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UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
ADNA DE ALMEIDA LOPES
A SINGULARIDADE DO ERRO ORTOGRÁFICO E
OS EFEITOS DO FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA
TESE DE DOUTORADO
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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE ALAGOAS
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGÜÍSTICA
ADNA DE ALMEIDA LOPES
A SINGULARIDADE DO ERRO ORTOGRÁFICO E
OS EFEITOS DO FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras e Lingüística da
Universidade Federal de Alagoas como
requisito parcial para a obtenção do título de
Doutor em Lingüística.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Calil de
Oliveira
Maceió
maio de 2005
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2
ORIENTADOR:
________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Calil de Oliveira
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________
Profa. Dra. Ucy Soto
Universidade Federal Fluminense – UFF
________________________________________
Profa. Dra. Maria Hozanete Alves de Lima
Universidade Federal da Paraíba – UFPB
________________________________________
Profa. Dra. Maria Denilda Moura
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
________________________________________
Profa. Dra. Cristina Felipeto
Fundação Universitária de Ciências
da Saúde de Alagoas – UNCISAL
SUPLENTES:
________________________________________
Profa. Dra. Maria Francisca Oliveira Santos
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
________________________________________
Profa. Dra. Rita Maria Diniz Zozzoli
Universidade Federal de Alagoas – UFAL
Maceió, 16 de maio de 2005.
3
A Eduardo Calil, pela cuidadosa (e rigorosa) interferência.
A Artur Morais, pelo ponto de partida.
A Irandé Antunes, pelo incentivo.
A Denilda Moura, pelo crédito desde o PET.
A Roberto Sarmento, pelas lições.
Ao PPGLL, pelos caminhos.
A Lúcia Guilherme, pelos textos dos alunos.
A Ignês Barros, pela ajuda nas traduções.
A Aparecida Silva, Fabiana de Oliveira e Jerzuí Tomaz, pelas leituras compartilhadas.
A Alex de Almeida Lopes, pela editoração final.
A minha família, pelo apoio e pelo carinho.
AGRADECIMENTOS
4
[...] y en el juego angustioso de un espejo frente a
outro
cae mi voz
y mi voz que madura
y mi voz quemadura
y mi bosque madura
y mi voz quema dura [...]
Xavier Villaurrutia
5
O trabalho que aqui nos propusemos realizar tem como objetivo a análise de erros de
escrita que apresentam um caráter singular, estatisticamente irrelevante, colocando em
suspenso uma noção de língua enquanto uma ordem homogênea, estabilizada e constituída de
fenômenos regulares. Chamamos esses erros de “erros ortográficos singulares” e analisamos
aqueles presentes em 10 textos produzidos por alunos da série do Ensino Fundamental de
uma rede pública de Alagoas, em um teste de Português elaborado pelo Núcleo de Avaliação
e Pesquisa Educacional da Universidade Federal de Pernambuco (NAPE-UFPE), no ano de
1997. O corpus é formado por 229 textos e, atualmente, pertence ao banco de dados do
Projeto Integrado “Práticas de Textualização na Escola”, coordenado pelo professor Eduardo
Calil, do Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas (CEDU-UFAL).
De um ponto de vista diferenciado da noção psicológica de desenvolvimento tentamos
mostrar como a singularidade desses erros aponta para um funcionamento que difere daquele
suposto pelas habilidades cognitivas, na medida em que indicia uma ordem própria que
escapa ao domínio do sujeito e que não mantém total relação entre o sistema de formas
escritas e o sistema oral. Um funcionamento pautado na noção saussureana de valor
lingüístico marcado pelas relações de diferença que mantém os significantes com outros
significantes da língua, enquanto uma ordem simbólica habitada por uma subjetividade,
operada pelos processos metafóricos e metonímicos (Jakobson 1966; Milner 1987; Lemos
1992).
Assim, quando tomamos para análise os erros ortográficos singulares quisemos, na
verdade, mostrar que o funcionamento lingüístico que rege o sistema ortográfico possui uma
autonomia que nos obriga a relativizar as categorizações. Pela estrutura desse sistema, as
ocorrências singulares não podem simplesmente ser descartadas ou consideradas irrelevantes
para o processo de aquisição porque o são estatisticamente significativas. Elas estão
inscritas num funcionamento próprio do sistema ortográfico e não podem ser apagadas pela
busca do regular, do estabilizado, do categorizável. Elas nos revelam um sujeito sob os efeitos
de um funcionamento de ordem lingüística.
Palavras-chave: texto escrito - ortografia – erro singular.
RESUMO
6
Le travail que nous nous proposons réaliser a comme objectif l'analyse d'erreurs d’écriture qui
présentent un caractère singulier, statistiquement impertinent, ce qui contrarie la notion de langue en
tant qu’ordre homogène, stable et constitué de phénomènes réguliers. Nous appelons ces erreurs
"erreurs orthographiques singulières". Nous les avons analysés sur 10 textes produits par des élèves de
la quatrième de l’Enseignement Fondamental, d'un réseau public d'Alagoas, par le moyen d’un test de
Portugais, élaboré par le Noyau d'Évaluation et de Recherche Éducative de l'Université Fédérale de
Pernambuco (NAPE-UFPE), en 1997. Le corpus est constitué de 229 textes et, actuellement, il
appartient à la banque de données du Projet Intégré "Pratiques Textuelles dans l'École", coordonné par
le professeur Eduardo Calil, du Centre d'Éducation de l'Université Fédérale d'Alagoas (CEDU-UFAL).
Sous un point de vue différencié de la notion psychologique de développement, nous essayons
de montrer comme la singularité de ces erreurs signale vers un fonctionnement qui s’oppose à celui
considéré par les capacités cognitives, dans la mesure elle accuse un ordre propre qui échappe au
domaine du sujet et qui ne garde pas un rapport total entre le système des formes écrites et le système
oral. Un fonctionnement fondé dans la notion saussurienne de la valeur linguistique marquée par les
relations de différence qui gardent les signifiants avec d’autres signifiants de la langue en tant qu'ordre
symbolique qui abrite une subjectivité mouvée par les processus métaphoriques et métonymiques
(JAKOBSON 1966; MILNER 1987; LEMOS 1992).
Ainsi, quand nous avons analysé les erreurs orthographiques singulières, nous avons voulu, en
réalité, montrer que le fonctionnement linguistique qui règle le système orthographique a une
autonomie qui nous oblige à nous poser des questions sur les catégories. Selon la structure de ce
système, les occurrences singulières ne peuvent pas être simplement écartées ou être considérées
impertinentes dans le processus d'acquisition parce qu'elles ne sont pas statistiquement significatives.
Elles sont inscrites dans un fonctionnement propre du système orthographique et ne peuvent pas être
éteintes par la quête de ce qui est régulier, stable et défini en catégories. Elles nous révèlent un sujet
sous l'effet d'un fonctionnement d'ordre linguistique.
Mots-clés: texte écrit - orthographe - erreur singulière.
RÉSUMÉ
7
1. INTRODUÇÃO: O FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA ........................................... 09
1.1. Uma querela antiga: analogistas e anomalistas ................................................. 09
1.2. Tudo não se diz: O não-todo da língua .............................................................. 12
1.3. Um modo singular de produzir equívoco .......................................................... 13
1.4. Saussure revisitado ............................................................................................ 17
1.4.1. por Normand: um “corte epistemológico” ................................................ 19
1.4.2. por Benveniste: uma importância aos fundamentos ................................. 25
1.4.3. por Milner: um arbitrário caracterizado pela ausência ............................. 26
1.5.Uma epistemologia saussureana ......................................................................... 29
1.6.O lugar repetível da singularidade ...................................................................... 33
2. SISTEMA GRÁFICO E NORMA ORTOGRÁFICA ................................................. 36
3. OS ESTUDOS SOBRE A AQUISIÇÃO DA ORTOGRAFIA ................................... 45
3.1. Os critérios de regularidade, freqüência e previsibilidade ................................ 45
3.2. A natureza regular e irregular do erro ortográfico ............................................. 49
3.3. A relação freqüência/dificuldade de apropriação do sistema ortográfico ......... 56
3.4. Consciência e memória na aquisição da ortografia ........................................... 60
4. A SINGULARIDADE DO (NO) ERRO ....................................................................... 67
4.1. O dado indiciário: intuição e subjetividade do investigador ............................. 67
4.2. O erro e sua possibilidade material de língua .................................................... 74
SUMÁRIO
8
5. A QUESTÃO METODOLÓGICA ............................................................................... 82
5.1. Os procedimentos metodológicos na área de aquisição da linguagem .............. 82
5.1.1. O lugar do dado singular no funcionamento da língua ............................. 85
5.1.2. O lugar do investigador nas pesquisas em aquisição da linguagem ......... 89
5.2. A escrita dos alunos de 4ª série do Ensino Fundamental: os dados, o contexto de
aplicação e os critérios de avaliação do teste de Português ................................ 91
6. O ERRO ORTOGRÁFICO SINGULAR ..................................................................... 101
6.1. A ordem da língua nas relações entre LH e NH ................................................ 101
6.2. O movimento dos significantes nos deslizes de R ............................................. 106
6.3. As possibilidades da língua na alternância de vogais ........................................ 113
6.4. O estatuto de identidade e diferença entre B/D, D/B e BR/D ........................... 122
6.5. As relações de semelhança entre D/G, T/P e R/N ............................................. 130
6.6. O H submetido a recalque .................................................................................. 136
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................. 141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................. 144
ANEXOS ............................................................................................................................. 151
9
1.1.
Uma querela antiga: analogistas e anomalistas
Trata-se aqui do erro como fenômeno que, por um lado, quebra alguma coisa tida
como regular na língua, quando se confronta com os outros fatos (externos) que a gramática
tem categorizado como “o correto”; e, por outro, revela que mesmo no diferente e estranho
fenômeno descartado, ou seja, no irregular, há uma ordem (interna – a ordem da língua) que o
sustenta e o legitima.
A discussão sobre as regularidades e irregularidades de uma língua tem perpassado
toda a história da lingüística. Mesmo com diferentes propósitos e abordagens, essa questão
chega à pesquisa lingüística atual ainda longe de ser resolvida.
John Lyons (1979) faz essa afirmação em Introdução à Lingüística Teórica,
advertindo que as controvérsias ainda permanecem e não têm encontrado soluções na
lingüística. Em verdade, segundo o autor, essa disputa vem da discussão dos filósofos gregos
sobre se o que regia a língua era a “natureza” (com princípios externos invioláveis e
imutáveis) ou a “convenção” (resultado do costume e da tradição convencionado pelos
homens).
Essa discussão, no tocante à língua, dizia respeito à existência de conexão ou não entre
significado e forma de uma palavra.
A controvérsia entre “naturalistas” e “convencionalistas” passou, mais tarde, (séc. II
a.C.) para a discussão entre “analogistas” e “anomalistas”, termos gregos para o que, segundo
Lyons, é chamado hoje de “regularidade” e “irregularidade” e que provoca uma discussão
sobre até que ponto a língua é sistemática, se não há um limite para a sua regularidade.
INTRODUÇÃO:
O FUNCIONAMENTO DA LÍNGUA
10
O autor cita exemplos de “uma espécie de ‘regularidade’ na língua”, discutida pelos
fundadores da gramática tradicional, no inglês e no português, que, conforme ressalta, está
restrita ao sentido de “proporção matemática”
1
:
Inglês Português
boy, boys menino, meninos
girl, girls menina, meninas
cow, cows vaca, vacas
Para o autor (IDEM, p. 7), mesmo com as evidências de estruturas regulares, os
estudos demonstraram numerosas exceções. O ponto de vista contrário também é verdadeiro;
ou melhor, o ponto comum entre analogistas e anomalistas era a concordância da presença de
exceções pelos primeiros; e a admissão de modelos e exemplos, pelos outros: “Os anomalistas
não negavam a existência de regularidades na formação de palavras na língua, mas apontavam
os inúmeros casos de palavras irregulares para cuja formação razões de analogia nada valem
(p. ex., Child: children, etc.)” .
Os exemplos dados pelos anomalistas, segundo Lyons, recaem sobre processos não
regulares de formação de palavras (como child: children, no inglês); as diferenças entre
palavras de uma mesma classe (diferentes analogias); a relação anômala entre a forma e a
significação de uma palavra; a sinonímia (duas ou mais palavras com o mesmo sentido); a
homonímia (uma só forma com dois ou mais significados):
Se a língua fosse realmente produto de uma ‘convenção’ humana,
era de esperar que não encontrássemos ‘irregularidades’ desses
vários tipos; e, se existissem, seriam corrigidas. Os anomalistas
sustentavam que a língua, produto da ‘natureza’, era apenas em
parte, suscetível de uma discussão sob padrões analógicos de
formação e que se devia dar atenção ao ‘uso’, por mais ‘irracional’
que este possa ser (IDEM, p. 7 – grifo nosso).
Essa discussão, no entanto, nunca foi dada como definitiva pelos gregos por dois
motivos:
1
Lyons (1979, p. 6) diz que o termo analogia está sendo utilizado, nesses exemplos, como uma “proporção
matemática”, em que se pode dizer que 6 : 3 : : 4 : 2 : : 2 : 1, acrescentando que “o termo proporção vem do lat.
proportio, que é a tradução gr. analogia. O raciocínio analógico foi largamente aplicado no estudo das ciências
por Platão e Aristóteles, e os seus discípulos”. Para ele, o raciocínio analógico pode formar milhares de palavras
a partir de outras.
11
1º) a distinção entre descrição (descrição do ‘uso’ da fala e da escrita) e prescrição
(como se deve falar e escrever) não estava clara; e
2º) o ponto de vista regular x irregular, uma vez que somente se pode estabelecer o que
é irregular a partir das regularidades das quais elas se diferenciam:
Qualquer discussão geral quanto a se uma língua é ‘regular’ ou não
envolve outra questão: o que são, na verdade, os padrões
‘regulares’? A controvérsia entre os ‘analogistas’ e ‘anomalistas’
não foi, portanto, como algumas vezes se pretendeu, uma disputa
obtusa resultante da negação obstinada de ambos os lados em
reconhecer o fato evidente de que há, ao mesmo tempo, ‘analogias’
e ‘anomalias’ na língua (IDEM, p. 8).
Como se pode ver, o fundamento da gramática é a regularidade, apesar de se admitir
nela algumas irregularidades tidas como “exceções”:
Quaisquer que tenham sido os seus procedimentos teóricos, tanto os
‘analogistas’ como os ‘anomalistas’ admitiam haver certas
regularidades na língua, e ambos contribuíram para a sistematização
da gramática. Na verdade, foram os estóicos, comumente chamados
“anomalistas”, que assentaram os fundamentos da gramática
tradicional por seus estudos sobre “etimologia”. E sobre esses
fundamentos construíram os “analogistas” alexandrinos (IDEM, p.
8).
O nosso objetivo ao apresentar essa breve discussão de Lyons sobre regularidades e
irregularidades da língua não é apenas o de contrapor a essa questão o erro ortográfico
sistemático e o singular, inusitado. Queremos mostrar como essa discussão retoma uma
querela antiga de observação da estrutura da língua que não se tem definido porque, por mais
que se procure apreender o todo, a unidade, a língua sempre resvala. E dentro de uma pretensa
completude, anseio do gramático e do lingüista, a veremos sempre constituída pela “falta”
Milner (1987). É dessa falta que trataremos a seguir.
12
1.2.
Tudo não se diz
: o não-todo da língua
Decidir-se por estudar uma irregularidade produzida pelo sistema da língua – no nosso
caso, o erro ortográfico implica a definição de um viés teórico no qual se considere a
incompletude da língua, ou seja, que se tenha como concepção uma língua “sutil e falha”,
como diz Jean-Claude Milner, em O amor da língua (1987) e, ainda, que se entenda que para
se chegar ao real da língua, “não se chega sem desvios”. A gramática, no entanto, têm
sonhado com a completude, com a homogeneidade e com a não-contradição.
O que é, então, essa incompletude, essa falta?
Numa releitura freudiana de estudos lingüísticos, Milner (1987) afirma que “a palavra
em si mesma não vai em todos os sentidos”, pois ela sempre irá chocar-se com a proposição:
“Tudo não se diz”. O que se entende por: “Tudo não se diz”? O autor traz à discussão os
diferentes sentidos de tal expressão, levando para dois postulados: uma proibição ou uma
evidência de impossibilidade, ou seja:
a) o que é incorreto não pode ser considerado; é, portanto, proibido; ou, somente se diz o
correto (sem o resíduo); e este é o papel da gramática quando busca incessantemente
abarcar o todo da língua pelo regular (os exemplos), reconhecendo o impossível
apenas pelo irregular (as exceções):
A gramática e a lingüística emitem proposições universalizantes
sobre a língua. Não que todas sejam universais no sentido usual;
não é difícil citar algumas que são particulares ou, mesmo,
singulares. Mas estas mesmas que enunciam alguma exceção
irredutível são reputadas a valer em toda ocasião regular; para todo
falante definido segundo critérios reconhecidos (MILNER, 1987, p.
45 – grifos nossos).
b) O que é impossível de dizer porque não se tem o todo; ou, a completude é impossível
de se atingir. Este é um outro real que também tem a ver com o lingüista: “sempre
faltam palavras para dizer alguma coisa, ou: existe o impossível a dizer” (IDEM, p.
44). Falar de língua é, assim, para o autor, colocar que tudo não se pode dizer, ou seja:
“o puro conceito de língua é aquele de um não-todo marcando a alíngua; ou a língua é
o que suporta a alíngua enquanto ela é não-toda” (IDEM, p. 19).
13
O termo alíngua vem da retomada que Milner faz de Lacan e indica o real da língua,
ou seja, a instância que marca uma incompletude: “retomemos o que Lacan em Télévision,
fez funcionar como ponto inicial em seu discurso: a verdade não se diz toda e isto porque
faltam palavras. A proposição que ele isola daí, por equivalência, é que a verdade, enquanto
não-toda, atinge o real”, diz Milner (IDEM, p. 19).
Assim, o que para a gramática é descartável porque quebra a completude da língua
pode ser, também, uma possibilidade de se vislumbrar que a língua é faltosa. Proibição e
impossibilidade não estão, no entanto, dissociadas. A essas duas leituras de “Tudo não se diz”
Milner define como um “nó embaraçado”: “aquilo que para o ser falante é lugar do
impossível, é também lugar de uma proibição” (IDEM, p. 44).
1.3.
Um modo singular de produzir equívoco
Quando estabelece diferenciações entre língua e linguagem e entre o que se diz ser as
línguas ou uma língua, Milner afirma que, por abstração, se se conferir às propriedades como
as de um ser autônomo, tem-se o que se chama linguagem. Por outro lado, se se diz “as
línguas” é porque há a possibilidade de elas terem certas propriedades que as definem,
formando como se tem afirmado, uma classe consistente em que “os elementos podem ser
pensados todos juntos sem contradição” (MILNER, 1987, p. 11).
Para o autor, no entanto, essa afirmação já estabelecida pode ser contrariada quando se
observa que a classe das línguas “pode ser dita inconsistente, uma vez que sempre um de seus
elementos é de tal ordem que ele não pode ser colocado sem revelar-se incomensurável a
todos os outros” (IDEM, p. 12).
Recorrendo a Saussure em Le périple structural, o autor diz que a lingüística não
estuda diretamente a faculdade da linguagem. Enquanto abstração, a linguagem somente pode
ser vista pela materialidade das línguas:
A linguagem concerne a Lingüística sob a forma de uma condição
de possibilidade material da língua e das línguas: Saussure fala da
‘faculdade de constituir uma língua’. Esta faculdade natural se
realiza nas formas observáveis que são as línguas (MILNER, 2002,
p. 24 – tradução nossa
2
).
2
As traduções do francês, neste trabalho, são nossas.
14
Milner insiste no conceito de língua relacionado ao não-idêntico. Se, para a ciência
decidir o que pertence ou não à língua passa pela identidade, por outro lado, essa identidade é
permeada pelas diferenças, (de sentido, de síntese, de ‘níveis de língua’, de divergência nos
julgamentos de gramaticalidade, etc.) que ele chama de “acidentes diversos”. Assim,
“identidade e diferença se embaralham” (MILNER, 1987, p. 12).
Nesse sentido revela-se a insegurança de se ter a língua como substância e, nesse
ponto, Milner recorre à asserção de Saussure de que “a língua é uma forma e não uma
substância” (CLG, p. 141) para afirmar que:
Aceitemos, então, que se nomeie a língua a este núcleo que, em
cada uma das línguas, suporta sua unicidade e sua distinção; ela não
poderá representar-se do lado da substância, indefinidamente
sobrecarregada de acidentes diversos, mas somente como uma
forma invariante através de suas atualizações, visto que ela é
definida em termos de relações (MILNER, 1987, p. 12 – grifo
nosso).
Voltemos, então, ao ponto de que ao lado da exigência de cientificidade e da
possibilidade de definição da identidade (unicidade) da língua, está, também, a possibilidade
de fazer valer a dimensão da não-identidade. É a isso que Milner chama de equívoco, revelado
através de diferentes formas lingüísticas, entre elas: a homofonia, a homossemia, a
homografia, o duplo sentido, as meias palavras. Identidade e diferença de uma forma passam
a ser, “ela mesma” e “uma outra”, numa relação de não-identidade de si mesma; ou, de outro
modo, a forma a segurança e, pela substância permeada de “acidentes” chega-se ao que a
língua é: não-idêntica a si mesma:
[...] uma locução trabalhada pelo equívoco é ao mesmo tempo ela
mesma e uma outra. Sua unicidade se refrata seguindo séries que
escapam ao desconto, visto que cada uma, apenas nomeada
significação, sonoridade, escrita, etimologia, sintaxe, trocadilho ... –
se refrata por sua vez indefinidamente: [...] a substância da língua
revelando, enfim, o que ela é: o não idêntico a si (MILNER, 1987,
p. 13).
O equívoco não poderia ser admitido sem que se distinguissem, mesmo por abstração,
os estratos (a divisão e a classificação gramatical: os grupos e frases, os tipos e ordens): “da
mesma forma que os paradoxos consistem apenas em confundir os tipos, o equívoco se
resolve em um fantasma nascido da conjunção indevida de vários estratos: ele explode em
15
univocidades combinadas (IDEM grifos nossos). Logo, aparece o equívoco na
univocidade.
Comentando a simetria jakobsoniana, Milner (2002) discute como a desordem aparece
num universo marcado pelo regular:
Portanto, nesse universo regularmente agenciado, a desordem
algumas vezes aparece: quando, na linguagem mesma, introduz-se
uma dissimetria à qual nenhuma regra pode adornar. É o instante
patético onde um poeta se cala. É evidente, então, que ninguém dirá
mais além do que já foi dito. Aqui, o lingüista reencontra o limite
de seu saber: a língua se mostra a ele de um ponto sobre o qual
ele não tem influência, porque é um ponto de falta irremediável.
[...] o real da língua faz irrupção pelo real de uma falta. (MILNER,
2002, p. 138-39 – grifos nossos).
Poderíamos demonstrar a irrupção do real pela seguinte proposição: o regular (o
simétrico) que, rompido, leva a uma falta (o real da língua). E esse espaço de falta, de não-
sentido, é a alíngua. o equívoco é produzido por uma articulação simbólica, pelo
aparecimento do real no simbólico.
Segundo Milner, para que uma língua seja percebida ‘claramente’ ela teria que ser
concebida na “isotopia absoluta”. Tal é o desejo das gramáticas e dicionários, quando negam
a insistência desse real: uma ngua isotópica, sempre com a mesma fisionomia, seja de qual
lado se olhe:
Uma língua, como objeto possível de uma proposição validável por
todos, e mais ainda da menor escrita científica, reclama ser sempre
distinguível do que não é uma língua, sempre distinguível de uma
outra língua, sempre idêntica a ela mesma, sempre inscritível na
esfera da univocidade e sempre isotópica. Em uma palavra, ela deve
ser Uma (MILNER, 1987, p. 14).
De fato, essa noção de ngua Uma, completa, faz-se necessário à gramática, como
condição até de existência, uma vez que busca proposições universalizáveis. Milner mostra,
no entanto, que mesmo os dados mais simples não confirmam essa univocidade: “sempre na
série de lugares homogêneos levantam-se algumas singularidades”. É a ngua consagrada ao
equívoco pela alíngua, que desestratifica os estratos gramaticais e as descrições lingüísticas e
que confunde as sistematicidades entre som/sentido, menção/uso, escrita/representado. Desse
modo, a língua seria sempre lugar do equívoco, do singular, do heterogêneo:
16
Um modo singular de produzir equívoco, eis o que é uma língua
entre outras. Assim, ela se torna coleção de lugares, todos
singulares e todos heterogêneos: de qualquer lado que se a
considere, ela é outra para ela mesma, incessantemente heterotópica
(IDEM, p. 15 – grifos nossos).
Em contrapartida, o desejo de busca do universalizável, nas regras da gramática e nas
definições dos dicionários, seria o que Milner (IDEM, p. 15) define como um
‘pavoneamento’, uma ‘caricatura’, uma ‘máscara arbitrariamente construída’, pouco
importando que “a linguagem seja apenas deriva, pois somente a língua conta a seus olhos”,
língua, como objeto da lingüística, completo e uno.
Assim, de acordo com Milner, dizer que a língua é faltosa seria, em parte, reconhecer
que nela:
- há o regular, mas também o irregular;
- há o repetível que faz rede, mas também o singular;
- há o representável, mas também o impossível de se representar, ou seja, o equívoco;
- há o correto (para a lingüística e a gramática), mas também o incorreto;
- há o homogêneo, mas também o heterogêneo;
- há a estratificação, que pode ser desestratificada; e, enfim, que
- há a analogia, que não descarta a anomalia.
No entanto, visto desse modo, pode parecer que é através das primeiras proposições (o
regular, o repetível, etc.) que surgem, aleatoriamente, as segundas (o irregular, o singular,
etc.) como se existissem apenas diferenças, marcadas por uma dicotomia. Um estudo poderia
ser aqui referenciado para mostrar que, em verdade, uma tensão marcando constantemente
essa relação. É o que Felipeto (2003, p. 60), recorrendo a Willemart (1993) afirma: “há
sentido para além do insólito” e, ainda, “há uma ordem subjacente às irregularidades” que
fazem com que esse movimento de linguagem não seja aleatório.
Podemos recorrer, para exemplificar essa ordem subjacente ao irregular, a um dado
analisado no item 7.3, em que o aluno, para escrever em seu texto o termo “preto”, registra
duas formas: “pØeto” e “pentro”. A primeira, um erro ortográfico classificado nos estudos
como “omissão de letra” (NUNES & BRYANT, 2000): no caso, a vibrante sonora /r/,
justificada pela complexidade da sílaba inicial “pre”, constituída por CCV. A segunda, um
erro mais estranho em que se pode ver tanto a mesma omissão da vibrante, como o
17
“acréscimo” do /n/ no final da laba inicial e do /r/ no meio da final; no entanto, na própria
estranheza do erro, perpassa possibilidades da língua, inscrita numa relação de semelhança
com as regularidades nas quais se admite tanto sílabas iniciadas por CVC, como em canto”,
gente” e “pinto”, como as terminadas por CCV, como em “quatro” e “dentro”.
Essas estruturas estranhas, mas possíveis na língua, estão relacionadas ao que
Jakobson (1988, p. 61), a partir de Saussure, chama de “estrutura bipolar” da linguagem: os
eixos metafóricos (da similaridade) e metonímicos (da contigüidade). O autor afirma que a
predominância de um desses eixos quando postos em relação: “A competição entre os dois
procedimentos, metonímico e metafórico, se torna manifesta em todo processo simbólico,
quer seja subjetivo, quer social”.
Explicando as mudanças do pensamento de Jakobson sobre a relação entre os eixos
metafóricos e metonímicos da linguagem, Landi (1997, p. 101) afirma que: “Admitir que a
relação é de predominância significa assumir que, embora possa haver o predomínio de um
dos eixos, ambos atuam ao mesmo tempo, quer dizer, um não funciona sem o outro”. Quando
essas estruturas estranhas emergem provocam uma ruptura sintática na cadeia manifesta,
mostrando mais do que um “predomínio” ou “competição”, uma tensão entre eles.
1.4.
Saussure revisitado
Qual a contribuição dos fundamentos construídos por Saussure nas reflexões sobre o
erro? O que muda o nosso olhar para os dados de um estudo sobre a singularidade do erro
ortográfico?
Numa tentativa de respostas a essas questões, procuramos levantar alguns pontos para
reflexão sobre a teoria do valor saussuriana, partindo das idéias registradas no Curso de
Lingüística Geral (doravante CLG), para nos determos nas releituras de Normand, em La
quadrature du sens (1990) e em Saussure (2000); nas de Benveniste, em Saussure após meio
século (1988); e nas de Milner, em Le périple structural: figures et paradigme (2002). Com
isso, procuraremos, na medida do possível, evitar tomar o pensamento de Saussure apenas
como “fonte de pesquisa”, expressão utilizada por Salum
3
(Prefácio do CLG, p. XVI) numa
3
Isaac Nicolau Salum, no Prefácio à edição brasileira, do Curso de Lingüística Geral (1989).
18
crítica a estudantes, mas entender esse pensamento como “uma questão teórica que desarticula
uma certeza sobre a língua”.
Buscamos, assim, uma explicação para o erro ortográfico por uma concepção de
‘unidade’ (fato de gramática) que se constitui pela relação com os outros elementos do
sistema, pela diferença e pela oposição, levando-se em conta o movimento entre as formas
significantes e o sujeito inscrito no funcionamento da língua.
A base da noção de valor do signo lingüístico é apresentada por Saussure no IV Cap.
do Curso de Lingüística Geral quando tenta delinear o sistema lingüístico como constituído
de “valores puros” e que funciona a partir de dois elementos: idéias e sons, que não podem ser
preestabelecidos.
A idéia de valor retira, então, a ilusão de uma união som/conceito. Se fosse assim, o
sistema era apenas uma soma de termos. Mas não: deve-se partir da “totalidade solidária para
obter, por análise, os elementos que encerra” (CLG, p. 132).
Para Saussure, representar uma idéia é considerar apenas um dos aspectos do “valor
lingüístico”. A partir daí, ele interroga se valor e significação seriam a mesma coisa. O
esclarecimento dessa questão torna-se imprescindível para o que ele quer demonstrar quando
diz que as palavras estão revestidas “não de uma significação como também, e sobretudo,
de um valor, e isso é coisa muito diferente” (CLG, p. 134).
Se para Saussure, o sistema de valores da língua é constituído de termos solidários e o
“valor de um resulta tão-somente da presença simultânea de outros” (CLG, p. 133),
significado e significante são diferentes, mas não opostos. O valor parece então estar regido,
segundo o autor, por um “princípio paradoxal” constituído de oposições (uma coisa
dessemelhante que pode ser trocada por outra diferente, mas de determinado valor – a
significação) e de igualdades (coisa semelhante que se pode comparar com aquela cujo valor
está em causa – o valor).
O exemplo citado esclarece o princípio: uma moeda tanto pode ser trocada por um
pão, como pode ser comparada com outras do mesmo sistema ou com outra de outro sistema.
Na língua, entretanto, pode haver palavras diferentes com a mesma significação em outras
línguas, mas não com o mesmo valor, como é o caso de “carneiro”: em inglês, sheep, e em
francês, mouton.
Esse raciocínio leva à conclusão de que na língua, em lugar de “idéias dadas de
antemão” somente existem “valores que emanam do sistema” e que são definidos
“negativamente por suas relações com os outros termos do sistema (CLG, p. 136). São o que
os outros não são; ou seja, um “fragmento de língua” somente pode basear-se no que não é
19
coincidente, no diferencial, no arbitrário, no diferente. O seu valor implica a relação com os
outros.
Quando tomados separadamente, significado e significante são negativos, mas “desde
que consideremos o signo em sua totalidade, achamo-nos perante uma coisa positiva em sua
ordem” (CLG, p. 139). A combinação é, pois, um fato positivo e entre dois signos existe
apenas oposição.
1.4.1. por Normand: um “corte epistemológico”
a) A questão do sentido
Uma primeira questão levantada por Normand, no texto de 1990, é a seguinte: Qual o
papel atribuído por Saussure ao estudo do sentido? Ou, a teoria saussureana apresenta um
fechamento ou uma abertura à teoria da significação? Para essa reflexão ela analisa duas
diferentes interpretações do texto saussureano: a primeira, aquela que afirma que Saussure
somente pôde fundar a Lingüística porque não se preocupou com o sentido e que somente
pôde definir-lhe o objeto porque retirou-lhe “toda aderência semântica”, ou seja, purificou o
objeto para construir uma teoria “rigorosa e científica”. E, outra, aquela que afirma que
Saussure somente conseguiu fundar uma “lingüística nova” quando se decidiu a “olhar a
linguagem do ponto de vista do sentido”.
A discussão que Normand faz desses dois comentários traz uma reflexão considerada
por nós fundamental para a análise do “erro” que pretendemos fazer: a de que sempre algo
(nos dados de língua) que escapa a uma análise rigorosa, e que uma análise lingüística precisa
também considerar aquilo que comumente é deixado de lado, ou aquilo que Milner (1987)
chamou de “espaço da falta”, de uma língua “sutil e falha”.
Partindo do contraponto apresentado acima, a autora tenta levantar as diferenças entre
a semântica do programa saussureano e a semântica até então proposta por seus
contemporâneos, afirmando que mostrar essa diferença é fundamental: “para a lingüística,
porque se trata de saber de que houve exclusão, na definição saussuriana de língua; para a
20
semântica
4
, pois se trata de saber qual é seu objeto e se ele é interior ou exterior a uma
lingüística que se pretende científica” (NORMAND, 1990, p. 32).
Segundo a autora, nos estudos lingüísticos do final do séc. XIX havia uma busca de
generalidades, através da coleta dos resultados de descrições de fatos da linguagem para a
construção de uma teoria geral das mudanças de significação que ultrapassaria essa descrição
pela determinação de leis, causas e condições das transformações. que essa preocupação
com o sentido, dá-se de forma invertida na proposta saussuriana que buscava não mais reunir
e interpretar uma descrição, mas uma “outra ordem” dos fatos da ngua por um processo
teórico e metodológico novo, explicitado pela autora no final do texto, quando comenta a
generalidade de princípios apresentada no CLG:
... a generalidade que ele propõe não é aquela à qual visavam as
tentativas precedentes, uma síntese de resultados, uma
generalização sob a forma de “leis” ou de “tendências” obtidas por
indução, a partir das observações da gramática comparada. Essa
lingüística geral não podia ser senão um programa, cujo
acabamento sonhado em ciência da linguagem dependia de um
recenseamento concreto exaustivo (todos os fatos de todas as
línguas) (IDEM, p. 38 – grifo nosso).
E ainda que:
Com Saussure, a perspectiva é invertida; a generalidade é um dos
princípios e é nesse sentido que o CLG é uma epistemologia em
que se acha claramente colocada a necessidade de hipóteses (apesar
do temor que o termo abstração continua a inspirar). Ele enuncia os
princípios de descrição de toda língua; cada noção teórica possui
sua conseqüência metodológica e o conjunto induz um processo
radicalmente novo, que serviu de referência a uma parte importante
da lingüística estrutural (IDEM, p. 38 – grifo nosso).
Observa-se, assim, em Saussure, uma epistemologia que sai da “coleção empírica”
para a síntese dos resultados, dos fatos às leis, da generalidade de um programa para a
generalidade de princípios.
No impasse entre o aspecto psicológico e o social dos fatos da ngua considerados até
então, Saussure propõe, segundo a autora, a definição de um ponto de vista “propriamente”
lingüístico (o semiológico) para o estudo dos dados da língua (e o mais da linguagem) e a
definição do objeto e do método da lingüística. No entanto, longe de desprezar o que já se tem
4
Para Normand, o que é designado como semântica é diferente do “estudo empírico das mudanças de
significação das palavras” associada à etimologia e à filologia.
21
construído, ele constrói uma proposição nova, tomando o caráter social como característica
interna à língua: “[...] ele faz do social um ‘caráter interno’: a língua é um sistema
inteiramente histórico e social, e é por isso que ela escapa à lógica (nada dela depende da
razão), tanto quanto à psicologia (a vontade, a liberdade e as particularidades do locutor não
têm efeito sobre o sistema)” (IDEM, p. 34).
Sob essa ótica, o sistema da língua é definido, colocando as oposições de língua/fala,
invariantes/variação, sincronia/diacronia e psico-social/lingüístico. É, também, a partir desse
ponto de que o social é intrínseco à língua, que a discussão de Normand apresenta o caráter
de ligação indissolúvel entre significado/significante e entre forma/sentido, mostrando que
Saussure não separou a lingüística da semântica, apenas não considerou as duas
separadamente. Os argumentos apresentados pela autora envolvem discussões sobre o
arbitrário do signo e o sistema de valores.
O conceito de arbitrariedade do signo é tido pela autora como o principal ponto para
a definição do sistema lingüístico, como a novidade do programa saussureano para a
formulação do princípio semiológico. Saussure retira a idéia de representação (que leva em
conta a relação do signo com o referente) como também o sujeito falante (as representações
particulares e intenções de significar) para instalar uma “ordem lingüística” onde forma e
sentido são “absolutamente inseparáveis”. Para chegar a essa afirmação, a autora compara as
seguintes hipóteses:
da sincronia – que explica que o locutor fala enquanto ignora a história da língua;
da língua – que explica que ele produz falas e compreende a dos outros; e
da ligação forma-sentido – que explica que ele não pode distinguir as unidades formais
de uma língua que não compreende.
Mas quando ela fala de “unidades formais” não quer dizer que elas devam ser
consideradas fora de um sistema de relações:
Mas a própria definição do signo é inseparável da definição de
língua como ‘sistema de signos’. Nesse ponto, o texto é bem claro:
um signo lingüístico não tem existência a não ser em suas relações
com os signos do sistema; é preciso partir do todo para extrair as
unidades, e não o inverso. Por isso, a lingüística é liberada de todo
processo ‘atomista’, por exemplo aquele que isola as palavras para
fazer a sua história (IDEM, p. 06).
22
Retomando a fala de Saussure sobre a “ordem própria” da língua, ela conclui:
Assim, torna-se precisa a afirmação segundo a qual o caráter social
é interno à língua; social e arbitrário são dois traços
interdependentes de todo sistema lingüístico; eles definem a sua
própria natureza, o que Saussure retoma sob um terceiro termo: ‘a
língua é um sistema de valores puros’. (IDEM, 1990, p. 06
grifo nosso).
Numa discussão sobre o sistema de valores apresentado no CLG, a autora enfatiza o
modo particular pelo qual é explicada a existência dos signos lingüísticos, quando se substitui
‘unidade lingüística’ por ‘valor’: “Um signo possui existência lingüística, valor, em suas
relações com os outros elementos do sistema” (IDEM p. 07). É semelhante a qualquer
elemento de um jogo (no caso, o de xadrez). Isso mostra como a proposta saussuriana
apresenta uma ordem lingüística “puramente relacional” e que difere de um sistema
“puramente formal”: “[...] além do fato de que as convenções de partida não dependem de
ninguém, mas de uma história própria que nos escapa, a língua é por definição significante; o
locutor não separa o jogo das formas e a significação [...]” (IDEM, p. 07). Um exemplo citado
pela autora para mostrar que uma diferença formal simples está ligada a uma diferença de
sentido, em uma determinada combinação: dog/dogs (no caso, uma alternância fônica
exprimindo uma relação gramatical de singular/plural).
Uma outra ordem de relação é exemplificada com a formação do neologismo
‘repressionário’, a partir de ‘reação/reacionário’ quando ela explica que ele está ao mesmo
tempo “de acordo com a língua e imediatamente significante”. Essa relação, que implica
qualquer tipo de unidade lexical ou fato gramatical, mostra como o funcionamento lingüístico
passa por relações formais de substituição e de combinação (reação, reacionário, repressão,
repressionário), num jogo de “formas significantes” que é preciso descrever:
Uma diferença formal possui um valor lingüístico à medida que
está ligada a uma diferença de sentido; o mecanismo lingüístico faz
os dois jogarem ao mesmo tempo. Por essa razão, Saussure disse da
língua que ela é ‘uma forma’, ou seja, não a encarnação de
conceitos preexistentes em formas materiais, mas jogo de relações.
