995, p.56)
Novamente, surge-nos a imagem de Lisete, envolvida em grimas nos
dizendo com voz embargada que:
Estou tremendo de tanto chorar porque tenho receio de ser, por conta
das minhas faltas, impedida de me encontrar com os meus pais ou de
nunca poder ver os meus filhos e netos aqui na terra. Isso me causa
tanto sofrimento que eu nem sei como vou suportar [...] eu não tenho
pecados graves [...]mas a igreja ensina que se peca por
pensamentos, palavras, atitudes e omissão... e é justamente a
omissão que eu considero que talvez seja a minha maior falta para
com Deus, e por isso serei castigada mas, acho que é para minha
purificação. (Entrevista Lisete)
Leônia também nos fala dos seus medos:
81
Sofri intensamente por anos a fio, durante um bom período da minha
infância, envolvida por mil sentimentos de culpa... Perdi muito tempo
da minha infância vivendo sem alegria e com medo, pavor dos
castigos do inferno... (Entrevista Leônia)
Encontramos, na obra de Blank, outra constatação que supomos ser
importante para nossos estudos, no contexto desta pesquisa, é a de que:
Ao comparar as atitudes do medo concientemente declarado entre grupos de
“católicos”, “protestantes” e adeptos de “religiões afro-brasileiras” ante as
noções escatológicas pesquisadas, o pesquisador percebeu que, em face das
noções escatológicas “céu”, “inferno”, “purgatório” e “julgamento”, a
porcentagem dos católicos que revelaram medo, foi bem maior do que a
porcentagem dos protestantes e dos adeptos de cultos afro-brasileiros, o que
levou Blank a supor que a explicação para tais resultados, estariam:
basicamente no enfoque diferente, a partir do qual se transmite ou,
pelo menos, foi transmitida no passado a mensagem sobre o além-
morte[...]Parece evidente que, para os católicos, o conteúdo das
noções escatológicas torna-se muito mais carregado de um potencial
de medo do que para os adeptos de outras religiões. Acrescenta-se
ainda a este fato uma maior acentuação da noção de pecado, como
ocorre principalmente com relação ao sacramento da penitência.
(BLANK, 1995, p.58)
Esses resultados nos interessam sobretudo porque percebemos que uma
relação direta entre o nível elevado de medo diante das perspectivas escatológicas e
a preocupação que sentimos como profissionais que acolhemos e cuidamos de
pessoas na iminência da morte. Consideramos que os momentos que antecedem a
“passagem”do ser humano para outra dimensão são extremamente delicados,
requerendo do “cuidador” muita perspicacia, sensibilidade e capacidadae profunda
de escuta, pois na maioria das situações, aqueles que estão “partindo” podem estar
sofrendo desesperadamente por conta do medo e do pavor que tendem a invadir o
seu ser.
Walbert Buehlmann, professor de Ciências Missionárias e ex-Secretário Geral
82
da Ordem dos Capuchinhos para a animação missionária, faz um comentário que, no
nosso entender, pode se relacionar as preocupações a que nos referimos acima. Diz
ele:
Enquanto Lutero resolveu a enigmática situação do homem que está
entregue ao pecado, pelo salto na misericórdia absoluta de um Deus
clemente, a Igreja provocou nos seus fiéis um medo/pânico perante o
morrer e o Inferno. E um fato demonstrado pela experiência
freqüentemente feita nos hospitais é que são mais as pessoas
ligadas à Igreja que morrem com maior inquietação, do que as pes-
soas sem ligação eclesial. (BUEHLMANN apud BLANK, 1995,p.36)
Ainda dentro dessa problemática específica, Blank nos traz comentários do livro
Estruturas do Mal de Eugen Drewermann:
sob a pressão do superego, a religião [...] pode tornar-se para o
indivíduo uma fonte especial de medo existencial, de sentimento de
culpa [...] E deve-se admitir que a entrega do indivíduo ao superego,
em muitas religiões não representa só um problema individual e
neurótico. Toda instituição, também a religiosa, tem um interesse
explícito de cimentar-se pelo medo de sanções, vindas de um
superego draconiano e de fazer-se inatacável pelo fato de o ‘eu’ ficar
dependente de tabus de pensamento fortemente fixados”. (BLANK,
1995, p.361 a 362)
Um outro resultado da pesquisa de Blank, que nos interessa, é de que “a
imagem de um Deus juiz e credor que, no momento da morte, cobra as contas”, faz
parte do imaginário das pessoas que se consideram “religiosas praticantes”.
Supomos também interessante pontuar que a imagem de um Deus “tirânico e
legalista” que pune em nome da justiça (Deus “justo”), surgiram na pesquisa de
Blank, com mais frequência entre os mais “praticantes” da religião. É do próprio
pesquisador o comentário que citaremos a seguir:
83
Chegou-se, a partir da análise dos dados respectivos, à conclusão de
que, para uma faixa considerável de população de São Paulo, Deus é
identificado mesmo, com aquela imagem que foi definida por Ronaldo
Mufioz com as seguintes palavras: “Um Deus castigador... um Deus
de ira, cruel”. A teodicéia deste Deus é “de tipo jurídico ou penal, de
onde resulta a imagem de um Deus Juiz que ‘deve’ aplicar as penas
conforme uma lei positiva, automaticamente, ou de um Deus Credor
que quando morremos nos cobra as contas marcadas por seu
computador infalível. (BLANK, 1995, p.365)
Lisete, uma de nossas entrevistadas, em suas falas, demonstra uma nítida
contradição, ora imaginando que Deus poderá castigá-la severamente por sua
falhas, mesmo que não sejam consideradas como “pecados mortais”, de acordo com
o que aprendeu com ensinamentos da Igreja Católica. Em outros momentos, porém,
supõe que talvez os castigos não sejam tão severos assim, “com fogo”... Talvez ela
sofrer tremendamente “de solidão”, de ser impedida de se encontrar com as
pessoas que ama e que morreram, ou de nunca poder ver os seus filhos e netos,
aqui na Terra. Mas o que nos chamou atenção, na situação de Lisete, foi que apesar
dela considerar o suposto “castigo da solidão”, algo mais leve, mesmo assim, caiu
em prantos, literalmente, e as lágrimas rolavam em cascata pelo seu rosto, de modo
que ela usou a própria saia que usava para limpar-se. Este “castigo de solidão” seria
mais leve em relação a que outro tipo de punição? Supomos que é a própria Lisete
que nos dá a resposta, quando admite a possibilidade de “existir um inferno com fogo
concretamente [...], inferno que dizem que é eterno. [...] Tenho a impressão que não
vou sofrer as penas, o castigo do inferno... Mas não tenho certeza não...” (Entrevista
Lisete)
Alcides, apesar de seus oitenta e oito anos, com a força corpórea
comprometida, apresentava um desejo intenso de viver, que se refletia em muitas de
suas atitudes no seu cotidiano. Era o primeiro que chegava ao “grupo de idosos” e
que sozinho arrumava o salão onde eram realizados os encontros. Sentia um
verdadeiro pavor em relação à morte: “Pelo meu gosto eu vivia 100, 200, 300, 600
anos. [...] Deus vem para levar a gente, eu tenho que ir mesmo, mas lhe digo,
vou a pulso, só vou se for amarrado, porque é o jeito mesmo.” (Entrevista Alcides)
Também ele, parecido com Lisete, sente muito medo da solidão, que presume
84
viverá no “além”, bem como do sofrimento que lhe será dado por Deus, por conta dos
seus pecados e, por isso, repetiu freqüentemente: “a pior vida do mundo é melhor do
que morrer”. Alcides, possivelmente por conta do contexto cio-cultural-religioso em
que foi socializado, desde a mais tenra infância, construiu uma imagem de Deus
como um ser “tirânico” e “legalista” (BLANK, 1995), pois dedicava muito do seu
tempo a pensar em suas falhas, nos erros que cometeu no tempo de juventude,
alimentando culpas que geravam muito medo, em relação aos castigos que lhe
seriam impingidos por Deus.
O que a gente vai encontrar do lado de lá, a gente não sabe [...], mas
eu acho que inferno mesmo não tem não, nem um diabo que
pessoalmente leva a gente para o inferno... Mas eu penso que vou
sofrer um bocado, vou ter algum castigo, porque eu fui muito farrista,
mulherengo [...], já fiz muita moça chorar, namorava e por qualquer
coisa deixava para lá, eu não me apegava, queria a liberdade...
Hoje fico pensando muito naquelas moças que gostavam tanto de
mim... Vai passando tudo na minha cabeça, como num filme. Lembro
de todas... As bichinhas ficavam doidas por mim, eu era bonito sabia?
Diziam que eu era muito bonito e tinha muita lábia e enrolava demais
todas as meninas... (Entrevista Alcides)
Segundo Eugen Biser (apud BLANK, 1995), a raiz mais profunda de todas as
angústias existenciais é o medo de Deus. Biser, identificou a presença deste medo
entrando em contato com a história das religiões. Em sua obra, tece reflexões que
muito se adequam aos resultados obtidos através da pesquisa realizada por Blank.
Os motivos pelos quais grande parcela dos cristãos sentem medo na sua forma
de vivenciar a religiosidade, provavelmente têm sua raiz na permanência de uma
teologia que continua inspirando medo. Ela não conseguiu substituir as antigas idéias
ameaçadoras, por imagens de um Deus da esperança e misericordia, como propõe a
teologia da libertação. É uma teologia que, como diz Paul Ricoeur (apud BLANK,
1995), força nas coordenadas rígidas de uma teologia de punição, tudo aquilo que se
chama graça, reconciliação e amor.
No nosso entender, todos os comentáios e contribuições de Blank sugerem que
o medo diante de Deus seria algo construído, “engendrado” entre nós mesmos, pois
é o próprio homem que se deixa impregnar de medo quando assimila uma teologia
85
que se baseia no êxito, no erro e na punição. Blank (1995), comenta que um Deus de
ternura e de amor foi prenunciado nos textos do Antigo Testamento e confirmado
por Jesus Cristo: “Tu, porém, és o Deus que perdoa, cheio de piedade e compaixão,
lento para a ira e cheio de amor” (Ne 9,17).
Refletindo sobre esse último comentário de Blank, perguntamo-nos: haveria
uma coerência a respeito do amor e da misericórdia divina, nos diversos textos
religiosos, inclusive bíblicos? Seguramente a resposta seria negativa para todo
aquele que se dispuser a pesquisar a própria Bíblia, quer seja ela católica ou
protestante; pois nela, há textos que podem chocar muitos cristãos que se aventuram
numa jornada de leitura.
É o próprio Blank quem compara alguns trechos bíblicos onde ora emerge o
amor de Deus, ora surge de forma aguda a sua ira, o seu rigor e a sua vingança.
Leiamos e pensemos neste texto trazido pelo próprio pesquisador, que fazia parte
obrigatória da sequência oracional das missas dos defuntos.
“Dia de ira aquele dia
Que tudo em cinzas fará,
Diz Davi e a Sibila.
Que temor há de então ser
Quando o juiz vier
Julgar tudo com rigor!
O som forte da trombeta
Entre os jazigos dos mortos
Junto ao trono os levará.
Todo o mundo há de pasmar
Quando a criatura se erguer
Para responder ao Juiz.
Um livro será trazido
No qual tudo está contido
Por onde há de ser julgado o mundo.
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Quando o Juiz se sentar
Todo o oculto há de aparecer,
Nada impune ficará.
Que eu, pobre, então hei de dizer?
A quem hei de recorrer,
Se nem o justo está seguro?
Juiz justo e de vingança,
Dai-me o dom de vossa graça
Antes que vá a juízo.
Gemo, como réu;
Não me abandoneis ao fogo.”
(Missal cotidiano e vesperal, Bruges, 1957 apud BLANK, 1995)
Ao ler esta oração, lembramo-nos de uma das falas da entrevistada Belita, que
mesmo aos setenta e cinco anos, e com título de mestre, ainda sente indignação,
quando lembra das orações contidas e que de certo modo eram-lhe impostas na
igreja de sua pertença religiosa.
Pensando melhor neste passado, fico admirada como eu agüentei,
até uma idade bem amadurecida, estar bitolada aos valores da minha
religião, que eram rígidos demais [...] Lembro-me agora que na sala
de jantar de minha casa tinha um quadro com estas palavras: ‘O
cabeça desta casa é Cristo, nosso Senhor, Hóspede bem vindo de
todas as refeições. Ouvinte silencioso de todas as nossas palavras,
vigia constante ainda que invisível registrando as nossas ações.’ Veja
que horror... Um Deus que vigia, que policia, que pune... Um Deus
que vê ainda que invisível... Não é de meter medo em qualquer
criança? E você, como psicóloga, sabe o quanto isso a gente leva
para a vida adulta, não é? (Entrevista Belita)
Como avaliar a repercussão de textos como estes, que representam um tipo de
teologia que imprime medo, pavor e culpa no inconsciente das pessoas? Um tipo de
teologia assim, gerou e ainda gera no inconsciente do ser humano a imagem de um
Deus cruel e sedento de vingança. Blank traz um comentário bastante pertinente:
87
Contra este Deus, o único recurso é uma conduta de vida impecável,
porque é conforme esta vida que Deus agirá com a justiça retributiva
de um vingador. O medo assim provocado pode tornar-se um
verdadeiro terror de Deus, um terror muitas vezes inconsciente, mas
que por isso não deixa de mostrar todas aquelas características que
Sergio Felici, resume nas seguintes características: ‘O terror não
liberta, mas oprime e inibe. Ele produz remorsos. E os remorsos
impedem de crescer, seja como ser humano, seja como cristão’.
(BLANK, 1995, p.105)
Analisemos algumas outras orações, pelo menos em voga a a época do
Vaticano Segundo. Orações rezadas principalmente em missas de “corpo presente”:
“Não julgues o teu servo, ó Deus,
porque nenhum ser humano pode ser justificado perante ti,
se não recebe de ti a remissão de todos os seus pecados.
Em razão disso pedimos que a tua sentença não o esmague,
mas que a tua graça lhe dê ajuda,
para que assim possa escapar de teu julgamento vingador...”
“Liberta-me, Deus, da morte eterna,
naquele dia terrível
em que o céu e a terra tremerão
em que tu vens para julgar o mundo pelo fogo.
Eu fico tremendo de medo,
quando se aproxima a apresentação
de tua ira ameaçadora.
Ai deste dia!
Dia da ira, dia da calamidade, dia da miséria.
Dia tão grande e tão amargo,
Em que tu vens para julgar o mundo pelo fogo”
88
O que pensar da repercussão de orações deste tipo, no imaginário e na
subjetividades das pessoas? Supomos que tende a gerar sentimentos extremamente
ambivalentes capazes de “neurotizar”, causando sentimentos de extremo sofrimento,
possíveis de serem evitados... Vejamos, por exemplo, a confusão interior que pode
causar imagens o contraditórias em relação a um mesmo Deus: Foi-nos passado
que Deus Pai é um ser que nos ama tanto, a ponto de enviar o seu único filho para
sofrer e morrer pela humanidade. No entanto, somos estimulados a orar suplicando
para que o juízo de Deus não esmague o ser humano, deixando assim, em aberto, a
possibilidade de um Deus cruel, ansioso por se vingar, na hora do julgamento final.
Talvez muitos de nós pense que isso é coisa do passado. Em absoluto!
Podemos afirmar que atualmente ainda são muitos os ministros religiosos que
evangelizam baseando-se nos principios neurotizantes do medo e da culpa.
Afirmamos isto, a partir da experiência com esta própria pesquisa que resultou nesta
dissertação.
algum tempo, fomos ao encontro de um sacerdote muito bem conceituado
pelos cristãos de sua paróquia, por valorizar, segundo eles, a psicologia e pedagogia
em seus sermões de evangelização. Ao chegar à igreja, sofremos um forte impacto
quando nos deparamos com um curso que estava sendo ministrado por um médico
cristão; o tema daquela palestra (a primeira de um curso) era “escatologia”, o que a
principio nos motivou. Para não interromper a atmosfera reinante naquele ambiente,
decidimos aguardar pelo pároco que muito atentamente fazia parte da platéia de
ouvintes. As idéias que eram repassadas pelo referido médico eram tão escabrosas
quanto aquelas em que fui socializada no meu período de infância, ou seja, na
década de 50 do século XX, numa cidade do interior de Pernambuco.
De início, tentamos amenizar o impacto sofrido, imaginando que aquelas
imagens iriam posteriormente ser analisadas de forma critica pelo palestrante. Para
nossa surpresa, pórem, as imagens foram reforçadas por trechos trazidos pelo
referido médico e comentadas pelo pároco e por outras pessoas da platéia, dentro de
um estilo “clássico”, para não dizer medieval. Trechos de livros do educador João
Bosco e da “Doutora da Igreja” a Santa Tereza D’Ávila foram comentados com
muitos detalhes “reforçadores” de uma ideologia que passava medo e terror,
enfatizando a idéia de um “fogo que queimava”.
89
Terminada a aula, fomos carinhosamente apresentadas pelo pároco a um
grupo de pessoas mais ligadas à diocese, inclusive ao médico palestrante. Um outro
aspecto que nos chamou a atenção, é que duas psicólogas desse grupo faziam parte
também de um grupo de orações permanente, que tinha como objetivo orar pelas
sofridas almas do purgatório. Retornamos no outro dia, com o intuito de compreender
algo que naquele momento apenas nos causava estranheza. No final da palestra,
todos os participantes foram convidados a ir para o centro da nave (igreja) para
rezarem o terço, aliás, mais que o terço, o rosário, na intenção das almas do
purgatório. Confesso que ficamos perplexos em constatar que, na época atual,
pessoas de nível cultural elevado estavam se comprometendo, com toda seriedade,
a cuidarem das “sofridas” almas daqueles que faleceram e que, de acordo com as
crenças daquele grupo, estavam “penando” no purgatório. Lembramo-nos
perfeitamente que entre um “mistério” e outro do rosário havia uma jaculatória que
era repetida com fervor e comprenetração, em voz alta, por todos os presentes:
“Senhor Jesus, levai as almas todas para o céu, principalmente aquelas que mais
precisarem!”
Saímos com um sentimento de “pesar” ou “tristeza”, nem conseguimos
identificar ao certo, apenas lamentávamos intimamente por identificar que novamente
era o velho medo e a velha culpa que estavam sendo reproduzidos naquele
ambiente, influenciando fortemente a subjetividade daquelas pessoas.
No entanto, apesar da certeza íntima de que a imagem de um Deus que pune e
se vinga não faz bem a nenhuma pesssoa, quer seja criança, quer seja adulto. Uma
dúvida surge em nossa mente, ao lembrar que Renold Blank (1995), em uma de
suas obras, traz-nos também um trecho das profecias de Nossa Senhora De La
Salette. Trecho que nos causou estranheza e talvez por isso mesmo nos estimule a
posteriormente, refletir com profundidade acerca do seu significado. Vejamos um
trecho citado por Blank:
Os justos sofrerão muito; as suas orações, as suas penitências, as
suas lágrimas subirão ao céu. Todo o povo de Deus implorará
perdão e misericórdia e pedirá a minha ajuda e intercessão. Depois,
por um ato de sua justiça e de sua misericórdia para com os justos,
Cristo ordenará aos seus anjos para matar todos os seus inimigos.
90
Subitamente, os perseguidores de Cristo perecerão e a terra será
como um deserto. Ai dos sacerdotes e das pessoas consagradas
que, em razão de sua maldade, crucificaram de novo meu Filho! [...] a
vingança já aguarda à sua porta. Deus está preparado para abater de
uma maneira que não há igual [...] (BLANK, 1995, p. 57)
Presumimos que a leitura desses textos, considerados santos e sagrados,
são suficientes para representar o quanto a mensagem blica pode ser
transformada numa mensagem de ameaça, inspirando - através de suas imagens
dramáticas e terrificantes - sentimentos de insegurança e angústias da morte e
diante do misterioso “além”, o que nos leva a indagar: o que há por ser desvelado por
trás de tantas imagens escabrosas, imagens estas que constituem os conteúdos da
escatologia cristã?
Medarde Kehl (apud BLANK,1995) nos diz que tais imagens possivelmente
foram produzidas para inspirar medo em relação ao “juízo final” e às ameaças
terríveis teriam a finalidade de “dissuadir os pecadores do pecado”, principalmente
para afetar emocionalmente aqueles pecadores mais obstinados que resistem em se
converter, em se deixarem ser movidos pela bondade. Assim, a igreja com suas
imagens escrabosas, utilizava a pedagogia do medo, como meio eficaz para garantir
a estabilização do sistema, da instituição e, com isso, garantir o poder e a
dominação.
o fogo mais forte do mundo não pode ser comparado com o fogo do
inferno. O que o coitado do condenado pode fazer, submerso neste
mar, cujas ondas são de fogo? Para onde quer que fuja estará
cercado de nguas de fogo como cobras; o fogo o envolve, o fogo o
enche, o fogo o persegue como animais selvagens; o fogo o arde
sem o queimar. As suas torturas são inexpremíveis... (sermão n°90,
pasta c266, 4 apud BLANK, 1995, p. 59)
Este texto trazido por Blank, nos lembra um outro, que consta em uma das
obras de Jacques Le Goff, O Nascimento do Purgatório, onde diz-nos, entre outros
aspectos, que o nascimento do purgatório é um fenômeno da época da passagem do
século XII para o século XIII, referindo-se, inclusive, ao reaparecimento da topografia
91
do purgatório, agora na versão irlandesa, contando com detalhes que nas descrições
anteriores estavão ausentes. Conta-se no capítulo V da segunda parte da
Topographia Hibérnica, que um lago que divide uma ilha em duas partes. Numa
delas, a paisagem é bela e agradável, tendo uma igreja oficial e contando com a
presença freqüente de anjos e santos. A outra parte tem um caráter selvagem e
horripilante; seria a parte abandonada aos demônios. Possui nove buracos no chão
eai daquele que se atreve a passar a noite num deles. Pois sofrerá a influência dos
espíritos malignos e toda sorte de suplícios horríveis envolvidos por um fogo
indescritível. Fala-se que as almas podem passar por apenas para sofrerem os
suplícios e com isso cumprirem as suas penas, podendo algumas delas escapar das
penas infernais. (GOFF, 1981, p. 235)
Esses relatos nos levam a reflexões e remetem novamente aos nossos
entrevistados, dentre os quais, alguns nos disseram claramente que discordavam
das idéias escatológicas de suas religiões. A partir de nossas reflexões e análise,
constatamos que 50% da amostra sofreram a repercussão do contexto de medo e
manipulação ideológica das religiões cristãs. Lisete e Alcides, internalizando o medo
e alimentando a culpa; Edite, distanciando-se das cerimônias religiosas de sua igreja;
Amon e Leônia, reconfigurando, em parte, as suas identidades religiosas; Belita,
consciente da diferença, reconfigura completamente a sua identidade religiosa.
A psicologia enquanto ciência e enquanto método pedagógico afirma que,
quando as pessoas são tomadas pelo medo, as conseqüências se manifestarão,
provavelmente, na forma de agressão ou tendência de fuga. Qualquer pessoa
sensível e com o conhecimento mínimo de psicologia sabe que a tendência mais
natural do ser humano é fugir das situações e impulsos provocadores de medo. E os
profissionais de psicologia sabem que o mecanismo de defesa de fuga ou “evasão”
pode acontecer de modo inconsciente.
Partindo de alguns principios psicológicos, levantados neste texto e de
algumas reflexões que fizemos a partir da leitura de Bourdieu (2004), indagamo-nos
se as pessoas não temeriam a morte, entre outros fatores, por medo do que vão
encontrar na situação s-morte situação completamente tecida nas malhas da
ideologia ainda dominante em nossa cultura - Segundo Bourdieu, a religião está
predisposta a assumir:
92
uma função ideológica, função prática e política de absolutização do
relativo e de legitimação do arbitrário, que só poderá cumprir na
medida em que possa suprir uma função lógica e gnosiológica
consistente em reforçar a força material ou simbólica possível de ser
realizada por um grupo ou uma classe, assegurando a legitimação de
tudo que define socialmente este grupo ou esta classe. Em outros
termos, a religião permite a legitimação de todas as propriedades
características de um estilo de vida singular, propriedades arbitrárias
que se encontram objetivamente associadas a este grupo ou classe
na medida em que ele ocupa uma posição determinada na estrutura
social (efeito de consagração como sacralização pela “naturalização”
e pela eternização). (BOURDIEU, 2004, p. 46)
5.2 MEDO E CULPA: PILARES A SEREM DESCONSTRUÍDOS?
Comblin (1996), em sua obra, fala-nos que a partir das inúmeras crises pelas
quais a humanidade vem passando, e do diante imenso vazio da liberdade, tão
arduamente conquistada, ressurgiu, para surpresa de muitos, o interesse pelo
sagrado. Estamos envolvidos num nova “onda espiritualizante”. A religião retorna
com novo rosto, chegando multifacetada, multicolorida, como um caleidoscópio,
permitindo múltiplas configurações que dançam e brilham pedindo passagem,
acolhimento e reverência, ou no mínimo, respeito a sua existência.
Considerando que nossa prática profissional não é na área da ciência da
religião, sentimos surpresa, quando percebemos o quanto as religiões de alguns
entrevistados têm um caráter “multifacetado”, que reflete um certo movimento, uma
certa flutuação de alguns deles entre uma religião e outra. Lembramo-nos agora de
Amon, Leônia e Belita, que participaram dessa pesquisa como sujeitos. Elas
sentiram dificuldade de se definir em relação a sua religião de pertença, haja vista
que criaram, no momento da entrevista, uma nova denominação de religião, a partir
de uma referência interna, subjetiva.
De acordo com os valores de Comblin, a atmosfera ideal para a convivência
humana seria a de liberdade religiosa. Liberdade para buscar em todo o tempo que
93
se fizer necessário, aquela religião que responda melhor as indagações existenciais,
ou aquela que tocar mais profundamente a alma. Não mais aquela que retrata Deus
afirmando o seu poder, humilhando a criatura. Não mais uma religião que se baseia
numa teologia criada apenas para “legitimar a vontade arbitrária de Deus e a pura
afirmação de poder, como se esse poder fosse a garantia da ordem do mundo”
(COMBLIN, 1996, p. 333 e 336).
Também comunga com esta opinião de Comblin, um dos nossos
entrevistados, Belita, de origem religiosa evangélica tradicional, que viveu a uma
fase madura de sua existência completamente dentro dos padrões de sua religião, e
declarou, na entrevista, que um dia finalmente compreendeu a importância de
romper com os padrões que a aprisionavam.
Era isso que eu não suportava na minha religião de origem, acho que
não suportaria pertencer a nenhuma religião institucional, porque as
religiões tendem a nos aprisionar numa visão limitada demais! [...] eu
vivo e quero continuar vivendo dentro de uma atmosfera de relativa
certeza[...] por estar imbuída de que se trata de uma certeza aparente
e provisória[...]quero hoje pensar de um jeito e amanhã me dar o
direito de questionar[...] (Entrevista Belita)
Na visão de Comblin (1996), estamos vivendo um momento crítico, o estilo de
vida que levamos vem nos fragilizando, deixando-nos inseguros e angustiados. As
pessoas vivem às pressas, cansam-se, esgotam-se, sem nem terem consciência
clara do que são, do sentido do que fazem e para que fazem, o que vem gerando
uma atmosfera de insatisfação crescente que nos leva a procurar resolvê-la através
de inúmeros recursos de entretenimento que o mercado nos põe à disposição, como
resultado do fantástico desenvolvimento tecnológico. Mergulhados num sistema de
divertimento passivo e alienante, não nos sobra tempo para que indaguemos acerca
do que estamos fazendo conosco mesmo, com aqueles com quem convivemos, e
afinal, com a nossa própria vida.
Na perspectiva do autor, e na cultura em que vivemos, quase tudo se
movimenta em busca do prazer imediato. Todos andam em busca de emoções,
pouco importando se o efervecentes ou voláteis. Numa sociedade onde cada um
anda em busca da “sua” felicidade, receitas gicas não faltarão para todos os
gostos, necessidades e tipos de personalidade! Não faltarão também explicações
94
teológicas, as mais variadas, com intuito de inculcar sentimentos de culpa pelos
males e problemas que advêm sobre o próprio homem.
