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Leonardo O’Reilly Brandão
Além do Sabre e da Espada.
Encontros e Desencontros Culturais no
Tempo de Saladino
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre pelo Programa de
Pós-Graduação em História Social da Cultura, do
Departamento de História da PUC-Rio.
Orientadora: Profª. Flávia Maria Schlee Eyler
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610406/CB
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Leonardo O’Reilly Brandão
Além do Sabre e da Espada.
Encontros e Desencontros Culturais no
Tempo de Saladino
Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em
História Social da Cultura do Departamento de História do
Centro de Ciências Sociais da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profª Flávia Maria Schlee Eyler
Orientadora
Departamento de História
PUC-Rio
Profº Nizar Messari
Instituto de Relações Internacionais
PUC-Rio
Profª Arlete José Mota
Faculdade de Letras
UFRJ
Profº Nizar Messari
Vice-Decano de Pós-Graduação do Centro de Ciências Sociais
PUC-Rio
Rio de Janeiro, 22 de agosto de 2008.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610406/CB
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução
total ou parcial do trabalho sem autorização do autor,
da orientadora e da universidade.
Leonardo O´Reilly Brandão
Graduou-se bacharel e licenciado em História pela
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro em
julho de 2004. Participou de atividades de magistério
no ensino básico e superior, além da coordenação de
cursos livres e de extensão.
Ficha Catalográfica
CDD: 900
Brandão, Leonardo O’Reilly
Além do sabre e da esp
desencontros culturais no tempo de Saladino /
Leonardo O’Reilly Brandão ; orientadora: Flávia
Maria Schlee Eyler. – 2008.
153 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em História)–
Pontifícia
Universidade Católica do Rio d
e Janeiro, Rio de
Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. História
Teses. 2. História social da
cultura. 3. História do Islã. 4.
História das
Cruzadas. 5. Islã medieval. 6. Crise do Islã
. 7.
Jerusalém. I. Saladino. II. Eyler, Flávia M
aria
Schlee. III. Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro. Departamento de História. III. Título.
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Para todos aqueles que acreditam no diálogo e na
tolerância entre os seres humanos de todas as culturas.
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Agradecimentos
À minha orientadora Professora Flávia Maria Schlee Eyler, pelo diálogo, estímulo
e apoio na realização deste trabalho, e pelos valiosos ensinamentos.
À CAPES e à PUC-Rio, pelos auxílios concedidos, sem os quais este trabalho não
poderia ter sido realizado.
À coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura,
Professora Margarida de Souza Neves.
Ao Professor Ilmar Rohloff de Mattos, pela experiência profissional acumulada
nos anos passados ao seu lado.
Aos professores que participaram da Comissão Examinadora.
A todos os funcionários e professores do Departamento de História, pela valiosa
ajuda e ensinamentos.
Aos amigos, que souberam perdoar as prolongadas ausências para a realização
desta dissertação.
Aos meus pais, meu irmão, e minha avó Nelly pelo carinho, apoio e tranqüilidade
proporcionados, elementos fundamentais para a produção deste trabalho.
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Á Professora Maísa Mader, pelo apoio e amizade.
Á Professora Helena Godoy, pela amizade e carinho.
Às alunas do curso Studia Humanitatis, cujas reflexões tornaram-se o ponto inicial
deste trabalho – Lea, Cláudia, Elza, Alice, Vera, Gisella, Sandra e Ana Luísa.
À Professora Cristina Buarque de Hollanda, por sua leitura crítica e apoio.
À Professora Arlete José Mota, companheira dos estudos literários e históricos
sobre Roma Antiga.
Ao Professor Luiz Costa Lima, pelas pertinentes observações sobre o projeto de
pesquisa que gerou esta dissertação.
Aos companheiros de faculdade, Adriane e Dan, cuja compreensão da natureza do
trabalho foi um estímulo constante durante esses anos.
A todos aqueles que de uma forma ou de outra me ajudaram, apoiaram ou
estimularam.
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Resumo
Brandão, Leonardo O´Reilly; Eyler, Flávia Maria Schlee. Além do Sabre e
da Espada. Encontros e desencontros culturais no Tempo de Saladino.
Rio de Janeiro, 2008. 153p. Dissertação de Mestrado Departamento de
História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Este trabalho busca as origens de um mito político do mundo árabe - o
sultão Saladino ibn Ayyub (1138 - 1193), adversário dos cristãos ocidentais, na
Síria e na Palestina, durante a época das Cruzadas. A partir da utilização da figura
de Saladino ao longo das últimas décadas, no mundo árabe-muçulmano, para fins
políticos diversos, entre nacionalistas e fundamentalistas, nos interrogamos acerca
das origens desta mitologia política e das apropriações originárias do Saladino
histórico. Para tanto, analisamos, entre outros, o documento Al-Nawadir al-
Sultaniyya, relato biográfico do sultão escrito por Bahaheddin ibn Shaddad.
Palavras-chave
História do Islã; História das Cruzadas; Islã Medieval; Crise do Islã;
Jerusalém; Saladino.
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Abstract
Brandão, Leonardo O´Reilly; Eyler, Flávia Maria Schlee. Além do Sabre e
da Espada. Encontros e desencontros culturais no Tempo de Saladino.
Rio de Janeiro, 2008. 153p. MSc Dissertation Departamento de História,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
This work seeks the origins of a political myth in the arab world – the sultan
Saladin ibn Ayyub (1138-1193), enemy of the western christians, in Syria and
Palestine, in the time of the Crusades. Beginning with the use of this character for
political purposes during the last decades, in the arab-muslim world, among
nationalists and fundamentalists, we question about the original appropriations of
the historical Saladin. To achieve these goals we analyse, between others, the
document entitled Al-Nawadir al-Sultaniyya, a biography of the sultan written by
Bahaheddin ibn Shaddad.
Keywords
Islamic History; History of the Crusades; Medieval Islam; Crisis in Islam;
Jerusalem; Saladin.
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Sumário
1 Introdução. 13
1.1 A relevância do reconhecimento da alteridade. 16
1.2 Observações acerca do tratamento com as fontes. 18
1.3 O Caráter Mimético das Representações de Saladino. 21
2 Discursos historicizantes: transformação e apropriação. 24
2.1 O Islã e os Povos do Livro. 24
2.2 A apropriação do mbolo de Saladino por agentes
políticos nos séculos XX e XXI.
26
2.3 História e historiografia das Cruzadas no mundo árabe. 34
3 Política e Cultura no Oriente Médio Muçulmano (séculos
XI e XII d.C.).
36
3.1 Identidades e denominações culturais durante o tempo de
Saladino.
36
3.2 Nômades e sedentários no processo histórico oriental. 41
3.3 Cruzadas: o contexto geopolítico oriental, séculos XI e XII
d.C..
48
3.4 Ascensão dos Zângidas. 52
3.5 Memórias de Usamah ibn Munqidh. 54
3.6 Nureddin. 65
3.7 Saladino. 68
3.8 O Tempo de Saladino. 73
3.9 Idéias e Práticas Políticas no Islã do Tempo de Saladino. 78
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4 A Rara e Excelente História de Saladino. 86
4.1 Baha´al Din Ibn Shaddad. 87
4.2 Princípios básicos da crença religiosa ortodoxa (sunita)
islâmica conforme a formulação de Ibn Shaddad.
91
4.3 Prólogo do al-Nawadir. 92
4.4 Do nascimento de Saladino à expedição egípcia. 97
4.5 Sobre sua aderência às crenças religiosas e observância
das matérias da Lei Sagrada.
100
4.6 Sobre o seu temperamento e sua justiça. 104
4.7 O caso Suhrawardi, ou os limites da tolerância no Tempo
de Saladino.
109
4.8 Saladino e Reinaldo de Châtillon. 114
4.9 A conquista de Jerusalém, al-Quds. 120
4.10 A aliança com o Imperador Armênio e o destino do
Imperador Germânico.
127
4.11 Saladino e Ricardo Coração-de-Leão. 129
4.12 Saladino e os Assassinos. 136
4.13 Sobre suas questões de saúde e seu falecimento. 139
5 Considerações finais: o legado de Saladino e de seu
tempo.
141
6 Referências Bibliográficas. 146
7 Cronologia. 152
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Lista de Figuras e Mapas
Mapa 1 Região da Síria. 49
Mapa 2 Rede urbana sírio-palestina, séc. XII. 50
Mapa 3 Lugares visitados por Usamah ibn Munqidh. 64
Mapa 4 Impérios seljúcida e ayyúbida. 76
Mapa 5 Domínio territorial de Saladino. 77
Figura 1 Fac-símile do manuscrito do Kitab al´I´tibar. 20
Figura 2 Moeda com efígie de Saladino. 50
Figura 3 Estátua eqüestre de Saladino em Damasco. 76
Figura 4 O filósofo e seus discípulos. 113
Figura 5 Cidadela de Alepo. 126
Figura 6 Jerusalém Medieval. 126
Figura 7 Arautos muçulmanos. 135
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Jerusalem, if I forget you,
fire not gonna come from my tongue.
Jerusalem, if I forget you,
let my right hand forget what it's
supposed to do.
Jerusalém, se eu te esquecer,
o fogo não sairá de minha língua.
Jerusalém, se eu te esquecer,
Que minha mão direita esqueça o que
ela deve fazer.
Matisyahu, Jerusalem
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1
Introdução
Após os atentados do dia 11 de setembro de 2001, podemos observar o uso
de imagens e referências aos embates medievais entre cristãos e muçulmanos,
sendo geralmente utilizados em discursos políticos e incitação de paixões
religiosas. Em entrevista poucos dias após os atentados de 11 de Setembro, o
presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, declarou iniciada uma “cruzada
contra o terror”
1
, expressão que contém um forte significado histórico. Por outro
lado, as imagens divulgadas e escritos da rede terrorista mais conhecida
mundialmente, a al-Qaeda
2
, fundada e inspirada por Osama bin Laden
3
, utilizam
uma linguagem que opera abundantemente com conceitos e termos históricos,
enfatizando as ligações entre o passado medieval e o presente. Em todo o mundo,
uma parte da população e dos líderes muçulmanos consideram a crise atual entre o
ocidente e o mundo islâmico uma continuação das agressões sofridas pelos
muçulmanos durante as Cruzadas
4
.
Um personagem histórico se destaca nesta reelaboração do imaginário
cruzadístico dos dias atuais: Yussef ibn Ayyub, conhecido no ocidente como
Saladino, sultão da Síria, Egito, Palestina e Iêmen durante o final do século XII,
comandante responsável pela reconquista de Jerusalém para as mãos do Islã - fato
deflagrador da Terceira Cruzada, liderada pelos reis Ricardo Coração-de-Leão, da
Inglaterra, e Felipe Augusto, da França. Ao longo dos séculos XX e XXI,
diversos grupos políticos e personalidades do mundo muçulmano invocaram o
nome de Saladino: de Abdel Nasser
5
a Saddam Hussein
6
, do Movimento de
Libertação da Palestina à rede Al-Qaeda, este sultão representa atualmente uma
1
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2001, manchete primeira página.
2
Rede fundamentalista, de estrutura descentralizada em células” operacionais semi-autônomas,
de orientação sunita wahabita.
3
Ex-combatente saudita que lutou no Afeganistão contra os soviéticos, durante a década de 1980,
que tornou-se o maior símbolo do fundamentalismo islâmico nos dias atuais.
4
Cf LEWIS, 2003; MAALOUF, 2000 e ARMSTRONG, 2001.
5
Ex-presidente do Egito (1918 – 1970).
6
Ex-presidente do Iraque (1979 – 2003).
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14
figura exemplar, um modelo de comportamento heróico, libertador, de um
guerreiro vitorioso contra o invasor do ocidente.
7
Devido a tantas reinvenções desta tradição que invoca Saladino, faz-se
necessário analisar criticamente as origens narrativas deste mito histórico, político
e religioso: qual a importância deste agente histórico no contexto medieval
muçulmano? Por que este sultão é o lembrado contemporaneamente e qual a
relação que se estabelece, hoje em dia, entre história e atualidade, neste caso?
Como diversas tendências político-religiosas do Islã contemporâneo se apropriam
de Saladino, moldando sua imagem conforme seus interesses e ideais? Quais os
elementos históricos que fornecem subsídios para estas apropriações? Quais as
diferenças narrativas entre as primeiras apropriações literárias medievais da figura
de Saladino e as tradições reinventadas da contemporaneidade
8
? Para discutirmos
estas questões, faz-se necessário um retorno às fontes originais do período
medieval e uma outra interpretação historiográfica dos eventos ocorridos durante
o tempo de Saladino
9
(1171 1250) e o contexto histórico mais amplo em que
estes eventos estão inseridos – a época das Cruzadas (1096 – 1291).
A partir do estudo das condições culturais e sociais do Islã, durante o tempo
de Saladino, nos voltaremos para uma interpretação do pensamento, sensibilidades
e os olhares dos homens deste recorte histórico. Buscaremos evidenciar as
possibilidades que o Islã apresentou, historicamente, de perceber a humanidade do
Outro, num período de conflitos armados, quando o mundo muçulmano se auto-
representava como a civilização mais avançada e os considerados bárbaros eram
os cristãos europeus que pilhavam e conquistavam a Terra Santa. Estaremos nos
referindo a um tempo e a um espaço determinados a região da Palestina, Síria e
Egito, século XII d.C. (séculos V e VI da Hégira).
7
Cf. LEWIS, 2003 e MAALOUF, 2001; ambos os autores observam a utilização instrumental do
passado como arma política no presente.
8
Seguimos o conceito de Eric Hobsbawn e Eric Ranger em A Invenção das Tradições, que analisa
diversas tradições, de suposto passado longínquo, enquanto construções contemporâneas.
9
Analisaremos o recorte temporal denominado a partir daqui de “Tempo de Saladino” ao longo do
segundo capítulo. Os limites temporais referem-se à duração da dinastia fundada por Yussef, a dos
ayyúbidas, a partir do nome de seu pai, Ayyub. Inspiramo-nos na obra de MATTOS, I.R., O
Tempo Saquarema, para cunhar a expressão, que indica um recorte temporal marcado pela ação de
determinado grupo dirigente.
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15
As atitudes dos sultões e emires muçulmanos neste momento específico
indicavam uma tendência à aproximação do inimigo político e religioso. A
fragmentação política do território da Síria entre diversos poderes, como sultões
turcos, famílias árabes poderosas, seitas xiitas heterodoxas
10
, comunidades cristãs
orientais - situação que perdurou até a unificação desses fragmentos territoriais
islâmicos empreendida por Saladino - propiciava um contato cultural intenso e
produtivo entre cristãos e muçulmanos, que não se limitava mais à guerra, mas
também florescia no comércio, nas alianças diplomáticas e na inevitável vida em
comum, na qual ficavam à mercê das mesmas limitações impostas pela natureza
em uma sociedade pré-industrial.
Um registro histórico desses contatos culturais nos foi fornecido por
Usamah ibn Munqidh
11
, sírio de família aristocrática, guerreiro, poeta e homem de
letras, que transitou por ambos os universos culturais, mediando relações e
permitindo a possibilidade de conhecer suas atitudes e olhares perante a alteridade
que se colocava. Contemporâneo e amigo de Saladino, embora de uma geração
anterior, Usamah nos permite perceber um interesse pela diferença: embora
considerados inferiores culturalmente, os chamados franj
12
são vistos com certa
simpatia e admiração pelos seus dotes guerreiros e estranhamento por suas regras
sociais tão diferentes das dos muçulmanos (principalmente no que se refere ao
trato com as mulheres).
Para o estudo da apropriação originária da história de Saladino, utilizaremos
o texto árabe denominado al-Nawadir al-Sultaniyya wa´l-Mahasin al-Yusufiyya,
traduzido como A Rara e Excelente História de Saladino, de autoria de
Bahaheddin Ibn Shaddad (século XII). Funcionário de Estado do sultão,
Bahaheddin foi testemunha ocular de muitos acontecimentos da vida de Saladino,
constituindo sua obra uma fonte inestimável para o estudo das sensibilidades e
formas de pensamento de sua época.
10
Como, por exemplo, a mais conhecida delas, a seita dos Assassinos, a qual nos referiremos
adiante.
11
Aristocrata sírio, 1095 - 1188.
12
“Francos”, analisaremos com mais cuidado o significado deste termo adiante. Cf. capítulo 3
deste trabalho.
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16
1.1
A relevância do reconhecimento da alteridade
Procuraremos mostrar de que forma valores tidos como ideais da
civilização, como a tolerância e o reconhecimento do Outro, foram
experimentados em outros espaços e temporalidades, como no Islã medieval. As
noções de civilização e barbárie deixam, portanto, nesta perspectiva, de serem
categorias exclusivamente aplicadas a um período ou a uma coletividade, para
serem contextualizadas e matizadas, naquilo que cada sociedade ou cultura possui
de civilizado ou de bárbaro. O reconhecimento de que existe um elemento
humano em comum entre cristãos e muçulmanos, mesmo no inimigo, é um dos
temas presentes nos relatos do período de Saladino. Por outro lado, uma
percepção, entre os letrados árabes, de sua superioridade cultural e técnica,
diferença que se mostra mais aguda, por exemplo, na comparação entre a
medicina dos cruzados, com seus métodos rudes e supersticiosos e a sofisticada
medicina árabe, herdeira dos ensinamentos da Antigüidade clássica.
Verificando essas narrativas sobre Saladino, podemos apontar que é
necessário um esforço de distanciamento, instrumentalização e mitificação deste
personagem histórico para considerar que sua imagem seja, hoje em dia, símbolo
inspirador de atividades terroristas ou de movimentos nacionalistas extremistas
que são aqueles que não reconhecem, no seio de sua luta, o direito do Outro
(mesmo inimigo) de ser e existir. Algumas organizações fundamentalistas e
grupos terroristas realizam atualmente uma operação de apropriação da memória e
dos símbolos ligados a Saladino, em nome de uma extrema intolerância religiosa e
política.
Nossa hipótese é a de que essa ressignificação contraria os atos e o
pensamento de um outro Saladino, este fruto de uma reconstrução historiográfica
que é um dos objetivos deste trabalho: o retorno a fontes e documentos que
possam exprimir a sua luta à luz de conceitos como tolerância e reconhecimento
do Outro. Não almejamos produzir um discurso histórico “verdadeiro”, que a
realidade pretérita é inatingível e incognoscível em sua totalidade; mas podemos
aproximar-nos de uma possível apropriação originária deste fenômeno político e
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17
literário que fora o sultão em sua época – quais sentimentos e atitudes permearam
seu tempo, e as intenções deste protagonista e daqueles que escreveram sobre ele.
É relevante, para a melhor compreensão do objeto proposto, observarmos
alguns aspectos do complexo político-cultural que se formou durante os séculos
das Cruzadas, a partir das alianças e querelas entre príncipes cristãos e
muçulmanos, e das desavenças internas de cada lado. Podemos verificar que,
muitas vezes, os interesses aristocráticos feudais e a vaidade das linhagens
governantes sobressaíam-se em relação aos ideais estritamente religiosos.
Religião, economia e poder misturaram-se num jogo político que transformava os
inimigos de ontem nos aliados de hoje e, muitas vezes, as dissensões internas
eram mais perigosas, para os que estavam no poder, do que as ameaças externas.
Veremos, no segundo e terceiro capítulos, como a lógica da auto-preservação
senhorial regia, mais do que filiações religiosas, étnicas e culturais, o jogo político
do século XII d.C. Esta especificidade demonstra a instabilidade deste processo
político e a sua interação entre seus principais agentes.
Por fim, interessa-nos também a maior divulgação da cultura e da história
árabe-muçulmana como forma de nos aproximarmos de um universo pouco
conhecido e alvo de preconceitos e simplificações. Pretendemos assim contribuir
para o afastamento da hipótese do “choque de civilizações”, conforme a tese de
Samuel Huntington
13
, que afirma que, no século XXI, os principais conflitos serão
culturais, civilizacionais e religiosos, em detrimento das razões políticas e
econômicas. Contrariamente a esta posição, preferimos contribuir para a “aliança
das civilizações”
14
, tese que busca os interesses comuns e a conciliação entre as
diversas culturas do planeta, que formam estruturas sócio-culturais dinâmicas e
em constante mudança, afastando assim a idéia de cultura como atributo fixo e
imutável.
13
Cf. HUNTINGTON, O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial.
14
Conforme o sentido dado pelo então secretário geral da ONU, Kofi Annan, no discurso A
Aliança das Civilizações. Istambul, 12 de fevereiro de 2007: “(...) a idéia de uma aliança das
civilizações não poderia chegar em melhor hora, visto que não vivemos em mundos diferentes,
como acontecia com nossos ancestrais. As migrações, a integração e a técnica têm aproximado as
diferentes comunidades, culturas e etnias, fazendo cair velhas barreiras e desvendando novas
realidades. Nós vivemos como jamais seria possível antigamente, lado a lado, submetidos a várias
influências e idéias diferentes”.
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18
1.2
Observações acerca do tratamento com as fontes
Neste trabalho iremos utilizar fontes documentais do período medieval,
privilegiando os historiadores e cronistas árabes do período, além de crônicas
ocidentais sobre as cruzadas, conforme o caso. Os dois textos a que mais nos
referiremos são relatos em primeira pessoa de eventos dramáticos e anedóticos.
Os historiadores devem ter, sempre, cautela perante tais relatos, uma vez que a
tradição de narrativas inventadas ou moralistas é uma tentação para os
historiadores e cronistas do passado, desde Heródoto
15
e Tucídides
16
.
A historiografia islâmica medieval está repleta de narrativas em primeira
pessoa, no entanto, a maioria destes textos são datados de décadas ou séculos após
os eventos relatados. Muitos destes contos são implausíveis historicamente,
outros são improváveis de confirmação através de fontes confiáveis, e outros
ainda se repetem com variações em diversos textos, podendo portanto
corresponder a um tema literário.
A historiografia européia, durante o século XIX, utilizou livremente estes
textos enquanto discursos “verdadeiros”, tendo como pressuposto a idéia de uma
relação direta entre verdade e história, que seria a ciência de reconstituição dos
fatos passados através da exegese documental.
A partir das mudanças ocorridas na historiografia no século XX, que
redefiniu a noção de documento histórico e as formas de questioná-lo, os textos
medievais árabes passam a ser lidos como indicadores de seu tempo, como pistas
para o passado biográfico e o ambiente social do escritor, e não do narrador.
Muitos dos detalhes narrativos descritos nestes documentos foram comprovados
como inverídicos, tendo a possibilidade de revelar uma mentalidade ou um tipo de
15
Historiador grego de Helicarnasso, 485 – 420 a.C., autor de História, considerada a obra
inaugural da historiografia ocidental.
16
General e historiador ateniense, 460 – 400 a.C., autor de História da Guerra do Peloponeso.
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19
pensamento, enquanto outros tiveram sua veracidade tida como bastante provável,
devido aos cruzamentos entre diferentes textos e os registros arqueológicos.
17
Os documentos que iremos trabalhar são, em sua maioria, do segundo tipo, o
que nos confere uma dupla satisfação, pois além de serem indicadores precisos do
seu tempo, foram escritos por pessoas cuja biografia e existência estão
relativamente bem comprovadas e que foram possivelmente testemunhas oculares
da maioria dos eventos relatados. Seus autores, conforme veremos adiante, foram
homens letrados e cultos, sofisticados e críticos, e ocuparam altos cargos junto à
administração do Estado.
Portanto, as chances dos acontecimento serem verídicos são razoáveis,
embora não seja nosso objetivo a reconstituição de uma realidade histórica
objetiva, que é sempre intangível pelo seu desaparecimento. Os discursos
analisados não são “verdadeiros” no sentido ontológico do termo, e sim
apropriações originárias de um determinado recorte da realidade. São discursos
transformadores que irão interagir com a sociedade em que estão inseridos o
especialmente dirigidos à geração seguinte a dos autores, para que a memória dos
tempos áureos de sua juventude não se apagasse. Segundo Usamah ibn Munqidh,
cronista do século XII, “perder o tempo de alguém para relatar fábulas é uma das
piores calamidades que pode acontecer com uma pessoa
18
.
ainda a questão da tradução dos manuscritos originais medievais para a
língua inglesa, lembrando o contexto e as finalidades destas traduções, a partir da
constatação do grande interesse político e estratégico dos países anglo-saxões
(E.U.A. e Reino Unido) na cultura e história dos povos árabes - desde o
imperialismo dos séculos XIX e XX, passando pela guerra fria e a atual “guerra ao
terror”. Cabe a observação da não-existência dessas obras traduzidas do árabe
medieval diretamente para o português, fato lamentável quando nos lembramos
das intensas relações lingüísticas e culturais entre portugueses e muçulmanos na
Península Ibérica medieval.
17
Cf. Bulliet, Foreword. Separata de IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh.
18
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, XV.
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20
Figura 1 – Fac-símile do manuscrito do Kitab al´I´tibar (Memórias de Usamah), guardado
no Escorial, Espanha. Fonte: IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh.
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21
1.3
O Caráter Mimético das Representações de Saladino
Consideraremos os relatos a serem analisados ao longo da dissertação como
Mímesis, no sentido que Luiz Costa Lima confere a este conceito.
Ao mesmo tempo um documento histórico, os relatos biográficos citados,
que usam Saladino como personagem, são também obras literárias, portanto
mímesis, representações de uma realidade, que possuem como base os
acontecimentos experimentados pelos autores. A elaboração dos significantes
históricos num todo coerente e devidamente significado é a operação cognitiva e
semântica produzida por esses autores, que pretendem marcar a sua geração e as
seguintes com as memórias de um tempo de guerra e virtudes heróicas. O
trabalho dos autores pretende capturar em palavras uma tradição que terá a cada
leitura, um novo significado a cada nova geração que invocará o nome de
Saladino e a lembrança das Cruzadas. Ao longo do tempo, possibilitou-se a
criação de uma ilusão biográfica, com os fatos reais e imaginários misturando-se
na construção de um mito político.
Enquanto mímesis, essas narrativas supõem uma realidade possível, um
recorte de uma experiência que unificou a comunidade, ajudando a construir,
assim, uma identidade social. Longe de ser mera imitação, o mimético aloca um
significado numa situação conhecida por seus receptores, que é assim reforçada e
reinventada; podemos dizer que esses escritos fundam uma lenda histórica: a de
Saladino e sua luta contra os cruzados. Trata-se, portanto, de uma palavra capaz
de persuadir, de fazer o leitor acreditar no seu argumento, que encerra uma
autoridade, fundamentada na situação social e cultural privilegiada dos autores em
suas comunidades. Segundo Luiz Costa Lima, a mímesis, supondo uma
semelhança com o real considerado como possível, é um meio de reconhecimento
da comunidade consigo mesma, ou seja, um instrumento de identidade social.
19
19
LIMA, Mímesis e Modernidade.
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22
Na relação dinâmica entre autor, obra e público receptor, nos voltaremos
para as condições sócio-históricas do texto, enquanto pluralidade de estruturas de
sentido historicamente construídas.
Finalmente, os conceitos não podem ter a sua própria história
desconsiderada, que os utilizaremos na análise de um período histórico remoto
que, o obstante suas conexões com o presente, possui um modo de se referir e
de conceituar as coisas do mundo, as idéias e os pensamentos, bastante diferente
do atual. Devemos ter o cuidado em diferenciar os conceitos que utilizaremos em
nossa análise daquelas categorias presentes nos textos de época, precisando os
termos e indicando seus múltiplos significados. Apresentaremos, ao longo das
notas de de página, um glossário, com o objetivo de identificar e precisar
alguns termos que utilizaremos ao longo do trabalho, muitos deles transcritos da
língua árabe, sem tradução direta.
Estamos neste trabalho alargando os limites da teoria da Mímesis, conforme
originalmente formulado por Costa Lima em obras como Mímesis e Modernidade.
O teórico da literatura refere-se, na verdade, ao contexto da antiga Grécia.
Entretanto, creio ser possível a transposição de seu conceito ao trabalharmos este
gênero tipicamente medieval, que tem muito em comum com o gênero dos
manaqib, hagiografias que celebram as virtudes e excelências morais dos
primeiros califas e fundadores do islã.
20
. No trecho a seguir, Costa Lima explicita
a relação entre mímesis e identidade social:
O produto mimético é um microcosmo interpretativo de uma situação humana.
Nela, o que mais importa não é a declaração de quais os vencidos e quais os
vencedores, mas o entendimento interno do que leva à porfia e à tensão. (...)
Microcosmo de uma situação, ele sem dúvida se alimenta de matéria histórica, mas
a configura de tal maneira que não identifica o produto com sua matéria. (...) A
mímesis, se ainda cabe insistir, não é imitação exatamente porque não se encerra
com o que a alimenta. A matéria que provoca a sua forma discursiva aí se deposita
como um significante, apreensível pela semelhança que mostra com uma situação
externa conhecida pelo ouvinte ou receptor, o qual será substituído por outro desde
que a mímesis continue a ser significante perante um novo quadro histórico, que
então lhe emprestará outro significado. Ou seja, se como dissemos, o produto
mimético é um dos modos de estabelecimento da identidade social, ele assim
funciona à medida que permite a alocação de um significado, função da
semelhança que o produto mostra com uma situação vivida ou conhecida pelo
receptor, o qual é sempre variável.
20
Cf. RICHARDS in IBN SHADDAD, op. cit., p. 4.
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23
Trata-se, portanto, de uma palavra capaz de persuadir, de fazer o leitor
acreditar no seu argumento, que encerra uma autoridade. Apontaremos alguns
exemplos da função mimética de discursos passados e contemporâneos ao longo
do próximo capítulo.
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2
Discursos historicizantes: transformação e apropriação
Neste capítulo, tentaremos evidenciar alguns elementos contemporâneos que
possam definir o estado atual da questão como os discursos historicizantes
apresentam-se para o público em geral e quais os paralelismos construídos entre
duas temporalidades históricas distantes. Se a história dos homens mudou tanto
desde o medieval século XII até o século XX e o XXI em que vivemos, quais as
operações discursivas que reúnem semanticamente esses recortes temporais?
Se nestes discursos a tentativa de eliminar as diferenças entre passado e
presente, como os conceitos fundamentais do Islã, imutáveis por definição, podem
operar em épocas tão distintas? Não resolveremos definitivamente esta questão,
mas desejamos apontar alguns caminhos e, ao longo deste capítulo, mostrar as
alternativas de interpretação para uma mesma idéia – a de Jihad (ou “guerra
santa”).
2.1
O Islã e os Povos do Livro
A partir do preceito teórico maometano de boa convivência entre as três
“religiões do livro”
1
, observamos no mundo medieval islâmico, mesmo durante
períodos de conflito como a época das Cruzadas, uma tradição de tolerância e
convivência em relação a cristãos e judeus. Fosse através do comércio ou de
alianças fugazes, mesmo os contatos entre ocidentais e muçulmanos não se
1
O Profeta Maomé considerava o Islã uma versão mais aperfeiçoada do cristianismo e do
judaísmo e, portanto, pregava que os muçulmanos deviam respeito e proteção a essas
comunidades. Essa tradição foi, em grande parte, cumprida no Islã medieval.
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25
restringiam à guerra, o que abriu espaço para um possível convívio e
reconhecimento, mesmo sob o estado geral de conflito que marcou o período. Os
grupos judaicos e as diversas igrejas cristãs orientais foram muitas vezes
perseguidos pelos cruzados e protegidos pelos muçulmanos, o que demonstra uma
ruptura de um modus vivendi secular no Oriente Médio.
O período da Idade Média do Islã
2
, entre os séculos XI e XIV, foi um
período no qual a anterior estabilidade e confiança num mundo islâmico em
expansão territorial, cultural e econômica foi abalada por uma tripla invasão de
povos. Os cruzados cristãos, vindos do Ocidente e atacando sistematicamente a
Palestina, a Síria, e o Egito por duzentos anos; os turcos (nômades das estepes da
Ásia Central) que invadiram e arrasaram a Pérsia e a Mesopotâmia; e finalmente
os mongóis, que atravessaram toda a Ásia até serem derrotados às margens do
Mediterrâneo; estes os responsáveis pela queda de Bagdá e o fim definitivo do
Califado Abássida
3
. Neste contexto de múltiplas perturbações da ordem política
tradicional, o reinado de Saladino representou um projeto de unidade,
universalismo e fim das disputas internas num contexto de múltiplas perturbações
na ordem política tradicional.
A imagem mais forte derivada das fontes primárias acerca de Saladino e sua
época é a de um líder que conjugava a guerra com compaixão, tolerância e
generosidade para com o inimigo. Ações contra pessoas desarmadas, ataques
surpresa, morte de civis inocentes e suicídio são ações que contrariam diretamente
o código de virtude guerreira de Saladino, em boa parte baseado nos preceitos do
profeta Maomé e do Alcorão. Em sua vida, Saladino foi adversário da seita dos
Assassinos
4
, e repudiava as práticas dos ataques suicidas que marcaram esta
organização.
A época de Saladino e seus descendentes, dinastia ayyúbida, que governou
entre 1171 e 1248, corresponde a uma temporalidade caracterizada pela tolerância
2
Expressão utilizada por alguns autores, entre eles, DEMANT, P., O Mundo Muçulmano e
DURANT, W., A Idade da Fé.
3
Califado baseado na cidade de Bagdá, entre 750 e 1258, responsável pela época áurea do Islã
clássico.
4
Seita xiita-ismaelita radical contrária ao status quo sunita; este grupo enviava ões homicidas
contra os poderosos da época. A palavra “Assassino” nas línguas ocidentais possui origem
justamente nesta organização, que se tornou infame durante o período das Cruzadas. Cf. parte 4.12
deste trabalho.
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26
e abertura do Islã aos seus inimigos cristãos, como mostram os contatos com as
cidades italianas - Veneza e Gênova - e as alianças com o imperador germânico,
Frederico II (1194–1250).
5
Este período termina com a queda da dinastia em
1250 d.C., após a reviravolta política desencadeada pela invasão do Egito
empreendida pelo rei francês Luís IX (tornado santo posteriormente pela Igreja
Católica). Estes acontecimentos inauguraram um tempo de maior intolerância,
endurecimento e desconfiança em relação aos cristãos (período mameluco
6
), até a
expulsão final dos Cruzados e a tomada de suas últimas praças-fortes: Antióquia
(1269) e Acre (1291).
Iremos identificar, no presente e no passado islâmicos, quais as relações
entre uma determinada configuração política e a formação de grupos dissidentes
social, religiosa e politicamente. Os dois recortes históricos considerados
brevemente neste capítulo (o século XII e o final do XX / início do XXI)
propiciam à nossa análise alguns paralelismos: ambos caracterizam situações em
que o Islã se sente invadido e espoliado.
2.2
A apropriação do símbolo de Saladino por agentes políticos nos
séculos XX e XXI
No Oriente Médio atual, os conflitos contemporâneos foram marcados pelas
disputas em torno do petróleo e, em vários aspectos, por um choque cultural entre
oriente e ocidente. A globalização produziu reações à imposição da uniformidade
econômica e cultural: a valorização da história e da cultura local. Segundo
Bernard Lewis
7
, a atual onda de fundamentalismo religioso e práticas violentas
podem ser consideradas uma manifestação da globalização, a partir do princípio
5
Cf. MAALOUF, As Cruzadas Vistas pelos Árabes, capítulo “O justo e o perfeito”.
6
Mamelucos: escravos turcos que controlavam o exército dos ayyúbidas, e que subiram ao poder
após destronar o último dos ayyúbidas, Ayyub, no momento da invasão francesa ao Egito, em
1250.
7
Cf. LEWIS, A Crise do Islã.
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27
de que a aculturação, desnacionalização e uniformização de hábitos, crenças e
práticas são ingredientes essenciais para o recrutamento de jovens suicidas.
Pertencer à organização extremista passa a ser mais importante do que a
nacionalidade ou a cultura islâmica local. Organizações como a rede al-Qaeda
operam ainda com o antigo conceito de que o mundo é dividido entre o Dar al-
Islam (“Casa do Islã”) e o território dos infiéis, o Dar al-Harb (“Casa da
Guerra”).
A história islâmica é atualmente instrumentalizada como fonte de
inspiração, justificativa e explicação dos atos violentos e práticas terroristas.
Nesse ponto, abordaremos especificamente como, em que sentido e por que o
personagem de Yussef Salah-al-Din ibn Ayyub foi apropriado. Como Saladino
foi descrito por seus contemporâneos (cronistas e historiadores árabes) e como ele
é percebido hoje? Quais as mudanças do valor moral deste personagem neste
percurso? Proporemos algumas respostas adiante, ao analisarmos o al-Nawadir
de Bahaheddin e comparar seus valores aos dos governantes e fundamentalistas
que invocam a figura do sultão.
Abaixo segue um trecho do documento A Verdade por Trás da Nova
Cruzada, um dos poucos documentos escritos oficiais divulgados pela rede al-
Qaeda
8
:
If the Americans do not respond to our advice, they will be cursed by Bush’s sad
tidings inviting them to a Crusade in which they will be defeated at the hands of the
Mujahideen, with the permission of Allah, as did their predecessors, the Crusaders
at the hands of our predecessors, the mujahideen.
9
Se os americanos não responderem ao nosso aviso, eles serão amaldiçoados pelas
tristes conclamações de Bush os convidando para uma Cruzada na qual eles serão
derrotados pelas mãos dos mujahideen, com a permissão de Deus, como fizeram
seus predecessores, os Cruzados nas mãos dos nossos predecessores, os
mujahideen.
8
“Em nome de Allah”, documento da rede al-Qaeda, novembro de 2002; Cf. FOUDA e
FIELDING, Masterminds of Terror.
9
Mujahideen, ou “combatentes da fé”.
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28
De fato, logo após os atentados de 11 de Setembro, o presidente Bush fez a
seguinte declaração: “Essa Cruzada, essa guerra contra o terror, vai durar muito
tempo”.
10
O presidente estadunidense, em uma interpretação livre, parece falar a
mesma linguagem de seus adversários, situando-se no mesmo sistema simbólico
de significados. Não entraremos no mérito desta questão se ele se referia aos
eventos históricos propriamente ditos ou se empregou a palavra Cruzada” na
acepção comum de dever, missão”. Mais relevante é como essa mensagem foi
recebida por seus adversários fundamentalistas.
