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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA
MESTRADO EM PSICOLOGIA
AMPLIAÇÕES E TRANSVERSALIZAÇÕES: POR UMA SUPERAÇÃO DAS
TENDÊNCIAS REDUCIONISTAS NO CAMPO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Gustavo Duarte de Almeida
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira
Niterói-RJ
2009
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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
A448 Almeida, Gustavo Duarte de.
Ampliações e transversalizações: por uma superação
das tendências reducionistas no campo da atenção psicossocial.
/ Gustavo Duarte de Almeida. – 2009.
113 f.
Orientador: Eduardo Henrique Passos Pereira.
Dissertação (Mestrado) Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de
Psicologia, 2009.
Bibliografia: f. 107-113.
1. Serviço de Saúde Mental. 2. Atenção Psicossocial.
3. Psiquiatria. I. Pereira, Eduardo Henrique Passos. II.
Universidade Federal Fluminense. Instituto de Ciências
Humanas e Filosofia. III. Título.
CDD 362.21
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Gustavo Duarte de Almeida
AMPLIAÇÕES E TRANSVERSALIZAÇÕES: POR UMA SUPERAÇÃO DAS
TENDÊNCIAS REDUCIONISTAS NO CAMPO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia do
Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, como requisito
parcial para a obtenção do título de Mestre em Psicologia.
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira
Niterói-RJ
2009
Gustavo Duarte de Almeida
AMPLIAÇÕES E TRANSVERSALIZAÇÕES: POR UMA SUPERAÇÃO DAS
TENDÊNCIAS REDUCIONISTAS NO CAMPO DA ATENÇÃO PSICOSSOCIAL
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Passos Pereira
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________
Profª. Drª. Claudia Elizabeth Abbês Baeta Neves
Universidade Federal Fluminense
______________________________________________________
Prof. Dr. José Maurício Mangueira Viana
Universidade Federal de Sergipe
À Carolina, esposa no papel e namorada na vida.
AGRADECIMENTOS
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação, pela acolhida, pelas
inspirações e, principalmente, pelas provocações.
À Rita, pela solicitude e simpatia, sempre acolhendo minhas demandas e dúvidas na
secretaria do Programa.
Agradeço a turma de 2007, pelo convívio sempre prazeroso e interventivo, em
especial ao Digital Ameríndio, também conhecido como Sandro Rodrigues, pela
parceria desde antes de nosso ingresso no programa, à Patrícia Alvarez e ao Luis
Eduardo, pela amizade nos bons encontros.
À Erotildes Leal, pela participação na banca de qualificação, marcada por
contribuições importantíssimas.
Aos companheiros do Instituto Municipal Philippe Pinel, pela experiência que
deflagrou tantos questionamentos e pelo apoio para a realização deste curso.
Ao grupo de orientação coletiva Jana e Fábio (turma de 2006), Sandro, Joana,
Denise, Fernanda, Cris, Letícia, Iacã, Roberta e Rafael -, pelas intervenções e
companheirismo.
Ao meu orientador, Edu Passos, pela generosidade e respeito ao meu tempo e
dificuldades, sempre me ajudando a fazer o mesmo.
À Claudia Abbês, pelo carinho e parceria até o último minuto da minha trajetória no
mestrado.
Ao Maurício Mangueira, pela acolhida ao convite para a Banca, e pelas intervenções
que não esperaram o dia da defesa.
Aos companheiros da Secretaria Municipal da Pessoa com Deficiência, pela torcida
organizada.
Aos meus amigos, por entenderem a minha ausência nos últimos meses, não
deixando de cobrar, no entanto, a minha presença.
A minha família, por estar do meu lado em todos os momentos da minha vida,
incondicionalmente e de forma decisiva, inclusive em mais esta etapa.
À Carolina, minha esposa, por todo amor e cumplicidade de sempre, sem os quais
tudo ficaria mais difícil.
À todas as mãos que, junto com as minhas, digitaram as páginas deste trabalho, a
todos os anônimos que, de qualquer lugar, contribuíram para que essa etapa fosse
cumprida.
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo criticar as tendências reducionistas, hegemônicas,
no cenário de disputas do Campo da Atenção Psicossocial Brasileira, bem como
pensar a contribuição da clínica para a superação de tais tendências. Para isto,
buscamos entender como se deu o inicio do processo da Reforma Psiquiátrica e
como que este processo continua nos dias de hoje. O entendimento do processo
reformista e do campo da atenção psicossocial se deu através da análise de críticas
de defensores e opositores das práticas reducionistas, cujo conteúdo confrontamos
com os preceitos norteadores do Sistema Único de Saúde, no sentido de buscar a
legitimidade de tais argumentos críticos através do que foi institucionalizado em
forma de lei. Uma vez verificada a improcedência dos argumentos reducionistas,
consideramos a ideia de uma ampliação da clínica como meio de se garantir a
superação das tendências reducionistas no campo da atenção psicossocial. Em
nossas reflexões, a atitude transdisciplinar se mostrou indispensável para que a
crítica aos limites reducionistas das disciplinas psiquiátrica e biomédica fosse
possível e, consequentemente, a ampliação da clínica. A utilização do conceito
transtorno psicossocial compareceu em nosso trabalho, em substituição ao
transtorno mental e sofrimento psíquico, como forma de recusa ao reducionismo
operado por todos os conceitos usados até então, bem como operador de ruptura
nos limites dos saberes questionados.
Palavras-chave: Reforma psiquiátrica, atenção psicossocial, reducionismo,
transdisciplinaridade.
ABSTRACT
This work aims to criticize the reductionist trends, wich still hegemonic, in the scene
of the Brazilian Psychosocial Care Field, as well as the contribution of the clinic to
overcome such tendencies. For this matter, we seek to understand how the
psychiatric process started and how it has been continuing now a days. The
understanding of the reform process and the field of psychosocial care was possible
through the analysis of criticism from advocates and opponents of reductionist
practices in the field of psychossocial care, whose contents are confronted with the
principles that guide the National Health System, in order to check the validity of such
arguments. Once checked the rejection of reductionist arguments, we had
considered the idea of an expansion of the clinic as a way of ensuring the resilience
against the reductionist trends in the field of psychosocial care. In our analysis, the
transdisciplinary attitude proved itself indispensable for make possible the critical of
the limits of reductionist psychiatric and biomedical disciplines, and therefore the
expansion of the clinic. The concept of psychosocial disorder has appeared in our
work replacing the concepts of mental disorder and psychological suffering as a way
of refusing to reductionism operated by all the concepts used so far, and as an
operator of disruption within the limits of knowledge field wich has been questioned
during this essay.
Keywords: Psychiatric Reform, psychosocial care, reductionism, transdisciplinarity.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 10
CAPÍTULO 1 – Reformas e Reformulações ........................................................... 15
1.1 Do Preventivismo à Reforma Sanitária ............................................................. 15
1.2 A Reforma Psiquiátrica no Brasil ...................................................................... 25
1.2.1 A influência Italiana .............................................................................. 27
1.2.2 A Política na Clínica ............................................................................. 33
1.2.3 A Clínica na Política ............................................................................. 41
1.3 Por uma revisão de conceitos .......................................................................... 45
CAPÍTULO 2 – Reforma Psiquiátrica e Seu Caráter Processual: Desafios que
se atualizam em uma disputa de sentido................................................................. 50
2.1 Cenário Atual .................................................................................................... 50
2.1.1 Investidas contra o modelo substitutivo .............................................. 52
2.1.2 Hegemonia antiga nas práticas atuais ................................................ 65
2.2 Algumas considerações ................................................................................... 76
CAPÍTULO 3 - O Que Cabe à Clínica? .................................................................. 80
3.1 Impasses desde sempre .................................................................................. 80
3.2 Por um movimento de ampliação da clínica ..................................................... 81
3.3 A biopolítica na atenção psicossocial ............................................................... 86
3.4 Outra atitude para a ampliação da clínica ........................................................ 91
Considerações Finais ........................................................................................... 101
Bibliografia ............................................................................................................. 106
10
INTRODUÇÃO
O atual cenário da saúde pública brasileira se encontra diante de desafios
diversos, tais como a descontinuidade de ações e programas por conta de
mudanças de governo, precarização das condições de trabalho por conta da
insuficiência e/ou utilização duvidosa dos repasses efetuados pela esfera federal,
formação profissional não condizente com muitas das necessidades encontradas no
cotidiano dos serviços, e a tecnocracia que marca as práticas de gestão das ações e
serviços com a preocupação em garantir mais e imediatos resultados através de
uma racionalização dos recursos que em nada difere das práticas das grandes
corporações privadas e multinacionais,
“esvaziando o caráter de bem público da
saúde” (HECKERT, 2008: 213-214).
Para que se possa garantir um aumento nos números de atendimento que
são convertidos em gráficos e relatórios de desempenho a serem usados na
negociação por um aumento de verba e/ou fator de influência da opinião pública -,
salários aviltantes contam com gratificações por desempenho/produtividade que
instigam o profissional a atender o maior número possível de usuários, e em um
menor espaço de tempo. O vínculo empregatício encontra-se cada vez mais frágil,
por conta das contratações temporárias e terceirizações através de cooperativas que
em nada garantem direitos muito conquistados, como férias, décimo terceiro
salário, dentre outros. As organizações sociais cada vez mais assumem o papel do
Estado, não na contratação e gestão de recursos humanos, mas também na
administração de serviços diversos, etc..
Neste contexto, onde é nítida a privatização
1
pela qual passa o setor da
saúde no país, e onde as palavras de ordem o “fazer mais (atendimentos) com
menos (tempo e recursos)”, torna-se um desafio pensar ações e práticas em saúde
que considerem o usuário dos serviços como algo para além de um emaranhado de
nervos ou um aglomerado de órgãos. Isto porque este saber/olhar reducionista
fundamenta práticas também reducionistas que, por sua vez, muito contribuem para
a rapidez dos atendimentos. Falamos de uma política reducionista de atenção à
saúde e de sua relação de interdependência com o reducionismo operado pelo
saber/fazer biomédico.
1
O termo privatização é utilizado, neste momento, como sinônimo de desestatização. No entanto, no decorrer
do trabalho, esperamos encontrar outras possibilidades de interpretação.
11
Assim segue o Campo da Atenção Psicossocial Brasileira, de forma alguma
poupado destas e de várias outras dificuldades. No entanto, se os desafios são
grandes, grande também é o esforço por parte de profissionais que recusam o lugar
de “vítimas”, de “mãos atadas” ou de indiferença, e que apostam em meios diversos
de superação. Foi assim na luta empreendida a favor de uma grande reformulação
das práticas de cuidado que ajudou no desenho do campo em questão, tal como
este se apresenta nos dias de hoje. O movimento conhecido como Reforma
Psiquiátrica Brasileira emergiu juntamente como tantos outros movimentos
minoritários, durante o processo de redemocratização do país, no advento da Nova
República.
Totalmente impregnado pelo anseio do coletivo por um cenário democrático, o
movimento reformista buscou uma reformulação das práticas de cuidado que de
forma alguma foi dissociada da necessidade em se problematizar o saber
psiquiátrico e de se considerar outros vetores de existência do usuário dos serviços,
como, por exemplo, seus direitos a moradia, a um emprego, a lazer, e,
consequentemente à inserção ou reinserção social. Portanto, falamos de uma
reformulação, de uma reforma das práticas de cuidado indissociada de uma
problematização acerca da hegemonia do saber psiquiátrico e do reducionismo e da
exclusão que tal saber opera.
Após mais de duas décadas desde o inicio do processo reformista, muitas
ainda são as tensões que marcam o Campo da Atenção Psicossocial Brasileira. A
superação das tendências reducionistas nas práticas de cuidado encontra-se longe
de ser alcançada, mesmo com todos os avanços presentes na atual legislação, que
apregoa formas de tratamentos que consideram o usuário em suas várias
dimensões existenciais, e indica a internação apenas quando todas as intervenções
que privilegiam a inserção do indivíduo na sociedade se mostrem insuficientes. Os
que se opõem à reforma psiquiátrica e ao modelo de atenção que dela adveio, lutam
pela volta do antigo modelo, hospitalocêntrico e baseado na exclusividade do saber
psiquiátrico e também biomédico.
Assim, percebemos críticas contra e a favor do atual modelo de atenção
psicossocial que trazem em seu, conteúdo, argumentos também contra e a favor das
práticas reducionistas.
Desde marcamos nosso posicionamento: encontramo-nos no movimento
de luta a favor do modelo substitutivo, das políticas de atenção psicossocial vigentes
12
e, portanto, da superação da hegemonia do saber e das práticas psiquiátricas e
biomédicas. É no bojo desta luta que podemos verificar um sem-número de apostas
em diferentes formas de se praticar o cuidado. A clínica, neste contexto, se faz
múltipla nas maneiras em que é interpretada, concebida, praticada.
É neste contexto que buscamos o tema de nosso trabalho, qual seja, uma
crítica às tendências reducionistas, ainda hegemônicas, no cenário de disputas da
atenção psicossocial, bem como a contribuição da clínica na superação de tais
tendências.
No primeiro capítulo, descrevemos alguns marcos no processo reformista,
desde o seu início até a institucionalização do modelo de atenção atual, marcos que
apontam para a preocupação em se superar as práticas reducionistas, iatrogênicas,
portanto excludentes, do antigo modelo manicomial e hospitalocêntrico. Em nosso
percurso, consideramos algumas das influencias presentes no processo reformista
que ajudaram na problematização e luta pela superação das tendências
reducionistas operadas pela biomedicina e pela psiquiatria. Elegemos como ponto
de partida o surgimento do pensamento preventivista e sua chegada em solo
brasileiro, em uma série de desdobramentos que caracterizaram o que se
convencionou chamar de Reforma Sanitária Brasileira e culminaram na
institucionalização do Sistema Único de Saúde, ou SUS. Nesta parte, privilegiamos
algumas discussões que contribuíram para a ampliação da noção de saúde - tal
como se encontra presente no texto da Lei Federal nº 8.080, cuja assinatura é
reconhecida como o marco inicial do SUS e, portanto, para a problematização da
exclusividade do saber biomédico e do reducionismo que advém desta
exclusividade. Consideramos ainda uma série de investidas por parte do coletivo a
favor da reforma psiquiátrica, bem como a influencia da Psiquiatria Democrática
Italiana, que dentre todas as iniciativas reformistas pelo mundo foi a que
decididamente mais contribuiu para o desenho do modelo de atenção substitutivo ao
hospitalocêntrico. Uma discussão acerca da noção de reabilitação psicossocial
compareceu neste capítulo para marcar algumas apostas presentes do cotidiano do
cuidado, que em muito refletiram toda a discussão trazida pelos profissionais e
teóricos sanitaristas, bem como pelos italianos. Fechamos o primeiro capítulo com
uma breve problematização do reducionismo operado por toda e qualquer tentativa
de se nomear o “objeto de cuidado” do campo da atenção psicossocial.
13
No segundo capítulo, buscamos entender como se encontra a atenção
psicossocial atualmente. Para isso, abordamos algumas críticas recorrentes no
campo em questão, dividindo-as em dois grupos ou movimentos. O primeiro grupo
ou movimento diz respeito às críticas contra o atual modelo de atenção psicossocial,
críticas estas que se baseiam e produzem argumentos a favor do antigo modelo, o
hospitalocêntrico, que aposta na internação como a intervenção mais adequada na
grande maioria dos casos. No segundo movimento, agrupamos críticas às
tendências reducionistas que se baseiam no saber psiquiátrico e biomédico, ainda
hegemônicos no campo da atenção psicossocial. Críticas, portanto, a favor do atual
modelo de atenção. Desde já um esclarecimento se faz necessário. Se por um lado
não foi difícil uma divisão metodológica entre tais movimentos críticos que se
opõem, por outro perceberemos que não é tão fácil sustentar tal separação entre o
que se produz com as práticas contra e a favor do modelo atual, e portanto contra e
a favor da reforma psiquiátrica. Veremos que é possível, no bojo do movimento
reformista, o surgimento de práticas reducionistas.
Diante da necessidade de colocarmos em análise o conteúdo das críticas
presentes no cotidiano da atenção psicossocial, nos utilizamos das noções de
universalidade de acesso aos serviços de saúde e, também, da integralidade de
assistência à saúde. Estas noções, princípios norteadores no SUS, nos ajudam a
pensar a relação do que move as críticas em questão com o conteúdo da legislação
que regulamenta as práticas em saúde no Brasil em sua forma mais ampla.
Escolhemos este caminho, pois o movimento contrário ao modelo de atenção
psicossocial atual pressupõe uma posição contrária à legislação que suporte ao
modelo em questão. Assim, buscamos uma reflexão acerca dos princípios do SUS
citados, no sentido de verificarmos até que ponto as políticas de atenção
psicossocial se encontram ou não em consonância com a direção a ser seguida pelo
Sistema Único. A contribuição de alguns autores sanitaristas muito nos ajudou, no
sentido de problematizarmos e atualizarmos o discurso/a prática de tais princípios no
cotidiano dos serviços.
No terceiro capítulo, buscamos refletir sobre o que cabe à clínica na
superação das tendências reducionistas no Campo da Atenção Psicossocial
Brasileira. Como clínica, ou prática clínica, comparece nos dois primeiros capítulos
a idéia mais comumente utilizada: a do debruçar-se sobre o leito do paciente com
base em determinados saberes que possibilitam o cuidado a ser dispensado.
14
Partimos de algumas reflexões de autores reformistas e buscamos contribuições de
autores sanitaristas sobre uma possibilidade de ampliação da prática clínica.
Utilizamo-nos de reflexões de Michel Foucault acerca da biopolítica e da constituição
de campos de saber por meios de práticas de subjetivação e de objetivação, no
sentido de entendermos como se a atualização da hegemonia do saber
psiquiátrico e biomédico no campo em questão, bem como evitarmos que novas
propostas de práticas na atenção psicossocial citadas em nosso trabalho não
acabem por contribuir menos para a superação das tendências reducionistas que
para sua manutenção e fortalecimento. É assim que comparece em nossas
discussões a noção de transdisciplinaridade, e sua contribuição para uma outra
forma de se pensar a atitude clínica e o relacionamento desta com os campos de
saber que fundamentam as tendências reducionistas na atenção psicossocial contra
as quais nos posicionamos.
15
CAPÍTULO 1
REFORMAS E REFORMULAÇÕES
1.1 Do Preventivismo à Reforma Sanitária
Em 1922, o currículo das escolas médicas na Grã-Bretanha passou por uma
reformulação, de modo a facilitar uma modificação na atitude dos estudantes,
incutindo-lhes a noção de responsabilidade e importância no processo de promoção
de saúde daqueles que futuramente lhes confiarão suas vidas, bem como da
prevenção de doenças simples. A proposta, amplamente difundida, resultou na
criação de departamentos de Medicina Preventiva nas escolas médicas, inclusive
nos Estados Unidos e Canadá. Um discurso de caráter clínico foi importante na
conciliação entre os interesses dos estabelecimentos de ensino e dos estudantes,
sempre marcado por “tentativas múltiplas de definição sobre ‘aquilo que se fala’, ou
seja, de como a Medicina Preventiva ganha um novo estatuto, exigindo, portanto,
uma nova conceituação” (AROUCA, 2003:118). O que surge em um primeiro
momento é um objeto de dupla natureza: as condições que possibilitam doenças e a
atitude preventiva por parte do médico a ser praticada no cotidiano; a nova disciplina
será delimitada posteriormente, com o foco na responsabilidade do indivíduo e da
família em relação à saúde, como elemento que distingue a responsabilidade do
médico e as formas de adoecimento.
A dificuldade em identificar a natureza de tal conhecimento traduz-se em um
impedimento de incorporá-lo à prática médica. Os protagonistas do discurso
preventivista nos Estados Unidos denunciam, então, uma crise na atenção médica
vigente que deve ser resolvida dentro da própria instituição médica privada, no
sentido se evitar uma intervenção do Estado. É neste contexto de disputa pela
prática da atenção à saúde da população que o projeto da Medicina Preventiva
sustenta-se, segundo Arouca, enquanto uma oportunidade de conciliação entre
ambos, organização privada e Estado, através do avanço por parte da instituição
médica na ocupação do espaço entre a prática clínica e a saúde pública.
Em junho de 1929, os Estados Unidos experimentam o fim do otimismo
econômico que reinava até então, por conta do início da Grande Depressão. Com o
empobrecimento da população, o custo do serviço médico tornou-se superior às
16
possibilidades de grande parte da sociedade, o que contribuiu para o surgimento de
um debate acerca da acessibilidade à atenção médica e de propostas para uma
possível ampliação e reestruturação dos serviços de saúde pública.
Passaram-se duas décadas de disputas entre o Estado, defensor da
centralização do controle da atenção médica por parte do poder blico, e a
instituição médica privada, que, aliada a outros grupos hegemônicos, lutou contra as
intervenções estatais que acarretariam uma diminuição de seu poder, acabando por
conseguir que os EUA não seguissem exemplos como o da Inglaterra, cujo Serviço
Nacional de Saúde foi criado em 1946.
Órgãos representativos dos estabelecimentos de ensino médico dos Estados
Unidos elaboraram, no início da década de cinquenta, encontros e documentos que
discorriam ideias básicas acerca dos objetivos da graduação, bem como da
redefinição das responsabilidades dos profissionais de medicina. Debateu-se sobre
o “conceito compreensivo do homem”, incluindo uma análise de seu comportamento,
o ambiente em que ele vive, os acontecimentos em sua vida e influências dos
costumes sociais. Tal ideia abre espaço para a introdução dos conceitos de saúde -
“que possibilitaria a compreensão da história de vida do homem entendida como um
processo”- e ecologia - “já que tanto a doença como a saúde se dão em um conjunto
de relações estabelecidas com o ambiente no qual se acha incluído o
social”(AROUCA, 2003:123). Consequentemente, faz-se necessário considerar as
limitações da medicina e a necessidade de se trabalhar com outras especialidades,
tendo-se em vista um grande número de fatores interferentes no processo saúde-
doença que facilmente o encontrados em qualquer ambiente habitado pelo
homem.
As ideias em questão traduzem o zeitgeist do pós-guerra, quando a recém-
criada Organização Mundial da Saúde (OMS)
2
busca a legitimidade do seu papel,
uma ratificação por parte da comunidade internacional, através da colaboração com
a reestruturação dos sistemas de saúde dos países europeus em situação difícil, por
conta dos efeitos da guerra (BROWN; CUETO; FEE, 2006:629). Sob influência dos
anseios da época, foi criado juntamente com a agência especializada da ONU um
conceito ampliado de saúde, que aponta para o estado de completo bem-estar
2
Agência especializada das Nações Unidas criada em Genebra, em 1948, na primeira Assembléia
Mundial da Saúde.
17
físico, mental e social, não se limitando à ausência de doenças. Conceito este que
nunca foi poupado de críticas
3
- por seu caráter “utópico”, “vago” e “sem
possibilidade de mensuração” – ou revisto.
Ao apontar as relações discursivas entre a ciência e a sociedade como
suporte à nova configuração da medicina, Arouca nos ajuda na identificação de uma
importante ideia de causação, uma relação reflexiva presente em todo o discurso da
Medicina Preventiva e que transborda os limites do campo das práticas e saberes da
saúde, atingindo os espaços da economia, educação, e outros tantos. Assim,
contamos com categorias distintas, porém indissociáveis e equivalentes na
importância, para operar o que o autor chama de “espiral de saúde”, onde todas as
categorias possuem a mesma força causativa. Um
pensamento circular a partir de um ponto no qual a homogeneidade das
categorias (biológicas, econômicas, sociais, etc.) faz com que, a partir de
qualquer lugar se mova a roda do processo social, em um movimento
ascendente de espiral(AROUCA, 2003:125).
O autor cita o paradigma do Ciclo Econômico de Saúde e da Doença
4
, de
Winslow, como uma derivação de tal pensamento circular, onde a pobreza e a
doença formam um “círculo vicioso”, onde uma é condição de possibilidade da outra.
A ideia de causação nos ajuda a intuir um conceito ampliado de saúde que,
embora impossível de ser definido cientificamente, segundo Luz (1979), possui uma
profunda interligação com as “condições de vida”
5
do homem, pertencendo a um
mesmo processo sócio-econômico “que pode ser configurado em quadros
conjunturais de saúde”(LUZ, 1979:244). Tal afirmação, pensamos, vai de encontro
com o processo que ascende ou descende em espiral, através de uma
interdependência entre setores diversos da sociedade equivalentes entre si em seu
poder de causação.
3
Dentre as críticas de vários autores, destacamos a de Almeida Filho em Almeida Filho, N. de. O
Conceito de saúde: ponto-cego da epidemiologia? Rev. bras. epidemiol. , São Paulo, v. 3, n. 1-
3, 2000. Disponível em: http://www.scielosp.org/scielo.php ?script=sci_arttext&pid=S1415-
790X2000000100002&lng=en&nrm=iso
4
Maiores detalhes em WINLOW, C.E.A. L’importance économique de La medicine preventive.
Chronique de L’Organization Mondial de La Santé, v.6, n.7-8:211-223, 1952.
5
“Associamos, neste sentido, condições de vida a condições sociais de produção(variação dos
salários, da repartição da renda, da alimentação, das considerações de moradia, dos transportes, da
segurança, do trabalho, do acesso à informação e à educação, entre outros dados)” (LUZ, 1979:244).
18
Neste sentido, este círculo vicioso em espiral, em que as variáveis são
simultaneamente causa e efeito, assumindo em cada volta novos valores, o
sentido da espiral pode ser ascendente na medida em que maiores salários
levam a melhor alimentação, educação e moradia, que finalmente levariam
a melhor saúde e iniciaria um novo ciclo. Tal sentido seria o do progresso e
do desenvolvimento econômico, enquanto o outro com valores negativos,
seria o círculo vicioso da pobreza, ignorância e doença, que levaria e
manteria e subdesenvolvimento (AROUCA, 2003:125).
Existem consequências importantes derivadas da ideia de ausência de
hierarquia entre as variáveis, preconizada em tal processo espiral. Uma delas é a
negação da determinação, uma vez que não recai apenas sobre um dos vetores -
condições de saúde, moradia, trabalho, etc. a responsabilidade de fazer a espiral
ascender. No entanto, ainda com base na ausência de hierarquia, subtende-se
idealizações importantes no conteúdo de cada disciplina, no que diz respeito a seu
objeto, como, por exemplo, a riqueza como ideal a ser alcançado pela pobreza. Tal
raciocínio contribui para que se repita o paradigma evolucionista do
desenvolvimento-subdesenvolvimento, no qual a sociedade subdesenvolvida tem no
desenvolvimento sua meta, e a sociedade desenvolvida tem, no
subdesenvolvimento, uma fase histórica ultrapassada. Trata-se, pois, de um modelo
capitalista sutilmente reproduzido no seio da tal pensamento.
Ao afirmarmos a ideia de indissociabilidade entre os diversos campos de
práticas e saberes, assumimos também o risco de novos entraves. Novas ameaças
à saúde emergem, por exemplo, como subprodutos do avanço tecnológico.
Enquanto determinadas doenças podem ser erradicadas por conta do avanço da
tecnologia da medicina, outras podem surgir, como consequência do aumento
vertiginoso do número de indústrias que poluem o ar, os rios e os mares. Assim,
surgem novas necessidades e demandas direcionadas aos profissionais e serviços
de saúde e de bem estar social, e, consequentemente, a necessidade de se adequar
o ensino médico às necessidades emergentes. Em outras palavras: é o mesmo
conhecimento, em uma mesma estrutura social que, por meio de um novo agente,
produzirá novas relações sociais para que novos problemas possam ser
solucionados (AROUCA, 2003). Trata-se de uma “nova atitude”, educacionalmente
moldada, que opera uma transformação das relações sociais entre médicos,
pacientes, famílias, comunidade, etc. dando lugar a uma forma de causação ainda
mais ampla: a responsabilidade de cada indivíduo diante da sua saúde, bem como
19
daqueles que o cercam. Arouca chama tal posição de cientificista, uma vez que
assume a criação de um paradigma como transformadora das relações sociais, e
chama atenção para este ponto, no qual o conhecimento se articula
“ideologicamente” com o saber.