A situação pode se complicar mais, os problemas podem se tornar mais
intrincados e difíceis de discernimento para as pessoas religiosas a partir da
concepção de homem que lhes é reproduzida no seu contexto sócio religioso. Como
nos diz Comblin, o pecado foi designado causador de toda infelicidade humana,
quando foi inculcado no ser humano o sentimento de que eram pecadores, que havia
uma dívida para ser paga em outra existência. E assim vem caminhando o homem,
levando além da carga dos problemas concretos, gerados nas relações que mantêm
com o outro, o fardo de um sentimento “confuso de ser devedor, de não ser o que
deveria, de não ter cumprido o seu dever (...)” (COMBLIN, 1996, p.334).
Não dúvida, continua Joseph Comblin, de que tanto a igreja, como os
missionários e os pregadores utilizaram a noção de pecado abusivamente em suas
pregações, pois “alimentar a consciência de pecado era um meio fácil para manter
as pessoas submissas à igreja” que, por sua vez, tinha em suas mãos, também, o
poder da cura do mal e somente dela vinham os remédios através da “confissão”,
das “indulgências, das “obras meritórias”. (COMBLIN, 1996, p.336)
A igreja, portanto, usou e abusou do processo de “culpabilização” como um
meio forte e eficaz de socialização, o que acarretou muito mal, produzindo inclusive
seqüelas profundas de dimensão emocional. Seus frutos amargos ainda produzem
desconforto e inúmeros problemas de consciência, absolutamente desnecessários
nas pessoas.
Essas reflexões de Comblin (1996), trazem-nos à tona, trechos da entrevista
de Lisete, que nos falam de um forte sentimento de culpa, que possivelmente,
acarretou um nível de baixa auto-estima tão intenso que a faz se perceber como
indigna, merecedora da punição por um Deus que a impediria de se encontrar com
seus pais e outros parentes queridos que já estão, segundo ela, na dimensão
celestial.
A igreja ensina que se peca por pensamentos, palavras, atitudes e
omissão... e é justamente a omissão que talvez seja a minha maior
falta para com Deus e por isso serei castigada [...] Serei castigada por
não fazer caridade e também por outras coisas... coisas de menina...
coisas de moça... (Entrevista Lisete)
95
Um outro trecho nos vem à mente, trata-se de partes do depoimento de
Leônia, uma pessoa culta, que por conta de seus cinqüenta e sete anos, presume
que viveu seus anos mais críticos na cada de sessenta, do século passado. O
depoimento fala por si só; vejamos:
você nem imagina o que eu sofri, eu apenas não, quase todas as
minhas colegas de colégio passavam por esse tipo de sofrimento,
mas em mim este sofrimento foi bem mais intenso devido à rigidez
moral e religiosa em que fui criada. Retomando o que lhe dizia, sofri
intensamente por anos a fio, durante um bom período da infância,
envolvida por mil sentimentos de culpa, por pequenos deslizes, ou
simples pensamentos que, na época de hoje, não teria o menor valor.
O essencial é que perdi muito tempo da minha infância vivendo sem
alegria e medo, verdadeiro pavor dos castigos do inferno.
Relembrando hoje, considero um absurdo, um verdadeiro crime de
responsabilidade, justamente das autoridades eclesiásticas, que
usavam do poder e da mentira, para fomentar o medo e a culpa na
mente de crianças indefesas. (Entrevista Leônia)
Sofrimentos e conflitos dessa natureza surgem a partir de ensinamentos
morais e religiosos carregados de medo e culpabilidade, que ao serem introduzidos
na célula familiar tendem a gerar problemas de proporções preocupantes, mesmo na
atualidade. Pesquisas que foram realizadas, recentemente, entre a juventude,
revelam que ainda um índice significativo de jovens, os quais não se permitem
viver os seus afetos típicos da idade, de forma sadia, por conta da influência de
ensinamentos religiosos que infundem predominantemente a culpa, e estes provêm
de pessoas-modelo (geralmente pais e avós).
Se considerarmos que os jovens de ontem são os nossos adultos de meia
idade e idosos de hoje, fica fácil compreender a gama de problemas que perpassa as
pessoas da terceira idade, ainda tão relutantes, apesar das transformações sociais,
em assumirem o tempo livre de que dispõem, para investir em atividades saudáveis
que lhes dêem mais prazer, energia alegre para o seu viver. Entre os nossos doze
entrevistados, quatro deles (Lisete, Alcides, Ruth e Paulo), apesar de não terem
demonstrado verbalmente, parecem se enquadrar neste tipo de idosos acima
referidos, em que os medos e as culpas de tão arraigados, parecem lhes tirar muito
da energia vital. Isto que aqui nos referimos, muito provavelmente, não se pode
96
generalizar. muitos idosos, atualmente, vivendo de uma forma mais espontânea,
criativa e prazerosa. Talvez, por fazerem parte de grupos onde existem
“mediadores”, profissionais que investem justamente no sentido de desbloquear a
alegria e o prazer instintivo reprimido socialmente.
Nos tempos atuais, continua Comblin, “as pessoas querem viver sem
ameaças, sem castigos, sem dívidas para pagar”, no entanto, a igreja parece
alienada desta realidade quando oferece “o sacramento da penitência, ao invés de
auxiliar a caminhada de seus fiéis”, dentro de propostas mais abertas, criativas e
integradoras.
O referido autor salienta que as novas gerações não receberam a influência
desse processo de inculcação da “culpabilização”, diz-nos, inclusive, que nos países
considerados mais desenvolvidos, a luta contra o pecado quase não existe, mas
aqui na América Latina, pelo fato de que a partir dos anos 50 do século XX, a
psicologia ter entrado nos currículos das instituições educacionais, como disciplina,
as mudanças na mentalidade das gerações ainda estão a se processar muito
lentamente. Pelo que parece claro, são muitos ainda os católicos e cristãos em geral,
que ainda vivem de forma pouco saudável, ancorando a maioria de suas atitudes no
paradigma do pecado e da culpa. Isso nos pareceu evidente quando consideramos
diversos trechos das entrevistas, que foram realizadas para esta pesquisa. Tais
reflexões parecem-nos veem reforçar a idéia de que necessidade de que um
trabalho interventivo seja feito, principalmente com os idosos, no sentido de facilitar a
emergência desses sentimentos de culpa, que nem sempre estão claros, mas nem
por isso deixam de ser corrosivos.
5.3 UM NOVO OLHAR SOBRE A ESCATOLOGIA
A partir da contribuições de Walbert Buehlmann, Euben Biser, Paul Ricoeur e
Jean Delumeau (apud BLANK, 1995), há fortes indícios de que as mensagens cristãs
em relação à escatologia, estejam permeadas por uma ideologia de poder, que não
tem escrúpulos em utilizar, de forma dramática, imagens que infundem medo e
97
terror. Segundo Blank, atualmente a teologia “se desafiada e chamada a repensar
o discurso escatológico e sua transmissão na atuação pastoral”, a fim de responder
às indagações e anseios de uma população angustiada e carente através de
reflexões e intervenções, numa linguagem possível de ser compreendida e
assimilada, que reflete “os anseios e as suas questões em face de um problema que
esta sendo reprimido na sociedade: a própria morte” [...] assim, “será possível
superar um discurso alienante e individualizante”, transformando, deste modo, as
atitudes de “desinteresse e fuga” que vêm caracterizando o comportamento dos
cristãos” (BLANK, 1995, p. 10)
Esses posicionamentos de Blank nos remetem a alguns dos nossos
entrevistados: Edite, Leonia e Belita. Edite, por exemplo, mesmo se considerando
católica, não freqüenta muito a igreja, por não concordar com o discursso
evangelizador dos sacerdotes. “Se os padres não dissessem tantas bobagens em
seus sermões, eu acho que freqüentaria mais a Igreja”. Sua motivação primordial,
quando vai, é por conta da “atmosfera religiosa” e para ouvir os cânticos e, muitas
vezes, cantá-los junto com os presentes, pois sente “falta daquela atmosfera de
comunhão, de estar junto com os outros. Parece que louvar a Deus em conjunto toca
mais o nosso coração, apesar de também adorar, no meu próprio lar, entrar em
contato com Jesus, num diálogo íntimo com Ele que foi sempre o meu melhor amigo”
(Entrevista Edite)
As posições de Blank encontram também ressonância no documento da
Conferência Episcopal de Puebla, que nos fala da necessidade de estar disponível e
atento ao “movimento geral da cultura”; do mesmo modo pensam os teólogos
Assmam Gutierrez e Galileo, que também acreditam ser fundamental que o discurso
teológico deve, necessariamente manter-se integrado com o contexto sociológico.
Eles enfatizam, também, principalmente entre os países latino-americanos, que a
Igreja deve estar atenta para não se afastar das necessidades e cultura do povo e de
seus problemas.
Para Blank, esses problemas fazem parte da questão da escatologia
individual: não se pode ignorar a atitude desse povo em relação ao discurso a ele
destinado [...] Conhecendo a atitude consciente das verdadeiras opiniões dos
destinatários dessa mensagem, haverá condições de elaborar estratégias para
98
superar o divórcio entre a fé processada e a vida cotidiana, denunciado e deplorado
pelo Concílio Vaticano II. (BLANK, 1995, p. 12)
A partir da análise conclusiva da pesquisa de Blank, “os cristãos de hoje não
aceitam mais - sem restrições - a doutrina oficial sobre a vida depois da morte. Além
do mais, “a mensagem sobre a vida após a morte inspira, em muitos cristãos, mais
medo do que esperança e confiança”, existindo também, segundo ele, uma
“correlação entre as ameaças religiosas da doutrina sobre a vida depois da morte e o
medo da morte”. (BLANK, 1995, p.190)
Concordando com essas reflexões, vamos inserir trechos de algumas
entrevistas realizadas para esta pesquisa, que confirmam a primeira das conclusões
de Blank descritas acima: “Os cristãos de hoje não aceitam mais sem restrições, a
doutrina oficial sobre a vida depois da morte”.
Edite, por exemplo, apesar de estar freqüentando bem menos a igreja,
continua católica, mesmo discordando, muitas vezes, da pregação dos padres
acerca de alguns pontos, principalmente quando se trata da visão acerca da morte e
do “além”. Edite é uma pessoa de nível cultural elevado e, entre outros aspectos,
declarou ter tido contato e sentir o respeito pelos princípios do exoterismo, rosa-cruz,
filosofia oriental etc. Porém, como admite que todas as religões são falhas, ela
prefere continuar “sendo católica”, provavelmente, porque foi criada nessa religião,
recebendo influência direta de freiras até a idade adulta, quando saiu do “internato”
para casar. Uma das experiências mais marcantes na vida de Edite foi o que ela
denomina de “experiência de morte”, hoje denominada oficialmente de EQM, ou
“experiência de quase morte”. E justamente foi esta experiência que abalou os
pilares da sua identidade religiosa. Ela sentia dificuldades de externar o que viveu,
na dimensão que ela supõe “extraterrena”, por receio de não ser entendida e,
principalmente, ter sido recriminada pelas pessoas de sua religião. Disse-nos ela
textualmente, a respeito da sua “experiência quase morte”:
Quem não viveu a experiência que eu vivi não vai poder entender
nunca... Se meu próprio esposo sorria de mim, desacreditando,
imagine os outros que não me conhecem e podem até pensar que
sou uma lunática! Tenho que ser tolerante com essas discordâncias
da minha religião, não é? Como gosto dos cânticos e da comunhão!
99
Assim, vou levando e tirando por menos o “besteirol” dos sermões e a
visão pequenina, elementar mesmo da grande maioria dos nossos
sacerdotes... (Entrevista Edite)
Em relação as suas discordâncias sobre os ensinamentos religiosos de sua
Igreja, ela nos disse ter vivido muitos anos muita ansiedade, medo de ser mal
interpretada e por isso vivia “escondendo” dos outros tudo que se passava
interiormente acerca de suas “experiências” e indagações “espirituais”. Um dia
porém, antes mesmo que o comércio abrisse, estava diante das portas de uma
livraria “cristã”, ansiosamente aguardando e, enquanto isso, orando para Jesus,
pedindo iluminação para encontrar o livro “certo” para acalmar sua ansiedade e
responder suas dúvidas. Segundo ela, ao entrar, “bateu o olho”, de imediato, nas
obras do teólogo Leonardo Boff. Vejamos as suas próprias reflexões a respeito:
Foi tranqüilizador perceber que Boff não aceita a idéia tradicional de
“inferno” e “purgatório”, pelo menos do modo como foi ensinado a
nós, católicos. Boff também faz críticas às muitas “baboseiras” que
nos têm sido passadas pelas religiões... acho mesmo que as
religiões, através seus representantes, fazem isso para nos “manter
com a corda curta”... mas o importante é que as idéias daquela
teólogo, o Leonardo Boff, me fizeram muito bem... Ele explica bem
direitinho[...]esta história de ficar em “repouso” esperando o dia do
juízo final, acho que não é verdade não! Eu mesma, Vânia, estava
com meu corpo quando viagei para a dimensão celestial e vivi
aspectos de eternidade![...] porque a idéia generalizada é que a gente
fica sem o nosso corpo e ressuscitará no final do mundo, isso é
um grande engodo pois eu, eu vivi tudo o que vivi, com um corpo,
vivo... vivíssimo! Acredite! (Entrevista Edite)
Portanto, parece que realmente as considerações de Blank (1995) também
encontram eco nas entrevistas por nós realizadas. Diz ele que vem percebendo que
os teólogos cristãos estão diante de um rio desafio em relação ao discurso
escatológico, pois o homem atual não compreende e nem assimila mais uma
linguagem simbólica transmitida pela tradição dos séculos passados... o temor de
ameaça, que marcou por tanto tempo o discurso pastoral sobre as verdades
escatológicas, precisa ser urgentemente superado a partir de uma profunda reflexão
dogmática a respeito destas verdades.
100
Citemos agora alguns trechos da entrevista com Rebeca, uma médica de nível
de socioeconômico elevado, católica praticante e que tem vivido experiências que
são chamadas, em nossa cultura, de “extra-sensoriais” ou “paranormais”, que
representam um verdadeiro desafio para a ala conservadora da Igreja Católica, tão
resistente a abrir-se ao novo, a aceitar os novos desafios da sociedade
contemporânea. Essas experiências têm mobilizado e repercutido na identidade
religiosa de Rebeca, que se percebe como católica fervorosa. Mas, no confronto com
o diferente, Rebeca se inquieta, se retrai, não permitindo, ao nosso ver, abrir-se ao
novo, ao desconhecido e, conseqüentemente, torna-se retraída e vivencia
sentimentos de solidão. Seu receio de ser mal ser interpretada foi reforçado pela
experiência concreta de não ter sido compreendida em profundidade pelo seu pároco
e orientador espiritual de muitos anos, que não pode entender e, portanto validar as
suas experiências incomuns ou “paranormais”. Apesar de se sentir e com
dificuldade para entender o que vivencia, Rebeca reafirma a sua identidade religiosa
e, apesar de não ter mais procurado o seu orientador espiritual, continua
freqüentando assiduamente a igreja, pois percebe que as cerimônias religiosas
“fortalecem” a sua fé.
Vejamos textualmente alguns trechos da entrevista de Rebeca:
[...] eu gostava de relaxar... era um modo que eu encontrava de
restaurar minhas energias e dar continuidade ao meu trabalho,
geralmente tão estressante. Um dia, porém eu acho que entrei num
nível mais profundo, eu percebi que eu mesma estava em pé, na
minha sala, em frente a mim mesma, deitada no meu sofá. Eu
quando me vi em pé, olhando o meu próprio corpo, me deu um
pavor, eu entrei em pânico... foi uma coisa muito nítida... Foi real! Eu
me vi saindo de mim ou o meu espírito saindo... me vi deitada com a
mesma roupa que eu estava... Não dúvida que era eu mesma,
que estava vendo a mim mesma!... acordada e bem consciente...
imagine o estado que eu fiquei! (disse sorrindo) [...] Eu sinto,
claramente, que não é por mero acaso eu acordar,
espontaneamente, e me dirigir exatamente ‘naquele momento’ para
‘aquele determinado leito’... Funciona como se eu fosse movida por
um poder superior, compreende? Olhe, de vez em quando eu sentia
como um ‘aviso’, tipo ‘intuição’ que me fazia antes de ir descansar,
tarde da noite, dizer para a enfermeira da equipe de plantão: “o
paciente do leito tal... não passará das três horas dessa
madrugada... fique atenta”. A colega, que estava mais ou menos
acostumada com as minhas “intuições”, sorria de uma forma
especial, talvez com um ar de cumplicidade, pois, eu e ela
tínhamos consciência dessa percepção especial que eu vivia, mesmo
101
no meu momento de plantão. E acredite-me, nunca deixou de
acontecer o óbito que eu havia previsto, mesmo quando nas
circunstâncias do quadro clinico, o óbito parecia improvável. [...]
Mas, sobre estas visões que eu tenho, eu não as comento com
quase ninguém... quando sei que alguém mesmo católica,
também , como eu vejo... falo para quem tem condição de me
ouvir e não se escandalizar [...] eu não procuro mais entender não...
também deixei de fazer comentários ao meu orientador espiritual,
aliás parece até que, sem eu mesma ter decidido, ele deixou de ser
meu orientador espiritual porque não o procurei mais para conversar
sobre os meus pensamentos e as minhas dúvidas...continuei indo
à missa e troco com ele algumas breves palavras... (Entrevista
Rebeca)
É de Edite que transcrevemos trechos da entrevista, que novamente
contribuirão para ilustrar os possionamentos de Blank, tão preocupado e tão
desejoso que transformações efetivas aconteçam e repercutam nos discursos
evangelizadores da Igreja Católica. Edite, por conta de sua história pessoal e do
contexto socio-cultural-religioso em que foi socializada, desde a mais tenra infância,
reafirma com amor a sua identidade religiosa de católica. Por outro lado, a mulher e
a profissional culta que ela é, percebe o quanto uma ideologia dominadora envolve a
estrutura e a dinâmica das religiões. Vejamos, com as próprias palavras, alguns dos
seus posicionamentos:
[...] São várias aspectos em que brigo mentalmente com a minha
religião. Mas a mais séria divergência é a que se relaciona a estas
questões que falei: céu, inferno e purgatorio [...] É possível um ser
perfeito de amor infinito condenar alguém? Não acho possível!. Isto
são distorções por maldade ou por ignorância do próprio clero que
cria estas situações para apavorar e com isso controlar a conduta das
pessoas. (Entrevista Edite)
Do mesmo modo, em vez de continuar transmitindo a mensagem de um Deus
ante o qual se deve ter medo, é essencial superar a imagem do Deus vingativo, cuja
justiça se baseia num princípio de retribuição. Para Blank e outros teológos que
comungam com suas idéias, é essencial substituir essa imagem de Deus, que ainda
está sendo veiculada por um Deus da vida, um Deus [...] defensor de todos os que
não têm mais um defensor. Entretanto, para que essa imagem de Deus possa ser
102
realmente assumida, é preciso primeiro desmascarar as ameaças escatológicas,
mostrando que nelas não se revelam imagens do Deus verdadeiro, senão projeções
arcaicas de ameaças provindas do próprio homem.
Segundo Bingemer e Libânio, Jesus não veio para pregar a condenação, “seu
anúncio do Reino, é de salvação... não fornece base para um dualismo
escatológico”... Por isso não se pode atribuir a Jesus a presença de “Juízo
condenatório”, que levaria o homem à morte eterna, isso não proveria de Deus, mas
“como autojuízo”. Não acolhendo a Salvação, “é o próprio homem que se condena,
subtraindo-se, em sua liberdade, ao amor e à salvação que a misericórdia do Senhor
não cessa de lhe oferecer”. (BINGEMER e LIBÂNIO, 1985, p. 207)
Portanto, ainda de acordo com Blank, para que essas mensagens de amor e
esperança possam ser realmente assumidas, a fim de que seja possível se
desenvolver o seu potencial transformador, é imprescindível, primeiramente, que
com disponibilidade interior e consciência clara, as pessoas responsáveis possam
desenvolver estratégias que possibilitem a superação “do medo religioso
interiorizado pelos cristãos, em virtude de uma história secular de ameaças” e
opressão. (BLANK, 1995, p. 208)
Os depoimentos acima citados, quer sejam dos nossos entrevistados ou dos
teológos que elegemos para nortear esta pesquisa, no nosso entender, refletem a
necessidade de que, como diz Blank, uma nova linguagem pastoral se imponha,
considerando o novo contexto social em que vivemos.
5.4 A PERDA DO MEDO DA MORTE E SUA RELAÇÃO COM A EQM
Primeiramente, pensando naqueles que ainda não têm clareza do que seja uma
EQM, esclarecemos que popularmente são consideradas situações um tanto quanto
extraordinárias, em que o individuo tem a sensação de ter saído do seu próprio corpo
e vive uma viagem típica, já considerada padrão, a partir de algo que ele não
103
identifica mas que no geral, nem sempre necessariamente partiriam de uma situação
crítica, que poderia levá-lo realmente à morte, como por exemplo, um acidente, uma
cirurgia ou algo semelhante. Muitos se percebem saindo do seu próprio corpo e
viajando por lugares desconhecidos aqui da Terra, mas existem também aqueles que
se vêem ultrapassando a extratosfera terrestre, viajando pelo espaço e encontrando
seres, parentes falecidos, cujas comunicação essencialmente acontece mente a
mente, ou seja, por telepatia. Quando retornam, mesmo os anteriormente céticos,
tendem a mudar suas concepções em relação à vida, e em relação à morte. Passam,
quase sempre, a acreditar e afirmar, com convicção, na continuidade da existência,
conseqüentemente, percebem que perderam completamente o medo da morte ou,
pelo menos, já conseguem confrontar-se com a realidade da sua finitude, com
relativa tranqüilidade.
Quando aqueles que passaram por uma EQM dizem que perderam o temor
da morte, geralmente estão querendo dizer que não mais receiam a obliteração da
consciência ou de si mesmos” (MOODY, 1989 p.38). Isto não significa que aqueles
que passaram por uma EQM, desejam morrer cedo. O que dizem é que a
experiência tornou as suas vidas muito mais ricas e mais plenas do que antes. Na
verdade, muitos têm a sensação de que estão vivendo pela primeira vez. Para
ilustrar a primeira mudança característica daqueles que passam pela EQM,
citaremos um dos inúmeros depoimentos.
Durante cinqüenta e seis anos da minha vida, eu vivi em constante
temor diante da idéia da morte. Minha perspectiva era a de evitá-la, a
todo custo, pois me parecia uma coisa terrível. Depois da minha
experiência (EQM), dei-me conta de que, ao viver temendo a morte,
eu estava bloqueando a minha compreensão da vida. (MOODY, 1989
p. 39)
Algumas das pessoas que viveram uma EQM declaram que, antes da
experiência, sentiam um terrível medo de morrer, por medo do “julgamento final”,
mas que após a EQM, o temor da punição no inferno, pelos atos praticados em vida,
não se constituía mais um problema em suas consciências, pois quando assistiram à
recapitulação de suas vidas, elas perceberam muito fortemente que o “ser de luz” as
amava e se importava profundamente com elas. Percebiam, sobretudo, que aquele
104
Ser não as estava julgando, mas, sim, querendo transformá-las em pessoas
melhores, isto é, ajudando-as a eliminarem o medo de suas vidas e a se
concentrarem no processo de auto-aperfeiçoamento.
Nas experiências realizadas pelo Dr. Moody, bem como na dos seus colegas
pesquisadores, ficou claro - através do depoimento das pessoas - que não é o “ser
de luz” que lhes diz que devem mudar. As mudanças ocorridas em todas as pessoas
entrevistadas vieram naturalmente do seu íntimo,
modificam-se voluntariamente, porque, na presença de um modelo
superior de bondade, sentiram-se envolvidas numa atmosfera tão
profundamente amorosa, que passaram a desejar, também
profundamente, realizar mudanças radicais nos seus
comportamentos. (MOODY, 1997, p. 39)
Dr. Moody nos traz, ainda, a história de um ministro evangélico que
costumava ameaçar o seu rebanho com imagens escatológicas terrificantes acerca
das punições divinas na situação após a morte, ou seja, sempre descrevia com
detalhes apavorantes imagens do inferno, onde o cheiro de enxofre e o fogo do
inferno, impactavam os fieis que freqüentavam sua igreja, dizendo inclusive que, se
eles não acreditassem e não seguissem os ensinamento da Bíblia, estariam
condenados a queimar eternamente no inferno. Eis uma parte do seu depoimento:
Quando tive uma das minhas paradas cardíacas, eu estava subindo
as escadas, na frente de minha casa. Enquanto caía, senti que
procurava, desesperadamente, por alguma coisa em que pudesse me
agarrar. E cheguei a pensar, então: Isto é estranho. ‘Você sabe para
onde vai quando morrer... e como será maravilhoso’... mas, mesmo
assim, eu podia sentir um profundo medo apertando a minha
garganta... Seria o instinto de sobrevivência?... (MOODY, 1997, p.40)
Como vemos, os condicionamentos sociais e mentais o verdadeiras teias
que parecem nos enovelar, limitando nossas atitudes. Este pastor, entrevistado pelo
Dr. Moody, sofreu em si mesmo a repercussão de suas idéias preconcebidas a
105
respeito da escatologia cristã, ainda perpassada da atmosfera de medo típico da
época medieval.
Mas, alguns outros pesquisadores como Melvin Morse e Paul Perry (1988)
podem contribuir com alguns dos seus inúmeros relatos que reforçam a hipótese de
que aqueles que passam por uma EQM, perdem o medo da morte:
Senti que deixava meu corpo. Não sei bem se o vi do alto ou não,
mas estava fora de meu corpo. Fui aspirado como por um túnel, por
onde entre a tida velocidade. No final do túnel havia algo ou
alguém... esse alguém era o Amor, um amor sem fim. Essa
expressão verbal que mais convém, mas que não basta para
expressar o que eu compreendi. Quisera permanecer lá para sempre!
Mas me fizeram compreender docemente, que eu deveria voltar. E
encontrei-me novamente em meu corpo. Foi muito triste não ter
podido ficar na luz. Lembro-me como se fosse ontem... e a partir daí
não tive mais medo de morrer. Ah! Se isso for a morte... que venha a
morte! (MOODY, 1989, p. 57)
Situação semelhante foi relatada pelos médicos e pesquisadores do tema, Dr.
Melvin Morse e Dr. Paul Perry (1998), quando em uma de suas viagens à Florida na
cidade de Tampa, encontrou-se com Brinkley, que em 1975 foi atingido por um raio
que destruiu grande parte do seu coração, o que torna perigoso para ele, excesso de
esforços.
Perry e Brinkley estavam andando depressa demais quando Brinkley começou
a se queixar de dores no peito. Quando finalmente se sentaram em uma lanchonete,
Brinkley tinha dificuldade de respirar.
Houve pânico geral. Outros fregueses aproximaram-se para dar conselhos, e
os funcionários da lanchonete, com o assentimento de Perry, queriam chamar os
paramédicos. A única pessoa no salão que não demonstrava medo era o próprio
Brinkley. Apesar da dor e da falta de oxigênio, ele ria de pensar na chegada de
uma ambulância. “Esqueçam os médicos”, disse ele. “Já morri uma vez e gostei”.
Exemplos como este, de pessoas que estão à beira da morte e não
demonstram medo, são indícios de que a experiência de encontrar-se com a Luz
pode atenuar a ansiedade em relação à morte, concluiu Morse.
106
A partir desta pesquisa que ora relatamos, traremos alguns trechos da
entrevista com Edite, que perdeu completamente o medo da morte, a partir de uma
experiência “incomum”, também conhecida, popularmente, como “experiência extra-
sensorial”. Na época, Edite apenas a chamava de “experiência de morte”, mas, com
o passar dos anos, viu através da mídia, o quanto a referida experiência, era
conhecida e estudada internacionalmente, denominando-se “experiência de quase
morte”, ou EQM.
A parte mais essencial dessas “viagens” ou experiências de quase-morte
(EQM), por serem relevantes para nossa pesquisa, é aquela em que todos os
pesquisados, invariavelmente, relatam que ao sairem do seu próprio corpo,
defrontaram-se com uma “incandescente luz”, da qual emana uma vibração de
profundo amor. Alguns relatam que junto à “pura luz” eles se sentiram
completamente protegidos e amados incondicionalmente. Outros porém, nos seus
relatos, não enfatizaram o impacto que lhes causou, de início, o encontro com o “ser
de luz”, mas falaram enfaticamente de um momento em que eles foram,
telepaticamente, convidados a revisar suas vidas através de uma “espécie de tela
panorâmica”, onde viam toda a sua vida, desde a mais tenra infância, sendo
repassada sob o olhar atento e amoroso do “ser luminoso” ou simplesmente na
“presença da luz”.