Segundo Amin Maalouf, as cruzadas, para os árabes, não são apenas um
evento do passado, elas constituem um processo atual, materializado na presença
de tropas americanas no Iraque e em outros países da região e também na
existência do Estado de Israel, que vive em conflito com seus vizinhos desde a sua
fundação em 1948. Os conflitos nesta região evocam as mesmas cidades e
topônimos em disputa durante o período das cruzadas: Tiro, Haifa, Jerusalém,
Bekaa, Golan, Damasco, dentre outras
Ainda de acordo com Lewis, o momento conturbado em que vivem os
países do Oriente Médio, de relativa decadência e perda de uma liderança cultural,
científica e filosófica que já possuíram no passado, leva a algumas formas de
frustração e rancor coletivos contra o Ocidente, suas instituições, idéias, modos de
vida e governos. Muitas vezes, essas organizações agem à revelia dos governos e
das autoridades islâmicas, sendo uma facção dissidente dentro de seus próprios
países, como a rede al-Qaeda, considerada ilegal na maioria dos países árabes e
muçulmanos. Em outros casos, contam com a ajuda indireta ou com uma
passividade por conta de governos simpatizantes, como o grupo libanês
Hezbollah, apoiado por Síria e Irã. De qualquer maneira, toda a comunidade
internacional foi obrigada a se posicionar a favor ou contra estes grupos, já que a
agenda imposta ao mundo pelos E.U.A. passou a ter como eixo principal a
chamada “guerra ao terror”.
10
BUSH G. W., presidente dos EUA, 16 setembro de 2001 (5 dias após os atentados do 11 de
setembro). Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2001, manchete primeira página.
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29
Neste ambiente de diversos conflitos, que são complexos e estão inter-
relacionados, o topos da libertação empreendida por Saladino retorna forte a um
mundo muçulmano que se sente agredido e invadido. Não por acaso, foram feitas
atualmente várias alusões comparando o momento em que vivemos com a época
das Cruzadas. Para o fundamentalismo islâmico, mas também para muitos
radicais cristãos, a época das Cruzadas nunca terminou: a situação em que vivem
hoje seria mera continuação de uma antiga inimizade. Mesmo para os não-
fundamentalistas, a instrumentalização da figura de Saladino foi um artifício útil e
popular para partidos políticos, líderes nacionalistas e movimentos religiosos ao
longo do século XX.
Nesse sentido, concordamos com o ponto de vista abordado por Amin
Maalouf no epílogo de sua obra As Cruzadas Vistas Pelos Árabes:
Ora, às vésperas do terceiro milênio, os responsáveis políticos e religiosos do
mundo árabe se referem constantemente a Saladino, à queda de Jerusalém e à sua
retomada. Israel é assimilado, na acepção popular como em certos discursos
oficiais, a um novo Estado cruzado. Das três divisões do Exército para a libertação
da Palestina, uma traz ainda o nome de Hittin e uma outra o de Ain Jalut
11
. O
presidente Nasser, no tempo de sua glória, era regularmente comparado a Saladino,
que como ele havia unido a Síria e o Egito e até o Iêmen! No que se refere à
expedição de Suez de 1956, ela foi vista do mesmo modo que a de 1191, como uma
cruzada conduzida pelos franceses e ingleses.
É verdade que as semelhaas são perturbadoras. Como não pensar no presidente
Sadat, ao se ouvir Sibt Ibn al-Jawzi denunciar, diante do povo de Damasco, a
“traição” do mestre do Cairo, al-Kamel, que ousou reconhecer a soberania do
inimigo com relação à Cidade Santa? Como distinguir o passado do presente,
quando se trata da luta entre Damasco e Jerusalém pelo controle de Golan ou
Bekaa?
Num mundo muçulmano perpetuamente agredido, não se pode impedir a
emergência de um sentimento de perseguição, que toma, entre alguns fanáticos, a
forma de uma perigosa obsessão: não se viu, a 13 de maio de 1981, o turco
Mehemet Ali Agca atirar no papa após ter explicado numa carta: “Decidi matar
João Paulo II, comandante supremo dos cruzados”? Além desse ato individual, está
claro que o Oriente árabe sempre no Ocidente um inimigo natural. Contra ele,
todo ato hostil, quer seja político, militar ou relativo ao petróleo, o passa de
desforra legítima. E não se pode duvidar de que a ruptura entre estes dois mundos
data das cruzadas, vistas pelos árabes, ainda hoje, como uma violação.
12
11
Batalhas em que os muçulmanos obtiveram vitórias decisivas; Hittin em 1187 (contra o exército
cristão do Reino de Jerusalém) e Ain Jalut em 1260 (contra os mongóis / tártaros).
12
MAALOUF, As Cruzadas Vistas pelos Árabes, p.p. 244 – 245.
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30
Para o ocidente, por sua vez, a memória das Cruzadas continuou, e seus
líderes viraram heróis (como Ricardo Coração-de-Leão, da Inglaterra) e santos
(Luís IX da França). Vejamos dois exemplos. Em 1917, durante o processo de
expulsão dos turcos das terras árabes, o general inglês Allenby
13
, comandante das
tropas inglesas no Oriente Médio, derrotou a guarnição turca de Jerusalém. Em
seu discurso, comparou-se ao rei Ricardo, que no entanto nunca conseguira entrar
na cidade. Em todas as outras cidades da região, os encarregados da entrada
triunfal foram seus aliados, o rei Faiçal e Lawrence da Arábia
14
, exceto na mais
importante simbolicamente para os cristãos ingleses - Jerusalém.
Atualmente, com a decadência dos movimentos nacionalistas laicos no
Oriente Médio, e o aumento de prestígio dos fundamentalistas e radicais, a figura
mítico-histórica do sultão Saladino é mais uma vez re-significada, re-valorada e
transfigurada. No século XXI, o acúmulo de tantas interpretações, tanto no
Ocidente quanto no Islã, fazem de Saladino um sultão multifacetado nas mãos de
movimentos políticos, religiosos e grupos terroristas. Não por acaso, a rede al-
Qaeda divulgou, em uma rara manifestação pública escrita, um documento
“assinado” por Saladino ibn Ayyub fonte de inegável autoridade, em carta que
responde à declaração de Bush:
(By): Defeater of the Crusaders: Saladin Al-Ayyubi. Allah has disclosed the
beliefs of the crusaders and brought out into the light what their hearts tell towards
the Muslims. The American President, Bush, ran out of patience and could not
keep his belief secret. He stated in a press conference on Sunday, 16 September
2001 that ´this Crusade, this war on terrorism, is going to take a long time´. He
tried later to cover up the real meaning of that statement by visiting the Islamic
Center in America
15
”. (“A Verdade por trás da nova Cruzada”, documento da rede
Al-Qaeda, setembro de 2001).
Por: Aquele que derrotou os Cruzados: Saladino al-Ayyubi. Deus destrancou os
corações dos cruzados e trouxe à luz o que seus corações lhes dizem sobre os
muçulmanos. O presidente americano, Bush, perdeu a paciência e não pôde mais
manter sua crença em segredo. Ele declarou em uma coletiva de imprensa no
domingo, 16 de setembro de 2001 que “Essa Cruzada, essa guerra contra o terror,
irá durar bastante tempo”. Ele tentou depois esconder o verdadeiro significado
dessa declaração visitando um centro islâmico na América.
13
General britânico, 1861 – 1936. Cf. CATHERWOOD, A Loucura de ChurchillI.
14
Faiçal I (1885 – 1933), rei do Iraque entre 1921 e 1933; T.E. Lawrence (1888 – 1935),
arqueólogo, militar, agente secreto, diplomata e escritor britânico.
15
IN FOUDA; FIELDING, Masterminds of Terror, p. 198.
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31
A instrumentalização do tema saladinesco por parte de grupos
fundamentalistas que utilizam a violência contra civis constitui, na interpretação
que estamos construindo, a total inversão do personagem Saladino, e de alguns de
seus valores máximos (respeito para com o adversário) como veremos adiante.
O objetivo destas organizações é causar o medo, a insegurança, a sensação de que
qualquer um pode ser atacado em qualquer lugar, a qualquer momento, e não
hesitam em utilizar as formas midiáticas mais modernas (televisão e Internet) para
divulgar a sua mensagem de medo e terror. Os fundamentalistas não reconhecem
a humanidade do Outro. Sua retórica é maniqueísta; aos seus argumentos não
cabe refutação. o possuem espírito de negociação, pois querem suprimir seus
inimigos incondicionalmente.
De fato, passado e presente se misturam no discurso extremista, no qual o
autor de um manifesto é o mesmo Saladin al-Ayyubi que conquistou Jerusalém
em 1187. Os conflitos da região dão a justificativa adequada para evocarem-se a
união em torno de um ideal religioso. Dessa forma, por exemplo, a rede al-Qaeda,
de orientação sunita, se une aos xiitas do Hezbollah nos protestos contra a
ocupação israelense dos territórios palestinos e à presença estadunidense no
Iraque. Um ideal de Dar-al-Islam, expressão que significa mundo islâmico, que
se traduz numa religo universal, que reúne povos de países e culturas diferentes,
hoje assim como nos séculos XI e XII. Vejamos um discurso de
aproximadamente oitocentos anos atrás:
Vocês ousam vacilar à sombra de uma tranqüila segurança, numa vida frívola
como flor de jardim, enquanto seus irmãos sírios m por única morada o lombo
dos camelos ou as entranhas dos abutres? Quanto sangue derramado! Quantas belas
moças tiveram que, envergonhadas, esconder seu rosto meigo nas mãos. (...) Os
valorosos árabes conformam-se com a ofensa e os bravos persas aceitam a
desonra? (...) A pior arma do homem é verter lágrimas quando as espadas ateiam o
fogo da guerra. (...) Nunca os muçulmanos foram humilhados desta forma, nunca
antes suas terras foram tão agressivamente devastadas
16
.
Observam-se alguns paralelismos entre este discurso medieval e um
contemporâneo: o tema da derrota, da honra a ser reparada e a denominação, no
segundo texto, do inimigo como cruzado.
16
Discurso do Cádi Abu-Saad al-Harawi para a multidão sob a tenda do Califa al-Mustazhir-
billah, em Bagdá (após a queda de Jerusalém para os cristãos da Cruzada, final século XI) IN
MAALOUF, As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 14.
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32
Em gravação divulgada na rede de TV árabe Al Jazira, Al Zawahiri disse que o
Hizbollah e os grupos terroristas palestinos que confrontam Israel em Gaza não
serão detidos com cessar-fogo. ´A guerra com Israel não depende de cessar-fogo
(...) É uma jihad pela honra de deus e irá durar enquanto nossa religião prevalecer´,
afirmou, na décima mensagem divulgada neste ano. Al Zawahiri afirmou ainda que
os foguetes e mísseis que atingem Gaza e o Líbano ´não são apenas armas de
Israel, mas são financiadas pelos países da coalizão cruzada´. e que, por isso,
´todos os países que participarem [dos ataques] pagarão seu preço´. ´Não podemos
apenas assistir a estas bombas e mísseis matando nossos irmãos em Gaza e no
Líbano e ficar parados, humilhados´, afirmou Al Zawahiri. Segundo ele, os
muçulmanos devem ´se unir para atacar os cruzados e sionistas´ e ´apoiar a jihad
em qualquer lugar
17
´.
Linguagem, identidade, discursos apropriados e recriados: instrumentos que
animarão os fundamentalistas do século XXI em sua resistência contra aqueles
que são vistos como invasores e cruzados ocidentais.
Nomear e constituir são atos lingüísticos que resultam na existência
identitária de um sujeito que se faz presente, seguindo o argumento de Pierre
Bourdieu
18
em A Economia das Trocas Lingüísticas. A autoridade do sultão
Saladino, que se revestiu em roupagens míticas ainda em seu tempo de vida,
oitocentos anos depois se reconstrói num contexto analógico ao outro, no qual o
Islã se sente invadido e desrespeitado por invasores estrangeiros. A evocação à
imagem de Saladino, no texto da rede al-Qaeda, é poderosa: ela anima as
operações violentas contra o ocidente, assume o regime discursivo do grupo e
estabelece uma continuidade linear entre o tempo das Cruzadas e o nosso próprio
tempo. Saladino ocupa neste momento o locus de “detentor do cetro”, procurador
deste grupo, símbolo de uma unidade e força que se deseja recuperar, um emissor
legítimo do discurso de manifesto político e desqualificação dos inimigos. O
Saladino simbólico passa a ter o poder de transpassar as identidades étnicas e
culturais regionais, extinguindo as fronteiras territoriais e proclamando para todo
o Islã: “unam-se ao redor de mim, como no passado”. O Saladino histórico, um
sultão curdo que abriu o seu caminho político através de muitas lutas contra
dissidentes de sua própria religião, transfigura-se em agente simbólico capaz de
unir árabes, turcos e persas contra a “invasão ocidental”.
17
FOLHA DE SÃO PAULO, edição de 27/07/2006, páginas 2 e 3.
18
BOURDIEU, P., A Economia das Trocas Lingüísticas.
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33
Segundo Bourdieu, as situações de crise levam a discursos extraordinários.
A atual crise prolonga-se alguns anos, e seu discurso tende a enraizar-se e
naturalizar-se entre os povos árabe-muçulmanos
Essa operação semântica é facilitada por dois elementos: o orgulho e
memória que os povos árabe-muçulmanos têm de sua história, e o sentimento de
retaliação a uma agressão. Desde o fim da I Guerra Mundial, em 1918, as
potências ocidentais (E.U.A., Inglaterra e França) jogam com os povos árabes
conforme o seu interesse. A fundação do Estado de Israel, em 1948, foi para
muitos como a ocupação da Palestina pela Cruzada de 1098: uma agressão e
invasão de povos de uma fé estrangeira.
Mas uma diferença importante entre ontem e hoje: se antes, os judeus
tendiam a apoiar os muçulmanos, devido ao fanatismo e anti-semitismo dos
cruzados, hoje o mundo sionista” alia-se à principal potência ocidental, cujo
presidente, que convocou a “nova Cruzada”, é um fervoroso cristão.
Diante da refiguração completa do legado de Saladino, cabe-nos indagar a
respeito das origens históricas e historiográficas de uma lenda. Quem foi o
Saladino histórico e quais de suas ações contribuíram para a imortalização de seu
nome? Qual o significado dos feitos de Saladino dentro de seu próprio universo
cultural, social e semântico? Que valores a figura do Sultão encarnava
originalmente? Tais questionamentos podem ser úteis, à luz dos problemas
contemporâneos, para nos precisar a origem da tradição saladinesca.
Para tanto, um bom ponto de partida é a análise histórica e literária do
documento medieval árabe al-Nawadir al-Sultaniyya wa´l Mahasim al-
Yusifiyya
19
, título que se traduz por A Rara e Excelente História de Saladino”.
Esta obra é em uma das fontes primárias escritas em árabe mais utilizadas no
estudo da Terceira Cruzada e da vida de Saladino. Sua relevância e autenticidade
consistem no fato de que o autor foi contemporâneo e partícipe dos fatos ali
narrados, conforme veremos no quarto capítulo deste trabalho.
19
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin. Edição traduzida diretamente do
árabe medieval para o inglês por D.S. Richard (Universidade de Oxford) a partir da recente edição
do manuscrito de Jerusalém”, guardado na Biblioteca da Mesquita de Aqsa (Jerusalém), por
Gamal al-Din al-Shayyal (Cairo, 1964).
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34
2.3
História e historiografia das Cruzadas no mundo árabe
O historiador estadunidense Bernard Lewis afirma que, atualmente, as
cruzadas ocupam um espaço proeminente na consciência e no discurso do
moderno Oriente Médio, “tanto dos árabes nacionalistas quanto dos
fundamentalistas, notadamente Osama bin Laden”. Entretanto, segundo a análise
do autor, esse fato é relativamente recente. Na historiografia islâmica tradicional,
as cruzadas suscitaram pouco interesse no mundo muçulmano como um todo,
sendo consideradas como acontecimentos de fronteira de importância apenas
local.
Nos últimos duzentos anos,
20
as relação entre a Europa moderna e os países
islâmicos do Oriente Médio são pautadas pelo imperialismo político e a
exploração de seus recursos naturais e humanos. Esse fato gerou desdobramentos
importantes na consciência histórica muçulmana contemporânea, e os eventos
conhecidos como as Cruzadas passaram a exercer papel histórico e político
significativo, tanto para a elite dirigentes quanto para a população em geral.
Segundo B. Lewis:
Foi também no século XIX que surgiu o interesse dos muçulmanos pelas cruzadas,
em contraste com o notável grau de desinteresse que mostraram pelas mesmas na
época em que ocorreram. A vasta e rica historiografia árabe do período registra
adequadamente a chegada dos cruzados, suas batalhas e os Estados que
estabeleceram, mas mostra pouca ou quase nenhuma compreensão da natureza e
dos propósitos de seus empreendimentos. As palavras cruzada e cruzado nem ao
menos ocorrem na historiografia árabe da época: os cruzados são designados por
infiéis, cristãos ou, mais freqüentemente, francos, um termo genérico para cristãos
europeus católicos (...) usado a fim de distingui-los de seus correligionários
ortodoxos e orientais. A visão das cruzadas como um fenômeno histórico distinto
data do século XIX, bem como a tradução de livros de história europeus. Desde
então, existe um novo entendimento das cruzadas como um protótipo inicial da
expansão do imperialismo europeu sobre o mundo islâmico
21
.
Saladino vem sendo, desde então, fonte de inspiração para líderes árabes.
Saddam Hussein, ex-ditador iraquiano, referia-se sempre a dois dirigentes
20
Se considerarmos como marco inicial de interferência direta nos assuntos de um país
muçulmano a invasão do Egito por Napoleão Bonaparte, em 1798.
21
LEWIS, B, A Crise do Islã, p.p. 61-62.
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35
históricos: Saladino, que derrotara os ocidentais de seu tempo, e
Nabucodonosor
22
, que expulsara os judeus da Palestina e acabara com o Estado
judaico.
Ainda de acordo com Lewis, após os atentados de 11 de setembro de 2001,
Osama bin Laden, o líder da organização al-Qaeda, que supõe-se ter organizado e
planejado o ataque, deixa claro a maneira que percebe esse conflito, ao definir
repetidamente seus inimigos como “cruzados”. Os cruzados não mais guerreiros
montando em cavalos e portando espadas, mas os judeus de Israel e os Estados
Unidos e outros países aliados, como Espanha e Inglaterra.
Os exemplos mostrados ao longo do capítulo podem indicar que a
consciência histórica neste tipo de discurso político ocorre não pela via da crítica e
da possibilidade de novas interpretações; muitas vezes uma operação cognitiva
de aproximação temporal e descontextualização dos conceitos e significados
históricos ligados às lutas medievais entre cristãos e muçulmanos. A partir do
próximo capítulo, tentaremos reconstruir este contexto medieval, trazendo à luz
suas particularidades e especificidades, na tentativa de se reconstituir, na medida
do possível, algumas características da idade média islâmica.
22
Rei da Babilônia (no atual Iraque), 632 – 562 a.C..
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3
Política e Cultura no Oriente Médio Muçulmano (séculos XI
e XII d.C)
Neste capítulo, iremos indicar e discutir alguns acontecimentos relevantes
para a compreensão das transformões estruturais que ocorreram no mundo
islâmico durante os séculos XI e XII. Nestes culos, o desmantelamento das
estruturas de poder tradicionais do império árabe coincidiu com a chegada das
Cruzadas (a oeste) e com o advento dos nômades (a leste); o encontro destas
novas forças ocorreu no território sírio-palestino, que pode ser considerado,
portanto, um microcosmo do que ocorria no oriente islâmico em geral.
Da unidade à fragmentação, até a tentativa de um novo universalismo
político, enfim fracassado – esta é a síntese da trajetória política do mundo
muçulmano nestes dois conturbados séculos, que unem o brilhantismo cultural
herdado do passado com os novos desafios de um presente sentido como incerto.
3.1
Identidades e denominações culturais durante o tempo de Saladino
Vejamos, primeiramente, algumas definições de identidade cultural
presentes no recorte historiográfico considerado.
Utilizaremos, a partir deste momento, o conceito árabe-medieval de franj
para nos referir aos povos da Europa ocidental que participaram dos movimentos
cruzados no oriente, durante os séculos XI a XIII. Seguiremos a terminologia
utilizada por Amim Maalouf, que usa a forma franj como uma síntese das
diferentes formas escritas desse conceito como faranj, ifranj, ifranjat. A
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tradução mais direta é “francos”, mas seu significado não é exatamente o que
entendemos comumente como francos – o povo germânico que invadiu o Império
Romano durante o século V e que formou um Império sob Carlos Magno.
Mais do que “francos”, ou “franceses”, o termo franj abrange vários povos
europeus que pouco se distinguiam aos olhos dos muçulmanos. De pele branca,
barbas compridas e cabelos morenos ou louros, suas feições pareciam exóticas aos
árabes e turcos; sua habilidade militar e modos rudes encaixavam-lhes na
categoria de bárbaros. A religião católica romana, de adoração à Cruz e ao
profeta Jesus como filho de Deus era, para os fiéis do Islã, um erro religioso
fundamental, que colocavam-lhes como corolário do Outro indesejado, temido e
desconhecido. Os muçulmanos não procuravam conhecer sua língua ou a história
dos seus países, que lhes pareciam terras selvagens cobertas de frias florestas e
campos cavalgados por guerreiros fanáticos.
1
Sua motivação era ambígua, pois
era a sua principal missão a libertação de Jerusalém e reabertura das rotas de
peregrinação do ocidente para a Terra Santa; mas pareciam preocupar-se mais
com a conquista de terras e expropriação de riquezas.
Dessa forma, o termo franj abriga em si uma generalidade geográfica e uma
diversidade lingüística. A maioria dos que migraram e guerrearam no Oriente
tinham sua origem no norte da atual França, mas europeus de todos os países
participaram nas expedições da Cruz. Franceses do norte e do sul, normandos,
ingleses e escoceses. Mercadores italianos e guerreiros alemães de todas as tribos;
descendentes de vikings incorporados à ordem feudal neste sentido, as Cruzadas
foram efetivamente um movimento coletivo da Cristandade ocidental, cujo
contexto específico não será objeto de tratamento neste trabalho. Aos povos que
durante dois século migraram e invadiram suas terras, cabia apenas uma forma
que sintetizava toda a sua alteridade – franj.
É relevante ainda a familiarização com as denominações étnico-culturais que
adotaremos em nosso trabalho.
Denominaremos árabes os povos provenientes da Península Arábica, e
também os povos conquistados e completamente arabizados por volta do século
1
Cf. FLETCHER, R. A Cruz e o Crescente.
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XII, no Egito, na Síria, na Palestina, na Mesopotâmia e no norte da África. A
maioria imensa dos árabes são muçulmanos, subdivididos nas vertentes sunitas e
xiitas; nas cidades, no entanto, importantes minorias cristãs e judaicas subsistem,
com seus ritos e crenças diferenciados da maioria, mas com referência lingüísticas
e culturais próprias do oriente, parecendo-se em seu hábitos e costumes muito
mais com os muçulmanos do que com os franj do ocidente.
Persas corresponde ao conjunto de povos que ocupam o planalto iraniano, e
que antes da conquista árabe organizavam-se no Império Sassânida, de religião
zoroastra. A conquista árabe converteu a maioria dos persas ao Islã, mas sua
autonomia cultural e lingüística persistiu. O mundo muçulmano persa era
bilíngue – utilizava o árabe como língua religiosa e o persa como língua comum e
administrativa. A produção cultural persa no período do Islã clássico foi intensa,
e parcialmente responsável pela “Idade de Ouro” de Bagdá, durante o século IX.
Sob o Islã, as cidades do Irã floresceram com o desenvolvimento agrícola e
comercial.
os turcos são uma denominação genérica para diversos povos de origem
nômade, de língua túrcico-mongólica, que habitavam nas estepes da Ásia central e
setentrional.
2
A ampla abrangência geográfica do termo abrigava uma quantidade
enorme de tribos, clãs e confederações de pastores das regiões não-civilizadas. A
partir do culo X, algumas tribos começaram a migrar para o mundo islâmico a
partir do norte do Irã e do Afeganistão, e nos séculos XI – XIV, migram e
invadem em massa o território islâmico. A dinastia mais importante para o nosso
estudo foi a dos seljúcidas, que converteu seu povo ao Islã sunita, e formou um
império no Oriente Médio durante o século XI e XII, amalgamando elementos
turcos, persas e árabes sob a sua égide. Os xiitas, para os turcos seljúcidas, eram
heréticos, piores que os cristãos, pois aviltavam o nome do próprio Mohammed, e
sofreram perseguições durante esse período.
Todos os povos de religião muçulmana dividem-se em duas vertentes
principais da religião. Os sunitas ou seguidores da Sunna (conjunto validado de
2
Não confundir com o contemporâneo turco, nacional da Turquia, país que até o século XI era
domínio dos gregos bizantinos. A partir dos impérios seljúcida (XI XII) e otomano (XV – XX),
várias tribos de turcos enraizaram-se no país, expulsando ou assimilando os gregos no processo.
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leis e tradições do Issunita)
3
o a maioria; foram representados pelos califados
Omíada e Abássida
4
, que tornaram o sunismo a religião predominante do mundo
islâmico. Estas duas dinastias possuíam sua origem na tribo do Profeta, o que
bastava para legitimar o seu governo.
os xiitas são aqueles que, originalmente, eram partidários de que a
sucessão de Mohammed na liderança no mundo islâmico poderia ocorrer
dentro da família do Profeta (e não entre outros membros qualificados da tribo
coraixita, posição do sunismo). Após a morte do profeta Mohammed, em 632, a
comunidade dividiu-se em duas aqueles partidários de Ali
5
(Shiat´Ali), sobrinho
de Mohammed e casado com sua filha Fátima
6
, que desejavam a sucessão
hereditária; contra os partidários de uma sucessão eletiva, que escolheu
sucessivamente como califas Abu Bakr, Omar e Uthman
7
, que não tinham ligação
direta de parentesco com o Profeta. Quando finalmente Ali foi eleito Califa, após
a morte de Uthman, os sunitas e xiitas iniciaram uma guerra pelo controle do
império muçulmano que acabou com a derrota de Ali e seu filho, o imã Hussein, e
a ascensão da dinastia Omíada (sunita). Os xiitas passaram à clandestinidade e à
proscrição, o que marcou a sua cultura religiosa, que, ao longo dos séculos,
diferenciou-se do sunismo em diversos aspectos, como o culto aos imãs, por
exemplo, e uma dimensão mais mística da religião.
8
Como os sunitas eram o mundo ortodoxo, oficial, enquanto os xiitas eram a
minoria segregada ou aquiescida, estes últimos subdividiram-se em várias seitas
ou correntes; muitas destas divisões davam-se de acordo com a opção pelas
diferentes linhagens descendentes de Ali e Fátima. Dessa forma, formaram-se as
3
A Sunna refere-se aos preceitos estabelecidos no século VIII, baseados nos ensinamentos de
Maomé e dos quatro califas ortodoxos (os Raschidun). Alguns afirmam porém que o termo deriva
de uma palavra que significa "um caminho moderado", referindo-se à idéia de que o sunismo toma
uma posição mais neutra do que aquelas que têm sido percebidas como mais extremadas. Cf.
ARMSTRONG, K., O Islã e VERNET, J., As Origens do Islã.
4
Califado Omíada, de capital Damasco, entre 661 e 750; Califado Abássida, de capital Bagdá,
entre 750 e 1258.
5
Ali ibn Abi Talib (600 661) foi o quarto Califa ou sucessor de Maomé. Ele nasceu em Meca
onde o seu pai, Abu Talib, era um tio do Profeta. Ali foi adotado por Maomé e educado ao seu
cuidado. Quando Mohammed faleceu, Ali, ainda um jovem, foi um dos candidatos à sua sucessão.
Foi preterido por Abu Bakr, que se tornou assim o primeiro califa. A questão, no entanto não foi
pacífica.
6
Fatima bint Mohammed foi uma das filhas do Profeta do Islã, e da sua primeira esposa Khadija.
7
Os três, juntos com Ali, formam a sucessão ortodoxa dos Raschidun (“bem-guiados”) para os
Sunitas; enquanto para os xiitas somente Ali é considerado.
8
Cf. VERNET, J., op. cit..
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40
facções, sendo as principais a ismaelita, zaydita e os duodécimos
9
. Durante o
período histórico considerado, a mais relevante é a divisão ismaelita. Durante os
séculos X a XII, uma dinastia xiita ismaelita conquistou o Egito e fundou um
califado próprio, concorrente ao de Bagdá, tornando o Cairo uma das cidades mais
prósperas do Islã. Pela primeira vez, os xiitas possuíam um Estado que os
representasse; no entanto, a decadência dos fatímidas foi inevitável durante o
século XII, e seu califado terminou quando o último califa morreu sem deixar
herdeiros, legando o Egito para Saladino, que fez voltar as práticas sunitas sem,
no entanto, perseguir a maioria xiita do Egito.
10
Gregos, ou bizantinos, formam a população estabelecida no império de
mesmo nome, herdeiro político do Império Romano e da cultura helenística e
filosófica ocidental. Após o Grande Cisma do Oriente
11
, a Igreja Ortodoxa
imperial separou-se do catolicismo romano, o que afastou ainda mais os cristãos
do ocidente (franj) e os do oriente (gregos). Após um breve período de
renascimento cultural e político nos séculos IX e X, o Império Bizantino, com
suas facções internas sempre em disputa, perdeu o território da Anatólia, na Ásia
Menor, para os turcos seljúcidas, e o próprio imperador foi aprisionado, na batalha
de Manzikert (1071). Com a ameaça turca, o basileus (imperador) grego pediu
ajuda ao Papa, em Roma; entretanto suas relações com os exércitos cruzados serão
sempre tensas, o que gerou a conquista franj do Império Bizantino durante o
século XIII, a partir da expedição da Quarta Cruzada (1203), ocupação que durou
quase sessenta anos. São denominados de rum (“romanos”) pelos árabes, a partir
da memória do Império Romano.
Havia ainda, na região, os armênios, ao norte da Síria e Mesopotâmia.
Possuíam durante a Idade Média uma autonomia política, cultural e religiosa
eram cristãos ortodoxos, organizados conforme a sua própria Igreja (Igreja
Ortodoxa Armênia) e Imperador (o Catholicos). Na época das cruzadas, realizam
um jogo de alianças conforme seus interesses de manutenção de sua
independência contra os príncipes turcos. Suas alianças com os franj, no entanto,
9
Ismaelitas – seguidores do Imã Ismael; Zayditas – seguidores do Imã Zayd; Duodécimos:
acreditam no desaparecimento e retorno do décimo segundo Imã.
10
Cf. ARMSTRONG, K., O Islã.
11
O Grande Cisma do Oriente foi a cisão (cisma) formal da unidade da igreja cristã em Igreja
Católica e Igreja Ortodoxa, que tornou-se oficial em 1054.
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serão a causa da destruição de seu Estado no século XIII pelos exércitos dos
mamelucos (dinastia que sucede a dos ayyúbidas no poder).
3.2
Nômades e sedentários no processo histórico oriental
Segundo Perry Anderson, autor de Passagens da Antigüidade ao
Feudalismo
12
, o modo de vida e de produção dos grupos nômades pastoris não
deve ser confundido com a tribo primitiva ou com a agricultura sedentária.
Portanto, o modo de vida dos povos turcos e mongóis, que ocupavam os imensos
espaços das estepes da Ásia, não deve ser considerado mais primitivo que o das
populações sedentarizadas nos campos e cidades. Ele representou, em muitos
aspectos, uma adaptação e exploração do meio natural em que se encontravam
muitas vezes mais eficiente do que seus congêneres “civilizados”. Na época
medieval, a evolução social e política dos nômades levou à transformação da
ordem tribal e clânica em monarquias e Impérios territoriais, sustentados por uma
estratificação social mais complexa e desigual que o primitivismo comunal.
Criavam rebanhos de cavalos, gado bovino, camelos e ovelhas; possuíam o
conhecimento técnico e especializado dos ciclos anuais de migração; sabiam
distinguir os diferentes tipos de solos e pastagens; possuíam um sentido de
orientação espacial que lhes permitia percorrer longas distâncias e, finalmente, a
superioridade na eqüitação lhes conferia um poder bélico sem paralelos durante a
época medieval.
Mesmo assim, a maioria das sociedades nômades originou-se em territórios
muito pobres e de clima rigoroso – as franjas do mundo civilizado mais ao sul. A
pobreza e a fome, todavia, eram impulsos poderosos no fomento da guerra, que
gerava o tributo e a conquista de outras tribos e territórios. Durante os séculos XI
12
Cf. ANDERSON, P. Passagens da Antigüidade ao Feudalismo, segunda parte, capítulo II.
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42
a XIV, este processo intensificou-se, o que levou, por exemplo, à invasão das
terras islâmicas pelos turcos e, um pouco mais tarde, à formação dos impérios em
grande escala (como o de nghis Khan
13
, no século XIII). A inigualável
cavalaria turca invadiu e conquistou persas e árabes durante o século XI, com
fraca oposição.
No entanto, a conquista acabou por transformar os conquistadores. O
governo e a exploração econômica dos novos domínios requeriam uma dinastia de
príncipes e uma nobreza governante, destacada e separada dos nômades comuns
que formavam os exércitos regulares comandados por eles. No caso dos
seljúcidas, isso ficou claro após a conversão ao Islã, na qual a elite adotou
costumes, luxos e formas de governar persas e árabes, enquanto os comuns
demoravam-se mais nos antigos costumes e ritos tribais. O exército, aos poucos,
tendia também a sedentarizar-se e amalgamar-se com a população nativa,
diferenciando-se de seus primos que permaneceram nos territórios nômades ao
norte. Quando este processo completou-se, abriu-se caminho para novas e
repetidas invasões.
De acordo com Ibn Khaldun
14
, este é o processo inevitável da História,
principalmente da história islâmica. Os árabes dos séculos VII e VIII, beduínos e
guerreiros, unidos pela nova fé, conquistaram os decadentes gregos e persas,
estabelecendo um enorme império. Quando, nos séculos IX e X, pelas graças das
artes e culturas urbanas, das letras, da paz, do comércio e do refinamento cultural,
a aptidão militar da população afrouxou e o governo enfraqueceu-se com a
corrupção e incapacidade administrativa, abriu-se caminho para os turcos. Estes
últimos, por sua vez, repetiram o mesmo processo, embora adotando a cultura e a
13
Gênghis Khan (1162 1227) foi um conquistador e imperador mongol, nascido com o nome de
Temudjin nas proximidades do rio Onon, perto do lago Baikal, na Mongólia. Nasceu cercado de
lendas xamânicas sobre a vinda de um lobo cinzento que devoraria toda a Terra. Ainda jovem,
enfrentou a rejeição de sua família por seu próprio clã, mas reconquistou sua liderança, venceu
seus rivais de clãs distintos e unificou os povos mongóis sob seu comando. Estrategista brilhante,
com hábeis arqueiros montados à sua disposição, venceu a grande muralha da China, conquistou
aquele país e estendeu o seu império em direção ao oeste e ao sul. Morreu antes de ver seu império
alcançar sua extensão máxima, mas seus descendentes associariam sua própria glória às conquistas
de Gênghis Khan, que foi o comandante militar mais bem sucedido da história da humanidade.
Seu neto, Hulegu Khan, foi o responsável pela destruição da Pérsia e de Bagdá, na década de 1250.
14
Ibn Khaldun (1332 - 1406) foi um historiador do norte da África, autor de al-Muqadimah (Os
Prolegômenos), obra historiográfica tida por muitos acadêmicos como uma das principais fontes
para a compreensão das sociedades muçulmanas medievais. Ibn Khaldun é considerado um
precursor da moderna historiografia, sociologia, e economia.
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religião dos povos conquistados, sendo finalmente conquistados pelos mongóis.
Estes últimos, no entanto, destruíram muito da civilização islâmica clássica.
Bibliotecas inteiras, juntas com centenas de milhares de mortos, foram jogados ao
Rio Tigre quando da destruição de Bagdá pelas tropas de Hulegu Khan, em 1258.
A predominância econômica que florescia no ramo comercial e manufatureiro
urbano jamais reergueria-se no mundo islâmico medieval. No Mediterrâneo, este
fato manifestou-se com o crescente predomínio comercial italiano e o ocaso da
hegemonia árabe.
Anderson considera finalmente que os limites de produtividade do modo de
produção nômade-pastoril são por demais rígidos em comparação com a
agricultura camponesa e sedentária que, ao longo dos séculos medievais, foi
constante e lentamente melhorada e desenvolvida. O ponto de virada no jogo de
poder entre nômades pastores e sedentários agricultores ocorre com o
desenvolvimento do uso das armas de fogo em toda a Eurásia a partir do século
XV. Mesmo assim, na Ásia, os Estados Imperiais islâmicos que se firmaram
neste século a partir do uso da pólvora seriam de origem nômade, turca (otomanos
e safávidas, no Oriente Médio) ou mongol (na Índia).
A dinâmica dos povos nômades é relevante para a compreensão da evolução
da disputa pelo poder na geopolítica do Oriente Médio durante o período que se
convencionou denominar de Idade Média do Islã.
15
Seguindo-se ao período da
Idade Clássica, isto é, ao tempo da supremacia política do Califado de Bagdá e
das grandes realizações artísticas e culturais, a “Idade Média” islâmica inaugura
uma época de intensas transformações sociais, fragmentações políticas e
turbulências civis que levariam o oeste asiático a uma fragilidade militar,
permitindo a fácil conquista da Síria e da Palestina pelos guerreiros europeus da
Primeira Cruzada (1096 1098).
A dinastia Abássida, de longa tradição e fortuna, ao longo dos séculos X e
XI foi gradativamente perdendo a sua autoridade política plena, embora
mantivesse o prestígio religioso e simbólico da instituição do califado.
Entrementes, as vastas regiões do império árabe iam aos poucos retomando suas
15
Pode-se obter mais informações sobre esta síntese de história política em DEMANT, 2002;
MAALOUF, 2003; HOURANI, 2001; RUNCIMAN, 2003 e ARMSTRONG, 2001.
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autonomias locais, e dinastias de governadores, outrora nomeados a título precário
pelos califas, iam eternizando-se no poder.
No Egito, estabeleceu-se no poder um Califado concorrente, governado pela
dinastia Fatímida (909-1171), instituindo oficialmente a seita Xiita no poder, em
contraposição ao sunismo oficial de Bagdá. O monopólio da espiritualidade da
Sunna
16
encontrava-se seriamente ameaçado.
17
O processo gradual de fragmentação e transformação social no Oriente
Médio muçulmano foi acelerado durante o século XI, através das massivas
migrações de diversas tribos turcas para este território, advindos das estepes da
Ásia Central. O advento dos turcos no Oriente Médio significou uma nova etnia,
língua e cultura no confuso melting pot dio-oriental, dominado neste
momento pelas culturas árabe (do lado ocidental) e persa (do lado oriental).
