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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO
JOSÉ PROVETTI JUNIOR
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ
JUNHO - 2007
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF
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O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO
JOSÉ PROVETTI JUNIOR
Dissertação apresentada ao Centro
de Ciências do Homem, da
Universidade Estadual do Norte
Fluminense, como parte das
exigências para obtenção de título de
Mestre em Cognição e Linguagem.
Orientador: Frederico Schwerin Secco
CAMPOS DOS GOYTACAZES – RJ
JUNHO - 2007
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO – UENF
O DUALISMO PSYCHÉ-SÔMA EM PLATÃO
JOSÉ PROVETTI JUNIOR
Dissertação apresentada ao Centro
de Ciências do Homem, da
Universidade Estadual do Norte
Fluminense, como parte das
exigências para obtenção de título de
Mestre em Cognição e Linguagem.
Aprovada em de de
Comissão Examinadora:
_______________________________________________
Professor Sérgio Arruda de Moura Doutor em Letras (Ciência da Literatura)
pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
_______________________________________________
Professora Sylvia Beatriz Joffily Doutora em Psicologia pela Universidade
Louis Pasteur - França
_______________________________________________
Professor Frederico Schwerin Secco Doutor em Filosofia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro
(orientador)
_______________________________________________
Professor José Glauco Ribeiro Tostes Doutor em Química pela Universidade
Estadual de Campinas
A capacidade de imaginação da mente humana está tão
estreitamente ligada às condições perceptíveis da experiência,
que pelas próprias forças não consegue desviar-se delas um
passo sequer. Somente a forte pressão da refinada experiência
científica logra libertar o pensamento humano das suas
convicções habituais da causalidade.
SCHLICK, M. A Causalidade na Física Atual.
i
Ao
Meu pai, José Provetti e a minha mãe, Eliane
Maia R. Provetti que nos anos que se passaram
neste trabalho deixaram de ver a luz de Hélios e
desceram ao Hades.
A
Minha tia-a Adélia Menezes M. Gallo que
me deu o suporte necessário para aplicar-me à
pesquisa e atingir os resultados necessários
durante todo o processo.
ii
AGRADECIMENTOS
A Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) e ao
Centro de Ciências do Homem (CCH), pelo oferecimento deste
curso, bem como aos professores e funcionários que nos deram
subsídios e condições materiais, respectivamente à elaboração
deste trabalho.
Ao governo do Estado do Rio de Janeiro pela bolsa de estudos.
A todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para a
realização deste trabalho.
iii
RESUMO
Esta dissertação visa identificar na filosofia de Platão as origens
do problema mente-corpo com base no significado dos conceitos
sôma (corpo) e psyché (alma).
O estudo dos conceitos alma e corpo nos textos platônicos é
decisivo na medida em que estes fundamentam o desenvolvimento
de toda a metafísica ocidental. A investigação do dualismo mente-
corpo na filosofia antiga esclarece historicamente algumas
formulações apresentadas pela Filosofia da Mente.
iv
SUMMARY
This essay aims to identify within plato’s philosophy the origins
of soul and body problems based on the significance of body and
soul conceipts.
The study of soul and body conceipts within platonic texts is
conclusive as regards being fundamental towards development of all
western methaphisics.
The investigation of mind-body dualism within ancient
philosophy enlightens historically a few formulations presented by
Mind Philosophy.
v
SUMÁRIO
I. Introdução................................................................................... 1
II. Platão e sua Filosofia
2.1 O Contexto de Platão ............................................................. 3
2.2 A Formação de Platão ............................................................ 5
2.3 A Academia ............................................................................ 7
2.4 A Concepção de Natureza em Platão .................................... 7
2.5 Dialética e Diálogo ................................................................. 9
2.6 As Obras de Platão .............................................................. 10
2.7 Crítica do Conhecimento Sensível ....................................... 13
2.8 A doutrina das Idéias ............................................................ 14
2.9 A Presença de Platão na História do Pensamento .............. 15
III. A Alma e suas Estruturas em Platão
3.1 A Alma .................................................................................. 16
3.2 Atributos da Alma ................................................................. 53
3.3 Morfologia da Alma ............................................................... 76
3.4 Funções da Alma .................................................................. 77
3.5 Fisiologia da Alma ................................................................ 78
3.6 Patologias da Alma .............................................................. 85
3.7 Afecções da Alma ................................................................ 88
3.8 Alma e Interioridade ............................................................. 89
3.9 Alma e Matéria Inanimada ................................................... 92
3.10 Controle de Alma sobre Si ................................................. 98
IV. Conclusão ........................................................................... 103
VI. Referências Bibliográficas .................................................. 108
Vi
I. INTRODUÇÃO
O que objetivo com essa dissertação é tentar compreender as relações
psyché-sôma (alma-corpo) em Platão. Essa motivação se fundamenta nas
dificuldades engendradas pela Filosofia da Mente para estudar, refutar ou
justificar a mencionada relação. Para me aproximar do assunto tentei analisar o
que o autor compreende por alma (psyché) e corpo (sôma) nas seguintes
obras: Timeu, Fédon, Fedro, A República, Apologia de Sócrates, Mênon,
Banquete, Sofista e Político. Embora seja uma pequena fração do conjunto das
obras de Platão, creio que essa amostragem seja suficiente para tentar
alcançar meu objetivo.
A metodologia utilizada foi a histórico-crítica, tendo como documentação
os supramencionados diálogos com vistas ao desenvolvimento de uma
investigação sob a ótica da História da Filosofia.
Como referência teórica em ordem decrescente segui os seguintes
autores: Reale (2004) que apresentou as reflexões da Escola de Tübingen-
Milão a respeito das chamadas doutrinas não-escritas de Platão; Vernant
(1990) que demonstra a metodologia para realizar uma análise sob a ótica da
História Psicológica, das Idéias e das Mentalidades; Mondolfo (1970) que
apresenta uma hipótese sobre a teoria do conhecimento que os pré-platônicos
utilizavam, bem como a questão da subjetividade entre os antigos; Jaeger
(1995) que desenvolve um acurado estudo sobre o processo de formação do
homem grego e os valores implicados até a época de Platão; Detienne (1998),
em especial, no que se refere à questão do uso da linguagem e como era a
vivência dela à época; e Coulanges (1998) o historiador que traça um excelente
retrato dos costumes e hábitos sociais do homem grego clássico.
A hipótese que defendo é que não é possível a um grego da época de
Platão conceber uma separação diametralmente oposta e radicalmente
incomunicável entre o que a tradição filosófica convencionou chamar de Mundo
Sensível e Mundo Inteligível, ou em outras palavras, aquilo que viria a
fundamentar a distinção atual na Filosofia da Mente entre o mental e o físico.
No primeiro capítulo procuro contextualizar Platão em sua época,
apresentando os problemas epistemológicos com os quais se defrontava.
Pretendo também apresentar as fases dos escritos platônicos bem como a
cronologia de suas obras. É nossa intenção esquematizar alguns tópicos
essenciais do pensamento platônico, tais como a teoria das Idéias e a noção de
imortalidade.
O capítulo II visa investigar a natureza da alma a partir dos escritos do
filósofo ateniense. Para efeito desta pesquisa, procuramos dividir nosso estudo
em subitens, com vistas a permitir que o exame da psyché, tal como concebida
por Platão, pudesse ser realizado a partir de diferentes perspectivas. Neste
sentido, procuramos investigar a noção de alma a partir dos seguintes
aspectos: as estruturas da alma, as funções da alma, a fisiologia da alma, as
patologias da alma, as afecções da alma, alma e interioridade, alma e matéria
inanimada, controle da alma sobre si.
Finalmente, em nossa conclusão procuramos demonstrar como a noção
de alma para Platão define os problemas apresentados pelo dualismo mente-
corpo, e tentamos esclarecer alguns destes problemas à luz das novas
pesquisas realizadas recentemente por estudiosos da obra platônica,
notadamente a partir das novas interpretações da escola de Tübingen-Milão.
II. PLATÃO E SUA FILOSOFIA
2.1 O CONTEXTO DE PLATÃO
Referência econômico-cultural das sociedades helênicas do mundo
antigo, Atenas congregava integrantes de diversas cidades-estado do mundo
grego: comerciantes, banqueiros, artesãos e escravos, além de muitos bárbaros
de variada procedência, proporcionando aos habitantes da área urbana uma
enriquecedora vivência proveniente de várias culturas.
No Pireu, amplo e bem construído porto fortificado de Atenas, ocorriam
os intercâmbios comerciais e culturais mais intensos da região. Acontecimento
único na Grécia continental no que respeita às demais cidades-estado que
durante toda a sua história mantiveram a tradicional organização agrária.
A vivência religiosa em Atenas dividia-se em três modos básicos, a
saber, 1) a religião doméstica, fundada no patriarcado e na intensa relação
entre mortos e vivos, com plena liberdade do patriarca em adorar seus
antepassados; 2) a religião cívica, projeção da religião doméstica, tendo um dos
deuses do panteão olímpico como patrono, tinha na acrópole, com a lareira
comum, o centro de reunião de todas as famílias em torno da divindade
protetora da cidade e, em paralelo a estas, restritas a cidadãos do sexo
masculino e de posse de seus direitos cívicos, havia 3) os mistérios de Elêusis
e dos Órficos que se caracterizavam pela liberalidade de acesso a homens,
mulheres, cidadãos, estrangeiros e escravos, indistintamente. Primava por
ensinos restritos aos iniciados escalonados por meio de provas iniciáticas, de
profunda preocupação escatológica, e se diferenciava em relação às demais
devido às especificidades de seus ensinamentos e ao estilo de vida de seus
membros.
O ideal de sophrosyne, justa medida, justo meio, ingressou na
mentalidade helênica de modo a traçar um novo parâmetro de comportamento
social, fundando-se na simplicidade, austeridade e equilíbrio do cidadão em
todas as particularidades de sua existência. Sua idéia central era o
mandamento do nada em excesso.
O pensamento filosófico iniciado na jônia do século VII a. C. foi
incorporado no dia a dia de Atenas como modo discursivo, após relativa
resistência de seus cidadãos. Em breve, porém, granjeou o interesse dos
atenienses e a filosofia, com o passar do tempo, virou um importante elemento
de interesse prático devido à necessidade de solucionar importantes questões
sociais, políticas e pertinentes a diversos campos do conhecimento humano.
A circulação das idéias decorrentes do pensamento filosófico
apresentou um importante impulso com a reintrodução da escrita no contexto
cultural helênico, fazendo com que alguns cidadãos letrados tivessem acesso à
argumentação filosófica por meio da circulação de pergaminhos, os livros da
época, contendo as doutrinas de variados físicos, como eram conhecidos os
filósofos pré-socráticos.
A escrita, por sua vez, trouxe nova perspectiva para a reflexão filosófica
relativamente às questões pertinentes à possibilidade do conhecimento e à
linguagem. A argumentação racional como novo paradigma discursivo em
contraposição às limitações da linguagem poética e outros fenômenos
vinculados aos hábitos decorrentes da escrita, são problematizados por uma
cultura que por mais de quatrocentos anos foi totalmente oral.
Na ágora (praça ou mercado), ocorriam discussões e questionamentos
sobre a origem e a essência dos fenômenos do mundo natural, phýsis, que
geravam interesse e preocupação entre os cidadãos. Tais discussões eram
acompanhadas da desconfiança constante dos poetas e sacerdotes
(representantes do antigo modo de se expressar, isto é, o oral), que viam nas
inovações filosóficas perigosa ameaça a seus interesses e modos de
subsistência.
Os chamados mestres da verdade, os sofistas, eram professores de
retórica, gramáticos, teólogos, poetas e alguns estadistas. Desenvolveram uma
profunda crítica à tradição e aos critérios gnosiológicos admitidos até então.
Geraram amplas e impactantes discussões entre seus contemporâneos em
torno da educação, da formação das leis, do estado, da cultura. Afirmavam
poder ensinar a arete (excelência), que se caracterizava pelo preparo do
cidadão no exercício político diante da Assembléia do Povo, de modo a
conduzi-la com arte, segundo os interesses do grupo político ao qual o orador
pertencia (JAEGER, 1995: 335-385).
A família de Platão pertencia à aristocracia de Atenas e tinha como
ancestral o ilustre legislador Sólon, sendo também parente do personagem de
um de seus diálogos, Cármides e sobrinho do político de formação sofístico-
heraclitiana Crítias, um dos chamados trinta tiranos, grupo de aristocratas
atenienses que por ocasião da derrota da cidade diante de Esparta, na primeira
guerra do Peloponeso, participou do instituído governo e realizou uma série de
perseguições políticas.
2.2 A FORMAÇÃO DE PLATÃO
Como cidadão ateniense de aristocrática estirpe, Platão teve a melhor
formação possível que um jovem de sua época poderia almejar. Em oposição à
nossa atual concepção de formação educacional, a dos helênicos em geral, e
dos atenienses, em específico, consistia na audição, memorização e recitação
da poesia grega tradicional, isto é, Homero, Hesíodo, Píndaro.
Por poesia deve-se compreender não apenas um conjunto de versos
normalmente direcionados ao enlevo estético, fantástico ou crítico, mas como
um modo de expressão fundado em uma métrica rigorosa e contendo
musicalidades específicas combinada a um comportamento gestual, em que a
palavra enunciada era acompanhada de um movimento corporal. Tal forma de
pensar e de se expressar era a característica predominante ainda à época de
Platão, em que a juventude e os cidadãos eram comumente educados, a ponto
de podermos dizer que Homero é reconhecidamente considerado o educador
por excelência do homem grego (JAEGER, 1995: 61-84).
Platão assim foi educado e pelo que é narrado pela historiografia, muito
se destacou naquela prática expressiva poética tanto quanto nas competições
esportivas, chegando também a ser, por duas vezes, vencedor nos chamados
jogos ístmicos (DURANT, 1996: 39).
Ainda jovem, interessou-se por filosofia, em especial sob influência de
seu tio, Crítias. Conheceu o pensamento de Heráclito e dos principais
pensadores jônicos; conheceu a filosofia de Anaxágoras, pensador que
assessorou Péricles nas reformas impetradas na política ateniense anos antes,
Parmênides, os sofistas Górgias, Protágoras e outros que circulavam e
lecionavam em sua cidade.
Com vinte anos, aproximadamente, conheceu Sócrates e dele privou
dos ensinos com os demais cidadãos que apreciavam a arte filosófica do
mestre durante oito anos (DURANT, 1996: 39 e PASTOR & ISMAEL QUILES,
1952: 11) até a condenação deste à morte, pela Assembléia do povo, sob a
acusação de impiedade e corrupção dos jovens.
Tal acontecimento marcou determinantemente Platão de modo a
convencê-lo de que a democracia, como regime político, estava fadada ao
insucesso e que uma aristocracia filosófica devia assumir o comando da polis.
Vale ressaltar que Atenas tinha certa tradição reacionária às inovações trazidas
pela filosofia, de tal modo que o próprio Anaxágoras acima referido, precisou
fugir e abandonar seu discípulo, Péricles, para que não tivesse o mesmo
destino de Sócrates e posteriormente Aristóteles assim também procedeu.
Devido aos problemas ocorridos na tentativa de interceder por Sócrates,
Platão foi aconselhado a deixar Atenas e empreendeu uma longa viajem que
durou aproximadamente doze anos. Visitou templos, seitas, sábios, a tudo
observando e se instruindo. Começou indo ao Egito e à colônia grega no Norte
da África chamada Cirene; conheceu a antiga e agrícola cultura do Nilo, sua
vasta sabedoria em variados aspectos. Daí foi à Magna Grécia e travou
conhecimento com membros da escola pitagórica, permanecendo por algum
tempo estudando-lhes as doutrinas. (REZENDE, 1996: 44-45).
Em seguida foi para Siracusa, maior cidade e potência político-militar da
região centro-mediterrânea à época, aliada e fornecedora de trigo a Esparta e
suas aliadas e, consequentemente, inimiga de Atenas e seu império.
estabeleceu profunda simpatia e amizade com Díon, o cunhado do tirano da
cidade, Dionísio, o Velho (REZENDE, 1996: 45). Tal amizade viria
posteriormente possibilitar as duas tentativas fracassadas de Platão para
implantar suas propostas político-filosóficas em Siracusa com o filho de Dionísio
e sobrinho de Díon, Dionísio II.
Alguns historiadores afirmam que Platão visitou a Judéia, vindo a
conhecer a tradição dos profetas, chegando até as margens do Ganges, na
Índia, onde teria aprendido as artes meditativa e mística orientais. (DURANT,
1996: 40).
Platão retornou a Atenas em 387 a. C. com quarenta anos e toda a
bagagem cultural e antropológica adquirida em suas viagens.
2.3 A ACADEMIA
De volta a Atenas Platão adquiriu uma propriedade junto ao jardim
dedicado ao herói Academo, de onde veio o nome dado à escola fundada pelo
filósofo em 387 a. C.
Caracterizou-se por ser um centro de pesquisas e ensino filosófico bem
como uma espécie de escola preparatória de cidadãos para o exercício político,
tal qual Platão havia aprendido na Magna Grécia com os pitagóricos. Daí
depreende-se que a filosofia não era um exercício de discussão teórica e
afastada dos problemas do dia a dia da cidade, mas uma forma de pensar, de
discussão de idéias, teorias explicativas da natureza, da sociedade e do homem
com repercussões pragmáticas no exercício da cidadania ateniense, uma vez
que no mínimo, cada cidadão em sua vida, deveria exercer um cargo blico,
logo, necessariamente a vivência e a aplicação do que se aprendia na
Academia era necessariamente aplicada no exercício da cidadania. Vide o
exemplo de Alcebíades, Aristóteles e outros que influenciaram o pensamento
sócio-político, filosófico, jurídico e administrativo da época.
A Academia não se limitava ao ensino da filosofia platônica
especificamente, mas buscava levar a efeito investigações de caráter racional,
compreendido este como um modo específico de se expressar através da
linguagem, com regras e métodos dialéticos (REZENDE, 1996:45-46).
Depois disso a Academia passou por novas orientações de acordo com
a administração que assumia, mas sua tradição chegou até o período romano e
a ascensão do cristianismo como religião oficial de Roma, quando as escolas
filosóficas foram expulsas e proibidas de funcionarem em todo o Império.
2.4 A CONCEPÇÃO DE NATUREZA EM PLATÃO
Uma das chaves interpretativas para se chegar ao entendimento do
pensamento de Platão é a compreensão de sua visão de natureza.
Diferentemente da nossa época, que ainda o mundo social humano
algo distinto e à parte do mundo natural, a despeito dos esforços de
implantação de uma consciência ecológica holística, os gregos tinham uma
percepção especial de natureza.
Em grego, natureza é dita através do termo phýsis e significa natureza
ou maneira de ser de uma coisa (ISIDRO PEREIRA, 1990: 621). Para a cultura
helênica a percepção que se tinha de phýsis era uma integração indiferenciada
e interativa do que consideravam ser dimensões da realidade, a saber, o mundo
natural e sensível propriamente dito, envolvendo isso o que hoje chamaríamos
os grupos dos minerais, os animais e vegetais, compostos pelo conjunto
proporcional de substâncias que acreditavam estruturar o preenchimento de
suas formas naturais, a saber, água, fogo, terra, ar e éter; o mundo dos
homens, que basicamente se dividiam em gregos e bárbaros, os primeiros
organizados em polies, os segundos em tribos e como escravos de seus
governos; o mundo dos deuses olímpicos, compreendido como semi-tangível
e/ou inteligível, dependendo da época da história cultural helênica que se esteja
focando e, finalmente, o mundo dos mortos, o Hades, região para onde iriam
indistintamente as almas dos homens após a morte e manteriam uma
existência semelhante a que tinham enquanto vivos, junto aos seus familiares.
Platão, como grego ateniense do século IV a. C. não podia furtar-se ao
ideário comum de seu povo e de sua cidade, uma das mais tradicionais no que
respeita ao zelo religioso cívico e quanto às supertições atreladas a uma
verdadeira arte divinatória e mágica ainda existente à época e de ampla
utilização.
A visão que Platão tinha de natureza, partia do lugar comum de sua
cultura, isto é, a concepção complementar, interativa e circular das dimensões
naturais. No entanto, sua concepção se distingue da tradicional por se
fundamentar numa perspectiva filosófica decorrente da tentativa de explicação
racional, que tinha como base as novidades lingüísticas decorrentes dos
estudos gramaticais levados a efeito pelos sofistas e dos novos hábitos
decorrentes do uso da escrita.
Em seu livro intitulado Fédon (PLATÃO, s/d: 84), em um diálogo travado
com dois de seus discípulos, a saber, Símias e Cebes, Sócrates demonstra
como chegou por meio de suas pesquisas filosóficas de juventude, a descobrir
um novo modo de perceber a natureza. Através deste método desenvolveu
investigações mais seguras que as possibilitadas pelos filósofos físicos. Tal
método se diferenciava do utilizado pelos físicos, na medida em que a busca da
verdade natural fundava-se no que Platão chamou de Idéia e não em um
princípio natural (terra, água, fogo, ar ou éter).
Desta maneira, a percepção que Platão defendia era basicamente a de
uma bipolarização básica, a saber, o sensível e o inteligível, tendo o primeiro
seu fundamento e razão de ser no segundo, de maneira complementar.
2.5 DIALÉTICA E DIÁLOGO
Platão, no diálogo Fédon, defende a importância de manter o que é
mais precioso relativamente aos conhecimentos filosóficos no modo oral do que
no escrito, afirmando ainda que o filósofo verdadeiro se utiliza do escrito apenas
como recurso mnemônico, se é um filósofo sério (REALE, 2004: 54-66).
Sócrates desenvolveu uma técnica de investigação filosófica chamada
maiêutica, através da qual por meio de perguntas e respostas, o filósofo levava
seu interlocutor ao reconhecimento de que possuía opiniões e não
conhecimentos verdadeiros sobre o assunto tratado. Platão absorveu a técnica
do mestre e foi o primeiro a instituir o diálogo como método de expressão
filosófica.
O objetivo do diálogo, tanto em Sócrates como em Platão, visa o
despertamento do interlocutor/leitor para a consciência de sua ignorância
(REZENDE, 1996: 47). Para Sócrates, filho de parteira e de um escultor, e que
se dizia parteiro de almas, chamava este processo de maiêutica. Era uma ação
prevista para seqüestrar o interlocutor à ignorância de sua pretensa sabedoria
para uma experiência de conhecimento que era emocionalmente libertadora.
Platão, na medida em que se apropriou da maiêutica como forma de
acessar gradativamente a verdade por meio da dialética e assim acessar as
Idéias, desenvolveu o diálogo como modo discursivo de envolver não apenas
os freqüentadores da Academia, mas seus concidadãos. O diálogo é a forma
por excelência na qual a filosofia platônica é veiculada e, graças ao senso
estético de Platão, mesmo vertidos nas mais variadas nguas, eles mantêm um
impressionante misto de beleza e profundidade filosófica jamais comparável na
história do pensamento ocidental.
2.6 AS OBRAS DE PLATÃO
É o único autor da Antigüidade de que possuímos a quase totalidade de
suas obras.
Durante todo o século XIX houve uma acirrada discussão entre
especialistas para determinarem os critérios de autenticidade a serem aplicados
às obras platônicas, pois se desconfiava que algumas fossem de seus
discípulos ou de outros autores, de um período posterior a Platão.
Para não me deter numa discussão que não é pertinente à proposta
deste capítulo, porém, não posso deixar de informar algo a respeito. Decidi
apresentar a relação das obras atribuídas a Platão por épocas e por ordem
cronológica, baseado na catalogação feita por Íñigo (1981: 51-52) e por
Marcondes (1998: 54-55).
Os chamados diálogos da juventude foram escritos entre os anos 393-
389 a. C. e são: Apologia de Sócrates, Íon, Críton, Protágoras, Laquês,
Trasímaco, Lisis, Cármides e Eutífron, Hípias Menor, República (livro I) e Hípias
Maior.
Os chamados diálogos da época de transição foram escritos entre os
anos de 388-385 a. C. e são: Górgias, Mênon, EutIdemo, Crátilo, Menéxeno,
Banquete, Fédon, A República (Sobre a Justiça) e Fedro
Os ditos diálogos da maturidade foram escritos entre os anos de 385-
370 a. C. e são: Banquete, Fédon, República e Fedro.
Finalmente, os chamados diálogos da velhice, escritos entre os anos de
369-347 a. C., são: Teeteto, Parmênides, Sofista, Político, Filebo, Timeu,
Crítias, Leis e Epínomis, Alcebíades I e II, Hiparco, Anterestai, Teages, Clítofon,
Mino e O Filósofo, considerados os últimos oito, de autenticidade discutível.
A obra de Platão durante algum tempo foi interpretada como sendo um
retrato fiel do pensamento de Sócrates, uma vez que este nada escreveu. Mas
os pesquisadores, em especial no século XIX, logo concluíram que os que mais
se aproximam do pensamento original de Sócrates são os chamados diálogos
da juventude que defendem, em geral, a memória de crates, abordam temas
morais e o considerados aporéticos, isto é, o são conclusivos (REZENDE,
1996: 47).
Os diálogos de transição assim são denominados pois versam sobre os
mesmos temas dos da juventude, porém assinalam certa tomada de posição de
Platão no que se refere aos fundamentos de sua filosofia.
Nos diálogos da maturidade o pensamento de Platão está em franco
desenvolvimento e diferenciação do de Sócrates. É nestes que se apresenta a
característica de certa reformulação de alguns aspectos da doutrina, dando a
impressão, em alguns casos, de verdadeira ruptura e novo direcionamento, em
especial no que diz respeito à autocrítica que Platão põe em relação a famosa
teoria das Idéias.
Fora os diálogos, Platão ainda deixou cartas trocadas com discípulos,
em especial, com seus contatos em Siracusa (Sicília), onde tentou por duas
vezes implantar sua proposta filosófica de governo.
A respeito de que temas Platão escreve?
Seus diálogos falam sobre problemas de sua época, mas que se
interconectam profundamente aos de nossos tempos, uma vez que somos
herdeiros diretos da tradição epistemológica-política grega, com as adaptações
oriundas das civilizações romana e cristã. Sendo assim, vê-se o filósofo
investigar sobre a excelência, sobre os conceitos, questões éticas, sobre
Sócrates e o pensamento deste, o amor, as relações familiares, questões
políticas pertinentes aos regimes existentes em sua época, temas religiosos
como a imortalidade da alma e outros.
Num breve comentário, quero referir-me às doutrinas não-escritas de
Platão, referenciadas pela escola de história da filosofia de Tübingen-Milão, que
adoto como referencial teórico e um dos instrumentos metodológicos de
aproximação ao tema, para contextualizar as relações psyché-sôma (REALE,
2004).
A cultura grega à época de Platão ainda adotava a oralidade em
detrimento da escrita como prática usual e poucos se dedicavam à
aprendizagem desta, de maneira que seu ensino era relegado a particulares e
não um compromisso estatal como vemos em nossos dias. Platão não fugiu a
seu contexto. A bem da verdade, o filósofo expressou em vários pontos de sua
obra escrita a sua opinião sobre a grafia como desfavorável e como instrumento
não digno de registrar o que considerava ser o mais importante em seus
ensinos, como é visto, por exemplo, no Fedro:
SÓCRATES: Quando chegaram à escrita, disse Thoth:
“Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes
fortalecerá a memória; portanto, com a escrita inventei um
grande auxiliar para a memória e a sabedoria”. Respondeu
Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar
uma arte e julgar da sua utilidade ou prejuízo que advirá aos
que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com
o teu entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode
fazer. Tal coisa tornará os homens esquecidos, pois deixarão
de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos,
se lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de
sinais e não em si mesmos. Logo, tu não inventaste um
auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação.
Transmitistes aos teus alunos uma aparência de sabedoria, e
não a verdade, pois eles recebem muitas informações sem
instrução e se consideram homens de grande saber embora
sejam ignorantes na maior parte dos assuntos. Em
conseqüência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-
ão sábios imaginários ao invés de verdadeiros sábios”.
SÓCRATES: O uso da escrita, Fedro, tem um
inconveniente que se assemelha à pintura. Também as
figuras pintadas tem a atitude de pessoas vivas, mas se
alguém as interrogar conservar-se-ão gravemente caladas. O
mesmo sucede com os discursos. Falam das coisas como se
as conhecessem, mas quando alguém quer informar-se
sobre qualquer ponto do assunto exposto, eles se limitam a
repetir sempre a mesma coisa. Uma vez escrito, um discurso
sai a vagar por toda parte, o entre os conhecedores
mas também entre os que o não entendem, e nunca se pode
dizer para quem serve e para quem não serve. Quando é
desprezado ou injustamente censurado, necessita do auxílio
do pai, pois não é capaz de defender-se nem de se proteger
por si. (s/ d: 178-179).
Por que então ele escreveu os diálogos? Pelo que consta na
historiografia de seu pensamento e, em especial, na obra de Reale (2004), Para
Uma Nova Interpretação de Platão, os diálogos eram obras destinadas à
divulgação doutrinária externa, isto é, o que de fato não era tão relevante e
especial, mas que servia como chamariz para que o público soubesse os
elementos essenciais da filosofia platônica, trabalhando, por assim dizer, com o
que era habitualmente sabido, haja vista a imensa quantidade de referências a
elementos do cotidiano ateniense feita ao longo dos diálogos.
Os ensinos não-escritos eram destinados apenas aos membros da
Academia, considerados aptos, através de avaliação prévia de disposições
filosóficas e era a parte mais importante do ensino platônico, pois correspondia
ao que o mestre considerava ser o nexo explicativo de tudo o que sua
divulgação externa ventilava, isto é, os diálogos em si.
Durante muito tempo os ensinos não-escritos foram desqualificados e
sumariamente ignorados pelos especialistas e apenas no século XX, em
especial, através dos trabalhos de Krämer e Gaiser na Alemanha e,
posteriormente, Reale na Itália, é trazida a questão para a discussão pública,
fundamentada nas referências de Platão em seus diálogos, dos discípulos
diretos da Academia, da tradição acadêmica posterior e dos doxógrafos da
Antigüidade. Segundo Reale (2004), Krämer e Gaiser puderam apresentar com
profundidade e desenvolver um novo paradigma interpretativo que desta
maneira indicou saídas sólidas para as aporias que o paradigma interpretativo
tradicional, fundado nos trabalhos de Schleiermacher, no século XIX, não
conseguia esclarecer.
Nesta media, no que se refere às obras de Platão, deve-se considerar o
conjunto dos diálogos, as cartas e os ensinos não-escritos coligidos junto às
referência supracitadas a respeito do assunto como importante ferramenta
interpretativa e complementar à compreensão dos ensinos escritos.
2.7 CRÍTICA DO CONHECIMENTO SENSÍVEL
Pelo apresentado até o momento, dado que Platão fundamenta sua
teoria do conhecimento nas Idéias existentes no chamado mundo inteligível, vê-
se no autor uma profunda crítica aos conhecimentos oriundos das sensações.
Uma vez que o conhecimento sensível captado por meio dos órgãos do
corpo é ilusório, tudo o que se pode conseguir através dos sentidos são
imaginações fundadas em opiniões, nunca conhecimentos verdadeiros e
racionais como é apresentado pelo autor em seu diálogo Sofista:
ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso, que há, no
discurso, o seguinte...
TEETETO: - O quê?
ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação.
TEETETO: -Sim, sabemos.
ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma,
em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra
para designá-lo além de opinião?
TEETETO: - Que outra palavra haveria?
ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se
apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio
da sensação, este estado de espírito poderá ser
corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda
outra palavra?
TEETETO: - Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos,
discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos
o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a
opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado
de espírito que designamos por imaginação, que é a
combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo
seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam,
algumas vezes, falsas. (PLATÃO, s/d: 158).
No entanto, faz-se necessário extremo cuidado metodológico para
evitar-se excessos interpretativos nesta crítica, visto que em outras obras
Platão não parte do sensível como elemento de iniciação a seu método
gnosiológico, como reconhece em diversos pontos de sua obra, a importância
da inter-relação harmônica entre o sensível e o inteligível.
2.8 A DOUTRINA DAS IDÉIAS
A doutrina das Idéias surge como elemento de diferenciação
gnosiológica na Antigüidade, representando o deslocamento do centro de
atenção das pesquisas físicas pré-socráticas estabelecidas em torno de
elementos materiais como a água, ar, fogo para a dimensão gnosiológica do
inteligível.