É, segundo o autor, este campo complexo no qual a Medicina Preventiva se
firma que denuncia suas raízes higienistas. Podemos, até agora, entender que
A Medicina Preventiva como formação discursiva emerge em um campo
formado por três vertentes, a primeira a Higiene, que faz o seu
aparecimento no século XIX, intimamente ligada com o desenvolvimento do
capitalismo e com a ideologia liberal; a segunda, a discussão dos custos da
atenção médica, nas décadas de 30 e 40 nos Estados Unidos, sob uma
nova divisão de poder internacional e na própria dinâmica da Grande
Depressão, que vai configurar o aparecimento do Estado interventor; e a
terceira o aparecimento de uma redefinição das responsabilidades médicas
surgida no interior da educação médica(AROUCA, 2003:109).
Se a Medicina Preventiva, enquanto nova atitude incorporada à prática
médica, deve ser desenvolvida durante o processo de formação profissional,
fazendo-se necessária uma reformulação do ensino, nada mais apropriado que uma
série de encontros promovidos pelas organizações sanitárias internacionais, com o
objetivo de se discutir o tema. Como resultado de todos esses encontros, a
Organização Panamericana de Saúde promoveu um seminário que fundamentou a
implantação do ensino de Medicina Preventiva na América Latina.
A primeira parte do Seminário realizou-se em outubro de 1955, no Chile, em
Vina del Mar, com participação de 58 Diretores e Professores de Medicina
Preventiva de Escolas Médicas da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru,
Uruguai e Venezuela.
A segunda parte realizou-se em Tehuacan, no México, em abril de 1956, e
dela participaram representantes de Escolas de Medicina da Bolívia, Colômbia,
Cuba, Equador, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, xico, Porto Rico,
República Dominicana e Suriname.
Os encontros desdobraram-se em Seminários Nacionais, discussões, projetos,
pesquisas e publicações acadêmicas diversas, caracterizando a Medicina Preventiva
como uma forma de movimento social. Tambellini(2003) relata que a Medicina
Preventiva foi, de forma articulada, implementada em nosso país através de
convênios internacionais entre governos, intervenções de organizações
internacionais multilaterais e fundações americanas de fomento e pesquisa que
20
divulgavam e preconizavam novas formas de se entender e lidar com as condições
de saúde e doença.
Assim, na década de sessenta, os professores e alunos das disciplinas da
saúde, não apenas a medicina, foram assediados de todas as formas - seja através
de simples publicações, ofertas de viagens, bolsas de estudo nos Estados Unidos e
várias outras facilidades e formas de projeção profissional de modo a garantir-se a
posição de “elemento propiciador da compreensão da necessidade da mudança, da
excelência e oportunidade do projeto preventivista”(TAMBELLINI, 2003:50).
Tal investida conseguiu, de forma capilarizada, garantir um lugar para o
pensamento preventivista desde a cátedra do ensino médico até os serviços
públicos essenciais no Brasil.
Arouca identifica as relações que o discurso mantém com uma determinada
formação social através da noção Gramsciana de organicidade. Segundo ele, ao
ser reproduzido em uma nova formação social, a partir de um centro hegemônico de
produção capitalista, o discurso preventivista situa-se no campo de relações de
dependência, de modo a cooptar agentes ou intelectuais orgânicos para servir a
seus propósitos, ou seja, garantir uma homogeneidade, uma uniformidade e uma
reprodução do discurso que se impõe.
“Portanto, o discurso abre o espaço para os sujeitos, para a
institucionalização dos lugares que ocuparão e de sua legitimação”
6
(AROUCA,
2003:140), para em seguida fornecer as ferramentas conceituais necessárias na
construção de uma determinada realidade no país dependente. É dessa forma que
a Medicina Preventiva assume o caráter de disciplina obrigatória nos currículo de
formação dos médicos no Brasil, uma política externa norte-americana para a
América Latina, no período do pós-guerra. Tal política perdurou até o final da
década de 1970, sustentada por dispositivos financeiros e “ideológicos”, para afirmar
o american way of life e o caráter democrático do liberalismo como forma de
promoção do bem-estar social.
A configuração do discurso preventivista no cenário latino-americano e,
particularmente no Brasil, acabou por se afastar de sua relação com a sociedade
civil, aproximando-se do Estado em sua dimensão tecnocrática, uma vez que este
6
No terceiro capítulo nos deteremos mais sobre este processo com a ajuda da noção de subjetivação, tal como
explicada por Foucault (2006).
21
assume de forma mais efetiva o controle das ações de saúde, ao contrário da matriz
norte-americana.
Após 1964, a ideia de impossibilidade da adequação da Medicina Preventiva
às necessidades sanitárias da população brasileira ganhou corpo, através dos
grupos de resistência à ditadura, tanto no campo acadêmico quanto no da saúde
propriamente dito. Tal pensamento contra-hegemônico, sustentou-se através de
publicações científicas que sugeriam novas possibilidades teóricas e constatavam
resultados negativos da intervenção preventivista de então - principalmente através
do baluarte metodológico do próprio preventivismo, a epidemiologia -, o que
provocou um agenciamento de professores de Medicina Preventiva do Estado de
São Paulo na crítica à disciplina em questão, expondo limitações que
impossibilitavam o seu entendimento da realidade vivida no país (TAMBELLINI,
2003).
O movimento de resistência não era único. Na própria Organização Pan-
americana da Saúde encontravam-se movimentos contra o pensamento hegemônico
que se infiltravam e potencializavam os esforços dos profissionais brasileiros em
uma crítica ao preventivismo, como o caso de Juan César Garcia, na época
funcionário da OPS, que fornecia a profissionais da saúde brasileiros uma literatura
cujo acesso era muito difícil, por conta dos limites impostos pela ditadura. A
literatura que chegava clandestinamente às mãos dos brasileiros ajudava não
apenas na interpretação e proposição de novas questões sobre objetos e métodos,
mas, também, sobre outras formas de se pensar os serviços de saúde. Formas que
“ultrapassavam o campo médico e da saúde e desembocavam criticamente no
âmago das ciências humanas e sociais” (TAMBELLINI, 2003:51-52), potencializando
o movimento crítico no processo de forja de uma “Medicina Social”, no início da
década de setenta, como alternativa contra-hegemônica aos “limites disciplinares e
oficiais” da Medicina Preventiva. A nova denominação foi adotada por muitos
departamentos nas universidades brasileiras
Esta Medicina Social, brasileira, difere-se da disciplina homônima divulgada na
Inglaterra, com a fundação do Instituto de Medicina Social na Universidade de
Oxford, em 1942, cuja origem remonta às mudanças sociais resultantes da
Revolução Industrial na Alemanha e na França. A versão brasileira, cuja
diferenciação foi defendida pelo Departamento de Medicina Preventiva e Social da
Universidade Estadual de Campinas, foi por este definida como
22
o estudo da dinâmica do processo saúde/doença nas populações, suas
relações com a estrutura de atenção médica, bem como das relações de
ambas com o sistema social global, visando à transformação dessas
relações para a obtenção, dentro dos conhecimentos atuais, de níveis
máximos possíveis de saúde e bem-estar das populações. (Departamento
de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da
UNICAMP, apud AROUCA, 2003: 149).
Ou nas palavras de Sérgio Arouca:
trata-se de um movimento ao vel da produção de conhecimentos que,
reformulando as indagações básicas que possibilitaram a emergência da
Medicina Preventiva, tenta definir um objeto de estudo nas relações entre o
biológico e o psico-social. A Medicina Social, elegendo como campo de
investigação estas relações, tenta estabelecer uma disciplina que se situa
nos limites das ciências atuais.(AROUCA, 2003:150).
Assim, a Medicina Social caracteriza-se, no Brasil, como um movimento de
ruptura com a hegemonia da Medicina Preventiva, esta última organicamente ligada
ao aparelho de Estado e ao mesmo tempo aos interesses dos grupos hegemônicos
da sociedade civil - “existindo como uma norma que não se instaura, por suas
próprias contradições decorrentes da articulação da medicina com o econômico”
(AROUCA, 2003:150). Uma ruptura que faculta uma análise crítica acerca do objeto
de estudo da Medicina Preventiva, e, como consequência, uma produção de saber
para uma “prática transformadora”, assumido uma posição diante de todas as
contradições do discurso preventivista.
Na metade da década de setenta, acontecia o início do processo de abertura
do regime autoritário, em um cenário político nacional instável. O “milagre
econômico” havia acabado e a sociedade deparava-se com as consequências da
administração militar, quando, em um grande clima de insatisfação, iniciou-se na
sociedade um processo de discussão sobre a reorganização do sistema vigente no
país. O cenário político, antes restrito a poucos partidos, à Igreja e à OAB, passa a
ser ocupado por novos atores, antes excluídos ou inexistentes, que surgem
gradativamente em um novo contexto de lutas diversas. Entre estes, observa-se a
organização de vários movimentos engajados em uma luta política pela
democratização e melhores condições no campo da saúde, não menos alvo de
críticas como a de Madel Luz, que alertou:
23
A medicina em tantos pontos moderna e sofisticada que se implanta no país
a partir de 1968 e a indústria químico-farmacêutica de primeira linha que ela
supõe, com a inevitável presença de grandes empresas internacionais,
pode criar para os menos avisados uma visão de miragem da situação vital
da população. Na medida em que se ouve falar em complexas operações,
médicos internacionalmente famosos, “milagres médicos”, assistência para
todos, pode se ter a impressão de que a saúde do povo brasileiro vai bem
(LUZ, 1979:243).
É no processo de redemocratização do país, no advento da Nova República,
que todo esse movimento crítico tomou corpo através de uma renovação das
lideranças no campo da saúde e de uma infiltração no aparelho de Estado,
ocupando posições estratégicas nas tomadas de decisão.
Este movimento, que se configurou no que conhecemos como Reforma
Sanitária Brasileira, teve seu ápice na realização da Conferência Nacional de
Saúde, em março de 1986.
A Oitava”, como ficou conhecido o encontro, é considerada um marco no
campo da saúde brasileira, não apenas por contar com a participação até então
inédita de entidades e representações da sociedade civil, mas, também, por apostar
em uma nova concepção de saúde: condições de existência em sociedade que
garantam a participação ativa do sujeito na vida pública, garantindo a este condições
de vida sob todos os aspectos, sejam eles econômicos, políticos ou culturais. Este
encontro, cujo título em sintonia com o contexto sócio-político de então foi
Democracia é Saúde, contou com Sérgio Arouca, na época presidente da Fundação
Oswaldo Cruz, como presidente do comitê organizador. Foi Arouca que, em seu
discurso de abertura, destacou um “convidado especial” presente, a sociedade civil
organizada, bem como trouxe o conceito de saúde apresentado pela OMS, citado
por nós anteriormente. Arouca lembrou da contribuição do Professor Cinamon, da
Escola Nacional de Saúde Pública, nos debates que antecederam a Oitava, quando
este sugeriu que saúde também seria a “ausência de medo.” Em sua fala, Arouca
defende a ideia de que
Conviver sem o medo é conviver com a possibilidade de autodeterminação
individual, de liberdade de organização, de autodeterminação dos povos e,
simultaneamente, com a possibilidade de viver [...] sem ameaça da violência
final, que seria uma guerra exterminadora de toda a civilização
7
(AROUCA,
1987: 36).
7
Na época, a ideia de uma guerra nuclear ainda impressionava o imaginário coletivo.
24
Arouca recordou ainda do conceito de ciclo econômico da doença, de Winslow,
criticado por ele anteriormente (AROUCA, 2003:125). Tal conceito foi explicado de
forma simples como a ideia de que quanto piores forem as condições de vida
sócio-econômicas - de um povo, mais difícil é a manutenção de sua saúde que,
prejudicada, contribui para que as condições de vida piorem ainda mais. Ele
lembrou da época do “milagre econômico”, quando o Brasil, paradoxalmente,
aumentou sua riqueza assim como o índice de mortalidade infantil, a fome e a
miséria de um modo geral. Daí, segundo Arouca, a aposta de que “Saúde é
Democracia”, uma resposta ao modelo econômico concentrador de renda e ao
modelo político autoritário.
No relatório final da Conferencia foi citada a necessidade de modificações
no setor da saúde sem que estas se limitem a uma reforma administrativa e
financeira. Uma profunda reformulação é exigida, ampliando-se o próprio conceito
de saúde que, em seu sentido mais abrangente, foi pensado como
Resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda,
meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e
posse da terra e acesso a serviços de saúde. É assim, antes de tudo, o
resultado das formas de organização social da produção, as quais podem
gerar grandes desigualdades nos níveis da vida (BRASIL, 1987:382).
Foi com base nas reflexões da 8ª Conferência Nacional de Saúde que a Constituição
de 1988 encontra fundamentada sua seção segunda, que abrange os artigos 196
ao 200, concernentes à saúde brasileira. E é a mesma seção que fundamenta a
Lei Federal nº8.080, de 19 de setembro de 1990, que dispões sobre as condições de
promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como a organização dos serviços
de saúde e outras providências. Nesta lei, marco inicial e sustentáculo do Sistema
Único de Saúde, podemos encontrar a definição de saúde no artigo 3º como
[...]fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a
moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, a
educação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais;
os veis de saúde da população expressam a organização social e
econômica do País. Parágrafo Único. Dizem respeito também à saúde as
ações que, por força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir
às pessoas e à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social
(BRASIL, 1990).
25
Temos então, uma definição de saúde que reflete uma associação das ideias da
OMS às demandas de uma sociedade que se ressente das consequências do
regime militar. É esta definição de saúde que, muitas vezes criticada por estudiosos
do setor, representa uma conquista do movimento pela Reforma Sanitária Brasileira,
movimento este que participou de forma ativa da instauração de um novo regime no
cenário nacional, juntamente com outros movimentos, dentre eles, a Reforma
Psiquiátrica Brasileira.
Não podemos ignorar que ao trazermos para a nossa discussão denominações
diferentes, quais sejam reforma sanitária e reforma psiquiátrica, contribuímos para a
afirmação de uma distinção. Distinção que não pressupõe necessariamente uma
dissociabilidade, tendo em vista o contexto e as condições que possibilitaram a
emergência de ambos os movimentos, bem como a forma pela qual eles se
influenciaram.
1.2 A Reforma Psiquiátrica no Brasil
Se foi no final dos anos sessenta e início dos anos setenta que a crítica à
hegemonia e à organicidade da Medicina Preventiva se fortaleceu, foi também neste
período que a cristalização da assistência psiquiátrica no modelo asilar passou a ser
questionada socialmente. Alternativas a este modelo eram insipientes; os
ambulatórios, manicômios e inúmeras clínicas conveniadas, de modo geral
superlotadas e com alto grau de mortalidade, davam continuidade à prática da
internação indiscriminada uma forma de limpar as cidades do “lixo urbano e
garantir a ocupação de todos os leitos privados financiados pelo Estado -, onde “a
cronicidade dos pacientes era tomada como evolução natural do quadro
patológico”(BEZERRA, 1994:174). Tal prática de internação era o exemplo de
exclusão em uma sociedade totalmente hierarquizada, onde o “grau de direito
exercido” era diretamente proporcional ao nível sócio-econômico do indivíduo.
Neste contexto, os modelos produzidos contribuíam e ainda contribuem para que
muitos indivíduos sem condições de responderem aos desafios e demandas do
sistema capitalista vigente assumissem a posição de espectadores passivos no
processo de troca de seu direito a uma assistência digna pelo “direito a um
26
transtorno mental.” Desnecessário dizer que dentro dos asilos não encontravam-se
membros de famílias abastadas.
A partir do final da década de sessenta, as contratações de novos técnicos
contribuíram para uma oxigenação da prática no campo da saúde mental, tendo em
vista o crescente caráter de resistência política ao autoritarismo e crítica ao modelo
asilar da formação acadêmica. Posteriormente, em um cenário nacional de
insatisfação e crescente oposição à ditadura, bem como influenciados pelo
pensamento marxista e foucaultiano e sua ênfase na categoria de poder como
central para uma análise dos discursos e práticas, estudantes e profissionais recém-
formados que se ocupavam com a atuação política se afinaram com a proposta da
Medicina Social. “É preciso ressaltar que foi principalmente através desses centros
que a literatura crítica na área de psiquiatria e saúde mental se difundiu no Brasil”
(BEZERRA, 1994:174).
Dessa forma,
criam-se espaços onde a luta pela democratização ganha outro matiz: a
crítica teórica às políticas de saúde do Estado autoritário e a elaboração de
propostas alternativas. Essas propostas confluem para delinear o programa
da chamada reforma sanitária, que na realidade propõe o enfrentamento da
questão da saúde em todas as suas dimensões (técnica, política,
econômica e social) dentro de uma perspectiva de luta pela democratização
do país. (BEZERRA, 1994:173).
Os movimentos reformistas no mundo foram sempre respostas às
preocupações com a atenção dispensada ao transtorno mental, mas todas
impregnadas com as inquietações humanitárias e éticas provenientes das
experiências vividas por cada país. Se na Europa a sensibilização com a situação
degradante dos pacientes psiquiátricos se deu, em parte, por conta das experiências
nos campos de concentração da Segunda Guerra, que em muito lembravam os
aparatos manicomiais de então, no Brasil, a analogia foi feita à violência cometida
contra os presos políticos, cujo tratamento era similar ao oferecido pelos hospitais
psiquiátricos.
Com a deflagração de denúncias, reivindicações e críticas às condições de
assistência e trabalho nos quatro estabelecimentos psiquiátricos do Rio de Janeiro
8
8
Centro Psiquiátrico Pedro II, Hospital Pinel, Colônia Juliano Moreira e o Manicômio Judiciário Heitor
Carrilho.
27
sob a coordenação da DINSAM
9
, tomou corpo uma greve sem precedentes. Tal
acontecimento, que ficou conhecido como Crise da DINSAM (AMARANTE, 2003),
culminou na demissão de 260 pessoas, entre profissionais e estagiários. A crise
alcançou uma repercussão nacional, sensibilizando a opinião pública e conseguindo
o apoio de diversas entidades do setor da saúde, cujos profissionais se mobilizaram
no sentido de discutir e pensar em soluções para a crise do sistema. É nesse
momento que se inicia a sistematização de um pensamento crítico sobre a natureza
e a função social da psiquiatria e surge o Movimento de Trabalhadores em Saúde
Mental (MTSM), assumindo um papel relevante, talvez o principal, na liderança da
trajetória reformista.
A pauta inicial do protesto era composta por um misto de denuncias e
reivindicações que reunião questões relativas à prática e ao saber psiquiátricos, bem
como questões de ordem organizacional. O movimento reformista o foi mais
influenciado pela crítica à cronificação nos asilos e ao tratamento desumano
dispensado aos pacientes que pela insatisfação com as condições de trabalho em
especial os baixos salários, o grande volume de atendimentos por profissional e a
situação ilegal dos bolsistas
10
(AMARANTE, 2003).
Neste período, a influência do pensamento de Goffman, Castel e Basaglia,
dentre outros, se intensifica, principalmente pelas visitas destes ao Brasil, onde,
participando de encontros diversos, tiveram a oportunidade de atualizar os
profissionais brasileiros sobre as práticas européias. Os frutos da experiência em
Gorizia, que deram origem à Psiquiatria Democrática Italiana, foram comentados
aqui pelo próprio Basaglia, em mais de uma visita ao País.
1.2.1 A influência Italiana
De todas as respostas reformistas na Europa, é sem dúvida a experiência
italiana que mais contribuiu para o movimento brasileiro. Seja na identificação da
necessidade de inserção social do paciente psiquiátrico através do investimento
9
Divisão Nacional de Saúde Mental do Ministério da Saúde.
10
Profissionais graduados ou estudantes universitários, desfavorecidos em vários aspectos nas suas
contratações, e que exerciam funções de psicólogos, médicos, enfermeiros e assistentes sociais, o
raro ocupando cargos de chefia e direção (AMARANTE, 2003).
28
para o aumento de sua capacidade de trocas sociais -, seja no trabalho em rede
junto à sociedade, de modo a possibilitar uma rede de serviços que responda às
reais necessidades dos usuários. Enfim, a Psiquiatria Democrática Italiana foi uma
inspiração para uma reinvenção do cuidado em saúde mental no Brasil, e teve como
figura principal Franco Basaglia - psiquiatra estudioso de Husserl, Heidegger, Sartre,
dentre outros (BARROS, 1994) -, que, em 1961, após doze anos de vida acadêmica,
assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, onde sofreu forte impacto pelo
que ele chamou de “instituição da violência.” Basaglia se refere às instituições
caracterizadas pela divisão entre quem dispõe ou não de poder, situação que
margem a uma divisão de papéis baseada no abuso e na violência por parte do
poder e que redunda na exclusão do não-poder. Todo o seu pensamento é
marcado pela ideia de que a violência e a exclusão, em seus vários níveis de
modulação, fundamentam as relações instauradas na sociedade.
Como a sociedade não pode compactuar com a violência desvelada e
denunciadora de contradições que em muito comprometeriam os ideais de
civilização e modernidade, faz-se necessária a legitimação de representantes que
aceitem a responsabilidade de administrar e promover novas formas de violência e
exclusão, mistificadas por meio de um saber técnico, ou seja, justificadas
tecnicamente no plano da necessidade. É lançando mão de tal recurso que se
conseguiu a adaptação do objeto de violência no caso o paciente - à violência da
qual ele é objeto, “sem nunca chegar a tomar consciência disso e, por sua vez,
poder tornar-se sujeito de violência real contra aquilo que o violenta.” (BASAGLIA,
2005: 94).
Basaglia, então, denuncia uma ambiguidade na figura do terapeuta, que
perdurará enquanto tal responsabilidade não for posta em análise. O autor compara
o perfeccionismo técnico-especialista”, e sua contribuição para que a inferioridade
social do doente mental fosse aceita, com a
definição da diversidade biológica
11
, a qual, por outro caminho, também
sancionava a inferioridade moral e social do diferente: ambos os sistemas
tendem a reduzir o conflito entre o excluído e o excludente, confirmando
cientificamente a inferioridade original do excluído diante de quem o exclui.
Nesse sentido, o ato terapêutico se revela uma reedição revista e
corrigida da mesma ação discriminatória perpetrada outrora por uma
ciência que, para defender-se, criou a “norma” esta norma que, mesmo
11
Uma clara alusão ao pensamento eugenista, que muito influenciou não a prática sanitária na
Europa, mas também no Brasil.
29
quando superada, impõe a sanção por ela mesma prevista. (BASAGLIA,
2005: 94).
Se por um lado Basaglia não nega a existência da doença
12
, por outro ele
afirma que ela adquire significados diversos de acordo com o nível sócio-econômico
de quem está doente. Com base em tal constatação, surge a necessidade de se
observar o tipo de abordagem direcionada ao doente no asilo, uma vez que os
desdobramentos da doença são também ditados pela forma com que nos
relacionamos com ela. Em outras palavras, o quadro degradante apresentado pelos
pacientes internados nos manicômios uma anulação das potencialidades e
possibilidades do interno, a que Basaglia chamava de institucionalização - não deve
ser necessariamente considerado uma evolução da doença (BASAGLIA, 2005: 99).
Se a exclusão sofrida pelo paciente psiquiátrico se mostra mais como fruto de
um baixo poder contratual - ou desfavorável condição social e econômica que
dificulta sua defesa contra a violência a ele direcionada -, cabe-nos, junto com
Basaglia, colocarmos em análise o valor técnico e científico do diagnóstico dado ao
indivíduo no ato de sua internação. Franco Basaglia afirma que o “etiquetamento”
produzido por um diagnóstico coloca o indivíduo em um lugar de passividade
definitiva, mesmo que esta possua uma natureza diversa da doença. Como
consequência, é operada uma objetificação da relação terapeuta–paciente, no
sentido de que a comunicação entre ambos “só ocorre através do filtro de uma
definição, de um rótulo que o abre possibilidade de apelação.”(BASAGLIA, 2005:
103).
É com base em toda essa discussão que Basaglia propõe como alternativa à
situação encontrada por ele em Gorizia, reflexo da forma pela qual a psiquiatria se
posicionava tanto no cenário italiano quanto no mundo, uma atitude de negação, de
ruptura com os saberes e práticas institucionais/científicos de então, de modo a se
buscar outras formas de se pensar o ato terapêutico que não como “resolutivo de
conflitos sociais.”
A reforma psiquiátrica italiana aconteceu com atraso de alguns anos em
relação a outros países como França e Inglaterra e, dessa forma, pôde-se contar
com os exemplos dos modelos da psicoterapia institucional francesa, bem como da
12
O termo doença mental é aqui utilizado apenas quando comentamos as contribuições de Basaglia,
uma vez que o autor se valia desta categoria.
30
comunidade terapêutica inglesa
13
. No entanto, a necessidade de intervenções
adequadas ao contexto italiano foi o suficiente para que os atores reformistas
liderados por Basaglia não optassem por um modelo pré-definido. A escolha do
modelo comunitário inglês foi um ponto de partida para a proposta de uma nova
dimensão institucional, uma forma de negar a realidade manicomial.
O modelo de comunidade terapêutica, desenvolvido na Inglaterra por Maxwell
Jones, apostava em uma transformação da relação médico-paciente no sentido de
democratizar as relações institucionais e fazer do manicômio um lugar, de fato,
propício ao tratamento.
Como desdobramento de tal transformação, muitos pacientes, antes
intimidados pela violência institucional, passam a questionar sua objetificação em
doença. Sua agressividade, antes classificada como sintoma, passa a ter um
caráter de expressão de indignação e um sentimento de injustiça por conta do
tratamento a eles dispensados até então. Essa “nova agressividade” era, na opinião
de Basaglia, uma oportunidade para que o manicômio com suas estruturas
alienantes e de violência não desse lugar a um “ameno asilo de servos
agradecidos”:
Sobre essa agressividade, que é o que nós psiquiatras buscamos para uma
ligação autêntica com o paciente, poderemos alicerçar uma relação de
tensão recíproca, a única a ter condições atualmente de romper os
vínculos de autoridade e de paternalismo, causas, até pouco tempo, da
institucionalização(BASAGLIA, 2005:110-111).
Foi sobre essa tensão que se construiu o alicerce para uma nova organização
do hospital em Gorizia, que deveria ser redefinida a partir de sua base, e não de seu
topo. Uma nova organização criada não apenas para o coletivo, mas, também, pelo
coletivo. A democracia sustentada nas relações entre técnicos, demais funcionários
e pacientes foi, de certa maneira, sofisticada, se comparada ao modelo inglês, no
sentido de que não apenas a escuta dos pacientes psiquiátricos era encorajada, mas
também a organização destes com seus companheiros na situação de paciente, de
modo que, unidos, pudessem expressar melhor suas demandas, fazer suas
13
Para maiores informações acerca dos modelos reformistas europeus, ler: AMARANTE, P. Loucos
Pela Vida A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003 e DESVIAT,
M. A Reforma Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1999.
31
reivindicações. A preocupação com os direitos do paciente psiquiátrico era, então,
incorporada à práxis terapêutica. Desta forma, se em um primeiro momento da
negação da realidade asilar encontrada por Basaglia foi caracterizado pelo esforço
retirar o doente do lugar de “não-homem”, em um segundo momento, o esforço foi
direcionado para sua tomada de consciência política. No entanto, os reformistas
italianos constataram que a superação do regime de autoridade por outro de
decisões comunitárias proporciona um contexto que muito se afasta da realidade da
sociedade atual. Se o doente mental desfavorecido sócio-economicamente é alvo de
resistência por parte de uma sociedade que desconsidera as suas necessidades,
qualquer tentativa de tratamento que não considere as resistências que o esperam
do lado de fora do hospital psiquiátrico redundariam em mero paliativo. Assim,
percebeu-se no processo de negação da realidade asilar que o ato terapêutico era
também um ato político, no sentido de operar-se uma recomposição, em um nível
regressivo, de uma crise em curso, “fazendo-a retroceder à aceitação daquilo que
a provocou”(BASAGLIA, 2005:108).
