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Marcelo Batalioto
A ressurreição de Jesus a partir de Andrés
Torres Queiruga
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
graduação em Teologia Sistemático-Pastoral do
Departamento de Teologia da PUC-Rio.
Orientador: Prof. Paulo Cezar Costa
Rio de Janeiro
Fevereiro de 2010
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Marcelo Batalioto
A ressurreição de Jesus a partir de Andrés
Torres Queiruga
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Teologia do Departamento de Teologia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Prof. Paulo Cezar Costa
Orientador
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof.ª Janura Clothilde Boff
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Carlos Antonio da Silva
Instituo Paulo VI
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do
Centro de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 2010
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou
parcial do trabalho sem a autorização da universidade, do autor e
do orientador.
Marcelo Batalioto
Graduo-se em Filosofia, licenciatura, pela FEBE (Fundação
Educacional de Brusque) em 1998. Graduado em Teologia,
bacharelado, pela FAJE (Faculdades Jesuítas), em Belo
Horizonte, em 2004. Exerce atividades pastorais como vigário
paroquial na paróquia Sagrado Coração de Jesus na cidade do
Rio de Janeiro RJ. É membro da comissão de assessoria na
área de educação dos padres Dehonianos.
Ficha Catalográfica
CDD: 200
CDD: 200
Batalioto, Marcelo
A ressurreição de Jesus a partir de Andrés Torres
Queiruga / Marcelo Batalioto ; orientador: Paulo Cezar Costa.
– 2010.
105 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Teologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Inclui bibliografia
1. Teologia Teses. 2. Cristologia. 3. Jesus histórico. 4.
Ressurreição. 5. Sepulcro vazio. 6. Aparições. 7. Bultmann. 8
Queiruga. I. Costa, Paulo Cezar. II. Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III.
Título.
Agradecimentos
Minha gratidão aos professores e funcionários do departamento de Teologia da
PUC-Rio.
Agradeço minha comunidade religiosa, que soube entender minha ausência e
me disponibilizou o tempo necessário para a dedicação aos estudos.
Aos meus familiares, amigos e amigas pelo incentivo, troca de ideias e
sugestões.
Agradecimento especial a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa
do Estado do Rio de Janeiro, FAPERJ, pela bolsa concedida.
E agradeço, com muito apresso, o professor Paulo Cezar Costa, que se dispôs,
com muita solicitude, orientar a pesquisa desenvolvida nessa dissertação.
A todos, o meu muito obrigado.
Resumo
Batalioto, Marcelo; A ressurreição de Jesus a partir do pensamento de
Andrés Torres Queiruga. Rio de Janeiro, 2010. 105p. Dissertação de
Mestrado Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
O tema da Ressurreição de Jesus é repensado pelo teólogo Andrés Torres
Queiruga, com o intuído de evidenciar o seu significado dentro do atual contexto
teológico. Uma releitura profunda e equilibrada dos textos bíblicos,
principalmente das narrativas do sepulcro vazio e das aparições, permite
constatar a ausência das provas históricas da ressurreição de Jesus. Esses
textos são, principalmente, construções teológicas que buscam interpretar o
sentido do evento da ressurreição numa comunidade de fé. Num caminho de
síntese, Queiruga busca encontrar o equilíbrio na reflexão bastante intrincada
sobre o Jesus histórico. Em consonância com autores relevantes da cristologia
recente, ele critica o otimismo da teologia liberal, que acreditava ser possível
chegar até o Jesus da história. Da mesma forma são criticadas as pretensões da
teologia querigmática, sintetizada no pensamento de Rudolf Bultmann, que
dispensava a história de Jesus para a formulação do querigma. Embora a
ressurreição de Jesus não seja um evento constatável em si mesmo, no sentido
empírico do termo, dentro da história, é certo que se trata de um acontecimento,
realizado pela iniciativa de Deus, que atinge e marca a história. É nesse sentido
que Queiruga, amparado por outras reflexões cristológicas, entende a
ressurreição de Jesus.
Palavras chave
Teologia; cristologia; Jesus histórico; ressurreição; sepulcro vazio;
aparições; Bultmann; Queiruga.
Abstract
Batalioto, Marcelo (Advisor). The Jesus’s resurrection in Andrés Torres
Queiruga’s theology. Rio de Janeiro, 2010. 105p. MSc. Dissertation –
Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro.
The Jesus resurrection theme is rethought by theologian Andrés Torres
Queiruga, to strengthen the importance of this theme in the current theological
context. A balanced and thorough review of biblical texts, especially the
narratives of the empty tomb and the appearances, can attest the absence of
historical evidence of Jesus’ resurrection. These texts are mainly theological
constructs that aim to interpret the meaning of the resurrection event in a
community of faith. Through the way of synthesis, Queiruga try to find a balanced
reflection about this so complex theme: historical Jesus. Following the relevant
authors of the current christology, Queiruga criticizes the optimism of liberal
theology, which believe to be possible reach the Jesus of history. Similarly, the
pretensions of theology kerygmatic are criticized, summarized in the Rudolf
Bultmann’s thought, that dispense Jesus’ history to the formulation of the
kerygma. Although the resurrection of Jesus is not an itself observable event, in
the empirical meaning, it is a fact happened in the history, accomplished by
God’s initiative, which reaches and impresses the history. In this way Queiruga,
supported by other christological reflections, understands the Jesus’ resurrection.
Keywords
Theology; Christology; historical Jesus; resurrection; empty tomb;
appearances; Bultmann; Queiruga.
Súmario
1. Introdução 08
2. A problemática da cristologia moderna: o Jesus histórico 14
14
2.2. O início da problemática – Reimarus 15
2.3. O pensamento de Bultmann 19
2.3.1. A primazia do querigma em Bultmann 21
2.3.2. A cruz e a ressurreição no pensamento bultmanniano 24
2.4. Os críticos de Bultmann 28
2.5. Repensando a cristologia 33
2.6. Apresentando Andrés Torres Queiruga 37
3. A ressurreição de Jesus, um enfoque a partir de Andrés Torres
Queiruga
40
3.1. Questões preliminares 40
3.2. A ressurreição no contexto do Antigo Testamento 44
3.3. A ressurreição no contexto do Novo Testamento 46
3.4. Sobre as narrativas da ressurreição 48
3.5. As tradições pascais 50
3.5.1. As aparições 50
3.5.2. O sepulcro vazio 52
3.6. A sobriedade dos relatos 54
3.7. Buscando interpretar o relato do túmulo vazio e seu sentido
55
3.8. Sobre as aparições e o seu sentido
58
3.9. Uma reflexão sobre o sentido da ressurreição do corpo 61
3.10. Conclusão 66
4. A ação de Deus, a revelação e a historicidade da ressurreição de
Jesus
69
4.1. Introdução 69
4.2. O significado da ação de Deus na ressurreição de Jesus
70
4.3. A revelação de Deus na ressurreição de Jesus 73
4.4. Identidade, continuidade e envio 78
4.5 A historicidade da ressurreição de Jesus 81
4.5.1. Walter Kasper e a historicidade do testemunho 82
4.5.2. Pannenberg e a historicidade da ressurreição 84
4.5.3. Edward Schillebeeckx e a historicidade do querigma 86
4.5.4. Joseph Moingt e a historicidade na presença do “corpo” do
ressuscitado
89
4.5.5. Andrés Torres Queiruga e a historicidade da ressurreição na
revelação de Deus
91
4.6. Conclusão 95
5. Considerações Finais 97
6. Referências Bibliográficas 103
1
INTRODUÇÃO
Durante muito tempo a centralidade da cristologia permaneceu fixada no
evento da encarnação, intuído a partir dos textos bíblicos e, sobretudo, reforçado
pelo dogma. A síntese do dogma cristológico é encontrada na clássica
proclamação do Concílio de Calcedônia.
1
Coube, então, à cristologia trabalhar
sobre essa base.
Não obstante o fato de o dogma assegurar que a humanidade e a divindade
constituem a identidade de Jesus, a realidade divina acabou por ser a mais
acentuada. A figura do Cristo exaltado, com poder e glória à direita de Deus foi,
cada vez mais, assumindo projeção e tirando a evidência da realidade humana.
Naturalmente, essa vertente cristológica que valoriza a realidade divina tem sua
raiz nos textos bíblicos do Novo Testamento. Nos evangelhos e, mais ainda, nos
textos paulinos e joaninos é farta a referência àquilo que se convencionou
denominar de cristologia do alto.
2
Entretanto, é preciso dizer que essa cristologia,
no enredo neotestamentário, es intimamente ligada à vida histórica de Jesus.
Para Jacques Dupuis foi o aprofundamento dos primeiros cristãos refletindo sobre
Jesus que fez surgir um processo evolutivo nas formulações cristológicas. Para
ele, a teologia do Novo Testamento é bastante clara: parte-se de uma cristologia
desde baixo para chegar à cristologia do alto, proclamando também a condição
divina do Cristo exaltado.
3
Essa tensão cristológica presente nos textos bíblicos garantiu a harmonia e
evitou os excessos que, naquele tempo, se apresentava nas diversas formas de
gnose, com as quais os cristãos conviveram. E foi a tentativa de se preservar da
gnose que fez surgir um deslocamento na reflexão teológica, saindo
gradativamente do texto bíblico, caminhado em direção ao dogma.
1
O Concílio de Calcedônia, finalizado em 451, afirma existir um e mesmo Filho, Jesus Cristo,
perfeito na divindade e perfeito na humanidade, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, com alma
reacional e corpo, consubstancial ao Pai, segundo a divindade e consubstancial a nós, segundo a
humanidade.
2
As expressões “cristologia do alto” e cristologia de baixo” ficarão mais bem evidenciadas
durante nosso trabalho.
3
Cf. Jacques DUPUIS, Introdução à cristologia, São Paulo: Loyola, 3 ed., 2003, p. 78-79.
9
A ênfase nessa postura cristológica gerou a perda de contato com a
personalidade histórica de Jesus. Dos textos dos evangelhos fez-se uma leitura
instrumentalmente apologética, aproveitando, por exemplo, as narrativas sobre a
origem e nascimento de Jesus para afirmar sua divindade e usando os milagres por
ele realizados para reforçar seu poder e divindade.
Esse quadro, muito brevemente apresentado, sofreu poucas variações ao
longo dos séculos até o advento da modernidade. E foi a onda crítica da
consciência ilustrada que tragou o conformismo com o qual se lia os textos
bíblicos e questionou a confiança excessiva depositada no dogma. Por meio dos
métodos sistêmicos e com um rigor científico mais apurado, vemos surgir uma
nova maneira de se abordar os textos bíblicos.
É nesse contexto que reaparece um novo interesse por Jesus. Não mais sobre
o que a teologia ou a Igreja tem a dizer acerca dele, mas por aquilo que os textos
bíblicos, lidos numa nova ótica, dizem a seu respeito. É o início de um movimento
inverso, assumido primeiramente pelas ciências históricas e, posteriormente,
não sem um tanto de relutância em algumas correntes, pela própria teologia. A
reflexão teológica se distancia da forma dogmática e se encaminha em direção aos
textos bíblicos. É a busca pelo Jesus histórico.
Esse é ponto inicial do nosso trabalho. Embora nosso enfoque principal seja
refletir sobre a ressurreição de Jesus a partir do pensamento de Andrés Torres
Queiruga, achamos válido dedicar nossa atenção a essas questões, justamente pelo
tamanho de sua influência. Esse será o tema abordado no primeiro capítulo.
Estamos de plena consciência do quanto nossa abordagem será sucinta. Esta
problemática tão ampla, que mobilizou uma multidão de teólogos e exegetas, com
uma produção bibliográfica praticamente impossível de ser recolhida pela sua
vastidão, constará, no nosso trabalho, de forma bastante reduzida.
Mas é justamente pela sua relevância que achamos por bem iniciar essa
pesquisa desde a questão da historicidade de Jesus. Na modernidade, sobretudo
pela consciência de que os textos bíblicos foram construídos a partir do evento
pascal, o tema da ressurreição ganhou um foco diferente, e também
questionamentos diversos.
Partindo das leituras de coleta de material bibliográfico realizadas para essa
dissertação, principalmente da obra Repensar a ressurreição, de Queiruga, ficou a
sensação do quanto seria proveitoso adentrar nessa problemática. E não temos
10
dúvidas que esse amplo debate está presente não só no trabalho de Queiruga, mas
de todos os que se empenham em desenvolver suas pesquisas cristológicas.
Ao tratar da temática do Jesus histórico, focaremos nossa atenção
basicamente em dois aspectos: o pensamento de Rudolph Bultmann, como
expressão de síntese de uma corrente teologicamente influente; e a reação crítica
ao seu pensamento. Em certo sentido, tudo o que virá depois como reflexão
cristológica, terá que se posicionar diante do pensamento de Bultmann e seus
críticos.
Bultmann é um dos principais responsáveis pelo processo de demitização da
leitura bíblica. É dele também a convicção de que tudo o que sabemos sobre Jesus
está no querigma, porque Jesus está ressuscitado no querigma apostólico. Esse
radicalismo querigmático fez tirar novamente Jesus do foco histórico, exigindo
um refúgio quase que abstrato na fé. Sobre o Jesus histórico nada se sabe e nem é
possível saber. Basta o querigma. A crítica ao seu pensamento buscará outra via,
bem menos radical e assumindo a possibilidade de colocar a fé noutras bases que
não somente o querigma.
Todo esse arrazoado serve para fazer compreender o enfoque que será dado
ao pensamento de Queiruga, tema e conteúdo do segundo capítulo. Seu projeto
teológico continua o amplo debate da teologia em dialogar os temas da
conectados à realidade do ser humano no seu contexto atual. “A profundidade da
mudança cultural e a inaudita novidade do horizonte que nesta mudança epocal se
abre diante da humanidade exigem que se repense uma religião que conta sua
duração não por séculos, senão por milênios.”
4
É justamente no ato de repensar
que surge a necessidade de uma nova postura diante da interpretação da
ressurreição de Jesus.
E neste projeto um tanto de semelhança ao pensamento bultmanniano.
Queiruga identifica a necessidade de abandonar as leituras demasiado
concordistas ou literais dos textos bíblicos. E cada tempo terá que dispor de uma
hermenêutica coerente e convincente para adentrar no sentido dos textos bíblicos,
não somente lidos na perspectiva de contar o passado, mas como palavra que
sempre comunica.
4
Andrés Torres QUEIRUGA, Fim do cristianismo pré-moderno, São Paulo: Paulus, 2003, p. 9.
11
Esse é o caminho para tornar significativa as verdades e os conteúdos da fé.
No específico da ressurreição, veremos seu esforço em mostrar que a verdadeira
fé na ressurreição dispensa qualquer prova material.
Na leitura sobre os textos bíblicos a respeito da ressurreição de Jesus,
Queiruga tentará enxergar sempre a verdade de sentido, algo que difere da
pretensão de querer dar empiricidade à narrativa. Sua posição é bastante crítica a
qualquer tentativa de assumir os textos bíblicos que narram o sepulcro vazio e as
aparições desde o ponto de vista de “provas” históricas. Da mesma forma, será
evidenciado seu empenho em dimensionar esses textos numa linha mais coerente
com o sentido teológico da ressurreição. Seu empenho se justifica pela
necessidade de levar a sério a integridade do trajeto hermenêutico, fazendo-o
chegar desde o trabalho pela elucidação do sentido original da fé até o esforço por
encarná-lo no contexto atual.”
5
Isso se evidencia quando Queiruga trata do sentido da ressurreição do corpo.
Constataremos que essa expressão, muitas vezes interpretada na perspectiva
empírica, compromete a abertura ao caráter transcendente da ressurreição. No seu
entender, é preciso desvincular o sentido da expressão “ressurreição do corpo”, do
destino do cadáver de Jesus. Serão esses os temas abordados no segundo capítulo.
E na sequência, no terceiro capítulo, nos dedicaremos ainda em perceber
como Queiruga trabalha alguns outros aspectos relevantes do tema da
ressurreição. Diferentemente de Bultmann, os teólogos mais recentes procuram
interpretar a importância do papel da fé, como elemento integrador da ressurreição
de Jesus evitando, contudo, assumir a como o elemento propulsor da
ressurreição. É nesse sentido que Queiruga assume que a ressurreição é um ato de
Deus, uma iniciativa de Deus, que tira Jesus da morte. “Ato de Deus” é a
expressão indicativa de que a ressurreição tem sua fonte primeira na ação de
Deus. Uma ação querida e realizada pelo próprio Deus e, que atingiu a vida dos
apóstolos que acolheram essa ação, própria e exclusiva de Deus, pela abertura
proporcionada na fé. A ressurreição como ato de Deus é a afirmação da convicção
de que é Deus mesmo que ressuscita Jesus.
A ação de Deus é também uma iniciativa de revelação. O mesmo Deus que
se revela na vida de Jesus, continua se revelando no gesto de ressuscitá-lo. Uma
5
Andrés Torres QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, São Paulo: Paulinas, 2004, p. 26.
12
revelação que não se faz desde fora, como um ditado intervencionista no mundo, e
sim num processo que ele denomina de maiêutico, como veremos mais adiante.
6
É no terceiro capítulo que apresentaremos a reflexão de algumas cristologias
clássicas, como é o caso de Walter Kasper, Wolfhart Pannenberg e Edward
Schillebeeckx e outras mais recentes, Joseph Moingt e, naturalmente, Andrés
Torres Queiruga. Nosso intuito é refletir sobre a compreensão de cada um desses
autores sobre a historicidade da ressurreição de Jesus. Afinal, cada qual a seu
modo, precisa se posicionar diante da questão do Jesus histórico.
A leitura das páginas que se seguem fará transparecer que esse trabalho
dissertativo, embora não seja eminentemente histórico, caminha numa trajetória
marcada pela pesquisa sobre o Jesus histórico. Essa é a opção de Queiruga, que
procuraremos preservar. o se trata de um trabalho sobre o desenvolvimento
histórico da ressurreição de Jesus, mas o fato é que Queiruga faz a abordagem
desse tema, repensando-o bíblica e teologicamente dentro de um desenvolvimento
histórico.
Ficará caracterizada, também, a recorrência a diversos autores e à citação de
suas obras clássicas em cristologia. São autores de relevância com os quais
Queiruga dialoga. Xavier Léon-Dufour é um desses autores e um bom tanto do
resultado de suas pesquisas está presente no trabalho de Queiruga, sobretudo para
fundamentar o suporte exegético. Tivemos acesso a principal obra de Léon-
Dufour, Ressurreição de Jesus e mensagem pascal.
7
E usamos essa obra, às vezes
na mesma perspectiva de Queiruga, e, outras vezes, a partir da nossa interpretação
dentro daquilo que julgamos mais adequado ao nosso trabalho.
Outro autor que será bastante citado é Joseph Moingt. Queiruga também faz
referência ao seu pensamento, especialmente àquele contido na obra O homem
que vinha de Deus. Porém, o que mais justifica a presença de Moingt é o fato de
perceber como esse autor trata com bastante clareza alguns aspectos que em
Queiruga aparecem como intuições nem sempre amplamente desenvolvidas. a
título de exemplo, podemos citar a reflexão sobre o corpo do Ressuscitado.
6
“Interpretar a palavra blica como maiêutica histórica, a saber, não como palavra que traz um
sentido postiço, que informa sobre mistérios afinal externos e distantes; mas como palavra que
ajuda a ‘dar a luza realidade mais íntima e profunda que somos pela livre iniciativa do amor
que nos cria e nos salva.” Andrés Torres QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização
humana, São Paulo: Paulus, 1995, p. 15.
7
Na verdade não nos consta que essa obra, cujo original é Résurrection de Jésus et message
pascal, tenha sido traduzida para o português. Nós usamos a tradução em espanhol e a referência
completa está no nosso elenco bibliográfico.
13
Veremos que Queiruga conduz sua abordagem com o intuito de negar a
necessidade de um corpo físico para o Jesus ressuscitado. Uma intuição da qual
partilha Moingt. Mas a maneira como este descreve o sentido da corporeidade
implicado na ressurreição nos ajuda a ampliar bastante a própria reflexão de
Queiruga.
Reforçamos que este trabalho, não obstante a atenção dedicada à questão do
Jesus histórico no primeiro capítulo, tem como foco principal o tema da
ressurreição de Jesus e o ponto de partida é o pensamento de Queiruga. Ao dizer
“ponto de partida”, queremos justamente evidenciar que é a partir dele que
estudaremos esse tema, de modo sempre aberto e ampliado pela complementação
bibliográfica que tivemos acesso. Às vezes usando outras fontes para firmar a
intuição de Queiruga; outras vezes para acentuar eventuais limites e a falta de
consenso em algumas posições assumidas.
Por fim, resta desejar que o resultado do trabalho realizado possa trazer
um tanto mais de compreensão a respeito desse tema importante. A fé é sempre a
mesma: Jesus ressuscitou! Nenhum enfoque ou estudo discutido neste trabalho
atenta contra essa verdade. Essa convicção permanece viva na consciência e na
abordagem reflexiva de Queiruga e dos demais autores com os quais trabalhamos.
A questão de fundo está no nível de interpretação e expressão. A linguagem como
essa certeza é comunicada e transmitida é que exige interpretações sempre
construtivas ao longo do tempo. É isso que a cristologia tem tentado fazer.
2
A problemática da cristologia moderna: o Jesus histórico
2.1.
Introdução
Este capítulo tem por objetivo nos situar dentro da problemática cristológica
dominante na teologia, a partir da modernidade, que é, justamente, a relação entre
o Jesus histórico e o Cristo do querigma.
Ao fazermos uma retrospectiva podemos constatar que o objetivo central da
narrativa da Boa Nova, proclamar que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, perdeu
um tanto de sua força histórica desde que o discurso da ganhou contornos
novos, numa gramática própria, a partir do dogma. Aquilo que é narrado nos
evangelhos continuou a ser recebido como fonte da fé, porém não mais lido como
a regra de fé, papel que cabe ao dogma. duas verdades latentes nos
evangelhos: uma cristologia ascendente, lida a partir da sequência histórica desde
o nascimento de Jesus, em direção a sua morte e ressurreição, mas que perdeu um
tanto de sua força em relação a uma cristologia descendente, lida, principalmente,
nos textos paulinos e joaninos, nos quais se ressalta a exaltação de Jesus como o
Cristo, o Filho de Deus, glorificado pelo Pai.
Então o mistério de Jesus Cristo é interpretado sob duas perspectivas
distintas. Enquanto a Igreja era a única a lê-los publicamente, essa tensão latente
não foi manifesta. Essa questão veio à tona quando os textos bíblicos, mais
especificamente o Novo Testamento, caíram no gosto das ciências históricas.
Desde então, não tem bastado confessar que Jesus é o Cristo. É preciso
igualmente demonstrar que o Cristo da fé, anunciado pela Igreja, é o próprio Jesus
das narrativas evangélicas.
8
As ginas seguintes apresentarão uma leitura histórica a partir do
nascimento da questão do Jesus histórico, a chegar a Rudolf Bultmann, em
quem nos deteremos mais demoradamente por entender que esse autor é um
divisor de tendências dentro da cristologia moderna e que afeta, ainda hoje, a
pesquisa cristológica. Acreditamos que sua influência es presente na obra de
8
Cf. Joseph MOINGT, O homem que vinha de Deus, São Paulo: Loyola, 2008, p. 191-192.
15
Andrés Torres Queiruga, especialmente na sua forma de tratar o tema da
ressurreição de Jesus Cristo.
Nosso trabalho apresentará, neste capítulo, um diálogo com o pensamento
bultmanniano e fará referência, de maneira quase que telegráfica, às sínteses
surgidas depois desse intenso debate cristológico. Por fim, faremos a apresentação
do autor que norteará o estudo dos capítulos posteriores.
2.2.
O início da problemática - Reimarus
Entre os anos de 1774-1778 Gotthold Ephraim Lessing publicou os
Fragmentos de um anônimo de Wolfenbüttel, do professor de línguas orientais
Hermann Samuel Reimarus (1694-1768). Reimarus expõe, com clareza, a
distinção entre a doutrina de Jesus e a doutrina dos apóstolos. Ele sustenta que o
Jesus que existiu realmente em Nazaré e o Cristo pregado nos evangelhos não são
o mesmo.
9
No seu julgar, é necessário diferenciar metodologicamente aquilo que
é apresentado pelos apóstolos daquilo que foi efetivamente o ensinamento de
Jesus no curso de sua vida. Jesus não ensinou profundos mistérios e nem mesmo
aspectos relevantes sobre a religiosa. Ao contrário, a sua pregação se ocupou
essencialmente de ensinamentos morais e preceitos de vida. Para Reimarus, o
centro da pregação de Jesus está na convicção da iminência do Reino dos Céus,
um Reino já esperado e aguardado pelos judeus. As ideias de Jesus sobre o Reino
não se distinguiam essencialmente daquelas ideias do judaísmo da época.
Reimarus sustenta que o anúncio do Reino, na consciência de Jesus, teria uma
conotação terreno-política.
10
Todavia, a sequência dos eventos culminou com a morte ignominiosa de
Jesus. Então, os discípulos, para o se verem envolvidos no mesmo fracasso do
mestre, roubam o seu cadáver e passam a anunciar a sua ressurreição.
11
Desta
9
Cf. José I. Gonzáles FAUS, La humanidad nueva, 8 ed., Santander: Sal Terrae, 1984, p. 19.
10
Cf. Walter KASPER, Jesús, el Cristo, 2 ed., Salamanca: Sígueme, 1978, pp. 32-33.
11
Essa é a conhecida tese da “fraude objetiva”, sustentada por Reimarus. Uma alusão à acusação
muito antiga, rebatida nos evangelhos, cf. Mt 28, 13. Ainda sobre esse assunto, Orígenes rebate
as acusações de Celso dizendo que uma mentira inventada pelos próprios discípulos o teria o
efeito de entusiasmar os mesmos discípulos a enfrentarem os perigos que enfrentaram ao
16
forma, se abre um novo cenário: aquele que pregava o Reino é agora a expressão
visível ou a personificação do Reino. Não mais um reino político-terreno, mas um
reino de natureza escatológica. O sentido escatológico dado à pregação do Reino
de Deus, tal como é possível ler nos evangelhos, se deve, essa é a conclusão de
Reimarus, à pregação dos apóstolos.
O mérito de Reimarus está em trazer para a reflexão teológica a questão da
historicidade dos eventos narrados nos evangelhos e, no particular de nosso
interesse, a questão da compreensão da ressurreição. Um tema que, desde então,
não é mais lido na simples aceitação das narrativas evangélicas como eventos
históricos e que também não pode ser lido somente sob o olhar piedoso da fé.
Como bem observou Giuseppe Ghiberti, a partir de Reimarus, o problema da
historicidade da ressurreição de Jesus está tão presente na consciência ocidental,
que é possível vê-lo a partir de outras perspectivas, mas não se pode ignorá-lo.”
12
E não é a questão da ressurreição que exige novas leituras. As teses de
Reimarus suscitaram a necessidade de respostas e posicionamentos. Toda essa
problemática, ainda em forma embrionária, coincide com o aparecimento da
história como ciência. Entende-se, portanto, ter sido justamente da ciência
histórica que surgiram as primeiras tentativas de respostas. Assim, nasce a
corrente de pesquisa que se ocupará de descobrir quem foi, de fato, Jesus de
Nazaré.
Essa é a perspectiva da pesquisa de David Friedrich Strauss (1808-1874),
cuja obra foi publicada sob o título: Vida de Jesus. Nessa obra, Strauss trabalha os
aspectos míticos contidos na história de Jesus. Ao fazer a interpretação desses
mitos, Strauss não nega o fundo histórico que envolve a vida de Jesus. Ele
reconhece, por exemplo, a autoconsciência messiânica de Jesus como algo
incontestável. Ele distingue, dentro dos textos bíblicos, o fundo histórico e a
interpretação mítica entre o Cristo da e o Jesus da história.
13
Com Strauss, se
verifica a síntese da problemática moderna por onde adentra a teologia. Como
observa Kasper,
a crise está manifesta. A teologia, com este dilema entre o Jesus histórico e a sua
interpretação ideal, participa na problemática generalizada do espírito da época
proclamar a ressurreição de Jesus. Cf. Gerd THEISSEN; Annette MERZ, O Jesus histórico, São
Paulo: Loyola, 2002, p. 21.
12
Giuseppe Ghiberti in: FABRIS, Rinaldo (org.), Problemas e perspectivas das ciências bíblicas,
São Paulo: Loyola, 1993, p. 293.
13
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 33-34.