Quer se trate do fato gramatical ‘Nacht/Nächte’, da diferenciação
lexical ‘chaise/chaire’ ou do deslizamento de ‘décrépi’ (oriundo de
‘crispus’) a ‘décrépit’ (oriundo de decrepitus). (IDEM, p. 07).
5
5
“Nacht/Nächte” – formas variantes do termo “noite”, em alemão;
“chaise/chaire” – formas para “cadeira” e “púlpito”, em francês;
“décrépi/décrépit” formas para “descascado”, “sem reboco”, e “decrépito”, “caduco”, “desgastado
físicamente”, em francês.
23
Vê-se, pelos exemplos citados, a diversidade desse jogo de relações que podem estar
ligados tanto à gramática, ao léxico ou a um deslizamento de sentido (uma marca de
singular/plural, uma mesma pronúncia para termos com sentidos diferentes ou com origens
diferentes) que somente significam nas suas relações com os outros elementos do sistema.
No entanto, a autora questiona se esse conjunto indefinido de associações seria
analisável pelo método proposto por Saussure, sem deixar um “resto”, e nos mostra que nem
todos os dados podem ser encaixados numa “constelação”. Ela afirma que “[...] Saussure faz o
‘eixo associativo’ desempenhar um papel muito maior; as associações que podem ser ligadas
a uma palavra qualquer são bem diversas e constituem um conjunto de ‘formas’ em número
indefinido, que ‘flutuam em torno’ dele” (IDEM, p. 11). Assim:
de enseignement
pode vir: changement, jugement (que podem ocupar o mesmo lugar numa frase)
pode vir: clément, justement (que podem ser associados de acordo com variações
pessoais ou da língua)
E assim por diante, muitos outros termos poderiam associar-se, uma vez que são
“igualmente heterogêneos”; quer dizer, há algo na forma significante que os identificam e que
os tornam analisáveis.
A autora acrescenta um outro exemplo possível de ser inserido nesse jogo: châtiment
ou en s’aimant, mas que o seu sistema de associações não está ligado à gramática. É a esse
tipo de dado que ela chama de “resto”:
Compreender-se-á que esse resto, eminentemente variável e aliás
indefinido, escapa a uma análise rigorosa. Porém, que esse resto
existe e intervém em graus diversos na significação da palavra que
está sendo empregada [...]
[...] o que o exemplo sugere é que não pode haver domínio
completo e formalizado do sentido, ou, dito de outra forma, análise
lingüística sem resto (IDEM, p. 11,12 - grifos nossos).
Assim, a significação sugerida por Saussure não é aquela que liga o signo com o
referente, indicada na concepção clássica de representação, mas sim, segundo a autora, a
significação “como produção de sentido”, num jogo de associações do qual a análise
lingüística pode captar a parte que diz respeito ao funcionamento do sistema.
24
no texto de 2000, Normand questiona sobre quais noções estabilizaram a reputação
de Saussure como fundador da lingüística, esclarecendo que a obra suscitou interesses e
críticas e constituiu-se numa bandeira “suscetível de ser agitada pela tradição universitária”,
que tinha como base a gramática comparada. Na verdade, para essa tradição houve mesmo,
segundo a autora, um “corte epistemológico”, uma vez que a reflexão saussureana trouxe
implicações políticas nos debates da época; no entanto, ela conclui: “Nós pensamos com
razão, eu continuo a crer que Saussure revolucionou a lingüística; quanto a revolucionar o
mundo, ele pôde apenas seguir o movimento” (IDEM, p. 10-1).
Levando em conta o desenvolvimento das ciências da linguagem, Normand critica a
posição da maior parte dos lingüistas hoje quando consideram o movimento saussureano
“datado e desde então prescrito, qualquer que tenha sido o seu alcance histórico”. Essa
observação que a autora faz sobre os lingüistas, compara-se à de Salum (citado por nós na
introdução deste item) aos estudantes, quando ela diz que: “Um lingüista prático pode muito
bem deixar de conhecê-lo se se ater apenas pelo que se ouve dizer ou por vagas lembranças; o
que, aliás, é o caso geral” (IDEM, p. 12).
Em verdade, a autora chama a atenção para a importância da reflexão saussureana para
os estudos sobre a língua, quando diz que na obra: “[...] existe um texto de idéias, de reflexões
absolutamente originais sobre a linguagem, a especificidade do objeto língua, as armadilhas
da evidência e da trivialidade nas ciências humanas, e como tal sua leitura resta estimulante,
mesmo para os lingüistas!” (IDEM, p. 12). E acrescenta que somente se pode julgar o alcance
de um texto pelo que ele suporta, pelo que ele traz nele mesmo e não por referência a um
autor solitário e sacralizado: fazer retorno ao “autor” (e não à pessoa) e ao sentido do que ele
quis comunicar.
Isso não quer dizer, no entanto, que as pesquisas anteriores devam ser desprezadas.
Para a autora a coexistência entre os trabalhos filológicos (saussurologia) e um trabalho de
difusão e reflexão renovadas sobre Saussure não parece impossível, como testemunha certos
encontros e trabalhos recentes”, e cita como exemplo os estudos de Benveniste que usou com
liberdade tanto a herança histórica como os fundamentos sobre a ciência da linguagem
trazidos por Saussure.
25
1.4.2. por Benveniste: uma importância aos fundamentos
Dois pontos são levantados por Benveniste (1995) como sendo o centro da doutrina
saussureana” que define o campo no qual a língua pode estar situada:
os dados de base da lingüística e
a natureza das noções da linguagem e o tipo de relação que as articulam.
Comentando a preocupação de Saussure com os “fundamentos” para os fatos de língua
e de gramática, esse autor destaca o que para Saussure seria uma determinação necessária,
uma questão que os estudos não podem descartar, e que é revelada pelas próprias palavras do
genebrino:
[...] atacar essas questões não é uma temeridade [...] mas uma
necessidade; é a primeira escola por onde se tem de passar; pois se
trata aqui não de especulações de uma ordem transcendente, mas da
pesquisa de dados elementares, sem os quais tudo flutua, tudo é
arbitrariedade e incerteza (SAUSSURE, apud BENVENISTE,
1995, p. 36).
Atendo-se, pois, aos princípios
6
que constituem a obra de Saussure, Benveniste
destaca os seguintes pontos:
a) A História somente é explicada pelos dados não pode haver o histórico sem se
considerar que a ngua/linguagem é anterior e constitui o homem (sujeito). A
chamada “evolução” do dado é desprezada quando ele questiona se se pode dizer que
é o mesmo dado, ao se observar os vários “estágios” dessa “evolução”.
b) Ir aos fundamentos é o meio mais seguro de explicar o fato concreto o ponto de
vista anteriormente determinado vai situar o elemento numa rede de relações:
Para atingir o concreto histórico, para substituir o contingente na
sua própria necessidade devemos situar cada elemento na rede de
relações que a determina, e estabelecer explicitamente que o fato
6
Benveniste nomeia esses princípios como: “caracteres primordiais”, “certas propriedades” e como “algo de
diferente” dos outros fatores associados à língua, ou seja, os biológicos, físicos, psíquicos, entre outros
(Benveniste, 1995, p. 35).
26
existe em virtude da definição que lhe damos (BENVENISTE,
1995, p. 37).
c) A substância fônica não pode ser considerada as “unidades” da língua são
consideradas por Saussure não como um “som ou articulação”, mas como uma
unidade algébrica, um termo do sistema, uma entidade (distintiva e opositiva).
d) Saussure viveu um drama de pensamento para inaugurar uma “nova fase” da
gramática comparada e assegurar os fundamentos da teoria lingüística, Saussure
rejeitava tudo o que se ensinava a respeito da linguagem até então; enfrentou a teoria
da época e muitas dificuldades diante do “senso comum” em matéria de fatos de
linguagem; e teve, principalmente, como preocupações: a classificação lógica dos
fatos; e a imensidão do trabalho que seria necessário para dizer ao lingüista ‘o que ele
faz’, ou seja, reduzir operações a categorias previstas;
e) Aos termos, em lingüística, não podem ser atribuídos sentidos, anteriormente o
fato da língua deve ser estudado como uma realidade objetiva determinada pelo ponto
de vista: “Deixemos de acreditar que se apreende na língua um objeto simples, que
existe por si mesmo, e é suscetível de uma apreensão total” (IDEM, p. 41).
f) A linguagem é um objeto duplo formado de duas partes que somente existem pela
diferença da outra tudo traz a marca e o selo da dualidade opositiva, da unidade de
face dupla que, para Benveniste, é o “centro”, o “princípio novo” da doutrina
saussureana, ou seja, cada termo somente adquire o seu valor pelo fato de que se opõe
ao outro. A própria linguagem impõe um modelo de dualidade.
1.4.3. por Milner: um arbitrário caracterizado pela ausência
A releitura de Milner (2002) dos estudos de Saussure permite-nos compreender mais
profundamente o “corte epistemológico” de que fala Normand (2000). Em Le périple
structural, Milner comenta as noções de Saussure que, seguramente, revolucionaram os
estudos lingüísticos após a gramática comparada.
27
Diante da afirmação saussureana de que a língua tem que ser observável e de que ela é
o objeto da lingüística, Milner (2002, p. 18-9) afirma que “Saussure devia converter esse
cuidado quase retórico em um cuidado mais radical: não somente expor claramente os
princípios e os dados de uma ciência, mas fundá-la em razão e em conceitos”.
Sobre a decisão de Saussure em deter-se, não na classificação dos signos de uma
maneira geral, mas, especificamente do signo lingüístico que o leva à construção do conceito
de língua como um sistema, Milner comenta:
O que é um elemento lingüístico? Eis porque não tipologia dos
signos. Eis porque Saussure fala sistematicamente não do signo em
geral, mas do signo lingüístico, eis porque ele apresenta como
definição, o que não é propriamente uma definição mas
principalmente uma descrição, ou senão uma convenção
terminológica: [...] ‘nós chamamos signo a combinação do conceito
e de uma imagem acústica’ (CLG I, 1§1), etc. Em verdade, todo o
caminho deriva do axioma ‘a língua é um sistema de signos’ (ou, ‘o
elemento lingüístico é um signo’) (IDEM, p. 25).
A noção de signo em Saussure é totalmente modificada do que se acreditava ser o
signo do ponto de vista da representação. O termo agora, segundo Milner, é o da associação:
Esta relação é assimétrica: A representa B não implica que B
represente A. Ora, é de se observar que Saussure fala justamente de
representação. O termo decisivo na doutrina é o da associação;
ora, a relação de associação é recíproca: A é associado à B
implica que B é associado a A. O significante não representa o
significado; ele lhe é associado e, ao mesmo tempo, o significado
por sua vez é associado ao significante.” (IDEM, p. 27 – grifo
nosso).
O exemplo dado por Milner, numa releitura da metáfora da língua como uma folha de
papel, esclarece essa relação de associação. Há, em verdade, o verso e o reverso, intrincados.
Mas, se uma figura for desenhada num desses lados, pode-se manter a relação com o outro?
Eis o comentário do autor:
Mas, em Saussure, a situação é bem outra: não se parte de
duas entidades separadas; há, no primeiro momento, uma única
entidade: o signo; apenas no segundo momento o signo se divide,
por análise, em duas ‘faces’. O próprio Saussure propõe uma
analogia: ‘a língua é [...] comparável a uma folha de papel: o
pensamento é o reverso e o som é o verso’ (CLG, II, 4, § 1). Ora,
levemos esta afirmativa a sério, supondo que se desenhe uma figura
28
no verso; está claro que esta não mantém nenhuma ‘relação’ com
a figura que se desenharia eventualmente no reverso. Pode-se
considerar que é justamente esta ausência de toda relação que
resume a palavra arbitrário.
Não é preciso então confundir o arbitrário que caracteriza um certo
tipo de relação e o arbitrário que caracteriza a ausência de toda
relação (IDEM, p. 31 – grifo nosso).
Está o segundo arbitrário de que fala Milner (IDEM, p. 32), um arbitrário que o é
constituído apenas pela ausência de uma analogia, como na representação, mas pela
negatividade: “O segundo arbitrário, ao contrário, é estritamente negativo; é bem disso que
fala Saussure. É de se observar que ele somente encontra recursos e termos negativos para
definir, como por exemplo, ‘imotivado’”.
Um outro esclarecimento de Milner diz respeito à comparação que Saussure faz da
união pensamento/som. Saussure diz: “Imaginemos o ar em contato com uma capa de água: se
muda a pressão atmosférica, a superfície da água se decompõe numa série de divisões, vale
dizer, de vagas; são estas ondulações que darão uma idéia de união e, por assim dizer, do
acoplamento do pensamento com a matéria fônica” (CLG, 1998, p. 131). Para Milner, a
metáfora da onda não conta da idéia de um único movimento que Saussure quis mostrar.
Nela, “só a superfície da água é dividida, continuando o vento a ser um fluxo de ar indivisível.
Ao contrário, o encontro saussureano induz a uma divisão simultânea dos dois fluxos”
(IDEM, nota 17, p. 42), podendo-se concluir, então, que Milner quer mostrar, é que a entidade
lingüística, de acordo com Saussure, somente existe pelas diferenças:
[...] cada signo pode ser visto como o encontro particular de tal
pensamento e de tal som, mas em verdade este pensamento e este
som particular não preexistem ao próprio reencontro; ora, este
encontro diz respeito a um movimento, o fluxo geral do
pensamento e o fluxo geral dos sons; ela determina aqui de maneira
solidária todas as divisões. Um dado signo existe pelos outros
signos. Mas exatamente, um dado signo não existe pelo que
permite aos outros signos existir (MILNER, 2002, p. 33 grifo
nosso).
Acrescenta, ainda, Milner:
O significante e o significado de um dado signo só se mantém
juntos onde o signo é tomado. Este signo só tem propriedades pelas
relações de diferenças que mantém seus significantes com todos
os outros significantes da língua e seu significado, com todos os
outros significados da língua. A relação de associação interna a um
29
dado signo requer a relação ou, sobretudo, as relações dos signos
entre si. Ou seja, a relação do signo com ele mesmo é da mesma
natureza que a relação dos signos com outros signos. O interno é
atravessado pelo externo (IDEM, p. 35 – grifo nosso).
Além da insistência em mostrar que as propriedades do signo lingüístico somente
existem pelas relações de diferença dos seus significantes com os outros, o que queremos
destacar do estudo de Milner (IDEM, p. 26) é a referência à língua como um sistema sempre
incompleto, constituído, ao mesmo tempo, por um tipo de relação e pela ausência de toda
relação, a “não-relação”: “apesar de a palavra poder designar uma coisa, enquanto que (ao
mesmo tempo) precisamente isso lhe falta”.
1.5.
Uma epistemologia saussureana
Nas discussões sobre o estatuto das ciências humanas, dois estudos atuais e integrados
tratam, através de análises do CLG e dos manuscritos, da tentativa de Saussure em definir o
estatuto científico da lingüística: o de Milner (1989) e o de Bouquet (1997). Quando nos
referimos à integração dos dois estudos, tomamos as palavras desse último autor quando
afirma
7
que a base para o seu estudo dos manuscritos de Saussure es nas reflexões
epistemológicas do primeiro na Introduction à une science du langage.
Essas reflexões são tomadas para discussão a partir de questões como as seguintes: O
que define as chamadas ciências humanas como ciência? E, qual o parâmetro para a
lingüística ser considerada uma ciência?
8
7
Estamos-nos referindo à entrevista de Simon Bouquet ao jornal “Le Nouveau Quotidien”, Genebra, 1977.
8
Dicionário de Filosofia (Nicola Abbagnano) Ciência: (136 a 140): “[...] Conhecimento que inclua, em qualquer
forma ou medida, uma garantia da própria validade.” A limitação expressa pelas palavras “em qualquer forma ou
medida” é aqui incluída para tornar a definição aplicável à Ciência Moderna, que não tem pretensões de
absoluto.[...] As diferentes concepções de C. podem ser distinguidas conforme a garantia de validade que se lhes
atribui. Essa garantia pode consistir: na demonstração; na descrição; na corrigibilidade. [Irei indicar
somente a garantia de validade na corrigibilidade, pois me parece que sobre este conceito de C. que parte Milner]
[...] (p. 139) é a que reconhece como garantia única da validade da C., a sua autocorrigibilidade. [...] isto é
significativo seja por partir da desistência de qualquer pretensão à garantia absoluta, seja por abrir novas
perspectivas ao estudo analítico dos instrumentos de pesquisa de que as C. dispõem. [...]. Mas é preciso notar
que a dúvida e a correção são compatíveis com os cânones do método científico, de tal modo que a correção é o
seu elo de continuidade.” (Studies in Philosophy and Science, 1949, p. 50) […] K. Popper afirmara, em Lógica
da descoberta científica (1935), que o instrumental da C. não está voltado para a verificação, mas para a
falsificação das proposições científicas. “Nosso método de pesquisa”, dizia ele, “não visa defender as nossas
30
Para as ciências humanas serem consideradas ciência, segundo os autores, elas
deverão satisfazer critérios epistemológicos gerais. Sem isso, o termo ciência não estaria
adequado à proposta do que se deseja ter como ciência dita “humana”. E mais, se um “campo
de pensamento sobre o homem” o satisfizer a determinados critérios, ele será considerado
apenas como complementar do “conhecimento positivo das ciências humanas” (BOUQUET,
1977).
Em Introdução à leitura de Saussure, Bouquet (1997) expõe os princípios do projeto
epistemológico saussureano de inclusão de um caráter “galileano” às pesquisas lingüísticas,
que ficaram ausentes no CLG.
Uma explicação dada pelo autor para a proposição saussureana “A língua é um
sistema de signos” nos ajudará a entendê-la quando ele a situa entre três pontos de vista:
1º) a epistemologia de uma ciência comprovada;
2ª) uma metafísica da linguagem; e
3ª) uma projeção epistemológica, sustentada de um ponto de vista metafísico
(epistemologia programática).
O conceito de língua é legitimado pelos resultados de uma ciência galileana e, ao
conceito de signo é atribuído um conteúdo epistemológico a posteriori pela prática
comparatista. Quanto ao valor epistemológico do termo sistema ele explica que
sistema pertencia, na época, ao vocabulário das ciências e, portanto,
ao da filosofia das ciências; é um conceito-chave principalmente em
física, particularmente em mecânica e astronomia. Sistema é
também empregado com freqüência em muitas outras disciplinas
científicas, entre as quais a própria gramática comparada
(BOUQUET, 1997, p. 141).
É sobre essa base epistemológica, diz Bouquet, que se pode “construir uma relação de
complementaridade entre um saber positivo e um saber não-positivo”. É sobre essa base
explícita que pode ser “criticada, depois reformada, a tradição metafísica do signo”. É sobre o
antecipações para provar que temos razão, mas, ao contrário, visa destruí-las. [...] Afirmar que os instrumentos
de que a C. dispõe se destinam a demonstrar a falsidade da C. é um outro modo de exprimir o conceito da auto-
corrigibilidade da C: provar a falsidade de uma asserção significa, de fato, substitui-la por outra asserção, cuja
falsidade ainda não foi provada, corrigindo portanto a primeira. A noção da auto-corrigibilidade sem dúvida
constitui a garantia menos dogmática que a C. pode exigir da sua própria validade. Permite uma análise menos
preconceituosa dos instrumentos de verificação e controle de que cada C. dispõe.”
31
duplo fundamento dessa epistemologia e dessa metafísica que se desenvolve a epistemologia
programática saussureana da lingüística.
Quanto à teoria sintagmática do valor, Bouquet afirma queo é pelo fato de Saussure
não ter elaborado uma noção de fala ou discurso que ele tenha deixado de colocar conceitos
epistemológicos para teorias da competência sintática, da pragmática lingüística ou da análise
do discurso. Para o autor, o conceito saussureano de “valor in praesentia” delineia o programa
dessas lingüísticas.
Os critérios epistemológicos de que fala Bouquet são demonstrados por Milner (l989)
na suposição de existência de um “programa geral” para a construção de uma ciência da
linguagem. Para legitimar essa construção é preciso, segundo o autor, detalhar e iluminar as
proposições. Ao que ele parte das seguintes:
A lingüística deseja ser uma ciência.
Fora isto, ela não passa de práticas re-agrupadas sob o nome de gramática
9
.
Mas, falar em ciência supõe a vinculação à epistemologia de um conteúdo, e a
definição de que epistemologia é esta (MILNER, 1989, p. 9).
No entanto, se o que se é tido como ciência neste século está relacionado a um estatuto
empírico, ele diz que: “Se a ciência da linguagem existe, ela é uma ciência empírica” (IDEM,
p. 7), tendo como ciência: uma configuração discursiva que tem adquirido forma com
Galileu e não cessou de funcionar desde então” (IDEM, p. 21) e está caracterizada pela
combinação de dois traços:
1º) a matematização do empírico e
9
Dicionário de Filosofia (Nicola Abbagnano). Gramática (490-491): [...] Em outros termos, Heidegger desejaria
uma G. que levasse em conta não e não tanto a estrutura das coisas, em que se molda a estrutura da oração,
mas também e, sobretudo, a estrutura da existência humana, que é específica e diferente da estrutura das coisas.
Esse também parece ser o pressuposto da G. gerativa e transformacional de que fala Chomsky; com efeito, este
se refere freqüentemente a Descartes e, em geral, aos filósofos do séc. XVII, que ressaltaram o caráter
especificamente humano e criativo da linguagem. Essa G. gerativa deveria solucionar o problema de “construir
uma teoria da aquisição lingüística e de explicar as habilidades inatas específicas que possibilitam essa
aquisição.” (Aspects of the Theory of Syntax, 1956, I, § 4). Uma G. desse tipo, por um lado, seria “um modelo
explicativo, ou seja, uma teoria da intuição lingüística do falante nativo” e, por outro, mostraria que “as
estruturas profundas são muito semelhantes de uma língua para outra e as regras que as manipulam e interpretam
também parecem derivar de uma classe muito restrita de operações formais concebíveis” (Ensaios lingüísticos,
trad. It. III, 1969, pp. 19 e 272). Essa G. seria, assim, a matriz de qualquer G. possível e também apresentaria os
critérios para a escolha de determinada G. na constituição de uma linguagem.
32
2º) a constituição de uma relação com a técnica, de tal modo que a técnica se definisse
como a aplicação prática da ciência.
Uma ciência particular constitui-se, pois, de matematização e de uma relação com a
empiria; no entanto, o caráter de matematização entendido por Milner não está ligado à
quantificação:
Por matematização, entendemos aqui: não se trata de quantificação
(medida), mas daquilo que poderíamos chamar a característica
literal da matemática: que se usa de símbolos, que podem e devem
tomar a letra, sem ter relação a isto que eventualmente eles
designam; que se use destes símbolos unicamente em virtude de
suas próprias regras: fala-se de bom grado, então, de
funcionamento cego. Por esta característica cega, e por ela própria,
é assegurada a transmissibilidade integral, a qual repousa sobre o
fato de que cada qual, informado das regras do manejamento das
letras, as manejará da mesma maneira: é isto o que podemos chamar
de a reprodutibilidade das demonstrações (IDEM, p. 22 grifos
nossos).
A ciência lingüística pode não ser quantificável, mas precisa ser matematizável:
“consagrada pela natureza de seu objeto em uma forma não quantificada de matematização”
(MILNER, p. 200), pelo que o autor chama de literalização, a propriedade de ser
demonstrável, e funcionamento cego, a independência de uma designação, uma vez que está
atada às próprias regras. É a ordem própria da língua.
Pelo exposto, dizer com Bouquet e Milner que a ciência lingüística tem caráter
galileano e está relacionada a uma empiria, implica em outra característica: a de ser falseável
pelas configurações representáveis no espaço e no tempo:
Toda construção de experimentação supõe uma teoria minimamente
prévia; assim, a falsificação é, ela própria, uma refutação, isto é,
uma demonstração construída da falsidade. A este respeito, a
lingüística não é distinta das outras ciências. Demandará saber,
portanto, de qual teoria mínima a lingüística faz uso (IDEM, p. 24
– grifo nosso).
Para uma ciência empírica, qualquer enunciado deve ser de certo modo verificado,
confirmado ou submetido à prova: “A Lingüística é uma ciência empírica no sentido em que
ela define uma instância de refutação e que esta aqui é constituída a partir de dados
contingentes da língua” (IDEM, p. 137).
33
Podemos relacionar essa teoria mínima ao que Saussure atribui à ordem própria da
língua. A um funcionamento que deixa entrever as relações sujeito/língua.
1.6.
O lugar repetível da singularidade
Se relacionarmos a inscrição do singular numa repetibilidade, poderemos acatar o
conceito de ciência de Milner (1989, p. 21), especificamente a ciência lingüística, como
possível de ser matematizada; no entanto, a matematização de que fala o autor não trata de
quantificação (medida), de repetição do conteúdo, mas de uma repetição do fenômeno ou o
que o autor chama de “reprodutibilidade das demonstrações”.
Refletir sobre esse movimento de repetição que tem como efeito uma forma de erro,
um chiste, um ato falho ou mesmo uma produção escrita “estranha” significa dizer, de acordo
com Leite (2000, p. 41), mais sobre os “efeitos de sua presença no campo de estudos da
linguagem”, do que procurar defini-la fora de um evento de língua.
Pelo que temos exposto anteriormente pode parecer que estamos considerando a
singularidade apenas tentando definir-lhe o ponto de falta, sem estabelecer relação com o que
o determina, ou seja, a sua inscrição no funcionamento da língua por um fenômeno repetível.
Pelo contrário, na emergência do singular há uma repetição do fenômeno lingüístico.
É diferente, portanto, da repetição levada em conta nos estudos experimentais de
diferentes campos, tanto da Psicologia como da Lingüística, apoiada apenas na regularidade
do fenômeno lingüístico.
Comentando a dificuldade das teorias da linguagem em considerarem o singular pela
sua resistência a tentativas de teorização, uma vez que sempre “escapa e sobra”, Rajagopalan
(2000, p. 83) reforça o pensamento de Milner quando enfatiza que, apesar dessa dificuldade,
as teorias admitem reconhecer que:
a singularidade é algo que desafia o próprio empreendimento da
construção de teorias sobre a linguagem [...] Em outras palavras,
pensar a singularidade equivale a entrar na zona limítrofe do
pensamento acerca da linguagem. Persistir em tal interrogação
significa preparar o caminho para o próprio desmoronamento do
empreendimento da teorização, do esforço de imobilizar a
linguagem dentro da camisa-de-força de uma teoria totalizante
(RAJAGOPALAN, 2000, p. 83).
34
As formas de constituição da singularidade são analisadas por Frota (2000) que parte
do pressuposto lacaniano de que o inconsciente tem estrutura de linguagem e que a
singularidade é marcada pelo desejo
10
:
Na psicanálise, a língua (gem) é pensada como uma estrutura que,
sim, preexiste ao indivíduo, este tornando-se sujeito justamente por
assujeitar-se a ela, mas como uma estrutura que, por incluí-lo
enquanto sujeito plural e dividido, não o constitui como pode ser
singularmente rompida por ele – rompida pela singularidade do
desejo inconsciente (FROTA, 2000, p. 27).
Estabelecendo uma comparação entre lapso
11
e formas singulares (que relacionamos
aqui com o erro ortográfico singular), a autora afirma que mesmo que ambos rompam com o
esperado e se diferenciem do estabilizado enquanto “efeito do desejo”, diferenciam-se pelo
grau de transgressão do código. O lapso marca uma “fronteira nítida” entre o código e “sua
evidente transgressão pelo desejo” enquanto que a forma singular “mistura código e desejo”:
o lapso provoca a surpresa, revela o desejo, e a forma singular caracteriza-se por sua fluidez e
indeterminação (IDEM, p. 31-36).
Para a finalização deste item, seria relevante destacar, para a análise dos erros
ortográficos singulares que faremos neste trabalho, outra diferenciação, desta vez estabelecida
por Lier-De-Vitto (2004) entre o singular e o individual:
Singular e individual não são termos sinônimos: o primeiro
o singular é irredutível, como disse, insiste como diferença;
o segundo o individual faz série numa classe ou
conjunto de semelhantes. Por essa razão, ele é tomado como
exemplar. Resumidamente, a operação (regularizadora) da
analogia, da determinação de similaridades entre
acontecimentos, não se aplica ao termo singular, sempre
abordável pelo lado da diferença, do que não tem par, do que
não faz série (IDEM, p. 48 – grifos nossos).
A autora quer mostrar que entre o analista (que busca a verdade do paciente) e o
cientista (que busca a verdade científica) impõem-se “tendências metodológicas divergentes”.
O primeiro, mobilizado pela singularidade e o segundo, pela universalidade. Quer dizer, o
10
Chemana (1993, p. 42), no Dicionário de Psicanálise diz que o desejo se constitui na linguagem, a partir do
desejo do Outro: “Em um sujeito, o lugar de onde vem sua mensagem lingüística é chamado de Outro, parental
ou social. Ora, o desejo do sujeito falante é o desejo do Outro. Se se constitui a partir dele, é uma falta articulada
na palavra e é a linguagem que o sujeito não poderia ignorar, sem prejuízos”.
11
Também em Chemana (IDEM, p. 124) lapso é definido como: “Falha cometida por inadvertância, ao se falar
(lapsus linguae) ou escrever (lapsus calami), que consiste em substituir por uma outra a palavra que se queria
dizer”.
35
individual está dentro de uma série de semelhantes, e o singular não, porque é marcado pela
diferença.
Poderemos nos remeter, agora, ao início deste capítulo (item 1.1) quando
apresentamos a discussão de Lyons (1987) sobre as analogias e anomalias existentes na língua
e os questionamentos dos limites de cada uma. A relação de diferença e oposição entre as
regularidades e irregularidades da língua impõe, também, diferenciação no tratamento
metodológico. A nossa análise requer, portanto, um ponto de vista diferenciado em relação ao
que se tem tido para as categorizações do erro ortográfico.
36
Manter uma relação entre oralidade e escrita tem sido um ponto comum nos estudos
sobre a ortografia realizados em diferentes áreas de pesquisa (na Psicologia, na
Psicolingüística, na Sociolingüística e na Fonoaudiologia). Parece-nos que o desejo de uma
relação “única e estável entre letras e sons” (ZORZI, 1998, p. 91) acompanha esses estudos,
apesar do reconhecimento de que “não há uma correspondência precisa entre o modo de falar
e o de escrever” (IDEM, p. 93).
De acordo com Gonçalves (1992), do século XVIII até os nossos dias, o ideal
alfabético, a busca de uma relação estabilizada entre som e letra, tem perpassado as pesquisas
sobre o sistema de escrita. Num percurso pelos estudos sobre a ortografia no séc. XVIII, a
autora toma como parâmetro a obra de Madureira Feijó: Orthographia ou arte de escrever e
pronunciar com acerto a língua portugueza para mostrar como um conjunto de sinais ou
símbolos adquiriu o estatuto de norma gráfica.
O olhar da autora fica detido, no entanto, nos momentos em que a relação som/letra
mostra-se como um ponto não resolvido nos estudos sobre ortografia, sejam esses estudos
vistos por uma perspectiva fonética ou mesmo etimológica (filiação de Madureira Feijó,
segundo classificação da autora). Esse viés torna-se evidente tanto pelo que ela apresenta nos
capítulos iniciais sobre a relação oralidade/escrita (oral versus escrito), como pelos
comentários feitos no decorrer do estudo sobre a obra de referência, como veremos.
A escolha da obra de Madureira Feijó para estudo deu-se tanto “por ser alvo de
inúmeras referências e críticas como também pelas variadíssimas edições de que foi objeto ao
longo de um século ou mais” (GONÇALVES, 1992, p. 18). Como se pode ver pela definição
do critério de seleção, as observações da autora poderiam ter recaído sobre outro compêndio
ou proposta do “vasto acervo de obras” sobre ortografia, talvez sem nenhum prejuízo do
direcionamento que foi dado à análise. coerência, no entanto, na hipótese levantada pela
autora de que Madureira Feijó foi o expoente máximo de uma tendência de normalização da
SISTEMA GRÁFICO E
NORMA ORTOGRÁFICA
37
ortografia e que a obra apresenta o ponto alto dessa tendência, pela negação ou pela
afirmação,
quer pela aceitação que mereceu, quer pelo modo como contribuiu
para prolongar no tempo grafias mais ou menos obsoletas ou
extravagantes que, decerto, terão agravado a penalização escolar e,
consequentemente, social, das camadas que mais recentemente
tinham tido acesso à escrita, permitindo ainda que a pecha
vergonhosa do erro (orto)gráfico separasse definitivamente o uso
do vulgo e o dos doutos. A popularidade de que gozou a obra de
Feijó radica, possivelmente, na tentativa de reduzir a ortografia a
princípios traduzidos em regras (GONÇALVES, 1992, p. 18
grifos nossos).
Segundo a autora, quando um princípio lingüístico é radicalizado como regra ou
norma, como se pode observar nos estudos sobre ortografia, desde o séc. XVIII, termina na
instauração de situações de fracasso dos alunos integrantes das camadas desfavorecidas
economicamente, numa sociedade.
Duas observações poderiam problematizar essas afirmações da autora. A primeira é a
de que não uma relação direta entre aquisição da “norma” e o fracasso das crianças
oriundas das camadas “desfavorecidas”. Sabemos, hoje, que essa é uma questão que diz
respeito a um problema do ensino e da didática, uma vez que se tem constatado que esses
alunos podem aprender a escrever bem, atendendo às convenções. O fracasso escolar não se
deve ao fato do sistema ortográfico ter regras ou normas, mesmo porque estas integram tal
sistema. A segunda é a de que estabelecer diferenciações entre princípio e regra o implica
na separação entre as duas coisas. Sistema lingüístico e norma ortográfica, para sermos mais
específicos, estão postos numa relação de imbricação em que um não pode ser considerado
sem o outro. Assim, uma norma não pode estar isolada do sistema, ou seja, da “ordem própria
da língua”.
Essa separação entre princípio e regra também é vista em outros autores, a exemplo
de Moreira e Pontecorvo (1996, p. 78), quando distinguem sistema gráfico e sistema
ortográfico: “As idéias sobre as formas gráficas possíveis em uma língua aparecem cedo. As
crianças podem infringir o sistema ortográfico, mas dificilmente o sistema gráfico de sua
língua”. Como podemos observar nesses estudos, empregar corretamente as letras não implica
uma relação do sujeito com o sistema gráfico da língua, que fica resumido à relação letra/som.
38
Em suas reflexões sobre o aprendizado da ortografia, Morais (1995, 1997) afirma que
muitos estudos tratam, inadequadamente, sistema de escrita alfabético e norma ortográfica
como sinônimos; mas, para compreender essa distinção, é necessário
reconhecer que a natureza instável da linguagem oral não permitiria
uma produção de notações escritas fiéis e únicas. [...] A transcrição
fonética demonstra claramente como o signo lingüístico perde sua
identidade quando é notado segundo o ideal alfabético, dado que a
notação tem em conta unicamente a forma como é pronunciado o
significante oral (MORAIS, 1995, p. 6-7).
para Bagno (2001, p. 28), ortografia é uma “convenção artificialmente
estabelecida”, estando, portanto, o “erro ortográfico” relacionado às convenções: “a
ortografia de uma língua, o modo de escrever, não faz parte da gramática da língua”. O autor
utiliza as expressões “gramática da língua” e “ortografia oficial” para delimitar as fronteiras
do que aqui estamos nos referindo e citamos acima: princípio e convenção, respectivamente:
“A alteração da ortografia não provoca alteração nas estruturas gramaticais da língua. Por
isso, conseguimos entender um texto escrito com sistemas ortográficos antigos” (BAGNO,
2001, p. 30). Podemos observar, a partir dessas referências, como esses termos são utilizados
na literatura sem uma definição precisa: uns têm sistema também como regra e outros têm
regra como convenção; uns têm ortografia como sistema, outros como convenção.
É comum, nos estudos sobre a aquisição da ortografia, referências dos autores às
características do sistema de escrita e ao funcionamento desse sistema. Comentando sobre o
ensino da ortografia, Zorzi (1998, p. 95) faz referências à necessidade de as crianças
aprenderem “as características intrínsecas da escrita”, descobrirem “como funcionam as
regras de um jogo, que é a escrita”, uma vez que “parece haver, de fato, regras subjacentes
que determinam a forma de escrever”.
Numa discussão sobre a estrutura dos sistemas oral/escrito, Rey-Debove e Catach, em
Rey-Debove (1996, p.84), fazem uma reflexão que talvez possa iluminar as respostas aos
questionamentos levantados por esses autores. Tendo Rey-Debove afirmado que a
normalização do oral está estritamente ligada à normalização do escrito, Catach a contraria
dizendo que as “normalizações existem, de forma incontestável no oral, e sem depender do
escrito”, ao que Rey-Debove responde: “[...] elas [as normalizações] existem na língua”,
tendo a total aprovação de Catach, que conclui: “é por essa razão que não se pode separar
39
normas e sistemas, seja no escrito, seja no oral” (Rey-Debove, 1996 grifos nossos)
12
. É
lícito que devamos levar em conta, nas nossas análises, essa conclusão das autoras sobre a
imbricação entre os sistemas gráfico e ortográfico, pois, mesmo diferentes, um não pode ser
considerado sem o outro, uma vez que seriam constitutivos dos próprios processos de escrita.
No entanto, sem descartar a legitimidade desses estudos, podemos ver que a
concepção de sistema lingüístico subjacente ainda é aquele de completude, de língua Una,
“necessária à gramática e à lingüística”, como afirma Milner.
Essa noção de “totalidade” da estrutura ou de um sistema “fechado” pode ser visto
tanto em manuais de base filosófica: Abbagnano (2000), como lingüística: Dubois et al (1973)
e Crystal (1997). Vejamos:
“conjunto ou totalidade de relações” [...] “um plano hierarquicamente ordenado,
ou seja, uma ordem finalística intrínseca destinada a conservar o máximo possível
seu plano” (Abbagnano, p. 376);
“algo que determina necessariamente todas as suas determinações, de tal modo que
as torna infalivelmente previsíveis [...] “e possibilite apenas previsões
prováveis” (IDEM, p. 377 – grifos nossos);
“Uma totalidade dedutiva de discurso” ou “qualquer totalidade ou todo
organizado” (IDEM, p. 908- 909);
13
“Uma estrutura é um sistema caracterizado por noções de totalidade, de
transformação, de auto-regulação” (Dubois et al, 1973, p. 247 – grifo nosso);
“um conjunto de relações que os liga uns aos outros” [...] conjunto de termos
estreitamente correlacionados entre si” [...] conjunto de regras ligadas entre si”
(Dubois et al, 1973, p. 560 – grifo nosso);
12
Essa discussão foi empreendida após a apresentação do trabalho intitulado: À procura da distinção
oral/escrito, por Rey-Debove, no Colóquio Internacional “Para uma teoria da língua escrita”, realizado em Paris,
nos dias 23 e 24 de outubro de 1986. Os trabalhos e as respectivas discussões estão publicadas em CATACH,
Nina (1996) Para uma teoria da língua escrita. Paris, Centre National de la Recherche Scientifique. Traduzida
para o Português e publicada em São Paulo, Ática, 1996.
13
Abbagnano (2000, p. 909) faz uma distinção entre sistema e estrutura: “às vezes se faz a distinção entre o
sistema como conjunto contínuo de partes que têm inter-relações diversas e a estrutura ou a organização que os
componentes dele podem assumir em determinado momento”, ou seja, quando os componentes de determinado
sistema assumem uma organização, temos aí uma estrutura.
40
“uma rede de relações padronizadas que constituem a organização da LÍNGUA”,
Crystal (1997, p. 242)
14
Além da idéia de previsibilidade e infalibilidade do sistema ou estrutura, a própria
noção de conjunto, presente nessas definições, incorpora um conceito de determinação
interna, de fechamento e totalidade: “existe conjunto toda vez que um múltiplo pode ser
pensado como uno” (ABBAGNANO, 2000, p. 184)
15
.
Se considerarmos, portanto, os fundamentos apresentados no capítulo anterior, a partir
de Saussure e Milner, veremos a incompletude como constitutiva da língua, marcada pelo
equívoco e sem possibilidade de abarcar o Todo. É essa concepção que tomamos como base
na nossa tentativa de avançar teoricamente na análise do erro ortográfico singular.