Diante de tal realidade, constatou-se que a comunidade terapêutica, embora
uma etapa necessária no processo de negação da realidade asilar, não deveria ser
confundida com o objetivo final da reforma italiana, sob pena de que um simples
aperfeiçoamento técnico pudesse contribuir para uma modernização de
organizações que nada mais fariam além de perpetuar a lógica da exclusão, ainda
que em uma forma mais bela e civilizada, por meio da construção de um “belíssimo
hospital”
14
. Como alternativa a essa possibilidade, a negação que antes era focada
no sistema asilar, acabou por voltar-se para o próprio paradigma psiquiátrico:
[...]o problema não pode manter-se dentro dos limites restritos de uma
“ciência” como a psiquiatria, que não conhece o objetivo de sua pesquisa,
tornando-se assim um problema geral, revestido de um caráter mais
especificamente político, o que implica no tipo de relação que a sociedade
atual quer ou não estabelecer com uma parte dos seus membros...
(BASAGLIA, 2005:121).
Embora não se trate de uma negação da doença mental, uma investigação
científica sobre tal questão é possível após o descarte de questões pertinentes à
violência e exclusão sociais. Sustentando a metodologia da negação, os italianos
14
O movimento reformista italiano não poupou críticas aos modelos de atenção que se baseavam em
hospitais psiquiátricos mais “humanizados”, operando uma “institucionalização branda”, que pouco
contribuía para a reinserção do paciente psiquiátrico ao meio social.
32
liderados por Basaglia entenderam os sistemas de classificação e esquematização
das psicopatologias como um meio pelo qual o psiquiatra, diante de sua
incapacidade em compreender as contradições de nossa realidade, vale-se de seu
poder para servir à demanda da sociedade por uma maquiagem de suas
contradições, que encontram no doente mental um denunciador, através do
diagnóstico que “assumiu o significado de um juízo de valor” (BASAGLIA, 2005:123-
124).
A “negação como única modalidade” foi proposta dentro de um sistema
político, econômico e social que assimila qualquer afirmação, qualquer mudança,
qualquer reforma, como ferramenta de sua própria manutenção, como alternativa a
qualquer modelo previamente definido que traria em si os “germes dos erros
futuros.”
A experiência de Gorizia foi levada à cidade italiana chamada Trieste, onde,
em 1971, iniciou-se o processo de transformação do Hospital Psiquiátrico de San
Giovanni (BARROS, 1994: 75). A reforma em Trieste foi ainda mais radical, por
contribuir para o fechamento de seu manicômio, bem como fazer surgir um modelo
substitutivo e não complementar ao hospital psiquiátrico que em muito
influenciou a reforma brasileira. Todos os dispositivos criados como alternativas à
internação colocaram a Psiquiatria Democrática Italiana na posição de maior
influência para o que se convencionou chamar de reabilitação psicossocial no Brasil.
Lugares para habitação de pacientes que receberam alta, subsídios financeiros para
a sobrevivência, organização de cooperativas de trabalhos, enfim, uma preocupação
com o “pós-desospitalização” nunca antes vista e estruturada de acordo com uma
lógica territorial. Lógica essa que era menos baseada em critérios geográficos e
mais nas características sócio-culturais que determinavam o recorte dos territórios,
de modo a proporcionar uma adequação da assistência prestada aos hábitos,
costumes e estilos de vida de cada região. Um claro esforço na luta pelo respeito à
singularidade do paciente psiquiátrico, em substituição de uma massificação e uma
homogeneização do tratamento dispensado.
Se, até então, o transtorno mental, para ser “tratado” precisou desaparecer
para a sociedade e aparecer no campo médico-legal, agora, foi necessário que o
mesmo transtorno mental se fizesse visível na sociedade para que seu tratamento
acontecesse. Sob a ótica da Psiquiatria Democrática Italiana, é o sofrimento
psíquico do paciente que assume o papel de figura, não mais seu transtorno, cujo
33
fundo é sua história de vida na teia social, cultural, econômica e política do mundo
contemporâneo. Segundo Barros,
[...]num movimento de constante autocrítica, começou-se a perceber que
colocar a doença entre parênteses não seria suficiente; seria necessário,
também, mudar radicalmente o processo que reduz a problemática da
loucura em doença mental. Os italianos postulavam a necessidade de um
processo em que a loucura pudesse ser redimensionada não para fazer sua
apologia, mas para criar condições que permitissem que esse momento de
sofrimento existencial e social se modificasse. (BARROS,1994:53).
Podemos, então, entender a Psiquiatria Democrática Italiana como uma
crítica radical ao paradigma psiquiátrico tradicional, através de uma negação das
relações que fundamentam o saber e a prática psiquiátrica deste, bem como às
alternativas reformistas em outros países, que acabaram por reproduzir modelos
hospitalocêntricos ou a hegemonia do saber psiquiátrico, em nenhum momento
contestada.
1.2.2 A Política na Clínica
Influenciados pela Psiquiatria Democrática Italiana, os reformistas brasileiros
discutiram várias questões polêmicas. A ligação de dependência entre psiquiatria e
justiça, bem como a resposta de tal dependência à necessidade de ordem pública foi
uma delas. As classes sociais das pessoas internadas, e sua relação com a não-
neutralidade da ciência patrocinadora do saber psiquiátrico hegemônico foi, também,
importante foco de debate. Ainda como características marcantes da reforma italiana,
citamos a bandeira da intersetorialidade - motivo de resistência acadêmica por conta
da consequente redução do poder médico - e a concepção de um trabalho em rede,
tão caro a nós brasileiros, que envolve forças sindicais, movimentos culturais e
sociais diversos e vários outros esforços sócio-políticos, para a solução de
necessidades dos pacientes que não se limitavam à questão técnica, como, por
exemplo, a problemática do trabalho e da moradia após a alta, citados anteriormente;
e a participação social, através do voluntariado e outras formas de aposta na
proposta reformista, sem a qual a negação do paradigma psiquiátrico não teria
alcançado tal nível de capilaridade na população.
34
Tal participação social muito inspirou os membros do MTSM que organizaram
vários encontros estaduais e municipais, dando corpo à participação de movimentos
de usuários dos serviços de saúde mental e seus familiares, que começaram a
encontrar espaço para expressarem suas opiniões e demandas de uma forma oficial
junto às autoridades do setor. Entre estes encontros, destacamos a I Conferência
Estadual de Saúde Mental do Rio de Janeiro, realizada em março de 1987, no
campus da UERJ. A conferência, cujo tema central foi a “Política nacional de saúde
mental na reforma sanitária,”discutiu pela primeira vez o transtorno mental enquanto
fruto do processo de marginalização e exclusão social, bem como a necessidade de
resgate dos direitos do paciente através de condições de sobrevivência dignas.
Foram abordadas ainda questões de direitos humanos e justiça, com conclusões
muito importantes, como a liberdade de optar ou não pelo tratamento, a escolha do
terapeuta por parte do paciente, a participação da comunidade na elaboração e
controle dos tratamentos e serviços oferecidos, bem como a necessidade de se
garantir condições trabalhistas dos pacientes durante o tratamento, incluindo o
seguro-desemprego.
Por meio de uma absorção de vários profissionais da saúde, inclusive
membros do MTSM, operada pelo aparelho estatal, inicia-se uma “trajetória
sanitarista” onde, na opinião de Amarante(2003) o pensamento crítico tão defendido
até então perde lugar para a ideia de que a administração técnica e científica da
medicina seria o suficiente para resolver os problemas das coletividades. Embora
com raízes comuns, os movimentos sanitarista e de saúde mental seguiram na
última década caminhos distintos, paralelos, “esboçando uma certa distância
disciplinar entre os dois campos”(ONOCKO-CAMPOS; FURTADO, 2006:1054). Um
período de grande institucionalização, onde a preocupação com a administração e o
planejamento da saúde se faz presente de forma ostensiva, em detrimento de uma
reflexão acerca do papel dos cnicos de saúde na construção de saberes
hegemônicos, bem como da medicina, em práticas de normatização da sociedade.
Com a I Conferência Nacional em saúde mental, em junho de 1987, é que se
marca o início do afastamento entre os movimentos sanitarista e pela reforma
psiquiátrica. É neste encontro que o MTSM inicia, sob forte influência das ideias de
Basaglia, o resgate de sua postura inicial, a defesa da desinstitucionalização como
desconstrução do saber hegemônico da psiquiatria, e não apenas de reformulações
de ordem operacional e técnica, bandeira que havia sido quase esquecida durante o
35
processo de comprometimento de muitos membros do MTSM com o aparelho do
Estado (AMARANTE, 2003).
Em dezembro do mesmo ano, a realização do II Congresso Nacional dos
Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, deu continuidade à fomentação e o
amadurecimento das ideias desinstitucionalizantes, que foram responsáveis pelo
surgimento, posteriormente, de novas formas de ação, bem como uma
reaproximação do profissional com a academia que também se reformulava,
possibilitando novas reflexões e novas práticas. Com a preocupação de agir no
interior da própria cultura, foi identificada a necessidade de buscar o apoio da
sociedade, não apenas nos momentos de dificuldades, mas, também, nos espaços
de formulação de novas intervenções. Emerge uma nova atitude frente ao
transtorno mental, tão necessária para que, posteriormente, uma nova forma de
perceber e lidar com o transtorno pudesse ser pensada.
A questão da loucura e do sofrimento psíquico deixa de ser exclusividade
dos médicos, administradores e técnicos da saúde mental para alcançar o
espaço das cidades, das instituições e da vida dos cidadãos, principalmente
daqueles que as experimentam em suas vidas. (AMARANTE, 2003:95).
É no II CNTSM que se institui o dia dezoito de maio como sendo o Dia
Nacional da Luta Antimanicomial, bem como o lema “por uma sociedade sem
manicômios.” Embora Amarante afirme que tal lema traga em si um apelo negativo,
“no sentido de uma sociedade sem e não com alguma coisa nova(AMARANTE,
2003:95), não podemos negar que a ideia do fechamento dos manicômios foi crucial
para a possibilidade, como veremos, da prática da assistência territorial. Isto
significa dizer, seguindo o exemplo italiano, que o usuário do serviço irá contar com
seu meio de origem como local para o tratamento, onde tudo o que as práticas
sociais locais oferecerem deverá ser usado a favor do atendimento prestado. Tal
atitude ou afirmação de como ela realmente deve ser - não seria possível sem a
novidade que foi o fechamento do manicômio.
O período entre o final da década de oitenta e o início da década de noventa
foi caracterizado por uma abertura concreta de espaços no interior dos hospitais
psiquiátricos, onde, da discussão teórico-técnica, partiu-se para a prática de
“reinventar” o cotidiano das instituições, superando os modelos pré-estabelecidos.
36
Em 1987 surgiu o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)
15
no Brasil, na
cidade de São Paulo, chamado Prof. Luiz Cerqueira, importante local de fomento
aos estudos teórico e prático sobre tudo o que havia sido discutido no campo da
reforma até então. Necessário mencionar que tal experiência pioneira foi uma
iniciativa isolada, uma aposta de vários profissionais que, na prática, provaram ser
possível uma alternativa ao manicômio, sem, no entanto, esperarem por mudanças
mais concretas na legislação da saúde mental. Foi, no entanto, em 1989, que
aconteceu o divisor de águas ente os dois primeiros momentos da reforma brasileira,
ou seja, o da reformulação teórica e o da prática. O episódio da intervenção
realizada pela prefeitura de Santos na Casa de Saúde Anchieta, hospital particular e
modelo da prática manicomial tanto combatida, foi a prova da viabilidade de
transformação do sistema psiquiátrico nos moldes do que até então havia-se
discutido. O desmantelamento do regime asilar e sua substituição por uma rede de
cuidados territorial com a participação ativa da sociedade, colocou a experiência de
criação do NAPS de Santos dispositivos de atenção à saúde mental, de
abrangência territorial e funcionamento 24 horas, com possibilidade de internação
em casos graves - como modelo a ser seguido pelo resto do país.
Outro marco importante, também no ano de 89, foi a apresentação ao
Congresso do Projeto de Lei n° 3.657/89, do deputad o Paulo Delgado(PT-MG). Este
projeto levou para o campo jurídico todos os princípios da reestruturação do modelo
psiquiátrico ainda vigente no país, toda a preocupação com os direitos do paciente,
sua desinstitucionalização e ressocialização. Tal projeto provocou uma forte
mobilização tanto entre as pessoas a favor, quanto entre as que a ele se opuseram.
Durante sua tramitação, a opinião pública foi assediada de todas as formas, os
debates se intensificaram, os grupos e associações de usuários, familiares e
interessados cresceram e se empenharam com mais entusiasmo e assertividade.
Tudo, ao ser vislumbrada a chance de que as práticas e a ética tão sonhadas e
defendidas “a unhas e dentes” pudessem ser transformadas em lei. E assim
aconteceu, embora apenas doze anos depois e com alterações em seu texto
original.
15
Serviço ambulatorial de atenção diária que funcione segundo a lógica do território onde se encontra,
devendo realizar prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais severos e
persistentes em sua área territorial, em regime de tratamento intensivo, semi-intensivo e não-
intensivo. (Portaria/GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002).
37
A Lei 10.216, baseada no projeto de lei do Depu tado Federal Paulo
Delgado, é assinada em 6 de abril de 2001, dispondo sobre a proteção e os direitos
das pessoas portadoras de transtornos mentais e redirecionando, finalmente, o
modelo assistencial em saúde mental. A preocupação com melhores condições de
tratamentos dispensados ao usuário dos serviços de saúde mental é materializada,
garantindo direitos como: tratamento com dignidade e respeito, visando uma
recuperação pela inserção na família, no trabalho e na sociedade; proteção contra
qualquer forma de abuso e exploração; garantia de sigilo nas informações
prestadas; livre acesso aos meios de comunicação disponíveis; recebimento do
maior número possível de informações a respeito de seu transtorno e de seu
tratamento, que deverá acontecer em ambiente terapêutico e pelos meios menos
invasivos possíveis, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.
Tais direitos, assim como outros não citados, são assegurados sem qualquer forma
de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política,
nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo
de evolução do transtorno.
A Lei - que destaca a importância da família e da sociedade como agentes no
processo de tratamento e locus de reinserção do paciente - dá uma especial atenção
à questão da internação e suas modalidades
16
, onde esta será indicada quando
os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes, exigindo uma rie de
procedimentos de modo a possibilitar um maior controle e evitar seu uso
indiscriminado, inclusive sendo vedada em instituições com características asilares.
Outro ponto significativo é a inclusão do lazer - além da assistência médica integral,
também a assistência social, psicológica, ocupacional, entre outras - como parte
integrante da internação a não ser desprezada (BRASIL, 2004a). O paciente, não
mais sendo tratado como objeto, é amparado pela Lei ao recusar sua participação
em pesquisas científicas de qualquer tipo, caso não haja vontade de sua parte ou de
seu representante legal. Um dos pontos nevrálgicos da reforma, a questão dos
pacientes com grave dependência institucional por conta de seu quadro clínico ou de
ausência de suporte social, não foi esquecida. A Lei prevê uma política específica
de alta planejada e de reabilitação psicossocial, a ser supervisionada por técnicos
16
Internação voluntária: aquela que se com o consentimento do usuário;internação involuntária:
aquela que se sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e internação compulsória:
aquela determinada pela Justiça.
38
qualificados e sob a responsabilidade de entidades competentes designadas para tal
empresa. (BRASIL, 2004:17-19).
Não é necessária uma leitura e uma análise de todos os itens contidos na Lei
10.216 para verificarmos a grande atenção dispen sada à redefinição da
assistência prestada ao usuário dos serviços de saúde mental, agora comprometida
com o investimento em sua vida social, com sua absorção pela sociedade. É bem
verdade que muitos são os entraves ainda a serem superados.
Se considerarmos que os movimentos pela reforma na saúde mental e pela reforma
psiquiátrica contemplam o trabalho como meio de ressocialização, podem parecer
estranhos os casos em que um portador de algum transtorno mental, cujo quadro se
encontra estabilizado, se esforce para ser considerado incapaz de trabalhar.
Segundo Bezerra,
A psiquiatria e a justiça, ao decretarem incapacidade civil do louco
(superpondo-a à incapacidade laborativa), acabam traindo a vocação de
proteção da inspiração legal, e mergulham o louco num limbo social. A
possibilidade de reconhecimento social enquanto sujeito, membro efetivo da
coletividade, item de crucial importância em qualquer projeto terapêutico de
recuperação da autonomia pessoal, torna-se extremamente problemática,
quando não impossível (BEZERRA, 1994:185-186).
Mais coerente seria pensar em um trabalho adequado às possibilidades e limitações
do “doente.” Mas, como forma de dar conta de tantas necessidades materiais
impostas pelo Sistema e negligenciadas pelo Estado, existe um grande movimento
de busca por uma “aposentaria por invalidez”, em um processo de abrir mão do
direito ao trabalho garantido pela Constituição(BRASIL, 1988).
Acreditamos ser este um bom exemplo para a afirmação de que, no caso do
Brasil, “a tarefa principal ainda hoje é a de construir a cidadania
17
no país, e não o
de simplesmente reivindicá-la.”(BEZERRA, 1994:186).
Hoje, o campo da saúde mental no Brasil difere em muito da época em que
surgiu o Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), quando a luta pela
reforma havia começado. As ideias amadureceram através das muitas experiências
renovadoras do decorrer deste período. Com a maturidade do movimento, surgiu a
consciência de que o sofrimento psíquico é singular, em suas ltiplas e complexas
manifestações, fato que sustenta com mais propriedade a certeza de que é
17
Não nos deteremos a uma análise crítica que tal conceito merece e nos limitaremos a pensar
apenas nos direitos, que se convencionou serem considerados a ele intrínsecos.
39
inconcebível um mesmo tratamento para todas as manifestações da loucura. Daí a
necessidade de não se negligenciar a importância e o direito às diferenças, só
possível na prática através do respeito, da tolerância e da solidariedade:
Não basta destruir o manicômio: é necessário superá-lo, e isso implica ir
muito além de uma reprogramação física ou técnica. Implica atacar as
raízes e estruturas do paradigma ou da cultura manicomial, em todos os
seus aspectos(BEZERRA, 1994: 181).
Entendemos que o investimento em novas tecnologias terapêuticas de
qualquer natureza influenciam muito pouco o decurso do transtorno, quando as
variáveis encontradas no contexto do paciente não são levadas em consideração em
todos os seus níveis de complexidade. E quando falamos em variáveis, nos
referimos não ao preconceito, ainda tão arraigado na sociedade, que encontra
grandes dificuldades em acolher a diferença oferecida pelo paciente psiquiátrico,
mas, também, as necessidades materiais deste paciente. Necessidades que,
potencializadas pela exclusão, muitas vezes inviabilizam não o tratamento, mas
também a vida social, ambos indissociáveis. A eliminação progressiva de leitos ou o
fechamento de clínicas que não se adéquam aos novos tempos do campo da saúde
mental o são o suficiente. Até a alta, quando não planejada, pode possibilitar
novos problemas para o paciente, sua família e a sociedade. Tal constatação se
deu através de uma alteração sem precedentes do contingente manicomial do Brasil
e do mundo, como fruto das reformas, por conta de um processo de
desospitalização do usuário internado, nem sempre suportado por uma devida
desinstitucionalização.
18
O que é certo é que uma grande massa de pacientes psiquiátricos
abandonada, mas não mais contida e vigiada, faz surgir problemas
gigantescos às famílias de origem, às autoridades sanitárias, à coletividade.
(SARACENO, 2001a:23).
Através de estudos epidemiológicos, colocou-se em dúvida a evolução
“natural” de determinados transtornos mentais à cronicidade e à internação. Foi
18
Superação da dependência dos pacientes do aparato institucional psiquiátrico, hospitalar ou não,
ocasionada quer por motivos de cronificação, quer por falta de suporte de toda ordem após a
alta(SARACENO, 2001a). Fica claro, portanto, que a ideia de institucionalização utilizada pelos
autores reformistas difere da utilizada pelos analistas institucionais.
40
percebido que a cronificação
19
não é necessariamente intrínseca ao transtorno
mental, mas às variáveis passíveis de intervenção que se encontram ligadas aos
contextos microssociais - família e comunidade.
Com tantas e singulares necessidades por parte dos pacientes, internados ou
não, bem como de suas famílias, constatou-se a importância de dispositivos que
oferecessem serviços substitutivos ao modelo asilar. Serviços que dessem conta
das necessidades dos pacientes em sua reinserção na sociedade, após sua
desospitalização, ou um suporte necessário para que pacientes nunca internados
não necessitassem do aparelho hospitalar. Serviços, enfim, que pudessem
considerar as singularidades e contextualizações tão necessárias para que um
retrocesso ao reducionismo do sintoma, nunca extirpado totalmente, não ganhasse
espaço novamente. Tais serviços deveriam trabalhar em sinergia, de modo a, cada
um em sua especificidade, dar conta das heterogeneidades do sofrimento psíquico.
Com base em erros e acertos resultantes de experiências diversas, e,
principalmente, com o respaldo de leis federais, constitui-se uma rede de serviços
com o objetivo de resgatar a dívida da sociedade com os “loucos”, oferecendo-lhes
melhor qualidade nos serviços de saúde.
Hoje, essencialmente pública e de base municipal, a Rede de Atenção à
Saúde Mental possui um controle social fiscalizador e gestor no processo de
consolidação da reforma psiquiátrica, sendo constituída por diversos dispositivos
substitutivos ao hospital psiquiátrico que, adequados aos princípios norteadores do
SUS, o responsáveis pela assistência à pessoa portadora de transtorno mental e
sua família. Entre eles, encontramos os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS),
Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência, Ambulatórios de
Saúde Mental e Hospitais Gerais.
A articulação em rede de tais dispositivos é de fundamental importância para a
confecção de uma teia de referências em condições de acolher a pessoa com
transtorno mental. Necessário dizer que tal rede não se esgota nos limites da saúde
mental. Ela ganha corpo e relevância através da intersetorialidade, tão defendida e
praticada pelos reformistas italianos. A criatividade e o improviso que permeiam os
esforços de busca por soluções nesta lida possibilitaram o surgimento de parcerias
19
Efeito iatrogênico causado pela longa permanência em regime asilar e/ou utilização indiscriminada
de psicofármacos; sofrimento resultante do isolamento, da exclusão, do estigma e do preconceito,
potencializado por excessos em tratamentos rudimentares e violentos.
41
entre o município e diversas instituições, associações, cooperativas; objetivando
uma complementação das ofertas de serviços oferecidas pelo poder público. Esta
rede de base comunitária encontra-se, então, voltada para todos os espaços da
sociedade que, de alguma forma, podem contribuir para promoção da
desinstitucionalização, seguindo o exemplo italiano, dos sujeitos portadores de
transtornos mentais.
Assim, podemos entender que se por um lado foram necessários anos de luta
e a mobilização de vários setores da sociedade para que a preocupação com os
direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais fossem garantidos por lei,
por outro, novos investimentos de tempo e afeto são necessários para se colocar em
prática tudo o que foi aprovado pelo Poder Legislativo. Muito do que se entende
como resposta para tal desafio é corporificado em políticas de reabilitação
psicossocial, termo este presente textualmente nas Leis 10.216 e 10.708
20
.
1.2.3 A Clínica na Política
O termo “reabilitação psicossocial” surgiu na década de 1940, nos Estados
Unidos, através de um movimento organizado de ex-pacientes de hospitais
psiquiátricos chamado WANA We are not alone
21
. Este movimento, que nas
décadas seguintes desdobrou-se em vários outros, dedicou-se à luta pela inserção
no mercado de trabalho e condições de moradia para os ex-internos(GUERRA,
2004). Embora a questão da (re)inserção do paciente na sociedade fosse
amplamente discutida no Brasil mais de uma década, foi com a chegada da
World Association for Psychossocial Rehabilitation (WAPR), em 1995, que o uso do
termo reabilitação psicossocial se popularizou, através dos agenciamentos
produzidos pelos profissionais vinculados à tal associação(PITTA, 2001).
Segundo Ana Pitta(2001), a expressão reabilitação psicossocial está
fundamentalmente associada a várias iniciativas e práticas articuladas em graus
diversos que buscam reduzir o efeito iatrogênico e incapacitante dos “tratamentos”
20
Lei Federal promulgada em 31 de julho de 2003, que institui o auxílio-reabilitação psicossocial para
pacientes com transtornos mentais egressos de longas internações; auxilio este de caráter
pecuniário, parte integrante de um programa de ressocialização denominado “De Volta Para Casa”,
coordenado pelo Ministério da Saúde.
42
psiquiátricos tradicionais. No entanto, ao pensarmos em uma conceituação,
devemos ter em mente que
Definição e pressupostos suscitam múltiplas interpretações e, se
observarmos as diferentes experiências que têm usado a sigla Reabilitação
Psicossocial para se legitimarem, podemos perceber que tantas serão as
versões quantas sejam as experiências concretas que foram ou estejam
sendo desenvolvidas nos diferentes lugares do planeta. (PITTA, 2001:20).
Em meio a esta multiplicidade de práticas ditas “psicossocialmente
reabilitativas”, haviam muitos autores comprometidos com esta sigla, dentre eles
Benedeto Saraceno, que defendia a reabilitação enquanto necessidade ética, e não
apenas técnica, sendo importante seu reconhecimento não apenas por parte de
profissionais representantes de várias formações acadêmicas, mas, também, da
sociedade em todos os seus segmentos(SARACENO, 2001b). Saraceno,
presidente da WAPR em meados da década e 1990, afirmava que reabilitação
psicossocial não era uma tecnologia, mas uma estratégia, e nos alertava para o
risco de incorrermos em um reducionismo a uma técnica específica, na tentativa de
darmos um significado para tal expressão.
Para melhor pensar o sentido da reabilitação psicossocial, tal como defendido
em sua chegada no contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira, Saraceno lançou
mão de um importante conceito, muito caro em seu significado o apenas aos
reformistas brasileiros, mas, também, aos italianos, seus predecessores: a
contratualidade, poder ou capacidade contratual; a capacidade de um indivíduo de
produzir, gerar valor próprio, valorar-se socialmente.
O autor esquematizou os espaços de atuação dos indivíduos em suas
produções de valor social nos cenários habitat, mercado e de trabalho: “É dentro
destes cenários que temos o desenrolar das cenas, das histórias, dos efeitos de
todos os elementos: dinheiro, afetos, poderes, símbolos, etc.”(SARACENO,
2001b:15). É nestes cenários em que todos possuímos, segundo o autor, um maior
ou menor grau de contratualidade. Na falta do poder contratual, surge, então, a
necessidade da reabilitação psicossocial.
Assim como Saraceno, Roberto Kinoshita lançou mão do conceito de
contratualidade para explicar a importância da reabilitação psicossocial no contexto
do processo reformista brasileiro. Kinoshita afirma que
21
“Nós não estamos sozinhos.”
43
no universo social, as relações de trocas são realizadas a partir de um valor
previamente atribuído para cada indivíduo dentro do campo social, como
pré-condição para qualquer processo de intercâmbio. Este valor
pressuposto é o que daría-lhe o seu poder contratual(KINOSHITA,
2001:55).
Se Saraceno contribuiu para um maior entendimento acerca do exercício de
poder contratual com sua ideia de cenários, assim também o fez Kinoshita, ao
sugerir três dimensões consideradas por ele como fundamentais na contratualidade
social: a troca de bens, de mensagens e de afetos (KINOSHITA, 2001:55). Este
autor ainda ressalta a especificidade da pessoa que é entendida como portadora de
transtorno mental, uma vez que tal condição traz, intrinsecamente, uma negatividade
em todas as dimensões de troca. Seus bens são suspeitos, suas mensagens
incompreensíveis ou questionáveis e seus afetos desnaturados. A única
positividade do indivíduo com transtorno mental é, então, sua condição de paciente,
o que raramente é questionado. Dessa forma, reabilitar seria o processo de
recuperação, de restituição ou o aumento do poder contratual do paciente. Em
outras palavras, partir de uma pressuposição de desvalor natural para uma
proposição de valor possível, apostando em um incremento na autonomia do
suposto paciente com transtorno mental. Autonomia que nada tem a ver com a ideia
de auto-suficiência ou independência, mas sim, com a capacidade do indivíduo em
gerar normas ou ordens para a sua vida, de modo a dar conta de todas as situações
nas quais se encontra
22
. Segundo Kinoshita, somos mais autônomos na medida em
que nos relacionamos e descentralizamos, distribuímos nossa dependência por um
maior número de coisas e pessoas, na medida em que isto nos faculta o
estabelecimento de mais normas e ordenamentos para a vida (KINOSHITA, 2001:
57).