Os turcos entraram no mundo islâmico inicialmente através de tribos
mercenárias a serviço dos governadores árabes e dos califas. Aos poucos,
tornaram-se a principal reserva de mão-de-obra militar do Império Muçulmano,
substituindo os guerreiros árabes que se sedentarizavam e enriqueciam com o luxo
e o comércio da vida urbana. Os turcos, por sua vez, de origem nômade, bárbara,
mantinham as virtudes guerreiras no seu rústico estilo de vida, dependentes do
pastoreio e do saque.
Esta situação de subordinação mudou quando um líder legendário turco,
membro da tribo dos Oghuz, de nome Seljuk, migrou da terra de Turan (Ásia
Central) em direção à Pérsia, inicialmente a serviço militar dos governantes
Samânidas (dinastia Persa que dominava o território da Transoxiana, e suas
prósperas cidades de Bucara e Samarcanda). Entretanto, ao contrário das
migrações anteriores, o clã de Seljuk veio com o intuito de conquista e ocupação
permanente dos novos territórios, e rapidamente a dinastia governante ficou a
mercê de seus novos “vassalos”.
16
Cf. nota 46.
17
Cf HOURANI, Uma História dos Povos Árabes, p.p. 99 – 113.
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45
O domínio dos seljúcidas na Transoxiana
18
preocupou o governante da
província vizinha, o Curasão
19
, dominado pelo sultão Mahmud de Ghazni
(dinastia ghaznávida). Saques, roubos de gado e incursões periódicas passaram a
ser freqüentes em seu território. Mahmud, sabendo que não detinha poder
suficiente para enfrentar diretamente os turcos seljúcidas, convidou seu líder,
Arslan (filho de Seljuk) para estabelecer-se além do Rio Oxus, na terra de
Curasão. Arslan atravessou o rio com quatro mil famílias turcas, e o resultado foi
o oposto do que o dirigente ghaznávida previra: uma onda de saques, depredações
em todo o norte da Pérsia, ruína de diversos campos agrícolas, captura de cidades
com exigência de resgate – os turcos, recém convertidos ao islã sunita, não
conheciam ainda os códigos islâmicos de ética na guerra.
Uma batalha final foi então travada entre Mahmud e Arslan, e nesta batalha,
os turcos fugiram e se dispersaram, e foi necessário esperar até a próxima geração
para a revanche contra os persas. Os irmãos Chagri-beg e Tughril-beg, em 1037,
invadiram novamente o Curasão com dez mil cavaleiros, arrasando novamente
esta região do nordeste da Pérsia. O objetivo dos seljúcidas neste momento fica
mais claro: eles desejam a soberania territorial, através do terror da violência, mas
também através da auto-representação como os campeões do islã sunita contra os
sectários xiitas. A batalha de Dandanquan, em 1040, selou a derrota final dos
ghaznávidas, último poder defensivo do Irã frente aos invasores. A partir deste
momento, nenhuma força militar seria mais capaz de impedir o avanço turco rumo
à Pérsia e ao Iraque.
Tughril-beg liderou esta ofensiva; lutou durante dez anos contra os cristãos
da Armênia antes de voltar-se contra Bagdá em 1055. O seu ataque foi
fulminante, a guarnição militar da cidade se rendeu, e Tughril-beg tomou o título
de Sultão de Bagdá e protetor do Califa e do Islã. O Califa foi obrigado a adotar
como esposa uma irmã do sultão, legitimando o controle político turco. Este
momento foi bastante significativo: corresponde à submissão simbólica do povo
do Profeta (os árabes) aos invasores estrangeiros, recém convertidos a uma
religião a qual pouco conheciam.
18
A terra além do rio Oxus, ao norte do Afeganistão; transoxiana é a denominação grega para esta
terra conquistada por Alexandre, o Grande.
19
Região a nordeste do planalto iraniano.
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46
A partir do governo de Alp Arslan (filho de Tughril-beg), o domínio turco
vai se institucionalizando. Este príncipe reinou sob todo o Irã, Iraque e Síria, e
preocupou-se em estabelecer as bases para uma economia próspera, dependente da
paz. O exército turco, entretanto, necessitava para a sua coesão social estar
constantemente envolvido em lutas e pilhagens, que garantissem a lealdade dos
súditos turcos ao seu sultão. Uma disjunção começa então ocorrer no seio da
sociedade turca entre a elite governante, que passou a adotar hábitos persas, e a
soldadesca nômade e fiel às origens rudes da tribo.
A saída para tanto estava na conquista externa: lançar o exército contra a
fronteira bizantina, na Ásia Menor (Anatólia). Bizâncio, durante o século XI,
encontrava-se no auge de sua grandeza urbana, riqueza e luxo; entretanto, uma
série de contendas internas acabou por reduzir os efetivos militares do Império.
Para enfrentar Alp Arslan, o imperador Romano Diógenes juntou um exército de
mercenários mal disciplinados: normandos, búlgaros, nórdicos, alemães e turcos
de várias tribos, mais uma guarda imperial mal-treinada e desmotivada. O
resultado foi uma humilhante derrota bizantina na batalha de Manzikert, na qual o
próprio Imperador foi aprisionado pelos turcos. Ocorreu então um acordo de paz
entre Romano e Alp Arslan, mas ambos não puderam cumprir suas
determinações: o imperador bizantino foi assassinado por facções nobres em
Constantinopla e o sultão esfaqueado por um escravo em uma contenda
doméstica.
O governo seguinte, do sobrinho de Alp Arslan, Malik-Xá, representou o
auge do controle seljúcida do Oriente Médio. Malik-Xá (título que alude ao Rei
dos Reis da antiga Pérsia aquemênida) nutria o desejo de efetivamente reunificar
todo o Oriente muçulmano, apoiado pelas nobrezas turca e persa. Seu governo foi
marcado pela figura de Nizam al-Mulk, grão-vizir, que administrava todos os
assuntos civis de governo. Nizam recrutou grandes talentos de sua época para a
burocracia palaciana e provincial; melhorou estradas e caravançarás
20
. A língua e
a cultura persas, sob a sua influência, tiveram um período de florescência poética
e artística. O exército do sultão consistia de 70.000 cavaleiros turcos, além de
escravos pagãos convertidos na infantaria, e assim, unindo os poderes civil e
20
Locais de descanso e reabastecimento para as caravanas.
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47
militar, Malik-Xá deu por breves vinte anos um período de paz e prosperidade
para o Oriente Médio.
No entanto, tal paz e estabilidade mostraram-se de bases frágeis quando caiu
Nizam al-Mulk, morto pela seita xiita dos Assassinos e, logo em seguida, o sultão
Malik-Xá, em 1092, encerrando vinte anos de governo conjunto. O Estado turco
rapidamente se fragmentou em principados autônomos, controlado por turcos ou
por potentados locais árabes ou persas. Os atabegs
21
estabeleceram-se no poder
em várias cidades da Pérsia e do Iraque. A Síria encontrava-se extremamente
fragmentada, com cada pequena localidade ou grande cidade controlada por um
governante autônomo e cioso de suas prerrogativas. O Califa abássida ainda
tentou recuperar parte de seu poder jogando os pretendentes a sultão uns contra os
outros. Ao mesmo tempo, o Império Bizantino tentou se reerguer após a derrota
em Manzikert, enviando ao Ocidente, o “apelo do Imperador Oriental”
22
, fato
provocador da convocação da primeira Cruzada pelo Papa Urbano II
23
e a
posterior deflagração concreta deste movimento. Os turcos, subitamente, viraram
o inimigo número um na Europa Ocidental que nunca os tinham visto. Ocorreram
então uma série de eventos que nenhum daqueles que os desencadearam poderia
prever as conseqüências: a ocupação e a colonização européia no coração das
terras muçulmanas por quase duzentos anos.
21
Literalmente, “tutores de príncipes”, nobres turcos encarregados da educação dos jovens
príncipes seljúcidas, que acabam por usurpar o governo.
22
O imperador enviou, de fato, uma carta ao papa; no entanto, vários textos apócrifos circularam
pela Europa neste período, em sua maioria enfatizando o perigo turco.
23
A Primeira Cruzada foi proclamada em 1095 pelo papa Urbano II com o objetivo duplo de
auxiliar os cristãos ortodoxos do leste e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano.
Começou com um apelo do Imperador Bizantino Aleixo I Comneno ao papa para o envio de
mercenários para combater os turcos seljúcidas na Anatólia, o que deflagrou o movimento
cruzado.
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48
3.3
Cruzadas: o contexto geopolítico oriental, séculos XI e XII d.C.
A invasão dos exércitos da cristandade ocidental adveio sobre o Oriente em
1096, no momento em que a Síria e a Palestina constituíam zona de litígio entre as
três principais potências políticas da rego: o império seljúcida em dissolução, o
Califado Fatímida do Egito e o Império Bizantino. Vejamos no que consistia este
território, de acordo com Will Durant:
A metade ocidental do Crescente Fértil forma uma área conhecida de uma geração
anterior de estudiosos e viajantes como “Síria”. Aqui, como na Arábia Ocidental,
as primeiras divisões geográficas se dão de oeste para leste. Por trás de uma faixa
costeira de planície, há uma cadeia de planaltos, erguendo-se no centro para as
montanhas do Líbano e descendo no sul para os morros da Palestina. Além delas,
para leste, fica uma depressão, parte da Grande Fenda que corta o mar Morto e o
mar Vermelho até a África Oriental. Além dessa fica outra região montanhosa, a
grande planície ou planalto do interior, que se transforma gradualmente na estepe
ou deserto de Hamad. Em alguns lugares, sistemas antigos de irrigação usavam as
águas do Orontes e de rios menores para manter oásis férteis, em particular o que
ficava em torno da cidade de Damasco; em sua maior parte, porém, a possibilidade
de cultivo dependia da chuva. Nas encostas orientais dos morros e montanhas
litorâneos, a precipitação pluvial é suficiente para possibilitar o cultivo regular,
contanto que o solo seja preparado pelo terraceamento das encostas; em outras
partes, é mais precário (...)
A Síria era estreitamente ligada ao resto da bacia do Mediterrâneo Oriental por
rotas marítimas que partiam de seus portos e por uma rota de terra que corria ao
longo da costa até o Egito; para o interior, ligava-se também à Arábia Ocidental, e,
por rotas que atravessavam o Hamad ou o contornavam sua margem norte, a terras
a leste. A combinação de comércio a longa distância com a produção de um
excedente de alimentos e matérias-primas tornara possível o surgimento de grandes
cidades, que ficavam nas planícies interiores mas ligadas com a costa Alepo no
norte e Damasco no sul.
24
A disputa política pela Síria ganhava tons de guerra santa, pois os três
poderes representavam as correntes religiosas mais influentes, respectivamente o
Sunismo, o Xiismo e o Cristianismo Ortodoxo. A introdução neste cenário de
mais um elemento, os cruzados cristãos, resultou em uma maior complexidade no
jogo de alianças, disputas e contendas, especialmente nos territórios sírios e
palestinos.
24
DURANT, W., A Idade da Fé, p. 108.
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49
Mapa 1 sobreposição de fotografias de satélite mostrando a região da Síria, com a
capital, Damasco, situada num planalto atrás de duas cadeias de montanhas paralelas à
linha da costa o Líbano e Anti-líbano. Fonte: Google Earth
http://earth.google.com/intl/pt/
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50
Mapa 2 Oriente Médio, rede urbana de Síria e Palestina, século XII. Fonte: ilustração
do autor.
Figura 2 Moeda de época com a efígie de Saladino. Fonte: McKITERICK, R. Atlas of
the Medieval World, p. 170.
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51
A invasão ocidental ocorreu entre os anos de 1096 e 1099, e culminou com
a dramática queda de Jerusalém. Principal alvo da incursão cruzada, a Cidade
Santa foi alvo de fúria e violências incomuns para os padrões da guerra islâmica
até então.
A população da Cidade Santa foi morta pela espada, e os franj massacraram os
muçulmanos durante uma semana. Na mesquita al-Aqsa, eles mataram mais de 70
mil pessoas” (...) “Muitas pessoas foram mortas. Os judeus foram reunidos na sua
sinagoga e os franj os queimaram vivos. Eles destruíram também os monumentos
dos santos e o túmulo de Abraão.
25
Em todas as regiões do Oriente muçulmano, uma onda de lamentações
abateu-se sobre os fiéis. A perda da cidade em que o Profeta elevou-se aos Céus,
a destruição e devastação geral que se seguiram a um século de tantas guerras,
abateu o espírito dos muçulmanos, afinal quais seriam as causas de tanta
decadência após toda a história gloriosa do Islã e de seus Califas?
(...) no verão sangrento de 1099, quando al-Harawi veio anunciar a [o califa] al-
Mustazhir a queda de Jerusalém, se acabou aquela idade de ouro. Bagestá semi-
destruída e o império desintegrado. Resta somente esse mito de uma era de
unidade, grandeza e prosperidade que sempre assolará os sonhos dos árabes
26
Os cavaleiros ocidentais organizaram politicamente os resultados de sua
conquista, fundando quatro Estados do tipo feudal
27
. Eram eles o Reino de
Jerusalém, o Condado de Edessa, o Condado de Trípoli e o Principado de
Antioquia, baseados nas respectivas cidades e controlando o entorno rural delas.
Durante um período de meio século, o domínio franco na Terra Santa
permaneceu incontestável. Nem os príncipes seljúcidas, enfraquecidos por suas
contendas internas, tampouco os senhores locais sírios podiam, sozinhos,
enfrentar a invasão alienígena.
25
Ibn al-Athir IN MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 59.
26
Ibid., p.11.
27
O soberano maior governava na capital, enquanto a aristocracia dividiu as áreas rurais em
feudos autônomos; estabeleceu-se as relações usuais de suserania e vassalagem, de apoio mútuo na
guerra e pouca intromissão nos assuntos internos do feudo.
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52
3.4
Ascensão dos Zângidas
O equilíbrio de forças começou a se alterar para o lado dos muçulmanos
somente meio século depois, a partir da ascensão do atabeg Zinki, senhor de
Mossul, lugar-tenente do Sultão suljúcida. Zinki utilizou a estratégia de aliança
política com as tribos curdas das montanhas próximas a Mossul, atraindo dessa
forma a amizade e respeito do chefe curdo Ayyub, e de seu irmão mais novo,
Xirkuh.
Foi Mohammed Zinki o general que retomou para o Islã a cidade de Edessa,
extinguindo o condado cristão de mesmo nome, no ano de 1144. Esse fato
rendeu-lhe um enorme prestígio, bem como uma capacidade militar ampliada, que
utilizou para obter para o seu controle as regiões da Síria e Mesopotâmia.
Finalmente emergia, após meio século de hegemonia ocidental, um poder
muçulmano capaz de desafiar os franj. O novo Estado fundado por Zinki
abarcava terras e cidades na Síria, no Iraque e na Palestina.
A conquista de Edessa não foi apenas a de uma cidade. O povo
muçulmano, através deste ato, reconquistou seu orgulho perdido e a esperança de
que os franj não fossem tão invencíveis assim. O nome de Zinki propagou-se por
toda a Síria e a Mesopotâmia. Abul-Faraj Basile, bispo cristão sírio de Edessa,
que participou diretamente desses acontecimentos, nos relata a brutalidade dos
novos métodos de sítio empregados pelo exército de Zinki:
Os turcos tinham arrancado as fundações do muro setentrional e, em seu lugar,
tinham colocado lenha, vigas e troncos em quantidade. Tinham enchido interstícios
de nafta, graxa e enxofre, para que o braseiro se inflamasse mais facilmente e o
muro ruísse. Então, sob as ordens de Zinki, atearam fogo. Os arautos de seu
acampamento gritaram para que se preparassem para o combate, recrutando
soldados para se introduzir pela brecha assim que o muro tivesse caído e lhes
prometendo abandonar a cidade durante três dias para que fosse saqueada. O fogo
pegou na nafta e no enxofre e inflamou a lenha e a graxa fundida. O vento soprava
do norte e levava a fumaça contra os defensores. Apesar de sua solidez, o muro
tremeu, depois desmoronou. Após terem perdidos muitos dos seus na brecha, os
turcos penetraram na cidade e começaram a massacrar as pessoas sem distinção.
Naquele dia, aproximadamente seis mil habitantes pereceram. As mulheres, as
crianças e os jovens se precipitaram aa parte mais alta da cidadela para escapar
ao massacre. Encontraram a porta fechada por culpa do bispo dos franj, que dissera
aos guardas: ´Se vocês não virem o meu rosto, não abram a porta!´ Assim os
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53
grupos subiam uns após os outros e se comprimiam. Espetáculo lamentável e
horrível: empurrados, asfixiados, transformados numa massa compacta,
aproximadamente cinco mil pessoas, e talvez mais, pereceram de forma atroz.
28
Após este furor inicial, no entanto, Zinki interferiu pessoalmente com seus
comandados para por fim à matança. Um emir seu se reuniu com Abul-Faraj e
disse para o bispo:
Venerável, desejamos que nos jure, sobre a Cruz e o Evangelho, que você e sua
comunidade permanecerão fiéis a nós. Você sabe muito bem que esta cidade,
durante os duzentos anos que os árabes a governaram, foi uma metrópole próspera.
Hoje, cinqüenta anos que os franj a ocuparam, eles já a arruinaram. Nosso
mestre Imadeddin Zinki está disposto a tratá-los bem. Vivam em paz, fiquem em
segurança sob sua autoridade e orem por sua vida.
29
Podemos observar que os métodos utilizados por Zinki tinham uma
eficiência mortal; segundo Maalouf:
De fato, eles fizeram com que os sírios e os armênios saíssem da cidadela, e cada
um deles voltou para sua casa sem ser molestado. Quanto aos franj, ao contrário,
tomaram tudo o que havia com eles, ouro, prata, vasos sagrados, cálices, patenas,
cruzes ornamentadas e grandes quantidades de jóias. Os padres, os nobres e as
pessoas notáveis foram mantidos vivos; despojaram-nos de suas vestes antes de
enviá-los acorrentados a Alepo. Dos que sobraram, pouparam os artesãos, que
Zinki manteve consigo para fazê-los trabalhar cada qual em sua profissão. Todos
os outros franj, mais ou menos cem homens, foram executados.
30
O entusiasmo tomou conta dos povos muçulmanos. Refugiados da Palestina
e das cidades costeiras começavam a falar que o atabeg Zinki iria reconquistar
Jerusalém, um objetivo que tornava-se cada vez mais simbólico da resistência
contra os franj. A quase indiferença do mundo muçulmano em relação à perda
desta cidade transformar-ser-ia numa obsessão motivadora. O califa em Bagdá
conferiu a Zinki títulos prestigiosos e honras de todo o tipo. Após o século X, no
mundo islâmico, houve uma tendência ao exagero de cognomes honoríficos,
provavelmente como reflexo da fragmentação política e da multiplicação de
dinastias, cortes e homens importantes. Ibn al-Qalanissi
31
comenta o fato, com o
exemplo do próprio atabeg:
28
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p.p. 129 – 130.
29
Ibid., p.p. 129 – 130.
30
Ibid., p.p. 129 – 130.
31
Cronista árabe damasceno, testemunha ocular dos acontecimento em Damasco durante o século
XII.
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54
O emir, o general, o grande, o justo, o ajudante de Deus, o triunfador, o único, o
pilar da religião, a pedra angular do Islã, o ornamento do Islã, o protetor das
criaturas, o herdeiro da dinastia, o auxiliar da doutrina, a grandeza da nação, a
honra dos reis, o apoio dos sultões, o vencedor dos infiéis, dos rebeldes e dos ateus,
o chefe dos exércitos muçulmanos, o rei vitorioso, o rei dos príncipes, o sol dos
méritos, o emir dos dois Iraques e da Síria, o conquistador do Irã, Bahlawn Jihan
Alp Inassaj Kotlogh Toghrulbeg atabek Abu-Said Zinki Ibn Aq Sonqor,
sustentáculo do príncipe dos crentes.’
32
Interessante notar que, entre os títulos assumidos por Zinki, os mais
significativos são aqueles que o relacionam às fontes nominais de sua
legitimidade: atabeg do príncipe seljúcida Bahlawn Toghrulbeg e sustentáculo do
príncipe dos crentes, isto é, protetor do califa.
3.5
Memórias de Usamah ibn Munqidh
No processo de conquista dos territórios muçulmanos na Síria, um grande
desafio para Zinki era a tomada da cidade de Damasco, a mais rica, importante e
bem-defendida da região. Mais de uma vez ele tentou atacar a cidade, sem
sucesso. O governante de Damasco neste momento era Moinuddin Unar, velho
companheiro de Toghtekin, da dinastia seljúcida, “um comandante turco
malicioso e obstinado”.
33
Assustado com os métodos brutais de Zinki, Unar
preferia manter a autonomia de Damasco sob seu comando; para que isso pudesse
ocorrer era preciso uma aliança com algum outro poder.
No ano de 1140, Zinki aumentou sua pressão sobre Damasco, o que levou
Unar a levar adiante um plano inusitado, uma aliança com o rei Fulk de Jerusalém
e seu exército franj. Dois anos antes, Unar enviara seu amigo, o aristocrata e
cronista árabe Usamah ibn-Munqidh (1095 1188), como seu representante, para
avaliar as possibilidades de uma aliança entre Jerusalém e Damasco.
32
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, 130-131.
33
Ibid., p. 118.
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55
Usamah foi bem recebido por onde andou, e fez observações em suas
memórias sobre este período que passou no Reino de Jerusalém. A amizade e o
entendimento que Usamah possuía sobre os franj fez dele uma espécie de
especialista para assuntos relacionados a eles, em Damasco. Em suas
peregrinações pelo reino cristão, Usamah revelou-se um observador atento e
sensível às peculiaridades do povo franj. Com seu espírito curioso e observações
perspicazes, Usamah nos forneceu um testemunho sobre alguns costumes e a vida
cotidiana deste tempo.
Segundo Richard Bulliet, sobre as Memórias de Usamah
34
(Kitab al-Itbar),
nada na história medieval islâmica alcança suas descrições vívidas e detalhadas, e
pouca coisa na produção da Europa medieval que possua a sua lucidez de
espírito. Não podemos aceitar as coisas descritas por Usamah como uma verdade
absoluta, pois todo escrito autobiográfico é sempre uma apropriação
contextualizada por diversos fatores, posta numa forma fixa. Usamah tinha já
noventa anos quando terminou de escrever sua obra. O manuscrito sobrevivente é
uma cópia, certificada por seu filho e transcrita menos de trinta anos após a morte
de Usamah, e encontra-se atualmente no Escorial, na Espanha. A tradução é de
Philip K. Hitti, da Universidade de Princeton, primeiramente publicada em 1929.
Usamah foi um guerreiro, caçador, cavalheiro, poeta, homem de letras e
nobre árabe. Sua vida representa um exemplo da civilização árabe que floresceu
na Pérsia durante os séculos XI e XII. Seu espírito cavalheiresco seria
superado por Yussef Ayyubi. Seu avô e seu tio são referidos nas crônicas como
“reis de Chayzar”, e dominavam um pequeno principado territorial em torno desta
cidade. O filho de Usamah tornou-se companheiro de armas de Saladino.
Suas opiniões acerca dos franj são de primeira mão, e podemos considerar
que expressava um senso comum nas elites árabes sobre o caráter deste povo. Sua
atitude é muitas vezes ambígua, o que se devia à simultânea atração e repulsa aos
franj. Ele os chama de demônios e infiéis num momento, e no outro caracteriza
alguns como “amigos e irmãos”. Vejamos algumas passagens significativas de
seu relato:
34
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh.
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56
Mysterious are the works of the Creator, the author of all things! When one comes
to recount cases regarding the Franks, he cannot but glorify Allah (exalted is he!)
and sanctify him, for he sees them as animals possessing the virtues of courage and
fighting, but nothing else; just as animals have only the virtue of strength and
carrying loads. I shall now give some instances of their doings and their curious
mentality
35
Misteriosos são os trabalhos do Criador, o autor de todas as coisas! Quando
alguém vem recontar casos relacionados aos franj, ele não pode senão glorificar e
santificar Deus (exaltado seja!), pois os como animais possuidores das virtudes
da coragem e luta, porém mais nada; como animais possuem apenas a virtude da
força e de carregar fardos. Eu irei agora dar alguns exemplos de seus feitos e de
sua curiosa mentalidade.
Certa vez, um cavalheiro, que
(…) was of my intimate fellowship and kept such constant company with me that
began to call me ´my brother´. Between us were mutual bonds of amity and
friendship. When he resolved to return by sea to his homeland, he said to me:
´My brother, I am leaving for my country and I want to thee to send with me thy
son (my son, who was fourteen years old, was at that time in my company) to our
country, where he can see the knights and learn wisdom and chivalry. When he
returns, he will be like a wise man´.
Thus there upon my ears words would never come out of the head of a sensible
man; for even if my son were to be taken captive, his captivity could not bring his a
worst misfortune than carrying him into the lands of the Franks. However, I said to
the man:
´By thy life, this has exactly been my idea. But the only thing that prevented me
from carrying it out was the fact that his grandmother, my mother, is so fond of
him and did not this time let him come out with me until she exacted an oath from
me to the effect that I would return him to her´
36
(...) fazia parte de meu círculo íntimo e estávamos em tão constante companhia que
começou a me chamar de ´meu irmão. Entre nós havia laços mútuos de amizade e
companheirismo. Quando ele resolveu retornar por mar para sua terra, ele disse
a mim:
´Meu irmão, estou partindo para meu país eu queria que vós mandásseis comigo
vosso filho (meu filho, que tinha catorze anos, estava naquele tempo em minha
companhia) para nosso país, onde ele poderá ver os cavalheiros e aprender
sabedoria e cavalheirismo. Quando ele retornar, ele será como um sábio´.
Então caíram sobre meus ouvidos palavras que nunca deveriam sair da cabeça de
um homem sensato; por mesmo se o meu filho fosse feito cativo, seu cativeiro não
o traria maior infortúnio que carregá-lo para a terra dos franj. Entretanto, eu
disse ao homem:
35
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 161.
36
Ibid., p. 161.
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57
´Por sua vida, essa era exatamente a minha idéia. Mas a única coisa que me
previne de fazê-lo é o fato de que sua avó, minha mãe, é tão apegada a ele e dessa
vez não o deixou sair comigo até extrair de mim um juramento de que iria trazê-lo
de volta para ela.´
Podemos observar nas memórias de Usamah que seu argumento carrega
uma dualidade de atitude perante os franj. Inicialmente, chama-lhes de animais,
pois sua únicas virtudes são aquelas da guerra. No entanto, é capaz de aliar-se
com uma facção deles, e até mesmo de manter amizade e respeito com alguns.
Apesar de toda a repulsa inicial que sente pelos seus costumes “exóticos” e
“bárbaros”, acaba afeiçoando-se sinceramente por alguns.
A proposta do companheiro de Usamah de levar seu filho para a Europa
fazia bastante sentido no contexto medieval europeu, em que nobres aliados
freqüentemente mandavam seus filhos para serem educados alhures com seus
aliados. Na perspectiva de Usamah, a terra dos franj correspondia àquela parte do
mundo denominada de Dar al-Harb, ou “Casa da Guerra”, territórios no qual o
bom governo, leis e costumes do Islã ainda não chegaram; a própria perspectiva
de um exílio nestas terras era vista como uma espécie de castigo ou expiação.
Felizmente para ele, Usamah se sai bem de uma situação constrangedora usando o
infalível argumento de um juramento feito à própria mãe.
Certa vez, um nobre castelão franj escreveu ao tio de Usamah, pedindo-lhe
para enviarem médicos para tratar de algumas pessoas doentes entre seu povo.
Seu tio enviou-lhe um médico cristão chamado Thabit, de origem árabe e natural
da Síria. Quando o médico retornou, poucos dias depois, contou a Usamah o
seguinte relato:
They brought before me a knight in whose leg an abscess had grown; and a woman
afflicted with imbecility. To the knight I applied a small poultice until the abscess
opened and become well; and the woman I put on diet and made her humor wet.
Then a Frankish physician came to them and said, ´This man knows nothing about
treating them´. He then said to the knight: ´Which wouldst thou prefer, living with
one leg or dying with the two?´ The latter replied, ´Living with one leg The
physician said, ´Bring me a strong knight and a sharp ax.´ A knight came with the
ax. And I was standing by. Then the physician laid the leg of the patient on a block
of wood and made the knight strike his leg with the ax and chop it off at one blow.
Accordingly he struck it while I was looking on one blow, but the leg was not
severed. He dealt another blow, upon which the marrow of the leg flowed out and
the patient died on the spot. He then examined the woman and said, ´This is a
woman in whose head there is a devil which has possessed her. Shave off her hair´.
Accordingly they shaved it off and the woman began once more to eat their
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ordinary diet garlic and mustard. Her imbecility took a turn for the worse. The
physician then said, ´The devil has penetrated through her head.´ He therefore took
a razor, made a deep cruciform incision on it, peeled off the skin at the middle of
the incision until the bone of the skull was exposed and rubbed it with salt. The
woman also expired instantly. Thereupon I asked them whether my services were
needed any longer, and when they replied in the negative I returned home, having
learned of their medicine what I knew not before.
37
Eles trouxeram perante mim um cavalheiro em cuja perna um abscesso crescera; e
uma mulher sofrendo de ´imbecilidade´. Para o cavalheiro eu apliquei um
pequeno emplastro até o abscesso abrir e ficar bom; e a mulher eu a coloquei em
dieta e fiz seu humor mais úmido. Então um médico franj veio até ele e disse:
´Esse homem não sabe nada sobre como tratá-los.´ Ele então disse ao cavaleiro:
´O que vós preferis, viver com uma perna ou morrer com as duas?´ O último
respondeu: ´Viver com uma perna´ O médico disse, ´Tragam-me um cavaleiro
forte e um machado afiado´. O cavaleiro veio com o machado. Eu estava
esperado, ao lado. Então o médico posicionou a perna do paciente num bloco de
madeira e fez o cavaleiro atingir sua perna com o machado, para cortá-la com um
golpe. De acordo, ele o golpeou enquanto eu observava uma vez, mas a
perna não se partiu. Ele deu outro golpe, do qual a medula da perna saiu para
fora e o paciente morreu no ato. Ele então examinou a mulher e disse, ´Essa é uma
mulher em cuja cabeça está um demônio que a possuiu. Raspem seus cabelos´.
De acordo, eles o rasparam e a mulher começou mais uma vez a comer sua dieta
ordinária alho e mostarda. Sua ´imbecilidade´ mudou para pior. O médico
então disse: ´O diabo penetrou através de sua cabeça´. Ele então pegou uma
lâmina, fez uma profunda incisão cruciforme em sua cabeça, até o osso do crânio
ficar exposto e esfregou-o com sal. A mulher também morreu instantaneamente.
Eu então perguntei-lhes se meus serviços ainda eram necessários, e quando eles
replicaram negativamente eu voltei para casa, aprendendo de sua medicina o que
não sabia antes.
Usamah parece desdenhar das teorias medicinais dos franj , no entanto
reconhece casos em que seus métodos empíricos efetivamente funcionam. Certa
vez, o tesoureiro do rei Fulk
38
foi ferido na perna por um cavalo, e o golpe formou
várias feridas purulentas, e enquanto Usamah podia rezar, um médico franj
que removeu todas as impurezas e aplicou vinagre, o que salvou a vida do
homem.
Podemos considerar que Usamah reconhece no Outro, bárbaro e violento, a
possibilidade de redenção e aprendizagem dos bons costumes. O abismo entre os
costumes da iletrada nobreza européia do século XII e as sofisticadas elites
arabizadas do Oriente não seria intransponível. A posição de Usamah, apesar de
não ser única, pode ser considerada como representativa de uma opinião corrente
neste tempo de “degelo” e entre os Estados cruzados e os potentados muçulmanos,
37
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 162.
38
Fulk de Anjou (1092 – 1143), rei de Jerusalém (1131 – 1143).
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59
que coabitavam a mesma região geográfica. Usamah percebeu nuances entre os
franj, que quanto mais tempo permaneciam no Oriente, mais se civilizavam,
adotando padrões e costumes orientais, ou seja, “arabizando-se”. A assimetria
cultural entre ambos os grupos não se referia às técnicas agrícolas ou à potência
militar, mas antes dava-se no campo da chamada “alta cultura”, composta pelas
letras, artes, ciências, matemática, astronomia, filosofia, medicina, em suma, pelas
conquistas mais perenes e intangíveis de uma civilização. Os franj, cheios de
energia guerreira e uma fé militante, no entanto, desconheciam o universo oriental
de riquezas e luxos que logo aprenderiam a desfrutar.
Among the Franks are those who have become acclimatized and have associated
long with the Moslems. These are much better than the recent comers from the
Frankish lands. But they constitute the exception and cannot be treated as a rule.
39
Entre os franj estão aqueles que ficaram aclimatados e se associaram a longo
tempo com os muçulmanos. Estes são muito melhores que os recém-chegados das
terras dos franj. Mas eles constituem uma exceção e não podem ser considerados
como uma regra.
Tanto Saladino quanto Usamah esperam que aqueles melhores entre os franj
possam um dia finalmente abraçar o Islã. Nem Usamah nem Bahaheddin Ibn
Shaddad perdoam o que consideram as excentricidades teológicas do cristianismo;
o primeiro fica sem palavras diante de uma imagem do Jesus menino que um
cavalheiro cristão afirma ser Deus em forma de criança, enquanto Usamah pensa:
Allah is exalted far above what the infidels say about him”
40
, mas, por respeito
ao seu anfitrião, mantém-se calado.
Um aspecto dos costumes franj que mais espantavam muitos muçulmanos
era a liberalidade com que eles tratavam suas mulheres, mães, esposas ou filhas.
The franks are void of all zeal and jealously. One of them may be walking along
with his wife. He meets another man who takes the wife by the hand and steps
aside to converse with her while the husband is standing on one side waiting for his
wife to conclude the conversation. If she lingers too long on him, he leaves her
alone with the conversant and goes away.
41
Os franj não possuem nenhum zelo e ciúmes. Um deles estava caminhando com
sua esposa. Ele encontra outro homem que pega na esposa pela mão e um
passo ao lado para conversar com ela enquanto o marido está esperando num lado
39
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 169.
40
Deus é exaltado muito acima do que os infiéis falam Dele. Ibid., p. 161.
41
Ibid., p. 164.
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sua esposa concluir a conversa. Se ela se demorasse muito, ele deixaria-a com
o conversante e iria embora.
A proteção e o cuidado com as mulheres eram a norma geral em todo o
Médio Oriente, em todas as denominações religiosas. O uso do véu era
disseminado também entre as igrejas cristãs. As mulheres com o rosto e os
cabelos desnudos, que muitas vezes circulavam desacompanhadas de seus
maridos, chocavam a sensibilidade local. Ao mesmo tempo, os franj
desconheciam muitos dos cuidados com o corpo e higiene pessoal. Um amigo de
Usamah, Salim proprietário de uma casa de banhos em Maara, relatou-lhe:
To this bath there came a Frankish knight. The Franks disapprove of girding a
cover around one´s waist while in the bath. So this Frank stretched out his arm and
pulled off my cover from my waist and threw it away. He looked and saw that I
had recently shaved off my pubes. So he shouted, ´Salim!´ As I drew near him he
stretched his hand over my pubes and said, ´Salim, good! By the truth of my
religion, do the same for me.´ Saying this, he lay on his back and I found that in
that place the hair was like his beard. So I shaved it off. Then he passed his hand
over the place and, finding it smooth, he said, ´Salim, by the truth of my religion,
do the same to madame [al-dama], referring to his wife. He then said to a servant
of his, ´Tell madame to come here´. Accordingly the servant went and brought her
and made her enter the bath. She also lay on her back. The knight repeated, ´Do
what thou hast done to me´. So I shaved all that hair while her husband was sitting
looking at me. At last he thanked me and handed me the pay for the service.
42
Para essa casa de banho veio um cavalheiro franj. Os franj desaprovam o uso de
vestimenta em torno das virilhas enquanto se está no banho. Então este cavalheiro
franj esticou o seu braço e puxou minha vestimenta e deitou-a fora. Ele olhou e
viu que eu recentemente raspara minha região púbica. Então ele gritou, ´Salim!´
Enquanto eu chegava perto dele ele esticou suas mãos sobre meu púbis e disse,
´Salim, bom! Pela verdade de minha religião, faça o mesmo para mim.´ Dizendo
isto, ele deitou-se de costas e eu descobri que naquele lugar seus pêlos eram como
sua barba. Então eu o raspei. Então ele passou sua mão sobre o local e, achando-
o macio, ele disse: ´Salim, pela verdade de minha religião, faça o mesmo para a
dama, referindo-se a sua esposa. Ele então disse para um serviçal seu, ´Diga a
dama para vir aqui´. De acordo, o servo a trouxe e fez-lhe entrar na casa de
banho. Ela também deitou de costas. O cavalheiro repetiu, ´faça o que vós
fizestes para mim´. Então eu raspei todos os seus pêlos enquanto o marido
sentado me observava. Finalmente ele me agradeceu e me pagou pelo serviço.
Usamah pôde vivenciar diversos aspectos da vida cotidiana dos franj. Certa
vez, presenciou durante uma festa religiosa na cidade de Tabaryyah, uma
inusitada competição:
The cavaliers went out to exercise with lances. With them went out two decrepit,
aged women whom they stationed at one end of the race course. At the other end of
42
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 165–166.
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the field they left a pig which they had scalded and laid on a rock. They then made
the two aged woman run a race while each one of them was accompanied by a
detachment of horsemen urging her on. At every step they took, the woman would
fall down and rise again, while the spectators would laugh.
43
Os cavaleiros saíram para exercitar-se com lanças. Com eles vieram duas
decrépitas mulheres de idade, que eles puseram numa extremidade da pista de
corrida. No outro lado do campo eles deixaram um porco que eles escaldaram e
deitaram numa pedra. Eles então fizeram as duas mulheres correr uma corrida
enquanto cada uma delas era acompanhada por um destacamento de cavaleiros as
incentivando. A cada passo que elas davam, as mulheres caíam e se levantavam
de novo, enquanto os espectadores riam.
Se uma das acepções do conceito de civilização é o respeito pelo ser
humano
44
, na assimetria cultural observada por Usamah, ele não poderia deixar de
se chocar com essa prática de entretenimento entre os franj.