A percepção do inteligível como dimensão existencial e a intuição de
Platão quanto à existência das Idéias, descrita no Fédon (PLATÃO, s/d: 84),
representa uma aquisição gnosiológica qualitativa e representativa de uma nova
percepção do real e seus critérios de verdade, através dos quais os helênicos
saíram de uma estrutura gnosiológica ancestral, a saber, a conceptibilidade, e
sob a influência da sofística, que marcara definitivamente a história do
pensamento ocidental, abandonaram paulatinamente o tradicional critério de
conhecimento adotado por eles até então, e passaram ao novo, a saber, o
princípio da cognoscibilidade. (MONDOLFO, 1970: 97-120).
Quais são as características das Idéias em Platão? Inteligibilidade, isto
é, as Idéias são objetos de conhecimento intelectual, apenas apreensíveis
através da inteligência, por conseguinte, o sensíveis; incorporeidade, no
sentido de que carece de definições rigidamente estabelecidas no delineamento
de seu contorno morfológico; existência real, isto é, não estão submetidas às
transformações do tempo e à multiplicidade de particularidades, sendo sempre
idênticas a si mesmas. Finalmente, a unidade, isto é, as Idéias o os
paradigmas sistêmicos de um conjunto de representações, por participação, na
multiplicidade sensível (REALE, 2004: 122).
Logo, por exemplo, todo cão existente sensivelmente na diversidade
das raças e particularidade individuais, tem sua essência, seu ser verdadeiro no
mundo das Idéias, isto é, na Idéia de cão que garantiria e manteria o ser e
realidade de todos os sujeitos sensíveis (não uso aqui o termo indivíduos que
melhor expressaria a idéia, por ser uma noção desconhecida à época). Assim
todo o ente sensível nada mais seria do que uma cópia imperfeita, mutável e
inconstante do mundo inteligível, destinada a degenerar-se sob o influxo do
tempo.
2.9 A PRESENÇA DE PLATÃO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO
O alcance e profundidade do pensamento platônico no ocidente são
extraordinários. Raros são os filósofos que se furtaram a se referirem a ele
direta ou indiretamente.
Vê-se sua influência atuar, desde a Antigüidade, a partir de em um de
seus mais famosos discípulos, Aristóteles. Os chamados médio-platônicos
tentaram refutar as críticas de Aristóteles a Platão. Os neoplatônicos
aprofundaram e desenvolveram a teoria das Idéias; a patrística e,
posteriormente, a escolástica reafirmou aspectos de sua doutrina com as
devidas adaptações ao pensamento cristão. Os racionalistas e empiristas, na
Idade Moderna, procederam à identificação das Idéias de Platão aos conceitos
de Sócrates. Kant se fundamentou na teoria das Idéias para criar sua maneira
de se referir à razão e a função que exercia. Hegel se inspirou nas Idéias para
formatar sua dialética da história. Os neokantianos da Escola de Marburgo
criaram e desenvolveram um método estrutural do pensamento. Os positivistas
reduziram fortemente a teoria das Idéias e procuraram extirpar do pensamento
platônico suas características animistas (REALE, 2004: 117-118).
A filosofia contemporânea desdobra-se em despotencializar a influência
platônica em seus diversos aspectos e extensões, identificando-a como origem
do que chama de praga metafísica cultural e nascedouro do dualismo alma-
corpo que caracteriza diversos aspectos das relações que temos para com o
mundo, o conhecimento, e outros aspectos de nossa percepção de mundo.
III. A ALMA E SUAS ESTRUTURAS EM PLATÃO
3.1 A ALMA
A proposta deste capítulo é compreender como Platão vivenciava o que
chamava alma (psyché) e suas relações com o corpo.
A alma é considerada por Platão um ser. Na obra Sofista, a alma é um
ser que é real por trazer em si a capacidade de sofrer e causar ações sobre
qualquer coisa ou de qualquer coisa, caracterizando-se especificamente como
uma espécie de poder motor:
(Sofista) ESTRANGEIRO: A seguinte: o que
naturalmente traz em si um poder qualquer ou para agir
sobre não importa o que, ou para sofrer a ação, por menor
que seja, do agente mais insignificante, eo por uma
única vez, é ser real; pois afirmo, como definição capaz de
definir os seres, que eles não são senão um poder.
(PLATÃO, s/d: 139-140)
A alma é conduzida pelos princípios do desejo inato do prazer e pela
opinião que deseja o que é melhor:
(Fedro) SÓCRATES: - Devemos, além disso,
examinar o seguinte: em cada um de nós governam e
conduzem, e nós os seguimos para onde nos levam:
um é o desejo inato do prazer, outro a opinião que
pretende obter o que é melhor. (PLATÃO, s/d: 142)
A característica principal da alma é a imortalidade. Possuiria também a
capacidade de mover-se sem sair de si e de mover as demais coisas com as
quais venha a manter contato.
(Fedro) SÓCRATES: - Partiremos do seguinte
princípio: toda alma é imortal, porque aquilo que se move a
si mesma é imortal. O que a si mesmo se move, nunca
saindo de si, jamais acabará de mover-se, e é, para as
demais coisas que se movem, fonte e início de movimento.
Concluindo, pois, o princípio do movimento é o que a
si mesmo se move. Não pode desaparecer nem formar-se,
do contrário o universo, todas as gerações parariam e
nunca mais poderiam ser movidos. (PLATÃO, s/d: 151)
Platão afirma que uma supremacia da alma dentre os demais entes
no que respeita à sua participação no divino. A alma possui uma Idéia no
chamado mundo das Idéias e nesta medida apresenta as mesmas
características que as Idéias, ou seja, são inteligíveis e incorpóreas. Dessa
maneira, as almas e as Idéias não o
encerradas em limites determinados mais
ou menos rígidos
como nos informa Reale (2004:167-180), a respeito da
percepção que os antigos tinham do conceito incorpóreo. Além disso, Platão
reforça a concepção de que a alma é um fenômeno natural, como se no
Fedro (s/ d: 152):
SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer
outra coisa corpórea.
e como tal, alma e Idéias são elementos naturais da phýsis
platônica com propriedades constitutivas semelhantes.
A alma seria guiada pela inteligência, que em grego pode ser expressa
com os termos noûs (νουσ), sýnesis (συνεσισ) e diánoia (διανοια), como é
visto em Fedro (PLATÃO, s/d: 153):
SÓCRATES: - A realidade sem forma, sem
cor, impalpável pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da alma.
Platão utiliza-se do segundo e do terceiro termos em seus diálogos para
expressar o que nós entendemos por alma-mente, sendo que, em geral, noûs é
empregado para designar a parte superior da alma, responsável pelo governo e
gestão do complexo trino da alma, isto é, pneyma (alma apetitiva), o thýmos
(alma irrascível) e o noûs, enquanto vinculada a um corpo sensível.
A alma apresentaria carência de certo tipo de alimento para
desenvolver-se, segundo Platão, e aquele seria obtido através de uma
procissão que ocorreria no que o autor chama de céu da verdade, onde a alma
seguiria um deus ao qual se afeiçoaria e se dedicaria à atividade de
contemplação das Idéias. Vale ressaltar que a contemplação é uma ação ativa
por parte da alma. Devido a sua própria estrutura, a alma não conseguiria
contemplar o que Platão chama de Ser Absoluto, sendo necessariamente
condenada a desconhecer e, por conseguinte, condenada à simples opinião e
nunca acessaria a Verdade propriamente dita, conforme vemos no Fedro,
(PLATÃO, s/d: 153)
SÓCRATES: - Todas, após esforços inúteis, na impossibilidade
de se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto, caem e a sua queda as condena
à simples Opinião.
Embora afligida pelo insucesso na contemplação do Ser Absoluto, a
alma seria atraída fatalmente para o chamado céu da verdade devido à sua
carência alimentar. Esse alimento, que seria o conhecimento verdadeiro das
Idéias, geraria na alma o desenvolvimento e robustecimento de suas asas, que
na simbologia platônica representariam a sabedoria e a inteligência conforme o
ideal de sophrosyné, isto é, justa medida. Permitiria à alma o equilíbrio
necessário para alçar um vôo mais seguro na procisão junto aos deuses e,
consequentemente, à libertação dos ciclos da palingenesia.
Conforme o Fedro, a alma seria perfectível, isto é, após sua criação
pelo deus através da contemplação das Idéias e das experiências como alma
encarnada em um corpo humano, a alma se robusteceria, se desenvolveria,
apropriando-se cada vez mais dos recursos que sua memória lhe
proporcionaria e, mais e mais ambientada às realidades verdadeiras, utilizar-se-
ia dela de maneira a garantir-lhe a fuga dos ciclos palingenésicos:
(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou
a verdade o pode tomar a forma humana. A causa disso
é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se
exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-
se da multiplicidade das sensações à unidade racional. [...]
É somente fazendo bom uso dessas recordações que o
homem se torna verdadeiramente perfeito, podendo receber
em grau ótimo as consagrações dos Mistérios. (PLATÃO,
s/d: 154)
Para o autor a alma seria passível de vincular-se a um corpo de modo
que justapondo-se a ele, à maneira de uma ostra à sua concha, vitalizá-lo-ia
comunicando sua capacidade de movimento, conforme vemos no Fedro
SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro que é o
nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha.
(PLATÃO, s/d:
155). A alma seria considerada como uma réplica miniaturizada do kosmos
(universo compreendido como phýsis, isto é, o mundo dos homens, dos deuses,
dos mortos e o mundo natural, compreendido este por animais, plantas e
minerais). Para Platão e seus contemporâneos, de maneira geral, a perfeita
integração e interação entre os elementos da natureza permitia o
estabelecimento de analogias comportamentais entre seus elementos.
A alma, por meio de sua vinculação aos corpos humanos, se utilizaria
de uma linguagem. Para Platão
(s/d: 175) (Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força
da eloqüência consiste na capacidade de guiar almas, aquele que deseja tornar-se
orador deve necessariamente saber quantas formas existem na alma.
Ora, pelo domínio das técnicas pertinentes aos fenômenos de
linguagem que a língua grega proporcionava, a alma possuiria a propriedade
de guiar outras almas tanto quanto a si mesma.
O acesso da alma ao conhecimento estaria diretamente relacionado ao
uso de sua memória, acumulada ao longo de suas experiências, seja no Hades
seja no mundo dos vivos, além de manter patente a ela sua origem divina e seu
destino que é a perfeição, a excelência, a arete (excelência no que quer que o
indivíduo se dedique).
Um aspecto importante para a pesquisa sobre a alma em Platão é que
para ele, a alma seria construída por Deus de maneira a ser capaz de atingir
perfeita simetria com os corpos como é visto no Timeu (PLATÃO, s/d: 90):
Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo
estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do corpo
e o da Alma, harmonizou-os.
Logo, a vinculação da alma ao corpo estaria numa
relação de pura simetria, não havendo possibilidade de antagonismos
substanciais entre eles.
Tal simetria se justificaria por sua composição interna, que Platão
afirma ser semelhante à composição da Alma do Todo. O que é a Alma do
Todo ou do Mundo e qual é seu papel na phýsis platônica? Que relação
mantém coma a alma humana?
A Alma do Todo foi a primeira criação do Deus
1
para que pudesse
ordenar e dar beleza a tudo o que viesse a conter posteriormente, exercendo
então, o papel hegemônico na natureza platônica em relação ao corpo,
conforme se vê no Timeu (PLATÃO, s/ d: 86):
a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus
não formou seu mecanismo numa data mais recente que a
do corpo. Compondo assim, não toleraria que o termo antigo
1
Na edição que utilizei, a saber: PLATÃO (s/ d) . Timeu e Crítias ou a Atlântida . s/ ed. . São
Paulo: Hemus. O autor se utiliza do termo “Deus” no sentido daquele que promove por meio de
sua vontade a ação criadora que concerne à criação (confecção) da Alma e do Corpo do
Mundo, enquanto usa o termo deus(es)” para expressar aqueles que operam a criação
(confecção) da alma e corpo humanos tendo como base as substâncias do Múltiplo e do misto
harmônico de Uno e Múltiplo. Com base nos estudos desenvolvidos, não sei informar se esse
Deus teria alguma relação com o Deus judaico, o que poderia reforçar a tese de Will Durant
(1996: 40) quanto à possibilidade de Platão ter travado conhecimentos com a religião dos
profetas enquanto viajou. O que posso afirmar é que o Deus que Platão se refere age como um
demiurgo (ISIDRO PEREIRA, 1990:126), isto é, aquele que faz um trabalho manual, que forma,
que produz, cria, na manipulação das substâncias dos Primeiros Princípios e constituição do
kosmos, além de produzir as substâncias elementares para que os deuses produzissem as
almas e corpos humanos.
fosse submetido ao mais novo. [...] Mas Deus formou a
Alma antes do Corpo: mais antiga pela idade e pela virtude,
para comandar, e o corpo para obedecer.
A constituição da Alma do Todo foi proporcionalmente engendrara pelo
Deus, de modo a conter três substâncias elementares, a saber, uma indivisível,
uma divisível e uma terceira que seria o produto das duas anteriores, como
vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d: 85-86):
Eis que de que elementos e de que maneira: da substância
indivisível, que se comporta sempre de maneira invariável, e
da substância divisível, que está nos corpos, entre os dois,
misturando-os, uma terceira espécie de substância
intermediária, compreendendo a natureza do Mesmo e a do
Outro. E assim formou-a entre o elemento indivisível dessas
duas realidades e a substância divisível dos corpos. Depois
tomou essas três substâncias e combinou-as em uma única
forma, harmonizando à força com o Mesmo a substância do
Outro, que se deixava a custo misturar. Misturou as duas
primeiras com a terceira, e das três fez uma só.
Do que Platão nos apresenta, deduz-se que a Alma do Mundo é um
composto substancial e interativo do que é divisível, do indivisível e de um
terceiro elemento intermediário que ele não conceitua especificamente, mas
afirma conter as propriedades das duas primeiras substâncias
harmoniosamente misturadas e que para ele formam realidades naturais, como
declara no Timeu (PLATÃO, s/ d: 91):
A Alma é então formada da natureza do
Mesmo, da natureza do Outro e da terceira substância. E composta da mistura dessas
três realidades.
Em seguida à construção da Alma do Todo o Deus constrói o Corpo do
Todo, que virá a constituir o kosmos, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d:
86):
Mas a Alma, de que começamos a falar depois do corpo, Deus não formou seu
mecanismo numa data mais recente que a do corpo
e nessa medida, a Alma do
Mundo é instalada no centro deste Corpo e estendida através dele para
além de seus limites de maneira a envolvê-lo completamente e constituída de
movimento intrínseco, como é visto no Timeu (PLATÃO, s/ d: 85):
Quanto à Alma, tendo-a estabelecido no meio do corpo do
Todo, estendeu-a através de todo o corpo, até mesmo além
dele, envolvendo-o; círculo movimentado numa rotação.
Sendo a Alma esse misto substancial equilibrado, isto é, o Outro, o
Mesmo e a terceira substância, infere-se que a Alma guarde elementos de
contato entre as duas naturezas em questão, ou seja, a permanente (Mesmo) e
a impermanente (Outro), intermediadas pela terceira substância. Nesta medida,
é possível à Alma do Todo a interiorização de tudo o que é corporal, isto é, tudo
o que é passível de ser identificado como coisas
encerradas em limites
determinados mais ou menos rígidos
como nos informa Reale (2004:167-180) a
respeito de como os antigos compreendiam o conceito de corpóreo. Por
conseguinte, quando isso ocorre, a Alma do Mundo é perfeitamente
harmonizada ao Corpo do Todo como vemos no Timeu (PLATÃO, s/ d: 90-91):
Quando toda a construção da Alma foi realizada ao agrado de seu autor, este logo
estendeu para o interior dela tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do
Corpo e o da Alma, harmonizou-os.
Que razões levaram o Deus a acoplar a Alma ao Corpo? Pelo que
narra Platão no Timeu (s/ d: 80):
Tendo então refletido, percebeu que, do que é visível por
sua natureza, nunca surgiria um Todo desprovido de
inteligência que fosse mais belo que um Todo inteligente. E
por outra, que o intelecto pode nascer unido à Alma. Em
virtude dessas reflexões, após ter colocado o Intelecto na
Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para dele
executar uma obra que essencialmente fosse a mais bela e
melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado provável,
deve-se dizer que o Cosmos, que é verdadeiramente um ser
vivo provido de Alma e Intelecto, é assim gerado pela ão
da Providência de um Deus.
Considerando que a Alma do Mundo tem por finalidade o exposto
acima, a composição de sua natureza substancial se justifica, uma vez que foi
projetada para dar inteligência e beleza a um Todo que supomos material
que o havia corpos, e à Alma caberia a função de prover o Cosmos de
inteligência e beleza. No entanto, ainda cabe o questionamento: como se
processaria exatamente a concessão de inteligência e beleza da Alma do Todo
ao Corpo na constituição do Cosmos? Platão esclarece no Timeu (s/ d: 82-83)
conforme segue:
Ora, evidentemente, é necessário que o que
nasce seja corporal, e, portanto, visível e tangível. Nenhum
ser sensível poderia nascer como tal se estivesse provado
de fogo; nem sem algum sólido, e não existe sólido sem
terra. Daí vem que, Deus, começando a construção do
Corpo do Cosmos, principiou para construí-lo tomando fogo
e terra. Mas é impossível que dois termos formem sós uma
composição completa sem um terceiro. Pois é preciso que
no meio deles haja alguma ligação que os aproxime. Ora,
de todas as ligações, a mais harmoniosa é a que a si
mesma e aos termos que ela une a mais completa das
uniões. E aquela é a progressão que naturalmente a realiza
da maneira mais harmoniosa. Pois quando de três meros
ou áreas ou lidos quaisquer, o do meio é tal que o
primeiro é em relação a si mesmo, o que é em relação ao
último, e inversamente, o que o último é em relação ao
médio, o médio sê-lo-á quanto ao primeiro e do último, o
último e o primeiro, o lugar médio; temos necessariamente
que todos os termos tem a mesma função, que todos
desempenham uns em relação aos outros o mesmo papel,
e neste caso, todos formam uma unidade perfeita. Se então
o Corpo do Todo devesse ter sido um plano sem espessura,
uma só mediação bastaria para atribuir-se a unidade e dá-la
aos termos que a acompanham. Mas, com efeito, convinha
que esse corpo fosse sólido, e, para harmonizar os sólidos,
uma mediação nunca bastaria: é necessário sempre
duas. Assim Deus colocou o ar e a água no meio, entre o
fogo e a terra, e dispôs esses elementos uns relacionados
aos outros, tanto quanto seria possível numa mesma
relação, de tal modo que o fogo é para o ar, o ar foi para a
água, e o que o ar é para a água, a água o foi para a terra.
Por esses procedimentos e com a ajuda desses corpos
assim definidos em número de quatro, foi engendrado o
Corpo do Cosmos. Por sua proporção, e por essas
condições, é tão completo que, reunindo num único todo,
pôde nascer indissolúvel por qualquer outra potência que
não a que o uniu. [...]
E assim o compôs, antes para que o todo fosse tanto
quanto possível uma Alma perfeita, formada de partes
perfeitas e, para que fosse única, nada restando de que
pudesse nascer outra alma da mesma essência, e, enfim,
para que fosse isento de velhice e doença. Pois ele bem
sabia que num corpo composto, as substâncias quentes e
frias e, de maneira geral, todas as que possuem
propriedades energéticas, quando rodeiam esse composto
por fora e o fazem demasiadamente, o dissolvem,
introduzindo as doenças e a velhice, fazendo-o assim
perecer. Eis por que causas e segundo que lógica Deus
conformou esse Todo único, com o auxílio absoluto de
todos os Todos, tornando-o perfeito e inacessível à velhice
e às doenças.
É muito interessante observar como Platão descreve no Timeu (s/ d:
91-92), a dinâmica cognitiva da Alma do Mundo em relação aos dados
perceptivos e inteligíveis numa verdadeira teoria da relação Alma-Corpo e que
vale a pena ser reproduzida textualmente para melhor apreciação do leitor:
A Alma é então formada da natureza do Mesmo,
da natureza do Outro e da terceira substância. E composta
da mistura dessas três realidades, move-se por si em
círculo, girando sobre si mesma. E na medida que entra em
contato com um objeto que possua uma substância divisível
ou com um objeto cuja substância seja indivisível, ela
proclama, movendo-se, por todo o seu ser próprio, a cuja
substância ele é idêntico e da qual ele difere. Mas difere, e
relativamente a que, sob que relação, de que maneira e em
que circunstâncias ele se remete às coisas que devem ter
em suas relações mútuas uma ou outra dessas
determinações ou modalidades, bem como suas relações
com coisas que se conservam sempre idênticas. Ora,
quando um raciocínio veraz e imutável, relativo à natureza
do Mesmo ou à do Outro, é acusado, sem ruído nem eco,
dentro daquele que se move a si mesmo, esse raciocínio
pode ser formulado em relação às coisas sensíveis. Então o
círculo do Outro caminha diretamente e transmite à Alma
inteira informações sobre o sensível, e podem assim se
formar nela opiniões que são sólidas e verdadeiras.
Inversamente, quando esse raciocínio se forma em relação
ao que é objeto de lógica, assim que o círculo do Mesmo
está animado de uma rotação favorável, e lhe revela aquele
objeto, a intelecção e a ciência se produzem
necessariamente. E aquilo em que nascem essas duas
espécies de conhecimento, quem afirmasse ser algo que
não a Alma, tudo poderia estar dizendo, menos a verdade.
Uma vez compreendido o que é a Alma do Todo, o Corpo do Mundo e
o Cosmos, é importante procurar compreender a distinção entre a Alma do
Mundo e a alma humana para continuarmos a investigação em torno das
relações alma-corpo em Platão. Nesse sentido, vale recordar Platão, no Fedro
(s/ d: 174):
(Fedro) SÓCRATES: - E acreditas que seja possível
conhecer a natureza da alma sem conhecer o universo?
FEDRO: - Se dermos crédito a Hipócrates, que é um
Asclepíades, nem sequer o corpo se pode conhecer sem tal
método.
SÓCRATES: - Pois ele tem razão, meu amigo!
Platão identifica a Alma do Todo com a alma humana, numa relação de
similitude, em escala diferenciada. Em que medida então são distintas as almas
do Mundo e a humana?
A alma humana se assemelharia à Alma do Mundo na medida em que é
constituída por elementos semelhantes, porém, de maneira desproporcional, o
que gera toda a diferença entre uma e outra. A alma seria constituída de
substâncias com propriedades características das forças naturais que o autor
chama de Outro, responsável pela indeterminação variável do grande-e-
pequeno
2
no real, também chamado de Díade do grande-e-pequeno, e de uma
outra substância composta proporcionalmente, que o autor chama de misto do
Mesmo
3
(também chamado de Uno Universal, responsável pela força natural da
2
Os termos grande-e-pequeno, de-terminação, Díade e Uno Universal são utilizados por
Giovanni Reale em sua obra Para Uma Nova Interpretação de Platão (2004: 157-166), capítulo
sétimo “A ‘segunda navegação’ na etapa final: a teoria dos Princípios Supremos (Uno e Díade
Indefinida) e a sua função estrutural”. Os utilizo por acreditar que descrevem da melhor maneira
possível as forças cósmicas ordenadoras da phýsis platônica.
3
Como é observado nas citações do Timeu nas páginas 19-22, os termos Mesmo e Outro a
meu ver correspondem ao Uno Universal e ade respectivamente, pois são os elementos
de-terminação do real) e do Outro que proporciona à alma a capacidade de
movimentar corpos, à semelhança da Alma do Todo. Logo, a alma humana
para Platão é a combinação da substância do Outro adicionada ao misto
substancial proporcionalmente engendrado do Outro e do Mesmo. Em outras
palavras, o Outro representa a parte da natureza que equivale ao sensível e o
Mesmo, o que representa o inteligível.
Para Platão, em sua física, exposta no Timeu, o Outro significa a
Dualidade. O Mesmo significa a Unidade. O terceiro elemento é a fusão
proporcional dos dois elementos anteriores despotencializados, isto é,
equilibradamente harmonizados e com suas propriedades reduzidas para gerar
uma substância com características duplas e naturalmente intermediárias entre
os dois princípios naturais, ou seja, uma substância que viria a garantir a
comunicabilidade entre o Outro e o Mesmo e por conseguinte, a capacidade de
ceder movimento, própria à alma, como é visto abaixo:
A alma é então formada pela natureza do Mesmo,
da natureza do Outro e da terceira substância. E composta
destas três realidades, move-se por si só em círculo. [...]
disse essas palavras e, retornando à cratera na qual
inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo,
verteu os resíduos das primeiras substâncias e as misturou
aproximadamente do mesmo modo. Todavia, o havia
mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente
a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado,
dividiu num número de almas igual ao dos astros. (PLATÃO,
s/d: 91, 100-101).
Vale ressaltar que os conceitos de Outro e Mesmo se relacionam ao
que Reale (2004: 156-166)
nos informa quanto aos Princípios Supremos
Últimos da phýsis platônica, a Díade e o Uno, sendo a primeira o princípio de
variabilidade indefinida, isto é, do grande-e-pequeno, do indefinido ou infinito; e
o segundo o princípio de-limitador e de-terminador do ilimitado, indeterminado,
indefinido, igualizador do desigual, enfim, princípio de determinação formal que
normatizariam as relações na phýsis.
A alma se relacionaria com os corpos na proporção das afinidades de
suas partes constitutivas, como expresso no Timeu
(PLATÃO, s/d: 91-92)
, no que
se refere à cognição.
substancias de composição da Alma do Mundo e da ordenação de seu Corpo, sendo, por
conseguinte, proporcionalmente presentes na alma e corpo humanos.
Assim, conforme vivesse o homem no mundo dos vivos, sua alma
poderia optar por levar uma vida dedicada aos prazeres sensíveis e desta
maneira influiria sobre sua natureza de maneira a acentuar sua porção do
Outro (Díade), e tornar-se-ia grosseira sua alma, impedindo-lhe de se alimentar
convenientemente e, consequentemente, mantendo-a nos ciclos
reencarnatórios. Se estivesse voltada para sua natureza divina, isto é, o
Mesmo (Uno), fortaleceria a terceira substância que se aproxima dos prazeres
de natureza divina, libertando-se assim, antecipadamente, das paixões
vinculadas à vida encarnada, conforme Platão menciona no Fédon
(s/d: 54)
:
(Fédon) SÓCRATES: - E quem haveria de obter em
sua maior pureza esse resultado, senão aquele que usasse
no mais alto grau, para aproximar-se de cada um desses
seres, unicamente o seu pensamento, sem recorrer no ato
de pensar nem à vista, nem ao ouvido, e libertando-se do
corpo inteiro, que perturba a alma e não deixa apreender a
verdade quem, senão aquele que, utilizando-se do
pensamento em si mesmo, por si mesmo e sem mistura, se
lançasse à cata das realidades verdadeiras, também em si
mesmas, por si mesmas e sem mistura?
Para Platão, a alma seria passível de conhecer a si mesma e de ter o
conhecimento verdadeiro dos seres em si mesmos desde que acentuasse a sua
natureza divina e através dela, por identidade substancial, o conhecimento
verdadeiro de daria, conforme se vê abaixo:
(Fédon) SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a
prova de que, se alguma vez quisermos conhecer
puramente os seres em si, ser-nos-á necessário separar-
nos dele [o corpo] e encarar por intermédio da alma em si
mesma os entes em si mesmos. (PLATÃO, s/d: 55)
Com base na declaração acima, Platão nos informa que a alma
encarnada pode acessar o conhecimento verdadeiro sem interferência dos
sentidos corporais. Isso se apenas na medida em que ela se afastar dos
sentidos como fonte única do conhecimento e valorizar seu elemento
constitutivo do Mesmo em detrimento do Outro, por identidade substancial e de
propriedades entre a alma e as Idéias. Dessa maneira, não é necessário que o
conhecimento se apenas por contemplação da Idéias, mas ocorrerá
também, através de si mesma (alma), isto é, por intermédio da concentração e
valorização do princípio de unidade que compõe a própria alma.
Decorrente disso, é interessante notar que a alma humana, em certa
medida, também possui uma idéia do chamado mundo das Idéias, fonte de
onde decorrem por participação os múltiplos indivíduos existentes no mundo
sensível.
Através da consciência de sua natureza e de sua composição essencial
a alma poderia voluntariamente buscar, através do acentuamento de sua parte
divina, isto é, de sua porção essencial do Mesmo, identificar-se com os demais
seres (Idéias).
Platão define que a alma não sofreria necessariamente a ação da
ascese do pensamento (processo segundo o qual o autor afirma que o
pensamento progride de maneira escalonada, isto é, das coisas simples passa,
por indução, às mais complexas, das sensíveis às abstratas), isto é, em alguma
medida, a alma manteria a sua pureza substancial no sentido de o sofrer
mudanças substanciais decorrentes do processo de ascese:
(Fédon) SÓCRATES: - E assim esta viagem que
hora me foi prescrita é acompanhada de uma feliz
esperança; e o mesmo acontece a quem quer que possa
afirmar que seu pensamento está pronto e o possa dizer
purificado.
Mas a purificação não é de fato, justamente o que diz uma
antiga tradição? Não é apartar o mais possível a alma do
corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma
por um refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver
tanto quanto puder, seja nas circunstâncias atuais, seja nas
que se lhes seguirão, isolada e por si mesma, inteiramente
desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços
que a ele a prendiam? (PLATÃO, s/d: 55-56)
Pelo que foi constatado a respeito da criação da Alma e do Corpo do
Todo em relação ao Cosmos e o processo de criação da alma humana visto no
Timeu (PLATÃO, s/ d: 80; 82-86; 90-92; 100-101) e Fedro (PLATÃO, s/ d: 174)
e no Fédon (PLATÃO, s/ d: 55) sobre a possibilidade da alma ter acesso ao
conhecimento através de si mesma, por meio da ascese do pensamento,
enquanto encarnada no mundo sensível, os passos acima mencionados do
Fédon corroboram a posição de Platão quanto à possibilidade da alma poder
realizar relativa separação do corpo e assim alimentar-se de conhecimento
verdadeiro.
Obviamente a separação total e absoluta entre corpo e alma enquanto
encarnada é impossível pois, enquanto tal, a alma está vinculada ao corpo tal
qual uma ostra à sua concha e, por similitude à Alma do Mundo, envolve e
atravessa seu corpo de maneira a estar localizada em seu centro e por meio de
todas as suas partes constitutivas. Logo, a ela seria impossível o apartar-se em
definitivo, a não ser pelo fenômeno da morte.
Uma vez que o pensamento é definido por Platão, no Sofista (s/ d: 158),
como diálogo da alma consigo mesma, percebe-se claramente o estatuto que o
pensamento possui para o filósofo, qual seja, o de um atributo da alma através
do qual ela é capaz de isolar-se das sensações para atingir o conhecimento
verdadeiro através da filosofia.
Ora, se há esta diferença entre a alma e o pensamento, por
conseguinte o noûs (inteligência, alma racional) seria em certo sentido, um
atributo da alma tanto quanto o pensamento, logo, seria distinto dela em algum
nível. Em que medida pode-se compreender tal distinção? Investigarei isso
mais a fundo no item Atributos da Alma.
Para Platão, a alma deve ter seus desejos pautados pela razão, porém,
quando isso não ocorre, o que ele chama o prazer do bem é esmagado e a
alma se dirige ao prazer que a beleza promete, guiada pelos desejos
intemperantes. O ascendente que esse desejo exerce sobre a alma é irresistível
e Platão o chama de Eros ou Amor, conforme é visto no Fedro (s/ d: 143):
(Fedro) SÓCRATES: - Quando o desejo, que não é
dirigido pela razão, esmaga em nossa alma o prazer do
bem e se dirige exclusivamente para o prazer que a beleza
promete e quando se lança, com toda a força que os
desejos intemperantes possuem, o seu poder é irresistível,
chama-se Eros ou Amor.