Voltemos ao estudo que Gonçalves (1992) faz da obra de Madureira Feijó. Quando
tenta determinar a especificidade da escrita frente à fala, a autora mostra como historicamente
a escrita tem sido relegada à condição de suplemento ou substituto da fala e colocada, assim,
como código de segundo plano numa relação tanto de dependência como de exterioridade.
Essa condição da escrita em relação à fala é justificada, nos estudos criticados pela autora, por
3 motivos: o de prioridade cronológica (da fala), o da quantidade de signos (maiores na fala) e
o da faculdade natural ou biológica (da fala).
Discordando da superioridade da fala sobre a escrita apresentadas tanto pela
Lingüística como pela Filosofia e pela Psicologia, a autora defende a escrita como a memória
do percurso da própria língua e afirma que hoje ela é reconhecida por todos por ocupar uma
situação privilegiada na sociedade. Diante disso, um paradoxo na relação fala/escrita vem à
tona:
14
Crystal (1997, p. 242) refere-se, ainda, ao sistema lingüístico como uma combinação hierárquica de
“unidades” da língua (Ex.: o sistema fonológico compreende os sistemas segmental e supra-segmental e este, por
sua vez, compreende os sistemas de vogais e consoantes), estabelecendo os critérios de: conjunto finito, com
inter-relações “mutuamente exclusivas” (não podem co-ocorrer) e “mutuamente definidoras” (um é definido em
relação ao outro).
15
Para definir CONJUNTO, Abbagnano (2000, p.184) recorre a cinco características: “1ª existe C. toda vez que
um múltiplo pode ser pensado como uno, isto é, toda vez que um múltiplo pode ser agregado segundo uma regra.
O C. é internamente determinado, no sentido de que, em virtude da regra que o constitui e do princípio do
terceiro excluído sempre se pode decidir se um objeto qualquer pertence ou não ao C. O C. é uma
multiplicidade coerente no sentido de que seus elementos podem estar juntos sem contradição. Nesse sentido, a
‘totalidade de todos os objetos pensáveis’ não é um C., porque contraditória. A existência do C. é objetiva,
isto é, independente do pensamento ou da língua que o exprime. Como unidade o C. sempre pode constituir o
elemento de um outro conjunto.”
41
[...] se por um lado a escrita é tida como uma mera representação,
[...] ela passou a desempenhar uma função social praticamente
insubstituível. Insistamos, todavia, nessa natureza representativa da
escrita dado que, ao sê-lo, ela deve re-presentar alguma coisa, quer
dizer, os seus signos são representativos daquilo que permanece,
conseqüentemente, ausente (a fonia). Referimo-nos, obviamente,
aos signos gráficos, no primeiro caso, e aos signos fônicos, no
segundo (GONÇALVES, 1992, p. 24).
Neste sentido, a autora elege a materialidade da escrita que se sobrepõe a uma
ausência material da fala. Mas, discorrendo sobre a característica primeira da escrita
alfabética, ou seja, a de um signo gráfico para cada som ela explica que esse ideal gráfico não
se verifica porque a fala evolui mais rapidamente que a escrita: “[...] a escrita é mais
conservadora do que a fala, quer dizer, a escrita cristaliza, fixando uma determinada fase da
evolução dessas mesmas línguas. Para que o ideal alfabético se mantivesse, seriam
necessárias sucessivas e constantes adaptações ao novo estádio da língua” (IDEM, p. 25
grifo nosso).
Assim, ela acredita que a escrita seria uma representação da fala caso aquela
acompanhasse as mudanças desta, para atingir o ideal alfabético de representação som/letra.
A autora afirma, também, que é a ação da memória (principalmente a visual) que
marca a escrita, tanto no registro gráfico de um som como no processo de leitura (conversão
de unidades gráficas em fônicas).
Recorrendo a Saussure, ela afirma que o paralelismo entre os dois sistemas
(oral/escrito) é arbitrário uma vez que não existe relação natural entre um e outro (letras e
sons). O sistema fônico convive com o sistema gráfico (representação muda do outro) mesmo
que o ideal alfabético nunca venha a ser atingido.
Se correspondência entre som e letra, também discrepâncias quando a tradição
gramatical confunde esses dois termos nos textos de gramáticos e ortografistas quando se diz
que uma letra tem tal som ou soa como tal.
A autora propõe uma revisão no papel que vem sendo atribuído à escrita, de
complemento ou substituto da fala, e é nessa revisão que reside o que é considerado o grande
“mistério” da lingüística moderna, uma vez que “[...] dotada de virtualidades próprias, a
escrita não é correcta e completamente descrita pelo seu carácter de complementaridade ou
secundaridade face à oralidade” (IDEM, p. 29).
42
A criação da Gramatologia veio dar, segundo a autora, uma autonomia à escrita que
passa a ser estudada, nas últimas décadas, pela “substância que lhe é subjacente” e não apenas
sob a forma de história como vinha acontecendo.
Sendo a escrita considerada uma técnica que pressupõe o conhecimento de grafemas e
suas realizações, a autora mostra que o estudo das relações internas desses grafemas podem
ser correspondentes, mas não idênticas às relações existentes no sistema fonológico da língua:
“Entre os grafemas amesmo relações que não se verificam entre as unidades do referido
sistema fonológico, independente da língua que consideremos” (IDEM, p. 30).
Investigando o tipo de relações específicas do sistema grafêmico, a autora afirma que
“a grafémica não equivale exatamente à fonologia, assim como o grafema não corresponde
precisamente ao fonema” (IDEM, p. 30). Há, assim, critérios rigorosos para o reconhecimento
dos grafemas, à disposição do lingüista, como o da relação de equivalência entre os dois
sistemas: o fonemático e o grafemático, cujas unidades podem classificar-se em:
homofonemáticas, grafemas que se referem ao mesmo fonema, como o /ƒ/ que equivale tanto
a <X> e <CH> e heterofonemáticas, grafemas para mais de um fonema, como <C> que
equivale tanto a /s/ quanto à /K/. Esses fatos lingüísticos são considerados como “polivalência
dos signos gráficos” e mostram a “causa da inadequação da escrita alfabética ao ideal para
que fora criada” e, também, como a escrita está “longe de ser um epifenómeno da língua fala
ou fonia” (IDEM, p. 31-2).
A obra de Madureira Feijó, segundo a autora, trouxe uma contribuição que diferencia
o seu estudo dos que o antecederam: a inclusão de uma terceira parte (a 1ª sobre as letras, a
sobre as palavras) que trata dos “erros do vulgo e emendas da Orthographia no escrever e
pronunciar”, ou seja, o tratamento do que está “fora” do normatizado, do padrão, do ideal de
perfeição que o próprio autor tanto buscava.
Os critérios da pronúncia e do uso são, segundo a autora, os mais instáveis e até
arbitrários e Madureira Feijó se depara com dúvidas quanto à aceitação desses critérios. Ela
mostra momentos em que há tanto rejeição como aceitação do princípio “escreve como fala”:
[...] para o nosso ortografista, as regras fundamentais da ortografia
não podem nem devem assentar no critério da pronúncia, uma vez
que esta escapa à imobilidade que a escrita representa.
Apesar de não poder aplicar generalizadamente o critério da
pronúncia, uma coisa parece, no entanto, não oferecer dúvidas a
Madureira Feijó: quem pronuncia correctamente, escreve
também correctamente. Ortoépia e ortografia caminham, pois, a
par. É baseado neste argumento que o ortografista distingue as
43
realizações dos grafemas <Ç> e <S>, por um lado, e <CH> e <X>,
por outro (IDEM, p. 62 – grifos nossos).
A autora observa que mesmo defendendo o princípio etimológico como o único a
oferecer “segurança e estabilidade” para a norma ortográfica, mesmo relutando em aceitar
formas já pronunciadas, Madureira Feijó recorre à pronúncia para esclarecer dúvidas.
Podemos observar, desse modo, as dúvidas e contendas que emergem das pesquisas
quando se defrontam com a questão da relação oralidade/escrita.
E essas dúvidas permanecem, mesmo subjacentes, quando a autora comenta as
divergências do ortografista quanto ao caráter fônico/gráfico da língua:
a) na discussão sobre som e letra presentes na obra de Madureira Feijó: “[...] a confusão
entre som e letra decorre da não distinção das substâncias subjacentes à língua falada e à
escrita, [...] Certamente, o fato de a norma lingüística assentar, desde a Antiguidade, no
uso escrito da língua, conduziu à confusão entre as duas substâncias e à preponderância do
escrito sobre o oral” (IDEM, p. 64).
b) quando diz que, como os outros gramáticos ou ortografistas, Madureira Feijó toma a
imagem pelo modelo:
Ao descrever, por exemplo, o grafema <A> diz que ‘A letra vogal
pronuncia-se com a bocca aberta, e tom alto’, ficando patente a
confusão entre a matéria fónica (‘pronuncia-se’) e a matéria gráfica
(‘letra), pois, como é óbvio, os sons são pronunciados.
Madureira Feijó, simultaneamente com as regras ortográficas, vai
descrevendo a pronúncia [...] A insuficiência das ‘letras’ ao
reproduzirem os ‘sons’ leva Madureira Feijó à determinação de
numerosas regras e respectivas excepções (IDEM, p. 65).
Mesmo criticando essa “confusão” entre letra e som na obra do ortografista, a autora
aponta para a possibilidade de uma equivalência entre elas, ou seja, para uma relação termo a
termo, caso não existisse essa “insuficiência”. O ideal alfabético mais uma vez se sobressai,
não somente na obra criticada como nos comentários da autora.
c) quando o ortografista fala sobre as vogais: “Ao chamar vogais àqueles seis grafemas, mais
uma vez a imagem é tomada pelo modelo, uma vez que vogal (do lat. Vox, vocis) designa
uma entidade cuja substância é de carácter fónico” (IDEM, p. 69).
44
d) quando o ortografista define os ditongos do português: “[...] o ortografista confunde as
matérias fónica e gráfica, como fica patente nos casos de ‘ey/ei e ay/ai’. [...] Salientamos
a confusão entre formas como ‘guarda’, por um lado, e ‘guerra’ ou ‘guincho’, por outro;
estas com a oclusiva velar sonora /g/, grafada <GU>. É devido à confusão entre grafia e
pronúncia (letra e som) que Feijó classifica ue (guerra) e ui (guincho) como ditongos”
(IDEM, p. 71-4 ).
e) quando o ortografista apresenta as consoantes duplicadas: “A etimologia e a pseudo-
etimologia implantadas na ‘Orthographia’ serão uma das causas fundamentais do
desacordo entre pronúncia e ortografia ao longo de mais de um século e meio.
[...] aqueles grupos prestam informação no campo visual e que fazem,
conseqüentemente, apelo a dados que se situam apenas na órbita do jogo de
correspondências fonográficas (IDEM, p. 87).
Aqui, a autora atribui o desacordo pronúncia/ortografia na obra analisada ao viés
pseudo-etimológico do estudo de Madureira Feijó, uma vez que ele fica recorrendo aos dois
lados (etimologia e fonética) para as explicações. Cabe, então, questionarmos: e se Madureira
Feijó se definisse exclusivamente ou pelo estudo etimológico ou pelo fônico, existiria
consenso? O estudo etimológico estaria separado do ideal alfabético presente nos estudos
desde os primeiros textos da língua? Esse “acordo” entre pronúncia e ortografia não é o cerne
do ideal alfabético? Como podemos ver, nas observações da autora sobre esses pontos não
resolvidos nos estudos sobre a ortografia subjaz a crença na possibilidade de uma relação de
equivalência entre grafia e fonia. Talvez seja por isso que a autora se limita apenas a apontar
esses pontos “fluidos” sem, no entanto, explicar com maior aprofundamento.
A autora afirma, ainda, que a Lingüística moderna priorizou a fala, a Gramatologia
deu à escrita um lugar de igualdade com a língua criando a teoria da língua escrita e “o estudo
dos sistemas ortográficos cobra assim um estatuto epistemológico dentro da Lingüística”
(IDEM, p. 112).
Queremos, assim, com o nosso estudo, promover uma abertura para a instauração
desse estatuto epistemológico, procurando indicar uma relação entre sujeito e língua através
da interpretação dos erros ortográficos episódicos e singulares, ressignificando-a em função
tanto do objeto de estudo em questão quanto do aparato teórico que se está construindo no
campo da aquisição da linguagem que se filia a uma perspectiva lingüístico-discursiva. Para
isto, faremos, inicialmente, uma análise de estudos em aquisição da ortografia, enfatizando
aqueles que apresentam tanto dados categorizáveis, quanto singulares.
45
3.1.
Os critérios de regularidade, freqüência e
previsibilidade
A aquisição das formas escritas da língua tem sido vista por uma teoria da ortografia
centrada, prioritariamente, sobre os processos mentais cognitivos e as habilidades de
percepção e memorização. Os estudos procuram, através desses processos e habilidades,
explicar a aprendizagem das formas escritas convencionais, apresentando uma importante e
extensa descrição dos tipos de erros ortográficos produzidos por escolares de diferentes faixas
etárias e níveis sociais (GUION, 1973; BLANCHE-BENVENISTE & CHERVEL, 1978;
FERREIRO, 1990; JAFFRÉ, 1991; CATACH, 1995; FERREIRO et al., 1996; POTHIER,
1996, LALANDE & GAGNÉ, 1988; MORAIS 1998, 2002; ZORZI, 1998; NUNES et al.,
2000; entre vários outros).
Um amplo conjunto de dados (formas escritas incorretas), coletados em situações reais
de produção de texto, é obtido por esses pesquisadores que adotam como procedimento
metodológico de seleção basicamente três critérios: a) regularidade: erros que
sistematicamente são produzidos pelos alunos; b) freqüência: erros que tenham um alto
índice de manifestação; e c) previsibilidade: erros que provavelmente os alunos produzem
naquela fase de desenvolvimento. As teorias sobre os processos de aquisição ortográfica
elaboradas por esses critérios de seleção de dados têm por base a quantificação e excluem
aqueles erros que estatisticamente não são relevantes, isto é, aqueles erros produzidos pelos
alunos que escapam às possibilidades de categorização, quais sejam, aqueles erros que não
são regulares, nem sistemáticos.
OS ESTUDOS SOBRE A
AQUISIÇÃO DA ORTOGRAFIA
46
A partir desses estudos, levantamos as seguintes questões: o que esses erros que são
produzidos esporadicamente pelos alunos, que são excluídos segundo os critérios de seleção
presentes nos procedimentos metodológicos adotados nessas pesquisas e que,
conseqüentemente, não são analisados, podem nos dizer sobre a relação do aluno com o
sistema de formas escritas? De que forma esses erros não-sistemáticos podem ajudar a
formular uma teoria da ortografia que nos ajude a entender melhor os processos de aquisição e
aprendizagem?
São justamente esses erros ortográficos “imprevisíveis”, que não se encaixam nos
critérios de seleção apresentados acima, que nos interessam para a discussão do seu estatuto
teórico e para uma reflexão sobre a teoria de aquisição do sistema ortográfico.
Moreira & Pontecorvo (1996) realizaram um levantamento dos erros ortográficos na
palavra Chapeuzinho, tentando observar qual o conhecimento lingüístico subjacente às
escolhas gráficas dos alunos não quando acertam ou atendem à padronização ortográfica, mas
quando realizam omissões, adições, transposições e substituições. Concordando que os
estudos sobre a “aquisição da ortografia” têm-se detido em categorizações genéricas dos erros
ortográficos, elas pretendem obter explicações sobre as “escolhas” que as crianças “realizam”
em suas produções, especificamente quando realizam as operações mencionadas:
Se as formas gráficas convencionais, como produtos acabados, nos
dizem muito pouco sobre as possíveis análises que as crianças
estariam fazendo acerca das categorias e relações da língua no
processo de aquisição da ortografia, as classificações dos erros, ora
apontadas, são genéricas e não respondem ao ponto de vista do
produtor (MOREIRA E PONTECORVO, 1996, p. 78).
Os erros ortográficos foram vistos, nesse trabalho, como uma ortografia “regularizada”
pela criança, que estabelece relações consistentes e assimétricas, de ordem fonética,
gramatical, semântica e gráfica.
O trabalho supõe um conhecimento” lingüístico que interfere nas escolhas que o
indivíduo faz quando escreve. Para as autoras, são muito reduzidas “as ocorrências de
violações gráficas entre crianças que compreendem o sistema alfabético da escrita” e as
crianças, de uma forma geral, “fazem uso de formas que violentam a ortografia, mas não o
inventário gráfico de sua própria língua” (IDEM, p. 79 – grifo nosso).
A palavra Chapeuzinho foi selecionada pelas pesquisadoras por ser uma das palavras
de maior ocorrência na história, e de apresentar possibilidades de “opções gráficas que, em
outros vocábulos, são convenções ortográficas”, por exemplo:
47
[ƒ] [єw] [z] [u]
ch a p eu z i nh o
x él s u
o
chá céu azia vírus
xá mel Ásia tiros
Leo
(MOREIRA E PONTECORVO, 1996, p. 81).
Numa busca da regularização, as autoras se debruçam sobre as versões escritas duas
ou mais vezes pela mesma criança, considerando para a análise o que denominam de
ocorrência “teoricamente possível, sendo suas variações decorrentes da arbitrariedade nas
relações fone-letra ou letra-fone (por exemplo, s/ch, l/u, s/z) ou, ainda, na posição de
determinadas letras (por exemplo, b entre vogais) (IDEM, p. 82). Dentre os numerosos e
diferenciados exemplos considerados “teoricamente possíveis”
16
, podemos citar:
chapézio - chapelcinho - chapeuzino - xapeuzilho - xabéusiho - japeugio - sapeuchinho
Outras ocorrências foram desconsideradas para a análise, uma vez que, segundo as
autoras, “violentam as regras do sistema de combinações gráficas do português, que não
admite palavra iniciada por ç, a seqüência nlh, x seguido de h, h seguido de consoante”. Essas
ocorrências foram apenas cinco:
*xipazinlhe - *chpeuziho - *xhapeusinho - *hcapeuzion - *çahpeuzinho
Os dados o analisados tendo em vista o que chamam de “interferência”, nas escritas
infantis, dos princípios fonético-gráfico e morfológico, da forma gráfica da palavra, ou seja,
“a idéia de que as formas escritas dependem em parte de um processo de reconhecimento
visual, desenvolvido mediante a leitura ou a exposição às palavras escritas” (IDEM, p. 82) e,
também, da interferência grafotática, que seriam, segundo as autoras, combinações e
associações de certos elementos gráficos com outros semelhantes.
16
Voltaremos a comentar esses exemplos apresentados pelas autoras, no item 6.1 deste trabalho, intitulado: “A
ordem da língua nas relações entre LH e NH”.
48
Todos os erros da palavra Chapeuzinho foram classificados inicialmente pelas
seguintes categorias: fonética, gramatical, semântica, analógica e gráfica. Segundo as autoras,
[...] as grafias construídas pela criança refletem o seu conhecimento
lingüístico, constituído por informações fonético-fonológicas,
gramaticais, semânticas e lexicais que entram em jogo com as
informações sobre letras e combinações de letras que advêm da
exposição à escrita (IDEM, p. 83).
Em seguida, foi feita uma distinção das formas: inclassificáveis (incluindo as palavras
com apenas uma ocorrência, nos textos); inconsistentes (também nenhuma das palavras
ocorrendo mais de uma vez); convencionais (com todas as ocorrências corretas ou todas
menos uma); e não-convencionais (textos com duas ou mais grafias idênticas).
Os erros, nesta pesquisa, foram vistos mediante uma categorização exaustiva,
atendendo aos seguintes pressupostos:
que a criança já possui um conhecimento lingüístico prévio e utiliza esse saber quando
escreve, escolhendo e decidindo entre as opções oferecidas pela língua;
que a criança aciona operações mentais de memorização ou reconhecimento visual,
relação, associação e combinação;
que os erros “cometidos” pelas crianças apenas uma única vez são inclassificáveis;
que os erros das crianças embora não-convencionais, obedecem ao “inventário
gráfico” da língua;
que num momento inicial, a fala orienta a escrita e, depois, esta é orientada pelas
regularidades e pelas informações da escrita visualizada pela criança (“a imagem
gráfica da palavra no texto”).
Diferentemente do ponto de vista das autoras, que consideram apenas o que é possível
de categorização, direcionaremos o nosso olhar para o que é tomado como resíduo nessa
pesquisa, a partir de um lugar teórico que na ocorrência idiossincrática uma possibilidade
de discussões sobre a relação sujeito/língua. E que o erro singular enquanto equívoco,
como diz Carvalho (1995, p. 142), enquanto equívoco que fura o todo da língua”, mas que
esse furo é feito (efeito) “através da própria língua, ou melhor, do seu funcionamento”.
49
3.2.
A natureza regular e irregular do erro ortográfico
Em seus estudos sobre dificuldades na aprendizagem da leitura, Nunes et al. (2000)
observaram os erros ortográficos de crianças com dificuldades de aprendizagem e
compararam com os de crianças que não possuíam essa dificuldade, concluindo que as
diferenças eram apenas quantitativas e o qualitativas, isto é, os erros eram do mesmo tipo
só que apareciam com maior freqüência nos alunos com dificuldades em leitura e escrita. Os
autores estabeleceram a seguinte categorização dos erros observados:
a) Erros de transcrição de fala. Ex.: istrela, impada, bulacha, mininisi, ome(m).
b) Erros de supercorreção. Ex.: sel (céu), ágoa (água), vasolra (vassoura)
c) Erros por não considerar regras contextuais. Ex.: camtor, enpada, rrolha, aimda
d) Erros por não marcar a nasalização. Ex.: oça (onça), aida (ainda), nuvei (nuvem)
e) Erros por não conhecer a origem da palavra. Ex.: jema, bluza, dansaram, omen
f) Erros em sílabas complexas. Ex.: usoso (urso), guada (guarda), quilima (clima)
g) Erros por trocas de letras com sons parecidos. Ex.: anelivorme (aneliforme), encrassado
(engraçado), glima (clima), blástico (plástico), tivam (divã)
h) Erros de marcação de sílaba tônica. Ex.: peixi, passea (passear), infeiti (enfeite).
Eles advertem que, em algumas palavras, aparecem “erros além daquele que está
sendo exemplificado” que foram conservados para manter a fidelidade à observação. Um
exemplo é a escrita de “divã” como “tivam”, no item g da relação acima, em que se pode ver
além da troca de letra com o mesmo ponto de articulação (d/t), o acréscimo da letra m”
sinalizando, possivelmente, uma troca do sinal “~” por “m”, que o pode ter a mesma
justificativa do erro anterior, nem entrar na categorização, por não atender o critério de
freqüência.
Esses autores chamam de estágio pós-alfabético aquele que ultrapassa a concepção que
implica na “representação seqüencial de fonemas por letras”. Afirmam, entretanto, que a
escrita que utilizamos não funciona como uma escrita alfabética “pura”, isto é, nem sempre os
fonemas têm o seu correspondente na escrita e vice-versa:
[...] a diferença entre uma vogal nasal ou não-nasal é uma diferença
fonêmica. No entanto, a representação da nasalização de uma vogal
50
envolve ou um acento, o til, ou o acréscimo de uma consoante após
a vogal, sendo que essa consoante não representa nenhum fonema,
mas apenas modifica a pronúncia do fonema anterior.
Similarmente, o valor sonoro da letra C depende da letra que o
segue. Existem, pois, situações que complicam a representação
alfabética básica, as quais precisam ser consideradas para que a
criança tenha sucesso no domínio da escrita e da leitura (NUNES
ET AL, 2000, p. 65).
Para uma classificação das “sutilezas” da representação fonológica, os autores definem
dois tipos de regras ortográficas: as “regras hierárquicas” que consideram o ambiente em que
a letra/som se encontra e os “indicadores de natureza léxica” em que o sujeito atenta para a
grafia de certas palavras por analogia com palavras conhecidas. No português, os exemplos
para o primeiro tipo são:
o valor do C e do G em função da letra subseqüente;
o uso do M e não N antes de P e B;
a mudança do som do S para /z/ (quando entre vogais);
a não-utilização de Ç ou SS no início das palavras.
Para o segundo tipo, o de considerações léxicas, eles apresentam como exemplo as
seqüências sonoras do português que possuem mais de uma grafia (para /isse/ a escrita pode
ser ICE ou ISSE):
“meninice”, “burrice” são formadas pelo sufixo ICE gerador de substantivos abstratos;
“visse”, “fugisse” são formadas com a desinência ISSE do verbo no pretérito do
subjuntivo.
Os autores afirmam que, nesses casos, como não existem pistas na seqüência sonora
para a escolha, os indicadores para se chegar à grafia correta são de natureza léxica. Para eles,
tanto as regras hierárquicas como as de natureza léxica não são adquiridas todas ao mesmo
tempo, algumas surgem mais cedo do que outras e ainda não estudos que mostrem “se
uma seqüência fixa nestas aquisições ou se a ordem de aquisição das considerações léxicas é
variável” (IDEM, p. 67). A existência dessa ordem, segundo os autores, pode vir da
complexidade do conceito léxico utilizado. Para eles, é bem mais “fácil” usar o conhecimento
de um radical numa palavra para gerar a grafia de outra palavra com o mesmo radical do que
51
identificar a grafia constante em um sufixo, por exemplo, passar de “peixe” para “peixaria” é
mais fácil do que usar ICE como sufixo formador de substantivo e ISSE como desinência
verbal.
Para os erros cometidos pelas crianças com dificuldades e por aquelas que não as
apresentam, eles observaram dois tipos de “discrepâncias”
17
: omissões de sílabas e letras e
troca de letras; esta, considerada a diferença quantitativa mais freqüente e, desse modo, mais
importante. Os autores afirmam que essa troca acontece geralmente entre consoantes sonoras
e surdas com o mesmo ponto e modo de articulação (v/f, c/g, b/p e t/d), como nos exemplos
apresentados por eles: anelivorme (aneliforme), encrassado (engraçado), blástico (plástico) e
tivam (divã), tidos como erros por troca de letras com sons parecidos, na categorização
realizada.
Carraher (1986) afirma que a “troca de letras” não pode pertencer a mesma categoria
dos erros de “transcrição de fala” (como trocar o “o” por “u” em “formiga”) e justifica
dizendo que a troca de letra constitui uma escolha errada ou falta de atenção na representação
do som em pauta:
Quando, por alguma razão, a atenção do sujeito está muito
envolvida em outros aspectos da escrita, é possível que as
discriminações mais sutis sejam ignoradas. Exemplos desta situação
seriam as dificuldades de processamento no início da
aprendizagem, em que há poucos automatismos e praticamente todo
o processamento envolve a atenção do sujeito, ou quando, mais
tarde, o sujeito precisa atender ao conteúdo enquanto escreve
rapidamente. Nesses casos, a atenção, concentrada em outros
aspectos da escrita, poderia gerar erros de troca de letra
(CARRAHER, 1986, p. 117 – grifos nossos).
Assim, reduzir a troca de letras à falta de atenção coloca o problema numa certa
obscuridade que fragiliza o quadro epistemológico e a explicação pretendida por esses
estudos. O problema fica associado ao sujeito empírico, consciente de suas ações e ao sujeito
psicológico que realiza operações mentais de discriminação perceptual e motora. Pensar as
17
Como “discrepância” os autores definem as diferenças entre leitura e escrita, quanto à capacidade de ler
palavras e não escrevê-las ou saber escrever palavras e não conseguir lê-las. Referem-se às conclusões das
pesquisas de Bryant & Bradley (1980), com crianças de 6 e 7 anos, quando afirmam que nessa idade as crianças
escrevem predominantemente usando estratégias fonológicas, mas sabem ler usando estratégias não analíticas.
Pelo que podemos entender, estratégias relacionam-se às ações de escolha, aos meios que se aplicam “com vistas
à consecução de objetivos específicos” (Ferreira, 1999, p. 841). No texto de Nunes et al (2000), o termo
estratégia está relacionado, também, à ação consciente quando eles utilizam expressões correlacionadas para
definir as ações da criança com a língua como, por exemplo: “análise fonológica”, “consciência fonológica”,
“estratégias fonológicas/não-fonológicas”, “estratégias analíticas/não-analíticas”.
52
relações sujeito/língua apenas por um viés psicológico, pode impedir que se avance para
explicar o erro ortográfico dentro do próprio funcionamento da língua.
Uma análise de “erros” ortográficos feita por Cagliari (l989) pode ser acrescentada aos
exemplos desses estudos: uma explicação que é dada sobre a escrita da palavra casa, escrita
CAZA por um aluno de 11 anos, de uma escola de Aracaju:
Casa é escrita com z porque, segundo o sistema de escrita do
português, formas ortográficas que usam a letra s ou a letra z
para representar o som /z/ intervocálico, como em ‘casar’ e ‘fazer’.
O aluno, optando pelo uso da letra z, fez uma escolha errada, mas
perfeitamente de acordo com as possibilidades de uso do sistema de
escrita. Se ele tivesse escrito, em vez de caza, algo como atqu, seria
algo realmente “maluco”, caso o resto da redação estivesse bastante
correto; se escrevesse cama em vez de caza também seria
estranho, mas as crianças não cometem esse tipo de erro
(CAGLIARI, l989, p. 137-8 – grifo nosso).
A concepção de sujeito subjacente a esse tipo de análise é a de um aluno que conhece
a língua e opta entre um uso e outro, manipulando-os segundo as suas opções e escolhas. O
que podemos observar é que as pesquisas sobre o erro ortográfico ainda estão limitadas a
descrições e categorizações desses erros sem, no entanto, aprofundarem as explicações de
questões como: por que as crianças fazem essas trocas?
Observando erros ortográficos em produções de alunos das séries iniciais, Morais
(1998) mostra como a norma ortográfica está organizada, fazendo uma distinção entre o que
ela apresenta de regular e irregular. Segundo o autor, quando a correspondência letra/som é
regular a regra é passível de compreensão e quando irregular, de memorização. Ele afirma
também que não se pode generalizar os erros ortográficos como uma simples troca de uma
letra por outra, que esses erros possuem naturezas diferentes, definidas como regulares e
irregulares. Para exemplificar essa diferenciação, ele compara dois pares de palavras:
cachoro (cachorro) sidade (cidade)
honrrado (honrado) oje (hoje)
No primeiro caso, uma regularidade: “um ‘princípio gerativo’, uma regra que se
aplica a várias (ou todas) as palavras da língua” (IDEM, p. 28) que pode ser compreendido,
evitando ser memorizado. E, no segundo caso, não há nenhum princípio que auxilie na
distinção para a escrita das palavras (se com C ou com H), O autor afirma, ainda, que essa
53
compreensão por parte do professor irá auxiliá-lo na utilização de diferentes estratégias para
levar o aluno a “raciocinar” sobre as palavras, decidindo o que pode ser compreendido e o que
pode ser memorizado.
No estabelecimento dos critérios para as correspondências fonográficas, ele distingue
as regulares e as irregulares:
a) as regulares diretas: as grafias do P B T D F V na relação letra/som. A interpretação
para essas trocas de letras assenta-se na semelhança de realização no aparelho fonador.
Os chamados “pares mínimos” são articulados no mesmo ponto e do mesmo modo,
diferenciando-se apenas pela vibração das cordas vocais ou não (sonoras e surdas).
Para o autor essa dificuldade é logo superada quando o aluno “apreende” as
convenções do sistema alfabético. Torna-se mais difícil, entretanto, para alunos com
variedade de pronúncia distanciada da forma de prestígio.
b) as regulares contextuais: são as “regras hierárquicas” conforme definidas por Nunes et
al. (2000), citadas anteriormente, em que o contexto da palavra define a letra que
deverá ser usada. Para o autor, o aprendiz pode compreender desde cedo essas regras,
desde que sejam ensinadas. Os principais casos apresentados são:
54
Casos de regularidades contextuais
Os principais casos de correspondências regulares contextuais em
nossa ortografia são:
uso de R ou RR em palavras como rato”, “porta”, “honra”,
“prato”, “barata” e “guerra”;
uso de G ou GU em palavras como “garoto” e “guerra”;
o uso de C ou QU, notando o som /k/ em palavras como
“capeta” e “quilo”;
o uso do J formando labas com A, O e U em palavras como
“jabuti”, “jogada” ou “cajuína”;
o uso do Z em palavras que começam “com o som de Z” (por
exemplo, “zabumba”, “zinco”, etc.);
o uso do S no início das palavras, formando sílabas com A, O e
U, como em “sapinho”, “sorte” e “sucesso”;
o uso de O ou de U no final de palavras que terminam “com o
som de U” (por exemplo, “bambo”, “bambu”);
o uso de E ou I no final de palavras que terminam “com o som
de I” (por exemplo, “perde”, “perdi”);
o uso de M, N, NH ou ~ para grafar todas as formas de
nasalização de nossa língua (em palavras como “campo”,
“conto”, “minha”, “pão”, “maçã”, etc.).
(Morais, 1998, p. 31)
c) as regulares morfológico-gramaticais apresentadas pelo autor estão identificadas com
os “indicadores de natureza léxica” apresentadas por Nunes et al. (2000)., observadas
por exemplo: nos casos de formação de palavras por derivação, como “portuguesa”;
“francesa” (adjetivos que indicam lugar de origem), “beleza”; pobreza” (substantivos
derivados de adjetivos); e da flexão verbal, como “bebesse”, “dormisse” (imperfeito
do subjuntivo).
Além das regularidades, Morais (IDEM, p. 35) apresenta as seguintes irregularidades
presentes no sistema ortográfico do português:
55
a) a escrita do som do:
. S – seguro, cidade, auxílio, cassino, piscina, cresça, giz, força, exceto;
. G – girafa, jiló;
. Z – zebu, casa, exame;
. X – enxada, enchente.
b) o emprego do:
. H inicial – hora, harpa;
. E e I, e O e U em sílabas átonas – cigarro, seguro, bonito, tamborim
. L com o LH de ditongo – Júlio e julho, família e toalha
c) ditongos com pronúncia “reduzida” – caixa, madeira, vassoura.
O autor enfatiza que para esses casos de irregularidade ortográfica a única saída é a
memorização ou a consulta ao dicionário, uma vez que não regra que auxilie o aluno a
diferenciar a relação letra/som
18
. A memorização deve obedecer a uma hierarquia, partindo de
palavras já conhecidas para as desconhecidas. Ele ressalta, ainda, que:
a memorização da forma correta de palavras irregulares
corresponde a conservar na mente as imagens visuais dessas
palavras, suas “imagens fotográficas”. Nesse sentido, a exposição
do aprendiz aos modelos de escrita correta das palavras que contêm
irregularidades é fundamental para que ele memorize sua imagem
visual (IDEM, p. 35 – grifos nossos).
Se atentarmos para o que está classificado como “regularidades contextuais”, podemos
ver que elas perdem sua força explicativa quando se observa o que está definido como
“contexto”. Por exemplo, um “contexto” semântico entre “bambu” e “bambo”, mas um
“contexto” gramatical entre “(eu) perdi” e (ele) perde”. Como estabelecer uma
diferenciação? Haveria um equívoco na classificação? Talvez estas formas verbais
“perdi/perde” devessem estar no caso das regularidades morfológico-gramaticais, por estarem
relacionadas à flexão verbal.
18
Essa afirmação de Morais ajuda-nos a entender os confrontos dos estudos etimológicos diante da relação
letra/som, na busca do ideal alfabético (cf.Gonçalves, 1992). Em outro texto, Morais (1995, p. 65) afirma que o
dilema das relações entre fala e ortografia teve como solução histórica a união dos princípios fonográfico e
ideográfico: “No primeiro caso, optou-se por aproximar a notação escrita de uma pronúncia idealizada, entre as
diferentes variedades usadas pelos falantes. No outro caso, optou-se por manter os traços etimológicos que as
palavras possuíam nas respectivas línguas de origem, ou que foram mantidos pela tradição do uso, embora
questionassem a regularidade característica do princípio fonográfico”.
56
Outra observação está relacionada ao emprego do “m/n”: se o que define a presença de
uma ou outra letra é a letra seguinte, o mesmo não vale para “ga” e “gue”, pois não
concorrência homofônica como é o caso de “GAroto” e “GUErra”. Isto é, do ponto de vista
fonológico, tanto faz escrever “coMprar” ou “coNprar”, assim como “conSigo” ou
“comSigo”. Problema semelhante aparece entre “caRRO” e “genRO”, mas não entre “caRO”
e “caRRO”, cuja diferenciação seria novamente semântica.
Quanto às irregularidades, podemos observar algo que resvala, que é deixado de fora.
Os erros ortográficos classificados como irregulares carecem de uma melhor fundamentação,
uma vez que são apenas exemplificados com algumas ocorrências da língua e encaminhados
didaticamente à memorização, faltando, desse modo, uma interpretação que avance nas
justificativas centralizadas na “tradição de uso” ou na “origem da palavra”.
Com esse estudo, Morais (1998), na verdade, apresenta uma organização da norma
ortográfica da língua, destaca regularidades e irregularidades das regras ortográficas para, a
partir daí, propor situações de ensino-aprendizagem, como releituras e reescritas, com o
objetivo de levar os alunos a uma escrita correta, partindo da reflexão sobre as regras. Para
ele, a explicitação de uma regra poderia ser a solução para a evitação do erro ortográfico pelo
aluno. Esta “solução didática” está embasada numa abordagem cognitivista em que a
explicitação seria o caminho para uma “tomada de consciência” pelo aluno dos problemas de
ordem lingüística. Isto confirma o quadro epistemológico em que se insere a investigação
quando assume a divisão entre sujeito e língua, supondo, ainda, que a conscientização”
dessas dificuldades próprias do sistema ortográfico resolveria a emergência de tais erros.
Convém ressaltar que, além da significativa contribuição ao estudo empírico sobre o
erro ortográfico, ligadas às preocupações com a aprendizagem, o mérito do trabalho consiste
na reflexão sobre o ensino da ortografia: a análise crítica das práticas usuais e a definição de
estratégias metodológicas para o trabalho de intervenção em sala de aula.
3.3
.
A relação freqüência/dificuldade de apropriação do
sistema ortográfico
Para tentar compreender a “apropriação progressiva do sistema ortográfico”, o estudo
de Zorzi (1998) leva em consideração as características lingüísticas e a trajetória dos erros
57
“mais comuns” em 2.570 amostras de produção escrita (entre ditados e redações) de 514
crianças de 1ª a 4ª série.
A partir dos modos de classificação de erros empregados por Cagliari (1989) e
Carraher (1986), o autor organiza um quadro classificatório de alterações ortográficas
composto de 10 categorias comuns na escrita das crianças, acrescentando uma 11ª categoria
denominada pelo autor de “Outras Alterações”, e utilizada “para dar conta de certas
idiossincrasias, ou seja, de certos modos particulares e pouco freqüentes de escrever palavras
que eram encontradas em uma ou outra criança, e que não podiam ser considerados como
dificuldades comuns à maioria dos sujeitos.” (Zorzi, 1998, p. 34).
Essas alterações corresponderam a apenas 1,2% dos erros computados pelo autor que
justifica serem tais ocorrências resultado de “engano momentâneo”, “má compreensão” ou
alguma hipótese que “escapou” da observação do pesquisador:
O baixo número de alunos produzindo alterações desse tipo, assim
como a baixa média de erros para cada um dos alunos, revela que
poucos foram os erros que não puderam ser mais adequadamente
compreendidos, ou seja, classificados dentro das categorias
analisadas. Tais alterações corresponderam a ocorrências pouco
comuns, às vezes revelando algum engano momentâneo, ou
compreensão de alguma palavra ditada e, outras vezes,
provavelmente, alguma forma de a criança estar hipotetizando a
ortografia, mas que escapou da possibilidade de compreensão do
pesquisador (IDEM, p. 82 – grifos nossos).