No campo dos costumes jurídicos, elemento essencial de todo sistema
social, Usamah espantou-se ao observar um julgamento por ordálio. De acordo
com Juan Martos Quesada
45
, o Fiqh, o direito islâmico medieval, é uma
especificidade muçulmana. Os princípios fundamentais do direito islâmico o
religiosos e suas fontes principais são os textos sagrados. Ao mesmo tempo, ele
absorveu o desenvolvimento histórico anterior e as vicissitudes do seu tempo. No
tempo de Saladino, a quina jurídica, a estrutura legal desenvolvida no Direito
islâmico, atingiu um auge de complexidade, racionalidade e coerência
dificilmente encontrado em outras instituições desse tipo durante a época
medieval”
46
Num quadro de instabilidade política crônica, a Justiça aparecia como uma
instituição estável, pois o seu funcionamento era autônomo em relação a sultões e
califas. Teoricamente, o califa delega seus poderes judiciais ao qadi, continuando
com o poder nominal de julgar; na prática, o califa passa a ser mais a figura
encarregada de manter a lei, enquanto a capacidade de produzir o Direito esvai-se
para as mãos dos sábios e especialistas os faqih (alfaquis) e mufti
(jurisconsultos) As sentenças, ao longo do tempo, criavam jurisprudência, e o
sistema de julgamento tendia à estabilização e à previsibilidade. O princípio
43
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 167.
44
Cf. WOLFF, F., Quem é Bárbaro. Separata de NOVAES, A. (Org.), Civilização e Barbárie.
45
QUESADA, J. M., O Direito Islâmico Medieval. Separata de PEREIRA, R. (org.), O Islã
Clássico.
46
Ibid, p. 232.
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religioso impregnava as instituições de uma legitimidade própria, o que permitiu a
formação de uma instância legislativa à margem do poder político. Dessa forma,
o direito privado e da família foi um dos principais campos de atuação dos
tribunais; era esta a principal função do qadi na cidade a regulação de
comportamento e a resolução de conflitos.
Tendo sido formado na tradição do fiqh, Usamah observa curioso as práticas
jurídicas dos franj.
They installed a huge cask and filled it with water. Across it they set a board of
wood. They then bound the arms of the man charged with the act, tied a rope
around his shoulder and dropped him into the cask, their idea being that in case he
was innocent, he would sink in the water and they would then lift him up with the
rope so that he might not die in water; and in case he was guilty, he would not sink
in the water. This man did his best to sink when they dropped him into the water,
but he could not do it. So he had to submit to their sentence against him may
Allah´s curse be upon them! They pierced his eyeballs with red-hot awls.
47
Eles montaram um imenso barril e encheram-no com água. Através dele eles
instalaram uma prancha de madeira. Então eles amarraram os braços do homem
acusado do ato, amarraram uma corda sobre seus ombros e deixaram-no cair no
barril, a idéia era a de que caso ele fosse inocente, ele afundaria na água e eles
então levantariam-no com a corda para ele não morrer na água; e caso ele fosse
culpado, não afundaria na água. O homem fez o melhor que pode para afundar
quando eles jogaram-no na água, mas ele não pode fazê-lo. Então ele teve que
submeter-se à sentença daqueles homens que Deus os amaldiçoem! Eles
furaram o seu olho com um entalhador ardente.
Há no texto de Usamah um sentido de alteridade e distanciamento em
relação a esse tipo de ritual mágico. Os princípios legislativos islâmicos
conformavam-se com a natureza simples, austera e racionalista da muçulmana,
com seu monoteísmo estrito e rejeição das superstições e magias. A prova factual
e a idoneidade das testemunhas eram confrontadas perante a norma legal, esta sim
sagrada. Seus princípios éticos e fundamentos teóricos são religiosos; entretanto
os procedimentos e analogias formavam um sistema coerente e consistente. O
ordálio cristão, por sua vez, pode ser considerado uma forma reminiscente de
justiça que opera ainda no plano simbólico da magia, na manipulação da realidade
por forças sobrenaturais, na estreita conexão entre fenômenos naturais e vontades
divinas. Para concluir, de acordo com Quesada:
47
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p. 169.
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É fato sabido que o Direito, isto é, as normas que regulam a vida comunitária de
uma sociedade, de um Estado, é fruto do grau de complexidade a que chega tal
sociedade, estando, portanto, em claro paralelismo sua evolução, sua formação e
seu progressivo enriquecimento e a evolução, a formação e o grau de complexidade
de seu Direito.
48
Até mesmo a culinária dos franj era objeto de repulsa, perante a pretensão
de pureza e a complexidade das regras dietéticas muçulmanas. Certa vez, um
cavalheiro franj, do tipo já aclimatado e arabizado, ofereceu-lhe um banquete:
The knight presented an excellent table, with food extraordinarily clean and
delicious. Seeing me abstaining from food, he said, ´Eat, be of good cheer! I never
eat Frankish dishes, but I have Egyptian women cooks and never eat except their
cooking. Besides, pork never enters my home.
49
O cavalheiro apresentou uma mesa excelente, com a comida extraordinariamente
limpa e deliciosa. Vendo-me abster da comida, ele disse, ´Coma, vamos brindar!
Eu nunca como pratos franj, mas eu tenho uma cozinheira egípcia e nunca como
senão sua comida. Além do mais, porco nunca entra na minha casa.
A dialética entre as semelhanças e diferenças culturais que se estabeleceram
entre os franj e os muçulmanos pode ser vislumbrada através das Memórias de
Usamah. Sua presença em terras franj representava uma aliança conveniente e
escandalosa para a época entre uma cidade muçulmana e um reino franj. Os
dirigentes de Damasco aproximaram-se do Reino de Jerusalém temendo perder
sua autonomia para o emir Zinki.
Os escritos de Usamah nos mostram também uma certa incompreensão dos
árabes em relação à cultura ocidental européia. Espantou-se com as cenas
cotidianas que presenciou, no entanto o buscou uma compreensão mais
profunda e cuidadosa de suas instituições e organizações sociais muitas delas
mais estáveis, neste período, que suas análogas no mundo islâmico.
50
Retornemos, no entanto, para a evolução política na Síria após a morte de Zinki.
48
QUESADA, J. M., O Direito Islâmico Medieval. Separata de PEREIRA, R. (org.), O Islã
Clássico, p. 213.
49
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh, p.p. 169–170.
50
Um exemplo disso situa-se em relação às regras de sucessão real. Enquanto no Reino de
Jerusalém seguiam-se regras definidas e a sucessão ocorria geralmente sem violência, no Islã desta
época, toda sucessão passava por uma guerra civil e até a matança entre parentes.
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64
Mapa 3 – Lugares de Síria, Egito e Iraque visitados por Usamah ibn Munqidh. Fonte:
IBN-MUNQIDH, Memoirs of Usamah ibn-Munqidh.
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65
3.6
Nureddin
O atabeg Zinki teve pouco tempo para usufruir suas vitórias. Um escravo
doméstico, de origem franj, que temia ser morto por ter bebido numa taça de
vinho de seu senhor, esperou o sono de Zinki para assassiná-lo e fugir para longe.
Na confusão reinante no acampamento de Zinki após sua morte, seu filho,
Nureddin, tomou de seu pai o anel, símbolo do poder turco, e o introduziu no
próprio dedo. Parecido com o pai, tinha também, segundo Ibn al-Athir, a sua
autoridade, coragem e senso de liderança. Mas, ao contrário do truculento atabeg,
Nureddin construiu uma imagem de homem piedoso, reservado, justo, cumpridor
da palavra dada e devotado à causa da Jihad. Nureddin será o mestre político e
figura exemplar para Saladino.
Nureddin iniciou um processo que Yussef ibn Ayyub continuou e
consolidou: o uso da mobilização religiosa como arma de propaganda política e
exaltação das virtudes do soberano para atrair a simpatia da população. Um novo
corpo de funcionários de Estado, religiosos, letrados e filósofos, tinham por
missão convencer os dirigentes do mundo árabe a se unir à causa da Jihad com
Nureddin. Seus princípios são simples: uma só religião, o Islã sunita o que
declara um conflito com as “heresias” xiitas; um Estado, para fazer frente aos
franj; e o objetivo final de libertação de Jerusalém e expulsão dos invasores do
Dar al-Islam.
A personalidade de Nureddin, que influenciou Saladino, era
verdadeiramente austera e rigorosa. Ele endureceu a proibição do álcool em todo
o seu exército, assim como instrumentos musicais, vestes luxuosas e frivolidades.
Seus generais, acostumados com a bebida e os prazeres, muitas vezes
descontentaram-se perante um senhor sisudo e quase sempre acompanhado por
ulemás. Sua prática política foi coerente com seu discurso, se dermos crédito às
palavras de Ibn al-Athir:
A mulher de Nureddin certa vez se lamentava por não ter dinheiro suficiente para
se prover de suas necessidades. Ele lhe consignou três lojas que possuía como coisa
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particular em Homs e que rendiam uma vintena de dinares por ano. Como ela
achasse que isso não era o bastante, ele lhe retorquiu ´Não tenho mais nada. Com
relação ao dinheiro de que disponho, sou apenas o tesoureiro dos muçulmanos, e
não tenho a intenção de os trair nem de me lançar no fogo do inferno por tua
causa.
51
O filho de Zinki, Nureddin, utilizou a propaganda religiosa de modo mais
eficiente. O sultão, na propaganda oficial, era o líder do Islã contra a invasão
infiel, o herói libertador dos lugares santos. A sua inabalável movia a sua
espada não apenas contra os politeístas, mas também contra os pagãos. O
desprezo pela facção xiita, representada politicamente pelos califas fatímidas do
Egito, converteu-se em desejo de conquista, pois seria mais adequado cercar os
territórios cristãos por todos os lados antes de um ataque total aos cruzados. Para
tão importante missão, o “santo rei” Nureddin envia ao Egito um exército
comandado por Xirkuh, irmão de Ayyub, antigo companheiro de Zinki e um dos
principais emires de Nureddin.
A conquista de Edessa por Zinki deflagrou a denominada Segunda Cruzada
e, para vingar a cidade perdida em 1147, inúmeros combatentes vieram da Europa
ocidental trajando as vestes da Cruz. As renovadas forças cruzadas e o exército de
Nureddin encontraram-se nas portas de Damasco, cidade entregue à sorte da
batalha. As manobras diplomáticas de Unar (governante desta cidade)
aumentaram as dissensões entre os franj recém-chegados e aqueles enraizados
no oriente, o que facilitou a vitória dos exércitos muçulmanos. Nureddin, de
reputação diversa da do pai, entrou em Damasco sem derramamento de sangue,
conquistando a cidade mais pela persuasão do que pela força das armas.
Representou o papel de um protetor do Islã, especialmente daqueles mais pobres e
desprotegidos, contra uma elite que preferiu no passado aliar-se aos franj do que a
seus irmãos muçulmanos.
O último enclave da Síria muçulmana que resistia ao poder dos zângidas era
o emirado dos muquiditas, que controlavam Hama e Chayzar. Nesse caso, o
imponderável ocorreu: um devastador terremoto atingiu essas cidades em 1157,
no momento em que todos os dignatários, religiosos, pessoas importantes e a
família reinante encontravam-se numa festa reunidos na cidadela de Chayzar:
51
MAALOUF, A. As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 138.
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67
A morte o veio passo a passo para matar as pessoas de minha estirpe, para
aniquilá-las duas a duas ou cada uma separadamente. Foram todos mortos num
piscar de olhos, e seus palácios transformaram-se em túmulos.
52
O autor destas linhas foi Usamah bin Munqidh, único sobrevivente da
família muquidita, que foi morar então definitivamente em Damasco, vindo a ser
um sábio na corte que iria influenciar a educação e a formação de Saladino.
Durante o governo de Nureddin e de seu sucessor, Saladino, houve a
retomada da consciência das classes dirigentes daquela região em relação da
importância simbólica que a invasão dos franj e a ocupação de seus territórios
mais antigos e sagrados tinham para os muçulmanos. A Síria fora o centro do
califado islâmico, sob o poderio dos omíadas, além da ofensa que era a ocupação
estrangeira na cidade de Jerusalém.
O processo de fragmentação política dos territórios islâmicos nos séculos
anteriores tornara menos clara a consciência de que um destino e uma herança
lingüística, cultural e religiosa unia os muçulmanos, já que este processo
implicava um estado de luta e tensões constante entre a elite militar muçulmana,
constituída principalmente de emires turcos de origens nômades e convertidos à
religião islâmica relativamente pouco tempo, que tinham poucas ligações com
o passado árabe e greco-romano daquelas regiões (Síria e Palestina).
Neste sentido, o processo político iniciado por Zinki, estruturado por
Nureddin atingiu o auge sob Saladino. Houve uma tentativa de universalização
dos princípios e das práticas políticas através da união contra um inimigo comum,
o invasor estrangeiro e rbaro. A oscilação entre centralização universalista e
fragmentação particularista foi uma constante durante toda a história do Islã
medieval. Tanto Nureddin quanto Saladino empreenderam esse esforço de
universalização com tenacidade durante o seu reinado. Saladino, no entanto,
alcançou renome maior no mundo muçulmano e no ocidente por ter sido aquele
que retomou Jerusalém para o Islã. O apelo universalista de Jerusalém era
inegável – e por esse motivou deflagrou-se a 3ª Cruzada, conforme veremos
adiante.
52
MAALOUF, A. As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 147.
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68
Nureddin não pôde atingir seu objetivo supremo, pois sua situação era
limitada por outros poderes além dos franj: o exército bizantino, renovado,
concentrava-se em suas fronteiras, além disso a animosidade contra o Egito
fatímida impedia qualquer cooperação contra os exércitos cruzados. Estes fatos
levariam à ascensão de uma nova liderança que surgiu de maneira inusitada
Yussef ibn Ayyub, o sultão Saladino.
3.7
Saladino
Yussef Ibn Ayyub Ibn Shadi, sobrinho do general curdo Xirkuh, foi enviado
como subcomandante em sua primeira missão militar quando as tropas de seu tio
vão em direção à conquista do Egito. Para um jovem aparentemente
despretensioso e sem ambição, era um início de uma carreira gloriosa.
Meu tio Chirkuh voltou-se para mim e disse: ´Yussef, arruma tuas coisas, vamos
embora!´. Recebendo esta ordem, senti meu coração gelar como se tivesse levado
uma punhalada e respondi: ´Por Deus, se me dessem todo o reino do Egito, eu não
iria!´ (...) Acabei acompanhando meu tio (...) Ele conquistou o Egito, depois
morreu. Deus colocou então em minhas mãos um poder que de maneira nenhuma
eu esperava.
53
Realmente, a participação de Saladino na conquista do Egito fora
secundária. Entre as intrigas do vizir xiita Chawer e os ataques do rei fraj
Amalric, filho de Fulk, seria o general curdo Xirkuh, o Leão”, que acabaria por
dominar a antiga terra dos faraós. Egípcios e franj coligaram suas forças contra
Xirkuh, mas a habilidade e estratégia militar do comandante foi superior a todas
as artimanhas para detê-lo.
A esta altura, a dinastia dos fatímidas não mais governava diretamente seus
domínios. Tal qual sua análoga em Bagdá, a dinastia perdera o contato com a
população e com as fontes reais de poder, sendo tão-somente um símbolo de
53
MAALOUF, A. As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 151.
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69
autoridade nominal e prestígio religioso. O governo do país caíra nas mãos dos
vizires, que tentavam manter-se no poder invariavelmente através de intrigas
palacianas, enquanto o exército cada vez mais se autonomizava nas mãos dos
escravos mamelucos responsáveis pelo seu comando, “em nome do califa”.
O Egito Fatímida foi totalmente conquistado pelo emir de Nureddin,
Xirkuh, e seu sobrinho, Saladino, o que resultou no término do domínio xiita da
região. Com a morte súbita de Xirkuh em um banquete comemorativo
54
, Saladino
herda o controle político do Egito e o título de Mestre do Cairo, ainda que sob
subordinação ao rei Nureddin. Segundo Ibn al-Athir, os conselheiros do califa
al-Adid irão sugerir-lhe escolher Yussef como novo vizir, pois ele era o mais
jovem e parecia ser o mais inexperiente e o mais fraco dos emires do exército”.
Entretanto, segundo Maalouf,
Em poucas semanas, Yussef consegue se impor. Elimina os funcionários fatímidas,
cuja lealdade lhe parece duvidosa, os substitui por seus próximos, esmaga
severamente uma revolta instalada nas tropas egípcias, repele, enfim, em outubro
de 1169, uma lamentável invasão franca, dirigida por Amaury, chegado ao Egito
pela quinta e última vez com a esperança de se apoderar do porto de Damieta, no
delta do Nilo. Manuel Comneno
55
, inquietado por ver um comandante de Nureddin
à frente do governo fatímida, concedeu aos franj o apoio da frota bizantina. Mas
em o. Não foi possível, pois, esperar o final de 1169 para que Yussef fosse o
mestre incontestável do Egito.
56
O caráter desinteressado e austero do novo governante começa a fazer-se
notar no início de sua ascensão ao poder. De acordo com Will Durant,
Quando ele entrou no palácio califa do Cairo encontrou ali 12.000 ocupantes, todas
mulheres, exceto os parentes masculinos do califa, e uma tal riqueza em jóias,
mobília, marfim, porcelana, vidro e outros objetos de arte, que dificilmente poderia
ser rivalizada por qualquer outra dinastia dessa era. Saladino nada conservou para
si: entregou o palácio a seus capitães, e continuou a viver, nos aposentos de vizir,
uma vida de feliz simplicidade.
57
Saladino ainda contemporizou por um tempo com o jovem califa, al-Adid,
que lhe havia conferido legitimidade, desagradando seu soberano na Síria,
54
Observa-se uma oposição entre os estilos pessoais de Xirkuh e seu sobrinho Yussef. O primeiro
adorava as armas, os banquetes, as mulheres e as bebidas. Sua morte ocorreu após empanturrar-se
tanto que passou mal e faleceu; já Saladino, em suas refeições, era extremamente frugal a ponto de
contrariar seus dicos, de tão pouco que comia, e quase nunca comia carne. Poupava a energia
que seria gasta em festividades e luxúrias para a Jihad, a grande causa da sua vida.
55
Imperador Bizantino (1118 – 1180).
56
MAALOUF, A. As Cruzadas vistas pelos Árabes, p.161.
57
DURANT, W., A Idade da Fé, p. 280.
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70
Nureddin. Saladino, por sua vez, matinha uma posição frágil, pois dependia da
legitimidade do regime fatímida ao mesmo tempo em que era o representante de
Nureddin. Com a morte do califa adolescente, que não possuía herdeiros,
Saladino declarou o fim do califado fatímida e do regime xiita no Egito, passando
as preces a serem feitas da forma sunita. No Cairo, Saladino foi conquistando
cada vez mais aliados, que passaram a vê-lo como uma esperança para o islã
sunita e para o engrandecimento do então decadente Egito.
A tensão entre os dois deres, que poderia ter sido o início de uma disputa
bélica, foi habilmente contornada por Saladino, que reiterou a sua lealdade ao
idoso sultão, que não demorou muito tempo para falecer. Após o falecimento de
Nureddin, Saladino tornou-se, de fato, o principal líder muçulmano das terras da
Síria e do Egito, após submeter lideranças locais hostis ao seu governo. O tempo e
a sorte decidiram a favor de Saladino, pois ambos os soberanos morreram sem
deixar herdeiros capazes (o califa não tinha filhos e o único de Nureddin morreu
com onze anos de idade em 1174), o que aumentou sua importância política, e em
pouco tempo, Yussef tornou-se senhor incontestável do Egito e da Síria
muçulmana, além de territórios no Iêmem e na Península Arábica. Saladino
herdou seu poder de duas dinastias distintas – entretanto, manteve-se fiel até o fim
a ambas, e aos poucos foi cativando aqueles que antipatizavam com ele, entre eles
o cronista Ibn al-Athir. Saladino jogou habilmente com as divisões entre os
dirigentes das cidades da Síria, e, quando necessário, não hesitou em tomar armas
contra os sucessores locais de Nureddin.
Consolidado o poder, Saladino objetivou então a conquista de Jerusalém.
Ele retomou a retórica de união dos muçulmanos e reiterou a importância da
retomada dos lugares santos. Convenceu pessoalmente príncipes locais sírios a
lutarem a seu lado, e seu poder dependeu fundamentalmente do sucesso dessa
persuasão.
Saladino, ao mesmo tempo, tinha a personalidade marcada pelos ideais de
moderação, justiça e lealdade. Por esse motivo, muitos momentos da sua vida
entraram para o folclore político da época, com passagens e relatos famosos.
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Hábitos frugais e simplicidade eram a sua marca registrada. Não gostava
dos palácios suntuosos dos fatímidas no Egito, então preferia dormir em sua tenda
junto ao seu exército. Sua alimentação consistia de poucos grãos, pão e água.
Uma palavra ou juramento seus eram cumpridos rigorosamente. Nunca atacava
de surpresa, respeitando os códigos da boa conduta guerreira. Numa ocasião de
crise leprosa do Rei Balduíno IV
58
, ofereceu os serviços de seu dico pessoal,
mostrando a sua generosidade e compaixão. Saladino conseguiu construir a sua
imagem de herói e seu nome transformou-se numa lenda evocada até os dias de
hoje.
Num primeiro momento, Saladino negociou uma trégua com o rei de
Jerusalém, Balduíno, pois não desejava ainda uma guerra aberta contra os cristãos,
pois podia esperar mais tempo e consolidar suas forças. Para os cristãos, a paz
nesse momento também era vantajosa, pois se encontravam cercados por um
único inimigo muçulmano que controlava o Egito, a Síria, o norte do Iraque e o
Iêmen. Por algum tempo, a passagem das caravanas árabes pelos territórios
cristãos foi garantida. A quarta e a quinta geração de cruzados, nascidos na terra
santa, orientalizava-se em muitos aspectos, de hábitos culinários a vestimentas, da
falcoaria à medicina: o peso e a força da cultura árabe impôs-se aos poucos ao
fanatismo religioso.
Esse status quo foi rompido após a morte de Balduíno e a subida ao poder
do recém chegado Guy de Lusignan, que se casara com a irmã do antigo monarca.
A sua aliança com o cavaleiro Reinaldo de Châtillon selou o destino do Reino.
Com sua política de guerra aos infiéis a qualquer preço, Reinaldo saqueou ricas
caravanas, matando seus ocupantes. Foi o limite para Saladino, que declarou
guerra aos franj.
Reinaldo de Châtillon era um antigo inimigo do Islã e de Saladino. Anos
antes, invadira a cidade sagrada de Meca, e fizera diversos ataques surpresas
contra os territórios islâmicos. Suas ações, desonrosas para um cavalheiro e
pecaminosas perante Deus levaram Saladino a proclamá-lo seu inimigo pessoal; o
58
Conhecido como “o rei leproso”, 1174 – 1185, filho de Amalric I.
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72
sultão dizia que ia pessoalmente executá-lo - Reinaldo era a exceção para a sua
regra de não executar prisioneiros.
Os eventos mais dramáticos da vida de Saladino ocorrem no ano de 1187,
chamado “Ano da Vitória”. Saladino derrotou os exércitos e ordens religiosas
franj em Hittin, perto do lago de Tiberíades. Ele reconquistou Jerusalém e a
maior parte dos territórios antes dominados pelos cruzados. Os antigos ocupantes
conservavam agora apenas Tiro, Trípoli e Antioquia.
Essas conquistas desencadearam reações fortes na Europa ocidental, que se
preparou para a Terceira Cruzada, liderada desta vez por três reis: Ricardo da
Inglaterra, Felipe Augusto da França e o imperador germânico Frederico Barba-
Roxa. Destes três, o oponente que representou um desafio para Saladino foi
Ricardo, conhecido como o coração-de-leão, que reconquistou a cidadela
marítima de Acre após um cerco de dois anos. Mas mesmo seu exército cruzado
com forças renovadas não foi capaz de retomar Jerusalém dos muçulmanos. As
conquistas de Saladino mostraram-se duradouras, mas as vitórias do rei Ricardo
no litoral palestino garantiram a presença franj no oriente por mais um século.
Se para a Cristandade Ocidental ficou marcada a imagem do inimigo infiel,
porém virtuoso e respeitador das regras cavalheirescas, no D´ar al-Islam
59
o
sultão se tornou um hei lendário ainda em vida, e sobretudo após a sua morte.
A memória de Saladino é invocada no mundo árabe-muçulmano sempre em que
se sente a necessidade de um líder que unifique o Islã contra os infiéis do mundo
exterior. A figura de Saladino foi sendo relembrada e ressignificada ao longo dos
séculos, até chegar nos dias atuais.
Na cristandade ocidental medieval, a figura de Saladino foi recordada com
canções, anedotas e contos, e como um exemplo de generosidade e virtude
cavalheiresca. O poeta florentino Dante Allighieri, na Divina Comédia (1320),
homenageia a honra do sultão: em sua descrição do Limbo, o coloca neste lugar
neutro, cujas almas habitantes não sofrem os castigos do Inferno, apesar de
tampouco poderem enxergar a glória de Deus. No Limbo se encontram as almas
59
O mundo na concepção islâmica medieval se divide em D´ar al-Islam (“a Casa do Islã”), isto é,
as terras governadas pelos muçulmanos e D´ar al-Harb (“a Casa da Guerra”), onde predominam
os infiéis, com leis e costumes estranhos e bárbaros.
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73
dos virtuosos que não sofrem pena, mas não podem ser beatificados por não terem
recebido o batismo. Portanto, Saladino encontra-se na companhia dos filósofos
pagãos e grandes homens da Antigüidade Clássica: “Vidi quel Bruto Che cacciò
Tarquino, / Lucrezia, Iula, Marzia e Corniglia; e solo, in part, vidi´l Saladino /
(...) / Tutti lo miran, tutti li fanno: / quivi vid´io Socrate e Platone, che´nnanzo a li
altri piú presso li stanno;”
60
3.8
O Tempo de Saladino
Pode-se observar no recorte histórico considerado uma tendência à
aproximação que caracterizou as atitudes e ações dos líderes do mundo
muçulmano em relação a seus adversários ocidentais. Para este recorte temporal -
considerado a partir da perspectiva de territórios que formam uma totalidade
histórica coerente – adotamos a denominação de Tempo de Saladino, pois a marca
do sultão Yussef ibn Ayyub continuou presente após a sua morte, e o exemplo de
seu espírito cavalheiresco, conforme elaborado por Ibn Shaddad, foi respeitado e
imitado por seus descendentes, que governaram durante o período ayyúbida.
(1171 1250). Dinastia de origem curda, que sintetizava em si a cultura bélica
dos turcos e a alta cultura letrada arábica, seu poder dependia também de sua
relação com a população local. De modo geral, foi um período que, apesar das
guerras, incentivou uma cultura de corte no estilo abássida, com a presença,
promovida pelo Estado, de literatos, artistas, filósofos, músicos, médicos e
teólogos.
Nas principais cidades do sultanato ayyúbida Cairo, Damasco e Alepo – a
população muçulmana em geral convivia harmoniosamente com seus vizinhos
cristãos e judeus, que compartilhavam, apesar da diferença religiosa, a mesma
cultura árabe que dominava os ambientes urbanos. Muitos muçulmanos
freqüentavam as tavernas cristãs e consumiam o proibido vinho, enquanto nos
mercados a população misturava-se no enfrentamento comum da vida.
60
ALIGHIERI, D., A Divina Comédia. Inferno,.p. 47.
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74
O Tempo de Saladino foi um período de renovação da esperança de
revitalização do Islã, que desde o século X vivia sucessivas crises, invasões e
decadência econômica e comercial. A cidade de Bagdá, no século XII, era já uma
sombra do que fora sob o governo do califa abássida Haroun al-Raschid
61
, quando
seus prédios públicos e seus mercados representavam o mais alto avanço
civilizatório até então. Assim, Peter Demant
62
, entre outros autores, considera o
período que vai do século XI até o XIV como uma “Idade Média” do Islã,
posterior à era “Clássica” do Islã (séculos VII – X), para usar uma analogia com a
divisão historiográfica tradicional do ocidente. Nesse sentido, o Tempo de
Saladino, que podemos datar entre 1171 (fim do califado fatímida e ascensão ao
poder de Yussef ibn Ayyub) e 1250 (invasão do rei Luís IX de França, queda dos
ayyúbidas e ascensão dos mamelucos), corresponde à tentativa de se buscar
novamente uma referência universal para o Islã, um possível retorno ao tempo em
que (imaginava-se) os muçulmanos estavam unidos e levavam a guerra para o Dar
al-Harb, ao invés de serem invadidos pelos franj vindos d´além mar.
Podemos levantar a hipótese de que a invasão das Cruzadas e a formação
dos Estados Latinos do Oriente, ou Outre-mer, podem ter sido um estímulo para a
busca de uma nova unidade política para o Islã, que transcendesse as rivalidades
regionais e dinásticas que nada tinham a ver com a religião muçulmana. O
Oriente Médio, doravante dominado pelos turcos semi-nômades, fragmentara-se
em unidades políticas incertas, determinadas por vicissitudes de todos os tipos,
sorte e reveses da guerra, acaso e fortuna das famílias e indivíduos. Um
assassinato de um sultão ou a perda de uma única batalha resultava, muitas vezes,
em instabilidade crônica e em guerras fratricídas.
Saladino representou, num âmbito geográfico de certa forma restrito, mas
suficientemente amplo para conferir-lhe a pretensão de universalidade política e
religiosa, um momento de interrupção das ambições particularistas e a retomada
de um ideal sagrado, de comprometimento com Deus e a Jihad que significa ao
mesmo tempo um esforço de auto-superação interno e individual e a luta militar
contra os inimigos do Dar al-Islam.
61
Governou de 786 a 809 e representou o auge do império árabe sob o califado abássida.
62
DEMANT, P., O Mundo Muçulmano.
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75
Os governantes ayyúbidas após Saladino – seu irmão, al-Adel; seu sobrinho,
al-Kamel, e seu sobrinho-neto, Ayyub – apesar das dissensões políticas com
parentes, não chegaram a derramar sangue em família, mantendo o Estado como
uma espécie de confederação familiar, governando todo o Egito e as partes da
Síria e da Palestina que não pertenciam aos franj. Suas políticas foram marcadas
por acordos, conciliações e muita habilidade diplotica.
A queda dos ayyúbidas foi marcada por uma série de eventos que colocam
um fim às políticas conciliatórias com o Ocidente. A dupla invasão a que foi
submetida o mundo muçulmano no culo XIII a Cruzada de São Luís
63
e a
invasão das hordas mongólicas de Hulegu Khan levou à ascensão dos
mamelucos, ex-escravos militares turcos que dominavam o exército durante o
governo dos ayyúbidas. A partir daí, nenhum compromisso, nenhum acordo
poderia ser oferecido ao inimigo. O Islã sentiu-se, de modo geral, agredido e
reagiu com violência, rejeitando quaisquer diálogos ou compromissos com seus
inimigos.
Portanto, o Tempo de Saladino constitui uma janela temporal significativa e
singular para a observação da dialética entre civilização e barbárie, contém em si
elementos contraditórios, pois representa a tentativa de uma reversão de um
processo estrutural profundo e que vinha evoluindo algum tempo a
fragmentação política e a decadência cultural enquanto a cultura letrada árabe
medieval floresceu mais uma vez antes de mergulhar num relativo obscurantismo
nos séculos seguintes, nos quais as guerras e a sobrevivência tornaram-se mais
importantes que a filosofia e a poesia.
Tentativa frustrada de restauração de um ideal universal islâmico?
Provavelmente não, no sentido em que a memória deste tempo passou a ocupar
um lugar privilegiado no imaginário histórico dos povos árabes e também dos
europeus. o à toa, o século XII, na Europa, é o momento de auge dos ideais e
da cultura cavalheiresca, muitos desses observados, imitados e transformados
pelos cruzados em sua aventura no oriente.
63
Rei Luís IX da França, canonizado após a sua morte (1214 – 1270).
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76
Mapa 4 – Impérios seljúcida (em verde) e ayyúbida (em laranja). Observa-se uma
sobreposição entre os dois na região da Síria. Fonte: McKITERICK, R. Atlas of the
Medieval World, p. 171.
Figura 3 – Estátua de Saladino em Damasco, Síria. Fonte:
http://www.damascus-online.com/Photos/sham/DSCN2632s.JPG
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77
Mapa 5 - sobreposição de fotografias de satélites da região correspondentes ao domínio
de Saladino. Após os embates contra o rei Ricardo, Os franj conservaram apenas a
estreita faixa do litoral sírio, enquanto os ayyúbidas detinham o poder no interior do país,
além de todo o Egito. Fonte: Google Earth - http://earth.google.com/intl/pt/
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78
3.9
Idéias e Práticas Políticas no Islã do Tempo de Saladino
A prática e a teoria política medieval islâmicas têm origem no texto sagrado
do Alcorão e nas tradições da Sunna, derivada do comportamento e das opiniões
do Profeta Mohammed, conforme conservados nos denominados hadith (os
“ditos” do Profeta). No entanto, essas fontes originárias não contém indicações
políticas explícitas e determinadas. A construção concreta do Estado Islâmico
fundado por Mohammed, e fragmentado durante o tempo de Saladino, ocorreu
sempre de acordo com as necessidades e vicissitudes políticas, geográficas e
militares.
O Alcorão limita-se, em matéria política, a ressaltar a Justiça como um dos
pilares do bom governante; em troca, os súditos dever-se-iam ser fiéis e
obedientes. Além desses dois elementos fundamentais de coesão política, um
forte sentimento comunitário presente na vida cotidiana dos crentes. “Os que
obedecem ao seu Senhor e cumprem a oração (...) resolvem seus assuntos
consultando-se entre si”
64
. Portanto, paralelamente à submissão ao governante
legítimo de uma região (seja este um sultão ou o próprio Califa), um poder
autônomo na resolução dos conflitos internos da comunidade. Justiça (dos
governantes) e consulta (dos governados entre si e entre os governantes e os
governados) são os dois pilares da estabilidade política do Estado muçulmano.
Entretanto, na prática, o poder de Mohammed e todos os seus seguidores se
legitimava perante o seu exercício, e não perante uma sistematização teórica. Este
fato possibilita compreender a evolução da história política do mundo islâmico no
período medieval, da unidade forjada pela conquista à fragmentação dinástica e
territorial. O califado, de instituição detentora de poder militar e político real
evoluiu para uma representação nominal de uma unidade islâmica que passa a ser
sobretudo espiritual, compondo uma memória viva de um passado idealizado o
tempo dos Rashidun, ou “bem-guiados”, os quatro primeiros califas, retamente
guiados por Mohammed, antes do cisma que dividiu a comunidade ismica.
64
CAMPANINI, M., O pensamento político islâmico medieval Separata de PEREIRA, R. (Org.),
O Islã Clássico, p. 248.
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79
Mohammed e seus seguidores desenvolveram
65
a chamada Constituição de
Medina, um conjunto de regras para a convivência comum de grupos de diferentes
origens naquela cidade. Os crentes (muçulmanos) e não-crentes formariam parte
de uma só Comunidade, a Umma, cujos vínculos eram a religião (entre os crentes)
a aliança ou clientela (entre crentes e não-crentes). Dentro da Umma, os sub-
grupos sociais são definidos pela religião e não pela língua, território de origem
ou etnia. O Califado, nesta perspectiva, simbolizava concretamente a união de
todos os crentes.
Sendo os muçulmanos os principais componentes da Umma, e por terem do
seu lado o poder da conquista política e religiosa, é-lhes garantido poder político
sobre a Comunidade. Os Dimma, “comunidade protegida”, compreendendo as
minorias religiosas, são auto-organizadas de acordo com seus costumes, e detém
direitos e deveres diferenciados dos muçulmanos. Podem constituir uma dimma
os grupos cristãos, judaicos e zoroastristas, mas o os pagãos ou politeístas.
Estes últimos são obrigados a optar entre a morte ou a fé, enquanto aos primeiros
é garantido o direito de exercer sua religião. Mesmo se auto-considerando
possuidores da fé mais verdadeira, os muçulmanos estavam cientes da antigüidade
e respeitabilidade das religiões monoteístas. A cultura árabe-muçulmana também
é herdeira da tradição abraâmica, assim como os judeus e cristãos. Mohammed e
a grande parte dos califas e sultões, seus sucessores no comando político do
mundo islâmico, na maioria das vezes respeitaram esta tradição de convivência.
A própria condição inicial da conquista um contingente pequeno de exércitos
árabes ocupando territórios e populações imensas pode ter contribuído para essa
atitude de tolerância. Mas mesmo no século XII, durante o tempo de Saladino,
quando cristãos e judeus já configuravam uma minoria demográfica nas cidades e
nos campos, a tradição da “comunidade protegida” permaneceu sendo respeitada.
Muitos cristãos, e quase todos os judeus, apoiaram a causa muçulmana contra os
invasores franj vindos da Europa. Os franj, por sua vez, pouco distinguiam as
sutilezas dos bairros e comunidades das cidades sírias e palestinas, e muitos
massacres indiscriminados ocorreram, contribuindo para a -fama dos cruzados
entre os dimmis.
65
Cf. WATT, W., Islamic Political Thought, p. 96.
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80
O pensamento político no mundo islâmico durante o tempo de Saladino,
portanto, passa a tratar sobre os modelos islâmicos de Estado, conforme a
peculiaridade de cada região. Seu conselheiro e biógrafo, Ibn Shaddad, seguindo
uma tendência que vinha crescendo desde os tempos de Nureddin, operou com o
conceito de Jihad em sua obra, o que pode indicar a reapropriação deste tema
numa perspectiva de guerra direta contra exércitos cristãos religiosamente
motivados. Na prática histórica muçulmana, ao século XI, a necessidade do
Jihad permaneceu eloqüentemente presente nos textos de teologia e
jurisprudência, enquanto na prática
66
os sultões compactuavam com as
necessidades de administrar as relações com os impérios vizinhos. A partir do
momento em que conquistadores vindos da longínqua floresta a noroeste”
67
,
propagando uma cristã agressiva e desconhecida no Oriente, cometeram tantas
atrocidades
68
e mataram tantos de todas as fés, foi chegada a hora da idéia de
Jihad voltar à tona, dessa vez como discurso de legitimação de uma nova dinastia
que iria reunificar a região contra os invasores. Este processo ocorreu de forma
consciente com o sultão Nureddin e foi intensificado por Saladino. A Jihad não é,
no entanto, uma mera vingança ou guerra religiosa. Ela é, antes de tudo, um
esforço interior do crente consigo mesmo e diante de Deus:
Jihad significa literalmente /’esforço” (no caminho de Deus). O esforço pode ser
militar, mas também espiritual. A maior parte dos teólogos, na esteira de uma
tradição profética, afirma que o “grande Jihadnão é o bélico, mas a luta ética e
moral para purificar os costumes. Assim, o grande Al-Gazali pôde escrever: “O
conhecimento do Espírito é muito difícil, pois não existe na religião uma via mestra
para atingi-lo. A religião não impõe a necessidade de conhecê-lo, sendo a religião
luta (espiritual) (mujahada) e conhecimento dos elementos característicos da (reta)
orientação (hidaya), como disse louvado seja Ele! o Altíssimo: ´Aqueles que
lutarão (jahadu) zelosos por Nós, Nós os guiaremos pelos Nossos caminhos´
(Corão XXIX:69). Quem não exercita um autêntico esforço não pode chegar ao
conhecimento da verdadeira realidade do Espírito. O primeiro fundamento da luta
(espiritual) (mujahada) é o conhecimento dos exércitos do coração; porque ao
homem, se não conhece estes exércitos, não se destina a “guerra santa” (Jihad)
69
.