No que se refere à alma encarnada, o foco de seu interesse determina
a porção de sua natureza que será valorizada ao longo da vida e determinará
assim, a melhor ou pior qualidade das Idéias captadas por contemplação ou por
auto-conhecimento
4
e, consequentemente, segundo Platão assinala no Fedro
(s/ d: 143), acima citado, a alma entrará numa espécie de inércia devido à
opção levada a efeito pelo interesse intemperante, conduzindo-a então, ao
desequilíbrio e a ações irracionais. Vale ressaltar que o problema da opção
4
Por auto-conhecimento não me refiro aqui ao processo de perscrutação interior que objetiva
identificar possíveis falhas a serem repreendidas por mudanças de comportamento, mas o
processo segundo o qual a alma em si, isto é, por meio de sua identidade substancial e
qualitativa com as Idéias verdadeiras é capaz de vir a conhecê-las desde que consiga reduzir a
influência dos sentidos oriundos do corpo sensível.
intemperante que Platão assinala em detrimento da racional é que a alma por
essa escolha vincula-se à corporalidade do sensível e condiciona-se a manter-
se no que ele chama ciclo das reencarnações pela pouca afinidade
desenvolvida volitivamente para com o inteligível, que Platão chama de
natureza divina da alma.
Se a alma não fosse moldada através de uma educação conveniente, o
elemento pior de sua natureza poderia dominá-la e causar-lhe-ia amplos
transtornos. As características básicas dos referidos elementos anímicos
seriam, segundo a alegoria do cocheiro e de seus cavalos: a) o melhor cavalo
amor à honestidade, sobriedade, pudor, amigo da opinião certa e dócil à
palavra de comando do cocheiro; b) o pior cavalo imprudente, soberbo,
lascivo e obedeceria apenas com esforço; c) o cocheiro é o que observa
objetos amáveis e sofre com os desejos oriundos dos dois cavalos, como se
no Fedro:
(Fedro) SÓCRATES: [...] Representá-la numa
imagem é coisa que se possa fazer num discurso
humano de menores proporções. A alma pode ser
comparada com uma força natural e ativa que unisse um
carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um
cocheiro.
(Fedro) SÓCRATES: O cavalo de melhor aspecto
tem um corpo harmonioso e bonito; pescoço alto, focinho
curvo; cor branca, olhos pretos; ama a honestidade e é
dotado de sobriedade e pudor, amigo como é da opinião
certa. Não deve ser batido e sim dirigido apenas pelo
comando e pela palavra. O outro, o mau, é torto e disforme;
segue o caminho sem deliberação; com o pescoço baixo
tem um focinho achatado e a sua cor é preta; seus olhos de
coruja são estriados de sangue; é amigo da soberba e da
lascívia; tem as orelhas cobertas de pelos. Obedece
apenas, e com esforço, ao chicote e ao açoite. (PLATÃO,
s/d: 151,152 e 158)
Pelo depreendido da análise comparativa dos textos Fedro (PLATÃO, s/
d: 151, 152 e 158), o da República (PLATÃO, s/ d: 162 e 163) e Timeu
(PLATÃO, s/ d: 105 e 149), percebi que a simbologia utilizada pelo filósofo no
Fedro corresponderia a alguma espécie de matriz comportamental da alma em
seu processo de relacionamento com o conhecimento, no caso, as Idéias
verdadeiras a serem contempladas no chamado céu da verdade, enquanto
alma desencarnada e, após a encarnação, através da contemplação ou auto-
conhecimento proporcionados pelo exercício filosófico. Ao que parece,
conforme será visto adiante, essa matriz comportamental, compreendida pelo
cavalo branco, pelo cavalo negro e pelo cocheiro, interagirá de maneira
espelhada com as demais estruturas, em especial com a estrutura anímica
descrita na República, a saber, o noûs, o thýmos e o pneyma, que compõem o
conjunto da psyché, isto é, da alma encarnada.
Outro ponto a ressaltar é a questão da procisão e de como ela se daria.
Nela, cada alma seguiria o fluxo das revoluções no céu da verdade (inteligível),
acompanhando um deus. Supomos que esta procisão representaria o período
de estada da alma no mundo inteligível, antes de encarnar pela primeira vez.
Porém, o que pretendo investigar é o que determinaria a opção por este ou
aquele deus ao iniciar cada nova procisão. Conforme se verifica no Fedro,
Platão informa que as revoluções seriam diferentes para os deuses, almas e
demônios
5
, visto que para os dois últimos, a jornada seria difícil devido à sua
natureza, pois esta prejudicaria a atenção do cocheiro em relação à
contemplação das Idéias; porém, cada um deles seguiria um deus, em grupo,
por eleição pessoal como Platão apresenta no Fedro (s/ d: 152-153):
(Fedro) SÓCRATES: A força da asa consiste em
conduzir o que é pesado para as alturas onde habita a raça
dos deuses. A alma participa do divino mais do que
qualquer outra coisa corpórea. O divino é belo, sábio e bom.
Por meio destas qualidades as asas se alimentam e se
desenvolvem, enquanto que todas as qualidades contrárias,
como o que é feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer.
Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a
dar ordens e a cuidar de tudo. O exército dos deuses e dos
demônios segue-o, distribuído em onze tribos. Hestia é a
única entre os seres divinos que permanece em casa. Cada
um dos outros onze deuses é o guia, conforme a ordem de
sua tribo. muitos e agradáveis espetáculos e caminhos
no céu, por onde a grande família dos deuses, fazendo
cada um deles o que lhe está afeto e seguindo-os aqueles
que os podem seguir.
Quando se dirigem para o banquete que os espera,
os carros sobem por um caminho escarpado até o ponto
mais elevado da abóboda dos céus. Os carros dos deuses
que são mantidos em equilíbrio, graças à docilidade dos
corcéis, sobem sem dificuldade. Os outros com dificuldade
porque o cavalo de raça inclina e repuxa o carro para a
terra. Há então grande trabalho para a alma. [...]
5
Conforme ISIDRO PEREIRA (1990: 118), o termo demônio deriva do grego daímon
(δαιµον), significando: deus(a), poder divino, destino, sorte e dentre outros sentidos, alma dum
morto, sombra, gênio que acompanha um homem a uma cidade. Também, segundo Coulanges
(1998: 7-28), o ancestral morto, enterrado sob a lareira doméstica, na casa grega, era cultuado
como deus através do Lar, mantendo contato com os deus e olímpicos a respeito dos interesses
dos parentes encarnados sendo cultuados até a quinta geração e consultados sobre todos os
aspectos importantes da vida familiar e social. Em Vernant (1990: 27; 30-35; 66; 69; 80-81; 88;
95-98; 103; 113; 119; 120; 126; 143 e nota 53; 144; 297; 345) em que o termo é apresentado
em suas múltiplas acepções segundo os estudos realizados pelo helenista francês.
(Fedro) SÓCRATES: A sorte das outras almas é,
porém esta:
Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a
cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar
com a rotação. Mas perturbadas pelos corcéis do carro,
apenas vislumbram as realidades. Ora levantam, ora
baixam a cabeça, e, pela resistência dos cavalos, vêem
algumas coisas mas não vêem outras. Outras há, porém,
que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a
rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e
derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende
passar adiante.
Pelo que constatei a partir do texto, a escolha por um ou outro deus
estaria relacionada à capacidade de cada alma de observar (contemplar) o
melhor possível as Idéias que as alimentariam, gerariam e robusteceriam suas
asas e assim lhe possibilitariam um vôo mais equilibrado. A felicidade que
adviria desse conhecimento seria compatível com a capacidade adquirida pela
alma por meio da contemplação.
Sendo assim, a alma tem liberdade para escolher o deus ao qual
acompanharia nas revoluções, mas se não conseguisse manter-se em
formação até o banquete, pela fraqueza de suas asas, ela cairia e tal queda
acarretaria sua primeira encarnação humana no mundo dos vivos. Do contrário,
de vôo em vôo, a alma se fortaleceria e nunca conheceria o sofrimento da
reencarnação como se vê no Fedro
(PLATÃO, s/d: 153-154)
:
(Fedro) SÓCRATES: - É uma lei de Adrástea: toda
a alma que segue a de um deus, contempla algumas das
verdades; fica isenta de todos os males até nova viagem e
se seu vôo não se enfraquece ela ignorará eternamente o
sofrimento. Mas, quando já não pode seguir os deuses,
quando devido a um desvio funesto ela se enche de
alimento impuro, de vício e de esquecimento, torna-se
pesada e precipita-se sem asas ao solo.
Acredito ser a lei de Adrastéa uma das questões mais importantes
pertinentes à alma humana antes da encarnação. Através dela Platão nos
informa que a alma, no processo de contemplação das Idéias, processo este no
qual ela se alimenta de Idéias verdadeiras ou impuras, segundo seus
interesses. Optando por Idéias verdadeiras, a alma alimentada
convenientemente mantém o ritmo do vôo na procisão divina, atrás do deus de
sua preferência. Escolhendo Idéias impuras, a alma tem as asas da sabedoria e
da inteligência minguadas pela nutrição de baixa qualidade e, pesadas, caem
da procisão gerando uma nova encarnação. Segundo a declaração do filósofo,
o que condicionaria a encarnação da alma seria o uso da liberdade de opção
em se alimentar por Idéias não verdadeiras e como conseqüência, o estado de
felicidade da alma, participante dos festins divinos e longe de uma vida humana
ou animal ou seu contrário, isto é, a vinculação da alma aos ciclos
reencarnatórios e às suas misérias múltiplas e variáveis está na razão direta da
quantidade e qualidade das Idéias contempladas.
A encarnação surge como elemento não necessário, desde que a alma
proceda à escolha pelas Idéias verdadeiras. É interessante notar que a
qualidade/quantidade das Idéias verdadeiras condiciona o gênero da vida
humana que a alma terá na encarnação, como é visto abaixo, no Fedro (s/ d:
154):
(Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no
primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um
animal; aquela que mais contemplou gerará um filósofo, um
esteta ou um amante favorito das Musas; a alma de
segundo grau irá formar um rei legislador, guerreiro ou
dominador; a do terceiro grau forma um político, um
economista, ou financista; a do quarto, um atleta incansável
ou um médico; a do quinto seguirá a vida de um profeta ou
adepto dos mistérios; a do sexto terá a existência de um
poeta ou qualquer outro produtor de imitações; a do sétimo,
a de um operário ou camponês; a do oitavo, a de um sofista
ou demagogo; a do nono, a de um tirano. Quem em todas
estas situações, praticou a justiça moral, terá melhor sorte.
Quem não a praticou cai em situação inferior.
Diretamente relacionado a este processo estaria o do desenvolvimento
das asas da alma que se nos apresentaria claramente como uma alegoria
referente à aquisição da sabedoria e da inteligência que, equilibradas,
permitiriam à alma seguir o deus de sua preferência nas revoluções de
conhecimento das verdades eternas até não mais reencarnarem (ou nunca
encarnarem); e gozariam da felicidade obtida através deste conhecimento.
A alma é passível de sofrer, como as crianças com o nascimento dos
dentes, como é visto no Fedro
(PLATÃO, s/d: 156)
:
(Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas
começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma
maneira como padecem as crianças que, ao receberem
novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas.
Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe
crescerem as asas.
Ora, se a alma sofre e tem “prazer”, é que de alguma forma possuiria
alguma espécie de sensibilidade que garante a comunicação interior-exterior,
como é visto em Platão, no Timeu
(PLATÃO, s/d: 91-92)
. Como isso se daria,
uma vez que a alma não possuiria nervos para padecer de tais estímulos por
ser distinta do corpo?
Remetendo-nos à composição substancial da alma por motivo de sua
criação pelo Deus, explica-se quase que totalmente a dinâmica cognitiva da
alma humana. A alma e o corpo humano foram construídos pelos deuses em
semelhança com a Alma e o Corpo do Mundo, com a diferença que a alma
humana não possui a mesma combinação substancial de Mesmo, Outro e da
terceira substância, misto das duas anteriores, que compõe a Alma do Todo. Ao
contrário, em sua composição, foram utilizadas apenas o Outro e a terceira
substância. Logo, isso explicaria a questão da alma estar submetida ao
envelhecimento, enquanto encarnada, pois na terceira substância, a metade
desta que é composta da porção do Mesmo, o que não é suficiente para
assegurar a imortalidade do organismo uma vez que uma porção e meia da
alma humana seria composta de Outro, o que a submete à temporalidade
enquanto em contato com o sensível.
É importante recordar que o Outro e o Mesmo, em Platão, no Timeu,
representam o complexo de forças fundamentais e universais, através das
quais, o autor fundamenta sua visão da natureza. Elas agem como os
elementos ordenadores do Cosmos, atuando de maneira simultânea e
complementar, isto é, como o misto da permanência e devir, o que Platão
chama de Primeiros Princípios, apresentados por Reale (2004: 156-166).
Esses Princípios são os fundamentos últimos da natureza,
concomitantemente imanentes e transcendentes no Cosmos, presentes por
meio de suas características próprias, a saber: o Outro ou Díade Universal,
representa a multiplicidade, tudo que é infinito, com aspecto não de-terminado
6
.
Logo, aquilo que se afasta do terminado, do fixo, do realizado. É o Princípio
relativo a tudo o que é sensível por estar continuamente submetido ao devir, à
mudança, à impermanência. O Mesmo ou o Uno Universal tem as
características opostas às do Outro, isto é, possui a qualidade terminadora,
permanente, eterna, imutável, idêntico a si mesmo.
Uma vez que a alma humana foi construída com as acima mencionadas
substâncias que lhe asseguram identificação de propriedades com os Princípios
6
Conforme Ferreira (1975: 423) de palavra latina que significa afastamento, extração.
elementares da natureza platônica, em especial, a terceira substância que é
produto da mistura do Outro e do Mesmo, Platão nos informa no Timeu (s/ d:
91-92) a respeito da cognição de impressões sensíveis e/ou inteligíveis que
ocorrem justamente devido à afinidade substancial e de propriedades que a
alma apresenta e mantém com a natureza das informações que lhe
sensibilizem através do que Platão chama círculos do Outro ou, no caso da
alma humana, da terceira substância, conforme vemos na página 22 dessa
dissertação.
Uma vez que a alma e o corpo humano são análogos à Alma e ao
Corpo do Cosmos, comportando-se quase que completamente em semelhança
a eles, a alma humana em relação a seu corpo, enquanto encarnada, localizar-
se-ia para Platão, no centro do corpo e atravessando-o em todas as suas
partes, a ele justapondo-se como uma ostra à sua concha, chega a ir além dele
de maneira a envolvê-lo. De tal declaração de Platão, infere-se forçosamente
que a alma humana possui a forma do corpo que anima, uma vez que por
princípio substancial e de propriedades, a alma não teria condições para
delimitar em contornos fixos seus limites; ou seja, propriedade que apenas o
corpo, vinculado ao Princípio do Outro, sob o influxo vitalizador e inteligível da
alma e por ela mantido durante a encarnação, seria capaz de realizar.
A alma humana, mesmo não encarnada não é um composto substancial
amorfo porque, segundo Platão no Timeu (s/ d: 80) e na página 20 dessa
dissertação, a alma foi criada com a finalidade específica de prover de
inteligência e beleza ao que é visível, isto é, a tudo o que é composto apenas
pelo Princípio do Outro. Na República (s/ d: 406-415), no mito de Er, as almas
humanas são reconhecidas exatamente como eram em sua última vida terrena
antes da escolha de um novo gênero de vida. No Fédon, Platão confirma esta
descrição da alma humana no Hades, caracterizada tal qual foi em sua última
vida, mesmo em se referindo à pessoas famosas, muito mortas,
corroborando assim a concepção de eidolon (duplo) que, segundo Isidro Pereira
(1990:167) significa fantasma, figura, retrato, e que Vernant (1990:116, nota 38)
descreve como sendo o duplo do homem, isto é, o espelho do corpo, uma cópia
(ou modelo) com as mesmas feições e especificidades morfológicas do corpo
recém morto. Em termos platônicos, poderíamos chamar esse eidolon de Idéia
de homem, personalizada pela alma do sujeito em questão e produto de todas
as suas experiências anteriores.
Disso decorre, necessariamente, que a alma humana, enquanto
desencarnada, por afinidade substancial e de qualidades para com a Alma do
Mundo, possui um eidolon, uma imagem, uma figura através da qual é
reconhecida pelas características próprias que lhe constituíram a última
personalidade na existência terrena. Logo, é perfeitamente admissível que em
Platão, a alma humana desencarnada possua certa corporeidade.
Inventariando o exposto, percebe-se que a alma humana é: 1 uma
miniatura da chamada Alma do Todo; 2 – Por identidade substancial e de
propriedades, ela é capaz de se relacionar com o sensível e o inteligível e deles
receber estímulos; 3 é uma Idéia na medida em que no chamado mundo das
Idéias existe uma Idéia de homem que caracteriza a alma humana como tal; 4
tal como uma Idéia, a alma humana cede inteligibilidade e beleza ao sensível; 5
pelo exposto nos itens 2, 3 e 4, a alma agrega em torno de sua substancia
ideal a terceira substância constitutiva de sua natureza, para constituir sua
corporalidade; 6 – esse duplo é o corpo através do qual a alma humana
participa da contemplação das Idéias e desenvolve as asas da sabedoria e da
inteligência; 7 é o corpo inteligível aquele que proporciona a possibilidade da
alma ser metamorfoseada na nova personalidade que assumirá em sua futura
encarnação, condicionando a vivência como homem, mulher, animal ou outro
ser natural e, 8 nesta medida, o eidolon, caracterizado através das
propriedades de suas substâncias constitutivas (Outro/Mesmo e a porção do
Outro), modela o futuro corpo.
Pelo que se conclui do inventário acima, enquanto encarnada, a alma
humana se justapõe a seu corpo sensível através do corpo inteligível que por
seu intermédio, recebem beleza, inteligibilidade. Enquanto desencarnada, a
alma por intermédio de seu eidolon manteria também as mesmas capacidades
cognitivas através da relativa corporeidade do duplo.
Platão se refere à possibilidade que a alma teria de ser guiada por uma
outra alma e ser capaz de guiar outras almas, por sua vez, através da
eloqüência do discurso, como é visto no Fedro (s/ d: 174):
(Fedro) SÓCRATES: - Com a arte retórica se passa
mais ou menos a mesma coisa que com a Medicina.
FEDRO: - Como?
SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente, que as
duas artes se distinguem uma da outra pela natureza do
seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra com a alma.
Tens de levar isso em conta se quiseres, não só pela
prática e por meio de regras empíricas, mas de acordo com
a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe remédios e
alimentos, e a outro infundir a convicção que desejas,
tornando-o virtuoso mediante discursos e argumentos
legítimos.
Ou seja, a arte de bem falar, a retórica, influiria nas decisões da alma e
seria passível de ser utilizada para guiar outras almas. Na descrição da
natureza anímica, Platão não deixou de prestigiar o papel da linguagem no
relacionamento entre as almas. A linguagem exerceria importante papel nas
relações da alma para com ela mesma e dela para com outra alma.
Neste ponto de nossa investigação vale recordar o sofista Górgias de
Leontinos (apud Romeyer-Dherbey, s/d: 45-48), contemporâneo de Platão e
que influenciou amplamente a reflexão filosófico-moral e política em Atenas e
que nos informa sobre a arte de curar através do discurso. Ora, o grego
clássico era um homem que se afirmava como cidadão em sua sociedade
através do discurso, isto é, a linguagem era o instrumento nivelador dos iguais
que os colocava ès méson (no centro) da ágora (praça ou mercado público).
Arrisco a dizer que a linguagem determinava-lhes a percepção do real (sensível
e inteligível, à época indistintos).
É neste sentido que a alma deveria ser objeto dos maiores cuidados
quanto à sua alimentação ideológica (compreendo ideológica como referente às
Idéias e não no sentido de conjunto de idéias de determinada escola ou
pensador), uma vez que ela se daria na e por meio da linguagem. A razão disto
se justifica exatamente pela característica variável que a linguagem apresenta.
Retornando à questão da composição da alma humana, fenômeno
existencial natural, ela seria constituída do Múltiplo, adicionado a um composto
proporcional de Uno e Múltiplo. Na simbologia platônica do Timeu (s/d: 85-86),
e no âmbito da teoria dos Primeiros Princípios, apresentada por Reale (2004:
181-193) se depreende que a realidade última da phýsis era composta pelo Uno
e pela Díade indeterminada, espécies de forças cósmicas no sentido de
princípios ordenadores que agiriam simultânea e complementarmente sobre a
totalidade da natureza.
O primeiro seria o princípio de-terminador e de-limitador, ou seja, o
Mesmo, base de tudo o que é inteligível; a segunda, isto é, a Díade
indeterminada ou indefinida, seria a base de tudo o que é múltiplo (o Outro),
compreendido como tudo o que é sensível. A phýsis platônica seria
compreendida dos Primeiros Princípios (Uno e Díade) e o sensível, com suas
multiplicidades. A questão da phýsis ou natureza é muito importante para
compreender as relações corpo-alma para Platão.
Conforme a tradição filosófica, Platão seria o responsável por
estabelecer o dualismo através da divisão da natureza em dois mundos, a
saber, o sensível e o inteligível. O primeiro, teria sua realidade e fundamentado
no segundo, mais especificamente no que Platão chama de Idéias e, em
especial, na Idéia de Bem, conforme se em Pessanha (1996: 50-51; 53),
Durant (1996: 48-55), Marcondes (1998: 54-67), Japiassu & Marcondes (1991:
127) e Ismael Quiles (1952: 11-12). Para a tradição, representada em nossa
pesquisa pelos autores supracitados, as Idéias, como se vê em Pessanha
(1996: 50)
seriam os modelos eternos das coisas sensíveis. Embora
Platão as chama também de “idéias”, elas não existem na
mente humana, como conceitos ou representações mentais:
ao contrário, existem em si, nem nos objetos (de que são os
modelos), nem nos sujeitos, (que conhecem esses objetos).
[...] Cada coisa corpórea e mutável seria o que ela é (uma
cadeira, por exemplo) porque participa da essência que lhe
serve de modelo (a cadeira-em-si, a essência ou idéia” da
cadeira). [...] a essência da cadeira permanece sempre a
mesma, fora do tempo e do espaço.
Ou seja, o chamado mundo das Idéias seria uma realidade à parte do
sensível, embora seja sua matriz e possua uma realidade objetiva cedendo ser
aos elementos individuais do mundo sensível através de participação
metafísica. Dentre todas as Idéias, a do Bem seria aquela que agregaria a
capacidade máxima de generalização visada através do exercício dialético,
conforme é visto em Pessanha (1996: 53):
usando o conhecimento dialético, o filósofo pode atingir as
essências eternas. E, seguindo as articulações que ligam
determinadas essências a determinadas essências, vai
conquistando essências cada vez mais gerais. Até que, por
fim, contempla aquele absoluto, uma superessência. Na
República, Platão o denomina de Bem. Ele seria a fonte de
toda a luz, fazendo com que os objetos possam ser
conhecidos e que nós possamos conhecê-los. É como o
Sol.
A distinção da realidade em mundo sensível e mundo inteligível, à parte
do tempo-espaço, desenvolveu ao longo do tempo e das inúmeras
interpretações das doutrinas platônicas, o que Rorty (1988: 25-62) chamou de
vocabulário mentalista baseado em metáforas oculares gregas e, devido a
estas, haveria se desenvolvido um entrave filosófico e lingüístico nas tentativas
contemporâneas de solucionar o problema das relações alma-corpo, como se
em Teixeira (2000: 65-89); em especial, no que concerne às chamadas
Teorias da Identidade, com graves embaraços às suas hipóteses e teorias
explicativas.
No entanto, no decorrer das pesquisas para o desenvolvimento dessa
dissertação me deparei com a obra do filósofo italiano Giovanni Reale, Para
Uma Nova Interpretação de Platão (2004), especialista em História da Filosofia
e que segundo Lima Vaz (REALE, 2004: 14), na introdução ao mencionado
livro, referencia outro trabalho de Reale, a saber, A História da Filosofia Antiga,
afirmando que esta é
o instrumento de trabalho mais completo posto à disposição do
estudioso, tanto do ponto de vista da informação como da análise filosófica.
Que
diferencial encontrei em Reale em relação às interpretações da tradição, para
compreender da phýsis platônica em questão?
A tese formulada no final dos anos cinqüenta do culo XX, pela
chamada escola de Tübingen, tinha como expoentes, então, os dois
representantes mais significativos, os filósofos H.-J. Krämer e K. Gaiser que
defendiam a necessidade de se levar em consideração nos estudos
desenvolvidos em torno de Platão e do platonismo, o que eles chamaram de
doutrinas não-escritas. O que seria isso?
As doutrinas não-escritas correspondem aos ensinos orais de Platão,
ministrados na Academia. Como toda tradição oral, por carência de registros do
autor, sempre foi desconsiderada pelos pesquisadores, em especial, os que
adotaram o paradigma interpretativo de Schleiermacher, no culo XIX,
fundado na autenticidade exclusiva de um certo grupo de diálogos como
referência e possibilidade de organização do chamado corpus platônico. No
entanto, Krämer e Gaisere , conforme atesta Reale (2004: 54-80) retomaram as
pesquisas em torno dos ensinos orais de Platão. Tendo como documentos
historiográficos o que o autor chama de tradição indireta (Idem: 81-97),
responsável pela conservação de indícios das doutrinas não-escritas no
período Acadêmico, foi possível reconstruir o conteúdo dos ensinos orais, bem
como acompanhar a evolução deles no seio do platonismo ao longo do tempo.
Com o acesso ao conteúdo dos ensinos orais de Platão, Reale
apresenta uma rie de vantagens decorrentes da adoção do novo paradigma
interpretativo, tais quais: uma nova visão sobre os escritos (diálogos), a solução
das aporias
7
teóricas das doutrinas do filósofo que o paradigma tradicional não
consegue solucionar, o redimensionamento do filosofar como exercício de
sabedoria empírica para Platão, compreensão das mutações, acomodações e
falhas interpretativas introduzidas no corpus platônico e, o que mais chamou
minha atenção na proposta das Escolas de Tübingen-Milão, a possibilidade de
resolver os enigmas do platonismo, em especial, as relações entre corpo-alma.
Para Reale (2004: 176) a concepção de phýsis platônica se dividia e se
escalonava em ordem crescente, da seguinte maneira:
Plano do mundo físico
Plano dos entes
matemáticos
Objetos da musicologia
Objetos da astronomia pura
Objetos da Estereometria
Objetos da geometria plana
Objetos da matemática.
Plano das Idéias
Idéias gerais
Idéias particulares
Idéias generalíssimas ou Meta-Idéias
Números e Figuras Ideais
Plano dos Princípios
“Uno” e “Dualidade indeterminada”
Dadas as explicações acima, retorno à questão em pauta em nossa
investigação, qual seja, qual era a concepção que Platão tinha da phýsis e em
que medida os estudos de Reale trazem um diferencial ao problema assinalado
pela tradição filosófica, qual seja, o dualismo platônico entre sensível e
inteligível devido as Idéias serem consideradas como existentes fora do tempo-
espaço, gerando os mencionados entraves filosóficos citados anteriormente.
A despeito da discussão sobre a validade, permanência ou adaptação
do antigo paradigma interpretativo (schleiermachiano) ao novo, defendido pelas
7
Conforme Isidro Pereira (1990: 74): dificuldade para passar; falta, privação; [...] dificuldade,
apuro.
Escolas de Tübingen-Milão, decidi adotar o último devido às inumeráveis
vantagens interpretativas que viabiliza.
Segundo Reale (2004: 120), a teoria das Idéias é um dos sustentáculos
da visão de mundo platônica. No entanto afirma (Ibidem):
a teoria das Idéias corresponde à primeira etapa da
“segunda navagação”, [contida no Fédon], enquanto a teoria
dos Princípios constitui a etapa final e definitiva. As Idéias
são alcançadas mediante os postulados que Platão introduz
para superar a posição dos físicos; todavia, não se pode
fazer uma defesa adequada da teoria das Idéias
permanecendo no âmbito da própria teoria das Idéias (ou
seja, examinando apenas as conseqüências que dela
derivam). É necessário subir a postulados mais elevados,
até alcançar o postulado adequado (que é, justamente, o
postulado dos “Princípios primeiros e supremos”).
A necessidade à qual Reale se refere ele justifica (Ibidem) afirmando
que os Princípios redimensionam a interpretação e solucionam as aporias
mencionadas anteriormente. Nessa medida, o que seriam as Idéias para as
Escolas de Tübingen-Milão?
São elementos constitutivos da phýsis platônica com características de
inteligibilidade, incorporeidade (Idem: 123), o que as contrapõe
necessariamente ao sensível. Até este ponto, a tradição filosófica e o novo
paradigma concordam relativamente ao que significam as Idéias. Elas são,
segundo Platão apud Reale (Idem: 126):
o verdadeiro ser, ser em si, ser estável
e eterno, ser que se e num plano totalmente diferente do sensível.
(Negrito do
autor).
É interessante observar que Reale (Idem: 128) assinala, no que se
refere à distinção dos dois níveis de existência feita por Platão, que as Idéias e,
consequentemente, o inteligível como um todo, é supra-físico. O que significa
isso? Segundo Ferreira (1975: 1350; 1348), supra é um prefixo latino, sinônimo
de outro prefixo da mesma língua, chamado super, que por sua vez significa:
excesso, aumento, posição acima, em cima ou por cima
. Logo, supra-físico
corresponderia à noção de algo que está acima do físico ou numa posição
acima. O que não necessariamente supõe uma não comunicação entre os dois
níveis de existência. O problema da tradição é compreender como tal interação
ocorre, de modo que as Idéias, com suas características sejam próprias,
capazes de ser os arquétipos dos múltiplos existentes na dimensão física.
Outra característica das Idéias é que elas são imutáveis em si e por si
isto é, são imutáveis e unas, não existem mais de uma e apenas uma Idéia
para cada espécie existente no sensível. Reale (2004: 130) afirma que devido a
essa classificação feita por Platão, a tradição filosófica a contar de Aristóteles
tendeu a tomar a Idéia
em sentido hipostático, como se ela revelasse claramente
que a Idéia não é mais que a ontologização do conceito ou a entificação do
abstrato, ou seja, a hipostatização do universal.
(Grifo do autor). Com isso,
Reale (Idem: 133) complementa que a imutabilidade das Idéias é a
característica que garante a estabilidade das Idéias como arquétipos da
dimensão física, pois:
o que muda não pode, ela mesma, mudar, caso
contrário não seria a “verdadeira causa”, ou seja, não
seria a razão última. (Grifo do autor)
As Idéias guardam outra particularidade que Reale (Idem: 136)
apresenta, qual seja, a unidade, e nos informa como segue:
Cada Idéia é uma “unidade” e, como tal,
explica as coisas sensíveis que dela participam,
constituindo desse modo uma multiplicidade uni-ficada.
E, justamente por isso, o verdadeiro conhecimento consiste
em saber uni-ficar a multiplicidade numa visão sinótica,
que reúna a multiplicidade sensível na unidade da Idéia
da qual depende. (Grifo do autor)
Em outras palavras, essa característica das Idéias é a que proporciona
a possibilidade de sintetização do múltiplo através da Idéia e assim encerra a
exposição sobre elas.
Sobre o dualismo da realidade platônica Reale (Idem: 139) afirma que
os pesquisadores em geral, fundados nas críticas de Aristóteles
insistem
fortemente nesse “dualismo”, sustentando que a “separação” das Idéias das realidades
sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a sua função de “causas”
e
assinala (Idem: 139-140) que em realidade:
as Idéias tem tanto de “imanência” quanto de
“transcendência”; fato que muito frequentemente é
descuidado ou silenciado. Para Platão, a transcendência
das Idéias é justamente a razão de ser (ou seja, o
fundamento) da sua imanência. As Idéias não poderiam ser
a causa do sensível (isto é, a “causa verdadeira”) se não
transcendessem o próprio sensível; e, justamente,
transcendendo-o ontologicamente podem ser o fundamento
da sua estrutura ontológica imanente. [...] a transcendência
das Idéias é, justamente, o que qualifica a função que
elas cumprem de “causa verdadeira”. Confundir esses
dois aspectos, ou nivelá-los de algum modo sobre o mesmo
plano, significa esquecer inteiramente a “segunda
navegação” e os seus resultados. (Grifo do autor)
Nesse sentido, observa-se a primeira distinção entre a tradição
filosófica e a do novo paradigma interpretativo, qual seja, o oposição
radical e total incompatibilidade entre o estatuto imanente-transcendente das
Idéias em Platão, pois para que elas sejam o fundamento e causa do sensível,
necessário se faz que as Idéias tenham uma característica simultaneamente
dual como demonstrou Reale (Idem: 143):
Platão manteve uma firme e constante convicção sobre a
existência de dois diferentes planos do ser e sobre essa
convicção centrou sua mensagem filosófica. Mas o erro de
muitos intérpretes consiste justamente no seguinte: em ter
confundido tal distinção de planos e a proclamação da
diferença estrutural de sua natureza com a absurda e
indevida “separação”, em certo sentido considerando que as
Idéias fossem “supercoisas” fisicamente e não
metafisicamente separadas das coisas, como se elas não
fossem mais do que o sensível mistificado e, como tal,
contraposto ao sensível.