Assim, num estudo em que estão considerados apenas a freqüência e os tipos e
características dos erros ortográficos, ligando as dificuldades das crianças à quantidade de
erros produzidos, não caberia, por questões de coerência metodológica, um lugar para o erro
singular, para o erro ortográfico que não pudesse ser categorizado. Para estes, o autor abre um
espaço para apresentar uma amostra, relacionando, na primeira coluna, a palavra esperada e,
na segunda, a palavra escrita realmente pelo aluno:
58
Amostra de erros:
jornal
Sornão
cebola
cemola
ninguém
Ninhem
sozinho
soviho
cresceu
Dreceu
macarrão
macacão
mangueira
Mahera
trabalhar
tramalha
ninguém
Ninhe
bolo
molo
contrário
com tranho
cheinha
seinha
tempo
Pempo
va
labirintos
Britos
sardento
chargento
fraquinho
Naaquinho
triste
cristi
Rodolfo
Rodolso
combinar
conrrinar
Rodolfo
Rodanrio
vez
zez
cachorro
Chachorro
fraquinho
frazinho
sangue
Jangue
aprendeu
aprendão
feitiço
Feiticho
bochechuda
buchesuda
viajarão
Viasrarro
vezes
vevis
bruxa
Gurcha
preciso
parcicho
palpite
Pampiti
correndo
coresdo
selva
Seiva
estava
estado
emagreceu
Ematreseu
meu
mehor
(Zorzi, 1998, p. 83)
Segundo o autor (IDEM, p. 82-3), como os alunos das escolas pesquisadas iniciavam
um processo de alfabetização muito cedo, o aparecimento desses erros de baixa freqüência era
o resultado de “uma experiência de quase dois anos de contato com a escrita em termos
escolares, o que implica em certos conhecimentos já desenvolvidos a respeito deste sistema”
de escrita. O erro singular está entendido, então, como um índice de “experiência” quanto ao
“conhecimento” do sistema de escrita.
Nos nossos dados, pelo contrário, veremos como a produção do erro singular pode
indicar, mesmo em escritas de alunos da série distanciados de um processo de inserção na
linguagem escrita, uma relação com a linguagem sem os “recalcamentos” impostos pela
“linguagem escrita constituída” (BOSCO, 2002, p. 16), ou como diz Mota (1995, p. 177):
uma “escrita ainda não capturada pelas relações simbólicas e imaginárias necessárias para que
se torne interpretável”.
Das suas observações sobre os dados que categorizou, Zorzi conclui que os graus de
dificuldade para a apropriação do sistema ortográfico estão ligados a) aos tipos de erros, b) à
freqüência desses erros, e c) à porcentagem da sua produção pelas crianças:
Como foi apontado, os diferentes tipos de erros, a freqüência
com que os mesmos ocorrem e a porcentagem de crianças que os
59
produzem são dados sugestivos de que determinadas propriedades
do sistema ortográfico podem ser de mais difícil e lenta apropriação
do que outras (ZORZI, 1998, p. 97 – grifos nossos).
Para o autor, também, alta freqüência se constitui num índice também alto de
dificuldade, da mesma forma que uma freqüência baixa do erro indica uma dificuldade
menor:
Podemos supor que quanto mais freqüente um tipo de erro
se revela e quanto maior o número de crianças que o produzem
também maior deverá ser a dificuldade de compreensão das
características ortográficas que levariam à sua não ocorrência.
Contrariamente, quanto menos freqüente é um erro e quanto
menor o número de crianças que o realizam, menor deve ser a
dificuldade de compreensão daquelas propriedades ortográficas
que permitem a escrita correta ou convencional das palavras
(IDEM, p. 97 – grifos nossos).
Como pode ser visto, o autor estabelece uma estreita relação entre tipo-freqüência-
porcentagem com as dificuldades das crianças na compreensão das propriedades ortográficas
da língua. Nesse sentido, um erro sem grande ocorrência, demonstraria uma menor
dificuldade. Seria isso mesmo?
Se essa escala proporcional for levada a extremo, poder-se-ia constatar ou determinar,
então, as tais ”dificuldades de aprendizagem” ou mesmo os “distúrbios de aprendizagem”?
Uma explicação baseada apenas em critérios quantitativos não estaria deixando de lado outros
aspectos que estão em jogo na produção do erro ortográfico?
O autor reforça esse critério quando aponta a diferença entre dificuldades tidas como
parte do processo de aprendizagem daquelas que podem indicar um distúrbio:
Apesar de estarem tendo oportunidades de interagir com a escrita,
parece que, ao contrário de seus pares, não conseguem sair dos
níveis mais elementares ou superficiais de conhecimento. Um dos
indicadores de tal dificuldade pode ser a quantidade de tipos de
erros que a criança apresenta, assim como a freqüência dos
mesmos (ZORZI, 1998, p. 100).
Ele afirma que a trajetória das crianças é semelhante, ocorre apenas uma menor/maior
freqüência de erros. A essa mesma conclusão chegou Nunes et al. (2000), como visto acima,
em seu estudo sobre dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita. Após um
levantamento e categorização dos erros ortográficos, ela estabeleceu comparações entre os
60
erros produzidos por crianças com dificuldades de aprendizagem e por aquelas que não
possuíam essa dificuldade, concluindo que as diferenças eram apenas quantitativas e não
qualitativas, isto é, os erros eram do mesmo tipo, só que apareciam com maior freqüência nos
alunos com dificuldades em leitura e escrita:
[...] com respeito à controvérsia sobre a natureza das diferenças
entre as crianças disléxicas e as outras crianças. Se as diferenças
entre esses dois grupos de crianças, forem, de fato, quantitativas,
como indicam os resultados dos estudos analisados, a prevenção e o
tratamento das dificuldades de aprendizagem da leitura não exigem
medidas excepcionais (NUNES et al., 2000, p. 91 – grifos nossos).
Zorzi admite, no entanto, que, como não foi feito um estudo longitudinal, o corte
realizado encaminhou-se para “uma medida de caráter estático” não oferecendo elementos
para que se tenha “uma idéia mais precisa acerca de como cada uma das crianças,
particularmente, está evoluindo: ficamos limitados à constatação das áreas de maior
dificuldade e da freqüência com que os erros ocorrem” (ZORZI, 1998, p. 101).
Como pode ser visto, as reflexões sobre esses estudos que têm por base a
categorização dos erros ortográficos mostram que há, neles mesmos, uma abertura para
outras interpretações. Os questionamentos levantados apontam para estatutos diferenciados, a
partir de outros pontos de vista.
3.4.
Consciência e memória na aquisição da ortografia
Um estudo longitudinal sobre a aquisição de regras ortográficas, a partir do princípio
de que “os sistemas de escrita o são fiéis à sua base fonológica”, foi realizado por Rego e
Buarque (1997, p. 199) com crianças brasileiras, para testar um estudo com crianças inglesas
(Rego e Bryant, 1993) cuja hipótese sugeria que o desenvolvimento da “consciência sintática”
facilita o processo de aquisição de regras ortográficas.
Inseridos nas pesquisas que enfocam o desenvolvimento de competências
metalingüísticas” relacionados à aprendizagem da leitura e da escrita, esses autores observam,
especificamente, dois campos dessa competência:
61
a) consciência fonológica relacionada apenas à compreensão do princípio
alfabético, envolvendo a decodificação da leitura; e
b) consciência sintática relacionada ao uso do contexto na leitura de palavras
com dificuldades ortográficas, que envolve compreensão em leitura, além da
decodificação,
chegando à conclusão de que: “a consciência sintática é um facilitador específico da aquisição
de regras ortográficas que envolvem análises morfo-sintáticas, enquanto que a consciência
fonológica contribui principalmente para a aquisição de regras de contexto grafo-fônico”
(IDEM, p. 199).
Os autores se propuseram a investigar as contribuições desses estágios de
“consciência”, diferenciando a natureza das regras ortográficas:
as que se apóiam na análise de contextos fonológicos, através de opções gráficas,
como por exemplo o som do /g/ em “gato”, “guerra” e “guidon”; e
as que não são definidas em função do som, mas da classe gramatical, como por
exemplo o ditongo /iw/ em “partiu”, “navio” e “barril”.
Desse modo, estão definidas aí, segundo os autores, as regras de contexto grafo-
fônico, que “acionam” apenas a “consciência fonológica”, e as regras que envolvem análise
gramatical, que necessitam da “conecção” da “consciência sintática”:
[...] a consciência sintática não deve distinguir aquelas que
evoluíram mais das que evoluíram menos quanto à aquisição de
regras ortográficas que envolvam apenas análises grafo-fônicas. A
consciência fonológica deve ser o aspecto da consciência
metalingüística especificamente conectado com a aquisição deste
último tipo de regra ortográfica (IDEM, p. 204 – grifos nossos).
A partir dos comentários dos autores sobre os seus resultados, podemos fazer, aqui,
uma reflexão sobre três pontos:
1) A análise tem como pressuposto a existência de um sujeito “consciente” e em
“desenvolvimento” para distinguir os erros das “palavras” que possuem uma
relação com a oralidade ou com as outras “unidades” contextuais dessa palavra:
62
[...] a aquisição de regras ortográficas que envolvem análise
gramatical é facilitada pelo desenvolvimento da consciência
sintática enquanto que a consciência fonológica contribui
especificamente para a aquisição de regras ortográficas que
envolvem apenas uma análise do contexto grafo-fônico (IDEM,
p. 216 – grifo nosso).
2) O estudo mostra que a consciência fonológica não conta da aquisição da
ortografia, mas apenas de um aspecto dela: regras que dependem da análise do
contexto grafo-fônico e, mesmo a consciência sintática não conta da aquisição
de regras que envolvam “análise gramatical”:
[...] a consciência fonológica não constitui um fator determinante na
aquisição de regras ortográficas que, em última análise, dependem
da utilização de critérios gramaticais, mas que está relacionada à
aquisição de regras ortográficas de outra natureza, isto é, aquelas
que dependem de uma análise mais minuciosa do contexto
grafo-fônico da palavra para verificar qual a grafia que se aplica.
Por outro lado, constatou-se também, que diferenças de
desempenho em tarefas de consciência sintática não são relevantes
para a aquisição de regras que não envolvam diretamente análise
gramatical (IDEM, p. 217 – grifos nossos).
3) O estudo mostra que o dado longitudinal não conta para confirmar uma relação
entre consciência sintática e aquisição de regras:
[...] o dado longitudinal ainda não é suficiente para estabelecer
relações de causalidade entre consciência sintática e aquisição de
regras ortográficas. São necessários, portanto, estudos de
intervenção em sala de aula que permitam verificar se, de fato,
existe uma relação causal e específica entre o desenvolvimento
desses aspectos da consciência metalingüística e a aquisição de
regras ortográficas de natureza distintas (IDEM, p. 217 – grifos
nossos).
Os três aspectos apontados têm em comum: um sujeito consciente que evolui em
estágios de desenvolvimento; um sujeito que “usa e analisa a língua”; e a busca de um
“estágio ideal” de ligação entre consciência, memória e a aquisição da escrita.
Quando esses estudos apresentam as questões fonológicas e concluem que elas não
dão conta da aquisição da ortografia, podemos refletir sobre os problemas decorrentes da
exclusão da face semântica, bem como da separação das faces sintáticas, semânticas e
fonológicas nos estudos sobre a aquisição de linguagem. Sobre essa exclusão, podemos
63
recorrer a Lemos (1995, p. 27) quando diz que: “o compromisso com a fala da criança exige
dos estudiosos da aquisição de linguagem que o assumem, uma séria reflexão sobre o custo de
excluir as questões textuais e discursivas de sua investigação sobre a língua”.
Reivindicando a necessidade de um estudo dos sistemas de escrita (antigos e
modernos) que considerem um ponto de vista “essencialmente lingüístico”, Catach (1995)
interroga a “teoria dos estágios” cuja concepção visa comparar aquisição e história,
considerando a existência de “estágios” primários das línguas:
Seja como for, o que se evidencia em certo momento como a
passagem crucial da pré-história à história parece ter desabrochado
repentinamente como sistema organizado de signos. Por
conseguinte, trata-se de derrubar a perspectiva tradicional da
história das escritas, tanto mais que nossos conhecimentos podem
ser modificados em profundidade pelas descobertas que vêm sendo
feitas [...]
É preciso afirmá-lo com clareza: pela mesma razão pela qual
um lingüista não pode considerar as mais antigas línguas como
“primárias” (no sentido de “primitivas”, simplistas, esboços
desajeitados de nossas línguas atuais), deve ser realmente rejeitada
a famosa e ingênua “teoria dos estágios” de desenvolvimento das
escritas, teoria ainda em curso e que considera como “primários” ou
“primitivos” os primeiríssimos sistemas gráficos surgidos na
história (CATACH, 1995, p. 18-9).
Contrariamente ao pressuposto da “consciência fono-gráfica”, Lalande & Gagné
(1988) defendem que o CS (conhecimento específico) depende da “imagem global da
palavra”. Eles apresentam o que é chamado de um “modelo sucinto” de aprendizagem da
ortografia lexical em séries iniciais, constituído de três dimensões que considera: 1) um
conhecimento específico (relacionado a cada palavra) e geral (relacionado ao sistema
ortográfico); b) a produção de escrita conforme a ortografia; e 3) o estudo da escrita. Segundo
os autores, o modelo se constitui numa “poderosa ferramenta” tanto de análise de erros como
de intervenção pedagógica.
Partindo desse viés tridimensional, ou seja, conhecimento-produção-estudo, os autores
definem a aprendizagem da ortografia como:
aquisição de conhecimentos relacionados ao sistema;
aprendizagem da escrita;
estudo do funcionamento da ortografia.
O modelo apresentado envolve as seguintes etapas ou caminhos:
64
Conhecimento ortográfico Produção ortográfica Estudo da ortografia
1) conhecimento específico
de:
fonogramas,
morfogramas,
elementos logogrâmicos
componentes lexicais
2) conhecimento geral de:
grafemas
regras
1) produção:
geração de imagens
realização de imagens;
2) verificação da grafia:
revisão
controle externo
1) observação
2) comparação oral-escrita
3) decomposição lexical
4) derivação
5) memorização
6) comparação de palavras
7) comparação grafia-
ortografia
Por sua vez, essas dimensões estão relacionadas, como pode ser visto, aos processos
psicológicos de aquisição, retenção e utilização da informação, quando os autores dizem que:
Numa ordem funcional, estudo, organização de conhecimento
e produção escrita correspondem aos processos de aquisição, de
retenção e de utilização da informação (Lindsay et Norman,
1977). A aquisição de um conhecimento estabelecido constitui o
‘estudo da ortografia’. A retenção desses conhecimentos, isto é, a
sua organização na memória de maneira à assegurar-lhes a
acessibilidade constitui o que se pode chamar de ‘conhecimento
ortográfico’. A utilização adequada desses conhecimentos na
produção escrita conforme a ortografia constitui ‘a produção
ortográfica’ (LALANDE & GAGNÉ, 1988, p. 88 – grifos nossos).
O conhecimento ortográfico está delimitado no quadro acima como “específico”
(CS), quando associado ao conhecimento de uma palavra particular do léxico do indivíduo,
“adquirida pela imagem global dessa palavra retida na memória” (IDEM, p. 88 grifos
nossos) e “geral” (CG), quando associado ao conhecimento abstrato de um conjunto de
regras do sistema ortográfico. A distinção entre esses dois conhecimentos, apresentada pelos
autores, pode ser exemplificada por uma palavra da língua portuguesa como CACHORRO, ou
seja, saber que /ƒ/ se escreve ”ch”, constitui-se um CS, (um conhecimento pela retenção da
palavra na memória); e saber que “ch” é uma grafia possível para /ƒ/, na ngua portuguesa,
seria um CG (um conhecimento pela apreensão de uma regra da língua).
Outra dimensão da aprendizagem da ortografia, segundo os autores, é a produção
ortográfica que implica buscar as informações ortográficas da memória para produzir uma
escrita conforme a norma:
Se a estruturação da informação ortográfica na memória
constitui a dimensão central da aprendizagem da ortografia, a
65
produção ortográfica é a principal razão desta aprendizagem. Desse
modo, efetivamente, ninguém estoca da memória uma informação
que não seja suscetível de utilização (IDEM, p. 92 – grifos nossos).
Eles acrescentam que apenas o conhecimento ortográfico não garante uma escrita
correta, mesmo que os elementos estejam todos na memória, isto porque os deslizes estão a
todo instante no processo de escrita: “Os restos podem, também, deslizar a todo instante do
processo de escrita” (IDEM, p. 92).
Mesmo reconhecendo essa possibilidade de “deslizes”, o estudo não estende este
ponto para a explicação do erro, uma vez que está centrado nos aspectos psicológicos ligados
à “memória” e à “geração da imagem fônica”. Esses aspectos permanecem quando os autores
fazem referência ao estudo da ortografia como parte da aquisição do sistema ortográfico da
língua. Estudar ortografia diferencia-se do ato de ler, uma vez que requer um debruçar-se
sobre o funcionamento das estruturas lingüísticas, enquanto que a leitura requer
conhecimentos do “saber geral do indivíduo”.
Por essa posição, cabe-nos observar que o erro ortográfico está totalmente
desvinculado das relações sujeito/língua, ou seja, das relações que se estabelecem nos textos
(que são os objetos da leitura e escrita).
O estudo da ortografia supõe o aluno diante de palavras escritas conforme o código da
língua, para que ele possa, segundo os autores, desenvolver processos como os de:
“observação, comparação das formas oral/escrita, a decomposição, a derivação, a
mnemotécnica, e a comparação (de palavras entre si e de palavras com a sua escrita correta)”.
Finalmente, a comparação dos códigos oral/escrito, pelos autores, é levada também
para os procedimentos de estudo da ortografia:
Pela analogia da situação com certos momentos do processo de
produção escrita, os procedimentos de estudo da ortografia são os
mesmos que favorecem o desenvolvimento de estratégias adaptadas
à lembrança de informações ortográficas na memória (IDEM, p.
98 – grifo nosso).
A idéia de auto-suficiência do aluno que cria estratégias para lembrar aquilo que foi
memorizado perpassa por esse e outros estudos quando tentam explicar os erros produzidos.
O que dizer então de erros que fogem das categorizações apresentadas nesses estudos?
Erros que não parecem depender da consciência do aluno ou serem problemas decorrentes de
falta de atenção? Acreditamos que a interpretação dos erros ortográficos episódicos e
66
singulares pode nos ajudar a refletir sobre as articulações subjetivas entre sujeito e língua. Os
dados que apresentaremos sobre esses erros serão vistos a partir de um outro lugar teórico, um
lugar na teoria lingüística que considera o erro singular como efeito de língua.
67
4.1.
O dado indiciário: intuição e subjetividade do
investigador
Acreditamos que um olhar para o erro singular oferece possibilidades de explicações
mais acuradas sobre a relação sujeito/língua que, muitas vezes, fica prejudicada quando se
leva em conta apenas o que se apresenta como estabilizado no funcionamento da língua, como
o que vimos até agora nos estudos que se detêm sobre a categorização do erro ortográfico.
Procuraremos encaminhar uma discussão sobre os trabalhos que tomam como objeto
de estudo o dado singular e, a partir desses olhares, indicar possibilidades de uma construção
teórica sobre o estatuto do erro ortográfico singular, no campo da aquisição de linguagem.
Não queremos, com isso, tentar anular os procedimentos de análise centrados em dados
passíveis de categorização, como diz Abaurre (1997), mas ativar um olhar lingüístico-
discursivo sobre o que fica desse procedimento. É sobre o trabalho de pesquisa dessa autora
que encaminharemos as próximas reflexões sobre o erro ortográfico.
O grupo de pesquisas
19
coordenado por Abaurre (1997) com a participação de Fiad
(1997) e Mayrink-Sabinson (1997) trouxe uma importante contribuição aos estudos sobre o
erro singular, pela possibilidade de “enfrentamento do resíduo”, de “confronto com o resto”,
segundo avaliação de Carvalho (1995, p. 83)
20
, “chamando a atenção para a variação e o
singular, os quais são excluídos quando da constituição de um todo teórico homogêneo”.
19
Os trabalhos do grupo foram encaminhados, numa primeira fase, para o tema: “A Relevância Teórica dos
Dados Singulares para a Aquisição da Linguagem Escrita” e, atualmente, para o tema: “Subjetividade,
Alteridade e Construção do Sentido”.
20
Carvalho (1995, p. 49) estabelece três tipos de abordagens sobre a fala da criança, nas teorias lingüísticas,
inserindo a de Abaurre no terceiro tipo: “[...] aquelas que excluem a fala da criança, tratando-a como um resíduo
que precisa ser apagado ou ‘higienizado’, aquelas que transformam o resíduo a fim de recompor uma totalidade e
aquelas que enfrentam o resíduo”.
A SINGULARIDADE
DO (NO) ERRO
68
As pesquisas desse grupo sobre os dados singulares na escrita têm sido estendidas por
Chacon (1999) quando trata do emprego da pontuação e dos aspectos rítmicos da linguagem,
buscando a “apreensão singular”
21
, à luz de um paradigma indiciário, e por Corrêa (1997)
quando aborda a heterogeneidade como evidência de um caráter específico da relação
escrevente/linguagem, em redações de vestibulandos. Além disso, os pressupostos
desenvolvidos por esses pesquisadores têm servido de base para reflexões e discussões em
diferentes grupos de pesquisa, promovendo uma ressignificação dos conceitos apresentados
inicialmente por eles.
O programa de investigação do grupo tem como pressuposto teórico o chamado
Paradigma Indiciário cujo modelo epistemológico está fundado “no detalhe, no resíduo, no
episódico, no singular”, contrariando o paradigma galileano baseado apenas na quantificação
e na repetibilidade dos dados. Para justificar o procedimento de pesquisa Abaurre (1999, p.
169) explica que se a realidade é opaca, então, “deve-se contar com dados privilegiados
sinais, indícios para decifrá-la, para descobrir regularidades que subjazem aos fenômenos
superficiais”.
A autora define dois encaminhamentos metodológicos para um trabalho com os
“indícios”: a) os critérios de identificação e seleção dos dados e b) o conceito de ‘rigor’
metodológico. Para o primeiro, levanta-se uma questão: o que é um dado singular, se de uma
forma geral todo e qualquer dado quando tomado em relação a outro, é singular? E para o
segundo, a reflexão de que o ‘rigor’ não pode ser o mesmo do paradigma galileano que tem
como base a quantificação do regular. Nesse sentido, a reflexão da autora é incisiva:
Torna-se necessário, pois, em um paradigma indiciário, o
estabelecimento de um rigor metodológico diferenciado daquele
instaurado pelas metodologias experimentais, uma vez que o olhar
do pesquisador está voltado, nesse paradigma, para a singularidade
dos dados. No interior desse ‘rigor flexível’ (tal como o denomina
Ginzburg) entram em jogo outros elementos, como a intuição do
investigador na observação do singular, do idiossincrático, bem
como sua capacidade de, com base no caráter iluminador desses
dados singulares, formular hipóteses explicativas interessantes
para aspectos da realidade que não se deixam captar diretamente,
mas que podem ser recuperados através de sintomas ou de indícios
(ABAURRE, 1999, p. 170 – grifos nossos).
21
Como “apreensão singular” Chacon (1999, p. 188) define a atitude do sujeito de sua pesquisa diante de um
aspecto normatizado da escrita, a pontuação: “ao observarmos as marcas de pontuação, pretendemos buscar a
apreensão singular, por parte de ML, desse aspecto normatizado da escrita, procurando ver nessa apreensão não
exatamente uma sujeição a normas “institucionalizadas”, mas, antes, uma construção de hipóteses sobre a
operacionalização e importância da pontuação na escrita”. Interrogamos, neste trabalho, essa noção de sujeito
que opera sobre a língua construindo hipóteses.
69
No entanto, a nosso ver, apenas a intuição do investigador não deve ser considerada
como o principal ponto para a explicação. Não seria a intuição do investigador uma
justificativa centrada “fora” da língua, isto é, distanciada do objetivo de uma formulação
teórica no campo da lingüística? As reflexões da autora sobre a singularidade e sobre a análise
que faz de um dos seus dados podem comprovar o que pretendemos apontar.
Abaurre (1997) comentando a relevância teórica dos dados singulares,define caminhos
metodológicos para a descoberta de elementos que expliquem a relação sujeito/língua no
processo de aquisição da linguagem. Atenta, também, para o fato de que a reflexão fundada
no paradigma indiciário pode contribuir para uma melhor compreensão da relação entre o que
é universal e o que é singular no processo de aprendizagem, afirmando que muitas vezes as
pesquisas em aquisição da linguagem apenas descrevem produtos circunstanciais, e acreditam
que, assim, estão explicando o processo de aquisição.
Os dados singulares geralmente têm sido tomados nas análises como “resíduossem
grandes contribuições para uma sistematização. Sobre esses dados “desprezados”, a autora
afirma que são
ocorrências únicas que, em sua singularidade, talvez não voltem a
repetir-se jamais, exatamente por representarem instanciações
episódicas e locais de uma relação em construção, entre o sujeito e
a linguagem. Se considerarmos teoricamente relevante entender a
natureza dessa relação, essas ocorrências podem adquirir o estatuto
de preciosos dados, pelo muito que sobre a relação mesma nos
podem vir a revelar (ABAURRE, 1997, p. 18).
A autora afirma que os casos mais comuns de refacção, ou seja, de uma volta ao que
se escreve para algum tipo de modificação desse escrito, nos textos de escolares, dizem
respeito à correção ortográfica (critério escolar de qualidade do texto escrito), mas
acrescentam que, subjacente a uma preocupação com a ortografia, encontram-se “motivações,
as mais variadas, reveladoras das singularidades dos sujeitos e da relação por eles estabelecida
com a linguagem” (IDEM, p. 24 – grifo nosso).
Se se entende “motivação”, num sentido amplo, como “uma modificação do
organismo” ou, mais especificamente, como fator psicológico (consciente ou não), que
predisponha o indivíduo, animal ou ser humano, a efetuar certos atos ou a tender para certos
objetivos, como, por exemplo, uma necessidade, uma tendência” (PIERON, 1973, p. 286)
22
,
22
Esta é uma definição de Pieron (1973) no Dicionário de Psicologia (Porto Alegre: Ed. Globo, 1973).
70
não estaria aquela explicação da autora confirmando a aquisição da linguagem como
determinada por uma ordem psicológica, (de predisposição para atender a uma necessidade
intelectual ou afetiva) e até fisiológica (de modificação do organismo)?
Em texto anterior (ABAURRE, 1997), quando explica a produção singular de uma
criança, a autora afirma que:
Não temos como explicar esse comportamento a não ser por
características muito particulares de um sujeito singular para quem,
na relação com a linguagem, aspectos específicos de forma,
conteúdo e contexto de produção dos textos adquirem uma
saliência em última análise determinante das ocorrências
singulares. Estas, por sua vez, estão a sinalizar a singularidade do
sujeito (ABAURRE, 1997, p. 26 – grifo nosso).
Como pode ser observado, mais uma vez, uma ordem psicológica (a de saliência)
estabelece a ligação entre ocorrência singular e sujeito singular, como aponta Carvalho (1995,
p. 89): “Desse modo, essa abordagem recai, paradoxalmente, num movimento circular entre a
singularidade do sujeito e a singularidade das ocorrências e num psicologismo contido no
conceito de saliência”.
Sobre essa circularidade, Felipeto (2003) também chama a atenção quando afirma que
ela pode
[...] esbarrar em um impasse insolúvel culminando por estancar a
própria explicação, de modo que todo efeito produzido sobre aquilo
que foi escrito e seu apagamento permanece ancorado em uma
esfera Imaginária em que a empiria ofusca os movimentos da
própria língua e dos discursos nas suas relações constitutivas com o
sujeito (FELIPETO, 2003, p. 80).
Recorramos, então, para maiores reflexões, à análise do texto “O monstro assassino”,
de Mariana (5
a; 4 m):
O Novo Aurélio Século XXI (1999, p. 1371) um conceito de motivação como: “um conjunto de fatores
psicológicos (conscientes ou inconscientes) de origem fisiológica, intelectual ou afetiva, os quais agem entre si e
determinam a conduta de um indivíduo”. Motivação também é definida no Dicionário de Filosofia (Abbagnano
2000, p. 685) sob duas perspectivas: uma psicológica e outra filosófica: “Os problemas da motivação são, por
um lado, de natureza psicológica e concernem ao modo de agir dos motivos, passível de observação pelos
instrumentos de que a psicologia dispõe; e, por outro lado, são de natureza filosófica, porquanto dizem respeito
aos limites ou as modalidades de determinação, portanto à liberdade e ao determinismo”.
71
(ABAURRE, 1997, p. 63)
O texto produzido por Mariana foi o resultado da solicitação de um adulto, em casa,
para que escrevesse uma história. Abaurre (l997) destaca, na análise que faz dessa escrita,
tanto a “preocupação” da criança com a escolha de letras, no caso, S ou C na palavra
APARECEU, como uma “reelaboração” da representação da estrutura silábica CCV na
palavra MONSTRO, com cinco ocorrências no texto: MOSRTO, MOSRTO, MOSRTO,
MOSTO, MOSTO. Segundo a autora, o que “perturbou” a criança naquele momento “foi a
representação escrita de uma sílaba ‘complexa’, com o onset
23
ramificado (do tipo CCV)”
(ABAURRE, 1997, p. 64); uma preocupação, segundo a autora, que não se estendeu à palavra
ENFRENTAREM (IFETAREI) com o mesmo tipo de ”complexidade” na segunda sílaba.
Os comentários da autora mostram uma descrição do erro e do possível percurso de
reelaboração da palavra MONSTRO sem, contudo, haver uma tentativa de explicação desse
erro, na escrita da criança. As observações feitas pela autora sobre “A preocupação de
Mariana: o número e a posição das letras nas sílabas” (IDEM, p. 63, 64 grifo nosso) recaem
sobre os seguintes pontos:
uma tentativa da criança de escrever ‘corretamente” a palavra MONSTRO (p. 64);
uma comprovação das operações de reelaboração (p. 64);
23
Onset ou ataque é um dos constituintes da estrutura interna da sílaba, unidade fonológica que, segundo
Abaurre (1999, p.180): “é dotada de uma estrutura não-linear de constituintes, que definem uma hierarquia
interna em que a sintaxe interna (máxima) é a seguinte”: o início seria o onset ou ataque, o ponto máximo seria o
pico ou rima e esta, por sua vez, teria ou apenas núcleo, ou um núcleo e uma coda. Exemplificando com as
sílabas da palavra “susto” , teríamos:
A primeira – sus: com onset ou ataque: s; e com a rima, dividida em núcleo: u, e coda: t
A segunda – to: apenas com ataque: t, e uma rima simples: o.
72
a sinalização de uma escrita “mais fluente” com uma melhor distribuição dos
espaços entre as letras, na 3ª ocorrência da palavra (p. 64);
as operações da criança com algo que a “perturba”: a escrita de uma sílaba complexa
(CCV) (p. 64);
o fato de a criança ter “operado localmente” diante de um aspecto específico sem,
contudo, ter “sistematizado” uma conclusão particular (de inserir o R nas duas
últimas ocorrências da palavra) (p. 64).
Essas explicações da autora parecem ainda não dar conta do que poderia ter provocado
as diferentes escritas de "monstro". Cabe, aqui, ainda, perguntar: Por que a suposta
“preocupação” de Mariana centrou-se em MONSTRO e não se estendeu para
ENFRENTAREM? Por que o R está nos três primeiros registros e não nos dois últimos? O
que nos pode revelar a posição ou o lugar de R na palavra MONSTRO? O que esses
"consertos" podem revelar sobre a relação da criança com a escrita?
Um ponto a ser observado é a apresentação do sujeito autônomo, situado num plano
diferente da linguagem, um sujeito que “trabalha” com essa linguagem, operando,
sinalizando, sistematizando. Esse entendimento da produção lingüística como trabalho é
enfatizada por Fiad (1997, p. 1) quando diz que: “Essa abordagem é decorrente do
entendimento de que a produção lingüística é resultante de um trabalho que os sujeitos
realizam com a linguagem”. Segundo Faria (1997, p. 38-9), comentando o trabalho de
Abaurre, nessa concepção o sujeito é um elemento dotado de uma capacidade de reflexão e a
linguagem é o objeto dessa reflexão: “As rasuras, objeto específico de estudo da área, são, a
partir desses pressupostos, entendidas como resultado do movimento de apreensão subjetiva
do objeto linguagem, indo o sujeito ‘das operações epilingüísticas até a reflexão
metalingüística, mais controlada, planejada e consciente’”.
Os questionamentos feitos por Felipeto (2003, p. 81) cabem aqui porque nos levam a
refletir sobre uma suposta autonomia ou um controle do sujeito sobre a língua: “Se há
realmente ‘reflexão’ consciente ou metalingüística, por que ela é tão intermitente e tantas
vezes não se manifesta? Se a reformulação resulta de uma atitude de reflexão do sujeito, por
que ela não se realiza em todo o texto ou, pelo menos, em boa parte dele?”
Podemos dar um outro direcionamento à discussão sobre o erro singular, a partir da
questão levantada por essa autora: “como interpretar tal heterogeneidade tomando a ordem
própria da língua enquanto domínio fundamental?”.
73
Numa discussão sobre o singular, Romualdo (2000), em Um lugar preferido pelos
românticos: o singular, faz referência à pesquisa coordenada por Abaurre como um lugar de
valorização do singular pela lingüística. Ele tenta mostrar, a partir da justificativa das autoras
para a adoção do “paradigma indiciário” na explicação da relação sujeito/linguagem, que a
subjetividade revelada pelo singular na linguagem não é uma subjetividade apenas dos dados,
mas está determinada, também, pela subjetividade de quem olha e desvenda o que é singular:
Do nosso ponto de vista, se é verdade que as posições teóricas são
explícitas em considerar a linguagem como lugar em que a
subjetividade se mostra, não são claras, no entanto, em relação à
necessidade de se incorporar a própria subjetividade das
pesquisadoras no tratamento dos dados. [...] a interpretação das
pistas repõe a questão da própria interpretação, que, embora muito
temida, não se pode fugir dela quando se trata da linguagem
(ROMUALDO, 2000, p.103 – grifo nosso).
Desse modo, analisar o singular em dados de uma língua constituída também pelo
regular é uma escolha do pesquisador, uma vez que, “na linguagem, a repetição (relacionada à
quantidade) e a criação (associada, de algum modo, à singularidade) estão presentes
simultaneamente em todo e qualquer discurso.” (IDEM, p. 104); no entanto, nessa escolha
pesa, segundo o autor, a subjetividade também do analista:
favorecendo, então, a singularidade do discurso, no processo de
explicitação do lugar-comum, temos que levar em conta certos
indícios. Desse modo, a questão da interpretação, atividade em
que a própria subjetividade daquele que interpreta está em jogo,
aparece de forma patente (IDEM, p. 104 – grifo nosso).
O autor, no entanto, na ênfase que dá à constituição do singular nos dados determinada
pela interpretação do olhar” que se detém nesses dados, deixa de tocar num ponto
fundamental: o papel da língua marcada pelo equívoco, pela falta, ou seja, o singular
interpretado pela ordem própria da língua, conforme Saussure ([1916] 1989).
Podemos, então, afirmar que o sujeito que produz o erro singular não o produz por
determinação própria, mas pelo seu submetimento ao funcionamento da ngua. É certo que,
nesse processo, estão imbricadas as subjetividades do aluno produtor e do pesquisador
analista, no entanto, o lugar onde o erro emerge é o lugar da ‘brecha’, da ‘quebra’ do todo, em
que o real da língua se mostra.
74
Além dessa discussão sobre o trabalho de Abaurre, Romualdo (2000, p. 101) traz para
os estudos sobre a singularidade, uma contribuição significativa: a de que o dado singular
somente pode ser concebido pela sua relação com o dado categorizável. O autor recorre à
teoria da argumentação cuja característica é “evocar justamente uma outra argumentação
contrária”, para fundamentar a discussão sobre o que ele chama de lugar da qualidade em
contraposição a lugar da quantidade.
Para ele, se um determinado lugar logo evoca o seu contrário, o lugar da qualidade
somente pode ser considerado “conjuntamente” com o lugar da quantidade, ou seja, para
caracterizar a qualidade, supõe-se a afirmação da quantidade que aparece como “lugar do
duradouro (em oposição ao precário), como lugar do provável (em oposição ao improvável)”
(IDEM, p. 102-03). Se o lugar da quantidade está relacionado, segundo o autor, à “preferência
concedida ao fácil e àquilo que se apresenta como habitual”, a ênfase é dada, no entanto, ao
singular, ao único: “o lugar da qualidade pode aparecer como lugar do irreparável, o lugar do
único, o lugar do original e raro (por oposição ao comum, ao corriqueiro, o lugar do precário
que valoriza aquilo que está ameaçado e, por isso, ganha um valor iminente)”.
Acreditamos poder ter demonstrado que olhar para o erro ortográfico requer uma
interpretação fundada teoricamente em uma noção de língua e de sujeito mais rigorosa,
evitando, assim, apenas uma descrição do erro ou apenas uma interpretação fundamentada por
conceitos como os de “motivação do sujeito” ou “intuição do investigador”.
4.2.
O erro e sua possibilidade material de língua
Os dados singulares têm sido debatidos e analisados em diferentes investigações em
aquisição da linguagem oral e escrita, ganhando maior relevância e visibilidade, apesar de
nem sempre compartilharem das mesmas bases teóricas. Dentre esses estudos, é
representativa a constituição do quadro teórico e conseqüentes análises realizadas por estudos
filiados à reflexão de Claudia Lemos, cujos pressupostos teóricos que sustentam a noção de
“singular” são distintos dos que temos visto nos estudos sobre o erro ortográfico.
Redirecionando o olhar que se tem dado a esse erro, buscaremos explicações em
estudos realizados, cujo ponto de observação está na singularidade não apenas do dado em
si ou do sujeito que “trabalha” a língua, mas do sujeito submetido ao funcionamento da
75
língua. A partir desse olhar, também singular, para os dados, procuraremos estabelecer os
limites para uma definição do que seja o erro singular, neste trabalho, refletindo com
Carvalho (1995, p. 19) quando diz que: “Em todas as reflexões sobre a linguagem, faz-se
presente uma bipartição entre o possível e o impossível ou o correto e o incorreto, o certo e
o errado, o adequado e o inadequado, etc”. E, se é na linguagem que a questão do erro faz-se
mais presente e se queremos dar ao erro um estatuto teórico: “devemos fazê-lo a partir da
teoria lingüística”.
Partiremos, então, do conceito de equívoco” discutido por Milner (1987) quando o
relaciona ao “problema lógico da incompletude”. Para o autor, a gramática representa a
completude da língua e para que essa completude seja afirmada, ela dispensa o equívoco, uma
vez que este suspende o seu estatuto de completude:
A gramática representa a língua, mas não por uma escrita
simbólica. Em vez disso ela constrói uma imagem: a exigência de
completude toma, então, uma coloração imaginária e se transpõe
em termos de totalidade: totalidade qualitativa, isto é, perfeição
por isso toda gramática é, ao mesmo tempo, um elogio da língua
descrita -; totalidade quantitativa é por isso que concebemos
uma gramática se ela for completa. A noção de fragmento
gramatical é uma contradição [...] (MILNER, 1987, p. 26grifos
nossos).
que a exigência de completude na lingüística funciona de forma diferente dos
sistemas lógicos:
A representação lingüística é específica da ordem da ciência: a
exigência de completude funciona aí, pois de forma diferente, não
mais se comparando a uma totalidade externa, mas a critérios
internos. Pode-se, a partir daí, conceber fragmentos de lingüística,
e, para dizer a verdade, é a única coisa concebível: não existe
lingüística completa [...] (IDEM, p. 27 – grifos nossos).
Nos sistemas lógicos da ciência, segundo o autor, os paradoxos quebram a totalidade
através de critérios externos, enquanto que na lingüística o equívoco rompe com a totalidade
da língua, através de critérios internos. Podemos representar uma comparação entre o todo da
língua (a gramática) e o todo da lógica, assim:
Não-todo lógico – EXTERIOR ao todo
Não-todo lingüístico – INTERIOR ao todo
76
Por isso ele havia afirmado (MILNER,1987, p. 15) que a particularidade da língua
atêm-se “apenas às séries em que sua unicidade se decompõe”. E, ainda: “Um modo singular
de produzir equívoco, eis o que é uma língua entre outras. Assim, ela se torna coleção de
lugares, todos singulares e todos heterogêneos: de qualquer lado que se a considere, ela é
outra para ela mesma, incessantemente heterotópica”.