66
Cf. SCARCIA AMORETTI, B., Tolleranza e guerra santa nell ´Islam.
67
Expressão utilizada por FLETCHER, R., A Cruz e o Crescente, em seu estudo das relações
diplomáticas entre o califa Haroun al-Raschid e o imperador Carlos Magno durante os séculos VIII
e IX.
68
Como por exemplo o episódio em Maara, no qual a fome acabou por provocar episódios de
canibalismo dos franj contra a população local.
69
CAMPANINI, M. O Pensamento Político Islâmico Medieval Separata de PEREIRA, R. (Org.),
O Islã Clássico, p. 251.
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81
Antes de atingir o significado de guerra sacralizada contra o infiel, a idéia de
Jihad, portanto, assemelhava-se a um princípio civilizacional comum às religiões
abraâmicas
70
: o controle dos instintos humanos básicos, o auto-conhecimento que
permite o controle das pulsões agressivas, já preconizado pelas culturas helênica e
judaica, das quais o Islã é herdeiro.
Em meados do século XI, Al-Mawardi, representante do califa abássida nas
cortes sultânicas e autor de obras sobre governança, ética e religião
71
, desenvolveu
a chamada doutrina ortodoxa do califado. Para Al-Mawardi, o califado não é uma
instituição natural ou racional, mas uma instituição divina imposta a partir do
momento histórico da instituição do Estado muçulmano
72
. O califa deve pertencer
a mesma tribo de Mohammed, a dos árabes Coraixitas e deve possuir por
qualidades a virilidade, a liberdade e as saúdes mentais e corporais, além de
qualidades morais, intelectuais, espirituais e militares. O califa é considerado o
herdeiro de Mohammed e seu cargo é sagrado. Entretanto, sua pessoa humana
não possui caráter divino nem poderes sacerdotais. Ele age sobretudo no que
chamaríamos hoje de poder executivo – isto é, ele deveria aplicar e fazer respeitar
um conjunto de leis pré-determinadas no momento da Revelação original e
interpretadas secularmente por Ulemás reconhecidos. A lei islâmica medieval é
conservadora, voltava-se constantemente para o passado histórico e imaginário
afim de deduzir princípios para as questões do presente. Esta lei, cristalizada e
inflexível no século X, estava acima do próprio califa.
Ainda segundo Al-Mawardi, a sucessão deve-se dar por consenso, embora
na prática ocoresse por via hereditária; mas o estadista considerava que esta
hereditariedade tinha a legitimidade do consenso da comunidade, dados pela
aceitação tácita do princípio secular da herança hereditária.
Entretanto, no tempo de Saladino havia muito que a autoridade do
califado esvaíra-se para numerosas cortes regionais que dominavam de fato seus
70
Ou seja, as derivadas da tradição do patriarca Abraão: judaísmo, cristianismo e islamismo.
71
Alguns dos títulos traduzidos de sua obras seriam Livro dos Sinceros Conselhos para
Governantes”, Ética da religião e do mundo” e Ordenanças de Governo”. Cf. AL-MAWARDI,
Al-Ahkam al-Sultaniyya wa-al-Wilayat al-Diniyya e MIKHAIL, H., Politics and Revelation.
72
Que tradicionalmente, possui sua fundação a partir da Hégira, a retirada de Mohammed e seus
seguidores de Meca para a cidade de Yathrib (Medina), onde passou a governar as coisas do
mundo e da religião.
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82
territórios. Al-Mawardi em sua teorização opta por um idealismo já ultrapassado,
afirmando que os sultões deviam ao califa obediência e reverência; sua autoridade
lhes seria dada pelo califa. Sabemos, ao contrário, que a fonte real do poder dos
sultões no Oriente dio era o controle dos exércitos nômades turcos, e que a
aliança com o califa ocorria em detrimento do poder deste, enquanto os
verdadeiros senhores usufruíam das riquezas que a civilização urbana conquistada
lhes oferecia. Quando, no século XI, o califa Al-Mustarshid tentou tomar de volta
o poder para si, as tropas do sultão Mahmud II e seus aliados esmagou o exército
do califa, que se trancou definitivamente em seu palácio em Bagdá.
al-Ghazali
73
, percebendo melhor o problema, teorizou que o califado e o
sultanato seriam dois poderes paralelos e autônomos. O califa possuiria prestígio
moral, dinástico e religioso, enquanto o sultão detinha o poder político e militar,
que prescinde da autoridade califal, mesmo tendo origem na força e na violência
das hordas de pastores recém-convertidos ao Islã.
A relação entre o passado idealizado, o presente conturbado e a teoria
política foi extremamente dinâmica durante a história medieval islâmica. As
rápidas mudanças políticas ultrapassavam a capacidade dos teóricos, teólogos e
historiadores. Diversos modelos de estados islâmicos foram experimentados na
prática, e longos volumes foram escritos sobre o tema. A conclusão que podemos
chegar é a de que a prática política obedecia muito mais a imperativos e
vicissitudes de uma determinada situação espacial e temporal do que a
mandamentos e tradições sagradas. O processo histórico mostra-se, desta forma,
aberto e imprevisível, podendo tomar rumos por vezes opostos. O conhecimento
deste fato pode fazer-nos questionar sobre alguns lugares comuns sobre o Islã,
como o que associa automaticamente a religião islâmica com regimes políticos
fechados e autoritários na contemporaneidade. Conforme Massimo Campanini:
É lugar-comum afirmar que o Islã é religião e mundo (al-Islam din wa-dunya), isto
é, que na ideologia islâmica estão integradas as dimensões religiosa e social do
comportamento; no entanto, é contestado que o Islã seja religião e política (Al-
Islam din wa-dawla). Ibn Taymiyya pensava assim, mas, por exemplo, Al-Gazali
não tinha essa certeza, mesmo sublinhando que o Estado deve proteger a religião e
a religião deve dar forma ao Estado do ponto de vista ético. Foram principalmente
os pensadores islâmicos radicais contemporâneos, como Al-Mawdudi ou Sayyid
73
Filósofo, jurista, teólogo, médico e místico persa (1058 – 1111).
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Qutb, que revigoraram e repropuseram de maneira peremptória que o Islã é religião
e Estado simultaneamente.
74
Mesmo assim, os projetos políticos dos teólogos e juristas medievais são
sempre contrários à utopia (entendida como o projeto de um Estado ideal futuro),
pois olham para o passado, para o tempo em que se realizou o Estado islâmico
perfeito: a era do governo de Mohammed e dos Rashidun “bem-guiados”, na qual
a vontade e a Lei de Deus se encarnaram na comunidade islâmica inicial. De
acordo com Campanini, esta postura anti-utópica tornou-se comum na teologia e
no pensamento político clássico, e persiste de certa forma sobre as teorias políticas
islâmicas contemporâneas.
Somente os pensadores denominados falsafa, filósofos de tendências
helenizantes, procuraram fortalecer a perspectiva de um Estado inspirado pelo
Islã, com as categorias políticas gregas, e sem nenhuma concessão ao período de
Ouro do Islã em Medina. De fato, sob um olhar mais desapaixonado, um regime
no qual três dos quatro califas “bem-guiados” foram mortos assassinados e suas
sucessões marcadas por profundas divisões políticas na Comunidade, dificilmente
pode ser chamado de perfeito ou inspirado por Deus.
As dinastias turcas dominaram o cenário político islâmico a partir do século
X. Apesar do seu poder ser originário das estepes e dos campos de pastagens, era
imprescindível o domínio dos códigos de legitimidade das cidades para garantir
as rendas de um comércio, agricultura e artesanato organizados na cidade, os
novos sultões deviam ser aprovados pelos Ulemás. O processo de formação das
dinastias seljúcida e ayyúbida dependia então da conquista de uma série de
cidades inseridas numa rota comercial. A dinastia fundada por Saladino, herdeira
dos turcos zângidas, inicia sua ascensão no Cairo, depois firmando o poder em
Damasco e Alepo. Nesse sentido, os estados cruzados representavam uma ruptura
na geografia tradicional da Síria, com o bloqueio parcial das rotas marítimas
mediterrânicas.
A origem compósita do poder ayyúbida nos demonstra a multiplicidade de
modelos políticos e o descompasso entre a experiência política real e os ideais de
74
CAMPANINI, M., O Pensamento Político Islâmico Medieval IN PEREIRA, R. (Org.), O Islã
Clássico, p. 261.
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Estado islâmico. Teoricamente, a fonte de toda a legitimidade e poder provinha
do califa abássida de Bago califa Al-Qaim (1031-1075) outorgara ao chefe
seljúcida Tughril-beg o título de sultão (“detentor do poder”).
Os seljúcidas passaram a governar um vasto império de terras férteis,
separadas umas das outras por desertos e montanhas, e herdaram uma tradição
pela qual a autoridade era investida mais numa família que em algum membro
individual dela; conseqüentemente seu império nada tinha de Estado centralizado,
sendo antes uma espécie de grupo de reinos autônomos governados por membros
de uma mesma família.
Essa fragmentação não podia deixar de levar à guerra interna. Após a morte
de Malik Xá, o império entrou e crise e a autoridade fragmentou-se ainda mais.
Os herdeiros dos príncipes turcos que morriam nas contendas militares pela
conquista do poder tinham muitas vezes seus poderes usurpados pelos atabegs
membros da nobreza turca encarregados de educar e proteger os jovens príncipes,
e que acabaram ascendendo ao poder. A dinastia zângida foi de breve duração:
Zinki e Nureddin, pai e filho, sendo sucedida num golpe de sorte por Saladino.
Após a morte de Nureddin, já tendo consolidado seu poder no Cairo, Saladino
entrou na Síria e proclamou-se defensor do herdeiro impúbere de Nureddin, as-
Saleh. A morte do jovem logo depois, por motivos naturais, acabou com qualquer
impedimento moral para a proclamação de iure da autoridade de Saladino. Al-
malik an-Nasser, “o grande rei” Saladino, de origem curda, era considerado por
muitos detratores ele próprio um usurpador do poder zângida, que por sua vez o
arrancaram de seus senhores seljúcidas. A propaganda moral e religiosa e o apelo
pela união dos muçulmanos na Jihad contra os franj, podem ser consideradas pela
perspectiva de legitimação de um regime sem tradições dinásticas ainda
estabelecidas.
Na Síria os ayyúbidas passaram a governar de modo semelhante ao dos
seljúcidas; Uma espécie de confederação de estados centrados em diferentes
cidades, cada uma governada por um membro da família ayúbida, que tinham
aliança formal com o chefe da família mas não o deixavam interferir
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85
demasiado.”
75
Seu exército, no entanto, era mais compósito: a aristocracia militar
era composta por turcos, curdos ou cristãos convertidos. Aos árabes, em sua
maioria sedentarizados na região, cabia o papel de mercadores, legisladores e
religiosos. Na hierarquia social e política, cada pessoa possuía uma função:
O mundo é um jardim; a cerca é um soberano ou dinastia; o soberano é sustentado
por soldados; os soldados são mantidos pelo dinheiro; o dinheiro é adquirido dos
súditos; os súditos são protegidos pela justiça; e a justiça é mantida pelo
soberano.
76
Procuramos mostrar, ao longo deste capítulo, algumas facetas da
experiência histórica dos povos dio-orientais durante a duração temporal dos
séculos XI e XII. De maneira análoga à cristandade ocidental, o mundo islâmico
vivia a contradição entre unidade e fragmentação políticas, universalismo
religioso e diversidade de crenças
77
.
O principal feito dos zângidas e de Saladino foi o de reunir os fragmentos
territoriais muçulmanos para formar as bases de um novo Estado, sustentado pelo
ideal da Jihad contra os invasores franj. Este período representou uma tentativa,
bem-sucedida durante algum tempo, de se estabelecerem novas bases
institucionais e sociais para o mundo muçulmano, a partir do ideal nostálgico de
um passado glorioso, harmônico e de paz.
75
HOURANI, A., Uma História dos Povos Árabes, p. 144.
76
DURANT, W., A Idade da Fé, p. 144.
77
Cf. LE GOFF, A Civilização do Ocidente Medieval.
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4
A Rara e Excelente Hisria de Saladino
A Rara e Excelente História de Saladino é o título traduzido de nossa
referência principal para esta parte do trabalho, a obra al-Nawadir al-Sultaniyya
wa´l Mahasin al-Yusufiyya, de Bahaheddin ibn Shaddad.
1
Neste capítulo, iremos
discutir com mais pormenores, e a partir principalmente das fontes primárias a
respeito, a trajetória política, militar e pessoal de Yussef Saladino, evidenciando
elementos que contribuíram para sedimentar o mito que se formou posteriormente
em torno de sua figura.
Selecionamos os aspectos que julgamos essenciais para a compreensão das
categorias mentais presentes em sua época e atribuídas à sua pessoa que
correspondiam aos padrões mais elevados de sua época.
Conforme afirmamos anteriormente, as narrativas a serem citadas são
apropriações originárias, as mais próximas aos fatos e personagens históricos em
questão. Não correspondem a uma pretensa verdade documental e factual, mas
são possuidoras de uma verdade literária e moral, e possuem, na maioria das
vezes, comprovações cruzadas com outras fontes que comprovam a ocorrência do
evento aludido.
Neste sentido, serão úteis outras narrativas além da de Ibn Shaddad. Outros
dois escribas testemunharam momentos da vida de Saladino: Ibn al-Athir (1160 –
1233) e Imadeddin al-Isfahani (1125 - 1201). O primeiro, autor de Kamil at-
Tawarikh (A Perfeita História), um compêndio histórico do mundo árabe-
muçulmano, foi testemunha ocular de alguns eventos, mostrando-se muitas vezes
crítico em relação a Saladino, pois jurara lealdade a Nureddin. O segundo, mestre
nas artes retóricas e na poesia, foi secretário de Nureddin e depois do Cádi al-
Fadil de Damasco. Escreveu uma crônica que conta a história da conquista de
1
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History os Saladin.
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Jerusalém por Saladino a partir da retórica ciceroniana.
2
Optamos por privilegiar,
no entanto, o texto de Ibn Shaddad, que possui mais qualidade de detalhes,
objetividade e menos verborragia retórica, tão presentes no estilo da época.
4.1
Baha´al Din Ibn Shaddad
Vejamos as fontes da autoridade do relato. Seu autor, Baha´al Din Ibn
Shaddad, ou simplesmente Bahaheddin, foi um cortesão companheiro de Saladino
entre 1188 até o falecimento do sultão, em 1193. Além de alto funcionário do
Estado, um sentimento de amizade desenvolveu-se entre os dois, e Ibn Shaddad
usufruía a intimidade do Sultão, participando com ele de suas rezas ou ouvindo as
histórias sobre a sua vida. A composição da obra ocorre em algum momento entre
1198 e 1228, sendo póstuma em relação ao seu personagem principal.
Primeiramente, portanto, analisemos brevemente o lugar social de onde é
proferido este discurso. Tal fala possui atributos próprios, determinados
historicamente, indispensáveis para uma compreensão interna do fenômeno
discursivo.
Nascido em Mossul em 1145, sua formação é similar a de tantos sábios e
intelectuais islâmicos deste período: na escola primária, estudou o Alcorão, a
Tradição Profética (Adi
3
) e Lei Islâmica. Posteriormente, formou-se na Madrasa
Nizamyya
4
, em Bagdá, um dos principais centros de estudos superiores na época,
onde se aprendia teologia, gramática, astronomia, filosofia e direito. Acabou por
ser nomeado professor desta instituição, e posteriormente assumiu o cargo de
professor na Madrasa de Mosul.
2
Ciceronian Eloquence on the Conquest of the Holy City. Cf. GABRIELI, F., Arab Historians of
the Crusades.
3
Hadiths são os ditos” do Profeta Mohammed e dos Primeiros Califas que se converteram numa
fonte complementar ao Corão em matéria de teologia e legislação.
4
Madrasa é uma escola superior de assuntos islâmicos. Nizamyya: construída por patrocínio do
vizir Nizam al-Mulk. Cf HOURANI, A., História dos Povos Árabes.
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88
Ibn Shaddad já havia encontrado Saladino por duas vezes, ambas enquanto
representante diplomático dos governantes Zângidas de Mosul, em embaixada
para negociação de paz com o Sultão. Impressionado com suas capacidades,
Saladino o convidara para assumir um grande cargo de direção na Madrasa de
Manazil no Cairo, convite, no entanto, recusado pelo estudioso.
No ano de 1188, um ano após o “ano da vitória” da batalha de Hittin, na
qual o exército islâmico massacrara as forças principais dos príncipes cristãos e
das ordens religiosas (templários e hospitalários), Ibn Shaddad realizou o Hajj (a
peregrinação obrigatória a Meca), e na volta presenteou Saladino com a sua nova
obra, denominada As Virtudes da Jihad, e então passou a estar permanentemente a
serviço do sultão. Assumiu o cargo de Qadi al-Askar (“juiz do exército”), que lhe
conferia responsabilidades judiciais e administrativas, e ainda tornou-se
confidente pessoal do Sultão. Após a morte deste, Ibn Shaddad teve papel ativo e
influente em assegurar a transferência pacífica de poderes para membros da
família do sultão, pois sua autoridade e eqüidade eram respeitadas por todos. As
rendas que o Estado lhe pagava não eram modestas: cem mil dirhams anuais; mas
o estilo de vida austero do homem de letras lhe garantiu uma grande poupança
(mesmo tendo se casado com duas irmãs), quase toda utilizada na construção e no
financiamento de escolas. Morreu em 1235, com a idade de 89 anos. Muitos dos
dados biográficos aqui coletados provêm do Dicionário Biográfico redigido pelo
seu discípulo, Ibn Khallikan
5
.
Além da obra aqui considerada, o al-Nawadir, sua produção literária é
variada: livros sobre julgamentos legais, derivados de sua prática judiciária; o
Dala´il al-akham, que estuda a tradição dos Hadiths; al-Mujiz al-bahir, obra sobre
jurisprudência; o tratado As Virtudes da Jihad (cujo texto foi perdido) e o Livro do
Bastão, no qual é discutida a relação entre Moisés e o Faraó
6
. Outros textos o
ainda atribuídos a Ibn Shaddad, mas não comprovadamente. Esta breve lista
contém um interesse específico, pois podemos avaliar o pensamento e os temas
5
Cf. RICHARDS, D.S., Introduction Separata de IBN SHADDAD, The Rare and Excellent
History os Saladin.
6
O profeta hebreu Moisés, guiou a libertação de seu povo para fora do Egito, contra o faraó
Ramsés II, em aproximadamente 1300 a.C.
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89
colocados por um intelectual islâmico medieval, um sunita ortodoxo preocupado
com o bom governo do Islã.
Portanto, ao analisarmos o texto de Ibn Shaddad, cabe atentarmos para a
posição social deste autor: um agente do Estado, amigo pessoal do Sultão, que
sincera e austeramente contribui para o esforço da Jihad; professor da autoridade
ortodoxa sunita em uma Síria repleta de seitas, dissidências e infiéis. O ano de
sua entrada para o serviço do Sultão também foi auspicioso: após a vitória de
Hittin, Saladino tinha plena consciência de que a retomada de Jerusalém estava
próxima, e este seria um momento histórico inesquecível para os muçulmanos.
Isto, no entanto, não significa que a História de Saladino é uma encomenda direta
do sultão; entretanto, ambos os homens tinham plena consciência da importância
dos acontecimentos de que foram protagonistas para a posteridade. Não deixar a
memória de Saladino e da reconquista de Jerusalém morrer: este é um dos
objetivos principais do autor, e podemos considerá-lo bem sucedido. Bahaheddin
passou a acompanhar Saladino somente após a conquista de Jerusalém; portanto,
ao tratar do período anterior à chegada de Bahaheddin à corte de Saladino, iremos
buscar outras fontes, quando necessário para a exposição do nosso argumento, o
cronista Ibn al-Athir e o conselheiro Imadeddin al-Isfahani.
Qual a tipologia literária do al-Nawadir? Híbrido de biografia, história e
literatura, em toda a obra a idéia de uma conduta exemplar é o eixo das
descrições. Neste texto, Deus se faz presente na história humana apenas de forma
indireta: enviando para seus fiéis do Islã, em tempos críticos, figuras exemplares,
modelos que possuem um alcance universal e virtudes para se educar as gerações
vindouras.
Assim, o autor demonstra a necessidade que sentiu em escrever esta
biografia, pois Saladino, modelo heróico, deveria ser recordado como líder de um
tempo de nostalgia da unidade do Islã. O autor considera o período histórico que
presenciou como importante, extraordinário e maravilhoso (no sentido em que
nele maravilhas humanas aconteceram). Faz um paralelo entre a época de
Saladino e aquela das primeiras gerações do Islã, repleta de modelos de
comportamento virtuosos, justificando assim sua empreitada. O conceito de
tempo presente em seu texto é a de um tempo histórico que por vezes se condensa,
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90
poucos anos críticos em que alguns fatos possuem enormes conseqüências,
conforme nos conta em seu Prólogo.
Shaddad nos lembra que a vida de Saladino não foi uma carreira triunfante
de conquista e expansão, mas uma difícil luta para reunir recursos e força moral
que mantivessem unidos os muçulmanos em face a um grande desafio.
7
Após uma vitória, logo adiante mais dificuldades e obstáculos o
aguardavam. Por exemplo, após conseguir um dos objetivos maiores de sua vida,
a conquista de Jerusalém (1187), Saladino amargou uma dura derrota diante da
fortaleza de Acre (1190-1192) e teve que se defender dos ataques renovados da
Cruzada, que reuniu forças dos reis da França - Felipe Augusto - e Inglaterra -
Ricardo Coração-de-Leão. Extenuado, lutou contra levas e levas de cruzados que
não findaram após o retorno de ambos os reis para a Europa. Suas muitas vitórias
foram por vezes obscurecidas por derrotas importantes, como a queda de Acre
(1190-1192). Austero, disciplinado e severo consigo mesmo, morreu com a idade
de 55 anos; mas sua frágil saúde o levou a um envelhecimento precoce, segundo
relatado por Shaddad e Ibn al-Athir.
As fórmulas religiosas que ocorrem no texto entre parênteses após o nome
de uma pessoa servem para indicar, como um eufemismo, se ela se encontrava
viva ou morta no momento da redação do texto, e qual a relação política e afetiva
do autor com a pessoa em questão. Veremos mais adiante exemplos de epítetos e
exortações em relação a inimigos e aliados do autor.
Cf. RICHARDS, D.S., Preface Separata de IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History os
Saladin, s.p..
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91
4.2
Princípios básicos da crença religiosa ortodoxa (sunita) islâmica
conforme a formulação de Ibn Shaddad
Praise to be God, who bestowed Islam upon us and guided us to the Faith, which
continues in the fairest path, and who granted us the intercession of our Prophet,
Mohammed (upon whom be the best of blessing and peace), and who made the
lives of the early generations a model for those of understanding and who made the
vicissitudes of life condemn every contingent state to pass away, in order that a
fortunate man might not be misled and that one whose life the blows of sickness
have trifled with might not despair.
I testify that there is no god but God alone, who has no partner, a testimony which
quenches hearts´ burning thirst.
I testify that our Lord Muhammed is His servant and Prophet, who opened doors to
true guidance. Those who seek to open them must persevere with keys of
obedience and submission. God bless him and his family with eternal blessings
that last as long as time itself.
8
Louvado seja Deus, que trouxe o Islã até nós e nos guiou para a Fé, que continua
em seu justo caminho, e que nos presenteou com a intercessão do nosso Profeta,
Maomé (sobre o qual haja o melhor de bênçãos e paz), e que fez a vida das
gerações anteriores um modelo para aqueles de entendimento e que fez as
vicissitudes da vida condenarem cada estado contingente a desaparecer, para que
um homem afortunado não se desvie e para aquele cuja vida a desgraça
assombrou com força não desespere.
Eu testemunho que não deus, mas Deus apenas, que não possui companheiro,
um testemunho que aquieta o coração.
Eu testemunho que nosso Senhor Maomé é Seu servo e Profeta, que abriu portas
para o caminho verdadeiro. Deus abençoe ele e sua família com bênçãos eternas
que dure tanto quanto o próprio tempo.
na fórmula “(...) who made the lives of the early generations a model for
those of understanding uma indicação da modelagem pedagógica do Islã
medieval, baseada no exemplo dos grandes homens do passado. Desta forma,
Deus teria garantido para a história dos muçulmanos a existência de grandes
homens, de feitos memoráveis, especialmente nos anos que vão da revelação do
Profeta ao último dos cinco primeiros califas (os Rashidun) para que as gerações
posteriores pudessem aprender a partir de seu exemplo. Em sua época,
Baheheddin enfatizou a importância da virtude do passado nos tempos difíceis do
8
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 13.
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92
seu presente. Em sua concepção, da História pode-se extrair exemplos de
virtudes, com função pedagógica para o agir no presente.
Ainda na citação anterior, a admoestação “in order that a fortunate man
might not be misled and that one whose life the blows of sickness have trifled with
might not despair. indica uma tradicional concepção religiosa e filosófica sobre a
vida do homem na terra: a de que todos os estados são contingentes. Na
sociedade humana, a riqueza, a pobreza, a doença ou a saúde são dadas pelas
vicissitudes da vida, e portanto são frágeis e passíveis de se alterarem. Os
afortunados que se cuidem para que suas fortunas o lhes escapem, os
miseráveis não desesperem, pois que tudo é passageiro, inclusive o seu infortúnio.
Observa-se nesse sentido, uma aproximação com a concepção greco-romana da
Roda da Fortuna e seus caprichos, com a diferença que, no Islã, Deus é a causa
final de todos os fenômenos.
4.3
Prólogo do al-Nawadir
When I observed the days of our Lord the Sultan al-Malik al-Nasir, the uniter of
Islam, the supressor of the worshippers of the cross, the standard bearer of justice
and fairness, Salah al-Dunya wa´l-Din, sultan of Islam and the Muslims, deliverer
of Jerusalem from the hands of the polytheists, the servant of the Two Noble
Sanctuaries, Abul´l-Muzaffar Yusuf ibn Ayyub ibn Shadi (and may God moisten
his resting place with the dew of His good pleasure and let him taste at the seat of
His mercy the sweet regard of faith), I came to believe the tales of early
generations that improbability called false. I bore witness to the genuineness of the
rare stories told of noble heroes, while the deeds of brave mamlukes of his days
confirmes the tales of champions that doubts impugned. I saw with my own eyes
such endurance of hardships for the sake of God and strengthened my belief in
such tales. The wonders of theses days were too great to be grasped by any mind
or comprehended by any heart, their extraordinary facts too glorious to be fully
expressed by any tongue or recorded on a page by any hand.
However, they were of such a kind that, once aware of them, one is unable to keep
them hidden and anyone with knowledge of them cannot but relate their tales and
stories. I was so enslaved by his favour to me, affected by his true friendship and
the service I owed him that it is encumbent on me to set forth all his virtues that I
have direct knowledge of and to relate all his excellent qualities that I have known.
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93
I have decided to give in that connection a short account of what personal
experience has dictated or of what I have been told, the source of which is close to
complete reliability. This is just one part of a whole and little portion of a lot, to
suggest the larger picture through the smaller and to judge the false dawn after the
true dawn by its rays. This compendium of the history of his reign I have entitled
The rare and excellent history of Saladin (…).
9
Quando eu observava os dias do nosso Senhor o Rei Vitorioso, o unificador do
Islã, o supressor dos adoradores da cruz, o porta-estandarte da justiça e
legalidade, Salah al-Dunya wa´l-Din, Sultão do Islã e dos Muçulmanos, que trouxe
Jerusalém das mãos dos politeístas, o servo dos Dois Nobres Santuários, Abu l-
Muzaffar Yusuf ibn Ayyub ibn Shadi (e que Deus umedeça seu local de descanso
com o orvalho de Seu bom prazer e o deixe provar no assento de Sua misericórdia
a recompensa doce da fé), eu vim a acreditar nos contos de gerações anteriores
que a improbabilidade chamava de falsos. Fui forçado a testemunhar a
genuinidade das raras estórias contadas de heróis nobres, enquanto os feitos dos
bravos mamelucos de seus dias confirmaram os contos de campeões que a vida
impugnava. Eu vi com meus próprios olhos tal sustentação de dificuldades pela
graça de Deus que fortaleceu minha crença nesses contos. As maravilhas desses
dias foram muito grandes para serem captadas por qualquer mente ou
compreendidas por qualquer coração, seus fatos extraordinários muito gloriosos
para serem totalmente expressos por qualquer língua ou escrita numa página por
qualquer mão.
No entanto, elas [as maravilhas] foram de tal tipo que, uma vez ciente delas,
alguém não pode mantê-las escondidas e qualquer um com conhecimento delas
não pode senão relatar seus contos e estórias. Eu estava tão escravizado por seu
favor por mim, afetado por sua verdadeira amizade e serviço que eu o prestava
que é minha incumbência levantar todas as suas virtudes de que eu tive
conhecimento direto e relatar todas as excelentes qualidades que eu conheci.
Eu decidi dar por esse motivo um pequeno relato do que a experiência pessoal me
ditou ou o que me foi contado, a qual fonte é próxima à confiança completa. Isso é
apenas uma parte do todo e pouca porção de muito, para sugerir o quadro maior
através do menor e julgar “o falso poente do verdadeiro por seus raios”.
Esse compêndio da história de seu reinado eu entitulei “A rara e excelente história
de Saladino”.
O título completo de Saladino, expresso nos termos do autor, compele a
uma análise de seu significado. Era comum à época títulos longos e fórmulas
complicadas. No início da Era Islâmica, a autoridade (dinástica, moral e religiosa)
bastava-se e os títulos eram curtos, como “Califa”, “Profeta” ou “Iman”. No
entanto, no tempo de Saladino, a sofisticação de costumes ocorrida ao longo dos
séculos anteriores, a fragmentação do poder político e a endêmica rivalidade entre
sultões fizeram proliferar os títulos, denominações e homenagens aos soberanos.
9
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.14.
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94
Os dois primeiros títulos foram concedidos a Yussef pelo último califa
fatímida, al-Adid. O epíteto al-Malik é traduzido, em geral, por “o Rei”.
Atualmente, por exemplo, este título aparece, por exemplo, na denominação do
monarca saudita: Malik al-Mamlaka al-`Arabiyya as-Sa'udiyya (“Rei do Reino da
Arábia Saudita”, título atual do chefe de Estado deste país);
10
al-Nasir significa “o
que ajuda (o povo)”, “o vitorioso”.
11
Atualmente constitui denominação comum
na língua árabe, em nomes como Gamal Abd an-Nasir, presidente do Egito entre
1965 e 1970.
Salah, ou Salat, é um vocábulo de múltiplos significados: é primariamente a
reza ritual islâmica, mas etimologicamente provém de palavras como bênção,
súplica, honra; no Alcorão significa “ir adiante”. Al-Dunya é uma palavra que
refere-se ao mundo terreno, enquanto Din significa, entre outros sentidos,
“religião", entendida como o modo de vida correto. D.S. Richards traduz esse
título Salah al-Dunya wa´l Din - como “a bondade desse mundo e da religião”.
Sua forma abreviada, Salah al-Din, deu origem ao latinizado Saladino, Saladin ou
Salaheddin.
12
O título de Sultão provém de seus poderes militares: no tempo de Saladino,
o sultão correspondia a um governante com poderes territoriais, militares e legais
reconhecidos, submetidos teoricamente ao califa, sucessor do profeta Maomé.
Havia vários sultões no mundo islâmico neste período, em sua maioria turcos de
diversas tribos, cujos deveres eram proteger os territórios do Islã em nome do
califa”. Desde a vinda dos turcos ao Oriente Próximo, durante o século XI, os
califas abássidas perderam de vez o seu abalado poder político e militar para os
líderes tribais turcos, mantendo apenas a representação simbólica e religiosa do
Dar al-Islam.
Yussef é também aquele que devolveu Jerusalém das mãos dos politeístas -
são os cristãos, que sob este ponto de vista adoram três deuses simultaneamente (a
Trindade), além dos santos, da santa cruze muitas outras superstições (na
10
IN HUGHES, T.P., A Dictionary of Islam.
11
Cf. BEESTON, A.F.L., Arabic Nomenclature: A summary guide for beginners. Oxford, 1971.
12
Cf. HUGHES, T.P., A Dictionary of Islam.
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95
perspectiva islâmica)
13
. Muitos muçulmanos consideravam os cristãos como
enganados ou desviados da verdadeira fé, ao mesmo tempo em tinham pela figura
de Jesus grande respeito e admiração.
Outro título tradicional do mundo islâmico é o de Servo dos Dois Nobres
Santuários - Meca e Medina, duas das três cidades mais sagradas do Islã (junto
com Jerusalém), situadas perto 300 km uma da outra, na região oeste da Península
Arábica. O dever de qualquer governante muçulmano que reinou, reina ou reinará
sobre esta região é a de protegê-la e viabilizar a peregrinação de devotos de toda a
parte do mundo. Esta denominação ainda é um dos títulos do atual rei da Arábia
Saudita, “Guardião das Duas Mesquitas Sagradas".
14
Bahaheddin utiliza ainda em sua fórmula para nomear o sultão o sistema de
denominação do árabe clássico: os elementos nomeadores Kunya, Ism e Nasab.
Abu l-Muzaffar, sua kunya, é uma referência ao primogênito: “pai de Muzafar”.
Yusuf é o seu nome pessoal, ou ism: “José”, segundo a lenda do profeta bíblico de
mesmo nome; ibn Ayyub constitui o Nasab, indicação patronímica: “filho de Jó”,
e ainda Ibn Shadi, Nasab que indica quem foi seu avô, Shadi, ou “Cantor”. Este
sistema de denominação ainda possui mais elementos, que podem indicar origem,
profissão ou outra característica do portador, mas o mais importante e antigo é o
Nasab, que pode estender-se em cadeia até a primeira geração conhecida ou
mítica de uma família. Um único nome pode assim indicar a árvore genealógica,
profissão e cidade de origem de seu portador, facilitando a identificação do lugar
social de um interlocutor.
Ainda no prólogo, Ibn Shaddad faz algumas breves considerações
metodológicas. Em primeiro lugar, o autor assegura que seu relato é baseado no
mundo real, em fatos humanos que ele próprio testemunhara, afastando a hipótese
de milagres ou intervenções divinas diretas. Ele considera a história de seu tempo
como possuidora de fatos relevantes e importantes para o futuro, pois
experimentou eventos e personagens maravilhosos, raros, quase inverossímeis. O
13
Cf. RUNCIMAN, S., A História das Cruzadas e HOURANI, A., Uma História dos Povos
Árabes.
14
Ainda é um dos principais deveres e fator de legitimação monárquica a manutenção e expansão
dos locais sagrados, cujas capacidades foi aumentada para milhões de pessoas durante a década de
1980 com o rei Ibn Abdul-Aziz. Cf. Sítio oficial da embaixada da Arábia Saudita em Brasília:
http://www.mofa.gov.sa/Detail.asp?InSectionID=2606&InNewsItemID=40106
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96
autor admite a sua desconfiança anterior em relação às histórias de heróis do
passado, mas foi obrigado a aceitar a sua veracidade quando ele próprio
testemunhou fatos tão incríveis quanto.
Shaddad expõe o projeto de seu livro como sendo uma necessidade imposta
pelos acontecimentos, os quais ele tem o cuidado de assegurar como verdadeiros,
de acordo com seu próprio testemunho ou de fontes confiáveis. O seu relato sobre
Saladino, portanto, inicia-se com mais riqueza de detalhes após junho de 1188, um
ano após a vitória na batalha de Hittin (1187 – o “ano da vitória”). Para eventuais
esclarecimentos e fatos sobre a vida de Saladino até este ponto, nossa referência
será outro historiador contemporâneo, Ibn al-Athir.
Ibn Shaddad reconhece o seu comprometimento e lealdade para com o
sultão, o que, no entanto, não o impede de oferecer apenas relatos verdadeiros,
selecionados conforme o grau de virtude exemplar que oferecem, de maneira a
montar o quadro resumido proposto pelo autor. Rara é a história de Saladino, na
medida em que sua sensibilidade, bondade, generosidade e tolerância são dons
raros para os governantes de qualquer época, especialmente em tempos belicosos.
Excelentes são as virtudes relatadas por Ibn Shaddad, que funcionam como
exemplo e ideal a serem seguidos.
A História de Ibn Shaddad diz respeito a coisas maravilhosas, mas são
maravilhas humanas, do mundo terreno. Milagres e o próprio Deus não
interferem em sua narrativa; as causalidades históricas são secularizadas. Em seu
texto, as batalhas são vencidas por cristãos ou muçulmanos não por conta do favor
de Deus na ocasião, e sim por causas estratégicas, como o tamanho dos exércitos,
a tática de seus comandantes e suas desavenças políticas. Os feitos e as virtudes
de Saladino, embora heróicas e às vezes improváveis, são possíveis para qualquer
homem. O toque divino nesta história ocorre por conta dos protagonistas
humanos, que podem ou não andar em direção à Virtude e ao aprimoramento
moral e religioso. Agora, juntos com Ibn Shaddad, tentaremos montar um quadro
da personalidade e das virtudes do sultão conforme imortalizados pelo autor.
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97
4.4
Do nascimento de Saladino à expedição egípcia
According to information we have heard from the tongues of reliable sources who
traced it and on its basis eventually constructed his horoscope by the dictates of the
art of astrology, his birth took place during the months of the year 532 [1137-8]
and in the castle of Takrit. His father, Ayyub ibn Shadi, (God have mercy on him)
who was governor there, was a noble, generous man, mild and of excellent
character. He had been born in Dvin. Later it came about that he was transferred
from Takrit to the city of Mosul, and his child moved with him and there resided
until he came of age. His father was a respected commander, as was his father´s
brother, Asad al-Din Shirkuh, in the service of the Atabeg Zanki.