Platão, com as Idéias, descobriu o mundo do inteligível
como a dimensão incorpórea e metaempírica do ser. E
esse mundo inteligível incorpóreo transcende o sensível,
não no sentido de uma absurda “separação”, e sim no
sentido da causa metaempírica (ou seja, da “causa
verdadeira”; e portanto a verdadeira razão de ser do
sensível. Em conclusão, o dualismo de Platão não é
senão o dualismo de quem admite a existência de uma
causa supra-sensível como razão de ser do próprio
sensível, convencido de que o sensível, por causa da
sua autocontrariedade, não pode possuir uma razão de
ser total de si mesmo. Portanto, o “dualismo” metafísico de
Platão não tem absolutamente nada a ver com o ridículo
dualismo que põe o sensível como subsistente e, depois,
contrapõe essa subsistência ao próprio sensível. (Grifo do
autor)
Para melhor compreensão do que Reale expõe acima, analisarei
brevemente o significado das palavras metafísico e metaempírico, dado a
relevância das indicações feitas.
A palavra grega meta, segundo Ferreira (1975: 923) significa:
mudança,
posteridade, além, transcendência e reflexão crítica sobre
. Para Isidro Pereira
(1990: 365), a palavra tem as seguintes acepções:
no meio, entre; com idéia de
lugar, por detrás, a seguir; com a idéia de tempo, a seguir, detrás de outro, seguindo-a.
Por sico, conceitua Ferreira (1975: 634):
relativo à física; referente às leis
da Natureza; corpóreo, material, natural.
Para Isidro Pereira (1990: 621):
concernente à natureza ou ao estudo da mesma; estudo da natureza; natural;
proporcionado pela natureza, conforme a natureza.
Para Japiassu & Marcondes
(1993: 104):
designa a realidade material, concreta, objeto de nossos
sentidos, em contraste com a realidade psíquica, subjetiva,
interior, bem como a realidade espiritual ou abstrata.
Para Japiassu & Marcondes (Idem: 165) metafísica(o) significa:
Na tradição clássica e escolástica é a parte mais central da
filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A
metafísica define-se como filosofia primeira, como ponto
de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é
pressuposto por todas as outras partes do sistema, na
medida em que examina os princípios e causas primeiras, e
que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de
suas determinações particulares; incluindo ainda a doutrina
do Ser Divino ou do Ser Supremo.
Ora, no que se refere ao termo metafísica(o) percebe-se três posições
claras a saber, 1) a do uso cotidiano representada pela conceituação de
Ferreira; 2) a grega, representada pela conceituação de Isidro Pereira e 3) a
técnico-contemporânea de Japiassu & Marcondes.
Uma vez que o termo metafísica(o) foi cunhado por Andrônico de
Rodes, em torno do ano 50 a. C. conforme indicam Japiassu & Marcondes
(Ibidem) para identificar o conjunto das obras de Aristóteles que se seguiam à
Física e, por conseguinte, um conceito criado posteriormente ao autor e
sobretudo, dado o caráter contemporâneo que o termo assumiu, preferirei
analisá-lo sob o aspecto da composição da palavra em grego, acreditando
assim atingir algum entendimento sobre ela. Logo, considerando o sentido de
meta como
no meio, entre; com idéia de lugar, por detrás
e físico, no sentido de
concernente à natureza; conforme a natureza.
Compreendo assim, por metafísico,
aquilo que concerne à natureza ou por outra, aquilo que permeia (estar entre) a
natureza, baseando nas informações que Reale nos concedeu até o momento
em nossa pesquisa.
Por empiria, conforme Japiassu & Marcondes (1993: 79), conceituam:
Experiência sensível bruta, antes de toda e qualquer elaboração.
Para Isidro Pereira
(1990: 184):
experiência, prática.
Logo, por metaempírico compreendo aquilo que
permeia a experiência/ prática.
Baseado na compreensão dos conceitos estudados, é possível
compreender que a posição de Reale (2004: 143) sobre o caráter dual,
metaempírico e metafísico das Idéias é verdadeiramente bombástica
comparada à tradição filosófica! Ela assinala a possibilidade de dissolução da
tradicional concepção filosófica ratificada ao longo da História do Pensamento
Ocidental, a respeito do “dualismo” criado por Platão e denunciado por seu
discípulo Aristóteles.
Fundado na pertinência das observações feitas, para efeito de
realização desta pesquisa, assumi a compreensão da phýsis platônica sob o
prisma das Escolas de Tübingen-Milão. Assim procedo, uma vez que pela
adoção do novo paradigma inauguram-se novas possibilidades interpretativas
quanto aos problemas oriundas da relação mente-corpo, assinalados por Rorty
e Teixeira nas páginas 34 da dissertação.
A tradição filosófica assinala que através da dialética, de Idéia em Idéia
a alma ascende até chegar à Idéia de Bem, representada pela simbologia do
mito da caverna, na República (PLATÃO, s/ d: 267-272) e segundo Pessanha
(1996: 50). A Idéia de Bem como a superessência ordenadora do Cosmos,
para Reale (2004: 145) não é suficiente para solucionar a questão da
multiplicidade, pois Platão assinala a existência
de conexão e de exclusão que
implicam a existência de nexos estruturais entre as Idéias.
Por conseguinte, umas
Idéias se excluem e outras têm como condicionantes de sua existência outras
Idéias. Com isso, para Reale (Idem: 146):
Essas relações de exclusão não se limitam aos
contrários em si (como por exemplo par e ímpar), mas se
estendem a tudo o que é conexo a cada contrário com
relação ao outro, e vice-versa (o três é contrário ao par e ao
que é conexo com o par, e vice-versa): e isso vale tanto
para as Idéias tanto para as coisas que dela participam.
De acordo com esse raciocínio, Reale (Idem: 149-150) informa que
Platão percebeu
a existência de duplas de Idéias coligadas como gênero e espécie.
Nessa medida, a dialética teria dois modos de ação, a saber, a generalização
para que se atinja o que Reale (Idem: 151) chama de visão sinótica da Idéia em
questão e na distinção e divisão, no encalço das articulações rumo à Idéia
geral, demonstrando a existência de uma hierarquização das Idéias das mais
específicas às mais gerais.
Nesse sentido, Reale demonstra a existência de um problema na
concepção tradicional da teoria das Idéias que se caracteriza justamente na
explicação da relação necessária entre o uno e os muitos. Para introdução da
solução proposta pelo novo paradigma interpretativo, Reale (Idem: 157) sugere
que se parta da compreensão do que ele chama ser o modo de pensar dos
gregos. Para o autor, esse modo de pensar
consiste na convicção segundo a qual
explicar significa unificar.
(Grifo do autor)
Isto é, Platão e seus
contemporâneos, bem como os filósofos anteriores a eles, buscavam a causa
última de explicação necessária da multiplicidade do mundo e, nesse sentido,
assim se expressa Reale (Ibidem):
tentavam explicar a multiplicidade dos fenômenos relativos
ao cosmo justamente reduzindo-a à unidade de um
princípio, ou de alguns princípios, unitariamente
concebidos, e alcançava a expressão extrema (e,
justamente por isso, muito instrutiva) nas doutrinas dos
eleatas, que dissolviam a totalidade do ser,
desembocando num verdadeiro monismo radical. (Grifo do
autor)
Platão não fugiu ao espírito de sua época e a teoria das Idéias, mesmo
realizando certa redução do ltiplo, ainda guardava certa pluralidade, como
assinala Reale (Idem: 158):
Tenha-se presente que Platão admite Idéias não só para as
coisas que chamamos realidades substancias (homens,
animais, vegetais etc.), mas também para todas as
qualidades e para todos os aspectos das coisas
sinoticamente reagrupáveis (belo, grande, duplo, e assim
por diante), de modo que o pluralismo do mundo das
Idéias ( ou seja, o pluralismo das realidades inteligíveis)
se mostra digno de bastante consideração, como
Aristóteles, em passagem citada, conceituava.(Grifo do
autor)
Para Reale (Idem: 159), a teoria das Idéias não se constitui a instância
última da realidade:
O esquema de raciocínio que sustentava a
duplicidade de níveis de fundação metafísica é o seguinte.
Como a esfera do múltiplo sensível depende da esfera
das Idéias, assim, analogicamente, a esfera da
multiplicidade das Idéias depende de uma ulterior
esfera de realidade, da qual derivam as próprias Idéias,
e esta é a esfera suprema e primeira em sentido
absoluto. (Grifo do autor)
Ato contínuo, Reale informa que a mencionada esfera última seria a
dos Princípios Primeiros. A dúvida que resta a respeito deles é: por que Platão
admitiu dois Princípios e não um apenas?
Segundo Reale (2004: 162-164) nos informa:
A novidade de Platão, não no nível e ontologia das
Idéias (dado que nesse plano ele explica ainda o múltiplo
sensível com o outro múltiplo, o inteligível das Idéias), mas
no nível de protologia, está, justamente, na tentativa de
“justificação” radical última da multiplicidade em geral
em função dos Princípios do Uno e da Díade indefinida,
segundo um esquema metafísica bipolar.
Portanto, o problema do qual partimos resolve-se
deste modo: a pluralidade, a diferença e a gradação dos
entes nascem da ação do Uno, que determina o Princípio
oposto da Díade, que é multiplicidade indeterminada. Os
dois Princípios são, portanto, igualmente originários. O Uno
não teria eficácia produtiva sem a Díade, embora seja
hierarquicamente superior à Díade. (Grifo do autor)
Vale ressaltar que esses Princípios não seriam encarados como dois
exatamente, mas como uma espécie de síntese, uma vez que eles seriam
nulos isoladamente, conforme declara Reale (Idem: 165):
A ão do Uno sobre a Díade é uma espécie de
de-limitação, de-terminação e de-finição do ilimitado, do
indeterminado, do indefinido, ou, como parece que o próprio
Platão dizia, de igualização do desigual. Os entes que
derivam da atividade do uno sobre a Díade são, portanto,
uma espécie de síntese que se manifesta como unidade-na-
multiplicidade, que é uma de-finição e de-terminação do
indefinido e indeterminado. (Grifo do autor)
Logo, pelo que se depreende do exposto, a natureza platônica,
sinteticamente falando, seria dividida entre sensível e inteligível.
Analiticamente, no âmbito do inteligível, existiriam as Idéias e os Primeiros
Princípios. No entanto, Reale (Idem: 167-180), informa ainda, que haveria duas
outras dimensões naturais, a saber, meros Ideais e Números matemáticos
com a função específica de serem intermediárias às interações dos Princípios
para com as Idéias e destas para com o sensível.
Antes de tudo, Reale (Idem: 167; 168) esclarece que os chamados
Números ideais não são o que conhecemos como matemáticos, mas são o que
ele chama de metafísicos, isto é:
Os números ideais são, portanto, as essências dos
Números matemáticos e, enquanto tais, o “inoperáveis”,
ou seja, não podem ser submetidos a operações
aritméticas. Eles têm um status metafísico, deferente
dos números matemáticos, justamente porque não
representam simplesmente números, mas constituem
a essência dos números. [...] Os Números ideais
constituem, portanto, supremos modelos ideais.
eles representam de forma originária, isto é,
paradigmática, aquela estrutura sintética de unidade-
na-multiplicidade que caracteriza todos os diferentes
planos do real e todos os entes em todos os níveis. A
essência do Número ideal consiste numa determinação e
delimitação específica produzida pelo uno sobre a Díade,
que é uma multiplicidade indeterminada e ilimitada de
grande-e-pequeno.
Reale adverte que os Números ideais não se identificam totalmente
com as Idéias, mas possuem relações de estreita conexão. Para melhor
compreender as relações entre Números ideais e as Idéias, Reale (Idem: 170-
171) chama a atenção para um importante detalhe entre os gregos antigos:
Toeplitz demonstrou que para os gregos o número
é sempre pensado não tanto como número inteiro, ou seja,
como uma espécie de grandeza compacta, mas como uma
relação articulada de grandezas e de frações de
grandezas, de logoi, de analoghoi. Se é assim, o logos
grego mostra-se essencialmente ligado com a dimensão
numérica e significa, portanto, fundamentalmente, “relação”.
Consequentemente, para os gregos é totalmente natural
traduzir as “relações” em “números”, e indicar com os
números as relações, justamente por causa dessa conexão
subsistente entre número e relação.
Cada Idéia se situa numa posição precisa no mundo
inteligível, de acordo com a sua maior ou menor
universalidade e de acordo com a forma mais ou menos
complexa das relações que estabelece com as outras Idéias
(que estão acima ou abaixo dela). Essa trama de relações,
portanto, pode ser reconstruída e determinada pela
dialética, e, pelas razões explicadas, pode ser expressa
“numericamente” (dado, justamente, que o número exprime
uma relação).
Tal explicação torna inteligível as referências pitagóricas sobre a
identificação do princípio último constitutivo da natureza ser chamado de
número. Lembrando que Platão manteve contato com a Escola pitagórica na
Magna Grécia e que aquelas doutrinas muito influenciaram nosso filósofo,
vemos que Reale (Ibidem) completa a compreensão dessa dimensão da phýsis
platônica citando Gaiser:
A redução que das coisas concretas e perceptíveis pelos
sentidos sobe a os meros não é um processo de
abstração, mas um adensamento do conteúdo de ser da
realidade. As relações numéricas são o permanente
imutável, e por essa razão são, para Platão, o verdadeiro
ser que permanece em qualquer diferença ou mudança de
qualquer coisa individual. Assim, na sinfonia dos primeiros
números está originariamente contido todo o mundo.
Reale (2004: 173) explica a dimensão do que chama entes
matemáticos, que se localizariam entre os entes ideais e entes os sensíveis:
são imóveis e eternos, justamente como as Idéias (e os
Números ideais), e, de outro lado, existem muitos da
mesma espécie. Têm, portanto, ao mesmo tempo, um
caráter fundamental das Idéias e um caráter que é típico
das coisas sensíveis, e por isso são, justamente,
“intermediários” inclusive entre as realidades inteligíveis e
as realidades sensíveis, como veremos no Filebo e,
sobretudo, no Timeu.
Com estas características duais, os entes matemáticos e os Números
ideais compõem assim, as dimensões intermediárias entre as instâncias
referenciais máximas da natureza platônica, quais sejam o sensível, as Idéias e
a dos Princípios primeiros.
Nos pré-platônicos a questão da explicação última da realidade física
ficou caracterizada por duas posições que Reale apresenta como a posição dos
unicistas, definida pela doutrina eleata da unicidade do ser e a posição
contrária, a dos pluralistas, fundada no pensamento de Empédocles,
Anaxágoras e Demócrito. Estes últimos assumiram o múltiplo como base última
da natureza. Para Reale (2004: 162-163) Platão inovou a questão não com a
teoria das Idéias, mas no nível protológico, com a tentativa de “justificação”
radical e última da multiplicidade em geral em função dos Princípios do
Uno e da Díade indefinida segundo um esquema metafísico bipolar (Grifo do
autor). Sendo assim, o ser da natureza foi compreendido por Platão como uma
metáfora bipolar com características duais, opostas por complementaridade.
Coloco em questão assim a existência do dualismo platônico, uma vez
que através do novo paradigma interpretativo a existência de um dualismo
radicalmente irreconciliável entre o sensível e o inteligível é posto como
improvável sob dois aspectos básicos, a saber: 1 o cultural, pois o grego
comum contemporâneo de Platão apresenta uma percepção diferenciada da
nossa no que se refere à natureza e, quanto ao mero, facilmente identificável
nos escritos pré-socráticos e em poetas como Homero, Hesíodo e nos trágicos.
Nesse enfoque ainda, acrescento que Platão inovou a concepção tradicional
grega de phýsis por ter nomeado o que era compreendido por Hades ou Além
como mundo inteligível através da metáfora da segunda navegação
apresentada no Fédon, por meio da qual, em conjunção com a descrição do
mito de Er, na República, instituiu uma nova geografia da natureza. 2 Nesse
outro aspecto, o que põe em suspenso a visão filosófica tradicional sobre o
dualismo em Platão, é aquele que desloca o centro de gravidade do
fundamento último da natureza, das Idéias para os Princípios primeiros,
dissolvendo as aporias geradas pela teoria das Idéias e alcançando o objetivo
visado à época, isto é, identificar a realidade última produtora e mantenedora da
natureza.
Uma vez que os Princípios Primeiros ordenam os graus da realidade
natural através da conseqüência de sua síntese (Uno e Díade), a questão do
dualismo entre sensível e inteligível transforma-se de algo antes antagônico e
irreconciliável, para uma visão sinótica complementar e interativa por oposição,
tal qual se vê em Reale (2004: 139-140):
as realidades empíricas são sensíveis, ao passo que
as Idéias são inteligíveis; as realidades físicas são
mescladas com o não-ser, enquanto as Idéias são ser em
sentido puro e total; as realidades são corpóreas, enquanto
as Idéias são incorpóreas; as realidades sensíveis são
corruptíveis, enquanto as Idéias são realidades estáveis e
eternas; as coisas sensíveis são relativas, ao passo que as
Idéias são absolutas; as coisas sensíveis o múltiplas, ao
passo que as Idéias são unidade.
Com efeito, muitos estudiosos, repetindo ou
desenvolvendo de várias maneiras as críticas movidas por
Aristóteles [...], insistem fortemente nesse “dualismo”,
sustentando que a “separação” das Idéias das realidades
sensíveis, ou seja, a sua “transcendência”, compromete a
sua função de “causas”.
Mas, na realidade, trata-se de puro preconceito
teórico, a ser rigorosamente evitado, se se deseja
compreender Platão.
Observe-se inicialmente que as Idéias têm tanto de
“imanência” quanto de “transcendência”; fato que muito
freqüentemente é descuidado ou silenciado. Para Platão, a
transcendência das Idéias é justamente a razão de ser (ou
seja, o fundamento) da sua imanência. As Idéias não
poderiam ser a causa do sensível (isto é, a “causa
verdadeira”) se não transcendessem o próprio sensível; e,
justamente, transcendendo-o ontologicamente podem ser o
fundamento da sua estrutura ontológica imanente. Em
resumo, a transcendência das Idéias é, justamente, o
que qualifica a função que elas cumprem de “causa
verdadeira”. Confundir esses dois aspectos, ou nivelá-los
de algum modo sobre o mesmo plano, significa esquecer
inteiramente a segunda navegação” e os seus resultados.
(Grifo do autor)
O ato notável da abordagem realizada por Reale é a conjunção da
teoria dos Princípios Primeiros com as colocações feita por Platão no Timeu no
que se refere à identificação do Mesmo com o Uno e o Outro com a Díade. Tal
conjunção torna compreensível a afirmação de Platão no Fedro (s/ d: 174),
quanto à possibilidade de compreender a natureza da alma humana
conhecendo-se a natureza do universo, Princípios este muito difundido entre os
médicos da escola de medicina hipocrática.
Observa-se que a alma teria sido feita pelo Deus de maneira que tudo o
que é corporal tivesse a possibilidade de ser estendido para seu interior e,
desta maneira, a alma teria a capacidade de ajustar-se aos corpos, como
vemos no Timeu
(PLATÃO, s/d: 90-91; 100-101)
:
Quando toda a construção da Alma foi realizada ao
agrado de seu autor, este logo estendeu para o interior dela
tudo o que é corporal, e fazendo coincidir o meio do Corpo
e o da Alma, harmonizou-os (p. 90)
A Alma é então formada da natureza do Mesmo, da
natureza do Outro e da terceira substância. E composta
destas três realidades, move-se por si só em círculo. (p. 91)
Disse essas palavras e, retornando à cratera na qual
inicialmente havia misturado e fundido a Alma do Todo,
verteu os resíduos das primeiras substâncias e as misturou
aproximadamente do mesmo modo. Todavia, não havia
mais na mistura a essência pura e invariável, mas somente
a segunda e a terceira. Depois, tendo a tudo combinado,
dividiu num número de almas igual ao dos astros. (p. 100-
102).
Estaríamos diante de uma menção de Platão à noção de eidolon
(ειδολον) grego? Eidolon(u) era uma palavra grega que significava fantasma,
simulacro/imagem, figura, retrato/imaginação e segundo vemos em Isidro
Pereira (1990: 167) e Vernant (1990: 116 na nota 38), de seu texto Mito e
Pensamento entre os Gregos. Os eidolai eram utilizados pela religião grega
para substituir, nos funerais, os cadáveres das pessoas
que os parentes sabiam
estar mortas, mas que não foram encontradas ou de pessoas que haviam
desaparecido e, passado algum tempo, eram dadas como mortas. Algumas
famílias, em especial as esposas, inconsoladas, mandavam talhar em madeira
ou em pedra, em tamanho natural, um eidolon de seu cônjuge para através
dele, suprir sua ausência física no funeral e amesmo em casa, conforme o
caso. Tal prática funerária e cultual se baseava na crença de que todo homem
possuía uma alma que, após a morte, apresentava-se no Hades com as
mesmas características de quando viva e, no caso da ausência do cadáver, não
sendo possível sepultá-los, sua alma ficaria privada do culto dos ancestrais e,
carentes de descanso, não poderiam ter uma existência condigna com a sua
posição no mundo dos mortos.
Ficaria assim, a alma, presa entre os mundos dos vivos e dos mortos,
carente de alimento, vestuário, armas, presentes e preces pelo fato de estar
insepulta. Ora, dessa crença infere-se que havia certa similitude, se assim
podemos nos expressar, entre o corpo sensível (corpo tal qual o entendemos) e
o corpo inteligível
8
, ou eidolon (através do qual a alma se faria conhecer na
figura de sua pessoa), de tal modo que a alma manteria certas necessidades
típicas do vivente e atuaria na phýsis como um deus epictônio
9
(επικτονιο -
subterrâneo), influindo nas decisões dos chefes de genos (famílias) nas polies
(cidade-estado), conforme atesta Coulanges (1998: 7-28) ser a crença comum
relacionada aos cultos da hestia (Lar, lareira doméstica) e dos mortos.
Com o objetivo de facilitar o entendimento através de uma
nomenclatura que expresse da melhor maneira possível o que compreendi dos
textos de Platão com base no novo paradigma interpretativo das Escolas de
Tübingen-Milão, doravante chamarei corpo inteligível ao eidolon, duplo,
enquanto a alma se encontra no Hades ou mundo inteligível; e corpo sensível,
àquele através do qual a alma encarnada se faz presente e perceptível aos
sentidos.
8
Esta inferência se sustenta não apenas com os argumentos antropológicos e historiográficos a
respeito das crenças arcaicas e clássicas que Coulanges citado nesse parágrafo demonstram,
mas também nos documentos historiográficos de Platão, isto é, no Timeu (s/ d: 85), República
(s/ d: 406-415) e no don, como um todo e na argumentação desenvolvida nas páginas 31-38
dessa dissertação, nas quais sugiro que o leitor se remeta para compreender o tema da
representação da corporeidade inteligível da alma em Platão com base na tradição religiosa
helênica.
9
Deus subterrâneo. O morto, ao ser sepultado na Grécia, por seus familiares, era venerado por
eles, através do culto doméstico, religião primordial entre os povos hindo-europeus, ramo ao
qual os helenos estavam ligados ancestralmente. Tal culto recebeu representação com o
ingresso da deusa Hestia (lareira doméstica), no panteão olímpico quando os Micênicos
ascenderam. O Lar se localizava no centro das casas e inicialmente os mortos eram enterrados
embaixo dela. Posteriormente, o túmulo foi localizado no exterior da casa. Era responsabilidade
das mulheres a manutenção do fogo do Lar que simbolizava a vitalidade existencial do genos. O
sacerdote deste culto era o patriarca da família que oficiava livremente estabelecendo seus
mistérios, cânticos e dias sacros. O Lar era considerado o “umbigo” de vinculação do homem à
terra e simultaneamente, o portal dimensional através do qual os ancestrais e os vivos
mantinham amplo e profundo contato. Nada de era decidido sem consulta prévia ao Lar, desde
a ignação de um novo membro do genos (filho ou escravo), mulheres, por casamento, até as
decisões econômico-militares. Este costume foi generalizado com a revolução do século VII
a.C. com a criação das polis, onde existia a hestia koiné o Lar comum a todos os cidadãos na
Acrópole e passou a Roma até a inserção gradual do cristianismo.
Vale recordar que por corpóreo os antigos entendiam tudo o que era
compreendido e restrito em limites específicos, rígidos, como atesta Reale
(2004: 126):
é bom recordar o seguinte. “Corpo” (σωµα), em
grego, originariamente (por exemplo, em Homero)
significava “cadáver”. Sucessivamente, a área semântica do
termo incluiu o corpo inanimado em geral. Enfim, a área
semântica do termo incluiu também objetos inanimados, os
quais tem em comum com o corpo duas propriedades: a
perceptibilidade (a visibilidade), por um lado, e o ser
encerrado em limites determinados mais ou menos
rígidos, por outro. É justamente a esta acepção do termo
“corpo” que se liga a acepção mais madura do termo
“incorpóreo” no âmbito do pensamento pré-socrático:
“incorpóreo” significa o que não é palpável, nem visível, o
que é privado de materialidade, de limitações e de
confins, portanto, in-finito.
Platão inova radicalmente esse significado: o
incorpóreo, para ele, transcende não só as características
dos corpos físicos, mas a própria fonte material dos corpos
físicos; transcende o próprio uno-todo-infinito em sentido
melissiano e vem a coincidir com a causa não-física das
coisas físicas. O incorpóreo torna-se uma forma
inteligível e, portanto, ser de-terminado que age como
causa de-terminante, ou seja, a causa verdadeira do
real. (Grifos do autor)
Nessa medida, a corporeidade inteligível da alma humana será
compreendida através da analogia do corpo inteligível para com o corpo
sensível, sendo em realidade, para Platão, o primeiro a razão de ser do
segundo. Além disso, considerando que na constituição íntima substancial e de
propriedades da alma humana, a terceira substância, resultante do produto do
Mesmo e do Outro tem a capacidade de intercomunicação (interação)
simultânea, entre tudo o que é inteligível e sensível; o que, em decorrência das
propriedades oriundas da porção do Outro sob o influxo catalisador do Mesmo,
a terceira substância seria aquela que proporcionaria a vinculação da alma ao
estado de relativa corporeidade por encerrá-la, mesmo que em menor escala, a
certa limitação fixa em contornos mais ou menos fixos.
Por conseguinte, enquanto no Hades, a alma humana é reconhecida
com as características que lhe foram próprias em sua última existência
encarnada, através das delimitações estabelecidas por seu corpo inteligível de
maneira a caracterizá-la como a alma de Aquiles, ou de Heitor, por exemplo,
capaz de serem reconhecidas por outras almas que de suas companhias
privaram no mundo dos vivos.
Uma vez que a ação racional da alma teria início por ocasião de sua
vinculação ao corpo, conforme se vê no Timeu
(PLATÃO, s/d: 91; 105; 149)
:
e, pelo efeito de todas essas afeições, a alma,
quando de seu nascimento, quando acaba de ser
encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente
irracional. (p. 105)
Estes [os filhos do Deus], imitando seu autor, e tendo
recebido dele o princípio imortal da alma, envolveram esse
princípio com o corpo mortal que o acompanha; deram-lhe
por veículo todo o corpo. Depois, conformaram nele uma
outra espécie de alma, a espécie mortal. Esta comporta em
si as paixões temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este
poderoso atrativo para o mal, depois as dores. Causa de
que abandonemos o bem, e depois ainda o medo e a
pusilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos
conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar.
Misturaram tudo isso à sensação irracional e ao amor pronto
a tudo arriscar. E destarte compuseram pelos
procedimentos necessários a alma mortal. Mas receando
ainda macular o princípio divino, e na medida em que esta
mácula não era absolutamente inevitável, separaram da
alma imortal o princípio mortal e o alojaram numa outra
parte do corpo. Para tanto, dispuseram um como que istmo
ou limite entre a cabeça e o peito e colocaram entre eles o
pescoço, a fim de separá-los. É no tronco, onde se chamou
tórax, que instalaram a espécie mortal da alma. E como
desta alma uma porção era por natureza melhor e a outra
pior, dividiram ainda em dois alojamentos a cavidade do
tórax; separaram-no como se separa o apartamento das
mulheres e o dos homens e dispuseram entre eles o
diafragma como repartição. A alma que participa da
coragem e do ardor guerreiro, aquela que deseja a vitória,
alojaram mais perto da cabeça, entre o diafragma e o
pescoço. Isto, para que pudesse escutar a razão e, de
acordo com ela, conter pela força a raça dos desejos
quando esta último, rebelde às ordens e às prescrições que
a razão lhe envia do alto da cidadela, recusa submeter-se
de bom grado. (p. 149)
E na medida que entra em contato com um objeto
que possua uma substância divisível ou com um objeto cuja
substância seja indivisível, ela proclama, movendo-se por
todo o seu ser próprio, a cuja substância ele é idêntico e da
qual ele difere. Mas difere, e relativamente a que, sob que
relação, de que maneira e em que circunstâncias ele se
remete às coisas que devem ter em suas relações mútuas
uma outra dessas determinações ou modalidades, bem
como suas relações com as coisas que se conservam
sempre idênticas. Ora, quando um raciocínio veraz e
imutável, relativo à natureza do Mesmo ou à do Outro, é
acusado, sem ruído nem eco, dentro daquele que se move
a si mesmo, esse raciocínio pode ser formulado em relação
às coisas sensíveis. (p. 91)
Dado o acima exposto, constata-se que a alma o foi criada com a
ação racional, ao contrário, esta é atribuída à alma apenas após sua vinculação
a um corpo mortal. A partir deste momento, Platão informa que os deuses
realizam a mencionada ligação da alma a um corpo e nele conformam um outro
tipo de alma mortal. A alma mortal contém o princípio das sensações e da
chamada alma imortal, separaram a mortal e as localizaram em partes
diferentes do corpo sensível, quais sejam: na cabeça, instalaram a alma imortal
e no tórax, a mortal. Na alma mortal os deuses realizaram nova partição e a
localizaram no diafragma. Que nomes específicos Platão a essas três
almas?
A que Platão chama de alma imortal, por sua localização na cabeça,
chama de alma racional (noûs). A alma que ele chama de mortal e que foi
dividida em duas seções, o filósofo chama de impetuosa (thýmos) a que ficou
localizada no tórax e de apetitiva (pneyma), a que foi posta no diafragma. Pelo
que se depreende dos textos, em especial no Timeu, Fedro, Fédon e na
República, essa configuração trino-anímica existe apenas enquanto a alma se
encontra encarnada. Após a morte do corpo sensível, no inteligível, apenas o
noûs acompanha a alma até a necessidade de nova existência sensível. A
alma mortal, pelo que se constata, é dispersa com a morte.
Como visto anteriormente, a alma humana seria feita com as sobras de
substâncias da formação da chamada Alma do Mundo e manteria certa
semelhança a esta, porém, por falta da substância do Mesmo seria constituída
então, pelo Outro e o misto do Mesmo com o Outro; logo, seria feita por duas
substâncias ou princípios substanciais. Sendo feita estruturalmente desta
maneira, seria necessariamente um misto substancial, mas não um indivíduo
caracterizado por uma consciência, responsável por seus atos e que se
reconheceria como sujeito do conhecimento, ativa ou passivamente, como se
vê no Timeu (PLATÃO, s/ d: 80):
E por outra, que o intelecto pode nascer unido
à Alma. Em virtude dessas reflexões, após ter colocado o
Intelecto na Alma, a Alma no Corpo, formou o Cosmos, para
dele executar uma obra que essencialmente fosse a mais
bela e melhor. Assim pois, nos termos de um arrazoado
provável, deve-se dizer que o Cosmos, que é
verdadeiramente um ser vivo provido de Alma e Intelecto, é
assim gerado pela ação da Providência de um Deus.