A lingüística como ciência empírica necessitou de uma teoria formalizável que a
levasse a se constituir como um todo, exigindo os critérios de controle, certeza e
previsibilidade. Milner (1989) destaca a importância de se decidir entre as possibilidades e as
impossibilidades da língua, através da seguinte proposição:
a) Possível material (P) – o dado lingüístico, o que é realizado
b) Impossível material (~P) – o que não existe enquanto dado empírico
c) Possível lingüístico (Q) – o que é aceitável na língua
d) Impossível lingüístico (~Q) – o inaceitável na língua
Assim, a decisão deve estar em torno do que se constitui como possibilidade material,
para saber se esse dado empírico é uma possibilidade lingüística, mesmo porque se uma forma
for julgada impossível ela já é uma possibilidade material.
Como a intersecção entre P e Q não oferece problemas, uma vez que tudo o que é
considerado possível na língua é também um dado atestado materialmente, e como a
intersecção entre ~P e ~Q também o, uma vez que não interessa à teoria lingüística o que
nem se realiza materialmente nem é considerado aceitável, enfrentaríamos problemas nas
seguintes combinações:
~P e Q um impossível material, mas possível lingüístico, não verificado
empiricamente;
P e ~Q um possível material, mas impossível lingüístico, estando justificada a
existência de uma gramática.
Os exemplos apresentados por Lyons (1987, p. 106) para fazer uma distinção entre
gramaticalidade e significação caberiam aqui. Para a primeira das proposições apresentadas
77
acima, teríamos: “tarde levantou esta manhã ele” e, para a segunda, o clássico exemplo de
Chomsky: “idéias verdes incolores dormem furiosamente”.
Milner afirma que a atividade gramatical não consiste em registrar os dados de língua,
mas em emitir sobre eles um julgamento diferencial. A atividade gramatical deverá
reconhecer entre os dados de língua atestados, esta diferença. Ele aponta que mesmo nos
casos em que os dois possíveis coincidem, isto soluciona apenas poucas das dificuldades que
esta questão coloca.
Sobre a não-coincidência desses pólos (~P e Q, P e ~Q) Milner diz que é que se
manifesta a originalidade da atividade gramatical, ou seja, no caso em que um dado
materialmente atestado é julgado como impossível:
A atividade gramatical terá a reconhecer, entre os dados de língua
atestados, esta diferença. E ter consigo que o caso de coincidência
entre os dois tipos de possíveis solucionam apenas poucas das
dificuldades, assim como, a originalidade da atividade gramatical se
manifesta somente nos casos em que os dois possíveis não
coincidem: assim, a intervenção gramatical mais importante tem
lugar quando um dado materialmente atestado é julgado
lingüisticamente impossível (MILNER, 1989, p. 56).
E, ainda, que, nem sempre coincidência entre as possibilidades da língua e as
possibilidades materiais:
pelas extensões, transposições, analogias, em suma, pelos
raciocínios, se chegará também, mas mais raramente, que a
gramática declara lingüisticamente possível, dados materialmente
inatestados. Venhamos agora suspender a possibilidade geral de
toda gramática e passar a hipótese seguinte, que se pode bem
nomear como a hipótese gramatical mínima: O possível de língua e
o possível material podem não coincidir (IDEM, p. 57).
Poderíamos, então, situar o erro singular num possível material, mas não num
possível lingüístico? E entendermos daí o motivo pelo qual o erro singular é considerado na
Lingüística como resto?
Relacionando as representações postas por Milner aos dados que analisa, Felipeto
(2003, p. 30) comenta que “o possível material que a Lingüística comporta fica entre os
limites do possível e impossível de língua e apaga aquilo que constitui apenas um possível
material. Isto significa descartar o não-repetível, isto é, o singular”.
78
Carvalho (1995) também comenta a suposta completude da teoria lingüística, quando
diz que ela:
não comporta um possível material fora da oposição Q vs ~Q. Neste
sentido, no âmbito do próprio sistema teórico, o P que não for Q
deve ser, necessariamente ~Q, não sendo admitida a equação P=
~(Q ou ~Q), a qual deve, então, ser considerada como resto e,
portanto sujeita a um apagamento ou a um esquecimento, para
que não se comprometa a completude (CARVALHO, 1995, p. 23
– grifos nossos).
E, segundo a autora, como somente interessa à teoria lingüística o enunciado fora das
“condições singulares de sua enunciação” (que não se repete jamais) esse interesse atende à
exigência de:
1 – repetibilidade – o caráter científico de tal teoria se sustenta no que é repetível;
2– exclusão um elemento que não seja repetível termina por ameaçar o “requisito lógico da
completude”, tendo que ser excluído.
Desse modo, se o dado singular não for colocado de lado na teoria lingüística ele
termina por ameaçar-lhe a completude.
Tecendo comentários sobre a relação erro/norma na aquisição da linguagem a autora
afirma que os erros chamados nesta área de erros de “ultrarregularização” ou reorganização”
(por ex.: quando a criança diz “fazi” estaria regularizando uma forma regular) consistiriam
num possível lingüístico, porém sem pertencer à norma: “[...] ao se falar de erro em aquisição
da linguagem, trata-se de uma combinação prevista pela estrutura da língua, mas que escapa
ou se desvia da norma” (IDEM, p. 45).
Esse tratamento do erro na fala da criança obteve destaque através das pesquisas de
Figueira (1995, 1996) que faz uma distinção entre erro reorganizacional como tentativa de
alinhamento ou sistematização de uma forma lingüística proferida anteriormente, e
ocorrências enigmáticas que provocam interrogação ou estranhamento, que convocam
interpretação.
Segundo Figueira (1996, p. 146), a partir do momento em que o erro em vez do acerto
tomou esse lugar na aquisição da linguagem, foi possível tê-lo “como dado privilegiado de
análise, porque dotado de uma transparência quanto à relação sujeito-linguagem, inexistente
na sua contraparte, o ‘acerto’”.
79
Para a autora, o erro reorganizacional pode ajudar na formulação de hipóteses “sobre o
domínio progressivo que a criança tem de sua língua” (FIGUEIRA, 1996, p. 57 grifo
nosso).
Um dos focos de análise dessa autora é a “criação” de formas verbais prefixadas por
DES-, como “desmagrecer (por emagrecer), desabrir (por fechar), desmurchar (por encher ou
esvaziar), deslimpar (por limpar), deslaçar (por tirar o laço), dessair (por sair), etc.” que ela
considera como
produto de um movimento em direção à sistematização, à
constituição de um recurso lingüístico, na medida em que um
significante (DES-) se mostra investido de um significado regular.
As inovações resultantes [...] não são, num certo sentido,
totalmente imprevisíveis. Seriam criações que podem ser
contempladas por um funcionamento presente no mecanismo da
língua (IDEM, p. 157-58 – grifos nossos).
Um exemplo para o que ela chama de ocorrência enigmática é selecionado do corpus
numa tentativa de estabelecer a diferença entre erro reorganizacional: uma criança,
respondendo a um cumprimento (“oi!”), diz “desoi”
24
. Essa ocorrência surpreende a autora
pela ligação do morfema DES- a uma interjeição, um item que não expressa ação como nos
outros exemplos (desabrir, deslimpar...), afirmando que “a incidência desse processo é
imprevisível” uma vez que contraria a hipótese do saber da criança sobre a classe sintática que
receberia DES- (BOWERMAN, 1982, p. 325). Para Figueira (1996, p. 158), o exemplo seria
um indício de que “erro e enigma estão juntos na aquisição da linguagem”.
Dos comentários da autora sobre o erro reorganizacional, teríamos três observações: a
primeira, concernente à idéia de “domínio” da língua por parte da criança, estando a língua a
serviço do sujeito e não este a ela submetido; a segunda, ligada à noção de etapas progressivas
de desenvolvimento da linguagem da criança; e a terceira, relacionada ao potencial criador, à
inovação como ação do sujeito que “manipula a língua”. Refletindo sobre esses dados,
Felipeto (2003, p. 58) afirma que “há, aí, explicitamente, uma inclinação quanto à idéia que
este “gradual domínio” da criança (ou de quem quer que seja) sobre a língua traz: a da língua
enquanto objeto de uso”.
24
O contexto dessa fala é o seguinte (Figueira, 1995, p. 153):
(A chama a atenção de J para um papagaio bem falante, que fica na sacada de uma casa, ao lado da qual estão
passando)
A . Cê viu, Ju, aquele papagaio que fica ali na casa?
J . É, ele fala oi, oi, oi! Desoi
, desoi, desoi! (D – 5;1.7)
80
Uma questão que gostaríamos, ainda, de levantar: os exemplos apresentados por
Figueira não estariam num mesmo patamar? Não seriam possibilidades da língua?
Sobre o erro regularizador, Carvalho (1995, p. 58) admite que ele “indica uma certa
unidade, uma certa organização, ou melhor, revela um movimento organizador ou,
poderíamos mesmo dizer, uma ‘intenção organizadora’ do investigador projetada sobre a
criança”. Desse modo, segundo a autora, acerto e erro estariam agora sob a denominação de
erros de saber e erros de não saber, trazendo novos questionamentos:
Indaga-se: não estaria o erro que não indica um saber, sendo agora
excluído dos estudos da linguagem da criança? Ou seja, usando
palavras de Cláudia Lemos (1984): não se estaria procedendo a uma
‘higienização dos corpora estudados, relegando à classe de
resíduos’ os dados que vão de encontro à hipótese de regularização?
(CARVALHO, 1995, p. 58).
O que seria, então, o erro singular? Como poderíamos classificá-lo? Seria o irrepetível,
ou seja, aquela ocorrência única em meio a produções que se repetem várias vezes no corpus?
Seria aquele cuja ocorrência insignificante (apesar de repetido) não pudesse ser encaixado
numa determinada categoria (já presente nas pesquisas), sendo definido sob o título de
“Outros” (ZORZI, 1998)? Seria uma outra interpretação para um erro categorizável, dando-
lhe um estatuto de singular (ABAURRE, 1997)? Seria aquele “enigma” que não pudesse ser
tido como “erro reorganizacional” (FIGUEIRA, 1995)?
Para esta autora, colocar em pólos diferenciados o erro (reorganizacional) e o enigma
(singular) seria inútil, a “polarização hipotetizada” perderia o sentido, uma vez que uma
interdependência entre eles: “aquilo que é da ordem do todo, do repetível, do mesmo, da
regra, é que permite fazer surgir o que é da ordem do não-todo, do singular. Não um com
exclusão do outro” (FIGUEIRA, 1995, p. 160).
Desse modo, querer adotar procedimentos de definição do erro, também segundo
Carvalho (1995) seria dar-lhe um caráter de “imanência”, considerar a sua existência prévia,
sem relação com o padrão estrutural da língua. A questão está em ter o erro como “efeito de
relações entre saber e falta, ficando, desse modo, suspenso qualquer estatuto de imanência”
(CARVALHO, 1995, p. 119).
Assim, levando em conta as reflexões de Carvalho (1995), poderíamos aqui apenas
estabelecer alguns aspectos que levaremos em consideração na análise do erro ortográfico
singular, nas produções dos alunos, sem nenhuma intenção de inseri-los num quadro de
critérios definidores. Em sua singularidade, o erro:
81
a) está inserido em uma “quebra de ordem”, no funcionamento lingüístico
(CARVALHO, 1995, p. 89);
b) possui características de “resíduo”, uma vez que fere a totalidade, podendo nunca mais
se repetir (p. 90);
c) deve ser questionado no lugar onde a sua produção “fere o todo”, ou seja, fere o lugar
de uma ordenação, de uma regularidade (p. 90);
d) está num lugar de “deriva”, num ponto em que a ordem, a regularidade é suspensa (p.
90);
e) marca a identificação de um “funcionamento da língua” e não de uma “consciência
organizadora” (p. 90);
f) quebra a “ordem de uma teoria”, por isso é excluído pela necessidade de constituição
da unidade da língua (p. 90);
g) pode ser considerado um “possível material” diante das possibilidades da língua,
embora não pertençam a um “sólido de referência” (Milner, 1989);
h) está inserido num jogo combinatório que articula os processos metafóricos e
metonímicos da língua;
i) é, enfim, concebido como “efeito de relações entre significantes, efeito de não saber”
(p. 150).
82
5.1.
Os procedimentos metodológicos na área de aquisição
da linguagem
Olhar para o dado singular não tem sido um procedimento presente e constante nas
pesquisas lingüísticas que têm se detido, de maneira geral, na coleta de dados quantitativos
sobre a língua (falada ou escrita) e na análise desses dados visando a uma categorização e
adequação à determinada teoria.
Acreditamos, por isso, que as reflexões sobre algumas questões metodológicas da área
de aquisição da linguagem que faremos a seguir podem esclarecer algumas diferenças entre
essas questões e os procedimentos metodológicos comumente adotados naquelas pesquisas.
Assim, procuraremos definir o nosso olhar para o erro ortográfico nas redações dos alunos.
A nossa filiação à área de aquisição da linguagem está marcada, pois, pelo
compromisso com o dado enigmático da fala da criança, revelador das relações do sujeito com
a língua, conforme pressuposto no trabalho de Teresa Lemos (1994), que comentaremos a
seguir.
Convém explicitar, no entanto, que as pesquisas na área de aquisição de linguagem
nem sempre tiveram esse direcionamento. Teresa Lemos (2002) em publicação de sua tese A
língua que me falta: uma análise dos estudos em aquisição de linguagem mostra o percurso
dos estudos na área, desde a filiação à Psicolingüística até o compromisso do pesquisador com
a fala da criança enquanto dado empírico para a constituição deste campo de conhecimento.
Ter o dado como empírico implica uma concepção diferente daquela em que esse termo
designa uma espécie de saber que se adquire através da prática, através da repetição e da
memória” (ABBAGNANO, 2000, p. 325) em oposição à racional. Implica, no entanto, mais
A QUESTÃO METODOLÓGICA
83
uma “atitude empírica” que “consiste em ressaltar a importância dos fatos, dos dados, das
condições que tornam possível a verificação de uma verdade (IDEM, p. 327)
25
.
Num comentário sobre a tese de Teresa Lemos (1994), Orlandi esclarece o diferencial
trazido para a redefinição da área de aquisição da linguagem, quando se toma a produção
estranha da criança como enigma:
Reconhecidamente ou não, a interrogação que a fala da
criança colocou foi o que abriu a possibilidade de uma alteridade
para a área (considerada interdisciplinar), na medida em que criou
um submetimento à fala da criança, isto é, uma exigência de
transformar a fala em dado empírico. Submetimento que, vale dizer,
não encontra paralelo nem na lingüística nem na psicologia, áreas
das quais supostamente os estudos em aquisição de linguagem
dependem (ORLANDI, apud LEMOS, 1994, p. 1).
Assim, indo mais além na discussão sobre a metodologia dos estudos em aquisição da
linguagem, Teresa Lemos avança quando apresenta a diferença que caracteriza hoje esses
estudos em relação à Psicolingüística: a condição de submetimento da pesquisa à fala da
criança que passa a ter a função de enigma ligado ao funcionamento da língua. Ela apresenta
um histórico das relações entre lingüística, psicolingüística e aquisição de linguagem,
delimitando três momentos não cronológicos:
a) momento: empirista tentativas de descrição da fala infantil para a escrita de
uma gramática própria:
Tal posição consiste em tomar essa fala diretamente como dado
empírico, isto é, atribuir a ela uma consistência a priori, seja num
nível comunicativo, semântico, sintático ou fonológico. O
tratamento empiricista da fala promove o apagamento dessa
injunção em seu caráter simbólico e, com isso, o que impera é uma
alienação ao saber da lingüística. Esse “desconhecimento” entrega,
portanto, a teoria aos efeitos ideológicos, impedindo que uma
25
Abbagnano (2000, p. 406) apresenta diferentes acepções de empirismo, empírico, experiência. Ele afirma, por
exemplo, que nem todos os significados do adjetivo empírico estão relacionados ao substantivo correspondente,
ou seja, experiência que, por sua vez, possui dois significados fundamentais: um, relacionado à participação
pessoal em situações repetíveis; e outro, à possibilidade de repetir certas situações como meio de verificar as
soluções que elas permitem. Fica claro, no entanto, que o “elemento comum” aos dois significados “é a
possibilidade de repetir as situações, e isso deve ser considerado fundamental na significação geral do termo” o
que demonstra, segundo o autor, que o termo somente pode ser relacionado ao “único” para indicar “pouca
freqüência” e, também, que o termo “pode indicar situações de qualquer natureza em que se possa contar com
suficiente repetibilidade”. Assim, podemos concluir que o critério da repetibilidade pode modificar o ponto de
vista numa determinada pesquisa, quando se leva em conta ou apenas o objeto (conteúdo lingüístico), ou o
movimento da língua ao qual o sujeito está submetido.
84
abordagem verdadeiramente científica dignifique as descobertas da
área. (LEMOS, 2002, p.99,100).
b) momento: gerativista a ligação com a lingüística para encontrar universais
lingüísticos, com a adesão aos fundamentos biológicos:
Se é o fundamento biológico que ata essa aliança, isto vai se dar por
uma razão que seria facilmente ignorada, pois contraria a
necessidade de opor radicalmente empirismo e racionalismo: é que
um ponto em que uma e outra posição se harmonizam. O sujeito
empírico (que a psicolingüística deveria manter intacto) e o sujeito-
preparado-biologicamente-para-a-linguagem de Chomsky se
equivalem no sentido em que, para um, tanto quanto para outro, a
relação entre subjetividade e ordem lingüística é direta e sem
embaraço. Ou seja, a relação sujeito/linguagem é garantida, a
linguagem é uma possibilidade expressiva para uma subjetividade
que lhe é exterior (IDEM, 2002, p. 78)
c) momento: sócio-interacionista a de submetimento do investigador à fala da
criança que passa a ter função de enigma, uma vez que causa um estranhamento e
revela uma dependência da fala do Outro, o interlocutor adulto; entretanto, diz a
autora:
é preciso lembrar que, quando dizemos “fala da criança” não
estamos nos referindo ao discurso da criança, mas sim a um certo
tipo de estrutura “estranhado ponto de vista da análise lingüística.
O termo “fala da criança” também não é tomado aqui como uma
realidade em si mesma, mas como um objeto produzido, ou melhor,
“reproduzido metodicamente” pela análise lingüística. E, nesse
sentido, o que de singular nessa fala é que o outro é citado, mas,
tal como na interpretação, o investigador/adulto recebe sua
mensagem como “estranha”, não pode nela se reconhecer e, ao
mesmo tempo (o que é fundamental), reconhece a “matéria” da
língua, sob a forma de enigma, de onde é convocado como sujeito a
advir (IDEM, 2002, p. 153).
O submetimento a essa fala de características singulares” é, vale repetir, condição
constitutiva da área, não uma escolha do pesquisador:
O submetimento à fala da criança não tem nada a ver com uma
tendência do pesquisador, nem de uma teoria particular: é preciso
reconhecer que não é no nível individual que isso se determina e
que, portanto, não se trata de uma escolha. Trata-se de uma
condição constitutiva da área e seu caráter é simbólico (IDEM,
2002, p. 98).
85
Um ponto a destacar nessa discussão que a autora levanta sobre o enigma da fala da
criança é a maneira como os pesquisadores foram sendo interrogados pelos erros estranhos,
mas não impossíveis de se realizarem na língua uma vez que recalcados.
26
Um exemplo
considerado clássico é a resposta de Adam
27
, um menino americano, a um adulto que duvida
se ele tinha mesmo um relógio: “o que você pensa que eu sou, um não-menino com um não-
relógio?”
28
. O comentário da autora sobre esse erro esclarece a noção de recalque como
possibilidade de combinação “esquecida da língua”, mas que pode retornar a qualquer
momento produzindo o equívoco:
A estranheza do “no boy” de Adam não é causada pelo erro ou
agramaticalidade que comporta, mas justamente pela sua natureza
familiar, pois esse uso da negação é uma possibilidade da língua
(ainda que recalcada). [...] não é o novo, nem o desconhecido, mas
o retorno de algo conhecido que havia sido esquecido, isto é,
submetido a recalque (IDEM, 2002, p. 145).
Um olhar diferenciado para o dado é o que nos mostra esse tipo de procedimento. A
criança o é mais considerada como sujeito de um saber, mas “portadora de um enigma
sobre a língua”. O olhar do pesquisador estaria, assim, alienado a uma posição imaginária
totalizante, como um ‘dever’, uma posição ética. Sem isto, “não haveria possibilidade de
agilizar uma instrumentalização de análise, capaz de ordenar uma análise não-intuitiva dessa
fala” (IDEM, p. 147).
5.1.1. O lugar do dado singular no funcionamento da língua
O diferencial levantado por Teresa Lemos sobre o compromisso do investigador com a
fala da criança enquanto enigma foi fundamental para a constituição da área. Alguns pontos,
no entanto, já estavam incorporados às discussões sobre o tratamento dos dados nas pesquisas
em aquisição da linguagem que, como vimos, foi marcada, historicamente, por diferentes
26
Felipeto (2004, p. 6) explica o processo de recalcamento pelo qual passa qualquer língua: “parte do trabalho de
constituição do sujeito como escrevente de uma língua é recalcar determinadas estruturas que não dizem respeito
a sua língua”. A noção de recalque como possibilidade de combinação ‘esquecida da língua’, será comentada
também na análise dos dados.
27
Um dos sujeitos da experiência de Úrsula Bellugi citado por Lemos (2002, p. 110).
28
“What d’you think I am, a no boy with no watch?
86
linhas de pesquisa. Perroni (1996), no artigo “O que é o dado em aquisição da linguagem?”,
comenta que a própria criação da área partiu de diferentes campos de estudo, a Psicologia e a
Lingüística, e que essa interdisciplinaridade permanece, ainda hoje, quando reúne estudos
muito diferentes entre si, sem um consenso tanto quanto ao objeto de estudo como aos
procedimentos metodológicos das pesquisas. Diante disso, a autora levanta questionamentos
do tipo: Qual a posição do investigador que elege a aquisição da linguagem como objeto de
seu estudo? Qual metodologia gerará o fato mais objetivo? Qual dará conta da complexidade
do objeto?
As reflexões da autora sobre os pressupostos das metodologias na área da aquisição da
linguagem tiveram, também, o intuito de criar tensões que contribuíssem para o progresso da
área. Ela afirma que o que se tem chamado de “fato” ou “dado” nessas pesquisas, toma
tratamento diferente dependendo da teoria e do procedimento adotados pelo pesquisador, e
inicia a discussão apresentando-se contrária a dois tipos de procedimento – aquele centrado no
chamado “dado bruto”, e aquele centrado numa teoria que exige até mesmo um ajuste dos
dados:
Em qualquer reflexão sobre o que é dado, impõe-se questionar
se todo e qualquer “fato bruto” (assumindo-se sua existência) serve
como matéria para a ciência, ou se afinal são considerados apenas
aqueles que cuidadosamente foram previamente selecionados por
sua relevância dentro de uma teoria, ou que foram até mesmo
remodelados para garanti-la (PERRONI, 1996, p. 17).
Nos estudos experimentais, os “dados brutos” seriam tomados como anteriores às
teorias, cujo papel seria explicá-los. Eram, assim, considerados independentes a qualquer
construção teórica, fazendo uso de grande quantidade de dados para comprovar ou refutar as
teorias:
Tais estudos agiam de forma a isolar todas as interferências’, para
se chegar à competência. O enfoque na gramática deu origem aos
estudos com grande número de sujeitos, ambiente controlado e uso
de categorias definidas a priori (IDEM, p.18).
Os problemas desse método, segundo a autora, seriam: 1) o enfoque na compreensão,
com base na intuição lingüística do falante; 2) o controle de variáveis na busca de
homogeneização dos sujeitos; e 3) a valorização da estatística (números, porcentagens)
87
justificada pela busca de objetividade e de generalização. O dado não seria individual, mas
grupal, dando uma “ilusão de objetividade”:
Baseada numa visão estática da língua, é a metodologia que mais
facilmente cai na ilusão de objetividade, vista como sinônimo de
descrição do fenômeno lingüístico, depurado de toda e qualquer
‘excrescência’ que, teimosa e indesejavelmente, insiste em
caracterizar suas manifestações (IDEM, p. 21 – grifo nosso).
nos estudos observacionais, segundo a autora, os dados seriam recortados
teoricamente pelo investigador e não poderiam ser vistos como evidência empírica, não
havendo, portanto, “pesquisa ateórica”, nem “metodologia ateórica”, pressuposto dos estudos
recentes de aquisição da linguagem: “[...] qualquer metodologia é determinada pela teoria
eleita pelo investigador, assim como é a natureza da unidade de análise, que varia ao sabor da
perspectiva dominante” (IDEM, p. 17).
De acordo com o ponto de vista teórico, Perroni (IDEM, p. 22) reforça que esse
método pode tomar como foco tanto a produção da criança isolada (o estudo da linguagem)
quanto a produção da criança relacionada à do seu interlocutor (o estudo do desenvolvimento
da linguagem), apresentando as vantagens de: 1) ter a quantidade substituída pela qualidade
quando se analisa o processo e não o produto e quando permite que as categorias, antes
impostas, possam emergir dos dados; e 2) não precisar controlar variáveis, deixando que o
dado aconteça:
[...] na área de aquisição da linguagem, não diferente do que ocorre
nas demais, a metodologia gera o dado. [...] a própria opção por
uma metodologia é ditada pela teoria abraçada, com todas as suas
crenças e pressupostos a respeito da natureza de seu objeto de
estudo (IDEM, p. 25).
Detendo-se em cada um desses métodos apenas com a intenção de comparar-lhes os
procedimentos, quais sejam: “o experimental acaba estudando a linguagem da criança, ao
passo que o observacional pode estudar o próprio desenvolvimento da linguagem” (IDEM, p.
23), ela critica a falta de “unidade teórica e metodológica da área”, que chama também de
falta de uma “metodologia do consenso” ao tempo em que considera esse fato como gerador
de “tensões” que podem ser, como já foi afirmado, “reconhecidas e trabalhadas” nas pesquisas
da área.
88
Apesar dos dilemas’ e ‘tensões’ ficarem em suspenso nas reflexões do trabalho de
Perroni, podemos observar que ao apontar as limitações dos dois métodos em foco, ela deixa
registrado dois encaminhamentos que vislumbram a questão da singularidade dos dados:
1) ele reconhece que, em nome de uma pretensa objetividade, o método experimental
‘depura’ as manifestações estranhas e anormais, considerando-as irrelevantes; e
2) ela critica os que, na busca de uma generalidade confiável e na impossibilidade de
atingi-la, consideram os estudos com base no método observacional “assistemáticos e
descontrolados” necessitando, muitas vezes, na seleção desses dados, de uma
“eliminação de material que passa a ser descartado”.
Contrapondo-se, pois, ao posicionamento dos que acreditam cegamente numa
uniformidade e se inquietam “diante da possibilidade da diversidade”, de “restos” estranhos
aos procedimentos clássicos de pesquisa, a autora afirma que os estudos observacionais
consideram “a língua em atividade, os dados podendo variar a cada episódio de interação”.
Observemos, no entanto, que a “atividade” mencionada pela autora não é aquela do sujeito
autônomo, que lida conscientemente com os fatos da ngua (FRANCHI, 1977),
29
mas diz
respeito a um funcionamento da língua ao qual o sujeito está submetido.
Esses “restos” podem remeter-nos não a uma generalização, mas a uma falta que toca
a língua considerada por Milner (1987, p. 15) como “um modo singular de produzir
eqüívoco.”
30
Talvez aqui esteja marcada a idéia da impossibilidade de realização do sonho do
lingüista: a apreensão da língua como um todo na busca talvez da “interpretação adequada”. E
marcada, também, uma referência ao compromisso ético do pesquisador em aquisição da
linguagem de não poder explicar tudo, de nunca poder chegar a uma conclusão definitiva,
quando a fala da criança passa a ter, retomando Teresa Lemos, função de enigma.
29
Em seu texto “Linguagem atividade constitutiva”, Franchi considera a linguagem uma forma de trabalho
através do qual nós operamos sobre a realidade: “Não há nada imanente na linguagem, salvo sua força criadora
e constitutiva, embora certos ‘cortes’ metodológicos e restrições possam mostrar um quadro estável e
constituído. Não nada universal, salvo o processo a forma, a estrutura dessa atividade. A linguagem, pois,
não é um dado ou resultado; mas, um trabalho que ‘dá forma’ ao conteúdo variável de nossas experiências,
trabalho de construção, de retificação do ‘vivido’, que ao mesmo tempo constitui o sistema simbólico mediante
o qual se opera sobre a realidade e constitui a realidade como um sistema de referências em que aquele se
torna significativo. Um trabalho coletivo em que cada um se identifica com os outros e a eles se contrapõe, seja
assumindo a história e a presença, seja exercendo suas opções solitárias” (FRANCHI, 1977, p. 22 grifos
nossos).
30
Os comentários e referências relacionados aos conceitos de “falta” da língua permeiam todas as nossas
discussões sobre o “equívoco” que constitui a singularidade do erro ortográfico.
89
5.1.2. O lugar do investigador nas pesquisas em aquisição da linguagem
No que diz respeito à crítica ao papel do pesquisador quando ele é também o adulto
que interage com a criança nos eventos de fala, Perroni (1996, p. 24 grifo nosso) argumenta
que, neste caso, “a validade dos resultados será confirmada com base em uma cuidadosa
descrição de como o adulto agiu nas trocas com a criança, no processo de coleta dos dados”, e
assegura que “por mais que o adulto (investigador) queira dirigir o comportamento lingüístico
da criança, a longo prazo acaba vencido pela inviabilidade de suas pretensões”.
Acreditamos, no entanto, que a posição do investigador não pode depender de um
tempo ou prazo para a sua definição. Carvalho & Avelar (1999), no artigo “A relação
dialógica como questão para a aquisição da linguagem”, pode nos ajudar a esclarecer que,
mesmo como o adulto que interage, o olhar para os dados no momento de análise necessita de
uma diferenciação daquele que neles se detém para interpretá-lo, atribuindo-lhe um sentido.
Dois pontos são firmados pelas autoras para que se considere a imprevisibilidade no
tratamento metodológico dos dados: primeiro, que as produções estranhas sejam tratadas
como “significantes que se combinam de forma imprevisível”; segundo, para que se chegue a
ter a produção estranha como imprevisível; não se pode atribuir a ela “uma intencionalidade
implicada por um sentido único” (IDEM, p. 90). Assim, ficaria descartado, também, o fato de
se ter categorias prévias para a análise dessas produções:
Desse modo, que não previsibilidade em relação à produção
estranha, aqui destacada, temos que atender também a alguns
desafios no que concerne ao tratamento dos dados. Não poderia
haver, portanto, categorias previamente construídas, ou um
pressuposto de transparência de dados, condições de uma
objetividade em alguns tipos de investigação, mas que, neste caso,
desvirtuaria os objetivos do trabalho de pesquisa (CARVALHO &
AVELAR, 1999, p. 90).
As autoras falam, portanto, da necessidade de uma “aproximação empírica” do sujeito
para se evitar atribuir à criança um conhecimento prévio (ou a falta de conhecimento).
Para exemplificar a tentativa do adulto em atribuir significado aos enunciados da
criança, elas apresentam um diálogo
31
, entre outros, com uma produção estranha da criança:
31
O diálogo da mãe (M) com a criança (C) é o seguinte:
Episódio 01 – (C – 2.0.8 – Está pronta para ir ao aniversário de um amiguinho.)
90
“deceu vede” que a mãe interpreta como sendo algo relacionado a cor verde, quando diz
adiante: “Não, é verde”. Na análise, as autoras afirmam (recorrendo a LEMOS, 1992) que a
forma “deceu verde”, produzida pela criança, trata-se de uma “’cadeia manifesta’ que aponta
para cadeias latentes que permanecem sob aquela. Tais cadeias latentes seriam, por exemplo,
“deixe eu ver”, “quero ver”, “este é verde”, produzidas, muitas vezes, tanto pela mãe como
pela criança em momentos diferentes da gravação” E, ainda, que a interpretação da mãe
(“Não, é verde”) possibilitou a continuidade do diálogo, uma vez que “foi inserida numa
totalidade completa e significativa” (CARVALHO & AVELAR, 1999, p. 88).
Como pode ser visto, a produção equívoca é sobredeterminada, isto é, não pode ser
atribuída a um único evento, ou ainda, pode ser ela mesma e uma outra, conforme afirma
Milner (1987). Por outro lado, a mãe interpreta porque a sua função é a de instaurar uma
sintaxe aos enunciados da criança, garantindo a continuidade do diálogo.
Os exemplos de diferenciação entre a posição da mãe e a do investigador apresentados
por essas autoras, no referido texto, mostram como a mãe (ou o adulto que interage) tem a
função de atribuir um significado à fala da criança, ao passo que a função do investigador é
tomar o erro como causador de “um efeito de estranhamento”. Explicando melhor: para a
mãe, a produção errada não é estranha e, por isso, ela procura dar-lhe um estatuto de
significação na língua, transformando a produção bizarra num enunciado aceitável. Para o
investigador, um estranhamento e, por isso, ele vai tentar observar qual o ponto de falta da
língua que fez emergir aquele equívoco que é constitutivo da língua (MILNER, 1987).
Está marcada, aí, uma aproximação com o nosso ponto de vista sobre o erro
ortográfico: o erro como efeito do funcionamento de uma língua marcada pela falta.
M- De onde é essa chave? / C- fom fom dá / M- Da onde é essa chave? / C- fom fom / M- Do carro? Bonito esse
chaveiro da C. Verde. / C- deceu vede / esse num é / esse / maon / M- Esse é marrom? / C- é / M- Não, é verde.
Abre a boca pra tomar remédio. / C- to coçan/ ta coçando.
91
5.2.
A escrita dos alunos de série do Ensino
Fundamental: os dados, o contexto de aplicação e os
critérios de avaliação do teste de Português
A discussão sobre uma possível relação entre as pesquisas na área de aquisição de
linguagem e os seus efeitos sobre as práticas de leitura e escrita de textos que acontecem na
escola tem gerado posicionamentos diferenciados. Entre eles, está a reflexão de Cláudia
Lemos no texto Sobre o ensinar e o aprender no processo de aquisição da linguagem (1992)
sobre o caráter específico do objeto de pesquisa em educação que apresenta, por um lado, uma
distância do objeto de pesquisa daquela área e, por outro lado, uma aproximação em forma de
subsídios teóricos oferecidos pelos estudos em aquisição da linguagem à pesquisa
educacional.
Para os comentários que faremos aqui, tomaremos dois pontos discutidos pela autora:
o aprendizado natural x a instrução formal a discussão sobre a posição
consagrada que coloca em campos opostos: o aprendizado “natural” e a instrução
formal, sendo aquela entendida como “determinação biológica” e esta como “acesso a
objetos previamente construídos”. Para os estudos iniciais da área de aquisição da
linguagem, a fala seria adquirida “naturalmente” pela criança, ou seja, estaria
determinada biologicamente. Isso, segundo a autora, deixaria de fora “as condições
sócio-históricas a que remete obrigatoriamente a referência a instituições como
família, escola sua constituição como espaços sociais respectivamente privado e
público – e a própria linguagem” (LEMOS, 1992, p. 150).
natureza e direcionalidade da mediação a discussão sobre a mediação “atribuída à
própria relação entre a criança e o Outro visto como intérprete doador de sentidos
a seus comportamentos” Para a autora, o pressuposto da “naturalidade” não permite
mediação, mas falar de uma simples mediação seria descartar a própria condição do
adulto “como sujeito da sua relação com a criança” (IDEM, p. 151).
92
Na sua crítica tanto ao pressuposto da naturalidade como ao da simples mediação, a
autora encaminha a discussão para o aprendizado formal que seria mediado pela escola. No
entanto, ela diz que a relação adulto/criança das pesquisas não pode ser ingenuamente
comparada com o modelo de relação professor/aluno que se espera da instituição escolar. E
afirma que “o objeto de pesquisa em educação ganharia em especificidade se fosse colocada
em questão a natureza e a direcionalidade da mediação que a escola representa” (IDEM, p.
152 – grifo nosso).
A partir dessa crítica de Cláudia Lemos (1984, 1992), queremos, neste trabalho,
levantar questionamentos sobre uma proposta de produção textual num Teste de Avaliação de
Rede de Ensino, aplicado em turmas de 4ª série do Ensino Fundamental, estabelecendo,
especificamente, relações entre a consigna, as referências oferecidas no teste e os critérios de
avaliação exigidos para a escrita da redação. Para isso, serão analisados textos produzidos por
dois alunos avaliados, apontando-se aspectos da produção escrita que estariam relacionados às
práticas escolarizadas de textualização a que os alunos estariam submetidos.
Se adotamos aqui uma perspectiva de que a escrita revela o funcionamento de uma
estrutura lingüística autônoma e de que, segundo Saussure (1989), as relações entre os termos
ou unidades da língua (de qualquer extensão) são determinadas pelo jogo que se estabelece
nesse funcionamento, podemos tomar o texto (do mesmo modo que a letra, a palavra ou o
enunciado) como segmento para análise.
As reflexões sobre os textos dos alunos recaem, pois, para o que eles têm de singular,
uma vez que desvelam as relações de submetimento do sujeito ao funcionamento lingüístico-
discursivo. As características singulares desses textos nos chamaram a atenção, apesar da
intenção homogeneizadora dos critérios adotados para correção e do conflito instaurado na
consigna da produção textual.
a) Os dados e as condições de produção dos textos
O conjunto de textos que constitui o corpus de análise do erro ortográfico singular,
neste trabalho, foi produzido por alunos da Rede Municipal de Educação de Rio Largo,
município localizado a 28 Km de Maceió, capital do Estado de Alagoas, em condições de
produção propostas no teste de Português elaborado pelo Núcleo de Avaliação e Pesquisa
Educacional da Universidade Federal de Pernambuco (NAPE-UFPE), no ano de 1997. O
corpus é formado por 229 textos em 249 cadernos de testes, (em 20 cadernos a proposta de
93
redação foi deixada em branco) cedidos pela secretaria municipal,
32
e que atualmente pertence
ao banco de dados do Projeto Integrado “Práticas de Textualização na Escola”, coordenado
pelo professor Eduardo Calil, do Centro de Educação CEDU, da Universidade Federal de
Alagoas – UFAL.
O teste de Português (ANEXO 1) propunha questões de leitura e interpretação, de
produção de textos e de conhecimentos gramaticais e tinha como objetivo principal avaliar a
ação pedagógica das escolas através do desempenho dos seus alunos. Todas as escolas da
Rede (num total de 20) que ofereciam a primeira fase do Ensino Fundamental – 1ª a 4ª série –
foram avaliadas pelo teste aplicado aos alunos das turmas de 4
ª
série. As médias de pontos
atingidos em cada escola, numa escala de 0 a 100 constam no quadro: “Dados sobre os testes”
(ANEXO 2) que, além dessas informações, apresenta código e nome de cada escola, zona
(urbana ou rural), e número de turmas, alunos, cadernos e testes. As médias de pontos das
escolas demonstram que apenas 02 escolas estão entre 60-69 % do nível de desempenho
esperado, 06 escolas entre 50-59%, 09 escolas entre 40-49, e 03 escolas num nível de
desempenho entre 30-39 % do esperado. Outra observação diz respeito ao pior desempenho
ter ficado entre 03 escolas de zona rural. Em contraponto, uma das escolas rurais teve o
melhor desempenho na avaliação da Rede. A maioria das escolas do sistema municipal
obteve, portanto, uma pontuação que oscila entre 40 a 59% do desempenho esperado.