17
moderna. Trata-se do dualismo entre as ciências do espírito e as da natureza, res
cogitans (Descartes), lógica da razão e lógica do coração (Pascal), o dualismo entre
relações pessoal existencial e material. Este dualismo metódico se transportou para
a teologia, desembocando, ao distinguir entre Jesus histórico e Cristo da fé, em um
duplo acesso a Jesus: um histórico-crítico, racional e outro interno, superior,
intelectual-espiritual, existencial pessoal, crente.
14
Strauss é um clássico representante daquilo que se convencionou chamar de
Teologia Liberal, cujo objetivo é buscar, o máximo possível, a historicidade da
vida de Jesus. Foi o que fez a teologia do século XIX. Movidos por um interesse
quase apologético, quiseram dar cientificidade, nos moldes da modernidade, à
vida de Jesus, para que a em Jesus se movesse também por uma razão bem
fundamentada e não somente pela força do dogma. Destaca-se, ainda, nesse
projeto o trabalho Friedrich Schleiermacher, que busca interpretar o dogma
cristológico desde o ponto de vista histórico. Foi esse o momento em que se
passou da ontologia de Cristo para a sua psicologia. “A vida psíquica de Jesus era
simultaneamente o espelho no qual se refletia a sua divindade.”
15
O balanço dessa teologia é um tanto quanto contraditório. Moderadamente
positivo na visão de Adolf Harnack e marcadamente negativo na avaliação de
Albert Schweitzer.
Harnack, historiador das origens da religião, julga que os métodos históricos
conduzem a diversas certezas, inclusive à possibilidade de traçar os elementos
suficientes da personalidade de Jesus, na tentativa de encontrar, com certa
segurança, os traços da atuação e da personalidade de Jesus. Esse é um otimismo
aparente porque ele mesmo publicará, mais tarde, uma obra com um tulo
desalentador quando se pensa que se trata de uma espécie de balanço: Vita Iesu
scribi nequit.
16
na avaliação de Schweitzer, o intento da teologia liberal de investigar a
existência de Jesus redundou num grande fracasso. Ele denuncia, em sua obra,
História da investigação sobre a vida de Jesus, o fato de que aquilo que se fez
passar por “Jesus histórico” não era mais do que um reflexo das ideias de cada um
de seus autores. E cada época teológica encontrou em Jesus um modo de
expressar suas ideias. A teologia liberal quis situar Jesus em um plano de
14
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 34.
15
Ibid., p. 35.
16
Na tradução livre de G. Faus: É impossível escrever a vida de Jesus. Cf. G. FAUS, La
humanidad nueva, p. 21.
18
racionalidade universal e fez dele um mestre de moral, um filósofo humanista,
uma criação da burguesia liberal ocidental, mas esse Jesus não existiu.
17
Para
Schweitzer, na análise de Kasper,
o Jesus de Nazaré que apareceu como messias, que anunciou a moral do reino de
Deus, que fundou na terra o reino dos céus e morreu para consagrar sua obra, esse
Jesus não existiu jamais. Se trata de uma figura esboçada pelo racionalismo,
animada pelo liberalismo e adornada com roupagem histórica pela teologia
moderna.
18
A conclusão de Schweitzer é que Jesus, na sua verdadeira existência, não é
um homem moderno, e sim alguém marcado por uma existência “estranha e
enigmática”.
Esse balanço é um tanto quanto desestimulante. E como costuma acontecer
nos momentos de crise, radicalize-se no extremo oposto. E quando a corrente
liberal dava seus últimos passos, já encontramos o ensaio de um novo movimento
bastante reativo ao primeiro. É a chamada “reação fideísta”, que tem como marco
inicial uma conferência bem repercutida, proferida por Martin Kähler, no ano de
1892, sob o título O Jesus que chamam histórico e o Cristo da verdadeira
história: o bíblico.
19
A crítica de Kähler consiste em apontar os limites da investigação histórica.
No seu entender, essa investigação não oferece nada mais que alguns fatos em si
mesmos, talvez cientificamente comprovados, mas impossível de serem
significados. A verdadeira realidade dos fatos escontida nos seus significados e
isso está inacessível à análise científica. Além disso, o suposto Jesus histórico é já
um Jesus interpretado, tal como o Cristo da fé, por isso é inútil qualquer
investigação histórica. A se fundamenta a si mesma, ou seja, estamos diante do
radicalismo fideísta.
Estavam plantadas as sementes que logo fariam desabrochar a teologia
dialética. Nesse movimento teológico, figura com enorme expressividade Karl
Barth. Ele assume, em certo sentido, o fideísmo de Kähler e busca livrar a
cristologia das amarras do cientificismo moderno, bem como, desvencilhar a
teologia das garras dos métodos filosóficos de seu tempo. Esse fideísmo teológico
também estava bastante presente e seria radicalizado numa vertente querigmática
17
Cf. J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 200.
18
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 36.
19
Tradução livre do original, Der sogennante historische Jesus und der geschichliche, biblische
Christus. Cf. G. FAUS, La humanidad nueva, p. 22.
19
inaugurada na reflexão de Rudolf Bultmann, teólogo e biblista formado no clima
da teologia da liberal, e que logo aderiu ao novo movimento da teologia
dialética.
20
2.3.
O pensamento de Bultmann
Foi no ano de 1941, em plena guerra, que Rudolf Bultmann (1884-1976)
apresentou uma comunicação, com o título Novo Testamento e Mitologia, abrindo
um intenso debate teológico que, de certa forma, subsiste até hoje.
Bultmann parte dos pressupostos luteranos sola fides e sola scriptura para
desenvolver um projeto capaz de interpretar a Escritura mantendo a pureza da
Palavra para torná-la significativa e compreensível para o mundo de seu tempo.
Segundo sua análise, todo o discurso neotestamentário está marcado pelo
caráter mitológico. “Não podemos utilizar a luz elétrica e o rádio, ou, em caso de
doença, recorrer às modernas descobertas médicas e clínicas e, ao mesmo tempo,
acreditar no mundo dos espíritos e dos milagres que o Novo Testamento nos
propõe”.
21
A compreensão bultmanniana de mito é herdada de Strauss. Para este,
o mito é o revestimento das ideias cristãs mais primitivas, formuladas através de
uma inocência poética.
22
O projeto de Strauss, agora assumido e radicalizado, é
libertar a vida de Jesus de sua apresentação mítica.
Bultmann está mais além do otimismo da teologia liberal que acreditava ser
possível reconstruir a personalidade autêntica de Jesus a partir da crítica histórica.
O acesso ao Jesus histórico, na compreensão bultmanniana, está vedado,
impossível de ser encontrado e o motivo é simples, faltam fontes. E também do
ponto de vista teológico o é possível acessar Jesus. Ocorre que a não tem
uma relação necessária com o que Jesus fez ou disse enquanto um ser
20
Teologia dialética no sentido de Kierkegaard e não de Hegel. Esse movimento faz uma oposição
a toda e qualquer pretensão da teologia de se deixar seduzir pela racionalidade científica e a
qualquer tentativa de reconciliar a com a ciência do “mundo”. A não pode ter outra base,
outra certeza a não ser a Palavra de Deus. Cf. J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 201.
Embora Bultmann se caracterize por uma teologia mais existencial, a influência da teologia
dialética será uma constante em sua obra.
21
Rudolf BULTMANN, Nuovo Testamento e mitologia, Brescia: Queriniana, 1970, p. 110.
22
Cf. Alfredo TEIXEIRA, A ressurreição de Jesus Cristo: história e fé, Lisboa: Universidade
Católica Portuguesa, 1993, p. 19.
20
historicamente existente, e sim com a pregação da ação de Deus a partir do Cristo,
ou seja, fora da história. Mais ainda, também do ponto de vista exegético é
impossível reconstituir uma “vida de Jesus”. Os evangelhos não são documentos
unitários e sim conjuntos de unidades das primeiras pregações, como fruto de uma
tradição viva e obra de uma comunidade de crentes. Por isso, a tarefa da exegese
não é se perder na busca da pregação mais original de Jesus, mas de trazer os
efeitos dessa pregação que originou a própria pregação dos primeiros crentes. A
tarefa da exegese é encontrar essas primeiras unidades independentes, as formas,
para tirá-las dos textos já elaborados e situá-las no seu contexto vital e assim fazer
evidenciar seus significados.
A grande missão da exegese e da teologia é essa. Missão que Bultmann
encarou com seriedade. Em vista disso, ele sentiu a necessidade de demitizar os
textos bíblicos, especialmente os evangelhos. Se o anúncio do Novo Testamento
deve conservar uma validade própria, não há outra saída senão demitizá-lo.”
23
Nesse processo de demitização, amplo e árduo,
24
cabe ao teólogo se livrar
de tudo aquilo que é mito, ou seja, a narrativa dos eventos, para chegar ao seu
sentido mais profundo, a mensagem.
O trabalho de demitização tem dupla função: a primeira, função negativa, é
de estabelecer uma crítica da imagem do mundo, tal como expressa o mito, e, por
extensão, da imagem mítica do mundo como está expressa na Bíblia; a segunda,
função positiva, é trazer para o ouvinte moderno uma interpretação esclarecida da
verdadeira intenção do mito e das escrituras bíblicas.
25
O mito é caracterizado como experiências internas ou subjetivas de um
encontro com o absoluto, como um fato acontecido no mundo, falando de uma
causalidade sobrenatural que opera como e entre as demais causas naturais dos
fenômenos, produzindo assim uma aparente duplicidade histórica: a profana, na
qual não parecem atuar senão as causa naturais, e uma história “sagrada”, em que
se tem em conta e se narra as interrupções da história profana provocadas por
intervenções da causalidade sobrenatural.
26
O problema é que essa duplicidade
23
R. BULTMANN, Nuovo testamento e mitologia, p. 118.
24
“Impossível de ser levado a feito por um indivíduo, que exige abundância de tempo e as
energias de uma geração de teólogos.” Ibid., p. 128.
25
Cf. Rosino GIBELLINI, A teologia do século XX, 2 ed., São Paulo: Loyola, 2002, p. 35.
26
Cf. Juan Luis SEGUNDO, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré II/ii, São Paulo:
Paulinas, 1985, p. 119.
21
histórica, aceita até a época medieval, não encontra mais respaldo no novo
conceito de história da modernidade.
Como bem observa Juan Luis Segundo, o verbo “demitizar” é enganador.
Não é possível pura e simplesmente se desvencilhar de toda a narração mítica. O
esforço deve ser outro: o de interpretar o sentido do mito. que se reforçar essa
necessidade a partir daquilo que era a consciência do próprio Bultmann, bem
como dos teólogos desde a modernidade, “o homem moderno, educado numa
mentalidade científica, não pode aceitar tais mitos”.
27
A intenção de Bultmann é
fazer com que o mito seja significativo, não a partir da sua narrativa exterior, mas
naquilo que ele suscita interiormente, no nível existencial. E para isso ele propõe
voltar a colocar no interior, no “existencial”, o que o mito projetou no exterior, no
reino dos objetos e acontecimentos objetivos. Assim, o fato ou o acontecimento,
conserva seu valor decisivo e teológico.
28
O processo de demitização dos evangelhos tem como função lapidar toda a
narrativa sobre Jesus a fim de chegar ao seu núcleo central: a proclamação do
querigma. Para Bultmann, é exclusivamente no querigma que Deus se revela.
2.3.1.
A primazia do Querigma em Bultmann
Qual é a relação entre o querigma cristológico e o Jesus histórico? Na
perspectiva de Bultmann, o ponto de partida é o querigma porque este é o
fundamento e a causa da cristã. Certamente, esdado por suposto, na sua
forma de pensar, os resultados dos movimentos precedentes. A teologia liberal
colocou em xeque o papel da . A teologia dialética, se radicalizada, desemboca
num fideísmo inaceitável à consciência moderna. Então, Bultmann se esforça,
com grande ajuda da filosofia de Heidegger, em estabelecer uma relação
existencial entre Jesus e a sua mensagem.
Ao estudar os evangelhos sinóticos Bultmann também constatou aquilo que
já havia sido notado por seus antecessores:
Conforme mostra a tradição sinótica, a comunidade primitiva retomou a pregação
de Jesus e continuou a anunciá-la. E na medida em que o fez, Jesus tornou-se para
ela o mestre e profeta. Mas ele é mais: é, ao mesmo tempo, o Messias; e assim ela
27
J. L. SEGUNDO, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré II/ii, p. 120.
28
Cf. Ibid., p. 120.
22
passa a anunciar isso é o decisivo simultaneamente a ele mesmo. Ele, antes o
portador da mensagem, foi incluído na mensagem, é seu conteúdo essencial. O
anunciador tornou-se o anunciado.
29
Contudo, é preciso alertar que não uma transposição direta de conteúdo.
Bultmann rejeita qualquer tentativa de continuidade entre o histórico e a pregação.
Para a comunidade primitiva, donde se origina os evangelhos sinóticos, está
claro que Jesus, ao ser anunciado como messias, o é na expectativa apocalíptica.
Ou seja, como o messias que há de vir. “Não se espera a sua volta como Messias,
e sim, sua vinda como Messias. Para a comunidade primitiva sua atuação no
passado, na história, ainda não é uma atuação messiânica.”
30
Essa figura mítica do messias, bastante presente nos moldes da consciência
escatológica do judaísmo, é transposta para Jesus quando Deus o ressuscita.
Então, o mestre e profeta crucificado é exaltado como Cristo e Senhor e virá nas
nuvens do céu para o julgamento e para trazer a salvação do Reino de Deus. É
esse o momento em que o mito indefinido do judaísmo ganha uma personificação
bem definida e concreta. O mito foi transferido para um ser humano histórico
dando-lhe uma força imensurável.
Bultmann vai ainda mais longe. Para ele, a comunidade primitiva não
fundamenta a importância messiânica de Jesus no fato de ele ter uma
“personalidade” com força impressionante. Da mesma forma, a comunidade
primitiva está longe de compreender sua morte de cruz como um gesto de
sacrifício heróico.
No querigma da comunidade não tem relevância que, como milagreiro, como
exorcista, ele tenha atuado de forma assustadora, “numinosa” as passagens que
expressam ou indicam algo nesse sentido, todavia, são parte da redação dos
evangelistas e não são tradição antiga; ela anunciou a Jesus como o profeta e
mestre, e além disso como o “Filho do homem” vindouro, mas não como Theios
aner [homem divino] do mundo helenista, que de fato é uma figura “numinosa”;
foi com o crescimento da lenda em solo helenista que a figura de Jesus foi
adaptada a do Theios aner.
31
29
Rudolf BULTMANN, Teologia do Novo Testamento, Santo André: Academia Cristã, 2008, p.
74.
30
Ibid., p. 75. “Em favor disso se pode aduzir somente os ditos de Jesus, nos quais ele fala do
“Filho do homem” vindouro (Mc 8,38 ou Lc 12, 8s. par.; Mt 24, 27, 37, 44 par.; Lc 11, 30) Nessas
passagens, todavia ele fala do Filho do homem na terceira pessoa, sem se identificar com ele. Não
dúvida de que os evangelistas bem como a comunidade que transmitiu esses ditos
realizaram essa identificação; no entanto, pode-se afirmar a mesma coisa em relação a Jesus?”.
Ibid., p. 75. Sobre a pergunta pela autoconsciência messiânica de Jesus Cf. R. BULTMANN,
Teologia do Novo Testamento, p. 64-72.
31
R. BULTMANN, op. cit., p. 76.
23
Bultmann considera que os escritos paulinos e jaoninos fazem uma
interpretação bastante messiânico-apocalíptica da ação de Jesus. Paulo e João
desenvolvem os temas da morte na cruz e da ressurreição na perspectiva da
exaltação em vista de um valor escatológico. Entretanto, essas leituras não podem
ser deduzidas diretamente das primeiras interpretações da comunidade primitiva.
No princípio, a interpretação da comunidade estava vinculada à pregação de Jesus
e aguardava a vinda do messias escatológico. Por isso, Bultmann radicaliza e
afirma que “a pregação de Jesus esentre os pressupostos da teologia do Novo
Testamento, mas não constitui uma parte dela. Pois, o Novo Testamento consiste
no desdobramento dos pensamentos nos quais a fé cristã se certifica de seu objeto,
de seu fundamento e de suas conseqüências.”
32
E nesse caso, o objeto não é
definitivamente Jesus, e sim a pregação.
Do ponto de vista histórico, a única constatação possível é que o “fenômeno
Jesus” se prolongou na comunidade primitiva, e sua pregação se tornou, em certo
sentido, objeto da pregação dos apóstolos e de anunciador Jesus foi transformado
pelos apóstolos em anunciado.
33
Porém, essa identificação existencial não autoriza uma continuidade de
identidade de sujeitos, isto é, a identidade do Jesus histórico como um
prolongamento tal e qual caracterizando a identidade do Cristo da fé. Esse passo
tentador é, na compreensão de Bultmann, impossível de ser dado, pois escapa à
possibilidade de investigação histórica.
Por isso Bultmann considera e valoriza sobremaneira a metodologia
histórico-crítica:
Os métodos histórico-críticos impedem qualquer tentativa de fazer uma biografia
de Jesus (motivo de método: não se pode, de fato); mas, além disso, essa
impossibilidade prática se converte em ilegitimidade (motivo teológico: não se
deve). Daí que a tarefa da teologia seja concentrar-se no querigma, em sua
hermenêutica desmitologizante e existencial.
34
A crítica histórica o conseguiu reconstruir uma figura de Jesus que
pudesse transpor os veis da suposição, nem conjecturas de construções éticas e
psicológicas. Para Bultmann, o vale a pena insistir nesse caminho. Além disso,
que se mencionar o dado teológico: os textos tomados em sua forma, eivados
de mitos, são insuficientes para uma adesão de fé e, por isso, incapazes de
32
R. BULTMANN, Teologia do Novo Testamento, p. 40.
33
Cf. Carlos PALACIO, Jesus Cristo: história e interpretação, São Paulo: Loyola, p. 33.
34
Ibid., p. 32.
24
proporcionar a salvação. Essa constatação justifica a necessidade de um amplo
processo de demitização para chegar ao conteúdo das escrituras que é expresso no
querigma.
A única coisa que interessa de Jesus é o seu dass, ou seja, o fato de ter
nascido e vivido, de ter sido crucificado, ter morrido e ressuscitado. “A faticidade
de Jesus é o único substrato histórico necessário.”
35
Mais que isso, é um único
substrato histórico possível e, portanto, suficiente.
A distinção bultmannina que tentamos evidenciar fica mais explícita no
comentário de Gibellini: “É claro que o Cristo do querigma pressupõe que (dass)
Jesus tenha existido, tenha pregado e tenha sido morto na cruz, mas o como (wie)
e o que coisa (wass) de sua história terrena (historie) não são relevantes para a fé,
mas eventualmente apenas para a pesquisa historiográfica.”
36
Bultmann diferencia
e separa a geschichte, ou seja, a história que qualifica o presente da existência
pessoal, da historie, dos fatos do passado de que se ocupa a historiografia. O
querigma é geschichte e o Jesus histórico é historie. Evidentemente estamos
diante da influência exercida por Heidegger.
O cristianismo começa com a experiência da páscoa e com o querigma da
Igreja. Bultmann faz um corte radical entre Jesus, o personagem histórico, e o
cristianismo que deriva da pregação do Cristo exaltado e glorificado. O Jesus da
história e o Cristo do querigma figuram, na teologia bultmanniana, como duas
grandezas distintas.
Nessa mesma perspectiva, é tratado o sentido da cruz e da ressurreição de
Jesus. A superação do caráter mítico desses dois temas fundamentais da é que
poderá proporcionar a compreensão da ação reveladora de Deus na essência do
querigma.
2.3.2.
A cruz e a ressurreição no pensamento bultmanniano
O tema da ressurreição aparece na cristologia de Bultmann, de maneira mais
explicita, ao trabalhar a teologia paulina e joanina. É seguindo a perspectiva do
35
C. PALACIO, Jesus Cristo: história e interpretação, p. 35.
36
R. GIBELLINI, A teologia do século XX, p. 48.
25
apóstolo dos gentios e do discípulo amado que o mestre de Marburg vincula
estreitamente a ressurreição à cruz.
A ressurreição é a palavra de Deus sobre a cruz e esta sem aquela
permaneceria verdadeiramente sem significado salvífico. Essas duas perspectivas
teológicas neotestamentárias demonstram que a pode levar a um
conhecimento e entendimento da ação de Deus ao ressuscitar Jesus.
A ressurreição de Jesus não pode ser uma prova milagrosa com a qual se possa
obrigar o cético a crer em Cristo. [...] Pois a ressurreição é uma questão de
porque é muito mais que ressuscitar um cadáver: é um acontecimento escatológico.
O puro milagre nada diz acerca do fato escatológico da destruição da morte.
37
Assim, compreender a ressurreição essencialmente a partir de um fato
histórico é algo inconcebível. E isso não é dito para diminuir o valor de sentido da
ressurreição, e sim para afirmar a verdadeira e fundamental importância desse
tema para a própria . A ressurreição, sempre vinculada à cruz, está no
fundamento do querigma, por isso se faz totalmente desnecessária qualquer
fundamentação ou comprovação histórica desse evento. Mais ainda, soaria até
estranho à própria fé, um risco, querer fundamentar tal tema a partir de provas
históricas.
Bultmann percebe a roupagem mítica que reveste a pluralidade de
linguagens sobre a cruz. Cuida de salvaguardar a “cruz de Cristo” como um
acontecimento histórico originário do fato da crucificação de Jesus:
Na sua face histórica, este acontecimento exprime o julgamento do mundo que
liberta o homem. Em razão disto, dizemos que Cristo foi crucificado por nós e não
em razão de uma teoria da satisfação e do sacrifício. Só uma inteligência da
historicidade, e não do mito, pode compreender, na sua significação, um
acontecimento relatado pela história, porque a inteligência da historicidade
confere ao acontecimento registrado pela história uma significação.
38
Dentro do seu projeto de demitização, Bultmann continua afirmando que a
morte e ressurreição de Jesus são as únicas coisas importantes para Paulo na
pessoa e no destino de Jesus, incluindo, aí, a encarnação e a vida terrena. E isso é
dito somente na medida em que Jesus era um ser humano concreto determinado,
um judeu que assumiu a semelhança de ser humano e foi encontrado em forma
37
Palavras de Bultmann citadas por Thorwald LORENZEN, Resurrección y discipulado,
Santander: Sal Terrae, 1999, p. 71.
38
R. Bultmann in: A. TEIXEIRA, A ressurreição de Jesus Cristo, p. 54. “Historicidade” nessa
citação é a tradução de geschichte.
26
humana (Fl. 2, 7), nascido de mulher e sob a lei (Gl. 4, 4).
39
Essa afirmação de
uma existência histórica de Jesus serve, na interpretação de Bultmann sobre
Paulo, para assegurar que sua morte de cruz se encontra na raiz do evento
salvífico. É uma forma de descaracterizar e distinguir o cristianismo das religiões
de mistério e da gnose.
Paulo define ou identifica aquele que morreu na cruz, ou seja, Jesus. Apesar
disso, o apóstolo não assume a atuação de Jesus, sua personalidade, sua conduta
de vida, sua pregação, enfim, tudo aquilo que poderia ser abstraído de sua história
como algo realmente importante para o querigma.
Segundo Bultmann, Paulo o faz por entender que um acontecimento do
passado fica restrito ao tempo e não tem valor de anúncio. Para que o evento da
cruz, sempre significado pela ressurreição, seja salvífico ele tem que ser
interpelativo, como um acontecimento cósmico, oferecido gratuitamente por Deus
e dirigido à existência pessoal daquele que recebe o anúncio. Por essa razão
Bultmann concorda com Paulo e assume sua expressão de que o Evangelho é
Logos tou staurou, a Palavra da Cruz (ICor 1, 23). E aqueles que se fecham à Boa
Nova são considerados “inimigos da cruz de Cristo” (Fl 3, 18; ICor 1, 17; Gl 6,
12). A morte de Cristo na cruz forma, junto com a ressurreição, o evento salvífico
que é o que Paulo recebe como parádosis, isto é, tradição e é isso que ele passa
adiante (I Cor 15, 1-4).
40
Na teologia de Bultmann, a cruz não tem valor em si numa ordem objetiva;
tem valor quando interpela pessoalmente e pede uma resposta. Só assim esse
evento se torna atual e fecundamente presente. Essa atualidade pode ser
compreendida pela ressurreição. Por isso a cruz deve ser sempre pregada em
união com a ressurreição.
Ainda sobre a ressurreição, Bultmann faz questão de afirmar que “a verdade
sobre a ressurreição de Cristo não pode ser compreendida antes da que
reconhece o ressurreto como Senhor.”
41
A prova da ressurreição não se na
objetividade de um fato. A ressurreição só pode ser comunicada e acreditada
como palavra anunciada. “A na ressurreição de Cristo e a de que na palavra
anunciada fala o próprio Cristo, o próprio Deus (IICor 5, 20), são idênticas.”
42
39
Cf. R. BULTMANN, Teologia do Novo Testamento, p. 360.
40
Cf. Ibid., p. 359.
41
Ibid., p. 372.
42
Ibid., p. 372.
27
Nesse sentido, a ressurreição não pode ser um milagre para uma apologia da
fé. Bultmann faz críticas a certos textos do Novo Testamento por cederem a essa
tentação quando narram as lendas do túmulo vazio e dos relatos da Páscoa.
43
Contudo, ele mesmo reconhece que os textos do Novo Testamento não estão
demasiadamente interessados no que aconteceu com Jesus especificamente a
partir da ressurreição, e sim com o que aconteceu aos primeiros cristãos a partir
desse mistério da vida de Jesus.
No pensamento de Butmann, a ressurreição é objeto da própria e é muito
mais que um retorno de um morto à vida. É um acontecimento escatológico. E, na
medida em que é escatológico, também se faz presente e atuante tendo em vista a
salvação. Por isso, dispensa testemunhas e pode ser aderido por meio de um
anúncio que desperta a fé.
Na verdade, o testemunho, entendido de forma empírica, tem a qualidade
de narrar ou descrever um fato, que o fato, por si mesmo, não é capaz de
verdadeira comoção. Se a ressurreição fosse atestada e assumida pelo testemunho
de um fato, o seu anúncio ficaria preso à história, (historie). Para Bultmann, a
ressurreição é justamente a possibilidade de a cruz não ficar enclaustrada na sua
historicidade, mas de assumir um caráter escatológico e, portanto, salvífico. E por
ser escatológica e desprendida da temporalidade, pode ser assumida na , por
meio da palavra anunciada, ou seja, o querigma.
Mais ainda, o crente caminha na fé, não na visão no sentido de prova
material. É pela palavra que o Cristo crucificado ressuscita e se “encontra” com os
crentes. Essa é a síntese da fé pascal: fé na palavra pregada.
Para concluir essa exposição sobre o pensamento de Bultmann convém
firmar, ainda, algumas intuições em forma de síntese: primeiro, que a mentalidade
moderna não está mais afeita à linguagem mítica. Por isso, as narrativas
evangélicas precisam ser interpretadas para além da sua linguagem aparente, a fim
de encontrar o seu sentido fundamental, que é expresso no querigma. Nesse
sentido, uma ressurreição de Jesus entendida como narrativa histórica não tem
mais lugar na mentalidade moderna; em segundo lugar, Bultmann está convencido
de que a interpretação existencial do evento Cristo está inserida nas principais
tradições do Novo Testamento, as teologias paulina e joanina deixam isso bastante
evidente; e por último, estamos diante de um teólogo de tradição protestante que
43
Cf. A. TEIXEIRA, A ressurreição de Jesus Cristo, p. 56.
28
está muito atento em não desviar seu foco das intuições fundamentais da Reforma,
segundo a qual o crente é salvo somente pela fé, fruto da graça, (sola gratia, sola
fide).
Evidentemente o pensamento bultmanniano é denso, bem desenvolvido e
estruturado. O desenvolvimento teológico posterior pede necessariamente um
posicionamento. É nesse contexto que vemos surgir as primeiras críticas às teses
de Bultmann.
2.4.
Os críticos de Bultmann
As primeiras críticas ao pensamento bultmanniano vieram do seu próprio
círculo de adeptos. O marco inicial pode ser atribuído a Ernest Käsemann (1906-
1998) com uma conferência proferida em 1953, com o título O problema do Jesus
Histórico. É o início ainda prematuro de uma nova era, a pós-bultmanniana.
Na sua proposta de trabalho Käsemann aceita os resultados da pesquisa
histórico-crítica e reconhece que o historiador não pode escrever uma “vida de
Jesus” nos moldes de uma biografia. Ao aplicar esse método moderno no estudo
do Novo Testamento, o ximo que se alcança é o querigma da comunidade
primitiva. “A comunidade não queria e não podia separar essa história (historie)
de sua própria história (geschichte). Ela não podia, pois, fazer abstração da
pascal, estabelecendo uma distinção entre o Senhor terreno e o Senhor
glorificado.”