Tal condição (ou algo dessa condição, considerando-se que os gregos
não disponham de percepção de sua individualidade e subjetividade
10
),
ocorreria somente a partir do momento em que o intelecto, compreendido como
o princípio de ordenação do cosmos e, por extensão, a faculdade do pensamento
humano, enquanto esta reflete a ordem cósmica
, conforme conceituam Japiassu &
Marcondes (1993: 134) em relação à concepção clássica grega do termo, é
submetida ao exercício e esforço da contemplação no mundo inteligível,
objetivando o aperfeiçoamento de sua capacidade intelectiva e o acesso à
sabedoria para alcançar o que Platão chama de unidade racional dentre as
sensações, como se vê no Fedro (s/ d: 154):
(Fedro) SÓCRATES: - Uma lei estabelece que, no
primeiro nascimento, a alma não entra no corpo de um
animal; [...] A alma que nunca contemplou a verdade não
pode tomar a forma humana. A causa disso é a seguinte: é
que a inteligência do homem deve exercer segundo aquilo
que se chama Idéia; isto é, elevar-se da multiplicidade das
sensações à unidade racional. Ora, esta faculdade não é
mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa
alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas
suas evoluções.
Pelo que Platão afirma, o intelecto foi colocado pelo Deus, na Alma do
Todo para que pudesse a Alma atingir o que o Deus objetivava. Ato contínuo,
projetando essa operação para a alma humana construída pelos deuses, o
intelecto aparece como um atributo concedido às almas para que se relacionem
inteligivelmente com os objetos de conhecimento sensíveis e inteligíveis
conforme o caso. Em outra passagem do Timeu vemos a confirmação de que
apenas a alma é capaz de possuir um intelecto e de exercer suas
potencialidades, uma vez que Platão (s/ d: 109) indica que os elementos físicos
fogo, água, terra e ar, por sua natureza constituída pelo Outroo são capazes
de possuí-la, como vemos a seguir:
[...] Pois de todos os seres o único ao qual cabe
possuir a inteligência é a alma, deve-se-o proclamar, e é
invisível, ao passo que o fogo e a água e a terra e o ar,
todos os corpos, são naturezas visíveis.
10
Para aprofundamento sobre a questão da subjetividade e concepção de indivíduo na Grécia
Arcaica e Clássica remeto o leitor a Mondolfo (1970: 10-120).
Seria uma referência de Platão de algo semelhante a uma descrição
minuciosa de uma substância (a alma humana) que em dado momento de sua
criação recebe o intelecto como instrumento de ordenação do cosmo com a
faculdade de pensar nele acoplado? Se assim é em Platão, estaríamos diante
de algo como uma substância pensante, como mais tarde enunciaria
Descartes?
Considerando o que Platão sugere no Timeu (s/ d: 105):
[...] e, pelo
efeito de todas essas afeições, a alma, quando de seu nascimento, quando acaba de
ser encadeada a um corpo mortal, é de início e primitivamente irracional.
Percebe-se
que a presença do intelecto, em sua função ordenadora do Cosmos, na alma,
não é garantia da existência e do uso da racionalidade. Ora, pelo que se
depreende do que Platão diz em outro passo do Timeu (s/ d: 181), verificando-
se à alma racional e localizando-a no corpo, a razão tal como o intelecto,
parece ser um dos atributos da alma, conforme se vê abaixo:
[...] A respeito da espécie de alma que é a principal
em nós [noûs], deve-se fazer a seguinte observação. Deus
dela nos fez presente, como de um gênio divino. É o
princípio o qual dissemos que habita a parte mais elevada
de nosso corpo. Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente
que esta alma nos eleva acima da terra, em razão de sua
afinidade com o céu. [...]
O que se confirma, a meu ver, por outra referência de Platão, feita na
República (s/ d:169), na qual o autor diferencia o que chama de princípio
racional do princípio desejante, isto é, o noûs do binário thýmos-pneyma,
conforme se vê abaixo:
(A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito
admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra,
chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio
racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou
sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou
apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos.
Em outra obra, o Sofista, Platão (s/ d: 140) especifica a distinção entre os
princípios racional e apetitivo assinalando seus objetos próprios de atuação,
conforme segue:
(Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por
meio da sensação, que estamos em relação com o
devenir; mas pela alma, por meio do pensamento, é
que estamos em comunhão com o ser verdadeiro, o
qual dizeis vós, é sempre idêntico a si mesmo e
imutável; enquanto que o devenir varia a cada
instante.
Assinala Platão que o pensamento, outro elemento atribuído à alma
humana, é como que uma espécie de intermediário entre o intelecto e as
informações fornecidas pelo inteligível e/ou sensível. No entanto, no Mênon
(PLATÃO, s/ d: 63), o autor informa que a razão exerce na alma o papel de juiz
e critério necessário para que a alma atinja a felicidade, tendo como delimitador
ao seu não uso a infelicidade conseqüente de se conduzir conforme a opinião,
como se vê nas palavras de Sócrates:
Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto,
ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma
quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a
razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.
Não sei exatamente aferir se Platão em sua época e em seu modo
helênico de pensar e experienciar o mundo concebeu a possibilidade de inferir
a existência de algo como uma substância pensante que tinha o pensamento, a
inteligência (noûs, decorrente do intelecto nela implantado pelos deuses) e a
razão como instrumentos, verdadeiros atributos acoplados à alma humana em
sua substancialidade constitutiva, descrita no Timeu, contudo é fato que a
descrição platônica sugere algo do gênero.
Sem maiores desdobramentos histórico-antropológicos que nos fariam
dispersar da temática ensejada na dissertação, vale a pena recordar que a
Grécia Clássica é produto de uma série de transformações sociais, políticas e
culturais que tiveram seu início aproximado, em torno do século VIII a. C. com a
criação da polis (cidade-estado), a reintrodução da escrita através da
incorporação do alfabeto siríaco-fenício com todas as conseqüências que
decorrem das mudanças mentais e sociais oriundas da passagem de uma
tradição oral para a tradição escrita, com todas as implicações e adaptações
tecnológicas necessárias a tal transposição aproximadamente na virada do
século IV para o III a. C..
O estudo dos efeitos da reintrodução da escrita na sociedade grega é
extenso e não cabe em nossa atual pesquisa, o que nos faz sugerir ao leitor
interessado, que consulte helenistas como Detienne (1998: 48-84; 85-119;
1988), Havelock (1996: 11-44; 87-118; 187-218; 233-272; 327-356), Vernant
(1998; 1990), Jaeger (1995: 190-229; 230-249; 335-440; 763-989) e Mondolfo
(1970: 10-120) e Reale (2004). Nesses se percebe que a linguagem racional,
compreendida como um modo específico de representar e estruturar o mundo
em detrimento do que era usual socialmente, e efetivamente presente até a
época de Platão, isto é, a linguagem oral de fundo mítico e caráter eficiente,
representada pelos poetas.
Da palavra-diálogo, um dos modos discursivos entre os helênicos no
período anterior ao da reintrodução da escrita entre os séculos IX a. C.
(HORTA, 1970: 49) e VIII a. C. (DETIENNE, 1998: 59-60), emergiu a noção de
logos como discurso caracterizado pela eficiência comunicativa e liberalidade
normativa antes de sua codificação por Aristóteles. Ora, o discurso racional
para Platão seria expressão da alma que teria seu fundamento justamente em
sua parte que comanda, governa, intelige e se alimenta.
A consciência seria gerada pelo uso da razão e dos demais atributos da
alma e, nesta medida, a consciência seria a verdadeira realidade insubstancial
da alma que através dos tempos, exercitada na contemplação das realidades
verdadeiras e do Ser Absoluto, desenvolveria a felicidade como fruto da
harmonia da parte divina que haveria na alma. É algo a ser refletido e
pesquisado em outro trabalho.
Declara Platão que a alma habitaria o Hades, enquanto desencarnada,
procedente do mundo dos vivos e, contrariamente, habitaria o mundo dos vivos,
procedente do Hades, como é informado no Fédon (PLATÃO, s/d: 60):
(Fédon) SÓCRATES: - Há, pois, acordo entre nós
ainda neste ponto: os vivos não provém menos dos mortos,
que os mortos dos vivos, ora, assim sendo, haveria ,
parece, uma prova suficiente de que as almas dos mortos
estão necessariamente em alguma parte, e que é de que
voltam para a vida.
Vale lembrar que o número de almas para Platão seria limitado à razão
diretamente proporcional ao número de astros da phýsis, e, desta maneira, os
mundos dos mortos e dos vivos se auto-alimentariam, patenteando-se assim, o
princípio da palingenesia como elemento essencial de retro-alimentação da vida
nos seus dois planos existenciais interagiriam e complementar-se-iam
equilibradamente.
É necessário atentarmos para o fato de que o Hades seria uma espécie
de duplo do mundo dos vivos (ou talvez, quem sabe o contrário?), e que as
ações, escolhas e omissões das almas encarnadas se refletiriam causalmente
no seu estado futuro, após a morte do corpo sensível. Desta maneira,
diferentemente da tradição homérica, que atribuía às almas uma inconsciência
de si e seu redor, as almas em Platão são diretamente responsáveis por seus
atos e necessariamente, por sua felicidade ou infelicidade futuras, como é visto
no Fédon (PLATÃO, s/d: 70):
(Fédon) SÓCRATES: - E é perfeitamente claro,
para cada um dos outros casos, que o destino das
almas corresponderá às semelhanças com o seu
comportamento na vida?
CEBES: - Bem claro; e como não haveria de ser
assim?
SÓCRATES: - Os mais felizes [...] serão
aqueles cujas as almas hão de ter um destino e lugar
mais agradáveis, serão aqueles que sempre
exerceram essa virtude social e cívica que nós
chamamos de temperança e de justiça e às quais eles
se formaram pela força do hábito e do exercício, sem
o auxílio da Filosofia e da reflexão?
Temos que considerar o que Platão declara quanto ao que chama vício
da alma, que segundo ele, não seria voluntário, mas uma disposição da
educação ou do corpo sensível como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d: 176):
Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de
dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às
pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente,
faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso
voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição
maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o
homem vicioso se torna o que é.
Para Platão, citando Ésquilo em A República, a alma assemelhar-se-ia
a um campo a ser semeado:
[...] cultivando em sua mente o solo fecundo em que
germinam os prudentes desígnios.
(PLATÃO, s/d: 57). Ora, se é um campo a ser
semeado, alguém arroteará a terra, adubará, lançará as sementes de alguma
maneira e zelará até a colheita. Conforme visto acima, as almas influenciariam
e seriam influenciadas umas pelas outras e nesta medida seriam,
simultaneamente, terra e lavrador constantemente. Daí a necessidade do
máximo cuidado para com a formação educacional da alma, que à época de
Platão ainda era predominante e fundamentalmente baseada na oralidade, com
crescentes acessos à escrita, para que não ficasse abandonada a qualquer
preguiçoso que a corrompesse por maus exemplos e palavras.
Sendo a alma também comparada à polis por Platão, que era dividida
em três classes, quais sejam, os comerciantes, trabalhadores braçais e
artesãos, os guerreiros e os guardiões, a alma seria explicada como sendo
formada por três partes, quais sejam, aquela que aprende ou raciocina (noûs), a
que se encoleriza ou age por impulso (thýmos) e a apetitiva ou vegetativa
(pneyma) como se vê na República (PLATÃO. s/d: 162-163):
(A República) SÓCRATES: - Eis, ó varão admirável!
Que se nos depara neste momento um pequeno problema a
cerca da natureza da alma: se ela possui em si esses três
princípios ou não.
Não nos será forçoso reconhecer comecei que
em cada um de nós existem os mesmos princípios e modos
de ser que na cidade? Pois de onde lhe viriam eles senão
de nós mesmos? Considera a índole colérica e arrebatada:
seria ridículo pensar que nas cidades a que ela é atribuída,
como as da Trácia, da Cítia e em geral das regiões
setentrionais, essa qualidade não lhe venha dos indivíduos.
E o mesmo se pode dizer do amor ao saber, que é
característica especial de nossas regiões, e da avareza,
que costuma ser assacada aos naturais da Fenícia e do
Egito.
Tal qual a polis, essas partes da alma se responsabilizariam, enquanto
e somente enquanto encarnada, por áreas e funções correspondentes aos
corpos físico e inteligível, quais sejam: a racional, localizar-se-ia na cabeça
(Platão foi o primeiro a sugerir que o cérebro era a sede da alma racional indo
contra a tradição médica helênica não hipocrática, que a localizava no fígado).
Sua função seria a de gerir parcimoniosamente, sob o ideal de sophrosyné, as
demais partes da alma, manter a saúde dos corpos e do conjunto anímico
(pneyma e thýmos), nutrindo-as e exercitando-se como um todo; se chama
alma noética ou simplesmente noûs como vemos em Timeu (PLATÃO, s/d:
181):
A respeito da espécie de alma que é a principal em
nós, deve-se fazer a seguinte observação. Deus dela nos
fez presente, como de um gênio divino. É o princípio o qual
dissemos que habita a parte mais elevada de nosso corpo.
Ora, podemos afirmar mui verdadeiramente que esta alma
nos eleva acima da terra, em razão de sua afinidade com o
céu.
A seguinte seria a que se encoleriza ou tem características de
impetuosidade, impulsividade e que se localizaria no tórax, mais
especificamente, no coração. Sua função seria a de auxiliar o noûs a
administrar as duas outras partes, defendendo-a contra assaltos e distúrbios
internos. Equivaleria na cidade-estado à função do exército de cidadãos. Platão
a chama de thýmos. Ela não mostra características de auto-suficiência como o
noûs, em vista de ser propensa à hybris (desmedida), como vemos em A
República:
SÓCRATES: - exprimindo-se assim, é evidente que ele pensa em duas
coisas distintas, uma a increpar a outra: o princípio que raciocina sobre o bem e o mal
contra o que se encoleriza sem raciocinar.
(PLATÃO, s/d: 171).
A terceira parte da alma seria a apetitiva ou vegetativa, que se
localizaria no complexo sistêmico corporal sensível situado no baixo ventre,
como se vê na República e no Timeu respectivamente:
(A República) SÓCRATES: - Então nos é lícito
admitir que se trata de duas coisas diferentes uma da outra,
chamando àquilo com que o homem raciocina o princípio
racional da alma, e àquilo com que deseja, sente fome ou
sede e é perturbada pelos demais apetites, o irracional ou
apetitivo, afeiçoado a toda sorte de prazeres e excessos.
(PLATÃO, s/d: 169)
A parte da alma que tem o apetite do comer e do
beber, e de tudo o que o corpo tem necessidade natural, os
deuses alojaram na região que se estende depois do
diafragma, e que é limitada pelo umbigo. Em todo esse
espaço organizaram uma como que manjedoura para a
nutrição do corpo. E ligaram esta parte da alma, como
uma besta que deve ser bem alimentada, para a
preservação da espécie humana. É então a fim de que,
saciando-se sempre perto de sua manjedoura, situada o
mais longe possível da parte que delibera, e causando-lhe o
mínimo possível de transtorno (PLATÃO, s/d: 151)
A função da pneyma seria a de produzir energia, substâncias e riquezas
às demais partes da alma. Corresponderia às classes produtivas que não se
dedicavam à guerra nem à gestão. A energia que produzisse seria importante
para a manutenção do corpo sensível e devido a isso, e à semelhança com o
conceito primitivo de pneyma (sopro vital, vento, espírito, alento), que envolveria
a noção de vitalidade, identificamo-lo com o do princípio apetitivo da alma. É
importante assinalar que alma apetitiva seria considerada por Platão como alma
mortal, isto é, a parte do complexo anímico que se dissolveria no ambiente após
escapar, pelo ferimento do corpo sensível ou pelas narinas e boca, por ocasião
de morte natural, no Timeu (PLATÃO, s/d: 149):
Depois, conformaram nele uma outra espécie de
alma, a espécie mortal. Esta comporta em si as paixões
temíveis e inevitáveis. De início o prazer, este poderoso
atrativo para o mal, depois as dores, causa de que
abandonemos o bem, e depois ainda o medo e
pulsilanimidade, conselheiros estúpidos, o desejo surdo aos
conselhos, e enfim a esperança, fácil de se decepcionar.
É uma informação capital na medida em que se apresentaria como elemento
semi-sensível e semi-inteligível simultaneamente, e elo possível entre o corpo
inteligível e o corpo sensível.
Platão não é o primeiro a se referir à existência da pneyma como sopro
vital na Antigüidade helênica. Outros pensadores pré-socráticos já a conheciam
e, conforme se percebe, em analisando os textos desses filósofos fisicistas em
Kirk, Raven e Schofield (1994: 73-98, 145-166, 198-221, 223-248, 293-338 e
339-368),quando se referem aos filósofos como Tales de Mileto, Anaxímenes
de Mileto, Heráclito de Éfeso, Pitágoras e Filolau de Crotona e Empédocles de
Agrigento, que já o mencionavam em suas teorias.
Além dessa estrutura trina, isto é, alma noética, impetuosa e apetitiva,
vê-se que em Platão, a alma apresentaria ainda variantes comportamentais
elementares à semelhança dos governos das cidades-estados helênicas. Tal
comportamento seria definido sobre a base psicológica estabelecida pela
procisão no céu da verdade, ao seguir a alma um dos deuses do panteão
olímpico:
Que parece haver tantas formas de alma quantas são as formas distintas de
governo.
(PLATÃO, s/d: 178)
Estas disposições comportamentais, a saber, monárquica, aristocrática,
oligárquica, democrática e tirânica seriam contingentes e francamente
dependentes de dois fatores essenciais: o primeiro, a vontade da alma em
aderir a eles ou não; o segundo, da formação recebida pelos pais e da
sociedade onde a alma encarnaria por meio da educação, como visto no Timeu
(PLATÃO, s/d: 176):
Pois ninguém é vicioso voluntariamente. É pelo efeito
de qualquer disposição maligna do corpo ou de uma
educação mal regrada que o homem vicioso se torna o que
é.
Estas características da alma seriam contingentes e como tais,
mutáveis. Porém, determinariam sua maneira de encarar a sua própria
natureza, sua posição humana na sociedade e o tipo de comércio que viria a
estabelecer com a sabedoria, riquezas e prazeres do corpo. Isto por causa da
influência profunda que a cultura exerceria na forma de ser e de se relacionar
com a sociedade e com a phýsis. Afinal, a Grécia Clássica não era uma massa
cultural uniforme, mas sim composta por etnias aparentadas, em diferentes
níveis de desenvolvimento cultural, embora aparentados pela língua.
Devido a sua natureza, a alma é objeto de prazeres que lhe são
próprios e que estão vinculados ao modo pelo qual a alma os utilizará,
enquanto encarnada, como se na República de Platão (s/ d: 229):
Aquele
cujos desejos o conduzem para o saber sob todas as suas formas se entregará
inteiramente aos prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo
verdadeiro e não fingido.
Como último traço a assinalar sobre a alma, nos referimos ao que
Platão indica na República:
[...] O que eu queria fazer notar era isto: que em todos
nós, ainda nos mais morigerados, existe uma espécie de desejo temível, selvagem e
contrário a toda a lei, é essa a que se manifesta nos sonhos. [...]
(PLATÃO, s/d: 346).
Platão está se referindo à existência de desejos terríveis, selvagens e contrários
a toda lei e que eclodiriam, implodindo as formas da alma relacionar-se consigo
mesma e com as outras na sociedade políade.
É de conhecimento de todos, os trabalhos de Michel Foucault em sua
trilogia História de Sexualidade, a saber, no volume I, Vontade de Saber (1998),
no volume II, O Uso dos Prazeres (1998) e no volume III, O Cuidado de Si
(1985: 13-14), em especial, nesta última, o autor descreve como os antigos
lançavam mão da oniromancia (arte de interpretação dos sonhos), em seu dia-
a-dia, bem como a consulta à hestia, antes de tomarem decisões que
consideravam relevantes, confirmando Coulanges (1998: 7-28) em relação ao
culto dos ancestrais. Era uma prática muito comum e regulamentada através de
tratados e que contava com profissionais especializados nesta arte.
Neste sentido, observa-se que Platão não deixa de lado essa
importante prática social em suas observações sobre a alma e suas relações
sociais, uma vez que ela manteria contato com outras almas encarnadas. O
íntimo contato com seus ancestrais através da stia e a resposta dos deuses
olímpicos ou epiktônios seria essencial para a manutenção e a prosperidade do
genos (família). No entanto, tal prática, como atesta Foucault, não era exclusiva
dos chefes de família. Homens, mulheres, crianças, escravos e velhos,
sonhavam e, nesta medida, seriam também, porta-vozes possíveis dos deuses,
individual e coletivamente.
O fato é que Platão patenteia tal prática observando que em muitos
momentos ela também se apresenta como manifestadora dos desejos mais ou
menos harmoniosos de quem sonha. Em certo sentido, poderia expressar o
desequilíbrio desta alma, dando mostras de sedição íntima em sua estrutura
trina, isto é, alguma revolta da pneyma ou thýmos ou simplesmente o descaso
para com a função primordial do noûs, que parece ser a opção mais razoável.
Neste sentido, observa-se que os sonhos e sua interpretação são como uma
espécie de termômetro que possibilitaria aos antigos avaliar as condições da
alma no que tange não à sua formação, como quanto aos cuidados que
dispensaria a si na busca de melhor manifestar as qualidades cívicas previstas
na polis.
3.2 ATRIBUTOS DA ALMA
O pensamento é o primeiro dos atributos da alma ao qual Platão se
refere da coletânea de textos que estudamos. Ele é apresentado como o meio
de comunhão entre a alma e o Ser verdadeiro:
(Sofista) ESTRANGEIRO: - E é pelo corpo, por meio
da sensação, que estamos em relação com o devenir; mas
pela alma, por meio do pensamento, é que estamos em
comunhão com o ser verdadeiro, o qual dizeis vós, é
sempre idêntico a si mesmo e imutável; enquanto que o
devenir varia a cada instante. (PLATÃO, s/d: 140)
Através do discurso, a alma seria capaz de negar ou afirmar algo e,
desta maneira, exerceria o juízo que, através do pensamento, Platão chama de
opinião e esta, quando se apresenta por intermédio da sensação, ele chama de
imaginação, como vemos no Sofista (PLATÃO, s/d: 158):
(Sofista) ESTRANGEIRO: - Sabemos, além disso,
que há, no discurso, o seguinte...
TEETETO: - O quê?
ESTRANGEIRO: - Afirmação e negação.
TEETETO: - Sim, sabemos.
ESTRANGEIRO: - Quando, pois, isto se dá na alma,
em pensamento, silenciosamente, haverá outra palavra
para olda-lo além de opinião?
TEETETO: - Que outra palavra haveria?
ESTRANGEIRO: - Quando, ao contrário, ela se
apresenta, não mais espontaneamente, mas por intermédio
da sensação, este estado de espírito poderá ser
corretamente designado por imaginação, ou haverá ainda
outra palavra?
TEETETO: - Nenhuma outra.
ESTRANGEIRO: - Desde que há, como vimos,
discurso verdadeiro e falso, e que, no discurso, distinguimos
o pensamento que é o diálogo da alma consigo mesma, e a
opinião, que é a conclusão do pensamento, e esse estado
de espírito que designamos por imaginação, que é a
combinação de sensação e opinião, é inevitável que pelo
seu parentesco com o discurso, algumas delas sejam,
algumas vezes, falsas.
O pensamento é apresentado como diálogo da alma com ela mesma e,
desta maneira, observa-se o atributo da linguagem como canal de extensão e,
em certo sentido, de determinação do real através do juízo, do valor e de
realidade atribuídos aos seres pelas almas no processo do conhecimento em
sua relação com o mundo. É diálogo consigo na medida em que se através
do discurso interno e Platão assim o designa como pensamento por
apresentar-se como um dos fenômenos comunicacionais da linguagem na
alma. Neste sentido, a linguagem é, em certa medida, canal de extensão da
interioridade da alma, uma vez que pode vir a ser expresso verbal ou
graficamente e, nesta medida, garantir o contato intersubjetivo, bem como a
transmissão do conhecimento entre as almas.
Ainda segundo Platão, a imaginação seria a combinação da sensação
(corporal sensível) e da opinião que, segundo o autor, seria a conclusão do
pensamento. A opinião teria a característica de nem sempre ser verdadeira,
devido a seu ponto de contato com a sensação, visto que, segundo o autor, a
imaginação seria um misto de opinião e sensação na medida em que ele
considera este como conhecimento não confiável e passível de equívocos, ela
pode ser algumas vezes verdadeira e outras não.
Um dos principais atributos da alma percebido ao longo da pesquisa foi
o da liberdade. Não exatamente como compreendemos hoje, eivada de
individualismo, mas como autonomia deliberativa sobre determinadas
questões. Vemos, por exemplo, a liberdade da alma de se deslocar na abóbada
celeste por ocasião da procisão de contemplação da verdade. Além de
poderem escolher o deus que seguirão, teriam a liberdade de se deixarem levar
ou não pelo turbilhão da procisão, de lutarem contra sua natureza de maneira a
contemplarem melhor as Idéias ou simplesmente de passarem, conforme a
necessidade, por tal evento. Poderia optar por buscar ou não os alimentos que
lhe conviriam, isto é, os saudáveis e, consequentemente, possuiriam a
possibilidade de desenvolverem ou não suas asas e com isso, seriam ou não
felizes, como se vê no Fedro (PLATÃO, s/d: 153):
(Fedro) SÓCRTAES: - O mesmo se com todas as
almas que procuram receber o alimento que lhe convém.
Quando a alma, depois da evolução pela qual passa, chega
a conhecer as essências, esse conhecimento das verdades
puras a mergulha na maior das felicidades.[...]
A sorte das outras almas é, porém esta:
Elas tudo fazem para seguir os deuses, erguem a
cabeça do guia para a região exterior e se deixam levar
com a rotação. Mas, perturbadas pelos corcéis do carro,
apenas vislumbram as realidades. [...] Outras há, porém,
que nostálgicas seguem todas para cima, acompanhando a
rotação, incapazes de se levantarem, empurrando-se e
derrubando-se umas às outras, quando alguma pretende
passar adiante.
O sentido desta imagem parece-me, seria de que a alma no Hades ou
no mundo inteligível, teria certa dinâmica existencial focada no conhecimento
(sua alimentação própria) e este, por sua vez, se daria de maneira imediata,
isto é, direta, sem intermediação dos sentidos corporais físicos, desde que ela
fosse capaz de gerenciar suas tendências interiores.
O problema é que tal qual mencionamos acima, a respeito da escolha
que elas viessem a fazer por este ou aquele deus que a guiaria nas chamadas
revoluções divinas, parece-me que a alma viria a se incorporar das qualidades
e defeitos inerentes ao deus que optasse como patrono; uma vez que cada um
deles seria responsável por determinadas situações e fenômenos naturais
humanos ou o e, em verdade, esta escolha poderia ter a ver com a
capacidade de apreensão e compreensão das verdades eternas (Idéias) e sua
aplicação enquanto encarnadas. No aproximarem-se de sua essência
existencial, isto é, de sua parte divina com a qual se identificaria; fruto desta
identificação, ela se libertaria mais e mais da possibilidade de reencarnação por
ter robustecidas suas asas, isto é, sua capacidade intelectiva e a maneira pela
qual se utilizaria do fruto de suas intelecções na vida prática, isto é em seu dia-
a-dia no inteligível ou no sensível.
Outro atributo da alma seria o da memória que lhe permite recordar-se
das verdades eternas que contemplou antes da vida humana, bem como de sua
educação e sabedoria após a morte do corpo sensível. Vale ressaltar que numa
sociedade oral, em processo de reintrodução da escrita como a grega clássica,
a memória e suas técnicas mnemônicas eram de extrema valia. Mesmo após a
época de Platão, a oralidade era muito valorizada e isto porque havia uma
diferença fundamental entre a nossa forma de encarar a memória e suas
propriedades e a deles. Platão entendia que as coisas mais importantes e
sérias o deveriam ser postas por escrito, uma vez que não seria interessante
que pessoas desqualificadas tivessem acesso a informações privilegiadas.
Embora Platão houvesse escrito muitos diálogos e seus livros sejam os mais
completos que temos de seu período, a realidade é que ele confiava mais na
memória que na escrita, o que declara em vários pontos de sua obra.
A memória era encarada entre os gregos como uma divindade e
regente de um grupo de deusas chamadas Musai (Musas) e estas, por sua vez,
eram responsáveis, cada uma, por determinado aspecto do que chamaríamos
hoje de conhecimento e, através de sua evocação, os poetas manifestavam,
sob os auspícios de Mnemosyne (Memória), o conhecimento do passado,
nunca os do futuro. Desta maneira, a visão clássica de memória se distingue de
nossa atual visão funcional e cumulativa, pois se baseava primordialmente em
técnicas mnemônicas visando a evocação e experienciação grupal, por meio da
palavra-eficiente poética e dos poetas, os oficiantes das Musai. Era esta, assim,
a forma de preservação do passado e das experiências que os ancestrais
haviam preservado entre os helênicos.
Neste sentido, para Platão a memória aparece como um dos atributos
da alma. A ausência dela seria considerada como um mal anímico grave e
correspondente a colocar o homem em de igualdade com os animais, uma
vez que estes não teriam contato com as Idéias no mundo inteligível antes da
nascerem em nova existência, como se vê em Fedro (PLATÃO, s/d: 154-155):
(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou
a verdade o pode tomar a forma humana. A causa disso
é a seguinte: é que a inteligência do homem deve ser
segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-se da
multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora, esta
faculdade não é mais que a recordação das Verdades
Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou
a alma divina nas evoluções. [...]
Como já disse, a alma humana, dada a sua própria
natureza, contemplou o Ser verdadeiro. De outro modo
nunca poderia entrar num corpo humano. Mas estas
lembranças desta contemplação o se acordam em todas
as almas com a mesma facilidade.
A perfectibilidade seria outro atributo conexo à memória, pois seria
através do acúmulo de conhecimentos verdadeiros e de vivências sob o signo
da Justiça e do Bem, em uma vida o mais filosófica possível, que a alma se
desvincularia de suas imperfeições e identificar-se-ia com sua natureza divina.
No entanto, vemos o quanto esse atributo é conexo à liberdade, visto a alma
dispor de liberdade para reduzir o poder de sua vontade ante o objeto desejado.
Parece-me que a alma seria tragicamente livre em Platão e afirmo isso,
uma vez que ela seria livre para aderir ou não ao movimento necessário e
irrevogável das revoluções divinas, no u da verdade e uma vez que ela
precisaria da alimentação junto às Idéias verdadeiras. No entanto, neste
movimento coercitivo por natureza, a alma poderia esforçar-se por contemplar o
máximo possível, seguindo o deus de sua escolha ou simplesmente deixar-se-
ia levar, o que quase sempre acabaria na necessidade de reencarnar, uma vez
que perderia as fracas asas que desenvolvera. Desta feita, parece-nos que a
alma em Platão teria a liberdade como atributo de adesão aos movimentos
contingentes da Necessidade que a conduziriam fatalmente ao progresso e a
acumular conhecimentos verdadeiros, por contemplação ou experienciação,
enquanto encarnada.
Como se viu acima, a alma teria o atributo da liberdade de escolha
sobre os alimentos que sorveria. Desta maneira, vemos que no e através do
discurso/linguagem, a alma poderia habilmente curar-se ou envenenar-se,
conforme atesta Platão no Fedro (PLATÃO, s/d: 174):
(Fedro) SÓCRATES: - Tens de levar isso em conta
se quiseres, não pela prática e por meio de regras
empíricas, mas de acordo com a arte, dar a um saúde e
força, ministrando-lhe remédios e alimentos, e a outra
infundir a convicção que desejas, tornando-o virtuoso
mediante discursos e argumentos.