O que consideramos significativo, é que em todos os relatos dos vários
pesquisadores, não havia nenhum sentimento das pessoas, de estarem sendo
“julgadas”. As pequenas falhas, os grandes erros eram vistos, pelos próprios
pesquisandos, dentro de uma atmosfera de cálida tranqüilidade ou uma espécie de
aconchego, o que os fazia se sentirem profundamente aceitos e amparados por
“aquela luz”.
No entanto, como a EQM é algo que acontece em geral, no limiar da chamada
morte biológica ou cerebral, quando se inicia a falência das células nervosas pela
falta de oxigenação do cérebro, a constatação da inexistência de atividade elétrica,
metabólica e circulatória do cérebro tornam o quadro irreversível e o registro da EQM
impossível. Essa impossibilidade seria um dos fatores limitantes da compreensão
científica da vivência. Ficam as classes médicas, psi e as religiosas à mercê do que
se considera apenas meras hipóteses sobre algo que não se pode negar, que é fato
107
comprovado e alvo de várias pesquisas nos EUA e Europa. Estas relações
encontradas entre as EQMs e as transformações construtivas nas personalidades
daqueles que a vivenciaram, é um outro tema de interesse e de extrema relevância
para nossa pesquisa, pois consideramos neste trabalho de dissertação, que a EQM,
implica “Crise”, por conta do impacto que viveu o indivíduo ao se perceber diante do
confronto com o que ele supôs ser uma situação real de morte (de sua própria
morte). Este, em geral, retorna para o seu dia-a-dia com outros propósitos para sua
vida, “volta”, por assim dizer, “transformado” no sentido de nortear sua conduta por
valores bem diferentes daqueles em que se baseava até então. Há um consenso que
esses valores são considerados de nível superior, ou seja, indicativos de um maior
amadurecimento, pelo menos em nossa cultura.
Segundo Raymond Moody, existe um elemento comum a todas as EQMs
(experiências de quase-morte): elas têm poder de transformar as pessoas. “Em meus
vinte anos de intenso contato com as pessoas que passaram por uma EQM, ainda
não encontrei ninguém que não tivesse sofrido uma transformação profunda e
positiva, como resultado dela”. (MOODY, 1989, p. 35)
Todos os médicos e estudiosos com quem o Dr. Moody conversou e que
entrevistaram pessoas que passaram por uma EQM, chegaram à mesma conclusão:
elas tornaram-se pessoas “melhores”, por causa de suas experiências. “Melhores” no
sentido de que se sentem mais “próximas” do ideal que imaginaram para si mesma.
Algumas delas relatam que depois da EQM se perceberam mais satisfeitas consigo
mesmas, bem como com suas relações interpessoais.
Muitos deles explicam que mudaram de atitudes e comportamento, talvez por
conta da paz que ultimamente vêm sentindo, considerando também que estão
sentindo uma sensação nítida de que encontrarão, no futuro, mais vida depois da
sua passagem para outra vida, ou seja, desta existência aqui na Terra. Outros,
atribuem que a sua predominante e visível sensação de bem-estar, certamente se
justifica pelo contato que tiveram com um “Ser superior” que produziu neles um maior
e mais profundo esclarecimento.
Uma das pesquisas mais interessantes sobre o poder transformador de uma
EQM foi realizada por Charles Flynn, um sociólogo da Universidade de Miami, em
108
Ohio. Ele examinou os resultados de vinte e um questionários aplicados por Kenneth
Ring, o conhecido pesquisador e sistematizador das situações de EQM, para tentar
descobrir, especificamente, as mudanças ocorridas nas pessoas.
Flynn verificou que, acima de tudo, as pessoas que passaram por EQMs,
demonstram uma preocupação bem maior com os outros, do que antes da
experiência. Bem como, passaram a acreditar na continuidade da vida, depois dessa
existência e, conseqüentemente, a temer cada vez menos a morte.
Pesquisas como estas nos dão fortes indícios de que uma EQM, apesar de
chocante, pode ser considerada uma experiência positiva. Raymond Moody nos diz
textualmente:
minha inteira prática psiquiátrica é devotada ao entendimento de
pacientes que tiveram uma EQM. Embora suas experiências lhe
tenham trazido uma série de problemas, que a maioria de nós
certamente jamais enfrentará, todos eles mudaram para melhor.
Como se pode depreender do estudo dos casos relatados, uma EQM
estimula o crescimento pessoal de cada um. (MOODY, 1989, p. 36)
Um dos mais impressionante exemplos que o referido psiquiatra nos dá, a
respeito do “crescimento pessoal”, nos vem através de Nick, um dos seus
pesquisandos. Segundo Dr. Moody, Nick era um trapaceiro e um criminoso
consumado, que fizera de tudo, desde arrombar casas até traficar drogas. O crime
proporcionou-lhe uma boa vida. Possuía belos carros, roupas elegantes, casas
novas e nenhum problema de consciência para atormentá-lo. Então, um dia sua vida
mudou. Ele estava jogando golfe, quando caiu uma tempestade súbita. Antes que
pudesse deixar o campo, foi atingido por um raio e quase morreu (vivenciou uma
EQM).
Flutuou por algum tempo sobre o seu próprio corpo e depois viu-se
atravessando, velozmente, um túnel escuro, na direção de um facho de luz.
Deparou-se com um brilhante cenário campestre, onde foi saudado por parentes e
outras pessoas, já falecidas.
Encontrou-se com um “ser de luz”, a quem descreveu, hesitantemente, como
sendo Deus, que de maneira afável, levou-o a proceder a uma recapitulação de sua
109
vida. Reviveu toda a sua vida, não apenas vendo suas ações em três dimensões,
mas também vendo e sentindo os efeitos que tiveram sobre os outros.
Essa experiência transformou Nick. Mais tarde, enquanto se recuperava no
hospital, sentiu todo o efeito dessa revisão de sua vida. Ele contou ao Dr. Moody que
no contato com o ser de luz, ele ficava completamente exposto, ao amor puro
daquele Ser. Percebeu que, quando realmente morresse, iria ter de fazer uma nova
recapitulação de sua vida, um processo que seria bastante incômodo, caso
mostrasse que nada aprendera com a primeira experiência. “Agora”, disse Nick, “eu
sempre vivo minha vida, lembrando-me de que algum dia terei de submeter-me a
uma outra revisão de todos os meus atos”.
Moody afirma em seus escritos que outros colegas pesquisadores os quais
entrevistaram pessoas que passaram por uma EQM confirmaram e continuam
reafirmando os efeitos positivos posteriores da experiência. Alguns deles até mesmo
mencionaram a “luminosa serenidade”, que parece emanar de muitas dessas
pessoas. É como se elas tivesse vislumbrado o futuro e saíssem daquelas
experiências de “EQM”
*1
Raymond Moody identificou oito tipos de mudanças possíveis de acontecer com
uma pessoa que tenha passado por uma EQM
*2
. Estas mudanças segundo ele,
realmente aconteceram com todos aqueles a quem entrevistou. “É a combinação
desses fatores que engendra a luminosa serenidade, encontrada em muitos deles”.
(MOODY, 1989, p.37)
Da série de mudanças identificadas pelo Dr. Moody, duas nos interessam mais
por conta dos objetivos desta pesquisa que ora relatamos. São elas: “a diminuição ou
perda do medo da morte” e “a dimensão espiritual mais ampliada e mais
desenvolvida”.
Reportemo-nos novamente a Edite, por nos ter declarado, através da sua
*1
com a sensação plena de que há um sentido maior para a existência.
*2
Sendo elas: a descoberta da importância fundamental do amor e uma maior valorização da vida, sensação de
interconexão com o universo, interesse maior e mais profundo pelo conhecimento, sensação de responsabilidade
interior, um profundo sentido de “urgência”, a dimensão espiritual mais ampliada e mais desenvolvida, a
síndrome da reentrada e, aquela que consideramos a mais pertinente para o nosso trabalho: a diminuição ou
perda do medo da morte (completar com Leloup e outros autores e fechar)
110
entrevista, que perdeu completamente o medo da morte, simplesmente porque
“morte não existe”, diz-nos ela que viveu uma EQM no momento da cirurgia de
cesárea de uma de suas filhas. E enquanto a equipe médica envidava todos os
esforços para trazê-la de volta, ela se percebia “saindo daquele ambiente, passando
pelo teto e indo para a atmofesra terrestre”. Edite refere que sentiu “como se fossem
duas mãos... bem leves... que me seguravam e bem delicadamente me puxavam
para cima [...] e aquela força, aquele poder foi me transportando para um lugar que
eu não sabia onde era” e ao ir sendo transportada, foi sendo invadida por uma
felicidade que não era deste mundo... era tão grande, tão grande aquela sensação
de felicidade” que ela sentiu como se seu corpo não fosse agüentar. Então ela nos
conta que acha que chegou no seu limite, e então relaxou. Foi quando ouviu uma voz
que lhe dizia: “Edite, isto é a morte” e ela percebeu, imediatamente, que estava viva,
bem viva. Apenas vivenciava uma “experiência de morte”. Quando Edite
compreendeu que ela estava bem e que aquilo era apenas uma experiência de
morte, pensou:
Meu Deus, como eu era boba! Eu tinha tanto medo da morte! E morte
é vida! Foi a grande descoberta! Morte é vida, numa dimensão que
eu nunca poderia imaginar... Morte é apenas passagem, é como se
eu estivesse em um quarto e passasse para outro quarto e eu
dizia, meu Deus, a morte não existe. E comecei a louvar a Deus por
aquela revelação maravilhosa [...] que jamais imaginara. (Entrevista
Edite)
Edite hoje é uma pessoa completamente sem medo da morte e capaz de se
confrontar com ela com a maior tranqüilidade, visto que depois desta experiência,
perdeu uma filha, e tempos depois o seu esposo. Vive hoje com muita tranqüilidade e
relata que sente apenas uma saudade suave. Sua relação com o divino é vivenciada
de um modo simples e profundo:
Hoje como adulta e idosa eu tenho um grande amigo ao meu lado
com o qual converso várias vezes ao dia [...] Para ser sincera, não
considero essencial freqüentar nenhum templo religioso, pois Jesus
está comigo, sinto realmente a presença d’Ele... é como se Ele
estivesse aqui, como qualquer um de nós, a diferença é a intimidade
111
e a confiança que sinto nesta relação com Ele, que é de muito
tempo, desde menina. (Entrevista Edite)
Não foi apenas Edite que referiu ter perdido o medo da morte, a partir de suas
próprias vicências “especiais”. Também Rebeca sentiu as suas experiências
“incomuns” ou extrasensoriais como fazendo parte do seu cotidiano. Porém refere
que sente uma certa ansiedade por essa experiências não se enquadrarem bem no
seu contexto de vida, tanto é que buscou seu pároco para receber alguma
orientação, no que não foi correspondida.
112
6 REVISITANDO AS ENTREVISTAS – UM OLHAR METODOLÓGICO
Neste capítulo iremos apresentar a análise do material obtido a partir das
entrevistas desta pesquisa.
6.1 CASO LISETE
Nome: Lisete
*
Sexo: Feminino
Idade: 75 anos
Nível de Instrução: Fundamental
Atividade Profissional: Do Lar
Estado civil: Separada
Religião: Católica praticante
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Algo natural
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa.
*2
Ao longo deste trabalho as falas dos entrevistados foram delimitadas em unidades de significado e analisadas;
para facilitar este processo, identificamos os trechos das falas com o número correspondente à divisão que foi
feita no primeiro momento deste processo de análise. Neste caso específico (F. 6) corresponde a fala mero 06
quando analisamos a entrevista. Esta leitura deverá ser considerada ao longo das outras entrevistas.
113
[...] O que é que eu acho da morte? Eu antigamente sentia uma coisa muito ruim,
mas agora eu não tenho... estou disposta a morrer a qualquer momento... não fico
constrangida de falar de morte... acho uma coisa muito normal [...] (F.6
*2
)
Transferência de endereço
[...] acho que é uma transferência... a gente... não vai ficar morando aqui toda vida
[...] (F.6)
É... de uma transferência de endereço. (F.8)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Impotência / Submissão / Dependência
[...] não estou sabendo... quem sabe é Deus, a gente depende dele em tudo (... )
(F. 19)
Possivelmente, se a gente ficar pacientemente, com humildade recebendo o
sofrimento que nos vai ser reservado, agente poderá um dia chegar a ter o direito
de estar ao lado de Deus e de Jesus... e de todos os santos... mas não é todo
mundo... precisa receber o sofrimento com conformação e sem revolta, senão nunca
vai chegar lá... (F. 25)
[...] Sim, eu mesma não sei o que vou receber como sofrimento... (F. 27)
[...] eu não sei direito, mas sei que lá, vou encontrar ainda muito sofrimento porque
se a gente é pecador, de acordo com o pecado, a gente recebe mais ou menos
sofrimento (tosse nervosa, por alguns instantes... chorando, nariz escorrendo...
lágrimas descendo) e tudo é de acordo com a vontade de Deus... que eu não sei
qual é... (F. 29)
114
Desamparo
[...] É um local onde a gente vai sofrer... talvez de solidão... não sei... (aumentou o
choro... aquele choro que parecia vir do mais íntimo dela mesma. Pareceu para mim
o choro de alguém que está condenado à morte e que não tem como escapar... uma
enorme desproteção)... (F. 39)
Medo/Pavor
[...] Estou tremendo de tanto chorar porque tenho receio de ser, por conta das
minhas faltas, impedida de me encontrar com os meus pais ou de nunca poder ver
os meus filhos e netos aqui na terra. Isso me causa tanto sofrimento que eu nem sei
como vou suportar... Só Deus mesmo, com sua graça... pode tornar isso suportável...
(e o choro aumentou). (F.55)
Culpa
[...] Tenho a impressão que não vou sofrer as penas, o castigo do inferno… mas
não tenho certeza não... mas, acho que vou ter que passar por muito sofrimento para
minha própria purificação [...] (F. 51)
[...] talvez tenha outro tipo de castigo, de sofrimento para pessoas que pecam, mas
não sejam totalmente ruins. Tenho a impressão que eu teria um castigo diferente, de
solidão talvez... ou talvez de desejar falar com as pessoas que eu amo e o poder
(a essas alturas D. Lisete cai em prantos, e sua fisionomia reflete uma tristeza
imensa, as lágrimas rolam pela face e o nariz escorrendo... limpa-se... curva-se e
desobstrui o nariz na barra de sua própria saia). (F. 53)
[...] É que eu não me acho merecedora de ir, quando morrer, direto para junto de
Deus... eu não tenho pecados graves de atos... não sei se você estudou isso, mas a
igreja ensina que se peca por pensamentos, palavras, atitudes e omissão... e é
justamente a omissão que eu considero que talvez seja a minha maior falta para com
Deus [...] (F. 59)
115
o... não sinto medo não... eu acho até que é uma graça que Deus está me
dando, eu não sentir medo da morte... a não ser que ela venha com muito sofrimento
(e começou novamente a chorar copiosamente). (F. 73)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Aceitação dos três elementos da escatologia cristã-católica, mas incerteza e
conflito em relação aos elementos constituintes dessas dimensões e a
dinâmica subjacente ao processo de purificação
Céu
Eu acredito que todos nós vamos continuar vivendo lá sem sofrimento [...] (F. 14)
Eu tenho idéia que a gente chegando lá, vai ser muito bem recebido e
encaminhado... (F. 21)
[...] eu acredito que a gente não tem privilégio de chegar logo diante de Deus
não... acho que a gente vai talvez ser recebido por anjos que vão nos orientar e... e...
depois passar para outra fase melhor... outra fase melhor... depois para outra fase
melhor... até talvez pode ter direito a ficar se comunicando diretamente com Deus...
com Jesus Cristo... (F. 23)
Purgatório
[...] mas, eu também tenho a impressão de que a gente vai, também, ter uma fase
de sofrimento... (F. 14)
A gente não tem idéia, ninguém sabe por quanto tempo é e não tem idéia se o
sofrimento é pouco ou se é por muito tempo... ou se é de horas apenas... ou se vai
ser de horas de sofrimento e horas de coisas boas... não estou sabendo... quem
sabe é Deus, a gente depende dele em tudo... mas estou achando que para quem é
pecador, conforme os seus pecados... a gente tem que sofrer um período... mas tem
alívios, e também, quem sabe sofrer nesta vida, vai saber sofrer também e quem
não saber sofrer nessa vida... poderá até ter a sua situação piorada... (F. 19)
116
Possivelmente, se a gente ficar pacientemente, com humildade recebendo o
sofrimento que nos vai ser reservado, agente poderá um dia chegar a ter o direito
de estar ao lado de Deus e de Jesus... e de todos os santos... mas não é todo
mundo... precisa receber o sofrimento com conformação e sem revolta, senão nunca
vai chegar lá... (F. 25)
É um local onde a gente vai sofrer... talvez de solidão... não sei... (F. 39)
Não sei não... eu não acredito muito que lá haja o fogo, fogo mesmo, como a igreja
admitia e ensinava... mas se houver fogo do inferno mesmo... se existir é para as
pessoas se purificarem... (F. 41)
Por isso eu acho que vou sofrer um bocado do lado de lá, para minha purificação...
(F. 71)
É... (com voz sumida) acho que Ele vai me fazer passar por algum tipo de
sofrimento... Mas vai depender muito de mim o tempo que eu vou passar sofrendo...
Se eu receber tudo com calma sem me revoltar, eu posso até ter a graça de me
livrar logo... (F. 75)
Inferno
[...] mas se houver fogo do inferno mesmo... se existir é para as pessoas se
purificarem... (F.41)
É... eu acho que possibilidade de existir um inferno com fogo concretamente...
mas, pode ser que nem haja este inferno, daqueles que ensinaram a gente, ou quem
sabe, seria um inferno diferente? Porque inferno mesmo, dizem que é eterno... (F.43)
Talvez dure o tempo da gente reconhecer as falhas e pedir “Jesus... lembra-te
de mim... lembra-te que eu estou sofrendo... misericórdia Senhor”... Quem sabe se
esse fogo é realmente eterno? Duraria até a pessoa implorar por Jesus... Quem
sabe? (F. 45)
117
[...] pelo que aprendi não se pode escapar do fogo do inferno não... Talvez o
inferno seja para aquelas pessoas realmente s, perversas, que sentem prazer em
fazer o mal e que até renegam ajuda de Deus ou dos anjos [...] (F. 47)
[...]O bom mesmo é se a gente morresse e fosse diretinho para Jesus, mas isso
não é tão fácil assim [...] (F.75)
Às vezes penso que “do lado de lá”, mesmo antes de termos o direito de estarmos
ao lado de Deus, vamos nos deparar com uma natureza maravilhosa... Parecida
com as que temos aqui, mas muitíssimo mais bonita: jardins... flores... Campinas...
coisas lindas! Quem não admira a natureza? (F.79)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Um Ser Misericordioso
Acho que Deus é misericordioso... (F. 71)
Um Ser muito exigente
[...] mas Ele é muito exigente também, minha filha! Ele quer que a gente ponha ele
em primeiro lugar em tudo! [...] (F. 71)
Um Ser que pune
[...] É um local onde a gente vai sofrer... talvez de solidão [...] (F. 39)
[...] talvez tenha outro tipo de castigo, de sofrimento para pessoas que pecam, mas
não sejam totalmente ruins. Tenho a impressão que eu teria um castigo diferente, de
solidão talvez... ou talvez de desejar falar com as pessoas que eu amo e o poder
(a essas alturas D. Lisete cai em prantos, e sua fisionomia reflete uma tristeza
imensa, as lágrimas rolam pela face e o nariz escorrendo... limpa-se... curva-se e
desobstrui o nariz na barra de sua própria saia). (F.53)
118
Estou tremendo de tanto chorar porque tenho receio de ser, por conta das minhas
faltas, impedida de me encontrar com os meus pais ou de nunca poder ver os meus
filhos e netos aqui na terra. Isso me causa tanto sofrimento que eu nem sei como vou
suportar... Deus mesmo, com sua graça... pode tornar isso suportável... (e o
choro aumentou). (F. 55)
É que eu não me acho merecedora de ir, quando morrer, direto para junto de
Deus... eu não tenho pecados graves de atos... não sei se você estudou isso, mas a
igreja ensina que se peca por pensamentos, palavras, atitudes e omissão... e é
justamente a omissão que eu considero que talvez seja a minha maior falta para com
Deus e por isso serei castigada mas, acho que é para minha purificação. (F. 59)
Por não fazer nada por ninguém... muito pouco... muito pouco... e isso vai ser
cobrado. Não sei se você viu uma passagem da bíblia que Jesus na hora do
julgamento vai perguntar quem deu de comer aos famintos, água aos que estavam
com sede... quem deu uma túnica a quem estava com frio, não é isso? E eu não faço
quase nada por ninguém, por exemplo, para não ter que ficar pedindo dinheiro aos
meus filhos, guardo um pouco do minguado dinheirinho que ganho... Mas sei que
deveria distribuí-lo com os necessitados aí fora e que são muitos! (F. 61)
Serei castigada por não fazer caridade e também por outras coisas... coisas de
menina... de moça... (F. 67)
Acho que Deus é misericordioso, mas Ele é muito exigente também, minha filha!
Ele quer que agente ponha Ele em primeiro lugar em tudo! Por isso eu acho que vou
sofrer um bocado do lado de lá, para minha purificação... (F. 71)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Não surgiu nenhuma situação relevante que possa ser descrita neste item.
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
119
Antes da Crise
Puramente católica
Fator desencadeador da crise
Consciência da proximidade do fim de sua vida terrena.
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Dúvidas em relação a escatologia: Interesse de compreender e dificuldade em
descriminar purgatório e inferno
[...] Sim, eu mesma não sei o que vou receber como sofrimento... (F. 27)
[...] e acho que não terei direito de ir diretamente para Deus, talvez... seja recebida
por anjos... não sei. (F. 37)
Não sei não... eu não acredito muito que (no purgatório) haja o fogo, fogo
mesmo, como a igreja admitia e ensinava... mas se houver fogo do inferno mesmo...
se existir é para as pessoas se purificarem... (F. 41)
[...] eu acho que vou sofrer um bocado do lado de lá, para minha purificação... (F.
71)
É... eu acho que possibilidade de existir um inferno com fogo concretamente...
mas, pode ser que nem haja este inferno, daqueles que ensinaram a gente, ou quem
sabe, seria um inferno diferente? Porque inferno mesmo, dizem que é eterno... (F.43)
Talvez dure o tempo da gente reconhecer as falhas e pedir “Jesus... lembra-te
de mim... lembra-te que eu estou sofrendo... misericórdia Senhor”... Quem sabe se
esse fogo é realmente eterno? Duraria até a pessoa implorar por Jesus... Quem
sabe? (F. 45)
[...] pelo que aprendi não se pode escapar do fogo do inferno não... Talvez o
inferno seja para aquelas pessoas realmente s, perversas, que sentem prazer em
fazer o mal e que até renegam ajuda de Deus ou dos anjos [...] (F. 47)
120
Reafirma a sua identidade católica:
[...] É... eu lhe disse que procuro ser o mais fiel possível a minha religião
católica... (F. 37)
A partir do depoimento de uma filha:
D. Lisete vem cada vez mais reafirmando sua identidade católica, não
verbalmente, mas a partir de uma prática efetiva, onde as orações tomam uma
dimensão quase totalizante em sua vida, modificando também alguns dos seus
hábitos em busca de uma coerência maior entre seus valores religiosos e sua prática
no cotidiano (ver em “observação” após a ultima fala desta entrevista)
Síntese Interpretativa
Lisete, ao aprofundar seu depoimento sobre a morte, vivencia uma forte e
visível emoção de sofrimento, seu corpo falava bem mais do que as palavras.
Certamente se trata de uma vivência perpassada por sentimentos de tristeza, muita
dor, solidão e desamparo, gerados sobretudo pelo medo do que ela imagina viverá
no purgatório.
Lisete não se percebe merecedora de, após a sua morte, ter um lugar junto a
Deus, ela não imagina ter direito de desfrutar da paz e bem aventurança idealizada.
Ela imagina que sejulgada e punida por suas falhas, que poderá sofrer o castigo
de intensa solidão, como por exemplo, desejar se comunicar com aqueles que ama e
talvez não lhe ser permitido. Assim seria o seu “purgatório”: um sofrimento intenso e
purificador por estar apartada de Deus, como também das pessoas que ama, até um
dia, quando sofrer tudo que lhe foi imposto, com muita resignação, poderá enfim
alcançar níveis superiores, onde lhe seria concedido o direito de conviver com os
outros entes amados e, principalmente, ficar cada vez mais próxima da presença de
Deus. Dos pecados que ela tem consciência, o mais agudo é o da omissão. É este o
121
que ela supõe mais ter cometido na sua vida: não ter a disposição de renunciar ao
conforto do seu lar para fazer visitas e ajudar aos mais necessitados. Quando ela se
referiu ao sofrimento que certamente vai “purgar” na “outra dimensão”, sua voz e
seu semblante denotaram uma tristeza tão profunda e uma dor tão pungente, que
uma palavra que supomos representar todo sofrimento que percebemos nessa
vivência: desamparo.
De acordo com informações de sua filha, confirmadas por Lisete, num
encontro casual, ela vem modificando seu comportamento, no sentido de reafirmar
mais claramente sua identidade católica. Agora ela praticamente assiste “Canção
Nova” (canal de televisão católico), lê livros católicos e religião tornou-se o conteúdo
principal de suas conversas.
O que parece sugerir que falar sobre os sentimentos em relação ao pós-morte,
reavivou nela muitos dos seus medos, o que pode, como mecanismo de defesa,
estar mobilizando recursos “internos” que a estimulam a usar estratégias de
enfrentamento, ou seja, tomando atitudes mais próximas do que ela imagina ser a
vontade de Deus. Ela garante, no presente, uma certa tranqüilidade e paz de
espírito (de consciência), como também depois da morte um lugar mais próximo a
Deus.
122
Quadro 1 – Entrevista Lisete
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Algo natural;
Transferência de
endereço;
Certeza que viverá
grande sofrimento;
Incerteza ao tipo
de sofrimento.
Impotência
Submissão
Dependência
Desamparo
Medo / Pavor
Culpa
Certeza dos
elementos da
escatologia
(purgatório, céu e
inferno)
Incerteza e conflito
em relação aos
elementos
constituintes e a
dinâmica dessas
dimensões.
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Um Ser
Misericordioso
Um Ser muito
exigente
Um Ser que pune
Não surgiu
nehuma situação
relevante que
possa ser
descrita neste
item.
Antes da Crise
Católica praticante
Fator Desencadeador da
Crise
Consciência de sua
própria finitude
Transformações durante ou
após a crise
Dúvidas em relação a
escatologia: interesse
de compreender e
dificuldade em
discriminar
Reafirma a sua
identidade católica,
tornando-se mais
fervorosa e seletiva.
123
6.2 CASO ALCIDES
Nome: Alcides
*
Sexo: Masculino
Idade: 88 anos
Nível de Instrução: Primário incompleto
Atividade Profissional: Aposentado
Estado Civil: Casado
Religião: Católica
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Algo terrível a ser enfrentado
A pior vida do mundo é melhor do que morrer [...] (F. 16)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Impotência / Dependência
Morte... é uma coisa que nunca agente vai saber quando é o dia, não é? Quando é
a hora... Deus sabe a hora dele mandar buscar agente ele e mais ninguém...
Às vezes fico assim... Assim pensando: pode ser hoje... a Deus sempre mais vida! “A
pior vida do mundo é melhor do que morrer” (repetiu três vezes em tom enfático) [...]