Assim, concluímos que a reabilitação psicossocial “seria, então, um processo
de reconstrução, um exercício pleno de cidadania”(SARACENO, 2001b:16), o que
abriu espaço para uma crítica a toda e qualquer iniciativa de reduzir ou confundir o
processo de reabilitação com atividades ocupacionais, terapêuticas ou não, como a
confecção de cinzeiros ou oficinas de artes plásticas. Nada impede que, no
22
Uma abordagem detalhada acerca da ideia de geração de normas tal como aqui a pensamos pode
ser encontrado em: CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1995.
44
processo de construção ou recuperação de sua contratualidade o paciente não se
utilize de tais recursos, desde que eles sejam um meio, e não um fim.
Saraceno, assim como outros autores, também trouxe para o debate a
importância de se pensar nas variáveis interferentes no processo /prática da
reabilitação psicossocial. No raciocínio deste autor, tais variáveis se distribuem em
dois grandes extremos, um micro e um macro. No primeiro, encontra-se o nível da
afetividade e da continuidade, que “é o real vinculo paciente-profissional, ou seja, o
gasto de tempo, energia, afetividade, etc”(SARACENO, 2001b:17). no segundo,
encontra-se a forma pela qual o serviço é estruturado, tanto nas suas condições
materiais de possibilidade quanto em sua relação de imanência com seu contexto
sócio-político: condições oferecidas para o seu funcionamento, implicação por parte
dos profissionais, aderência por parte dos usuários e familiares, etc.
Foi desta maneira que a reabilitação psicossocial ficou entendida, não como
uma técnica a ser aplicada assepticamente livre de fatores sócio-políticos, mas sim
uma estratégia cujo sentido devesse ser constantemente revisto e posto em análise,
e que pudesse ajudar o paciente em sua negociação com o meio em que este se
encontre, de modo que suas necessidades e direitos fossem garantidos. Por este
motivo é que no Brasil as práticas territoriais foram imprescindíveis aos propósitos
reabilitadores,
articulando diferentes serviços comunitários: centros ou núcleos de atenção
psicossocial, cooperativas de trabalho, moradias assistidas, ateliês
terapêuticos e centros de ajuda diária de diferentes tipos.(PITTA, 2001:22).
A ideia de territorialidade dita a estratégia utilizada na organização da rede de
atenção psicossocial em nosso país, orientando todas as ações e dispositivos nela
inseridos. Uma influência direta da Psiquiatria Democrática Italiana, a noção de
território nos leva a pensar em um campo de ação delimitado de acordo com
costumes, saberes e práticas diversas ou, em outras palavras, o que caracteriza
uma determinada comunidade. Dessa forma, procura-se garantir o respeito às
características sócio-culturais da pessoa assistida, não as transformando em
sintomas. Não é trabalhando na comunidade, ou para a comunidade, mas sim com
a comunidade que se pensa em
45
resgatar todos os saberes e potencialidades dos recursos da comunidade,
construindo coletivamente as soluções, a multiplicidade de trocas entre as
pessoas e os cuidados em saúde mental. (BRASIL, 2005:21).
Mesmo com todo o entusiasmo na acolhida, em um primeiro momento, da
expressão “reabilitação psicossocial”, com o passar do tempo a ideia não foi
poupada de críticas, como as de Venturini et al. (2003), que a acusam de
inadequada ao universo dos transtornos mentais, não apenas por seu caráter
ortopédico o que a sua adoção uma conotação de “pecado original” - mas
também pela necessidade de “normalização” sugerida em tal prática, onde atribui-se
um caráter puramente negativo, de estigma, à tantas formas singulares de se estar
no mundo
23
. Essa reabilitação, facilmente entendida como adequação de pessoas a
uma forma de funcionamento ditada por uma maioria, induz à ideia de um passado
que desqualifica o presente, de algo a ser recuperado. No entanto, se observarmos
o sem-número de casos atendidos diariamente na rede, verificaremos que, na
maioria das vezes, a “habilidade” que se deseja recuperar nunca existiu. Daí a
proposta dos autores de uma substituição do termo “reabilitação” por “habilitação”,
termo ainda insuficiente, segundo eles, por “reter uma nota pedagógica, fortemente
descritiva” (VENTURINI et al., 2003:60) e não considerar a vontade de quem é
cuidado de querer ou não, e quando, ser habilitado. Se por um lado certa proteção
faz-se necessária em determinada fase do tratamento, os autores chamam a
atenção para a necessidade de se evitar uma “unidirecionalidade ‘terapeuta versus
paciente’” (VENTURINI et al., 2003:60)e de se buscar uma reciprocidade entre
ambos, uma vez que apenas o paciente pode se habilitar.
Estas e outras críticas voltadas para a noção de reabilitação em nada
comprometem a utilização da categoria “psicossocial”, presente na terminologia
reformista desde o início, no sentido de sugerir uma superação do reducionismo
biomédico e afirmar a importância de vários outros saberes e práticas, antes
ignorados ou admitidos em um segundo plano no campo da saúde mental.
1.3 Por uma revisão de conceitos
46
Muitos são os profissionais, usuários de serviços, e movimentos
diversos que se opõem ao uso do termo “doença mental”, acusando este de
reducionista e sustentador do modelo biológico de entender e intervir no fenômeno
(OMS, 2005). Assim, este termo tem sido substituído em grande parte da literatura
mais recente, inclusive nos documentos mais reconhecidos internacionalmente
como o CID-10 e o DSM-IV, por “transtorno mental.” Substituição esta que não
ocorre sem dificuldades e impasses, uma vez que um intenso e ainda inconcluso
debate acerca das condições que definem o transtorno mental parece estar longe do
fim. A Organização Mundial da Saúde identifica, por exemplo, limites diversos para
a categoria transtorno mental, a variarem de acordo com o contexto de cada país.
Em alguns países, segundo a Organização, considera-se transtorno mental apenas
os casos mais graves, onde são necessários a internação e/o tratamento
involuntários; em outros, a categoria é utilizada de forma mais ampla, de modo a
estender-se e defender-se os benefícios da legislação vigente a um maior número
de pessoas(OMS, 2005).
o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, DSM-IV,
reconhece que a expressão transtorno mental implica uma distinção entre a
categoria “física” e a categoria “mental”, um “anacronismo reducionista do dualismo
mente/corpo”(DSM-IV,1995:xx) que exemplifica como as dificuldades criadas pelo
uso do termo em questão o mais nítidas do que as soluções desejadas. Segundo
seus autores, a expressão continua no título do manual porque ainda não foi
encontrado um substituto apropriado:
[...]embora este manual ofereça uma classificação dos transtornos mentais,
devemos admitir que nenhuma definição especifica adequadamente os
limites precisos para o conceito de “transtorno mental.”(DSM-IV, 1995: xx).
Então, podemos concluir que, por não apresentar uma definição operacional
que contemple todas as experiências, o termo transtorno mental é constantemente
qualificado de “leve”, “moderado”, “severo”, “em remissão parcial”, “remissão
completa” ou “história prévia”(DSM-IV, 1995:02).
Nossa crítica, neste caso, se direciona ao caráter ambíguo deste critério, que
parece ser útil apenas para incluir o maior número possível de fenômenos
23
Muitos outros autores e trabalhadores compartilhavam desta crítica, como Ana Pitta, que ressaltou
o prejuízo de valor trazido pela expressão “reabilitação”, por impor um sentido de recobrança de
47
observados na categoria transtorno mental, ampliando seus limites em um processo
continuo de psicopatologização da vida e, consequentemente, ampliando também a
influencia da psiquiatria.
Mais recente encontramos a variação “transtorno mental comum”, que se
refere às situações em que os usuários dos serviços não preenchem os critérios
para diagnósticos de outros transtornos, mas que
apresentam sintomas proeminentes que trazem uma incapacitação
funcional comparável ou até pior do que quadros crônicos bem
estabelecidos.[...] esse quadro clínico, em geral, não faz os pacientes
procurarem a assistência necessária, e muitas vezes, quando procuram
esta assistência, são subdiagnosticados, podendo, desta forma, não
receber o tratamento adequado. No campo da atenção primária, ou da
prática médica não-psiquiátrica, isto se torna ainda mais relevante se
levarmos em consideração a presença de comorbidades, que acabam por
agravar o prognóstico de ambos os problemas, tanto por piora do quadro
clínico principal, quanto por aderência inadequada aos tratamentos
propostos(MARAGNO et al, 2006:1639-1640).
Não vemos no uso da categoria transtorno mental comum outra utilidade que
não a mesma do uso das qualificações “leve”, “moderado” e “severo”: uma forma de
incluir o que antes não fazia parte do objeto de investigação e intervenção da
psiquiatria.
Além de variações, muitas vezes o termo transtorno mental é substituído -
ainda na tentativa de se melhor explicar os fenômenos narrados - por vários outros,
como desvantagem, incapacidade, síndrome, desvio e, mais comumente, sofrimento
psíquico. É, talvez, no texto da Lei 9.716, de 7 de agosto de 1992 que este
último aparece pela primeira vez em um documento oficial. Tal lei
Dispõe sobre a Reforma Psiquiátrica no Rio Grande do Sul, determina a
substituição progressiva dos leitos nos hospitais psiquiátricos por rede de
atenção integral em saúde mental, determina regras de proteção aos que
padecem de sofrimento psíquico, especialmente quanto às internações
psiquiátricas compulsórias e outras providências(BRASIL, 2004a:63,
grifo nosso).
Segundo Portela(2006), a utilização da categoria sofrimento psíquico visibilidade
à experiência singular em seu caráter intermitente, sendo situada nas relações
cotidianas e concretas estabelecidas com o mundo. Uma das justificativas mais
importantes usada pelos adeptos de tal termo é o fato da categoria sofrimento
crédito, estima ou bom conceito perante a sociedade”(PITTA, 2001:23).
48
psíquico contribuir para uma restituição à condição humana daquilo que não pode
ser ignorado ou excluído, uma vez que o sofrimento é inerente à condição de ser
humano(FREITAS; RIBEIRO, 2006).
O uso de tal categoria não se sustenta, no entanto, quando consideramos que
nem todo fenômeno eleito pela psiquiatria como objeto de investigação próprio
comporta, segundo as próprias descrições psicopatológicas, a experiência de
sofrimento. Além disso, a definição ou qualificação do que se pode chamar de
sofrimento é por demais ambígua, podendo ser interpretada e/ou qualificada de
várias formas. Este fato é o suficiente para causar alguma confusão, quando nos
vemos diante da necessidade de separar o que é “sofrimento psíquico”, no sentido
de objeto de cuidado da psiquiatria, do que é apenas sofrimento. Daí surge outro
risco, o de, objetivando ressaltar a condição humana do fenômeno, acabar por
contribuir para uma ampliação ainda maior da influencia da psiquiatria na vida das
pessoas (FREITAS; RIBEIRO, 2006). Não podemos ignorar outra ressalva não
menos importante. Muito se falou e se fala no processo da reforma psiquiatria em
relação a dar voz ao usuário dos serviços de saúde mental. No entanto, a idéia de
sofrimento remete a uma experiência singular e única. Com que autoridade
podemos dizer que determinado caso atendido em um serviço qualquer é, de fato,
um sofrimento? Em outras palavras, sendo a experiência de sofrimento única,
singular e intransferível, como usar tal categoria sem que interpretemos ou usemos
de juízo de valor para qualificarmos uma experiência que não é de quem cuida, mas
de quem é cuidado?
Não reconhecemos no uso do termo sofrimento psíquico, portanto, uma
prática isenta de impasses e dificuldades. Mas seu uso se popularizou, a partir do
Relatório Final da Conferência de Saúde, realizada em 2001 (MORENO;
ALENCASTRE, 2009; KANTORSKI et a.l, 2006). No entanto, o que se observa é
menos uma forma de dar visibilidade a aspectos não valorizados pela categoria
transtorno mental, e mais como sinônimo desta última
24
.
Assim, escolhemos chamar, ainda que provisoriamente, os fenômenos em
sua diversidade de transtornos psicossociais. Nossa escolha não abriga nenhuma
tentativa de se “dar contada inclusão de todas as possibilidades de fenômenos
24
“Transtornos mentais = doença mental, sofrimento psíquico”(BRASIL, 2004b, p. 49).
49
atendidos em suma simples categoria
25
. Aliás, nossa intenção não é fechar todas as
experiências singulares, com as quais os serviços de saúde mental se ocupam, nos
limites rígidos de um único conceito. Antes, pensamos justamente em um termo
que, paradoxalmente, não termine com as possibilidades de pensar os fenômenos
em questão, mas as multiplique. Pelo mesmo motivo, para nos referirmos ao campo
de atuação com o qual nos ocuparemos nos próximos capítulos, substituiremos a
expressão “saúde mental” pela “atenção psicossocial”. A primeira foi até aqui
utilizada pelos simples fato de ser a mais presente nos discursos do campo em
questão. a segunda, existente desde os primeiros anos do processo reformista,
foi por nós escolhida no sentido de melhor refletir toda a discussão acerca da
ampliação dos horizontes de cuidado dispensado às pessoas ou situações de
transtorno psicossocial. É sobre o que se fala e o que se faz deste/neste cuidado
nos dias atuais que nos deteremos no capítulo seguinte, de modo a entendermos
para onde o processo reformista tem nos levado.
25
Mais será discutido sobre a forma de nos relacionarmos com o objeto de um determinado campo
de saber no terceiro capítulo deste trabalho.
50
CAPÍTULO 2
REFORMA PSIQUIÁTRICA E SEU CARÁTER PROCESSUAL: DESAFIOS QUE
SE ATUALIZAM EM UMA DISPUTA DE SENTIDO
No primeiro capítulo, buscamos mapear algumas das influências sofridas e
mudanças operadas no campo da atenção psicossocial no país, no que se
convencionou chamar Reformar Psiquiátrica Brasileira. Observamos a contribuição
de outro processo reformista para as práticas em atenção psicossocial no país,
conhecido como Reforma Sanitária Brasileira. Neste processo reformista,
observamos acontecimentos importantes, como a ampliação do conceito de saúde,
que se refletiu em importantes apostas no processo da reforma psiquiátrica, como a
luta contra o reducionismo operado pelo saber psiquiátrico. Trata-se de uma
trajetória na qual observamos inquietações que engendraram novas formas de se
pensar, dizer e praticar o cuidado que, por sua vez, causaram e ainda causam novas
inquietações.
As inquietações continuam, e elas são parte constituinte do campo da
atenção psicossocial. Continuaremos nosso trabalho buscando operar um recorte
histórico no processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira através da análise de
algumas críticas importantes às práticas atuais, que movimentam esforços clínicos e
políticos no campo em questão.
2.1 Cenário Atual
Através dos processos reformistas na atenção à saúde no Brasil, muitos
foram os esforços para a formulação e institucionalização dos princípios do Sistema
Único de Saúde, fundamentando ações concretas na busca por serviços que se
adequassem às necessidades da população. Se por um lado a criação do SUS foi
um importante passo para a democratização das condições de bem-estar do povo,
enquanto política que favorece a promoção da saúde em sua forma mais ampla, por
51
outro, a reforma na saúde brasileira, sempre inacabada, ainda não conseguiu atingir
seus objetivos (CAMPOS, 2009).
O Campo da Atenção Psicossocial Brasileira, parte integrante do SUS, não é
poupado de críticas. É lugar comum que nem todos os usuários dos serviços
disponíveis contam com seus direitos garantidos através da prática do cuidado,
embora os mesmos direitos estejam garantidos por um corpo complexo de leis
resultantes do processo reformista brasileiro. Leis que defendem os princípios e
diretrizes que norteiam as políticas da saúde desde a Constituição de 1988.
Após três décadas desde o início da Reforma Psiquiátrica Brasileira,
contamos com um modelo de atenção composto por ações e programas específicos,
que sintetizam os esforços por uma superação do modelo hospitalocêntrico e
manicomial, contra o qual tem-se lutado. No entanto, o modelo substitutivo que
corporifica as políticas reformistas de saúde está longe de ser consenso, assim
como a hegemonia do saber biomédico, também alvo da reforma brasileira,
encontra-se em constante atualização.
O cenário atual da atenção psicossocial continua, pois, marcado por pontos
de tensão importantes, disputas que acusam o caráter processual e sem fim da
Reforma Psiquiátrica Brasileira. Em outras palavras, falamos da estratificação de
um determinado momento do processo reformista, cujas disputas e embates devem
poder legitimar a própria democracia que possibilitou não apenas a reforma
psiquiátrica, mas, também, a constituição do Sistema Único de Saúde.
Dividimos as críticas que marcam a atenção psicossocial no Brasil se não
em sua totalidade, pelo menos em sua grande maioria em dois grandes
movimentos. Delimitamos o primeiro como aquele composto por críticas à proposta
do modelo substitutivo de atenção psicossocial. o segundo movimento é por nós
delimitado como aquele que reúne as críticas às tendências reducionistas do/no
cuidado, que tanto caracterizam o modelo antigo e que, longe de se enfraquecerem
com as investidas reformistas, acabaram por ser reforçadas com o advento das
neurociências. Em outras palavras, nos referimos a movimentos de críticas feitas à
reforma psiquiátrica, bem como de críticas feitas pela reforma psiquiátrica. Esta
divisão de movimentos, facilmente problematizada, se considerarmos todas as
dissensões dentro do próprio movimento reformista, é fruto de uma escolha
arbitrária, uma tentativa de darmos continuidade à construção de nosso problema.
Perceberemos, no entanto, que se é fácil distinguir e identificar como antagonistas
52
as apostas ou movimentos por nós destacados, a distinção entre o que se produz
em cada intervenção reducionista e contra o reducionismo não é tão fácil de
ser feita.
Nesse contexto, onde os movimentos críticos se alteraram nos lugares de
“situação” e “oposição” em uma relação de tensão que é a própria história da
Reforma Psiquiátrica Brasileira, onde o “novo” e o “velho” convivem e se negam
mutuamente, nos deteremos em alguns dos principais pontos de tensão localizados
em críticas que tentaremos analisar.
Com esse intento, contaremos com a ajuda não de autores da reforma
psiquiátrica, mas também de teóricos que se ocupam com alguns dos princípios
norteadores do Sistema Único de Saúde. Isso porque, entendemos o Campo da
Atenção Psicossocial Brasileira como parte integrante do SUS, estando suas
políticas e práticas específicas necessariamente subordinadas à legislação deste
último. Assim, achamos não apenas pertinente, mas necessária, uma reflexão,
ainda que breve, sobre o conteúdo das críticas que marcam a atenção psicossocial
à luz de alguns dos princípios presentes na Lei 8.080.
Nos debruçaremos sobre essas críticas visando primeiramente um
entendimento do atual momento da atenção psicossocial no país e, posteriormente,
pensarmos
como a clínica pode ajudar na superação dos embates e disputas que
compõem o campo em questão.
2.1.1 Investidas contra o modelo substitutivo
Em artigo publicado no site da Associação Brasileira de Psiquiatria, Josimar
França(2006), então presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, ataca o
Programa de Saúde Mental do Ministério da Saúde. Em seu texto, Josimar acusa os
dirigentes do programa de, “por desinformação ou interesses ocultos” - e com base
em “antigos preconceitos”, bem como adotando um viés populista” -, desmantelarem
esforços de muitos anos, “promovidos por pessoas realmente comprometidas com a
saúde mental”.
Os argumentos utilizados para a implementação do Programa de Saúde
Mental, segundo o autor, fugiram de critérios clínicos e foram fundamentados na
percepção equivocada de que todos os pacientes internados sofriam maus tratos,
53
ignorando “anos de pesquisa científica que atestam a internação como procedimento
adequado.” Josimar acusou os servidores de manipulação da opinião pública,
através do “ressuscitamento” do conceito de manicômio e sua carga pejorativa,
dando à discussão um aspecto sensacionalista. Segundo ele, os mesmos
servidores limitaram os recursos destinados aos hospitais psiquiátricos, o que
contribuiu para que muitas instituições tivessem sua capacidade de atendimento
comprometida. As condições precárias foram, então, segundo o autor, exploradas
pela mídia.
“Em seguida, numa movimentação batizada de ‘reforma psiquiátrica’ (como
se a especialidade médica necessitasse de reforma...), fecharam leitos em
hospitais públicos, vejam bem, públicos, e posaram de ‘salvadores da pátria’
para os flashes. Quem precisa de reforma é o modelo assistencial e não os
médicos” (FRANÇA, 2006:s/p).
O autor acusa a Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde de não ter
apresentado alternativas vveis para a continuação do tratamento dos “desalojados
com o fechamento dos leitos psiquiátricos.” Muitos simplesmente voltaram para
casa, sem assistência, situação essa que, segundo ele, continua até hoje, graças às
“ações governamentais equivocadas” que se traduzem em falta de tratamento
adequado.
Assim, Josimar anuncia que, representados pela ABP, os psiquiatras
defendem uma promoção de campanhas de esclarecimento público, por acreditarem
que suas sugestões foram desconsideradas pelo Ministério da Saúde nos últimos
anos.
Talvez por esse motivo, percebemos um aumento em número e intensidade
de investidas contra o atual modelo de atenção psicossocial brasileiro. Dentre
várias, destacamos a matéria de página inteira publicada no jornal O Globo no dia
09 de dezembro de 2007 - um domingo, dia da semana no qual a tiragem pode
chegar a 405.0000 exemplares, contra aproximadamente 291.000 nos outros dias
(IMPELLIZIERE, A. et al., 2008)
-, através da qual a jornalista Soraia Aggege(2007)
diz que, no Brasil, existem 16,5 milhões de pessoas com algum transtorno mental
26
em necessidade de internação. A reportagem, sob o título Sem hospícios, morrem
mais doentes mentais”, é composta por dados e depoimentos de médicos, familiares
26
Respeitamos a utilização dos diversos termos encontrados nas matérias citadas.
54
e pacientes. Organizados sistema e estrategicamente, as informações divulgadas
pela matéria colocam em questão a política de atenção psicossocial no Brasil acerca
da substituição gradativa de leitos psiquiátricos por dispositivos alternativos à
internação. Em um dos depoimentos presentes na reportagem, Wagner Farid
Gattaz, presidente do Instituto de Psiquiatria da USP, afirma que “desinternar
pacientes é o objetivo dos médicos”, [...]“despejá-los nas ruas tem sido a ação do
governo.”(AGGEGE, 2007:14) O presidente da Associação dos Amigos e Familiares
de Doentes Mentais da Bahia, Gilson Magalhães, denuncia ao jornal O Globo que
clínicas de fachada têm ganhado espaço, ficando com a aposentadoria dos doentes
que, “ficam fechados, sem tratamento nem fiscalização. Gilson Magalhães denuncia,
ainda, a existência de doentes abandonados nas ruas,“confundidos com andarilhos,
mendigos ou criminosos” (AGGEGE, 2007:14).
Meses antes, no dia 24 de agosto, foi divulgada uma nota no site da ABP
sobre um filme nacional chamado “Omissão de Socorro”, que aborda o tema da
desospitalização psiquiátrica. Segundo a nota, o filme exibido em 12 de outubro do
mesmo ano, durante o XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, procura dar voz às
famílias pobres que sofrem com uma suposta falta de assistência. Isso por que,
segundo o cineasta Olívio Tavares de Araújo, produtor do filme, os ricos sempre
terão hospitais particulares à sua disposição,[para os pobres]a política de extinção
de leitos psiquiátricos no sistema público de saúde tornou-se causa de um
sofrimento complementar e desnecessário” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
PSIQUIATRIA, 2007, s/p.).
Outras críticas não provenientes de teóricos ou profissionais da saúde
compõem o movimento dos “anti-reforma”. Talvez a mais atual e polêmica seja a
manifestação
intitulada Uma lei errada, publicada por Ferreira Gullar em 12 de abril
de 2009 no jornal Folha de São Paulo. Em seu texto, o poeta (pai de dois filhos
usuários de serviços de atenção psicossocial, um falecido) diz que a “campanha
contra a internação de doentes mentais é uma forma de demagogia”, e
responsabiliza a falta de reflexão, de exame da realidade e “desconhecimento do
problema em questão” pela campanha dita “demagógica”, que “se funda em dados
falsos ou falsificados”. Em consonância com a intervenção feita pelo psiquiatra
Josimar França, quase três anos antes, Ferreira Gullar sugere o resgate do termo
manicômio e de sua conotação negativa, “em uma época em que aquele tipo de
hospital não existe mais”, como forma de manipulação da opinião pública. Ele
55
também afirma que, com a descoberta dos remédios psiquiátricos e o
aperfeiçoamento do uso do eletro-choque e, consequentemente, o abandono do
uso da camisa de força e outras contenções mecânicas mais radicais -, as
instituições psiquiátricas perderam o caráter carcerário e se tornaram semelhantes
às clínicas de repouso.
Talvez com base na experiência particular com seus filhos, Ferreira Gullar
afirma que, com o uso de medicamentos, o paciente não necessita de longas
internações, e que a instauração de um novo estado delirante acontecerá caso o
tratamento medicamentoso seja interrompido, restando como único recurso
terapêutico, a internação. Por fim, o poeta afirma que o tratamento ambulatorial é a
única alternativa à internação, o que, segundo ele, é suficiente apenas para os
casos menos graves e contribui para um quadro de desassistência, onde as famílias
com recursos financeiros podem pagar por internações em clínicas particulares,
enquanto os pacientes provenientes de famílias com poucos recursos “terminam nas
ruas como mendigos”.
Um último exemplo de crítica, também recente, é a intervenção do o promotor
de Justiça Reynaldo Mapelli Júnior, coordenador da Área de Saúde Pública do
Ministério Público do Estado de São Paulo, que ajuda a compor o movimento de
críticas ao modelo de atenção psicossocial atual (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
PSIQUIATRIA, 2009). O promotor exalta o foco nos direitos humanos, sustentado
pela Lei 10.216, bem como a preferência aos serviços extra-hospitalares na
comunidade, para que o tratamento ocorra perto da casa do paciente. Contudo,
Reynaldo aponta para dificuldades na aplicação da lei. Segundo ele, os gestores
do SUS, em todas as esferas de governo, ainda não conseguiram implementar as
mudanças instituídas, embora esta lei tenha sido sancionada em 2001. O promotor
explica que, embora com todo um avanço nas propostas da Reforma Psiquiatria
Brasileira, principalmente no que diz respeito à questão dos direitos humanos, os
serviços previstos na nova lei não existem em número nem em qualidade
adequados à demanda: “[...] infelizmente o poder público federal, estadual e
municipal não têm a estrutura necessária para colocar a reforma em prática
27
27
Alguns autores afirmam que os gastos com o modelo substitutivo são menores do que os que antes
eram direcionados ao modelo anterior e, inclusive, aproximam a reforma psiquiátrica no país de uma
estratégia para a redução de custos no campo da atenção psicossocial. Como exemplo, citamos o
artigo intitulado É a reforma psiquiátrica uma estratégia para reduzir o orçamento da saúde mental? O
caso do Brasil (ANDREOLI ET AL., 2007).
56
(ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA, 2009: s/p). Assim, segundo o
promotor, os “doentes mentais” ficam abandonados nas ruas ou acabam absorvidos
pelo sistema penitenciário, uma vez que os governos não cumprem o seu papel.
Observamos nos exemplos citados uma diversidade de lugares ocupados
pelos autores das críticas ao modelo substitutivo: médicos, cineasta, advogado,
poeta, amigos e familiares de usuários dos serviços, etc.. Na diversidade de
lugares, encontramos uma diversidade de supostas explicações para o
desencadeamento da reforma no Brasil: “ignorância e/ou interesses obscuros” por
parte daqueles que lutaram pelo modelo atual de atenção psicossocial; preocupação
com os direitos humanos dos usuários, etc.. Em comum, encontramos o foco das
críticas e ataques: o processo de desospitalização, ou redução de leitos psiquiátricos
- e, consequentemente, a própria Reforma Psiquiátrica Brasileira - como causa de
uma suposta falta de assistência a muitas pessoas em transtorno psicossocial. Os
argumentos utilizados na tentativa de se desqualificar o processo de
desospitalização também são marcados por certa diversidade: modelos de
tratamento “inadequados” em substituição às longas e constantes internações;
ausência de alternativas aos leitos psiquiátricos desativados; diminuição ou ausência
de investimentos no que poderia ser um modelo de atenção adequado às
necessidades da população.