Num sentido oposto ao atribuído à memória, a alma possuiria outro
atributo que lhe afetaria por ocasião da reencarnação, qual seja, o
esquecimento, como se vê no Mênon (PLATÃO, s/d: 61):
(Mênon) SÓCRATES: - Portanto, se sempre e em
todos os tempos se encontra em sua alma a verdade das
coisas, não se segue daí que a alma é imortal? Se assim é,
caro Mênon, enche-te de coragem e procura sem receio,
sem descanso o que atualmente não sabes, isto é, aquilo
que perdemos a lembrança e esforcemo-nos para o
descobrir e de nos lembrarmos novamente dessas coisas.
São aparentemente paradoxais esses atributos. Ora, se a virtude da
memória manteria viva a origem, o destino e o conhecimento que a alma
adquiriu no Hades ou na Terra, porque ao reencarnar precisa beber do rio do
esquecimento, como se observa no Mênon?
(Mênon) SÓCRATES: - A alma, é pois, imortal;
renasceu repetidas vezes na existência e contemplou todas
as coisas existentes tanto na terra como no Hades e por
isso não há nada que ela não conheça! Não é de espantar
que ela seja capaz de evocar à memória a lembrança de
objetos que viu anteriormente, e que se relacionam tanto
com a virtude como com as outras coisas existentes. Toda
a natureza, com efeito, é uma só, é um todo orgânico, e o
espírito viu todas as coisas; logo, nada impede que ao
nos lembrarmos de uma coisa, o que nós, homens,
chamamos de “saber”, todas as outras coisas acorram
imediata e maquinalmente à nossa consciência. A nós
compete unicamente nos esforçarmos e procurar sempre,
sem descanso. Pois, sempre, toda investigação e ciência
são apenas simples recordação. (PLATÃO, s/d: 55)
Platão não expõe explicitamente sobre este tema, porém é depreendido
no Fedro e A República. No primeiro, ele se refere à procisão divina e à
ocasião em que a alma encarnaria pela primeira vez por não conseguir
acompanhar o ritmo das revoluções. Resumidamente a alma não teria ainda
experiências como ser humano e, nesta medida, não carregaria máculas de
suas ações. Após a primeira encarnação e segundo suas escolhas de vida,
precisaria pagar no Hades os males que cometeu ou receber as recompensas
por seus atos meritórios, na ilha dos bem-aventurados. Depois, poderia retornar
a uma nova existência através do fenômeno da metempsicose
11
.
Quando Platão, no Fedro, explica a procisão divina, menciona a lei de
Adrastéia, que diz que nenhuma alma que não houvesse contemplado as
Idéias poderia encarnar em corpo de homem. Em seguida afirma que após a
primeira vida humana, uma vez pago os débitos dos erros e recebido as
recompensas da vida justa, a alma poderia escolher renascer como homem ou
animal conforme seu desejo. Ora, se ela tivesse procedido a escolhas
equívocas que a levariam à intoxicação de seu eidolon ou produzido dano a
outrem que a fizesse envergonhar-se de seu passado, como encararia a si
mesma diante da reprovação da sociedade, uma vez que para eles (helênicos);
o indivíduo tinha consciência de si através do olhar do outro? Se o homem
grego tinha noção de si mesmo através do conceito que gozava perante seus
iguais, como poderia se adaptar, uma vez que a sociedade sabia o que fez ou
deixou de fazer? E como esta o encararia se nesta alma identificasse alguém
que fora nocivo a algum membro ou ao grupo? Desta maneira, o esquecimento
provisório se faria necessário como atributo viabilizador da renovação da alma
na figura de outra personalidade e suas novas oportunidades existenciais,
acredito.
Outro atributo de fundamental importância para a alma seria a razão,
conforme se em
Mênon: SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me
parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à
felicidade. Quando a razão não está a dirigir, dá-se o contrário.
(PLATÃO, s/d: 63)
Ela seria um atributo diretamente vinculado à alma e à sua disposição,
conforme a vontade. Aqui me refiro à razão como capacidade discursiva, isto é,
uma determinada linguagem através da qual a alma optaria por se expressar.
A inteligência, o noûs, seria outro dos atributos da alma, como é visto
no Timeu (PLATÃO, s/d: 109):
Ora, tudo isso faz parte das causas adjuvantes de
que Deus se serve como auxiliares para realizar na medida
do possível a idéia ótima. No entanto, todos estimam não
11
Metempsicose é uma doutrina reencarnacionista indo-européia que acredita na possibilidade
do retorno da alma humana em corpos animais para que estas paguem pelos erros cometidos
em outras existências. Há variações entre as versões indiana, egípcia e grega, embora
profundamente aparentadas. Além de Platão, outro representante grego desta concepção é
Pitágoras de Samos e, ao que parece, era um conceito relativamente popular à época.
serem causas acessórias, mas as principais de tudo. Sim,
são elas que fazem os corpos resfriar-se ou se aquecer,
contrair-se, dilatar-se e símiles coisas. Mas é impossível
que tais coisas tenham em algo o pensar e a razão. Pois de
todos os seres o único ao qual cabe possuir a inteligência é
a alma, deve-se-o proclamar, e é invisível, ao passo que o
fogo e a água e a terra e o ar, todos os corpos, são
naturezas visíveis.
O noûs parece ser distinto da razão, pois como vimos anteriormente
quanto à alma em seus elementos constituintes, o noûs seria a parte que
deveria governar por ser capaz de expressar a razão como linguagem de
comunicação, isto é, como maneira de expressar-se sob determinadas regras,
com determinados objetivos e que hoje, graças a Aristóteles, temos esse
conhecimento normatizado através da Lógica Formal. Como modo de vida da
alma, em detrimento das duas outras partes referidas pelo autor, enquanto
encarnada, quais sejam, a impetuosa e a apetitiva e, após a morte, na ausência
da apetitiva, permaneceria a mesma hegemonia do noûs sobre o thýmos. Neste
sentido, pelo que depreendi dos textos durante a pesquisa, parece-me que a
razão, tanto quanto a inteligência, constituir-se-iam como atributos da alma, em
especial, o noûs, como modo de discurso, a partir do século VII a. C., com a
reintrodução tecnológica da escrita e a passagem gradual da palavra-gesto oral
à palavra-diálogo passível de ser grafada.
Após a encarnação, a alma se veria necessariamente agrilhoada ao
gênero de existência que escolheu, às circunstâncias necessárias deste gênero
de vida como se em A República (PLATÃO, s/d: 407-415) e tornar-se-ia
privada do direito de fuga à vida, sob pena de punições no Hades e de
acentuamento de suas dificuldades pessoais geradas pelo ato em si, como é
visto em Fédon (PLATÃO, s/d: 51):
(Fédon) SÓCRATES: - É provável também que isto
te pareça maravilhoso e que te espantes ao saber que, para
todos os homens, uma absoluta necessidade de viver,
necessidade invariável mesmo para aqueles para os quais
a morte seria preferível à vida.
SÓCRATES: - Poder-se-ia, com efeito [...], encontrar
nisso, pelo menos considerado sob essa forma, qualquer
coisa de irracional. Todavia não é assim, e, muito
provavelmente, não falta razão. A esse respeito há,
mesmo, uma fórmula que usam os adeptos dos Mistérios:
“É uma espécie de prisão o lugar onde nós, os homens,
vivemos, e é dever não libertar ninguém nem permitir que
alguém seja levado dali.” Formula essa, sem dúvida, que
me parece tão grandiosa quão pouco transparente! Mas
não é menos exato, Cebes, que se encontra justamente
expresso, creio, o seguinte: os deuses são aqueles sob cuja
guarda estamos e nós, homens, somos uma parte da
propriedade dos deuses.
Quanto ao pensamento, no entanto, ele é apresentado como um órgão
da percepção racional da alma, logo, aquele seria um outro atributo vinculado à
razão, como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-55):
(Fédon) SÓCRATES: - Não é, por conseguinte, no
ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma
apreende, em parte, a realidade de um ser?
SÓCRATES: - Inversamente, obtivemos a prova de
que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os
seres em si, ser-nos necessário separar-nos dele e
encarar por intermédio da alma em si mesma os entes em
si mesmos. então é que, segundo me parece, nos de
pertencer aquilo de que nos declaramos sedentos: a
sabedoria.
Um dos mais interessantes atributos da alma seria a possibilidade dela
conhecer a verdade dos seres em si mesmos por meio de si. Vale ressaltar
neste particular que para Platão, durante a vida, o acesso ao conhecimento
verdadeiro seria impossível, o que se conseguiria apenas após a morte do
corpo sensível uma vez que ocorreria um contato direto com as Idéias.
É uma característica da alma que participa da procisão divina
mencionada no Fedro ter que encarnar e experenciar diversas vidas humanas e
animais, conforme sua vontade, para ter acesso ao conhecimento verdadeiro
dos seres. O problema de alcançar os conhecimentos verdadeiros em vida seria
devido à enorme influência do corpo sensível, com suas exigências, às quais
impediriam a alma de concentrar-se sobre qualquer objeto de estudo. No
entanto, o conhecimento verdadeiro estaria na interioridade da alma, à
espera de ser convenientemente explorada por alguém preparado para isso.
Um outro atributo que Platão
assinala e que seria essencial na alma é
que ela teria a capacidade ordenadora e causal de todas as coisas. Em que
sentido se pode compreender essa posição de Platão e em que parte de sua
aparecem referências sobre esse atributo?
A obra de Platão que introduz esse tema é o don (s/ d: 82-90) onde o
autor apresenta sua experiência de juventude a respeito das pesquisas
filosóficas que empreendeu a partir de alguns físicos pré-socráticos. No
decorrer da exposição de Sócrates, Platão (Idem: 82-83) comenta sua
aproximação às doutrinas do filósofo Anaxágoras, conforme segue:
Ora, certo dia ouvi alguém que lia um livro de
Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é o ordenador e a
causa de todas as coisas”. Isso me causou alegria.
Pareceu-me que havia, sob certo aspecto, vantagem em
considerar o espírito como causa universal. Se é assim,
pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter ordenado tudo
o que foi feito da melhor forma. Desse modo, se alguém
desejar conhecer a causa e da origem e morte das coisas,
deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a melhor
maneira pela qual ela existe.
Pensando desta forma, exultei acreditando haver
encontrado em Anaxágoras o explicador da causa,
inteligível para mim, de tudo o que existe. [...] Nunca supus
que depois dele haver dito que o Espírito os havia
ordenado, ele pudesse dar-me outra causa além dessa e
que é a que serve a cada uma em particular assim como ao
conjunto.
Ao longo da narrativa, Platão informa que com o decorrer de seus
estudos sobre o pensamento de Anaxágoras, decepcionou-se, pois como
informa no Fédon (s/ d: 83-84):
À medida que avançava e ia estudando mais e
mais, notava que esse homem não fazia nenhum uso do
espírito nem lhe atribuía papel algum como causa na ordem
do universo, indo procurar tal causalidade no éter, no ar, na
água e em muitas outras coisas absurdas! Parecia-me que
ele se portava como um homem que dissesse que Sócrates
faz tudo o que faz porque age com seu espírito; mas que,
em seguida, ao tentar descobrir as causas de tudo o que
faço, dissesse que me acho sentado aqui porque meu corpo
é formado de ossos e tendões, e os ossos são sólidos e
separados uns dos outros por articulações, e os tendões
contraem e distendem os membros, e os músculos
circundam os ossos com as carnes e a pele a tudo envolve!
Dar nome de causas a tais coisas seria ridículo.
[...] Ardentemente desejaria eu encontrar alguém que me
ensinasse o que é tal causa! Não me foi possível, porém,
adquirir esse conhecimento então, pois nem eu mesmo o
encontrei, nem o recebi de pessoa alguma. Mas quererias,
estimado Cebes, que descrevesse a segunda excursão
que realizei em busca dessa causalidade? [Grifo nosso].
Ora, o que Platão assinala aqui é que diante da possibilidade de ter
encontrado na doutrina do Espírito de Anaxágoras a causa ordenadora do
universo, Platão teve esperanças de conhecer e compreender as conexões
necessárias e últimas de todo o existente. Contudo, diante dos
desdobramentos de suas pesquisas, constatou-se que o caminho assinalado
por Anaxágoras não foi levado adiante e como causa última do real foram
apresentadas, à maneira dos pensadores pré-socráticos, os tradicionais
elementos acima mencionados, como os causadores de tudo o mais. Nesta
medida, parece, tudo havia retornado ao ponto de partida.
Reale (2004: 116-156; 157-166) apresenta a referência de Platão sobre
a segunda excursão, que chama de segunda navegação, como a indicação do
caminho que levou o filósofo à descoberta do inteligível como a fonte geradora
e mantenedora da realidade sensível, tendo como instâncias paradigmáticas,
as Idéias e como fonte última de ordenação do Cosmos, os Princípios
Primeiros do Uno e da Díade Universais.
O mais importante para a compreensão do atributo ordenador e causal
da alma adotado por Platão com base em seus estudos de Anaxágoras é
analisar em que medida se deu a apropriação do conceito de Espírito
(Inteligência). Esta apropriação foi realizada por nosso autor para assegurar o
acesso da investigação sobre a causa última de tudo, passando do que Reale
chama primeira navegação correspondendo às pesquisas dos pré-platônicos; e
a segunda navegação, empreendida por Platão com as teorias das Idéias e dos
Princípios primeiros para que seja possível aquilatar em que sentido Platão
adota o termo Inteligência/ Espírito assinalado acima.
Qual o termo que Anaxágoras utilizou no texto que Platão teve acesso?
No fragmento 12, de Simplício na Phys. 164, 24 e 156, 13 apud Kirk, Raven e
Schofield (1994: 382-383) é possível apreciarmos o texto em português da
doutrina de Anaxágoras ao qual Platão se refere acima:
Todas as outras coisas tem uma porção de tudo,
mas o Espírito é infinito e autônomo, e não se mistura com
o que quer que seja, mas existe sozinho, de per si. Pois, se
não existisse de per si, mas se misturasse com qualquer
coisa, teria um quinhão de todas as coisas, se com alguma
se misturasse; porquanto em cada coisa uma porção de
tudo, conforme antes afirmei; e as coisas, que com ele se
misturaram, opor-lhe-iam um obstáculo, de tal forma que
não teria poder sobre coisa alguma, do mesmo modo que
agora tem, existindo de per si. É que o Espírito é a mais
sutil e a mais pura de todas as coisas e possui um
conhecimento total de tudo e o maior poder. É o Espírito
que dirige o que tem vida, quer seja maior ou menor. Foi o
Espírito que também teve poder sobre toda a revolução, de
tal modo que foi ele que, no início, lhe deu o impulso.
Primeiramente, começou a mover-se a partir de uma
pequena área, mas agora move-se sobre uma mais vasta e
sobre uma ainda mais vasta se há-de mover. E é o Espírito
que tem conhecimento de todas as coisas que se misturam
e se separam e divIdem. E tudo o que estava para ser o
que era e o que agora é e o que –de ser a tudo o
Espírito pôs em ordem, bem como a esta revolução que
agora executam os astros, o Sol e a Lua, o ar e o aither,
que estão separados. E foi esta revolução a causa de se
haverem separado. E o espesso do úmido. Mas muitas são
as partes de muitas coisas, e nenhuma coisa se separa ou
distingue de outra por completo, exceto o Espírito. O
Espírito é todo igual, quer se trate das maiores ou das
menores quantidades dele, ao passo que nenhuma outra
coisa é igual a qualquer outra, mas cada simples corpo é e
era mais claramente aquilo de que possuía maior
quantidade.
Embora em todo o corpo do texto acima, o tradutor tenha se utilizado
do termo Espírito para designar Inteligência, no original, em grego, constam
três palavras para designar a mesma idéia, quais sejam: noûs, gnômen e
psychén. A primeira significa
faculdade de pensar, inteligência; sabedoria, reflexão;
pensamento, [...] alma, coração [...]
; a segunda,
juízo, talento, inteligência
; a terceira,
mais abrangente, significa
sopro da vida, alento; alma; vida; ser vivo; pessoa; [...]
alma humana; entendimento, conhecimento, prudência
, conforme se em Isidro
Pereira (1990: 391; 115; 628). Das três, a que aparece mais vezes é noûs e,
por conseguinte, adotarei a compreensão do conceito que indica:
faculdade de
pensar, inteligência
e
pensamento;
uma vez que mais se adequa ao uso que
Platão em seus textos, em especial, no que se refere ao que ele chama de
alma racional, quando a alma humana é ligada a um corpo mortal.
Ora, segundo Reale (2004: 106):
Anaxágoras tinha razão ao afirmar que a
Inteligência é causa de tudo, mas não conseguiu dar a
tal afirmação um fundamento adequado e uma
consistência necessária, porque o método de
investigação dos naturalistas seguido por ele não o
podia permitir.
Afirmar que a Inteligência ordena e causa todas as
coisas significa que ela dispõe todas as coisas da melhor
maneira possível. Isso significa que a “Inteligência” e o
“Bem” são estruturalmente conexos, e que não se pode
falar da primeira sem falar do segundo. Portanto, pôr a
Inteligência como causa implica eo ipso pôr o melhor (o
Bem) como condição da geração, da corrupção e do ser
das coisas. Mas Platão se mostra ainda mais explícito nas
suas alusões; de fato, ele explica que quem adota essa
perspectiva deve conhecer; além do “perfeito” e do
“ótimo”, também o “pior”, porque a ciência do Melhor e
do Pior á a mesma. E isso vale, em geral, para todos os
fenômenos. Trata-se de uma forte alusão à polaridade
dos Princípios primeiros (Grifos do autor)
Com o exposto acima, percebe-se claramente que o noûs que Platão
(s/ d: 82-83) se remete para designar a alma racional está fortemente fundado
na concepção de Inteligência-Espírito de Anaxágoras e que são mantidas suas
propriedades ordenadoras e causais, enquanto alma encarnada e
desencarnada:
(Fédon) SÓCRATES: - Ora, certo dia ouvi alguém
que lia um livro de Anaxágoras. Dizia este que “o espírito é
o ordenador e a causa de todas as coisas”. Isso me causou
alegria. Pareceu-me que havia, sob certo aspecto,
vantagem em considerar o espírito como causa universal.
Se assim é, pensei eu, a inteligência ou espírito deve ter
ordenado tudo e tudo feito da melhor forma. Desse modo,
se alguém desejar conhecer a causa da origem e morte das
coisas, deve, antes de mais nada, procurar indagar qual é a
melhor maneira pela qual ela existe. E pareceu-me ainda
que a única coisa que o homem deve procurar é aquilo que
é melhor e mais perfeito, porque desde que ela tenha isso,
ela necessariamente terá encontrado o que é o pior, visto
que são objetos da mesma ciência.
Outro importante atributo da alma seria sua capacidade de transmitir ao
corpo sensível as características de seu ser, isto é, os corpos seriam
instrumentos maleáveis e moldáveis conforme a educação recebida através das
virtudes anímicas, como se vê na República (PLATÃO, s/d: 118):
Também aqui é necessário que a educação comece
desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se
prolongue durante a vida inteira. [...] não creio que o corpo
bem constituído possa melhorar a alma com suas
excelências corporais, mas pelo contrário, é a alma boa
que, mercê de suas virtudes, aperfeiçoa o corpo na medida
em que isso for possível.
Fruto de suas opções nutritivas, a alma desabrocharia e germinaria em
si o saber que carrega latente. Este é um de seus mais poderosos atributos
visto poder não apenas oldaha-la à felicidade, mas olda-la do ciclo das
reencarnações e olda-la passível de privar da companhia dos deuses.
Conforme é visto na República,
Indubitavelmente o saber é uma faculdade, e a mais
poderosa de todas elas.
(PLATÃO, s/d: 220).
A capacidade que poderia chamar de manipulação plástica do
pensamento que a alma possuiria, conforme nos informa Platão em A
República, seria outro atributo e com ele a alma seria capaz de olda-lo mais
do que a cera e qualquer outro material:
Exiges poderes extraordinários de artista
disse ele. –, no entanto, como o pensamento é ainda mais moldável do que a cera e
outros materiais do mesmo gênero considera plasmada a imagem.
(PLATÃO, s/d:
372) Essa capacidade permitiria à alma atuar por meio de sua vontade através
do pensamento que se apresentaria como uma espécie de torno sob a ação da
vontade, ou simplesmente da linguagem em ação, que para o grego clássico
era altamente plástica, isto é, constituía-se como algo observável pelo noûs e
que guardava certa objetividade e concretitude.
3.3 MORFOLOGIA DA ALMA
Platão apresenta a alma nas descrições que faz, tendo como base, a
forma humanóide. O povo grego da época de Platão representava e vivenciava
a experiência da presença de seus mortos em seu dia a dia através do culto
doméstico e do Lar (lareira doméstica ou hestia), conforme é demonstrado por
Burkert (1993: 269-380; 525-572), Coulanges (1998: 7-28), Vernant (1990: 151-
192).
Através dos trabalhos dos autores acima citados, facilmente
compreende-se a concepção e vivência sócio-religiosa do conceito de duplo ou
eidolon.
A forma humanóide, segundo Platão, seria uma das opções possíveis
para a alma em uma nova encarnação. O critério de escolha relacionar-se-ia
aos interesses momentâneos da alma por ocasião do cômputo geral de sua
existência. Contudo, caso escolhesse outra forma que não a humanóide, e
Platão mostra como opção apenas a forma animal, esta teria que arcar com as
limitações próprias à forma escolhida e ao seu gênero de vida próprio.
Como vimos anteriormente no Fedro, a respeito da alimentação de
Idéias verdadeiras, a alma precisa realizar, para desenvolver as asas da
sabedoria e da inteligência e, manter-se sem a necessidade de encarnação em
um corpo mortal. Contudo, caso reencarne, ao longo de sua vida, precisa viver
de tal maneira que seja possível afastar o máximo possível as interferências
das sensações corporais sensíveis por meio dos exercícios filosófico, ginástico
e musical, com o objetivo de dar continuidade à referida alimentação de Idéias.
Nos dois casos acima mencionados, a alma busca ajustar seu ritmo,
harmonizando-se em termos estético e funcional, isto é, em termos de
identificação para com a essência divina das Idéias verdadeiras, essência esta
que a alma participa por identidade de substância e de propriedades em sua
constituição íntima e funcional, pois na medida em que estabelece o equilíbrio
de suas asas, contempla mais e mais Idéias e assim se furta aos ciclos
reencarnatórios.
A busca do referido equilíbrio de ritmo é uma necessidade tanto para a
alma encarnada como para a desencarnada, pois conforme a feição de
desequilíbrio que nela se instale, a dinâmica intelectiva das Idéias sofre
alterações. Nesse sentido, no caso do corpo sensível, a harmonização entre
noûs, thýmos e pneyma é essencial, do contrário, a alma é capaz de gerar
alguma patologia ou o que Platão chama de fealdade moral ou morfológica, o
mesmo processo se aplicando em sentido inverso, isto é, rumo à saúde e
beleza.
3.4 FUNÇÕES DA ALMA
Em termos de sociedade grega clássica, uma das funções mais
importantes das almas humanas era a de ser intermediária nas relações entre
homens e deuses, enquanto desencarnada, conforme se vê nas indicações
feitas por Coulanges (1998: 7-28) no seu livro A Cidade Antiga.
As almas dos familiares mortos atuariam junto aos parentes vivos
através da intermediação dos interesses do grupo junto aos olímpicos. O
contato dos parentes vivos e mortos se dava através dos ritos do culto
doméstico, através dos quais os vivos solicitavam constantes orientações aos
mortos quanto aos seus afazeres diários, quando necessário, unindo assim,
todas as estruturas da phýsis num todo orgânico, como Platão menciona no
Banquete (PLATÃO, s/ d: 108):
É o liame que une o Todo a si mesmo. Graças a ele
é que existe a divinização, e também a arte dos sacerdotes
relativa aos sacrifícios, às consagrações, às fórmulas
sagradas, a todas as profecias, encantações, à magia em
geral. Toda a comunicação que se estabelece entre os
deuses e os homens, estejam estes acordados ou
dormindo, é sempre feita por intermédio dos gênios
12
.
No mundo sensível ou no mundo inteligível, a principal atividade da
alma, por natureza, é a de dirigir, deliberar e tudo o mais do gênero.
12
Conforme Isidro Teixeira (1990: 888), em grego, gênio é sinônimo de daímon apresentado
anteriormente.
A percepção é tratada por Platão como vinculada à relação da alma
com o corpo, na medida em que unidos, o que ele chama de comunidade
corporal, em sendo afetada por algo (dor e/ou prazer), submeter-se-ia à alma,
como é visto na República (PLATÃO, s/d: 198):
E também a que mais se pareça a um indivíduo?
Quando, por exemplo, um de nós fere o dedo, toda a
comunidade corporal, atraída para a alma como um centro
e formando um reino debaixo de sua suserania, sofre
simultaneamente e em sua totalidade ao sofrer uma de
suas partes; e por isso dizemos que o homem sente dor no
dedo. E a mesma expressão se emprega quando qualquer
outra parte do corpo tem uma sensação de dor ao sofrer ou
de prazer ao acabar-se o seu sofrimento.
Depreende-se que a função principal da alma seria imprimir movimento
ao que a ela se vincula, em especial, a seu corpo sensível, enquanto
encarnada. Por meio desta ação, a alma alteraria a phýsis a partir de seu
próprio corpo sensível. Observa-se assim que deliberar, dirigir e aperfeiçoar o
mundo a partir de si mesma, por meio de ações conscientes cada vez mais
racionais, leva-la-ia à identificação essencial de sua natureza ao Ser Absoluto.
Esta seria a principal função da alma enquanto geratriz ordenadora da phýsis.
3.5 FISIOLOGIA DA ALMA
A alma possuiria um sistema de alimentação similar ao do corpo
sensível. Porém, a alimentação da alma propriamente dita, conforme Platão
assinala, apresentar-se-ia de maneira diferenciada da que é utilizada pelo corpo
sensível, pois a alma não se nutriria de alimentos sensíveis.
A alma nutrir-se-ia do que é Belo, Sábio e Bom, enfim de Idéias
principalmente e não de gêneros sensíveis. E baseada em seu atributo de
liberdade, a alma poderia vir a intoxicar-se através da alimentação do que é
mau e feio e, principalmente, pela ignorância, como se no Fedro (PLATÃO,
s/d: 152):
(Fedro) Expliquemos agora de que modo as almas
perdem as asas.
A força da asa consiste em conduzir o que é pesado
para as alturas onde habita a raça dos deuses. A alma
participa do divino mais do que qualquer outra coisa
corpórea. O divino é belo, sábio e bom. Por meio destas
qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem,
enquanto que todas as qualidades contrárias, como o que é
feio, o que é mau a fazem diminuir e fenecer.
A alma disporia de intuição natural para identificar seu alimento e, para
tanto, se disporia a assumir determinadas características que chamo
psicológicas, isto é, por ocasião dos banquetes divinos, a alma escolheria um
deus para seguir-lhe ao longo da subida para o chamado céu da verdade onde
se encontrariam as Idéias que viriam a ivulga-la como apresentado no Fedro
(PLATÃO, s/d: 157):
(Fedro) SÓCRATES: - E assim sucede a respeito de
cada deus. Cada um adora o deus de quem foi
companheiro. Imita-o como pode enquanto não pervertido,
e enquanto aqui vive, depois do primeiro nascimento. Deste
modo, todos imitam o seu deus nas relações amorosas e
nas outras. Cada um escolhe o seu amor de acordo com o
respectivo caráter e passam a ivulgaa-lo como seu
deus, elevam-lhe uma estátua no seu coração, enfeitam-no
para ivul-lo e celebram os seus mistérios.
Ela saberia intuitivamente que carece de determinado alimento e por
isso seria coagida pela necessidade a proceder a tais revoluções, mas
necessitaria ser orientada por uma das divindades olímpicas, responsáveis pela
condução das almas ao banquete das Idéias verdadeiras. Conforme mencionei
acima, a alimentação se daria no Hades/inteligível, por contemplação de Idéias
verdadeiras. Platão não explicita este processo, porém, pelo que se depreende
da pesquisa até o momento, a visão era considerada o sentido mais privilegiado
entre os gregos, de modo que toda a sua estrutura gnosiológica se fundava na
visão, ou melhor, na metáfora ocular no que se refere à alma, fosse de maneira
empírica ou na do noûs, o que sustentaria a postura de Platão em informar que
a nutrição da alma se daria através da contemplação.
Uma dieta especial permitiria o desenvolvimento da inteligência e da
sabedoria, o que a conduziria à felicidade. A alimentação saudável, isto é, a
contemplação das Idéias verdadeiras, garante o desenvolvimento da
inteligência (noûs), e segundo Platão, assegura a encarnação humana,
conforme declara ele no Fedro (PLATÃO, s/d: 154):
(Fedro) SÓCRATES: - A alma que nunca contemplou
a verdade o pode tomar a forma humana. A causa disso
é a seguinte: é que a inteligência do homem deve se
exercer segundo aquilo que se chama Idéia; isto é, elevar-
se da multiplicidade das sensações à unidade racional. Ora,
esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades
Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou
a alma divina nas suas evoluções.
Não é apenas no Hades que a alma se alimenta adequadamente.
Enquanto encarnada, desde que tenha suficientemente contemplado as Idéias
no céu da verdade antes de encarnar e tenha bebido pouco da água do rio
Lethes (Esquecimento), a alma pode alimentar-se, enquanto em contato com o
corpo sensível. Tal alimentação seria muito difícil devido a alma ser afetada
pela concupiscência do corpo sensível por motivo de sua composição
essencial, que conteria afinidade com o que é Múltiplo e o misto
Múltiplo/Mesmo. Por isso, enquanto encarnada, as sensações que atingiriam o
corpo poderiam, em certa medida, contribuir para a sua alimentação ou
intoxicação conforme priorizasse a alma se conduzir racionalmente, como é
visto em Fedro (PLATÃO, s/d: 155-156):
(Fedro) SÓCRATES: - Quando contempla o seu
amor, apodera-se do amante uma crise semelhante à febre:
modificam-se-lhe os traços do rosto, o suor aparece em sua
fronte e um calor não conhecido corre pelas suas veias.
Logo que recebe, através dos olhos, a emanação da
beleza, sente esse doce calor que alimenta as asas da
alma. Esse calor funde o que impedia a expansão da
vitalidade, aquilo que, sob a ão do endurecimento,
impedia a germinação. O afluxo do alimento produz uma
espécie de intumescência, um ímpeto de crescimento no
caule das asas. Esse ímpeto vai se espalhar por toda a
alma.
O processo de desenvolvimento das asas da alma geraria sofrimento,
no sentido de angústias como o desenvolvimento de dentes causa desconfortos
às crianças. O processo poderia estagnar ou regredir, conforme a vontade da
alma de se alimentar com Idéias verdadeiras, bem como por suas tendências,
enquanto encarnada, conforme nos informa Platão no Fedro (PLATÃO, s/d:
156):
(Fedro) SÓCRATES: - Esta, quando as asas
começam a desenvolver-se, ferve, infla e sofre da mesma
maneira como padecem as crianças que, ao receberem
novos dentes, sentem pruridos e irritação nas gengivas.
Também a alma fermenta, padece e sente dores, ao lhe
crescerem as asas. Quando contempla a beleza de um belo
objeto e daí provém corpúsculos que dele saem e se
separam, de onde se deriva a vaga de desejo, a alma
encontra então o alívio para as dores e a alegria. Mas,
quando está separada do amado, fenece. E as aberturas
pelas quais saem as asas, também murcham e, fechando-
se, impedem a germinação da asa, que presa no interior
juntamente com a vaga do desejo palpitando nas artérias,
faz pressão em cada saída sem abrir caminho.