44
Käsemann trabalha com uma compreensão de história livre dos
conceitos cienticistas e positivistas do século XIX.
Por isso, o teólogo Käsemann não afasta a crítica histórica: ela é necessária
para compreender teologicamente a Escritura. “O Jesus histórico é
compreendido no Jesus objeto da pregação, do mesmo modo que, reciprocamente,
o discurso da teologia sobre Jesus não tem outra origem além do texto histórico
que lhe é “dado”.
45
A impressão que se tem é que Käsemann começa a identificar um problema
também de método, que depois se tornará um problema teológico. O todo da
44
E. Käsemann in: R. GIBELLINI, A teologia do século XX, p. 49.
45
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 206.
29
crítica histórica chega até um determinado ponto e confirma, com segurança, que
os textos do Novo Testamento são construções querigmáticas, com elaborações
teológicas pós-pascais e que efetivamente não contam narrativas históricas no
sentido positivista da palavra. E o fato de não ser possível estabelecer um vínculo
seguro entre Jesus histórico e o Jesus dos textos do Novo Testamento é muito
mais um limite de método do que efetivamente a dificuldade de compreender
como as comunidades fizeram essa transição. Entretanto, o limite do método o
pode induzir à suposição de que esse vínculo o tenha existido e nem de que não
tenha sido determinante. Noutras palavras, a impressão é que a teologia moderna
jogou para dentro da interpretação dos textos bíblicos um problema que,
efetivamente, não é daquele tempo e muito menos daquele contexto. E ao fazer
isso, sem o devido cuidado, corre-se o risco de criar rupturas que os textos
bíblicos não quiseram criar.
Käsemann sustenta que a pascal é sim a base do querigma e não é a
primeira e nem a única a lhe dar conteúdo. Para ele, uma ação anterior de Deus
que precede a fé e isso se comprova na pregação e na história terrena de Jesus.
Depois do pessimismo bultmanniano, é preciso retomar, com novos
instrumentos e sobre novos pressupostos, a pesquisa sobre o Jesus histórico. “A
questão do Jesus histórico é legitimamente a da continuidade do Evangelium na
descontinuidade dos tempos e na variação do querigma. Devemos por-nos tais
questões e ver a legitimidade da pesquisa liberal sobre a vida de Jesus, mesmo
que não mais concordemos com o modo de ver a questão.”
46
Käsemann busca um ponto de equilíbrio entre o otimismo liberal e o
pessimismo bultmanniano a respeito da questão do Jesus histórico. Ele quer,
fundamentalmente, salvaguardar a continuidade entre o Jesus da história e o
querigma.
Este “retorno” ao Jesus histórico não é uma reação desmedida contra o ceticismo
bultmanniano nem pretende esquecer os resultados do método histórico-crítico para
voltar às “biografias” de Jesus. É o momento espontâneo de uma que busca seu
sentido (inteligibilidade) antes de buscar razões para crer (credibilidade); que busca
os laços históricos que a preservam de se converter em gnose, que sente
necessidade de fazer aparecer a continuidade e identidade existentes entre o Jesus
da história e o Cristo do querigma.
47
46
E. Käsemann in: R. GIBELLINI, A teologia do século XX, p. 50.
47
C. PALACIO, Jesus Cristo: história e interpretação, p. 37.
30
Mesmo sem saber, Käsemann estava inaugurando a era pós-
bultmanninana”. Não se trata necessariamente de uma ruptura. Trata-se de voltar
a refletir sobre um problema, aparentemente solucionado para Bultmann, acerca
do significado do Jesus histórico para o querigma.
Com a auto-suficiência do querigma, passa-se ao relativismo do dass e, do
relativismo, passa-se à indiferença em relação ao Jesus histórico até o ponto de
prescindir dele totalmente. “Então o docetismo é a conseqüência inevitável de
uma teologia exclusivamente querigmática. Em que se distingue ainda a cristã
do gnosticismo do segundo século, para a qual a única coisa que importava era o
querigma do mito?”
48
Por conseguinte, os evangelhos o são simplesmente “relatos” entendidos
como reprodução objetiva de fatos acontecidos. Mais que isso, são relatos
interpretados de uma série de eventos, a partir de uma situação e da experiência de
comunidade.
Então a pregação de Jesus não é apenas um dos pressupostos da teologia do
Novo Testamento como afirmava Bultmann. A ação de Jesus constitui a origem, o
conteúdo e o critério do querigma. Para Käsemann, o é só possível, mas
também necessário para a fé chegar até o Jesus histórico.
O distanciamento crítico continua com Günther Bornkamm (1905-1990).
Também ele se opõe à intenção bultmanniana de separar a da investigação
histórica. Ele concorda que o ponto de partida deve ser a fé pascal dos discípulos e
a tem que remontar à história para recuperar e compreender a tradição sempre
de maneira nova.
É a partir da experiência da ressurreição que a comunidade interpreta a
existência histórica de Jesus integrando-a na sua pregação. Para Bornkamm, e
também para Käsemann, é possível identificar os traços essenciais da
personalidade de Jesus, bem como o teor de sua pregação contido nos evangelhos.
A análise do comportamento de Jesus é o caminho adotado para chegar até o
mistério de sua pessoa. A irrupção do Reino de Deus configura, para Bornkamm,
uma expressão bem visível da personalidade de Jesus, uma vez que a própria
pessoa de Jesus é “parábola do Reino”. A pessoa de Jesus é a fonte do Evangelho,
que é construído a partir da pregação e está a serviço da continuidade da própria
pregação.
48
C. PALÁCIO, Jesus Cristo: história e interpretação, p. 36.
31
Ao contar a história passada é anunciado quem é Jesus para a comunidade de hoje,
sem deixar de se apoiar na história pré-pascal de Jesus. O trabalho do exegeta
consiste em diferenciar criticamente o antigo do novo, o “autêntico” de Jesus e o
que é criação” da comunidade, sem esquecer que a história de Jesus foi sempre
compreendida a partir da sua ressurreição e da experiência de sua presença.
49
C. Palácio conclui a exposição do pensamento de Bornkamm com esta
síntese: “Assim se faz a transição entre o Jesus e o querigma. A interpretação
escatológica do comportamento de Jesus encontra sua plenitude no querigma pós-
pascal: não a continuidade formal, senão também a identidade pessoal entre o
Jesus terrestre e o Cristo exaltado.”
50
Outro importante teólogo que entrará no debate pós-bultmanniano é Eduard
Schweizer (1913-2006). No ano de 1964, ele publica dois trabalhos: Die Frage
nach dem historichen Jesus e Mark’s contribution to the Quest of the historical
Jesus.
51
Para Schweizer, o ponto de partida da é o querigma pós-pascal, o que
indica a influência de Bultmann na formação de seu pensamento. Contudo, o
conceito de querigma por ele adotado está enriquecido pelos debates acerca do
tema. Diferentemente do modo de pensar de Bultmann, o querigma para
Schweizer não é absoluto e nem auto-suficiente. “Seu fundamento é o encontro
pessoal dos apóstolos com o Ressuscitado e a força do Espírito que eles
experimentam.”
52
O querigma é uma síntese de história e de fé; produção de um
acontecimento extraordinário e a interpretação de uma história concreta.
Schweizer valoriza o evento pascal como o ponto decisivo da intervenção
definitiva de Deus, onde é proclamada a identidade de Jesus terrestre como o
Cristo.
No seu trabalho, A contribuição de Marcos, ele analisa o dogma
cristológico” das primeiras comunidades para identificar a necessidade de uma
“volta” ao Jesus histórico. Para ele, a teologia das primeiríssimas comunidades
gravitava em torno de Jesus de Nazaré, basicamente, a partir da sua pregação.
Entretanto, com o natural distanciamento histórico, aliado ao crescimento e
surgimento de novas comunidades fora do lócus palestino, aparece cada vez mais
49
G. Bornkamm in: C. PALACIO, Jesus Cristo: história e interpretação, p. 40.
50
Ibid., p. 42.
51
A tradução é livre da obra em alemão é “A questão sobre o Jesus histórico”. A outra obra, em
inglês se traduz por “A contribuição do Evangelho de Marcos para a questão do Jesus histórico.”
52
C. PALACIO, op. cit., p. 43.
32
uma teologia do querigma que se interessa principalmente pela dimensão
transcendente e pelo mistério da vida de Jesus. Gradualmente, o conteúdo central
da pregação das comunidades deixa de ser as palavras, atos e gestos de Jesus e
passa a ser “a nova vida em Cristo”, “a reconciliação com Deus em Cristo”
53
e
outros elementos sofisticados desenvolvidos, sobretudo, na teologia paulina, que é
uma prova eloquente desse processo de transformação.
O surgimento da gnose é a melhor demonstração dessa absorção da
“história” de Jesus pela “ideia” de Jesus, que reduziu o nome Jesus a um símbolo
desprendido da realidade de sua história.
É nesse contexto que surgem os evangelhos como um gênero literário novo,
caracterizando um segundo passo no movimento do querigma e, ao mesmo tempo,
reforçando e fundamentando o querigma como uma reação antignóstica. Os
evangelhos o a forma concreta de firmar o querigma dando-lhe contorno
histórico e ancorando-o na vida, morte e ressurreição de Jesus. Neste sentido, o
Jesus histórico é o fundamento e o conteúdo do querigma.
Os críticos de Bultmann demonstram que a característica dos evangelhos é
mesclar a mensagem com a narração, isso é parte do gênero “evangelho”. “Não se
pode duvidar que nos evangelhos existam não somente problemas relativos à
“mitização” do histórico, mas igualmente problemas de “historicização” do
mito.”
54
É a nova questão sobre o Jesus histórico que não quer entrar nas águas
turvas da teologia liberal. Não mais se pergunta por Jesus prescindindo do
querigma, mas justamente valendo-se da mensagem de Cristo. É Ernest Fuchs
quem formula com claridade a intenção da nova busca: “Se antes interpretamos o
Jesus histórico com a ajuda do querigma cristão originário, hoje interpretamos
esse querigma valendo-nos do Jesus histórico: ambos os sentidos da investigação
se complementam.”
55
A análise desses tópicos permite perceber que o movimento cristológico
moderno é dialético. Reimarus inaugura a crítica histórica que tomou corpo dentro
da teologia liberal com a tese eufórica de chegar até o Jesus histórico. O
movimento contrário chegou a seu auge com Bultmann e a teologia existencial. A
53
Cf. C. PALACIO, Jesus Cristo: história e interpretação, p. 43-44.
54
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 39.
55
E. Fuchs in: W. KASPER, op. cit., p. 40.
33
incapacidade de acessar o Jesus histórico levou a questão para o outro pólo: do
histórico pouco se sabe e esse pouco é desnecessário para o querigma. O modelo
exegético-teológico de Bultmann, ao tirar o querigma da história, deu margem
para se postular um Cristo idealizado. Então, o cristianismo figura como a religião
que surge a partir da idealização de um personagem histórico. O que vem depois é
um movimento de reação, os pós-bultmannianos, que buscam a síntese entre o
histórico e querigmático. Em certo sentido os pós-bultmannianos conseguem,
ainda que de modo muito crítico e instável, uma primeira aproximação de
reconciliação entre o dogma cristológico (querigma) e a crítica histórica.
O tempo se encarregou de tornar os debates mais amenos. E o próprio
distanciamento histórico fez surgir abordagens mais equilibradas. Mas as
intuições plantadas não podem mais ser evitadas. A cristologia de molde
mais tradicional, voltada a refletir sobre o dogma se viu descaracterizada na sua
função. O que surge é um novo modo de fazer cristologia repensado desde se seu
ponto de partida, bem menos eclesial e dogmático, voltando-se principalmente
para o texto bíblico, com auxílio da crítica histórica.
2.5.
Repensando a cristologia
O resultado de todo o debate da cristologia moderna sobre o Jesus histórico
gerou a necessidade de um posicionamento: “de agora em diante, todos os
teólogos se sentem obrigados a se situar em relação ao problema da pertinência
histórica.”
56
Essa pertinência impõe-se de forma ainda mais árdua para a teologia
católica, que durante muito tempo se orientou por uma divisão de tarefas entre o
exegeta, que trabalhava sobre as escrituras e o teólogo, que se debruçava sobre a
tradição da Igreja. Esse caminho tradicional o é mais possível de ser trilhado.
Qualquer abordagem sobre Jesus que não leve em conta os textos bíblicos e toda a
problemática neles inseridos parecerá um discurso propenso à ideologia e, por
isso, desqualificado.
Além disso, no âmbito da teologia católica, sugiram situações novas. Uma
delas é que o teólogo já não se sente mais como aquele que interpreta os dados da
56
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 213.
34
fé, estabelecidos pelo Magistério, para repassá-los à comunidade eclesial. Cada
vez mais, o teólogo católico almeja a liberdade de pensar e busca uma liberdade
criativa que o coloca na condição não de interprete, mas de entendedor e crítico,
relacionando os dados da com a realidade histórica que o envolve. Soma-se a
isso o fato de que a Escritura, como observa Moingt, tem deixado de ser
monopólio de clérigos e do Magistério da Igreja e cada vez mais se faz presente
na vida eclesial e nos meios acadêmicos com significativa presença dos leigos.
57
Essas duas realidades, coincidentes com o contexto do Concílio Vaticano II,
indicam o surgimento de uma nova época para a cristologia católica. Para Torres
Queiruga esses marcos referenciais são: a celebração dos mil e quinhentos anos do
Concílio de Calcedônia e toda a sua repercussão, onde se insere de modo notável
o estudo programático de Karl Rahner, Calcedônia: final ou começo; e a obra
muito bem repercutida de Walter Kasper, Jesus, o Cristo.
No estudo de Rahner, fica evidente a emancipação da rigidez da tradição.
“A fidelidade à tradição <final>, não podia seguir impedindo a novidade dos
questionamentos <começo> que buscam encarnar o dogma na atualidade
histórica.”
58
No programa de Rahner, aparece a necessidade de uma nova
cristologia e os motivos também são enunciados: preocupação existencial e
antropológica, resgate do sentido histórico, volta às Escrituras, construção de uma
nova hermenêutica das fórmulas dogmáticas.
A questão levantada por Rahner é simples e profunda. O dogma da tradição
não pode esconder a riqueza da narração bíblica, pois é muito mais difícil
significar historicamente o dogma do que interpretar, no curso da história, as
Escrituras. Rahner está ajudando a teologia católica a se encontrar com as
Escrituras.
59
Walter Kasper também deu grande contribuição para a cristologia ao centrar
seu pensamento sobre o “eixo pascal”, algo um tanto quanto comum nas
57
Cf. J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 209.
58
K. Rahner in: Andrés Torres QUEIRUGA, Repensar la cristología, 2 ed., Navarra: Verbo
Divino, 1996, p. 226.
59
Nosso propósito é somente de indicar os caminhos da cristologia depois da problemática do
Jesus histórico. Por isso o vamos entrar nas especificidades da cristologia de Rahner. Só
adiantamos que se trata de uma cristologia que se enquadra dentro do seu método transcendental.
Uma cristologia que tem a propriedade de se inserir dentro da história e ser comunicativa para o
ser humano moderno. Mas também uma cristologia frequentemente questionada por desembocar
num grande reducionismo antropológico. Sobre a cristologia transcendental uma boa fonte de
consulta é Karl RAHNER, Curso fundamental da fé, o Paulo: Paulus, 2004, 3 ed., mais
especificamente a sexta seção.
35
abordagens protestantes. Ele está convencido de que o objeto central da
cristologia, entendido como uma confissão de do tipo “Jesus é o Cristo”, só
pode ser abstraído da reflexão da cruz e ressurreição de Jesus. O papel da
cristologia é fazer surgir, com clareza, essa “evidência” da fé, de que Jesus é o
Cristo. Para Kasper, “se a profissão cristológica não tivesse um suporte no Jesus
histórico, a fé no Cristo seria pura ideologia.”
60
A cristologia de Kasper es
situada num momento em que, já não é mais suficiente a interpretação ou
reinterpretação de fórmulas dogmáticas ou querigmáticas, o papel da cristologia é
traduzir o ser e o significado da pessoa e de toda a obra realizada por Jesus.
É preciso ainda mencionar o projeto cristológico de Edward Schillebeeckx.
Com sua monumental obra Jesus, a história de um vivente.
61
Schillebeeckx passa
em revista os temas fundamentais da cristologia numa perspectiva narrativa. Seu
trabalho é norteado pela volta ao Jesus histórico sem valer-se dos moldes do
historicismo teológico do século XIX. Seu interesse é estabelecer um encontro
com a pessoa histórica que animou o nascimento de um movimento novo e
entusiasmado, que se expandiu a ponto de formar uma rede de Igrejas”
multiculturais. Uma tese que perpassará o seu trabalho é de que não Jesus
histórico possível de ser conhecido hoje sem a confissão eclesial. Por outro lado,
também não há ato de fé eclesial sem um fundamento na história que possa atestar
a historicidade de Jesus.
Do lado protestante merece destaque o trabalho do teólogo alemão Wolfhart
Pannenberg. De sua relevante produção bibliográfica, destacamos sua obra
Fundamentos de cristologia. A característica fundamental da cristologia de
Pannenberg é a sua base na história de Jesus. Trata-se de uma cristologia
puramente ascendente. No primeiro capítulo da obra citada, encontramos o
tópico Cristologia e Soteriologia,
62
onde fica evidente o esforço do autor em
fundamentar a sua tese de que só há soteriologia se houver uma cristologia situada
e fundamentada na pessoa de Jesus. No comentário de Moingt sobre Pannenberg é
dito que “assim é excluída uma cristologia do alto, fundada sobre a divindade de
60
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 19.
61
Muito interessante a descrição do programa de trabalho feito por Schillebeeckx. Cf. Jesus: a
história de um vivente, São Paulo: Paulus, 2008, p. 11-32.
62
Cf. Wolfhart PANNENBERG, Fundamentos de cristología, Salamanca: Sígueme, 1974, p. 49
passim.
36
Jesus e, portanto, sobre a ideia de encarnação: é necessário partir de baixo, do
homem Jesus.”
63
Jürgen Moltmann é quem propõe à cristologia trilhar um caminho novo
refletindo seriamente a partir de um contexto próprio do mundo ocidental, um
mundo que vive a perspectiva da morte de Deus e da morte do ser humano. O
Deus Crucificado é a obra inovadora do teólogo alemão de tradição protestante.
Moltmann enxerga na cruz de Jesus um conflito entre o Deus que Jesus pregava
com o Deus da Lei daqueles que tramaram sua morte, e os deuses do império
Romano, a autoridade legal que condenou Jesus à morte. A presença de Deus na
cruz de Cristo obriga-nos a criticar sensivelmente a ideia de Deus e a noção de
salvação. Por isso, o problema fundamental e o começo da cristologia estão
contidos no escândalo da cruz. Moltmann entende que não é possível que Deus
abandone seu Filho à morte na cruz sem ser afetado em seu próprio ser. Disso
decorre que a cruz se revela como acontecimento trinitário e é aqui que a
cristologia se apresenta sob verdadeira luz.
64
Moltmann tem o mérito de propor
uma cristologia que toca no tema do sofrimento desde o ser de Deus até a situação
concreta de Jesus na cruz. Sofrimento e esperança, questões o sensíveis ao ser
humano contemporâneo são abordados noutra importante obra desse autor,
Teologia da esperança, sempre dentro de uma ótica trinitária.
Achamos por bem destacar esses teólogos pela relevância de seus trabalhos
no desenvolvimento da cristologia. Certamente não são os únicos. Mas, de uma
forma ou de outra, estes sintetizam muito bem toda a problemática vivida acerca
da questão do Jesus histórico e suas pesquisas continuam ainda como referência
na cristologia atual.
Ainda com o intuito de oferecer um quadro panorâmico da cristologia
recente, A. T. Queiruga faz uma síntese esquemática interessante. uma
cristologia mais conservadora, no sentido mais positivo da palavra, que mesmo
conhecedora de todas as questões levantadas pela modernidade resiste, em certo
sentido, a ela conservando um método mais tradicional. H. U. von Balthasar é o
grande expoente; pode-se falar de uma cristologia com forte acento hermenêutico,
como a de Schillebeeckx; ou ainda uma cristologia de estilo histórico-espiritual,
desenvolvida por Kasper; uma cristologia de orientação personalista, como a de
63
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 225.
64
Cf. Ibid., p. 238-239.
37
O. Gonzáles de Cardedal, quase na mesma linha se insere a cristologia existencial
transcendental de Rahner; pode-se falar ainda de uma cristologia cósmico-
metafísica ou “cristologia do processo” trabalhada especialmente por Teilhard de
Chardin; e por fim, uma cristologia do diálogo cultural, que intenta dialogar com
outras confissões religiosas, desenvolvida por H. Küng.
65
Numa perspectiva um
pouco diferente, também Roger Haight identifica diversas vertentes da cristologia
contemporânea. Além das mencionadas, ele cita a cristologia da libertação e a
cristologia feminista.
66
2.6.
Apresentando Andrés Torres Queiruga
67
Até o presente momento o trabalho dedicado a estudar o tema da
ressurreição de Jesus focou sua atenção de maneira bem explícita, nos debates da
cristologia moderna, a respeito do Jesus histórico. Certamente uma opção bastante
proposital num duplo sentido. Primeiro, por um interesse particular de nossa parte
em adentrar nessa problemática e tal interesse se justifica pela necessidade de
firmar um conhecimento, pelo menos razoável, sobre esse tema. O segundo
sentido se justifica na perspectiva do nosso estudo a partir de um autor atual,
ainda em plena atividade, e que traz, na bagagem de sua história, os influxos dos
debates e tendências abstraídas de toda essa problemática que ainda marca a
cristologia.
Queiruga é um teólogo, também formado em filosofia, muito dedicado em
refletir sobre o tema da crise da modernidade. Todo o seu trabalho é perpassado
por essa temática.
Quando nos detemos sobre sua obra como um todo, percebemos o quanto
ele aproveita daquilo que já é resultado aceito e, mais ou menos, de consenso
tanto no campo da exegese como no campo da sistemática em geral.
65
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 250-257.
66
Cf. Roger HAIGHT, Jesus, símbolo de Deus, 2 ed., São Paulo: Paulinas, 2005, pp. 32-39.
67
Queiruga é sacerdote católico e teólogo. Sua formação acadêmica inclui doutorado em Filosofia
pela Universidade de Compostela Espanha e doutorado em teologia pela Pontifícia Universidade
Gregoriana Itália. É professor de filosofia da religião na mesma universidade onde se doutorou
em filosofia. Autor de uma vasta bibliografia no campo da filosofia da religião e da teologia.
38
O diferencial de Queiruga está em estabelecer uma posição crítica daquilo
que já é propriedade comum da teologia e a distância dessas informações, tidas
como ganho, em relação ao discurso usual nos meios religiosos. Ou seja, aquilo
que é uma conquista positiva da teologia ainda não é eficientemente traduzido no
discurso eclesial. Pelo fato de ser padre católico, a referência eclesial primeira de
Queiruga é a Igreja Católica.
Essa preocupação insistente de Queiruga se justifica. No seu entender, a
grande crise da religião no ocidente, ou seja, a crise do cristianismo ocidental tem
sua raiz na incapacidade de diálogo entre a Igreja, como expressão do
cristianismo, e a nova sociedade gestada pela razão iluminista em surgimento.
Queiruga irá, por exemplo, apresentar as críticas dos mestres da suspeita
68
feitas,
cada qual, a partir do seu ponto de interesse, dirigidas ao Deus da religião cristã, e
o quanto esses escritos abriram uma enorme janela para o ateísmo. Saindo do
nível teórico e adentrando no nível social, Queiruga identifica uma grande inércia
da Igreja com sua estrutura hierárquica bastante alinhada ao poder constituído e
por isso reticente aos anseios da burguesia nascente e cada vez mais autônoma.
Nas sínteses de Queiruga, a autonomia do ser humano diante da realidade
histórica é a grande conquista da modernidade. É com esse ser humano autônomo
que ele pretende dialogar.
Podemos sintetizar o interesse teológico de Queiruga por meio do verbo
repensar. Repensar a imagem de Deus e repensar a linguagem religiosa tornando-
as significativas para o ser humano hodierno. Repensar implica também pensar,
que o é o mesmo que simplesmente racionalizar. No entender de Queiruga, o
pensamento não nega o mistério e nem a tradição, só não aceita seu congelamento
e repetição. Repensar é o ato de manter a consciência sempre mais além. É uma
volta contínua sobre a experiência fundante e a necessidade de pensar de novo
aquilo que tem que ser pensado sempre, com um olhar respeitoso ao passado e
com uma responsabilidade criativa no presente. É isso que Queiruga chama de
tradição viva.
69
A simples verificação dos títulos de sua obra demonstra bastante bem o
interesse de seu trabalho: Recuperar la criacón, Recuperar la salvación, Fin del
68
Denominação usada por Paul Ricoeur para qualificar o perfil epistemológico de Nietzsche,
Freud, Marx e Feuerbach.
69
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 9-10.
39
cristianismo premoderno, A revelación de Deus na realización do homo,
Repensar la ressurrección, Repensar la cristología. Todos esses tulos, para ficar
somente nos mais conhecidos, indicam a intenção do autor em passar em revista
os temas centrais da teologia na perspectiva de um repensar a realidade atual do
mundo.
Nós nos ocuparemos mais detidamente da sua obra Repensar ressurreição.
Será a partir dela que faremos a exposição da compreensão de Queiruga sobre
esse tema de capital importância para a teologia, senão para a própria cristã. E
na nossa abordagem perceberemos as influências recebidas de todo o trabalho
bíblico e teológico já desenvolvidos. Quando tratarmos da questão da linguagem e
do sentido da ressurreição notaremos o quanto Queiruga se aproxima da
cristologia querigmática de Bultmann. Tal evidência ficará ainda mais marcante
quando tratarmos dos temas do sepulcro vazio e das aparições. A nosso ver,
Queiruga continua o trabalho de Bultmann de demitizar os textos Sagrados.
Butmann fez isso a partir de um intenso trabalho exegético. Queiruga o faz
recolhendo os dados da exegese e tornando-os mais acessíveis por meio de uma
linguagem teológica mais simplificada.
Para Queiruga, o tema da ressurreição converteu-se em ponto nevrálgico da
cristologia, quase impossível de ser tocada sem suscitar cautela e levantar
suspeitas. E desde a entrada da crítica bíblica, a ressurreição tem estado no foco
dessa polêmica que se aviva cada vez mais quando aparece uma tentativa de
crítica, revisão ou atualização.
Em certo sentido, essa é a proposta de Queiruga. Uma proposta que
estudaremos mais de perto, auxiliados por outras literaturas especializadas e
consagradas no campo da cristologia. Como já afirmamos anteriormente, qualquer
abordagem cristológica precisa necessariamente passar pelos textos bíblicos,
utilizando também métodos interpretativos capazes de proporcionar um bom
entendimento. É esse o enfoque dado ao capítulo que se segue. Procuraremos
demonstrar o que é possível deduzir dos textos bíblicos que narram a ressurreição
de Jesus. Qual sua intenção e quais seus ensinamentos para bem viver a nos
dias de hoje.
3
A ressurreição de Jesus, um enfoque a partir de Andrés
Torres Queiruga
3.1.
Questões preliminares
Depois de uma abordagem preliminar acerca da cristologia na modernidade,
especialmente sobre a pesquisa a respeito do Jesus histórico, podemos adentrar,
finalmente, no tema que mais de perto nos interessa: a ressurreição de Jesus Cristo
a partir do pensamento de A. T. Queiruga. O cerne da reflexão se encontra no
livro, já citado, Repensar a Ressurreição.
Logo de início, no primeiro capítulo do livro, encontramos o emblemático
texto paulino: “E se Cristo não ressuscitou, a nossa pregação é sem fundamento, e
sem fundamento é também a vossa fé.” (1Cor 15, 14). Parece que a inquietação
paulina quanto à ressurreição de Jesus subsiste também na consciência dos
teólogos quando se defrontam com esse tema fundamental da e da tradição
cristã. Tal versículo, por exemplo, introduz o prólogo da importantíssima obra de
Xavier Léon-Dufour, Ressurreição de Jesus e mensagem pascal. Da mesma
forma, o condicional paulino se fará presente em diversas obras clássicas da
cristologia recente, quando seus respectivos autores adentram no tema da
ressurreição.