Nos 229 textos do corpus, constatamos os mais diferenciados erros ortográficos; a
seleção de apenas 21 textos e, destes, 10 (ANEXO 3) para as análises, deveu-se às
características de singularidade dos erros, definidas a partir do referencial teórico adotado
neste trabalho, ou seja, selecionamos esses erros pelo estranhamento que nos causaram,
quando comparados às categorizações presentes nos estudos sobre o erro ortográfico. Diante
disso, vislumbramos possibilidades de análise através de uma perspectiva teórica que
considere o “erro” em sua singularidade, enquanto efeito do funcionamento da língua.
b) A proposta de escrita
Os textos analisados faziam parte da última questão do teste (a de número 21), que
solicitava a redação de um texto a partir de uma figura (um cachorro, um osso e uma tigela),
em forma de desenho, situada logo abaixo da consigna, como veremos adiante. No entanto, as
32
Deixamos aqui registrado o nosso sincero agradecimento a Lúcia Guilherme de Souza, então coordenadora
pedagógica da Secretaria Municipal de Educação de Rio Largo que, gentilmente, cedeu o material (que seria
incinerado) para o banco de dados do projeto a que esta pesquisa está filiada.
94
respostas do aluno às questões anteriores também foram consideradas em determinados
momentos da análise, tanto porque a consigna fazia referência aos outros textos presentes no
teste, como também para estabelecermos relação entre os erros ortográficos do texto e as
formas escritas anteriormente pelo aluno. Faremos, a seguir, um breve comentário da questão
em foco, reproduzida logo abaixo, tentando estabelecer uma relação entre a escrita do aluno
na redação solicitada e as práticas de textualização comumente desenvolvidas em sala de aula.
“21) Quando Atíria
33
começou a voar baixinho pelo milharal, avistou
um animal. Observando a figura abaixo, descreva o animal que Atíria
viu (escreva sobre todos os detalhes que você está vendo na figura!)”
Como pode ser observado, a consigna faz referência a Atíria, uma borboleta,
personagem da história do primeiro texto A borboleta Atíria, apresentado antes das
questões do teste e utilizado em 09 questões de interpretação textual (questões de 1 a 9) e
07 questões de gramática (questões de n° 10 a 16).
33
Atíria é uma personagem apresentada no texto A borboleta Atíria oferecido no início do teste, sobre o qual o
aluno respondeu algumas questões de leitura e interpretação.
95
Além desse, um outro texto encaminha quatro questões (três, de compreensão textual e
uma de gramática) que antecedem à proposta de produção textual: um texto expositivo que
descreve as características do jacaré-de-papo-amarelo. Podemos supor que, com isso,
pretendessem oferecer aos alunos um modelo de texto (no caso, descritivo e em pessoa)
para a proposta de produção.
É certo que essa proposta repete, no teste, uma prática de textualização que acontece
na sala de aula: a solicitação de uma escrita a partir de uma gravura; no entanto, quando o
teste tenta oferecer alguns recursos a mais, quais sejam, os textuais, tenta adotar uma nova
perspectiva, considerando como hipóteses o fato de os alunos já estarem inseridos em práticas
de escrita com os gêneros textuais apresentados no teste e as narrativas em pessoa (o texto
ficcional sobre a borboleta Atíria e o texto expositivo sobre o jacaré-de-papo-amarelo).
Não restam dúvidas de que um modelo para referência tem a sua importância para a
tessitura das relações entre sujeito e língua; no entanto, uma questão pode nos intrigar: Por
que os textos produzidos pelos alunos não correspondem ao esperado, de acordo com os
critérios de correção?
Antes de estendermos essa discussão, voltaremos ao enunciado da proposta de
produção de texto para a seguinte reflexão: a forma como a personagem Atíria é citada um
caráter de ambigüidade à consigna, pois coloca o leitor em dois lugares enunciativos
simultâneos, distintos, mas contraditórios, instaurando um conflito discursivo para o produtor
do texto, pois, ao mesmo tempo em que solicita uma descrição em 3ª pessoa, a partir do que a
borboleta Atíria está vendo enquanto voa sobre o milharal (“descreva o animal que Atíria
viu”), pede ao aluno para escrever todos os detalhes que ele (aluno) “está vendo na figura”,
ou seja, uma descrição em pessoa. Se conferirmos, no entanto, o critério de avaliação 3,
relacionado ao “ponto de vista discursivo terceira pessoa”, conforme se apresenta no
quadro
34
a seguir, teremos além de uma confirmação desse conflito discursivo, uma
comprovação de que os textos escritos em pessoa deixariam, possivelmente, de ser
considerados no momento da correção:
34
Esses critérios fazem parte das orientações para correção dos testes, organizados pelo NAPE/UFPE (Núcleo de
Avaliação e Pesquisa Educacional da Universidade Federal de Pernambuco).
A questão de produção textual vale de 0 a 10 pontos. Cada critério corresponde a um ponto, caso seja respondido
totalmente correto, e a meio ponto, caso seja parcialmente respondido.
96
c) Os critérios de avaliação
PRODUÇÃO DE TEXTO
CRITÉRIO CARACTERIZAÇÃO
1.ADEQUAÇÃO À TIPOLOGIA SOLICITADA Descrição
2. PERTINÊNCIA TEMÁTICA Descrição do cachorro
3. PONTO DE VISTA DISCURSIVO Terceira pessoa
4. CARACTERIZAÇÃO ADEQUADA DO ANIMAL Detalhes do cachorro
5. COESÃO Co-referentes
6. VOCABULÁRIO Variado e preciso
7.ASPECTOS ESTILÍSTICOS-PRAGMÁTICOS Figuras de linguagem
8. SEQÜÊNCIA DE IDÉIAS Características logicamente relacionadas
9. ASPECTOS MORFOSSINTÁTICO-SEMÂNTICOS
Concordância verbal, nominal, pertinência
semântica
10. ASPECTOS FORMAIS
Uso adequado das maiúsculas e minúsculas
e dos pontos final, de interrogação e de
exclamação
Antes dos nossos comentários sobre a relação desses critérios com os textos de dois
alunos, gostaríamos de chamar a atenção para o fato de o haver no quadro nenhum critério
relacionado ao erro ortográfico, apesar de constar, na chave de correção das questões de
interpretação e gramática, numa coluna intitulada “respostas esperadas”, a seguinte
observação: “Não considerar os erros ortográficos”. Poder-se-ia até supor que os erros
ortográficos estariam inseridos no critério 06 “vocabulário” ou 10 - “aspectos
formais”; no entanto, na coluna de caracterização desses critérios, consta apenas: “variado e
preciso” e “uso adequado das maiúsculas e minúsculas e dos pontos final, de interrogação e
de exclamação”, respectivamente, como podemos ver no quadro acima. Qual seria, então, o
motivo para essa omissão?
Os conteúdos e habilidades requeridos dos alunos nos testes de avaliação de rede, por
estarem relacionados com os documentos oficiais (matrizes e parâmetros curriculares,) e
materiais didáticos (livros didáticos, manuais) tornam-se indicativos tanto para as
preocupações didáticas nas escolas, quanto dos programas de formação continuada de
professores. Nesse sentido, pode-se inferir que a avaliação feita por esse tipo de teste não
prevê a indicação de um trabalho sistemático com a ortografia que possa vir a ser realizado
com os alunos da rede de ensino.
97
Estabelecendo uma comparação entre o que é solicitado na consigna e a expectativa
sobre os textos dos alunos revelada no quadro de caracterização dos critérios de correção, será
que não poderíamos admitir que os alunos poderiam escrever um texto que atendesse à
consigna, mesmo não atendendo a esses critérios? Vejamos os textos:
d) A escrita dos alunos
35
TEXTO A:
(Código do aluno: 31 1014 42 13)
36
1. O CACHORRO É FOFO
2. ELE TEM UMA PRATO DE LEITE
3. O OSSO DO CACHORRO É GRANDE
4. ELE E CHAMADO DE BOB
5. O CACHORRO É GOLOSO
6. ELE TEM UMA COLERA BONITA
7. AS BATAS DE BOB É GROSSA
35
Os dois textos apresentados a seguir têm o objetivo de trazer para essa discussão metodológica dois exemplos
representativos das estruturas das produções textuais dos alunos. Os erros ortográficos singulares estão
analisados em nove textos, no cap. 6 deste trabalho.
36
Serão utilizados, para identificação dos sujeitos desta pesquisa, o código do aluno constante da página inicial
do teste. Na seqüência do código estão marcados: o município, a escola, a série, a turma e o número do aluno,
respectivamente, pelos números separados por espaço.
98
TEXTO B:
(Código do aluno: 31 1004 41 15)
1. CACHORRO MIMOSO
2. ERA UMA FEZ UM CACHORRO
3. QUE ESTAVA TRISTE E FIU UM GAROTO
4. QUE ESTAVA COM SUA CACHORRINHA
5. E ELI FIU E ELI FOI ATRÁS DA CACHORRA
6. ELA A MENIMA O LEVOU PARA
7. CASA E ELE FIVERO PARA SENPRE.
Se considerarmos a solicitação da consigna, qual seja, a de “descrever o animal” que
se está vendo na figura, poderemos dizer que o TEXTO A atende à proposta, pois faz uma
descrição detalhada, nomeando e qualificando, pela utilização de substantivos (cachorro,
prato, osso, Bob, colera*, batas*) e de adjetivos (fofo, grande, goloso, bonita, grossa), além de
elementos referenciais (ele, Bob). Do mesmo modo, atende a pelo menos os cinco primeiros
itens do quadro de critérios: descrição detalhada do cachorro, em 3ª pessoa, e utilização de co-
referentes. Mas, dentro dessa homogeneidade, o que poderia revelar a singularidade das
relações do aluno com textos senão o caráter cartilhesco marcado pelas formas estereotipadas
de descrição, legitimadas pela escola?
Se atentarmos, então, para a crítica de Cláudia Lemos, comentadas no início deste
item, sobre o fato de se pensar a atividade mediadora “do objeto para o sujeito-aprendiz”, a
99
apresentação dos textos para os alunos, anterior à proposta de produção do texto sem se
considerar o trabalho pedagógico, deixa ver, também, como pressuposto, a noção de que o
domínio de uma estrutura textual depende da atribuição, pelo adulto, de “significado e
intenções a seu comportamento” (LEMOS, 1998a, p. 152). Essa intenção, no momento do
teste, pode ser relacionada ao pressuposto da “naturalidade” ao levar em conta apenas os
recursos textuais indicados no momento de realização do teste, sem considerar a natureza da
mediação realizada pela escola. Tal concepção não parece considerar (ou, minimiza
excessivamente) os efeitos da prática pedagógica do professor, ou seja, de práticas de
textualização nas quais os alunos estejam inseridos.
A presença de elementos das narrativas infantis no TEXTO B, tais como: o sintagma
nominal que compõe o título, formado por determinante/nome/qualificador, e as expressões
“Era uma fez*” e “fivero* para senpre*”, próprios de uma escrita inicial, revelam uma relação
diferenciada, mas comum a outras produções de texto narrativo. O que desequilibra, no
entanto, a forma textual, marcando uma singularidade, são as relações entre as formas de
gênero: cachorro/cachorra, garoto/menina, e de grau: cachorra/cachorrinha, cujas formas
referenciais (eli*, ele) se misturam, desestabilizando a estrutura textual.
Como pode ser visto, pela observação dos critérios e pela comparação deles com os
textos produzidos pelos alunos, um distanciamento entre o resultado esperado (no quadro
de critérios) e o que se obteve, uma vez que os textos foram avaliados como abaixo do nível
exigido por esses critérios de correção. As observações desses resultados nos mostram que a
distância entre a produção dos alunos e os critérios de correção da prova de Português pode
estar marcada pelas condições do trabalho didático de leitura e escrita a que os alunos estão
submetidos. Por isso, concordamos com Weisz (2002, p.95) quando diz que “avaliar a
aprendizagem do aluno é também avaliar a intervenção do professor, já que o ensino deve ser
planejado e re-planejado em função das aprendizagens conquistadas ou não”.
Pelo que temos observado dos conteúdos das propostas de produção textual nos testes
de avaliação de escrita, subjaz, ainda, uma prática corrente no ensino de língua portuguesa,
particularmente nas séries iniciais do Ensino Fundamental, a saber: um texto pode ser
produzido apenas pela referência a uma imagem, figura ou gravura, ou por orientações do tipo
“descreva todos os detalhes”, deixando o texto fortemente marcado pelos aspectos “visuais”.
O que pode haver é a “ilusão” de um domínio (LEMOS, 1994, p. 11) pela criança das
estruturas textuais esperadas. Há, assim, a implicação de um submetimento do sujeito à língua
pela sua imersão em práticas sociais de uso da escrita, que têm sido chamadas de letramento
100
(SOARES, 1998
37
; CALIL, 2004
38
). Também, segundo Mota (1995, p. 3), os textos (como
unidades da língua) somente podem ganhar sentido no/pelo movimento que as práticas de
imersão na escrita possibilitarão”.
Recorrendo a Leite (2000), poderemos considerar a ocorrência da singularidade nesse
movimento de repetição do fenômeno lingüístico, apoiado no eixo metafórico e metonímico
da língua que se repete: uma forma que não deveria estar ali, mas que não foge da
possibilidade da sua presença, se levarmos em conta a afirmação de Milner (1987) de que a
língua tem um ponto de falta.
É, pois, no acontecimento de fala (ou de escrita, no nosso caso) que se configura a
singularidade, conforme propõe aquela autora quando diz que é nele mesmo (acontecimento
enquanto fenômeno repetível) que o singular marca presença provocando estranhamento.
Quando dizemos, no entanto, que a singularidade está inscrita numa repetibilidade
queremos admitir que essa repetição está apoiada num movimento que é de ordem lingüística,
tida por Milner (1989) como de ordem do real enquanto impossível da língua.
Observar aspectos das relações singulares do sujeito com a língua, em produções de
alunos inscritas num lugar homogêneo é apostar, de acordo com Riolfi (2000, p. 85), na
possibilidade de “pontuar aspectos da transmissão (inconsciente), articulando-os com o advir
do estilo, da singularidade”.
Os textos dos alunos são, portanto, singulares, uma vez que são tidos como efeito das
relações, também singulares, do sujeito com a linguagem. No entanto, essa singularidade
habita numa estrutura de características repetíveis: o fenômeno homogêneo das formas
textuais esperadas pela escola.
37
A professora Magda Soares em seu livro Letramento: um tema em três gêneros (1998, p. 45-7) define
letramento como “estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas
sociais que usam a escrita”, justificando a nomeação de um novo fenômeno: “À medida que o analfabetismo vai
sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever; e à medida que,
concomitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na escrita (cada vez mais grafocêntrica)
um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. As pessoas se alfabetizam,
aprendem a ler e a escrever, mas não necessariamente incorporam a prática da leitura e da escrita.” [...] “Esse
novo fenômeno só ganha visibilidade depois que é minimamente resolvido o problema do analfabetismo e que o
desenvolvimento social, cultural, econômico e político traz novas, intensas e variadas práticas de leitura e de
escrita, fazendo emergirem novas necessidades.”
38
Calil (2004, p. 336-37) apresenta a noção de letramento, do ponto de vista dos processos de aquisição de
linguagem, como “efeitos de um ‘saber”, afirmando: “que há um ‘saber’ do sujeito, nessa relação, que se
manifesta mesmo sem que ainda se saiba ler e escrever convencionalmente” e que os índices de formas letradas
podem ser entendidas como “um modo de inscrição subjetiva no funcionamento lingüístico-discursivo”.
101
Os dados que apresentaremos aqui serão interpretados a partir dos pressupostos
discutidos até agora e que serão constantemente retomados. O nosso desafio é compreender,
com essa articulação, como se estabelece a relação entre o sujeito e o erro ortográfico
“singular” que o produz
39
. Entendendo-se daí uma concepção de língua com sujeito. Em
palavras mais detalhadas: entre as propriedades, que não são quaisquer uma, de uma estrutura
qualquer, a emergência do sujeito que é representado pelo significante para um outro
significante (MILNER, 1987, p. 38-39).
6.1.
A ordem da língua nas relações entre LH e NH
TEXTO 1:
(Código do aluno: 31 1014 42 17)
39
O sentido ambígüo desta frase é proposital.
O ERRO ORTOGRÁFICO SINGULAR
102
1. ERA VEZ UM CACHORRO DO MEU TIL(U) FOI
2. COLOCAR A COMIDA DE SEU CACHORRO
3. MAIS NÃO COLOCOL PORQUE ESTAVA ALQUUPATO
4. SEU FILHO ESTAVA DADO B(P)ALHO A DEL UM
5. BALHO NE FILHOS FOI COLOCAR COMIDA DE SEU
6. CACHORRO FOI COME MIS ESTAVA A COMIDA
7. TAVA AL(U)ADO DO CACHORRO FICO PARO OLHADO PARA O
8. PRATO.
Antes dos comentários sobre o erro singular, gostaríamos de ressaltar a presença
marcante de rasuras
40
no texto desse aluno. Um dos poucos textos do corpus (229 textos) em
que elas se fazem presentes. Além da rasura em B(P)alho
41
, na linha 4, numa substituição
de P por B, a escrita apresenta, nas linhas 1 e 7, as formas “tiL(U)” e “aL(U)lado”, numa co-
ocorrência entre L e U. Tanto a substituição como a co-ocorrência apresentam-se como fato
bem comum nas categorizações sobre o erro. A primeira, justificada pela diferenciação nos
traços de sonoridade/não-sonoridade entre P e B; e a segunda, pela homofonia entre o L e U,
fato presente, também, em outras formas não rasuradas no texto: “coloco e “aLquUpato
(linha 3) e DEL (linha 5).
Queremos, no entanto, considerar essas rasuras no texto do aluno como uma possível
escuta vinculada a uma mudança de lugar de significação na relação sujeito/linguagem,
conforme postula Cláudia Lemos (1992, 1995, 1999). Para a autora, nessa relação haveria
reconhecimento de um deslocamento da criança, de interpretada para “intérprete de sua
própria fala”.
Em sua proposta, a autora fala de mudanças de posição que “qualificam a trajetória da
criança de infans a sujeito-falante”. Três posições inter-relacionadas são discutidas nos
estudos: a) primeira posição, marcada pela presença da fala do outro; b) segunda posição,
marcada pela presença do funcionamento da língua; e c) terceira posição, marcada pela
relação do sujeito com a sua própria fala.
40
Fabre (1986, 1987) define um sistema ou gênese para as rasuras, classificando-as através de quatro tipos de
operações: supressão, substituição, deslocamento e adição, atribuídas a uma autonomia do sujeito frente à língua.
Calil (1998) e CALIL & FELIPETO (2000) desenvolvem um produtivo estudo sobre as rasuras como um efeito
das relações sujeito/língua, diferente da noção postulada por Fabre. Aprofundar essas questões foge, no entanto,
aos limites do nosso estudo sobre o erro.
41
A forma rasurada está entre parênteses.
103
É na terceira posição, diz Cláudia Lemos (1999, p. 4), “que a criança enquanto sujeito
falante se divide
entre aquele que fala e aquele que escuta sua própria fala e a fala do outro,
entre a instância subjetiva que fala e a instância subjetiva que escuta de um lugar outro”.
Talvez pudéssemos situar o texto do aluno nessa terceira posição, considerando as
suas rasuras como escuta da própria fala (CALIL, 1995, 1997), ou mesmo, como índice de um
movimento de autoria (CALIL, 1998 p. 101):
o reconhecimento da diferença marca uma relação
com a linguagem em que o que se diz faz efeito sobre o próprio dizer. Esse efeito é de ordem diversa e
dentre suas diferentes possibilidades de manifestação haveria aquela que estaria apontando para um
movimento de autoria”.
Feitas essas reflexões, podemos nos deter no erro “singular” que destacamos no texto
desse aluno de 12 anos, no final da série do Ensino Fundamental. Pelo que observamos, a
singularidade incide sobre as formas “LH”. Expliquemos: a entrada da forma “L” onde o
sistema espera a forma “N” em “balho” aparece por duas vezes, o que nos leva a afastar, logo
de início, qualquer equivalência fonética entre “LHO” e “NHO”, pois, além de terem pontos
articulatórios distintos, a segunda forma (“NHO”) produz, retroativamente, uma nasalização
na vogal precedente.
Também deixemos de lado a concepção centrada no “saber” ou no “conhecimento
lingüístico” do aluno que “usa” a língua estando, portanto, fora dela. Justificativa dada por
Moreira e Pontecorvo (1996) quando analisam ocorrências (teoricamente possíveis) como
“chapelzilho” para a escrita da palavra “chapeuzinho”, em textos de crianças de a série
do Ensino Fundamental.
Há, no entanto, nos dados levantados pelas autoras, as ocorrências deixadas de fora da
análise por serem consideradas teoricamente impossíveis, ou seja, por violentarem as regras
do sistema gráfico da língua como, por exemplo, a seqüência ”nlh” em “*xipazinlhe”. Este
erro é classificado pelas autoras como de “interferência analógica” pelo seguinte motivo:
Obviamente as grafias construídas pela criança refletem o seu
conhecimento lingüístico, constituído por informações fonético-
fonológicas, gramaticais, semânticas e lexicais que entram em jogo
com as informações sobre letras e combinações de letras que advêm
da exposição à escrita. No português, por exemplo, é comum, na
escrita inicial, a substituição de nh por lh. Esta permuta, sem
qualquer motivação fonética, deve-se ao fato de a criança saber que
em determinado ambiente ocorre um dos dígrafos que contêm h;
como existem apenas lh, nh e ch, opta por um deles. Tal permuta
seria decorrente de uma analogia grafêmica, que denominaremos
simplesmente ‘interferência analógica’ (MOREIRA E
PONTECORVO, 1996, p. 83-4).
104
Denominar simplesmente como “interferências analógicas” parece esconder algo um
pouco mais complexo e misterioso que este erro pode estar indiciando. Como fica claro nos
estudos destas autoras, a analogia tem a ver com a capacidade perceptual da criança em
diferenciar estas formas ou não, que se apresentam constantemente em posições semelhantes.
Talvez possamos ver aí algo a mais que não cabe nesta simples explicação.
Do nosso ponto de vista, a substituição da forma “nh” por “lh”, mesmo que
identificada e considerada pelos estudos que categorizam os erros ortográficos, levanta
problemas e dúvidas tanto em relação ao modo de funcionamento da língua quanto em relação
ao modo como o sujeito aí se inscreve.
A partir de uma perspectiva lingüístico-discursiva, podemos considerar esses erros
como efeitos desta relação sujeito-língua; erros que, presentificados na cadeia manifesta,
trazem uma forte presença do equívoco constitutivo do próprio funcionamento da língua
(MILNER, 1989).
Levando em conta os processos metafóricos e metonímicos marcados,
respectivamente, pela alternância e contigüidade, podemos admitir que a forma “H”, na língua
portuguesa, mantém relações muito restritas. Dentro do sistema ortográfico, ela compõe, nas
palavras, dígrafos consonantais formados somente por “L”, C” e “N” como, por exemplo,
“baraLHo”, trabaLHo, “caCHorro”, “CHuva”, “baNHo”, “camiNHo”. A forma posterior deve
necessariamente, de acordo com as propriedades deste sistema, ser composta por “A”, “E”,
“I”, “O” ou “U”. Além disso, as formas NH e LH raramente apresentam-se em início de
palavras.
Temos aqui a constituição de um eixo de equivalência metafórico em que estas formas
(“L”, “C” e “N”) se alternam, na mesma posição, se tomarmos a forma H” como referência,
para formar um dígrafo consonantal. A entrada de “L”, apesar de previsível enquanto posição
na cadeia, rompe a suposta relação fonêmica, mas traz, em sua realização, a presença de algo
ausente. De algo estabelecido pela relação que mantém com outras formas significantes. Para
visualizarmos melhor, apresentamos o seguinte esquema:
“L” A
“N” + “H” + E
“C” I
O
U
105
Esta relação entre a forma “L” e as formas “N” e “C” antes da forma “H” é
necessariamente simbólica
42
, uma relação de diferença que porta o próprio encadeamento
exigido e suposto na noção de cadeia. Isto é, uma cadeia se estabelece por uma
simultaneidade do movimento sintagmático (metonímico) e paradigmático (metafórico) que é,
em si, uma relação de diferença entre os elementos significantes que nela vão-se inscrevendo.
Como formulou Saussure ([1916]1989), é esta relação que irá constituir seu valor. Em nosso
caso, a forma “L”, a partir da relação estabelecida pelas propriedades do próprio sistema, é
convocada a se inscrever, apresentando-se não mais com o valor que tem em “FILHO (S)”
escrito pelo aluno nas linhas 4 e 5, em “olhado”, na linha 7, ou em “colocar”, nas linhas 2 e 5,
mas um valor outro; imaginariamente um valor de “N”, jamais assumido em qualquer outra
posição estabilizada da língua portuguesa.
No jogo entre as formas “L”, “N”, “C” e “H” e as posições que podem ocupar na
cadeia indicam, por um lado, uma imposição do sistema gráfico e, de outro, uma ruptura com
qualquer relação fonética. Uma pista desta imposição e ruptura poderia ser fortalecida pelo
seu oposto, isto é, pela presença da regularidade e estabilidade das escritas de “filhos(S)”
(linhas 4 e 5) e “cachorro” (linhas 1, 2, 6 e 7). Ela poderia ser suficiente para se suspeitar da
validade da hipótese de “interferência analógica” grafêmica e permitir uma interpretação que
considere um sujeito capturado pelas leis que regem este funcionamento. Um
funcionamento que comporta tanto o que é regular quanto o que é irregular, o imprevisível.
Como diz Carvalho (1995, p. 112): “é no lugar de um previsível (da regularidade) que o
imprevisível faz efeito”. A cadeia produz relações de semelhança, aqui marcadas pela posição
que tais formas ocupam no sistema e, no caso em discussão, reveste uma forma pelo valor da
outra; e, simultaneamente, relações de diferença que o próprio funcionamento restrito da
cadeia produz, através da articulação entre estas formas e posições (LEMOS, 1998a).
Retomando as justificativas que as pesquisas têm dado sobre o erro ortográfico: como
a de falta de “atenção” ou de conhecimento da “configuração gráfica”, gerando uma
“interferência analógica”, ligadas, portanto, à percepção do sujeito sobre as formas gráficas da
língua, podemos observar que essas pesquisas têm-se centrado num certo psicologismo, em
que o sujeito acionaria operações mentais no momento do trabalho com a escrita, como é o
42
Tomamos aqui o conceito de relação simbólica conforme proposto por Milner (1987), a partir da psicanálise
lacaniana: o simbólico orienta as incidências imaginárias no dizer e tem o significante como seu suporte. Para
Chemana (1993, p. 200) a ordem simbólica enquanto estrutura inconsciente está relacionada a uma falta: “No
sentido psicanalítico, por definição, o simbólico é aquilo que falta em seu lugar” [...] “Essa falta recebe, desde a
origem, uma significação propriamente humana, por meio da instauração de uma correlação entre a falta e o
significante que a simboliza”.Comentando sobre a marca significante da ausência, ele diz, ainda, que: “É, pois,
apenas pelo ofício da linguagem que, além da presença ou ausência reais, realiza-se a integração de uma marca
simbólica significante”.
106
caso da explicação para a troca de “nh” por “lh”, no início desta análise. Justificar esses erros
como um problema perceptual seria apagar o que é da ordem da língua; seria a “empiria”
ofuscando, segundo Calil & Felipeto (2000), “os movimentos da própria língua e dos
discursos, nas suas relações constitutivas com os sujeitos”. Quando deslocam um problema de
ordem lingüística para o domínio cognitivo-perceptual, essas justificativas terminam
atribuindo um caráter simplista aos fenômenos, apagando uma possível relação muito mais
complexa entre o sujeito, a língua e os entrecruzamentos de seus diferentes níveis.
6.2.
O movimento dos significantes nos deslizes do R
TEXTO 2:
(Código do aluno: 31 1004 41 11)
1. NEM RAIBO É BONITO
2. A CABERREÇA É BONITO
3. AS PARTA É BONITO
4. AS OLEIA É BONITO
107
5. UM PRELO É LINDO
6. A BARRI(?)NA
43
É BONITO
7. UM DERTER É BEM A FRIADO
Este texto traz em sua configuração textual uma “imagem” e um sentido que a
literatura tem chamado de “cartilhesco” (WEISZ, 2002). Mas dizer que este texto se aproxima
de um texto de “cartilha”, isto é, um texto simples, com poucas e curtas frases e repetição de
sintagmas, não ajuda muito a entender as relações entre sujeito, língua e sentido. Observemos
que o texto tem um aspecto muito fragmentado. Poderíamos dizer que há um discurso
circulando aí, que, de certa forma, preserva aquilo que inúmeras práticas didático-pedagógicas
têm insistido em fazer.
A posição sujeito ocupada por este aluno, muito provavelmente, ao escrever seu texto,
nas condições de produção configuradas pelo teste, traz uma memória discursiva (já-dito) que
pode ser identificada imaginariamente a esse “tipo de texto”, com fragmentos que parecem
não fazer unidade no sintagma. O eixo metafórico permite uma mobilidade da estrutura
paralelística, no entanto, apresenta-se no texto um “congelamento” que não permite essa
mobilidade. O aluno parece estar preso a esse tipo de estrutura. Daí se poder dizer que a
relação imaginária que se constitui entre a posição subjetiva deste aluno e o texto que
escreveu se sobrepõe a um registro simbólico em que o discurso poderia ter um movimento
menos circular e repetitivo.
Retomando as posições subjetivas apresentadas por Cláudia Lemos, podemos observar
que se no texto anterior situamos o aluno como inscrito na terceira posição, pela escuta
advinda das rasuras, o mesmo não podemos afirmar do texto em estudo. Se, tanto a primeira
posição, em que a fala/escrita da criança tem como suporte para a significação a fala do outro;
como a segunda, caracterizam-se pela ausência de escuta, poderíamos, então, nesta última,
situar o aluno produtor do texto.
Nesta segunda posição a diferença fica, então, marcada por uma estreita relação do
sujeito com a estrutura de um funcionamento lingüístico-discursivo e é nela que Lemos
(2000) situa o paralelismo como sinalizador da posição singular desse sujeito. Nesta posição,
o que é externo torna-se impermeável à correção do outro, para dar lugar a uma relação da
ordem do significante, interno ao funcionamento da língua. A autora comenta, também, que
43
De acordo com o texto original não foi possível recuperar precisamente o que foi escrito e rasurado, que
indicamos com “?”. Parece que há uma rasura antes do “N” que se aproxima da forma “H”.
108
há, aí, um “ir além da fala do outro, da situação enunciativa e do próprio sentido” (LEMOS,
2000, p. 11).
Os enunciados que caracterizam essa segunda posição do sujeito são marcados,
portanto:
como atividade discursiva com tendência ao monológico, uma vez que, mesmo se
efetivando na presença do outro, não está relacionado a ele enquanto interlocutor, e
pela substituição que ocorre nas cadeias, resultando num movimento sobre elas
mesmas, provocando o deslizamento do sentido e perdendo os efeitos referenciais.
Para refletir mais detidamente sobre a estrutura do texto deste aluno, recorreremos a
relação que a autora (LEMOS, 2000) estabelece entre a estrutura paralelística das produções
infantis e os processos metafóricos, analisando o erro como vestígios desses processos.
No paralelismo do exemplo apresentado, os erros se constituem em diversos pontos de
deriva, vindos do cruzamento das cadeias manifestas (in praesentia) com as cadeias latentes
(in absentia). Vejamos:
1. NEM RAIBO É BONITO
2. A CABERREÇA É BONITO
3. AS PARTA É BONITO
4. AS OLEIA É BONITO
5. UM PRELO É LINDO
6. A BARRI(?)NA É BONITO
7. UM DERTER É BEN A FRIADO
Se tomarmos especificamente a letra R, poderemos observar melhor esses
deslizamentos, marcados pelos diferentes lugares que ela toma em cada enunciado: de
presença/ausência, de preenchimento/falta, de previsibilidade/imprevisibilidade, de
normalidade/estranhamento. O aparecimento do R em cada sintagma marca o cruzamento
pela emersão do elemento paradigmático, no caso, as diversas ocorrências do R na nomeação
(raibo, parta, prelo, etc).
Na estrutura paralelística dessa escrita, os paradigmas estão representados,
sucessivamente, em colunas, pelos determinantes (a, as, um...), pelos nomes (raibo, caberreça,
109
parta...) e pela predicação bonito, é lindo...) que, com exceção dos nomes, apresentam uma
forma gráfica já estabilizada.
O lugar onde os erros aparecem constituem uma outra estrutura paralelística, a dos
nomes, inserida nessa mais ampla. E é dentro desses termos nomeadores que se pode observar
o cruzamento da letra R com as diferentes posições tomadas nesses nomes (como em “raibo”
e barri(?)na”, provocando o que pode ser chamado de um deslizamento dos róticos (as
diferentes realizações do R no português quanto à representação fonema/grafema).
44
Vejamos com mais precisão este movimento de deslize do R. Ora ele emerge no lugar
previsível (“Raibo”, “baRRi(?)na”), ora ele surge onde não é esperado nada, um lugar vazio,
(“cabeRReça”, “paRta”, “pRelo”, “derteR” e “afRiado”), ora ele aparece no lugar de outra
letra (deRter), ora, ainda, o R é substituído por algo talvez um pouco mais previsível “oLeia”.
Deixando de lado as formas previsíveis em que o R aparece, como o R na palavra
“rabo” e o RR na palavra “barriga”, caracterizadas pelo que Morais (1998, p. 31) chama de
“regularidade contextual”, uma vez que está submetida a uma regra ortográfica definida pelo
contexto da palavra, nos deteremos no registro do imprevisível, quais sejam: as trocas por
outra letra (o R substituindo o N, e o R sendo substituído pelo L) e a ocupação de um lugar
vazio (o R em lugares que não se espera que ele esteja).
Vale enfatizar que, mesmo ocupando esses lugares inusitados, o R não toma qualquer
lugar, aleatoriamente. O seu aparecimento estabelece relações com as outras formas, situadas
antes e depois, operando um corte no sintagma.
No Curso de Lingüística Geral, Saussure (1989, p. 148) define, então, essas relações
como constitutivas da língua e que preside o seu funcionamento. Um princípio geral é
admitido para mostrar o mecanismo dessas relações: “o todo vale pelas suas partes, as partes
valem também em virtude do seu lugar no todo”. Elas estão, portanto, vinculadas e a
importância de uma determina a da outra.
No funcionamento simultâneo das relações associativas e sintagmáticas, os termos da
língua, não importa a sua dimensão, obedecem a uma ordem estrutural de possibilidades de
ocorrências. É por isso que, para o autor, aum fonema desempenha um papel no sistema
da língua: “Se, por exemplo, em grego, m, p, t, etc., não podem nunca figurar no fim de uma
palavra, isso equivale a dizer que sua presença ou sua ausência em tal lugar conta na estrutura
da palavra e na da frase.” (SAUSSURE, 1989, p. 151).
44
Entre as realizações do r ortográfico no português brasileiro, estão: o [r] intervocálico, como em caro, o [R],
também intervocálico, como em carro, o [h], glotal, como em mar e o [J], retroflexo, como porta no dialeto
matuto (Cagliari, 1989 e Silva, 2001).
110
A partir desses conceitos, podemos observar melhor as posições “estranhas” tomadas
pelo R, no texto do aluno. Será que são estranhas e impossíveis? Ou causam um
estranhamento, mas não sinalizam uma impossibilidade enquanto posição determinada no
encontro das cadeias associativas e sintagmáticas? Vejamos:
o R toma o lugar do N em “deRter” (dente), na linha 7, numa posição possível também
para o R quando num final de sílaba do tipo CVC (como em porta/ponta, Berta/benta,
pantanal/partida, etc);
o R é substituído pelo L em “oLeia” (orelha), na linha 4, no entanto, o lugar de relação
também é possível para o R, intervocálico, em sílaba do tipo CV (como em orégano/
Olegário ou oreografia/oleografia, etc.);
os lugares vazios em que o R surge também estabelecem relações com os outros
significantes, investidos de diferentes valores: RR no meio da palavra entre vogais, em
“cabeRReça” (cabeça), na linha 2; R em laba inicial do tipo CVC, em “paRta”
(pata), na linha 3; R após outra consoante em sílaba CCV, em “pRelo” (pelo), linha 5 e
“a fRiado” (afiado), linha 7; e R em final de palavra, em “derteR” (dente), linha 7.
Analisando esse movimento de significantes quando uma aluna escreve “pesto” (para
“perto”) e “sote” (para “sorte”), Faria (1997) recorre também a Saussure para mostrar que o
inusitado se revela no surgimento de um significante em uma posição o R na posição do S
(“pesto”) ou numa posição vazia (“sote”):
O aparecimento dessa posição denuncia o corte no qual um eixo
metafórico se abre. Nesse caso, é possível ver que, longe de se
estabelecer uma correspondência fonema-grafema, abre-se o jogo
da representação [...]. O significante desliza, não na posição que
ocupa, como na própria forma que reveste, podendo comparecer
enquanto R, S ou, simplesmente, não assumir forma gráfica,
embora, ainda assim, sua presença esteja marcada pela posição
vazia (FARIA, 1997, p. 114 – grifo nosso).
Talvez possamos, ainda, relacionar esse deslizamento do R no texto do aluno ao que
Barthes e Marty (1987, p. 32) chamam de “isolamento de um traço significante através da
111
grafia”
45
ou, também, ao que Mota (1995a) comenta ser o efeito do simbólico, da face
material da escrita, quando supõe:
um envolvimento de ordem imaginária de investimento da letra face
material da escrita enquanto traçado ou imagem. O eixo imaginário
permite que se evidencie o caráter objetável da letra, mas isto
pode ocorrer sob o efeito do simbólico. Para o homem, à diferença
dos animais, as imagens falam e se sustentam quando que
reconhecidas e nomeadas na ordem simbólica. É por esse
reconhecimento e nomeação, que vem do outro, que os objetos
ganham identidade e permanência (MOTA, 1995a, p. 134).
O jogo do significante constrói os efeitos de sentido do texto provocados pelo que
Orlandi (1998) chama de deslizamentos ou pontos de deriva como “lugares em que os
sentidos podem ser outros”, ou mesmo lugares de interpretação que “separam fortemente a
escrita da oralidade”, ou, ainda, “pontos onde gestos de interpretação trabalham a deriva, o
deslocamento, o equívoco, constitutivo dos (outros) sentidos e dos (outros) sujeitos”
(ORLANDI, 1998, p. 125-9). Para essa autora:
Um sujeito pode não estar incisivamente inscrito em uma
ordem determinada de língua e nem por isso deixa de ter sua
identidade configurada, justamente por essa mobilidade, essa
plasticidade que o faz passageiro de várias ordens do símbolo.
Esse é o próprio do sujeito (a sua itinerância), o próprio do
sentido (o trabalho do equívoco), no próprio da língua, que é capaz
de jogo (ORLANDI, l998, p. 130).
O conceito trazido por Pêcheux (1969) e retomado pela autora pode ser útil para se
entender o que acontece: um “efeito metafórico” que é tido como “base da constituição do
significar”, constituindo o funcionamento da relação entre sujeito, língua e sentido:
M. Pêcheux (1969) vai chamar de efeito metafórico o fenômeno
semântico produzido por uma substituição contextual, lembrando
que esse “deslizamento de sentido” entre x e y é constitutivo do
sentido designado por x e y. Como esse efeito é característico das
línguas naturais, por oposição aos códigos e às línguas artificiais,
podemos considerar que não sentido sem essa possibilidade de
deslize, e, pois, sem interpretação. O que nos leva a colocar a
45
Citação de parte de um comentário dos autores sobre o nascimento da escrita, criticando os que consideram a
“cronologia linear” e a relação de dependência do oral: “Tudo se passa como se a escrita já tivesse sido
inventada antes de ser posta em relação com a língua, antes de ser fonetizada: o advento da escrita é o advento de
algo que já é a escrita (considerando que a sua característica fundamental é o isolamento de um traço significante
através da grafia) e que, depois de uma evolução lenta e descontínua, acaba por poder servir de suporte ao som
(BARTHES e MARTY, 1987, p. 32).
112
interpretação como constitutiva da própria língua (natural)
(ORLANDI, 1998, p. 80).
Admitimos aqui, que, nessa relação triática entre sujeito, língua e sentido, o aluno
sofre os efeitos da interpretação, mas os deslizes que se operam trazem, também, além da
historicidade que os conformam, um movimento do significante.
Se, como diz a autora, a interpretação é o lugar de se observar a relação histórica do
sujeito com os sentidos e, se essa interpretação se com base na “materialidade lingüística”,
nesta está também o significante, mostrando pelo seu movimento a relação de mútua
constituição sujeito/língua.