Verificamos nas críticas examinadas a ausência de informações mais
detalhadas referentes ao processo de desospitalização ou redução do mero de
leitos nos hospitais psiquiátricos. Informações que podem nos ajudar no
entendimento de tal processo, bem como na validação ou não de algumas
afirmativas feitas pelos críticos anti-reformistas. Diante deste fato é que recorremos
aos dados disponibilizados pelo Datasus
28
, no sentido de compararmos o conteúdo
das críticas com a “realidade” descrita em números pelo Ministério da Saúde. Se
por um lado as informações oficiais podem e devem ser criticadas, colocadas em
análise, por outro escolhemos considerá-las como base para o nosso trabalho.
Nossa escolha se por desconhecermos, até o presente momento, pesquisa ou
estudo que desminta os dados divulgados pelo Ministério da Saúde e que esteja
28
O Departamento de Informática do SUS (DATASUS), órgão da Secretaria Executiva do Ministério
da Saúde, é responsável pela coleta, processamento e disseminação de informações necessárias à
avaliação e elaboração de programas e políticas de saúde. Maiores informações podem ser
encontradas no endereço: http://w3.datasus.gov.br/datasus/datasus.php).
57
desvinculada de qualquer interesse outro que o o cumprimento das políticas de
saúde vigentes. Também não são novidades as discussões que ocorrem quase
sempre fora do espaço acadêmico tradicional – sobre até que ponto a verba liberada
pelo Governo Federal é, de fato, utilizada pelos estados e municípios nas ações e
serviços de atenção psicossocial. Entendemos, porém, que qualquer prejuízo no
repasse de verbas não pode ser usado como argumento contra o modelo
substitutivo, uma vez que ele comprometeria todo e qualquer modelo de atenção
psicossocial.
Portanto, como a crítica aos dados informados não faz parte do escopo deste
trabalho, seguiremos com eles.
Os números abaixo nos dão uma idéia do que significa a redução de leitos no
período entre os anos de 2002 e 2006.
Leitos psiquiátricos no SUS por ano (2002 – 2006)
Fontes: Em 2002-2003, SIH/SUS, Coordenação Geral de Saúde Mental e Coordenações Estaduais. Em 2004-2005,
PRH/CNES.
O gráfico acusa uma redução de 11.826 leitos entre 2003 e 2006(BRASIL, 2007a),
uma média de 2.957 leitos por ano. Redução essa que se tornou possível através
da instituição do Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria), em 2002, e do Programa Anual de Reestruturação da
Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), em 2004. O primeiro se
constituiu em um processo anual de avaliação dos estabelecimentos psiquiátricos no
Brasil, enquanto o segundo se estruturou enquanto estratégia de redução
58
progressiva e pactuada de leitos com base em critérios bem definidos
29
. Dentre
esses critérios, destacamos os leitos dos grandes hospitais como ponto de partida
(BRASIL, 2007b), o que explica a indissociabilidade entre a redução progressiva de
leitos e de hospitais psiquiátricos de grande porte, conforme os números abaixo:
Porte dos hospitais psiquiátricos nos anos de 2002 e 2007 (até agosto)
Fontes: Em 2002, SIH/SUS, Coordenação Geral de Saúde Mental e Coordenações Estaduais. Em 2007, PRH/CNES.
Os números apontam para uma diminuição do número de grandes hospitais e
o aumento do número dos hospitais menores que, segundo a Secretaria de Atenção
à Saúde (BRASIL, 2007b), são tecnicamente mais adequados a uma boa integração
com a rede extra-hospitalar. Rede esta que caracteriza e situa o modelo de atenção
psicossocial atual em uma política substitutiva, e não meramente alternativa.
Um esclarecimento se faz necessário acerca de tal política, uma vez que as
expressões serviços substitutivos e modelos substitutivos são muito utilizadas sem
que, no entanto, fique claro o que é substituído. Para os mais desavisados ou
precipitados nos julgamentos e conclusões, o objetivo da atual política é a extinção
da internação psiquiátrica. Nada mais equivocado, se considerarmos os
investimentos relatados na tabela seguinte:
Proporção de recursos (em Reais) do SUS destinados aos hospitais
psiquiátricos e aos serviços extra-hospitalares
30
em 1997, e entre 2002 e 2006.
29
Tal programa não deve ser confundido com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, da qual é “apenas”
um importante vetor componente. Embora distintos, tais processos não podem ser pensados
separadamente, tendo em vista a influencia italiana citada no primeiro capítulo deste trabalho.
30
Os recursos destinados aos serviços extra-hospitalares contemplam gastos com medicamentos
essenciais e excepcionais, procedimentos ambulatoriais (psicodiagnóstico, consulta em psiquiatria,
terapias individuais, terapias em grupo, oficinas terapêuticas), hospitais-dia, residências Terapêuticas
e centros de atenção psicossocial (CAPS), bem como gastos com incentivos financeiros para a
implantação e qualificação de CAPS, Residências Terapêuticas. Também fazem parte desse
59
Ano
Ações e
Programas
Extra-
Hospitalares
Ações e
Programas
Hospitalares
Total
% Gastos
Hosp.
% Gastos
Extra-
Hosp.
Orçamento
Executado
Ministério da
Saúde
% Gastos Saúde
Mental/Orçam.
MS
1997 27.945.351,00 379.667.296,00 407.612.647,00 93,14 6,86 18.804.473.853,00 2,17
2002 153.866.262,20 465.960.009,17 619.826.271,37 75,18 24,82 28.293.330.622,00 2,19
2003 219.253.472,03 451.917.097,83 671.170.569,86 67,33 32,67 30.226.280.462,00 2,22
2004 270.433.103,20 463.152.462,20 733.585.565,40 63,14 36,86 36.538.018.942,00 2,01
2005 362.834.216,07 451.952.551,18 814.786.767,25 55,47 44,53 40.794.200.241,00 2,00
2006 517.478.979,39 425.802.569,33 943.281.548,72 45,14 54,86 46.185.558.742,00 2,04
Fontes: Datasus/ Coordenação de Saúde Mental.
Tais valores, divulgados pelo Datasus, permitem a constatação de que a expressiva
redução dos leitos em hospitais psiquiátricos, bem como a consequente redução
destes mesmos hospitais em número e tamanho, não autorizam as seguintes
afirmações feitas pelos opositores ao atual modelo de atenção psicossocial:
a) uma política de cortes de investimentos nos serviços de atenção
psicossocial;
b) As ações e serviços hospitalares foram “sabotados” com a falta de
investimentos, e tal sucateamento explica as péssimas condições de
atendimento criticadas pelos reformistas;
c) Não existem serviços destinados aos usuários que não são internados;
d) Existem serviços destinados aos usuários que não são internados, mas estes
não funcionam adequadamente por falta de investimentos.
Em outras palavras, verificamos um aumento gradual e constante de investimentos
nos serviços de atenção aos usuários portadores de transtorno psicossocial;
verificamos também que as ações e programas extra-hospitalares recebem um
volume de investimento consideravelmente maior do que as iniciativas
hospitalares
31
. Por último, é fato que, ao contrário das acusações, as ações e
programas hospitalares recebem atualmente um investimento maior do que
universo os gastos referentes às ações de inclusão social pelo trabalho, ao Programa de Volta Para
Casa e a outros convênios (BRASIL, 2007a).
31
Daí a resposta da Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde (DELGADO; WEBER,
2007) à crítica no artigo É a reforma psiquiátrica uma estratégia para reduzir o orçamento da saúde
mental? O caso do Brasil (ANDREOLI ET AL., 2007), citado em nota anterior.
60
recebiam durante a prática do modelo manicomial
32
. A diferença se no foco
deste investimento, explicado pelo conceito de leitos de atenção integral em saúde
mental. Trata-se de um conceito que contempla os leitos psiquiátricos em hospitais
gerais, CAPS III, emergências gerais e dos serviços de referência para álcool e
outras drogas que, juntamente com os leitos em hospitais psiquiátricos de pequeno
porte, oferecem um acolhimento integral ao paciente em crise (BRASIL, 2007b).
A tendência é de que esta rede de leitos de atenção integral, à medida de
sua expansão, apresente-se como substitutiva à internação em hospitais
psiquiátricos convencionais (BRASIL, 2007b: 29).
Assim, a substituição com a qual se ocupam as políticas e o modelo de atenção
atual, não tem como alvo as internações, mas sim o modelo hospitalocêntrico que
resume o tratamento às internações em estabelecimentos tradicionais, em geral
longas e responsáveis pela iatrogenia e exclusão contra as quais se luta no
processo reformista. Vale lembrar que a internação continua garantida na Lei
Federal nº 10.216, a partir do momento em que os recursos extra-hospitalares se
mostrarem insuficientes” (BRASIL, 2004a: 18).
Em suma, se considerarmos uma suposta falta de assistência na rede de
atenção psicossocial à população brasileira, alvo das críticas que compõem o
movimento daqueles que se posicionam contra o modelo substitutivo, e por isso
contra a reforma psiquiátrica, deveremos considerar também que tal falta jamais
poderá ser atribuída a uma ausência de políticas de saúde, investimentos, oferta de
serviços diversos e a da possibilidade de internações em casos específicos.
Assim, a falta de assistência seria explicada pura e simplesmente pela falta de
internações, ou, em outras palavras, as internações em hospitais psiquiátricos
seriam a única possibilidade de atendimento eficaz para os opositores ao atual
modelo.
32
Quando lançamos mão do termo modelo manicomial, não temos como objetivo dar um “aspecto
sensacionalista” as nossas colocações, mas, antes, marcar uma diferença: entendemos um modelo
hospitalocêntrico como aquele onde os serviços de cuidado gravitam em volta do estabelecimento
hospitalar, tal como a Psicoterapia Institucional Francesa e a Comunidade Terapêutica Inglesa,
ambos resultantes de processos reformistas específicos (AMARANTE, 2003); o modelo
manicomial, nos traz a idéia de funcionamento de depósitos (des)humanos, marcados pela ausência
de qualquer tipo de cuidado e por violências de toda ordem - como podemos verificar através de
documentos históricos que colocam a existência de tal modelo acima de qualquer suspeita ou
questionamento.
61
Logo, podemos entender que as internações em hospitais psiquiátricos
são, para os opositores ao atual modelo, a única possibilidade de atendimento
eficaz, e que a redução do número de internações compromete o acesso da
população a um serviço de atenção psicossocial com reais possibilidades
terapêuticas. Trata-se de um posicionamento no mínimo estranho, se levarmos em
consideração que as mudanças operadas pela reforma psiquiátrica foram motivadas
justamente pela constatação da total ineficiência do modelo anterior, reprodutor de
práticas e saberes reducionistas que em nada consideravam outros vetores da
existência dos indivíduos alem da sintomatologia produtiva
33
.
Também não podemos ignorar que as “segundas intenções”, atribuídas à
causa reformista por alguns de seus antagonistas, são uma explicação recorrente
para as investidas contra o modelo substitutivo atual. Muito se falou e se escreveu
sobre os jogos de interesses que alimentaram durante décadas o modelo
hospitalocêntrico, e que hoje motivam a luta pelo seu retorno. muito que as
disputas por poder, o corporativismo e os interesses mercantilistas que sustentam a
hegemonia de determinados saberes e práticas não são mais novidade. O lucro
financeiro gerado pela “indústria da loucura” em tempos não tão distantes, longe de
ser uma especulação sem fundamento, é fato comprovado por historiadores da
reforma psiquiátrica no país.
Fazemos estas observações no sentido de reconhecermos o que motivou e
ainda motiva a militância reformista com a qual nos afinamos. Assim, o fato de o
nos ocuparmos com tais jogos de interesse, não pode ser confundido com um
posicionamento “neutro” ou alheio ao que se passa nos bastidores das disputas no
campo em questão.
Não acreditamos na vilanização de toda uma classe de profissionais, inclusive
dos simpatizantes do modelo hospitalocêntrico. Foram muitos os psiquiatras que
militaram e militam no bojo do movimento reformista e muitos outros que hoje
defendem o modelo antigo sem o ter conhecido na prática, “por dentro”. O “espírito
anticlasse médica” contribui para o distanciamento de qualquer possibilidade de
diálogo, assim como cria espaço para o surgimento de atitudes dogmáticas e,
portanto, vazias de potência crítica. Antes, queremos acreditar que dentre os
opositores ao modelo substitutivo existem aqueles que não são movidos por
33
Delírios, alucinações, etc.
62
interesses econômicos ou disputas de poder, mas sim animados por uma sincera
preocupação com as necessidades do usuário e pela aposta de que a internação em
um hospital psiquiátrico é realmente o melhor ou único recurso terapêutico. Para
estes, a luta não é contra a perda de influência, status ou fatia de mercado, mas sim
contra a desassistência e, consequentemente, a favor do acesso a serviços que, em
seu entendimento, seriam os mais adequados às necessidades da população.
Assim, apontamos para o comparecimento neste corpo de críticas de um tema muito
discutido nas práticas em saúde, que é também um dos seus princípios norteadores:
a universalidade de acesso aos serviços de saúde, garantida pela Constituição e
pela Lei Federal 8.080 (BRASIL, 1986; BRASIL, 1990). É com os que defendem
o modelo hospitalocêntrico na tentativa de respeitar tal princípio que pensamos ser
útil um diálogo.
No entanto, os ataques à reforma psiquiátrica existem, independente de suas
motivações. A ideia de que a resolutividade da atenção psicossocial é diretamente
proporcional ao número disponível de leitos psiquiátricos não deve passar
desapercebida, principalmente se levarmos em consideração as afirmações de que
apenas as pessoas sem recursos para pagar um estabelecimento particular são
“desalojadas” e “terminam nas ruas como mendigos.” Segundo tais acusações,
basta um acesso à internação psiquiátrica para que o tratamento esteja garantido.
Apostamos em uma inflexão na forma pela qual os diálogos-disputa têm
ocorrido. Podemos iniciá-la através de um convite aos opositores da reforma
psiquiátrica, que de fato se preocupam com o atendimento dispensado aos usuários:
um convite à problematização do conceito de acesso aos serviços de saúde, de
modo que se possa buscar não um “meio-termo”, mas novas e “inteiras” formas de
se pensar o cuidado.
No texto da Constituição Federal, é determinado que a saúde da população
deve ser garantida pelo Estado através de políticas sociais e econômicas, bem como
do “acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção
e recuperação” (BRASIL, 1986: 33). Em consonância com a Constituição, a Lei
Orgânica da Saúde, institui a “universalidade de acesso aos serviços de saúde em
todos os níveis de assistência
34
(BRASIL, 1990: 04) como um dos princípios que
direcionam as práticas no SUS.
34
Com Mattos(2004), entendemos tais níveis como os de alta, média e baixa complexidade.
63
Os princípios norteadores do SUS foram idealizados e construídos por um
movimento de oposição e critica radical às práticas e instituições do sistema de
saúde anterior, e justamente por serem o sustentáculo de apostas nas/das políticas
de saúde no país, devem ser constantemente questionados, de modo a se evitar
que expressões como universalidade de acesso aos serviços de saúde se tornem
“ocas”, desprovidas de significado concreto e potência. É a falta de questionamento
que contribui para a banalização do uso de tais expressões, muito defendidas, mas
pouco estudadas, (re)pensadas, metabolizadas. Em outras palavras: uma defesa
dogmática.
“[...] desse modo, as noções deixam de ser capazes de diferenciar aspectos
e valores presentes em diferentes configurações do sistema, das
instituições ou das práticas nos serviços de saúde; perdendo, assim, sua
utilidade na luta política” (MATTOS, 2001:41).
O conceito de acesso é geralmente empregado de forma imprecisa, mudando
de acordo com o contexto e causando discordâncias, inclusive na forma de sua
avaliação que, para alguns, deve ser concentrada nos objetivos dos sistemas de
saúde e, para outros, na relação entre os componentes dos sistemas, que possibilita
o cumprimento de tais objetivos. a utilização de serviços de saúde “representa o
centro do funcionamento dos sistemas de saúde” (TRAVASSOS; MARTINS,
2009:190), através de consultas com profissionais da saúde, realização de exames,
internações e outras intervenções terapêuticas.
Contudo, se a utilização dos serviços de saúde pode ser uma medida de seu
acesso, não pode ser explicada apenas por este (TRAVASSOS; MARTINS, 2009). O
uso efetivo de tais serviços é o resultado de uma combinação de vários fatores e,
por este motivo, são necessários estudos sobre o processo de utilização, suas
variações e sua influência nas condições de saúde das pessoas. Para que isso
possa ser feito, de modo a possibilitar melhorias no desempenho dos sistemas de
saúde, “é fundamental a construção de modelos teóricos que incorporem as
particularidades de cada contexto a ser analisado” (TRAVASSOS; MARTINS,
2009:197).
Observamos que prevalece a ideia do conceito de acesso enquanto uma
dimensão do desempenho dos sistemas de saúde associada à oferta, mas também
existe uma tendência de ampliação de seu escopo,
64
com deslocamento do seu eixo da entrada nos serviços (uso) para os
resultados dos cuidados recebidos. O acesso é visto pelo seu impacto na
saúde e dependerá também da adequação do cuidado prestado
(TRAVASSOS; MARTINS, 2009:197).
Com o advento do SUS e a expansão e estruturação da assistência à sde,
houve uma mudança das análises e respostas às dificuldades de acesso aos
serviços. Antes limitado às questões quantitativas, o debate sobre a problemática
do acesso às ações e serviços de saúde ganhou nuances qualitativas: “a questão
não se restringe a quantas portas de entrada se dispõe, mas, sobretudo, interroga-
se sua qualidade” (SOUZA et al., 2009:101). Seguindo essa linha de discussão,
marca-se a distinção entre os conceitos de acessibilidade e acesso aos serviços e
ações de saúde, onde o primeiro diz respeito à possibilidade que o usuário tem de
chegar aos serviços, enquanto o segundo, à possibilidade do uso oportuno de um
determinado serviço para se alcançar os resultados satisfatórios. Dessa forma,
O acesso como a possibilidade da consecução do cuidado de acordo com
as necessidades tem inter-relação com a resolubilidade e extrapola a
dimensão geográfica, abrangendo aspectos de ordem econômica, cultural e
funcional de oferta de serviços(SOUZA et al., 2009:101).
Para que esses e outros aspectos da vida do usuário possam ser considerados,
se aponta para a importância do acolhimento como um dispositivo que opera o
encontro necessário entre quem oferece e que demanda cuidado, cuidado esse que
considere o indivíduo em sua totalidade, e não apenas seus sinais e sintomas
observáveis: Acesso e acolhimento articulam-se e se complementam na
implementação de práticas em serviços de saúde, na perspectiva da integralidade
do cuidado” (SOUZA et al., 2009:101).
Para Ramos e Lima (2003), a idéia de acolhimento comparece juntamente
com a de acesso e ambas remetem à discussão de modelos assistenciais de saúde,
tendo em vista que o modelo de pronto atendimento baseado na queixa-conduta,
onde vários aspectos da vida do usuário são desconsiderados, ainda é o mais
praticado no Brasil. Tal afirmativa é fruto de pesquisa sobre a visão dos usuários
acerca de fatores que influenciam a qualidade do acesso e do acolhimento, em uma
unidade de saúde de Porto Alegre. O material sobre a questão do acesso foi
dividido em três subcategorias: acesso geográfico, caracterizado pela distância e
65
tempo de deslocamento percorridos pelos usuários até o serviço de saúde; acesso
econômico, caracterizado com base nas dificuldades e facilidades para se obter o
atendimento, como formas e custos de deslocamento e de obtenção de
medicamentos; e acesso funcional, entendido como “a entrada propriamente dita
aos serviços de que o cidadão necessita, incluindo-se os tipos de serviços
oferecidos, os horários previstos e a qualidade do atendimento” (RAMOS; LIMA,
2003:31).
É neste sentido que apostamos no acolhimento como um dos eixos de ação
que podem ajudar na superação de dificuldades criadas pelo modelo de atenção
dominante, o de queixa-conduta: um encontro entre os profissionais e usuários, que
se em um espaço de interseção onde são produzidas condições e recursos
norteadores da organização dos serviços e intervenções em saúde. Um acolhimento
que, segundo aqueles que afirmam o SUS em sua potência de produção de saúde,
“[...] expressa, em suas várias definições, uma ação de aproximação, um ‘estar com’
e um ‘estar perto de’, ou seja, uma atitude de inclusão” (BRASIL, 2006a: 06), de
modo que o acesso universal aos serviços de saúde e, consequentemente, a
resolutividade destes possam ser operados.
As breves reflexões apresentadas nos dão uma pista de como é
problematizado o princípio da universalidade de acesso que norteia as práticas em
saúde no SUS, e portanto as práticas na atenção psicossocial. Elas também nos
autorizam a afirmar que o acesso aos serviços deste último campo seria possível
mediante a convergência de ações e saberes para um cuidado que o se ocupe
apenas com os “sinais e sintomas”, mas também com os aspectos sociais,
econômicos e históricos da vida do usuário e de sua queixa, de modo que a
singularidade de cada indivíduo possa ser respeitada e as intervenções,
encaminhamentos e demais ações em saúde possam atender às especificidades
percebidas.
É assim que comparece em nosso trabalho a discussão acerca do segundo
movimento de críticas que compõem o cenário da atenção psicossocial no país,
aquele que se posiciona contra à tendência reducionista hegemônica nos saberes e
práticas no campo em questão.
2.1.2 Hegemonia antiga nas práticas atuais.
66
Lembramos que desde o final da cada de 70, os movimentos de crítica à
assistência no campo da saúde brasileira combateram as tendências reducionistas e
hegemônicas no cuidado dispensado às pessoas com algum transtorno psicossocial.
No entanto, mais de vinte anos desde o que se entende como início da reforma
psiquiátrica no país, e contando com um modelo de atenção substitutivo ao
manicomial, o campo da atenção psicossocial continua como palco da hegemonia
dos saberes e práticas reducionistas que nunca estiveram tão forte.
É neste contexto que identificamos o segundo grande movimento de críticas,
que também marca o cenário atual da atenção psicossocial. Trata-se do movimento
que se posiciona contrário ao reducionismo operado pelo saber e prática
biomédicos, composto por aqueles que defendem a reforma psiquiátrica e o modelo
substitutivo ao hospitalocêntrico.
Para entendermos como essa hegemonia se atualizou e que colocamos em
análise, voltamos ao final do século XX, quando se intensificaram os estudos no
campo das neurociências. na cada de 90, várias disciplinas como a Genética,
a Biofísica e até a Psicologia, se ocupavam desse campo (TRÓPIA, 2008). Fato
que bem ilustra tal momento se deu nos Estados Unidos, em julho de 1990, quando
o então presidente George Bush proclamou os anos noventa “a década do cérebro.”
O ato foi uma resposta às recomendações da comunidade neurocientífica do país,
que defendia maiores investimentos em pesquisas e intervenções no campo, por
acusarem, com base em estudos epidemiológicos, o impacto negativo das diversas
doenças cerebrais na economia americana (RUSSO; PONCIANO, 2002).
Considerando as discussões presentes no primeiro capítulo deste trabalho,
pensamos ser desnecessárias maiores explicações de como tal atitude influenciou,
através de organismos internacionais, as práticas brasileiras. Assim, no final
desta década, foram muitas as descobertas anunciadas por novos métodos de
investigação em neurociência, que contribuíram para uma desigualdade no que
tange à importância dos fatores ltiplos observados como causas de possíveis
doenças.
Vários foram os avanços no campo das neurociências, dentre eles, técnicas
da genética utilizadas no mapeamento do genoma humano; cnicas da biologia
molecular, que permitem o estudo avançado de sistemas de receptores cerebrais e,
consequentemente, o desenvolvimento de medicamentos com atuações mais
67
específicas e eficazes; a parceria entre a genética e a biologia molecular, que torna
“evidente” a dependência de sinais bioquímicos para qualquer patologias e sugere a
participação de ltiplos genes no processo, apostando que a redução de aspectos
patológicos específicos a genes específicos ajude em novas formas de prevenção e
tratamento (BUSATTO FILHO et al., 1998).
Durante e após a “década do rebro”, aumentaram também o número de
trabalhos que levaram todo o conhecimento produzido no campo nas neurociências
ao público leigo, através da divulgação científica (DC), um movimento de
disseminação do conhecimento produzido dentro da comunidade científica, para fora
de seu contexto original.
“O termo DC tem sido utilizado para definir formas de comunicação bastante
diversas, como: textos de ciência e tecnologia produzidos por grandes
editoras, programas especiais de rádio e televisão, documentários, folhetos
e guias informativos, como, por exemplo, os relacionados à saúde e
higiene” (TRÓPIA, 2008:01).
O caráter de simples difusão de conhecimento da DC passa a ser
questionado, uma vez que resultados de algumas pesquisas admitem a existência
de interesses outros, além da inclusão social do saber (TRÓPIA, 2008).
Esses outros interesses estariam ligados a questões políticas, econômicas,
questões ligadas ao divulgador e seus interesses, como a imagem da
ciência que está sendo produzida e questões ligadas ao público que irá
receber e comprar a notícia (TRÓPIA, 2008: 02).
Se por um lado pesquisas denunciam interesses econômicos da indústria
farmacêutica como uma influência nas decisões médicas e na prática da clínica
convencional, por outro, o “marketing” feito pela mesma indústria junto aos
profissionais da saúde e aos usuários é fortalecido pelos limites e contradições no
saber biomédico. Saber cujo discurso acadêmico não ajuda o profissional a se
relacionar com uma demanda extra-hospitalar, rica em nuances, muito encontrada,
por exemplo, na atenção básica. Tais limites e contradições - provenientes de um
reducionismo que generaliza as queixas e despreza as diferenças e singularidades
durante a confecção do diagnóstico, desconsiderando a historicidade e o contexto
social da/na experiência do indivíduo e os submete a mecanismos neurogenéticos -
dificultam e até impossibilitam a escuta do que se mostra para além do corpo e
68
contribuem para uma medicalização do sofrimento, uma “analgesia social”
(ALMEIDA, 1988 e CAMPOS, 2009).
A psiquiatria não foi esquecida pela produções neurocientíficas. Estudos de
genética e biologia molecular, combinados com inovadores métodos de
neuroimagem que passaram a produzir imagens do cérebro em atividade,
“permitindo que se vá desvendando a anatomia estrutural e funcional de diversos
transtornos neuropsiquiátricos” (BUSATTO FILHO et al., 1998; 01-02) -, trouxeram
conhecimentos avançados acerca da “fisiopatologia” e da neuroquímica de
fenômenos diversos, como a esquizofrenia e o transtorno obsessivo-compulsivo.
Tamanha crença na importância das neurociências em detrimento de outros saberes
levou a hipóteses de que certos tipos de transtornos classificados como obsessivo-
compulsivos possam estar ligados a aspectos evolutivos da espécie humana. No
campo das neurociências, relatam-se estudos em modelos animais que sugerem
determinado circuito cerebral como responsável por comportamentos de cuidado
materno dispensado a recém-nascido (BUSATTO FILHO et al., 1998). Tais
comportamentos, sob o ponto de vista evolutivo, são imprescindíveis para que os
descendentes sobrevivam e os genes dos progenitores continuem a perpetuar.
Assim, neurocientistas consideram que os frequentes comportamentos
compulsivos de cuidado em relação ao feto ou ao recém-nascido, observados em
mulheres com o diagnóstico de TOC, podem ser entendidos como padrões
adaptativos e de conservação em termos evolutivos, que estariam presentes em
nosso “‘make upgenético, no funcionamento neurobiológico do nosso cérebro e na
expressão de certos comportamentos durante períodos específicos do nosso
desenvolvimento” (BUSATTO FILHO et al., 1998; 07).