His father then chanced to be transferred to Syria (may God preserve it) and was
given Baalbek, where he remained for a while. His son moved to Baalbek and
lived there in the service of his father, being educated under his wing and imbibing
his good morals and manners, until signs of good fortune became visible in him
and marks of leadership and lordship were manifest. Al-Malik al-´Adil Nur al-Din
Mahmud ibn Zinki (God have mercy on him) advanced him, relied on and looked
to him, and made him a favoured intimate. It continued to be the case that, each
time he was advanced, he would demonstrate further cause to require his
promotion to a higher position. Then came the time for his uncle, Asad al-Din, to
make his expedition to attack Egypt.
15
De acordo com as informações que escutamos de fontes confiáveis que as
relataram, e das quais foi elaborado seu horóscopo pelos ditames da arte
da astrologia, seu nascimento ocorreu durante os meses do ano 532 [1137-
8], no castelo de Tikrit. Seu pai, Ayyub ibn Shadi (Deus tenha misericórdia
dele), que lá era governante, era um homem nobre e generoso, equilibrado
e de excelente caráter. Ele nascera em Dvin. Depois veio acontecer que ele
foi transferido de Tikrit para a cidade de Mosul, e sua criança mudou-se
com ele e residiu até atingir a maioridade. Seu pai foi um respeitável
comandante, assim como foi o irmão de seu pai, Asad al-Din Xhirkuh, a
serviço do Atabeg Zinki.”
Seu pai então teve a oportunidade de ser transferido para a Síria (que Deus
a preserve) e lhe foi dada [a cidade de] Baalbek, onde ele permaneceu por
um tempo. Seu filho mudou-se para Baalbek e viveu a serviço de seu pai,
sendo educado embaixo de suas asas e aprendendo seus padrões morais e
boas maneiras, até que os sinais da boa fortuna ficaram visíveis nele e
marcas de liderança e senhorio manifestaram-se. Al-Malik al-Adil Nur al-
Din Mahmud ibn Zanki (Deus tenha misericórdia dele) o promoveu, confiou
e olhou por ele, e fez dele um de seus favoritos na sua intimidade.
Continuava a ser o caso que, cada vez que ele ascendia, ele iria demonstrar
mais razões para a sua promoção a posições maiores. Então veio o tempo
para seu tio, Asad al-Din (Xirkuh), comandar sua expedição para atacar o
Egito.
15
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 17.
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98
Esta é um breve relato da vida do jovem Saladino até ele se encontrar no
palco de sua ascensão ao poder: o Egito. Segundo Maalouf, Saladino combinava
humildade com uma sorte excepcional o que o levou a seu destino de der de
seu povo.
O relato de Ibn Shaddad começa considerando as origens da ascensão dos
ayyúbidas. Seu pai e seu tio eram emires (comandantes militares) a serviço dos
Zângidas
16
, representantes das tribos curdas no fragmentado Império Seljúcida.
Nascido no Castelo de Tikrit (atual Iraque), no ano de 1137, acompanhou em sua
infância e juventude as expedições do pai e do tio, acabando por ser um dos
preferidos do rei Nureddin, que na época empreendia um esforço político e de
propaganda a fim de mobilizar os muçulmanos para a causa da Jihad. O local de
nascimento, por coincidência, é o mesmo do ex-presidente iraquiano, Saddam
Hussein al-Tikriti, o que ajudou este ditador a divulgar sua imagem enquanto um
“novo Saladino”.
Segundo Amin Maalouf, a ascensão de Saladino iniciou-se quando o rei
Nureddin envia o tio de Saladino, Xirkuh, em uma expedição para conquistar o
Egito, governado à época pela dinastia Fatímida (de orientação religiosa xiita,
contrária, portanto, à ortodoxia sunita dos dirigentes turcos), na posição de emir
em sua primeira missão militar. Para um jovem aparentemente despretensioso e
sem ambição, era um início de uma carreira gloriosa
17
.
O Egito Fatímida, após muitas campanhas e reveses, foi totalmente
conquistado pelo general Xirkuh, e seu sobrinho, Saladino, o que resultou no
término do domínio xiita na região. Com a morte súbita de Xirkuh em um
banquete comemorativo, Saladino herda o controle político do Egito e o título de
Mestre do Cairo, ainda que teoricamente estivesse sob jurisdição de Nur-al-Din
A tensão entre os dois deres, que poderia ter sido o início de uma disputa
bélica, foi habilmente contornada por Saladino, que reiterou a sua lealdade ao
idoso sultão, que não demorou muito tempo para falecer. Após o falecimento de
16
Dinastia de origem turca de atabegs, “tutores de príncipes”, que dominaram partes da Síria e da
Mesopotâmia durante um curto período no século XII. Os dois principais soberanos, Zinki e Nur-
al-Din, foram os precursores de Saladino no domínio da Síria.
17
Cf. MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 167.
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99
Nur-al-din, Saladino torna-se, de fato, o principal líder muçulmano das terras da
Síria e do Egito, após submeter algumas lideranças locais hostis ao seu governo.
Insolente, Saladino geralmente precaveu-se de sê-lo; mas insolente, sua sorte o é
com certeza. E é justamente isso que irrita seus adversários. Pois esse oficial
curdo de trinta e seis anos [em 1174] nunca foi um homem ambicioso, e aqueles
que observaram sua estréia sabem que ele facilmente se teria contentado em ser um
emir entre tantos outros se a sorte não o tivesse projetado, contra a sua vontade,
diante do palco.
Foi contra a sua vontade que ele partiu para o Egito, onde o seu papel foi mínimo
na conquista; e entretanto, em rao mesma de seu retraimento, se elevou ao cume
do poder. Ele não tinha ousado proclamar a queda dos fatímidas, mas, quando foi
forçado a tomar uma decisão nesse sentido, se viu herdeiro da mais rica das
dinastias muçulmanas. E quando Nureddin resolveu recolocá-lo em seu devido
lugar, Yussef nem mesmo sentiu desejo de resistir: seu mestre se apagou
subitamente, deixando como sucessor um adolescente de onze anos, as-Saleh.
18
No Cairo, hesitou em decretar o fim da dinastia fatímida conforme fora
determinado por Nur-al-din, pois temia pelo fim da base de legitimação popular
de seu governo, pois fora nomeado pelo último califa fatímida, o jovem e doente
Al-Adid
19
, e adquirira sua confiança e amizade; além disso o jovem califa tornara-
se seu amigo. Mas, quando o califa sucumbe à doença, Saladino é declarado
senhor do Egito, provocando diretamente Nur-al-din. Saladino postergou até onde
pôde o confronto com seu antigo mestre, pois o reverenciava e o amava como um
pai, política e afetivamente. No entanto, quando ocorreu a passagem deste
soberano, Saladino não hesitou em fortalecer suas posições na Síria, no intuito de
“proteger” o filho de Nur-al-Din, as-Saleh, de “intrigas de seus inimigos”. Com
efeito, o herdeiro adolescente de Nur-al-Din é mantido em seu castelo até a sua
morte poucos anos depois, o que correspondeu a mais um golpe de sorte a favor
da carreira de Saladino. A partir de então, tornou-se o líder incontestável da Síria
e do Egito, conquistando posteriormente o men e partes da Jazira (na Península
Arábica).
Contra todas as adversidades o crescente fluxo de cruzados vindos da
Europa, as disputas internas entre os muçulmanos, sua saúde progressivamente
fragilizada em anos de guerras, parecia que a Fortuna sorria perante seu
comportamento exemplar. A história de Saladino é a história da luta contra a
18
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p.p. 166-167.
19
Ibid. p. 162.
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100
adversidade, e possui seus momentos difíceis e dramáticos, principalmente
quando os muçulmanos perdem a fortaleza de Acre para Ricardo Coração-de-
Leão.
4.5
Sobre sua aderência às crenças religiosas e observância das
matérias da Lei Sagrada
He took his creed from proof by means of study with the leading men of religious
learning and eminents jurisconsults. He understood of that what one needs to
understand, such as, when disputation occured in his presence, he could contribute
excellent comments, even if they were not in the language of learned specialists.
Consequently he gained a creed free from the defilement of anthropomorfism but
his studies did not dig too deep to the extent of denying the divine attributes or
misrepresentation. His creed followed the straight path, agreed with the canon of
true discernment and was approves by the greatest of the ulema.
20
Ele pôs seu credo à prova por meio de estudos com os principais homens de saber
religioso e eminentes jurisconsultos. Ele entendia o que alguém precisa entender,
tanto que, quando disputas ocorriam em sua presença, ele poderia contribuir com
excelentes comentários, mesmo que eles não fossem na linguagem dos
especialistas. Conseqüentemente ele ganhou um credo livre da corrosão do
antropomorfismo mas seus estudos não iam tão fundo a ponto de negar os
atributos divinos ou mal-interpretá-los. Sua fé seguia o caminho reto, concordava
com o cânone do verdadeiro discernimento e era aprovado pelo maior dos ulemás.
Ibn Shaddad nos descreve Saladino como um campeão de sua fé. O sultão
aparece como um correto ortodoxo, curioso sobre a sua fé, ainda que dentro dos
limites aceitáveis pela ortodoxia sunita. Sua corte, seja em Damasco ou no Cairo,
ou até mesmo nos acampamentos militares, era o local de debates, tomada de
posições, afirmação de uma identidade e a instituição do que era ou não aceitável.
O limite tolerável da discussão filosófica oficial, neste caso, era certamente
a afirmação da apostasia. Rigorosamente proibida pela sharia
21
, o muçulmano
que abandonasse sua religião deveria receber a pena de morte. A outra face da
tolerância islâmica com cristãos e judeus era, por vezes, a intolerância que beirava
20
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 18.
21
Sharia, ou “caminho”, é o corpo de leis do Islã sunita.
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101
o ódio contra os cismáticos (xiitas) e hereges. Seitas menores, como a dos
Assassinos
22
e filosofias radicalmente heréticas, como a de al-Suhrawardi
23.
eram
um perigo potencial e real para a política de unificação dos muçulmanos
empreendida por Saladino.
Shaddad menciona o antropomorfismo e a negação dos atributos divinos
como possíveis perigos; o antropomorfismo seria realizado apenas por povos ou
pessoas ignorantes, alheias à fé. Já a negação dos atributos divinos era um perigo
que emanava da filosofia e do misticismo filosófico e alguns filósofos sofreram,
neste caso, os rigores da lei.
Para Saladino era fundamental a aprovação dos ulemás. Era o primeiro de
sua família a ascender à autoridade de sultão. Estrangeiro, de origem curda, era
considerado não por poucos como um usurpador da dinastia ngida, que reinara
até 1174 na Síria. Sua era considerada verdadeira e correta, e isso fortaleceu
sua liderança, carisma e autoridade perante o povo e os emires.
Vejamos agora a sua relação com os pilares da fé islâmica:
If he fell ill, he would summon the imam on his own and force himself to stand
and pray in company. Over the years he used to practise the daily devotions of the
mystic.
While he remained in possession of his faculties he never neglected to perform his
prayers. (...) If ever prayer time found him travelling, he would dismount and pray.
He fell a little short in respect of fasting on account of illnesses that he
successively suffered in numerous Ramadans. Qadi al-Fadil undertook to keep a
record of those days and he began to fulfil those missed obligations at Jerusalem
the year he died.. (...) It was as though he were inspired to discharge his obligation,
and he continued until he had fulfilled what was due.
He always intended and planned it [peregrinação a Meca N.T.], especially in the
year of his death. He confirmed his determination to perform it and he ordered
preparations to be made. (...) However, he was prevented because of lack of time
and the unavailability of what was proper for such a person. He therefore put it off
till the next year, but God decreed what He decreed.
As for superogatory charity, that exhausted all the property he owed. He ruled all
that he ruled, but died leaving in his treasury in gold and silver only forty Nasiri
22
Cf. sessão 4.12 deste trabalho.
23
Cf. sessão 4.7. deste trabalho.
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102
dirhams and a single Tyrian gold piece. He left no property, no house, no estate,
no orchard, no village, no farm. Not a single item of property of any sort.
24
Se ele caísse enfermo, ele próprio chamaria o imam e foaria-se a levantar e
rezar acompanhado. Com os anos ele passou a praticar as devoções diárias dos
místicos.
Enquanto permaneceu em posse de suas faculdades ele nunca negligenciou a reza.
Se a hora da reza o pegasse viajando, ele iria desmontar e rezar.
Ele faltou um pouco (em relação aos deveres religiosos) a respeito de jejuar por
conta de enfermidades que ele sucessivamente sofreu em numerosos Ramadãs.
Qadi al-Fadil tomou registro desses dias e ele começou a cumprir essas
obrigações em Jerusalém no ano em que ele morreu. Era como se ele fosse
inspirado a desobrigar-se de seu dever, e ele continuou até ter cumprido o que era
devido.
Ele sempre teve a intenção e planejou peregrinar a Meca, especialmente no ano de
sua morte. Ele confirmou sua determinação para pô-la em prática, e mandou que
preparassem sua viagem. No entanto, ele foi impedido por falta de tempo e
inviabilidade do que era próprio para sua pessoa. Ele então adiou para o próximo
ano, mas Deus decretou o que decretou.
Em relação a sua caridade, esta esgotou toda a propriedade que ganhou. Ele
governou tudo o que ele governou, mas morreu deixando em seu Tesouro em ouro
e prata apenas 40 dirhams de Nasiri e uma única moeda de ouro de Tiro. Ele não
deixou nenhuma propriedade, casa, ou feudo nem pomar, vila ou fazenda.
Nenhum item de propriedade de nenhum tipo.
O islã sunita possuía, e possui, seus 5 Pilares da Fé. Shahadah, Salah,
Zakah, Sawm e Hajj. O primeiro, Shahadah constitui o credo principal e
inquestionável: crer no Deus único e em seu profeta, Maomé. Ibn Shaddad nos
mostra em que medida Saladino alcançou os outros quatro pilares.
Em relação às cinco rezas diárias do ritual do Salah, sua conduta foi
impecável. Estivesse viajando ou doente, sempre fez questão de cumprir à risca
essa conduta definidora de sua fé.
Cumpriu igualmente com o preceito de Zakat, podemos dizer que todo o seu
sultanato foi orientado por essa concepção de doação aos pobres. Numa estrutura
política e econômica em que os cofres do Estado confundiam-se com as finanças
pessoais do soberano, podemos afirmar que Saladino foi um grande redistribuidor
de riquezas. Não lhe faltaram oportunidades para enriquecer na guerra, entre
saques, resgates e tributos – práticas comuns no cotidiano de guerra e trégua entre
24
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 18–19.
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103
os franj e os muçulmanos. Veremos mais adiante como seus tesoureiros tinham o
hábito de esconder certa quantia do soberano, para eventuais emergências que
pudessem ter de enfrentar. Neste aspecto, podemos considerar as críticas de
alguns de seus conselheiros que Saladino beirava a irresponsabilidade no trato
com o dinheiro do tesouro mas, certamente, para ele a caridade possuía um
sentido sagrado, que a punha acima de interesses administrativos mundanos.
O pilar do Sawm, o jejum obrigatório diurno do mês do Ramadan, ofereceu
um desafio mais difícil para o sultão. Era dever abster-se de toda comida, bebida
e relação sexual. Entretanto, seus médicos obrigavam-lhe a comer mesmo durante
o dia se achassem que tal era necessário para o restabelecimento de sua saúde.
Um dos médicos de Saladino foi o judeu Maimônides
25
, rabino, homem de letras e
filósofo, para o qual provavelmente a consideração pela saúde de seu paciente era
mais urgente que o dever do jejum religioso.
Mas nem mesmo toda a força da sua vontade conseguiu com que realizasse
o hajj, a peregrinação a Meca que todo muçulmano idealmente deveria realizar
pelo menos uma vez na vida. A presença física e pessoal do sultão nos assuntos
de guerra e governo era imprescindível. Reviravoltas e ataques surpresas eram
constantes em seu embate contra os franj. A viagem duraria meses, e deveria ser
feita de acordo com a posição política e social do peregrino. Nessa conjuntura,
Saladino adiou sucessivamente seu dever pessoal por um dever coletivo maior – a
Jihad contra os invasores infiéis.
A disciplina rigorosa nas obrigações religiosas de Saladino impressionava
muitos em sua corte, numa época em que alguns membros da nobreza árabe
muitas vezes negligenciavam os deveres religiosos para cuidar de seus prazeres
pessoais. Esse tipo de comentário repete-se no texto, são exemplos de sua
obstinação na sua Jihad pessoal. A idéia de Jihad, originalmente, significa o
esforço interior para submeter a si próprio às leis de Deus
26
. A disciplina mental e
física para a manutenção do horário correto do Salat (o ritual das cinco rezas
diárias obrigatórias) e o respeito ao jejum do mês do Ramadan combinavam-se
25
Moshe ben Maimon (1135 1204), filósofo, teólogo, rabino e médico, autor de O Guia dos
Perplexos, obra filosófico-aristotélica.
26
Cf. sessão 3.9. deste trabalho, “Idéias e Práticas Políticas no Islã do Tempo de Saladino”.
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104
invariavelmente aos contínuos esforços de guerra e a sua necessária presença no
comando do exército e do Estado.
4.6
Sobre o seu temperamento e sua justiça
Saladin was just, gentle and merciful, a supporter of the weaks against the strong.
Each Monday and Thursday he used to sit to dispense justice in public session,
attended by the jurisconsults, the Qadis and the doctors of religion. The door
would be opened to litigant so that everyone, great and small, senile women and
old men, might have access to him. (…)
When a man called Ibn Zuhayr from Damascus appealed to him against Taqi al-
Din, his nephew, send for him to be brought to the court of justice. (…) This was
done, although the former was a courtier of the sultan, and then the dispute
between them was heard, (…) and Taqi al-Din was one of those whom Saladin
held most dear and respected, but he did not favour him in the matter of justice.
27
Saladino era justo, gentil e misericordioso, um patrono dos fracos contra o forte. A
cada segundas e terças-feiras ele costumava sentar-se para distribuir justiça em
sessão pública, ajudado por jurisconsultos, Cádis e doutores da religião. A porta
deveria ser aberta para o litigante para que todos, grandes e pequenos, mulheres
senis e homens velhos, pudessem ter acesso a ele.
Quando um homem chamado Ibn Zuhayr de Damasco apelou a ele contra Taqi al-
Din, seu sobrinho, mandou que o trouxessem perante a corte de justiça. Isto foi
feito, mesmo o último sendo um cortesão do sultão, e quando a disputa entre eles
foi ouvida, (...) e Taqi al-Din foi um dos quais Saladino tinha mais querido e
respeitado, mas ele não o favoreceu na matéria de justiça.
Este episódio ilustra a concepção eqüanime da distribuição de Justiça feita
por Saladino. Nesta época em que a vontade do soberano tinha efeito de lei,
Yussef fez questão de se submeter à lei correta, sem proteger seus aliados ou
familiares perante as questões da Lei. Este procedimento garantia-lhe mais apoio
popular, principalmente dos comerciantes urbanos, cujos negócios pediam que
houvesse uma estabilidade jurídica e práticas legais definidas e justas.
27
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 23 – 24.
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105
O humor e a sociabilidade de Saladino também foram registradas por
Bahaheddin, o que nos mostra um governante humano e cordial, ao contrário de
tantos sultões caprichosos, violentos e passionais de épocas anteriores:
His cushion was sometimes trodden on when people crowded in on him to present
petitions, but he was not at all affected by that. One day my mule shied painfully
on his thigh, but he was smiling. On a windy and rainy day I preceded him into
Jerusalem, when it was very muddy. My mule spattered him with mud, so that it
ruined all he was wearing, but once again he was laughing. I wanted to drop behind
him on that account, but he would not let me
28
.
Sua montada era por vezes impedida quando o povo se aglomerava ao redor com
petições, mas ele não era afetado por nada disto. Um dia minha mula se esquivou
dos camelos, enquanto eu estava cavalgando em assistência e ele, e o pressionou
fortemente à coxa, mas ele estava sorrindo. Num dia de vento e chuva eu seguia
com ele em Jerusalém, que estava cheia de lama. Minha mula o sujou de lama, o
que arruinou tudo o que ele estava vestindo, mas uma vez mais ele estava rindo.
Eu queria me prostrar perante ele por causa disso, mas ele não me deixou.
Saladino perdoava facilmente as ofensas. Uma vez, durante o cerco a
Cesaréia, contra Ricardo da Inglaterra, um grupo de emires recusou-se a obedecer
suas ordens, alegando insuficiência de benefícios” (isto é, queriam uma parte
maior no butim). O sultão, furioso, lançou-se à batalha sem os emires e os seus
soldados. Após a batalha, as pessoas pensaram que alguns emires seriam
executados, no entanto,
Saladin´s son, al-Zahir related to me that on that day he was so fearful of him that
he did not dare fall into his sight, although he had charged deeply [into the enemy]
that day (…) There was not a single emir who did not shake with fear and believe
that he was about to be arrested and reprimanded. (…) I came into his presence just
after a lot of fruit had arrived from Damascus. He said, “Fetch the emirs so that
they can eat some”. My worries were dispelled and I went to seek the emirs, who
presented themselves very fearfully, but they found him in a happy and relaxed
mood which restored their confidence, trust and contentment. They left him
planning to break camp, just as if nothing at all had happened. Consider such
forbearance which is not met with times like these nor related of men of his
positioning in previous generations
29
.
O filho de Saladino, al-Zahir, relatou-me que naquele dia ele estava com tanto
medo dele que não ousava cair em seu olhar, mesmo ele tendo lançado-se
profundamente no inimigo aquele dia. (...) Não havia um único emir que não
tremesse de medo e acreditasse que estaria próximo de ser preso e recriminado.
(...) Eu fui à sua presença logo após a chegada de frutas de Damasco. Ele disse:
´Adentre os emires para que eles possam comer algumas´. Minhas preocupações
dissiparam-se e eu procurei os emires, que estavam bastante amedrontados, mas
eles o acharam num humor feliz e relaxado que restaurou as suas confianças e
28
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.34.
29
Ibid., p.p. 34-35.
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106
contentamento Eles o deixaram planejando atacar o inimigo, como se nada
houvesse acontecido. Considere tal tolerância, que não é encontrada em tempos
como este nem relacionada com homens de sua posição em gerações anteriores.
Tais gestos oscilavam entre a demonstração de fraqueza no comando militar
e a fama de magnanimidade que Saladino cultuou. Se o sultão castigasse os
emires, a base da confiança entre ele e seus subordinados poderia dissipar-se o
exército de Saladino dependia do apoio de sua causa e da boa vontade dos emires
e disposição dos soldados.
Na primeira parte de seu relato, Ibn Shaddad narra uma série de
acontecimentos pitorescos para demonstrar as virtudes do sultão. Muitas delas
operam em um horizonte conceitual religioso próximo ao cristão, virtudes como a
caridade, a generosidade e o desapego às coisas materiais. Sua hospitalidade era
tamanha que nenhum convidado seu jamais saía de sua presença sem um dom
(presente), uma prova de sua magnanimidade. Possuía virtudes também
intelectuais, pois o soberano é conhecedor do bom falar, das tradições históricas e
genealógicas do Islã, mestre em falcoaria e hipismo. Sempre honrou e patrocinou
sábios, escolas e artistas.
Sua generosidade era tanta que, segundo Ibn Shaddad, seus tesoureiros
escondiam sempre uma reserva dos cofres do Estado para qualquer emergência,
pois sabia que se o sultão soubesse de uma soma guardada, fatalmente a doaria ao
povo.
I have heard that the sultan departed from Jerusalem without keeping any of that
money, wich amounted to 220,000 dinars.
30
Eu ouvi dizer que o sultão deixou Jerusalém sem guardar nenhum daquele
dinheiro [o resgate dos cidadãos para a segurança em Tiro], que avolumava
220.000 dinares.
Velhos, viúvas, órfãos e ex-prisioneiros: a muitos destes o Estado garantia
um mínimo de subsistência, em ações assistencialistas diretamente mantidas por
Saladino, que se preocupava com o bem estar de seu povo.
When he took Acre, he released all the prisioners from their narrow confinement.
There were about 4,000 of them. To each of them he gave expenses to allow them
to reach their home town and their family.
31
30
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 78.
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107
Quando ele tomou Acre, ele libertou todos os prisioneiros de seu estreito
confinamento. Eram por volta de 4.000 deles. Para cada um ele pagou as custas
para permitir que eles alcançassem suas cidades e suas famílias.
Talvez a virtude mais impressionante na personalidade do sultão fosse a sua
tolerância. Saladino era perfeitamente capaz de se imaginar no lugar do Outro, de
partilhar com esse Outro seus sofrimentos; sabia que mesmo um inimigo possui
humanidade. Nesse sentido, esse reconhecimento de Si mesmo no espelho da
alteridade é a antítese da reconstrução terrorista / fundamentalista da lenda em
torno de Saladino. Sua capacidade de negociar com os príncipes cristãos
propiciava um clima de coexistência e comércio entre os estados cruzados e o
sultanato de Saladino que os cercava. Caravanas iam e viam, comerciantes
árabes, judeus e cristãos estavam presentes nas principais cidades, antigos pontos
de convergência de redes comerciais, seja lá quem fosse que as governasse.
Saladino recebe possíveis aliados cristãos como iguais e amigos:
When the lord of Sidon visited him at Nazareth, I saw how the sultan honoured him
and received him graciously, ate a meal with him and, in addition, proposed that he
should convert to Islam, telling him of some of its special excellencies and urging
him to take the step.
32
Quando o senhor de Sídon o visitou em Nazaré, eu vi como o sultão o honrou e o
recebeu graciosamente, comeu uma refeição com ele e, além disso, propôs que ele
devesse se converter ao Islã, discorrendo sobre suas qualidades especiais e o
urgindo a dar esse passo.
Um dia, quando Ibn Shaddad estava próximo a Saladino, quase na linha de
frente da batalha, um dos guardas surgiu com uma mulher saída da frente cristã.
Ela parecia muito nervosa, se lamentava e batia no peito, pedindo para ser
atendida pelo sultão. Ela disse:
Muslim thieves entered my tent yesterday and stole my daughter. I spent all night
until this morning pleading for help. I was told, ´Their prince is a merciful man.
We shall send you out to him to ask him for your daughter´. So they sent me to
you, and only from you will I learn of my daughter.
33
Ladrões muçulmanos entraram na minha tenda ontem e roubaram minha filha.
Gastei toda a noite até essa manhã implorando por ajuda. Foi dito a mim: ´O
príncipe deles é um homem misericordioso. Nós a enviaremos a ele para
31
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 38.
32
Ibid., p. 35.
33
Ibid., p. 37.
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108
perguntar sobre a sua filha´ Então eles me enviaram a você, e somente de você eu
vou saber da minha filha.
De acordo com Bahaheddin, Saladino, após derramar algumas gotas de
lágrima, mandou seus homens vasculharem o mercado de escravos em busca da
menina, que foi encontrada pouco mais de uma hora depois, e devolvida à mãe.
Certa vez um prisioneiro franj disse para o soberano:
´I was fearful before I saw this blessed face. After seeing him and coming before
him, I am convinced that I shall see nothing but good´ The sultan relented towards
him and graciously freed him.
´Eu estava com medo antes de ver este rosto abençoado. Depois de o ver e vir à
sua presença, eu estou convencido de que eu vejo nada além de bem´. O sultão foi
até ele e graciosamente o libertou
O sultão percebia que essa imagem de extrema generosidade lhe era útil
politicamente, ajudando a manter coeso todo o exército, que naqueles tempos
instáveis politicamente, a personalidade do soberano era um fator fundamental na
consolidação de uma dinastia, principalmente a de Saladino, sem grandes
tradições genealógicas, de origem curda (isto é, nem árabe, nem persa, nem turco,
as etnias dominantes no Oriente Médio), que necessitava sempre reforçar sua
legitimidade através da propaganda das virtudes e do esforço de Jihad. Saladino
não representava ele efetivamente encarnou o personagem que a Fortuna
determinou para si: um governante piedoso e heróico. Tais atos de clemência lhe
eram ditados tanto por uma inclinação interior natural para a compaixão como
pelo reforço de sua imagem como um líder único e original. Afinal, o
fortalecimento de seu poder favorecia a união dos muçulmanos contra os
cruzados, o projeto da Jihad que consumiu toda a sua vida.
A sensibilidade muçulmana predominante neste momento específico
indicava uma tendência a se aproximar do inimigo político e religioso. A divisão
política da região em reinos, feudos, principados e cidades independentes -
situação que perdurou até a unificação dos fragmentos islâmicos empreendida por
Saladino - propiciava um contato cultural mais intenso e produtivo entre cristãos
latinos e muçulmanos, que não se limitava mais à guerra, mas também florescia
no comércio, nas alianças diplomáticas e na inevitável vida em comum, na qual
sofriam as mesmas limitações impostas pela natureza.
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4.7
O caso Suhrawardi, ou os limites da tolerância no Tempo de
Saladino
He was full of reverence for the cult practices of the religion, believed in the
resurrection of the body and that the righteous would be rewarded with Paradise
and the evil-doers with Hellfire, accepted the truth of the provisions contained in
the Holy Law, with a heart at ease with that, and hated the philosophers, those that
denied God´s attributes, the materialists and those who stubbornly rejected the
Holy Law. He once ordered his son, al-Malik al-Zahir, the lord of Aleppo, to
execute a young man that came forward, called al-Suhrawardi, of whom it was said
that he rejected the Holy Law and declared it invalid.
34
Ele era cheio de reverência para as práticas do culto da religião, acreditava na
ressurreição do corpo e que os justos seriam recompensados no Paraíso e os
malfeitores com o fogo do Inferno, aceitava a verdade das previsões contidas na
Lei Sagrada, com o coração leve, e odiava os filósofos, os que negavam os
atributos de Deus, os materialistas e aqueles que estupidamente rejeitam a Lei
Sagrada. Ele uma vez ordenou seu filho, al-Malik al Zahir, senhor de Alepo,
executar um jovem que apareceu, chamado al-Suhrawardi, de quem era dito que
rejeitava a Lei Sagrada e declarava ela inválida.
O caso da condenação à morte de Sihab al-Din Suhrawardi, al-Maqtul, é
interessante e ilustra os horizontes mentais daquela época, e os limites políticos
impostos a estes horizontes. Saladino, como sultão, detinha a incumbência de
executar a Lei, conforme originada por Mohammed e ampliada e interpretada
pelos cádis (juízes) e ulemás (doutores da religião) de forma ortodoxa isto é, a
Sunna. Pois um dos piores crimes que um muçulmano pode cometer é o da
apostasia (renegação da ), que é precisamente o limite da tolerância do Islã
clássico.
Aos “povos do livro” judeus, cristãos e, por extensão, os zoroastristas
persas – era garantido o direito de manter e professar a sua fé. Formavam
normalmente bairros próprios nas cidades islâmicas. A sua conversão não era,
como poderíamos pensar, incentivada pelos governantes, pois, inicialmente,
somente os Dimmis comunidades protegidas” pagavam impostos enquanto os
muçulmanos não. Uma conversão em massa poderia ser a falência das finanças
de uma cidade.
34
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 20.
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110
Em relação aos pagãos (politeístas da África ou xamânicos / animistas das
estepes asiáticas), o mandamento da Lei era a conversão forçada ou a espada;
neste caso, os muçulmanos deveriam esforçar-se para mostrar aos pagãos a
verdade religiosa e as vantagens da nova fé mesmo nesse caso a conversão
deveria dar-se por adesão voluntária, bastando o convertido repetir a profissão de
básica lā 'ilaha 'illāl-lāhu Muhammadur rasūlu llāhi (Não outro deus além
de Deus e Maomé é o mensageiro de Deus).
para os muçulmanos, convertidos ou natos (pois considerava-se que
filhos de muçulmanos são automaticamente muçulmanos; e para um muçulmanos
casar-se com um não-crente, este precisava antes converter-se ao Islã), não havia
este espaço de liberdade de escolha religiosa. Um muçulmano jamais deveria
renunciar à sua religião, era uma falta grave cuja punição era o castigo de Deus e
dos homens a morte e o sofrimento no além-vida. Havia diversas tendências
religiosas dentro do Islã, como as múltiplas seitas xiitas e as comunidades sufis,
mas todas enfatizavam um monoteísmo maometano mais ou menos rígido.
Foram sobretudo alguns filósofos heterodoxos que mais se aproximaram da
fronteira entre investigações teológica e filosófica e do rompimento com os
cânones do islamismo. Suhrawardi, segundo Seyyed Hossein Nasr,
(...) buscou primeiramente reformar a filosofia peripatética aviceniana
35
predominante em sua época por meio do retorno aos fundamentos filosóficos
estabelecidos pelos ´Antigos´, a tradição dos filósofos divinos anteriores a
Aristóteles – especialmente Platão. Em segundo lugar, ele buscou incorporar a
mística à filosofia, algo que acreditava que estivesse no cerne da filosofia dos
Antigos. (...) Suhrawardi confessa ter sido “um zeloso defensor do caminho
peripatético (...) e grandemente inclinado para ele” antes de “engajar-se em
disciplinas místicas e no serviço para aqueles que vêem
No Islã (...), as doutrinas filosóficas de Ibn Sina foram interpretadas
metafisicamente pelos israqis (iluminacionistas) e desse modo transformadas em
uma doutrina que, sendo composta de filosofia peripatética, idéias herméticas,
antigas idéias iranianas e doutrinas sufis, serviram ao propósito de guiar a razão
desde o erro até a visão de verdade, e de preparar a alma para a catarse do mundo
dos sentidos, culminando em iluminação e gnose
36
35
Em outras palavras, a interpretação da obra de Aristóteles desenvolvida por Ibn Sina (Avicena
980 – 1037), que influenciou oriente e ocidente.
36
Cf. NASR, S.H., An Introduction to Islamic Cosmological Doctrines; cf. Edrisi Fernandes Sihab
al-Din Suhrawardi, al Maqtul.
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111
De acordo com al-Sahrazuri, discípulo de Suhrawardi, a filosofia da
iluminação é como
(...) a sabedoria baseada na iluminação, que é revelação, ou filosofia dos orientais,
isto é, dos persas, o que é a mesma coisa, pois sua filosofia baseia-se em revelação
e intuição mística (...) à manifestação das luzes inteligíveis, de seus mesmos
princípios (=seus raios), e sua efusão sobre as almas perfeccionadas durante sua
separação da matéria corporal
37
.
Em sua filosofia da Luz, Suhrawardi considera que a verdade “advinda da
Luz” possuiria uma linhagem de seus reveladores, linhagem totalmente
heterodoxa para os padrões sunitas dominantes no tempo de Saladino. Os
portadores da Luz seriam, por exemplo, os sábios egípcios (Seth e Hermes
Trimegisto), gregos (Pitágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles), pitagóricos
islâmicos, “caldeus orientais” (indianos como o Buda, e também chineses) e
iranianos (o imperador Cosroés). Todos estes teriam sido “depositários da Glória
divina, que dissipa as trevas da ilusão do ser e encaminha o homem à sua origem
divina”. O Islã sunita ortodoxo, no entanto, reconhece outros profetas, de
linhagem bíblica: Abraão, Moisés, Jesus e Mohammed.
Henry Corbin
38
sintetiza o pensamento de Suhrawardi como um
“platonismo neo-zoroastriano”, que o filosofo ressuscitara elementos da antiga
religião persa, como a sua hierarquia de anjos. Mas seu ecletismo religioso e
filosófico ultrapassa qualquer classificação rígida. Os ulemás de Alepo, que
pediram sua cabeça a Saladino, consideravam-no um defensor do imanato
ismaelita, pois apregoava que o divino poderia estar oculto, aproximando-o da
doutrina dos imãs ocultos do xiismo. Naquele momento, esta interpretação era
potencialmente perigosa; o “Velho da Montanha”, Rashid al-Din Sinan, chefe da
seita xiita ismaelita dos Assassinos, era inimigo declarado de Saladino, atentando
contra a sua vida em duas ocasiões.
Nominalmente, Suhrawardi vinculava-se ao sufismo shafiita
39
, mas ao
mesmo tempo escrevia sobre idéias alternativas sobre a reencarnação, atribuídas
ao Buda e aos “orientais”. A idéia de reencarnação conforme adotada pelo
budismo expressa uma crença totalmente contrária à doutrina islâmica, e é
37
Cf Al-SAHRAZURI, Sarh Hikmat al-Israq (Comentário sobre a Filosofia Iluminativa, p. 16.
38
Cf CORBIN, H., The Man of Light in Iranian Sufism.
39
Corrente mística do Islã, aceita pela ortodoxia sunita.
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112
igualmente refutada pelos filósofos aristotélicos. Uma alma sofreria múltiplas
reencarnações, num ciclo cármico que deveria ser cumprido até a evolução final
do espírito, que se torna um com a totalidade. Suhrawardi parece dar certa razão
argumentativa aos “orientais”, o que provocou a ira dos ulemás sunitas,
preocupados com a integridade de sua fé. O Islã compreende esta questão de
modo muito diferente, seguindo de perto o conceito cristão: após a vida na Terra,
as almas vão para um local de descanso até o julgamento final por Deus e a
separação entre os justos e os não-justos.
Iluminação através do próprio esforço; anjos zoroastrianos; doutrinas
budistas sobre a reencarnação; iluminados gregos, persas e hindus e filosofia
grega o caminho recomendado por Suhrawardi era bastante heterodoxo para seu
lugar e sua época, e possibilitou muitas acusações de abandono da islâmica,
apostasia, delito que se pagava com a própria vida. Apesar de se considerar um
muçulmano de pleno direito, suas doutrinas realmente afastavam-se da essência
desta fé. Os filósofos, mesmo quando afastavam-se dissimuladamente do Islã,
eram tolerados, pois o âmbito de divulgação de suas idéias restringiam-se a um
estreito círculo de doutos e letrados.
Talvez o maior crime de Suhrawardi tenha sido político: quando o filósofo
assentou-se em Alepo, na Síria, o príncipe al-Zahir al-Din Gazi, governador desta
cidade e filho de Saladino, tornou-se seu discípulo, o que desagradou aos ulemás e
à elite sunita da cidade pela extravagância de suas crenças. Com toda a Corte, em
Alepo e em Damasco conspirando contra o filósofo, que se tornara influente com
seu filho, Saladino optou por executar a lei islâmica: neste caso, por heresia
religiosa e corrupção de um príncipe. Assim foi Suhrawardi condenado a morte –
e sua história não mereceu mais que três linhas no relato de Ibn Shaddad.