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
124
/ [...] Deus vem para levar agente ai eu tenho que ir mesmo, mas lhe digo, vou à
pulso, só vou amarrado, porque é o jeito mesmo [...] (F. 16/38)
Tristeza
[...] ninguém se encontra com pai, mãe, com filho, não há essas amizades os filhos
não abraçam os pais não [...] / Do lado de lá, eu não vou encontrar com meus filhos
nem com minha mãe [...] (F.22/24)
Pavor
[...] Deus vem para levar agente ai eu tenho que ir mesmo, mas lhe digo, vou à
pulso, só vou amarrado, porque é o jeito mesmo [...] (F. 38)
Culpa
[...] Eu penso que posso ter algum castigo porque eu fui muito farrista...
mulherengo... nunca matei ninguém, nunca fiz mal mas enganei muitas moças,
fiz muita moça chorar [...] (F.36)
[...] fico triste, pensativo mas quando a gente é moço, a gente nunca pensa nas
conseqüências... a gente faz tanta besteira [...] (F.40)
Profunda solidão
[...] É... parece que do lado de lá, ninguém se encontra com ninguém... ninguém
se encontra com pai, mãe, com filho, não essas amizades os filhos não abraçam
os pais não [...] / Do lado de lá, eu não vou encontrar com meus filhos nem com
minha mãe [...] é tudo bem diferente... nem vai se reconhecer... (F.22/24)
[...] eu sei que vou sofrer algum castigo [...] (F. 40)
125
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Perspectiva de ausência de relações afetivas - vivência de solidão –
ninguém se encontra com ninguém... ninguém se encontra com pai, e, com
filho, não há essas amizade os filhos não abraçam os pais não... Eles dizem que não
se encontram não ... (F. 22)
o vou encontrar com meus filhos nem com minha e... porque hoje sou
homem mas com a reencarnação posso nascer feminino... pode ser tudo trocado, ai
no mundo espiritual tudo é diferente agente renasce diferente... e por isso não
para se encontrar... é tudo bem diferente... nem vai se reconhecer... (F. 24)
Mas o mundo espiritual é assim pai não se encontra com filho com filha... mas
nunca vai ser igual, espírito agente não vê, não ouve a voz, ninguém vê... veja que
Jesus apareceu aos apóstolos invisível e Tomé nem acreditou... (F.28).
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Deus como detentor do poder e dos mistérios da existência
Deus sabe a hora dEle mandar buscar a gente, Ele e mais ninguém [...]
(F.2)
[...] os segredos de Deus ninguém sabe [...] (F.20)
É vontade de Deus né? São mistérios... ninguém sabe como é (... )(F.26)
Deus vem para levar agente... se eu tenho que ir mesmo, eu lhe digo, vou à
pulso, só vou se for amarrado, porque é o jeito mesmo [...] (F.40)
Deus como Ser punidor
[...] mas não acredito no inferno... Penso que vou ter algum castigo porque eu fui
muito farrista... mulherengo... nunca matei ninguém, nunca fiz mal mas enganei
muitas moças, já fiz muita moça chorar... (F. 36)
126
[...] vou prestar conta disso pois sei que deixei muitas moças chorando...
Enganava elas... Posso... Por isso vou sofrer algum castigo, não é? (F. 40)
Deus vem para levar agente ai eu tenho que ir mesmo, mas lhe digo, vou à
pulso, vou se for amarrado, porque é o jeito mesmo. [...] Pelo meu gosto mesmo
eu vivia 100, 200, 300, 600 anos... (F. 4)
5ª Unidade de Significado: Situções Incomuns Relacionadas à Morte
Comunicação Após a Morte (CAM)
Eu mesmo tenho os meus santos pretos, tem um terreiro que eu vou, gosto de
e o espírito que eles “arriavam” dizia que a pior vida do mundo é melhor do que
morrer e dizia outros coisas diferentes do que os padres dizem... a gente fica
pensativo... mas só Deus é quem sabe a verdade... só Ele. (F.18)
Eles (os espíritos) dizem que a gente não se encontra não... existe o mundo
espiritual... tem a cidade da Jurema Sagrada e tem a cidade dos mortos... Mas
não tem esses encontros com gente daqui e gente de não. Tudo fica esperando
as ordens de Deus. (F. 22)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da Crise
Católico (freqüenta também centros de umbanda)
Fator desencadeador da crise
Consciência da proximidade do fim de sua vida terrena.
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Questiona a escatologia católica (não aceita o inferno eterno, como castigo)
127
[...] Eu fico muitas vezes pensando e não posso acreditar que um pai ponha seu
filho no inferno. Nenhum pai faria isso, porque o nosso Pai do Céu colocaria? Não
acredito nessas coisas não. Nem acredito em diabo. Ninguém nunca viu o diabo,
viu? [...] (F.34)
[...] mas não acredito no inferno [...] (F.36)
Aceita a idéia de reencarnação
[...] hoje sou homem, mas com a reencarnação posso nascer feminino... pode ser
tudo trocado, ai no mundo espiritual tudo é diferente agente renasce diferente [...]
(F.24)
Freqüenta terreiro de umbanda
[...] eu freqüento pouco o centro... mas é por conta das minhas pernas que não
dão mais para andar de noite, mas às vezes eu vou ver o “toque”... gosto de ver o
toque dos santos [...] (F.28)
Reafirma a sua identidade católica, apesar do evidente sincretismo religioso que
caracteriza a sua prática cristã.
[...] eu nasci e me criei na Católica, meus tios eram padres, são sacristãos, todos
eram católicos e eu não saio da minha lei... sou católico... vou morrer católico...
(F.28)
Síntese Interpretativa
Para o senhor Alcides, o sentido central de sua vida, é a afetividade que o liga
as pessoas que o cercam; ele demonstra valorizar muitíssimo o carinho que dá e que
128
recebe dos seus familiares, bem como a atmosfera lúdica e afetiva que vivencia na
convivência com seus animais (domésticos) de estimação.
Captávamos melhor seus sentimentos quando nos mantínhamos atentos a
entonação de sua voz. Ele era um homem de poucas palavras, mas sua afetividade
era intensa e facilmente perceptível. Sua entonação de voz quando falava que por
ele “não iria nunca... 600 anos” era uma demonstração evidente do seu gosto e
amor pela vida, porém, sua voz cheia de ânimo, tornava-se triste quando ele
expressava que “não sabemos a hora nem o dia da ‘nossa ida’... Tudo depende de
Deus”. No nosso entendimento, essa última expressão revela mais que medo,
expressa o pavor que ele sente diante do que a morte representa na sua vida.
De acordo com as suas fantasias em relação ao pós-morte, ele continuará
vivo, mas com uma forma bem diferente, não consegue identificar como seria, mas
segundo os terreiros religiosos que freqüenta, supõe que perderá os aspectos físicos
e afetivos que o caracterizam nesta vida e que determinam as relações que ele
matem aqui na Terra. Mais profunda é sua tristeza, quando ele imagina que o
processo de reencarnação o impedirá de reconhecer e ser reconhecido por suas
pessoas queridas.
Alcides falou que vez enquando fica a imaginar sobre sua vida como um todo
e sente-se culpado, merecendo ser punido. A entonação de sua voz, em certas falas,
denota uma tristeza mesclada de culpa e medo. Seus lábios e mãos trêmulas
expressavam um profundo desamparo.
Com relação a identidade religiosa de Alcides, percebemos que apesar de
freqüentar terreiros de umbanda, ele reafirma enfaticamente sua identidade católica
quando diz que “morrerei na minha lei”, o que caracteriza, no nosso entendimento,
que ele vivencia um processo de sincretismo religioso.
129
Quadro 2 – Entrevista Alcides
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Algo terrível a ser
enfrentado
Dependência
Impotência
Tristeza
Pavor
Culpa
Profunda solidão
Certeza que
sofrerá punição
Medo da
imensa solidão
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Detentor do poder e
dos mistérios da
existência
Ser que pune
CAM - Conversa
com entidades
espirituais nos
terreiros
provocam medo
acerca do pós-
morte.
Antes da Crise
Puramente Católico
Fator Desencadeador da
Crise
Consciência da
proximidade do fim
de sua vida terrena
Transformações a partir da
crise
Questiona a
escatolologia
Aceita a idéia de
reencarnação
Freqüenta terreiro
de umbanda
Reafirma a sua
identidade católica
130
6.3 CASO DOLORES
Nome: Dolores
*
Sexo: Feminino
Idade: 59 anos
Nível de Instrução: Superior
Atividade Profissional: Do Lar
Estado Civil: Viúva
Religião: Católica
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Avalanche que provoca desmoronamento / terremoto / vento destruidor
[...] eu sentia como se estivesse acontecendo mesmo uma avalanche... tudo
desmoronando, caindo por cima de mim [...] (F.5)
[...] eu me sentia como se um terremoto, ou um vento destruidor tivesse passado e
deslocado tudo, quebrado tudo destruindo tudo [...] (F.19)
[...] eu embaixo e tudo rolando e caindo em cima de mim... ficando os cacos... e
eu em meio aos escombros... olhando aqueles caquinhos e sabendo que teria que
reconstruir tudo de novo, aproveitando aqueles mesmos cacos... que horror! Nem
gosto de pensar... (F.3)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
131
Cair num abismo / num poço onde tudo é escuridão
[...] caí num buraco... num poço escuro, via como se suspensa por um fio...
(F.5)
[...] eu acho que caí mesmo fui para fundo do poço e estava sem saber como sair
dali eu só pedia ajuda a Jesus... (F. 7)
Ruptura Solidão Profunda
Morte é isso, é ruptura, é solidão braba! [...] (F.27)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Desamparo
[...] senti como se tivesse sem chão... quase caindo em um buraco, um poço onde
tudo era escuridão [...] (F. 1)
[...] às vezes punha as mãos na cabeça me protegendo... (F. 5)
[...] eu orava desesperadamente pedindo amparo e proteção... andava com um
livrinho de orações no bolso de um casaco que e não o largava nunca, pois sentia
muito frio... (F.7)
Pavor
[...] foi aí que eu vi o quanto não sou nada e o pavor tomou conta de mim [...] (F.11)
Solidão
É... solidão total, sabe? [...] (F.27)
132
Sensação de ter sido traída pela vida e por Deus
Senti-me traída... sabe traída? Enganada, iludida [...] / [...] “traída pela vida?” foi o
que eu pensei logo... depois chegou como se eu me sentisse traída por Deus [...]
(F.23/43)
Desvalorização pessoal
Viúvas não têm valor [...] / [...] as viúvas perdem status, perdem o valor... muda
tudo! (F.27/29)
Profunda Raiva
Estou sentindo uma sensação de raiva, raiva mortal que me deixa explodindo [...]
(F.37)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Não surgiu nenhuma situação relevante que possa ser descrita neste item.
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Protetor
[...] graças a Deus, acho que foi Ele que me deu forças [...] / [...] foi Deus quem me
deu a força necessária para eu sobreviver aquilo tudo [...] (F.7/43)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Não surgiu nenhuma situação relevante que possa ser descrita neste item.
133
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da Crise
Católica (religiosidade herdada)
Fator desencadeador da crise
Morte do esposo
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Católica extremamente fervorosa
Identidade religiosa em crise (dificuldade de confronto com os seus sentimentos e
contradições)
[...] como se eu me sentisse traída por Deus... mas isso é inconcebível... não
nem pra se pensar [...] (F.43)
Síntese interpretativa
Dolores, no momento da entrevista, vivia um quase completo desamparo,
revivendo uma sensação de que tudo “poderia (novamente) desmoronar em sua
vida”. Foi este um dos sentimentos vividos 5 anos como conseqüência da perda
do seu esposo que faleceu quase subitamente.
Dolores, naquela ocasião ora sentia “como se sua vida estivesse por um fio”,
ora vivenciava a sensação clara de que estava “soterrada em meio aos escombros”,
134
após um trágico desmoronamento que destruiu a sua vida, e também os seus belos
planos.
A sua fragilidade era imensa e repercutia em todos os quadrantes da sua vida
pessoal, inclusive interferindo na sua religiosidade. Ela, que até então, vivia de uma
forma bem “distanciada”, passou a colocar Deus como o centro de sua vida: “orava
desesperadamente pedindo amparo e proteção”
Ainda quando vivia agudamente a sua crise, Dolores se sentia como que em
meio a um “furação”, um vento forte devastador. Dolores reconfigurou sua identidade
religiosa ao eleger Deus como o seu único protetor, passando todos o seu tempo a
“implorar a Deus, forças”, como um autômato, tamanho o seu desamparo, tão
pungente que a levou a ver Jesus como tábua de salvação, tanto é que “só andava
com o livrinho de orações no bolso de um casaco que não largava nunca, pois sentia
muito frio... pois aquele livrinho de salmos, eu engolia o que nele estava escrito,
como se engole tranqüilizantes”.
Não podemos deixar de perceber Dolores no seu contexto socioeconômico,
bem como o seu estilo de viver à moda antiga com muitas das limitações de uma
mulher profundamente enraizada nos valores de uma época onde a mulher dependia
emocional e economicamente do esposo. Assim vivia Dolores, amedrontada, baixa
auto-estima, dependendo quase que completamente do marido, até para se afirmar
profissionalmente. Daí a doença grave e a condição terminal do seu esposo, ter
significado para ela, uma verdadeira “avalanche”, um “vento destruidor” que destruiu
os seus planos, inclusive os profissionais (Dolores estava concluindo o curso de
Direito, depois de décadas na condição de apenas “mulher do lar”, e seu sonho
dourado era exercer a nova condição de profissional ao lado de seu esposo
advogado aposentado, num lindo escritório, recém-decorado pelo próprio casal. Por
isso pode-se compreender o seu extremo desamparo, bem como o sentimento de ter
sido traída pela vida e por Deus.
135
Quadro 3 – Entrevista Dolores
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Avalanche
Desmoronamento
Terremoto
Vento destruidor
Cair num abismo /
num poço onde tudo
é escuridão
Ruptura
Solidão Profunda
Desamparo
Pavor
Solidão
Sensação de ter
sido traída pela
vida e por Deus
Desvalorização
pessoal
Profunda Raiva
Não surgiu nehuma
situação relevante que
possa ser descrita neste
item.
Percepções ou
Representações acerca
de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Ser Protetor
Não surgiu nehuma
situação relevante que
possa ser descrita
neste item.
Antes da Crise
Catolicismo
“herdado”
Fator Desencadeador da
Crise
Doença e morte do
esposo
Transformações a partir da
crise
Católica
extremamente
fervorosa
Identidade religiosa
em crise (dificuldade
de confronto com
seus sentimentos de
decepção e raiva
em relação a Deus)
136
6.4 CASO LUZIA
Nome: Luzia
*
Sexo: Feminino
Idade: 60 anos
Nível de Instrução: Médio Completo
Atividade profissional: Função de confiança em uma empresa privada
Estado Civil: Viúva
Religião: Católica
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Situação de profunda dor
Eu acho que foi maior dor que se pode passar na vida, Vania! Você ver seu filho
morto, ainda estirado no chão, numa poça de sangue praticamente na porta de casa
e morto sem motivo! (F.12)
Vivência de profunda união, “presença” e felicidade
[...] O Natal chegava e nós estávamos muito assustados: como seria nosso Natal?
Sem meu esposo? Sem meu filho? Como será a entrada de um Ano Novo, quando
naquele anos tínhamos sofrido tantas perdas? E viver aquele Natal tão desejado por
nós e idealizado pelo meu amado marido... na nova casa? Como seria? Como
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
137
receber os inúmeros amigos, gente tão boa conosco? Como o recebê-los?
Decidimos orar, rezar em conjunto e pedir força [...] (F.34)
E como por encanto, uma atmosfera de amor se estabeleceu e o nosso Natal
transcorreu num clima de calma e solidariedade... mais que isto, não se escandalize
Vania, o nosso Natal foi um Natal alegre! Feliz! Parece mentira! Acredite por favor!
[...] (F.34)
Não sentimos saudade não. Eu e as minhas filhas (depois perguntei a elas) e ficou
claro que o que sentimos foi o tempo inteiro a presença deles ali conosco. Acho que
por isto nós não sentimos saudade alguma! Nós nunca nos sentimos tão
aconchegados e alegres como naquele Natal. Nós sentíamos que eles, o meu
marido e meu filho, estavam ali, e sentíamos também que as bênçãos divinas caíam
abundantemente sobre nós. Vania! Foi comentado por muitos dos que foram a nossa
casa naquela noite que aquele foi um lindo, um inesquecível Natal! (F.36)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Profunda dor
Eu acho que foi maior dor que se pode passar na vida, Vania! Você ver seu filho
morto, ainda estirado no chão, numa poça de sangue praticamente na porta de casa
e morto sem motivo! (F.12)
[...] que dor horrível ver um filho morto, no chão coberto por um lençol... (F.16)
[...] foram longos dias de intensa dor [...] (F.16)
[...] Eu chorei aquele choro alto com aquela dor que sai do peito parecendo que
nos apunhalaram com uma faca cortante [...] (F.28)
[...] Gritei pelo vizinho e levamos, mas no caminho ele (meu marido) faleceu nos
meus braços. Nada mais havia a ser feito. Fiquei tonta... o meu amado ali nos meus
braços inerte... o que dizer para as meninas? Como voltar para casa sem meu
marido? Como ficar naquela nova casa sem meu filho, sem meu marido? A gente
fica tonta, a gente pensa que não vai agüentar mas “Aquele de Cimaa força
138
necessária, o amparo, a calma para seguirmos em frente. E o Pai do Céu abre os
caminhos quando a gente pede, implora ajuda. E eu implorei. (F. 34)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
As questões escatológicas não são alvo de reflexão.
Olhe, essas questões de “inferno” e “purgatório”, nós, aqui em casa e também
na igreja, quase não falamos... acho que não falamos mesmo. Nós, do movimento
“renovação carismática”, nos preocupamos em, talvez semelhantemente aos
primeiros cristãos, estar junto ao próximo do modo mais completo, verdadeiro e
amoroso possível, amparando, orientando, orando com aquele que está necessitado
de ajuda... é cuidar amorosamente, daqueles que estão precisando, incluindo os
aspectos materiais e de ordem prática do dia-a-dia... o ponto de referência da nossa
vida é Cristo, entendeu? (F. 44)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Ser misericordioso e protetor
Não é brincadeira não... a gente perder em 6 meses, um filho maravilhoso,
amoroso, de apenas 18 anos e 6 meses e depois um marido que era um verdadeiro
amigão, um companheiro de todas as horas... Não é moleza não! Pense! Deus
para segurar na nossa mão e nos dá força! A força e a em Deus, Vania, é fruto da
graça e misericórdia “d’Aquele lá de cima”. (F.10)
[...] Dizem que eu levantei as mãos para o alto e disse gritando “meu Deus, meu
Jesus, minha boa Mãe Maria, eu que tenho ajudado a tantos, sei que chegou a
minha hora... agora preciso de vós! Não me abandonem. Eu sei que estou prestes a
ver o que nunca queria ver! Ajuda-me ó Deus, meu Jesus, minha mãe... segurem na
minha mão e me levem! Preciso de forças” [...] (F.16)
[...] interessante é que, como ele era muito querido no bairro e entre os jovens, [...]
eu me deparava com as pessoas se desesperando... uns desmaiavam... uns
gritavam... aquele chororô... e eu a mãe, a mais dolorida, me via consolando um,
139
abraçando outro... Eu chorava, claro! Mas, com uma força que eu acho que não era
á minha, entende? Ali eu estava amparada, tenho certeza, por Jesus, por Nossa
Senhora, por Anjos e ai eu podia amparar e cuidar do meu marido tão arrasado, tão
desesperado e das meninas [...] (F.16)
[...] Claro que chorei. E quanto! Por horas à fio... Mas, sempre me sentia
conduzida, amparada, entende? Era uma sensação muito forte! (F.26)
[...] acho que esta foi a única vez que quase me entreguei ao desespero, mas a
misericórdia divina cobre todos os sofrimentos, suaviza, acalma, fortalece. Daí a
importância da oração [...] (F.28)
[...] Como voltar para casa sem meu marido? Como ficar naquela nova casa sem
meu filho, sem meu marido? A gente fica tonta, a gente pensa que não vai agüentar
mas “Aquele de Cima” a força necessária, o amparo, a calma para seguirmos
em frente. E o Pai do Céu abre os caminhos quando a gente pede, implora ajuda. E
eu implorei. (F. 34)
Ser detentor do poder e dos mistérios da existência
[...] eu chorei por horas e também lembro que perguntava: “Ó Deus por que? Por
que eu tive que passar por isto? Por que você que diz nos amar tanto, nos permite
tanto sofrimento? Por que logo o meu filho? Tão bom... tão amoroso... enquanto os
assassinos ficaram.... por que meu filho se foi logo agora no início de um trabalho tão
bonito que ele planejou com os teus jovens? Por que?” Lembro que ao ouvir as
minhas próprias palavras, ajoelhei-me chorando e disse “Meus Deus, perdoa-me eu
nada sei dos teus planos! Quem sou eu para compreender o sentido dessa nossa
existência e de tantos sofrimentos? (F.28)
140
Ser de amor incondicional (presente em todos os momentos, inclusive nos
momentos de celebração e alegria)
[...] A gente fica tonta, a gente pensa que não vai agüentar mas “Aquele de
Cima” a força necessária, o amparo, a calma para seguirmos em frente. E o Pai
do Céu abre os caminhos quando a gente pede, implora ajuda. E eu implorei. (F. 34)
[...] não se escandalize Vania, o nosso Natal foi um Natal alegre! Feliz! Parece
mentira! Acredite por favor! [...] (F.34)
[...] s nunca nos sentimos tão aconchegados e alegres como naquele Natal.
Nós sentíamos que eles, o meu marido e meu filho, estavam ali, e sentíamos
também que as bênçãos divinas caíam abundantemente sobre nós. Vania! Foi
comentado por muitos dos que foram a nossa casa naquela noite que aquele foi um
lindo, um inesquecível Natal! (F.36)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Forte sentimento de presença dos familiares falecidos
[...] s nunca nos sentimos tão aconchegados e alegres como naquele Natal.
Nós sentíamos que eles, o meu marido e meu filho, estavam ali, e sentíamos
também que as bênçãos divinas caíam abundantemente sobre nós. Vania! Foi
comentado por muitos dos que foram a nossa casa naquela noite que aquele foi um
lindo, um inesquecível Natal! (F.36)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da Crise
Católica praticante
141
Fator desencadeador da crise
Falecimento do seu filho e do seu esposo
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Reafirma sua identidade religiosa como sendo católica, porém bem mais atuante e
com uma fé e diálogo íntimo com Deus.
Síntese Interpretativa
Luzia passou por duas situações, talvez as mais difíceis que um ser humano
possa sofrer em sua vida: a perda de um filho de 18 anos em condições trágicas e,
logo em seguida, a perda do esposo muito amado. Circunstâncias como estas,
muitas vezes, abalam a e a religiosidade das pessoas mais envolvidas
afetivamente porém, no caso específico de Luzia deu-se o contrário.
Luzia, ao contrário da grande maioria daqueles que se denominam católicos,
era uma pessoa que colocava a religião no centro de sua vida, inclusive sua prática
religiosa refletia-se nas suas atitudes junto aos seus familiares. Seu filho, por
exemplos, o que faleceu assassinado, na época do ocorrido segundo conversa
informal com a entrevistanda, estava desenvolvendo um trabalho junto aos jovens de
sua paróquia, e nas missas dominicais, ele e seu grupo, participavam das
celebrações espargindo alegria e encontro com belas músicas, que era cantadas por
todos.
Ela, inclusive, diz ter consciência que o seu modo vivencial de expressar sua
religiosidade, foi e continua sendo, um fator decisivo de aumentar a cada dia a sua fé
e confiança em Deus. Além do mais ela, muitos anos, conta com o apoio de um
grupo da igreja onde freqüenta, um grupo que se preocupa essencialmente vivenciar
na prática a solidariedade, o amor e a partilha. Foi deste referido movimento, mas
142
também suas três filhas, receberam na época da crise, todo apoio, quer de ordem
material como emocional e espiritual.
Para Luzia, esse apoio espiritual, foi o grande diferencial, que a ajudou a
suportar todas as dificuldades nos seus momentos mais difíceis. Este funciona
essencialmente com vibrações amorosas através da oração e segundo Luzia, não
ela, mas também suas filhas, se sentiam fortalecidas e completamente confiantes e
seguros no seu dia-a-dia.
Luzia, que era uma pessoa de fé, declarou que a sua experiência de dor
pelas perdas a amadureceu muito mais como pessoa, nas suas relações, e como
pessoa comprometida com sua fé. Ela, que naquela época, era apenas uma
participante comum do movimento de “renovação carismática” de sua paróquia, hoje
tem uma função de muita importância na região metropolitana do Recife, cargo este
que não recebeu por deseja-lo conscientemente, mas pelas incontáveis palestras
das quais participou com objetivo de ajudar, com seu depoimentos, as pessoas que
estão num momento de extremo sofrimento, e ela declarou também que a
intensidade da e o amor a Deus é algo que pode se elevar e amadurecer a partir
de uma prática consciente e de um contato constante, profundo e íntimo com o
Criador.
As questões que não ficaram claras para mim, como pesquisadora, são as
relacionadas a escatologia cristã católica, que é um tema não claro para própria
entrevistanda. Dá-nos a impressão que Luzia reconfigurou sua identidade religiosa
em muitos aspectos, deixando porém, o que é natural, pontos intocados. Pontos
inclusive que, no meu entender tem íntima ligação com os seus posicionamentos
acerca da imagem de Deus e do imaginário sobre o pós-morte. tanto é que ela
demonstrou de um modo verbal e não verbal o impacto que lhe causou descobrir que
não conseguia identificar com clareza as diferenças e “funções” do inferno e do
purgatório, aspectos básicos da doutrina católica, mas para os quais ela não
encontrava respostas, simplesmente por nunca ter refletido a respeito. O que nos faz
supor que a religiosidade de Luzia baseia-se preponderantemente em experiências
emocionais, onde a atitude reflexiva não ter papel relevante.
143
Quadro 4 – Entrevista Luzia
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Situação de profunda
dor;
Oportunidade de se
vivenciar união e
solidariedade;
Profunda dor
As questões
escatológicas não
são alvo de reflexão
Percepções ou
Representações acerca
de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Ser misericordioso e
protetor;
Ser detentor do poder e
dos mistérios da
existência;
Ser de amor
incondicional (presente
em todos os
momentos, inclusive
nos momentos de
celebração e alegria).
Forte sentimento de
presença de Deus
no cotidiano.
Forte sentimento de
presença dos
familiares falecidos.
Antes da Crise
Católica praticante
Fator Desencadeador da
Crise
Falecimento do seu
filho e do seu
esposo
Transformações a partir da
crise
Reafirma sua
identidade religiosa
Fé mais profunda e
íntima.
Fé compartilhada
144
6.5 CASO EDITE
Nome: Edite
*
Sexo: Feminino
Idade: 67 anos
Nível de Instrução: Superior
Atividade Profissional: Pedagoga e Advogada
Estado Civil: Viúva
Religião: Católica
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Primeiro momento:
Morte: Algo Pavoroso
[...] “mãe não me deixe morrer pelo amor de Deus, não me deixe morrer... tenho
uma vida pela frente (Relato da súplica de um tio, em seus últimos momentos da
existência e que causou um forte impacto a Edite, nossa entrevistada) (F. 4)
Meu coração de menina sofreu um impacto e no meu íntimo eu pensei: como
deve ser horrível morrer, que horror! (F. 4)
E o pavor tomou conta de mim... (F. 4)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
145
Segundo Momento:
Portal de passagem para uma dimensão de felicidade plena
[...] eu senti como se fossem duas mãos... bem leves... que me seguravam e bem
delicadamente me puxavam para cima... percebi que sai para fora daquela sala pelo
teto como se eu não fosse nada... e ai aquela força, aquele poder foi me
transportando para um lugar que eu não sabia o que era... nem onde era... mas era
muito escuro, sabe? Mas ao mesmo tempo que eu ia sendo transportada eu fui
sendo invalidada por uma felicidade que não era deste mundo... era tão grande, tão
grande aquela sensação de felicidade que eu tive a impressão que meu corpo não ia
agüentar... Pois assim era eu! A felicidade era tão grande que eu ia explodir... Ai
pensei: “Meu Deus”! Como eu era boba! Eu tinha medo da morte! E morte é vida! Foi
a grande descoberta! Morte é vida numa dimensão que eu nunca poderia imaginar...