A vontade da alma poderia ser obnublada, isto é, despotencializada
deliberada e voluntariamente, desde que abdicasse ao pudor e à razão, isto é,
segundo seu livre arbítrio, a alma simplesmente poderia não querer contemplar
as Idéias verdadeiras, e, neste caso, pelo que descreve Platão, ela se deixaria
levar pela rotação da procisão e se alimentaria das idéias de fealdade e de
ignorância, o que a tornaria pesada por afinidade com o sensível e a precipitaria
numa nova encarnação, como se vê ainda no Fedro (PLATÃO, s/d: 159):
(Fedro) SÓCRATES: - Se a melhor parte da alma é,
pois, a vitoriosa e os conduz a uma vida bem ordenada e
filosófica, eles passam o resto da existência felizes e em
concórdia, governando-se honestamente, escravizando a
parte da alma que é viciosa e libertando a outra que é
virtuosa. E ao morrer recebem asas e ficam leves porque
venceram um dos três combates verdadeiramente
olímpicos, o maior bem que a sabedoria humana ou a
loucura divina podem proporcionar a um homem. Mas se se
dedicam a uma vida em comum sem filosofia, e contudo
honesta, pode suceder que os dois corcéis rebeldes os
dominem num momento de embriaguez ou de desordem, os
corcéis indomáveis dos dois amantes, apoderando-se de
suas almas pela surpresa, os conduzirão ao mesmo fim.
Enquanto encarnada, a alimentação se daria através de atos e
discursos que, habilmente aplicados, poderiam proporcionar à alma a felicidade.
Daí se infere a importância que os helênicos davam à questão da palavra e à
maneira pela qual tratavam a sua plasticidade captada pelo noûs, de forma que
o falante, em agindo, escrevendo ou discursando era capaz de atuar sobre seus
ouvintes e/ou observadores, de maneira a gerar neles toda uma série de
sensações-emoções-reflexões que contribuíam para a alimentação de suas
almas e, conseqüentemente, para a libertação dos ciclos da reencarnação. Ao
mesmo tempo, e no sentido oposto, os efeitos poderiam ser desastrosos, o que
nos faz lembrar as palavras de Górgias de Leontinos ao enunciar as
propriedades que o logos apresentava em sua psicagogia
13
, ou ainda em
Heráclito de Éfeso (KIRK, RAVEN & SCHOFIELD, 1994: 193), quanto à
incompreensão dos homens relativamente aos discursos verdadeiros (logos), o
13
Arte desenvolvida por Górgias baseada na capacidade persuasiva do discurso de atuar sobre
o ânimo do ouvinte de maneira a mostrar-lhe o outro lado das coisas e situações e
fundamentava-se na noção de pharmakon (remédio,veneno e cosmético).
que é corroborado por Platão no que se refere à proximidade das artes médica
e retórica, no Fedro (PLATÃO, s/d: 174):
(Fedro) SÓCRATES: - Deves pensar, naturalmente,
que as duas artes se distinguem uma da outra pela
natureza do seu objeto: uma se relaciona ao corpo, a outra
com a alma. Tens de levar isso em conta se quiseres, não
pela prática e por meio de regras empíricas, mas de
acordo com a arte, dar a um saúde e força, ministrando-lhe
remédios e alimentos, e a outro infundir convicção que
desejas, tornando-o virtuoso mediante discursos e
argumentos legítimos.
Neste sentido, as almas possuiriam disposição natural para guiarem ou
serem guiadas pela eloqüência do discurso e seriam propensas à felicidade
quando tudo submetessem à razão, como se vê no Fedro e no Mênon:
(Fedro) SÓCRATES: - Visto que a força da
eloqüência consiste na capacidade de guiar as almas,
aquele que deseja tornar-se orador deve necessariamente
saber quantas formas existem na alma. [...] (PLATÃO, s/d:
175)
(Mênon) CRATES: - Podemos concluir, portanto,
ao que me parece, que tudo aquilo que diz respeito à alma
quando é submetido à razão, conduz à felicidade. Quando a
razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário. (Idem: 63)
Enquanto encarnada, as potencialidades da alma se encontrariam
adormecidas parcialmente. Neste estado, é como se a alma fosse um morto, no
sentido de semelhança a um cadáver. Quando está desencarnada, suas
potencialidades aflorariam e a alma agiria à semelhança de um ser vivo, isto é,
em posse de todos os recursos acumulados através dos tempos e experiências.
Esta imagem diz respeito ao estado de ignorância da alma quanto à sua própria
origem e natureza divina, pois desencarnada não teria mais o esquecimento
gerado pelo acanhamento das percepções sensíveis que os órgãos causariam
à alma enquanto encarnada.
Tal colocação de Platão possivelmente foi parafraseada de Heráclito
que assim se posiciona quanto ao assunto:
De noite, o homem acende uma luz
para si próprio, ao extinguir-se-lhe a visão; em vida, está em contato com o que é
morto, quando dorme, e com o que dorme, quando acordado
(KIRK, RAVEN &
SCHOFIELD, 1994: 213). A menos que, enquanto encarnada, a alma praticasse
a filosofia, que era encarada por Platão como um dos recursos possíveis para a
alma interessada em se libertar dos ciclos reencarnatórios, como que um
preparativo de exaltação da parcela divina da alma que em vida nutre-se
convenientemente, e prepara-se para viver na companhia dos deuses na Ilha
dos Bem Aventurados.
A alma pode adoecer suas principais patologias seriam: a) demência
(loucura e ignorância); b) prazeres e dores excessivos (sendo que este é
considerada a mais grave segundo Platão, e c) sensualidade imoderada, como
se vê no Timeu (PLATÃO, s/d: 175):
Assim se produzem as doenças do corpo. As da
alma, que sobrevêm por conseqüência de disposições do
corpo, tem os seguintes caracteres. Deve-se admitir que a
doença própria da alma é a demência. Mas duas
espécies de demência: uma é a loucura, outra é a
ignorância. Por conseguinte, toda afecção que comporta um
ou outro destes distúrbios, deve ser chamada doença, e
deve-se admitir que os prazeres e as dores excessivas são,
para a alma, as mais graves das doenças.pois, feliz em
extremo, ou sofrendo pelo efeito da dor, a paixão contrária,
o homem, quando se apressa inoportunamente a atingir um
objeto ou fugir de outro, é incapaz de ver bem ou de escutar
bem seja o que for: torna-se desesperado e impróprio
para o raciocínio. Ora, aquele no qual a semente á
abundante e corre aos borbotões pela medula assemelha-
se a uma árvore por demais carregada de frutos.
Experimenta, a respeito de tudo, dores intensas e grandes
prazeres, em seus desejos e nos produtos que daí nascem.
Assim enlouquece, durante a maior parte de sua vida, pelo
excesso de seus prazeres e de suas dores; tem a alma
enferma e apaixonada pela ação do corpo.
A alma disporia de um órgão de percepção racional que seria o
pensamento. As sensações físicas a impediriam de alcançar a verdade e de ter
acesso ao real verdadeiro. Isto acontece porque o corpo sensível tenderia
naturalmente a voltar a atenção da alma para o mundo sensível e a conturbar
seu acesso ao mundo inteligível. Portanto, prejudicaria a alma por ivul-la do
alimento inteligível de boa qualidade e a fornecer-lhe acesso mais facilitado ao
de baixa qualidade, encontrando dificuldades em distinguir o que é verdadeiro
da simples opinião como se no
(Fédon): SÓCRATES: - Não é, por conseguinte,
no ato de raciocinar, e não de outro modo, que a alma apreende, em parte, a realidade
de um ser?
(PLATÃO, s/d: 54)
O sistema anímico poderia vir a obscurecer-se devido à influência de
características corporais sensíveis, se estas predominassem durante a vida
como encarnada, segundo Platão no Fedro (s/ d: 69), conforme se vê abaixo:
(Fédon) SÓCRATES: - Segundo me parece, pode-se
também supor o contrário: que esteja poluída, e não
purificada, a alma que se separa do corpo; do corpo, cuja
existência ela compartilhava; no corpo, que ela cuidava e
amava, e que a trazia tão bem enfeitiçada por seus desejos
e prazeres, que ela considerava real o que é corpóreo, o
que se pode tocar, ver, beber, comer e o que serve para o
amor; ao passo que se habituou a odiar, e encarar com
receio e a evitar tudo quanto aos nossos olhos é tenebroso
e invisível, inteligível, pelo contrário, pela Filosofia e por
ela aprendido! Se tal é o estado, crês que essa alma possa,
ao destacar-se do corpo, existir em si mesma, por si mesma
e sem mistura?
[...]
Sim, mas isso tem peso, meu caro; não o
duvIdemos: é denso, terroso, visível! E uma vez que é este
o conteúdo da alma, por ele é que ela se torna pesado,
atraída e arrastada para as coisas visíveis, devido ao medo
que lhe inspira o que é invisível e o que chamamos de país
do Hades; essa alma se prende aos monumentos funerários
e às sepulturas, ao redor dos quais rondam como espectros
sombrios. Essas almas, por terem sido libertadas, em
estado de impureza, mas, ao contrário, de participação com
o visível, são assim elas também visíveis!
Dentre os atos que obscureceriam a alma durante a vida, o principal
está relacionado com a morte voluntária, como é visto no Fédon (PLATÃO, s/d:
91):
(Fédon) SÓCRATES: - Desta maneira, pois, a alma
ordenada e sábia acompanha obedientemente ao guia, pois
bem conhece a situação. Mas a alma que se agarra
avidamente ao corpo, coisa que antes expliquei, permanece
por muito tempo ainda adejando ao redor do cadáver e dos
monumentos funerários, oferece resistência e sofre, e se
deixa levar pelo gênio sob violência e exigindo grandes
esforços. Mas quando essa alma, afinal, chega ao lugar em
que já se encontram as outras almas, cada uma destas
imediatamente se afasta e a evita, pois sabem que ela
praticou uma das negras ões seguintes: ou matou
injustamente alguém, ou praticou qualquer crime desse
gênero, ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de
almas. Por isso ninguém deseja ter a sua amizade e ser seu
companheiro, nem servir-lhe de guia. Assim, essa alma erra
desnorteada daqui para lá, em ignorância absoluta, durante
certo tempo, e em virtude de uma necessidade fatal é
levada a uma residência que lhe é conveniente.
Assim, devido às angústias derivadas dos hábitos sensuais adquiridos
em vida, a alma, no Hades, se veria profundamente perturbada.
Platão nos indicações sobre outros modos de alimentação anímica
através das quais a ingestão de Idéias se dá, auxiliando a alma a desenvolver-
se enquanto encarnada, rumo à saberia e à inteligência. Esses alimentos para a
alma, segundo Platão na República (s/ d: 114-115) seriam: imagens, atitudes e
palavras como se observa abaixo:
Por conseguinte, o teremos de vigiar apenas os
poetas, obrigando-os a expressar a imagem do bem em
suas obras ou não ivulga-las entre nós; será preciso
fiscalizar igualmente os demais artistas e impedir que
exibam as formas do vício, da intemperança, da vileza ou
da indecência na escultura, na edificação e nas outras artes
criadoras. E aos que não se conformarem a essa regra será
proibido exercer sua arte em nossa cidade, para que não
venha a corromper o gosto dos cidadãos.
Pela intelecção, a alma é capaz de conhecer as coisas através do noûs,
que é uma faculdade que pode ser utilizada tanto para o bem, quanto para o
mal.
O noûs, quando utilizado para apreender bons alimentos
(ensinamentos), se purifica, aumentando indefinidamente sua capacidade de
apreensão e penetrabilidade. Do contrário tornar-se-ia cego e incapaz de
auxiliar a alma encarnada a discernir as Idéias verdadeiras das opiniões
verossímeis, como é visto na República (PLATÃO, s/d: 285-286):
Mas reconheço plenamente a dificuldade de aceitar que a
alma de cada homem possui um órgão que esses
ensinamentos purificam e reavivam quando está corrompido
e cegado pelas demais ocupações e que, por ser o único
capaz de contemplar a verdade, é mais precioso do que dez
mil olhos.
3.6 PATOLOGIAS DA ALMA
Nesta seção, relacionarei algumas das enfermidades da alma que
Platão menciona nos textos estudados, procurando compreender sua
sintomatologia.
Basicamente existem três enfermidades que afetariam a alma, a saber:
1 demência, gerada pela loucura e/ou pela ignorância; 2 excesso de
prazeres e dores, considerados por Platão os mais graves por impedir que a
alma veja e escute bem qualquer coisa e, finalmente, 3 – a sensualidade
imoderada:
A alma poderia tornar-se viciada por exposição a uma educação
que lhe geraria comportamentos e concepções de mundo que a intoxicariam e a
corromperiam.
A ignorância seria para Platão a pior das doenças anímicas, pois a alma
se intoxicaria com nutrientes nocivos à sua natureza e, aos poucos, tornar-se-ia
demente como se nota no Timeu (PLATÃO, s/d: 176):
Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de
dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às
pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente,
faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso
voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição
maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o
homem vicioso se torna o que é.
É necessário recapitular que a patologia da alma acima mencionada,
a
incapacidade de dominar a voluptuosidade
(Ibidem)
,
se relaciona diretamente à
pouca contemplação de Idéias verdadeiras por parte da alma.
Quando em contato com o corpo sensível, caso este tenha maior
ascendência sobre sua percepção de realidade, isto é, caso seja maior a
propensão da alma para as sensações, uma vez que a alma seria pouco dada
ao inteligível, seu noûs seria pouco desenvolvido por inanição de Idéias
verdadeiras.
A alma encarnada que privilegia a natureza sensível em detrimento de
seu contrário, e descuida da busca da harmonia rítmica que precisa estabelecer
nas relações do sistema trino-anímico, cai fatalmente em desarmonia,
comprometendo a interface entre os sistemas sensível e inteligível de seus
corpos, tornando-os anacrônicos e geradores de danos recíprocos conforme a
duração da hybris (desmedida). Isso fica bem claro no Timeu (s/ d: 178):
Inversamente, quando um corpo maior e mais
forte que a alma se encontra unido a uma inteligência
pequena e débil, como há, naturalmente, no homem, duas
espécies de desejos, um que vem do corpo, o da nutrição, o
outro que vem do que de mais divino em nós, o desejo
de intelecção, os movimentos da parte mais forte o
acarretam; engrandecem seu domínio próprio, e o da alma,
tornam estúpido, difícil de instruir e pronto para o
esquecimento, e produzem a pior das doenças, a
ignorância.
Segundo a vontade da alma de viver segundo sua natureza ou segundo
a natureza do corpo sensível, pode ser gerada uma ilusão unilateral da
existência, isto é, a alma tende a tornar exclusiva uma das dimensões de
realidade como parâmetro de existência total. Adotando a dimensão inteligível
ou a sensível como única existente, a alma passaria a julgar e lidar com as
coisas conforme tal perspectiva, desprezando a outra como Platão nos informa
no Timeu (PLATÃO, s/d: 178):
Contra essas duas doenças um remédio: não
mover nunca a alma sem o corpo, nem o corpo sem a alma,
a fim de que , defendendo-se uma contra a outra, essas
duas partes guardem seu equilíbrio e sua saúde.
Outra patologia decorrente da ignorância seria o cometer atos injustos
contra outrem, pois conduziria a alma ao ostracismo no Hades, o que
acarretaria perturbações e remorsos por meio dos quais a alma que se sente
culpada passa pelo processo de marginalização no Além, pelo horror que causa
às demais almas, por ausência de afinidade entre elas.
A intoxicação da alma se daria, especificamente, pela ação da
linguagem que, ao modelar na inteligência (noûs) os ideatos, estes a
impressionariam/emocionariam de maneira a corromper-lhe os hábitos
adquiridos pela educação e a encaminharia às atitudes degradantes, que lhe
gerariam distorções de vistas, dificultando-lhe o juízo sobre o que é conveniente
e gerariam sua perturbação no Hades, como visto no Fédon e na República
respectivamente:
(Fédon) SÓCRATES: - Mas quando essa alma,
afinal, chega ao lugar em que se encontram as outras
almas, cada uma destas imediatamente se afasta e a evita,
pois sabem que ela praticou qualquer crime desse gênero,
ou qualquer obra que seja própria dessa espécie de almas.
Por isso ninguém deseja sua amizade e ser seu
companheiro, nem servir-lhe de guia. (PLATÃO, s/d: 91)
(República) o diremos pois, Adimanto, que as
almas melhor dotadas se tornam particularmente más
quando recebem má educação? Porventura os grandes
crimes e a maldade refinada britam de alguma inferioridade
e não da plenitude de uma natureza corrompida pela
educação que recebeu? As almas fracas nunca serão
capazes de grandes ações, quer no bem, quer no mal.
(PLATÃO, s/d: 238)
Outro elemento patológico na existência sensível para a alma é a
prática de atos injustos. Através do exercício de qualquer injustiça, instala-se na
alma a desarmonia entre o sistema trino-anímico (noûs, thýmos e pneyma). Tal
ocorrência instala na alma a covardia, a ignorância e todos os demais prejuízos
que destes decorrem.
3.7 AFECÇÕES DA ALMA
A alma receberia do corpo sensível a influência de amores, paixões,
temores, imaginações, guerras, dissensões e batalhas que lhe chagariam por
intermédio dos sentidos, como Platão menciona no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-
55):
(Fédon) SÓCRATES: - “Sim muito possível que
exista mesmo uma espécie de trilha que nos conduz de
modo reto, quando o raciocínio nos acompanha na busca. E
é este então o pensamento que nos guia: durante todo o
tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver
misturada com essa coisa má, jamais possuiremos
completamente o objeto de nossas desejos! [...] Não
somente mil e uma confusões nos são efetivamente
suscitadas pelo corpo quando clamam às necessidades da
vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças, e eis-
nos às voltas com novos entraves em nossa caça ao
verdadeiro real! O corpo de tal modo nos inunda de amores,
paixões, temores, imaginações de toda a sorte, enfim, uma
infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim,
verdadeiramente é o que se diz) não recebemos na verdade
nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez sequer!
Vede, pelo contrário, o que ele nos dá: nada como o corpo
e suas concupiscências para provocar o aparecimento de
guerras, dissensões, batalhas; com efeito, na posse de
bens é que reside a causa original de todas as guerras, e,
se somos irresistivelmente impelidos a amontoar bens,
fazemo-lo por causa do corpo, de quem somos míseros
escravos!
No processo de purificação da alma, oferecido pelos chamados
Mistérios que Platão menciona apenas o pensamento seria afetado pelo corpo,
mas não a alma em sua natureza, como sugere no Fédon:
E assim esta viagem,
esta que ora me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e o mesmo
acontece a quem quer que possa afirmar que seu pensamento está pronto e o possa
dizer purificado.
(Idem: 55-56).
O pensamento vicioso obscurece a alma e a mantém ligada ao mundo
dos vivos, de maneira a ser possível, inclusive, tornar-se visível aos encarnados
em determinadas circunstâncias. As perturbações geradas por ele poderiam
persistir após a morte do corpo sensível, constrangendo-a a sofrer estados
desagradáveis no que perdurariam no Hades.
A linguagem manifesta por meio do discurso é um canal de
comunicação entre a alma e o corpo sensível, na phýsis. É uma via de mão
dupla que afeta a alma e, por conseguinte, a phýsis, devido à função
ideoplástico-modeladora-representativa que a linguagem produz na
comunicação por cessão de sentido/valor às coisas, e que possui aplicação
benéfica ou maléfica sobre a alma, conforme o uso da linguagem que a alma se
dedique no cotidiano.
Os estados íntimos da alma influenciariam decisivamente o corpo
sensível, garantindo-lhe saúde ou enfermidade, conforme sua capacidade de
adequação ao ritmo e à harmonia entre suas partes, isto é, a alma apetitiva, a
impetuosa e a racional. O uso da Música e da Ginástica, combinados a uma
vida filosófica, garantem à alma a felicidade, como sugere Platão na República:
E, como dizíamos, a influência combinada da Música e da Ginástica porá a ambos de
acordo, vigorizando e nutrindo a razão com boas palavras e ensinamentos, enquanto
modera e civiliza a cólera por meio da harmonia e do ritmo?
(PLATÃO, s/d: 172)
Com o tempo e o fortalecimento de suas asas (sabedoria e inteligência), a alma
preteriria os prazeres corporais sensíveis daqueles se utilizando apenas na
medida do necessário, como é visto na República (PLATÃO, s/d: 229):
Aqueles cujos desejos o conduzem para o saber sob
todas as suas formas se entregará inteiramente aos
prazeres da alma e porá de lado os do corpo, se for filósofo
verdadeiro e não fingido.
Neste sentido, a vida filosófica é capaz de conduzi-la ao ser existente e
invisível através do estudo, da educação, como Platão (s/d: 238) menciona na
República:
Não diremos pois, Adimanto, que as almas melhor dotadas se tornam
particularmente más quando recebem má educação?
3.8 ALMA E INTERIORIDADE
A alma em Platão apresenta estruturas relativamente autônomas entre
si, porém integradas, as chamadas almas apetitiva, impetuosa e racional.
Considerando as estruturas acima mencionadas, constata-se que o
conceito platônico de saúde anímica está diretamente vinculado à noção de
ritmo e harmonia, alcançadas pela alma que se dedica à educação musical,
como se vê na República
(PLATÃO, s/d: 115-116)
:
SÓCRATES: - E a educação musical não será mais
poderosa que qualquer outra, ó esprez, porque o ritmo e a
harmonia se introduzem no mais recôndito da alma e ali se
aferram tenazmente, infundindo a graça na pessoa
corretamente educada, porém não nas outras? E não será a
pessoa que recebe a devida educação sob esse aspecto a
mais sagaz em perceber falhas e omissões na arte e na
natureza, e aquela a quem mais desagradarão tais
deformidades? Por outro lado, não saberá louvar o que
de bom, recebe-lo com deleite e, acolhendo-o em sua alma,
nutrir-se dele e fazer-se um homem de bem, ao mesmo
tempo que repele e detesta o feio desde criança, mesmo
antes de poder raciocinar? E assim, quando chegar a razão,
a pessoa educada dessa forma a reconhecerá e acolherá
com a maior alegria, como a uma velha amiga. Não é
verdade?
Então, como sustento, nem nós nem nossos
guardiães, a quem temos de educar, poderemos chegar a
ser músicos enquanto não reconhecermos, onde quer que
apareçam, as formas essenciais da temperança, da
coragem, da generosidade, da magnanimidade e das outras
virtudes suas irmãs, bem como das qualidades ou de suas
imagens naqueles que as possuem, sem jamais espreza-
las tanto nas coisas pequenas como nas grandes, mas
persuadidos de que o conhecimento de umas e outras é
objeto da mesma arte e disciplina?
Ora, qual é a sentido da palavra ritmo? Em grego, rhythmós (‘ρυθµοσ -
ritmo), significando movimento regulado e compassado, ritmo, cadência,
medida, harmonia de um período e simetria (ISIDRO PEREIRA, 1990: 511).
Em sua multiplicidade fenomênica, a alma apresentar-se-ia como um
complexo orgânico de estruturas de natureza mista. Orgânico, pois os gregos
não tinham noção de mecanismo, o que ocorreria apenas após o século XVII; e
também pela concepção que eles tinham de phýsis, em que tudo fazia parte do
Todo. A estrutura anímica é parte da phýsis e esta é responsável por uma rie
de atividades diretas e indiretas da alma, as quais assegurariam seu papel
existencial.
Desta maneira, como se constitui a noção de realidade para Platão;
através de que e em que medida essa noção se atualizaria na alma humana?
Platão apresenta uma versão da noção de phýsis, que se constituiria
em cinco dimensões interativas e totalmente complementares, a saber: o
sensível que teria características de tangibilidade, corporeidade e visibilidade,
mobilidade, temporalidade, a dos entes matemáticos, que segundo Reale tem
a característica fundamental de ser uma dimensão intermediária entre o
sensível e o inteligível devido a seus elementos apresentarem qualidades duais
das dimensões que mediatizam, isto é,
são imóveis e eternos, justamente como
as Idéias (e os Números Ideais), e, de outro lado, existem muitos da mesma
espécie
(REALE, 2004: 173).
Na seqüência viria a dimensão das realidades inteligíveis ou Idéias,
intangíveis, invisíveis, incorpóreas, imóveis, eternas, mas perceptíveis por meio
do noûs (inteligência), a dimensão dos Números Ideais que:
são a essência dos números matemáticos e enquanto
tais são inoperáveis, ou seja não podem ser
submetidos a operações aritiméticas. Eles tem um
estatuto metafísico, diferente dos números
matemáticos, justamente porque não representam
simplesmente meros, mas constituem a essência dos
números (REALE, 2004: 167). (Grifo do autor)
E, finalmente, com o status de realidade ordenadora última viria a
dimensão dos Primeiros Princípios, caracterizados pela Díade e pelo Uno
universais que, segundo Reale (2004: 176-178), são as forças cósmicas
ordenadoras por complementaridade simétrica e simultânea, de todas as
demais dimensões mencionadas anteriormente.
Desta maneira, tendo o real como pano de fundo e nele radicalmente
inserida a alma platônica constitui-se como o elemento natural ordenador do
mundo, agindo e interagindo recursivamente ad infinitum por meio do fenômeno
da linguagem (aqui compreendido no sentido amplo e irrestrito, isto é, todo e
qualquer sistema de signos exprimíveis pelo humano) e como tal, como
doadora de sentido a si e aos demais elementos naturais.
A concepção comum de ritmo está vinculada a movimento ou ruído que
se repete no tempo a intervalos regulares, com acentos fortes e fracos, ou seja,
está relacionada a som, a freqüência. Para os helênicos, rhythmós é um
movimento regulado e compassado, uma espécie de cadência, medida,
harmonia de um período, simetria. Como se verificou acima, a interioridade
sistêmica da alma se caracterizaria pela proporção e simetria de seus
elementos funcionais. A tentativa de qualquer outra das duas partes (thýmos e
pneyma), em tomar o controle do complexo ao noûs acarretaria
necessariamente em desequilíbrio, desmedida, em hýbris.
O fato é que a alma se mantém num movimento de auto-investigação,
sendo auscultada, avaliada, de maneira a manter-se no ritmo, isto é, na
constante proeminência do noûs sobre o thýmos e o pneyma. Além disso, o
desenvolvimento natural da sabedoria e da inteligência afloraria nela o desejo
pelo que é melhor e neste sentido, buscaria sua depuração através da
eurritmia. Euritmia, em grego, significa movimento rítmico, harmonia, cadência,
graça, dignidade, conforme se observa em Isidro Pereira (1990: 244). Neste
sentido, percebi que este conceito infere algo a mais que o ritmo apenas, isto é,
a euritmia sugere um movimento consciente, pleno de intencionalidade,
objetivando a precisão do movimento natural que é determinado pelo ritmo.
Não basta à alma o ritmo. É necessário um equilíbrio auto-consciente
conquistado por meio de sua alimentação, que se daria através da
contemplação das Idéias verdadeiras, discursos e exemplos.
O que estaria em questão no problema da interioridade da alma em
Platão? É a questão da dinâmica administrativa da alma em sua auto-gestão.
Platão nos apresenta uma complexa série de cuidados para com a alma que
vão do conhecimento íntimo de suas emoções até sua participação na vida
pública.
Os problemas do ritmo, da euritmia e da aritmia da alma revelam um
emaranhado de questões que nos levam em direção aos processos de auto-
conhecimento com vistas a exercer o controle sobre os pensamentos e as
emoções, a partir da ação consciente orientada pela educação.
É por isso que na partição trina da alma o noûs seria o único em
condições de governar. As demais partes, por suas características de
desmedida e parcialidade, estariam sujeitas às ondulações e movimentos dos
impulsos, desejos e ímpetos. Em poucas palavras, seriam determináveis e não
determinantes. O noûs, a partir do momento em que seria instalado na alma
14
,
seria determinante e como tal, seria passível de exercer e ordenar o campo da
interioridade anímica e, em conseqüência disso, exteriorizaria essa harmonia
calculada, tanto quanto possível, ao real.
3.9 ALMA E MATÉRIA INANIMADA
Acredito ser importante verificar neste momento da pesquisa o que viria
a ser compreendido por matéria e em que medida a alma se relacionaria com
14
É preciso ter em mente que para Platão a primeira encarnação da alma como humano é
possível após a primeira contemplação das Idéias verdadeiras por ocasião da procissão divina
no céu da verdade e, nesta medida, o noûs não é propriamente dito a alma, mas um órgão da
alma através do qual ela tem acesso ao inteligível através da linguagem racional, conforme
vemos em Fedro e no Timeu.
ela. A primeira referência ao assunto é encontrada no Fedro (PLATÃO, s/d:
152): (Fedro)
SÓCRATES: - A alma participa do divino mais do que qualquer outra
coisa corpórea.
O que diferenciaria então, os seres sensíveis dos inteligíveis, uma vez
que ambos, guardadas as devidas proporções assinaladas anteriormente, são
em certa medida corpóreos?
Platão indica que a matéria assemelha-se a certo revestimento externo
que envolve e demarca os limites da alma, como observado no Fedro (s/ d:
155):
SÓCRATES: - Não tínhamos mácula nem tampouco contato com este sepulcro
que é o nosso corpo ao qual estamos ligados como a ostra à sua concha.
Dessa
maneira, a psyché (alma compreendida em sua totalidade, isto é, noûs, thýmos
e pneyma) em relação à matéria, estaria na posição de forma ou modelo que
receberia o revestimento para delinear-lhe os contornos que a encerrariam num
determinado formato.
A psyché serve-se de um tipo de corpo, eidolon que seria revestido de
matéria sensível por ocasião da encarnação. Na ausência anímica, o corpo
sensível nada mais seria que matéria inanimada destinado a dissolver-se por
ausência de seu modelo.
Ora, havia duas revoluções divinas. Imitando a figura
do Todo, a qual é esférica, os deuses introduziram essas
revoluções num corpo esférico. É o que agora chamamos
de cabeça, que é a parte mais divina e que comanda todas
aquelas que estão em nós. À cabeça os deuses uniram,
submeteram e deram como servidor o corpo inteiro. E
proveram que a cabeça pudesse participar de tudo que
tivesse movimento. Então, a fim de que, circulando sobre a
terra, a qual apresenta saliências e depressões de toda
espécie, a cabeça não se embaraçasse em franquear
aqueles e desviar das outras, deram a ela o corpo como
veículo, a fim de que se movesse com mais facilidade. Daí
vem o corpo ser alongado e ter gerado quatro membros
longos e flexíveis, construídos por Deus para tilizata-lo.
[...] Preciso era então que a parte anterior do corpo humano
tivesse caracteres distintos e dissemelhantes da parte
posterior. Por isso, em primeiro lugar, sobre a pele da
cabeça os deuses dispuseram daquele lado o rosto, e sobre
este repartiram os instrumentos que servem a todas as
previsões da Alma. [...] Dentre todos esses instrumentos,
conformaram primeiramente os olhos, portadores de luz, e
implantaram-nos no rosto, aproximadamente pela seguinte
razão. Esta espécie de fogo, que não é capaz de queimar
mas apenas de fornecer suave iluminação, adequaram-no
por sua arte a um corpo apropriado. Para este efeito,
fizeram de modo que o fogo puro que reside dentro de nós,
e que é irmão do fogo exterior, se escoasse através dos
olhos de maneira sutil e contínua. Porém espessaram todo
o olho, especialmente seu meio, de modo que não deixasse
escapar nada do restante fogo mais grosseiro mas deixasse
apenas filtrar um fogo perfeitamente puro. Assim que a luz
do dia envolver essa corrente da visão o semelhante
encontra o semelhante, funde-se com ele num todo e
forma-se, segundo o eixo do olhar, um corpo
homogêneo. Onde quer que se apóie o fogo que jorra do
interior dos olhos, encontra e choca-se com o que provém
dos objetos exteriores. Forma-se assim um conjunto que
tem propriedades uniformes em todas as suas partes
graças à sua semelhança. Timeu (PLATÃO, s/d: 106-107)
Na descrição do processo de funcionamento do aparelho visual
sensível, Platão afirma que este fogo do interior da psyché seria irmão do fogo
comum, isto é, seria identificado como uma variante de um dos elementos da
phýsis, a saber, água, éter, terra, fogo e ar e que deste se distinguiria por não
queimar como ele, mas apenas projetar suave iluminação sobre o objeto de
observação, possibilitando sua visualização sensível.
O que vem a ser o corpo para Platão?
A primeira referência aparece no Fedro (PLATÃO, s/d: 151), que nos
apresenta dois tipos de corpos, a saber:
(Fedro) SÓCRATES: - O corpo movido de
dentro é animado, pois que o movimento é a natureza da alma.
Platão se refere aqui
a corpos que possuem intrinsecamente a capacidade de auto-locomoção
decorrente de sua própria natureza e, nessa medida, ela afirma que estes são
animados.