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113
Figura 4 – Exemplo de um filósofo aceito na cultura medieval islâmica Islã: Sócrates (séc
V a.C.) aparece aqui ensinando seus discípulos. As figuras da Grécia clássica são
representadas ao estilo muçulmano, com turbantes e vestes orientais. Iluminura
medieval de AL-MUBASHSHIR, Mujtar al-hikam wa-mahasin al-kalim (Aforismos e
Discursos). Síria, início século XIII. Fonte: WALTHER, I e WOLF, N, Codices illustres.
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114
4.8
Saladino e Reinaldo de Châtillon
Francis Wolff, no ensaio “Quem é Bárbaro?”, chega à conclusão de que toda
cultura pode conter em si a civilização ou a barbárie. Nos dias de hoje, a barbárie
seria expressa pela incapacidade de tolerar o Outro. Em sua definição:
O bárbaro é aquele que é (...) incapaz de pensar tanto a universalidade humana
como a diversidade indefinida das culturas. Ele consegue pensar em termos
dicotômicos, o Bem e o Mal, o próprio e o estrangeiro, nós e eles, mesmo que
chamem de “civilização” (aqui, eu, meus deuses) e “barbárie” (lá, o outro, o
inimigo de Deus, o Grande Satã). Sim, existe barbárie, e não porque existem povos
ou culturas que sejam bárbaros por natureza, mas porque existe um modo de pensar
que é incapaz do uno e do múltiplo. E existem, por conseguinte, práticas bárbaras,
às vezes povos, ou sociedades, religiões, movimentos políticos que caem na
barbárie. Sim, definitivamente, o verdadeiro bárbaro é aquele que acredita na
barbárie do Outro. E aqueles que reconhecem que o homem se diz em vários
sentidos podem se dizer civilizados.
40
Podemos considerar, no contexto das cruzadas, que havia duas atitudes
básicas entre os oponentes: a primeira, podemos chamá-la de civilizada, procurava
contemporizar e negociar com o oponente, reconhecendo algum elemento humano
comum que exista entre povos de cultura e religião diferentes; a segunda,
podemos denominar de atitude bárbara, prega a extinção e destruição total do
inimigo, sem nenhuma concessão ou reconhecimento de sua alteridade. Vejamos
agora o caso em que Saladino representa a atitude civilizada e um príncipe cristão,
Reinaldo de Châtillon, a barbárie, num sentido de acordo com a reflexão
apresentada por Francis Wolff.
Saladino passou à ofensiva total contra o Reino de Jerusalém somente
quando a trégua foi rompida pelos cristãos. Sob o comando do infame Brins
Arnat, o príncipe Reinaldo de Châtillon, cavaleiros cruzados saquearam caravanas
e aldeias árabes, e o débil rei Guy de Lusignan mal tinha forças para deter esse
partido, quando o os apoiava em segredo. Esse príncipe cristão era um dos
raros casos em que Saladino quebrou sua regra, jurando matá-lo pessoalmente.
Segundo Ibn Shaddad:
40
WOLFF, F., "Quem é Bárbaro". Separata de NOVAES, A. (Org.), Civilização e Barbárie, p.
42.
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115
This accursed Reynald was a monstrous infidel and terrible opressor, through
whose land a caravan from Egypt (God defend it) had passed when there was a
truce between the Muslims and the Franks. He seized it treacherously, maltreated
and tortured its members and held them in dungeons and close confinement. They
reminded him of the truce, but he replied, ´Tell your Muhammad to release you´.
41
Esse amaldiçoado Reinaldo era um monstro infiel e terrível opressor, cujo
território uma caravana atravessou quando havia uma trégua entre os
muçulmanos e os franj. Ele a atacou ardilosamente, maltratou e torturou seus
membros e os manteve em masmorras, em confinamento fechado. Eles o
lembraram da trégua, mas ele respondeu, ´Diga para vosso Maomé vos libertar´.
Podemos observar na ironia do príncipe o seu desprezo aos muçulmanos.
Seguia uma tradição teológica que dizia que um juramento feito a um infiel não
tinha validade diante de Deus e que, portanto, podia ser quebrado.
Ibn al-Athir nos fornece um retrato mais preciso deste príncipe:
Prince Arnat of al-Kerak was one of the chief Frankish barons and one of the most
arrogant; a violent and most dangerous enemy of Islam. Saladin knew this and on
several occasions attacked him and sent raiding parties into his territories. Arnat
humbled himself and swore to observe a truce which would allow caravans to
move freely between Syria end Egypt. In 582 / 1186-7, however, a great caravan
passed close to his territory, richly laden and accompanied by a great host of
people and a large armed escort. This infamous man broke the truce and attacked
them, captured the whole caravan, seized the body, animals and weapons, and
threw all his prisioners into dungeons. Saladin sent letters rebuking him with
reprisals if he did not release the prisioners and their possessions. The Count
persistently refused to comply. Saladin vowed that if ever he laid hands on him he
would kill him, and what followed will be recounted, God willing.
42
Príncipe Arnat de al-Kerak foi um dos principais barões franj e um dos mais
arrogantes; um perigoso e violento inimigo do Islã. Saladino sabia disso e em
várias ocasiões o atacou e enviou patrulhas a seus territórios. Arnat se humilhou
e jurou observar uma trégua que permitiria às caravanas moverem-se livremente
da Síria ao Egito. Em 1186-1187, no entanto, uma grande caravana passou
próximo a seu território, ricamente carregada e acompanhada por uma grande
multidão de pessoas e uma escolta armada. Esse homem infame quebrou a trégua
e os atacou, capturando a caravana inteira, confiscou os corpos, animais e armas,
e jogou todos os seus prisioneiros nas masmorras. Saladino enviou cartas
respondendo com represálias se ele não soltasse os prisioneiros e suas possessões.
O conde persistentemente recusou-se a obedecer. Saladino jurou que se ele alguma
vez deitasse as mãos nele ele iria matá-lo, e o que aconteceu será relatado, se
Deus o permitir.
Reinaldo de Châtillon representa na lenda de Saladino o seu contrário.
Guerreiro bárbaro e cruel, defendia que se atacasse incondicionalmente os
41
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin. p. 37.
42
GABRIELLI, F., Arab Historians of the Crusades, p. 116.
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muçulmanos, o tempo todo. Sua tese era a de que um pacto, um acordo ou uma
trégua com um infiel não tinha validade jurídica nem religiosa. Enquanto os
sacerdotes discutiam as minúcias teológicas do caso, o Senhor da Transjordânia
saqueava e pilhava, tendo em certa ocasião liderado uma excursão até Meca,
distante oitocentos quilômetros dali.
Após a batalha de Hittin (1188), quando a maior parte do exército cruzado
foi esmagado por Saladino, o sultão finalmente teve a chance de fazer justiça. A
batalha de Hittin foi uma das mais decisivas da história das Cruzadas, e marca o
início da decadência da presença franca no Oriente. O entusiasmo guerreiro e
religioso do exército cristão não foi páreo para a superioridade tática e numérica
de Saladino. Oitocentos anos depois, na comemoração do aniversário desta
batalha, em 1988, o ex-presidente da Síria, Hafez al-Assad, nos resume a atitude
oficial do mundo árabe em relação à memória deste evento e de seu grande
protagonista:
Hattin não foi apenas uma batalha. Esse combate encarna a da nação árabe em
seu futuro. Hattin volta hoje em dia à memória coletiva de nosso povo porque cada
árabe sofre em sua carne as agressões sofridas contra sua terra, sua fé, seus valores.
Há diversas similaridades entre a ocupação sionista, sua natureza e seus métodos, e
a ocupação cruzada. Saladino, devemos lembrar, é mais do que um grande homem.
Ele exprime nossa vontade renitente de luta que, a cada geração, se reveste de um
novo conteúdo.
43
Após a vitória, o rei Guy e Reinaldo são levados à tenda do Sultão.
Segundo o Ibn Shaddad:
Prince Reynald, the lord of Kerak, came before him with the king of the Franks of
the coast, after both had been taken prisioner at the battle of Hattin during the year
583 [1188]. The battle is famous and will be described in its proper place, God
willing. He had given orders for both to be brought before him. (…) He summoned
him with the king. The king complained of thirst, so the sultan had a glass of
sherbet brought for him, from which he drank. Then Reynald took it, at which the
sultan said to the dragoman, ´Say to the king, you are the one who gave him the
drink. I give him no drink nor any of my food´. What he meant was ´If anyone eats
my food, chivalry would demand that I harm him not´. Later he struck off his head
with his own hand to fulfil his vow.
44
43
ASSAD, H., citado em MICHEAU, F., Saladino, o Cruzado do Islã. Revista História Viva
Biografias – Os Grandes Nomes da Humanidade, edição no 2. São Paulo: Duetto, 2008.
44
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 37 – 38.
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117
Príncipe Reinaldo, o senhor de Kerak, veio diante dele com o rei dos franj da costa
[Rei Guy de Jerusalém], após ambos terem sido feitos prisioneiros na batalha de
Hittin durante o ano 583 [1188]. A batalha é famosa e será descrita em seu lugar
apropriado, Deus queira. Ele deu ordens para que ambos fossem trazidos até ele.
(...)Ele o convocou junto com o rei. O rei reclamava de sede, então o sultão lhe
deu uma taça de gelo, da qual ele bebeu. Então Reinaldo a pegou, no que o sultão
disse para o tradutor, ´Diga ao rei – Você é que deu a ele a bebida. Eu não lhe dei
nenhuma bebida nem nenhuma de minha comida´ O que ele queria dizer era ´Se
alguém come a minha comida, o cavalheirismo demanda que eu não o possa
ferir´. Depois ele decepou sua cabeça com suas próprias mãos para cumprir seu
voto.
Ibn al-Athir também nos relata sua versão deste acontecimento:
When all the prisioners had been taken Saladin went to his tent and sent for the
King of the Franks and Prince Arnat of Karak. He had the King seated beside him
and as he was half-dead with thirst gave him iced water to drink. The king drank,
and handed the rest to the Prince, who also drank. Saladin said: ´This godless man
did not have my permission to drink, and will not save his life in that way´. He
turned on the Prince, casting his crimes in his teeth and enumerating his sins. Then
he rose and with his own hand cut off the man´s head. ´Twice´, he said, ´I have
sworn to kill that man when I had him in my power: once when he tried to attack
Mecca and Medina, and again when he broke out the truce to capture the
caravan´.
45
Quando todos os prisioneiros foram tomados Saladino foi para sua tenda e
mandou chamar o rei dos franj e o príncipe Renaud de Karak. Ele fez o rei sentar
ao seu lado, e como ele estava morrendo de sede deu a ele água gelada para
beber. O rei bebeu, e passou o resto para o príncipe, que também bebeu. Saladino
disse: ´Esse homem sem Deus não teve minha permissão para beber, e não vai
salvar sua vida deste jeito´. Ele virou-se para o príncipe, jogando seus crimes na
cara e enumerando seus pecados. Então ele levantou-se e com as próprias mãos
cortou a cabeça do homem. ´Duas vezes´, ele disse, ´eu jurei matar este homem
quando eu o tivesse sob meu poder: uma vez quando ele tentou atacar Meca e
Medina, e novamente quando ele quebrou a trégua para capturar a caravana´.
Vejamos ainda a versão de por Imadeddin al-Asfahani, outro conselheiro do
sultão Saladino.
Salaheddin convidou o rei a se sentar perto dele, e quando Arnat (Reinaldo de
Châtillon) entrou, por sua vez, ele o instalou perto do rei e o lembrou de seus
delitos: ´Quantas vezes juraste depois violaste teus juramentos, quantas vezes
assinaste acordos que não respeitaste!´ Arnat respondeu através do intérprete:
´Todos os reis sempre se comportaram assim. Nada fiz além disso.´ Nesse
entrementes, Guy arquejava de sede, meneava a cabeça como se estivesse bêbado,
e seu rosto traía um grande medo. Salaheddin dirigiu-lhe palavras tranqüilizadoras
e mandou buscar água fria para oferecer-lhe. O rei bebeu, dando o resto a Arnat,
que por sua vez saciou a sua sede. O sultão disse então a Guy: “´Não pediste minha
permissão entes de lhe dares de beber. Isso, pois, não me obriga a conceder-lhe
graça.´ Depois de ter pronunciado essas palavras, o sultão saiu, montou a cavalo,
45
GABRIELI, F., Arab Historians of the Crusades, p.p. 123 – 124.
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118
depois se afastou, deixando os cativos expostos ao terror. Passou em revista as
tropas que retornavam, depois voltou a sua tenda. Ali, mandou buscar Arnat,
avançou até ele e o feriu entre o pescoço e a omoplata. Quando Arnat caiu no chão,
cortaram-lhe a cabeça, depois arrastaram seu corpo pelos pés diante do rei, que
começou a tremer. Vendo-o assim atormentado, o sultão lhe disse num tom
tranqüilizador: ´Este homem foi morto em razão de sua perfídia.
46
Interessante notarmos que enquanto divergências acerca dos detalhes, as
três narrativas referem-se aos mesmos elementos: a clemência em relação ao rei, a
submissão deste ao dar a taça ao príncipe, e o cumprimento do juramento de
Saladino. Muitas vezes esses relatos foram escritos anos após os acontecimentos,
o que leva, naturalmente, a certas imprecisões e variações na narrativa.
Esse episódio é bastante revelador da lógica que rege a moral de Saladino.
Em seu entendimento, o rei Guy, apesar de toda a sua fraqueza, continuava sendo
o soberano legítimo e líder dos franj. Os franj seriam um povo atrasado (nos
costumes) e equivocado (em relação à religião), mas dotados de necessidades e
sofrimentos equivalentes aos dos muçulmanos. Sua o-condenação e posterior
libertação do rei simbolizam o respeito de Saladino diante de seus inimigos. Ele
provavelmente tinha consciência de que muitos dos ocidentais apenas seguiam a
fé de seus pais e de seus países, muitos com uma confiança inabalável que chega a
provocar a admiração do sultão. O inimigo não é um monstro, inumano, bestial
ou selvagem; os franj, nesta perspectiva, são, sobretudo, enganados
religiosamente. Saladino, dentro dos limites de sua própria época, intui que há um
princípio humanitário comum entre as duas partes em beligerância. Nem sempre
a religião correta determina uma opção moral correta, e nesse sentido, na
perspectiva de Saladino, é perfeitamente possível que um bom cristão se mostre
mais virtuoso que um muçulmano pérfido, apesar de seu erro religioso original.
A execução de Reinaldo, por sua vez, revela a compreensão do caráter
bárbaro deste príncipe por parte do sultão. Incapaz de qualquer conciliação ou
negociação, via os muçulmanos como menos de que humanos, e a Terra Santa era
o seu território de conquista e rapinagem. Sua selvageria e deslealdade eram
proporcionais a sua alta estirpe, sua figura era o estereótipo de um povo que os
sábios muçulmanos chamavam de rbaros, atrasados e desconhecedores das
46
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 181. Imadeddin al-Isfahani, conselheiro
do sultão Saladino.
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119
regras elementares de ética social. Por isso, naquele estágio de beligerância, era o
dever de Saladino eliminá-lo. Ao dar sua taça cheia de água para o rei franj matar
a sua sede, Saladino mostrava, simbolicamente, que ele era seu hóspede e,
portanto, viveria. Saladino sempre fora um profundo respeitador das leis da
hospitalidade e do cavalheirismo. Ao mesmo tempo, ele afirma que a taça não era
para Reinaldo, um guerreiro que cometeu a ão mais ímpia de todas, a de atacar
o coração sagrado das terras islâmicas Meca e Medina, distantes mais de
trezentos quilômetros de Jerusalém e de qualquer território franj. O costume,
milenar no Oriente, do dom e contra-dom é constitutivo das relações entre homens
que, apesar de todas as diferenças, eram de uma classe social semelhante: deres
militares, governamentais e proprietários de terras e rebanhos. A taça com água
gelada
47
encarna em si o simbolismo de uma tradição hospitaleira que remonta a
uma época anterior à do Islã, das relações de guerra e paz entre os beduínos dos
desertos da Arábia.
Valores que a civilização moderna se orgulha atualmente, como a tolerância
e o reconhecimento do Outro, não são exclusivos da contemporaneidade, pois são
possíveis de serem encontrados em outros espaços e temporalidades, como no Islã
medieval. Civilização e barbárie deixam, portanto, nesta perspectiva, de serem
categorias exclusivamente aplicadas a um período ou a uma coletividade, para
serem contextualizadas e matizadas, naquilo que cada sociedade ou cultura possui
de civilizado ou de rbaro. O reconhecimento de que existe um elemento
humano em comum entre cristãos e muçulmanos, mesmo no inimigo, é um dos
temas presentes nos relatos sobre a vida de Saladino. Por outro lado, uma
percepção, entre os letrados árabes, de sua superioridade cultural e técnica,
diferença que se mostra mais aguda, por exemplo, na comparação entre a
medicina dos cruzados, com seus métodos rudes e supersticiosos e a sofisticada
medicina árabe, herdeira dos ensinamentos da Antigüidade clássica.
47
Como ainda não existia a tecnologia moderna de refrigeração, o gelo usado para a fabricação do
sherbet era trazido dos altos picos nevados das montanhas libanesas, e armazenados durante o
inverno para a produção desta bebida e de água gelada.
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120
4.9
A conquista de Jerusalém, al-Quds
Provavelmente nenhuma outra cidade do mundo possui relevância e
significado de tão longo alcance, no tempo e no espaço. Jerusalém, cidade
sagrada para judeus, cristão e muçulmanos, vem sendo utilizada como propaganda
política muito tempo. Pessoas e fatos do passado são esquecidos e mais tarde
relembrados com força, para legitimar uma ação política ou militar. Iremos
relembrar alguns momentos da história desta cidade, evidenciando o período
medieval e fatos cuja memória estava presente com força durante o tempo de
Saladino.
A história das lutas e disputas militares e simbólicas em torno desta cidade é
complexa e milenar, desde que o rei Davi, por volta do ano 1000 a.C., conquistou-
a dos jebusitas
48
. Os judeus foram muitas vezes expulsos, mas sempre retornaram
ao seu centro espiritual. No ano 70 d.C., no entanto, o templo judaico foi
definitivamente destruído pelos romanos e os judeus expulsos na diáspora.
Somente com a cristianização do Império Romano, a partir do século IV d.C., a
cidade voltou a ter uma importância simbólica relevante para a política, e passou a
integrar a mitologia cristã que se formava neste período. A mãe do Imperador
Constantino, Santa Helena, descobriu e incentivou a peregrinação a muitos locais
sagrados do cristianismo, como o túmulo de Cristo (sobre o qual seria erguida a
Igreja do Santo Sepulcro) e a pedra do Gólgota. Jerusalém passou, assim, a ser o
centro da espiritualidade cristã. Muitas representações cristãs do mundo, no
período medieval, a mostram no centro da Terra e do universo. Durante
aproximadamente trezentos anos, a cidade viveu na paz proporcionada pelo
império de Roma e sua sucessora, Constantinopla.
No culo VII, no entanto, o enfraquecimento de Bizâncio e a ascensão dos
persas sassânidas a leste fez com que o controle da região fosse ferozmente
disputado entre as duas potências da época. A guerra ganhou contornos
religiosos, pois os bizantinos eram cristãos, enquanto os persas professavam a
religião zoroastra com vigor renovado. Em 614, o exército persa invadiu a
48
Uma tribo dos povos filisteus que originalmente habitava a região ao redor de Jerusalém.
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121
Palestina, saqueando os campos e incendiando as igrejas. Em Jerusalém, muitos
cristãos foram mortos 60 mil
49
e escravizados 45 mil, enquanto os judeus,
tradicionais aliados dos persas
50
, passam a controlar a cidade - fato que gerou
ressentimentos entre os cristãos. As relíquias mais sagradas da cidade a Santa
Cruz e as relíquias da Paixão são descobertas e levadas como presente para a
rainha persa nestoriana
51
Meriem.
Quando o imperador bizantino Heráclio organizou o seu exército e assumiu
a ofensiva na guerra, lançou-se como um guerreiro da fé, e o conflito assumiu ares
de guerra santa contra as forças das trevas e dos adoradores do fogo. Guilherme
de Tiro, cinco séculos depois, incluiu esses episódios como a primeira das
Cruzadas.
Em 629, as províncias orientais bizantinas são restauradas e Jerusalém
retorna ao controle cristão os judeus, em represália pela colaboração com os
persas, são expulsos e obrigados ao batismo forçado. O persa Cosroé foi
morto em batalha e as relíquias sagradas devolvidas. O imperador preparou então
uma grande procissão para comemorar o fato e devolver a Santa Cruz, em
Jerusalém. No entanto, para muitos a restauração bizantina fora desastrosa.
Heráclio e seus sucessores tentam reunificar as seitas cristãs para o seio da
ortodoxia, o que lhe provocou oposição e animosidade em várias comunidades -
monofisistas, nestorianos, e maronitas. Neste mesmo ano da reconquista, segundo
a tradição árabe, Heráclio recebeu uma carta de um chefe (Mohammed), que
anunciava-se como o Profeta de Deus e convidava o Imperador a juntar-se à sua
fé.
A presença da nova religião muçulmana na Sírio-Palestina o tardou. O
califa Omar, segundo sucessor de Maomé, foi o líder responsável pelo movimento
expansionista dos exércitos árabes. Em 635, a Síria e a Palestina encontravam-
se estavam sob o seu controle. Os cristãos de diversas seitas não-ortodoxas e os
judeus apóiam os árabes, pois muito descontentam-se com o que consideram o
49
Cf. RUNCIMAN, S., História das Cruzadas.
50
No século VI a.C., o rei persa Ciro, o Grande, ao derrotar a Babilônia libertou os judeus e
devolveu-lhes Jerusalém e a terra de Israel e Judá.
51
Nestorianismo: vertente do cristianismo que se difundiu para a Pérsia e China durante os tempos
medievais.
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despotismo do governo grego. Segundo a tradição da época, a perda dessas
províncias era uma punição divina para Heráclio, que pecava por praticar incesto
com sua sobrinha. Jerusalém, sob cerco por todos os lados, preparou-se para a
defesa sob a liderança do Patriarca Sofrônio, enquanto os exércitos árabes
invadiam simultaneamente a Pérsia zoroastra e o Egito cristão-copta.
Sofrônio negociou a rendição da cidade com Omar. Em 638, entrou com
um camelo branco na cidade (símbolo de paz), enquanto o Patriarca, montado
num asno (imitando Jesus), ia ao seu encontro. Omar respeitou a vida e os bens
dos habitantes da cidade. Em visita aos recintos sagrados da cidade, Omar
recusou-se a orar diante do Santo Sepulcro, por respeito e com receio que os
muçulmanos reivindicassem o local posteriormente; por isso, vai até o Monte do
Templo rezar, no sítio onde existe, até hoje, a mesquita que leva o seu nome e o
Domo da Rocha. A conquista de Omar foi a mais pacífica da história de
Jerusalém, e a benevolência e eqüidade de seu governo foram proverbiais. Como
determinava os preceitos muçulmanos, todas as comunidades dos povos do livro
tiveram direitos e liberdades reconhecidas pela regra das comunidades protegidas,
discutida anteriormente. No século VII, iniciou-se uma tradição
exclusivamente muçulmana para a cidade ela teria sido o local em que o profeta
Mohammed teria ascendido aos céus. Segundo esta tradição, Mohammed (que
faleceu em Meca), teria feito uma viagem montado em um animal alado,
acompanhado do anjo Gabriel
52
. A partir deste fato, a cidade tornou-se sagrada
também para os muçulmanos, que passam a chamar-lhe de al-Quds (“A Santa”), o
terceiro lugar sagrado do Islã (além de Meca e Medina).
No final do século XI, Jerusalém fazia parte da região fronteiriça do
Califado Fatímida, baseado no Cairo. No ano da invasão da Primeira Cruzada,
encontrava-se defendida por apenas uma pequena guarnição egípcia. Seu chefe,
Iftikhar, aguardou sem esperança os reforços do Cairo, mas acabou por capitular a
cidade em troca de sua vida e da dos seus homens. Enquanto os epcios fugiam,
os cavaleiros franj massacravam os habitantes da cidade. Os muçulmanos
refugiados em al-Aqsa foram mortos (70 mil, segundo al-Qalanissi)
53
e os judeus
queimados dentro de sua sinagoga. Os cristãos orientais são expulsos da Igreja do
52
Cf. ARMSTRONG, K., Jerusalém: Uma Cidade, Três Religiões.
53
Cf. MAALOUF, A., As Cruzadas Vistas pelos Árabes.
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Santo Sepulcro – gregos, georgianos, armênios, coptas e sírios. Os sacerdotes que
guardavam a Santa Cruz foram torturados e a relíquia lhes fora tomada. Os
poucos sobreviventes fogem, liderados pelo Cádi Abu-Saad al-Harawi, que leva a
multidão para Bagdá e pede a proteção do Califa. Notícias da violência e
brutalidade dos cruzados percorreram o mundo islâmico, chocado e sem ação
perante estes perturbadores acontecimentos.
A retomada de Jerusalém passa a ser, portanto, com Nureddin e Saladino,
um dos objetivos centrais da Jihad. Sua conquista, no ano de 1190, representou o
auge da carreira militar e política de Saladino, e foi o feito que mais projetou a
imagem do sultão para as gerações posteriores. O retorno do Islã à cidade santa
foi o motivo gerador das expedições da Terceira Cruzada, na qual os reis de
Inglaterra, França e Germânia juraram retomar a cidade e derrotar Saladino.
A tomada de Jerusalém por Saladino foi a conseqüência do
desmantelamento do exército cruzado durante a batalha de Hittin, mas a cidade
era bem fortificada e possuía ainda algumas guarnições e numerosa população. O
defensor da cidade, Balian de Ibelin, era conhecido de Saladino, um nobre que
escapara à derrota de Hittin e se refugiara em Tiro. Estando a sua mulher em
Jerusalém, pedira autorização a Saladino para ir ao seu encontro, prometendo não
portar armas e passar uma noite na cidade santa. Mas, quando chegou lá, o
povo suplicou que ele ficasse e comandasse a defesa da cidade. Mas Balian não
queria trair a promessa feita a Saladino, e perguntou ao próprio o que ele deveria
fazer. O sultão em sua generosidade o desobrigou do compromisso e o liberou
para que pudesse cumprir seu dever - e ainda: Saladino ofereceu uma escolta para
levar a esposa de Balian para Tiro, longe da guerra. A razões políticas e militares
não eram empecilho para as ações cavalheirescas de Saladino.
A defesa de Jerusalém era inútil. Mesmo assim, Balian conseguiu negociar
com o sultão, dizendo que se os cristãos o fossem poupados, iriam matar todas
as mulheres e crianças da cidade, incendiar todas as casas e destruir todas as
riquezas, demolir os lugares sagrados do Islã, matar os prisioneiros islâmicos,
exterminar as montarias e animas e finalmente iriam para a batalha sem nada mais
a perder. Muitos emires de Saladino pressionavam o sultão para que liberasse o
saque, a matança e escravização, pois a memória da conquista cruzada, cem anos
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antes, insuflavam-lhes idéias de vingança. Segundo Ibn al-Athir, Balian havia
dito:
Know, O Sultan, that there are very many of us in this city, God alone knows how
many (...) But if we see that death is inevitable, then by God we shall kill our
children and our wives, burn our possessions, so as not to leave you with a dinar or
drachma or a single man or woman to enslave. When this is done, we shall pull
down the Sanctuary of the Rock and the Masjid al-Aqsa and other sacred places,
slaughtering the Muslim prisioner we hold 5,000 of them and killing every
horse and animal we possess. Then we shall come out to fight you like men
fighting for their lives, when each men, before he falls dead, kills his equals.
54
Ó sultão, fica sabendo que existe nessa cidade uma quantidade de pessoas das
quais somente Deus sabe o número. (..) Mas se virmos que a morte é inevitável,
então, por Deus, mataremos nossos filhos e nossas mulheres, queimaremos tudo
que possuímos, não vos deixaremos, como resto, um só dinar, um só dirham, um só
homem nem uma mulher para serem capturados. Em seguida, destruiremos o
rochedo sagrado, a mesquita al-Aqsa e muitos outros lugares, mataremos os cinco
mil prisioneiros muçulmanos que detemos, depois exterminaremos todas as
montarias e todos os animais. No fim, sairemos, e nos bateremos contra vós como
quem se bate pela vida. Nenhum de nós morrerá sem ter matado vários dos
vossos..
O sultão encontrava-se num dilema, pois não podia desistir do cerco, mas ao
mesmo tempo não desejava que os franj implementassem medidas drásticas e
imprevisíveis. A solução foi considerar os franj como reféns dos muçulmanos, e
concedê-los o direito de resgate segundo um acordo preestabelecido. Balian
aceitou a oferta de Saladino, que lhe pareceu generosa e justa, de acordo com os
costumes políticos da época. Os franj adultos deveriam pagar 10 dinares, as
crianças cinco, no prazo de quarenta dias, e os que não pudessem seriam cativos
dos muçulmanos. Na prática, a proposta mostrou-se bastante favorável aos franj.
Balian propõe a libertação de 17.000 citadinos pobres pelo preço de 30.000
dinares, o que Saladino prontamente aceita. Al-Adel, irmão de Saladino, pede
pela libertação de mais mil prisioneiros pobres, enquanto o patriarca franj implora
que o sultão libertasse outros setecentos, sem resgate algum. Depois disso o
sultão, por iniciativa própria, anunciou a libertação dos idosos, das viúvas e dos
órfãos, além dos pais de família aprisionados.
54
GABRIELI, F., Arab Historians of the Crusades, p.p. 118-119.
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125
Segundo Maalouf, os tesoureiros de Saladino desesperaram-se com os atos
de generosidade, pois desejavam recuperar para o tesouro a fortuna gasta na
guerra; no entanto, conta-nos Ibn al-Athir:
The Grand Patriarch of the Franks left the city with the treasures from the Dome of
the Rock, the Masjid al-Aqsa, the Church of the Ressurection and others, God
alone knows the amount of the treasure; he also took an equal quantity of money.
Saladin made no difficulties, and when he was advised to sequestrate the whole lot
for Islam, replied that he would not go back in his word. He took only the ten dinar
from him, and let him go, heavily escorted, to Tyre.
55
O grande patriarca dos franj deixou a cidade com os tesouros do Domo da Rocha,
a mesquita Al-Aqsa, a Igreja da Ressurreição e outras, somente Deus sabe a
quantidade de tesouro; ele também pegou uma igual quantia em dinheiro. Saladino
não o impediu, e quando ele foi aconselhado a pegar todo o lote para o Islã,
replicou que ele não iria voltar atrás em sua palavra. Ele pegou apenas os dez
dinares dele e deixou-o ir, fortemente escoltado, para Tiro.
O clero cristão sai da cidade carregando os tesouros das Igrejas, os ricos
levam quase todos os seus bens e vendem suas propriedades aos muçulmanos, o
que era algo praticamente inconcebível no costume tradicional, que determinava
que todos os habitantes de uma cidade conquistada, assim como seus pertences,
deveriam passar para a propriedade dos conquistadores. Os soldados do sultão
são proibidos de saquear e matar. Segundo Imadeddin al-Asfahani:
Eu disse ao sultão: ´Esse patriarca transporta riquezas que não valem menos de
duzentos mil dinares. Nós lhes permitimos carregar os seus bens, mas não os
tesouros das igrejas e dos conventos. É preciso não deixá-lo com eles. Mas
Salaheddin respondeu: ´Devemos aplicar ao da letra as acordos que assinamos,
assim ninguém poderá acusar os crentes de haverem traídos os tratados. Muito pelo
contrário, os cristãos evocarão em todos os lugares os benefícios com os quais os
satisfazemos.
56
Muito além do ouro, o objetivo de Saladino ao entrar em Jerusalém e
reconsagrar os lugares santos do Islã era sobretudo espiritual e político. O forte
simbolismo da cidade sagrada de três religiões aumentava o seu prestígio e
popularidade entre os emires, e inscrevia o seu nome na história como o grande
libertador. Restaurou todos os lugares sagrados do Islã que haviam sido
conspurcados pelos franj, mas ao mesmo tempo garantiu privilégios para as
igrejas cristãs orientais, que mantiveram a garantia de seu culto e de seus lugares
sagrados.
55
GABRIELI, F., Arab Historians of the Crusades, p. 144.
56
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 186.
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126
Figura 5 – Remanescentes da cidadela de Alepo. Fonte: LEWIS, B, Os Assassinos.
Figura 6 – Jerusalém Medieval. Fonte: Revista Superinteressante, ed. 249, fev. 2008.
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127
4.10
A aliança com o Imperador Armênio e o destino do Imperador
Germânico
A política externa adotada por Saladino em relação às potências
circundantes mudou após a quebra dos tratados de paz após os eventos
desencadeados pelos ataques de Reinaldo de Châtillon. A partir de então, todos os
soberanos locais contrário à presença dos franj poderiam ser possíveis aliados.
Desta maneira, estabelece-se aliança com o imperador dos armênios, denominado
Catholicos.
O império armênio, neste momento, era um estado regional relativamente
forte, com uma Igreja cristã teoricamente aliada ao papado, mas, na prática,
autônoma. Este povo encontrava-se na região desde antes das conquistas árabes, e
enfrentou dificuldades a partir dos ataques das Cruzadas, no final do século XI,
havendo um deslocamento em massa dos armênios em direção às terras
denominadas “pequena Armênia”, no sudoeste da Anatólia. Geograficamente,
portanto, o potentado armênio se relacionava com bizantinos, franj e muçulmanos,
e tentava equilibrar-se num jogo de forças do qual não era a parte mais poderosa.
Ibn Shaddad nos fornece a transcrição de uma carta do Catholicos, Gregório
IV (1174-1193) para Saladino, no qual conta dos acontecimentos ocorridos
próximos ao seu império, isto é, a frustrada cruzada dos alemães de 1189. O
imperador dos germânicos, Frederico Barba-Roxa, se aproximava das terras do
Islã, com mais de duzentos mil homens, o que preocupa o governante armênio.
No entanto, um milagre afasta o perigo alemão das terras governadas por
Saladino.
From the Catholicos with sincere prayers. Among the matters that I will bring to
the attention of our lord and ruler, the Sultan (…) Salah al-Dunya wa´l Din (…),
concerning the fate of the German emperor and what befell him when he came on
the scene is the fact that, when he first marched out from his lands and entered by
force into the lands of the Hungarians, he forced the king of Hungary to submit and
become obedient to him. He took such of his money and men as he wished. He
then entered the land of the ruler of the Greeks, which he conquered and plundered.
After his stay there he left it empty. He compelled the Greek ruler to obey him and
took hostages from him, his son, his brother and forty of his close cortiers. He also
took fifty qintar of gold, fifty of silver and a large amount of satin textiles. He
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seized ships and on them crossed to this side, accompanied by the hostages, finally
entering the lands of Qilij Arslan and returning the hostages. (…)
When he approached Konya, Qutb al-Din, the son of Kilij Arslan, having
assembled his force, attacked him and brought him to a great pitched battle. The
German emperor was victorious and inflicted a great defeat on him. As he came in
sight of Konya, great crowds of Muslims came out against him but he repelled
them in rout. He forced his way into Konya by the sword and killed great
multitudes of Muslims and Persians. He remained there five days. (…)
His troops and massed followers gathered in their great numbers and he camped on
the bank of a certain river. He ate bread and slept for a while. On awaking he had a
desire to bathe in cold water. He did so, came out and God decreed that he became
seriously ill from the cold water. After lingering for a few days he died.
They are of varied races and strange ways. Their cause is a great one and they are
serious in their enterprise and of prodigious discipline, so much that, if one of them
commits a crime, the only penalty is to have his throat cut like a sheep. (…) They
have forbidden themselves pleasures even to the extent that, if they hear that
anyone has allowed himself any pleasure, they treat him as an outcast and chastise
him. All this is because of grief for Jerusalem. It is true that some of them
renounced clothes for a long period, banned them and did not wear anything but
iron. Eventually, their leader disapproved of that. They are to an extraordinary
degree capable of enduring hardship, humiliation and fatigue.
57
Do Catholicos com sinceras preces. Entre as matérias que irei trazer à atenção de
nosso senhor e governante, o Sultão Saladino, acerca do destino do imperador
germânico e o que aconteceu com ele quando ele surgiu na cena [política regional]
é o fato de que, quando ele primeiro marchou para fora de suas terras e entrou
pela força na terra dos húngaros, ele forçou o rei da Hungria a se submeter e a
obedecê-lo. Ele pegou tanto do seu dinheiro e homens quanto quis. Ele então
entrou na terra do imperados dos gregos, a qual ele conquistou e pilhou. Após sua
estada lá ele deixou-a vazia. Ele obrigou o governante grego a obedecê-lo e
tomou-lhe reféns, seu filho, seu irmão e quarenta de seus cortesões. Ele também
tomou quarenta qintares de ouro, cinqüenta de prata e uma grande quantidade de
tecido de cetim. Ele tomou navios e neles cruzou para este lado, acompanhado dos
reféns, finalmente entrando nas terras de Qilij Arslan e libertando os reféns.
Quando ele se aproximou de Konya, Qutb al-Din, o filho de Qilij Arslan, tendo
agrupado suas forças, o atacou, forçando-o a uma grande batalha. O imperador
germânico foi vitorioso e infringiu uma grande derrota. Quando ele avistou
Konya, grandes multidões de muçulmanos vieram contra ele mas ele repeliu-os no
caminho. Ele forçou seu caminho até Konya pela espada e matou grandes
multidões de muçulmanos e persas. Ele permaneceu lá cinco dias.
Suas tropas e seguidores reuniram-se em grande mero e ele acampou às
margens de um certo rio. Ele comeu pão e dormiu um pouco. Ao acordar ele teve
o desejo de banhar-se na água fria. Ele o fez, saiu e Deus decretou que ele ficasse
seriamente doente da água fria. Depois de agonizar por uns dias ele morreu.
Eles são de variadas raças e maneiras estranhas. Sua causa é grande e eles são
sérios em sua empresa e de disciplina prodigiosa, tanto que, se um deles cometer
57
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 114 – 116.
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129
um crime, a única penalidade é ter sua garganta cortada como uma ovelha. (...)
Eles proibiram-se os prazeres até o ponto que se eles escutam que alguém
permitiu-se qualquer prazer, eles o tratam como renegado e o fustigam. Tudo isso
é por luto por Jerusalém. É verdade que alguns deles renunciaram às roupas por
um longo período, as baniram e não vestiam nada, apenas [armaduras de] ferro.