Morte é apenas passagem, é como se eu estivesse num quarto e passasse para um
outro quarto. Entendeu?Ai eu dizia: “Meu Deus a morte não existe! A morte não
existe”, eu começava a louvar a Deus por aquela maravilha que ninguém sabia
(F.8)
[...] Eu me espantava... Era algo impressionante e maravilhoso o que se passava
comigo... era como uma torrente, borbulhando e eu cantando, eu mesma não sabia
que podia sentir aquilo tudo, que eu amava a Deus daquele jeito. Aí, cantar se tornou
pouco e eu passei a dançar... e me via dançando, bailando, rodopiando... de
felicidade porque a morte não existia, porque a morte não existia! Porque a morte era
uma passagem para uma vida melhor! E esse pavor que eu sentia e que todo
mundo quase sente não tinha sentido eu bailava, parecia uma louca, tonta de tanta
felicidade... (F. 8)
[...] Quem não viveu a experiência que eu vivi não poderia entender... (F.8)
[...] uma alegria tão imensa que se tornava quase insuportável. (F. 12)
[...] senti também uma dor dilacerante, a maior que senti em toda minha vida,
quando percebi que não havia morrido e teria que voltar e me separar daquela
felicidade indescritível, incomensurável... (F. 12)
146
Morte: possibilidade de amadurecimento espiritual
[...] uma perda assim traz conseqüências inevitáveis e ele (meu marido) que era
avesso às minhas idéias passou a aceitá-las melhor, a conversar comigo sobre
alguns aspectos das minhas crenças e da maneira de eu encarar a morte e a vida
além desta... A morte de nossa filha, tenho certeza, ajudou muito ao meu esposo, a
amadurecer espiritualmente. Ajudou a todos nós. [...] (F.24)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Primeiro momento:
Pavor
[...] quando eu era bem pequena, acho que com uns sete anos [...] recebi a visita
de uma tia [...] e soube de um tio que havia morrido muito jovem, agarrando-se a
minha avó paterna, berrando, implorando mãe não me deixe morrer, pelo amor de
Deus, não me deixe morrer... tenho uma vida pela frente” etc. quando aquela tia
recém chegada descreveu aquela cena, passada há anos, [...] meu coração de
menina sofreu um impacto e no meu íntimo eu pensei “como deve ser horrível
morrer, que horror!” E o pavor tomou conta de mim... (F.4)
Angústia a partir dos conflitos por conta de crenças contraditórias
[...] Muitas coisas foram ditas... mas você sabe que aquelas idéias me faziam
muito mal?... Eu não me agradava de nada que ouvia. (F. 12)
[...] eu ficava a pensar em tudo que me falavam mas dentro de mim... eu dizia:
“Meu Jesus... preciso saber onde está a minha filha... quero saber isso de você,
Jesus...” (F. 12)
147
Profunda tristeza
[...] Naquela época em que perdi minha filha, eu chorava sem parar... havia dias
que eu adormecia de tão cansada de chorar... passava quatro a seis horas chorando
direto... eu não tinha vontade nem de me alimentar e achava muito ruim receber
visitas [...] (F.12)
Profunda solidão
[...] A experiência de quase morte... me provocou também muito sofrimento pois
ninguém naquela época falava sobre esse tipo de experiência e eu me retrai muito
para não ser alvo de muitas criticas... também perdi um pouco do entusiasmo de
freqüentar a igreja e isso me desarrumou um pouco. (F. 6)
[...] eu me sentia muito só... teria sido tão bom ter podido falar abertamente, sobre
tudo de maravilhoso que vivi! Mas, nem podia em casa, nem na família, nem entre
amigos e nem na igreja! Hoje, felizmente, parece que uma certa abertura (não
sei se está acontecendo entre os padres... porque, ultimamente, tenho ido menos a
igreja...) mas, felizmente, esses assuntos de “experiências extra-sensoriais”, e
principalmente essas semelhantes a minha, já têm aparecido muito na mídia... (F.16)
Segundo momento:
Conforto
[...] É confortante vermos que o que vivi, mesmo com alguns aspectos diferentes,
estão acontecendo com uma certa freqüência... Na mídia tenho visto entrevistas e
debates sobre isso e sinto um certo confortável... um pouco mais à vontade para
falar com os meus filhos sobre isso. Antes não falava de forma alguma inclusive
porque não tinha apoio de meu marido... (F. 16)
[...] Eu me senti bem mais confortável... uma tranqüilidade de fazer gosto! Pois a
partir da certeza de que minha filha estava maravilhosamente bem, eu passei a
receber melhor as pessoas e elas se admiravam com a minha transformação e com
148
a minha conformação, e eu me sentia mais confortável em contar as minhas duas
experiências... (F. 20)
[...] experiências que me pareciam tão estranhas e me confundiam tanto... (F. 12)
Profunda tranqüilidade
[...] Até que um dia, à noite, quando eu estava cansada de chorar, eu me
percebi me aquietando... algo agradável surgindo, uma calma, um silêncio dentro de
mim mesma... era algo muito profundo... e em meio a uma imensa, inefável
tranqüilidade, ouvi uma voz que dizia “Edite, aquela felicidade que você
experimentou quando do nascimento da sua filha, é a mesma felicidade que sua filha
goza junto a mim agora”. (F. 12)
[...] Estas lembranças recalcadas e agora vivas dentro de mim me deram uma
tranqüilidade imensa para enfrentar os revezes da vida. Meu marido está do “lado
de lá”... Ele se foi o ano passado... (F. 22)
[...]Foi morte súbita, mas eu sinto saudade... uma saudade calma, entende?
Como eu lhe disse, a certeza de minha filha estar bem, a ligação que fiz da minha
situação de quase morte, com a minha “experiência com Deus”... realmente mudou
totalmente minha insegurança. Estou segura e até o meu esposo, também mudou
muito suas idéias sobre a morte e o “depois da morte”. (F. 24).
Felicidade indescritível
Senti [...] uma dor dilacerante, a maior que senti em toda minha vida, quando
percebi que como não havia morrido, teria que voltar e me separar daquela felicidade
indescritível e incomensurável. (F.8)
Eu me espantava... com o que se passava comigo... era como uma torrente,
borbulhando e eu cantando, eu mesma não sabia que podia sentir aquilo tudo, que
eu amava a Deus daquele jeito. Aí, cantar se tornou pouco e eu passei a dançar... e
me via dançando, bailando, rodopiando... de felicidade porque a morte não existia.
(F. 8)
149
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Primeiro Momento
Conflito em relação ao destino escatológico da filha
[...] e haja visitas, cada um trazendo seu conforto e suas idéias, cada um ajudava
de acordo com seus valores [...] eu ouvia as idéias de cada visita, mas nenhuma
daquelas idéias me agradava... (F. 12)
[...] outros diziam que ela deveria estar em outra galáxia... (F. 12)
[...] alguns de minha religião, a católica, me lembravam que depois do juízo
final, nós ressuscitaríamos e aí, sim, nos reencontraríamos. (F. 12)
[...] alguns me diziam que, como minha filha que morreu ainda era uma menina,
possivelmente ela teria que reencarnar... quem sabe... não seria bem próxima a mim,
como numa netinha... (F. 12)
[...] Muitas coisas foram ditas... mas você sabe que aquelas idéias me faziam
muito mal?... Eu não me agradava de nada que ouvia. (F. 12)
[...] eu ficava a pensar em tudo que me falavam mas dentro de mim... eu dizia:
“Meu Jesus... preciso saber onde está a minha filha... quero saber isso de você,
Jesus...” (F. 12)
Segundo Momento
Clareza acerca do destino escatológico da filha
[...] Até que um dia, à noite, quando eu estava cansada de chorar, eu me
percebi me aquietando... algo agradável surgindo, uma calma, um silêncio dentro de
mim mesma... era algo muito profundo... e em meio a uma imensa, inefável
tranqüilidade, ouvi uma voz que dizia “Edite, aquela felicidade que você
experimentou quando do nascimento da sua filha, é a mesma felicidade que sua filha
goza junto a mim agora”. (F. 12)
150
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Amigo e protetor
[...] Jesus era meu amiguinho de todas as horas e eu passei a conversar com Ele:
“Jesus... morrer deve ser muito ruim, viu? Olha minha tia como está chorando”. Mas
de acordo com a intimidade com que eu me relacionava com meu amigo Jesus, eu já
vivia mentalmente de mãozinhas dadas com Ele e assim fui “sobrevivendo” ao
medo... (F. 4)
[...] Até que um dia, à noite, quando eu estava cansada de chorar, eu me
percebi me aquietando... algo agradável surgindo, uma calma, um silêncio dentro de
mim mesma... era algo muito profundo, inefável... então ouvi uma voz que dizia
“Edite, aquela felicidade que você experimentou quando do nascimento da sua filha,
é a mesma felicidade que sua filha goza junto a mim agora”. [...] Eu havia recalcado
aquela “experiência de quase-morte” que eu vivi e que [...] foi uma experiência do
infinito amor de Deus [...] (F. 8)
[...] “Jesus, eu preciso de uma resposta tua... onde está a minha filha?...” E assim
permaneci por muito tempo, dormindo, orando e esperando, pois eu sabia que um
dia Jesus, o meu amiguinho de criança, responderia de algum modo a minha
indagação. [...] (F. 12)
Detentor do poder e dos mistérios da existência
[...] antes de atravessar o teto daquela sala de cirurgia em meio as minhas
tentativas ansiosas de comunicar ao meu médico que eu estava bem... eu senti
como se fossem duas mãos [...] bem leves... que me seguravam e bem
delicadamente me puxavam para cima... percebi que saí para fora daquela sala pelo
teto como se eu não fosse nada... e aí aquela força, aquele poder foi me
transportando para um lugar que eu não sabia o que era... nem onde era.... fui sendo
invadida por uma felicidade que o era deste mundo... tão grande aquela sensação
de felicidade que eu tive a impressão que meu corpo não ia agüentar... que eu ia
explodir... acho que cheguei no limite e relaxei... aí na hora que eu relaxei, eu escutei
um voz que falou me chamando pelo nome “Edite isto é a morte”. Naquela hora eu
151
pensei que era Deus falando comigo. E eu disse assim: Deus, isso é a morte? Fiz a
pergunta, mas ninguém respondeu e naquele silêncio eu entendi que... eu não
estava morrendo, mas eu estava passando por uma “experiência de morte” [...] eu
dizia: “Meu Deus, a morte não existe!!! (F. 8)
[...] Deus nos dá um corpo espiritual, com qual vivemos hoje, este a gente perde, é
de origem terrena, aqui fica, quando a gente morre, mas há um outro corpo que pode
ser até de constituição diferente e que pode ser também considerado corpo, que nos
possibilita sentir e nos comunicar do jeito que eu senti naquela experiência de morte
da qual lhe falei.... Sei não... será que é isto mesmo? Deus sabe! São os seus
mistérios... mas, dentro da minha compreensão, que mais que intelectiva, foi
vivencial [...] eu sinto e sei pela experiência, que um outro corpo, pois eu vivi...
(F.12)
Ser digno de louvores e gratidão
[...] eu automaticamente comecei a louvar a Deus por aquela revelação
maravilhosa que ninguém sabia e que eu também jamais imaginara! (F. 8)
[...] eu adoro louvar a Deus cantando e acho que cantar na igreja com os nossos
irmãos fica bem mais bonito... (F. 31)
Ser de infinito amor
[...] Ah... pois não é que eu descobri que havia esquecido? [...] Eu havia recalcado
aquela “experiência de quase-morte” que eu vivi e que também foi uma experiência
do infinito amor de Deus... (F. 12)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Experiência Fora do Corpo (EFC)
[...] de repente eu muito espantada me percebi em cima, no teto da sala de
cirurgia, vendo todos os movimentos do meu médico e de toda a equipe tentando me
152
reanimar, eu estranhei de início... mas depois percebi com espanto que Dr. Carlos
estava realmente nervoso e apreensivo... acho que eles estavam achando que eu
estava correndo perigo de vida... os movimentos e a fisionomia deles denotavam a
apreensão e por incrível que pareça eu estava me sentindo ótima, observando tudo
com a calma de quem estava muitíssimo bem... mas por que tanta apreensão? Então
me percebi descendo do teto “aterrissando” na sala e me dirigindo para onde a
equipe se encontrava... bati no ombro direito do médico e também amigo Dr. Carlos
tentando dizer a ele que ele não se preocupasse que eu estava me sentindo ótima...
mas ele não me ouviu e nem me viu porque continuava ele e a equipe tentando
reanimar aquela criatura, que era eu mesma, e que estava sendo o alvo dos
cuidados médicos de toda a equipe... (F. 8)
Experiência Quase Morte (EQM)
[...] de repente eu não mais me vi na sala... eu me vi saindo daquele ambiente
passando pelo teto e indo para a atmosfera terrestre. Ah! Lembro-me agora que
antes de atravessar o teto daquela sala de cirurgia em meio as minhas tentativas
ansiosas de comunicar ao meu médico que eu estava bem... eu senti como se
fossem duas mãos ... bem leves... que me seguravam e bem delicadamente me
puxavam para cima... percebi que saí para fora daquela sala pelo teto como se eu
não fosse nada... e aquela força, aquele poder foi me transportando para um lugar
que eu não sabia o que era... nem onde era.... mas era muito escuro, sabe? Mas ao
mesmo tempo que eu ia sendo transportada eu fui sendo invadida por uma felicidade
que não era deste mundo... era tão grande, tão grande aquela sensação de
felicidade que eu tive a impressão que meu corpo não ía agüentar... não ía
agüentar... que eu ía explodir... sabe como uma bola que você enche, enche, enche,
enche demais e ela explode? Pois assim era eu! A felicidade era tão grande que eu
ía explodir... então... eu relaxei, sabe? Porque eu não agüentava e relaxei, aí na hora
que eu relaxei, eu escutei uma pessoa que falou me chamando pelo nome “Edite isto
é a morte”. Naquela hora eu pensei que era Deus falando comigo. E eu disse assim:
Deus, isso é a morte? Fiz a pergunta, mas ninguém respondeu e naquele silêncio eu
entendi que eu estava passando por uma experiência de morte. Eu não estava
morrendo, mas eu estava passando por uma experiência de morte. Entendeu?
153
quando eu compreendi isto, eu dei uma gaitada, não era uma risada não... era uma
gaitada mesmo (gargalhada). pensei: “Meu Deus”! Como eu era boba! Eu tinha
medo da morte! E Morte é vida! Foi a grande descoberta! Morte é vida numa
dimensão que eu nunca poderia imaginar... Morte é apenas passagem... (F. 8)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Identidade antes da crise
Profundamente Católica
Fator desencadeador da crise
Morte da filha
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Atitude de retraimento por medo das criticas a partir da EQM... uma experiência
incomum e contraditória com certos princípios da igreja que pertence
[...] E pela estranheza da situação, naquela época, pelo medo de me considerarem
lunática ai eu me retrai muito para não ser alvo de muitas criticas... também perdi um
pouco do entusiasmo de freqüentar a igreja pois era tão difícil eu intimamente
discordar do que era pregado... dá um incômodo danado a gente ouvir coisas e
aumenta mais ainda nossas dúvidas... confesso que essa situação me desarrumou
um pouco. (F. 6)
Atitude de mudança na sua percepção religiosa
[...] A experiência de quase morte [...] foi muito marcante... teve aspectos
profundos que modificou muito a minha forma de ver as coisas, principalmente
aspectos relacionados ao corpo doutrinário da minha religião. Mas me provocou
154
também muito sofrimento pois ninguém naquela época falava sobre esses tipos de
experiências que hoje os estudiosos chamam de “paranormal”... “extra-sensorial”...
“supramental” [...] (F. 6)
Católica, mas bem menos freqüentadora dos templos religiosos
[...] A pesar de estar freqüentando bem menos a igreja, eu continuo católica, às
vezes vou à missa, mesmo discordando, muitas vezes, da pregação dos padres.
(F.16)
Visão mais critica, desvelando muitos aspectos da ideologia subjacente ao discurso
teológico, presentes na maioria das pregações dos sacerdotes
[...] Conversando agora com você, é que estou percebendo o quanto eu senti raiva
de ter sido enganada. E, mesmo agora parece que ainda no meu tom de voz um
certo ressentimento das mentiras ou dos ensinamentos distorcidos que nos foram
passados pelos sacerdotes e freiras com quem convivi desde criança... talvez nem
tanto por maldade... talvez muito mais por conta dos preconceitos, dos
condicionamentos culturais até hoje mantidos porque é conveniente para as
instituições religiosas... (F. 16)
Emergências de indagações geradoras de conflitos em relação à escatologia cristã
[...] Muitas coisas foram ditas... mas você sabe que aquelas idéias me faziam
muito mal? [...] Eu não me agradava de nada que ouvia. (F. 12)
[...] eu ficava a pensar em tudo que me falavam mas dentro de mim... eu dizia:
“Meu Jesus... preciso saber onde está a minha filha... quero saber isso de você,
Jesus...” (F. 12)
[...] Deus... não tem meias medidas! Então, entre morrer, ressuscitar, ter
julgamento e ir para eternidade... não deve passar mais que algumas horas... esta
história de ficar em “repouso” esperando o dia do juízo final, acho que não é verdade
155
não! Eu mesma... eu estava com meu corpo e vivi aspectos de eternidade! Acredite!
[...] (F.14)
[...] tenho que ser tolerante com essas discordâncias da minha religião... (F. 16)
[...] Eu me sinto católica de coração, mas realmente não sei se os padres
soubessem das minhas idéias me aceitariam também de coração em suas igrejas...
(F. 31)
Experiência extra-sensorial: diálogo íntimo com Deus
[...] eu dizia: “Meu Jesus... preciso saber onde está a minha filha... quero saber
isso de você, Jesus...” [...] e em meio a uma imensa, inefável tranqüilidade, ouvi uma
voz que dizia “Edite, aquela felicidade que você experimentou quando do nascimento
da sua filha, é a mesma felicidade que sua filha goza junto a mim agora”. [...] (F. 12)
Jesus Cristo como referência essencial de sua identidade religiosa
[...] eu sinto Deus dentro de mim a cada momento, dentro desta casa [...] vivo
eternamente conversando com o meu Jesus, [...] eu tenho um grande amigo ao meu
lado com o qual converso várias vezes ao dia, do jeito que fazia quando era
pequenina naquele colégio interno. [...] pra ser sincera apesar de sentir falta de
algumas vivencias na igreja, não considero essencial freqüentar nenhum templo
religioso... pois Jesus está aqui comigo... sinto a presença dEle... é como se ele
estivesse aqui, como qualquer um de nós, a diferença é a intimidade e a confiança
que sinto nessa relação com Ele que é de muito tempo... (F. 31)
Crença essencial: na misericórdia e no amor divino
[...] você sem hesitação coloque que sou católica, mesmo não aprovando e
discordando de alguns aspectos importantes, porém não essenciais porque no
essencial s concordamos: na misericórdia e no amor divino! O resto são meras
156
interpretações... verdadeiras ou distorcidas, o importa... somos humanos e filhos
do mesmo Deus. (F. 31)
Síntese Interpretativa
Edite, desde muito criança, sentia um verdadeiro pavor em relação a morte.
era um sentimento muito forte que a acompanhou até o dia que ela viveu uma
experiência muito especial, no momento do parto da sua terceira filha, quando estava
sendo submetida a uma cesária. Esta experiência (E.Q.M) repreesentou um
verdadeiro marco na vida de Edite e a partir daí seu medo se desfez completamente,
dando lugar a uma certeza plena de que a morte é apenas um ponto de passagem
para um outro tipo de vida, uma vida plena de felicidade.
Alguns anos após, Edite, passou pela profunda dor de perder tragicamente
uma de suas filhas (a caçula), em um acidente que reverberou profundamente em
seu íntimo fazendo emergir indagações existenciais, de natureza espiritual,
repercutindo desse modo na sua identidade religiosa.
Edite passou a viver conflitos em relação ao destino escatológico da sua filha,
experimentando dúvidas e sentimentos tão dilacerantes que a levaram ao desespero.
Felizmente, no momento mais agudo de sua crise suas dúvidas transformaram-se
em “certeza” e seu desespero em “paz infinita”.
Tais transformações aconteceram a partir de uma experiência, também
“especial”, onde ela vivenciou uma sensação íntima e profunda de diálogo com Deus.
Neste momento, Edite, foi capaz de relacionar esta sua vivência “mística” com a
experiência de quase-morte (E.Q.M) que vivenciara há nove anos.
Estas duas experiências “incomuns”, que neste trabalho também chamamos
de extra-sensoriais, foram decisivas na reconfiguração que se processou claramente
na identidade religiosa de Edite, que evoluiu de um padrão herdado para um novo
estilo pessoal de se relacionar com Deus. Sua religiosidade, a partir daí, amadurece
157
e sua fé reaviva-se a partir do diálogo íntimo, profundo e constante que refere manter
com Deus no seu cotidiano.
158
Quadro 5 – Entrevista Edite
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao Pós-
Morte
Primeiro momento
Algo pavoroso
Segundo momento
Portal de passagem
para uma dimensão
de felicidade plena;
Possibilidade de
amadurecimento
espiritual
Primeiro momento
Pavor
Angústia a partir
dos conflitos por
conta de crenças
contraditórias
Profunda tristeza
Profunda solidão
Segundo momento
Conforto
Profunda
tranqüilidade
Felicidade
indescritível
Primeiro momento
Conflito em relação ao
destino escatológico da filha
Segundo momento
Clareza acerca do destino
escatológico da filha
Percepções ou
Representações acerca
de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Amigo e Protetor
Detentor do poder e
dos mistérios da
existência
Ser digno de louvores
e gratidão
Ser de infinito amor
Experiência Fora do
Corpo (EFC)
Experiência Quase
Morte (EQM)
Experiência de Êxtase
Experiência de ouvir
Deus
Antes da Crise
Católica Fervorosa
Fator Desencadeador da 1ª Crise
Experiência Quase Morte
Mudanças a partir da1ª crise
Retraimento: medo de críticas
Retraimento da Igreja
Fator Desencadeador da 2ª Crise
Morte da Filha
Mudanças a partir da 2ª Crise
Angústia: “Como está minha
filha?”
Visão crítica em relação à
escatologia.
Fé herdada Íntima
Religiosidade pessoal
159
6.6 CASO REBECA
Nome: Rebeca
*
Sexo: Feminino
Idade: 63 anos
Nível de Instrução: Nível Superior
Atividade Profissional: Médica
Estado Civil: Viúva
Religião: Católica
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Passagem para uma outra existência
Olhe se eu o tivesse essa crença tão forte, esta confiança que depois da morte
existe uma outra vida eu certamente teria me rebelado. Mas, tenho a certeza, uma
confiança inabalável que vou me reencontrar com o meu filho. (F.08)
A morte para mim não é morte, é vida. Aliás, eu perdi um filho pouco tempo e
no cartãozinho que fiz para distribuir na missa de sétimo dia eu coloquei isso “Meu
filho... veja que a morte não é morte... que a morte é vida!” Escrevi, isto porque
acredito que do lado de lá, quem morre vai viver na plenitude da glória de Deus.
Tudo aqui é passagem... (F.2)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
160
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Tristeza / Saudade
Hoje eu sofro a saudade, vivo muito triste... (F. 8)
Eu não tenho mais brigado, nem tentado barganhar com Deus não. Eu aceitei
como uma decisão divina... Que talvez era chegado o momento dele... Mas a
tristeza, a saudade não se apaga... Eu tenho tentado superar quem tem me dado
força é a igreja, é o meu Deus (F. 20)
Revolta
Quando a gente tem uma fé, uma ilimitada em Deus, a gente supera... não é
que eu tenha superado a dor, nem a saudade, mas a revolta que tive em outros
tempos, esta revolta graças a Deus eu não sinto mais.(F. 6)
Pavor
Eu quando me vi em , olhando o meu próprio corpo, meu deu um pavor, eu
entrei em nico e fiquei dizendo “Meu Deus, eu morri? Eu quero voltar! Eu não
quero morrer! (F. 14)
Sentia pavor de morrer e pavor de quem já morreu. (F.16)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Perspectiva de reencontro e restabelecimento das relações afetivas
Eu tenho certeza absoluta que vamos ainda estar juntos. (F. 10)
Existe um intercâmbio entre esta vida e a Pós-Vida
[...] senti meu filho deitando ao meu lado, foram muitas às vezes... ele era muito
gordo e eu percebia até a pressão que ele fazia abaixando as molas do colchão..
161
mas eu não sentia medo... era meu filho e aquilo o me inquietava... apenas me
intrigava... (F. 20)
[...] Outras vezes, e foram muitas, ao levantar de madrugada para ir ao banheiro,
na volta, indo a geladeira comer algo, percebia pessoas na cozinha... as vezes
uma garota, sorrindo para mim, outras vezes uma freira e, incrível foi conseguir sacar
que era dela que vinha aquele magnífico perfume [...] (F.20).
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Detentor do poder e dos mistérios da existência
[...] eu aceitei (a morte do meu filho)... como uma decisão divina... que talvez era
chegado o momento dele... (F. 8)
Mas esta história de recriminar contra Deus, não. Depois que eu me senti
inundada por aquela paz eu mudei e não recriminei mais. (F.6)
Vania eu muitas vezes nem entendo direito mas me percebo agradecendo a Deus
por ter acordado em meio à noite e ter me dirigido justamente para aquele leito...
você entende? Eu sinto, claramente, que não foi por mero acaso eu acordar,
espontaneamente, e me dirigir exatamente naquele momento para aquele
determinado leito (onde a criança estava morrendo) funciona como se eu fosse
movida por um poder superior, compreende? (F. 12)
Ser justo, bondoso, protetor e consolador
Eu tenho a crença num Deus justo, bondoso e dentro desta perspectiva todo
sofrimento que por aqui passamos tem um sentido. (F. 6)
Houve uma época, muitos anos, que eu estava numa situação terrível, uma
situação crítica de ordem financeira, eu estava desesperada e de repente eu senti a
presença de Deus me envolvendo... era uma paz tão grande, tão infinita... era uma
paz que não era deste mundo... era uma paz... uma paz que não havia palavras que
eu pudesse descrever... e então aí eu senti que Deus, existia mesmo... e eu
162
disse:”Meu Deus, Meu Deus você realmente existe!” E a partir dali eu passei a ter
certeza da existência d’Ele! Eu sentia uma paz infinita! Ele realmente é um Deus em
que a gente pode se agarrar. Ele realmente consola. Olhe às vezes eu O sinto tão
próximo a mim que tenho a impressão que posso pega-lo. Tem horas que eu sinto
realmente a presença d’Ele, sabe? (F. 6)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Experiência culminante (segundo Maslow) ou mística (segundo religiosos)
[...] de vez em quando, abro meu apartamento e sinto um cheiro magnífico de
flores... Um cheiro inconfundível. Um dia desses minha cunhada estava comigo e
também ficou admirada... Ela sentiu como eu senti e se admirou de como o meu
apartamento estava inundado por uma fragrância tão maravilhosa, disse para ela que
da primeira vez que eu senti aquele cheiro fui direto para a minha penteadeira
verificar se a faxineira não havia derrubado alguns dos meus perfumes. Mas o,
estava tudo no mesmo lugar... Muitas outras vezes senti o mesmo cheiro,
agradável... Inebriante e aí eu não mais estranhava. (F. 20)
[...] Outras vezes, e foram muitas, ao levantar de madrugada para ir ao banheiro,
na volta, indo a geladeira comer algo, percebia pessoas na cozinha... Ás vezes
uma garota, sorrindo para mim, outras vezes um freira e, incrível consegui sacar que
era dela que vinha aquele magnífico perfume [...] (F.20)
[...] As vezes... várias... também senti meu filho deitando ao meu lado, foram
muitas às vezes... Ele era muito gordo e eu percebia até a pressão que ele fazia
abaixando as molas do colchão... Mas eu não sentia medo... Era meu filho e aquilo
não me inquietava... Apenas me intrigava. (....) Se ele continua vivo, imagino que é
como espírito e porque então sinto como se ele ao se deitar estivesse com o seu
corpo antigo? Eu sentia claramente a pressão do corpo dele na cama quando ele se
deitava ao meu lado [...] (F. 20)
[...] Tenho algumas experiências em que antecedem a morte... como se fosse uma
intuição em mim que me faz prever, algumas vezes, a morte de alguns dos meus
pacientes com bastante precisão. [...] (F. 12)
163
Por muitas vezes, eu por intuição estive junto do leito das crianças exatamente na
hora de sua morte; sabe aquela coisa que faz a gente sair até do nosso descanso e
se dirigir quase que automaticamente para um leito e ao chegar ouvir aquela
criatura dizer, “tia pegue na minha mão... eu sinto que to indo agora... to sentindo
que vou morrer tia...(F. 12)
Com relação a morte do meu marido, algo intuitivo também me aconteceu, como o
que me “avisandodo seu falecimento. Eu estava em casa e olhei para uma pessoa
ao meu lado (uma médica amiga) e disse com convicção: “nesse momento tenho
certeza meu marido acabou de morrer”, pois eu estava com sensações estranhas e
com um “frio de morte”. Poucos instantes depois o telefone tocou e recebemos a
notícia do seu falecimento. (F. 12)
[...] a vida da gente de médica é muito estressante e eu costumava relaxar sempre
que podia... Um dia, porém eu acho que entrei num nível mais profundo ai eu percebi
que eu estava em pé, na minha sala, em frente a mim mesma, deitada no meu sofá.