Já se vão dois mil anos da presença histórica de Jesus e, desde então,
homens e mulheres são convidados ou, palavra mais evocativa, interpelados a
professar sua a partir do testemunho, nas palavras de X. Léon-Dufour, “de uns
galileus” que proclamaram enfaticamente: Jesus ressuscitou! Essa certeza foi
proclamada e também vivida numa radicalidade ímpar, chegando, em muitos
momentos, à entrega da própria vida, fazendo surgir uma convicção de que Jesus
vive ressuscitado pela força de Deus.
Esses testemunhos estão presentes nos textos bíblicos sob a forma de
querigma, proclamado especialmente por Paulo (cf. 1Cor 15, 3-8), e recolhido no
Atos dos Apóstolos, no discurso de Pedro, (cf. At 10, 40-43). Além dessas
primeiras formulações querigmáticas, o tema da ressurreição é abordado a partir
41
de fórmulas narrativas que descrevem “fatos” e experiências com o Ressuscitado,
especialmente as narrativas das aparições e o relato do sepulcro vazio.
Para Moingt a durabilidade do testemunho apostólico tem razões bem
específicas e convincentes:
O vigor da pregação dos apóstolos, o volume da aprovação que ela obteve em
muito pouco tempo, o poder de interpelação de uma confessada com risco de
morte, logo a extensão e a unanimidade de uma tradição oral cuja divulgação não
conteve nenhum desmentido, tudo isso servia de garantia ao testemunho dos
apóstolos e a sua transmissão.
70
Todavia, o próprio Moingt constata, com uma reserva de surpresa, que a
realidade da ressurreição de Jesus, a partir da “confiabilidade” no testemunho dos
apóstolos e dos redatores dos evangelhos, não causou nenhum problema relevante
ao longo da história da Igreja, desde suas origens, até a questão ser seriamente
levantada pela onda da crítica histórica que atingiu a teologia a partir do culo
XIX.
71
A exigência imposta pela modernidade, já vimos isso, é a validação do
testemunho bíblico diante de uma crítica razoável e consistente, abrindo passagem
para o campo das ciências, impondo novas necessidades, reivindicações e critérios
para investigar o teor de verdade desses documentos e o valor dos testemunhos.
72
Em certo sentido, esse é o norte de Queiruga quando trata do tema da
ressurreição de Jesus. Ele enxerga uma vivaz criatividade em Paulo quando este,
no capítulo quinze da primeira carta aos Coríntios, busca abrir novos caminhos
para uma inteligência da fé e uma fecundidade de vida. Mas, “quando se repassam
as últimas discussões no campo da teologia, a impressão que é justamente o
contrário: o que é secundário passa ao primeiro plano, e a repetição do passado
parece extinguir toda criatividade diante do futuro.”
73
Essa fala, um tanto quanto
ressentida, se situa na constatação de uma série de críticas bastante “simplistas”,
ao se tratar de analisar as novas tentativas de abordagens atuais.
74
70
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 297.
71
Ibid., p. 297.
72
No primeiro capítulo dessa dissertação pudemos tratar de maneira mais aprofundada toda essa
problemática que ganhou corpo na teologia moderna, com especiais desdobramentos na
cristologia.
73
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 21.
74
“E vem a ser triste constatar como essa atitude, que passa da discussão das ideias teológicas à
acusação no terreno da fé, continue sendo produzida cada vez mais que aparece uma proposta
nova.” A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 23.
42
Na verdade, tais equívocos, por vezes apaixonados, ocorrem pela
dificuldade encontrada em estabelecer as devidas diferenças entre o que é a na
ressurreição, a certeza de que Cristo ressuscitou, e a interpretação desse evento.
Queiruga distingue aquilo que é a certeza fundamental de uma afirmação de fé,
das possibilidades variantes de interpretar essa afirmação no curso da história. No
seu entender, aqueles que ousam propor novas formas de interpretar os conteúdos
da fé, às vezes, correm o risco de serem acusados de invalidar a fé em si.
75
No pensamento de Queiruga, permanece uma suspeita bastante válida:
afinal, afirmar o valor histórico, no sentido moderno do termo, dos relatos
evangélicos sobre a ressurreição mais ajudam ou atrapalham a compreender a
ressurreição de Jesus? E evocar a materialidade da ressurreição do corpo de Jesus
testemunha a favor ou contra o sentido mais profundo da ressurreição? Não é
difícil constatar que na visão de Queiruga, e diga-se, de um tanto da atual reflexão
cristológica, esses temas precisam ser postos sob nova base de compreensão.
Além disso, é preciso considerar que a cristologia atual se encontra numa
situação distinta, bem mais aberta ao diálogo e à crítica. Nas palavras do próprio
Queiruga, a cristologia está em processo de reconstrução, numa perspectiva nova:
Uma cristologia concreta e realista, que na compreensão do mistério de Cristo, não
busca o extraordinário e milagroso, como se Jesus de Nazaré fosse tanto mais
divino quanto menos humano pareça. Ao contrário, buscará a divindade em sua
humanidade, isto é, no modo certamente peculiar e específico de realizá-lo
dentro do realismo e das condições de nossa história.
76
O sentido da ressurreição não deve, sob pena de esvaziar seu significado, ser
buscado no mundo do milagre, do portentoso e do fantástico. Tal afirmação não
tem o intuito de cercear a onipotência divina, mas de evitar a tentação de
apequenar sua ação e contradizer a coerência de sua presença.
A busca pelo sentido da ressurreição se tornou um ponto crucial para a
cristologia recente, sobretudo, quando se pensa a partir da nossa mentalidade
moderna e no seu engate com a nossa experiência real. O que até então estava
75
Essa é uma questão de cunho mais epistemológico e se apresenta no trabalho de Queiruga como
uma autojustificação prévia. No fundo ele quer dizer que a sua interpretação da ressurreição de
Jesus, caso pareça diametralmente distinta da interpretação tradicional, não pode ser encarada
como uma recusa em crer na ressurreição propriamente dita. Obviamente, concordamos com a
intenção de Queiruga e entendemos sua justificativa. Contudo, é preciso dizer que, do ponto de
vista estritamente epistemológico, a e a interpretação do conteúdo da o o realidades
absolutamente distintas, mas profundamente entrelaçadas. Parece que o conceito derelação
predicativa” vale para entender melhor essa questão: um predicado, para que seja verdadeiro, tem
que fazer transparecer os elementos fundamentais do sujeito a que se refere.
76
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 35.
43
carregado de vida e o texto (bíblico) o deixa lugar para dúvidas pode cair
agora em mera abstração ou, ao menos, numa verdade mais proclamada na teoria
que experimentada e vivenciada.”
77
Por isso, esse tema, que até recentemente
ocupava muito pouco espaço nas cristologias clássicas, agora, constitui parte
importante e, até mesmo, o ponto de partida de novos trabalhos na área da
cristologia.
78
Outra característica bastante própria das cristologias mais recentes,
estudiosas da ressurreição, é a necessidade de passar pelos textos bíblicos.
Somente a partir deles, é possível, hoje, buscar o sentido mais original e propor
novas interpretações sobre a ressurreição de Jesus. O enfoque bíblico e a crítica
histórica se tornaram pontos de passagem para toda e qualquer reflexão dessa
natureza. não é possível fugir, também, de um posicionamento interpretativo
quanto à historicidade desses eventos referentes a Jesus. Por isso, mesmo em
obras de caráter sistemático, como é o caso das cristologias de W. Kasper, W.
Pannenberg, E. Schillebeeckx e do próprio Queiruga, a passagem pelos textos
bíblicos é evidente.
Nossa leitura da ressurreição de Jesus, a partir de Queiruga, começa pela
interpretação bíblica. É importante ressaltar, ainda que brevemente, como foi
desenvolvida a noção de “vida após a morte” dentro do contexto do Antigo
Testamento. Afinal, um tanto dessa visão foi herdada por aqueles que,
primeiramente, manifestaram a ressurreição de Jesus. O passo seguinte será o de
adentrar no esquema teológico das narrativas da ressurreição do Novo
Testamento, principalmente nos textos sobre as aparições do Ressuscitado e nas
narrativas do sepulcro vazio. Faz-se necessário verificar o sentido específico
desses textos e o que eles pretenderam e pretendem comunicar. Eles ainda podem
ser considerados provas históricas da ressurreição de Jesus? É nessa perspectiva
que, conforme a linha de pesquisa de Queiruga, abordaremos a questão, sempre
emblemática, do corpo do Ressuscitado.
77
A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 157.
78
É o caso da obra muito bem elaborada de J. Moingt, O Homem que vinha de Deus.
44
3.2.
A ressurreição no contexto do Antigo Testamento
Tomemos como ponto de partida as ideias comuns na crença da ressurreição
de que os autores do Novo Testamento e o próprio Jesus participavam e que eram
próprias do judaísmo. Ideias essas, diga-se, ainda não muito esclarecidas.
A sorte dos defuntos foi sempre, em Israel, um tema muito difícil e de muito lenta
maturação. A ponto de que, somente no conhecido trecho do livro de Daniel “A
multidão dos que dormem no da terra acordará, uns para a vida, outros para a
rejeição eterna.” portanto, muito próximo do tempo de Jesus, encontra-se o
único texto absolutamente indiscutível da ressurreição no Antigo Testamento
hebraico.
79
Ao estudar o desenvolvimento desse tema na tradição judaica é possível
identificar duas principais linhas de influência. A primeira tradição vem
desenvolvida dentro do pensamento semita, considerando o estímulo recebido das
culturas religiosas que tiveram contato com Israel.
80
A outra influência vem do
helenismo que se faz presente na literatura judaica desde 170 a. C. até 100 d. C.
Faz parte da evolução desse tema, dentro do pensamento semítico, a difícil e
inquietante constatação do sofrimento do justo. Não obstante as influências de
outras culturas, o problema da ressurreição veio a ocupar espaço na teologia
judaica quando esta se viu obrigada a enfrentar os questionamentos dessa
natureza. É aquilo que Queiruga vai chamar de “experiência de contraste” entre o
justo que sofre e a intolerável injustiça do seu fracasso terreno. “Como se anuncia
com clareza já nos Cantos do Servo e formula-se de maneira impressionante como
os rtires da luta macabeia (cf. 2Mc 7), somente a ideia de ressurreição podia
conciliar o amor fiel do Senhor com o sofrimento incompreensível do justo.”
81
E,
nesse contexto, o que se é uma noção de retribuição, não só como uma
recompensa, mas também como uma demonstração da justiça de Deus. “Essa
visão fica compreensível pela convicção a respeito da retribuição divina aos
justos, perseguidos por motivos religiosos (Sb 2, 12-20; 4, 28 até 5, 14).”
82
79
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 57.
80
M. Achard faz uma resenha sobre a influência cultural persa e cananeia na formulação do
pensamento sobre a ressurreição no judaísmo. Cf. Robert MARTIN-ACHARD, Da morte à
ressurreição segundo o Antigo Testamento, Santo André: Editora cristã, 2005, p. 207-224.
81
A. T. QUEIRUGA, op. cit., p. 226.
82
Cf. E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a história de um vivente, p. 520. Pode-se ler esse assunto nas
páginas 519-524.
45
Da influência grega, sinteticamente, podemos nos referir à diferença de
concepção antropológica, que implica na formulação de um pensamento sobre a
ressurreição. Conforme constata Léon-Dufour, “o corpo no judaísmo, o é uma
parte integrante do homem; é o homem mesmo enquanto se exterioriza; o homem,
com efeito, se manifesta através da alma, da carne, do espírito e do corpo. O
homem é concebido como corpo animado e não como alma encarnada.”
83
Para
Queiruga o resgate dessa noção antropológica será fundamental para desenvolver
uma concepção mais realista e integrada da ressurreição.
Diametralmente diferente é a noção antropológica grega que também deixou
sua marca na cultura judaica. A concepção de ser humano, na ótica grega, se dá no
composto de alma e corpo. A alma é imortal e o corpo está provisoriamente à sua
disposição. Na morte a alma se liberta do corpo. Segundo essa antropologia a
ressurreição consistiria em reanimar o corpo, segundo o pitagorismo, um corpo
novo graças à migração das almas, já segundo o cristianismo helenizado, o
próprio corpo feito cadáver.”
84
Léon-Dufour, mesmo enxergando uma presença íntima do helenismo com o
judaísmo, não concebe que tenha havido uma fusão de conceitos. O termo alma,
por exemplo, possui um sentido bastante específico no helenismo e não foi
assumido pelo judaísmo, mesmo quando este faz uso desse termo. “A palavra
alma não designa, no judaísmo, uma substância espiritual ou imortal em oposição
a um corpo que seria mortal e material.”
85
É possível falar em mescla de conceito,
mas não em substituição de compreensões. A apropriação conceitual do universo
helênico será feita mais tarde pelo cristianismo pós-neotestamentário, que
assumirá para si as categorias gregas no seu desenvolvimento teológico. O
impacto, como é sabido, será grande e o tema da ressurreição e suas derivações
para a formação da doutrina escatológica cristã serão mais desenvolvidos a partir
da antropologia grega do que do pensamento bíblico.
O tema da ressurreição também é desenvolvido no Antigo Testamento
através do uso de analogias. Estas são tomadas das experiências humanas bastante
vivenciadas e conhecidas para falar de uma realidade não palpável. Trata-se da
imagem do “despertar” e do “levantar-se”. De fato, os textos bíblicos usam com
83
Xavier LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje Pascual, Salamanca: Sígueme, 1973,
p. 57.
84
Ibid., p. 60.
85
Ibid., p. 61.
46
frequência esses termos. Em Is 26, 19, provavelmente o texto mais antigo da
tradição judaica que alude a esse tema, fala-se comparativamente de “despertar” e
“levantar-se”. Também Dn 12, 2 usa essa linguagem. “Então se fala
alegoricamente de um acontecimento que está oculto para nós, para que seja
respeitada sua autêntica natureza.”
86
O uso dessas alegorias demonstra que mesmo
o judaísmo antigo sentia dificuldades de expressar com clareza todo o sentido de
proclamar a ressurreição dentre os mortos.
Mesmo que sinteticamente, é bom sempre recordar esse tema também a
partir do Antigo Testamento. Pois, como diz Queiruga, “os largos séculos sem
crença no outro mundo nos ensinam que a autêntica na ressurreição não se
alcança com uma rápida evasão ao mais além, senão que se forja na fidelidade da
vida real e na autenticidade da relação com Deus.”
87
Em certo sentido, a noção de
ressurreição no Antigo Testamento é evolutiva, da mesma forma que se evolui a
própria compreensão de Deus na trajetória de fé desse povo.
3.3.
A ressurreição no contexto do Novo Testamento
A primeira tradição cristã certamente herdou os pressupostos fundamentais
sobre o tema da ressurreição, bem como o sentido das alegorias usadas em
determinados momentos do Antigo Testamento. A ressurreição apresentada como
um “acordar do sono” está presente no Novo Testamento, (Mt 9,24; Jo 11, 11; 1Ts
4, 15). O uso metafórico continua nas indicações da ressurreição como um
“retorno do sono”, (Mt 9, 25; Lc 7, 14; Jo 12, 21). É preciso reconhecer que a
tradição neotestamentária herdou também as dificuldades de linguagem para
expressar esse tema, caracterizado por ambigüidades na sua interpretação.
Entretanto, essa dificuldade não anula, nos primeiros anúncios, a intenção daquilo
a ser comunicado. Pannenberg prova isso ao observar que a representação sobre a
ressurreição dos mortos mais próxima da analogia do despertar do sono” seria a
revivificação de um cadáver, no sentido indicativo de um morto podendo se
levantar e andar naturalmente. Porém, a concepção cristã mais antiga,
86
W. PANNENBEG, Fundamentos de cristología, p. 93.
87
A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 159.
47
testemunhada nos relatos evangélicos e nos textos paulinos acerca da ressurreição,
certamente não envereda por esse caminho. A ressurreição significa em Paulo a
nova vida de um corpo, não a volta de vida a um corpo inanimado que tenha então
carne incorrupta.”
88
Nesse sentido, a reflexão paulina sobre a ressurreição, sua visão de
ressurreição corporal, trabalhada em 1Cor, 15, 35-56, deixa bastante visível a
concepção de uma parte da tradição judaica que fez eco no Novo Testamento nos
permitindo ver, com mais clareza, a compreensão da ressurreição no tempo de
Jesus.
Paulo desenvolve a ressurreição dos mortos a partir dos dados que possui,
tendo como paradigma a ressurreição de Jesus. E parece bastante claro o fato de
Paulo o conceber a ressurreição dos mortos, tão pouco a de Jesus, como uma
simples revivificação de cadáver, senão como uma transformação radical.
Para além das influências recebidas, é preciso dizer que a ressurreição de
Jesus carrega uma carga bastante grande de originalidade. A ressurreição e suas
implicações são uma realidade nova e muito mais carregada de conteúdo se
comparada com o comum da compreensão de então. Para Schillebeeckx “a
diferença entre o conceito de ressurreição no Novo Testamento e no Judaísmo
chama logo a atenção. A ressurreição de Jesus é intrinsecamente um
acontecimento salutar [...] o amém de Deus sobre o homem Jesus.”
89
E para T.
Lorenzen, embora se possa falar da “expectativa messiânica” como algo próprio
da Palestina do século primeiro, no que se refere à expectativa da ressurreição
de uma figura messiânica, em geral, ou da ressurreição de um crucificado, em
especial, é algo bastante novo e inédito, não cogitado e nem aguardado. E
Lorenzen conclui que nem o transfundo histórico religioso semita, nem o helenista
ou o judeu-helenista podem oferecer analogias apropriadas ao acontecimento da
ressurreição de Cristo crucificado.
90
Então, apesar das compreensões equívocas que chegaram até o tempo de
Jesus, uma coisa é certa: foi a partir do acontecido com Jesus que a compreensão
da ressurreição ganha um status novo, bem mais evoluído e significativo para a
vida e o envolvimento da comunidade. Além disso, “nunca, de nenhuma pessoa se
88
W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, p. 94.
89
E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a história de um vivente, p. 525.
90
Cf. T. LORENZEN, Rsurrección y discipulado, p. 163.
48
havia proclamando com tamanha clareza e intensidade o seu estar vivo,
plenamente “glorificado” em Deus e presente na história.”
91
Afinal, afirmar que
Jesus havia ressuscitado era bem mais a expressão de uma experiência do que a
formulação mesma de um conceito teológico-religioso. As narrativas evangélicas
sobre a ressurreição de Jesus querem transmitir justamente essa experiência.
3.4.
Sobre as narrativas da ressurreição
O que é possível saber sobre a ressurreição de Jesus? Essa pergunta sugerida
por Queiruga nos remete, num primeiro momento, àquilo que é o substrato
histórico da ressurreição de Jesus Cristo. Apesar de sabemos da existência de
fórmulas querigmáticas sobre a ressurreição, não vamos nos ocupar delas. Elas
atestam aquilo que é consenso na tradição cristã: Cristo ressuscitou! A questão
problemática não está nessa verdade adquirida pela fé. Está no como e no sentido
de compreensão da ressurreição de Jesus. E são as narrativas evangélicas sobre as
aparições de Jesus e os relatos do sepulcro vazio que, objetivamente, merecem
uma nova perspectiva de abordagem. Essa é a intuição de Queiruga:
Por pouco que a reflexão considere as discussões mais pormenorizadas, descobre
logo uma dificuldade – para não dizer, uma contradição – fundamental: a que nasce
do choque entre a renovação produzida pela nova leitura crítica do texto bíblico e a
persistência das velhas abordagens nascidas da leitura liberalista anterior.
92
Um teólogo responsável e um leitor esclarecido não lerão ao da letra as
narrativas pascais; contudo, um bom tanto dos estudos acabam por girar em torno
dos problemas particulares herdados de uma leitura literalista. No dizer de
Queiruga, muda a compreensão dos pormenores, mas permanece a mesma
estrutura de abordagem.”
93
Isso pode ser aplicado, por exemplo, no que se refere às narrativas sobre as
aparições do Ressuscitado e à cena do sepulcro vazio. Nós estamos
acostumados a ler esses textos, usando uma linguagem bultmanniana, para além
da sua estrutura mítica. Porém, será que, não obstante todo o processo de crítica
91
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 267.
92
Ibid., p. 39.
93
Ibid., p. 40.
49
bíblica, a cristologia sobre a ressurreição está liberta da compreensão material”
desses textos? Ou seja, embora sejam feitos todos os arrazoados acerca do sentido
teológico e escatológico da ressurreição de Jesus, é aceitável para teologia
renunciar à tendência ao empirismo para compreender as narrativas evangélicas
da ressurreição? Obviamente, nem vamos estender esses questionamentos à
compreensão da ressurreição de Jesus nos meios mais populares da vida eclesial.
Não é preciso muito esforço para constatar que a ressurreição de Jesus não difere
muito de um “revivescimento” de um cadáver que retorna a vida, algo como, se
levado ao pé da letra, se deduz das “ressurreições” de Lázaro ou da filha de Jairo.
No entender de Queiruga, a tradição cristã herdou, desde os tempos pré-
críticos, uma leitura espontaneamente concordista” das narrativas bíblicas, em
geral. E, durante muito tempo, mesmo as diferenças inconciliáveis entre os textos
bíblicos referindo sobre o mesmo assunto não causaram problemas aos teólogos
que enxergavam nas diferenças uma forma de complementação mútua.
94
Já, quando se tenta conciliar, numa perspectiva mais histórica, os relatos
sobre a ressurreição, o resultado é, na expressão de Karl Barth, um verdadeiro
caos. “Uma leitura atenta dos textos lança um desafio a quem pretenda fazer
concordar os diversos relatos tanto no tempo quanto no espaço.”
95
Ou na
percepção de J. L. Segundo, “a sinopse desaparece”.
96
Joachim Jeremias também faz referência entre a grande diferença das
narrativas evangélicas da paixão em relação à páscoa:
Na história da paixão, todos os Evangelhos, fora algumas diferenças de detalhes,
apresentam um quadro básico fixo das tradições comuns: entrada em Jerusalém
última ceia Getsêmani prisão audiência perante o Sinédrio negação de
Pedro o episódio de Barrabás condenação por Pilatos crucificação
sepultamento túmulo vazio. Totalmente diverso é o caso das narrativas pascais.
De quadro comum se pode falar da sequência: túmulo vazio e aparições. No
restante a imagem é bastante variada.
97
Diante desse quadro não é possível, decididamente os textos não autorizam
isso e nem têm essa pretensão, buscar o que ocorreu numa interpretação literal e
direta. O caminho deve ser outro. É preciso se esforçar para compreender esses
textos, não a partir da nossa lógica, mas sim dentro do seu contexto originário,
94
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 44.
95
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 24.
96
Cf. J. L. SEGUNDO, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, p. 253.
97
Joachim JEREMIAS, Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Hagnos, 2008, p. 428.
50
num processo hermenêutico que nos permita, o mais próximo possível, encontrar
a intencionalidade mesma das narrativas.
3.5.
As tradições pascais
G. Theisen classifica os textos pascais basicamente em duas tradições: a
tradição formular, da qual não vamos nos ocupar;
98
e a tradição narrativa.
A tradição narrativa se apresenta na soma de duas tradições que surgiram
independentes entre si e que foram interligadas apenas num estágio posterior.
Trata-se das narrativas sobre as aparições e os relatos do túmulo vazio.
3.5.1.
As aparições
É possível constatar na história das narrativas evangélicas uma tendência em
aproximar, de forma progressiva, ambas as tradições. O Evangelho de Marcos,
que contém a narrativa mais antiga, se refere tão somente ao sepulcro vazio. “Não
vos espanteis! Estais procurando Jesus de Nazaré, o crucificado. Ressuscitou, não
está aqui”, (Mc 16, 6). Quem essa notícia a Maria Madalena, a Maria, mãe de
Tiago, e a Salomé é um jovem vestido com uma túnica branca. Embora o texto
mais antigo de Marcos não fale de aparições, deixa uma dica interessante, “Ide
dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. o vereis,
como vos tinha dito” (Mc 16, 7).
Xavier Léon-Dufour trabalha com a hipótese de duas tradições sobre as
aparições: uma surgida em Jerusalém e outra surgida na Galileia. Ele concluirá ser
a tradição de Jerusalém a mais antiga e esta teria influenciado Paulo, por exemplo.
É curioso o fato de que Marcos, embora não narre nenhuma cena de aparição,
remeta Pedro e os discípulos para a Galileia. Isso faz pensar que o evangelista
98
Essa tradição é a que primeiro aparece, marcadas pela sobriedade diziam o essencial: Jesus
ressuscitou! Cf. G. THIESEN; Annette MERZ, O Jesus histórico, p. 510-511. Para uma
apreciação da evolução e distinção gramatical” dessas expressões cf. E. SCHILLEBEECKX,
Jesus: a história de um vivente, p. 525-527.
51
poderia ter conhecido alguma tradição sobre as aparições. O texto de Marcos, aqui
considerado, termina em 16, 8. Estamos cientes de que 9-19, que apenas cita uma
série de aparições, trata-se de uma redação bem posterior.
Lucas aborda as duas realidades, sepulcro vazio e aparições, de forma
separada. O relato de Lc 24, 1-8 concentra-se na constatação do sepulcro aberto e
vazio. E o “dois homens com vestes fulgurantes” que dão a notícia: “porque
procurais entre os mortos aquele que esvivo?” (24, 5). As cenas das aparições
estão, no texto lucano, dispostas de forma independente da narrativa do sepulcro
encontrado vazio.
no Evangelho de Mateus, ambas as narrativas se encontram unidas. Logo
depois do “grande terremoto” o “anjo do Senhor” desceu do u e removeu a
pedra do sepulcro, mas Jesus não estava mais . “Ele não está aqui, pois
ressurgiu, conforme havia dito.” (Mt, 28, 6). O mesmo anjo orienta as mulheres a
procurarem os discípulos e a lhes darem a boa notícia. E, quase que
imediatamente a essa cena, o próprio Jesus veio ao encontro delas, (Mt 29,9).
João também faz unir, numa sequência imediata, a cena do sepulcro com o
relato de algumas aparições. Enquanto Pedro e o discípulo amado examinam o
sepulcro (Jo, 20, 6-10), Maria Madalena é interpelada sobre a razão do seu choro
e, ao ouvir seu nome, reconhece Jesus (Jo 20, 16).
No estrato mais antigo da tradição, muito provavelmente, ambas as linhas se
encontram separadas: Marcos relata unicamente o que se refere ao sepulcro vazio,
(c. 16), e Paulo trata do que se refere somente às aparições do ressuscitado (1Cor
15). É consenso na exegese bíblica que as aparições do ressuscitado nascem de
uma tradição oral, recolhida primeiramente por Paulo, e antecedente ao relato do
sepulcro vazio, recolhido por Marcos e assimilado pelos demais evangelista numa
mescla de narrativas.
Theisen agrupa as narrativas sobre as aparições em dois tipos formais:
aparições de mandato, em que Jesus aparece de forma reconhecível, cujo foco é
uma palavra de mandato ou envio, cf. Mt 28, 16-20; Lc 24, 36-49; Jo 20, 19-23; e
aparições de reconhecimento, nas quais, num primeiro momento, Jesus não é
reconhecido e o foco é justamente o reconhecimento de sua manifestação, Lc 24,
13-31; Jo 20, 11-18; Jo 21, 1-14).
99
99
Cf. G. THIESEN; Annette MERZ, O Jesus histórico, p. 511-512.
52
Para X. Léon-Dufour é possível distinguir, entre os testemunhos literários
das aparições do Ressuscitado, a lista de 1Cor 15, os sumários dos Atos dos
Apóstolos e os relatos evangélicos.
100
Esse autor faz uma distinção entre aquilo
que ele chama de aparições oficiais, dirigidas para os discípulos reunidos, e as
aparições privadas, referentes a pessoas individuais, como é o caso de Emaús e
das santas mulheres. Essas últimas o por demais retocadas, no sentido de serem
muito sofisticadas e, portanto, provavelmente posteriores àquelas que ele chama
de oficiais. E são justamente essas aparições oficiais que carregam uma carga
significativa mais coerente para a interpretação do sentido da ressurreição.
101
3.5.2.
O sepulcro vazio
Faz parte das narrativas pascais o relato do sepulcro vazio, presente nos
quatro evangelhos. É curiosamente notável que os outros escritos
neotestamentários ignorem esse fato e que o querigma primitivo não faça
nenhuma referência a esse evento. Na verdade, tal ausência se explica por aquilo
apontado anteriormente: os relatos evangélicos são posteriores aos outros
eventos narrados. Para W. Kasper, e Queiruga também partilha dessa ideia, as
histórias pascais narradas nos evangelhos, de forma especial as referentes ao
sepulcro vazio, colocam problemas árduos. A questão fundamental é a seguinte:
Trata-se de relatos históricos, ao menos com um fundo histórico, ou são lendas que
expressam a pascal em forma de narrações? Quer dizer, o os relatos pascais e,
sobretudo, os referentes ao sepulcro vazio, um produto ou a origem histórica da
pascal?