Serpa Júnior (2004) discute as possibilidades de apropriação do
conhecimento das neurociências pela psiquiatria, criticando o que ele chama de
reducionismo eliminativista e propondo a ordenação da apropriação em questão por
parte de princípios que marcam as peculiaridades da experiência clínica. O autor
nomeia o fenômeno das neurociências no campo da atenção psicossocial de
redescoberta do rebro pela psiquiatria, e o classifica como uma posição ingênua
que eclipsa a dimensão da subjetividade:
Trata-se de uma versão intuitiva, o refletida, que resulta da adoção não
explicitada de uma posição monista, materialista, reducionista e
eliminativista no que diz respeito ao problema mente/corpo. A adoção deste
69
ponto de vista não deixa de ser mais uma sequela do dualismo que habita o
coração da especialidade desde a sua origem.(SERPA JÚNIOR, 2004:112).
O autor esclarece sua posição ao dizer que “nem todo o monismo materialista
endossa uma postura reducionista e eliminativista” (SERPA JÚNIOR, 2004: 113). O
autor aponta para uma forma de monismo que não é reducionista nem eliminativista,
mas que se trata dos esforços por parte de uma corrente dentro do campo das
neurociências na articulação de
“uma teoria do cérebro que relevo à dimensão valorativa na
homeostase/homeodinâmica dos organismos vivos; que integra o
funcionamento do cérebro à totalidade do organismo; e que procuram
pensar a emergência da mente humana a partir dos processos
cerebrais/corporais levando em conta a irredutibilidade do vivido subjetivo”
(SERPA JÚNIOR, 2004:118).
Trata-se da experiência do indivíduo no mundo que, assimilada pelo corpo, através
do funcionamento integrado deste com o cérebro, contribui para a emergência dos
processos mentais.
No entanto, a forma hegemônica de monismo na psiquiatria é aquela que
opera o reducionismo aos aspectos cerebrais dos transtornos psicossociais. Trata-
se de uma psiquiatria medicalizante e biológica, que obedece aos ditames das
ciências naturais e dos procedimentos experimentais. nessa forma uma busca
por previsibilidade na evolução dos fenômenos e padronização das intervenções,
através da objetividade do que se observa isolando relações causais exteriores.
Não nesse caso qualquer compromisso ou consideração com os valores que
norteiam, ou deveriam nortear, a atividade clínica, “como o caráter valorativo das
condições de saúde e doença e a dimensão organísmica, individual e subjetiva dos
estados patológicos.”(SERPA JÚNIOR, 2004:118).
Uma outra forma de reducionismo foi observada por Leal et al.(2006), através
de uma investigação do papel do conhecimento psicopatológico na prática. Os
autores constataram o uso predominante da psicopatologia descritiva em análises
de casos clínicos observados em serviços substitutivos à internação psiquiátrica. As
análises foram feitas a partir da busca das noções de “doença mental” e crise,
responsáveis pelo direcionamento das intervenções realizadas.
Constatou-se que a avaliação psicopatológica se restringia à identificação ou
não de sintomas - com privilégio para a presença de delírios e alucinações, sempre
70
qualificados como prejudiciais e sem nada a dizer do indivíduo. Verificou-se ainda
que a ideia de “doença mental” era associada apenas à existência de alterações
como delírios ou alucinações, sempre tomada como evento que requer correção
imediata, rápida e sem considerações acerca do modo pelo qual o indivíduo se
posiciona no mundo. Tal constatação explica o caráter puramente disciplinar e
normalizante percebido nas práticas assistenciais analisadas. A crise, por sua vez,
era entendida apenas como a eclosão de sintomas produtivos, julgados sempre
como prejudiciais e sem nenhuma ligação com o modo de ser do usuário. A
dissociação operada entre o campo da reabilitação ou da inserção social, como
preferimos chamar - e o campo do cuidado propriamente dito, como se um fosse
possível sem o outro, também não passou despercebida dos autores
35
(LEAL et al.,
2006).
Assim se a prática da psicopatologia descritiva, hegemônica nos serviços
de atenção psicossocial. Prática dominante em um tempo marcado, assim como o
próprio DSM-IV que o simboliza, pelo pragmatismo americano que abre mão
deliberadamente de toda e qualquer teoria referente à etiologia e à psicopatologia,
privilegiando apenas os sintomas manifestos e demais comportamentos passiveis de
observação. Ausência de teoria que se justifica pelo fato de que “a inclusão de
teorias etiológicas seria um obstáculo para a utilização do manual por clínicos de
orientações diversas” (FREITAS; RIBEIRO, 2006: 309).
A prática descritiva da psicopatologia faz-se prática de ausências, se
levarmos em consideração, além do espaço vazio da teoria - que aponta para outra
modalidade de reducionismo ainda mais radical, posto que substitui o “poucopelo
“nada” -, a falta de um olhar que privilegie a relação do usuário do serviço com tudo
o que existe a sua volta. Os sinais e sintomas são analisados em um processo de
descolamento entre o comportamento observado e a experiência daquele que os
carrega. Neste processo, só há lugar para uma experiência: a do observador.
Assim, a psicopatologia puramente descritiva é
“incapaz de enfrentar o desafio central do cuidado nos novos dispositivos:
contribuir para o desenho de um cuidado que considere a experiência do
sujeito no mundo e com o mundo
36
“ (LEAL et al., 2006: 439).
35
Fato que contraria as apostas reformistas relatadas no capítulo anterior.
36
Contribuições para a inclusão da experiência do usuário na prática da psicopatologia podem ser
encontradas em: SERPA JUNIOR, O. D. et al. A inclusão da subjetividade no ensino da
71
Se considerarmos todo o investimento do movimento reformista para que o
portador de transtorno psicossocial seja o protagonista de sua própria vida
lembrando as discussões acerca dos conceitos de autonomia e contratualidade,
trazidas no primeiro capítulo deste trabalho – não podemos ignorar as práticas
atuais e hegemônicas da psicopatologia descritiva, que tomam lugar justamente em
serviços substitutivos.
Com a consideração apenas dos sintomas e comportamentos manifestos - ou
da experiência de observação do técnico em detrimento da experiência vivida pelo
usuário -, os esforços acabam por ser condensados na tentativa de se fazer
desaparecer o desvio que se observa. Na ausência de teoria, encontramos, então,
um reducionismo na prática do cuidado, uma vez que tal medida reforça uma
tendência às terapias comportamentais e medicamentosas, focadas em sintomas
específicos e desprovidos de qualquer significado que não o de comportamentos
inadequados a serem corrigidos.
Tanto as teorias baseadas nas neurociências, quanto a ausência de teorias
que caracteriza a psicopatologia descritiva, são exemplos de uma tendência
reducionista hegemônica. Esta tendência, por sua vez, se reflete em supostas
práticas de “cuidadoque desprezam outros vetores de existência do indivíduo e
encontram no modelo hospitalocêntrico um catalisador. É contra esse reducionismo
que se posiciona o segundo movimento de críticos que ajudam a compor o contexto
atual do Campo da Atenção Psicossocial Brasileira.
Com base no que discutimos no capítulo anterior, entendemos que os
exemplos de críticas aos saberes e práticas reducionistas apresentados aqui, o
uma atualização do que se discute desde o princípio do processo reformista: a
necessidade de se garantir ao indivíduo portador de transtorno psicossocial uma
integralidade no cuidado, que considere todos os seus vetores de existência. É aqui
que marcamos o comparecimento de outro tema por demais importante para o
campo da saúde: a integralidade de assistência que, assim como a universalidade
de acesso, também é um dos princípios norteadores das práticas no/do SUS.
Psicopatologia. Interface (Botucatu) [online]. 2007, vol.11, n.22, pp. 207-222 e LEAL E.M.
Psicopatologia do Senso Comum: uma psicopatologia do ser social. In: SILVA FILHO, JF. (Org.).
Psicopatologia Hoje. Rio de Janeiro: UFRJ/ Centro de Ciência da Saúde, 2006, pp. 102-129
72
A integralidade nas práticas em saúde também é apregoada pela Constituição
Federal e, posteriormente, pela Lei Orgânica da Saúde. Na primeira, é determinado
o “atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo
dos serviços assistenciais” (BRASIL, 1986: 33); na segunda, “a integralidade de
assistência, entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços
preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os
níveis de complexidade do sistema” (BRASIL, 1990: 04).
Mais recentemente, em manual para consultas práticas, acerca de assuntos
relacionados às ações e serviços de saúde no âmbito do SUS (BRASIL, 2009), o
Ministério da Saúde e o Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde
(CONASEMS) acrescentaram que integralidade também “pressupõe a atenção
focada no indivíduo, na família e na comunidade (inserção social) e não num recorte
de ações ou enfermidades” (BRASIL, 2009: 192).
A associação da ideia de integralidade ao cuidado em saúde tem sua origem
nos primórdios da Reforma Sanitária Brasileira, que, como vimos no primeiro
capítulo, abarcou diferentes movimentos na luta por melhores condições de vida,
bem como pela formulação de políticas adequadas de atenção à saúde da
população (PINHEIRO, 2006).
Segundo o que foi discutido no primeiro capítulo, a noção de integralidade
pode ser entendida como uma contribuição do pensamento preventivista. Seu
caráter difuso, polissêmico e passível de mais de uma interpretação (SAYD, 2001)
faz dela uma “noção amálgama, prenhe de sentidos.”(MATTOS, 2001:03).
Diante das várias possibilidades de entendimento da integralidade para as
práticas na saúde, Mattos (2001) havia apontado para a existência de pelo menos
três eixos, três formas de se pensar tal termo.
O primeiro trata a integralidade como traço da boa medicina, para a qual é
inaceitável que a pessoa que procura um serviço de saúde seja reduzida a um
aparelho ou sistema biológico, com um funcionamento diferente do esperado. Como
alternativa, sugere-se uma atitude por parte do profissional em não se deter à queixa
trazida pelo paciente, mas sim de aproveitar a oportunidade para identificação de
possíveis fatores de risco de outras ameaças à saúde de quem lhe procura,“e/ou
investigar a presença de doenças que ainda não se expressaram em
sofrimento.”(MATTOS, 2001: 45). A integralidade seria, então, um valor que
influencia as práticas em saúde e que se expressa nas formas pelas quais os
73
profissionais respondem às demandas que lhes chegam diariamente. Tamanha é a
semelhança com a “atitude preventivista” cujas raízes higienistas foram apontadas
por Arouca (2003) e comentadas no primeiro capítulo deste trabalho, que
reforçamos o alerta de Mattos (2001) para a necessidade de que as práticas de
diagnóstico precoce e prevenção serem exercidas com cuidado e crítica, no sentido
de se evitar uma medicalização da vida social.
O segundo eixo ou forma de se entender a integralidade diz respeito ao meio
de organização dos serviços de saúde, sob a lógica de uma quebra na
hierarquização dos programas e serviços existentes e de uma visão horizontal das
necessidades da população. Tais necessidades seriam verificadas a partir de
intervenções epidemiológicas, onde os profissionais aproveitariam as demandas
espontâneas para a aplicação de protocolos de diagnóstico precoce e identificação
de riscos à saúde. Diferente do primeiro eixo, a integralidade não seria garantida
através de uma atitude, mas, sim, de um modo de organização de processos e
procedimentos de trabalho.
o terceiro eixo diz respeito à forma de se entender o princípio da
integralidade através de configurações de políticas específicas, uma resposta do
Governo às necessidades de grupos específicos da população.
Mattos, (2001) conclui que é possível o reconhecimento de semelhanças,
analogias e ligações que articulam as três formas mencionadas de se entender
integralidade, que não são certamente as únicas, mas pelas quais “vale a pena
lutar”, no sentido de se marcar uma recusa ao reducionismo da experiência do
indivíduo de estar no mundo e, talvez, uma abertura ao diálogo entre saberes e
práticas diversos.
Pinheiro (2006) pensa a integralidade em três sentidos, entre os quais
acreditamos haver cruzamentos em vários pontos. Ela se refere à noção de
integralidade como princípio do direito à saúde, como meio de se concretizar o
direito à saúde e como fim na produção da cidadania do cuidado.
O sentido de integralidade como princípio do direito à saúde suscita novas
questões, problemas e desafios no dia a dia de quem atende e é atendido nos
serviços de saúde. Ao ser constituída como ato, a integralidade suscita
experiências singulares que colocam os profissionais da saúde diante da
necessidade de se repensar conceitos, definições e noções. São essas
problematizações que operam mudanças nos mesmos profissionais, cujas práticas
74
em saúde superam, ou deveriam superar, os modelos de atendimento idealizados,
no sentido de se produzir práticas mais eficazes. (PINHEIRO, 2006). Essas
experiências, segundo a autora, fazem com que os aspectos mais importante dos
processos de trabalho, gestão e planejamento sejam repensados, “[...] sobretudo, da
construção de novos saberes e práticas em saúde, resultando em transformações
no cotidiano das pessoas que buscam e dos profissionais e gestores que oferecem
cuidado de saúde.”(PINHEIRO, 2006:257).
o sentido de integralidade como meio de se concretizar o direito à saúde é,
por sua vez, constituído pela organização dos serviços, pelos conhecimentos e
práticas em saúde e pelas políticas governamentais com participação da população.
Sua operacionalização se dá a partir de dois movimentos: o primeiro se refere à
superação de obstáculos e o segundo, à implementação de inovações necessárias
ao cotidiano dos serviços de saúde, às relações entre os três níveis de gestão do
SUS e às relações destes com a sociedade (PINHEIRO, 2006).
Neste processo de concretização da saúde como direito, emergem questões
relevantes para a apropriação da integralidade como conceito e prática no campo da
saúde coletiva. Tais questões se relacionam de forma interdependente e muitas
vezes contraditória, tendo em vista as políticas cio-econômicas adotadas no país
que há décadas produzem exclusão e fragilidade das condições mínimas de bem-
estar social - em movimento contrário ao que apregoa o texto constitucional -, bem
como um grande e constante aumento da demanda por serviços públicos de saúde.
Aumento este que aponta para a necessidade de discussão acerca do acesso aos
serviços de saúde, o que faz com que marquemos aqui a indissociabilidade entre as
discussões sobre os dois princípios em questão.
Na luta para se garantir uma melhoria das condições de vida da população,
ocorrem, muitas vezes em contextos desfavoráveis, experiências bem-sucedidas em
diferentes regiões do país. Experiências nas quais se podem identificar indícios de
integralidade, na medida em que inovações nas/das práticas em saúde são
necessárias.
Inovações que são construídas cotidianamente por permanentes interações
democráticas dos sujeitos nos e entre os serviços de saúde, sempre
pautadas por valores emancipatórios fundamentados na garantia da
autonomia, no exercício da solidariedade e no reconhecimento da liberdade
de escolha do cuidado e da saúde que se deseja obter.”(PINHEIRO,
2006:259).
75
Por último, o sentido de integralidade como fim na produção da cidadania do
cuidado que, Segundo a autora, se por meio de uma atuação democrática, em
um cuidado alicerçado em uma “relação de compromisso ético-político de
sinceridade, responsabilidade e confiança entre sujeitos, reais
37
, concretos e
portadores de projetos de felicidade”(PINHEIRO, 2006:260).
É neste sentido que a autora defende a importância do acolhimento, do
vínculo e da responsabilização como estratégias de melhoria de acesso e
desenvolvimento das práticas integrais (PINHEIRO, 2006). Das três, é o
acolhimento, a estratégia responsável, segundo a autora, por identificar as
condições que possibilitam as relações nas práticas de saúde, buscando o que ela
chama de responsabilização clínica e sanitária, impossível sem o acolhimento e o
vínculo, bem como uma intervenção resolutiva. Mais uma vez marcamos pontos
comuns em discussões distintas que não se dissociam: a questão do acolhimento
como ponto de entrecruzamento das reflexões acerca do acesso e da integralidade
nos serviços de saúde.
Diante de tamanha polissemia que caracteriza a integralidade enquanto
categoria, é que a autora a define
como um campo de disputa política e produção de real social menos
determinado pelas configurações institucionais e normativas e, portanto,
especialmente constituído e materializado através da textura conflituosa dos
encontros de diversos sujeitos e instituições(PINHEIRO, 2006: 262).
É assim que na experiência o sentido da integralidade ultrapassa aquele que
comparece no texto da Constituição e da Lei Orgânica. É na experiência do cuidado
no cotidiano dos serviços que, segundo Pinheiro (2006), a integralidade poder ser
concebida
[...] como uma ação social que resulta da interação democrática entre os
atores no cotidiano de suas práticas, na oferta do cuidado de saúde, nos
diferentes níveis de atenção do sistema. A ‘integralidade’ das ações
consiste na estratégia concreta de um fazer coletivo e realizado por
indivíduos em defesa da vida (PINHEIRO, 2006:257).
37
A autora descreve o sujeito real como aquele que produz sua história e é responsável pelo seu
devir, cujo saber particular, diferenciado e histórico, silenciado e desqualificado, deve ser respeitado
através de um compromisso ético nas relações entre gestores, profissionais e usuários dos serviços
de saúde (PINHEIRO, 2006).
76
As concepções trazidas da integralidade nas práticas em saúde não são certamente
as únicas, mas nos dão uma ideia do grau de complexidade a que chegaram
algumas discussões, bem como do que há de comum entre elas: a marcação de
uma recusa ao reducionismo da experiência do indivíduo de estar no mundo e a
necessidade de diálogo entre saberes e práticas diversos, por uma resolutividade no
cuidado dispensado à população.
2.2 Algumas considerações
A reforma psiquiátrica que se iniciou mais de duas décadas continua, em
um processo de reformulação, atualização e surgimento de novos embates.
Falamos da reforma que configurou o campo tal como ele se apresenta, e que
através dele se sustenta enquanto processo sem fim. Percebemos isso quando
levamos em consideração a forma pela qual os trabalhadores e teóricos se
relacionam com o modelo de atenção psicossocial vigente, substitutivo ao
hospitalocêntrico. Modelo que não é apenas o resultado provisório do processo
reformista, mas também o alvo de muitas críticas e buscas por mudanças que
indicam a continuidade da reforma psiquiátrica. É de algumas críticas importantes
que tentamos falar, através de exemplos emblemáticos, que aqui dividimos
arbitrariamente em dois grandes movimentos: um contra e outro a favor do modelo
substitutivo e podemos dizer também que se trata de um defensor e outro opositor
às tendências reducionistas que tanto caracterizavam o modelo anterior.
Falamos, então, de uma disputa de sentido que confronta diferentes
posições que defendem a forma mais adequada de se garantir uma atenção
psicossocial resolutiva. Disputa que pode, em determinados momentos, abrigar
jogos de interesse, mas que não deve a estes ser reduzida. Disputa de sentido que,
enfim, acontece no seio do Campo da Atenção Psicossocial Brasileira, e, portanto,
da própria reforma, sendo destas parte constituinte. Importante marcar que quando
afirmamos a disputa como elemento responsável pela constituição e manutenção do
processo reformista, nos referimos também a todo e qualquer agente que da disputa
participa: usuários dos serviços e seus familiares, profissionais de saúde, cineastas,
repórteres, advogados, poetas, autores de novela, políticos, estudantes, empresas,
77
ong’s, etc. Falamos de toda e qualquer pessoa, física ou jurídica, que de alguma
forma se manifesta contra ou a favor das questões apresentadas neste trabalho,
formulando, reproduzindo e reforçando enunciados-práticas que compõem
processos de mudanças e também cristalizações.
Levando em consideração a nossa crença de que nem por “interesses
obscuros” são movidas as críticas ao modelo substitutivo, e com base nos
argumentos utilizados contra a atual política de atenção psicossocial, podemos
entender que muitos dos que defendem o antigo modelo de atenção
hospitalocêntrico e as práticas reducionistas intrínsecas a este o fazem por
acreditar que apenas com um aumento na disponibilidade de leitos psiquiátricos não
haveria mais pessoas sem tratamento necessário.
Poderíamos concordar com a legitimidade de tal demanda, uma vez que os
argumentos utilizados pelos opositores ao modelo substitutivo poderiam, em um
primeiro momento, ser justificados com base na garantia da universalidade de
acesso aos serviços de saúde, um dos princípios norteadores do SUS.
Contudo, a preocupação com o acesso democrático ao tratamento é marca
fundamental do processo reformista que culminou da construção do modelo de
atenção atual. A lógica territorial e a rede substitutiva, composta por um sem-
número de ações e serviços que muitas vezes não esperam a demanda espontânea
do usuário, são um exemplo disto. O investimento nas práticas de interseção entre
a atenção psicossocial e a atenção básica de saúde demonstra a preocupação
em aumentar as possibilidades de atendimento às pessoas que, por vários motivos,
se encontram impossibilitadas de buscar tratamento longe das comunidades onde
moram, ou então o esforço em diluir a centralização de atendimento nos serviços de
referencia e, consequentemente, superar a forma afunilada de se lidar com uma
demanda por cuidado em constante crescimento.
Deparamo-nos, então, com o risco de entendermos os dois modelos
envolvidos na disputa de sentido como simples alternativas de se garantir o acesso
às práticas em atenção psicossocial. Tal risco justifica nossa escolha por incluir em
nosso trabalho problematizações do entendimento de alguns princípios norteadores
do Sistema Único de Saúde.
Afirmamos a importância na sustentação de uma inseparabilidade entre as
discussões acerca das políticas na esfera “micro” da atenção psicossocial e “macro”
do SUS, levando-se em consideração que a primeira é instância da segunda, e que
78
as discussões e produções que nela ocorrem devem considerar o conteúdo das leis
que regulamentam o funcionamento do Sistema.
Tanto o campo da atenção psicossocial com seu modelo substitutivo ao
hospitalocêntrico, quanto o Sistema Único de Saúde, são o resultado de muita luta.
Luta que continua, na afirmação da potência do que até agora se conquistou. A
institucionalização dos preceitos da reforma psiquiátrica em forma de lei, bem como
dos princípios norteadores das práticas em saúde no Brasil o os momentos em
que o objetivo parcial de cada movimento reformista se transforma em
embasamento para a continuação destes: a militância contra as tendências
reducionistas no campo da atenção psicossocial e também no SUS em toda a sua
abrangência – é respaldada pelo que se conquistou com a Lei nº10.216, da Reforma
Psiquiátrica Brasileira, com a Lei 8.080, “fundadora” do SUS, e com a própria
Constituição Federal.
No entanto, a forma pela qual muitos profissionais e teóricos se relacionam
com os preceitos do SUS o deve assumir um caráter dogmático, sob pena de se
transformar o que hoje é um processo em um monumento. Falamos do risco de
uma cristalização do que ainda possui movimento e, consequentemente, de uma
impossibilidade de resposta às dificuldades e desafios que nunca cessam, em
quantidade e diversidade, nas práticas em saúde no cotidiano.
Motivados por este lugar de movimento, nos posicionamos junto às reflexões
brevemente apresentadas acerca da operacionalização de dois dos princípios
norteadores do SUS, quais sejam: a universalidade de acesso aos serviços de
saúde e a integralidade de assistência. Apontamos para os constantes
entrecruzamentos nas discussões acerca dos princípios em questão. uma forte
tendência de se ampliar ou simplesmente reconsiderar o sentido de acesso aos
serviços de saúde. Este, aos poucos se distancia da simples ideias de “vaga
disponível” ou facilidade geográfica, e mais se aproxima da esfera da resolutividade.
Esta última é diretamente associada à discussão acerca da integralidade, que
percebemos por demais rica em possibilidades de interpretação e práticas, tendo, no
entanto, dois pontos em comum: a recusa às tendências reducionistas e o risco de
um resgate de atitudes higienistas, tal como apontamos em nossa discussão acerca
do preventivismo, no primeiro capítulo deste trabalho. É levando em consideração
os desafios presentes no cotidiano das práticas em saúde que afirmamos a
79
necessidade de se reconhecer a inseparabilidade entre tais princípios, no sentido de
tornar possível a operacionalização de ambos.
Assim, se por um lado observamos uma preocupação com a universalidade
de acesso por parte dos defensores dos dois modelos de atenção psicossocial, é
apenas o modelo atual que oferece serviços em condições de respeitar a
diversidade das necessidades, características territoriais, e demais fatores que
marcam a singularidade de cada atendimento. Em outras palavras, é o modelo de
atenção psicossocial resultante da militância reformista que chega mais perto da
observância dos princípios norteadores do SUS em suas noções constantemente
revistas e problematizadas. Aliás, outra noção por demais importante para as
práticas em saúde no Brasil comparece nos alicerces do modelo substitutivo ao
hospitalocêntrico, quando verificamos neste a indissociabilidade entre a busca pela
integralidade e a busca pela universalidade de acesso. Referimo-nos à equidade
nas ações em saúde, diretriz esta que aponta para a necessidade de ações
diferenciadas que respondam às necessidades diferentes (BRASIL, 2009) - e que,
assim, negam a massificação das práticas de internação psiquiátrica - proposta pelo
Ministério da Saúde (BRASIL, 2006b) e constantemente confundida com os
princípios norteadores do Sistema, embora não seja citada textualmente na Lei
Orgânica.
Em suma, com o que até aqui foi discutido, nos resta apostar na atual
política de atenção psicossocial como a única alternativa analisada que condiz com
o que de mais atual em legislação e discussão no campo da saúde do Brasil.
Uma política que, no entanto, não se reflete nas práticas diárias dos/nos serviços de
atenção psicossocial, a despeito de toda militância reformista.
Se as práticas reducionistas presentes no hospitalocentrísmo o contam
com a força de antes, outras continuam ocupando o lugar de hegemonia, como
percebemos com base nas críticas citadas. Em comum, apontamos o saber
biomédico que as sustenta e legitima. Precisamos, então, repensar a forma pela
qual as práticas clínicas se relacionam com tal saber, bem como o que cabe à
clínica no processo de busca por uma superação das tendências reducionistas no
campo em questão. Uma clínica que consiga não apenas acompanhar toda a
problematização dos princípios norteadores do SUS e, portanto, das ações e
práticas na atenção psicossocial, mas também contribuir com tal problematização e
possibilitar seus efeitos nas práticas de cuidado.
80
CAPÍTULO 3
O QUE CABE À CLÍNICA?
No capítulo anterior observamos que a reforma psiquiátrica, em seu
funcionamento processual, vivencia uma atualização de alguns desafios, que por
sua vez se traduzem em uma disputa de sentido no Campo da Atenção Psicossocial
Brasileira. Observamos que em sua proposta, o modelo substitutivo em muito se
aproxima das discussões acerca do que se busca com o cumprimento princípios
norteadores do SUS. A política de atenção psicossocial no Brasil é, inclusive,
modelo para futuros projetos a serem desenvolvidos pela OMS (FORMENTI, 2009).
Talvez o maior desafio seja conseguir que as práticas no cotidiano dos serviços
reflitam as conquistas nos campos político e jurídico. Apostamos na importância da
clínica para o cumprimento de tamanha tarefa.
3.1 Impasses desde sempre
Em nossa descrição sobre o início e a trajetória percorrida pela reforma
psiquiátrica, privilegiamos as práticas influenciadas pela Psiquiatria Democrática
Italiana, pois é esta influência que mais forte ficou marcada no cenário brasileiro,
sendo visivelmente reconhecida nas políticas institucionalizadas de ações e
serviços. No entanto, houve outras teorias e práticas que também buscaram um
lugar na luta contra as tendências reducionistas baseadas no saber biomédico.
muito tempo que a constatação da dispersão de saberes e práticas que
compõem o campo de atenção psicossocial é lugar comum para todos os teóricos e
praticantes da reforma brasileira (BEZERRA, 1999). No movimento reformista,
sempre foi muito clara a divisão dos que eram contra e a favor da existência dos
manicômios e do modelo hospitalocêntrico e, por dedução, contra e a favor da
hegemonia do saber biomédico, principal fundamento de tais práticas reducionistas.
No entanto, uma vez examinadas de perto as apostas teórico-práticas daqueles que
faziam parte do movimento reformista que consequentemente sugeriam
81
alternativas às longas e indiscriminadas internações -, muitas e diferentes
perspectivas de intervenção eram identificadas. “Quando chega a hora de dizer o
que queremos pôr no lugar daquilo que condenamos, vêm à tona projetos
discrepantes e, em certos aspectos, opostos (BEZERRA, 1999:135-136).