Eu quando me vi em pé, olhando o meu próprio corpo, meu deu um pavor, eu entrei
em pânico e fiquei dizendo “Meu Deus, eu morri? Eu quero voltar! Eu não quero
morrer! Eu tenho meus filhos para terminar de criar” etc. E naquele pavor eu insistia
pedindo a Deus para voltar para meu corpo... De repente eu sentia que havia entrado
de novo no meu corpo e foi um alívio. Eu não sei como isso se processou, tanto é
que eu até hoje deixei de fazer relax, meditação... Coisas assim... A gente sabe que
essas coisas acontecem, mas de repente assim, comigo, que medo! Foi real! (F. 14)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da crise
Católica praticante, porém pouco confiante na amorosidade de Deus;
Ímpetos de revolta com Deus.
164
Fator desencadeador da crise:
Morte do filho e percepção extra-sensorial de sua presença.
Experiência Profunda de uma paz infinita
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Sua percepção foi interpretada como mera ilusão pelo seu orientador espiritual de
muitos anos;
Necessita que sua experiência seja reconhecida e validada por um sacerdote da
igreja católica;
Receio de buscar explicações para suas “experiências especiais” fora do contexto
da igreja católica;
Reafirma sua identidade religiosa como católica;
reconfigurada: “fé íntima (passa a ter uma baseada na convivência e no
diálogo íntimo e pessoal com Deus).
Síntese Interpretativa
Rebeca é uma médica que norteia sua conduta nos princípios da religião
católica. Não freqüenta regularmente a igreja, mas dela procura apoio e
orientação para seu cotidiano.
A caminhada pessoal de Rebeca tem sido marcada por momentos de crise,
crises o fortes que desencadeiam sentimentos dolorosos e que abalam sua
identidade religiosa. A primeira grande crise na vida da nossa entrevistanda,
aconteceu, não por uma perda por morte, mas uma perda de natureza financeira e
afetiva (separação do marido) ruptura tão drástica que gerou um sentimento de
165
desespero, que a levou inclusive a questionar a existência de Deus. Ela se sentia
desamparada e em sua fragilidade, sentia revolta, recriminando o seu destino e
“exigindo” de Deus uma explicação para sua tamanha infelicidade. Aquele que ler,
em sua entrevista, as falas 6 e 8, pode ver com clareza a transformação construtiva
que se processou na vida desta senhora, a partir de uma profunda vivência de
natureza mística: ela encontrava-se “desesperada” e de repente sentiu a “presença”
de Deus, a envolvendo de uma forma tão profunda e completa, que produzia nela,
uma sensação de “paz infinita”... Uma “paz que não era desse mundo”... Uma paz
tão profunda que não existiam palavras que a pudessem descrever. Foi que ela
sentiu no âmago do seu ser “que Deus existia mesmo” e que independente de
qualquer circunstância, por mais inesperada, violenta ou dolorosa que fosse, ela
realmente a partir dali confiava na existência de um Deus que realmente a protegia e
em que ela podia confiar. Um Deus que “realmente consola”, um Deus que ela “sente
tão próximo” que tem a impressão que pode “tocá-lo”, um Deus “presença”!
O interessante é que os dados colhidos na história de Rebeca, leva-nos a crer
que a primeira crise vivenciada por ela na qual se deu aquela inefável experiência de
profunda “presença” de Deus em sua vida, serviu de alicerce, de sustentação, para
lhe garantir o equilíbrio necessário para vivenciar com consciência e tranqüilidade os
sofrimentos que lhe chegariam posteriormente com a morte abrupta do seu filho. A
afirmação dela de que “se não tivesse essa crença tão forte, esta confiança
inabalável que depois da morte existe uma outra vida”, ela realmente se rebelaria,
nos deu sinais de que sua identidade religiosa vem sendo reconfigurada ao longo
desses últimos anos, a partir das relações estabelecidas com o “outro”, com o
“estranho”, com o “diferente”, que a interpela, que a afeta em níveis bem profundos!
Outro aspecto que nos remete à reflexão é o “apego”, a tendência natural de
Rebeca a “agarrar-se” a sua identidade católica, mesmo o encontrando respostas
satisfatórias às suas indagações pertinentes e legítimas, levadas por ela para o seu
antigo e querido orientador espiritual. Rebeca, foi, por várias vezes, e, continua
sendo afetada, por inúmeras experiências “incomuns” (também chamadas de extra-
sensoriais e paranormais) que, de certo modo, vem “desarrumando” a configuração
da sua identidade religiosa, causando-lhe inquietações, receios, ansiedades, pois
alguns princípios, básicos da religião a qual pertence. Mas infelizmente, no nosso
166
entender Rebeca não tem encontrado o apoio que necessita no seu grupo de
referência mais significativo, que é o da igreja a que se sente “pertencendo” e pelo
qual nutre um sentimento de profunda gratidão pelo apoio, carinho e solidariedade
que encontrou no momento mais crítico da sua vida: A morte do seu filho. de se
convir também que nossa entrevistanda Rebeca é de origem católica, sendo assim, é
evidente que seu processo de socialização (primária) aconteceu desde a mais tenra
infância o que significa que são muitos os valores afetivos (de ordem emocional)
fortemente enraizados, carecendo de uma “boa dose” de senso crítico ou de um
“certo” nível saudável de “distanciamento”, capaz de possibilitar integração das
nossas dimensões racional e emocional.
167
Quadro 6 – Entrevista Rebeca
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Passagem para uma
outra existência
Saudade
Tristeza
Revolta
Pavor
Perspectiva de
reencontro e
restabelecimento
das relações
afetivas
Existe um
intercâmbio entre
esta vida e a pós-
vida
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Detentor do poder e
dos mistérios da
existência;
Ser justo, bondoso,
protetor e
consolador;
Deus “presença”.
Vivência íntima
com Deus.
Sentiu a presença
de Deus a
envolvendo...
sentiu-se cuidada,
amda e protegida.
Percepção de
pessoas já
falecidas.
Percepção
intuitiva aguçada –
premonição.
Experiência Fora
do Corpo (E.F.C.)
involuntária.
1ª Crise existencial:
Desespero – Revolta
“Ou Deus não existia ou
tinha me abandonado”.
Vivência íntima com
Deus
Antes da Crise
Católica praticante
Fator Desencadeador da
Crise
Morte do filho e
percepção de sua
presença;
Transformações a partir da
crise
Dúvidas (reaparecem)
em relação ao sentido
da vida, ao sofrimento e
a proteção divina.
Integra a experiência
íntima com Deus.
Dúvidas em relação ao
pós-morte (escatologia).
Reafirma sua identidade
religiosa de católica;
Fé reconfigurada: “fé
íntima” (passa a ter uma
fé baseada no diálogo
“íntimo” e “pessoal” com
Deus).
168
6. 7 CASO AMON
Nome: Amon
*
Sexo: Feminino
Idade: 55 anos
Nível de Instrução: Superior
Nível Profissional: Professora de inglês, tradutora
Estado Civil: Divorciada
Religião: Católica-Espiritualista
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Fonte de inquietação e questionamentos
[...] a morte e o sofrimento foram sempre motivos de inquietação e fonte de
questionamentos para mim. Eu gosto de falar, gosto de pensar nestes temas e
sobretudo gosto de estudar tudo o que existe sobre estes temas. [...] (F.6)
Instrumento para o nosso espírito evoluir
[...] acho a morte algo natural, apenas uma passagem absolutamente necessária
para se chegar a outro plano mais evoluído [...] (F.6)
[...] tudo contribui para a nossa evolução, que a gente não está aqui por acaso que
tanto a vida como a morte são absolutamente necessárias, que vida, morte e
sofrimento são instrumentos para fazer nosso espírito evoluir [...] (F.28)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
169
Fator desencadeador de um enorme e pungente sofrimento
[...] porém, desde criança sofro tremendamente com a morte, mesmo que seja de
animais. [...] (F.6)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Medo
[...] Eu era super-medrosa. Tinha medo de alma, de assombração, de mortos...
tinha medo da vida e da morte. (F.34)
Profunda Dor
[...] Sofro de verdade quando matam gente, animais ou plantas, parece que parte
de mim se vai também. [...] mesmo sabendo que tudo continua vivo, perder animais
ou pessoas queridas, para mim é extremamente doloroso. Por que a gente não pode
mais conviver [...] Eu sou muito de me apegar... pois olha, eu amo muito os animais e
moro aqui nesta casa imensa e tenho atualmente alguns gatos, mas tenho uma foto
de um dos gatos que eu criei e morreu, pendurada na geladeira; ainda me lembro
dele com muita saudade... sou assim... por isso digo se não fossem essas visitas que
faço a outras dimensões eu não sei o que seria de mim! (F.18/20/30)
Se não fora estas “viagens” fora do meu próprio corpo, se não fora tudo o que leio
e pesquiso eu não sei se agüentaria não. Então, para mim, mesmo sabendo tudo o
que sei pela mente cognitiva ou sensitiva eu sofro e eu percebo que é muito doloroso
perder, ver morrer... mesmo sabendo que tudo continua vivo [...] (F.20)
Insegurança
Não sei o que seria de mim se não fossem esses meus estudos e essas minhas
experiências [...] além de expandir mais minha consciência e consequentemente
alargar os meus horizontes, aumenta o meu nível de segurança. (F.16)
170
Desamparo
[...] Eu estava numa fase de fragilidade maior... de desamparo mesmo, muito
ansiosa [...] (F.20)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
O ser humano continua vivo com uma outra estrutura corpórea
Meu marido [...] havia falecido poucos minutos, e agora estava ali com aquele
corpo maravilhoso, sem cicatriz... cheio de vida! Era ele, o meu companheiro, num
dos seus outros corpos... Não era mais o corpo físico dele, este corpo denso, todo
marcado por cicatrizes... (F. 24)
Eu estava numa fase de fragilidade maior... de desamparo mesmo, muito ansiosa,
e recorria sempre para o meu pai, até que ele um dia me apareceu em sonhos, um
sonho extremamente nítido e me disse com um tom que eu aachei muito severo:
“não entendes que eu não tenho mais o meu corpo?” Eu ainda tentei abraça-lo ma
ele se afastou. (F.20)
[...] acredito na ajuda dos anjos... dos santos e também de pessoas simples da
nossa família que se foram, mas que por nos amarem, querem nos ajudar e vêem
para isso nos visitar. (F.48)
Acho muito engraçado conviver em vários planos... ou entrar em faixas de
diferentes vibrações. Olha, Vania, quando eu estou calma e bem harmonizada eu
vejo nessa casa e nessas ruas pessoas que pela forma de vestir sei que já não estão
nos seus corpos de humanos (que já morreram, entendeu?) Gente de vestidos
longos, chapéus antigos, mas também há outros conhecidos desta época atual.
Geralmente eu nem faço a diferença. São pessoas e pronto! Eu convivo com elas,
andando sem me preocupar quem é dessa ou de outras dimensões... mas, se eu
prestar atenção para diferenciar aquelas que são de outro plano..., entende?
Pela energia para identificar. / Eu vivo essas situações, estudo e leio a respeito,
mas ainda o entendo direito não... não sei explicar... vivemos em planos
171
paralelos? A gente ora vê, ora nem percebe... E muita coisa nessa vida para nós
aprendermos, não é? (F.40/42)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Ser superior, amoroso e protetor
[...] acho a nossa casa o melhor local para homenagearmos ou pedirmos algo aos
seres superiores do universo: Deus, Jesus, Maria, Anjos. Na minha opinião eles nos
envolvem com amor sempre que nos aquietamos e pedimos ajuda [...] (F.46)
Cristo: modelo a ser seguido
[...] valorizo muito profundamente os ensinamentos do Cristo. [...] (F.46)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Experiência Fora do Corpo (EFC)
Eu saio naturalmente do meu corpo e me dá uma sensação de extrema leveza,
relaxamento e plenitude. É uma experiência altamente prazerosa... só quem vivencia
pode avaliar! [...] (F.10)
tudo era luminosidade... uma coisa linda e maravilhosa de sentir... uma sensação
de luz e compreensão total... uma sensação de “compreensão do todo” assim
num certo sentido, uma sensação de sapiência e plenitude! para entender, por
que não para se sentir medo? Quando a gente ultrapassa aquele “túnel”, vive a
sensação de plenitude e harmonia e não há lugar para medos... (F.12)
Percepção da visita de seu esposo recém-falecido
Meu marido estava há uma semana na UTI, fez “ponte de safena”. Estava fazendo
minha oração matinal, ainda no quarto, quando ele me apareceu sorrindo... abriu a
172
camisa, assim, mostrando o rax, todo feliz e dizendo: “Olha, eu estou totalmente
curado. Veja!” E mostrava o peito sem cicatriz... eu fique ali meio boba. [...] Ele havia
falecido poucos minutos, e agora estava ali com aquele corpo maravilhoso, sem
cicatriz... cheio de vida! Era ele, o meu companheiro, num dos seus outros corpos...
Não era mais o corpo físico dele, este corpo denso, todo marcado por cicatrizes...
(F.24)
[...] sei que eu neguei, por defesa... não quis enxergar que meu companheiro
havia vindo me ver e que a morte do seu corpo físico devia ter acabado de
acontecer... neguei, mas fiquei com uma angústia, algo preso no coração... (F. 26)
Percepção do pai falecido
[...] recorria sempre mentalmente para o meu pai, até que ele um dia me apareceu
em sonhos, um sonho extremamente nítido e me disse com um tom que eu até achei
muito severo: “não entendes que eu não tenho mais o meu corpo?” Eu ainda tentei
abraçá-lo mas ele se afastou. (No entendimento da entrevistanda, esse
aparecimento foi real.) (F.20)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da crise
Tipicamente católica
Fator desencadeador
Morte do pai
Morte do esposo
173
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Busca constante de entendimento acerca do sentido da morte
Não sei o que seria de mim se não fossem esses meus estudos e essas minhas
experiências... Elas me ajudam muito a sofrer menos com as perdas dos meus entes
queridos e me preparam para entender melhor o sentido da vida e da morte, além de
expandir minha consciência, me fazendo entender mais, sempre mais sobre o
cosmos, sobre a vida, sobre o sentido de tudo inclusive da morte... por isso me
dispus com tanto gosto a colaborar com sua pesquisa! Por que acho que assim
nossa consciência evolui. Nós somos essencialmente consciência em estado de
evolução e cada vez mais podemos nos expandir, evoluir, entendeu? Além de
expandir mais minha consciência e consequentemente alargar os meus horizontes,
aumenta o meu nível de segurança. (F.16)
Reconfiguração da identidade religiosa
Eu não tenho religião nenhuma específica, e nem sinto necessidade de estar indo
à igreja... nunca vou a templos religiosos... raramente em cerimônias de
aniversários, casamentos, enterros... oro e medito em casa; acho a nossa casa o
melhor local para homenagearmos ou pedirmos algo aos seres superiores do
universo: Deus, Jesus, Maria, Anjos. Na minha opinião eles nos envolvem com amor
sempre que nos aquietamos e pedimos ajuda... claro que gosto das músicas, dos
hinos das igrejas, das igrejas, mas raramente vou porque na minha opinião os rituais
são muito cansativos... talvez porque a fora as músicas que são muito lindas, são
muitos os conselhos e idéias que eu não concordo... talvez por isto eu tão pouco.
(F.46)
174
Síntese Interpretativa
Amon se percebe, desde criança, uma pessoa muito sensível em relação a
morte, sofrendo tremendamente até com a morte de animais, mesmo que eles não
fossem de sua “estimação”. Ela afirma que o tema morte sempre foi alvo do seu
interesse e assunto de suas conversas e supõe que a busca constante, de
compreender o sentido da morte pode ser considerada uma característica de sua
personalidade. Tanto é que, não satisfeita com as inúmeras leituras que realiza em
torno do tema, arrisca-se a viver experiências por demais incomuns e “estranhas”
para o nosso contexto social. Por exemplo, optou por fazer parte do Centro de
Expansão e Evolução da Consciência (CEPEC) e não participa de palestras e
debates, como também vivências experiências do tipo EFC. Experiência Fora do
Corpo, que podem ser “viagens” involuntárias ou conscientemente induzidas para
fora do próprio corpo e até para fora do ambiente onde a pessoa se encontra.
Amon explica que estas “viagens”, que faz voluntariamente, são instrumentos
para expansão da sua própria consciência e efetivamente a ajudam na sua evolução,
como ser em “passagem” por este planeta. Segundo ela, ao alargar seus horizontes
e descobrir e se confrontar com “novas realidades”, ela estaria elevando seu “nível
de segurança” .
Seus depoimentos nos levam a crer que ela usa como estratégia de
enfrentamento de seus receios, o mecanismo de estar sempre ousando expandir os
seus limites através de experiências “incomuns”, ou “paranormais”. Ela, apesar do
intenso sofrimento e extrema ansiedade, concebe a morte como um instrumento
necessário para o nosso espírito evoluir.
Apesar de ser de origem católica, hoje, Amon, não tem clareza de como
identificar sua religião, pois como “buscadora” que é, freqüenta (sem assiduidade)
vários templos ou centros de caráter religioso, sempre buscando...
Amon afirma, categoricamente, que suas experiências de “expansão de
consciência” e os estudos que vive empreendendo para compreender suas próprias
vivências neste sentido, têm um valor que mesmo ela pode avaliar. Ela que era
175
uma criança cheia de medos em relação a morte e aos mortos, hoje convive com
bastante naturalidade com os “mortos-vivos” que fazem parte do seu círculo de
relações. Amon parece transitar muito bem entre os dois mundos, como se o limite
entre uma dimensão e outra da existência, para ela, quase sempre não existisse: ela
vê, normalmente, vizinhos que se foram (morreram) e até se comunica com uma
grande naturalidade e inclusive se refere a uma comunicação que teve com o seu pai
e o seu marido falecidos, como dois marcos importantes para a ampliação dos
seus horizontes e para o aumento do seu nível de confiança em Deus, como um Ser
superior, amoroso e protetor e em Cristo como modelo a ser seguido.
Apesar de ainda se sentir muito sensível em relação as perdas, principalmente
aquelas que tem a ver com a morte, conseguiu reconfigurar completamente as suas
concepções em relação ao sentido da vida e ao sentido da morte. e, quanto, a
religiosidade, ela reafirma de apesar de não ter nenhuma religião específica e de não
sentir necessidade de freqüentar assiduamente os templos religiosos, considera-se
uma pessoa muito religiosa, “religada”, considerando o seu lar o melhor local para
celebrar a vida, homenagear os seres superiores do universo e se “religar” com
Deus, Jesus, Maria e os anjos, que representam a sua referência religiosa.
176
Quadro 7 – Entrevista Amon
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Fator
desencadeador
de um enorme e
pungente
sofrimento.
Fonte de
inquietação e
questionamento.
Instrumento para
o nosso espírito
evoluir.
Medo
Profunda dor
Insegurança
Desamparo
O ser humano
continua vivo com
uma outra estrutura
corpórea.
Possibilidade de
intercomunicação
entre os falecidos e
os que aqui ficaram.
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Ser superior,
amoroso e
protetor;
Cristo: modelo a
ser seguido
Experiência Fora
do Corpo (EFC)
involuntária e
planejada
(viagem astral).
Percepção do pai
falecido.
Percepção da
visita de seu
esposo recém-
falecido.
Antes da Crise
Tipicamente católica
Fator Desencadeador da
Crise
Morte do pai e do
esposo e percepção
de suas presenças.
Transformações a partir da
crise
Busca constante de
entendimento
acerca do sentido
da morte.
Busca compreeder a
dinâmica do pós-
morte (andarilha).
Reconfiguração da
identidade religiosa
177
6.8 CASO LEÔNIA
Nome: Leônia
*
Sexo: Feminino
Idade: 57 anos
Nível de Instrução: Nível Superior
Atividade Profissional: Pedagoga e Psicóloga
Estado Civil: Solteira
Religião: Cristã - Espiritualista
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
Unidade de Significado: Percepções ou Representações Relacionadas à
Morte
Algo abominável
[...] Eu simplesmente abomino a idéia de ter que um dia morrer. (F. 6)
Algo inconcebível e cruel
[...] acho inconcebível, cruel, que alguém em pleno exercício de suas atividades,
com todo gosto de viver, seja retirado deste plano, sem uma consulta previa... (F. 6)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
178
Unidade de Significado: Sensações / Sentimentos Relacionados à Morte /
Pós-Morte
Revolta
[...] uma ponta de revolta com esta situação de ver a minha existência, a minha
vida, fora do meu controle... (F. 8)
Mágoa
[...] sinto que por trás desta revolta que eu sentia, é possível haja um sentimento de
mágoa... (F. 8)
Apego
[...] Tenho clareza que sou muito apegada afetivamente, com aqueles que convivi
e que convivo, com todos que criei laços de amizade e de amor e vai custar muito, ir
conscientemente, para uma situação de convivência com seres desconhecidos,
mesmo que eles sejam divinos e maravilhosos. (F. 10)
O que eu não aceito, eu acho, é o rompimento dos contatos afetivos, emocionais.
São os planos sonhados juntos, se desfazendo... (F.18)
Dói em mim, imaginar que sem meu corpo físico, eu tentarei me comunicar e
expressar o meu amor e aorientar, por exemplo quando se tratar dos meus filhos
e netos, e simplesmente não serei vista nem ouvida porque uns poucos em nossa
sociedade tem uma sensibilidade especial para isso. Nesse caso, ir para uma
dimensão fora do planeta, mesmo que seja um lugar divino, é perder contato, é estar
longe dos seres amados. Esta perspectiva para mim é dolorosa. (F.18)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
179
Crença na sobrevivência do espírito / alma
[...] Lá no meu íntimo mesmo, eu não aceito a morte. Se bem que morte mesmo
não existe porque o espírito sobrevive... (F. 18)
Crença na continuidade da vida, em uma dimensão fora do planeta
[...] ir para uma dimensão fora do planeta é perder contato, é estar longe dos seres
amados e isso dói. (F. 14)
[...] Passei um bom tempo da minha vida desacreditando numa dimensão que não
fosse a material. [...] Até que um dia eu tive plena consciência de que um tipo
consciência ou energia especial estava se unindo a mim, por motivos até então
desconhecidos para mim. (F. 22)
Crença na possibilidade de comunicação dos espíritos com o plano terreno
Um dia eu o estava nem pensando numa amiga recém falecida, e de repente,
recebi telepaticamente, uma pequena solicitação dela. [...] Atualmente, de vez em
quando, [...] recebo “recadinhos”, pequenas mensagens de pessoas falecidas para
seus parentes. (F.4)
[...] Dói em mim, imaginar que sem meu corpo físico, eu tentarei me comunicar e
expressar o meu amor e até orientar, por exemplo quando se tratar dos meus filhos e
netos, e simplesmente o serei vista nem ouvida porque uns poucos em nossa
sociedade tem uma sensibilidade especial para isso... (F. 18)
[...] Passei um bom tempo da minha vida desacreditando numa dimensão que não
fosse a material. [...] Até que um dia eu tive plena consciência de que um tipo
consciência ou energia especial estava se unindo a mim, por motivos até então
desconhecidos para mim. (F. 22)
[...] hoje eu acredito que pode haver comunicação entre os vivos de e os vivos
de e vice-versa. Hoje eu sei por experiência própria que orientações conselhos e
180
ajudas vêm “via fax” do além para nós, e para todos aqueles que estiverem
antenados... (F. 24)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Detentor do poder e dos mistérios da existência
[...] acho inconcebível, cruel, que alguém em pleno exercício de suas atividades,
com todo gosto de viver, seja retirado deste plano, sem uma consulta prévia, para
ver se era realmente seu desejo partir. (F. 6)
[...] sentia até uma ponta de revolta com esta situação de ver a minha existência, a
minha vida, fora do meu controle, pois a qualquer momento, meus planos poderiam
ser interrompidos pela vontade de um ser superior. (F. 8)
Ser misericordioso e protetor
O [...] Deus em que acredito e sinto sua proteção pairando sobre nós, é um Deus
de misericórdia infinita e que estende as mãos para todos... (F. 28)
Ser “presença”
[...] Hoje tenho certeza absoluta que a dimensão divina perpassa o meu cotidiano
assim como o cotidiano de todos nós. A diferença é que hoje eu percebo, sinto, sei
enquanto que a maioria ainda continua como eu era antes, a margem da realidade
extra-física... (F. 22)
[...] portanto o Deus que eu me comunico é um Deus da vida e do cotidiano. É um
Deus presença e que me fala muitas vezes através de seres que sei estão debaixo
de sua proteção. (F. 30)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
181
Comunicação espontânea com seres já falecidos
... Decididamente foi o fato de eu receber uma comunicação que eu atribuo a ter
vindo de outra dimensão. Isso foi um fato que se repetiu mas sempre que acontece,
ainda me mobiliza muito, é como se fosse ainda um pouco de novidade... (F. 32)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da crise
Completamente cética
Fator desencadeador da crise:
Experiência extra-sensorial: CAM (comunicação após a morte)
Um dia eu o estava nem pensando numa amiga recém falecida, e de repente,
recebi telepaticamente, uma pequena solicitação dela. [...] Atualmente, de vez em
quando, [...] recebo “recadinhos”, pequenas mensagens de pessoas falecidas para
seus parentes. (F.4)
[...] Hoje eu não sou católica como era na época de criança e adolescente, nem
cética o quanto fui desde a minha época de faculdade até quando a primeira
experiência especial ou “extra-sensorial” me sucedeu... hoje também não sou espírita
como muitos pensavam que eu fosse me tornar por conta das minhas vivências de
comunicação com os falecidos e das minhas leituras acerca do mundo extra-
físico. (F. 22)
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Atitude de distanciamento
182
[...] Hoje eu não sou católica como era na época de criança e adolescente, nem
cética o quanto fui desde a minha época de faculdade até quando a primeira
experiência especial ou “extra-sensorial” me sucedeu... (F. 22)
Pouco freqüentadora dos templos religiosos
[...] Freqüentar mesmo, não freqüento regularmente nenhuma, mas freqüento
eventualmente a católica e a espírita. Não sinto muita necessidade de ir a cultos,
mas sinto necessidade de orar várias vezes ao dia para me fortalecer e para me
conectar pois muitas vezes tenho idéias e sinto concretamente certas coisas que me
ajudam muito a me direcionar na vida, inclusive recebendo orientações sobre
assuntos ou situações em que estou confusa, portanto o Deus que eu me comunico
é um Deus da vida e do cotidiano. (F. 30)
Visão mais critica, apresentando posições diferentes acerca da escatologia
Em relação ao inferno penso completamente diferente. O meu Deus, em que
acredito e sinto sua proteção pairando sobre nós, é um Deus de misericórdia infinita
e que estende as mãos para todos. Inferno eterno nunca, nunca! Durará o tempo do
arrependimento. Para mim, todo aquele que estiver ardendo no remorso e na dor da
culpa, tomar consciência de que há um Deus Pai/Mãe a lhe estender a mão e que
depende dele livra-se do orgulho da culpa e dos condicionamentos antigos, o inferno
se desfaz... Esse é o Deus que hoje tenho certeza governa o mundo. Mas,
infelizmente, não é o que foi repassado para nós na época da minha juventude e
ainda é hoje, em muitas igrejas onde a idéia é provocar mudanças nas pessoas
através do medo e da culpa. (F 28)
Experiência íntima com o sagrado
[...] mas sinto necessidade de orar várias vezes ao dia para me fortalecer e para
me conectar pois muitas vezes tenho idéias e sinto concretamente certas coisas que
me ajudam muito a me direcionar na vida, inclusive recebendo orientações sobre
183
assuntos ou situações em que estou confusa, portanto o Deus que eu me comunico
é um Deus da vida e do cotidiano... (F. 30)
Crença essencial: na misericórdia e no amor divino
[...] o meu Deus em que acredito e sinto sua proteção pairando sobre s, é um
Deus de misericórdia infinita e que estende as mãos para todos. [...] Esse é o Deus
que hoje tenho certeza governa o mundo. (F. 28)
Síntese Interpretativa
O depoimento de Leônia revela um aspecto de sua própria personalidade,
admitido por ela: uma pessoa dividida e envolvida em muitas contradições, pesando
os prós e os contras das situações que lhe são apresentadas. De origem católica
tradicional ela se recente dos ensinamentos contraditórios e pouco verdadeiros que
foram lhe passados pelas pessoas significativas, em relação à religião. veio a
despertar para as incoerências e contradições dos ensinamentos recebidos no final
de sua adolescência, o que culminou com a entrada na universidade onde segundo
seus depoimentos recebeu forte influência dos filósofos estudados naquela época,
que reforçavam uma postura cética e materialista em relação a existência. Até que
um dia, foi apanhada de surpresa por experiências vividas e impossíveis de serem
negadas. O que representou um forte impacto em sua vida. Saiu da condição
materialista convicta para a situação incômoda e insegura de peregrina, andarilha
indo em busca de respostas para compreender as indagações inúmeras e
ensurdecedoras que emergiam do seu íntimo. Pessoa destemida, “buscadora da
verdade, custasse o que custasse”, passou a ler e a freqüentar vários templos e
seitas religiosas, o que parece fortaleceu sua fé em um Deus misericordioso e
protetor, de natureza ecumênica e pessoal, que pode ser invocado em qualquer lugar
independente de templos religiosos. Sua fé, segundo suas próprias palavras, é de
184
caráter íntimo e pessoal com Deus, o que a leva a manter um diálogo contaste, com
Ele em busca de fortalecimento e orientação para o seu dia-a-dia.