102
Certamente as opiniões são bastante díspares. A visão tradicional marcadora
da na ressurreição afirma que a pascal se originou com o descobrimento do
sepulcro vazio. Essa visão considera ainda as aparições como um evento posterior
ao sepulcro vazio. Todavia, outra corrente cada vez mais apoiada nos estudos
exegéticos, que afirma ser a narrativa do sepulcro vazio secundária à formulação
do querigma, da qual fazem parte as descrições das aparições. Nesse modo de
100
Cf. X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 136.
101
Para um aprofundamento sobre o tema das aparições numa perspectiva exegética vele a pena ler
todo o tópico. X. LÉON-DUFOUR, op. cit., p. 135-161.
102
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 155.
53
entender, o sepulcro aparece de forma posterior, com fins apologéticos e tende a
apresentar uma realidade “corporal” da ressurreição, combatendo intentos
reducionistas de tipo espiritualista.
Entretanto, é preciso considerar, independente da postura adotada, esse
núcleo histórico, pelo menos histórico no seu aspecto de narrativa evangélica, que
fala sobre o sepulcro, sem assumi-lo como uma prova, em si, da ressurreição.
“Historicamente o que se pode provar é a probabilidade de que o sepulcro se
encontrou vazio”.
103
No que se refere a antiguidade, Kasper o relato de Mc 16, 1-8 como o
mais antigo. Essa perícope serve de base para o que é narrado nos demais
evangelhos. Contudo, Kasper não considera a narrativa de Marcos como um relato
histórico. Sua afirmação é justificada a partir de dois elementos por demais
artificiais contidos na narrativa. O primeiro é a intenção das mulheres de ungir o
sepultado, já envolto em lençóis, depois de três dias, algo que não se coaduna com
o costume da época. O outro argumento está na descrição da preocupação das
mulheres, no meio do caminho, quanto à pedra que lacrava o sepulcro. É mais
coerente supor não se tratarem de detalhes históricos e sim de artifícios
redacionais para criar uma tensão de estilo literário com a intenção de causar um
suspense impactante no leitor.
Ao aprofundar o caráter redacional dessa perícope, se chega ainda a uma
tradição mais antiga, pré-marcana. Marcos é quem recolhe essa tradição com
bastante sobriedade, porém carregando, já, uma interpretação com certo caráter
mítico. Isso fica melhor expresso pela presença do anjo, (Mc 16,5). Nessa
narrativa, a atenção primeira não se volta ao fato de que o sepulcro esteja vazio.
Primeiramente, é feito o anúncio da ressurreição e depois se aponta para o
sepulcro como um signo”, sinal, da fé. A antiga tradição não tinha intenção de
ser um relato histórico sobre a busca do sepulcro vazio, senão um testemunho de
fé.
Kasper faz ver que essa tradição pode convergir dentro de um esquema de
uma “etiologia cultual”. É sabido que o judaísmo da época venerava o sepulcro de
personalidades. De forma semelhante, pode ter havido na comunidade de
Jerusalém uma veneração cúltica à memória de Jesus em torno de seu sepulcro, e
nessa celebração seria feito o anúncio da boa nova de sua ressurreição, mostrando
103
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p.157.
54
o sepulcro vazio, não necessariamente como uma realidade empírica, mas como
um símbolo na linguagem da fé, como um sinal de sua ressurreição.
104
3.6.
A sobriedade dos relatos
É, de fato, interessante constatar a sobriedade de Marcos e dos demais
evangelistas quando tratam da ressurreição de Jesus. E nenhum deles ousa narrar
o evento em si. Queiruga nesse aspecto uma prova às avessas”, sobretudo,
porque, ao tentarem isso, o resultado deixou evidenciar o caráter exageradamente
mítico da narrativa. É o caso do evangelho apócrifo de Pedro.
Mas durante a noite que precedia o domingo, enquanto os soldados estavam de
dois em dois fazendo a guarda, produziu-se uma grande voz no céu. E viram os
céus abertos e dois varões que dali baixavam tendo um grande resplendor e
aproximando-se de sepulcro. E aquela pedra que haviam colocado sobre a porta
rolou por seu próprio impulso e retirou-se para o lado, fazendo com que o sepulcro
ficasse aberto e ambos os jovens nele entrassem. Ao verem isso, pois, aqueles
soldados despertaram o centurião e os anciões, pois estes se encontravam ali
montando a guarda. E, estando eles explicando o que acabavam de ver, percebem
de novo três homens saindo do sepulcro, dois dos quais serviam de apoio a um
terceiro, e uma cruz que seguia após eles. E a cabeça dos dois (primeiros) chegava
até o céu, enquanto a do que era conduzido por eles ultrapassava os céus. E
ouviram a voz proveniente dos céus que dizia: “Pregaste aos que dormem?”; e se
ouvi, vindo da cruz, uma resposta: Sim”. Eles (os soldados), então estavam
combinando entre si de por-se a caminho para manifestar isto a Pilatos. E,
enquanto se encontravam ainda matutando sobre isso, aparecem de novo os céus
abertos e um homem que baixa e entra no sepulcro.
Vendo isto, os que estavam junto ao centurião apressaram-se a ir a Pilatos de noite,
abandonando o sepulcro que custodiavam. E, cheios de agitação, contaram tudo o
que tinham visto, dizendo: “Verdadeiramente ele era Filho de Deus”. Pilatos
respondeu desta maneira: “Eu estou limpo do sangue do Filho de Deus; fostes s
os que o quiseste assim”.
105
E mesmo o texto canônico de Mateus quando, nos versículos de dois a cinco
do capítulo vinte e oito, fala de um grande tremor de terra e de um anjo que desce
do céu com aspecto de um relâmpago e que remove a pedra do túmulo diante dos
soldados e esses, tremendo de medo, ficam como que mortos, exige um bom
104
Cf. W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 155-157.
105
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 80. A citação é longa, mas oportuna para
favorecer nossa percepção.
55
exercício de compreensão das teofanias do Antigo Testamento para proporcionar
uma interpretação adequada da mensagem a ser transmitida.
“A simples leitura desses textos constitui para o leitor e para a leitora atuais
a melhor prova de que a visibilidade física não é precisamente o melhor caminho
para esclarecer e tornar crível a na ressurreição”.
106
Por isso, esses textos ricos
em simbolismos e significados precisam ser constantemente relidos e
ressignificados.
3.7.
Buscando interpretar o relato do túmulo vazio e seu sentido
“O desaparecimento do cadáver de Jesus não obriga a concluir que ele saiu
vivo do mulo.”
107
E a inversão dessa afirmativa na forma interrogativa, ou seja,
postular a permanência do corpo de Jesus no túmulo, nos obriga a concluir que ele
não ressuscitou? R. Haight responderá essa questão dizendo:
Quem pensa que a ressurreição é a ressurreição de um cadáver, tenderá a
interpretar a narrativa do sepulcro vazio em termos literais e históricos. Quem, por
outro lado, imagina que a ressurreição significa que Jesus continua a viver na fé da
comunidade, pode descartar a questão da historicidade dos relatos sobre o sepulcro
vazio por considerá-la irrelevante.
108
O mais sensato não é se deixar guiar por nenhum a priori. E, como
vimos, os relatos do Novo Testamento possuem uma inteligibilidade própria com
um intuito de revelar a ação de Deus ao ressuscitar Jesus.
É interessante notar que a narrativa, muitas vezes atestada para afirmar a
ressurreição, é, em si mesma, aberta no que se refere à questão do que teria
acontecido com o corpo de Jesus: um translado? Um rapto do cadáver? Afinal, se
atesta que o sepulcro estava vazio, ou, que o Senhor foi retirado do sepulcro e seu
paradeiro é desconhecido (cf. Jo 20,2). A narrativa, por si só, o força a
convicção, deixando à a plena liberdade de decidir sobre seu sentido.
Naturalmente uma indicação do porquê de o sepulcro estar vazio: Ele
ressuscitou!
106
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 80.
107
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 306.
108
R. HAIGHT, Jesus, símbolo de Deus, p. 152.
56
Para Moingt, essa narrativa pode ser considerada a última escritura histórica
sobre Jesus. E ela reconduz ao lugar em que ele tinha sido visto morto, pela última
vez, fechando a narrativa de sua vida, bem de acordo com sua história e sua
existência: de onde ele veio? Qual sua origem? Qual o seu fim?
109
O sepulcro não está vazio somente, está também aberto. A abertura é o
sinal da intervenção deliberada e autoritária
110
de alguém e, numa reflexão a esse
respeito, impõe-se a ideia de que se trata do próprio Deus. [...] A reabertura (do
sepulcro) é, portanto, o sinal de uma intervenção de Deus, reabrindo o livro do
qual se acreditava já ter virado a última página.”
111
Também Lorenzen enxerga a
ressurreição de Jesus dentro de uma categoria desenvolvida por ele, como “ato de
Deus.”
112
Aceitar a ressurreição como um ato mesmo de Deus, uma intervenção
radical em favor do seu Filho que padeceu o suplício de uma morte injusta, se é
que alguma morte provocada, fora do seu curso natural, pode ser justa, é admitir o
óbvio. É admitir a ação Deus, que Deus não está indiferente à realidade do mundo
e permanece presente na vida do mundo, assim como esteve sempre presente na
atuação de Jesus. Compreender a ação de Deus dessa maneira ajuda, inclusive, a
não cairmos no risco de reduzir a ressurreição a um conceito de mera abstração
religiosa. Para além da fé pessoal e individual de cada cristão, a teologia, se quiser
ser e se manter coerente com suas raízes precisa firmar-se nessa convicção: a
ressurreição de Jesus é um fato novo, é a ação de Deus que tira Jesus do abismo
da morte e o exalta na glória. A ressurreição é real e verdadeira.
113
Qualquer abordagem teológica, com pretensão de ser séria, precisa
considerar esse aspecto. Na verdade Queiruga, em diversos momentos de sua obra
retoma esse ponto. E no caso específico do sepulcro vazio a questão de fundo não
discute a ressurreição especificamente. Esta é assumida. Trata-se, mais
109
Cf. J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 307.
110
Nesse contexto, convém entender esse adjetivo como uma autoridade moral do poder de fazer
justiça.
111
J. MOINGT, op. cit., p. 307.
112
“Por ‘ato de Deus’ de nenhum modo significa que se coloca em dúvida a realidade efetiva e
transformadora da história, do acontecimento. Simplesmente pretendo indicar que um “ato de
Deus” não se pode considerar no mesmo plano, nem se pode entender com a mesma metodologia
que um ato histórico humano.” cf. T. LORENZEN, Ressurrección y discipulado, p. 159. O tema
da ação de Deus na ressurreição de Jesus será devidamente aprofundado no próximo capítulo.
113
Ressurreição real, porque corresponde a uma experiência reveladora, que mesmo não sendo
empírica não deixou de levar a uma descoberta objetiva. Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a
ressurreição, p. 273.
57
explicitamente, de buscar o sentido desses textos, e nessa busca é possível
enxergar para além dos esquemas tradicionais plantados na compreensão
comum, novas formas de compreensão, oxalá, mais significativas.
Ao estudar os relatos do sepulcro vazio, P. Bony se inclina em ver neles a
presença de uma criação de estilo literário.
O relato do túmulo encontrado vazio seria apenas a colocação, em forma de
narrativa, de uma convicção deduzida da fé pascal: já que Jesus ressuscitou, ele não
poderia estar ainda em seu mulo. No fundo, o relato procederia de uma dedução:
Jesus ressuscitou, portanto seu túmulo deve estar vazio, portanto contemos que seu
túmulo foi encontrado vazio.
114
A ideia de dedução apresentada por Bony pode parecer demasiado simples,
quando o, pragmática. Nossa abordagem sobre a construção dessas narrativas,
mesmo que sintéticas, mostram que mais complexidade nessa realidade. o
obstante, tal ideia conserva uma verdade: o núcleo do relato sobre o túmulo vazio
é a convicção da ressurreição, e não o contrário, até porque, como referimos
diversas vezes, esses relatos são provavelmente os mais tardios dos evangelhos. E,
talvez, essa ideia de sepulcro vazio tenha sido usada, posteriormente, para
expressar o tema da “ressurreição corporal”.
A presença de símbolos diversos nas construções dos quatro evangelistas
ressalta, por esse recurso de linguagem, a ideia da presença de Deus na
ressurreição de Jesus. Em João, por exemplo, o túmulo aberto repete o gesto da
morte e vida, pois do lado aberto de Jesus na cruz jorram sangue e água, símbolos
da vida nova. Em Mateus, vemos no simbolismo resgatado do Antigo Testamento,
o tremor de terra e o anjo com o aspecto reluzente de um relâmpago, que
determina a intervenção do próprio Deus. A presença de anjos comunicando a boa
nova mostra a origem da própria notícia, anúncios especiais são sempre confiados
às figuras dos anjos.
Moingt ressalta que o simbolismo do sepulcro aberto não diz outra coisa
além da narrativa do túmulo vazio tomado ao da letra, mas esclarece o seu não
dito.”
115
Jesus está ausente de onde deveriam -lo encontrado, o está mais na
morada dos mortos. Essa narrativa não tem o menor interesse em dizer o que
aconteceu com o corpo de Jesus depositado no túmulo. Só quer dizer que o
túmulo, símbolo da morte, não é o lugar de Jesus. Ele não deve ser procurado no
114
Paul BONY, A ressurreição de Jesus, o Paulo, Loyola, 2008, p. 90.
115
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 309.
58
reino dos mortos. “Porque procurais entre os mortos aquele que está vivo,
ressuscitou!” (Lc 24, 5). “O túmulo vazio é a marca, neste mundo, da vitória sobre
a morte.”
116
Queiruga acredita que o relato do sepulcro vazio está apoiado na certeza da
ressurreição de Jesus. Não é a descrição do relato que desperta para a fé na
ressurreição. É a experiência da ressurreição que provoca a construção desse tipo
de relato.
3.8.
Sobre as aparições e o seu sentido
A no Ressuscitado repousa também no testemunho. O “ato” mesmo da
ressurreição ninguém viu e os evangelhos canônicos se abstêm de descrever. O
evangelho apócrifo de Pedro ousou narrá-la e, como pudemos constatar, o
resultado nos transmite mais insegurança do que confiança. Isso assegura que a
ressurreição de Jesus escapa necessariamente a todo olhar humano. “Sua realidade
pertence ao mundo novo, ao mundo futuro”, sobre o qual nossos sentidos o
tem nenhuma influência.”
117
A ressurreição é também um processo de revelação
de forma que, necessariamente, precisa impactar a história. Podemos então dizer
que as aparições pascais preenchem essa função, ou seja, por meio da linguagem
torna mais perceptível no mundo o sentido da ressurreição. Para P. Bony as
aparições constituem a “interface” da ressurreição.
As aparições cumprem um processo hermenêutico na compreensão da
presença do Ressuscitado. Uma presença, como diz Moingt, funcionando sob a
forma de ausência.
118
Ajuda a compreender melhor o sentido das aparições quando se presta mais
atenção ao que elas indicam do que, efetivamente, às aparições em si mesmas. No
julgar de algumas linhas teológicas, bem como na compreensão comum dos
crentes, as aparições e o sepulcro vazio consistem em elementos que provariam”
a presença visível do Ressuscitado. No espectro amplo, diverso e adesfocado
116
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 311.
117
P. BONY, A ressurreição de Jesus, p. 63.
118
Cf. J. MOINGT, op. cit., p. 313.
59
das aparições fica difícil sustentar que essa tenha sido mesmo a intenção de seus
redatores.
Por exemplo, no livro dos Atos dos Apóstolos, é dito que Jesus apareceu
durante muitos dias, (13, 31) e que mostrou-se vivo após a paixão com
numerosas e indiscutíveis provas; apareceu-lhes por espaço de quarenta dias,
falando-lhes do Reino de Deus.” (1, 3). Sabemos bem da adequação do número
quarenta à intenção de Lucas em construir uma sequência ordenada de fatos sobre
a vida de Jesus. O valor é simbólico e não cronológico: significa a plenitude da
manifestação de Jesus; referência aos quarenta dias passados no deserto; os
quarentas anos do êxodo do povo judeu; um “tempo de prova de fé” passados
pelos discípulos para experimentarem a ressurreição.
Não deixa de ser evocativo o aparecimento de Jesus, em diversos
momentos, censurando a incredulidade dos discípulos descrentes das primeiras
testemunhas.
119
Mais evocativa ainda é o primeiro final do quarto evangelho, em
que é dito, diante da incredulidade de Tomé, “felizes os que não viram e creram.”
(Jo 20, 29). Parece que, na lógica interna dos evangelhos, esses textos “pós-
pascais” têm bem mais a função de comunicar uma mensagem renovadora do que
provar a materialidade da ressurreição. Quem pode, depois de uma leitura atenta
do capítulo vinte e quatro do evangelho de Lucas, supor que ali está narrado um
“fato”? Trata-se de uma exímia construção literária, bem coerente com a própria
estrutura do texto do Evangelho, que coloca o leitor, um crente, na perspectiva do
“caminho”. É justamente nesse “caminhar”, que Jesus foi realmente se dando a
conhecer.
120
Da mesma forma, é no caminhar iluminado pela Palavra que o novo
crente encontrará com o Ressuscitado celebrado na memória da comunidade. E
ninguém precisa exigir que o relato marcante e profundo, conhecido como
aparição aos discípulos de Emaús, tenha necessariamente um fundo histórico para
continuar sendo verdadeiro e evocativo.
T. Lorenzen, num trabalho sério e amplo, refletindo sobre o tema das
aparições assume, nesse caso específico, uma posição no mínimo ambígua.
Em primeiro lugar podemos dizer com certeza razoável que Maria Madalena,
Pedro, Paulo e possivelmente outros entre os primeiros cristãos (por exemplo,
119
Cf. O apêndice tardio de Marcos 16, 14, por exemplo. É verdade que nesse apêndice não é
descrita nenhuma cena de aparições, simplesmente cita algumas. Cf. também Lc 24, 39; Jo 20, 27.
120
é bastante conhecida a estrutura narrativa compostas pelo autor do Evangelho de Lucas que
coloca Jesus a caminho de Jerusalém. Essa viagem reveladora e pedagógica se inicia em 9, 51 e se
estende 19, 27.
60
Tomé, “os doze” e os “mais de quinhentos irmãos” a quem menciona Paulo em
1Cor, 15, 5-7) tiveram encontros surpreendentes e inesperados com Jesus Cristo
depois de sua morte.
121
Mais adiante ele afirmará a realidade desses encontros e eles não podem ser
reduzidos a visões, sonhos ou êxtases subjetivos, propensões psicológicas ou
arrazoados teológicos dos discípulos.
É razoável concordar com a posição de Lorenzen, sobretudo quando se diz
que as aparições narradas não podem pura e simplesmente ser subjetivadas e
relativizadas. A categoria de encontro parece bastante pertinente para descrever a
experiência com o Ressuscitado. Impõe-se, contudo, certa dificuldade em saber se
Lorenzen entende esse encontro real como “encontro no sentido empírico”. Essa
falta de clareza ao descrever sua percepção das aparições é que denota certa
ambigüidade.
As aparições, também para Lorenzen, não se identificam com a ressurreição
de Jesus: são conseqüências e testemunho desta. É uma forma de aproximar a
ressurreição do curso da história. Percepção também partilhada por Moingt:
“tendo permanecido incógnito enquanto estava presente, ausente é
reconhecido; deixa-se descobrir ao ir embora, pois é no Reino de Deus que se
assume sua verdadeira identidade.”
122
Mais uma vez é preciso dizer que as aparições, tal como estão dispostas,
pretendem dar mais inteligibilidade a na ressurreição. Quem busca, essa é a
intuição crítica de Queiruga, nas aparições o fundo de sustentação e fundamento
da no Ressuscitado corre o risco de anular uma e outra. Por isso, exige-se a
insistência em enxergar esses textos dentro do contexto onde foram gestados e
manifestados: um contexto de forte emotividade religiosa. Também é preciso
enxergar neles seu caráter teológico, no qual é expresso um ensinamento que
ajuda a enxergar um objeto de fé. Textos escritos através de relatos alheios,
redigidos entre quatro e sete décadas mais tarde, o podem ser considerados
como simples descrição de acontecimentos factuais. Daí, a necessidade de uma
tarefa hermenêutica consistente que possibilite ler esses textos para interpretar
também o modo da ressurreição de Jesus.
121
T. LORENZEN, Resurrección y discipulado, p. 190.
122
Cf. J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 316.
61
3.9.
Uma reflexão sobre sentido da ressurreição do corpo
Depois de vermos mais de perto as narrativas evangélicas em sua gênese e
no seu contexto, a fim de perceber o fundamento da experiência da ressurreição,
convém verificar como é possível entender, na atual conjuntura, o tema da
ressurreição do corpo, pensando especificamente na ressurreição de Jesus.
“Para ver algo, diz Queiruga, a primeira coisa a fazer é ajustar a vista ao
objeto. Da mesma forma, para captar um significado, é preciso acomodar-se à sua
intencionalidade específica.”
123
A reflexão sobre o corpo do Ressuscitado deve
ser norteada pela busca dessa intencionalidade específica e seus significados, de
forma mais precisa, o destino do cadáver do crucificado.
Para Queiruga, independentemente da condição real do sepulcro,
historicamente atestado vazio ou o, a questão de princípio é: a ressurreição
como tal implica a necessidade de que o sepulcro fosse encontrado vazio? Mais
ainda, movendo-se tão somente no nível das hipóteses, do ponto de vista religioso
e para um fecundo compromisso de fé, o que muda entre uma hipótese e outra?
124
E se, ainda no nível hipotético, o corpo material de Jesus permanecesse em
definitivo no sepulcro, inclusive sujeito ao curso natural de qualquer outro
cadáver, isso afetaria e comprometeria a convicção na ressurreição de Jesus
Cristo?
É bastante aceito na cristologia recente o caráter simbólico das narrativas do
sepulcro vazio e também das aparições. Contudo, não é comum encontrar quem se
dedique a refletir sobre a situação mesma do corpo de Jesus morto e depois
ressuscitado. Nesse campo, a linguagem é quase sempre evasiva. R. Haight, por
exemplo, diz que “enquanto a própria ressurreição estiver jungida às
representações sensíveis, iremos operar em um vel de entendimento que
caricatura o símbolo causando problemas desnecessários à . Ela acarreta
inevitavelmente uma série de questões que provocam desorientação.”
125
Perguntas
sobre o destino do corpo de Jesus; ou o que aconteceu no momento de sua
ressurreição; como era o corpo do ressuscitado, uma vez que se envolveu com o
123
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 78.
124
Cf. Ibid., p. 78
125
R. HAIGHT, Jesus, símbolo de Deus, p. 156.
62
mundo material. Essas e outras possíveis perguntas são inapropriadas à realidade
da ressurreição.
No que se refere a esse tema especificamente, a reflexão de Queiruga se
apresenta de uma forma mais direta. No seu entender, a na ressurreição
autêntica o é a volta à vida de um cadáver, ela implica um modo de existência
não mais material, mundano ou psicofísico.
126
“O Ressuscitado, justamente por
sua glorificação, que o introduz, de maneira definitiva, na transcendência divina,
está acima de toda possível percepção de caráter fisicamente constatável ou
manipulável.”
127
Em outra obra, a reflexão segue nessa mesma linha:
O assunto é melhor compreendido a partir da antropologia bíblica, para a qual o
corpo não é o oposto da alma, mas sim a totalidade do ser humano enquanto lugar
de sua presença. Que o corpo de Cristo seja espiritual significa, portanto, que sua
presença diante de si mesmo, dos outros e de Deus é a mesma do Espírito: livre
das limitações do tempo e do espaço elimina o cerco fechado da individualidade.
128
o desapego de qualquer compreensão material da ressurreição de Jesus é
que permite compreender as intuições riquíssimas dos primeiros cristãos: “Onde
dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei ali, no meio deles.” (Mt
18,20). Da mesma forma, essa experiência pode ser vivida ainda hoje e poderá ser
igualmente vivida no futuro.
Em outras palavras, a corporalidade atual do Cristo ressuscitado transcende
radicalmente a condição espaciotemporal; portanto, não tem nem pode ter
nenhuma das qualidades físicas que constituíam seu corpo mortal. Não por defeito,
obviamente, mas precisamente pelo contrário: sua condição atual consiste
justamente em romper as limitações da matéria, para entrar em um modo
radicalmente novo de identificação com a transcendência divina. São Paulo tentou
insinuar esta condição, que supera todas as barreiras materiais e rompe todos os
esquemas conceituais, falando de “corpo espiritual” (1Cor 15, 44).
129
Essa compreensão paulina é verdadeiramente ilustrativa. Diante das
indagações sobre como ressuscitam os mortos, com que corpo voltam (1Cor 15,
35), a resposta é profundamente interpelativa: “o que semeias não readquire vida a
não ser que morra. E o que semeias não é o corpo da futura planta que deve
nascer, mas um simples grão. (1Cor 15, 35-37). A conclusão que se segue é
muito rica no seu simbolismo, “o mesmo se com a ressurreição dos mortos:
126
Na verdade, sabemos disso, essa compreensão de ressurreição não é exclusiva de Queiruga.
queremos ressaltar que na reflexão desse autor esse tema é abordado de forma mais direta e
enfática.
127
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 172.
128
Id., Recuperar a salvação, o Paulo: Paulus, 2 ed., 2005. p. 194.
129
Id., Repensar a ressurreição, p. 78.
63
semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível,
ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força;
semeado corpo psíquico; ressuscita corpo espiritual.” (1Cor 15, 42-44).
É a forma paulina de dizer que da morte à ressurreição há descontinuidade
na continuidade, identidade na não-identidade. “Corpo espiritual” é a maneira de
se dizer que o corpo ressuscitado, recriado por Deus não é mais aquilo que era
antes. Aquele corpo carnal colocado na terra não é mais necessário para
comportar a vida nova adquirida na ressurreição. “De fato, o homem não é
somente corpo; é também espírito, conhecimento, amor, liberdade: tudo pelo que
ele foi feito à imagem de Deus e “para ele”, para se assemelhar a Ele.”
130
Abrir-se para essa compreensão, que é uma intuição bíblica, permite
enxergar outras maneiras, bem lúcidas, de compreender a dimensão da
corporeidade. E nos faz questionar sobre a insistência, em certos meios religiosos
e teológicos, quanto à materialidade do corpo do ressuscitado: é um respeito pela
letra da Escritura? É a afirmação da ressurreição de Jesus como um milagre
operado e demonstrado pelo poder de Deus? Ou é a necessidade de se agarrar a
“provas empíricas” de que Jesus efetivamente ressuscitou? Além disso, é preciso
ainda se perguntar se a necessidade de um corpo morto e agora ressuscitado, o
qual é possível ser tocado, visto fisicamente é um ato mesmo de Deus ou uma
necessidade interpretativa que se foi impondo ao longo do tempo para satisfazer a
uma convicção de fé de um tipo de mentalidade e cultura.
Para Queiruga, não contar com a historicidade do sepulcro vazio e não
assumir o caráter empírico das aparições, não implica, em absoluto, negar a
realidade da ressurreição, simplesmente porque, para ele, essa não depende do
aparecimento e desaparecimento de um corpo físico.
131
O conceito de corpo não
se reduz unicamente a sua dimensão física. Na verdade essa dimensão tem
sentido quando é aberta e ampliada para a concepção de pessoa. Por isso Moingt
dirá:
Para a o que importa não é a integridade orgânica do corpo inerente ao estar-
aqui, no mundo enquanto doravante se trata de viver em Deus e para Deus; é a
identidade de cada um, com a existência histórica que vivenciou no seu corpo, em
relação a Deus e aos homens, e construiu sua personalidade vinculada a outros
130
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 329.
131
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 178.
64
corpos. [...] É essa existência transformada que Deus ressuscita, respondendo à
palavra do homem com sua palavra eternamente viva.
132
Essa percepção, bastante envolvente, faz Queiruga concluir que,
independente de qual seja o destino do corpo sico do cadáver para a fé, o
resultado é o mesmo. Numa hipótese se suporia o destino normal da desintegração
física; noutra, mais cedo ou mais tarde teria que se evocar o desaparecimento”
desse corpo ressuscitado no mundo físico. O inconveniente dessa última hipótese
é estruturar um esquema razoavelmente coerente sobre como um corpo, morto e
radicalmente transformado, suporta em si mesmo, características físicas num certo
espaço de tempo, da saída do sepulcro até o fim das aparições, para depois esse
mesmo corpo entrar numa dimensão que não mais comporta absolutamente nada
de físico.