Uma produção textual está marcada tanto pela materialização do discurso como pelo
funcionamento da língua, revelada no movimento do significante. No exemplo comentado
nesta seção, o sentido escapa do texto quando, pelo cruzamento da série simbólica (o R) com
o sentido (a relação do R em cada termo), produz um estranhamento. Emerge, então, um
indizível não como impossível de ser revelado, mas como o que não foi revelado até certo
momento. Essa emersão se dá, pois, em lugares imprevisíveis, mas possíveis se levarmos em
conta a ordem da língua.
Pode-se observar, pelo exposto, que o diferente, o novo e o equívoco são produzidos
num processo onde podem estar intrinsecamente ligados tanto a historicidade do dizer, quanto
o movimento do significante.
Assim, o funcionamento lingüístico-discursivo e o movimento do significante
articulados pelos processos metafóricos e metonímicos na sua interlocução com o dispositivo
teórico da Análise do Discurso podem ser um frutífero caminho para se refletir sobre a relação
entre o sujeito e o “erro ortográfico” produzido.
113
6.3.
As possibilidades da língua na alternância de vogais
TEXTO 3:
(Código do aluno: 31 1012 41 21)
46
Para os comentários que faremos sobre esse texto, faz-se necessária a transcrição a
seguir que procurou uma aproximação possível do texto original, destacando em sublinhado
os problemas ortográficos e indicando com o símbolo “
onde deveria haver uma letra:
1. EU TOU VENDO PELA A LIGRA E
2. O DENTES A BOXENHA E A PETENHA
3. E A CORELHE E A PANELO E OLE E
4. PENTRO E O COSSO E BRAÇO E O
5. PELO DO CACHARO BRAÇO E
6. PETO E A PANELE E BRAÇO E PETA
Para uma melhor compreensão do que diz o texto, uma transcrição sem erros se faz
necessária:
46
Pelas informações oferecidas pela rede de ensino que aplicou o teste, esse aluno tem 18 anos. No universo de
escolas atendidas pela avaliação estavam incluídas as unidades escolares da zona rural e da periferia da cidade,
onde estavam matriculados alunos entre 13 e 18 anos, nas turmas de 4ª séries de Ensino Fundamental. O texto
ora analisado foi escrito por um aluno que freqüentava uma destas escolas rurais.
114
1. EU TOU VENDO PÊLO, A LÍNGUA E
2. O[S] DENTES A BOCHECHA (BOQUINHA?) E A PATINHA
3. E A COLEIRA (ORELHA?) E A PANELA E [O] OLHO (ORELHA, OLHE?) É
4. PRETO (DENTRO?) E O OSSO (COM O OSSO?) É BRANCO E O
5. PÊLO DO CACHORRO [É] BRANCO E
6. PRETO E A PANELA É BRANCA E PRETA
Uma primeira observação sobre este texto estaria nas nossas dúvidas concernentes à
interpretação de certos termos que parecem constituídos de formas amalgamadas, ou, o que se
tem chamado de mot-valise (palavra-valise), ou, ainda, “palavra entrecruzada” (DUBOIS et
al., 1973, p. 451)
47
. Na escrita de “boxenha” (linha 2), o descartamos a possibilidade deste
significante ser, em verdade, “boquinha”, no diminutivo, assim como “patinha”, escrito a
seguir. Todavia, o emprego do diminutivo não deixa de ser estranho, se levarmos em conta
que esse aluno tem 18 anos. Não obstante, o que nos deixa em dúvida quanto à
interpretação de “bochecha” é a aparente forma de amálgama feita por boquinha e
bochecha”.
Também na escrita de “corelhe” (linha 3), novamente a decisão por “coleira” não é
completamente segura, pois também se poderia ler “orelha” ou, até mesmo, outra palavra-
valise que funde “coleira” e “orelha”. Em “ole” (também na linha 3), a interpretação não está
clara. Pensamos em três possibilidades: “olho” (do cachorro) ou “orelha” ou ainda “olhe” (no
sentido de “vejo”, de “estou vendo”). Optamos, com alguma reserva, pela primeira
interpretação por julgarmos a que mais pode se aproximar do que o aluno realmente quis
escrever e por estabelecer uma maior coesão com o sintagma “é preto” na seqüência da
cadeia.
Outros possíveis amálgamas podem ser observados nos termos “pentro” e “cosso” (na
linha 4). No primeiro, podem estar “dentro” e “preto” e, no segundo, “osso” ou a expressão
“com o osso”. E, ainda, a escrita do significante “braço”, presente nas linhas 4, 5 e 6, para o
que possivelmente seria “branco”, tendo em vista as relações com os outros termos que
descrevem a gravura. Voltaremos, adiante, a esses erros ortográficos.
Ao tentar essa descrição, conforme o solicitado na consigna (o que mostra que o aluno
leu e entendeu o que foi solicitado), o texto traz, entre as linhas 1 e 3, uma nomeação do que
47
No Dicionário de Lingüística, os autores definem “palavra entrecruzada” como resultante da “redução de uma
seqüência de palavras numa palavra, que somente conserva a parte inicial da primeira palavra e a parte final
da última” (DUBOIS et al., 1973, p. 451).
115
“está vendo”: “(o) pêlo”, “a língua”, “o(s) dentes”, “a bochecha”, “a patinha”, “a orelha” e “a
panela”. A partir daí, inicia uma qualificação de alguns desses nomes, atribuindo-lhes as
“cores”
48
preta e/ou branca (final da linha 3 até a linha 6): “o olho é preto”, “o osso é branco”,
“o pêlo do cachorro é branco e preto”, “a panela é branco e preta”.
Como já foi enfatizado anteriormente (no item 5.2) a consigna é ambígua porque exige
do leitor dois pontos de vista enunciativos: quando faz referência ao que a borboleta Atíria
está vendo enquanto voa sobre o milharal, e, também, quando pede ao aluno para escrever o
que ele “está vendo na figura”. Esse aluno, de fato, fica “preso discursivamente” no que está
vendo, iniciando seu texto por “eu to vendo...” e, em seguida, listando algumas características
do cachorro e alguns objetos que compõem o desenho impresso em “preto e branco”. Não
iremos nos deter na configuração discursiva deste texto, mas gostaríamos de ressaltar que sua
estrutura circular e repetitiva pode ser um efeito da relação imaginária
49
que se constituiu
tanto pela consigna mal formulada, quanto pela relação entre sujeito e texto que aí se faz.
Nos problemas gramaticais destacamos a ausência do verbo “ser” na linha 5: “o lo
do cachorro [é] branco e preto”; a ausência do “s”, marcador de plural, na linha 2: “o[s]
dentes”; a ausência do artigo masculino singular “o”, na linha 3 “[o] olho é preto", além da
ausência total de sinais de pontuação. Curiosamente, também o qualquer tipo de
acentuação; no entanto, todas as palavras encontram-se adequadamente separadas.
Quanto aos problemas ortográficos, podemos destacar:
- “pela” e “li
gra” (linha 1)
- “boxenha” e “petenha” (linha 2)
- “core
lhe”, “panelo” e “ole” (linha 3)
- “pentro”, “cosso” e “bra
ço” (linha 4)
- “cacha
ro” e “bra
ço” (linha 5)
- "p
eto”, “panele” , “bra
ço”, “p
eta” (linha 6)
48
Evidentemente, estamos aspeando o termo “cores” para destacar sua conotação irônica, uma vez que todo o
teste é impresso somente na cor preta.
49
Estamos tomando a noção de imaginário no sentido lacaniano, conforme teorização de Milner (1989).
116
a) Erros passíveis de categorização
Os estudos sobre os processos de aquisição do sistema ortográfico ou sobre as
dificuldades que este sistema traz em sua aprendizagem (NUNES et al., 2000, CAGLIARI
1989, MORAES 1998 e 2002) identificam claramente alguns destes erros no texto deste
aluno.
Podemos reconhecer nas categorizações que estes autores apresentam uma “troca de
letras com sons parecidos” ou problemas de “transcrição de fala”. Por exemplo, a troca do “i”
pelo “e” em “petenha” (linha 2) que seria justificada, nesses estudos, pelas diferentes
realizações sonoras da vogal “e”: [e], [є], [i]. Cagliari diz que a escrita das crianças foge da
forma ortográfica, mas revela a forma fonética da língua, quando afirma que: “É comum as
crianças escreverem, por exemplo, mãe, paé, mão em vez de mãe, pai e mau, e isso
normalmente é entendido como um desconhecimento dos sons das letras. Porém, também é
comum ouvir pessoas dizendo [paє], [mзє], [maс], o que nos mostra que a criança usa a fala
como referência para a escrita e não comete ‘erros’ por leviandade ou distração” (CAGLIARI
1989, p. 59). Nos exemplos dados por Nunes et al. (2000, p.74) fica ainda mais evidente a
explicação para o erro em “petenha” como sendo produto de uma categoria de “erros de
transcrição de fala”; a troca dos sons do “e” somente pode ocorrer com os sons do “i”,
(segmentos vocálicos de uma mesma categoria: “istrela”, “impada”, “mininisi”, “(h)omi(m)”
e passia(r). Vê-se que justificativas desse tipo permanecem ainda ligadas ao “ideal
alfabético”, presente na tradição dos estudos sobre a ortografia, ou seja, busca uma relação de
equivalência entre fonia e grafia (GONÇALVES, 1992).
Outro erro que estes estudos reconheceriam como estatisticamente significativos é a
“omissão da marca de nasalização” em “bra
ço” (linhas 4, 5 e 6), que suporia a presença
deste problema também na fala do aluno ou estaria relacionado a uma aquisição “posterior” à
base alfabética, tendo a marcação da nasalização como um dos “estágios” mais avançados do
aprendizado da escrita. Segundo Nunes et al. (2000, p. 72): “Embora o m e o n sejam
perfeitamente diferenciados em seus usos, mesmo dentro da base alfabética como consoantes
principais, sua diferenciação na marcação da nasal depende da aquisição de regras
hierárquicas, que não são apreendidas de imediato na fase alfabética”. Assim, esses estudos se
detêm num viés “exploratório” e quando justificam a ocorrência desses erros o fazem com
base nas questões psicológicas de percepção ou nas de representação do sistema fonológico.
A interpretação que se a erros como os de “x” e ”r” em “box
enha” (linha 2) e
“cacha
ro” (linha 5) estão também fundamentados por esses princípios. A categorização
117
dada a eles por Morais (1998) é de “casos de regularidade contextuais”, isto é, quando a
correspondência letra/som atende a uma regra, um “princípio gerativo” passível de
compreensão. No primeiro exemplo, caso o termo pudesse ser interpretado como “boquinha”
o aluno poderia, segundo o autor, “apreender” a regra que determina as realizações do som
[k], antes de “e” ou “i”, usando “qu”; e no segundo, o uso de “rr” entre vogais, no meio da
palavra, para a realização de [R].
b) Os erros ortográficos singulares
Um ponto que nos chama a atenção é que nem todos os erros apresentados no texto
acima são facilmente classificáveis em “erros de transcrição da fala” ou em erros relacionados
às “regularidades contextuais”. Dificilmente poderíamos “encaixar” nessas explicações as
ocorrências relacionadas a seguir, em que o aluno escreve:
“pela” para “pêlo” (linha 1);
“panelo” (linha 3) ou “panele” (linha 6) ambos para “panela”;
“ole" para “olho” (linha 3);
“petenha” para “patinha” (linha 2);
“cacharo” para “cachorro” (linha 5);
“cosso” para “osso” (linha 4);
“braço”, para “branco” (nas linhas 4, 5 e 6);
“li
gra” para “língua” (linha 1);
“core
lhe” para “coleira” (linha 3);
“pentro” (linha 4) e “p
eto” (linha 6) ambos para “preto”;
“p
eta” para “preta” (linha 6).
Não seriam tais erros um índice de uma relação subjetiva e singular entre sujeito e
língua? Esses erros não poderiam estar criando dificuldades para as categorizações
estabelecidas pelos estudos citados? É através deles que iremos buscar uma outra
interpretação que considere a singularidade aqui defendida.
118
nesses erros singulares
50
diferentes ordens de problemas. Selecionaremos, para
uma primeira reflexão, aqueles que apresentam a vogal como elemento problematizador, a
saber:
“pela”, “panelo”, “panele”, “olé, “petenha”, “cacharo”, “corelhe”.
Deixaremos de lado o aspecto gráfico, pois o aluno não parece ter dúvidas quanto ao
traçado das letras, na maior parte das vezes bem definido, como em “tou”, “vendo”, dentes”
ou “pelo” (na linha 5); o mesmo vale para os espaços em brancos que delimitam uma palavra,
como já apontamos acima.
A heterogeneidade das formas singulares, isto é, as diferentes significações de uma
determinada forma significante é um primeiro ponto a ser destacado. Ela envolve as formas
significantes “a”, “o” e “e” em posições previsíveis na língua portuguesa, porém equivocadas.
Aqui, entretanto, do ponto de vista sintático, o erro ortográfico pode encontrar seus limites. Se
considerarmos a escrita de “pela”, logo na 1ª linha, podemos reconhecê-lo, de imediato, como
“erro ortográfico”? Ele ocorreu na seguinte cadeia sintática: “Eu tou vendo pela a ligra” no
lugar da forma correta “pêlo”; todavia, pode ser que esta forma esteja grafando uma palavra
do “dialeto” da comunidade lingüística à qual o aluno pertence ou ser ainda uma pequena
variação relacionada ao parônimo “pelar”, verbo que significa “tirar o pêlo a” e, por um
movimento metonímico, ser o modo como o aluno nomeia o “pêlo” do cachorro.
Estranhamente, na linha 5, a escrita convencional de “pelo” em “pelo do cachorro [é] branco”
vem complicar esta interpretação. Isso nos obriga a restringir nossos “erros singulares” a
escritas de palavras que não encontram outra correspondência na língua.
Se a sílaba
51
na língua portuguesa tem como possibilidades as seguintes estruturas:
“V”, “CV”
52
, “CCV”, “CCVC”, ou ainda, “CCVCC”; e se o elemento comum a todas elas é a
vogal, não há, portanto, nas ocorrências identificadas acima, uma ruptura dessas estruturas. Os
erros ortográficos exemplificados indicam, de algum modo, possibilidades do sistema
alfabético da língua portuguesa.
Há, assim, um sistema estabelecido que não somente nos permite ler o que foi
escrito, como identificar uma repetição que preserva estas estruturas. Entretanto, as formas
50
A singularidade destes “erros” pode ser enfatizada pela ausência de algo parecido em todo o restante de nosso
corpus. Outra análise de “erros ortográficos singulares” pode ser encontrada em Calil & Nagamine 1999.
51
Estamos tomando a noção de sílaba como: “uma vogal ou um grupo de fonemas que se pronunciam numa
emissão de voz e que, sozinhos ou reunidos a outros, formam palavras” (FERREIRA, 1999)
52
C = consoante; V = vogal.
119
silábicas previsíveis “lo”, “lê”, “pe”, te”, “cha”, “lhe” produzem termos não-existentes na
língua, como “panelo”, “panele”, “petenha”, “cacharo”, “corelhe”. Tais formas são
“possíveis materiais” (Milner, 1987, p.72) diante das possibilidades da língua, apesar de não
pertencerem a um “sólido de referência”, já que não são formas que pertencem a uma
coletividade, mas foram escritas por um sujeito em processo de aquisição da linguagem
escrita.
A outra reflexão que queremos trazer diz respeito aos erros singulares presentes em
“li
gra” (linha 1), “pentro” e “cosso” (linha 4), e “braço”, (linhas 4, 5 e 6). Como
mencionamos no início, esses exemplos parecem carregar formas amalgamadas. E é esse
entrecruzamento nessas chamadas “palavras-valise” que vai provocar, através de diferentes
pontos de identificação imaginária, um certo intercâmbio, ou melhor, uma alternância na
relação gráfica. Numa organização espacial dessas formas entrecruzadas, podemos observar
melhor esse movimento de alternância:
LIGRA PENTRO COSSO BRAÇO
NGUA DENTRO OSSO BRANCO
PRETO COM O OSSO
No primeiro grupo, pode ser observado esse movimento que envolve R, N e U: nas
sílabas iniciais, a falta e a presença do N, /N, (LI
gra e Ngua); e, nas finais, a alternância
do R e do U, R/U, (liGRA e línGUA). No segundo grupo, a relação entre N e R, sendo que o
N posicionado nos finais de sílabas (PENtro, DENtro) e o R, no meio delas (denTRO,
PREto). Posições legítimas para as ocorrências tanto neste grupo, como no primeiro (pela
posição do N em LINgua e do R/U em liGRA e línGUA). Podemos interpretar essas
emergências pelo que Lopes & Calil (2001) e Calil (2004, p. 343) chamam de “efeito dos
cruzamentos de enunciados”, uma vez que: “Do ponto de vista das relações metafóricas, o
equívoco [...] indicia a pressão de cadeias latentes sob o fluxo do discurso”.
Nos terceiro e quarto grupos, podemos observar uma relação de semelhança e
diferença entre o C, em início (COsso, COm o osso) e em final (branCO) de palavras, e o Ç
em posição final (braÇO). Além disso, se nos remetermos ao contexto gráfico-espacial desses
dois grupos, no texto do aluno, observaremos uma recorrência dessas grafias em COrelhe,
COsso e CAcharo, respectivamente, nas linhas 3, 4 e 5; e a repetição de braÇO, nas linhas
4, 5 e 6:
120
1. EU TOU VENDO PELA A LIGRA E
2. O DENTES A BOXENHA E A PETENHA
3. E A CORE
LHE E A PANELO E OLE E
4. PENTRO E O COSSO E BRA
ÇO E O
5. PELO DO CACHA
RO BRA
ÇO E
6. PETO E A PANELE E BRA
ÇO E PETA
Talvez possamos ver “com nitidez a autonomia do signo escrito, da imagem face à
palavra”, no dizer de Barthes e Marty (1987, p. 37) e, também que: “autônomas, as escritas
diversificam-se segundo uma lei interna ao sistema gráfico”. Podemos relacionar essas
observações sobre o erro ortográfico, ao que se tem chamado de “supremacia do significante”
que comentaremos nas análises dos itens 6.5 e 6.6.
Podemos, também, aproximar essas ocorrências, das noções apresentadas por Milner
(1987)
53
, que devem ser re-interpretadas em função do nosso campo de estudo vinculado à
Aquisição de Linguagem
54
e não, propriamente, à Lingüística. Apesar desses erros
pertencerem à língua escrita, evidentemente, e também não se tratarem de enunciados
produzidos por um grupo de falantes, como Milner define através do conceito de “sólido de
referência”, podemos considerá-los como “possíveis materiais”
55
, uma vez que uma forma de
língua considerada como impossível para um sujeito falante é sempre materialmente possível.
Ao dizer que estas formas singulares são “possíveis materiais” destacamos em sua
estrutura silábica um “atestado de língua”, mas que, do ponto de vista lexical, há uma ruptura
neste modo de ortografar tais palavras, que nos obriga a suspender categorizações ligadas
apenas às “realizações grafo-fônica”.
Como Saussure ([1916]1989) tenta mostrar no Curso de Lingüística Geral,
particularmente ao formular a teoria do valor, um sistema de relações em
funcionamento. Enquanto a relação sintagmática (processo metonímico) tem como base o
53
Cf. Particularmente o capítulo 1.
54
Vale dizer que estamos nos posicionando dentro do “Interacionismo Dialógico”, quadro teórico que se
distingue dos estudos em Psicolingüística. Para ter mais clara esta diferenciação, sugerimos a leitura do trabalho
de Maria Tereza Lemos, “A Língua que me falta: uma análise dos estudos em Aquisição de Linguagem” Tese de
doutorado, Inédita. IEL/Unicamp, 1994.
55
Conforme comentários nossos nos itens 1.2 e 4.2 deste trabalho, acrescentamos que, para Milner, o sólido de
referência é aquilo que um conjunto de falantes atesta como julgamento diferenciado sobre a língua, ou seja, o
sólido de referência é a realização deste diferencial marcado em termos de isto se diz (um fato de língua é
possível) ou isto não se diz (um fato de língua é impossível). Isto toca no possível material, pois uma forma de
língua considerada como impossível para um sujeito falante é sempre materialmente possível, o que equivale a
dizer que o julgamento diferencial é disjunto do que é possível materialmente. É aqui que parecem se inscrever
os dados que analisaremos nesta parte do trabalho.
121
encadeamento de “consoantes” evogais” e suas relações grafo-fônicas, o eixo paradigmático
restringe a combinação, através das estruturações possíveis das sílabas. Este jogo
combinatório que articula os dois eixos não encontra suas amarrações em todos os seus
encaixes, pois a própria série associativa pode abrir espaço para a entrada de diferentes
elementos pertencentes ao sistema, mas não previstos em certas posições, em certos
encadeamentos. É nesse sentido que estamos entendendo o que diz Saussure ([1916] 1989, p.
146): “Enquanto um sintagma suscita em seguida a idéia de uma ordem de sucessão e de um
número determinado de elementos, os termos de uma família associativa não se apresentam
nem em número definido nem numa ordem determinada” .
Considerando tal forma de funcionamento no sistema ortográfico, a produção dessas
ortografias singulares apontaria para este jogo combinatório que submete, de forma
intermitente, o sujeito. Em sua singularidade, a alternância das formas significantes que
apontamos no texto desse aluno indica que o encontro das cadeias associativas e sintagmáticas
pode fragilizar as categorizações. Desse modo, o erro é tido, segundo Cláudia Lemos, como
resultante de “um processo metafórico na medida em que estabelece, pela substituição, uma
relação de ‘semelhança’ com um outro elemento da língua que poderia estar no seu lugar”
(LEMOS, 2000, p. 07).
Como vimos, uma produção textual está marcada tanto pela materialização do discurso
como pelo funcionamento da língua, revelada no movimento do significante. Podemos dizer,
com Teresa Lemos (2002, p. 35) que as produções analisadas resistem “a significar-se como
texto, ainda que capaz de despertar sentidos”. Se observássemos esses textos disjuntos da
figura a partir da qual foram produzidos, talvez não fosse possível, a partir de um eixo
metafórico que a própria figura nos ajuda a abrir (como em: pêlo, língua, dentes, bochecha,
patinha, olho, osso) fazer o texto “virar” texto. A partir daí sua inconsistência parece se diluir
e somos capazes de incluir estes significantes em uma série simbólica, em rede. Mais uma
vez, como diz a autora (IDEM, p. 41): “a condição de existência de um objeto no mundo
humano é que ele faça série simbólica com outros objetos. Ou seja, que ele possa ser incluído
em um discurso”. No entanto, sempre sobra um resto, um indizível não como impossível de
ser revelado, mas como o que não foi revelado até certo momento. Essa emersão se dá, pois,
em lugares imprevisíveis, mas possíveis se levarmos em conta a ordem da língua, no caso, a
estrutura silábica da língua portuguesa, constituindo, como diz Milner, um “possível
material”, mesmo sendo um “impossível lingüístico” uma vez que excluído dos estudos sobre
os processos de aquisição do sistema ortográfico.
122
6.4.
O estatuto de identidade e diferença entre B/D,
D/B e BR/D
TEXTO 4:
(Código do aluno: 31 1006 41 13)
1. ELE ISTA DE COLEIRA PETAR
2. ELE E PENBELUDO
3. TEM UM RADO FOFINHO
4. UMA PATONA
5. ABORA COMER
6. EDINCA COM A COMEDA
7. IELI GOTA DE COME OSO
Pelo que pode ser observado, há, nesse texto, diferentes tipos de erros ortográficos que
envolvem tanto a omissão como a troca de letras (MORAIS, 1998; NUNES, 2000). Os
primeiros podem ser exemplificados pelas formas: “go
ta (gosta), “come
(comer);
“os
o” (osso); e os outros, pelas formas Ista” (está), PeNBeludo(bem peludo), “raDo”
(rabo), “aBora(adora), “comEda” (comida), ieli(e ele). Para casos como “petar” (preta),
Tafla (1994) classifica como erro Por Transposição.
123
No entanto, direcionaremos os comentários neste trabalho, buscando explicações para
as trocas inusitadas de B/D em “rado” (linha 3) e D/B em “abora” (linha5), e de BR/D em
“edinca” (linha 6), no texto 4, levando-nos, assim, a uma interpretação diferente daquela em
que as trocas de B/P e P/B são justificadas apenas pela distinção nos traços surdo/sonoro.
Inicialmente faremos algumas reflexões sobre a escrita de PenBeludo” (linha 2), em
que o aluno substitui B/P e P/B, um tipo de erro ortográfico amplamente comentado nas
pesquisas e categorizado como “troca de letras com som parecido”, “erro ligado à oposição de
sonoridade” ou “correspondência ortográfica regular” ou, ainda, “erros ortográficos
envolvendo traços distintivos”.
Diferentes estudos (POTHIER, 1996; NUNES et al., 2000; MORAIS, 1998; REGO &
BUARQUE, 2002; TAFLA, 1994) tomam como apoio a psicologia cognitiva para identificar
e categorizar os erros ortográficos tanto de crianças ditas normais, como de portadoras de
deficiências. As trocas de letras, nesses estudos, são tidas como erros de grafia ligados à
língua oral, que ocorrem principalmente pela identificação com pares mínimos, fonemas com
apenas um traço distintivo como, por exemplo, o traço surdo/sonoro em /p/ e /b/, /f/ e /v/, /t/ e
/d/. Pothier (1996, p. 77) define-os como “erros ligados à oposição de sonoridade”
concluindo, pelo número de ocorrências, que “os alunos possuem uma forte tendência de
ensurdecer os fonemas”. Dentre os exemplos apresentados pela autora
56
, retirados do texto
“Une visite au zôo”, transcrito por um aluno, estão:
“fisite” /vizit/ est devenu [fizit] [v]/[f] assourdissement,
“teschir” /deiR/ est devenu [teiR] [d]/[t] assourdissement,
“pasei” /bas/ est devenu [pas] [b]/[p] assourdissement,
Sobre os erros relacionados às alterações fonéticas, a conclusão da autora recai sobre o
papel da memória visual: “o fato de ele escrever os elementos que não domina, acarreta o
risco de fazê-lo memorizar termos grafados de modo errôneo” (POTHIER, 1996, p. 80).
Além das justificativas dadas acima por Pothier para as trocas que entre o B e o P,
Morais define-as como dificuldade ortográfica regular, uma vez que envolvem
“correspondências ortográficas regulares”, isto é, aquelas que estão num grupo de relações
letra-som e que não existe, no sistema ortográfico, nenhuma letra ‘competindo’. Para o autor,
as crianças que aprenderam as convenções do sistema alfabético não têm dificuldades em
56
O texto ilustra os comentários da autora na parte intitulada “Lés relations grapho-phonétiques et le système
phonologique du français”.
124
grafar essas letras (além do B e P, T e D, e F e V). A ocorrência desse tipo de erro na escrita
dos alunos é justificada pela semelhança dos sons, na pronúncia, uma vez que diferem apenas
por um traço distintivo, no caso do /b/ e do /p/, pela sonoridade/ensurdecimento:
Interpreta-se hoje que essas trocas se devem ao fato de os sons em
questão serem muito parecidos em sua realização no aparelho
fonador. São tecnicamente chamados de ‘pares mínimos’, porque
são produzidos expelindo-se o ar do mesmo modo, no mesmo
ponto de articulação, diferindo apenas porque em um (por
exemplo, o /b/) as cordas vocais vibram, enquanto no outro som
(por exemplo, o /p/) elas não vibram (MORAIS, 1998, p. 29 –
grifos nossos).
O autor acrescenta que, em alguns casos, esse tipo de erro pode trazer dificuldades na
escrita, para os alunos cujo dialeto se distancia daquele considerado de prestígio:
[...] os casos de regularidade ‘direta’, que agora estamos
enfocando, podem trazer alguma dificuldade para alunos cuja
variedade de pronúncia se distancie das formas de pronúncia
prestigiadas. Desse modo, um aluno que fale, por exemplo
‘barrer’ (no lugar de ‘varrer’) poderá apresentar um erro que não
observamos em outras crianças (MORAIS, 1998, p. 30 grifos
nossos).
Nunes et al. (2000, p. 71) também observam em seus dados esse tipo de erro de escrita
e os relaciona aos traços distintivos dos fonemas: são os chamados “erros por trocas de letras
com sons parecidos” como “blástico” (para plástico) e glima” (para clima). Eles justificam
essas trocas pelas dificuldades das crianças em “analisar fonologicamente as letras” do
sistema alfabético, mostrando que “as trocas mais freqüentes foram entre consoantes surdas e
sonoras com o mesmo ponto e modo de articulação”.
No estudo que realiza sobre o erro ortográfico, Tafla (1994, p. 175) observa que a
quantidade de traços que diferenciam os fonemas, pode dificultar ou facilitar a sua escrita,
uma vez que é mais fácil discriminar sons que diferem por um maior número de traços do
que aqueles que diferem por poucos traços”.
Essa autora realiza uma exaustiva categorização de erros ortográficos produzidos por
crianças normais e crianças portadoras de deficiência mental, com o objetivo de controlar
variantes lingüísticas, entre elas a correspondência fonema/som/grafema, tipo de segmento,
oposição de traços e categoria de erro por processos fonológicos.
125
Uma das categorias levantadas nesse estudo é a de “erros ortográficos envolvendo
traços distintivos (fonemas)” em que o aluno “desrespeita, na escrita, uma oposição fonêmica
consonantal ou vocálica” (TAFLA, 1994, p. 65).
A partir dos dados levantados, a autora aplicou critérios ‘quantitativos e testes
estatísticos’. Quanto à categoria da sonorização, por exemplo, ela diz que:
Outra categoria significativa foi 1.1.a (sonorização), registrada em
22,72% do total de erros de todos os sujeitos. As trocas mais
freqüentes foram /p/ x /b/ (20% do total de erros da classe especial e
11,11% da classe normal), /t/ x /d/ (33,33% da instituição
especializada) e /k/ x /g/ (11,11% da classe normal). (TAFLA,
1994, p. 133)
Pode-se observar que as permutas, nos dados dessa autora, ocorreram por pares
mínimos canônicos e que a sua preocupação restringiu-se à observação da freqüência dos
erros, a fim de categorizá-los e classificá-los. Isso é confirmado na sua afirmação de que:
“Essas verificações não foram suficientes para avaliar os erros do ponto de vista lingüístico”
e, conclui, afirmando que: “A enumeração apresentada pode servir como norteadora para a
elaboração de exercícios adequados ao trabalho com a percepção auditiva. Ressalte-se a
necessidade de trabalhar a discriminação auditiva sempre dentro da correspondência
fonema/som/grafema.” (TAFLA, 1994, p. 174 – grifos nossos).
Como podemos ver, nesses estudos sobre o erro ortográfico são tomados como base,
prioritariamente, os aspectos sensoriais e, apesar da vasta categorização, nenhuma explicação
é oferecida sobre a produção desse erro, ou das relações estabelecidas entre o sujeito e o
funcionamento da língua.
a) A troca de B/D em RADO (rabo) e a de D/B em ABORA (adora)
Os casos de trocas de B/D e D/B, observados na escrita de “raDo” e “aBora”, se
apresentam um tanto ‘estranhos’ com relação ao que se tem categorizado nos estudos sobre o
erro ortográfico comentados acima. A diferença de traços na troca do /b/ pelo /d/ não se
nem pela fonação (as duas são sonoras) nem pelo modo de articulação (as duas são oclusivas),
mas pelo lugar de articulação (a primeira é bilabial e a outra, dental).
Essas trocas poderiam ser justificadas por uma relação fonia/grafia? Poderíamos supor
que no dialeto do aluno ele pronunciaria [‘radu] e [a’bora], em vez de “rabo” e “adora”?
126
Não haveria entre B e D um ponto de identificação imaginária que se daria a partir da
semelhança fonética, favorecendo uma espécie de intercâmbio, de alternância na relação
gráfica?
Pelas nossas observações sobre a singularidade nas trocas de B/D esse aluno encontra-
se enredado, por uma ordem imaginária, com a “face material” da escrita (MOTA, 1995), ou
seja, com o traçado das letras. Ele escreve alternando os lugares possíveis tanto para B como
para D, uma vez que o eixo imaginário possibilita evidenciar “o caráter objetável da letra”.
(MOTA, 1995, p. 134).
O erro ortográfico estaria, sim, produzindo novas relações e deslocamentos num
movimento que enreda as formas significantes e o sujeito inscrito no funcionamento da
língua, como diz Bosco (2002), em consonância com Mota (1995):
Trata-se, pois, de significação e ressignificação simbólicas que o
se dão ao acaso, mas num movimento que obedece aos processos
metafóricos e metonímicos, estes últimos possibilitando o
estabelecimento de relações imaginárias de semelhança e
dessemelhança que têm efeito de diferença (BOSCO, 2002, p. 143).
A esse fenômeno essa autora chama de “movimento de significantes na rede de
trajetos associativos” cujo caráter é imprevisível, mas não aleatório, produzindo semelhanças
e diferenças. que, com Lemos, ela afirma que: “o efeito de semelhança implica a
emergência da diferença” (BOSCO, 2002, p. 89, 156).
Podemos ter, assim, o erro como um fenômeno que, por um lado, quebra alguma coisa
tida como regular na língua, quando se confronta com os outros fatos (externos) que a
gramática e a lingüística têm categorizado como ‘o correto’; e, por outro, revela que mesmo
no diferente e estranho fenômeno descartado, ou seja, no irregular, uma ordem interna (a
ordem da língua) que o sustenta e o legitima. Subjacentes a essas formas há, pois, um
movimento de linguagem que tem como base os processos metafóricos e metonímicos como
mecanismos de funcionamento da língua (LEMOS, 1992, 1997, 1999).
b) A troca de BR/D em EDINCA (e brinca)
Se, com as constatações que tentamos estabelecer acima sobre o erro envolvendo as
trocas do /b/ pelo /d/, tidas como ‘estranhas’, o que dizer da escrita de “edinca” (e brinca),
127
forma significante na qual o /d/ toma o lugar do encontro consonantal
57
formado por uma
oclusiva bilabial e uma vibrante, ambas sonoras? Será que estaria ligada à transcrição da fala
do aluno? Seria o registro de uma ‘falha’ no valor sonoro convencional da palavra?
De acordo com os pressupostos definidos no início deste trabalho, poderíamos dizer
que a troca do /d/ por [bτ] está ‘engendrada’ (MOTA, 1995 e BOSCO, 2002) no
funcionamento da língua, pelo jogo de significantes, tanto na posição que ocupa, como na
articulação com os outros e na relação com o ausente.
A posição ocupada por /d/, registrado pelo aluno em “eDinca” , pode ser considerada
estranha, mas a sua realização é uma possibilidade de língua, se considerarmos como legítima
a existência da sílaba CVC, como em DIN (dinda, dingo, dindon) em português. Forma
semelhante é registrada pelo aluno no início do texto: “PENbeludo” (bem peludo).
Poderíamos supor, também, se a ausência do /r/ em “edøinca” (e brinca) o estaria
numa relação de ‘semelhança e diferença’ com a ausência (também do /r/, na mesma posição
de encontro consonantal, na forma significante “petar” (preta), registrada no final da primeira
linha do texto do aluno. Apesar de outras formas estarem bem estabilizadas, como, por
exemplo, o ditongo decrescente EI em “coleira” (linha 1) e o dígrafo NH em “fofinho” (linha
3), o mesmo não acontece com o registro de formas com encontro consonantal ou com
relações aparentemente mais simples como “comida”, escrita no manuscrito do aluno como
“comeda”.
Alem desses “possíveis de língua” (MILNER, 1989, p. 57) parece haver também um
outro ponto fundamental interferindo na constituição deste erro singular. Se entendermos que
entre as formas “B” e “D” um elo imaginário de ordem gráfica e posicional que produziu
as “trocas” em “rado” e abora”, parece ser possível que o erro “edinca” seja ainda um efeito
desta relação à medida que “D” assumiria um valor homofônico à forma “B”. Contando com
a ausência de /r/, comentada anteriormente, e supondo esta relação homofônica entre “B” e
“D” atravessando a produção da escrita de “e dinca” teríamos, de fato, uma tentativa de o
aluno estar escrevendo “e binca”, erro mais “aceitável” para os estudos sobre as
categorizações dos erros ortográficos.
Observando a escrita do aluno nas questões anteriores à redação, pudemos ver que elas
foram respondidas com transcrições dos textos apresentados no teste, com exceção da questão
20, em que ele escreveu “radus” para “rabo”. Dois momentos de escrita podem ser
57
Segundo Crystal (1997, p.93), “nem todas as combinações possíveis de consoantes ocorrem em uma
LÍNGUA. [...] Em português, os encontros são formados geralmente por uma consoante OCLUSIVA seguida de
r ou l (como os exemplos mencionados), mas existem outras combinações, como em pneu.”
128
diferenciados com a finalidade de situarmos a emergência da troca do B/D na escrita do
aluno: o momento em que ele apenas copia fragmentos dos textos para compor as respostas do
teste, e o momento em que, numa relação singular com a linguagem, a sua escrita provoca
uma ruptura, através do erro, pela identificação imaginária entre B/D. Esse fato pode nos
mostrar mais um ponto de singularidade desse erro. Vejamos.
Na questão 20 do teste, anterior à produção escrita, solicita-se que o aluno escreva
uma qualidade para os termos “patas” e “cauda”. O aluno, no entanto, escreve o que
possivelmente seria o sinônimo dessas formas: “manus” (mão?) e “radus” (rabo?). Vejamos a
reprodução do original:
No registro de “radus” para “rabo” ocorre o mesmo fenômeno que estamos analisando
na redação da questão 21: a troca de B/D. A partir desse ponto, o aluno inicia uma seqüência
de trocas do B/D, que emergem, alternadamente, num processo de repetição do fenômeno:
“Radus” (na questão 20)
“rado” (na linha 3 do texto)
“abora” (na linha 5 do texto)
“edinca” (na linha 6 do texto)
Este fato pode trazer uma radical diferença do que se tem dito nas pesquisas sobre o
erro ortográfico. Na nossa interpretação, a singularidade da troca de letras no texto final do
aluno está fortemente relacionada com os erros produzidos anteriormente por ele.
129
Fica evidente, então, que “edinca” é, em verdade, “ebinca”, mas a homofonia
constituída entre as formas “D” e “B” por este sujeito uma dimensão outra para a produção
de “edinca” e a singulariza, no sentido forte desta palavra, isto é, este erro somente vai
aparecer neste momento, na escrita desta palavra antecedida dos erros “rado” e “abora”
escritos anteriormente. Acreditamos que aqui, possivelmente, estaria a manifestação de um
ponto teórico fundamental para o estudo do erro ortográfico: a sua relação com o momento de
escrita, no contexto do processo de produção.
Há, na escrita de “edinca”, uma troca inusitada de oclusivas com diferentes pontos de
articulação /b/ e /d/, além da omissão da vibrante /r/, já previstas nas categorizações. Ou seja,
na própria estranheza do erro, perpassa possibilidades da língua, inscrita numa relação de
semelhança com as regularidades da língua nas quais se admite sílabas iniciadas por CVC,
como em “canto”, “gente” e “tinta”. Como pode ser comprovado, um sistema subjacente
que mostra uma ordem na ocorrência do erro, mesmo quando ele se apresenta inusitado.
E, estendendo a discussão sobre a busca do “ideal alfabético” nos estudos sobre a
ortografia, levantada por Gonçalves (1992), no capítulo 2 deste trabalho, queremos finalizar
os nossos comentários mostrando, com Barthes e Marty (1987, p. 39), que há, em verdade,
uma relação estrutural mas não-dependente entre oral/escrito, o que eles chamam de
“produção da ngua”: “a escrita não é uma simples transcrição mas produção da língua; a
escrita deve ser considerada, antes de mais nada, como modo de produção da língua, cujos
meios conheceram variações notáveis”. E, ainda:
Não se pode considerar a escrita uma contrapartida exacta da
linguagem falada. Esse estado ideal de correspondência ponto por
ponto, em que qualquer elemento da língua seria notado por um
signo único, em que um único signo exprimiria, por sua vez, um
único elemento da língua, nunca se atingiu numa escrita; até o
alfabeto mais elaborado ultrapassa os limites do discurso, tal como
o discurso ultrapassa a escrita (BARTHES E MARTY, 1987, p.