Com relação a morte ela, no nosso entender, demonstra ambivalência pois
apesar de não sentir medo quando recebe comunicações espontâneas (em sua
casa ou em outros ambientes), sente medo e acha abominável morrer porque
implicar em ter que se separar talvez definitivamente de pessoas queridas. Ela
admite que é muito dolorido e triste a idéia que ela um dia venha a tentar se
comunicar com um alguém especialmente querido e perceber que esta pessoa não
está captando suas mensagens.
No nosso entendimento, Leônia é uma pessoa que supervaloriza os laços
afetivos e familiares. Apesar de carente afetivamente, demonstra muita vontade de
viver o mais plena e autênticamente possível, tanto é que parece sempre disposta a
“desvendar as verdades, custe o que custar” e para isso muitas vezes teve que
“romper com o estabelecido”, causando desconforto e mágoa em alguns dos seus
familiares que não estavam preparados para conviver com os riscos e a ousadia,
mesmo que saudável, daqueles que são mais corajosos no processo de viver.
Percebemos que Leônia é essencialmente ecumênica e quando ela se
assume como “cristã-espiritualista”, possivelmente foi por ser a denominação que lhe
pareceu mais abrangente e capaz de acolher quase todos os segmentos religiosos,
menos aqueles que ela considera pouco saudáveis, porque fazem parte de sistemas
fechados que, “freqüentemente, excluem o ‘diferente’”.
185
Quadro 8 – Entrevista Leônia
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Algo abominável
Algo inconcebível
e cruel
Mágoa
Revolta
Apego
Crença na
sobrevivência do
espírito / alma
Crença na
continuidade da
vida, em uma
dimensão fora do
planeta
Crença na
possibilidade de
comunicação entre
os espíritos dos
falecidos com as
pessoas do planeta
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Detentor do poder
e dos mistérios da
existência;
Ser misericordioso
e protetor
Ser “Presença”.
CAM -
Comunicação
Após a Morte
Antes da Crise
Cética
Fator Desencadeador da
Crise
CAM
Transformações a partir da
crise
Crença e religação
com divina.
Freqüência assídua
a centros espíritas.
Freqüentando,
raramente, templos
religiosos, inclusive
espíritas.
Fé íntima e estilo
pessoal de viver a
sua religiosidade.
Percebe-se como
cristã-espiritualista.
186
6.9 CASO BELITA
Nome: Belita
*
Sexo: Feminino
Idade: 75 anos
Nível de Instrução: Nível Superior (Mestrado)
Atividade Profissional: Psicóloga
Estado Civil: Solteira
Religião: “nenhuma institucionalizada”
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Não representa o final da existência
[...] A existência humana não é finalizada pela morte. Nada acaba, mesmo! Eu não
entendo mesmo porque é que o pessoal não se deu conta da profundidade do que
Lavoisier dizia tanto tempo... reduziram a idéia dele para a biologia! Meu
Deus! Nada se perde... nada morre... tudo se transforma! (F. 34)
Transição para um outro nível de consciência
[...] acho que vou poder admitir que a vida em mim vá se esvaindo... acho que esta
consciência que tenho, vai me ajudar a deixar acontecer a minha própria
“transição” [...] dessa matéria densa e me perceber como pura luz... (F.38/36)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
187
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Avio
[...] a morte dos meus parentes queridos, para mim, significou mais alívio que dor
[...] (F.6)
Vazio
[...] Ficou o vazio da presença [...] (F.8)
[...] Eu senti [...] um vazio, uma saudade tão imensa que eu nunca imaginei que iria
sentir... doía... doía muito e eu perdi até o gosto de passar pelos lugares onde antes
passeávamos, era muito doloroso passar por aqueles jardins, por aqueles recantos e
lembrar das nossas conversas e, sobretudo, da ternura e do cuidado com que ele me
cercava em quase todos os momentos... Mas mesmo naquela situação em que eu
estava, sozinha num lugar distante, eu posso lhe garantir que não me desesperei,
não me revoltei. (F. 26)
[...]É, estou falando de uma dor imensa... fortíssima... uma saudade... um vazio...
mas sem desespero. (F. 28)
Saudade
[...] eu senti uma imensa saudade, senti a falta, nos primeiros meses era como se
a vida estivesse ficado sem cor, mas aos poucos foi voltando ao normal, o que pesou
mesmo foi a angústia, uma angústia dilacerante por vê-los sofrer daquela forma [...]
(F.6)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
A vida continua em outra dimensão
[...] tenho absoluta certeza que a vida continua e que meus pais o estão mais
sofrendo as dores relacionadas ao seu corpo mais denso, o físico. (F. 8)
188
Libertação do sofrimento
[...] meus pais não estão mais sofrendo as dores relacionadas ao seu corpo mais
denso, o físico. (F. 8)
[...] Quando você descobre novos aspectos da realidade que antes para você era
incompreensível ou a que você desconhecia, então é uma alegria! Você vibra!
Você fica feliz... acontece uma verdadeira libertação dos limites impostos pelo corpo
material. Agora, imagine você se libertando dessa matéria densa e se perceber como
pura luz... não vai ser uma coisa maravilhosa? [...] (F.36)
Ampliação da Consciência
[...] Quando você descobre novos aspectos da realidade que antes para você era
incompreensível ou até que você desconhecia [...] acontece uma verdadeira
libertação dos limites impostos pelo seu corpo material. Agora, imagine você se
libertando dessa matéria densa e se perceber como pura luz [...] (F.36)
[...] Ampliando a consciência, muda consequentemente, a nossa forma de ver e
sentir a vida e conseqüentemente, a morte, que simplesmente na perspectiva
quântica, não existe! (F.36)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Primeiro Momento
Deus terror: que vigia e pune
[...] um Deus “terror”, que vigiava e estava pronto a punir mesmo pelas pequenas
faltas... existiam muitos ensinamentos de um caráter tirânico que corroíam minha
alma ou meu psiquismo... eu precisei... provocar essa ruptura com a religião
(mesmo sem disso ter consciência) até para poder refletir sobre os meus valores
pessoais e os religiosos... (F. 20)
189
Segundo Momento
Deus amor incondicional
[...] hoje, graças a Deus, vivo em profunda comunhão com Ele, um Deus que é,
sobretudo, amor incondicional, que nos acolhe, que nos ampara independente das
circunstâncias. (F. 20)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Não surgiu nenhuma situação relevante que possa ser descrita neste item.
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Identidade religiosa antes da Crise
Evangélica
Fator desencadeador da crise
Morte do pai num contexto de dor dilacerante
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Raiva de Deus
[...] eu vi meu pai morrer de câncer, um dia eu ouvi e vi meu pai, fraquinho, o
corpo definhadozinho, ajoelhado no seu quarto, ao lado da cama implorando a
Deus que aliviasse o seu sofrimento... ele dizia (ele o percebeu a minha presença,
mas eu ouvi a sua prece, pela porta entreaberta) ele dizia à Deus que não estava
pedindo para não morrer... ele estava pedindo para aliviar suas dores que eram
simplesmente terríveis... mas esse pedido dele não foi atendido... suas dores
continuaram lancinantes... e a dor dele, os seus gemidos dilaceravam minha alma.
190
Então eu pensei: bom, se na Bíblia está escrito que “o que pedires ao meu Pai, em
meu nome, recebereis”... então... que história é essa? Vi meu pai morrer de uma
forma tremendamente dolorosa (metástase no fígado e outros órgãos... foi
tremendo... foi horrível... nem é bom lembrar...) então eu fiquei realmente com muita
raiva de Deus (disse isso com um meio sorriso encabulado)... (F. 14)
Reafirmação e amadurecimento da fé
[...] Hoje posso te garantir que sou uma pessoa muito mais religiosa do que eu era
naquela época, dezenas de anos atrás, quando freqüentava religiosamente os
cultos da congregação a qual freqüentava. (F. 02)
[...] Religiosa no sentido mais etimológico da palavra, onde religião significa
religação com o divino, com o uno, com o todo, com o imponderável que a gente
busca compreender mas... essa busca que eu venho empreendendo, eu tenho feito
com liberdade de questionar, de alterar... dentro de uma atmosfera de relativa
certeza... fico admirada de como eu agüentei até uma idade bem amadurecida estar
bitolada aos valores da minha religião, pois eram rígidos demais, muito semelhante
as regras de um quartel, ou pior, de um campo de concentração... (F. 20)
[...] Então hoje eu vivo entrando em contato com tudo o que me chega, através de
leituras, palestras, conversações, etc. Tentando “depurar” e tirar dali o que eu,
através das minhas reflexões e intuições, percebo como mais importantes... Eu me
“abri” a outras realidades e, com isso, alarguei meus horizontes. (F. 16)
[...] a física quântica [...] tem nos ajudado a ampliar nossas consciências no
sentido de nós começarmos a ver mais longe... é um descortinar de horizontes nunca
dantes imaginado, entendeu? A física quântica, por exemplo, está comprovando
cada mais que somos todos um, que não separatividade... que tudo está
interligado, como um sistema de rede onde os múltiplos pontos estão intimamente
conectados... então... de acordo com esta nova visão, não existe tempo e espaço da
forma como até então imaginávamos. Vemos também o quanto ainda o mundo é
percebido por nós dentro de um parâmetro de densidade... a matéria nos parece
como densa... mas na verdade, a realidade pode ser vista como algo muito mais sutil
191
e, nós seres humanos, também não somos apenas o que aparentamos ser... um
mundo subatômico... um mundo de elétrons a ser admitido por nós... Também
nas relações do nosso dia-a-dia... veja só, está comprovado cientificamente que os
elétrons têm em seu núcleo um tipo de luz imperecível... (F.30)
[...] segundo Wilber, um bioquímico estudioso da física quântica, a consciência é
um fenômeno quântico, portanto, a nossa consciência independe de tempo, de
espaço e limitação e estaria mais ou menos limitada, dependendo de nosso nível de
evolução, entende? Vida portanto seria consciência em evolução... um processo
contínuo.... ininterrupto... (F. 32)
Síntese Interpretativa
Para Belita, a morte o representa o final da existência do ser humano.
Desde criança foi socializada recebendo os valores típicos de uma família de religião
evangélica, cresceu e se tornou adulta vivenciando de forma comprometida, os
valores do seu contexto familiar. Freqüentava, religiosamente, a sua igreja e se
comportava de forma coerente com os valores vigentes. Até que um dia, deparou-se
com o seu pai implorando fervorosa e humildemente à Deus que suavizasse as suas
dores lancinantes. Segundo Belita, Deus não se comportou de forma coerente com o
que lhe é atribuído na bíblica: “o que pedires ao meu Pai, em meu nome, recebereis”.
Tal fato representou uma ruptura drástica na identidade religiosa de Belita, que
afastou-se completamente da igreja e passou a sentir raiva e decepção em relação a
Deus – tornou-se avêssa a todo e qualquer rito ou cerimônia religiosa.
Passaram-se os anos, a meia-idade chegou e com ela os questionamentos
sobre o sentido da existência, a fase que Carl Jung identificou como momento
existencial mais propício para o ser humano desenvolver o seu potencial para a
transcendência. Belita então, diante do vazio existencial de sua vida, passa a
reavaliar seus antigos valores religiosos e reformula a sua religiosidade, passando a
192
viver “ de uma forma muito pessoal, muito peculiar, seguindo uma escuta mais
interiorizada” de si mesma. (F. 14)
Belita, rompendo com a sua religião herdada e “dogmática”, foi reconfigurando
sua religiosidade e hoje vive “entrando em contato com tudo o que [...] chega através
de leituras, palestras, conversações. Ela tenta “depurar” e viver a partir de suas
próprias reflexões, segundo seu próprio depoimento, ela se abriu para outras
realidades, e, com isso, alargou seus horizontes.
Dentro do seu novo estilo de vivenciar sua religiosidade, o Deus “terror”,
transformou-se em um Ser que é “amor incondicional” e com isto, suas concepções
em relação a vida e a morte, sofreram modificações radicais. Belita não teme
absolutamente a morte e de acordo com seu depoimento, ela afirma isso a partir de
“vivências” e não por conta de uma postura meramente filosófica. Percebe a morte
como um processo natural, uma transição necessária para um outro nível de
consciência e percebe o homem com um ser em constante evolução, mesmo que
esteja em outros planos ou dimensões da Vida, que vai muito além da existência
humana.
193
Quadro 9 – Entrevista Belita
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Não representa o
final da existência
Transição para um
outro nível de
consciência
Alívio
Vazio
Saudade
A vida continua em
outra dimensão
Libertação do
sofrimento
Ampliação da
consciência
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Deus Terror: que
vigia e pune
Deus amor
incondicional
Não surgiu nehuma
situação relevante
que possa ser
descrita neste item.
Antes da Crise
Evangélica
Fator Desencadeador da
Crise
Morte do pai num
contexto de dor
dilacerante
Transformações a partir da
crise
Raiva de Deus.
Religação com
Deus, a partir de
uma nova
concepção de Deus
e do sentido da
vida.
Reafirmação e
amadurecimento da
fé.
No seu lar vivencia
oração e meditação
em grupo.
194
6.10 CASO ANA
Nome: Ana
*
Sexo: Feminino
Idade: 54 anos
Nível Instrução: Superior
Atividade Profissional: Aposentada
Estado Civil: Divorciada
Religião: Espírita
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Acontecimento que deixa a vida de cabeça para baixo
[...] Não é fácil falar de uma situação que revirou minha vida de cabeça para
baixo... (F. 02)
Passagem para a verdadeira vida
[...] Que aqui na maioria dos momentos nos advém sofrimentos que têm como
finalidade nos preparar para a verdadeira vida, que esta existência terrena é curta e
transitória... (F. 22)
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
195
Um fardo quase insuportável
[...] Jesus, com sua infinita doçura e misericórdia... pode salvar da loucura ou
do desespero pessoas que passaram pelo que eu e minhas filhas passamos! (F. 22)
Para mim a morte das minhas filhas representou muita dor, muito sofrimento, [...]
um fardo quase insuportável. (F. 05)
Situação geradora de profunda aprendizagem
[...] Mas, graças a Deus sou espírita e creio com convicção de que nada que nos
acontece é por acaso. Minhas filhas, eu e toda minha família, porque até os outros
filhos, os saudáveis, também muito sofreram com isto, mas todos e cada um de nós
precisávamos passar por aquelas lições duras, extremamente dolorosas, entendeu?
[...] (F.4)
[...] é uma situação de aprendizagem difícil, mas absolutamente necessária... que
a gente não deve se apegar demasiadamente a nada que conseguimos aqui neste
plano pois pode nos escapar como areia entre nossos dedos [...] (F.22)
[...] a doutrina espírita nos prepara para estas situações, fornecendo as
explicações para todo esse mal alucinante que nos cerca [...] (F. 22)
[...] Líamos também a parte filosófica da doutrina espírita e refletíamos sobre
muitas passagens do Livro dos Espíritos... que nos ajudava a compreender o sentido
de tudo aquilo que passávamos e íamos enfrentar na situação após a morte... era
uma aprendizagem que incluía o nosso intelecto e também as nossas emoções...
uma dolorosa mas rica aprendizagem! (F. 06)
Libertação
[...] libertação de tudo o que parecia a elas incompreensível, difícil de entender...
por exemplo como poderiam elas tão jovens entenderem que naquele mesmo
momento em que elas se encontravam chorando de dor, presas a uma máquina,
tomando soro, e sangue, milhares de jovenzinhos da mesma idade, se divertiam
196
tomando coca-cola e sorvete, felizes e descontraídos nas lanchonetes dos
Shoppings? É possível se pensar num Deus que não sente compaixão por seus
filhos? É possível se pensar num Pai que permite uma vida privilegiada para uns e
desgraçada para outros? (F. 06)
Crise desencadeadora de amadurecimento
[...] me sinto fortalecida e que as lágrimas e o embargo na minha voz são sinais
apenas que sou humana e que, onde hoje há cicatrizes, havia ferida sangrando. Hoje
me sinto sarada, percebo-me muito bem [...] (F.26)
[...] me sinto uma pessoa alegre... feliz... mesmo com estas cicatrizes; eu até me
pego admirada [...] quando vejo o brilho do meu próprio olhar, no espelho. (F. 26)
[...] Dou graças à vida, dou graças ao nosso Deus pela profunda aprendizagem e
pelo infinito amor que foi derramado por Ele e pelo seu filho Jesus, através desses
espíritos, verdadeiros amigos espirituais que com a permissão divina se aproximam
de nós para nos abençoar, fortalecer, orientar. Deus seja louvado [...] (F.26)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Impotência absoluta
[...] a gente se percebia com um sentimento de impotência absoluta... lutarmos
com todas as forças, envidando os maiores esforços para conseguirmos os órgãos (e
você deve imaginar a fila... e as dificuldades...) e nós conseguimos! cada batalha
vencida era aquela emoção pelo que conseguimos... mas depois tudo escapou pois
nossas filhas rejeitaram os órgãos transplantados. (F. 22)
[...] O meu sofrimento foi maior... Uma sensação de impotência, de frustração... (F.
12)
197
Dor quase insuportável
Para mim a morte das minhas filhas representou muita dor, muito sofrimento, um
sofrimento... um fardo quase insuportável. (F.06)
Gratidão
[...] eu nunca pensei que poderia de novo me sentir feliz, leve, de bem com a vida.
Perdi minhas duas filhas, sofri dores agudas em ver o sofrimento físico e emocional
delas, perdi também meu esposo, mas hoje chega me admiro de perceber que tudo
está voltando aos seus lugares... me sinto uma pessoa alegre... feliz... mesmo com
estas cicatrizes. Dou graças à vida, dou graças ao nosso Deus pela profunda
aprendizagem e pelo infinito amor...(F. 26)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
Crença na reencarnação
[...] as piores dores, os mais agudos sofrimentos advém não por um castigo de
Deus, nosso Pai que nos ama infinitamente, tudo... são colheitas que somos
forçados a fazer das sementes que plantamos anteriormente como conseqüências
de nossas próprias imperfeições [...] (F.22)
[...] E eu, que na outra existência também era mãe delas, fechava os olhos a
tudo... deixei que as coisas corressem e o usei dos meus próprios recursos para
dar um basta... então, fui absolutamente conivente...resultado, nesta existência
estou eu, não sofrendo na carne, porque eu concretamente não plantei, mas como
mãe, conivente que fui, tive que voltar e desta vez estar ao lado delas mas, como
uma verdadeira mãe, apoiando, orientando e sofrendo com elas... (F. 22)
Crença na comunicação dos espíritos
[...] hoje eu recebo mensagens! Mensagens lindas! Tenho um baú em casa
repleto de mensagens delas. (F. 22)
198
[...] Eu recebia mensagens belíssimas de irmãos já desencarnados (mortos),
algumas até desvendando alguns véus do nosso passado [...] (F. 22)
[...] Do centro espírita chegavam também mensagens de espíritos, [...] eu as
comentava com as minhas filhas...nada era evitado [...] (F.08)
[...] através desses espíritos, verdadeiros amigos espirituais que com a permissão
divina se aproximam de nós para nos abençoar, fortalecer, orientar.(F.26)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
Ser de infinita doçura e misericórdia
[...] Só Jesus, com sua infinita doçura e misericórdia, Vania, pode salvar da loucura
ou do desespero pessoas que passaram pelo que eu e minhas filhas passamos! (F.
22)
Ser justo
[...] tudo que sofremos aqui são colheitas que somos forçados a fazer das
sementes que plantamos anteriormente. Deus é infinitamente amoroso, mas também
é justo e sabe que muitas vezes a aprendizagem acontecerá através do
sofrimento.(F. 22)
Detentor do poder e dos mistérios da existência
[...] “Seja feita a Vossa Vontade, Senhor!” porque Ele sabe o que é realmente
necessário para nós, para nossa evolução espiritual. [...] (F.22)
199
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Mensagens de outras dimensões através de espíritos
[...] Eu recebia mensagens belíssimas de irmãos já desencarnados (mortos),
algumas até desvendando alguns véus do nosso passado onde pudemos ver que
não éramos “pobres vítimas” de um destino cego... (F. 22)
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Antes da Crise
Católica
Fator desencadeador da crise
Doença grave e conseqüente morte de suas duas filhas num contexto de
sofrimento dilacerante.
Reconfigurando a identidade: transformações durante ou após a crise
Fazia Indagações acerca do amor e da justiça divina buscando respostas em outro
contexto religioso.
[...] como poderiam elas tão jovens entenderem que naquele mesmo momento em
que elas se encontravam chorando de dor, presas a uma máquina, tomando soro, e
sangue, milhares de jovenzinhos da mesma idade, se divertiam tomando coca-cola e
sorvete, felizes e descontraídos nas lanchonetes dos Shoppings? [...] (F.06)
[...] É possível se pensar num Deus que não sente compaixão por seus filhos? É
possível se pensar num Pai que permite uma vida privilegiada para uns e
desgraçada para outros? [...] (F.06)
200
[...] Diariamente abríamos o Evangelho segundo Espiritismo e encontrávamos
respostas que acalmavam não só os corações delas, mas o meu também. [...] (F.06)
Freqüentadora de um centro espírita
As mensagens que recebia no centro espírita em que freqüento e trabalho, me
ajudaram muito a entregar cada dia mais a minha vida e a dos meus filhos nas mãos
de Deus. [...] (F.22)
Sensitiva: exercitando a mediunidade
Eu recebia mensagens belíssimas de irmãos desencarnados (mortos), algumas
até desvendando alguns véus do nosso passado [...] (F.22)
Estudiosa da doutrina espírita kardecista
[...] Diariamente abríamos o Evangelho segundo Espiritismo e encontrávamos
respostas que acalmavam não os corações delas, mas o meu também. Líamos
também a parte filosófica da doutrina espírita e refletíamos sobre muitas passagens
do Livro dos Espíritos, o que representava uma rica aprendizagem que também pela
via da razão que nos ajudava a compreender o sentido de tudo aquilo que
passávamos e íamos enfrentar na situação após a morte. [...] (F.06)
201
Quadro 10 – Entrevista Ana
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao Pós-
Morte
Acontecimento que
deixa a vida de
cabeça para baixo
Passagem para a
verdadeira vida
Um fardo quase
insuportável
Situação geradora
de profunda
aprendizagem
Libertação
Crise
desencadeadora de
amadurecimento
Impotência absoluta
Dor quase
insuportável
Gratidão
Crença na reencarnação
Crença na comunicação
dos espíritos
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Ser de infinita
doçura e
misericórdia
Ser justo
Detentor do poder
e dos mistérios da
existência
Exp. “incomum” ou
extra-sensorial
Recebe
mensagens de
outras
dimensões
através de
espíritos
Antes da Crise
Católica
Fator desencadeador da crise
Doença grave e
conseqüente morte de suas
duas filhas num contexto de
sofrimento dilacerante.
Transformações durante ou
após a crise
Fazia Indagações acerca
do amor e da justiça divina
buscando respostas em
outro contexto religioso;
Freqüentadora de um
centro espírita;
Estudiosa da doutrina
espírita kardecista;
Sensitiva: exercitando a
mediunidade.
202
6.11 CASO PAULO
6.12 CASO RUTH
Nome: Paulo
*
Sexo: Masculino
Idade: 90 anos
Nível de Instrução: Curso superior em teologia
Atividade Profissional: Aposentado
Estado Civil: Casado
Religião: Evangélica
Nome: Ruth
*
Sexo: Feminino
Idade: 75 anos
Nível de Instrução: Nível médio
Atividade Profissional: Do Lar
Estado Civil: Casada
Religião: Evangélica
*
Outros dados que melhor esclarecem sobre o sujeito, poderão ser encontrados na síntese interpretativa, ao final
deste item.
203
Delimitação e Descrição Fenomenológica das Unidades de Significado
1ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca da Morte
Portal de passagem para a verdadeira vida
[...] Isso aqui é passageiro... Ir ao encontro de Jesus, é o que de melhor pode nos
acontecer. (F.3)
[...] O importante é que ele está melhor do que todos nós, está junto ao Pai. (F.15)
2ª Unidade de Significado: Sentimentos Relacionados à Morte / Pós-Morte
Confiança plena e tranqüilidade
[...] Para mim, tanto faz morrer no fogo, na água ou em casa. [...] (F.10)
Tenho fé [...] e não vou me preocupar com a situação. [...] (F.12)
3ª Unidade de Significado: Crenças em Relação ao Pós-Morte
A morte como última possibilidade da evolução do indivíduo
[...] até a morte é o momento da decisão. O que tiver de ser feito terá que ser feito
ainda aqui na vida terrena. (F.19)
Possibilidade (implícita) de julgamento
[...] O que tiver de ser feito terá que ser feito ainda aqui na vida terrena. Deus é
misericordioso, mas é também justo. (F.19)
4ª Unidade de Significado: Percepções ou Representações acerca de Deus
204
Pai e protetor
Na hora da nossa ida, Jesus estará conosco. Tenho fé nisso e não vou me
preocupar com a situação. Ele estará no comando. (F.12)
Misericordioso
Deus é misericordioso [...] (F.19)
Justo
[...] Deus é sobretudo justo. (F. 19)
Detentor de poder e dos mistérios da existência
Só desci porque eles ligaram umas três ou quatro vezes da portaria... Acredito
que se eles estavam insistindo, é porque era também vontade do Pai que nós
descêssemos. (F.10)
Ele (Jesus) estará no comando. (F.12)
5ª Unidade de Significado: Situações Incomuns Relacionadas à Morte
Não obtivemos dados suficientes para identificação.
Unidade de Significado: Identidade Religiosa e Reconfigurações a partir da
Crise ante a Morte
Identidade religiosa reafirmada ante a possibilidade de morte concreta (incêndio no
prédio onde residia).
205
Síntese Interpretativa de Paulo
Paulo, nascido em família evangélica, ex-ministro de sua igreja, aposentado,
demonstrou coerência em relação a questão “medo da morte” e suas crenças de
natureza religiosa, quando um dia, diante do perigo de morte iminente (incêndio no
edifício em que mora), comportou-se com admirável calma e absoluta ausência de
ansiedade: “Tanto faz morrer no fogo, na água ou em casa”.