Em certo sentido, esse é o problema de difícil equação que se impõe quando
se assume a literalidade do texto bíblico nas narrativas do sepulcro vazio e nas
aparições do Ressuscitado na perspectiva empírica. Depois de superado os
esquemas míticos da leitura bíblica, dando um mínimo de respeito pela
transcendência, unido ao conhecimento científico próprio do tempo atual, por a
questão nesse nível é praticamente condenar ao aniquilamento aquilo que é o seu
verdadeiro sentido.
Embora as intuições de Queiruga estejam mais ou menos dentro daquilo que
é a interpretação comum da cristologia recente, é importante fazer algumas
ressalvas. Vejamos, a título de exemplo, o que diz um conhecido exegeta
contemporâneo:
Parecer-me-ia fora de propósito dizer: “Minha não seria perturbada se
encontrassem o corpo de Jesus na Palestina.”
133
Não temos de fundamentar nossa
na ressurreição do Cristo, na autoridade de algum teólogo moderno. Mas temos
de apoiá-la na força do testemunho apostólico. A questão deve ser pois a seguinte:
a fé de Pedro ou de Paulo teria sido perturbada se tivessem encontrado na Palestina
os despojos de seu Mestre? Eu defendo a ideia de que os textos bíblicos mostram
que esses dois apóstolos pregaram um Jesus cuja carne não se decompusera no
túmulo. Em todo o Novo Testamento, não há um só iota que indique que um
cristão tenha pensado que o corpo de Jesus estava no sepulcro se corrompendo. Por
132
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 330.
133
Não encontramos por escrito em nenhum dos textos que tivemos contato, mas tivemos
oportunidade em ouvir Queiruga dizer, em duas ocasiões, a primeira numa conferência na FAJE,
em Belo Horizonte em 2004 e a segunda na PUC-Rio em 2008, que caso encontrássemos
resquícios do corpo de Jesus, certamente estaríamos diante de uma preciosa relíquia que ajudaria a
conservar a memória histórica de Jesus, e isso não afetaria em nada a fé e a convicção da
ressurreição de Jesus.
65
isso penso que os textos bíblicos confirmam amplamente sua ressurreição
corporal.
134
Evidentemente a questão está aberta. Para Queiruga, se o entendimento de
“ressurreição corporal” implica assumir um corpo que pode ser visto e tocado,
então, insistimos nisso, trata-se de um conceito problemático. E a convicção de
R. Brown tem pleno sentido quando se assume uma interpretação do texto
bíblico de forma que tende a literalidade do mesmo. É preciso dizer o quanto é
complexo admitir, por exemplo, a aparição de Jesus nessa perspectiva quando se
que oito dias depois, estando fechadas as portas,
135
pôs-se (Jesus) no meio
deles” e depois ainda disse a Tomé, “põe teu dedo aqui e vê minhas mãos, põe tua
mão no meu lado” (cf. Jo 20, 27), não seja um texto carregado de simbolismo.
Parece que a antiga tradição cristã já havia percebido que o fundamental do
anúncio da ressurreição passa por outros caminhos, que não exigem
necessariamente a visão corporal do Ressuscitado: “Felizes os que não viram e
creram.” (Jo 20, 29).
Não podemos deixar de lado um comentário quase que na mesma
perspectiva de R. Brown feito por Léon-Dufour:
Sucede que se lêem frases como esta: “Ainda que se tivesse encontrado o esqueleto
de Jesus no sepulcro, isto não mudaria nada o fato da ressurreição”. Rechaçamos
tal maneira de falar, pois contradiz o sentido do Novo Testamento. Passe-se
indubitavelmente da questão da linguagem (a constatação da ausência do cadáver)
a do fato (aquilo em que se converteu o cadáver). Caso, inclusive hoje, por razão de
sua antropologia ou de sua cosmologia, alguns contemporâneos acreditar na
ressurreição de Jesus, aceitando que seu esqueleto tenha permanecido no sepulcro,
não ocorreria o mesmo com os discípulos do tempo de Jesus: eles, por sua parte, se
tivessem encontrado o cadáver no sepulcro, não teriam podido admitir a
ressurreição nem anunciá-la a seus contemporâneos. Por tanto, a hipótese do
esqueleto ter permanecido no sepulcro, além de estar desprovida de fundamento
histórico, contradiz os dados do texto e entorpece sua leitura. Antes de atrever-se a
declarar que as coisas poderiam passar de tal ou qual forma, convém, pois, precisar
o problema da linguagem em que tem sido narradas.
136
Para ser fiel ao Novo Testamento convém falar sempre em ressurreição
corporal. E isto consiste em dizer que o ser de Jesus não vive tão somente na
memória das pessoas, mas que foi devolvido pessoalmente e por inteiro à vida que
não mais termina.
134
Palavras de Raymond Edward Brown in: P. BONY, A ressurreição de Jesus, p. 98.
135
Esse grifo quer ressaltar justamente a ambiguidade contida no relato: imaterialidade versus
materialidade, conforme se acentua no grifo seguinte.
136
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 320.
66
As palavras de R. Brown e Léon-Dufour constituem um alerta importante.
Se de um lado uma corrente teológica que tende a ler esses textos desde sua
perspectiva simbólica, do outro lado é preciso não desprezar os mesmo textos,
mas manter-se atento àquilo que eles comunicam. E se o texto do sepulcro vazio,
hermeneuticamente lido, o prova a empiricidade da ressurreição e até permite
supor e compreender a ressurreição no nível da transcendentalidade, esse mesmo
texto afirma que o sepulcro foi encontrado vazio. o é dito o que aconteceu com
o corpo do Ressuscitado, e também não é autorizado dizer teologicamente que o
corpo, reduzido num cadáver, se decompôs no sepulcro. Para Léon-Dufour é
preciso manter viva a intuição inspiradora do texto no seu contexto. Os
contemporâneos de Jesus souberam compreender a ressurreição e criaram uma
linguagem para comunicá-la. Cabe a teologia atual encontrar uma forma de
significar essa mesma linguagem sem falseá-la.
3.10.
Conclusão
É um ganho presente e marcante na consciência teológica cristã a
compreensão de que Deus o “trabalha” intervindo com ingerências pontuais,
interferindo na causalidade intramundana. Na aparência superficial, essa visão
parece exaltar a onipotência divina; mas na realidade, acaba convertendo Deus em
uma causa muito grande, aliás entre as causas do mundo.”
137
Esse aspecto é
bem pouco percebido: no anseio de se expressar a grandeza de Deus e a
enormidade de seu poder, cai-se, inconscientemente, na atitude oposta ao tornar
Deus bem menor do que se imagina e prisioneiro envolvido na ordem das coisas
do mundo. É essa a impressão que se tem, quando se assume os textos bíblicos
sem os devidos pressupostos hermenêuticos.
Essa é uma tensão com a qual a teologia tem convivido desde que se
entende como uma reflexão sobre a fé. Queiruga é um autor sensível a essa
temática e, não poucas vezes, se no limiar daquilo que é aceitável assumir
137
A. T. QUEIRUGA, Repensar a Ressurreição, p. 93. Mas isso não significa dizer que Deus não
estava presente, agindo diretamente na ressurreição de Jesus.
67
como ação de Deus no mundo, porque Deus age, e, ao mesmo tempo, é preciso
salvaguardar a transcendência própria que se deve à Divindade. Estamos dentro
do espectro amplo e complexo da revelação, temática arduamente estudada e
refletida por Queiruga e que se faz presente, com mais ou menos intensidade, em
todas as suas obras.
A passagem pelas narrativas bíblicas das aparições e do sepulcro vazio
deixou a sensação bastante segura de que podemos interpretar esses textos como
construções literárias bem carregadas de sentido. Por isso, essas narrativas tendem
a dizer bem mais do que a pura descrição de eventos reais. Esses mesmos textos
continuam sendo válidos, não para compreender o “fato”, propriamente dito, da
ressurreição, mas sobretudo, aquilo que ela quer comunicar.
Somente quando entendermos isso é que seremos capazes de dar um passo
adiante para assumir a ressurreição de Jesus não como um evento isolado que
implica tão somente a vida do próprio Jesus e sua relação com Deus. Bem ao
contrário, a ressurreição de Jesus, e o que dela se predica, diz respeito também à
vida das pessoas e atinge sensivelmente a realidade de quem dela experimenta. A
ressurreição é o meio pelo qual Deus continua se revelando. Uma revelação,
conforme o conceito de Queiruga, de caráter maiêutico e não arbitrário e que deve
jogar luz na vida de quem a ela se abre. Portanto, a ressurreição deve, para fazer
transparecer seu sentido mais profundo, ser entendida na mesma coerência
reveladora na qual sempre soube se adequar a história humana.
Seria incoerente imaginar que, em Jesus, na sua ressurreição, haveria uma
transgressão daquela coerência que sempre orientou a própria ação de Deus que se
desvela na história num processo maiêutico.
138
Fé, revelação e história. Esses três conceitos constituem o alicerce da
sequência da nossa reflexão. Depois dos arrazoados desse capítulo convém ainda
insistir sobre o papel da fé, clareadora da ação de Deus no ato de ressuscitar Jesus.
Uma ação perpassada pelo desejo comunicativo e revelador de Deus, atuante em
138
Maiêutica histórica é o conceito pelo qual Queiruga interpreta a dinâmica da revelação de Deus,
não como um ditado pronto e acabado, mas no processo do devir do mundo, na história. “A
significação básica da maiêutica” está expressa no Teetetes com estilo inigualável do diálogo
socrático. Sócrates, filho de parteira (maia), afirma praticar a mesma arte de sua mãe: a maiêutica
(maieutiké techne).” A. T. QUEIRUGA, A revelação de Deus na realização humana, p. 113. A
partir dessa noção Queiruga vai elaborar essa nova categoria hermenêutica. Esse tema é
amplamente trabalhado na referida obra, mais especificamente no quarto capítulo, p. 99-138.
68
Jesus Cristo. E nosso trabalho será levado a termo quando verificarmos a postura
de alguns autores, incluindo Queiruga, a respeito da historicidade da ressurreição.
4.
A ação de Deus, a revelação e a historicidade da
ressurreição de Jesus
4.1.
Introdução
No capítulo anterior fixamos nossa atenção nas interpretações dos textos
bíblicos que narram a ressurreição, passando pela reflexão da questão do corpo do
Ressuscitado. Neste capítulo, refletiremos sobre o sentido da fé, como expressão
da ação de Deus, na ressurreição de Jesus. Embora tenham existido controversas
entre na ressurreição e a ressurreição propriamente dita, que ainda não foram
dissipadas totalmente, é certo que a ocupa um papel fundamental para dar
sentido interpretativo, para adesão e compromisso com o Ressuscitado.
A importância da ficará melhor caracterizada quando tratarmos da
ressurreição como ato de Deus, que continua se revelando. A abordagem desse
tópico será sucinta. Bem sabemos das suas implicações na teologia da revelação,
na teologia trinitária e na escatologia. Seria certamente uma riqueza refletir sobre
esses assuntos a partir da ressurreição.
139
Porém, seguindo o plano de trabalho de
Queiruga, não adentraremos nesses temas. Isso alongaria demasiado nossa
pesquisa, comprometendo seu foco.
Veremos também que a revelação manifestada na ressurreição mantém sua
coerência na percepção da identidade do Ressuscitado, que é o Crucificado, e que
continua sua causa. A vida de Jesus antes da Páscoa é de extrema importância.
Essa é a constatação de Queiruga e de outros autores que nos orientam para dar
sentido e adesão à ressurreição.
No início deste trabalho nos dedicamos bastante sobre a problemática do
Jesus histórico. E nos parece relevante concluí-lo refletindo sobre a questão da
historicidade da ressurreição de Jesus Cristo a partir de alguns autores com os
quais trabalhamos. Afinal, na cristologia produzida um pouco depois do embate
entre teologia liberal e querigmática, e passando por autores mais recentes, como
139
E alguns autores citados desenvolvem essas reflexões. É o caso de E. Schillebeeckx, X. Léon-
Dufour, G. Faus. Para eventuais consultas sobre esses temas, sugerimos verificar os índices nas
respectivas obras desses autores. A referência completa está no nosso elenco bibliográfico.
70
J. Moingt e Queiruga, ainda espaço para verificar como é abordada a questão
da historicidade da ressurreição. É sobre esse tema que vamos nos ocupar na parte
final desse capítulo.
4.2.
O significado da ação de Deus na ressurreição de Jesus
refletimos sobre o sentido dos textos blicos, as narrativas das aparições
e do sepulcro vazio, e percebemos neles a maneira como apontam para o “mais
além” de uma possível experiência empírica, quando tratam da ressurreição de
Jesus.
Podemos nos firmar no consenso da exegese atual que admite o caráter
teológico das primeiras confissões pascais. E sabemos também que a ressurreição
é, fundamental e essencialmente, a ação de Deus que liberta Jesus do poder da
morte.
Obviamente, caracterizar a ação de Deus no mundo não é tarefa fácil. Foi-se
o tempo em que se acreditava, com toda naturalidade, que Deus fazia chover ou
não, afastava as doenças ou o, conforme sua vontade. Essas heranças “pré-
modernas” podem habitar o imaginário religioso de certo número de pessoas, mas
não são mais admitidas pelas consciências pautadas por um mínimo de rigor de
cientificidade dos dias atuais.
140
O pensamento teológico de Queiruga é guiado pela convicção de que Deus
não age intervindo pontualmente no mundo. A justificativa dessa postura se na
intenção de salvaguardar a própria transcendência divina. Essas ideias
plantaram suas raízes na teologia. W. Kasper, por exemplo, dirá que “não se pode,
jamais, colocar Deus no lugar de uma causalidade intramundana. E caso Deus se
encontre no mesmo nível das coisas intramundanas, então já não seria Deus, senão
um ídolo.”
141
Essa citação é tirada dentro do contexto mais amplo, em que o
referido autor trata sobre os milagres de Jesus narrados nos evangelhos. A
reflexão de Kasper, na qual, em parte, se apóia Queiruga, tenderá a encarar as
140
Essa temática da consciência religiosa dentro da mudança de paradigma é bem desenvolvida
por A. T. QUEIRUGA, Fim do cristianismo pré-moderno, especialmente no primeiro capítulo,
págs. 13-68 e no epílogo, págs. 243-254.
141
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 112.
71
narrativas dos milagres muito mais a partir da sua orientação teológica.
142
Queiruga aproveita essa intuição para demonstrar a necessidade de uma mudança
de concepção na noção de milagre, não mais concebido como uma intervenção
física ou psíquica, que transtorna o curso natural do mundo. Nesse sentido, não é
mais preciso admitir a ressurreição de Jesus como um milagre.
Considerando que seja difícil fundamentar a ressurreição de Jesus na
categoria de milagre e preservando o caráter teológico dos textos pascais, que
exigem séria interpretação, é preciso reconhecer, e Queiruga faz isso usando as
palavras de Hans Küng, que um dilema a ser superado na tratativa da
ressurreição de Jesus: é preciso num primeiro momento, perceber a ação de Deus
que ressuscita Jesus; depois, aceitar as experiências dos discípulos com Jesus
depois de sua morte; e, por outro lado, recusar qualquer noção de intervenção
sobrenatural que implique a suspensão das leis naturais.
143
Queiruga se esforça muito em mostrar que a ressurreição de Jesus é uma
“ação real de Deus”, sem interferir no plano concreto do mundo, ou seja, sem
interferência empírica. “A ressurreição, apesar da “horrível evidência do cadáver”
e a inegável destruição parcial que isso significa, afirma, ao contrário, que essa
quebra visível não significa desaparição da pessoa como tal, mas
paradoxalmente sua definitiva e suprema afirmação.”
144
É nesse campo
paradoxal que Deus age, tirando da evidência do fim a esperança ativa do
recomeço, que é também continuidade. A teologia do Novo Testamento é
convicta em afirmar que é Deus quem ressuscita Jesus dos mortos.
145
A convicção da ressurreição tem também outra implicação extremamente
relevante. Dizer que Jesus está ressuscitado pela ação de Deus, significa firmar a
certeza de que Deus está com Jesus, mesmo diante do significado escandaloso de
142
Mas é bem verdade que o próprio Kasper assume um substrato histórico das ações de Jesus:
“Seria falso deduzir que não haja absolutamente ação alguma milagrosa de Jesus com garantia
histórica. Não nenhum exegeta digno de tomar-se a sério que não admita um substrato
fundamental de ações milagrosas de Jesus historicamente certas.” W. KASPER, Jesús, el Cristo, p.
110. Esse tópico interessante pode ser lido nas páginas 108-137.
143
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a Ressurreição, p. 95.
144
Ibid., p. 100.
145
Entretanto, com o passar do tempo foram surgindo fórmulas nas quais o próprio Jesus é o
sujeito da ressurreição.o exemplos as confissões provavelmente pré-paulinas, de 1 Ts 4, 14 e as
alusões do quarto Evangelho. Para Queiruga isso se explica na compreensão da ação criadora de
Deus e a ressurreição de Jesus é um modo operante do Deus que cria e continua criando. “A ação
criadora de Deus, por seu caráter transcendente, não concorre com a criatura, mas “faz com que ela
seja” e se exerça em sua própria ação: quanto mais Deus ressuscita a Cristo, mais é Cristo mesmo
que ressuscita.” Ibid., p. 101.
72
sua morte, uma morte carregada de maldição. Também nesse aspecto, a
proclamação da ressurreição de Jesus implica em assumir algo totalmente novo e
inusitado, pois a ideia de um messias crucificado não está nem um pouco de
acordo com a expectativa do Antigo Testamento e é bastante contrária às
esperanças do messianismo judaico. A morte de cruz é, dessa forma, a ruptura
com as Escrituras e com o judaísmo.
146
Conceber a ressurreição de Jesus como um
ato de Deus, significa dizer também que as razões oficiais que o levaram à morte
não o aceitas por aqueles que afirmam a sua ressurreição e, em definitivo, Deus
não está do lado dos acusadores e se coloca ao lado de Jesus confirmando tudo
aquilo que ele viveu e ensinou sobre o ser de Deus. Além disso, como bem
observa W. Pannenberg, no contexto da época, era impossível conceber tal
acontecimento senão realizado pela ação e vontade de Deus. E a própria pregação
cristã primitiva entendeu o evento da ressurreição de Jesus dentre os mortos,
também como uma afirmação de sua pretensão pré-pascal. Isso é bem expresso,
por exemplo, na forma de falar do livro dos Atos dos Apóstolos: “Saiba, portanto,
toda casa de Israel, com certeza: Deus constituiu Senhor e Cristo, a esse Jesus que
vós crucificastes”, 2, 36, cf. também, 3, 15; 5, 30.
147
Flávio Josefo, em seu famoso texto conhecido como Testimonium
Flavianum diz que quando Pilatos, por causa de acusações feitas pelos principais
homens daquela sociedade, condenou Jesus à morte, os que antes o haviam amado
não deixaram de fazê-lo. É nessa mesma perspectiva que Tertuliano dirá que o
sangue dos mártires é semente de cristãos.
148
a convicção interior de que a
morte de Jesus foi injusta e de que ele estava em Deus e Deus estava com ele é
que proporcionou a abertura suficiente para adentrar no mistério da sua
ressurreição. E foi justamente essa mesma convicção que impulsionou seus
discípulos a continuarem sua causa, muitas vezes, enfrentando o mesmo destino
do mestre. Nas palavras de Schillebeeckx, “a ressurreição, como ação de Deus em
Jesus e com ele, não apenas confirma a mensagem de Jesus e a praxe de sua vida;
146
Cf. J. G. FAUS, La humanidad nueva, p. 128. Gonzáles Faus mostra o esforço teológico
presente no Novo Testamento para ressignificar a morte de Jesus. Uma audácia, carregada de
escândalo e loucura, conforme assume o próprio Paulo ao pregar um messias crucificado (1 Cor 1,
23), ou um messias que foi feito maldição (Gl 3, 13). Essa consciência surge graças à capacidade
de reflexão das primeiras comunidades em interpretar a vida de Jesus e aplicar nela o sofrimento e
enfrentamento da morte como o destino dos profetas, “justos” e do “servo”, temas esses resgatados
nas diversas fases da consciência religiosa judaica. Cf. Ibid., pp. 128-136.
147
Cf. W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, p. 84.
148
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 155.
73
revela também sua pessoa como indissoluvelmente unida com Deus e com a
mensagem de Deus.”
149
Além disso, aquele que morreu como blasfemo, cuja vida deveria ser
esquecida, está ressuscitado como o ‘amém’ do Pai. Eis como Queiruga interpreta
esse evento:
Sem a ressurreição Cristo deixara de ser ele mesmo; no máximo seria o maior e o
melhor na linha dos profetas; mas, definitivamente, um fracassado na larga lista
dos que, com generosidade e ilusão, quiseram elevar o nível da humanidade. O Pai
quedaria em sua distância e em seu silêncio, não sabemos se impotente ou
desinteressado, frente a tragédia do sofrimento humano.
150
Deus não se faz silêncio, ao contrário, se faz palavra encarnada, conforme
lemos na teologia joanina e agora se faz palavra viva ao ressuscitar Jesus. Esse ato
de Deus, em seus múltiplos significados, joga um facho de luz, intenso e
luminoso, sobre a vida de Jesus. Uma vida reveladora da realidade de Deus que
deseja a realização plena do ser humano.
4.3.
A revelação de Deus na ressurreição de Jesus
As narrativas bíblicas concordam que os discípulos reconheceram Jesus
quando ele já não mais se fazia presente. Isso fica bem evidente na aparição aos
discípulos de Emaús. Nessa narrativa, Jesus se a conhecer, e sua eficácia se
situa muito mais no campo da palavra comunicada do que na manifestação visual.
“A narrativa indica claramente que eles o deveram a uma presença física
insistente, ao controle obstinado da experiência sensível, a certeza da volta de
Jesus à vida, mas que receberam de uma revelação dirigida ao seu coração, tanto
quanto a seu espírito, bem mais que a seus sentidos.”
151
Esse conhecimento que é
graça, só pode ser recebido na gratuidade da fé.
Essa percepção pode ser bem compreendida quando se supera o conceito
apologético milagroso da ressurreição. Na verdade, a teologia nas últimas
149
E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a história de um vivente, p. 647.
150
A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 158.
151
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 317.
74
décadas, principalmente depois da Dei Verbum,
152
tem se esforçado para
compreender a revelação numa perspectiva bem menos apologética e muito mais
histórica.
Uma leitura mais atenta dos textos bíblicos permite perceber que a na
ressurreição de Jesus ganhou força à medida que foi partilhada e comunicada.
Aquilo que do ponto de vista histórico começou como um rumor, gradativamente,
se tornou a revelação da Boa Nova. E, como observa Queiruga, assumir a
dinâmica reveladora da ressurreição, no seu caráter transcendente, e ao mesmo
tempo, dispensando qualquer referência ao milagroso constatado empiricamente
não faz perder nada de seu significado. “A revelação é real, o porque Deus
tenha de entrar no mundo”, irrompendo em seus mecanismos, físicos ou
psicológicos, para fazer sentir uma voz milagrosa; é real porque ele já es
“falando” desde sempre no gesto ativo e infinitamente expressivo de sua presença
criadora e salvadora.”
153
A leitura crítica da Bíblia mostrou com enorme clareza
que podemos aceitar a realidade da presença divina na história da salvação, na
história da humanidade, acolhendo sua revelação a partir daquilo que as narrativas
manifestam, sem sermos, obrigatoriamente, prisioneiros da letra” dessas mesmas
narrativas.
A revelação requer sempre e necessariamente a exteriorização pública. Por
essa razão, a ressurreição de Jesus se torna efetivamente revelação quando se
exterioriza como acontecimento público da palavra que, como diz Moingt, é a
“assinatura irrecusável de Deus” à favor de Jesus. Dessa forma, quando se fala de
revelação e ressurreição o que se pensar em dois acontecimentos sucessivos
e de naturezas distintas. um vínculo unindo o acontecido com Jesus ao que se
diz ter acontecido com ele. E se trata de um fato revelador porque não é
comunicado somente o ocorrido com Jesus em benefício dele mesmo. “A
ressurreição do Primogênito dentre os mortos não é um ato absolutamente
solitário, mas primícias da ressurreição universal.”
154
A ressurreição é palavra
reveladora porque insere pessoas em seu contexto e se torna um ato fundador e
agregador de mais e mais pessoas que se fiam na promessa de ser a ressurreição
de Jesus para todos.
152
Estamos nos referindo principalmente a teologia católica.
153
A. T. QUEIRUGA, Repensar a Ressurreição, p. 104.
154
MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 326.
75
A narrativa da ressurreição tem um valor de revelação manifestado num
duplo testemunho: é uma revelação recebida de Deus; e comunicada como
acontecimento de encontro com Jesus. É muito interessante a observação feita por
Moingt quando fala das narrativas bíblicas:
Os evangelistas, pondo no primeiro plano de suas narrativas a incredulidade
obstinada dos discípulos, de preferência a uma aceitação esponnea dessas
aparições, não nos pedem que confiemos nas evidências sensíveis das quais se
tivessem beneficiado, e que creiamos no que tivessem tido o privilégio de ver. Bem
ao contrário, eles nos advertem de que tiveram de se render, apesar das hesitações e
das resistências dos próprios sentidos, à autoridade de uma única revelação capaz
de lhes dar a evidência da ressurreição de Jesus e de lhes prescrever que a
testemunhassem; e exortam-nos a crer nela, como eles mesmo o fizeram, sob a
autoridade da palavra de Deus.
155
Entretanto, isso não pode nos induzir a crer que as primeiras testemunhas
acreditaram na ressurreição de Jesus por uma suposta revelação puramente
interior. Ao contrário, há a firme convicção de que relatam a certeza de um
acontecimento por eles experimentado e vivido. Essa certeza, no entendimento de
Moingt, chega até eles como uma “revelação que se faz na sua história”, uma
história que é contada e partilhada.
156
É certo, como nos diz Léon-Dufour, que
“Deus tem falado em seu filho Jesus, quer dizer, não através de uma
personalidade singular que se tivesse expressado à margem de sua época.”
157
Jesus é o Verbo de Deus carregado da palavra reveladora de Deus, conjugado na
história durante o curso de sua vida. Esse é também o modo de Deus se revelar.
É natural admitir que alguma coisa se passou. Algo que efetivamente tenha
marcado a convicção da presença de Jesus na evidência de sua ausência. De
algum modo Jesus se tornou uma realidade viva. Para Moingt essa iniciativa é de
Jesus, o que garante a atividade da parte de Deus em ressuscitar seu filho. De
uma fração do pão a outra, ele (Jesus) atuou de novo, unicamente por sua
iniciativa. Os laços de sua existência comum, na sua ressurreição, entraram na
vida deles (apóstolos) como um fato de vida, como um acontecimento de suas
próprias vidas.”
158
Certamente é preciso salvaguardar o papel determinante de Deus.
Considerando que seja impossível descrever e demonstrar empírica e
155
MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 326.
156
Cf. Ibid., p. 319.
157
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 292.
158
J. MOINGT, op. cit., p. 320.
76
historicamente a ressurreição em si mesma, e, mais ainda, tendo em conta o
caráter simbólico-teológico dos textos bíblicos que narram esse evento, é preciso
um esforço bastante grande para evitar qualquer reducionismo interpretativo. Um
deles pode vir das simplificações feitas a partir da teologia querigmática de
Bultmann, por exemplo. Admitindo a impossibilidade de acessar o Jesus histórico
e considerando o caráter mítico dos textos da ressurreição, pode-se atribuir que tal
acontecimento seja uma construção teológica das primeiras comunidades, que
ganhou força na pregação apostólica. A sutileza es em assumir a ressurreição
unicamente como uma construção teológica. É claro que a ressurreição de Jesus é
apresentada, desde as narrativas mais antigas até essas mais recentes sob a
aparência de “historicidade”, numa perspectiva perpassada por uma abstração de
natureza teológica. O que se quer evitar é colocar a ação mesma da ressurreição
de Jesus no enredo da passividade de Deus, numa inversão drasticamente errônea,
na qual a pregação apostólica seria a fonte ativa da ressurreição de Jesus. “Quem,
como Bultmann, identifica a ressurreição com a pregação atual da Igreja,
prontamente tenderá em declarar como lendárias todos os relatos que
“materializam” a fé.”