Uma outra questão a ser observada é a da semelhança do corpo
humano aos demais corpos naturais. Sem a psyché, o corpo humano é um
corpo desprovido de movimento como outro qualquer. Sua animação procederia
da alma, mas em especial, de certa parcela do complexo trino anímico que
seria a pneyma. Tal posição se justificaria pela afirmação de Platão no Mênon
(PLATÃO, s/d: 55), que diz que a alma humana seria imortal, mas que foge da
vida no sentido de deixar o corpo privado de sua presença e,
consequentemente, de sua vitalidade, movimento e agregação material própria
ao humano:
(Mênon) SÓCRATES: - Dizem que a alma do homem é imortal e que ora
foge da vida, o que é falecer, e ora reaparece, entrando numa nova existência.
Observa-se também no Timeu
(PLATÃO, s/d: 176)
, que a doença da
alma, que Platão chama de vício, ele atribuiu em parte, a uma formação do
corpo sensível:
Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de
dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às
pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente,
faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso
voluntariamente. É pelo efeito de qualquer disposição
maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o
homem vicioso se torna o que é. Todo homem, de fato, tem
o vício como inimigo, e o vício ocorre-lhe, apesar de tudo.
Nota-se assim que o corpo em si independe da alma enquanto
existente, na medida em que o considerarmos como uma massa de matéria
amorfa, isto é, carente da modelagem proporcionada pela alma como Idéia de
homem. Mas o homem só se constitui enquanto homem estando a psyché
ligada a um corpo sensível. A configuração deste, em Platão, parece não ser
controlada ou determinada conscientemente pela psyché no momento da
reencarnação. No entanto, referências de que a alma pode aperfeiçoar um
corpo até certo limite por meio de suas excelências (aretai) e de seu caráter
vital, conforme vemos no diálogo A República (PLATÃO, s/d: 118):
Também aqui é necessário que a educação comece
desde a infância, que seja feita com grande cuidado e se
prolongue durante a vida inteira. Vou dar-te a minha opinião
sobre o assunto, mas gostaria de saber se é confirmada
pela tua. Não creio que o corpo bem constituído possa
melhorar a alma com suas excelências corporais, mas, pelo
contrário, é a alma boa que, mercê de suas virtudes,
aperfeiçoa o corpo na medida em que isso for possível.
No don, o corpo é mostrado como cárcere e túmulo da alma. Esta
atitude de Platão visava delimitar a posição do corpo como instrumento de
progresso e simultaneamente, instrumento de punição para a alma que não
conseguiu manter-se em contemplação e também para aquelas que foram
viciosas e malévolas em outras vidas. Por isso o suicídio é encarado como uma
afronta aos deuses, que criaram tanto a alma humana como o corpo, conforme
se vê em Fédon (PLATÃO, s/d: 50-51):
CEBES: - diz-nos pois, Sócrates, por que motivo se
pode certamente negar que seja permitido o suicídio?
SÓCRATES: - A esse respeito há, mesmo, uma
fórmula que usam os adeptos dos Mistérios: “É uma espécie
de prisão o lugar onde nós, homens, vivemos, e é dever não
libertar ninguém nem permitir que alguém seja levado dali”.
Sendo um aparelho de aperfeiçoamento e punição, simultaneamente, o
corpo sensível deve ser utilizado por uma alma de maneira que ele não
atrapalhe no processo de conhecimento das Idéias verdadeiras, como se no
Fédon (PLATÃO, s/d: 53):
(Fédon) SÓCRATES: - E quanto aos demais
cuidados do corpo, pensas que possam ter valor para tal
homem? Julgas, por exemplo, que ele se interessará em
possuir uma vestimenta ou uma sandália de boa qualidade,
ou que não se importará com essas coisas se a força maior
duma necessidade não o obrigar a tiliza-las?
Isto porque na situação acima descrita, a alma que desse mais atenção
às necessidades do corpo sensível do que às de sua própria natureza, veria
seu noûs obliterado e correria o risco de intoxicação, sendo impedida de
alcançar a verdade e a felicidade como se vê no Fédon (PLATÃO, s/d: 54-55):
(Fédon) SÓCRATES: - Assim pois, companheiro [...]
se verdade no que acabamos de dizer, que imensa
esperança não existe para aquele que se encontra nesta
altura de minha rota! no além, se tal deve acontecer em
algum lugar, ele irá possuir com abundância tudo aquilo que
exigiu de nós a realização de um imenso esforço, em nossa
vida passada. E assim esta viagem, esta viagem que ora
me foi prescrita, é acompanhada de uma feliz esperança; e
o mesmo acontece a quem quer que possa afirmar que seu
pensamento está pronto e o possa dizer purificado.
Segundo Platão, o corpo sensível por si mesmo geraria na alma alguns
obscurecimentos oriundos de sua natureza, enquanto ligado à psyché, tais
quais, divagações, irracionalidades, terrores, amores tirânicos e outros males
conforme vemos em Fédon (PLATÃO, s/d: 69):
(Fédon) SÓCRATES: - Ora, se tal é o seu estado, é
para o que se lhe assemelha que ela se dirige, para o que é
invisível, para o que é divino, imortal e bio; é para o lugar
onde sua chegada importa para ela na posse da felicidade,
onde divagação, irracionalidade, terrores, amores tirânicos
e todos os outros males da condição humana cessam de
lhe estar ligado, como se diz dos que receberam a
iniciação, ela passa na companhia dos deuses o resto do
tempo!
O pacto com o corpo sensível seria sempre um risco de sucesso ou
insucesso para a alma, conforme sejam conduzidas por ela, suas relações com
ele. Esta influência seria tão grave e importante que, caso seja negligenciada
pela psyché, poderia gerar-lhe um dos piores males que Platão menciona que
seria a crença de que o objeto da emoção seria mais real e verdadeiro, por ser
sensível, do que as realidades inteligíveis, como se observa no Fédon
(PLATÃO, s/d: 71):
(Fédon) SÓCRATES: - É que em toda alma humana,
forçosamente, a intensidade do prazer ou do sofrimento, a
propósito disto ou daquilo, se faz acompanhar da crença de
que o objeto dessa emoção é tudo o que de mais
verdadeiro, embora tal não aconteça. Esse é o efeito de
todas as coisas visíveis, não é?
CEBES: - Efetivamente.
SÓCRATES: - e não é em tais afetos que no mais
alto grau a alma fica sujeita às cadeias do corpo?
CEBES: - De que modo, dize?
SÓCRATES: - Assim: todo prazer e todo o
sofrimento possuem uma espécie de cravo com o qual
pregam a alma ao corpo, fazendo assim com que ela se
torne material e passe a julgar da verdade das coisas
conforme as indicações do corpo. E pelo fato de conformar
a alma ao corpo em seus juízos e comprazer-se nos
mesmos objetos, necessariamente deve produzir-se em
ambos, segundo penso, uma conformidade de tendências
assim como também uma conformidade de hábitos; e sua
condição é tal que, em conseqüência, ela jamais atinge o
Hades em estado de pureza, mas sempre contaminada pelo
corpo, onde em certa forma se planta e deita raízes. E por
força disso fica desprovida de todo direito a participar da
existência do que é divino e, portanto, puro e único em sua
forma.
Conforme se no diálogo Fédon (PLATÃO, s/d: 74-75), o corpo seria
uma roupagem extremamente necessária à libertação da alma de seus
equívocos passados e, como habilitador de uma melhor percepção que o noûs
pode alcançar; pois quanto mais acurada for a percepção noética,
novas e mais
elevadas formas de expressão, percepção e realidade seriam desenvolvidas
pela psyché como se vê abaixo:
(Fédon) SÓCRATES: - “Contudo, segundo penso, as
coisas o se passam assim, Símias; e, portanto, deves tu
também prestar atenção ao que vou dizer, pois no que
respeita à argumentação precedente, todos podem
facilmente perceber de sua ingenuidade. E vou provar isso:
se é verdade que o desaparecimento de nosso tecelão,
após haver usado uma multidão de tais vestuários e de
haver tecido outros tantos, ocorre depois deles todos, mas
antes daquele que foi sua última vestimenta, não se
encontra menor motivo para afirmar que o homem seja
inferior às suas vestes e mais frágil do que elas! Pois bem:
essa mesma imagem, se não me engano é aplicável à alma
em sua relação com o corpo. Quem fizer uso dela dirá
(acertadamente, no meu entender) que a alma é coisa
durável, e o corpo, por seu lado, é coisa frágil e de menor
duração. Quem assim fizer, poderá acrescentar que, cada
alma usa diversos corpos, principalmente se ela vive muitos
anos, pois sendo o corpo, como é possível supor, uma
torrente que se esvai enquanto o homem vive, a alma
incessantemente renova o seu vestuário perecível. Mas,
assim mesmo, é necessário que a alma, no dia em que for
destruída, se revista com a última vestimenta que teceu e
que seja esta a única anteriormente à qual tenha lugar esta
destruição. Uma vez aniquilada a alma, o corpo patenteia
desde logo a sua fragilidade essencial e, caindo em
podridão, não tardaria a desaparecer definitivamente. Por
conseguinte, não estamos ainda em condições de aceitar o
argumento de que tratamos, e, assim, confiar em que
mesmo depois de nossa morte nossa alma continue a
existir em algum lugar
Neste sentido, segundo Platão, a velhice seria compreendida como um
período de paz e liberdade para a alma encarnada, pois as paixões seriam
enfraquecidas e a pneyma (alma apetitiva ou alento vital) e o thýmos (alma
impetuosa), vistos como tiranos seriam apaziguados dando finalmente ao noûs
maior autonomia conforme vemos em República (PLATÃO, s/d: 12):
E ele respondeu: “Sossega, homem! Com a maior
satisfação me livrei dele, como quem se livra de um déspota
furioso e selvagem.” Essas palavras me tem vindo muitas
vezes à lembrança e ainda hoje me parecem tão boas como
quando as ouvi pronunciar. Pois é certo que a velhice traz
consigo uma grande paz e liberdade; quando se embota o
acicate das paixões, sucede exatamente o que dizia
Sófocles: libertamo-nos não apenas de um tirano, mas de
muitos.
No entanto, na razão diretamente inversa da liberdade e paz que
receberia a alma através do enfraquecimento corporal, este lhe geraria outros
temores pertinentes ao estado post mortem: as preocupações com as
conseqüências das suas ações ao longo da vida, uma espécie de revisão para
tentar atenuar os possíveis problemas que terá na vida futura, conforme vemos
na República (PLATÃO, s/d: 13):
CÉFALO: - Por que de saber, Sócrates, que
quando um homem se julga próximo da morte, entram-lhe no espírito temores e
preocupações que nunca experimentou antes.
3.10 CONTROLE DA ALMA SOBRE SI
Esta seção se fundamenta nas precedentes e visa explicitar a forma
pela qual a alma exerceria poder sobre si e as conseqüências deste sobre ela e
suas relações com o meio e às demais almas.
Como fora visto na República, a alma em Platão seria comparada a
uma polis, tendo o governo a encargo do noûs, a defesa e patrulhamento
interno sob responsabilidade do thýmos e a produção de energia e manutenção
em relação com o corpo sensível em atividade reguladora produtiva através do
pneyma.
O noûs exerceria o papel mais importante, na medida em que
determinaria o que poderia atingir a alma em termos ideais. Nesta medida,
observamos que seu papel o se estenderia à administração interna, como
também à externa e, principalmente, à atuação consciente neste processo.
Platão nos informa que a alma, pode ser enérgica, bestial ou suave no
controle seletivo das Idéias que absorve, pois sabe que necessariamente
sofreria os efeitos de suas escolhas. Neste sentido, fica clara a importância
deste controle ser exercido pelo noûs, uma vez que apenas ele seria capaz de
avaliar com equilíbrio os efeitos positivos ou negativos das escolhas da alma.
No Sofista (PLATÃO, s/d: 139) vê-se que a posse e a presença de cada
uma das Idéias transformaria a alma dando-lhe uma determinada característica
própria, por exemplo, se a Idéia de justiça é ingerida, a alma assumiria as
propriedades de uma alma regida pela justiça e assim por diante como se vê a
seguir:
(Sofista) ESTRANGEIRO: - Ora, não é na posse e na presença da justiça que
as almas assim se tornam justas; e na posse dos contrários que se tornam o contrário?
As características deste controle, isto é, da intensidade e rigor com o
qual seria feito o acompanhamento por parte do noûs, encontra-se a base
originária da personalidade na mencionada configuração psicológica da alma
que seguiria um dos deuses na revolução divina da contemplação, conforme
vemos em Fedro (PLATÃO, s/d: 153):
(Fedro) CRATES: - A realidade sem
forma, sem cor, impalpável só pode ser contemplada pela inteligência, que é o guia da
alma. E é na Idéia Eterna que reside a ciência perfeita, aquela que abarca toda a
verdade.
É neste sentido que o complexo cognitivo anímico melhor exerceria sua
função, fundamentando seu agir e pensar com razões necessárias e razoáveis
através do qual realizaria a estruturação de sua percepção tempo-espacial
objetivando atingir a alimentação ideológica adequada ao desenvolvimento das
asas da sabedoria e da inteligência para a alma. Para tanto, ela seria
impulsionada por sua identidade substancial para com as Idéias que a fariam
intuir ou reconhecer nos objetos sensíveis o Belo, o Bom e o Justo sempre se
harmonizando com essas Idéias verdadeiras.
Outro aspecto importante sobre a seletividade anímica, é a questão da
sabedoria adquirida através da ciência. A alma seria sábia se ela soubesse
selecionar para si o melhor entre as Idéias, pois se tornaria capaz de governar-
se. Pelo que se depreende do exposto, existiriam Idéias nas quais a alma
absorveria suas propriedades como parâmetros de comportamento, como por
exemplo, a temperança, a justiça, a coragem, a memória, a generosidade e
outras. Desde que a ingestão destas estivesse submetida à razão, conforme
vemos em Mênon (PLATÃO, s/d: 63), a alma seria feliz, conforme segue:
(Mênon) SÓCRATES: - Podemos concluir, portanto, ao que me parece, que tudo
aquilo que diz respeito à alma quando é submetido à razão, conduz à felicidade.
Quando a razão aí não está a dirigir, dá-se o contrário.
O término da participação da alma nos ciclos reencarnatórios estaria
diretamente relacionada a como ela exerceria o controle sobre si em relação ao
corpo sensível, pois as dores e prazeres seriam detectados pela alma através
da ação da pneyma, sua parte mortal e intermediária entre os corpos sensível e
inteligível. A alma vegetativa, conforme se no Timeu (PLATÃO, s/d: 155),
não conteria opinião, raciocínio nem intelecção, mas teria sensações
agradáveis e dolorosas, além de desejos:
Depois, implantou neste suporte as diferentes
espécies de almas. E todas as espécies de figuras que
cada espécie de ser deveria receber em seguida, distinguiu-
as na própria medula imediatamente, e desde esta divisão
inicial. E a espécie de medula que devia, como uma gleba,
receber em si mesma a semente divina, conformou-a
inteiramente esférica, e chamou a esta parte da medula
encéfalo, porque após o acabamento de cada ser vivo, o
recipiente que devia recebê-la seria a cabeça. Em
contraparte, a porção que deveria receber o resto da alma,
sua parte mortal, dividiu-a em figura a um tempo alongada e
roliça, e a todas essas porções deu o nome de medula, e
como que âncoras atirou os liames de toda a alma, e
formou em torno da medula todo o corpo, após haver
previamente condensado, em torno da medula, um
revestimento ósseo.
A alma assim, mostrar-se-ia sempre passiva e sofreria tudo que atinge
o homem. É nesta medida que a alma seria afetada pelo corpo sensível e que
segundo a opção dela quanto à forma que conduziria sua vida, a pneyma
poderia ou não turvar a ação do noûs.
Para Platão, no Timeu, o vício que é para ele ignorância e,
consequentemente, uma doença da alma, não seria um ato intencionalmente
voluntário, mas sim uma disposição do corpo sensível ou fruto de uma
educação constituindo-se assim, como um dos maiores inimigos do homem:
Igualmente, tudo o que se imputa à incapacidade de
dominar a voluptuosidade, tudo o que se reprova às
pessoas viciosas, como se assim fossem voluntariamente,
faz-se-lhes injustamente injúria. Pois ninguém é vicioso
voluntariamente. É por efeito de qualquer disposição
maligna do corpo ou de uma educação mal regrada que o
homem vicioso se torna o que é. (PLATÃO, s/d: 176)
É importante recordar que o controle que a alma exerce sobre si seria
uma questão de saúde, pois segundo o que viesse a acolher em seu seio, teria
conseqüências inevitáveis. O papel do noûs seria semelhante ao do médico que
seria responsável pela ciência do amor nos corpos, conforme se em
Banquete (PLATÃO, s/d: 92):
(Banquete) ERIXÍMACO: - A Medicina, com efeito,
para em poucas palavras, é a ciência do amor nos corpos
relativamente a sua relação e evacuação, e aquele que
nesses movimentos consegue estremar o bom do mau
amor, esse é um bom médico. Aquele que suscita o
aparecimento de amor onde não havia amor, e onde não
obstante era necessário, e elimina um amor existente,
quando pernicioso, esse inegavelmente, merece o título de
excelente médico.
Toda a sabedoria do médico consiste em saber
provocar o nascimento da amizade entre os maiores
inimigos recíprocos existentes no corpo do homem, e fazer
estabelecer-se um amor mútuo entre eles. Por maiores
inimigos quero entender os maiores contrários que no corpo
habitam: o frio e o quente, o amargo e o doce, o seco e o
molhado, e assim por diante. Foi precisamente por haver
alcançado esse ideal, por haver conseguido estabelecer
amor e concórdia entre esses contrários, que Asclépio,
nosso antepassado, fundou a nossa arte, segundo nos
contam os poetas e no que eu creio firmemente.
É absurdo manifesto pretender que a harmonia
consista em coisas diferentes; e por isso devemos pensar
que Heráclito quis dizer que a harmonia resulta de coisas
que antes eram contrárias, como o agudo e o grave, e que
depois, pela habilidade da arte musical, se uniram. Pois a
harmonia não provém do que ainda é contrário, não provêm
do que ainda é agudo e do que ainda é grave; harmonia é
concordância, é sinfonia, e a concordância, certa
uniformidade. Esta não pode advir de elementos opostos
que permaneçam opostos, pois coisas diferentes e
contrárias jamais concordam entre si; e a harmonia, por sua
vez, resulta de elementos opostos entre os quais se
estabelece acordo.
Isto seria passível de ocorrer quando a alma fosse iludida por sua
incapacidade em distinguir os simulacros das Idéias verdadeiras pela
utilização do seu noûs.
Daí viria a necessidade da alma, através do noûs, de interagir com o
complexo cognitivo anímico e, por meio do corpo sensível, com o ambiente
externo, tentando reduzir ao máximo as influências das sensações para poder
discernir entre o falso e o verdadeiro.
Conforme se no Fedro,
um homem governado pelo desejo seria
escravo e procuraria sempre no objeto de seu desejo extrair o máximo de
prazer, o que se caracterizaria como uma das enfermidades da alma:
(Fedro)
SÓCRATES: - Necessariamente, um homem governado pelo desejo e escravo da
volúpia procurará no seu amado o máximo de prazer.
(PLATÃO, s/d: 143).
É neste sentido que se deve compreender a ação libertadora da razão,
que proporcionaria ao homem a intervenção conscientemente objetiva da alma,
tornando-a assim, capaz de interromper o fluxo indeterminado dos desejos
intemperantes que, segundo Platão, costumaria sitiar a alma interna e
externamente.
Ao possuir o controle consciente e racional do processo existencial, a
alma seria capaz de furtar-se à animalidade das reações instintivas próprias à
natureza animal do corpo sensível e assim aprender a não retribuir uma
injustiça com outra. Logo, o cuidar de si, em se referindo à alma conduziria a
uma vida ótima e virtuosíssima (no sentido de areté).
Na medida em que a racionalidade fosse atuando sobre o corpo
sensível, a alma se harmonizaria passando do ritmo à eurritmia
15
. O controle
seletivo exercido pelo complexo cognitivo anímico iria se aperfeiçoando e
reduzindo as possibilidades de assalto por parte dos excessos sensíveis, que
agiriam sobre a economia da alma.
De maneira equilibrada, o complexo trino-anímico da psyché se
desenvolveria segundo sua especialização, garantindo a ordem e o equilíbrio
gerais. Assim sendo, dificilmente as chamadas por Platão doenças da alma
vindas do corpo, isto é, a demência, o excesso de prazeres e dores e a
sensualidade imoderada teriam guarida na alma vigilante. Isto por que o centro
de gravidade de seu pensamento estaria focado no que verdadeiramente
interessa à alma, isto é, o nutrir-se de Idéias verdadeiras, bons exemplos e
imagens, virtudes e filosofia.
15
É preciso ter bem claro que para Platão a percepção e a intelecção perfeitas seriam um meio
termo regulado pela noção de Música.A harmonia Musical deveria refletir-se na saúde
psicológica da pessoa como na saúde pública, no que se refere à cidade-estado, agindo assim
por reflexo do interior para o exterior, conforme se em Timeu: [...] esta harmonia “musical”
deve não refletir-se na saúde psíquica da pessoa, como na “saúde” da própria República,
sendo a sua noção de “ordem pública”. (PLATÃO, s/d: 87)
IV. CONCLUSÃO
Para compreender o objeto de estudo desta dissertação vimos que a
concepção de natureza (phýsis), em Platão, corresponde à de sua cultura, isto
é, uma natureza encarada como um organismo vivo no qual o ser humano não
é algo à parte do todo mas, ao contrário, a phýsis que Platão chama de Cosmos
é a união do que o filósofo denomina Alma e Corpo do Todo (ou do Mundo) e
contém o que os gregos chamavam de mundo dos homens, dos mortos, dos
deuses e o que chamaríamos hoje de mundo natural, composto pelos reinos
mineral, vegetal e animal.
A natureza é compreendida em dois grandes blocos: o sensível,
contendo tudo o que é objeto de percepção sensorial e o inteligível, contendo
tudo o que é objeto de percepção intelectiva.
O inteligível comporta ainda subdivisões da realidade, a saber: o plano
dos entes matemáticos; o plano das Idéias, que engloba as Idéias gerais, as
Idéias particulares, as Idéias generalíssimas ou meta-Idéias e números-figuras
Ideais e, finalmente, o plano dos Princípios, contendo o Uno (ou o Mesmo) e a
Díade (ou o Outro).
O mundo sensível tem no inteligível sua fundamentação e razão de ser,
pois enquanto o primeiro essubmetido às variações de geração e corrupção,
o segundo é eterno, imutável, estável, harmonioso e perfeito capaz assim de
garantir a existência do real como um todo.
A Alma e o Corpo do Cosmos foram construídos por um Deus, ser este
que não foi possível identificar nas obras de Platão estudadas nesta
dissertação. Esta formação se deu a partir de substâncias que o autor
identificou com os Princípios de sua phýsis, a saber: Uno (Mesmo) e Díade
(Outro). Esses Princípios são opostos, complementares e são o sustentáculo
último do real. A Alma foi construída com porções dessas substâncias mais
uma terceira que é a fusão proporcional dos Princípios do Uno e da Díade.
O objetivo da construção da Alma do Todo foi que ela viesse a
conceder beleza e inteligibilidade à matéria informe de maneira a ordená-la e
nessa medida a Alma do Mundo foi modelada de maneira a ser perfeitamente
simétrica com o Corpo e capaz de ter estendido em si tudo o que é corporal.
Em seguida, o Deus constrói o Corpo do Todo e instala a Alma no centro do
Corpo estendendo-a através dele até seus limites para englobá-lo. Dado as
características próprias aos Princípios e à terceira substância o Corpo do Todo
é indissolúvel e não submetido às variações do tempo.
Deus não constrói a alma humana. Ele passa essa tarefa ao que Platão
identifica como deuses olímpicos que compuseram a alma e o corpo humano. À
semelhança do processo de criação da Alma e do Corpo do Cosmos os deuses
manipularam as substâncias dos Princípios, porém com a diferença de que não
havia mais a substância pura do Mesmo. Sobrou-lhes apenas a substância do
Outro e o misto do Mesmo com o Outro. A construção da alma e do corpo
humano assim se procedeu em semelhança com a da Alma e o Corpo do Todo,
deste diferenciando-se na medida em que devido à ausência da substância
pura do Mesmo, submeteu o corpo humano a uma porção maior do Outro e por
conseguinte mais próximo às mudanças e corrupções do devir, o corpo humano
é mortal.
Devido às semelhanças substanciais e de propriedades entre a Alma do
Todo e a alma humana, Platão admite uma identificação entre uma e outra com
base no princípio de que é possível conhecer a alma humana na medida em
que se esforce para conhecer o Cosmos, logo, conhecendo-se a Alma do
Mundo, conhece-se a alma humana e suas características. Daí decorre que, em
menor escala, tudo o que for aplicado à Alma do Mundo haverá de existir na
alma humana e vice-versa.
Nesta medida, a alma humana é um misto substancial do Princípio do
Outro com a terceira substância, fusão do Outro e do Mesmo. Seu objetivo é
conceder beleza e inteligibilidade à matéria de maneira a ordená-la. É simétrica
ao corpo, se estende através dele e o envolve de maneira circular. Por
semelhança, deduz-se que tenha sido instalada pelos deuses no centro do
corpo. A alma é um poder natural, uma força capaz de produzir movimento a
partir de si e de conceder-lhe aos corpos. É capaz de se acoplar a corpos. A
alma possui precedência e ascendência sobre o corpo de maneira que ele lhe é
subordinado por natureza.
A alma é conduzida pelo desejo inato do prazer e pela opinião que
deseja o melhor; é imortal por participar do que Platão chama de divino, possui
uma Idéia no chamado plano das Idéias e devido a isso possui a característica
de ser simultaneamente inteligível e incorpórea, no sentido de não ser
encerrada em limites mais ou menos rígidos.
Ela é passível de sofrer a encarnação caso não se alimente
convenientemente, tem no fenômeno da linguagem, na eloqüência em especial,
um modo próprio para comunicação para guiar almas e ser conduzida por
outras almas.
A alma humana move-se em círculos e o número delas é proporcional
ao número de astros do Cosmos, logo, segundo a percepção grega e platônica,
as almas humanas têm um número fixo, pois ainda não existia a noção de
infinito aplicada à Astronomia.
A alma é capaz de conhecer os objetos do sensível e, em especial do
inteligível em si e por si, devido à sua natureza substancial e de propriedades
estarem relacionadas à composição íntima do sensível e do inteligível. Em
decorrência desses contatos com os dois planos da natureza a alma é capaz de
sofrer dores e ter prazeres. Habita o Hades ou o mundo inteligível enquanto não
encarna ou por ocasião da morte do corpo.
A alma tem a liberdade de optar pelo modo através do qual melhor se
alimentará através da contemplação das Idéias, escolhendo um deus do
panteão olímpico como paradigma comportamental que implicará
necessariamente no modo como cognitivamente se comportará. Sob o efeito de
seus atributos, a alma é considerada como o elemento de ordenação causal de
tudo que a cerca no Cosmos. A alma possui vontade e esta pode ser
potencializada através da utilização da razão no processo de conhecimento. A
alma é, pois diretamente responsável por seus atos e escolhas, recebendo em
conseqüência, a felicidade ou infelicidade delas decorrentes.
O pensamento é um dos atributos da alma. Enquanto atributo, ele não a
afeta substancialmente, mas apenas em termos de equilibração de suas partes
substanciais em relação com os planos sensível e inteligível.
A ascese do pensamento se através da contemplação e do acesso
ao conhecimento verdadeiro que progride de maneira escalonada por indução.
Por meio do pensamento, a alma é capaz de separar-se ou aproximar-se mais
ou menos do sensível ou do inteligível por adensamento de uma ou outra parte
de sua natureza. O pensamento é considerado como diálogo da alma consigo.
É um intermediário entre o intelecto e os estímulos sensoriais. É um elemento
de comunhão entre a alma e o Ser Verdadeiro, pois é capaz de percebê-lo, bem
como ao que é permanente. Permite o contato intersubjetivo e a possibilidade
de transmissão de conhecimento.
O pensamento é um órgão de percepção racional, estando vinculado
assim, à razão. Serve à alma como uma espécie de torno anímico, modelando
na e pela linguagem os conteúdos a serem ordenados causalmente no
Cosmos. O pensamento é capaz de causar sensações, emoções e reflexões na
alma, representando os estímulos sensíveis e inteligíveis através da linguagem.
Essas representações (signos) são estruturadas em imagens, atitudes e
palavras. O pensamento pode se tornar viciado e nessa medida torna-se capaz
de gerar um adensamento da alma com base no reforço da substância do
Outro, vinculando a alma ao devir sensível.
O discurso é o meio através do qual a alma emite juízos sobre tudo
através do pensamento. Quando o juízo se na alma através do pensamento,
o autor o chama de opinião, quando se dá através da sensação, Platão o
chama de imaginação. A imaginação é a combinação da sensação e da
opinião. Esta é a conclusão do pensamento em dado juízo. Por ser vinculada à
sensação, a opinião pode ser verdadeira ou falsa.
A inteligência é outro dos atributos da alma para que ela se relacione
com o sensível e o inteligível. Foi instalada na Alma do Todo pelo Deus e por
semelhança, foi instalada na alma humana pelos deuses. Pelo depreendido na
pesquisa a alma humana é o único ser no Cosmos capaz de exercer a
inteligência. A presença dela não garante o uso da razão, pois a razão é uma
linguagem que foi criada na Grécia pré-socrática e paulatinamente inserida no
contexto social de Platão. A inteligência é distinta da razão, pois a primeira
governa a alma devido à sua capacidade de expressar a razão como
linguagem; permanece após a morte e exerce o papel ordenador e causal de
tudo. Proporciona acesso aos Princípios ordenadores e causais de tudo através
do pensamento.
A inteligência é considerada infinita, autônoma, não se mistura com
nada no sensível, existe de per si, e é a mais sutil e a mais pura de todas as
coisas. Possui um conhecimento total de tudo, é o maior poder existente, é o
que dirige o que tem vida. É responsável por seu auto-movimento e o das
demais coisas existentes em contato com ela. Conhece todo o sensível,
conhece o passado, o presente e o futuro; é toda igual e dispõe todas as coisas
da melhor maneira possível. A inteligência é estruturalmente conexa à Idéia de
Bem, no sentido do melhor como condição da geração, da corrupção e do ser
das coisas.
A inteligência (noûs) é o guia da alma, e como tal, é um dos atributos
que os deuses lhe concedem no momento de sua construção. A alma tem
necessidade de alimentação com base nas Idéias e as atinge por
contemplação, que tem como finalidade auferir sabedoria para alcançar a
felicidade e para furtar-se aos ciclos da reencarnação.
A alma possui na memória o atributo necessário para se aperfeiçoar
através da contemplação de Idéias. Com a memória a alma acumula, elabora e
aperfeiçoa as experiências acumuladas em suas vivências no mundo inteligível
e no mundo sensível. Dado sua natureza substancial e de propriedades a alma
humana mantém contato com tudo o que é próprio ao Outro e ao Mesmo
através da substância mista Outro-Mesmo que a constitui intrinsecamente, o
que vem a ser a base e possibilidade de sua dinâmica cognitiva.
A razão é outro atributo da alma e deve orientar o desejo para gerar o
que Platão chama de prazer do bem. A ação racional da alma se inicia apenas
pela ocasião da alma ser vinculada a um corpo pela primeira vez. Ela exerce o
papel de juiz e critério necessário para que a alma atinja a felicidade.
A razão é também diretamente vinculada à alma e direcionada por sua
vontade. É uma capacidade discursiva: auxilia a alma a apreender parcialmente
a realidade de um ser através do conhecimento filosófico.
A alma em Platão é esse ser vivente em contato com o corpo através
da reencarnação, modelando a matéria por participação, gerando vida e
movimento por suas características substanciais e de propriedades, além de
atuar como elemento ordenador e causal da realidade através da linguagem,
exercendo o papel de verdadeira doadora de valor e sentido a tudo em todas as
relações que a alma mantém, enquanto encarnada ou desencarnada,
cumprindo seu papel de proporcionar à matéria beleza e inteligência.
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