Manifestou também coerência em relação a concepção que tem de Deus com
um “Ser misericordioso e protetor”, quando explicou o motivo de sua tranqüilidade no
momento do perigo, com as seguintes palavras: “na hora do nossa ‘ida’, Jesus estará
conosco... Ele estará no comando”.
Síntese Interpretativa de Ruth
Senhora, de fisionomia, delicada e suave, Ruth mostrou força, coragem e uma
em Deus admirável, quando com uma extrema tranqüilidade enfrentou a
possibilidade de morte real, descendo para o jardim do seu prédio, em um momento
de incêndio tão calma como se estivesse apenas indo “receber” um pouco dos raios
de sol, numa manhã que quase se tornou tragédia.
No segundo encontro que tivemos com Ruth, sua fé foi reafirmada pela
tranqüilidade demonstrada enquanto falava sobre o falecimento do seu amado
esposo. A naturalidade visível no modo como se expressava ao falar da saudade do
seu companheiro, reafirmava a sua em Deus e a sua crença que a outra vida é
realmente a “verdadeira vida” e que o desenlace do seu esposo, o representou
impacto nem dor, apenas uma tranqüila saudade.
Vale salientar que o segundo encontro que tivemos com ela aconteceu poucos
dias antes do seu falecimento. Não sabíamos que ela estava gravemente enferma, e
ela não tocou no assunto. (Ver entrevista 12, apêndice B)
206
Quadro 11 – Entrevista Paulo e Ruth
Percepções ou
Representações
acerca da Morte
Sentimentos
Relacionados à Morte/
Pós-Morte
Crenças em Relação ao
Pós-Morte
Portal de
passagem para a
verdadeira vida
Confiança plena
e tranqüilidade
A morte como última
possibilidade da
evolução do
indivíduo.
Percepções ou
Representações
acerca de Deus
Situações Incomuns
Relacionadas à Morte
Identidade Religiosa e
Reconfigurações a partir
da Crise ante a Morte
Pai e Protetor
Misericordioso
Detentor de poder
e dos mistérios da
existência
Sobretudo justo
Não surgiu nehuma
situação relevante
que possa ser
descrita neste item.
Identidade religiosa
reafirmada ante a
crise em relação a
morte.
207
7 ACERCA DA IDENTIDADE RELIGIOSA DOS ENTREVISTADOS
O termo identidade é considerado um dos mais controvertidos e polissêmicos
dentro da área das Ciências Sociais. Segundo Silva, falar de identidade é falar de
diferença, pois ambas se encontram numa relação de estreita dependência, apesar
da forma como afirmamos, como expressamos a identidade tende a esconder essa
relação.
Em um mundo imaginário totalmente homogêneo, no qual todas as
pessoas partilhassem a mesma identidade, as afirmações de
identidade não fariam sentido. De certa forma, é exatamente isto que
ocorre com nossa identidade de “humanos”. É apenas em circuns-
tâncias muito raras e especiais que precisamos afirmar que somos
humanos. (SILVA, 2000, p. 79)
Pode-se então dizer que o estudo da identidade é o estudo da alteridade, da
diferença e também da relação. É perante o outro que a identidade se afirma, é
perante a presença do diferente que alguém toma consciência de sua própria
identidade.
Se considerarmos a afirmação “sou evangélico”, na verdade temos que admitir
também que tal afirmação faz parte de uma extensa cadeia de negações, de
expressões negativas de identidades, de diferenças. Por trás da afirmação “sou
evangélico” pode-se ler: “não sou católico”, “não sou espírita”, “não sou budista”,
“não sou catimbozeiro”...
Além de serem interdependentes, identidade e diferença partilham a
característica de serem o resultado de uma criação cultural. Significando dizer que
não são elementos da natureza, nem elementos essencias. São produzidas num
contexto de relações culturais e sociais, são uma criação linguística e, portanto, não
podem ser compreendidas a não ser como parte dos sistemas de significação nos
quais adquirem sentido.
208
Silva afirma que a identidade, tal como a diferença é uma relação social e está
sujeita a vetores de força e a relações de poder. Elas são impostas, “não convivem
harmoniosamente, lado a lado em um campo sem hierarquias; elas são disputadas”.
E implicam necessariamente num processo de inclusão e exclusão. Dentro desta
perspectiva a tendencia da identidade é para fixação. Mas a fixação é uma tendência
e ao mesmo tempo uma impossibilidade” (SILVA, 2000, p.81 e 84).
A identidade e a diferença, como dissemos, não são entidades
preexistentes nem são elementos passivos da cultura:
têm que ser constantemente criadas e recriadas [...] A identidade tão
pouco é homogênia, definitiva, acabada [...] é uma construção, um
efeito, um processo de produção [...] é instável, contraditória,
fragmentada, inconsistente, inacabada [...] a identidade tem estreitas
conexões com relações de poder. (SILVA, 2000, p.97)
A cultura, sem dúvida alguma, é um forte modelador das identidades sociais e
individuais, sempre que nos torna possível optar, entre as várias identidades
possíveis por um modo específico de subjetividade. A discussão sobre identidades
sugere a emergência de novas posições e novas identidades. Na dinâmica social, as
identidades são contestadas gerando crise.
“Identidade” e “crise de identidade” são palavras e idéias bastante utilizadas
na atualidade e são vistas pelos estudiosos sociais como características das
sociedades contemporâneas.
Quase todo mundo fala agora sobre identidade”. A identidade se
torna um problema quando está em crise, quando algo que se supõe
ser fixo, coerente e estável é deslocado pela experiência da dúvida e
da incerteza (MERCER apud RODRIGUES, 2003)
O mundo atual está em crise. Tudo indica que vivemos em meio a uma crise
de identidade nos diversos setores da sociedade. Diferenças, divergências,
contradições gritantes constituem um verdadeiro desafio para o homem
209
contemporâneo. E a ciência tenta entender a natureza dos conflitos buscando
soluções viáveis e urgentes.
Segundo Mardones, estamos “em um mundo em que tudo deve ser submetido
a uma reflexão, incluída a própria identidade, que, de ser uma identidade mais ou
menos dada por suposto, herdada [...] passa a ser uma identidade reflexiva que deve
surgir conscientemente” (MARDONES, 1996, p. 111)
As instituições religiosas também estão vivendo um momento de profunda
crise, em todo o mundo. Como era de se esperar, aqui no Brasil, os cristãos, mais
especificamente, os católicos, parecem estar vivendo uma crise de maior intensidade
diante da multiplicidade de caminhos religiosos num mundo em globalização.
O ponto que nos interessa, a partir desse horizonte de múltiplas possibilidades
que se descortinam, é reconhecer que crise é oportunidade de amadurecimento, em
todos os níveis, inclusive no espiritual ou religioso. E o ser humano, a partir dos seus
conflitos existenciais, ao refletir e se confrontar com as contradições, tende a buscar
respostas para suas indagações.
Dentro de um contexto onde emergem novos paradigmas, o homem se
confronta com múltiplas possibilidades de respostas e conseqüentemente, uma
multiplicidade de novos caminhos, a partir de novas interpretações que podem
preservar sua crença religiosa, ou não.
Dentro desta perspectiva, atribuir novos significados, tomar caminhos diversos
dos apontados oficialmente pela instituição religiosa a que pertencem são tendências
que apontam para um processo de adaptação chamado por alguns estudiosos
sociais de metamorfose. Porém, como já foi citado, a cultura é um forte modelador de
identidades sociais e se sabe que esse processo de modelação simbólica, acontece
desde a mais tenra infância, no momento em que o ser humano está extremamente
dependente, em todos os sentidos.
Considerando que os laços afetivos, tecidos entre os familiares, influenciam de
decisivamente a dimensão emocional do homem, presume-se que todos os
ensinamentos verbais, não-verbais, “certos” ou “errados”, passados clara ou
inconscientemente, vão constituir a subjetividade do ser humano.
210
Felizmente, conta-se com o dinamismo inerente a cada ser e também, com o
conhecimento de que o ser humano é um ser de relações. Neste contexto, o “outro”
surge, o “diferente” acontece e desafia, funcionando como elemento transformador.
Mas, quando o “diferente” surge, nem todos estão no “ponto”, preparados para
se deixarem “tocar” em profundidade pela “alteridade” que convida, insiste, “intima” o
ser humano a não se enclausurar no estabelecido. O novo, o diferente, a alteridade,
são desafios, mais que isso: são caminhos para que o processo de amadurecimento
aconteça.
“Crescer” não é processo fácil, implica em confrontos, em conflitos, supõe
crise. E é nessa perspectiva que neste trabalho de pesquisa, a nossa condição de
seres “finitos”, gera crise.
O tipo de crise, o “quantum” de crise, a forma de vivê-la, é cultural, porém,
consideramos neste trabalho, que o confronto com a morte quase sempre é um fator
gerador de crise, não no sentido comum na perspectiva da nossa cultura, onde a
morte representa desagregação e desorganização nas dimensões sócio, psíquica e
emocional das pessoas, mas no sentido de que a morte, por implicar perda, gera a
necessidade imediata de reorganização, variando de natureza e nível, dependo do
contexto sócio-cultural e religioso daqueles que estão passando pela referida crise.
A morte, dentro dessa perspectiva de crise, independente dos sentimentos
que desperta, é uma oportunidade para que o ser humano reflita e faça indagações
acerca do sentido de sua existência. Porém, a “resistência” é um mecanismo sempre
presente em nossas vidas. O ser humano tende sempre a “resistir” ao novo e por
isso, não raras às vezes, ele tende a optar pela estabilidade e com isso, quase
sempre retarda o seu processo de “crescimento”.
Assim, acontece com todos nós e, conseqüentemente, com os sujeitos desta
pesquisa. Rebeca, por exemplo, médica, viúva e mãe, hoje sem filhos, vive envolvida
por vidas, fazendo-se indagações acerca de valores religiosos que ela internalizou
como verdades. Decidiu procurar o seu pároco, orientador espiritual de muitos anos.
Dirigindo-se a ele, Rebeca não foi apenas expressar a sua dor pela perda do seu
filho, levou também em sua bagagem existencial, experiências incomuns, do tipo
extra-sensoriais, que muito a inquietam e para as quais tem receio de ir buscar
211
explicações fora da igreja e da religião de sua pertença. Dele não obtendo, porém,
respostas convincentes. Ele se mostrou disponível e acolhedor, mas possivelmente,
diante do “novo”, confrontando-se com experiências, para ele, “estranhas”, sentiu-se
ameaçado e interpretou as vivências de Rebeca de um modo que despertou nela,
sentimentos de não ter sido absolutamente compreendida e, conseqüentemente,
defendeu-se, desenvolvendo uma atitude de retraimento.
Rebeca, com essa atitude de retraimento, parece desconhecer o que nos diz
Vigil:
cada vez mais se impõe a consciência de que hoje já não é possível
viver isolados em nossa própria religião, como numa bolha que nos
livrasse de qualquer influência de outra religião. Pelo contrário, como
declara a sociedade India de Teologia, “numa sociedade pluralista a
religião autêntica implica necessariamente na relação com as outras
religiões. (VIGIL, 2006, p. 286)
De modo bem diferente, pensam Amon e Leônia, nossas entrevistadas, que
são verdadeiras “andarilhas”, em busca da verdade, tanto é que por terem assimilado
dos valores e práticas religiosas orientais, sentiram uma certa dificuldade em definir-
se em termos de religião, depois de refletirem e conversarem dentro da própria
entrevista sobre suas divergências em relação a Igreja Católica (religião de origem),
é que se atribuíram uma denominação engendrada no momento da pesquisa. Para
elas, “as grandes religiões não são rivais, mas sim se complementam, como as notas
de uma divina sinfonia, cada uma representando um papel importante no grande
drama na evolução humana [...]” (TOWNSHEND apud VIGIL, 2006, p. 287)
Num movimento diferente, mas com pontos semelhantes, vive Belita, uma
outra entrevistada. Ela emergiu de sua crise identitária em relação a religião,
representando nitidamente um processo de metamorfose que abrangeu,
naturalmente, muitos outros aspectos de sua vida pessoal e profissional:
Hoje eu me percebo uma pessoa mais religiosa que antes. Religiosa
no sentido mais etimológico da palavra, onde religião significa
religação com o divino, com o uno, com o todo, com o imponderável
que a gente busca compreender mais... [...] Minha religião é a partir
do meu interior. [...] essa busca que eu venho empreendendo, eu
tenho feito com liberdade de questionar, de alterar; hoje eu vivo e
quero continuar vivendo dentro de uma atmosfera de relativa
212
certeza... quero hoje pensar de um jeito e amanhã me dar o direito de
questionar... de mudar aquela mesma certeza... por estar imbuída de
que se trata de uma certeza aparente e provisória... [...] agora, nesse
momento... pensando melhor neste passado fico admirada de como
eu agüentei até uma idade bem amadurecida estar bitolada aos
valores da minha religião, pois eram rígidos demais, muito
semelhante as regras de um quartel, ou pior, de um campo de
concentração... [...] existiam muitos ensinamentos de um caráter
tirânico que corroíam minha alma ou meu psiquismo e eu precisei
deste corte, de provocar essa ruptura com a religião (mesmo sem
disso ter consciência) até para poder refletir sobre os meus valores
pessoais e até os religiosos... foi bom! [...] me fizeram dar uma
verdadeira guinada... 180º em minha vida [...] Acho que não
suportaria pertencer a nenhuma religião institucional porque as
religiões tendem a nos aprisionar numa visão limitada demais! Por
isso, pratico meditação pelo menos duas vezes na semana e
freqüento “religiosamente” um grupo, onde partilhamos idéias e
sentimentos a respeito de tudo o que lemos acerca do sentido da
vida. A meditação é um meio de me comunicar com Deus de forma
mais pessoal e profunda, sem os limites das religiões. [...] Hoje,
graças a Deus, vivo em profunda comunhão com Ele. Um Deus que é
sobretudo amor incondicional, que nos acolhe, que nos ampara
independente das circuntâncias e das religiões. [...] O Deus dos meus
pais era um Deus triste e, às vezes, tirano. [...] O Deus que eu amo
[...] é um Deus que já visita minha casa. [...] com O qual eu já vivo em
permanente diálogo. (Entrevista Belita)
A partir das nossas reflexões acerca de Belita, percebemos o quanto a sua
vivência tem sintonia com a posição do estudioso social Ciampa (1998), quando
afirma que identidade é metamorfose, implicando necessariamente em um constante
processo de transformação evolutiva, possibilitando a construção de novos
significados para a vivência de sua religiosidade, também chamada por ela de
espiritualidade.
A identidade configura um processo dialético, que amplia o
conhecimento da personalidade humana, como também permite um
processo de transformação: recriar-se. Ou seja, possibilita que cada
ser humano amplie sua consciência de si mesmo, definindo sua
própria identidade, tendo condições de recriá-la. (CIAMPA, 1998,
p.44)
O processo denominado por Ciampa de “identidade-metamorfose”, pode ser
considerado indício que um novo estilo social está emergindo em nossa sociedade,
onde o ser humano se permite, apoiado pelo próprio contexto cultural, a visualizar
213
novas e múltiplas interpretações da realidade objetiva, proporcionando a si mesmo e
a sociedade, a construção de novos valores e significados subjetivos acerca da
realidade, possibilitando deste modo a reconfiguração da identidade.
Isso nos faz lembrar uma das mais importantes características da mais
recente teoria da identidade social, que é a “auto-atribuição”. Segundo Rodrigues,
quem contribuiu com este termo, de modo radicalmente transformador, foi Barth que,
ao romper com a idéia de identidade vinculada à cultura e, principalmente, ao fator
biológico, concebe os grupos étnicos como um tipo de “organização social cujo traço
fundamental é a característica da auto-atribuição ou a da atribuição por outros a uma
categoria étnica”. (RODRIGUES, 2003, p. 33)
Como referimos acima, Leônia e Amon, possivelmente por não terem
conhecido os posicionamentos de Barth e Rodrigues, acima referidos, sentiram-se
constrangidas quando não souberam responder com clareza a que tipo de religião
pertenciam. Suas fisionomias e seus sorrisos acanhados, nitidamente demonstravam
que para elas não ter identidade definida, era algo um tanto quanto vergonhoso, no
mínimo constrangedor.
A autoatribuição, a definição de si mesmo como pertencendo ou não a um
grupo, como sendo uma das mais importantes características da moderna teoria da
identidade social.
Segundo Rodrigues (2003), as pessoas religiosas que percebem
incompatibilidade entre os valores da sua religião e suas necessidades e desejos
pessoais diante da vida, tendem a buscar novos caminhos e interpretações da sua
crença e
“Migram” dentro da própria religião, como quem muda de cidade em
busca de melhores condições de vida sem, contudo, mudar de país.
Ou seja, dando novos significados à orientação religiosa, é possível
elaborar uma identidade religiosa alternativa para vivenciar sua
espiritualidade. (RODRIGUES, 2003, p.44)
Portanto, ao construírem uma alternativa para experimentar, numa perspectiva
prática, sua “nova” identidade religiosa,dentro da antiga forma de fazê-lo, estariam
construindo socialmente uma nova realidade a cerca da identidade religiosa e, com
214
isso, modificam valores e crenças, adaptando a ética pessoal à modernidade, ainda
que baseando-se no mesmo livro sagrado e doutrina religiosa de antes. É assim que
vive 25% (vinte e cinco por cento) da amostra, dentro de uma nova visão, um novo
paradigma, onde “o humano é sempre ‘uma porta abrindo-se em mais saídas’. O
humano é vir-a-ser humano”. (CIAMPA, 1998)
Se alguns dos entrevistados, optaram por viver a sua dimensão religiosa a
partir de um novo paradigma, Edite e Rebeca apenas dão passos tímidos, neste
sentido. No nosso entender, numa visão interpretativa e conseqüentemente passível
de erro, Edite, apesar das grandes divergências com a sua religião de origem, ao
reafirmar sua identidade como católica, o faz mais por motivos afetivos, que por
comungar com os valores e as práticas de sua religião, posto que a própria Edite
admite que freqüenta, apenas raramente, por não agüentar as “baboseiras” ditas
pela maioria dos sacerdotes.
Alcides, Lisete, Paulo e Ruth, coincidentemente os sujeitos de idade mais
avançada, movimentam-se nos tempos de pós-modernidade, ainda dentro de um
estilo onde identidade era sinal de estabilidade. Fixam-se em concepções, dogmas e
ensinamentos de uma igreja conservadora, daí repassarem para aqueles com quem
convivem. Quanto a eles, parecem tranqüilos em relação ao que está reservado para
depois, após a sua morte. Lisete e Alcides, católicos, ainda conseguem expressar,
mesmo hesitantemente, seus medos e algumas indagações existenciais, em relação
as crenças religiosas de natureza escatológica. Paulo e Ruth, por serem
tradicionalmente evangélicos, fecham-se, encastelam-se e respondem as
indagações a respeito de como percebem a morte e como a finitude repercute em
suas vidas, de um modo quase que automático, com sentenças e expressões,
“baseadas”, quase que literalmente, nos textos e sermões bíblicos.
Considerando a história de Dolores, o seu percurso e estilo de se movimentar
existencialmente, faz-nos supor que a sua identidade religiosa (católica), baseia-se
numa do tipo “herdada”. A doença e a morte do esposo, representou uma crise de
natureza psicoespiritual, pois, foi justamente nesta fase, que ela passou a viver as
primeiras indagações a respeito do sentido da vida e do sentido da morte,
aproximando-se da igreja e orando fervorosamente por necessidade de se acalmar,
“rezando o terço” e lendo um “livrinho de salmos”, “como se engole tranqüilizantes”.
215
Luzia e Ana, a cada momento de suas conversas e atitudes, denotam a
preocupação de reafirmar as suas identidades religiosas. Luzia, católica praticante,
pertencendo ao movimento carismático, percebe que a dor profunda que vivenciou
com as perdas do seu filho e esposo amados, muito a amadureceu em sua . Tanto
é que isso se reflete, segundo ela, nos trabalhos que desempenha junto a diversos
grupos religiosos, no estado de Pernambuco. Ana, espírita por convicção, médium
bem conceituada no contexto onde vive, reforça cada vez mais a sua identidade, a
partir de leituras, palestras e trabalhos de cura que desenvolve e retroalimentam sua
identidade religiosa.
Revisitando as entrevistas dos sujeitos, pode-se perceber que 67% (sessenta
e sete por cento) dos entrevistados vive de forma mais aprisionada as suas
identidades religiosas, preocupados em seguir as normas da “religião institucional”,
enquanto que 33% (trinta e três por cento) vive como “peregrinos”, caminhando por
entre os meandros das diferentes propostas religiosas que compõem o campo
religioso, não tendo problemas em passar de uma para outra, ou mesmo de fazer
sua própria composição religiosa, com elementos de uma e outra proposta. Aliás,
como nos diz Bingemer (2002) e Vigil (2006), reconfigurar as antigas identidades
religiosas a partir da multiplicidade de elementos e apelos das várias religiões,
pode ser considerada uma atitude comum na sociedade contemporânea.
216
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda caminhada se faz por etapas. Neste momento, uma etapa decisiva no
nosso percurso acadêmico se encerra. Porém, não completamente, pois as
questões que nortearam este trabalho de pesquisa, o apenas parcialmente
respondidas e, também geram algumas outras que se encontram em aberto e
podem representarem fonte de inspiração para outras pesquisas.
Conviver com a morte, mesmo que na perspectiva intelectual, não é tarefa
fácil. Como seres de dimensões múltiplas, é impossível ficar imune aos apelos
emocionais que surgem a partir das incursões feitas caminhos desconhecidos.
Tratar do tema “morte”, numa perspectiva psico-sócio-espiritual, é ainda mais
complexo, pois só metodologicamente podemos dividir o que, numa perspectiva
sistêmica, é uno e funciona de modo integrado: o ser humano.
Os objetivos, ao longo deste trabalho, foram identificar pensamentos e
sentimentos nos adultos que se confrontam com a situação de morte, visando
compreender como esta crise interfere em suas identidades religiosas, bem como
averiguar se entre os sentimentos manifestos, elementos que sugerem medos
claros ou latentes em relação à morte, e se haveria alguma correlação entre os
possíveis medos em relação à morte com a visão escatológica de suas religiões de
pertença.
Como se disse ao longo deste trabalho, “crise” aqui foi vista como
oportunidade de ressignificação de valores e conseqüente amadurecimento. É neste
sentido que se supõe que a morte representa, na maioria das situações, um fator de
reconfiguração na vida das pessoas e, portanto, em suas identidades religiosas.
Através do método fenomenológico, identificou-se e se dividiu em unidades
de significado os conteúdos das entrevistas e assim, nesta primeira etapa da
nossa análise, pôde-se ver que em dez, dos doze entrevistados, a situação de
confronto com a morte os leva a refletir, de modo crítico, acerca dos seus valores
religiosos ou existenciais. Num segundo momento da análise, percebe-se que
alguns deles buscam respostas para as indagações que os inquietam e, quando não
217
encontram acolhimento ou respostas que os tranqüilizam, buscam outros modos de
se defender da dor e da ansiedade que os corroem internamente. Uns se
“defendem” retraindo-se, distanciando-se ou rompendo completamente com os laços
afetivos que os ligam às instituições religiosas ou pessoas representativas de suas
religiões de origem. Outros, num movimento contrário, aproximam-se e intensificam
as suas relações com suas instituições ou grupos religiosos, numa provável tentativa
de apazigüar a dor ou amenizar o desespero que sentem. Tais atitudes levam a
reconfigurações de vários níveis, variando entre o quase imperceptível, e um nível
perfeitamente identificável.
Através das análises realizadas, também é possível identificar um movimento
digno de nota, no sentido de que abrangeu uma parte significativa da amostragem,
pois 25% (vinte e cinco por cento) dos nossos entrevistados, apesar de raramente
freqüentarem templos religiosos, declaram que através da meditação fazem do seu
lar um lugar sagrado e passam de um tipo de fé herdada, para um tipo de fé
pessoal, uma que eles, coincidentemente, denominam de “fé íntima”, refletida em
seu cotidiano: meditação, orações e diálogo íntimo com Deus. Estes resultados
confirmam que, pelo menos nesta situação de pesquisa, a crise ante morte propicia
reconfigurações na identidade religiosa dos adultos.
ainda outro dado relevante: é evidenciado uma correlação entre o medo
da morte e as práticas evangelizadoras em torno da escatologia. 50% (cinqüenta por
cento) dos entrevistados demonstram claramente que, atualmente ou numa época
remota, medo ou pavor em relação à morte, estavam presentes em suas vidas e
eles mesmos manifestaram, através de seus depoimentos, a ligação existente entre
esses medos e o modo como foram e ainda são socializados, tanto na família,
quanto nas outras instituições sociais. Considerando que os sujeitos desta pesquisa
estão na faixa etária entre cinqüenta e noventa anos, é possível inferir que são
pessoas cuja socialização primária aconteceu nos meados do culo XX,
significando que receberam maciçamente a influência de uma ideologia repressora e
inculcadora de medo e culpa, que se reflete nos sentimentos ambivalentes que
nutrem em relação a morte. Reportando-se aos depoimentos de Leônia, Alcides e
Lisete, evidencia-se que eles nutrem um sentimento de medo tão profundo em
218
relação a situação imaginária do pós-morte, que a percebem, mais como um
“crepúsculo”, do que um “amanhecer”.
Refletindo acerca dos resultados desta pesquisa, percebeu-se também que
uma concordância com os teólogos Renold Blank e Joseph Comblin, quando
através de suas obras, demonstram preocupação com o nível de aceitação ou de
rejeição do ser humano, em nosso contexto atual, no que diz respeito ao destino do
homem depois da vida. De fato, ao longo da pesquisa de Blank, fica evidente que
ele deseja transmitir uma mensagem de esperança sobre a morte. O que, no nosso
entender, faz sentido, pois também nessa pesquisa que realizamos, constata-se que
um medo subjacente permeando o imaginário e a subjetividade de muitos
adultos, em nossa cultura, principalmente entre aqueles que estão numa faixa etária
superior a cinqüenta anos, posto que é, geralmente, nesta fase que, culturalmente,
tornamo-nos sensíveis e despertamo-nos para a consciência da proximidade do
nosso destino inevitável: a morte.
Aprende-se muito no contato com os entrevistados. Seus depoimentos
revelam uma necessidade de uma ligação mais profunda e autêntica com o sagrado.
Alguns, superando condicionamentos que embotam a consciência, conseguem
transcender os limites culturais e religiosos e imprimem um caráter pessoal à sua
religiosidade, ou seja, à sua forma de se relacionar com o divino, no seu cotidiano.
Outros porém, menos ousados, não conseguem superar as circunstâncias da qual
fazem parte e navegam nos mares da culpabilidade e do medo.
Lembramo-nos das palavras de Edite, uma das entrevistadas, que reafirma
sua identidade católica, ao reconhecer o carinho e a gratidão que sente por tudo que
viveu de bom na sua religião como esquecer os momento bons vividos, desde
pequenina, nos colégio internos por onde passou? Lembra com saudades das
missas com seus belos cânticos e da reverência comovente com que participava da
“comunhão”... “Divergências sempre hão de existir... acontece nas melhores
famílias...” Mas como agüentar “o besteirol” da maioria dos sermões? “Cabe à Igreja
Católica, enquanto instituição, sair da torre de marfim em que se enclausurou e se
abrir para as novas situações que talvez o próprio Deus esteja permitindo
acontecer”. O que foi dito por Edite, talvez se possa atribuir a muitas instituições
religiosas, bem como aos educadores, que, “enclausurados em suas torres de
219
marfim”, cristalizam seus conceitos e percepções, não assumindo o papel de
mediadores, impedindo deste modo, que “novos ventos” ajudem na construção de
novas mentalidades.
Para esta mestranda, particularmente, foi muito significativo produzir esta
pesquisa, que apesar de pouco abrangente, forneceu resultados dignos de reflexão
e que talvez representem um incentivo para que se continue trabalhando,
academicamente, a partir deste tema, que poderá ser enriquecido, com pesquisas
futuras, com outros vieses.
220
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227
APÊNDICE
228
PERGUNTAS NORTEADORAS DA PESQUISA
a) Como você percebe a morte?
b) Como a sua vivência relacionada a morte interferiu ou vem interferindo na sua
identidade religiosa?
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