159
Embora seja complexo determinar o que se passou na consciência dos
discípulos a fim de operar uma mudança radical de postura, é certo afirmar a
ocorrência de uma experiência impactante. Para Moingt há, nessas narrativas, um
testemunho que caracteriza um acontecimento de presença. Essa categoria
também é desenvolvida por Queiruga. Para ambos os autores, “presença” não é
entendida no sentido empírico, mas na perspectiva de uma sensibilidade que
percebe um “espaço”, antes vazio, agora novamente preenchido. Nesse sentido, as
narrativas não servem para fazer crer em tudo o que se passou, mas sim para
testemunhar um reencontro. “Um acontecimento de presença não se reduz a um
fato puro e simples, não resulta de uma pura e banal constatação empírica; ele se
produz em uma troca de reconhecimento, e nisso é que é simbólico.”
160
É
possível, assim, falar de encontro que comunica. Uma comunicação não entre
aqueles a quem Jesus apareceu, mas também entre aqueles que partilharam dessa
experiência. “A presença de Jesus se faz entender como acontecimento de
159
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 281.
160
Ibid., p. 218
77
encontro, quando ele põe os discípulos em condições de comunicar uns aos outros
que ele restabeleceu contato com eles.”
161
Tal categoria também é trabalhada por Léon-Dufour. “Os evangelhos nos
permitem atualizar o que pode ser hoje a “presença” do Senhor que não se reduz
em estar cara a cara ou a uma relação exclusivamente individual: há uma estrutura
norteadora que se mostra nessa sequência: iniciativa, reconhecimento e
missão.”
162
A iniciativa é sempre de Deus que torna presente o Ressuscitado
através do anúncio das primeiras manifestações de sua ressurreição, do querigma
apostólico e do anúncio eclesial, como extensões da dinâmica reveladora de Deus.
Havia uma ligação entre Jesus e os discípulos, que foi interrompida pela sua
morte. A ressurreição restabelece novamente essa ligação de vivência.
Eventualmente, essa ligação pode ser pensada somente no nível psicológico, o que
dispensaria a necessidade da ressurreição. É preciso lembrar que estamos
adentrando no campo da fé. “E a o consiste em crer no fato puro e simples e
sim em qualificá-lo: Jesus é ressuscitado na glória de Deus.”
163
Não se trata
somente da lembrança de quem já morreu, trata-se do reconhecimento de
exaltação daquele que vive.
É o momento do salto da fé. O que não significa dizer um salto no irracional
e nem mesmo uma aposta nos moldes de Blaise Pascal, mas de admitir a
gratuidade da graça.
Por esse motivo, seria faltar à gratuidade da tanto recusar-lhe a aceitação
racional que o exame crítico da narrativa pode conseguir, na medida em que ele o
pode, quanto querer dotá-la de provas históricas em boa e devida forma, supondo
que isso seja possível. A fé não nos obriga a crer, o dissemos, na realidade
histórica de tudo que os discípulos contaram; mas a manifestação de Jesus
ressuscitado, pertence à história da salvação, assim como sua ressurreição, pede
que creiamos ter essa manifestação ocorrida na história vivida por eles, e tudo o
que é atribuído a história requer um estudo racional da narrativa, como fizemos.
Não é da natureza da fé, tampouco, dar certezas históricas ou transformar em
certeza o que seria plausível ou duvidoso aos olhos da razão; no entanto, fazendo-
nos partilhar a fé dos discípulos, ela permite a comunhão com a certeza que
tiveram da presença do Senhor.
164
Gradativamente vamos chegando à conclusão de que a ressurreição de Jesus
revela uma forma impactante de presença que dispensa a constatação empírica e
161
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 321.
162
Ibid., p. 310.
163
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 321.
164
Ibid., p. 322. A citação é longa, mas seria pena não transcrevê-la dada a clareza da sua
argumentação.
78
se fortalece na certeza da fé. E essa revelação de Deus mostra a outra face da
ressurreição: Jesus é ressuscitado por Deus, na mesma identidade para dar
sequência à sua causa e envia seus discípulos a trabalharem por essa mesma
causa.
4.4.
Identidade, continuidade e envio
Um aspecto que merece ser destacado é o da identidade do Ressuscitado. E
esse acaba sendo um tema controverso porque mesmo entre aqueles que negam a
historicidade da ressurreição, a convicção em assumir a identidade do
Ressuscitado. Para Queiruga, por exemplo, os discípulos creram e confessaram
que Jesus de Nazaré, injustamente condenado à morte, foi ressuscitado por
Deus.
165
E o mesmo é afirmado da sua exaltação como glorificado e entronizado
no mistério de Deus. É a afirmação de identificação do Exaltado na continuidade
do vivente que foi crucificado: Vede minhas mãos e o meu lado!” (Jo 20, 20).
“Não é com um Cristo indiferenciado com o qual nos encontramos, senão com
aquele que tem dado sua vida por seus amigos. O necessário retorno ao passado é,
portanto, retorno ao evangelho de amor e da morte.”
166
É essa identificação que garante a continuidade da causa de Jesus. Ele
morreu por uma causa e sua ressurreição faz com que essa mesma causa
permaneça viva e atuante. Por isso, independente da abordagem que se faça sobre
esse tema, não se pode separar Jesus de sua causa. “Tendo em conta a
peculiaridade específica do acontecimento pascal, ambos são inseparáveis. Não é
possível que esta causa continue se Jesus não estiver vivo e presente.”
167
Nesse
sentido, a palavra sobre a ressurreição é implicativa. Por isso que a na
ressurreição de Jesus de Nazaré, não é proclamar a memória de um personagem
do passado, nem sequer limitar-se a anunciar a sua exaltação à plenitude divina,
mas também inclui seguimento.”
168
165
A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 140.
166
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 311.
167
A. T. QUEIRUGA, op. cit., p. 143.
168
Ibid., p. 143.
79
A pregação apostólica contida nos escritos neotestamentários enxerga bem
essa realidade. E não obstante o fato de atestarem, por diversas fórmulas, a
exaltação de Jesus, agora elevado à condição de Cristo, o fazem na consciência
segura de que o Messias exaltado não é outro senão o vivente crucificado. De fato,
o Novo Testamento é construído a partir da experiência pós-pascal, que soube
articular bastante bem esse duplo movimento cristológico: a cristologia do alto,
onde Cristo sai da sua glória e se esvazia humanizando-se para humanizar a
humanidade; e a cristologia de baixo, onde Jesus, na vivência autêntica e fiel da
sua humanidade faz por desvelar sua divindade, em certo sentido, para divinizar a
nossa humanidade.
Por conseguinte, a experiência da ressurreição pode e deve ser recuperada
no próprio significado desse evento na vida de Jesus. “A escuta de sua palavra, o
seguimento de sua conduta, a sintonia com sua atitude, são a melhor maneira de
iniciar-se no significado autêntico da ressurreição, que não é algo “anexado” a sua
vida, senão a eclosão, em definitivo, do que nela já está ocultamente presente.”
169
Esse aspecto carece ser sempre mais refletido e recuperado na leitura feita
da ressurreição. Pois, ele aponta para um estilo de vida, vivido de forma
comprometida e bem na contramão de uma situação religiosa que mantinha
convicções bastante elitistas. A ressurreição de Jesus indica que suas opções e
maneira de viver continuaram vivas na consciência de cada membro da
comunidade. Indica também, que seus desejos e projetos continuaram vivos. A
insistência nas narrações evangélicas de “ver”, tocar” e “comer” com o
Ressuscitado querem mostrar muito mais que “provas empíricas”. Indicam que a
vida de Jesus foi autêntica e, assim sendo, ela está ressuscitada. Essa experiência
dos apóstolos em “encontrar” com o Ressuscitado mostra que a vida dele constitui
um paradigma e uma referência segura para onde esses mesmos apóstolos devem
caminhar.
E é justamente essa vida autêntica, partilhada com os discípulos que ajuda a
fundamentar a na ressurreição de Jesus. Por isso, desde as primeiras
manifestações do Ressuscitado a percepção do envio. A ressurreição de Jesus é
marcada por essa convicção: uma vez feita a experiência de e determinada a
adesão, o passo seguinte é o anúncio. Dessa forma, a ressurreição não é uma
espécie de prêmio de consolo” para aqueles que viram o seu mestre padecer.
169
A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 159.
80
Essa afirmação é justificada pelo fato de que as experiências de “encontro” com o
Ressuscitado se deram principalmente com aqueles que tinham tido uma
convivência anterior com Jesus. É essa experiência primeira que agora é
otimizada depois da ressurreição.
170
Como diz Léon-Dufour, o primeiro contato com o Ressuscitado es
condicionado à linguagem do tocar e do ver, e carrega o reconhecimento da
identidade daquele que está presente. O reconhecimento se realiza, como em
Emaús, no momento em que o Senhor desaparece e a alegria dos discípulos é total
depois que o Senhor se separou deles.”
171
Obviamente, não é a alegria motivada
pela ausência de Jesus, é justamente pela convicção de sua presença sentida e
significada pela fé. E o mesmo texto é ainda teologicamente significativo quando
mostra a outra face da ressurreição, que é o envio. Num primeiro momento, é
evidente a frustração por causa do aparente fracasso ocorrido em Jerusalém, e
depois é justamente para que eles retornam e anunciam: é verdade! O Senhor
ressurgiu! (cf. Lc 24, 34).
Reforçando o papel da na compreensão da ressurreição como
identificação e continuidade da causa de Jesus, Léon-Dufour dique “o encontro
cara a cara não desemboca numa visão, mas essa é dada pela fé. Este é um dos
caminhos da que parte do Jesus terreno para descobrir a Cristo ressuscitado.”
172
Essa é a forma de se alcançar a concepção semítica da verdade, que se faz no
diálogo e na experiência. Parece não ser de todo exagerado dizer que o diálogo e a
experiência com Jesus no curso de sua vida foram determinantes para os
discípulos firmarem a convicção na verdade da ressurreição. “Maria Madalena
não se voltou para o Senhor porque o viu, mas porque o ouviu pronunciar seu
nome.”
173
É por conta dessa intensa intimidade que o “antes” não acaba e continua
no “depois”. E também essa cena guarda aquele sentido da ressurreição sobre o
qual estamos tratando: “vai anunciar aos meus irmãos!” E Maria anunciou. (cf. Jo,
20, 17-18). E, conclui Léon-Dufour, “se pouco depois ela, (Maria Madalena)
testemunho de que “viu” o Senhor, é porque o termo “ver” perdeu sua
conotação sensível.”
174
Trata-se de um ver que desperta o crer, só compreendido a
170
Obviamente Paulo é uma exceção ao que estamos afirmando.
171
X. LÉON-DUFOUR, Resurrección de Jesús y mensaje pascual, p. 308.
172
Ibid., p.308.
173
Ibid., p.308.
174
Ibid., p. 308.
81
partir da fé. E é a que impulsiona os discípulos a cumprirem o mandamento do
envio: “Ide, portando e fazei que todas as nações se tornem discípulas.” (Mt 28,
19).
175
Existe um vínculo entre a ressurreição de Jesus e a história dos apóstolos,
estendido para a história humana e é marcado pela relação entre as aparições de
Jesus aos discípulos e seu envio em missão. Dessa forma, a ressurreição ganha
essa conotação de continuidade. É o que demonstra Moingt:
Esse vínculo nos ensina, antes de tudo, que a intenção de Jesus não é simplesmente
fazer constatar sua ressurreição, mas “se dar uma sequência”, uma vez que, do
mesmo modo, a missão conferida aos discípulos não para no testemunho de sua
volta à vida, mas consiste em prosseguir sua pregação do Evangelho do Reino.
176
Isso reforça bastante a convicção dos próprios apóstolos que não se sentiram
sozinhos como continuadores da missão iniciada por Jesus, missão da qual eles
mesmos participaram. A missão continua sendo de Jesus e eles não o substituem.
É o próprio impulso da ressurreição, experimentado pela fé, que a firmeza da
permanência de Jesus, e Ele permanecerá, no meio deles todos os dias até a
consumação dos séculos. (cf. Mt 28, 20).
4.5.
A historicidade da ressurreição de Jesus
Depois de tudo o que temos visto desde o início do nosso trabalho, convém
levá-lo a termo abordando mais uma vez a questão de fundo que, assim pensamos,
perpassou nossa reflexão: em que sentido é possível afirmar a historicidade da
ressurreição de Jesus?
Vimos no primeiro capítulo que R. Bultmann se nega a buscar as raízes
históricas da fé. A fé cristã não está interessada pela questão histórica. E no que se
refere à ressurreição de Jesus Cristo, vimos isso, os textos das aparições e do
sepulcro vazio não podem inspirar confiança histórica, pois são perpassados pela
linguagem mítica. A conclusão de Bultmann é bastante convicta: Jesus é
175
Certamente é uma fórmula de uso litúrgico, mas que testemunha bastante bem a consciência da
comunidade ao interpretar a ressurreição de Jesus na perspectiva da missão e envio.
176
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 323.
82
ressuscitado no querigma da Igreja. Historicamente, é isso que se pode saber sobre
a ressurreição. É o máximo a que se pode chegar.
A cristologia recente é mais sensível a esse tema, pois ela o está disposta,
como Bultmann, a abrir mão da pessoa de Jesus para plantar as raízes da tão
somente no querigma primitivo.
Nossa proposta é passar por alguns autores que nos acompanharam nesse
percurso e perceber suas convicções sobre a historicidade da ressurreição. Esses
autores enfrentaram a problemática moderna acerca do Jesus histórico e
desenvolvem suas abordagens sobre a ressurreição sempre com essa questão de
fundo.
4.5.1.
Walter Kasper e a historicidade do testemunho
Para Kasper, os testemunhos sobre a ressurreição falam de acontecimentos
que transcendem o âmbito do historicamente constatável e, por isso mesmo,
representam um limite exegético-teológico. No seu modo de entender, a teologia
clássica não deu a devida importância à questão hermenêutica dos testemunhos
sobre a ressurreição e cedeu à tentação marcadamente apologética, usando esses
mesmos textos para fundamentar a fé pascal. Mais ainda, cedeu também à
tentação de querer provar a ressurreição de Jesus como um fato histórico,
insistindo de forma exagerada nos relatos do sepulcro vazio e das aparições.
“Com se isso despreza a discussão sobre a ressurreição, lançando-a para uma
questão periférica e marginal. Porque a fé pascal não é primeiramente fé no
sepulcro vazio, senão no Senhor exaltado e vivente.”
177
De fato, Kasper insiste nesse equívoco da apologética tradicional. Aquilo
que se manifestou como um signo da ressurreição tornou-se, pretensa e
equivocadamente, a “prova” histórica dela mesma.
Claro que os teólogos posteriores a Bultmann o poderiam ficar isentos de
refletir sobre a ressurreição sem passar pela discussão acerca do Jesus histórico. A
impressão que se tem é que, para Bultmann, no evento da ressurreição o
ocorreu praticamente nada com Jesus Cristo, mas sim com os discípulos. Páscoa e
177
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 116.
83
origem da fé pascal se identificam. Disso se deduz, e Kasper não aceita essa
dedução, que a posição de Bultmann reduz a na ressurreição, a pascal, numa
soteriologia que, em última analise, é uma eclesiologia. Afinal, tudo depende
exclusivamente do querigma e este não depende de mais nada.
Atualmente, parece pouco produtivo encarar as narrativas da ressurreição de
Jesus desde o ponto de vista histórico. Porém, cair no extremo oposto também
gera um tipo de teologia que Kasper não pretende aceitar. Então, ele busca, em
sua reflexão, harmonizar os dados bíblicos com a realidade histórica, chegando
assim a um maior equilíbrio quanto a essa temática. Tal ponto de equilíbrio é
fornecido pela categoria de “signo”. Ainda que se quisesse suspender algum juízo
sobre a historicidade ou não dos textos blicos, eles continuariam cumprindo sua
função de signos, uma vez que não dizem algo determinado e objetivo sobre um
evento, apenas apontam para ele. Noutras palavras, o signo não é suficiente para
explicar porque não tem essa finalidade, mas é muito suficiente para significar, ou
dar sentido à realidade da qual é signo. A título de exemplo, o sepulcro vazio não
prova, nem explica a ressurreição, mas é um signo que tende a excluir qualquer
classe de docetimo.
178
Uma vez determinado que os textos bíblicos são signos da ressurreição,
Kasper vai assumir, na sua cristologia, que é possível entrar em contato com a
verdade e a realidade da expressas na ressurreição por meio do testemunho
apostólico. É nessa perspectiva que ele interpreta o texto de Romanos 10, 14-
15.17: Como vão acreditar sem ter ouvido? E como vão ouvir se ninguém prega?
E como alguém vai pregar se não é enviado?
179
Mesmo assumindo a irrevogável importância do testemunho apostólico,
quando trata do espinhoso tema da historicidade da ressurreição, Kasper faz
questão de ressaltar que o foi a que fundou a realidade da ressurreição, mas
justamente o contrário. Foi a presença do Ressuscitado, impondo-se aos
discípulos, que fundamentou a fé.
Não obstante o desejo de determinar o acontecido na ressurreição, para
Kasper, a questão definitiva não pode ser essa. Trata-se, isso sim, de saber da
178
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 167.
179
Ibid., p. 170. referimos isso: as aparições do Ressuscitado também são compostas de um
mandato de envio.
84
disponibilidade de cada cristão, na mesma medida que os primeiros, de se deixar
possuir por Cristo. Por isso ele dirá:
Se a fé pascal e, portanto, a fé em Cristo repousa sobre o testemunho dos apóstolos,
então não nos é acessível de outra maneira senão através do testemunho apostólico,
transmitido na Igreja como comunidade de crentes. Somente neste e por este
testemunho o Cristo ressuscitado permanece realidade atual, por seu espírito na
história; pois uma realidade histórica pode ser conhecida na história. Nesse
sentido, e somente nesse, se pode dizer que Jesus tem ressuscitado no querigma.
Jesus é a perene presença na história através do testemunho da Igreja apostólica.
180
Certamente sutilezas nessa citação, sobretudo, quando se trata de um
autor que não quer assumir as posições de Bultmann, mas também não quer se fiar
na confiança do historicismo liberal. Fundamentalmente, Kasper admite que a
na ressurreição é histórica, uma vez que ela se faz presente na pregação
apostólica, acolhida no querigma eclesial. Da ressurreição propriamente dita, ele
se esquiva de definir. A justificativa se pela impossibilidade de alcance. A
salvaguarda da historicidade da ressurreição está na força do querigma nascido do
encontro com o Ressuscitado, encontro que desperta para a pascal, origem do
querigma, e este não é produto da fé.
Diante da questão da historicidade da ressurreição de Jesus, se bem
conseguimos captar o pensamento de Kasper, fica indefinido se a ressurreição em
si mesma é histórica, mas é possível admitir que a fé na ressurreição de Jesus, essa
sim, é historicamente percebida.
4.5.2.
Pannenberg e a historicidade da ressurreição
Outro autor que também enfrenta a questão da historicidade da ressurreição
de Jesus é W. Pannenberg. Ele desenvolve sua crítica à teologia querigmática de
Bultmann e sustenta a historicidade da ressurreição. E também afirma a
possibilidade de atribuir valor de verdade histórica aos eventos das aparições e do
sepulcro vazio narrados pelos textos bíblicos. “Aquilo que é expresso na
linguagem da esperança escatológica tem que ser afirmando como um evento
historicamente acontecido.”
181
180
W. KASPER, Jesús, el Cristo, p. 174.
181
W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, p.122.
85
Não é convincente, para esse autor, o argumento de que a possibilidade
histórica da ressurreição de Jesus, como o ato de recobrar uma vida imperecível
seja uma contradição às leis da natureza. Em resposta a esse argumento, ele
recorre aos pressupostos da física moderna. “Em primeiro lugar, se conhece
sempre somente uma parte das leis da natureza. Por outra, em um mundo que,
como conjunto, apresenta um singular processo irreversível, o fato individual
nunca fica determinado por completo pelas leis da natureza.”
182
Além disso, as
leis da natureza compõem uma parte do amplo espectro de percepção da realidade
e, por isso, insuficientes para determinar a sua totalidade.
A outra objeção a que Pannenberg responde é no âmbito teológico. Desde o
ponto de vista de algumas posições teológicas seria impossível afirmar a
ressurreição de Jesus como um evento acontecido historicamente, porque na
ressurreição dos mortos, o resultado seria caracterizado numa forma distinta de
ser, teoricamente desprovido de materialidade.
183
“O historiador, com certeza,
deveria julgar conforme as normas do “antigo ser” e, por conseguinte, não poderia
dizer nada a respeito da ressurreição dos mortos.”
184
Certamente, a vida do
Ressuscitado configura-se numa realidade de nova criação e o pode
simplesmente ser perceptível no mundo ao modo das demais realidades. Então,
Pannenberg dirá que o “novo ser” ressuscitado poder ser experimentado
mediante o modo extraordinário chamando “visão” e designado somente por meio
de uma linguagem simbólica. Mais ainda, ele sustenta que, nesse modo inusitado
de se encontrar com o Ressuscitado, ocorrem algumas manifestações diretas a
determinadas pessoas concretas dentro dos moldes dessa realidade presente em
determinado espaço de tempo e num número preciso de acontecimentos. Esses
acontecimentos devem ser afirmados como históricos. Negar o conceito de
acontecimento histórico desses eventos implica, igualmente, em negar a
ressurreição de Jesus, ou as aparições do ressuscitado como algo realmente
acontecido no tempo.
Então Pannenberg não se deixa convencer pelos argumentos que tendem a
descaracterizar a historicidade da ressurreição de Jesus:
Não existe nenhuma razão aceitável para afirmar a ressurreição de Jesus como um
acontecimento que realmente ocorreu, caso não seja possível certificá-lo assim,
182
W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, p. 122.
183
Esse é o pensamento de Queiruga.
184
W. PANNENBERG, op. cit., p. 123.
86
desde o ponto de vista histórico. Não é a que nos a certeza de que
determinado acontecimento se realizou ou não se realizou, dois mil anos; mas
somente a investigação histórica, na medida em que se possa chegar à certeza em
semelhante matéria.
185
A investigação histórica constitui, então, o único caminho para conseguir
uma certeza, pelo menos aproximada, referente aos acontecimentos de uma época
passada.
Obviamente não é nossa intenção adentrar na densidade dessa cristologia, é,
tão somente, apresentar a posição de Pannenberg sobre a historicidade da
ressurreição. A conclusão alcançada é que, para ele, a ressurreição de Jesus é um
evento acontecido historicamente no mundo. Fatalmente, vem a pergunta sobre o
papel da fé. Podemos objetar que, nesse caso, é inevitável embasar a numa
certeza puramente racional. Para Pannenberg, a se faz necessária para assumir
as conseqüências daquilo que ocorreu na história. Ainda, é certo que as narrativas
das aparições e do sepulcro vazio são muito mais que signos da ressurreição ou
construções simbólicas e teológicas. Mesmo admitindo o dado simbólico e
teológico das narrativas, elas têm sua origem num fundo histórico que
testemunham a favor da própria historicidade da ressurreição de Jesus.
4.5.3.
Edward Schillebeeckx e a historicidade do querigma
Ao tratar do tema da historicidade da ressurreição de Jesus, Schillebeeckx é
um autor que assume uma postura intermediária entre a corrente liberal e a
teologia querigmática. Ele insiste que a cristã deve ser acessível à razão
histórica, que es centrada também no Jesus histórico. E faz parte de suas
deduções teológicas a convicção da ressurreição pessoal de Jesus que antecede
qualquer experiência motivada pela fé.
Tal como W. Kasper, também Schillebeeckx critica a postura clássica que
quis dar um tom empírico-objetivo à ressurreição, usando as aparições e o relato
do sepulcro vazio para provar aos crentes e não crentes que Jesus está, de fato,
ressuscitado.
185
W. PANNENBERG, Fundamentos de cristología, p.123.
87
Schillebeeckx destaca as publicações, tanto no meio protestante como no
meio católico, que chegam quase ao consenso em identificar a ressurreição de
Jesus com a cristã pascal dos discípulos após a morte do mestre. Esses autores,
principalmente R. Bultmann e W. Marxsen deixam dúvidas sobre uma questão:
afinal, Jesus ressuscitou pessoalmente, e foi ele mesmo que, presente de maneira
nova, realizou por sua própria força essa renovação na vida dos apóstolos?
186
A teologia querigmática tem o mérito de criticar qualquer tentativa de
“objetivismo empírico”, em que se postula a possibilidade da ressurreição de
Jesus fora do ato de fé, dispensando a experiência de fé.
187
Por outro lado, corre-
se o risco de assumir um papel tão preponderante da fé, que ela mesma se torna a
fonte da ressurreição de Jesus, independente do próprio Jesus. “Alguns teólogos-
exegetas deixam a impressão de que a ressurreição e na ressurreição são
idênticas: em outras palavras, que a ressurreição o teria atingido em nada a
pessoa de Jesus, mas apenas os fiéis apóstolos.”
188
Dessa posição é que Schillebeeckx quer se afastar. Ele não está disposto a
assumir que a ressurreição seja algo acontecido tão somente na consciência dos
apóstolos. Tal posição é, no seu modo de compreender, bastante estranha à
teologia do Novo Testamento e à tradição cristã.
Para Schillebeeckx, está mais do que demonstrado ser o querigma da
ressurreição mais antigo do que os relatos elaborados acerca das aparições e sobre
o sepulcro. E este último só têm sentido quando vinculado às primeiras. “A
ressurreição de Jesus, isto é, o que aconteceu com ele pessoalmente após a sua
morte, o se pode identificar com a experiência pascal dos discípulos pela fé;
mas também a experiência pascal dos discípulos não pode ser separada dessa
ressurreição.”
189
A ressurreição de Jesus é um acontecimento trans-histórico ou meta-
histórico aberto aos olhos da fé. Dessa forma, Schillebeeckx quer encontrar uma
via média entre o “objetivismo” e o fideísmo e, assim, afirmar que a ressurreição
diz algo sobre Jesus, sobre Deus, sobre os discípulos e sobre nós mesmos.
190
186
Cf. E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a história de um vivente, p. 650.
187
Postura da qual se aproxima bastante Pannenberg, por exemplo.
188
E. SCHILLEBEECKX, op. cit., p. 650.
189
Ibid., p. 651.
190
Cf. T. LORENZEN, Resurrección y discipulado, p. 108.
88
Para expressar o que a ressurreição significa para os discípulos e, por
extensão, para a comunidade dos crentes, Schillebeeckx introduz a categoria de
“conversão”. É por essa categoria que se pode entender a “grande virada” pela
qual passaram os discípulos ao confessarem que Jesus, depois de sua morte, era o
Cristo.
Schillebeeckx é convicto em dizer que a ressurreição de Jesus precede toda
a experiência de . Mais ou menos como Kasper, ele também quer salvaguardar
os aspectos relevantes das duas principais correntes que o influenciaram. Parece
complexo e improdutivo dizer que há um non sequitur entre o Jesus pré-pascal e o
Cristo ressuscitado.
191
Mesmo diante do caráter mítico das narrativas blicas,
parece bastante claro que a intenção desses mesmos textos é a de mostrar a
correlação entre o Crucificado e o Ressuscitado, numa perspectiva de identidade.
Por outro lado, não é também sensato admitir, tal como faz Pannenberg, como
evento historicamente verificável aquilo que os textos narram.
Para manter bem definida a sua posição, Schillebeeckx identifica a
ressurreição de Jesus ligada intrinsecamente com a vinda do Espírito Santo. “A
ressurreição de Jesus é, ao mesmo tempo também a vinda do Espírito Santo e a
fundação da Igreja: a comunhão do ressuscitado com os seus aqui na terra. [...] A
ressurreição de Jesus é a renovada união dos seus discípulos, o nascimento real da
Igreja.”
192
Dessa forma, a ressurreição pessoal de Jesus não é um gesto obscuro
em si mesmo, é a sua manifestação como uma presença salutar expressa e
experimentada na fé.
Schillebeeckx assume que os apóstolos, conhecidos de Jesus antes da sua
morte, têm algo próprio que nunca podeser repetido no nível da experiência.
Ainda assim, não existe uma distância tão grande no modo como nós podemos
ascender à no Cristo e o modo como os discípulos de Jesus chegaram à . No
seu modo de compreender, é exatamente dentro da experiência pascal da fé que se
anuncia o acontecido com o próprio Jesus.
Para Schillebeeckx, a ressurreição de Jesus é: legitimação da ação de Deus
na praxe de Jesus; a exaltação e nova criação, ou seja, vitória divina sobre a
morte; e a missão do Espírito que funda a Igreja. São esses três aspectos
191
Ele mesmo usa a expressão “Crucificado ressuscitado” cf. E. SCHILLEBEECKX, Jesus: a
hostória de um vivente, p. 649.
192
Ibid., p. 652.
89
essenciais da ressurreição de Jesus que um cristão pode compreender
baseando-se na fé dentro da experiência eclesial.