44
).
Diferentemente dos estudos que buscam uma explicação para o erro ortográfico apenas
pela relação fonia/grafia, buscamos interpretá-lo como efeito do movimento entre as formas
significantes e o sujeito inscrito no funcionamento da língua, como fato de gramática que se
constitui pela relação com os outros elementos do sistema.
130
6.5.
As relações de semelhança entre D/G, T/P e R/N
TEXTO 5:
(Código do aluno: 31 1015 41 29)
1. ELE E UM AMIMAL MUITO
2. BONITO E TEM UM COLERO
3. NO PESCOSO ELE TOMA ÁGUA
4. E COME OSSO E PELUGO
TEXTO 6:
(Código do aluno: 31 1003 41 17)
131
1. ERAM UM CACHORRO QUE SÓ
2. VIVIA COM FUMI, ELE ERA TAM BONITO.
3. ELE POMAVA LEITE E OSSOS MAS
4. ELE ERA TAM BONITINHO E TINHA
5. SORTE DE TUDO.
TEXTO 7:
(Código do aluno: 31 1015 41 37)
1. UM CACHORRO BEBERDO LEITE
2. E COMENDO O OSSO.
TEXTO 8:
(Código do aluno: 31 1015 41 25)
1. O CACHORO BEBER
DO LEITE E COMEN-
2. DO O OSSO
132
Tomaremos os erros ortográficos presentes nesses quatro fragmentos de textos para
uma reflexão sobre dois pontos teóricos que temos discutido ao longo deste trabalho.
Primeiro, a identificação das formas que se apresentam como troca de letras”, que marcam a
singularidade como efeito do movimento dos eixos metafóricos e metonímicos da língua; e,
segundo, a inscrição do singular no fenômeno repetível do funcionamento da língua. Não uma
repetição apoiada na quantidade, no conteúdo, e exemplo dos estudos que buscam uma
categorização do que é regular; mas a que se apóia naquele movimento lingüístico.
Antes de analisarmos as trocas de D/G, T/P e N/R como erros singulares, gostaríamos
de apontar um fato curioso: a semelhança entre os textos 7 e 8 escritos por duas alunas (uma
de 11 e outra de 13 anos) da mesma escola e da mesma turma. Intriga-nos o fato de uma ter
copiado o texto da colega, devido à situação monitorada própria de um teste de Avaliação de
Rede. No entanto, pode ser uma primeira hipótese levantada. A outra, caso pudesse ser
descartada essa primeira, seria uma comprovação da repetição do fenômeno, se levarmos em
conta tanto a proposta de escrita (uma descrição do que “se está vendo”), como a relação que
se pode fazer desses textos com o tipo de estruturas (lexical e sintática) próprias de uma
prática escolarizada nas quais esses alunos estão inseridos. Vê-se, aí, a possibilidade de
repetição do erro na singularidade dos sujeitos.
Pode-se observar nesses textos que a escrita alfabética
58
dos alunos está relativamente
estabilizada, se se considerar como tal a correção das formas que contêm os dígrafos RR e CH
(em “cachorro”), SS (em “osso” e “ossos”) e NH (em “bonitinho” e “tinha”)
59
.
As trocas de letras nesses textos, como já temos comentado, estão inscritas num
processo de “composição interna da ordem própria da língua” (PEREIRA DE CASTRO,
1995, p. 31), um processo metafórico “na medida em que estabelece, pela substituição, uma
relação de semelhança” com uma outra forma que poderia estar no seu lugar (LEMOS, 2000,
p. 7).
Podemos observar entre esses pares, D/G, T/P e N/R, uma identificação imaginária
que traz a possibilidade de alternância dessas grafias, ou seja, uma toma o lugar da outra tanto
pela relação com o lugar que ocupam no eixo sintagmático da língua, quanto pela semelhança
58
Cf. FERREIRO (1985) que propõe a “evolução” da escrita através de “estágios” de desenvolvimento.
59
Estudos sobre o erro ortográfico, como o de Monteiro (2002, p. 52) ligam as dificuldades ortográficas a
“estágios” de desempenho e observam o uso de dígrafos, percebendo “categorias de desempenho que expressam
etapas possíveis no processo de domínio das regras(grifos nossos). Para esses estudos, o fato de a criança
escrever corretamente formas tidas como “complexas” indicam um “avanço” na escrita.
133
gráfica. Se compararmos essas formas utilizando alguns tipos de letras, talvez possamos
entender melhor essas semelhanças como um “espelhamento de grafemas”
60
:
O fato deste tipo de erro não se encontrar categorizado nos estudos pode ser apenas um
dos critérios (mas não o principal) para o chamarmos de erro singular. A singularidade, da
forma como estamos discutindo neste trabalho, encontra-se numa ‘relação de diferença’ (mas
não de oposição) com o que é categorizável. Aproxima-se das considerações encaminhadas
por Leite (2000), que vê no singular algo que excede “como resto ou como falha”:
[..] o singular tomado como particular (casos em que o que dele se
pode dizer está escrito, contido no universal); como lugar retórico
eminentemente romântico; como resto necessário a todo
empreendimento científico (como o que não tem lugar na teoria,
mas é por ela mesma posta em jogo) (LEITE, 2000, p. 5).
Um exemplo como o erro ortográfico é apresentado nos estudos que têm por proposta
identificá-los e categorizá-los, pode ser mostrado nas “trocas das letras” p/b (como em
plástico/blástico) ou t/d (como em divã/tivã), justificadas apenas como uma troca entre
consoantes sonoras e surdas que m os outros traços distintivos em comum” (CARRAHER,
1986) ou por “indicação ou não-indicação do traço de voz” (ALVARENGA et al., 1989, p.
12).
Nessa perspectiva, a quantidade de alunos que realizam as trocas dessas letras quando
escrevem determina a repetição de um conteúdo: a troca de letras pelo traço de
sonoridade/não-sonoridade. Marca-se, assim, uma regularidade num ponto em comum
antecipadamente determinado, quando se olha o erro desconsiderando-se um sujeito
submetido ao funcionamento da língua.
Como se sustentaria essa repetição, pelo ponto de vista apresentado naquelas
pesquisas, diante das ocorrências singulares nos textos, através de trocas de letras como D/G
(em peludo/pelugo, no texto 5), T/P (em tomava/pomava, no texto 6), e N/R (em
bebendo/beberdo, nos textos 7 e 8)? Como ter esses dados enquanto conteúdos para
demonstrar uma repetição que considera apenas a quantidade?
60
Expressão utilizada por Felipeto (2004) que comentaremos na análise do item 7.6.
134
Recorrendo a Leite (2000) poderemos demonstrar a ocorrência dessa irregularidade (o
o G substituindo o D, o P substituindo o T e o R substituindo o N, e) pela sua inscrição num
movimento de repetição do fenômeno, qual seja, o movimento dos eixos metafóricos e
metonímicos da língua: uma forma que não deveria estar ali, mas que não foge das
possibilidades de sua presença, do seu aparecimento a qualquer instante, imprevisivelmente,
se, com Milner (1978) admitirmos ter a língua um ponto de falta.
Dificilmente encontraríamos os pares D/G, T/P e N/R nas listas de categorizações
comumente encontradas nas pesquisas. Essas trocas não são consideradas erros regulares, no
entanto, acontecem num fenômeno de repetição: o fato de uma letra emergir no lugar de outra,
quando nada impede que este seja um lugar possível de sua emergência na ordem da língua. A
ocorrência do N onde o R emergiu traz, também, possibilidades de ocorrência do R, que
poderia estar nesta mesma posição: um final de sílaba do tipo CVC através, por exemplo, da
forma “beber”. Aliás, nos exemplos 7 e 8, em que os alunos, ao descreverem a gravura, dizem
que o cachorro estava “beberdo leite”, as possibilidades de significação do enunciado são
sobredeterminadas, isto é, não podem ser atribuídas a uma única causa (a um único sentido,
no caso), admitindo-se tanto a ausência do R: “bebe do leite”, ou a presença do R: “beber do
leite”, ou mesmo a presença do N: “bebendo leite”.
Assim, quando dizemos que o erro singular está inscrito numa repetibilidade,
queremos admitir que essa repetição está apoiada num movimento que é de ordem lingüística,
tida por Milner (1987) como da ordem do real enquanto impossível da língua, conforme o
exposto no item 4.2 deste trabalho. Nele, mostramos como o autor situa o equívoco da ngua,
que relacionamos aqui com o erro ortográfico; quer dizer, mesmo não sendo um possível
lingüístico, podemos afirmar que o erro singular é um possível material, considerado na
lingüística como resto.
Situando o equívoco como “o que movimenta e anima um acontecimento de fala”,
Leite (2000) afirma que é nesse acontecimento que se configura a singularidade. O
acontecimento é repetível e é nele que o singular marca presença provocando estranhamento:
“longe de incluir o registro do único enquanto o que não se repete, o plano em que tomamos
aqui a singularidade se circunscreve por um fato de repetição real” (LEITE, 2000, p. 40). E é
o significante que produz essa repetição.
Apoiada no dizer de Milner (1987) sobre a língua sustentar “o real de alíngua”, ela
explica que podemos, a partir daí, depreender que:
uma relação de necessidade lógica vigorando entre uma e outra:
não é possível cogitar sobre alíngua que não seja a partir do fato de
135
língua. Aqui encontramos a formulação saussureana quanto a nada
existir fora/antes do corte que a língua introduz. Entretanto, uma
vez realizado o corte, algo se constitui, que teria estado lá, algo
diferente da materialidade significante e que, no entanto, é
totalmente determinado por ela; um resto daí se destila, para sempre
presente no funcionamento da ordem própria da língua. É essa
instância de repetição do resto que fica excluída do discurso da
ciência (LEITE, 2000, p. 41).
61
Um resto que sobra, mas sempre volta, num movimento de repetição, as produções
lingüísticas podem ser tocadas pelo real de alíngua, pois:
Alíngua é, então, sempre suposta; um estranho “anterior” que
se sustenta de algo que o terá sucedido, e que não deixa de se
repetir. Como trabalhar com essa aporia? Sendo uma referência à
origem da atualização da ordem da língua na constituição de um
sujeito falante, temos que recorrer a figurações de alíngua (IDEM,
2000, p. 42).
Com base nessa autora, podemos afirmar que os exemplos que apresentamos aqui as
relações entre os pares D/G, T/P E N/R servem de ilustração “do que é a linguagem: a
articulação mínima de um par”, ou seja, um vocábulo se insere numa rede de significações,
fazendo surgir um “efeito de sujeito”. A articulação com um outro significante dá, assim, ao
erro singular um estatuto de língua.
61
Na continuidade dessa explicação, Leite (2000, p. 41, 42) afirma que essa instância excluída do discurso da
ciência está presente na psicanálise como a vigência do desejo e do gozo: “Com isso, fica indicado que o desejo
e o gozo se determinam na linguagem, pela relação com o que a falta desdobra, pois o resto da operação da
linguagem depende do princípio de seu funcionamento: um significante remete necessariamente a outro
significante, em cadeia.”
136
6.6.
O H submetido a recalque
TEXTO 09:
(Código do aluno: 31 1005 41 09)
1. ARTERIA DE TONGE A VESTOU
2. UM ANIMAL. ARTERIA SE -
3. DISTRAIU E APOUCOS FOI CAIINDO.
4. QUANDO A VESTOU UM GRANDE.
5. RIU DESLIZOU, EM CIMA DE UM.
6. TRONCO ETA! PENSOU QUE HIA
7. FICA AFOGADA, MAIS FICOU TUDO BEM!
TEXTO 10:
(Código do aluno: 31 1003 42 25)
1. A OLHOS, A BOCA, O HOZO, A LIGA O LEITE
2. O ANIMAL VIU ESCREVA AS MÃOS
137
Selecionamos esses dois textos para uma reflexão sobre o erro singular como efeito de
um funcionamento repetível na língua. Nas duas formas destacadas, a letra H foi adicionada
no início de palavras: “hia” (no texto 10) e “hozo” (no texto 11), apresentando uma
singularidade circunscrita, como diz Leite (2000, p. 40) “por um fato de repetição real”: a
emergência da forma H.
Nos estudos descritivos sobre o erro ortográfico, a ocorrência de “adições de letras” na
escrita de alunos é muito baixa (MORAIS, 1997, p. 73). Para ele, é mais freqüente os alunos
deixarem de colocar letras, como, por exemplo, omitirem o H de “humilde” escrevendo
“__umilde” do que escrevê-las em excesso”. Para ele, o progresso dessa tendência es
relacionada à escolarização e esse tipo de erro ortográfico “não afeta a homofonia das
palavras”.
Como a maioria dos estudos sobre o erro ortográfico se detém em observar a relação
fonia/grafia, mereceria uma explicação o fato de se acrescentar letras às palavras que não
pudessem ser justificadas apenas por uma “interferência da oralidade”, como é o caso do H
escrito nas formas destacadas nos textos.
A adição do H inicial em palavras não permitidas pela norma está incluída numa
irregularidade da nossa ortografia, justificada “apenas pela tradição de uso ou pela origem
(etimologia) da palavra” (IDEM, 1998, p. 27-35). E, como não uma regra subjacente que
auxilie o aluno, o autor destaca a importância da “memorização da forma correta de palavras
irregulares” para se “conservar na mente as imagens visuais dessas palavras”.
A classificação da forma H em gramáticas e dicionários nem sempre esclarece a sua
inclusão no alfabeto da língua portuguesa. Em seu Curso prático de gramática, Terra (1996,
p. 10) define letra como a representação do fonema: “Os fonemas são unidades sonoras, isto
é, se realizam na fala. Na língua escrita, os fonemas são representados por sinais gráficos
denominados letras”. Quer dizer, segundo o gramático, que, para cada som existe um sinal
gráfico correspondente. No entanto, quando apresenta o alfabeto como o conjunto das letras,
ele inclui o H, contradizendo a definição dada, sem nenhuma explicação sobre a
especificidade do seu uso. Se ele diz que a letra representa um fonema, poderia justificar o
fato do H não ter a realização sonora.
Já na Moderna gramática portuguesa, Bechara (2001, p. 57), apesar de incluir a
mesma definição para letra, explica que não identidade perfeita e que é impossível uma
“ortografia ideal”. Quanto à realização do H, ele comenta que “há letras que se escrevem por
várias razões, mas que não se pronunciam, e, portanto, não representam a vestimenta gráfica
do fonema: é o caso do h em homem ou oh!e acrescenta, ainda: “A escrita, graças ao seu
138
convencionalismo tradicional, nem sempre espelha a evolução fonética”. O Dicionário de
Lingüística (DUBOIS et al., 1973, p. 360) explicação similar a de Bechara quando afirma
que, como o h inicial, “as letras podem não corresponder a nenhum som efetivamente
realizado”
62
Nas Instruções para a organização do vocabulário ortográfico da língua nacional,
aprovadas pela ABL (Academia Brasileira de Letras), a referência ao uso do H é a seguinte:
“Esta letra não é propriamente consoante, mas um símbolo que, em razão da etimologia e da
tradição escrita do nosso idioma, se conserva no princípio de várias palavras e no fim de
algumas interjeições: haver, hélice, hidrogênio, hóstia, humildade; hã!, hem?, puh!; etc.”
(BECHARA, 2001, p. 93-106).
Como podemos observar, as explicações para a ocorrência inusitada do H inicial,
como a que destacamos nos textos 10 e 11 não passam das referências à etimologia, à história
da palavra. Haveria, então, alguma explicação para esse erro ortográfico ligada a uma
“realidade empírica”, a um “diferencial de língua”, conforme postula Milner (1989, p. 24)?
A emergência do H em HIA (texto 10) e HOZO (texto 11) está relacionada a algo que
sobra no processo de simbolização
63
, na aquisição da língua escrita, ou seja, nesse processo,
que é próprio de qualquer língua, a necessidade ou de escolha ou de recalcamento de
algumas estruturas, e estas podem, a qualquer momento, emergirem enquanto manifestação de
um rompimento no Simbólico, pelo Real.
Mesmo que essas formas escritas não sejam admitidas pela gramática, a emergência
do H, na posição inicial, é admissível em determinados termos da língua, constituindo-se,
assim, numa possibilidade de ocorrência. Vejamos: a forma HIA, no enunciado do texto 10:
“pensou que hia fica afogada”, indica o pretérito imperfeito indicativo do verbo Ir: ia. No
entanto, outras formas verbais que se assemelham ao que o aluno escreveu, a exemplo do
62
Dicionário de Lingüística (DUBOIS et al., 1973, p. 360): letra: O termo geral letra emprega-se para designar
cada um dos elementos gráficos de que é constituído um alfabeto e que são utilizados nas escritas alfabéticas. As
letras podem não corresponder a nenhum som efetivamente realizado (h inicial em português) ou indicar outra
coisa que não um som (o h aspirado” em francês indica a ausência de ligação). As letras podem indicar um
fonema, como a pronunciado [a], ou vários, como x pronunciado [ks]. Podem também ser um elemento numa
seqüência de letras que representam um fonema: assim, h em ch pronunciado [ƒ]. No ensino, confundem-se
muito freqüentemente as letras e os sons. A terminologia que introduziu os termos de letras-consoantes, letras-
vogais para os sons representados, letras-signos para os grafemas, tentou paliar esse inconveniente. Quanto aos
primeiros, a lingüística fala de sons ou fonemas, e de grafemas, no que se refere aos segundos.
63
O processo de simbolização diz respeito ao encontro entre o Real, o Simbólico e o Imaginário, conforme
apresenta Milner (1983, p. 34) com base nos estudos de Lacan. O Simbólico é o que constitui o sujeito, o
Imaginário é tudo o que é da ordem do repetível e o Real é o irrepresentável, o que resta ou resiste a ser. Milner
afirma que o Real jamais cessa de existir, o Simbólico jamais cessa de se escrever, e o Imaginário jamais cessa
de se representar.
139
presente do indicativo do verbo haver: hei, hás, há, havemos (ou hemos), haveis (ou heis),
hão.
Quando à forma estranha HOZO (provavelmente para a escrita de “osso”)
64
no
enunciado da linha 1 do texto 11: “a olhos, a boca, o hozo, a liga o leite”, pode ser justificada
pela possibilidade de emergência do H no movimento metafórico (de substituições) da língua,
ou seja, o H inicial pode estar na posição anterior a qualquer uma das vogais do nosso
sistema, como nos exemplos das Instruções aprovadas pela ABL, apresentadas acima: haver,
lice, hidrogênio, stia, humildade.
Além do mais, se observarmos detidamente a escrita cursiva desse aluno, na linha 1 do
texto, levando em conta a identificação das formas manuscritas das letras L, H e B, podemos
perceber, no eixo metonímico (de contigüidade), uma similaridade gráfica em que um
significante da cadeia dá origem a outro, como na seguinte transcrição
65
:
o o
l
ll
l
hos
a
l
ll
l
boca
o
l
ll
l
hozo
a
l
ll
l
iga
o
l
ll
l
eite
A essa identificação gráfica, Felipeto (2004) chama de “reverberação” ou
“espelhamento” de grafemas:
vemos se delinear um movimento de contigüidade que faz com
que um significante da cadeia dê origem a um outro. Na metonímia,
é preciso que existam certas condições de ligação entre os termos e
uma delas é essa forma de reverberação, [...]. A reverberação
metonímica levaria, então, a um espelhamento dos grafemas
(FELIPETO, 2004, p. 5)
Se, após essa reflexão sobre o “espelhamento de grafemas”, voltarmos ao texto
manuscrito do aluno, podemos observar outro exemplo de reverberação gráfica de uma forma
64
As escritas do termo OSSO foram muito diferenciadas no nosso corpus. Podemos observá-las comparando
com os erros singulares analisados. As trocas, omissões ou acréscimos registradas estão bem relacionadas ao que
se tem definido nos estudos sobre o erro ortográfico. Vejamos:
A OLHOS, A BOCA, O HOZO, A LIGA O LEITE... (4ª série, 13 anos)
...E ESTAVA COMENO UM OUSO E (4ª série, 13 anos)
...IELI GOTA DE COME OSO (4ª série, 14 anos)
JOSÉ VIU CACHORRO LABENDO O OÇO (4ª série, 14 anos)
Como podemos ver, diferentes significantes que preenchem a posição “SS” em “OSSO”. Ora entra o “S”
(“OSO”), ora o “Z” (OZO), ora o “Ç” (“OÇO”). No início da palavra “O
SSO” também alternâncias entre
“O”, “HO” e “OU”. Estes fenômenos são amplamente descritos, analisados e categorizados nos estudos sobre os
erros ortográficos, que tomam como base uma relação fonia/grafia.
65
Transcrição com o tipo gráfico (fonte) Daresiel Demo–Microsoft Word, para dar visibilidade à letra destacada.
140
sobre a outra, na linha 1 do texto, onde está escrito: “artéria de tonge a vestou”. O aluno
escreve “tonge” para “longe”, acrescentando o “traço” ou corte” no “L”, como pode ser
melhor observado na transcrição a seguir
66
:
art
tt
teria
de t
t t
tonge
a
vest
tt
tou
Sobre essa similaridade gráfica, Felipeto (2004) acrescenta que quando se trata da
linguagem e do sujeito, não podemos desconsiderar “a supremacia do significante”, do “saber
d’alingua”.
Fazendo referência aos pressupostos de Jakobson (1995) para explicar erros e acertos
da escrita de crianças, Mota (1995, p. 19) afirma que eles dizem respeito às “leis gerais do
funcionamento inconsciente da língua, a metáfora e a metonímia”. Essas leis, segundo a
autora, “dizem respeito ao próprio jogo das concatenações e substituições de unidades
lingüísticas que, provindas de cadeia latentes e manifestas, provoca a emergência do
imprevisível e até mesmo do ‘impossível’ na língua”.
Também, de acordo com Lier-de-Vitto (1997, p. 33), podemos afirmar que os erros de
escrita estão submetidos “à lei de fazer relações metaforonímicas”, ao sujeito alienado e ao
simbólico. Se a escrita está, assim, submetida a este funcionamento inconsciente da língua,
não podemos supor um controle.
66
Transcrição com o tipo gráfico (fonte) Holiday Best–Microsoft Word, para dar visibilidade à letra destacada.
141
O nosso principal objetivo com as discussões apresentadas sobre a singularidade, neste
trabalho, foi apresentar um outro ponto de vista sobre o erro ortográfico, levando em conta o
funcionamento que, através dos movimentos metafóricos e metonímicos, coloca em relação
estruturas possíveis de uma língua marcada pela falta, pela possibilidade do real que produz o
equívoco, o imprevisível. Tentamos mostrar que o erro singular revela um modo subjetivo de
inscrição do sujeito na língua, cujo funcionamento somente se sustenta porque há esse sujeito,
marcado também pela singularidade do seu submetimento à ordem própria da língua.
A reflexão que queremos trazer para o momento final (e não, conclusão) deste trabalho
de pesquisa está cercada por uma tensão entre o saber e o não-saber de uma teoria, conforme
posto por Lier-De-Vitto (2004). Para demonstrá-la retomaremos, inicialmente, uma questão
metodológica a que nos referimos no item 6.2, em que Cláudia Lemos (1992) interroga sobre
as relações entre a pesquisa em aquisição de linguagem e a prática de sala de aula.
Poderemos tomar como nossa a dúvida colocada pela autora: se os objetos da aquisição de
linguagem e da educação são diferentes, haveria a possibilidade de uma “aplicação imediata”
das teorias construídas em uma área, para a outra? E, a partir dessa questão, levantarmos
outras: O que se faz com uma teoria sobre o erro ortográfico singular? De que modo nos
deslocaríamos da posição de investigador para a de educador? Qual a importância do trabalho
para a prática de sala de aula? Em que ponto se daria o encontro pesquisa e técnica
67
, ou
pesquisa e clínica?
68
E, em seguida, para esclarecer o lado em que nos situamos, o da pesquisa,
recorreremos às duas posições do investigador discutidas por Lier-De-Vitto (2004, p. 50-53):
67
Lier-De-Vitto (2004) coloca em posições opostas: pesquisa e técnica clínica; investigador e clínico. E, a partir
dessa relação, tomamos aqui como opostas a posição do pesquisador (do analista) e a do professor, se levada em
conta a diferença do que ela chama de “instante autêntico” vivido pelo professor e a “fuga ou ocultamento” desse
instante, marcado pelo distanciamento do pesquisador.
68
Cifali (2001, p. 103, 104) inaugura o termo “clínica” relacionando-o aos procedimentos éticos em educação,
aos quais chama “uma ética de situações singulares”. Ela afirma que: “O ensino está incluído entre outros ofícios
que chamei de ‘ofícios que lidam com o ser humano’”. Confrontamo-nos, então, com situações sociais
complexas, subordinadas ao tempo, nas quais se misturam o social, o institucional e o pessoal; o desafio é que o
outro tenha acesso ao saber, cresça, supere uma dificuldade paralisante, cure-se. Inauguramos assim, em um
espaço difícil, uma conduta particular de pensamento, uma ética de ação e uma formação adequada que a palavra
‘clínica’ pode qualificar.”. E, ela chama de “procedimento clínico”: uma abordagem que visa a uma mudança,
atém-se à singularidade”.
CONSID
ERAÇÕES FINAIS
142
1– ou se tem a teoria como fechada, assumindo uma “posição de saber” que dá conta de
determinada prática, que fica a ela subjugada; 2 ou se tem a teoria como “posição de não-
saber” que pode não dar conta da prática porque também é constituída por uma falta, uma
teoria não-toda. Se nos situássemos na primeira, iríamos querer que a nossa reflexão fosse
imediatamente aplicada para a construção de “novos e diferenciados” materiais didáticos.
Situando-nos na segunda, a reflexão terá que ser sustentada pela tensão entre saber e não-
saber. É, como diz a autora, no encontro com a “face enigmática de cada caso” que aparece a
falta de completude de uma teoria. E, para nós, do mesmo modo: o olhar para o erro
ortográfico singular pode não ser mais leigo a partir daqui, mas não pode, também, dar conta
da prática pedagógica.
A singularidade dos dados alterou a nossa posição de investigadores: saímos daquela
própria de quem descobre o erro, para aquela de quem é por ele surpreendido
69
, confirmando,
desse modo, essa tensão que a teoria não pode dar conta. Se somos tomados por essa “face
enigmática” do erro, teremos que levar em consideração, na prática, o que a autora denomina
de “instante autêntico” que requer, provavelmente, procedimentos “clínicos” também
marcados pela singularidade. Assim, frente ao erro ortográfico singular, não podemos
permanecer numa tranqüila posição de saber, mas na de tensão que implica, também a falta
de saber.
Os dados analisados textos escritos por alunos em situação de avaliação estão
marcados por uma inautenticidade, uma vez que escondem esse “instante autêntico” (o
momento efetivo da escrita e o seu contexto de produção) e, por isso, exigiram de nós um
deslocamento desse instante para a análise que realizamos. Num momento como este “não se
pode responder a dois ideais (clínico e científico) de uma vez, comprimir duas posições
num só momento e/ou implementar os mesmos métodos num único lance” (IDEM, p. 49).
Sabemos que a teoria é decisiva para a construção de uma prática. Os trabalhos
publicados, tanto na área da psicologia como na da pedagogia, conforme comentados no
capítulo 4, têm produzido, atualmente, na escola, práticas significativas com os erros
ortográficos freqüentes e previsíveis. A exemplo dos materiais apresentados por Morais
(1997, 1998, 2002) e Teberosky & Tolchisky (1997), entre outros, como formas de
intervenção didática, no ensino da língua, que além de práticas significativas de leitura e
escrita de textos, sugerem, também, um trabalho cuidadoso e sistemático com o erro
ortográfico, cuja preocupação não está apenas no intuito de categorizar os erros ortográficos,
69
O termo é citado por Carvalho (1995) e retomado por Lier-De-Vitto (2004).
143
mas de oferecer aos professores caminhos para que se descubra, como dizem os autores,
“formas mais eficazes de ajudar nossos aprendizes a desenvolver uma atitude de investimento
na revisão de seus escritos”.
Essas propostas se apresentam como alternativas às práticas comumente
encontradas na sala de aula, nas quais predomina, subjacente, uma compreensão de que o
trabalho com o erro ortográfico implica, por um lado, exercícios de repetição e memorização
e, por outro, uma aquisição advinda “naturalmente” e “diretamente” pelas práticas de leitura e
escrita, sem necessidade de mediação.
Almejamos que as nossas reflexões possam, brevemente, fundamentar a construção
(por nós ou por outros) de materiais didáticos para um trabalho com o erro ortográfico, no
qual sejam consideradas a singularidade de cada caso e a autenticidade do momento de
produção.
Seria contraditório, pois, nomear esta parte de conclusão, quando foi perpassada por
todo o trabalho a noção de falta, tomada de Milner (1987), de incompletude (da língua e da
teoria). Se, como dizem, tensão e conflito instigam movimentos teóricos, as nossas dúvidas
poderão ser submetidas à refutabilidade
70
70
Um dos critérios de cientificidade adotados pela epistemologia saussureana, comentados por Bouquet (1997).
144
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Fausta Pereira de. (org.) O método e o dado no estudo da linguagem. Campinas-SP, Editora
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In: LEITE, Nina V. de Araújo (org.). Caderno de estudos lingüísticos, n. 38, Campinas,
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A.G. (org.) O aprendizado da ortografia, Belo Horizonte, Autêntica, 2002.
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teoria da língua escrita. São Paulo, Ática, 1996.
RIOLFI, Cláudia Rosa. A singularidade da pesquisa universitária em letra(s): questão e
transmissão. In: LEITE, Nina V. de Araújo (org.) A singularidade como questão. Caderno de
Estudos Lingüísticos, 38. Campinas-SP, UNICAMP/IEL, jan./jun.2000.
ROMUALDO, Jonas de Araújo. Um lugar preferido pelos românticos: o singular. In: LEITE,
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a
ed. São Paulo, Cultrix, [1916]
1989.
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Paulo, Contexto, 2001.
SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte, Autêntica, 1998.
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crianças portadoras de deficiência mental. Dissertação de Mestrado. USP/São Paulo, 1994.
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Palavra do Professor).
ZORZI, Jaime L. Aprender a escrever: a apropriação do sistema ortográfico. Porto Alegre,
Artes Médicas, 1998.
151
ANEXO 1
NÚCLEO DE AVALIAÇÃO E PESQUISA EDUCACIONAL DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNANBUCO – NAPE-UFPE
TESTE DE PORTUGUÊS
4ª SÉRIE
CÓDIGO DO ALUNO:[___]___] [___]___]___]___] [___]___] [___]
Município Escola Série Turma Aluno
TURNO: [___] Manhã [___] Intermediário [___] Tarde
SEXO: [___] Masculino [___] Feminino
IDADE: [___]___] anos
1997
ANEXOS
152
Leia com atenção o texto abaixo:
A borboleta Atíria
Atíria voava sem rumo, completamente desnorteada.
Súbito, um vento fortíssimo começou a soprar, impelindo-a na direção de
um largo rio que deslizava por aqueles lados. A borboleta, num grande esforço,
tentou pousar, mas não conseguiu. Suas asas eram demasiado fracas, e, além
disso, a pobrezinha foi envolvida por um grande redemoinho, que a atirou
violentamente para o meio da correnteza.
- Vou morrer afogada! Pensou ela cheia de pavor e completamente
tonta.
Entretanto, ainda não tinha chegado a sua vez.
Caíra num tronco de árvore que vinha boiando rio abaixo. E se
despencasse em alguma cachoeira?... No rio havia tantas!
De repente, o pedaço de madeira foi desviado pela corrente e encalhou
numa porção de galhos que se amontoavam à beira do rio.
- Que bom! Um tronco inteirinho! exclamou um menino que estava na
margem.
- E justamente para fazer um barco! Acrescentou, todo satisfeito, um
homem que acompanhava a criança.
O menino buscou uma comprida vara, puxou o tronco e o tirou para fora
d’água. Atíria, firmemente agarrada do pedaço de madeira, quis voar, mas não
pôde. O esforço que havia feito na luta contra a ventania deixara-a exausta. E,
além de tudo, o medo como que a paralisava. Estava ali, frágil e desprotegida,
- Que borboleta engraçadinha, papai! exclamou o menino, segurando
Atíria e examinando-a. E está toda molhada e fria, coitada!
- Deixe-a ao sol, filho. Com calor, ela poderá voar de novo.
O menino colocou a borboleta sobre uma espiga de milho, como todo o
cuidado e afastou-se. Atíria desejou agradecer a ambos, mas como gente não
entende insetês, nem borboletano, a coisa ficou por isso mesmo.
Reconfortada pelo calor do sol e alegre por se ver e salva depois de
tanto perigo, Atíria começou a voar baixinho. Observando o lugar, notou que se
achava num pequeno sítio. O milharal estendia-se a perder de vista.
Lúcia Machado de Almeida
O caso da borboleta Atíria
Editora Ática, 1987
(adaptado)
153
1) Responda:
De que livro foi retirado esse texto?
Nas questões 2 até 4, marque com um X a resposta certa.
2) Atíria voava reconfortada pelo calor do sol.
Observe as figuras. Qual delas corresponde à frase acima?
a. ( ) b. ( ) c. ( )
3) “Atíria, firmemente agarrada no pedaço de madeira, quis voar, mas não
pôde.”
Atíria não pôde voar porque:
a. ( ) estava anoitecendo;
b. ( ) a menino não deixou;
c. ( ) tinha uma asa quebrada;
d. ( ) estava cansada.
154
4) Atíria recebeu ajuda de um menino e do pai dele, mas não agradeceu porque
a. ( ) estava com pressa;
b. ( ) achou desnecessário;
c. ( ) falava com língua diferente;
d. ( ) desconhecia o nome deles.
5) Quais são as duas línguas que Atíria fala e entende?
Atíria fala e entende _________________e __________________
6) “A borboleta, num grande esforço, tentou pousar, mas não conseguiu.”
Escreva abaixo dois motivos que, segundo o texto, impediram Atíria de
pousar.
7) Responda::
O que fez Atíria logo depois que se viu sã e salva?
8) Numere as frases de acordo com a ordem dos acontecimentos no texto.
( ) Atíria encontrou um vasto milharal.
( ) Um tronco se árvore livrou Atíria da morte.
( ) Atíria ficou feliz por ter vencido os perigos.
( ) Um redemoinho jogou Atíria na correnteza.
( ) Atíria foi colocada ao sol para secar
155
9) Complete a frase abaixo de acordo com o texto:
O menino pegou uma vara para ______________________________
10) “Estava ali, frágil e desprotegida.”
Complete a frase abaixo com o antônimo da palavra sublinhada:
Depois de encontrar o menino e seu pai, Atíria se sentiu ____________
11) Observe:
Atíria voava sem rumo, completamente desnorteada.
bito, um vento fortíssimo começou a soprar, empurrando-a na direção
de um largo rio que deslizava por aqueles lados.
Na expressão sublinhada o a está no lugar da palavra ______________
Nas questões 12 até 15, marque com um X a resposta certa.
12) Atíria voava sem rumo, completamente desnorteada.
A palavra sublinhada pode ser substituída por:
a. ( ) desajeitada;
b. ( ) desmantelada;
c. ( ) desorientada;
d. ( ) desanimada.
13) Eu e meu pai sofremos com a poluição do rio.
O pronome que substitui a expressão sublinhada é:
a. ( ) ele;
b. ( ) ela;
c. ( ) nós;
d. ( ) vocês.
156
14) Observe: O menino buscou uma cumprida vara e puxou o tronco.
As palavras grifadas podem ser substituídas por:
a. ( ) sorriu – quebrou;
b. ( ) procuravam – usaram;
c. ( ) partiram – caminharam;
d. ( ) achou – arrastou.
15) Em qual das palavras abaixo o x tem o mesmo som que na palavra exausta?
a. ( ) baixinho;
b. ( ) exame;
c. ( ) puxou;
d. ( ) caixa.
16) A borboleta, cheia de pavor, pensou que ia morrer afogada.
Como ficaria a crase acima, se a autora estivesse falando de um
gafanhoto?
O gafanhoto _____________________________________________
Leia com atenção o texto abaixo:
Jacaré-de-papo-amarelo
O jacaré-de-papo-amarelo tem o couro da barriga amarelado. Seu corpo é
coberto por uma armadura de placas muito duras. A cauda é serrilhada e forte
como um chicote. As patas o curtas e têm garras. A boca, quando aberta, é
enorme, cheia de dentes pontudos. Depois de muito gastos, caem e são
substituídos por outros. Esse tipo de jacaré gosta de comer carne de aves, peixes
e animais em geral. Caça à noite nos rios. Durante o dia, fica na terra para
esquentar o corpo com o calor do sol, pois é um animal de sangue frio, (...)
Jacaré-de-papo-amarelo
Rosana Rios
157
17) De acordo com o texto, quando os dentes do jacaré-de-papo-amarelo são
substituídos por outros?
Marque com um X a resposta certa.
18) O que o jacaré-de-papo-amarelo gosta de fazer durante a noite?
a. ( ) ficar parado;
b. ( ) procurar alimento;
c. ( ) descansar;
d. ( ) ficar na terra.
19) O jacaré-de-papo-amarelo gosta de esquentar seu corpo, porque ______
____________________________________________.
20) De acordo com o texto, escreva no quadro a qualidade de cada substantivo:
Substantivo Qualidade
patas
cauda
158
21) Quando Atíria começou a voar baixinho pelo milharal, avistou um animal.
Observando a figura abaixo, descreva o animal que Atíria viu (escreva sobre
todos os detalhes que você está vendo na figura!).
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
_____________________________________________________________
159
ANEXO 2
DADOS SOBRE OS TESTES - MÉDIA GERAL EM PORTUGUÊS
CÓDIGO
NOME DA ESCOLA
ZONA
TURMAS
ALUNOS
CADERNOS
TEXTOS
MÉDIA DE
PONTOS
1001 ESCOLA EVANDA
CARNEIRO
URB. 01 24 24 23 51.14
1002 ESCOLA JOÃO PAULO II
URB. 01 18 --- --- 52.39
1003 ESCOLA PADRE CÍCERO
URB. 02 30 22 20 40.04
1004 ESCOLA MARECHAL.
DEODORO
URB. 01 13 07 07 60.15
1005 ESCOLA PROF.JOÃO
FERREIRA DA ROCHA
RUR. 01 18 18 18 45.84
1006 ESCOLA GUSTAVO
PAIVA
URB. 01 13 13 13 48.15
1007 ESCOLA ODILO A. DE
SOUZA
URB. 01 18 11 11 51.92
1008 ESCOLA POMPEU
SARMENTO
URB. 01 12 08 07 43.71
1009 ESCOLA JOSÉ
BONIFÁCIO A.SILVA
URB. 01 08 --- --- 48.06
1010 ESCOLA ESMERALDA
FIGUEIREDO
URB. 01 16 16 16 51.76
1011 ESCOLA GASTÃO
OITICICA
URB. 02 30 29 27 46.48
1012 ESCOLA DALMÁRIO
SOUZA
URB. 01 18 18 17 40.08
1013 ESCOLA MANOEL
SOARES
URB. 01 14 14 13 47.61
1014 ESCOLA MACHADO DE
ASSIS
URB. 02 27 20 19 52.59
1015 ESCOLA D. PEDRO I RUR. 01 19 19 08 32.92
1016 ESCOLA EMÍLIA
MILONES
RUR. 01 13 13 13 56.00
2017 ESCOLA SANTA
CLOTILDES
RUR. 01 04 04 04 38.63
2018 ESCOLA ADELAIDE
OITICICA
RUR. 01 08 08 08 66.00
2019 ESCOLA ALFREDO
OITICA
RUR. 01 07 --- --- 44.10
2020 ESCOLA JOSÉ LOPES
ACIOLI
RUR. 01 05 05 05 39.20
TOTAIS DA REDE
--
23
315
249
229
46.19
160
ANEXO 3
TEXTOS ANALISADOS
TEXTO 1
161
TEXTO 2
162
TEXTO 3
163
TEXTO 4
164
TEXTO 5
165
TEXTO 6
166
TEXTO 7
167
TEXTO 8
168
TEXTO 9
169
TEXTO 10
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