Seu líder acabou por desaprovar isso. Eles são, em um grau extraordinário,
capazes de agüentar privações, humilhações e fadiga.
Podemos observar, juntos com Bahaheddin, que Saladino, além de todas as
virtudes relatadas anteriormente, possuía também boa sorte e fortuna. A vinda do
exército alemão correspondia a um sério perigo e, se não fosse a providencial
morte do Kaiser, seus exércitos chegariam à Terra Santa praticamente ao mesmo
tempo que a expedição cruzada liderada pelo rei Ricardo da Inglaterra, o que
certamente seria desastroso para o sultão, já enfraquecido pelas levas de franj que
não cessavam de chegar ao litoral sírio após a queda de Jerusalém.
A aliança do sultão com o Catholicos armênio, apesar da diferença religiosa,
era conveniente para ambos. Os armênios tentavam manter sua autonomia
política em seus territórios tradicionais aliando-se com uma potência islâmica
benevolente contra os saqueadores franj. Saladino poderia contar com um
aliado ao norte, que pudesse prever-lhe novas invasões franj advindas desta
direção. Afastado o perigo germânico, Saladino pode concentrar suas forças
contra a nova ameaça inglesa que se aproximava de suas terras.
4.11
Saladino e Ricardo Coração-de-Leão
The king of England was a mighty warrior of great courage and strong in purpose.
He had much experience of fighting and was intrepid in battle, and yet he was in
their eyes below the king of France in royal status, although being richer and more
renowned for martial skill and courage. The news concerning him was that, after he
had arrived at the island of Cyprus, he decided not to go further without its being
his and under his authority.
(…) the cursed king of England came (…). His coming had a great pomp. He
arrived in twenty-five galleys, full of men, weapons and stores. The Franks
manifested great joy and delight at his coming. Indeed, that night in their joy they
lit huge fires in their camp. Those fires were impressively large, indicating sizeable
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130
reinforcements. Their princes had been threatening us with his arrival and deserters
had been telling us that they were putting off the great push against the city that
they wanted to make until his arrival. He was wise and experienced in warfare and
his coming had a dread and frightening effects on the hearts of the Muslims. The
sultan, meanwhile, was facing all this with stead fastness, confidence in future
reward and trust in God Almighty.
58
O rei da Inglaterra era um formidável guerreiro de grande coragem e firme em
propósito. Ele tinha muita experiência em batalha e era intrépido na luta, e ainda
assim ele era a seus olhos abaixo do rei da França em status real, mesmo sendo
mais rico e mais renomado por suas habilidades marciais e coragem. As novas
sobre ele são que, depois de sua chegada a ilha de Chipre, ele decidiu não ir além
sem que a ilha fosse sua, sob sua autoridade.
O amaldiçoado rei da Inglaterra veio (...). Sua chegada foi com grande pompa.
Ele chegou em vinte e cinco galeras, cheias de homens, armas e mantimentos. Os
franj manifestaram grande alegria e deleite em seu acampamento. Então, naquela
noite, em alegria, acenderam grandes fogueiras em seu acampamento. Esses fogos
eram impressionantemente grandes, indicando reforços de peso. Seus príncipes
estavam nos ameaçando com sua chegada e desertores nos contavam que eles
estavam preparando uma grande ofensiva contra a cidade que eles queriam
realizar até a sua chegada. Ele era sábio e experiente na guerra e sua chegada
teve um sinistro e assustador efeito nos corações dos muçulmanos. O sultão,
enquanto isso, encarava tudo com presteza, confiança no futuro e fé em Deus todo-
poderoso.
Após a tomada de Jerusalém, a alcunha do sulo passou a ser conhecida por
toda a Europa cristã. Sua generosidade proverbial e o respeito com que tratou os
inimigos vencidos fez dele uma espécie de encarnação muçulmana dos valores de
honra da cavalaria que se desenvolviam no ocidente medieval. Até então, na
história das cruzadas, nenhum rei tinha delas participado diretamente. A
conquista de Jerusalém por Saladino, em 1189, desencadeou na Europa mais uma
onda de fervor religioso e animosidades revanchistas. A denominada Terceira
Cruzada, foi, portanto, uma espécie de resposta dada pelos principais deres da
cristandade à “insolência” do sultão muçulmano. Os reis Ricardo da Inglaterra,
Luís Felipe da França e o imperador germânico Barba-Roxa, realizaram quase que
simultaneamente a sua peregrinação.
Após a queda de Jerusalém, os franj se vestiram de negro, e partiram além dos
mares a fim de pedir ajuda e socorro em todos os países, particularmente em Roma,
a Grande. Para incitar as pessoas à vingança, levavam um desenho representando o
Messias, que a paz esteja com ele, todo ensangüentado, com um árabe que o moía
de pancadas. Eles diziam: ´Olhai! Eis o Messias, e eis Maomé, profeta dos
muçulmanos, que o espanca mortalmente!´ Comovidos, os franj se unem, inclusive
58
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 146 – 147.
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131
as mulheres, e aqueles que não podiam vir, pagaram as despesas daqueles que
iriam bater-se em seu lugar.
59
A reação à queda de Jerusalém foi intensa. Com a aprovação do papa, os
três maiores reis da Europa combinaram marchar sobre a Terra Santa. Somente
dois chegaram, Felipe Augusto da França e Ricardo da Inglaterra. O primeiro
ficou poucos meses e voltou, enquanto o segundo provou ser um adversário tenaz
dos muçulmanos, o inimigo que por pouco não derrotou por completo Saladino.
O rei Ricardo foi o responsável pela maior derrota da carreira militar de
Saladino: a queda da cidadela litorânea de Acre (1191) após um longo e sofrido
cerco de dois anos. A chegada de levas cada vez maiores de navios europeus e
exércitos franj tornara desesperadora a situação do exército compósito de
Saladino, que ainda precisava todo o tempo garantir a unidade entre seus
comandantes militares. A vitória de Ricardo em Acre permitiu que os franj
retomassem diversas cidades recém tomadas pelos muçulmanos, garantindo para
os cruzados praticamente toda a faixa litorânea da Síria e Palestina, e garantindo
pelo menos mais um século de presença européia no Oriente Médio. De acordo
com Amin Maalouf:
O heroísmo de alguns combatentes árabes não foi suficiente. A situação da
guarnição de Acre torna-se crítica. No início do verão de 1191, os apelos dos
sitiados não o mais do que gritos de desespero: ´Estamos no final de nossas
forças e não temos outra escolha senão a capitulação. A partir de amanhã, se vocês
não fizerem nada por nós, pediremos uma salvaguarda e entregaremos a cidade´.
Saladino cede à depressão. Tendo doravante perdido qualquer ilusão a respeito da
cidade sitiada, chora copiosamente. Seus próximos temem por sua saúde, e os
médicos lhe prescrevem poções para acalmá-lo. Ele pede aos arautos para irem
gritar por todo o acampamento que um ataque maciço vai ser dirigido para libertar
Acre. Mas seus emires não o atendem. ´Por que´, retrucam, ´colocar inutilmente
todo o exército muçulmano em perigo?´ Os franj agora são tão numerosos e estão
tão solidamente entrincheirados que qualquer ofensiva seria um suicídio. P. 197
Ibn Shaddad observou a reação do exército muçulmano:
The Franks, as one man gave a great shout, while the Muslims were overcome by
disaster. The grief of the true monotheists was intense (…). Great perplexity and
confusion overwhelmed our people and the army resounded with cries, moans,
weeping and wailing. Every man´s heart shared in this according to his faith.
60
(p.p.
161-162)
59
Ibn al-Athir, citado por MAALOUF, As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 193.
60
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 161 – 162.
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132
Os franj, como um homem deram um grande grito, enquanto os muçulmanos
foram engolidos pelo desastre. A mágoa dos verdadeiros monoteístas era intensa.
Nosso povo mergulhou em grande perplexidade e confusão e o exército ressoava
com choros, lamentos, gemidos e suspiros. O coração de cada homem
compartilhou desse acontecimento de acordo com a sua fé.
Assim como havia acontecido com Saladino em relação a Jerusalém,
Ricardo, na conquista de Acre, tinha que lidar com a questão do que fazer com os
reféns. A resolução adotada foi, porém, bastante diferente.
The enemy then brought out the Muslims prisioners for whom God had decreed
martyrdom, about 3,000 bound in ropes. Then as one man they charged them and
with stabbing and blows with the sword they slew them in cold blood (…). In the
morning the Muslims investigated what had happened, found the martyrs where
they had fallen and were able to recognise some of them. Great sorrow and distress
overwhelmed them for the enemy had spared only men of standing and position or
someone strong and able-bodied to labour on their building works. Various reasons
were given for this massacre. It was said that they had killed them in revenge for
their men who had been killed or that the king of England had decided to march to
Ascalon to take control of it and did not think it wise to leave that number in his
rear.
61
O inimigo então trouxe os muçulmanos prisioneiros para quem Deus decretou o
martírio, cerca de 3.000 amarrados em cordas. Então como um homem eles os
atacaram e com golpes e perfurações com a espada eles os exterminaram a sangue
frio. Pela manhã os muçulmanos investigaram o que acontecera, acharam os
mártires onde eles haviam caído e foram capazes de reconhecer alguns dentre
eles. Grande mágoa e preocupação tomaram conta deles, pois o inimigo poupara
somente homens de posição de prestígio ou alguém forte e capaz de trabalhar em
seus trabalhos de construção. Várias razões foram dadas para esse massacre. Foi
dito que eles os mataram por vingança de seus homens que foram mortos ou que o
rei da Inglaterra decidiu marchar até Ascalon para tomá-la e não pensou ser
sensato deixar este número para trás.
Para os padrões de Saladino, este tipo de ação - o ataque a homens
amarrados e desarmados - era visto como uma ação desonrada e covarde. Nesta
época, em que o padrão de mortalidade de uma batalha era muito menor do que as
guerras do período moderno, por exemplo, o desaparecimento súbito de três mil
homens correspondia a uma perda incomum e proporcionalmente grande de
homens e guerreiros, pois desobedecia ao costume de aprisionamento e resgate.
Na narrativa de Ibn Shaddad, apesar de todas as dificuldades, Deus parece
estar do lado muçulmano. Um episódio anedótico simboliza os bons augúrios do
sultão:
61
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 165.
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133
A falcon the king valued had accompanied him from his own country. It was of
impressive size, white in colour and of a rare type. He cherished and loved it
greatly. The falcon escaped from his arm and flew off. He called it back, but it did
not respond. In the end it alighted on the city wall of Acre. Our men caught it and
sent it to the sultan. Its arrival caused much astonishment and was a happy omen of
victory. To my eyes its colour was a dazzling white. I have never seen a more
handsome falcon. The Muslims considered this an auspicious event. The Franks
offered 1,000 dinars for it, but this was not accepted.
62
Um falcão de que o rei gostava o acompanhou de seu próprio país. Era de
tamanho impressionante, de cor branca e de um tipo raro. Ele o paparicava e o
amava muito. O falcão escapou de seu braço e voou. Ele o chamou de volta, mas
ele não respondeu. Ao fim, ele pousou nas muralhas de Acre. Nossos homens o
capturaram e o levaram para o sultão. Sua chegada causou surpresa e foi um
augúrio feliz de vitória. Para meus olhos sua cor era de um branco brilhante. Eu
nunca vira um falcão tão bonito. Os muçulmanos consideraram isto um evento
auspicioso. Os francos ofereceram 1.000 dinares por ele, mas não foi aceito.
Apesar de todo este antagonismo, a relação do sultão com o monarca inglês
foi também pautada por relações diplomáticas e acordos. Apesar de nunca ter
concedido um encontro pessoal entre os dois soberanos, Saladino enviou seu
irmão, al-Adel, para negociar uma trégua forçada. Após a queda da cidadela de
Acre para os franj, os dois exércitos combatentes o dos franj e o dos
muçulmanos disputaram a faixa costeira da Palestina, num embate que acabou
indefinido, sem nenhum lado conseguindo um avanço significativo. O rei
Ricardo, preocupado com seu retorno à Inglaterra, desejava resolver logo a
situação, então propôs um acordo inusitado a Saladino:
Segundo o acordo visado, al-Adel esposaria a irmã do rei da Inglaterra. Esta fora
casada com o mestre da Sicília, que estava morto. O inglês havia trazido a irmã
com ele ao Oriente, e propunha casá-la com al-Adel. O casal residiria em
Jerusalém. O rei daria as terras que controla de Acre até Ascalon à irmã, que se
tornaria rainha do litoral, do sahel. A cruz lhes seria confiada, e os prisioneiros dos
dois campos libertados. Depois, concluída a paz, o rei da Inglaterra retornaria a sua
terra além dos mares.
63
Um sutil jogo político estava em curso: com essa proposta, Ricardo
esperava indispor al-Adel contra seu irmão, desagregando as forças islâmicas.
Saladino, no entanto, prevendo o estratagema, aceita a proposta, agradando seu
irmão. Ricardo, no entanto, acaba por fim declarando que sua irmã havia jurado
por Deus nunca se casar com um muçulmano. Mesmo assim, Yussef recusa-se a
62
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p. 146.
63
MAALOUF, As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 199.
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134
receber Ricardo, e tenta ganhar tempo às custas da paciência do rei inglês.
Saladino diz o seguinte numa carta, acerca de Ricardo:
Os reis só se encontram após a conclusão de um acordo. De qualquer maneira, não
compreendo tua língua e tu ignoras a minha, e temos necessidade de um tradutor
em quem nós tenhamos confiança.” (...) “Precisa ele verdadeiramente passar o
inverno aqui, a dois meses de distância de sua família e de seu povo, no momento
em que está na força da idade e que pode aproveitar dos prazeres da vida? Por meu
lado, eu poderia passar aqui o inverno, depois o verão, depois um outro inverno e
um outro verão, pois estou em meu solo, entre meus filhos e meus próximos, que
estão a meus cuidados, e tenho um exército para o verão e outro para o inverno.
Sou um homem de idade, que não tem mais nada a fazer com os prazeres da
existência. Vou ficar assim esperando, até que Deus dê a vitória a um de nós
64
Em 1192, finalmente, Ricardo Coração-de-Leão desistiu de vez de sua
empresa, que mostrara-se praticamente impossível, e retornou para a Europa
65
.
Jerusalém continuaria nos domínios muçulmanos. Os franj permaneceriam no
litoral sírio por mais cem anos, mas nunca mais seriam a potência política e
militar de outrora.
64
MAALOUF, As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 200.
65
No retorno à Europa, Ricardo ainda foi feito prisioneiro por Leopoldo da Áustria por catorze
meses. Este rei é considerado um herói na Inglaterra, e foi imortalizado nos romances de Walter
Scott, como Ivanhoé.
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135
Figura 7 Arautos muçulmanos, desarmados e montados em ágeis cavalos, que lhes
permitiam esquivar facilmente dos ataques dos franj. Iluminura medieval de AL-HARIRI,
Abu Muhamad, al Hariri: al-Maqâmât (Conversações). Bagdá, 1237. Fonte: WALTHER,
I e WOLF, N, Codices illustres.
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136
4.12
Saladino e os Assassinos
Os Assassinos foram uma seita xiita que se estabeleceu na Pérsia e na Síria,
entre os séculos XI e XIII, e constituíram, no universo social e religioso islâmico
daquele momento, comunidades consideradas heréticas e extremistas pela maioria
moderada do Islã sunita. Seus seguidores faziam parte da Nova Pregação” da
facção ismaelita do xiismo. A cisão ismaelita surgiu em 765, quando Ismail, filho
do sexto imã Jafar al-Sadiq, foi deserdado por seu temperamento extremista. O
grupo que o seguiu ficou conhecido como ismaelita.
Formaram uma facção secreta, ativa, coesa e organizada que, no século X,
converteu a dinastia dos árabes fatímidas, (futuros) governantes do Egito, à sua fé.
No entanto, a institucionalização do califado fatímida no governo do Egito levou-
o à moderação e forçou-lhe a adotar uma atitude de tolerância; por essa razão,
uma cisão ocorreu entre os ismaelitas. Os insatisfeitos, liderado por Hasan ibn
Sabah, migraram para a Pérsia, onde seu movimento da Nova Pregação floresceu
a partir da fortaleza de Alamut – surgiu assim a seita dos Assassinos.
O imaginário que se criou em torno dessa seita era o de fanáticos hereges,
que obedeciam cegamente seu líder, dando-lhe o poder sobre suas vidas e mortes.
Pretendiam restaurar a pureza da comunidade islâmica, não poupando meios para
isso. Começaram então a prática pela qual ficariam conhecidos: a de atentados
contra a vida de lideranças políticas hostis. Sua primeira vítima fora o vizir persa
Nizam al-Mulk. Fontes ocidentais e orientais, segundo Lewis
66
, apontam para os
mesmos elementos na descrição dos Assassinos. Alguns membros eram tidos
pelo chefe como “eleitos” para o sagrado martírio, sendo o Paraíso a recompensa
por sua missão. Em rituais secretos, o chefe oferecia aos emissários assassinos
uma poção que lhes anteciparia as visões do Paraíso, através do efeito do haxixin
(haxixe), de onde deriva o nome da seita – Assassinos – e o significado de
“homicídio” que a palavra “assassinato” adquiriu nas línguas européias.
66
Cf. LEWIS, B., Os Assassinos.
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137
A partir do século XI, o movimento Assassino espalhou-se pela Síria, onde
passou a ser comandado por Raxid al-Din Sinan ibn Salman. De acordo com um
cronista local,
Ele construiu fortalezas na Síria para a seita. Algumas eram novas e algumas eram
antigas, que ele havia obtido por estratagemas, fortalecendo-as e tornando-as
inacessíveis. O tempo o poupou e os reis tomavam cuidado para não atacar suas
possessões, temendo os ataques assassinos de seus sequazes. Ele governou na Síria
durante trinta e poucos anos. Seu dirigente de missão muitas vezes enviou
emissários de Alamut para matá-lo, com medo de sua usurpação da liderança, e
Sinã se habituou a matá-los. Alguns destes ele enganava e os dissuadia de cumprir
as ordens.
67
Os Assassinos correspondem a mais um elemento político na fragmentada
Síria deste período, comandando cidades, fortalezas e terras. Os dirigentes locais,
árabes, turcos ou franj, temiam seus atentados e muitas vezes pagavam tributos
em troca de segurança. Lendas mágicas e histórias fantásticas sobre os adeptos
passaram a fazer parte do imaginário local.
A ascensão de Saladino como arquiteto da unidade e ortodoxia islâmicas fez
com que ele fosse considerado o inimigo principal dos Assassinos que ele
fora responsável pela queda do único governo xiita da região o califado
fatímida. Na década de 1280, Sinan tentou uma política de acordos com os
remanescentes do governo zângida e, indiretamente, com o reino franj. Segundo
Bernard Lewis, Saladino enviou uma carta ao califa, denunciando a aliança dos
governantes de Mossul com os hereges ismaelitas.
Os Assassinos efetuaram pelo menos dois atentados contra a vida de
Saladino. O primeiro, em 1174, durante o sítio de Alepo; de acordo com Ibn al-
Athir, o governante desta cidade, Gümüxtigin, atabeg zângida, ofereceu a Sinan
terras e dinheiro para que matassem Yussef ibn Ayyub. Os emissários entraram
disfarçados no acampamento do exército muçulmano, mas um emir os reconheceu
e, na confusão resultante, muitas pessoas foram mortas, mas Saladino escapara.
No ano seguinte, um assassino invadiu a tenda do sultão e golpeou-lhe, mas ele
portava uma forte armadura; então dois outros adentraram em sua tenda, mas os
guardas finalmente chegaram e massacraram a todos.
67
LEWIS, B., Os Assassinos, p. 127-128.
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138
Em 1176, Saladino retaliou cercando Masiaf, cidade-fortaleza reduto da
seita, mas um inesperado acordo de paz fez com que o cerco fosse suspenso.
diversas versões sobre este recuo. Seja por ameaça de um atentado ou de poderes
sobrenaturais, Sinan convenceu o sultão. Temos o exemplo de uma carta do
Velho da Montanha para Saladino, uma réplica às ameaças do sultão, que diz o
seguinte:
Lemos o essencial e os detalhes de sua carta, atentando suas ameaças contra nós
com palavras e fatos; Deus meu, é espantoso encontrar uma mosca zumbindo em
uma orelha de elefante e um mosquito picando estátuas. Outros, antes de você,
disseram estas coisas e nós os destruímos, ninguém pôde ajudá-los. Quer você,
então, anular a verdade e favorecer o falso? ´Aqueles que fizeram mal irão saber a
que fim reverterão´. [Alcorão, XXVI, 228] Se de fato suas ordens foram para cortar
a minha cabeça e arrancar os meus castelos das sólidas montanhas, estas são falsas
esperanças e inúteis fantasias, pois os essenciais não são destruídos pelos
acidentais, como as almas não são dissolvidas por doenças. Mas, se voltarmos ao
exotérico, percebido pelos sentidos, e se deixamos de lado o esotérico, percebido
pela mente, temos um bom exemplo no Profeta de Deus, que diz: ´Nenhum profeta
sofreu o que eu sofri´.
68
Uma outra narrativa conta que Sinan teria aparecido na tenda de Saladino
enquanto um fantasma, e que teria deixado sobre seu leito um bolo envenenado
com um papel onde lia-se: “Estás em nosso poder”.
69
Por outra perspectiva, a estratégia de Saladino fazia sentido, pois ao aliar-se
com a seita, Saladino privava seus adversários zângidas e os franj de um aliado
temido. Esta aliança será denunciada, em 1192, por Ibn al-Athir, por ocasião do
assassinato do marquês Conrado de Montferrat, em Tiro. Os assassinos,
disfarçados de monges católicos, mataram o marquês a punhaladas e,
posteriormente interrogados, confessaram que fora o rei Ricardo, inimigo do
marquês, o mandante do crime. Segundo Lewis, no entanto, as fontes ismaelitas
apontam a autoria para o próprio Sinan, com o aval de Saladino. Ibn al-Athir, no
entanto, acusa Saladino de ter dado dinheiro aos Assassinos e autorizado-lhes a
abrir lojas nas cidades como Damasco, Alepo e Homs. O que podemos deduzir é
que Saladino provavelmente não tinha interesse na morte do marquês, adversário
tenaz de Ricardo Coração-de-Leão. A eliminação do marquês significava o
fortalecimento do rei.
68
LEWIS, B., Os Assassinos, p. 131-132.
69
MAALOUF, A., As Cruzadas vistas pelos Árabes, p. 172.
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O que nos interessa, sobretudo, nesta narrativa é o complexo de alianças e
reviravoltas entre os atores políticos. A multiplicidade de identidades, religiões,
seitas e interesses na região fazia com os contatos entre os supostos inimigos fosse
muito mais próximo do que poderíamos esperar.
4.13
Sobre suas questões de saúde e seu falecimento
Bahaheddin Ibn Shaddad nos revela alguns episódios no qual a saúde de seu
senhor encontrava-se seriamente abalada. As noites nos acampamentos militares,
as feridas de guerra, a austeridade e rigor consigo próprio, as desavenças entre
seus generais foram fatores que possivelmente contribuíram para a debilitação
física do sultão. Sua saúde era frágil, pois em sua busca imoderada pela causa do
Islã descuidava-se em longas horas de vigília, marchas pelos desertos e batalhas,
sempre incansável. Ibn Shaddad mostra preocupação com o fato mas admira,
mesmo assim, a sua virtude que ultrapassava sua dor e sua fragilidade física.
On the plain of Acre I saw Saladin overcome by an extremely poor sate of health
on account of numerous boils which had appeared on his body from his waist to his
knees, so that he was unable to sit down. He would simply lie on his side if he was
in his tent, and he refused to have food served him because of his inability to sit.
He ordered it to be distributed to the troops. Despite all, he rode from early
morning till (…) the sunset prayer. He would say, ´When I ride, the pain goes
away, until I dismount
70
Na planície de Acre eu vi Saladino sucumbido por um estado de saúde
extremamente frágil por conta de numerosas feridas que apareceram no seu corpo
da sua cintura até os joelhos, de modo que o impedia de se sentar. Ele
simplesmente deitava de lado, e recusava a comida servida a ele por conta de sua
incapacidade de se sentar. Ele ordenava que ela fosse distribuída às tropas.
Apesar de tudo, ele cavalgou do início da manhã (...) até a prece do pôr-do-sol.
Ele diria: ´Quando eu cavalgo, a dor vai embora, até que eu desmonte.´
70
IBN SHADDAD, The Rare and Excellent History of Saladin, p.p. 29-30.
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140
Com pouco mais de cinqüenta anos, seu corpo não mais agüentou as
demandas da Jihad, e o sultão faleceu em Damasco, cidade onde encontra-se seu
mausoléu, até hoje.
This was a day such as had not befallen the Muslims and Islam since the loss of the
rightly-guided caliphs. The citadel, the city, the world was overwhelmed by such a
sense of loss as God alone could comprehend. (…)His son al-Afdal held a session
for condolences in the north vaulted hall and the citadel gate was barred to all
except the elite of the emir and the turbanned classes. It was a terrible day. Each
men´s grief, sorrow, tears and cries for help kept him from looking at anyone else.
(…) At the sight of him cries and great lamentation arose, so much that a
reasonable man might have imagines that the whole world was crying out with one
voice.
71
Esse foi um dia como não havia acontecido com os muçulmanos e o Islã desde a
perda dos califas bem-guiados. A cidadela, a cidade, o mundo estava
sobrecarregado por uma sensação de perda que Deus poderia compreender.
Seu filho al-Afdal liderou uma sessão de condolências no salão norte e os portões
da cidadela foram barrados a todos exceto a elite dos emires e as classes de
turbante. Foi um dia terrível. A mágoa, lágrimas, tristeza e choro de ajuda
impediram qualquer um de olhar para qualquer outro lugar. À vista dele, ouviu-se
choros e lamentações, tanto que um homem sensato poderia imaginar que o mundo
inteiro estava chorando com uma só voz.
Com este final fúnebre, Ibn Shaddad termina o seu relato, do qual
apresentamos aqui somente algumas breves passagens. O autor finalmente
agradece a Deus por ter permitido que vivesse tantos anos ao lado de Saladino, e
por esse motivo decidiu retribuir a graça através da escritura de sua obra. Apesar
da autenticidade de seu relato, Ibn Shaddad não era historiador nem biógrafo, e
sim antes um homem fiel e devotado a seu amigo, cujo projeto era encarado como
sendo o mais justo para o mundo muçulmano de sua época.
71
Ibid., p. 244.
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5
Considerações finais: o legado de Saladino e de seu tempo
Na trajetória percorrida atrás das apropriações originárias da imagem do
sultão al-Malik an-Nasser Yussef Saladino, percebemos algumas possíveis
ligações semânticas entre o passado medieval e sua instrumentalização no
presente.
Líder virtuoso para um povo humilhado e expropriado de suas terras;
muçulmano fervoroso, apaixonado por sua ; guerreiro vitorioso, que conquistou
a maioria das batalhas que travou; abençoado pela sorte – são estas algumas
características do mito saladinesco que possibilitaram a sua reapropriação no
presente por líderes tão distintos como Abdel Nasser, Saddam Hussein, Yasser
Arafat e Osama bin Laden. Com todas as diferenças entre as doutrinas e projetos
que estes homens representam, um fator que os une: o discurso sobre a
restauração de um passado glorioso e a nostalgia de uma época em que o Islã era a
potência do mundo. As virtudes de liderança e heroísmo de Saladino funcionam
em nosso tempo como motivação política. Se Saladino mandou Ricardo de volta
para sua casa, por que não poderiam os pretensos saladinos expulsar os sionistas,
os imperialistas e os infiéis do ocidente? O mito popular, nesse caso, alimentou a
propaganda política, que reforçou o mito popular.
Entretanto, podemos perceber que possivelmente nenhum desses líderes está
à altura do sultão medieval. Faltam-lhes o imenso carisma e o respeito profundo
de seus adversários. Saladino tornou-se um mito, um exemplo de cavalheirismo
no ocidente, figura modelar que talvez o mundo político atual impossibilite que
tenhamos alguém semelhante em virtude. A autoridade de Saladino é dupla, de
acordo com a concepção weberiana
1
. Sua autoridade é tradicional, pois é
reconhecida em nome de considerações concretas da ordem política e militar: o
sucesso dinástico na condução da guerra. Mas sua autoridade é também do tipo
carismático, pois estabeleceu com seus governados uma ligação direta, legitimada
1
Cf. WEBER, Economia e Sociedade.
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por suas características excepcionais. A autoridade carismática, para Weber,
possui um viés revolucionário, pois coloca-se contra um aspecto estabelecido da
sociedade. No caso de Saladino, ele representou a possibilidade de superação dos
interesses particularistas em direção à uma unidade universalista, de acordo com a
moral e a religião de sua época. Seus atos benevolentes reforçavam as conquistas
militares e insuflavam o entusiasmo do exército. Não se pode dizer o mesmo de
alguns líderes contemporâneos.
Lembremo-nos, por exemplo, que o ex-presidente Sírio Hafez Assad
2
, o
mesmo que discursou enaltecendo Saladino e sua vitória em Hittin, foi o
responsável pelo massacre de Homs, em 1982. Esta cidade, liderada pelos
radicais da Irmandade Muçulmana, grupo de oposição ao governo, foi atacada
com tanques, artilharia e bombardeios aéreos, seguidos de demolidores para
destruí-la. Segundo a Anistia Internacional, entre 15 e 25 mil pessoas pereceram.
Ou ainda, Saddam Hussein, que comparava-se a Saladino e a Nabucodonosor,
atacou a população curda (a etnia de Yussef Ayyub) com armas químicas, na
década de 1990, matando centenas de milhares e ferindo muitos outros.
Entretanto, vimos al-Malik Saladino aliar-se com seus opositores xiitas, os
Assassinos, e libertar prisioneiros franj gratuitamente. Neste sentido, não poderia
haver maior distanciamento entre a imagem que ficou de Saladino para os homens
de sua época e alguns ditadores do mundo árabe contemporâneo.
Uma das razões para o sucesso da carreira política e do mito de Saladino foi
a sua capacidade de tolerar o outro. O universalismo que seu governo representou
não excluía a heterogeneidade presente no contexto social de sua época. Todos
tinham algum lugar naquele mosaico de identidades. Cristãos orientais e franj;
sunitas e xiitas; judeus; turcos; armênios; árabes; curdos nenhum desses grupos
foi alvo de repressão sistemática ou perseguição. Os únicos verdadeiros
adversários eram aqueles franj mais agressivos e fanáticos, enquanto os franj
arabizados podiam converter-se em possíveis aliados.
A repressão política, a intolerância religiosa e o controle e a rigidez dos
costumes não são, decerto, invenções medievais; estas tendências são
2
Cf. p. 116.
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143
provavelmente muito mais fortes atualmente do que nos tempos em que o mundo
islâmico representava a cultura mais civilizada do mundo.
Talvez o maior dos feitos de Saladino tenha sido a capacidade a agregar de
forma eficiente a moral aos fins políticos. A prática de seu governo afastou-se das
práticas mundanas e seculares das cortes de seu tempo. Podemos levantar a
hipótese de que a ênfase em seus valores morais era o único fator de aglutinação
política em torno de si. Vimos anteriormente exemplos de como, na prática, o
controle que exercia sobre seu exército era relativo e às vezes precário. Por trás
da aparente união, prevalecia no fundo uma ausência de instituições estáveis e de
um sistema administrativo coerente a dio e longo prazo. Após a morte do
sultão, seus familiares guerrearam entre si por dois anos, até emergir a figura de
seu irmão, al-Adel. Nos anos seguintes, os territórios dominados pela dinastia
ayyúbida formaram, na prática, uma espécie de liga entre cidades e regiões
autônomas, governadas por membros da mesma família.
Neste sentido, segundo Amin Maalouf, o mundo muçulmano encontrava-se
em desvantagem perante os franj. No ocidente medieval ocorria um gradativo
processo de consolidação da autoridade real e o início da formação de Estados
centralizados e administrados por um corpo de funcionários, representantes da
autoridade real. A sucessão real passou a ocorrer geralmente sem grandes
choques ou mudanças. O próprio fenômeno das cruzadas é um indicador da
renovada capacidade européia nos planos político, militar, econômico e
demográfico. Os séculos XI - XIII são considerados pela historiografia como
anos de expansão e crescimento da cristandade.
Ao mesmo tempo, nas terras islâmicas, apesar de todo o refinamento e alta
cultura, grassava a instabilidade política. Segundo Maalouf
3
:
Toda monarquia era ameaçada com a morte do monarca, toda transmissão de poder
provocava uma guerra civil. É preciso atribuir a total responsabilidade desse
fenômeno às sucessivas invasões, que colocavam em causa a própria existência do
governo? É preciso incriminar as origens nômades dos povos que dominaram essa
região, quer se trate dos próprios árabes, dos turcos ou dos mongóis?
3
MAALOUF, As Cruzadas vistas pelos árabes, p. 242.
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144
Podemos considerar que, apesar da expulsão final dos cruzados no século
XIII, as cruzadas foram eventos que beneficiaram o ocidente de diversas
maneiras. Os franj, para conseguirem viver no oriente, aprendiam a língua e
tradições culturais dos árabes, incorporando-as em seu patrimônio técnico e
cultural. Na Síria, na Espanha ou na Sicília, principais regiões islâmicas alvo das
expedições cruzadas, os franj adaptaram os conhecimentos adquiridos pelos
árabes. A própria herança da civilização grega, esquecida no ocidente, foi
reintroduzida pela via árabe. Técnicas e ciências de todos os tipos medicina,
astronomia, química, geografia, matemática, arquitetura, a fabricação do papel, do
açúcar e do álcool, os têxteis, a navegação – poderíamos citar muitos outros
exemplos. O Brasil, indiretamente, herdou muitas destas tradições ao serem
colonizados pelos ibéricos que haviam apenas há poucos séculos conquistado suas
terras do controle da civilização islâmica.
Entretanto, para o mundo muçulmano as cruzadas foram apenas mais uma
de muitas agressões sofridas durante a denominada Idade Média do Islã. Turcos,
franj, e depois deles, os mais agressivos de todos os mongóis. As principais
cidades do Islã foram destruídas e saqueadas, a economia e o comércio
deprimiram-se com a confusão reinante. Durante os séculos XIII e XIV, as
agressões chegam ao auge, e não governo estável em praticamente lugar
algum. Quando finalmente, no século XV, surgem novas potências e um quadro
político mais estável, a partir da formação dos impérios Otomano (sunita, no
Oriente Médio e norte da África), Safávida (xiita, na Pérsia) e Mughal (império
multicultural na Índia), a civilização do Islã já é outra. Renovou o seu poderio
militar e político, mas em muitos aspectos fechou-se culturalmente sobre si
mesma, um espírito defensivo religioso e anti-investigativo passa a dominar o
cenário cultural islâmico.
Enquanto durante os séculos da modernidade o Ocidente avançou no
conhecimento científico e técnico, acabando por dominar praticamente todo o
mundo no início do século XX, os impérios muçulmanos tenderam à uma
decadente estabilidade e imutabilidade. As estruturas sociais e políticas do
Império Otomano no início do século XIX eram praticamente as mesmas desde o
final do século XVI.
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No final da I Guerra Mundial, quando as tropas inglesas voltam à Terra
Santa pela primeira vez desde o rei Ricardo, este fato não passou desapercebido, e
foi sentido como uma revanche por alguns. Os bárbaros do passado passaram a
apresentar-se como superiores, pelo menos nos todos militares e científicos.
Ficou para o mundo islâmico o dilema de adotar ou o os métodos, a cultura e o
pensamento de seus dominadores.
Adotar a modernidade e seu poderio técnico sem perder a identidade
histórica e cultural – este é o principal desafio do mundo islâmico contemporâneo.
Entretanto, a oscilação entre valores bárbaros e civilizados ocorre em todas as
culturas e sociedades contemporâneas também os brasileiros não escapamos da
dicotomia entre barbárie e civilização.
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7
Cronologia
614 – Os Persas, liderados por Cosroé I, saqueiam Jerusalém.
622 Ano I da Hégira; início do Estado muçulmano sob o profeta Mohammed,
na cidade de Yathrib (Medina), na Península Arábica.
638 – O califa Omar conquista Jerusalém.
809 Morte do califa Harum al-Rashid, considerado o auge do império e da
civilização islâmica clássica.
1055 Com a crescente decadência do califado, os turcos seljúcidas conquistam
Bagdá.
1071 Batalha de Manzikert, na qual os turcos aniquilam os bizantinos, o que
gera o apelo do imperador ao Papa por auxílio (fato cujos desdobramentos
causaram a Primeira Cruzada).
1099 Queda de Jerusalém; massacres e pilhagens em toda a Síria e Palestina;
Bagdá reage com indiferença.
1128 – Zinki torna-se senhor de Alepo.
1138 – Saladino nasce em Tikrit, na Mesopotâmia.
1144 – Zinki se apodera de Edessa.
1154 – Nureddin passa a controlar Damasco, unificando toda a Síria muçulmana.
1163-1169 – Expedição de Xirkuh e Saladino ao Egito.
1171 – Saladino proclama o término do califado fatímida.
1174 – Atentado Assassino contra a vida de Saladino.
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1174 – Morte de Nureddin e entrada de Saladino em Damasco.
1176 – Acordo de Nasiaf (Sinan e Saladino).
1177 Derrota de Saladino para as forças de Balduíno IV, o “rei leproso”, perto
de Ramla. Inicia-se um período de trégua e coexistência entre os muçulmanos e
os franj, com eventuais escaramuças.
1183 Saladino completa a unificação da Síria e Egito sob o seu comando,
apoderando-se de Alepo.
1185 – Saladino acorda com o rei Balduíno uma trégua de cinco anos.
1187 – Reinaldo de Châtillon rompe a trégua. É O “ano da vitória” da batalha de
Hittin e retomada de Jerusalém e diversas outras cidades em poder dos franj.
1190 cerco e tomada de Acre pelo rei da Inglaterra Ricardo Coração de Leão,
que conquista para o ocidente boa parte do litoral palestino. Nova trégua entre
Saladino e os príncipes franj.
1192 – Ricardo Coração-de-Leão volta para a Europa.
1193 – Morte de Saladino.
1248 – Invasão do Egito pelo rei S. Luis IX da França. Fim da dinastia ayyúbida.
1291 O sultão mameluco Khalil toma a cidade de Acre, pondo fim à presença
franj no Oriente. Fim das Cruzadas européias em direção à Terra Santa.
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