Jesus foi ressuscitado por Deus dentre os mortos, e o pela dos
discípulos. E estes experimentaram a ressurreição num processo de “conversão”
como iniciativa da graça do próprio Deus. E essa conversão se deu no âmbito
comum da experiência comunitária, formando o querigma da comunidade. Nesse
sentido, não provas históricas da ressurreição de Jesus, mas sobressai a
convicção de que ela é a fonte inspiradora da fé, e não o contrário. Uma vez
determinado esses pressupostos, Schillebeeckx assume que a historicidade da
ressurreição é constatada no querigma.
4.5.4.
Joseph Moingt e a historicidade na presença do “corpo” do
Ressuscitado
Moingt é um teólogo contemporâneo que também se obrigado a passar
pela questão do Jesus histórico. A pergunta que brota naturalmente, em sua
pesquisa, é se a na ressurreição de Jesus tem necessidade, ou não, de uma
certeza histórica? Curiosamente, ele não pergunta pela historicidade da
ressurreição em si mesma, e sim sobre a necessidade ou não de fundamentar a
nesse evento, a partir dos dados históricos. Isso deixa ver, mais ou menos, o
caminho pelo qual o autor aborda tal questão que, no seu entender, ainda o está
suficientemente resolvida.
Sua voz faz coro com Kasper e Schillebeeckx quando critica a teologia
católica tradicional, mais ainda a partir do Vaticano I, em sustentar que as
narrativas evangélicas são suficientes em fornecer uma certeza histórica sobre a
ressurreição. Essa postura teológica gerou um vínculo de necessidade entre
certeza da razão e fé. “Muito pronta a denunciar o orgulho do racionalismo
incrédulo, ela nem sempre via bem claramente suas próprias pretensões à
demonstrabilidade.”
193
Mesmo que sem querer, a consequência dessa postura,
como foi visto em Pannenberg, tende em retirar da aquilo que é seu
fundamento.
193
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 229.
90
Por outro lado, Moingt não aceita todos os pressupostos da teologia de
Bultmann, apenas tende a aproveitar alguns aspectos característicos dessa mesma
teologia quando reflete acerca da ressurreição. Moingt não está muito disposto a
debater sobre questões de natureza histórica, e prefere se ocupar das realidades
mais evidentes. E a na ressurreição é uma delas. A verdadeira fé, a que obtém a
salvação, não é o consentimento dado a um testemunho humano. Isso seria não
mais que simples credulidade. A fé mesma é de outra ordem:
A fé pascal é aquela que proclama que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de
Deus Pai.” (Fl 1, 11); ela não é a aprovação ao fato natural, mas ao fato provido de
seu sentido pascal, aquele que Deus revela aos apóstolos quando os institui
testemunhas da ressurreição de seu Filho.
194
Moingt se aproxima bastante da teologia de Moltmann, de quem assume a
perspectiva da esperança e a aceitação de que a teologia “está em processo”. Essa
constatação de dinamicidade da teologia é aplicada também ao tema da
ressurreição: a compreensão desse evento está em processo, não só pela
incapacidade de se chegar a definições precisas, como também pelo fato da
própria ressurreição estar em constante processo. Um processo que precisa
articular fé e razão:
Que se trate da ou da razão, a certeza não pode se reduzir a uma espécie de
evidência experimental que suprimiria a possibilidade de dúvida para quem quer
que seja; ela é julgamento do espírito, atividade sempre em exercício para formar e
conservar suas convicções e repelir dúvidas contrárias.
195
É a partir dessa concepção dinâmica de Moltmann que Moingt um salto
qualificativo para colocar a discussão da historicidade da ressurreição noutro
nível, mais voltado para o engajamento. Em outras palavras, Moingt se preocupa
mais com as consequências da ressurreição na vida dos crentes, do que o evento
em si mesmo.
Muitos teólogos utilizam a fórmula conhecida de que Jesus é ressuscitado
no querigma da Igreja. Conforme observa Moingt, “seria dizer muito pouco se por
esse meio compreendêssemos simplesmente que ele criou um dito sobre si
mesmo, graças ao qual ele continua a viver na fé dos cristãos.”
196
A tradição cristã estabeleceu um vínculo bastante estreito entre identidade
do Deus de Jesus Cristo e a na ressurreição da carne, o que faz pensar sobre a
194
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 300.
195
Ibid., p. 305.
196
Ibid., p. 330.
91
ressurreição do corpo. Moingt, embora seja do parecer de dispensar a necessidade
de um corpo físico ressuscitado, entende que a teologia paulina do corpo, em 1Cor
15, 35-38, e a reflexão sobre a Igreja como corpo de Cristo são bastante
pertinentes para refletir sobre a ressurreição.
Uma vez cumprida a sua expressão de sustentar a realidade do ser no
mundo, o entendimento sobre o sentido do corpo não é desprezado, mas apoiado
na reflexão paulina, é desenvolvido e ampliado, aberto à transcendência de uma
forma plena e dirigido a universalidade. Semeado corpo psíquico, ressuscita corpo
espiritual.
Ainda refletindo dentro da teologia paulina, Moingt diz que esse corpo
ressuscitado é referência de uma unidade. A designação “corpo de Cristo”, que
Paulo à Igreja, não é simples metáfora. A Igreja, ou a comunidade, é o corpo
no qual Cristo retoma sua existência corpórea:
Portanto, podemos dizer que Cristo ressuscita “corporalmente”, no sentido de que
exprime, ao longo da vida, sua existência histórica, corpórea e social em sua
palavra, e que exprime essa palavra, no momento de morrer, ao mesmo tempo em
Deus, que torna a lhe dar a vida, e na Igreja, à qual ele dá vida e na qual retoma
corpo pelo fato de ser realmente articulada com o corpo social da Igreja.
197
No que se refere à historicidade da ressurreição, a reflexão feita por Moingt
é indireta. Ele admite a identidade do Ressuscitado como aquele que foi
crucificado. E também concebe a ressurreição como um ato de Deus. Porém, a
realidade histórica da ressurreição pode ser verificada nos seus efeitos que,
definitivamente, marcaram a história. O corpo do Ressuscitado, que ganha forma
no corpo eclesial, é a maneira pela qual a ressurreição se torna dinâmica e
histórica.
4.5.5.
Andrés T. Queiruga e a historicidade da ressurreição na revelação de
Deus
Por meio da pesquisa até aqui desenvolvida, podemos afirmar com
segurança que Queiruga rejeita qualquer possibilidade de demonstração, entenda-
se no nível empírico, da ressurreição de Jesus.
197
J. MOINGT, O homem que vinha de Deus, p. 332.
92
Queiruga identifica, de forma positiva, a mudança epistemológica ocorrida
na modernidade. Mudança que, inevitavelmente, atingiu a teologia, sobretudo a
partir da crítica bíblica. Tal mudança exigiu novas formas de interpretar o texto
bíblico que afetaram, sensivelmente, a compreensão da ressurreição, fazendo
surgir situações conflitantes, bem diferentes da calmaria sobre a qual repousava,
até então, a teologia tradicional, embasada na certeza dos dogmas. Queiruga é
mais um, dentre os teólogos mencionados anteriormente, que faz suas críticas à
teologia tradicional, não pelo fato pretender sustentar a ideia de que os textos
bíblicos pudessem figurar na qualidade de testemunhos históricos, mas também
pelo posicionamento muitas vezes demasiado crítico em relação a novas tentativas
diferenciadas de reflexão.
198
Para Queiruga, essa situação produziu, num primeiro momento, um efeito
positivo: o evento pascal passa a ser interpretado de maneira mais insistente como
acontecimento na e para a . A ambiguidade que surge, denuncia Queiruga,
está no fato de radicalizar essa intuição interpretativa evitando o confronto com o
dado histórico, criando uma espécie de “imunização da frente à crítica. É
desse contexto que surge a já conhecida postura de que a ressurreição de Jesus não
é um acontecimento histórico.
Aparentemente, Queiruga não está disposto a assumir essa posição na sua
totalidade. “Se a ressurreição é algo real para nós, tem que ser, de algum modo,
acessível em nosso mundo e em nossa história.”
199
Contudo, é importante frisar
isso, a acessibilidade do evento da ressurreição no nosso mundo não se refere ao
acontecido em si mesmo, mas aos seus desdobramentos, esses sim, verificáveis na
história.
Em certo sentido, Queiruga é devedor da teologia bultmanniana, que o ajuda
a enxergar o forte tom mítico presente nos textos bíblicos, especialmente os que
narram os milagres de Jesus e a sua ressurreição. Por outro lado , em Queiruga,
um otimismo que vai mais além de Bultmann porque, embora não admita esses
textos na condição de provas históricas, ele os entende como construções
teológicas de um evento que se manifesta na história.
198
Essa obra que tem servido de base para nossa pesquisa apresenta no primeiro capítulo dois
casos emblemáticos que provam a maneira demasiado crítica, senão apaixonada, usada para
defender posições tradicionalmente concebidas diante de novos enfoques. São citados como
exemplos Willi Marxsen e Rudolf Pesch. Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 21-
24.
199
A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 165.
93
Definitivamente a ressurreição de Jesus não pode ser qualificada como fato
histórico.
200
Entretanto, dizer que um fato não é histórico, não significa negar sua
realidade. A intenção é apontar para outra perspectiva não mundana, não
empírica, muito menos verificável por meio dos sentidos, da ciência ou da história
comum.
Então, ele insiste bastante nesse aspecto. E faz sentido dentro da lógica do
seu pensamento. Sustentar a historicidade dos testemunhos bíblicos, não da
experiência da ressurreição, mas do fato em si mesmo, implica em renunciar o
processo de demitificação desenvolvido pela crítica bíblica. Além disso, haveria
que conceder um caráter de verificabilidade empírica aos relatos das aparições,
por exemplo; e vimos como isso é problemático dentro do esquema teológico
que ele desenvolve. Por tudo o que dissemos antes, essa é uma hipótese sem
sentido. Por outro lado, assumir a ressurreição de Jesus nos moldes de Bultmann
significa, também sabemos disso, colocar todo o mistério da que sustenta a
experiência cristã, numa linha de testemunho marcadamente subjetiva,
desqualificando a ação de Deus.
Por isso, Queiruga trilha uma via intermediária, mais ou menos como
Moingt e Kasper. Um caminho conhecido pelos teólogos católicos
principalmente. Ele insiste em sustentar que a experiência da ressurreição é real
sem ser empírica. Se a ressurreição não fosse real, Cristo deixaria de ser quem é e
sua mensagem perderia sentido, seria refutada.
A ressurreição em si mesma é um evento que escapa a qualquer verificação,
algo bem típico da mentalidade cientificista, e nem por isso ela é alienada da
história, porque seus efeitos são sentidos na história. Essa percepção se pelo
fato de compreender a ressurreição como a maneira pela qual Deus continua se
revelando.
A revelação de Deus é maiêutica histórica, não simplesmente um ditado
arbitrário da parte de Deus intervindo no curso do mundo. Esse vislumbre
teológico sobre a revelação é uma marca constante na teologia de Queiruga. É
também sobre essa ótica que ele enxerga a ressurreição de Jesus: o modo de Deus
continuar se revelando, chegando à plenitude e salvaguardando sua transcendência
e respeitando nossa imanência. Por isso, a ressurreição é o ato de Deus que faz
200
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar a ressurreição, p. 269.
94
continuar toda a vida de Jesus, uma referência a sua vida pré-pascal, e essa foi
vivida dentro da coerência histórica como uma vida de revelação de Deus.
Há, então, um distanciamento daqueles que radicalizam a tese da
impossibilidade de acessar o Jesus histórico e assumem que tudo o que se diz de
Jesus é construído a partir da comunidade. Obviamente os textos bíblicos não são
uma biografia de Jesus, e mesmo sendo construídos depois da experiência da
Páscoa, certamente trazem a intuição fundamental da personalidade de Jesus. Para
Queiruga, muito mais do que a “letra” do evento narrado, importa o sentido que
pretende ser comunicado. Os textos bíblicos contam, no limite da linguagem e na
ambiguidade dos símbolos, experiências reais com Jesus e nem, por isso, precisam
ser fatos no sentido histórico.
Por ser revelação, que é sempre uma iniciativa de Deus, é preciso haver
acolhimento por parte daquele que recebe essa revelação. Revelação é
comunicação e, para ser frutífera, supõe o entendimento das partes. O que habilita
o ser humano, cerceado pela sua realidade imanente, a acolher uma iniciativa de
Deus, que é transcendente, ainda que se manifeste no mundo, é a . Mesmo que
as verdades reveladas tenham suas raízes plantadas na história e sem recusar o
apoio da razão, sua força e segurança vêm do seu campo específico: a fé. E isso
não significa que a fé, acolhedora da ressurreição e de toda a ação reveladora de
Deus, seja superior à razão. Da mesma forma, também o se admite que o ato de
acreditar nessas realidades seja uma espécie de renúncia à razão.
201
A é o
convite para a abertura gratuita que nem sempre permite entender tudo, mas
possibilita aceitar, amar, e se comprometer.
É, então, possível concluir que a ressurreição de Jesus, ela em si mesma, não
é um fato historicamente verificável. Os testemunhos bíblicos também o
provam a empiricidade da ressurreição. No que se refere à ressurreição mesma,
estamos dispensados de qualquer referência que aponte para a “materialidade” da
coisa. Por outro lado, a ressurreição é histórica naquilo que atinge e transforma as
realidades, quando acolhida como revelação de Deus. Ela se faz presente na
história transformando a vida dos seus discípulos, como uma resposta no nível da
fé, autenticada pela vida. A ressurreição é histórica porque transforma a história,
não “de fora”, como uma intervenção, mas desde dentro, a partir do interior
daqueles que fazem a história acontecer. E a ressurreição é histórica também
201
Cf. A. T. QUEIRUGA, Repensar la cristología, p. 172.
95
porque, mesmo passados dois mil anos, ela se faz atuante, como o comprimento
da expressão bíblica: “eu estarei no meio de vos até o fim do mundo”, (Mt 28,
20). E nós estamos na história, e o nos sentimos desamparados, mas envoltos
pela presença constante de Jesus. É nessa perspectiva que Queiruga assume a
historicidade da ressurreição.
4.6.
Conclusão
A pesquisa bíblica e teológica tirou a compreensão da ressurreição de Jesus
da categoria de milagre. Disso resulta, contra o modelo teológico tradicional, que
o testemunho bíblico não se resume a provar, dentro da história, uma intervenção
pontual, no vel empírico, de Deus. Outrossim, a teologia está mais convicta de
que a ressurreição aponta para uma realidade de encontro com o próprio
Ressuscitado, cuja presença é percebida na sensibilidade da fé.
Sabemos que colocar tal questão no nível da pode gerar ambiguidades.
Afinal, a síntese da teologia querigmática consiste justamente em determinar que
Jesus está ressuscitado no querigma, fruto da pascal dos discípulos. Notamos o
esforço da cristologia recente, nas referências de alguns autores que apresentamos,
na tentativa de harmonizar essa questão.
Tanto em Queiruga quanto nos demais autores citados, é notável a
influência da teologia de tendência mais liberal, valorizando o fato histórico da
vida de Jesus; da mesma forma é possível identificar as marcas de uma teologia
aos moldes de Bultmann, quando é assumida a impossibilidade de verificar
historicamente o fato da ressurreição. Com exceção de Pannenberg, os autores que
estudamos, assumem a historicidade da ressurreição. A ressurreição de Jesus, em
si mesma, é uma iniciativa de Deus, marcada pela sua ação, o que salvaguarda a
dinâmica ativa de Deus na ressurreição de Jesus. Na história se verifica seus
efeitos concretos na vida dos discípulos, formando as comunidades eclesiais em
torno dessa revelada. O que diferencia esses teólogos em relação a Bultmann?
Basicamente, eles assumem, nas suas reflexões, a continuidade e a identidade
entre Jesus, na sua vida terrena, e o Cristo, exaltado na ressurreição.
96
Parece que a cristologia recente busca, cada vez mais, o meio termo entre as
antigas posições que já rivalizaram bastante entre si. A questão da historicidade da
ressurreição não foi abandonada, apenas se encontra num processo de
deslocamento, saindo do fato em si, para repousar nos seus desdobramentos no
mundo.
5
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Queiruga, no início de sua obra Repensar a ressurreição convida o leitor a
não se apressar em emitir julgamentos, mas que se ao trabalho de encarar com
serenidade a proposta nela contida.
Foi o que procuramos fazer. Adentramos no seu pensamento e tiramos
algumas impressões. Estamos diante de um autor muito sensível ao momento
histórico que perpassa o mundo ocidental. E esse momento é marcado por uma
mudança de paradigma que tem exigido ampla revisão dos conceitos tradicionais
que aentão nortearam a estrutura reflexiva, cultural, política, organizacional e
religiosa do mundo. Obviamente essa realidade impacta também naquilo que é o
específico da religião, que deve ser tratado pela teologia.
Queiruga é um desses teólogos que assume o encargo de se comunicar com
a sociedade pós-ilustrada.
202
tocamos nesse ponto, essa é a característica mais
marcante que perpassa as suas obras. Em certos momentos, a impressão que fica é
que ele abre mão da erudição, para abordar temas importantes da teologia muito
mais em vista de torná-los aceitáveis e compreendidos sob novos enfoques, do
que tratá-los na sua complexidade própria. Bem entendido, longe de postular
qualquer simplismo em suas abordagens, o que destacamos é seu notável esforço
em tornar os temas da reflexão teológica mais assimilável até mesmo por quem
não se sente tão familiarizado com esse tipo de reflexão.
Encontramos em diversos momentos, no conjunto de sua obra, expressões
de lamento pela dificuldade da teologia e da própria Igreja em dialogar com a
nova sociedade que surgiu na modernidade. Não é que Queiruga aceite o
“modernismo” de forma irrefletida, mas condenação de tudo o que parecia ser
novidade fez surgir uma barreira bastante grande entre a expressão religiosa,
marcadamente tradicional, e a intelectualidade moldada segundo o espírito da
modernidade.
202
O termo “pós-ilustrada” é sinônimo de sociedade moderna. Sabemos que atualmente se fala em
pós-modernidade. Mas para o nosso propósito, usaremos esses termos pensando no evento da
modernidade que gerou uma nova concepção de mundo, de ser humano e colocou em xeque as
noções tradicionais sobre Deus, religião e Igreja.
98
É esse desejo de repensar a forma de expressar o conteúdo da fé que marca a
abordagem de Queiruga também sobre o tema da ressurreição.
Nós afirmamos algumas vezes que Queiruga não é o único a trabalhar
nessa perspectiva. Ele está inserido dentro de uma tradição que se viu obrigada a
dialogar com a sociedade moderna. Por isso achamos que foi lido iniciar esse
trabalho com a questão do Jesus histórico, estudando as sínteses de Bultmann e
alguns de seus críticos. Em certo sentido, esse é o ponto histórico e também a
matriz metodológica que orienta até hoje a cristologia em geral.
É preciso reconhecer a influência do pensamento de Bultmann no trabalho
de Queiruga. A preocupação do primeiro é quase que a obsessão do segundo:
tornar a linguagem religiosa inteligível e significativa para o ser humano atual.
Queiruga assume e continua o trabalho de demitização dos textos bíblicos e da
própria linguagem religiosa. E no que se refere à ressurreição de Jesus, ele assume
o caráter teológico e simbólico dos textos que narram esse evento, negando-lhes
que sejam provas históricas da ressurreição mesma.
Mas também existem divergências relevantes nas concepções cristológicas
de Bultmann e Queiruga. Uma delas, bastante caracterizada, está na
compreensão da ressurreição vinculada ao querigma. Pudemos ver que o
querigma apostólico é o núcleo de referência histórica da ressurreição e figura
como a expressão de uma comunidade que assume, no concreto de sua vida, a
convicção de que Jesus está ressuscitado. Queiruga concorda com a posição de
Bultmann de que o querigma é assumido na fé dos apóstolos e discípulos. Mas, no
seu entender, não foi a expressão do querigma que ressuscitou Jesus. Dito de outra
forma, Queiruga afirma que é a experiência da ressurreição de Jesus, com ato de
Deus e acolhido na , que fundamenta o querigma. Dessa forma, a desponta
como o elemento fundamental que possibilita compreender e vivenciar a
ressurreição.
Nessa ampla discussão sobre o Jesus histórico, pensando mais
especificamente sobre a ressurreição de Jesus, podemos afirmar que Queiruga não
aceita que a ressurreição seja histórica desde o ponto de vista de uma
interpretação literal dos textos bíblicos. Mas aceita que a ressurreição tem seu
gancho na história e é um evento que marca a própria história, uma vez que foi
assimilada na realidade concreta de pessoas inseridas no mundo.
99
Essa conclusão é assumida na esteira do pensamento de outras cristologias
muito bem fundamentadas, às quais pudemos fazer referências ao longo desse
trabalho. Essas cristologias, algumas clássicas como é o caso de Pannenberg,
Kasper e Schillebeeckx e outras ainda em desenvolvimento tais como Queiruga e
Moingt têm um parecer positivo quanto a historicidade da ressurreição. Esses
autores buscam, cada qual com enfoques determinados, um caminho de equilíbrio
ao conceber a ressurreição de Jesus. É possível dizer que eles assumem a
ressurreição como a ação de Deus que, pela pode ser assumida e vivenciada
pelos apóstolos e, na forma de testemunho, fez surgir o querigma. Esse é o
caminho para evitar a abstração absoluta da ressurreição contida na proposta de
Bultmann e, por outro lado, evitar o recuo ao historicismo ingênuo na leitura dos
textos bíblicos.
Um aspecto que ainda merece ser enfocado é o risco, nessa tentativa de
demitizar o texto bíblico, de se cometer algumas simplificações. É verdade que a
ressurreição não pode ser entendida como uma reanimação de um cadáver.
Também não é o retorno de um morto à mesma vida anterior. Os textos bíblicos
nem pretendem passar esse entendimento. Mas, como aludimos no final do
segundo capítulo com as citações de R. Brown e X. Léon-Dufour, é preciso
também respeitar a linguagem narrativa do texto. É na busca da sua
intencionalidade profunda e original, o que exige de nós por conta do
distanciamento temporal e diferença cultural um esforço hermenêutico intenso,
que poderemos nos manter fieis àquilo que a narrativa quer nos comunicar.
Parece bastante coerente esse alerta. E se de um lado certo consenso em
interpretar os textos do sepulcro vazio e os relatos das aparições como narrativas
desinteressadas pela precisão histórica, evitando a tentação de “materializar”
aquilo que é comunicado, por outro lado, sugerir que o corpo, o cadáver, tenha
permanecido no sepulcro, seguindo o destino natural próprio da realidade material
– mesmo que seja a possibilidade da realidade histórica – distancia-se daquilo que
os textos narram. E uma teologia, para ser coerente e fiel, precisa trabalhar
embasada naquilo que os textos afirmam e a partir daí desdobrar-se nas suas
especificidades. Parece que não nenhum ganho para a compreensão
compromissada da ressurreição afirmar que os textos bíblicos garantem provas
empíricas da ressurreição. Da mesma forma, nada de substancial é acrescentado à
na ressurreição supor que o cadáver permaneceu no sepulcro. A ressurreição de
100
Jesus foi manifestada, desde sua origem, numa perspectiva bem mais elevada. Isso
é assegurado pelos textos blicos e é a partir dessa realidade que se deve
desenvolver qualquer abordagem reflexiva.
O retorno ao texto bíblico é marca própria da cristologia na modernidade.
Depois de todo o desenvolvimento metodológico do estudo bíblico, seria por
demais simplista entender esses textos de forma literal. O que não significa que
seja legítimo renunciar ao esforço para interpretar e significar aquilo que é dito e
afirmado pelo texto. E o texto diz que o sepulcro estava vazio e que o
Ressuscitado se manifestou. Ainda que seja útil uma teologia negativa, cujo
enfoque se volta para determinar aquilo que o texto não diz, é preciso sempre e
cada vez mais construir uma teologia positiva que busca interpretar o que o texto
quer comunicar.
Caminhando para o final dessa dissertação, ainda parece oportuno frisar que
o trabalho realizado foi desenvolvido num enfoque circunscrito. A partir da
proposta de Queiruga, direcionamos nossa atenção na ressurreição de Jesus Cristo.
E como já foi dito na introdução do nosso trabalho, também tivemos amplo
suporte de outras bibliografias que foram relevantes para o desenvolvimento desse
tema.
Temos consciência do que fizemos: um trabalho que tratou sobre a
ressurreição de Jesus, uma temática abordada dentro da tradição da cristologia
moderna, a partir da questão do Jesus histórico. Tivemos a oportunidade de reler
os textos bíblicos sobre a ressurreição desde a ótica de Queiruga e demais autores
para apresentar suas principais conclusões.
Mas também sabemos aquilo que não fizemos. Ou seja, não foram
abordados os temas colateralmente vinculados com a ressurreição de Jesus Cristo.
Nosso trabalho não adentrou nos temas da escatologia que decorrem da na
ressurreição, mesmo sabendo da sua relevância. Também não tratamos do
significado da ressurreição de Jesus vinculado a nossa ressurreição. Sabemos que
Jesus ressuscitou como primícias de todos aqueles que vão ressuscitar (Ap, 1, 5).
E como já frisamos, a ressurreição de Jesus é paradigma da nossa ressurreição,
(cf. 1Cor 15). E também não adentramos nos desdobramentos antropológicos
específicos de se afirmar a ressurreição de Jesus e o que dela se predica para a
nossa compreensão cristológica. São todos conteúdos teológicos relacionados com
101
o tema tratado nessa dissertação, mas que não foram abordados no curso desse
trabalho.
É possível imaginar como seria pastoralmente interessante, principalmente
no nosso contexto sócio-eclesial bastante sincrético como é o caso do Rio de
Janeiro, trabalhar o tema da ressurreição desde o ponto de vista de um debate com
as diversas formas de interpretar a reencarnação. A atividade pastoral faz ver com
esses dois conceitos, distintos essencialmente, se confundem na consciência de
muitas pessoas religiosas. Certamente é um tema bastante sugestivo.
E essa constatação de natureza pastoral faz evidenciar a necessidade de
se continuar dando a devida atenção à ressurreição de Jesus, desde o suporte
teórico, mas ao mesmo tempo, evidenciando seu significado para a vida cotidiana.
Até mesmo porque, a ressurreição, antes de ser refletida e conceitualizada, foi
intuída e assumida na fé, e transformou e continua a transformar concretamente a
vida de quem acredita que Jesus ressuscitou. E, partilhando do mesmo
pensamento de Queiruga, é lamentável que temas fundamentais da fé,
amadurecidos e clarificados pela pesquisa blica e teológica, permaneçam ainda
tão distantes de serem assimilados pelas pessoas no comum da vida eclesial. Essa
ignorância sobre temas essenciais da fé só faz alimentar crendices que não
contribuem para a maturidade da e cria suspeita e distanciamento nas
consciências com um mínimo de esclarecimento.
A consciência daquilo que o fizemos se justifica pela delimitação que
preferimos seguir. Com a exceção do tema da reencarnação, os demais tópicos
citados são abordados, embora muito sinteticamente, por Queiruga. Mas
preferimos imprimir esforço justamente naquilo que é a abordagem central da sua
temática sobre a ressurreição, ou seja, refletir sobre a ressurreição de Jesus.
Chegado o final dessa pesquisa, vem aquela dupla sensação: a primeira é de
satisfação pelo percurso trilhado, desde as aulas, passando pela elaboração do
projeto de dissertação, leituras e o processo de redação. É gratificante concluir
etapas; a outra sensação nasce do questionamento crítico frente àquilo que foi
produzido. A expectativa inicial é, ainda bem que é assim, ampliada pelas
perspectivas que vão se abrindo a partir das leituras feitas.
Parece que nesse específico surgem duas grandes virtudes de um mestrado.
Pelo menos foi essa a nossa impressão particular: de um lado, aquela exigência
metodológica de trabalhar as informações dentro de um foco progressivo, sem se
102
perder nas generalizações diversas; de outro, faz criar a consciência que se apega
à sensibilidade daquela humildade acadêmica em perceber que a especialidade
adquirida num trabalho stricto sensu é muito limitada diante daquilo que existe
como fruto de pesquisa de outros.
Ao trabalhar a partir de literaturas consagradas no campo cristológico,
fica a certeza da obrigatoriedade, aquela própria que se impõe ao intelecto que
quer conhecer, de retornar a esses mesmos autores para continuar estudando o
somente o tema do qual nos ocupamos mais detidamente, mas o conjunto de suas
reflexões.
O significado da ressurreição de Jesus permanece na história, como um
convite incessante à reflexão, para que a que se move na sua direção seja
sempre mais esclarecida, gerando compromissos de expressar a vida do
Ressuscitado nas nossas vidas.
6
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