De qualquer maneira, o que já há muito se acompanha no cotidiano dos
serviços é a apregoação de idéias tal como máximas a serem seguidas para a
superação dos desafios que não cessam (LEAL, 1999). Ideias que podem ser
resumidas, com base no que a aqui foi discutido, na busca por uma resolutividade
do cuidado, a ser garantida por uma integralidade e por um acesso aos serviços de
atenção psicossocial. Porém, frequentemente tais princípios são utilizados não
como indicadores de uma clínica a ser construída, mas antes, como capazes de
descrever o que se faz nos serviços, o que contribui de forma importante para um
caráter de prescrição das idéias defendidas. O que se vê então, é uma produção de
relatos lineares das práticas cotidianas, através de certo costume em se descrever
os serviços de atenção psicossocial a partir do que se idealiza:
Os discursos produzidos sobre o cuidado desenvolvido nestes serviços
exprimem muito frequentemente certa sensação de tranquilidade e calmaria
que em nada corresponde à experiência vivida nos Centros de Atenção
Diária que conheço, ou daqueles de que faço ou já fiz parte. Nestes
espaços, o que de fato experimentamos é sempre muita inquietação, muita
tensão, muita discordância sobre o que fazer e como devemos fazer o dia-
a-dia. (LEAL, 1999: 49).
Leal (1999) apontava para o fato de, neste contexto, as diferenças e
particularidades próprias de cada ato de cuidado a ser construído é de tal modo
valorizadas sob a égide do respeito à singularidade do indivíduo, a ponto de tornar
indevida toda e qualquer tentativa de “identificar um solo em comum para as nossas
práticas” (LEAL, 1999: 49). A manutenção de uma ignorância acerca do que se
produz nos serviços, segundo a autora, sesuperada na medida em que não
nos limitemos à idealização de uma prática e nos indaguemos mais acerca do que
temos construído.
Acreditamos que foi guiado por crítica semelhante que Campos (2003) se
propôs a pensar uma ampliação da clínica praticada nos serviços de saúde.
3.2 Por um movimento de ampliação da clínica
82
Em suas reflexões acerca da necessidade de uma reformulação das práticas
clínicas, Campos (2003) tomou como ponto de partida as contribuições de Basaglia
no campo da atenção psicossocial, para daí pensar o papel da prática clínica no
campo da saúde coletiva.
O autor lembra que para Basaglia e seus companheiros operarem as
mudanças propostas, foi necessária uma superação de conceitos existentes e
criticados através da invenção de algo “que operasse no lugar do saber negado”
(CAMPOS, 2003:51). Daí a substituição do cuidado destinado à “doença” pelo
cuidado destinado ao “doente”, com todas as implicações que tal mudança possa
ocasionar; bem como a necessidade de não apenas reconhecer o paciente como
uma pessoa de direitos, mas prepará-lo para lutar por tais direitos em seu processo
terapêutico. Foi a partir desta mesma premissa que o autor desenvolveu sua
proposta de uma reforma da clínica, que resultará no que ele chama de Clínica do
Sujeito. Para que tal reforma se opere, segundo ele, são necessários alguns passos
além dos que foram dados por Basaglia.
Primeiro, porque, agora, estar-se-ia discutindo a clínica em geral e não
apenas a praticada em manicômios; e, segundo, porque, com certeza, os
movimentos que operaram sob inspiração basagliana cuidaram muito mais
do protagonismo político do que esclareceram sobre a nova instituição que
estavam reinventando (CAMPOS, 2003:54).
Como condição para a “ampliação da clínica” ou “Clínica do Sujeito”, o autor
coloca a necessidade de se equacionar o enfrentamento de enfermidades/doenças
com a luta por melhores condições sócio-econômicas de existência, pois, se uma
enfermidade “perturba, transforma e até mata sujeitos, contudo, apenas raramente
liquida com todas as demais dimensões da existência de cada um” (CAMPOS,
2003:57). É para se evitar um “empobrecimento” da clínica ao ignorar tais inter-
relações que Gastão Wagner sugere
uma ampliação do objeto de saber e de intervenção da Clínica. Da
enfermidade como objeto de conhecimento e de intervenção, pretende-se
também incluir o Sujeito e seu contexto como objeto de estudo e de práticas
da Clínica (CAMPOS, 2003:57).
Sem esquecer a contribuição de Basaglia, Gastão Wagner defende que “pôr a
doença entre parênteses” - e abrir espaço para que o paciente em sua integralidade
83
entre em cena - é importante para se colocar em análise a hegemonia de um
determinado modelo de cuidado, bem como para se evitar a iatrogenia e as
“intervenções exageradas.” Contudo, ele defende também que a doença deve ser
considerada em tal “integralidade humana”, sob pena de tornar sem sentido a
especificidade dos serviços e dos profissionais de saúde (CAMPOS, 2003). Isso,
segundo o autor, desde os casos de pessoas acometidas por enfermidades
crônicas, muitas incuráveis, que se encontram quase sempre dependentes de
recursos terapêuticos diversos e, não raro, muito limitadas em seu contexto social,
até aqueles em que a enfermidade nada mais é do que um breve e brando
fenômeno transitório. Assim, “os serviços de saúde deveriam operar com
plasticidade suficiente para dar conta de semelhante variedade” (CAMPOS,
2003:58). Variedade que, segundo o autor, explica a existência de numerosas
práticas clínicas em um universo de contiguidade e diferença, do qual ele considera
três principais semblantes.
O primeiro seria a Clinica Oficial, muito criticada nas últimas décadas por seu
objeto de estudo e intervenção reduzido e fragmentado em especialismos diversos,
onde cada especialismo autoriza a clínica a “se desresponsabilizar pela
integralidade dos Sujeitos”(CAMPOS, 2003:61). Este primeiro semblante contempla
as tendências reducionistas no campo da atenção psicossocial, alvo de nossas
críticas.
Em seguida, a Clínica Degradada, entendida como a Clínica Oficial diminuída
em sua eficácia por conta de fatores externos - interesses econômicos/corporativos
que colocam em segundo plano a qualidade dos serviços prestados, políticas de
saúde inadequadas e/ou atendimentos padronizados que desprezam a singularidade
de cada caso(CAMPOS, 2003).
Por último, a Clínica Ampliada, cujos objetos de intervenção seriam o sujeito,
o contexto e a doença, esta última enquadrada dentro de uma ontologia. Dessa
forma, segundo o autor, a clínica ampliada garantiria certa padronização e
regularidade de casos que se repetem mais ou menos iguais e que possibilitam a
confecção de uma práxis: “[...] tratados sobre a doença ou sobre a fisiologia padrão
dos seres humanos ajuda a clínica. Mais do que a ajudar, a torna
possível.”(CAMPOS, 2003:65).
A clínica ampliada se trata de um modelo cuja responsabilidade transcende o
cuidado com o doente ao invés do cuidado com a doença para reconhecer a
84
capacidade do indivíduo em produzir sua própria vida, ajudando-o na construção de
sua percepção acerca da vida e do adoecimento.
Cunha (2004) define a Clínica Ampliada como uma construção a partir de
uma postura crítica em relação a ela mesma, no sentido de atentar para suas
possibilidades e limitações, usando-as a favor do paciente. O autor afirma que a
superação das limitações do modelo tradicional da clínica biomédica se em dois
aspectos interligados: a utilização das classificações nosográficas dentro de seus
limites, reconhecendo a impossibilidade de uma total compreensão do paciente
através de um simples diagnóstico; e um esforço por parte da prática clínica em
“deixar-se tomar” pelas diferenças e singularidades encontradas em cada queixa,
em cada atendimento. Dessa forma, e com ajuda de outros referenciais teóricos e
outras especialidades além da médica, o que antes estava fora dos limites do saber
biomédico agora pode ser entendido como um novo espaço de intervenção.
Para Cunha, a prática de uma clínica ampliada exige que o profissional
perceba quando ele está se utilizando de um “filtro teórico” (CUNHA, 2004:103), ou
uma atitude seletiva que, com o passar do tempo e prática, contribui para que os
profissionais busquem apenas as informações previstas em roteiros e considerem
apenas as ações terapêuticas correspondentes, circunscritas a um determinado
saber. O reconhecimento da utilização de tal filtro, bem como de suas limitações,
ajuda o profissional a identificar e se relacionar melhor com agentes externos ao seu
saber e sua prática, tal como a singularidade e a imprevisibilidade dos indivíduos
atendidos.
Campos e Amaral(2007) nos alertam para a necessidade de que os
profissionais se interessem de fato e se esforcem para garantir a singularidade de
cada atendimento. No entanto, os autores alertam para a necessidade de certa
liberdade durante o trabalho, bem como uma motivação, para que os profissionais
possam se abrir para o imprevisto e singular encontrado em cada atendimento.
Não se trata, pois, de uma negação do saber biomédico, mas antes da
negação de sua hegemonia, em um contexto de forças onde quem cuida e quem é
cuidado estão imersos. A clínica ampliada na saúde pública seria, então, uma
forma diferente de relação com os saberes e com as práticas de cuidado, que se
traduz em superação dos limites da clínica tradicional através do investimento na
relação individual e coletiva técnico/paciente/equipe (CAMPOS; AMARAL, 2007).
Assim, se faz possível o manejo de situações altamente complexas antes ignoradas,
85
como a forma pela qual fatores sócio-econômicos podem influenciar diversos
problemas de saúde. Problemas estes que,
exatamente por englobarem aspectos que não são valorizados na tradição
da clínica hospitalar (não “biológicos”), muitas vezes não conseguem sequer
ser formulados, embora estejam presentes nas conversas de cozinha e
corredor, nos conflitos com usuários, na dificuldade de obter os resultados
“esperados”, e até na presença de resultados contrários aos esperados
(iatrogenias). (CUNHA, 2004:27)
Com Campos (2003), Cunha (2004) e Campos e Amaral (2007), apostamos
na necessidade de repensarmos a forma pela qual a clínica é praticada, no sentido
de continuarmos na luta para que as tendências reducionistas sustentadas pelo
saber biomédico não comprometam os esforços reformistas no campo da atenção
psicossocial. Mas se acreditamos na proposta de uma ampliação da clínica tal como
feita pelos autores, não podemos esquecer o que se passa com o processo da
reforma psiquiátrica.
Depois de anos de militância clínico-política pela reforma das práticas
psiquiátricas portanto uma reforma das práticas clínicas muitas foram as
conquistas alcançadas. A criação de todo um arcabouço legal, responsável por
regular as ões na atenção psicossocial de forma condizente com o que se
apregoa na legislação norteadora das práticas em saúde do país é fato. As
tentativas de uma prática clínica que recusa um olhar reducionista acerca do
sofrimento atendido no campo da atenção psicossocial continuam. Serviços e
equipes foram e são organizados na busca por articulações entre campos de saber
diversos, no sentido de possibilitar ações e práticas que privilegiem outras
dimensões da vida do usuário.
Todo este investimento na descentralização das decisões e
responsabilidades, sempre depositadas na figura do médico/psiquiatra, pode ser
percebido nos serviços de emergência da rede, onde encontram-se equipes de
recepção formadas por profissionais de especialidades diversas. Não raro, em
vários estabelecimentos públicos da atenção psicossocial, podemos encontrar nos
prontuários as observações de enfermeiros, psicólogos, musicoterapeutas,
terapeutas ocupacionais, etc. As reuniões de equipe também contam com a
presença de profissionais pertencentes a diversos campos de atuação. Tal
movimento pela aproximação e comunicação entre as disciplinas, no sentido de se
86
tentar contemplar outras facetas da problemática do transtorno psicossocial,
conhecido como multidisciplinaridade, não foi o suficiente para a superação da
hegemonia do saber biomédico. Assim, continuamos a testemunhar a manutenção
e a sofisticação das tendências reducionistas no campo em questão. Tendências
que oferecem menos uma alternativa à exclusão e mais uma exclusão alternativa.
Portanto, precisamos refletir sobre como o saber biomédico e suas práticas
reducionistas continuam ditando no cotidiano dos serviços, de forma quase exclusiva
e a despeito de todas as iniciativas contrárias, as intervenções na atenção
psicossocial.
3.3 A biopolítica na atenção psicossocial
Falamos no primeiro capítulo sobre algumas das motivações para o
desencadeamento da reforma psiquiátrica no Brasil. A indignação com as condições
de trabalho aviltantes e serviços que menos cuidavam e mais operavam exclusão e
iatrogenia, ajudou todo um coletivo de profissionais, familiares e outros segmentos
da sociedade, na mobilização pela luta dos direitos dos usuários dos serviços da
atenção psicossocial. No entanto, toda a negligência dos direitos humanos nas
práticas psiquiátricas manicomiais de então iam de encontro com os interesses da
“indústria da loucura”. Indústria esta que se fazia possível através da forma perversa
de relacionamento entre muitas clínicas conveniadas e determinados seguimentos
dos governos, onde a “doença mental” muitas vezes era produzida como forma de
ocupação de leitos, que significavam repasse de verbas aos estabelecimentos, bem
como outras formas de subsidio (AMARANTE, 2002; 2003).
Com o advento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e a luta para se garantir os
direitos humanos aos usuários dos serviços, as clínicas e hospitais particulares
conveniados diminuíram drasticamente em seu número e tamanho. Além do
descredenciamento progressivo dos estabelecimentos que não atendem às
exigências do atual sistema, a fonte de lucro dos estabelecimentos conveniados - a
internação psiquiátrica indiscriminada - sofreu um duro golpe com as conquistas no
campo jurídico. Se o direito à internação continua garantido, como verificamos no
capítulo anterior, sua exploração mercadológica ficou mais difícil. As longas
internações agora exigem relatórios e explicações às autoridades sanitárias, as
87
internações involuntárias devem ser notificadas e explicadas ao Ministério Público
Estadual no prazo de até setenta e duas horas (BRASIL, 2004a) e, principalmente,
como verificamos também no capítulo anterior, a internação é, por lei, recurso
último, quando todas as ações e serviços substitutivos que compõe a atual rede se
mostram insuficientes.
Contudo, diante de tantos esforços no sentido de privilegiar um tratamento na
lógica da (re)aproximação entre o usuário e a sociedade para os reformistas, a
única forma de tratamento possível tanto o usuário quanto a sociedade precisam
constantemente inventar novos meios de convivência. É justamente aí que um
fenômeno curioso não deve passar despercebido. Trata-se de um movimento
paralelo aos esforços reformistas na luta pela superação de preconceitos e
conquista de direitos, que garantam a (re)socialização dos usuários provenientes de
longa duração. Movimento este que muitas vezes é confundido com o próprio
movimento reformista, por “facilitar” os esforços deste último. Referimo-nos ao
movimento crescente de medicalização do que se entende por sinais e sintomas,
que ocupa cada vez mais todos os espaços possíveis, se aproveitando de brechas
imperceptíveis. Alimentado pelo mito da periculosidade do “louco”, pela praticidade
e senso de urgência na redução de comportamentos “inadequados” e outros
sintomas a serem silenciados, o consumo das medicações psiquiátricas cresce
incessantemente.
Curiosamente, podemos notar que o mesmo saber reducionista da
biomedicina fundamenta argumentos utilizados nas críticas que tentam desqualificar
o modelo substitutivo de atenção psicossocial o que abre espaço para a demanda
pelo aumento do número de leitos psiquiátricos, muito provavelmente obtido através
de novos convênios com estabelecimentos particulares - e, também, todo um
embasamento às pesquisas, produção e comercialização de medicamentos cada
vez mais avançados - que “tornam mais fácil” o lidar com o “transtorno psicossocial”.
Este é mais um exemplo de que, se existem nítidas demarcações entre os
movimentos que se rivalizam na disputa de sentido que caracteriza o Campo da
Atenção Psicossocial Brasileira, o que se produz nas práticas já não é tão facilmente
separado. A dicotomia reducionismo x reformismo revela-se, portanto,difícil de se
sustentar e, também, ela mesma reducionista na maneira de se entender as
práticas/produções que são operadas no campo em questão
Trata-se do biopoder que,
88
“[...]em suas estratégias de expansão e acumulação do capital, otimiza
estados de vida que ele submete, se pluga nos processos de cuidado e
gestão incitando, conjugando, modulando equilíbrios e médias que se
destinam a abstrair a vida, extraindo dela sua heterogeneidade e
singularização, para torná-la matéria integral de regulamentação” (NEVES,
2009:783).
A biopolítica ou biopoder é apresentada por Foucault (2005) como tecnologia
ou diagrama de poder que regula a sociedade desde o final do século XVIII. Esta
tecnologia surgiu quando se verificava o funcionamento de outro diagrama, chamado
por Foucault de anátomo-política do corpo humano(FOUCAULT, 2005:289), cujo
alvo era o corpo individual. O funcionamento deste se dá através de práticas
disciplinares que asseguravam a distribuição espacial e sistemática dos corpos em
nível local estabelecimentos como escola, quartel, brica e hospital –, bem como
procedimentos para aumentar-lhes a força útil e adequá-la ao trabalho, da forma
menos onerosa possível, através de técnicas de racionalização e economia.
A biopolítica não excluiu ou suprimiu a tecnologia anterior, mas a integra e
nela se instala, de modo a utilizá-la. Este novo diagrama de poder, também
chamado por Foucault de biopolítica da espécie humana, não se ocupa com o corpo
do homem em sua unidade, mas antes se dirige à multiplicidade dos homens
38
,
visando uma obtenção de estados de equilíbrio global da espécie.
Em seu surgimento, a biopolítica teve como primeiro alvo de controle e
objeto de saber - a proporção da natalidade, da morbidade, da longevidade, das
incapacidades biológicas e da taxa de reprodução de uma população, juntamente
com outras questões econômicas e políticas. surgiram técnicas de medição,
acompanhamento e avaliação, com base em cálculos estatísticos e demográficos,
para entender os fenômenos e intervir junto à população.
Todo o tipo de ameaça ou comprometimento da força de trabalho será o foco
do biopoder (FOUCAULT, 2005), fenômenos alguns universais, naturais e outros
acidentais que se desdobram em incapacidade individual de continuidade na vida
de produção social e/ou econômica. Fenômenos imprevisíveis e até desprezíveis
38
O sentido de “massa global” dado a tal multiplicidade é, segundo Foucault, o que deu origem à
noção de população: um corpo novo e múltiplo, com inúmeras cabeças, se o infinito pelo menos
necessáriamente numerável” (FOUCAULT, 2005:292). Noção que difere da concepção jurídica de
sociedade, esta constituída por um contrato voluntário ou implícito de seus componentes
(FOUCAULT, 2005).
89
enquanto na esfera individual, mas que, no nível das massas, tornam-se pertinentes
econômica e politicamente.
[...]são fenômenos que se desenvolvem essencialmente na duração, que
devem ser considerados num certo limite de tempo relativamente longo; são
fenômenos de série.(FOUCAULT, 2005:293, grifo nosso).
Tais fenômenos passam a contar com uma assistência ao mesmo tempo
“maciça e lacunar” (Foucault, 2005, p.291) à população, que age
descentralizadamente, que não se limita a localidades, que alcance até onde for
necessário. Tal assistência deverá evitar custos com o sustento de pessoas
improdutivas e/ou providenciar para que elas continuem a produzir de alguma
maneira. Surgiu, então, uma diversidade de mecanismos, alguns sutis e
sofisticados, como sistemas de seguros, poupanças, etc.
Dentre os fenômenos com os quais o biopoder passou a se ocupar,
destacamos a problemática das doenças, que passaram a ser tratadas como fatores
permanentes de subtração das forças de trabalho, ocasionando prejuízos financeiros
não apenas com o comprometimento da mão de obra, mas também pelo custo dos
tratamentos.
Em suma, a doença como fenômeno de população: não mais como a morte
que se abate brutalmente sobre a vida é a epidemia mas como a morte
permanente, que se introduz sorrateiramente na vida, a corrói
perpetuamente, a diminui e a enfraquece. (FOUCAULT, 2005:291).
A medicina assume, portanto, a função maior da higiene pública, contando com todo
um aparato de centralização das informações e produção de saberes que serão
fundamentais para a grande influência no aprendizado das práticas de higiene e da
medicalização da população. É a combinação entre medicina e higiene que
estabelecerá as influências científicas sobre os processos biológicos e orgânicos,
onde a medicina será, a partir do século XIX, uma técnica política de intervenção
nas duas instâncias: corpo e população (FOUCAULT, 2005). Trata-se de
[...]um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o corpo e sobre a
população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai,
portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos reguladores. (FOUCAULT,
2005:301-302).
90
Para lidar com o perigo da doença e da morte que está sempre presente a
ameaçar o corpo individual, o saber e práticas da medicina foram assimilados pela
população, através da tecnologia da pedagogia e da disseminação de informações.
Cada indivíduo passou não a aprender as verdades médicas acerca de sua
saúde, como também a praticá-las proativamente, redefinindo constantemente suas
práticas do cotidiano na medida em que as verdades dicas eram atualizadas.
Não menos importante é o fato de que cada indivíduo passou a cobrar práticas de
cuidado de todos aqueles que o cercam. Tal atitude, que produz uma sensação de
cobrança vinda do outro, acusa o deslocamento do indivíduo do lugar de simples
alvo do biopoder para o de seu agente reprodutor/multiplicador, o que contribui para
que sua abrangência contemple toda a população
39
.
Dessa forma, podemos entender a serialização das práticas em saúde como
tecnologia biopolítica que avança e se sofistica, na preocupação com a obtenção de
estados globais de equilíbrio da espécie humana através de uma regulamentação,
de um controle sobre as formas pelas quais a vida se dá.
Na sociedade ocidental, hoje mundial, onde é melhor o que resolve mais
rápido, a urgência para se eliminar sinais e sintomas indesejados é também a
urgência que produz sinais e sintomas a serem eliminados. O sofrimento produzido
não é pouco e, rapidamente “sequestrado” do seu status de experiência, é
serializado, catalogado e transformado em mercado a ser explorado.
São os “sintomas do contemporâneo que contam com todas as
informações sobre a sua etiologia disponíveis na Internet, bem como a relação de
todas as medicações disponíveis para seu tratamento à disposição dos
interessados.
Um desdobramento muito interessante deste fato é o enfado relatado por
muitos médicos, por conta da experiência de se atender pacientes que chegam ao
consultório já possuidores de um diagnóstico e, inclusive, demandando receitas para
a compra de medicamentos específicos. O diagnóstico feito pelos próprios
pacientes não se limita às afirmações como: “eu sofro dos nervos”, ou “eu sou
písico”. Agora as pessoas levam aos psiquiatras não apenas seu diagnóstico
“fechado”, respeitando o que de mais atual na terminologia da psiquiatria, mas
39
Sobre a cooptação dos indivíduos para agirem como agentes do biopoder, lembramos das
discussões no primeiro capítulo acerca da “nova atitude” recomendada pelo pensamento
91
também todo um embasamento técnico para tal. Poderíamos dizer que a
automedicação já é coisa do passado. O autodiagnóstico, este sim é uma novidade.
Mas se por um lado as informações estão disponíveis para qualquer
pessoa interessada - e são estas informações que ajudam na produção da demanda
por atendimento, uma vez que aprendemos a associar um sofrimento a uma doença
ou transtorno existente ainda precisamos procurar um médico. Apenas ele pode
dar legitimidade às conclusões que chegamos ao compararmos o que sentimos com
as informações técnicas acessíveis. É um determinado saber que coloca o médico
na posição de poder dizer “do que sofremos” e o que devemos fazer para que este
sofrimento cesse. Um saber que apenas ele possui, e que dele faz um médico.
Neves (2009), em reflexões acerca das práticas em saúde, nos diz que
A biopolítica quer "cuidar" da vida em sua integralidade, para fazer dela uma
abstração, para tanto cria 'signos' e se expande na microfísica das práticas
de cuidado e gestão. Estas se atualizam na crescente produção de
sintomas classificados como novas doenças pela mídia e seus laboratórios
financiadores, nas novas Classificações Internacionais de Doenças (CIDs);
nas recorrentes "queixas" de profissionais e gestores sobre os
"poliqueixosos que atrapalham os serviços"; na crítica superficial à "o
adesão" dos usuários aos tratamentos e prescrições, assim como na gica
de controle higienista que tem se insinuado em alguns programas e
estratégias de saúde nos territórios(NEVES, 2009:783).
Diante deste cenário, como pensar a clínica de modo que esta não seja capturada,
cooptada e utilizada pelo biopoder e suas operações reducionistas e serializantes;
uma clínica que não apenas contribua para a universalidade do acesso e para a
integralidade das ações em saúde, mas que possibilite uma crítica a tais princípios,
de modo que estes não redundem no fortalecimento e em uma maior abrangência
do mesmo biopoder?
3.4 Outra atitude para a ampliação da clínica
Se apostamos na necessidade de uma ampliação da clínica, é no sentido de
buscarmos um novo modo de se pensar as ações em saúde. O uso da palavra
modo não é por acaso. Queremos falar de outra maneira, uma atitude que de fato
preventivista, educacionalmente moldada e transformadora das relações entre médicos, pacientes,
famílias, comunidade, etc.
92
possibilite ao profissional praticar a clínica ampliada, ou em outras palavras: “criticar
a fragmentação decorrente da especialização progressiva sem cair em
obscurantismo simplista” (CAMPOS, 2003: 64). Uma crítica, portanto, que nos
possibilite privilegiar a complexidade de cada demanda, situação ou contexto.
Crítica e complexidade: garantias de que um novo modo de se pensar/praticar a
clínica não seja transformado em um novo molde a ser utilizado na sustentação da
hegemonia do saber biomédico e das tendências reducionistas que dele advém.
O sentido que aqui damos à complexidade não se limita ao que é atribuído
pelo senso comum: “Complexo o é o complicado, o que ainda não se explicou
ou que insiste como um limite para o conhecimento” (PASSOS; BARROS, 2003: 81).
A complexidade a que nos referimos se trata de uma superação das tendências
reducionistas na atenção psicossocial contra as quais nos posicionamos.
Tendências que o um legado deixado pela ciência moderna, caracterizada pelo
princípio metodológico da explicação de um fenômeno por meio de sua
simplificação. Segundo os preceitos desta ciência, o fenômeno investigado deve ser
apreendido para que sua explicação/simplificação possa ser operada. No entanto,
tal apreensão é possível através do isolamento do fenômeno investigado,
separando-o de seu meio para então explicá-lo por uma disciplina cujas teorias são
organizadas e unificadas por um determinado paradigma científico. (PASSOS;
BARROS, 2003).
A simplicidade é, portanto, o resultado de uma ação depurativa da ciência
moderna. E consequentemente, tal ciência se caracteriza por manter-se no
isolamento de seu meio ambiente o laboratório, a academia ou a
Universidade purificando os fenômenos, simplificando-os, separando-os
do mundo natural ou laboratorial de onde provêm (PASSOS; BARROS,
2003:82).
Se o foco na simplicidade é critério moderno para a explicação dos
fenômenos observados, é na complexidade do contemporâneo que podemos
encontrar meios de superação das simplificações reducionistas resultantes do
isolamento operado pelos limites dos campos de saber, produtores de dicotomias e
exclusão.
no contemporâneo certa experiência de “bifurcação produtora de
novidade” (PASSOS;BARROS,2001:89), paradoxal e desestabilizadora. Paradoxal,
pois é quando nos encontramos prestes a nos tornar algo que ainda não somos, em
93
um presente que não cessa e onde somos ao mesmo tempo o que fomos e o que
seremos. É deste paradoxo que o caráter desestabilizador da experiência do/no
contemporâneo advém: no constante processo de vir a ser, somos convocados a um
deslocamento de onde nos encontramos para uma crítica às cadeias ou conexões
causais que nos tornam figuras estratificadas da história: sujeitos e/ou objetos de um
determinado saber, identidades pré ou pós-fixadas e irredutíveis, enfim, todo e
qualquer aprisionamento definitivo da vida e do que nela se produz. A idéia de
contemporaneidade que aqui comparece “indica menos uma vivência de atualidade
e mais a experimentação daquilo que se dá nos limites das formas instituídas”
(BARROS; PASSOS, 2003:84). Portanto, é no movimento de retorno em direção à
história para que nela possa se apoiar, se impulsionar e criticamente desviar,
sempre produzindo diferença, que o contemporâneo se assemelha à clínica tal como
aqui a pensamos.
Com a ajuda de Passos e Barros (2001), entendemos a clínica, assim como o
contemporâneo, como uma experiência de desvio. Falamos de um sentido da
clínica que não se limita à idéia de inclinação sobre o leito do paciente, derivada do
grego Klinikos. O sentido de desvio, ou clinamen, que aqui é dado ao ato clínico
vem da filosofia atomista de Epícuro. É ele, o desvio, que permite as colisões entre
os átomos em queda no vazio, por conta de seu peso e velocidade. Ao se
chocarem, eles se articulam na composição das coisas, o que aos movimentos
de desvio um caráter de potência de geração do mundo e, portanto, desestabilizador
das formas instituídas. “É na afirmação desse desvio, do clinamen, portanto, que a
clínica se faz” (PASSOS; BARROS, 2001, 90).
Uma vez caracterizada pela desestabilização e pelo desvio que opera, a
clínica pode ser considerada como uma experiência do/no contemporâneo
(PASSOS; BARROS, 2001). Isto significa dizer que em seu estatuto de
contemporaneidade a ação clínica também comporta uma bifurcação produtora de
novidade, também intempestivamente, uma vez que ela não pode se situar nem
definitivamente no presente para não se limitar às práticas da queixa-conduta da
psicopatologia descritiva, criticadas no capítulo anterior -, nem no passado - sob
pena de ser reduzida a um modelo histórico fatalmente condenado à novas
ampliações/reformulações. É, portanto, equivocando um caráter adaptacionista
/utilitário no presente e estruturalista/estratificado no passado (PASSOS; BARROS,
2001), que a clínica se localiza em um espaço a ser construído.
94
Nesse sentido, podemos dizer que ela habita uma utopia, uma vez que é
pela afirmação do o-lugar (u-topos) que ela se compromete com os
processos de produção da subjetividade. Assim é que ela também não pode
ser uma ação do presente ou do passado. Sua intervenção se num
tempo intempestivo, extemporâneo, impulsionado pelo que rompe as
cadeias do hábito para constituição de novas formas de existência
(PASSOS; BARROS, 2001: 90).
Quando falamos em produção de subjetividade e em um não-lugar, falamos
da impossibilidade de sustentação de hábitos, identidades e saberes instituídos.
Portanto, para a superação das tendências reducionistas na atenção
psicossocial, a prática clínica não pode se limitar à busca pela multidisciplinaridade
por s citada, uma vez que esta tentativa de flexibilização das fronteiras
disciplinares quando muito contribui para um diálogo entre profissionais de
diferentes formações, em um movimento que acaba por reforçar os especialismos.
Pelo mesmo motivo, a clínica o deve se limitar ao que se convencionou chamar
interdisciplinaridade, ou exploração de zonas de interseção de disciplinas para as
quais objetos de investigação são designados, resultando no surgimento de novas
disciplinas. Tanto a multidisciplinaridade quanto a interdisciplinaridade são, dessa
forma, contribuições para a “manutenção das fronteiras disciplinares, dos objetos e,
especialmente, dos sujeitos desses saberes” (PASSOS; BARROS, 2000:74), cujas
identidades acabam por ser condição de possibilidade para que uma articulação
aconteça. Em uma discussão sobre a flexibilização das fronteiras disciplinares é,
então, necessário cuidado para
[...] não se substituir simplesmente a noção de campo pela de objeto que
assim a oposição entre os termos é mantida que, desta vez, com certo
grau de articulação (PASSOS; BARROS, 2000:74).
Situação que em nada contribui na luta contra a tendência reducionista no campo da
saúde e, segundo nosso interesse específico, no campo da atenção psicossocial.
Isto porque, mesmo com a superação da hegemonia do saber biomédico o que
se mostrou não ser o caso, tendo em vista sua importância no regime da biopolítica -
, não temos garantias de que outro saber não assuma o seu lugar. E se
entendemos, com base no que aaqui foi discutido, que a noção de campo de
saber pressupõe em sua simplificação moderna um reducionismo, a necessidade
que se apresenta é menos de se combater um saber específico e mais de se
95
equivocar a constituição dos limites, das fronteiras, de todos os campos de saber.
Até porque, muito facilmente outros saberes que se propõem a estudar e explicar o
homem podem, também, servir às operações de controle do biopoder. Basta
observarmos o fenômeno crescente da psicologização de tantos “desvios de
conduta”, observados desde a infância até a fase adulta naqueles que, por vários
motivos, o se comportam de maneira a corresponderem às expectativas da
maioria.
Em outras palavras, a clínica pode contribuir para a superação do isolamento
operado não apenas pelo saber biomédico, mas por toda e qualquer disciplina que
se propõe a definir e explicar seus objetos de investigação arbitrariamente definidos,
de forma definitiva e irredutível.
Fazendo da experiência contemporânea de desvio e instabilidade uma atitude
clínica, podemos questionar os saberes e práticas reducionistas e hegemônicos no
campo da atenção psicossocial - herdeiros do ideal de simplificação da ciência
moderna - entendendo-os como práticas históricas: o contemporâneo se apóia na
história para dela desviar, a clínica se apoianos saberes e práticas historicamente
estabelecidos para, deles, operar o clinamen.
Ao articularmos clínica e história, comparece em nossa discussão a dimensão
política da clinica, uma vez que “arguir a história é poder dela extrair seus processos
de produção, é desnaturalizar seus eventos fazendo aparecer este jogo de forças
que dá corpo à realidade” (PASSOS; BARROS, 2001:91).
Referimo-nos aos modos de produção de subjetividade, ou subjetivação, bem
como os de produção de objetividade, ou objetivação, responsáveis pelas formas
instituídas de sujeito e objeto de um determinado saber.
Trata-se, portanto, da necessidade de se analisar as condições que
possibilitam a formação ou a modificação das relações entre sujeito e objeto de um
campo de saber, “uma vez que estas são constitutivas de um saber possível”
(FOUCAULT, 2006:234). Uma análise que se propõe o a identificar as condições
formais de uma relação entre sujeitos e objetos pré-existentes, mas antes perceber
o funcionamento dos processos de subjetivação: processos pelos quais condições
diversas o observadas e seguidas, no sentido de se tornar possível a constituição
do sujeito de um determinado saber. Condições que o são as mesmas para cada
campo de saber existente; pelo contrário, elas variam, se diferenciam, e é essa
diferença que determinará as distinções entre pertencimentos a campos de saber
96
diferentes. Da mesma maneira, a observância de condições diversas é necessária
para o “recorte” de determinado objeto de saber, a ser diferenciado do que o cerca
na medida em que tais condições são respeitadas. Este processo foi chamado por
Foucault (2006) de objetivação. A subjetivação e a objetivação são processos
indissociáveis, e seu desenvolvimento assim como sua ligação recíproca emergem
no que o autor chama de “jogos de verdade” (FOUCAULT, 2006:235). Jogos que
segundo Foucault não definem as coisas verdadeiras, mas regras, regimes,
[...] as formas pelas quais se articulam, sobre um campo de coisas,
discursos capazes de serem ditos verdadeiros ou falsos: quais foram as
condições dessa emergência, o preço com o qual, de qualquer forma, ela foi
paga, seus efeitos no real e a maneira pela qual, ligando certo tipo de objeto
a certas modalidade do sujeito, ela constituiu, por um tempo, uma área e
determinados indivíduos, o a priori histórico de uma experiência possível.
(FOUCAULT, 2006:235).
Em suma, trata-se de práticas que constituem o real, para aqueles que se propõem
a investigá-lo, bem como práticas que possibilitam a constituição daqueles mesmos,
enquanto sujeitos em condição de investigar, nomear e modificar o mesmo real:
São as “práticas” concebidas ao mesmo tempo como modo de agir e de
pensar que dão a chave de inteligibilidade para a constituição correlativa do
sujeito e do objeto. (FOUCAULT, 2006:238).
Falamos então, de práticas produtoras de subjetividade e objetividade, portanto
constitutivas dos limites das disciplinas, dos campos de saber. Se levarmos em
consideração a atuação do biopoder e o controle da população, entendemos que
uma crítica à estabilidade das fronteiras das disciplinas e de todos os especialismos
que delas advém será, por conseguinte, uma arguição acerca das relações entre a
constituição das mesmas disciplinas e suas relações com uma série de instituições,
estruturas políticas e econômicas, bem como outras urgências de regulamentações
sociais, ou, segundo Foucault, “os entrelaçamentos dos efeitos de poder e de saber”
(FOUCAULT, 1979:02).
Logo, entendemos que tanto o sujeito quanto o objeto de um determinado
saber não podem ser assumidos como realidades dadas, mas que um determina
formas de conhecimento do outro através de práticas que explicam as posições
subjetivas e objetivas que se estabilizam como realidade. Tal pensamento nos leva
ao rompimento com a dicotomia sujeito-objeto operada pelas disciplinas e
97
especialismos. Ruptura esta que implica na emergência de planos onde a relação
entre o sujeito e o objeto de saber precede a constituição ou definição destes
(PASSOS; BARROS, 2000). Portanto, é esta mesma relação que define as
fronteiras epistemológicas dos campos de saber e indica o que se encontra dentro e
fora destes campos. É a estabilidade desta relação que deve ser posta em análise
através de certa atitude crítica que aqui, com Passos e Barros (2000), chamaremos
de transdisciplinaridade: uma equivocação da dicotomia sujeito/objeto, das unidades
das disciplinas e dos especialismos.
A atitude transdisciplinar, ou transdisciplinaridade, nos leva à superação da
noção de campo epistemológico ao apontar para a existência de um plano de
constituições, de onde a realidade emerge, “desfazendo-se qualquer ponto fixo ou
base de sustentação da experiência” (PASSOS; BARROS, 2000:77).
Contudo, se sujeito e objeto se engendram no ato do conhecimento uma
vez que conhecer é estar implicado em certa produção de realidade e também
constituir-se em tal implicação de forma retroativa – não há anterioridade ou garantia
prévia de determinado conhecimento. Assim, precisamos pensar em como
podemos fazer nossas escolhas teóricas, como nos relacionar com conceitos, sem
que nos percamos em posturas indiferentes e relativistas, confundindo a superação
de garantias e fundamentos dos saberes com a simples negação destes últimos
(PASSOS; BARROS, 2000).
O fato de que conceitos são produzidos e, portanto, desprovidos de garantias
prévias ou status de fundamento, é menos uma ameaça à prática clínica, tal como a
concebemos, que condição de possibilidade para sua operação. Uma vez
deslocados de seu lugar de estrato histórico e reconhecidos em seu caráter de
produção, de multiplicidade, os conceitos não mais podem ser entendidos como uma
totalidade fechada. Portanto, embora desempenhe uma função de todo, não é
possível para um conceito reunir todos os seus componentes heterogêneos. Desta
impossibilidade, se conclui certa indefinição, uma irregularidade do seus contornos
que lhe garante uma força de transversalização (PASSOS; BARROS, 2003).
Quando falamos de transversalização, ou cortes transversais, nos referimos a
atravessamentos desestabilizadores de domínios ou disciplinas diversos, uns sobre
os outros, em um processo de mútua interferência que acusa o movimento de
composição heterogênea dos conceitos. Tais conceitos, carregados de potência de
transversalização, são o que Deleuze (1992) chama de intercessores, cuja operação
98
em nada se aproxima da noção de interseção, que caracteriza o movimento de
interdisciplinaridade (PASSOS; BARROS, 2000), cuja contribuição para a
manutenção da rigidez dos limites das disciplinas já foi brevemente comentada.
Os conceitos intercessores não são abstratos ou preexistentes, mas
produzidos, e por serem produção são também movimento carregado de
circunstancialidade ao invés de essência. É por seu movimento que os
intercessores o importantes na prática clínica. Tal como a experiência
intempestiva do contemporâneo, nos interessa menos o início do movimento, mas
seu constante presente em forma de processo, uma operação gerúndica do “sendo”.
Deleuze (1992) faz uma comparação com esportes como o surfe e o vôo-livre, nos
quais o praticante precisa se fazer aceito em um movimento existente de uma
onda ou de um deslocamento de ar:
não é uma origem enquanto ponto de partida, mas uma maneira de
colocação em órbita. O fundamental é como se fazer aceitar pelo
movimento de uma grande vaga, de uma coluna de ar ascendente, “chegar
entre” em vez de ser origem de um esforço. (DELEUZE, 1992: 151).
Podemos entender o intercessor em sua característica funcional de produzir
interferência entre domínios, em uma operação de cruzamento e contágio entre as
disciplinas que oportunidade à produção da diferença (PASSOS; BARROS,
2000). É, pois, no acompanhamento do percurso de um determinado conceito
intercessor, por entre as linhas de sua constituição que atravessam domínios
diversos, na zona de indeterminação produzida entre as fronteiras dos campos de
saber que a transdisciplinaridade se dá. Zona de indeterminação que é o não-lugar,
onde a complexidade contemporânea faz morada e se opõe à simplicidade e ao
reducionismo moderno contido no interior dos domínios de saber.
Portanto, a clínica transdisciplinar não será localizada/corporificada em um
serviço, em uma técnica ou conjunto de técnicas, muito menos em um determinado
corpo teórico. Isto não significa o abandono ou a recusa do conhecimento de cada
disciplina, mas antes um agenciamento entre elas(PASSOS e BARROS, 2003).
Podemos entender que uma atitude transdisciplinar à prova de relativismos
improdutivos e aniquilantes é possível através do entendimento e da fabricação
constante de intercessores, sem os quais não obra. “Podem ser pessoas [...],
99
mas também coisas[...]. Fictícios ou reais, animados ou inanimados, é preciso
fabricar seus próprios intercessores”(DELEUZE, 1992:156).
Se com Foucault (2006) já sabemos que a constituição correlativa do sujeito e
do objeto é resultado de práticas diversas, sabemos então que tais práticas definem
as fronteiras ou limites de uma determinada disciplina ou campo de saber,
separando o que está dentro do que está fora. Assim, quando criamos ou nos
fazemos intercessores, transitamos por entre práticas e com elas nos relacionamos,
produzindo interferências e diferenças.
Ao invés de buscar uma neutralidade diante do fenômeno que observa, o
profissional da clínica se permitiria afetar pelas sensações, emoções e outras
experiências no/do ato de cuidar. Tais experiências, quando não silenciadas, dão
passagem a outras tantas, em um movimento que se inicia no território de uma
disciplina específica - onde o profissional possui determinada identidade ou posição
de sujeito detentor de saber - para dele se deslocar abrindo caminho para tantos
outros.
Tomar, enfim, em análise, os funcionamentos e seus efeitos, experimentar
ao invés de conjecturar, ocupar-se dos maquinismos que insistem na
produção de outros modos de existência, esquecer-se de si e de sua
história e encontrar-se na criação, parecem ser algumas faces desta clínica
transdiciplinar (PASSOS;BARROS, 2000:78).
Diante da impossibilidade de se constituir enquanto campo, a clínica
transdisciplinar não tem sua dimensão pragmática ameaçada, embora esta se
apresente “menos como método ou inventário de procedimentos e formas de ação e
mais como um processo constante de invenção de estratégias de intervenção em
sintonia com os novos problemas constituídos” (PASSOS; BARROS, 2003:83).
A constituição de novos problemas se na medida em que, uma vez
acessado o plano de emergência ou produção de uma realidade previamente dada,
os problemas até então estabelecidos, parte desta mesma realidade, são também
equivocados em suas bases. Equivocados, não desprezados ou negligenciados.
Citamos como exemplo a busca constante por novos modelos de cuidado, na
tentativa de superação das tendências reducionistas alimentadas pelo saber
biomédico no campo da atenção psicossocial. Trata-se de uma necessidade que
não se pode ignorar. Os saberes e práticas reducionistas comprometem não
apenas a resolutividade na atenção psicossocial, mas no SUS como um “todo”. No
100
entanto, o tempo cronológico que durar as tentativas de superação da hegemonia da
biomedicina ,através de novas fórmulas - e por serem fórmulas, são prescritivas - de
se praticar a clínica, será o tempo que durará tal hegemonia.
Não precisamos apenas de novas soluções e a aposta na ampliação da
clínica pode ser uma delas -, precisamos de novos problemas. Não mais podemos
repousar sobre a identidade de um problema específico como o das tendências
reducionistas, mas nela nos apoiar para criticamente operar um desvio desviar,
não recusar ou ignorar. Perguntamo-nos se mais urgente do que rivalizarmos com
as tendências reducionistas, não é intervirmos naquilo que faz com que elas
continuem no lugar de hegemonia, mesmo depois de tanta militância no processo da
reforma psiquiátrica. Mesmo depois da aprovação das Leis, onde encontramos uma
institucionalização que favorece a horizontalidade das práticas e saberes.
Portanto, se é no plano heterogenético de forças que encontramos vetores
diversos participantes na produção da realidade, então criemos nossos
intercessores e apostemos na atitude transdisciplinar. Atitude esta que possibilita
uma ampliação da clínica, não alargando seus limites, mas desestabilizando-os,
possibilitando uma interferência transversal com tantos outros domínios, como a
filosofia, as artes, a potica...
101
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em nosso percurso, mapeamos a Reforma Psiquiátrica Brasileira desde seu
advento até os dias de hoje, menos preocupados em registrar todos os fatos em
seus detalhes que marcar alguns esforços pela superação das tendências
reducionistas nas práticas do cuidado, tendências provenientes do saber-fazer
psiquiátrico, revigorado atualmente pelas neurociências. É neste contexto que
emerge o objetivo do presente trabalho, qual seja uma crítica às tendências
reducionistas no Campo da Atenção Psicossocial Brasileira nos dias de hoje, ainda
hegemônicas, bem como uma reflexão sobre como a clínica pode contribuir para a
superação de tais tendências.
As análises presentes no primeiro e segundo capítulo nos autorizam a afirmar
que o campo com o qual nos ocupamos é constituído por disputas de sentido, nas
quais a questão do reducionismo operado pelo saberes e prática psiquiátricos e
biomédicos está sempre presente. Podemos dizer ainda que, mesmo nos limitando
em um primeiro momento a um pensamento dicotômico, o processo reformista foi
disparado e se atualiza por uma tensão entre movimentos contra e a favor das
práticas reducionistas operadas pelo modelo de atenção hospitalocêntrico, e que
são justificadas pelo saber psiquiátrico de então; tensão esta que se faz notar desde
as primeiras manifestações reformistas que contavam com o apoio da opinião
pública, até as atuais investidas contra o modelo substitutivo que assediam a mesma
opinião pública por meio de importantes veículos de comunicação.
É neste contexto de disputa e de hegemonia das tendências reducionistas na
atenção psicossocial do país, que nos deparamos com um importante desafio. Se
por um lado foi necessária uma tomada de posição - uma vez que é disso que este
trabalho se trata, um posicionamento de crítica às tendências reducionistas no
campo em questão - por outro, em tal posicionamento algumas necessidades e
riscos se mostraram presentes e nos acompanharam durante todo o percurso. Foi
preciso recusar uma fácil e cômoda postura “panfletária” de defesa do modelo de
atenção no qual acreditamos, no sentido de se evitar um simples ataque às idéias
contrárias e apostar mais na potência do modelo que defendemos. Foi preciso
também evitar uma postura conciliatória – o que não seria indicado ou sequer
possível -, que mais naturaliza do que problematiza a situação verifica de hegemonia
das tendências reducionistas no campo em questão.
102
Em nossa análise acerca da disputa de sentido entre os defensores e
opositores às tendências reducionistas na atenção psicossocial, o termo “sentido”
compareceu com um aspecto tridimensional, indicando um objetivo ou propósito a
ser alcançado, uma direção ou orientação a ser tomada e, também, uma certa
“razão de ser”.
A dimensão do objetivo ou propósito pode ser verificada no que se busca por
cada movimento. Nas práticas reducionistas, o que se observa é a preocupação
com a remissão dos sinais e sintomas verificados, que também pode ser entendida
como uma modificação de comportamentos que não correspondem aos padrões de
normalidade ditados pela maioria. nas práticas que buscam uma superação do
reducionismo, nota-se a preocupação em fazer do usuário dos serviços de atenção
psicossocial o protagonista de sua própria vida, na medida de suas possibilidades.
a dimensão da direção ou orientação, diz respeito à definição de práticas
na tentativa de se atingir os objetivos almejados. Falamos do desenho de um
determinado modelo de atenção e/ou as práticas de cuidado que nele acontecem. É
nesta dimensão que as tendências reducionistas são corporificadas como, por
exemplo, a psicopatologia descritiva, mencionada no segundo capítulo deste
trabalho. Isto sem falar no modelo hospitalocêntrico, cuja apregoação da internação
psiquiátrica como única ou mais adequada forma de tratamento é o exemplo por
excelência da prática reducionista na atenção psicossocial. A aposta reformista
comparece nesta dimensão através do modelo substitutivo de atenção e de toda e
qualquer prática que se afina com a proposta deste, respeitando as dificuldades do
usuário no processo de tratamento e buscando meios de reverter as diversas
situações de vulnerabilidade nas quais ele se encontra inserido.
A dimensão da “razão de ser” aqui comparece exigindo de nós certo cuidado
nas reflexões. Em um primeiro momento, podemos entender tal dimensão como a
que diz respeito aos saberes ou disciplinas que, resultados de avanços científicos,
dariam um sentido - ou seriam “a razão de ser” - às práticas e objetivos a serem
alcançados nas ações e serviços da/na atenção psicossocial. Teríamos, então, uma
disputa de sentidos entre o saber psiquiátrico reducionista e os demais saberes que
fundamentam o movimento reformista. Com ajuda de Foucault (2006 e 1979), no
entanto, conseguimos nos relacionar com os campos de saber em outra perspectiva.
Com Foucault (1979), a discussão presente no terceiro capítulo sobre a questão da
biopolítica no campo da atenção psicossocial, nos ajuda no entendimento de que a
103
dicotomia reducionismo x reformismo não se traduz nos efeitos ou produções
percebidos. As próprias tentativas de superação das tendências reducionistas,
operadas pelo saber/fazer psiquiátrico e biomédico, mostram-se muito facilmente
reprodutoras do mesmo reducionismo. Percebemos também que a biopolítica ou
biopoder se através do saber hegemônico contra o qual se luta no processo
reformista. Assim, ainda com Foucault (2006) buscamos uma reflexão acerca dos
modos de subjetivação e de objetivação, assim como a indissociabilidade entre
estes, que nos a ideia dos “jogos de verdade (FOUCAULT, 2006: 235)
constituintes dos sujeitos e objetos de um determinado saber e, portanto, do próprio
campo de saber ou disciplina. São estes jogos de verdade que não identificam o
que é verdadeiro ou falso mas, antes, indicam as regras e os regimes de articulação
de elementos discursivos e não discursivos, responsáveis por promover a
veracidade ou a falsidade do que se observa.
Foucault (1979) havia apontado para a diferença entre o saber psiquiátrico
e outros saberes como física ou química, no que diz respeito a uma maior facilidade
ou dificuldade em se perceber as suas relações com as estruturas políticas e
econômicas da sociedade. A pouca definição do perfil epistemológico da psiquiatria,
bem como a ligação de sua prática à instituições econômicas e políticas diversas
(FOUCAULT, 1979), torna mais fácil a apreensão dos jogos de verdade que regem
este saber/prática em suas operações reducionistas. Portanto, a ideia de jogos de
verdade nos ajuda na modulação da acepção do que seria a terceira dimensão do
termo “sentido”: de uma “razão de ser” para um “ser da razão”, ou, de um fazer com
base em um saber para um saber com base em um fazer.
Podemos perceber a presença de jogos de verdade, por exemplo, nas
discussões trazidas no final do primeiro capítulo, onde nos detivemos sobre a
alternância de termos designados na nomeação do fenômeno com o qual se ocupa
o campo da atenção psicossocial, todos operadores de discursos reducionistas.
Com base no que foi discutido, concluímos que as mudanças no uso da categoria
“doença mental” para “transtorno mental” e “sofrimento psíquico” não se deram
graças às descobertas e avanços científicos, mas às mudanças no regime do
discurso e do saber (FOUCAULT, 1979). Apenas as tendências reducionistas, bem
como a constante ampliação do campo de influência da psiquiatria não sofreram
mudanças.
104
Assim, pensamos em combinar conceitos amplamente utilizados desde o
advento da reforma psiquiátrica, para que o conceito de transtorno psicossocial
possa surgir e nos ajudar como intercessor clínico. O uso de tal conceito não visa
simplesmente uma substituição das categorias já existentes, que, como vimos,
também contribuem para um reducionismo no dizer. O conceito que propomos
também não conta em seu uso com a pretensão de resumir ou incluir todas as
explicações e dimensões do fenômeno com o qual se ocupa a atenção psicossocial.
Aliás, a nossa intenção passa longe de um conceito que explique ou inclua. Antes,
apostamos no conceito de transtorno psicossocial enquanto um intercessor que
provoque questionamentos que, para serem respondidos, nos levarão a outros
lugares; que abra novas possibilidades de se pensar o fenômeno observado e
também experienciado na relação de cuidado, por ser também social.
Formado por fragmentos de outros conceitos (PASSOS; BARROS, 2003), o
conceito transtorno psicossocial é prenhe de multiplicidade e, portanto, comporta
certa irregularidade, uma indefinição em seus contornos – Que é da ordem do
psíquico? Que é da ordem do social? Como estas noções se combinam? Daí,
pensamos, advém sua potência de transversalização, de atravessamentos
desestabilizadores operados nas disciplinas em jogo.
É através da desestabilização e do desvio operados clinicamente que
acessamos o plano da produção de subjetividade e demais conceitos; plano de
multiplicidades, heterogenético, composto por vetores diversos que participam
ativamente de toda a produção de realidade, tal como os religiosos, os políticos, os
governamentais, os raciais, os ideológicos, os culturais, etc.. É, pois, neste plano
que se a experiência clínica, plano que é do coletivo, que não deve ser reduzido
a ideia de soma de indivíduos ou de sociedade.
Coletivo é multidão, composição potencialmente ilimitada de seres tomados
na proliferação das forças. No plano de produção, plano coletivo das forças,
lidamos com o que é de ninguém, ou, poderíamos dizer, com o que é da
ordem do impessoal. No coletivo não há, portanto, propriedade particular,
pessoalidades, nada que seja privado, que todas as forças estão
disponíveis para serem experimentadas. É que entendemos se dar a
experiência da clínica: experimentação no plano coletivo, experimentação
pública (PASSOS; BARROS, 2004:169).
Portanto, a atitude transdisciplinar pode contribuir para a superação do
reducionismo em seu efeito de privatização, cuja noção não mais pode se limitar à
105
sinonímia de uma desestatização. A transdisciplinaridade possibilita a tão almejada
ampliação da clínica, através da problematização dos limites de cada disciplina, sem
o risco de novos aprisionamentos, de novos especialismos a substituírem outros
superados falamos de uma outra forma de privatização; a problematização dos
saberes nos possibilita uma problematização das práticas, de modo a não nos
limitarmos a uma técnica ou serviço específico e, portanto, uma terceira forma de
privatização; tornando possível o acesso ao plano coletivo do impessoal e
colocando em análise o caráter identitário e estrutural do sujeito, a atitude
transdisciplinar nos possibilita equivocar uma quarta forma de privatização, aquela
que nos seqüestra deste plano do coletivo e nos aprisiona em estratos históricos de
sujeitos de um determinado saber, agentes produzidos e reprodutores do
reducionismo contra o qual se luta.
Por tudo o que foi discutido, apostamos na clínica transdisciplinar o como
um novo modismo, pois toda moda é um recorte histórico; ou novo campo de
práticas e saberes corporificado em um modelo fixo e prescritivo, prenhe de técnicas
específicas. Nossa aposta na clinica transdisciplinar se dá por considerarmos sua
capacidade de se criar e se recriar a cada instante (PASSOS; BARROS, 2000).
É assim que, em nosso trajeto, percebemos a importância de que a disputa
de sentidos constituinte do Campo da Atenção Psicossocial Brasileira passagem
à disputa por mais e novos sentidos não apenas na produção de cuidado, mas na
produção de saúde. Seguimos, então, com a Reforma Psiquiátrica Brasileira, por
uma superação das tendências reducionistas na atenção psicossocial.
106
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